Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ZONA MORTA / Stephen king
ZONA MORTA / Stephen king

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Quando se diplomou na universidade, John Smith já se esque­cera da queda feia que levara no gelo, naquele dia de janeiro de 1953. Aliás, teria sido difícil lembrar-se dela mesmo quando se formou no primário. E nem a mãe nem o pai jamais souberam da queda.

Estavam patinando num local limpo da lagoa Runaround, em Durham. Os garotos maiores estavam jogando hóquei com paus velhos, enrolados em tiras, e usando cestos de batatas como gols. Os garotinhos estavam só correndo por ali, como fazem os garoti­nhos desde o princípio dos tempos: os tornozelos virando comica­mente para dentro e para fora, o hálito formando jatos de vapor no ar gélido de seis graus abaixo de zero. Num dos cantos da clareira de gelo havia dois pneus queimando, sujando o ar, e alguns pais estavam sentados por perto, vigiando os filhos. A era dos carros de neve ainda estava longe, e os divertimentos de inverno ainda eram exercitar o corpo, em vez de acionar um motor a gasolina.

Johnny tinha descido de casa, pouco além da linha de Pownal, com os patins pendurados do ombro. Aos seis anos, patinava bem direitinho. Ainda não dava para participar das partidas de hóquei dos mais velhos, mas já conseguia dar voltas em redor da maior parte dos outros garotos da primeira série, que estavam sempre girando os braços para se equilibrar ou se estatelando sobre os traseiros.

Ele então patinou devagar pela borda externa da clareira, de­sejando poder patinar de costas como. Timmy Benedix, escutando o gelo roncar e estalar misteriosamente debaixo da neve mais além, escutando também os gritos dos jogadores de hóquei, o ronco de um caminhão de polpa de madeira atravessando a ponte em direção à U. S. Gypsum, em Lisbon Falls, o murmurar das conversas dos adultos. Ele estava muito feliz por estar vivo naquele dia de inverno, frio e bonito. Não havia nada de errado com ele, nada o preocupava, ele não queria nada... a não ser saber patinar de costas, como Timmy Benedix.

Patinou pela fogueira e viu que dois ou três dos adultos esta­vam passando uma garrafa de bebida.

— Me dá um pouquinho aí! — gritou ele para Chuck Spier, todo agasalhado numa camisa de lenhador e calças de neve de flanela verde.

Chuck sorriu para ele.

— Dê o fora daqui, guri, estou ouvindo sua mãe chamando você.

Rindo, Johnny Smith, de seis anos, continuou a patinar. E do lado da área que dava para a estrada, viu Timmy Benedix em pessoa descendo a ladeira, com o pai atrás.

— Timmy! — gritou ele. — Olhe só!

Ele virou-se e começou a patinar de costas, desajeitado. Sem perceber, estava entrando na zona do jogo de hóquei.

— Ei, garoto! — gritou alguém. — Saia da frente!

Johnny não ouviu. Estava conseguindo! Estava patinando de costas! Tinha pegado o ritmo.., de repente. Era uma espécie de balançar das pernas...

Ele olhou para baixo, fascinado, para ver o que as pernas estavam fazendo.

O disco de hóquei dos garotos maiores, velho, riscado e arre­bentado nas bordas, deslizou por ele, sem ser visto. Um dos garotos grandes, que não patinava muito bem, estava perseguindo-o num impulso forte e quase cego.

Chuck Spier viu o que ia acontecer. Levantou-se e gritou:

—    Johnny! Cuidado!

John levantou a cabeça... e no instante seguinte o patinador desajeitado, com os seus setenta e dois quilos, bateu contra o peque­nino Johnny Smith, à toda.

Johnny saiu voando, os braços estendidos. Um momento depois a cabeça bateu no gelo e ele desmaiou; e ficou tudo preto.

Tudo preto... gelo preto.., tudo preto.., gelo preto... pre­to. Preto.

Disseram-lhe que ele tinha desmaiado. A única coisa de que ele tinha certeza era aquele pensamento estranho e repetido, e de repente estava olhando para um círculo de caras: jogadores de hóquei assustados, adultos preocupados, garotinhos curiosos. Timmy Benedix rindo-se. Chuck Spier estava segurando-o.

Gelo preto. Preto.

— O quê? — perguntou Chuck. — Johnny... você está bem? Levou um tranco e tanto.

— Preto — disse Johnny, numa voz gutural. — Gelo preto. Não ligue mais, Chuck.

Chuck olhou em volta, meio assustado, e depois de novo para Johnny. Tocou no galo enorme que estava se formando na testa do menino.

—    Desculpe — disse o desajeitado jogador de hóquei. — Nem o vi. Os garotinhos não podem chegar perto do hóquei. São as regras. — Olhou em volta, inseguro, procurando apoio.

—    Johnny? — disse Chuck. Não estava gostando de ver os olhos de Johnny. Estavam escuros e distantes, frios. — Você está bem?

—    Não ligue mais — disse Johnny, sem saber o que estava dizendo, só pensando no gelo... gelo negro. — A explosão. O ácido.

—    Acha que devemos levá-lo ao médico? — perguntou Chuck a Bill Gendron. — Não sabe o que está falando.

—    Dê-lhe um tempo — aconselhou Bill.

Deram-lhe um tempo, e com efeito a cabeça de Johnny desa­nuviou-se.

—    Estou bem — murmurou ele. — Deixe-me levantar.

Timmy Benedix continuava a rir dele o diabo. Johnny resolveu que ia mostrar a Timmy. No fim da semana, havia de estar descre­vendo círculos em volta de Timmy... para a frente e para trás.

— Venha sentar aqui perto do fogo um pouco — disse Chuck. —      Levou um tranco e tanto.

Johnny deixou que o ajudassem a ir até a fogueira. O cheiro da borracha queimada estava forte e pungente, o que o deixou meio enjoado. Estava com dor de cabeça. Tocou no galo acima do olho esquerdo, curioso. Parecia estar gigantesco.

— Você se lembra de quem você é, e tudo? — perguntou Bill.

— Claro. Claro que sim. Estou bem.

—    Quem são os seus pais?

— Herb e Vera. Herb e Vera Smíth.

Bill e Chuck se entreolharam e deram de ombros.

—    Acho que ele está bem — disse Chuck, e então, pela ter­ceira vez: — mas ele levou um tranco e tanto, não foi? Puxa!

—    Esses garotos — disse Bill, olhando com carinho para as filhas gêmeas, de oito anos, patinando de mãos dadas, e depois de novo para Johnny: — Ele poderia ter matado um adulto.

— Não um polaco — retrucou Chuck, e os dois caíram na gargalhada. A garrafa de bebida voltou a circular.

Dez minutos depois Johnny já estava no gelo de novo, a dor de cabeça já passando, o machucado encalombado destacando-se na testa como uma marca fantástica. Quando ele voltou para casa para almoçar, já se esquecera da queda, do desmaio, na alegria de ter aprendido a patinar de costas.

—    Deus do céu! — exclamou Vera Smith, ao vê-lo. — Como é que arranjou isso aí?

—    Caí — disse ele, começando a engolir a sopa de tomate.

—    Você está bem, John? — perguntou ela, tocando no galo de leve.

— Claro, mãe. — E estava, mesmo.., a não ser os pesadelos que teve de vez em quando, no mês seguinte.., os pesadelos e a tendência para às vezes ficar muito sonolento em certas horas do dia em que antes nunca tivera sono. E isso parou de acontecer mais ou menos na ocasião em que cessaram os pesadelos.

Ele estava bem.

Em meados de fevereiro, Chuck Spier levantou-se um dia e viu que a bateria do seu velho De Soto 1948 tinha pifado. Tentou fazer o carro pegar ligando-a no caminhão do sítio. Quando foi ligar o segundo cabo à bateria do De Soto, ela explodiu na cara dele, cobrindo-o de fragmentos e do ácido corrosivo da bateria. Ele perdeu um olho. Vera disse que foi uma graça divina ele não ter perdido os dois. Johnny achou que era uma tragédia terrível e foi com o pai visitar Chuck no Hospital Geral de Lewiston, uma se­mana depois do acidente. Ao ver o imenso Chuck deitado naquela cama de hospital, parecendo estranho, gasto e pequeno, Johnny ficou muito impressionado, e naquela noite sonhou que era ele que estava ali.

De vez em quando, nos anos que se seguiram, Johnny tinha pressentimentos: como, por exemplo, saber qual seria o disco seguin­te a ser tocado no rádio, antes de ser colocado pelo disc jockey, esse tipo de coisa.., mas nunca ligou isso ao acidente no gelo. A essa altura, já se esquecera daquilo.

E os pressentimentos nunca eram assim tão surpreendentes, nem mesmo freqüentes. Foi só na noite da feira e da máscara que aconteceu alguma coisa muito espantosa. Antes do segundo acidente.

Mais tarde, ele pensou muito nisso.

A coisa com a roda da fortuna acontecera antes do segundo acidente.

     Como uma advertência de sua infância.

 

 

 

 

O vendedor ambulante cruzou, incansável, os Estados de Ne­braska e Iowa, sob o sol de rachar daquele verão de 1955. Estava dirigindo um Mercury sedã 1953, que já estava com mais de cento e dez mil quilômetros. O Mercury estava apresentando um chiado bem nítido nas válvulas. Ele era um homem grande, que ainda conservava o aspecto de rapaz do centro-oeste, alimentado a milho; naquele verão de 1955, apenas quatro meses depois que o negócio de pintura de casas que ele tinha em Omaha falira, Greg Stillson tinha só vinte e dois anos.

O porta-malas e o banco de trás do Mercury estavam cheios de caixas, e as caixas, cheias de livros. A maior parte eram Bíblias, de todos os tipos e tamanhos. Havia o artigo básico, A Bíblia Ame­ricana Caminho da Verdade, com dezesseis ilustrações em cores, encadernada com cola de avião, por um dólar e sessenta e nove cents, e cuja solidez era garantida por pelo menos dez meses; depois, para o bolso mais pobre, havia o Novo Testamento Americano Caminho da Verdade, por sessenta e cinco cents, sem ilustrações, mas com as palavras do Nosso Senhor Jesus Cristo impressas em vermelho; e para os perdulários havia a Palavra de Deus Americana Caminho da Verdade de Luxo, por dezenove dólares e noventa e cinco cents, encadernada em uma imitação de couro branco, o nome do com­prador a ser gravado em folha de ouro na primeira página do livro, com vinte e quatro ilustrações em cores, e no meio uma parte para se anotar os nascimentos, casamentos e enterros. E a Palavra de Deus de Luxo poderia permanecer intacta até durante dois anos. Havia ainda uma caixa de brochuras intituladas América, caminho da verdade: A conspiração comunista-judaica contra os nossos Esta­dos Unidos.

Greg fazia mais negócios com essa brochura, impressa em ma­terial barato, de pasquim, do que com todas as Bíblias juntas. O livro contava que os Rothschilds, os Roosevelts e os Greenblatts estavam tomando conta da economia e do governo dos EUA. Havia gráficos mostrando que os judeus eram diretamente relacionados com o eixo comunista-marxista-leninista-trotskista, e daí com o próprio Anticristo.

A era do macarthismo acabara em Washington havia pouco; no centro-oeste, a estrela de Joe McCarthy ainda não declinara, e Mar­garet Chase Smith, do Maine, era conhecida como “aquela vaca” por sua famosa Declaração de Consciência. Além do material sobre comunismo, a clientela rural de Greg Stillson parecia ter um inte­resse mórbido pela idéia de que os judeus estavam dirigindo o mundo.

Greg então entrou na estrada empoeirada de uma casa de fa­zenda uns trinta quilômetros a oeste de Ames, Iowa. A casa tinha um aspecto abandonado e fechado, com as cortinas cerradas e as portas do estábulo fechadas, mas nunca se pode saber sem tentar. Esse princípio prestara bons serviços a Greg Stillson no período de uns dois anos, desde que ele se mudara com a mãe de Oklahoma para Omaha. O negócio de pintura de casas não havia sido lá essas coisas, mas ele tinha achado necessário tirar o gosto de Jesus da boca, por algum tempo, se perdoam a ligeira blasfêmia. Mas agora ele estava de volta a casa, e dessa vez não do lado do púlpito nem dos revivificados, e era um alívio estar enfim fora do negócio dos milagres.

Abriu a porta do carro e, quando pisou a terra da entrada de carros do estábulo, um cão grande e feroz avançou para ele, as orelhas esticadas para trás. E começou a latir.

— Olá, cão — disse Greg, com sua voz baixa, agradável, mas possante; aos vinte e dois anos, já era a voz de um locutor ex­periente.

O cão não reagiu à simpatia da voz dele. Continuou a avançar, grande e malvado, decidido a um bom almoço de vendedor ambu­lante. Greg voltou a sentar-se no carro, fechou a porta e buzinou duas vezes. O suor lhe escorria pelo rosto e fazia o terno de linho branco ficar cinza mais escuro em manchas circulares debaixo dos braços e numa forma de galhos de árvore nas costas. Ele tornou a buzinar, mas não teve resposta. Os roceiros tinham se metido no trator ou no carro velho e ido para a cidade.

Greg sorriu.

Em vez de dar marcha à ré e sair da entrada, ele estendeu a mão para trás e pegou uma bomba de Flit: só que aquela estava cheia dê amônia, em vez de Flit.

Puxando o êmbolo para trás, Greg tornou a saltar do carro, sorrindo, à vontade. O cão, que se agachara, imediatamente tornou a levantar-se e a avançar para ele rosnando.

Greg continuava a sorrir.

— Isso mesmo, cãozinho — disse ele, com aquela voz agradável e possante. — Pode vir. Venha para ver. — Ele tinha ódio desses cães feios de fazenda que dominavam o seu pingo de quintal como pequenos césares arrogantes; eles também mostravam alguma coisa sobre seus donos.

— Bando de caipiras fodidos — disse ele, baixinho, ainda sor­rindo. — Venha, cãozinho.

O cão avançou. Aprumou-se para dar o salto. No estábulo uma vaca mugiu, e o vento farfalhava baixinho no milho. Quando o cão saltou, o sorriso de Greg transformou-se numa careta dura e amarga. Ele empurrou o êmbolo da bomba de Flit e borrifou uma nuvem de pingos de amônia ardente bem nos olhos e no focinho do cachorro.

Seus latidos furiosos imediatamente se transformaram em ganidos breves e agonizantes, e depois, quando sentiu mesmo o efeito da amônia, em uivos de dor. Ele logo fugiu, não mais um cão de guarda, mas um simples vira-lata vencido.

A fisionomia de Greg Stillson estava fechada, seus olhos pare­ciam fendas feias. Ele avançou depressa e deu um pontapé brutal na anca do cão, com um de seus sapatos de bico fino. O cachorro deu um ganido alto e um gemido, e, levado pela dor e pelo medo, selou o seu destino, virando para lutar contra o autor de sua des­graça, em vez de correr para o estábulo.

Com um rugido, ele atacou às cegas, agarrou a bainha da perna direita das calças de linho de Greg e rasgou-a.

—    Seu filho da puta! — exclamou ele, numa raiva assustada, e tornou a chutar o cão, dessa vez com tanta força que o fez rolar na terra. Tornou a avançar sobre o cachorro, chutando-o de novo, ainda berrando. Então o cachorro, os olhos lacrimejando, o nariz numa agonia de fogo, com uma costela quebrada e outra destron­cada, percebeu seu perigo nas mãos daquele louco, mas era tarde.

Greg Stillson perseguiu-o pelo quintal de terra do sítio, ofegan­do e gritando, o suor lhe escorrendo pelo rosto, e chutou o cachorro até este ficar berrando, mal conseguindo arrastar-se pela terra. O cão estava sangrando em meia dúzia de lugares. Estava morrendo.

— Não devia ter me mordido — murmurou Greg. — Está ouvindo? Está me ouvindo? Não devia ter me mordido, seu cachorro de merda. Ninguém pode me atrapalhar. Está entendendo? Nin­guém! — Deu mais um pontapé com a ponta do sapato cheia de sangue, mas o cão só conseguiu fazer um barulho baixinho e sufo­cado. Não tinha muita graça, isso. Greg estava com a cabeça dolo­rida. Era do sol. Perseguir o cachorro no sol forte. Uma sorte ele não desmaiar.

Fechou os olhos por um instante, respirando, ofegante, o suor escorrendo-lhe pelo rosto como lágrimas e aninhando-se em seus cabelos como pérolas, o cão arrebentado morrendo aos seus pés. Pontinhos de luzes coloridas, latejando no mesmo ritmo que seu coração, flutuavam pela escuridão por trás de suas pálpebras.

Estava com a cabeça doendo.

Às vezes pensava se não estaria ficando louco. Como agora. Ele pretendia dar uma bombada com a bomba de amônia no cão e expulsá-lo para o estábulo, para poder deixar o cartão de visita na fresta da porta de tela. E voltar outro dia, para vender alguma coisa. E agora, olhe só. Olhe só essa bagunça. Não podia deixar o cartão agora, podia?

Abriu os olhos. O cão estava aos pés dele, ofegante, o sangue escorrendo do focinho. Quando Greg Stillson olhou para baixo, o cão lambeu o sapato dele, com humildade, como que para reconhecer que tinha sido vencido, e depois voltou à tarefa de morrer.

— Não devia ter rasgado minhas calças — disse-lhe o homem. —     Essas calças me custaram cinco dólares, seu cão de merda.

Tinha de sair dali. Não teria nada a ganhar se o dono do sítio, a mulher e os seis filhos voltassem da cidade agora no carro velho e vissem Fido morrendo, e o vendedor malvado ali junto dele. Perderia o emprego. A Companhia Americana Caminho da Verdade não empregava vendedores que matavam cães pertencentes a cristãos.

Com uma risada nervosa, Greg voltou ao Mercury, entrou e deu marcha à ré depressa, saindo da entrada da casa. Virou para leste na estrada de terra que seguia reta como um fio pelo milharal, e em breve estava correndo a cem por hora, deixando uma nuvem de pó de três quilômetros atrás de si.

Certamente, não queria perder o emprego. Ainda não. Estava ganhando bem: além dos truques que eram do conhecimento da Companhia Americana Caminho da Verdade, Greg tinha acrescentado alguns que só ele conhecia. Ele agora estava se fazendo. Além disso, viajando, ele conhecia muita gente.., uma porção de garotas. Era uma boa vida, a não ser...

A não ser que ele não estava satisfeito.

Continuou a dirigir, a cabeça latejando. Não, não estava satis­feito. Sentia que estava destinado a coisas maiores do que andar pelo centro-oeste, vendendo Bíblias e alterando as folhas de requisição para poder ganhar mais dois dólares por dia. Sentia que estava destinado a... a...

À grandeza.

era isso, certamente era isso. Umas semanas antes ele tinha levado uma garota para o paiol de feno, quando o pessoal dela esta­va em Davenport vendendo um caminhão de galinhas; ela começara perguntando se ele não queria um copo de limonada, e uma coisa leva a outra, e, depois que ele a possuíra, ela dissera que era quase como ser lograda por um pregador, e ele batera nela, sem nem saber por quê. Batera nela e depois fora embora.

Bem, não.

De fato, ele batera nela umas três ou quatro vezes. Até ela chorar e gritar por socorro, e então ele parara e, de algum modo

—    tivera de usar todo o encanto que Deus lhe dera —, fizera as pazes com ela. Naquela ocasião também estava com a cabeça doendo, os pontinhos de luz aparecendo e chispando no seu campo de visão, e procurou dizer a si mesmo que era o calor, o calor explosivo no paiol de feno, mas não era só o calor que fazia sua cabeça doer. Era a mesma coisa que ele sentira no quintal, quando o cão lhe rasgara as calças, uma coisa tenebrosa e louca.

— Não estou maluco — disse ele no carro, em voz alta. Baixou o vidro da janela depressa, deixando entrar o calor do verão e o cheiro de poeira, milho e estrume. Ligou o rádio bem alto e pegou uma canção de Patti Page. A dor de cabeça diminuiu um pouco.

Era tudo uma questão de se controlar e... ter uma ficha lim­pa. Se ele fizesse essas coisas, ninguém poderia atingi-lo. E ele estava melhorando, em ambos os sentidos. Não sonhava mais tantas vezes com o pai, sonhos em que o pai aparecia dominando-o, o capacete levantado para trás na cabeça, berrando: “Você não presta, nanico! Você não presta para porra nenhuma!”

Ele não sonhava tanto agora porque os sonhos simplesmente não eram verdade. Ele não era mais nanico. Verdade, em criança ele tinha sido doentio, pequenino, mas crescera, estava tomando conta da mãe...

E o pai tinha morrido. O pai não podia ver. Não podia fazer o pai engolir aquelas palavras porque o pai tinha morrido na explo­são de uma torre de petróleo, e por uma vez, só uma vez, Greg gostaria de desenterrá-lo e berrar naquela cara apodrecida: “Você estava enganado, pai, estava enganado comigo!”, e depois dar-lhe um bom pontapé, do jeito que...

Do jeito que tinha dado pontapés no cachorro.

A dor de cabeça voltara.

— Não estou maluco — tornou a dizer, sob o som da música. Sua mãe muitas vezes lhe dissera que ele estava destinado a uma coisa grandiosa, e Greg acreditava nisso. Era apenas uma questão de manter as coisas — como bater na pequena ou chutar o cão — sob controle, e ter uma ficha limpa.

Fosse qual fosse sua grandeza, ele saberia quando ela chegasse. Disso, tinha certeza.

Tornou a pensar no cão, e dessa vez a idéia provocou um esboço de sorriso, sem humor nem compaixão.

A grandeza dele estava a caminho. Poderiam faltar anos ainda... ele era jovem, certo, nada de mais a gente ser jovem, contanto que entendesse que não é possível ter tudo de uma vez. Contanto que achasse que as coisas viriam com o tempo. E ele acreditava nisso.

E Deus e o Filho Jesus que ajudassem a quem se metesse em seu caminho.

Greg Stillson pôs o cotovelo bronzeado para fora da janela e começou a assobiar, acompanhando o rádio. Pisou no acelerador, levando o velho Mercury a cento e dez por hora, e foi seguindo pela reta dos campos de Iowa para o que o futuro lhe pudesse trazer.

 

As duas coisas de que Sarah se lembrou mais tarde, sobre aquela noite, foram a sorte dele na roda da fortuna e a máscara. Mas, com o passar do tempo, dos anos, era na máscara que ela pensava.., quando conseguia forçar-se a pensar naquela noite horrível.

Ele morava em um prédio de apartamentos em Cleaves Mills. Sarah chegou lá às quinze para as oito, estacionando na esquina e tocando a campainha para entrar. Naquela noite iam no carro dela porque o de Johnny estava na oficina de Tibbets, em Hampden, com um problema de rolamento, ou coisa que o valha. Alguma coisa cara, conforme dissera Johnny, ao telefone, e depois ele dera uma risada típica de Johnny Smith. Sarah estaria em prantos se fosse o carro dela.., o bolso dela.

Sarah atravessou o vestíbulo até a escada, passando pelo quadro de avisos pendurado ali. Estava cheio de cartões anunciando motos, partes de aparelhos de som, serviços de datilografia e pedidos de pessoas que estavam precisando de condução para o Kansas ou para a Califórnia, pessoas que iam de carro para a Flórida e precisavam de companhia para ajudar a dirigir e partilhar as despesas de gaso­lina. Mas naquela noite o quadro estava dominado por um grande cartaz mostrando um punho cerrado contra um fundo belicoso e vermelho, sugerindo o fogo. A única palavra no cartaz era GREVE! Era o fim do mês de outubro de 1970.

Johnny morava no apartamento de frente do segundo andar — a cobertura, conforme ele dizia —, onde se podia ficar de smoking, como Ramon Navarro, com uma boa dose de vinho num cálice, e contemplar o coração vasto e palpitante de Cleaves Mills: o pessoal apressado depois do cinema, os táxis movimentando-se, as luzes fluorescentes. Há quase sete mil histórias na cidade nua. Esta foi uma delas.

Na verdade, Cleaves Mills era, em essência, uma rua princi­pal com um semáforo no cruzamento, cerca de duas dúzias de lojas e uma pequena fábrica de mocassins. Como acontecia com a maior parte das cidades em volta do Orono, onde ficava a Uni­versidade do Maine, sua verdadeira indústria era o fornecimento do material consumido pelos estudantes — cerveja, vinho, gasolina, rock, comidas incrementadas, drogas, alojamentos, cinema. O cine­ma chamava-se The Shade. Exibia filmes de arte e retrospectivas nostálgicas dos anos 40, durante o ano letivo. No verão voltava aos bangue-bangues do tipo italiano, de Clint Eastwood.

     Tanto Johnny como Sarah já tinham acabado os estudos havia um ano, e ambos ensinavam no ginásio de Cleaves Mills, um dos poucos ginásios da zona que não se havia consolidado num distrito de três ou quatro cidades. O corpo docente e a administração, bem como os estudantes da universidade, usavam Cleaves como dormi­tório, e a cidade tinha uma coleta de impostos invejável. Também tinha um belo ginásio, com uma ala de comunicações nova em folha. O pessoal da cidade podia xingar os universitários com suas con­versas sabidas, suas manifestações comunistas para acabar com a guerra e sua intromissão na política municipal, mas nunca recusava o dinheiro dos impostos pagos anualmente sobre as belas casas do corpo docente e os prédios de apartamentos do bairro, que alguns estudantes chamavam de pocilgas e cortiços­. Sarah bateu à porta e ouviu a voz de Johnny, estranhamente abafada, dizendo:

— Está aberta, Sarah!

Franzindo a testa, ela empurrou a porta. O apartamento de Johnny estava na mais completa escuridão, só se vendo o brilho amarelo ocasional do sinal luminoso no meio do quarteirão. Os móveis pareciam sombras negras.

— Johnny...?

Pensando que talvez houvesse algum fusível queimado, ou algu­ma outra coisa, ela deu um passo à frente, experimentando.., e então apareceu a cara diante dela, flutuando no escuro, uma cara horrível, de pesadelo. Brilhava num tom verde e espectral, putrefato. Um dos olhos estava aberto, e parecia olhá-la com um medo ma­goado. O outro estava apertado, num esgar sinistro. A metade esquerda da cara, a metade com o olho aberto, parecia ser normal. Mas a metade direita era o rosto de um monstro, repuxado e desumano, os lábios grossos e arreganhados, revelando dentes pon­tudos, também brilhantes.

Sarah deu um grito abafado e recuou, tropeçando. Aí as luzes se acenderam, e era apenas o apartamento de Johnny, em vez de um limbo negro, com Nixon na parede tentando vender carros usados, no chão o tapete trançado feito pela mãe de Johnny, as garrafas de vinho servindo de castiçais. A cara parou de brilhar, e ela viu que era uma máscara barata do Dia das Bruxas, nada mais. Os olhos azuis de Johnny faiscavam pelas aberturas dos olhos, olhan­do para ela.

Ele tirou a máscara e ficou sorrindo para ela, simpático, de jeans desbotados e um suéter marrom.

— Feliz Dia das Bruxas, Sarah — disse ele.

O coração dela ainda estava disparado. Ele a assustara de verdade.

— Muito engraçado! — disse ela, e virou-se para sair. .— Não gosto de levar um susto desses.

Ele a pegou já na porta.

— Ei... desculpe.

— E. é mesmo para se desculpar.

Ela olhou para ele com frieza, ou pelo menos tentou. A raiva já estava passando. Não se podia ficar com raiva de Johnny, o problema era esse. Quer ela o amasse ou não — coisa que ainda estava querendo resolver —, era impossível ficar zangada com ele por muito tempo, ou ter ressentimento dele. Ela não sabia se alguém já conseguira alimentar rancor contra Johnny, e a idéia era tão ridícula que ela teve de sorrir.

— Pronto, agora está melhor. Menino, pensei que você ia me dar o fora.

— Não sou um menino.

Ele a contemplou.

— É o que notei.

Ela estava com um volumoso casaco de peles — imitação de guaxinim ou de outra coisa igualmente vulgar —, e a malícia ino­cente dele a fez sorrir de novo.

— Com esse negócio, não se pode dizer.

— Ah, mas eu posso dizer, sim — disse ele. Passou o braço em volta dela e beijou-a. A princípio ela não ia retribuir o beijo, mas claro que o fez.

— Sinto muito tê-la assustado — disse ele, esfregando o nariz dela com o seu, agradando-a, antes de soltá-la. Levantou a máscara. — Pensei que você fosse achar isso interessante. Vou usá-la na escola, na sexta-feira.

— Ah, Johnny, isso não vai ser lá muito bom para a disciplina.

Dou um jeito — disse ele, sorrindo. E o diabo é que daria mesmo.

     Ela ia ao colégio todo dia com óculos enormes, bem de pro­fessora, os cabelos puxados num coque tão severo que era um exa­gero. Usava as saias pouco acima dos joelhos, numa época em que a maioria das garotas as usavam logo abaixo das calcinhas (e as mi­nhas pernas são mais bonitas do que as de qualquer delas, pensava Sarah, ressentida). Tinha quadros alfabéticos para a distribuição dos lugares na sala de aula, que, pelo menos segundo a lei das proba­bilidades, deviam manter os alunos difíceis afastados uns dos outros, e costumava mandar os indisciplinados para o diretor assistente, raciocinando que ele ganhava mais quinhentos dólares por ano para bancar o durão, e ela não. Não obstante, seus dias eram uma luta constante com aquele demônio dos professores novatos, a Disciplina. E o que era mais perturbador: ela começara a sentir que havia um júri coletivo, não expresso — uma espécie de consciência colegial, talvez —, que formava o juízo sobre todo professor novo, e que o veredicto a respeito dela não era lá muito bom.

Johnny, aparentemente, parecia ser a antítese de tudo o que deveria ser um bom professor. Perambulava de uma aula para a outra numa espécie de aturdimento simpático, atrasando-se muitas vezes por ter parado para conversar com alguém, entre um sinal e outro. Deixava os garotos se sentarem onde bem entendessem, de modo que nunca as mesmas caras estavam no mesmo lugar, de um dia para outro (e os endiabrados da turma invariavelmente gravita­vam para o fundo da sala). Assim, Sarah não conseguiria saber os nomes deles antes de março, mas Johnny parecia já conhecê-los todos. Ele era alto e tinha uma tendência para se curvar, e os garotos o chamavam de Frankenstein. Johnny, em vez de se indignar, parecia achar graça nisso. No entanto, as turmas dele em geral eram sosse­gadas e bem-comportadas, poucos fariam gazeta (Sarah tinha um problema constante com os guris que matavam aula), e aquele mesmo júri parecia ser favorável a ele. Ele era o tipo de professor que em dez anos teria o anuário do colégio dedicado a ele. Ela, não. E às vezes, pensando nisso, ficava quase alucinada.

— Quer tomar uma cerveja, antes de sairmos? Um cálice de vinho? Alguma coisa?

— Não, mas espero que você vá bem preparado — disse ela, pegando o braço dele e resolvendo não ficar mais zangada. — Sem­pre como pelo menos três cachorros-quentes. Especialmente quando é a ultima feira do ano.

Eles iam a Esty, a trinta quilômetros ao norte de Cleaves Mills, cidade cuja única e vaga pretensão à fama era o fato de realizar POSITIVAMENTE A ÚLTIMA EXPOSIÇAO AGRÍCOLA DO ANO NA NOVA INGLATERRA. A feira seria encerrada na noite de sexta-feira, Dia das Bruxas.

— Levando em conta que sexta-feira é dia de pagamento, estou indo bem. Tenho oito dólares.

     — Ai... meu... Deus — disse Sarah, girando os olhos. — Eu sempre soube que, se me conservasse pura, um dia havia de encontrar um coronel.

Ele sorriu e concordou.

—    Nós, os caftens, ganhamos dinheiro graúdo, benzinho. Dei­xe-me pegar o casaco e vamos.

Ela olhou para ele com uma afeição irritada, e a voz que cada vez mais se faria ouvir em sua mente — no chuveiro, quando ela estava lendo, preparando uma aula ou preparando seu jantar para uma só pessoa — tornou a soar, como um daqueles anúncios de. utilidade pública de trinta segundos na TV: “Ele é ótimo rapaz e tudo isso, fácil de se conviver, divertido, nunca faz você chorar. Mas isso será amor? Quero dizer, é só isso o que há? Mesmo quando você aprendeu a andar de bicicleta, teve de cair algumas vezes e arranhar os joelhos. Um rito de transição, digamos. E isso foi apenas uma coisa sem importância”.

— Vou ao banheiro — disse ele.

— Hummm. — Ela sorriu de leve. Johnny era uma dessas pessoas que sempre mencionam suas necessidades naturais... Deus sabe por quê.

Ela foi até a janela e olhou para a rua principal. Os garotos estavam chegando ao estacionamento ao lado da O’Mike, a pizzaria e cervejaria local. De repente ela sentiu vontade de estar de novo entre eles, ser um deles, deixando para trás aquela confusão.., ou ainda não a ter atingido. A universidade era um lugar seguro. Era um tipo de Terra do Nunca, em que todo mundo, até mesmo os professores, podiam fazer parte da turma de Peter Pan e nunca crescer. E sempre haveria um Nixon ou um Agnew para representar o papel de capitão Gancho.

Ela conhecera Johnny quando eles começaram a dar aulas, em setembro, mas já o conhecia de vista dos cursos de educação que haviam feito Juntos. Ela estava saindo com um universitário da fraternidade Delta Tau Delta e nenhum dos conceitos que se apli­cavam a Johnny se aplicavam a Dan. Este era de uma beleza quase impecável, de um espírito agudo e irrequieto que sempre a deixava meio constrangida, beberrão, e ardoroso como amante. Por vezes, quando bebia, mostrava-se malvado. Ela se lembrava de uma noite no Brass Rail, de Bangor, em que isso tinha acontecido. O homem que estava no reservado ao lado fizera uma pilhéria sobre alguma coisa que Dan dissera sobre o time de futebol da UMO, e Dan perguntara se ele tinha vontade de voltar para casa com a cabeça ao contrário. O homem se desculpara, mas Dan não queria des­culpas; queria era uma briga. Começou a fazer comentários pessoais sobre a mulher que estava com o outro homem. Sarah tinha posto a mão no braço de Dan, pedindo que ele parasse. Dan repelira a mão dela e a olhara com uma luz estranha e vazia nos olhos, que a fez engolir qualquer outra palavra que pudesse querer proferir. Dan e o outro cara acabaram indo para fora, e Dan deu uma surra no outro. Dan espancou o outro, que devia ter seus trinta e tantos anos e já era meio pançudo, até ele começar a berrar. Sarah nunca tinha ouvido um homem berrar.., e nunca mais queria ouvir aquilo. Eles tiveram de sair às pressas, porque o dono do bar viu o que estava acontecendo e chamou a polícia. Ela teria ido sozinha para casa, naquela noite (“Ah?, tem certeza?”, perguntou sua mente, maldosa), mas a universidade ficava a vinte quilômetros de distância, e os ônibus paravam de circular às seis da tarde e ela estava com medo de pedir carona.

Dan não falou nada, durante a volta. Estava com um arranhão em uma das faces. Só um arranhão. Quando eles chegaram a Hart Hall, dormitório dela, ela disse a ele que não queria mais vê-lo.

—    Como quiser, benzinho — disse ele, com uma indiferença que a gelara; e da segunda vez que ele telefonou, depois do inci­dente no Brass Rall, ela saíra com ele. Uma parte de seu ser se odiara por isso.

O caso continuou durante todo aquele semestre de outono do seu último ano. Ele a assustava, ao mesmo tempo em que a atraía. Foi o primeiro amante que ela teve, de verdade, e até aquele momento, dois dias antes do Dia das Bruxas de 1970, fora seu único amante de verdade. Ela e Johnny nunca tinham ido para a cama.

Dan era muito bom nisso. Ele a usara, mas era muito bom. Não quisera tomar qualquer precaução, de modo que ela teve de ir à enfermaria da universidade, onde falou alguma coisa sobre uma menstruação dolorosa, e lhe deram a pílula. Sexualmente, Dan a dominara o tempo todo. Ela não teve muitos orgasmos com ele, mas a própria brutalidade dele lhe provocou alguns, e durante as sema­nas antes de acabar o caso ela começara a sentir a avidez da mulher madura pelo sexo, um desejo que era perturbadoramente misturado com outros sentimentos: uma aversão tanto por Dan quanto por si mesma, uma sensação de que o sexo que dependesse tanto da humilhação e dominação não podia ser considerado realmente “sexo bom”, e desprezo por si, por não conseguir pôr um fim a um relacionamento que parecia basear-se em sentimentos de destruição.

Tudo terminou depressa, no princípio do ano. Ele foi repro­vado.

— Para onde você vai? — perguntou ela, com timidez, sen­tada na cama do companheiro de quarto dele, enquanto ele jogava as roupas em duas valises. Queria fazer outras perguntas, mais pessoais. Vai ficar aqui por perto? Vai trabalhar? Estudar de noite? Há lugar para mim, em seus planos? Essa pergunta, acima de todas, ela não conseguiu fazer. Porque não estava preparada para resposta alguma. A resposta que ele deu à sua única pergunta, bastante neutra, já foi bastante chocante.

—    Para o Vietnam, imagino.

—    O quê?

Ele remexeu nuns papéis numa prateleira e jogou uma carta para ela, era ao centro de recrutamento de Bangor: uma ordem para se apresentar para o exame de saúde.

— Você não pode dar o fora disso?

—    Não. Talvez, não sei. — Ele acendeu um cigarro. — Acho que nem quero tentar.

Ela o fitara, chocada.

— Estou farto desse negócio. Universidade, arranjar um em­prego e uma mulherzinha. Imagino que você fosse candidata ao cargo de mulherzinha. E não pense que não pensei nisso. Não daria certo. Você sabe que não, e eu também. Nós não combinamos­, Sarah.

Ela então fugira, todas as perguntas respondidas, e nunca mais o viu. Viu o companheiro de quarto dele algumas vezes. Ele rece­beu três cartas de Dan, entre janeiro e junho. Ele fora convocado e mandado para algum lugar no sul para o treinamento básico. E foram as últimas noticias que teve o companheiro de quarto. Tam­bém foram as últimas notícias que teve Sarah Bracknell.

A princípio, ela pensou que se daria bem. Todas aquelas can­ções tristes e saudosas, as que a gente sempre escuta no rádio depois da meia-noite, não se aplicavam a ela. Nem os chavões sobre o fim do caso ou os acessos de choro. Ela não se meteu com ninguém, só para se desforrar, nem andou pelos bares. Passou a maior parte das noites daquela primavera estudando, sossegada, no seu quarto do dormitório. Foi um alívio. Não foi nada confuso.

Só depois que ela conheceu Johnny — numa festa de calouros, no mês anterior; ambos estavam tomando conta dos alunos, por pura obra do acaso — é que se deu conta do horror que tinha sido o último semestre na universidade. Era o tipo de coisa que a gente não pode ver quando está dentro dela, pois faz parte da gente. Dois burros se encontram numa cerca, numa cidade do oeste. Um deles é um burro da cidade, e só tem a sela sobre o lombo. O outro é um burro de garimpeiro, carregado de mochilas, equi­pamento de cozinha e de acampamento, e quatro sacos de minério de vinte quilos cada. O burro da cidade diz: Um bocado de carga, a que você leva. E o burro do garimpeiro diz: Que carga?

Em retrospecto, foi o vazio que a horrorizou: foram cinco meses de respiração Cheyne-Stokes. Oito meses, contando o verão, quando ela alugou um pequeno apartamento na Flagg Street, em Veazie, e não fez mais nada a não ser candidatar-se a empregos de professora e ler romances em brochura. Levantava-se, tomava o café da manhã, saía para alguma aula ou entrevista programada, voltava para casa, comia, cochilava (os cochilos às vezes duravam até quatro horas), tornava a comer, lia até mais ou menos onze e meia da noite, via a TV até sentir sono, e ia para a cama. Não se lembrava de ter pensado durante aquele período. A vida era uma rotina. Às vezes havia uma vaga espécie de dor em suas entranhas, uma dor de insatisfação, como as romancistas a chamavam às vezes, achava ela, e para isso ela tomava ou um banho de chuveiro frio ou uma lavagem. Depois de algum tempo as lavagens se tornaram dolorosas, e isso lhe deu um tipo de satisfação amarga e ausente.

Durante esse período, ela de vez em quando se felicitava por estar sendo tão adulta com relação a tudo aquilo. Quase nunca pensava em Dan: Dan Quem?, ah, ah. Mais tarde ela se deu conta de que durante oito meses não pensara em mais nada e em mais ninguém. O país inteiro passara por espasmos e convulsões durante aqueles oito meses, mas ela mal notara. As manifestações, os guar­das de capacete e máscara contra gás, os ataques de Agnew na imprensa, cada vez mais acirrados, o tiroteio de Kent State, o verão de violência quando os negros e grupos radicais saíram às ruas... essas coisas podiam estar acontecendo em algum programa de TV tarde da noite. Sarah estava completamente absorta pelo fato de se ter refeito muito bem do caso com Dan, de estar se adaptando muito bem, e de estar aliviada por ver que estava tudo tão bem. Que carga?

Depois, começou a dar aulas no ginásio de Cleaves Mills, e isso foi uma revolução pessoal, estar do outro lado da mesa, depois de dezesseis anos como estudante profissional. Conhecer Johnny Smith naquela festa (e, com um nome absurdo como John Smith, ele poderia ser inteiramente real?). Sair de sua absorção o suficiente para notar o jeito de ele olhar para ela, não com cupidez, mas com uma admiração boa e saudável pelo seu aspecto no vestido de malha cinza-claro.

Ele a convidara para ir ao cinema — estavam levando Cidadão Kane no The Shade —, e ela aceitara. Eles se divertiram, e ela pensou consigo mesmo: “Nada de fogos de artifício”. Ela gostara do beijo de boa-noite que ele lhe dera e pensara: “Claro que ele não é nenhum Errol Flynn”. Ele a fizera sorrir com seu tipo de conversa, que era extravagante, e ela pensara: “Ele quer ser Henny Youngman quando crescer”.

Mais tarde, naquela noite, sentada no quarto do seu aparta­mento e vendo Bette Davis representar uma irascível mulher de carreira, no último filme, alguns desses pensamentos lhe ocorreram de novo, e ela parou com os dentes enterrados numa maçã, meio chocada com sua própria injustiça.

E uma voz que estivera calada havia quase um ano — não tanto a voz da consciência como a voz da perspectiva — falou de repente: “O que você quer dizer é que ele não é um Dan. Não é isso?”

“Não!”, garantiu ela a si mesma, já não só um tanto chocada. Não penso mais em Dan de jeito nenhum. Isso... já foi há muito tempo.”

“Fraldas”, respondeu a voz, “isso foi há muito tempo. Dan partiu ontem.”

De repente ela se deu conta de que estava sentada num apar­tamento, sozinha, tarde da noite, comendo uma maçã e assistindo a um filme na TV que não lhe dizia nada, e fazendo tudo isso só porque era mais fácil do que pensar, pensar era muito maçante, mesmo quando a gente só sabia pensar em si e em seu amor perdido.

Muito chocada agora.

Rompera em prantos.

Tinha saído com Johnny da segunda e da terceira vez em que ele a convidara, e isso também era uma revelação do que ela exatamente se tornara. Não podia dizer que tinha outro com­promisso, porque não seria verdade. Era uma moça inteligente e bonita, e tinha sido muito requisitada depois de terminar o caso com Dan, mas os únicos convites que tinha aceito eram para comer hambúrguer no Den com o companheiro de quarto de Dan. E ela se dava conta agora, com uma repugnância temperada pelo humor, de que só aceitara esses convites completamente inócuos para poder sondar o pobre coitado a respeito de Dan. Que carga?

A maior parte de suas amigas da universidade tinham sumido no horizonte, depois da formatura. Bettye Hackman estava com os Voluntários da Paz na África, para desgosto total dos pais, ricaços da velha guarda de Bangor, e Sarah às vezes - se perguntava o que os ugandenses deviam pensar de Bettye, com sua pele branca, im­possível de se bronzear, cabelos louro-cinza e beleza fria, de moça rica. Deenie Stubbs estava fazendo pós-graduação em Houston. Ri­chel Jurgen se casara com o namorado e no momento estava grá­vida em algum lugar nas selvas do oeste de Massachusetts.

Meio aturdida, Sarah fora obrigada a concluir que Johnny Smith era o primeiro novo amigo que ela faria havia muito, muito tempo... ela, que fora eleita Miss Simpatia no seu último ano de ginásio. Tinha aceito convites de alguns outros professores de Cleaves, só para manter as coisas na devida perspectiva. Um deles era Gene Sedecki, o novo professor de matemática.., mas obvia­mente um chato de galocha. O outro, George Rounds, tentara cantá-­la logo de cara. Ela lhe dera um tapa na cara... e no dia seguinte ele tivera a audácia de piscar para ela, ao se cruzarem no corredor.

     Mas Johnny era divertido, descontraído. E a atraía sexual­mente... até que ponto, ela não poderia dizer, com franqueza, pelo menos ainda não. Uma semana antes, depois da sexta-feira de folga que eles tiveram para a convenção de professores em Water­ville, em outubro, ele a convidara para jantar no apartamento dele, um espaguete feito em casa. Enquanto o molho fervia, ele tinha

corrido até a esquina para buscar um vinho e voltara com duas garrafas de vinho de maçã bem leve. Assim como comunicar suas idas ao banheiro, isso faria parte do estilo de Johnny.

Depois de comerem, viram TV, e dai passaram à bolinação, e sabe Deus em que isso teria dado se não tivessem aparecido uns amigos dele, instrutores da universidade, com um trabalho sobre a opinião da congregação a respeito da liberdade acadêmica. Queriam que Johnny desse uma olhada e visse o que achava daquilo. Ele o fizera, mas com bem menos boa vontade do que o seu normal. Ela notara isso com um prazer secreto, e a dor em suas próprias entra­nhas — a dor insatisfeita — também lhe dera prazer, e nessa noite ela não a matara com uma lavagem.

Ela se virou da janela e foi até o sofá onde Johnny deixara a máscara.

—    Feliz Dia das Bruxas — grunhiu ela, e riu um pouco.

— O quê? — perguntou Johnny.

—    Eu disse que se você não vier já eu vou sem você.

—    Vou já.

—    Ótimo!

Ela passou um dedo pela máscara de Jekyll e Hyde, o bondoso dr. Jekyll a metade esquerda, o feroz e desumano Hyde a metade direita. Onde estaremos no Dia de Ação de Graças?, pensou ela. Ou no Natal?

A idéia lhe provocou uma emoção esquisita e excitante.

Gostava dele. Era um homem completamente comum e bom.

Tornou a olhar para a máscara, o terrível Hyde partindo do rosto de Jekyll como um carcinoma nodoso. Tinha levado tinta fluorescente, para brilhar no escuro.

O que é comum? Nada, ninguém. Não de verdade. Se ele fosse assim tão comum, como poderia estar planejando usar uma coisa dessas na sala de aula, e ainda por cima estar seguro de manter a ordem? E como os garotos podem chamá-lo de Frankenstein e assim mesmo respeitá-lo? O que é comum?

Johnny saiu do banheiro, roçando pela cortina de contas que separava o quarto e o banheiro da sala.

“Se ele quiser que eu vá para a cama com ele hoje, acho que vou concordar”.

E foi uma idéia agradável, como voltar para casa.

—    De que você está rindo?

— Nada — disse ela, jogando a máscara no sofá.

—    Não, diga, sério. Alguma coisa boa?

— Johnny — disse ela, pondo a mão no peito dele e erguen­do-se na ponta dos pés para beijá-lo de leve —‘ algumas coisas nunca devem ser ditas. Vamos embora.

 

Eles pararam embaixo, no vestíbulo, enquanto ele abotoava o casaco de zuarte, e o olhar dela foi novamente atraído pelo cartaz da GREVE!, com o punho cerrado e o fundo chamejante.

— Vai haver outra greve de estudantes este ano — disse ele, acompanhando o olhar dela.

—    A guerra?

—    Dessa vez, a guerra é só parte do motivo. O Vietnam e a luta sobre o Corpo de Preparação de Oficiais da Reserva e Kent State ativaram mais estudantes do que em qualquer outra ocasião. Acho que, em época alguma, houve tão poucos estudiosos ocupando espaço na universidade.

—    O que quer dizer com estudiosos?

       — Os garotos que só estudam para passar, sem qualquer inte­resse pelo sistema a não ser conseguir um emprego de dez mil dólares por ano, quando se formarem. Um estudante que não dá pelota para nada a não ser para sua pele. Isso acabou. A maior parte deles está desperta. Vai haver um bocado de mudanças.

—    Isso é importante para você? Mesmo estando de fora?

Ele empertigou-se.

— Senhora, sou um ex-aluno. Smith, turma de 70. Encham as canecas para brindar ao velho Maine.

Ela sorriu.

—    Vamos indo. Quero dar uma volta no chicote hoje, antes que o fechem.

—    Muito bem — disse ele, dando o braço a ela. — Acontece que estou com o seu carro parado aí na esquina.

—    E oito dólares. A noite está ofuscante diante de nós.

A noite estava nublada mas não chuvosa, e amena, para fins de outubro. Ao alto, um quarto crescente estava lutando para atra­vessar as nuvens. Johnny passou o braço em volta dela e ela acon­chegou-se a ele.

—    Sabe, eu acho você formidável, Sarah.

O     tom dele era quase displicente, mas só quase. O coração dela bateu mais devagar e depois mais depressa, uma dúzia de vezes.

— É mesmo?

—    Imagino que esse Dan a tenha magoado, não foi?

—    Não sei o que foi que ele me fez — disse ela, com since­ridade.

O     sinal luminoso amarelo, agora um quarteirão atrás deles, fazia suas sombras aparecerem e desaparecerem no concreto à frente.

Johnny pareceu estar pensando naquilo.

—    Eu não gostaria de fazer isso — disse ele, por fim.

—    Sei disso. Mas... dê um tempo.

— É — disse ele. — Tempo. Acho que isso nós temos.

E isso voltaria à cabeça dela, acordada, e ainda com mais força nos sonhos, em tons de amargura e perda indizíveis.

Eles foram até a esquina, e Johnny abriu a porta do carro para ela, do lado do passageiro. Deu a volta e sentou-se à direção.

— Está com frio?

— Não — disse ela. — A noite está ótima para isso.

— Está mesmo — concordou ele, afastando-se do meio-fio. Os pensamentos dela voltaram àquela máscara ridícula. A metade Jekyll, com os olhos azuis de Johnny atrás da órbita alargada do médico espantado — Puxa, um coquetel e tanto que inventei ontem, mas não creio que o possam servir nos bares —, esse lado estava bem, pois podia-se ver parte de Johnny lá dentro. Era a parte de Hyde que a assustara tanto, porque aquele olho estava fechado, era quase uma fresta. Podia ser qualquer pessoa. Qualquer pessoa mes­mo. Dan, por exemplo.

Mas quando chegaram ao local da feira de Esty, onde as lâm­padas da rua principal faiscavam no escuro e os raios compridos da roda-gigante, com luz fluorescente, giravam para cima e para baixo, ela já se esquecera da máscara. Estava com o namorado, e eles iam divertir-se.

 

Foram andando pela rua principal da feira, de mãos dadas, sem falar muito, e Sarah pilhou-se revivendo as feiras de sua juven­tude. Ela se criara em South Paris, cidade de indústria de papel no oeste do Maine, e a grande feira era a de Fryeburg. Para Johnny, que era de Pownal, provavelmente a feira importante seria a de Topsham. Mas na verdade eram todas a mesma coisa, e não tinham mudado muito, com o correr dos anos. Parava-se o carro num esta­cionamento de terra e pagava-se a entrada — dois dólares — no portão, e, assim que se entrava no recinto da feira, já se sentia o cheiro de cachorros-quentes, pimentão e cebola fritando, bacon, algodão-doce, serragem e estrume de cavalo. Ouvia-se o ronco pesado, de correntes, da montanha-russa mirim, que chamavam de Camundongo Louco. Ouvia-se o pipocar das 22 nas galerias de tiro, o som estridente do locutor de bingo saindo dos alto-falantes pendurados na barraca grande, cheia de mesas compridas e cadeiras de armar emprestadas pelo agente funerário local. O rock’n’roll concorria com o órgão a vapor pela supremacia. Ouvia-se o grito firme dos pregoeiros: dois tiros por dois cents, ganhe um desses cachorrinhos de pelúcia para o seu filhinho, ei, ei, aqui, atire até ganhar. Aquilo não mudava. A gente virava garoto de novo, dis­posto e até ansioso por bancar o otário.

     — Aqui! — disse ela, fazendo-o parar. — O chicote! O chicote!

— Claro — disse Johnny, condescendente. Ele deu uma nota de um dólar à mulher da bilheteria, e ela lhe deu dois bilhetes vermelhos e duas moedas sem quase levantar os olhos da revista.

— Que negócio é esse, “claro”? Por que me está dizendo “claro” nesse tom de voz? — Ele deu de ombros. Estava com uma cara inocente demais. — Não foi o que você disse, John Smith. Foi o tom em que você o disse.

O chicote tinha parado. Os passageiros estavam saltando e passando por eles, a maior parte adolescentes de camisa de zuarte azul ou blusões compridos com capuz, abertos. Johnny conduziu-a a rampa de madeira e entregou os bilhetes ao operador do chi­cote, que parecia a criatura mais chateada do mundo.

— Nada — disse ele, enquanto o operador os instalava numa das conchinhas redondas e prendia a barra de segurança. — Só que esses carrinhos correm em trilhos circulares, certo?

— Certo.

— E os trilhozinhos circulares estão engastados num grande disco circular que gira e gira, certo?

— Certo.

— Bem, quando esse aparelho está andando à toda, o carrinho em que estamos sentados gira em seu trilhozinho circular e sua aceleração às vezes chega até sete g, que é apenas cinco menos do que aquela que os astronautas sofrem quando decolam de Cabo Kennedy. E conheci um garoto... — Johnny agora estava inclinado para ela, com ar solene.

— Ah, Lá vem você com uma de suas mentironas — disse Sarah, sem jeito.

— Quando esse garoto tinha cinco anos ele caiu da escada e teve uma fraturazinha de nada na espinha, junto do pescoço. Depois — dez anos depois —, ele andou de chicote na feira de Topsham... e.. — Ele deu de ombros e depois afagou a mão dela, com pena. — Mas você provavelmente não vai ter nada, Sarah.

— Ahhh.. — Quero saltar...

E o chicote os. carregou, fazendo da feira e da rua principal um borrão torto de Luzes e caras, e ela gritou e riu e começou a bater nele.

       — Fraturazinha de nada! — gritou ela. — Vou lhe dar uma fraturazinha de nada quando saltarmos disso, seu mentiroso!

Ainda não esta sentindo nada ceder no seu pescoço? — indagou ele com meiguice.

Ah seu mentiroso!

     — Eles foram girando cada vez mais depressa, e quando passaram pelo operador pela... décima?, décima quinta?... vez, ele debru­çou-se e beijou-a, e o carrinho foi girando pelos trilhos, apertando os lábios dos dois, unidos em algo que era quente, excitante e aper­tado. Depois os carros começaram a diminuir a marcha, matraquean­do pelos trilhos com maior relutância e por fim parando com um tranco.

Eles saltaram, e Sarah apertou o pescoço dele.

— Fraturazinha de nada, seu burro! — sussurrou ela.

Uma mulher gorda de calças azuis e tênis baratos estava pas­sando por eles. Johnny falou com ela, apontando para Sarah.

— Essa pequena está me importunando, dona. Se vir um guarda, quer dizer a ele?

— Vocês, moços, se acham tão engraçadinhos! — disse a gorda, com desprezo. Foi andando para a barraca de bingo, aper­tando mais a bolsa debaixo do braço. Sarah estava dando risadas.

—    Você é impossível.

—    Vou acabar mal — concordou Johnny. — Minha mãe sem­pre disse isso.

Eles foram andando pela rua principal, de novo lado a lado, esperando que o mundo parasse de fazer movimentos instáveis de­baixo de suas vistas e de seus pés.

—    Ela é um bocado religiosa, a sua mãe, não é? — perguntou Sarah.

—    É batista toda a vida — concordou Johnny. — Mas é legal. Ela controla o negócio. Não consegue deixar de me pregar uns sermõezinhos quando estou em casa, mas é a mania dela. Meu pai e eu agüentamos isso. Antes eu tentava discutir com ela... pergun­tava quem é que havia “no país que está ao nascente do Éden”, com quem Caim foi morar, se os pais dele foram os primeiros habitantes da terra, e coisas assim.., mas cheguei à conclusão de que isso era meio mesquinho e desisti. Há dois anos eu achava que Eugene McCarthy podia salvar o mundo, e pelo menos os batistas não apresentam Jesus como candidato à presidência.

—    O seu pai não é religioso?

Johnny riu.

—    Isso eu não sei, mas sei que batista ele não é. — Depois de pensar um instante, acrescentou: — Meu pai é carpinteiro — como se isso explicasse tudo.

Ela sorriu.

— O que a sua mãe diria se soubesse que você estava saindo com uma católica relapsa?

—    Ela me pediria que a levasse até nossa casa — disse Johnny, prontamente —, para poder lhe pregar uns sermões.

Ela parou, ainda segurando a mão dele.

—    Você gostaria de me levar à sua casa? — perguntou, olhan­do bem para ele.

O     rosto comprido e simpático de Johnny tornou-se sério.

       — Sim — disse ele. — gostaria que você os conhecesse... e vice-versa.

       — Por quê?

       — Você não sabe por quê? — perguntou ele, com ternura, e de repente ela sentiu um nó na garganta e sua cabeça começou a latejar, como se ela fosse chorar, e ela apertou bem a mão dele.

       — Ah, Johnny, gosto muito de você!

       — Eu gosto de você mais ainda — disse ele, sério.

       — Leve-me na roda-gigante — pediu ela, de repente, sorrindo. Não queria mais falar desses assuntos, até ter tido tempo para pensar e ver aonde a poderiam levar. — Quero ir lá no alto, de onde se possa ver tudo.

       — Posso beijá-la no alto?

       — Duas vezes, se for depressa.

       Ele deixou que ela o levasse à bilheteria, onde deu outra nota de um dólar. Quando estava pagando, disse a ela:

       — Quando eu estava no ginásio, conheci um garoto que tra­balhava na feira, e ele disse que a maior parte dos caras que montam esses mecanismos estão bêbados que nem gambá e deixam de colocar tudo quanto é...

       — Vá para o diabo, — disse ela — ninguém é eterno.

       — Mas todo mundo tenta, já reparou nisso? — disse ele, acompanhando-a para uma das gôndolas balançantes.

     Para dizer a verdade, ele conseguiu beijá-la várias vezes, no alto, enquanto o vento de outubro lhes desmanchava os cabelos e a rua principal da feira se estendia debaixo deles como um mostrador de relógio luminoso, no escuro.

 

     Depois da roda-gigante eles andaram no carrossel, embora ele dissesse francamente que se sentia como um palhaço. Suas pernas eram tão compridas que ele poderia ter ficado em pé, escarranchado sobre um dos cavalos de gesso. Ela lhe disse, com malícia, que conhecera. uma pequena no ginásio que sofria do coração, só que ninguém sabia que ela sofria do coração, e ela tinha ido no carrossel com o namorado e...

— Um dia você há de se arrepender — disse ele com uma sinceridade tranqüila. — Um relacionamento baseado em mentiras não presta, Sarah.

Ela mostrou a língua para ele.

Depois do carrossel, foram ao labirinto dos espelhos, aliás muito bom, e aquilo levou-a a pensar no Something wicked tbis way comes, de Bradbury, em que a professorinha velha quase se perdeu para sempre. Ela via Johnny em outra parte do labirinto, tateando, acenando para ela. Dúzias de Johnnies, dúzias da Sarahs. Eles se passavam ao largo, passavam por ângulos não-euclidíanos, e pareciam desaparecer. Ela dava voltas para a esquerda, para a direita, batia com o nariz em placas de vidro cristalino, e começou a dar risadas sem parar, parte como reação nervosa, de claustro-fobia. Um dos espelhos a transformou num anão atarracado. Outro criou a apoteose do desengonçamento de adolescente, com canelas de meio quilômetro de comprimento.

Por fim saíram, e ele comprou dois cachorros-quentes e um pacote de batatas fritas na gordura, com um gosto que elas quase nunca têm depois que passamos dos quinze anos.

Passaram por uma barraca em cuja frente havia três garotas de saia e sutiã com lentejoulas. Estavam requebrando ao som de uma canção antiga de Jerry Lee Lewis, enquanto o camelô as apre­goava pelo microfones Jerry Lee gritava, e o piano se fazia ouvir claramente pelas galerias salpicadas de serragem.

—    Clube Playboy — disse Johnny, assombrado, e riu. — Havia um lugar assim lá em Harrison Beach. O camelô jurava que as garotas conseguiam tirar os óculos da gente com as mãos amarradas às costas.

—    Parece um modo interessante de se arranjar uma moléstia social — disse Sarah, e Johnny deu uma gargalhada.

Atrás deles a voz do camelô, no amplificador, ficou oca com a distância, acompanhada pelo piano de Jerry Lee, uma música como de um calhambeque louco e demente, duro demais para morrer, trovejando dos anos 50, mortos e mudos, como um presságio.

—    Venha, pessoal, venha para cá; não tenham vergonha, por­que essas garotas não têm mesmo, nem um pouquinho! Está tudo aí dentro.., sua educação não estará completa até verem o show do Clube Playboy...

Não quer voltar para concluir a sua educação? — per­guntou ela.

     Ele sorriu.

     — Já terminei o meu curso superior dessa matéria há tempo. Acho que posso esperar um pouco para conseguir o doutorado.

     Ela olhou para o relógio.

     — Ei, está ficando tarde, Johnny. E amanhã é dia de aula.

     — É. Mas pelo menos é sexta-feira.

     Ela suspirou, pensando na sua turma de estudo dirigido, turma de nova ficção, ambas incrivelmente indisciplinadas.

     Voltaram à parte principal da alameda. Havia menos gente. Uma das diversões já tinha fechado. Dois operários com cigarro sem filtro no canto da boca estavam cobrindo o Camundongo Louco com um oleado. O homem do Atire-até-Ganhar estava apa­gando as luzes.

     —      Você vai fazer alguma coisa no sábado? — perguntou ele, de repente, tímido. — Sei que é em cima da hora, mas...

     —      Tenho meus planos — disse ela.

     —Ah.

     E ela não conseguiu agüentar a expressão de desânimo dele, era muita maldade mesmo implicar com ele nisso.

     — Vou fazer um programa com você.

     — Vai?.., ah, vai. Puxa, mas que bom! — Ele sorriu para ela e ela sorriu para ele. A voz na cabeça dela, que às vezes lhe parecia tão real quanto à voz de outra pessoa, de repente se fez ouvir:

“Você está se sentindo bem de novo, Sarah. Feliz. Que bom, hem?”

     —      É, sim — disse ela, pondo-se na ponta dos pés e beijan­do-o depressa. Obrigou-se a continuar antes de poder desistir. —Às vezes eu me sinto muito sozinha lá em Veazie, sabe. Talvez eu pudesse.., ir passar a noite com você.

     Ele olhou para ela, com carinho, pensativo, conjeturando, e isso a fez vibrar por dentro.

     —      É o que você deseja, Sarah?

     Ela fez que sim.

     —      É o que mais desejo.

     —      Muito bem — disse ele, passando o braço em volta dela.

     —      Tem certeza? — perguntou Sarah, meio encabulada.

     —      Só tenho medo que você mude de idéia.

     —      Não vou mudar, Johnny.

     Ele a abraçou com mais força.

     —      Então é a minha noite de sorte.

     Estavam passando pela roda da fortuna, quando ele disse isso, e mais tarde Sarah se lembraria de que era a única barraca que ainda estava aberta daquele lado da alameda, numa distância de uns trinta metros, de ambos os lados. O homem atrás do balcão tinha acabado de varrer a terra batida do lado de dentro, em busca de alguma moeda que tinha caído do tabuleiro, durante os jogos daquela noite. Provavelmente sua última tarefa antes de fechar, pensou ela. Atrás dele estava sua grande roda, com raios, delineada por pequenas lâmpadas elétricas. Ele devia ter ouvido o comentário de Johnny, pois começou seu estribilho mais ou menos maquinalmente, os olhos ainda procurando o chão de terra batida em busca de pratas.

     —      Ei, ei, ei, se acha que está com sorte, moço, gire a roda da fortuna, transforme níqueis em d6lares. Está tudo na roda, tente a sua sorte, um niquelzinho faz girar esta roda da fortuna.

     Johnny virou-se ao ouvir a voz dele.

— Johnny?

— Sinto que estou com sorte, como o homem falou. — Ele sorriu para ela. — A não ser que você se importe...?

— Não, pode jogar. Mas não demore muito.

Ele tornou a olhar para ela, com aquele jeito francamente inda­gador que a fazia sentir-se meio fraca, pensando em como seria com ele. O estômago dela deu uma lenta reviravolta que a fez sentir-se meio enjoada, pelo repentino desejo sexual.

—    Não demoro, não. — Ele olhou para o crupiê. A rua prin­cipal atrás deles estava agora quase inteiramente vazia, e, como as nuvens tinham se dissipado, a noite estava mais fria. Os três esta­vam soprando um vapor branco com o hálito.

—    Quer tentar a sorte, moço?

—    Quero.

Ele passara todo o dinheiro que tinha para o bolso da frente, quando chegaram à feira, e então puxou o restante de seus oito dólares. Era um total de um dólar e oitenta e cinco cents.

O     tabuleiro de jogo era uma placa de plástico amarelo com números, pares e ímpares, pintados em quadrados. Parecia um pouco uma mesa de roleta; mas Johnny viu logo que as probabilidades ali teriam feito um jogador de roleta de Las Vegas empalidecer. Uma combinação pagava a apenas dois a um. Havia dois números da banca, zero e duplo zero. Ele comentou sobre isso com o crupiê, que deu de ombros.

—    Se quiser Vegas, vá para Vegas. O que posso dizer?

Mas o bom humor de Johnny naquela noite estava irredutível. As coisas tinham começado mal com aquela máscara, mas dali em diante tudo correra muito bem. Aliás, era a melhor noite de que ele se lembrava, havia anos, talvez a melhor noite de sua vida. Ele olhou para Sarah. Ela estava corada, os olhos brilhantes.

—    O que você acha, Sarah?

Ela sacudiu a cabeça.

—    Isso para mim é grego. O que é que se faz?

—    Joga-se num número. Ou então vermelho ou preto. Ou par ou ímpar. Ou uma série de dez números. Todos são jogados dife­rentemente. — Ele olhou para o crupiê, que retribuiu o olhar, inocente. — Pelo menos, deviam ser.

— Jogue no preto — disse ela. — É meio empolgante, não é?

—    Preto — disse ele, jogando um níquel no quadrado preto.

O     crupiê olhou para aquela única moeda na mesa e suspirou.

—    Grande jogador.

Virou-se para a roda.

A mão de Johnny vagou, ausente, até a testa, tocando-a.

—    Espere — disse ele, de repente, empurrando uma de suas moedas de vinte e cinco cents para o quadrado marcado 11-20.

— É isso?

— Certo — disse Johnny.

O crupiê deu um empurrão na roda e ela girou em seu círculo de luzes, o vermelho e o preto se fundindo. Johnny, distraído, es­fregou a testa. A roda começou a diminuir de velocidade, e eles então puderam ouvir o tique-taque, como um metrônomo, da ma­traca de madeira passando pelos pinos que dividiam os números. Chegou ao 8, 9, pareceu parar no 10, e caiu no 11 com um estalo final, parando.

— A senhora perde, o cavalheiro ganha — disse o crupiê.

— Você ganhou, Johnny?

— Parece que sim — disse Johnny, enquanto o crupiê juntava duas moedas de vinte e cinco cents à sua primeira. Sarah deu um gritinho, mal reparando que o crupiê levava o níquel.

— Já lhe disse, é a minha noite de sorte — disse Johnny.

— Duas vezes é sorte, uma vez é só um golpe de sorte —comentou o crupiê. — Ei, ei, ei.

— Jogue de novo, Johnny — disse ela.

— Está bem. O mesmo, para mim.

— Vai deixar?

— Vou.

O crupiê tornou a fazer girar a roda, e, enquanto ela rodava, Sarah murmurou para ele, baixinho:

— Todas essas rodas de parques de diversões não são viciadas?

— Antes eram. Agora o Estado as examina, e eles só confiam no seu absurdo sistema de vantagens.

A roda passara ao seu tique-taque mais lento e final. O mos­trador passou pelo 10 e entrou na faixa de Johnny, ainda mais lento.

— Vamos, vamos! — exclamou Sarah. Dois adolescentes, de saida, pararam para assistir.

A matraca de madeira, já bem devagar, passou pelo 16 e 17, e depois foi parar no 18.

— O cavalheiro ganha de novo. — O crupiê juntou mais seis moedas de vinte e cinco à pilha de Johnny.

— Você está rico! — gabou-se Sarah, beijando-o no rosto.

       — Estou num chorrilho, cara — concordou o crupíê, entusiasmado.­

       — Ninguém      larga um negócio desses. Ei, ei, ei.

       — Devo jogar de novo? — perguntou Johnny a Sarah.

       — Por que não?

— É, vá, rapaz — disse um dos adolescentes. Um dos botões do casaco dele tinha a cara de Jimi Hendrix. — Esse camarada me levou quatro dólares hoje. Quero ver ele levar uma surra.

— Então você também — disse Johnny a Sarah. Ele deu a ela uma moeda de sua pilha de nove. Depois de vacilar um instante, ela a colocou no 21. Números primos pagavam dez a um, certo, comunicava a mesa.

—    Você vai na faixa do meio, certo, cara?

Johnny olhou para as oito moedas empilhadas na mesa e de­pois começou a esfregar a testa, de novo, como se estivesse sentindo o princípio de uma dor de cabeça. De repente, pegou as moedas da mesa e chocalhou-as nas duas mãos em concha.

—    Não. Gire para a senhora. Esta eu vou assistir.

Ela olhou para ele, intrigada.

—    Johnny?

Ele deu de ombros.

—    É só um palpite.

O     crupiê revirou os olhos num gesto de quem pede forças aos céus para aturar aqueles tolos, e girou a roda de novo. Ela rodou, diminuiu e parou. No duplo zero.

—    Número da casa, deu a banca — entoou o crupiê, e a moeda de Sarah desapareceu no avental dele.

—    Isso é justo, Johnny? — perguntou Sarah, magoada.

—    O zero e o duplo zero só pagam à banca — disse ele.

—    Então você foi esperto de tirar o dinheiro da mesa.

—    Parece que sim.

—    Quer que eu gire esta roda, ou vá tomar café? — pergun­tou o crupiê.

—    Pode girar — disse Johnny, pondo suas moedas em duas pilhas de quatro na terceira faixa.

Enquanto a roda zunia em seu quadro de luzes, Sarah per­guntou a Johnny, sem tirar os olhos do rodopio:

—    Quanto é que um lugar desses pode ganhar numa noite?

Aos adolescentes tinham se juntado quatro pessoas mais velhas, dois homens e duas mulheres. Um homem com um físico de ope­rário disse:

—    De quinhentos a setecentos dólares.

O     crupiê tornou a revirar os olhos.

—    Puxa, rapaz, quem me dera que você tivesse razão!

—    Ei, não me venha chorar miséria — disse o que parecia operário. — Eu já manobrei uma dessas, há vinte anos atrás. De quinhentos a setecentos por noite, dois mil aos sábados, fácil. E isso com uma roda direita.

Johnny estava com os olhos pregados na roda, que já estava girando devagar, permitindo que se lessem os números que passa­vam. Passou pelo 0 e 00, pela primeira faixa, mais devagar, a segunda faixa, ainda mais devagar.

—    Foi demais, homem — disse um dos adolescentes.

—    Espere — disse Johnny, num tom de voz estranho. Sarah olhou para ele, e o rosto dele, comprido e simpático, parecia estar estranhamente tenso, os olhos azuis mais escuros do que de costu­me, longe, distantes.

O     mostrador parou no 30.

       — Muita sorte, muita sorte — entoou o crupiê, conformado, enquanto o grupinho atrás de Johnny e Sarah dava vivas. O homem que parecia operário deu um tapa nas costas de Johnny com tanta força que o fez cambalear um pouco. O crupiê estendeu a mão para a caixa debaixo do balcão e colocou quatro dólares ao lado das moedas de Johnny.

       —    Chega? — indagou Sarah.

       — Mais uma vez — disse Johnny. — Se eu ganhar, esse cara pagou pela nossa entrada e a sua gasolina. Se eu perder, perdemos mais ou menos meio dólar.

       — Ei, ei, ei — entoou o crupiê. Ele agora estava se animando, tomando novo ritmo. — Ponha onde quiser. Venham, vocês aí. Isso não é esporte para espectador. Ela vai girar e girar, e onde vai parar ninguém sabe.

         O    homem que parecia operário e os dois adolescentes se apro­ximaram de Johnny e Sarah. Depois de um momento de consulta, os garotos conseguiram meio dólar em trocados, entre eles, e o puse­ram na faixa do meio. O homem que parecia operário, que se apre­sentou com o nome de Steve Bernhardt, colocou um dólar no qua­drado marcado pares.

       — E você, meu amigo? — perguntou o crupiê a Johnny. —Vai deixar como está?

       — Vou — disse Johnny.

       — Puxa, rapaz — disse um dos garotos —, isso é tentar a sorte.

       — Imagino que sim — disse Johnny, e Sarah sorriu para ele. Bernhardt lançou um olhar de conjetura a Johnny e de repente mudout o seu dólar para a terceira faixa.

       —    Que diabo! — suspirou o garoto que tinha dito a Johnny que ele estava tentando a sorte. Passou os cinqüenta cents que ele e o amigo tinham arranjado para a mesma faixa.

       —    Tudo num só — entoou o crupiê. — É assim?

       Os jogadores ficaram calados, concordando. Uns dois biscateiros tinham se aproximado para assistir, um deles com uma amiga; agora havia um grupinho bem razoável diante da roda da fortuna, na galeria escurecida. O crupiê deu um bom impulso à roda. Doze pares de olhos ficaram observando enquanto ela rodava. Sarah pi­lhou-se olhando de novo para Johnny, achando que seu rosto estava estranho àquela luz forte e no entanto meio furtiva. Ela tornou a pensar na máscara: Jekyll e Hyde, par e ímpar. Sentiu o estômago revirar-se de novo, e um pouco de fraqueza. A roda começou a diminuir e a fazer o tique-taque. Os adolescentes começaram a gritar com ela, torcendo.

—    Um pouco mais, filhinha — pediu Steve Bernhardt. — Um pouco mais, amor.

A roda entrou na terceira faixa e foi parar no 24. O grupo tornou a dar vivas.

—    Johnny, você conseguiu, conseguiu! — exclamou Sarah.

O crupiê assobiou, irritado, e pagou. Um dólar para os garotos, dois para Bernhardt, uma nota de dez e duas de um para Johnny. Este agora tinha dezoito dólares diante de si, na mesa.

—    Muita sorte, muita sorte, ei, ei, ei. Mais um, meu chapa? Essa roda hoje está sua amiga.

Jobnny olhou para Sarah.

—    Isso é com você, Johnny.

Mas de repente ela se sentiu sem jeito.

—    Ande, homem — insistiu o garoto com o botão de Jimi Hendrix. — Adoro ver esse cara levar uma surra.

—    Ok — disse Johnny. — Última vez.

—    Façam o jogo onde quiserem.

Todos olharam para Johnny, que ficou pensativo um instante, esfregando a testa. Seu rosto, geralmente bem-humorado, estava imóvel, sério e controlado. Estava olhando para a roda em seu qua­dro de luzes, e seus dedos passaram na pele lisa sobre seu olho direito.

—    Fica como está — disse ele, por fim.

Um murmúrio de conjeturas de parte do pessoal.

—    Puxa, mas isso é que é tentar a sorte mesmo!

—    Ele tem sorte — disse Bernhardt, na dúvida. Ele olhou para a mulher, que deu de ombros, mostrando estar completamente abis­mada. — Vou com você, comprido, alto e feio.

O     garoto do botão olhou para o amigo, que deu de ombros e concordou.

—    Ok — disse ele, virando-se para o crupíê. — Nós também.

A roda girou. Atrás deles, Sarah ouviu um dos biscateiros apostar com o outro cinco dólares contra a possibilidade de tornar a dar a terceira faixa. Seu estômago revirou-se de novo, mas dessa vez não parou; continuou a dar cambalhotas, e ela viu que estava ficando enjoada. Um suor frio banhou seu rosto.

A roda começou a diminuir a velocidade na primeira faixa, e um dos garotos bateu as mãos, enojado. Mas não se afastou. A bola passou pelo 11, 12, 13. O crupiê pareceu ficar feliz, afinal. Tique­taque, 14, 15, 16.

—    Vai passar — disse Bernhardt. Havia um tom de assombro na voz dele. O crupiê olhou para sua roda como se tivesse vontade de estender a mão e fazê-la parar. Ela passou pelo 20, 21 e parou na fenda marcada 22.

Ouviu-se outro grito de triunfo de parte da turma, que agora já era de quase vinte pessoas. Parecia que todas as pessoas que ainda estavam na feira reuniam-se ali. Vagamente, Sarah ouviu o biscateiro que tinha perdido a aposta resmungar alguma coisa como “Bosta de sorte”, enquanto pagava. Ela sentia a cabeça latejando. De repente, suas pernas estavam terrivelmente fracas, os músculos tremendo, nada dignos de confiança. Ela piscou depressa várias vezes, mas só conseguiu um instante de vertigem com isso. O mun­do parecia se inclinar num angulo oblíquo, como se eles ainda esti­vessem no chicote, e depois voltar ao normal, devagar.

Comi um cachorro-quente estragado, pensou ela, com tristeza. É nisso que dá tentar a sua sorte na feira, Sarah.

—    Ei, ei, ei — disse o crupiê, sem muito entusiasmo, e pagou. Dois dólares para os garotos, quatro para Steve Bernhardt, e depois um punhado para Johnny: três de dez, uma de cinco e uma de um. O crupiê não estava radiante, mas parecia animado. Se aquele sujeito alto e magro com a loura bonita tentasse a terceira faixa de novo, o crupiê quase com certeza recuperaria tudo o que tinha pago. Não era dinheiro do magricela, até estar fora da mesa. E se ele fosse embora? Bem, o crupiê tinha ganho mil dólares na roda naquele dia, podia pagar um pouco. A notícia de que a roda de Sol Drum­more tinha levado na cabeça se espalharia e no dia seguinte o jogo seria mais pesado do que nunca. Um ganhador era boa propaganda.

—    Joguem onde quiserem — entoou ele. Vários dos outros tinham se aproximado da mesa e estavam colocando níqueis e moe­das de vinte e cinco cents. Mas o crupiê só olhava para o seu jogador de dinheiro. — O que me diz, cara? Quer arriscar tudo?

Johnny olhou para Sarah.

—    O que é que você.., ei, você está bem? Está branca como um fantasma.

—    O meu estômago — disse ela, conseguindo sorrir. — Acho que foi o cachorro-quente. Podemos ir embora?

—    Claro. Pois não. — Ele estava juntando o monte de notas amassadas da mesa quando seus olhos tornaram a pousar na roda. A preocupação e o carinho por ela que havia neles desapareceram. Seus olhos pareceram escurecer de novo, tornando-se calculistas, frios. “Ele está olhando para aquela roda assim como um garotinho olharia para sua coleção particular de formigas”, pensou Sarah.

—    Um momento — disse ele.

—    Está bem — respondeu Sarah. Mas ela estava se sentindo tonta agora, além de enjoada. E na barriga havia uns roncos que não lhe agradavam. Diarréia, não, Senhor. Por favor!

Ela pensou: “Ele não vai ficar satisfeito enquanto não perder tudo”.

E depois, com uma certeza estranha: “Mas não vai perder”.

—    Então, meu chapa? — perguntou o crupiê. — Vai ou não vai?

—    Caga ou ganha — disse um dos biscateiros, provocando risadas nervosas. A cabeça de Sarah girava.

De repente Johnny empilhou notas e moedas no canto da mesa.

— O que está fazendo? — perguntou o crupiê, sinceramente chocado.

—    Todo o monte no 19 — disse Johnny.

Sarah teve vontade de gemer, e mordeu o lábio, controlando-se.

O     pessoal murmurava.

—    Não exagere — disse Steve Bernhardt, no ouvido de John­ny. Johnny nem respondeu. Estava olhando para a roda com o que parecia indiferença. Seus olhos pareciam quase roxos.

Então houve um som metálico, que Sarah a princípio achou ser em seus ouvidos. Depois ela viu que os outros que tinham apos­tado dinheiro estavam tirando tudo da mesa, deixando Johnny jogar sozinho.

“Não!” Ela viu que estava com vontade de gritar. “Assim não, sozinho não, não é justo...”

Mordeu os lábios. Tinha medo de vomitar, se abrisse a boca. O estômago agora estava péssimo. A pilha de ganhos de Johnny estava sozinha, sob as luzes nuas: cinqüenta e quatro dólares, e o pagamento do número individual era de dez para um.

O     crupiê molhou os lábios.

—    Moço, o Estado diz que não devo aceitar apostas em nú­mero individual acima de dois dólares.

—    Ora, vamos! — resmungou Bernhardt. — Não pode aceitar apostas em faixa acima de dez, e acabou de deixar o camarada apostar dezoito. O que é que há, está começando a avacalhar?

—    Não, é só que...

—    Vamos — disse Johnny, com brusquidão. — Vai ou não vai? Minha pequena está passando mal.

O crupiê avaliou a turma. A turma olhou para ele, numa ati­tude de hostilidade. O caso era sério. Não compreendiam que o cara estava jogando dinheiro fora e que ele estava tentando controlá-lo. Ora, eles que se fodessem. O pessoal não ia ficar satisfeito, de jeito nenhum. O cara que fizesse o jogo e perdesse o dinheiro, e ele poderia fechar o negócio e ir dormir.

— Bem — disse ele —, contanto que nenhum de vocês seja inspetor estadual... — Virou-se para a roda. — Ela vai girar e girar, e onde vai parar, ninguém sabe.

     Fez a roda girar, tornando os números imediatamente um bor­rão. Por um espaço de tempo que pareceu muito mais longo do que foi na verdade, não se ouviu barulho algum a não ser o zunido da roda da fortuna, o vento da noite farfalhando num oleado em algum lugar e, para Sarah, as batidas doentias em sua cabeça. Men­talmente, ela implorava que Johnny passasse o braço em volta dela, mas ele ficou ali, quieto, as mãos na mesa e os olhos na roda, que parecia resolvida a ficar girando para sempre.

Por fim, diminuiu de velocidade o suficiente para se poder ler os números, e ela viu 19, o 1 e o 9 pintados de um vermelho vivo num fundo negro. Para cima e para baixo, para cima e para baixo. O zunido suave da roda passou a um tique-taque muito alto no silêncio.

Os números então passavam pelo mostrador com um ritmo cada vez mais lento.

Um dos biscateiros disse, assombrado:

—    Meu Deus, pelo menos vai ser dureza!

Johnny ficou ali, calmamente, olhando a roda, e então pareceu a ela (se bem que pudesse ser o enjôo, que a estava dominando em ondas peristálticas na barriga) que os olhos dele estavam quase pretos. Jekyll e Hyde, pensou ela, e de repente, sem motivo, teve medo dele.

Tique-taque.

A roda passou à segunda faixa, pelo 15, 16, pelo 17, e, depois de um instante de vacilação, pelo 18 também. Com um tique! final, o marcador caiu no 19. A turma prendeu a respiração. A roda girou devagar, levando o ponteiro contra o pinozinho entre o 19 e o 20. Por uma fração de segundo pareceu que o pino não conse­guiria segurar o ponteiro na casa do 19; que os resquícios de sua velocidade o levariam ao 20. Depois a roda repinchou, com a força gasta, e parou.

Por um momento, não houve barulho algum da turma. Ne­nhum ruído.

Então um dos adolescentes, suave e assombrado:

—    Ei, rapaz, você acabou de ganhar quinhentos e quarenta dólares.

Steve Bernhardt:

—    Nunca vi uma sorte dessas. Nunca.

A turma então deu vivas. Johnny levou tapas e pancadas nas costas. As pessoas roçavam por Sarah para chegar até junto dele, tocá-lo, e, no momento em que eles ficaram separados, ela se sentiu em pânico. Sem forças, era empurrada para um lado e outro, o estômago rolando como doido. Uma dúzia de imagens da roda giravam, pretas, diante de seus olhos.

Um momento depois, Johnny estava com ela, e ela viu, com uma alegria débil, que era Johnny mesmo e não o vulto controlado, como um manequim, que olhara a roda em seu último giro. Ele estava confuso e preocupado com ela.

—    Meu bem, desculpe — disse ele, e ela o amou por isso.

—    Estou bem — disse ela, sem saber se estava ou não.

O     crupiê pigarreou.

—    A roda fechou — disse ele. — A roda fechou.

Um ronco mal-humorado da turma, aceitando.

O crupiê olhou para Johnny.

—    Vou ter de lhe dar um cheque, moço. Não tenho tanto dinheiro assim na barraca.

—    Gato, como quiser — disse Johnny. — Mas ande depressa. A moça aqui não está nada bem.

—    Gato, um cheque — disse Steve Bernhardt, com um des­prezo infinito. — Um cheque sem fundos daqueles, e ele vai passar o inverno na Flórida.

—    Meu caro senhor — começou o crupiê —, eu lhe ga­ranto...

— Ora, vá garantir à sua mãe, pode ser que ela acredite — disse Bernhardt. De repente ele estendeu a mão sobre a mesa e tateou por baixo do balcão.

— Ei! — ganiu o crupiê. — Isso é roubo!

A turma não pareceu se impressionar com isso.

—    Por favor! — murmurou Sarah. Sua cabeça estava girando.

—    Não me importa o dinheiro — disse Johnny, de repente.

— Deixem-nos passar, por favor. A moça está passando mal.

— Ah, rapaz — disse o garoto do botão de Jimi Hendrix, mas ele e o companheiro afastaram-se, com relutância.

—    Não, Johnny — disse Sarah, embora agora só conseguisse deixar de vomitar por um esforço de vontade. — Pegue o seu dinheiro. — Quinhentos dólares representavam três semanas de ordenado, para Johnny.

—    Pague de uma vez, seu pilantra de meia-tigela! — rugiu Bernhardt. Puxou a caixa de charutos de baixo do balcão, afastou-a sem nem olhar dentro dela, tornou a tatear, e dessa vez puxou um cofre de aço pintado de verde industrial. Bateu com a caixa na mesa. — Se aí dentro não houver quinhentos e quarenta dólares, engulo a minha camisa diante de toda essa gente. — Pôs uma mão dura e pesada no ombro de Johnny. — Espere só um minuto, filho. Vai receber o troço a que tem direito, ou não me chamo Steve Bernhardt.

—    Verdade, não tenho tudo isso, não, senhor...

—    Pague — disse Steve Bernhardt, debruçando-se sobre ele —, ou vou fazer com que fechem esse negócio. Estou falando sério, com sinceridade.

O crupiê suspirou e mexeu dentro da camisa. Puxou uma chave de uma corrente fina. A turma deu um suspiro. Sarah não conseguiu esperar mais. Sentiu o estômago inchar e de repente ficar quieto como a morte. Tudo ia sair pela boca, tudo, e à velocidade de um trem expresso. Ela afastou-se de Johnny, aos tropeções, abrindo caminho no meio do povo.

       — Benzinho, você está bem? — perguntou uma voz de mu­lher, e Sarah sacudiu a cabeça, às cegas.

       — Sarah! — chamou Johnny.

     “A gente não pode se esconder... de Jekyll e Hyde”, pensou ela, incoerentemente. A máscara fluorescente parecia estar pendu­rada diante de seus olhos, doentia, no escuro da rua principal, quando passou pelo carrossel. Ela esbarrou com o ombro num poste de luz, cambaleou, agarrou-o e vomitou. Aquilo parecia vir desde os calcanhares, convulsionando o estômago como um punho doente e liso. Ela se largou o mais que pôde.

     “Tem cheiro de algodão-doce”, pensou, e, gemendo, tornou a vomitar, e outra vez mais, e mais. Havia pontinhos dançando diante dos seus olhos. A última ânsia produzira pouco mais que muco e ar.

       —     Ai, Deus! — disse ela, fraca, agarrada ao poste de luz para não cair. Em algum lugar atrás dela, Johnny estava chamando-a, mas ela ainda não podia responder, nem queria. Seu estômago es­tava se endireitando um pouco, e por um momento ela queria ficar ali no escuro, felicitando-se por estar viva, por ter sobrevivido à noite na feira.

       —    Sarah! Sarah!

       Ela cuspiu duas vezes, para limpar um pouco a boca.

       —    Aqui, Johnny.

       Ele deu a volta no carrossel, com os cavalos de gesso conge­lados no meio do salto. Ela viu que ele estava agarrando, distraído, um maço de notas na mão.

       — Você está bem?

       — Não, mas melhorei. Vomitei.

       —    Oh. Oh, meu Deus! Vamos para casa. — E pegou o braço dela, com delicadeza.

       — Você pegou o seu dinheiro.

       Ele olhou para o maço de notas e depois enfiou-o no bolso da calça, distraído.

       — Ë. Parte, ou todo, nem sei. Aquele cara troncudo contou-o.

       Sarah pegou um lenço na bolsa e começou a esfregar a boca com ele. Beber água, pensou ela. Daria a alma por um copo d’água.

       —    Você devia estar interessado — disse ela um bocado de dinheiro.

       — Dinheiro fácil dá azar — disse ele, sombrio. — Um dos ditados de minha mie. Ela tem milhões. E é contra o jogo.

— Batista convicta — disse Sarah, e depois tremeu, convulsi­vamente.

— Você está bem? — perguntou ele, preocupado.

— Com arrepios — disse ela. — Quando entrarmos no carro, quero o aquecedor ligado à toda e... ah, Deus, lá vou eu de novo.

Virou-se e arrotou saliva, com um gemido. Cambaleou, e ele a apoiou com delicadeza, mas com firmeza.

— Vai conseguir chegar até o carro?

— Vou. Estou bem. — Mas estava com dor de cabeça, a boca com um gosto horrível, e os músculos das costas e da barriga pare­ciam estar todos distendidos, doloridos.

Foram seguindo juntos pela rua principal, arrastando os pés pela serragem, passando por barracas que já estavam fechadas e arrumadas para a noite. Uma sombra apareceu por trás deles, e Johnny olhou para trás depressa, talvez consciente de todo o dinhei­ro que tinha no bolso.

Era um dos garotos.., de cerca de quinze anos. Sorriu para eles, com timidez.

—    Espero que esteja melhor — disse ele para Sarah. — Apos­to que são esses cachorros-quentes. É muito fácil a gente comer um estragado.

— Ai, nem fale nisso! — disse Sarah.

— Quer que ajude a levá-la até ao carro? — perguntou ele a Johnny.

— Não, obrigado. Tudo bem.

—    OK. Tenho de ir andando, mesmo. — Mas ainda demorou um pouco, o sorriso encabulado virando uma risada. — Adoro ver aquele cara levar uma surra.

Saiu correndo no escuro.

A camioneta branca e pequena de Sarah era o único carro que ainda se encontrava no estacionamento; estava ali agachado sob uma luz néon, como um filhote de cachorro abandonado e esquecido. Johnny abriu a porta do lado direito para Sarah, e ela entrou com cuidado, dobrando-se. Ele sentou-se à direção e ligou o carro.

— O aquecedor vai demorar um pouquinho — disse ele.

— Não faz mal. Já me aqueci.

Ele olhou para ela e viu o suor no seu rosto.

—    Talvez eu devesse levá-la ao pronto-socorro do hospital de Fastern Maine — disse ele. — Se for salmonela, pode ser grave.

— Não, estou bem. Só quero ir para casa e dormir; amanhã só vou me levantar para ligar para a escola e dizer que estou doente, e tornar a dormir.

— Não precisa nem se levantar para isso. Eu ligo e aviso, Sarah.

Ela olhou para ele, com gratidão.

—    Faz isso?

—    Claro.

Eles então estavam se dirigindo para a estrada principal.

—    Sinto muito não poder voltar para o seu apartamento com você — disse Sarah. — De verdade.

—    A culpa não é sua.

—    Claro que é. Eu é que comi o cachorro-quente estragado. Sarah sem sorte.

—    Eu a amo, Sarah — disse Johnny. Pronto, estava dito, não podia ser desdito, ficou pairando ali no carro em movimento, à espera que alguém fizesse alguma coisa.

Ela fez o que pôde.

—    Obrigada, Johnny.

Eles seguiram, num silêncio confortável.

 

Era quase meia-noite quando Johnny estacionou a camioneta na entrada da casa dela. Sarah estava cochilando.

—    Ei — disse ele, desligando o motor e sacudindo-a de man­sinho. — Chegamos.

—    Ah... sei. — Ela sentou-se direito e ajustou o casaco em volta do corpo.

—    Como está se sentindo?

—    Melhor. Meu estômago está dolorido e as costas também, mas estou melhor. Johnny, leve o carro de volta para Cleaves com você.

—    Não, é melhor não — disse ele. — Alguém pode vê-lo parado diante do prédio a noite toda. Não é bom esse tipo de fofoca.

—    Mas eu ia voltar mesmo com você...

Johnny sorriu.

—    E isso compensaria o risco, mesmo que tivéssemos de an­dar três quarteirões. Além disso, quero que você fique com o carro, para o caso de mudar de idéia e querer ir para o pronto-socorro.

—    Não vou mudar, não.

—    Mas pode. Posso entrar e chamar um táxi?

— Claro.

Eles entraram, e Sarah acendeu as luzes, antes de ser acome­tida por um novo acesso de arrepios.

— O telefone fica na sala. Vou me deitar e cobrir-me com um acolchoado.

A sala era pequena e funcional, salva de um aspecto de quartel só pelas cortinas vistosas — estampadas de flores em motivos e cores psicodélicos — e por uma série de posters numa das paredes: Dylan em Forest Hills, Baez no Carnegie Hall, Jefferson Airplane em Berkeley, os Byrds em Cleveland.

Sarah deitou-se no sofá e puxou um acolchoado até o queixo. Johnny olhou para ela muito preocupado. O rosto dela estava bran­co como cera, a não ser as olheiras escuras. Estava com um aspecto muito doente mesmo.

—    Talvez eu deva passar a noite aqui — disse ele. — Para o caso de acontecer alguma coisa, como...

—    Como uma fratura de nada no alto de minha coluna? — Ela olhou para ele com um humor tristonho.

—    Bem, você sabe. Qualquer coisa.

Os roncos sinistros nas suas regiões inferiores fizeram-na deci­dir-se. Ela tinha resolvido acabar aquela noite dormindo com John­ny Smith. Isso não tinha dado certo. Mas não significava que ela teria de terminar a noite sendo cuidada por ele, enquanto vomi­tava, corria para o banheiro e tomava a maior parte de um vidro de remédio.

— Não há de ser nada — disse ela. — Foi só um cachorro-quente estragado do parque de diversões, Johnny. Você também podia ter comido um desses. Ligue para mim na sua hora de folga amanhã.

—    Tem certeza?

—    Tenho, sim.

— OK, garota. — Ele pegou o telefone, sem discutir mais, e chamou o táxi. Ela fechou os olhos, embalada e consolada pelo som da voz dele. Uma das coisas de que mais gostava nele era que ele sempre procurava fazer a coisa certa, o melhor, sem qualquer bes­teira de altruísmo. Isso era bom. Ela estava muito cansada e se sentindo muito mal para jogos sociais.

— Está feito — disse ele, desligando. — Vão mandar um camarada daqui a cinco minutos.

— Pelo menos você tem dinheiro para o táxi — disse ela, sorrindo.

— E pretendo dar uma boa gorjeta — respondeu ele, com uma imitação razoável de W. C. Fields.

Ele foi até o sofá, sentou-se ao lado dela, pegou-lhe a mão.

       — Johnny, como é que você conseguiu?

—    Hem?

—    A roda. Como é que conseguiu fazer aquilo?

—    Foi sorte, só isso — disse ele, parecendo meio sem jeito. — Todo mundo tem uma veia de sorte, de vez em quando. Como nas corridas de cavalos, jogando vinte-e-um, ou só casando moedas.

—    Não — disse ela.

—    Hem?

—    Não creio que todo mundo tenha uma sorte dessas de vez em quando. Foi quase misterioso. Eu... fiquei meio assustada.

—    Ficou?

—    Fiquei.

Johnny suspirou.

—    De vez em quando tenho essas sensações, é só isso. Desde que eu me lembre, desde menininho. E sempre tive jeito para en­contrar coisas que os outros perdem. Como aquela Lisa Schumann, no colégio. Sabe quem é?

—    Lisa, aquela garotinha triste e insignificante? — Ela sorriu, — Conheço, sim. Ela está vagando em nuvens de perplexidade no meu curso de secretariado.

—    Ela perdeu o anel da turma — disse Johnny — e foi me procurar em prantos, por causa disso. Perguntei se tinha procurado nos fundos da prateleira de cima do armário dela. Foi só um palpite. Mas estava lá.

—    E você sempre soube fazer isso? Ele riu e sacudiu a cabeça.

—    Quase nunca. — O sorriso passou um pouco. — Mas esta noite estava forte, Sarah. Eu estava com aquela força... — Ele cerrou os punhos devagar e olhou para eles, agora franzindo a testa. — Eu estava com ela bem aqui. E ela tinha as associações mais estranhas para mim.

—    Como o quê?

—    Borracha — disse ele, devagar. — Borracha queimando. E frio. E gelo. Gelo negro. Essas coisas estavam no fundo de meus pensamentos. Só Deus sabe por quê. E uma sensação má. Como tomar cuidado.

Ela olhou bem para ele, sem dizer nada, e aos poucos a fisio­nomia dele foi se desanuviando.

—    Mas agora passou, sela o que for. Provavelmente não é nada.

—    Foram quinhentos dólares de sorte, em todo caso — dis­se ela.

        Johnny riu e concordou com a cabeça. Não disse mais nada, e ela cochilou, contente por ele estar ali. Despertou quando viu faróis do lado de fora iluminarem a parede. O táxi dele.

— Eu lhe telefono — disse ele, beijando o rosto dela, com ternura. — Tem certeza de que não quer que eu fique?

De repente ela quis, mas sacudiu a cabeça.

— Ligue para mim —disse ela.

— No terceiro intervalo — prometeu ele, indo para a porta.

— Johnny?

Ele virou-se.

— Eu o amo, Johnny — disse ela, e o rosto dele se iluminou, como uma lâmpada.

Ele soprou um beijo para ela.

— Fique boa — disse ele —, e então conversaremos.

Ela fez que sim, mas passaram-se quatro anos e meio até que ela tornasse a falar com Johnny Smith.

 

— Posso sentar na frente? — perguntou Johnny ao chofer do táxi.

—    Pôde, mas não bata com o joelho no taxímetro. É delicado. Johnny passou com esforço as pernas compridas sob o táxi­metro e bateu a porta. O motorista, homem de meia-idade, careca e barrigudo, abaixou a bandeira, e o táxi seguiu pela Flagg Street.

— Para onde?

— Cleaves Mills — disse Johnny. — Main Street. Eu lhe mostro onde é.

— Tenho de cobrar por uma corrida e meia — disse o chofer. —        Não gosto de fazer isso, mas tenho de voltar de lá vazio.

A mão de Johnny fechou-se sobre o maço de notas no bolso da calça. Procurou lembrar-se se algum dia já tinha andado com tanto dinheiro. Uma vez. Tinha comprado um Chevrolet de dois anos por mil e duzentos dólares. Por um capricho, havia pedido o dinheiro em notas ao caixa do banco, só para ver como era todo aquele dinheiro. Não tinha sido assim tão maravilhoso, mas o es­panto na cara do vendedor do carro quando Johnny deu na mão dele doze notas de cem foi um estouro. Porém, aquele maço de dinheiro não lhe dava nenhuma sensação gostosa, e sim um vago desconforto, e o ditado da mãe lhe voltou à cabeça: “Dinheiro fácil dá azar”.

— Tudo bem, uma corrida e meia — disse ele ao motorista.

— Conversando, a gente se entende. — disse o chofer, mais expansivo. — Cheguei depressa porque tive um chamado para Ri­verside, e, quando cheguei lá, ninguém se responsabilizou pela chamada.

É mesmo? — perguntou Johnny, sem grande interesse.

     Lá fora, as casas escuras iam passando. Ele tinha ganho qui­nhentos dólares, e nada de parecido lhe acontecera antes. Aquele cheiro fantasmagórico de borracha queimada... a sensação de revi­ver em parte alguma coisa que lhe acontecera quando era muito pequeno.., e aquela sensação de azar compensando a sorte ainda o acompanhava.

— É, esses bêbados chamam e depois mudam de idéia — disse o chofer de praça. — Diabos de bêbados, eu os detesto. Chamam a gente e depois resolvem beber mais um bocado. Ou então bebem o dinheiro da corrida enquanto esperam, e quando chego ninguém diz que chamou.

—É — disse Jhonny

A esquerda deles o rio Penobscot, escuro e oleoso. Depois ­Sarah passar mal e dizer que o amava, por cima de tudo. Provavelmente foi só um momento de fraqueza, mas, Deus! ‘Se fosse verdade! Ele se apaixonara por ela quase desde o primeiro encon­tro. Era essa a sorte daquela noite, e não ganhar na roda. Mas era na roda que ele ficava pensando, preocupado com aquilo. No es­curo ele ainda a via rodando, e em seus ouvidos ainda percebia o tique-taque lento do ponteiro passando pelos pinos como alguma coisa ouvida num sonho agoniado. Dinheiro fácil dá azar.

O     motorista passou para a Rodovia 6, já bem lançado em seu monólogo.

— Então eu digo: “Vá para o diabo que o carregue”. Quero dizer, o guri é um espertinho, certo? Não tenho de aturar uma bosta dessas de ninguém, nem de meu filho. Já dirijo este táxi há vinte e seis anos. Fui assaltado seis vezes. Já dei nem sei quantas trom­badas, se bem que nunca tenha tido um desastre grave, e por isso dou graças a Maria Mãe de Jesus, a São Cristóvão e a Deus Pai Todo-Poderoso, sabe o que quero dizer? E. todas as semanas, por pior que tenham sido as coisas, guardo cinco dólares para o garoto ir para a universidade. Desde que ele era uma coisinha de nada, tomando mamadeira. E para quê? Para que ele chegue a casa um belo dia e me diga que o presidente dos Estados Unidos é um porco. Diabos! O garoto provavelmente acha que eu também sou um porco, se bem que saiba que, se um dia ele disser isso, eu lhe quebro os dentes todos. Então, é isso a nova geração. Então as digo: “O diabo que o carregue”.

— É — disse Johnny. Agora era o mato que estava passando. A esquerda ficava Carson’s Bog. Estavam, a onze quilômetros de Ceaves Mills, mais ou menos. O taxímetro marcou outros dez cents.

Uma moedinha de dez, a décima parte de um dólar. Ei, ei, ei.

— O que o senhor faz, posso perguntar?

— Sou professor de ginásio em Cleaves.

—    Ah, é? Então sabe o que estou dizendo. Que diabo há com esses garotos, afinal?

     Bem comeram um cachorro-quente estragado chamado Vietnã e tiveram uma intoxicação por ptomaína. Foi um cara chama­do Lyndon Johnson quem o vendeu a eles. Então eles procuraram esse outro cara, sabe, e disseram: — Puxa, moço, estou um bocado mal. — E esse outro cara, que se chamava Nixon, disse: — Sei como dar um jeito nisso. Comam mais uns cachorros-quentes. — E é esse o problema dos jovens deste pais.

—    Não sei — disse Johnny.

— A gente planeja a vida toda e faz o que pode — disse o motorista, e agora em sua voz havia um tom de perplexidade sin­cera, coisa que não duraria muito mais, porque o motorista estava no último minuto de sua vida. E Johnny, que não sabia disso, sentiu uma pena sincera do homem, e compreensão por sua incapa­cidade de compreender.

Venha, benzinbo, há muita coisa se agitando aqui.

— A gente só quer tudo do melhor, e o garoto volta para essa com os cabelos até o rabo e diz que o presidente dos Estados Unidos é um porco. Um porco! Merda, eu não...

       — Cuidado! — berrou Johnny.

O motorista se virara um pouco para ele, a cara rechonchuda de ex-combatente norte-americano agora séria, zangada e triste, à luz do painel e do brilho repentino de faróis que se aproximavam. Então virou-se de novo para a frente, mas era tarde.

       — Meu Deus...

Havia dois carros, um de cada lado da linha branca. Estavam apostando corrida lado a lado, subindo a encosta, um Mustang e um Dodge Charger. Johnny ouviu o ronco forçado de seus motores. O Charger estava avançando direto contra eles. Nem tentou se des­viar do caminho, e o motorista gelou ao volante.

—    Meu De.. -

Johnny mal percebeu o Mustang passando por eles à esquerda. Então o táxi e o Dodge se chocaram de frente, e Johnny sentiu-se lançado para cima e para fora. Não sentiu dor, embora percebesse, superficialmente, que superficialmente que suas coxas tinham batido no taxímetro com tanta força que o tinham arrancado do suporte.

Ouviu-se o barulho de vidros estilhaçados. Uma chama enorme levantou-se na noite. A cabeça de Johnny chocou-se contra o pára-brisa, destruindo-o. A realidade começou a cair num buraco. Uma dor, vaga e distante, nos ombros e braços, enquanto o resto de seu corpo acompanhava a cabeça pelo pára-brisa quebrado. Ele estava voando. Voando para dentro de noite de outubro.

Uma idéia apagada e rápida: “Estarei morrendo? Isso vai me matar?”

Uma voz interior respondendo: “Sim, provavelmente é isso. Voando. As estrelas de outubro lançadas pela noite. Um es­trondo tremendo de gasolina explodindo. Um brilho alaranjado. Depois, trevas.

Sua viagem pelo vazio acabou num baque duro e num espa­danar. Umidade fria quando ele caiu no charco que era Carson’s Bog, a uns sete metros de onde o Dodge e o táxi, fundidos, forma­vam uma pira de chamas pelo céu da noite adentro.

Trevas.

Desaparecendo.

Até que só parecia restar uma gigantesca roda vermelha e pre­ta, girando num vazio como o que talvez haja entre as estrelas, tente sua sorte, da primeira vez é golpe de sorte, da segunda é para valer, ei, ei, ei. A roda girava para cima e para baixo, vermelha e preta, o ponteiro passando pelos pinos, e ele esforçou-se para ver se ia dar o duplo zero, número da banca, gira a banca, todos perdem menos a casa. E esforçou-se para ver, mas a roda sumira. Só havia o negrume e aquele vazio universal, negativo, boa-praça, zero. O limbo frio.

Johnny Smith ficou lá por muito, muito tempo.

 

Pouco depois das duas da madrugada do dia 30 de outubro de 1970, o telefone começou a tocar no hall de entrada de uma casinha, cerca de duzentos e quarenta quilômetros ao sul de Cleaves Mills.

Herb Smith sentou-se na cama, desorientado, meio arrastado do limiar do sono e largado ali, tonto e desorientado.

A voz de Vera ao lado dele, abafada pelo travesseiro.

—    Telefone.

— É — disse ele, levantando-se da cama.

Era um homem grande, de ombros largos, com seus quarenta e tantos anos, ficando calvo, e no momento só de calça de pijama. Saiu para o hall de cima e acendeu a luz. No andar de baixo, o telefone tocava sem parar.

Ele desceu para o que Vera gostava de chamar de “cantinho do telefone”. Ali ficava o telefone e uma mezinha-escrivaninha es­tranha que ela comprara às custas dos Cupons Verdes, uns três anos antes. Desde o início, Herb se recusara a se meter ali com seu corpo de cento e dez quilos. Quando falava ao telefone, ficava de pé. A gaveta da escrivaninha estava cheia de revistas, A Câmara Superior, Reader’s Digest e Destino.

Herb estendeu a mão para o telefone, e depois deixou que ele tocasse de novo.

Um telefonema no meio da noite em geral significava uma entre três possibilidades: um velho amigo estava completamente bêbado e resolvera que você gostaria de ter notícias dele, mesmo as duas da madrugada; ligação errada; más notícias.

Esperando que fosse a segunda possibilidade, Herb atendeu.

—    Alô.

Uma voz masculina, incisiva, disse:

—    É da residência de Herb Smith?

—    Sim?

—    Com quem estou falando, por favor?

—    Eu sou Herb Smith. O que...?

—    Quer fazer o favor de esperar um momento?

—    Sim, mas quem...

Era tarde. Ele ouviu um estalo fraco, como se do outro lado a pessoa tivesse deixado cair um dos sapatos. Tinham-no posto para esperar na linha. Entre as multas coisas de que ele não gostava, no telefone — más ligações, garotos que passavam trotes, telefonistas que pareciam computadores e sabidinhos que queriam que você fi­zesse assinaturas de revistas —, a coisa que mais o irritava era ficar esperando na linha. Era uma dessas coisas manhosas que se tinham infiltrado na vida moderna nos últimos dez anos. Antigamente o camarada do outro lado do fio dizia apenas: “Espere, não desligue, sim?”, e largava o fone. Pelo menos naqueles tempos a gente podia ouvir conversas distantes, um cão latindo, um rádio, um bebê cho­rando. Mas ficar na linha era um negócio bem diferente. A linha ficava vazia, escura e limpa. Você não estava em lugar algum. Por que não diziam logo: “Quer esperar enquanto eu o enterro vivo, por algum tempo?”

Ele se deu conta de que estava com um pouquinho de medo.

—    Herbert?

Ele virou-se, o fone no ouvido. Vera estava no alto da escada, de roupão marrom desbotado, os cabelos enrolados, um creme en­durecido nas faces e na testa.

—    Quem é?

—    Ainda não sei. Puseram-me na linha.

— Na linha? Às duas e quinze da madrugada?

— É.

—    Não é Johnny, é? Aconteceu alguma coisa com Johnny?

—    Não sei — disse ele, fazendo força para não levantar a voz.

Alguém telefona às duas da manhã, põe a gente na linha, a gente conta os parentes e faz um inventário do estado deles. Faz listas de tias velhas. ‘Soma as doenças de avós, se ainda os tem. Pensa se o coração de algum dos amigos de repente deixou de bater. E procura não pensar que tem um filho que ama muito, ou que esses telefonemas sempre vêm as duas da manhã, ou que de repente as pernas estão ficando duras e pesadas, com a tensão...

Vera tinha fechado os olhos e dobrado as mãos no meio do peito magro. Herb tentou controlar sua irritação, para não dizer: “Vera, a Biblia sugere explicitamente que você vá fazer isso trancada no quarto”. Isso lhe valeria um doce-sorriso-para-os-maridos-incredulos-e-destinados-ao-inferno, por parte de Vera. Às duas da madrugada, e ainda mais na espera, ele achava que não poderia agüen­tar aquele certo sorriso.

O     telefone tomou a estalar, e uma voz diferente, mais velha, disse:

— Alô, é o sr. Smith?

— Sim, quem fala?

—    Desculpe fazer o senhor esperar. Aqui fala o sargento Meggs, da policia estadual, região de Orono.

—    É o meu filho? Alguma coisa com o meu filho?

Sem perceber, ele caiu sentado no assento do cantinho do telefone. Estava se sentindo muito fraco.

O     sargento Meggs disse:

—    Tem um filho chamado John Smith?

—    Ele está bem? Está bem?

Passos na escada. Vera postou-se do lado dele. Por um mo­mento, ela pereceu estar calma, e depois avançou para o fone como uma onça.

— O que é? O que aconteceu com o meu Johnny?

Herb puxou o fone da mão dela, quebrando-lhe uma das unhas. Olhando bem para ela, disse:

— Eu é que estou lidando com isso.

Ela ficou olhando para ele, os olhos azuis, brandos e desbota­dos, arregalados por cima da mão que lhe tapava a boca.

—    Sr. Smith, está me ouvindo?

Palavras que pareciam revestidas de novocaína caíram da boca de Herb.

—    Tenho um filho chamado John Smith, sim. Mora em Cleaves Mills. É professor no ginásio de lá.

—    Ele sofreu um desastre de automóvel, Sr. Smith. O estado dele é extremamente grave. Sinto muito ter de lhe dar essa noticia.

—    A voz de Meggs era cadenciada, oficial.

—    Ah, meu Deus! — disse Herb. Seus pensamentos estavam num remoinho. Uma vez, no exército, um rapaz sulista chamado Chilldress, louro, grande, malvado, tinha-o surrado para valer, do lado de fora de um bar em Atlanta. Naquela ocasião Herb se sen­tira como agora, desarmado, todos os seus pensamentos amassados, inutilizados, esparramados. — Ah, meu Deus! — tornou a dizer.

—    Está morto? — perguntou Vera. — Está morto?... Johnny morto?

Ele tapou o fone.

— Não — disse ele —, não está morto.

— Não está morto! Não! — exclamou ela, e caiu de Ioelhos no cantinho do telefone, com um baque forte. — Ó Deus nós Te agradecemos de coração e Te pedimos que nos mostre o Teu carinho e misericórdia para com o nosso filho e o protejas com a Tua mão amorosa nós o pedimos em nome do Teu filho único Jesus e...

—    Vera, cale a boca!

Por um momento os três ficaram calados, como que pensando no mundo e seus rumos não tão divertidos: Herb, o corpo espre­mido no banco do cantinho do telefone, os joelhos apertados sob a escrivaninha e um buquê de flores de plástico no rosto; Vera com os joelhos posto. na grade do aquecedor do hall; o invisível sargento Meggs, que, de um estranho modo auditivo, estava presenciando essa comédia negra.

— Sr. Smith?

— Sim. Eu... peço desculpas pelo tumulto.

— Muito compreensível — disse Meggs.

—    Meu filho .. Johnny... estava dirigindo o Volkswagen dele?

— Armadilhas mortais, mortais, é o que são aqueles besouri­nhos — tagarelou Vera. As lágrimas lhe escorriam pelo rosto, pas­sando pela superfície lisa e dura da máscara de creme para a noite como a chuva sobre cromo.

—    Ele estava num táxi amarelo da Bangor & Orono — disse Meggs. — Vou lhe contar a situação conforme a entendi agora. Houve três veículos no acidente, dois dirigidos por garotos de Cleaves Mills. Estavam apostando corrida. Vinha subindo o que se conhece por Carson’s Hill na Rodovia 6, em direção leste. O seu filho estava no táxi, indo para oeste, para Cleaves. O táxi e o carro do lado da contramão se chocaram de frente. O motorista do táxi morreu, bem como o garoto que dirigia o outro carro. O seu filho e um passageiro daquele outro carro estão no Eastern Maine Med. Parece que ambos estão em estado considerado greve.

— Grave! — disse Herb.

— Grave! Grave! — gemeu Vera.

Ah, Deus, estamos parecendo uma dessas estranhas peças de teatro experimental, pensou Herb. Sentiu-se constrangido por Vera, e pelo sargento Meggs, que certamente devia estar ouvindo Vera, como um coro grego maluco fazendo fundo. Perguntou-se quantas conversas como essa o sargento Meggs tinha tido durante o exercício de seu cargo. Chegou à conclusão de que deviam ser muitas. Talvez já tivesse ligado para a mulher do motorista de táxi e para a mãe do rapaz morto, para dar a notícia. Como teriam reagido? E o que interessava? Vera não tinha o direito de chorar pelo filho? E por que a pessoa tinha de pensar em coisas tão loucas, num momento como aquele?

—    Eastern Maine — disse Herb. Anotou o nome num bloco. O desenho na capa do bloco mostrava um fone sorridente. O fio do telefone escrevia AMIGO DO TELEFONE. — Quais os ferimentos?

—    Perdão, sr. Smith?

—    Onde foi ferido? Cabeça? Barriga? O quê? Está quei­mado?

Vera gritou.

—    Vera, quer fazer o favor de calar a boca!

— O senhor terá de ligar para o hospital para ter essa infor­mação — disse Meggs, com cuidado. — Só daqui a algumas horas terei um relatório completo.

— Está bem. Está bem.

— Sr. Smith, desculpe ter de incomodá-lo no meio da noite com notícias tão tristes..

— São tristes, mesmo — disse ele. — Tenho de ligar para o hospital, sargento Meggs. Adeus.

—    Boa noite, sr. Smith.

Herb desligou e ficou olhando para o telefone, como um idiota. Ë assim que acontece, pensou. Que fazer. Johnny.

Vera deu outro grito, e ele viu, meio alarmado, que ela havia agarrado o próprio cabelo, com rolos e tudo, e o estava puxando.

— É um castigo! Um castigo pelo nosso modo de viver, pelo pecado de alguma coisa! Herb, ajoelhe-se comigo...

—    Vera, tenho de falar com o hospital. Não quero fazer isso de joelhos.

—    Vamos rezar por ele.., prometer ser melhores — se você ao menos viesse à igreja comigo mais vezes.., eu sei.., talvez os seus charutos, tomar cerveja depois do trabalho, com aqueles homens... palavras... usar o nome do Senhor em vão.., um cas­tigo.., é um castigo...

Ele pôs as mãos no rosto dela, para parar aquele movimento aflitivo, para diante e para trás. Sentir o creme no rosto dela era desagradável, mas ele não afastou as mãos. Teve pena dela. Durante os últimos dez anos a mulher vinha vagando por uma região intermediária entre a dedicação à sua religião batista e o que ele considerava ser uma mania religiosa. Cinco anos depois de Johnny

nascer, o médico tinha encontrado uma porção de tumores benignos no útero e no canal vaginal dela. A extirpação a impedira de ter outro filho. Cinco anos depois, mais tumores tinham exigido uma histerectomia total. Aí é que a coisa começou mesmo para ela, um profundo sentimento religioso estranhamente ligado a outras cren­ças. Ela lia avidamente folhetos sobre a Atlântida, naves espaciais do céu, raças de “cristãos puros” que podiam habitar nas profun­dezas da terra. Lia a revista Destino quase tanto quanto a Bíblia, muitas vezes usando uma para ilustrar a outra.

—    Vera — disse ele.

—    Vamos ser melhores — murmurou ela, os olhos suplicando a ele. — Vamos ser melhores, ele viverá. Você vai ver. Você vai...

—    Vera.

Ela calou-se, olhando para ele.

—    Vamos ligar para o hospital e saber qual a gravidade real. — disse ele, com brandura.

—E... está bem. Sim.

—    Você pode ficar sentada na escada, bem quieta?

—    Quero rezar — disse ela, como uma criança. — Você não pode me impedir.

—    Nem quero. Contanto que você reze para si.

—    Sim. Para mim. Está bem, Herb.

Ela foi para a escada, sentou-se e puxou o roupão, enrolando­se, compondo-se. De mãos postas, começou a mexer os lábios. Herb ligou para o hospital. Duas horas depois, estavam seguindo para o norte, pela quase deserta auto-estrada do Maine. Herb estava dirigindo a camioneta deles, uma Ford 66. Vera estava sentada ao lado, empertigada, a Biblia no colo.

 

O     telefone acordou Sarah às quinze para as nove. Ela foi aten­der, ainda meio dormindo. Estava com as costas doloridas de tanto vomitar na véspera, e os músculos do estômago estavam retesados, mas ela estava se sentindo muito melhor.

Atendeu, certa de que seria Johnny.

—    Alô?

—    Oi, Sarah.

Não era Johnny. Era Anne Strafford, do colégio. Anne era um ano mais velha do que Sarah, e estava no seu segundo ano em Cleaves. Ensinava espanhol. Era uma garota animada, efervescente, e Sarah gostava muito dela. Mas naquele dia ela parecia deprimida.

—    Como vai, Annie? É coisa passageira. Provavelmente Johnny lhe contou. Cachorro-quente da feira, eu acho...

—    Ah, meu Deus, você não sabe! Você não...

As palavras foram engolidas por ruídos estranhos, sufocados. Sarah escutou aquilo, franzindo a testa. Sua confusão inicial trans­formou-se numa inquietação mortal, ao perceber que Anne estava chorando.

—    Anne? O que é que há? Não é Johnny, é? Não...

—    Houve um acidente — disse Anne. Ela agora estava solu­çando francamente. — Ele estava num táxi. Houve um choque de frente. O motorista do outro carro era Brad Freneau, foi meu aluno de espanhol II, morreu, e a namorada morreu hoje de manhã, Mary Thibault, era aluna de Johnny, é horrível, horrível mes...

—    Jobnny! — gritou ela. Estava enjoada de novo. De repente sentiu as mãos e os pés frios como quatro pedras de sepultura. — O que houve com Jobnny?

—    O estado dele é grave, Sarah. Dave Pelsen ligou para o hospital hoje. Não esperam que ele.., bem, está muito mal.

O     mundo estava ficando cinzento. Anne ainda estava falando, mas sua voz estava longe e fraca. Imagens amontoadas umas por cima das outras, todas sem sentido. A roda da feira. O labirinto de espelhos. Os olhos de Johnny, estranhamente roxos, quase pre­tos. Aquele rosto querido e familiar à luz dura da feira, lâmpadas penduradas em fios.

—    Não Johnny — disse ela, longe e debilmente. — Você está enganada. Estava ótimo, quando saiu daqui.

E a voz de Anne voltando como um serviço rápido no tênis, a voz tão chocada e incrédula, tão afrontada pelo fato de uma coisa dessas ter acontecido com alguém da idade dela, jovem e cheio de vida.

—    Disseram a Dave que ele nunca mais despertaria, mesmo que sobrevivesse à operação. Deve ser operado, porque a cabeça dele.... a cabeça dele foi...

Ela ia dizer esmagada? Que a cabeça de Johnny fora esmagada?

Sarah então desmaiou, possivelmente para evitar aquela palavra irrevogável, aquele último horror. O fone caiu de seus dedos, e ela sentou-se com força num mundo cinzento, depois caiu, e o fone ficou balançando de um lado para outro, num arco sempre menor, a voz de Anne Stratfford fazendo-se ouvir: Sarah... Sarah... Sarah...

      

       Quando Sarah chegou ao Eastern Maine Medical, já era meio-dia e quinze. A enfermeira da recepção olhou para o rosto dela, branco e puxado, avaliou sua capacidade para suportar mais verda­des, e disse que John Smith ainda estava na sala de operações. Acrescentou que a mãe e o pai de Johnny estavam na sala de espera.

— Obrigada — disse Sarah. Virou à direita em vez de virar à esquerda, acabou num armário de remédios, e teve de retroceder.

A sala de espera era decorada em cores vivas e lisas que lhe feriram os olhos. Havia algumas pessoas sentadas ali, folheando re­vistas rasgadas ou olhando para o vazio. Uma mulher grisalha des­ceu de um dos elevadores, entregou o seu cartão de visita a uma amiga e sentou-se. A amiga afastou-se, batendo os saltos altos. Os outros continuaram sentados ali, esperando a oportunidade para vi­sitar o pai, a quem tinham extraído pedras da vesícula; a mãe, que descobrira um carocinho debaixo de um dos seios havia apenas três dias; um amigo, que levara um golpe de marreta invisível no peito enquanto corria. As fisionomias dos que esperavam estavam cuidadosamente maquiladas de compostura. A preocupação fora varrida para baixo dos rostos, como o pó para baixo de um tapete. Sarah tornou a sentir a irrealidade pairando sobre ela. Em algum lugar soava uma campainha discreta. Sapatos de sola de borracha rangiam. Ele estava ótimo, quando saíra da casa dela. Impossível pensar que estivesse em uma daquelas torres de tijolos, empe­nhado em morrer.

Ela reconheceu imediatamente o Sr. e Sra. Smith. Tentou lem­brar-se dos nomes deles, sem conseguir logo. Estavam sentados juntos no fundo da sala e, ao contrário dos outros presentes, ainda não tinham tido tempo para se conformar com o que acontecera em suas vidas.

A mãe de Johnny estava sentada com o casaco na cadeira, atrás dela, e a Bíblia agarrada nas mãos. Seus lábios se moviam, en­quanto ela ia lendo, e Sarah lembrou-se de que Johnny dissera que era muito religiosa talvez religiosa demais, talvez pertencente aquele grande trecho intermediário entre a macumba e o encanta­mento de serpentes, conforme ela se lembrava de tê-lo ouvido dizer. O Sr. Smith — Herb, ocorreu-lhe, ele se chama Herb — estava com uma das revistas no colo, mas não estava olhando para ela. Estava olhando pela janela, onde o outono da Nova Inglaterra estava ar­dendo e passando a novembro depois ao inverno.

Aproximou-se deles.

—    Sr. é Sra. Smith?

Eles olharam para ela, os rostos tensos, à espera do golpe te­mido. A Sra. Smith agarrou a Bíblia (aberta no Livro de Jó) com mais força, até os nós dos dedos ficarem brancos. A moça diante deles não estava de uniforme branco, usado por enfermeiras e mé­dicos, mas a essa altura isso não importava, para eles. Estavam espe­rando o golpe final.

—    Somos os Smiths, sim — disse Herb, com calma.

—    Eu sou Sarah Bracknell. Sou muito amiga de Johnny. Na­morados, imagino que se possa dizer. Posso sentar-me?

—    Namorada de Johnny? — perguntou a Sra. Smith, num tom áspero, quase acusador. Algumas das outras pessoas olharam para eles, rapidamente, e depois de novo para suas revistas rasgadas.

— Sim — disse ela —, namorada de Johnny.

—    Ele nunca escreveu dizendo que tivesse uma amiga — disse a Sra. Smíth, naquele mesmo tom áspero. — Não escreveu, não.

—    Psiu, mãe — disse Herb. — Sente-se, srta... Bracknell, não é?

—    Sarah — disse ela, grata, e sentou-se. — Eu...

—    Não disse, não — disse a Sra. Smith, com brusquidão. — meu filho amava a Deus, mas ultimamente talvez se tenha afas­tado um pouco. O juízo do Senhor Deus é repentino, sabe. Aí é que está o perigo de se ser relapso. Não se sabe o dia nem a hora...

—    Cale-se — disse Herb. As pessoas estavam olhando para eles de novo. Ele lançou um olhar severo para a mulher. Ela o olhou desafiadora por um momento, mas ele ficou firme. Vera abaixou os olhos. Tinha fechado a Bíblia, mas seus dedos remexiam a esmo nas páginas, como se ansiosos por voltar à obra colossal da destruição da vida de Jó, má sorte suficiente para colocá-la e ao filho numa amarga perspectiva.

—    Estive com ele ontem à noite — disse Sarah, e isso fez que a mulher levantasse os olhos de novo, com uma expressão acusadora. Naquele momento Sarah lembrou-se do sentido bíblico de “estar com” alguém, e sentiu que estava corando. Era como se a mulher lesse seus pensamentos.

IsabelaFomos à feira municipal...

Lugares de pecado e mal — disse Vera Smith, bem claramente.

     — Vou lhe dizer pela última vez para calar-se, Vera — disse Herb, severo, e pôs uma mão sobre a da mulher. — Estou falando sério. Essa moça parece uma boa pessoa, e não admito que você a apoquente, entendeu?

—    Lugares de pecado — repetiu Vera, obstinada.

—    Quer calar-se?

—    Deixe-me em paz. Quero ler a Bíblia.

Ele a largou. Sarah estava confusa e encabulada. Vera abriu a Bíblia e começou a ler de novo, mexendo os lábios.

—    Vera está muito perturbada — disse Herb. — Nós dois estamos perturbados. Você também, ao que parece.

—    É.

Você e Johnny se divertiram ontem? — perguntou ele. —Na feira?

Sim — disse ela, a mentira e a verdade dessa simples pala­vra misturando-se em sua cabeça.

— Sim, até que.., bem, comi um cachorro-quente estragado, ou alguma coisa. Estávamos no meu carro e Johnny me levou para o meu apartamento, em Veazie. Eu estava muito mal do estômago. Ele chamou um táxi. Disse que telefonaria para a escola dizendo que eu estava doente, hoje. E foi a última vez que o vi.

Aí as lágrimas começaram a correr, e ela não queria chorar na frente deles, especialmente na frente de Vera Smith, mas não havia como parar. Pegou um lenço de papel da bolsa e o levou ao rosto.

—    Pronto — disse Herb, passando o braço em volta dela. — Pronto. — Ela chorou, e pareceu-lhe, de um modo vago, que ele se sentia melhor, tendo alguém a quem consolar; a mulher encon­trara o seu tipo pessoal de consolo tenebroso na história de Jó, e não o incluía.

Algumas pessoas em volta viraram-se para olhar. Pelos prismas de suas lágrimas, pareciam uma multidão. Ela tinha uma noção amarga do que elas estavam pensando: “Antes ela do que eu, antes vocês três do que eu e os meus, o cara deve estar morrendo, o cara deve estar com a cabeça esmagada para ela chorar assim. É uma questão de tempo até o médico descer e levá-los para uma sala particular para dizer que...

Ela conseguiu engolir as lágrimas e controlar-se. A Sra. Smith estava sentada muito reta, como que acordando de um pesadelo, sem reparar nem nas lágrimas de Sarah nem nas tentativas do marido para consolá-la. Estava lendo a Bíblia.

—    Por favor — disse Sarah. — Qual o estado dele? Podemos ter esperanças?

Antes que Herb pudesse responder, Vera falou. A voz dela parecia um raio seco do destino certo:

—    Há esperança em Deus, moça.

Sarah viu o brilho de apreensão nos olhos de Herb, e pensou:

“Ele acha que isso a enlouqueceu. E talvez tenha enlouquecido mesmo”.

 

Uma tarde comprida, estendendo-se pela noite.

Depois das duas da tarde, quando acabavam as aulas, começou a chegar uma porção de alunos de Johnny, de roupas de trabalho, chapéus estranhos e jeans desbotados. Sarah não viu muitos dos garotos que considerava a turma grã-fina: garotos que levavam a vida a sério, queriam ir para a universidade, de olhos e testa lím­pidos. A maior parte dos garotos que se deram ao trabalho de ir ao hospital eram os cabeludos e os esquisitos.

Alguns se aproximaram e perguntaram a Sarah, em voz baixa, o que ela sabia sobre o estado do Sr. Smith. Ela só pôde sacudir a cabeça, dizendo que não sabia de nada. Mas Dawn Edwards, uma das garotas, que tinha paixonite por Johnny, percebeu todo o receio de Sarah, pela fisionomia dela. A garota rompeu em prantos. Uma enfermeira chegou e pediu que ela saísse dali.

—    Tenho certeza de que ela não tem nada — disse Sarah. E passou o braço pelos ombros de Dawn, num gesto protetor. — Dê-lhe um tempinho.

—    Não, não quero ficar — disse Dawn, saindo depressa e derrubando uma das cadeiras de plástico duro com um barulhão. Pouco depois Sarah viu a garota sentada do lado de fora, na escada, no sol frio do fim de outubro, a cabeça nos joelhos.

Vera Smith continuava a ler sua Bíblia.

Às cinco da tarde, a maior parte dos estudantes já tinham saído. Dawn também, mas Sarah não a vira partir. Às sete, um rapaz com o nome DR. STRAWNS pregado torto na lapela do avental branco entrou na sala de espera, olhou em volta e dirigiu-se para eles.

—    Sr. e Sra. Smith? — perguntou.

Herb respirou fundo.

—    Somos nós, sim.

Vera fechou a Bíblia, com um estalo.

—    Podem vir comigo, por favor?

Pronto, pensou Sarah. A ida à salinha particular, e depois a notícia. Fosse qual fosse. Ela ia esperar, e, quando eles voltassem, Herb Smith lhe diria o que ela precisava saber. Era um homem bom.

—    Tem notícias de meu filho? — perguntou Vera, com aquela mesma voz clara, forte e quase histérica.

—    Sim. — O dr. Strawns olhou para Sarah. — A senhora é da família?

       — Não — disse Sarah. — Sou amiga.

       — Uma amiga íntima — disse Herb. Uma mão forte e carinhosa agarrou o braço dela, acima do cotovelo, assim como outra se fechara sobre o braço de Vera. Ele ajudou as duas a se levantarem. — Vamos todos juntos, se o senhor não se importar.

—    Em absoluto.

Ele os conduziu pelos elevadores, e por um corredor, até um gabinete em cuja porta se lia SALA DE CONFERÊNCIAS. Fê-los entrar e acendeu as luzes fluorescentes do teto. A sala estava mobiliada com uma mesa comprida e uma dúzia de cadeiras de escritório.

O     Dr. Strawns fechou a porta, acendeu um cigarro e jogou o fósforo em um dos cinzeiros colocados na mesa.

—    É difícil — disse ele, como que para si mesmo.

—    Então é melhor ir dizendo logo — disse Vera.

—    É, talvez seja melhor.

Não cabia a ela falar, mas Sarah não conseguiu calar-se.

—    Ele morreu? Por favor, não diga que ele morreu...

—    Ele está em coma. — Strawns sentou-se e tragou fundo. —O Sr. Smith teve graves ferimentos na cabeça e uma quantidade in­determinada de lesões cerebrais. Podem ter ouvido a expressão “he­matoma subdural”, em algum programa sobre medicina. O Sr. Smith sofreu um hematoma subdural muito grave, e isso significa sangra­mento craniano localizado. Foi necessária uma operação demorada para aliviar a pressão, e também para extrair os fragmentos ósseos do cérebro.

Herb sentou-se pesadamente, o rosto macilento e aturdido. Sarah notou as mãos dele, rombudas e com cicatrizes, e lembrou-se de Johnny ter dito que o pai era carpinteiro.

—    Mas Deus o poupou — disse Vera. — Eu sabia que seria assim. Rezei por um sinal. Deus seja louvado, o Altíssimo! Todos vós cá embaixo louvei o Seu nome!

—    Vera — disse Herb, sem forças.

—    Em coma — repetiu Sarah.

Ela procurou encaixar a informação em algum estado de espí­rito emocional, e verificou que não dava certo. O fato de Johnny não estar morto, de ter sofrido uma intervenção séria e perigosa no cérebro.., essas coisas deveriam renovar suas esperanças. Mas tal não se deu. Não gostava daquela palavra, “coma”. Tinha um som sinistro, furtivo. Não era o termo latino para “sono da morte”?

—    O que o espera? — perguntou Herb.

—    Ninguém pode responder a isso agora, na verdade — disse Strawns. Ele começou a brincar com o cigarro, batendo-o no cin­zeiro, nervoso. Sarah teve a impressão de que ele estava respondendo literalmente à pergunta de Herb, enquanto se esquivava completamente à pergunta que Herb realmente fizera. — está com o equipamento de terapia intensiva.

—    Mas o senhor deve saber alguma coisa das possibilidades dele — disse Sarah. — Deve saber... — Ela fez um gesto desam­parado com as mãos e deixou-as caírem ao lado do corpo.

—    Ele pode sair de lá dentro de quarenta e oito horas. Ou uma semana. Ou um mês. Pode nunca sair de lá. ... - há uma grande possibilidade de que morra. Devo dizer-lhes francamente que isso é muito provável. Os ferimentos dele... graves.

—    Deus quer que ele viva — disse Vera. — Sei disso.

Hera pusera o rosto nas mãos e o estava esfregando devagar.

O     Dr. Strawns olhou para Vera, constrangido.

—    Só quero que estejam preparados para ,... qualquer even­tualidade.

—    Pode avaliar quais as possibilidades de ele sair do estado de coma? — perguntou Herb.

O     dr. Strawns vacilou, fumando nervosamente.

—    Não, não posso — disse ele, por fim.

 

Os três ficaram esperando mais uma hora e depois foram em­bora. Estava escuro. Soprava um vento frio, com rajadas, que asso­biava pelo estacionamento grande. Os cabelos compridos de Sarah esvoaçavam para trás. Mais tarde, quando chegasse a casa, ela en­contraria uma folha de carvalho, amarela e farfalhante, presa neles. No alto, a lua corria pelo céu, frio marujo da noite.

Sarah pôs um papel na mão de Herb. Nele estava escrito seu endereço e seu telefone.

—    Pode me telefonar se souber de alguma coisa? O que quer que seja?

—    Sim, claro. — De repente ele debruçou-se e beijou o rosto dela, e Sarah segurou o ombro dele um instante, no escuro ventoso.

—    Desculpe tê-la tratado com rispidez antes, meu bem — disse Vera, e a voz dela estava espantosamente branda. — Eu estava transtornada.

—    Claro que sim — disse Sarah.

—    Pensei que o meu filho ia morrer. Mas rezei. Falei com Deus sobre isso. Como diz o canto: “Estamos fracos e carregados? Cheios de um fardo de cuidados? Nunca nos desencorajemos. Leve­mos tudo ao Senhor, na oração”.

—    Vera, devemos ir andando — disse Herb. — Temos de dormir e ver como estarão as coisas de...

—    Mas agora já ouvi a resposta do meu Deus — disse Vera, olhando para a lua, sonhadora. — Johnny não vai morrer. Não faz parte do. planos de Deus que Jolmny morra. Escutei e ouvi aquela vozinha baixinha falando em meu coração, e estou conformada.

Herb abriu a porta do carro.

—    Venha, Vera.

Ela olhou para Sarah e sorriu. Naquele sorriso, Sarah de re­pente viu o riso fácil, displicente, de Johnny — mas ao mesmo tempo achou que era o sorriso mais penoso que já vira na vida.

—    Deus pôs Sua marca no meu Johnny — disse Vera —, e isso me regozija.

—    Boa noite, Sra. Smith — disse Sarah, com lábios dormentes.

—    Boa noite, Sarah — disse Herb. Ele entrou e ligou o carro. Saiu da vaga e do estacionamento para a State Street, e Sarah se deu conta de que não tinha perguntado onde eles iam ficar. Pensou que nem eles mesmos deviam saber, por enquanto.

Ela virou-se para ir para o carro e parou, olhando o rio que passava por trás do hospital, o Penobscot. Corria como uma seda escura, e a lua se refletia no meio dele. Ela olhou para o céu, de pé, sozinha ali no estacionamento. Olhou para a lua.

Deus pôs Sua marca no meu Jobnny e isso me regozija.

A lua estava pendurada por cima dela como um brinquedo espaventoso de parque de diversões, uma roda da fortuna no céu, com todas as probabilidades viciadas a favor da banca, sem falar nos números da banca: zero e duplo zero. Banca, banca, paguem a banca, ei, ei, ei.

O     vento soprava as folhas, que farfalhavam nas pernas dela. Ela foi para o carro e sentou-se ao volante. De repente, teve cer­teza de que ia perdê-lo. Nela despertaram o pavor e a solidão. Ela começou a tremer. Por fim ligou o carro e foi para casa.

 

Houve uma grande onda de consolo e bons votos do corpo discente de Cleaves Mills, na semana seguinte; mais tarde Herb Smith disse a ela que Johnny havia recebido mais de trezentos car­tões. Quase todos continham palavras pessoais, vagas, com votos e esperanças de pronto restabelecimento para Johnny. Vera respon­deu a todos com um bilhete de agradecimento e um versículo da Bíblia.

O     problema de disciplina que Sarah tinha em suas turmas desa­pareceu. Sua sensação anterior, de que algum júri de consciência de classe estava formando um veredicto desfavorável, passou a ser jus­tamente o oposto. Aos poucos ela foi compreendendo que os garotos a estavam considerando uma heroína trágica, o amor perdido do Sr. Smith. Essa idéia lhe ocorreu na sala dos professores, na sua hora de folga, na quarta-feira depois do desastre, e ela caiu numa gargalhada que logo passou a uma crise de choro. Até conseguir controlar-se, assustou-se de verdade. Passava as noites agitada, com sonhos constantes com Johnny: Johnny com a máscara de Jekyll e Hyde, Johnny de pé junto ao balcão da roda da fortuna enquanto uma voz desencorpada entoava: “Puxa, adoro ver esse cara levar uma surra” rcpetidamente. Johnny dizendo: “Tudo bem agora, Sarah, tudo bem”, e depois entrando na sala sem a parte da cabeça acima das sobrancelhas.

Herb e Vera Smith passaram a semana em Bangor House, e Sarah os viu todas as tardes no hospital, esperando pacientemente que acontecesse alguma coisa. Nada aconteceu. Johnny estava num quarto da Unidade de Terapia Intensiva, no sexto andar, rodeado de equipamento de emergência, respirando por meio de um apa­relho. O Dr. Strawns estava menos esperançoso. Na sexta-feira depois do desastre, Herb telefonou para Sarah, dizendo que ele e Vera iam para casa.

—    Ela não quer ir — disse ele —, mas eu a fiz ouvir a voz da razão. Acho.

—    Ela está bem? — perguntou Sarah.

Fez-se uma longa pausa, suficiente para Sarah pensar que tivesse se excedido. Depois Herb disse:

—    Não sei. Ou talvez saiba e não queira dizer logo que não está bem. Ela sempre teve idéias muito firmes sobre religião, e elas se tomaram muito mais fortes depois da operação dela. A histerecto­mia. Agora tornaram a piorar. Ela tem falado muito sobre o fim do mundo. De algum modo, associou o acidente de Johnny com o êxtase. Pouco antes do Armagedom, supõe-se que Deus leve todos os fiéis para o céu em seus próprios corpos.

Sarah pensou num adesivo de pára-choque que ela tinha visto em algum lugar: SE O EXTASE FOR HOJE, ALGUÉM SEGURE O MEU VOLANTE!

—    Sim, sei o que é — disse ela.

—    Bem — disse Herb, sem jeito —, alguns dos grupos com os quais ela.., ela se corresponde.., acham que Deus vem buscar os fiéis em discos voadores. Levá-los todos para o céu em discos voadores, quer dizer. Essas... seitas... provaram, pelo menos para si próprias, que o céu está em algum lugar da constelação de Órion. Não, não me pergunte como o provaram. Vera lhe poderia dizer isso. É... bem, Sarah, tudo isso é um pouco difícil para mim.

—    Claro que deve ser.

A voz de Herb ficou mais forte.

—    Mas ela ainda consegue distinguir entre o que é real e o que não é. Precisa de tempo para se adaptar. Assim, eu lhe disse que podia enfrentar em casa o que tivesse de acontecer, tão bem quanto aqui. Eu... — Ele parou, parecendo constrangido, e depois pigarreou e continuou. — Tenho de voltar ao trabalho. Tenho ser­viços. Assinei contratos...

—    Claro, por certo. — Ela parou. — E o seguro? Quero dizer, isso deve estar custando uma fortuna... — Foi a vez de ela se sentir encabulada.

           — Já falei com o Sr. Pelsen, o diretor assistente de vocês aí em Cleaves Mills — disse Herb. — Johnny tem a Blue Cross padrão, mas não a nova Major Medical. A Blue Cross cobre parte, assim mesmo. E Vera e eu temos nossas economias.

         Sarah sentiu o coração pequenino. Vera e eu temos nossas economias. Por quanto tempo uma caderneta poderia agüentar des­pesas de duzentos dólares por dia, ou mais? E com que objetivo, afinal? Para que Johnny pudesse continuar a vegetar como um animal insensível, urinando sem pensar, por tubos, enquanto levava o pai e a mãe à falência? Para que o estado dele levasse a mãe à loucura com suas esperanças frustradas? Sentiu as lágrimas come­çarem a escorrer por suas faces e, pela primeira vez — mas não a última —, pilhou-se desejando que Johnny morresse, para ele ficar em paz. Parte dela se revoltou, horrorizada com a idéia, mas o pensamento ficou.

—    Eu lhes desejo tudo de bom — disse Sarah.

—    Sei disso, Sarah. E nós também a você. Vai nos escrever?

—    Com certeza.

—    E vá visitar-nos, quando puder. Pownal não fica assim tão longe. — Ele hesitou. — Parece-me que Johnny tinha escolhido a garota certa. Foi bastante sério, não foi?

—    Foi — disse Sarah. As lágrimas continuavam a correr, e o tempo de verbo passado não lhe escapou. — Foi, sim.

—    Adeus, meu bem.

—    Adeus, Herb.

Ela desligou, prendeu o gancho um pouco e depois ligou para o hospital para saber de Johnny. Não houvera modificação alguma. Ela agradeceu à enfermeira da Terapia Intensiva e começou a andar a esmo pelo apartamento, de um lado para outro. Pensou em Deus mandando tinia frota de discos voadores para apanhar os fiéis e levá-lo. para Órion. Teria tanto sentido quanto qualquer outra idéia sobre um Deus tão louco que misturasse o cérebro de Johnny e o deixasse num estado de coma que provavelmente não teria fim.., a não ser por uma morte inesperada.

Havia uma pasta de redações da primeira série para corrigir. Preparou uma xícara de chá e sentou-se para trabalhar. Se houve um momento em que Sarah Bracknell retomou o fio de sua vida pós-Johnny, foi aquele.

 

O     matador era esperto.

Estava sentado num banco do parque municipal, perto do coreto, fumando um Marlboro e entoando uma canção do álbum branco dos Beatles.

Ele ainda não era um matador de verdade. Mas havia muito que tinha isso na cabeça, matar. Estava comichando e comichando. Não de um modo desagradável, não. Ele se sentia bem otimista a esse respeito. A ocasião era propícia. Ele não precisava se preocupar com medo de ser apanhado. Não precisava se preocupar com o prendedor de roupas. Porque era esperto.

Começou a nevar um pouco. Era o dia 12 de novembro de 1970, e, duzentos e sessenta quilômetros a nordeste daquela cidade média do Maine, o sono tenebroso de John Smith continuava.

O     matador examinou o parque — a praça pública, era como o chamavam os turistas que iam a Castle Rock e à Região dos Lagos. Mas agora não havia turistas. O jardim, tão verde no verão, estava agora amarelo, ficando calvo e morto. Estava esperando que o inver­no o cobrisse decentemente. A tela de arame enferrujada atrás do gol do campo de futebol dos juvenis locais formava losangos sobre­postos, destacando-se contra o céu branco. O coreto estava preci­sando de uma pintura.

Era uma cena deprimente, mas o matador não se sentia de­primido. Estava quase louco de alegria. Seus pés queriam bater, seus dedos estalar. Dessa vez não haveria escapatória.

Apagou o cigarro sob o salto de uma bota e logo acendeu outro. Olhou para o relógio. 15:02. Ficou sentado, fumando. Dois garotos passaram pelo parque, chutando uma bola de futebol de um lado para outro, mas não viram o matador porque os bancos fica­vam numa depressão. Ele imaginava que fosse um lugar aonde de noite acorressem os sacanas, quando o tempo estava ameno. Ele sabia de tudo sobre esses sacanas, e as coisas que faziam. A mãe lhe contara, e ele os havia visto.

Pensando na mãe, o sorriso apagou-se um pouco. Lembrou-se de um dia, quando tinha sete anos, em que ela entrara no quarto dele sem bater — ela nunca batia na porta — e o pilhara brincando com o negócio dele. Ela quase enlouquecera. Ele tentara dizer a ela que não era nada. Nada de mau. Só se levantara. Ele não tinha feito nada para fazer o negócio se levantar, ele se levantara sozinho. E ele ficou ali, mexendo com ele de um lado para outro. Não era nem assim tão divertido. Era meio cacete. Mas a mãe só faltara enlou­quecer.

Você quer ser um desses sacanas perdidos?, berrara ela. Ele nem sabia o que significava aquela palavra — não perdido, isso ele sabia, mas a outra —, se bem que já tivesse ouvido os garotos maio­res falando isso no recreio da escola primária de Castle Rock. Quer ser um desses sacanas perdidos que apanham uma dessas doenças? Quer que o pus escorra dele? Quer que fique preto? Quer que apo­dreça? Hem? Hem? Hem?

Ela então começara a sacudi-lo de um lado para outro, e ele começara a gaguejar de medo, pois ela era uma mulherona, um tran­satlântico de mulher dominadora, e então ele não era o matador, nem era esperto, era só um guri chorando de medo, e a coisa dele tinha caído e estava querendo encolher-se no corpo dele.

Ela o obrigara a pôr um prendedor de roupas nele, por duas horas, para ele saber o que eram aquelas doenças.

A dor tinha sido alucinante.

A neve passara. Ele apagou da cabeça a imagem da mãe, coisa que podia fazer sem esforço, quando se sentia bem, e que não conseguia fazer completamente, quando se sentia deprimido ou por baixo.

A coisa dele agora estava levantada.

Ele olhou para o relógio. Eram 15:07. Deixou cair o cigarro, pelo meio. Alguém estava se aproximando.

Ele a reconheceu. Era Alma, Alma Frechette, do Coffee Pot, do outro lado da rua. Estava saindo do trabalho. Ele conhecia Alma; tinha saído com ela algumas vezes, e tinham-se divertido. Ele a levara a Serenity Hill, em Naples. Ela dançava bem. Os sacanas muitas vezes dançavam bem. Ele ficou contente ao ver que era Alma que se aproximava.

Ela estava sozinha

Ele ouviu a canção dos Beatles, mentalmente.

—    Alma! — chamou ele, acenando. Ela teve um sobressalto, olhou em volta e o viu. Sorriu e foi para o banco onde ele estava sentado, dizendo olá e chamando-o pelo nome. Ele levantou-se, sorrindo. Não estava com medo que pudesse aparecer alguém. Ele era intocável. Era o Super-Homem.

—    Para que você está usando isso? — perguntou ela, olhando para ele.

—    Esperto, não é? — disse ele, sorrindo.

—    Bem, eu não diria exatamente...

—    Quer ver uma coisa? — perguntou ele. — No coreto. A coisa mais incrível.

—    O que é?

—    Venha ver.

—    Está bem.

Foi assim, bem simples. Ela foi com ele até o coreto. Se tivesse aparecido alguém, ele ainda poderia ter adiado a coisa. Mas não apareceu ninguém. Ninguém passou por ali. A praça era deles. O céu branco palrava sobre eles. Alma era uma garota miúda, de cabelos louro-claros. Tingidos, ele tinha certeza. As vagabundas tingem os cabelos.

Ele a levou até o coreto fechado. Os pés deles faziam uma ressonância oca nas tábuas. Uma estante de música derrubada es­tava jogada num canto. Havia uma garrafa de uísque vazia. Era um lugar aonde iam os sacanas, mesmo.

—    O que é? — indagou ela, já meio intrigada. Um pouco nervosa.

O     matador sorriu, alegre, e apontou para o lado esquerdo da estante de música.

—    Lá. Está vendo?

Ela acompanhou o dedo dele. Um preservativo usado estava sobre as tábuas, como uma pele de cobra mirrada.

O     rosto de Alma contraiu-se, e ela se virou para ir embora tão depressa que quase passou pelo matador.

—    Isso não é assim tão engraçado...

Ele agarrou-a e puxou-a para trás.

—    Aonde você acha que vai?

De repente os olhos dela estavam atentos e assustados.

—    Deixe-me sair daqui. Senão você se arrepende. Não tenho tempo para piadas doentias...

—    Não é piada — disse ele. — Não é piada, sua sacana.

Ele estava de cabeça zonza, com a alegria de dizer aquilo, chamá-la do que ela era. O mundo pareceu girar.

Alma fugiu para a esquerda, em direção à cerca baixa em volta do coreto, com intenção de saltá-la. O matador agarrou as costas do casaco de pano barato da moça pela gola e puxou-a outra vez. O pano rasgou-se com um zunido baixo, e ela abriu a boca para gritar.

Ele bateu com a mão na boca da moça, esmagando os lábios nos dentes. Sentiu o sangue quente escorrer na palma de sua mão. A mão dela estava batendo nele agora, procurando um apoio, mas não havia apoio algum. Não havia porque ele.., ele era...

Esperto!

Ele a lançou no chão de tábuas. Tirou a mão de sua boca, que agora estava manchada de sangue, e ela abriu a boca para tornar a gritar, mas ele caiu por cima dela, ofegante, rindo, e o ar escapou dos pulmões dela com um silvo sem som. Ela agora o sentia, duro como uma pedra, gigantesco e latejante, e parou de ten­tar gritar, continuando a lutar. Os dedos dela agarravam e escorre­gavam, repetidamente. Ele forçou-a a abrir as pernas com bruta­lidade, e meteu-se entre elas. Uma das mãos dela raspou pelo nariz dele, fazendo os olhos dele lacrimejarem.

—    Sua sacana — murmurou ele, e suas mãos se fecharam na garganta dela. Ele começou a estrangulá-la, puxando a cabeça dela do chão do coreto e depois batendo-a de volta. Os olhos dela estavam espocando. O rosto ficou rosado, depois vermelho e depois de um roxo congestionado. Ela começou a se debater mais debil­mente.

—    Sacana, sacana, sacana — dizia o matador, ofegante e rouco. Ele agora era mesmo o matador, estavam findos os dias de Alma Frechette, que só vivia se esfregando nas pessoas em Serenity Hill. Os olhos dela saltaram como os de algumas das bonecas malucas vendidas nos parques de diversão. O matador bufou. As mãos dela agora estavam inertes nas tábuas. Os dedos dele tinham quase desaparecido de yista.

Ele largou o pescoço dela, pronto para tornar a agarrá-la se ela se mexesse. Mas ela não se moveu. Depois de um momento ele rasgou o casaco dela, com mãos trêmulas, e empurrou para cima a saia do uniforme rosa de garçonete.

O     céu branco contemplava tudo. A praça pública de Castle Rock estava deserta. Aliás, só se encontrou o corpo estrangulado e violado de Alma Frechette no dia seguinte. A teoria do xerife foi de que aquilo fora obra de algum vagabundo. Houve manchetes nos jornais do Estado, e em Castle Rock o consenso geral era concorde com a idéia do xerife.

Certamente nenhum rapaz da cidade poderia ter feito uma coisa tão pavorosa.

 

Herb e Vera Smith voltaram para Pownal e retomaram o fio de suas vidas. Herb terminou uma casa em Durham, naquele mês de dezembro. As economias deles de fato desapareceram, conforme Sarah previra, e eles solicitaram ao Estado uma assistência para desastres extraordinários. Isso envelheceu Herb quase tanto quanto o próprio acidente. Essa verba era apenas uma maneira mais ele­gante de dizer “assistência social” ou “caridade”, para ele. Passara a vida toda trabalhando duro e honestamente com as mãos, e pen­sara nunca ter de ver o dia em que tivesse de receber auxílio do Estado. Mas esse dia chegara.

Vera tinha assinado três revistas novas, que chegavam pelo cor­reio a intervalos irregulares. As três eram mal-impressas, e as ilus­trações podiam ter sido feitas por crianças de talento. Os Discos Voadores de Deus, A Transfiguração Futura e Os Milagres Físicos de Deus. A Câmara Superior, que continuava a chegar mensalmente, agora ficava até três meses seguidos sem ser aberta, mas as outras ela lia até ficarem gastas. Nelas ela encontrou muitas coisas que pareciam ter relação com o desastre de Johnny, e essas jóias ela lia para o marido cansado na hora do jantar, com uma voz aguda e penetrante que tremia de exaltação. Herb, com uma freqüência cada vez maior, dizia-lhe para acalmar-se, e por vezes chegava a gritar com ela para calar a boca, não dizer besteiras e deixá-lo em paz. Quando ele fazia isso, ela lhe lançava olhares de vítima, sofridos e magoados.., e depois ia para o andar de cima, continuar seus estudos. Começou a corresponder-se com essas revistas, e a trocar cartas com os assinantes e outros amigos de correspondência que tinham tido experiências semelhantes em suas vidas.

A maior parte dos correspondentes eram pessoas de bom co­ração como a própria Vera, que queriam ajudar a aliviar a carga quase insuportável do sofrimento dela. Eles mandavam orações e pedras de orações, amuletos, promessas de incluir Johnny em suas devoções noturnas. Mas havia alguns que não passavam de viga­ristas, e Herb estava alarmado com a incapacidade cada vez maior de parte da mulher de conseguir reconhecê-los. Houve um ofereci­mento para enviar a ela um fragmento da Verdadeira e Única Cruz de Nosso Senhor por apenas 99,98 dólares. Outro, para enviar um frasco de água da fonte de Lourdes, que quase certamente operaria um milagre se fosse esfregada na testa de Johnny. Esse custava cento e dez dólares, mais o porte. Mais barata (e mais agradável para Vera) foi uma gravação continua, em cassete, do Salmo 23 e da Oração do Senhor, pronunciados pelo evangelista sulino Billy Humbarr. Se fosse tocada à cabeceira de Johnny por um período de algumas semanas, era quase certo produzir um restabelecimento maravilhoso, segundo o folheto. Como bênção adicional (apenas por tempo limitado), uma foto autografada do próprio Billy Hum­barr seria incluída.

Herb viu-se obrigado a interferir cada vez mais, à medida em que aumentava a paixão dela por essas bugigangas pseudo-religiosas. Ele às vezes, às escondidas, rasgava os cheques que ela assinava e simplesmente reajustava o saldo bancário. Mas quando a oferta de­terminava que a venda seria a dinheiro, e nada mais, ele tinha de se opor... e Vera começou a se afastar dele, a olhá-lo com descon­fiança, como pecador e ateu.

 

Sarah Bracknell trabalhava na escola, de dia. As tardes e noites não eram muito diferentes do que tinham sido depois do fim do caso com Dan; ela vivia numa espécie de limbo, esperando que acontecesse alguma coisa. Em Paris, as conversações de paz estavam paradas. Nixon ordenara a continuação do bombardeio de Hanói, a despeito dos protestos nacionais e estrangeiros. Numa entrevista coletiva à imprensa, apresentou fotos que provavam positivamente que os aviões norte-americanos certamente não estavam bombar­deando os hospitais norte-vietnamitas, mas ele ia a toda parte de helicóptero militar. A investigação do brutal estupro com assassi­nato de uma garçonete de Castle Rock ficou paralisada, depois da libertação de um pintor de cartazes que já passara três anos inter­nado no hospício estadual de Augusta: contra as expectativas de todos, o álibi apresentado pelo pintor fora comprovado. Janis Joplin estava cantando blues aos berros. Paris decretou (o segundo ano seguido) que os vestidos seriam mais compridos, mas isso não se deu. Sarah tomou conhecimento de todas essas coisas de um modo vago, como vozes de outro aposento, em que houvesse uma festa que continuava indefinidamente.

Chegou a primeira neve — apenas uma poeira —, depois uma segunda poeira, e dez dias antes do Natal houve uma tempestade que fechou as escolas da região, e ela ficou em casa, olhando para a neve que enchia a Flagg Street. O seu breve namoro com Johnny — ela nem podia chamar aquilo de caso, sequer — agora fazia parte de outra estação, e ela sentiu que ele começava a se distan­ciar dela. Era uma sensação de amedrontar, como se uma parte dela estivesse se afogando. Afogando-se em vários dias.

Ela leu muita coisa sobre ferimentos da cabeça, comas e le­sões no cérebro. Nada era muito encorajador. Descobriu que havia uma moça numa cidadezinha de Maryland que estava em coma havia seis anos; havia um rapaz em Liverpool, na Inglaterra, que fora atingido por um arpéu, trabalhando no cais, e ficara em coma catorze anos antes de morrer. Aos poucos aquele estivador jovem e forte fora cortando suas ligações com o mundo, desgastando-se, per­dendo os cabelos, os nervos ópticos foram se degenerando e esfa­relando-se por trás das pálpebras fechadas, o corpo aos poucos foi assumindo a posição fetal, à medida em que seus ligamentos se encurtavam. Ele invertera o tempo, tornara-se novamente um feto, nadando nas águas placentárias da coma enquanto seu cérebro degenerava. Uma autópsia depois de sua morte mostrou que as dobras e circunvoluções cerebrais tinham se alisado, deixando os lobos frontal e pré-frontal quase inteiramente lisos.

“Ah, Johnny, não é justo”, pensou ela, olhando a neve caindo lá fora, enchendo o mundo com uma brancura vazia, sepultando o verão desaparecido e o outono vermelho-dourado. “Não é justo, deviam deixar que você fosse para onde quer que se possa ir.”

Ela recebia uma carta de Herb Smith de dez em dez dias, ou de quinze em quinze: Vera tinha seus amigos correspondentes e ele tinha a sua. Ele escrevia com uma caligrafia grande e esparramada, com uma caneta-tinteiro antiga. “Estamos ambos bem. Esperando para ver o que vai acontecer, como você também deve estar. Sim, andei lendo um pouco e sei o que você, tão gentil e bondosa, não disse em sua carta, Sarah. O caso é grave. Mas claro que temos esperanças. Não acredito em Deus do mesmo modo que Vera, mas acredito à minha moda, e fico pensando por que ele não teria levado John logo, se pretendia fazê-lo. Haverá um motivo? Ninguém sabe, imagino. Só temos esperanças.”

Em outra carta:

“Este ano tenho de fazer a maior parte das compras de Natal, pois Vera resolveu que presentes de Natal são um costume pecador. É isso o que me leva, dizer que ela está piorando sempre. Ela sem­pre achou que era um dia santo e não um feriado. Estava sempre dizendo que devíamos lembrar-nos de que é o aniversário de Jesus, e não de Papai Noel, mas antes nunca se importou de fazer as com­pras. Até gostava disso. Agora parece que só fala para meter o pau nisso. Aprende uma porção dessas idéias esquisitas com as pessoas com quem se corresponde. Puxa, quem me dera que ela parasse e voltasse ao normal. Mas, quanto ao resto, estamos ambos bem. Herb”.

E um cartão de Natal que a fez chorar um pouco: “Tudo de bom para você de nós dois nestas festas, e, se quiser vir passar o Natal com dois ‘velhos fósseis’, o quarto de hóspedes está arrumado. Vera e eu estamos bem. Espero que o ano novo seja melhor para nós todos, e tenho certeza de que será. Herb e Vera

Ela não foi a Pownal nas férias de Natal, em parte por causa da retirada continuada de Vera para o seu mundo — seu progresso naquele mundo podia verificar-se bem nas entrelinhas das cartas de Herb —, e em parte porque o laço que os unia agora lhe parecia muito estranho e distante. O vulto quieto no hospital de Bangor antes fora visto em close-up, mas agora ela parecia estar sempre olhando para ele pela ponta errada do telescópio da memória; como o homem no balão, ele parecia longe e pequenino. Assim, parecia melhor conservar-se à distância.

Talvez Herb também tivesse sentido isso. As cartas dele foram rareando, depois que 1970 passou a 1971. Em uma delas ele chegou bem perto de dizer a Sarah que estava na hora de continuar com a vida, e terminou dizendo que duvidava que uma garota bonita como ela tivesse falta de companhia.

Mas ela não tinha saído com ninguém, não tinha vontade. Gene Sedecki, o professor de matemática que um dia a convidara para sair, numa noite que parecera durar pelo menos mil anos, tinha começado a convidá-la de novo, passado um intervalo inde­centemente curto depois do acidente de Johnny, e era difícil desen­corajá-lo, mas ela achava que ele afinal estava começando a entender. Devia ter acontecido antes.

De vez em quando outros Homens a convidavam, e um deles, um estudante de direito chamado Walter Hazlett, a atraía bastante. Ela o conheceu na festa de véspera de ano-novo dada por Anne Strafford. Pretendia apenas comparecer por cortesia, mas tinha :ficado bastante tempo, conversando sobretudo com Hazlett. Recusar o convite dele tinha sido espantosamente difícil, mas ela conseguira, porque compreendia bem o motivo dessa atração: Walter Hazlett era um homem alto, de cabelos castanhos e despenteados e um sorriso torto, meio cínico, que lhe lembrava muito Johnny. Isso não era uma boa base para se interessar por um homem.

Em princípios de fevereiro, foi convidada para sair com o mecânico que consertava o seu carro no Cleaves Mills Chevron. Mais uma vez, ela quase aceitara, e depois recusara. O homem chamava-se Arníe Tremont. Era alto, moreno e bonitão, de um jeito risonho e predador. Fazia lembrar um pouco James Brolin, o segundo canastrão daquela série de TV Marcus Welby, Médico, e ainda mais um certo Delta Tau Delta chamado Dan.

Era melhor esperar. Esperar para ver se alguma coisa acontecia.

Mas nada aconteceu.

 

Naquele verão de 1971, Greg Stillson, dezesseis anos mais velho e mais sabido do que o vendedor de Bíblias que tinha matado um cão a pontapés num quintal deserto de Iowa, estava sentado na sala dos fundos de seu novo negócio de seguros e imóveis em Ridgeway, New Hampshire. Ele não tinha envelhecido muito, du­rante esses anos. Tinha agora uma rede de rugas em volta dos olhos, e seus cabelos estavam mais compridos (mas ainda bem conserva­dores). Continuava a ser um homem grande, e sua cadeira giratória rangia quando ele se mexia.

Estava fumando um cigarro Pall Mall e olhando para o homem confortavelmente escarrapachado na cadeira diante de si. Greg estava olhando para o homem do modo como um zoólogo examina algum novo espécime interessante.

—    Está vendo alguma coisa estranha? — perguntou Sonny Elliman.

Elliman tinha mais de um metro e noventa e cinco de altura. Estava com um casaco jeans velho, duro de gordura, do qual tinham sido cortadas as mangas e os botões. Estava sem camisa por baixo. Uma cruz de ferro nazista, preta e enfeitada de cromo branco, estava pendurada no peito nu. A fivela do cinto que passava logo abaixo de sua considerável barriga de cerveja era uma grande ca­veira de marfim. Por baixo das bainhas funiladas dos jeans apare­ciam as pontas quadradas e arranhadas das botinas. Os cabelos eram compridos até os ombros, desgrenhados, e brilhavam com um acúmulo de suor gorduroso e óleo de motor. De uma das orelhas pendia um brinco em forma de suástica, também preto com cromo branco. Ele estava girando um capacete em forma de balde de carvão na ponta de um dedo rombudo. Pregado nas costas do casaco havia um diabo vermelho, rindo, com uma língua em forquilha. Acima do diabo estava escrito: “Os Doze do Diabo”. Abaixo: “Sonny Elliman, Prez.”

—    Não — disse Greg Stillson. — Não estou vendo nada de estranho, mas estou vendo alguém que se parece muito com um sacana ambulante.

Elliman enrijeceu-se um pouco, depois descontraiu-se e riu. A despeito da sujeira, do cheiro de corpo quase palpável e dos ador­nos nazistas, os olhos dele, de um verde escuro, não deixavam de ter inteligência e até certo senso de humor.  

—    Pode me humilhar, cara — disse ele. — Já me fizeram isso. Você agora está com tudo.

Você reconhece isso, não é?

—    Claro. Deixei meus companheiros lá nos Hamptons, vim aqui sozinho. Azar o meu, cara. — Ele sorriu. — Mas se algum dia o pegássemos na mesma situação, você havia de querer que os seus rins estivessem usando botas de combate.

—  Eu arrisco — disse Greg. Ele avaliou Elliman. Ambos eram homens grandes. Achou que Elliman levava uma vantagem de uns dezoito quilos sobre ele, mas grande parte só em músculos de cer­veja. — Eu topo a parada, Sonny.

O     rosto de Elliman abriu-se num sorriso bem-humorado, de novo.

—    Talvez sim, talvez não. Mas não é assim que fazemos o jogo, cara. Nada desse negócio de americano bonzinho, tipo John Wayne. — Ele inclinou-se para a frente, como que para contar um grande segredo. — Quanto a mim, pessoalmente, sempre que ganho um bom pedaço de bolo da mamãe, trato de cagar nele.

—    Boca suja, Sonny — disse Greg, manso.

—    O que você quer comigo? — perguntou Sonny. — Por que não diz logo? Vai perder a sua reunião de benfeitores da cidade.

—    Não — disse Greg, ainda calmo. — Eles se reúnem as terças de noite. Temos muito tempo.

Elliman produziu um som de desagrado.

—    Ora, o que eu pensava — continuou Greg — é que você havia de querer alguma coisa de mim. — Abriu a gaveta da secre­tária e dela tirou três sacos plásticos de maconha. Misturadas na erva havia várias cápsulas de gel. — Encontrei isso no seu saco de dormir — disse Greg. — Feio, feio, feio, Sonny. Menino malvado. Vai para a prisão sem receber nada.

—    Você não tinha ordem de busca — disse Elliman. — Até um advogado novato conseguiria me livrar dessa, e você está sabendo disso.

—    Não sei de nada disso — disse Greg Stillson. Recostou-se em sua cadeira giratória e pôs os pés em cima da mesa, calçados com os tênis que comprara além da divisa do Estado, na loja L. L. Bean, no Maine. — Sou um figurão nesta cidade, Sonny. Vim para New Hampshire mais ou menos quebrado, há alguns anos, e hoje tenho um bom negócio aqui. Ajudei o Conselho Municipal a resolver alguns problemas, inclusive o que fazer com todos esses garotos que o chefe de polícia apanha passando drogas.., ah, não me refiro ao pessoal mau-caráter como você, Sonny, vagabundos como você não são problema, quando apanhados com um tesourinho como esse aí na minha mesa... refiro-me aos bons rapazes daqui. Ninguém quer fazer nada contra eles, na verdade, sabe? Expliquei isso para eles. Mandem-nos trabalhar em projetos comunitários em vez de mandá-los para a cadeia, foi o que eu aconselhei. Deu muito certo. Agora temos o maior viciado da zona das três cidades trei­nando o time juvenil e saindo-se muito bem.

Elliman estava com uma cara de tédio. Greg de repente abai­xou os pés com um estrondo, agarrou um jarro com a sigla UNH (Universidade de New Hampshire) ao lado e girou-o junto do nariz de Sonny Elliman. O jarro passou a menos de dois centímetros, voou pela sala e espatifou-se contra os arquivos no canto. Pela primeira vez Elliman pareceu assustar-se. E por um instante o rosto desse Greg Stillson mais velho e sabido foi o rosto do homem mais jovem, do massacrador do cachorro.

—    Você vai prestar atenção quando eu falo — disse ele, em voz baixa —, porque o que estamos discutindo aqui é a sua carreira nos próximos dez anos, mais ou menos. Se não estiver interessado em fazer carreira colando VIVA LIVRE OU MORRA em placas de auto­móvel, vai querer escutar, Sonny. Vai querer fazer de conta que este é o primeiro dia de aula, de novo, Sonny. Vai querer acertar tudo de saída, Sonny.

Elliman olhou para os cacos do jarro e depois para Stillson. Sua calma inquieta de antes estava sendo substituída por uma sen­sação de interesse real. Havia tempos que ele não se interessava mesmo por nada, de verdade. Tinha feito o carreto da cerveja por­que estava caceteado. Tinha ido sozinho porque estava caceteado. E quando aquele grandalhão o fizera parar, lançando uma luz azul no painel da camioneta, Sonny Elliman supusera que tinha de tratar apenas com mais um delegado de cidade pequena, protegendo seu território e expulsando o motoqueiro malvado com sua moto Harley ­Davídson envenenada. Mas esse cara era outra coisa. Ele era... era...

“Ele é maluco! “, pensou Sonny, sentindo um prazer incipiente com a descoberta. “Tem dois prêmios por serviço público na parede, e fotos dele falando com os rotarianos e os leões, e é vice-presidente dos bonzinhos dessa cidade de merda, e no ano que vem será presi­dente, e é tão louco quanto uma porra de um percevejo!”

—    OK — disse ele. — Tem a minha atenção.

—    Tive o que se pode chamar de uma carreira matizada —disse Greg. — Tive altos, mas também tive baixos. Tive algumas escaramuças com a lei. O que estou querendo dizer, Sonny, é que não tenho idéias preconcebidas quanto a você. Não sou como os outros daqui. Eles leram no Union-Leader sobre o que você e os seus amiguinhos motoqueiros estão fazendo nos Hamptons neste verão, e têm vontade de castrá-los com uma lâmina de gilete enferrujada.

—    Não são Os Doze do Diabo — disse Sonny. — Nós viemos do norte de Nova York para descansar, cara. Estamos de férias. Não pretendemos arrasar um punhado de bares reles. Tem uma turma de Anjos do Inferno fazendo o diabo, e uma turma de Cava­leiros Negros de Nova Jersey, mas sabe quem são os piores? Um bando de garotos da universidade. — Sonny arreganhou o lábio.

— Mas os jornais não gostam de noticiar isso, gostam? Preferem lançar a culpa em nós, lançá-la nos estudantes.

—    Vocês são tão mais coloridos! — disse Greg, com brandura. — E William Loeb, no Union-Leader, não gosta de clubes de motocas.

—    Aquele careca idiota! — resmungou Sonny.

Greg abriu a gaveta da mesa e puxou uma garrafa chata de bourbon, de um quarto de litro.

—    Faço um brinde a isso — disse ele. Tirou o selo e bebeu a metade de um só trago. Expirou com força, os olhos cheios de água, e estendeu a garrafa por cima da secretária. — Está servido?

Sonny acabou com a garrafa. Um fogo ardente subiu do estô­mago para a garganta dele.

—    Pode me acender, cara — exclamou ele.

Greg pôs a cabeça para trás e riu.

—    Vamos nos dar bem, Sonny. Tenho a impressão de que vamos nos dar bem.

—    O que é que você quer? — perguntou Sonny, de novo, segurando a garrafa vazia.

—    Nada.., agora, não. Mas tenho uma impressão... — Os olhos de Greg ficaram distantes, quase intrigados. — Já lhe disse que sou um figurão aqui em Ridgeway. Vou me candidatar a prefeito, quando houver a próxima eleição, e vou vencer. Mas isso...

—    Ë só o começo? — sugeriu Sonny.

—    É um princípio, em todo caso. — Ele continuava com aquela expressão intrigada. — Consigo fazer as coisas. As pessoas sabem disso. Faço as coisas bem feitas. Sinto que.., há muita coisa à minha frente. O céu é o limite. Mas não tenho... bem certeza... do que quero dizer. Sabe?

Sonny apenas deu de ombros.

A expressão intrigada desapareceu.

—    Mas há uma história, Sonny. Uma história sobre um ca­mundongo que tirou um espinho da pata de um leão. Ele fez isso para compensar o leão por não o ter devorado, anos antes. Conhece essa história?

—    Pode ser que a tenha ouvido em criança.

Greg concordou.

—    Bem, faltam alguns anos para..., seja o que for, Sonny. —Empurrou o saco plástico por cima da mesa. — Não vou devorá-lo. Podia, se quisesse, sabe. Um advogadozinho novato não conseguiria livrá-lo. Nesta cidade, com os motins em Hampton, a menos de trinta quilômetros daqui, nem um craque conseguiria livrá-lo, em Ridgeway. Essa boa gente adoraria vê-lo sacrificado.

Elliman não deu resposta, mas desconfiava de que Greg tivesse razão. Não havia nada pesado no seu pacote de drogas, mas todos os pais de mocinhas e garotos universitários ficariam contentes se o vissem quebrando pedras em Portsmouth, de cabeça raspada..

—    Não vou devorá-lo — repetiu Greg. — Espero que você se lembre disso daqui a alguns anos, se eu tiver um espinho encravado em minha pata... ou talvez se eu tiver a oportunidade para você. Guarde isso em mente.

A gratidão não figurava no limitado catálogo de sentimentos humanos de Sonny Elliman, mas o interesse e a curiosidade, sim. Ele sentia-se dividido quanto àquele Stillson. Aquela loucura nos olhos do outro sugeria várias coisas, mas o tédio não era uma delas.

—    Quem sabe lá onde estaremos todos, dentro de alguns anos? — murmurou ele. — Podíamos estar todos mortos, cara.

—    Não se esqueça de mim. É só o que eu peço.

Sonny olhou para os cacos do jarro quebrado.

—    Vou me lembrar de você — disse ele.

 

Passou-se o ano de 1971. Os motins de praia de New Hampshire passaram, e as reclamações dos empresários das praias foram abafadas pelos aumentos dos soldos em suas contas bancárias. Um sujeito obscuro, chamado George McGovern, apresentou sua can­didatura à presidência comicamente cedo. Qualquer pessoa que acom­panhasse a política sabia que o candidato indicado pelo Partido Democrata em 1972 seria Edmund Muskie, e havia quem achasse que ele conseguiria derrubar o Capeta de San Clement* e vencê-lo.

Em princípios de junho, pouco antes do fim do período letivo, Sarah tomou a encontrar o jovem estudante de direito. Ela estava na loja de eletrodomésticos de Day, procurando uma torradeira, e ele estava procurando um presente para o aniversário de casamento dos pais. Ele a convidou para ir ao cinema: estavam exibindo Dirty Harry, o novo filme de Clint Eastwood. Sarah aceitou. E os dois se divertiram. Walter Hazlett tinha deixado crescer a barba, e não lhe lembrava tanto a pessoa de Johnny. Aliás, estava ficando cada vez mais difícil para ela lembrar-se exatamente da cara de Johnny. O rosto dele só lhe aparecia claramente nos sonhos, sonhos em que ele estava diante da roda da fortuna, vendo-a girar, o rosto frio e os olhos escurecidos naquele tom roxo, estranho e meio assustador, olhando para a roda como se fosse sua reserva de caça particular.

Ela e Walt começaram a se ver muitas vezes. Ele era uma pes­soa de convívio fácil. Não exigia nada... ou, se exigia, era de um modo tão gradual que não dava para perceber. Em outubro ele perguntou se podia comprar para ela um brilhante pequeno. Sarah perguntou se podia pensar naquilo no fim de semana. Naquela tarde de sábado ela fora ao Eastern Maine Medical Center, con­seguira um cartão especial, de bordas vermelhas, na portaria, e subira à Unidade de Terapia Intensiva. Ficou sentada à cabeceira de Johnny por uma hora. Lá fora o vento de outono uivava no escuro, prenunciando o frio, prenunciando a neve, prenunciando uma estação de morte. Faltavam dezesseis dias para completar um ano desde que houvera a feira, a roda e a trombada de frente, perto do brejo.

Ela ficou ali sentada, escutando o vento e olhando para Johnny. Tinham tirado as ataduras. A cicatriz começava na testa dele, dois centímetros acima da sobrancelha direita, e seguia torcida até a linha do nascimento do cabelo. Os cabelos dele ali tinham ficado brancos, o que a fez lembrar-se do detetive de ficção das histórias da Dele­gacia 87... Cotton Hawes, era o nome dele. Aos olhos de Sarah, não parecia ter havido qualquer degeneração nele, a não ser o ine­vitável emagrecimento. Era apenas um rapaz que ela conhecia ligei­ramente, dormindo profundamente.

Debruçou-se sobre ele e beijou sua boca, delicadamente, como se assim pudesse inverter o velho conto de fadas e o beijo pudesse despertá-lo. Mas Johnny continuou dormindo.

Ela saiu, voltou para o apartamento em Veazíe, deitou-se na cama e chorou, enquanto o vento percorria o mundo escuro lá fora, jogando à sua frente as folhas amarelas e vermelhas. Na segunda-

 

*Nixon. (N. do T.)

 

feira disse a Walt que, se ele quisesse mesmo comprar-lhe um bri­lhante — pequeno, lembre-se —, ela ficaria feliz e orgulhosa de usá-lo.

Foi assim o ano de 1971 para Sarah Bracknell.

Em princípios de 1972, Edmund Muskie rompeu em prantos durante um discurso apaixonado junto dos escritórios do homem que Sonny Elliman descrevera como “aquele careca idiota”. George McGovern ganhou as primárias, e Loeb anunciou feliz em seu jornal que o povo de New Hampshire não gostava de bebês chorões. Em julho McGovern foi indicado. Naquele mesmo mês Sarah Bracknell tornou-se Sarah Hazlett. Ela e Walt casaram-se na Pri­meira Igreja Metodista de Bangor.

A menos de três quilômetros de distância, Johnny Smith con­tinuava dormindo. E a imagem dele ocorreu a Sarah, de repente e de um modo horrível, quando Walt a beijou em frente dos fami­liares reunidos para o casamento: “Johnny”, pensou ela, vendo-o como o vira quando as luzes se acenderam, meio Jekyil e meio Hyde, pavoroso. Ela se enrijeceu por um momento nos braços de Walt, e depois aquilo passou. Recordação, visão, fosse o que fosse, desa­pareceu.

Depois de muito pensar e de conversar com Walt, ela convi­dara os pais de Johnny para o casamento. Herb comparecera so­zinho. Na recepção, ela lhe perguntou se Vera estava bem.

Ele olhou em volta, viu que estavam sós, no momento, e engoliu depressa o resto de seu uísque com soda. Tinha envelhecido cinco anos nos últimos dezoito meses, pensou ela. Seus cabelos estavam ficando ralos. As rugas no rosto, mais fundas. Estava usando óculos, e por trás das fracas lentes corretivas, seus olhos estavam desconfiados e magoados.

—    Não.., não está, não, Sarah. Na verdade, está lá em Ver­mont. Esperando pelo fim do mundo.

—    O quê?

Herb contou que seis meses antes Vera tinha começado a se corresponder com um grupo de cerca de dez pessoas, que se intitu­lavam A Sociedade Americana dos Ültimos Tempos. Eram chefiados pelo Sr. e a Sra. Harry L. Stonkers, de Racine, Wisconsin. O Sr. e a Sra. Stonkers diziam terem sido apanhados por um disco voador, quando estavam num acampamento. Tinham sido levados para o céu, que não ficava na constelação de Órion, e sim num planeta do tipo da Terra, que girava em tomo de Arturo. Lá eles haviam se comunicado com a sociedade dos anjos e tinham avistado o paraíso. Havia sido informado aos Stonkers que os Últimos Tempos estavam para chegar. Tinham sido dotados do poder de telepatia e enviados de volta à Terra para reunir alguns fiéis.., para a primeira ponte aérea para o céu, por assim dizer. E assim os dez tinham se reunido, comprado uma fazenda ao norte de St. Johnsbury, e estavam insta­lados lá havia umas sete semanas, esperando que o disco viesse buscá-los.

—    Parece... — começou Sarah a dizer, mas calou-se.

—    Sei o que parece — disse Herb. — Parece loucura. O sítio custou nove mil dólares. Não passa de uma casa de fazenda velha com um hectare de terras áridas. A parte de Vera foi setecentos dólares.., só o que conseguiu arranjar. Não houve meio de impe­di-la.., a não ser que a internasse. — Ele parou e depois sorriu. — Mas isso não é assunto para se falar na festa do seu casamento, Sarah. Você e o seu marido vão ter tudo de bom. Sei que vão.

Sarah retribuiu o sorriso como pôde.

—    Obrigada, Herb. Você vai.., quero dizer, acha que ela vai...

—    Voltar? Ah, sim. Se o mundo não acabar até o inverno, acho que ela voltará.

—    Ah, eu só quero o melhor para vocês — disse ela, e abraçou-o.

 

O     sítio em Vermont não tinha aquecimento, e como, em fins de outubro, o disco voador ainda não tinha aparecido, Vera voltou para casa. O disco não aparecera, disse ela, porque eles ainda não estavam perfeitos: ainda não tinham consumido os resíduos não essenciais e pecaminosos de suas vidas. Mas ela estava enaltecida e exaltada espiritualmente. Tivera um aviso, num sonho. Talvez não estivesse destinada a ir para o céu num disco. Sentia cada vez mais que seria necessária para orientar o filho, mostrar-lhe o caminho do bem quando ele saísse do seu estado de inconsciência.

Herb recebeu-a, amou-a como pode... e a vida continuou. Johnny já estava em coma havia dois anos.

 

Nixon tomou posse. Os rapazes norte-americanos começaram a chegar do Vietnam. Walter Hazlett prestou exame para a Ordem dos Advogados e foi convidado a prestá-lo novamente, em data posterior. Sarah Hazlett lecionava na escola, enquanto ele estudava para as provas. Os alunos que eram calouros tolos e desengonçados quando ela começara a lecionar já estavam no segundo ano. As me­ninas sem peitos já estavam com busto. Garotos que não sabiam nem andar pelo prédio estavam agora jogando basquete pela uni­versidade.

A segunda guerra entre árabes e israelenses começou e acabou. O boicote do petróleo começou e acabou. A alta dos preços da gasolina começou e não acabou. Vera Smith convenceu-se de que Cristo voltaria, vindo de baixo da terra no pólo sul. Essa informação baseava-se num novo folheto (de dezessete páginas, preço: quatro dólares e cinqüenta cents), intitulado O subterrâneo tropical de Deus. A hipótese espantosa do autor do folheto era que o céu na realidade está abaixo de nossos pés, e que o ponto de acesso mais fácil é o pólo sul. Uma das partes do folheto intitulava-se “Expe­riências psíquicas dos exploradores do pólo sul”.

Herb disse a ela que menos de um ano antes ela estava conven­cida de que o céu ficava em algum lugar do além, provavelmente em volta de Arturo.

—    Eu certamente poderia acreditar mais nisso do que nessa história maluca do pólo sul — disse ele. — Afinal de contas, a Bí­blia diz que o céu fica no firmamento. Aquele lugar tropical debai­xo da terra supõe-se que seja...

—    Pare! — disse ela, os lábios apertados, como linhas finas e pálidas. — Não precisa escarnecer do que não compreende.

—    Eu não estava escarnecendo, Vera — disse ele, com calma.

—    Só Deus sabe por que o ateu escarnece e o pagão se en­raivece — disse ela.

Seus olhos exibiam aquele olhar vazio. Os dois estavam senta­dos à mesa da cozinha, Herb com um pedaço de cano velho à sua frente, Vera com uma pilha de antigos exemplares do National Geograpbic Magazine, que andara folheando para procurar ilustra­ções e histórias sobre o pólo sul. Lá fora, nuvens inquietas voavam de oeste para leste, e as folhas caíam das árvores. Era novamente o princípio de outubro, e este sempre parecia ser o pior mês para ela. Era o mês em que aquela expressão vazia aparecia mais freqüente­mente em seus olhos e levava mais tempo para desaparecer. E era sempre em outubro que os pensamentos dele, traiçoeiros, giravam em volta da idéia de deixar os dois. À mulher, possivelmente em iminência de internação; e ao filho, adormecido, que provavelmente já estava morto, do ponto de vista prático. Naquele exato mo­mento ele estava virando a peça de encanamento nas mãos, olhando pela janela para aquele céu inquieto, e pensando: “Eu podia arru­mar minhas coisas. Era só jogar tudo no fundo do furgão e ir. Para a Flórida talvez. Nebraska, Califórnia. Um bom carpinteiro pode ganhar um bom dinheiro em qualquer droga de lugar. É só se le­vantar e ir

Mas ele sabia que não iria. Ë que outubro era um mês de pensar em fugir, assim como parecia ser o mês de Vera descobrir al­gum novo oleoduto para conduzi-la a Jesus e à futura salvação do único filho que ela conseguira nutrir em seu ventre abaixo do padrão.

Então ele estendeu a mão por cima da mesa e pegou a mão dela, que estava magra e horrivelmente ossuda, mão de velha. Ela levan­tou os olhos, espantada.

—    Eu a amo muito, Vera — disse ele.

Ela sorriu para ele, e por um instante pareceu-se muito com a garota que ele cortejara e conquistara, a garota que o cutucara com uma escova de cabelos na noite de núpcias. Era um sorriso meigo, e os olhos dela, por momentos, ficaram límpidos e cheios de carinho e amor. Lá fora, o sol apareceu por trás de uma nuvem gorda, mer­gulhou atrás de outra, e tornou a sair, lançando grandes sombras in­terrompidas pelos campos atrás da casa deles.

—    Sei disso, Herbert. E também o amo.

Ele colocou a outra mão sobre a dela e segurou-a.

—    Vera — disse ele.

—    Sim? — Os olhos dela estavam tão límpidos.., de repente ela estava com ele, totalmente com ele, e isso o fez compreender o quanto eles se haviam distanciado, naqueles últimos três anos.

—    Vera, se ele nunca mais acordar... Deus não o permita, mas se não acordar... ainda teremos um ao outro, não é? Quero dizer...

Ela puxou a mão, de repente. As duas mãos dele, que a esta­vam segurando de leve, ficaram agarrando o vazio.

—    Nunca diga isso. Nunca diga que Johnny não vai acordar.

— Eu só queria dizer que nós..._

—    Claro que ele vai acordar — disse ela, olhando para o cam­po, pela janela, onde as sombras continuavam a se cruzar. — o plano de Deus para ele. Ah, sim. Pensa que eu não sei? Eu sei, pode crer. Deus tem grandes coisas guardados para Jobnny. Eu o ouvi em meu coração.

—    Sim, Vera — disse ele. — OK.

Os dedos dela tateatam procurando as revistas, encontraram-nas e recomeçaram a folheá-las.

—    Eu sei — disse ela, numa voz infantil, atrevida.

—    OK — disse ele, com calma.

Ela olhava as revistas. Herb apoiou o queixo nas palmas das mãos e olhou para o sol lá fora e para as sombras, pensando no tempo que levaria para chegar o inverno, depois do mês de outu­bro, traiçoeiro e dourado. Teve vontade de que Johnny morresse.

Ele amara o menino desde o princípio. Tinha visto o assombro naquele rostinho miúdo no dia em que levara uma perereca para o carrinho do menino e pusera aquela coisinha viva na mão dele. Ensinara Johnny a pescar, a patinar e a atirar. Passara a noite toda acordado, sentado à cabeceira dele, quando o garoto tivera a terrível gripe em 1957, quando sua temperatura subira a quarenta graus. Escondera as lágrimas na mão quando Johnny se diplomara no gi­násio e fora orador da turma, pronunciando o discurso de cor, sem um engano. Tantas recordações dele: ensinando-o a dirigir, de pé na proa do Bolero com ele, quando tinham ido passar as férias na Nova Escócia, uma vez; Johnny aos oito anos, rindo, empolgado com o movimento helicoidal do barco; ajudando-o com os deveres de casa, ajudando-o com a casinha na árvore, ajudando-o a trabalhar com a bússola Silva quando era escoteiro. Todas as recordações estavam embaralhadas sem qualquer ordem cronológica: Johnny era o único fio que unia a meada, Johnny descobrindo avidamente o mundo, que no fim o derrubara daquele modo. E agora ele desejava que Johnny morresse, ah, como o desejava, que ele morresse, que seu coração parasse de bater, que os últimos traços débeis do eletro­encefalograma se alisassem, que ele se apagasse como uma vela, num poço de cera: que ele morresse e os libertasse.

 

O     vendedor de pára-raios chegou ao Cathy’s Roadhouse, em Somerset, New Hampshire, no princípio da tarde de um dia ardente de verão, menos de uma semana depois do dia 4 de julho daquele ano de 1973; e, em algum lugar não muito distante, talvez houvesse tempestades por surgir nos quentes poços das correntes ascendentes termais do verão.

Era um homem com muita sede, e parou no Cathy’s para sa­tisfazer essa sede com umas cervejas, e não para vender alguma coi­sa. Mas, por força do hábito, olhou para o telhado do prédio baixo, em estilo de fazenda, e a linha contínua que viu destacada contra o céu metálico e sufocante o levou a pegar a mala de camurça gasta, sua mala de amostras.

Lá dentro, o Cathy’s estava escuro e quieto, a não ser pelo murmúrio abafado da TV em cores na parede. Lá estavam alguns fregueses, e atrás do bar o proprietário, de olho no programa de TV, assim como seus clientes.

O     vendedor de pára-raios sentou-se num banco do bar e colo­cou a mala de amostras no banco à sua esquerda. O proprietário aproximou-se.

—    Olá, amigo. O que quer tomar?

—    Uma cerveja Budweiser — disse o vendedor de pára-raios. —    E outra para você, se tiver vontade.

—    Estou sempre com vontade — disse o proprietário. Voltou com os dois copos, pegou o dólar do vendedor e deixou três níqueis no bar. — Bruce Carrick — disse ele, estendendo a mão.

O     vendedor de pára-raios apertou-a.

—    Meu nome é Dohay — disse ele. — Andrew Dohay. — E bebeu metade da cerveja.

—    Prazer em conhecê-lo — disse Carrick. Afastou-se para ser­vir mais um coquetel de tequila a uma moça de cara dura e depois voltou para junto de Dohay. — É de fora?

—    Sou — disse Dohay. — Vendedor. — Olhou em volta. —É sempre assim tão sossegado?

—    Não. Fica animado nos fins de semana, e faço um negócio razoável durante a semana. Grupos particulares são o que dá di­nheiro, quando conseguimos. Não estou passando fome, mas tam­bém não estou andando de Cadillac. — Apontou o dedo para o copo de Dohay. — Quer um reforço?

—    E mais um para o senhor, sr. Carrick.

—    Bruce. — Ele riu-se. — Você deve estar querendo vender-me alguma coisa.

Quando Carrick voltou com as bebidas, o vendedor de pára-raios disse:

—    Vim para matar a sede, não para vender alguma coisa. Mas já que falou nisso... — Puxou a mala para cima do balcão, com um gesto experiente. As coisas retiniram lá dentro.

—    Ah, lá vem — disse Carrick, rindo.

Dois fregueses da tarde, um velho com uma verruga na pálpe­bra direita e um rapaz mais moço, de jaleco cinza de faxineiro, che­garam-se para ver o que Dohay estava vendendo. A mulher de cara dura continuou a assistir ao programa de TV.

Dohay puxou para fora três pára-raios: um comprido, com uma bola de metal na ponta; um mais curto, e um com condutores de porcelana.

—    Que diabo... — disse Carrick.

—    Pára-raios — disse o velho, rindo. — Ele quer salvar esse botequim da ira de Deus, Bruce. É melhor ouvir o que ele tem a dizer.

Riu de novo, e o outro também. Carrick fechou a cara, e o vendedor de pára-raios viu que perdera qualquer possibilidade que pudesse ter tido de efetuar uma venda. Ele era um bom vendedor, o suficiente para reconhecer que essa estranha combinação de per­sonalidades e circunstâncias por vezes se fazia e aniquilava qual­quer possibilidade de um negócio, antes mesmo de ele poder co­meçar a sua conversa. Aceitou aquilo filosoficamente e começou a falar, de qualquer modo, principalmente por força do habito.

—    Quando eu estava saltando do carro, notei que este belo estabelecimento não estava equipado com condutores de raios... e que é construído de madeira. Ora, por uma quantia muito diminuta — e prestações suaves, se quiser —, posso garantir que...

—    Que um raio vai cair neste lugar às quatro horas desta tarde — disse o homem de cinza, com um sorriso. O velho veterano riu-se.

—    Moço, não é por mal — disse Carrick —, mas está vendo aquilo? — Apontou para um prego dourado numa plaquinha de madeira, ao lado do aparelho de TV, perto da coleção reluzente de garrafas. Espetada no prego havia uma resma de papéis. — Tudo aquilo são contas. Têm de ser pagas até o dia 13 do mês. São escritas em tinta vermelha. Agora, está vendo quantas pessoas estão bebendo aqui agora? Tenho de tomar cuidado. Tenho de...

—    É isso mesmo o que quero dizer — interrompeu Dohay, jeitoso. — Tem de tomar cuidado. E a compra de três ou quatro pára-raios é uma compra que denota cuidado. Você tem um negó­cio rendoso. Não havia de querer que ele fosse destruído por um raio num dia de verão, não é?

—    Ele não ia ligar — disse o veterano. — Pegava o seguro e ia embora para a Flórida. Não é mesmo, Bruce?

Carrick olhou para o velho com aversão.

—    Bem, então, vamos falar de seguros — interpôs o vendedor de pára-raios. O homem de jaleco de faxineiro se desinteressara e se afastara. — Os preços de seu seguro contra fogo vão dimi­nuir...

—    O seguro é total — disse Carrick, categórico. — Escute, não posso mesmo ter essa despesa. Sinto muito. Mas se tornar a falar comigo no ano que vem...

—    Bem, talvez eu fale — disse o vendedor de pára-raios, de­sistindo. — Talvez eu fale.

Ninguém achava que poderia ser atingido por um raio, até o dia em que isso acontecia; era um fato constante, nesse negócio. Não se podia fazer o tal Carrick ver que era a forma mais barata de seguro contra fogo que ele podia adquirir. Mas Dohay era filó­sofo. Afinal, estava dizendo a verdade, ao dizer que só tinha entrado para matar a sede.

Para prová-lo, e para provar que não havia ressentimentos, ele pediu outra cerveja. Mas desta vez não pediu outra para Carrick.

O veterano sentou-se num banco ao lado dele.

—    Há uns dez anos houve um cara que foi atingido por um raio no campo de golfe — disse ele. — Matou-o direitinho. Ora, esse era um cara que podia ter usado um pára-raios bem na cabeça, certo? — Ele deu uma risada, lançando no rosto de Dohay um bafo de cerveja velha. Dohay viu-se obrigado a sorrir. — Todas as moe­das nos bolsos dele ficaram fundidas, juntas. Foi o que ouvi dizer. Os raios são coisas esquisitas. São mesmo. Ora, lembro-me de uma ocasião.. -

Coisas esquisitas, pensou Dohay, deixando as palavras do velho passarem por ele, sem qualquer efeito, e concordando de vez em quando, por instinto. Esquisitas, mesmo, pois não querem saber o que ou quem atingem. Nem quando.

Acabou a cerveja e saiu, levando consigo sua mala de seguros contra a ira de Deus, talvez o único tipo jamais inventado. O calor afetou-o como uma martelada, mas ainda assim ele parou um mo­mento no estacionamento quase deserto, olhando para a linha inin­terrupta do telhado. Dezenove dólares e noventa e cinco cents ou vinte e nove dólares e noventa e cinco cents no máximo, e o homem não podia arcar com a despesa. Economizaria setenta dólares no seu seguro total no primeiro ano, mas não podia arcar com a despesa.., e não se podia convencê-lo, com aqueles palhaços ali, metendo o malho.

Talvez um dia ele se arrependesse.

O     vendedor de pára-raios entrou no seu Buick, ligou o ar-con­dicionado e partiu para o oeste, para Concord e Berlim, a mala de amostras no banco ao lado, correndo à frente das tempestades que pudessem estar se armando nos ventos atrás dele.

 

Em princípios de 1974, Walt Hazlett foi aprovado em seu exame para a Ordem dos Advogados. Ele e Sarah deram uma festa para todos os amigos dele, dela, e os amigos comuns: mais de quarenta pessoas ao todo. A cerveja correu como água, e depois da festa Walt disse que eles podiam considerar-se felizes por não te­rem sido despejados. Depois que acompanhou o último convidado (as três da madrugada), Walt voltou e encontrou Sarah no quarto de dormir, nua, só de sapatos e com os brincos brilhantes que, depois de empenhar tudo o que tinha, lhe dera de presente de aniver­sário. Fizeram amor não uma vez, mas duas, antes de caírem num sono pesado, do qual só acordaram ao meio-dia, com uma ressaca tre­menda. Nenhum dos dois jamais duvidou de que a concepção tivesse se dado na noite da grande festa.

Em Washington, Richard Nixon estava sendo encurralado aos poucos, envolvido num emaranhado de fitas magnéticas. Na Geor­gia, um fazendeiro de amendoins, ex-oficial da marinha e governador no momento, chamado James Earl Carter, tinha começado a con­versar com os amigos íntimos sobre sua candidatura ao cargo que o Sr. Nixon estaria deixando em breve.

No quarto 619 do Eastern Maine Medical Center, Johnny Smith continuava a dormir. Tinha começado a assumir uma posição fetal.

O     Dr. Strawns, o médico que falara com Herb, Vera e Sarah na sala de reunião no dia seguinte ao do acidente, morrera de queimaduras em fins de 1973. A casa dele pegara fogo no dia se­guinte ao Natal. O Corpo de Bombeiros de Bangor chegara à con­clusão de que o incêndio fora provocado por um defeito nos enfeites da árvore de Natal. Dois novos médicos, Weízak e Brown, interessa­ram-se pelo caso de Johnny.

Quatro dias antes de Nixon renunciar, Herb Smith caiu nas fundações de uma casa que estava construindo em Gray, indo parar em cima de um carrinho de mão e fraturando a perna. A fratura levou muito tempo para se soldar, e a perna nunca ficou com­pletamente boa. Ele mancava, e nos dias de chuva usava bengala. Vera rezou por ele, insistindo para que ele embrulhasse a perna, para ir dormir, num pano que fora bento pessoalmente pelo reve­rendo Freddy Coltsmore, de Bessemer, Alabama. O preço do pano abençoado de Coltsmore (conforme Herb o chamava) foi trinta e cinco dólares. Não adiantou nada, ao que ele visse.

Em meados de outubro, pouco depois de Gerald Ford conceder o perdão ao ex-presidente, Vera teve certeza, mais uma vez, de que o mundo ia acabar. Herb percebeu a tempo o que ela estava fazendo: tinha combinado dar o pouco que eles tinham recuperado desde o acidente de Johnny para a Sociedade dos Últimos Tempos da América. Tentara vender a casa, e providenciara para que um caminhão fosse apanhar toda a mobilia dali a dois dias. Herb descobriu a coisa quando o corretor de imóveis lhe telefonou, per­guntando se o possível comprador podia ir olhar a casa naquela tarde.

Pela primeira vez ele perdeu a cabeça, de verdade, com Vera.

—    Em nome de Cristo, o que é que você achava que estava fa­zendo? — trovejou ele, depois de ter arrancado dela toda a incrível história. Estavam na sala. Ele tinha acabado de ligar para a empresa de mudanças, dizendo para não mandarem o caminhão. Lá fora, a chuva caía em camadas cinzentas e monótonas.

       —Não blasfeme em nome do Salvador, Herbert. Não...

—    Cale-se! Cale-se! Estou farto de ouvir você falando essas besteiras!

Ela soltou uma exclamação abafada.

Ele foi mancando até junto dela, a bengala batendo em contra­ponto. Ela recuou um pouco na cadeira e depois olhou para ele com aquela expressão de mártir que, Deus o perdoasse, lhe dava ganas de dar na cabeça dela com a própria bengala.

—    Você ainda não está tão maluca que não saiba o que está fazendo — disse ele. — Não tem essa desculpa. Você fez as coisas às escondidas, Vera. Você...

—    Não fiz! Ë mentira! Não fiz nada...

—    Fez, sim! — berrou ele. — Bom, escute bem, Vera. Ë agora que eu vou dar o basta. Pode rezar tanto quanto quiser. Rezar é de graça. Escreva todas as cartas que quiser, um selo só custa treze cents, por enquanto. Se você quiser mergulhar em todas as menti­ras baratas contadas por esses ratos de igreja, se quiser continuar com as ilusões e o faz-de-conta, pode. Mas eu não quero nada com isso. Lembre-se. Está entendendo?

—    Pai Nosso que estais no céu, santificado seja o Vosso no­me...

—    Está me entendendo?

—    Você pensa que eu estou maluca! — gritou ela, o rosto se enrugando e se apertando de um modo horrível. Ela rompeu em prantos, com as lágrimas ruidosas e feias da derrota e da desilusão totais.

—    Não — disse ele, com mais calma. — Ainda não. Mas talvez esteja na hora de falar bem claro, Vera, e a verdade é que tenho medo de que você fique maluca se não sair dessa e começar a enfrentar a realidade.

—    Você há de ver — disse ela, no meio das lágrimas. — Você há de ver. Deus conhece a verdade, mas espera.

—    Contanto que você entenda que ele não vai ficar com a nossa mobília, enquanto espera — disse Herb, amargo. — Contanto que nos entendamos nesse ponto.

—    São os Últimos Tempos! — disse ela. — A hora do Apo­calipse se aproxima.

—    É mesmo? Isso e quinze cents lhe compram uma xícara de café, Vera.

Lá fora a chuva caía sem parar. Foi nesse ano que Herb com­pletou cinqüenta e dois anos, Vera, cinqüenta e um, e Sarah Hazlett, vinte e sete.

Johnny estava em coma havia quatro anos.

 

O bebê nasceu na véspera do Dia das Bruxas. Sarah levou nove horas em trabalho de parto. Deram-lhe um pouco de oxigênio, quan­do precisou, e em algum momento, em seu sofrimento, ocorreu-lhe estar no mesmo hospital que Johnny, e ela repetiu o nome dele várias vezes. Depois mal se lembrou disso, e certamente não contou nada a Walt. Pensou que poderia ter sido sonho.

Nasceu um menino. Deram-lhe o nome de Dennis Edward Hazlett. Mãe e filho foram para casa três dias depois, e Sarah vol­tou ao trabalho na escola depois do Dia de Ação de Graças. Walt conseguira um emprego promissor num bom escritório de advocacia de Bangor, e se tudo corresse bem eles pretendiam que Sarah pa­rasse de lecionar em junho de 1975. Ela não tinha muita certeza de querer isso. Passara a gostar do trabalho.

 

No primeiro dia de 1975, dois garotinhos, Charlie Norton e Norm Lawson, ambos de Otisfield, Maine, estavam no quintal dos Nortons, travando uma batalha de bolas de neve. Charlie tinha oito anos, Norm, nove. O dia estava sombrio e úmido.

Sentindo que a batalha estava chegando ao fim, pois era quase a hora do almoço, Norm atacou Charlie, atirando uma barragem de bolas de neve. Agachando-se e rindo, Charlie a princípio foi obri­gado a recuar, e depois deu meia-volta e correu, saltando o pequeno muro de pedra que separava o quintal dos Nortons do mato. Correu pelo caminho que levava ao riacho Strimmer. Enquanto corria, Norm acertou uma bola nas costas do capuz dele.

Então Charlie desapareceu de vista.

     Norm saltou o muro e ficou ali parado um momento, olhando para os bosques cheios de neve e escutando o pingar da água derre­tida dos galhos dos vidoeíros, pinheiros e abetos.

—    Volte, seu medroso! — chamou Norm, fazendo barulhos como o cacarejar de galinha.

Charlie não reagiu. Agora não havia nem sinal dele, mas o caminho descia abruptamente, em direção ao riacho. Norm tornou a cacarejar, e ficou ali indeciso, mudando o peso do corpo de um pé para o outro. Aqueles bosques eram de Charlie, não dele. Ter­ritório de Charlie. Norm adorava uma boa batalha de neve quando estava ganhando, mas não queria descer ali se Charlie estivesse espe­rando de tocaia por ele, com meia dúzia de bolas de neve duras, prontas para atirar.

Não obstante, ele já dera meia dúzia de passos pelo caminho quando ouviu lá de baixo um grito alto, sem fôlego.

Norm Lawson ficou tão gelado quanto a neve em que estavam fincadas suas botas de borracha verdes. As duas bolas de neve que estava segurando caíram de suas mãos. Ouviu o grito de novo, tão fraco que mal se ouvia.

Puxa vida, ele foi cair no riacho! pensou Norm, e isso acabou com a paralisia do seu medo. Correu pelo caminho, derrapando escorregando, caindo de bunda no chão uma vez. Seu coração parecia bater nos seus ouvidos. Parte de sua mente o via pescando Charlie do riacho, pouco antes de ele descer pela terceira vez, e sendo considerado herói no Boy’s Life.

A três quartas partes da descida, o caminho fazia um zigue­zague, e, quando ele fez a curva, viu que Charlie Norton não tinha caído no riacho, afinal. Estava no lugar em que o caminho se ni­velava, olhando fixamente para alguma coisa na neve, que se der­retia. Seu capuz caíra para trás, e seu rosto estava quase tão branco quanto a própria neve. Quando Norm se aproximou, ele tornou a dar aquele grito horrível, ofegante.

—    O que é? — perguntou Norm, aproximando-se. — Charlie, o que aconteceu?

Chsrlie virou-se para ele, os olhos enormes, a boca aberta. Tentou falar, mas nada saiu de sua boca, a não ser dois grunhidos sem sentido e um fio prateado de saliva. Apontou.

Norm aproximou-se e olhou. De repente, perdeu toda a força das pernas, sentando-se com um baque. O mundo pareceu girar em volta dele.

Aparecendo por baixo da neve que se derretia, havia duas per­nas vestidas de jeans azuis. Num dos pés havia um tênis, mas o outro estava descalço, branco e sem defesa. Um dos braços estava saindo da neve, e a mão em sua extremidade parecia estar implo­rando um socorro que não chegou nunca. O resto do corpo conti­nuava escondido, misericordiosamente.

Charlie e Norm tinham descoberto o corpo de Carol Dunbarger, de dezessete anos, a quarta vitima do Estrangulador de Castle Rock.

Havia quase dois anos que ele matara pela última vez, e o povo de Castle Rock (o riacho Strímmer formava a fronteira sul entre as cidades de Castle Rock e Otisfield) tinha começado a sentir alivio, pensando que afinal terminara o pesadelo.

Mas não terminara.

 

Onze dias depois da descoberta do corpo da pequena Dunbar­ger, uma tempestade de granizo e gelo abateu-se sobre a Nova Inglaterra. No sexto andar do Eastern Maine Medical Center, tudo estava um pouco atrasado, como conseqüência. Parte do pessoal tinha tido problemas para chegar ao trabalho, e os que tinham conseguido chegar estavam correndo para pôr tudo em dia.

Passava das nove horas quando uma das assistentes, uma mo­cinha chamada Allison Conover, trouxe o leve café da manhã do Sr. Starret. Este estava se refazendo de uma crise cardíaca e cumpria os “dezesseis” no tratamento intensivo: uma permanência de dezes­seis dias depois de uma crise das coronárias era norma comum. O Sr. Starret passava bem. Estava no quarto número 619, e, em particular, dissera à mulher que o maior incentivo para o seu restabe­lecimento era a perspectiva de sair de perto do defunto vivo que ocupava o outro leito do quarto. O murmúrio constante do respi­rador do coitado o impedia de dormir, confiou ele. Depois de certo tempo, chegava a um ponto em que a gente não sabia se queria que ele continuasse a murmurar... ou que parasse. Parasse de uma vez.

A TV estava ligada, quando Allison entrou. O Sr. Starret esta­va sentado na cama, o controle remoto na mão. Um dos progra­mas terminara, e o Sr. Starret ainda não resolvera desligar o desenho que se seguia. Isso o deixaria sozinho com o barulho do respi­rador de Johnny.

— Eu já ia desistir de você, por hoje — disse o Sr. Starret, olhando para a bandeja do café, com suco de laranja, iogurte natu­ral e flocos de trigo, sem grande prazer. O que ele queria mesmo eram dois ovos cheios de colesterol, fritos e cheios de manteiga, com cinco tiras de bacon, não cozidas demais. O tipo de comida que, de fato, o levara para ali. Pelo menos, ao que dizia o médico, o cretino.

— As coisas vão mal lá fora — disse Allison, brevemente. Seis pacientes já lhe tinham dito que iam desistir dela, por aquele dia, e aquilo estava ficando batido. Allison era uma garota simpática, mas naquele dia estava se sentindo atazanada.

—    Ah, desculpe — disse o Sr. Starret, humilde. — As estradas estão derrapando, é?

—    Se estão! — disse Allison, melhorando um pouco. — Se eu não tivesse o carro de meu marido, com tração nas quatro rodas, não teria conseguido chegar aqui.

O     Sr. Starret apertou o botão que levantava sua cama para poder tomar o café da manhã comodamente. O motor elétrico que a levantava e abaixava era pequeno, mas forte. O aparelho de TV também estava bem alto. O sr. Starret estava um pouco surdo e, conforme dissera à mulher, o camarada da outra cama não se quei­xara nenhuma vez do volume alto. Tampouco pedira para ver o que havia nos outros canais. Ele supunha que uma piada como aquela seria de mau gosto, mas quando a gente tem uma crise cardíaca e acaba no tratamento intensivo, num quarto com um vegetal huma­no, ou aprendia a ter um pouco de humor negro ou enlouquecia.

Allison levantou um pouco a voz, para poder ser ouvida por sobre o ruído do motor e da TV, enquanto acabava de instalar a bandeja do Sr. Starret.

—    Havia carros enguiçados em toda a extensão do morro da State Street.

Na outra cama Johnny Smith disse, baixinho:

—    Tudo no 19. Ou tudo ou nada. Minha garota está passando

—    Sabe, esse iogurte não está nada mau — disse o Sr. Starret. Ele detestava iogurte, mas não queria ficar sozinho enquanto não fosse inteiramente necessário. Quando ficava sozinho, estava sempre tomando o pulso. — Tem um leve gosto de noz amarga...

— Ouviu alguma coisa? — indagou Allison. Ela olhou em volta, desconfiada.

O Sr. Starret largou o controle remoto ao lado da cama e o zunido do motor elétrico parou. Na TV, uma das personagens deu um tiro no outro e errou o alvo.

— Só a TV — disse o sr. Starret. — O que é que perdi?

— Nada, parece. Deve ter sido o vento naquela janela.

       Ela estava sentindo aproximar-se uma dor de cabeça de tensão —        serviço demais naquela manhã, e pouca gente para ajudá-la —, e esfregou as têmporas, como que para expulsar a dor antes que ela se instalasse.

À saída, parou e olhou para o homem do outro leito, por um momento. Será que ele estava diferente? Como se tivesse mudado de posição? Por certo que não.

Allison saiu do quarto e seguiu pelo corredor, empurrando o carrinho do café à sua frente. A manhã estava tão terrível quanto ela receara, tudo fora dos eixos, e ao meio-dia sua cabeça estava latejando. Muito naturalmente, tinha esquecido tudo o que pudesse ter ouvido no quarto 619, naquela manhã.

Mas nos dias seguintes, viu que estava olhando cada vez com maior freqüência para Smith, e em março estava quase certa de que ele se endireitara um pouco, saindo ligeiramente do que os médicos chamavam de posição pré-fetal. Não muito... só um pouco. Pensou em mencionar isso a alguém, mas acabou não o fazendo. Afinal, era apenas servente, pouco mais do que ajudante de cozinha.

Não cabia a ela, na verdade.

 

Era um sonho, ele achava.

Estava num lugar escuro e sinistro: algum corredor. O teto era muito alto para se enxergar. Estava perdido nas sombras. As paredes eram de aço cromado escuro. Abriam para fora, para cima. Ele estava só, mas uma voz subia até onde ele estava, como que de uma distância muito grande. Uma voz que ele conhecia, palavras que lhe tinham sido ditas em outro lugar, em outra ocasião. A voz o assustava. Gemia e parecia perdida, ressonando de um lado para outro naquele aço cromado escuro, como um pássaro preso de que ele se lembrava, de sua infância. O pássaro voara para o galpão de ferramentas de seu pai e não tinha sabido voar para fora. Entrara em pânico e continuara a voar de um lado para outro, piando, deses­perado e alarmado, batendo contra as paredes até morrer. Essa voz tinha o mesmo tom condenado que aquele piar do passarinho de há tanto tempo. Nunca ia escapar daquele lugar.

— A gente planeja a vida toda e faz o que pode — gemia aquela voz espectral. — Só quer tudo do melhor, e o garoto chega a casa com cabelos até o rabo e diz que o presidente dos Estados Unidos é um porco. Um porco! Merda, eu não,...

Cuidado, ele teve vontade de dizer. Queria avisar à voz, mas estava mudo. Cuidado com o quê? Ele não sabia. Nem sabia ao certo quem era, se bem que desconfiasse de que um dia fora pro­fessor ou pregador.

— Meu Deus! — berrou a voz distante. Voz perdida, conde­nada, afogada. — Meu Deus...

E então, silêncio. Ecos morrendo. Dali a pouco, recomeçava.

Então, depois de algum tempo — ele não sabia quanto tempo, parecia que o tempo não tinha significado ou importância naquele lugar —, começou a caminhar pelo corredor, chamando, também (ou talvez só chamando mentalmente), talvez esperando que ele e o dono da voz pudessem conseguir sair juntos, talvez esperando apenas dai algum consolo e receber algum.

     Mas a voz cada vez ficava mais distante, mais fraca e apagada (distante e pequenina), até ser apenas o eco de um eco. E depois desapareceu. Ele estava sozinho, então, caminhando por aquele corredor de sombras, triste e deserto. E começou a parecer-lhe que não era uma ilusão, uma miragem ou um sonho... pelo menos, não um sonho comum. Era como se tivesse entrado no limbo, uma estranha passagem entre a terra dos vivos e a dos mortos. Mas em direção a qual extremi­dade ele se dirigia?

As coisas começaram a voltar. Coisas perturbadoras. Eram como espectros, que se juntavam a ele em suas caminhadas, ao seu lado, diante dele, atrás dele, até rodeá-lo num círculo sobrenatural: tecei um círculo três vezes em volta dele e tocai seus olhos com o pavor sagrado, era assim? Ele quase podia vê-los. Todas as vozes sussur­rantes do purgatório. Havia uma roda girando e girando na noite, uma roda da fortuna, vermelha e preta, vida e morte, diminuindo. Onde ele apostara? Não se lembrava, e devia lembrar-se, porque a aposta era a sua existência. Dentro ou fora? Tinha de ser um ou outro. Sua garota estava doente. Ele tinha de levá-la para casa.

Depois de algum tempo, o corredor começou a parecer mais claro. A princípio, ele pensou que fosse imaginação, uma espécie de sonho dentro do sonho, se fosse possível, mas, depois de um período de tempo ignorado, a claridade tornou-se muito marcada para ser ilusão. Toda a experiência do corredor pareceu tornar-se menos sonho. As paredes recuaram até que ele mal podia vê-las, e o co­lorido escuro e monótono tornou-se um cinza triste e nebuloso, a cor do crepúsculo numa tarde de primavera, quente e encoberta. Começou a parecer que ele não estava mais num corredor, e sim numa sala... quase numa sala, separado dela por uma membrana finíssima, uma espécie de bolsa de placenta, como um bebê que espera para nascer. Então ele ouviu vozes, não ressonantes, mas ocas e surdas, como as vozes de deuses desconhecidos falando em línguas esquecidas. Pouco a pouco essas vozes se tornaram mais claras, até que ele conseguiu perceber nitidamente o que diziam.

Começou a abrir os olhos de vez em quando (ou pensou fazê­-lo), e podia ver os donos das vozes: formas claras, brilhantes, es­pectrais, a princípio sem rostos, às vezes andando pelo quarto, às vezes debruçadas sobre ele. Não lhe ocorreu tentar falar com elas, pelo menos não a princípio. Achou que aquilo pudesse ser um tipo de vida do além, e que as formas brilhantes fossem anjos.

Os rostos, como as vozes, começaram a se tornar mais claros com o tempo. Uma vez ele viu a mãe, inclinada em seu campo de visão e de repente trovejando alguma coisa inteiramente sem sentido em seu rosto voltado para cima. Em outra ocasião, era o pai que estava ali. Dave Pelsen, do colégio. Uma enfermeira que ele chegou a conhecer; achava que o nome dela era Mary, ou talvez Mame. Rostos, vozes, aproximando-se, aglutinando-se.

Outra coisa se fez sentir: uma sensação de que ele estava mu­dado. Não gostava daquela sensação. Desconfiava dela. Parecia-lhe que, fosse qual fosse a modificação, não era coisa boa. Parecia-lhe que acarretava tristeza e sofrimento. Ele tinha mergulhado nas trevas com tudo, e agora sentia que saia delas sem nada... a não ser uma estranheza secreta.

O sonho estava acabando. Fosse o que fosse, o sonho estava acabando. O quarto estava muito real, muito próximo. As vozes, os rostos.

Ele ia entrar no quarto. E de repente pareceu-lhe que o que queria fazer era virar-se e começar a voltar por aquele corredor es­curo, para sempre. O corredor escuro não era bom, mas era melhor do que aquela nova sensação de tristeza e perda iminente.

Virou-se e olhou para trás, e, sim, lá estava, o lugar em que as paredes do quarto se transformavam em cromo escuro, um canto ao lado de uma das cadeiras, em que, sem ser notado pelas pessoas brilhantes que entravam e saíam, o quarto se tornava uma passagem para o que ele agora suspeitava fosse a eternidade. O lugar para onde aquela outra voz tinha ido, a voz do...

Do motorista de táxi.

Sim. Aquela recordação estava toda ali, agora. A viagem de táxi, o motorista lamentando os cabelos compridos do filho, o fato de o filho achar Nixon um porco. Depois os faróis aparecendo no morro, dois de cada lado da linha branca. O choque. Nenhuma dor, mas a noção de que suas coxas tinham se chocado com o taxímetro com tanta força que o arrancaram da caixa. Uma sensação de umidade fria, depois o corredor escuro, e agora aquilo.

“Escolha”, murmurou alguma coisa dentro dele. “Escolha, senão escolherão por você, arrancam você daqui, seja o que for e onde for, como os médicos arrancam o bebê do ventre da mãe, com uma cesariana.”

E então apareceu-lhe o rosto de Sarah... ela tinha de estar lá fora, em algum lugar, se bem que o dela não tivesse sido um dos rostos claros curvando-se sobre o dele. Tinha de estar lá, preocupada e assustada. Era quase dele, agora. Ele sentia isso. Ia pedi-la em casamento.

Voltou-lhe aquela sensação de aflição, mais forte do que nunca, e dessa vez estava misturada com Sarah. Mas o desejo por ela foi mais forte, e ele tomou sua decisão. Virou as costas para o lugar escuro, e, mais tarde, quando olhou por cima do ombro, ele tinha desaparecido; ao lado da cadeira não havia nada mais que a parede lisa do quarto em que estava deitado. Pouco depois, começou a perceber que quarto era aquele: era um quarto de hospital, claro. O corredor escuro passou a ser uma recordação de sonho, nunca completamente esquecida. Mas o mais importante, mais imediato, é que ele era John Smith, tinha uma namorada chamada Sarah Brack­nell e havia sofrido um terrível desastre de automóvel. Desconfiava de que tivera muita sorte por esta vivo, e só podia esperar que todo o seu equipamento original ainda estivesse ali e funcionando. Podia estar no Cleaves Mills Community Hospital, mas achava mais pro­vável estar no EMMC. Pelo que sentia, achava que devia ter passado bastante tempo ali... podia ter ficado desacordado por uma semana ou até dez dias. Estava na hora de recomeçar a vida.

Hora de recomeçar a vida. Era essa a idéia na cabeça de John­ny, quando todas as coisas afinal se conglomeraram e ele abriu os olhos.

Era o dia 17 de maio de 1975. Havia muito tempo o Sr. Starret fora para casa, com recomendação de andar três quilômetros por dia e modificar os seus hábitos de colesterol alto. Do outro lado do quarto estava um homem idoso, empenhado num penoso décimo quinto assalto com aquele campeão de peso pesado de todos os tempos, o carcinoma. Estava dormindo o sono da morfina, e o quarto estava vazio. Eram três e quinze da tarde. A tela do aparelho de TV era uma sombra verde.

       —Aqui estou eu — resmungou ele, para ninguém. Ficou cho­cado com a fraqueza de sua voz. Não havia folhinha no quarto, e ele não tinha meios de saber que estivera fora do ar por quatro anos e meio.

       A enfermeira entrou uns quarenta minutos depois. Foi até junto do velho do outro leito, trocou o soro IV do doente, foi ao banheiro e voltou com uma jarra de plástico azul. Molhou as flores do velho. Havia mais de meia dúzia de buquês e uma porção de cartões desejando seu restabelecimento espalhados pela mesa e pelo peitoril da janela. Johnny ficou olhando enquanto ela cumpria essa tarefa doméstica, ainda não sentindo vontade de tornar a experi­mentar sua voz.

       Ela levou a jarra de volta e foi até a cama de Johnny. “Vai virar o meu travesseiro”, pensou ele. Os olhos deles se encontra­ram brevemente, mas nos dela nada mudou. “Ela não sabe que estou acordado. Meus olhos já estiveram abertos. Isso não quer dizer nada para ela”.

     Ela pôs a mão na sua nuca. Era fresca e reconfortante, e John­ny sabia que ela tinha três filhos e que o caçula perdera a maior parte da visão de um dos olhos no último dia 4 de julho. Um acidente com fogos de artifício. O nome do menino era Mark.

     Ela levantou sua cabeça, virou seu travesseiro e tornou a insta­lá-lo. Ia-se virando, ajustando o uniforme de náilon nos quadris, e depois voltou-se, intrigada. Pensando, prestes a deixar o quarto, que havia alguma coisa nova nos olhos dele, talvez. Uma coisa que não havia ali antes.

     Olhou para ele, pensativa, ia se virando de novo, e ele disse:

     — Olá, Mame.

     Ela gelou, e ele ouviu um estalido de marfim, quando os dentes dela se uniram com força, e de repente. A mão dela apertou o peito logo acima dos seios, onde estava pendurado um pequeno crucifixo.

     — Ah, meu Deus! — disse ela. — Você está acordado. Bem que eu pensei que estava diferente. Como é que sabia o meu nome?

     — Acho que devo ter ouvido. — Era difícil falar, muito difícil. A língua dele era um verme preguiçoso, aparentemente não lu­brificado pela saliva.

     Ela meneou a cabeça.

     — Você vem melhorando há algum tempo. Acho bom eu des­cer à sala das enfermeiras e mandar chamar o Dr. Brown ou o Dr. Weízak. Hão de querer saber que você está de volta entre nós.

       Mas ela ainda demorou um pouco, olhando para ele com uma fascinação franca que o deixou inquieto.

     —      Será que me nasceu um terceiro olho? Ele perguntou.

     Ela teve um riso nervoso.

     — Não... claro que não. Com licença.

     Ele olhou para o peitoril da janela e para a mesa empurrada contra ele. No peitoril estavam uma violeta africana murcha e uma imagem de Jesus Cristo: era o tipo de imagem que sua mãe apreciava, o Cristo parecendo pronto a rebater com força uma bola no beisebol, ou coisa assim, limpa e atlética. Mas a imagem estava... amarelada. Amarelada e começando a se enrolar nos can­tos. Um medo repentino invadiu-o, como um cobertor que o sufo­casse.

—    Enfermeira! — chamou ele. — Enfermeira!

Já na porta, ela virou-se.

—    Onde estão os meus cartões de votos de restabelecimento? — De repente ele sentiu dificuldade em respirar. — Esse outro ca­marada tem... ninguém me mandou um cartão?

Ela sorriu, mas foi forçado. Foi o sorriso de alguém que está escondendo alguma coisa. De repente, Johnny quis que ela ficasse junto de sua cama. Ia estender a mão e tocar nela. Se conseguisse tocar nela, saberia o que ela estava escondendo.

—    Vou mandar chama o doutor — disse ela, e saiu antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa. Ele olhou para a violeta-afri­cana, para a imagem de Jesus envelhecida, perplexo e receoso. Depois de pouco tempo, tornou a adormecer.

—    Ele estava acordado — disse Mame Michaud. — Comple­tamente coerente.

—    Está bem — respondeu o Dr. Brown. — Não estou duvi­dando de você. Se ele acordou uma vez, vai acordar de novo. Pro­vavelmente. É apenas uma questão de...

Johnny gemeu. Abriu os olhos. Estavam vazios, meio virados para cima. Depois ele pareceu ver Marie, e seus olhos se focaliza­ram. Ele sorriu um pouco. Mas seu rosto ainda estava frouxo, como se só os olhos estivessem acordados e o resto, dormindo. Ela teve a sensação, de repente, de que ele não estava olhando para ela, mas para dentro dela.

— Acho que ele vai ficar bom — disse Johnny. — Depois que limparem aquela córnea atingida, o olho vai ficar como novo. Deve ficar.

Mame abafou uma exclamação, e Brown olhou para ela.

— O que é?

—    Ele está falando do meu filho — murmurou ela. — O meu Mark.

— Não — disse Brown. — Está falando dormindo, só isso. Não exagere, enfermeira.

— Sim. Ok. Mas ele agora não está dormindo, está?

—    Mame? — perguntou Johnny. Ele tentou sorrir. — Eu cochilei, não foi?

—    Foi — disse Brown. — Estava falando dormindo. Marie levou um susto. Estava sonhando?

—    Não, n­ão... não que eu me lembre. O que foi que eu disse? E quem é você?

—    Sou o Dr. James Brown. Como o cantor. Só que sou neu­rologista. Você disse: “Acho que ele vai ficar bom, depois que lim­parem aquela córnea atingida”. Acho que foi isso, não foi, enfermeira?

—    Meu filho vai fazer essa operação — disse Mame. — O meu filho Mark.

—    Não me lembro de nada — disse Johnny. — Acho que estava dormindo. — Olhou para Brown. Seus olhos agora estavam límpidos, e com medo. — Não consigo levantar os braços. Estou paralítico?

—    Não. Experimente mexer os dedos.

Johnny obedeceu. Todos se mexiam. Ele sorriu.

—    Excelente — disse Brown. — Diga o seu nome.

—    John Smith.

—    Bem, e o nome do meio?

—    Não tenho.

—    Muito bem, e quem é que precisa disso? Enfermeira, vá à sua sala e verifique quem estará na neurologia amanhã. Eu gostaria de fazer uma série de exames no Sr. Smith.

—    Sim, doutor.

—    E podia chamar Sam Weizak. Ele deve esta em casa ou no campo de golfe.

—    Sim, doutor.

—    E nada de jornalistas, por favor... de jeito nenhum! — Brown estava sorrindo, mas sério.

—    Não, claro que não.

Ela saiu, os sapatos brancos rangendo um pouco. O filhinho dela vai ficar bom, pensou Johnny. Não vou deixar de dizer isso a ela.

—    Dr. Brown — disse ele —, onde estão os meus cartões, desejando o meu restabelecimento? Ninguém me mandou cartões?

—    Só mais algumas perguntas — disse o Dr. Brown, com habilidade. — Lembra-se do nome de sua mãe?

—    Claro que sim. Vera.

—    O nome de solteira?

—    Nason.

—   O nome de seu pai?

—    Herbert. Herb. E por que disse a ela para evitar os jorna­listas?

— Seu endereço para correspondência?

— RFD n.0 1, Pownal — disse Johnny, e depois parou. Uma expressão cômica de espanto estampou-se em seu rosto. — Quero dizer... bem, eu agora moro em Cleaves Mills, na Main Street, 110, Norte. Por que cargas-d’água lhe dei o endereço de meus pais? Não moro lá desde os dezoito anos.

— E com que idade está agora?

—    Procure na minha carteira — disse Johnny. — Eu quero saber por que ninguém me mandou cartões. Há quanto tempo estou neste hospital, afinal? E que hospital é este?

—    Este é o Eastern Maine Medical Center. E vamos responder a todas as suas outras perguntas, se me deixar...

Brown estava sentado junto da cama, numa cadeira que puxara do canto: o mesmo canto onde Johnny um dia vira a passagem que levava embora. Ele estava escrevendo numa prancheta com um tipo de caneta que Johnny não se lembrava de ter visto antes. Tinha um corpo grosso e azul e uma ponta fibrosa. Parecia o produto estranho e híbrido de uma caneta-tinteiro e uma esferográfica.

Só de olhar aquilo, ele sentiu de novo aquele medo indefinido, e, sem pensar, Johnny de repente agarrou a mão esquerda do Dr. Brown com uma das suas. Seu braço se mexeu com dificuldade, como se houvesse pesos de trinta quilos, invisíveis, presos a ele: dois abaixo do cotovelo e dois acima. Pegou a mão do médico fracamente e puxou-a. A caneta esquisita deixou uma grossa linha azul no papel.

Brown olhou para ele, a princípio apenas curioso. Depois seu rosto perdeu toda a cor. A expressão de interesse desapareceu-lhe dos olhos, deixando em seu lugar um olhar turvo, de medo. Ele tirou a mão depressa — Johnny não conseguiu retê-la —, e por um instante uma expressão de repugnância passou pela fisionomia do médico, como se ele tivesse sido tocado por um leproso.

Depois isso desapareceu, e ele mostrou estar apenas surpreso e desconcertado.

— Para que fez isso? Sr. Smíth...

A voz dele falseou. O rosto de Jobnny estava congelado numa expressão de compreensão incipiente. Seus olhos eram os olhos de um homem que viu alguma coisa terrível movendo-se e mudando nas sombras, uma coisa horrível demais para ser descrita ou sequer mencionada.

Mas era um fato. Tinha de ser mencionado.

— Cinqüenta e cinco meses? — perguntou Johnny, em voz rouca. — Quase cinco anos? Não. Ah, meu Deus, não!

—    Sr. Smith — disse Brown, já completamente perturbado. — Por favor, não é bom se afligir...

       Johnny levantou o tronco uns sete centímetros da cama e de pois caiu deitado, o rosto lustroso de transpiração. Seus olhos vira­ram nas órbitas, indefesos.

—    Estou com vinte e sete anos? — murmurou ele. — Vinte e sete? Ah, meu Deus!

Brown engoliu e ouviu um estalo. Quando Smith agarrara sua mão, ele tinha sentido uma onda de sensações mas, infantis em sua intensidade; imagens cruas de repulsa o haviam acometido. Pilhou-se lembrando-se de um piquenique no campo, quando tinha seus sete ou oito anos, e que se sentara e pusera a mão em uma coisa quente e gosmenta. Quando olhou, viu que tinha posto a mão nos restos de uma marmota, cheios de larvas, que haviam passado todo aquele quente mês de agosto debaixo de um rododendro. Então ele tinha gritado, e agora estava com vontade de gritar... só que a sensação estava desaparecendo, apagando-se, para ser substituída por uma pergunta: “Como ele soube? Ele me tocou e soube”.

Então vinte anos de educação se impuseram a ele, fortemente, e ele afastou aquela idéia. Havia inúmeros casos de paciente coma­tosos que haviam despertado com uma noção de sonho de muitas coisas que se tinham passado em volta deles enquanto estavam em coma. Como tudo o mais, a coma era uma questão de grau. Johnny Smith nunca fora um vegetal; seu eletroencefalograma nunca passara a uma linha reta, e, se isso tivesse acontecido, Brown agora não estaria falando com ele. Às vezes, estar em coma era um pouco como estar por trás de um vidro espelhado. Para quem olhava, o paciente parecia estar completamente morto, mas seus sentidos ainda pode­riam continuar a funcionar de um modo reduzido, com baixa voltagem. E era esse o caso, claro.

Marie Michaud voltou.

—    A neurologia esta confirmada, e o Dr. Weizak esta a ca­minho.

—    Acho que Sam vai ter de esperar até amanhã para falar com o Sr. Smith — disse Brown. — Quero que ele tome cinco miligramas de Valium.

—    Não quero sedativos — disse Johnny. — Quero é sair daqui. Quero saber o que aconteceu.

—    Vai saber de tudo, com o tempo — disse Brown. — No momento, é importante descansar.

—    Estou descansando ha quatro anos e meio!

—    Então, mais doze horas não vão fazer diferença alguma —disse Brown, irredutível.

Minutos depois a enfermeira passou álcool no braço dele e ele sentiu a picada da agulha. Johnny começou a sentir sono quase imediatamente. Brown e a enfermeira começaram a parecer que mediam três metros de altura.

—    Diga-me uma coisa, pelo menos — disse ele. Sua voz pare­cia vir de muito longe. De repente, pereceu muito importante.

—    Essa caneta. Como se chama essa caneta?

—    Isto? — Brown estendeu-a, de sua altura imensa. Corpo de plástico azul, ponta fibrosa. — Chama-se Flair. Agora vá dormir, Sr. Smith.

E Johnny dormiu, mas a palavra o acompanhou pelo sono, como uma bruxaria mística, cheia de um significado idiota: Flair... Flair... Flair...

 

Herb repôs o fone e olhou para ele. Ficou olhando por muito tempo. Da outra sala vinha o som do aparelho de TV, ligado quase no volume máximo. Oral Roberts estava falando sobre futebol e o amor curativo de Jesus: havia uma ligação em algum ponto, mas não a percebera. Por causa do telefonema. A voz de Oral trovejava. Dali a pouco o programa ia acabar, e Oral o encerraria dizendo ao público, com confiança, que alguma coisa boa ia aconte­cer a eles. Parecia que Oral estava com a razão.

“Meu filho”, pensou Herb. Enquanto Vera rezara por um milagre, Herb rezara para o filho morrer. A oração de Vera é que fora atendida. O que significava isso, e onde o deixava, a ele? E o que ia provocar nela?

Ele foi para a sala. Vera estava sentada no sofá, com os pés em chinelos de elástico rosa, apoiados num almofadão. Ela estava com o velho roupão cinzento. Estava comendo pipocas, diretamente da pipoqueira. Desde o acidente de Johnny ela engordara quase dezoito quilos, e sua pressão arterial tinha subido demais. O médico queria que ela fizesse um tratamento, mas Vera não queria saber disso: se era a vontade do Senhor que tivesse pressão alta, disse ela, então a teria. Herb comentou que à vontade do Senhor nunca a impedira de tomar aspirina quando tinha dor de cabeça. Ela retrucara com o seu sorriso sofredor mais doce e a arma mais pode­rosa: silêncio.

—    Quem era, ao telefone? — perguntou ela, sem tirar os olhos da TV. Oral tinha passado o braço em volta de um conhecido zagueiro de um time do NFC (National Football Confederation). Estava se dirigindo a uma multidão calada. O zagueiro estava sorrindo, com modéstia.

— ... e vocês todos ouviram esse bom atleta contar-lhes hoje como abusou do seu corpo, o seu Templo de Deus. E ouvi­ram...

Herb desligou o aparelho.

—    Herbert Smitb! — Ela quase derramou as pipocas, sen­tando-se de repente. — Eu estava assistindo! Isso foi...

—    Johnny acordou.

—    ... Oral Roberts e...

As palavras ficaram paralisadas na boca da mulher. Ela pareceu encolher-se no sofá, como se ele tivesse batido nela. Ele olhou para ela, sem poder dizer mais nada, querendo estar alegre, mas com medo. Com tanto medo!

—    Johnny... — Ela parou, engoliu e tentou de novo. —Johnny... o nosso Johnny?

—    É. Conversou com o Dr. Brown por quase quinze minutos. Parece que não foi o que pensavam.., um falso despertar... afinal. Ele está consciente. Pode mexer-se.

—    Johnny está acordado?

Ela levou as mãos à boca. A pipoqueira, meio cheia, foi caindo devagar do seu colo e bateu no tapete, espalhando as pipocas por toda parte. Suas mãos cobriram a parte inferior do rosto. Mais acima, seus olhos foram ficando cada vez maiores, até que, por um segundo terrível, Herb receou que eles fossem cair e ficar pendurados. Depois, eles se fecharam. Um barulhinho como um mia­do se fez ouvir, por trás das mãos dela.

—    Vera? Você está bem?

—    Ah meu Deus eu Te agradeço pois a Tua vontade será feita o meu Johnny Tu me trouxeste, eu sabia, o meu Johnny, ó Deus querido eu Te darei graças todos os dias de minha vida pelo meu Johnny Johnny JOHNNY... — A voz dela estava subindo e tornando-se um grito histérico e triunfal. Ele adiantou-se, agarrou as lapelas do roupão dela e sacudiu-a. De repente o tempo pareceu inverter-se, dobrando-se sobre si mesmo como um tecido estranho: podiam estar de volta àquela noite em que receberam a noticia do acidente, transmitida pelo mesmo telefone no mesmo canto.

“Em cantos e recantos”, pensou Herbert Smith, loucamente.

—    Ah, meu Deus precioso, meu Jesus ah meu Johnny o mila­gre como eu disse o milagre...

—    Pare com isso, Vera!

Os olhos dela estavam muito escuros, turvos e histéricos.

— Você está com pena que ele esteja acordado? Depois de passar todos esses anos caçoando de mim? Dizendo a todo mundo que eu estou maluca?

— Vera, nunca disse a ninguém que você estava maluca.

—    Você disse com os olhos! — gritou ela. — Mas o meu Deus não foi escarnecido. Foi, Herbert? Foi?

— Não—disse ele.—Acho que não.

— Eu lhe disse. Eu lhe disse que Deus tinha um plano para o meu Johnny. Agora você vê a mão dele começando a trabalhar. — Ela levantou-se. — Tenho de ir vê-lo. Tenho de dizer a ele. —Foi ao armário onde estava o casaco, parecendo não saber que estava de camisola e roupão. Seu rosto estava aturdido, extasiado. De algum modo estranho e blasfemo, ela lhe lembrava a pessoa que era no dia em que eles tinham se casado. Os chinelos cor-de-rosa esmagavam as pipocas no tapete.

— Vera.

—    Tenho de dizer a ele que o plano de Deus...

— Vera.

Ela virou-se para ele, mas seus olhos estavam longe, com o seu Johnny.

Ele chegou-se a ela e pôs as mãos em seus ombros.

—    Diga a ele que você o ama... que rezou... esperou... vigiou. Quem tem maior direito? Você é mãe dele. Sangrou por ele. Eu não a vi sangrar por ele, nestes últimos cinco anos? Não lamento que ele esteja de novo entre nós, você estava errada ao dizer isso. Não creio que possa sentir o mesmo que você, com isso, mas não lamento. Eu também sangrei por ele.

— Foi mesmo?

Os olhos dela estava duros, orgulhosos, incrédulos.

— Sim. E vou lhe dizer outra coisa, Vera. Você vai calar o bico sobre Deus e milagres e Grandes Planos, até Johnny estar de pé e capaz de...

— Vou dizer o que tenho de dizer!

— ... e capaz de pensar no que está fazendo. O que quero dizer é que vai lhe dar a oportunidade de pensar por si, antes de começar a trabalhar nele.

— Você não tem o direito de falar comigo assim! Nenhum di­reito!

— Estou exercendo meus direitos como pai de Johnny — disse ele, severo. — Talvez pela última vez na minha vida. E é melhor você não se meter no meu caminho, Vera. Está entendendo? Nem você, nem o seu Deus, nem o sagrado Jesus sofredor. Entendeu?

Ela o olhou com raiva, e ficou calada.

—    Ele já vai ter muito problema só de aceitar a idéia de que esteve apagado como uma luz por quatro anos e meio. Não sabemos se ele vai conseguir andar de novo, a despeito do terapeuta que tratou dele. Sabemos que vai ter de sofrer uma operação nos liga­mentos, se quiser sequer tentar andar; Weizak nos disse isso. Provavelmente mais de uma. E mais terapêutica, e muita coisa vai doer o diabo. Portanto, amanhã, você vai ser apenas a mãe dele.

—    Não se atreva a me falar desse jeito! Não se atreva!

       — Se você começar com sermões, Vera, eu a arrasto para fora dele pelos cabelos.

Ela o fitou, o rosto pálido e tremendo. A alegria e a fúria travavam uma guerra nos olhos dela.

—    Ë melhor ir-se vestir — disse Herb. — Temos de ir.

Foi uma viagem comprida e calada até Bangor. A felicidade que deviam ter sentido entre eles não estava presente; só a alegria ardente e militante de Vera. Ela estava sentado reta no assento, a Bíblia no colo, aberta no salmo 23.

 

Às oito e quarenta e cinco da manhã seguinte, Marie entrou no quarto de Johnny e disse:

—    Sua mãe e seu pai estão aqui; está disposto a recebê-los?

—    Sim, gostaria.

Ele estava se sentindo muito melhor naquele dia, mais forte e menos desorientado. Mas a idéia de vê-los o apavorava um pouco. Em termos de recordação consciente, ele os vira havia cerca de cinco meses. O pai estava trabalhando nas fundações de uma casa que agora provavelmente já estava pronta havia três anos ou mais. A mãe lhe preparara feijão assado, torta de maçã para sobremesa e lamentara a magreza dele.

Pegou a mão de Marie, debilmente, quando ela se virou para sair.

—    Eles parecem estar bem? Quero dizer...

—    Parecem estar muito bem.

—    Ah, bom!

—    Você agora só pode falar com eles por meia hora. Mais um pouco à tarde, se a neurologia não for muito cansativa.

—    Ordens do Dr. Brown?

—    E do Dr. Weizak.

—    Está bem. Por enquanto. Não sei bem por quanto tempo quero ser apalpado e mexido.

Marie hesitou.

—    Há alguma coisa? — perguntou Johnny.

—    Não... agora não. Você deve estar ansioso para ver seus pais. Vou mandá-los entrar.

Ele esperou, nervoso. O outro leito estava vazio; o outro pa­ciente tinha sido removido enquanto Johnny dormia sob o efeito do Valium.

A porta abriu-se. Sua mãe e seu pai entraram. Johnny sentiu ao mesmo tempo um choque e um alívio: choque porque eles tinham envelhecido, e era tudo verdade; alívio porque as mudanças neles ainda não pareciam mortais. E se isso se podia dizer deles, talvez se pudesse dizer dele também.

       Mas alguma coisa nele mudara, mudara drasticamente e podia ser mortal.

Apenas teve tempo de pensar nisso, antes de ser abraçado pela mãe, o perfume forte de violetas em seu nariz, e ela murmurando:

— Graças a Deus, Johnny, graças a Deus, graças a Deus que você está acordado!

Ele a abraçou como pôde — seus braços ainda não tinham força para agarrar e caíam logo —, e de repente, em seis segundos, entendeu o que se passava com ela, o que ela pensava e o que lhe ia acontecer. Depois isso passou, desaparecendo como o sonho da­quele corredor escuro. Mas quando ela parou de abraçá-lo para olhar para ele, a expressão de alegria devota nos olhos dela tinha sido substituída por outra, pensativa.

As palavras pareceram sair de seus lábios por si:

— Deixe que lhe dêem o remédio, mãe. É o melhor.

Ela arregalou os olhos, molhou os lábios.., e então Herb esta­va ao lado dela, os olhos cheios de lágrimas. Ele emagrecera... não tanto quanto Vera engordara, mas estava bem mais magro. Estava ficando calvo depressa, mas o rosto era o mesmo, feioso, simples e querido. Puxou um lenço colorido do bolso traseiro e enxugou os olhos com ele. Depois estendeu a mão.

— Olá, filho — disse ele. — Que bom que você está de volta!

Johnny apertou a mão do pai como pôde; seus dedos pálidos e sem forças foram engolidos pela mão vermelha do pai. Johnny olhou de um para outro — a mãe num volumoso terninho azul-cinza; o pai com um paletó horroroso, que parecia coisa de um vendedor de aspiradores do Kansas — e rompeu em prantos.

—    Desculpe — disse ele—, desculpe, é que...

— Chore — disse Vera, sentando-se na cama ao lado dele. O rosto dela estava calmo e límpido, agora. Havia mais mãe do que loucura nele. — Chore, às vezes é o melhor.

E Johnny chorou.

 

Herb contou que tia Germaine tinha morrido. Vera contou que o dinheiro para o Auditório Municipal de Pownal afinal fora levantado, e a construção começara havia um mês, assim que a terra se degelara. Herb acrescentou que tinha feito uma proposta, mas que achava que um trabalho honesto era caro demais para eles quererem pagar.

— Ah, cale a boca, seu mau perdedor! — disse Vera.

Fez-se um silêncio breve, e depois Vera tomou a falar.

— Espero que você se dê conta de que o seu restabelecimento foi um milagre de Deus, Johnny. Os médicos tinha perdido as esperanças. Em Mateus, capítulo 9, lemos...

—    Vera — disse Herb, advertindo-a.

—    Claro que foi um milagre, mãe. Sei disso.

—    Você... sabe?

—    Sei. E quero falar sobre isso com você.., saber o que acha que significa.., assim que eu me levantar da cama.

Ela estava olhando para ele, boquiaberta. Johnny olhou para o pai, por cima dela, e seus olhares se encontraram um instante. Johnny viu um grande alívio nos olhos do pai. Herbert meneou

a cabeça, imperceptivelmente.

—    Uma conversão! — exclamou Vera, em voz alta. — Meu filho foi convertido! Ah, bendito seja Deus!

—    Vera, calma — disse Herb. — É melhor louvar a Deus em voz mais baixa, quando se está no hospital.

—    Não vejo como alguém possa achar que não é milagre, mãe. E vamos conversar muito sobre isso. Assim que eu sair daqui.

—    Você vai voltar para casa — disse ela. — Para a casa em que se criou. Vou tratá-lo até você ficar bom, e vamos rezar por um entendimento.

Ele estava sorrindo para ela, mas era um esforço conservar o sorriso.

—    Pode apostar. Mãe, quer descer à sala das enfermeiras e perguntar a Marie se posso tomar um suco? Ou talvez um pouco de ginger ale? Acho que não estou acostumado a falar, a minha garganta...

—    Claro que sim. — Ela beijou o rosto dele e levantou-se. — Ah, você está tão magro! Mas dou um jeito nisso quando você for para casa. — Ela saiu do quarto, lançando um olhar vitorioso para Herb, ao sair. Eles ouviram as batidas dos sapatos dela pelo corredor afora.

—    Há quanto tempo ela está assim? — perguntou Johnny, com calma.

Herb sacudiu a cabeça.

—    Foi vindo aos poucos, depois do seu acidente. Mas começou muito antes disso. Você sabe. Você se lembra.

—    Ela está...

—    Não sei. Há gente lá no sul que lida com cobras. Eu diria que são loucos. Ela não faz isso. Como é que você está, Johnny? De verdade.

—    Não sei — disse Johnny. — Papai, onde está Sarah?

Herb inclinou-se para a frente e dobrou as mãos entre os joelhos.

—    Não gosto de lhe dizer isso, John, mas...

Ela casou-se? Casou-se?

Herb não respondeu. Sem olhar diretamente para Johnny, ele fez que sim.

—    Ah, Deus! — disse Johnny, com uma voz oca. — Estava com medo disso.

—    Há quase três anos que ela é a sra. Walter Hazlett. Ele é advogado. Eles têm um filhinho. John... ninguém acreditava que você fosse acordar. A não ser sua mãe, claro. Nenhum de nós tinha qualquer motivo para crer que você fosse acordar. — A voz dele agora estava trêmula, rouca de culpa. — Os médicos disse­ram. .. ah, não importa o que disseram. Até eu desisti de você. Tenho horror de confessar isso, mas é verdade. Só posso pedir que você me compreenda.., e a Sarah.

Ele tentou dizer que compreendia, sim, mas só conseguiu emi­tir um resmungo doentio. Seu corpo parecia doente e velho, e de repente ele se sentiu afogar em sua sensação de perda. O tempo perdido de repente estava pesando sobre ele como um carga de tijolos.., uma coisa real, não apenas um conceito vago.

—    Johnny, não se martirize. Há outras coisas. Coisas boas.

—    Vou... vou custar a me adaptar — conseguiu dizer.

—    Ë, eu sei.

—    O senhor a vê, às vezes?

—    Nós nos escrevemos, de vez em quando. Nós nos conhece­mos depois do seu acidente. Ë uma boa moça, boa mesmo. Conti­nua a lecionar em Cleaves, mas parece que vai parar, neste mês de junho. Ela está feliz, John.

—    Bom — disse ele, em voz grossa. — Ainda bem que alguém está.

—    Filho...

—    Espero que não estejam contando segredos — disse Vera Smith, animada, voltando ao quarto com uma jarra cheia de gelo na mão. — Disseram que você ainda não podia tomar suco de fru­tas, Johnny, de modo que lhe trouxe um ginger ale.

—    Está ótimo, mãe.

Ela olhou de Herb e para Johnny e de novo para Herb.

—    Estavam contando mesmo segredos? Por que as caras tristes?

—    Eu estava dizendo a Johnny que ele vai ter de se esforçar muito, se quiser sair daqui — disse Herb. — Muita terapia.

—    Ora, para que havia de querer falar sobre isso agora? — Ela serviu o ginger ale no copo de Johnny. — Agora vai correr tudo bem. Vocês vão ver.

Ela pôs um canudinho no copo e passou-o a ele.

—    Agora beba tudo — disse ela, sorrindo. — Vai lhe fazer bem.

Johnny de fato bebeu tudo. Tinha um gosto amargo.

 

—    Feche os olhos — disse o dr. Weizak.

Era um homem baixinho e gorducho, dono de uma cabeleira com um penteado incrível e suíças em forma de pá. Johnny não con­seguia se acostumar com todo aquele cabelo. Um homem com um corte de cabelo assim teria de lutar para sair de qualquer bar do leste do Maine, e um homem da idade de Weizak seria considerado digno de uma internação.

Todo aquele cabelo. Rapaz.

Fechou os olhos. Sua cabeça estava coberta por pontos de contatos elétricos. Os contatos eram ligados a fios, e estes ao consolo de parede do eletroencefalograma. O dr. Brown e uma enfer­meira estavam junto do aparelho, que expelia calmamente uma folha larga de papel quadriculado. Johnny desejava que a enfermei­ra fosse Marie Michaud. Estava com um certo medo.

O     Dr. Weizak tocou nas suas pálpebras, e Johnny estremeceu.

—    Não... fique quieto, Johnny. São os dois últimos. Só... pronto.

—    Muito bem, doutor — disse a enfermeira.

Um zumbido baixo.

—    Muito bem, Johnny. Está tudo bem?

—    Parece que tenho umas moedas nas pálpebras.

—    Ë? Você se acostuma com isso num instante. Agora vou lhe explicar o processo. Vou pedir que visualize uma série de coisas. Você terá cerca de dez segundos para cada uma, e há vinte coisas para visualizar, ao todo. Entendeu?

—    Sim.

—    Muito bem. Começamos, Dr. Brown?

—    Tudo pronto.

—    Excelente. Johnny, peço que você veja uma mesa. Sobre essa mesa, uma laranja.

Johnny pensou naquilo. Viu uma mesinha de jogo, com pernas de aço, dobráveis. Sobre ela, um pouco para o lado, havia uma laranja grande com a palavra SUNKIST estampada na casca marcada.

—    Bom — disse Weizak.

Esse negócio pode ver a minha laranja?

     —      Não.., bem, sim; de um modo simbólico, pode. O apa­relho está traçando as suas ondas. Estamos procurando bloqueios, Johnny. Zonas de deterioração. Possíveis indicações de uma contínua pressão intercraníana. Agora, vou pedir-lhe que pare com as perguntas.

—    Está bem.

—    Agora vou pedir-lhe que veja um aparelho de televisão. Está ligado, mas sem imagem.

Johnny viu a TV de seu apartamento... o que fora seu apar­tamento. A tela era cinza-brilhante, com chuviscos. As pontas das antenas estavam enroladas em papel estanhado, para uma recepção melhor.

— Bom.

A série continuou. No décimo primeiro item, Weizak disse:

—    Agora eu lhe peço para imaginar uma mesa de piquenique do lado esquerdo de um gramado verde.

Johnny pensou naquilo, e mentalmente viu uma espreguiça­deira de jardim. Franziu a testa.

—    Há alguma coisa? — perguntou Weízak.

—    Não, nada — disse Johnny. Pensou mais. Piqueniques. Salsichas, um fogareiro a carvão... associe, raios, associe. Como é que pode ser difícil imaginar uma mesa de piquenique mentalmente?, você já viu mil em sua vida; associe e vamos lá. Colheres e garfos de plástico, pratos de papel, o pai de chapéu de cozinheiro, segurando um espeto numa das mãos, e com um avental em que estava escrito em letras bêbadas, O COZINHEIRO PRECISA DE UMA BEBIDA. O pai fazendo hambúrgueres, e depois iam todos se sentar a...

Ah, lá vinha!

Johnny sorriu, e depois o sorriso apagou-se. Dessa vez a ima­gem mental era a de uma rede.

—    Merda!

—    Não vê uma mesa de piquenique?

—    É a coisa mais esquisita. Não consigo... pensar nela. Quero dizer, sei o que é, mas não posso vê-la mentalmente. É esquisito ou não é?

—    Não importa. Experimente esta: um globo terrestre, sobre o capô de um furgão.

Essa foi fácil.

No décimo nono item, um barco a remo ao pé de uma placa de rua (quem é que inventa essas coisas?, pensou Johnny), acon­teceu de novo. Era frustrante. Ele viu uma bola de praia ao lado de um túmulo. Concentrou-se mais, e viu uma passagem elevada numa auto-estrada. Weizak acalmou-o, e alguns momentos depois tiraram os fios de sua cabeça e de suas pálpebras.

—    Por que eu não conseguia ver aquelas coisas? — pergun­tou ele, os olhos pousando em Weizak e em Brown. — Qual foi o problema?

—    É difícil dizer com certeza — disse Brown. — Pode ser uma espécie de amnésia local. Ou pode ser que o acidente tenha destruído uma pequena parte de seu cérebro.., quero dizer, um pedacinho microscópico mesmo. Não sabemos realmente qual o pro­blema, mas é óbvio que você perdeu uma série de recordações de vestígios. Acontece que encontramos duas. Você provavelmente en­contrara outras.

Weizak disse, abruptamente:

—    Teve um ferimento na cabeça quando era menino, não?

Johnny olhou para ele, na dúvida.

—    Há uma cicatriz antiga — disse Weizak. — Existe uma teoria, Johnny, baseada em muitas pesquisas estatísticas...

—    Pesquisas que não estão nada completas — disse Brown, quase sentenciosamente.

—    É verdade. Mas essa teoria supõe que as pessoas que cos­tumam recuperar-se de uma coma prolongada são pessoas que sofre­ram alguma lesão cerebral em uma ocasião anterior.., e como se o cérebro tivesse feito alguma adaptação, em conseqüência do primeiro ferimento, que lhe permitisse sobreviver ao segundo.

     — Não está provado — disse Brown. Ele parecia não aprovar sequer o fato de Weizak ter mencionado o assunto.

—    A cicatriz existe — disse Weizak. — Não consegue se lembrar do que lhe aconteceu, Johnny? Eu diria que você deve ter perdido os sentidos. Rolou escada abaixo? Um acidente de bici­cleta, talvez? A cicatriz mostra que isso aconteceu quando você era pequeno.

Johnny pensou bem, depois ssçudiu a cabeça.

—    Já perguntaram aos meus pais?

—    Nenhum dos dois consegue lembrar-se de um ferimento na cabeça... nada lhe ocorre?

Por um instante, alguma coisa ocorreu-lhe: uma recordação de fumaça, negra e gordurosa, e com cheiro de borracha. O frio. Depois desapareceu. Johnny sacudiu a cabeça.

Weizak suspirou, e depois deu de ombros.

—    Você deve estar cansado.

—    Estou, um pouco.

Brown estava sentado na beirada da mesa de exames.

—    Faltam quinze minutos para as onze. Você hoje trabalhou muito. O Dr. Weizak e eu vamos responder a algumas perguntas, se quiser, e depois você vai para o quarto, tirar um cochilo. 0K?

—    OK — disse Johnny. — As foto. que vocês tiraram de meu cérebro...

—    Sim — concordou Weizak. — Tomografia axial computa­dorizada. — Ele pegou uma caixa de chicletes e jogou três dentro da boca. — Esse exame na verdade é uma série de radiografias do cérebro, Johnny. O computador realça as fotos e...

—    O que foi que lhes disse? Quanto tempo tenho pela frente?

—    Que negócio é esse de quanto tempo eu tenho? — per­guntou Brown. — Parece uma fala de filme antigo.

—    Ouvi dizer que as pessoas que saem de comas prolongadas nem sempre duram muito tempo — disse Johnny. — Têm uma recaída. É como uma lâmpada elétrica que brilha bem forte antes de apagar de vez.

Weizak deu uma gargalhada. Foi uma gargalhada com vontade, forte, e era de admirar que não tivesse se engasgado com o chiclete.

—    Ah, que melodrama! — Ele pôs a mão no peito de Johnny. — Está pensando que Jim e eu somos novatos nesse ramo? Não. Somos neurologistas. O que vocês, americanos, chamam de talento de alto custo. O que significa que só somos estúpidos quanto às funções do cérebro humano, ao invés de ignorantes completos. Portanto eu lhe digo, sim, tem havido recaídas. Mas você não terá. Acho que podemos dizer isso, não, Jim?

—    Sim — disse Brown. — Não conseguimos encontrar muita coisa em matéria de lesão significativa. Johnny há um camarada no Texas que ficou em coma durante nove anos. Hoje é funcionário de empréstimos num banco, e vem trabalhando nisso há seis anos. Antes disso, foi contador durante dois anos. Há uma mulher no Arizona que esteve assim durante doze anos. Houve algum proble­ma com a anestesia quando ela estava em trabalho de parto. Hoje está numa cadeira de rodas, mas está viva e consciente. Saiu da coma em 1969, e veio a conhecer o bebê a quem dera à luz doze anos antes. O bebê estava no sétimo ano e era um ótimo aluno.

—    Eu vou ter de usar cadeiras de rodas? — perguntou Johnny. — Não consigo esticar as pernas. Meus braços estão um pouco melhores, mas as pernas... — Parou, sacudindo a cabeça.

—    Os ligamentos encolhem — disse Weizak. — É por isso que os pacientes comatosos começam a se encolher, no que chama­mos de posição pré-fetal. Mas hoje já conhecemos mais sobre a degeneração física que ocorre em coma do que sabíamos, e pode­mos combatê-la melhor. Você foi exercitado regularmente pelo fisio­terapeuta do hospital, mesmo dormindo. E pacientes diferentes reagem à coma de modos diversos. A sua deterioração foi bem lenta, Johnny. Como você disse, os seus braços está reagindo nota­velmente, e são normais. Mas houve certa deterioração. A terapia será longa e... devo mentir-lhe? Não, não creio. Será longa e dolorosa. Você verterá suas lágrimas. Pode vir a odiar o seu tera­peuta. Pode vir a se apaixonar por sua cama. E teremos intervenções cirúrgicas — uma só, se você tiver muita, muita sorte, mas talvez até quatro — para alongar esses ligamentos. Essas operações ainda são novas. Podem ter um êxito total, parcial, ou nenhum. No entanto, se Deus quiser, acredito que você voltará a andar. Não creio que chegue a esquiar ou saltar obstáculos, mas poderá correr e certamente há de nadar.

—    Obrigado — disse Johnny. Ele sentiu uma onda de carinho repentina por aquele homem de sotaque e corte de cabelo estranho. Queria fazer alguma coisa por Weizak, em recompensa — e com essa sensação veio o ímpeto, quase a necessidade, de tocá-lo.

De repente, estendeu a mão e pegou a mão de Weizak entre as suas. A mão do médico era grande, muito marcada e quente.

—    Sim? — disse Weizak, com bondade. — E o que é isso?

E de repente as coisas mudaram. Era impossível dizer como. Só que de repente Weizak lhe pareceu muito claro. Weizak pa­receu... destacar-se, delineado numa luz linda e límpida. Cada marca, verruga ou ruga no rosto de Weizak parecia estar em relevo. E cada linha contava a sua história. Ele começou a compreender.

—    Quero a sua carteira — disse Johnny.

—    Minha...? — Weizak e Brown se entreolharam, sobressaltados.

—    Há uma foto de sua mãe na sua carteira, e preciso dela — disse Johnny. — Por favor.

—    Como é que você sabia?

—    Por favor!

Weizak olhou para o rosto de Johnny um momento, e depois, devagar, pôs a mão debaixo do avental e puxou uma carteira velha, volumosa e deformada.

—    Como é que você sabia que tenho comigo uma foto de minha mãe? Ela já morreu, morreu quando os nazistas ocuparam Varsóvia...

Johnny arrancou a carteira da mão de Weizak. Tanto ele quanto Brown pareciam estar aturdidos. Johnny abriu-a, não fez caso das divisões de plástico para fotos, e, em vez disso, procurou nos fundos, os dedos passando apressados por velhos cartões de visita comerciais, recibos, um cheque cancelado, um bilhete velho para alguma cerimônia política. Encontrou um instantâneo antigo, que tinha sido plastificado. A foto mostrava uma moça, as feições simples, os cabelos puxados para trás, debaixo de um lenço. Tinha um sorriso radioso e jovem. Estava segurando a mão de um meni­ninho. Ao seu lado estava um homem com a farda do exército polonês.

Johnny apertou a foto entre as mãos e fechou os olhos; por um momento ficou tudo escuro, e depois, saindo do escuro, apare­ceu uma carroça.., não, uma carroça, não, um carro fúnebre. Um

carro fúnebre puxado por cavalos. As lanternas tinham sido envoltas em panos pretos. Claro que era um carro fúnebre porque estavam

(morrendo às centenas, sim, aos milhares, não eram páreo para os panzer, a webrmacht, cavalaria do século XIX contra os tanques e metralhadoras. explosões, homens gritando e morrendo. um ca­valo estripado, com os olhos revirando loucamente, mostrando os brancos, um canhão derrubado atrás dele, e continuam a chegar. weizak aparece, de pé nos estribos, a espada levantada na chuva de fim de verão de 1939, seus homens acompanhando-o, tropeçando na lama. a torre de tiro do tanque tigre nazista o descobre e põe na mira, atira, e de repente ele desaparece abaixo da cintura, a espada voando de sua mão; e pela estrada abaixo está Varsóvia. o lobo nazista está solto na europa)

—    Francamente; temos de pôr um paradeiro nisso — disse Brown, a voz distante e preocupada. — Você está se excitando demais, Johnny.

As vozes vinham de longe, de um corredor no tempo.

Estava quente, ali. Estava suando. Estava suando porque

(a cidade está ardendo, há milhares em fuga, um caminhão está disparando em ziguezague por uma rua de pedras, e o caminhão está cheio de soldados alemães acenando, de capacete de aço, e a moça agora não está sorrindo, está fugindo, não há motivo para não fugir, a criança foi despachada para lugar seguro, e agora o ca­minhão sobe na calçada, o pára-lama bate nela, despedaçando-lhe o quadril e atirando-a por um vitrina de vidro para dentro de uma relojoaria, e tudo começa a bater as horas, bater as horas, as horas que batem são)

—    Seis horas — disse Johnny, em voz carregada. Revirou os olhos, mostrando os brancos, salientes, tensos. — Dia 2 de setem­bro, 1939, e todos os cucos cantando.

—    Ah, meu Deus, o que é isso aí? — murmurou Weizak. A enfermeira tinha recuado até junto do aparelho de eletroencefalo­grama, o rosto pálido e assustado. Agora todos estão apavorados, porque a morte paira no ar. Está sempre no ar nesse lugar, nesse

(hospital. cheiro de éter. estão gritando no lugar da morte. a Polônia caiu sob a blitzkrieg da webrmacht. quadril fraturado. o homem no leito vizinho pedindo água, pedindo, pedindo, pedindo, ela se lembra, “O MENINO ESTÁ SEGURO”. que menino? ela não sabe. que menino? como ela se chama? ela não se lembra. só que)

—    O menino está seguro — disse Johnny, naquela voz carre­gada. — Hum, hum. Hum, hum.

—    Temos de parar com isso — repetiu Brown.

—    O que você sugere? — perguntou Weizak, a voz áspera. —Já foi longe demais para...

Vozes desaparecendo. As vozes sob as nuvens. Tudo sob as nuvens. A Europa sob as nuvens da guerra. Tudo sob as nuvens, a não ser os picos, os picos montanhosos da

(suíça. suíça, e agora o nome dela é BORENTZ. o nome dela é JOHANNA BORENTZ, e o marido é engenheiro ou arquiteto, seja o que for que constrói pontes. ele constrói na suíça e tem leite de cabra, queijo de cabra, um bebê. aaaah, o parto! o parto é errível e ela precisa de entorpecentes, morfina, essa JOHANNA BORENTZ, por causa do quadril, o quadril fraturado. foi conser­tado, adormeceu, mas agora desperta e começa a berrar, quando a pélvis dela se dilata para deixar o bebê sair. um bebê. dois. e três. e quatro. não vêm todos ao mesmo tempo, não.., são uma safra de anos. são)

—    Os bebês — entoou Johnny, e então falou em voz de mu­lher, não sua voz. Era a voz de uma mulher. Depois de sua boca saiu uma porção de tolices cantadas.

—    O quê, em nome de Deus... — começou Brown.

—    Polonês, é polonês! — exclamou Weizak. Os olhos dele estavam estourando no rosto pálido. — É uma canção de ninar e é em polonês, meu Deus, Cristo, o que é isso?

Weizak debruçou-se para a frente, como que para atravessar os anos com Johnny, como que para saltá-los, como que para

(ponte, uma ponte, é na Turquia. depois uma ponte em um lugar quente no extremo oriente, será o Laos? não se pode dizer, perdemos um homem lá, perdemos HANS lá, depois uma ponte na Virgínia, uma ponte sobre o RIO RAPPAHANNOCK e outra ponte na Califórnia. agora estamos nos candidatando à naturalização e estudamos numa salinha quente nos fundos de uma agência de correios onde há sempre cheiro de cola. é o mês de novembro de 1963, e quando ficamos sabendo que Kennedy foi assassinado em Dallas choramos, e quando o menininho faz continência para o cai­xão do pai ela pensa “O MENINO ESTÁ SEGURO” e isso traz recordações de um incêndio, um grande incêndio e tristeza, que me­nino? ela sonha com o menino, isso lhe dá dor de cabeça. e o homem morre. HELMUT BORENTZ morre e ela e os filhos vivem em car­mel, califórnia, numa casa. em. em. não posso ver a placa da rua, está na zona morta, como o barco a remo, como a mesa de piqueni­que no gramado. está na zona morta. como varsóvia. os filhos vão embora, ela vai às cerimônias de formatura deles uma por uma, e o seu quadril dói. um morre no vietnam. os outros estão bem. um está construindo pontes. o nome dela é JOHANNA BORENTZ e agora tarde da noite ela às vezes pensa no escuro: “O MENINO ESTÁ SEGURO”.)

Johnny olhou para eles. Sua cabeça estava estranha. Desapa­recera aquela luz especial em volta de Weizak. Estava se sentindo normal de novo, mas fraco e meio enjoado. Olhou para a foto que tinha nas mãos, um instante, e depois devolveu-a.

—    Johnny? — disse Brown. — Você está bem?

—    Cansado — murmurou ele.

—    Pode contar-nos o que lhe aconteceu?

Ele olhou para Weizak.

—    Sua mãe está viva — disse ele.

—    Não, Johnny. Ela morreu há muitos anos. Na guerra.

—    Um transporte de tropas alemão a lançou através de uma vitrina, para dentro de uma relojoaria — disse Johnny. — Voltou a si, num hospital, com amnésia. Não tinha identificação, nem do­cumentos. Assumiu o nome de Johanna, alguma coisa. Não entendi isso, mas quando acabou a guerra ela foi para a Suíça e casou-se com um suíço.., era engenheiro, acho. A especialidade dele era construir pontes, e ele se chamava Helmut Borentz. Assim, o nome dela era.., é... Johanna Borentz.

Os olhos da enfermeira estavam cada vez mais arregalados. A fisionomia do Dr. Brown estava fechada, ou porque achasse que Johnny estava mexendo com eles todos ou apenas porque não queria que atrapalhassem a sua organizada rotina de exames. Mas o rosto de Weizak estava parado e pensativo.

—    Ela e Helmut Borentz tiveram quatro filhos — disse Johnny, com aquela mesma voz, calma e apagada. — O trabalho dele o levou pelo mundo todo. Passou algum tempo na Turquia. Em algum lugar no Extremo Oriente, Laos, creio, talvez no Camboja. Depois veio para cá. Primeiro para a Virgínia, depois para outros lugares que não peguei, depois para a Califórnia. Ele e Johanna se naturalizaram cidadãos americanos. Helmut morreu. Um dos filhos que eles tiveram também morreu. Os outros estão vivos e bem. Mas ela às vezes sonha com o senhor. E nos sonhos pensa “o menino está seguro”. Mas não se lembra do seu nome. Talvez ache que seja tarde.

—    Califórnia? disse Weizak, pensativo.

—    Sam — disse o Dr. Brown. — Realmente, você não deve encorajar isso.

—    Onde na Califórnia, John?

—    Carmel. Junto do mar. Mas não sei dizer a rua. Estava ali, mas eu não pude saber. Estava numa zona morta. Como a mesa de piquenique e o barco a remo. Mas está em Carmel, Califórnia. Johanna Borentz. Não é velha.

—    Não, claro que não seria velha — disse Sam Weizak, na­quele mesmo tom, pensativo e distante. — Só tinha vinte e quatro anos quando os alemães invadiram a Polônia.

—    Dr. Weizak, devo insistir — disse Brown, com aspereza.

Weizak pareceu sair de uma meditação profunda. Olhou em volta, como se notasse seu jovem colega pela primeira vez.

—    Claro — disse ele. — Claro que deve. E John já teve o seu período de perguntas e respostas.., embora eu creia que ele nos contou mais do que lhe contamos.

—    Isso é tolice — disse Brown, com rispidez, e Johnny pen­sou: “Ele está apavorado. Apavorado mesmo”.

Weizak sorriu para Brown, e depois para a enfermeira. Ele estava olhando para Johnny como se ele fosse um tigre numa jaula malfeita.

—    Não fale sobre isso, enfermeira. Nem com a sua superviso­ra, nem com sua mãe, seu irmão, seu namorado, seu padre.

—    Sim, doutor — disse a enfermeira.

“Mas ela vai falar”, pensou Johnny, e depois olhou para Weizak. “E ele sabe disso”.

 

Ele dormiu a maior parte da tarde. Por volta das quatro, leva­ram-no pelo corredor para o elevador, para a neurologia, e fizeram mais exames. Johnny chorou. Ele parecia ter muito pouco controle sobre as funções que se supõe serem controladas pelos adultos. Na volta para o quarto, urinou, e tiveram de lhe trocar a roupa, como a um bebê. A primeira (mas nem de longe a última) onda de depressão invadiu-o, levando-o, débil, e ele teve vontade de morrer. A depressão foi acompanhada pela autocomiseração, e ele pensou em como aquilo era injusto. Tinha bancado o Ripvan Winkle*. Não ia andar. Sua namorada se casara com outro e sua mãe estava com mania de religião. Não via no futuro nada que valesse a pena, na vida.

De volta ao quarto, a enfermeira lhe perguntou se ele queria alguma coisa. Se Marie estivesse de serviço, ele teria pedido água gelada, mas ela saíra às três horas.

—    Não — disse ele, e rolou para o lado da parede. Depois de algum tempo, adormeceu.

 

* Personagem de um conto de Washington Irwing (1783-1859) que dor­me um sono de vinte anos e, ao acordar, fica abismado por perceber o quanto o mundo mudara. (N. do E.)

 

Os pais dele foram vê-lo naquela tarde, e Vera deixou uma porção de folhetos.

—    Vamos ficar aqui até o fim da semana — disse Herb —, e depois, se você continuar bem, vamos voltar para Pownal um pouco. Mas viremos todos os fins de semana.

—    Quero ficar com o meu filho — disse Vera, em altos brados.

—    Ë melhor não ficar, mãe — disse Johnny.

A depressão melhorara um pouco, mas ele se lembrava de como fora negra. Se a mãe começasse a lhe falar sobre o plano maravilhoso de Deus para ele enquanto estivesse naquele estado, duvidava que pudesse conter um riso histérico.

—    Você precisa de mim, John. Precisa de mim para explicar...

—    Primeiro preciso ficar bom — disse Johnny. — A senhora pode explicar depois que eu conseguir andar. Está bem?

Ela não respondeu. Em seu rosto havia uma expressão de teimosia quase cômica... só que nisso não havia nada de muito engraçado. Nada mesmo. “Nada a não ser um capricho do destino, só isso. Cinco minutos antes ou depois naquela estrada podiam ter modificado tudo. Agora olhem para nós, todos nós, completamente fodidos. E ela acha que é o plano de Deus. Ou isso, ou ficar inteiramente louca, imagino.”

Para romper o silêncio constrangido, Johnny disse:

—    Então, Nixon foi reeleito, pai? Quem competiu com ele?

—    Foi reeleito — disse Herb. — Concorreu com McGovern.

—    Quem?

—    McGovern. George McGovern. Senador de Dakota do Sul.

—    Não foi Muskie?

—    Não. Mas Nixon não é mais presidente. Renunciou.

—    O quê?

—    Era um mentiroso — disse Vera, com dureza. — Ficou cheio de orgulho e o Senhor o derrubou.

—    Nixon renunciou? — Johnny estava estupefato. — Ele?

—    Era ou isso ou ser demitido — disse Herb. — Estavam se preparando para pedir o impeachment.

De repente Johnny se deu conta de que houvera um tumulto grande e básico na politica americana — quase certamente em conseqüência da Guerra do Vietnam —, e ele perdera isso. Pela primeira vez ele realmente se sentiu como Rip van Winkle. Até que ponto as coisas tinham se modificado? Tinha quase medo de perguntar. Então ocorreu-lhe uma idéia realmente terrível.

—    Agnew... Agnew é o presidente?

—    Ford — disse Vera. — Um homem bom e honesto.

—    Henry Ford é o presidente dos Estados Unidos?

—    Henry, não — disse ela — Jerry.

Ele ficou olhando de um para o outro, não muito convencido de que aquilo não fosse um sonho ou uma piada bizarra.

—    Agnew também renunciou — disse Vera. Os lábios dela estavam apertados e brancos. — Ele era um ladrão. Aceitou um suborno quando estava no cargo. É o que dizem.

—    Ele não renunciou por causa do suborno — disse Herb. — Renunciou por causa de alguma encrenca em Maryland. Estava muito comprometido, parece. Nixon indicou Jerry Ford para ser

Vice-presidente. Depois Nixon renunciou, em agosto do ano passado, e Ford assumiu. Ele nomeou Nelson Rockefeller para vice-presiden­te. E é assim que estamos agora.

—    Um homem divorciado — disse Vera, com amargura. —Deus nos livre de que ele um dia chegue a presidente.

—    O que foi que Nixon fez? — perguntou Johnny. — Jesus Cristo, eu... — Olhou para a mãe, que logo fechou a cara. —Quero dizer, puxa vida, se iam pedir o impeachment.

—    Não precisa pronunciar o nome do Salvador em vão por causa de um bando de políticos corruptos — disse Vera. — Foi Watergate.

—    Watergate? Foi uma operação no Vietnam? Uma coisa assim?

—    O Hotel Watergate, em Washington — disse Herb. — Uns cubanos arrombaram os escritórios do Comitê Democrata lá e foram descobertos. Nixon sabia da história e procurou encobrir o caso.

—    Está brincando? — conseguiu dizer Johnny, afinal.

—    Foram as fitas gravadas — disse Vera. — E aquele John Dean. Não passa de um rato abandonando um navio prestes a nau­fragar, é o que eu acho. Um bisbilhoteiro ‘comum.

—    Papai, pode explicar isso para mim?

—    Vou tentar — disse Herb —, mas não creio que toda a história já tenha saído, ainda hoje. Vou lhe trazer livros. Já foram escritos um milhão de livros sobre isso, e acho que ainda vão se escrever mais um milhão, até que se encerre o assunto. Pouco antes das eleições, no verão de 1972...

Eram dez e meia da noite, e os pais dele já tinham ido. As luzes da enfermaria estavam meio apagadas. Johnny não conseguia dormir. Estava tudo dançando em sua cabeça, uma mistura terrível de dados novos. O mundo se modificara de um modo mais com­pleto do que ele acreditaria ser possível, em tio pouco tempo. Ele se sentia fora do compasso e da música.

Os preços da gasolina já tinham subido cem por cento, dissera o pai. Na ocasião do acidente dele, comprava-se gasolina comum por trinta ou trinta e dois cents o galão. Agora estava a cinqüenta e quatro cents, às vezes havia filas nas bombas. O limite de velo­cidade legal em todo o país era de oitenta quilômetros por hora, e os motoristas de caminhão de longa distância quase se tinham revoltado contra isso.

Mas tudo isso não era nada. O Vietnam acabara. Aquele país afinal se tornara comunista. Herb disse que isso acontecera justa­mente quando Johnny começara a dar sinais de que talvez saísse da coma. Depois de todos aqueles anos e todo aquele derramamento de sangue, os herdeiros de Tio Ho tinham empacotado o pais como uma cortina de enrolar em uma questão de dias.

O     presidente dos Estados Unidos tinha ido à China Vermelha. Não Ford, mas Nixon. Tinha ido antes de renunciar. Nixon, logo quem, o próprio caçador de bruxas. Se alguém que não o pai lhe tivesse contado isso, Johnny não teria acreditado.

Era tudo demais, assustador demais. De repente ele não queria saber de mais nada, com medo de ficar completamente louco. Aquela caneta do de. Brown, aquela e quantas outras coisas como aquela haveria? Quantas centenas de coisinhas, todas frisando a mesma coisa vezes e mais vezes: você perdeu parte de sua vida, quase seis por cento, a se acreditar nas tabelas atuariais. Está atrasado no tempo. Perdeu muita coisa.

—    John? — A voz era baixa. — Está dormindo, John?

Ele virou-se. No vão da porta estava um vulto apagado. Um homem pequeno, de ombros arredondados. Era Weizak.

—    Não. Estou acordado.

—    Eu esperava que sim. Posso entrar?

—    Sim, por favor.

Weizak estava com ar envelhecido. Sentou-se ao lado da cama de Johnny.

—    Andei telefonando — disse ele. — Pedi auxílio à telefonista de informações de Carmel, Califórnia. Pedi o número de uma Sra. Johanna Borentz. Acha que havia esse número?

—    A não ser que não figure na lista ou que ela não tenha telefone — disse Johnny.

—    Ela tem telefone. Deram-me o número.

—    Ah — disse Johnny.

Estava interessado porque gostava de Weizak, mas era só isso. Não sentia necessidade de ver autenticado o seu conhecimento de Johanna Borentz, pois sabia que a informação era verdadeira —sabia disso tanto quanto sabia que não era canhoto.

—    Fiquei pensando nisso por muito tempo — disse Weizak.

Eu lhe disse que a minha mãe tinha morrido, mas isso na ver­dade não era mais que uma suposição. O meu pai morreu na defesa de Varsóvia. Minha mãe simplesmente nunca mais apareceu, sabe? Era lógico supor que ela tivesse morrido no bombardeio.., durante a ocupação... você entende. Ela nunca apareceu, de modo que era lógico supor isso. Amnésia.., como neurologista, posso lhe dizer que uma amnésia permanente e geral é muito, muito rara. Provavelmente mais rara do que a verdadeira esquizofrenia. Nunca soube de um caso documentado que durasse trinta e cinco anos.

—    Ela se recuperou da amnésia há muito tempo — disse Johnny. — Acho que ela simplesmente bloqueou tudo. Quando a memória dela voltou, estava casada de novo e mãe de dois fi­lhos.., possivelmente três. Recordar tornou-se uma coisa culposa, talvez. Mas ela sonha com o senhor. “O menino está seguro.” Ligou para ela?

—    Liguei — disse Weizak. — Ligação direta. Sabia que hoje se pode fazer isso? Sim. Muito cômodo. Disca-se 1, o código de zona, o número. Onze algarismos, e pode-se entrar em contato com qualquer lugar do pais. Uma coisa assombrosa. De certo modo, uma coisa assustadora. Um menino — não, um rapaz — atendeu ao telefone. Perguntei se a Sra. Borentz estava em casa. Eu o ouvi dizer: “Mãe, é para você”. Ouvi o fone bater numa mesa ou coisa que valha. Eu estava em Bangor, Maine, a menos de sessenta quilô­metros do oceano Atlântico, e ouvi um rapaz largar um fone numa mesa numa cidade no oceano Pacífico. O meu coração.., estava batendo com tanta força que me assustou. A espera pareceu demo­rada. Depois ela pegou o fone e disse: “Sim? Alô?”

—    O que o senhor disse? Como foi que fez?

—    Não fiz nada — respondeu Weizak, e teve um sorriso torto.

Desliguei. E tive vontade de tomar uma bebida forte, mas não tomei.

—    Tem certeza de que era ela?

—    John, mas que pergunta ingênua! Eu tinha nove anos em 1939. Desde então não ouvia a voz de minha mãe. Ela só falava polonês, quando eu a conhecia. Hoje só falo inglês. Esqueci muita coisa da minha língua materna, o que é uma vergonha. Como posso ter certeza de alguma coisa?

—    Sim, mas teve?

Weizak passou a mão devagar pela testa.

—    Sim — disse ele. — Era ela. Era a minha mãe.

—    Mas não conseguiu falar com ela?

—    Por que haveria de falar? — perguntou Weizak, parecendo quase zangado. — Ela tem a vida dela, não? 12 como você disse. O menino está seguro. Devo perturbar uma mulher que está chegando aos seus anos de paz? Devo arriscar e destruir o equilíbrio dela para sempre? Aqueles sentimentos de culpa que você mencionou... devo libertá-los? Ou sequer correr o risco de fazê-lo?

—    Não sei — disse Johnny.

Eram perguntas difíceis, e as respostas estavam além dele... mas ele sentia que Weizak estava tentando dizer alguma coisa sobre o que ele tinha feito, articulando as perguntas. As perguntas que ele não sabia responder.

—    O menino está seguro, a mulher está segura em Carmel. O país está entre eles, e deixemos como está. Mas e você, Johnny? O que vamos fazer com você?

—    Não sei do que está falando.

—    Então vou lhe explicar, está bem? O dr. Brown está zan­gado. Está zangado comigo, zangado com você, e zangado consigo mesmo, imagino, por chegar quase a acreditar em uma coisa que sempre achou ser tolice completa. A enfermeira que presenciou a cena nunca há de ficar calada. Vai contar ao marido, na cama, hoje à noite, e pode ser que termine aí, mas o marido pode contar ao patrão, e é bem possível que os jornalistas saibam disso até amanhã à noite. “Paciente de coma desperta com segunda visão”.

—    Segunda visão — disse Johnny. — É isso o que é?

—    Não sei o que é, na verdade. Paranormal? Vidente? Pala­vras cômodas que não descrevem nada, nada mesmo. Você disse a uma das enfermeiras que a cirurgia óptica do filho dela ia ser bem sucedida...

—    Marie — murmurou Johnny. Ele sorriu um pouco. Gostava de Marie.

—    ... e isso já se espalhou pelo hospital. Você viu o futuro? Será isso a segunda visão? Não sei. Você pegou uma foto de minha mãe entre suas mãos e pôde me dizer onde ela mora hoje. Sabe onde se podem encontrar pessoas e coisas perdidas? Será isso a segunda visão? Não sei. Você pode ler os pensamentos? Influenciar os objetos do mundo material? Curar pela postação das mãos? Tudo isso são coisas que alguns chamam de “paranormais”. Todas se rela­cionam com a idéia da “segunda visão”. São coisas de que o dr. Brown ri. Ri? Não ri. Escarnece.

—    E o senhor, não?

—    Eu penso em Edgar Cayce. E Peter Hurkos. Tentei contar ao dr. Brown sobre Hurkos, e ele escarneceu. Não quer falar a esse respeito; não quer saber disso.

Johnny não disse nada.

—    Então.., o que vamos fazer com você?

—    É preciso fazer alguma coisa?

—    Acho que sim — disse Weizak. — Vou deixar que você pense nisso por si. Mas quando pensar, pense nisso: há coisas que é melhor não ver, e coisas que é melhor ficarem perdidas do que serem encontradas.

Deu boa-noite a Johnny e saiu de mansinho. Johnny agora estava muito cansado, mas custou muito a dormir.

 

A primeira operação de Johnny foi marcada para o dia 28 de maio. Weizak e Brown lhe explicaram o processo com cuidado. Uma anestesia local lhe seria ministrada... nenhum dos dois achava que se poderia arriscar uma geral. Essa primeira operação seria nos joelhos e tornozelos. Os ligamentos, que se haviam encurtado du­rante o sono demorado, seriam alongados por uma combinação de fibras plásticas. O material plástico a ser usado também era empregado em cirurgia bypass de válvulas do coração. O problema não era tanto a aceitação ou rejeição dos ligamentos artificiais pelo seu corpo, explicou Brown, mas a capacidade de sua perna se adaptar à modificação. Se eles tivessem bons resultados com os joelhos e tornozelos, estavam programadas mais três operações: uma nos ligamentos compridos das coxas, outra nos ligamentos dos cotovelos, e possivelmente uma terceira no pescoço, que ele quase não conseguia virar. A cirurgia seria executada por Raymond Ruopp, pioneiro na técnica. Ele viria de San Francisco, de avião, para isso.

—    O que é que esse Ruopp quer comigo, se é um supe­rastro? — perguntou Johnny. Superastro era uma palavra que ele aprendera com Marie. Ela a usara referindo-se a um cantor de óculos, meio calvo, que tinha o nome inusitado de Elton John.

—    Você está subestimando as suas próprias qualidades de su­perastro — retrucou Brown. — Nos Estados Unidos só há um punhado de pessoas que se recuperaram de uma coma tão prolongada quanto a sua. E, desse punhado, a sua recuperação da lesão cerebral concomitante foi a mais radical e satisfatória.

Sam Weizak foi mais rude.

—    Você é uma cobaia, hem?

—    O quê?

—    Sim. Olhe para a luz, por favor. — Weizak acendeu uma Luz, dirigindo-a para dentro da pupila do olho esquerdo de Johnny. — Sabia que posso olhar bem dentro do seu nervo óptico, com essa coisa? Sim. Os olhos são mais do que as janelas da alma. São dos pontos mais importantes da manutenção do cérebro.

—    Cobaia — disse Johnny, num tom soturno, olhando para o ponto de luz bárbaro.

—    Sim. — A luz apagou-se. — Não tenha tanta pena de si. Muitas das técnicas a serem empregadas em você — e algumas das que já foram usadas — foram aperfeiçoadas durante a Guerra do Vietnam. Não havia falta de cobaias nos hospitais de lá, hem? Um homem como Ruopp se interessa por você porque você é um caso único. Eis um homem que dormiu durante quatro anos e meio. Po­deremos fazê-lo andar de novo? Problema interessante. Ele imagina a monografia que escreverá sobre isso para New England Journal of Medicine. Aguarda isso do mesmo modo que uma criança aguarda os brinquedos novos sob a árvore de Natal. Ele não está vendo você, não vê Johnny Smith com sua dor, Johnny Smith que tem de usar a comadre e chamar a enfermeira para coçar as costas, se elas comicharem. Isso é bom. As mãos dele não vão tremer. Sorria, Johnny. Esse Ruopp parece um banqueiro, mas talvez seja o melhor cirurgião da América do Norte.

Mas era muito difícil, para Johnny, sorrir.

Ele lera obedientemente os folhetos que a mãe lhe deixara. Eles o deprimiram, deixando-o novamente assustado, temendo pela sanidade dela. Um deles, escrito por um homem chamado Salem Kirban, pareceu-lhe quase pagão, na sua contemplação carinhosa de um apocalipse sangrento, e os poços ardentes do inferno. Outro descrevia a vinda do Anticristo em termos de pavor de pasquim. Os outros eram uma orgia tenebrosa de loucuras: Cristo estava vivendo sob o pólo sul, Deus dirigia discos voadores, Nova York era Sodoma, Los Angeles, Gomorra. Tratavam de exorcismo, bruxas, todo tipo de coisas visíveis e invisíveis. Era-lhe impossível conciliar os folhetos com a mulher religiosa, mas terrena, que conhecera antes de sua coma.

Três dias depois do incidente com a foto da mãe de Weizak, um jornalista magro e moreno do Daily News de Bangor, chamado David Bright, apareceu à porta do quarto de Johnny, perguntando se podia ter uma breve entrevista.

—    Já perguntou aos médicos? — perguntou Johnny.

—    Para falar a verdade, não — disse Bright, rindo.

— Muito bem — disse Johnny. — Assim sendo, terei prazer em falar com você.

—    Assim é que eu gosto — disse Bright. Entrou no quarto e sentou-se.

As primeiras perguntas foram sobre o acidente e os pensamen­tos e sensações de Johnny ao sair da coma e descobrir que perdera quase meia década. Johnny respondeu a essas perguntas com fran­queza e sinceridade. Depois Bright disse que tinha sabido “de uma fonte” que Johnny alcançara uma espécie de sexto sentido, como resultado do acidente.

—    Está me perguntando se sou médium?

Bright sorriu e deu de ombros.

—    Pode ser, para começo de conversa.

Johnny pensara muito sobre as coisas que Weizak lhe dissera. Quanto mais pensava, mais lhe parecia que Weizak tivera razão ao desligar o telefone sem dizer nada. Johnny tinha começado a asso­ciar o fato, mentalmente, com o conto de W. W. Jacobs, “The monkey’s paw”*. A pata servia para realizar desejos, mas o preço que se pagava pelos três desejos era tenebroso. Um casal de velhos tinha desejado cem libras, e perdera o filho num acidente num moinho: a indenização do moinho fora de exatamente cem libras. Então a mulher desejara ter o filho de volta, e ele voltara.., mas antes que da pudesse abrir a porta para ver o pavor que chamara da cova, o velho usara o último desejo para mandá-lo de volta. Confor­me disse Weizak, talvez fosse melhor deixar certas coisas perdidas, em vez de encontrá-las.

—    Não — disse ele. — Sou tão médium quanto você.

—    Segundo a minha fonte, você...

—    Não, não é verdade.

Bright teve um sorriso meio cínico, pareceu pensar em dis­cutir mais o assunto, e depois virou para uma outra página de seu caderninho. Começou a perguntar sobre as perspectivas de Johnny para o futuro, o que achava do caminho de volta, e Johnny também respondeu a essas perguntas com toda a sinceridade que pôde.

—    Então, o que pretende fazer quando sair daqui? — pergun­tou Bright, fechando o caderno.

 

* “A pata do macaco.” (N. do T.)

 

       — Ainda não pensei nisso. Ainda estou tentando adaptar-me à idéia de que Gerald Ford é o presidente.

Bright riu-se.

—    Não é só você, meu amigo.

—    Imagino que volte a lecionar. É só o que sei fazer. Mas, no momento, ainda estou muito longe para pensar nisso.

Bright agradeceu a entrevista e saiu. O artigo apareceu no jornal dois dias depois, na véspera da sua cirurgia da perna. Estava ao pé da primeira página, e a manchete era: JOHN SMITH, MODERNO RIPVAN WINKLE, ENFRENTA LONGO CAMINHO DE VOLTA. Havia

três fotos: uma era de Johnny para o álbum do ginásio de Cleaves Mils (fora tirada uma semana antes do acidente); outra, de Johnny no seu leito de hospital, magro e contorcido, com os braços e pernas em suas posições dobradas. Entre as duas estava uma foto do táxi, quase totalmente destruído, virado de lado como um cachorro mor­to. No artigo de Bright não havia nenhuma menção de sexto sentido, poderes precognitivos ou talentos extravagantes.

—    Como foi que você o convenceu a não mencionar a PEs? — perguntou Weizak, naquela noite.

Johnny deu de ombros...

—    Ele parecia um camarada legal. Talvez não quisesse me marcar com isso.

—    Talvez — disse Weizak. — Mas ele não se esquecerá, se for um bom repórter, e parece que é.

—    Parece?

—    Andei indagando.

—    Tratando dos meus interesses?

—    Todos fazemos o que podemos, não é? Está nervoso por causa de amanhã, Johnny?

—    Nervoso, não. Assustado, é o termo mais apropriado.

—    Sim, claro que está. Eu também ficaria.

—    Vai estar presente?

—    Sim, na seção de observação da sala cirúrgica. Em cima. Você não vai poder me distinguir dos outros, com a roupa verde, mas estarei lá.

—    Use alguma coisa — disse Johnny. — Use alguma coisa para eu saber que é o senhor.

Weizak olhou para ele e sorriu.

—    Está bem. Vou prender o meu relógio na minha túnica.

—    Bom — disse Johnny. — E o Dr. Brown, vai estar lá?

—    O Dr. Brown está em Washington. Amanhã ele vai apre­sentar o seu caso a Sociedade Americana de Neurologistas. Li o trabalho dele. Está bastante bom. Talvez exagerado.

—    O senhor não foi convidado?

Weizak deu de ombros.

—    Não gosto de andar de avião. É uma coisa que me mete medo.

—    E talvez quisesse ficar aqui...?

Weizak deu um meio sorriso, abriu as mãos e não disse nada.

—    Ele não gosta muito de mim, não é? — perguntou Johnny. — O dr. Brown?

—    Não muito, não — disse Weizak. — Acha que você está mexendo conosco. Inventando coisas, por algum motivo particular. Procurando chamar a atenção, talvez. Não o julgue só por isso, John. O tipo de mentalidade dele torna impossível ele pensar diferente­mente. Se sentir alguma coisa por Jim, sinta um pouco de compai­xão. É um homem brilhante, e vai longe. Já tem tido ofertas, e um dia vai bater as asas destes frios bosques do norte, e Bangor não mais o verá. Irá para Houston, para o Havaí ou talvez para Paris. Mas é curiosamente limitado. É um mecânico do cérebro. Cortou-o em pedaço., com o bisturi, e não encontrou a alma. Portanto, ela não existe. Como os astronautas russos que circundaram a Terra e não viram Deus. É o empirismo da mecânica, e um mecânico é apenas uma criança com um controle motor superior. Você nunca deve contar a ele que eu lhe disse isso.

—    Não.

—    E agora precisa descansar. Amanhã tem um longo dia pela frente.

 

A única coisa que Johnny viu do famoso Dr. Ruopp, durante a intervenção, foram uns óculos grossos, de aros de chifre, e um gran­de quisto sebáceo do lado esquerdo da testa. O resto estava coberto pela touca, pelo avental e pelas luvas.

Johnny tinha tomado duas injeções pré-operatórias, uma de de­merol e outra de atropina, e quando o levaram para a sala estava bem alto. A anestesista aproximou-se com a maior agulha de novo­caina que Johnny já vira na vida. Ele imaginou que a injeção fosse dolorosa, e não se enganou. Deram a injeção entre L4 e L3, a quarta e quinta vértebras lombares, uma altura suficiente para evitar a cauda equitza, o feixe de nervos na base da espinha vagamente semelhante a uma cauda de cavalo.

Johnny estava deitado de bruços, e mordeu o braço, para não gritar.

Depois de um tempo interminável, a dor começou a desapare­cer, cedendo lugar a uma sensação vaga de pressão. A não ser por isso, a metade inferior de seu corpo estava completamente apagada.

O     rosto de Ruopp pairava sobre ele. O bandido verde, pensou Johnny. Jesse James de aros de chifre. A bolsa ou a vida.

Tudo bem, sr. Smith? — perguntou Ruopp.

—    Sim. Mas, por mim, preferia não tornar a passar por isso.

—    Pode ler uma revista, se quiser. Ou pode assistir pelo espe­lho, se achar que não vai lhe fazer mal.

—    Está bem.

—    Enfermeira, dê-me a pressão arterial, por favor.

—    Doze por sete e meio, doutor.

—    Ótimo. Bem, pessoal, vamos começar?

—    Guardem uma perninha para mim — disse Johnny, débil, e ficou surpreso com as risadas. Com a mão numa luva fina, Ruopp deu um tapinha em seu ombro, coberto com o lençol.

Johnny viu Ruopp escolher um bisturi e desaparecer atrás dos panos verdes pendurados sobre o aro de metal, curvado sobre ele. O espelho era convexo, e Johnny tinha uma visão bastante boa, em­bora distorcida, de tudo.

—    Ah, sim — disse Ruopp. — Ah, sim, hum, hum.... é o que queremos -- - hum, hum... 0K... grampo, por favor. Enfer­meira, vamos, acorde, pelo amor de Deus.., sim, senhor..... agora acho que quero um desses... não, espere.., não me dê o que eu peço, dê-me o que eu ....... sim, 0K. Suturas, por favor.

Com um fórceps, a enfermeira deu a Ruopp uma coisa que parecia um feixe de fios torcidos juntos. Ruopp pegou-os delicadamente do ar com um pinça.

“Como um jantar italiano”, pensou Johnny, “e vejam todo esse molho de espaguete.” Aquilo é que o enjoou, e ele desviou o olhar. Acima dele, na galeria, o resto da turma dos bandidos olhava para ele. Os olhos deles estavam pálidos, impiedosos e assustadores. Então ele avistou Weizak, o terceiro da direita, o relógio bem preso à frente do avental.

Johnny meneou a cabeça.

Weizak meneou em resposta.

Aquilo melhorou um pouco as coisas.

 

Ruopp terminou as ligações entre no joelho, e as barrigas das pernas, e viraram Johnny. Continuaram o trabalho. A anestesista perguntou se ele estava se sentindo bem. Johnny disse que tão bem quanto possível, nas circunstâncias. Ela perguntou se ele queria ouvir uma fita, e ele disse que seria muito agradável. Pouco depois, a voz límpida e doce de Joan Baez encheu a sala de operação. Ruopp foi executando o seu trabalho. Johnny sentiu sono e cochi­lou. Quando acordou, a operação ainda não tinha acabado. Weizak continuava lá. Johnny levantou a mão, reconhecendo a presença dele, e Weizak meneou a cabeça de novo.

 

Uma hora depois, acabou. Ele foi levado para uma sala de recuperação, onde uma enfermeira ficou perguntando quantos dedos dos pés dele ela estava tocando. Depois de algum tempo, Johnny conseguiu dizer.

Ruopp entrou, a máscara de bandido pendurada de um lado.

—    Tudo bem? — perguntou.

—    Sim.

—    Correu tudo muito bem — disse Ruopp. — Estou otimista.

— Bom.

—    Vai sentir um pouco de dor — disse Ruopp. — Bastante, talvez. A fisioterapia em si, a principio, será muito dolorosa. Agüen­te firme.

—    Agüente firme — murmurou Johnny.

—    Boa tarde — disse Ruopp, e foi embora. Provavelmente, pensou Johnny, para jogar rapidamente nove buracos de golfe antes que ficasse muito escuro.

 

Bastante dor.

Às nove da noite o resto da anestesia local tinha passado, e Johnny estava sofrendo agonias. Ele estava proibido de mexer as pernas sem o auxílio de duas enfermeiras. Parecia que tinham amar­rado correias cravejadas de pregos em volta dos seus joelhos, e depois apertado cruelmente. O tempo passou como se rastejasse. Ele olhou para o relógio, certo de que já devia ter passado uma hora desde a última vez em que olhara, e em vez disso via que só haviam se passado quatro minutos. Tinha certeza de que não conseguiria suportar a dor nem por mais um minuto, e depois o minuto se passava e ele tinha certeza de que não suportaria mais outro minuto.

Pensou em todos os minutos empilhados à sua frente, como moedas num caça-níqueis, com dez quilômetros de altura, e foi acometido pela pior depressão que jamais tivera, como uma ‘onda lisa e sólida, que o derrubou. Iam torturá-lo até a morte. Operações nos cotovelos, coxas, pescoço. Fisioterapia. Andadeiras; cadeiras de rodas, bengalas.

“Vai sentir dor, agüente firme.”

“Não”, pensou Johnny, “você agüente firme. Deixe-me em paz. Não chegue mais perto de mim com suas facas de açou­gueiro. Se isso é o que você chama de ajudar, não quero saber de ajuda.” -

Dor contínua e latejante, cravando-se em sua carne.

Calor na barriga, escorrendo.

Ele se molhara.

Johnny Smith virou a cara para a parede e chorou.

 

Dez dias depois daquela primeira operação e duas semanas antes da seguinte (conforme o programado), Johnny levantou os olhos do livro que estava lendo — Todos os homens do presidente, de Woodward e Bernstein — e viu Sarah de pé no vão da porta, olhan­do para ele, com uma expressão vacilante.

—    Sarah — disse ele. — Ë você, não é?

Ela soltou a respiração, trêmula.

—    Sou eu, sim, Johnny.

Ele largou o livro e olhou para ela. Estava elegantemente ves­tida, com um vestido de linho verde-claro, segurando uma bolsinha marrom na frente do corpo, como um escudo. Tinha feito mechas nos cabelos, e estavam bonitos. Aquilo também o fez sentir uma pontada aguda de ciúmes: teria sido idéia dela ou do homem com quem ela vivia e dormia? Ela estava linda.

—    Entre — disse ele. — Entre e sente-se.

Ela atravessou o quarto, e de repente ele se viu como Sarah devia estar vendo-o: magro demais, o corpo um pouco caído para o lado da cadeira junto da janela, as pernas esticadas no banquinho, de cueca e um roupão barato do hospital.

—    Como está vendo, pus o meu smoking — disse ele.

—    Você está bem. — Ela beijou-lhe o rosto e cem recorda­ções se embaralharam vivamente pela cabeça dele, como um baralho derrubado. Ela sentou-se na outra cadeira, cruzou as pernas e puxou a bainha do vestido.

Eles se olharam sem dizer nada. Ele viu que ela estava muito nervosa. Se alguém tocasse em seu ombro, ela provavelmente se levantaria de um salto.

—    Eu não sabia se devia vir — disse ela —, mas queria vir assim mesmo.

—    Estou contente de que tenha vindo.

“Como estranhos num ônibus”, pensou ele, com tristeza. “Tem de ser mais do que isso, não?”

—    Então, como vai indo? — perguntou ela.

Ele sorriu.

—    Estive na guerra. Quer ver as cicatrizes de combate?

Ele levantou o roupão acima dos joelhos, mostrando as incisões em forma de 5 que estavam começando a cicatrizar. Ainda estavam vermelhas e marcadas de pontos.

Ah, meu Deus, o que estão fazendo com você?

     —      Estão tentando remendar os pedaços — disse Johnny. — Todos esses médicos. Portanto acho... — E então parou, porque ela estava chorando.

—    Não fale assim, Johnny — disse ela. — Por favor, não fale nesse tom.

—    Desculpe. Eu estava só... querendo brincar a esse respeito. — Seria isso? Estaria tentando rir de si mesmo, ou seria um modo de dizer: “Obrigado por vir me ver, estão me retalhando todo?”

—    Você consegue? Consegue brincar com isso? — Ela havia apanhado um lenço de papel na bolsa e estava enxugando os olhos.

—    Nem sempre. Acho que ao rever você... as defesas se le­vantam, Sarah.

—    Vão deixar você sair daqui?

—    Com o tempo. É como a prova de fogo de antigamente, já leu sobre isso? Se eu ainda estiver vivo depois que todos os índios da tribo tiverem me lançado sua machadinha, conseguirei livrar-me.

—    Este verão?

—    Não, eu... creio que não.

—    Sinto muito que isso tenha acontecido — disse ela, tão baixo que mal a podia ouvir. — Procuro imaginar por que... ou que as coisas podiam ter sido diferentes... e isso me rouba o sono. Se eu não tivesse comido aquele cachorro-quente estragado... se você tivesse ficado, em vez de voltar... — Ela sacudiu a cabeça e olhou para ele, os olhos vermelhos. — Às vezes parece que não há vantagem em coisa alguma.

Johnny sorriu.

—    Duplo zero. Giro da banca. Ei, lembra-se disso? Eu arrasei aquela roda, Sarah.

—    Foi. Ganhou mais de quinhentos dólares.

Ele olhou para ela, ainda sorrindo, mas agora o sorriso mostra­va perplexidade, quase mágoa.

—    Quer saber de uma coisa engraçada? Os meus médicos acham que o motivo pelo qual eu sobrevivi talvez seja algum tipo de ferimento que tive na cabeça, quando pequeno. Mas não consegui me lembrar de nada, nem meu pai nem minha mãe. Mas parece que, cada vez que penso nisso, vejo aquela roda da fortuna... e sinto um cheiro de borracha queimada.

—    Talvez você tenha tido um acidente de automóvel... — começou ela, hesitando.

—    Não, não creio que seja isso. Mas é como se a roda fosse o meu aviso.., e eu o ignorei.

Ela mexeu-se um pouco e disse, inquieta:

—    Não fale assim, Johnny.

Ele deu de ombros.

—    Ou talvez seja apenas que queimei quatro anos de sorte em uma noite. Mas olhe para isto, Sarah. — Com cuidado, com dor, ele tirou uma das pernas do banquinho, dobrou-a num ângulo de noventa graus e depois tornou a estendê-la no banquinho. — Talvez eles consigam mesmo me remendar. Quando acordei, não conseguia fazer isso, nem conseguia esticar as pernas como faço agora.

—    E você pode pensar, Johnny — disse ela. — E pode falar. Nós todos pensávamos que.., você sabe.

—    É; Johnny, o vegetal. — Novamente fez-se um silêncio entre eles, sem jeito e pesado. Johnny rompeu-o, dizendo, com uma animação forçada: — Então, como vão as coisas com você?

—    Bem... estou casada. Imagino que você já saiba disso.

—    Papai me contou.

—    Ele é um homem tão bom! — disse Sarah. E depois, num rompante: — Eu não pude esperar, Johnny. Sinto por isso, também. Os médicos diziam que você nunca ia sair disso, que ia piorar cada vez mais, até que.., ia se extinguir. E mesmo que eu tivesse sabi­do... — Olhou para ele com uma expressão angustiada, de defesa.— Mesmo que eu tivesse sabido, Johnny, não creio que pudesse esperar. Quatro anos e meio é muito tempo.

—    É, sim — disse ele. — Um bocado de tempo. Quer ouvir uma coisa mórbida? Pedi que me trouxessem quatro anos de revis­tas, só para poder ver quem morreu. Truman. Janis Joplin. Jimi Hendrix... Meu Deus, pensei nele tocando Purple raze, e mal pude acreditar. Dan Blocker. E você e eu. Nós apenas nos extinguimos.

—    Sinto-me tão mal quanto a isso! — disse ela, quase sussur­rando. — Tão cheia de culpa! Mas eu amo o cara, Johnny. Eu o amo muito.

—    OK, é isso o que interessa.

—    Ele se chama Walt Razlett, e é...

—    Acho que prefiro ouvir algo a respeito de seu garoto — disse Johnny. — Não leve á mal, hem?

—    Ele é um amor — disse ela, sorrindo. — Está agora com sete meses. Chama-se Dennis, mas nós o chamamos de Denny. É o nome do avô paterno.

—    Traga-o aqui, um dia. Gostaria de vê-lo.

—    Vou trazê-lo — disse Sarah, e eles sorriram um para o outro, um riso falso, sabendo que nada disso ia acontecer, jamais. — Johnny, está precisando de alguma coisa?

“Só de você, benzinho. E os últimos quatro anos e meio de volta.”

—    Não — disse ele. — Você ainda está lecionando?

—    Sim, por algum tempo mais — concordou ela.

—    Continua viciada em cocaína?

—    Ah, Johnny, você não mudou. Continua a implicar, como sempre.

—    Continuo a implicar — concordou ele, e fez-se outro silên­cio entre eles, quase com um baque audível.

—    Posso voltar para vê-lo?

—    Claro — disse ele. — Isso seria ótimo, Sarah. — Hesitou, não querendo que aquilo acabasse tão no ar, sem querer magoá-la ou a si próprio, se pudesse ser evitado. Querendo dizer alguma coisa sincera.

—    Sarah — disse ele —, você agiu direito.

—    Será? — perguntou ela. Sorriu, e o sorriso tremeu nos can­tos da boca. — Não sei. Tudo parece tão cruel e... não posso fazer nada, tão errado. Amo o meu marido e meu filhinho, e quando Walt diz que um dia havemos de morar na melhor casa de Bangor, acredito nele. Diz ele que um dia vai candidatar-se ao lugar de Bill Cohen na Câmara, e também acredito nisso. Diz que um dia alguém do Maine será eleito presidente, e quase chego a acreditar nisso. E chego aqui e olho para as suas pobres pernas... — Ela estava co­meçando a chorar de novo. — Parece que passaram por uma bate­deira ou alguma coisa assim, e você está tão magro...

—    Não, Sarah, não.

—    Você está tão magro e isto parece errado e cruel e eu odeio isso, odeio, porque não está nada certo, nada disso!

—    Às vezes nada está certo, eu acho — disse ele. — Esse mundo é dureza. Às vezes a gente só tem de fazer o que pode e tenta viver com isso. Seja feliz, Sarah. E, se quiser vir me visitar, venha. E traga um tabuleiro de cribbage.

—    Trarei — disse ela. — Desculpe o choro. Não foi muito alegre para você, não é?

—    Tudo bem — disse ele, sorrindo. — Você deve largar a cocaína, benzinho. O seu nariz pode cair.

Ela riu um pouco.

—    Sempre o mesmo Johnny — disse ela. De repente, curvou-se e beijou-o na boca. — Ah, Johnny, fique bom depressa.

Ele olhou para ela, pensativo, enquanto ela se afastava.

—    Você não a deixou — disse ele. — Não, não a deixou, não.

—    Deixei o quê? — Ela estava de testa franzida, intrigada.

A sua aliança. Não a deixou em Montreal.

Ele tinha posto a mão na testa e estava esfregando a pele sobre o olho direito com os dedos. O braço dele lançou uma sombra, e ela viu, com algo muito parecido a um medo supersticioso, que o rosto dele estava meio claro, meio escuro. Aquilo a fez pensar na máscara do Dia das Bruxas com que ele a assustara. Ela e Walt tinham passado a lua-de-mel em Montreal, mas como é que Johnny podia saber disso? A não ser que Herb lhe tivesse contado, talvez. Sim, devia ser isso, com certeza. Mas só ela e Walt sabiam que ela perdera a aliança no quarto do hotel. Ninguém mais sabia, porque ele lhe comprara outra aliança antes de eles voltarem para casa. Ela ficara por demais encabulada para contar a alguém, até mesmo à mãe.

—    Como...

Johnny franziu a testa e depois sorriu para ela. Sua mão caiu da testa e pegou a outra, no colo.

—    Não era do seu tamanho — disse ele. — Você estava arru­mando as malas, não se lembra, Sarah? Ele estava fazendo alguma compra e você estava arrumando as malas. Ele tinha ido comprar... nao sei. Está na zona morta.

Zona morta?

—    Ele foi a uma loja e comprou uma porção de bugigangas como lembrança. Almofadas fantasias, e coisas assim. Mas Johnny, como é que você podia saber que eu perdi a minha ali...

—    Você estava arrumando as malas. A aliança não era do ta­manho certo, era grande demais. Você ia mandar acertá-la quando voltasse. Mas, enquanto isso, você... você... — Ele estava de novo franzindo a testa, intrigado, mas depois logo ela se desanuviou. Ele sorriu para ela. — Você a encheu de papel higiênico!

Agora não havia como duvidar do medo. Ele estava se enros­cando, preguiçoso, no estômago dela, como água fria. Ela levou a mão ao pescoço e fitou-o, quase hipnotizada. “Ele está com o mesmo olhar, aquele mesmo olhar divertido que teve quando estava derro­tando a roda naquela noite. O que é que lhe aconteceu, Johnny? O que é que você é?” O azul dos olhos dele escurecera até quase um tom violeta, e ele parecia distante. Ela teve vontade de fugir corren­do. O próprio quarto parecia estar escurecendo, como se ele de algum modo estivesse rasgando o tecido da realidade, destruindo os elos entre o passado e o presente.

Ela escorregou de sua mão — disse ele. — Você estava guardando o aparelho de barba dele num daqueles bolsos laterais, e ela escorregou. Você só a notou que a tinha perdido depois e achou que estava em algum canto do quarto. Ele riu e o riso era agudo, musical, nada parecido com o riso normal de Johnny, mas frio.., frio. — Puxa, vocês dois viraram aquele quarto de pernas para o ar. Mas arrumaram as malas. Ainda está lá no bolso daquela mala. O tempo todo. Vá ao sótão e procure, Sarah. Você vai ver.

Lá fora, no corredor, alguém deixou cair um copo d’água ou alguma coisa e praguejou, espantado, quando ele se quebrou. John­ny olhou em direção ao barulho e seus olhos clarearam. Ele olhou para ela, viu que estava gelada, os olhos arregalados, e franziu a testa, preocupado.

—    O que foi Sarah, eu disse alguma coisa errada?

—    Como é que você sabia? — murmurou ela. — Como podia saber dessas coisas?

—    Não sei — disse ele. — Sarah, sinto muito se eu...

—    Johnny, tenho de ir, Denny está com a baby sitter.

—    Está bem. Sarah, desculpe se a perturbei.

—    Como você podia saber da minha aliança, Johnny?

Ele só pôde sacudir a cabeça.

 

A meio caminho do corredor do primeiro andar, seu estômago começou a parecer esquisito. Ela chegou ao banheiro das senhoras justo a tempo. Entrou, fechou a porta de uma das cabines e vomitou violentamente. Deu descarga e depois ficou ali, os olhos fechados, tremendo, mas também quase rindo. A última vez que tinha estado com Johnny, também tinha vomitado. Justiça rudimentar? Parên­teses no tempo, como prendedores de livros? Tapou a boca com as mãos para sufocar o que pudesse estar querendo sair: um riso ou talvez um grito. E no escuro o mundo pareceu inclinar-se irracio­nalmente, como um prato. Como uma roda da fortuna girando.

 

Ela deixara Denny com a Sra. Labelle, de modo que, quando chegou a casa, estava tudo quieto e vazio. Subiu a escada estreita até o sótão e puxou o interruptor que acendia as duas lâmpadas pen­duradas. A bagagem deles estava empilhada num canto, as etiquetas da viagem a Montreal ainda pregadas nos lados das malas cor de laranja. Eram três. Ela abriu a primeira, tateou nos bolsos laterais com elásticos, e não encontrou nada. Com a segunda foi à mesma coisa, e com a terceira também.

Respirou fundo e depois expirou, sentindo-se tola e um pouco desapontada, mas principalmente aliviada. Um alivio incrível. Nada de aliança. Sinto muito, Johnny. Mas, por outro lado, não sinto, não. Teria sido um pouco fantástico demais.

Começou a colocar as malas de volta no lugar, entre um monte alto de velhos trabalhos de universidade de Walt e o abajur de pé que o cão daquela mulher maluca havia derrubado, e que Sarah nunca tivera coragem de jogar fora. E, enquanto limpava as mãos, pronta para deixar tudo de lado, uma vozinha dentro dela murmu­rou, quase baixo demais para ser ouvida: “Uma busca rápida, não foi? Não queria mesmo achar nada, não é, Sarah?”

Não. Ela não queria mesmo achar nada. E se aquela vozínha achava que ela ia tornar a abrir todas aquelas malas, estava maluca. Ela já estava atrasada quinze minutos para apanhar Denny, Walt ia levar um dos sócios mais velhos da firma para jantar em casa (um negócio muito importante), e ela estava devendo uma carta a Bettye Hackman: do corpo de paz, em Uganda, Bettye passara diretamente ao casamento com o filho de um criador de cavalos do Kentucky, fabulosamente rico. Além disso, tinha de limpar os dois banheiros, enrolar o cabelo e dar banho em Denny. Havia realmente coisas demais a fazer para estar remexendo naquele sótão quente e empoeirado.

Assim, ela tornou a puxar e a abrir as três malas, e dessa vez procurou com muito cuidado nos bolsos laterais, e, enfiada bem no canto da terceira mala, encontrou sua aliança. Levantou-a contra a luz de uma das lâmpadas nuas e leu a gravação, por dentro, nova como no dia em que Walt a pusera em seu dedo: WALTER E SARAH HAZLETT — 9 DE JULHO DE 1972.

Sarah ficou olhando para aquilo por muito tempo.

Depois colocou as malas no lugar, apagou as luzes e desceu. Tirou o vestido de linho, que estava agora sujo de poeira, e vestiu calças e uma blusa leve. Foi até a casa da Sra. Labelle, no mesmo quarteirão, e pegou o filho. Voltaram para casa, e Sarah deixou Denny na sala, onde ele engatinhou animadamente, enquanto ela preparava o assado e descascava batatas. Com o assado já no forno, foi até à sala e viu que Denny tinha adormecido no tapete. Pegou-o e levou-o para o berço. Depois começou a limpar os banheiros. E a despeito de tudo, apesar do jeito como o relógio estava correndo para a hora do jantar, seus pensamentos nunca deixaram a aliança. Johnny sabia. Ela podia até precisar o momento em que ele sou­bera: quando ela o beijara, para se despedir.

Sé de pensar nele ela se sentia toda fraca e estranha, e não sabia bem por quê. Estava tudo misturado. O sorriso torto dele, tão igual, o corpo dele, tão mudado, terrivelmente, tão fraco e subnutrido, o modo sem vida de os cabelos pousarem no couro cabelu­do, contrastando tão flagrantemente com as recordações ricas que ela ainda conservava dele! Tinha tido vontade de beijá-lo.

Pare com isso — murmurou ela para si. Seu rosto no es­pelho do banheiro parecia o de uma estranha. Vermelho e quente e... admitamos, pessoal, sexy.

Sua mão fechou-se na aliança, no bolso da calça, e sem quase saber o que estava fazendo, mas não totalmente, ela a lançara na água limpa, levemente azulada, do vaso sanitário. Tudo imaculadamente limpo, para que, se o Sr. Treaches, da Baribault, Treaches, Moorehouse e Gendron, tivesse de fazer pipi durante o jantar, não ficasse ofendido por alguma marca feia em volta do vaso: quem sabe que obstáculos podem se opor a um rapaz a caminho dos con­selhos dos poderosos, certo? Quem sabe alguma coisa nesse mundo?

A aliança fez um barulhinho, espadanando um pouco, e afun­dou devagar na água limpa, virando-se preguiçosamente de um lado para outro. Ela pensou ouvir um pequeno estalido quando o anel bateu na louça do fundo, mas provavelmente foi só imaginação. Estava com a cabeça latejando. O sótão estava quente, abafado e mofado. Mas o beijo de Johnny... isso tinha sido doce. Tão doce!

Antes de poder pensar no que estava fazendo (e assim deixar que a razão se reafirmasse), ela estendeu a mão e apertou a válvula da privada. Fez um barulhão, parecendo mais alto, talvez porque ela estava com os olhos bem fechados. Quando os abriu, a aliança desaparecera. Tinha sido perdida, e estava novamente perdida.

De repente suas pernas fraquejaram, e ela sentou-se na beirada da banheira, pondo as mãos no rosto. Seu rosto quente, quente. Ela não voltaria para ver Johnny. Não era boa idéia. Aquilo a trans­tornara. Walt ia levar um sócio mais graduado para jantar em casa, e ela tinha uma garrafa de Mondavi e um assado de arrasar o orça­mento, era sobre isso que ela ia pensar. Deveria estar pensando em como amava Walt, e em Denny dormindo no berço. Deveria pensar que, depois de feitas suas opções neste mundo louco, tinha de viver com elas. E não ia mais pensar em Johnny Smith, com seu sorriso torto e encantador.

O     jantar aquela noite foi um grande sucesso.

 

O médico receitou para Vera Smith um remédio para a pressão alta chamado Hidrodiural. Não abaixou muito sua pressão (não vale um tostão furado, ela gostava de escrever nas cartas), mas a fez ficar enjoada e fraca. Ela tinha de sentar-se para descansar depois de passar o aspirador de pó. Quando subia uma escada, parava no alto e ficava ofegante como um cãozinho numa tarde quente de verão. Se Johnny não lhe tivesse dito que era para o bem dela, teria jogado os comprimidos pela janela na mesma hora.

O     médico experimentou outro medicamento, e isso fez seu co­ração disparar de modo tão alarmante que deixou de tomá-lo.

Esse é um sistema de tentativa e erro — disse o médico. — Acabamos dando um jeito em você, Vera. Não se preocupe.

Eu não me preocupo — disse Vera. — A minha fé está no Senhor Deus.

—    Sim, claro que está. É assim que deve ser.

Em fins de junho, o médico tinha se resolvido por uma combi­nação de Hidrodiural e outro remédio chamado Aldomet: com­primidos grossos, amarelos e caros, coisas horríveis. Quando ela começou a tomar os dois comprimidos juntos, parecia que tinha de urinar a cada quinze minutos. Tinha dores de cabeça. Tinha palpi­tações. O médico disse que a pressão arterial havia baixado ao normal, mas ela não acreditou. De que adiantavam os médicos, em todo caso? Vejam só o que estavam fazendo com o seu Johnny, cortando-o como carne de açougue, três operações, já, ele parecia um monstro com pontos pelos braços, pernas e pescoço, e ainda não conseguia andar sem uma daquelas andadeiras, como a velha Sra. Sylvester. Se sua pressão tinha baixado, por que se sentia tão mal, o tempo todo?

—    É preciso dar tempo ao seu corpo para se acostumar com a medicação — disse Johnny.

Era o primeiro sábado de junho, e os pais dele estavam lá, para o fim de semana. Johnny estava voltando da hidroterapia, páli­do e abatido. Tinha em cada uma das mãos uma bolinha de chumbo, que levantava e punha no colo, enquanto falava, flexionando os cotovelos, fortalecendo os bíceps e os tríceps. As cicatrizes, que cor­riam como vergões pelos cotovelos e antebraços, expandiam-se e contraíam-se.

—    Deposite sua fé em Deus — disse Vera. — Não há neces­sidade de todas essas bobagens. Ponha sua fé em Deus, e ele o curará.

—    Vera... — começou Herb.

—    Não me venha com coisas. Isso é uma bobagem! A Bíblia não diz: pedi e vos será dado, batei e vos será aberto? Não há necessidade de eu tomar aquele remédio ruim, ou de o meu filho deixar que esses médicos continuem a torturá-lo. É errado, é não ajudar, e é pecado!

Johnny pôs as bolas de chumbo na cama. Os músculos dos seus braços estavam tremendo. Ele se sentia enjoado e exausto, e de repente furioso com a mãe.

O Senhor ajuda a quem se ajuda — disse ele. — A senhora não quer o Deus cristão, mãe. Quer um gênio mágico que vai sair da garrafa e lhe conceder três desejos.

—    Johnny!

— Bem, é verdade

—    Foram esses médicos que lhe puseram essa idéia na cabeça! Que idéia mais maluca! — Os lábios dela tremiam; seus olhos esta­vam arregalados mas sem lágrimas. — Deus o tirou daquela coma para fazer a Sua vontade, John. Esses outros estão apenas...

—    Apenas tentando me pôr de pé de novo para que eu não tenha de cumprir a vontade de Deus numa cadeira de rodas o resto da vida.

—    Não vamos discutir — disse Herb. — As famílias não de­vem discutir.

E os furacões não devem soprar, mas acontecem, todos os anos, e nada do que ele pudesse dizer ia parar aquilo. Estava para acon­tecer.

—    Se você depositar a sua confiança em Deus... — começou Vera, não dando a menor atenção a Herb.

—    Não confio mais em nada.

—    Sinto ouvi-lo dizer isso — disse ela, com uma voz dura e distante. — Os agentes de Satanás estão por toda parte. Hão de tentar desviá-lo do seu destino. Parece que estão conseguindo bem direitinho.

—    Tem de fazer uma espécie de... de coisa eterna disso, não é? Pois vou lhe dizer o que é que foi, foi um acidente estúpido, uns garotos estavam apostando corrida, e acontece que fizeram picadinho de mim. Sabe o que é que eu quero, mãe? Quero sair daqui. É só o que desejo. E quero que a senhora continue a tomar o seu remédio e... e tente colocar os pés na terra de novo. É só o que quero.

—    Vou embora. — Ela levantou-se, o rosto pálido e puxado. — Vou rezar por você, Johnny.

Ele olhou para ela, desamparado, frustrado, infeliz. Passara a raiva. Ele desabafara.

Continue a tomar o remédio! — disse ele.

Vou rezar para que você veja a luz.

Ela saiu do quarto, o rosto severo e duro como pedra.

Johnny olhou para o pai, sem saber o que fazer.

—    John, eu preferia que você não tivesse feito isso.

—    Estou cansado. Não melhora em nada o meu bom senso, nem o meu gênio.

—    É — disse Herb. Parecia que ia dizer mais alguma coisa, mas não disse.

—    Ela ainda pretende ir à Califórnia, para aquele simpósio de discos voadores, ou seja o que for?

—    Sim, mas pode ser que mude de idéia. Nunca se sabe, de um dia para outro, e ainda falta um mês.

—    O senhor devia fazer alguma coisa.

—    É? O quê? Interditá-la? Interná-la?

Johnny sacudiu a cabeça.

—    Não sei. Mas talvez já seja tempo de pensar nisso seria­mente, em vez de agir como se fosse uma coisa absurda. Ela está doente. Tem de ver isso.

Herb disse, alto:

—    Ela estava bem, antes de você...

Johnny fez uma careta, como se tivesse levado uma bofetada.

—    Olhe, desculpe, John, eu não quis dizer isso.

—    Tudo bem, pai.

—    Não quis, mesmo. — A fisionomia de Herb era a imagem da tristeza. — Olhe, tenho de ir atrás dela. A essa altura provavel­mente está enchendo os corredores de folhetos.

—    Está bem.

Johnny, procure esquecer isso e concentre-se em ficar bom. Ela o ama muito, e eu também. Não seja rigoroso conosco.

Não. Tudo bem, pai.

Herb beijou a face de Johnny.

Tenho de ir atrás dela.

—    Está bem.

Herb saiu. Depois que eles se foram, Johnny levantou-se e, trôpego, deu os três passos entre a cadeira e a cama. Não era grande coisa. Mas alguma coisa. Um principio. Mais do que o pai podia imaginar, ele desejava não ter tido aquele acesso com a mãe. Isso porque dentro dele estava crescendo uma certeza estranha de que a mãe não viveria mais muito tempo.

 

Vera parou de tomar os remédios. Herb falou com ela, depois implorou, e por fim exigiu. Não adiantou nada. Ela lhe mostrou as cartas de seus “correspondentes em Jesus”, a maioria rabiscadas e cheias de erros de ortografia, todas apoiando o ponto de vista dela e prometendo rezar por ela. Uma era de uma senhora de Rhode Island, que também tinha estado no sítio em Vermont, esperando o fim do mundo (junto com o cãozinho de estimação, Otis). “DEUS é o melhor remédio”, escreveu essa senhora, “peça a DEUS e SERÁ CURADA, não DOUTORES que USURPAM o PODER de DEUS, são os DOUTORES que provocaram todo CÂNCER neste mundo perverso com a sua INTROMISSÃO DOS DIABOS, qualquer pessoa que sofreu alguma CIRURGIA, por exemplo, até PEQUENA como AMÍGDALAS, mais cedo ou mais tarde acaba com CÂNCER, é um fato provado, então peça a DEUS, reze para DEUS, junte a SUA VONTADE com a VONTADE DELE e VOCÉ SERÁ CURADA!”

Herb falou com Johnny pelo telefone, e no dia seguinte ele telefonou à mãe, pedindo desculpas por ter-se irritado com ela. Ele pediu por favor para ela recomeçar a tomar o remédio.., por ele. Vera aceitou as desculpas dele, mas recusou-se a voltar a tomar a medicação. Se Deus precisava dela andando pela terra, então ele trataria de fazer com que ela continuasse aqui. Se Deus quisesse levá-la para casa, faria isso nem que ela tomasse um tonel de com­primidos por dia. Era um argumento forte e Johnny só pôde retru­car com o argumento que tanto católicos e tanto protestantes vêm recusando há centenas de anos: que se exerce sua vontade pela

mente do homem, bem como pelo espírito do homem.    —Mamãe — disse ele —,já pensou que a vontade de Deus fosse que algum médico inventasse aquele remédio para que a senhora pudesse viver mais tempo? Não pode nem considerar essa idéia?    A ligação interurbana não servia como      meio para discussões teológicas. Ela desligou

No dia seguinte, Marie Michaud entrou no quarto de Johnny, deitou a cabeça na cama dele e chorou.

—    Ora, vamos disse Johnny, assustado. — O que é isso? O que é que aconteceu?

—    O meu filho — disse ela, ainda chorando. — O meu Mark. Foi operado e foi tal e qual o senhor disse. Está bem. Vai ver com o olho doente. Graças a Deus.

Ela abraçou Johnny e ele a abraçou também, como pôde. Sen­tindo as lágrimas quentes em sua face, ele pensou que o que quer que lhe tivesse acontecido não tinha sido ruim de todo. Talvez algumas coisas devessem ser contadas, ou vistas, ou reencontradas. Nem chegava a ser assim tão rebuscado pensar que Deus realmente estivesse trabalhando por meio dele, se bem que sua própria con­cepção de Deus fosse nebulosa e maldefinida. Ele abraçou Marie e disse que estava muito contente. Disse que ela se lembrasse de que não tinha sido ele que operara Mark, e que mal se lembrava do que lhe dissera. Ela saiu pouco depois disso, enxugando os olhos, deixando Johnny sozinho, pensando.

 

Em princípios de agosto, Dave Pelsen foi visitar Johnny. O diretor assistente do ginásio de Cleaves Mills era um homem pe­queno, elegante, de óculos grossos, sapatos confortáveis e uma série de paletós esporte espalhafatosos. De todas as pessoas que foram visitar Johnny durante aquele verão quase interminável, em 1975, Dave era o que menos mudara. Havia um pouco mais de cinza nos cabelos dele, mas era só.

Então, como vai indo? De verdade — perguntou Dave, depois de se cumprimentarem.

Não tão mal — disse Johnny. — Já consigo andar sozinho, se não abusar. Posso nadar seis vezes o comprimento da piscina. Às vezes tenho dores de cabeça de rachar, mas os médicos dizem que é de se esperar que isso continue por algum tempo. Talvez o resto da vida.

—    Posso fazer uma pergunta pessoal?

—    Se vai me perguntar se ainda consigo ter tesão — disse Johnny, com um sorriso —, positivo.

—    Ë bom saber disso, mas o que eu queria saber era sobre o dinheiro. Você pode pagar tudo isso?

Johnny sacudiu a cabeça.

—    Estou hospitalizado há quase cinco anos. Só um Rockefeller poderia pagar isso. Os meus pais me arranjaram um tipo de pro­grama de fundos estaduais. Desastre Total, ou coisa que o valha.

Dave fez que sim.

O programa de Desastre Extraordinário. Imaginei isso mes­mo. Mas como é que conseguiram que não fosse para o hospital estadual, Johnny? Aquele lugar é o fim.

—    O Dr. Weizak e o dr. Brown trataram disso. E, em grande parte, são responsáveis por eu ter podido me recuperar assim. Eu fui uma... uma cobaia, diz o dr. Weizak. Por quanto tempo podemos impedir que esse homem comatoso se torne um vegetal com­pleto? A unidade de fisioterapia trabalhou em mim durante os dois últimos anos que passei em coma. Tomei injeções de megavítami­na... a minha nádega ainda parece um caso de varíola. Não que esperassem qualquer benefício do projeto para mim, pessoalmente. Eu fui considerado um caso fatal quase desde que me internaram. Diz Weizak que o que ele e o Dr. Brown fizeram comigo foi “apoio de vida agressivo”. Diz que é o princípio de uma reação a todas as criticas que se fazem a quem sustenta a vida depois de perdidas todas as esperanças de recuperação. Em todo caso, não poderiam continuar a me utilizar se eu fosse para o hospital estadual, de modo que me conservaram aqui. Com o tempo, teriam terminado tudo, e então eu teria ido mesmo para o estadual.

—    Onde o tratamento mais sofisticado que você receberia seria ser virado na cama a cada seis horas, para evitar escaras — disse Dave. — E, se tivesse acordado em 1980, seria um caso perdido.

—    Acho que seria isso de qualquer jeito — disse Johnny, sa­cudindo a cabeça. — Acho que, se alguém me propuser mais uma operação, vou ficar maluco. E assim mesmo vou continuar a mancar e nunca poderei virar a minha cabeça inteiramente para o lado es­querdo.

—    Quando vão lhe dar alta?

—    Daqui a três semanas, se Deus quiser.

—    E aí?

Johnny deu de ombros.

—    Acho que vou para casa. Para Pownal. Minha mãe vai passar algum tempo na Califórnia, numa.., coisa religiosa. Meu pai e eu iremos aproveitar para reatar nossas relações. Recebi uma carta de um dos grandes agentes literários de Nova York... bem, não propriamente dele, mas de um dos assistentes dele. Acham que pode dar um livro, o que me aconteceu. Pensei em tentar fazer uns dois ou três capítulos e um esboço, talvez esse cara ou o assistente pos­sam vendê-lo. O dinheiro viria bem a calhar, nem há dúvida.

—    Houve outros sinais de interesse dos meios de publicidade?

—    Bem, o camarada do Daily News de Bangor, que escreveu a história original...

—    Bright? Ele é bom.

—    Ele gostaria de ir a Pownal, depois que eu sair daqui, para escrever uma reportagem. Gostei do cara, mas, no momento, estou mantendo-o à distância. Não vou ganhar dinheiro com isso, e no momento, francamente, é disso que estou precisando. Eu apare­ceria em um programa de TV, se achasse que ganharia uns duzentos dólares com isso. As economias de meu pessoal se foram. Venderam o carro e compraram um calhambeque. Papai fez uma segunda hi­poteca da casa, quando devia estar pensando em se aposentar e ven­dê-la, e viver da renda.

—    Já pensou em voltar a lecionar?

Johnny levantou os olhos.

—    Ë uma proposta?

—    Não é conversa fiada.

—    Fico agradecido — disse Johnny —, mas não vou estar em condições em setembro, Dave.

—    Eu não estava pensando em setembro. Não se lembra da amiga de Sarah, Anne Strafford? — Johnny fez que sim. — Bem, ela agora é Atine Beatty, e vai ter um bebê em dezembro. Portanto, vamos precisar de um professor de inglês no segundo semestre. Um horário suave. Quatro turmas, um estudo dirigido do último ano, duas horas de folga.

—    Está fazendo uma proposta firme, Dave?

—    Firme.

—    É muita bondade sua — disse Johnny, com voz rouca.

—    Para o diabo com isso — disse Dave, com displicência. —Você era um ótimo professor.

—    Posso pensar nisso por umas duas semanas?

Até o dia 10 de outubro, se quiser — disse Dave. — Acho que ainda dava para você trabalhar em seu livro. Se houver alguma possibilidade nesse sentido.

Johnny concordou.

—    E pode ser que você não queira ficar muito tempo lá em Pownal — disse Dave. — Pode ser que não se sinta... confortável.

As palavras afloraram aos lábios de Johnny, e ele teve de calar-se com esforço.

“Não por muito tempo, Dave. Sabe, minha mãe está a ponto de estourar os miolos agora mesmo. Não vai usar uma arma. Vai ter um infarto. Vai morrer antes do Natal, a não ser que o meu pai e eu consigamos convencê-la a recomeçar a tomar o remédio, e não creio que o consigamos. E eu faço parte disso.., até que ponto, não sei. Não creio que queira saber.”

Em vez disso, ele respondeu:

—    As notícias se espalham, hem?

Dave deu de ombros.

Soube por Sarah que a sua mãe teve problemas para se adaptar. Ela há de melhorar, Johnny. Enquanto isso, pense no assunto.

Pensarei. Aliás, vou lhe dar uma aceitação provisória, desde já. Seria bom voltar a lecionar. Voltar ao normal.

—    Isso mesmo — disse Deve.

Depois que ele saiu, Johnny deitou-se na cama e olhou pela janela. Estava muito cansado. Voltar ao normal. Não achava que isso realmente pudesse acontecer.

Sentiu uma de suas dores de cabeça se aproximando.

 

O fato de Johnny Smith ter saído da coma com alguma coisa a mais afinal saiu no jornal, e apareceu na primeira página, numa coluna assinada por David Bright. Isso aconteceu menos de uma semana antes de Johnny sair do hospital.

Ele estava na fisioterapia, deitado de costas num tapete no chão. Sobre sua barriga havia uma bola de cinco quilos. Sua fisio­terapeuta, Eileen Magown, estava de pé ao lado dele, contando os exercícios de sentar. Ele tinha de fazer dez, e no momento estava lutando para fazer o oitavo. O suor lhe escorria pelo rosto, e as cicatrizes do pescoço, já sarando, destacavam-se num vermelho-vivo.

Eileen era uma moça pequena e despretensiosa, de corpo rijo, um nimbo de cabelos frisados e ruivos, e profundos olhos verdes salpicados de castanho. Johnny às vezes a chamava — com um misto de irritação e divertimento — de a menor instrutora de fuzi­leitos navais do mundo. Ela tratara dele, dando ordens, pedindo e exigindo, fazendo de um paciente preso ao leito, que mal conseguia segurar um copo d’água, um homem que conseguia andar sem ben­gala, fazer três flexões de cada vez e dar a volta toda da piscina do hospital em cinqüenta e três segundos: não era um tempo olímpico, mas não era mau. Ela era solteira e morava numa casa grande na Center Street, em Oldtown, com seus quatro gatos. Era dura e não admitia uma recusa.

Johnny caiu de costas.

Não — disse ele, ofegante. — Ah, acho que não, Eileen.

—    Levante-se, rapaz! — exclamou ela, com um bom humor sá­dico. — Levante-se! Levante-se! Mais três e pode tomar uma Coca!

Dê-me a minha bola de quatro quilos e meio e eu lhe faço mais dois.

Essa bola de quatro quilos e meio vai figurar no Guinness book of records como o maior supositório do mundo se você não fizer mais três. Levante-se!

Uuuuuiuií! — exclamou Johnny, conseguindo fazer o oitavo. Caiu de novo e depois levantou-se outra vez.

Ótimo! — exclamou Eileen. — Mais uma vez, mais uma!

—    000AAAARRRAAAAII! berrou Johnny, sentando-se pela décima vez. Caiu no tapete, deixando a bola pesada rolar para longe. — Eu me rompi, está satisfeita?, todas as minhas vísceras se soltaram, estão boiando dentro de mim, vou processá-la, sua monstra maldita!

Puxa, mas que bebê — disse Eileen, estendendo a mão para ele. — Isso não é nada, comparado com o que tenho preparado para a próxima vez.

Esqueça — disse Johnny. — Da próxima vez eu só vou é nadar na...

Ele olhou para ela, uma expressão de surpresa estampando-se em seu rosto. Agarrou a mão dela com mais força, até que ela che­gou a sentir dor.

—    Johnny? O que é que há? Cãibras?

—    Puxa vida — disse Johnny, de leve.

Johnny?

       Ele continuava a segurar-lhe a mão, olhando para o rosto dela numa contemplação distante e sonhadora, que a deixou nervosa. Ela havia ouvido falar sobre Johnny Smith, boatos que desprezara, com o seu materialismo de cabeça fria de escocesa. Diziam que ele tinha previsto que o filho de Mame Michaud ia ficar bom, antes mesmo de os médicos terem cem por cento de certeza de querer arriscar a operação. Outro boato tinha alguma coisa a ver com o Dr. Weízak; diziam que Johnny lhe dissera que a mãe dele não tinha morrido, e estava viva em algum lugar na costa oeste, com outro nome. Na opinião de Eileen Magown, essas histórias eram conversa fiada, do mesmo modo torpe que as revistas e histórias de amor que tantas enfermeiras liam no serviço. Mas o jeito de ele olhar para ela na­quele momento lhe meteu medo. Era como se ele estivesse vendo dentro dela.

—    Johnny, você está bem? — Eles estavam sozinhos na sala de fisioterapia. As grandes portas duplas de vidro fosco, que davam para a piscina, estavam fechadas.

—    Deus do céu! — disse Johnny. — É melhor você... sim, ainda dá tempo. Justo.

—    Do que é que você está falando?

Ele então saiu do transe. Largou a mão dela.., mas apertara com tanta força que lhe deixara marcas brancas nas costas.

Chame os bombeiros — disse ele. — Você esqueceu de apagar o fogo do fogareiro. As cortinas estão pegando fogo.

O quê...?

—    O fogo passou para o pano de prato e daí para as cortinas — disse Johnny, impaciente. — Chame os bombeiros depressa. Quer que a sua casa pegue fogo?

—    Johnny, você não pode saber...

Não importa o que eu possa ou não saber — disse Johnny, agarrando o cotovelo dela.

Ele a fez mexer-se, e eles foram para as portas. Johnny estava mancando muito da perna esquerda, como sempre quando estava muito cansado. Atravessarem o local da piscina, os saltos fazendo um som oco no piso, e depois saíram no corredor do primeiro andar e foram para a sala das enfermeiras. Ali, duas enfermeiras estavam tomando café e outra estava ao telefone, contando a alguém como tinha redecorado o apartamento.

Você vai ligar, ou quer que eu ligue? — perguntou Johnny.

Eileen estava num tumulto mental. Sua rotina matinal era tão estável quanto costuma ser a de uma pessoa que vive só. Ela se levantara e cozinhara um ovo para si, enquanto comia um grapefruit, sem açúcar, e uma tigela de cereais. Depois de comer, vestira-se e fora para o hospital. Teria apagado o fogo? Claro que sim. Não se lembrava especificamente de o ter feito, mas era um hábito. Devia ter feito isso.

—    Johnny, realmente não sei de onde você tirou essa idéia...

Está bem, eu falo.

Eles agora estavam na sala das enfermeiras, um cubículo envi­draçado com três cadeiras de costas duras e um fogareiro elétrico. A salinha era dominada pelo quadro de chamados: filas de luzinhas vermelhas que se acendiam quando um paciente apertava o botão de chamada. Havia três acesas, naquele momento. As duas enfer­meiras continuaram a tomar café e a conversar sobre algum médico que tinha aparecido bêbado no Benjamin’s. A terceira parecia estar falando com sua esteticista.

Desculpe, mas tenho de fazer uma ligação — disse Johnny.

A enfermeira cobriu o fone com a mão.

Há um telefone público no sa...

Obrigado — disse Johnny, e arrancou o fone da mão dela. Apertou o botão de uma das linhas livres e discou 0. Ouviu o ruído de ocupado. — O que é que há com este negócio?

Ei! — exclamou a enfermeira que estava falando com a esteticista. — Que diabo você acha que está fazendo? Dê-me isso!

Johnny lembrou-se de que estava no hospital, na mesa telefô­nica, e discou 9 para obter uma linha. Depois tornou a discar o 0.

A enfermeira deposta, o rosto vermelho de raiva, tentou agarrar o fone. Johnny empurrou-a para o lado. Ela se virou, viu Eileen e deu um passo em direção a ela.

—    Eileen, o que é que há com esse doido? — perguntou ela, em voz estridente. As outras duas enfermeiras tinham largado as xícaras de café e estavam olhando para Johnny, boquiabertas.

Eileen deu de ombros, constrangida.

Não sei, ele só...

Telefonista.

Telefonista, quero comunicar um incêndio em Oldtown —disse Johnny. — Pode me dar o número certo para onde devo ligar, por favor?

Ei — disse uma das enfermeiras. — A casa de quem está pegando fogo?

Eileen mexeu os pés, nervosa.

Diz ele que é a minha.

A enfermeira que estava falando sobre o apartamento com a esteticista olhou bem.

Ah, meu Deus, é aquele camarada — disse ela.

Johnny apontou para o quadro de chamadas, onde já estavam se acendendo cinco ou seis luzes.

Por que não vão ver o que essa gente quer?

A telefonista o ligara com o Corpo de Bombeiros de Oldtown.

—    O meu nome é John Smith e tenho de comunicar um incên­dio. É em... — Ele olhou para Eileen. — Qual o seu endereço?

Por um momento, Johnny achou que ela não ia dar o endereço. Ela mexeu a boca, mas não saiu nada. As duas que tomavam café tinham largado as xícaras e recuado para o canto extremo da sala. Cochichavam como meninas num banheiro de escola primária. Es­tavam de olhos arregalados.

Ande disse Johnny. — Quer que os seus gatos morram assados?

—    Center Street, 624 — disse Eileen, com relutância. — John­ny, você está falando besteira.

Johnny repetiu o endereço ao telefone.

É na cozinha.

—    O seu nome, senhor?

—    Jobn Smith. Estou ligando do Eastern Maine Medical Cen­ter, em Bangor.

—    Posso saber como obteve sua informação?

—    Passaríamos o resto do dia ao telefone. Minha informação é correta. Agora vão apagá-lo. — E bateu com o fone no gancho.

—    ... e ele disse que a mãe de Sam Weizak ainda está...

Ela parou e olhou para Johnny, que, por um instante, sentiu todas olhando para ele, os olhos pousados em sua pele como pezi­nhos quentes. Viu o que ia resultar disso, e a idéia o revoltou.

—    Eileen — disse ele.

—    O quê?

—    Você tem algum vizinho amigo?

—    Sim... Burt e Janice moram ao lado...

—    Algum deles pode estar em casa?

—    Acho que Janice deve estar, sim.

—    Por que não liga para ela?

Eileen fez que sim, de repente compreendendo o que ele queria dizer. Pegou o fone da mão dele e discou um número. As enfer­meiras ficaram ali, assistindo, ávidas, como se tivessem por acaso topado com um programa de TV realmente empolgante.

—    Alô? Jan? É Eileen. Você está na cozinha?... Pode dar uma espiada pela sua janela e me dizer se tudo está direito na minha casa?... Bem, um amigo me disse... Eu conto depois que você olhar, sim? — Eileen estava corando. — Espero, sim. —Ela olhou para Johnny e repetiu: — Você está falando besteira, Johnny.

Houve uma pausa que pareceu prolongar-se indefinidamente. Aí Eileen recomeçou a escutar. Escutou por muito tempo e depois disse, numa voz estranha, abafada, completamente diferente da normal:

—    Não, tudo bem, Jan. Já foram chamados. Não... Não posso explicar agora, mas depois eu lhe digo. — Olhou para Johnny. —Sim, é esquisito eu saber.., mas posso explicar. Pelo menos, creio que sim. Adeus.

Desligou. Todos olharam para ela, as enfermeiras com uma curiosidade ávida, Johnny apenas com uma certeza apática.

—    Jan disse que há fumaça saindo pela janela de minha cozi­nha — disse Eileen, e as três enfermeiras suspiraram juntas. Os olhos delas, arregalados e meio acusadores, voltaram-se para Johnny, de novo. “Olhos de júri”, pensou ele, desanimado.

—    Preciso ir para casa — disse Eileen. Desaparecera a fisio­terapeuta agressiva, animadora, positiva, sendo substituída por uma mulher pequenina, preocupada com sua casa, seus gatos e suas coisas. — Eu... nem sei como lhe agradecer, Johnny... Desculpe não ter acreditado em você, mas... — Começou a chorar.

Uma das enfermeiras dirigiu-se para ela, mas Johnny antecipou-se. Passou o braço em volta dela e levou-a para o corredor.

—    Você sabe mesmo — murmurou Eileen. — O que disse­ram...

—    Vá andando — disse Johnny. — Tenho certeza de que vai sair tudo bem. Vai haver um pouco de fumaça, e estragos pela água, só isso. Aquele poster de Butcb Cassidy, acho que você vai perdê-lo, mas é só.

—    Sim, está bem. Obrigada, Johnny. Deus o abençoe. — Ela beijou o rosto dele e depois começou a correr pelo corredor. Olhou para trás uma vez, e a expressão em seu rosto parecia de temor supersticioso.

As enfermeiras estavam enfileiradas contra o vidro da sala, olhando fixamente para ele. De repente elas o fizeram lembrar-se de corvos no fio telefônico, olhando para alguma coisa reluzente, a ser bicada e despedaçada.

—    Vão atender às suas chamadas — disse ele, zangado, e elas recuaram ao ouvir seu tom de voz.

Ele começou a mancar pelo corredor em direção ao elevador, deixando-as para começarem a espalhar os boatos. Estava cansado. As pernas lhe doíam. As juntas dos quadris pareciam ter cacos de vidro. Ele queria ir para a cama.

 

—    O que você vai fazer? — perguntou Sam Weizak.

—    Meu Deus, nem sei — disse Johnny. — Quantos disse que estão lá embaixo?

—    Uns oito. Um é o correspondente da AP do norte da Nova Inglaterra. E tem gente de duas estações de TV com câmaras e luzes. O diretor do hospital está muito zangado com você, Johnny. Acha que você foi travesso.

—    Porque a casa de uma moça ia se incendiar? — perguntou Johnny. — Só posso dizer é que deve ter sido uma droga de dia para as notícias.

—    Para dizer a verdade, não foi, não. Ford vetou duas leis. A OLP fez explodir um restaurante em Tel Aviv. E um cão da polí­cia farejou e descobriu cento e oitenta quilos de maconha no aeroporto.

—    Então o que é que estão fazendo aqui? — indagou Johnny.

Quando Sam chegara com a notícia de que havia jornalistas juntando-se no saguão, seu primeiro pensamento de desânimo foi o que a mãe poderia achar daquilo. Ela estava com o pai dele em Pownal, preparando-se para a peregrinação à Califórnia, que come­çaria na semana seguinte. Nem Johnny nem o pai achavam que a viagem fosse boa idéia, e a notícia de que o filho, sem se saber como, virara paranormal, poderia levá-la a cancelar a viagem, mas nesse caso Johnny receava que a cura fosse dos males o maior. Uma coisa dessas poderia endoidá-fa de vez.

Por outro lado — e essa idéia de repente floresceu em sua ca­beça com toda a força da inspiração —, poderia convencê-la a re­começar a medicação.

—    Estão aqui porque o que aconteceu foi notícia — disse 5am. — Tem todos os ingredientes clássicos.

—    Eu não fiz nada. Só...

—    Só disse a Eileen Magown que a casa dela estava pegando fogo, e estava — disse Sam, baixinho. — Vamos, Johnny, você devia saber que isso teria de acontecer, mais cedo ou mais tarde.

—    Não tenho mania de publicidade — disse Johnny, com amar­gura.

Não. Nem insinuei isso. As pessoas querem saber.

—    E se eu simplesmente me recusar a falar com eles?

—    Isso não é muito boa opção — respondeu 5am. — Eles vão sair daqui e publicar boatos loucos. Depois, quando você sair do hospital, vão cair na sua pele. Vão meter os microfones na sua cara, como se você fosse um senador ou um chefe de quadrilha, hem?

Johnny pensou naquilo.

—    Bright está lá?

—    Está.

—    E se eu lhe disser que suba? Ele pode ouvir a história e contar ao resto.

—    Você pode fazer isso, mas deixaria os outros extremamente desgostosos. E um repórter desgostoso será seu inimigo. Nixon os deixou desgostosos, e eles o despedaçaram.

—    Eu não sou Nixon — disse Johnny.

Weizak riu-se radiante.

—    Graças a Deus — disse ele.

—    O que é que o senhor sugere? — perguntou Johnny.

 

Os repórteres levantaram-se e se adiantaram todos juntos, quando Johnny passou pelas portas de vaivém, para a ala oeste. Ele estava de camisa branca, aberta no pescoço, e jeans azuis, grandes demais para ele. Seu rosto estava pálido mas controlado. As cica­trizes das operações nos tendões apareciam nítidas no seu pescoço. Os flashes disparavam um fogo quente nele e o levavam a fazer caretas. As perguntas borbulhavam.

—    Escutem! Escutem! — gritou Sam Weizak. — Este pa­ciente está em convalescença! Ele quer fazer uma breve declaração e responderá a algumas de suas perguntas, mas só se procederem de maneira ordenada! Agora afastem-se e deixem que ele respire!

Acenderam-se duas séries de luzes de TV, banhando o saguão num clarão extraterreno. Médicos e enfermeiras tinham se juntado na entrada do saguão para assistir. Johnny recuou ante as luzes, pen­sando se seria isso o que significavam as luzes da ribalta. Achava que poderia ser tudo um sonho.

—    Quem é você? — berrou um dos repórteres a Weizak.

—    Eu sou Samuel Weizak, médico desse rapaz, e esse nome se escreve com dois xis.

Houve risadas gerais, e o ambiente desanuviou-se um pouco.

—    Johnny, você está bem? — perguntou Weizak.

Era de tarde, e a sua intuição repentina de que a cozinha de Eileen Magown estava pegando fogo parecia distante e sem impor­tância, a lembrança de uma recordação.

—    Claro — disse ele.

—    Qual é a sua declaração? — perguntou um dos jornalistas.

—    Bem — disse Johnny —, é a seguinte. A minha fisiotera­peuta é uma mulher chamada Eileen Magown. É uma ótima moça, e tem me ajudado a recuperar as forças. Tive um acidente, sabe, e... — Uma das câmaras de TV aproximou-se dele, esbugalhada e vazia, transtornando-o por um momento. — E fiquei muito fraco. Os meus músculos tiveram um colapso, mais ou menos. Hoje de manhã estávamos juntos na sala de fisioterapia, acabando os exer­cícios, e de repente tive a sensação de que a casa dela estava pe­gando fogo. Isto é, para ser mais específico... — “Meu Deus, mas você fala como um sacana!” — Senti que ela havia esquecido de apagar o fogão, e as cortinas da cozinha iam pegar fogo. Então nós fomos e chamamos o Corpo de Bombeiro... e foi só isso.

Houve um momento de silêncio abismado, enquanto eles dige­riam aquilo — “tive a sensação, e foi só isso” —, e depois novamente uma avalanche de perguntas, tudo misturado numa babel de vozes humanas. Johnny olhou em volta, desamparado, sentindo-se desorientado e vulnerável.

—    Um de cada vez! — berrou Weizak. — Levantem as mãos! Nunca estiveram na escola, quando crianças?

As mãos acenaram, e Johnny apontou para David Bright.

—    Você diria que foi uma experiência paranormal, Johnny?

—    Eu diria que foi uma sensação — respondeu Johnny. — Eu estava fazendo exercício de me sentar, e terminei. A srta. Magown pegou a minha mão para me ajudar a me sentar, e eu soube.

Ele apontou para outra pessoa.

—    Mel Allen, do Sunday Telegram, de Portland, Sr. Smith. Foi como uma imagem? Uma imagem em sua cabeça?

—    Não, nada disso — disse Johnny, mas realmente não conse­guiu lembrar-se de como fora na verdade.

—    Isso já lhe aconteceu antes, Johnny? — perguntou uma moça de terninho.

—    Sim, algumas vezes.

—    Pode nos contar os outros incidentes?

—    Não, prefiro não fazê-lo.

Um dos repórteres da TV levantou a mão, e Johnny meneou a cabeça para ele.

—    Teve algumas dessas intuições antes do seu acidente e da coma resultante?

Johnny hesitou.

A sala parecia muito inquieta. As luzes da TV estavam quentes em seu rosto, como um sol tropical.

—    Não — disse ele.

Outra onda de perguntas. Johnny olhou para Weizak, nova­mente desamparado.

—    Parem! Parem! — berrou ele. Olhou para Johnny, enquan­to o alarido se acalmava. — Já acabou, Johnny?

     —      Posso responder a mais duas perguntas — disse Johnny. — Depois... - realmente... tive um dia longo ... sim, senhora? Ele estava apontando para uma mulher gorda, que tinha se metido entre dois repórteres novinhos...

—    Sr. Smith — disse ela, numa voz forte, penetrante, como uma tuba. — Quem será o candidato dos democratas para presi­dente no ano que vem?

—    Não posso lhe dizer isso — disse Johnny, sinceramente espantado com a pergunta. — Como eu poderia dizer isso?

Mais mãos levantadas. Johnny apontou para um homem alto, de cara séria, de terno escuro. Ele deu um passo à frente. Havia nele alguma coisa empertigada e tensa.

—    Sr. Smith, sou Roger Dussault, do Sun de Lewiston, e gostaria de saber se o senhor tem alguma idéia que explique por que possui uma habilidade tão extraordinária como essa.., se e que tem. Por que o senhor, Sr. Smith?

Johnny pigarreou.

—    Se compreendi bem a pergunta... está pedindo que eu justifique uma coisa que eu não entendo. Não posso fazer isso.

—    Não é justificar, Sr. Smith. Apenas explicar.

“Ele acha que eu os estou mistificando. Ou tentando fazê-lo.”

Weizak aproximou-se de Johnny.

—    Será que posso responder a isso? — disse ele. — Ou pelo menos tentar explicar por que não se pode responder a isso?

—    O senhor também é paranormal? — perguntou Dussault, com frieza.

—    Sim, todos os neurologistas devem ser, é um requisito — disse Weizak. Houve risadas, e Dussault corou.

—    Senhoras e senhores da imprensa! Este homem passou qua­tro anos e meio em coma. Nós, que estudamos o cérebro humano, não temos idéia do porquê disso, nem por que saiu dela, pelo simples motivo de que não compreendemos realmente o que seja a coma, como não compreendemos o sono ou o simples ato de despertar. Senhoras e senhores, não compreendemos o cérebro de uma rã, ou de uma formiga. Podem citar-me, nisso... estão vendo que sou destemido, hem?

Mais risadas. Gostavam de Weizak. Mas Dussault não riu.

—    Também podem citar-me dizendo que acredito que este homem esteja agora de posse de uma faculdade humana muito nova, ou muito velha. Por quê? Se eu e os meus colegas não compreendemos o cérebro de uma formiga, poderei dizer-lhes por quê? Não posso. No entanto, posso sugerir-lhes coisas interessantes, coisas que podem ou não ter relação com isso. Uma parte do cérebro de John Smith teve uma lesão irreparável.., uma parte muito pequena, mas todas as partes do cérebro podem ser vitais. Ele chama essa parte de sua “zona morta”, e lá, aparentemente, ficaram guardados uma porção de traços de memória. Todas essas recorda­ções apagadas parecem fazer parte de uma “série”... de nomes de ruas e estradas. Uma subsérie de uma série maior, geral, à qual pertence. Essa é uma afasia pequena mas total, que parece incluir tanto a capacidade de linguagem como de visualização.

“Para compensar isso, outra pequena parte do cérebro de John Smith parece ter despertado. Uma seção do cérebro dentro do lobo parietal. Essa é uma das partes muito sulcadas do cérebro ‘adianta­do’ ou ‘pensante’. As reações elétricas dessa parte do cérebro de Smith estão bem diferentes do que deveriam ser, hem? E mais uma coisa. O lobo parietal tem alguma coisa a ver com o sentido do tato... até que ponto, não temos certeza absoluta.., e fica muito perto da zona do cérebro que seleciona e identifica as várias formas e texturas. E tenho observado que as ‘intuições’ de John são sem­pre precedidas por algum tipo de toque.”

Silêncio. Os jornalistas estavam escrevendo como loucos. As câmaras de Tv, que tinham focalizado Weizak, agora se afastaram para incluir Johnny na imagem.

—    Ë isso ai, Johnny? — Weizak tornou a perguntar.

Acho...

De repente Dussault abriu caminho no meio do grupo de re­pórteres. Por um momento, Johnny achou que ele ia juntar-se a eles na frente das portas, talvez com o fim de uma réplica. Depois ele viu que Dussault estava tirando alguma coisa do pescoço.

—    Vamos fazer uma demonstração — disse ele. Estava segu­rando um medalhão numa corrente de ouro. — Vamos ver o que pode fazer com isso.

—    Não vamos ver nada disso — disse Weizak. Suas sobran­celhas, grossas e grisalhas, tinham se juntado ameaçadoramente, e ele fitou Dussault como um Moisés. — Este homem não é um artista de parque de diversões, meu senhor!

—O senhor poderia ter me enganado. — disse Dussault. —Ou ele tem poderes ou não tem. Enquanto o senhor estava ocupa­do sugerindo coisas, eu estava ocupado sugerindo coisas para mim. O que eu estava sugerindo é que esses camaradas nunca conseguem fazer nada a pedido, porque são todos tão autênticos quanto um monte de notas de três dólares.

Johnny olhou para os outros jornalistas. A não ser Bright, que parecia meio constrangido, estavam olhando com avidez. Pareciam as enfermeiras espiando-o através do vidro. De repente ele sentiu-se como um cristão num poço cheio de leões. Eles ganham, de todo jeito, pensou ele. Se eu puder dizer alguma coisa, eles terão uma história de primeira página. Se não, ou se me recusar a tentar, terão outro tipo de história.

—    Então? — perguntou Dussault. O medalhão balançava de um lado para outro, sob o punho dele.

Johnny olhou para Weizak, mas Weizak estava olhando para o lado, enojado.

—    Dê-me isso aqui — disse Johnny.

Dussault entregou-lhe o medalhão. Johnny o pôs na palma da mão. Era uma medalha de São Cristóvão. Ele deixou cair a corrente sobre a medalha e fechou a mão sobre ela.

Fez-se um silêncio mortal na sala. O punhado de médicos e enfermeiras de pé junto à porta do saguão tinha sido acrescido de meia dúzia de outros, alguns vestidos para a rua, já saindo do hospital. Um bando de pacientes tinha se juntado no fim do corredor que levava à~sala de TV e jogos do primeiro andar. As pessoas que tinham chegado para a visita da tardinha haviam deixado o saguão principal e estavam ali. No ar pairava uma sensação densa de forte tensão, como um fio de força zunindo.

Johnny ficou ali calado, pálido e magro, com sua camisa bran­ca e os jeans grandes demais. A medalha de São Cristóvão estava agarrada em sua mão direita com tanta força que os tendões de seu pulso se destacavam nitidamente no clarão das luzes de TV. Diante dele, sóbrio, impecável, parecendo um juiz em seu terno escuro, Dussault estava postado na posição de adversário. O momento pa­receu estender-se interminavelmente. Ninguém tossiu nem cochichou.

—    Ah — disse Johnny,... - e depois: — É isso?

Ele soltou os dedos devagar, e olhou para Dussault.

—    Então? — perguntou Dussault, mas de repente a autoridade desaparecera da voz dele. O rapaz cansado e nervoso que respondera às perguntas dos repórteres também parecia ter desaparecido. Nos lábios de Johnny havia um meio sorriso, mas nele não havia nada de caloroso. O azul de seus olhos tinha escurecido. Eles estavam frios e distantes. Weizak viu aquilo e sentiu um arrepio. Mais tarde disse que parecia a cara de um homem olhando por um microscópio de alta potência para um interessante espécime de para­mécio.

—    Esse medalhão é de sua irmã — disse ele a Dussault. — O nome dela era Anne, mas todos a chamavam de Terry. Sua irmã mais velha. Você a amava. Chegava a ter adoração por ela.

De repente, de um modo terrível, a voz de Johnny Smith co­meçou a ficar aguda e a mudar. Tornou-se a voz rachada e insegura de um adolescente.

—    É para quando você atravessar a Lisbon Street com o sinal fechado, Terry, ou quando estiver no carro de um desses caras de E. L. Não se esqueça, Terry, não se esqueça...

A mulher gorducha que perguntara a Johnny quem seria o candidato dos democratas no ano seguinte soltou um gemido assus­tado. Um dos operadores das câmaras de TV murmurou: “Meu Deus”, com uma voz rouca.

—    Pare — murmurou Dussault. Seu rosto tinha ficado de um tom cinza doentio. Estava com os olhos esbugalhados, e a saliva brilhava como cromo no seu lábio inferior, àquela luz dura. Mexeu as mãos para pegar o medalhão, que estava pendurado pela corrente de ouro fino nos dedos de Johnny. Mas suas mãos não tinham qualquer força ou autoridade. O medalhão balançava de um lado para outro, refletindo raios de luz hipnóticos.

—    Lembre-se de mim, Terry — implorava a voz de adolescen­te — Seja Terry... por favor, pelo amor de Deus seja honesta...

—    Pare! Pare, seu filho da mãe!

Johnny então voltou a falar com sua voz normal.

—    Foi isso, não foi? Depois outras drogas. Ela morreu do coração aos vinte e sete anos. Mas usou isso durante dez anos, Rog. Lembrou-se de você. Nunca se esqueceu... nunca... nun­ca.., nunca.

O     medalhão escorregou dos dedos dele e caiu no chão com um barulhinho musical. Johnny olhou para o vazio, por um momento, o rosto calmo, frio e distante. Dussault agarrou o medalhão aos pés dele, soluçando roucamente no silêncio aturdido.

Um flasb estourou, o rosto de Johnny desanuviou-se e vol­tou ao normal. Nele estampou-se o horror, e depois a compaixão. Ele ajoelhou-se desajeitadamente ao lado de Dussault.

—    Desculpe — disse ele. — Sinto muito, eu não pretendia...

—    Seu vigarista barato, filho da mãe! — gritou Dussault. — É mentira! Tudo mentira! Tudo mentira! — Ele deu uma pan­cada sem jeito no pescoço de Johnny, com a mão aberta, e Johnny caiu, batendo a cabeça no chão, com força. Viu estrelas.

Pandemônio.

Vagamente, percebeu que Dussault estava abrindo caminho às cegas no meio do povo, em direção às portas. As pessoas se api­nharam em volta de Dussault, em volta de Johnny. Ele viu Dussault através de uma floresta de pernas e sapatos. Depois Weizak estava ao lado dele, ajudando-o a sentar-se.

John, você está bem? Ele o machucou?

—    Não tanto quanto eu a ele. Estou bem. — Ele lutou para levantar-se. Mãos — talvez de Weizak, talvez de algum outro — o ajudaram. Estava se sentindo tonto e enjoado, quase revoltado. Aquilo fora um erro, um erro terrível.

Alguém soltou um grito penetrante: a mulher gorda que per­guntara pelos democratas. Johnny viu Dussault cair de joelhos, agarrar a manga da blusa estampada da gorda, e depois deslizar cansado para a frente, caindo nos ladrilhos junto das portas que estava tentando alcançar. A medalha de São Cristóvão continuava agarrada em uma das mãos.

—    Desmaiou — disse alguém. — Desmaiou completamente. Que diabo!

—    Minha culpa — disse Johnny, para Sam Weizak. Sua gar­ganta estava apertada de vergonha, de lágrimas. — Tudo minha culpa.

—    Não — disse Sam. — Não, John.

Mas era. Ele soltou-se das mãos de Weizak e foi para onde estava Dussault deitado, já voltando a si, os olhos piscando, atur­didos, olhando para o teto. Dois médicos tinham ido para junto dele.

    Ele está bem? — perguntou Johnny. Virou-se para a jorna­lista de terninho, e ela se afastou dele, o medo estampado no rosto.

Johnny virou-se para o outro lado, para o repórter da TV que lhe perguntara se ele tinha tido alguma intuição antes do desastre. De repente pareceu-lhe muito importante explicar a alguém.

—    Eu não queria prejudicá-lo — disse ele. — Juro por Deus, não queria prejudicá-lo. Eu não sabia...

O     repórter da TV recuou um passo.

—    Não — disse ele. — Claro que não. Ele estava procurando encrenca, todo mundo viu isso... não me toque, hem?

Johnny olhou para ele, mudo, os lábios tremendo. Ainda estava em choque, mas começando a compreender. Ah, sim, estava começando a compreender. O repórter da TV entou sorrir, e só conseguiu um ricto de cadáver.

—    Só não me toque, Johnny. Por favor.

—    Não é assim — disse Johnny, ou tentou dizer. Mais tarde, não sabia se tinha conseguido proferir algum som.

—    Não me toque, Johnny, está bem?

O     repórter recuou até onde o operador da câmara estava arru­mando o equipamento. Johnny ficou ali, olhando. Começou a tremer todo.

 

—    É para o seu bem — disse Weizak. A enfermeira estava atrás dele, um espectro branco, aprendiz de feiticeiro com as mãos mexendo na mesinha de rodas dos remédios, um paraíso de doces sonhos para um viciado.

—    Não — disse Johnny. Ainda estava tremendo, e agora também sentia um suor frio. — Não quero mais injeções. Estou até aqui de injeções.

—    Um comprimido, então.

—    Não quero mais comprimidos, tampouco.

—    Para ajudá-lo a dormir.

—    Ele vai poder dormir? Aquele cara, Dussault?

—    Ele foi o culpado — murmurou a enfermeira, e depois re­traiu-se, quando Weizak se virou para ela. Mas Weizak sorriu torto.

—    Ela tem razão, hem? — disse ele. — O homem estava pro­curando encrenca. Achou que você estava vendendo gato por lebre, John. Depois que você dormir um bom sono, vai poder enxergar isso na devida perspectiva.

—    Vou dormir sem calmante.

—    Johnny, por favor.

Eram onze e quinze da noite. A TV do outro lado do quarto tinha acabado de desligar-se. Johnny e Sam tinham assistido juntos à história filmada; tinha aparecido em segundo lugar, logo depois das leis vetadas por Ford. A minha história é um teatro melhor, pensou Johnny, achando uma graça mórbida. Uma gravação de um republicano calvo dizendo lugares-comuns sobre o orçamento nacional não se podia comparar com o que os operadores de câmara da WABI tinham conseguido ali, mais cedo, naquela noite. A se­qüência terminara com Dussault avançando pela sala com a meda­lha da irmã agarrada na mão e depois caindo desmaiado, agarrando a jornalista como um afogado pode agarrar-se a uma palha.

Quando o locutor da TV passou para o cão policial e os cento e oitenta quilos de maconha, Weizak saiu rapidamente, voltando com a noticia de que a mesa telefônica estava congestionada com telefonemas para ele, antes mesmo de terminada a reportagem. A enfermeira aparecera pouco depois com a medicação, levando John­ny a crer que Sam tinha descido à sala das enfermeiras para fazer algo mais do que apenas verificar os telefonemas.

Naquele instante, o telefone tocou.

Weizak praguejou baixinho.

—    Eu disse que não ligassem para cá. Não atenda, John, ....

Mas Johnny já atendera. Escutou um instante, depois fez que sim.

—    Sim, fez bem. — Ele pôs a mão sobre o fone. — É o meu pai — disse ele. Depois tirou a mão. — Oi, pai. Imagino que o senhor... — Ele escutou. O sorrisinho em seus lábios desapareceu, sendo substituído por uma expressão de horror incipiente. Ele mexeu os lábios, mudo.

—    John, o que é? — perguntou Weizak, bruscamente.

—    Está bem, pai — disse Johnny, quase num sussurro. —Sim. Cumberland General. Sei onde é. Pouco além de Jerusalem’s Lot. Está bem. Está bem, papai...

Perdeu a voz. Seus olhos estavam secos mas brilhando.

—    Sei disso, papai. Eu também o amo. Sinto muito.

Escutou.

—    Sim. Foi, sim — disse Johnny. — Depois eu o vejo, papai. Sim. Até logo.

Desligou, pôs as mãos nos olhos e apertou-os.

—    Johnny? — Sam debruçou-se, pegou uma das mãos dele e segurou-a, com delicadeza. — É a sua mãe?

—    É a minha mãe, sim.

—    Ataque cardíaco?

—    Derrame — disse Johnny, e Sam Weizak fez um barulhinho soprado e sentido, entre os dentes. — Eles estavam assistindo ao noticiário na TV... nenhum dos dois tinha qualquer idéia... e eu ... — e ela teve um derrame. Meu Deus! Está internada. Ago­ra, se acontecer alguma coisa com o meu pai, temos um jogo tríplice. — Deu uma risada alta. Os olhos viraram loucamente de Sam para a enfermeira e de novo para 5am. — É um ótimo dom — disse ele. — Todo mundo devia tê-lo. — De novo aquela risada, como um grito.

—    Qual o estado dela? — perguntou Sam.

—    Ele não sabe. — Johnny abaixou as pernas para o lado da cama. Tinha trocado de roupa, estava de novo com o roupão do hospital e descalço.

—    O que você vai fazer? — perguntou Sam, bruscamente.

—    O que é que está parecendo?

Johnny levantou-se, e por momento pareceu que Sam ia em­purrá-lo de novo para a cama. Mas ele só ficou olhando, enquanto Johnny mancava até o armário.

—    Deixe de ser ridículo. Você não está pronto para isso, John.

Sem dar importância à enfermeira — elas já tinham visto a bunda dele despida muitas vezes, só Deus sabia —, Johnny deixou o roupão cair no chão. As cicatrizes grossas, torcidas, destacavam-se atrás dos seus joelhos e faziam covinhas no bojo ligeiro da barriga da perna. Ele começou a remexer no armário, procurando as roupas, e achou a camisa branca e os jeans que tinha usado na entrevista à imprensa.

—    John, proíbo isso terminantemente. Como seu médico e seu amigo. Estou lhe dizendo, é loucura.

—    Pode proibir quanto quiser, mas eu vou — disse Johnny. Começou a vestir-se. Estava com aquela expressão de preocupa­ção distante que Sam associava aos seus transes. A enfermeira estava boquiaberta.

—    Enfermeira, pode voltar para a sua sala — disse Sam.

Ela recuou até a porta, ficou ali um instante e depois foi em­bora, com relutância.

—    Johnny — disse Sam. Levantou-se, foi para junto dele e pôs-lhe a mão no ombro. — Não foi você que causou isso.

Johnny livrou-se da mão dele.

—    Fui eu, sim — disse ele. — Ela estava me vendo quando aconteceu. — E começou a abotoar a camisa.

—    Você insistiu para que ela tomasse a medicação, e ela parou.

Johnny olhou para Weizak um instante e depois continuou a abotoar a camisa.

—    Se não tivesse acontecido hoje, aconteceria amanhã, na se­mana que vem, ou no mês que vem...

Ou no ano que vem. Ou daqui a dez anos.

     —      Não. Não teriam sido dez anos, nem mesmo um. E você sabe disso. Por que está com tanta vontade de assumir essa culpa? Por causa daquele repórter convencido? Será talvez um tipo invertido de comiseração? Uma necessidade de acreditar que foi amal­diçoado?

O     rosto de Johnny estava contorcido.

—    Ela estava olhando para mim quando aconteceu. Será que não entende isso? Será tão danado de mole que nem percebe isso?

—    Ela estava planejando uma viagem cansativa, até a Califór­nia, ida e volta, você mesmo me disse. Um simpósio qualquer. Um negócio altamente emocional, ao que você disse. Sim? Sim. Teria quase certamente acontecido então. Um derrame não é um golpe caído do céu, Johnny.

Johnny abotoou os jeans e depois sentou-se, como se a função de se vestir o tivesse cansado demais para fazer qualquer outra coisa. Continuava de pés descalços.

—    É — disse ele. — É, pode ser que tenha razão.

—    Juízo! Ele está com juízo! Graças ao Senhor!

—    Mas, assim mesmo, tenho de ir, Sam.

Weizak levantou as mãos.

—    Para fazer o quê? Ela está nas mãos dos médicos e do Deus dela. É essa a situação. Mais que qualquer outra pessoa, você deve compreender.

—    Meu pai vai precisar de mim — disse Johnny, baixinho. — Também compreendo isso.

—    Como é que você vai até lá? Já é quase meia-noite.

—    De ônibus. Pego um táxi até Peter’s Candlelighter. Os Greyhounds ainda param lá, não param?

—    Não precisa fazer isso — disse Sam.

Johnny estava procurando os sapatos debaixo da cadeira, e não os encontrava. Sam pegou-os debaixo da cama e deu-os a ele.

—    Eu o levo.

Johnny olhou para ele.

—    Faria isso?

—    Sim, se você tomar um tranqüilizante leve.

—    Mas a sua mulher... — Ele se deu conta, de um modo confuso, de que a única coisa concreta que sabia sobre a vida pessoal de Weizak era que a mãe dele estava morando na Califórnia:

—    Sou divorciado — disse Weizak. — O médico tem de sair a todas as horas da noite... a não ser que seja quiropodísta ou dermatologista, hem? Minha mulher via a cama como meio vazia, em vez de meio cheia. Assim, encheu-a com uma porção de homens.

—    Sinto muito — disse Johnny, constrangido.

—    Você passa muito tempo sentindo as coisas, Johnny. — O rosto de Sam estava brando, mas sua voz, severa. — Calce os sapatos.

 

“De hospital para hospital”, pensou Johnny, sonhador, voando leve com o comprimidozinho azul que tinha tomado pouco antes de ele e Sam deixarem o hospital e entrarem no El Dorado 75 de Sam. “De hospital a hospital, de pessoa a pessoa, de posto a posto.”

De um modo estranho e secreto, ele gostou da viagem: era a primeira vez que saía do hospital, havia quase cinco anos. A noite estava clara, a via-láctea, espalhada pelo céu numa espiral estendida de luz, um quarto crescente acompanhando-os pela linha escura das árvores, enquanto corriam para o sul, passando por Palmyra, New­port, Pittsfield, Benton, Clinton. O carro seguia num silêncio quase total. Uma música suave, Haydn, fazia-se ouvir dos quatro alto ­falantes do toca-fitas estéreo.

“Cheguei a um hospital na ambulância do Pronto-Socorro de Cleaves Mills, fui para outro de Cadillac”, pensou ele. Mas não deixou que isso o aborrecesse. Bastava estar viajando, flutuando pela pista, deixar o problema da mãe, sua nova faculdade e as pessoas que queriam esmiuçar sua alma (“Ele estava procurando encrenca... só não me toque, hem?”) descansarem num limbo provisório. Weizak não falava nada. De vez em quando cantarolava trechos da música.

Johnny ficou olhando as estrelas. Observando a estrada, quase deserta, a essa hora da noite. Estendia-se diante deles, sem fim. Passaram pelo pedágio em Augusta, e Weizak pegou um talão de pedágio. Depois eles continuaram: Gardener, Sabbatus, Lewiston.

Quase cinco anos, mais do que alguns assassinos condenados passam na cadeia.

Dormiu.

Sonhou.

—    Johnny — dizia a mãe, no sonho. — Johnny, faça com que eu melhore, faça com que eu fique boa. — Ela estava em andrajos. Rastejava em direção a ele, por sobre as pedras da rua. O rosto dela estava branco. Um sangue ralo escorria dos seus joelhos. Pio­lhos brancos formigavam nos cabelos ralos. Ela lhe estendeu mãos trêmulas. — É o poder de Deus agindo em você — disse ela. — É uma grande responsabilidade, Johnny. Um grande legado. Você deve ser digno.

Ele pegou as mãos dela, cobrindo-as com as suas, e disse:

—    Espíritos, larguem essa mulher.

Ela levantou-se.

—    Curada! — exclamou ela, numa voz cheia de um triunfo estranho e terrível. — Curada! Meu filho me curou! As obras dele são grandes sobre a terra!

Ele tentou protestar, dizer-lhe que não queria fazer grandes obras, nem curar, nem falar em línguas, nem adivinhar o futuro, nem encontrar as coisas perdidas. Tentou dizer a ela, mas sua língua não obedecia às ordens do seu cérebro. Ai ela passou por ele, caminhando pela rua de pedras, numa pose encolhida e servil, mas ao mesmo tempo arrogante, a voz com um tom de clarim:

—    Salva! Salvador! Salva! Salvador!

E para seu horror ele viu que atrás dela havia milhares de outros, talvez milhões, todos aleijados, deformados ou apavorados. Estava lá a jornalista gorda, querendo saber quem os democratas iam indicar para a presidência em 1976; estava lá um fazendeiro com um olho morto, de jardineira, com uma foto do filho, rapaz sorridente de farda azul da força aérea, dado como desaparecido em combate sobre Hanói em 1972, e que queria saber se o filho estava vivo ou morto; uma moça parecida com Sarah, com lágrimas nas faces lisas, segurando um bebê com hidrocefalia, em que as velas azuis da cabeça estava traçadas como sinais mágicos do des­tino; um velho, cujos dedos estavam transformados em cajados, pela artrite. Estendiam-se por quilômetros, iam esperar com paciência, iam matá-lo com sua necessidade muda e massacrante.

—    Salva! A voz da mãe erguia-se, imperiosa. — Salvador! Salva! Salva!

Ele tentou dizer a eles que não podia nem curar nem salvar, mas, antes que pudesse abrir a boca para negar, os primeiros tinham posto as mãos nele e o estavam sacudindo.

Ele estava sendo sacudido mesmo. Era a mão de Weizak em seu braço. Uma luz laranja-viva enchia o carro, tornando o interior claro como o dia: era uma luz de pesadelo, que fazia da cara bondosa de Sam uma cara de duende. Por um momento, pensou que ainda fosse seu pesadelo, mas aí viu que a luz vinha dos postes do esta­cionamento. Parecia que também isso tinha sido mudado, enquanto ele estava em coma. De branco para um laranja fantástico, que parecia tinta na pele.

—    Onde estamos? — perguntou ele, com voz grossa.

—    No hospital — disse Sam. — Cumberland General.

—    Ah. Sei.

Sentou-se direito. O sonho pareceu deixá-lo aos pedaços, ainda atulhando o piso de sua mente como alguma coisa que se quebrou e ainda não foi varrida.

—    Está pronto para entrar?

—    Estou — disse Johnny.

Atravessaram o estacionamento no meio do chiado suave dos grilos do verão nos bosques. Os vaga-lumes pontilhavam o escuro. A imagem da mãe estava com ele... mas não tanto que ele não pudesse apreciar o perfume suave e fragrante da noite e sentir a brisa em sua pele. Teve tempo para gozar a saúde da noite, e o sentimento de saúde que vinha de dentro dele. Nas circunstâncias pelas quais ele estava ali, a idéia parecia quase obscena... mas só quase. E não ia embora.

 

Herb desceu pelo corredor para recebê-los, e Johnny viu que o pai estava de calças velhas, sapatos sem meias, e o paletó do pijama. Aquilo mostrou bem a Johnny como tudo fora repentino. Contou mais do que ele queria saber.

—    Filho — disse ele. Parecia menor. Tentou falar mais e não conseguiu. Johnny abraçou-o, e Herb rompeu em prantos. Soluçou contra o coração de Johnny.

—    Papai — disse ele. — Está bem, papai, está bem.

O     pai pôs os braços nos ombros de Johnny e chorou. Weizak virou-se e começou a olhar para os quadros nas paredes, aquarelas comuns de pintores locais.

Herb começou a controlar-se. Passou o braço pelos olhos e disse:

—    Vejam só, ainda estou de paletó de pijama. Tive tempo de trocar de roupa, até que a ambulância chegasse. Acho que nem pensei nisso. Devo estar ficando caduco.

—    Não está, não.

—    Bem. — Deu de ombros. — O seu amigo médico o trouxe aqui? Foi bondade sua Dr. Weizak.

Sam deu de ombros.

—    Não foi nada.

Johnny e o pai foram andando para a salinha de espera e senta­ram-se.

—    Papai, ela esta...

—    Está se afundando — disse Herb. Parecia mais calmo, ago­ra. — Consciente, mas se afundando. Tem perguntado por você, Johnny. Acho que ainda está se segurando por sua causa.

—    Minha culpa — disse Johnny. — Tudo isso é minha culpa... A dor na orelha sobressaltou-o, e ele olhou para o pai, espan­tado. Herb agarrara a orelha dele e a torcera, com força. Estava acabada a inversão de papéis, do pai chorando nos braços dele. Aquele antigo negócio de torcer a orelha era um castigo que Herb reservava para os erros mais graves. Johnny não se lembrava de lhe terem torcido a orelha desde que tinha treze anos, quando andara mexendo no velho Rambler deles. Inadvertidamente, ele engrenara o carro velho, que tinha rolado o morro, sem barulho, indo bater no barracão dos fundos da casa.

—    Nunca diga isso — falou Herb.

—    Puxa, pai!

Herb largou sua orelha, um sorrisinho logo abaixo dos cantos da boca.

—    Tinha esquecido do velho puxão de orelha, hem? Pensou que eu também tinha esquecido, com certeza. Pois nada disso, Johnny.

Johnny fitou o pai, ainda abismado.

—    Nunca se culpe.

—    Mas ela estava assistindo àquela droga de...

—    Noticiário, sim. Estava extasiada, empolgada.., depois es­tava no chão, a pobre boca se abrindo e fechando como se fosse um peixe fora d’água. — Herb virou-se para junto do filho. — O médico não quis me dizer claramente, mas perguntou-me acerca de ‘providências heróicas”. Eu disse a ele que não queria nada disso. Ela cometeu o tipo de pecado dela, Johnny. Supôs conhecer o pen­samento de Deus. Portanto, nunca se culpe pelo erro dela. — Mais lágrimas brilharam nos olhos dele, e sua voz tornou-se mais áspera. — Deus sabe que passei a vida amando-a, e que ficou difícil, no fim. Talvez isso seja mesmo o melhor.

—    Posso vê-la?

—    Sim, ela está no fim do corredor, quarto 35. Estão à sua espera, e ela também. Só uma coisa, Johnny. Concorde com tudo e qualquer coisa que ela possa dizer. Não.., a deixe morrer pensando que foi tudo em vão.

—    Não. — Ele parou. — Vem comigo?

—    Agora não. Talvez depois.

Johnny concordou e foi andando pelo corredor. As luzes esta­vam fracas para a noite. Aquele breve momento na noite suave de verão parecia longe agora, mas o pesadelo no carro parecia muito próximo.

Quarto 35. VERA HELEN SMITH, dizia o cartãozinho na porta. Ele teria sabido que ela também se chamava Helen? Parece que devia saber, mas não se lembrava. Porém, lembrava-se de outras coisas: ela levando-lhe um sorvete embrulhado no lenço, num dia claro de verão, em Old Orchard Beach, rindo e alegre. Ele, a mãe e o pai jogando biriba, valendo fósforos: mais tarde, depois que o negócio da religião começou a dominá-la mais, ela não queria ter cartas em casa, nem mesmo para jogar cribbage. Lembrou-se do dia em que uma abelha o mordera e ele correra para ela, berrando, e ela beijara a mordida inchada, arrancando o ferrão com uma pinça e depois enrolando o lugar da mordida num pano mergulhado em bicarbonato.

Abriu a porta e entrou. Ela era um vulto vago na cama, e Johnny pensou: “Era assim que eu estava”. Uma enfermeira tomava seu pulso; ela virou-se quando a porta abriu, e as luzes fracas do corredor brilharam em seus óculos.

—    O senhor é o filho da Sra. Smith?

—    Sou.

—    Johnny? — A voz dela fez-se ouvir do bolo na cama, seca e oca, chocalhando com a morte, como pedrinhas chocalham numa cabaça vazia. Aquela voz — que Deus o ajudasse — lhe deu arre­pios. Ele aproximou-se mais. O rosto dela estava contorcido numa máscara feia, do lado esquerdo. A mão na colcha parecia uma garra. Derrame, pensou ele. O que os antigos chamavam de choque. Sim. Melhor. É isso o que parece. Que ela teve um grande choque.

—    Ë você, John?

—    Sou eu, mãe.

—    Johnny? Ë você?

—    Sou, mãe.

Ele aproximou-se mais ainda e forçou-se a pegar na garra ossuda.

—    Quero o meu Johnny — disse ela, brigando.

A enfermeira lançou-lhe um olhar de compaixão, e ele teve vontade de dar um soco naquilo.

—    Pode deixar-nos a sós? — pediu ele.

—    Realmente não devo, enquanto...

—    Vamos, ela é minha mãe, e quero ficar um pouco sozinho com ela — disse Johnny. — Que tal?

— Bem...

—    Traga o meu suco, pai! — chamou a mãe, em voz rouca. — Parece que podia beber um litro!

—    Quer sair daqui? — disse ele para a enfermeira. Estava cheio de um sofrimento terrível, do qual não conseguia nem achar o foco. Parecia um redemoinho afundando nas trevas.

A enfermeira saiu.

—    Mãe — disse ele, sentando-se ao lado dela. Aquela sensação estranha de tempo dobrado, de inversão, não o deixava. Quantas vezes ela tinha se sentado na cama dele assim, segurando sua mão seca e falando com ele? Ele lembrou-se do período sem tempo em que o quarto lhe parecera muito apertado.., visto através de uma membrana placentária, tênue, o rosto da mãe debruçado sobre ele, trovejando sons sem sentido, devagar, em seu rosto virado para cima.

Mãe — disse ele de novo, beijando o gancho que substituíra a mão dela.

     —      Dê-me esses pregos, sei fazer isso — disse ela. O olho esquerdo parecia congelado em sua órbita; o outro virava louca­mente. Era o olho de um cavalo estripado por um tiro. — Quero Johnny.

—    Mãe, estou aqui.

—    John-ny! John-ny! JOHN-NY!

—    Mãe — disse ele, com medo que a enfermeira voltasse.

—    Você... — Ela parou e virou um pouco a cabeça para ele. — Debruce-se aqui para eu poder vê-lo — murmurou ela. Ele obedeceu.

—    Você veio — disse ela. — Obrigada. Obrigada. — As lágrimas começaram a escorrer do olho bom. O doente, o do lado do rosto que estava paralisado com o choque, olhava para cima, indiferente.

—    Claro que vim.

—    Eu vi você — murmurou ela. — Que poder Deus lhe deu, Johnny! Não lhe disse? Não lhe disse que era assim?

—    Disse, sim.

—    Ele tem uma missão para você — disse ela. — Não fuja dele, Johnny. Não se esconda numa caverna como Elias, nem o faça mandar um peixe grande para engoli-lo. Não faça isso, John.

—    Não farei, não. — Segurou a mão como garra. Estava com a cabeça latejando.

—    Não o oleiro, mas o barro do oleiro, John. Lembre-se.

—    Está bem.

—    Lembre-se disso! — disse ela, em tom estridente, e ele pensou: “Ela vai voltar para a terra das tolices”. Mas não voltou; pelo menos não mais do que estivera desde que ele saíra da coma.

—    Ouça a vozínha baixinha quando ela vier — disse ela.

—    Sim, mãe, ouvirei.

A cabeça dela virou-se um pouquinho no travesseiro e... esta­ria sorrindo?

—    Você acha que estou maluca, não é? — Ela torceu a cabeça um pouco mais, para poder olhar bem para ele. — Mas isso não importa. Você há de conhecer a voz, quando vier. Ela lhe dirá o que deve fazer. Disse a Jeremias, a Daniel, a Amós e Abraão. Ela lhe dirá. Há de lhe dizer. E quando disser, Johnny... cumpra o seu dever.

—    Está bem, mãe.

—    Que poder! — murmurou ela. Sua voz estava ficando car­regada e indistinta. — Que poder Deus lhe deu.., eu sabia... sempre soube... — A voz sumiu. O olho bom fechou-se. O outro ficou olhando para a frente, vazio.

Johnny ficou ali sentado com ela mais uns cinco minutos, e depois levantou-se para sair. Já estava com a mão na maçaneta e ia abrir a porta, quando tornou a ouvir a voz seca, chocalhando, gelando-o com sua ordem implacável e positiva.

—    Cumpra o seu dever, Johnny.

—    Sim, mãe.

Foi a última vez que ele falou com ela. Ela morreu às oito e cinco da manhã do dia 20 de agosto. Em algum lugar ao norte deles, Walt e Sarah Hazlett estavam tendo uma conversa sobre Johnny que era quase uma discussão, e, em algum lugar ao sul, Greg Stillson estava fazendo uma grande sacanagem.

 

—    Você não compreende —. disse Greg Stillson, numa voz de uma paciência total e racional, ao garoto sentado na sala dos fundos da delegacia de Ridgeway. O garoto, sem camisa, estava inclinado para trás numa cadeira de armar, bebendo uma garrafa de Pepsi. Es­tava sorrindo com indulgência para Greg Stillson, sem compreender que Greg só repetia as coisas duas vezes, compreendendo que havia um grande sacana ali no local, mas ainda sem entender quem era.

Era preciso que ele chegasse a esse entendimento.

À força, se necessário.

Lá fora, a manhã de agosto estava clara e quente. Os pássaros cantavam nas árvores. E Greg sentiu o seu destino mais próximo do que nunca. Era por isso que ele teria cuidado com aquele sacana. Ele não era nenhum motoqueiro cabeludo de perna torta e cheiran­do a suor; aquele garoto era universitário, os cabelos eram mode­radamente compridos mas bem limpos, e era sobrinho de George Harvey. Não que George gostasse muito dele (George havia lutado na Alemanha em 1945, e tinha duas palavras para esses hippies cabeludos, e não eram “feliz aniversário”), mas era parente. E George era um homem a se respeitar, na Câmara Municipal. “Veja o que consegue fazer com ele”, dissera George a Greg, quando este lhe informara que o delegado Wiggins prendera o filho da irmã. Mas os olhos dele tinham dito: “Não lhe faça mal. É parente”.

O     garoto estava olhando para Greg com desprezo.

—    Compreendo — disse ele. — O seu delegado Dawg tirou a minha camiseta e eu a quero de volta. E é bom que você com­preenda alguma coisa. Se eu não a conseguir de volta, vou fazer com que a União das Liberdades Civis Americanas caia em cima de você.

Greg levantou-se, foi ao arquivo de aço cinza defronte da má­quina de refrigerante, puxou o chaveiro, escolheu uma chave e abriu o arquivo. De cima de uma pilha de formulários de acidentes de trânsito, ele pegou uma camiseta vermelha. Abriu-a para mostrar o dístico: BENZINHO, VAMOS FODER.

—    Você estava usando — disse Greg, com aquela mesma voz macia. — Na rua.

O     garoto balançou-se nas pernas traseiras da cadeira e bebeu mais Pepsi. O sorrisinho indulgente em seus lábios — quase de escárnio — não se alterou.

—    Isso mesmo — disse ele. — E eu a quero de volta. É de minha propriedade.

Greg começou a sentir dor de cabeça. Esse sabidinho não com­preendia como seria fácil. A sala era à prova de som, e houvera ocasiôes em que esse isolamento abafara gritos. Não.., ele não se dava conta. Não compreendia.

“Mas controle-se. Não exagere. Não entorne o caldo.”

Era fácil pensar assim. Em geral, fácil de fazer. Mas às vezes o seu gênio.., o seu gênio se descontrolava.

Greg pôs a mão dentro do bolso e puxou seu isqueiro Bic.

—    Então vá contar ao seu chefe da Gestapo e ao meu tio fas­cista que a Primeira Emenda... — Ele parou, os olhos arregalan­do-se um pouco. — O que é que...? Ei! Ei!

Sem fazer caso e calmo, pelo menos exteriormente, Greg acen­deu o isqueiro. A chama de gás do Bíc subiu e Greg pôs fogo na camiseta do garoto. Queimou muito bem, aliás.

As pernas da frente da cadeira do garoto desceram com um baque, e ele saltou para cima de Greg com a garrafa de Pepsi ainda na mão. O sorrisinho satisfeito desaparecera, tendo sido substituído por uma expressão de choque e surpresa, de olhos arregalados.., e a raiva de um fedelho mimado que faz tudo o que quer há tempo demais.

“Ninguém jamais o chamou de nanico”, pensou Greg Stillson, e sua dor de cabeça piorou. Ah, ele ia ter de tomar cuidado.

—    Passe isso para cá! — gritou o garoto. Greg estava segu­rando a camiseta à distância, apertada em dois dedos pela gola, pronto para largá-la quando o calor ficasse muito forte. — Passe isso para cá, seu sacana! Isso é meu! É...

Greg pôs a mão no meio do peito do garoto e empurrou-o com toda a força, muita força mesmo. O garoto voou pela sala, a raiva dissolvendo-se em um choque total, e — por fim — o que Greg precisava ver: medo.

Ele largou a camiseta no chão de ladrilhos, pegou a Pepsí do garoto e despejou o que estava na garrafa sobre a camiseta ardente. Ela chiou, ensopada.

O     garoto estava se levantando devagar, as costas contra a pa­rede. Greg enfrentou o olhar dele. Os olhos do garoto eram cas­tanhos e estavam muito, muito arregalados.

—    Vamos chegar a um entendimento — disse Greg, e as pa­lavras lhe pareceram distantes, por trás do latejar de sua cabeça. — Vamos fazer um seminário bem aqui nesta sala sobre quem é

o      sacana. Entendeu o que quero dizer? Vamos chegar a algumas conclusões. Não é isso o que vocês, da universidade, gostam de fazer? Chegar a conclusões?

O     garoto estava respirando aos trancos. Ele molhou os lábios, parecia que ia falar e depois berrou:

—    Socorro!

—    É, você vai precisar de socorro, mesmo — disse Greg. —Eu também vou lhe prestar socorro.

—    Você está maluco — disse o sobrinho de George Harvey, e depois berrou de novo, mais alto: — Socorro!

—    Pode ser que sim — disse Greg. — Claro. Mas o que preci­samos descobrir, filhinho, é quem é o grande sacana. Entendeu o que quero dizer?

Olhou para a garrafa de Pepsi que tinha na mão e de repente bateu-a com força contra a quina do arquivo de aço. A garrafa espatifou-se, e, quando o garoto viu os cacos espalhados pelo chão e o gargalo quebrado na mão de Greg, apontado para ele, berrou. Os seus jeans, nas entrepernas, antes desbotados, quase brancos, ficaram escuros. Seu rosto ficou da cor de pergaminho velho. E quando Greg foi andando para junto dele, esmagando o vidro sob as botas que usava no verão e no inverno, ele se espremeu contra a parede.

—    Quando eu saio na rua, uso uma camisa branca — disse Greg. Ele estava sorrindo, mostrando dentes brancos. — Às vezes uma gravata. Quando você sai na rua, usa um trapo com um dístico imundo. Então, quem é o sacana, hem, garotão?

O     sobrinho de George Harvey ganiu alguma coisa. Seus olhos esbugalhados não se afastavam das pontas de vidro que saíam do gargalo da garrafa na mão de Greg.

—    Eu estou aqui de pé, bem sequinho — disse Greg, aproxi­mando-se mais um pouco —, e você está mijando nas pernas e para dentro dos sapatos. Então, quem é o sacana?

Ele começou a empurrar o gargalo da garrafa de leve para o estômago nu e suado do garoto, e o sobrinho de George Harvey começou a chorar. Era esse o tipo de garoto que estava dividindo o país, pensou Greg. O vinho espesso da fúria corria e zunia por sua cabeça. Sacanas fedorentos, covardes e chorões como esse.

“Ah, mas não lhe faça mal.., não vá entornar o caldo...”

— Eu falo como um ser humano — disse Greg — e você parece um porco numa caixa de graxa, garoto. Então, quem é o sacana?

Ele tornou a avançar a garrafa, uma das pontas de vidro que­bradas roçou a pele do garoto logo abaixo do mamilo direito e tirou uma gotinha de sangue. O garoto uivou.

— Estou falando com você — disse Greg. — É bom respon­der, assim como responderia a um de seus professores. Quem é o sacana?

O garoto resmungou, mas não fez nenhum barulho coerente.

— Responda, se quiser passar no exame — disse Greg. — Vou deixar as suas tripas espalhadas por esse chão afora, garoto. — E, naquele instante, estava falando sério. Não podia olhar diretamente para aquela gotinha de sangue que aumentava; ficaria maluco se olhasse, fosse o guri ou não sobrinho de George Harvey. — Quem é o sacana?

— Eu — disse o garoto, e começou a soluçar como um meni­ninho com medo do bicho-papão, que espera atrás da porta do ar­mário na calada da noite.

Greg sorriu. A dor de cabeça latejava e aumentava.

— Bem, assim vai bem, sabe. É um princípio. Mas ainda não basta. Quero que você diga: “Sou um sacana”.

— Sou um sacana — disse o garoto, ainda soluçando. O ca­tarro escorreu do nariz dele, ficando ali como um fio. Ele limpou com as costas da mão.

— Agora quero que você diga: “Sou um sacana dos maiores”.

— Sou.., sou um sacana dos maiores.

— Agora você pode dizer mais uma coisa, e talvez possamos encerrar isso aqui. Diga: “Obrigado por queimar aquela camiseta imunda, prefeito Stillson”.

O garoto agora estava ansioso. Estava vendo que ia escapar.

— Obrigado por queimar aquela camiseta imunda.

Num relâmpago, Greg passou uma das pontes quebradas da esquerda para a direita pela barriga macia, tirando um fio de san­gue. Mal raspou a pele, mas o garoto uivou como se todos os de­mônios do inferno estivessem atrás dele.

— Você se esqueceu de dizer “prefeito Stillson” — disse Greg, e a dor de cabeça, de repente, passou. Deu mais uma pancada maciça bem entre os olhos e sumiu. Ele olhou como burro para o gargalo da garrafa na mão e mal se lembrava de como fora parar ali. Coisa danada de burra. Quase jogara tudo fora por causa de um garoto idiota.

— Prefeito Stillson! — O garoto estava gritando. O pavor dele era perfeito e total. — Prefeito Stillson! Prefeito Stillson! Prefeito Stillson...

— Está bem — disse Greg.

— ... son! Prefeito Stíllson! Prefeito Stillson! Prefeito...

Greg lhe deu uma bofetada na cara, e o garoto bateu com a cabeça na parede. Calou-se, os olhos arregalados e vazios.

Greg chegou bem junto dele. Estendeu as mãos e agarrou as orelhas do garoto. Puxou a cara do pequeno para a frente, até os narizes deles se tocarem. Seus olhos estavam a menos de dois cen­tímetros de distância.

— Olhe, o seu tio é uma potência nesta cidade — disse ele, baixinho, segurando as orelhas do garoto como maçanetas. Os olhos do garoto estavam imensos, castanhos, cheios de lágrimas. — Eu também sou uma potência.., quase isso.., mas não sou um George Harvey. Ele nasceu aqui, foi criado aqui e tudo. E se você contas­se ao seu tio o que se passou aqui, ele podia ter a idéia de acabar comigo em Ridgeway.

Os lábios do garoto estavam se mexendo num balbucio quase sem som. Greg sacudiu a cabeça do guri devagar, para a frente e para trás, pelas orelhas, batendo os narizes.

— Pode ser que não.., ele estava danado da vida com esse negócio dessa camiseta. Mas pode ser que sim. Os laços de sangue são fortes. Portanto, pense nisso, filho. Se você fosse contar ao seu tio o que aconteceu aqui hoje e o seu tio conseguisse me eliminar daqui, acho que eu voltaria para matar você. Acredita nisso?

— Sim — disse o garoto, baixinho. As faces dele reluziam.

— Sim, senhor, prefeito Stillson.

— Sim, senhor, prefeito Stillson.

Greg largou as orelhas dele.

— É — disse ele —, eu mataria você, mas primeiro ia contar a todo mundo que quisesse ouvir que você se mijou todo e ficou aí chorando, o catarro escorrendo do nariz.

Deu meia-volta e afastou-se depressa, como se o garoto tivesse mau cheiro, e voltou para junto do arquivo. Pegou uma caixa de Band-Aids de uma prateleira e jogou-a para o garoto, que recuou e deixou-a cair. Apressou-se a pegá-la do chão, como se Stillson pudesse atacá-lo de novo, por não tê-la agarrado.

Greg apontou.

— O banheiro fica lá. Pode ir limpar-se. Vou deixar-lhe uma camiseta dos Amigos de Rídgeway. Quero que a devolva pelo cor­reio, limpa, sem manchas de sangue. Entendeu?

—    Entendi — murmurou o garoto.

— SIM, SENHOR! — berrou Stillson. — SENHOR! SENHOR! SENHOR! Nâo consegue lembrar-se disso?

— Senhor — gemeu o garoto. — Sim, senhor, sim, senhor.

— Não ensinam vocês, garotos, a terem respeito por nada —disse Greg. — Por nada.

A dor de cabeça estava querendo voltar. Ele respirou fundo várias vezes e dominou-a.., mas seu estômago estava muito atra­palhado.

— Pronto, acabou-se. Só quero lhe oferecer um bom conselho. Não cometa o erro de voltar para o seu raio de universidade, neste outono, seja quando for, e começar a pensar que esse negócio foi alguma coisa diferente. Não procure iludir-se com Greg Stillson. O melhor é esquecer, garoto. Você, eu e George. Se ficar pensando e achar que vai poder dar outro golpe, isso seria o pior erro de sua vida. Talvez o último.

E com isso Greg se foi, lançando um último olhar de desprezo ao garoto ali de pé, o peito e a barriga manchados de sangue seco, os olhos arregalados, os lábios tremendo. Ele parecia um guri de dez anos que cresceu demais e passou pela vergonha de ser elimi­nado nos desempates dos jogos juvenis. Greg apostou mentalmente que nunca mais tornaria a ver aquele garoto, ou ter notícias dele, e foi uma aposta que ganhou. Naquela mesma semana, George Har­vey parou na barbearia onde Greg Stillson estava fazendo a barba e agradeceu-lhe por ter “dado juízo” ao sobrinho.

— Você tem jeito com esses garotos, Greg — disse ele. — Não sei.., eles parecem respeitá-lo.

Greg lhe disse que não havia por que agradecer.

 

Enquanto Greg Stillson estava queimando uma camiseta com um dístico obsceno em New Hampshire, Walt e Sarah Hazlett esta­vam tomando um café tardio em Bangor, no Maine. Walt estava com o jornal.

Ele largou a xícara de café com um estalo e disse:

— O seu ex-namorado saiu nos jornais, Sarah.

Sarah estava dando comida a Denny. Estava de roupão, os cabelos meio desalinhados, os olhos ainda semicerrados. Oitenta por cento de sua mente ainda estavam adormecidos. Tinham ido a uma festa, na véspera. O convidado de honra fora Harrison Fisher, depu­tado do terceiro distrito por New Hampshire desde as eras ante­diluvianas, e candidato certo para a reeleição no ano seguinte. Fora bastante hábil ela e Walt terem ido. Hábil. Era uma palavra que Walt usava muito, ultimamente. Ele tinha bebido muito mais do que ela, e naquela manhã estava vestido e aparentemente lépido, enquanto ela se sentia enterrada num monte de lama. Não era justo.

       — Azul. — comentou Denny, e cuspiu um monte de frutas misturadas.

— Isso é feio — disse Sarah para Denny. E para Walt: — Está se referindo a Johnny Smith?

— O próprio.

Ela levantou-se e foi para o lado de Walt na mesa.

— Ele está bem?

— Sentindo-se bem e pintando o sete, ao que parece — disse Walt, secamente.

Ela teve uma idéia vaga de que poderia ter alguma relação com o que lhe acontecera quando fora visitar Johnny, mas o ta­manho da manchete a chocou: PACIENTE QUE DESPERTOU DE COMA DEMONSTRA FACULDADE PSÍQUICA EM SURPREENDENTE ENTREVISTA

COLETIVA À IMPRENSA. A história era assinada por David Bright. A foto mostrava Johnny, ainda magro e confuso, à luz impiedosa do flash, de pé junto ao corpo esparramado de um homem que a legen­da dizia ser Roger Dussault, jornalista do jornal de Lewiston. “Re­pórter desmaia depois da revelação”, dizia a legenda.

Sarah sentou-se na cadeira ao lado de Walt e começou a ler o artigo. Isso não agradou a Denny, que começou a bater na mesi­nha de sua cadeira alta, pedindo o seu ovo.

—    Parece que você está sendo convocada — disse Walt.

— Quer dar a comida a ele, meu bem? Ele come melhor com você, em todo caso. “Continua na página 9, col. 3”. Ela abriu o jornal na página 9.

— Com jeito, você consegue qualquer negócio — disse Walt, de boa vontade. Tirou o paletó esporte e vestiu o avental dela. —Lá vai, cara — disse ele, e começou a dar o ovo a Denny.

Depois que terminou a história, Sarah voltou atrás e releu-a. Seus olhos voltavam a toda hora para a foto, para o rosto confuso e apavorado de Johnny. As pessoas agrupadas em volta de Dussault, caído, olhavam para Johnny com uma expressão quase de medo. Ela compreendia isso. Lembrava-se de tê-lo beijado, e da expressão es­tranha e preocupada que passara pela fisionomia dele. E quando ele lhe dissera onde podia encontrar a aliança perdida, ela é que ficara com medo.

“Mas, Sarah, o seu temor não foi exatamente pelo mesmo mo­tivo, foi?”

—    Só mais um pouquinho, garotão — dizia Walt, como se de uma distância imensa.

Sarah olhou para eles, sentados juntos numa réstia de sol cheia de pó, o avental dela batendo entre as pernas de Walt, e de repente teve medo de novo. Viu a aliança afundando no vaso da privada, virando e revirando. Ouviu o estalidozinho quando ela bateu na louça. Pensou em máscaras de Dia das Bruxas, no garoto dizendo “Adoro ver esse cara levar uma surra”. Pensou em promessas feitas e não cumpridas, e seus olhos pousaram naquela cara magra do jornal, olhando para ela com uma surpresa tão abatida e sofrida.

—... truque, em todo caso — disse Walt, pendurando o avental dela. Conseguira que Denny comesse todo o ovo, e agora o herdeiro estava feliz, sugando um suco de fruta.

— Hem? — disse Sarah, quando ele se aproximou dela.

— Eu disse que para um cara que deve estar devendo quase meio milhão de dólares de conta de hospital, é um ótimo truque.

— De que é que você está falando? O que quer dizer “tru­que”?

— Claro — disse ele, parecendo não perceber a irritação dela. — Ele poderia ganhar uns sete, talvez dez mil dólares escrevendo um livro sobre o acidente e a coma. Mas, se saiu médium da coma, o céu é o limite.

— Isso é uma acusação absurda! — disse Sarah, a voz fina de fúria.

Ele virou-se para ela, primeiro com uma expressão de espanto e depois de compreensão. A compreensão a enfureceu mais ainda. Se ela ganhasse um níquel a cada vez que Walt Hazlett pensava tê-la compreendido, eles poderiam fazer uma viagem turística de primeira classe.

— Olhe, desculpe ter mencionado o assunto — disse ele.

— Johnny seria tão capaz de mentir quanto o papa seria capaz de... de... você sabe.

Ele caiu na gargalhada, e naquele momento ela quase pegou a xícara de café e a atirou em cima dele. Mas, em vez disso, apertou as mãos com força debaixo da mesa. Denny olhou para o pai, de olhos arregalados, e depois deu a sua gargalhada.

— Meu bem — disse WaIt —, não tenho nada contra ele, nem tenho nada contra o que ele está fazendo. Aliás, eu o respeito por isso. Se aquele pé-de-boi gorducho pode passar de advogado falido a milionário depois de quinze anos na Câmara de Deputados, então esse camarada tem todo o direito de conseguir tudo o que puder, bancando o médium...

— Johnny não mente — repetiu ela, sem expressão.

— É um truque para as coroas de cabelos azulados que lêem os pasquins semanais e fazem parte do Clube do Livro Universo — disse ele, animado. — Se bem que eu confesse que um pouco de segunda visão viria bem a calhar na seleção do júri nesse raio desse julgamento Timmons.

— Johnny Smith não mente — repetiu ela, e ouviu-o dizer: “Ela escorregou do seu dedo. Você estava guardando o aparelho de barba dele num daqueles bolsos laterais, e ela rolou... vá ao sótão e procure, Sarah. Você vai ver”. Mas não podia contar isso a Walt. Walt nem sabia que ela tinha ido visitar Johnny.

“Não foi nada de mais ter ido visitá-lo”, disse sua mente, in­quieta.

Não, mas como é que ele havia de reagir ao fato de ela ter jogado a sua aliança de casamento original no vaso sanitário, dando a descarga? Ele poderia interpretar mal o medo repentino que

a levara a fazer aquilo: o mesmo medo que ela via refletido na­queles outros rostos do jornal, e, até certo ponto, no do próprio Johnny. É, Walt poderia não compreender bem isso. Afinal, jogar a aliança na privada e depois dar a descarga não deixava de sugerir certo simbolismo vulgar.

— Está bem — Walt estava dizendo —, ele não mente. Mas não posso acreditar...

Sarah disse baixinho:

— Olhe para as pessoas atrás dele, Walt. Olhe para as caras delas. Elas acreditam.

Walt lançou um olhar de relance.

— Claro, como um garoto acredita num mágico enquanto dura o truque.

— Você acha que esse Dussault foi, como se chama, um com­parsa? Segundo o artigo, Johnny não o conhecia.

— É o único jeito de funcionar a ilusão, Sarah — disse Walt, com paciência. — Não adianta nada um mágico puxar um coelho de uma coelheira, tem de puxá-lo de um chapéu. Ou Johnny Smith sabia de alguma coisa, ou deu um palpite certo, baseado no compor­tamento de Dussault na ocasião. Mas, repito, eu o respeito por isso. Conseguiu muito cartaz. Se lhe der algum dinheiro, melhor para ele.

Naquele momento, ela sentiu raiva, ódio dele, daquele homem bom com quem se casara. Não havia nada de tão horrível do outro lado de sua bondade, sua constância, seu bom humor ameno:

apenas a crença, aparentemente arraigada no fundo de sua alma, de que todo mundo estava querendo tirar vantagem, cada qual com seu trambiquezinho. Naquele dia ele chamara Harrison Fisher pé-de-boi gordo; na véspera estava morrendo de rir com algumas das histórias que Fisher contara sobre Greg Stillson, o prefeito esqui­sito de uma cidade qualquer, que era tão maluco que poderia con­correr como independente na corrida para a Câmara, no ano se­guinte.

Não, no mundo de Walt Hazlett, ninguém tinha poderes para­normais, não havia heróis, e a doutrina teremos-de-mudar-o-sistema­-de-dentro era todo-poderosa. Ele era um bom homem, de confiança, amava-a e a Denny, mas de repente a alma dela chorou por Johnny e os cinco anos juntos de que tinham sido roubados. Ou a vida toda juntos. Um filho com cabelos mais escuros.

       — É bom você ir andando, benzinho — disse ela, sossegada. — Vão prender o seu camarada Timmons com cepos e cadeias, ou seja o que for.

— Claro. — Ele sorriu para ela, terminada a exposição, sus­pensa a sessão. — Amigos de novo?

     —      Amigos de novo. — Mas ele sabia onde estava a aliança. Ele sabia.

     Walt a beijou, a mão direita pousando de leve na nuca. Ele sempre comia a mesma coisa no café da manhã, sempre a beijava do mesmo modo, um dia eles iriam para Washington, e ninguém era paranormal.

     Cinco minutos depois ele já tinha ido embora, dando ré no carrinho vermelho até a Pond Street, buzinando de leve como sem­pre e partindo. Ela ficou sozinha com Denny, que estava tentando entrangular-se, metendo-se por baixo da mesinha da cadeira alta.

       — Você está fazendo isso tudo errado, bobão — disse Sarah, indo soltar a mesinha.

       — Azul! — disse Denny, enjoado de tudo aquilo.

       O gato deles entrou na cozinha com seu costumeiro passo lento de delinqüente juvenil, e Denny agarrou-o, fazendo barulhinhos de agrado. O gato pôs as orelhas para trás e pareceu conformar-se.

       Sarah sorriu e tirou a mesa. Inércia. Um corpo em repouso tende a permanecer em repouso, e ela estava em repouso. Não im­portava o lado mais tenebroso de Walt: ela também tinha o dela. Não pretendia fazer mais que mandar um cartão para Johnny, no Natal. Era melhor, mais seguro, assim.., porque um corpo em mo­vimento tende a continuar em movimento. A vida dela ali era boa. Tinha sobrevivido a Dan, sobrevivido a Johnny, que lhe fora arre­batado de modo tão injusto (mas tanta coisa neste mundo é injus­ta!), viajara por suas corredeiras pessoais até aquelas águas plácidas, e ali havia de ficar. Aquela cozinha ensolarada não era má. Era melhor esquecer-se das feiras e parques de diversôes, das rodas da fortuna e do rosto de Johnny Smith.

       Enquanto estava deixando correr água na pia para lavar a louça, ligou o rádio e pegou o principio do noticiário. A primeira notícia a fez gelar com um prato lavado na mão, os olhos olhando para fora, pelo quintal, numa contemplação assustada. A mãe de Johnny tivera um derrame assistindo a uma reportagem sobre a entrevista do filho à imprensa. Morrera naquela manhã, havia menos de uma hora.

     Sarah enxugou as mãos, desligou o rádio e arrancou o gato das mãos de Denny. Levou o filho para a sala e colocou-o no cercado. Denny protestou contra essa indignidade com uivos fortes e vigorosos, mas ela não lhe deu atenção. Foi ao telefone e ligou para o hospital. Uma telefonista, que parecia estar farta de repetir a mesma notícia várias vezes, disse-lhe que John Smith saíra do hospital na véspera, pouco antes da meia-noite.

Ela desligou o telefone e sentou-se numa cadeira. Denny con­tinuava a chorar, no cercado. A água estava correndo na pia da cozinha. Depois de um bocado de tempo, ela se levantou, foi à cozinha e fechou a torneira.

 

O homem da revista Inside View apareceu no dia 16 de outu­bro, pouco depois de Johnny ter ido apanhar a correspondência.

A casa do pai dele ficava bem retirada da rua; o caminho da entrada, de cascalho, tinha quase quatrocentos metros de compri­mento, e passava por uma plantação de abetos e pinheiros novos. Johnny fazia a ida e a volta, todos os dias. A principio voltava para a varanda tremendo, exausto, as pernas em fogo, mancando tanto que parecia estar cambaleando. Mas agora, um mês e meio depois da primeira vez (quando levara uma hora para percorrer os oitocentos metros), aquela caminhada se tornara um dos prazeres do dia, uma coisa a antecipar. Não a correspondência, mas a caminhada.

Ele tinha começado a rachar lenha para o inverno, tarefa que Herb pretendia mandar alguém fazer, pois havia arranjado um contrato para fazer uns trabalhos internos num novo projeto de conjuntos residenciais, em Libertyville.

— Sabemos quando a velhice começa a nos espreitar por cima do ombro, John — disse ele, com um sorriso. — É quando a gente começa a procurar um trabalho dentro de casa assim que o outono se aproxima.

Johnny foi para a varanda e sentou-se na cadeira de vime ao lado do balanço, com um barulhinho de alívio. Apoiou o pé direito sobre a grade da varanda e, com uma careta de dor, usou as mãos para levantar a perna esquerda por cima da grade. Feito isso, co­meçou a abrir a correspondência.

Ultimamente tinha começado a diminuir um pouco. Durante a primeira semana que ele passara em Pownal, às vezes recebia até duas dúzias de cartas e oito ou nove pacotes por dia, a maioria enviada do hospital, alguns enviados para a Posta Restante, Pownal (escrito de várias maneiras: Pownell, Penul, e, em um caso memo­rável, Poonuts).

A maior parte era de pessoas variadas, que pareciam estar pas­sando pela vida em busca de alguma orientação. Havia crianças que queriam seu autógrafo, mulheres que queriam dormir com ele, mulheres e homens querendo conselhos sentimentais. Alguns man­davam talismãs. Outros mandavam horóscopos. Muitas cartas eram de natureza religiosa, e nessas, escritas em péssima ortografia, ge­ralmente com uma caligrafia caprichada e grande, mas apenas um passo acima dos rabiscos de um aluno esperto de primeiro ano, ele parecia sentir o espectro da mãe.

Ele era um profeta, asseguravam-lhe essas cartas, que viera livrar o povo norte-americano, cansado e desiludido, do deserto. Era um portento que mostrava estarem perto os Últimos Tempos. Até aquela data, dia 16 de outubro, ele já recebera oito exemplares da obra Tbe late great planet Eartb*, de Hallindsey... sua mãe certamente teria aprovado isso. Instavam com ele para que proclamasse a divindade de Cristo e pusesse um fim à falta de moral da juventude.

Essas cartas eram contrabalançadas pelo contingente negativo, menos numeroso mas igualmente expressivo, embora geralmente anônimo. Um dos correspondentes, escrevendo a lápis numa folha de papel oficio amarelo, proclamava-o o Anticristo e o incitava a suicidar-se. Quatro ou cinco dos autores das cartas perguntavam que tal era matar a própria mãe. Muitos outros acusavam-no de ser charlatão. Um espirituoso escreveu: “PRECOGNIÇAO, TELEPATIA, BOSTA! ENGULA O MEU PAU, SEU CRETINO EXTRA-SENSORIAL!”

 

E mandavam coisas. Isso era o pior de tudo.

Todos os dias, na volta do trabalho, Herb parava na agência do correio e apanhava os pacotes que não cabiam na caixa de cor­reio deles. Os bilhetes que acompanhavam essas coisas eram todos essencialmente os mesmos; um grito abafado: Diga, diga, diga.

Esse cachecol pertencia ao meu irmão, que desapareceu numa pescaria no Allagash em 1969. Tenho uma forte impressão de que ele ainda está vivo. Diga-me onde ele está.

Esse batom é da penteadeira de minha mulher. Acho que ela está tendo um caso, mas não tenho certeza. Diga-me se está.

Essa é a pulseira de identificação do meu filho. Ele nunca

 

* “O extinto grande planeta Terra.” (N. do T.)

 

mais volta para casa depois da escola, fica na rua até as tantas, estou muito preocupada. Diga o que ele anda fazendo.

Um mulher da Carolina do Norte — só Deus sabe de que modo ela soube da existência dele; a entrevista coletiva à imprensa, em agosto, não chegara aos meios de comunicação nacionais —mandou um pedaço de madeira carbonizada. A casa dela se incendia­ra, explicava a carta, e o marido e dois de seus cinco filhos tinham morrido no incêndio. O Corpo de Bombeiros de Charlott dissera que o fogo fora devido a uma instalação elétrica defeituosa, mas ela não podia aceitar essa explicação. Devia ter sido premeditado. Ela queria que Johnny tocasse na relíquia enegrecida anexa para lhe dizer quem fora o autor do incêndio, para que o monstro pas­sasse o resto da vida apodrecendo na cadeia.

Johnny não respondeu a nenhuma das cartas e devolveu todos os objetos (até mesmo o pedaço de madeira carbonizado), às suas custas e sem comentários. Chegou a tocar em alguns deles. A maior parte, como o pedaço de madeira carbonizada da mulher desolada de Charlotte, não lhe disse coisa alguma. Mas quando tocou em alguns, teve imagens inquietadoras, como sonhos despertos. Em geral, foi apenas um traço; uma imagem se formava e desaparecia em alguns segundos, deixando-o sem nada de concreto, apenas uma sensação. Mas um deles...

Foi o caso da mulher que enviara o cachecol na esperança de descobrir o que acontecera com o irmão. Era um cachecol de tricô branco, igual a mil outros. Mas, ao pegar nele, de repente a realidade da casa de seu pai desapareceu, e o som da televisão na sala contígua subia e baixava, até parecer o som de insetos sonolentos no verão e o burburinho distante da água.

Aroma de mato nas narinas. Raios de luz verdejantes caindo no meio de grandes árvores velhas. A terra tinha estado enchar­cada, nas últimas três horas, quase pantanosa. Ele estava com medo, com muito medo, mas conservou a calma. Se a pessoa se perdesse nas vastas regiões do norte e entrasse em pânico, mais valia grava­rem a sua pedra tumular. Ele continuara a andar para o suL Havia dois dias que se separara de Stiv, Rock e Logan. Estavam acam­pados perto de

(mas isso ele não conseguia saber, estava na zona morta)

um riacho, pescando trutas, e fora culpa dele mesmo, raios; estava bêbado como um gambá.

Agora via sua mochila encostada à beira de um tronco caído, velho e cheio de musgo, as madeiras mortas, brancas, aparecendo no meio do verde, aqui e ali, como ossos, e via a mochila, sim, mas não conseguia alcançá-la, porque se afastara um pouco para urinar e entrara num lugar lamacento à beça, lama até quase o alto das botas, e tentou recuar, encontrar um lugar mais enxuto para fazer o que queria, mas não conseguia sair dali. Não conseguia sair porque não era lama coisa alguma. Era... outra coisa.

Ele ficou ali, olhando em volta, em vão, procurando alguma coisa que pudesse agarrar, quase rindo diante da idiotice de ter entrado num trecho de areia movediça quando estava procurando um lugar para mijar.

Ficou ali, a princípio certo de que devia ser um trecho raso de areia movediça, no máximo chegando até acima do alto de suas botas, mais uma história a contar quando fosse encontrado.

Ficou ali, e um pânico de verdade só começou a dominá-lo quando a areia foi cobrindo implacavelmente seus joelhos. Então começou a se debater, esquecendo-se de que, se a pessoa cometesse a estupidez de se meter em areia movediça, tinha de ficar muito quieta. Em um instante a areia estava cobrindo o peito dele, sugan­do-o como grandes beiços marrons, contraindo-lhe os pulmões, impe­dindo-lhe a respiração; ele começou a gritar e ninguém apareceu, nada chegou ali a não ser um esquilo marrom e gordo, que foi an­dando pelo lado da armadilha de musgo, empoleirou-se na mochila dele e ficou fitando-o com os olhos pretos e brilhantes.

Agora estava até o seu pescoço, o cheiro forte daquilo no seu nariz, e os gritos se tornaram fracos e ofegantes, enquanto a areia movediça implacavelmente espremia o ar de dentro dele. Os pássa­ros voavam, planando, piando e ralhando, e raios verdes de sol, como cobre manchado, caíam pelo meio das árvores, e a areia move­diça cobriu o seu queixo. Sozinho, ele ia morrer sozinho, e abriu a boca para dar um último grito, e não houve grito porque a areia entrou em sua boca, sobre a língua, entre os dentes, em tiras finas, ele estava engolindo a areia, e o grito nunca foi proferido ...

Johnny saiu daquilo suando frio, a carne marmorizada em ar­repios, o cachecol agarrado nas mãos, sua respiração ofegante e curta. Jogou o cachecol no chão, onde ele ficou como uma cobra branca, contorcida. Não quis mais tocar nele. Seu pai colocou-o num envelope e o devolveu.

Mas agora, felizmente, a correspondência estava começando a escassear. Os maníacos tinham descoberto algum objetivo novo para suas obsessões públicas e privadas. Os jornalistas não pediam mais entrevistas, em parte porque o número do telefone fora trocado e não figurava na lista, em parte porque a história já era coisa velha.

Roger Dussault tinha escrito um longo e furioso artigo para o jornal dele, do qual era o redator de reportagens. Declarou que aquilo tudo era uma mistificação cruel e de mau gosto. Johnny com certeza tinha estudado incidentes do passado de vários repórteres que provavelmente iriam à entrevista coletiva, para se prevenir. Sim, ele admitia que o apelido da irmã, Anne, era Terry. Ela mor­rera bem moça, e as anfetaminas podiam ter sido uma das causas concorrentes. Mas tudo isso era informação acessível a quem quises­se verificar. Ele fez tudo parecer muito lógico. O artigo não expli­cava de que modo Johnny, sem sair do hospital, poderia ter colhido essas “informações acessíveis”, mas isso foi uma coisa que a maior parte dos leitores não notou. Johnny estava pouco se importando. O incidente estava encerrado, e ele não tinha intenção de provocar outros. De que adiantaria escrever para a senhora que mandava o cachecol dizendo que o irmão se afundara, aos gritos, em areia mo­vediça porque caminhara para o lado errado, ao procurar um lugar para urinar? Isso aliviaria o espírito dela, ou a ajudaria a viver melhor?

A correspondência daquele dia era de apenas seis cartas. Uma conta de luz. Um cartão de um primo de Herb, de Oklahoma. Uma senhora que mandara para Johnny um crucifixo com as palavras MADE IN FORMOSA estampadas nos pés do Cristo, em letrinhas douradas. Um bilhete curto de Sam Weizak. E um envelopezinho com um endereço de remetente que o fez piscar e se sentar mais ereto. “S. Hazlett, Pond Street, 12. Bangor.”

Sarah. Ele o abriu.

Tinha recebido um cartão de pêsames dela dois dias depois do enterro da mãe. Escrito na caligrafia inclinada para trás, ele lera:

 

“Johnny: Sinto muito que isso tenha acontecido. Ouvi no rádio que a sua mãe faleceu.., de certo modo, isso pareceu a coisa mais injusta de todas, que a sua dor particular tenha sido do conhecimen­to público. Você pode não se lembrar, mas falamos um pouco sobre sua mãe na noite do seu acidente. Perguntei o que ela faria se você levasse para casa uma católica relapsa, e você disse que ela sorriria, que me receberia bem e me faria uns sermões. Vi o seu amor por ela no modo como você sorriu. Soube pelo seu pai que ela havia mudado, mas grande parte da mudança foi porque ela o amava muito e não podia aceitar o que aconteceu. E no final acho que sua fé foi recompensada. Por favor, aceite os meus sentimentos mais sinceros, e, se houver alguma coisa que eu possa fazer, agora ou mais tarde, por favor conte com a sua amiga, Sarah”.

 

Esse bilhete foi um daqueles a que ele respondeu, agradecendo o cartão e o pensamento. Ele escrevera com cuidado, com medo de se trair e dizer alguma coisa errada. Ela agora era uma mulher casa­da e isso estava além do controle dele, ou de sua capacidade de mo­dificar. Mas ele se lembrava, de fato, da conversa deles sobre sua mãe... e de muitas outras coisas daquela noite. O bilhete dela evocara toda à noite, e ele respondeu num estado de espírito doce­amargo, mais amargo do que doce. Ele ainda amava Sarah Brack­nell, e tinha de se lembrar constantemente de que ela se fora, tendo sido substituída por outra mulher, cinco anos mais velha e mãe de um menininho.

Puxou então uma única folha de papel de carta do envelope e leu depressa. Ela e o filho iam para Kennebunk, passar uma semana com a companheira de quarto de Sarah, dos dois primeiros anos da. universidade, uma moça hoje chamada Stephanie Constan­tine. Stephanie Carlsleigh então. Ela dizia que Johnny podia estar lembrado dela, mas Johnny não se recordou. Em todo caso, Walt estava preso em Washington por três semanas, a negócio da firma e do Partido Republicano, e Sarah achava que poderia tirar uma tarde para ir a Pownal visitar Johnny e Herb, se não fosse incomodar.

 

“Você pode falar comigo em casa de Steph, telefone 814-6219, entre os dias 17 e 23 de outubro. Naturalmente, se isso o incomo­dar de alguma maneira, é só me telefonar, para cá ou para lá, e di­zer. Eu compreendo. Muitas saudades de vocês dois. Sarah”.

 

Segurando a carta em uma das mãos, Johnny olhou pelo quin­tal para os bosques, que se tinham tornado avermelhados e dou­rados aparentemente na semana anterior. Em breve as folhas esta­riam caindo, e então chegaria o inverno.

“Muitas saudades de vocês dois. Sarah”. Ele passou o polegar pelas palavras, pensativo. Seria melhor não telefonar, nem escrever, não fazer nada, pensou. Ela entenderia. Como a mulher que enviara o cachecol... de que poderia adiantar? Para que procurar sarna para se coçar? Sarah poderia usar aquela frase, muitas saudades, com facilidade, mas ele não. Não tinha se refeito da mágoa passada. Para ele, o tempo tinha sido brutalmente dobrado, grampeado e mutilado. Na progressão de seu próprio tempo interior, ela fora sua namorada havia apenas seis meses. Ele podia aceitar a coma e a perda de tempo de um modo intelectual, mas suas emoções resis­tiam, obstinadas. Responder ao cartão de pêsames dela não fora difícil, mas no caso de um bilhete era sempre possível amassar tudo e recomeçar, se ele começasse a ir em direções em que não devesse, se começasse a passar dos limites da amizade, que era só o que eles hoje podiam partilhar. Se ele a visse, poderia fazer ou dizer alguma tolice. Era melhor não telefonar, Melhor deixar morrer.

Mas ele telefonaria, pensou. Telefonaria e convidaria para lá.

Perturbado, guardou o bilhete no envelope.

O sol brilhou sobre o cromo reluzente e refletiu uma flecha de luz nos olhos dele. Um Ford sedã estava subindo pelo caminho de cascalho. Johnny apertou os olhos, tentando verificar se era um carro conhecido. Era raro eles terem visitas. Tinha vindo muita correspondência, mas só três ou quatro vezes tinham vindo pessoas ali. Pownal era pequenina no mapa, difícil de encontrar. Se o carro de fato fosse de alguém em busca de conhecimentos, Johnny o despa­charia depressa, o mais amavelmente possível, mas com energia. Fora o último conselho de Weizak. Bom conselho, pensou Johnny.

— Não deixe que ninguém lhe atribua o papel de mestre con­sultor, John. Não encoraje as pessoas, e elas se esquecerão. A prin­cípio pode até parecer-lhe maldade — muitas são apenas pessoas desorientadas com problemas demais e as melhores intenções —, mas trata-se da sua vida, da sua privacidade. Portanto, seja enér­gico.

E ele o fora.

O Ford entrou no espaço entre o galpão e o monte de lenha, e, quando deu a volta, Johnny viu o pequeno plástico da Hertz no canto do pára-brisa. Um homem muito alto, com calças jeans muito novas e uma camisa de padrão escocês que parecia ter saído da loja naquele momento, saltou do carro e olhou em volta. Tinha um ar de quem não está acostumado com o campo, de quem sabe que não existem mais lobos nem pumas na Nova Inglaterra, mas que assim mesmo quer certificar-se. Um homem da cidade. Ele olhou para a varanda, viu Johnny e levantou uma das mãos, cumprimentando-o.

— Boa tarde — disse ele. Também tinha um sotaque chão, da cidade (do Brooklyn, pensou Johnny); e parecia estar falando atra­vés de uma lata de biscoitos.

— Olá — disse Johnny. — Está perdido?

— Rapaz, espero que não — disse o estranho, aproximando­se do pé da escada. — Ou você é John Smith, ou é o irmão gêmeo dele.

Johnny riu.

— Não tenho irmão, de modo que parece que você encontrou o lugar certo. Posso ajuda-lo em alguma coisa?

— Bem, talvez nós dois possamos nos ajudar mutuamente. —O forasteiro subiu a escada e estendeu a mão. Johnny apertou-a.

— Meu nome é Richard Dees. Da revista Inside View.

Os cabelos dele estavam cortados num estilo da moda, até as orelhas, e era grisalho. Tingido de grisalho, pensou Johnny, achando certa graça. O que se podia dizer de um homem que parecia estar falando através de uma lata de biscoitos e tingia os cabelos de grisalho?

— Talvez já tenha visto a revista.

— Ah, já vi, sim. É vendida nas caixas do supermercado. Não estou interessado em conceder entrevistas. Sinto que tenha feito essa viagem até aqui à toa.

A revista era vendida no supermercado, mesmo. As manchetes só faltavam saltar das páginas do pasquim para assaltar a pessoa.

 

CRIANÇA MORTA POR CRIATURAS DO ESPAÇO, MÃE DESESPERADA CHORA.

OS ALIMENTOS QUE ESTAO ENVENENANDO OS SEUS FILHOS.

DOZE MÉDIUNS PREDIZEM TERREMOTO NA CALIFÓRNIA EM 1978.

 

—    Bem, uma entrevista não era exatamente o que estávamos pretendendo — disse Dees. — Posso sentar-me?

—    Verdade, eu...

—    Sr. Smith, vim até aqui de Nova York de avião; de Boston vim num aviãozinho que me fez pensar no que aconteceria com a minha mulher se eu morresse sem fazer testamento.

—    Portland-Bangor Airways? — perguntou Johnny, rindo.

—    Isso aí — concordou Dees.

—    Está bem, então — disse Johnny. — Estou impressionado com a sua coragem e dedicação ao trabalho. Vou escutar, mas só por uns quinze minutos. Tenho de dormir, todas as tardes. — Era uma mentirinha diplomática.

—    Quinze minutos devem bastar. — Dees inclinou-se para a frente. — Estou dando apenas um palpite aproximado, Sr. Smith, mas avalio que o senhor deve estar devendo algo como duzentos mil dólares. Acertei mais ou menos no alvo?

O     sorriso de Johnny foi se apagando.

—    O que eu devo ou deixo de dever — disse ele — é da minha conta.

—    Está bem, certo, claro. Não quis ofende-lo, Sr. Smith. A Inside View gostaria de lhe oferecer um emprego. Um emprego bem vantajoso.

—    Não. Positivamente, não.

—    Se me der à oportunidade de lhe explicar...

Johnny declarou:

—    Não sou médium profissional. Não sou uma Jeanne Dixon, um Edgar Cayce ou um Alex Tannous. Isso acabou. A última coisa que eu desejaria fazer seria ressuscitar tudo isso.

—    Pode dar-me apenas alguns momentos?

—    Sr. Dees, o senhor parece que não compreendeu o que eu...

—    Só alguns momentos? — Dees sorriu, cativante.

—    Como é que descobriu onde eu estava, afinal?

—    Temos um correspondente num jornal do centro do Maine chamado Journal, de Kennebec. Ele disse que, embora tivesse desa­parecido do cenário público, provavelmente você estaria morando com seu pai.

—    Bem, devo a ele uns agradecimentos, não?

—    Claro — disse Dees, displicente. — Aposto que vai achar isso quando ouvir tudo o que tenho a dizer. Posso falar?

—    Está bem — disse Johnny. — Mas, só porque veio para cá pela Viação Aérea do Pânico não vou mudar de idéia.

—    Bom, seja como quiser. O país é livre, não é? Claro. A Inside View especializa-se numa visão parapsicológica das coisas, Sr. Smith, como o senhor provavelmente sabe. Para dizer a verdade, os nossos leitores são loucos por esse negócio. Temos uma circulação semanal de três milhões. Três milhões de leitores por semana, Sr. Smith, que acha disso? Como o conseguimos? Nós valorizamos tudo o que seja otimista, espiritual...

— “Bebês gêmeos mortos por urso assassino” — murmurou Johnny.

Dees deu de ombros.

—    Claro, bem, esse mundo é duro, não é? As pessoas têm de ser informadas sobre esse tipo de coisa. Têm o direito de saber. Mas para cada artigo pessimista temos três que ensinam aos nossos leitores como emagrecer sem esforço, como encontrar a felicidade sexual e a compatibilidade, como se aproximar de Deus...

—    Acredita em Deus, sr. Dees?

—    Para dizer a verdade, não — disse Dees, com seu sorriso cativante. — Mas vivemos numa democracia, o maior país do mun­do, certo? Cada um é dono de sua alma. Não, o fato é que os nossos leitores acreditam em Deus. Acreditam em anjos e milagres...

— E exorcismo, demônios e missas negras...

—    Certo, certo, certo. O senhor compreendeu. Ë um público espiritual. Acreditam em toda essa besteira paranormal. Temos um total de dez paranormais contratados, inclusive Kathleen Nolan, a mais famosa vidente da América. Queríamos fazer um contrato com o senhor, Sr. Smith.

—    Queriam?

— Queríamos, sim. Sabe o que isso representaria para o se­nhor? A sua foto e uma coluna resumida sairiam aproximadamente umas doze vezes por ano, quando publicamos um de nossos exem­plares “totalmente paranormais”. “Previsão do segundo mandato de Ford pelos dez famosos paranormais da Inside View”, esse tipo de coisa. Sempre organizamos um número de Ano-Novo e um no Dia da Independência sobre o rumo do país no ano se­guinte: é sempre um número muito informativo, uma porção de comentários sobre a política externa e econômica, além de outros assuntos variados.

—    Não creio que o senhor esteja entendendo — disse Johnny. Estava falando muito devagar, como quem fala com uma criança. — Tive alguns casos de precognição... suponho que se possa dizer que eu tenha “visto o futuro”... mas não tenho qualquer controle sobre isso. Eu poderia tanto fazer uma previsão para o segundo mandato de Ford... se é que vai haver tal coisa.., quanto ordenhar um touro.

Dees pareceu ficar horrorizado.

—    E quem é que disse que você deveria fazer isso? São os redatores da revista que escrevem todas essas colunas.

—    Redatores...? — Johnny fitou Dees boquiaberto, final­mente chocado.

—    Claro — disse Dees, impaciente. — Olhe. Um de nossos camaradas mais populares nos últimos anos tem sido Frank Ross, o cara que se especializa em catástrofes naturais. Um cara muito legal, mas, Deus, ele abandonou os estudos no nono ano. Serviu no exército e depois estava fazendo limpeza nos ônibus no terminal da Administração dos Portos de Nova York, quando o encontramos. Acha que o deixaríamos escrever a coluna dele? Ia escrever tudo errado.

—    Mas as previsões...

—    Carta branca, só carta branca. Mas é de espantar quantas vezes esses caras e donas se enrascam com uma mentira de verdade.

—    Mentira de verdade — repetiu Johnny, assombrado.

Ficou um pouco espantado ao ver que estava ficando meio zan­gado. Sua mãe tinha comprado a Inside View desde que ele se lembrava das coisas, desde os dias em que publicavam fotos sangrentas de desastres de automóvel, decapitações e execuções de con­trabandistas. Ela acreditava piamente em tudo aquilo. Supostamen­te, a maior parte dos outros 2.999.999 leitores da Inside View também acreditavam. E lá estava aquele camarada de cabelos grisa­lhos tingidos, sapatos de quarenta dólares e camisa ainda com as dobras da loja, falando de mentiras.

—    Mas dá tudo certo — dizia Dees. — Se você se enrascar, basta nos telefonar a cobrar e levamos o caso para a oficina juntos e damos um jeito. Temos o direito de compilar as suas colunas no nosso anuário, mude Views of Tbings to Come. Mas você tem toda a liberdade de assinar qualquer contrato que quiser com uma edi­tora de livros. Só nos reservamos a primeira opção sobre os direitos de revistas, e quase nunca recusamos, posso lhe garantir. E pagamos muito bem. Isso é além da importância do contrato. Ouro sobre azul, eu diria. — Dees riu.

E quanto seria isso? — perguntou Johnny, devagar. Estava agarrando com força os braços da cadeira de balanço. Uma veia em sua têmpora direita latejava ritmadamente.

     —      Trinta mil dólares por ano, por dois anos — disse Dees. —E, se você se tornar popular, essa cifra poderá ser renegociada. Ora, todos os nossos médiuns têm um setor de especialização. Parece-me que você é bom com objetos. — Os olhos de Dees se entrefecharam, sonhadores. — Imagino uma reportagem regular. Quinzenal, tal­vez... não queremos estragar uma coisa boa. “John Smith convida os leitores da Inside View para enviarem seus pertences pessoais para exame psíquico...” Uma coisa assim. Nós avisaríamos, eviden­temente, que deveriam enviar objetos baratos, pois nada seria devolvido. Mas você ficaria espantado. Algumas pessoas são loucas de pedra, que Deus as tenha. Ficaria espantado ao ver algumas das coisas que chegariam. Brilhantes, moedas e ouro, alianças.., e po­díamos acrescentar ao seu contrato um aditamento especificando que todos os objetos enviados se tornariam sua propriedade par­ticular.

Johnny então começou a ver uns tons de vermelho-fosco diante dos olhos.

—    As pessoas mandariam as coisas e eu as guardaria. É isso o que está dizendo.

—    Claro, não vejo problema algum nisso. É apenas uma ques­tão de respeitar os regulamentos. Um pouco mais de ouro sobre azul.

—    Suponhamos — disse Johnny com cuidado, conservando a voz calma e modulada —, suponhamos que eu me enrascasse com uma mentira, como diz você.., e telefonasse dizendo que o presi­dente Ford ia ser assassinado no dia 31 de setembro de 1976? Não porque eu o sentisse, mas só porque estivesse enrascado?

—    Bom, setembro só tem trinta dias, sabe — disse Dees. — Mas, quanto ao resto, acho que é a sorte grande. Você vai ser exce­lente. Pensa em termos grandiosos. Ficaria espantado ao ver quantos desses caras pensam de modo mesquinho. Acho que têm medo de pôr a boca onde está o dinheiro. Um dos nossos caras — Clark, de Idaho — escreveu há duas semanas dizendo que tinha tido um pres­sentimento de que Earl Butz ia ser obrigado a renunciar no ano que vem. Bem, com o perdão da palavra, quem lá quer saber dessa porra? Quem é Earl Butz para a dona-de-casa americana? Mas você tem bons fluidos, Johnny. Foi feito para esse negócio.

—    Bons fluidos — murmurou Johnny.

Dees estava olhando para ele, curioso.

—    Está se sentindo bem, Johnny? Está meio pálido.

Johnny estava pensando na senhora que mandara o cachecol. Provavelmente também era leitora da Inside View.

—    Deixe-me ver se consigo resumir isso — disse ele. — Vocês me pagariam trinta mil dólares por ano pelo meu nome...

—    E sua foto, não se esqueça.

—    E a minha foto, por algumas colunas escritas por outros. Também uma seção em que eu digo às pessoas o que quiserem saber sobre os objetos que me mandam. Como atração extra, posso guar­dar os objetos...

—    Se os advogados puderem arranjar isso...

—    ... como minha propriedade pessoal. É esse o negócio?

—    Esse é o esquema do negócio, Johnny. Do jeito como essas coisas crescem, é assombroso. Dentro de seis meses você será intimo de todas as casas, e, depois disso, o céu é o limite. O programa de Carson na TV. Apresentações. Excursões de palestras. O seu livro, claro, é só escolher a editora, estão cobrindo os médiuns de dinheiro nas editoras. Kathy Nolan começou com um contrato como o que estamos lhe oferecendo e hoje está ganhando mais de duzentos mil por ano. Além disso, fundou sua própria igreja, e a Delegacia de Imposto de Renda não pode tocar em um centavo do dinheiro dela. Ela não perde uma, a nossa Kathy. — Dees debruçou-se, sorrindo.

—    Estou lhe dizendo, Johnny, o céu é o limite.

—    Imagino.

—    Então? O que é que acha?

Johnny debruçou-se para junto de Dees. Agarrou a manga da camisa nova de Dees com uma das mãos e o colarinho da camisa nova de Dees com a outra.

—    Ei! Que diabo acha que está fa...

Johnny juntou a camisa com ambas as mãos e puxou Dees para a frente. Cinco meses de exercícios diários tinham fortalecido incri­velmente os músculos de suas mãos e de seus braços.

—    Você me perguntou o que eu achava — disse Johnny. Sua cabeça estava começando a latejar e doer. — Vou lhe dizer. Acho que você é um demônio necrófago. Um ladrão de cemitério dos sonhos das pessoas. Acho que alguém devia levá-lo para trabalhar como desentupidor de esgotos. Acho que sua mãe devia ter morrido de câncer um dia depois que o concebeu. Se houver um inferno, espero que você vá arder lá.

—    Você não pode falar comigo assim! — exclamou Dees. Sua voz tornou-se aguda como um grito de peixeira. — Você está fodido de doido! Esqueça! Esqueça tudo, seu caipira burro, filho da puta! Teve a sua oportunidade! Não me venha rastejar aqui...

—    E, o que é pior, você que fala por uma lata de biscoitos — disse Johnny, levantando-se, e levantando Dees com ele. As fraldas da camisa deste se soltaram do cós dos jeans novos, mostrando uma camiseta de malha por baixo. Johnny começou a sacudir Dees meto­dicamente, de um lado para outro. Dees esqueceu-se de que estava zangado. Começou a choramingar e a berrar.

Johnny arrastou-o até a escada da varanda, levantou um dos pés e plantou-o bem no traseiro da calça Levis nova. Dees caiu em dois passos grandes, ainda choramingando e berrando. Caiu na poei­ra, esparramado. Quando se levantou para enfrentar Johnny, suas roupas de turista no campo estavam cheias de terra de quintal. Aquilo as fez parecer um pouco mais reais, pensou Johnny, mas duvidava de que Dees apreciasse isso.

—    Eu devia chamar a polícia — disse ele, em voz rouca. —E talvez chame.

—    Faça o que bem entender — disse Johnny. — Mas a lei aqui não vê com muito bons olhos os que metem o bedelho onde não são chamados.

O     rosto de Dees estava crispado numa expressão aflitiva de medo, raiva e choque.

—    Que Deus o ajude se um dia precisar de nós — disse ele.

Johnny agora estava com uma dor de cabeça lancinante, mas conseguiu controlar a voz.

—    Isso mesmo — disse ele. — Estou de pleno acordo.

—    Você vai se arrepender, sabe? Três milhões de leitores. Isso é uma faca de dois gumes. Quando acabarmos com você, o pessoal dessa terra não acreditaria em você nem que previsse quando começa a primavera. Nem que dissesse que o Natal é em dezembro. Nem que dissesse... — Dees gaguejou, furioso.

—    Dê o fora daqui, seu veado! — disse Johnny.

—    Pode esquecer aquele livro! — gritou Dees, aparentemente resumindo o pior que lhe podia ocorrer. Com o rosto contorcido e a camisa cheia de terra, parecia um garoto fazendo uma manha dos diabos. O sotaque do Brooklyn tinha se acentuado a ponto de se tornar quase um dialeto. — Você há de servir de escárnio para todas as editoras de Nova York! Nem editora de livro de banca de jornal chegará perto de você, depois que eu o liquidar! Há manei­ras de se lidar com espertinhos como você, e nós sabemos quais são, cabeça de porra! Nós...

—    Acho que vou buscar a minha carabina e atirar num intruso — comentou Johnny.

Dees recuou até o carro alugado, ainda berrando ameaças e obscenidades. Johnny ficou ali na varanda, olhando para ele, a ca­beça latejando terrivelmente. Dees entrou no carro, ligou-o furiosamente e saiu à toda, espalhando nuvens de pó no ar. Deixou o carro desviar-se o suficiente para bater no cepo de cortar lenha junto do galpão. Johnny riu um pouco, apesar da dor de cabeça. Ele po­deria consertar o cepo muito mais facilmente do que Dees explicar o amassado no pára-lama do Ford ao pessoal da Hertz.

O     sol da tarde novamente brilhou sobre os cromados, enquanto Dees foi esparramando cascalho pelo caminho até a estrada. Johnny tornou a se sentar na cadeira de balanço e apoiou a testa na mão, preparando-se para esperar que a dor de cabeça passasse.

 

—    Você vai fazer o quê? — perguntou o banqueiro.

Lá fora e embaixo, o tráfego passava de um lado para outro pela bucólica rua principal de Ridgeway, New Hampshire. Nas pa­redes de lambris de pinho do gabinete do banqueiro, no terceiro andar, havia gravuras de Frederick Remington e fotos do banqueiro em funções locais. Sobre sua secretária havia um cubo de lucite, e, embutidos nesse cubo, fotos da mulher e do filho.

—    Vou candidatar-me à Câmara de Deputados no ano que vem — repetiu Greg Stillson.

Estava vestidos com calças cáquis, camisa azul com mangas arre­gaçadas e uma gravata preta com uma figura azul. Por algum mo­tivo, parecia deslocado no gabinete o banqueiro, como se a qual­quer momento pudesse levantar-se e começar uma destruição sem propósito pela sala, derrubando os móveis, jogando ao chão a gra­vuras de Remington em suas molduras caras, puxando as cortinas dos trilhos.

O     banqueiro, Charles “Chuck” Gendron, presidente do Lions Club local, riu, meio inseguro. Stillson tinha o dom de fazer as outras pessoas sentir-se inseguras. Em menino ele fora franzino, tal­vez; gostava de contar que “uma rajada forte de vento teria me levado”; mas no final os genes do pai tinham dominado, e, sentado ali no gabinete de Gendron, parecia o trabalhador durão de campo de petróleo que fora o pai.

Franziu a cara diante da risada de Gendron.

—    Quero dizer, George Harvey pode ter alguma coisa a ver com isso, não, Greg? — George Harvey, além de ser o maioral na política da cidade, era o chefão do terceiro distrito republicano.

—    George não vai estrilar — disse Greg, com calma. Em seus cabelos havia tons grisalhos, mas seu rosto de repente se assemelhou ao rosto do homem que, havia muito tempo, tinha matado um cão a pontapés num quintal de fazenda em Iowa. Sua voz era paciente. — George vai estar entre os espectadores, mas do meu lado, se me entende bem. Não vou atrapalhá-lo, pois vou concorrer como inde­pendente. Não tenho vinte anos para gastar aprendendo os truques e lambendo botas.

Chuck Gendron disse, hesitante:

—    Você está brincando, não está, Greg?

Greg voltou a franzir a testa, numa expressão proibitiva.

—    Chuck, eu nunca brinco. As pessoas... elas pensam que estou brincando. O Union-Leader e aqueles idiotas do Daily De­mocrat pensam que estou brincando. Mas vá procurar George Harvey. Pergunte a ele se eu ando brincando, ou se consigo as coisas Você também já devia saber disso. Afinal, já fizemos algumas jun­tos, não, Chuck?

A expressão de Greg tornou-se um sorriso meio ameaçador... ameaçador para Gendron, talvez, porque ele se deixara levar a cooperar em alguns dos projetos de loteamento de Greg Stillson. Eles tinham ganho dinheiro, sim, claro que tinham, não era esse o problema. Mas havia alguns aspectos do projeto de desenvolvimento de Sunningdale Acres (e o negócio da Laurel Estates também, para ser honesto) que não tinham sido.., bem, rigorosamente legais. Um agente do EPA* subornado, por exemplo, mas isso não era o pior.

No negócio da Laurel Estates houvera um velho na Estrada Back Ridgeway que não quisera vender, e, primeiro, as catorze ga­linhas do velho morreram uma doença misteriosa; segundo, houve um incêndio no depósito de batatas do velho; terceiro, quan­do o velho voltou de uma visita à irmã, que estava num asilo em Keene, num fim de semana não havia muito tempo, alguém tinha espalhado bosta de cachorro por toda a sala de estar e de jantar do velho; quarto, o velho acabou vendendo; e quinto, a Laurel Estates agora era uma realidade.

E, talvez, sexto: Sonny Elliman, aquele motoqueiro, estava rondando as vizinhanças de novo. Ele e Greg eram chapas, e a única coisa que impedia que isso virasse fofoca na cidade era o fato compensador de que Greg era visto em companhia de uma porção de viciados, hippies, gente esquisita e motoqueiros, resultado direto do Centro de Consultas e Entorpecentes que ele tinha fundado, mais o programa meio fora do comum de Ridgeway para lidar com jovens delinqüentes metidos com álcool, entorpecentes e infrações de trân­sito. Em vez de multá-los ou prendê-los, o município os fazia pagar em serviços. Tinha sido idéia de Greg... e uma boa idéia, o ban­queiro era o primeiro a reconhecer. Tinha sido uma das coisas que ajudara Greg a se eleger prefeito.

Mas isso... era loucura total.

Greg tinha dito mais alguma coisa. Gendron não sabia bem o quê.

—    Como? — disse ele.

—    Perguntei se você queria ser o coordenador de minha cam­panha — repetiu Greg.

—    Greg... — Gendron teve de pigarrear e recomeçar. — Greg, parece que você não está compreendendo. Harrison Fisher é o deputado do terceiro distrito em Washington. Harríson Fisher é republicano, respeitado e provavelmente eterno.

—    Ninguém é eterno — disse Greg.

—    Harrison está bem perto disso — disse Gendron. — Per­gunte a Harvey. Foram colegas de colégio. Por volta de 1800, acho.

Greg não deu atenção àquela pilhéria débil.

—    Vou me intitular Alce Machão, ou coisa que o valha... e todo mundo vai achar que estou brincando... e, no final, a boa gente do terceiro distrito vai me eleger, sempre rindo, para Washington.

 

* “Environmental Protection Agency”: Agência de Proteção ao Meio Am­biente. (N. do T.)

 

—    Greg, você está maluco.

O     sorriso de Greg desapareceu como se nunca tivesse existido. Alguma coisa extraordinária passou-se com a fisionomia dele. Tor­nou-se muito quieta, e seus olhos se arregalaram, mostrando demais o branco. Pareciam os olhos de um cavalo que cheira água podre.

—    Não diga uma coisa dessas, Chuck. Nunca.

O     banqueiro então sentiu-se mais que ameaçado.

—    Greg, peço desculpas. Ë só que...

—    Não, nunca vai me dizer isso, a não ser que queira encon­trar Sonny Elliman à sua espera, uma tarde dessas, quando sair para pegar a porra do seu Imperial.

Gendron mexeu a boca, mas não emitiu som algum.

Greg tomou a sorrir, e parecia o sol saindo por trás de nuvens ameaçadoras.

—    Não tem importância. Não vamos discutir, se vamos tra­balhar juntos.

—    Greg...

—    Eu quero você porque conhece todos os raios de homens de negócios desta zona de New Hampshire. Vamos ter bastante di­nheiro bom, depois que tocarmos esse negócio, mas acho que vamos ter de escorvar a bomba. Está na hora de eu me expandir um pouco, e começar a parecer um homem de importância estadual, além de Ridgeway. Calculo que cinqüenta mil dólares devam bastar para fertilizar as raízes do capim.

O     banqueiro, que trabalhara para Harrison Fisher nas suas qua­tro últimas campanhas, ficou tão abismado diante da ingenuidade política de Greg que a princípio não sabia como proceder. Por fim, disse:

—    Greg, os homens de negócios contribuem para as campa­nhas não devido à bondade de seus corações, e sim porque o ven­cedor acaba lhes devendo alguma coisa. Numa campanha difícil, contribuem para qualquer candidato que tenha a possibilidade de vencer, porque podem eliminar o derrotado como perda de imposto, também. Mas a frase operante é possibilidade de vencer. Ora, Fisher é uma...

—    Barbada — sugeriu Greg. Puxou um envelope do bolso de trás. — Quero que você olhe para isto.

Gendron olhou para o envelope, hesitando; depois para Greg, que lhe fez um sinal de encorajamento. O banqueiro abriu o en­velope.

Fez-se um silêncio prolongado no gabinete de lambris de pinho) depois da primeira exclamação abafada de Gendron. O silêncio não foi interrompido, a não ser pela vibração fraca do relógio digital na secretária do banqueiro e o riscar do fósforo, quando Greg acen­deu um charuto. Nas pareces do gabinete estavam as gravuras de Frederick Remington. No cubo de lucite, as fotos de família. Agora, espalhadas sobre a secretária, havia fotos do banqueiro com a cabeça entre as coxas de uma moça de cabelos pretos.., ou podiam ser ruivos, as fotos eram em branco e preto, em papel brilhante, granu­ladas, e era difícil dizer. O rosto da mulher estava bem nítido. Não era o rosto da mulher do banqueiro. Alguns residentes de Ridgeway poderiam reconhecê-lo como o rosto de uma das garçonetes da lan­chonete de caminhões de Bobby Strang, duas cidades além.

As fotos do banqueiro com a cabeça entre as pernas da garço­nete não eram comprometedoras: o rosto dela estava nítido, mas o dele, não. Em outras, a própria avó o teria reconhecido. Havia fotos de Gendron e da garçonete envolvidos em todas as posições do Kama-sutra, mas havia várias posições que não chegavam a entrar no capítulo de “Relacionamentos sexuais” do manual de saúde do ginásio de Ridgeway.

Gendron levantou os olhos, o rosto pastoso, as mãos trêmulas. Seu coração estava galopando no peito. Receou ter um enfarte.

Greg não estava nem olhando para ele. Estava olhando para fora, pela janela, para o pedaço de céu azul de outubro, visível entre as lojas Ridgeway Five and Ten e a Ridgeway Card and Notion Shoppe.

— Os ventos da mudança começaram a soprar — disse ele, com uma expressão distante e preocupada, quase mística. Olhou para Gendron. — Um daqueles viciados lá do centro, sabe o que ele me deu?

Chuck Gendron sacudiu a cabeça, mudo. Com uma das mãos trêmulas, estava fazendo uma massagem no lado esquerdo do tórax, por via das dúvidas. Seus olhos voltavam para as fotos, a todo minuto. As fotos incriminadoras. E se a secretária dele entrasse naquela hora? Parou de esfregar o peito e começou a juntá-las, re­colocando-as no envelope.

— Deu-me o livrinho vermelho do presidente Mao — disse Greg. Uma risada subiu do seu tórax forte, antigamente tão magro, parte de um corpo que enojara o pai idolatrado. — E um dos pro­vérbios ali.., não consigo me lembrar exatamente como era, mas uma coisa assim: ‘O homem que sente o vento da mudança não deve construir um quebra-vento, mas um moinho de vento”. Era esse o sentido, em todo caso.

Ele debruçou-se.

— Harrison Fisher não é uma barbada, ele já era. Ford já era. Muskie já era. Humphrey já era. Uma porção de políticos muni­cipais e estaduais por todo este país vão acordar um dia depois da eleição e descobrir que estão tão mortos quanto uma espécie extinta. Obrigaram Nixon a sair, e no ano seguinte obrigaram a sair as pessoas que o apoiaram nas audiências do impeachment, e no ano que vem vão obrigar Jerry Ford a sair pelo mesmo motivo.

Os olhos de Greg Stillson faiscaram para o banqueiro.

—    Quer ver a onda do futuro? Olhe só para esse cara, Longley, do Maine. Os republicanos apoiaram um cara chamado Erwin e os democratas, um cara chamado Mitchell, e, quando contaram os votos para governador, os dois partidos tiveram uma grande surpre­sa, pois o povo foi e elegeu um segurador de Lewiston, que não queria saber de nenhum dos partidos. Agora estão falando dele como um candidato ignorado para presidente.

Gendron ainda não conseguia falar.

Greg prendeu a respiração.

— Todos vão pensar que estou brincando, sabe? Pensaram que Longley estava brincando. Mas eu não estou brincando. Estou cons­truindo moinhos de vento. E é você quem vai fornecer o material de construção.

Calou-se. Fez-se silêncio no gabinete, a não ser pela vibração do relógio. Por fim, Gendron murmurou:

— Onde você arranjou essas fotos? Foi esse Elliman?

— Ora, puxa! Não vale a pena falar sobre isso. Esqueça-as. Pode guardá-las.

— E quem guarda os negativos?

— Chuck — disse Greg, sério —, você não entende que estou lhe oferecendo Washington? O céu é o limite, rapaz! Nem estou lhe pedindo para levantar todo esse dinheiro. Como já disse, apenas um balde de água para ajudar a escorvar a bomba. Depois que o negócio estiver acertado, vai entrar um bocado de dinheiro. Ora, você conhece os camaradas que têm o dinheiro. Almoça com eles lá em Caswell House. Joga pôquer com eles. Tem feito empréstimos comerciais à taxa preferencial do mercado, quando pedem. E sabe como encurralá-los.

—    Greg, você não compreende, não...

Greg levantou-se.

—    Assim como acabei de encurralá-lo — disse ele.

O     banqueiro olhou para ele, os olhos se revirando, desampara­do. Greg Stillson achou que ele parecia um carneiro sendo levado para o matadouro.

—    Cinqüenta mil dólares — disse ele. — Arranje.

E saiu da sala, fechando a porta com cuidado. Gendron ouviu sua voz forte, mesmo através das paredes grossas, mexendo com a secretária. A secretária dele era uma mulher de sessenta anos, de peito chato, e Stillson provavelmente a estava fazendo dar risadas como uma colegial. Era um palhaço. Isso e seus programas para resolver os problemas da delinqüência juvenil é que o haviam feito prefeito de Ridgeway. Mas o povo não elegia palhaços para Washington.

Bem.., quase nunca.

Não era esse o problema dele. O problema eram cinqüenta mil dólares, de contribuição para uma campanha. Sua cabeça co­meçou a girar em volta do problema, como um camundongo branco treinado gira em volta de um pedaço de queijo num prato. Prova­velmente era exeqüível. Sim, provavelmente.., mas acabaria aí?

O envelope branco continuava na mesa dele. Sua mulher, sor­ridente, olhava para ele de seu lugar no cubo de lucite. Ele pegou o envelope e o enfiou no bolso de dentro do paletó do temo. Fora Elliman; de algum modo Elliman descobrira e tirara as fotos, ele tinha certeza.

Mas Stillson é quem lhe dizia o que fazer.

Talvez o homem não fosse tão palhaço assim. O seu exame do ambiente político de 1975-76 não era completamente estúpido. “Construir moinhos de vento em vez de quebra-ventos.., o céu e o limite.”

Mas não era esse o seu problema. Eram os cinqüenta mil dólares.

Chuck Gendron, presidente do Lions e boa-praça (no ano an­terior ele andara numa daquelas motos pequenas, engraçadas, na parada do Dia da Independência, em Ridgeway), puxou um bloco amarelo da gaveta de cima da secretária e começou a anotar uma lista de nomes. O camundongo branco trabalhando. E, na Main Street, Greg Stillson virou o rosto para cima, no sol forte do outono, e felicitou-se por um trabalho bem-feito.., ou bem começado.

 

Mais tarde, Johnny supôs que o motivo pelo qual acabou fa­zendo amor com Sarah — quase exatamente cinco anos depois da feira teve muita coisa a ver com a visita de Richard Dees, o homem da Inside View. O motivo pelo qual ele afinal fraquejou e convidou Sarah para visitá-lo foi pouco mais que uma necessidade triste de ter uma visita agradável para tirar o mau gosto da boca. Ou foi o que disse para si mesmo.

Ligou para ela em Kennebunk; atendeu a ex-companheira de quarto, dizendo que ia chamar Sarah. O fone foi largado, e seguiu-se um momento de silêncio em que ele considerou (mas não muito a sério) a idéia de apenas desligar e encerrar o assunto de vez. Depois ouviu a voz de Sarah.

— Johnny? É você?

— O próprio.

— Como está?

— Bem. E você?

— Estou bem — disse ela. — Que bom que você tenha tele­fonado. . . eu não sabia se você iria ligar.

— Continua com a cocaína?

— Não, agora estou na heroína.

— O seu filho está com você?

— Claro. Não ando sem ele, para canto nenhum.

— Bom, por que vocês dois não vêm até aqui um dia desses, antes de terem de voltar para o norte?

— Eu gostaria, Johnny.

— Meu pai está trabalhando em Westbrook, e sou o cozinhei­ro-chefe e lavador de louça. Ele chega por volta das quatro e meia da tarde, e comemos por volta das cinco e meia. Está convidada para o jantar, mas fique prevenida: todos os meus melhores pratos são à base de espaguete franco-americano.

Ela deu uma risada.

— Convite aceito. Qual é o melhor dia?

— Que tal amanhã ou depois, Sarah?

— Amanhã está bem — disse ela, depois de hesitar um ins­tante. — Até lá.

— Cuide-se, Sarah.

— Você também.

Ele desligou, pensativo, sentindo-se ao mesmo tempo excitado e culpado... sem motivo válido. Mas os pensamentos da gente iam para onde queriam, não é? E no momento os seus pensamentos queriam considerar possibilidades que era melhor deixar sem ex­plorar.

“Bem, ela sabe o que precisa saber. Sabe a que horas meu pai chega a casa... o que mais precisa saber.”

E seus pensamentos se respondiam: “O que você vai fazer se ela aparecer ao meio-dia?”

“Nada”, respondeu ele, sem acreditar muito. Só de pensar em Sarah, na forma de seus lábios, na pequena inclinação para cima dos olhos verdes... isso já bastava para fazê-lo sentir-se fraco, mole e um pouco desesperado.

Johnny foi para a cozinha e começou a preparar o jantar daquela noite, não tão importante, para dois. Pai e filho se ajeitando. Não tinha sido assim tão ruim. Ele ainda estava convalescendo. Ele e o pai tinham conversado sobre os quatro anos e meio que ele perde­ra, sobre a mãe... com rodeios cuidadosos, mas sempre parecendo aproximar-se um pouco mais do centro, numa espiral mais apertada. Sem precisar compreender, talvez, mas precisando chegar a um acordo. Não, não fora tão mau assim. Era um meio de acabar de concatenar as coisas. Para os dois. Mas isso acabaria em janeiro, quando ele voltasse para Cleaves Mills, para lecionar. Ele recebera o contrato por meio ano de Dave Pelsen na véspera, e o assinara e devolvera. O que é que o pai faria, então? Continuaria, era o que Johnny supunha. As pessoas têm meios de fazer isso, apenas con­tinuar, resistindo sem grandes dramas, nem onda. Ele voltaria para visitar Herb sempre que pudesse, todos os fins de semana, se achasse que era o certo. Tantas coisas tinham ficado estranhas tão depressa, que o máximo que ele podia fazer era ir tateando como um cego numa sala desconhecida.

Pôs o assado no forno, foi para a sala, ligou a TV e tornou a desligá-la. Sentou-se e pensou em Sarah. “O bebê”, pensou ele. “O bebê será nosso acompanhante se ela vier cedo”. Então, estava tudo bem. Tudo providenciado.

Mas seus pensamentos continuavam arrastados e cheios de con­jecturas inquietantes.

 

Ela chegou ao meio-dia e catorze, do dia seguinte, dirigindo um bonito carrinho vermelho, marca Pinto, estacionando-o, saltan­do, alta e linda, os cabelos louro-escuros esvoaçando ao vento ameno de outubro.

—    Oi, Johnny! — disse ela, acenando.

—    Sarah! — Ele desceu para recebê-la; ela levantou o rosto e ele beijou-lhe a face, de leve.

—    Deixe que eu pegue o imperador — disse ela, abrindo a porta do lado direito.

—    Posso ajudar?

—    Não, nós nos arranjamos muito bem os dois, não é, Denny?

Vamos, garoto. — Com movimentos experientes, ela soltou os cintos que prendiam um bebê gorducho no assento do carro, e tirou­-o dali. Denny olhou em volta do quintal com um interesse solene, e depois seus olhos se fixaram em Johnny e pararam. Ele sorriu.

—    Vig! — disse Denny, agitando ambas as mãos.

—    Acho que ele quer ir com você — disse Sarah. — Muito raro. Denny tem as sensibilidades republicanas do pai.., é meio reservado. Quer segurá-lo?

— Claro — disse Johnny, meio na dúvida.

Sarah riu.

—    Ele não vai quebrar você, e você não vai deixá-lo cair — disse ela, entregando-lhe Denny. — Se o deixasse cair, ele prova­velmente se levantaria na mesma hora, que nem um joão-teimoso. É um bebê terrivelmente gordo!

— Vun bunk! — disse Denny, passando um dos braços em volta do pescoço de Johnny, satisfeito, e olhando para a mãe, bem à vontade.

— É realmente assombroso — disse Sarah. — Ele nunca se dá bem assim com as pessoas... Johnny? Johnny?

Quando o bebê passou o braço em volta do pescoço de Johnny, uma onda de sensações confusas o tinha dominado como uma água morna. Não havia nada de escuro, nada de perturbador. Tudo era muito simples. Não houve qualquer concepção do futuro nos pen­samentos do bebê. Nenhuma sensação de problemas. Nenhum sen­tido de infelicidade passada. E nenhuma palavra, só imagens fortes: calor, estar enxuto, a mãe, o homem que era ele.

—    Johnny? — Ela estava olhando para ele, apreensiva.

—    Hummmm?

—    Está tudo bem?

Ela está me perguntando sobre Denny, percebeu ele. Está tudo bem com Denny? Você vê dificuldades? Problemas?

— Está tudo bem — disse ele. — Podemos entrar, se você quiser, mas eu em geral fico na varanda. Daqui a pouco já vai ser hora de ficar em volta do fogo o tempo todo.

— Acho ótimo ficar na varanda. E Denny está com cara de quem quer explorar o quintal. Quintal legal é o que ele está di­zendo. Certo, garoto? — Ela emaranhou os cabelos dele, e Denny riu.

— Ele pode andar por aí?

— Contanto que não queira comer as lascas de lenha.

— Andei rachando um pouco de lenha — disse Johnny, pondo Denny no chão com o cuidado que teria com um vaso de porcelana Ming. — Bom exercício.

— Como é que você está? Fisicamente?

— Acho — disse Johnny, lembrando-se do tranco que dera em Richard Dees alguns dias antes — que estou tão bem quanto se poderia esperar.

— Que bom! Você estava meio deprimido, da última vez que o vi.

Johnny fez que sim.

—    As operações.

—    Johnny?

Ele olhou para ela e tornou a sentir aquela mistura estranha de conjecturas, culpa e algo como expectativa em suas entranhas. Os olhos dela estavam sobre o seu rosto, francos e abertos.

—    Sim?

—    Você se lembra.., da aliança?

Ele fez que sim.

—    Estava lá. Onde você disse que estaria. Eu a joguei fora.

—    Foi? — Ele não se mostrou muito surpreso.

—    Joguei fora e não falei nada para Walt. — Ela sacudiu a cabeça. — E não sei por quê. Isso tem me incomodado, desde então.

—    Não deixe que a incomode.

Estavam de pé na escada, um diante do outro. Ela havia cora­do, mas não desviou o olhar.

—    Há uma coisa que eu gostaria de terminar — disse ela, com simplicidade. — Uma coisa que nunca tivemos a oportunidade de terminar.

—    Sarah — começou ele, e parou. Não tinha idéia alguma do que dizer. Abaixo deles, Denny andou seis passos cambaleando e sentou-se com força. E riu, sem se importar à mínima.

—    Sim — disse ela. — Não sei se é certo ou errado. Eu amo Walt. É um bom homem, fácil de se amar. Talvez a única coisa que eu saiba é distinguir um homem bom de mau... aquele camarada com quem andei na universidade..., era um dos maus. Você me treinou para o outro tipo, Johnny. Sem você, eu nunca teria apreciado Walt pelo que ele é.

—    Sarah, você não precisa...

—    Preciso, sim — contradisse Sarah, com uma voz baixa e intensa. — Coisas como esta à gente só pode dizer uma vez. E, quer a gente acerte ou erre, acabou-se, de qualquer forma, pois é muito difícil tentar dizer de novo. — Olhou para ele, implorando. — Você entende?

—    Sim, acho que sim.

—    Eu o amo, Johnny — disse ela. — Nunca deixei de ama-­lo. Tentei convencer-me de que foi à vontade de Deus que nos se­parou. Não sei. Um cachorro-quente estragado é a vontade de Deus? Ou dois garotos apostando corrida numa estrada do interior no meio da noite? Eu só quero... — A voz dela assumira uma ênfase especial, sem expressão, que parecia bater na fria tarde de outubro como o martelinho de um artesão bate numa chapa fina e preciosa

— eu só quero o que nos foi roubado. — A voz dela falseou. Ela olhou para baixo. — E quero de todo o coração, Johnny. E você?

—    Sim — disse ele. Abraçou-a e ficou confuso quando ela sacudiu a cabeça e afastou-se.

—    Não na frente de Denny — disse ela. — Talvez seja bur­rice, mas isso seria demais como infidelidade pública. Eu quero tudo, Johnny. — Ela corou de novo, e isso começou a alimentar a excitação dele. — Quero que você me abrace e me beije e me ame — disse ela. Sua voz falseou de novo. — Acho que é errado, mas não posso evitá-lo. É errado, mas é certo. É justo.

Ele estendeu um dedo e afastou uma lágrima que estava es­correndo devagar pelo rosto dela.

—    E é só esta vez, não é?

Ela fez que sim.

—    Uma vez terá de pagar por tudo. Tudo o que poderia ter sido, se as coisas não tivessem saído mal. — Ela levantou os olhos, mais verdes e brilhantes do que nunca, cheios de lágrimas. — Po­demos pagar tudo só com uma vez, Johnny?

—    Não — disse ele, sorrindo. — Mas podemos tentar, Sarah.

Ela olhou para Denny com ternura; ele estava tentando trepar no cepo de rachar lenha, sem conseguir.

—    Ele vai dormir — disse ela.

 

Ficaram sentados na varanda, vendo Denny brincar no quintal sob o céu azul. Não havia pressa, nem impaciência entre eles, mas havia uma eletricidade crescente, que ambos sentiam. Ela havia aberto o casaco e ficou sentada no balanço da varanda com um vestido azul-claro de lã, os tornozelos cruzados, os cabelos esvoa­çando pelos ombros, desfeitos pelo vento. Seu rosto não chegou a perder o rubor. E nuvens brancas esvoaçavam pelo céu, de oeste para leste.

Falaram sobre coisas sem importância... não havia pressa. Pela primeira vez desde que saíra da coma, Johnny achou que o tempo não era seu inimigo. O tempo lhes dera aquela bolsinha de ar em troca do fluxo principal, de que tinham sido roubados, e ficaria ali até que se fartassem dela. Conversaram sobre pessoas que se tinham casado, sobre uma moça de Cleaves Mills que havia ganho uma bolsa de estudos, sobre o governador independente do Maine. Sarah disse que ele se parecia com Lurch, de um programa sobre a velha família Adams, e tinha as idéias de Herbert Hoover, e os dois riram disso.

—    Olhe só para ele — disse Sarah, mostrando Denny.

Estava sentado na grama ao lado da treliça de hera de Vera Smith, o polegar na boca, olhando para eles com cara de sono.

Ela tirou o carrinho dele do assento de trás do Pinto.

— Ele fica bem na varanda? — perguntou ela a Johnny. —Está tão ameno o dia! Gostaria que ele dormisse ao ar livre.

—    Ele fica muito bem na varanda — disse Johnny.

Ela armou o carrinho na sombra, deitou-o nele e puxou as duas mantas, cobrindo-o até o queixo.

—    Durma, nenê — disse Sarah.

Ele sorriu para ela e logo fechou os olhos.

—    É só isso? — perguntou Johnny.

—    É só isso — disse ela. Aproximou-se dele e passou os braços em volta de seu pescoço. Ele ouvia claramente o leve far­falhar da combinação debaixo do vestido. — Eu queria que você me beijasse — disse ela, com calma. — Esperei cinco anos para você me beijar de novo, Johnny.

Ele passou-lhe os braços pela cintura e beijou-a de leve. Os lábios dela se entreabriram.

—    Ah, Johnny — disse ela, contra o pescoço dele. — Eu o amo.

—    Eu também a amo, Sarah.

—    Para onde vamos? — perguntou ela, afastando-se dele. Seus olhos agora estavam límpidos e escuros como esmeraldas. — Aonde?

 

Ele estendeu a manta do exército desbotada, velha mas limpa, sobre a palha do segundo paiol. O cheio era flagrante e doce. Acima deles ouvia-se o arrulhar e esvoaçar misterioso dos pardais do paiol, que depois se aquietaram de novo. Havia uma janelinha empoeirada que dava para a casa e a varanda. Sarah limpou um pedaço do vidro e olhou para Denny.

—    Está tudo bem? — perguntou Johnny.

—    Está. Melhor aqui do que na casa. Isso teria sido como... — Ela deu de ombros.

—    Fazer o meu pai participar?

—    É. Isso é entre nós.

— Da nossa conta.

—    Da nossa conta — concordou ela. Deitou-se de bruços, o rosto virado para o lado, na manta desbotada, as pernas dobradas. Tirou os sapatos, um de cada vez. — Puxe o meu zíper, Johnny.

Ele ajoelhou-se ao lado dela e puxou o zíper, fazendo barulho naquela quietude. As costas dela eram cor de café com leite contra a brancura da combinação. Ele a beijou entre as omoplatas, e ela estremeceu.

— Sarah — murmurou ele.

— O quê?

     —      Tenho de lhe contar uma coisa.

O quê?

O médico errou numa daquelas operações e me castrou.

     Ela deu um murro no ombro dele.

—    Sempre o mesmo, Johnny — disse ela. — E você tinha um amigo que quebrou a cabeça no chicote na feira de Topsham.

     — Foi mesmo — disse ele.

A mão dela tocou nele como seda, passando devagar, para cima e para baixo.

— Não parecem ter feito nada de fatal com você — disse ela. Seus olhos luminosos procuraram os dele. — Em absoluto. Vamos dar uma olhada?

Sentiram o cheiro doce do feno. O tempo foi passando. Ele sentiu a aspereza da manta do exército, a suavidade da carne dela, a sua realidade despida. Penetrar nela era como penetrar num sonho antigo, nunca completamente esquecido.

— Ah, Johnny, meu querido... — A voz dela cada vez mais excitada. Seus quadris movendo-se num ritmo acentuado. A voz dis­tante. O contato dos cabelos dela eram como fogo, nos seus ombros e em seu peito. Ele mergulhou o rosto neles, perdendo-se naquele louro-escuro.

O tempo passando no aroma doce do feno. A manta áspera. O som do velho paiol rangendo de mansinho, como um navio, ao vento de outubro. Uma luz branca, suave, entrando pelas frestas do telhado, apanhando os grãos de poeira em meia centena de raios fininhos. Grãos de feno dançando e girando.

Ela soltou uma exclamação. A certa altura ela disse o nome dele, vezes e mais vezes, como uma salmodia. Os dedos dela se cravavam nele como esporas. Cavaleiro e cavalgado. O vinho velho decantado afinal, de uma boa safra.

Depois eles ficaram sentados junto da janela, olhando para o quintal. Sarah pôs o vestido em cima da pele e deixou-o por um momento. Ele ficou ali sentado, sozinho, sem pensar, satisfeito ao vê-la reaparecer na janela, menor, e atravessar o quintal, indo para a varanda. Ela debruçou-se sobre o carrinho e ajeitou as cobertas. Voltou, o vento soprando os cabelos para trás e brincando com a bainha de seu vestido.

— Ele ainda vai dormir mais uma meia hora — disse ela.

— Vai? — sorriu Johnny. — Talvez eu também durma.

Ela passou os dedos dos pés pela barriga dele.

— É melhor não.

E então, de novo, e dessa vez ela estava por cima, quase numa atitude de oração, a cabeça abaixada, os cabelos caídos para a frente, tapando-lhe o rosto. Devagar. E depois acabou.

 

—Sarah...

— Não, Johnny. É melhor não dizer. Tempo esgotado.

— Eu ia dizer que você é linda.

—    Sou?

— É — disse ele, baixinho. — Sarah querida.

— Pagamos a conta toda? — perguntou ela.

Johnny sorriu.

— Sarah fizemos o melhor que pudemos.

 

Herb não pareceu espantado ao ver Sarah, quando chegou de Westbrook. Deu-lhe as boas-vindas, fez muita festa no bebê e depois ralhou com Sarah por não o ter levado lá antes.

— Ele tem a sua cor e pele — disse Herb. — E acho que vai ter os seus olhos, quando acabarem de mudar de cor.

— Se ele ao menos tiver a cabeça do pai! — disse Sarah. Tinha posto um avental por cima do vestido de lã azul. Lá fora, o sol estava se pondo. Mais vinte minutos e seria noite.

— Sabe, a cozinha deve ser trabalho de Johnny — disse Herb.

— Não consegui impedi-la. Ela me ameaçou à mão armada.

— Bem, talvez tenha sido melhor assim mesmo — disse Herb. — Tudo o que você faz sai com gosto de espaguete franco-ameri­cano.

Johnny atirou uma revista no pai, e Denny riu, um barulho alto e penetrante, que pareceu encher a casa toda.

“Será que ele está percebendo?”, pensou Johnny. “Parece que está escrito na minha cara”. E depois ocorreu-lhe uma idéia espan­tosa, ao ver o pai remexendo no armário da entrada à procura de uma caixa de brinquedos velhos de Johnny, que nunca deixara Vera dar: “Talvez ele compreenda”.

Eles comeram. Herb perguntou a Sarah o que Walt estava fazendo em Washington, e ela contou sobre a conferência a que ele comparecera, que tinha algo a ver com reivindicações de terras dos índios. As reuniões republicanas eram apenas exercidos de treinamento, disse ela.

— A maior parte das pessoas acha que, se Reagan e não Ford for indicado no ano que vem, isso será a morte do partido — disse Sarah. — E, se o Velho Partido morrer, significa que Walt não vai poder concorrer para o lugar de Bill Cohen em 1978, quando Bill vai lutar pelo lugar de Bill Hathaway no Senado.

Herb estava olhando Denny comer vagens, muito sério, uma por uma, mastigando com todos os seus seis dentes.

— Não creio que Cohen possa esperar até 78 para chegar ao Senado. Ele há de concorrer com Muskie, no ano que vem.

— Walt diz que Cohen não é assim tão bobo — disse Sarah. — Ele vai esperar. Walt diz que a oportunidade dele está chegan­do, e eu acredito.

Depois do jantar, ficaram na sala, e a conversa desviou-se da política. Ficaram vendo Denny brincar com os velhos carros e ca­minhões de madeira que um Herb Smith muito mais jovem tinha feito para o filho, havia mais de um quarto de século. Um Herb Smith mais jovem, casado com uma mulher forte e bem-humorada, que às vezes bebia uma garrafa de cerveja, de noite. Um homem sem cabelos brancos, que só tinha as maiores aspirações para o filho.

“Ele compreende, sim”, pensou Johnny tomando o café. “Sa­bendo ou não o que se passou entre mim e Sarah esta tarde, descon­fiando ou não do que se tenha passado, compreende a traição básica. Não se pode modificá-la ou retificá-la, o máximo é conformar-se com ela. Esta tarde eu e ela consumamos um casamento que nunca houve. E esta noite ele está brincando com o neto”.

Ele pensou na roda da fortuna, mais devagar, parando.

“Banca. Todos perdem.”

A melancolia estava querendo invadi-lo, com uma sensação triste de fim, e ele afastou-a. Não era hora para isso; ele não per­mitiria que fosse.

Às oito e meia, Denny tinha começado a ficar irritado e Sarah disse:

—    Está na hora de irmos embora, pessoal. Ele pode tomar uma mamadeira na volta para Kennebunk. A uns cinco quilômetros daqui, já terá arriado. Obrigada pelo convite.

Seus olhos, de um verde brilhante, encontraram-se com os de Johnny por um momento.

— O prazer foi todo nosso — disse Herb, levantando-se. —Certo Johnny?

— Certo — disse ele. — Deixe-me levar o carrinho para você, Sarah.

À porta, Herb beijou a cabeça de Denny (que lhe agarrou o nariz com a mão gorducha e puxou-o tanto que os olhos de Herb se encheram de água) e a face de Sarah. Johnny levou o carrinho para o Pinto vermelho e Sarah lhe entregou as chaves, para ele poder colocar tudo atrás.

Quando ele acabou, ela estava junto da porta, olhando para ele.

— Foi o melhor que pudemos fazer — disse ela, sorrindo um pouco. Mas o brilho em seus olhos mostrava que estava novamente quase chorando.

— Não foi nada mau — disse Johnny.

— Vamos nos comunicar?

— Não sei, Sarah. Vamos?

— Não, acho que não. Seria fácil demais, não é?

— Bem fácil sim.

Ela aproximou-se e esticou-se para beijar-lhe o rosto. Ele sen­tiu o perfume dos cabelos dela, limpos e fragrantes.

— Cuide-se — murmurou ela. — Vou pensar em você.

— Juízo, Sarah — disse ele, e tocou no nariz dela.

Ela então virou-se, sentou-se à direção, uma jovem senhora ele­gante, cujo marido estava fazendo carreira. Duvido muito que no ano que vem eles ainda estejam com um Pinto, pensou Johnny.

As luzes se acenderam, e depois o motorzinho de máquina de costura roncou. Ela acenou para ele, e em seguida estava saindo pela entrada de carros. Johnny ficou junto do cepo de rachar lenha, as mãos nos bolsos, vendo-a ir-se. Alguma coisa em seu coração parecia ter se fechado. Não era um sentimento avassalador. Isso era o pior: não era um sentimento avassalador.

Ele ficou olhando até desaparecerem as lanternas traseiras, de­pois subiu a escada da varanda e voltou para dentro de casa. O pai estava sentado na grande poltrona na sala. A TV estava desligada. Os poucos brinquedos que Herb encontrara estavam espalhados pelo tapete, e ele estava olhando para eles.

—    Foi bom ver Sarah — disse Herb. — Você e ela tiveram... — houve uma hesitação muito breve — uma tarde agradável?

—    Tivemos — disse Johnny.

—    Ela vai voltar?

—    Não, não creio.

Ele e o pai estavam se olhando.

—    Bem, talvez seja melhor assim — disse Herb, por fim.

— Talvez.

— Você brincava com esses brinquedos — disse Herb, ajoe­lhando-se e começando a juntá-los. — Dei uma porção deles para Lottie Gedreau quando ela teve os gêmeos, mas sabia que tinha ainda alguns. Guardei alguns.

Ele os colocou na caixa, um por um, virando cada um nas mãos, examinando-os. Um carro de corrida. Um trator. Um carro de polícia. Um caminhãozinho de bombeiros, com engate e escada, do qual a maior parte da tinta vermelha tinha saído, no lugar em que a mãozinha segurava. Ele levou-os de volta para o armário da entrada, guardando tudo ali.

Johnny passou três anos sem tornar a ver Sarah Hazlett.

 

A neve chegou cedo naquele ano. Havia quinze centímetros na terra, no dia 7 de novembro, e Johnny agora calçava um par de galochas de borracha verde e punha sua velha jaqueta de linho com capuz para ir até a caixa do correio. Duas semanas antes, Deve Pelsen enviara um pacote contendo os textos que ele usaria em janeiro, e Johnny já começara a fazer esboços de planos de aulas. Estava ansioso por voltar a lecionar. Dave também lhe arranjara um apartamento na Howland Street, em Cleaves. Howland Street, 24. Johnny guardou a informação num papel na carteira, pois o nome e o número tinham uma mania irritante de lhe escapar da memória.

Naquele dia o céu estava cinzento e nublado, a temperatura pairando logo abaixo dos cinco graus negativos. Quando Johnny foi andando pelo caminho, começaram a cair os primeiros flocos de neve. Como ele estava sozinho, não se acanhou demais por esten­der a língua para apanhar um floco. Quase não estava mancando, e sentia-se bem. Havia duas semanas ou mais que não tinha dor de cabeça.

A correspondência era uma circular de propaganda, um exem­plar da Newsweek e um pequeno envelope de papel pardo endere­çado a John Smith, sem endereço do remetente. Johnny abriu-o no caminho de volta, enfiando o resto da correspondência no bolso. Puxou uma única página impressa, viu as palavras “Inside View” em cima e parou, na metade do caminho para a casa.

Era a página 3 do número da semana anterior. A história da manchete tratava da “denúncia” de um repórter sobre o cômico bonitão de segunda categoria de um programa de crime da TV; o bonitão tinha sido suspenso do ginásio duas vezes (doze anos antes) e preso por posse de cocaina (seis anos antes). Notícias palpitantes para as Hausfraus dos Estados Unidos... Havia também uma dieta só de cereais, uma foto de um bebê bonitinho e a história de uma menina de nove anos que fora milagrosamente curada de paralisia cerebral em Lourdes (MÉDICOS MISTIFICADOS, anunciava a manchete, feliz). Uma matéria perto do fim da página tinha sido marcada por um círculo. “MÉDIUM” DO MAINE CONFESSA EMBUSTE, dizia a man­chete. A matéria não era assinada.

 

“SEMPRE FOI NORMA da Inside Views não só levar-lhes a mais completa cobertura dos médiuns que a chamada ‘imprensa nacional” ignora, como ainda desmascarar os embusteiros e charlatães que tanto têm atrasado a verdadeira aceitação dos legítimos fenômenos paranormais.

Um desses embusteiros confessou o seu próprio embuste a um informante da Inside Views, há pouco tempo. Esse pretenso médium, John Smith, de Pownal, Maine, confessou ao nosso informante que ‘foi tudo um truque para eu poder pagar minha conta de hospital. Se isso der um livro, posso ganhar o suficiente para pagar o que devo e me aposentar daqui a alguns anos, ainda por cima’, disse Smith, rindo. ‘Hoje em dia, as pessoas acreditam em tudo... por que não hei de me aproveitar desse trem da alegria?’

Graças a Inside View, que já advertiu aos leitores que existem dois médiuns falsos para cada verdadeiro, o trem da alegria de Johnny Smith descarrilou. E reiteramos a nossa oferta permanente de mil dólares para quem puder provar que um médium de renome nacional seja uma fraude.

Embusteiros e charlatães, cuidado!”

Johnny leu o artigo duas vezes, enquanto a neve começava a cair com mais força. Um sorriso relutante apareceu em seu rosto. A imprensa, sempre vigilante, parecia não gostar de ser enxotada da varanda de um caipira, pensou ele. Meteu a folha dentro do envelope e guardou-a com o resto da correspondência, no bolso traseiro.

— Dees — disse ele, em voz alta —, espero que você ainda esteja todo roxo de pancadas.

 

O pai não achou tanta graça. Herb leu o recorte e depois bateu com ele na mesa da cozinha, enojado.

— Você devia processar esse filho da puta. Isso é calúnia, Johnny. Um trabalho tipicamente premeditado para arrasar.

— Concordo plenamente — disse Johnny. Estava escuro, lá fora. A neve, que caíra de leve de tarde, passara a ser uma das pri­meiras tempestades do inverno, de noite. O vento berrava e uivava em volta dos beirais. O caminho da entrada desaparecera sob uma série de montes de neve, como dunas. — Mas não havia teste­munhas quando conversamos, e Dees sabe disso muito bem. É a palavra dele contra a minha.

— Ele nem teve a coragem de assinar o nome nessa mentira

—    disse Herb. — Veja só, “um informante da Inside Views”. Que informante? Ele que diga quem é, é o que eu digo.

— Ah, não se pode obrigá-lo a isso — disse Johnny, rindo. — É como chegar junto do valentão mais torpe do bairro com um cartaz dizendo DÊ-ME UM BOM PONTAPÉ preso à calça. Aí eles transformam a coisa numa guerra santa, primeira página e tudo. Não, obrigado. Quanto ao que me diz respeito, eles me prestaram um favor. Não quero passar a vida dizendo às pessoas onde o vovô escondeu seus títulos de ações, quem vai ganhar a corrida em Scar­borough Downs ou a loteria. — Uma das coisas que mais tinha espantado Johnny, ao sair da coma, fora descobrir que o Maine e mais uns doze Estados tinham instituído um jogo de números le­galizado. — Nesse último mês recebi dezesseis cartas de pessoas que querem que eu lhes diga qual vai ser o número ganhador. Ë uma loucura. Mesmo que eu soubesse, e não sei, de que lhes adiantaria? Não se pode escolher o número na loteria do Maine, tem-se de aceitar o que eles dão. Mas continuo a receber as cartas.

—    Não sei o que isso tem a ver com esse artigo nojento.

—    Se as pessoas acharem que sou um charlatão, talvez me deixem em paz.

—    Ah — disse Herb. — É, entendo o que você quer dizer. — Acendeu o cachimbo. — Você nunca se sentiu bem com isso, não é?

—    Não — disse Johnny. — Nós também nunca falamos muito a esse respeito, o que é um alívio. Parece que é a única coisa de que as outras pessoas querem falar.

E não era só que elas quisessem falar; isso não o aborreceria tanto. Mas, quando ele ia ao mercado para comprar cerveja ou um pão de fôrma, a garota procurava pegar o dinheiro dele sem lhe tocar na mão, e a expressão assustada e furtiva nos olhos dela era inconfundível, Os amigos de seu pai acenavam para ele, em vez de lhe apertarem a mão. Em outubro, Herb contratara uma garota do ginásio para ir à casa deles uma vez por semana, para fazer uma limpeza e passar o aspirador. Depois de três semanas, ela pedira demissão, sem dar motivo: provavelmente alguém no ginásio lhe contara para quem ela estava fazendo limpeza. Parecia que para cada pessoa que queria ser tocada, informada, e ter contato com o dom especial de Johnny, havia outra que o considerava um tipo de leproso. Nessas ocasiões, Johnny pensava nas enfermeiras olhando-o fixamente no dia em que ele dissera a Eileen Magown que a casa dela estava pegando fogo, fitando-o como gralhas num fio tele­fônico. Pensava no repórter da TV que se afastara dele depois da entrevista coletiva à imprensa, que terminara de modo tão inespe­rado, concordando com tudo quanto ele dizia, mas sem querer ser tocado. Doentios, ambos os casos.

—    Não, não conversamos sobre isso! — concordou Herb. —Isso me faz pensar em sua mãe, acho. Tinha tanta certeza de que você recebeu esse... esse seja o que for por algum motivo. Às vezes penso se ela não teria razão.

Johnny deu de ombros.

—    Só o que eu quero é ter uma vida normal. Quero enterrar todo esse raio de coisa. E se esse pasquim me ajudar a fazer isso, tanto melhor.

—    Mas você ainda é capaz de fazer aquilo, não é? — per­guntou Herb, olhando bem para o filho.

Johnny pensou em uma noite, havia uma semana, ou menos. Eles tinham saído para jantar, coisa rara, com o orçamento aper­tado que tinham. Foram ao Cole’s Farm, em Gray, provavelmente o melhor restaurante do lugar, que estava sempre cheio. Era uma noite fria, e o salão estava alegre e aquecido. Johnny levara o casaco do pai e o seu para o vestiário, e, ao pegar nos sobretudos dependu­rados, procurando cabides vazios, uma porção de impressões nítidas tinham passado por sua cabeça. Isso acontecia às vezes, e, de outras vezes, ele poderia pegar cada sobretudo por vinte minutos sem sen­tir coisa alguma. Havia um casaco de mulher, com uma gola de pele. Ela estava tendo um caso com um dos parceíros de pôquer do marido, estava apavorada com o negócio, mas não sabia como terminá-lo. Um casaco de homem, de zuarte forrado com pêlo de carneiro. Esse camarada também estava preocupado... com o ir­mão, que fora gravemente ferido numa obra na semana anterior. A jaqueta de lã de um garotinho: a avó, de Durham, dera a ele um rádio transistor naquele mesmo dia e ele estava furioso porque o pai não o deixara levar o rádio para o restaurante. E outro, um sobretudo preto, comum, que o fizera gelar e lhe tirara o apetite. O dono daquele sobretudo estava ficando louco. Por enquanto ele ainda estava mantendo as aparências — nem mesmo a mulher des­confiava —, mas a sua visão de mundo estava sendo gradativamente obscurecida por uma série de fantasias cada vez mais paranóicas. Tocar naquele casaco fora como tocar num monte de víboras con­torcendo-se.

—    Sim, ainda consigo fazer aquilo — disse Johnny. — Quem me dera não conseguisse.

—    Você está falando sério?

Johnny pensou no sobretudo preto. Ele não fizera mais que beliscar a comida, olhando de um lado para outro, procurando iden­tificar o homem no meio do povo, sem poder fazê-lo.

—    Sim — disse ele —, estou falando sério.

Então é melhor esquecer tudo — disse Herb, batendo no ombro do filho.

 

       E durante um mês, mais ou menos, parecia que tudo seria es­quecido. Johnny foi de carro para o norte, a uma reunião de profes­sores do meio do ano letivo e para levar parte de seus pertences para o novo apartamento, que achou pequeno mas prático.

Foi no carro do pai, e, quando estava se aprontando para partir, Herb perguntou:

—    Você não está nervoso? Para dirigir?

Johnny sacudiu a cabeça. No momento, a idéia do acidente em si o perturbava muito pouco. Se alguma coisa estivesse para lhe acontecer, aconteceria mesmo. E no fundo ele se sentia confiante de que um raio nunca cai duas vezes no mesmo lugar; quando morresse, não achava que seria de desastre de automóvel.

Aliás, a longa viagem foi sossegada e tranqüilizante, e a reu­nião parecia uma reunião de ex-colegas. Todos os seus antigos cole­gas, que ainda estavam lecionando no ginásio de Cleaves Mills, foram procurá-lo para lhe desejar boa sorte. Mas ele não pôde deixar de notar que muito poucos chegaram a lhe apertar a mão, e pare­ceu sentir certa reserva, uma desconfiança nos olhos deles. Vol­tando para casa, convenceu-se de que devia ser imaginação. E se não fosse, bem.., até isso tinha seu aspecto divertido. Se eles tivessem lido a Inside View, saberiam que ele era um charlatão e que não teriam nada a temer.

Terminada a reunião, não havia mais nada a fazer senão voltar para Pownal e esperar que chegassem e passassem as férias de Natal. Os pacotes contendo objetos pessoais pararam de chegar, quase como se um interruptor tivesse sido desligado: o poder da imprensa, disse Johnny ao pai. Foram substituídos por uma série breve de cartas e cartões zangados, em sua maioria anônimos, de pessoas que pareciam sentir-se pessoalmente ludibriadas.

“Você devia estar ardendo no I!N!F!E!R!N!O! por seus planos nojentos para lograr esta República Americana”, dizia uma delas. Tinha sido escrita numa folha amassada de papel de carta de um Ramada Inn e tinha a marca postal de York, Pensilvânia. “Você não passa de um artista vigarista e de um salafrário ordinário. Abençôo a Deus por aquele jornal que o desmascarou. Devia ter vergonha de si mesmo. A Bíblia diz que um pecador comum será jogado no lago de F!O!G!O! e consumido, mas um F!A!L!S!O!

P!R!O!F!E!T!A! há de arder para todo o sempre! É você, o Falso Profeta que vendeu sua Alma Imortal por uns míseros níqueis. Esse é o fim de minha carta, e espero, por você, nunca pilhá-lo nas ruas da sua Cidade Natal. Assinado: UM AMIGO (de Deus, não seu)!”

Mais de duas dúzias de cartas mais ou menos nesse estilo chegaram durante cerca de uns vinte dias depois da publicação do artigo da Inside View. Várias almas empreendedoras demonstraram interesse em se associar a Johnny. “Já fui assistente de mágico”, gabava-se uma dessas missivas, “e era capaz de arrancar a tanga de uma puta velha. Se estiver planejando um espetáculo mentalista, está precisando de mim!”

Depois as cartas se esgotaram, assim como, antes, o afluxo de caixas e pacotes. Certo dia, em fins de novembro, quando foi olhar a caixa do correio e a encontrou vazia pela terceira tarde consecutiva, Johnny voltou para a casa lembrando-se de que Andy Warhol tinha previsto que chegaria o dia em que todo mundo nos Estados Unidos seria famoso por quinze minutos. Aparentemente, seus quinze minutos tinham chegado e passado, e ninguém estava mais satisfeito com isso do que ele.

Mas acontece que ainda não tinham terminado.

 

—.Smith? — perguntou a voz, ao telefone. — John Smith?

—    Sim. — Não era uma voz conhecida, nem era ligação erra­da. Isso era curioso, pois o pai pusera um telefone que não cons­tava da lista, havia cerca de três meses. Era o dia 17 de dezembro, e a árvore de Natal deles estava no canto da sala, a base presa no velho suporte que Herb tinha feito quando Johnny era menino. Lá fora estava nevando.

—    Meu nome é Bannerman. Xerife George Bannerman, de Castle Rock. — Pigarreou. — Tenho uma... bem, acho que se pode dizer que tenho uma proposta para o senhor.

—    Como foi que conseguiu obter este número?

Bannerman tornou a pigarrear.

—    Bem, acho que eu poderia consegui-lo com a companhia te­lefônica, sendo assunto de policia. Mas, na verdade, foi um amigo seu que me deu o número. Um médico chamado Weizak.

—    Sam Weizak lhe deu o número do meu telefone?

—    Isso mesmo.

Johnny sentou-se no cantinho do telefone, completamente per­plexo. O nome Bannerman agora lhe dizia alguma coisa. Tinha lido aquele nome num artigo de um suplemento de jornal de domingo, havia pouco. Era o xerife do condado de Castle, bem a oeste de Pownal, na Região dos Lagos. Castle Rock era a sede do condado, a cerca de cinqüenta quilômetros de Norway e trinta de Bridgton.

—    Assunto de polícia? — repetiu ele.

—    Bem, acho que se pode considerar que seja. Eu estava pensando se nós dois podíamos tomar um café juntos...

—    Diz respeito a Sam?

—    Não. O dr. Weizak não tem nada a ver com isso — disse Bannerman. — Ele me telefonou e mencionou o seu nome. Isso foi... ah, há cerca de um mês, pelo menos. Para dizer a verdade, achei que ele estava biruta. Mas agora estamos mais ou menos de­sesperados.

—    Sobre o quê? Sr.... xerife... Bannerman, não estou en­tendendo de que está falando.

—    Seria realmente melhor se pudéssemos nos encontrar para tomar um café — disse Bannerman. — Que tal hoje à noite? Há um lugar chamado Jon’s, na rua principal de Bridgton. Mais ou menos na metade do caminho entre a sua cidade e a minha.

—    Não, sinto muito — disse Johnny. — Eu teria de saber de que se trata. E como é que Sam nem me falou sobre isso?

Bannerman suspirou.

—    Parece que o senhor é um homem que não lê jornal —disse ele.

Mas isso não era verdade. Ele tinha lido os jornais compulsi­vamente, desde que voltara a si, procurando pôr-se em dia com as coisas que tinha perdido. E tinha visto o nome de Bannerman ainda havia pouco. Certo. Porque Bannerman estava numa situação um tanto delicada. Era o encarregado de...

Johnny afastou o fone do ouvido e olhou para ele, com uma compreensão súbita. Olhou como um homem pode olhar para uma cobra que ele acaba de descobrir que é venenosa.

—    Sr. Smith? — O fone cacarejou com um som metálico. —Alô? Sr. Smith?

—    Estou ouvindo — disse Johnny, tornando a levar o fone ao ouvido.

Sentiu uma irritação surda contra Sam Weizak; Sam, que ainda naquele verão lhe dissera para ficar na moita, e depois virara a casaca e fora falar com aquele xerife.., pelas costas de Johnny.

—    É aquele negócio dos estrangulamentos, não é?

Bannerman hesitou por muito tempo. Depois disse:

—    Podíamos conversar, sr. Smíth?

—    Não. De jeito nenhum. — A irritação surda tornara-se uma fúria repentina. Fúria e mais alguma coisa. Estava com medo.

—    Sr. Smith, é importante. Hoje...

—    Não. Quero que me deixem em paz. Além disso, não lê o raio da Inside View? Sou um charlatão, de qualquer modo.

—    O Dr. Weizak disse...

—    Ele não tinha o direito de dizer coisa alguma! — gritou Johnny. Ele estava tremendo muito. — Adeus!

Bateu com o fone no gancho e saiu depressa do cantinho do telefone, como se isso o impedisse de tornar a tocar. Sentiu uma dor de cabeça começando nas têmporas. Brocas rombudas. Talvez eu devesse ligar para a mãe dele lá na Califórnia, pensou ele. Con­tar-lhe onde está o filhinho dela. Dizer a ela para se comunicar com ele. Olho por olho.

Em vez disso, procurou o número do telefone do consultório de Sam em Bangor, na caderneta de endereços na gaveta da mesinha do telefone, e ligou para lá. Assim que o telefone tocou uma vez do outro lado, ele desligou, novamente apavorado. Por que Sam lhe fizera aquilo? Por quê, porra?

Pilhou-se olhando para a árvore de Natal.

Os mesmos enfeites velhos. Eles os tinham tirado do sótão e do papel de seda, e os haviam pendurado duas noites antes. Acon­tecia uma coisa engraçada com os enfeites de Natal. Não havia muitas coisas que permanecessem intactas, ano após ano, à medi­da em que a pessoa crescia. Não há muitas linhas de continuidade, nem muitos objetos físicos que servem tanto para adultos como para crianças. As roupas de crianças eram dadas aos irmãos mais novos ou mandadas para o Exército de Salvação; a mola mestra do relógio do Pato Donald arrebentava; as botas de cowboy se gasta­vam. A carteira que fazíamos em nosso primeiro grupo de artesa­nato era substituída por uma de verdade, e trocávamos nosso carrinho vermelho e nossa bicicleta por brinquedos mais adultos: um carro, raquete de tênis, talvez um desses novos jogos de hóquei da TV. Só havia algumas coisas a que se agarrar. Alguns livros, talvez, uma moeda da sorte, ou uma coleção de selos que tivesse sido guardada e melhorada.

Acrescentem-se a isso os enfeites de árvore de Natal da casa dos pais.

Os mesmos anjinhos lascados, ano após ano, e a mesma estrela, de ouropel, em cima; o pelotão forte e sobrevivente do que antes fora um batalhão inteiro de bolas de vidro (e nunca nos esquece­mos dos mortos queridos, pensou ele: esta morreu por ter sido agarrada pela mão de um bebê, esta outra escorregou quando papai a estava colocando e espatifou-se no chão, a vermelha como a estre­la de Belém quebrou-se simples e misteriosamente um ano em que a tiramos do sótão, e eu chorei); a própria árvore ainda era a mesma. Mas às vezes, pensou Johnny, ausente, esfregando as têmporas, pa­rece que seria melhor, mais misericordioso, se perdêssemos contato até com esses últimos vestígios da infância. Nunca se podem desco­brir os livros que pela primeira vez nos empolgaram. A moeda mascote não nos protegera dos reveses e encrencas de uma vida comum. E, quando olhamos para os enfeites, lembramo-nos de que um dia houve uma mãe ali para dirigir a operação de enfeitar a árvo­re, sempre pronta e disposta a censurar a gente, dizendo “um pouco mais alto” ou “um pouco mais baixo”, ou “acho que você pôs ouropel demais nesse lado, meu bem”. Olhamos para os enfeites e percebemos que este ano fomos só nós dois a arrumá-los, só os dois, porque a mãe enlouqueceu e depois morreu, mas os frágeis enfeites de Natal continuavam ali, esperando para enfeitar mais uma árvore cortada do matinho dos fundos, e não se diz que há mais suicídios na época do Natal do que em qualquer outra época do ano? Deus, não admira.

“Que poder Deus lhe deu, Johnny.”

Claro, certo, Deus é um príncipe mesmo. Ele me lançou pelo pára-brisa de um táxi, quebrei as pernas, passei cerca de cinco anos em coma e três pessoas morreram. A garota que eu amava casou-se. Teve o filho que devia ser meu de um advogado que está sonhan­do em chegar a Washington para ajudar a dirigir o grande trem elétrico. Se eu ficar de pé durante mais de duas horas de cada vez, parece que alguém pegou uma lasca comprida e a enfiou pela minha perna acima até os ovos. Deus é mesmo um brin­calhão. É tão brincalhão que arrumou um mundo engraçado, de ópera cômica, em que um punhado de enfeites de Natal de vidro podem sobreviver às pessoas. Mundo bacana, e um Deus de primeira classe para dirigi-lo. Devia estar do nosso lado na Guerra do Vietnam, pois é assim que vem dirigindo as coisas desde que o mundo é mundo.

“Ele tem um trabalho para você, Johnny.”

Tirar um tira de meia-tigela de uma encrenca, para ele poder ser reeleito no ano que vem?

“Não fuja dele, Johnny. Não se esconda numa caverna.”

Ele esfregou as têmporas. Lá fora, o vento estava mais forte. Ele esperava que o pai tomasse cuidado, quando voltasse para casa.

Johnny levantou-se e vestiu uma camisa grossa. Foi para o galpão, vendo o seu hálito congelar-se no ar à sua frente. À esquerda havia um montão de lenha que ele rachara no último outono, tudo cortado em pedaços certos para o fogão. Ao lado havia uma caixa de gravetos, e adiante uma pilha de jornais velhos. Ele aga­chou-se e começou a folheá-los. Suas mãos ficaram logo entorpecidas, mas ele continuou, e por fim encontrou o que estava procurando. O jornal de domingo de três semanas antes.

Levou-o para dentro de casa, jogou-o sobre a mesa da cozinha e começou a pesquisá-lo. Encontrou o artigo que queria na seção das reportagens e sentou-se para lê-lo.

O artigo era acompanhado por várias fotos, uma delas mostran­do uma velha trancando uma porta, outra mostrando um carro da polícia passando por uma rua quase deserta, mais duas mostrando lojas comerciais quase desertas. A manchete dizia: CONTINUA A CAÇA

AO ESTRANGULADOR DE CASTLE ROCK.

     Cinco anos antes, segundo o artigo, uma moça chamada Alma Frechette, que trabalhava num restaurante do lugar, tinha sido es­tuprada e estrangulada quando voltava do trabalho para casa. Fora realizada uma investigação conjunta do crime pelo escritório do pro­motor-geral do Estado e pelo xerife do condado de Castle. O resul­tado fora nulo. Um ano depois, fora descoberta uma mulher idosa, também estuprada e estrangulada, em seu pequeno apartamen­to do terceiro andar da Carbine Street, em Castle Rock. Um mês depois o matador atacara novamente; dessa vez, a vítima fora uma boa aluna do ginásio.

Houve uma investigação mais intensiva. Foram utilizados os recursos de investigação do FBI, sem resultado algum. No mês de novembro seguinte, o xerife Carl M. Kelso, que era o principal representante da lei no condado desde aproximadamente a Guerra da Secessão, perdera a eleição para George Bannerman, devido principalmente a uma campanha agressiva com o propósito de cap­turar o “Estrangulador de Castle Rock”.

Passaram-se dois anos. O estrangulador não fora preso, mas tampouco houve outros assassinatos. Então, em janeiro passado, foi encontrado o corpo de Carol Dunbarger, de dezessete anos, por dois meninos pequenos. A moça fora dada como desaparecida pelos pais. Ela se havia metido em encrencas no ginásio de Castle Rock, onde era conhecida por seus atrasos crônicos e vadiagem; fora presa duas vezes por roubos em lojas, e uma vez já fugira de casa, che­gando até Boston. Tanto Bannerman quanto a policia estadual supu­seram que ela estivesse pedindo carona, e o assassino a tivesse apanhado. Um degelo de meio de inverno revelara o corpo dela perto do riacho Strimmer, onde dois meninos o tinham encontrado. O médico-legista estadual disse que ela estava morta havia dois meses.

Então, naquele dia 2 de novembro, houvera mais um assassi­nato. A vítima era uma professora de primeiro grau de Castle Rock, querida por todos, chamada Etta Ringgold. Fora toda a vida mem­bro da congregação da Igreja Metodista local, tinha diploma de professora primária e era muito ativa nas obras de caridade locais. Gostava das obras de Robert Browning, e seu corpo fora encontrado metido num bueiro que passava por baixo de uma estrada de terra secundária. A indignação que causou o assassinato da srta. Ringgold alastrou-se por todo o norte da Nova Inglaterra. Foram feitas com­paraçôes com Albert DeSalvo, o Estrangulador de Boston, comparações que em nada contribuíram para resolver a situação. O jornal Union-Leader, de Wiiliam Loeb, na não tão distante Manchester, New Hampshire, publicara um editorial simpático, intitulado: OS TIRAS VADIOS DE NOSSO ESTADO IRMÃO.

Naquele artigo do suplemento de domingo, já com quase seis semanas, com um forte cheiro a galpão e lenha, citavam-se dois psiquiatras locais que não se importaram de considerar a situação com otimismo, desde que seus nomes não fossem publicados. Um deles mencionou uma certa aberração sexual: a necessidade de co­meter um ato violento no momento do orgasmo. Bom, pensou Johnny com uma careta. Ele as estrangulava no momento em que gozava. A dor de cabeça dele estava ficando cada vez pior.

O outro psiquiatra falou do fato de que todos os cinco crimes tinham sido cometidos no fim do outono ou princípio do inverno. E, embora a personalidade do maníaco-depressivo não se prendesse a um padrão determinado, era bastante comum uma pessoa assim ter oscilações de estado de espírito bastante semelhantes as mudan­ças das estações do ano. Ela poderia ter uma “baixa” que durasse de meados de abril até o fim de agosto e depois começar a subir, “culminando” por volta da ocasião dos crimes.

Durante o estado maníaco, ou “em elevação”, a pessoa em questão apresentava-se altamente sexuada, ativa, ousada e otimista. “Provavelmente acreditava que a polícia seria incapaz de capturá-la”, concluíra o psiquiatra anônimo. O artigo terminava dizendo que, até então, a pessoa estava com a razão.

Johnny largou o jornal, olhou para o relógio e viu que o pai estava para chegar a qualquer momento, a não ser que a neve o impedisse. Levou o jornal velho para o fogão de lenha e meteu-o na fornalha.

“Não é nada da minha conta. Sam Weizak que se dane.”

“Não se esconda em cavernas, Johnny.”

Ele não estava se escondendo em cavernas, não era nada disso. Acontece que passara por um mau pedaço. Perder um pedação da vida da gente, isso significa passar um mau pedaço, não?

“E toda essa autocomiseração?”

— Foda-se — murmurou ele, consigo mesmo. Foi para a janela e olhou para fora. Só se via a neve caindo em linhas pesadas, sopra­das pelo vento. Ele esperava que o pai tivesse cuidado, mas tam­bém esperava que chegasse logo e acabasse com aquele labirinto inútil de introspecção. Foi de novo até junto do telefone e ficou ali, indeciso.  

Com ou sem autocomiseração, o fato é que realmente perdera um bom pedaço da vida. A flor da idade, podia-se dizer. Tinha-se esforçado muito para se recuperar. Não merecia um pouco de pri­vacidade? Não tinha direito aquilo em que estava pensando ainda havia poucos minutos.., uma vida normal?

“Isso não existe, meu chapa.”

Talvez não, mas o que certamente existe é uma vida anormal. Aquele negócio no restaurante de Cole’s Farm. Pegar nas roupas das pessoas e de repente conhecer os seus temores, segredinhos, pequenos triunfos.., isso era anormal. Não era um dom, era uma maldição.

E se ele fosse encontrar-se com esse xerife? Não havia garantia alguma de que ele lhe pudesse dizer qualquer coisa. E se pudesse? Suponhamos que ele pudesse entregar ao outro o assassino, numa bandeja de prata? Seria a repetição da entrevista coletiva à im­prensa do hospital, tudo de novo, um circo de três arenas elevado à enésima potência sanguinária.

Uma cançãozinha começou a passar por sua cabeça latejante, pouco mais que uns versos, mesmo. Uma cançãozinha do catecismo de sua infância: “Essa minha luzinha... Vou deixar que brilhe... essa minha luzinha... vou deixar que brilhe.., que brilhe, brilhe, brilhe...”

Pegou o fone e ligou para o consultório de Weizak. Era seguro, agora, já passava das cinco horas da tarde. Weizak já devia ter ido para casa, e os números dos telefones das residências dos grandes neurologistas não figuram nas listas telefônicas. O telefone tocou umas seis ou sete vezes, e Johnny já ia desligar quando o próprio Sam atendeu.

— Alô? Alô?

— Sam?

— John Smith? — O prazer na voz de Sam era inegável, mas haveria nela também um tom de ansiedade?

— Sou eu, sim.

— Que tal acha essa neve? — disse Weizak, talvez um pouco animado demais. — Está nevando aí?

— Está..

— Aqui começou há coisa de uma hora. Dizem... John? Ë o xerife? Ë por isso que você parece tão frio?

— Bem, ele me ligou — disse Johnny —, e estive pensando no que teria acontecido. Por que você lhe deu o meu nome? Por que não me telefonou para dizer que tinha dado.., e por que não me telefonou antes para perguntar se podia dar?

Weizak suspirou.

— Johnny, talvez eu pudesse mentir-lhe, mas isso não adian­taria nada. Não lhe perguntei primeiro porque estava com medo de que você recusasse. E não contei que tinha dado depois porque o xerife riu de mim. Quando alguém ri de uma de minhas sugestões, suponho, não é?, que a sugestão não será aceita.

Johnny esfregou uma das têmporas latejantes com a mão livre e fechou os olhos.

— Mas por quê, Sam? Você sabe o que acho disso tudo. Foi você mesmo quem me disse para ficar na moita e deixar que isso passasse. Você mesmo me disse isso.

— Foi o artigo do jornal — disse Sam. — Eu disse comigo: Johnny mora por lá. E pensei: cinco mulheres mortas. Cinco.

Ele falava com voz baixa, hesitante e constrangida. Johnny sentiu-se muito pior, ouvindo Sam falando daquele jeito. Arrepen­deu-se de ter telefonado.

— Duas eram adolescentes. Uma jovem mãe. Uma professora de criancinhas, que gostava de Browning. Tudo tão batido, hem? Tão surrado, que imagino que ninguém faria um filme ou um programa de TV disso. Mas, assim mesmo, foi verdadeiro. Foi na pro­fessora que eu mais pensei. Enfiada num bueiro como um saco de lixo...

—    Você não tinha direito algum de me meter em suas fan­tasias culposas — disse Johnny, em voz alterada.

—    É, talvez não.

—    Não tem “talvez” nenhum!

—    Johnny, você está bem? Parece...

—    Estou ótimo! — berrou Johnny.

—    Não parece ótimo.

—    Estou com uma merda de dor de cabeça, isso é assim tão espantoso? Por Deus, eu queria que você tivesse deixado isso em paz. Quando lhe contei sobre sua mãe, você não ligou para ela. Porque disse...

—    Eu disse que é melhor algumas coisas ficarem perdidas do que achadas. Mas isso nem sempre é verdade, Johnny. Esse homem seja quem for, tem uma personalidade terrivelmente perturbada. Pode matar-se. Tenho certeza de que, quando ele parou por dois anos, a polícia pensou que ele tivesse se suicidado. Mas um manía­co-depressivo por vezes tem longos períodos de calma — chama-se a isso “platô de normalidade” — e depois volta às mesmas oscilações de estado de espírito. Ele pode ter se suicidado depois de ter mata­do aquela professora, o mês passado. Mas, se isso não se deu, o que acontecerá, então? Pode matar outra. Ou duas. Ou quatro...

—    Pare.

Sam disse:

—    Por que o xerife Bannerman lhe telefonou? O que o levou a mudar de idéia?

—    Não sei. Imagino que os eleitores estejam atrás dele.

—    Sinto ter ligado para ele, Johnny, e que isso tenha aborre­cido você tanto assim. Mas sinto mais ainda não ter ligado para você dizendo o que tinha feito. Errei. Deus sabe que você tem o direito de viver a sua vida sossegado.

Ouvir os seus próprios pensamentos refletidos não o fizeram sentir-se melhor, em nada. Ao contrário, sentiu-se mais triste e culpado do que nunca.

— Está bem — disse ele. — Não faz mal, Sam.

—    Não direi mais nada a ninguém. Imagino que isso seja pôr uma tranca na porta depois da casa arrombada, mas é só o que posso dizer. Fui indiscreto. Num médico, isso é mau.

—    Está bem — disse Johnny, de novo. Sentia-se desamparado, e o constrangimento com que Sam falava piorava as coisas.

—    Eu o verei em breve?

— Vou para Cleaves no mês que vem, para começar a dar aulas. Passo por aí.

— Bom. Mais uma vez, minhas desculpas, John.

“Pare de dizer isso!”

Eles se despediram, e Johnny desligou, arrependido de ter tele­fonado. Talvez não quisesse que Sam concordasse tão prontamente com a idéia de que tinha agido errado. Talvez o que realmente quisesse ouvir de Sam fosse: “Claro que liguei para ele. Queria que você se mexesse e fizesse alguma coisa”.

Ele foi até a janela e olhou para o escuro ventoso. “Enfiada num bueiro como um saco de lixo”.

Deus, como a cabeça lhe doía.

 

Herb chegou a casa meia hora depois, olhou para a cara pálida de Johnny e disse:

—    Dor de cabeça?

— É.

—    Forte?

— Não muito.

—    Vamos ver o noticiário nacional — disse Herb. — Ainda bem que cheguei a casa a tempo. Uma turma do pessoal da NBC estava em Castle Rock esta tarde, filmando. Aquela repórter que você acha linda estava lá. Cassie Mackin.

Ele piscou ao ver o modo como Johnny se virou para ele. Por um momento parecia que o rosto de Johnny era só olhos, arrega­lados, olhando para ele cheios de uma dor quase desumana.

—    Castle Rock? Outro crime?

—    É. Encontraram uma menina na praça pública, hoje de manhã. A coisa mais danada de triste que já se ouviu contar. Parece que tinha licença para atravessar o parque e ir à biblioteca para um trabalho que estava fazendo. Chegou à biblioteca, mas não vol­tou... Johnny, você está com uma cara horrível, filho.

—    Que idade tinha ela?

—    Só nove anos — disse Herb. — Um homem capaz de fazer uma coisa dessas devia ser pendurado pelos colhões. É a minha opinião.

— Nove — disse Johnny, sentando-se pesadamente.

—    Johnny, tem certeza de que está se sentindo bem? Está branco como cera.

—    Estou bem. Ligue a televisão.

Pouco depois, John Chancellor estava diante deles, com sua carga de aspirações políticas (a campanha de Fred Harris não estava muito animada), decretos governamentais (as cidades dos Esta­dos Unidos tinham de aprender a ter bom senso orçamentário, segundo o presidente Ford), incidentes internacionais (uma greve de âmbito nacional na França), a Dow-Jones (em alta) e uma notícia “animadora” de um menino com paralisia cerebral que esta­va criando uma vaca, sob o patrocínio do Ministério da Agricultura.

—    Talvez tenham cortado a notícia — disse Herb.

Mas, depois de um comercial, Chancellor disse:

— Esta noite, no oeste do Maine, há uma cidade cheia de gente assustada e furiosa. A cidade é Castle Rock, onde nos últi­mos cinco anos houve cinco assassinatos feios — cinco mulheres, de idades que vão dos setenta e um aos catorze anos, foram estu­pradas e estranguladas. Hoje houve um sexto assassinato em Castle Rock, e a vítima foi uma menina de nove anos. Catherine Mackin, de Castle Rock, conta como foi.

E lá estava ela, parecendo ficção, uma figura de faz-de-conta cuidadosamente superposta num cenário real. Estava na rua, de­fronte do prédio da Prefeitura Municipal. A primeira neve da tarde, que se transformara na tempestade da noite, polvilhava os ombros do casaco e seus cabelos louros.

— Uma sensação de histerismo crescente está dominando esta pequena cidade da Nova Inglaterra, nesta tarde — começou ela. — Os moradores de Castle Rock há muito que estão nervosos por causa da pessoa desconhecida que a imprensa local chama de “Es­trangulador de Castle Rock”, ou às vezes de “Assassino de Novem­bro”. Esse nervosismo passou ao terror — ninguém aqui acha que esse termo seja forte demais — depois que foi encontrado o corpo de Mary Kate Hendrasen, no parque da cidade, não longe do coreto onde foi descoberto o corpo da primeira vítima do Assassino de Novembro, uma garçonete de nome Alma Frechette.

Seguia-se uma tomada panorâmica do parque da cidade, vazio e morto sob a neve que caía. Foi substituída por uma foto de colégio de Mary Kate Hendrasen, sorrindo, com aparelho nos dentes. Os cabelos eram de um louro esbranquiçado. O vestido, azul-vivo. Provavelmente, seu melhor vestido, pensou Johnny, desgostoso. A mãe a vestiu com o melhor vestido para a foto da escola.

A reportagem continuou — estavam recapitulando os crimes passados —, mas Johnny já estava ao telefone, primeiro pedindo auxílio à telefonista e depois ligando para a prefeitura de Castle Rock. Ligou devagar, a cabeça latejando.

Herb saiu da sala e olhou para ele, curioso.

— Para onde está ligando, filho?

Johnny sacudiu a cabeça e escutou o fone tocando do outro lado. Atenderam.

— Gabinete do xerife de Castle Rock.

— Eu queria falar com o xerife Bannerman, por favor.

— O seu nome, por favor?

—    John Smith, de Pownal.

— Um momento, por favor.

Johnny virou-se para olhar para a TV e viu Bannerman, como estava naquela tarde, agasalhado com uma jaqueta pesada com os distintivos de xerife do condado nos ombros. Parecia estar constrangido e obstinado, enquanto retrucava às perguntas dos repór­teres. Era um homem de ombros largos, de cabeça grande, incli­nada, com uma cabeleira escura e crespa. Os óculos sem aros que usava pareciam estranhamente deslocados, como sempre parecem os óculos em homens muito grandes.

— Estamos seguindo várias pistas — dizia Bannerman.

— Alô? Sr. Smith? — disse Bannerman.

Mais uma vez aquela estranha sensação de dublagem. Ban­nerman estava em dois lugares ao mesmo tempo. Dois tempos em um tempo, se se queria pensar assim. Johnny sentiu um instante de vertigem impotente. Sentiu-se, que Deus o ajudasse, como a gente se sente num dos brinquedos do parque de diversões, nos aviões ou chicote.

— Sr. Smith? Está ouvindo, homem?

— Sim, estou ouvindo. — Ele engoliu. — Mudei de idéia.

— Ótimo! Estou um bocado satisfeito por ouvir isso.

— Mas pode ser que não possa ajudá-lo, sabe?

— Sei disso. Mas.., quem não arrisca, não petisca. — Ban­nerman pigarreou. — Eu seria expulso de vez desta cidade se soubessem que tinha recorrido a um paranormal.

No rosto de Johnny estampou-se a sombra de um sorriso.

—    E ainda mais um paranormal desacreditado.

— Sabe onde fica Jon’s, em Brídgton?

—    Posso descobrir.

     — Pode encontrar-me lá às oito da noite?

— Sim, acho que sim.

—    Obrigado, sr. Smith.

—    Tudo bem.

Desligou. Herb estava observando-o com atenção. Atrás dele, continuava o programa de TV.

— Ele já tinha ligado para você, não é?

     — Ligou, sim. Sam Weizak disse que eu talvez pudesse ajudar.

— Você acha que pode?

— Não sei — disse, Johnny —, mas a minha dor de cabeça melhorou um pouco.

 

Ele chegou quinze minutos atrasado ao Restaurante Jon’s, em Bridgton; parecia ser a única casa comercial da rua principal de Bridgton que ainda estava aberta. Os arados de limpar a neve esta­vam funcionando, e em vários lugares havia montes de neve na estrada. No cruzamento das Rodovias 302 e 117, o sinal balançava de um lado para outro no vento uivante. Um carro da polícia com os dizeres XERIFE DO CONDADO DE CASTLE em dourado, na porta, estava parado diante do Jon’s. Ele estacionou atrás e entrou.

Bannerman estava sentado a uma mesa diante de uma xícara de café e uma tigela de chili. A Tv não lhe fizera justiça. Ele não era um homem grande; era um homem imenso. Jobnny aproximou-se dele e apresentou-se.

Bannerman levantou-se e apertou a mão que o outro estendera. Olhando para o rosto pálido e tenso de Johnny, e para o corpo que parecia boiar dentro da jaqueta da marinha, a primeira idéia de Bannerman foi: “Esse cara está doente.., talvez não viva muito”. Só os olhos de Johnny pareciam ter alguma vida: eram de um azul franco e penetrante e fixaram-se firmemente nos de Bannerman com uma curiosidade forte e honesta. E, quando eles se apertaram as mãos, Bannerman sentiu uma surpresa estranha, uma sensação que mais tarde descreveria como um esgotamento. Um pouco como levar um choque elétrico de um fio descoberto. Depois passou.

— Fico satisfeito por você estar aqui — disse Bannerman. —Café?

—    Aceito.

—    Que tal uma tigela de chili? Aqui fazem um chili danado de bom. Não devo comer por causa de minha úlcera, mas como assim mesmo. — Viu a expressão de surpresa no rosto de Johnny e sorriu. — Sei que não parece direito, um cara grande como eu com úlcera, não é?

— Acho que qualquer um pode ter úlcera.

—    Nem brinque — disse Bannerman. — O que o levou a mudar de idéia?

—    O noticiário. A menininha. Tem certeza de que foi o mesmo cara?

— Foi o mesmo cara. Mesmo método. E mesmo tipo de es­perma.

Ele ficou observando o rosto de Johnny, enquanto a garçonete se aproximava.

— Café? — perguntou ela.

Chá — disse Johnny.

     —      E traga uma tigela de chili para ele, senhorita — disse Bannerman. Depois que a garçonete se foi, ele falou: — Esse médi­co disse que, se você tocar em alguma coisa, às vezes tem idéias de onde veio, de quem pode ter sido o dono, coisas assim.

Johnny sorriu.

—    Bem — disse ele —, acabei de lhe apertar a mão e sei que tem um cão setter irlandês chamado Rusty. E sei que ele é velho e está ficando cego, e o senhor acha que está na hora de fazê-lo dormir, mas não sabe como vai explicar isso à sua filhinha.

Bannerman deixou cair a colher dentro do chili. Olhou para Johnny, boquiaberto.

—    Meu Deus! — disse ele. — Soube disso por mim? Agora?

Johnny fez que sim.

Bannerman sacudiu a cabeça e murmurou:

—    Uma coisa é ouvir falar disso, e outra... isso não o esgota?

Johnny olhou para Bannerman, espantado. Era uma pergunta que nunca lhe haviam feito.

—    Sim. Esgota, sim.

—    Mas você sabia. Diabos me carreguem.

—    Mas, olhe, xerife.

—    George. Só George.

— OK, eu sou Johnny, só Johnny. George, o que eu não sei a respeito de você dava para encher uns cinco volumes. Não sei onde foi criado, ou onde estudou para a policia, nem quem são seus amigos nem onde mora. Sei que tem uma filhinha e que o nome dela é alguma coisa como Cathy, mas não é bem isso. Não sei o que fez na semana passada, nem que cerveja prefere, nem qual o seu programa de TV favorito.

— O nome de minha filha é Katrina — disse Bannerman, baixinho. — Ela também tem nove anos. Era da turma de Mary Kate.

—    O que estou querendo dizer é que.., o saber às vezes é uma coisa muito limitada. Por causa da zona morta.

—    Zona morta?

     — São como alguns fios que não dão contato — disse Johnny. —        Nunca consigo saber ruas nem endereços. Os números são difí­ceis, mas às vezes ocorrem. — A garçonete voltou com o chá e o chili para Johnny. Ele provou o chili e disse: — Tem razão. É bom. Especialmente numa noite como esta.

—    Bom apetite — disse Bannerman. — Rapaz, adoro um chili bem-feito. Minha úlcera reclama à beça, com isso, mas eu digo: foda-se, úlcera. Que se dane.

Ficaram calados um pouco, enquanto Johnny comia o chili e Bannerman o observava, curioso. Julgou que Smith podia ter descoberto que ele tinha um cachorro chamado Rusty. Podia até ter descoberto que Rusty estava velho e quase cego. Ia mais adiante: se sabia o nome de Katrina podia ter comentado “alguma coisa como Cathy, mas não é bem isso” só para dar o toque de realismo vacilante. Mas por quê? E nada disso explicaria aquela sensação esquisita, de aniquilamento, que ele sentira na cabeça quando Smith tocara em sua mão. Se era uma vigarice, era danada de boa.

Lá fora, o vento soprava uivando e parecia abalar os alicerces do prédio pequeno. Um véu de neve esvoaçante fustigava o Pon­dicherry Bowling Lanes, um boliche do outro lado da rua.

—    Escute só isso — disse Bannerman. — Dizem que vai durar a noite toda. Não me venha dizer que os invernos estão fi­cando mais amenos.

—    Tem alguma coisa? — perguntou Johnny. — Alguma coisa que pertenceu ao camarada que estão procurando?

—    Talvez tenhamos — disse Bannerman, e depois sacudiu a cabeça. — Mas é muito tênue.

—    Conte-me.

Bannerman explicou tudo. A escola primária e a biblioteca fi­cavam uma em frente da outra, dos dois lados do parque. Era comum os professores mandarem os alunos atravessarem o parque quando precisavam de um livro para um proieto ou um relatório. O professor dava uma licença, e a bibliotecária a rubricava antes de o aluno voltar. Perto do centro do parque, o terreno tinha uma leve depressão. Do lado oeste da depressão ficava o coreto da praça. Na depressão em si havia dúzias de bancos onde as pessoas se sentavam durante os concertos de bandas e partidas de futebol, no outono.

—    Nós achamos que ele se sentou e ficou esperando que aparecesse alguma garota. Estaria escondido dos dois lados do par­que. Mas o caminho passa pelo lado norte da depressão, junto dos bancos.

Bannerman sacudiu a cabeça, devagar.

—    O pior é que a mulher, Frechette, foi morta bem no coreto. Vou enfrentar o diabo por causa disso na Câmara Municipal em março... isto é, se eu ainda estiver por aqui em março. Bom, posso mostrar um memorando que escrevi ao administrador da cidade, pedindo guardas adultos para a travessia do parque durante o horário escolar. Não que eu estivesse preocupado com esse assassino, meu Deus, não. Nunca sonhei que ele pudesse voltar ao mesmo lugar.

—    O administrador da cidade recusou os guardas para a tra­vessia?

—    Não tinha fundos — disse Bannerman. — Claro, ele pode pôr a culpa nos conselheiros municipais, e eles podem tentar de­volvê-la para mim, enquanto o capim cresce sobre a sepultura de Mary Kate Hendrasen e... — Parou um instante, ou talvez tivesse se engasgado com o que ia dizendo. Johnny olhou para a cabeça baixa do outro, com compreensão.

— Podia não ter alterado nada, em todo caso — continuou Bannerman, numa voz mais seca. — A maioria dos guardas que usamos para travessia são mulheres, e esse merda que estamos procurando não parece ligar para a idade delas.

— Mas acha que ele esperou em um desses bancos?

Bannerman achava que sim. Tinham encontrado uma dúzia de pontas de cigarros recentes junto da beira de um dos bancos, e mais quatro atrás do próprio coreto, junto com um maço vazio. Marlboro, infelizmente... a segunda ou terceira marca mais usada no país. O celofane no maço foi examinado, em busca de impressões digitais, mas não revelou nada.

— Nada? — perguntou Johnny. — Ë meio esquisito, não é?

— Por quê?

— Bem, é de supor que o assassino estivesse de luvas, mes­mo que não estivesse pensando em impressões... estava fazendo frio.., mas também é de supor que o cara que vendeu os ci­garros...

Bannerman riu.

— Você tem cabeça para esse trabalho — disse ele —, mas não é fumante.

— Não — disse Johnny. — Eu fumava um pouco quando estava na universidade, mas perdi o hábito depois do acidente.

— A pessoa guarda os cigarros no bolso da frente do paletó. Tira o maço, pega um cigarro, guarda-o no bolso. Se você estiver usando luvas e não deixar uma impressão cada vez que pega um cigarro, o que faz é polir esse papel celofane. Entendeu? E você se esqueceu de mais uma coisa, Johnny. Quer que lhe diga?

Johnny pensou e depois disse:

—    Talvez o maço de cigarros tenha saído de uma caixa. E essas caixas são acondicionadas à máquina.

—    Isso mesmo — disse Bannerman. — Você é mesmo bom nisso.

— E o selo do imposto no maço?

—    Do Maine — disse Bannerman.

— Então, se o matador e o fumante forem o mesmo ho­mem... — disse Johnny, pensativo.

Bannerman deu de ombros.

—    Claro, há a possibilidade técnica de que não sejam. Mas tentei pensar quem mais havia de querer ficar sentado num banco, no parque, numa manhã fria e nublada de inverno, o tempo suficiente para fumar doze ou dezesseis cigarros, e não consegui en­contrar uma resposta.

Johnny bebericou o chá.

—    Nenhuma das outras crianças que atravessaram viu nada?

—    Nada — disse Bannerman. — Falei com todas as crianças que tiveram licença para ir à biblioteca hoje.

—    Isso é muito mais esquisito do que o negócio das impres­sões digitais. Não lhe parece?

—    Parece-me um bocado apavorante. Olhe, o cara está sen­tado ali, e está esperando por uma garota... uma menina... sozinha. Ouve o barulho dos guris, aproximando-se. E a cada vez esconde-se atrás do coreto...

—    Pegadas — disse Johnny.

—    Não hoje. Hoje de manhã não havia neve no chão. Só terra gelada. Então estava lá esse porra-louca, a quem deviam cortar os testículos e servi-los a ele ao jantar, lá está ele, espreitando por trás do coreto. Por volta das oito e cinqüenta, aparecem Peter Harrington e Melissa Loggins. Naquele momento, as aulas já tinham começado havia cerca de vinte minutos. Depois que eles se vão, ele volta ao banco. Às nove e quinze, ele desaparece por trás do coreto de novo. Dessa vez são duas menininhas, Susan Flarhaty e Katrina Bannerman.

Johnny largou a caneca de chá com força. Bannerman tinha tirado os óculos e os estava polindo, selvagemente.

—    A sua filha passou por ali hoje? Meu Deus!

Bannerman recolocou os óculos. Seu rosto estava escuro e cheio de raiva. E ele estava com medo, Johnny viu. Não com medo de que os eleitores o expulsassem, ou que o Union-Leader publi­casse outro editorial sobre os tiras idiotas do oeste do Maine, mas com medo porque, se sua filha tivesse ido à biblioteca sozinha, naquele dia...

—    Minha filha — disse Bannerman. — Acho que ela passou a uns dez metros daquele.., daquele animal. Sabe o que sinto com isso?

—    Não posso imaginar — disse Johnny.

—    Não, não creio que possa. Isso fez com que eu me sinta como se eu quase tivesse pisado num poço de elevador vazio. Como se tivesse recusado comer cogumelos ao jantar e outra pessoa tivesse morrido envenenada. E também faz com que eu me sinta sujo. Com que me sinta imundo. Acho que também explica por que afinal apelei para você. Neste momento, eu faria qualquer negócio para prender esse cara. Qualquer negócio mesmo.

Lá fora, um gigantesco arado de neve apareceu, como uma coisa de um filme de terror. A máquina parou, e dois homens saltaram. Atravessaram a rua, entraram no Jon’s e sentaram-se ao balcão. Johnny acabou o chá. Não queria mais comer o chili.

—    Esse camarada volta ao banco — continuou Bannerman —, mas não por muito tempo. Por volta das nove e vinte e cinco, ouve o garoto Harrington e a menina Loggins voltando da biblioteca. Então torna a ir para trás do coreto. Deve ter sido por volta de nove e vinte e cinco, porque a bibliotecária rubricou a saída deles às nove e dezoito. As nove e quarenta e cinco, três meninos da quinta série passaram pelo coreto a caminho da biblioteca. Um deles acha que pode ter visto “um cara de pé do outro lado do coreto. Ë a única descrição que temos. “Um cara.”. Devíamos irra­diála, não acha? Estejam alerta para achar um cara.

       Bannerman deu uma risada breve, como um latido.

       —     Às nove e cinqüenta e cinco, minha filha e a amiga Susan passam de volta para a escola. Então, por volta das dez e cinco, aparece Mary Kate Hendrasen... sozinha. Katrina e Susan cruzam com ela descendo a escada da escola, quando elas estão subindo. Todas se dizem “oi’.

       —     Meu Deus — murmurou Johnny, passando a mão pelos cabelos.

       —     Por fim, dez e meia. Os três garotos da quinta série estão voltando. Um deles vê alguma coisa no coreto. É Mary Kate, com o collant e as calcinhas puxadas para baixo, as pernas cobertas de sangue, o rosto.., o rosto...

       — Calma — disse Johnny, pondo a mão no braço de Ban­nerman.

       — Não, não posso ter calma — disse Bannerman. Ele falava quase se desculpando. — Nunca vi nada assim, nos meus dezoito anos de policia. Ele estuprou a menininha, e isso seria o sufi­ciente.., suficiente, sabe, para matá-la... o médico disse que, do modo como ele fez... rompeu alguma coisa e... é, provavel­mente ele a teria matado.., mas decidiu estrangulá-la. Nove anos de idade, estrangulada e largada.., largada no coreto com as calcinhas arriadas.

       De repente, Bannerman começou a chorar. As lágrimas enche­ram seus olhos, por trás dos óculos, e depois rolaram pelo seu rosto, como dois riachos. No balcão, os dois caras da turma de estradas de Bridgton estavam falando sobre o campeonato. Bannerman tornou a tirar os óculos e enxugou o rosto com o lenço. Seus ombros esta­vam tremendo e se sacudindo. Johnny esperou, mexendo no chili num gesto mecânico.

       Depois de certo tempo, Bannerman guardou o lenço. Estava com os olhos vermelhos, e Johnny achou que o rosto dele parecia muito despido, sem os óculos.

       — Desculpe, rapaz — disse ele. — Foi um longo dia.

       — Tudo bem — disse Johnny.

       — Eu sabia que ia fazer isso, mas achei que ia conseguir me segurar até chegar a casa, com a minha mulher.

—    Bom, parece que era muito tempo para esperar.

—    Você é um cara compreensivo. — Bannerman tornou a colocar os óculos. — Não, é mais do que isso. Você tem alguma coisa. Sei lá o que é, mas é alguma coisa.

— O que mais vocês têm, de positivo?

— Nada. Estou levando a maior parte da culpa, mas a policia estadual não tem se destacado, propriamente. Tampouco o investigador especial do procurador-geral, nem o nosso agente favorito do FBI. O médico-legista do condado conseguiu estabele­cer o tipo de esperma, mas isso não nos adianta nada, nesta altura dos acontecimentos, O que mais me intriga é a ausência de cabelos e pele sob as unhas das vítimas. Todas devem ter lutado, mas não temos nem um centímetro de pele. O Demônio deve estar prote­gendo esse cara. Ele nunca deixou cair um botão, uma lista de compras, nem deixou uma única pista. Consultamos um psiquiatra de Augusta, também cortesia do procurador-geral do Estado, e ele nos disse que esses camaradas sempre se traem, mais cedo ou mais tarde. Grande consolo. E se for mais de... digamos, daqui a uns doze cadáveres?

—    O maço de cigarros está em Castle Rock?

—    Está.

Johnny levantou-se.

—    Bom, vamos dar um passeio.

—    No meu carro?

Johnny deu um meio sorriso, ouvindo o vento uivando lá fora.

—    Numa noite como esta, vale a pena estar com um policial. — disse ele.

 

A tempestade de neve estava no auge, e eles levaram uma hora e meia para chegar a Castle Rock, na radiopatrulha de Ban­nerman. Eram dez e vinte da noite quando entraram no vestíbulo do prédio da prefeitura, batendo os pés para tirar a neve das botas.

Havia meia dúzia de repórteres no saguão, a maioria sentada num banco sob um horrível retrato a óleo de um dos fundadores da cidade, trocando histórias de antigas vigílias. Num instante esta­vam de pé, cercando Bannerman e Johnny.

—    Xerife Bannerman, é verdade que houve alguma novidade no caso?

—    Não tenho nada a declarar, por enquanto — disse Ban­nerman, com firmeza.

—    Dizem que o senhor prendeu um homem de Oxford, é ver­dade, xerife?

—    Não. Se me dão licença...

Mas eles tinham voltado a atenção para Johnny, e ele teve uma sensação de frio na barriga ao reconhecer pelo menos duas caras da entrevista coletiva à imprensa, no hospital.

— Deus do céu! — exclamou um deles. — Você é John Smith, não é?

Johnny sentiu uma vontade maluca de recusar-se a responder para não se incriminar, como um gângster numa audiência de uma comissão do Senado.

— Sou eu, sim — disse ele.

— Aquele médium? — perguntou outro.

—    Olhe, deixem a gente passar! — disse Bannerman, falando mais alto. — Vocês, caras, não têm mais nada que fazer do que...

—    Segundo a Inside View, você é um impostor — disse um rapaz, de sobretudo pesado. — Ë verdade?

— Só posso dizer a respeito disso que a Inside View publica o que bem entende — disse Johnny. — Olhem, realmente...

— Está negando a história da Inside View?

—    Olhe, não posso dizer mais nada mesmo.

Quando eles entraram pela porta de vidro fosco para o gabi­nete do xerife, os repórteres estavam correndo para os telefones públicos na parede junto do gabinete do guarda de plantão.

— Agora é que a bosta se espalhou mesmo — disse Banner­man, aborrecido. — Juro por Deus que nunca pensei que ainda estivessem aqui numa noite como esta. Devia ter feito você entrar pelos fundos.

— Ah, não sabia, não? — perguntou Johnny, com amargura. — Nós adoramos a publicidade. Todos nós, médiuns, estamos nesse negócio por causa da publicidade.

—    Não, não creio — disse Bannerman. — Pelo menos, não você. Bem, aconteceu, não há nada a fazer.

Mas mentalmente Johnny estava visualizando as manchetes, mais um pouco de tempero num caldeirão que já estava fervendo ativamente: XERIFE DE CASTLE ROCK USA MÉDIUM LOCAL EM CASO DE ESTRANGULADOR. ASSASSINO DE NOVEMBRO PODE SER INVES­TIGADO POR VIDENTE. HISTÓRIA DE CONFISSAO DE EMBUSTE É INVEN­ÇAO, PROTESTA SMITH.

 

Havia dois delegados na ante-sala, um deles cochilando, o outro tomando café e examinando melancolicamente uma pilha de rela­tórios.

—    A mulher dele o expulsou de casa, ou coisa assim? — per­guntou Bannerman, azedo, apontando o dorminhoco.

—    Ele acabou de chegar de Augusta — disse o delegado. Era pouco mais que um garoto, e estava com olheiras e um ar cansado. Olhou para Johnny, com curiosidade.

—    Johnny Smith, Frank Dodd. A bela adormecida ali é Roscoe Fisher.

Johnny cumprimentou o outro.

—    Roscoe disse que o procurador-geral quer o caso todo —disse Dodd a Bannerman. Estava com uma expressão zangada, de­safiadora e um tanto patética. — Que presente de Natal, hem?

Bannerman pôs a mão na nuca de Dodd e sacudiu-o de leve.

—    Você se preocupa demais, Frank. Além disso, está dedi­cando tempo demais a esse caso.

—    Fico pensando que deve haver alguma coisa nesses rela­tórios... — Deu de ombros e depois bateu neles com um dedo. —Alguma coisa...

—    Vá para casa descansar um pouco, Frank. E leve a bela adormecida com você. Só faltava mesmo que um desses fotógrafos tirasse uma foto dele. Seria publicado nos jornais com uma legenda:

“Em Castle Rock continua a investigação intensiva”, e estaríamos todos despedidos, varrendo as ruas.

Bannerman levou Johnny para seu gabinete particular. A se­cretária estava coberta por papéis. No parapeito da janela havia um porta-retrato triplo com fotos de Bannerman, a mulher e a filha Katrina. O diploma dele estava pendurado, enquadrado com capri­cho, numa das paredes, e ao lado, em outro quadro, a primeira página do Call, de Castle Rock, em que se anunciava sua eleição.

—    Café? — perguntou Bannerman, abrindo um arquivo.

— Não, obrigado. Prefiro chá.

—    A Sra. Sugarman guarda seu chá com cuidado — disse Ban­nerman. — Leva-o para casa todo dia, sinto muito. Eu lhe ofereceria uma água tônica, mas teríamos de nos expor outra vez para chegar até a máquina. Meu Deus, quem me dera fossem embora!

—    Tudo bem.

Bannerman mostrou-lhe um pequeno envelope fechado por um grampo.

—    É isto aqui — disse ele. Hesitou um momento, depois entregou o envelope.

Johnny segurou-o, mas não o abriu logo.

—    Preciso esclarecer que não há certeza de que me venha alguma coisa. Não posso prometer nada. Às vezes consigo; outras, não.

Bannerman deu de ombros, cansado, e repetiu:

—    Quem não arrisca, não petisca.

Johnny abriu o grampo e sacudiu o envelope, de onde caiu um maço de cigarros Marlboro vazio em sua mão. Caixinha verme­lha e branca. Ele a segurou com a mão esquerda e olhou para a parede. Parede cinza. Parece cinza. Parede industrial cinza. Caixa vermelha e branca. Caixa industrial cinza. Pôs o maço de cigarros na outra mão, depois nas duas. Esperou que lhe viesse algu­ma coisa, qualquer coisa. Não veio nada. Segurou mais, na esperança vã, desprezando o fato sabido de que quando as coisas vinham, vinham logo.

Por fim devolveu o maço de cigarros.

—    Sinto muito — disse ele.

—    Nada feito, hem?

—    Não.

Bateram de leve à porta, e Roscoe Fisher enfiou a cabeça pela fresta. Parecia meio encabulado.

—    Frank e eu vamos para casa, George. Acho que você me pegou cochilando.

—    Contanto que não o pegue fazendo isso na radiopatrulha... — disse Bannerman. — Lembranças a Deeme.

—    Certo. — Fisher olhou para Johnny um instante e depois fechou a porta.

—    Bem — disse Bannerman. — Acho que valeu a pena tentar. Vou levá-lo de volta...

—    Quero ir até o parque — disse Johnny, abruptamente.

—    Não, não adianta. Está coberto de neve.

—    Você sabe encontrar o lugar, não sabe?

—    Claro que sim. Mas de que adianta? ~.

—    Não sei. Mas vamos até lá.

—    Esses repórteres vão nos seguir, Johnny, tão certo como dois e dois são quatro.

—    Você disse alguma coisa sobre uma porta dos fundos.

—    É, mas é uma saída de incêndio. Para entrar serve, mas, se a usarmos para sair, o alarma toca.

Johnny assobiou por entre os dentes.

—    Então eles que nos sigam.

Bannerman olhou para ele pensativo uns segundos, e depois concordou.

—    OK.

 

Quando eles saíram do gabinete, o rep6rteres logo se levanta­ram para cercá-los. Johnny lembrou-se de um canil decrépito em Durham, onde uma velha estranha criava colhes. Os cães corriam todos para avançar na pessoa que passasse por ali, carregando um anzol, ganindo, rosnando e assustando. Mordiscavam, mas não che­gavam a morder.

—    Sabe quem foi que cometeu os crimes, Johnny?

—    Tem alguma idéia?

—    Teve alguma inspiração, Sr. Smith?

—    Xerife, foi sua a idéia de chamar um paranormal?

—    A policia estadual e o gabinete do procurador-geral sabem disso, xerife Bannerman?

—    Acha que vai resolver o caso, Johnny?

—    Xerife, já delegou poderes a esse camarada?

Bannerman foi abrindo caminho devagar e com firmeza por entre eles, fechando o casaco.

—    Sem comentários, sem comentários.

Johnny não disse uma palavra.

Os repórteres se agruparam no saguão, enquanto Johnny e Ban­nerman desciam a escada cheia de neve. Só quando passaram pela radiopatrulha e começaram a caminhar pela neve da rua é que um deles percebeu que iam ao parque. Vários deles correram de volta para pegar os sobretudos. Os que já estavam com as roupas de rua quando Johnny e Bannerman saíram do gabinete desceram pela escada da prefeitura atrás deles, gritando como crianças.

 

Flashes iluminando a noite nevada. O vento uivava, soprando a neve por entre eles, de um lado para outro, em camadas errantes.

— Você não vai conseguir enxergar coisa alguma — disse Ban­nerman. — Você... merda! —Quase foi derrubado quando um repórter com um sobretudo volumoso e um gorro estranho esbarrou nele.

—    Desculpe, xerife — disse o outro, encabulado. — Está es­corregando. Esqueci as minhas galochas

Adiante deles apareceu, no escuro, uma corda de náilon ama­rela. Presa a ela havia uma placa balançando loucamente, com os dizeres: INVESTIGAÇÃO POLICIAL.

     —      Também esqueceu o seu miolo — disse Bannerman. —Agora fiquem para trás, vocês todos! Bem para trás!

O parque da cidade é propriedade pública, xerife! — disse um dos repórteres.

     — Isso mesmo, e isso aqui é negócio da policia. Fiquem para trás dessa corda aqui, se não quiserem passar a noite na minha cela de detenção.

Com o feixe de luz de lanterna, mostrou-lhes a extensão da corda e depois levantou-a para que Johnny pudesse passar. Cami­nharam pelo declive até os bancos cobertos de neve. Atrás deles, os repórteres se agruparam junto do cordão de isolamento, juntando suas poucas luzes, de modo que Johnny e George Bannerman anda­vam numa espécie de luz de projetor difusa.

—    Vôo cego — disse Bannerman.

—    Bem, não há nada para ver, mesmo — disse Johnny. —

—    Não, agora não. Eu disse a Frank que ele podia tirar aquele cordão de isolamento quando quisesse. Agora estou contente que não o tenha feito. Quer ir até o coreto?

—    Ainda não. Mostre-me onde estavam as pontas de cigarro.

Eles seguiram mais um pouco, e então Bannerman parou.

—    Aqui — disse ele, apontando a luz para um banco que era pouco mais que um calombo vago saindo de dentro de um monte de neve.

Johnny tirou as luvas e guardou-as nos bolsos do casaco. De­pois ajoelhou-se e começou a afastar a neve do assento do banco. Mais uma vez Bannerman ficou impressionado com a palidez ma­cilenta do rosto daquele homem. Ajoelhado em frente do banco, ele parecia um penitente religioso, um homem numa oração de­sesperada.

As mãos de Johnny ficaram frias, e depois dormentes. A neve derretida escoava-se de seus dedos. Ele alcançou a superfície do banco, lascada e gasta pelo tempo. Parecia vê-la muito claramente, quase como se tivesse uma lente de aumento. Antes tinha sido verde, mas grande parte da tinta estava descascada e gasta pela erosão. Dois parafusos enferrujados prendiam o assento ao encosto.

Ele agarrou o banco com ambas as mãos, e uma sensação estranha o inundou: nunca sentira nada de tão intenso antes, e só tomaria a sentir uma coisa tão intensa mais uma vez na vida. Ficou fitando o banco, franzindo a testa, agarrando-o com força. Era...

(Um banco de verão)

Quantas centenas de pessoas diferentes tinham se sentado ali, em alguma ocasião, escutando o hino nacional, a canção de luta de Castle Rock? Folhas verdes de verão, névoa de outono, como uma recordação de espigas de milho e homens com ancinhos no entardecer ameno. O rufar do tambor de parada. Trombetas e trombones dourados e suaves. Uniformes da banda escolar...

Gente boa sentada ali no verão, escutando, aplaudindo, segu­rando programas concebidos e impressos nas oficinas gráficas do ginásio de Castle Rock.

Mas naquela manhã um assassino estivera sentado ali. Johnny podia senti-lo.

Os galhos escuros das árvores destacavam-se contra um céu cinza de neve como sinais rúnicos. Ele (eu) estou sentado aqui, fumando, esperando, sentindo-me bem, sentindo que ele (eu) podia pular por cima do teto do mundo e cair de leve nos dois pés. En­toando uma canção. Uma coisa dos Rolling Stones. Não consigo pegar, mas claramente tudo está.., está o quê?

Tudo está certo, e tudo está cinza e esperando a neve, e eu sou.. -

—    Esperto — murmurou Johnny. — Sou esperto, sou muito esperto.

Bannerman debruçou-se, sem conseguir entender as palavras naquele vento uivante.

—    O quê?

—    Esperto — repetiu Johnny. Ele olhou para Bannerman, e o xerife involuntariamente deu um passo para trás. Os olhos de Johnny estavam frios e meio desumanos. Seus cabelos escuros esvoaçavam loucamente sobre seu rosto branco, e ao alto o vento de inverno berrava no céu negro. Suas mãos pareciam estar soldadas ao banco.

—    Sou danado de esperto — disse ele, com clareza. Um sorriso triunfal se formara em seus lábios. Seus olhos olhavam através de Bannerman. Bannerman acreditou nele. Ninguém podia estar repre­sentando aquilo, ou fingindo. E o mais terrível era que... aquilo lhe lembrava alguém. O sorriso.., o tom de..... Johnny Smith se fora; parecia ter sido substituído por um vazio humano. E por trás do plano de suas feições comuns, quase tão perto que se podia tocar nele, estava outro rosto. O rosto do assassino.

O     rosto de alguém que ele conhecia.

—    Nunca me pegarão porque sou esperto demais para vocês. —Uma risadinha escapou dele, confiante, meio desafiadora. —Visto isso todas as vezes, e, se elas arranham... ou mordem... não tiram nem um pedacinho de mim.., porque sou muito ESPER­TO! — Sua voz subiu até tornar-se um grito triunfante e louco, que competia com o vento, e Bannerman recuou mais um passo, a pele toda arrepiada, os ovos apertados e grudados no corpo.

“Pare com isso”, pensou ele. “Pare com isso agora. Por favor.”

Johnny curvou a cabeça sobre o banco. A neve derretida caía entre seus dedos.

(Neve. Neve silenciosa, doce neve...)

(Ela pós um prendedor de roupas nele para eu saber como era. Como era quando a gente pegava uma doença. Uma doença da­quelas sacanas, perdidas, são todas sacanas, perdidas, e têm de ser impedidas, é, impedidas, parem, parem, PAREM... AH, MEU DEUS! O SINAL, PARE...!)

Ele era criancinha de novo. Indo para a escola no meio da neve silenciosa e secreta. E havia um homem que apareceu no meio daquela brancura, um homem horrível, um negro horrí­vel, rindo, com olhos brilhando como moedas, e havia um sinal vermelho escrito PARE numa das mãos enluvadas dele... ele!... ele!... ele!

(AH, MEU DEUS! ..... - NÃO DEIXE QUE ELE ME PEGUE... MAMÃE... NÃO DEIXE QUE ELE ME PE­GUEEEE...)

Johnny gritou e afastou-se do banco, apertando de repente o rosto com as mãos. Bannerman agachou-se ao seu lado, muito assustado. Por trás do cordão, os repórteres se agitavam e murmuravam.

—    Johnny! Pare com isso! Escute, .......

—    Esperto — murmurou Johnny. Ele olhou para Bannerman com olhos magoados e assustados. Mentalmente, ainda estava vendo aquele vulto negro, de olhos brilhantes como moeda aparecendo no meio da neve. Seu pênis estava latejando da dor causada pelo prendedor que a mãe do assassino o fizera usar. Naquela ocasião ele não era assassino, ah, não, não um animal, nem um saco de merda ou seja o que for de que Bannerman o chamara, era apenas um menino assustado com um prendedor de roupa no... no...

—    Ajude-me a me levantar — murmurou ele.

Bannerman ajudou-o a levantar-se.

—    Agora o coreto — disse Johnny.

—    Não, acho melhor voltarmos, Johnny.

Johnny passou por ele às cegas e começou a andar, camba­leando, para o coreto, uma grande sombra circular adiante deles. O coreto se avolumava nas trevas, o lugar da morte. Bannerman correu e alcançou-o.

—    Johnny, quem é? Você sabe quem...?

—    Vocês nunca encontraram fragmentos de tecido sob as unhas delas porque ele estava de capa de chuva — disse Johnny. As pala­vras saíam ofegantes. — Uma capa de chuva com capuz. Uma capa de chuva de vinil, lisa. Reveja os relatórios. Reveja os rela­tórios e verá. Estava chovendo ou nevando, todas as vezes. Elas o atacavam, sim. Lutavam contra ele. Claro que sim. Mas seus dedos escorregavam pela capa.

—    Quem, Johnny? Quem?

—    Não sei. Mas vou descobrir.

Ele tropeçou no primeiro degrau que dava para o coreto, ten­tou equilibrar-se, e teria caído se Bannerman não lhe tivesse se­gurado o braço. Em seguida estavam em cima da plataforma. Ali a neve era rala, uma leve camada, devido à proteção do teto cônico. Bannerman apontou o raio de luz da lanterna para o chão, e Johnny pôs-se de quatro e começou a rastejar por ali, devagar. Suas mãos estavam de um vermelho vivo. Bannerman pensou que elas deviam estar como pedaços de carne viva, àquela hora.

Johnny parou de repente e se enrijeceu como um cão apon­tando.

—    Aqui — disse ele. — Foi bem aqui.

Imagens, consistências e sensações o inundavam. O gosto de cobre da empolgação, a possibilidade de ser visto aumentando-a. A menina estava se debatendo, tentando gritar. Ele lhe cobrira a boca com a mão enluvada. Uma excitação tremenda. Nunca me pegarão, sou o Homem Invisível, já basta de sujeira para você agora, mamãe?

Johnny começou a gemer, sacudindo a cabeça para a frente e para trás.

O     barulho de roupas se rasgando. Calor. Uma coisa jorrando. Sangue? Sêmen? Urina?

Ele começou a tremer, o corpo todo. Os cabelos cobriam-lhe o rosto. O rosto. O rosto franco e sorridente, enquadrado dentro das bordas do capuz, enquanto as suas (minhas) mãos apertam o pes­coço no momento do orgasmo e apertam.., e apertam.., e aper­tam.

Ele perdeu a força dos braços quando as imagens começaram a apagar-se. Caiu para a frente, deitado ao comprido na plataforma, soluçando. Quando Bannerman lhe tocou no ombro, ele soltou uma exclamação e tentou fugir, o rosto contorcido de medo. Depois, aos poucos, foi se descontraindo. Encostou a cabeça contra a grade do coreto e fechou os olhos, o corpo percorrido por tremores espas­módicos. As calças e o casaco estavam polvilhados de neve.

—    Sei quem é — disse ele.

 

Quinze minutos depois, Johnny estava novamente sentado no gabinete de Bannerman, despido, só de cuecas, e sentado o mais perto possível de um aquecedor elétrico portátil. Ainda estava parecendo frio e infeliz, mas tinha parado de tremer.

—    Tem certeza de que não quer um café?

Johnny sacudiu a cabeça.

—    Não tolero café.

—    Johnny. — Bannerman sentou-se. — Sabe mesmo algu­ma coisa?

—    Sei quem foi que as matou. Vocês o teriam pego, com o tempo. Estavam perto demais. Já o viram de capa de chuva, aquela capa de chuva lustrosa, comprida. Porque é ele quem atravessa os guris de manhã. Tem um sinal de PARE num bastão, e atravessa os guris de manhã.

Bannerman olhou para ele, estatelado,

—    Está falando de Frank? Frank Dodd? Está maluco!

—    Foi Frank Dodd quem as matou — disse Johnny. — Frank Dodd foi quem matou todas elas.

Bannerman parecia não saber se devia rir de Johnny ou dar-lhe um bom pontapé.

     — Essa é a coisa mais maluca que já ouvi na minha vida — disse ele, por fim. — Frank Dodd é um bom policial e um bom homem. No próximo mês de novembro, vai concorrer ao cargo de chefe de policia municipal, e isso com a minha bênção. — Sua expressão agora era de divertimento misturado com um desprezo fatigado. — Frank está com vinte e cinco anos. Isso significa que ele devia ter começado com essa merda maluca quando tinha apenas dezenove anos. Ele mora em casa com a mãe, muito sossegado; ela não está muito bem.., hipertensão, tireóide, e um estado semidiabétíco. Johnny, você deu com os burros n’água. Frank Dodd não é assassi­no. Posso apostar a minha vida nisso.

—    Os crimes pararam durante dois anos — disse Johnny. —Onde é que Frank Dodd estava, então? Estava aqui?

Bannerman virou-se para ele, e então a expressão de diverti­mento cansado desapareceu de sua fisionomia e ele parecia apenas duro. Duro e zangado.

—    Não quero mais ouvir falar nisso. Você é que estava com a razão... não passa de um embusteiro. Bom, já conseguiu a sua publicidade na imprensa, mas isso não quer dizer que eu tenha de ficar escutando, enquanto você calunia um bom policial, um homem que...

—    Considero como meu filho — disse Johnny, com calma.

Bannerman apertou os lábios e grande parte da cor que tinha tingido suas faces durante o tempo que passaram fora de casa desapareceu de seu rosto. Parecia que havia levado um golpe baixo. Depois, aquilo passou, e seu rosto ficou sem expressão.

—    Saia daqui — disse ele. — Peça a um dos seus amigos repórteres que lhe dê condução até sua casa. Pode conceder uma entrevista coletiva, no caminho. Mas juro por Deus, juro pelo santo nome de Deus, que, se você mencionar o nome de Frank Dodd, vou atrás de você e lhe quebro as costas. Entendeu?

—    Claro, meus amiguinhos da imprensa! — Johnny gritou-lhe de repente. — Isso mesmo! Não viu que respondi a todas as perguntas deles? Não posei para as fotos deles, fazendo questão de que fotografassem do lado mais favorável? Não fiz questão que escrevessem o meu nome direito?

Bannerman pareceu sobressaltar-se, depois endureceu de novo.

—    Fale mais baixo.

     —      Não, diabos me carreguem se falo mais baixo! — disse Johnny, e sua voz ficou mais alta ainda, em tom e volume. — Parece que está se esquecendo de quem é que foi procurar o outro!

Vou lhe refrescar a memória. Foi você que foi me chamar, a mim. Eu é que estava mesmo ansioso para vir aqui!

—    Isso não significa que você seja...

Johnny aproximou-se de Bannerman, o dedo apontado como uma pistola. Ele era vários centímetros mais baixo e provavelmente pesava menos uns quarenta quilos, mas Bannerman recuou um passo — como já tinha feito no parque. As faces de Johnny estavam co­radas,, de um vermelho fosco. Seus lábios estavam levemente arre­ganhados.

—    Não, tem razão, o fato de você me chamar não quer dizer merda de coisa nenhuma — disse ele. — Mas não quer que seja Dodd, não é? Pode ser outra pessoa, então pelo menos vamos investigar, mas não pode ser o nosso Frank Dodd. Porque Frank é um homem direito, Frank toma conta da mãe, Frank respeita o velho xerife George Bannerman, ah, Frank é o próprio Cristo descido da cruz, a não ser quando está violentando e estrangulan­do as velhinhas e meninas, e podia ter sido a sua filha, Bannerman, não entende que podia ter sido a sua própria filha...

Bannerman golpeou-o. No último momento, ele susteve o soco, mas ainda assim foi suficientemente forte para derrubar Johnny; este tropeçou na perna de uma cadeira e depois esparramou-se no chão. O sangue escorreu do seu rosto, onde o anel da Academia de Polida de Bannerman o arranhara.

—    Você estava pedindo isso — disse Bannerman, mas em sua voz não havia muita convicção. Ocorreu-lhe que pela primeira vez na vida ele dera num aleijado.., ou em alguém semelhante.

A cabeça de Johnny parecia estar leve e cheia de sinos. A voz parecia pertencer à outra pessoa, um locutor de rádio ou ator de segunda categoria.

—    Você devia ajoelhar-se e agradecer a Deus que ele não tenha deixado pistas mesmo, pois você não as havia de ver, sentindo o que sente por Dodd. E depois podia ter se considerado responsável pela morte de Mary Kate Hendrasen, como cúmplice.

—    Isso é um raio de uma mentira — disse Bannerman, deva­gar e com clareza. — Eu prenderia o meu próprio irmão se fosse ele o culpado. Levante-se do chio. Desculpe por tê-lo espancado.

Ajudou Johnny a se levantar e olhou para o arranhão no rosto do outro.

—    Vou pegar o estojo de emergência e pôr um iodo nisso aí.

—    Pode deixar — disse Johnny. A raiva desaparecera de sua voz. — Parece que fiz a coisa muito de repente, não foi?

—    Estou lhe dizendo, não pode ser Frank. Você não está atrás de publicidade, certo. Eu errei, nesse ponto. Foi a raiva daquele momento, está bem? Mas as suas vibrações ou o seu plano astral ou seja o que for desta vez o enganaram.

—    Então verifique — disse Johnny. Ele prendeu o olhar de Bannerman. — Verifique o caso. Mostre que estou errado. — Engoliu. — Verifique as horas e datas comparadas com o horário de Frank. Pode fazer isso?

Com relutância, Bannerman disse:

—    As fichas de horários do armário dos fundos ali remontam a catorze ou quinze anos atrás. Imagino que possa verificar.

—    Então faça isso.

—    Moço... — Ele parou. — Johnny, se você conhecesse Frank, riria de si mesmo. Estou falando sério. Não sou só eu, per­gunte a qualquer um...

—    Se eu estiver enganado, terei prazer em confessá-lo.

—    Isso é loucura — murmurou Bannerman, mas foi até o arquivo onde se guardavam as velhas fichas de horários e abriu a porta.

 

Passaram-se duas horas. Já era quase uma hora da madrugada. Johnny telefonara para o pai, dizendo que ia arranjar um lugar para dormir em Castle Rock; a tempestade mantinha-se numa fúria tremenda, e voltar de carro seria quase impossível.

— O que é que está havendo aí? — perguntou Herb. — Pode dizer?

—    Ë melhor não falar pelo telefone, pai.

—    Está bem, Johnny. Não se canse demais.

—    Não.

Mas ele estava exausto, sim. Não se lembrava de ter se can­sado assim desde aqueles primeiros tempos da fisioterapia com Ei­leen Magown. Boa mulher, pensou ele, distraído. Uma mulher boa e simpática, pelo menos até eu lhe dizer que a casa dela estava ar­dendo. Depois disso, tornara-se distante e constrangida. Ela lhe agra­decera, claro, mas.., tocara nele, algum dia depois daquilo? Che­gara a tocar nele? Johnny achava que não. E o mesmo ocorreria com Bannerman, quando esse negócio terminasse. Uma pena. Como Eileen, era uma boa pessoa. Mas as pessoas ficam muito nervosas junto de gente que pode tocar nas coisas e saber de tudo sobre elas.

— Isso não prova nada — dizia Bannerman, agora. No tom de sua voz havia uma rebeldia zangada de menino, a qual despertou em Johnny uma vontade de agarrá-lo e sacudi-lo até ele chocalhar. Mas estava cansado demais.

Eles estavam olhando para um quadro tosco que Johnny tinha feito nas costas de uma circular para interceptadores policiais esta­duais. Empilhadas desordenadamente junto à mesa de Bannerman, havia sete ou oito caixas de fichas antigas, e sobre a me­tade superior da caixa de correspondência de Bannerman estavam as fichas de Frank Dodd, desde 1971, quando ele entrara a serviço do xerife. O quadro era o seguinte:

 

OS ASSASSINATOS      FRANK DODD

Alma Frechette (garçonete)    Então trabalhando no posto da 15:00, 12/11/70      Gulf da Main Street Pauline Toothaker 10:00, 17/11/71      De folga Gheryl Moodey (aluna de ginásio) 14:00, 16/12/71      De folga Carol Dunbarger (aluna de ginásio) ?/11/74    Férias de 15 dias Etta Ringgold (professora) 29(?)/10/75     Patrulha regular em serviço Mary Kate Hendrasen 10:10, 17/12/75      De folga

Todos os horários são “hora aproximada da morte”,

dados fornecidos pelo médico legista estadual.

 

—    Não, não prova nada — concordou Johnny, esfregando as têmporas. — Mas também não o exclui, propriamente.

Bannerman bateu no quadro.

— Quando a srta. Ringgold foi morta, ele estava de serviço.

— Sim, se é que ela realmente foi morta no dia 29 de outu­bro. Mas poderia ter sido no dia 28, ou 27. E mesmo que ele esti­vesse de serviço, quem é que vai suspeitar de um tira?

Bannerman estava olhando para o quadro, com muita atenção.

—    E o intervalo? — disse Johnny. — O intervalo de dois anos.

Bannerman pegou nas fichas.

—    Frank esteve de serviço aqui durante todo o ano de 1973, e o de 1974. Você mesmo viu isso.

—    Então talvez o ímpeto não o tenha acometido naquele ano. Pelo menos, ao que se saiba.

—    Ao que se saiba, não sabemos de nada — contradisse Ban­nerman, depressa.

—    Mas e 1972? Fins de 1972 e princípios de 1973? Não temos fichas para esse período. Ele estava de férias?

—    Não — disse Bannerman. — Frank e um camarada cha­mado Tom Harrison fizeram um curso de um semestre sobre a aplicação da lei rural, num departamento da Universidade do Colorado, em Pueblo. É o único lugar do país em que se apresenta essa oportunidade. É um curso de oito semanas. Frank e Tom estiveram lá do dia 15 de outubro até quase o Natal. O Estado paga uma parte, o condado paga outra parte e o governo federal paga mais uma, segundo o Decreto do Cumprimento da Lei, de 1971. Eu esco­lhi Harrison — ele é hoje chefe de policia em Gates Falls — e Frank. Frank quase não foi, preocupado em deixar a mãe sozinha. Para dizer a verdade, acho que ela procurou convencê-lo a ficar em casa. Eu o convenci. Ele quer fazer carreira na policia, e uma coisa como esse curso conta muito, para o currículo. Lembro-me de que, quando ele e Tom voltaram, em dezembro, Frank estava com uma virose qual­quer e com um aspecto terrível. Tinha emagrecido nove quilos. Dizia que ninguém lá na terra do gado sabia cozinhar como a mãe.

Bannerman calou-se. Alguma coisa no que ele acabara de dizer parecia perturbá-lo.

—    Ele tirou uma licença para tratamento de saúde de uma semana, nas festas de Natal, e depois ficou bom — continuou Ban­nerman, quase na defensiva. — Estava de volta ao serviço no máximo no dia 15 de janeiro. Verifique as fichas.

—    Não é preciso. Assim como não é preciso lhe dizer qual a sua próxima providência.

—    É — disse Bannerman. Ele olhou para as mãos. — Eu lhe disse que você tinha tino para esse negócio. Talvez eu tivesse mais razão do que pensava. Ou do que queria ter.

Pegou o telefone e puxou um catálogo grosso, com uma capa azul lisa, da gaveta de baixo da secretária. Folheando-o, sem levan­tar os olhos, disse a Johnny:

—    Isto é cortesia desse mesmo Decreto do Cumprimento da Lei. Para todos os gabinetes de xerife dos Estados Unidos.

Encontrou o número que desejava e fez a ligação.

Johnny mexeu-se na cadeira.

—    Alô — disse Bannerman. — É do gabinete do xerife de Pueblo?... Bom, aqui fala George Bannerman, sou o xerife do condado de Castle, no oeste do Maine... é, foi isso o que eu disse, do Estado do Maine. Quem está falando aí, por favor?... Está bem, policial Taylor, o caso é o seguinte. Tivemos uma série de assassi­natos aqui, estupros com estrangulamento, seis nos últimos cinco anos. Todos ocorreram em fins de outono ou princípios de inverno. Temos um... — Ele olhou para Johnny um momento, os olhos magoados e desarmados. Depois tornou a olhar para o telefone.

— Temos um suspeito que esteve em Pueblo do dia 15 de outubro de 1972 até... humm, 17 de dezembro, acho. O que eu queria saber é se vocês aí têm algum homicídio não solucionado em seus arquivos, para esse período, vitima mulher, sem idade determinada, estuprada; causa da morte: estrangulamento. Além disso, queria sa­ber o tipo de esperma do autor, se tiverem um crime desses e se obtiveram uma amostra do esperma. O quê?... Sim, OK. Obriga­do.., estarei aqui, esperando. Até logo, policial Taylor.

Desligou.

—    Ele vai verificar a minha identidade, depois vai fazer a bus­ca e me telefona. Quer uma xícara de café... não, não toma, não é?

—    Não — disse Johnny. — Tomo um copo d’água.

Foi até o bebedouro de vidro grande e pegou um copinho de papel de água. Lá fora a tempestade uivava e trovejava.

Atrás dele, Bannerman disse, sem jeito:

—    É, está bem. Você tinha razão. Ele é o filho que eu gostaria de ter tido. Minha mulher teve de fazer cesariana, para Katrina nascer. Não pode ter mais filhos, o médico disse que isso a mataria. Ela ligou as trompas, e eu fiz vasectomia. Para garantir.

Johnny foi até a janela e olhou para o escuro, o copo d’água na mão. Só se via a neve, mas, se ele se virasse, Bannerman se calaria: não era preciso ser paranormal para saber disso.

—    O pai de Frank trabalhava na ferrovia B & M e morreu num acidente quando Frank tinha seus cinco anos. Estava bêbado, tentou fazer um engate num estado em que provavelmente urinaria na perna sem nem notar. Foi esmagado entre dois vagões-dormitórios. Desde então Frank teve de ser o chefe da família. Diz Roscoe que ele teve uma garota no ginásio, mas a Sra. Dodd pôs um fim nisso bem depressa.

“Se pôs”, pensou Johnny. “Uma mulher que fatia uma coisa daquelas... aquele negócio do prendedor de roupas... com o pró­prio filho... esse tipo de mulher não recuaria diante de coisa alguma. Deve ser quase tão louca quanto ele.”

—    Ele veio me procurar quando tinha dezesseis anos, pergun­tando se havia o cargo de policial em meio período. Disse que era a única coisa que realmente queria fazer ou ser, desde menino. Gostei logo dele. Contratei-o para trabalhar aqui, pagando-lhe do meu bolso. Pagava o que podia, sabe, e ele nunca reclamou do pagamen­to. Era o tipo de garoto que teria trabalhado de graça. Apresentou um requerimento para um trabalho em período integral um mês antes de se formar no ginásio, mas naquela ocasião não havia vaga. Ele então foi trabalhar no posto da Gulf de Donny Haggar, e fez um curso de trabalho policial na universidade, em Gotham. Imagino que a Sra. Dodd também tenha querido pôr um paradeiro... achando que ficava muito só, ou coisa que o valha... mas dessa vez Frank contrariou-a..., com o meu encorajamento. Nós o con­tratamos em julho de 1971, e desde então ele trabalha aqui. Agora você vem me dizer isso, e fico pensando que Katrina estava fora de casa ontem, passando perto de quem quer que tenha cometido o crime... e parece um tipo sujo de incesto, quase. Frank freqüenta a nossa casa, comeu a nossa comida, tomou conta de Katrina uma ou duas vezes.., e você me diz...

Johnny virou-se. Bannerman tinha tirado os óculos e estava de novo enxugando os olhos.

—    Se você pode mesmo enxergar tais coisas, tenho pena de você. Você é uma aberração de Deus, e não é diferente de uma vaca de duas cabeças que vi um dia numa feira. Sinto muito. É uma merda de coisa para se dizer, eu sei.

—    Diz a Bíblia que Deus ama todas as suas criaturas — disse Johnny. Sua voz estava meio insegura.

     — É mesmo? — Bannerman fez que sim, e esfregou os pontos vermelhos dos lados do nariz, onde se apoiavam os óculos. — Tem uma maneira esquisita de demonstrar isso, não é?

 

Uns vinte minutos depois, o telefone tocou, e Bannerman atendeu prontamente. Falou pouco. Escutou. Johnny ficou observan­do e viu que o rosto dele envelhecia. Ele desligou e olhou para Johnny muito tempo, sem dizer nada.

—    Dia 12 de novembro de 1972 — disse ele. — Moça da universidade. Encontraram-na num campo perto da auto-estrada. Chamava-se Ann Simons. Estuprada e estrangulada. Vinte e três anos. Não obtiveram amostra de sêmen. Ainda assim, não constitui prova, Johnny.

—    Acho que, para você, não é preciso haver mais provas —disse Johnny. — E se o defrontar com o que já tem, acho que ele vai confessar.

— E em caso contrário?

Johnny lembrou-se da visão que tivera no coreto. Voltou-lhe como um bumerangue louco e fatal. A sensação dilacerante. A dor que era agradável, a dor que lembrava a dor do prendedor de rou­pas, a dor que confirmava tudp.

—    Peça que ele abaixe as calças — disse Johnny.

Bannerman olhou para trás.

 

Os repórteres ainda estavam no saguão. Na verdade, eles pro­vavelmente não teriam saído dali, mesmo que não desconfiassem de uma solução para o caso... ou pelo menos alguma novidade estra­nha. As estradas para fora da cidade estavam intransitáveis.

Bannerman e Johnny saíram pela janela do almoxarifado.

—    Tem certeza de que é esse o melhor meio de agir? — per­guntou Johnny, e a tempestade tentou arrancar-lhe as palavras da boca. As pernas lhe doíam.

—    Não — disse Bannerman, com simplicidade —, mas acho que você devia estar presente. Talvez eu ache que ele deve ter a oportunidade de olhar você de cara, Johnny. Vamos. Os Dodds moram a dois quarteirões daqui, só.

Eles saíram, de capuz e botas, um par de sombras na neve fustigante. Por baixo do sobretudo, Bannerman estava com a pis­tola da policia, as algemas penduradas no cinto. Antes de terem percorrido um quarteirão, no meio da neve alta, Johnny estava mancando muito, mas ficou calado.

Bannerman, porém, notou. Eles pararam à porta do Castle Rock Western Auto.

— Filho, o que é que há com você?

—    Nada — disse Johnny. A dor de cabeça estava voltando, também.

—    Claro que há alguma coisa. Você parece que está andando com duas pernas quebradas.

—    Tiveram de me operar as pernas quando saí da coma. Os músculos tinham se atrofiado. Começaram a derreter, foi o que disse o Dr. Brown. As articulações tinham se degenerado. Conserta­ram como puderam, com produtos sintéticos...

—    Como o Homem dos Seis Milhões de Dólares, hem?

Johnny pensou nas pilhas arrumadas de contas do hospital, em casa, na gaveta de cima da arca da sala de jantar.

— É, uma coisa dessas. Quando fico de pé muito tempo, elas se endurecem. Só isso.

—    Quer voltar?

“Se quero! Voltar e não ter mais que pensar nesse negócio dos infernos. Quem me dera nunca ter vindo aqui. O problema não é meu. Esse é o cara que me comparou com uma vaca de duas cabeças.”

— Não, estou bem — disse ele.

Saíram do vão da porta, e o vento agarrou-os, tentando jogá-los pela rua vazia. Foram lutando para caminhar, encurvados contra o vento, à luz dura das luzes néon da rua. Viraram numa rua lateral, e, depois de cinco casas, Bannerman parou em frente de uma casi­nha de madeira estilo Nova Inglaterra, muito arrumadinha. Como as outras casas da rua, estava às escuras e trancafiada.

—    É esta a casa — disse Bannerman, a voz estranhamente inex­pressiva. Abriram caminho pelo monte de neve que o vento soprara contra o pórtico e subiram a escadinha.

 

A sra. Henrietta Dodd era uma mulher grande, com muito peso morto de carnes no esqueleto. Johnny nunca vira uma mulher com um aspecto tão doentio. Sua pele era de um cinza amarelado. Suas mãos pareciam as de um réptil, com um eczema. E havia algo nos olhos dela, apertados, como frestas brilhantes em suas órbitas inchadas, que lhe lembrava desagradavelmente o aspecto dos olhos da mãe, quando Vera Smith estava transportada em um de seus frenesis religiosos.

Ela abriu-lhes a porta depois de Bannerman bater continuadamente por cinco minutos. Johnny ficou ali ao lado dele, sobre as pernas doloridas, achando que aquela noite não acabaria nunca. Ia continuar toda a vida, até que a neve se acumulasse tanto que os enterrasse a todos.

—    O que é que você quer, no meio da noite, George Banner­man? — perguntou ela, desconfiada. Como no caso de muitas mu­lheres gordas, a voz dela parecia um instrumento agudo, como uma flauta zunindo, parecia um pouco o ruído feito por uma mosca ou abelha presa num vidro.

—    Tenho de falar com Frank, Henrietta.

—    Então fale com ele de manhã — disse Henrietta Dodd, e já ia batendo com a porta na cara deles.

Bannerman impediu que a porta se fechasse, com a mão enlu­vada.

—    Sinto muito, Henrietta. Tem de ser agora.

—    Pois não vou acordá-lo! — disse ela, sem se afastar da por­ta. — Ele dorme como uma pedra, puxa vida! Há noites em que toco a campainha chamando por ele, as palpitações às vezes são horríveis, e pensa que ele vem? Não, continua dormindo, e um dia pode acordar e me encontrar morta do coração, em vez de estar preparando o raio do ovo mole para ele. E isso é porque você o faz trabalhar demais!

Ela riu, numa espécie de triunfo azedo; exposto o segredo sujo, tudo acabado.

—    O dia inteiro, a noite inteira, correndo atrás de bêbados no meio da noite, e qualquer deles pode ter um 32 debaixo do assento, indo aos bares e cabarés, ah, é uma barra pesada lá, mas você pouco se importa! Acho que sei o que se passa nesses lugares, aquelas vagabundas que gostariam de passar uma doença incurável para um rapaz bom como o meu Frank pelo preço de uma caneca de cerveja!

A voz dela, aquele instrumento de sopro, soprava e zunia. A cabeça de Johnny martelava e latejava, em contraponto. Ele queria que ela se calasse. Era uma alucinação, ele sabia, só o cansaço e a tensão daquela noite terrível fazendo-se sentir, mas cada vez mais parecia que era a mãe dele ali, e que a qualquer momento ia virar-se para ele e começar a falar sobre o dom maravilhoso que Deus lhe dera.

 

—    Sra. Dodd... Henrietta ... — começou Bannerman, com paciência.

Ela então virou-se de fato para Johnny, olhando para ele com seus olhinhos espertos-estúpidos de porco.

—    Quem é esse?

—    Delegado especial — disse Bannerman, prontamente. — Henrietta, eu assumo a responsabilidade por acordar Frank.

—    Aaah, a responsabilidade! — repetiu ela, com um sarcasmo monstruoso, zunindo, e por fim Johnny percebeu que ela estava com medo. O medo se irradiava dela em ondas vibrantes, ruidosas.., era isso o que estava piorando a dor de cabeça dele. Será que Bannerman não o sentia? — A res-pon-sa-bi-li-da-de! Que coisa bonita de sua parte, meu Deus, não é? Pois bem, não vou admitir que acordem o meu filho no meio da noite, George Bannerman, de modo que você e o seu raio de delegado especial podem ir plantar batatas!

Ela tentou fechar a porta de novo, e dessa vez Bannerman abriu-a de todo. Sua voz demonstrava raiva e por baixo tinia tensão terrível.

—    Abra a porta, Henrietta, estou falando sério.

—    Você não pode fazer isso! — exclamou ela. — Isso não é um Estado policial! Você há de perder o emprego! Deixe ver a sua autorização!

—    Não, tem razão, mas vou falar com Frank — disse Banner­man, e foi passando por ela.

Johnny, mal se dando conta do que estava fazendo, acompa­nhou-o. Henrietta Dodd tentou agarrá-lo. Johnny pegou o pulso dela.. e uma dor terrível acometeu sua cabeça, dominando o late­jar surdo da dor de cabeça. E a mulher também a sentiu. Os dois se fitaram por um momento que pareceu durar uma eternidade, numa compreensão horrenda e perfeita. Naquele momento, pareciam estar fundidos. Depois ela recuou, a mão agarrando o busto de ogre.

— Meu co... meu coração... — Remexeu no bolso do roupão e tirou um frasco de comprimidos. Seu rosto estava da cor de massa crua. Ela tirou a tampa do vidrinho e espalhou os compri­midos pelo chão, para pôr um deles na mão. Colocou-o sob a língua. Johnny a contemplava num pavor mudo. Sua cabeça parecia uma bexiga inchada, cheia de sangue quente.

 

—    Você sabia? — murmurou ele.

Aquela boca gorda e enrugada se abria e se fechava, se abria e se fechava, sem emitir som algum. Era a boca de um peixe na praia.

Sabia, todo esse tempo?

     —      Você é um demônio! — berrou ela. — É um monstro... diabo... ah, meu coração... ah, estou morrendo.., acho que es­tou morrendo.., chame o médico... George Bannerman, não suba para acordar o meu filhinbo!

Johnny largou-a, e, inconscientemente esfregando a mão no casaco, como que para limpá-la de alguma mancha, subiu a escada aos tropeções atrás de Bannerman. O vento lá fora soluçava em volta dos beirais como uma criança perdida. No meio da escada, ele olhou para trás. Henrietta Dodd estava sentada numa cadeira de vime, uma montanha de carne esparramada, ofegante e segurando um seio imenso em cada mão. A cabeça dele ainda parecia estar inchando mais, e ele pensou, sonhador: “Daqui a pouco ela estoura, e isso será o fim. Graças a Deus”.

O     piso estreito do corredor era coberto por um tapete velho e gasto. O papel da parede estava manchado de água. Bannerman estava batendo numa porta fechada. Lá em cima estava pelo menos dez graus mais frio.

—    Frank? Frank! É George Bannerman! Acorde, Frank!

Não teve resposta. Bannerman girou a maçaneta e empurrou a porta. Estava com a mão na coronha da arma, mas não a puxara. Poderia ter sido um erro fatal, mas o quarto de Frank Dodd estava vazio.

Os dois ficaram no vão da porta um instante, olhando para dentro. Era um quarto de criança. O papel de parede — também manchado de água — estava cheio de palhaços dançando e cavali­nhos de pau. Havia uma cadeirinha de criança com uma boneca de trapos, olhando para eles com seus olhos brilhantes e vazios. Num dos cantos havia uma caixa de brinquedos. No outro, uma cama estreita, com as cobertas desfeitas. Pendurada num dos pés de cama e parecendo deslocada, estava a arma de Frank Dodd, no coldre.

— Meu Deus — disse Bannerman, baixinho. — O que é isto?

— Socorro — ouviram a voz da Sra. Dodd, lá de baixo. —socorro...

—    Ela sabia — disse Johnny. — Sabia, desde o princípio, desde Frechette. Ele contou a ela. E ela encobriu tudo.

Bannerman recuou do quarto, devagar, e abriu outra porta. Seus olhos estavam aturdidos e magoados. Era um quarto de hós­pedes, desocupado. Ele abriu o armário, que estava vazio, a não ser por uma bandeja de veneno para ratos no chão. Outra porta. Esse quarto estava inacabado e bastante frio para fazer aparecer o hálito de Bannerman. Ele olhou em volta. Havia outra porta, essa no topo da escada. Foi até lá, Johnny acompanhando-o. Essa porta estava fechada.

—    Frank? Está aí? — Ele sacudiu a maçaneta. — Abra a porta, Frank!

Não houve resposta. Bannerman levantou o pé e deu um pon­tapé, atingindo a porta logo abaixo da maçaneta. Ouviu-se um ruído de estalejar que ressoou na cabeça de Johnny como uma travessa de aço caindo num piso de azulejos.

—    Ah, Deus! — disse Bannerman, com uma voz sem expres­são, abafada. — Frank.

Johnny viu por cima do ombro dele: viu demais. Frank Dodd estava apoiado no assento da privada, abaixado. Estava despido, só com a capa de chuva preta e reluzente, que passara por cima dos ombros; o capuz preto da capa de chuva (“capuz de carrasco”, pen­sou Johnny, vagamente) estava pendurado por cima da caixa da privada como um casulo grotesco, esvaziado. Ele conseguira dego­lar-se... Johnny não imaginaria que isso fosse possível. Havia um pacotinho de laminas de gilete na borda do lavatório e uma única lâmina no chão, brilhando repulsivamente, Gotas de sangue tinham se coagulado no fio da lâmina. O sangue da veia jugular e da caró­tida cortadas se esparramaram por toda parte. Havia poças de sangue nas dobras da capa de chuva, que estava arrastando no chão. Sangue na cortina do chuveiro, que tinha um desenho de patos remando, com guarda-chuvas sobre as cabeças. Havia sangue no teto.

Em volta do pescoço de Frank Dodd, preso num barbante, havia um cartão escrito com batom, com os dizeres: EU CONFESSO.

A dor na cabeça de Johnny começou a atingir um pico insu­portável. Ele estendeu a mão e encontrou a maçaneta.

“Sabia”, pensou ele, incoerente. “Soube, de algum modo, quan­do me viu. Soube que estava tudo acabado. Voltou para casa. Fez isso.

Aros pretos sobrepondo-se à sua vista, espalhando-se como ondas malévolas.

“Que dom que Deus lhe deu, Johnny.”

(EU CONFESSO)

—    Johnny?

Bem de longe.

— Johnny, você está todo...

Sumindo. Tudo sumindo. Isso era bom. Melhor se ele nunca tivesse saído da coma. Melhor para todos. Bem, ele tivera sua oportunidade.

—    Johnny...

Frank Dodd subira ali e de algum modo cortara a garganta de orelha a orelha, como nos livros, enquanto a tempestade lá fora uivava como todas as coisas tenebrosas da terra às soltas. Esguichara, como dissera o pai naquele inverno havia uns doze anos, quando os canos do porão tinham se congelado e arrebentado. Es­guichara. E como! Até o teto.

Ele achava que poderia ter gritado então, mas depois nunca teve certeza. Podia ter sido só na sua cabeça, o grito. Mas tinha querido gritar; gritar exprimindo todo o horror, compaixão e ago­nia de seu coração.

Depois estava caindo no escuro, e satisfeito por cair. Johnny perdeu os sentidos.

 

Do New York Times, 19 de dezembro de 1975:

PARANORMAL DO MAINE LEVA XERIFE

À CASA DE DELEGADO ASSASSINO DEPOIS

DE VISITAR CENA DO CRIME

 

(Especial para o Times) John Smith, de Pownal, pode não ser médium na verdade, mas seria difícil levar o xerife George F. Ban­nerman, do condado de Castle, Maine, a acreditar nisso. Em deses­pero de causa, depois de um sexto assalto-assassinato na pequena cidade de Castle Rock, no oeste do Maine, o xerife Bannerman te­lefonou para o sr. Smith, pedindo que ele fosse a Castle Rock prestar-lhe uma ajuda, se possível. O sr. Smith, que foi alvo da atenção nacional em princípios deste ano, ao recuperar-se de uma coma profunda depois de cinqüenta e cinco meses inconsciente, fora condenado pelo semanário Inside View como sendo um embusteiro, mas numa entrevista coletiva à imprensa, ontem, o xerife Banner­man limitou-se a dizer: ‘Nós, aqui no Maine, não damos muita im­portância ao que dizem esses jornalistas de Nova York’.

Segundo o xerife Bannerman, o Sr. Smith andou de gatinhas no local do crime do sexto assassinato, que ocorreu na praça pública de Castle Rock. Saiu dali com um leve caso de queimadura de gelo e o nome do criminoso: o delegado Frank Dodd, que há cinco anos está na folha de pagamento do xerife de Castle Rock, o mesmo período de tempo que o próprio Bannerman.

Em princípios deste ano, o Sr. Smith provocou controvérsias em seu Estado natal, quando teve uma intuição psíquica de que a casa de sua fisioterapeuta estava pegando fogo. Essa intuição revelou-se pura verdade. Numa entrevista coletiva à imprensa, realizada em seguida, um repórter desafiou-o a...”

Da Newsweek, página 41, semana de 24 de dezembro de 1975:

 

Pode ter sido descoberto o primeiro verdadeiro médium desde Peter Hurkos, neste país Hurkos foi o vidente de origem alemã que conseguiu falar sobre as vidas particulares de seus interlocuto­res pelo simples toque em suas mãos, objetos de prata ou artigos de suas bolsas.

John Smith é um rapaz tímido e sem pretensões de Pownal, cidade do centro-sul do Maine. Em princípios deste ano, voltou a si depois de um período de mais de quatro anos de coma profunda, após um desastre de automóvel (ver foto). Segundo o neurolo­gista consultor do caso, Dr. Samuel Weizak, Smith teve uma ‘recuperação completamente assombrosa’. Ele hoje está se recupe­rando de ligeiras queimaduras de gelo depois da estranha solução de um caso de assassinatos múltiplos, há muito procurada em vão, na cidade de...”

 

“27 de dezembro de 1975”.

Querida Sarah:

Papai e eu gostamos muito de sua carta, que nos chegou esta tarde. Estou bem mesmo, de modo que pode parar de se preocupar, está bem? Mas agradeço o seu interesse. A ‘queimadura de gelo’ foi muito exagerada pela imprensa. Foram só uns pontos nas pontas dos três dedos de minha mão esquerda. O desmaio não foi nada de mais, apenas ‘causado por uma sobrecarga emocional’, ao que diz Weizak. É, ele veio em pessoa e insistiu em me levar de carro para o hospital em Portland. Só o fato de vê-lo em já quase vale o preço do internamento. Ele tanto fez que conseguiu que lhe dessem um consultório, um aparelho de eletroencefalograma e um técnico para operá-lo. Diz ele que não encontrou qualquer nova lesão cerebral, ou sinais de lesão cerebral progressiva. Quer fazer uma série de exames, sendo que alguns parecem do tipo Inquisição:

‘Abjure, herege, do contrário lhe faremos outro exame pneumocere­bral!’ (Ah, ah, e você ainda continua a tomar aquela çocaína mal­dita, querida?) Em todo caso, recusei o amável oferecimento que me fizeram para me sondarem e cutucarem mais um pouco. Papai está um pouco chateado por eu ter recusado os exames, e fica querendo comparar essa minha recusa com a recusa de minha mãe, negando-se a tomar a medicação para hipertensão. É muito difícil fazê-lo compreender que, mesmo que Weizak conseguisse encontrar alguma coisa, as probabilidades de poder fazer algo a esse respeito seriam de nove para uma.

Li o artigo da Newsweek, sim. Aquela foto minha é da entre­vista coletiva à imprensa, mas cortada rente. Não parece uma pes­soa que você gostasse de encontrar num beco escuro, não é? Ah, ah! Puxa vida! (como a sua amiguinha Anne Strafford gosta tanto de dizer), quem me dera que não tivessem publicado aquele artigo. Os pacotes, cartões e cartas recomeçaram a chegar. Não os abro mais, a não ser que reconheça o endereço do remetente, apenas marco-os ‘Devolver ao remetente’. São todos lamentáveis demais, muito cheios de esperança, ódio, crença e descrença, e, não sei por quê, todos me lembram o estado em que ficou a minha mãe.

Bom, não quero parecer triste, não é tudo assim tão ruim. Mas não quero ser médium praticante, não quero fazer uma excursão nem aparecer na TV (algum gaiato da NBC conseguiu o número do nosso telefone, sabe Deus como, e perguntou se eu consideraria ‘fazer o programa Carson’. Grande idéia, bem? Don Rickles po­deria insultar algumas pessoas, uma estrelinha poderia mostrar os peitos, e eu poderia fazer algumas previsões. Tudo apresentado pelo patrocinador). Não quero fazer nada dessa M-E-R-D-A. O que estou mesmo com vontade de fazer é voltar para Cleaves Mills, e me afun­dar na total obscuridade de ser professor de ginásio. E guardar as intuições extra-sensoriais para as competições de futebol.

Acho que é só, por enquanto. Espero que você, Walt e Denny tenham tido um Natalzinho alegre e estejam aguardando, ansiosos (pelo que você me disse, estou certo de que Walt pelo menos está), a Valente Eleição do Bicentenário, que ora se nos apresenta. Fico satisfeito ao saber que o seu esposo foi escolhido para concorrer para o Senado por aí, mas fique torcendo, Sarah: 1976 não parece propriamente um ano especial para os ‘elefantes’*. Agradeça ao pessoal da San Clemente.

Meu pai manda muitas lembranças e pede que agradeça a foto de Denny, que o impressionou mesmo. Também eu mando lem­branças. Obrigado por escrever, e por seu interesse indevido (indevido, mas muito bem recebido). Estou bem mesmo, e com vontade de voltar ao trabalho.

Saudades, tudo de bom, Johnny.

P.S.:        Pela última vez, garota, largue dessa cocaína.

 

* “Republicanos” (N. do T.)

 

“29 de dezembro de 1975

Caro Johnny:

Acho que esta é a carta mais difícil, mais amarga que já tive de escrever em todos os meus dezesseis anos de administração es­colar — não só por ser você um bom amigo, como ainda por ser um excelente professor. Não há jeito de dourar a pílula neste caso, de modo que não vou sequer tentar.

Ontem à tarde houve uma reunião especial da diretoria da es­cola (a pedido de dois membros de quem não darei os nomes, mas que já estavam na diretoria quando você lecionava aqui, e acho que provavelmente pode adivinhar quem são), e votaram 5 a 2 para pedir que o seu contrato seja rescindido. Motivo: você é controver­tido demais para ser eficiente como professor. Cheguei quase ao ponto de apresentar a minha própria demissão, de tão enojado que fiquei. Se não fossem Maureen e os guris, acho que o teria feito. Essa decisão absurda não se compara nem sequer com a proibi­ção de certas obras como Apanhador no campo de centeio. Isto é pior. É uma merda.

Disse isso a eles, mas parecia até que estava falando em espe­ranto, ou na língua do p. Eles só querem saber é que sua foto apa­receu na Newsweek e no Times de Nova York, e que o caso de Castle Rock apareceu na rede nacional, nos noticiários. Controver­tido demais! Cinco múmias, do tipo de homens mais interessados no comprimento dos cabelos do que nos compêndios, mais preocupados em descobrir quem pode estar fumando maconha no corpo docente do que em conseguir arranjar equipamento do século XX para um departamento.

Escrevi uma enérgica carta de protesto à diretoria, e acho que, com um pouco de persuasão, consigo que Irving Finegold a assine comigo. Mas também estaria faltando à verdade se lhe dissesse que há alguma esperança remota de conseguir que esses cinco velhos mudem de idéia.

Meu conselho sincero para você é que arranje um advogado, Johnny. Você assinou aquele contrato de boa fé, e acho que poderá conseguir deles até o último centavo do seu ordenado, quer chegue a pisar numa sala de aula de Cleaves Mills, ou não. E ligue para mim, quando tiver vontade de bater um papo.

De todo o coração, sinto muito.

Seu amigo, Dave Pelsen.”

 

Johnny ficou ao lado da caixa de correspondência, com a carta de Dave na mão, olhando para ela sem poder acreditar. Era o úl­timo dia do ano de 1975, límpido e de um frio de rachar. O ar sala de seu nariz em jatos finos e brancos de fumaça.

—    Merda! — murmurou ele. — Ah, que merda, cara!

Aturdido, ainda não tendo assimilado o fato de todo, abaixou-se para ver o que mais o carteiro lhe levara. Como sempre, a caixa estava cheia. Fora sorte pura que a carta de Dave estivesse saindo pela ponta.

Havia um papelzinho branco dizendo que ele fosse à agência dos correios para apanhar os embrulhos, os inevitáveis embrulhos. Meu marido me abandonou em 1969, eis um par das meias dele, diga onde ele está para eu conseguir pensão para os filhos do filho da mãe. Meu filhinho morreu sufocado no ano passado, eis o cho­calho dele, por favor escreva dizendo se ele está feliz com os anji­nhos. Não o batizei porque o pai não aprovava isso, e agora o meu coração está despedaçado. A ladainha eterna.

“Que dom Deus lhe deu, Johnny.”

“O motivo: você é controvertido demais para ser eficiente como professor.”

Com um espasmo repentino e violento, começou a tirar as car­tas e envelopes pardos da caixa, deixando alguns caírem na neve. A inevitável dor de cabeça começou a formar-se em suas têmporas, como duas nuvens escuras que aos poucos se juntariam, envolven­do-o na dor. Lágrimas repentinas começaram a lhe escorrer pelas faces, e no frio profundo e quieto elas se congelaram em riscos brilhantes, quase imediatamente.

Ele abaixou-se e começou a apanhar as cartas que deixara cair; viu uma delas, multiplicada pelos prismas de suas lágrimas, ende­reçada a lápis escuro a JOHN SMITH VIDENTE PARANORMAL.

Vidente paranormal, sou eu. Suas mãos começaram a tremer fortemente, e ele deixou cair tudo, inclusive a carta de Dave. Ela caiu como uma folha, e foi parar com o lado impresso para cima, entre as outras cartas, todas as outras cartas. Através das lágrimas im­potentes, ele via o cabeçalho, e o lema sob a tocha:

ENSINAR, APRENDER, CONHECER, SERVIR.

— Servir uma ova, seus filhos da mãe ordinários — disse Johnny. Caiu de joelhos e começou a apanhar as cartas, juntando-as com as luvas. Seus dedos doíam um pouco, recordação da queimadura de gelo, recordação de Frank Dodd sentado num assento de privada, entrando na eternidade, o sangue em seus cabelos lou­ros tipicamente americanos. EU CONFESSO.

Apanhou as cartas e ouviu sua voz murmurando e repetindo, como um disco arranhado:

— Matando, vocês estão me matando, deixem-me em paz, não estão vendo que me matam?

Ele se obrigou a parar. Não era jeito de se comportar. A vida continuaria. De um modo ou de outro, a vida certamente conti­nuaria.

Johnny foi indo para casa, pensando no que poderia fazer ago­ra. Talvez aparecesse alguma coisa. Em todo caso, ele cumprira a profecia da mãe. Se Deus tivera uma missão para ele, ele a cum­prira. Não importa agora que tivesse sido uma missão de kamicase. Ele a cumprira.

Estava quite.


 

O     rapaz lia devagar, acompanhando as palavras com o dedo, as pernas de jogador de futebol, compridas e bronzeadas, esten­didas sobre a espreguiçadeira ao lado da piscina, ao sol claro de junho.

— “Naturalmente o jovem Danny Ju... Juniper... o iovem Danny Juniper tinha morrido, e eu su... suponho que havia pou­cos no mundo que dissessem que ele não tivesse me... me..

Ah, merda, não sei.

— “Poucos no mundo que dissessem que ele não tivesse me­recido a morte.” — disse Johnny Smith. — Ë só uma maneira mais complicada de dizer que a maior parte acharia que a morte de Danny tinha sido uma coisa boa.

Chuck estava olhando para ele, e a mistura familiar de emo­ções estava passando pelo seu rosto, geralmente agradável: diverti­mento, ressentimento, constrangimento e um traço de mau humor. Depois ele suspirou e tornou a olhar para o bangue-bangue de Max Brand.

— “Merecido a morte. Mas foi minha grande tra... tragé...”

— Tragédia — ajudou Johnny.

— “Mas foi minha grande tragédia que ele tivesse morrido quando ia redimir parte de seus ma-a-le-fícios através de um grande serviço à humanidade. Naturalmente aquilo repu... repu..

Chuck fechou o livro, olhou para Johnny e deu um sorriso brilhante.

— Vamos parar por hoje, Johnny, que tal? — O sorriso de Chuck era o mais cativante que ele podia dar, o que provavel­mente lhe permitira levar para a cama as garotas de toda New Hiimpshire. — Aquela piscina não está com uma cara ótima? Se está! O suor está escorrendo do seu corpinho magro e malnutrido.

Johnny tinha de admitir — pelo menos para si mesmo — que a piscina estava mesmo com uma cara ótima. As primeiras duas semanas do Verão do Bicentenário de 76 tinham sido excepcional­mente quentes e úmidas. Por trás deles, do outro lado da casa branca, grande e elegante, vinha o ronco soporífico do cortador de grama elétrico, enquanto Ngo Phat, o jardineiro vietnamita, cor­tava o que Chuck chamava de gramado da frente. Era um ruído que dava vontade de beber dois copos de limonada gelada e depois dar um cochilo.

— Nada de comentários depreciativos sobre o meu corpo ma­grinho — disse Johnny. — Além disso, mal começamos o capitulo.

— Certo, mas antes dele já lemos dois. — Um argumento persuasivo.

Johnny deu um suspiro. Em geral ele conseguia prender a aten­ção de Chuck, mas não naquela tarde. E naquele dia o rapaz tinha lutado valentemente, lendo como John Sherburne tinha organizado uma rede de guardas em volta da cadeia de Amity e como o mal­vado Red Hawk tinha conseguido atravessá-la e matado Danny Juniper.

—Está bem, então acabe só esta página — disse ele. — Essa pa­lavra em que você enguiçou é “repugnou-me”. Não morde, Chuck.

— Rapaz! — O sorriso abriu-se. — E nada de perguntas, certo?

— Bem... talvez apenas algumas.

Chuck fez uma careta, mas estava fingindo: estava levando van­tagem e sabia disso. Tornou a abrir a brochura com a figura do pistoleiro abrindo caminho por uma série de portas de vaivém de bar e começou a ler com sua voz lenta e hesitante... tão dife­rente da voz com que falava normalmente, que podia ser de outra pessoa.

— “Naturalmente aquilo repugnou-me logo. Mas não foi... foi nada comparado com o que me esperava à cabeceira do pobre Tom K.yn... Kenyon. Ele tinha levado um tiro na barriga e esta­va moendo depressa quando eu...

— Morrendo — disse Johnny, com calma. — Texto, Chuck, sentido. Leia procurando o sentido. — Moendo depressa — disse Chuck, e riu. Depois continuou: ... e estava morrendo depressa quando eu che... cheguei.”

Johnny sentiu-se dominado por uma tristeza por Chuck, ao observar o rapaz, debruçado sobre o exemplar em brochura de Fire brain, bom romance, que devia ser sopa de ler, e em vez disso lá estava Chuck, acompanhando a prosa simples e fácil de Mar Brand com um dedo que se movia com dificuldade. O pai dele, Roger Chatsworth, era proprietário da Chatsworth Mills and Weaving, negócio de tecidos muito importante ao sul de New Hampshire. Possuía aquela casa de dezesseis aposentos em Durham, e cinco empregados, entre os quais Ngo Phat, que ia a Portsmouth uma vez por semana para assistir a aulas de cidadania dos Estados Uni­dos. Chatsworth tinha um Cadillac conversível 1957, restaurado.

       A mulher, delicada, de olhos límpidos, de quarenta anos, dirigia um Mercedes. Chuck tinha um Corvette. A fortuna da família estava beirando os cinco milhôes de dólares.

       E Chuck, aos dezessete anos, era o que Deus tinha realmente em mente quando deu vida ao barro, era o que Johnny pensava muitas vezes. Era um ser humano fisicamente belo. Tinha quase um metro e noventa e pesava oitenta e seis quilos, a maior parte músculos. Seu rosto talvez não fosse suficientemente interessante para ser verdadeiramente bonito, mas não tinha acne nem espinhas e era embelezado por olhos verdes e impressionantes — o que levou Johnny a pensar que a única outra pessoa que ele conhecia que tinha olhos realmente verdes era Sarah Hazlett. No ginásio, Chuck era a apoteose dos esportistas, chegava a ser quase ridículo. Era capitão dos times de beisebol e rúgbi, presidente do primeiro ano no ano letivo recém-encerrado e presidente eleito do conselho de alunos para o próximo período. E o mais assombroso de tudo é que nada disso lhe subira à cabeça. Nas palavras de Herb Smith, que fora lá uma vez para examinar os novos alojamentos de Johnny, Chuck era “um boa-praça”. Herb não tinha maior elogio em seu vocabulário. Além disso, um dia seria um boa-praça extremamente rico.

       E lá estava ele, debruçado, sério, sobre o livro, como um arti­lheiro num solitário posto avançado, atirando nas palavras, uma por uma, à medida em que se lhe apresentavam. Pegara a história empolgante e movimentada de Mar Brand sobre o errante John “Fire Brain” Sherburne e o seu confronto com o renegado comanche Red Hawk e transformara-a em algo que parecia tão empolgante quanto um anúncio comercial de semicondutores ou peças de rádio.

       Mas Chuck não era burro. Suas notas de matemática eram boas, sua memória era excelente e tinha habilidade manual. O pro­blema dele era sua grande dificuldade para guardar as palavras impressas. Seu vocabulário oral era bom, e ele sabia apreender a teoria da fonética, mas aparentemente não a sua prática; às ve­zes dizia uma frase perfeitamente e depois não conseguia nada quando lhe pediam para reformulá-la. O pai tinha medo de que Chuck tivesse dislexia, mas Johnny achava que não.., ao que soubesse, nunca vira um rapaz com dislexia, embora muitos pais se agarrassem a essa palavra para explicar ou desculpar os proble­mas de leitura dos filhos. O problema de Chuck parecia ser mais geral: uma fobia pura e simples pela leitura. Foi um problema que se tornou cada vez mais evidente nos últimos cinco anos dos estudos de Chuck, mas os pais só começa­ram a levar o caso a sério — como Chuck levara — quando as suas qualificações esportivas começaram a correr perigo. E isso não era o pior. Aquele inverno seria a última boa oportunidade que Chuck teria para fazer os exames de aproveitamento escolar, se quisesse começar a cursar a universidade, no outono de 1977. A matemática não apresentava muito problema, mas o resto dos exames... bem... se ele conseguisse que lhe lessem as perguntas em voz alta, poderia fazer um exame de médio a bom. Média cinco, sem problema. Mas não deixam a pessoa levar um leitor consigo, quando se fazem esses exames, mesmo que o papai seja maioral no mundo. dos negócios de New Hampshire.

—    “Mas eu achei que ele estava mo... modificado. Sabia o que o esperava e a coragem dele foi so... soberba. Não pediu nada; não lamentou nada. Todo o pavor e o ner... nervosismo que o tinham pos... possuido enquanto ele se de... de... defrontara com um destino desconhecido.

Johnny tinha visto o anúncio pedindo professor particular no Times do Maine, e se candidatara sem grandes esperanças. Ele se mudara para Kitterry em meados de fevereiro, precisando, mais que de tudo, afastar-se de Pownal, da caixa de correspondência sempre cheia, dos repórteres que tinham começado a encontrar o caminho da casa dele, acorrendo em números cada vez maiores, das mulhe­res nervosas, com os olhos magoados, que “passavam por lá” por­que “por acaso estavam ali perto” (uma dessas tinha uma placa de Maryland no carro; outra estava num Ford velho, com placa do Arizona). As mãos delas estendendo-se para tocá-lo...

Em Kittery, ele descobrira que um nome anônimo como John Smith, sem outras iniciais, apresentava suas vantagens. No terceiro dia que passou na cidade, candidatou-se a um emprego como cozi­nheiro de refeições rápidas, considerando experiência o trabalho que fizera nas pracinhas da Universidade de Missouri e o verão em que cozinhara num acampamento de meninos nos Rangely Lakes. A proprietária da lanchonete, uma viúva durona de nome Ruby Pelletier, examinara seu pedido e dissera:

—    Você é um pouquinho instruído demais para servir picadinho. Sabia disso, não, cara?

—    Isso mesmo — disse Johnny. — Eu me instruí tanto que caí fora do mercado de trabalho.

Ruby Pelletier pôs as mãos nos quadris magros, jogou a ca­beça para trás e deu uma gargalhada.

—    Você acha que vai conseguir dar no couro às duas da ma­drugada, quando uma dúzia de motoristas que usam a faixa do cidadão chegam todos ao mesmo tempo pedindo ovos mexidos, bacon, salsichas, torradas e bolinho na grelha?

—    Talvez — disse Johnny.

—    Talvez você nem saiba do que estou falando agora — disse Ruby — mas vou dar-lhe uma chance, seu universitário. Vá fazer um exame de saúde, para não termos problemas com o conselho de saúde, e traga-me um certificado. Eu o contrato na hora.

Ele tinha feito isso, e, depois da trapalhada das duas primeiras semanas (inclusive uma série dolorosa de bolhas na mão direita, quando jogou uma cesta de pedaços de batatas numa panela de óleo fervente depressa demais), dominara o trabalho, em vez de ser dominado por ele. Quando viu o anúncio de Chatsworth, man­dou seu currículo para a caixa postal. No currículo mencionara seus créditos especiais em educação, que incluíam um seminário de um semestre sobre incapacidades de aprendizagem e problemas de leitura.

Em fins de abril, quando estava terminando seu segundo mês na lanchonete, recebeu uma carta de Roger Chatsworth, pedindo que ele comparecesse a uma entrevista no dia 5 de maio. Tomou as providências necessárias para tirar um dia de folga, e às duas e dez, numa linda tarde de primavera, estava sentado no gabinete de Chatsworth, com um copo de Pepsi-Cola bem gelada na mão, escutando Roger falar dos problemas de leitura do filho.

—    Isso lhe parece dislexia? — perguntou Roger.

—    Não. Parece uma fobia geral pela leitura.

Chatsworth fizera uma careta.

—    Síndrome de Jackson?

Johnny ficou impressionado.., e sem dúvida era para ficar. Michael Carey Jackson era um especialista em leitura e gramática da Universidade do Sul da Califórnia que causara certo rebuliço alguns anos antes com um livro intitulado Tbe unlearning reader-*. O livro descrevia uma porção de problemas de leitura que depois passaram a ser conhecidos como síndrome de Jackson. O livro era bom, se se conseguisse entender o complexo jargão acadêmico. O fato de Chatsworth, aparentemente, ter conseguido fazê-lo mostrou a Johnny muita coisa sobre o interesse que ele tinha em resolver o problema do filho.

—    Algo assim — concordou Johnny. — Mas o senhor há de compreender que ainda nem sequer conheço o seu filho, nem o ouvi ler.

—    Ele tem de fazer uma recuperação dos estudos do curso, do ano passado. Autores americanos, um período de história de nove semanas, e civismo, imagine. Foi reprovado no exame final dessa matéria porque não conseguiu ler o raio da coisa. Você tem registro de professor em New Hampshire?

—    Não — disse Johnny —, mas isso não é problema, arran­jo um.

—    E de que modo você trataria do caso?

 

* “O leitor que não aprende.” (N. do T.)

 

Johnny mostrou o método que empregaria. Muita leitura oral de parte de Chuck, com forte apoio sobre material de alto impacto, como fantasia, ficção científica, bangue-bangue e romances juvenis de rapazes com automóveis. Questionários constantes sobre o que se acabou de ler. E uma técnica de descontração descrita no livro de Jackson.

—    Os grandes realizadores muitas vezes são os que mais so­frem — disse Johnny. — Esforçam-se demais e pioram o bloqueio. É um tipo de gagueira mental que...

—    É Jackson quem diz isso? — interrompeu Chatsworth.

Johnny sorriu.

—    Não, isso sou eu que digo — disse ele.

—    OK, continue.

—    Às vezes, se o aluno consegue esvaziar a cabeça logo depois da leitura, sem sentir a pressão de ter de repetir logo, os circuitos parecem desimpedir-se. Quando isso começa a acontecer, o aluno passa a pensar de novo em sua linha de ataque. É um caso de pensamento positivo...

Os olhos de Chatsworth tinham brilhado. Johnny havia aca­bado de tocar na mola mestra de sua própria filosofia.., prova­velmente, a mola mestra das crenças da maioria dos homens que vencem por si mesmos.

—    Não há nada que tenha êxito como o êxito — disse ele.

—    Bem, sim. Uma coisa assim.

—    Quanto tempo você levaria para arranjar um registro de New Hampshire?

—    Só o tempo de processarem o meu requerimento. Umas duas semanas, talvez.

—    Então você poderia começar no dia 20?

Johnny piscou.

—    Quer dizer que estou contratado?

—    Se quiser o trabalho, está. Pode ficar na casa de hóspedes; isso há de espantar o raio dos parentes neste verão, sem falar nos amigos dele... e quero que ele assente a cabeça mesmo. Pago seiscentos dólares por mês, não é nada de extraordinário, mas, se Chuck fizer progressos’ eu lhe darei uma gratificação conside­rável.

Chatsworth tirou os óculos e passou a mão pelo rosto.

—    Amo o meu filho, Sr. Smith. Só quero o melhor para ele. Ajude-nos um pouco, se puder.

—    Vou tentar.

Chatsworth recolocou os óculos e tomou a pegar o currículo de Johnny.

—    Não leciona há um bocado de tempo. Não se deu bem? “Lá vem”, pensou Johnny.

—    Dei-me bem — disse ele —‘ mas é que tive um desastre.

Chatsworth estava olhando para as cicatrizes no pescoço de Johnny, onde os tendões atrofiados tinham sido parcialmente en­direitados.

—    Desastre de automóvel?

—    Foi.

—    Grave?

—    Foi.

—    Parece estar bem, agora — disse Chatsworth. Pegou o currículo, guardou-o numa gaveta, e, coisa assombrosa, foi o fim das perguntas. Assim, depois de cinco anos, Johnny estava lecio­nando de novo, embora sua carga de aluno não passasse de um só.

 

—    “Quanto a mim, que tinha a... cidentalmente pro... voca­do essa morte, ele pegou a minha mão, apertando de leve, e sorriu seu per. . . dão.., perdão para mim. Foi um momento difícil, e fui embora sentindo que tinha feito mais mal no mundo do que eu podia jamais re. ..reparar.”

Chuck fechou o livro, com decisão.

—    Pronto. O último a cair é um otário.

—    Um instante, Chuck.

—    Ahhhhh... — Chuck tornou a sentar-se, pesadamente, o rosto compondo-se no que Johnny já considerava sua expressão de “agora as perguntas”. Predominava um bom humor paciente, mas sob aquilo ele às vezes vislumbrava um outro Chuck: emburrado, preocupado e assustado. Bem assustado. Porque o mundo era dos letrados, os analfabetos do país eram dinossauros cambaleando por um beco sem saída, e Chuck era suficientemente esperto para saber disso. E tinha muito medo do que lhe poderia acontecer quando voltasse para a escola, no outono.

—    Só umas perguntinhas, Chuck.

—    Para que se dar ao trabalho? Você sabe que não vou con­seguir responder.

     — Ah, vai, sim. Desta vez você vai poder responder a to­das elas.

—    Nunca consigo entender o que leio, você já devia saber disso. — Chuck estava com um ar sério e infeliz. — Nem sei para que você ainda fica aqui; só se for pela bóia.

—    Você vai poder responder a essas perguntas porque elas não são a respeito do livro.

Chuck levantou os olhos.

     —      Não são sobre o livro? Então para que perguntar? Pen­sei...

— Faça como estou dizendo, sim?

O     coração de Johnny estava batendo com força, e ele não se espantou muito ao perceber que estava assustado. Havia tempos que vinha planejando aquilo, aguardando a confluência exata das cir­cunstâncias. Aquele momento era o mais próximo disso a que ele conseguiria chegar. A Sra. Chatsworth não estava por ali, nervosa, deixando Chuck mais nervoso ainda. Nenhum dos companheiros dele estava nadando na piscina, deixando-o constrangido por estar lendo em voz alta como um aluno atrasado de quarta série. E, o que era mais importante, o pai, o homem a quem Chuck queria agradar mais do que qualquer outra pessoa no mundo, não estava presente. Estava em Boston, numa reunião de uma Comissão de Ecologia da Nova Inglaterra sobre a poluição das águas.

Da obra An overview of learning disabilities *, de Edward Stanney:

“O sujeito, Rupert J., estava sentado na terceira fila de um cinema. Era a pessoa mais próxima da tela, com uma diferença de mais de seis fileiras do próximo espectador, e era o único em po­sição de poder observar que começara a pegar fogo no lixo acumu­lado no chão. Rupert J. levantou-se e gritou: ‘F-F-F-F-F...’, enquan­to as pessoas atrás dele gritavam para que ele se sentasse e calasse a boca.

— O que você sentiu diante disso? — perguntei a Rupert.

— Nem em mil anos eu conseguiria explicar o que aquilo me fez sentir — respondeu ele. — Eu estava assustado, mas, mais do que assustado, fiquei frustrado. Senti-me incapaz, indigno de ser membro da raça humana. A gagueira sempre me fazia sentir isso, mas então também me senti impotente.

— Houve mais alguma coisa?

— Sim, senti inveja, porque alguma outra pessoa havia de ver o fogo e... sabe...

‘‘— Ter a glória de comunica-lo?

“— É, isso mesmo. Eu vi o fogo começar Fui o único. E só consegui dizer F-F-F-F como uma droga de um disco arranhado. Indigno de ser membro da raça humana, é o melhor meio de dizê-lo”.

“— E como foi que você rompeu o bloqueio?”.

“— Na véspera fora o aniversário de minha mãe. Comprei-lhe meia dúzia de rosas no florista. E fiquei ali, com todos eles gri­tando comigo, e pensei: vou abrir a minha boca e gritar ROSAS! o mais alto que puder. Preparei essa palavra.

“— E então, o que é que fez?

-       “— Abri a boca e gritei FOGO!, com toda a força de meus pul­mões.”

 

* “Visão geral das incapacidades de aprendizagem.” (N. do T.)

 

Havia oito anos que Johnny lera aquele caso na introdução ao texto de Stanney, mas nunca se esquecera dele. Sempre pensara que a palavra-chave na recordação do que acontecera, para Rupert J., era a palavra “impotente”. Se você sentir que as relações sexuais são a coisa mais importante do mundo, em dado momento, arrisca-se dez ou cem vezes mais a ficar com um pênis frouxo. E se achar que a leitura é a coisa mais importante do mundo...

— Qual é o seu sobrenome do meio, Chuck? — perguntou ele, com displicência.

— Murphy — disse Chuck, com um sorrisinho. — Não é uma droga? Era o nome de solteira de minha mãe. Se contar isso a Jack ou Al, serei obrigado a causar sérios danos ao seu corpo magrinho.

— Não há perigo — disse Johnny. — Quando é o seu ani­versário?

— Dia 8 de setembro.

Johnny começou a fazer as perguntas mais depressa, sem dar a Chuck a oportunidade de pensar.., mas não eram perguntas sobre as quais ele tivesse de pensar.

— Qual o nome de sua garota?

— Beth. Você conhece Beth, Johnny...

— Qual o sobrenome do meio dela?

Chuck riu.

— Alma. Bem feio, não?

— Qual o nome do seu avô paterno?

— Richard.

— Por quem é que você torce no Campeonato Americano do Leste, este ano?

— Pelos Yankees. É moleza.

— Quem você prefere para presidente?

— Gostaria de ver Jerry Brown vencer.

— Está pretendendo trocar aquele Vette?

— Este ano, não. Talvez no próximo.

— Idéia de sua mãe?

— Se é! Diz ela que corre mais que a paz de espírito dela.

— Como foi que Red Hawk passou pelos guardas e matou Danny Juniper?

— Sherburne não deu bastante atenção àquele alçapão que dava para a porta do sótão da cadeia — disse Chuck prontamente, sem pensar, e Johnny sentiu uma repentina sensação de triunfo que o atingiu como um trago de uísque puro. Dera certo. Conseguira que Chuck lhe falasse de rosas, e ele reagira com um grito bom e sadio de fogo!

Chuck estava olhando para ele num espanto quase total.

— Red Hawk entrou no sótão pela clarabóia. Abriu a porta do alçapão com um pontapé. Atirou em Danny Juniper. Atirou em Tom Kenyon, também.

—    Isso mesmo, Chuck.

—    Lembrei-me — murmurou ele, e depois olhou para Johnny, arregalando os olhos, esboçando um sorriso. — Você me fez lem­brar, usando de um artifício!

—    Eu só o peguei pela mão e o fiz dar a volta ao que quer que fosse que estava no seu caminho, esse tempo todo — disse Johnny. — Mas, seja o que for, continua ali, Chuck. Não se iluda. Quem era a garota por quem Sherburne se apaixonou?

—    Era... — Os olhos dele se turvaram um pouco, e ele sacudiu a cabeça, com relutância. — Não me lembro. — Bateu na coxa com uma violência súbita. — Não consigo lembrar-me de nada! Sou tão burro, porra!

—    Você se lembra se já lhe contaram como foi que seu pai conheceu sua mãe?

Chuck olhou para ele e sorriu um pouco. Em sua coxa havia uma mancha feia e vermelha, onde ele batera.

—    Claro. Ela estava trabalhando na Avis, em Charleston, Carolina do Sul. Fez o meu pai alugar um carro com um pneu fu­rado. — Chuck riu.

—    E quem era a garota por quem Sherburne se interessou?

—    Jenny Laughorne. Um problema e tanto para ele. Ela é a garota de Gresham. Ruiva, como Beth. Ela... — Parou, olhando para Johnny como se ele tivesse acabado de tirado um coelho do bolso da camisa. — Você conseguiu de novo!

—    Eu, não. Foi você. É um truque simples de direção errada. Por que você diz que Jenny Langhorne é um problema e tanto para John Sherburne?

—    Bem, porque Gresham é o figurão daquela cidade...

—    Que cidade?

Chuck abriu a boca, mas não saiu som algum. De repente, ele desviou o olhar do rosto de Johnny e olhou para a piscina. Depois sorriu e voltou a olhar para o outro.

—    Amity. A mesma do filme Tubarão.

—    Ótimo! Como é que conseguiu se lembrar desse nome?

Chuck riu-se.

—    Isso não tem sentido algum, mas comecei a pensar em tentar participar do time de natação, e lá estava. Que truque! Que grande truque!

—    OK. Por hoje basta, acho. — Johnny estava se sentindo cansado, suado e muito, muito bem. — Você acabou de dar um salto no seu progresso, caso não tenha notado. Vamos nadar o último a cair é um otárío.

—    Johnny?

— O quê?

— Isso dá certo sempre?

— Se você adquirir o hábito, dá — disse Johnny. — E cada vez que você der a volta ao bloqueio, em vez de tentar atravessá-lo, vai tomá-lo um pouco menor. Acho que vai começar a notar uma melhora na sua leitura de palavra-por-palavra dentro de pouco tempo, também. Conheço mais alguns truquezinhos. — Calou-se. O que acabara de dizer a Chuck era menos uma verdade do que uma sugestão hipnótica.

— Obrigado — disse Chuck. Desaparecera a máscara de bom humor paciente, sendo substituída por uma gratidão sincera. — Se você me fizer vencer isso, eu... bem, acho que me ajoelharia para lhe beijar os pés, se você quisesse. Às vezes fico tão assustado, achando que estou decepcionando o meu pai...

— Chuck, você não sabe que isso faz parte do problema?

— É?

— É. Você está.., está exagerando. Esforçando-se demais. Tudo demais. E pode não ser apenas um bloqueio psicológico, sabe. Há quem acredite que alguns problemas de leitura, a síndrome de Jackson, fobias de leitura, tudo isso pode ser um tipo de... marca de nascença mental. Um circuito estropiado, um relé defeituoso, uma zo... — Fechou a boca, de repente.

— Uma o quê? — perguntou Chuck.

— Uma zona morta — disse Johnny devagar. — Seja o que for. Os nomes não interessam. Os resultados, sim. O truque de direção errada na verdade não é nenhum artifício. É educar uma parte não cultivada de seu cérebro para fazer o trabalho dessa pequena seção defeituosa. Para você, isso significa passar a uma cadeia de pensamento de base oral cada vez que chegar a um obstá­culo. Em seu cérebro, você está mudando o lugar de onde vem o seu pensamento. É aprender a dar um golpe com ambas as mãos.

— Mas vou conseguir isso? Você acha que vou conseguir?

— Sei que vai — disse Johnny.

— Está bem. Então vou. — Chuck deu um mergulho raso na piscina e voltou à tona, sacudindo a água dos cabelos compri­dos em um chuveiro de gotículas. — Venha! Está ótima.

— Já vou — disse Johnny, mas, no momento, contentou-se em ficar de pé ali, nos azulejos da borda, vendo Chuck nadar vigo­rosamente para a parte funda da piscina, e saboreando aquele sucesso. Não tivera essa sensação gostosa quando de repente soubera que as cortinas da cozinha de Eileen Magown estavam pegando fogo, nem quando revelara o nome de Frank Dodd. Se Deus lhe dera algum dom, era o de ensinar, e não o de saber de coisas que ele não tinha nada de saber. Isso era o tipo de coisa para a qual ele tinha sido feito, e quando ensinava em Cleaves Mills, em 1970, sabia disso. E, o que era mais importante, os garotos sabiam e reagiam a isso, assim como Chuck reagira agora.

— Vai ficar aí parado como um palerma? — perguntou Chuck.

Johnny mergulhou na piscina.

 

Warren Richardson saiu do pequeno prédio do escritório às dezesseis e quarenta e cinco, como sempre. Foi até o estaciona­mento, colocou seu peso bruto de noventa quilos atrás do volante do Chevrolet Caprice e ligou o motor. Tudo conforme a rotina. O que não estava de acordo com a rotina foi o rosto que apareceu de repente no espelho retrovisor: um rosto moreno, de barba por fazer, cercado por cabelos compridos e destacado por olhos tão verdes quanto os de Sarah Hazlett ou Chuck Chatsworth. Warren Richardson não levava um susto tão grande desde que era menino, e seu coração deu um salto imenso e irregular no peito.

— Olá — disse Sonny Elliman, debruçando-se sobre o assento.

— Quem... — foi só o que Richardson conseguiu dizer, pro­nunciando a palavra num silvo apavorado. Seu coração estava ba­tendo com tanta força, que ele via pontinhos negros dançando diante dos olhos, ao ritmo de sua pulsação. Teve medo de ter um infarto.

— Calma — disse o homem que se tinha escondido no assen­to de trás. — Calma, rapaz. Fique frio.

E Warren Richardson sentiu uma emoção absurda: a gratidão. O homem que o assustara não ia mais assustá-lo. Devia ser um bom homem, devia ser...

— Quem é você? — conseguiu dizer, dessa vez.

— Um amigo — disse Sonny.

Richardson dispôs-se a virar-se, e dedos duros como tenazes cravaram-se dos lados de seu pescoço flácido. A dor foi estonteante. Richardson respirou com um ganido convulsivo.

— Não vai querer virar-se, rapaz. Pode ver-me muito bem no seu retrovisor. Entendeu?

— Sim — gaguejou Richardson. — Sim, sim, sim, mas lar­gue-me!

As tenazes começaram a se afrouxar, e ele novamente sentiu aquela sensação irracional de gratidão. Mas não duvidava mais de que o homem do assento de trás fosse perigoso, ou que estivesse naquele carro de propósito, embora não pudesse imaginar por que alguém havia de...

E então pôde imaginar por que alguém havia de, ou pelo menos por que alguém poderia, não era o tipo de coisa que se esperasse de um candidato a cargo político normal, mas Greg Stillson não era normal, Greg Stillson era um doido, e...

Baixinho, Warren Richardson começou a chorar.

— Tenho de conversar com você, rapaz — disse Sonny. Sua voz era bondosa e lamentosa, mas pelo espelho retrovisor seus olhos brilhavam, verdes, divertidos. — Tenho de falar com você como um conselheiro severo.

— ~ Stillson, não é? E...

De repente as tenazes voltaram, os dedos do sujeito enterra­ram-se em seu pescoço, e Richardson soltou um grito agudo.

— Nada de nomes — disse-lhe o homem do assento de trás, com aquela mesma voz, bondosa-mas-lamentosa. — Chegue à suas próprias conclusões, Sr. Ríchardson, mas guarde os nomes para si. Estou com o polegar sobre a sua artéria carótida, e os meus dedos estão sobre a sua jugular, e posso transformá-lo em um nabo huma­no, se quiser.

— O que é que você quer? — perguntou Richardson.

Não chegou a gemer, propriamente, mas quase; nunca sentira tanta vontade de gemer antes. Não podia acreditar que aquilo esti­vesse acontecendo no estacionamento atrás de seu escritório de imóveis, em Capital City, New Hampshire, num dia luminoso de verão. Estava vendo o relógio embutido nos tijolos vermelhos da torre da prefeitura. Eram cinco para as cinco. Em casa, Norma devia estar pondo no forno as costeletas de porco, bem temperadas, Sean devia estar assistindo ao programa Vila Sésamo na TV. E atrás dele estava um homem ameaçando cortar o fluxo sanguíneo para o seu cérebro, transformando-o em um débil mental. Não, não era verdade; era como um pesadelo. O tipo de pesadelo que faz a gente gemer dormindo.

— Eu não quero nada — disse Sonny Elliman. — Trata-se do que você quer.

— Não sei do que está falando. — Mas tinha um medo hor­rível, achando que sabia, sim.

— Aquele artigo no Journal de New Hampshire, sobre ne­gócios esquisitos de imóveis — disse Sonny. — O senhor teve muita coisa a dizer, Sr. Richardson, não foi? Especialmente a respeito de... certas pessoas.

— Eu...

— Aquele negócio sobre o Centro Comercial de Capital, por exemplo. Insinuando comissões e partilhas de lucros e uma mão lavando a outra. Toda aquela bosta. — Seus dedos tomaram a apertar o pescoço de Richardson, e dessa vez ele gemeu. Mas ele não fora identificado, no artigo, fora apenas “uma fonte bem-infor­mada”. Como tinham descoberto? Como é que Greg Stilson tinha descoberto?

O homem atrás de Warren Richardson começou a falar depres­sa no seu ouvido, o hálito quente fazendo-lhe cócegas.

— O senhor podia atrapalhar a vida de certas pessoas dizendo essas besteiras, sabe, Sr. Richardson? Pessoas que se candidatam a cargos políticos, digamos. Isso é como jogar bridge, entende? O senhor está vulnerável. As pessoas podem jogar lama, e ela cola, especialmente nos dias de hoje. Bem, por enquanto ainda não houve problemas. Fico satisfeito ao lhe dizer isso, pois, se houvesse problemas, o senhor poderia estar aí catando os dentes de dentro do nariz, em vez de estar conversando amigavelmente comigo.

A despeito de seu coração disparado, a despeito do seu pavor, Richardson disse:

— Essa... essa pessoa... rapaz, você está maluco se acha que pode protegê-lo. Ele andou fazendo tanta trapaça quanto um mascate charlatão em cidades do sul. Mais cedo ou mais tarde...

Um polegar fincou-se em sua orelha, com força. A dor foi imensa, inacreditável. A cabeça de Richardson bateu contra o vidro, e ele deu um grito. Às cegas, tateou procurando a buzina.

— Se tocar essa buzina, eu o mato — murmurou a voz.

Richardson deixou cair as mãos. O polegar aliviou a pressão.

— Você devia usar cotonetes aí, rapaz. — disse a voz. —Estou com cera no polegar todo. Muito feio.

Warren Richardson começou a chorar baixinho. Não conseguia parar. As lágrimas corriam por suas faces gordas.

— Por favor, não me machuque mais — disse ele. — Por favor. Por favor.

— É o que falei — disse-lhe Sonny. — Tudo é uma questão do que você quer. O que tem a fazer não é se preocupar com o que os outros possam dizer a respeito dessas... certas pessoas. O que tem a fazer é vigiar o que sai da sua boca. O que tem a fazer é pensar antes de falar, da próxima vez que aparecer aquele cara do Journal. Pode pensar em como é fácil descobrir quem é “uma fonte bem-informada”. Ou pode pensar no espeto que seria se a sua casa se incendiasse. Ou no que teria de pagar por uma opera­ção plástica, se alguém jogasse ácido de bateria na cara de sua mulher.

O homem atrás de Richardson agora estava ofegante. Parecia um animal numa floresta.

— Ou pode pensar, entende, em como seria fácil aparecer alguém e seqüestrar o seu filho, de volta do jardim de infância.

— Não fale assim! — exclamou Richardson, em voz rouca. —Não diga essas coisas, seu filho da mãe nojento!

— Só estou dizendo que você deve pensar no que deseja —disse Sonny. — Uma eleição é coisa nacional, sabia? Especialmen­te num ano de Bicentenário. Todo mundo devia divertir-se. Ninguém se diverte se uns merdas como você começam a contar uma porção de mentiras. Merdas invejosos como você.

A mão largou-o de vez. A porta de trás abriu-se. Ah, graças a Deus, graças a Deus!

— É preciso pensar — repetiu Sonny Elliman. — Agora, esta­mos entendidos?

— Sim — murmurou Richardson. — Mas, se está pensando que Gre... uma certa pessoa vai conseguir eleger-se usando essas táticas, está muito enganado.

— Não — disse Sonny. — É você quem está muito enganado. Porque todo mundo está se divertindo. Trate de não ficar de fora.

Richardson não deu resposta. Ficou sentado, rígido, atrás do volante, o pescoço latejando, olhando para o relógio do prédio da prefeitura, como se fosse a única coisa sã que lhe restasse na vida. Já eram quase cinco e cinco. As costeletas de porco já deviam estar no forno.

O homem do assento de trás disse mais uma coisa e depois foi embora, andando depressa, os cabelos compridos batendo no colarinho da camisa, sem olhar para trás. Dobrou a esquina do prédio e desapareceu.

A última coisa que disse a Warren Richardson foi “cotonetes”.

Richardson começou a tremer todo, e levou muito tempo para conseguir dirigir o carro. Sua primeira sensação foi de raiva... uma raiva tremenda. O impulso que teve foi de ir diretamente à delegacia de polícia de Capital City (instalada no prédio abaixo do relógio) e contar o que tinha acontecido — as ameaças à mu­lher e ao filho, o assalto físico —, e em benefício de quem isso fora feito.

“Pode pensar no que terá de pagar por uma operação plásti­ca.., ou como seria fácil alguém seqüestrar o seu filho. .

Mas por quê? Por que se arriscar? O que ele dissera àquele bandido era a verdade pura e simples. Todos no ramo de imóveis do sul de New Hampshire sabiam que Stillson estava fazendo um jogo sujo, acumulando lucros a curto prazo que o levariam à ca­deia mais cedo ou mais tarde, e não deveria demorar muito. A campanha dele era um exemplo de idiotice. E agora táticas de violência! Ninguém podia fazer isso por muito tempo nos Estados Unidos.., e especialmente na Nova Inglaterra.

Mas que outro levantasse a lebre.

Alguém que tivesse menos a perder.

Warren Richardson ligou o carro e voltou para casa, para suas costeletas de porco, sem falar coisa alguma. Certamente, outra pessoa havia de pôr um paradeiro naquilo.

 

Um dia, pouco depois do primeiro salto no progresso de Chuck, Johnny Smith estava no banheiro da casa de hóspedes, fazendo a barba. Agora, quando ele se olhava bem de perto no espelho, tinha uma sensação estranha, como se estivesse vendo um irmão mais velho, em vez de a si mesmo. Em sua testa havia fundas rugas horizontais. Mais duas ladeavam a boca. O mais estranho de tudo era aquela mecha branca, e o resto dos cabelos estava ficando gri­salho. Parecia ter começado da noite para o dia.

Desligou o barbeador e foi para a sala conjugada com a co­zinha. Que luxo!, pensou, sorrindo um pouco. Sorrir era voltar a se sentir natural. Ligou a TV, tirou uma Pepsi da geladeira e ins­talou-se para assistir ao noticiário. Roger Chatsworth devia voltar mais tarde, e no dia seguinte Johnny teria o prazer notável de contar a ele que seu filho estava fazendo progressos reais.

Johnny ia visitar seu pai mais ou menos de quinze em quinze dias. O pai estava muito satisfeito com o novo trabalho de Johnny, e escutava com muito interesse quando este lhe fala­va dos Chatsworths, a casa na agradável cidade universitária de Durham e os problemas de Chuck. Johnny, por sua vez, escutou quando o pai lhe falou do trabalho gratuito que estava fazendo em casa de Charlene MacKenzie, em New Gloucester, perto de onde ele morava.

— O marido dela era um médico e tanto, mas não tinha muita habilidade manual — disse Herb.

Charlene e Vera tinham sido amigas antes de Vera se embre­nhar muito nos ramos mais estranhos do fundamentalismo. Isso as separara. O marido, clínico-geral, tinha morrido de um ataque car­díaco em 1973.

— Aquela casa estava quase caindo em cima da cabeça da­quela mulher — disse Herb. — Era o mínimo que eu podia fazer. Vou lá aos sábados, e ela me dá jantar antes de eu voltar para casa. Para dizer a verdade, Johnny, ela cozinha melhor do que você.

— Também é mais bonita — disse Johnny, com inocência.

— Claro, é uma mulher bonita, mas não é nada disso, Johnny. Sua mãe ainda não está enterrada nem há um ano...

Mas Johnny desconfiou de que talvez fosse mesmo alguma coisa assim, e, em segredo, não poderia ficar mais contente. Não gostava da idéia de o pai envelhecer sozinho.

Na televisão, Walter Cronkite estava apresentando as notícias políticas da noite. Então, terminado o período inicial, faltando ape­nas algumas semanas para as convenções, parecia que Jimmy Carter estava certo de conseguir a indicação dos democratas. Ford é que estava em apuros para salvar sua vida política com Ronald Reagan, ex-governador da Califórnia e ex-apresentador do programa de TV GE Tbeater. O páreo estava tão duro que os repórteres estavam contando os delegados individuais, e, em uma de suas raras cartas, Sarah Hazlett tinha escrito: “Walt está torcendo para que Ford o consiga. Como candidato para a vaga estadual do Senado por aqui, ele já está pensando nos fraques. E diz que, pelo menos no Maine, Reagan não os tem”.

Quando estava trabalhando de cozinheiro em Kittery, Johnny se acostumara a ir a Dover, Portsmouth ou qualquer das outras cidadezinhas em volta delas, em New Hampshire, umas duas vezes por semana. Todos os candidatos à presidência iam a essas cidades ou vinham delas, e era uma oportunidade única de ver os concor­rentes de perto e sem o aparato quase régio de autoridade que mais tarde poderia cercar qualquer um deles. Aquilo tomou-se quase um passatempo, embora necessariamente de curta duração. Quando as eleições primárias de New Hampshire acabassem, os candidatos passariam para a Flórida sem sequer olhar para trás. E naturalmente alguns entre eles enterrariam suas ambições políticas em algum lu­gar entre Portsmouth e Keene. Não tendo nunca sido político —a não ser durante a era do Vietnam —, Johnny tornou-se um ávido observador de políticos no período de convalescença depois do epi­sódio de Castle Rock... e o seu dom, doença ou fosse o que fosse também desempenhou seu papel nisso.

Ele apertou as mãos de Morris Udail e Henry Jackson. Fred Harris lhe deu um tapa nas costas. Ronald Reagan deu-lhe um aperto de mão duplo, rápido, de político experiente, dizendo: “Par­ticipe das pesquisas, e ajude-nos, se puder”. Johnny concordara com simpatia, não vendo vantagem nenhuma em desiludir o Sr. Reagan da idéia de que ele fosse um eleitor legítimo de New Hampshire.

Tinha batido um papo com Sarge Shriver junto da entrada principal da monstruosa avenida chamada Newington Mall, durante quase quinze minutos. Shriver, com os cabelos recém-cortados, cheirando a loção pós-barba e talvez a desespero, estava acompa­nhado por um único assessor, com os bolsos cheios de folhetos, e por um agente do serviço secreto que ficava coçando a acne furti­vamente. Shriver parecera ficar extremamente satisfeito ao ser reconhecido. Um ou dois minutos antes de Johnny se despedir, um candidato em busca de um cargo local se aproximara de Shriver pedindo que ele assinasse sua nomeação. Shriver dera um sorriso delicado.

Johnny sentira coisas sobre todos eles, mas poucas de natu­reza especifica. Era como se eles tivessem tornado o ato de tocar em alguém uma coisa tão ritual, que seus verdadeiros seres ficassem sepultados sob uma camada de lucite dura e transparente. Embora tivesse visto a maior parte deles — com a exceção do presidente Ford —, Johnny só sentiu uma vez aquela pontada de conhecimento que associava a Eileen Magown, e, de modo completamente dife­rente, a Frank Dodd.

Eram seis e quarenta e cinco da manhã. Johnny havia ido a Manchester, com o seu velho Plymouth. Tinha trabalhado das dez da noite da véspera até as seis da manhã. Sentia-se cansado, mas a tranqüila aurora de inverno estava bonita demais para ele querer dormir. E gostava de Manchester, Manchester com suas ruas estrei­tas e prédios de tijolos gastos pelo tempo, as fábricas de tecidos góticas espalhadas à margem do rio como contas vitorianas. Na­quela manhã, ele não estava conscientemente atrás de políticos; pretendia passear um pouco pelas ruas, até elas começarem a se encher, até romper-se o encanto frio e quieto de fevereiro, e depois voltaria para Kíttery, para dormir um pouco.

Dobrou uma esquina e viu três sedãs comuns parados defron­te de uma fábrica de sapatos, em local proibido. De pé junto do portão da cerca resistente, de cabos trançados, estava Jimmy Carter, apertando as mãos dos homens e mulheres que entravam para tra­balhar naquele turno. O pessoal estava levando marmitas ou sacos de papel, expirando nuvens brancas, embrulhados em casacos pe­sados, os rostos ainda adormecidos. Carter tinha uma palavra para cada um. Seu sorriso, então não tão conhecido quanto se tomou depois, era infatigável e fresco. Estava com o nariz vermelho do frio.

Johnny parou a meio quarteirão dali e caminhou até o portão da fábrica, os sapatos rangendo na neve dura. O agente do serviço secreto que estava com Carter examinou-o rapidamente e depois esqueceu-se dele ... ou pareceu fazê-lo.

— Voto em quem estiver interessado em reduzir os impostos. — dizia um homem numa velha jaqueta de esquiar. A jaqueta tinha uma constelação de algo que parecia queimaduras de ácido de bateria em uma das mangas. — Os raios dos impostos estão nos matando, e não estou brincando.

— Bem, vamos ver o que se pode fazer — disse Carter. — Examinar a situação fiscal vai ser uma das nossas primeiras prio­ridades, quando eu chegar à Casa Branca.

Havia na voz dele uma autoconfíança tão serena, que Johnny ficou impressionado e meio inquieto.

Os olhos de Carter, brilhantes e de um azul quase assombroso, desviaram-se para Johnny.

— Olá — disse ele.

— Olá, Sr. Carter — disse Johnny. — Não trabalho aqui. Estava passando e o vi.

— Estou contente de que tenha parado. Sou candidato a pre­sidente.

— Sei disso.

Carter estendeu a mão. Johnny apertou-a.

Carter começou:

— Espero que... — E parou.

Ocorreu o choque, como se ele tivesse enfiado o dedo numa tomada elétrica. Os olhos de Carter se apertaram. Ele e Johnny se olharam pelo que pareceu ser muito tempo.

O sujeito do serviço secreto não gostou daquilo. Aproximou-se de Carter e de repente começou a desabotoar o sobretudo. Em algum lugar atrás deles, um milhão de quilômetros atrás deles, soou o apito da fábrica, a nota única frisando às sete horas na manhã fria e azul.

Johnny largou a mão de Carter, mas os dois continuaram a se olhar.

— Que diabo foi isso? — perguntou Carter, bem baixinho.

— Você provavelmente tem de ir para algum lugar, não? —disse o sujeito do serviço secreto, de repente. Pôs a mão no ombro de Johnny. Era uma mão muito grande. — Claro que tem.

— Está tudo bem — disse Carter.

— O senhor vai ser presidente — disse Johnny.

A mão do agente continuava no ombro de Johnny, mais de leve, mas ainda lá, e ele também estava recebendo alguma coisa dele. Os

(olhos)

do sujeito do serviço secreto não gostavam dos olhos dele.

Jobnny achou que eram

(olhos de assassino, de psicopata)

frios e estranhos, e se aquele cara pusesse uma das mãos que fosse no bolso do sobretudo, se sequer parecesse fazer isso, ele ia derrubá-lo na calçada. Por trás da avaliação da situação feita pelo agente do serviço secreto, havia uma ladainha de idéias simples­mente enlouquecedora:

(louro maryland louro maryland louro maryland louro)

—    Sim — disse Carter.

—    Vai ser mais difícil do que todos ....... mais difícil do que o senhor pensa, mas vai vencer. Ele se derrotará. A Polô­nia. A Polônia o derrotará.

Carter limitou-se a olhar para ele, meio sorrindo.

—    O senhor tem uma filha. Ela vai para uma escola pública em Washington. Vai para... — Mas estava na zona morta. —Creio.., é uma escola que tem o nome de um escravo liberto.

—    Cara, quero que você vá andando — disse o agente.

Carter olhou para ele, e o agente acalmou-se.

—    Foi um prazer conhecê-lo — disse Carter. — Um pouco desconcertante, mas um prazer.

De repente, Johnny voltou ao seu normal. Tinha passado. Sen­tiu que estava com as orelhas frias e que tinha de ir ao banheiro.

—    Bom dia — disse ele, sem jeito.

—    Sim. Para você também.

Voltara para o carro, sentindo os olhos do sujeito do serviço secreto sempre sobre ele. Pouco depois, Carter se livrara dos con­correntes de New Hampshire e passara para a Flórida.

 

Walter Cronkite acabou com os políticos e passou para a guerra civil no Líbano. Johnny levantou-se e encheu novamente o seu copo de Pepsi. Inclinou o copo para a TV. “À sua saúde, Walt. À morte, destruição e desespero... onde estaríamos sem isso?”

Bateram à porta, de leve.

—    Entre — disse Johnny, esperando que fosse Chuck, prova­velmente para convida-lo a ir ao drive-in em Somersworth. Mas não era Chuck, era o pai.

—    Oi, Johnny — disse ele. Estava de jeans desbotados e uma velha camisa esporte de algodão, com as fraldas de fora. — Posso entrar?

—    Claro. Pensei que o senhor só voltasse mais tarde.

—    Bem, Shelley me ligou. — Shelley era a mulher dele. Roger entrou e fechou a porta. — Chuck foi falar com ela. Rompeu em prantos, tal qual um garotinho. Disse a ela que você estava con­seguindo, Johnny. Disse que achava que ia ficar bom.

Johnny largou o copo.

Ainda falta muito — disse ele.

     —      Chuck. foi buscar-me no aeroporto. Não o vejo assim desde que ele tinha...o quê? Dez anos? Onze? Quando lhe dei a pisto­la 22 que ele vinha esperando havia cinco anos. Ele me leu um artigo do jornal. O progresso é... quase fantástico. Vim agra­decer-lhe.

— Agradeça a Chuck — disse Johnny. — É um rapaz maleá­vel. Muita coisa do que lhe está acontecendo é um reforço posi­tivo. Ele se convenceu psicologicamente de que é capaz de fazê-lo e agora está inebriado com isso. É a melhor maneira de exprimi-lo.

Roger sentou-se.

— Diz ele que você está lhe ensinando a dar um golpe com ambas as mãos.

Johnny sorriu.

— É, acho que sim.

— Ele vai poder fazer o tal exame?

— Não sei. Eu não gostaria nada de vê-lo tentar e fracassar. Esses exames constituem uma situação de grande pressão. Se ele se sentar naquele auditório com uma folha de exame na frente e um lápis IBM na mão e depois empacar, será um grave revés para ele. Já pensou numa boa escola preparatória por um ano? Um lugar como a Pittsfield Academy?

— Já andamos falando disso, mas, francamente, sempre achei que seria só adiar o inevitável.

— Isso é uma das coisas que vem trazendo problemas a Chuck. Essa sensação de estar numa situação de “ou vai ou racha”.

— Nunca pressiono Chuck.

— Não de propósito, sei disso. Ele também sabe. Por outro lado, o senhor é um homem rico e de sucesso, que se diplomou na universidade com distinção. Acho que Chuck tem um certo complexo de inferioridade.

— Não há nada que eu possa fazer a respeito disso, Johnny.

— Creio que um ano no curso preparatório, longe de casa, depois do último ano, poderá dar uma boa perspectiva das coisas para ele. E ele está querendo ir trabalhar em uma de suas fábricas no verão que vem. Se fosse meu filho e as fábricas fossem minhas, eu deixaria que fosse.

       — Chuck quer fazer isso? Como é que nunca me disse nada?

— Porque ele não queria que o senhor pensasse que ele o estava bajulando — disse Johnny.

— Ele lhe disse isso?

— Disse. Quer fazer isso porque acha que a experiência prá­tica lhe será proveitosa, mais tarde. O rapaz quer seguir os seus passos, Sr. Chatsworth. O senhor deu alguns bem notáveis. Grande parte do bloqueio da leitura foi por causa disso. Ele está com o nervosismo dos principiantes.

De certo modo, ele mentiu. Chuck tinha falado dessas coisas, até mencionando algumas delas, mas não fora franco como Johnny levara Roger Chatsworth a crer. Pelo menos, não verbalmente. Mas Johnny o sondara de vez em quando, e descobrira esses sin­tomas. Tinha visto as fotos que Chuck tinha na carteira, e sabia o que ele sentia pelo pai. Havia coisas que nunca poderia contar àquele homem simpático mas um tanto reservado, sentado diante de si. Chuck idolatrava o pai. Sob uma aparência displicente, uma aparência que era muito semelhante à de Roger, o rapaz se consumia com uma convicção intima de que nunca conseguiria mos­trar-se digno. O pai transformara uma participação de dez por cento numa fábrica de lãs falida num império têxtil da Nova Inglaterra. Ele acreditava que a questão do amor do pai dependia de sua pró­pria capacidade de mover montanhas semelhantes. Fazer esporte. Ingressar numa boa universidade. Ler.

— Até que ponto você tem certeza de tudo isso? — pergun­tou Roger.

— Estou bastante seguro disso. Mas ficaria agradecido se o senhor não dissesse a Chuck que tivemos esta conversa. Estou con­tando os segredos dele. — “E isso é mais verdade do que o senhor imagina”.

— Está bem. E Chuck, a mãe dele e eu vamos conversar sobre a escola preparatória. Enquanto isso, isto aqui é seu.

Tirou do bolso de trás um envelope comercial branco, e en­tregou-o a Johnny.

— O que é?

— Abra e veja.

Johnny abriu-o. Dentro do envelope havia um cheque de quinhentos dólares.

— Puxa vida...! Não posso aceitar isso.

— Pode e deve. Eu lhe prometi uma gratificação se conse­guisse alguma coisa, e cumpro as minhas promessas. Receberá outro quando for embora.

— Realmente, Sr. Chatsworth, eu...

— Psiu! Vou lhe dizer uma coisa, Johnny.

Ele inclinou-se para a frente. Estava sorrindo de um modo especial, e Johnny de repente sentiu que via, através do exterior simpático, o homem que tinha feito tudo aquilo acontecer: a casa, os jardins, a piscina, as fábricas. E, claro, a fobia de leitura do filho, que provavelmente poderia ser classificada de neurose his­térica.

— A minha experiência mostra que noventa e cinco por cento das pessoas que habitam a terra são simplesmente inertes, Johnny. Um por cento é gente santa, e um por cento não é de nada. Os outros três por cento são as pessoas que fazem o que dizem que sabem fazer. Eu estou entre esses três por cento, e você também. Você mereceu esse dinheiro. Nas minhas fábricas há pessoas que

levam para casa onze mil dólares por ano para fazer pouco mais que ficar se coçando. Mas não me queixo. Sou um homem que conhece a vida, e isso significa que compreendo o que dá energia ao mundo. A mistura do combustível é uma parte de alta octana­gem para nove partes de bosta. Você não é bosta. Portanto, guarde esse dinheiro na carteira, e da próxima vez procure dar-se um pouco mais de valor.

— Está bem — disse Johnny. — Vai ser de grande utilidade, não vou mentir quanto a isto.

— Contas de médicos?

Johnny olhou para Roger Chatsworth, apertando os olhos.

— Sei tudo sobre você — disse Roger. — Pensava que eu não ia investigar o camarada que contratei para ser professor de meu filho?

— Sabe a respeito...

— Dizem que você é um médium. Ajudou a resolver um assas­sinato no Maine. Pelo menos, é o que dizem os jornais. Tinha um emprego de professor engatilhado para o mês de janeiro passado, mas dispensaram-no rapidamente, quando o seu nome apareceu nos jornais.

— O senhor sabia? Há quanto tempo?

— Desde antes de você vir para cá.

— E assim mesmo me contratou?

— Eu queria um professor, não é? Você parecia ter jeito de quem conseguiria alguma coisa. Acho que demonstrei muito discer­nimento, ao contratá-lo.

— Bem, obrigado — disse Johnny, com a voz rouca.

— Já lhe disse que não é preciso agradecer.

Enquanto eles falavam, Walter Cronkite terminara o noticiá­rio de fatos do dia e passara às histórias desenxabidas que por vezes aparecem no final de um noticiário. Estava dizendo:... os eleitores no oeste de New Hampshire têm um independente candi­datando-se no terceiro distrito, este ano...

— Bem, o dinheiro vem a calhar — disse Johnny. — Isso...

— Psiu! Quero ouvir isso.

Chatsworth estava debruçado para a frente, as mãos pendura­das entre os joelhos, um sorriso de expectativa nos lábios. Johnny virou-se para olhar a TV.

— ... Stillson — disse Cronkite. — Esse corretor de seguros e imóveis, de quarenta e três anos de idade, certamente está fa­zendo uma das campanhas mais excêntricas de 1976, mas tanto o candidato republicano do terceiro distrito, Harrison Fisher, como o seu adversário democrata, David Bowes, estão apavorados, por­que as pesquisas mostram que Greg Stillson está levando uma boa vantagem. George Herman dará mais detalhes.

— Quem é Stillson? — perguntou Johnny.

Chatsworth riu.

— Ah, você tem de ver esse cara, Johnny. É doido de pedra. Mas acho que o eleitorado sóbrio do terceiro distrito vai mandá-lo para Washington neste mês de novembro. A não ser que ele caia e comece a espumar pela boca. E não acho isso completamente fora de cogitação.

A TV então mostrou a imagem de um rapaz bonitão, de camisa branca, de colarinho aberto. Estava falando para um grupo pe­queno, de um palanque cheio de faixas, no estacionamento de um supermercado. O rapaz estava exortando o povo. O povo parecia não estar nada empolgado. George Herman narrou:

— Este é David Bowes, candidato democrata — o animal de sacrifício, diriam alguns — à vaga do terceiro distrito em New Hampshire. Bowes esperava uma luta renhida porque o terceiro distrito de New Hampshire nunca deu a vitória aos democratas, nem mesmo na grande blitz de Lyndon Johnson em 1964. Mas esperava ter de concorrer contra esse homem.

A TV então mostrou um homem de seus sessenta e cinco anos, que estava falando num jantar de luxo, para angariar fundos. O pessoal tinha aquele ar gorducho, virtuoso e levemente constipado que parece propriedade exclusiva dos homens de negócios que per­tencem ao Partido Republicano. O orador apresentava uma seme­lhança marcada com Edward Gurney, da Flórida, embora não tivesse o corpo esguio e forte de Gurney.

— Este é Harrison Fisher — disse Herman. — Os eleitores do terceiro distrito o têm mandado para Washington de dois em dois anos, desde 1960. Ele é um vulto poderoso na Câmara, tendo figurado em cinco comissões e tendo sido presidente da Comissão Parlamentar de Parques e Vias Navegáveis. Esperava-se que ven­cesse facilmente o jovem David Bowes. Mas nem Fisher nem Bowes estavam contando com um curinga no baralho. Com este curinga.

A imagem mudou.

— Deus do céu! — exclamou Johnny.

Ao lado dele, Chatsworth deu uma gargalhada e bateu nas coxas.

— Pode-se acreditar que esse cara exista?

Nada do grupinho displicente no estacionamento do supermer­cado, ali. Tampouco um confortável jantar para angariar fundos no Salão Nobre do Hilton de Portsmouth. Greg Stillson estava numa plataforma ao ar livre, em Ridgeway, sua cidade natal. Atrás dele via-se a estátua de um soldado da União, de carabina na mão e o quepe caindo sobre os olhos. A rua estava cercada por cordões de isolamento e cheia de gente que dava vivas entusiásticos, sobre­tudo gente jovem. Stilson estava de jeans desbotados e uma camisa do exército, de dois bolsos, com as palavras DE UMA OPORTUNIDADE À PAZ bordadas num dos bolsos e DOCINHO DE COCO DA MAMÃE no outro. Na cabeça, tinha um capacete de trabalhador de constru­ção civil inclinado num ângulo arrogante e ousado, e, preso à frente do capacete, havia um adesivo ecológico verde, com a bandeira americana. Ao lado dele havia um carrinho de aço inoxidável. Dos dois alto-falantes vinha o som de John Denver cantando Tbank God I’m a country boy.

— O que é aquele carrinho? — perguntou Johnny.

— Você vai ver — disse Roger, ainda rindo muito.

Herman falou:

— O curinga é Gregory Ammas Stillson, quarenta e três anos, ex-vendedor da Companhia Americana Bíblia Caminho da Verdade, ex-pintor de casas, e, em Oklahoma, onde se criou, antigo provoca­dor de chuva.

— Provocador de chuva — disse Johnny, assombrado.

— Ah, é uma das metas dele — disse Roger. — Se ele for eleito, teremos chuva quando precisarmos.

George Herman continuou:

— A plataforma de Stillson é... bem, inusitada.

John Denver acabou de cantar, com um grito que provocou vivas em resposta, de parte do povo. Depois Stillson começou a falar, a voz ressoando no auge da amplificação. Pelo menos o seu sistema de alto-falantes era sofisticado: quase não havia distorção. O sujeito tinha o modo de falar agudo, duro e persistente de um pregador religioso. Via-se uma leve espuma de saliva nos seus lábios, enquanto falava.

     — O que vamos fazer em Washington? Por que queremos ir para Washington? — rugiu Stillson. — Qual a nossa plataforma? A nossa plataforma tem cinco metas, meus amigos e vizinhos, cinco boas metas! E quais são? Vou lhes dizer logo: Primeira meta: RUA COM OS VAGABUNDOS!

Um aplauso estrondoso, de parte do povo. Jogaram um punha­do de confete para o ar e alguém gritou “Muito bem!” Stillson debruçou-se no pódio.

— Querem saber por que estou usando este capacete, amigos e vizinhos? Vou dizer por quê. Estou usando isso porque, quando vocês me mandarem para Washington, vou passar por eles como vocês sabem o quê num bambuzal! Vou avançar assim mesmo!

E diante dos olhos assombrados de Johnny, Stillson abai­xou a cabeça e começou a investir pela plataforma afora, como um touro, soltando gritos agudos e ganidos, como os dos rebeldes. Roger Chatsworth estava praticamente desarmado na cadeira, rin­do a mais não poder. O povo ficou alucinado. Stillson voltou investindo para o pódio, tirou o capacete de operário de construção e jogou-o para o povo. Seguiu-se imediatamente um ligeiro tumulto, pela posse do objeto.

— Segunda meta! — berrou Stillson no microfone. — Vamos derrubar qualquer um do governo, do mais graúdo ao mais miúdo, que estiver indo para a cama com uma mulher que não seja a dele! Se quiserem andar dormindo por aí, não vão fazê-lo às custas do povo!

— O que foi que ele disse? — perguntou Johnny.

— Ah, ele está só se aquecendo — disse Roger. Enxugou os olhos lacrimejantes e deu outra gargalhada. Johnny teve vontade de achar graça também.

— Terceira meta! — rugiu Stillson. — Vamos mandar toda a poluição para o espaço! Vamos ensacá-la! Vamos pô-la em malas! Vamos mandá-la para Marte e Júpiter e os anéis de Saturno! Vamos ter ar puro e água limpa, e isso tudo dentro de SEIS MESES!

O povo estava num paroxismo de alegria. Johnny viu no meio do pessoal muita gente que estava morrendo de rir, como Roger Chatsworth, no momento.

— Quarta meta! Vamos ter toda a gasolina e petróleo de que precisamos! Vamos parar de brincar com esses árabes e tratar da vida! Em New Hampshire não vamos ver velhinhos virando picolé, como no inverno do ano passado!

Isso provocou um estrondo de aprovação. No inverno anterior, uma velhinha de Portsmouth fora encontrada morta de frio em seu apartamento de terceiro andar, aparentemente devido a um desliga­mento por parte da companhia de gás, por falta de pagamento.

— Temos coragem, amigos e vizinhos, podemos fazê-lo! Há alguém por aí que ache que não podemos?

— NÃO! — berrou o povo.

— Última meta — disse Stillson, aproximando-se do carrinho de metal. Levantou a tampa articulada, e saiu uma nuvem de vapor. — CACHORROS-QUENTES!

Começou a pegar punhados de cachorros-quentes, do carrinho, que Johnny então viu ser uma mesinha-fogareiro portátil. Jogava-os ao povo e voltava para pegar mais. Os cachorros-quentes voavam por toda parte.

— Cachorros-quentes para todo homem, mulher e criança dos Estados Unidos! E quando vocês mandarem Greg Stillson para a Câmara dos Deputados, vão dizer: BACANA! AFINAL ALGUÉM ESTÁ LIGANDO!

A imagem mudou. O pódio estava sendo desfeito por uma tur­ma de rapazes de cabelos compridos que pareciam ser membros de conjuntos de rock ambulantes. Outros três estavam limpando a su­jeira deixada pelo povo. George Herman continuou:

— O candidato democrata David Bowes chama Stillson de palhaço, acusando-o de tentar atrapalhar os métodos do processo democrático. Harrison Fisher vai mais longe, em sua crítica. Cha­ma Stillson de saltimbanco cínico, que quer representar toda a con­cepção de eleições livres como anedota de teatro de revista. Em seus discursos, refere-se ao candidato Stillson como o único membro do Partido do Cachorro-Quente Americano. Mas o fato é o seguinte: a última pesquisa do terceiro distrito de New Hampshire, feita pela CBS, deu David Bowes com vinte por cento dos votos, Harrison Fisher com vinte e seis... e o desgarrado Greg Stillson com es­trondosos quarenta e dois por cento. Naturalmente, o dia das elei­ções ainda está longe, e as coisas podem mudar. Mas, por enquanto, Greg Stillson cativou os corações... se não as mentes.., dos elei­tores do terceiro distrito de New Hampshire.

A TV mostrou uma tomada de Herman, da cintura para cima. Suas mãos antes estavam escondidas. Ele então levantou uma, e nela estava um cachorro-quente. Deu uma boa mordida.

— George Herman, Noticiário da CBS, em Ridgeway, New Hampshire.

Walter Cronkite voltou a aparecer, na sala do noticiário da CBS, dando risada.

— Cachorros-quentes — disse ele, e riu de novo. — Só falta­va essa...

Johnny levantou-se e desligou o aparelho.

— Não posso acreditar — disse ele. — Esse cara é candidato mesmo? Não é brincadeira?

— Se é brincadeira ou não, é uma questão de interpretação pessoal — disse Roger, rindo —, mas ele é candidato mesmo. Eu sou republicano, desde que nasci, mas tenho de confessar que me empolgo com esse Stillson. Sabia que ele contratou meia dúzia de bandidos motoqueiros como guarda-costas? Verdadeiros cavaleiros de ferro. Não eram os Anjos do Inferno, nem nada disso, mas acho que eram da pesada. Ele parece tê-los reformado.

Motoqueiros hippies como seguranças. Johnny não gostou mui­to de ouvir aquilo. Eles tinham sido encarregados da segurança quando os Rolling Stones deram o concerto gratuito em Altamont Speedway, na Califórnia. Não dera muito certo.

— O povo aceita um bando de motoqueiros terroristas?

— Não, não é bem assim. São bem apresentáveis. E Stillson tem uma reputação e tanto em Ridgeway, em matéria de reformar garotos que se metem em encrencas.

Johnny deu um grunhido, mostrando suas dúvidas.

— Você já o viu — disse Roger, fazendo um gesto para o aparelho de TV. — O homem é um palhaço. Fica investindo pela plataforma assim em todos os comícios. Atira o capacete para o povo.., acho que já deve ter usado uns cem, a essa altura.., e distribui cachorros-quentes. É um palhaço, e daí? Talvez o povo precise de um pouco de descanso divertido, de vez em quando. Estamos ficando sem petróleo, a inflação está se descontrolando, devagar, mas constantemente, a carga de impostos do cidadão comum nunca foi tão pesada, e parece que estamos nos preparando para eleger um caipira confuso da Geórgia para presidente dos Estados Unidos. Então, o povo gosta de dar umas risadas. Mais ainda quer zombar de um sistema político que não parece ser capaz de resolver coisa alguma. Stillson é inofensivo.

—    Está em órbita — disse Johnny, e ambos riram.

—    Temos um bocado de políticos malucos por aí — disse Roger. — Em New Hampshire temos Stillson, que quer chegar à Câmara dos Deputados às custas de cachorros-quentes, e daí? Lá na Califórnia eles têm o Hayakawa. Ou veja o nosso governador, Meldrim Thomson. No ano passado, ele quis armar a Guarda Na­cional de New Hampshire com armas nucleares táticas. Eu diria que isso é loucura total.

—    Está querendo dizer que acha bom esse pessoal do terceiro distrito eleger o bobo da aldeia para representá-lo em Washington?

—    Você não está entendendo — disse Chatsworth, com pa­ciência. — Veja o ponto de vista do eleitor, Johnny. Essa gente do terceiro distrito é, em sua maioria, constituída de funcionários públicos e comerciantes. As partes mais rurais do distrito estão apenas começando a criar algum potencial recreativo. Essas pessoas olham para David Bowes e vêem um rapaz faminto, que está ten­tando eleger-se à base de uma fala macia e uma vaga semelhança com Dustin Hoffman. Espera-se que suponham que ele seja um homem do povo porque usa jeans.

“Depois, veja Fisher. Meu candidato, pelo menos em tese. Já organizei os angariadores de fundos para ele e outros candida­tos republicanos nesta região de New Hampshire. Já está na Câma­ra há tanto tempo que provavelmente deve achar que o domo do Capitólio se racharia em dois, se ele não estivesse por lá para dar o apoio moral. Nunca teve uma idéia original na vida, nunca contra­riou a linha do partido na vida. Não há nenhum estigma ligado ao nome dele, porque ele é burro demais para ser muito safado, se bem que provavelmente acabe levando um bocado de lama desse negócio de ‘Koreagate’. Os discursos dele são tão empolgantes quanto um Catálogo Nacional de Vendas por Atacado dos Bombeiros. As pes­soas não sabem de todas essas coisas, mas às vezes as sentem. A idéia de que Harrison Fisher faça alguma coisa por seus eleitores é ridícula.”

—    Então a solução é eleger um biruta?

Chatsworth sorriu, com indulgência.

—    Às vezes esses birutas fazem um trabalho bem competente. Veja Bella Abzug. Tem um bocado de miolo, debaixo daqueles chapéus malucos. Mas mesmo que Stillson se revele tão louco em Washington quanto é em Ridgeway, só está alugando a vaga por dois anos. Em 1978, eles o tiram de lá e põem alguém que entenda a lição.

—    A lição?

Roger levantou-se.

—    Não sacanear o povo por tempo demais — disse ele. —É essa a lição. Adam Clayton Powell descobriu isso. Agnew e Nixon também. É só... não sacanear o povo por tempo demais. —Olhou para o relógio. — Venha tomar um drinque em minha casa, Johnny. Shelley e eu vamos sair mais tarde, mas temos tempo para uma bebida rápida.

Johnny sorriu e levantou-se.

—    Está bem — disse ele. — O senhor me convenceu.

 

Em meados de agosto, Johnny ficou sozinho na propriedade dos Chatsworths, só com Ngo Phat, que tinha seu alojamento em cima da garagem. A família Chatsworth tinha fechado a casa e ido para Montreal, passar três semanas de repouso e recuperação, antes de começar o ano letivo e o atropelo de outono nas fábricas.

Roger tinha deixado a chave do Mercedes da mulher com Johnny, e ele foi até a casa do pai, em Pownal, sentindo-se como um potentado. As confabulações do pai com Charlene MacKenzie tinham entrado na fase crítica, e Herb não se dava mais ao trabalho de dizer que seu interesse era apenas ver que a casa não desabasse sobre ela. Estava mesmo fazendo a corte abertamente, e deixou Johnny meio nervoso. Depois de três dias, Johnny voltou para a casa dos Chatsworths, pôs em dia suas leituras e sua correspondência e ficou apreciando o sossego.

Estava sentado numa poltrona-bóia no meio da piscina, bebendo uma Seven-Up e lendo a New York Times Book Review, quando Ngo chegou junto da beira da piscina, tirou as sandálias e mergu­lhou os pés na água.

—    Aaahh! — disse ele. — Muito melhor. — E sorriu para Johnny. — Sossego, hem?

—    Muito sossego — concordou Johnny. — Como vão as aulas de cidadania, Ngo?

—    Muito bem — disse Ngo. — Vamos ter um passeio no campo no sábado. Primeiro. Muito empolgante. Toda a turma vai viajar.

—    Passear — disse Johnny, sorrindo diante da idéia de toda a turma de cidadania de Ngo Phat viajar com LSD ou outro aluci­nógeno.

—    Como? — Ele levantou as sobrancelhas, educadamente.

—    Toda a sua turma vai passear.

—    Sim, obrigado. Vamos assistir ao comício e discursos polí­ticos em Trímbull. Estamos todos pensando que sorte temos de estar tomando aulas de cidadania num ano de eleições. É muito instrutivo.

—    É, deve ser mesmo. Quem vocês vão ver?

—    Greg Stirrs... — Parou e tornou a pronunciar o nome, com muito cuidado. — Greg Stillson, candidato independente para uma vaga na Câmara dos Deputados dos EUA.

—    Já ouvi falar dele — disse Johnny. — Já falaram dele em sua aula, Ngo?

—    Sim, tivemos umas conversas desse homem. Nascido em 1933. Homem de muitos trabalhos. Veio para New Hampshire em 1964. Nosso instrutor nos disse que ele agora está aqui há bastante tempo, de modo que as pessoas não o consideram mais intruso.

—    Achou Stillson meio estranho?

—    Neste país, talvez seja estranho — disse Ngo. — No Viet­nã havia muitos como ele. Pessoas que são... — Ele ficou pen­sando, mexendo os pés pequenos e delicados na água azul-esver­deada da piscina. Depois tornou a olhar para Johnny.

—    Não sei a palavra inglesa para o que quero dizer. Há um jogo na minha terra, chamado tigre-que-ri. É antigo e muito esti­mado, como o seu beisebol. Uma criança se fantasia de tigre, sabe. Veste uma pele. E as outras crianças procuram pegá-la, enquanto ela corre e dança. A criança da pele ri, mas ao mesmo tempo está rosnando e mordendo, pois é esse o jogo. Na minha terra, antes dos comunistas, muitos dos chefes da aldeia brincavam de tigre-que-­ri. Acho que esse Stillson também conhece esse jogo.

Johnny olhou para Ngo, perturbado.

Ngo não parecia estar nada perturbado. Sorriu.

—    Então vamos todos, ver por nós. Depois temos as comidas de piquenique. Eu vou fazer duas tortas. Acho que vai ser bom.

—    Parece ótimo.

—    Vai ser muito ótimo — disse Ngo, levantando-se. — Depois, na aula, vamos falar sobre o que vimos em Trimbull. Talvez faça­mos as redações. É muito mais fácil escrever as redações, porque podemos procurar a palavra exata. Le mot juste.

—    É, às vezes escrever pode ser mais fácil. Mas nunca tive uma turma de redação no ginásio que acreditasse nisso.

Ngo sorriu.

—    Como vai indo Chuck?

—    Vai indo bem.

—    É, ele agora está feliz. Não está fingindo. É um bom rapaz. Vá descansar um pouco, Johnny. Eu vou dar um cochilo.

—    Está bem.

Ficou olhando Ngo afastar-se, pequeno, magro e ágil, em sua calça jeans e numa camisa de trabalho de algodão desbotado.

“A criança na pele ri, mas também está rosnando e mordendo, pois é esse o jogo.., acho que esse Stillson também conhece esse jogo.”

Novamente, aquela sensação de inquietação.

A poltrona balançava de leve na piscina. O sol batia nele, agradável. Ele tornou a abrir a Book Review, mas o artigo que estava lendo não mais lhe prendeu a atenção. Largou-a, levou a bóia de borracha até a borda da piscina e saiu da água. Trimbuil ficava a menos de cinqüenta quilômetros dali. Talvez ele tomasse o Mercedes da Sra. Chatsworth e fosse até lá, naquele sábado. Ver Greg Stillson em pessoa. Apreciar o espetáculo. Talvez... talvez apertar a mão dele.

“Não. Não!”

Mas por que não? Afinal, ele tinha mais ou menos feito dos políticos seu passatempo, naquele ano de eleição. O que poderia haver de tão perturbador, se fosse ver mais um?

Mas estava perturbado, sim, não havia dúvida alguma. Seu coração batia mais depressa e com mais força do que devia, e ele conseguiu deixar cair à revista na piscina. Pescou-a antes de ficar encharcada, soltando um palavrão.

Sem saber por que, pensando em Greg Stillson, lembrou-se de Frank Dodd.

Completamente ridículo. Ele não podia sentir nada sobre Stil­lson, só por tê-lo visto na TV.

“Fique de longe”.

Bem, talvez ficasse; talvez, não. Talvez fosse a Boston naquele sábado, para ver algum filme.

Mas uma sensação estranha e pesada de medo o havia domi­nado, quando chegou à casa de hóspedes e mudou de roupa. De certo modo, a sensação parecia uma velha amiga.., o tipo de amigo que a gente odeia, em segredo. Sim, ele iria a Boston no sábado. Isso seria o melhor.

 

Embora revivesse aquele dia vezes e mais vezes, nos meses seguintes, Johnny nunca conseguiu lembrar-se exatamente por que nem como afinal foi acabar em Trimbull. Saíra com outro rumo, pretendendo ir a Boston, ver os Red Sox no Fenway Park, e depois talvez ir a Cambridge espiar as livrarias. Se sobrasse algum dinhei­ro (tinha mandado quatrocentos dólares da gratificação de Chatsworth para o pai, que por sua vez os remetera para o Eastern Maine Medical, um gesto semelhante a cuspir no oceano), pretendia ir ao Cinema Orson Welles ver o filme The harder tbey come. Um bom programa para o dia, e um dia bonito; aquele dia 19 de agosto raiara quente, límpido e ameno, a destilação de um perfeito dia de verão da Nova Inglaterra.

Tinha entrado na cozinha da casa principal e preparara três bons sanduíches de presunto com queijo para o almoço; colocou-os numa velha cesta de piquenique que encontrou na despensa, e, depois de certa meditação, completou seus ingredientes com uma caixa de seis cervejas Tuborg. Naquela hora estava se sentindo ótimo, muito bem mesmo. Nenhum pensamento sobre Greg Stillson ou seu corpo de guarda-costas composto de cavaleiros de ferro, arrebanhado por conta própria, tinha sequer passado por sua cabeça.

Colocou a cesta de piquenique no chão do Mercedes e dirigiu para sudeste, em direção à 1-93. Tudo claro, até ali. Mas, depois, outros fatores começaram a aparecer. Pensamentos da mãe em seu leito de morte, primeiro. O rosto da mãe, contorcido numa careta fixa, a mão sobre a colcha em forma de garra, a voz parecendo sair através de uma porção de algodão.

“Eu não lhe disse? Não disse que era assim?”

Johnny aumentou o volume do rádio. Um sadio rock’n’roll saiu pelos dois alto-falantes estéreos do Mercedes. Ele tinha dormido durante quatro anos e meio, mas o rock’n’roll continuava vivo e passando bem, muito obrigado. Johnny foi cantando.

“Ele tem um trabalho para você. Não fuja dele, Johnny.”

O rádio não conseguia abafar a voz da mãe morta. A mãe morta ia dizer o que quisesse. Mesmo do outro lado da cova, ela ia dizer o que quisesse.

“Não se esconda numa caverna, nem o obrigue a mandar um peixe grande para devorá-lo”.

Mas ele fora devorado por um peixe grande. Seu nome não era leviatã, mas coma. Passara quatro anos e meio no ventre negro daquele peixe, e isso era o suficiente.

Chegou à entrada da rampa para a auto-estrada... e deixou-a para trás. Estava tão absorto em seus pensamentos que não reparara na entrada. Os velhos espíritos não queriam desistir e deixá-lo em paz. Bem, ele ia pegar o desvio e voltar assim que encontrasse o lugar adequado.

“Não o oleiro, mas o barro do oleiro, Johnny.”

— Ora, vamos — murmurou ele. Tinha de tirar essas besteiras da cabeça, era só isso. A mãe fora uma louca religiosa, não era uma maneira muito delicada de dizer a coisa, mas era verdade. O céu na constelação de Órion, os anjos dirigindo discos voadores, os remos subterrâneos. A seu modo, ela fora pelo menos tão louca quanto Greg Stillson era ao dele.

“Ah, pelo amor de Deus, não comece com esse sujeito.”

“E quando mandarem Greg Stillson para a Câmara dos Depu­tados, vão dizer: BACANA! AFINAL ALGUÉM ESTÁ LIGANDO!”

Chegou à Rodovia 63 de New Hampshire. Se virasse à esquer­da iria para Concord, Berlin, Ridder’s Mil, Trimbull. Johnny fez a curva sem nem pensar nisso. Estava pensando em outra coisa.

Roger Chatsworth, que não era nenhum simplório, tinha rido de Greg Stillson, como se ele fosse a resposta daquele ano para os cômicos da TV, George Carlin e Chevy Chase. “Ë um palhaço, Johnny.”

E, se Stillson fosse só isso, então não havia problema, não é? Um excêntrico encantador, um pedaço de papel em branco em que os eleitores poderiam escrever sua mensagem: “Vocês, outros caras, estão tão gastos que resolvemos eleger esse bobo por dois anos”. Provavelmente Stillson não passava disso, afinal. Um biruta inofen­sivo, não havia necessidade alguma de associá-lo com a loucura destruidora e organizada de Frank Dodd. E no entanto.., por al­gum motivo.., era o que ele fazia.

A estrada se bifurcava à sua frente. À esquerda para Berlin e Ridder’s Mill, à direita para Trimbull e Concord. Johnny dobrou à direita.

“Mas não faria mal apenas apertar a mão dele, não é?”

Talvez não. Mais um político para a coleção. Algumas pessoas colecionavam selos, outras, moedas, mas Johnny Smith colecionava apertos de mão e...

“... e confesse. Você estava procurando um curinga no bara­lho, desde o princípio.”

A idéia abalou-o de tal modo que ele quase parou no acosta­mento. Vislumbrou seu rosto no espelho retrovisor, e não era o mesmo rosto satisfeito, está-tudo-bem com que se levantara. Agora era o rosto da entrevista coletiva à imprensa, e o rosto do homem que engatinhara pela neve da praça pública de Castle Rock. A pele branca demais, os olhos com olheiras machucadas, as rugas fundas demais.

“Não. Não é verdade.”

Mas era. Agora que fora expresso, não podia ser negado. Nos primeiros vinte e três anos de sua vida, tinha apertado a mão de apenas um político: foi na ocasião em que Ed Muskie tinha ido fazer uma palestra na aula de administração que ele tivera no gi­násio, em 1966. Nos últimos sete meses, ele apertara a mão de mais de uma dúzia de figurões. E não tivera a idéia, quando cada um estendera a mão: “Como é esse camarada? O que vai me dizer?”

Não estaria procurando, o tempo todo, o equivalente político de Frank Dodd?

Sim. Era verdade.

Mas o fato era que nenhum, a não ser Carter, lhe dissera gran­de coisa, e as sensações que ele tivera com Carter não eram nada alarmantes. Quando apertara a mão de Carter, não sentira a sensa­ção de desânimo que tivera só de ver Greg Stillson na Tv. Sentia que Greg Stillson podia estar levando o jogo do tigre-que-ri um passo à frente: por dentro da pele de fera, um homem, sim.

Mas, por dentro da pele do homem, uma fera.

 

Fosse qual fosse a sucessão dos fatos, Johnny encontrou-se comendo o seu almoço de piquenique no parque da cidade de Trimbull, em vez de nas arquibancadas de Fenway. Chegara pouco depois do meio-dia e tinha visto um aviso no quadro do comitê dizendo que o comício seria às três da tarde.

Foi até o parque, achando que estaria bem vazio, faltando tanto tempo para começar o comício, mas já havia outras pessoas estendendo mantas, preparando-se para jogar discos ou instalando-se para almoçar.

Na frente, uma porção de homens estava trabalhando no co­reto. Dois estavam enfeitando as grades, da altura da cintura, com faixas. Outro estava numa escada, pendurando faixas coloridas no beiral circular do coreto. Outros estavam instalando o sistema de som, e, conforme Johnny adivinhara ao ouvir a cena na CBS, não era um pódio com um equipamento de alto-falante barato. Os alto-falantes eram Altec-Lansings, e estavam sendo colocados cuidado­samente para dar um som envolvente.

Os assessores (mas a imagem que persistia era de motoqueiros preparando-se para um concerto do Eagles ou de Geils) faziam o seu trabalho com uma precisão profissional. Tudo parecia feito por pes­soas competentes e experimentadas, o que se chocava com a imagem de Stillson de louco simpático.

A idade das pessoas ali variava dos treze aos trinta e pou­cos anos. Todos estavam se divertindo. Os bebês davam seus primeiros passos por ali, agarrando doces e chocolates que se der­retiam. As mulheres batiam papo e riam. Os homens bebiam cerveja em copos de isopor. Alguns cachorros saltavam por ali, agarrando o que havia para agarrar, e o sol brilhava benigno sobre todos.

— Testando — disse um dos homens no coreto, laconicamente, nos dois microfones. — Teste um, teste dois... — Um dos alto-falantes no parque produziu um ganido alto, e o cara do pódio fez sinal para que o afastassem.

“Não é assim que a gente se prepara para um comício e um discurso político”, pensou Johnny. “Estão se preparando para uma festa de amor.., ou uma bolinagem coletiva.”

— Teste um, teste dois... teste, teste, teste.

Estavam amarrando os alto-falantes às árvores, Johnny viu. Não pregando, mas amarrando. Stillson era defensor da ecologia, e alguém dissera aos seus assessores para não danificar nem uma só árvore do parque. A operação dava a impressão de estar afiada até o último detalhe. Não era um negócio de pegar e largar.

Dois ônibus escolares amarelos chegaram ao pátio de manobras, à esquerda do estacionamento pequeno (e já repleto). As portas se abriram, e homens e mulheres saltaram, conversando animadamente. Contrastavam fortemente com os que já estavam no parque, porque estavam vestidos com suas melhores roupas: os homens, de terno ou paletó esporte; as mulheres, de conjuntos de saia e blusa ou vestidos caprichados. Ficaram olhando em volta com expressões de assombro e expectativa quase infantis, e Johnny sorriu. Era a turma de cidadania de Ngo que chegara.

Foi até junto deles. Ngo estava com um homem alto, de terno de veludo cotelê, e duas mulheres, ambas chinesas.

— Olá, Ngo — disse Johnny.

Ngo deu um vasto sorriso.

— Johnny! — disse ele. — Que bom ver você, rapaz! É um grande dia para o Estado de New Hampshire, não?

— Imagino que sim — disse Johnny.

Ngo apresentou os colegas. O homem de terno de veludo era polonês. As duas mulheres eram irmãs, de Formosa. Uma delas disse a Johnny que tinha muita esperança de apertar a mão do candidato depois do programa, e então, encabulada, mostrou a Johnny o livro de autógrafos que tinha na bolsa.

—    Estou tão contente por estar aqui nos Estados Unidos! — disse ela. — Mas é estranho, não é, Sr. Smith?

Johnny, que achava que tudo aquilo era estranho, concordou.

Os dois instrutores da turma de cidadania estavam convocando o grupo.

— Até mais tarde, Johnny — disse Ngo. — Tenho de ir via­jando.

— Andando — disse Johnny.

— Sim, obrigado.

— Divirta-se, Ngo.

— Ah, sim, por certo. — Os olhos de Ngo pareciam brilhar, achando uma graça secreta. — Tenho certeza de que será muito divertido, Johnny.

 

O grupo, cerca de quarenta ao todo, foi para o lado sul do parque, para fazer o almoço de piquenique. Johnny voltou para o seu lugar e forçou-se a comer um de seus sanduíches. O gosto era de uma combinação de papel e cola de livro.

 

Uma tensão forte tomava conta de seu corpo.

 

Às duas e meia, o parque estava completamente lotado; as pessoas estavam apinhadas quase ombro a ombro. A polícia muni­cipal, reforçada por um pequeno contingente da polícia estadual, tinha isolado as ruas que levavam ao parque municipal de Trimbull. A semelhança com um concerto de rock era mais forte do que nunca. Música bluegrass* jorrava dos alto-falantes, alegre e animada. Nuvens brancas e gordas esvoaçavam pelo céu azul e inocente.

De repente as pessoas começaram a se levantar e a esticar os pescoços. Foi uma onda que percorreu o povo. Johnny também se levantou, pensando se Stillson chegaria antes da hora. Então ouviu o ronco dos motores das motocicletas, aumentando e enchendo a tarde de verão, ao se aproximarem. Johnny viu os raios de sol re­fletidos nos cromados, e poucos minutos depois cerca de dez motos entraram no pátio onde estavam estacionados os ônibus do pessoal da cidadania. Não havia nenhum carro com elas. Johnny supôs que se tratasse de uma guarda avançada.

Sua sensação de inquietação acentuou-se. Os motoqueiros es­tavam bastante apresentáveis, a maior parte vestida com jeans lim­pos e desbotados e camisas brancas, mas as motos em si, a maioria Harleys e BSA, estavam quase irreconhecíveis, de tão aparelhadas: guidons altos e curvos, canos de escapamento cromados e inclinados, carenagens estranhas em abundância.

Os seus proprietários desligaram os motores, saltaram e foram para o coreto, em fila única. Só um deles olhou para trás. Seus olhos percorreram a multidão, sem pressa; mesmo de alguma distância, Johnny viu que as íris do homem eram de um verde-garrafa brilhante. Ele parecia estar contando os presentes. Olhou para a es­querda, para quatro ou cinco guardas da cidade, encostados contra a rede do gol do campo de futebol do time local, e acenou. Um dos guardas debruçou-se e cuspiu. Aquele ato encerrou em si um caráter de ritual, e a inquietação de Johnny acentuou-se mais ainda. O homem de olhos verdes foi andando para o coreto.

 

* Música country. (N. do T.)

 

Acima da inquietação, que agora formava como que um piso emocional para seus outros sentimentos, Johnny sentiu predominar um misto louco de pavor e hilaridade. Tinha uma sensação de so­nho, como se tivesse penetrado em um desses quadros em que as locomotivas saem de lareiras de tijolos ou em que os mostra­dores de relógios estão deitados, frouxos, sobre galhos de árvores. Os motociclistas pareciam extras num filme americano internacio­nal sobre motos, todos resolvidos a ser limpos. Os jeans limpos e desbotados estavam esticados sobre botas de mecânico de ponta qua­drada, e em mais de um par Johnny viu correntes cromadas pren­dendo o peito do pé. O cromado reluzia muito ao sol. As expres­sões deles eram quase todas iguais: uma espécie de bom humor va­zio, que parecia ser dirigido ao povo. Mas sob aquilo poderia haver um simples desprezo pelos jovens operários de fábricas, pelos estu­dantes de verão que tinham ido da Universidade de New Hamp­shire, em Durham, e pelos operários de fiação que estavam ali para lhes dar uma ovação. Cada um estava usando dois distintivos poli­tícos. Um mostrava um capacete amarelo de trabalhador de constru­ção, com um adesivo verde de ecologia na frente. O outro tinha a legenda: STILLSON DEU-LHES UMA CHAVE DE BRAÇO.

 

E, aparecendo de cada bolso traseiro direito, via-se um taco de bilhar serrado.

Johnny virou-se para o vizinho, que estava com a mulher e o filho pequeno.

— Essas coisas são permitidas? — perguntou.

— Quem vai lá se importar? — respondeu o rapaz, rindo. —São só para demonstração, em todo caso. — Ele continuava a aplau­dir — Vá pegá-los, Greg! — berrou ele.

A guarda de honra de motoqueiros espalhou-se em volta do coreto, num círculo, e ficou em atitude de “descansar”.

Os aplausos foram parando, mas as conversas continuaram num tom mais forte. A boca coletiva da multidão recebera o aperi­tivo e o apreciara.

“Nazistas”, pensou Johnny, sentando-se “Camisas-pardas, é o que são.”

Bom, e daí? Talvez isso fosse até bom. Os norte-americanos tinham pouca tolerância para com a atitude fascista: nem mesmo direitistas empedernidos como Reagan gostavam desse negócio; isso era a verdade nua e crua, por mais ataques que a Nova Es­querda quisesse ter ou por mais canções que Joan Baez cantasse. Oito anos antes, as táticas fascistas da policia de Chicago tinham contribuído para Hubert Humphrey perder a eleição. Johnny não se importava que esses sujeitos fossem limpos; se estavam a soldo de um candidato à Câmara dos Deputados, então Stillson não podia estar a mais de alguns passos de se exceder. “Se não fosse tão fantástico, seria engraçado mesmo”.

Assim mesmo, sentiu vontade de não ter ido.

 

Pouco antes das três horas, o ar encheu-se do rufar de um grande tambor, sentido pelos pés antes de ser propriamente perce­bido pelos ouvidos. Outros instrumentos começaram a rodeá-lo, aos poucos, fundindo-se todos em uma banda marchando e tocando uma marcha de Sousa. Vivacidade de eleição em cidade pequena, num dia de verão.

O povo pôs-se de pé de novo, espichando-se em direção da música. Logo apareceu a banda: primeiro a baliza de saias curtas, fazendo seus passos de botas de couro branco com pompons, depois mais duas balizas, depois dois garotos espinhentos, de cara séria, carregando um estandarte que declarava que aquela era a BANDA DE MUSICA DO GINÁSIO DE TRIMBULL, e, por Deus, era bom não esque­cer aquilo. Depois a banda em si, reluzente e suada, de farda branca ofuscante e botões dourados.

As pessoas abriram caminho para eles e depois romperam em aplausos, quando começaram a marcar passo. Atrás deles vinha uma camioneta Ford branca, e de pé, de pernas abertas, na capota, com o rosto bronzeado e aberto num sorriso gigantesco, sob seu capacete de construção civil inclinado para trás, o candidato em pessoa. Ele levantou um megafone a pilha e berrou nele, com um entusiasmo de pulmões possantes:

—    OLÁ, PESSOAL!

— Olá, Greg! — respondeu logo o povo.

“Greg”, pensou Johnny, meio histérico. “Tratam o cara pelo nome de batismo.”

Stillson saltou da capota da camioneta, conseguindo fazer pa­recer que era coisa fácil. Estava vestido como Johnny o vira no noticiário, de jeans e camisa cáqui. Começou a predispor o povo a caminho do coreto, apertando mãos, tocando em outras, estendidas sobre as cabeças dos que estavam nas primeiras filas. A multidão oscilava e se empurrava, delirante, para ele, e Johnny sentiu um impulso semelhante em suas entranhas.

“Não vou tocar nele. De jeito nenhum.”

Mas à sua frente, de repente, o povo se abriu um pouco, ele entrou no vazio e subitamente se viu na primeira fila. Estava bem perto do garoto que tocava tuba na Banda de Música do Ginásio de Trimbull, poderia ter estendido a mão e batido com os nós dos dedos na boca do megafone, se quisesse.

Stillson passou rapidamente pelas fileiras da banda, para aper­tar as mãos do pessoal do outro lado, e Johnny o perdeu totalmente de vista, vendo apenas o capacete amarelo, saltitante. Sentiu alívio. Tudo bem, então. Não houvera prejuízo. Como o fariseu da fa­mosa história, ele ia passar pelo outro lado. Bom. Ótimo. E, quando ele chegasse ao pódio, Johnny ia pegar suas coisas e desaparecer na tarde. Bastava.

Os motoqueiros tinham se colocado de ambos os lados do ca­minho, no meio das pessoas, para impedir que elas caíssem sobre ele, afogando-o em gente. Todos os pedaços de taco de bilhar continuavam nos bolsos de trás, mas seus donos estavam tensos e alerta a qualquer problema. Johnny não sabia exatamente que tipo de problema eles esperavam — um doce ou uma bala atirada na cara do candidato, talvez —, mas pela primeira vez os motoqueiros pare­ciam estar realmente interessados.

Então alguma coisa aconteceu, de fato, e Johnny não foi capaz de dizer exatamente o quê. Uma mão feminina estendeu-se para o capacete amarelo, talvez só para tocá-lo, para dar sorte, e um dos capangas de Stillson aproximou-se depressa. Ouviu-se um grito de decepção, e a mão desapareceu depressa. Mas foi tudo do outro lado da banda de música.

A algazarra do povo era imensa, e ele pensou de novo nos con­certos de rock a que tinha assistido. Era assim que seria se Paul McCartney ou Elvis Presley resolvessem apertar a mão do povo.

Estavam berrando o nome dele, entoando-o:

—GREG... GREG... GREG...

O rapaz que tinha instalado a família ao lado de Johnny estava carregando o filho acima da cabeça, para ele poder enxergar. Um rapaz, com uma cicatriz grande e feia numa das faces, estava agitando um cartaz com os dizeres: VIVER LIVRE OU MORRER, É GREG PRA VALER! Uma garota lindíssima, de seus dezoito anos, estava agi­tando uma fatia de melancia, e o suco rosado escorria pelo seu braço bronzeado. Tudo era uma confusão em massa. O entusiasmo percor­ria a multidão como uma série de fios elétricos de alta voltagem.

E de repente lá estava Greg Stillson, voltando pelo meio da banda, para o lado onde estava Johnny. Não parou, mas teve tempo de dar um tapinha amigo nas costas do tocador de tuba.

Mais tarde Johnny matutou sobre o assunto e tentou dizer a si mesmo que nem mesmo tinha havido oportunidade ou tempo para ele recuar no meio do povo; tentou dizer que o povo praticamente o tinha colocado entre os braços de Stillson. Tentou dizer a si mes­mo que Stillson só faltara arrebatar sua mão. Nada disso era ver­dade. Haveria tempo, pois uma mulher gorda, com uma roupa ama­rela, absurda, de calças arregaçadas, passou os braços pelo pescoço de Stillson e deu-lhe um beijo estalado, que Stillson retribuiu, rindo e dizendo: “Pode apostar que me lembrarei de você, benzinho”. A gorda gritou de rir.

Johnny sentiu o frio compacto e conhecido invadi-lo, a sensa­ção de transe. A sensação de que nada importava, apenas saber. Chegou a sorrir um pouco, mas não era o seu sorriso. Estendeu a mão, e Stillson agarrou-a com as duas e começou a sacudi-la para cima e para baixo.

— Ei, rapaz, espero que nos apóie...

Aí Stillson parou. Assim como Eileen Magown parara. Assim como o Dr. James Brown (como o cantor) parara. Como Roger Dussault parara. Arregalou os olhos, e depois eles se encheram de... medo? Não. Era pavor nos olhos de Stillson.

O momento pareceu eterno, O tempo objetivo foi substituído por outra coisa, um perfeito camafeu de tempo, enquanto eles se fitavam, olhos nos olhos. Para Johnny, foi como estar de novo naquele corredor cromado e opaco, só que dessa vez Stillson estava com ele, e eles estavam partilhando ... partilhando

(tudo)

Para Johnny, nunca fora tão forte, nunca. Tudo lhe ocorreu. de uma vez, junto e berrando como um terrível trem de carga ne­gro disparando por um túnel estreito, uma locomotiva rápida com um único farol brilhante na frente, e o farol sabia tudo, e sua luz empalou Johnny Smith como um inseto num alfinete. Não havia para onde fugir, e o conhecimento perfeito o derrubou, achatando-o como a uma folha de papel, enquanto aquele trem noturno disparava sobre ele.

Ele teve vontade de gritar, não quis gritar, não tinha voz.

A única imagem de que ele não conseguia escapar

(quando o filtro azul começou a aparecer)

era Greg Stillson prestando-o juramento do cargo. Estava sen­do prestado diante de um velho com os olhos humildes e assustados de um rato do campo encurralado por um gato de quintal

(tigre)

terrivelmente eficiente e marcado de brigas. Uma das mãos de Stillson pousada sobre uma Bíblia, outra erguida. Era dali a mui­tos anos, pois Stillson tinha perdido grande parte dos cabelos. O velho estava falando, Stillson acompanhando. Stillson dizia que

(o filtro azul está mais forte, cobrindo as coisas, apagando-as aos poucos, misericordioso filtro azul, o rosto de Stilson está atrás do azul.., e do amarelo.., do amarelo como listras de tigre)

o faria “com a ajuda de Deus”. Estava com uma cara solene, até séria, mas uma alegria imensa e quente lhe invadia o peito e rugia em seu cérebro. Pois o homem de olhos assustados de rato do campo era o presidente do Supremo Tribunal de Justiça dos Estados Unidos e

(ah Deus do céu o filtro o filtro o filtro azul as listras ama­relas)

então tudo começou a desaparecer devagar por trás daquele filtro azul... só que não era um filtro; era uma coisa de verdade. Era

(no futuro, na zona morta)

alguma coisa no futuro. Dele? De Stillson? Johnny não sabia.

Havia uma sensação como de voar — voar pelo azul — sobre cenas de desolação total, que não podiam ser propriamente vistas. E, cortando no meio disso, a voz desencarnada de Greg Stillson, a voz de um Deus a preços reduzidos ou uma locomotiva de ópera cômica dos mortos: “VOU PASSAR POR ELES COMO O TRIGO PASSA PELO GANSO! COMO A MERDA NUM BAMBUZAL!”

— O tigre — murmurou Johnny, com voz grossa. — O tigre por trás do azul. Do amarelo.

Então tudo, imagens, quadros, palavras, se desfez no estrondo aumentado e suave do esquecimento. Ele pareceu sentir um cheiro adocicado, acobreado, como fios de alta-tensão queimando. Por um momento aquele olho interior pareceu abrir-se mais ainda, pro­curando; o azul e o amarelo que tinham obscurecido tudo pareciam prestes a solidificar-se em... em algo, e de algum lugar interior, distante e cheio de terror, ele ouviu uma mulher gritar:

— Passe-o para cá, seu filho da mãe!

Por quanto tempo ficamos ali juntos, assim?, ele se perguntaria mais tarde. Supunha que talvez fossem cinco segundos. Depois Still­son estava puxando a mão, arrancando-a, olhando para Johnny de boca aberta, a cor fugindo de sob o bronzeado do candidato nas campanhas de verão. Johnny via as obturações dos dentes de trás do sujeito.

A expressão dele era de pavor revoltado.

“Bom”, Johnny teve vontade de gritar. “Bom! Arrebente-se! Você todo! Destrua-se! Estoure! Desintegre-se! Preste um favor ao mundo!”

Então dois dos motoqueiros estavam correndo para a frente, agora sacando os tacos cortados, e Johnny sentiu um tipo de pavor burro porque iam espancá-lo, golpeá-lo na cabeça com os tacos, iam fazer de conta que a cabeça de Johnny era a bola oito e iam jogá-la bem na caçapa do lado, de volta às trevas da coma, e dessa vez ele nunca mais sairia dela, nunca poderia dizer a alguém o que tinha visto, nem mudar coisa alguma.

Aquela sensação de destruição... Deus! Tinha sido tudo!

Tentou recuar. As pessoas se espalharam, empurrando-se para trás, gritando de medo (ou talvez de empolgação). Stillson estava se virando para seus capangas, já se controlando, sacudindo a ca­beça, controlando-os.

Johnny não viu o que aconteceu em seguida. Cambaleou, a cabeça para baixo, piscando devagar como um bêbado no fim amar­go de uma bebedeira de uma semana. Depois o estrondo suave e cada vez maior do esquecimento o dominou, e Johnny se deixou ir, com prazer. Perdeu os sentidos.

 

— Não — disse o chefe de polícia, respondendo à pergunta de Johnny —, o senhor não está sendo acusado de coisa alguma. Não está preso. E não é obrigado a responder a qualquer pergunta. Apenas ficaríamos muito gratos se respondesse.

— Muito gratos — repetiu o homem de terno tradicional.

Chamava-se Edgar Lancte e trabalhava no escritório de Boston do FBI. Achava que Johnny parecia estar passando muito mal. Havia um machucado inchado sobre sua sobrancelha esquerda que estava ficando roxo depressa. Ao desmaiar, Johnny tinha caído com força sobre o sapato de um membro da banda de música ou na ponta quadrada de uma bota de motoqueiro. Mentalmente, Lancte preferia esta hipótese. E, possivelmente, essa bota estaria em movimento, na hora do contato.

Smith estava pálido demais, e suas mãos tremiam muito, ao beber a água no copinho que o chefe Bass lhe deu. Uma de suas pálpebras estava com um tique nervoso. Ele parecia o clássico pre­tenso assassino, embora o artigo mais mortífero em seus pertences pessoais tivesse sido um alicate de unhas. Não obstante, Lancte conservaria em mente essa impressão, porque ele era como era.

— O que lhes posso dizer? — perguntou Johnny.

Ele voltara a si num catre em uma cela destrancada. Estava com uma dor de cabeça lancinante. Agora estava melhorando, sen­tia-se estranhamente vazio por dentro. Um pouco como se suas entranhas tivessem sido extraídas e substituídas por um creme. Em seus ouvidos havia um ruído alto e constante.., não exatamente um tinido, mas um zumbido agudo e constante. Eram nove horas da noite. A comitiva de Stillson havia muito tinha saído da cidade. Todos os cachorros-quentes tinham sido devorados.

—    Pode contar-nos exatamente o que aconteceu lá? — disse Bass.

—    Estava fazendo calor. Acho que me excitei demais e des­maiei.

—    Ë inválido, ou coisa assim? — perguntou Lancte, com naturalidade.

Johnny olhou para ele com firmeza.

— Não queira brincar comigo, Sr. Lancte. Se sabe quem eu sou, pode dizer.

— Sei — disse Lancte. — Talvez seja médium mesmo.

— Não há nada de mediúnico em se adivinhar que um agente do FBI pode estar querendo fazer uma brincadeira — disse Johnny.

— Você é do Maine, Johnny. Nascido e criado lá. O que é que um rapaz do Maine está fazendo em New Hampshire?

— Ensinando.

— O filho de Chatsworth?

—    Pela segunda vez: se já sabe, por que pergunta? A não ser que esteja suspeitando que eu tenha feito alguma coisa.

Lancte acendeu um cigarro mentolado.

—    Família rica.

— São, sim.

— Você é admirador de Stillson, Johnny? — perguntou Bass.

Johnny não gostava de pessoas que o tratassem pelo nome as­sim que o conhecessem, e esses dois sujeitos estavam fazendo isso, Aquilo o deixou nervoso.

— O senhor é? — perguntou Johnny.

Bass fez um ruído obsceno.

— Há uns cinco anos tivemos um concerto de rock em Trimbull que durou o dia todo. Lá nas terras de Hake Jamieson. A Câmara Municipal tinha suas dúvidas, mas concordou assim mes­mo, porque a mocidade tem de se divertir um pouco. Pensamos que talvez tivéssemos uns duzentos garotos no pasto leste de Hake, escutando música. Em vez disso, eram mil e seiscentos, todos fumando maconha e tomando bebidas alcoólicas fortes direto da gar­rafa. Armaram uma confusão dos diabos, e a Câmara ficou furiosa e disse que nunca haveria outro daqueles, e os garotos se viraram, todos magoados, e perguntaram: “O que é que há? Ninguém se machucou, não foi?” Achavam que podiam fazer uma bagunça in­fernal porque ninguém se machucou. Sinto a mesma coisa no caso desse Stillson. Lembro-me de que uma vez...

— Você não tem nenhuma queixa contra Stillson, tem, John­ny? — perguntou Lancte. — Há algo de pessoal entre vocês dois? — Deu um sorriso paternal, do tipo pode-desabafar-se-quiser.

— Eu nem sabia quem ele era, até há umas seis semanas.

— Sim, mas isso não responde propriamente à minha pergun­ta, não é?

Johnny ficou calado um pouco.

— Ele me perturba — disse, por fim.

— Isso também não responde bem à minha pergunta.

—    Sim, acho que responde, sim.

—    Você não está ajudando tanto quanto desejaríamos — disse Lancte, com pesar.

Johnny olhou para Bass.

—    Será que todo mundo que desmaia nesta cidade em uma reunião pública merece esse tratamento do FBI, chefe Bass?

Bass pareceu ficar constrangido.

— Bem.., não. Claro que não.

— Você estava apertando a mão de Stillson quando desmaiou — disse Lancte. — Estava com um aspecto doente. O próprio Stillson estava com um ar apavorado. Você é um rapaz de muita sorte, Johnny. Sorte os amiguinhos dele não terem feito de sua ca­beça uma urna de eleição. Eles estavam pensando que você tinha puxado uma arma contra ele.

Johnny estava olhando para Lancte, e começou a assustar-se. Olhou para Bass e depois de novo para o agente do FBI.

—    Você estava lá — disse ele. — Bass não o chamou pelo telefone. Estava lá. No comício.

Lancte apagou o cigarro.

—    Estava, sim.

—    Por que o FBI está interessado em Stillson? — Johnny qua­se latiu a pergunta.

—    Vamos falar de você, Johnny. Qual é o seu...

—    Não, vamos falar de Stillson. Vamos falar dos amiguinhos dele, como você os chama. Ë legal eles portarem tacos de bilhar cortados?

— É — disse Bass. Lancte lançou-lhe um olhar de advertência, mas Bass não o viu ou o ignorou. — Tacos de bilhar, bastões de beisebol, tacos de golfe. Não há lei nenhuma contra qualquer dessas coisas.

—    Ouvi alguém dizer que aqueles caras eram cavaleiros de ferro. Membros de bandos de motos.

—    Alguns pertenciam a um clube de Nova Jersey; outros, a um clube de Nova York, isso...

—    Chefe Bass — interrompeu Lancte —, não creio que seja o momento oportuno para...

—    Não vejo nenhum mal em dizer a ele — disse Bass. — São vagabundos, não prestam. Alguns se juntaram num bando nos Hamptons, há uns quatro ou cinco anos, e houve conflitos sérios. Outros estavam ligados a um clube de motos chamado Os Doze do Diabo, que foi desmantelado em 1972. O braço direito de Stillson é um camarada chamado Sonny Elliman, que era presidente dos Doze do Diabo. Já foi preso meia dúzia de vezes, mas nunca condenado.

—    É aí que você se engana, chefe — disse Lancte, acendendo outro cigarro. — Foi citado no Estado de Washington em 1973, por fazer uma curva à esquerda, proibida, no tráfego. Assinou a papeleta de desistência de reclamação e pagou uma multa de vinte e cinco dólares.

Johnny levantou-se e foi devagar até um bebedouro, onde se serviu de outro copinho d’água. Lancte observou-o, interessado.

—    Então você desmaiou, só isso, certo? — disse Lancte.

—    Não — disse Johnny, sem se virar. — Eu ia matá-lo com uma bazuca. Então, na hora H, todos os meus circuitos biônicos entraram em curto.

Lancte suspirou.

Bass disse:

—    Você pode ir embora, à hora que quiser.

— Obrigado.

—    Mas vou lhe dizer, do mesmo modo que o Sr. Lancte aqui lhe diria: no futuro, eu me afastaria dos comícios de Stillson, se fosse você. Se é que quer conservar sua pele intacta, quero dizer. Há coisas que costumam acontecer com gente de quem Greg Stillson não gosta...

—    É mesmo? — perguntou Johnny. Bebeu a água.

—    Isso é um assunto fora de sua alçada, chefe Bass — disse Lancte. Seus olhos pareciam aço esfumaçado, e ele estava olhando muito sério para Bass.

—    Está bem — disse Bass, conciliador.

—    Não vejo mal em lhe dizer que já houve outros incidentes nos comícios — disse Lancte. — Em Ridgeway, uma moça grávida levou tanta pancada que abortou. Isso foi logo depois do comício de Stillson lá, filmado pela CBS. Ela disse que não saberia identifi­car o assaltante, mas nós achamos que pode ter sido um dos moto­queiros de Stillson. Há um mês, um garoto de catorze anos sofreu uma fratura no crânio. Estava com um revólver de água de plástico. Tampouco ele pôde identificar seu assaltante. Mas o revólver de água nos leva a crer que pode ter sido uma reação exagerada da segurança.

“Tão bem expresso!”, pensou Johnny.

—    Não conseguiram encontrar ninguém que tenha visto o que aconteceu?

—    Ninguém que quisesse falar. — Lancte deu um sorriso amarelo e bateu a cinza do cigarro. — Ele é a escolha do povo.

Johnny pensou no rapaz levantando o filho para o menino poder ver Greg Stillson. “Quem lá se importa? São só para demons­tração, afinal de contas.”

— Então, ele tem seu próprio agente do FBl de estimação.

Lancte deu de ombros e sorriu, querendo desarmá-lo.

— Bem, o que posso dizer? Só que não é mole, Johnny. Às vezes fico com medo. Aquele cara provoca um bocado de magoe­tismo. Se ele apontasse para mim lá do pódio e dissesse ao povo de um desses comícios quem eu sou, acho que me linchariam no pri­meiro poste.

Johnny pensou na multidão daquela tarde, e na moça bonita agitando histericamente a sua fatia de melancia.

— Acho que você tem razão — disse ele.

— Portanto, se houver alguma coisa que você saiba que possa me ajudar... — Lancte debruçou-se. Seu sorriso cativante se tornara levemente predador. — Talvez você tenha tido uma intuição psíquica sobre ele. Talvez isso é que o tenha transtornado.

— Pode ser que sim — disse Johnny, sem sorrir.

— Então?

Por um momento louco, Johnny pensou em contar tudo a eles. Depois desistiu.

— Eu o vi na TV. Não tinha nada de especial para fazer hoje, de modo que resolvi vir até aqui para vê-lo em pessoa. Aposto que não fui o único de fora que fez isso.

— Não foi mesmo — disse Bass, com veemência.

— E foi só isso? — perguntou Lancte.

— Só isso — disse Johnny, e depois vacilou. — Só que.., acho que ele vai vencer a eleição.

— Temos certeza disso — disse Lancte. — A não ser que consigamos provar alguma coisa contra ele. Enquanto isso, con­cordo plenamente com o chefe Bass. Afaste-se dos comícios de Stillson.

— Não se preocupem. — Johnny amassou o copinho de papel e jogou-o fora. — Foi agradável conversar com os cavalheiros, mas a viagem até Durham é longa.

— Pretende voltar para o Maine em breve, Johnny? — per­guntou Lancte, displicentemente.

— Não sei. — Ele olhou de Lancte, esguio e impecável, ba­tendo outro cigarro no mostrador de seu relógio digital, para Bass, um homem grande e cansado, com cara de basset. — Algum de vocês acha que ele poderá candidatar-se a um cargo mais elevado? Se conseguir essa vaga na Câmara dos Deputados?

— Deus nos livre — murmurou Bass, revirando os olhos.

— Esses camaradas aparecem e desaparecem — disse Lancte. Seus olhos, de um castanho tão escuro que eram quase negros, nunca paravam de observar Johnny. — São como um desses elementos radioativos raros, tão instáveis que não duram muito. Su­jeitos como Greg Stillson não têm uma base política permanente, apenas uma coligação temporária, que se mantém unida por certo tempo e depois se desmantela. Viu aquela multidão hoje? Universi­tários e operários de fábrica gritando pelo mesmo homem? Isso não é política, é algo como saia de havaiana, gorro de pele de guaxi­nim ou peruca dos Beatles. Ele vai conseguir o seu mandato na Câmara e vai almoçar de graça até 1978, e acabou-se. Pode ter certeza.

Mas Johnny ficou pensando.

 

No dia seguinte, o lado esquerdo da testa de Johnny estava muito colorido. Roxo-escuro — quase preto —, acima da sobran­celha, passando ao vermelho e depois a um amarelo morbidamente alegre na têmpora e no contorno do couro cabeludo. A pálpebra esta­va levemente inchada, dando-lhe uma expressão meio lúbrica, como a de um cômico num teatro de revista.

Ele cruzou a piscina vinte vezes e depois esticou-se em uma das espreguiçadeiras, ofegante. Estava se sentindo muito mal. Tinha dormido menos de quatro horas à noite, e o sono fora cheio de pesadelos.

— Olá, Johnny... como vai indo, rapaz?

Ele virou-se. Era Ngo, sorrindo. Estava vestido com roupas de jardineiro e luvas. Atrás dele havia um carrinho vermelho de criança, cheio de pinheirinhos, as raízes embrulhadas em ania­gem. Lembrando-se do nome que Ngo dava aos pinheiros, ele disse:

— Estou vendo que você está plantando mais mato.

Ngo torceu o nariz.

— Desculpe, sim? O Sr. Chatsworth está gostando deles. Digo a ele, mas são árvores lixo. Em toda parte tem essas árvores na Nova Inglaterra. A cara dele fica assim... — Então o rosto todo de Ngo enrugou-se, e ele parecia uma caricatura de um monstro de um programa de TV, de fim de noite. — E ele me diz: “Mas plante”.

Johnny riu. Era típico de Roger Chatsworth, aquilo. Gostava das coisas feitas a seu modo.

— Gostou do comício?

Ngo sorriu de leve.

— Muito instrutivo — disse ele. Não havia como ler seus olhos. Ele parecia nem ter notado o sol nascente no lado da cara de Johnny. — Sim, muito instrutivo, estamos todos nos divertindo.

—Bom.

     — E você?

     — Nem tanto — disse Johnny, tocando no machucado, de leve, com as pontas dos dedos. Estava muito dolorido.

     — Ë, que pena, devia pôr um bife aí — disse Ngo, ainda sor­rindo de leve.

     — O que você achou dele, Ngo? O que é que a sua turma achou? O seu amigo polonês? Ruth Chen e a irmã?

     — Na volta não conversamos sobre isso, a pedido de nosso instrutor. Pensem sobre o que viram, dizem eles. Próxima quinta-feira vamos escrever em classe, penso. Sim, estou pensando muito que vamos. Uma redação em classe.

     — O que você vai dizer em sua redação?

     Ngo olhou para o céu azul de verão. Ele e o céu sorriram um para o outro. Era um homem pequeno, e os primeiros fios brancos estavam aparecendo em seus cabelos. Johnny não sabia quase nada sobre ele; não sabia se tinha sido casado, se tivera filhos, ou fugira diante dos vietcongues, se era de Saigon ou de uma das províncias rurais. Não tinha idéia das inclinações políticas de Ngo.

       — Falamos do jogo do tigre-que-ri — disse Ngo. — Lembra-se?

Sim — disse Johnny.

     —Vou lhe falar de um tigre de verdade. Quando eu era menino, havia um tigre que ficou bravo perto de minha aldeia.Estava sendo le mangeur d'homme, comedor de homens, sabe, só que ele não era isso, era um comedor de meninos, meninas e velhas, porque isso foi durante a guerra e não havia homens para comer. Não a guerra que você conhece, mas a Segunda Guerra Mundial. Ele tinha pegado o gosto de carne humana, esse tigre. Quem havia para matar uma criatura tão terrível, numa pequena aldeia onde o homem mais moço estava fazendo sessenta e só tinha um braço, e o menino mais velho era eu, só com sete anos? E um dia esse tigre foi encontrado num poço onde se tinha posto a isca, o corpo de uma mulher morta. É uma coisa terrível pôr uma isca numa armadilha com um ser humano feito à imagem de Deus, eu vou dizer em minha redação, mas é mais terrível não fazer nada enquanto um tigre mau carrega as criancinhas. E vou dizer em minha redação que esse tigre mau ainda estava vivo quando nós o encontramos. Estava com uma estaca cravada no coração, mas ainda estava vivo. Nós o matamos de pancadas com enxadas e paus. Velhos, mulheres e crianças, algumas crianças tão empolgadas e assustadas que se molhavam nas calças. O tigre caiu no poço e nós o matamos de pancadas com nossas enxadas porque os homens da nossa

aldeia tinham ido lutar contra os japoneses. Estou pensando que esse Stillson é como aquele tigre mau com o gosto de carne humana. Acho que deviam fazer uma armadilha para ele, e acho que ele

devia estar caindo nela. E, se ele vivesse ainda, penso que devia ser morto a pancadas.

Ele sorriu de leve para Johnny, ao sol claro do verão.

—    Você acha mesmo isso? — perguntou Johnny.

—    Ah, sim — disse Ngo. Ele falava normalmente, como se não fosse um assunto importante. — O que o meu professor vai dizer quando eu estiver entregando essa redação, não sei. — Deu de ombros. — Provavelmente vai dizer: “Ngo, você não esta pronto para o Estilo de Vida Americano”. Mas eu vou dizer a verdade do que acho. O que é que você acha, Johnny? — Seus olhos foram até o machucado, depois desviaram-se.

—    Acho que ele é perigoso — disse Johnny. — Eu... eu sei que ele é perigoso.

—    Sabe? — observou Ngo. — Sim, acho que sabe, sim. Os seus companheiros de New Hampshire, eles o vêem como um palhaço divertido. Vêem como muitos homens deste mundo vêem esse homem negro, Idi Amín Dada. Mas você, não.

—    Não — disse Johnny. — Mas sugerir que ele deva ser morto...

—    Morto politicamente — disse Ngo, sorrindo. — Só estou sugerindo que ele seja morto politicamente.

—    E se ele não puder ser morto politicamente?

Ngo sorriu para Johnny. Esticou o indicador, encolheu o po­legar e depois estalou-o.

—    Bam — disse ele, baixinho. — Bam, bam, bam.

—    Não — disse Johnny, espantado com a sua própria rouqui­dão. — Isso nunca é solução. Nunca.

—    Não? Pensei que fosse uma solução que os norte-americanos usassem muitas vezes. — Ngo pegou o cabo do carrinho vermelho. — Tenho de ir plantar esses matos, Johnny. Até logo, rapaz.

Johnny o viu afastar-se, um homenzinho de short e mocassins, puxando um carrinho de mudas de pinheiro. Ele desapareceu, do­brando o canto da casa.

“Não. Matar só semeia mais dentes de dragão. Acredito nisso. Acredito de todo o coração.”

 

Na primeira terça-feira de novembro, que por acaso era o se­gundo dia do mês, Johnny Smith estava refestelado na poltrona de sua kitcbenette, assistindo aos resultados das eleições. Chancellor e Brinkley estavam apresentando um grande mapa eletrônico que mostrava os resultados da corrida presidencial num código colorido, à medida em que aparecia cada Estado. Agora, já quase meia-noite, a diferença entre Ford e Carter parecia muito apertada. Mas Carter ia vencer; Johhny não tinha dúvida alguma disso.

     Greg Stillson também vencera.

     Sua vitória teve uma grande cobertura dos jornais locais, mas os repórteres nacionais também noticiavam alguma coisa, comparan­do-a com a de James Longley, o governador independente do Maine, dois anos antes.

Chancellor disse:

       — As últimas pesquisas mostrando que o candidato republica­no e titular do cargo, Harrison Fisher, estava ganhando distância parecem ter sido falhas: a NBC prevê que Stillson, que fez sua campanha de capacete de trabalhador de construção civil e com uma plataforma que incluía a proposta de mandar toda a poluição para o espaço exterior, acabou com quarenta e seis por cento dos votos, contra trinta e um por cento de Fisher. Num distrito em que os democratas sempre foram os primos pobres, David Bowes só con­seguiu vinte e três por cento dos votos.

       — E assim — disse Brinldey —‘ chegou a hora dos cachorros-quentes lá em New Hampshire... pelo menos durante os próximos dois anos.

   Ele e Chancellor sorriam. Surgiu um comercial. Johnny não sorriu. Estava pensando nos tigres.

       O período entre o comício de Trimbull e a noite das eleições tinha sido agitado para Johnny. Ele seguiu o seu trabalho com Chuck, que continuou a progredir num ritmo lento mas cons­tante. Tinha feito dois cursos de verão, passando em ambos, e manteve sua situação nos esportes. Agora, ao terminar a temporada de rúgbi, parecia que ele seria designado para o time titular do All New England, da cadeia de jornais Gannett. Já tinham come­çado as visitas cautelosas, quase rituais, da parte dos pesquisadores das universidades, mas teriam de esperar mais um ano; já tinham resolvido, Chuck e o pai, que ele passaria um ano na Stovington Prep, uma boa escola preparatória particular de Vermont. Johnny achava que a Stovington provavelmente ficaria delirante de alegria com a notícia. Essa escola de Vermont apresentava com regularidade grandes times de futebol e fracos times de rúgbi. Provavelmente lhe dariam uma bolsa de estudos total e ainda por cima uma chave de ouro para o dormitório feminino. Johnny achou que a decisão tinha sido acertada. Depois que chegaram a essa conclusão, dimi­nuindo a pressão para que Chuck se submetesse logo ao exame, o progresso do rapaz dera outro grande salto.

     Em fins de setembro, Johnny tinha ido a Pownal passar o fim de semana, e, depois de ficar toda a noite de sexta-feira vendo o pai, nervoso, rir demais de piadas medíocres na TV, perguntara a

Herb qual era o problema.

—    Não há problema algum — disse Herb, sorrindo, nervoso, esfregando as mãos como um contador que acaba de descobrir que a companhia em que investiu as economias de toda a sua vida faliu. — Problema nenhum, por quê, filho?

—    Bem, então, o que o está preocupando?

Herb parou de sorrir, mas continuou a esfregar as mãos.

—    Nem sei como lhe contar, Johnny. Quero dizer...

—    É Charlene?

—    Bem, é. Ë, sim.

—    O senhor a pediu em casamento.

Herb olhou para Johnny, com humildade.

—    O que você acha de ganhar uma madrasta, aos vinte e nove anos, Johnny?

Johnny sorriu.

—    Acho ótimo. Parabéns, pai.

Herb sorriu, aliviado.

—    Bom, obrigado. Eu estava meio apavorado de lhe contar, confesso. Sei o que você disse quando falamos sobre isso antes, mas às vezes as pessoas pensam de uma maneira quando uma coisa é apenas “talvez”, e de outra, quando ela se torna realidade. Eu amava sua mãe, Johnny. E acho que sempre a amarei.

—    Sei disso, pai.

—    Mas estou só, e Charlene também, e... bem, acho que um pode fazer bem ao outro.

Johnny foi para junto do pai e beijou-o.

—    Tudo de bom. Sei que vai consegui-lo.

—    Você é um bom filho, Johnny. — Herb puxou o lenço do bolso de trás e enxugou os olhos. — Nós pensávamos que o tínhamos perdido. Pelo menos, eu pensava. Vera nunca perdeu as esperanças. Sempre acreditou. Johnny, eu...

— Não, pai. Já passou.

— Tenho de falar — disse ele. — Isso já está me pesando há um ano e meio. Rezei para que você morresse, Johnny. O meu próprio filho, rezei para que Deus o levasse. — Tornou a enxugar os olhos, e guardou o lenço. — Mas é que Deus sabia um pouco mais do que eu. Johnny... você quer ser meu padrinho? No ca­samento?

Johnny sentiu por dentro alguma coisa que era quase, mas não completamente, tristeza.

—    Seria um prazer — disse ele.

— Obrigado. Estou contente por.., por ter dito tudo o que tinha na cabeça. Há muito tempo que não me sinto assim tão bem.

—    Já marcou a data?

—    Já, sim. Que tal lhe parece 2 de janeiro?

— Parece bom — disse Johnny. — Pode contar comigo.

— Acho que vamos colocar as duas casas à venda — disse Herb. — Estamos de olho num sítio em Biddeford. Bom lugar. São oito hectares, a metade de matas. Começar de novo.

— Sim. Começar de novo, isso é bom.

— Você não se opõe a vendermos esta casa? — indagou Herb, aflito.

—    Uma pontadinha — disse Johnny. — Só isso.

—    Ë, é o que eu sinto. Uma pontadinha. — Sorriu. — Perto do coração, é onde sinto a minha. E você?

—    Mais ou menos aí, também — disse Johnny.

— Como vão as coisas com você, por lá?

— Bem.

—    O rapaz está progredindo?

—    Incrivelmente bem — disse Johnny, usando uma das ex­pressões prediletas do pai, e sorrindo.

— Por quanto tempo acha que ainda fica por lá?

— Trabalhando com Chuck? Acho que fico até acabar o ano letivo, se me quiserem. Trabalhar com um aluno só foi uma expe­riência nova. Gostei. E esse trabalho foi muito bom. Excepcional­mente bom, eu diria.

— O que pretende fazer depois?

Johnny sacudiu a cabeça.

— Ainda não sei. Mas sei de uma coisa.

— O que é?

— Vou sair para comprar uma garrafa de champanha. Vamos tomar um pileque.

O pai levantou-se, naquela noite de setembro, e bateu nas costas dele.

— Conte comigo — disse ele.

Ele continuava a receber uma ou outra carta de Sarah Hazlett. Ela e Walt estavam esperando o segundo filho para abril. Johnny escreveu, dando os parabéns e os bons votos para a campanha de Walt. E às vezes pensava na tarde que passara com Sarah, aquela tarde longa, demorada. Não era uma recordação que ele se permi­tisse ter muitas vezes; tinha receio de que uma exposição constante dessa recordação à luz do sol pudesse fazê-la desbotar, como as provas avermelhadas das fotos de formatura.

Tinha saído algumas vezes, naquele outono, uma delas com a irmã mais velha, divorciada, da garota de Chuck, mas nenhum des­ses encontros dera em nada.

Passara a maior parte do seu tempo de folga, naquele outono, em companhia de Gregory Ammas Stillson.

Tornara-se um stillsonófilo. Tinha guardados três cadernos de folhas soltas na cômoda, debaixo das meias, roupas de baixo e camisetas. Estavam cheios de anotações, conjeturas e xerox de notícias.

Fazer aquilo o deixara inquieto. De noite, quando escrevia em volta dos recortes colados com uma caneta Pílot fina, às vezes sentia-se como Arthur Bremmer ou a mulher, Moore, que tentara matar Jerry Ford. Sabia que, se Edgard Lancte, Destemido Favorito do FBI, pudesse vê-lo fazendo aquilo, seu telefone, sua sala e seu banheiro seriam imediatamente controlados. Apareceria um cami­nhão de mudanças do outro lado da rua, só que em vez de estar cheio de mobília estaria carregado de câmaras, microfones e sabe Deus o que mais.

Ele se dizia sempre que não era Bremmer, que Stillson não era uma obsessão, mas isso se tornava cada vez mais difícil de acreditar, depois das longas tardes passadas na biblioteca da Universidade de New Hampshire, pesquisando jornais e revistas velhos e tirando fotocópias. Mais difícil de acreditar ainda, nas noites em que ele queimava as pestanas, escrevendo seus pensamentos e pro­curando estabelecer conexões. E tornou-se quase impossível de acre­ditar, naquelas madrugadas em que acordava suando do pesadelo que se repetia.

O     pesadelo era quase sempre o mesmo, uma repetição simples de seu aperto de mão com Stillson no comício de Trimbull. A escuridão repentina. A sensação de estar num túnel cheio da luz de um farol se aproximando, do farol da locomotiva negra do destino. O velho de olhos humildes e assustados, ouvindo um juramento de posse de um cargo inacreditável. As variações de sensação, indo e vindo como tufos de fumaça. E uma série de imagens breves, unidas numa fileira agitada, como flâmulas de plástico sobre um galpão de carros usados. Sua mente lhe dizia que essas imagens estavam todas relacionadas, que contavam a história de um destino titânico que se aproximava, talvez até o próprio Armageddon em que Vera Smith confiara tão firmemente.

Mas quais eram as imagens? O que eram, exatamente? Eram turvas, impossíveis de ver a não ser num esboço vago, pois havia sempre aquele filtro azul no meio, estranho, o filtro azul que por vezes era cortado por aquelas marcas amarelas como as listras de um tigre.

A única imagem nítida nessas repetições de sonho aparecia perto do fim: os gritos dos moribundos, o cheiro dos mortos. E um único tigre pisando no meio de quilômetros de metais contorcidos, vidro derretido e terra devastada. Esse tigre estava sempre rindo, e parecia estar carregando alguma coisa na boca... alguma coisa azul e amarela, e pingando sangue.

No outono houvera ocasiões em que ele pensara que esse sonho o levaria à loucura. Sonho ridículo; a possibilidade a que ele parecia apontar era impossível, afinal. O melhor era expulsá-lo completamente da mente. Mas como não o conseguia, pesquisou a vida de Gregory Stillson e procurou dizer a si mesmo que aquilo era apenas um passatempo inofensivo e não uma obsessão perigosa.

Stillson nascera em Tulsa. Seu pai trabalhara em campos de petróleo, indo de campo em campo, trabalhando freqüentemente mais do que os companheiros por causa de seu tamanho imenso. Sua mãe podia ter sido bonita, embora só houvesse uma leve sugestão de beleza, nas duas fotos que Johnny conseguira desenca­var. Se fora bonita, o tempo e o homem com quem se casara tinham apagado essa beleza bem depressa. As fotos mostravam pouco mais do que um rosto daquela região seca, uma mulher da depressão do sudeste dos Estados Unidos, de vestido estampado, desbotado, e com um bebê — Greg — no colo, os braços magricelas, os olhos apertados por causa do sol.

O pai fora um homem dominador, que não tinha grande entu­siasmo pelo filho. Em criança, Greg fora pálido e doentio. Não havia provas de que o pai tivesse maltratado o garoto, mental ou fisicamente; mas havia a sugestão de que, pelo menos, Greg Stillson tivesse passado os primeiros nove anos de sua vida sob a sombra da reprovação. Porém, a única foto que Johnny tinha do pai e do filho juntos era uma foto feliz; mostrava os dois juntos nos campos petrolíferos, o braço do pai passado sobre o ombro do filho num gesto displicente de camaradagem. Assim mesmo, aquilo provocou um leve arrepio em Johnny. Harry Stillson estava de roupa de trabalho, calças de sarja e camisa cáqui de abotoamento duplo, e seu capacete estava inclinado para trás, num estilo ousado.

Greg começara os estudos em Tulsa, e depois se mudara para Oklahoma City, aos dez anos. No verão anterior, o pai morrera num acidente, a explosão de uma torre de petróleo. Mary Lou Stillson fora para Okie City com o filho porque a mãe dela morava lá, e era lá que se encontrava trabalho, nos tempos da guerra. Era o ano de 1942, e a vida estava fácil de novo.

Greg teve boas notas até entrar para o segundo grau, e então começou a se meter em uma série de encrencas. Vadiagem, brigas, jogo de sinuca no centro da cidade, talvez metendo-se com artigos roubados nos arredores, embora isso nunca tivesse sido provado. Em 1949, quando estava no primeiro ano do segundo grau, foi sus­penso por dois dias por ter colocado uma bomba de fogos de artifício num banheiro do vestiário.

Em todos esses confrontos com a autoridade, Mary Lou Stillson tomara a defesa do filho. A boa vida — pelo menos para gente como os Stillsons — terminara com o trabalho de tempo de guerra, em 1945, e a Sra. Stillson começou a achar que o resto do mundo estava contra ela e o filho. A mãe dela morreu, deixando-lhe a ca­sinha de madeira e mais nada. Ela andou servindo bebidas num botequim, por algum tempo, e depois foi garçonete num restaurante barato, que ficava aberto a noite toda. E quando o filho se metia em encrencas, ela o defendia com unhas e dentes, sem nem parar (aparentemente) para ver se ele era inocente ou culpado.

O garoto pálido e doentio que o pai apelidara de Nanico desa­parecera, em 1949. À medida em que avançava a adolescência de Greg Stillson, a herança do pai ia aparecendo. O menino cresceu quinze centímetros e engordou trinta quilos entre os treze e os dezessete anos. Não fazia esporte organizado na escola, mas conse­guiu um ginásio para exercitar os músculos e depois um jogo de halteres. O Nanico tornou-se um cara perigoso.

Johnny adivinhou que ele devia ter estado a ponto de largar os estudos, em várias ocasiões. Provavelmente, conseguira não ser preso simplesmente por sorte. Se ao menos tivesse sido preso seriamente uma vez, pensava Johnny, todas as suas preocupações estúpidas teriam acabado, pois um delinqüente declarado culpado não pode aspirar a um alto cargo público.

Stillson se formou — quase em último lugar, na turma,, é verdade — em junho de 1951. Apesar das más notas, não havia nada de errado com sua inteligência. Ele estava de olho nas grandes oportunidades. Tinha fala macia e maneiras cativantes. Naque­le verão, trabalhou por pouco tempo num posto de gasolina. Depois, em agosto daquele ano, Greg Stillson se tomou religioso, numa assembléia de renovação da fé em Wildwood Green. Largou o emprego no Posto 76 e foi trabalhar como fazedor de chuva “pelo poder de Jesus Cristo Nosso Senhor”.

Por coincidência ou não, aquele tinha sido um dos verões mais secos de Oklahoma, desde os dias das tempestades de poeira. As colheitas já estavam perdidas, e a criação em breve também estaria, se os poços acabassem de secar. Greg tinha sido convidado para uma reunião da associação dos fazendeiros locais. Johnny encon­trou muitas versões sobre o que se seguiu; esse era um dos pontos altos da carreira de Stillson. Nenhuma das histórias batia completa­mente com as outras, e Johnny compreendeu por quê. Elas tinham todos os atributos de um mito americano, não muito diferentes das histórias de Davy Crockett, Pecos Bill, Paul Bunyan. Era inegável que alguma coisa acontecera. Mas a verdade rigorosa já estava fora do alcance público.

Uma coisa parecia certa: aquela reunião da associação dos fazendeiros deve ter sido das mais estranhas. Os fazendeiros tinham convidado mais de vinte fazedores de chuva de várias partes do sudeste e sudoeste. Cerca de metade era de negros. Dois eram índios: um pawnee mestiço e um apache puro. Havia um mexicano que mascava mescalina. Greg era um dos nove brancos, e o único nascido ali.

Os fazendeiros ouviram as propostas dos fazedores de chuva e hidróscopos, uma por uma. Gradativa e naturalmente, dividiram-se em dois grupos: os que receberiam metade dos honorários an­tecipadamente (sem restituição) e os que queriam os honorários completos antecipadamente (sem restituição).

Quando chegou a vez de Greg Stillson, ele se levantou, enfiou os polegares nos passadores dos jeans e, segundo consta, disse:

— Acho que vocês sabem que comecei a fazer chover depois que entreguei o meu coração a Jesus. Antes disso eu estava mer­gulhado no pecado e nos caminhos do pecado. Ora, um dos principais caminhos do pecado é esse que vimos aqui hoje, e a gente comete esse tipo de pecado sobretudo por meio dos cifrões dos dólares.

Os fazendeiros interessaram-se. Mesmo aos dezenove anos, Stillson era um feiticeiro cômico. E fizera-lhes uma proposta que não podiam recusar. Como era um cristão renascido e sabia que o amor ao dinheiro era a base de todo o mal, depois que fizesse chover eles poderiam lhe pagar o que achassem que valera o trabalho.

Foi contratado por unanimidade, e dois dias depois estava ajoelhado na traseira de um caminhão de fazenda, viajando calma­mente pelas estradas principais e secundárias do centro de Oklahoma, vestido com um paletó preto e um chapéu baixo de pregador, rezando para chover, falando por dois alto-falantes presos a uma bateria de trator Delco. As pessoas acorriam aos milhares para vê-lo.

O fim da história era previsível, mas satisfatória. Os céus se nublaram ao fim do segundo dia de trabalho de Greg, e na manhã seguinte as chuvas chegaram. Choveu durante três dias e duas noites, o aguaceiro matou quatro pessoas, casas inteiras, com as galinhas empoleiradas nos telhados, foram arrastadas pelo rio Greenwood, os poços se encheram, a criação salvou-se, e a Associa­ção dos Fazendeiros e Criadores de Gado de Oklahoma resolveu que isso provavelmente teria acontecido, de qualquer maneira. Fize­ram a coleta para pagar a Greg, e na reunião seguinte o jovem fazedor de chuvas recebeu a principesca quantia de dezessete dólares.

Greg não se alterou. Usou os dezessete dólares para colocar um anúncio no Herald de Oklahoma City. Esse anúncio informava que mais ou menos a mesma coisa acontecera com um certo apanhador de ratos da cidade de Hamlin. Sendo cristão, continuava o artigo, Greg Stillson não tinha o costume de roubar crianças, e certamente sabia que não teria recursos legais para lutar contra um grupo poderoso como a Associação dos Fazendeiros e Criadores de Gado de Oklahoma. Mas devia haver justiça, não? Ele tinha de sustentar uma mãe idosa e doente. O anúncio sugeria que ele tinha se matado de rezar por um bando de esnobes ricos e ingratos, do mesmo tipo dos homens que tinham expulsado os pobres roceiros de suas terras nos anos 30. O anúncio insinuava que ele tinha poupado dezenas de milhares de dólares de gado e recebera dezesse­te dólares em pagamento. Como era um bom cristão, esse tipo de ingra­tidão não o preocupava, mas talvez devesse levar os bons cidadãos do condado a pensar um pouco. As pessoas de mente aberta podiam enviar suas contribuições para a caixa postal 471, aos cuidados do Herald.

Johnny ficou imaginando quanto Greg Stillson teria de fato recebido, graças àquele anúncio. Os dados eram divergentes. Mas, naquele outono, Greg estava andando pela cidade num Mercury novo em folha. Foram pagos três anos de impostos atrasados da casinha legada pela mãe de Mary Lou. A própria Mary Lou (que não era especialmente doente, tinha apenas quarenta e cinco anos) apareceu, próspera, num casaco de peles novo. Aparentemente, Stillson topara com um dos grandes princípios de força que gover­nam o mundo; se os que recebem não pagam, aqueles que nada receberam muitas vezes pagam, sem motivo algum. Pode ser que seja esse mesmo princípio que garante aos políticos que sempre haverá jovens em número suficiente para alimentar a máquina da guerra.

Os fazendeiros descobriram que tinham posto sua mão coletiva num ninho de vespas. Quando iam à cidade, muitas vezes o povo se juntava para escarnecer deles. Foram condenados dos púlpitos em toda a comarca. De repente, acharam difícil vender a carne do gado que a chuva salvara, tendo de despachá-la para bem longe.

Em novembro daquele ano memorável, dois rapazes com so­queiras de metal nas mãos e revólveres 32 niquelados nos bolsos apareceram na casa de Greg Stillson, aparentemente contratados pela Associação dos Fazendeiros e Criadores de Gado, para sugerir — com a firmeza necessária — que Greg poderia achar o clima melhor em algum outro lugar. Ambos foram parar no hospital. Um deles com concussão. O outro perdeu quatro dentes e ficou com uma hérnia. Ambos foram encontrados na esquina do quar­teirão onde Greg Stillson morava, sem calças. As soqueiras de metal tinham sido enfiadas num local anatômico comumente associado com o ato de sentar, e, no caso de um dos rapazes, foi necessária uma pequena intervenção cirúrgica para retirar os corpos estranhos.

A associação desistiu. Numa reunião em princípios de dezem­bro, foi liberada uma verba de setecentos dólares do fundo comum, e um cheque dessa importância foi enviado para Greg Stillson.

Ele conseguiu o que queria.

Em 1953, ele e a mãe mudaram-se para Nebraska. O negócio de fazer chover estava indo mal, e havia quem dissesse que o negócio de sinuca também. Fosse qual fosse o motivo para a mu­dança, o fato é que eles foram parar em Omaha, onde Greg iniciou um negócio de pintura de casas, que faliu dois anos depois. Ele se deu melhor como vendedor da Companhia Americana Bíblia Caminho da Verdade. Cruzou a faixa do milho, almoçando com centenas de famílias trabalhadoras e tementes a Deus, contando a ticas luminosas de Jesus, livros de hinos, discos, sermões e uma história de sua conversão e vendendo Bíblias, placas, imagens plásticas luminosas de Jesus, livros de hinos, discos, sermões um livro de ­brochura tremendamente direitista, chamada América, caminho da verdade: A conspiração comunista-judaica contra os nossos Estados Unidos. Em 1957 o velho Mercury foi substituído por uma camione­ta Ford, nova em folha.

Em 1958, Mary Lou Stillson morreu de câncer, e no fim desse ano Greg Stillson largou o renascido negócio de Bíblias e viajou para o leste. Passou um ano na cidade de Nova York, antes de se mudar para Albany. Esse ano em Nova York foi dedicado a um esforço para ingressar no negócio de teatro. Foi um dos poucos trabalhos (além da pintura de casas) em que ele não conseguiu ganhar dinheiro. Mas provavelmente não foi por falta de talento, pensou Johnny, com cinismo.

Em Albany, fora trabalhar para a Prudential, e ficou nessa cida­de até 1965. Como corretor de seguros, teve um sucesso relativo. Não teve nenhuma oferta para passar a executivo da companhia, nem rasgos de fervor cristão. Durante esse período de cinco anos, o Greg Stilson estouvado e descarado de antigamente parecia estar hibernando. Em toda a sua variada carreira, a única mulher de sua vida fora a mãe. Nunca se casara, e nem sequer tivera uma namo­rada firme, ao que Johnny pôde apurar.

Em 1965, a Prudential lhe ofereceu um cargo em Ridgeway, New Hampshire, e Greg aceitou. Nessa mesma ocasião, o seu período de hibernação pareceu terminar. Os anos 60 estavam ficando ani­mados. Foi a era das minissaias e do “cada um por si”. Greg passou a ser ativo na vida comunitária de Ridgeway. Entrou para a Câmara de Comércio e para o Rotary Club. Teve cobertura nacional em 1967, durante uma controvérsia sobre os parquímetros do centro da cidade. Havia seis anos que vários grupos vinham discutindo por causa disso. Greg sugeriu que se retirassem todos os parquí­metros e que em seu lugar fossem instaladas caixas de coleta. O povo que pagasse o que quisesse. Algumas pessoas disseram que aquela era a idéia mais maluca que já tinham ouvido. Bem, res­pondeu Greg, poderão ter uma surpresa. Sim, senhor. Ele foi con­vincente. Afinal a cidade adotou a proposta, provísoriamente, e o dilúvio de moedas que se seguiu surpreendeu a todos, menos a Greg. Ele já descobrira esse princípio havia anos.

Em 1969 ele tornou a ser notícia em New Hampshire, quando sugeriu, numa longa e cuidadosa carta para o jornal de Rídgeway, que os delinqüentes acusados de usar entorpecentes fossem obriga­dos a trabalhar em projetos de obras públicas municipais, como parques e pistas para bicicletas, até mesmo tirando o mato dos gramados das ilhas de tráfego. Ë a idéia mais louca que já ouvi, disseram muitos. Bem, respondeu Greg, experimentem, e, se não der certo, desistam. A cidade experimentou. Um viciado reorganizou toda a biblioteca municipal, passando do obsoleto sistema decimal Dewey para o mais moderno sistema de catalogação da Biblioteca do Congresso, sem qualquer ônus para a cidade. Um grupo de hippies preso em uma festa de alucinógenos trabalhou ajardinando o parque da cidade, transformando-o numa atração turística local, com lago de patos e um playground planejado cientificamente para dar o máximo de diversão com um mínimo de perigo. Conforme observou Greg, a maior parte dos viciados se interessava por todos os produtos químicos da universidade, mas não havia motivo por que não devessem utilizar todas as outras coisas que tinham apren­dido nessa mesma universidade.

Ao mesmo tempo em que Greg estava revolucionando os regu­lamentos de estacionamento de sua cidade adotiva e o tratamento dado aos delinqüentes acusados de uso de drogas, também estava escrevendo cartas ao Union-Leader de Mancbester, ao Globe de Boston e ao Times de Nova York, defendendo posições favoráveis à Guerra do Vietnam, sentenças de delito grave para viciados em heroína e a volta da pena de morte, especialmente para os traficantes de heroína. Em sua campanha para a Câmara dos Deputados, ele alegara em várias ocasiões ter sido contrário à guerra a partir de 1970, mas suas próprias declarações publicadas mostravam que isso era uma mentira deslavada.

Em 1970 Greg Stillson fundou sua própria companhia de se­guros e negócios imobiliários. Teve grande sucesso. Em 1973, ele e mais três homens de negócios financiaram e construíram um centro comercial nos arredores de Capital City, sede da comarca do distrito que ele representava então. Foi o ano do boicote árabe do petróleo, e também o ano em que Greg começou a dirigir um Lincoln Con­tinental. Também foi nesse ano que ele se candidatou a prefeito de Ridgeway.

O     prefeito teve um mandato de dois anos, e dois anos antes, em 1971, tinha sido convidado a candidatar-se tanto por democra­tas como por republicanos da considerável cidade (oito mil e qui­nhentos habitantes) da Nova Inglaterra. Recusara ambos os convites, amavelmente. Em 1973, candidatou-se como independente, enfren­tando um republicano bastante popular, vulnerável devido ao seu fervoroso apoio ao presidente Nixon, e uma figura de proa dos democratas. Pela primeira vez, usou seu capacete de trabalhador de obras. O lema da campanha foi: “Vamos construir uma Ridgeway melhor!” Ganhou disparado. Um ano depois, no Estado irmão do Maine, os eleitores desprezaram tanto o democrata George Mitchell como o republicano James Erwin, e elegeram um corretor de seguros de Lewiston, chamado James Longley, para governador.

Gregory Ammas Stillson aprendeu a lição.

Em volta dos recortes estavam os apontamentos de Johnny e as perguntas que ele se fazia sempre. Já repetira tantas vezes o seu raciocínio que, agora, enquanto Chancellor e Brinkley continuavam a registrar os resultados da eleição, poderia recitar tudo aquilo, palavra por palavra.

Primeiro, Greg Stillson não deveria ter podido eleger-se. Suas promessas eleitorais eram, de modo geral, piadas. Sua formação era toda errada. Sua instrução, também toda errada. Parara de estudar na décima segunda série, e, até 1965, fora pouco mais do que um ocioso. Num país em que os eleitores tinham resolvido que os advogados é que deviam fazer as leis, os únicos encontros de Stillson com esse setor tinham sido do lado errado. Ele não era casado. E sua história pessoal era positivamente uma aberração.

Em segundo lugar, a imprensa o deixara quase totalmente em paz, o que era muito de estranhar. Num ano eleitoral em que Wilbur Mills confessara ter uma amante, em que Wayne Hayn fora desalojado de seu firme lugar na Câmara por causa da sua, e em que nem mesmo os membros de famílias poderosas ficaram imunes às devassas da imprensa, os repórteres deveriam ter se divertido com Stillson. Sua personalidade aberrante e controversa parecia provocar apenas uma admiração divertida por parte da imprensa nacional, e ele não parecia deixar ninguém — a não ser talvez Johnny Smith — nervoso. Seus guarda-costas motoqueiros tinham sido moleques de praia poucos anos antes, e era comum haver feridos nos comícios de Stillson, mas nenhum repórter curioso fizera qualquer estudo profundo sobre isso. Num comício em Capital City — naquele mesmo centro comercial que Stillson contribuíra para criar —, uma menina de oito anos fraturou o braço e deslocou o pescoço; a mãe jurou, histérica, que um daqueles “motoqueiros tarados” tinha empurrado a menina do estrado quando ela tentara subir ao pódio para pedir o autógrafo do Grande Homem. No entanto, isso só provocou uma pequena notícia no jornal — “Menina machucada em comício de Stillson” — logo esquecida.

Stillson fez uma revelação financeira que Johnny achou boa demais para ser verdade. Em 1975, Stillson pagara onze mil dólares de imposto federal sobre uma renda de trinta e seis mil dólares... e nada de imposto de renda estadual, claro. New Hampshite não tinha isso. Dizia ele que toda a sua renda provinha da firma de seguros e imóveis, mais uma ninharia que era o seu ordenado como prefeito. Não havia menção alguma do proveitoso centro comercial de Capital City. Nenhuma explicação para o fato de Stillson morar numa casa de valor calculado em oitenta e seis mil dólares, livre e desimpedida. Numa ocasião em que o presidente dos Estados Unidos estava tendo de dar explicações de suas mínimas despesas, a bizarra declaração de renda de Stillson não surpreendeu ninguém.

Depois havia a sua ficha como prefeito. Sua atuação no cargo era bem melhor do que seu desempenho nas campanhas poderia levar a supor. Era um homem esperto e sagaz, com uma percepção rude, mas precisa da psicologia humana, comercial e política. Ter­minara seu mandato, em 1975, com um superávit fiscal, a primeira vez que isso acontecia em dez anos, para alegria dos contribuintes. Apontava com um orgulho justificado para o seu programa de esta­cionamento e para o que chamava de Programa de Estudos para o Trabalho dos Hippies. Além disso, Ridgeway fora uma das primeiras cidades de todo o país a organizar uma Comissão do Bicentenário. Uma firma fabricante de arquivos havia se estabelecido em Ridge­way, e, numa época de recessão, a taxa de desemprego local era de invejável 3,2 por cento. Tudo muito admirável.

Algumas das outras coisas que aconteceram enquanto Stillson era prefeito é que assustavam Johnny.

A verba para a biblioteca municipal tinha sido reduzida de onze mil e quinhentos dólares para oito mil, e depois, no último ano do mandato de Stillson, para seis mil e quinhentos. Ao mesmo tempo, a verba para a polícia municipal foi elevada em quarenta por cento. O conjunto de viaturas da cidade ganhou três novas radiopatrulhas, e adquiriu-se uma coleção de equipamento contra motins. Também foram contratados dois novos policiais, e a Câmara Municipal, por solicitação de Stillson, concordou em instituir uma política de financiar a metade das despesas dos policiais na compra de armas. O resultado é que vários policiais daquela sonolenta cidade da Nova Inglaterra compraram Magnums .357, a arma imor­talizada por Dirty Harry Callahan. Também durante o mandato de Stillson como prefeito, foi fechado o centro de recreação dos ado­lescentes, instituído um toque de recolher para os menores de dezesseis anos, supostamente voluntário mas controlado pela polícia, e a verba da assistência social foi cortada em trinta e cinco por cento.

Sim, havia muita coisa relativa a Greg Stillson que deixava Johnny apavorado.

O pai dominador e a mãe fraca e aprovadora. Os comícios políticos que mais pareciam concertos de rock. O relacionamento do sujeito com a multidão, seus capangas...

Desde os tempos de Sinclair Lewis, o povo vinha clamando contra a emergência do Estado fascista nos Estados Unidos, mas nada acontecia. Bem, houve Huey Long lá na Louisiana, mas Huey Long tinha...

Tinha sido assassinado.

Johnny fechou os olhos e viu Ngo dobrando o dedo. Bam, bam, bam. Tigre, tigre, com seu brilho afoito, nas florestas da noite. Que mão ou olhar temível... *

Mas não se semeiam dentes de dragão. A não ser que se queira ser equiparado a Frank Dodd em sua capa de chuva de vinil, com capuz. Aos Oswalds, Sirhans e Bremmers. Loucos do mundo, uni­vos. Conservai atualizados os vossos caderninhos paranóicos e fo­lheai-os à meia-noite; quando as coisas começarem a fervilhar dentro de vós, mandai o cupom do reembolso postal pedindo a arma. Johnny Smith, esse Squeaky Fromme. Prazer em conhecê-lo, John­ny, tudo quanto você tem nesse caderninho tem muito sentido para mim. Quero que você conheça o meu mentor espiritual. Johnny, este é Charlie. Charlie, este é Johnny. Quando você acabar com Stillson, vamos juntar-nos e acabar com o resto dos porcos, para podermos salvar as sequóias.

Sua cabeça estava girando. A inevitável dor de cabeça, come­çando. Sempre acabava assim. Greg Stillson sempre o levava a isso. Estava na hora de ir dormir, e, por favor, Deus, nada de sonhos.

Restava, porém, a Pergunta.

Ele a escrevera em um dos cadernos e sempre voltava a ela. Escrevera com letra caprichada, e depois traçara um círculo triplo em volta dela, como que para encerrá-la. A Pergunta era a seguinte:

“Se você pudesse entrar numa máquina do tempo e voltar a 1932, mataria Hitler?”

Johnny olhou para o relógio. Eram quinze para a uma. Já era o dia 3 de novembro, e a eleição do Bicentenário passara à história. Ohio ainda estava indefinido, mas Carter estava na frente. Não havia concorrência. Acabou-se a confusão, perdida ou ganha a elei­ção. Jerry Ford podia pendurar ss chuteiras, pelo menos até 1980.

Johnny foi até a janela e olhou para fora. A casa principal estava às escuras, mas havia urna luz acesa no apartamento de Ngo, sobre

 

*       O autor cita aqui os célebres versos de William Blake (1757-1827):

“Tiger, tiger, burning bright / In the forests of the night, / What immor­tal hand or eye / Could frame thy fearful simmetry?” (N. do E.)

 

a garagem. Ngo, que em breve seria cidadão americano, ainda estava assistindo ao grande ritual quadrienal norte-americano: vaga­bundos antigos saem por lá; vagabundos novos entram por aqui. Talvez Gordon Strachan não tivesse dado uma resposta tão má assim à Comissão Watergate, afinal.

Johnny foi para a cama. Depois de muito tempo, adormeceu. E sonhou com o tigre-que-ri.

 

       Herb Smith tomou Charlene MacKenzie como sua segunda mulher na tarde do dia 2 de janeiro de 1977, conforme o planejado. A cerimônia realizou-se na Igreja Congregacional de Southwest Bend. O pai da noiva, octogenário quase cego, foi quem a acom­panhou. Johnny ficou ao lado do pai, e apresentou impecavelmente a aliança na ocasião oportuna. Foi um belo momento.

Sarah Hazlett compareceu com o marido e o filho, que já não era mais bebê. Sarah estava grávida e radiante, a imagem da feli­cidade e da realização. Olhando para ela, Johnny surpreendeu-se ao sentir uma pontada de um ciúme amargo, como um acesso de gases inesperado. Em segundos aquilo passou, e Johnny foi falar com eles, na recepção depois da cerimônia.

Era a primeira vez que ele via o marido de Sarah. Era um homem alto e bonitão, com um bigode fininho e cabelos prematu­ramente grisalhos. Sua campanha para o Senado pelo Estado do Maine tinha tido êxito, e ele dissertou sobre a verdadeira história das eleições nacionais e sobre dificuldades de trabalhar com um governador independente, enquanto Denny puxava suas calças e pedia mais bebida. Papai, mais bebida!

Sarah falou pouco, mas Johnny sentiu seus olhos brilhantes sobre ele: uma sensação incômoda, mas não desagradável. Um pouco triste, talvez.

Na recepção, a bebida era farta, e Johnny passou além de sua cota normal de duas doses.., talvez por causa do choque de rever Sarah, dessa vez com a família, ou talvez apenas por ter compreen­dido, olhando para o rosto radiante de Charlene, que Vera Smith realmente se fora, e para sempre. Assim, quando ele se aproximou de Hector MacKenzie, pai da noiva, uns quinze miputos depois que os Hazletts se foram, estava agradavelmente tonto.

O     velho estava sentado a um canto, junto dos destroços do bolo de noiva, as mãos retorcidas pela artrite dobradas sobre a ben­gala. Usava Óculos escuros. Uma das hastes tinha sido consertada com fita isolante preta. Ao seu lado havia duas garrafas de cerveja vazias e outra pela metade. Ele olhou bem para Johnny.

—    É o filho de Herb, não é?

—    Sim, senhor.

Um exame mais prolongado. Depois Hector MacKenzie disse:

       — Rapaz, você não está com boa cara.

—    Ando dormindo muito tarde, parece.

—    Você parece estar precisando de um tônico. Uma coisa que o fortifique.

—    O senhor esteve na Primeira Guerra Mundial, não foi? — perguntou Johnny. Havia uma porção de medalhas, inclusive uma Croix de Guerre, presas no casaco do terno de sarja azul do velho.

—    Estive, sim — disse MacKenzie, animando-se. — Servi com Black Jack Pershing. Na Força Expedicionária Americana, de 1917 a 1918. Atravessamos a lama e o esterco. O vento soprava e a merda voava. Bosque de Belleau, meu filho. Bosque de Belleau. Hoje não passa de um nome nos livros de história. Mas eu estive lá. Vi ho­mens morrerem lá. O vento soprava, a merda voava, e das trinchei­ras saía todo o raio da turma.

—    E Charlene disse que o seu filho.., irmão de....

—    Buddy. É. Teria sido seu tio por afinidade, rapaz. Se amá­vamos aquele garoto? Acho que sim. Chamava-se Joe, mas todo mundo o chamava de Buddy, quase desde o dia em que nasceu. A mãe de Charlene começou a morrer no dia em que chegou o tele­grama.

—    Morreu na guerra, não foi?

—    Foi, sim — disse o velho, devagar. — Saint-Lo, 1944. Não muito longe do Bosque de Belleau, pelo menos do jeito que se medem as coisas por aqui. Acabaram com a vida de Buddy com uma bala. Os nazistas.

—    Estou trabalhando num ensaio — disse Johnny, sentindo certa esperteza de bêbado por ter levado afinal a conversa ao seu verdadeiro objetivo. — Espero vendê-lo para o Atlantic ou talvez para a Harper’s...

—    É escritor, é? — Os óculos escuros brilharam na direção de Johnny, denotando mais interesse.

—    Bem, estou tentando — disse Johnny. Já estava começando a arrepender-se de sua loquacidade. “Sou escritor, sim. Escrevo em meus cadernos, depois que escurece.” — Em todo caso, o ensaio vai ser a respeito de Hitler.

— Hitler? Que aspecto de Hitler?

— Bem... suponhamos... suponhamos que o senhor pudesse tomar uma máquina do tempo e voltar ao ano de 1932. Na Alema­nha. E suponhamos que encontrasse Hítler. O senhor o mataria ou o deixaria vivo?

Os óculos escuros e vazios do velho voltaram-se lentamente para o rosto de Johnny. E então Johnny não se sentiu completa­mente nem bêbado, nem loquaz, nem esperto. Tudo parecia depender do que aquele velho tivesse a dizer.

— Isso é brincadeira, rapaz?

— Não é brincadeira, não.

Uma das mãos de Hector MacKenzie largou a ponta da bengala. Ele procurou o bolso da calça e mexeu ali, parecendo levar uma eternidade. Por fim, tirou a mão do bolso. Estava segurando um canivete de cabo de osso, liso e gasto com o passar dos anos, pare­cendo marfim velho. A outra mão entrou em jogo, abrindo a lâmina do canivete com toda a incrível delicadeza da artrite. A lâmina relu­ziu com uma perversidade nua sob a luz do salão da igreja: um canivete que viajara para a França em 1917 com um rapaz, um rapaz que fizera parte de um exército de jovens prontos e dispostos a impedir que os boches imundos espetassem os bebês nas baionetas e estuprassem as freiras, e preparados para mostrar alguma coisa aos franceses, além disso; e os rapazes tinham sido metralhados, tinham apanhado disenteria e a gripe assassina, tinham respirado gás de mostarda e fosgênio, os jovens tinham saído do Bosque de Belleu parecendo espantalhos atormentados que tivessem visto o rosto do próprio Satanás. E, no fim, tudo fora em vão; quando acabou, foi preciso fazer tudo de novo.

Em algum lugar, estavam tocando música. As pessoas estavam rindo. Dançando. Alguém disparou um flash. Bem longe dali. Johnny estava olhando fixamente para a lâmina nua, hipnotizado pelo brilho da luz sobre o fio amolado.

— Está vendo isto aqui? — perguntou MacKenzie, baixinho.

—    Estou — respirou Johnny.

—    Pois eu o enterraria naquele coração mentiroso, negro, de assassino — disse MacKenzie. — Enfiaria isto até o fim.., e depois o torceria. — Virou o canivete na mão, devagar, primeiro para a direita, depois para a esquerda. Sorriu, mostrando gengivas lisas como as de um bebé e um dente torto, amarelado.

—    Mas primeiro — disse ele — passaria veneno de rato na lâmina.

 

— Matar Hitler? — disse Roger Chatsworth, o hálito fazendo tufinhos. Os dois estavam passeando na neve, com sapatos apropria­dos, nos bosques atrás da casa de Durham. Os bosques estavam muito quietos. Era o princípio de março, mas aquele dia estava silencioso, suave e frio, como se fosse pleno janeiro.

—    Isso mesmo.

—    Pergunta interessante — disse Roger. — Sem propósito, mas interessante. Não. Não mataria. Acho que, em vez disso, entra­ria para o partido. Procuraria modificar as coisas de lá de dentro. Poderia ser possível expurgá-lo ou comprometê-lo, sempre dada a precognição do que iria acontecer.

Johnny pensou nos tacos de bilhar cortados. Pensou nos olhos verdes, brilhantes, de Sonny Elliman.

—    Também seria possível ser morto — disse ele. — Aqueles caras estavam fazendo mais que cantar canções de cervejaria em

1933.

—    Ë verdade. — Ele levantou a sobrancelha para Johnny. — O que é que você faria?

—    Não sei bem — disse Johnny.

Roger mudou de assunto.

— Para onde foram seu pai e a mulher em lua-de-mel?

Johnny riu. Tinham ido para Miami Beach, com greve de em­pregados de hotel e tudo.

—    Charlene disse que se sentiu bem, em casa, tendo de fazer a cama. Meu pai disse que se sentia como uma aberração, bronzeado do sol no inverno. Mas acho que os dois gostaram bastante.

—    E venderam as casas?

—    Sim; ambas no mesmo dia. E conseguiram quase o que pretendiam, também. Agora, se não fossem aquelas malditas contas de médicos ainda penduradas sobre a minha cabeça, seria um mar de rosas.

—    Johnny?

—    Hummm?

—    Nada. Vamos voltar. Tenho um Chivas Regal, se você estiver com vontade.

Acho que estou — disse Johnny.

 

     Estavam lendo Judas, o obscuro agora, e Johnny ficara espan­tado ao ver como Chuck gostara do livro (depois de gemer e recla­mar um pouco nas primeiras quarenta páginas, mais ou menos). Ele confessou que estava lendo de noite, sozinho, e que pretendia expe­rimentar outra coisa de Hardy, quando terminasse. Pela primeira vez na vida, estava lendo por prazer. E, como um rapaz iniciado nos prazeres do sexo por uma mulher mais velha, estava se deliciando.

O livro agora estava aberto, mas virado para baixo no colo dele. Estavam de novo junto da piscina, mas ela ainda estava vazia, e ele e Johnny usavam paletós leves. Ao alto, suaves nuvens bran­cas corriam pelo céu, procurando unir-se o suficiente para fazer chover. O ar dava uma sensação misteriosa e doce; a primavera estava rondando por perto. Era o dia 16 de abril.

— Essa é uma daquelas perguntas traiçoeiras? — perguntou Chuck.

— Não.

— Bem, eu seria apanhado?

— Perdão? — Era uma pergunta que nenhum dos outros tinha feito.

— Se eu o matasse. Eles me apanhariam? Eu seria enforcado em um poste de luz? Ficaria esperneando, a quinze centímetros do chão?

— Bem, não sei — disse Johnny, devagar. — Sim, suponho que o apanhariam.

— Não conseguiria escapar em minha máquina do tempo para um mundo maravilhosamente modificado, hem? De volta ao feliz ano de 1977?

— Não, creio que não.

— Bem, não importa. Eu o mataria, de qualquer forma.

— Assim, sem mais nem menos?

— Claro. — Chuck sorriu um pouco. — Eu arranjaria um desses dentes furados, cheios de um veneno de ação rápida, ou uma Lâmina de gilete escondida no colarinho, ou coisa que o valha. Assim, se me apanhassem, não me poderiam fazer nada de muito ruim. Mas eu o faria. Senão, ficaria com medo de que todos aqueles milhões de pessoas que ele acabou matando me atormentassem até o dia de minha morte.

—    Até o dia de sua morte — disse Johnny, meio enjoado.

—    Você está bem, Johnny?

Johnny forçou-se a retribuir o sorriso de Chuck.

— Estou. Acho que o ritmo do meu coração falhou, ou coisa assim.

Chuck continuou a ler Judas sob o céu levemente nublado.

 

Maio.

O     cheiro da grama cortada estava de volta, para mais um compromisso... e também aqueles velhos favoritos, madressilva, poeira e rosas. Na Nova Inglaterra, a primavera só dura mesmo uma sema­na preciosa, e então os disc-jockeys desencavam as belas canções antigas dos Beach Boys, por toda parte se ouve o zunido de uma Honda em disparada, e o verão chega com um baque quente.

Numa das últimas noites daquela preciosa semana de primave­ra, Johnny estava na casa de hóspedes, olhando para a noite. A escuridão primaveril era suave e profunda. Chuck estava numa festa do colégio com a namorada do momento, um tipo mais intelectual do que as últimas seis. Ela lê, confiara Chuck a Johnny, como um homem experiente para outro.

Ngo tinha ido embora. Conseguira se naturalizar em fins de março, tinha se candidatado a um emprego de jardineiro-chefe de um hotel de veraneio na Carolina do Norte, em abril, tivera uma entrevista três semanas antes e fora contratado na hora. Antes de partir, tinha ido procurar Johnny.

—    Acho que você se preocupa demais com tigres que não exis­tem — disse ele. — O tigre tem listras que desaparecem no am­biente, de modo a não ser visto. Isso faz com que o homem preocupado veja tigres por toda parte.

—    Há um tigre — respondera Johnny.

— Sim — concordara Ngo. — Em algum lugar. Enquanto isso, você emagrece.

Johnny levantou-se, foi à geladeira e pegou uma Pepsi. Foi para fora com ela, para a varandinha. Sentou-se, bebericou e pensou que era uma sorte para todos que a viagem pelo tempo fosse uma impos­sibilidade total. A lua nasceu, um olho laranja acima dos pinheiros, e traçou uma trilha sangrenta pela piscina. As primeiras rãs estavam coaxando e martelando. Depois de uns minutos, Johnny foi para dentro e pôs uma boa dose de rum em sua Pepsi. Voltou para fora e tornou a sentar-se, bebendo e olhando a lua subir pelo céu, mu­dando devagar do laranja para um prateado místico e silencioso.

 

No dia 23 de junho de 1977, Chuck diplomou-se no segundo grau. Johnny, vestido com seu melhor terno, estva sentado no auditório quente, com Roger e Shelley Chatsworth, assistindo, enquanto ele se diplomava como quadragésimo terceiro aluno da tur­ma. Shelley chorou.

Depois houve uma festa no gramado da casa dos Chatsworths. O dia estava quente e úmido. A oeste tinham-se formado nuvens de tempestade com barrigas roxas; elas se arrastavam devagar de um lado para outro no horizonte, mas não pareciam chegar mais perto. Chuck, vermelho depois de ter bebido três coquetéis de laranja e vodca, aproximou-se com a namorada, Patty Strachan, para mostrar a Johnny seu presente de formatura dos pais: um novo relógio Pulsar.

— Eu disse a eles que queria aquele robô R2D2, mas eles só me conseguiram isto — disse Chuck, e Johnny riu. Eles conver­saram mais um pouco, e depois Chuck disse, quase brusco: — Quero agradecer-lhe, Johnny. Se não fosse você, eu não estaria me diplo­mando hoje.

—    Não, isso não é verdade — disse Johnny. Estava meio envergonhado ao ver que Chuck estava quase chorando. — Você tem categoria, rapaz.

—    Ë o que lhe digo sempre — disse a garota de Chuck. Por trás dos óculos dela, uma beleza fria e elegante estava prestes a desabrochar.

—    Talvez — disse Chuck. — Talvez, sim. Mas acho que sei a quem devo o meu diploma. Muitíssimo obrigado. — E deu um forte abraço em Johnny.

Aconteceu de repente: uma imagem clara e dura como um raio, que fez Johnny endireitar-se e bater com a mão do lado da cabeça, como se Chuck tivesse batido nele, em vez de tê-lo abraçado. A imagem penetrou em sua mente como um quadro feito por um elétrodo.

—    Não — disse ele. — De jeito nenhum. Você dois afastem-se de lá.

Chuck recuou, sem jeito. Tinha sentido alguma coisa. Uma coisa fria, escura e incompreensível. De repente, não quis tocar em Johnny; naquele momento, nunca mais queria tocar em Johnny. Era como se tivesse verificado como seria deitar-se em seu caixão e ver pregarem a tampa.

—    Johnny — disse ele, e depois parou. — O que.., o que... Roger estava se aproximando, com copos, e então parou, intri­gado. Johnny estava olhando por cima do ombro de Chuck, para as nuvens distantes, os olhos vagos e turvos.

Ele disse:

—    Você tem de ficar longe daquele lugar. Não tem pára-raios.

— Johnny... — Chuck olhou para o pai, assustado. — Parece que ele está tendo uma espécie de... ataque, ou coisa assim.

—    Raio — declarou Johnny, em voz alta. As pessoas viraram a cabeça para olhar para ele. Ele estendeu as mãos. — Fogo do raio. O material isolante das paredes. As portas... enguiçadas. As pessoas queimadas têm cheiro de carne de porco quente.

—    De que é que ele está falando? — exclamou a garota de Chuck, e a conversa toda foi parando. Todos então estavam olhando para Johnny, equilibrando seus pratos de comida e copos.

Roger aproximou-se.

— John! Johnny! O que é que há? Acorde! — Ele estalou os dedos diante dos olhos perdidos de Johnny. A trovoada roncou a oeste, a voz de gigantes num jogo de cartas, talvez. — O que é que há?

A voz de Johnny estava clara e moderadamente forte, alcan­çando cada uma das cinqüenta ç tantas pessoas presentes: homens de negócios com as mulheres, professores com as mulheres, a alta classe média de Durham.

—    Prenda o seu filho em casa hoje, do contrário ele vai morrer queimado com todos os outros. Vai haver um incêndio, um incêndio terrível. Não deixe que ele vá à Cathy’s. Esse lugar vai ser atingido por um raio e vai arder totalmente antes que o primeiro carro de bombeiros possa chegar. O material isolante vai queimar. Vão en­contrar cadáveres carbonizados em camadas de seis e de sete nas saídas, e não vai haver meio de identificá-los, a não ser pela prótese. Vai... vai...

Então Patty Strachan gritou, levando a mão à boca, o copo de plástico caindo na grama, os cubos de gelo espalhando-se e reluzindo ali como diamantes de um tamanho improvável. Ela ficou camba­leando um instante e depois desmaiou, caindo num esvoaçar pastel de vestido de festa, e sua mãe avançou correndo, gritando para Johnny, ao passar:

—    O que há com você? O que há com você, pelo amor de Deus?

Chuck ficou olhando para Johnny, que estava pálido como a neve.

Os olhos de Johnny começaram a clarear. Ele olhou em volta, para os grupos de pessoas que o fitavam.

—    Desculpem — murmurou.

A mãe de Patty estava ajoelhada, segurando a cabeça da filha nos braços e dando tapinhas no rosto dela. A moça começou a mexer-se e a gemer.

Johnny? — murmurou Chuck, e depois, sem esperar res­posta, foi para junto da namorada.

       Fez-se um silêncio total no gramado dos Chatsworths. Todos estavam olhando para ele. Olhavam porque tinha acontecido de novo. Olhavam para ele do mesmo modo que as enfermeiras tinham olhado. E os repórteres. Eram corvos enfileirados nos fios telefôni­cos. Estavam segurando copos e pratos de salada de batata, e olha­vam para ele como se ele fosse um inseto, um fenômeno. Olhavam como se ele de repente tivesse desabotoado as calças, expondo-se a eles.

Teve vontade de fugir, de esconder-se. Teve vontade de vo­mitar.

       —     Johnny — disse Roger, passando o braço em volta dele. — Venha cá para dentro.Você precisa descansar um pouco... A trovoada roncou, ao longe.

—    O que é a Cathy’s? — disse Johnny, resistindo à pressão do braço de Roger em seus ombros. — Não é uma casa particular, pois havia placas de saída. O que é? Onde fica?

—    Não podem tirá-lo daqui? — A mãe de Patty estava quase gritando. — Ele a está perturbando de novo!

—    Venha, Johnny.

— Mas...

—    Venha.

Ele permitiu que o levassem para a casa de hóspedes. O barulho dos sapatos deles no caminho de cascalho era muito alto. Parecia não haver qualquer outro som. Chegaram até a piscina, e então começaram os cochichos atrás deles.

—    Onde fica a Cathy’s? — Johnny tomou a perguntar.

—    Como é que você não sabe? — perguntou Roger. — Pare­cia saber tudo. Tanto assustou a coitada da Patty Strachan que ela desmaiou.

—    Não posso ver. Está na zona morta. Onde fica?

—    Primeiro, vamos para cima.

—    Não estou doente!

—    Sob tensão, então — disse Roger.

Ele falava num tom suave e tranquilizador, como as pessoas falam com os dementes incuráveis. O tom da voz dele assustou Johnny. E a dor de cabeça começou. Ele tentou afastá-la, por simples força de vontade. Eles subiram a escada para a casa de hóspedes.

 

—    Está melhor? — perguntou Roger.

—    O que é a Cathy’s?

— uma churrascaria, com um salão muito elegante, em Somersworth. As festas de formatura na Cathy’s são uma tradição, só Deus sabe por quê. Tem certeza de que não quer essas aspirinas?

—    Não. Não o deixe ir, Roger. Um raio vai cair naquele lugar. Vai haver um incêndio total.

—    Johnny — disse Roger, falando devagar e com muita bon­dade —, você não pode saber de uma coisa dessas.

Johnny bebeu água gelada, um golezinho de cada vez, e largou o copo com a mão ligeiramente trêmula.

—    Você disse que tinha verificado o meu passado. Pensei...

—    Verifiquei, sim. Mas está chegando a uma conclusão errô­nea. Eu sabia que você era tido como médium ou coisa assim, mas não estava à procura de um. Eu queria era um professor. Você fez um belo trabalho, como professor. Em minha opinião, não há dife­rença alguma entre um bom e um mau médium, pois não acredito em nada disso. Ë só isso. Não acredito.

—    Então quer dizer que sou um mentiroso.

—    Em absoluto — disse Roger, no mesmo tom de voz baixo e bondoso. — Tenho um contramestre na fábrica, em Sussex, que não acende três cigarros com um fósforo, mas nem por isso é mau contramestre. Tenho amigos que são profundamente religiosos, e, embora eu não freqüente a igreja, ainda assim são meus amigos. O fato de você achar que pode prever o futuro ou ver coisas à distân­cia nunca influenciou o meu critério quanto a contratá-lo ou não. Não ... isso não é bem verdade. Nunca me influenciou depois que cheguei à conclusão de que isso não ia interferir na sua capacidade de fazer um bom trabalho com Chuck. E não atrapalhou, mesmo. Mas acredito tanto que a Cathy’s vá arder hoje quanto acredito que a lua seja um queijo verde.

—    Então, não sou mentiroso, sou só maluco — disse Johnny.

De um certo modo apático, era interessante. Roger Dussault e muitas das pessoas que escreviam cartas a Johnny o haviam acusado de trapacear, mas Chatsworth era o primeiro a acusá-lo de ter um complexo de Joana d’Are.

—    Também não é isso — disse Roger. — Você é um rapaz que teve um desastre horrível e que lutou para se recuperar, contra difi­culdades tremendas, pagando um preço que provavelmente foi terrí­vel. Isso não é coisa que eu goste de comentar à toa, Johnny, mas, se qualquer daquelas pessoas lá no gramado — inclusive a mãe de Patty — quiser tirar uma porção de conclusões estúpidas, serão convidadas a calar a boca sobre coisas que não compreendem.

— Cathy’s — disse Johnny, de repente. — Então, como é que eu sabia esse nome? E como é que eu sabia que não era uma casa particular?

—    Através de Chuck. Ele falou muito sobre essa festa, esta semana.

—    Não comigo.

Roger deu de ombros.

—    Talvez ele tenha falado alguma coisa com Shelley ou comi­go, e você estivesse por perto. O seu subconsciente captou aquilo e o arquivou...

— Isso mesmo — disse Johnny, com amargura. — Qualquer coisa que a pessoa não entenda, ou que não se coadune com o nosso esquema de como são as coisas, nós arquivamos na letra S, do subconsciente, certo? O deus do século XX. Quantas vezes você já fez isso quando alguma coisa contrariou a sua pragmática visão de mundo, Roger?

Os olhos de Roger deviam ter tremeluzido um pouco... ou podia ser imaginação.

—    Você associou os raios com a tempestade que se aproxima — disse ele. — Não está vendo isso? Ë bem sim...

—    Escute — disse Johnny. — Estou lhe dizendo isso do modo mais simples possível. Aquele lugar vai ser atingido por um raio. Vai incendiar-se. Prenda Chuck em casa.

Ah, Deus, a dor de cabeça o estava dominando. Como um tigre. Ele pôs a mão na testa e esfregou-a, sem firmeza.

—    Johnny, você vem trabalhando demais.

—    Não o deixe sair de casa — repetiu Johnny.

—    A decisão é dele, e eu não teria a presunção de resolver por ele. Ele é livre, branco e tem dezoito anos.

Bateram à porta.

—    Johnny?

—    Entre — disse Johnny, e foi o próprio Chuck quem entrou. Parecia preocupado.

—    Como é que você está? — perguntou Chuck.

—    Estou bem — disse Johnny. — Estou com dor de cabeça, só isso. Chuck... por favor, não vá àquele lugar, hoje. Estou lhe pedindo como amigo. Quer você pense do mesmo modo que o seu pai ou não. Por /avor.

Não há problema, rapaz — disse Chuck, animado, instalan­do-se no sofá. Puxou um banquínho, com o pé. — Eu não conse­guiria arrastar Patty nem a um quilômetro de distância dali, mesmo com uma corrente de reboque de seis metros de comprimento. Você a deixou apavorada.

— Sinto muito — disse Johnny. Ele estava se sentindo enjoado e com arrepios, de tanto alívio. — Sinto muito, mas fico contente.

—    Você teve uma espécie de intuição, não foi? — Chuck olhou para Johnny, depois para o pai, e depois de novo para Johnny, devagar. — Eu senti isso. Foi mau.

—    As pessoas às vezes sentem. Parece que é meio desagradável.

— Bem, eu não gostaria que acontecesse de novo — disse Chuck. — Mas, olhe.., aquele lugar não vai se incendiar mesmo, vai?

—    Vai — disse Johnny. — Você trate de não ir para lá.

—    Mas... — Ele olhou para o pai, perturbado. — A turma do último ano reservou o lugar todo. O colégio aprova isso, sabe. É mais seguro do que vinte ou trinta festas diferentes, e uma porção de gente bebendo nas estradas escuras. Pode haver... — Chuck calou-se um momento e depois começou a parecer assustado. — Pode haver duzentos casais, lá — disse ele. — Pai...

—    Acho que ele não acredita em nada disso — disse Johnny.

Roger levantou-se e sorriu.

—    Bem, vamos de carro até Somersworth, falar com o gerente

— disse ele. — A festa no jardim estava chata, mesmo. E se vocês dois ainda tiverem a mesma opinião, quando voltarmos, podemos convidar todos para virem para cá, hoje à noite.

Ele olhou para Johnny.

—    A única condição é que você tem de ficar sóbrio e ajudar a tomar conta do pessoal, rapaz.

— Com muito prazer — disse Johnny. — Mas por quê, se não acredita?

—    Pela sua paz de espírito — disse Roger — e pela de Chuck. E para que, quando nada acontecer esta noite, eu possa dizer: “Está vendo?”, e possa morrer de rir.

—    Bem, seja como for, obrigado. — Ele estava tremendo mais que nunca, agora que estava aliviado, mas a dor de cabeça tornara-se um latejar surdo.

—    Porém, há uma coisa — disse Roger. — Acho que não temos a menor possibilidade de conseguir que o proprietário cancele a festa só com a sua palavra, Johnny. Esta é provavelmente uma das boas noites para o negócio dele, no ano todo.

Chuck disse:

— Bem, podíamos inventar alguma coisa...

— Como o quê?

—    Bem, podíamos contar uma história... alguma invenção...

—    Mentir, quer dizer? Não, isso eu não faço. Não me peça isso, Chuck.

Chuck fez que sim.

— Está bem.

— Vamos andando — disse Roger, com energia. — São quinze para as cinco. Vamos pegar o Mercedes e ir até Somersworth.

 

Bruce Carrick, o proprietário e gerente estava tomando conta do bar quando os três chegaram, às cinco e quarenta. Johnny sentiu um frio no coração, quando viu o aviso pregado nas portas do salão de festas: FESTA PARTICULAR SÓ ESTA NOITE, DAS 19:00 ATÉ ENCER­RAR. ATÉ AMANHÃ.

Carrick não estava propriamente assoberbado. Estava servindo uns operários que tomavam cerveja, assistindo ao noticiário, e três casais tomando coquetel. Escutou a história dE Johnny com uma cara cada vez mais incrédula. Depois que Johnny acabou, Carrick disse:

— Você diz que se chama Smith?

—    Sim, isso mesmo.

—    Sr. Smith, venha até esta janela aqui comigo.

Levou Johnny para a janela do saguão, junto da porta do vestiário.

— Olhe para lá, Sr. Smith, e diga o que está vendo.

Johnny olhou para fora, sabendo o que ia ver. A Rodovia 9 seguia para oeste, e estava secando depois de uma leve chuva da tarde. Ao alto, o céu estava inteiramente claro. As nuvens de tempestade tinham passado.

—    Não muita coisa. Pelo menos, agora, não. Mas...

— Mas coisa nenhuma — disse Bruce Carrick. — Sabe o que é que eu acho? Quer saber francamente? Acho que o senhor é um doido. Por que foi escolher a mim para essa sacanagem, não sei nem quero saber. Mas se tiver um minuto, filhinho, vou lhe contar as coisas da vida. A turma de diplomandos me pagou seiscentos e cin­qüenta dólares por esta festa. Contrataram um conjunto de rock’n’roll bem bonzinho, o Oak, lá do Maine. A comida está toda lá no freezer, prontinha para ir para o forno de microondas. As saladas estão na geladeira. As bebidas são por fora, e a maior parte desses garotos têm mais de dezoito anos e pode beber quanto qui­ser.., e hoje vão beber, e ninguém pode culpá-los, a gente só se forma uma vez na vida. Hoje vou ganhar dois mil dólares no salão, tranqüilo. Vêm dois ajudantes de bar, seis garçonetes e uma chefe. Se eu cancelasse esse negócio agora, perderia toda a noite, além de ter de devolver os seiscentos e cinqüenta que já recebi pela comida. Não terei nem mesmo a minha freguesia normal do jantar, pois esse aviso esteve ai a semana toda. Está entendendo?

—    Há pára-raios aqui? — perguntou Johnny.

Carrick levantou as mãos.

— Conto as coisas da vida a esse cara e ele quer falar sobre pára-raios! Tenho pára-raios, sim! Um camarada chegou aqui, antes das reformas, deve fazer uns cinco anos agora. Veio com uma con­versa mole sobre melhorar minha taxa de seguro. Então comprei a porra dos pára-raios! Está satisfeito? Meu Deus! — Ele olhou para Roger e para Chuck. — O que é que vocês dois estão fazendo? Por que deixam esse cretino andar por aí à solta? Vão dando o fora, está bem? Tenho de tratar da vida.

— Johnny... — começou Chuck.

— Não tem importância — disse Roger. — Vamos embora. Obrigado pelo seu tempo, Sr. Carrick, e por sua atenção educada e compreensiva.

— Não tem o que agradecer — disse Carrick. — Cambada de doidos! — E voltou para o salão.

Os três saíram. Chuck olhou para o céu sem nuvens, duvidoso. Johnny foi indo para o carro, só olhando para os pés, sentindo-se burro e derrotado. A dor de cabeça latejava nas suas têmporas. Roger estava ali de pé, as mãos nos bolsos traseiros, olhando para o telhado comprido e baixo do prédio.

—    O que é que está vendo, pai? — perguntou Chuck.

—    Não há pára-raios ali — disse Roger Chatsworth, pensativo. — Nenhum pára-raios.

 

Os três estavam sentados no living da casa principal, Chuck junto do telefone. Ele olhou para à pai, em dúvida.

—    A maioria não há de querer mudar de planos a esta altura — disse ele.

— Eles têm planos para sair, só isso — disse Roger. — Tanto faz virem para cá.

Chuck deu de ombros e começou a discar.

Acabaram ficando com mais ou menos a metade dos casais que tinham planejado ir à Cathy’s, naquela noite, e Johnny nunca soube bem por que é que esses foram. Alguns provavelmente porque pare­cia uma festa mais interessante e porque a bebida seria de graça. Mas as notícias voam, e os pais de muitos dos garotos ali tinham estado na festa da tarde.., e conseqüentemente Johnny passou grande parte da noite sentindo-se como um espécime numa vitrina. Roger ficou sentado a um canto, num banquinho, bebendo um martíni com vodca. O rosto dele era uma máscara.

Por volta das sete horas e quarenta e cinco minutos, ele foi até o outro lado do grande salão de bar e recreação que ocupava três quartas partes do subsolo, abaixou-se junto de Johnny e gritou, para ser ouvido acima do barulho de Elton John:

—    Quer ir lá para cima e jogar cartas?

Johnny aceitou, agradecido.

Shelley estava na cozinha, escrevendo cartas. Levantou os olhos quando eles entraram e sorriu.

— Pensei que vocês dois, masoquistas, fossem ficar lá embaixo a noite toda. Não é necessário mesmo, sabem.

— Sinto muito, tudo isso — disse Johnny. — Sei que deve parecer uma loucura.

— Parece loucura, sim — disse Shelley. — Não há motivo para não se ser franco quanto a isso. Mas tê-los aqui é bom. Não me importo.

Ouviram um trovão lá fora. Johnny olhou em volta. Shelley viu e sorriu um pouco. Roger tinha saído dali para procurar o marcador no aparador da sala de jantar.

— Ë passageiro, sabe — disse ela. — Uma trovoadazinha e um chuvisco.

— É. — disse Johnny.

Ela assinou a carta num rabisco confortável, dobrou-a, fechou-a, endereçou-a, selou-a.

— Você sentiu mesmo alguma coisa, não foi, Johnny?

—    Foi.

—    Uma tonteira momentânea — disse ela. — Talvez provo­cada por alguma deficiência alimentar. Está magro demais, Johnny. Podia ter sido uma alucinação, não podia?

— Não, não creio.

Lá fora, a trovoada tornou a roncar, mas à distância.

— Fico contente por ele estar em casa. Não acredito em astro­logia, quiromancia, clarividência nem em nada disso, mas.., fico contente por ele estar em casa. É o nosso filho único... um filhi­nho bem grande agora, imagino que você esteja pensando isso, mas é fácil lembrar dele de calças curtas andando no carrossel da praci­nha pública. Fácil demais, talvez. E é bom poder partilhar o... o último rito da meninice com ele.

—    Que bom que a senhora ache isso — disse Johnny. De repente ele se assustou ao ver que estava quase chorando. Nos últi­mos seis ou oito meses parecia-lhe que o seu controle emocional tinha regredido bastante.

— Você tem sido bom para Chuck. Não me refiro só ao ensi­no. Em muitos sentidos.

—    Gosto de Chuck.

— Sim — disse ela, tranqüila. — Sei que gosta.

Roger voltou com o marcador e um rádio transistor ligado na estação WMTQ, estação que irradiava música clássica do topo do monte Washington.

—    Um ligeiro antídoto para Elton John, Aerosmith. Foghat e outros — disse ele. — Que tal um dólar a partida, Johnny?

— Õtimo.

Roger sentou-se, esfregando as mãos.

— Ah, você vai sair arruinado — disse ele.

 

Eles jogaram, e a noite foi passando. Entre cada partida, um dos dois descia para ver se ninguém tinha resolvido dançar na mesa da piscina ou ir para os fundos, fazer uma festinha particular.

—    Ninguém vai engravidar ninguém nesta festa, se eu puder evitar — disse Roger.

Sheiley tinha ido ler na sala. De hora em hora, a música do rádio parava e vinha o noticiário, e a atenção de Johnny falseava um pouco. Mas não houve nada sobre a Cathy’s, em Somersworth — nem às oito, nem às nove, nem às dez.

Depois do noticiário das dez horas, Roger disse:

—    Está com vontade de modificar um pouca a sua previsão, Johnny?

—    Não.

A previsão do tempo era de chuvaradas esparsas, passando a bom depois da meia-noite.

O ritmo firme de K. C. and the Sunshine Band fazia-se ouvir através do assoalho.

—    A festa está animada — comentou Johnny.

—    Para o diabo com isso — disse Roger, rindo. — O pessoal está ficando de fogo. Spider Parmelau está desacordado num canto, e alguém está se servindo dele como descanso de copo. Ah, vão estar de ressaca de manhã, pode crer. Lembro-me de que na minha festa de formatura...

—    Um boletim da sala de notícias da WMTQ — disse o rádio.

Johnny, que estava embaralhando, espalhou as cartas pelo chão.

—    Sossegue, provavelmente é só alguma coisa sobre aquele seqüestro lá na Flórida.

—    Não creio — disse Johnny.

O     locutor disse:

—    Neste momento parece que o pior incêndio na história de New Hampshire sacrificou a vida de mais de setenta e cinco jovens, na cidade fronteira de Somersworth, New Hampshire. O incêndio ocorreu numa churrascaria chamada Cathy’s. Estava se realizando uma festa de formatura quando o fogo começou. Milton Hovey, chefe do Corpo de Bombeiros de Somersworth, disse aos repórteres que não há nenhuma suspeita de que o incêndio tenha sido propo­sital; acreditam ser quase certo que tenha sido provocado por um raio.

O     rosto de Roger Chatsworth estava perdendo a cor, comple­tamente. Ele se sentou ereto em sua cadeira de cozinha, os olhos fixos num ponto em algum lugar acima da cabeça de Johnny. Suas mãos estavam frouxas sobre a mesa. Do andar de baixo vinha o barulho de conversa e risadas, misturadas agora com o som de Bruce Springsteen.

Shelley entrou na cozinha. Olhou do marido para Johnny, e depois de novo para o marido.

—    O que é? O que aconteceu?

—    Cale-se — disse Roger.

—    ... continua a arder, e Hovey disse que um cômputo final dos mortos provavelmente só poderá ser feito de manhã cedo. Sabe-se que mais de trinta pessoas, a maior parte membros da turma de diplomandos do ginásio de Durham, foram levadas para hospitais em regiões vizinhas, para tratamento de queimaduras. Quarenta pes­soas, também em sua maioria alunos diplomandos, fugiram pelas pequenas janelas dos banheiros dos fundos do salão, mas outras parecem ter sido presas em aglomerações fatais nas...

—    Foi a Cathy’s? — gritou Shelley Chatsworth. — Foi aquele lugar?

— Foi — disse Roger. Ele parecia fantasticamente calmo. —Foi, sim.

No andar de baixo, houve um silêncio momentâneo, seguido de passos correndo pela escada acima. A porta da cozinha abriu-se de repente, e Chuck entrou, procurando a mãe.

— Mãe? O que é? O que aconteceu?

—    Parece que podemos estar lhe devendo a vida de nosso filho — disse Roger, naquela mesma voz, fantasticamente calma. Johnny nunca vira um rosto tão branco. Roger parecia um boneco de cera horripilantemente vivo.

—    Incendiou-se? — A voz de Chuck era incrédula. Atrás dele, agora, havia outros apinhando a escada, cochichando em vozes bai­xas e assustadas. — Está dizendo que se incendiou toda?

Ninguém respondeu. E então, de repente, de algum lugar atrás dele, Patty Strachan começou a falar numa voz aguda e histérica:

—    A culpa é dele, daquele cara ali! Foi ele quem fez isso acontecer! Ele incendiou a casa com a mente dele, como naquele livro Carrie. Seu assassino! Matador! Você...

Roger virou-se para ela.

—    CALE-SE! — trovejou ele.

Patty caiu num pranto convulso.

—    Incendiou? — repetiu Chuck. Ele parecia estar se pergun­tando, agora, se aquela podia ser a palavra certa.

—    Roger? — murmurou Shelley. — Rog? Benzinho?

Houve um burburinho crescente na escada, e na sala de recrea­ção embaixo, como um farfalhar de folhas. O estéreo foi desligado. As vozes murmuravam.

“Mike estava lá? Shannon foi, não foi? Tem certeza? Sim, eu estava pronto para ir quando Chuck me ligou. Minha mãe estava aqui quando esse cara teve o ataque, ela disse que parecia que havia alguém pisando na cova dela, e pediu que eu viesse aqui, e não fosse lá. Casey estava lá? E Ray? Maureen Ontello estava lá? Ah, meu Deus, estava? Estava...

Roger levantou-se devagar e virou-se.

—    Sugiro — disse ele — que arranjemos os mais sóbrios dos presentes para nos levarem para o hospital. Vão precisar de doado­res de sangue.

 

Johnny ficou ali sentado, como uma pedra. Estava pensando se algum dia tornaria a se mover. Lá fora, o trovão roncava. E acom­panhando-o, como um bater interior, ele ouviu a voz da mãe, ao morrer:

“Cumpra o seu dever, John”.

 

     “12 de agosto de 1977

       Caro Johnny,

       Não foi tão difícil assim encontrá-lo.., eu às vezes penso que, se a gente tem bastante dinheiro, consegue encontrar qualquer pessoa neste mundo, e dinheiro eu tenho. Talvez me arrisque a deixá-lo sentido, dizendo as coisas assim tão claramente, mas Chuck, Shelley e eu lhe devemos demais para lhe dizer menos do que a verdade. O dinheiro compra muita coisa, mas não pode comprar os raios. Encontraram doze rapazes ainda no banheiro dos homens que dava para o restaurante, um em que tinham pregado a janela. O fogo não chegou até lá, mas a fumaça chegou, e os doze ficaram sufocados. Não consegui tirar isso da cabeça, pois Chuck poderia ter sido um desses garotos. De modo que mandei que ‘seguissem a sua pista’, conforme você diz em sua carta. E, pelos mesmos motivos, não posso deixá-lo em paz, conforme você pediu. Pelo menos, até que o cheque anexo volte cancelado com o seu endosso no verso.

Você há de notar que é um cheque bem menor do que o que você devolveu há cerca de um mês. Entrei em contato com o Depar­tamento de Contabilidade do EMMC e paguei as suas contas do hos­pital com a diferença. Assim, você está livre e desembaraçado, quanto a isso, Johnny. Isso eu pude fazer e fiz.., e com grande prazer, posso acrescentar.

Você protesta, dizendo que não pode aceitar o dinheiro. Eu digo que pode e deve. Aceitará, Johnny. Eu segui sua pista até Fort Lauderdale, e se você sair daí vou segui-lo até o lugar para onde for, mesmo que resolva ir para o Nepal. Pode me chamar de piolho, que não o solto, se quiser; eu me considero mais um ‘Cão do Céu’. Não quero persegui-lo, Johnny. Lembro-me de que naquele dia você me disse para não sacrificar o meu filho. Eu quase o fiz. E os outros? Oitenta e um mortos, mais trinta terrivelmente mutilados e queimados. Penso em Chuck dizendo que talvez pudéssemos in­ventar alguma coisa, uma história ou qualquer coisa, e eu dizendo com toda a virtude dos totalmente burros: ‘Não faço isso, Chuck. Não me peça’. Bem, eu podia ter feito alguma coisa. Ë isso o que me atormenta. Podia ter dado àquele açougueiro do Carrick três mil dólares para pagar as despesas e obrigá-lo a fechar a casa, naque­la noite. Teria custado cerca de trinta e sete dólares por vida. Por­tanto, acredite quando digo que não quero persegui-lo: na verdade, estou ocupado demais perseguindo a mim mesmo, para poder querer perder esse tempo. Acho que passarei ainda alguns anos fazendo isso. Estou pagando por me recusar a acreditar em qualquer coisa que eu não possa tocar com os meus cinco sentidos. E por favor não pense que o fato de eu pagar suas contas e lhe mandar esse cheque seja um bálsamo para a minha consciência. O dinheiro não pode comprar os raios, e também não pode comprar o fim dos pesa­delos. O dinheiro é por Chuck, embora ele nada saiba quanto a isso.

Aceite o cheque, e eu o deixarei em paz. Ë esse o trato. Reme­ta-o para a UNICEF, se quiser, dê-o para um lar de cães abandona­dos, ou gaste tudo nas corridas de cavalo. Não me importa. Mas aceite-o.

Sinto muito que você tenha achado necessário partir com tanta pressa, mas acho que entendo. Nós todos esperamos vê-lo em breve. Chuck vai para a Stovington Prep no dia 4 de setembro.

Johnny, aceite o cheque. Por favor.

Lembranças, Roger Chatsworth.”

 

“10 de setembro de 1977

Caro Johnny,

Você acredita que eu vá desistir disso? Por favor. Aceite o cheque.

Lembranças, Roger.”

 

“10 de setembro de 1977

Caro Johnny,

Charlene e eu ficamos muito contentes ao saber onde você está, e foi um alívio receber uma carta sua tão natural e parecendo sua mesmo. Mas houve uma coisa que me preocupou muito, filho. Liguei para Sam Weizak e li para ele a parte de sua carta que fala da maior freqüência das dores de cabeça. Ele aconselha que você procure um médico, Johnny, sem demora. Receia que tenha se for­mado um coágulo em volta do velho tecido cicatrizado. Portanto, isso me preocupa, e Sam também está preocupado. Você nunca me pareceu realmente saudável, desde que saiu da coma, Johnny, e da última vez que o vi, em princípios de junho, parecia muito cansado. Sam não chegou a dizer isso, mas sei que o que ele realmente gosta­ria que você fizesse seria pegar um avião em Phoenix e vir para cá, para que ele possa examiná-lo em pessoa. Você não pode propria­mente alegar pobreza. agora!

Roger Chatsworth ligou para cá duas vezes, e eu lhe disse o que pude. Acho que ele está dizendo a verdade, quando diz que não é dinheiro para acalmar a consciência dele, ou uma recompensa por você ter salvo a vida do filho. Acho que sua mãe teria dito que o homem está fazendo penitência do único jeito que sabe. Em todo caso, você aceitou, e espero que não esteja falando sério quando diz que só aceitou ‘para se livrar dele’. Acho que você tem fibra demais para fazer qualquer coisa por um motivo desses.

É muito difícil para mim dizer o que vou dizer, mas vou ten­tar. Por favor, volte para casa, Johnny. A onda de publicidade tor­nou a acalmar... parece que estou ouvindo você dizer: ‘Ah, merda, nunca vai acalmar, depois de tudo isso’, e talvez você tenha razão, de certo modo, mas também está errado. O Sr. Chatsworth disse, ao telefone: ‘Se falar com ele, procure fazer que entenda que nenhum médium, a não ser Nostradamus, jamais foi muito mais do que uma maravilha passageira’. Eu me preocupo muito com você, filho. Preocupa-me que você se culpe pelos mortos, em vez de se bendizer pelos vivos, os que você salvou, os que estavam em casa dos Chatsworths, naquela noite. Fico preocupado e com saudades, também. ‘Sinto uma falta danada de você’, como dizia a sua avó. Assim, por favor, volte para casa logo que puder.

Papai

  1. S. Estou enviando os recortes sobre o incêndio e o seu papel nisso tudo. Foi Charlene quem os juntou. Como pode ver, você tinha razão ao supor que ‘todo mundo que estava naquela festa no jardim vai contar tudo aos jornais’. Talvez esses recortes possam pertur­bá-lo mais ainda, e, se isso acontecer, jogue-os fora. Mas Charlie pensou que você podia lê-los e dizer: ‘Isso não foi assim tão mau, isso eu posso enfrentar’. Espero que seja assim.

 

“29 de setembro de 1977

Caro Johnny,

       Peguei o seu endereço com papai. Como vai o grande deserto americano? Viu algum pele-vermelha (ah, ah)? Bem, aqui estou, na Stovington Prep. Isto aqui não é assim tão duro. Estou tendo dezes­seis horas de créditos. Química avançada é a minha matéria favorita, embora seja uma barbada, depois do curso no ginásio de Durham. Eu sempre achei que o nosso professor lá, o velho Destemido Farnham, ficaria mais feliz fabricando armas nudeares e fazendo explodir o mundo. No curso de inglês, estamos lendo três obras de J. D. Salin­ger, nestas primeiras quatro semanas. Apanhador no campo de cen­teio, Franny e Zooey e Pro alto, com a viga, rapaziada. Gosto muito dele. O nosso professor disse que ele ainda mora lá em N. H., mas deixou de escrever. Isso eu não entendo. Por que é que alguém pára de escrever quando está dando no couro? Ah, bem. O time de rúgbi daqui é uma droga mesmo, mas estou começando a gostar de futebol. O treinador diz que futebol é para gente esperta e rúgbi é para os patetas. Ainda não descobri se ele tem razão ou se é só inveja.

Não sei se posso dar o seu endereço para algumas pessoas que estavam presentes na nossa festa de formatura, naquela noite. Que­rem escrever para lhe agradecer. Uma delas é a mãe de Patty Strachan, você deve se lembrar dela, aquela que fez um papelão quando a ‘filhinha preciosa’ desmaiou na festa do jardim, naquela tarde. Ela agora acha que você é uma pessoa legal. Por falar nisso, não estou mais namorando Patty. Não sou lá grande coisa em maté­ria de namoros à distancia, em minha ‘tenra idade’ (ah, ah), e Patty vai estudar em Vassar, como seria de esperar. Conheci uma gatinha incrível aqui.

Bem, escreva quando puder, cara. Pelo que meu pai escreveu, parece que você ficou arrasado mesmo, por que motivo não sei, pois me pareceu que você fez tudo o que pôde para tudo dar certo. Ele está enganado, não está, Johnny? Você não está tão arrasado assim, está? Por favor, escreva e diga que está bem, eu me preocupo com você. Isso é uma piada, não é, o próprio Alfred A. Neuman preo­cupado com você, mas estou, sim.

Quando escrever, diga por que é que Holden Caulfiel tem de estar sempre tão por baixo, quando nem é negro nem nada.

Chuck

  1. S. O nome da gatinha incrível é Stephanie Wyman, e já a fiz travar conhecimento com Somethíng wicked tbis way comes. Ela também gosta de um grupo de rock punk chamado The Ramones, você devia ouvi-los, são gozadíssimos.”

 

“17 de outubro de 1977

Caro Jobnny,

       OK, está melhor, você parece estar bem. Morri de rir do seu trabalho com o Departamento de Obras Públicas de Phoenix. Não tenho a menor pena de sua queimadura de sol, depois de três saídas como um Tigre de Stovington. O treinador tem razão, acho, rúgbi é para cretinos, pelo menos aqui. O nosso recorde é 1 a 3, e no jogo que vencemos eu marquei três touchdowns, fiquei hiperventilado e desmaiei. Steph ficou apavorada (ah, ah).

Esperei para escrever para poder responder à sua pergunta sobre o que o pessoal lá de casa acha de Greg Stillson, agora que ele está ‘no emprego’. Estive em casa no último fim de semana, e vou lhe contar o que posso. Primeiro perguntei ao meu pai, e ele disse:

‘Johnny continua interessado naquele camarada?’ Eu disse: ‘Ele está demonstrando o seu mau gosto nato, querendo a sua opinião’. Então ele vai para a minha mãe: ‘Está vendo, a escola preparatória está fazendo dele um sabidão. Era o que eu pensava’.

Bem, para encurtar a coisa, a maior parte das pessoas estão es­pantadas ao ver como Stillson está se saindo bem. Meu pai disse o seguinte: ‘Se as pessoas do distrito de um deputado tivessem de apresentar um relatório dizendo o que achavam da atuação do cara depois de dez meses, Stillson teria uma cotação B (bom), mais um A (ótimo) pelo trabalho com a lei de energia de Carter e pela sua própria lei, referente ao teto para o óleo para aquecimento domés­tico. Outro A pelo esforço’. Papai me pediu para lhe dizer que talvez ele estivesse enganado quanto a Stillson ser o bobo da aldeia.

Õutros comentários de pessoas com quem conversei quando estive em casa: por aqui o pessoal gosta de ver que ele não se fan­tasia de terno e gravata. A sra. Jarvis, dona do Quik-Pik (desculpe a ortografia, cara, mas é assim que se chama), acha que Stillson não tem medo dos ‘grandes interesses’. Henry Burke, que dirige The Bucket — aquele bar el scuzzo no centro —, acha que Stillson fez ‘um trabalho danado de bom’. A maioria dos outros comentários são semelhantes. Comparam o que Stillson fez com o que Carter deixou de fazer, e a maioria está mesmo decepcionada e se maldi­zendo por ter votado nele. Perguntei a alguns se não se preocupa­vam com o fato de que aqueles motoqueiros ainda estavam por perto e de que aquele cara, Sonny Elliman, era um dos assessores de Stillson. Nenhum pareceu se importar muito. O cara que dirige o Record Rock me disse o seguinte: ‘Se Tom Hayden pode se refor­mar e Eldridge Cleaver pode se converter (ambos tão contra o sistema), por que é que uns motoqueiros não podem entrar para o sistema? Perdoar e esquecer’.

Ë isso aí. Eu queria escrever mais, mas tenho de ir treinar futebol. Para este fim de semana, o programa é sermos surrados pelos Barre Wildcats. Espero sobreviver à temporada. Cuide-se, cara.

Chuck.”

 

Do Times de Nova York, 4 de março de 1978:

AGENTE DO FBI ASSASSINADO EM OKLAHOMA

 

Especial para o Times — Edgar Lancte, 37 anos, veterano de dez anos no FEl, parece ter sido assassinado ontem à noite num estacionamento de Oklahoma City. Diz a policia que uma bomba de dinamite, ligada ao motor de partida do carro, explodiu quan­do o sr. Lancte virou a chave. A execução, em estilo de quadrilha, foi semelhante ao assassinato de Don Bolles, repórter policial do Arizona, há dois anos, mas o chefe do FEl, William Webster, não quis fazer conjeturas sobre uma possível ligação. O Sr. Webster também não quis confirmar nem negar que o Sr. Lancte estivesse investigando negociatas imobiliárias escusas e possíveis ligações com politicos locais.

Parece haver algum mistério sobre qual fosse precisamente a missão atual do Sr. Lancte, e uma fonte do Ministério da Justiça alega que o Sr. Lancte não estava investigando possíveis trapaças de terras, e sim um caso de segurança nacional.

O     Sr. Lancte entrou para o Departamento Federal de Investiga­ções em 1968 e...

 

Os cadernos da gaveta da cômoda de Johnny passaram de qua­tro a cinco, e, no outono de 1978, a sete. Nessa ocasião, no inter­valo entre as mortes de dois papas em rápida sucessão, Greg Stillson se tornara notícia nacional.

Fora reeleito para a Câmara dos Deputados por uma maioria esmagadora, e, com o país tendendo para o conservadorismo da Proposição 13, constituíra o partido América Agora. O mais sur­preendente é que vários membros da Câmara tinham se tornado dissidentes em seus partidos originais e se juntado a ele. A maioria tinha idéias muito semelhantes, definidas por Johnny como sendo superficialmente liberais nas questões internas e de moderadas a muito conservadoras em matéria de política internacional. Não havia um que tivesse votado com Carter na questão dos tratados do Canal do Panamá. E quando se arranhava o verniz de liberalismo nos pontos de vista internos, eles se revelavam bastante conserva­dores, também. O partido América Agora queria acabar com os traficantes de entorpecentes em grande escala, queria que as cidades se mantivessem por si, sobrevivendo ou se afundando (“Não há necessidade de um fazendeiro de laticínios, que luta para viver, subsidiar os programas de drogas de Nova York com seus impos­tos”, declarava Greg), queria acabar com os benefícios de assistência social para prostitutas, cafetões, vagabundos e pessoas com ficha na policia, queria grandes reformas fiscais, a serem pagas por meio de grandes reduções nos serviços sociais. Tudo isso era velharia, mas o partido América Agora de Greg tinha lançado a coisa com uma roupagem nova e agradável.

Sete deputados haviam mudado de partido antes das eleições bienais, e dois senadores. Seis dos deputados foram reeleitos, e os dois senadores. Desses nove, oito tinham sido republicanos, cuja base fora muito reduzida. Sua mudança de partido e subseqüentes reeleiçôes, segundo um humorista, tinha sido um truque melhor do que o que se seguira às palavras “Lázaro, levanta-te!”

Já havia quem dissesse que Greg Stillson poderia ser uma força a se considerar, e não dali a muito tempo. Ele não conseguira mandar toda a poluição do mundo para Júpiter e para os anéis

- de Saturno, mas tinha conseguido expulsar pelo menos dois dos bandidos: um deputado que andara lucrando como sócio oculto de uma operação de exploração de estacionamento, e um assessor presi­dencial com tendência para freqüentar bares de homossexuais. Seu projeto de lei para o teto do petróleo demonstrara visão e audácia, e a orientação cuidadosa que ele lhe dera, da comissão à votação final, demonstrara uma sagacidade de gente do interior. O ano de 1980 seria muito cedo para Greg, e 1984 poderia ser tentador demais para resistir, mas, se ele conseguisse ficar firme até 1988, se continuasse a construir suas bases e os ventos das mudanças não se modificassem tão radicalmente a ponto de derrubar o seu inci­piente partido, então tudo seria possível. Os republicanos estavam brigando entre si, e, supondo-se que Mondale, Jerry Brown ou até mesmo Howard Baker pudessem suceder a Carter, quem surgiria depois? Mesmo 1992 poderia não ser tarde demais para ele. Era um homem relativamente jovem. Sim, 1992 parecia mais ou menos certo...

Havia várias caricaturas políticas nos cadernos de Johnny. To­das mostravam o contagiante sorriso torto de Stillson, e em todas ele estava com seu capacete de construção. Uma, de Olíphant, mos­trava Greg rodando um barril de petróleo em que se lia TETOS DE PREÇO pelo corredor central da Câmara, o capacete puxado para trás da cabeça. Na frente estava Jimmy Carter, coçando a cabeça e com um ar intrigado; não estava olhando para o lado de Greg, em abso­luto, e a insinuação parecia ser que ele seria abalroado. A legenda dizia: SAIA DA FRENTE, JIMMY.

O capacete. Por algum motivo, o capacete preocupava Johnny mais do que tudo. Os republicanos tinham o seu elefante, os demo­cratas, seu burro, e Greg Stillson tinha o seu capacete. Nos sonhos de Johnny, às vezes aparecia Stillson usando um capacete de moto­ciclista. E, outras vezes, era um capacete de balde de carvão.

 

Num caderno separado, ele guardava os recortes que o pai lhe mandara, sobre o incêndio na Cathy’s. Ele os lera e relera, embora por motivos que nem Sam, nem Roger e nem mesmo seu pai pode­riam supor. PARANORMAL PREDIZ INCENDIO. “MINHA FILHA TAM­BÉM TERIA MORRIDO”, DECLARA MÃE CHOROSA E AGRADECIDA (a mãe chorosa e agradecida, no caso, era a mãe de Patty Strachan). “Paranormal que resolveu assassinatos de Castle Rock prevê incêndio por raio.” MORTOS DO RESTAURANTE SÃO 90. PAI DIZ QUE JOHNNY SMITH DEIXOU A NOVA INGLATERRA E SE RECUSA A REVELAR SEU PARADEIRO. Fotos dele. do pai. Fotos daquele antigo desastre na Rodovia 6, em Cleaves Mills, nos tempos em que Sarah Brackneil era sua namorada. Sarah agora era mulher feita, mãe de dois filhos, e em sua última carta Herb tinha dito que Sarah já estava com alguns cabelos brancos. Parecia impossível acreditar que ele mesmo já tivesse trinta e dois anos. Impossível, mas verdade.

Em volta desses recortes havia as suas anotações, seus esforços dolorosos para endireitar as coisas em sua cabeça, de uma vez por todas. Ninguém entendia a verdadeira importância do incêndio, suas implicações sobre o assunto muito mais vasto que era o que fazer com Greg Stillson.

Ele tinha escrito: “Tenho de fazer alguma coisa quanto a Greg Stillson. Preciso. Eu tinha razão no caso da Cathy’s, e terei razão nisso também. Não há dúvida alguma em minha cabeça. Ele vai ser presidente e vai começar uma guerra.., ou provocar uma, por simples imperícia no governo, o que vem a dar no mesmo.

 

O     problema é: Até que ponto devem ser drásticas as provi­dências a tomar?

Consideremos a Cathy’s um caso de experiência. Quase podia ter-me sido mandado como um sinal; Deus, estou começando a pare­cer a minha mãe, mas é isso aí. Está certo, eu sabia que ia haver um incêndio e que ia morrer gente. Isso bastou para salvá-los? Resposta: não bastou para salvá-los todos, porque as pessoas só acreditam mesmo depois de acontecer. Aqueles que foram à casa dos Chatsworths em vez de irem à Cathy’s se salvaram, mas é importante lembrar que R. C. não deu a festa por acreditar em minha previsão. Ele foi bem claro nesse ponto. Deu a festa porque achou que ia me ajudar a ter paz de espírito. Ele estava... fazendo a minha vontade. Acreditou depois. A mãe de Patty Strachan acredi­tou depois. Depois-depois-depois. A essa altura já era tarde para os mortos e queimados.

Então, pergunta número 2: Eu poderia ter alterado o resultado?

Sim. Poderia ter jogado um carro bem contra a frente da casa. Ou eu mesmo poderia tê-la incendiado, naquela tarde.

Pergunta número 3: Quais teriam sido as conseqüências de qualquer desses atos, para mim?

Prisão, provavelmente. Se eu optasse pela alternativa do carro, e depois um raio atingisse o prédio, de noite, imagino que eu pudes­se ter argumentado... não, não adianta. A experiência normal pode reconhecer algum tipo de capacidade extra-sensorial na mente huma­na, mas a lei certamente não reconhece. Hoje penso que, se tivesse de fazer tudo de novo, faria uma dessas coisas e não me importaria com as conseqüências. Será possível que eu não acreditasse piamente na minha própria previsão?

A questão de Stillson é terrivelmente semelhante em todos os aspectos, a não ser, graças a Deus, é que tenho muito mais tempo pela frente.

Então, voltamos à estaca zero. Não quero que Greg Stillson seja presidente. Como posso modificar esse resultado?

  1. Voltar a New Hampshire e ‘juntar-me a ele’, como diz ele. Procurar atrapalhar um pouco o Partido América Agora. Procurar sabotá-lo. Há bastante podridão por ai. Talvez eu pudesse desen­cavar parte dela.
  2. Contratar outra pessoa para incriminá-lo. Há bastante di­nheiro de Roger para eu poder contratar uma pessoa capaz. Por outro lado, tenho a impressão de que Lancte era bem capaz. Mas Lancte está morto.
  3. Feri-lo ou incapacitá-lo. Assim como Arthur Bremmer inca­pacitou Wallace e quem quer que seja incapacitou Larry Flint.
  4. Matá-lo. Assassiná-lo.

Agora, alguns dos obstáculos. A primeira opção não é bastante segura. Eu podia acabar conseguindo apenas ficar arrasado, como aconteceu com Hunter Thompson quando estava fazendo pesquisa para o seu primeiro livro, aquele sobre os Hell’s Angels. Pior ainda, esse tal de Elliman pode saber como é a minha cara, por causa do que aconteceu no comício de Trimbull. Não é mais ou menos praxe ter um arquivo das pessoas que podem ser perigosas para os seus chefes? Eu não me espantaria se soubesse que Stillson tem em sua folha de pagamento um camarada encarregado unicamente de manter um arquivo atualizado de gente esquisita e biruta. O que positiva­mente me inclui.

Depois, segunda opção. Suponhamos que toda a sujeira já tenha sido revelada. Se Stillson já formulou suas aspirações políticas mais elevadas — e tudo indica que sim —, já pode ter limpado sua reputação. E outra coisa: as trapaças são prejudiciais só na medida em que a imprensa assim o deseje, e a imprensa gosta de Stillson. Ele a cultiva. Num romance, imagino que eu mesmo me tornasse detetive particular para incriminá-lo, mas a triste verdade é que eu não saberia nem por onde começar. Ë possível argumentar que a minha faculdade de ‘ler’ as pessoas, de encontrar coisas perdidas (para citar Sam), seja uma vantagem para mim. Se eu conseguisse descobrir alguma coisa sobre Lancte, seria tiro e queda. Mas não é provável que Stillson delegue tudo isso a Sonny Elliman? E nem posso ter certeza, apesar de minhas suspeitas, de que Edgar Lancte ainda estivesse na pista de Stillson quando foi assassinado. É possí­vel que eu pudesse fazer enforcar Sonny Elliman e ainda assim não liquidasse Stillson.

Sobretudo, a segunda alternativa não é bastante segura. O que está em jogo é uma coisa enorme, tanto que muitas vezes nem me permito pensar no quadro geral. Provoca uma grande dor de cabeça, todas as vezes.

Cheguei até a pensar, em meus momentos mais loucos, em tentar viciá-lo em entorpecentes, como aconteceu com a personagem representada por Gene Hackman em Operação França II, ou dei­xá-lo alucinado colocando LSD em seu refrigerante. Mas tudo isso é faz-de-conta de filme policial. Merda de Gordon Liddy! Os pro­blemas são tantos que essa opção nem merece muitos comentários. Talvez eu pudesse seqüestrá-lo. Afinal de contas, o camarada é apenas deputado dos Estados Unidos. Eu não saberia onde arranjar morfina ou heroína, mas podia conseguir um bocado de LSD com Larry McNaughton, bem aqui no Departamento de Obras Públicas de Phoenix. Ele tem comprimidos para todos os fins. Mas suponha. mos (se quisermos supor o exposto acima) que ele gostasse da(s) viagem(ns)?

Atirar nele para incapacitá-lo? Talvez eu pudesse, talvez não. Acho que, dadas as circunstâncias propícias, poderia fazê-lo.., como no comício de Trimbull. Suponhamos que o fizesse. Depois do que ocorreu em Laurel, George Wallace nunca mais voltou a ser uma potência política. Por outro lado, F. D. Roosevelt fez campanha numa cadeira de rodas e até transformou isso em vantagem.

Resta o assassinato, coisa da Máfia. É a única alternativa contra a qual não há argumentos. Ninguém pode candidatar-se a presidente se for um cadáver.

Se eu conseguisse puxar o gatilho.

E, se conseguisse, quais seriam as conseqüências para mim?

Conforme diz Bob Dylan: ‘Benzinho, é preciso perguntar isso?’”

Havia muitas outras anotações e rabiscos, mas a única realmen­te importante estava destacada: “Suponhamos que o assassinato puro e simples seja a única alternativa. E suponhamos que eu conseguisse puxar o gatilho. O assassinato ainda assim é errado. O assassinato é errado. O assassinato é errado. Ainda pode haver uma solução. Graças a Deus, ainda faltam vários anos.”

 

Mas, para Johnny, não faltavam.

Em princípios de dezembro de 1978, pouco depois que outro deputado, Leo Ryan, da Califórnia, foi morto a tiros numa pista de aviação nas florestas da Guiana, América do Sul, Johnny Smith des­cobriu que estava quase sem tempo.

 

Às catorze horas e trinta minutos do dia 26 de dezembro de 1978, Bud Prescott atendeu um rapaz alto e meio abatido, de cabe­los grisalhos e olhos muito injetados. Bud .era um dos três empre­gados que estavam trabalhando na Loja de Artigos Esportivos da 4th Street, de Phoenix, um dia depois do Natal, e a maior parte do movimento era de trocas.., mas aquele camarada era um freguês que ia pagar.

Ele disse que queria comprar uma boa carabina, leve, de ferro­lho. Bud mostrou-lhe várias. O dia seguinte ao Natal era de pouco movimento no balcão das armas; quando os homens ganhavam armas de presente de Natal, muito poucos queriam trocá-las por outra coisa.

Aquele camarada examinou todas com cuidado e por fim resol­veu-se por uma Remington 700, calibre .243, arma muito boa, com um coice leve e trajetória plana. Assinou o registro das armas com o nome de John Srnith, e Bud pensou: “Se nunca vi um nome falso na vida, estou vendo agora”. “John Smith” pagou em dinheiro, tirando as notas de vinte de uma carteira cheia delas. Pegou a arma na hora. Bud, querendo mexer com ele, disse que podiam mandar gravar suas iniciais na coronha, sem acréscimo. “John Smith” limitou-se a sacudir a cabeça.

Quando “Smith” saiu da loja, Bud notou que ele estava capen­gando bastante. Nunca haveria problema em identificar aquele cara, pensou ele, com aquele andar capenga e as cicatrizes no pescoço.

 

Às dez e meia da manhã do dia 27 de dezembro, um homem magro, capengando, entrou na loja Artigos de Escritório Phoenix, e aproximou-se de Dean Clay, vendedor da loja. Mais tarde Clay diria que tinha notado o que sua mãe chamava de “ponto de fogo” em um dos olhos do homem. O freguês disse que queria comprar uma pasta grande, e acabou escolhendo um belo artigo de couro de boi, o melhor da linha, que custou 149,95 dólares. E o homem obteve o desconto de pagamento à vista, fazendo-o com notas novas de vinte. Toda a transação, desde olhar até pagar, não levou mais de dez minutos. O sujeito saiu da loja e dobrou à direita, em direção ao centro, e Dean Clay nunca mais o viu, até ver sua foto no Sun de Phoenix.

 

Naquele mesmo dia, mais tarde, um homem alto, de cabelos grisalhos, aproximou-se do guichê de Bonita Álvarez, no terminal da Amtrak de Phoenix, e indagou sobre a viagem de Phoenix a Nova York, de trem. Bonita mostrou as conexões. Ele acompanhou com o dedo e depois anotou tudo com cuidado. Pediu a Bonita Álvarez para lhe dar uma passagem para o dia 3 de janeiro. Bonnie passou os dedos sobre o consolo do computador e disse que sim.

— Então por que não... — começou a dizer o homem alto, e depois parou. Levou uma das mãos à cabeça.

— O senhor está bem?

— Fogos de artifício — disse o homem alto. Mais tarde ela contou à polícia que tinha certeza de que fora isso o que ele dissera. Fogos de artifício.

— O senhor está bem?

— Dor de cabeça — disse ele. — Desculpe. — Procurou sorrir, mas o esforço não melhorou em nada seu rosto, cansado, de moço-velho.

— Quer uma aspirina? Tenho aqui.

— Não, obrigado. Isso passa.

Ela emitiu as passagens e disse que ele chegaria à Grand Central Station, em Nova York, no dia 6 de janeiro, no meio da tarde.

— Quanto é?

Ela disse o total e perguntou:

— Vai pagar à vista ou a crédito, sr. Smith?

— Em dinheiro — disse ele, e tirou o dinheiro da carteira: um punhado de notas de vinte e de dez.

Ela contou-o, deu o troco, o recibo e as passagens.

— O seu trem sai às dez e meia, Sr. Smith — disse ela. — Por favor, chegue aqui e esteja pronto para embarcar as dez e dez.

— Está bem — disse ele. — Obrigado.

Bonnie deu-lhe um sorriso profissional, mas o Sr. Smith já ia saindo. O rosto dele estava muito pálido, e pareceu a Bonnie que ele estava com muita dor.

Ela tinha certeza absoluta de que ele dissera “fogos de arti­fício”.

 

Elton Curry era condutor da linha Phoenix - Salt Lake, da Amtrak. O homem alto compareceu pontualmente as dez da manhã do dia 3 de janeiro, e Elton ajudou-o a subir os degraus para o vagão porque estava mancando muito. Numa das mãos, levava uma mala de tecido escocês meio velha, surrada e esfiapada. Na outra, uma pasta de couro de boi nova em folha. Carregava essa pasta como se fosse bem pesada.

—    Posso ajuda-lo, senhor? — perguntou Elton, referindo-se à pasta, mas foi a mala que o passageiro lhe deu, junto com a passagem.

— Não, a passagem só depois que partirmos, senhor.

— Está bem. Obrigado.

Um sujeito muito educado, disse Elton Curry aos agentes do FBI que mais tarde o interrogaram. E deu boas gorjetas.

 

O     dia 6 de janeiro de 1979 foi um dia cinzento e nublado em Nova York: a neve ameaçou mas não caiu. O táxi de George Cle­mens estava parado na frente do Biltmore Hotel, do outro lado da Grand Central.

A porta abriu-se, e entrou um sujeito de cabelos grisalhos, movendo-se com cuidado e dolorosamente. Ele colocou uma mala e uma pasta no banco a seu lado, fechou a porta e depois encostou a cabeça no assento, fechando os olhos um instante, como se estivesse muito, muito cansado.

—    Para onde vamos, amigo? — perguntou George.

O passageiro olhou para um papel.

— Para o terminal de Port Authority — disse ele.

George deu a partida.

— Está parecendo meio pálido, meu chapa. O meu cunhado ficava com essa cara quando tinha as crises de pedras na vesícula. Tem pedras?

— Não.

— O meu cunhado diz que essas pedras na vesícula doem mais do que qualquer outra coisa. A não ser talvez pedras nos rins. Sabe o que eu disse a ele? Disse que estava falando besteira. Andy, eu disse, você é boa-praça, eu gosto de você, mas está cheio de bosta. Você já teve câncer, Andy?, disse eu. Perguntei isso, sabe, se ele teve câncer. Quero dizer, todo mundo sabe que o câncer é que é o pior. — George deu uma olhada demorada pelo espelho retrovisor. — Estou lhe perguntando sinceramente, meu chapa.., está bem? Porque vou lhe dizer a verdade, está com cara de morte requentada.

O passageiro respondeu:

— Estou bem. Estava.., pensando em outra viagem de táxi. Há vários anos.

— Ah, certo — disse George, com ar sabido, como se soubesse do que o homem estava falando. Bem, Nova York estava cheia de birutas, não se podia negar isso. E, depois de sua breve pausa para meditação, continuou a falar sobre o cunhado.

 

— Mamãe, aquele homem está doente?

— Psiu.

— Sei, mas está?

—    Danny, cale-se.

Ela sorriu para o homem do outro lado do corredor do ônibus, um sorriso de desculpas, de garotos-dizem-qualquer-coisa-não-é?, mas o homem não parecia ter ouvido. O coitado parecia estar doente mesmo. Danny só tinha quatro anos, mas tinha razão nesse ponto. O homem estava olhando para fora, desanimado, para a neve que tinha começado a cair pouco depois que eles atravessaram a fron­teira do Estado de Connecticut. Ele era pálido demais, magro demais, e tinha uma pavorosa cicatriz, como a de Frankenstein, que ia do colarinho do casaco até debaixo do maxilar. Era como se alguém tivesse tentado arrancar sua cabeça, num dia não muito distante... tentado e quase conseguido.

O ônibus estava a caminho de Portsmouth, New Hampshire, e eles chegariam lá às nove e meia da noite, se a neve não atrasasse tudo demais. Julie Brown e o filho iam visitar a sogra de Julie, e como sempre a velha vaca ia estragar Danny ao máximo.., e Danny não precisava de muita coisa para isso.

— Quero ver o homem.

— Não, Danny.

— Quero ver se ele está doente.

— Não!

— É, mas e se ele estiver morreno, mãe? — Os olhos de Danny chegaram a brilhar, diante dessa possibilidade encantadora.

Ele pode estar morreno agora mesmo!

—    Danny, cale a boca!

—    Ei, moço! — disse Danny. — Está morreno, ou alguma coisa?

— Danny, cale essa boca! — cochichou Julie, as faces ardendo de encabulamento.

Danny então começou a chorar, não um choro de verdade, mas aquele choramingar ranheta, não-me-fazem-as-vontades, que sem­pre dava vontade de agarrá-lo e beliscar os braços dele até ele ter mesmo alguma coisa por que chorar. Em momentos como aquele, viajando de ônibus, de noitinha no meio de outra tempestade de neve nojenta, com o filho choramingando ao lado, ela tinha vontade que a mãe a tivesse esterilizado vários anos antes de ela ter alcan­çado a idade do consentimento.

Foi então que o homem do outro lado do corredor virou a cabeça e sorriu para ela.., um sorriso cansado e doloroso, mas meio doce, apesar de tudo. Ela viu que os olhos dele estavam terrivelmente injetados, como se ele tivesse chorado. Ela tentou sorrir em resposta, mas o sorriso pareceu falso e aflito, em seus lábios. Aquele olho esquerdo vermelho — e a cicatriz subindo pelo pes­coço — dava um ar sinistro e desagradável a todo aquele lado do rosto.

Ela torceu para que o homem do outro lado do corredor não fosse até Portsmouth, mas acontece que foi. Ela o avistou no termi­nal, quando a avó de Danny, risonha e feliz, pegou o menino no colo. Viu-o capengando para as portas do terminal, uma mala surrada em uma das mãos, uma pasta nova na outra. E, por um momento, sentiu um arrepio. Era mais do que um capengar... era quase uma guinada cambaleante. Mas havia naquilo algo de implacável, disse ela mais tarde à polícia estadual de New Hampshire. Era como se ele soubesse exatamente para onde ia e que nada iria impedi-lo de chegar lá.

Depois, ele passou para as trevas, e ela o perdeu de vista.

 

Timmesdale, New Hampshire, é uma cidadezinha a oeste de Durham, dentro do terceiro distrito eleitoral. Vive da menor das fábricas Chatsworth, que se ergue como um ogre manchado de fuligem, à margem do riacho de Timmesdale. Sua única e modesta pretensão à fama (segundo a Câmara de Comércio local) é que foi a primeira cidade de New Hampshire a ter luzes elétricas nas ruas.

Uma tarde, em princípios de janeiro, um rapaz de cabelos pre­maturamente grisalhos e mancando entrou no Tímmesdale Pub, a única cervejaria da cidade. Dick O’Donnell, o proprietário, estava tomando conta do bar. O lugar estava quase vazio, porque era o meio da semana e outra tempestade de neve se anunciava. Já havia uns cinco centímetros amontoados lá fora, e ainda viria mais.

O manco bateu com os pés para tirar a neve, foi ao bar e pediu uma cerveja Pabst, O’Donnell atendeu-o. O sujeito tomou mais duas, demorando, assistindo à TV acima do balcão. A cor estava ruim já havia dois meses, e The Fonz parecia um idoso fantasma romeno. O’Donnell não se lembrava de já ter visto aquele cara por ali.

— Mais uma? — perguntou O’Donnell, voltando ao balcão de­pois de ter servido as duas velhas no canto.

— Mais uma não vai fazer mal — disse o sujeito. Ele apontou para um ponto acima da TV. — Já o conhece, com certeza.

Era uma ampliação enquadrada de uma caricatura política. Mostrava Greg Stillson, o capacete de obras puxado para trás da cabeça, jogando um sujeito de terno e gravata pela escada do Capitólio abaixo. O sujeito de terno era Louis Quinn, o deputado apa­nhado recebendo comissões no escândalo do estacionamento, uns catorze meses antes. A caricatura dizia ACABANDO COM OS VAGABUN­DOS, e no canto tinha sido assinada, numa letra esparramada: “Para Dick O’Donneil, que tem o melhor bar do terceiro distrito! Conti­nue, Dick — Greg Stillson”.

— Se conheço — disse O’Donnell. — Ele fez um discurso aqui da última vez que fez campanha para a Câmara. Tinha espalhado cartazes por toda a cidade, para o pessoal vir ao pub às duas da tarde de sábado e beber por conta de Greg. Foi a melhor féria que já tirei num dia, raios. As pessoas iam tomar só uma bebida por conta dele, mas ele acabou pagando a conta toda. Não se pode fazer muito mais do que isso, não é?

— Parece que você o acha um camarada e tanto.

— Acho, sim — disse O’Donnell. — Eu ficaria tentado a dar na cara de quem dissesse que não.

— Bem, não duvido. — O sujeito colocou três moedas no balcão. — Tome uma por minha conta.

— Bom, está bem. Pode ser. Obrigado, ......

—    Meu nome é Johnny Smith.

— Muito prazer, Johnny. Eu sou Dicky O’Donnell. — Ele se serviu de um chope. — , Greg fez muita coisa por esta região de New Hampshire. E há muita gente que tem medo de dizer isso às claras, mas eu, não. Digo alto e bom som. Um dia Greg Stillson é bem capaz de ser presidente.

— Acha isso?

— Acho — disse O’Donnell, voltando para o bar. — New Hampshire é muito pequeno para Greg. Ele é um político danado, e, vindo de minha boca, isso é dizer muito. Eu achava que o bando todo não passava de um monte de bandidos e vagabundos. Ainda acho, mas Greg é uma exceção. Se me dissesse há cinco anos que eu ainda iria dizer uma coisa dessas, eu riria na sua cara. Diria que era mais provável me encontrarem lendo poesia do que vendo alguma coisa boa num político. Mas, que diabo, ele é um homem.

Johnny disse:

— A maior parte desses caras querem ser chapas da gente quando estão querendo ser eleitos, mas depois é foda-se, meu chapa, estou na minha até a próxima eleição. Eu sou do Maine, e a única vez em que escrevi a Ed Muskie, sabe o que recebi? Uma carta padrão!

— Ah, esses polacos são assim — disse O’Donnell. — O que se pode esperar de um polaco? Escute, Greg vem ao distrito todos os fins de semana! Isso lhe parece um foda-se, meu chapa, estou na minha?

—    Todos os fins de semana, é? — Johnny bebericou a cerveja. — Onde? Trimbull? Ridgeway? As cidades grandes?

— Ele tem um sistema — disse O’Donnell, no tom reverente de um homem que nunca conseguiu formular um para si. — Quinze cidades desde as grandes, como Capital City, até as pequeninas, como Timmesdale e Coorter’s Notch. Vai a uma por semana, até completar a lista toda, e depois recomeça do princípio. Sabe o tamanho de Coorter’s Notch? São oitocentos moradores, lá. Então, o que você acha de um camarada que sai de Washington no fim de semana e vai a Coorter’s Notch, gelando os ovos num auditório frio? Isso lhe parece foda-se, meu chapa, estou na minha?

— Não parece, não — disse Johnny, com sinceridade. — O que é que de faz? Apertos de mãos?

— Não, ele tem um auditório em cada cidade Reserva para o dia todo, no sábado. Chega por volta das dez da manhã, e as pessoas tem ir lá conversar com ele. Contar suas idéias, sabe. Se tiverem perguntas, ele responde. Se não puder responder, volta para Wash­ington e descobre a resposta! — Ele olhou para Johnny com um ar triunfante.

—    Quando foi a última vez que ele esteve aqui em Timmes­dale?

— Há uns dois meses — disse O’Donnell. Foi à caixa registradora e remexeu numa pilha de papéis ao lado. Pagou um recorte bem manuseado e colocou-o no balcão ao lado de Johnny. — Aqui está a lista. Veja só isso e diga o que acha.

O recorte era do jornal de Ridgeway. Já estava bem velho. O artigo era intitulado STILLSON ANUNCIA “CENTROS DE REGENERA­ÇÃO”. O primeiro parágrafo parecia tirado diretamente do material de Stillson destinado à imprensa. Abaixo havia a lista de cidades onde Greg passaria os fins de semana e as datas programadas. Só voltaria a Timmesdale em meados de março.

       — Acho que parece muito bom — disse Johnny.

— É, eu também. Uma porção de gente acha isso.

— Por esse recorte, ele deve ter estado em Coorter’s Notch ainda no último fim de semana.

— Isso mesmo — disse O’Donnell, e riu. — A velha Coorter’s Notch. Mais uma cerveja, Johnny?

— Só se você me acompanhar — disse Johnny, e pôs dois dólares no balcão.

— Bem, vá lá.

Uma das duas mulheres tinha posto dinheiro na vitrola auto­mática, e Tammy Wynette, parecendo velha e cansada e não muito feliz por estar ali, começou a cantar: Stand by your man.

— Ei, Dick! — gritou a outra. — Já ouviu falar em serviço, nesse boteco?

— Cale a boca! — berrou ele.

— Foda-se! — gritou ela, e riu.

— Que diabo, Clarice, já lhe disse para não falar isso em meu bar! Já lhe disse...

— Ora, pare com isso e traga cerveja.

— Detesto essas duas putas velhas — resmungou O’Donnell para Johnny. — Duas paraíbas velhas e bêbadas, é o que elas são. Já estão aqui há um milhão de anos, e não me espantaria se as duas ainda me vissem na cova. Esse mundo às vezes é o diabo.

— É mesmo.

— Com licença, já volto. Tenho uma ajudante, mas no inverno ela só vem as sextas e sábados.

O’Donnell tirou duas canecas de cerveja e levou-as para a mesa. Disse alguma coisa às mulheres e Clarice respondeu: “Foda-se”, e tomou a dar risada. O bar estava cheio dos espectros de hambúr­gueres mortos. Tammy Wynette cantava através do pipocar de um disco velho. Os aquecedores bombeavam um calor surdo na sala, e lá fora a neve batia, seca, nas vidraças. Johnny esfregou as têmpo­ras. Já tinha estado naquele bar, em cem outras cidadezinhas. Estava com dor de cabeça. Quando apertou a mão de O’Donnell, soube que o homem possuía um vira-lata velho que ele tinha treinado a atacar a uma ordem sua. Seu sonho é que uma noite um ladrão entrasse na casa e ele pudesse legalmente fazer aquele cachorro velho atacá-lo, e nesse mundo haveria um raio de um hippie, viciado e pervertido, a menos.

Ah, que dor de cabeça!

O’Donnell voltou, enxugando as mãos no avental. Tammy Wynette acabou e foi substituída por Red Sovine, que tinha um chamado da faixa do cidadão para Teddy Bear.

— Mais uma vez, obrigado pela bebida — disse O’Donnell, tirando dois chopes.

—    O prazer foi meu — disse Johnny, ainda examinando o recorte. — Coorter’s Notch na semana passada, Jackson esta semana. Nunca ouvi falar nesta. Deve ser bem pequena, hem?

— Uma aldeia — concordou O’Donnell. — Antes tinham uma estação de esqui, mas faliu. Um bocado de desemprego por lá. Fazem um bocado de polpa de madeira e lavoura em pequena escala. Mas ele vai lá, Deus do céu. Fala com o pessoal. Escuta as lamen­tações deles. De que parte do Maine você é, Johnny?

—    Lewiston — mentiu Johnny.

O recorte dizia que Greg Stillson se encontraria com os interes­sados no prédio da prefeitura.

— Veio esquiar, hem?

— Não, machuquei a minha perna há tempo. Não faço mais esqui. Só ia passando por aí. Obrigado por ter me mostrado isso. — Johnny devolveu o recorte. — Bem interessante.

O’Donnell guardou-o com cuidado, com os outros papéis. Tinha um bar vazio, um cão em casa que atacava sob ordem, e Greg Stillson. Greg tinha estado em seu bar.

De repente Johnny teve vontade de estar morto. Se esse dom fosse um dom de Deus, então Deus era um louco perigoso, que devia ser detido. Se Deus queria que Greg Stillson fosse morto, porque não o fizera descer pelo canal uterino com o cordão umbi­lical enrolado ao pescoço? Ou por que não o engasgara com um pedaço de carne? Ou não o eletrocutara quando ele estava mudando a estação do rádio? Ou o afogara num poço? Por que Deus havia de querer que Johnny Smith fizesse o seu trabalho sujo? Não cabia a ele a responsabilidade de salvar o mundo, isso era para os psico­patas, e só estes se atreveriam a tentá-lo. De repente ele resolveu que ia deixar Greg Stilson viver e ia cuspir no olho de Deus.

—    Está bem, Johnny? — perguntou O’Donnell.

—    Hem? Ah, claro.

— Você pareceu meio esquisito, um instante.

Chuck Chatsworth dizendo: “Se eu não o fizesse, teria medo de que todas as pessoas que ele matou me atormentassem até o dia de minha morte”.

— Estava pensando na morte da bezerra, acho — disse Johnny. — Quero que saiba que foi um prazer beber com você.

—    Bom, da mesma forma — disse O’Donnell, parecendo satis­feito. — Gostaria que mais pessoas que passam por aqui achassem a mesma coisa. Passam por aqui a caminho das estações de esqui, sabe. Os lugares grandes. É para lá que levam o dinheiro. Se eu soubesse que parariam por aqui, arrumaria isto do jeito que gostam. Pôsteres, sabe, da Suíça, do Colorado. Uma lareira. Encheria a vitrola de discos de rock’n’roll, em vez dessa música de merda. Eu... sabe, gostaria disso. — Deu de ombros. — Não sou mau sujeito, que diabo.

— Claro que não — disse Johnny, descendo do banquinho e pensando no cachorro treinado para atacar, e no esperado ladrão hippie, viciado.

— Bom, diga aos seus amigos que estou aqui — disse O’Donnell.

— Claro! — disse Johnny.

— Ei, Dick! — berrou uma das mulheres. — Já ouviu falar de serviço-com-um-sorriso por aqui?

— Por que não vão se danar? — berrou O’Donnell para ela, todo vermelho.

—    Foda-se! — berrou Clarice em resposta, dando risada.

Johnny saiu depressa para a tempestade que se armava.

 

Ele estava hospedado no Holiday Inn, em Portsmouth. Quando voltou, naquela noite, disse na portaria para prepararem a conta para a manhã seguinte.

No quarto, sentou-se à escrivaninha impessoal Holiday Inn, pegou todo o papel de carta e a caneta Holiday Inn. Sua cabeça estava latejando, mas ele tinha de escrever umas cartas. Sua revolta momentânea — pois não passara disso — já se fora. Permanecia o seu negócio inacabado com Greg Stillson.

“Fiquei doido”, pensou ele. “É a verdade. Fiquei doido de pedra.” Já imaginava as manchetes. PSICOPATA MATA DEP. DE N.H. LOUCO ASSASSINA STILLSON. CHUVA DE BALAS DERRUBA DEPUTADO DOS EUA EM NEW HAMPSHIRE. E a Inside View, claro, daria um baile: AUTOPROCLAMADO “VIDENTE” MATA STILLSON; DOZE NOTAVEIS PSIQUIATRAS DIZEM POR QUE SMITH FEZ ISSO. Com um artigo daque­le tal de Dees, talvez, contando que Johnny tinha ameaçado pegar a espingarda e “matar um intruso”.

Louco.

A dívida do hospital estava paga, mas aquilo deixaria uma nova conta, e o pai teria de pagá-la. Ele e sua nova esposa passariam muitos dias à luz da ribalta de sua fama refletida. Receberiam a correspondência do ódio. Todos os que ele tinha conhecido seriam entrevistados: os Chatsworths, Sam, o xerife George Bannerman. Sarah? Bem, talvez não chegassem até Sarah. Afinal, não era como se ele estivesse planejando matar o presidente. Pelo menos, ainda não. “Há muita gente que tem medo de dizer, mas eu não. Digo alto e bom som. Um dia Greg Stillson pode vir a ser presidente”.

Johnny esfregou as têmporas. A dor de cabeça vinha em ondas lentas e baixas, e nada disso estava fazendo com que as cartas fos­sem escritas. Ele puxou a primeira folha de papel de carta, pegou a caneta, e escreveu: “Querido pai”. Lá fora, a neve batia na vidraça com o barulho seco e arenoso que significa uma boa nevada. Por fim a caneta começou a mover-se pelo papel, a principio devagar, depois ganhando velocidade.

 

Jolmny subiu uma escada que tinha sido varrida de neve e levara sal. Passou por portas duplas e entrou num saguão cheio de cédulas e avisos de uma assembléia municipal extraordinária a ser realizada em Jackson, no dia 3 de fevereiro. Também havia um aviso da visita de Greg Stillson e uma foto do próprio Homem, o capacete puxado para trás, com aquele sorriso duro e torto, como quem diz: “Nós estamos por dentro, hem, meu chapa?” Um pouco à direita da porta verde que dava para o auditório, havia um aviso que Johnny não esperava, e ele pensou naquilo, calado, vários segundos, exalando o vapor branco. EXAME DE MOTORISTA HOJE, dizia o avi­so. Estava num cavalete de madeira. PREPAREM DOCUMENTOS.

Abriu a porta, entrou na onda do calor abafado de um grande fogareiro de lenha e viu um policial sentado a uma mesa. O guarda estava com uma jaqueta de esqui, o fecho aberto. Havia papéis espalhados pela mesa dele, e também um aparelho para medir a acuidade visual.

O     guarda olhou para Johnny, e este sentiu uma sensação de desânimo.

—    Posso ajudá-lo, senhor?

Johnny pegou na câmara pendurada ao pescoço.

—    Bom, eu estava pensando se poderia olhar por aí um pouco

—    disse ele. — Tenho um trabalho para fazer para a revista Yankee. Estamos fazendo um apanhado sobre a arquitetura de prefeituras do Maine, New Hampshire e Vermont. Tirando uma porção de fotos, sabe.

—    Pode ir em frente — disse o guarda. — Minha mulher sempre lê a Yankee. A mim, dá sono.

Johnny sorriu.

—    A arquitetura da Nova Inglaterra tem uma tendência para... bem, para a rigidez.

—    Rigidez — repetiu o guarda, na dúvida, e depois desistiu. — O próximo, por favor.

Um rapaz aproximou-se da mesa à qual o guarda estava sen­tado. Entregou um papel de exame ao guarda, que o pegou e disse:

—    Olhe no visor, por favor, e identifique os sinais e placas de trânsito. que vou lhe mostrar.

O     rapaz espiou dentro do aparelho. O guarda colocou uma chave sobre o papel de exame do rapaz. Johnny foi andando pelo corredor central da prefeitura de Jackson e bateu uma chapa da tribuna, na frente.

—    É uma placa de “Pare” — disse o rapaz, atrás dele. — A outra é de preferência, e a outra é uma placa de informações de tráfego... proibido virar à direita, proibido virar à esquerda, assim...

Ele não esperava encontrar guarda algum na prefeitura; nem se dera ao trabalho de comprar um filme para a câmara que estava usando. Mas agora era tarde para recuar, de qualquer forma. Era sexta-feira, e Stillson estaria ali no dia seguinte, se as coisas saís­sem como deveriam. Ele estaria respondendo às perguntas e ouvin­do as sugestões da boa gente de Jackson. Com ele estaria uma comitiva de bom tamanho. Alguns assessores, uns conselheiros... e vários outros, rapazes de terno e paletó esporte, que havia pouco tempo usavam jeans e andavam de motocicleta. Greg Stillson continuava a acreditar firmemente em guarda-costas. No comício de Trimbull, carregavam tacos de bilhar cortados. Hoje portariam ar­mas? Seria assim tão difícil um deputado dos EUA conseguir uma

licença de porte de armas? Johnny achava que não. Ele só podia contar com uma boa oportunidade; teria de aproveitá-la ao máximo. Portanto, era importante estudar o local, procurar resolver se po­deria pegar Stillson ali ou se seria melhor esperar no estacionamento, com o vidro do carro abaixado e a carabina no colo.

Então ele viera e lá estava, examinando o local, enquanto um tira estadual fazia exames para motoristas a menos de cinqüenta metros de distância.

À sua esquerda havia um quadro de avisos, e Johnny disparou a câmara sem filme... por que, em nome de Deus, ele não perdera mais dois minutos para comprar um filme? O quadro estava cheio de informações de cidade pequena, a respeito de ceias, uma peça de teatro do ginásio a estrear, informações sobre vacinas de cães e, claro, mais informações sobre Greg. Um cartão de arquivo dizia que o primeiro conselheiro de Jackson estava procurando alguém que soubesse taquigrafia, e Johnny estudou aquilo como se fosse de grande interesse para ele, enquanto seus pensamentos engrena­vam uma marcha de alta velocidade.

Naturalmente, se Jackson se revelasse impossível — ou mesmo arriscada —, ele poderia esperar até a semana seguinte, quando Stillson estaria repetindo tudo outra vez na cidade de Upson. Ou na outra semana, em Trimbull. Ou uma semana depois. Ou nunca.

Devia ser aquela semana. Devia ser no dia seguinte.

Ele “fotografou” o grande aquecedor a lenha no canto e de­pois olhou para cima. Lá havia uma sacada. Não.., não exatamente uma sacada, mas um balcão com uma grade da altura da cintura, de tábuas largas, pintadas de branco, com losangos e espirais pe­quenos, decorativos, recortados na madeira. Seria perfeitamente pos­sível um homem esconder-se atrás da grade e espiar por um daqueles enfeites. No momento exato, podia levantar-se e...

—    Que tipo de câmara é essa?

Johnny olhou para trás, certo de que seria o guarda. O guarda pediria para ver a câmara sem filme.., e depois ia querer ver algum documento de identidade.., e tudo estaria perdido.

Mas não era o guarda. Era o rapaz que tinha feito o exame de motorista. Devia ter seus vinte e dois anos, cabelos compridos e olhos simpáticos e francos. Estava de paletó de camurça e jeans desbotados.

—    Nikon — disse Johnny.

—    Boa câmara, rapaz. Sou doido por câmaras. Há quanto tempo está trabalhando para a Yankee?

—    Bem, sou free lance — disse Johnny. — Trabalho para eles, às vezes para a Country Journal, às vezes para a Downeast, sabe.

—    Nada de nacional, como a People ou a Li/e?

—    Não. Pelo menos, por enquanto.

—    Que abertura você usa aqui dentro?

“Que diabo será abertura?”

Johnny deu de ombros.

—    Faço as coisas mais de ouvido.

—    De olho, quer dizer — disse o rapaz, sorrindo.

—    Isso mesmo, de olho. — “Dê o fora, garoto, por favor, dê o fora.”

—    Eu também estou interessado em trabalho autônomo — disse o rapaz, rindo. — O meu sonho é um dia tirar uma foto como o içar da bandeira em Iwo Jima.

—    Ouvi dizer que aquilo foi ensaiado — disse Johnny.

—    Bem, talvez. Mas é clássica. Ou então a primeira foto de um OVNI aterrizando. Seria ótimo. Em todo caso, tenho uma pasta de coisas que tirei por aqui. Quem é o seu contato na Yankee?

Johnny já estava suando.

—    Para dizer a verdade, para esse trabalho eles me procuraram — disse ele. — Foi um...

—    Sr. Clawson, pode vir aqui agora — disse o guarda, pare­cendo impaciente. — Quero olhar essas respostas com o senhor

—    Puxa, a voz do mandachuva — disse Clawson. — Até lo­go, cara.

Ele se foi depressa, e Johnny respirou, com um suspiro mudo. Estava na hora de dar o fora, e depressa.

Bateu mais duas ou três “fotos”, para não parecer uma derrota total, mas mal sabia o que estava vendo no visor. Depois saiu.

O     rapaz do casaco de camurça — Clawson — já se esquecera dele. Parece que tinha sido reprovado no exame escrito. Estava dis­cutindo animadamente com o guarda, que só sacudia a cabeça.

Johnny parou um instante na entrada da prefeitura. À sua esquerda havia um vestiário. À direita, uma porta fechada. Ele a experimentou e viu que estava destrancada. Uma escada estreita levava para o andar de cima, às escuras. Os escritórios deviam ser lá, claro. E o balcão.

 

Ele estava hospedado no Jackson House, hotelzinho agradável na rua principal. Tinha sido reformado com cuidado e as reformas tinham custado muito dinheiro, mas compensariam, era o que os proprietários deviam ter calculado, graças à nova estação de esqui do monte Jackson. Só que a estação tinha falido, e agora o agradável hotelzinho mal conseguia se manter. O porteiro da noite estava cochilando sobre um café, quando Johnny saiu às quatro da manhã de sábado, a pasta na mão esquerda.

 

Tinha dormido pouco, de noite, adormecendo num sono leve e breve depois da meia-noite. Tinha sonhado. Era 1970 de novo. Era a época da feira. Ele e Sarah estavam na frente da roda da fortuna, e novamente ele teve aquela sensação de poder louco, imenso. Em suas narinas, sentia o cheiro de borracha queimada.

“Vamos”, dizia uma voz atrás dele, baixinho. “Adoro ver esse cara levar uma surra.” Ele virou-se, e era Frank Dodd, vestido com sua capa de chuva de vinil preta, a garganta cortada de orelha a orelha, num sorriso largo e vermelho, olhos brilhando com uma vivacidade morta. Virou-se para a barraquinha, com medo.., mas então o crupiê era Greg Stillson, sorrindo para ele com um ar sa­bido, o capacete puxado para trás. — Ei, ei, ei — entoava Stillson, a voz profunda, ressonante e sinistra. — Ponha onde quiser, cara. O que me diz? Quer a lua?

Sim, ele queria a lua. Mas, quando Stillson punha a roda em movimento, ele via que todo o círculo externo passara a verde. Todos os números eram duplo zero. Cada número era um número da banca.

Acordou de repente e passou o resto da noite olhando para o escuro, pelas janelas emolduradas de gelo. A dor de cabeça, que o acometera desde que chegara a Jackson, na véspera, desaparecera, deixando-o fraco, mas controlado. Ficou sentado ali, as mãos no colo. Não pensou em Greg Stillson; pensou no passado. Pensou na mãe pondo um Band-Aid num joelho arranhado; pensou no dia em que o cachorro tinha rasgado as costas do absurdo vestido de verão da vovó Nellie, e que ele rira e Vera lhe dera um tapa, cortando a testa dele com a pedra do anel de noivado; pensou no pai ensinan­do-lhe a pôr a isca no anzol e dizendo: “Isso não machuca as minhocas, Joey... pelo menos, acho que não”. Pensou no pai dando-lhe um canivete de presente de Natal, quando ele tinha sete anos e, dizendo, muito sério: “Confio em você, Johnny”. Todas essas recordações tinham voltado, num dilúvio.

Então ele saiu para o frio tremendo da madrugada, os sapatos rangendo no caminho aberto na neve. Seu hálito saía num vapor branco à sua frente. A lua desaparecera, mas as estrelas estavam espalhadas pelo céu, numa profusão louca. A caixa de jóias de Deus, era como Vera chamava isso. Você está olhando para a caixa de jóias de Deus, Johnny.

Ele seguiu pela rua principal, e parou em frente da pequena agência de correios de Jackson, tirando a custo as cartas do bolso. Cartas para o pai, Sarah, Sam Weizak, Bannerman. Colocou a pasta no chão, entre os pés, abriu a caixa do correio que ficava em frente do prediozinho de tijolos e, depois de um momento de hesitação, colocou-as na caixa. Ouviu-as caírem lá dentro, certamente as pri­meiras cartas postas no correio de Jackson naquele novo dia, e o barulho lhe deu uma estranha sensação de fatalidade. As cartas estavam despachadas, agora não havia mais como parar.

Tornou a pegar a pasta e continuou seu caminho. O único barulho era o ranger de seus sapatos na neve. O grande termôme­tro sobre a porta do Granite State Savings Bank marcava dezesseis graus negativos, e o ar tinha aquela sensação de inércia total, típica das manhãs frias de New Hampshire. Nada se movia. A rua estava vazia. Os pára-brisas dos carros estacionados estavam cegos de ca­taratas de gelo. Janelas escuras, cortinas cerradas. Para Johnny, tudo parecia meio terrível e ao mesmo tempo sagrado. Ele lutou contra essa sensação. O que estava fazendo não era nada de sagrado.

Atravessou a Jasper Street e lá estava a prefeitura, branca e austera atrás de montes de neve brilhante.

“O que você vai fazer se a porta da frente estiver trancada, sabidão?”

Bom, ele arranjaria um jeito de atravessar essa ponte, se fosse preciso. Johnny olhou em volta, mas não havia ninguém que o viesse. Se fosse o presidente, chegando para uma de suas famosas reuniões em cidades, tudo teria sido diferente, claro. O local teria sido isolado desde a noite da véspera, e já haveria homens postados lá dentro. Mas tratava-se apenas de um deputado, um entre mais de quatrocentos, nada de mais. Nada de mais, por enquanto.

Johnny subiu a escada e experimentou a porta. A maçaneta girou com facilidade, e ele penetrou na entrada fria e puxou a porta, fechando-a. A dor de cabeça voltava, latejando, acompa­nhando a batida forte e firme de seu coração. Ele tomou a largar a pasta no chão e esfregou as têmporas com os dedos enluvados.

Houve um guincho súbito, baixinho. A porta do armário dos agasalhos estava se abrindo, muito devagar, e aí alguma coisa bran­ca caiu das sombras, em direção a ele.

Johnny a custo reprimiu um grito. Por um momento, pensou que fosse um cadáver, caindo do armário como num filme de terror. Mas era apenas um cartaz de papelão pesado dizendo FAVOR

TER DOCUMENTOS EM ORDEM ANTES DE SE APRESENTAR AO EXAME.

 

Recolocou-o no lugar e depois virou-se para a porta que dava para a escada.

Essa porta agora estava trancada.

Ele abaixou-se para vê-la melhor à luz difusa e branca da rua, que se filtrava pela janela. Era uma fechadura de mola, e ele achou que conseguiria abri-la com um cabide. Encontrou um no armário e enfiou o gancho na fresta entre a porta e o umbral. Baixou-o até a fechadura e começou a mexer. Sua cabeça agora estava latejando barbaramente. Por fim, ouviu o ferrolho ceder, quando o arame o pegou. Abriu a porta. Pegou a pasta e entrou, ainda segurando o cabide. Puxou a porta atrás de si e ouviu que ela se trancava de novo. Subiu a escada estreita, que rangeu sob seu peso.

No topo da escada havia um corredor pequeno, com várias portas de cada lado. Ele seguiu pelo corredor, passando pelo ADMI­NISTRADOR DA CIDADE, por CONSELHEIROS MUNICIPAIS, pelo DELE­GADO FISCAL, por CAVALHEIROS, pelo SUPERVISOR DOS POBRES e por SENHORAS.

No fim havia uma porta sem placa. Estava destrancada, e ele saiu na galeria sobre a parte dos fundos do auditório, que se esten­dia abaixo dele numa louca colcha de sombras. Fechou a porta e estremeceu diante dos leves ecos no salão vazio. Seus passos tam­bém ressoaram, quando caminhou para a direita, pela galeria dos fundos, e depois virou à esquerda. Agora estava caminhando pelo lado direito do salão, cerca de sete metros acima do piso. Parou num ponto acima do aquecedor a lenha, e bem defronte do pódio onde Stillson estaria de pé, dali a cerca de cinco horas e meia.

Sentou-se e ficou de pernas cruzadas, por um instante. Procurou controlar a dor de cabeça com uma respiração profunda. O aque­cedor a lenha não estava aceso, e ele sentiu o frio instalando-se. Prévias da mortalha.

Quando começou a se sentir um pouco melhor, mexeu nas fechaduras da pasta. O estalo duplo ressoou como seus passos, e dessa vez foi o ruído de engatilhar pistolas.

“Justiça do oeste”, pensou ele, sem nenhum motivo. Foi o que disse o promotor público, quando o júri julgou Claudine Longet, culpada de ter morto o amante. “Ela descobriu o que sig­nifica a justiça do oeste.”

Johnny olhou para a pasta e esfregou os olhos. Por um instante, teve visão dupla, e depois as coisas tornaram a se juntar. Ele estava tendo uma visão surgida da própria madeira em que estava sentado. Uma imagem muito antiga; se tivesse sido uma foto, teria sido em tons de sépia. Homens ali de pé, fumando charutos, conversan­do, rindo e esperando que começasse a assembléia municipal. Teria sido em 1920? 1902? Havia naquilo alguma coisa fantasmagórica que o deixava inquieto. Um deles estava falando sobre o preço do uísque e limpando o nariz com um palito de prata e

(e dois anos antes tinha envenenado a mulher)

Johnny estremeceu. Fosse qual fosse a visão, não importava. Era uma visão de um homem que já tinha morrido havia muito tempo.

A carabina reluziu diante dele.

“Quando os homens fazem isso em tempo de guerra, ganham medalhas”, pensou.

Começou a montar a carabina. Cada estalido ressoava uma vez, solene, o som de uma pistola sendo engatilhada.

Carregou a Remington com cinco balas.

Colocou-a nos joelhos.

E esperou.

 

O     dia amanheceu devagar. Johnny cochilou um pouco, mas já estava com muito frio para poder fazer mais do que cochilar. Sonhos leves e esparsos povoaram o pouco sono que conseguiu.

Despertou completamente um pouco depois das sete horas. A porta embaixo abriu-se com um estrondo e ele teve de morder a língua para não gritar: “Quem é?”.

Era o zelador. Johnny aplicou a vista a um dos losangos cor­tados na balaustrada, e viu um homem corpulento, embrulhado num casaco grosso da marinha. Vinha andando pelo corredor central com os braços carregados de lenha. Estava cantarolando Red river valley. Largou a lenha num caixote fazendo um barulhão, e depois desapareceu abaixo de Johnny. Um segundo depois ele ou­viu o barulho agudo da porta do aquecedor se abrindo. De repente, Johnny pensou na pluma de vapor que ele estava fazendo, cada vez que expirava. E se o zelador olhasse para cima? Conseguiria ver isso?

Tentou controlar o ritmo da respiração, mas isso fazia a dor de cabeça piorar e sua visão ficar dupla, de um modo alarmante.

Então ouviu o barulho de papel sendo amassado, depois o riscar de um fósforo. Um leve sopro de enxofre no ar frio. O zelador continuava a cantarolar Red river valley, e depois rompeu em um canto alto e desentoado:

“Deste vale dizem que você vai partir... saudades de seus belos olhos e doce sorriso...”

Depois, outro barulho, estalidos. Fogo.

—    Tome, palhaço — disse o zelador, bem debaixo de Johnny, e seguiu-se o barulho da porta do aquecedor fechando-se de novo. Johnny apertou as duas mãos sobre a boca como uma atadura, pois de repente fora acometido de uma vontade de rir suicida. Ele se imaginou levantando-se do chão da galeria, magro e branco como qualquer fantasma respeitável. Viu-se abrindo os braços como asas e os dedos como garras, falando para baixo, em um tom surdo:

“Tome você, seu palhaço”.

Ouviu o riso por trás de suas mãos. Sua cabeça latejava como um tomate cheio de sangue quente, expandindo-se. Sua visão es­tava saltando e turvando-se como louca. De repente, teve grande vontade de se afastar da visão do homem que tinha limpado o nariz com o palito de prata, mas não ousou fazer barulho. Deus, e se tivesse de espirrar?

De repente, sem qualquer aviso, um grito terrível encheu o salão, furando os ouvidos de Johnny como finos pregos de prata, aumentando, fazendo sua cabeça vibrar. Ele abriu a boca para gritar...

Parou.

—    Ah, filho da puta! — disse o zelador, em tom de conversa.

Johnny espiou pelo losango e viu o zelador de pé atrás do pódio, mexendo num microfone. O fio do microfone enroscava-se para baixo, até um pequeno amplificador portátil: O zelador des­ceu os degraus do pódio até o chão e puxou o amplificador mais para longe do microfone, e depois remexeu nos painéis em cima dele. Voltou ao microfone e tornou a ligá-lo. Outro gemido de microfonia, dessa vez mais baixo e depois desaparecendo inteira­mente. Johnny apertou as mãos na testa, esfregando-a de um lado para o outro.

O     zelador bateu com o dedo no microfone, e o som encheu a sala grande e vazia. Parecia um punho batendo na tampa de um caixão. Depois a voz dele, ainda desafinada, mas monstruosamente amplificada, uma voz de gigante marretando a cabeça de Johnny:

“DESTE VALE DIZEM QUE VOCE VAI PARTIR...”

“Pare com isso!”, Johnny teve vontade de gritar. “Ah, por favor, pare, estou ficando doido, não pode parar?”

O     canto acabou com um estalo forte e amplificado, e o zela­dor disse, em sua voz normal:

—    Pronto, filho da puta.

E tornou a desaparecer das vistas de Johnny. Ouviu-se o som de papel rasgado e os estalos de um cordão sendo arrebentado. Depois o zelador reapareceu, assobiando e carregando uma pilha de folhetos. Começou a colocá-los a pequenos intervalos, ao longo dos bancos.

Quando acabou essa tarefa, o zelador abotoou o casaco e saiu do auditório. A porta bateu com um som surdo atrás dele. Johnny olhou para o relógio. Eram sete e quarenta e cinco. A prefeitura estava um pouco mais quente. Ele ficou ali sentado, esperando. A dor de cabeça ainda estava muito forte, mas, coisa estranha, era mais fácil de suportar do que jamais fora. Bastava ele se dizer que não a suportaria por muito tempo.

 

As portas abriram-se de novo pontualmente às nove horas, acordando-o de um cochilo com um sobressalto. Suas mãos agarra­ram a carabina com força e depois se afrouxaram. Ele espiou pelo buraquinho em forma de losango. Dessa vez eram quatro homens. Um era o zelador, a gola do casaco da marinha virada para cima. Os outros três estavam de sobretudo, com ternos por baixo. Johnny sentiu seu coração bater mais depressa. Um deles era Sonny Elli­man. Os cabelos agora estavam curtos e bem-penteados, mas os olhos verdes e brilhantes não tinham mudado.

—    Tudo pronto? — perguntou.

—    Veja por si — disse o zelador.

—    Não se ofenda, vovô — respondeu um dos outros.

Estavam indo para a frente do auditório. Um deles ligou o amplificador e depois desligou-o, satisfeito.

—    Para o pessoal daqui até parece que ele é o raio do impe­rador — resmungou o zelador.

—    E é, e é — disse o terceiro homem. Johnny pensou tam­bém reconhecer aquele, do comício de Trimbull. — Ainda não sabe disso, titio?

—    Já foi lá em cima? — perguntou Elliman ao zelador, e Johnny gelou.

—    A porta que dá para a escada está trancada — disse o zelador. — Como sempre. Eu a sacudi para ver.

Johnny deu graças, em silêncio, pela fechadura de mola na porta.

—    É preciso verificar — disse Elliman.

O     zelador deu uma risada irritada.

—    Não sei o que é que há com vocês, caras — disse ele. — Quem é que estão esperando? O Fantasma da Ópera?

—    Vamos, Sonny — disse o cara que Johnny pensou reco­nhecer. — Não há ninguém lá em cima. Temos tempo para tomar um cafezinho se dermos um pulo até aquele boteco da esquina.

—    Aquilo não é café — disse Sonny. — Uma porra de lama, é o que é. Primeiro dê um pulo lá em cima e veja se não há nin­guém lá, Moochie. Nós fazemos tudo em ordem.

Johnny lambeu os lábios e agarrou a arma. Olhou para cima e para baixo, pela galeria estreita. À sua direita, ela acabava numa parede vazia. À esquerda, voltava à série de escritórios, e, de qualquer maneira, não fazia diferença alguma. Se ele se mexesse, seria ouvido. Aquele salão vazio servia como um amplificador natural. Estava frito.

Ouviu passos, lá embaixo. Depois o barulho de abrirem e fecharem a porta entre o salão e a entrada. Johnny esperou, gelado e indefeso. Bem debaixo dele, o zelador e os dois outros estavam falando, mas ele não ouviu nada do que disseram. Sua cabeça girava no pescoço, como um motor lento, e ele ficou olhando pela galeria, esperando que o camarada que Sonny Elliman chamara de Moochie aparecesse na galeria. Sua expressão aborrecida de repente se trans­formaria em choque e incredulidade, e sua boca se abriria: “Ei, Sonny, há um sujeito aqui!”

       Então ouviu o ruído abafado de Moochie subindo a escada. Procurou pensar em alguma coisa, qualquer coisa. Não conseguiu. Iam descobri-lo, faltava menos de um minuto agora, e ele não tinha idéia de como impedi-lo. Fizesse o que fizesse, sua única oportunidade estava prestes a ser arrasada.

Ouviu o barulho de portas se abrindo e se fechando, cada vez mais próximo e menos abafado. Uma gota de suor caiu da testa de Johnny, escurecendo suas calças jeans. Ele se lembrava de cada porta por que tinha passado, para chegar onde estava. Moochie tinha verificado ADMINISTRADOR DA CIDADE, CONSELHEIROS MUNI­CIPAIS e DELEGADO FISCAL. Agora estava abrindo a porta de CAVA­LHEIROS, depois, olhando o escritório do SUPERVISOR DOS POBRES e o banheiro de SENHORAS. A porta seguinte seria a que dava para as galerias.

A porta abriu-se.

O     ruído de dois passos, quando Moochie se aproximou do corrimão da galeria curta que corria pelos fundos do auditório.

—    OK, Sonny? Está satisfeito?

—    Tudo parece em ordem?

—    Parece uma porra de uma pocilga — respondeu Moochie, provocando gargalhadas embaixo.

—    Bom, então desça e vamos tomar um café — disse o ter­ceiro homem. E, incrivelmente, foi só isso. A porta bateu. Os pas­sos recuaram pelo corredor e depois pela escada, para o térreo.

Johnny sentiu-se fraco, e por um instante tudo sumiu de sua vista, em sombras cinzentas. Quando a porta da entrada bateu, ao saírem para tomar café, ele se refez em parte.

Lá embaixo, o zelador exprimiu sua opinião:

—    Bando de putas.

Depois também ele se foi, e durante os vinte minutos seguintes. ­Johnny ficou ali sozinho.

 

Por volta de nove e meia, o povo de Jackson começou a entrar na prefeitura. As primeiras a aparecerem foram três senhoras ves­tidas de preto, tagarelando como gralhas. Johnny as viu escolherem lugares junto do aquecedor — quase totalmente fora de seu campo visual — e pegarem os folhetos deixados nos bancos. Os panfletos pareciam estar cheios de fotos brilhantes de Greg Stillson.

—    Adoro esse homem — disse uma das três. — Já peguei o autógrafo dele três vezes, e hoje vou pegar mais um, com certeza.

Foi só isso o que falaram de Greg Stillson. As senhoras passa­ram a falar do próximo Domingo do Lar da Velhice na Igreja Metodista.

Johnny, que estava quase diretamente acima do aquecedor, pas­sou de gelado a muito quente. Aproveitara o intervalo entre a partida do pessoal de segurança de Stillson e a chegada dos primeiros cidadãos para tirar o paletó e a camisa de cima. Estava enxugando o suor do rosto com o lenço, e o linho estava manchado de sangue, além de suor. O olho doente doía de novo, e sua visão estava constantemente turva e avermelhada.

A porta embaixo abriu-se repentinamente, ouviu-se o pisotear vivo de homens batendo os pés para livrá-los da neve, e depois quatro homens de casaco de lã xadrez passaram pelo corredor e sentaram-se na primeira fila. Um deles foi logo contando uma anedota picante.

Uma moça de seus vinte e três anos chegou com o filho, que parecia ter uns quatro anos. O garoto estava com uma roupa própria para neve, azul com enfeites de um amarelo vivo, e quis saber se podia falar ao microfone.

— Não, meu bem — disse a mulher, e eles sentaram-se atrás dos homens. O menino começou logo a chutar o banco à sua frente, e um dos homens olhou para trás.

—    Sean, pare com isso — disse ela.

Já eram nove e quarenta e cinco. A porta se abria e se fechava com certa regularidade. Homens e mulheres de todo tipo, ocupa­ção e idade estavam enchendo o salão. Houve um zunzum de conversas, marcado por uma sensação indefinível de expectativa. Eles não estavam lá para interrogar seu representante devidamente eleito; estavam ali esperando o aparecimento de um autêntico astro na sua pequena comunidade. Johnny sabia que a maior parte das reuniões para “apresentar o seu candidato~~ e “apresentar o seu deputado” eram freqüentadas apenas por meia dúzia de conservado­res nos auditórios quase vazios. Durante a eleição de 1976, um debate entre Bill Cohen e seu adversário Leighton Cooney, no Maine, tinha atraído apenas vinte e seis pessoas, fora a imprensa. Essas palestras eram só aparência, um testemunho pessoal para apresentar quando chegasse novamente a época das eleições. A maior parte delas poderia ter sido realizada num quarto pequeno. Mas às dez horas, todos os assentos do salão da prefeitura estavam ocupados, e, nos fundos, havia cerca de vinte a trinta pessoas de pé. Cada vez que a porta se abria, as mãos de Johnny se retesavam na carabina. E ele ainda não tinha certeza se poderia fazê-lo, fosse o que fosse que estivesse em jogo.

Eram dez e cinco, dez e dez. Johnny começou a achar que Stillson tinha se atrasado ou que talvez não aparecesse. E a sen­sação que o invadiu foi de alívio.

Depois a porta tornou a abrir-se e uma voz animada chamou:

— Ei! Como vai indo, Jackson, N.H.?

Um murmúrio sobressaltado, satisfeito. Alguém gritou, exta­siado:

—    Greg! Como vai você?

— Bom, eu estou me sentindo esfuziante — retrucou logo Stillson. — E como é que vão vocês?

Palmas esparsas logo passaram a um estrondo de aprovação.

— Ei, tudo bem! — gritou Greg, por sobre o barulho. Foi caminhando depressa pelo corredor, apertando as mãos, em dire­ção ao pódio.

Johnny estava espiando pelo buraquinho. Stillson vestia um casaco pesado de couro, com uma gola de pêlo de carneiro, e naquele dia o capacete fora substituído por um gorro de esqui de lã, com uma borla de um vermelho vivo. Parou na ponta do corredor e acenou para os três ou quatro jornalistas presentes. Os flashes espocaram, e o aplauso recomeçou, abalando as traves.

E Johnny Smith de repente viu que era agora ou nunca.

Tudo o que ele sentira em relação a Greg Stillson no comício de Trimbull de repente o invadiu de novo, com uma clareza certa e terrível. Dentro de sua cabeça dolorida, pareceu ouvir um baru­lho surdo e duro, duas coisas se juntando com uma força terrível, ao mesmo tempo. Talvez fosse o som do destino. Seria fácil de­mais demorar, deixar que Stillson falasse e falasse. Fácil demais deixá-lo escapar, ficar ali sentado com a cabeça entre as mãos, esperando enquanto o povo se dispersasse, esperando até que o zelador desmontasse o sistema de som e varresse o lixo, iludin­do-se de que poderia agir na semana seguinte, em outra cidade.

O     momento era agora, indiscutivelmente agora, e todo ser hu­mano no mundo de repente tinha um interesse no que aconte­cesse naquela casa de reuniões do interior.

Aquele barulho latejante em sua cabeça, como os pólos do destino se juntando.

Stillson estava subindo os degraus para o pódio. O lugar atrás dele achava-se vazio. Os três homens, com os sobretudos abertos, estavam encostados na outra parede.

Johnny levantou-se.

 

Tudo pareceu acontecer em câmara lenta.

Ele estava com cãibras nas pernas por ter ficado sentado tanto tempo. Seus joelhos estalavam como fogos de artifício falha­dos. O tempo pareceu congelar-se; o aplauso continuou, apesar de haver cabeças se virando, pescoços esticados; alguém gritou no meio do aplauso, mas este continuou assim mesmo; alguém gritou porque havia um homem na galeria e o homem tinha uma carabina na mão, isso era uma coisa que todos tinham visto na TV, uma situação com elementos clássicos, que todos reconheciam. A seu modo, era tão americano quanto o Maravilhoso Mundo de Disney. O político e o homem num lugar alto, com a arma.

Greg Stillson virou-se para ele, o pescoço grosso esticando-se, enrugando-se. A borla vermelha no topo de seu gorro pulou.

Johnny levou a carabina ao ombro. Pareceu flutuar ali, e sen­tiu o baque quando ela se encaixou na articulação. Pensou nas caçadas a perdizes com o pai, quando menino. Tinham ido caçar veados, mas, a única vez em que Johnny tinha visto um, não con­seguira puxar o gatilho: fora acometido pelo nervosismo do caçador novato. Era um segredo, tão vergonhoso quanto a masturbação, e ele nunca o contara a ninguém.

Outro grito. Uma das velhas estava tapando a boca, e Johnny viu que havia frutas artificiais espalhadas pela aba larga do seu chapéu preto. Rostos se voltaram para ele, zeros grandes e brancos. Bocas abertas, zeros pequenos. O menino de roupa de neve estava apontando. A mãe estava tentando protegê-lo. De repente Stillson estava na mira e Johnny lembrou-se de destravar a carabina. Do outro lado, os homens de sobretudo estavam mantendo as mãos dentro dos paletós, e Sonny Elliman, os olhos verdes em fogo, estava berrando:

—    Abaixe-se, Greg, ABAIXE-SE!

Mas Stillson olhou para a galeria, e pela segunda vez seus olhos se encontraram num tipo de entendimento perfeito, e Stillson só se desviou no instante exato em que Johnny atirou. O estrondo da carabina foi alto, enchendo a sala, e a bala destruiu quase um canto inteiro do pódio, descascando-o até a madeira viva. As lascas voa­ram. Uma delas bateu no microfone, e ouviu-se outro gemido mons­truoso, que de repente acabou num zunido gutural, grave.

Johnny pôs outra bala na carabina e atirou de novo. Dessa vez a bala fez um buraco no tapete empoeirado do estrado.

O povo começara a mover-se, em pânico, como gado. Todos foram para o corredor central. As pessoas que estavam de pé, nos fundos, escaparam com facilidade, mas depois formou-se nas portas duplas um engarrafamento de homens e mulheres gritando e pra­guejando.

Do outro lado do salão houve um pipocar, e de repente parte da balaustrada da galeria despedaçou-se diante dos olhos de John­ny. Um segundo depois, alguma coisa zuniu junto de sua orelha. Depois um dedo invisível deu um piparote no colarinho de sua camisa. Os três homens do outro lado estavam com armas de mão, e como Johnny estava em cima, na galeria, seu campo de fogo estava limpo.., mas Johnny não achava que eles se importariam com os espectadores inocentes, em todo caso.

Uma das três velhas agarrou o braço de Moochie. Ela estava soluçando, querendo perguntar alguma coisa. Ele a atirou para o lado, firmando a arma com ambas as mãos. Agora o salão estava cheirando a pólvora. Havia cerca de vinte segundos que Johnny se levantara.

—    Abaixe-se, Greg! Abaixe-se!

Stillson continuava de pé na beira do estrado, levemente aga­chado, olhando para Johnny, que abaixara a arma, e por um ins­tante Stillson ficou bem na sua mira. Então uma bala de pistola atingiu o pescoço de Johnny, derrubando-o para trás, e seu tiro perdeu-se no ar. A janela da frente dissolveu-se numa chuva de vi­dros estilhaçados. Gritos agudos subiam lá de baixo. O sangue jorrou, descendo por seu ombro e por seu peito.

“Ah, você está trabalhando bem para matá-lo”, pensou ele, histérico, e voltou para o corrimão. Pôs outra bala na culatra e tornou a levar a carabina ao ombro. Stillson agora estava se movendo. Desceu os degraus e depois tornou a olhar para Johnny.

Outra bala zuniu pela têmpora dele. “Estou sangrando como um porco espetado”, pensou ele. “Vamos. Vamos acabar com isso.”

O engarrafamento junto da porta dissolveu-se, e as pessoas co­meçaram a sair. Um tufo de fumaça saiu de uma das pistolas na frente, houve um estrondo, e o dedo invisível que mexera em seu colarinho segundos antes traçou uma linha de fogo ao lado da cabeça de Johnny. Não importava. Nada importava, a não ser pegar Stillson. Ele tornou a abaixar a carabina.

“Veja se acerta desta vez...”

Stillson se movia com bastante rapidez, para um homem tão grande. A moça de cabelos escuros que Johnny notara antes estava no meio do corredor central, tendo no colo o filho, que chorava, ainda procurando protegê-lo com o corpo. E o que Stillson fez en­tão deixou Johnny tão estupefato que ele quase deixou cair a cara­bina. Agarrou o menino do colo da mãe e virou-se para a galeria, segurando o corpo do garoto em frente de si. Não era mais Greg Stillson na alça de mira, e sim uma figurinha se debatendo em

(O filtro, filtro azul listras amarelas listras de tigre)

uma roupa de neve azul-escura com debruns de um amarelo vivo.

Johnny abriu a boca. Era Stillson, sim. O tigre. Mas agora estava por trás de um filtro.

Aí a mãe deu um grito agudo; mas Johnny já ouvira tudo isso, em algum lugar.

—    Tommy! Passe-o para cá! “TOMMY! DË-ME O MENINO, SEU FILHO DA MÃE!

A cabeça de Johnny estava inchando, preta, expandindo-se co­mo uma bexiga. Tudo estava começando a desaparecer. O único ponto de luz centralizava-se em torno da mira chanfrada, a mira agora apontada diretamente para o peito daquela roupa de neve azul.

Atire, ah, pelo amor de Deus atire, senão ele escapa...

E agora — talvez fosse apenas a sua vista mais turva que o via assim — a roupa de neve azul começou a se espalhar, a cor desbo­tando para o azul-claro de sua visão, o amarelo-escuro esticando­se, listrando-se, tudo começando a perder-se nisso.

(atrás do filtro, sim, ele está atrás do filtro, mas o que isso significa? significa que é seguro, ou só que ele está além do meu alcance? o que é que)

O fogo quente num clarão em algum lugar lá embaixo, desa­parecendo. Uma parte vaga da mente de Johnny registrou que era um flasb fotográfico.

Stillson afastou a mulher e recuou para a porta, os olhos aper­tados em fendas calculistas, como um pirata. Segurava o menino esperneando com firmeza, pelo pescoço e pela virilha.

“Não posso! Ah, Deus, perdão, não posso!”

Mais duas balas o atingiram então, uma no alto do peito, ati­rando-o contra a parede e fazendo-o saltar, a segunda do lado es­querdo, no meio do corpo, fazendo-o girar contra a balaustrada da galeria. Ele percebeu vagamente que tinha perdido a carabina. Ela bateu no chão da galeria e disparou na parede. Depois ele esbarrou com as coxas na balaustrada e começou a cair. O salão girou duas vezes diante de seus olhos, e houve um estrondo e um estilhaçar quando ele bateu contra dois bancos, fraturando as costelas e as duas pernas.

Abriu a boca para gritar, mas o que saiu foi uma grande gol­fada de sangue. Ficou ali deitado, nos restos arrebentados dos bancos que quebrara, e pensou: “Acabou-se. Fracassei

Mãos pegando-o, nada delicadas. Estavam virando-o. Elliman, Moochie e o outro cara estavam ali. Elliman foi quem o virou.

Stillson aproximou-se, afastando Moochie.

— Deixe-o, cara — disse ele, com aspereza. — Encontre o filho da puta que tirou aquela foto. Arrebente a câmara dele.

Moochie e o outro sujeito saíram. Em algum lugar ali perto, a mulher de cabelos pretos estava exclamando:

—    ... atrás de um garoto, escondido atrás de um garoto, e vou contar a todo mundo...

— Faça-a calar-se, Sonny — disse Stillson.

— Certo — disse Sonny, e saiu do lado de Stillson.

Stillson ajoelhou-se ao lado de Johnny.

— Não nos conhecemos, cara? Não adianta mentir. Você está liquidado.

Johnny murmurou:

—    Nós nos conhecemos.

—    Foi naquele comício de Trimbull, não foi?

Johnny fez que sim.

Stillson levantou-se de repente, e, com o seu último laivo de força, Johnny estendeu a mão e agarrou o tornozelo dele. Foi só por um segundo; Stillson livrou-se com facilidade. Mas foi o suficiente.

Tudo tinha mudado.

As pessoas agora estavam se aproximando deles, mas ele só viu pés e pernas, não os rostos. Não importava. Tudo tinha mudado.

Começou a chorar um pouco. Tocando em Stillson, naquele momento, parecia que estava tocando em nada. Bateria sem cor­rente. Árvore caída. Casa vazia. Estantes vazias. Garrafas de vinho prontas para as velas.

Desaparecendo. Indo embora. Os pés e pernas em volta dele estavam ficando turvos e indistintos. Ele ouvia as vozes deles, o burburinho empolgado das conjeturas, mas não as palavras. Só os sons das palavras, e mesmo isso estava se apagando, fundindo-se num som agudo e doce, num zunido.

Olhou para trás, e lá estava o corredor de onde tinha saído, havia tanto tempo. Saíra daquele corredor para aquele lugar claro e placentário. Só que então a mãe estava viva e o pai ali, chamando-o pelo nome, até ele conseguir chegar a eles. Agora, estava apenas na hora de voltar. Agora era certo voltar.

“Eu consegui. Não sei como, consegui. Não compreendo como, mas consegui.”

Deixou-se levar para aquele corredor de paredes cromadas e escuras, sem saber se poderia ou não haver alguma coisa no fim do corredor, contente por deixar que o tempo lhe mostrasse isso. O zumbido doce das vozes desapareceu. A claridade nebulosa apa­gou-se. Mas ele ainda era ele — Johnny Smith —, intacto.

“Entrar no corredor”, pensou ele. “Está bem.”

Achou que, se conseguisse entrar naquele corredor, conseguiria andar.

 

“Portsmouth, N.H.

23 de janeiro de 1979

Querido pai,

       Esta é uma carta horrível de escrever, e vou procurar resumir. Quando você a receber, acho que provavelmente já estarei morto. Aconteceu-me uma coisa horrível, e hoje acho que pode ter come­çado muito antes do acidente de carro e da coma. Claro que você sabe do meu lado paranormal, e pode lembrar-se de que a mãe jurou, ao morrer, que Deus pretendia que fosse assim, que Deus tinha uma missão para mim. Pediu que eu não fugisse disso, e prometi que não fugiria, sem levar isso a sério, mas querendo que ela ficasse sossegada. Agora parece que ela tinha razão, de certo modo estranho. Continuo a não acreditar realmente em Deus, como um Ser real que planeja nossas vidas e nos dá a todos pequenas tare­fas, como escoteiros ganhando medalhas por merecimento no Gran­de Caminho da Vida. Mas tampouco acredito que todas as coisas que me aconteceram se devam ao puro acaso.

No verão de 1976, pai, fui ao comício de Greg Stillson, em Trimbull, que fica no terceiro distrito de New Hampshire. Você há de se lembrar de que ele então estava se candidatando pela primeira vez. Quando estava andando para a tribuna do orador, apertou a mão de muita gente, entre as quais a minha. Essa é à parte que você pode ter dificuldade em acreditar, mesmo tendo visto essa faculdade em ação. Tive uma de minhas ‘intuições’, só que essa não foi uma intuição, pai. Foi uma visão, ou no sentido bíblico ou coisa muito parecida. Estranho é que não foi tão nítida quanto algumas de minhas outras ‘intuições’ — havia por sobre tudo um brilho azul que nunca houve antes e que me intrigou —, mas foi incrivelmen­te poderosa. Vi Greg Stillson como presidente da República dos Estados Unidos. Em que data futura, não posso dizer, só que de tinha perdido a maior parte dos cabelos. Eu diria daqui a uns catorze anos, dezoito no máximo, Ora, a minha capacidade é de ver e não de interpretar, e nesse caso a minha capacidade de ver estava impedida por aquele estranho filtro azul, mas vi o suficiente. Se Stillson for eleito presidente, vai tornar pior uma situação internacional que já de saída será bem difícil. Se Stillson se tornar presidente, vai acabar precipitando uma guerra nuclear em grande escala. Acredito que o ponto inicial dessa guerra será a África do Sul. E acredito também que, no decurso breve e sangrento dessa guerra, não serão apenas duas ou três nações lançando mísseis, e sim talvez até vinte.., mais os grupos terroristas.

Pai sei que isso deve parecer loucura. Parece loucura, a mim. Mas não tenho dúvidas, nem necessidade de olhar para trás e ten­tar modificar a minha opinião sobre isso, tornando-a menos real e urgente do que, é. Você nunca soube — nem ninguém —, mas eu não fugi da casa dos Chatsworths por causa daquele incêndio no restaurante. Acho que estava fugindo era de Greg Stillson e daquilo que devo fazer. Como Elias escondido na caverna, ou Jonas, que acabou no ventre da baleia. Achei que devia esperar para ver, sabe. Esperar para ver se os pré-requisítos de um futuro tão hor­rendo começavam a se apresentar. Provavelmente ainda estaria espe­rando, mas no outono do ano passado as dores de cabeça come­çaram a piorar, e houve um incidente com a turma de estrada com que eu estava trabalhando. Acho que Keith Strang, o mestre-de-obras, deve lembrar-se disso...”

 

Extrato de um depoimento prestado diante da chamada Co­missão Stillson, presidida pelo senador William Cohen, do Maine. O interrogador é o Dr. Norman D. Verizer, principal advogado da comissão. A testemunha é o Sr. Keith Strang, do Desert Boulevard, 1421, Phoenix, Arizona.

       Data do depoimento: 17 de agosto de 1979.

Verizer: E, nessa ocasião, John Smith era empregado do Departa­mento de Obras Públicas de Phoenix, não era?

Strang:    Sim, senhor.

V.:    Isso foi em princípios de dezembro de 1978.

S.: Sim, senhor.

V.: E aconteceu alguma coisa no dia 7 de dezembro de que o senhor se lembre especialmente? Alguma coisa referente a John Smith?

S.: Sim, senhor. Aconteceu.

V.:    Conte à comissão o que foi, por favor.

S.:    Bom, eu tive de voltar à garagem central para pegar dois barris de quarenta galões de tinta laranja. Estávamos pintando faixas nas estradas, sabe. Johnny — Johnny Smith — estava na Ro­semont Avenue no dia a que o senhor se refere, pintando no­vas faixas nas pistas. Bom, cheguei lá mais ou menos às quin­ze para as cinco — uns quarenta e cinco minutos antes do fim do expediente —‘ e esse tal de Merman Joellyn, com quem o senhor já falou, chega para mim e diz: “É bom ver Johnny, Keith. Há alguma coisa com Johnny. Eu quis lhe falar, mas ele parecia não me ouvir. Quase me atropelou. É bom ver o que há”. Foi isso o que ele me disse. Então eu disse: “O que é que há com ele, Hermie?” E Hermie diz: “Vá ver por si, há alguma coisa doida com aquele cara”. Então eu fui pela estrada, e a princípio estava tudo bem, e depois... puxa!

V.:    O que é que viu?

S.: Antes de ver Johnny?

V.:    É, isso mesmo.

S.:    A faixa que ele estava pintando começou a ficar atrapalhada. A princípio, só um pouquinho — um desvio aqui e ali, uma bolha —, não era bem reta, sabe. E Johnny sempre fora o melhor pintor de faixa de toda a turma. Depois começou a ficar ruim mesmo. Começou a se espalhar pela estrada toda, em grandes anéis e espirais. Em alguns lugares parecia que ele tinha dado uma porção de voltas. Em uns cem metros ele tinha posto a faixa bem junto do acostamento.

V.:    O que é que o senhor fez?

S.:    Mandei que ele parasse. Isto é, afinal consegui que ele parasse. Parei bem ao lado da máquina de fazer faixas e comecei a gri­tar com ele. Devo ter gritado uma meia dúzia de vezes. Era como se ele não me ouvisse. Depois ele virou aquele negócio para cima de mim e fez uma mossa e tanto do lado do carro que eu estava dirigindo. E era propriedade do Departamento de Estradas, ainda por cima. Então eu meti a mão na buzina, tornei a berrar com ele, e afinal ele pareceu ouvir. Pôs o carro em ponto morto e olhou para mim. Perguntei o que é que ele achava que estava fazendo.

V.:    E qual foi a resposta dele?

S.:    Ele disse “oi”. Só isso. “Oi, Keith”. Como se estivesse tudo muito bem.

V.:    E qual foi sua resposta?

S.:    Minha resposta foi bem violenta. Eu estava uma fera. E Johnny ficou ali quieto, olhando em volta e agarrado ao lado do carro como se fosse cair, se largasse a mão. Foi aí que eu vi que ele estava com uma cara de doente mesmo. Ele sempre foi magro, sabe, mas estava branco como cera e o lado da sua boca estava.., sabe.., puxado para baixo. A princípio não parecia nem saber o que eu estava dizendo. Depois olhou em volta e viu como é que estava aquela faixa... espalhada pela estrada.

V.:    E ele disse...?

S.:    Disse que sentia muito. Depois ele.., nem sei... cambaleou, e pôs a mão no rosto. Então eu perguntei o que é que havia e ele disse... ah, uma porção de coisas confusas, que não tinham significado nenhum.

Cohen:    Sr. Strang, a comissão está especialmente interessada em qualquer coisa que o sr. Smith tenha dito que possa lançar luz sobre o caso. Pode lembrar-se do que ele disse?

S.:    Bem, a princípio ele disse que não havia nada, só que sentia o cheiro de borracha queimada. Pneus em fogo. Depois, disse:

“Essa bateria vai explodir, se você tentar ligá-la direto”. E uma coisa como: “Tenho batatas no armário e os dois rádios estão no sol. Assim, todos para fora, para as árvores”. É do que me lembro. Como já disse, foi tudo confuso e louco.

V.:    O que aconteceu depois?

S.:    Ele começou a cambalear. Então eu o agarrei pelo ombro, e a mão dele — ele a estava encostando ao lado do rosto — caiu. E vi que seu olho direito estava cheio de sangue. Depois ele desmaiou.

V.: Mas ele disse mais uma coisa, antes de desmaiar, não foi?

S.: Disse, sim, senhor.

V.: E o que foi?

S.: Disse: “Depois nos preocupamos com Stillson, papai, ele agora está na zona morta”.

V.: Tem certeza de que foi isso o que ele disse?

S.: Tenho, sim, senhor. Nunca me esquecerei disso.

... e quando acordei estava no galpãozinho do almoxarifado, na base da Rosemont Drive. Keith disse que achava bom eu ir consultar um médico imediatamente, e que eu não devia voltar ao trabalho até ter-me consultado. Eu estava com medo, pai, mas não pelos motivos que Keith imaginava, acho. Em todo caso, marquei hora para consultar um neurologista indicado por Sam Weizak, numa carta que me escreveu em princípios de novembro. Sabe, eu havia escrito a Sam dizendo que tinha medo de dirigir porque esta­va tendo problemas de visão dupla. Sam respondeu logo e disse­-me que fosse consultar esse Dr. Vann.... disse que achava os sin­tomas muito alarmantes, mas que não queria fazer um diagnóstico à distância.

       Não fui logo. Acho que a nossa cabeça pode nos confundir, e fiquei achando — até o dia do incidente com a máquina de pintar faixas — que era só uma fase por que eu estava passando, e que ia melhorar. Acho que não queria pensar na alternativa. Mas aque­le incidente com a pintura das faixas foi demais. Fui, porque estava ficando com medo.., não só por mim, mas por causa do que eu sabia.

Então fui consultar esse Dr. Vann, e ele me fez os exames, e depois me explicou tudo. Parece que eu não tinha tanto tempo quanto pensava, porque...

 

Extrato do depoimento prestado diante da chamada Comissão Stillson, presidida pelo senador William Cohen, do Maine. O inter­rogador é o Sr. Norman D. Verizer, principal advogado da comissão. A testenunha é o Dr. Questin M. Vann, da Parkland Drive, 17, Phoenix, Arizona.

Data do depoimento: 22 de agosto de 1979.

Verizer: Depois de concluídos os exames e feito o seu diagnóstico, o senhor viu John Smith em seu consultório, não foi?

Vann:      Sim. Foi uma entrevista difícil. Essas entrevistas são sempre difíceis.

Ve.:  Pode nos contar a essência do que se passou entre os senhores?

Va.:  Posso. Nas circunstâncias, acredito que se possa ignorar o re­lacionamento paciente-médico. Comecei mostrando a Smith que ele tinha tido uma experiência positivamente aterradora. Ele concordou. Seu olho direito ainda estava extremamente con­gestionado, porém, melhor. Tinha tido um rompimento num pequeno vaso capilar. Se me permite consultar o meu quadro...

(Material omitido e condensado, nesse ponto.)

Ve.:  E depois de dar essa explicação a Smith?

Va.:  Ele me pediu a última linha. Foi essa a frase dele: “A última linha”. De um modo tranqüilo, ele me impressionou com a calma e a coragem.

Ve.:  E a última linha era o quê, Dr. Vann?

Va.:  Ah? Pensei que já tivesse esclarecido isso. John Smith estava com um tumor cerebral extremamente desenvolvido no lobo parietal.

(Confusão entre o público; breve recesso.)

Ve.:  Doutor, desculpe essa interrupção. Eu gostaria de lembrar aos presentes que esta comissão está em sessão, e que é um órgão de investigações, e não um espetáculo exibicionista. Exijo ordem, do contrário o funcionário fará evacuar o recinto.

Va.:  Não tem importância, Sr. Verizer.

Ve.:  Obrigado, doutor. Pode dizer à comissão como foi que Smith aceitou essa notícia?

Va:   Com calma. Uma calma extraordinária. Acho que no intimo ele já tinha feito o seu diagnóstico, e que o dele e o meu coincidiam. No entanto, disse que estava muito assustado. E perguntou-me quanto tempo de vida teria.

Ve.:  O que o senhor lhe disse?

Va:   Disse que, àquela altura, uma pergunta dessas não tinha sen­tido, pois as nossas opções ainda eram vagas. Disse-lhe que ele precisaria submeter-se a uma operação. Devo dizer que nessa ocasião eu ainda não tinha conhecimento da coma dele e de sua recuperação quase milagrosa.

Ve.:  E qual foi a reação dele?

Va:   Disse que não queria ser operado. Estava tranqüilo mas mui­to, muito firme. Nada de operação. Eu disse que esperava que ele pensasse melhor, pois recusar essa operação seria assinar a sua própria sentença de morte.

Ve.:  Smith deu alguma resposta a isso?

Va:   Pediu que eu lhe desse a minha opinião mais sincera sobre quanto tempo de vida ele teria sem essa operação.

Ve.:  O senhor lhe deu essa opinião?

Va:   Dei-lhe uma idéia aproximada, sim. Disse-lhe que os tumores têm um crescimento extremamente irregular, e que conhecia pacientes cujos tumores tinham ficado latentes durante até dois anos, mas que esse fato era bem raro. Disse-lhe que, sem operação, ele poderia esperar razoavelmente viver de oito a vinte meses.

Ve.:  Mas ainda assim ele se recusou a ser operado, certo?

Va:   Sim, foi isso.

Ve.:  Aconteceu alguma coisa fora do comum, quando Smith ia saindo?

Va:   Eu diria que foi extremamente fora do comum.

Ve.:  Conte à comissão, por favor.

Va:   Toquei no ombro dele, querendo detê-lo, imagino. Não queria vê-lo sair naquelas circunstâncias, o senhor compreende, quando fiz isso, senti emanar-se dele alguma coisa.., uma sen­sação como a de um choque elétrico, mas também uma sensação estranhamente esgotante, debilitante. Como se ele estivesse pu­xando alguma coisa de mim. Concordo em que essa é uma descrição extremamente subjetiva, mas vem de um homem trei­nado na arte e no ofício da observação profissional. Não foi agradável, posso garantir. Eu me afastei dele.., e ele sugeriu que eu telefonasse para a minha mulher, pois Strawberry tinha se machucado gravemente.

Ve.:  Strawberry?

Va.:  Sim, foi o que ele disse. O irmão de minha mulher.., o nome dele é Stanbury Richards. Meu filho mais moço sempre o cha­mava de tio Strawberry, quando era menino. Essa associação, aliás, só me ocorreu mais tarde. Naquela noite, sugeri a minha mulher que ela ligasse para o irmão, que mora na cidade de Coose Lake, Nova York.

Ve.:  Ela ligou?

Va.:  Ligou, sim. Tiveram uma conversa agradável.

Ve.:  E o Sr. Richards — o seu cunhado —, estava bem?

Va.:  Sim, estava bem. Mas, na semana seguinte, caiu de uma esca­da, quando estava pintando a casa, e quebrou as costas.

Ve.:  Dr. Vann, o senhor acredita que John Smith tenha visto isso acontecer? Acredita que ele tivesse tido uma visão profética a respeito do irmão de sua mulher?

Va.:  Não sei. Mas acredito.., que pode ter tido.

Ve.:  Obrigado, doutor...

Va.:  Posso dizer mais uma coisa?

Ve.:  Claro.

Va.:  Se ele de fato tinha essa maldição.., sim, eu chamaria isso de maldição.., espero que Deus tenha piedade da alma ator­mentada daquele homem.

 

..... e sei, pai, que as pessoas vão dizer que eu fiz o que pretendo fazer por causa do tumor, mas, papai, não acredite nisso. Não é verdade. O tumor é apenas o acidente que afinal me pegou, o acidente que hoje creio nunca ter parado de acontecer. O tumor está no mesmo lugar que foi lesado no acidente, o mesmo lugar que hoje creio ter sido machucado quando eu era pequeno e cai patinando na lagoa Runaround. Foi ai que tive a primeira de minhas ‘intuições’, se bem que nem hoje eu consiga lembrar-me exatamente do que foi. E tive outra pouco antes do acidente, na feira de Easty. Pergunte a Sarah sobre essa; tenho certeza de que ela se lembra. O tumor fica no lugar que sempre chamei de ‘zona morta’. E isso deu certo, não? Amargamente certo. Deus... des­tino.., providência.., fortuna.., seja como for que quiser cha­mar a isso, parece estar estendendo sua mão firme e indiscutível para tornar a equilibrar a balança. Talvez eu estivesse destinado a morrer naquele desastre de automóvel, ou mesmo antes, naquele dia na Runaround. E acredito que, quando terminar o que tenho de terminar, a balança estará completamente equilibrada, de novo.

Papai, eu o amo. O pior de tudo, além da certeza terrível de que a arma é a única saída para esse impasse tremendo em que me encontro, é saber que estarei deixando você para trás, para suportar a tristeza e o ódio daqueles que não têm motivos para supor que Stillson seja alguma outra coisa além de um homem bom e justo..

 

Extrato de um depoimento prestado diante da chamada Comis­são Stillson, presidida pelo senador William Cohen, do Maine. O interrogador é o Sr. Albert Renfrew, advogado substituto da co­missão. A testemunha é o Dr. Samuel Weizak, de Harlow Court, 26, Bangor, Maine.

Data do depoimento: 23 de agosto de 1979.

Renfrew: Estamos chegando à hora do recesso, Dr. Weizak, e, em nome da comissão, gostaria de agradecer-lhe pelas últimas qua­tro longas horas de depoimento. O senhor lançou muita luz sobre a situação.

Weizak:   Não há de quê.

R.:   Tenho uma última pergunta a lhe fazer, Dr. Weizak, que me parece ser de importância quase capital: refere-se a uma ques­tão de que o próprio John Smith falou na carta ao pai, que faz parte das provas. Essa pergunta e...

W.:   Não.

R.:   Como?

W.:   O senhor está se preparando para perguntar-me se foi o tumor de Johnny que puxou o gatilho naquele dia em New Hamp­shire, não?

R.:   De certo modo, imagino...

W.:   A resposta é não. Johnny era um ser humano pensante e ra­cional até o fim da vida. A carta ao pai mostra isso; a carta a Sarah Hazlett também mostra isso. Era um homem com um poder terrível, divino — talvez uma maldição, conforme disse o meu colega Dr. Vann —, mas não era desequilibrado, nem estava agindo por fantasias causadas por pressão craniana... se é que uma coisa dessas é possível.

R.:   Mas não é verdade que Charles Witman, o chamado “Atira­dor da Torre Texas”, tinha...

W.:   Sim, sim, ele tinha um tumor. Assim como o piloto do avião da Eastern Airlines que caiu na Flórida há alguns anos. E nun­ca se sugeriu que o tumor fosse o agente causador, em qualquer desses casos. Eu lhe diria que outras criaturas infames —Richard Speck, o chamado “Filho de Sam”, e Adolf Hitler — não precisaram de tumores no cérebro para agir de maneira homicida. Nem Frank Dodd, o assassino que o próprio Johnny descobriu na cidadezinha de Castle Rock. Por mais desorienta­do que a comissão julgue ter sido o ato de Johnny, foi o ato de um homem são. Em grande agonia mental, talvez.., mas em seu juízo perfeito.

 

“... e, sobretudo, não pense que fiz isso sem a reflexão mais pro­longada e agoniada. Se, matando-o, eu tivesse a certeza de que a raça humana estaria ganhando mais quatro anos, mais dois, até mais

oito meses para poder pensar nas coisas, valeria a pena. Ë errado, mas pode vir a dar certo. Não sei. Mas não vou mais bancar o Hamlet. Sei como Stillson é perigoso.

Papai, eu o amo muito, acredite.

Seu filho,

Johnny.”

 

Extrato do depoimento prestado diante da chamada Comissão

Stillson, presidida pelo senador William Cohen, do Maine. O in­terrogador é o Sr. Albert Renfrew, advogado substituto da comissão. A testemunha é o Sr. Stuart Clawson, da Blackstap Road, Jackson, New Hampshire.

Renfrew: E o senhor diz que por acaso pegou sua câmara, Sr. Clawson?

Clawson: Ë! Quando já ia saindo. Quase nem fui, naquele dia, embora goste de Greg Stillson... bem, gostava dele, antes de tudo isso, em todo caso. A prefeitura me parecia uma droga, sabe?

R.:   Por causa do seu exame de motorista.

C.:   Isso mesmo. Ser reprovado naquele teste de motorista foi uma droga mesmo. Mas no final eu disse: que diabo! E tirei a foto. Puxa! Bati aquela. Acho que aquela foto vai me deixar rico. Tal e qual o içar da bandeira em Iwo Jima.

R.:   Espero que não imagine que tudo isso tenha sido preparado para o seu benefício, rapaz.

C.:   Ah, não! Em absoluto! Eu só queria dizer... bom... não sei o que queria dizer. Mas aconteceu bem na minha frente, e... não sei. Puxa vida, mas fiquei contente por ter a minha Nikon, só isso.

R.:   Você bateu a chapa quando Stillson pegou a criança?

C.:   Matt Robeson, sim, senhor.

R.:   E esta é uma ampliação dessa foto?

C.:   Essa é a minha foto, sim.

R.:   E depois que você a tirou, o que aconteceu?

C.:   Dois daqueles bandidos correram atrás de mim. Estavam ber­rando: “Dê-nos a câmara, garoto! Largue isso”. Mer... hum, coisa assim.

R.:   E você correu.

Se corri? Deus do céu, se corri! Eles me perseguiram até o es­tacionamento da cidade. Um deles quase me pegou, mas escor­regou no gelo e caiu.

Cohen:    Rapazinho, eu gostaria de dizer que você venceu a corrida a pé mais importante de sua vida, ao escapar daqueles dois capangas.

C.:   Obrigado, senhor. O que Stillson fez naquele dia... talvez fosse preciso estar ali, mas... segurar um menininho na sua frente, isso é um bocado sujo. Aposto que o povo de New Hampshire não votaria naquele cara nem para laçador de cães da carrocinha. Nem para...

R.:   Obrigado, Sr. Clawson. A testemunha pode se retirar.

 

Outubro, de novo.

Sarah tinha evitado aquela viagem por muito tempo, mas ago­ra chegara o momento, e não podia mais ser adiada. Ela sentiu isso. Tinha deixado os dois filhos com a Sra. Ablanap — eles agora tinham empregada em casa, e dois carros, em vez do Pinto verme­lhinho; a renda de Walt estava quase na casa dos trinta mil dólares por ano — e fora sozinha a Pownal, no clarão ardente do fim de outono.

Parou então no acostamento de uma bonita estradinha de in­terior, saltou e foi até o pequeno cemitério do outro lado. Uma placa gasta pelo tempo, em um dos postes de pedra, mostrava que aquele era THE BIRCHES. Era encerrado por um muro de pedra irregular e estava bem tratado. Havia ainda algumas bandeiras des­botadas do dia comemorativo dos soldados mortos na guerra, cinco meses antes. Em breve estariam sepultadas na neve.

Ela andava devagar, sem se apressar, a brisa fazendo a barra de sua saia verde-escura esvoaçar. Lá havia gerações de BOWDENS; ali uma família inteira de MARSTENS; aqui, agrupados em volta de um grande monumento de mármore, estavam os PILLSBURYS, re­montando a 1750.

E, perto do muro dos fundos, ela encontrou uma pedra rela­tivamente nova, que dizia apenas JOHN SMITH. Sarah ajoelhou-se ao lado dela, hesitou, tocou-a. Deixou seus dedos deslizarem, pen­sativos, pela superfície polida.

 

“23 de janeiro de 1979

Querida Sarah,

       Acabei de escrever ao meu pai uma carta muito importante, e levei quase uma hora e meia para terminá-la. Não tenho a energia necessária para repetir esse esforço, de modo que vou suge­rir que você telefone para ele assim que receber esta. Faça isso agora, Sarah, antes de ler o resto.

Então agora, provavelmente, você sabe. Eu só queria lhe dizer que estive pensando muito em nosso encontro na feira de Easty, há pouco. Se eu tivesse de adivinhar quais são as duas coisas de que você mais se lembra, daquela noite, diria que foi a sorte que tive na roda da fortuna (lembra-se do garoto que dizia ‘Adoro ver esse cara levar uma surra’?) e a máscara que usei para implicar com você. Era só uma brincadeira, mas você ficou furiosa, e o nosso programa quase entrou pelo cano. Talvez, se isso tivesse acontecido, eu não estivesse aqui agora e aquele chofer de praça ainda estivesse vivo. Por outro lado, talvez nada de importante se modifique em nosso futuro, e eu teria tido o mesmo destino uma semana, um mês ou um ano depois.

Bem, tivemos a nossa chance, e deu um dos números da casa: duplo zero, acho. Mas eu queria que você soubesse que penso em você, Sarah. Para mim, nunca houve outra pessoa, e aquela noite foi a melhor, para nós...”

 

— Alô, Johnny — murmurou ela, e o vento passeou de leve pelas árvores que ardiam num clarão; uma folha vermelha voou pelo céu bem azul e parou nos cabelos dela, sem ela notar. —Estou aqui. Afinal, eu vim.

Falar alto também parecia ser errado; falar com os mortos num cemitério era coisa de uma pessoa louca, diria ela um dia. Mas agora a emoção a surpreendeu, uma emoção de tal força e inten­sidade que fez sua garganta doer e suas mãos de repente se jun­tarem com violência. Era certo falar com ele, talvez; afinal, tinham sido nove anos, e isso era o fim. Depois disso, seriam Walt e os filhos, e muitos sorrisos de uma das cadeiras atrás da tribuna do marido; os eternos sorrisos dos fundos, e de vez em quando um artigo nos suplementos do jornal de domingo, se a carreira política de Walt subisse a jato, como ele tão calmamente esperava. O fu­turo era um pouco mais de cabelos brancos a cada ano, nunca dei­xar de usar sutiã para não ficar com o busto caído, mais cuidado com a maquilagem; o futuro eram aulas de ginástica na ACM de Bangor, fazer compras, levar Denny para a primeira série e Janis para o jardim de infância; o futuro eram festas de Ano-Novo, chapéus engraçados, enquanto sua vida continuaria pelos anos 80 de ficção científica e seguiria para um estado esquisito e quase não suspeitado: a meia-idade.

Não via feiras de interior, em seu futuro.

Começaram a aparecer as primeiras lágrimas, lentas e escal­dantes.

— Ah, Johnny! — disse ela. — Tudo devia ter sido diferente, não é? Não devia ter acabado assim.

Abaixou a cabeça, a garganta doendo.., e não adiantou. O vento, que antes parecia tão morno, como de um veranico, agora parecia frio como o de fevereiro em suas faces molhadas.

— Não é justo! — exclamou ela, no silêncio dos BOWDENS, MARSTENS e PILLSBURYS, aquela congregação de ouvintes mortos que não testemunhavam nada mais do que o fato de que a vida é breve e a morte é morte. — Ah, Deus, não é justo!

E foi aí que a mão lhe tocou no pescoço.

 

“...e aquela noite foi a melhor, para nós, se bem que ainda haja momentos em que é difícil para mim acreditar que tenha havido um ano como 1970, tumulto nas universidades e Nixon presidente, quando não havia calculadoras de bolso, nem videocassetes domés­ticos, nem Bruce Springsteen ou conjuntos de punk-rock. E outras vezes parece que aquela época está pertinho, que quase posso to­cá-la, que, se eu pudesse abraçá-la ou tocar no seu rosto ou na sua nuca, eu a levaria comigo para um futuro diferente, sem dor, trevas ou escolhas amargas.

Bem, nós todos fazemos o que podemos, e tem de ser bastante bom.., e se não for bastante bom, tem de servir. Só espero que você pense em mim do melhor modo que puder, querida Sarah. Tudo de bom e todo o meu amor, Johnny.”

 

Ela respirou aos borbotões, endireitando as costas, os olhos arregalando-se.

—    Johnny...?

Tinha sumido.

Fosse o que fosse, tinha desaparecido. Ela levantou-se, vi­rou-se e, naturalmente, não havia nada lá. Mas podia vê-lo ali de pé, as mãos enfiadas nos bolsos, aquele sorriso fácil e torto no seu rosto mais simpático do que bonito, encostado, magro e à vontade, contra um monumento ou um dos postes de pedra do portão, ou talvez apenas uma árvore vermelha com o fogo agonizante do outono. Nada de mais, Sarah... você continua a tomar essa cocaína?

     Nada ali a não ser Johnny; por perto, talvez por toda parte. “Todos fazemos o que podemos, e tem de ser bastante bom... e se não for bastante bom, tem de servir. Nada jamais se perde, Sarah. Nada que não se possa encontrar.”

 

        — Sempre o mesmo Johnny — murmurou ela, e saiu do ce­mitério atravessando a estrada. Parou um momento, olhando para trás. O vento morno de outubro soprava forte, e grandes manchas de luz e sombras pareciam passar pelo mundo. As árvores farfalha­vam em segredo.

Sarah entrou no carro e partiu.

 

 

                                                                  Stephen King

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades