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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ZORRO / Isabel Allende
ZORRO / Isabel Allende

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Nascido no sul da Califórnia no século XVIII, Diego de La Vega é um rapaz preso entre dois mundos. O pai, um militar aristocrata espanhol, é um importante latifundiário. A mãe, por outro lado, é uma guerreira da tribo indígena Shoshone. Da avó materna, Coruja Branca, aprende os costumes da sua gente, enquanto do pai aprende a arte da esgrima e como marcar o gado. Durante a infância, cheia de traquinices e aventuras, Diego é testemunha das brutais injustiças que os indígenas norte-americanos enfrentam pela parte dos colonos europeus, e sente pela primeira vez um conflito interior em relação à sua herança. Aos 16 anos, Diego é enviado a Barcelona para receber uma educação europeia. Num país oprimido pela corrupção do domínio Napoleónico, o jovem decide seguir o exemplo do seu célebre professor de esgrima, e adere "A Justiça", um movimento clandestino de resistência, que se dedica a ajudar os pobres e indefesos. Imerso num mundo de um ambiente de revolta e desordem, enfrenta pela primeira vez um grande rival que vem de um mundo de privilégio. Entre a Califórnia e Barcelona, o novo mundo e o velho continente, forma-se a personagem do Zorro, nasce um grande herói e começa a lenda. Depois de muitas aventuras - duelos ao amanhecer, violentas batalhas marítimas com piratas e resgates impossíveis - Diego de La Vega, conhecido também como Zorro, regressa à América para reclamar a propriedade onde cresceu, em busca de justiça para todos aqueles que não podem lutar por si próprios.

 

 

 

 

Califórnia, 1790-1810

Comecemos pelo princípio, por um acontecimento sem o qual Diego de La Vega não teria nascido. Sucedeu na Alta Califórnia, na Missão San Gabriel, no ano de Nosso Senhor de 1790. Naquele tempo quem dirigia a missão era o padre Mendoza, um franciscano com umas costas de lenhador, mais novo de aspecto que os seus quarenta anos bem vividos, enérgico e mandão, para quem a maior dificuldade do seu ministério era imitar a humildade e doçura de São Francisco de Assis. Na Califórnia havia vários outros religiosos em vinte e três missões, encarregados de propagar a doutrina de Cristo entre vários milhares de gentios das tribos Chumash, Shoshone e outras, que nem sempre se prestavam de bom grado a recebê-la. Os nativos da costa da Califórnia tinham uma rede de trocas e comércio que funcionava havia milhares de anos. O seu ambiente era muito rico em recursos naturais e as tribos desenvolviam diferentes especialidades. Os Espanhóis estavam impressionados com a economia Chumash, cuja complexidade comparavam com a da China. Os índios usavam conchas como moeda e organizavam regularmente feiras, onde, além do intercâmbio de bens, se ajustavam os casamentos.

Os índios ficavam confundidos com o mistério do homem torturado numa cruz que os brancos adoravam, e não compreendiam a vantagem de sofrer neste mundo para gozar de um hipotético bem-estar noutro. No paraíso cristão podiam instalar-se numa nuvem e tocar harpa com os anjos, mas na realidade a maioria deles preferia, depois da morte, caçar ursos com os antepassados nas terras do Grande Espírito. Tão-pouco compreendiam que os estrangeiros espetassem uma bandeira no solo, marcassem linhas imaginárias, o declarassem propriedade sua e se ofendessem se alguém entrasse perseguindo um veado. A ideia de possuir a terra era para eles tão inverosímil como a de dividir o mar. Quando chegou ao padre Mendoza notícia de que várias tribos se tinham sublevado, comandadas por um guerreiro com cabeça de lobo, este elevou as suas preces pelas vítimas, mas não se preocupou demasiado, porque estava certo de que San Gabriel se encontrava a salvo. Pertencer à sua missão era um privilégio, como demonstravam as famílias indígenas que acorriam a solicitar a sua protecção a troco do baptismo e de bom grado ficavam sob o seu tecto; nunca tivera de empregar militares para recrutar futuros conversos. Atribuiu a recente insurreição, a primeira que ocorria na Alta Califórnia, aos abusos da soldadesca espanhola e à severidade dos seus irmãos missionários. As tribos, divididas em pequenos grupos, tinham costumes diversos e comunicavam entre si por meio de um sistema de sinais; nunca haviam chegado a acordo para coisa nenhuma, excepto para o comércio, e nunca certamente para a guerra. Segundo ele, aquelas pobres gentes eram inocentes cordeiros de Deus, que pecavam por ignorância e não por vício; deviam existir razões ponderosas para que se levantassem contra os colonizadores.

O missionário trabalhava sem descanso, lado a lado com os índios, nos campos, no curtimento de peles, na moagem do milho. De tarde, quando os outros descansavam, ele tratava feridas de acidentes menores ou arrancava algum dente podre. Além disso, dava lições de catecismo e de aritmética, para que os neófitos - como chamavam aos índios convertidos - pudessem contar as peles, as velas e as vacas, mas não de leitura ou escrita, conhecimentos sem aplicação prática naquele lugar. À noite fazia vinho, tratava das contas, escrevia nos seus cadernos e rezava. Ao amanhecer tocava o sino para chamar a sua congregação à missa e, depois do ofício, supervisionava o pequeno--almoço com olhar atento, para que ninguém ficasse sem comer. Por tudo isso, e não por excesso de confiança em si próprio ou vaidade, estava convencido de que as tribos em pé de guerra não atacariam a sua missão. Não obstante, como as más notícias continuassem a chegar semana após semana, acabou por lhes dar atenção. Mandou um par de homens de toda a confiança averiguar o que se estava a passar no resto da região; estes não tardaram a localizar os índios em guerra e a apurar os pormenores, porque foram recebidos como compadres pelos próprios sujeitos que iam espiar. Regressaram para contar ao missionário que um herói, surgido das profundezas do bosque e possuído pelo espírito de um lobo, tinha conseguido juntar várias tribos para expulsarem os Espanhóis das terras dos seus antepassados, onde sempre tinham caçado sem autorização. Os índios não possuíam uma estratégia clara; limitavam-se a assaltar as missões e as povoações no impulso do momento, incendiavam tudo quanto encontravam à sua passagem e seguidamente retiravam-se tão depressa como haviam chegado. Acrescentaram os homens do padre Mendoza que o chefe Lobo Cinzento tinha San Gabriel na mira, não por rancor particular contra o missionário, ao qual nada se podia censurar, mas sim porque lhes ficava em caminho. Em vista disso, o sacerdote teve de tomar medidas. Não estava disposto a perder o fruto do seu trabalho de anos e ainda menos a permitir que lhe arrebatassem os seus índios, que longe da sua tutela sucumbiriam ao pecado e voltariam a viver como selvagens. Escreveu uma mensagem ao capitão Alejandro de La Vega pedindo-lhe imediato socorro. Receava o pior, dizia, porque os insurrectos se encontravam muito perto, com intenções de atacar a qualquer momento, e ele não se poderia defender sem reforços militares adequados. Mandou duas missivas idênticas ao forte de San Diego por cavaleiros expeditos, que usaram diferentes percursos, de modo que, se um fosse interceptado, o outro alcançaria o seu propósito.

Uns dias mais tarde, o capitão Alejandro de La Vega chegou a galope à missão. Desmontou de um salto no pátio, desfez-se da pesada casaca do uniforme, do lenço e do chapéu, e mergulhou a cabeça na artesa onde as mulheres enxaguavam a roupa. O cavalo estava coberto de suor espumoso, porque tinha carregado por várias léguas o cavaleiro com o seu equipamento de dragão do Exército espanhol: lança, espada, escudo de couro duplo e carabina, além dos arreios. De La Vega era acompanhado por um par de homens e vários cavalos que transportavam as provisões. O padre Mendoza saiu a recebê-lo com os braços abertos, mas, ao ver que só o acompanhavam dois soldados andrajosos e tão extenuados como as cavalgaduras, não pôde dissimular a frustração.

- Lamento, padre, não disponho de mais soldados do que este par de bravos homens. O resto do destacamento ficou na povoação de La Reina de los Angeles, que também está ameaçada pela sublevação - desculpou-se o capitão, limpando a cara com as mangas da camisa.

- Que Deus nos ajude, visto que Espanha o não faz - retrucou entre dentes o sacerdote.

- Sabe quantos índios atacarão?

- Há muito poucos aqui que saibam contar com rigor, capitão, mas, segundo os meus homens averiguaram, podem chegar a quinhentos.

- Isso significa que não serão mais de cento e cinquenta, padre. Podemos defender-nos. Com que contamos? - inquiriu Alejandro de La Vega.

- Comigo, que fui soldado antes de ser padre, e com outros dois missionários, que são jovens e corajosos. Temos três soldados adstritos à missão, que vivem cá. Também vários mosquetes e carabinas, munições, um par de sabres e a pólvora que utilizamos na pedreira.

- Quantos neófitos?

- Sejamos realistas, meu filho: a maioria não combaterá contra gente da sua raça - explicou o missionário. - Quando muito, conto com meia dúzia de jovens criados aqui e algumas mulheres que nos podem ajudar a carregar as armas. Não posso arriscar as vidas dos meus neófitos; são como crianças, capitão. Trato deles como se fossem meus filhos.

- Bem, padre, mãos à obra, em nome de Deus. Pelo que vejo, a igreja é o edifício mais sólido da missão. Defender-nos-emos lá - disse o capitão.

Durante os dias seguintes ninguém descansou em San Gabriel; até as crianças de tenra idade foram postas a trabalhar. O padre Mendoza, bom conhecedor da alma humana, não podia confiar na lealdade dos neófitos uma vez que se vissem rodeados de índios livres. Consternado, notou um certo brilho selvagem nos olhos de alguns deles e a falta de vontade com que cumpriam as suas ordens: deixavam cair as pedras, rasgavam-se-lhes os sacos de areia, enredavam-se nas cordas, entornavam-se-lhes os baldes de pez. Forçado pelas circunstâncias, violou o seu próprio regulamento de compaixão e, sem que lhe tremesse a vontade, condenou um par de índios ao cepo e a um terceiro aplicou dez chicotadas, para servir de exemplo. Depois mandou reforçar com tábuas a porta do dormitório das mulheres solteiras, construído como uma prisão, de modo que as mais audazes não saíssem para passear ao luar com os respectivos apaixonados. Era um edifício rotundo, de grosso adobe, sem janelas e com a vantagem adicional de se poder trancar por fora com uma barra de ferro e cadeados.

Ali encerraram a maior parte dos neófitos do sexo masculino, agrilhoados pelos tornozelos, a fim de evitar que na hora da batalha colaborassem com o inimigo.

- Os índios têm medo de nós, padre Mendoza. Julgam que possuímos uma magia muito poderosa - afirmou o capitão De La Vega, dando uma palmada na coronha da sua carabina.

- Esta gente conhece de sobra as armas de fogo, embora ainda não tenha descoberto o seu funcionamento. O que na verdade os índios temem é a cruz de Cristo - retorquiu o missionário, apontando para o altar.

- Então vamos fazer-lhes uma demonstração do poder da cruz e do da pólvora - riu-se o capitão, passando a explicar o seu plano.

Encontravam-se na igreja, onde tinham colocado barricadas de sacos de areia por dentro, diante da porta, e haviam disposto ninhos com as armas de fogo em locais estratégicos. Na opinião do capitão De La Vega, enquanto mantivessem os atacantes a uma certa distância, para que pudessem carregar as carabinas e os mosquetes, a balança penderia a seu favor, mas em combate corpo a corpo a sua desvantagem seria tremenda, visto que os índios os superavam em número e ferocidade.

O padre Mendoza admirou a audácia do homem. De La Vega tinha à volta de trinta anos e era já um soldado veterano, curtido nas guerras de Itália, donde regressara marcado com orgulhosas cicatrizes. Era o terceiro filho de uma família de fidalgos, cuja linhagem remontava a Cid, o Campeador. Os seus antepassados haviam lutado contra os Mouros sob os estandartes católicos de Isabel e Fernando, mas de tanta coragem exaltada e de tanto sangue derramado por Espanha não lhes ficara fortuna, apenas honra. Por morte do pai, o filho mais velho herdara a casa da família, um centenário edifício de pedra incrustado num pedaço de terra seca em Castela. O segundo irmão fora reclamado pela Igreja, e a ele tocara-lhe ser soldado: não havia outro destino para um jovem do seu sangue. Em paga da coragem demonstrada em Itália, recebera uma pequena bolsa de dobrões de ouro e autorização para ir até ao Novo Mundo, a fim de melhorar o seu destino. Assim, fora parar à Alta Califórnia, onde chegara acompanhando Dona Eulália de Callís, a esposa do governador Pedro Fages, apodado o Urso devido ao seu mau génio e ao número desses animais caçados por sua própria mão.

O padre Mendoza tinha ouvido os boatos sobre a épica viagem de Dona Eulália, uma dama de temperamento tão fogoso como o do marido. A sua caravana demorara seis meses a percorrer a distância entre a Cidade do México, onde vivia como uma princesa, e Monterrey, a inóspita fortaleza militar onde o marido a aguardava. Avançava a passo de tartaruga, arrastando um comboio de carroças de bois e uma fila interminável de mulas com a bagagem; além disso, em cada lugar onde acampavam, organizava uma festa cortesã que costumava durar vários dias. Diziam que era excêntrica, que lavava o corpo com leite de burra e pintava o cabelo, que lhe chegava aos calcanhares, com os unguentos avermelhados das cortesãs de Veneza; que, por simples esbanjamento, e não por virtude cristã, se desfazia dos seus vestidos de seda e brocado para cobrir os índios nus que lhe saíam ao caminho; e acrescentavam que, para cúmulo do escândalo, se enamorara do bem-parecido capitão Alejandro de La Vega.

- Enfim, quem sou eu, um pobre franciscano, para julgar essa senhora - concluiu o padre Mendoza, observando De La Vega de soslaio e perguntando a si mesmo com curiosidade, muito a contragosto, quanto haveria de verdadeiro nos rumores.

Nas suas cartas ao director das missões no México, os missionários queixavam-se de que os índios preferiam viver nus, em palhotas, armados de arco e flecha, sem educação, governo, religião ou respeito pela autoridade e completamente entregues à satisfação dos seus desavergonhados apetites, como se a água milagrosa do baptismo nunca lhes tivesse lavado os pecados. A teimosia dos índios em se aferrarem aos seus costumes tinha de ser obra de Satanás, não havia outra explicação, pelo que iam caçar os desertores com laço e, seguidamente, os chicoteavam para lhes ensinarem a sua doutrina de amor e perdão. O padre Mendoza, porém, tivera uma juventude bastante dissipada antes de se tornar sacerdote, e a ideia de satisfazer apetites desavergonhados não lhe era alheia, pelo que simpatizava com os indígenas. Aliás, sentia uma secreta admiração pelas ideias progressistas dos seus rivais, os jesuítas. Ele não era como outros religiosos, inclusivamente a maior parte dos seus irmãos franciscanos, que faziam da ignorância uma virtude. Uns anos antes, quando se preparava para tomar conta da Missão San Gabriel, lera com extremo interesse o relatório de um tal Jean François de La Pérouse, um viajante que descrevera os neófitos da Califórnia como seres tristes, sem personalidade, privados de espírito, que lhe recordavam os traumatizados escravos negros das plantações das Caraíbas. As autoridades espanholas atribuíram as opiniões de La Pérouse ao lamentável facto de o homem ser francês, mas estas causaram uma profunda impressão ao padre Mendoza. No fundo da sua alma confiava quase tanto na ciência como confiava em Deus, pelo que decidiu que converteria a missão num exemplo de prosperidade e justiça. Propôs-se ganhar adeptos por meio da persuasão e retê-los com boas acções, em lugar de chicotadas. Conseguiu-o de maneira espectacular. Sob a sua direcção, a existência dos índios melhorou tanto que, se La Pérouse tivesse passado por lá, teria ficado admirado. O padre Mendoza podia gabar-se - embora nunca o fizesse - de que o número de baptizados em San Gabriel triplicara, nenhum se escapava por muito tempo e os escassos fugitivos regressavam sempre arrependidos.

Apesar do trabalho duro e das restrições sexuais, voltavam porque ele os tratava com clemência e porque, até então, nunca tinham disposto de três refeições diárias e de um telhado sólido para se refugiarem das tempestades.

A missão atraía viajantes do resto da América e de Espanha, que se dirigiam àquele remoto território para aprenderem o segredo do êxito do padre Mendoza. Ficavam muito bem impressionados com os campos de cereais e legumes; as vinhas que produziam bom vinho; o sistema de irrigação inspirado nos aquedutos romanos; as cavalariças e os currais; os rebanhos a pastar nos cerros até perder de vista; as adegas a abarrotarem de peles curtidas e tonéis de banha. Maravilhavam-se com a paz em que os dias decorriam e com a mansidão dos neófitos, que estavam a adquirir fama para além das fronteiras com a sua fina cestaria e os seus produtos de couro. «A barriga cheia, coração contente», era o lema do padre Mendoza, que vivia obcecado com a nutrição desde que ouvira dizer que, às vezes, os marinheiros morriam de escorbuto, quando um limão podia prevenir a doença. «É mais fácil salvar a alma se o corpo estiver são», pensava, pelo que a primeira coisa que fizera ao chegar à missão fora substituir as eternas papas de milho, base da dieta, por estufado de carne, verduras e banha para as tortilhas. Providenciava leite para as crianças com enorme esforço, porque cada balde do espumante líquido se obtinha à custa de uma batalha com as vacas bravas. Eram precisos três homens corpulentos para ordenhar cada uma delas e amiudadas vezes era a vaca que ganhava. Mendoza combatia a repugnância das crianças pelo leite com o mesmo método com que as purgava uma vez por mês para lhes tirar os vermes intestinais: amarrava-as, apertava-lhes o nariz e introduzia-lhes um funil na boca. Tanta determinação tinha de dar resultados. À força de funis, as crianças cresciam fortes e de carácter temperado.

A população de San Gabriel estava isenta de vermes e era a única livre das fatídicas pestes que dizimavam outras colónias, embora às vezes um resfriado ou uma diarreia comum enviassem os neófitos directamente para o outro mundo.

Na quarta-feira ao meio-dia os índios atacaram. Aproximaram-se sigilosamente, mas, quando invadiram os terrenos da missão, já eram esperados. A primeira impressão dos inflamados guerreiros foi que o lugar se encontrava deserto: apenas um par de cães magros e uma galinha distraída os receberam no pátio. Não encontraram vivalma em sítio algum, não ouviram vozes, nem viram fumo nas lareiras das palhotas. Alguns dos índios vestiam peles e montavam a cavalo, mas na sua maioria vinham nus e a pé, armados de arcos e flechas, maças e lanças. À frente galopava o misterioso chefe, pintado às listas vermelhas e negras, vestido com uma curta túnica de pele de lobo e adornado com uma cabeça completa do mesmo animal à laia de chapéu. Mal se lhe via a cara, que assomava entre as fauces do lobo, envolta numa longa cabeleira escura.

Em poucos minutos os assaltantes percorreram a missão, deitaram fogo às palhotas e espatifaram os cântaros de barro, os tonéis, as ferramentas, os teares e tudo o restante ao seu alcance, sem encontrarem a menor resistência. Os seus pavorosos uivos de combate e a sua tremenda pressa impediram-nos de ouvir os chamamentos dos neófitos, fechados a tranca e cadeado no barracão das mulheres. Encorajados, dirigiram-se à igreja e lançaram uma chuva de flechas, mas estas embateram inutilmente contra as firmes paredes de adobe. A uma ordem do chefe Lobo Cinzento investiram sem método nem concerto contra as grossas portas de madeira, que estremeceram com o impacte, mas não cederam. A gritaria e os alaridos aumentavam de volume a cada empenho do grupo em arrombar a porta, enquanto alguns guerreiros mais atléticos e audazes procuravam forma de trepar até aos estreitos postigos e ao campanário.

Dentro da igreja, a tensão tornava-se mais intolerável a cada empurrão que a porta sofria. Os defensores - quatro missionários, cinco soldados e oito neófitos - estavam colocados aos lados da nave, protegidos por sacos de areia e secundados por raparigas encarregadas de carregar as armas. De La Vega treinara-as o melhor possível, mas não se podia esperar demasiado de raparigas aterrorizadas que nunca tinham visto um mosquete de perto. A tarefa consistia numa série de movimentos que qualquer soldado executava sem pensar, mas que o capitão levou horas a explicar-lhes. Uma vez pronta a arma, a jovem entregava-a ao homem encarregado de a disparar, enquanto ela preparava outra. Ao accionar o gatilho, uma faísca inflamava o explosivo do fuzil que, por sua vez, detonava o canhão. A pólvora húmida, a pederneira desgastada e os canos obstruídos provocavam numerosas falhas de fogo, além do que era frequente esquecerem-se de retirar a vareta do cano antes de disparar.

- Não desanimem, a guerra é sempre assim, só barulho e turbulência. Se uma arma encrava, a seguinte tem de estar pronta para continuar a matar - foram as instruções de Alejandro de La Vega.

Numa casa atrás do altar encontrava-se o resto das mulheres e todas as crianças da missão, que o padre Mendoza jurara proteger com a vida. Os defensores do local, com os dedos apertados nos gatilhos e metade da cara protegida por um lenço ensopado em água com vinagre, esperavam em silêncio a ordem do capitão, o único imperturbável diante da gritaria dos índios e do estrondo dos seus corpos a arremessarem-se contra a porta. Friamente, De La Vega calculava a resistência da madeira. O êxito do seu plano dependia de agir no momento oportuno e em perfeita coordenação. Não tivera ocasião de combater desde as campanhas de Itália, vários anos antes, mas estava lúcido e tranquilo; o único indício de apreensão era o formigueiro nas mãos que sentia sempre antes de disparar.

Daí a pouco, os índios cansaram-se de bater na porta e retrocederam para recuperar forças e receber instruções do seu chefe. Um silêncio ameaçador substituiu o tumulto anterior. Foi esse o momento que De La Vega escolheu para dar o sinal. O sino da igreja começou a repicar furiosamente, enquanto os neófitos incendiavam trapos untados de pez, produzindo uma fumarada espessa e fétida. Outros dois levantaram a pesada tranca da porta. As badaladas devolveram a energia aos índios, que se reagruparam para se lançarem de novo ao ataque. Desta vez, a porta cedeu ao primeiro contacto e caíram uns por cima dos outros na maior confusão, embatendo contra uma barreira de sacos de areia e pedras. Vinham ofuscados pela luz de fora e depararam-se com a penumbra e a fumarada do interior. Dez mosquetes dispararam em uníssono dos lados, ferindo vários índios, que caíram soltando alaridos. O capitão acendeu a mecha e em poucos segundos o fogo alcançou os sacos de pólvora misturada com gordura e projécteis que tinham disposto à frente da barricada. A explosão abalou os alicerces da igreja, lançou uma saraivada de partículas de metal e pedregulhos contra os índios e arrancou pela raiz a grande cruz de madeira que havia por cima do altar. Os defensores sentiram o sopro quente, que os impeliu para trás, e o barulho espantoso, que os ensurdeceu, mas conseguiram ver os corpos dos índios projectados como marionetas numa nuvem avermelhada. Protegidos atrás das suas barricadas, tiveram tempo de se recuperar, carregar as armas e disparar pela segunda vez, antes que as primeiras flechas voassem pelos ares. Vários índios jaziam pelo solo e os que ainda permaneciam de pé tossiam e lacrimejavam com o fumo, sem poderem apontar com os seus arcos, sendo, em contrapartida, alvo fácil para as balas.

Três vezes conseguiram carregar os mosquetes antes que o chefe Lobo Cinzento, seguido pelos seus mais valentes guerreiros, lograsse galgar a barricada e invadir a nave, onde foi recebido pelos espanhóis. No caos da batalha, o capitão Alejandro de La Vega nunca perdeu de vista o chefe índio e, mal conseguiu libertar-se dos inimigos que o rodeavam, saltou-lhe em cima, enfrentando-o com um rugido de fera, de sabre na mão. Descarregou o aço com todas as forças, mas acertou no vazio, porque o instinto do chefe Lobo Cinzento o avisou do perigo um segundo antes e conseguiu furtar o corpo, atirando-se para o lado. O brutal impulso empregado na estocada desequilibrou o capitão, que tombou para a frente, tropeçou e caiu de joelhos, ao mesmo tempo que a espada embatia contra o chão, partindo-se ao meio. Com um grito de triunfo, o índio levantou a lança para trespassar o espanhol de lado a lado, mas não conseguiu completar o gesto, porque uma coronhada na nuca o prostrou de borco, deixando-o imóvel.

- Que Deus me perdoe! - exclamou o padre Mendoza, que esgrimia um mosquete pelo cano e distribuía golpes à esquerda e à direita com prazer feroz.

Um charco escuro alastrou rapidamente em torno do chefe e a altiva cabeça de lobo do seu toucado tornou-se vermelha, ante a surpresa do capitão De La Vega, que já se dava a si próprio como morto. O padre Mendoza coroou a sua imprópria alegria com um bom pontapé no corpo inerte do desfalecido. Tinha-lhe bastado cheirar a pólvora para voltar a ser o soldado sanguinário que fora na juventude.

Em questão de minutos correu a notícia entre os índios de que o chefe tinha caído e começaram a retroceder, primeiro com dúvidas e depois à desfilada, perdendo-se na distância. Os vencedores, banhados de suor e meio asfixiados, esperaram que a poeira da retirada do inimigo assentasse para saírem, a fim de respirarem ar puro. Ao repique demencial do sino da igreja somaram-se uma salva de tiros para o ar e as intermináveis aclamações dos que tinham salvo a vida, dominando os queixumes dos feridos e o pranto histérico das mulheres e das crianças, ainda encerradas atrás do altar e imersas na fumarada.

O padre Mendoza arregaçou a sotaina ensopada de sangue e entregou-se à tarefa de devolver a sua missão à normalidade, sem se aperceber de que tinha perdido uma orelha e o sangue não era dos adversários, mas sim seu. Contou as suas reduzidas baixas e elevou ao céu uma dupla prece para agradecer o triunfo e pedir perdão por ter perdido de vista a compaixão cristã no entusiasmo da peleja. Dois dos seus soldados sofreram ferimentos menores e um dos missionários tinha um braço trespassado por uma flecha. A única morte a lamentar fora a de uma das raparigas que carregavam as armas, uma indiazinha de quinze anos que ficara estendida de barriga para cima, com o crânio desfeito por uma paulada e uma expressão de surpresa nos grandes olhos sombrios. Enquanto o padre Mendoza organizava os seus para apagarem os incêndios, cuidar dos feridos e enterrar os mortos, o capitão Alejandro de La Vega, com um sabre alheio na mão, percorria a nave da igreja à procura do cadáver do chefe índio, com a ideia de enfiar a cabeça num pique e enterrá-la à entrada da missão, para desanimar qualquer um que acalentasse a ideia de lhe seguir o exemplo. Encontrou-o onde tinha caído. Não passava de um fardo patético encharcado no seu próprio sangue. Com uma palmada, arrancou-lhe a cabeça de lobo e com a ponta do pé fez rebolar o corpo, muito mais pequeno do que parecia quando arvorava uma lança. O capitão, ainda cego de raiva e ofegando pelo esforço do combate, pegou no chefe pela comprida cabeleira e levantou o sabre para o decapitar de um só golpe, mas, antes que conseguisse baixar o braço, o prostrado abriu os olhos e fitou-o com uma inesperada expressão de curiosidade.

- Santa Maria Virgem, está vivo! - exclamou De La Vega, dando um passo atrás.

Não o surpreendeu tanto que o seu inimigo ainda respirasse, como a beleza dos seus olhos cor de caramelo, alongados, de pestanas bastas, os olhos diáfanos de um veado naquele rosto coberto de sangue e pinturas de guerra. De La Vega largou o sabre, ajoelhou-se e meteu-lhe a mão por debaixo da nuca, erguendo-o com cuidado. Os olhos de veado fecharam-se e escapou-se-lhe da boca um longo gemido. O capitão deu uma olhadela em redor e compreendeu que estavam sozinhos naquele recanto da igreja, muito perto do altar. Obedecendo a um impulso, levantou o ferido com a intenção de o pôr ao ombro, mas descobriu-o muito mais leve do que esperava. Carregou-o nos braços como uma criança, evitou os sacos de areia, as pedras, as armas e os corpos dos mortos, que ainda não tinham sido retirados pelos missionários, e saiu da igreja para a luz daquele dia de Outono, que recordaria para o resto da vida.

- Está vivo, padre - anunciou, depositando o ferido no solo.

- Em má hora, capitão, porque teremos na mesma de o justiçar - redarguiu o padre Mendoza, que agora tinha uma camisa enrolada à volta da cabeça, como um turbante, para estancar o sangue da orelha cortada.

Alejandro de La Vega nunca conseguiu explicar por que razão, em vez de se aproveitar daquele momento para decapitar o seu inimigo, partiu em busca de água e de uns trapos para o lavar. Ajudado por uma neófita, afastou a cabeleira negra e enxaguou o longo corte, que em contacto com a água voltou a sangrar profusamente. Apalpou o crânio com os dedos, verificando que havia uma ferida inflamada, mas o osso estava intacto. Na guerra tinha visto coisas muito piores.

Pegou numa das agulhas curvas para fazer colchões e nas crinas de cavalo, que o padre Mendoza tinha posto de molho em tequila para remendar os feridos, e coseu o couro cabeludo. Depois lavou o rosto do chefe, verificando que a pele era clara e as feições delicadas. Com a adaga, rasgou a ensanguentada túnica de pele de lobo para ver se havia outras feridas e nessa altura escapou-se-lhe um grito do peito.

- É uma mulher! - exclamou, espantado.

O padre Mendoza e os demais acorreram depressa e ficaram a contemplar, mudos de assombro, os peitos virginais do guerreiro.

- Agora vai ser muito mais difícil dar-lhe a morte... - suspirou, por fim, o padre Mendoza.

O seu nome era Toypurnia e tinha apenas vinte anos. Conseguira que os guerreiros de várias tribos a seguissem porque era precedida de uma mítica lenda. A sua mãe era Coruja Branca, xamã e curandeira de uma tribo de índios Gabrielenhos, e o pai era um marinheiro desertor de um navio espanhol. O homem vivera vários anos escondido no meio dos índios, até que uma pneumonia o mandara desta para melhor, quando a filha já era adolescente. Toypurnia aprendera com o pai os fundamentos da língua castelhana, e com a mãe o uso de plantas medicinais e as tradições do seu povo. O seu extraordinário destino manifestou-se poucos meses depois de nascer, na tarde em que a mãe a deixou a dormir debaixo de uma árvore, enquanto tomava banho no rio, e um lobo se aproximou do fardo envolto em peles, o colheu nas fauces e o levou de rastos até ao bosque. Desesperada, Coruja Branca seguiu as pegadas do animal por vários dias, sem encontrar a filha. Durante o resto desse Verão, a mãe ficou com os cabelos brancos, e a tribo procurou a menina sem parar, até que se esfumou a última esperança de a recuperarem; nessa altura realizaram as cerimónias para a guiar até às vastas planícies do Grande Espírito. Coruja Branca negou-se a participar no funeral e continuou a perscrutar o horizonte, porque sentia nos ossos que a filha estava viva. Uma madrugada, no princípio do Inverno, viram surgir do nevoeiro uma criatura esquálida, imunda e nua, que avançava a gatinhar, com o nariz colado à terra. Era a menina perdida, que chegava grunhindo como um cão e com cheiro a fera. Chamaram-lhe Toypurnia, que na língua da sua tribo quer dizer Filha de Lobo, e criaram-na como os rapazes, com arco, flecha e lança, porque tinha voltado do bosque com um coração indómito.

De tudo isto soube Alejandro de La Vega nos dias seguintes pela boca dos índios prisioneiros, que lamentavam as suas feridas e a sua humilhação, encerrados nos barracões dos missionários. O padre Mendoza decidira soltá-los à medida que se iam restabelecendo, visto que não podia mantê-los cativos por tempo indefinido e, sem o chefe, pareciam ter voltado à indiferença e à docilidade de antes. Não quis açoitá-los, como estava certo de que mereciam, porque o castigo só provocaria mais rancor, e tão-pouco procurou convertê-los à sua fé, porque lhe pareceu que nenhum tinha queda para cristão; seriam como maçãs podres a contaminar a pureza do seu rebanho. Não escapou ao missionário que a jovem Toypurnia exercia um verdadeiro fascínio sobre o capitão De La Vega, que procurava pretextos para se deslocar a toda a hora à gruta subterrânea onde se envelhecia o vinho e onde tinham instalado a cativa. Dois motivos tivera o missionário para escolher a adega como cela: podia-se manter fechada à chave e a escuridão daria a Toypurnia ocasião para meditar sobre as suas acções. Como os índios asseguravam que a sua chefe se transformava em lobo e podia fugir de onde quer que fosse, tomou a precaução adicional de a imobilizar com correias de couro sobre as toscas tábuas que lhe serviam de beliche.

A jovem debateu-se durante vários dias entre a inconsciência e os pesadelos, encharcada em suor febril, alimentada com colheres de leite, vinho e mel, pela mão do capitão Alejandro de La Vega. De vez em quando, acordava nas trevas absolutas e receava ter ficado cega, mas outras vezes abria os olhos à luz trémula de uma candeia e distinguia o rosto de um desconhecido a chamá-la pelo nome.

Uma semana mais tarde, Toypurnia dava os seus primeiros passos clandestinos apoiada no garboso capitão, que decidira ignorar as ordens do padre Mendoza de mantê-la amarrada e às escuras. Por essa altura, os dois jovens podiam comunicar entre si, porque ela se lembrava do fragmentário castelhano que o pai lhe ensinara e ele fez o esforço de aprender umas palavras na língua dela. Quando o padre Mendoza os surpreendeu de mão dada, decidiu que já era tempo de dar a prisioneira por curada e julgá-la. Nada mais longe das suas intenções do que executar quem quer que fosse; na verdade, nem sequer sabia como o fazer, mas era ele o responsável pela segurança da missão e dos seus neófitos e, de uma maneira ou de outra, aquela mulher tinha causado várias mortes. Recordou tristemente ao capitão que em Espanha a pena por crimes de rebelião, como o de Toypurnia, consistia em nada menos que a morte lenta no garrote vil, onde o supliciado perdia a respiração à medida que um torniquete de ferro lhe apertava o pescoço.

- Não estamos em Espanha - retrucou o capitão, estremecendo.

- Suponho que concordais comigo, capitão, que, enquanto ela estiver viva, todos corremos perigo, porque voltará a sublevar as tribos. Nada de garrote, é demasiado cruel, mas com dor de alma haverá que enforcá-la; não há alternativa.

- Aquela mulher é mestiça, padre, tem sangue espanhol. O senhor tem jurisdição sobre os índios a seu cargo, mas não sobre ela. Só o governador da Alta Califórnia pode condená-la - volveu o capitão.

O padre Mendoza, para quem a ideia de ter a morte de outro ser humano às costas era um fardo pesado de mais, agarrou-se imediatamente àquele argumento. De La Vega ofereceu-se para ir pessoalmente a Monterrey para que Pedro Fages decidisse o destino de Toypurnia, e o missionário aceitou com um fundo suspiro de libertação.

Alejandro de La Vega chegou a Monterrey em menos tempo do que precisava um cavaleiro em circunstâncias normais para cobrir aquela distância, porque ia com pressa de cumprir a sua incumbência e porque tinha de evitar os índios sublevados. Viajou sozinho e a galope, parando nas missões ao longo do caminho para mudar de cavalo e dormir umas horas. Tinha feito o trajecto outras vezes e conhecia-o bem, mas ficava sempre maravilhado com aquela natureza pródiga de bosques intermináveis, as mil variedades de animais e pássaros, os ribeiros e nascentes doces, a areia branca das praias do Pacífico. Não teve encontros com os índios, porque estes vagueavam pelos cerros sem chefe e sem rumo fixo, desmoralizados. Se as predições do padre Mendoza se revelassem correctas, o entusiasmo tinha desaparecido por completo e levariam anos a voltarem a organizar-se.

O presídio de Monterrey, construído num promontório isolado, a setecentas léguas da Cidade do México e a meio mundo de distância de Madrid, era um edifício fúnebre como uma masmorra, uma monstruosidade de pedra e argamassa, onde estava estacionado um pequeno contingente de soldados, única companhia do governador e da sua família. Nesse dia um nevoeiro húmido amplificava o fragor das ondas contra as rochas e o alvoroço das gaivotas.

Pedro Fages recebeu o capitão numa sala quase nua, cujos postigos mal deixavam entrar luz, mas por onde se infiltrava a ventania gelada do mar. As paredes mostravam cabeças dissecadas de ossos, sabres, pistolas e o brasão de armas de Dona Eulália de Callís bordado a ouro, mas já deteriorado e descolorido. À guisa de mobiliário havia uma dúzia de cadeiras de braços sem estofo, um enorme armário e uma mesa militar. Os tectos, negros de fuligem, e o chão de terra batida eram próprios do mais rude quartel. O governador, um notável corpulento e com um vozeirão colossal, tinha a rara virtude de ser imune à lisonja e à corrupção. Exercia o poder com a recôndita certeza de que o seu maldito destino era tirar a Alta Califórnia da barbárie fosse a que preço fosse. Comparava-se com os primeiros conquistadores espanhóis, gente como Hernán Cortes, que ganharam tanto mundo para o império. Cumpria a sua obrigação com um sentido histórico, embora, na verdade, tivesse preferido gozar a fortuna da sua mulher em Barcelona, como ela lhe pedia sem cessar. Uma ordenança serviu-lhes vinho tinto em copos de cristal da Boémia, trazidos de longe nos baús de Eulália de Callís, que contrastavam com o rudimentar mobiliário do forte. Os homens brindaram pela pátria distante e pela sua amizade, comentando a revolução em França, que tinha levantado o povo em armas. O facto ocorrera havia mais de um ano, mas a notícia acabava de chegar a Monterrey. Foram unânimes em achar que não havia razão para se alarmarem; por esta altura, já certamente, se teria restabelecido a ordem naquele país e o rei Luís XVI estaria de novo no seu trono, apesar de o considerarem um homem pusilânime, indigno de pena. No fundo, alegravam-se por os Franceses se estarem a matar uns aos outros, mas as boas maneiras impediam-nos de o expressarem em voz alta. De longe vinha um som abafado de vozes e gritos, que foi aumentando de intensidade, até que se tornou impossível continuar a ignorá-lo.

- Desculpai, capitão, são assuntos de mulheres - disse Pedro Fages, com um gesto de impaciência.

- Sua Excelência Dona Eulália encontra-se bem? - inquiriu Alejandro de La Vega, corando até à ponta dos cabelos.

Pedro Fages trespassou-o com o seu olhar de aço, tentando adivinhar-lhe as intenções. Estava ao corrente das murmurações das pessoas sobre aquele garboso capitão e a sua mulher; não era surdo. Ninguém percebera, muito menos ele próprio, que Dona Eulália levasse seis meses a chegar a Monterrey, quando a distância se podia percorrer em muito menos tempo; diziam que a viagem se alongara de propósito, porque eles não se queriam separar. A esses boatos somara-se a versão exagerada de um assalto de bandidos no qual, supostamente, De La Vega arriscara a vida para salvar a dela. A verdade era outra, mas Pedro Fages nunca a soube. Os atacantes tinham sido apenas meia dúzia de índios alvoroçados pelo álcool, que fugiram a sete pés mal ouviram os primeiros tiros, nada mais, e, quanto à ferida que De La Vega sofrera numa perna, não fora em defesa de Dona Eulália de Callís, mas sim devida a uma leve cornada de vaca. Pedro Fages prezava-se de ser bom juiz das pessoas; não era em vão que exercia o poder havia tantos anos e, depois de examinar Alejandro de La Vega, decidiu que não valia a pena desperdiçar suspeitas nele; estava certo de que lhe entregara a esposa com a fidelidade intacta. Conhecia a sua mulher a fundo. Se aqueles dois se tivessem apaixonado, nenhum poder humano ou divino teria dissuadido Eulália de deixar o amante para voltar ao marido. «Talvez tenha havido uma afinidade platónica entre eles, mas nada que me possa tirar o sono», concluiu o governador. Era homem de honra e sentia-se em dívida para com aquele oficial, que, tendo tido seis meses para seduzir Eulália, não o fizera. Atribuía-lhe o mérito completo, porque considerava que, se bem que se possa confiar às vezes na lealdade de um homem, nunca se deve confiar na das mulheres, seres volúveis por natureza, sem aptidão para a fidelidade.

Entretanto, a azáfama de criados a correrem pelos corredores, o bater de portas e os gritos abafados continuavam. Alejandro de La Vega conhecia, como toda a gente, as discussões daquele casal, tão épicas como as suas reconciliações. Tinha ouvido dizer que, nos seus arrebatamentos, os Fages atiravam com a baixela à cabeça um do outro e que, em mais de uma ocasião, Dom Pedro tinha desembainhado o sabre contra ela, mas depois fechavam-se durante dias a fazer amor. O corpulento governador deu um murro na mesa, fazendo dançar os copos, e confessou ao hóspede que Eulália estava fechada nos seus aposentos havia cinco dias com uma virulenta fúria.

- Sente a falta do refinamento a que está habituada - disse, ao mesmo tempo que um uivo da lunática abanava as paredes.

- Talvez se sinta um pouco só, Excelência - disse De La Vega entre dentes, para dizer alguma coisa.

- Prometi-lhe que dentro de três anos voltaremos para o México ou para Espanha, mas não quer ouvir razões. Esgotou-se-me a paciência para ela, capitão De La Vega. Vou mandá-la para a missão mais próxima, a fim de que os frades a ponham a trabalhar com os índios, a ver se aprende a respeitar-me! - rugiu Fages.

- Permite-me que troque umas palavras com a senhora? - pediu o capitão.

Durante aqueles cinco dias de fanico, a governadora tinha-se negado a receber inclusivamente o seu filho de três anos. O garoto chorava enrodilhado no chão e urinava-se de medo quando o pai arremetia contra a porta com inúteis bengaladas. Apenas uma índia cruzava o umbral para levar comida e recolher o bacio, mas quando Eulália soube que Alejandro de La Vega tinha aparecido de visita e queria vê-la, arrefeceu-lhe a histeria num minuto. Lavou a cara, ajeitou a trança ruiva e vestiu-se de seda cor de alfazema com todas as suas pérolas postas. Pedro Fages viu-a entrar tão vistosa e sorridente como nos seus bons tempos e antecipou com saudade o calor de uma possível reconciliação, apesar de não estar disposto a perdoar-lhe com demasiada prontidão: a mulher merecia algum castigo. Nessa noite, durante a austera refeição, numa casa de jantar tão lúgubre como o salão de armas, Eulália de Callís e Pedro Fages atiraram à cara um do outro as recriminações que lhes empeçonhavam a alma, tomando o seu hóspede por testemunha. Alejandro de La Vega refugiou-se num incómodo silêncio até ao momento da sobremesa, quando adivinhou que o vinho fizera efeito e a ira dos esposos começava a ceder, anunciando então o motivo da sua visita. Explicou o facto de Toypurnia ter sangue espanhol, descreveu a sua coragem e inteligência, embora omitisse a sua beleza, e pediu ao governador que fosse indulgente com ela, fazendo jus à sua fama de compassivo e em nome da amizade mútua. Pedro Fages não se fez rogado, porque o rubor no decote de Eulália tinha conseguido distraí-lo, e consentiu em alterar a pena de morte para vinte anos de prisão.

- Na prisão essa mulher tornar-se-á uma mártir aos olhos dos índios. Bastará invocar o seu nome para pôr de novo as tribos em pé de guerra - interrompeu-o Eulália. - Ocorre-me uma solução melhor. Antes de mais nada, deve ser baptizada, como Deus manda; depois trazei-ma aqui e eu me encarregarei do problema. Aposto convosco que num ano terei convertido essa Toypurnia, a Filha de Lobo, a índia brava, numa dama cristã e espanhola. Assim destruiremos para sempre a sua influência entre os índios.

- E, de caminho, terás com que te entreter e alguém que te faça companhia - acrescentou o marido, de bom humor.

Assim se fez. Foi ao próprio Alejandro de La Vega que coube ir buscar a prisioneira a San Gabriel e conduzi-la a Monterrey, ante o alívio do padre Mendoza, que tinha pressa de se desfazer dela. A jovem era um vulcão pronto a explodir na missão, onde os neófitos ainda não se tinham recomposto do tumulto da guerra.

Toypurnia recebeu no baptismo o nome de Regina Maria de La Inmaculada Concepción, mas esqueceu imediatamente a maior parte e ficou só com Regina. O padre Mendoza vestiu-a com o saial de tecido grosseiro dos neófitos, pendurou-lhe uma medalha da Virgem ao pescoço, ajudou-a a subir para o cavalo, porque estava de mãos atadas, e deu-lhe a bênção. Mal os baixos edifícios da missão ficaram para trás, o capitão De La Vega desatou as mãos da cativa e, mostrando-lhe com um gesto a imensidão do horizonte, convidou-a a fugir. Regina pensou por uns minutos e deve ter calculado que, se voltassem a aprisioná-la, não haveria perdão para si, porque negou com a cabeça. Ou talvez não fosse só temor, mas sim o mesmo ardente sentimento que ofuscava a mente do espanhol. Em qualquer caso, seguiu-o sem assomo de rebelião durante a jornada, que ele retardou o mais possível, porque imaginava que não voltariam a ver-se. Alejandro de La Vega saboreou cada passo do Camino Real com ela, cada noite em que dormiram sob as estrelas sem se tocarem, cada ocasião em que se banharam ambos no mar, ao mesmo tempo que travava um obstinado combate contra o desejo e a imaginação. Sabia que um fidalgo De La Vega, um homem da sua honra e linhagem, não podia sequer sonhar em unir-se a uma mestiça. Se esperava que aqueles dias a cavalo com Regina pelas solidões da Califórnia lhe esfriassem o amor, apanhou um balde de água fria, porque, quando inevitavelmente chegaram ao presídio de Monterrey, estava apaixonado como um adolescente. Teve de lançar mão da sua longa disciplina de soldado para se despedir da jovem e jurar porfiadamente a si mesmo que nunca mais tentaria comunicar com ela.

Três anos mais tarde, Pedro Fages cumpriu a promessa feita à esposa e renunciou ao seu cargo de governador da Alta Califórnia, a fim de regressar à civilização. No fundo estava feliz com essa resolução, porque o exercício do poder lhe tinha parecido sempre uma tarefa ingrata. O casal carregou as recuas de mulas e os carros de bois com os seus baús, reuniu a sua pequena corte e empreendeu a marcha em direcção ao México, onde Eulália de Callis tinha mandado mobilar um palácio barroco com o fausto próprio da sua categoria. Paravam forçosamente em todas as povoações e missões do caminho, para recuperarem forças e deixarem-se agasalhar pelos colonos. Apesar do mau génio de ambos, os Fages eram estimados, porque ele havia governado com justiça e ela tinha fama de doida generosa. As gentes de La Reina de los Angeles juntaram os seus recursos aos da vizinha Missão San Gabriel, a mais próspera da província, a quatro léguas de distância, para oferecer aos viajantes uma recepção condigna. A povoação, fundada ao estilo das cidades coloniais espanholas, era um quadrado com uma praça central, bem planeada para crescer e prosperar, embora naquele momento apenas contasse quatro ruas principais e uma centena de casas de cana-brava. Também havia uma taberna, cujos fundos serviam de armazém, uma igreja, uma prisão e meia dúzia de edifícios de adobe, pedra e telha, onde residiam as autoridades. Apesar da escassa população e da pobreza generalizada, os colonos eram famosos pela sua hospitalidade e pelas rondas de festejos que as famílias ofereciam ao longo do ano. As noites animavam-se com guitarras, trombetas, violinos e pianos, e aos sábados e domingos dançava-se o fandango. A chegada dos governadores foi o melhor pretexto que tinham tido, desde a sua fundação, para celebrar. Levantaram arcos com estandartes e flores de papel em redor da praça, puseram mesas compridas com toalhas brancas, e toda a gente capaz de tocar um instrumento foi recrutada para o sarau, incluindo um par de presos, que se livraram do cepo quando se soube que eram capazes de dedilhar uma guitarra. Os preparativos demoraram vários meses, e durante esse tempo não se falou de outra coisa. As mulheres fizeram vestidos de gala, os homens arearam os botões e as fivelas de prata, os músicos ensaiaram danças chegadas do México, as cozinheiras afadigaram-se no banquete mais sumptuoso que se tinha visto por ali. O padre Mendoza compareceu com os seus neófitos, munido de vários tonéis do seu melhor vinho, duas vacas e vários porcos, galinhas e patos, que foram sacrificados para a ocasião.

Ao capitão Alejandro de La Vega calhou encarregar-se da ordem durante a estada dos governadores na povoação. Desde o instante em que soube da sua vinda, a imagem de Regina atormentou-o sem lhe dar trégua. Perguntava a si mesmo que teria sido feito dela naqueles três «séculos» de separação, como teria sobrevivido no sombrio presídio de Monterrey, se porventura se lembraria dele. As dúvidas dissiparam-se-lhe na noite da festa, quando, à luz dos archotes e ao som da orquestra, viu chegar uma jovem deslumbrante, vestida e penteada à moda europeia, e reconheceu de imediato aqueles olhos cor de açúcar queimado. Ela também o distinguiu na multidão e avançou sem vacilar, postando-se em frente dele com a expressão mais séria do mundo. O capitão, com a alma a ponto de se desfazer em pedaços, quis estender a mão, a fim de a convidar para dançar, mas em vez disso perguntou-lhe aos borbotões se queria casar-se com ele. Não foi um impulso descontrolado; tinha-o pensado durante três anos e chegara à conclusão de que mais valia manchar a sua impecável linhagem do que viver sem a jovem. Dava-se conta de que nunca poderia apresentá-la à sua família ou à sociedade em Espanha, mas isso não lhe importava, porque, por ela, estava disposto a criar raízes na Califórnia e nunca mais arredar pé do Novo Mundo. Regina aceitou-o, porque o amava em segredo desde os tempos em que ele a trouxera de volta à vida, quando ela agonizava na adega do padre Mendoza.

E foi assim que a brilhante visita dos governadores a La Reina de los Angeles foi coroada pela boda do capitão com a misteriosa dama de companhia de Eulália de Callís. O padre Mendoza, que tinha deixado crescer o cabelo até aos ombros para disfarçar a horrenda cicatriz da orelha cortada, realizou a cerimónia, apesar de, até ao último momento, ter tentado dissuadir o capitão de se casar. Não o incomodava que a noiva fosse mestiça - havia muitos espanhóis que se casavam com índias -, mas sim a suspeita de que, sob a impecável aparência de menina europeia de Regina, espreitasse intacta Toypurnia, Filha de Lobo. Foi Pedro Fages em pessoa que entregou a noiva no altar, porque estava convencido de que ela salvara o seu casamento, visto que, na ânsia de a educar, Eulália tinha suavizado o génio e deixara de o atormentar com as suas fúrias. Considerando que, além disso, devia a vida da mulher a Alejandro de La Vega, como asseguravam os boatos, decidira que aquela era uma boa ocasião para se mostrar generoso. De uma penada, atribuiu ao flamante casal os títulos de propriedade de um rancho e vários milhares de cabeças de gado, já que fazia parte das suas competências distribuir terras pelos colonos. Traçou o contorno num mapa, seguindo o impulso do lápis, e depois, quando averiguaram os limites reais do rancho, verificou-se que eram muitas léguas de pastagens, cerros, bosques, rios e praia. Eram precisos vários dias para percorrer a propriedade a cavalo: era a maior e mais bem localizada da região. Sem o ter pedido, De La Vega viu-se convertido num homem rico. Umas semanas mais tarde, quando as pessoas começaram a chamar-lhe Dom Alejandro, renunciou ao exército do rei para se dedicar por inteiro a prosperar naquela terra nova. Um ano mais tarde foi eleito alcaide de La Reina de los Angeles.

De La Vega construiu uma moradia ampla, sólida e sem pretensões, de adobe, com telhados de telha e pavimentos de grosseira laje de greda.

Decorou a casa com pesados móveis, fabricados na povoação por um carpinteiro galego, sem nenhuma consideração pela estética, apenas pela durabilidade. A localização era privilegiada, muito perto da praia, a poucos quilómetros de La Reina de los Angeles e da Missão San Gabriel. A grande casa de adobe, ao estilo das fazendas mexicanas, achava-se sobre um promontório e a sua orientação oferecia uma vista panorâmica da costa e do mar. A curta distância ficavam os sinistros depósitos naturais de pez, dos quais ninguém se aproximava de bom grado, porque ali penavam as almas dos mortos presos no alcatrão. Entre a praia e a fazenda havia um labirinto de grutas, lugar sagrado dos índios, tão temido como os charcos de pez. Os índios não iam lá, por respeito pelos antepassados, e os espanhóis tão-pouco, por causa das frequentes derrocadas e porque era muito fácil uma pessoa perder-se lá dentro.

De La Vega instalou várias famílias de índios e de vaqueiros mestiços na sua propriedade, marcou o seu gado e propôs-se criar cavalos de raça a partir de exemplares que mandou vir do México. No tempo que lhe sobrava instalou uma pequena fábrica de sabão e dedicou-se a fazer experiências na cozinha para encontrar a fórmula perfeita de fumar carne preparada com pimentão. Pretendia obter uma carne seca, mas saborosa, que durasse meses sem se estragar. Esta experiência consumia as suas horas e enchia o céu de uma fumarada vulcânica, que o vento arrastava várias léguas mar adentro, alterando o comportamento das baleias. Calculava que, se obtivesse o justo equilíbrio entre o bom sabor e a durabilidade, poderia vender o produto ao exército e aos navios. Parecia-lhe um desperdício tremendo arrancar as peles e a gordura do gado e perder montes de boa carne. Enquanto o marido multiplicava o número de bovinos, ovelhas e cavalos do rancho, dirigia a política da povoação e fazia negócio com os navios mercantes, Regina ocupava-se em atender às necessidades dos índios da fazenda.

Não tinha interesse pela vida social da colónia e respondia com olímpica indiferença aos comentários que circulavam sobre ela. Nas suas costas comentava-se o seu carácter áspero e depreciativo, as suas origens mais que duvidosas, as suas escapadas a cavalo, os seus banhos, nua, no mar. Como chegara protegida pelos Fages, a minúscula sociedade da povoação, que agora tinha abreviado o seu nome e se chamava simplesmente Pueblo de Los Angeles, dispôs-se, ao princípio, a aceitá-la no seu seio sem fazer perguntas, mas foi ela própria que se excluiu. Não tardou que os vestidos, que usava sob a influência de Eulália de Callís, acabassem devorados pela traça nos armários. Sentia-se mais à vontade descalça e com a tosca roupa dos neófitos. Assim passava o dia. De tarde, quando calculava que Alejandro estava para voltar a casa, lavava-se, enroscava a cabeleira num rolo improvisado e punha um vestido simples, que lhe dava a inocente aparência de uma noviça. O marido, cego de amor e ocupado com os seus negócios, desprezava os indícios delatores do estado de espírito de Regina; desejava vê-la feliz e nunca lhe perguntou se o era, com medo de que ela lhe respondesse com a verdade. Atribuía as singularidades da mulher à sua inexperiência de recém-casada e ao seu carácter hermético. Preferia não pensar que a senhora de boas maneiras, que se sentava com ele à mesa, era o mesmo guerreiro pintalgado que atacara a Missão San Gabriel poucos anos antes. Julgava que a maternidade curaria a sua mulher dos últimos ressaibos do passado, mas, apesar dos longos e frequentes retouços na cama de quatro colunas que compartilhavam, o filho tão desejado não chegou senão em 1795.

Durante os meses de gravidez, Regina tornou-se ainda mais silenciosa e selvagem. Com o pretexto de estar à vontade, não se voltou a vestir nem a pentear à europeia. Tomava banho no mar com os golfinhos, que apareciam aos milhares para acasalar perto da praia, acompanhada por uma neófita doce, de nome Ana, que o padre Mendoza lhe mandara da Missão. A jovem também estava grávida, mas não tinha marido e negara-se tenazmente a confessar a identidade do homem que a seduzira. O missionário não queria aquele mau exemplo entre os seus índios, mas como tão-pouco lhe chegara a severidade para a expulsar da missão, acabara por a entregar como criada à família De La Vega. Fora uma boa ideia, porque entre Regina e Ana surgiu, de imediato, uma muda cumplicidade muito conveniente para as duas, pois, assim, a primeira obteve companhia e a segunda protecção. Ana tomou a iniciativa de se banhar com os golfinhos, seres sagrados que nadam em círculos para manter o mundo seguro e em ordem. Os nobres animais sabiam que as duas mulheres estavam grávidas e passavam por elas roçando os grandes corpos aveludados, para lhes darem força e ânimo no momento do parto.

Em Maio desse ano, Ana e Regina deram à luz no decurso da mesma semana, que coincidiu com a célebre semana dos incêndios, registada nas crónicas de Los Angeles como a mais catastrófica desde a sua fundação. Todos os Verões havia que resignar-se a ver arder alguns bosques, porque uma faísca atingia os pastos secos. Não era grave, porque assim desbravavam-se abrolhos e criava-se espaço para os rebentos tenros da Primavera seguinte, mas nesse ano os incêndios ocorreram cedo na estação e, segundo o padre Mendoza, foram castigo de Deus por tanto pecado sem arrependimento na colónia. As chamas abrasaram vários ranchos, destruindo à passagem as instalações humanas e o gado, que não encontrou para onde fugir. No domingo, os ventos mudaram e o incêndio deteve-se a um quarto de légua da fazenda De La Vega, o que foi interpretado pelos índios como excelente augúrio para as duas crianças nascidas na casa.

O espírito dos golfinhos ajudou Ana a parir, mas não tanto a Regina. Enquanto a primeira teve o seu bebé em quatro horas, de cócoras em cima de uma manta no chão e com uma indiazinha adolescente da cozinha por única ajuda, Regina passou cinquenta horas a parir o seu, suplício que suportou, estóica, com um pedaço de madeira entre os dentes. Alejandro de La Vega, desesperado, mandou chamar a única parteira de Los Angeles, mas esta deu-se por vencida ao compreender que Regina tinha a criança atravessada no ventre e já não lhe restavam forças para continuar a lutar. Então, Alejandro recorreu ao padre Mendoza, a coisa mais parecida com um médico que havia nos arredores. O missionário pôs os criados a rezar o rosário, salpicou Regina com água benta e a seguir dispôs-se a tirar a criança à mão. Por pura determinação, conseguiu pescá-la às cegas pelos pés e puxou-a para a luz sem demasiadas considerações, porque o tempo urgia. O bebé vinha azul e com o cordão enrolado à volta do pescoço, mas, à força de orações e bofetadas, o padre Mendoza conseguiu obrigá-lo a respirar.

- Que nome lhe vamos pôr? - perguntou, quando o colocou nos braços do pai.

- Alejandro, como eu, o meu pai e o meu avô - indicou este.

- Chamar-se-á Diego - interrompeu-o Regina, consumida pela febre e pelo constante fio de sangue que lhe ensopava os lençóis.

- Diego porquê? Na família De La Vega ninguém se chama

assim.

- Porque é esse o seu nome - retrucou.

Alejandro tinha padecido com ela o longo suplício e receava mais que nada no mundo perdê-la. Viu que Regina se estava a esvair em sangue e faltou-lhe coragem para a contradizer. Concluiu que, se no seu leito de agonia ela escolhia aquele nome para o seu primogénito, devia ter muito boas razões, de modo que autorizou o padre Mendoza a baptizar a criança à pressa, porque parecia tão débil como a mãe e corria o risco de ir parar ao limbo, se falecesse antes de receber o sacramento.

Regina levou várias semanas a recuperar-se da tareia do parto e conseguiu-o unicamente graças à mãe, Coruja Branca, que chegou a pé, descalça e com o seu saco de plantas medicinais ao ombro, quando já estavam preparados os círios para o funeral. A curandeira índia não via a filha havia sete anos, quer dizer, desde os tempos em que esta fora para o bosque, a fim de sublevar os índios de outras tribos. Alejandro atribuiu a estranha aparição da sogra ao sistema de correio dos indígenas, um mistério que os brancos não conseguiam descobrir. Uma mensagem enviada do presídio de Monterrey demorava duas semanas, a mata-cavalos, a chegar à Baixa Califórnia, mas quando chegava, a notícia já era velha para os índios, que a haviam recebido dez dias antes por obra de magia. Não existia outra explicação para que a mulher surgisse do nada sem ser chamada, precisamente quando mais precisa era. Coruja Branca impôs a sua presença sem dizer palavra. Tinha pouco mais de quarenta anos, era alta, forte, bonita, curtida pelo sol e pelo trabalho. O seu rosto jovem, de olhos de mel, como os da filha, era emoldurado por uma mata indómita de cabelo cor de fumo, ao qual devia o nome. Entrou sem pedir licença, deu um empurrão a Alejandro de La Vega quando este procurou averiguar quem era, percorreu sem vacilar a complicada geografia da mansão e postou-se diante do leito da filha. Chamou-a pelo seu nome verdadeiro, Toypurnia, e falou-lhe na língua dos antepassados, até que a moribunda abriu os olhos. A seguir, extraiu do saco as ervas medicinais para a sua salvação, fê-las ferver numa panela em cima de um braseiro e deu-lhas a beber. A casa inteira ficou impregnada de cheiro a salva.

Entretanto, Ana, com a sua habitual boa vontade, tinha posto ao seio o filho de Regina, que chorava de fome; assim, Diego e Bernardo começavam a vida com o mesmo leite e nos mesmos braços. Isso converteu-os em irmãos da alma para o resto das suas vidas.

 

Assim que Coruja Branca verificou que a filha se podia pôr de pé e comia sem repugnância, enfiou as suas plantas e as suas coisas no saco, lançou um olhar a Diego e Bernardo, que dormiam lado a lado no mesmo berço, sem manifestar o menor interesse em averiguar qual dos dois era o seu neto, e foi-se embora sem se despedir. Alejandro de La Vega viu-a partir com grande alívio. Agradecia-lhe que tivesse salvo Regina de uma morte certa, mas preferia mantê-la longe, porque sob o influxo daquela mulher sentia-se constrangido e, além disso, os índios do rancho agiam com insolência. De manhã apareciam para o trabalho com as caras pintalgadas, à noite dançavam como sonâmbulos ao som de lúgubres ocarinas e, em geral, ignoravam as suas ordens, como se tivessem esquecido o castelhano.

A normalidade regressou à fazenda à medida que Regina recuperava a saúde. Na Primavera seguinte, todos, menos Alejandro de La Vega, tinham esquecido que ela estivera com um pé na cova. Não eram precisos conhecimentos de medicina para adivinhar que não poderia ter mais filhos. Sem que ele mesmo se apercebesse, esta circunstância começou a afastar Alejandro da mulher. Sonhava com uma família numerosa, como as de outros senhores da região. Um dos seus amigos gerara trinta e seis filhos legítimos, para além dos bastardos que não entravam nas suas contas. Tinha vinte do primeiro casamento no México e dezasseis do segundo, os últimos cinco nascidos na Alta Califórnia, um por ano. O temor de que acontecesse alguma coisa má a esse seu filho insubstituível, como a tantas crianças que morriam antes de aprender a andar, fazia Alejandro ficar acordado de noite. Ganhou o costume de rezar em voz alta, ajoelhado junto ao berço do filho, clamando protecção ao céu.

Impávida, com os braços cruzados sobre o peito, Regina observava, do umbral da porta, o seu marido humilhado. Naqueles momentos julgava odiá-lo, mas depois encontravam-se os dois entre os lençóis, onde o calor e o cheiro da intimidade os reconciliavam por algumas horas. Ao amanhecer, Alejandro vestia-se e descia ao seu escritório, onde uma índia lhe servia o chocolate espesso e amargo, como ele gostava. Começava o dia reunindo com o mordomo para lhe dar as ordens pertinentes ao rancho, após o que se encarregava dos seus múltiplos deveres como alcaide. Os esposos passavam o dia separados, cada um nas suas ocupações, até que o pôr do Sol marcava a hora de se reencontrarem. No Verão jantavam no terraço das buganvílias, sempre acompanhados por alguns músicos que tocavam as suas canções preferidas; no Inverno faziam-no na sala de costura, onde nunca ninguém cosera nem um só botão, devendo-se o seu nome ao quadro de uma holandesa a bordar à luz de uma candeia. Com frequência, Alejandro ficava em Los Angeles a passar a noite, porque se fazia tarde numa festa ou a jogar as cartas com outros senhores. As rondas de bailes, cartas, serões musicais e tertúlias ocupavam todos os dias do ano; não havia outra coisa para fazer, à parte os desportos ao ar livre, que homens e mulheres praticavam por igual. Regina não participava em nada disso, era uma alma solitária e desconfiava por princípio de todos os espanhóis, menos do marido e do padre Mendoza. Tão-pouco mostrava interesse por acompanhar Alejandro nas suas viagens de visita aos navios americanos do contrabando; nunca tinha subido a nenhum para negociar com os marinheiros. Pelo menos uma vez por ano, Alejandro ia em negócios ao México, ausências que costumavam durar um par de meses e das quais regressava carregado de presentes e ideias novas, que não conseguiam comover demasiado a mulher.

Regina voltou às suas longas cavalgadas, agora com o filho numa cesta amarrada às costas, e perdeu toda a inclinação pelos assuntos domésticos, que foram delegados em Ana. Recuperou o seu antigo costume de visitar os índios, incluindo os que não pertenciam ao seu rancho, com a intenção de averiguar as suas misérias e, se possível, aliviá-las. Ao repartirem as terras e subjugarem as tribos da região, os brancos haviam estabelecido um sistema de serviço obrigatório, que só se diferenciava da escravatura no facto de os índios também serem súbditos do rei de Espanha e, em teoria, gozarem de certos direitos. Na prática eram notoriamente pobres, trabalhavam a troco de comida, álcool, trabalho e autorização para criarem alguns animais. Em geral, os rancheiros eram patriarcas benevolentes, mais ocupados com os seus prazeres e paixões do que com a terra e os jornaleiros, mas às vezes calhava algum de mau carácter; então, a indiada, como lhe chamavam, passava fome ou apanhava chicotadas. Os neófitos da missão eram igualmente pobres, viviam com as suas famílias em palhotas redondas feitas de paus e palha, trabalhavam de sol a sol e dependiam por completo dos frades para a sua subsistência. Alejandro de La Vega procurava ser bom patrão, mas mortificava-o que Regina pedisse sempre mais para os índios. Tinha-lhe explicado mil vezes que não podia haver diferença no tratamento que os seus e os de outros ranchos recebiam, porque isso gerava problemas na colónia.

O padre Mendoza e Regina, unidos pela mesma ânsia de proteger os índios, acabaram por se tornar amigos; ele perdoou-lhe ter atacado a missão, e ela agradecia-lhe que tivesse trazido Diego ao mundo. Os patrões evitavam-nos, porque o missionário tinha autoridade moral e ela era a mulher do alcaide. Nas ocasiões em que Regina iniciava uma das suas campanhas de justiça, vestia-se de espanhola, penteava-se com um carrapito severo, punha uma cruz de ametista ao peito e usava uma elegante carruagem de passeio, presente do marido, em vez da égua brava que habitualmente montava em pelo. Recebiam-na secamente, porque não era uma dos seus.

Nenhum rancheiro admitia ter antepassados indígenas, professavam-se de pura cepa espanhola, gente branca e de bom sangue. Não perdoavam a Regina que nem sequer tentasse disfarçar as suas origens, embora isso fosse o que o padre Mendoza mais admirava nela. Quando se soube com certeza que era de mãe índia, a colónia espanhola virou-lhe as costas, mas ninguém se atreveu a fazer-lhe uma desfeita na cara, por respeito à posição e à fortuna do marido. Continuaram a convidá-la para tertúlias e festarolas com a tranquilidade de que não a veriam: o marido aparecia sozinho.

De La Vega não dispunha de muito tempo para a família, atarefado como estava com a gestão da povoação, da sua fazenda, dos seus negócios e a dirimir litígios, que nunca faltavam entre os povoadores. Quartas e quintas-feiras, sem falta, ia a Los Angeles cumprir as suas tarefas políticas, cargo prestigioso com mais deveres que satisfações, mas ao qual não renunciava por espírito de missão. Não era ganancioso nem abusava do poder. Possuía um dom natural de autoridade, mas não era homem de grande visão. Raras vezes punha em causa as ideias herdadas dos seus antepassados, embora elas não se coadunassem com a realidade da América. Para ele, tudo se reduzia a uma questão de honra, ao orgulho de ser quem era - irrepreensível fidalgo católico - e andar de cabeça erguida. Preocupava-o que Diego, demasiado apegado à mãe, a Bernardo e à criadagem indígena, não assumisse a posição que lhe correspondia por nascimento, mas calculava que ainda era muito criança e haveria tempo para o endireitar. Fez o propósito de dirigir a sua formação viril assim que fosse possível, mas esse momento era sempre adiado, pois havia outros assuntos mais urgentes a tratar. Amiudadas vezes, o desejo de proteger o filho e fazê-lo feliz comovia-o até às lágrimas. O seu amor por aquela criança deixava-o perplexo, era como a dor de uma estocada. Traçava soberbos planos para ele: seria valente, bom cristão e leal ao rei, como todo o gentil-homem De La Vega, e mais rico do que algum dos seus parentes havia sido, dono de terras vastas e férteis, com clima temperado e água em abundância, onde a natureza era generosa e a vida doce, não como nos ermos solos da sua família em Espanha. Teria mais rebanhos de vacas, ovelhas e porcos que o rei Salomão, criaria os melhores touros de lide e os mais elegantes cavalos mouros, converter-se-ia no homem mais influente da Alta Califórnia, chegaria a governador. Mas isso seria mais tarde; primeiro, teria de temperar-se na universidade ou na escola militar em Espanha. Contava que, na época em que Diego tivesse idade para viajar, a Europa estivesse em melhor pé. Paz não se podia esperar, visto que nunca a houvera no Velho Continente, mas podia supor que as pessoas teriam voltado à sanidade. As notícias eram desastrosas. Assim explicava a Regina, mas ela não compartilhava as suas ambições para o filho e ainda menos a sua preocupação com os problemas do outro lado do mar. Não concebia o mundo para além dos limites que o cavalo podia percorrer, e muito menos conseguiam comovê-la os assuntos de França. O marido contara-lhe que em 1793, justamente o ano em que se haviam casado, tinham decapitado o rei Luís XVI em Paris diante de uma populaça ávida de desforra e sangue. José Díaz, um comandante de navio amigo de Alejandro, oferecera-lhe uma guilhotina em miniatura, brinquedo pavoroso que lhe servia para cortar as pontas dos charutos e, de caminho, explicar como voavam as cabeças dos nobres em França, um terrível exemplo, que, na sua opinião, poderia mergulhar a Europa no caos mais absoluto. A ideia parecia tentadora a Regina, porque supunha que, se os índios dispusessem de uma máquina assim, os brancos lhes ganhariam respeito, mas tinha o bom senso de não compartilhar estas lucubrações com o marido. Entre os dois já existiam suficientes motivos de amargura; não valia a pena acrescentar mais um. Ela própria se admirava da maneira como mudara, olhava-se ao espelho e não conseguia encontrar nem rasto de Toypurnia: via apenas uma mulher de olhos duros e lábios apertados. A necessidade de viver fora do seu meio e evitar problemas tinha-a tornado prudente e dissimulada; raras vezes fazia frente ao marido, preferindo agir nas suas costas. Alejandro de La Vega não suspeitava de que ela falava com Diego na sua língua; por isso teve uma desagradável surpresa quando as primeiras palavras que a criança disse foram de índio. Se tivesse sabido que a mulher aproveitava cada uma das suas ausências para o levar a visitar a tribo da mãe, ter-lho-ia proibido.

Quando Regina aparecia na aldeia dos índios com Diego e Bernardo, a avó Coruja Branca abandonava os seus afazeres para se dedicar por inteiro a eles. A tribo tinha-se reduzido com as doenças mortais e os homens recrutados pelos Espanhóis. Restavam apenas umas vinte famílias, cada vez mais miseráveis. A índia enchia as cabeças dos miúdos de mitos e lendas do seu povo, limpava-lhes a alma com o fumo de pasto-doce empregado nas suas cerimónias e levava-os a apanhar plantas mágicas. Mal se conseguiram suster com firmeza nas duas pernas e empunhar um pau, arranjou maneira de os homens os ensinarem a lutar. Aprenderam a pescar, trespassando os peixes com varinhas afiadas, e a caçar. Receberam de presente uma pele de cervo completa, inclusivamente com a cabeça e os cornos, para se cobrirem durante a caça, atraindo assim os veados. Esperavam imóveis até a presa se aproximar e nessa altura disparavam as flechas. A invasão dos Espanhóis tinha tornado os índios submissos, mas na presença de Toypurnia-Regina esquentava-se-lhes de novo o sangue com a lembrança da guerra de honra que ela conduzira. O assombrado respeito que por ela professavam traduzia-se em afeição por Diego e Bernardo. Julgavam que eram ambos seus filhos.

Foi Coruja Branca que levou as crianças a percorrer as grutas próximas da fazenda De La Vega, as ensinou a ler os símbolos esculpidos havia mil anos nas paredes e lhes indicou a forma de os usar para se guiarem no interior. Explicou-lhes que as grutas estavam divididas em Sete Direcções Sagradas, mapa fundamental para as viagens espirituais, pelo que, em tempos antigos, os iniciados ali iam à procura do centro de si próprios, que devia coincidir com o centro do mundo, onde se gera a vida. Quando essa concomitância acontecia, informou-os a avó, surgia uma chama incandescente do fundo da terra, que bailava no ar durante um longo pedaço, banhando o iniciado de luz e calor sobrenatural. Advertiu-os de que as grutas eram templos naturais e estavam protegidas por uma energia superior, pelo que só se devia entrar nelas com disposição pura. «A quem entra com maus propósitos, as grutas engolem-no vivo e depois cospem-lhe os ossos», disse-lhes ela. Acrescentou que, tal como manda o Grande Espírito, se uma pessoa ajudar os outros, se abrir um espaço no corpo para receber bênçãos, essa é a única forma de se preparar para o Okahué.

- Antes de os brancos chegarem, vínhamos a estas grutas procurar harmonia e alcançar o Okahué, mas agora ninguém cá vem - contou-lhes Coruja Branca.

- O que é o Okahué! - perguntou Diego.

- São as cinco virtudes essenciais: honra, justiça, respeito, dignidade e coragem.

- Eu quero-as todas, avó.

- Para isso tens de passar muitas provas sem chorar - redarguiu secamente Coruja Branca.

A partir desse dia, Diego e Bernardo começaram a explorar as grutas sozinhos. Antes que conseguissem memorizar os petróglifos para se guiarem, como a avó lhes indicara, marcavam o caminho com pedrinhas. Inventavam as suas próprias cerimónias, inspiradas no que tinham visto e ouvido na tribo e nas histórias de Coruja Branca.

Pediam ao Grande Espírito dos índios e ao Deus do padre Mendoza que lhes permitissem obter Okahué, mas nunca viram labareda alguma surgir espontaneamente e bailar no ar, como esperavam. Em contrapartida, a curiosidade conduziu-os por uma passagem natural, que acharam por acaso ao mover umas pedras para marcarem uma Roda Mágica no solo, como as que a avó desenhava: trinta e seis pedras em círculo e uma ao centro, donde saíam quatro caminhos rectos. Ao tirarem um pedregulho redondo, que pensavam pôr ao centro da Roda, desmoronaram-se vários, deixando à vista uma pequena entrada. Diego, mais magro e ágil, arrastou-se lá para dentro e descobriu um comprido túnel, que não tardava a alargar-se o suficiente para ele se pôr de pé. Regressaram com velas, picaretas e pás e, nas três semanas subsequentes, ampliaram-no. Um dia, a ponta da picareta de Bernardo abriu um buraco por onde se filtrou um raio de luz e os dois miúdos compreenderam então, encantados, que tinham desembocado em cheio na imensa lareira do salão da fazenda De La Vega. Umas badaladas fúnebres do imponente relógio deram-lhes as boas-vindas. Muitos anos mais tarde, souberam que Regina sugerira a localização da casa precisamente pela sua proximidade das grutas sagradas. A partir dessa descoberta, dedicaram-se a consolidar o túnel com tábuas e pedras, porque as paredes de argila costumavam esmigalhar-se, e, além disso, abriram uma portinhola dissimulada entre os tijolos da lareira para ligar as grutas à casa. A lareira era tão alta, larga e funda, que cabia lá dentro uma vaca de pé, como competia à dignidade daquele salão que nunca se usava para agasalhar hóspedes, mas, de tarde em tarde, se utilizava para as reuniões políticas de Alejandro de La Vega. Os móveis, toscos e incómodos, tal como os do resto da casa, alinhavam-se contra as paredes, como se estivessem à venda, acumulando pó e aquele cheiro a manteiga rançosa dos trastes velhos. O mais visível era um enorme óleo de Santo António, já velho e escanzelado, coberto de pústulas e andrajos, no acto de repelir as tentações de Satanás, um daqueles mamarrachos encomendados por centímetro quadrado a Espanha, muito apreciados na Califórnia. Num canto de honra, onde pudessem ser admirados, expunham-se o bastão e os paramentos de alcaide, que o dono da casa usava nos actos oficiais. Esses actos incluíam desde assuntos importantes, como o traçado das ruas, até às minúcias, como autorizar as serenatas, porque, caso se deixassem ao arbítrio dos senhoritos apaixonados, ninguém poderia dormir em paz na povoação. Pendia do tecto, sobre uma grande mesa de mezquite, um candeeiro de ferro do tamanho de um cedro, com cento e cinquenta velas intactas, porque ninguém tinha coragem de arriar aquela geringonça e acendê-las; das poucas vezes que a sala se abria, usavam candeeiros de azeite. Tão-pouco se acendia a lareira, embora estivesse sempre preparada com vários troncos grossos. Diego e Bernardo adquiriram o costume de encurtar caminho da praia através das grutas. Usavam o túnel secreto para surgirem como fantasmas no escuro buraco da lareira. Tinham jurado, com a solenidade das crianças absortas nas suas brincadeiras, que nunca compartilhariam esse segredo com outros. Também haviam prometido a Coruja Branca que só entrariam nas grutas com bons propósitos e não para traquinices, mas para eles tudo o que lá faziam era parte do treino para alcançarem o sonho do Okahué.

Mais ou menos na mesma época em que Coruja Branca se esmerava em alimentar as raízes indígenas das crianças, Alejandro de La Vega começou a educar Diego como fidalgo. Foi o ano em que chegaram os dois baús que Eulália de Callís mandou de presente da Europa. O antigo governador, Pedro Fages, morrera no México, fulminado por uma das suas fúrias.

Caíra como um fardo aos pés da mulher, no meio de uma discussão, arruinando-lhe para sempre a digestão, porque ela se culpou de o ter matado. Depois de ter passado a vida a discutir com ele, Eulália mergulhou na maior tristeza ao ver-se viúva, porque compreendeu a falta que aquele rotundo marido lhe faria. Sabia que ninguém poderia substituir aquele homem estupendo, caçador de ursos e grande soldado, o único capaz de a enfrentar sem dobrar a cerviz. A ternura que não sentira por ele em vida abateu-se sobre ela como uma praga, ao vê-lo no caixão, e continuou a martirizá-la para sempre com lembranças aperfeiçoadas pelo tempo. Por último, cansada de chorar, seguiu o conselho das suas amizades e do seu confessor e regressou com o filho a Barcelona, a sua cidade natal, onde contava com o apoio da sua fortuna e da sua poderosa família. De vez em quando, lembrava-se de Regina, que considerava sua protegida, e escrevia-lhe em papel egípcio com o seu brasão de armas impresso a ouro. Por uma dessas cartas souberam que o filho dos Fages morrera de peste, deixando Eulália ainda mais desolada. Os dois baús chegaram bastante maltratados, porque tinham saído de Barcelona quase um ano antes e navegado por muitos mares antes de alcançarem Los Angeles. Um estava cheio de vestidos de cerimónia, sapatos de salto alto, chapéus emplumados e bijutarias, que Regina raras vezes teria ocasião de usar. O outro, destinado a Alejandro de La Vega, continha uma capa negra forrada a seda com botões toledanos de prata lavrada, umas garrafas do melhor xerez espanhol, um jogo de pistolas de duelo com incrustações de nácar, um florete italiano e O Tratado de Esgrima e Prontuário do Duelo, do mestre Manuel Escalante. Tal como se explicava na primeira página, era um compêndio das «utilíssimas instruções para nunca vacilar quando haja mister de se bater em lances de honra com sabre espanhol ou florete».

Eulália de Callís não poderia ter mandado um presente mais apropriado. Havia anos que Alejandro de La Vega não praticava a espada, mas graças ao manual pôde refrescar os seus conhecimentos para ensinar esgrima ao filho, que ainda nem se sabia assoar. Mandou fabricar um florete, um colete acolchoado e uma máscara em miniatura para Diego e, a partir desse momento, adquiriu o hábito de treinar com ele um par de horas por dia. Diego demonstrou para a esgrima o mesmo talento natural que tinha para todas as actividades atléticas, mas não a levava a sério, como o pai pretendia; para ele era apenas mais uma brincadeira das muitas que compartilhava com Bernardo. Essa cumplicidade permanente dos pequenos preocupava Alejandro de La Vega, parecia-lhe uma debilidade de carácter do filho, que estava em idade de assumir o seu destino. Sentia afecto por Bernardo e distinguia-o entre os índios da criadagem - fosse como fosse, tinha-o visto nascer -, mas não esquecia as diferenças que separam as pessoas. Sem essas diferenças, impostas por Deus com um fim claro, reinaria o caos neste mundo, sustentava. O seu exemplo favorito era a França, onde estava tudo de pernas para o ar por causa da execrável revolução. Nesse país já não se sabia quem era quem, o poder passava de mão em mão como uma moeda. Alejandro rezava para que uma coisa assim nunca acontecesse em Espanha. Apesar de uma sucessão de monarcas ineptos ir mergulhando, irremissivelmente, o império na ruína, nunca pusera em dúvida a divina legitimidade da monarquia, tal como não questionava a ordem hierárquica, na qual ele se formara, e a superioridade absoluta da sua raça, da sua nação e da sua fé. Opinava que Diego e Bernardo tinham nascido diferentes, nunca seriam iguais e quanto mais cedo o compreendessem, menos problemas teriam no futuro. Bernardo tinha-o assumido sem que ninguém lho repisasse, mas era um assunto que arrancava lágrimas a Diego quando o pai lho lembrava. Longe de secundar o marido nos seus propósitos didácticos, Regina continuava a tratar Bernardo como se fosse também seu filho. Na sua tribo ninguém era superior a outro por nascimento, somente por coragem e sabedoria e, segundo ela, ainda era muito cedo para saber qual dos dois rapazes era o mais corajoso ou o mais sábio.

Diego e Bernardo só se separavam à hora de dormir, quando cada um ia para a cama com a mãe. Foram os dois mordidos pelo mesmo cão, picados pelas abelhas do mesmo cortiço e apanharam sarampo ao mesmo tempo. Quando um fazia uma travessura, ninguém se dava ao trabalho de identificar o culpado; obrigavam-nos a agacharem-se lado a lado, aplicavam-lhes o mesmo número de chibatadas no traseiro e eles sofriam o castigo sem protestar, porque lhes parecia de uma justiça sem par. Todos, menos Alejandro de La Vega, os consideravam irmãos, não só porque eram inseparáveis, como porque, à primeira vista, se pareciam um com o outro. O sol queimara-lhes a pele do mesmo tom de madeira; Ana fazia-lhes calças iguais de linho; Regina cortava-lhes o cabelo ao estilo dos índios. Era preciso olhar para eles com atenção para ver que Bernardo tinha nobres feições de índio, ao passo que Diego era alto e delicado, com os olhos cor de caramelo da mãe. Nos anos subsequentes aprenderam a manejar o florete segundo as últimas instruções do mestre Escalante, a galopar sem arreios, a usar o chicote e o laço; a pendurarem-se no beiral da casa pelos pés, como morcegos. Os índios ensinaram-nos a mergulhar no mar para arrancar mariscos das rochas, a seguir uma presa durante dias até lhe dar caça, a fabricar arcos e flechas, a suportar a dor e o cansaço sem queixumes.

Alejandro de La Vega levava-os ao rodeo na época de marcar o gado, cada um com a sua reata ou laço, para ajudarem na tarefa. Era a única ocupação manual de um fidalgo, mais desporto que trabalho. Os senhores da região juntavam-se com os filhos, vaqueiros e índios, cercavam os animais, separavam-nos e punham-lhes as suas marcas, que depois se registavam num livro para evitar confusões e roubos. Era também o tempo da matanza, quando era preciso recolher as peles, salgar a carne e preparar a banha. Os nuqueadores, fabulosos cavaleiros capazes de matar de uma punhalada na nuca um touro em plena corrida, eram os reis do rodeo e costumavam ser contratados para essa faina com um ano de antecedência. Vinham do México e das pradarias americanas com os seus cavalos adestrados e as suas adagas de duplo gume. À medida que as reses tombavam, caíam-lhes em cima os peladores para lhes esfolarem a pele, que tiravam inteira em poucos minutos, os tasajeros, encarregados de cortar a carne, e, por último, as índias, cuja humilde tarefa era juntar a banha, derretê-la em enormes caldeiros e depois armazená-la em odres feitos de bexigas, tripas ou peles cosidas. Era também a elas que competia curtir as peles, raspando-as com pedras afiadas, num interminável labor feito de joelhos. O cheiro do sangue enlouquecia o gado e nunca faltavam cavalos estripados e um ou outro vaqueiro pisado ou morto por uma cornada. Havia que ver o monstro de milhares de cabeças a resfolegar em corrida num inferno de pó suspenso no ar; havia que admirar os vaqueiros, com os seu chapéus brancos, colados aos seus corcéis, com os braços a bailar por cima das cabeças e as refulgentes facas à cinta; havia que ouvir o trepidar do gado no solo, os gritos dos homens exaltados, os relinchos dos cavalos, os latidos dos cães; havia que sentir a exalação da espuma nos animais, o suor dos vaqueiros, o cheiro tépido e secreto das índias, que perturbava os homens para sempre.

No final do rodeo, a povoação comemorava o trabalho bem executado numa farra de vários dias, na qual participavam pobres e ricos, brancos e índios, jovens e os poucos velhos da colónia. Sobrava comida e álcool, dançava-se até os pares caírem aturdidos ao som dos músicos vindos do México, cruzavam-se apostas em combates de homens, de ratazanas, de galos, de cães, de ursos com touros. Podia-se perder numa noite o que se ganhara no rodeo. A festa culminava ao terceiro dia com uma missa celebrada pelo padre Mendoza, que incitava os bêbedos com um chicote rumo à igreja e obrigava, de mosquete na mão, os sedutores das donzelas neófitas a casarem-se, porque tinha feito as contas de que, nove meses depois de cada rodeo, nascia um ror de crianças sem pai conhecido.

Durante um ano de seca foi preciso sacrificar os cavalos selvagens para deixar o pasto ao gado. Diego acompanhou os vaqueiros, mas desta vez Bernardo recusou-se a ir com ele, porque sabia do que se tratava e não podia suportá-lo. Cercavam as manadas de cavalos, espantavam-nas com pólvora e cães, perseguiam-nas a todo o galope, conduzindo-as até aos despenhadeiros, onde se precipitavam numa cega debandada. Caíam no vazio às centenas, uns por cima dos outros, partindo a cabeça ou quebrando as patas no fundo do barranco. Os mais afortunados morriam com o embate; outros agonizavam durante dias numa nuvem de moscas e numa fetidez de carne macerada que atraía ursos e abutres.

Duas vezes por semana, Diego tinha de empreender a viagem até à Missão San Gabriel para receber rudimentos de escolaridade do padre Mendoza. Bernardo acompanhava-o sempre e o missionário acabou por o aceitar na aula, apesar de achar desnecessário e até perigoso educar demasiado os índios, porque lhes metia ideias atrevidas no cérebro. O miúdo não possuía a mesma rapidez mental de Diego e costumava ficar para trás, contudo era obstinado e não desistia, embora passasse as noites a queimar as pestanas à luz das velas. Tinha um carácter reservado e quieto, que contrastava com a alegria explosiva de Diego. Secundava o amigo com uma lealdade inquestionável em todas as travessuras que a este ocorriam e, a dar-se o caso, resignava-se sem estardalhaços a ser castigado por uma coisa que não fora ideia sua, mas sim de Diego. Desde que se pudera ter de pé assumira o papel de proteger o seu irmão de leite, que julgava destinado a grandes proezas, como os heróicos guerreiros do repertório mitológico de Coruja Branca.

Diego, para quem estar sossegado e de portas adentro era um tormento, arranjava amiúde maneira de se escapulir da tutela do padre Mendoza e sair para o ar livre. As lições entravam-lhe por um ouvido e recitava-as à pressa, antes de lhe saírem pelo outro. Com a sua desenvoltura conseguia enganar o padre Mendoza, mas depois tinha de ensiná-las letra por letra a Bernardo e, assim, só de as repetir, acabava por aprendê-las. Estava tão empenhado em brincar, como Bernardo em estudar. Ao cabo de muito braço-de-ferro chegaram a um acordo, segundo o qual instruiria Bernardo a troco de este praticar o laço, o chicote e a espada com ele.

- Não vejo para que é que nos havemos de esmerar a aprender coisas que não nos servirão para nada - reclamou Diego, um dia que estava a repetir a mesma lengalenga em latim havia horas.

- Tudo serve, mais tarde ou mais cedo - retrucou Bernardo. - É como a espada. Provavelmente, nunca serei um dragão, mas não se perde nada em aprender a usá-la.

Muito poucos sabiam ler e escrever na Alta Califórnia, salvo os missionários, que, sendo homens rudes, quase todos de origem camponesa, tinham, pelo menos, um verniz de cultura. Não havia livros disponíveis, e nas raras ocasiões em que chegava uma carta, era garantido que continha uma má notícia, de modo que o destinatário não se apressava demasiado a levá-la a um frade para lha decifrar; porém, Alejandro de La Vega tinha a mania da educação e lutou durante anos para trazer um professor do México. Ao tempo, Los Angeles era algo mais que a povoação de quatro ruas que ele vira nascer; tinha-se convertido em passagem obrigatória dos viajantes, em lugar de descanso para os marinheiros dos navios mercantes, em centro de comércio da província. Monterrey, a capital, ficava tão longe que a maioria dos assuntos de governo se debatia em Los Angeles. À parte as autoridades e os oficiais militares, a população era mista e chamava-se a si própria gente de razão, para se distinguir dos índios puros e dos serviçais. Classe à parte eram os espanhóis de bom sangue. A povoação já contava com praça de touros e um flamante prostíbulo composto por três mestiças de virtude negociável e uma mulata opulenta do Panamá, cujo preço era fixo e bastante elevado. Havia um edifício especial para as reuniões do alcaide e dos regedores, que também servia de tribunal e teatro, onde se costumavam apresentar zarzuelas, obras morais e actos patrióticos. Na Plaza de Armas construiu-se um coreto para músicos, que animavam as tardes à hora do passeio, quando os jovens solteiros de ambos os sexos, vigiados pelos pais, se exibiam em grupos, as meninas caminhando num sentido e os rapazes no contrário. Hotel, em contrapartida, ainda não existia; na realidade, passariam dez anos antes que se criasse o primeiro; os viajantes alojavam-se nas casas abastadas, onde nunca faltavam comida e camas para receber os que solicitassem hospitalidade. Em vista de tanto progresso, Alejandro de La Vega achou indispensável que também houvesse uma escola na povoação, embora ninguém compartilhasse a sua inquietude. Com o seu próprio dinheiro, sozinho e a pulso, conseguiu fundar a primeira da província, que por muitos anos havia de ser a única.

A escola abriu as portas precisamente quando Diego fez nove anos e o padre Mendoza anunciou que já lhe tinha ensinado tudo o que sabia, menos dizer missa e exorcizar demónios. Era um barracão tão escuro e poeirento como a prisão, situado numa esquina da praça principal, munido de uma dúzia de bancos de ferro e de um chicote de nove rabos pendurado ao pé do quadro. O professor calhou ser um daqueles homenzinhos insignifícantes que o menor pedaço de autoridade converte em seres brutais. Diego teve o azar de ser um dos seus primeiros alunos, juntamente com um punhado de outros rapazes, rebentos das famílias veneráveis da povoação. Bernardo não pôde frequentá-la, apesar de Diego ter suplicado ao pai que lhe permitisse estudar. Alejandro de La Vega achou louvável a ambição de Bernardo, mas decidiu que não se podiam abrir excepções, porque, se fosse aceite, teria de se dar entrada a outros como ele e o professor anunciara, com meridiana clareza, a sua intenção de se ir embora, caso algum índio assomasse o nariz ao seu «digno estabelecimento do saber», como lhe chamava. A necessidade de ensinar Bernardo, mais que o chicote de nove rabos, motivou Diego a prestar atenção nas aulas.

Entre os alunos contava-se Garcia, filho de um soldado espanhol e da dona da taberna, um miúdo sem grandes luzes, gorducho, com o pé chato e um sorriso apatetado, vítima favorita do professor e dos outros alunos, que o atormentavam sem trégua. Por um anseio de justiça, que ele próprio não conseguia explicar, Diego converteu-se no seu defensor, conquistando a admiração fanática do gordo.

Nas fadigas de cultivar a terra, tocar o gado e cristianizar os índios, o padre Mendoza foi passando os anos sem arranjar o tecto da igreja, danificado desde o ataque de Toypurnia. Nessa ocasião haviam travado os índios com uma explosão de pólvora, que sacudira o edifício até à medula. Ao elevar a hóstia para a consagrar na missa, o seu olhar poisava invariavelmente nas vigas periclitantes e, alarmado, o missionário prometia a si mesmo repará-las antes que se desmoronassem sobre a sua pequena congregação, mas depois tinha de cuidar de outros assuntos e esquecia os seus propósitos até à missa seguinte.

Entretanto, as térmitas foram devorando as madeiras e, por fim, ocorreu o acidente que o padre Mendoza tanto temia. Por sorte não sucedeu quando o recinto estava cheio, o que teria sido catastrófico, mas sim num dos muitos tremores de terra que costumavam abalar a terra na zona: por alguma coisa o rio se chamava Jesus de los Temblores. O tecto caiu em cima de uma única vítima, o padre Alvear, santo homem que viera do Peru para conhecer a Missão San Gabriel. O estrépito do desmoronamento e a nuvem de pó atraíram os neófitos, que apareceram a correr e de imediato lançaram mãos à tarefa de afastar os escombros para desenterrarem o desditoso visitante. Acharam-no esmigalhado como uma barata debaixo de uma viga mestra. Segundo toda a lógica devia ter morrido, porque demoraram uma boa parte da noite a resgatá-lo, enquanto o pobre homem se esvaía em sangue sem consolo; mas Deus fez um milagre, como explicou o padre Mendoza, e quando, por fim, o extraíram das ruínas ainda respirava. Bastou uma olhadela ao padre Mendoza para se aperceber de que os seus escassos conhecimentos de medicina não conseguiriam salvar o ferido, por muito que o poder divino ajudasse. Sem mais delongas mandou um neófito com dois cavalos buscar Coruja Branca. Nesses anos tinha podido verificar que a veneração dos índios por aquela mulher era plenamente justificada.

Por casualidade, Diego e Bernardo chegaram à missão no dia seguinte ao terramoto, conduzindo uns corcéis de pura raça que Alejandro de La Vega tinha mandado de presente aos missionários. Como ninguém saísse a recebê-los nem a agradecer-lhes, porque toda a gente estava atarefada a recolher os destroços do sismo e a cuidar da agonia do padre Alvear, os miúdos amarraram os cavalos e ficaram a participar no inédito espectáculo. Foi assim que estiveram presentes quando, por fim, chegou Coruja Branca a galope, seguindo o neófito que fora procurá-la. Apesar do seu rosto sulcado por novas rugas e da sua cabeleira ainda mais branca, mudara muito pouco naqueles anos; era a mesma mulher forte e extremamente jovem que comparecera dez anos atrás na fazenda De La Vega para salvar Regina da morte. Desta vez vinha numa missão similar e também trazia o seu saco de plantas medicinais. Como a índia se negava a aprender castelhano e o vocabulário do padre Mendoza na língua dela era muito reduzido, Diego ofereceu-se para traduzir. Tinham posto o paciente em cima da grande mesa de madeira por encerar da sala de jantar e à volta dela haviam-se congregado os habitantes de San Gabriel. Coruja Branca examinou atentamente as feridas, que o padre Mendoza ligara, mas não se atrevera a coser, porque por baixo estavam os ossos feitos em pedaços. A curandeira apalpou com os seus dedos experimentados o corpo inteiro e fez um inventário das reparações que se deviam efectuar.

- Diz ao branco que tudo tem remédio, menos esta perna, que está podre. Primeiro corto-a, e depois trato do resto - anunciou ela ao neto.

Diego traduziu sem tomar a precaução de baixar a voz, porque, fosse como fosse, o padre Alvear estava quase defunto, mas, mal repetiu o diagnóstico da avó, o moribundo abriu de par em par uns olhos de fogo.

- Prefiro morrer de uma vez, maldição - disse, com a maior certeza.

Coruja Branca ignorou-o, ao mesmo tempo que o padre Mendoza abria à força a boca do pobre homem, como fazia com as crianças que se negavam a beber leite, e lhe introduzia o famoso funil. Por ali lhe enfiaram um par de colheradas de um espesso xarope cor de óxido, que Coruja Branca extraiu do saco. No que demoraram a lavar com lixívia uma serra de cortar madeira e a preparar uns trapos para ligadura, o padre Alvear estava mergulhado num sono profundo, do qual viria a acordar dez horas mais tarde, lúcido e sereno, quando o coto da perna já deixara de sangrar havia um pedaço.

Coruja Branca tinha remendado o resto do corpo com uma dezena de costuras e amortalhara-o em teias de aranha, unguentos misteriosos e panos. Por seu turno, o padre Mendoza determinou que os neófitos se revezassem para rezar sem pausa, dia e noite, até que o enfermo se curasse. O método deu resultado. Contra todas as expectativas, o padre Alvear restabeleceu-se com bastante rapidez e sete semanas mais tarde, transportado numa liteira, pôde regressar de barco ao Peru.

Bernardo nunca esqueceria o espanto da perna amputada do padre Alvear, e Diego nunca esqueceria o fabuloso poder do xarope da sua avó. Nos meses subsequentes, visitou-a amiúde na sua aldeia para lhe pedir que lhe revelasse o segredo daquela poção, mas ela negou-se uma e outra vez com o argumento lógico de que um remédio tão mágico não podia cair nas mãos de um miúdo travesso, que com certeza a utilizaria para um mau propósito. Num impulso, como tantos que depois pagava com tareias, Diego roubou uma cabaça com o elixir do sono, prometendo a si mesmo que não o utilizaria para amputar membros humanos, mas sim para um bom fim; porém, mal teve o tesouro em seu poder, começou a planear formas de tirar proveito dele. A ocasião apresentou-se-lhe num quente meio-dia de Junho, quando voltava com Bernardo de nadar, único desporto em que este lhe levava folgada vantagem, porque tinha mais resistência, calma e força. Enquanto Diego se esgotava dando ansiosas pancadas contra as ondas, Bernardo mantinha durante horas o ritmo pausado da respiração e das braçadas, deixando-se levar pelas correntes misteriosas do fundo do mar. Se os golfinhos apareciam, não tardavam a rodear Bernardo, como os cavalos faziam, mesmo os mais indómitos. Quando mais ninguém se atrevia a aproximar-se de um potro embravecido, ele abeirava-se dele com cuidado, colava-lhe a cara à orelha e murmurava-lhe palavras secretas, até o aplacar. Não havia em toda a zona quem domasse mais rapidamente e melhor um potro do que aquele rapaz índio. Naquela tarde ouviram de longe os gritos de terror de Garcia, torturado uma vez mais pelos ferrabrases da escola. Eram cinco, guiados por Carlos Alcázar, o aluno mais velho e mais temível de todos. Tinha a capacidade intelectual de um piolho, mas chegava-lhe para inventar métodos de crueldade sempre inéditos. Desta vez, tinham despido Garcia e haviam-no atado a uma árvore e untado de cima a baixo com mel. Garcia berrava a plenos pulmões, enquanto os seus cinco verdugos observavam fascinados a nuvem de mosquitos e as filas de formigas que começavam a atacá-lo. Diego e Bernardo fizeram uma rápida avaliação das circunstâncias e compreenderam que estavam em indubitável desvantagem. Não podiam bater-se com Carlos e os seus sequazes; tão-pouco era questão de irem procurar ajuda, porque teriam feito papel de cobardes. Diego aproximou-se deles sorrindo, enquanto nas suas costas Bernardo cerrava os dentes e os punhos.

- Que estão a fazer? - perguntou, como se não fosse evidente.

- Nada que te interesse, idiota, a menos que queiras acabar como o Garcia - redarguiu Carlos, acompanhado pelas gargalhadas do seu grupo.

- Não me interessa nada, mas pensava usar este gordo como carniça para ursos. Seria uma pena perder essa boa banha nas formigas - disse Diego, indiferente.

- Urso? - grunhiu Carlos.

- Troco-te o Garcia por um urso - propôs Diego com ar lânguido, enquanto limpava as unhas com um palito.

- Onde vais tu buscar um urso? - perguntou o ferrabrás.

- Isso é cá comigo. Penso trazê-lo vivo e com um chapéu posto. Posso oferecer-to, se é isso que queres, Carlos, mas para isso preciso do Garcia - volveu Diego.

Os rapazes conferenciaram em murmúrios, enquanto Garcia suava gelo e Bernardo coçava a cabeça, calculando que, desta vez, Diego tinha ido longe de mais. O método habitual para apanhar ursos vivos, que se usavam para as lutas com touros, requeria força, destreza e bons cavalos. Vários cavaleiros experientes laçavam o animal e seguravam-no com os corcéis, enquanto outro vaqueiro, que servia de engodo, se punha à frente, provocando o. Conduziam-no assim a um curral, mas a diversão costumava custar cara, porque às vezes o urso, capaz de correr mais depressa do que qualquer cavalo, conseguia soltar-se e lançava-se contra quem estivesse mais próximo.

- Quem é que te vai ajudar? - perguntou Carlos.

- O Bernardo.

- Esse índio bronco?

- O Bernardo e eu somos capazes de o fazer sozinhos, desde que tenhamos o Garcia como isco - declarou Diego.

Em dois minutos fecharam o acordo e os desalmados foram-se embora, enquanto Diego e Bernardo soltavam Garcia e o ajudavam a tirar o mel e o ranho no rio.

- Como é que vamos caçar um urso vivo? - perguntou Bernardo.

- Ainda não sei, tenho de pensar - respondeu Diego, e o irmão não teve dúvida de que acharia a solução.

O resto da semana passou-se a preparar os elementos necessários para a travessura que iam cometer. Encontrar um urso era o menos, pois estes juntavam-se às dezenas nos sítios onde matavam as reses, atraídos pelo cheiro da carniça, mas não se podiam confrontar com mais do que um, sobretudo se se tratasse de fêmeas com crias. Tinham de encontrar um urso solitário, o que tão-pouco se tornava difícil, porque abundavam no Verão. Garcia declarou-se doente e passou vários dias sem sair de casa, mas Diego e Bernardo obrigaram-no a acompanhá-los com o argumento imbatível de que, se não o fizesse, iria parar novamente às mãos da seita de Carlos Alcázar. Gracejando, Diego disse-lhe que, na verdade, iam utilizá-lo como engodo, mas ao ver que os joelhos de Garcia fraquejavam, deu-lhe parte do plano traçado com Bernardo.

Os três rapazitos anunciaram às mães que passariam a noite na missão, onde o padre Mendoza celebrava, como todos os anos, a festa de São João. Saíram muito cedo numa carroça puxada por um par de mulas velhas, munidos das suas reatas. Garcia ia morto de medo, Bernardo preocupado e Diego a assobiar. Assim que deixaram para trás a casa da fazenda e abandonaram a estrada principal, internaram-se no Sendero de las Astillas que os índios acreditavam estar assombrado. A idade das mulas e as irregularidades do terreno obrigavam-nos a avançar com parcimónia, o que lhes dava tempo para se guiarem pelas pegadas no solo e pelas arranhaduras nas cascas das árvores. Estavam a chegar à serração de Alejandro de La Vega, que fornecia madeira para as casas e barcos em reparação, quando os zurros das mulas espavoridas avisaram da presença de um urso. Os lenhadores tinham ido à festa de São João e não se via vivalma nas proximidades, apenas as serras e machados abandonados e as pilhas de troncos em torno de uma rústica construção de tábuas. Desatrelaram as mulas e levaram-nas aos puxões até ao barracão, para as proteger; depois, Diego e Bernardo puseram-se a instalar a sua armadilha, enquanto Garcia vigiava a curta distância do refúgio. Tinha trazido uma abundante merenda e, como os nervos lhe davam fome, não parava de mastigar desde que haviam saído de manhã. Entrincheirado no seu esconderijo, observou os outros, que passaram cordas aos ramos mais grossos de um par de árvores, colocaram os laços, como tinham visto fazer aos vaqueiros, e ao meio acomodaram o melhor possível uns ramos cobertos de pele de cervo, que usavam quando iam caçar com os índios. Debaixo da pele puseram a carne fresca de um coelho e uma bola de sebo embebido em xarope de dormideira.

A seguir, foram para o barracão compartilhar a merenda de Garcia.

Os compinchas tinham-se preparado para passarem ali um par de dias, mas não tiveram de aguardar tanto, porque, pouco mais tarde, apareceu o urso, anunciado pelos zurros das mulas. Era um macho velho bastante grande. Avançava como uma massa trémula de banha e pele escura, bamboleando-se de um lado para o outro com inesperada agilidade e graça. Os rapazes não se deixaram enganar pela atitude de mansa curiosidade da fera, sabendo do que era capaz, e rezaram para que a brisa não lhe levasse o cheiro humano e o das mulas. Se o urso investisse contra o barracão, a porta não resistiria. O animal deu um par de voltas pelos arredores e de repente viu aquilo que parecia um veado imóvel. Ergueu-se sobre duas patas e levantou os braços; nessa ocasião as crianças puderam vê-lo inteiro: tratava-se de um gigante de dois metros de altura. Soltou um grunhido pavoroso, esbracejou de modo ameaçador e, seguidamente, precipitou-se com a imensidade do seu peso sobre a pele, esmagando a ligeira armação que a sustinha. Viu-se estatelado no chão sem saber o que tinha acontecido, mas recompôs-se de imediato e pôs-se de pé. Voltou a atacar o falso veado com as garras e então descobriu a carniça oculta por baixo, devorando-a com duas dentadas. Estraçalhou a pele à procura de algum alimento mais consistente e, como não o encontrasse, voltou a pôr-se de pé, confuso. Deu um passo em frente e pisou completamente os laços, activando a armadilha. Num instante, as cordas retesaram-se e o urso ficou pendurado de cabeça para baixo entre as duas árvores. Os rapazes celebraram em altos gritos um triunfo muito breve, porque o peso do animal a baloiçar quebrou os ramos. Espantados, Diego, Bernardo e Garcia entrincheiraram-se no barracão com as mulas, procurando alguma coisa com que se defenderem, enquanto lá fora o urso, esparramado no chão, procurava soltar a pata direita do laço, que ainda o prendia a um dos ramos quebrados da árvore.

Debateu-se durante um bom pedaço, cada vez mais enredado e iracundo, e, como não conseguisse soltar-se, avançou arrastando o ramo.

- E agora? - perguntou Bernardo, com fingida calma.

- Agora esperamos - respondeu Diego.

Ao notar uma coisa quente entre as pernas e ver que a mancha se estendia pelas calças, Garcia perdeu a cabeça e pôs-se a soluçar a plenos pulmões. Bernardo saltou sobre ele e tapou-lhe a boca, mas já era tarde. O urso tinha-os ouvido. Virou-se para o barracão e deu umas palmadas na porta, sacudindo de tal forma a frágil construção que se desprenderam umas tábuas do tecto. Lá dentro, Diego esperava frente à porta com o chicote na mão e Bernardo brandia uma vareta de ferro que achara no barracão. Para sorte deles, a fera estava magoada pela queda da árvore e constrangida pelo ramo atado à pata. Desferiu um último murro na porta, sem muito entusiasmo, e afastou-se cambaleando para o bosque, mas não chegou longe, porque o ramo se prendeu no meio de uns troncos da serração, detendo-o de chofre. As crianças já não o conseguiam ver, mas ouviram os seus rugidos desesperados durante um bom bocado, até que se foram espaçando em suspiros resignados e por último cessaram de todo.

- E agora? - voltou a perguntar Bernardo.

- Agora é preciso pô-lo na carroça - anunciou Diego.

- Estás doido? Não podemos sair daqui! - bradou Garcia, agora com as calças borradas e fétidas.

- Não sei durante quanto tempo ficará a dormir. É muito grande e suponho que a poção de sono da minha avó está calculada para o tamanho de um homem. Temos de o fazer rapidamente, porque se acordar estamos tramados - ordenou Diego.

Bernardo seguiu-o sem pedir mais explicações, como fazia sempre, mas Garcia ficou para trás, encolhido no charco da sua própria porcaria e a choramingar com o pouco fôlego que lhe restava.

Encontraram o urso de costas, tal como tinha caído com a martelada da droga, a curta distância do armazém. O plano de Diego contemplava que o animal adormecesse pendurado na armadilha entre as árvores, para que eles pudessem pôr a carroça por baixo e deixá-lo cair. Agora teriam de içar o gigante para a carroça. Tentearam-no de longe com um pau e, como não se movesse, atreveram-se a aproximar-se. Era mais velho do que pensavam: faltavam-lhe duas garras numa das patas, tinha vários dentes quebrados, estava salpicado de peladas e antigas cicatrizes. O hálito de dragão deu-lhes na cara, mas estava fora de causa retroceder; puseram-se a amarrar-lhe o focinho e as quatro patas com cordas. Ao princípio improvisavam precauções, que teriam sido inúteis se a fera acordasse, mas quando se convenceram de que estava como morta, apressaram-se. Não tardou que tivessem o urso imobilizado; foram então buscar as pobres mulas, paralisadas de terror. Bernardo usou com elas o método de sussurrar-lhes ao ouvido, como fazia com os cavalos bravos, e assim obedeceram-lhe. Garcia aproximou-se com cautela, depois de se certificar de que o ressonar do urso era legítimo, mas tiritava e estava tão hediondo que o mandaram lavar-se e enxaguar as calças num regato. Bernardo e Diego usaram o método habitual dos vaqueiros para içar tonéis: prenderam duas reatas num extremo da carroça inclinada, enfiaram-nas por baixo do animal, passaram-nas por cima em sentido contrário e depois prenderam as mulas aos extremos e fizeram-nas puxar. À segunda tentativa conseguiram movê-lo rodando e assim o foram içando aos poucos para a carroça. Ficaram esbaforidos devido ao brutal esforço, mas tinham conseguido o seu propósito. Abraçaram-se dando saltos de lunáticos, orgulhosos como nunca antes haviam estado. Atrelaram as mulas à carroça e dispuseram-se a regressar à povoação; entretanto, Diego foi buscar um tarro com alcatrão, que tinha arranjado nos depósitos de pez próximos da sua casa, e com isso colou um chapéu mexicano à cabeça do urso.

Estavam exaustos, ensopados de suor e impregnados da pestilência da fera; por seu turno, Garcia era um feixe de nervos, mal se conseguia ter de pé, ainda cheirava a chiqueiro e tinha a roupa encharcada. A tarefa tinha-lhes ocupado grande parte da tarde, mas quando, por fim, fizeram as mulas meter pelo Sendero de las Astillas, ainda lhes restava um par de horas de luz. Alargaram o passo e conseguiram chegar ao Camino Real, à justa antes de escurecer; dali em diante as estafadas mulas continuaram por instinto, enquanto o urso resfolegava na sua prisão de cordas. Tinha acordado do letargo produzido pela droga de Coruja Branca, mas ainda estava confundido.

Quando entraram em Los Angeles era noite cerrada. À luz de um par de candeias de azeite soltaram as patas traseiras do animal, mas deixaram-lhe as dianteiras e o focinho amarrados e açularam-no até que ele saiu da carroça, se pôs de pé, tonto, mas com a fúria intacta. Começaram a chamar aos gritos; não tardou que assomassem pessoas das suas casas com candeias e archotes. A rua encheu-se de curiosos a admirarem o mais insólito espectáculo: Diego de La Vega vinha à frente, puxando com um laço um urso de tamanho descomunal, que se bamboleava em duas patas com um chapéu na cabeça, enquanto Bernardo e Garcia o espicaçavam por trás. Os aplausos e aclamações ficariam durante semanas a soar aos ouvidos dos três rapazes. Por essa altura, já haviam tido tempo de sobra para medirem a gravidade da sua imprudência e recomporem-se do merecido castigo que sofreram. Nada conseguiu ofuscar a radiosa vitória daquela aventura. Carlos e os seus sequazes não voltaram a incomodá-los.

A proeza do urso, exagerada e adornada até ao impossível, passou de boca em boca e, com o tempo, atravessou o estreito de Bering, levada pelos comerciantes de peles de lontra, e chegou até à Rússia. Diego, Bernardo e Garcia não se salvaram da tareia aplicada pelos pais, mas ninguém lhes pôde discutir o título de campeões. Abstiveram-se, claro está, de mencionar a poção de dormideira de Coruja Branca. O seu troféu esteve num curral, exposto às zombarias e pedradas dos curiosos durante uns dias, enquanto procuravam o melhor touro para o combater, mas Diego e Bernardo tiveram pena do urso prisioneiro e na noite anterior ao combate puseram-no em liberdade. Em Outubro, quando ainda não se falava de outra coisa na povoação, os piratas atacaram. Apareceram de súbito, com a experiência de muitos anos de maldade, aproximando-se da costa, sem serem vistos, num bergantim armado de catorze canhões ligeiros, que tinha feito a viagem da América do Sul, desviando-se pelo Havai para aproveitar os ventos que os impeliram até à Alta Califórnia. Andavam à caça de navios carregados de tesouros da América, que se destinavam aos cofres reais de Espanha. Raras vezes atacavam em terra firme, porque as cidades importantes se podiam defender, enquanto as outras eram demasiado pobres; contudo, havia uma eternidade que andavam a navegar sem sorte e a tripulação precisava de água fresca e de queimar um pouco de energia. O comandante decidiu visitar Los Angeles, embora não esperasse encontrar lá nada de interessante: apenas alimentos, álcool e motivo de diversão para os seus rapazes. Contavam que não houvesse resistência, porque os precedia a má fama que eles próprios se encarregavam de pôr a correr, histórias horripilantes de sangue e cinza, de como cortavam os homens em pedaços, estripavam as mulheres grávidas, enfiavam as crianças em ganchos e as penduravam nos mastros como troféus. Convinha-lhes a reputação de bárbaros. Nos assaltos bastava anunciarem-se com uns quantos tiros de canhão ou aparecerem soltando uivos, para que a população fugisse a sete pés, e assim eles recolhiam o saque sem o incómodo de lutar. Largaram ferro e prepararam-se para atacar. Os canhões do bergantim tornavam-se neste caso inúteis, porque não alcançavam Los Angeles. Desembarcaram em lanchas, com as facas entre os dentes e os sabres nas mãos, como uma horda de demónios. A meio caminho toparam com a fazenda De La Vega. A grande casa de adobe, com os seus telhados vermelhos, as suas buganvílias arroxeadas a trepar pelas paredes, o seu jardim de laranjeiras, o seu ar aprazível de prosperidade e paz, tornou-se irresistível para aqueles grosseiros navegantes, que se alimentavam havia muito tempo de água esverdeada, hedionda carne seca, bolachas bichosas e duras como pedra calcinada. Nada conseguiu o comandante bramando que o objectivo era a povoação: os seus homens precipitaram-se sobre a fazenda, pisando os cães e disparando à queima-roupa contra o par de índios jardineiros que tiveram o azar de sair-lhes ao caminho. Nesse momento, Alejandro de La Vega encontrava-se na Cidade do México, a comprar móveis mais graciosos que os mamarrachos da sua casa, veludo dourado para fazer cortinas, talheres de prata maciça, louça inglesa e copos de cristal da Áustria. Com esse presente de faraó pensava comover Regina, para ver se, de uma vez por todas, deixava os seus hábitos de índia e se inclinava para o refinamento europeu que ele pretendia para a sua família. Os seus negócios iam de vento em popa e podia dar a si próprio o prazer de viver pela primeira vez como competia a um homem da sua linhagem. Não podia suspeitar que, enquanto ele regateava o preço dos tapetes turcos, a sua casa era violada por trinta e seis desalmados.

Regina acordou com os estrepitosos latidos dos cães. O seu quarto ficava num pequeno torreão, única audácia na arquitectura chã e pesada da casa. A luz tímida daquela hora matinal iluminava o céu de tons alaranjados e entrava-lhe pela janela, que não tinha cortinas ou persianas.

Embrulhou-se num xaile e saiu descalça à varanda para ver o que se passava com os cães, precisamente quando os primeiros assaltantes forçavam o portão de madeira do jardim. Não lhe ocorreu que fossem piratas, porque nunca os tinha visto, mas não se deteve a averiguar a sua identidade. Diego, que aos dez anos ainda compartilhava a cama com a mãe quando o pai não estava, viu-a passar a correr em camisa de dormir. Regina agarrou de passagem num sabre e numa adaga pendurados na parede, que não eram usados desde que o marido deixara a carreira militar, mas se mantinham afiados, e desceu a escada chamando a criadagem aos gritos. Diego saltou também da cama e seguiu-a. As portas da casa eram de carvalho e na ausência de Alejandro de La Vega trancavam-se por dentro com uma pesada barra de ferro. O ímpeto dos piratas embateu contra esse obstáculo invulnerável, o que deu tempo a Regina de distribuir as armas de fogo guardadas nos baús e organizar a defesa.

Diego, ainda por espertar de todo, viu-se perante uma mulher desconhecida, que apenas tinha um vago ar familiar. A mãe transformara-se em poucos segundos em Filha de Lobo. Tinha-se-lhe eriçado o cabelo, um brilho feroz nos olhos dava-lhe um aspecto de alucinada e mostrava os dentes, deitando espuma pela boca como um cão raivoso, enquanto ladrava ordens aos empregados em língua de índios. Brandia um sabre numa mão e uma adaga na outra quando as persianas que protegiam as janelas do andar principal cederam e os primeiros piratas irromperam na casa. Apesar do estrondo do assalto, Diego conseguiu ouvir um alarido, que mais pareceu de júbilo que de terror, sair da terra, percorrer o corpo da mãe e fazer estremecer as paredes. A visão daquela mulher coberta apenas pelo fino tecido de uma camisa de dormir, que lhes saía ao encontro arvorando duas armas brancas com um ímpeto impossível em alguém do seu tamanho, surpreendeu os assaltantes por uns segundos. Isso deu tempo aos empregados que dispunham de armas para dispararem.

Dois flibusteiros caíram de bruços com os fogachos e um terceiro cambaleou, mas mal houve tempo de carregar as armas, já outra dezena trepava pelas janelas. Diego agarrou num candelabro de ferro e saiu em defesa da mãe, enquanto esta retrocedia para o salão. Tinha perdido o sabre e agarrava a adaga com as duas mãos, desferindo cutiladas às cegas contra os vândalos que a cercavam. Diego meteu o candelabro entre as pernas de um, atirando-o ao chão, mas não conseguiu pregar-lhe uma bordoada, porque um brutal pontapé no peito o projectou contra a parede. Nunca soube quanto tempo ficou ali aturdido, porque as versões do assalto, que correram mais tarde, eram contraditórias. Uns atribuíram-lhe horas, mas outros disseram que em poucos minutos os piratas mataram ou feriram quantos se atravessaram no seu caminho, deram cabo daquilo que não conseguiram roubar e, antes de se encaminharem para Los Angeles, deitaram fogo aos móveis.

Quando Diego recuperou o conhecimento, ainda os malfeitores percorriam a casa à procura do que levar e já o fumo do incêndio se infiltrava pelos resquícios. Pôs-se de pé com uma dor tremenda no peito, que o obrigava a respirar aos golinhos, e avançou aos tropeções, tossindo e chamando pela mãe. Encontrou-a debaixo da mesa grande do salão, com a camisa de noite de cambraia ensopada de sangue, mas lúcida e com os olhos abertos. «Esconde-te, filho!», ordenou-lhe ela com a voz firme, após o que desmaiou. Diego pegou-lhe pelos braços e, com um esforço titânico, porque tinha as costelas partidas pelo pontapé sofrido, puxou-a, aos arrancos, na direcção da lareira. Conseguiu abrir a porta secreta, cuja existência só ele e Bernardo conheciam, e arrastou-a até ao túnel. Fechou a tampa do outro lado e ficou ali, na escuridão, com a cabeça da mãe entre os joelhos, mamã, mamã, chorando e pedindo a Deus e aos espíritos da sua tribo que não a deixassem morrer.

Bernardo estava também na cama quando se iniciou o assalto. Dormia com a mãe num dos quartos destinados à criadagem, no outro extremo da mansão. O deles era mais amplo do que os cubículos sem janelas dos demais criados, porque também era utilizado para passar a ferro, tarefa da qual Ana não prescindia. Alejandro de La Vega exigia que as dobras das suas camisas ficassem perfeitas e ela tinha orgulho em passá-las pessoalmente. À parte uma acanhada cama com colchão de palha e um estafado baú onde guardavam os seus magros pertences, o compartimento continha uma mesa comprida para o trabalho e um recipiente de ferro para as brasas dos ferros, além de um par de enormes cestos com roupa lavada, que Ana pensava passar a ferro no dia seguinte. O chão era de terra; um poncho de lã, pendurado no lintel, servia de porta; a luz e o ar entravam por dois postigos.

Bernardo não acordou com os alaridos dos piratas, nem com os disparos do outro lado da casa, mas sim com o safanão que Ana lhe deu. Pensou que a terra estava a tremer, como outras vezes, mas ela não lhe deu tempo de especular; pegou-lhe por um braço, levantou-o com a força de um vendaval e, com uma passada, conduziu-o ao outro lado do compartimento. Encafuou-o com um empurrão brutal dentro de um dos grandes cestos. «Aconteça o que acontecer, não te mexas, percebeste bem?» O seu tom era tão terminante que pareceu a Bernardo que lhe falava com um ódio recôndito. Nunca a tinha visto alterada. A mãe era de uma doçura lendária, sempre dócil e contente, apesar de não lhe sobrarem motivos para a felicidade. Entregava-se sem escrúpulos à tarefa de adorar o filho e servir os seus patrões, conforme com a sua existência humilde e sem inquietudes na alma; não obstante, nesse momento, o último que compartilharia com Bernardo, endureceu-se com a solidez do gelo.

Pegou num fardo de roupa e cobriu o rapaz, achatando-o no fundo do cesto. Dali, envolvido nas brancas trevas dos trapos, sufocado pelo cheiro a goma e pelo terror, Bernardo ouviu os gritos, palavrões e gargalhadas dos homens que entraram no quarto, onde Ana os esperava, com a morte já escrita na testa, disposta a distraí-los durante o tempo necessário para que não encontrassem o filho.

Os piratas tinham pressa e bastou-lhes uma vista de olhos para se darem conta de que naquele quarto de criada não havia nada de valor. Talvez tivessem assomado ao umbral e dado meia volta, mas estava ali aquela jovem indígena a desafiá-los com os braços na cintura e uma determinação suicida, com o seu rosto redondo, com o manto nocturno do seu cabelo, com as suas ancas generosas e os seus seios firmes. Durante um ano e quatro meses tinham percorrido o oceano sem ponto fixo e sem o consolo de poisarem os olhos numa mulher. Por um instante julgaram encontrar-se diante de uma miragem, como tantas que os atormentavam no mar alto, mas depois sentiram o cheiro açucarado de Ana e esqueceram a pressa. Com um safanão, arrancaram a grosseira camisa de noite de linho que lhe cobria o corpo e precipitaram-se sobre ela. Ana não se debateu. Suportou num silêncio sepulcral tudo o que lhes apeteceu fazer com ela. Ao cair por terra, avassalada pelos homens, a sua cabeça ficou tão perto do cesto de Bernardo, que este pôde contar um a um os débeis queixumes da mãe, abafados pelo ofegar brutal dos seus atacantes.

O garoto não se moveu em nenhum momento por baixo do molho de trapos que o cobria; ali viveu o suplício completo da mãe, paralisado de horror. Estava aninhado no cesto, com a mente em branco, a suar bílis, sacudido pelas náuseas. Passado um tempo infinito, apercebeu-se do silêncio absoluto e do cheiro a fumo. Deixou passar um bocado, até não poder mais, porque estava a sufocar, e chamou baixinho por Ana. Ninguém respondeu.

Voltou a chamá-la um par de vezes em vão e, por fim, atreveu-se a assomar a cabeça. Pelo vão da porta entravam rajadas de fumo, mas o incêndio da casa não chegava até ali. Entorpecido pela tensão e pela imobilidade, Bernardo teve de fazer um esforço para sair do cesto. Viu a mãe no preciso lugar onde os homens a tinham prostrado, nua, com o comprido cabelo preto aberto como um leque no chão e o pescoço cortado de orelha a orelha. O garoto sentou-se ao seu lado e pegou-lhe na mão, quieto e calado. Durante muitos anos não voltaria a dizer palavra.

Assim o encontraram, mudo e manchado com o sangue da mãe, horas mais tarde, quando os piratas já navegavam longe. A população de Los Angeles estava a contar os seus mortos e a apagar os seus incêndios; ninguém se lembrou de ir ver o que tinha acontecido na fazenda De La Vega, até que o padre Mendoza, alertado por uma premonição tão vívida que não a conseguiu ignorar, apareceu com meia dúzia de neófitos para tomar conta do lugar. As chamas tinham queimado o mobiliário e lambido algumas das vigas, mas a casa era sólida; quando ele chegou, o fogo estava a apagar-se sozinho. O assalto deixara um saldo de vários feridos e cinco mortos, incluindo Ana, que encontraram tal como os seus assassinos a haviam abandonado.

- Que Deus nos proteja - exclamou o padre Mendoza ao deparar-se com aquela tragédia.

Cobriu o corpo de Ana com um cobertor e ergueu Bernardo nos seus braços robustos. O garoto estava petrificado, com o olhar fixo e um espasmo na cara que lhe cerrava os maxilares.

- Onde estão Dona Regina e Diego? - perguntou o missionário, mas Bernardo não deu mostras de o ouvir. Deixou-o nas mãos de uma índia da criadagem, que o aninhou nos braços, embalando-o como um bebé ao som de uma triste litania na sua língua, enquanto ele percorria de novo a casa a chamar pelos que faltavam.

 

O tempo decorreu sem alterações no túnel, porque a luz do dia não entrava até lá, sendo impossível calcular as horas naquelas trevas eternas. Diego não pôde adivinhar o que acontecia na casa, porque ali tão-pouco chegavam os sons do exterior nem o fumo do incêndio. Esperou sem saber o que esperava, enquanto Regina entrava e saía do desmaio, extenuada. Imóvel, a fim de não perturbar a mãe, apesar do martírio do pontapé que lhe cravava punhais no peito a cada inspiração, e da comichão atroz entre as pernas dormentes, o garoto aguardava. Em alguns momentos a fadiga vencia-o, mas logo acordava, rodeado de sombras, entontecido de sofrimento. Sentiu que ia gelando e várias vezes tentou sacudir os membros, mas invadia-o uma preguiça sem remédio e voltava a cabecear, mergulhando na algodoenta névoa. Nesse letargo transcorreu uma boa parte do dia, até que, por fim, Regina soltou um queixume e se mexeu, e nessa altura ele acordou sobressaltado. Ao verificar que a mãe estava viva, recuperou de chofre o ânimo e uma vaga de felicidade banhou-o da cabeça aos pés, ao mesmo tempo que se inclinava para lhe cobrir a cara de beijos delirantes. Diego pegou-lhe com infinito cuidado na cabeça, que tinha ficado da cor do mármore, e ajeitou-a no chão. Levou vários minutos a recuperar o movimento das pernas, até que conseguiu gatinhar à procura das velas que Bernardo e ele escondiam para as suas invocações de Okahué. A voz da avó perguntou-lhe na língua dos índios quais eram as cinco virtudes essenciais, mas não conseguiu lembrar-se de nenhuma, a não ser da coragem.

À luz da vela, Regina abriu os olhos e deu por si sepultada numa caverna com o filho. Não lhe chegaram as forças para lhe perguntar o que acontecera, nem para o consolar com falsas palavras; pôde apenas indicar-lhe que lhe rasgasse a camisa de noite e com ela ligasse a ferida do peito.

Diego fê-lo com dedos trémulos, vendo que a mãe tinha uma facada profunda debaixo do ombro. Não soube o que fazer e continuou à espera.

- Estou a esvair-me, Diego, tens de ir procurar ajuda - murmurou Regina passado um pedaço.

O garoto calculou que pelas grutas podia alcançar a praia e dali podia correr sem ser visto para pedir socorro, mas isso levar-lhe-ia tempo. Num impulso, decidiu que valia a pena correr o risco de assomar pelo alçapão da lareira para averiguar como estava a situação em casa. A portinhola achava-se bem dissimulada atrás da pilha de troncos da lareira e poderia dar uma vista de olhos sem ser visto, mesmo que houvesse gente no salão.

A primeira coisa de que se apercebeu ao abrir o alçapão foi o cheiro acre a chamuscado e a rabanada da fumaceira, que o fizeram retroceder, mas logo compreendeu que isso lhe permitia ocultar-se melhor. Silencioso como um gato, passou pela porta secreta acaçapando-se atrás de uns troncos. As cadeiras e a carpete estavam tisnadas, o óleo de Santo António queimara-se por completo, as paredes e as vigas do tecto fumegavam, mas as chamas tinham-se apagado. Reinava uma quietude anormal na casa e supôs que já não estivesse lá ninguém, o que lhe deu coragem para avançar. Deslizou cauteloso ao longo das paredes, lacrimejando e tossindo, e percorreu uma a uma as divisões do andar principal. Não podia imaginar o que tinha acontecido, se porventura estavam todos mortos ou haviam conseguido escapar. Nas ruínas do vestíbulo viu uma desordem de naufrágio e manchas de sangue, mas não estavam lá os corpos dos homens que ele mesmo tinha visto cair de madrugada. Atordoado pelas dúvidas, imaginou que estava mergulhado num pesadelo espantoso, do qual acordaria com a voz carinhosa de Ana a anunciar o pequeno-almoço. Continuou a explorar em direcção aos quartos dos criados, sufocado pela bruma cinzenta do incêndio que, ao abrir uma porta ou contornar uma esquina, surgia em fagulhas.

Lembrou-se da mãe, a morrer sem ajuda; decidiu que não havia mais nada a perder e, esquecendo toda a cautela, desatou a correr pelos intermináveis corredores da fazenda, quase às cegas, até que embateu de súbito contra um corpo sólido e dois braços poderosos o apresaram. Gritou de susto e da dor nas costelas quebradas, sentiu que lhe voltavam as náuseas e estava a ponto de desmaiar.

- Diego! Bendito seja Deus! - ouviu o vozeirão do padre Mendoza e farejou a sua velha sotaina, sentindo as suas faces mal barbeadas contra a sua testa, e nessa altura abandonou-se, como a criança que ainda era, chorando e vomitando sem consolo.

O padre Mendoza enviara os sobreviventes para a Missão San Gabriel. A única explicação que lhe ocorreu para a ausência de Regina e do filho foi que tivessem sido raptados pelos piratas, embora nunca tivesse sabido de coisa semelhante por aqueles lados. Sabia que noutros mares faziam reféns para obter resgate ou vendê-los como escravos, mas nada disso sucedia naquela remota costa da América. Não podia imaginar como daria a notícia a Alejandro de La Vega. Ajudado pelos outros dois franciscanos, que viviam na missão, fizera o possível por aliviar os feridos e consolar as restantes vítimas do assalto. No dia seguinte teria de ir a Los Angeles, onde o esperava a pesada tarefa de enterrar os mortos e fazer um inventário dos destroços. Estava extenuado, mas sentia-se tão inquieto, que não conseguiu ir-se embora com os outros para a missão e preferiu ficar, a fim de passar uma vez mais revista à casa. Era o que fazia quando Diego lhe apareceu à frente.

Regina sobreviveu graças ao facto de o padre Mendoza a ter embrulhado em cobertores, metido no seu desconjuntado calhambeque e levado para a missão. Não houve tempo de chamar Coruja Branca, porque continuava a jorrar sangue do corte profundo, e Regina debilitava-se a olhos vistos. À luz de umas candeias, os missionários entregaram-se a embebedá-la primeiro com rum e depois a lavar a ferida e extrair, com as tenazes de torcer arame, a ponta do punhal do pirata, incrustada no osso da clavícula. Depois cauterizaram a ferida com um ferro incandescente, enquanto Regina mordia um pedaço de madeira, como tinha feito durante o parto. Diego tapava os ouvidos para não ouvir os seus gemidos sufocados, oprimido pela culpa e pela vergonha de ter desperdiçado numa travessura de fedelho a poção do sono, que poderia ter poupado aquele tormento a Regina. A dor da mãe foi o seu terrível castigo por ter roubado o remédio mágico.

Ao despir a camisa a Diego, verificaram que o pontapé lhe tinha deixado a carne pisada desde o pescoço até à virilha. O padre Mendoza calculou que devia ter várias costelas arrombadas e ele próprio lhe fez um corpete de couro de vaca, reforçado com varas de cipó, para o imobilizar. O garoto não se podia agachar nem levantar os braços, mas graças ao corpete recuperou em poucas semanas o uso completo dos pulmões. Bernardo, em contrapartida, não se curou dos ferimentos, que eram muito mais profundos que os de Diego. Passou vários dias no mesmo estado pétreo em que o padre Mendoza o encontrara, com o olhar fixo e os dentes tão apertados que tiveram de recorrer ao funil para o alimentar com papas de milho. Assistiu ao funeral colectivo das vítimas dos piratas e presenciou sem uma lágrima o arriar, para uma cova na terra, do caixão que continha o corpo da mãe. Quando os outros vieram a dar-se conta de que Bernardo não falava havia semanas, Diego, que o tinha acompanhado de noite e de dia sem o deixar um só instante, já tinha assumido o facto irrefutável de que talvez nunca mais o fizesse. Os índios disseram que tinha engolido a língua.

O padre Mendoza começou por obrigá-lo a fazer gargarejos com vinho da missa e mel de abelha; depois pincelou-lhe a garganta com borato de sódio, pôs-lhe emplastros quentes no pescoço e deu-lhe a comer escaravelhos moídos. Como nenhum dos seus improvisados remédios contra a mudez desse resultado, optou pelo recurso extremo de o exorcizar. Nunca lhe tinha calhado expulsar demónios e não se sentia capacitado para tão indigna tarefa, embora conhecesse o método, mas não havia por aqueles lados mais ninguém que o pudesse fazer. Para encontrar um exorcista autorizado pela Inquisição era preciso ir ao México e, francamente, o missionário considerou que não valia a pena. Estudou a fundo os textos pertinentes, jejuou por dois dias à guisa de preparação, depois fechou-se com Bernardo na igreja a lutar corpo a corpo com Satanás. Não serviu de nada. Derrotado, o padre Mendoza concluiu que o trauma tinha embrutecido o pobre garoto e deixou de lhe prestar atenção. Delegou a uma neófita a maçada de o alimentar com um funil e voltou à sua vida. Andava entretido com os seus deveres da missão, com a tarefa espiritual de ajudar a população de Los Angeles a recuperar das suas desgraças e com as minúcias burocráticas que os seus superiores do México lhe exigiam, sempre o mais aborrecido do seu ministério. As pessoas já tinham posto Bernardo de parte como idiota sem remédio, quando Coruja Branca apareceu na missão, a fim de o levar para a sua aldeola. O missionário entregou-lho, porque não sabia o que lhe havia de fazer, embora não esperasse que as magias da índia alcançassem a cura que ele não conseguira com exorcismos. Diego estava morto por acompanhar o seu irmão de leite, mas não teve coragem de deixar a mãe, que ainda não se levantava do seu leito de convalescente, e, além disso, o padre Mendoza não lhe permitiu montar a cavalo com o corpete. Pela primeira vez desde que haviam nascido, as crianças separaram-se.

Coruja Branca verificou que Bernardo não engolira a língua - tinha-a intacta na boca - e diagnosticou que a sua mudez era uma forma de luto: não falava porque não queria. Calculou que por debaixo da ira surda que devorava o garoto havia um insondável oceano de tristeza. Não procurou consolá-lo ou curá-lo, porque, na sua opinião, Bernardo tinha todo o direito do mundo de ficar calado, mas ensinou-o a comunicar com o espírito da mãe, por meio da observação das estrelas, e com os seus semelhantes valendo-se da linguagem dos signos que os índios de diferentes tribos usavam para comerciar. Também o ensinou a tocar uma delicada flauta de cana. Com o tempo e a prática, o garoto chegaria a arrancar àquele singelo instrumento quase tantos sons como os da voz humana. Mal o deixaram em paz, Bernardo espevitou. O primeiro sintoma foi um apetite voraz, deixando de haver necessidade de o alimentar com métodos cruéis, e o segundo foi a tímida amizade que estabeleceu com Raio na Noite. A menina era dois anos mais velha do que ele e tinha esse nome porque nascera numa noite de tempestade. Era diminuta para a idade e possuía a expressão amável de um esquilo. Acolheu Bernardo com naturalidade, sem se dar por achada com o seu impedimento de falar, e converteu-se na sua companheira permanente, substituindo, sem o saber, Diego. Não se separavam a não ser à noite, quando ele tinha de ir dormir na palhota de Coruja Branca e ela na da sua família. Raio na Noite levava-o ao rio, onde se despia completamente e se atirava de cabeça à água, enquanto ele procurava com que se distrair para não a olhar de frente, porque, aos dez anos, já lhe tinham causado impressão os ensinamentos do padre Mendoza sobre as tentações da carne. Bernardo seguia-a sem despir as calças, espantado por ela ter a mesma resistência que ele para nadar como um peixe na água gelada.

Raio na Noite sabia de cor a história mítica do seu povo e não se cansava de lha contar, tal como ele não se cansava de a escutar. A voz da menina era um bálsamo para Bernardo; ouvia-a deslumbrado, sem se aperceber de que o amor por ela começava a derreter o glaciar do seu coração. Voltou a portar-se como qualquer rapazinho da sua idade, embora não falasse e não chorasse. Juntos acompanhavam Coruja Branca, ajudando-a nos seus afazeres de curandeira e xamã, colhendo plantas curativas e preparando poções. Quando Bernardo voltou a sorrir, a avó considerou que já não podia fazer mais por ele; tinha chegado o momento de o mandar de regresso para a fazenda De La Vega. Ela devia ocupar-se dos ritos e cerimónias que marcariam a primeira menstruação de Raio na Noite, que nessa altura entrou de supetão na adolescência. Essa súbita transição não distanciou a menina de Bernardo; pelo contrário, pareceu aproximá-los mais. À guisa de despedida, levou-o mais uma vez ao rio e com o seu sangue menstrual pintou numa rocha pássaros em voo.

- Somos nós, havemos de voar sempre juntos - disse-lhe ela. Num impulso, Bernardo beijou-a na cara e a seguir desatou a correr, com o corpo em chamas.

Diego, que tinha esperado Bernardo com uma tristeza de cão órfão, viu-o vir ao longe e correu a dar-lhe as boas-vindas com gritos de júbilo, mas quando o teve na sua frente compreendeu que o seu irmão de leite era outra pessoa. Vinha num cavalo emprestado, com a sua trouxa ao ombro, maior e mais tosco, com o cabelo comprido, cara de índio adulto e a luz inconfundível de um amor secreto nas pupilas. Diego parou atordoado; nessa altura, Bernardo desmontou e abraçou-o, erguendo-o no ar sem esforço, e voltaram a ser os gémeos inseparáveis de antigamente. Diego sentiu que tinha recuperado metade da alma. Não lhe fazia diferença nenhuma que Bernardo não falasse, porque nenhum dos dois tinha precisado alguma vez de palavras para saber o que o outro pensava.

Bernardo ficou surpreendido por, naqueles meses, terem reconstruído por completo a casa ardida no incêndio.

Alejandro de La Vega propusera-se apagar todos os vestígios da passagem dos piratas e aproveitar aquela desgraça para melhorar a sua residência. Quando regressara à Alta Califórnia, seis semanas depois do assalto, com o seu carregamento de utensílios de luxo para surpreender a mulher, deparara-se com o facto de não haver sequer um cão para lhe ladrar; a moradia estava abandonada, o seu conteúdo feito em cinzas e a família ausente. A única pessoa que viera recebê-lo fora o padre Mendoza, que o pusera ao corrente do sucedido e o levara para a missão, onde Regina começava a dar os primeiros passos de convalescente, ainda envolvida em ligaduras e com um braço ao peito. A experiência de ter assomado ao lado de lá da morte arrebatara a frescura a Regina de uma penada. Alejandro tinha deixado uma esposa jovem e pouco depois quem o recebera fora uma mulher de trinta e cinco anos apenas, mas já madura, com algumas madeixas grisalhas no cabelo, que não demonstrara o menor interesse pelos tapetes turcos, nem pelos talheres de prata lavrada que ele comprara.

As notícias eram más, mas, tal como disse o padre Mendoza, poderiam ser muito piores. De La Vega decidiu virar a página, visto que não havia possibilidade de castigar aqueles foragidos, que deviam estar a meio caminho em direcção ao mar da China, e meteu mãos à obra para reparar a fazenda. No México tinha visto como as pessoas de linhagem viviam e decidira imitá-las, não por jactância, mas sim para que, no futuro, Diego herdasse a mansão e a enchesse de netos, como dizia à guisa de desculpa pelo esbanjamento. Encomendou materiais de construção e mandou procurar artesãos à Baixa Califórnia - ferreiros, ceramistas, cinzeladores, pintores - que em pouco tempo acrescentaram outro andar, longos corredores com arcos, chãos de azulejos, uma varanda na sala de jantar e um coreto no pátio para os músicos, pequenas fontes mouriscas, grades de ferro forjado, portas de madeira lavrada, janelas com vidros pintados.

No jardim principal instalou estátuas, bancos de pedra, gaiolas com pássaros, vasos de flores e uma fonte de mármore coroada por Neptuno e três sereias, que os índios cinzeladores copiaram, exacta, de uma pintura italiana. Quando Bernardo chegou, a mansão já tinha as telhas encarnadas postas, a segunda demão de tinta cor de pêssego nas paredes e começavam a abrir os volumes trazidos do México para a decorar. «Assim que a Regina se curar, vamos inaugurar a casa com um sarau que o povo há-de recordar durante cem anos», anunciou Alejandro de La Vega; mas esse dia tardou a chegar, porque não faltaram à mulher renovados pretextos para adiar a festa.

Bernardo ensinou a Diego a linguagem de signos dos índios, que ambos enriqueceram com sinais de sua invenção, usando-os para se entenderem quando a telepatia ou a música de flauta lhes falhavam. Às vezes, se se tratava de assuntos mais complicados, recorriam a giz e ardósia, mas tinham de o fazer dissimuladamente para isso não ser entendido como presunção da sua parte. Valendo-se do chicote de nove rabos, o professor da escola conseguia ensinar o alfabeto a uns quantos rapazes privilegiados da povoação, mas daí à leitura fluente havia um abismo e, em qualquer caso, nenhum índio era admitido na escola. Diego, muito a contragosto, acabou por se tornar um bom aluno, tendo percebido então, pela primeira vez, a mania do pai com a educação. Começou a ler tudo o que lhe vinha parar às mãos. O Tratado de Esgrima e Prontuário do Duelo, do mestre Manuel Escalante, revelou-se-lhe um compêndio de ideias notavelmente parecidas com o Okahué dos índios, porque também era sobre honra, justiça, respeito, dignidade e coragem. Anteriormente, tinha-se limitado a assimilar as lições de esgrima do pai e a imitar os movimentos desenhados nas páginas do manual, mas quando começou a lê-lo soube que a esgrima não é só habilidade no manejo do florete, da espada e do sabre, mas também uma arte espiritual. Nessa altura, o capitão José Díaz ofereceu a Alejandro de La Vega um caixote de livros, que um passageiro tinha deixado esquecido num navio por altura do Equador. Chegou a casa fechado a martelo, mas ao ser aberto revelou um fabuloso conteúdo de poemas épicos e romances, volumes amarelecidos, muito manuseados, com cheiro a mel e cera. Diego devorou-os com ânsia, apesar de o pai desprezar o romance como género menor, pejado de inconsistências, erros fundamentais e dramas pessoais que não eram da sua incumbência. Aqueles livros foram um vício para Diego e Bernardo; leram-nos tantas vezes que acabaram por memorizá-los. O mundo em que viviam tornou-se acanhado; começaram a sonhar com outros países e aventuras para lá do horizonte.

Aos treze anos, Diego parecia ainda uma criança, mas Bernardo, como muitos rapazes da sua raça, atingiu o tamanho definitivo que teria em adulto. A impavidez do seu rosto acobreado dulcificava-se nos momentos de cumplicidade com Diego, quando acariciava os cavalos e nas numerosas ocasiões em que se escapava para ir visitar Raio na Noite. A rapariga cresceu pouco nesse tempo; era de baixa estatura e magra, com um rosto inesquecível. A sua alegria e beleza deram-lhe notoriedade e quando fez quinze anos era disputada pelos melhores guerreiros de várias tribos. Bernardo vivia aterrorizado, tremendo de que ao visitá-la um dia ela não estivesse, porque tinha partido com outro. A aparência do rapaz enganava; não era demasiado alto nem musculoso, mas tinha uma força inesperada e uma resistência de touro para o trabalho físico. A sua mudez enganava também, não só porque as pessoas pensavam que era pateta, como porque, além disso, parecia triste. Na realidade não o era, mas contavam-se pelos dedos da mão as pessoas com acesso à sua intimidade, que o conheciam a fundo e tinham ouvido o seu riso.

Vestia sempre as calças e a camisa dos neófitos, com uma faixa tecida à cintura, e um poncho de várias cores no Inverno. Uma fita na testa afastava para trás o basto cabelo entrançado, que lhe dava pelo meio das costas. Tinha orgulho na sua raça. Diego, em contrapartida, possuía o aspecto enganoso de um senhorito, apesar dos seus gestos atléticos e da sua tez queimada pelo sol. Da mãe herdara os olhos e a rebeldia; do pai, os ossos largos, as feições cinzeladas, a elegância natural e a curiosidade pelo conhecimento. De ambos obtivera uma impulsiva valentia que, por vezes, raiava a demência; mas ninguém sabia onde fora buscar a ironia zombeteira, que nenhum dos seus antepassados, gente bastante taciturna, alguma vez demonstrara. Ao contrário de Bernardo, que era de uma serenidade pasmosa, Diego não era capaz de passar muito tempo quieto; ocorriam-lhe tantas ideias ao mesmo tempo que não lhe chegava a vida para as pôr em prática. Naquela idade já vencia o pai nos duelos de esgrima e não havia quem o superasse no manejo do chicote. Bernardo tinha-lhe feito um de pele de touro entrançada, que ele trazia sempre num rolo pendurado à cinta. Não perdia ocasião de se exercitar. Com a ponta do chicote era capaz de arrancar uma flor intacta ou apagar uma vela; também conseguia tirar o charuto da boca ao pai sem lhe tocar a cara, mas tal atrevimento nunca lhe passara pela mente. A sua relação com Alejandro de La Vega era de temeroso respeito: tratava-o sempre por Vossa Mercê e nunca questionava a sua autoridade de frente, embora quase sempre arranjasse maneira de fazer nas suas costas o que lhe parecia, mais por ser travesso do que por ser rebelde, visto que admirava cegamente o pai e assimilara as suas severas lições de honra. Tinha orgulho de ser descendente de Cid, o Campeador, fidalgo de pura cepa, mas nunca negava a sua parte indígena, porque também sentia orgulho no passado guerreiro da mãe. Enquanto Alejandro de La Vega, sempre consciente da sua classe social e da pureza do sangue, procurava ocultar a mestiçagem do filho, este aceitava-a de cabeça levantada. A relação de Diego com a mãe era íntima e carinhosa, mas não a conseguia enganar, como fazia de vez em quando com o pai. Regina possuía um terceiro olho na nuca para ver o invisível e uma firmeza de pedra para se fazer obedecer.

O seu cargo de alcaide obrigava Alejandro de La Vega a deslocar-se com frequência à sede da governação em Monterrey. Regina aproveitou uma das suas ausências para levar Diego e Bernardo à aldeia de Coruja Branca, porque considerou que já estavam em idade de se fazerem homens; mas essa, como tantas outras, foi uma coisa que não contou ao marido, para evitar problemas. Com os anos, as diferenças entre ambos tinham-se acentuado; já não bastavam os abraços nocturnos para se reconciliarem. Só a nostalgia do antigo amor os ajudava a permanecerem juntos, apesar de viverem em mundos muito distantes e já pouco terem a dizer um ao outro. Nos primeiros anos, era tão urgente o entusiasmo amoroso de Alejandro que, por mais de uma vez, fizera meia volta numa das suas viagens e galopara várias léguas sozinho para estar mais um par de horas com a mulher. Não se cansava de admirar a sua real beleza, que lhe alvoroçava sempre o espírito e lhe inflamava o desejo, mas, ao mesmo tempo, a sua condição de mestiça envergonhava-o. Por orgulho fingia ignorar que a mesquinha sociedade colonial a rejeitava, todavia, com o tempo, começou a culpá-la por essas desfeitas; a sua mulher nada fazia para se fazer perdoar do seu sangue misturado, era arisca e desafiadora. Regina tinha-se esforçado, ao princípio, por se acomodar aos costumes do marido, ao seu idioma de consoantes ásperas, às suas ideias fixas, à sua obscura religião, às grossas paredes da casa, à roupa apertada e aos botins de pelica, mas a tarefa revelava-se hercúlea e acabou dando-se por vencida. Por amor tentara renunciar às suas origens e converter-se em espanhola; porém, não o conseguira, porque continuava a sonhar na sua própria língua.

Regina não contou a Diego e Bernardo as razões da viagem à aldeia dos índios, pois não quis assustá-los antes de tempo, mas eles adivinharam que se tratava de uma coisa especial e secreta, que não podiam compartilhar com ninguém, muito menos com Alejandro de La Vega.

Coruja Branca esperava-os a meio caminho. A tribo tivera de partir para mais longe, empurrada para as montanhas pelos brancos, que continuavam a açambarcar terra. Os colonos eram cada vez mais numerosos e insaciáveis. O imenso território virgem da Alta Califórnia começava a tornar-se pequeno para tanto gado e tanta ganância. Antigamente, os cerros estavam cobertos de pasto sempre verde e da altura de um homem, havia nascentes e regatos por todo o lado, na Primavera os campos cobriam-se de flores, mas as vacas dos colonos patinharam o solo e os cerros secaram. Coruja Branca vira o futuro nas suas viagens xamânicas: sabia que não haveria maneira de deter os invasores e que, brevemente, o seu povo desapareceria. Aconselhara a tribo a procurar outras pastagens, longe dos brancos, e ela própria dirigira a transferência da sua aldeia para várias léguas mais longe. A avó tinha preparado para Diego e Bernardo um ritual mais completo do que as provas de fanfarronice dos guerreiros. Não lhe pareceu indispensável pendurá-los de uma árvore com ganchos atravessados nos peitorais, porque eram demasiado jovens para isso e, além disso, não precisava de pôr a sua coragem à prova. Propôs-se, em contrapartida, pô-los em contacto com o Grande Espírito, para que este revelasse os seus destinos. Regina despediu-se dos rapazes com a sua habitual sobriedade, indicando que voltaria para os buscar dentro de dezasseis dias, quando tivessem completado as quatro etapas da sua iniciação.

Coruja Branca pôs ao ombro o saco do seu ofício, onde trazia instrumentos musicais, cachimbos, plantas medicinais e relíquias mágicas, e começou a andar a largas passadas de caminhante em direcção aos cerros virgens. Os rapazinhos, levando como única bagagem umas mantas de lã, seguiram-na sem fazer perguntas. Na primeira etapa da viagem andaram quatro dias pelo mato sustentados apenas por uns goles de água, até que a fome e a fadiga lhes provocaram um estado anormal de lucidez. A natureza revelou-se-lhes em toda a sua misteriosa glória; perceberam pela primeira vez a imensa variedade do bosque, o concerto da brisa, a presença próxima dos animais selvagens, que às vezes os acompanhavam por longo trecho. Ao princípio, sofriam com os arranhões e golpes nos ramos, com o cansaço sobrenatural dos ossos, com o vazio insondável no estômago, mas ao quarto dia andavam a flutuar na névoa. Então, a avó decidiu que estavam prontos para a segunda fase do rito e ordenou-lhes que cavassem um buraco de meio corpo de profundidade por um de diâmetro. Enquanto ela fazia uma fogueira para aquecer pedras, os rapazes cortaram e descascaram delgados ramos de árvores e com eles montaram uma cúpula sobre o buraco, que cobriram com as mantas. Nessa residência redonda, símbolo da Mãe-Terra, deveriam purificar-se e realizar a viagem em busca de uma visão, guiados pelos espíritos. Coruja Branca alimentou um fogo sagrado rodeado de pedras, em representação da força criadora da vida. Os três beberam água, comeram um punhado de nozes e frutos secos; a seguir, a avó ordenou-lhes que se despissem e, ao som do seu tambor e da sua matraca, fê-los dançar freneticamente durante horas e horas, até que caíram prostrados. Conduziu-os ao refúgio, onde tinham colocado as pedras aquecidas, e deu-lhes uma beberagem de toloache. Os jovens mergulharam no vapor das pedras húmidas, no fumo dos cachimbos, no cheiro das ervas mágicas e nas imagens que a droga suscitava.

Nos quatro dias subsequentes saíram de vez em quando para respirarem ar fresco, renovarem o fogo sagrado, reaquecerem as pedras e alimentarem-se com uns grãos de cereal. Por momentos adormeciam, suando. Diego sonhava que nadava em águas geladas com os golfinhos e Bernardo sonhava com o riso contagioso de Raio na Noite. A avó guiou-os em orações e cantos, enquanto lá fora os espíritos de todos os tempos rondavam a cova. Durante o dia aproximavam-se veados, lebres, pumas e ursos; de noite uivavam lobos e coiotes. Uma águia planava no céu, vigiando-os incansável, até estarem preparados para a terceira parte do ritual; nessa altura, desapareceu.

A avó entregou uma faca a cada um, permitiu-lhes que levassem as mantas e enviou-os em direcções contrárias, um para leste e o outro para oeste, com instruções de se alimentarem do que conseguissem encontrar ou caçar, menos cogumelos de qualquer espécie, e de regressarem dentro de quatro dias. «Se o Grande Espírito assim determinar», disse ela «encontrarão a vossa visão nesse prazo; caso contrário, não ocorrerá nesta ocasião e terão de deixar passar quatro anos, antes de o tentarem de novo.» No regresso disporiam dos últimos quatro dias para descansarem e se reintegrarem numa vida normal, antes de voltarem à aldeia. Diego e Bernardo tinham-se consumido tanto nas primeiras etapas do rito que, ao verem-se à luz magnífica do alvorecer, não se reconheceram. Estavam desidratados, com os olhos afundados nas órbitas, o olhar ardente de alucinados, a pele cinzenta estirada sobre os ossos e um ar de tal desolação que, apesar da gravidade da despedida, desataram a rir. Abraçaram-se comovidos e partiram cada um para seu lado.

Caminharam sem rumo, sem saber o que procuravam, famintos e assustados, alimentando-se de raízes tenras e sementes, até que a fome os incitou a caçarem ratos e pássaros com arco e flecha, feitos com varas. Quando a escuridão os impedia de continuarem a avançar, faziam uma fogueira e punham-se a dormir, tiritando de frio, rodeados de espíritos e de animais silvestres. Acordavam inteiriçados pela escarcha e doridos até ao último osso, com aquela pasmosa clarividência que costuma vir com a extrema fadiga.

Passadas poucas horas de caminho, Bernardo apercebeu-se de que o seguiam, mas quando se voltava a olhar para trás não via mais que as árvores a vigiarem-no como quietos gigantes. Estava no bosque, abraçado por fetos de folhas brilhantes, rodeado de retorcidos carvalhos e fragrantes abetos, um espaço quieto e verde, iluminado por manchas de luz, que se coavam por entre as folhas. Era um lugar sagrado. Haveria de decorrer grande parte desse dia até que o seu tímido acompanhante se revelasse. Era um potro sem mãe, tão novo que ainda se lhe vergavam as patas, negro como a noite. Apesar da sua delicadeza de recém-nascido e da sua imensa solidão de órfão, podia-se adivinhar o animal soberbo que viria a ser. Bernardo compreendeu que era um animal mágico. Os cavalos andam em manadas, sempre nas pradarias; o que fazia ele sozinho no bosque? Chamou-o com os melhores sons da sua flauta, mas o animal parou a uma certa distância, o olhar desconfiado, as narinas abertas, as patas trémulas, e não se atreveu a aproximar-se. O rapaz apanhou um punhado de pasto húmido, sentou-se em cima de um penedo, meteu-o na boca e começou a mastigá-lo, após o que o ofereceu ao animalzinho na palma da mão. Passou um bom pedaço antes que este se decidisse a dar uns passos vacilantes. Por fim, esticou o pescoço e aproximou-se para farejar aquela massa verde, observando o rapaz com o olhar puro dos seus olhos castanhos, medindo as suas intenções, calculando a sua retirada em caso de apuro. Devia ter gostado do que viu, porque não tardou que o seu focinho aveludado tocasse a mão estendida para provar o estranho alimento. «Não é a mesma coisa que o leite da tua mãe, mas também serve», sussurrou Bernardo. Eram as primeiras palavras que pronunciava desde havia três anos.

Sentiu que cada uma se lhe formava no ventre, subia como uma bola de algodão pela garganta, ficava a dar-lhe voltas na boca um pedaço e depois saía entre os dentes, mastigada, como o pasto para o potro. Houve qualquer coisa que se quebrou dentro do seu peito, uma pesada vasilha de greda, e toda a sua raiva, a sua culpa e os seus juramentos de pavorosa vingança se derramaram numa torrente incontível. Caiu de joelhos em terra, chorando, vomitando um barro verde e amargo, sacudido pela recordação pertinaz daquela manhã fatídica em que perdera a mãe e, com ela, também a infância. Os vómitos viraram-lhe o estômago do avesso e deixaram-no vazio e limpo. O potro retrocedeu, assustado, mas não se foi embora, e quando, por fim, Bernardo se tranquilizou, pôde pôr-se de pé e procurar um charco de água para se lavar, seguiu-o de perto. Desde esse momento nunca mais se separaram durante os três dias seguintes. Bernardo ensinou-o a escarvar com os cascos para encontrar os pastos mais tenros, susteve-o até se lhe afirmarem bem as patas e conseguir começar a trotar, dormiu abraçado a ele de noite para lhe dar calor, entreteve-o com a sua flauta. «Chamar-te-ás Tornado, se é que te agrada o nome, para que corras como o vento», propôs-lhe com a flauta, porque depois daquela única frase tinha voltado a refugiar-se no silêncio. Pensou que o domaria para o oferecer a Diego, pois não lhe ocorreu sorte mais apropriada para aquela nobre criatura, mas, quando acordou ao quarto dia, o potro tinha-se ido embora. O nevoeiro levantara e o sol lambia os cerros com a luz branca do amanhecer. Bernardo procurou em vão Tornado, chamando-o com voz rouca por falta de uso, até que compreendeu que o animal não tinha aparecido ao seu lado para ter dono, mas sim com o propósito de lhe mostrar o caminho a seguir na vida. Nessa altura adivinhou que o seu espírito-guia era o cavalo e que tinha de desenvolver as suas virtudes: lealdade, força e resistência. Decidiu que a sua estrela seria o Sol e o seu elemento as colinas, onde, certamente, Tornado trotava nesse momento para se reunir à sua manada.

Diego tinha menos sentido de orientação do que Bernardo e perdeu-se rapidamente; tinha também menos habilidade para caçar e só conseguiu um rato diminuto que, uma vez esfolado, ficou reduzido a um molho de ossinhos patéticos. Acabou a devorar formigas, vermes e lagartixas. Estava extenuado pela fome, pelas exigências dos dias anteriores e não lhe chegavam as forças para prever os perigos que o espreitavam, mas estava resolvido a não se deixar tentar pelo impulso de retroceder. Coruja Branca tinha-lhe explicado que o propósito daquela longa prova era deixar para trás a infância e converter-se num homem, e ele não pensava deixar a avó ficar mal a meio caminho; não obstante, a vontade de desatar a chorar ia levando a melhor sobre a sua determinação. Não conhecia a solidão. Tinha crescido junto de Bernardo, rodeado de amigos e de gente que o aplaudia; nunca lhe tinha faltado a presença incondicional da mãe. Pela primeira vez, encontrava-se sozinho e logo lhe calhara isso justamente no meio daquela natureza selvagem. Receou não encontrar o caminho de volta ao minúsculo acampamento de Coruja Branca, ocorreu-lhe que podia passar os quatro dias seguintes sentado sob a mesma árvore, mas a sua impaciência natural impeliu-o em frente. Não tardou que se encontrasse perdido na imensidão dos cerros. Deu com uma nascente e aproveitou para beber e tomar banho, após o que se alimentou de frutos desconhecidos, arrancados das árvores. Três corvos, aves veneradas pela tribo da mãe, passaram voando várias vezes muito próximo da sua cabeça: atribuiu-o a um sinal de augúrio favorável e isso deu-lhe ânimo para continuar. Ao cair a noite encontrou uma cova protegida por dois penedos, acendeu lume, embrulhou-se na manta e adormeceu de imediato, rezando para que não lhe faltasse a boa estrela que, segundo Bernardo, o iluminava sempre, porque não teria a menor graça ter chegado tão longe para morrer nas garras de um puma. Acordou de noite cerrada com o refluxo ácido dos frutos que comera e uns uivos próximos de coiotes. Do lume só restavam tímidas brasas, que alimentou com uns paus, calculando que aquela ridícula fogueira não bastaria para manter as feras à distância. Lembrou-se de que nos dias anteriores tinha visto várias espécies de animais, que os rondavam sem os atacarem, e elevou uma prece para que não o fizessem agora, quando se achava sozinho. Nesse momento, viu claramente à luz das chamas uns olhos coloridos a observá-lo com uma fixidez espectral. Empunhou a faca, julgando que fosse um lobo atrevido, mas ao pôr-se de pé viu melhor, apercebendo-se de que se tratava de uma raposa. Pareceu-lhe curioso que não se mexesse; parecia um gato a aquecer-se ao rescaldo da fogueira. Chamou-a, mas o animal não se aproximou e, quando ele o quis fazer, retrocedeu com cautela, mantendo sempre a mesma distância entre ambos. Diego vigiou o fogo durante um bocado, até que o cansaço o venceu e voltou a adormecer, apesar dos insistentes uivos dos coiotes longínquos. De vez em quando acordava de súbito, sem saber onde se encontrava, e via a estranha raposa no mesmo sítio, como um espírito vigilante. A noite pareceu-lhe eterna, até que, por fim, as primeiras luzes do amanhecer revelaram o perfil das montanhas. A raposa já ali não estava.

Nos dias subsequentes, nada sucedeu que Diego pudesse interpretar como uma visão, salvo a presença da raposa, que chegava com o cair da noite e ficava com ele até de madrugada, sempre quieta e atenta. Ao terceiro dia, aborrecido e a desfalecer de fome, tentou encontrar o caminho de regresso, mas não foi capaz de se orientar. Decidiu que seria impossível dar com Coruja Branca, mas, se descesse os cerros, mais tarde ou mais cedo chegaria ao mar e ali encontraria o Camino Real. Pôs-se em marcha, pensando na frustração da avó e da mãe quando soubessem que o descomunal esforço desses dias não lhe proporcionara uma visão reveladora do seu destino, mas apenas desalento, e perguntou a si próprio se Bernardo teria tido mais sorte que ele. Não conseguiu chegar longe, porque, ao passar por cima de um tronco caído, poisou o pé sobre uma serpente. Sofreu uma mordedura no calcanhar; haveria de decorrer um par de segundos antes de ouvir o chocalhar inconfundível da cascavel e se aperceber bem do sucedido. Não lhe restou dúvida: a bicha tinha o pescoço fino, a cabeça triangular e as pálpebras franzidas. O espanto atingiu-o no estômago como o inesquecível pontapé do pirata. Retrocedeu vários passos, afastando-se da cobra, ao mesmo tempo que fazia uma recapitulação dos seus vagos conhecimentos sobre a cascavel. Sabia que o veneno nem sempre é mortal, que depende da quantidade injectada, mas ele estava debilitado e encontrava-se tão longe de qualquer tipo de ajuda, que a morte parecia muito provável, se não do veneno, de inanição. Tinha visto um vaqueiro despachado para o outro mundo por um daqueles répteis; o homem estendera-se num palheiro a dormir a sua bebedeira e não acordara mais. Segundo o padre Mendoza, Deus levara-o para o Seu santo seio, onde não voltaria a bater na mulher, por meio da perfeita combinação de peçonha e álcool. Lembrou-se também dos tratamentos caseiros para aqueles casos: cortar-se a fundo com uma faca ou queimar-se com uma brasa acesa. Viu que a perna se lhe punha roxa, sentiu que se lhe ensalivava a boca, tinha formigueiros nas mãos, era sacudido por calafrios. Compreendeu que começava a desvairar de pânico e devia tomar rapidamente uma resolução, antes que se lhe acabassem de enevoar os pensamentos: se se movesse, a peçonha da víbora circular-lhe-ia mais depressa pelo corpo e, se não o fizesse, morreria ali mesmo. Preferiu seguir em frente, apesar de se lhe vergarem os joelhos e lhe terem inchado tanto as pálpebras que não conseguia ver. Começou a trotar pelo cerro abaixo, chamando pela avó com voz de sonâmbulo, enquanto as últimas forças se lhe consumiam irremissivelmente.

Diego caiu de borco. Com um esforço lento e longo conseguiu virar-se e ficar de barriga para o ar, sob o sol refulgente da manhã. Ofegava, atormentado por uma sede súbita, e suava cal viva, enquanto, ao mesmo tempo, tiritava com o gelo da sepultura. Maldisse o Deus cristão por o abandonar, e o Grande Espírito que, em vez de o premiar com uma visão, como fora o contrato, zombava dele com aquela patifaria indigna. Perdeu o contacto com a realidade e perdeu também o medo. Começou a flutuar num quente vendaval, como se prodigiosas correntes o elevassem em espiral em direcção à luz. Sentiu-se subitamente alvoroçado ante a possibilidade da morte e abandonou-se com uma imensa paz. O torvelinho ardente em que flutuava ia atingindo o céu, quando os ventos se inverteram, lançando-o como um penhasco no fundo de um abismo. Antes de mergulhar num total desvario, viu num relâmpago de consciência os olhinhos coloridos da raposa, a olhá-lo da morte.

Nas horas subsequentes, Diego chapinhou no alcatrão dos seus pesadelos; quando, por fim, conseguiu soltar-se e vir à superfície, só se lembrava da sede infinita e dos olhos imóveis da raposa. Encontrou-se embrulhado numa manta, iluminado pelas chamas de uma fogueira e acompanhado por Bernardo e Coruja Branca. Tardou um pedaço a voltar ao corpo, fazer um inventário das suas dores e chegar a uma conclusão.

- A cascavel matou-me - disse, mal conseguiu encontrar a voz.

- Não estás morto, filho, mas pouco faltou - sorriu Coruja Branca.

- Não passei a prova, avó - disse o rapaz.

- Passaste-a, sim, Diego - informou-o ela.

Bernardo tinha-o encontrado e levado até ali. O rapaz índio estava pronto para regressar para junto de Coruja Branca, quando lhe aparecera uma raposa. Não duvidou de que se tratava de um sinal, porque lhe pareceu insólito que aquele animal de hábitos nocturnos se lhe atravessasse entre as pernas em plena luz do Sol. Em vez de obedecer ao instinto de lhe dar caça, deteve -se a observá-lo. Em lugar de fugir, a raposa instalou-se a poucas varas de distância a olhá-lo, por sua vez, com as orelhas alerta e o focinho trémulo. Noutra circunstância, Bernardo ter-se-ia limitado a tomar nota do estranho comportamento do animal, mas encontrava-se num estado de alucinação, com os sentidos em sobressalto e o coração aberto aos presságios. Sem vacilar, começou a segui-la por onde a raposa o quis levar, até que, um pedaço mais tarde, tropeçou com o corpo inerte de Diego. Viu a perna do irmão monstruosamente inchada e soube de imediato o que acontecera. Não podia perder nem um instante; pô-lo ao ombro como um fardo e empreendeu marcha forçada até ao sítio onde estava Coruja Branca, que aplicou as suas ervas na perna do neto e o fez suar o veneno até ele abrir os olhos.

- Foi a raposa que te salvou. É o teu animal totémico, o teu guia espiritual - explicou-lhe. - Tens de cultivar a sua habilidade, a sua astúcia, a sua inteligência. A tua mãe é a Lua e a tua casa são as grutas. Como a raposa, caber-te-á descobrir o que se oculta na escuridão, dissimular, esconderes-te de dia e agir de noite.

- Para quê? - perguntou Diego, confundido.

- Um dia o saberás, não se pode apressar o Grande Espírito. Entretanto, prepara-te para estares pronto quando esse dia chegar- instruiu-o a índia.

Por prudência, os rapazes mantiveram em segredo o rito conduzido por Coruja Branca.

A colónia espanhola considerava as tradições dos índios como disparatados actos de ignorância, quando não de selvajaria. Diego não queria que chegassem comentários aos ouvidos do pai. Confessou a Regina a estranha experiência com a raposa, sem lhe dar pormenores. A Bernardo ninguém fez perguntas, porque a mudez o tinha tornado invisível, condição insuspeitamente vantajosa. As pessoas falavam e agiam diante dele como se não existisse, dando-lhe oportunidade de observar e aprender sobre a duplicidade da condição humana. Começou a praticar a habilidade de ler a expressão corporal e assim descobriu que nem sempre as palavras correspondem às intenções. Concluiu que os ferrabrases se revelavam, regra geral, fáceis de vergar, que os veementes eram os menos sinceros, que a arrogância era própria dos ignorantes, que os aduladores costumavam ser ruins. Por meio da observação sistemática e dissimulada aprendeu a decifrar o carácter alheio e aplicou esses conhecimentos para proteger Diego, que era de natureza confiante, porque lhe custava muito imaginar noutros os defeitos que ele não tinha. Os rapazes não voltaram a ver o potro negro nem a raposa. Bernardo julgou vislumbrar uma ou outra vez Tornado a galopar no meio de uma manada selvagem e, num dos seus passeios, Diego encontrou uma cova com raposinhos recém-nascidos; mas não puderam relacionar nada disso com as visões atribuídas ao Grande Espírito.

Em qualquer caso, o rito de Coruja Branca marcou uma etapa. Ambos tiveram a impressão de ter cruzado um umbral e deixado a infância para trás. Não se sentiam ainda homens, mas sabiam que estavam a dar os primeiros passos no árduo caminho da virilidade. Acordaram juntos para as exigências peremptórias do desejo carnal, muito mais intoleráveis do que a doce e vaga atracção que Bernardo sentia desde os dez anos por Raio na Noite. Não lhes ocorreu satisfazerem as suas ânsias entre as complacentes índias da tribo de Coruja Branca, onde não imperavam as restrições impostas pelos missionários às neófitas, porque Diego era contido por um respeito absoluto pela avó, e Bernardo era refreado pelo seu amor de cachorro por Raio na Noite. Bernardo não aspirava a ser correspondido; apercebia-se de que ela era uma mulher feita, cortejada por meia dúzia de homens que vinham de longe para lhe trazerem presentes, ao passo que ele era um adolescente desajeitado, sem nada para oferecer e, ainda por cima, mudo como um pato. Nenhum dos dois foi tão-pouco às mestiças ou à mulata formosa da casa de pândega de Los Angeles, porque lhes tinham mais terror que a um touro solto; eram criaturas de outra espécie, com as bocas pintadas de batom e uma penetrante fragrância de jasmins mortos. Como todos os outros miúdos da sua idade - menos Carlos Alcázar, que se gabava de ter passado a prova - olhavam aquelas mulheres de longe, com veneração e espanto. Diego ia com outros filhos de fidalgos à Plaza de Armas à hora do passeio. Em cada volta ao redor da praça cruzavam-se com as mesmas raparigas da sua classe social e idade, que mal sorriam, olhando de soslaio, meia cara oculta por um leque ou uma mantilha, enquanto eles suavam um amor impossível nos seus fatos domingueiros. Não se falavam, mas alguns, os mais atrevidos, pediam licença ao alcaide para irem fazer serenatas debaixo das varandas das meninas, ideia que estremecia Diego de vergonha, em parte porque o alcaide era o seu pai. Não obstante, punha a hipótese de se ver obrigado a recorrer a esse método no futuro, razão pela qual praticava diariamente canções românticas no seu bandolim.

Alejandro de La Vega viu com enorme satisfação que aquele filho, que achava um doidivanas incorrigível, se estivesse finalmente a converter no herdeiro com que sonhava desde que o vira nascer. Renovou os planos de o educar como um cavalheiro, que haviam sido adiados no torvelinho de reconstruir a fazenda. Pensou em metê-lo num colégio religioso no México, visto que a situação na Europa continuava a ser instável, mas Regina armou tal alvoroço diante da ideia de se separar de Diego que não se voltou a falar no assunto durante dois anos. Entretanto, Alejandro incluiu o filho na gestão da fazenda e viu que era muito mais esperto do que as suas notas na escola permitiam supor. Não só decifrou à primeira vista o enxame de anotações e números dos livros de contabilidade, como aumentou os rendimentos da família aperfeiçoando a fórmula do sabão e da receita para fumar carne, que o pai tinha conseguido após inumeráveis defumaduras. Diego suprimiu a soda cáustica do sabão, juntou-lhe nata de leite e sugeriu dá-lo a experimentar às damas da colónia, que adquiriam esses artigos aos marinheiros americanos, violando as restrições impostas por Espanha ao comércio das colónias. Que fosse contrabando não importava: toda a gente fazia vista grossa; o inconveniente consistia em que os navios se faziam esperar demasiado. Os sabonetes de leite revelaram-se um êxito e o mesmo sucedeu com a carne fumada, quando Diego conseguiu atenuar a fetidez a suor de mula que a caracterizava. Alejandro de La Vega começou a tratar o filho com respeito e a consultá-lo em certas matérias.

Por essa altura, Bernardo contou a Diego, na sua língua privada de signos e anotações na ardósia, que um dos rancheiros, Juan Alcázar, pai de Carlos, estendera as suas terras para além dos limites assinalados nos papéis. O espanhol invadira com o seu gado os montes onde se refugiava uma das muitas tribos deslocadas pelos colonos. Diego acompanhou o irmão e chegaram a tempo de ver os capatazes queimarem as palhotas, secundados por um destacamento de soldados. Da povoação não restou senão cinza. Apesar do terror que a cena lhes provocava, Diego e Bernardo precipitaram-se a correr para intervirem. Sem se combinarem, num só impulso, colocaram-se entre os cavalos dos agressores e os corpos das vítimas. Teriam sido pisados sem misericórdia se um deles não reconhecesse o filho de Dom Alejandro de La Vega. De qualquer modo, afastaram-nos à chicotada.

A uma certa distância, os rapazes presenciaram, espantados, como os poucos índios que se rebelaram foram domados com chicotadas, e o chefe, um ancião, foi enforcado numa árvore, para servir de advertência aos outros. Sequestraram os homens capazes de trabalhar nos campos ou de servir no exército e levaram-nos amarrados como animais. Os anciãos, as mulheres e crianças ficaram condenados a vaguear pelos bosques, famintos e desesperados. Nada disto era novidade; acontecia com frequência cada vez maior, sem que ninguém se atrevesse a intervir, excepto o padre Mendoza, mas os seus protestos caíam nas orelhas moucas da lenta e remota burocracia de Espanha. Os documentos navegavam durante anos, perdiam-se nas poeirentas secretárias de juizes que nunca tinham posto os pés na América, enredavam-se em subterfúgios de leguleios e, no fim, embora os magistrados decidissem a favor dos indígenas, não havia quem fizesse valer a justiça deste lado do oceano. Em Monterrey, o governador ignorava as reclamações porque os índios não eram a sua prioridade. Os oficiais encarregados dos presídios eram parte do problema, porque punham os seus soldados ao serviço dos colonos brancos. Não duvidavam da superioridade moral dos Espanhóis que, como eles, tinham chegado de muito longe com o propósito de civilizar e cristianizar aquela terra selvagem. Diego foi falar com o pai. Encontrou-o, como sempre estava de tarde, a estudar batalhas antigas nos seus calhamaços, único resquício ainda vigente das ambições militares da sua juventude. Sobre uma comprida mesa dispunha os seus exércitos de soldados de chumbo de acordo com as descrições dos textos, paixão que nunca conseguiu inculcar em Diego. O rapaz contou às golfadas o que acabava de viver com Bernardo, mas a sua indignação esbarrou contra a indiferença de Alejandro de La Vega.

- Que propondes que eu faça, filho?

- Vossa Mercê é o alcaide...

- A distribuição de terras não é da minha jurisdição, Diego, e careço de autoridade para controlar os soldados.

- Mas o senhor Alcázar matou e sequestrou índios! Vossa Mercê perdoe a minha insistência, mas como pode permitir estes abusos? - balbuciou Diego, sufocado.

- Falarei com Dom Juan Alcázar, mas duvido que me escute - tornou Alejandro, movendo uma linha dos seus soldadinhos sobre o tabuleiro.

Alejandro de La Vega cumpriu a sua promessa. Fez mais do que falar com o rancheiro: foi queixar-se ao quartel, escreveu um relatório ao governador e enviou uma denúncia a Espanha. Manteve o filho informado de cada diligência, porque o fazia só por ele. Conhecia de sobra o sistema de classes para albergar alguma esperança de reparar o mal. Pressionado por Diego, tentou ajudar as vítimas, convertidas em miseráveis vagabundos, oferecendo-lhes protecção na sua própria fazenda. Tal como supunha, as suas diligências junto das autoridades de pouco serviram. Juan Alcázar anexou as terras dos índios às suas, a tribo desapareceu sem deixar rasto e não se voltou a falar do assunto. Diego de La Vega nunca esqueceu a lição; o mau sabor da injustiça ficou-lhe para sempre no mais recôndito da memória e voltaria a emergir uma e outra vez, determinando o curso da sua vida.

A comemoração dos quinze anos de Diego originou a primeira festa na grande casa da fazenda. Regina, que sempre se tinha oposto a abrir as suas portas, decidiu que aquela era a ocasião perfeita para tapar a boca à gentinha que, durante tantos anos, se comprazera em desprezá-la. Não só aceitou que o marido convidasse quem lhe desse na veneta, como ela própria se encarregou de organizar os festejos. Pela primeira vez na vida, visitou os navios do contrabando para se munir do necessário e pôs uma dezena de mulheres a coser e a bordar. Diego não deixou passar que era também o aniversário de Bernardo, mas Alejandro de La Vega fez-lhe ver que, apesar de o rapazinho ser como um membro da família, não se podia ofender os convidados sentando-os à mesa com ele. Por uma vez, Bernardo teria de ocupar o seu lugar entre os índios da criadagem, determinou. Não houve necessidade de discutir mais, porque Bernardo solucionou o assunto sem apelo, escrevendo na sua ardósia que pensava visitar a aldeia de Coruja Branca. Diego não tentou fazê-lo mudar de opinião, porque sabia que o irmão queria ver Raio na Noite, e tão-pouco podia esticar demasiado a corda com o pai, que tinha aceite que Bernardo fosse com ele para Espanha. Os planos de mandar Diego para o colégio no México haviam-se alterado com a chegada de uma carta de Tomás de Romeu, o mais velho amigo de Alejandro de La Vega. Na juventude tinham feito juntos a guerra em Itália e durante mais de vinte anos mantiveram-se em contacto com esporádicas cartas. Enquanto Alejandro cumpria o seu destino na América, Tomás casara-se com uma herdeira catalã e dedicara-se à boa vida, até que ela morrera ao dar à luz, não lhe restando então outra alternativa senão assentar e cuidar das duas filhas e do que restava da fortuna da mulher. Na sua carta, Tomás de Romeu comentava que Barcelona continuava a ser a cidade mais interessante de Espanha e que aquele país oferecia a melhor educação para um jovem. Viviam-se tempos fascinantes. Em 1808, Napoleão tinha invadido Espanha com cento e cinquenta mil homens, raptara o legítimo rei e induzira-o a abdicar a favor do seu próprio irmão, José Bonaparte, tudo isto parecendo um inconcebível atropelo a Alejandro de La Vega, até receber a carta do amigo. Tomás explicava que só o patriotismo de uma populaça ignorante, atiçada pelo baixo clero e por uns quantos fanáticos, podia opor-se às ideias liberais dos Franceses, que pretendiam acabar com o feudalismo e a opressão religiosa.

A influência dos Franceses, dizia, era como um vento fresco de renovação, que varria instituições medievais, como a Inquisição e os privilégios de nobres e militares. Na carta, Tomás de Romeu oferecia-se para hospedar Diego na sua casa, onde seria tratado e querido como um filho, para que pudesse completar a sua educação no Colégio de Humanidades, que, apesar de ser religioso - e ele não era amigo de sotainas -, tinha excelente reputação. Acrescentava, como chave de ouro, que o jovem poderia estudar com o famoso mestre de esgrima Manuel Escalante, que se radicara em Barcelona, depois de percorrer a Europa ensinando a sua arte. Bastou isto a Diego para suplicar ao pai com tal tenacidade que lhe permitisse fazer a viagem, que no fim Alejandro cedeu mais por cansaço do que por convicção, já que nenhum argumento do seu amigo Tomás podia atenuar a repugnância de saber a sua pátria invadida por estrangeiros. Pai e filho guardaram-se bem de contar a Regina que, além disso, Espanha estava assolada por guerrilhas, cruenta fórmula de luta inventada pelo povo para combater as tropas de Napoleão, a qual, conquanto não servisse para recuperar territórios, picava como vespas o inimigo, esgotando-lhe os recursos e a paciência.

O sarau de aniversário iniciou-se com uma missa do padre Mendoza, corridas de cavalos e uma tourada, na qual o próprio Diego fez vários passes de capa, antes de o matador profissional entrar na arena; prosseguiu com um espectáculo de acrobatas itinerantes e culminou com fogo-de-artifício e baile. Houve comida durante três dias para quinhentas pessoas, separadas por classes sociais: os espanhóis de pura cepa nas mesas principais com toalhas bordadas em Tenerife, debaixo de uma latada carregada de uvas, a gente de razão com as suas melhores galas nas mesas laterais à sombra, a indiada à torreira do sol nos pátios, onde se assava a carne, se tostavam as tortilhas e ferviam as panelas de chili e mole. Os convidados acorreram dos quatro pontos cardeais e pela primeira vez na história da província houve congestão de carruagens no Camino Real. Não faltou nem uma só menina de família respeitável, pois todas as mães tinham em mira o único herdeiro de Alejandro de La Vega, apesar do seu quarto de sangue índio. Entre elas contava-se Lolita Pulido, sobrinha de Dom Juan Alcázar, uma criatura de catorze anos, suave e coquete, muito diferente do primo Carlos Alcázar, que estava apaixonado por ela desde a infância. Apesar de Alejandro de La Vega detestar Juan Alcázar desde o incidente com os índios, teve de convidá-lo com toda a sua família, porque era um dos homens notáveis da povoação. Diego não cumprimentou o rancheiro nem o seu filho Carlos, mas foi atencioso com Lolita, pois considerou que a menina não tinha culpa dos pecados do tio. Além disso, havia um ano que ela lhe enviava recados de amor pela ama, a que ele não respondera por timidez e porque preferia manter-se o mais longe possível de qualquer membro da família Alcázar, mesmo que fosse uma sobrinha. As mães das donzelas casadoiras apanharam um balde de água fria ao verificarem que Diego não estava, nem remotamente, pronto para pensar em namoradas; era muito mais criança do que os seus quinze anos faziam supor. Na idade em que outros filhos de senhores cultivavam o bigode e faziam serenatas, Diego ainda não fazia a barba e perdia a voz diante de uma rapariga. O governador veio de Monterrey, trazendo consigo o conde Orloff, parente da czarina da Rússia e encarregado dos territórios do Alasca. Media quase dois metros de altura, tinha os olhos de um azul impossível e apresentou-se ataviado com o vistoso uniforme dos hussardos, todo de escarlate, com jaqueta afestoada de pele branca pendurada ao ombro, o peito atravessado de cordões dourados e bicórnio emplumado. Era, sem dúvida, o homem mais bonito que jamais se vira por aqueles lados. Orloff ouvira falar em Moscovo de um par de ursos brancos, que Diego de La Vega apanhara vivos e vestira com roupas de mulher, quando tinha apenas oito anos de idade. Não pareceu oportuno a Diego corrigir-lhe o engano, mas Alejandro, com a sua desnecessária ânsia da exactidão, apressou-se a explicar que não eram dois ursos, mas sim um e de cor escura, pois não havia outros na Califórnia; que Diego não o tinha caçado sozinho, mas sim com dois amigos; que lhe tinham colado um chapéu com pez, e que nessa época o rapaz tinha dez anos e não oito, como rezava a lenda. Carlos e a sua seita, por essa altura convertidos em ferrabrases notáveis, passaram quase despercebidos no aglomerado de convidados, mas não assim Garcia, que bebeu vários copos a mais e chorava publicamente de desconsolo pela partida próxima de Diego. Nesses anos, o filho do taberneiro tinha acumulado mais gordura que um búfalo, mas era ainda o mesmo menino assustado de antigamente, continuando a sentir por Diego o mesmo deslumbramento. A presença do esplêndido nobre russo e o esbanjamento do ágape calaram temporariamente as más-línguas da colónia. Regina teve o prazer de ver as mesmas enfatuadas pessoas, que antigamente a desdenhavam, inclinarem-se para lhe beijarem a mão. Alejandro de La Vega, completamente alheio a tais mesquinhezes, passeava-se entre os hóspedes ufano da sua posição social, da sua fazenda, do seu filho e, por uma vez, orgulhoso também da mulher, que se apresentou na festa trajada de duquesa, com um vestido de veludo azul e uma mantilha de renda de Bruxelas. Bernardo tinha galopado dois dias montanha acima até à aldeia da sua tribo para se despedir de Raio na Noite. Ela estava à sua espera, porque o correio dos índios difundira a notícia da sua viagem com Diego de La Vega. Pegou-lhe pela mão e levou-o ao rio para lhe perguntar o que havia para além do mar e quando pensava voltar. O rapaz fez-lhe um grosseiro desenho no chão com um pauzinho, mas não foi capaz de a fazer compreender as imensas distâncias que separavam a sua aldeia da Espanha mítica, porque ele próprio não conseguia imaginá-las.

O padre Mendoza mostrara-lhe um mapa-múndi, mas aquela bola pintada não lhe conseguia dar uma ideia da realidade. Quanto ao regresso, explicou-lhe por sinais que não sabia ao certo, mas seriam muitos anos.

- Nesse caso, quero que leves uma coisa minha de recordação - disse Raio na Noite.

Com os olhos brilhantes e um olhar de milenar sabedoria, a rapariga despojou-se dos colares de sementes e plumas, da faixa vermelha da cintura, das suas botas de coelho, da sua túnica de pele de cabrito, e ficou nua à luz dourada que se filtrava em pontinhos por entre as folhas das árvores. Bernardo sentiu que o sangue se lhe convertia em melaço, que sufocava de assombro e agradecimento, que a alma se lhe escapava em suspiros. Não sabia o que fazer diante daquela criatura extraordinária, tão diferente dele, tão bonita, que se lhe oferecia como o mais extraordinário presente. Raio na Noite tomou-lhe uma mão e pô-la sobre um dos seios, tomou-lhe a outra e pô-la na cintura, após o que ergueu os braços e começou a desfazer a trança dos cabelos, que lhe caíram como uma cascata de penas de corvo sobre os ombros. Bernardo soltou um soluço e murmurou o seu nome, Raio na Noite, a primeira palavra que ela lhe ouvia. A jovem recolheu com um beijo o som do seu nome e continuou a beijar Bernardo e a banhar-lhe o rosto de lágrimas antecipadas, porque antes de ele partir já estava a sentir saudades dele. Horas mais tarde, quando Bernardo acordou da felicidade absoluta em que o amor o mergulhara e conseguiu voltar a pensar, atreveu-se a sugerir a Raio na Noite o impensável: que ficassem juntos para sempre. Ela respondeu-lhe com uma gargalhada alegre e fez-lhe ver que ainda era um garoto; talvez a viagem o ajudasse a fazer-se um homem.

Bernardo passou várias semanas com a tribo dela; nesse tempo sucederam acontecimentos essenciais na sua vida, mas não quis contar-mos. O pouco que sei sobre este assunto foi-me dito por Raio na Noite.

Embora possa imaginar o resto sem problemas, não o farei, por respeito pelo temperamento reservado de Bernardo. Não quero ofendê-lo. Regressou à fazenda a tempo de ajudar Diego a arrumar as suas coisas para a travessia nos mesmos baús enviados por Eulália de Callís muitos anos antes. Mal Bernardo lhe apareceu à frente, Diego soube que algo fundamental tinha mudado na vida do seu irmão de leite, mas quando o quis averiguar deparou-se com um olhar de pedra que o atalhou de chofre. Adivinhou então que o segredo estava relacionado com Raio na Noite e não fez mais perguntas. Pela primeira vez nas suas vidas havia uma coisa que não podiam compartilhar.

Alejandro de La Vega tinha encomendado no México um enxoval de príncipe para o filho, que completou com as pistolas de duelo com incrustações de nácar e a capa preta forrada de seda com botões de prata toledana, presentes de Eulália. Diego acrescentou o seu bandolim, instrumento muito útil para o caso de superar a sua timidez diante das mulheres, o florete que fora do pai, o seu chicote de pele de touro e o livro do mestre Manuel Escalante. Por contraste, a bagagem de Bernardo consistia na roupa que levava no corpo, um par de mudas sobressalentes, uma negra manta de Castela e botas adequadas para os seus pés largos, obséquio do padre Mendoza, que considerou que em Espanha não devia andar descalço.

No dia anterior à partida dos jovens apareceu Coruja Branca para se despedir. Negou-se a entrar na casa, porque sabia que Alejandro de La Vega se envergonhava de tê-la por sogra e preferiu não fazer passar um mau bocado a Regina. Reuniu-se com os dois rapazes no pátio, longe de ouvidos alheios, e entregou-lhes os presentes que trouxera para eles. A Diego deu um frasco impressionante de xarope de dormideira, com a advertência de que só podia usá-lo para salvar vidas humanas. Pela sua expressão, Diego compreendeu que a avó sabia que ele tinha roubado a poção mágica cinco anos antes e, rubro de vergonha, assegurou-lhe que podia estar descansada: tinha aprendido a lição, cuidaria da beberagem como um tesouro e não voltaria a roubar. Para Bernardo, a índia trouxera um saquinho de couro que continha uma trança de cabelo preto. Raio na Noite tinha-lho enviado com um recado: que partisse em paz e se fizesse homem sem pressa, porque ainda passariam muitas luas; no seu regresso estaria à espera dele com o amor intacto. Comovido até à medula, Bernardo perguntou por gestos à avó como era possível que a jovem mais bela do universo o amasse precisamente a ele, que era um piolho, e ela respondeu-lhe que não sabia, as mulheres eram estranhas a esse ponto. Depois acrescentou, com uma piscadela de olho travessa, que qualquer mulher sucumbiria diante de um homem que só fala para ela. Bernardo pôs o saquinho ao pescoço por baixo da camisa, perto do coração.

Os esposos De La Vega, com os seus criados, e o padre Mendoza, com os seus neófitos, foram despedir-se dos rapazes à praia. Veio buscá-los um bote para os levar à goleta Santa Maria, de três mastros, sob o comando do comandante José Díaz, que tinha prometido conduzi-los sãos e salvos ao Panamá, primeira parte da longa viagem até à Europa. A última coisa que Diego e Bernardo viram antes de embarcarem no navio foi a figura altiva de Coruja Branca, com o seu manto de pele de coelho e o cabelo indómito ao vento, a dizer-lhes adeus com a mão num promontório de rochedos, perto das grutas sagradas dos índios.

 

Barcelona, 1810-1812

Abalanço-me a continuar com passo ligeiro, visto que lestes até aqui. O que vem é mais importante do que aquilo que antecede. A meninice de uma personagem não é fácil de contar, mas tinha de o fazer para vos dar uma ideia exacta do Zorro. A infância é uma época desgraçada, cheia de temores infundados, como o medo de monstros imaginários e do ridículo. Do ponto de vista literário, não tem suspense, já que, salvo excepções, as crianças costumam ser um pouco desenxabidas. Além disso, não têm poder - os adultos decidem por elas e fazem-no mal, inculcam-lhes as suas próprias ideias erróneas sobre a realidade e depois os miúdos passam o resto das suas vidas a tentar livrarem-se delas. Não foi, contudo, o caso de Diego de La Vega, o nosso Zorro, porque desde cedo fez mais ou menos o que lhe dava na veneta. Teve a sorte de as pessoas em seu redor, preocupadas com as suas paixões e assuntos, descurarem a sua vigilância. Chegou aos quinze anos sem grandes vícios e virtudes, excepto uma desproporcionada ânsia de justiça, que não sei se pertence à primeira ou à segunda categoria; digamos que é simplesmente um traço inseparável do seu carácter. Poderia acrescentar que outro traço é a vaidade, mas seria antecipar-me muito: isso desenvolveu-se mais tarde, quando se apercebeu de que aumentavam os seus inimigos, o que é sempre bom sinal, e os seus admiradores, sobretudo do sexo feminino. Agora é um homem jeitoso - pelo menos assim me parece -, mas aos quinze anos, quando chegou a Barcelona, era ainda um rapazote de orelhas salientes, que até não tinha acabado de mudar de voz. O problema das orelhas foi a razão pela qual lhe ocorreu a ideia de usar uma máscara, que desempenha a dupla função de ocultar tanto a sua identidade como aqueles apêndices de fauno. Se Moncada os tivesse visto ao Zorro, teria deduzido de imediato que o seu detestado rival era Diego de La Vega.

E agora, se mo permitis, prosseguirei com a minha narração que nesta altura se torna interessante, pelo menos para mim, porque foi nesta época que conheci o nosso herói.

O navio mercante Santa Lucía - a que os marinheiros chamavam Adelita por afecto e porque estavam fartos de embarcações com nomes de santas - fez o trajecto entre Los Angeles e a cidade do Panamá numa semana. Havia dez anos que o comandante José Díaz percorria a costa americana do Pacífico e nesse tempo tinha acumulado uma pequena fortuna, com a qual pensava arranjar uma esposa trinta anos mais nova do que ele e retirar-se para a sua aldeia em Múrcia dentro de um prazo breve. Alejandro de La Vega confiou-lhe o seu filho Diego com algum receio, porque o considerava homem de moral flexível; dizia-se que tinha feito o seu dinheiro com contrabando e tráfico de mulheres de reputação alegre. A panamenha fenomenal, cujo descontraído gozo pela vida iluminava as noites dos cavalheiros em Los Angeles, tinha chegado a bordo do Santa Lucía; mas não valia a pena ser comichoso, decidiu Alejandro: Diego estava melhor nas mãos de uma pessoa conhecida, por ruim que fosse, do que navegando sozinho através do mundo. Diego e Bernardo seriam os únicos passageiros a bordo e julgava que o comandante cuidaria zelosamente deles. Conduziam a goleta doze afeitos tripulantes, divididos em dois turnos, chamados bombordo e estibordo para os diferenciar, embora neste caso os nomes nada significassem. Enquanto uma equipa trabalhava o seu turno de quatro horas, a outra descansava e jogava às cartas. Uma vez que Diego e Bernardo conseguiram controlar o enjoo e se acostumaram ao balanço da navegação, puderam integrar-se na vida normal de bordo. Fizeram-se amigos dos marinheiros, que os tratavam com afecto protector, e repartiram o tempo nas mesmas actividades que eles. O comandante passava a maior parte do dia fechado no seu camarote a retouçar com uma mestiça e nem se apercebia de que os jovens a seu cargo saltavam como macacos nos mastros, com risco de partirem a cabeça.

Diego revelou-se tão hábil para fazer acrobacias nos cabos pendurado por uma mão ou por uma perna, como para as cartas. Tinha sorte ao jogo e um talento espantoso para fazer batota. Com uma cara da maior inocência esfolou aqueles experientes jogadores que, se tivessem apostado moedas, teriam ficado desconsolados, mas só usavam grãos-de-bico ou conchas. O dinheiro era proibido a bordo, para evitar que os tripulantes se massacrassem uns aos outros por causa de dívidas de jogo. Para Bernardo revelou-se uma faceta até então desconhecida do seu irmão de leite.

- Não passaremos fome na Europa, Bernardo, porque há-de haver sempre a quem ganhar ao jogo e, nessa altura, será com dobrões de ouro e não com grãos-de-bico, que me dizes? Não olhes para mim assim, homem, por Deus, quem visse diria que sou um criminoso. O teu mal é seres tão santinho. Não vês que, por fim, somos livres? Já cá não está o padre Mendoza para nos mandar para o inferno - riu-se Diego, acostumado como estava a falar com Bernardo e a responder a si próprio. Por altura de Acapulco, os marinheiros começaram a suspeitar que Diego os enganava e ameaçaram lançá-lo à água, nas costas do comandante, mas as baleias distraíram-nos.

Chegaram às dúzias, colossais criaturas que sussurravam de amor em coro e agitavam o mar com as suas apaixonadas rabanadas. Surgiam de repente à superfície e rodeavam o Santa Lucía tão de perto que se podiam contar os pedregosos e amarelados crustáceos agarrados ao lombo. A pele, escura e cheia de crostas, tinha impressa a história completa de cada um daqueles gigantes e a dos seus antepassados de séculos e séculos. De repente havia alguma que se erguia no ar, dava uma volta de saca-rolhas e caía com graciosidade. Os seus jorros salpicavam o barco com uma fina e fresca chuva. No esforço de fazer o quite às baleias e na excitação do porto de Acapulco, os marinheiros perdoaram a Diego, mas advertiram-no de que tivesse cuidado, porque é mais fácil morrer por ser batoteiro do que na guerra. Além disso, Bernardo não o deixava em paz com os seus escrúpulos telepáticos e teve de lhe prometer que não utilizaria aquela nova destreza para se tornar rico à custa da ruína de outros, como estava a projectar.

O mais útil da travessia de barco, à parte conduzi-los aonde iam, foi a liberdade que os rapazes tiveram para se exercitarem em proezas atléticas que só os marinheiros curtidos e os fenómenos de feira podem cometer. Na infância, penduravam-se no beiral da casa de cabeça para baixo, pendurados pelos pés, desporto que Regina e Ana procuraram inutilmente desencorajar à vassourada. No navio não havia quem lhes proibisse correr riscos, por isso aproveitaram para desenvolver a habilidade que tinham latente desde muito pequenos e que tanto haveria de servir-lhes neste mundo. Aprenderam a fazer cabriolas de trapezista, a trepar pelo cordame como aranhas, a baloiçar-se a vinte e quatro metros de altura, a descer do galope do mastro abraçados aos cabos, e a deslizar ao longo de um cabo folgado para contender com as velas. Ninguém lhes prestava atenção e ninguém queria realmente saber se partiam o crânio numa queda. Os marinheiros deram-lhes algumas lições muito importantes.

Ensinaram-nos a fazer diversos nós, a cantar para multiplicar a força em qualquer tarefa, a bater nas bolachas para soltar os bichos do gorgulho, a nunca assobiar no mar alto, porque altera o vento, a dormir aos bocadinhos, como os recém-nascidos, e a beber rum com pólvora para provar a virilidade. Nenhum dos dois passou esta última prova: Diego por pouco não se ficou de náuseas e Bernardo chorou toda a noite, porque lhe apareceu a mãe. O imediato, um escocês de nome McFerrin, muito mais experimentado em matérias de navegação que o comandante, deu-lhes o conselho mais importante: uma mão para navegar, a outra para ti. A todo o momento, inclusivamente em águas calmas, deviam andar bem agarrados. Bernardo esqueceu-o por um instante, quando assomava à popa para ver se os tubarões os seguiam. Não se viam em parte nenhuma, mas tinham a intuição de aparecer assim que o cozinheiro atirava os desperdícios pela borda. Estava nisso, distraído a observar a superfície do oceano, quando um balanço inesperado o atirou à água. Era muito bom nadador e para sua sorte alguém o viu cair e deu o alarme, senão ali ficava, porque nem sequer nessas circunstâncias conseguiu arranjar voz para gritar. Isto causou um incidente desagradável. O comandante José Díaz considerou que não valia a pena parar e mandar um bote buscá-lo, com as consequentes maçadas e perda de tempo. Se fosse o filho de Alejandro de La Vega, talvez não tivesse hesitado tanto, mas tratava-se apenas de um índio mudo e, na sua opinião, também pateta. Devia sê-lo para ir pela borda fora, argumentou. Enquanto o comandante vacilava, pressionado por McFerrin e pelo resto da tripulação, para quem resgatar o infeliz que cai ao mar é um princípio inalienável da navegação, Diego lançou-se atrás do irmão. Fechou os olhos e saltou sem pensar demasiado porque, vista de cima, a altura parecia enorme. Tão-pouco esquecia os tubarões que, embora não estivessem ali naquele momento, nunca andavam demasiado longe. O choque com a água deixou-o atordoado por uns segundos, mas Bernardo alcançou-o com umas quantas braçadas e susteve-o com o nariz acima da superfície. Em vista de que o seu passageiro principal corria o risco de acabar devorado, se não se decidisse rapidamente, José Díaz autorizou o salvamento. O escocês e outros três homens já tinham arriado o bote quando apareceram os primeiros tubarões, que começavam uma alegre dança em círculos à roda dos náufragos. Diego gritava até se esganiçar e engolia água, enquanto Bernardo agarrava calmamente o amigo com um braço e nadava com o outro. McFerrin disparou um tiro de pistola sobre o esqualo mais próximo e a água tingiu-se imediatamente de uma ondulante pincelada cor de óxido. Aquilo serviu de distracção aos restantes animais, que se atiraram ao ferido com claras intenções de o servir para o almoço, e deu tempo aos marinheiros de socorrer os rapazes. Um coro de aplausos e apupos da tripulação celebrou a manobra.

Entre arriar o bote, localizar os náufragos, dar pancadas com os remos nos tubarões mais audazes e regressar a bordo, perdeu-se um bom bocado. O comandante considerou um insulto pessoal que Diego se tivesse atirado à água, forçando-lhe a mão, e, como represália, proibiu-o de subir aos mastros, mas já era tarde, porque se encontravam em frente do Panamá, onde devia deixar os passageiros. Os jovens despediram-se com pesar da tripulação do Santa Lucía e desembarcaram com a sua bagagem, bem armados com as pistolas de duelo, a espada e o chicote de Diego, tão mortífero como um canhão, além da faca de Bernardo, arma de muitos usos, desde limpar as unhas e fatiar o pão até caçar presas maiores. Alejandro de La Vega tinha-os advertido de que não confiassem em ninguém. Os nativos tinham fama de ladrões; por conseguinte, deviam revezar-se para dormir, sem perder de vista os baús em nenhum momento.

Diego e Bernardo acharam a cidade do Panamá magnífica, porque qualquer coisa comparada com a povoaçãozinha de Los Angeles certamente o era. Por ali passavam, desde havia três séculos, as riquezas da América rumo às arcas reais de Espanha. Do Panamá eram transportados em recuas de mulas através das montanhas e depois em botes pelo rio Chagres até ao mar das Caraíbas. A importância daquele porto, assim como a de Portobelo, na costa atlântica do istmo, tinha diminuído na mesma medida em que o ouro e a prata das colónias escassearam. Também se podia chegar do oceano Pacífico ao Atlântico dando a volta ao continente pelo extremo sul, no cabo Horn, mas bastava dar uma olhadela ao mapa para perceber que era um trajecto eterno. Tal como explicara o padre Mendoza aos rapazes, o cabo Horn fica onde acaba o mundo de Deus e começa o mundo dos espectros. Atravessando a estreita cintura do istmo do Panamá, uma viagem que requer apenas um par de dias, poupam-se meses de navegação, razão pela qual o imperador Carlos I(*) sonhava, já em 1534, abrir um canal para ligar os dois oceanos, ideia descabelada, como tantas que ocorrem a certos monarcas. O maior inconveniente do lugar eram os miasmas, ou emanações gasosas, que se soltavam da vegetação podre da selva e dos lodaçais dos rios, dando origem a horripilantes pragas. Um número aterrador de viajantes morria fulminado pela febre-amarela, pela cólera e pela disenteria. Tão-pouco faltava quem enlouquecesse, segundo diziam, mas suponho que se tratava de gente imaginativa, pouco apta para andar solta nos trópicos. Nas epidemias morriam tantos que os coveiros não tapavam as valas comuns onde se empilhavam os cadáveres, porque sabiam que chegariam mais nas próximas horas. Para proteger Diego e Bernardo desses perigos, o padre Mendoza entregou a um e outro uma medalha de São Cristóvão, patrono de viajantes e navegantes. Estes talismãs deram milagrosos resultados e ambos sobreviveram.

 

* Provavelmente trata-se de Carlos V. (N. do D.)

 

Ainda bem, porque de outro modo não teríamos esta história. O calor da fogueira impedia-os de respirar e tinham de matar os mosquitos à sapatada, mas, de resto, passaram muito bem. Diego estava encantado naquela cidade, onde ninguém os vigiava e havia tantas tentações para escolher. Só a beatice de Bernardo o impediu de acabar numa casa de tavolagem ou nos braços de uma mulher de boa vontade e má reputação, onde talvez tivesse perecido de uma punhalada ou de exóticas doenças. Bernardo não pregou olho nessa noite, não tanto para se defender dos bandidos, como para olhar por Diego.

Os irmãos de leite jantaram numa casa de pasto do porto e pernoitaram no dormitório comum de uma hospedaria, onde os viajantes se acomodavam como podiam em enxergões no chão. Mediante pagamento a dobrar, conseguiram macas e mosquiteiros emporcalhados, ficando assim mais ou menos a salvo de ratos e baratas. No dia seguinte atravessaram as montanhas para se dirigirem a Cruces por uma boa estrada empedrada, da largura de duas mulas, a que, com a sua característica falta de inventiva para os nomes, os Espanhóis chamavam Camino Real. Nas alturas, o ar era menos denso e húmido que nas terras baixas e a vista que se estendia aos seus pés era um verdadeiro paraíso. No verde absoluto da selva brilhavam, como prodigiosas pinceladas, aves de plumagem adornada e borboletas multicores. Os nativos revelaram-se pessoas extremamente decentes e, em vez de se aproveitarem da inocência dos jovens viajantes, como correspondia à sua má fama, ofereceram-lhes peixe com banana frita e nessa noite hospedaram-nos numa palhota infestada de bichos, mas onde, pelo menos, estavam protegidos das chuvas torrenciais. Aconselharam-nos a evitar as tarântulas e certos sapos verdes, que cospem para os olhos e deixam as pessoas cegas, assim como uma variedade de noz que queima o esmalte dos dentes e produz cãibras mortais no estômago.

Em alguns trechos, o rio Chagres parecia um pântano espesso, mas noutros era de águas límpidas. Percorria-se em canoas ou em botes chatos, com capacidade para oito ou dez passageiros com a respectiva bagagem. Diego e Bernardo tiveram de aguardar um dia inteiro, até se juntarem pessoas suficientes para encher uma embarcação. Quiseram dar um mergulho no rio para se refrescarem - o calor pesado aturdia as cobras e silenciava os macacos - mas, mal introduziram um pé na água, acordaram os caimões, que dormitavam sob a superfície, mimetizados com o lodo. Os garotos retrocederam à pressa, no meio das gargalhadas dos nativos. Não se atreveram a beber a água esverdeada com peixes-cabeçudos que os seus amáveis anfitriões lhes ofereciam, e aguentaram a sede, até que outros viajantes, rudes comerciantes e aventureiros, compartilharam com eles as suas garrafas de vinho e cerveja. Aceitaram tão ansiosos e beberam com tanto prazer que depois nenhum dos dois foi capaz de recordar essa parte da travessia, salvo a peculiar forma de navegar dos nativos. Seis homens, munidos de compridas varas, iam de pé em cima de duas plataformas de ambos os lados da embarcação. Começando pela popa, enterravam as pontas das varas no leito do rio e caminhavam o mais depressa que podiam até à proa, empurrando com todo o corpo, e assim avançavam, mesmo contra a corrente. Devido ao calor, iam nus. O percurso demorou mais ou menos dezoito horas, que Diego e Bernardo fizeram num estado de alucinação etílica, esparramados debaixo do toldo que os protegia do sol de lava ardente sobre as suas cabeças. Ao chegar ao destino, os outros viajantes, entre cotoveladas e risos, desembarcaram-nos do bote aos empurrões. Assim perderam, nas onze léguas de caminho entre a desembocadura do rio e a cidade de Portobelo, um dos baús com grande parte do enxoval de príncipe adquirido por Alejandro de La Vega para o filho. Foi um acontecimento bastante afortunado, porque ainda não tinha chegado à Califórnia a última moda no vestir. Os fatos de Diego eram francamente para rir.

Portobelo, fundada em 1500 no golfo de Darién, era uma cidade fundamental, porque ali embarcavam os tesouros para Espanha e chegava a mercadoria europeia à América. Na opinião dos antigos comandantes, não existia nas índias um porto mais capaz e seguro. Contava com vários fortes para a defesa, além de inexpugnáveis recifes. Os Espanhóis construíram as fortalezas com corais extraídos do fundo do mar, maleáveis quando estavam húmidos, mas tão resistentes ao secarem que as balas dos canhões mal lhes faziam mossa. Uma vez por ano, quando chegava a frota do tesouro, organizava-se uma feira de quarenta dias e, então, a população aumentava com milhares e milhares de visitantes. Diego e Bernardo tinham ouvido dizer que na Casa Real do Tesouro os lingotes de ouro se empilhavam como lenha, porém tiveram uma desilusão, porque nos dois últimos anos a cidade decaíra, em parte pelos ataques dos piratas, mas mais ainda devido ao facto de as colónias já não serem tão rentáveis para Espanha como antigamente haviam sido. As moradias de madeira e pedra estavam desbotadas pela chuva, os edifícios públicos e adegas invadidos de ervas daninhas, as fortalezas languesciam numa sesta eterna. Apesar disso, havia vários barcos no porto e um enxame de escravos a carregar metais preciosos, algodão, tabaco, cacau, e a descarregar fardos para as colónias. Entre as embarcações distinguia-se o Madre de Dios, na qual Diego e Bernardo atravessariam o Atlântico.

Esse navio, construído cinquenta anos atrás, mas ainda em excelente estado, tinha três mastros e velas quadradas. Era maior, mais lento e mais pesado que a goleta Santa Lucía e prestava-se melhor para viagens através do oceano. Coroava-o uma espectacular figura de proa em forma de sereia. Os marinheiros acreditavam que os seios nus acalmavam o mar e os daquela esfinge eram opulentos.

O comandante, Santiago de León, demonstrou ser um homem de personalidade singular. Era de baixa estatura, enxuto, com as feições cortadas à faca num rosto curtido por muitos mares. Coxeava, devido a uma desgraçada operação para lhe tirar uma bala da perna esquerda, que o cirurgião não conseguira extrair, mas, na tentativa, deixara-o inutilizado e dorido para o resto dos seus dias. O homem não era atreito a queixar-se, cerrava os dentes, medicava-se com láudano e procurava distrair-se com a sua colecção de fantasiosos mapas. Neles figuravam lugares que tenazes viajantes procuraram durante séculos sem êxito, como El Dorado, a cidade de ouro puro; a Atlântida, o continente submerso cujos habitantes são humanos, mas têm escamas, como os peixes; as ilhas misteriosas de Luquebaralideaux, no mar Selvagem, povoadas por enormes salsichas de aguçados dentes, mas sem ossos, que circulam em manadas e se alimentam da mostarda que flui nos regatos e, segundo se julga, pode curar mesmo as piores feridas. O comandante entretinha-se a copiar os mapas e a acrescentar sítios de sua própria invenção, com pormenorizadas explicações, após o que os vendia a preço de ouro aos antiquários de Londres. Não pretendia enganar; assinava-os sempre pelo seu próprio punho e acrescentava uma hermética frase, que qualquer entendido conhecia: Obra numerada da Enciclopédia de Desejos, versão integral.

Na sexta-feira, a carga estava a bordo, mas o Madre de Dios não largou porque Cristo morrera numa sexta-feira. É um mau dia para iniciar a navegação. No sábado, os quarenta homens da tripulação negaram-se a partir, porque passara por eles no molhe um sujeito de cabelo ruivo e um pelicano caíra morto sobre a ponte do barco, dois péssimos augúrios. Por fim, no domingo, Santiago de León conseguiu que a sua gente desfraldasse as velas. Os únicos passageiros eram Diego, Bernardo, um auditor, que regressava do México à pátria, e a sua filha de trinta anos, feia e lamurienta. A rapariga apaixonou-se por cada um dos rudes marinheiros, mas estes fugiam dela como do demónio, porque toda a gente sabe que as mulheres honestas a bordo atraem o mau tempo e outras calamidades. Deduziram que era honesta por falta de oportunidades de pecar, mais do que por virtude natural. O auditor e a filha dispunham de um camarote diminuto, mas Diego e Bernardo, como a tripulação, dormiam em macas suspensas na malcheirosa coberta inferior. O camarote do comandante, na popa, servia de escritório, gabinete de comando, casa de jantar e sala de recreio para oficiais e passageiros. A porta e os móveis dobravam-se conforme necessário, como a maior parte das coisas a bordo, onde o espaço constituía o maior luxo. Durante várias semanas no mar alto os rapazes nunca dispuseram de um momento de privacidade; até as funções mais elementares eram levadas a cabo à vista dos outros num balde, se havia ondulação, ou, em caso contrário, sentados numa tábua com um buraco directamente sobre o mar. Ninguém soube como se arranjou a pudica filha do auditor, porque nunca a viram despejar um bacio. Os marinheiros trocavam apostas a esse respeito, primeiro mortos de riso e depois assustados, porque uma obstipação tão perseverante parecia coisa de bruxaria. À parte o movimento constante e a promiscuidade, o mais notável era o barulho. As madeiras rangiam, os metais chocavam, os tonéis rolavam, os cabos gemiam e a água fustigava o navio. Para Diego e Bernardo, habituados à solidão, ao espaço e ao silêncio imensos da Califórnia, a adaptação à vida de navegantes não foi fácil.

Diego resolveu sentar-se em cima dos ombros da figura de proa, lugar perfeito para perscrutar a linha infinita do horizonte, salpicar-se de água salgada e saudar os golfinhos. Abraçava-se à cabeça da donzela de madeira e apoiava os pés nos seus mamilos. Dadas as condições atléticas do rapaz, o comandante limitou-se a exigir-lhe que se segurasse com um cabo à cintura, porque, se caísse dali, o navio passar-lhe-ia por cima; mas, mais tarde, quando o surpreendeu encarrapitado na ponta do mastro grande, a mais de trinta metros de altura, não lhe disse nada. Decidiu que, se estava destinado a morrer cedo, ele não o poderia impedir. Havia sempre actividade no navio, que não parava de noite, mas o grosso do trabalho realizava-se de dia. Marcava-se o primeiro turno com badaladas ao meio-dia, quando o Sol estava no zénite e o comandante fazia a primeira medição para se localizar. A essa hora, o cozinheiro distribuía uma pinta de limonada por homem, para prevenir o escorbuto, e o oficial imediato repartia o rum e o tabaco, únicos vícios permitidos a bordo, onde apostar dinheiro, lutar, apaixonar-se e inclusivamente blasfemar era proibido. Ao crepúsculo náutico, essa hora misteriosa do entardecer e da alva em que as estrelas titilam no firmamento, mas a linha do horizonte ainda é visível, o comandante fazia novas medições com o sextante, consultava os seus cronómetros e o almanaque de efemérides celestes, que indica onde se encontram os astros em cada momento. Para Diego esta operação geométrica revelou-se fascinante, porque todas as estrelas lhe pareciam iguais e para onde quer que olhasse via apenas o mesmo mar de aço e o mesmo céu branco, mas depressa aprendeu a observar com olhos de navegante. O comandante também vivia suspenso do barómetro, porque as mudanças de pressão no ar lhe anunciavam as tempestades e os dias em que a perna lhe doeria mais.

Nos primeiros dias dispuseram de leite, carne e vegetais, mas antes de decorrida uma semana tiveram de limitar-se a legumes, arroz, frutos secos e a eterna bolacha dura como mármore e carregada de bicho. Também tinham carne salgada, que o cozinheiro demolhava um par de dias em água com vinagre antes de a deitar na panela, para lhe tirar a consistência de sela de cavalo. Diego pensou que o pai podia fazer um estupendo negócio com a sua carne fumada, mas Bernardo fez-lhe ver que levá-la em quantidade suficiente para Portobelo era um sonho. À mesa do comandante, para a qual Diego, o auditor e a filha estavam sempre convidados, mas não Bernardo, servia-se, além disso, língua de vaca de escabeche, azeitonas, queijo manchego e vinho. O comandante pôs à disposição dos passageiros o seu tabuleiro de xadrez e as suas cartas de jogar, assim como um pacote de livros, que só interessaram a Diego, entre os quais encontrou um par de ensaios sobre a independência das colónias. Diego admirava o exemplo dos Norte-Americanos, que se tinham libertado do jugo inglês, mas não lhe ocorrera que as aspirações de liberdade das colónias espanholas na América eram também louváveis, até ler as publicações do comandante.

Santiago de León revelou-se um interlocutor tão interessante que Diego sacrificou horas de alegres acrobacias no cordame para conversar com ele e estudar os seus mapas fantásticos. O comandante, um solitário, descobriu o prazer de compartilhar os seus conhecimentos com uma mente jovem e inquisitiva. Era um leitor incansável; trazia consigo caixotes de livros, que trocava por outros em cada porto. Dera várias vezes a volta ao mundo, conhecia terras tão estranhas como as descritas nos seus fabulosos mapas e tinha estado tantas vezes a ponto de morrer que perdera o medo à vida. O mais revelador para Diego, acostumado a verdades absolutas, foi que aquele homem de mentalidade renascentista duvidava de quase tudo o que constituía o fundamento intelectual e moral de Alejandro de La Vega, do padre Mendoza e do seu professor na escola. Às vezes, surgiam perguntas a Diego sobre os rígidos esquemas martelados no seu cérebro desde o nascimento, mas nunca ousara desafiá-los em voz alta. Quando as regras o incomodavam demasiado, esquivava-se dissimuladamente a elas, nunca se revelava abertamente. Com Santiago de León atreveu-se a falar de assuntos que nunca teria abordado com o pai. Descobriu, maravilhado, que havia um sem-fim de maneiras diversas de pensar.

De León fez-lhe ver que não eram só os Espanhóis que se diziam superiores ao resto da humanidade, todos os povos sofriam da mesma miragem; que na guerra os Espanhóis cometiam exactamente as mesmas atrocidades que os Franceses ou qualquer outro exército: violavam, roubavam, torturavam, assassinavam; que cristãos, mouros e judeus sustentavam por igual que o seu Deus era o único verdadeiro e desprezavam as outras religiões. O comandante era partidário da abolição da monarquia e da independência das colónias, dois conceitos revolucionários para Diego, que fora formado na crença de que o rei era sagrado, e a obrigação natural de todo o espanhol era conquistar e cristianizar outras terras. Santiago de León defendia exaltadamente os princípios de igualdade, liberdade e fraternidade da Revolução Francesa, apesar de não aceitar que os Franceses tivessem invadido Espanha. Nesse assunto deu mostras de um feroz patriotismo: preferia ver a sua pátria mergulhada no obscurantismo da Idade Média, disse, a ver o triunfo das ideias modernas, se fossem impostas por estrangeiros. Não perdoava a Napoleão que tivesse obrigado o rei de Espanha a abdicar e colocado no seu lugar o irmão, José Bonaparte, que o povo tinha apodado de Pepe Botellas.(1)

- Toda a tirania é abominável, meu jovem - concluiu o comandante. - Napoleão é um tirano. De que serviu a revolução se o rei foi substituído por um imperador? Os países devem ser governados por um conselho de homens ilustrados, responsáveis pelas suas acções perante o povo.

- A autoridade dos reis é de origem divina, comandante - alegou debilmente Diego, repetindo as palavras do pai, sem perceber bem o que dizia.

- Quem o assegura? Que eu saiba, jovem De La Vega, Deus não se pronunciou a esse respeito.

 

*1. Zé-Garrafas. (N. do T.)

 

- Segundo as Sagradas Escrituras...

- Leste-las? - interrompeu-o, enfático, Santiago de León. - Em nenhum sítio as Sagradas Escrituras dizem que os Bourbons hão-de reinar em Espanha ou Napoleão em França. Aliás, as Sagradas Escrituras nada têm de sagradas, foram escritas por homens e não por Deus.

Era de noite e passeavam na ponte. O mar estava calmo e entre os eternos rangidos do navio ouvia-se com alucinante nitidez a flauta de Bernardo, procurando Raio na Noite e a mãe nas estrelas.

- Credes que Deus existe? - perguntou-lhe o comandante.

- Com certeza, comandante!

Santiago de León apontou com um gesto amplo o escuro firmamento salpicado de constelações.

- Se Deus existe, não se interessa certamente por designar os reis de cada astro celestial... - disse.

Diego de La Vega soltou uma exclamação de espanto. Duvidar de Deus era a última coisa que lhe passaria pela cabeça, mil vezes mais grave do que duvidar do mandato divino da monarquia. Por muito menos do que isso a temida Inquisição tinha queimado gente em infames fogueiras, o que não parecia preocupar nem um pouco o comandante.

Cansado de ganhar grãos-de-bico e conchinhas às cartas aos marinheiros, Diego resolveu assustá-los com histórias horripilantes, inspiradas nos livros do comandante e nos mapas fantásticos, que enriqueceu lançando mão da sua inesgotável imaginação, onde figuravam polvos gigantescos, capazes de despedaçar com os seus tentáculos um navio tão grande como o Madre de Dios, salamandras carnívoras do tamanho de baleias e sereias que, de longe, pareciam sensuais donzelas, mas na realidade eram monstros com línguas em forma de cobra. Nunca ninguém se devia aproximar delas, advertiu-os, porque estendiam os seus braços delicados, abraçavam os incautos, beijavam-nos e então as suas línguas mortíferas introduziam-se pela garganta da desventurada vítima e devoravam-na por dentro, deixando apenas o esqueleto coberto de pele.

- Já vistes aquelas luzes que às vezes brilham sobre o mar, aquelas a que chamam fogos-fátuos! Sabeis, certamente, que anunciam a presença dos mortos-vivos. São marinheiros cristãos que naufragaram em assaltos de piratas turcos. Não conseguiram obter a absolvição dos seus pecados e as suas almas não encontram o caminho para o Purgatório. Estão presos com os restos dos seus navios no fundo do mar sem saberem que já estão mortos. Em noites como esta, essas almas penadas sobem à superfície. Se por desgraça um barco se encontra por ali, os mortos-vivos trepam a bordo e roubam o que encontram, a âncora, o leme, os instrumentos do comandante, os cabos e até os mastros. Isso não é o pior, amigos: é que também precisam de marinheiros. Arrastam aquele que conseguem agarrar até às profundezas do oceano para que os ajude a resgatar os seus barcos e navegar até praias cristãs. Se aparecerem silenciosas figuras negras, podeis estar seguros de que são os mortos-vivos. Reconhecê-los-eis pelas capas que usam para disfarçar o chocalhar dos seus pobres ossos.

Verificou, encantado, que a sua eloquência produzia pavor colectivo. Contava as suas histórias de noite, depois do jantar, à hora a que as pessoas saboreavam a sua pinta de rum e mastigavam o seu tabaco, porque na penumbra se lhe tornava muito mais fácil eriçar-lhes os cabelos de espanto. Depois de preparar o terreno durante vários dias de arrepiantes narrações, aprestou-se a dar o golpe de misericórdia. Completamente vestido de preto, com luvas e a capa de botões toledanos, efectuava aparições súbitas nos recantos mais escuros. Com essa indumentária tornava-se quase invisível de noite, excepto pela cara, mas Bernardo teve a ideia de a cobrir com um lenço também preto, no qual abriu dois buracos para os olhos. Vários marinheiros viram pelo menos um morto-vivo. Correu a notícia num instante de que o barco estava enfeitiçado e culparam a filha do auditor, que devia estar endemoninhada, visto que não usava o bacio. Só ela podia ser responsável por ter atraído os espectros. O rumor chegou à nervosa solteirona e provocou-lhe uma enxaqueca tão brutal que o comandante teve de a aturdir durante dois dias com doses generosas de láudano. Ao tomar conhecimento do sucedido, Santiago de León reuniu os marinheiros na ponte e ameaçou suprimir-lhes o álcool e o tabaco, a todos por igual, se continuassem a propagar patetices. Os fogos-fátuos, disse, eram um fenómeno natural provocado por gases emanados pela decomposição de algas, e as aparições que julgavam ver eram apenas produto da sugestão. Ninguém o acreditou, mas o comandante impôs a ordem. Uma vez restaurada uma aparência de calma entre a sua gente, conduziu Diego por um braço até ao seu camarote e a sós advertiu-o de que, se qualquer morto-vivo voltasse a rondar o Madre de Dios, não teria escrúpulos em aplicar-lhe umas chicotadas.

- Tenho direito de vida e de morte no meu navio, e, por maioria de razão, de vos marcar as costas para sempre. Estamos entendidos, jovem De La Vega? - disse-lhe entre dentes, acentuando cada palavra.

Era claro como o meio-dia, mas Diego não respondeu, porque se distraiu a observar um medalhão de ouro e prata gravado com estranhos símbolos, pendurado ao pescoço do comandante. Ao perceber que Diego o tinha visto, Santiago de León apressou-se a escondê-lo e a abotoar a casaca. Foi tão brusca a sua acção que o rapaz não se atreveu a perguntar-lhe o significado da jóia. Depois de desabafar, o comandante amansou.

- Se tivermos sorte com os ventos e não depararmos com piratas, esta viagem durará seis semanas. Tereis ocasião de sobra para vos aborrecerdes, jovem. Sugiro-vos que, em vez de assustar a minha gente com traquinices infantis, vos dediqueis a estudar. A vida é curta, falta sempre tempo para aprender.

Diego calculou que tinha lido quase tudo o que havia de interessante a bordo e já dominava o sextante, os nós de marinheiro e as velas, mas assentiu sem vacilar, porque tinha outra ciência em mente. Dirigiu-se ao sufocante porão do navio, onde o cozinheiro estava a preparar a sobremesa dos domingos, um pudim de melaço e nozes, que a tripulação aguardava todas as semanas com ansiedade. Era um genovês embarcado na marinha mercante espanhola para escapar à prisão, onde em justiça devia estar por ter matado a mulher à machadada. Tinha um nome inadequado para um navegante: Galileo Tempesta. Antes de se converter no cozinheiro do Madre de Dios, Tempesta fora mágico e ganhava a vida percorrendo mercados e feiras com os seus truques de ilusionismo. Possuía um rosto expressivo, olhos dominadores e mãos de virtuoso, com dedos como tentáculos. Era capaz de fazer desaparecer uma moeda com tal destreza que, a um palmo de distância, era impossível descobrir como diabo o fazia. Aproveitava os momentos de trégua nos seus labores da cozinha para se exercitar; quando não estava a manusear moedas, cartas de jogar e adagas, cosia compartimentos secretos em chapéus, botas, forros e punhos de casacos, para esconder lenços multicores e coelhos vivos.

- O comandante mandou-me cá, senhor Tempesta, para que me ensineis tudo o que sabeis - anunciou-lhe Diego à queima-roupa.

- Não sei lá muito de cozinha, jovem.

- Refiro-me é à magia...

- Isto não se aprende a falar, aprende-se fazendo - redarguiu Galileo Tempesta.

Durante o resto da viagem dedicou-se a ensinar-lhe os seus truques, pela mesma razão que o comandante lhe contava as suas viagens e lhe mostrava os seus mapas: porque aqueles homens nunca tinham desfrutado de tanta atenção como a que Diego lhes oferecia. No final da travessia, quarenta e um dias mais tarde, Diego era capaz, entre outras proezas inusitadas, de engolir um dobrão de ouro e extraí-lo intacto por uma das suas notáveis orelhas.

O Madre de Dios deixou a cidade de Portobelo e, aproveitando as correntes do golfo, meteu para norte, bordejando a costa. Por altura das Bermudas, atravessou o Atlântico e, umas semanas mais tarde, deteve-se nas ilhas dos Açores para se abastecer de água e alimentos frescos. O arquipélago de nove ilhas vulcânicas, pertencentes a Portugal, era passagem obrigatória de baleeiros de diversas nacionalidades. Aportaram à ilha das Flores, apropriadamente chamada, pois estava coberta de hortênsias e rosas, justamente num feriado nacional. A tripulação fartou-se de vinho e da robusta sopa típica do local, após o que se divertiu um bocado em rixas ao murro com baleeiros americanos e noruegueses e, para completar um fim-de-semana perfeito, saiu em massa a participar na pândega generalizada dos touros. A população masculina da ilha, mais os marinheiros visitantes, lançou-se à frente dos touros pelas empinadas ruas da povoação, gritando as obscenidades que o comandante Santiago de León proibia a bordo. As bonitas mulheres da localidade, adornadas com flores no cabelo e nos decotes, animavam a prudente distância, enquanto o padre e um par de freiras preparavam ligaduras e sacramentos para cuidar dos feridos e moribundos. Diego sabia que qualquer touro é sempre mais rápido que o mais veloz ser humano, mas, como investe cego de raiva, é possível enganá-lo. Tinha visto tantos na sua curta vida, que não o temia demasiado. Graças a isso, salvou por uma unha negra Galileo Tempesta, quando um par de cornos se dispunham a trespassá-lo pelo traseiro. O rapazinho correu a bater na fera com uma vara para a obrigar a mudar de rumo, enquanto o mágico se atirava de cabeça para uma moita de hortênsias, entre aplausos e gargalhadas da assistência. Depois, calhou a vez a Diego de fugir como um gamo, com o touro nos calcanhares. Embora tivesse havido número suficiente de magoados e contusos, ninguém morreu colhido nesse ano. Era a primeira vez na história que isso sucedia, e a gente dos Açores não soube se era bom augúrio ou sinal de fatalidade. Isso estava para se ver. Em qualquer caso, os touros converteram Diego em herói. Galileo Tempesta, agradecido, ofereceu-lhe uma adaga marroquina munida de uma mola disfarçada, que permitia recolher a lâmina dentro do cabo.

O navio continuou a sua travessia por mais umas semanas, impelido pelo vento, costeou Espanha, passando frente a Cádis sem parar, e aproou ao estreito de Gibraltar, porta de acesso ao mar Mediterrâneo, controlado pelos Ingleses, aliados de Espanha e inimigos de Napoleão. Seguiu sem sobressaltos de maior ao longo da costa, sem tocar nenhum porto, e chegou por fim a Barcelona, onde terminava a viagem de Diego e Bernardo. O antigo porto catalão apresentou-se aos seus olhos como um bosque de mastros e velames. Havia embarcações das mais variadas procedências, formas e tamanhos. Se os jovens tinham ficado impressionados com a povoaçãozinha do Panamá, imagine-se a impressão que Barcelona lhes causou. O perfil da cidade recortava-se soberbo e maciço contra um céu de chumbo, com as suas muralhas, campanários e torreões. Da água parecia uma cidade magnífica, mas nessa noite o céu fechou-se e o aspecto de Barcelona mudou. Não conseguiram desembarcar até à manhã seguinte, quando Santiago de León arriou os botes para transportar a impaciente tripulação e os seus passageiros.

Centenas de chalupas circulavam entre os barcos, num mar oleoso e milhares de gaivotas que enchiam o ar com os seus grasnidos.

Diego e Bernardo despediram-se do comandante, de Galileo Tempesta e dos restantes homens de bordo, que se empurravam para ocupar os botes, pressurosos como estavam de gastar o seu vencimento em álcool e mulheres, enquanto o auditor sustinha nos seus braços de ancião a filha, desmaiada por causa da hediondez do ar. Não era caso para menos. Ao chegarem, esperava-os um porto bonito e bem vivido, mas insalubre, coberto de lixo, por onde pululavam ratazanas do tamanho de cães entre as pernas de uma apressada multidão. Pelas valetas abertas corria a água de despejos, onde chapinhavam crianças descalças, e das janelas dos andares altos atiravam à rua o conteúdo dos bacios ao grito de água-vai! Os transeuntes tinham de se afastar para não ficarem ensopados de urina. Barcelona, com cento e cinquenta mil habitantes, era uma das cidades mais densamente povoadas do mundo. Encerrada por grossas muralhas, vigiada pelo sinistro forte da Cidadela e presa entre o mar e as montanhas, não tinha para onde crescer, a não ser em altura. Acrescentavam-se sótãos às casas e subdividiam-se os compartimentos em quartinhos acanhados, onde os inquilinos se amontoavam sem ventilação nem água limpa. Andavam nos molhes estrangeiros em diversas indumentárias, que se insultavam uns aos outros em línguas incompreensíveis, marinheiros de barrete frígio na cabeça e papagaio ao ombro, estivadores reumáticos devido à faina de carregar fardos, grosseiros comerciantes apregoando carne salgada e biscoitos, mendigos infestados de piolhos e pústulas, farroupilhas com navalhas prontas e olhos desesperados. Não faltavam prostitutas de baixo estofo, enquanto as mais presunçosas se passeavam em carruagens, competindo em esplendor com damas distintas. Os soldados franceses andavam em grupos, empurrando os passantes com as coronhas dos mosquetes por mera ânsia de provocar.

Nas suas costas, as mulheres faziam o gesto de maldizer com os dedos e cuspiam para o chão. Não obstante, nada conseguia impedir a elegância incomparável da cidade banhada pela luz prateada do mar. Ao pisar o porto, Diego e Bernardo quase caíram ao chão, tal como lhes acontecera na ilha das Flores, porque tinham perdido o hábito de andar em terra. Tiveram de arrimar-se um ao outro até conseguirem controlar o tremor dos joelhos e focar a vista.

- E agora que fazemos, Bernardo? Estou de acordo contigo em que a primeira coisa será procurar um coche de aluguer e tratar de localizar a casa de Dom Tomás de Romeu. Dizes que antes devemos recuperar o que resta da nossa bagagem? Claro, tens razão...

Assim, abriram caminho conforme puderam, Diego falando sozinho e Bernardo um passo atrás alerta, porque receava que arrebatassem a bolsa ao seu distraído irmão. Passaram no sítio do mercado, onde umas mulheraças ofereciam produtos do mar, encharcadas em tripas e cabeças de peixe, que maceravam no chão no meio de uma nuvem de moscas. Nisto, foram interceptados por um homem alto, com perfil de abutre, vestido de felpa azul, que aos olhos de Diego devia ser um almirante, a julgar pelos galões dourados do casaco e do tricórnio sobre a branca peruca. Cumprimentou-o com uma profunda inclinação, varrendo o empedrado com o seu chapéu californiano.

- Senhor Dom Diego de La Vega? - inquiriu o desconhecido, visivelmente desconcertado.

- Para vos servir, cavalheiro - retrucou Diego.

- Não sou um cavalheiro; sou Jordi, o cocheiro de Dom Tomás de Romeu. Mandaram-me esperar-vos. Mais tarde virei buscar a vossa bagagem - esclareceu o homem com um olhar turvo, porque pensou que o fedelho das índias fazia troça dele.

Diego ficou com as orelhas da cor da beterraba e, enterrando o chapéu na cabeça, dispôs-se a segui-lo, enquanto Bernardo sufocava de riso.

Jordi conduziu-os ao coche, um tanto estafado, com dois cavalos, onde os esperava o mordomo da família. Percorreram ruas tortuosas e empedradas, afastaram-se do porto e não tardaram a chegar a um bairro de mansões senhoriais. Entraram no pátio da residência de Tomás de Romeu, um casarão de três andares que se erguia entre duas igrejas. O mordomo comentou que as badaladas a horas intempestivas já não o incomodavam, porque os Franceses tinham tirado os badalos aos sinos, como represália contra os padres que acicatavam a guerrilha. Diego e Bernardo, intimidados com o tamanho da casa, nem se aperceberam de como estava decadente. Jordi conduziu Bernardo ao sector dos criados e o mordomo guiou Diego pela escada exterior até ao andar nobre ou principal. Atravessaram salões em eterna penumbra e corredores gelados, onde estavam penduradas tapeçarias esfiampadas e armas do tempo das Cruzadas. Por fim, chegaram a uma poeirenta biblioteca, mal iluminada por umas quantas candeias e um lume pobretana na lareira. Ali aguardava Tomás de Romeu, que recebeu Diego com um abraço paternal, como se o conhecesse desde sempre.

- Honra-me que o meu bom amigo Alejandro me tenha confiado o filho - proclamou. - Desde este instante pertenceis à nossa família, Diego. As minhas filhas e eu velaremos pela vossa comodidade e satisfação.

Era um homem sanguíneo e pançudo, dos seus cinquenta anos, de voz estrondosa, patilhas e sobrancelhas bastas. Os seus lábios arqueavam-se para cima num sorriso involuntário, que dulcificava o seu aspecto um tanto altaneiro. Fumava um charuto e tinha um copo de xerez na mão. Fez algumas perguntas de cortesia sobre a viagem e a família que Diego deixara na Califórnia, após o que puxou um cordão de seda para chamar às badaladas o mordomo, ao qual ordenou em catalão que conduzisse o hóspede aos seus aposentos.

- Jantaremos às dez. Não é preciso vestir-se de etiqueta, estaremos em família - disse.

Nessa noite na casa de jantar, uma sala imensa com vetustos móveis que tinham servido várias gerações, Diego conheceu as filhas de Tomás de Romeu. Bastou-lhe um simples olhar para decidir que Juliana, a mais velha, era a mulher mais formosa do mundo. Possivelmente exagerava, mas, em qualquer caso, a jovem tinha fama de ser uma das beldades de Barcelona, tal como tivera no seu tempo a célebre Madame de Récamier em Paris, segundo diziam. O seu porte elegante, as suas feições clássicas e o contraste entre o cabelo retinto, a pele de leite e os olhos verdes de jade, tornava-se inesquecível. Os seus pretendentes eram tantos que a família e os curiosos lhes tinham perdido a conta. As más-línguas comentavam que tinham sido todos rejeitados, porque o seu ambicioso pai esperava subir na escala social casando-a com um príncipe. Estavam enganados; Tomás de Romeu não era capaz de tais cálculos. Além dos seus admiráveis atributos físicos, Juliana era culta, virtuosa e sentimental, tocava harpa com trémulos dedos de fada e praticava obras de caridade entre os indigentes. Quando apareceu na casa de jantar com o seu vestido branco de musselina estilo Império, apanhado debaixo dos seios com um laço de veludo cor de melancia, que expunha o longo pescoço e os redondos braços de alabastro, com sapatilhas de cetim e um diadema de pérolas entre os negros caracóis, Diego sentiu que se lhe vergavam os joelhos e lhe falhava o entendimento. Inclinou-se no gesto de beijar-lhe a mão e, no atordoamento de a tocar, salpicou-a de saliva. Horrorizado, tartamudeou uma desculpa, enquanto Juliana sorria como um anjo e limpava disfarçadamente as costas da mão ao seu vestido de ninfa.

Isabel, em contrapartida, era tão pouco notável que não parecia do mesmo sangue que a sua deslumbrante irmã. Tinha onze anos e suportava-os bastante mal: os dentes ainda não lhe assentavam nos sítios e assomavam-lhe ossos por vários ângulos. De vez em quando, fugia-lhe um olho para um lado, o que lhe dava uma expressão distraída e enganosamente doce, porque era de carácter mais atrevido que outra coisa. O seu cabelo castanho era um matagal rebelde, que mal se podia controlar com meia dúzia de fitas; o vestido amarelo ficava-lhe apertado e, para completar o seu aspecto de órfã, calçava botins. Como diria Diego a Bernardo mais tarde, a pobre Isabel parecia um esqueleto com quatro cotovelos e tinha cabelo que chegava para duas cabeças. Diego lançou-lhe apenas um olhar em toda a noite, obnubilado com Juliana, mas Isabel observou-o sem disfarçar, fazendo um inventário rigoroso do seu fato antiquado, do seu estranho sotaque, das suas maneiras tão passadas de moda como a roupa e, claro está, das suas protuberantes orelhas. Concluiu que aquele jovem das índias estava demente se pretendia impressionar a irmã, como se tornava óbvio pela sua cómica conduta. Isabel suspirou pensando que Diego era um projecto a longo prazo, seria preciso mudá-lo quase por completo, mas felizmente dispunha de boa matéria-prima: simpatia, um corpo bem proporcionado e aqueles olhos cor de âmbar.

O jantar consistiu em sopa de cogumelos, um suculento prato de mar e montanha, em que o peixe rivalizava com a carne, saladas, queijos e para finalizar creme catalão, tudo regado com um tinto das vinhas da família. Diego calculou que com aquela dieta Tomás de Romeu não chegaria a velho e as filhas acabariam gordas como o pai. O povo passava fome em Espanha naqueles anos, mas a mesa da gente abastada esteve sempre bem abastecida. Depois do jantar passaram a um dos inóspitos salões, onde Juliana os deleitou até depois da meia-noite com a harpa, acompanhada a custo pelos gemidos que Isabel arrancava a um desafinado cravo. Àquela hora, cedo para Barcelona e tardíssimo para Diego, chegou Nuria, a ama, a sugerir às meninas que deviam retirar-se. Era uma mulher de uns quarenta anos, de espinha direita e nobres feições, desfeada por um ar duro e pela tremenda severidade da sua indumentária. Trazia um vestido preto com gola engomada e uma capota da mesma cor, atada com um laço de cetim sob o queixo. O roçar das anáguas, o tilintar das chaves e o rangido das botas anunciavam a sua presença com antecedência. Cumprimentou Diego com uma reverência quase imperceptível, depois de o examinar da cabeça aos pés com uma expressão reprovadora.

- Que devo fazer àquele a que chamam Bernardo, o indiano das Américas? - perguntou a Tomás de Romeu.

- Se fosse possível, senhor, desejaria que Bernardo compartilhasse o meu quarto. Na verdade, somos como irmãos - interveio Diego.

- Com certeza, jovem. Determina o que for preciso, Nuria - ordenou De Romeu, algo surpreendido.

Mal Juliana se foi, Diego sentiu a martelada da fadiga acumulada e o peso do jantar no estômago, mas teve de permanecer mais uma hora a ouvir as ideias políticas do seu anfitrião.

- José Bonaparte é um homem ilustrado e sincero; bastará dizer-vos que até fala castelhano e assiste às touradas - disse De Romeu.

- Mas usurpou o trono do legítimo rei de Espanha - alegou Diego.

- O rei Carlos IV demonstrou ser indigno descendente de homens tão notáveis como alguns dos seus antepassados. A rainha é frívola, e o herdeiro, Fernando, um inepto em que nem os próprios pais confiam. Não merecem reinar. Os Franceses, por outro lado, trouxeram as ideias modernas. Se permitissem a José I governar, em vez de lhe fazerem guerra, este país sairia do atraso. O Exército francês é invencível; em contrapartida, o nosso está em ruínas: não há cavalos, armas, botas, os soldados alimentam-se de pão e água...

- Não obstante, o povo espanhol resistiu à ocupação durante dois anos - interrompeu-o Diego.

- Há bandos de civis armados que conduzem uma guerra demente. São açulados por fanáticos e por clérigos ignorantes. A populaça luta às cegas, não tem ideias, só rancores.

- Falaram-me da crueldade dos Franceses.

- Cometem-se atrocidades de ambos os lados, jovem De La Vega. Os guerrilheiros não só assassinam franceses, como também os civis espanhóis que lhes recusam ajuda. Os catalães são os piores, não se imagina a crueldade de que são capazes. O mestre Francisco Goya pintou esses horrores. A obra dele é conhecida na América?

- Não me parece, senhor.

- Deveis ver os seus quadros, Dom Diego, para compreenderdes que nesta guerra não há bons, apenas maus - suspirou De Romeu, prosseguindo com outros assuntos, até que se fecharam os olhos a Diego.

Nos meses subsequentes, Diego de La Vega teve um vislumbre de quão volátil e complexa se tinha tornado a situação em Espanha e quão atrasados de notícias estavam em sua casa. O pai reduzia a política a preto e branco, porque era assim na Califórnia, mas na confusão da Europa predominavam os tons de cinzento. Na sua primeira carta, Diego contou ao pai a viagem e as suas impressões de Barcelona e dos catalães, que descreveu como ciosos da sua liberdade, explosivos de temperamento, susceptíveis em matérias de honra e trabalhadores como mulas de carga. Eles próprios cultivavam a fama de avarentos, dizia, mas na intimidade eram generosos. Acrescentava que não havia nada de que se ressentissem mais do que dos impostos e muito mais quando obrigados a pagá-los aos Franceses. Também descreveu a família De Romeu, omitindo o seu descabelado amor por Juliana, que podia ser interpretado como um abuso da hospitalidade recebida.

Na segunda carta tentou explicar-lhe os acontecimentos políticos, embora suspeitasse de que, quando o pai a recebesse, dentro de vários meses, tudo teria mudado.

Vossa Mercê: Encontro-me bem e estou a aprender muito, especialmente filosofia e latim no Colégio de Humanidades. Há-de agradar-lhe saber que o mestre Manuel Escalante me acolheu na sua academia e me distingue com a sua amizade, uma honra imerecida, por sinal. Permita-me contar-lhe alguma coisa sobre a situação que se vive aqui. O seu dilecto amigo, Dom Tomás de Romeu, é um «afrancesado». Há outros liberais como ele, que compartilham as mesmas ideias políticas, mas detestam os Franceses. Receiam que Napoleão transforme Espanha num satélite de França, o que, aparentemente, Dom Tomás de Romeu veria com bons olhos. Tal como Vossa Mercê me ordenou, visitei Sua Excelência, Dona Eulália de Callís. Por ela me inteirei de que a nobreza, como a Igreja Católica e o povo, espera o regresso do rei Fernando VII, a quem chamam «o Desejado». O povo, que desconfia por igual de Franceses, liberais, nobres e qualquer mudança, propôs-se expulsar os invasores e luta com aquilo que tem à mão: machados, garrotes, facas, chuços e enxadões.

Estes assuntos eram para ele interessantes - não se falava de outros no Colégio de Humanidades e na casa de Tomás de Romeu -, mas não lhe tiravam o sono. Estava ocupado com mil assuntos diferentes, sendo o principal deles a contemplação de Juliana. Naquele casarão enorme, impossível de iluminar ou aquecer, a família usava apenas alguns salões do andar nobre e uma ala do segundo piso. Bernardo surpreendeu mais de uma vez Diego pendurado como uma mosca na varanda para espiar Juliana, quando ela cosia com Nuria ou estudava as suas lições. As raparigas tinham-se livrado do convento, onde eram educadas as filhas de famílias de gabarito, graças à antipatia do pai pelos religiosos. Dizia Tomás de Romeu que, por detrás das gelosias dos conventos, as pobres donzelas eram pasto de freiras malévolas, que lhes enchiam a cabeça de demónios, e de clérigos pervertidos, que as apalpavam com o pretexto de as confessarem. Designou-lhes um preceptor, um mirrado fulano com a cara marcada pela varíola, que desfalecia na presença de Juliana e que Nuria vigiava de perto, como um falcão. Isabel assistia às aulas, embora o professor a ignorasse ao ponto de nunca ter aprendido o seu nome.

Juliana relacionava-se com Diego como com um amalucado irmão mais novo. Tratava-o pelo nome próprio e por tu, seguindo o exemplo de Isabel, que desde o princípio lhe concedeu um tratamento carinhoso e íntimo. Muito depois, quando se complicou a vida a todos e passaram dificuldades juntos, Nuria também o tratava por tu, porque acabou por gostar dele como um sobrinho, mas nessa época ainda o tratava por Dom Diego, visto que a fórmula familiar só se usava entre parentes ou ao dirigir-se a uma pessoa inferior. Juliana passou semanas sem suspeitar que tinha despedaçado o coração a Diego, tal como nunca se apercebeu de que fizera o mesmo ao seu infeliz preceptor. Quando Isabel lho fez notar, desatou a rir, alvoroçada; felizmente, ele só o soube vários anos mais tarde.

Diego levou muito pouco tempo a compreender que Tomás de Romeu não era nem tão nobre, nem tão rico como ao princípio lhe parecera. A mansão e as suas terras tinham pertencido à falecida esposa, única herdeira de uma família de burgueses, que fizera fortuna na indústria da seda. Por morte do sogro, Tomás ficara à frente dos negócios, mas não era pessoa de grandes iniciativas comerciais e principiara a perder o que herdara. Ao contrário da reputação dos catalães, sabia gastar dinheiro com galhardia, mas não o sabia ganhar. Ano a ano, as suas receitas tinham diminuído e, a esse ritmo, depressa se veria obrigado a vender a casa e baixar de nível social. Entre os numerosos pretendentes de Juliana contava-se Rafael Moncada, um nobre de considerável fortuna.

Uma aliança com ele resolveria os problemas de Tomás de Romeu, mas devemos dizer em sua honra que nunca pressionou a filha para que aceitasse Moncada. Diego calculou que a fazenda do pai na Califórnia valia várias vezes mais que as propriedades de Tomás de Romeu e perguntou a si mesmo se Juliana estaria disposta a ir com ele para o Novo Mundo. Colocou o assunto a Bernardo e este fez-lhe ver, no seu idioma pessoal, que, se não se apressasse, outro candidato mais maduro, bem-parecido e interessante lhe arrebataria a donzela. Habituado aos sarcasmos do irmão, Diego não desmoralizou, mas decidiu apressar ao máximo a sua educação. Não via a hora de adquirir dignidade de fidalgo acabado. Familiarizou-se com o catalão, língua que lhe parecia muito melodiosa, frequentava o Colégio e ia diariamente às aulas na Academia de Esgrima para Instrução de Nobres e Cavalheiros do mestre Manuel Escalante.

A ideia que Diego fazia do célebre mestre não coincidiu nada com a realidade. Depois de ter estudado até à última vírgula o manual escrito por Escalante, imaginava-o como Apoio, um compêndio de virtudes e beleza viril. Revelou-se um homenzinho desagradável, meticuloso, asseado, de rosto ascético, lábios desdenhosos e bigodinho engomado, para quem a esgrima parecia ser a única religião válida. Os seus alunos eram nobres de pura cepa, menos Diego de La Vega, que aceitou não tanto pela recomendação de Tomás de Romeu, como pelo facto de ter passado com distinção no exame de admissão.

- En garde, monsieur! - ordenou o mestre.

Diego adoptou a posição segunda: o pé direito a curta distância do outro, as pontas a formar ângulo recto, os joelhos ligeiramente flectidos, o corpo perfilado e a prumo sobre os quadris, olhando em frente, os braços descontraídos.

- Mudança de guarda à frente! A fundo! Mudança de guarda atrás! Unhas para dentro! Guarda terça! Extensão do braço! Coupé!

Não tardou que o mestre deixasse de lhe dar instruções. Das fintas passaram rapidamente aos ataques, estocadas afundo, talhas e reveses, como uma violenta e macabra dança. Diego entusiasmou-se e começou a bater-se como se tivesse a vida em xeque, com um ímpeto próximo da ira. Escalante sentiu que, pela primeira vez em muitos anos, lhe corria o suor pela testa e lhe ensopava a camisa. Estava satisfeito e principiava a perfilar-se um esboço de sorriso nos seus lábios finos. Nunca prodigalizava louvores a ninguém, mas ficou impressionado com a velocidade, precisão e força do jovem.

- Onde diz ter aprendido esgrima, cavalheiro? - perguntou depois de cruzar os floretes com ele durante uns minutos.

- Com o meu pai, na Califórnia, mestre.

- Califórnia?

- Ao norte do México...

- Não é preciso explicar-mo, eu vi um mapa - interrompeu-o secamente Manuel Escalante.

- Desculpe, mestre. Estudei o seu livro e pratiquei durante anos... - balbuciou Diego.

- Bem vejo. É um aluno com aproveitamento, segundo parece. Precisa de controlar a impaciência e adquirir elegância. Tem o estilo de um corsário, mas isso pode-se remediar. Primeira lição: calma. Nunca se deve combater com raiva. A firmeza e a estabilidade do aço dependem da equanimidade do espírito. Não o esqueça. Recebê-lo-ei de segunda a sábado às oito da manhã em ponto; se faltar uma única vez, é escusado voltar. Boa tarde, cavalheiro.

Com isto, despediu-se dele. Diego teve de se controlar para não guinchar de alegria, mas uma vez na rua dava saltos em torno de Bernardo, que o esperava à porta junto dos cavalos.

- Converter-nos-emos nos melhores espadachins do mundo, Bernardo. Sim, irmão, ouviste-me bem, aprenderás o mesmo que eu. Estou de acordo, o mestre não te aceitará, é muito comichoso.

Se soubesse que tenho um quarto de sangue índio, correr-me-ia à bofetada da sua academia. Mas não te preocupes, penso ensinar-te tudo o que aprender. Diz o mestre que me falta estilo. Que será isso?

Manuel Escalante cumpriu a promessa de polir Diego e este cumpriu a sua de passar os seus conhecimentos a Bernardo. Praticavam esgrima diariamente num dos grandes salões vazios da casa de Tomás de Romeu, quase sempre com Isabel. Segundo Nuria, aquela menina tinha uma curiosidade satânica por coisas de homens, mas encobria as suas travessuras porque a tinha criado desde que perdera a mãe ao nascer. Isabel conseguiu que Diego e Bernardo a ensinassem a manejar o florete e a montar a cavalo escarranchada, como faziam as mulheres na Califórnia. Com o manual do mestre Escalante, passava horas a praticar sozinha diante de um espelho, ante o olhar paciente da irmã e de Nuria, que bordavam tapeçarias a ponto de cruz. Diego resignou-se à companhia da garota por interesse: ela convencera-o de que podia interceder em seu favor junto de Juliana, coisa que nunca fez. Bernardo, em contrapartida, dava sempre mostras de estar encantado com a sua presença.

Bernardo ocupava um lugar impreciso na hierarquia da casa, onde viviam à volta de oitenta pessoas, entre criados, empregados, secretários e aparentados, como se chamava aos parentes pobres que Tomás de Romeu albergava sob o seu tecto. Dormia num dos três quartos postos à disposição de Diego, mas não tinha acesso aos salões da família, a não ser que fosse chamado, e comia na cozinha. Não tinha funções determinadas e sobrava-lhe tempo para percorrer a cidade. Acabou por conhecer a fundo os diferentes rostos da buliçosa Barcelona, desde mansões senhoriais dos nobres da Catalunha até aos apinhados quartos cheios de ratazanas e piolhos do povo mais humilde, onde, inevitavelmente, se desencadeavam rixas e epidemias; desde o antigo bairro da catedral, construído sobre ruínas romanas, com o seu labirinto de tortuosas vielas por onde mal passava um burro, até aos mercados populares, às lojas dos artesãos, às vendas de bugigangas dos turcos e aos molhes, sempre pejados de uma multidão variegada. Aos domingos, à saída da missa, ficava a vaguear por perto das igrejas para admirar os grupos que dançavam delicadas sardanas, que lhe pareciam um perfeito reflexo da solidariedade, da ordem e da falta de ostentação dos Barceloneses. Como Diego, aprendeu catalão, para tomar conhecimento do que acontecia à sua volta. Empregavam-se o castelhano e o francês para o Governo e na alta sociedade, latim para os assuntos académicos e religiosos, e catalão para o resto. O silêncio e o ar de dignidade que irradiava conquistaram-lhe o respeito da gente da casa. A criadagem, que lhe chamava carinhosamente «o indiano», não averiguou se era surdo ou não; assumiu que o era e, por conseguinte, falava diante dele sem se precatar, o que lhe permitia ficar a saber muitas coisas. Tomás de Romeu nunca deu mostras de dar pela sua existência; para ele, os criados eram invisíveis. Nuria ficava intrigada com o facto de ele ser índio, o primeiro que via cara a cara. Julgando que não a entendia, durante os primeiros dias dirigia-se a ele com gai fonas de símio e gestos teatrais, mas, quando soube que não era surdo, começou a falar com ele. E, mal se inteirou de que era baptizado, ganhou-lhe simpatia. Nunca tivera um ouvinte mais atento. Segura de que Bernardo não podia trair as suas confidências, encetou o costume de lhe contar os seus sonhos, verdadeiras epopeias fantásticas, e de o convidar para ouvir as suas leituras em voz alta a Juliana, à hora do chocolate. Por seu turno, Juliana dirigia-se a ele com a mesma suavidade que prodigalizava a toda a gente. Percebeu que ele não era criado de Diego, mas sim seu irmão de leite, mas não fez o esforço de comunicar com ele, porque partiu do princípio de que não teriam muito que dizer um ao outro. Para Isabel, em contrapartida, Bernardo converteu-se no melhor amigo e aliado.

Aprendeu a linguagem de sinais dos índios e a interpretar as inflexões da sua flauta, mas nunca conseguiu participar nos diálogos telepáticos que este mantinha, sem esforço, com Diego. Em qualquer caso, como não precisavam de palavras, entendiam-se perfeitamente. Acabaram por gostar tanto um do outro que, com os anos, Isabel disputava com Diego o segundo lugar no coração de Bernardo. O primeiro lugar foi sempre detido por Raio na Noite.

Na Primavera, quando o ar da cidade cheirava a mar e a flores, apareciam as tunas a deleitar a noite com música e os apaixonados a fazer serenatas, vigiados à distância pelos soldados franceses, porque até essa inocente diversão podia ocultar sinistros propósitos da guerrilha. Diego ensaiava canções no seu bandolim, mas seria ridículo instalar-se debaixo da janela de Juliana para lhe fazer uma serenata, quando moravam na mesma casa. Quis acompanhá-la nos concertos de harpa a seguir ao jantar, mas ela era uma verdadeira virtuosa e ele tão sucateiro no seu instrumento como Isabel o era no cravo, de modo que os serões deixavam os ouvintes com dores de cabeça. Teve de se limitar a entretê-la com os truques de magia aprendidos com Galileo Tempesta, ampliados e aperfeiçoados por meses de prática. No dia em que engoliu a adaga marroquina de Galileo Tempesta, Juliana teve um chilique e esteve a ponto de cair desamparada, enquanto Isabel examinava a arma à procura da mola que escondia a lâmina no cabo. Nuria advertiu Diego de que, se voltasse a tentar semelhante artimanha de nigromante na presença das suas meninas, ela mesma lhe enfiaria aquela faca de turco pelo gasganete. Nas primeiras semanas, a mulher tinha declarado uma surda guerra de nervos a Diego, porque, de alguma maneira, soube que era mestiço. Pareceu-lhe o cúmulo que o seu amo aceitasse na intimidade da família aquele jovem que não era de bom sangue e, além disso, tinha o descaramento de se apaixonar por Juliana. Não obstante, mal Diego a tal se propôs, conquistou o árido coração da ama com as suas pequenas atenções: maçapão, uma estampa de santos, uma rosa que lhe surgia da manga por obra de magia. Embora ela continuasse a responder-lhe com resmungos e sarcasmos, não conseguia evitar rir à socapa quando ele a provocava com alguma palhaçada.

Uma noite, Diego passou o mau bocado de ouvir Rafael Moncada fazer uma serenata na rua, acompanhado por um conjunto de vários músicos. Verificou, indignado, que o seu rival não só possuía uma voz acariciadora de tenor, como, além disso, cantava em italiano. Tentou ridicularizá-lo aos olhos de Juliana, mas a sua estratégia não resultou, porque pela primeira vez ela pareceu comovida por um avanço de Moncada. Aquele homem inspirava na jovem sentimentos confusos, um misto de desconfiança instintiva e de recatada curiosidade. Na sua presença sentia-se aflita e nua, mas também a atraía a segurança que dele emanava. Não gostava da expressão de desdém ou crueldade que às vezes lhe surpreendia no rosto, expressão que não correspondia à generosidade com que distribuía moedas pelos mendigos postados à saída da missa. Fosse como fosse, o galã tinha vinte e três anos e havia meses que a cortejava; em breve seria preciso dar-lhe uma resposta. Moncada era rico, de linhagem impecável, e causava boa impressão em toda a gente, menos na sua irmã Isabel, que o detestava sem disfarces nem explicação. Havia sólidos argumentos a favor daquele pretendente; só a refreava um inexplicável pressentimento de desgraça. Entretanto, ele continuava o seu assédio com delicadeza, receoso de que ao menor constrangimento ela se espantasse. Viam-se na igreja, em concertos e peças de teatro, em passeios, em parques e ruas. Com frequência, fazia-lhe chegar presentes e ternas missivas, mas nada de comprometedor. Não tinha conseguido que Tomás de Romeu o convidasse para sua casa, nem

que a sua tia Eulália de Callís aceitasse incluir os De Romeu entre os seus companheiros de tertúlia. Ela tinha-lhe manifestado, com a sua firmeza habitual, que Juliana era uma péssima escolha.

- O pai é um traidor, um afrancesado; essa família não tem categoria nem fortuna, nada para oferecer - foi o seu lapidar juízo.

Mas Moncada tinha Juliana em mira havia tempos, vira-a florescer e determinara que era a única mulher digna dele. Pensava que, com o tempo, a sua tia Eulália cederia perante as inegáveis virtudes da jovem; era tudo questão de conduzir o assunto com diplomacia. Não estava disposto a renunciar a Juliana, nem tão-pouco à sua herança, mas nunca duvidou de que conseguiria ambas.

Rafael Moncada não tinha idade para serenatas e era demasiado orgulhoso para esse tipo de exibição, mas encontrou a forma de o fazer com humor. Quando Juliana assomou à varanda, viu-o mascarado de príncipe florentino, de brocado e seda da cabeça aos pés, com gibão adornado de pele de lontra, penas de avestruz no chapéu e um alaúde nas mãos. Vários moços iluminavam-no com elegantes candeias de cristal e, ao seu lado, os músicos, ataviados como pajens de opereta, arrancavam melódicos acordes aos seus instrumentos. O melhor do espectáculo foi sem dúvida a voz extraordinária de Moncada. Escondido atrás de uma cortina, Diego suportou a humilhação, sabendo que Juliana estava na sua varanda a comparar aqueles trinados perfeitos de Moncada com o vacilante bandolim com que ele tentava impressioná-la. Resmungava imprecações a meia voz, quando chegou Bernardo indicando-lhe que o seguisse e que se armasse da sua espada. Conduziu-o ao andar dos criados, onde Diego nunca pusera os pés, apesar de morar naquela casa havia quase um ano, e dali até à rua por uma portinhola de serviço. Cosidos com a parede, chegaram sem ser vistos ao sítio onde o seu rival se tinha postado a exibir-se com as suas baladas em italiano. Bernardo apontou para um portal atrás de Moncada; nessa altura, Diego sentiu que a fúria se lhe transformava em diabólica satisfação, porque não era o seu rival que cantava, mas sim outro homem escondido nas sombras.

Diego e Bernardo esperaram pelo fim da serenata. O grupo dispersou, partindo num par de coches, enquanto o último moço entregava umas moedas ao verdadeiro tenor. Depois de se assegurar de que o cantor estava sozinho, os jovens interceptaram-no de surpresa. O desconhecido soltou um assobio de serpente e quis deitar a mão à faca curva que trazia pronta à cintura, porém Diego pôs-lhe a ponta da espada na garganta. O homem retrocedeu com pasmosa agilidade, mas Bernardo pregou-lhe uma rasteira e atirou-o ao chão. Escapou-se-lhe uma blasfémia dos lábios quando sentiu outra vez a ponta do aço de Diego a picar-lhe o pescoço. Àquela hora, a luz da rua provinha de uma lua tímida e dos candeeiros da casa, suficiente para ver que se tratava de um cigano moreno e forte, todo músculos, fibra e ossos.

- Que diabo queres de mim? - disparou-lhe, insolente, com uma expressão feroz.

- O teu nome, mais nada. Podes ficar com esse dinheiro mal ganho - redarguiu Diego.

- Para que queres o meu nome?

- O teu nome! - exigiu Diego, premindo a espada até lhe arrancar umas gotas de sangue.

- Pelayo - disse o cigano.

Diego recolheu o aço e o homem deu um passo atrás, para, a seguir, desaparecer nas sombras da rua, com o silêncio e a velocidade de um felino.

- Fixemos aquele nome, Bernardo. Creio que voltaremos a encontrar-nos com este velhaco. Não posso contar nada disto a Juliana, porque pensará que o faço por mesquinhez ou ciúme. Tenho de encontrar outra forma de lhe revelar que aquela voz não é de Moncada.

Tens alguma ideia? Bom, quando tiveres, dizes - concluiu Diego.

Uma das visitas assíduas da casa de Tomás de Romeu era o encarregado dos assuntos de Napoleão em Barcelona, o cavaleiro Roland Duchamp, conhecido como o «Chevalier». Era a eminência parda por detrás da autoridade oficial, mais influente, segundo diziam, que o próprio rei José I. Napoleão tinha vindo a tirar poder ao irmão, porque já não precisava dele para perpetuar a dinastia Bonaparte: agora tinha um filho, um enfermiço bebé apodado o Aguioto e assoberbado desde tenra idade com o título de rei de Roma. O Chevalier geria uma vasta rede de espiões, que o informava dos planos dos seus inimigos antes mesmo de estes os formularem. Tinha a categoria de embaixador, mas na realidade até os altos comandos do exército lhe prestavam contas. A sua vida naquela cidade, onde os Franceses eram detestados, não era agradável. A alta sociedade votava-o ao ostracismo, embora ele adulasse as famílias abastadas com bailes, recepções e peças de teatro, da mesma maneira que procurava conquistar a arraia-miúda distribuindo pão e autorizando touradas que dantes eram proibidas. Ninguém queria fazer figura de afrancesado. Os nobres, como Eulália de Callís, não se atreviam a deixar de lhe falar, mas tão-pouco aceitavam os seus convites. Tomás de Romeu, em contrapartida, honrava-se com a sua amizade, porque admirava tudo o que vinha de França, desde as ideias filosóficas e o requinte até ao próprio Napoleão, que comparava com Alexandre Magno. Sabia que o Chevalier estava ligado à polícia secreta, mas não dava crédito aos rumores segundo os quais era responsável por torturas e execuções na Cidadela. Parecia-lhe impossível que uma pessoa tão fina e culta estivesse envolvida nas barbaridades que se atribuíam aos militares.

Discutiam sobre arte, sobre livros, sobre as novas descobertas científicas, sobre os avanços da astronomia; comentavam a situação das colónias da América, como a Venezuela, o Chile e outras que tinham declarado a independência.

Enquanto os dois cavalheiros compartilhavam horas prazenteiras com os seus cálices de conhaque francês e os seus charutos cubanos, Agnès Duchamp, a filha do Chevalier, entretinha-se com Juliana, lendo romances franceses às escondidas de Tomás de Romeu, que nunca teria consentido tais leituras. Afligiam-se mortalmente com os amores contrariados das personagens e suspiravam de alívio com os finais felizes. O romantismo ainda não estava na moda em Espanha e, antes do aparecimento de Agnès na sua vida, Juliana só tinha acesso a certos autores clássicos da biblioteca familiar, seleccionados pelo pai com critério didáctico. Isabel e Nuria assistiam às leituras. A primeira troçava, mas não perdia palavra, e Nuria chorava como uma madalena. Tinham-na esclarecido de que nada daquilo acontecia na realidade, que eram apenas mentiras do autor, mas ela não acreditava. As desgraças das personagens chegaram a preocupá-la de tal maneira que as jovens alteravam o argumento dos romances para não lhe amargarem a existência. A ama não sabia ler, mas sentia um respeito sacramental por todo o material impresso. Comprava com o seu salário uns folhetos ilustrados com vidas de mártires, verdadeiros compêndios de selvajaria, que as raparigas tinham de ler uma e outra vez. Estava certa de que todos eles eram desventurados compatriotas supliciados pelos mouros em Granada. Era inútil explicar-lhe que o Coliseu romano ficava onde o seu nome indica, em Roma. Também estava convencida, como boa espanhola, de que Cristo morrera na cruz pela humanidade em geral, mas pela Espanha em particular. Para ela, o mais imperdoável de Napoleão e dos Franceses era a sua condição de ateus; por isso salpicava com água benta, após cada visita, o cadeirão que o Chevalier tinha ocupado.

Explicava o facto de o seu amo tão-pouco acreditar em Deus como uma consequência da morte prematura da mulher, a mãe das raparigas. Tinha a certeza de que Dom Tomás padecia de uma condição temporária; no seu leito de morte recuperaria o juízo e clamaria por um confessor que lhe perdoasse os pecados, como, no fim de contas, todos faziam, por muito ateus que se declarassem quando de saúde.

Agnès era miúda, risonha e vivaz, com uma cútis diáfana, olhar malicioso e covinhas nas faces, nos nós dos dedos e nos cotovelos. Os romances tinham-na amadurecido antes do tempo e, numa idade em que as outras raparigas não saíam das suas casas, ela fazia vida de mulher adulta. Usava a moda mais atrevida de Paris para acompanhar o pai aos eventos sociais. Ia aos bailes com o vestido molhado, para que o tecido se lhe colasse ao corpo e ninguém deixasse de apreciar as suas ancas redondas e os seus mamilos de virgem atrevida. Reparou desde o primeiro encontro em Diego, que durante esse ano deixou para trás os dissabores da adolescência e deu um salto de potro; estava da altura de Tomás de Romeu e, por intermédio da impressionante dieta catalã e dos mimos de Nuria, tinha aumentado de peso, coisa de que bem precisava. As suas feições fixaram-se de forma definitiva e, por sugestão de Isabel, usava o cabelo cortado solto para tapar as orelhas. Agnès achava que ele não era nada malparecido, era exótico; conseguia imaginá-lo nos territórios selvagens da América rodeado de índios submissos e nus. Não se cansava de o interrogar sobre a Califórnia, que confundia com uma ilha misteriosa, quente, como aquela onde tinha nascido a inefável Josefina Bonaparte, que procurava imitar com os seus vestidos translúcidos e o seu aroma de violetas. Conhecera-a em Paris, na corte de Napoleão, quando era uma criança de dez anos. Enquanto o imperador estava ausente numa guerra qualquer, Josefina tinha distinguido o Chevalier Duchamp com uma amizade quase amorosa.

Ficara gravada na memória de Agnès a imagem daquela mulher, que, sem ser jovem nem bonita, o parecia pela sua forma ondulante de andar, a sua voz sonolenta e a sua fragrância efémera. Já lá iam mais de quatro anos. Josefina já não era a imperatriz de França, porque Napoleão a substituíra por uma insípida princesa austríaca, cuja única graça, segundo Agnès, era ter tido um filho. Que ordinária é a fertilidade! Ao saber que Diego era o único herdeiro de Alejandro de La Vega, dono de um rancho do tamanho de um pequeno país, não lhe custou nada ver-se convertida na castelã daquele fabuloso território. Esperou o momento apropriado e sussurrou-lhe, atrás do seu leque, que fosse visitá-la, para poderem conversar a sós, visto que em casa de Tomás de Romeu estavam sempre vigiados por Nuria; em Paris ninguém tinha ama, esse costume era o cúmulo do antiquado, acrescentou. Para selar o convite entregou-lhe um lenço de linho e renda com o seu nome completo bordado pelas freiras e perfumado de violetas. Diego não soube o que lhe responder. Durante uma semana tentou fazer ciúmes a Juliana, falando-lhe de Agnès e agitando o lenço no ar, mas saiu-lhe o tiro pela culatra, porque a bela se ofereceu amavelmente para o ajudar nos seus amores. Além disso, Isabel e Nuria zombaram dele sem misericórdia, de modo que acabou por deitar o lenço no lixo. Bernardo apanhou-o e guardou-o, fiel à sua teoria de que tudo pode servir no futuro. Diego encontrava-se amiúde com Agnès Duchamp, porque a rapariga se tinha tornado visita assídua da casa. Era mais nova que Juliana, mas deixava-a atrás em esperteza e experiência. Se as circunstâncias fossem diferentes, Agnès não se teria rebaixado a cultivar uma amizade com uma rapariga tão simplória como Juliana, todavia, a posição do pai tinha-lhe fechado muitas portas e privado de amigas. Além disso, Juliana tinha a seu favor a sua fama de formosura e, embora em princípio Agnès evitasse esse tipo de competição, depressa se deu conta de que o simples nome de Juliana de Romeu atraía o interesse do cavalheiro e de fugida ela tirava partido disso. Para fugir às insinuações sentimentais de Agnès Duchamp, que iam aumentando de intensidade e frequência, Diego tentou modificar a imagem que a jovem formara dele. Nada de rico e bravo rancheiro galopando com a espada à cinta nos vales da Califórnia; em vez disso, comentava umas supostas cartas do pai que anunciavam, entre outras calamidades, a iminente ruína económica da família. Não sabia nesse momento quão perto da verdade estariam essas mentiras dentro de poucos anos. Para rematar, imitava os modos mimosos e as calças justas do professor de dança de Juliana e Isabel. Aos olhares romanescos de Agnès respondia com melindres e súbitas dores de cabeça, até instilar na jovem a suspeita de que era um tanto efeminado. Este jogo de fingimentos adaptava-se perfeitamente à sua personalidade histriónica. «Para que é que te armas em idiota?», perguntou-lhe mais de uma vez Isabel que, desde o princípio, o tratara com uma franqueza a roçar a brutalidade. Juliana, distraída como estava sempre no seu mundo romanesco, nunca pareceu dar pela maneira como Diego mudava na presença de Agnès. Comparada com Isabel, para quem os actos teatrais de Diego se tornavam transparentes, Juliana era de uma inocência desconsoladora.

Tomás de Romeu encetou o costume de convidar Diego para beber um digestivo com o Chevalier depois de jantar, porque se apercebeu de que este se interessava pelo seu jovem hóspede. O Chevalier perguntava pelas actividades dos estudantes do Colégio de Humanidades, pelas tendências políticas da juventude, pelos rumores da rua e da criadagem, mas Diego conhecia a sua reputação e tinha muito cuidado com as respostas. Se contasse a verdade podia pôr em apertos uma porção de pessoas, sobretudo os colegas e professores, inimigos encarniçados dos Franceses, embora a maioria estivesse de acordo com as reformas por eles impostas. Como precaução, fingiu diante do Chevalier os mesmos modos afectados e cérebro de mosquito que adoptava com Agnès Duchamp, com tanto êxito que este acabou por o considerar um mequetrefe sem espinha dorsal. O francês tinha dificuldade em perceber o interesse da filha por De La Vega. Na sua opinião, a hipotética fortuna do jovem não compensava a sua angustiante frivolidade. O Chevalier era um homem de ferro - caso contrário, nunca teria podido estrangular a Catalunha como fazia - e não tardou a aborrecer-se com as trivialidades de Diego. Deixou de o interrogar e às vezes fazia comentários na sua presença que, se tivesse melhor opinião dele, teria evitado.

- Ao vir ontem de Gerona, vi corpos cortados aos bocados pendurados nas árvores ou trespassados por chuços pelos guerrilheiros. Os abutres banqueteavam-se. Não consegui livrar-me da pestilência... - comentou o Chevalier.

- Como sabe que foi obra de guerrilheiros e não de soldados franceses? - perguntou Tomás de Romeu.

- Estou bem informado, meu amigo. Na Catalunha a guerrilha é feroz. Por esta cidade passam milhares de armas de contrabando, há arsenais até nos confessionários das igrejas. Os guerrilheiros cortam as vias de abastecimento e a população passa fome, porque não lhe chegam verduras nem pão.

- Que comam biscoito, então - sorriu Diego, imitando a célebre frase da rainha Maria Antonieta, ao mesmo tempo que metia um bombom de amêndoas na boca.

- A situação é séria, não se presta a graças, jovem - retorquiu o Chevalier, aborrecido. - A partir de amanhã é proibido andar com candeias à noite, porque se servem delas para fazer sinais, e o uso da capa, porque por baixo escondem trabucos e punhais. Basta dizer-vos, cavalheiros, que existem planos para infectar com varíola as prostitutas que servem as tropas francesas!

- Por favor, Chevalier Duchamp! - exclamou Diego com ar escandalizado.

- Mulheres e padres escondem armas na roupa e empregam as crianças para transportar mensagens e incendiar paióis. Teremos de assaltar o hospital, porque escondem armas debaixo da roupa de cama de supostas parturientes.

Uma hora mais tarde, Diego de La Vega tinha arranjado maneira de avisar o director do hospital de que os Franceses chegariam de um momento para o outro. Graças à informação que o Chevalier lhe facultava, conseguiu salvar alguns colegas do Colégio de Humanidades ou vizinhos em perigo. Por outro lado, fez chegar um recado anónimo ao Chevalier quando soube que tinham envenenado o pão destinado a um quartel. A sua intervenção frustrou o atentado, salvando trinta soldados inimigos. Diego não tinha a certeza das suas razões; detestava toda e qualquer forma de traição e perfídia e, além disso, gostava do jogo e do risco. Sentia a mesma repugnância pelos métodos dos guerrilheiros como pelos das tropas de ocupação.

- É inútil procurar justiça neste caso, Bernardo, porque não a há em lado nenhum. Só podemos evitar mais violência. Estou farto de tanto horror, de tantas atrocidades. Nada há de nobre ou generoso na guerra - comentou ao irmão.

A guerrilha fustigava sem trégua os Franceses e inflamava o povo. Camponeses, forneiros, pedreiros, artesãos, comerciantes, gente vulgar durante o dia, lutava de noite. A população civil protegia-os, facultava-lhes abastecimentos, informações, correio, hospitais e cemitérios clandestinos. A tenaz resistência popular desgastava as tropas de ocupação, mas também tinha o país em ruínas, porque ao lema espanhol de guerra e navalha, os Franceses respondiam com idêntica crueldade.

As lições de esgrima constituíam a actividade mais importante para Diego e nunca chegou atrasado a uma aula, porque sabia que o professor o expulsaria para sempre. Às oito menos um quarto postava-se à porta da academia; cinco minutos depois, um criado abria-lhe a porta e às oito em ponto estava com o florete na mão diante do seu mestre. No final da lição este costumava convidá-lo para ficar mais uns minutos e conversavam sobre a nobreza da arte da esgrima, o orgulho de cingir a espada, as glórias militares de Espanha, a imperiosa necessidade de todo o cavalheiro com pundonor se bater em duelo em defesa do seu nome, apesar de os duelos serem proibidos. Desses assuntos derivavam para outros mais profundos, e aquele homenzinho soberbo, com a aparência engomada e meticulosa de um peralvilho, susceptível até raiar o absurdo quando se tratava da sua honra e dignidade, foi revelando o outro lado do seu carácter. Manuel Escalante era filho de um comerciante, mas salvara-se de um destino modesto, como o dos irmãos, porque era um génio com a espada. A esgrima elevara-o de categoria, permitira-lhe inventar uma nova personalidade e percorrer a Europa, ombreando com nobres e cavalheiros. A sua obsessão não eram as estocadas históricas nem os títulos de nobreza, como parecia à primeira vista, mas sim a justiça. Adivinhou que Diego compartilharia o seu próprio desvelo, embora, por ser demasiado jovem, ainda não soubesse nomeá-lo. Então sentiu que, por fim, a sua vida tinha um propósito elevado: guiar aquele jovem para que seguisse os seus passos, convertê-lo em paladino de causas justas. Tinha ensinado esgrima a centenas de cavalheiros, mas nenhum provara ser digno dessa distinção. Faltava-lhes a chama incandescente que reconheceu imediatamente em Diego, porque ele também a tinha. Não quis deixar-se levar pelo entusiasmo inicial, decidiu conhecê-lo melhor e pô-lo à prova, antes de lhe dar a conhecer os seus segredos. Nessas breves conversas à hora do café, sondou-o. Diego, sempre disposto a abrir-se, contou-lhe, entre outras coisas, a sua infância na Califórnia, a travessura do urso com o chapéu, o ataque dos piratas, a mudez de Bernardo e aquela ocasião em que os soldados incendiaram a aldeia dos índios. Tremia-lhe a voz ao recordar como enforcaram o velho chefe da tribo, açoitaram os homens e os levaram, a fim de trabalharem para os brancos.

Numa das suas visitas de cortesia ao palacete de Eulália de Callís, Diego encontrou-se com Rafael Moncada. Visitava a dama de vez em quando por encomenda dos pais, mais que por sua própria iniciativa. A residência ficava na Rua Santa Eulália e, ao princípio, Diego julgou que tivessem baptizado a rua por causa daquela senhora. Passou um ano antes que averiguasse quem era a mítica Eulália, santa predilecta de Barcelona, virgem martirizada, à qual, segundo a lenda, tinham cortado os seios e feito rolar dentro de um tonel com pedaços de vidro, antes de a crucificarem. A propriedade da antiga governadora da Califórnia era uma das jóias arquitectónicas da cidade e o seu interior estava decorado com um luxo excessivo, que chocava os sóbrios catalães, para os quais a ostentação era sinal indubitável de mau gosto. Eulália vivera muito tempo no México e tinha sido contagiada pelos arrebiques barrocos. Na sua corte privada havia várias centenas de pessoas que viviam basicamente do cacau. Antes de morrer de um fanico no México, o marido de Dona Eulália estabelecera um negócio nas Antilhas para abastecer as chocolatarias de Espanha, o que aumentara a fortuna da família. Os títulos de Eulália não eram muito antigos nem muito impressionantes, mas o seu dinheiro compensava generosamente o que lhe faltava em estirpe. Enquanto a nobreza perdia as suas rendas, privilégios, terras e prebendas, ela continuava a enriquecer graças ao inesgotável rio aromático de chocolate que fluía directamente da América para as suas arcas. Noutros tempos, os nobres de mais prosápia, aqueles que podiam afiançar sangue azul anterior a 1400, teriam desprezado Eulália, que pertencia à plebe nobiliária, mas a situação já não estava para minúcias aristocráticas. Agora era o dinheiro que contava, mais que a linhagem, e ela tinha muito. Outros terras-tenentes queixavam-se de que os seus camponeses se recusavam a pagar impostos e rendas, mas ela não sofria desse problema, porque contava com um selecto grupo de valentões encarregados das cobranças. Aliás, a maior parte dos seus rendimentos provinha do estrangeiro. Eulália chegou a ser uma das personagens mais conspícuas da cidade. Deslocava-se sempre, até quando ia à igreja, com um séquito de criados e cães em várias carruagens. A sua criadagem vestia libré azul-celeste com chapéus emplumados, que ela mesma desenhara inspirada na ópera. Com os anos aumentara de peso e perdera originalidade; estava transformada numa matriarca enlutada, glutona, rodeada de padres, beatas e cães chihuahua, uns animais que pareciam ratos pelados e urinavam nas cortinas. Tinha-se emancipado por completo das boas paixões que a haviam atormentado na sua magnífica juventude, quando pintava o cabelo de vermelho e tomava banho em leite. Agora, os seus interesses reduziam-se a defender a sua linhagem, vender chocolate, garantir um lugar no paraíso depois da morte e propiciar por todos os meios possíveis o regresso de Fernando VII ao trono de Espanha. Aborrecia as reformas liberais.

Por ordens do pai e em agradecimento pela maneira como aquela dama se tinha portado com Regina, a sua mãe, Diego de La Vega fez o propósito de a visitar de tanto em tanto tempo, apesar de essa obrigação lhe pesar como um sacrifício. Não tinha nada a dizer à viúva, salvo quatro frases corteses de rigor, e nunca sabia a ordem pela qual competia utilizar as colherinhas e garfos da sua mesa. Sabia que Eulália de Callís detestava Tomás de Romeu por duas razões de peso: primeiro, pela sua condição de afrancesado e, segundo, por ser o pai de Juliana, por quem, infelizmente, Rafael Moncada, o seu sobrinho predilecto e principal herdeiro, estava apaixonado. Eulália vira Juliana na missa e tinha de admitir que não era feia, mas ela tinha planos muito mais ambiciosos para o sobrinho. Estava a negociar discretamente uma aliança com uma das filhas do duque de Medinaceli. O desejo de evitar que Rafael se casasse com Juliana era a única coisa que Diego tinha em comum com a dama.

Na sua quarta visita ao palacete de Dona Eulália, vários meses depois do incidente da serenata sob a janela de Juliana, Diego teve ocasião de conhecer melhor Rafael Moncada. Tinha-o encontrado algumas vezes em eventos sociais e desportivos, mas à parte cumprimentarem-se com uma inclinação de cabeça, não tinham relações. Moncada considerava que Diego era um rapazote destituído de interesse, cuja única graça consistia em viver sob o mesmo tecto que Juliana de Romeu. Não havia outra razão para o distinguir sobre o desenho da carpete. Nessa noite, Diego surpreendeu-se ao ver que a mansão de Dona Eulália estava profusamente iluminada e dezenas de carruagens se alinhavam nos pátios. Até então, ela só o tinha convidado para tertúlias de artistas e um jantar íntimo em que o interrogara sobre Regina. Diego julgava que ela se envergonhava dele, não tanto por vir das colónias, mas por ser mestiço. Eulália tratara muito bem a sua mãe na Califórnia, apesar de Regina ter mais de índia que de branca, mas desde que vivia em Espanha tinha-se-lhe pegado o desprezo pela gente do Novo Mundo. Dizia-se que, devido ao clima e à mistura com os indígenas, os crioulos possuíam uma predisposição natural para a barbárie e a perversão. Antes de o apresentar às suas selectas amizades, Eulália quis ter uma ideia exacta dele. Não queria levar com um balde de água fria; por isso, assegurou-se de que ele fosse branco na aparência, andasse bem vestido e tivesse maneiras adequadas.

Nessa ocasião, Diego foi conduzido a um salão esplêndido, onde estava reunida a nata da nobreza catalã, presidida pela matriarca, sempre de veludo preto, como luto perene por Pedro Fages, e coberta de diamantes, instalada num cadeirão com baldaquino de bispo. Outras viúvas enterravam-se em vida sob um véu escuro, que as cobria da touca até aos cotovelos, mas não era o seu caso. Eulália ostentava as suas jóias sobre uma opulenta peitaça de galinha bem nutrida. O decote deixava ver o despontar de uns seios enormes e moles, como melões em pleno Verão, dos quais Diego não conseguia despregar a vista, entontecido pelo brilho dos diamantes e pela abundância de carne. A dama estendeu-lhe uma mão gorducha, que ele beijou como competia, perguntou-lhe pelos pais e, sem esperar pela resposta, despachou-o com um gesto vago.

A maior parte dos cavalheiros conversava sobre política e negócios em salões separados, enquanto os pares jovens dançavam ao som da orquestra, vigiados pelas mães das donzelas. Numa das salas havia várias mesas de jogo, a diversão mais popular das cortes europeias, onde não existiam outras formas de combater o tédio, à parte a intriga, a caça e os amores fugazes. Apostavam-se fortunas, e os jogadores profissionais andavam de palácio em palácio para esfolar os nobres ociosos, que, se não achassem companheiros de tertúlia da sua classe para perder dinheiro, o faziam entre meliantes em casas de jogo clandestinas e tugúrios, que havia às centenas em Barcelona. Numa das mesas, Diego viu Rafael Moncada a jogar o vinte-e-um real com outros cavalheiros. Um deles era o conde Orloff. Diego reconheceu-o de imediato, pelo seu esplêndido porte e aqueles olhos azuis que inflamaram a imaginação de tantas mulheres na sua visita a Los Angeles, mas não esperava que o nobre russo o reconhecesse a ele. Tinha-o visto uma única vez, quando era miúdo.

- De La Vega! - exclamou Orloff e, pondo-se de pé, abraçou-o efusivamente. Surpreendido, Rafael Moncada levantou a vista das suas cartas e pela primeira vez apercebeu-se inteiramente da existência de Diego.

Mediu-o de cima a baixo, enquanto o bem-parecido conde contava em voz alta como aquele jovem tinha caçado vários ursos quando era apenas um malandrim de tenra idade. Desta vez não estava lá Alejandro de La Vega para corrigir a sua épica versão. Os homens aplaudiram amavelmente e logo voltaram às suas cartas. Diego postou-se perto da mesa para observar os pormenores da partida, sem se atrever a pedir licença para participar, embora fossem jogadores medíocres, porque não dispunha das quantias que ali se apostavam. O pai mandava-lhe dinheiro regularmente, mas não era generoso; considerava que as privações temperam o carácter. Bastaram cinco minutos a Diego para se aperceber de que Rafael Moncada fazia batota, porque ele próprio sabia perfeitamente como a fazer, e outros cinco para decidir que, embora não o pudesse desmascarar sem armar um escândalo, o que Dona Eulália não lhe perdoaria, pelo menos podia impedi-lo. A tentação de humilhar o rival revelou-se-lhe irresistível. Plantou-se ao pé de Moncada a observá-lo com tal fixidez que este acabou por se incomodar.

- Porque não vai dançar com as bonitas jovens do outro salão? - perguntou Moncada, sem disfarçar a insolência.

- Interessa-me grandemente a sua maneira muito peculiar de jogar, Excelência, posso sem dúvida aprender muito consigo... - volveu Diego, sorrindo com a mesma insolência do outro.

O conde Orloff captou de imediato a intenção daquelas palavras e, cravando os olhos em Moncada, fez-lhe saber, num tom tão gelado como as estepes do seu país, que a sua sorte às cartas se afigurava verdadeiramente prodigiosa. Rafael Moncada não respondeu, mas a partir desse momento não pôde continuar a fazer batota, porque os outros jogadores o examinavam com óbvia atenção. Durante a hora seguinte, Diego não arredou pé do seu lado, vigiando-o, até ser dada por terminada a partida.

O conde Orloff cumprimentou batendo os calcanhares e retirou-se com uma pequena fortuna na bolsa, disposto a passar o resto da noite a dançar. Sabia muito bem que não havia uma única mulher na festa que não tivesse reparado no seu porte galhardo, nos seus olhos de safira e no seu espectacular uniforme imperial.

Numa daquelas noites plúmbeas de Barcelona, frias e húmidas, Bernardo aguardava Diego no pátio, compartilhando a sua botija de vinho e o seu queijo duro com Joanet, um lacaio dos muitos que tratavam das carruagens. Aqueciam ambos os pés sapateando nas pedras da calçada. Joanet, conversador incorrigível, tinha encontrado, por fim, uma pessoa que o ouvisse sem o interromper. Identificou-se como criado de Rafael Moncada, coisa que Bernardo já sabia e por motivo da qual o tinha abordado, e desatou a contar uma história eterna cheia de mexericos, cujos pormenores Bernardo classificava e guardava na memória. Tinha verificado que toda a informação, até a mais trivial, pode ser útil em algum momento. Nisto, saiu Rafael Moncada de muito mau humor e pediu a sua carruagem.

- Já te proibi de falares com outros criados! - disparou a Joanet.

- É só um índio das Américas, Excelência, o criado de Dom Diego de La Vega.

Num impulso de desforra contra Diego, que o tinha posto em apuros na mesa de jogo, Rafael Moncada voltou atrás, levantou a bengala e descarregou-a nas costas de Bernardo, que caiu de joelhos, mais surpreendido que outra coisa. Do solo, Bernardo ouviu-lhe ordenar a Joanet que procurasse Pelayo. Moncada não chegou a instalar-se na sua carruagem, porque Diego aparecera no pátio a tempo de ver o sucedido. Afastou o lacaio para o lado, agarrou na portinhola do coche e enfrentou Moncada.

- Que deseja? - perguntou este, desconcertado.

- Bateu a Bernardo! - exclamou Diego, lívido.

- A quem? Refere-se àquele índio? Faltou-me ao respeito, levantou-me a voz.

- Bernardo não consegue levantar a voz nem ao próprio diabo, porque é mudo. Deve-lhe uma desculpa, cavalheiro - exigiu Diego.

- Perdeu a razão! - gritou o outro, incrédulo.

- Ao agredir Bernardo, o senhor injuriou-me. Deve retractar-se, caso contrário receberá os meus padrinhos - volveu Diego.

Rafael Moncada desatou a rir com vontade. Não podia acreditar que aquele crioulo sem educação nem classe estivesse disposto a bater-se com ele. Fechou a portinhola de supetão e ordenou ao cocheiro que partisse. Bernardo tomou Diego por um braço e deteve-o de chofre, suplicando-lhe com o olhar que se acalmasse, que não valia a pena fazer tanto alvoroço, mas Diego estava fora de si, tremendo de indignação. Desprendeu-se do irmão, montou no seu cavalo e dirigiu-se a galope à residência de Manuel Escalante.

Apesar do inoportuno daquela hora da madrugada, Diego bateu à porta de Manuel Escalante com a bengala até lhe vir abrir o mesmo velho criado que servia o café depois da lição. Conduziu-o ao segundo andar, onde teve de aguardar meia hora antes de o mestre aparecer. Escalante estava na cama havia já um pedaço, mas apresentou-se com o seu esmero habitual, vestindo um roupão de noite e com o bigode colado de pomada. Diego contou-lhe aos borbotões o sucedido e rogou-lhe que lhe servisse de padrinho. Dispunha de vinte e quatro horas para formalizar o duelo, e a diligência devia fazer-se com discrição, às ocultas das autoridades, porque era punido como qualquer homicídio.

Só a aristocracia podia bater-se sem consequências, pois os seus crimes contavam com uma certa impunidade, que ele não tinha.

- O duelo é um assunto sério, que toca à honra dos gentis-homens. Tem uma etiqueta e normas muito estritas. Um cavalheiro não se bate em duelo por um criado - declarou Manuel Escalante.

- Bernardo é meu irmão, mestre, não é meu criado. Mas, mesmo que o fosse, não é justo que Moncada maltrate uma pessoa indefesa.

- Não é justo, diz? Pensa realmente que a vida é justa, senhor De La Vega?

- Não, mestre, mas penso fazer o que estiver na minha mão para que o seja - retrucou Diego.

O procedimento revelou-se mais complexo do que Diego supunha. Primeiro, Manuel Escalante fê-lo redigir uma carta a pedir explicações, que levou pessoalmente a casa do ofensor. A partir desse momento, o mestre entendeu-se com os padrinhos de Moncada, que fizeram o possível para evitar o duelo, como era seu dever, mas nenhum dos adversários quis retractar-se. Além dos padrinhos de ambas as partes, eram necessários um médico discreto e duas testemunhas imparciais, com sangue-frio e conhecimento das regras, que Manuel Escalante se encarregou de conseguir.

- Quantos anos tem, Dom Diego? - perguntou o mestre.

- Quase dezassete.

- Então não tem idade suficiente para se bater.

- Mestre, rogo-lhe, não façamos uma montanha desse grãozinho de areia. Que importam uns meses a mais ou a menos? A minha honra está em jogo, e isso não tem idade.

- Está bem, mas Dom Tomás de Romeu deve ser informado disto, caso contrário seria uma ofensa, visto que ele o distinguiu com a sua confiança e hospitalidade.

Foi assim que De Romeu foi designado como segundo padrinho de Diego. Fez o possível por dissuadi-lo, porque, se o desenlace fosse fatal para o jovem, não teria como o explicar a Dom Alejandro de La Vega, mas não conseguiu. Tinha presenciado um par de aulas de esgrima de Diego na academia de Escalante e confiava na destreza do jovem, mas a sua relativa tranquilidade foi por água abaixo quando os padrinhos de Moncada os notificaram de que este tinha torcido, recentemente, um tornozelo e não poderia bater-se à espada. O duelo seria à pistola.

Marcaram encontro no bosque de Montjuic às cinco da manhã, quando já havia alguma luz e se podia circular na cidade, porque àquela hora era levantado o recolher. Desprendia-se da terra uma bruma ténue e a delicada luz do amanhecer coava-se por entre as árvores. A paisagem era tão aprazível que aquele combate se tornava ainda mais grotesco, mas nenhum dos presentes, excepto Bernardo, dava por isso. Na sua condição de criado, o índio mantinha-se a uma certa distância, sem participar no rigoroso ritual. Em obediência ao protocolo, os adversários cumprimentaram-se, após o que as testemunhas lhes revistaram o corpo para se certificarem de que não levavam protecção contra os disparos. Deitaram sortes para ver quem ficava de cara para o sol e Diego perdeu, mas pensou que a sua boa vista seria suficiente para compensar essa desvantagem. Por ser o ofendido, Diego pôde escolher as pistolas e optou pelas que Eulália de Callís enviara ao pai para a Califórnia muitos anos antes, limpas e acabadas de lubrificar para a ocasião. Sorriu ante a ironia de ser justamente o sobrinho de Eulália o primeiro a usá-las. As testemunhas e os padrinhos inspeccionaram as armas e carregaram-nas. Tinham acordado que não seria um duelo ao primeiro sangue; ambos os combatentes teriam direito a disparar à vez, mesmo que estivessem feridos, desde que o médico o autorizasse. Moncada escolheu a pistola antes, porque as armas não eram suas, após o que tornaram a deitar-se sortes para decidir quem disparava primeiro - também Moncada - e se mediram os quinze passos de distância que haviam de separar os adversários.

Rafael Moncada e Diego de La Vega enfrentaram-se, por fim. Nenhum dos dois era cobarde, mas estavam pálidos, com as camisas empapadas de suor gelado. Diego tinha chegado àquele ponto por raiva e Moncada por orgulho; já era tarde, não podiam considerar a possibilidade de retroceder. Nesse momento compreenderam que iam jogar a vida sem estarem seguros da causa. Tal como Bernardo fizera ver a Diego, o duelo não era pela bengalada que Moncada lhe aplicara, mas sim por Juliana, e, embora Diego o tivesse negado enfaticamente, no fundo sabia que ele tinha razão. Uma carruagem fechada esperava a duzentas varas para levar com a maior discrição possível o cadáver do vencido. Diego não pensou nos pais nem em Juliana. No instante em que tomava posição, com o corpo de perfil para apresentar menor superfície ao seu contendor, a imagem de Coruja Branca acudiu-lhe à mente com tal clareza que a viu ao pé de Bernardo. A sua estranha avó estava de pé, com a mesma atitude e o mesmo manto de pele de coelho com que se despedira deles, quando haviam partido da Califórnia. Coruja Branca levantou o seu bastão de xamã num gesto altivo, que ele a vira fazer muitas vezes, e sacudiu-o no ar com firmeza. Nessa altura sentiu-se invulnerável, o medo desapareceu por encanto e pôde olhar Moncada no rosto.

Uma das testemunhas, nomeada director do combate, bateu as palmas uma vez para se prepararem. Diego respirou fundo e enfrentou sem pestanejar a pistola do outro, que se elevava até à posição de tiro. As mãos do director bateram palmas duas vezes para apontarem. Diego sorriu a Bernardo e à avó, preparando-se para o disparo. As mãos bateram três palmas e Diego viu o clarão, ouviu a explosão de pólvora e sentiu simultaneamente a dor escaldante no braço esquerdo.

O jovem vacilou e, por um longo instante, pareceu que ia cair, enquanto a manga da camisa se lhe encharcava de sangue. Naquele brumoso amanhecer, uma ténue aguarela, onde os contornos de árvores e homens se esfumavam, a mancha vermelha brilhava como laca. O director indicou a Diego que dispunha só de um minuto para responder ao disparo do adversário. Ele disse que sim com a cabeça e colocou-se em posição de disparar com a mão direita, enquanto lhe gotejava sangue da esquerda, que pendia inerte. Em frente dele, Moncada, transtornado, a tremer, virou-se de perfil, de olhos fechados. O director bateu uma vez as palmas e Diego levantou a arma; duas e apontou; três. A quinze passos de distância, Rafael Moncada ouviu o disparo e o seu corpo sofreu o impacte de um tiro de canhão. Caiu de joelhos no chão e passaram vários segundos antes que se desse conta de que estava ileso: Diego disparara para o chão. Nessa altura vomitou, tiritando como quem tivesse febre. Os seus padrinhos, envergonhados, aproximaram-se para o ajudar a levantar-se e adverti-lo em voz baixa de que tinha de se controlar. Entretanto, Bernardo e Manuel Escalante ajudavam o médico a rasgar o tecido da camisa de Diego, que se mantinha de pé, aparentemente sereno. A bala tinha roçado a parte de trás do braço sem tocar o osso e sem danificar demasiado o músculo. O médico aplicou-lhe uma compressa e ligou-o para estancar o sangue, até poder lavá-lo e cosê-lo com comodidade mais tarde. Tal como exigia a etiqueta do duelo, os combatentes apertaram a mão. Tinham lavado a honra, não havia ofensas pendentes.

- Agradeço ao céu que a sua ferida seja leve, cavalheiro - disse Rafael Moncada, já no pleno domínio dos nervos. - E peço-lhe desculpas por ter batido no seu criado.

- Aceito-as, senhor, e lembro-lhe que Bernardo é meu irmão - respondeu Diego.

Bernardo amparou-o pelo braço são e levou-o quase ao colo para o coche. Mais tarde, Tomás de Romeu perguntou-lhe para que tinha desafiado Moncada se não estava disposto a disparar sobre ele. Diego respondeu-lhe que nunca pretendera ficar com um morto na memória, que lhe arruinaria o sono; só queria humilhá-lo.

Acordaram que nada se diria do duelo a Juliana e Isabel - era assunto de homens e não se devia ofender a sensibilidade feminina -, mas nenhuma das raparigas acreditou na versão de que Diego tinha caído do cavalo. Isabel tanto massacrou Bernardo que este acabou por lhe contar com uns quantos sinais o sucedido. «Nunca percebi isso da honra masculina. É preciso ser bem tolo para arriscar a vida por uma insignificância», comentou a rapariga, mas estava impressionada, conforme Bernardo pôde apreciar, porque com as emoções fortes ficava vesga. A partir desse instante, Juliana, Isabel e até Nuria lutavam pelo privilégio de levar a comida a Diego. O médico tinha-lhe ordenado descanso por uns dias, para evitar complicações. Foram os quatro dias mais felizes da vida do jovem; de bom grado se teria batido em duelo uma vez por semana contanto que tivesse a atenção de Juliana. O seu quarto enchia-se de uma luz sobrenatural quando ela entrava. Esperava-a com um elegante roupão de noite, recostado num cadeirão, com um livro de sonetos nos joelhos, fingindo ler, embora, na realidade, tivesse estado a contar os minutos da sua ausência. Nessas ocasiões doía-lhe tanto o braço que Juliana tinha de lhe dar a sopa à boca, enxaguar-lhe a testa com água de flor de laranjeira e entretê-lo durante horas com a harpa, leituras e jogos de damas.

Distraído pelo ferimento de Diego, que sem ser de gravidade era de cuidado, Bernardo não voltou a pensar que tinha ouvido Rafael Moncada referir Pelayo a não ser vários dias mais tarde, quando soube pela boca de criados que o conde Orloff fora assaltado na própria noite da festa de Eulália de Callís.

O nobre russo tinha ficado no palacete até muito tarde, após o que tomara a sua carruagem para voltar à residência que alugara durante a sua breve estada na cidade. No trajecto, um grupo de foragidos armados de trabucos interceptara o coche numa viela, dominara sem problemas os quatro lacaios e, depois de aturdir o conde com uma tremenda pancada, tirara-lhe a bolsa, as jóias e a capa de pele de chinchila que levava vestida. Atribuiu-se o assalto à guerrilha, embora essa não tivesse sido até então a sua maneira de operar. O comentário geral foi que se tinha perdido todo o resquício de ordem em Barcelona. De que servia ter um salvo-conduto para o recolher obrigatório, se as pessoas de bem já não podiam andar pelas ruas? Era o cúmulo que os Franceses não fossem capazes de manter um mínimo de segurança! Bernardo fez saber a Diego que a bolsa roubada continha o ouro que o conde Orloff ganhara a Rafael Moncada na mesa de jogo. - Tens a certeza de que ouviste Moncada nomear Pelayo? Sei o que estás a pensar, Bernardo. Pensas que Moncada está envolvido no assalto ao conde. É uma acusação demasiado séria, não achas? Faltam-nos provas, mas concordo contigo que é muita coincidência. Mesmo que Moncada não tenha nada a ver com este assunto, de qualquer maneira é um batoteiro. Não quereria vê-lo perto de Juliana, mas não sei como o impedir - comentou Diego.

Em Março de 1812, os Espanhóis aprovaram, na cidade de Cádis, uma Constituição liberal baseada nos princípios da Revolução Francesa, mas com a diferença de que proclamava o catolicismo como religião oficial do país e proibia o exercício de qualquer outra. Tal como disse Tomás de Romeu, não havia razão para lutar tanto contra Napoleão, se, ao fim e ao cabo, estavam de acordo no essencial. «Ficará só no papel, porque Espanha não está preparada para ideias ilustradas», foi a opinião do Chevalier, que acrescentou com um gesto de impaciência que faltavam cinquenta anos a Espanha para entrar no século XIX.

Enquanto Diego passava longas horas a estudar nas vetustas salas do Colégio de Humanidades, a praticar esgrima e a inventar novos truques de magia para seduzir a inalterável Juliana, que tinha voltado a tratá-lo como irmão mal ele se curara do ferimento, Bernardo percorria Barcelona arrastando as pesadas botas do padre Mendoza, às quais nunca chegou a habituar-se. Trazia sempre pendurada ao peito a sua bolsa mágica, onde ia a trança negra de Raio na Noite que já tinha o calor e cheiro da sua pele, fazia parte do seu próprio corpo, era um apêndice do seu coração. A mudez que a si próprio tinha imposto apurara-lhe os outros sentidos; era capaz de se guiar pelo olfacto e pelo ouvido. Era por natureza solitário e na sua qualidade de estrangeiro estava ainda mais sozinho, mas isso agradava-lhe. A multidão não o oprimia, porque no meio do tumulto encontrava sempre um lugar sereno para a sua alma. Sentia saudades dos espaços abertos em que sempre vivera antes, mas também gostava daquela cidade com a patina de séculos, as suas ruas acanhadas, os seus edifícios de pedra, as suas escuras igrejas, que lhe recordavam a fé do padre Mendoza. Preferia o bairro do porto, onde podia olhar o mar e comunicar com os golfinhos de águas remotas. Passeava sem rumo, silencioso, invisível, misturado com as pessoas, tomando o pulso a Barcelona e ao país. Numa dessas vagas excursões voltou a ver Pelayo.

À entrada de uma taberna tinha-se postado uma cigana, suja e formosa, a tentar os passantes com a revelação dos seus destinos, que ela era capaz de discernir nas cartas ou no mapa das mãos, como proclamava num castelhano arrevesado. Momentos antes tinha predito a um marinheiro bêbedo, para o consolar, que numa praia distante o aguardava um tesouro, embora na realidade tivesse visto nas suas palmas da mão a cruz da morte. Pouco mais adiante, o homem deu-se conta de que lhe faltava a bolsa com o dinheiro e deduziu que a zíngara lha roubara. Regressou disposto a recuperar o que era seu. Tinha o olhar cinzento e deitava espumaradas de cão raivoso quando agarrou a suposta ladra pelos cabelos e começou a sacudi-la. Aos seus berros e maldições saíram os fregueses da taberna e puseram-se a aplaudi-lo com apupos endemoninhados, porque se havia coisa que unisse toda a gente era o ódio cego contra os boémios e, além disso, naqueles anos de guerra bastava o mais pequeno pretexto para que a chusma cometesse tropelias. Acusavam-nos de quantos vícios a humanidade conhece, inclusivamente o de roubarem crianças espanholas para as venderem no Egipto. Os avós ainda se lembravam das animadas festas populares em que a Inquisição queimava por igual hereges, bruxas e ciganos. No instante em que o marinheiro abria a sua navalha para marcar a cara da mulher, Bernardo interveio com um empurrão de mula e atirou-o ao chão, onde ele ficou a espernear nos vapores tenazes do álcool. Antes que a assistência reagisse, Bernardo deu a mão à cigana e correram ambos, perdendo-se rua abaixo. Não pararam até ao bairro da Barceloneta, onde estavam mais ou menos a salvo da multidão enraivecida. Ali, Bernardo soltou-a e fez menção de se despedir, mas ela insistiu para que ele a seguisse vários quarteirões, até um carroção pintalgado de arabescos e signos zodiacais, amarrado a um triste cavalo percherão de largas patas, que estava postado numa ruela lateral. Por dentro, aquele veículo, desengonçado pelo abuso de várias gerações de nómadas, era uma caverna de turco, atulhada de objectos estranhos, com uma data de lenços de cor, uma confusão de guizos e um museu de almanaques e imagens religiosas colados até no tecto. Aquilo cheirava a um misto de pachuli e trapos sujos.

Um colchão com pretensiosas almofadas de brocado desbotado constituía o mobiliário. Com um gesto, ela indicou a Bernardo que se instalasse e a seguir sentou-se defronte dele com as pernas encolhidas, a observá-lo com o seu ar duro. Agarrou numa garrafa de álcool, bebeu um gole e passou-lha, ainda agitada pela corrida. Tinha a pele morena, o corpo musculoso, os olhos ferozes e o cabelo tingido com alfena. Estava descalça, vestida com duas ou três compridas saias de folhos, blusa desbotada, colete curto apertado à frente com laços cruzados, xaile de franjas pelos ombros e um pano amarrado à cabeça, sinal das mulheres casadas da sua tribo, embora ela fosse viúva. Nos seus pulsos tilintava uma dúzia de pulseiras, nos tornozelos vários guizos de prata e na testa umas moedas de ouro cosidas ao lenço.

Usava o nome de Amália entre os gadje, quer dizer, os que não eram ciganos. Recebera da mãe outro nome à nascença, que só ela conhecia e cuja finalidade era enganar os maus espíritos, mantendo a verdadeira identidade da menina em segredo. Tinha também um terceiro nome, que empregava entre os membros da sua tribo. Ramón, o homem da sua vida, fora assassinado à paulada por uns lavradores num mercado de Lérida, acusado de roubar galinhas. Amara-o desde criança. As famílias de ambos combinaram o casamento quando ela tinha apenas onze anos. Os sogros pagaram um elevado preço por ela, porque possuía boa saúde e carácter firme, estava bem treinada para os trabalhos domésticos e, além disso, era uma verdadeira drabardi: tinha nascido com o dom natural de adivinhar a sorte e curar com encantamentos e ervas. Com essa idade parecia um gato esquálido, mas a beleza não contava nada na escolha de uma esposa. O marido teve uma agradável surpresa quando aquele montão de ossos se converteu numa mulher atraente, mas, por outro lado, sofreu a grave desilusão de que Amália não podia ter filhos. O seu povo considerava as crianças uma bênção e um ventre seco era motivo de divórcio, mas Ramón amava-a demasiado.

A morte do marido mergulhara-a num longo luto, do qual nunca viria a recompor-se. Não devia mencionar o nome do defunto, para não o chamar do outro mundo, mas em segredo chorava todas as noites por ele.

Havia séculos que o seu povo vagueava pelo mundo, perseguido e odiado. Os antepassados da sua tribo tinham saído da índia mil anos antes e atravessado toda a Europa e a Ásia antes de irem parar a Espanha, onde os tratavam tão mal como em outros sítios, mas o clima prestava-se um pouco melhor à vida errante. Estabeleceram-se no Sul, onde restavam poucas famílias transumantes como a de Amália. Aquela gente tinha aguentado tantas desilusões que já não confiava nem na própria sombra, pelo que a inesperada intervenção de Bernardo comoveu a alma da cigana. Só podia ter contactos com um gadje para fins comerciais, caso contrário punha em perigo a pureza da sua raça e as suas tradições. Por elementar prudência, os boémios mantinham-se marginalizados, nunca confiavam em estrangeiros e reservavam a sua lealdade apenas para o clã, mas ela achou que aquele jovem não era exactamente um gadje: vinha de outro planeta, era forasteiro em todo o lado. Talvez fosse cigano de uma tribo perdida.

Calhou Amália ser irmã de Pelayo, conforme Bernardo viria a descobrir nesse mesmo dia ao entrar no carroção. Pelayo não reconheceu o índio, porque na noite em que fora surpreendido a cantar em italiano para Juliana, por encomenda de Moncada, só tivera olhos para Diego, cuja espada lhe aguilhoava o pescoço. Amália explicou o acontecido a Pelayo, em romani, a sua língua de sons quebradiços, derivada do sânscrito. Pediu-lhe desculpa por ter violado o tabu de não se relacionar com gadjes. Essa grave falta podia conduzi-la a marimé, estado de impureza, que merecia o repúdio da sua comunidade, mas esperava que as normas se tivessem relaxado desde o começo da guerra. O clã sofrera muito nesses anos e as famílias tinham-se dispersado.

Pelayo chegou à mesma conclusão e, em vez de increpar a irmã, como era costume, agradeceu a Bernardo sem estardalhaços. Estava tão surpreendido como ela perante a bondade do índio, porque nunca nenhum estranho os tinha tratado bem. Os irmãos aperceberam-se de que Bernardo era mudo, mas não caíram no erro comum de o considerarem também surdo ou atrasado. Faziam parte de um grupo que se sustentava a custo, com qualquer ocupação que lhes viesse parar às mãos, quase sempre vendendo e domando cavalos, curando-os também se estivessem doentes ou acidentados. Ganhavam a vida com as suas pequenas forjas, trabalhando metais, ferro, ouro e prata. Fabricavam desde ferraduras até espadas e jóias. A guerra deslocava-os com frequência, mas, por outro lado, isso convinha-lhes porque, no furor de se matarem uns aos outros, tanto Franceses como Espanhóis os ignoravam. Aos domingos e outros dias feriados montavam uma esburacada barraca nas praças e faziam números de circo. Bernardo viria a conhecer muito em breve o resto do grupo, no qual avultava Rodolfo, um gigante coberto de tatuagens, que enrolava uma cobra grossa ao pescoço e levantava um cavalo nos braços. Tinha mais de sessenta anos, sendo o mais velho da numerosa família e, por conseguinte, o de maior autoridade. Petrina contribuía com o número forte do patético circo dominical. Era uma minúscula menina de nove anos, que se dobrava como um lenço para se introduzir, toda ela, numa barrica de guardar azeitonas. Pelayo fazia acrobacias a galope sobre um dos cavalos, e outros membros da família deleitavam o público lançando adagas uns aos outros de olhos vendados. Amália vendia rifas, lia o horóscopo e adivinhava a sina numa clássica bola de cristal com tão certeira intuição que ela própria se assustava com a sua lúcida pontaria, sabendo que a capacidade de decifrar o futuro costuma ser uma maldição; visto que não se pode mudar o que há-de acontecer, mais vale ignorá-lo.

 

Mal Diego de La Vega soube que Bernardo tinha feito amizade com os ciganos, insistiu em conhecê-los, porque pretendia averiguar os contratos de Pelayo com Rafael Moncada. Não imaginou que ia afeiçoar-se a eles e sentir-se tão bem na sua companhia. Nessa época, em Espanha, a maior parte das tribos do povo Rom, como a si próprios se chamam os boémios, viviam de maneira sedentária. Estabeleciam os seus acampamentos nos arrabaldes de povoações e cidades. Pouco a pouco, começavam a fazer parte da paisagem, até que a população local se acostumava a eles e deixava de os perseguir, embora nunca os aceitasse. Na Catalunha, em contrapartida, não havia acampamentos fixos; os Rom da zona eram nómadas. A tribo de Pelayo e Amália era a primeira que se instalava com a intenção de ficar; havia três anos que estava no mesmo lugar. Diego apercebeu-se desde o primeiro momento de que não convinha fazer-lhes perguntas sobre Moncada nem sobre qualquer outro assunto, porque aquela gente tinha muito boas razões para ser desconfiada e guardar os seus segredos. Uma vez completamente cicatrizada a costura do braço e obtido o perdão de Pelayo pela picada que lhe fizera no pescoço com a espada, Diego conseguiu que ele lhe permitisse participar com Bernardo no improvisado circo. Fizeram uma breve demonstração, que não saiu tão vistosa como esperavam, porque Diego ainda tinha o braço fraco, mas foi suficiente para que os integrassem como acrobatas. Com a ajuda do resto da companhia fabricaram um engenhoso emaranhado de postes, cordas e trapézios, inspirado no cordame do Madre de Dios. Os jovens apareciam na pista de capa negra, que despiam com um gesto olímpico, para ficarem em colas da mesma cor. Nessa figura voavam pelos ares sem precauções de maior, porque o tinham feito antes no velame dos barcos, ao dobro da altura e balançando sobre as ondas.

Diego também fazia desaparecer uma galinha morta, que a seguir tirava viva do decote de Amália, e com o chicote apagava uma vela colocada sobre a cabeça do gigantesco Rodolfo, sem lhe perturbar os cabelos. Estas actividades nunca eram comentadas fora do âmbito dos ciganos, porque a tolerância de Tomás de Romeu tinha limites e não as teria certamente aprovado. Eram muitas as coisas que aquele cavalheiro ignorava sobre o seu jovem hóspede.

Um desses domingos, Bernardo assomou pela cortina dos artistas e viu que Juliana e Isabel, acompanhadas pela ama, se achavam entre o público. Ao voltarem da missa, onde Nuria insistia em levá-las, apesar de a ideia não ser do agrado de Tomás de Romeu, as meninas tinham visto o circo e insistiram em entrar. A barraca, feita de pedaços amarelecidos de velas abandonadas no porto, tinha uma pista central coberta de palha, umas banquetas de pau para os espectadores de qualidade e um espaço ao fundo para a chusma de pé. Era no círculo de palha que o gigante levantava o cavalo, Amália enfiava Petrina na barrica de azeitonas e Diego e Bernardo subiam aos trapézios. Era ali mesmo que se levavam a cabo, de noite, as lutas de galos que Pelayo organizava. Não era lugar onde Tomás de Romeu tivesse querido ver as filhas, mas Nuria era incapaz de resistir quando Juliana e Isabel se aliavam para lhe vergar a vontade.

- Se Dom Tomás sabe que estamos metidos nisto, manda-nos de volta para a Califórnia no primeiro navio disponível - sussurrou Diego a Bernardo ao ver as meninas sob a barraca.

Nessa altura, Bernardo recordou-se da máscara que tinha usado para assustar os marinheiros do Madre de Dios. Fez uns buracos para os olhos em dois lenços de Amália e com eles taparam as caras, rezando para que as irmãs De Romeu não os reconhecessem. Diego decidiu abster-se das suas demonstrações de magia, porque as executara muitas vezes na presença delas. De qualquer modo, ficou com a impressão de que o haviam reconhecido, até que nessa mesma tarde ouviu Juliana comentar os pormenores do espectáculo com Agnès Duchamp. Falou-lhe em cochichos, às escondidas de Nuria, dos intrépidos acrobatas vestidos de preto, que arriscavam a vida nos trapézios, e acrescentou que daria um beijo a cada um só para lhes ver as caras.

Diego não teve a mesma sorte com Isabel. Estava a festejar a partida com Bernardo, quando a rapariguinha entrou no seu quarto sem se anunciar, como costumava fazer, apesar da estrita proibição do pai de confraternizar com Diego. Postou-se diante deles com os braços na cintura e anunciou-lhes que conhecia a identidade dos trapezistas e estava pronta a revelá-la, a menos que, no domingo seguinte, a levassem a conhecer a companhia dos boémios. Desejava certificar-se da autenticidade das tatuagens do gigante, que pareciam pintadas, e da letárgica cobra, que podia muito bem estar embalsamada.

Nos meses seguintes, Diego, cujo sangue ardia com o ímpeto dos dezassete anos, encontrou alívio no regaço de Amália. Encontravam-se às escondidas com um risco imenso. Ao fazer amor com um gadje ela violava um tabu fundamental, que podia pagar muito caro. Casara-se virgem, como era costume entre as mulheres do seu povo, e fora fiel ao marido até à morte deste. A viuvez tinha-a deixado num estado suspenso, em que ainda era nova, mas recebia o tratamento de uma avó, até que Pelayo, encarregado de lhe arranjar outro marido quando ela enxugasse as últimas lágrimas do luto, cumprisse o seu encargo. No clã a vida decorria à vista dos outros. Amália não dispunha de tempo ou espaço para estar sozinha, mas às vezes conseguia marcar encontro com Diego em qualquer viela afastada, e então aninhava-o nos braços, sempre com a ansiedade insuportável de serem surpreendidos. Não o enredava com exigências românticas, porque o grosseiro assassínio do marido a tinha resignado para sempre à solidão. Tinha o dobro da idade de Diego e estivera casada durante mais de vinte anos, mas não era entendida em assuntos amorosos. Com Ramón compartilhara uma ternura profunda e fiel, sem repentes de paixão. Tinham-se desposado com um rito singelo em que compartilharam um pedaço de pão barrado com umas gotas de sangue de ambos. Não era preciso mais. O simples facto de tomarem a decisão de viver juntos santificava a união, mas ofereceram um generoso banquete de núpcias, com música e dança, que durou três dias inteiros. Depois, instalaram-se a um canto da tenda comunal. A partir desse momento não se voltaram a separar, percorreram os caminhos da Europa, passaram fome nos tempos de mais pobreza, fugiram de muitas agressões e festejaram os bons momentos. Tal como Amália contou a Diego, a sua vida tinha sido boa. Sabia que Ramón a aguardava intacto em qualquer lado, milagrosamente recuperado do seu martírio. Desde que vira o seu corpo despedaçado pelos chuços e pás dos assassinos, apagara-se em Amália a chama que, antigamente, a iluminava por dentro e não voltara a pensar no gozo dos sentidos ou no consolo de um abraço. Decidira convidar Diego para o seu carroção por simples amizade. Vira-o alvoroçado por falta de mulher e ocorrera-lhe aliviá-lo, nada mais. Corria o risco de que o espírito do seu marido aparecesse, transformado em mulo, para a castigar por aquela infidelidade póstuma, mas esperava que Ramón compreendesse as suas razões: ela não o fazia por lascívia, mas sim por generosidade. Revelou-se uma amante pudica, que fazia amor às escuras, sem tirar a roupa. Às vezes chorava em silêncio. Nessa altura, Diego enxugava-lhe as lágrimas com beijos delicados, comovido até aos ossos, e assim aprendeu a decifrar alguns dos recônditos mistérios do coração feminino. Apesar das severas normas sexuais da sua tradição, talvez Amália tivesse feito o mesmo favor a Bernardo por desinteressada simpatia, se ele lho tivesse insinuado, mas este nunca o fez, porque vivia acompanhado pela lembrança de Raio na Noite.

Manuel Escalante observou demoradamente Diego de La Vega antes de se decidir a falar-lhe do assunto que mais lhe importava na vida. Ao princípio desconfiara da simpatia arrebatadora do jovem. Para ele, homem de uma seriedade fúnebre, a ligeireza de Diego constituía uma falha de carácter, mas viu-se obrigado a rever essa opinião quando presenciou o duelo contra Moncada. Sabia que o propósito do duelo não é vencer, mas sim enfrentar a morte com nobreza para descobrir a qualidade da própria alma. Para o mestre, a esgrima - e por maioria de razão um duelo - era uma fórmula infalível para conhecer os homens. Na febre do combate ficavam expostas as essências fundamentais da personalidade: de pouco valia ser um especialista no manejo do aço, se não se estivesse revestido de coragem e serenidade para arrostar com o perigo. Deu-se conta de que nos vinte e cinco anos que levava de ensino da sua arte nunca tivera um aluno como Diego. Vira outros com talento e dedicação similares, mas nenhum com o coração tão firme como a mão que empunhava o sabre. A admiração que sentia pelo jovem tornou-se em afecto, e a esgrima converteu-se numa desculpa para o ver diariamente. Esperava por ele, pronto, muito antes das oito, mas por disciplina e orgulho não aparecia na sala nem um minuto antes dessa hora. A lição realizava-se sempre com a maior formalidade e quase em silêncio; contudo, nas conversas que mantinham a seguir, compartilhava com Diego as suas ideias e as suas íntimas aspirações. Terminada a aula, lavavam-se com uma toalha molhada, mudavam de roupa e subiam ao segundo andar, onde o mestre morava. Juntavam-se numa divisão escura e modesta, sentados em incómodas cadeiras de madeira trabalhada, rodeados de livros em antigas estantes e armas polidas expostas nas paredes. O mesmo criado velho que murmurava sem cessar, como em eterna prece, servia-lhes café retinto em chavenazinhas de porcelana rococó. Depressa passaram dos assuntos relacionados com a esgrima a outros. A família do mestre, espanhola e católica havia quatro gerações, não podia, contudo, gabar-se de limpeza de sangue, porque era de origem judaica. Os bisavôs tinham-se convertido ao catolicismo e mudado de nome para escaparem às perseguições. Tão bem o fizeram, que conseguiram enganar o desapiedado acosso da Inquisição, mas no processo perderam a fortuna acumulada em mais de cem anos de bons negócios e temperança no viver. Quando Manuel nascera, apenas existia a vaga lembrança de um passado de bem-estar e requinte; nada restava das propriedades, das obras de arte, das jóias. O pai ganhava a vida num armazém menor das Astúrias, dois dos irmãos eram artesãos e o terceiro perdera-se no Norte de África. O facto de os parentes próximos se dedicarem ao comércio e a ofícios manuais envergonhava-o. Considerava que as únicas ocupações dignas de um senhor são improdutivas. Não era o único. Na Espanha daqueles anos só os pobres camponeses trabalhavam; cada um deles alimentava mais de trinta ociosos. Diego tomou conhecimento do passado do mestre muito mais tarde. Quando este lhe falou de La Justicia e lhe mostrou pela primeira vez o seu medalhão, nada lhe disse das suas origens judaicas. Nesse dia estavam, como todas as manhãs, na sala a tomar café. Manuel Escalante tirou do pescoço uma fina corrente com uma chave, dirigiu-se a um cofre de bronze, que havia em cima da sua secretária, abriu-o solenemente e mostrou o conteúdo ao seu aluno: um medalhão de ouro e prata.

- Já vi isto antes, mestre... - murmurou Diego, reconhecendo-o.

- Onde?

- Trazia-o Santiago de León, o comandante do navio que me trouxe para Espanha.

- Eu conheço o comandante De León. Pertence, como eu, a La Justicia.

Era outra das muitas sociedades secretas que havia na Europa naquela época. Fora fundada duzentos anos atrás como reacção contra o poder da Inquisição, temível braço da Igreja que, desde 1478, defendia a unidade espiritual dos católicos, perseguindo judeus, luteranos, hereges, sodomitas, blasfemos, feiticeiros, adivinhos, invocadores do demónio, bruxos, astrólogos e alquimistas, assim como os que liam livros proibidos. Os bens dos condenados passavam para as mãos dos seus acusadores, de modo que muitas vítimas arderam numa pira por serem ricos e não por outras razões. Durante mais de trezentos anos o fervor religioso do povo celebrou os autos-de-fé, públicas orgias de crueldade nas quais se executavam os condenados; contudo, no século xviii, iniciou-se a decadência da Inquisição. Os processos continuaram por uns tempos, mas à porta fechada, até que foi abolida. O trabalho de La Justicia tinha consistido em salvar os acusados, tirá-los do país e ajudá-los a começar uma nova vida noutro lado. Distribuíam alimentos e roupa, arranjavam documentos falsos e, quando era possível, pagavam resgate. Na época em que Manuel Escalante recrutou Diego, a orientação de La Justicia tinha mudado: já não combatia só o fanatismo religioso, como também outras formas de opressão, como a dos Franceses em Espanha e a escravatura no estrangeiro. Tratava-se de uma organização hierárquica, com uma disciplina militar, onde não havia lugar para mulheres. Os graus de iniciação marcavam-se com cores e símbolos, as cerimónias eram levadas a cabo em lugares ocultos, e a única maneira de ser admitido era por intermédio de outro membro, que servia de padrinho. Os participantes juravam colocar as suas vidas ao serviço das nobres causas abraçadas por La Justicia, não aceitar pagamento algum pelos seus serviços e obedecer às ordens dos superiores. O juramento era de uma elegante simplicidade: procurar a justiça, alimentar o faminto, vestir o nu, proteger viúvas e órfãos, hospedar o estrangeiro e não derramar sangue de inocentes.

Manuel Escalante não teve dificuldade em convencer Diego de La Vega a candidatar-se a La Justicia. O mistério e a aventura eram tentações irresistíveis para ele; a sua única dúvida referia-se à obediência cega, mas, quando se convenceu de que ninguém lhe ordenaria nada contra os seus princípios, superou esse escolho. Estudou os textos cifrados que o mestre lhe deu e submeteu-se ao treino de uma forma única de combate que exigia agilidade mental e extraordinária destreza física. Consistia numa série precisa de movimentos com espada e adagas, que era levada a cabo sobre um plano marcado no chão, chamado Círculo do Mestre. O mesmo desenho estava reproduzido nos medalhões de ouro e prata que identificavam os membros da organização. Primeiro, Diego aprendeu a sequência e a técnica do combate, após o que se dedicou durante meses a praticar com Bernardo, até ser capaz de lutar sem pensar. Tal como lhe indicara Manuel Escalante, só estaria pronto quando pudesse agarrar com a mão uma mosca em pleno voo, com um só gesto casual. Não havia outra forma de vencer um membro antigo de La Justicia, como teria de fazer para ser aceite.

Chegou, por fim, o dia em que Diego ficou preparado para a cerimónia de iniciação. O mestre de esgrima conduziu-o por lugares ignorados até de arquitectos e construtores que se gabavam de conhecer a cidade como as palmas das mãos. Barcelona crescera sobre camadas sucessivas de ruínas; por ela passaram Fenícios e Gregos sem deixar demasiados vestígios, chegando depois os Romanos, que impuseram o seu selo e foram substituídos por Godos; finalmente, os Sarracenos conquistaram-na, nela tendo permanecido durante vários séculos. Todos eles contribuíram para a sua complexidade; do ponto de vista arqueológico, Barcelona era uma tarte de mil-folhas. Os Hebreus cavaram moradias, residências e túneis para se refugiarem dos agentes da Inquisição. Abandonadas pelos judeus, estas passagens misteriosas converteram-se em cavernas de bandidos, até que, pouco a pouco, La Justicia e outras seitas secretas se apoderaram das entranhas profundas da cidade. Diego e o seu mestre percorreram um labirinto de sinuosas ruelas, internaram-se no bairro antigo, cruzaram portais ocultos, desceram escadarias desgastadas pelo tempo, introduziram-se em meandros subterrâneos, penetraram em cavernosas ruínas e atravessaram canais, onde não corria água, mas sim um líquido viscoso e escuro que cheirava a fruta podre. Por fim, encontraram-se diante de uma porta marcada com sinais cabalísticos, que se abriu diante deles quando o mestre deu a contra-senha, e entraram numa sala com pretensões de templo egípcio. Diego viu-se rodeado por uma vintena de homens ataviados com vistosas túnicas de cores e adornados com símbolos diversos. Todos traziam medalhões similares ao do mestre Escalante e ao de Santiago de León. Estava no tabernáculo da seita, no coração mesmo de La Justicia. O rito prolongou-se por toda a noite e durante essas longas horas Diego superou uma a uma as provas a que foi submetido. Num recinto adjacente, talvez as ruínas de um templo romano, estava o Círculo do Mestre gravado no chão. Um homem adiantou-se para se confrontar com Diego e os outros colocaram-se em volta, como juízes. Apresentou-se como Júlio César, o seu nome de código. Despojaram-se ambos das camisas e do calçado, ficando apenas de calças. A luta exigia precisão, velocidade e sangue-frio. Atacavam-se com afiados punhais, como se a intenção fosse ferir de morte. Cada estocada era a fundo, mas na última fracção de segundo tinham de deter o golpe no ar. A menor arranhadura no corpo do outro equivalia a ser imediatamente eliminado. Não podiam sair do desenho inscrito no pavimento. A vitória pertencia a quem conseguisse assentar ambos os ombros do outro no solo, mesmo ao centro do círculo.

Diego treinara-se durante meses e tinha grande confiança na sua agilidade e resistência, mas, mal se iniciou o combate, deu-se conta de que não possuía nenhuma vantagem sobre o seu contendor. Júlio César tinha uns quarenta anos, era magro e mais baixo que Diego, mas muito forte. Postado com os pés e os cotovelos afastados, o pescoço tenso, todos os músculos do torso e braços à vista, as veias inchadas, a adaga a brilhar na mão direita, mas o rosto em completa calma, era um adversário temível. A uma ordem começaram os dois a girar dentro do círculo, procurando o melhor ângulo para atacar. Diego foi o primeiro a fazê-lo, lançando-se de frente, mas o outro deu um salto, uma volta no ar, como se voasse, e caiu atrás dele, mal lhe dando tempo para se voltar e agachar-se, a fim de evitar o gume da arma que se abatia sobre si. Três ou quatro passes depois, Júlio César passou a adaga para a mão esquerda. Diego também era ambidextro, mas nunca lhe calhara confrontar-se com ninguém que o fosse e, por um instante, ficou desconcertado. O seu contendor aproveitou para dar um salto e atirar-lhe um pontapé ao peito que o deitou por terra; Diego ressaltou de imediato e, utilizando o impulso, assestou-lhe uma facada directa à garganta, que, caso se tratasse de uma luta real, o teria degolado, mas a sua mão deteve-se tão próximo do seu objectivo que julgou tê-lo cortado. Como os juízes não intervieram, supôs que não o ferira, mas não o pôde verificar, porque o opositor tinha caído sobre ele. Enredaram-se numa luta corpo a corpo, defendendo-se ambos da mão com a adaga que o outro empunhava, enquanto com as pernas e o braço livre procuravam dar a volta ao inimigo e deitá-lo de costas. Diego conseguiu soltar-se e voltaram a rodar, preparando-se para novo embate. Diego sentiu que ardia, estava vermelho, coberto de suor, mas o seu adversário nem sequer ofegava e o seu rosto continuava tão sereno como no início. Vieram-lhe à ideia as palavras de Manuel Escalante: nunca combater com ira. Respirou fundo um par de vezes, dando a si mesmo tempo para acalmar, sem perder de vista cada movimento de Júlio César. Desanuviou-se-lhe a mente e deu-se conta de que, tal como ele não estava preparado para um lutador ambidextro, o membro de La Justicia tão-pouco o estava. Mudou a adaga de mão, com a mesma rapidez exigida para os truques de magia de Galileo Tempesta, e atacou antes que o outro se apercebesse do sucedido. Apanhado de surpresa, este deu um passo atrás, mas Diego meteu-lhe um pé entre as pernas, fazendo-o perder o equilíbrio. Assim que caiu, Diego precipitou-se sobre ele e espalmou-o, carregando-lhe no peito com o braço direito, enquanto se defendia com a mão esquerda da adaga inimiga. Por um minuto empenharam-se com todas as suas forças, os músculos retesados como cabos de aço, os olhos cravados nos do outro, os dentes cerrados. Diego não só tinha de o manter no solo, como de o arrastar até ao centro do círculo, tarefa difícil, porque o outro não estava disposto a permiti-lo. Pelo canto do olho calculou a distância, que lhe pareceu imensa; nunca uma vara fora tão comprida. Não havia mais que uma forma de o fazer. Girou sobre si mesmo e Júlio César ficou por cima dele. O homem não conseguiu evitar um grito de triunfo, porque se viu em vantagem definitiva. Com um esforço sobre-humano, Diego rodou de novo e o seu contendor ficou exactamente sobre a marca no chão que assinalava o centro do círculo. A serenidade de Júlio César alterou-se de forma quase imperceptível, mas foi suficiente para que Diego percebesse que tinha ganho. Com um último empurrão conseguiu assentar-lhe ambos os ombros no solo.

- Bem feito - disse Júlio César com um sorriso, largando a sua adaga.

Depois, teve de enfrentar outros dois com a espada. Amarraram-lhe uma mão às costas, para dar vantagem aos seus adversários, porque nenhum daqueles homens sabia tanto de esgrima como ele. Manuel Escalante tinha-o preparado muito bem e conseguiu vencê-los em menos de dez minutos. Às provas físicas seguiram-se as intelectuais. Depois de demonstrar que conhecia bem a história de La Justicia, apresentaram-lhe complicados problemas, para os quais tinha de propor soluções originais, que exigiam astúcia, coragem e conhecimento. Por último, quando ultrapassou com êxito todos os obstáculos, conduziram-no a um altar. Estavam ali expostos os símbolos que deveria venerar: um pão, uma balança, uma espada, um cálice e uma rosa. O pão significava o dever de ajudar os pobres; a balança representava a determinação de lutar pela justiça; a espada encarnava a coragem; o cálice continha o elixir da compaixão; a rosa recordava aos membros da sociedade secreta que a vida não é só sacrifício e trabalho, também é bela e, por isso, deve ser defendida. Ao concluir a cerimónia, o mestre Manuel Escalante, na sua qualidade de padrinho, colocou um medalhão a Diego.

- Qual será o seu nome de código? - perguntou o Sublime Defensor do Templo.

- Zorro - replicou Diego sem vacilar.

Não tinha pensado nisso, mas naquele mesmo instante recordou com clareza absoluta os olhos coloridos da raposa que vira noutro rito de iniciação, muitos anos antes, nos bosques da Califórnia.

- Bem-vindo, Zorro - disse o Sublime Defensor do Templo, e todos os membros repetiram o seu nome em uníssono.

Diego de La Vega estava tão eufórico pelas provas superadas, tão confundido pela solenidade dos membros da seita e tão entontecido com os complicados passos da cerimónia e os altissonantes nomes da hierarquia - Cavaleiro do Sol, Templário do Nilo, Mestre da Cruz, Guardião da Serpente - que não conseguia pensar com clareza. Concordava com os postulados da seita e honrava-o ter sido admitido. Só mais tarde, ao recordar os pormenores e contá-los a Bernardo, acharia o rito um pouco infantil.

Procurou fazer troça de si mesmo por tê-lo levado tão a sério, mas o irmão não se riu, fazendo-lhe ver, ao invés, quão parecidos eram os princípios de La Justicia com o Okahué da sua tribo.

Um mês depois de ser aceite pelo conselho de La Justicia, Diego surpreendeu o seu mestre com uma ideia descabelada: pretendia libertar um grupo de reféns. Cada ataque dos guerrilheiros desencadeava de imediato uma represália dos Franceses. Faziam uma série de reféns, equivalente a quatro vezes a das suas próprias baixas, e enforcavam-nos ou fuzilavam-nos num local público. Este método expedito não dissuadia os Espanhóis, apenas atiçava o ódio, mas feria o próprio coração das desgraçadas famílias apanhadas pelo conflito.

- Desta vez trata-se de cinco mulheres, dois homens e um menino de oito anos, que terão de pagar pela morte de dois soldados franceses, mestre. O padre do bairro já foi morto à porta da sua igreja. Têm-nos no forte e vão fuzilá-los no domingo ao meio-dia - explicou Diego.

- Bem sei, Dom Diego, vi os editais por toda a cidade - respondeu Escalante.

- É preciso salvá-los, mestre.

- Tentá-lo seria uma loucura. A Cidadela é inexpugnável. Além do mais, no caso hipotético de conseguir esse objectivo, os Franceses executariam o dobro ou o triplo de reféns, garanto-lhe.

- Que faz La Justicia numa situação como esta, mestre?

- Às vezes, só resta resignarmo-nos perante o inevitável. Na guerra morrem muitos inocentes.

- Recordá-lo-ei.

Diego não estava disposto a resignar-se, porque, entre outras razões, Amália era um dos condenados e não podia abandoná-la à sua sorte. Por um daqueles erros do destino, de que as suas cartas se esqueceram de a avisar, a cigana encontrava-se na rua durante a rusga dos Franceses e fora detida juntamente com outras pessoas tão inocentes como ela. Quando Bernardo lhe levou a má notícia, Diego não contemplou os obstáculos que teria de enfrentar; apenas a necessidade de intervir e o prazer irresistível da aventura.

- Visto que é impossível uma pessoa introduzir-se na Cidadela, Bernardo, entrarei no palacete do Chevalier Duchamp. Pretendo ter uma conversa privada com ele. Que achas? Vejo que não te agrada a ideia, mas não me ocorre outra. Sei o que pensas: que esta é uma fanfarronice como a do urso, quando éramos crianças. Não, desta vez é a sério, há vidas humanas pelo meio. Não podemos permitir que fuzilem a Amália. É nossa amiga. Bom, no meu caso é mais do que amiga, mas não se trata disso. Infelizmente, não conto com La Justicia, de modo que precisarei da tua ajuda, irmão. É perigoso, mas não tanto como parece. Ouve-me...

Bernardo ergueu as mãos no gesto de se render e preparou-se para o secundar, como sempre tinha feito. Às vezes, nos momentos de maior cansaço e solidão, pensava que era tempo de regressar à Califórnia e assumir o facto irrevogável de que a infância terminara para ambos. Diego tinha ar de ser um eterno adolescente. Perguntava a si próprio como podiam ser tão diferentes e, contudo, gostarem tanto um do outro. Enquanto a ele o destino lhe pesava nas costas, o irmão tinha a leveza de uma calhandra. Amália, que sabia decifrar os enigmas dos astros, dera-lhes uma explicação para as suas personalidades opostas. Dissera que pertenciam a signos zodiacais diferentes, embora tivessem nascido no mesmo sítio e na mesma semana. Diego era Gémeos e ele era Touro, o que determinava os seus temperamentos. Bernardo ouviu o plano de Diego com a sua habitual paciência, sem manifestar as dúvidas que o assaltavam, porque, no fundo, confiava na inconcebível sorte do irmão. Contribuiu com as suas próprias ideias e puseram-se logo em acção.

Bernardo arranjou maneira de entabular amizade e a seguir embriagar um soldado francês até o deixar inconsciente. Despiu-lhe o uniforme e vestiu-o, casaca azul-escura com colarinho alto encarnado, calção e peitilho branco, polainas pretas e barrete alto. Introduziu-se assim nos jardins do palacete conduzindo um par de cavalos, sem chamar a atenção dos guardas-nocturnos. A vigilância na sumptuosa residência do Chevalier não era extrema, porque a ninguém ocorreria atacá-la. De noite postavam-se guardas com candeias, mas no decurso entediante das horas relaxava-se-lhes a vontade. Diego, vestido com o seu fato preto de acrobata, capa e máscara, indumentária a que ele chamava o seu disfarce de Zorro, aproveitou as sombras para se aproximar do edifício. Numa centelha de inspiração tinha colado um bigode, obtido na arca dos disfarces do circo, uma pincelada negra por cima da boca. A máscara só lhe cobria a parte superior do rosto e receou que o Chevalier pudesse reconhecê-lo; o fino bigode desempenhava a função de distrair e confundir. Serviu-se do chicote para trepar à varanda do segundo andar e, uma vez lá dentro, não lhe foi difícil localizar a ala dos aposentos privados da família, porque tinha acompanhado Juliana e Isabel em várias visitas. Era por volta das três da madrugada, hora tardia a que já não circulavam criados e os guardas cabeceavam nos seus postos. A mansão nada tinha da sobriedade espanhola; estava mobilada à moda francesa, com tantos cortinados, móveis, plantas e estátuas que Diego podia atravessá-la inteira sem ser visto. Teve de percorrer inúmeros corredores e abrir uma vintena de portas antes de dar com o aposento do Chevalier, que se revelou de uma simplicidade inesperada para alguém do seu poder e estirpe.

O representante de Napoleão dormia numa dura cama de soldado, num quarto quase nu, iluminado por um candelabro de três luzes a um canto. Diego sabia, por comentários indiscretos de Agnès Duchamp, que o pai sofria de insónias e recorria ao ópio para descansar. Uma hora antes, o seu criado tinha-o ajudado a despir-se, levara-lhe um xerez e o seu cachimbo de ópio, a seguir instalara-se num cadeirão no corredor, como sempre fazia, para o caso de o seu amo precisar dele de noite. Tinha o sono leve, mas nunca soube que alguém havia passado ao seu lado, roçando-o. Uma vez dentro do quarto do Chevalier, Diego procurou exercer o controlo mental dos membros de La Justicia, porque tinha o coração a galope e a testa molhada. Nas masmorras da Cidadela os presos políticos desapareciam para sempre; era melhor não pensar nas histórias de tortura que circulavam. De repente, a lembrança do pai assaltou-o com a força de um murro. Se ele morresse, Alejandro de La Vega nunca saberia porquê; saberia apenas que o filho fora surpreendido como um vulgar ladrão em casa alheia. Esperou um minuto, até se tranquilizar, e, quando ficou seguro de que não lhe vacilariam a vontade, a voz ou a mão, aproximou-se do catre onde Duchamp descansava no letargo do ópio. Apesar da droga, o francês acordou de imediato, mas, antes que conseguisse gritar, Diego tapou-lhe a boca com a mão enluvada.

- Silêncio, ou morrerá como uma ratazana, Excelência - sussurrou.

Pôs-lhe a ponta da espada no peito. O Chevalier soergueu-se até onde a espada lhe permitiu e indicou com uma inclinação de cabeça que tinha compreendido. Diego expôs-lhe num murmúrio o que pretendia.

- Atribui-me demasiado poder. Se eu ordenar a libertação desses reféns, amanhã o comandante da praça fará outros - redarguiu o Chevalier no mesmo tom.

- Se isso acontecesse, seria uma pena. A sua filha Agnès é uma rapariga linda e não queremos fazê-la sofrer, mas, como Vossa Excelência sabe, na guerra morrem muitos inocentes - declarou Diego.

Levou a mão ao colete de seda, tirou o lenço de renda bordado com o nome de Agnès Duchamp que Bernardo tinha apanhado no lixo e agitou-o diante da cara do Chevalier, que não teve dificuldade em o reconhecer pelo aroma inconfundível a violetas.

- Sugiro-lhe que não chame os guardas, Excelência, porque neste momento os meus homens já estão no quarto da sua filha. Se me acontecer alguma coisa, não voltará a vê-la com vida. Só se retirarão ao receber o meu sinal - disse Diego no tom mais amável do mundo, cheirando o lenço e guardando-o no colete.

- Poderá sair com vida esta noite, mas apresá-lo-emos; nessa altura lamentará ter nascido. Sabemos onde o procurar - resmungou o Chevalier.

- Não me parece, Excelência, porque não sou guerrilheiro e tão-pouco tenho a honra de ser um dos seus inimigos pessoais - sorriu Diego.

- Quem é, então?

- Chiu! Não levante a voz, lembre-se de que Agnès está em boa companhia... O meu nome é Zorro, para o servir - murmurou Diego.

Obrigado pelo seu captor, o francês dirigiu-se à sua mesa e escreveu uma breve nota no seu papel pessoal, ordenando a libertação dos reféns.

- Agradecer-lhe-ia que pusesse o seu selo oficial, Excelência - indicou-lhe Diego.

A contragosto, o outro cumpriu o que lhe era exigido, após o que chamou o seu criado, que assomou ao umbral. Atrás da porta, Diego visava-o com o seu aço, pronto para trespassá-lo à primeira suspeita.

- Manda um guarda com isto à Cidadela e diz-lhe que deve trazer-mo de imediato assinado pelo chefe da praça, para ter a certeza de que serei obedecido. Entendeste? - ordenou o Chevalier.

- Sim, Excelência - tornou o homem, e partiu à pressa. Diego aconselhou o Chevalier a regressar ao seu leito, não fosse arrefecer; a noite estava fria e a espera podia ser longa. Lamentava ter de se impor daquela maneira, acrescentou, mas teria de lhe fazer companhia até lhe devolverem a carta assinada. Não tinha um jogo de xadrez ou de cartas para passar o tempo? O francês não se dignou responder-lhe. Furioso, introduziu-se debaixo das suas cobertas, vigiado pelo mascarado, que se acomodou aos pés da cama como se estivessem entre amigos íntimos. Suportaram-se mutuamente em silêncio por mais de duas horas e, quando Diego começava a temer que alguma coisa tivesse corrido mal, o criado bateu à porta com os nós dos dedos, entregando ao amo o papel assinado por um tal capitão Fuguet.

- Até à vista, Excelência. Peço-lhe que dê os meus cumprimentos à bela Agnès - despediu-se o Zorro.

Esperava que o Chevalier acreditasse na sua ameaça e não armasse alvoroço antes do previsto, mas por precaução amarrou-o e amordaçou-o. Traçou uma grande letra Z com a ponta da espada na parede, após o que disse adeus com uma reverência zombeteira e deslizou pela varanda. Encontrou o cavalo, com os cascos envolvidos em trapos para os silenciar, à sua espera onde Bernardo o escondera. Desapareceu sem provocar alarme, porque àquela hora ninguém circulava pelas ruas de Barcelona. No dia seguinte, os soldados afixaram editais nas paredes dos edifícios públicos anunciando que, como sinal de boa vontade das autoridades, os reféns tinham sido perdoados. Ao mesmo tempo, desencadeou-se uma caçada secreta para dar com o atrevido que dava pelo nome de Zorro. A última coisa que os dirigentes da guerrilha esperavam era um indulto gratuito para os reféns e foi tal o seu desconcerto que durante uma semana não se registaram novos atentados contra os Franceses na Catalunha.

O Chevalier não pôde evitar que corresse a notícia, primeiro entre criados e guardas do palacete, depois por todo o lado, de que um insolente bandido tinha entrado no seu próprio quarto. Os catalães riram-se às gargalhadas do sucedido e o nome do misterioso Zorro andou de boca em boca durante vários dias, até que outros assuntos ocuparam a atenção do povo e ele foi esquecido. Diego ouviu-o no Colégio de Humanidades, nas tabernas e em casa da família De Romeu. Mordia a língua para não se gabar em público e não confessar a sua proeza a Amália. A cigana julgava que se salvara graças ao poder milagroso dos talismãs e amuletos que trazia sempre consigo e à intervenção oportuna do espírito do marido.

 

Barcelona, 1812-1814

Não posso dar-vos mais pormenores sobre a relação de Diego com Amália. O amor carnal é um aspecto da lenda do Zorro que ele não me autorizou a divulgar, não tanto por receio das zombarias ou de ser desmentido, como por um mínimo de galanteria. É bem sabido que nenhum homem bem-amado pelas mulheres se gaba das suas conquistas. Aqueles que o fazem, mentem. Por outro lado, não gosto de esquadrinhar a intimidade alheia. Se esperais das minhas páginas coisas picantes, defraudar-vos-ei. Só posso dizer que na época em que Diego retouçava com Amália, o seu coração estava inteiramente entregue a Juliana. Como eram esses abraços com a cigana viúva? Só se pode imaginá-los. Talvez ela fechasse os olhos e pensasse no marido assassinado, enquanto ele se abandonava a um prazer fugaz com a mente em branco. Esses encontros clandestinos não turvavam o límpido sentimento que a casta Juliana inspirava a Diego; eram compartimentos separados, linhas paralelas que nunca se cruzavam. Receio que, amiúde, tenha sido esse o caso ao longo da vida do Zorro. Observei-o durante três décadas e conheço-o quase tão bem como Bernardo, por isso me atrevo a fazer esta afirmação. Graças ao seu encanto natural - que não é pouco - e à sua pasmosa sorte, foi amado, inclusivamente sem tal se propor, por dúzias de mulheres. Uma vaga insinuação, um olhar de soslaio, um dos seus radiosos sorrisos, bastam em geral para que até aquelas com fama de virtuosas o convidem para trepar à sua varanda nas horas enigmáticas da noite.

Não obstante, o Zorro não se afeiçoa a elas, porque prefere os romances impossíveis. Juraria que, mal desce da varanda e pisa terra firme, esquece a dama que momentos antes abraçava. Nem ele próprio sabe quantas vezes se bateu em duelo com um marido despeitado ou um pai ofendido, mas eu tenho as contas feitas, não por inveja ou ciúme, mas sim por minúcia de cronista. Diego só recorda as mulheres que o martirizaram com a sua indiferença, como a incomparável Juliana. Muitas das suas proezas desses anos foram frenéticas tentativas de chamar a atenção da jovem. Perante ela não assumia o papel de alfenim pusilânime com que enganava Agnès Duchamp, o Chevalier e outras pessoas; pelo contrário, na sua presença enfunava todas as suas penas de pavão real. Teria enfrentado um dragão por ela, mas não os havia em Barcelona, e teve de conformar-se com Rafael Moncada. Já que o mencionamos, parece-me justo prestar homenagem a esta personagem. Em todas as histórias, o vilão é fundamental, porque não há heróis sem inimigos à sua altura. O Zorro teve a sorte imensa de se deparar com Rafael Moncada, caso contrário eu não teria muito que contar nestas páginas.

Juliana e Diego dormiam sob o mesmo tecto, mas levavam vidas separadas e não abundavam ocasiões de se verem naquela mansão de tantos compartimentos vazios. Raras vezes se achavam sozinhos, porque Nuria vigiava Juliana, e Isabel espiava Diego. Às vezes, ele esperava horas para a surpreender sozinha num corredor e acompanhá-la uns quantos passos sem testemunhas. Encontravam-se na casa de jantar à hora da refeição da noite, no salão durante os concertos de harpa, na missa aos domingos e no teatro quando havia peças de Lope de Vega e comédias de Molière, que Tomás de Romeu adorava. Tanto na igreja como no teatro, homens e mulheres sentavam-se separados, de maneira que Diego tinha de se limitar a observar de longe a nuca da sua amada. Morou na mesma casa que a jovem durante mais de quatro anos, perseguindo-a com infinita tenacidade de caçador, sem resultados que valha a pena referir, até que a tragédia atingiu a família e a balança se inclinou a favor de Diego. Antes disso, Juliana recebia as suas atenções com um sentimento tão plácido que era como se não o visse, mas ele precisava de muito pouco para alimentar as suas ilusões. Julgava que a indiferença dela era um estratagema para dissimular os seus verdadeiros sentimentos. Alguém lhe tinha dito que as mulheres costumam fazer essas coisas. Metia pena vê-lo, pobre homem; melhor seria que Juliana o odiasse. O coração é um órgão caprichoso que costuma dar a volta completa, mas um tíbio afecto de irmã é praticamente irrevogável.

Os De Romeu davam passeios a Santa Fé, onde tinham uma propriedade meio abandonada. A casa patriarcal era uma construção quadrada na ponta de um penhasco, onde os avós da falecida esposa de Tomás de Romeu tinham reinado sobre os seus filhos e vassalos. A vista era magnífica. Antigamente, aquelas colinas haviam estado plantadas com vinhas que produziam um vinho capaz de competir com os melhores de França, mas nos anos da guerra ninguém se ocupara delas e agora eram uns troncos ressequidos e roídos da traça. A casa estava invadida pelos famosos ratos de Santa Fé, uns animais corpulentos e de mau carácter que, em tempos de muita necessidade, os camponeses cozinhavam. Com alho-porro, são gostosos. Duas semanas antes de lá ir, Tomás mandava um esquadrão de criados para fumigar os quartos, única forma de fazer retroceder temporariamente os roedores. Essas excursões fizeram-se menos frequentes porque os caminhos se tornaram demasiado inseguros. O ódio do povo sentia-se no ar, como uma respiração pesada, um arquejo de mau agouro que eriçava o couro cabeludo. Tomás de Romeu, como muitos proprietários de terras, não se atrevia a sair da cidade e ainda menos tentava cobrar as rendas dos seus inquilinos devido ao risco de ser degolado. Ali, Juliana lia, tocava música e tentava aproximar-se, como fada benfazeja, dos camponeses para conquistar o seu afecto, com poucos resultados. Nuria lutava contra os elementos e queixava-se de tudo. Isabel entretinha-se pintando aguarelas da paisagem e retratos de pessoas. Referi que era boa desenhadora? Parece que o esqueci, imperdoável omissão, visto que era o seu único talento. Em geral, isso ganhava-lhe mais simpatia entre os humildes que todas as obras de caridade de Juliana. Conseguia a parecença de maneira notável, mas aperfeiçoava os seus modelos, punha-lhes mais dentes, menos rugas e uma expressão de dignidade que raramente possuíam.

Mas voltemos a Barcelona, onde Diego passava o tempo ocupado com as suas aulas, La Justicia, as tabernas onde se reunia com outros estudantes e as suas aventuras «de capa e espada», como lhes chamava por anseio romântico. Entretanto, Juliana levava a vida ociosa das meninas desses anos. Não podia sair, nem para se confessar, sem pau-de-cabeleira; Nuria era a sua sombra. Tão-pouco podia ser vista a falar a sós com homens menores de sessenta anos. Ia aos bailes com o pai e às vezes Diego acompanhava-os, sendo apresentado como o primo das índias. Juliana não manifestava a menor pressa em se casar, apesar de os apaixonados fazerem bicha. O pai tinha o dever de lhe arranjar um bom casamento, mas não sabia como escolher um genro digno da sua maravilhosa filha. Faltava-lhe um par de anos para perfazer os vinte, idade limite para conseguir noivo; se nessa altura ainda o não tivesse, a eventualidade de se casar diminuiria de mês para mês. Com o seu invencível optimismo, Diego fazia os mesmos cálculos e concluía que o tempo agia a seu favor, porque, quando ela visse que estava a murchar, casar-se-ia com ele para não ficar solteirona. Com este curioso argumento procurava convencer Bernardo, o único munido de paciência para o ouvir divagar a toda a hora sobre o seu desesperado amor.

Em finais do ano de 1812, Bonaparte foi derrotado na Rússia. O imperador invadira aquele imenso país com o seu grande exército de quase duzentos mil homens. As invencíveis tropas francesas tinham uma disciplina férrea e deslocavam-se em marcha forçada, muito mais depressa do que os seus inimigos, porque transportavam pouco peso e viviam da terra conquistada. À medida que avançavam para o interior da Rússia, as terras despovoavam-se, os seus ocupantes esfumavam-se, os camponeses queimavam as colheitas. À passagem de Napoleão a terra ficava arrasada. Os invasores entraram triunfantes em Moscovo, onde foram recebidos pela fumarada de um monumental incêndio e pelos fogachos isolados de franco-atiradores ocultos nas ruínas, dispostos a morrer matando. Os Moscovitas, imitando o exemplo dos bravos camponeses, tinham queimado os seus bens antes de evacuarem a cidade. Não ficou ninguém atrás para entregar as chaves a Napoleão, nem um único soldado russo a quem humilhar, apenas algumas prostitutas resignadas a agasalhar os vencedores, já que os seus clientes habituais haviam desaparecido. Napoleão viu-se isolado no meio de um monte de cinzas. Esperou, sem saber o que esperava, e assim passou o Verão. Quando decidiu voltar a França, tinham começado as chuvas e não tardou que o solo russo ficasse coberto de neve dura como granito. O imperador nunca imaginara as terríveis provações que os seus homens teriam de suportar. À flagelação dos cossacos e às emboscadas dos camponeses somaram-se a fome e um frio lunar, que nenhum daqueles soldados alguma vez experimentara. Milhares de franceses, convertidos em estátuas de gelo eterno, ficaram postados ao longo do ignominioso caminho da retirada. Tiveram de comer os cavalos, as botas, por vezes até os cadáveres dos seus companheiros. Só dez mil homens, destroçados pelas privações e pelo desalento, regressaram à pátria. Napoleão soube que a estrela que o alumiara na sua prodigiosa ascensão ao poder começava a apagar-se. Teve de recolher as suas tropas, que ocupavam uma boa parte da Europa. Dois terços das colocadas em Espanha foram retiradas. Os Espanhóis vislumbravam, por fim, um final vitorioso, após anos de cruenta resistência, mas esse triunfo só chegaria dezasseis meses mais tarde.

Nesse ano, na mesma época em que Napoleão lambia as feridas da derrota no regresso a França, Eulália de Callís enviou o sobrinho, Rafael Moncada, às Antilhas, com a missão de expandir o negócio do cacau. Pensava vender chocolate, pasta de amêndoa, conservas de nozes e açúcar aromático a pasteleiros e fabricantes de bombons finos na Europa e nos Estados Unidos. Tinha ouvido dizer que os Americanos gostam muito de doces. A missão do sobrinho consistia em tecer uma rede de contactos comerciais nas cidades mais importantes, de Washington até Paris. Moscovo ficou para segundas núpcias, porque estava em ruínas, mas Eulália confiava que depressa se dissiparia a fumarada da guerra e a capital russa seria reconstruída com o mesmo esplendor de antes. Rafael partiu numa travessia de onze meses, cruzando mares e moendo os rins em eternas cavalgadas, para estabelecer a aromática irmandade do chocolate imaginada por Eulália.

Sem dizer uma palavra sobre as suas intenções, Rafael pediu uma audiência a Tomás de Romeu antes de partir para as Antilhas. Este não o recebeu em sua casa, mas sim no terreno neutro da Sociedade Geográfica e Filosófica, da qual era sócio e onde havia um excelente restaurante no segundo andar. A admiração de Tomás de Romeu pela França não era extensiva à sua requintada cozinha; nada de línguas de canário, ele preferia robustos pratos catalães: escudella, um cozido de levantar um morto, estofai de toro, uma bomba de carne, e a inefável butifarra del obispo, um chouriço de sangue mais preto e gordo que outros. Rafael Moncada, sentado à mesa, defronte do seu anfitrião e de uma montanha de carne e gordura, estava um pouco pálido. Mal provou a comida, porque era delicado de estômago e porque estava nervoso. Esboçou a sua situação pessoal ao pai de Juliana, desde os seus títulos até à sua solvência económica.

- Lamento muito, senhor De Romeu, que nos conhecêssemos na infeliz ocasião do duelo com Diego de La Vega. É um jovem impulsivo e, devo admiti-lo, eu também costumo sê-lo. Excedemo-nos nas palavras e acabámos no campo de honra. Por sorte não teve consequências graves. Espero que isso não pese negativamente na opinião que Vossa Mercê tem de mim... - disse o aspirante a genro.

- De maneira nenhuma, cavalheiro. O propósito de um duelo é lavar a mancha. Uma vez que dois gentis-homens se bateram, não há lugar a rancor entre eles - respondeu o outro com amabilidade, embora não tivesse esquecido os pormenores do sucedido.

À hora do manjar-branco, que naquele restaurante continha tanto açúcar que se colava aos dentes, Moncada expressou o seu desejo de obter a mão de Juliana no regresso da sua viagem. Tomás observara durante longo tempo, sem intervir, a estranha relação entre a filha e aquele tenaz pretendente. Era avesso a falar de sentimentos e nunca fizera o esforço de aproximar-se das filhas; os assuntos femininos desconcertavam-no e preferia delegá-los em Nuria. Vira Juliana tropeçar pelos corredores de pedra da sua gelada casa quando era pequena, mudar os dentes, dar um salto e navegar pelos desengraçados anos da puberdade. Um dia, aparecera diante dele com tranças infantis e corpo de mulher, com o vestido a rebentar pelas costuras; então, ele ordenara a Nuria que lhe fizesse roupa adequada, contratara um professor de dança e não a perdera de vista um só momento.

Agora, Rafael Moncada, entre outros cavalheiros de boa posição, abordava-o para lhe pedir Juliana em casamento e ele não sabia o que responder. Uma aliança assim era ideal; qualquer pai na sua situação ficaria satisfeito, mas não simpatizava com Moncada, não tanto por divergirem nas suas posturas ideológicas como pelos boatos pouco tranquilizadores que tinha ouvido sobre o carácter desse homem. A opinião geral era que o casamento consiste num arranjo social e económico, no qual os sentimentos não são fundamentais e se vão acomodando, mas ele não estava de acordo. Casara-se por amor e fora muito feliz, tanto que nunca pudera substituir a esposa. Juliana tinha o seu próprio carácter e, além disso, enchera a cabeça de novelas românticas. Seria preciso fazê-la dar o braço a torcer para que aceitasse casar-se sem amor, e ele não se achava capaz de o fazer; desejava que fosse feliz e duvidava que Moncada pudesse contribuir para isso. Tinha de colocar o assunto a Juliana, mas não sabia como fazê-lo, porque a sua beleza e as suas virtudes o intimidavam. Sentia-se mais à vontade com Isabel, cujas notáveis imperfeições a tornavam muito mais acessível. Compreendeu que não se podia adiar o assunto, portanto nessa mesma noite comunicou-lhe a proposta de Moncada. Ela encolheu os ombros e, sem perder o ritmo da agulha no seu ponto de cruz, comentou que muita gente morria de malária nas Antilhas, pelo que não havia necessidade de se precipitar a tomar uma decisão.

Diego estava feliz. A viagem daquele perigoso rival apresentava-lhe uma oportunidade única de ganhar terreno na corrida pela mão de Juliana. A rapariga não se perturbou perante a ausência de Moncada e nem se deu por achada frente aos avanços de Diego. Continuou a tratá-lo com o mesmo afecto tolerante e distraído de sempre, sem demonstrar a menor curiosidade pelas misteriosas actividades do jovem. Tão-pouco a impressionavam os seus poemas, custava-lhe levar a sério os dentes de pérola, olhos de esmeralda e lábios de rubi. Procurando pretextos para passar mais tempo com ela, Diego decidiu participar nas aulas de dança e chegou a ser um bailarino elegante e animoso. Conseguiu induzir inclusivamente Nuria a abanar os ossos ao som de um fandango, embora não lograsse que intercedesse por ele diante de Juliana; nesse ponto, a boa mulher mostrou-se sempre tão insensível como Isabel. Com o propósito de captar a admiração das mulheres da casa, Diego cortava velas ao meio com um golpe de florete, com tal precisão que a chama não vacilava e a parte decepada permanecia no seu lugar. Também era capaz de as apagar com a ponta do chicote. Aperfeiçoou a ciência que Galileo Tempesta lhe ensinara e chegou a realizar prodígios com as cartas. Também efectuava malabarismos com tochas acesas e saía sem ajuda de um baú fechado a cadeado. Quando se lhe esgotaram esses truques, tentou impressionar a amada com as suas aventuras, incluindo aquelas que prometera a Bernardo ou ao mestre Manuel Escalante nunca mencionar. Num momento de fraqueza chegou a insinuar-lhe a existência de uma sociedade secreta à qual só certos homens escolhidos pertenciam. Ela felicitou-o, julgando que se referia a uma tuna das que andavam pelas ruas a tocar música sentimental. A atitude de Juliana não era desdém, porque o estimava muito, nem maldade, da qual era incapaz, mas sim distracção novelesca. Aguardava o herói dos seus livros, valente e trágico, que a salvaria do tédio quotidiano, e não lhe passava pela cabeça que ele pudesse ser Diego de La Vega. Tão-pouco era Rafael Moncada.

A situação política principiava a mudar em Espanha. Cada dia se tornava mais evidente que o fim da guerra estava próximo. Eulália de Callís preparava-se para esse momento com impaciência, enquanto o sobrinho firmava os negócios no estrangeiro. A malária não resolveu o problema de Juliana acerca de Moncada que, em Novembro de 1813, regressou mais rico que antes, porque a tia lhe concedera uma elevada percentagem do negócio dos bombons. Tivera êxito nos melhores salões da Europa, e nos Estados Unidos conhecera nada menos que Thomas Jefferson, ao qual sugerira a ideia de plantar cacau na Virgínia. Mal se libertou da poeira do caminho, Moncada entrou em contacto com Tomás de Romeu para lhe reiterar a sua intenção de cortejar Juliana. Havia anos que esperava que ela se pronunciasse e não estava disposto a aceitar outra resposta evasiva. Duas horas mais tarde, Tomás chamou a filha à biblioteca, onde resolvia a maior parte dos seus assuntos e esclarecia as suas dúvidas existenciais com a ajuda de um cálice de conhaque, e transmitiu-lhe a mensagem do seu apaixonado.

- Um casamento infeliz é pior que a morte para uma mulher, senhor. Não há saída. A ideia de obedecer e servir a um homem é terrível se não existir confiança e afecto.

- Isso cultiva-se depois do casamento, Juliana.

- Nem sempre, senhor. Além disso, temos de considerar as vossas necessidades e o meu dever. Quem cuidará de vós quando fordes velho? A Isabel não tem carácter para isso.

- Por Deus, Juliana! Nunca sugeri que as minhas filhas devam tratar de mim na velhice. O que desejo são netos e ver-vos a ambas bem colocadas. Não posso morrer sossegado sem vos deixar protegidas.

- Não sei se Rafael Moncada será o homem para mim. Não consigo imaginar nenhuma espécie de intimidade com ele - murmurou ela, ruborizando-se.

- Nisso não diferis das outras donzelas, filha. Qual a jovem virtuosa que pode imaginar isso? - volveu Tomás de Romeu, tão afogueado como ela.

Era um assunto do qual esperava nunca falar com as filhas. Supunha que, chegado o momento, Nuria lhes explicaria o necessário, embora a ama fosse decerto tão ignorante a esse respeito como as raparigas. Não sabia que Juliana falava disso com Agnès Duchamp e se informara dos pormenores nos seus romancecos de amor.

- Preciso de um pouco mais de tempo para me decidir, senhor - suplicou Juliana.

Tomás de Romeu pensou que nunca lhe fizera mais falta a sua defunta esposa, que teria resolvido as coisas com sabedoria e mão firme, como as mães costumam fazer. Estava cansado de tanto braço-de-ferro. Falou com Rafael Moncada para lhe solicitar outro adiamento; este não teve outro remédio senão aceder. Depois ordenou a Juliana que se aconselhasse com a almofada e, se não tivesse uma resposta dentro de duas semanas, ele aceitaria a proposta de Moncada e ponto final. Era a sua última palavra, concluiu, mas a sua voz não estava firme. Por essa altura, o longo assédio de Moncada tinha atingido níveis de desafio pessoal, comentava-se tanto em salões da alta como em pátios de criados que aquela jovem sem fortuna nem títulos humilhava o melhor partido de Barcelona. Se a filha continuasse a fazer-se rogada, Tomás de Romeu enfrentava um sério litígio com Moncada, mas certamente teria continuado a fazer render o assunto, se um estranho acontecimento não houvesse precipitado o desenlace.

Naquele dia, as duas meninas De Romeu tinham ido com Nuria distribuir esmolas, como faziam sempre nas primeiras sextas-feiras do mês. Havia mil e quinhentos mendigos reconhecidos na cidade e vários milhares mais de pobres e indigentes, que ninguém se dava ao incómodo de contabilizar. Desde havia cinco anos, sempre no mesmo dia e à mesma hora, podia-se ver Juliana, flanqueada pela figura tesa da sua ama, a visitar as casas de caridade. Por decoro e para não ofender com sinais de ostentação, cobriam-se dos pés à cabeça com mantilhas e abafos escuros e percorriam o bairro a pé; Jordi esperava-as com o calhambeque numa praça próxima, consolando-se do tédio com a sua garrafa de álcool. Nessa excursão levavam toda a tarde, porque, além de socorrer os pobres, visitavam as freiras encarregadas dos hospícios. Nesse ano, Isabel, que aos quinze anos já estava em idade de praticar a compaixão, em vez de perder o tempo a espiar Diego e a bater-se em duelo consigo mesma diante do espelho, como dizia Nuria, começou a acompanhá-las. Tinham de andar por vielas apertadas em bairros de pobreza crua, onde nem os gatos se distraíam, com medo de serem caçados e vendidos por lebres. Juliana submetia-se com exemplar rigor àquela penitência heróica, mas Isabel ficava doente, não só porque a aterrorizavam as chagas e furúnculos, os andrajos e as muletas, as bocas desdentadas e os narizes roídos pela sífilis daquela desgraçada multidão, de que a irmã cuidava como uma missionária, mas também porque essa forma de caridade lhe parecia um logro. Calculava que as moedas de cinco pesetas da bolsa de Juliana não serviam de nada diante da imensidade da miséria.

- Mais vale pouco do que nada - replicava a irmã.

Tinham iniciado o percurso meia hora antes e haviam visitado apenas um orfanato, quando, ao chegarem a uma esquina, lhes saíram ao encontro três homens de aspecto patibular. Mal se lhes viam os olhos, porque levavam chapéus enfiados até às sobrancelhas e lenços amarrados na cara. Apesar da proibição oficial de usar capa, o mais alto deles estava embrulhado numa manta. Era a hora letárgica da sesta, quando muito pouca gente circulava pela cidade. A viela estava flanqueada pelas maciças muralhas de pedra de uma igreja e um convento; não havia nem uma porta próxima onde se refugiarem. Nuria pôs-se a gritar, aterrorizada, mas um bofetão na cara, aplicado por um dos fulanos, atirou-a ao chão e deixou-a muda. Juliana tentou esconder debaixo do abafo a bolsa com o dinheiro da caridade, enquanto Isabel lançava olhares de soslaio à procura da maneira de conseguir ajuda. Um dos assaltantes arrebatou a bolsa a Juliana e outro dispunha-se a arrancar-lhe os brincos de pérolas, quando, subitamente, os cascos de um cavalo os puseram em guarda. Isabel gritou a plenos pulmões e um instante mais tarde fez a sua aparição providencial nada menos que Rafael Moncada. Numa cidade tão densamente povoada como aquela, a sua chegada equivalia a pouco menos que um prodígio. Bastou uma vista de olhos a Moncada para avaliar a situação, desembainhar com presteza a espada e confrontar aqueles diabos de baixo estofo. Dois deles já tinham deitado a mão a punhais curvos, mas um par de cutiladas e a atitude decidida de Moncada fê-los vacilar. Parecia enorme e nobre sobre o corcel, as botas negras reluzentes nos estribos de prata, as calças alvas e justas, a jaqueta de veludo azul-escuro com canhões de astracã, a longa espada com os redondos copos gravados a ouro. Lá do alto podia ter despachado mais de um adversário sem grandes diligências, mas parecia gozar intimidando-os. Com um sorriso feroz nos lábios e a espada a cintilar nos ares, poderia ser a figura central de um quadro de batalha. Os outros resfolegavam, enquanto ele os aguilhoava lá de cima sem lhes dar trégua. O cavalo, encabritado pela sarrafusca, ergueu-se nas patas traseiras e, por um momento, pareceu que desmontaria o cavaleiro, mas este aferrou-se com as pernas. Parecia uma estranha e violenta dança. No centro do círculo de punhais, o corcel girava sobre si mesmo, relinchando de pavor, enquanto Moncada o dominava com uma mão e arvorava a arma com a outra, cercado pelos meliantes, que procuravam o momento de o esfaquearem, mas não se atreviam a pôr-se ao seu alcance. À gritaria de Isabel somou-se a de Nuria; não tardou que assomassem várias pessoas à rua, mas, ao verem os ferros a refulgir à luz pálida do dia, mantiveram-se à distância. Um rapaz saiu a correr para ir chamar os aguazis, porém não havia esperança de que voltasse a tempo com auxílio.

Isabel aproveitou a confusão para arrancar com um puxão a bolsa das mãos do homem da manta, após o que agarrou a irmã com um braço e Nuria com o outro para as obrigar a fugir, mas não conseguiu movê-las: estavam ambas pregadas às pedras da calçada. O confronto demorou apenas uns minutos, que decorreram com a lentidão impossível dos pesadelos; no fim, Rafael Moncada conseguiu fazer saltar a adaga a um dos homens e com isso os três assaltantes perceberam que mais valia empreenderem a retirada. O cavaleiro fez menção de os perseguir, mas desistiu ao ver a aflição das mulheres e saltou da sua cavalgadura para as ajudar. Uma mancha vermelha alastrava sobre o branco tecido das suas calças. Juliana correu a refugiar-se nos seus braços, tremendo como um coelho.

- Estais ferido? - exclamou ao ver-lhe o sangue na perna.

- É só um arranhão - retorquiu ele.

Eram demasiadas emoções para a jovem. Enevoou-se-lhe a vista e fraquejaram-lhe os joelhos, mas, antes que caísse ao chão, os atentos braços de Moncada levantaram-na no ar. Isabel comentou impaciente que só faltava aquilo para completar o quadro: um chilique da irmã. Moncada ignorou o sarcasmo e, coxeando um pouco, mas sem tropeçar, conduziu Juliana em braços até à praça. Nuria e Isabel seguiam atrás, levando o cavalo pela brida, rodeadas pelos curiosos que se haviam juntado, cada um dos quais tinha uma opinião particular sobre o sucedido e querendo todos dizer a última palavra a esse respeito. Ao ver aquela procissão, Jordi desceu da boleia e ajudou Moncada a colocar Juliana dentro da carruagem. Ergueu-se um aplauso cerrado entre os mirones. Raramente acontecia alguma coisa tão quixotesca e romântica nas ruas de Barcelona. Haveria assunto para vários dias. Vinte minutos mais tarde, Jordi chegava ao pátio da casa De Romeu seguido por Moncada a cavalo. Juliana chorava de nervos, Nuria contabilizava com a língua os dentes soltos pelo bofetão e Isabel lançava faíscas abraçada à bolsa.

Tomás de Romeu não era homem que se impressionasse demasiado com apelidos de linhagem, porque aspirava a que a nobreza fosse abolida da face da terra, nem com a fortuna de Moncada, porque era de natureza desprendida, mas comoveu-se até às lágrimas ao saber que aquele cavalheiro, que tinha sofrido tantas desfeitas por parte de Juliana, arriscara a vida para proteger as suas filhas de um dano irreparável. Embora se dissesse ateu, manifestou o seu pleno acordo com Nuria em que a Divina Providência tinha enviado Moncada a tempo de as salvar. Insistiu para que o herói da jornada descansasse, enquanto Jordi ia procurar um médico para lhe tratar do ferimento, mas ele preferiu retirar-se discretamente. À parte uma certa agitação ao respirar, nada denunciava o seu sofrimento. Todos comentaram que o seu sangue-frio perante a dor era tão admirável como a sua coragem diante do perigo. Isabel foi a única que não deu mostras de agradecimento. Em vez de se juntar ao extravasamento emocional do resto da família, permitiu-se uns depreciativos estalos com a língua, que foram muito mal recebidos. O pai mandou-a ficar fechada no quarto sem pôr o nariz de fora até que se desculpasse pela vulgaridade.

Diego teve de ouvir com forçada paciência o relato pormenorizado do assalto pela boca de Juliana, além das especulações sobre o que teria sucedido se o salvador não interviesse a tempo. Nunca acontecera à jovem nada de tão perigoso; a figura de Rafael Moncada cresceu aos seus olhos, adornada de virtudes que até então não tinha detectado: era forte e bem-parecido, possuía mãos elegantes e uma farta cabeleira ondulada. Um homem com bom cabelo tem muito terreno ganho nesta vida. Notou de repente que se parecia com o toureiro mais popular de Espanha, um cordovês de pernas compridas e olhos de fogo.

Não era nada de se deitar fora, o seu pretendente, decidiu. Apesar disso, a refrega fez-lhe febre e foi para a cama cedo. Nessa noite o médico teve de a sedar, antes de ministrar pílulas de arnica a Nuria, que tinha ficado com a cara como uma cabaça. Visto que não veria a bela ao jantar, Diego também se retirou para as suas instalações, onde Bernardo o esperava. Por decência, as raparigas não podiam aproximar-se da ala da casa onde ficavam os aposentos dos homens; a única excepção fora quando Diego convalescia do ferimento do duelo, mas Isabel nunca fizera grande caso dessa regra, tal como não obedecia ao pé da letra aos castigos impostos pelo pai. Naquela noite ignorou a ordem de ficar isolada no seu quarto e apareceu no dos rapazes sem se anunciar, como fazia amiúde.

- Não te disse já para bateres à porta? Um dia ainda me apanhas nu - repreendeu-a Diego.

- Não me parece que fique com uma impressão memorável - tornou ela.

Sentou-se na cama de Diego com a expressão velhaca de quem possui informações e não pretende dá-las, à espera de que lho peçam, mas, por princípio, ele procurava não ceder aos seus ardis; quanto a Bernardo estava distraído a fazer nós com uma corda. Passou um longo minuto; por fim, ela sucumbiu à vontade de lhes comentar, na florida linguagem que empregava longe dos olhos de Nuria, que, se a irmã não desconfiava de Moncada, devia ser uma parva de merda. Acrescentou que tudo aquilo cheirava a esturro, porque um dos três assaltantes era Rodolfo, o gigante do circo. Diego deu um salto de macaco e Bernardo largou a corda em que estava a fazer nós.

- Tens a certeza? Não disseram que esses rufiões tinham a cara tapada? - increpou-a Diego.

- Sim, além disso, aquele estava embrulhado numa manta, mas era enorme e quando lhe arranquei a bolsa vi-lhe os braços. Tinha-os tatuados.

- Podia ser um marinheiro. Há muitos que têm tatuagens, Isabel - alegou Diego.

- Eram as mesmas tatuagens do cigano do circo, não tenho dúvida nenhuma, de maneira que o melhor é acreditares em mim - replicou ela.

Dali a deduzir que os zíngaros estavam implicados não ia mais de um passo, que Diego e Bernardo deram de imediato. Sabiam, havia uma porção de tempo, que Pelayo e os seus amigos faziam trabalhinhos sujos para Moncada, mas não podiam prová-lo. Nunca ousaram abordar o assunto com o cigano, que, de qualquer modo, era hermético e nada lhes teria confessado. Amália tão-pouco cedia ante os interrogatórios assolapados de Diego; mesmo nos momentos de maior intimidade guardava os segredos da família. Diego não podia dirigir-se com semelhante suspeita a Tomás de Romeu, sem provas e sem se ver obrigado a admitir os seus próprios contactos furtivos com a tribo boémia, mas decidiu intervir. Tal como dissera Isabel, não podiam permitir que a jovem acabasse casada com Moncada por infundada gratidão.

No dia seguinte conseguiram convencer Juliana a levantar-se da cama, dominar os nervos e acompanhá-los ao bairro onde Amália se costumava instalar a ler a sina aos transeuntes. Nuria foi com eles, porque era o seu dever, apesar de a sua cara ter muito pior aspecto que no dia anterior. Uma face estava roxa e tinha as pálpebras tão inchadas que parecia um sapo. Levaram menos de meia hora a dar com Amália. Enquanto as raparigas e a ama esperavam na carruagem, Diego suplicou à cigana, com uma eloquência que nem ele mesmo conhecia, que salvasse Juliana de um destino fatal.

- Uma palavra tua pode evitar a tragédia de um casamento sem amor entre uma donzela inocente e um desalmado. Tens de lhe dizer a verdade - alegou dramaticamente.

- Não sei do que me estás a falar - retorquiu Amália.

- Sabes, sim. Os tipos que as assaltaram eram da tua tribo. Sei que um deles era o Rodolfo. Creio que Moncada preparou a cena para fazer figura de herói perante as meninas De Romeu. Estava tudo combinado, não é verdade? - insistiu Diego.

- Estás apaixonado por ela? - perguntou Amália sem malícia.

Ofuscado, Diego teve de admitir que sim, que estava. Ela tomou-lhe as mãos, examinou-lhas com um sorriso enigmático e depois molhou um dedo em saliva e traçou-lhe o sinal da cruz nas palmas.

- Que fazes? Isso é alguma maldição? - perguntou Diego, assustado.

- É um prognóstico. Nunca te casarás com ela.

- Queres dizer que Juliana se casará com Moncada?

- Isso não sei. Farei o que me pedes, mas não tenhas ilusões, porque essa mulher tem de cumprir o seu destino, tal como tu tens de cumprir o teu, e nada que eu diga pode alterar o que está escrito no céu.

Amália subiu para a carruagem, cumprimentou com um gesto Isabel, que tinha visto algumas vezes, e instalou-se no assento diante de Juliana. Nuria continha a respiração, espantada, porque estava convencida de que os boémios eram descendentes de Caim e ladrões profissionais. Juliana despachou a ama e Isabel, que se apearam do coche a contragosto. Quando ficaram sós, as duas mulheres observaram-se mutuamente durante um minuto inteiro. Amália fez um rigoroso inventário de Juliana: o rosto clássico emoldurado por caracóis negros, os olhos verdes de gata, o pescoço fino, o chapéu de pele, os delicados botins de pelica. Por sua vez, Juliana examinou a cigana com curiosidade, porque nunca tinha visto nenhuma tão de perto. Se amasse Diego, o instinto dir-lhe-ia que era sua rival, mas essa ideia não lhe passava pela cabeça. Gostou do seu cheiro a fumo, do seu rosto de pómulos marcados, das suas saias amplas, do tilintar das suas jóias de prata. Pareceu-lhe belíssima. Num impulso carinhoso descalçou as luvas e tomou-lhe as mãos.

- Obrigada por falar comigo - disse-lhe simplesmente. Desarmada pela espontaneidade do gesto, Amália decidiu violar a regra fundamental do seu povo: nunca confiar num gadje e muito menos se isso pusesse em perigo o seu clã. Em poucas palavras descreveu o lado obscuro de Moncada, revelou-lhe que, com efeito, o assalto fora planeado, a irmã e ela nunca tinham estado em perigo, a mancha nas calças de Moncada não provinha de um ferimento, mas sim de um pedaço de tripa cheio de sangue de galinha. Disse que alguns homens da tribo cumpriam de vez em quando incumbências de Moncada, em geral assuntos de pouca monta; só em escassas ocasiões tinham cometido uma falta séria, como o assalto ao conde Orloff.

- Não somos criminosos - explicou Amália, acrescentando que lamentavam ter agredido o russo e Nuria, porque na sua tribo era proibida a violência. Como golpe de misericórdia informou-a de que era Pelayo quem cantava as serenatas, porque Moncada desafinava como um pato. Juliana ouviu a confissão completa sem fazer perguntas. As duas mulheres despediram-se com um leve gesto e Amália desceu da carruagem; nessa altura, Juliana irrompeu em pranto.

Nessa mesma tarde, Tomás de Romeu recebeu formalmente na sua residência Rafael Moncada, que manifestara, por meio de uma breve missiva, achar-se refeito da perda de sangue e com vontade de apresentar os seus respeitos a Juliana. De manhã, um lacaio tinha trazido um ramo de flores para ela e uma caixa de torrão de amêndoas para Isabel, atenções delicadas e nada ostentosas, que Tomás anotou em favor do pretendente. Moncada chegou vestido com impecável elegância e apoiado numa bengala. Tomás recebeu-o no salão principal, limpo em honra do futuro genro, ofereceu-lhe um xerez e, uma vez instalados, agradeceu-lhe uma vez mais a sua oportuna intervenção.

Seguidamente mandou chamar as filhas. Juliana apareceu macilenta e com um vestido monástico, pouco apropriado para uma ocasião tão importante. Sua irmã Isabel, com os olhos ardentes e um ricto zombeteiro, amparava-a por um braço com tal firmeza que parecia levá-la de rastos. Rafael Moncada atribuiu o mau parecer de Juliana aos nervos.

- Não é caso para menos, depois da terrível agressão que sofrestes... - conseguiu comentar, antes que ela o interrompesse para lhe anunciar com a voz trémula, mas a vontade de ferro, que nem morta se casaria com ele.

Em vista da rotunda negativa de Juliana, Rafael Moncada retirou-se daquela casa lívido, embora senhor das suas boas maneiras. Nos seus vinte e sete anos de vida tinha tropeçado com alguns obstáculos, mas nunca tivera um fracasso. Não pensava dar-se por vencido; ainda lhe restavam vários recursos na manga, para o que contava com posição social, fortuna e ligações. Absteve-se de perguntar as razões a Juliana, porque a intuição o advertiu de que alguma coisa correra muito mal na sua estratégia. Ela sabia mais do que a conta e ele não podia correr o risco de se ver exposto. Se Juliana suspeitava de que o assalto na rua fora uma farsa, só podia existir uma razão: Pelayo. Não lhe parecia que o homem se houvesse atrevido a traí-lo, porque nada ganhava com isso, mas podia ter cometido uma indiscrição. Ali não se podia guardar um segredo por demasiado tempo; os criados formavam uma rede de informações muito mais eficaz que a dos espiões franceses na Cidadela. Bastaria um comentário fora de lugar de qualquer dos implicados para que chegasse aos ouvidos de Juliana. Tinha empregado os ciganos em várias ocasiões justamente porque eram nómadas, iam e vinham sem se relacionarem com ninguém fora da sua tribo, não possuíam amigos nem conhecidos em Barcelona, eram necessariamente discretos. Durante o tempo em que andara de viagem perdera o contacto com Pelayo e, de certa forma, sentira-se aliviado por isso. A relação com aquela gente incomodava-o. Ao regressar, imaginou que poderia fazer tábua rasa, esquecer pecadilhos do passado e começar do zero, longe daquele mundo subterrâneo de maldade a soldo, mas a intenção de se regenerar durou-lhe apenas uns dias. Quando Juliana pediu outras duas semanas para responder à sua proposta matrimonial, Moncada teve uma reacção de pânico muito rara nele, que se prezava de dominar até os monstros dos seus pesadelos. Durante a sua ausência tinha-lhe escrito várias cartas, a que ela não respondera. Atribuíra esse silêncio à timidez, porque, numa idade em que outras mulheres já eram mães, Juliana se comportava como uma noviça. Aos seus olhos essa inocência constituía a melhor qualidade da jovem, pois lhe garantia que, quando se lhe entregasse, o faria sem reservas. A sua segurança fraquejou, porém, com o novo adiamento por ela imposto, e nessa altura decidiu pressioná-la. Uma acção romântica, como as dos livros de amor de que Juliana gostava, seria o mais eficiente para os seus propósitos, calculou, mas não podia esperar que a ocasião se lhe apresentasse sozinha; tinha de a propiciar. Obteria o que desejava sem prejudicar ninguém; não se tratava, na realidade, de um embuste, porque a dar-se o caso de Juliana - ou qualquer outra mulher decente - ser atacada por vagabundos, ele sairia sem vacilar em sua defesa. Não lhe pareceu necessário fornecer estes argumentos a Pelayo, evidentemente; apenas lhe deu as suas ordens, que este cumpriu sem tropeços. A cena que os boémios montaram revelou-se mais breve do que o planeado, porque largaram a correr passados poucos minutos, quando suspeitaram que a espada de Moncada era a sério. Não lhe deram ocasião de se exibir com o esplendor dramático que ele pretendia; por isso, quando Pelayo veio receber, ele achou justo regatear o preço combinado.

Discutiram e Pelayo acabou por aceitar o desconto, mas Rafael Moncada ficou com um sabor amargo na boca; o homem sabia de mais e podia cair na tentação de fazer chantagem consigo. Definitivamente, concluiu, não convinha que um sujeito daquela laia, sem lei nem moral, tivesse poder sobre ele. Tinha de se livrar dele assim que possível, dele e de toda a sua tribo.

Por seu lado, Bernardo conhecia bem o apertado tecido de mexericos que as pessoas da classe de Moncada tanto temiam. Com o seu silêncio sepulcral, o seu ar de índio digno e a sua boa vontade para fazer favores, tinha-se congraçado com muita gente - vendedeiras do mercado, estivadores do porto, artesãos dos bairros, cocheiros, lacaios e criadas das casas dos ricos. Armazenava informações na sua prodigiosa memória, dividida em compartimentos, como um imenso arquivo, onde guardava os dados ordenados e prontos para usar no momento necessário. Conhecera Joanet, um dos criados de Moncada, no pátio da mansão de Eulália de Callís, na noite em que Moncada o agredira com a bengala. No seu arquivo, essa noite não era recordada pela bengalada sofrida, mas sim pelo assalto ao conde Orloff. Manteve-se em contacto com Joanet; assim, podia vigiar de longe Moncada. O homem era de muito poucas luzes e detestava quem quer que não fosse catalão, mas tolerava Bernardo porque não o interrompia e tinha sido baptizado. Visto que Amália admitira os contactos de Moncada com os ciganos, Bernardo decidiu averiguar mais sobre aquela personagem. Fez uma visita a Joanet, levando-lhe de presente o melhor conhaque de Tomás de Romeu, que Isabel lhe facultara ao saber que a garrafa seria empregada para um fim altruísta. O homem não precisava do álcool para soltar a língua, mas agradeceu-o da mesma maneira e daí a pouco estava a contar-lhe as últimas novas: ele mesmo tinha levado uma missiva do amo ao chefe militar da Cidadela, na qual Moncada acusava a tribo de ciganos de introduzir armas de contrabando na cidade e conspirar contra o Governo.

- Os ciganos estão amaldiçoados para sempre, porque fizeram os cravos da cruz de Cristo. Merecem que os queimem a todos sem misericórdia na fogueira, é o que eu digo - foi a conclusão de Joanet.

Bernardo sabia onde encontrar Diego àquela hora. Encaminhou-se sem vacilar para o descampado nos extramuros de Barcelona, onde os ciganos tinham as suas tendas e carroções desconjuntados. Nos três anos que ali haviam passado estabelecidos, o acampamento adquirira o aspecto de uma aldeia de trapos. Diego de La Vega não reatara os seus amores com Amália, porque esta receava deitar a perder para sempre a sua própria sorte. Salvara-se de ser executada pelos Franceses, prova sobeja de que o espírito de Ramón, o seu marido, a protegia do Além. Não lhe convinha provocar a sua ira indo para a cama com o jovem gadje. Também influía no seu estado de espírito o facto de Diego ter confessado o seu amor por Juliana, visto que, nesse caso, estavam os dois a ser infiéis, ela à memória do defunto e ele à casta rapariga. Tal como Bernardo calculava, Diego fora ao acampamento para ajudar os amigos a preparar a barraca do circo dominical, que nessa ocasião não ficaria numa praça, como era habitual, mas sim ali mesmo. Dispunham de um par de horas pela frente, porque o espectáculo começava às quatro da tarde. Estava com outros homens a puxar cordas para retesar as lonas, ao som de uma das canções que aprendera com os marinheiros do Madre de Dios, quando chegou Bernardo. Era capaz de lhe sentir o pensamento de longe e estava à espera dele. Não precisou de ver a expressão taciturna do irmão para saber que alguma coisa corria mal. Apagou-se-lhe o sorriso que sempre lhe bailava na cara ao ouvir o que Bernardo averiguara por intermédio de Joanet e reuniu de imediato a tribo.

- Se a informação é correcta, estais em grave perigo. Pergunto a mim mesmo porque não vos prenderam ainda - disse-lhes.

- Certamente virão durante a função, quando estivermos todos aqui e houver público. Os Franceses gostam de dar exemplo; isso mantém a população atemorizada, e nada melhor do que fazerem-no connosco - respondeu Rodolfo.

Juntaram as crianças e os animais e, em silêncio, com o sigilo de séculos de perseguição e vida errante, fizeram uns embrulhos com o indispensável, montaram nos cavalos e, antes de meia hora passada, tinham desaparecido em direcção às montanhas. Ao despedir-se, Diego disse-lhes que mandassem alguém na manhã seguinte à catedral do bairro antigo.

- Terei uma coisa para vós - disse-lhes, acrescentando que procuraria entreter os soldados para lhes dar tempo de fugir. Os ciganos perdiam tudo. Para trás ficou o acampamento desolado, com a triste barraca do circo, os carroções sem cavalos, as fogueiras ainda fumegantes, as tendas abandonadas e um desconcerto de cacos, colchões e trapos. Entretanto, Diego e Bernardo desfilaram pelas ruas adjacentes com chapéus de palhaços e rufar de tambores, para chamarem o público, que começou a segui-los até ao circo. Não tardou que houvesse suficientes espectadores a aguardar debaixo da barraca. Uma assuada impaciente acolheu Diego, que apareceu na pista vestido de Zorro, com máscara e bigode, atirando ao ar três tochas acesas, que apanhava em voo e passava por entre as pernas e por detrás das costas antes de voltar a atirá-las. O público não pareceu grandemente impressionado e começou a gritar-lhe zombarias. Bernardo levou as tochas e Diego pediu um voluntário para um truque de grande suspense, como anunciou. Um marinheiro corpulento e desafiador deu um passo em frente e, seguindo as instruções, colocou-se a cinco passos de distância com um cigarro nos lábios.

Diego fez estalar o chicote no solo um par de vezes antes de lhe assestar um golpe certeiro. Ao sentir o assobio na cara, o homem enrubesceu de ira, mas, quando o cigarro voou pelos ares sem que o chicote lhe tocasse a pele, soltou uma gargalhada, com a qual a assistência fez coro. Nesse momento, alguém se lembrou da história que tinha circulado pela cidade sobre um tal Zorro, vestido de negro e mascarado, que se atrevera a arrancar o Chevalier da cama para salvar uns reféns. O Zorro?... Raposa?... Qual raposa?... - correu a voz num abrir e fechar de olhos. Alguém apontou para Diego, que cumprimentou com uma profunda reverência e, com um salto, trepou pelas cordas até ao trapézio. No mesmo instante em que Bernardo lhe fazia um sinal, ouviu cascos de cavalos. Estava à espera deles. Deu uma cambalhota no balance, ficando pendurado pelos pés, a baloiçar-se no ar por cima das cabeças do público.

Minutos depois, um grupo de soldados franceses entrou de baionetas caladas atrás de um oficial que bramava ameaças. Estalou o pânico, enquanto as pessoas tentavam sair, momento que Diego aproveitou para baixar à terra deslizando por uma corda. Soaram vários disparos e armou-se uma balbúrdia monumental; os espectadores empurravam-se para sair, atropelando os soldados. Diego escapuliu-se como uma doninha, antes que pudessem alcançá-lo, e pôs-se a cortar as cordas que seguravam a barraca por fora, ajudado por Bernardo. O pano caiu sobre as cabeças da assistência presa no interior, soldados e público por igual. A confusão deu tempo aos jovens para montarem nas suas cavalgaduras e meter a galope rumo a casa de Tomás de Romeu. Em cima da montada, Diego despojou-se da capa, do chapéu, da máscara e do bigode. Calcularam que os soldados levariam um bom bocado a sacudir a barraca de cima, aperceber-se de que os ciganos tinham fugido e organizar-se para os perseguir. Diego sabia que no dia seguinte o nome do Zorro estaria outra vez em todas as bocas. Do seu cavalo, Bernardo dirigiu-lhe um eloquente olhar de censura: a fanfarronice podia custar-lhe caro, visto que os Franceses revolveriam céus e terra à procura da misteriosa personagem. Chegaram ao seu destino sem chamar a atenção, entrando por uma porta de serviço; pouco mais tarde, tomavam chocolate com biscoitos na companhia de Juliana e Isabel. Não sabiam que nesse mesmo momento o acampamento dos ciganos se desfazia em fumo. Os soldados tinham deitado fogo à palha da pista, que ardera como acendalha, atingindo em poucos minutos as velhas lonas.

No dia seguinte ao meio-dia, Diego postou-se numa nave da catedral. O rumor da segunda aparição do Zorro tinha dado a volta completa por Barcelona e já chegara aos seus ouvidos. Num só dia, o enigmático herói conseguiu captar a imaginação popular. A letra Z apareceu talhada à faca em várias paredes, obra de rapazes inflamados de entusiasmo por imitar o Zorro.

- É disso que precisamos, Bernardo, de muitas raposas que distraiam os caçadores - opinou Diego.

A essa hora a igreja estava vazia, à excepção de um par de sacristães que mudavam as flores no altar principal. Reinava a penumbra fria e queda de um mausoléu; ali não chegava a luz brutal do Sol nem o barulho da rua. Diego esperou sentado num banco, rodeado de santos de vulto, aspirando o inconfundível odor metálico do incenso que impregnava as paredes. Através dos antigos vitrais penetravam tímidos reflexos coloridos, que banhavam o recinto de uma luz irreal. A calma do momento trouxe-lhe a recordação da mãe. Nada sabia dela, era como se se tivesse esfumado. Estranhava que nem o pai, nem o padre Mendoza a mencionassem nas suas cartas e que ela própria nunca lhe houvesse enviado umas linhas, mas não estava preocupado. Julgava que, se acontecesse algum mal à mãe, ele o sentiria nos ossos. Uma hora mais tarde, quando estava prestes a sair, convencido de que já ninguém compareceria ao encontro, surgiu ao seu lado, como um fantasma, a figura magra de Amália. Cumprimentaram-se com um olhar, sem se tocarem.

- Partiremos até que as coisas acalmem; depressa se esquecerão de nós - retorquiu ela.

- Incendiaram o acampamento, ficastes sem nada.

- Não é nenhuma novidade, Diego. Nós, os Rom estamos habituados a perder tudo; já nos aconteceu antes e há-de acontecer de novo.

- Voltarei a ver-te, Amália?

- Não sei, não tenho a minha bola de cristal - sorriu ela,

encolhendo os ombros.

Diego deu-lhe o que lograra juntar naquelas poucas horas: a maior parte do dinheiro que restava da recente remessa enviada pelo pai e o que as meninas De Romeu tinham conseguido, uma vez que souberam do sucedido. Por encomenda de Juliana, entregou-lhe um volume embrulhado num lenço.

- Juliana pediu-me que te desse isto como recordação -

disse Diego.

Amália desatou o lenço e viu que continha um delicado diadema de pérolas, o mesmo que Diego tinha visto Juliana usar várias vezes; era a sua jóia de mais valor.

- Porquê? - perguntou a mulher, surpreendida.

- Suponho que deve ser porque a salvaste de se casar com

Moncada.

- Isso não é certo. Talvez o seu destino seja casar-se com

ele, seja como for...

- Nunca! Agora Juliana sabe o género de canalha que ele é

- interrompeu-a Diego.

- O coração é caprichoso - redarguiu ela. Escondeu a jóia na bolsa, entre as pregas das suas largas saias sobrepostas, fez um gesto de adeus a Diego com os dedos e retrocedeu, perdendo-se nas sombras geladas da catedral. Instantes mais tarde, corria pelas ruelas do bairro até às Ramblas.

Pouco depois da fuga dos ciganos e antes do Natal, chegou uma carta do padre Mendoza. O missionário escrevia de seis em seis meses para dar notícias da família e da missão. Contava, por exemplo, que os golfinhos tinham voltado à costa, que o vinho dessa temporada saíra ácido, que os soldados haviam detido Coruja Branca, pois arremetera contra eles à bastonada em defesa de um índio, mas através da intervenção de Alejandro de La Vega a tinham soltado. Desde então, acrescentava, não haviam visto a curandeira por aqueles lados. Com o seu estilo preciso e enérgico conseguia comover Diego muito mais do que Alejandro de La Vega, cujas cartas eram sermões salpicados de conselhos morais. Diferiam pouco do tom estabelecido por Alejandro na relação com o filho. Nessa ocasião, porém, a breve missiva do padre Mendoza não era para Diego, mas sim para Bernardo, e vinha selada com lacre. Bernardo quebrou o selo com uma faca e instalou-se ao pé da janela a lê-la. Diego, que o observava a poucos passos de distância, viu-o mudar de cor à medida que os seus olhos percorriam a angulosa escrita do missionário. Bernardo leu-a duas vezes e a seguir passou-a ao irmão.

Ontem, dois de Agosto do ano de mil oitocentos e treze, veio visitar-me à missão uma jovem indígena da tribo de Coruja Branca. Trazia o filho, de pouco mais de dois anos, ao qual chama simplesmente «Menino». Propus baptizá-lo, como é devido, e expliquei-lhe que de outro modo a alma daquele inocente corre perigo, visto que, se Deus decidir levá-lo, não poderá ir para o céu e ficará preso no limbo. A índia negou-se ao baptismo. Disse que esperará o regresso do pai para que ele escolha o nome. Também recusou ouvir a palavra de Cristo e integrar-se na missão, onde ela e o filho teriam uma vida civilizada. Deu-me o mesmo argumento: que, quando o pai do menino regressar, tomará uma decisão a esse respeito. Não insisti, porque aprendi a aguardar com paciência que os índios aqui compareçam de sua própria vontade. O nome da mulher é Raio na Noite. Que Deus te abençoe e guie sempre os teus passos, meu filho.

Abraça-te em Cristo Nosso Senhor, Padre Mendoza.

Diego devolveu a carta a Bernardo e ambos ficaram em silêncio, enquanto a luz do dia se apagava na janela. Bernardo, que por necessidade de comunicar tinha um rosto muito expressivo, parecia naquele momento esculpido em granito. Começou a tocar uma melodia triste, refugiando-se na flauta para não dar explicações. Diego não lhas pediu, porque sentia no seu próprio peito as pancadas do coração do irmão. Tinha chegado o momento de se separarem. Bernardo não podia continuar a viver como um rapaz; as suas raízes reclamavam-no, desejava regressar à Califórnia e assumir as suas novas responsabilidades. Nunca se sentira à vontade longe da sua terra. Vivera vários anos a contar os dias e as horas, naquela cidade de pedra e de gelados Invernos, devido à férrea lealdade que o unia a Diego, mas já não podia mais; o vazio no peito ia crescendo como uma insondável caverna. O amor absoluto que sentia por Raio na Noite adquiria agora uma terrível urgência, porque não tinha a menor dúvida de que aquele menino era seu filho. Diego aceitou os silenciosos argumentos com um aperto no peito e respondeu com um discurso aos borbotões vindo da alma.

- Terás de ir sozinho, irmão, porque me faltam vários meses para me formar no Colégio de Humanidades; entretanto, pretendo convencer Juliana a casar-se comigo, mas antes de me declarar e pedir a sua mão a Dom Tomás, tenho de esperar que se refaça da desilusão que Rafael Moncada lhe causou. Perdoa, irmão, sou muito egoísta, não é o momento de te maçar com as minhas fantasias de amor, mas sim de falar de ti.

Durante estes anos diverti-me como um menino mimado, enquanto tu estiveste doente de saudades de Raio na Noite, sem sequer saberes que ela te tinha dado um filho. Como aguentaste tanto? Não quero que te vás, mas o teu lugar é na Califórnia, disso não há dúvida. Agora compreendo o que o meu pai e tu próprio sempre me disseram, que os nossos destinos são diferentes: eu nasci com fortuna e privilégios que tu não tens. Não é justo, porque somos irmãos. Um dia serei dono da fazenda De La Vega e então poderei dar-te a metade que te cabe; entretanto, escreverei ao meu pai para lhe pedir que te entregue suficiente dinheiro para te instalares com Raio na Noite e o teu filho onde quiseres; não tens de morar na missão. Prometo-te que, enquanto eu puder, nunca faltará nada de material à tua família. Não sei porque choro como uma criança; deve ser por ter saudades tuas antecipadas. Que farei sem ti? Não fazes ideia de quanto preciso da tua força e da tua sabedoria, Bernardo.

Os dois jovens abraçaram-se, primeiro comovidos e depois com um riso forçado, porque se gabavam de não serem sentimentais. Tinha terminado uma etapa da juventude.

Bernardo não pôde partir de imediato, como desejava. Teve de aguardar até Janeiro para conseguir que uma fragata mercante o conduzisse à América. Tinha muito pouco dinheiro, mas aceitaram que pagasse a passagem trabalhando como marinheiro a bordo. Deixou uma carta a Diego com a recomendação de que tivesse cuidado com o Zorro, não só pelo risco de ser descoberto, como também porque a personagem acabaria por apoderar-se dele. «Não te esqueças de que és Diego de La Vega, um homem de carne e osso, ao passo que esse Zorro é uma criatura da tua imaginação», dizia-lhe na carta. Custou-lhe despedir-se de Isabel, à qual acabara por se afeiçoar como a uma irmã mais nova, porque receava não a voltar a ver, apesar de ela lhe prometer cem vezes que iria à Califórnia assim que o pai lhe desse autorização.

- Ver-nos-emos de novo, Bernardo, mesmo que o Diego nunca se case com a Juliana. O mundo é redondo e, se eu lhe der a volta, um dia hei-de chegar à tua casa - assegurou-lhe Isabel, assoando o nariz e enxugando as lágrimas às palmadas.

O ano de 1814 anunciou-se pleno de esperanças para os Espanhóis. Napoleão estava debilitado pelas suas derrotas na Europa e pela situação interna em França. O Tratado de Valençay devolveu a coroa a Fernando VII, que se preparava para voltar à pátria. Em Janeiro, o Chevalier deu ordem ao mordomo para embalar o conteúdo do seu palacete, tarefa nada fácil, porque se deslocava com esplendor principesco. Suspeitava que restasse pouco tempo a Napoleão no poder e, nesse caso, o seu próprio destino estava em perigo, já que, na sua qualidade de homem de confiança do imperador, não tinha futuro em qualquer governo que o substituísse. Para não alterar o ânimo da filha, apresentou-lhe a viagem como uma promoção na sua carreira: voltavam finalmente a Paris. Agnès lançou-lhe os braços ao pescoço, encantada. Estava farta de sombrios espanhóis, campanários mudos, ruas mortas pelo recolher obrigatório e, sobretudo, de que lhe atirassem lixo à carruagem e lhe fizessem desfeitas. Odiava a guerra, as privações, a frugalidade catalã e a Espanha em geral. Lançou-se em frenéticos preparativos para a viagem. Nas suas visitas a casa de Juliana, palrava excitada a propósito da vida social e das diversões de França.

- Tendes de visitar-me no Verão, a época mais bonita de Paris. Nessa altura, o papá e eu estaremos instalados como deve ser. Moraremos muito perto do palácio do Louvre.

De caminho, também ofereceu hospitalidade a Diego, porque na sua opinião este não podia regressar à Califórnia sem ter conhecido Paris. Tudo o que era importante acontecia naquela cidade: a moda, as artes e as ideias, disse; até os revolucionários americanos se tinham formado em França. Não era a Califórnia uma colónia de Espanha? Ah, então havia que dar-lhe a independência! Talvez em Paris Diego se curasse dos seus achaques e dores de cabeça e se convertesse num militar famoso, como aquele da América do Sul a quem chamavam o Libertador. Simón Bolívar, ou coisa parecida.

Entretanto, na biblioteca, o Chevalier Duchamp compartilhava o último conhaque com Tomás de Romeu, a coisa mais parecida com um amigo que conseguira durante vários anos naquela cidade hostil. Sem lhe revelar informação estratégica, pô-lo a par da situação política e sugeriu-lhe que aproveitasse aquele momento para ir de viagem ao estrangeiro com as filhas. As raparigas estavam na idade perfeita para conhecerem Florença e Veneza, disse ele, ninguém que aprecie a cultura pode deixar de conhecer essas cidades. Tomás respondeu que iria pensar nisso, que não era má ideia, talvez o fizessem no Verão.

- O imperador autorizou o regresso de Fernando VII a Espanha. Pode suceder de um momento para o outro. Acho conveniente que não vos encontreis aqui na altura - insinuou o Chevalier.

- Porquê, Excelência? Sabeis como aplaudo a influência francesa em Espanha, mas creio que o regresso de o Desejado acabará com a guerrilha, que já dura há seis anos, e permitirá a este país reorganizar-se. Fernando VII terá de governar com a Constituição liberal de 1812 - redarguiu Tomás de Romeu.

- Assim espero, para o bem de Espanha e o vosso, meu amigo - concluiu o outro.

Pouco depois, o Chevalier Duchamp voltou a França com a sua filha Agnès. O comboio das suas carruagens foi interceptado no sopé dos Pirenéus por um bando de inflamados guerrilheiros, dos últimos que ainda restavam. Os assaltantes estavam bem informados: conheciam a identidade do garboso viajante e sabiam que era a eminência parda da Cidadela, o responsável por inúmeras torturas e execuções. Não se conseguiram vingar como pretendiam, porque o Chevalier viajava protegido por um contingente de guardas bem armados, que os receberam com os mosquetes preparados. A primeira salva deixou vários espanhóis num charco de sangue e o resto fizeram-no os sabres. O recontro durou menos de dez minutos. Os guerrilheiros sobreviventes dispersaram, deixando atrás vários homens feridos, que foram trespassados sem piedade pelos aços. O Chevalier, que não se mexeu da carruagem e parecia mais aborrecido que assustado, teria esquecido facilmente a escaramuça, se uma bala perdida não tivesse ferido Agnès. Passou roçando-lhe a cara e esfacelou-lhe uma face e parte do nariz. A horrenda cicatriz havia de alterar a vida da rapariga. Encerrou-se durante muitos anos na casa de campo da família em Saint-Maurice. A princípio, sucumbiu à depressão absoluta de ter perdido a beleza, mas com o tempo deixou de chorar e começou a ler qualquer coisa mais que os romances sentimentais que partilhava com Juliana de Romeu. Um a um, foi lendo todos os livros da biblioteca do pai e a seguir pediu-lhe outros. Durante as tardes solitárias da sua juventude, truncada por aquela bala fatídica, estudou filosofia, história e política. Depois começou a escrever sob um pseudónimo masculino e hoje, muitos anos mais tarde, a sua obra é conhecida em muitas partes do mundo; mas essa não é a nossa história. Voltemos a Espanha e à época que nos interessa.

Apesar dos conselhos de Bernardo, nesse ano Diego de La Vega viu-se envolvido em acontecimentos que haviam de convertê-lo definitivamente no Zorro. As tropas francesas abandonaram Espanha, umas de barco, outras em marcha forçada por terra, como uma pesada fera, sob os insultos e pedradas do povo. Em Março, Fernando VII regressou do seu exílio dourado em França. O cortejo real com o Desejado atravessou a fronteira em Abril e entrou no país pela Catalunha. Culminava, por fim, a longa luta do povo para expulsar os invasores. Ao princípio, o júbilo nacional foi transbordante e incondicional. Desde a nobreza até ao último camponês, incluindo a maioria dos ilustrados como Tomás de Romeu, viram com alegria o regresso do rei e passaram por alto as tremendas falhas do seu carácter, postas em evidência desde tenra idade. Supunham que o exílio teria feito amadurecer aquele príncipe de poucas luzes, que voltaria curado de ciúmes, mesquinhezes e paixão pela intriga cortesã. Enganaram-se. Fernando VII continuava a ser um homem pusilânime, que via inimigos por todo o lado e se rodeava de aduladores.

Um mês mais tarde, Napoleão Bonaparte foi obrigado a abdicar do trono de França. O monarca mais poderoso da Europa sucumbiu, derrotado por uma imponente conjunção de forças políticas e militares. À sublevação dos países submetidos, como Espanha, somou-se a aliança para o destruir da Prússia, Áustria, Grã-Bretanha e Rússia. Foi deportado para a ilha de Elba, mas permitiram-lhe conservar o, agora irónico, título de imperador. No dia seguinte, Napoleão tentou, sem êxito, suicidar-se.

Em Espanha, o regozijo geral pelo regresso de o Desejado transformou-se poucas semanas depois em violência. Isolado pelo clero católico e pelas forças mais conservadoras da nobreza, do exército e da administração pública, o flamante rei revogou a Constituição de 1812 e as reformas liberais, fazendo o país retroceder em poucos meses à época feudal. Foi restaurada a Inquisição, assim como os privilégios da nobreza, do clero e dos militares, e desencadeou-se uma perseguição desapiedada a dissidentes e opositores, a liberais, afrancesados e a antigos colaboradores do governo de José Bonaparte. Regentes, ministros e deputados foram detidos, doze mil famílias tiveram de atravessar as fronteiras procurando refúgio no estrangeiro, e a repressão alastrou de tal forma que ninguém estava seguro; bastava a menor suspeita ou uma acusação sem fundamento para se ser preso e executado sem processo.

Eulália de Callís estava no sétimo céu. Tinha esperado muito tempo a volta do rei para recuperar a sua posição de antigamente. Não gostava da insolência da plebe nem da desordem; preferia o absolutismo de um monarca, mesmo que fosse um fulano medíocre. O seu lema era: cada um no seu lugar, um lugar para cada um. E o seu era nos píncaros, evidentemente. Ao contrário de outros nobres que tinham perdido as suas fortunas naqueles anos revolucionários por se agarrarem às tradições, ela não tivera escrúpulos em recorrer a métodos burgueses para enriquecer. Tinha faro para o negócio. Estava mais rica do que nunca, poderosa, com amigos na corte de Fernando VII e disposta a ver o extermínio sistemático das ideias liberais, que haviam feito perigar uma boa parte daquilo que sustentava a sua existência. Não obstante, ainda restava alguma coisa da generosidade do passado escondida nas pregas da sua corpulenta humanidade, porque, ao ver tanto sofrimento à sua volta, abriu as suas arcas para socorrer os famintos, sem lhes perguntar a que partido político pertenciam. Assim, acabou por esconder nas suas casas de campo ou arranjar maneira de mandar para França mais de uma família de refugiados.

Embora não precisasse de o fazer, porque, de qualquer maneira, a sua situação era magnífica, Rafael Moncada entrou de imediato no corpo de oficiais do exército, onde os títulos e ligações da família lhe garantiam uma ascensão rápida. Conferia-lhe prestígio anunciar aos quatro ventos que, finalmente, podia servir Espanha num exército monárquico, católico e tradicional. A tia concordou, pois era de opinião que até o mais pateta fica bem de uniforme.

Tomás de Romeu compreendeu então quanta razão tivera o seu amigo, o Chevalier Duchamp, ao aconselhá-lo a ir para o estrangeiro com as filhas. Convocou os seus contabilistas com o propósito de analisar o estado dos seus bens e descobriu que o seu rendimento não chegava para viver com decência noutro país.

Receava, além disso, que, ao exilar-se noutro lugar, o governo de Fernando VII confiscasse as propriedades que ainda lhe restavam. Depois de ter manifestado durante uma vida o seu desprezo pelos assuntos materiais, tinha agora de se agarrar às suas posses. A pobreza causava-lhe horror. Não se preocupara demasiado com a diminuição sistemática da fortuna herdada da mulher, porque supunha que haveria sempre o suficiente para continuar a viver da maneira a que estava habituado. Nunca encarara seriamente a possibilidade de perder a sua posição social. Não queria imaginar as filhas privadas da comodidade de que sempre haviam gozado. Decidiu que o melhor seria ir para longe, a fim de esperar que passasse a vaga de violência e perseguição. Na sua idade tinha visto muita coisa e sabia que, mais tarde ou mais cedo, o pêndulo político oscila na direcção oposta; era tudo questão de se manter invisível até que a situação normalizasse. Não podia nem pensar ir para a casa patriarcal de Santa Fé, onde era demasiado conhecido e odiado, mas lembrou-se de umas terras da mulher a caminho de Lérida, que nunca visitara. Essa propriedade, que não trouxera rendimento, apenas problemas, podia ser agora a sua salvação. Consistia numas colinas plantadas com velhas oliveiras, onde viviam umas quantas famílias camponesas muito pobres e atrasadas, que não viam um patrão havia tanto tempo que julgavam não o ter. A quinta estava provida de um horrendo casarão quase em ruínas, construído por volta do ano de 1500, um cubo maciço, fechado como um túmulo para preservar os seus habitantes dos perigos dos Sarracenos, soldados e bandidos que haviam assolado a região durante séculos, mas Tomás determinou que sempre seria preferível a uma prisão. Poderia ali permanecer uns meses com as filhas. Despediu a maior parte da criadagem, fechou metade da sua mansão de Barcelona, deixou o resto a cargo do mordomo e empreendeu a viagem em vários coches, porque tinha de transportar os móveis necessários.

Diego presenciou o êxodo da família com um mau pressentimento; contudo, Tomás de Romeu tranquilizou-o com o argumento de que não tinha exercido cargos na administração napoleónica e muito pouca gente estava a par da sua amizade com o Chevalier, de modo que não haveria nada a temer. «Por uma vez, agrada-me não ser uma pessoa importante», sorriu ao despedir-se. Juliana e Isabel não faziam bem ideia da situação em que se encontravam e partiram como quem vai para umas estranhas férias. Não compreendiam as razões do pai para as levar para ali, tão longe da civilização, mas estavam habituadas a obedecer e não fizeram perguntas. Diego beijou Juliana em ambas as faces e sussurrou-lhe ao ouvido que não desesperasse, porque a separação seria breve. Ela respondeu com um olhar de desconcerto. Como tantas coisas que Diego lhe insinuava, aquela tornou-se-lhe incompreensível.

Nada teria agradado mais a Diego do que acompanhar a família até ao campo, como Tomás de Romeu lhe pedira. A ideia de passar uns tempos longe do mundo e na companhia de Juliana era muito tentadora, mas não podia naquele momento afastar-se de Barcelona. Os membros de La Justicia estavam muito ocupados; tinham de multiplicar os seus recursos para ajudar a multidão de refugiados que procurava sair de Espanha. Era preciso escondê-los, arranjar transporte, introduzi-los em França pelos Pirenéus ou enviá-los para outros países da Europa. A Inglaterra, que combatera afincadamente Napoleão até o derrotar, apoiava agora o rei Fernando VII e, salvo excepções, não dava protecção aos inimigos do seu governo. Tal como lhe explicara o mestre Escalante, nunca até aí La Justicia tinha estado tão perto de ser descoberta. A Inquisição voltara mais forte do que antes, com plenos poderes para defender a fé a qualquer preço, mas como a linha divisória entre hereges e opositores era difusa, qualquer um podia cair nas suas garras. Durante os anos em que estivera abolida, os membros de La Justicia descuraram as medidas de segurança, convencidos de que no mundo moderno não havia lugar para o fanatismo religioso. Julgavam que os tempos de queimar gente na fogueira tinham sido ultrapassados para sempre. Agora pagavam as consequências do seu excessivo optimismo. Diego estava tão absorto nas missões de La Justicia, que deixou de ir às aulas do Colégio de Humanidades, onde a educação, tal como no resto do país, era censurada. Muitos dos seus professores e colegas haviam sido detidos por expressarem as suas opiniões. Naquela época, o rotundo reitor da Universidade de Cervera pronunciou perante o rei a frase que definia a vida académica de Espanha: «Longe de nós a funesta mania de pensar.»

Em princípios de Setembro detiveram um membro de La Justicia, que se escondera durante várias semanas em casa do mestre Manuel Escalante. A Inquisição, como braço da Igreja, preferia não derramar sangue. Os seus métodos mais recorrentes de interrogatório eram desconjuntar as vítimas no potro ou queimá-las com ferros em brasa. O infeliz prisioneiro confessou os nomes dos que o tinham socorrido; pouco depois, o mestre de esgrima foi detido. Antes de ser arrastado para a sinistra carruagem dos aguazis, teve tempo à justa para avisar o criado, que levou a má nova a Diego. Ao amanhecer do dia seguinte, este conseguiu apurar que Escalante não fora conduzido à Cidadela, como era habitual no caso de presos políticos, mas sim a um quartel do bairro do porto, porque pensavam conduzi-lo nos próximos dias a Toledo, onde estava centralizada a funesta burocracia da Inquisição. Diego pôs-se de imediato em contacto com Júlio César, o homem com quem tinha lutado no tabernáculo da sociedade secreta durante a sua iniciação.

- Isso é muito grave. Podem prender-nos a todos - disse este.

- Nunca conseguirão fazer o mestre Escalante confessar - opinou Diego.

- Têm métodos infalíveis, desenvolvidos ao longo de séculos. Detiveram vários dos nossos; já possuem muitas informações. O círculo aperta-se à nossa volta. Teremos de dissolver a sociedade a título temporário.

- E Dom Manuel Escalante?

- Espero, para bem de todos, que consiga pôr fim aos seus dias antes de ser submetido a suplício - suspirou Júlio César.

- Têm o mestre num quartel do bairro, não é na Cidadela; temos de tentar resgatá-lo... - propôs Diego.

- Resgatá-lo? Impossível!

- Difícil, mas não impossível. Vou precisar da ajuda de La Justicia. Fá-lo-emos esta mesma noite - retorquiu Diego, passando a explicar o seu plano.

- Acho uma loucura, mas vale a pena tentar. Ajudar-vos-emos - decidiu o seu companheiro.

- É preciso tirar o mestre imediatamente da cidade.

- Claro. Estará um bote com um remador de plena confiança à espera no porto. Acho que poderemos iludir a vigilância. O remador conduzirá o mestre a um navio que larga amanhã de madrugada para Nápoles. Ali estará a salvo.

Diego suspirou, pensando que poucas vezes tinha sentido mais a falta de Bernardo. Esta prova era mais séria do que introduzirem-se no palacete do Chevalier Duchamp. Não era brincadeira assaltar um quartel, dominar os guardas - não sabia quantos -, libertar o preso e levá-lo ileso para um bote, antes de lhes caírem em cima as garras da lei.

Dirigiu-se a cavalo à mansão de Eulália de Callís, cuja planta se dera ao trabalho de estudar com atenção em todas as oportunidades que a visitara. Deixou o cavalo na rua e, sem ser visto, avançou agachado pelos jardins, encaminhando-se para o pátio de serviço, onde pululavam animais domésticos entre mesas para matar porcos e aves, artesas de lavagem, panelas para ferver lençóis e arames com a roupa estendida a secar. Ao fundo ficavam os barracões das carruagens e os estábulos dos cavalos. Viam-se por todo o lado cozinheiros, lacaios e criadas, cada um ocupado com as suas incumbências. Ninguém lhe dirigiu sequer um olhar. Introduziu-se nos barracões, dissimulando-se entre as carruagens, escolheu a que lhe convinha e aguardou encolhido no seu interior, a fazer figas para que nenhum moço de estrebaria o descobrisse. Sabia que às cinco tocavam um sino para chamar a criadagem à cozinha; fora a própria Eulália de Callís que lho contara. Era a hora a que a matriarca oferecia uma merenda ao seu exército de criados: almoçadeiras de espumante chocolate com leite e pão para ensopar. Meia hora mais tarde, Diego ouviu as badaladas e, às duas por três, o pátio esvaziou-se de gente. A brisa trouxe-lhe o delicado aroma do chocolate e encheu-se-lhe a boca de saliva. Desde que a família partira para o campo, comia-se muito mal na casa De Romeu. Diego, consciente de que só dispunha de dez ou quinze minutos, arrancou rapidamente o brasão de armas da portinhola duma carruagem e apoderou-se de um par de jaquetas do elegante uniforme dos lacaios, que estavam penduradas nos respectivos cabides. Eram librés de veludo azul-celeste com gola e forro carmesim, botões e charlateiras douradas. Completavam a indumentária colarinhos de renda, calças brancas, sapatos de verniz preto com fivelas de prata e uma faixa de brocado vermelho à cintura. Como dizia Tomás de Romeu, nem Napoleão Bonaparte se vestia com tanto luxo como os criados de Eulália. Uma vez seguro de que o pátio estava desimpedido, saiu com a sua carga, escondendo-se entre os arbustos, e procurou o cavalo. Pouco depois trotava rua abaixo.

Em casa de Tomás de Romeu achava-se a desconjuntada carruagem da família, demasiado frágil e antiga para a levar até ao campo. Comparada com qualquer uma das de Dona Eulália, era uma ruína, mas Diego esperava que, de noite e com pressa, ninguém notasse o seu decrépito aspecto. Tinha de esperar que o Sol se pusesse e medir o seu tempo com cuidado; disso dependeria o êxito da sua missão. Depois de cravar o escudo na carruagem, dirigiu-se à adega, que o mordomo mantinha sempre fechada à chave, insignificante estorvo para Diego que aprendera a arrombar toda a espécie de fechaduras. Abriu a adega, tirou de lá um barril de vinho e transportou-o a rolar mesmo debaixo das barbas dos criados, que não lhe fizeram perguntas, julgando que Dom Tomás lhe tinha dado a chave antes de partir.

Durante mais de quatro anos Diego guardara como um tesouro o frasco de xarope de dormideira que lhe dera sua avó Coruja Branca como presente de despedida, com a promessa de que só o devia usar para salvar vidas. Era justamente esse o destino que tencionava dar-lhe. Muitos anos antes, com aquela poção, o padre Mendoza tinha amputado uma perna e ele aturdira um urso. Não sabia quão poderosa seria a droga dissolvida naquela quantidade de vinho, mas tinha de o tentar. Despejou o conteúdo do frasco no tonel e rebolou-o para o misturar. Pouco depois, chegaram os cúmplices de La Justicia, que puseram cabeleiras brancas de lacaios e as librés do uniforme da casa de Callís, para o acompanhar. Diego vestiu-se como um príncipe, com a sua melhor indumentária de colete de veludo cor de café com passamanaria de ouro e prata, gola de pele, gravata de peitilho presa com um broche de pérolas, calças cor de manteiga, sapatos de petimetre com fivelas douradas e chapéu alto. Assim o conduziram os seus camaradas na carruagem até ao quartel. Era noite cerrada quando compareceu frente à porta, mal iluminada por umas candeias. Diego ordenou a duas sentinelas, com a voz altissonante de alguém habituado a mandar, que chamassem o seu superior. Calhou este ser um jovem alferes de forte sotaque andaluz, que se impressionou com a esmagadora elegância de Diego e com o escudo de armas da carruagem.

- Sua Excelência, Dona Eulália de Callís, envia-vos um tonel do melhor vinho das suas adegas, para que façais um brinde em sua honra com os vossos homens nesta mesma noite. É o seu aniversário - anunciou Diego com ar de superioridade.

- Parece-me estranho... - conseguiu balbuciar o homem, surpreendido.

- Estranho? Deveis ser novo em Barcelona! - interrompeu-o Diego. - Sua Excelência mandou sempre vinho ao quartel por ocasião do seu aniversário e com maioria de razão o faz agora, quando a pátria está livre do déspota ateu.

Desconcertado, o alferes ordenou aos seus subalternos que tirassem o barril e inclusivamente convidou Diego para beber com eles, mas este escusou-se, alegando que tinha de distribuir outros presentes similares na Cidadela.

- Daqui a pouco, Sua Excelência enviar-vos-á o seu guisado predilecto, pé de porco com nabos. Quantas bocas há aqui? - perguntou Diego.

- Dezanove.

- Bem. Boa noite.

- O seu nome, senhor, por favor...

- Sou Dom Rafael Moncada, sobrinho de Sua Excelência, Dona Eulália de Callís - retorquiu Diego e, batendo com a bengala na portinhola da carruagem, ordenou ao falso cocheiro que empreendesse a retirada.

Às três da madrugada, quando a cidade dormia e as ruas se achavam vazias, Diego dispôs-se a levar a cabo a segunda etapa do plano. Calculava que àquela hora os homens do quartel teriam bebido o seu vinho e, se não estivessem a dormir, pelo menos estariam atordoados. Essa seria a sua única vantagem. Tinha mudado de roupa e vestia como o Zorro. Trazia chicote, pistola e a sua espada afiada como uma navalha. Para não chamar a atenção com os cascos de um cavalo sobre as pedras da calçada, foi a pé. Deslizando colado às paredes, chegou até uma das ruelas próximas do quartel, onde verificou que as mesmas sentinelas, bocejando de fadiga, continuavam debaixo dos candeeiros. Nas sombras de um barracão esperavam-no Júlio César e outro membro de La Justicia, disfarçados de marinheiros, tal como haviam combinado. Diego deu-lhes as suas instruções, que incluíam a ordem terminante de não intervirem para o ajudar, acontecesse o que acontecesse. Cada um devia cuidar de si mesmo. Desejaram sorte uns aos outros em nome de Deus e separaram-se.

Os «marinheiros» simularam uma rixa de bêbedos perto do quartel, enquanto Diego esperava a sua oportunidade, oculto na escuridão. A briga atraiu a atenção das sentinelas, que abandonaram brevemente os seus postos para averiguarem a causa do tumulto. Aproximaram-se dos supostos ébrios para os advertir de que se afastassem ou seriam presos, mas estes continuaram a aplicar desajeitados bofetões um ao outro, como se não os ouvissem. Tanto cambaleavam e balbuciavam parvoíces, que as sentinelas desataram a rir com vontade, mas, quando se dispuseram a dispersá-los à pancada, os bêbedos recuperaram milagrosamente o equilíbrio e caíram-lhes em cima. Apanhados de surpresa, os guardas não se conseguiram defender. Aturdiram-nos num instante, agarraram-nos pelos tornozelos e arrastaram-nos sem considerações para uma viela adjacente, onde havia uma porta de anões dissimulada num portal. Bateram três vezes, abriu-se uma portinhola, disseram a contra-senha e uma sexagenária, vestida de preto, abriu-lhes a porta. Entraram agachados, para evitar darem cabeçadas no baixíssimo lintel, e introduziram os seus prisioneiros inertes numa cave de carvão. Ali os deixaram com as mãos amarradas e encapuçados, depois de os despirem. Vestiram os uniformes e voltaram à porta do quartel para se postarem sob os candeeiros. Nos escassos minutos que durou a operação de substituir as duas sentinelas, Diego tinha-se introduzido no edifício, de espada e pistola na mão.

Lá dentro, o sítio parecia deserto; reinava um silêncio sepulcral e havia muito pouca luz, porque metade das candeias tinha ficado sem azeite. Invisível como um espectro, o Zorro atravessou o vestíbulo. Empurrou cautelosamente uma porta e assomou à sala de armas, onde sem dúvida tinham distribuído o conteúdo do barril, porque estava meia dúzia de homens a ressonar no chão, incluindo o alferes. Assegurou-se de que nenhum estava acordado e a seguir inspeccionou o tonel. Tinha sido esvaziado até à última gota.

- Saúde, senhores! - exclamou satisfeito e, num impulso zombeteiro, traçou no muro uma letra Z com três traços da sua espada. Veio-lhe à mente a advertência de Bernardo de que o Zorro acabaria por se apoderar dele, mas já era tarde.

Confiscou rapidamente as armas de fogo e os sabres, amontoou-os nos baús do vestíbulo e a seguir continuou a sua excursão pelo edifício, apagando candeeiros e velas à medida que avançava. As sombras tinham sido sempre as suas melhores aliadas. Encontrou outros três homens derrotados pelo xarope de Coruja Branca e calculou que, se não lhe tinham mentido, restavam à volta de oito. Esperava dar com as celas dos presos sem ter de os enfrentar, mas chegaram-lhe aos ouvidos vozes próximas e compreendeu que tinha de se esconder depressa. Achava-se numa ampla divisão quase nua. Não sabia onde resguardar-se e tão-pouco conseguia apagar os dois archotes no muro oposto, a quinze passos de distância. Olhou em redor; a única coisa que lhe podia servir eram as grossas vigas do telhado, demasiado altas para as alcançar de um salto. Embainhou a espada, enfiou a pistola no cinto, desenrolou o chicote e com um gesto do pulso enroscou a ponta numa das vigas, puxou para o retesar e trepou com um par de braçadas, como tantas vezes tinha feito nos cabos dos mastros e no circo dos ciganos. Uma vez lá em cima, recolheu o chicote e espalmou-se sobre a viga, tranquilo porque a luz dos archotes não chegava lá. Nesse momento entraram dois homens a conversar; a julgar pela maneira como pareciam animados, não tinham recebido a sua ração de vinho.

Diego decidiu interceptá-los antes que chegassem à sala de armas, onde os seus companheiros jaziam esparramados no melhor dos sonos. Esperou que passassem por baixo da viga e atirou-se lá de cima como um enorme pássaro negro, a capa aberta em leque e o chicote numa mão. Paralisados, os homens demoraram-se a desembainhar os sabres, dando-lhe tempo para lhes vergar as pernas com duas certeiras chicotadas.

- Muito boa noite, senhores! - cumprimentou com uma pequena reverência zombeteira as vítimas, que estavam de joelhos. - Peço-vos que coloqueis os sabres com muito cuidado no chão.

Fez estalar o chicote à guisa de advertência, enquanto puxava da pistola que trazia à cintura. Os homens obedeceram-lhe sem chus nem bus e ele atirou os sabres com um pontapé para um canto.

- Vamos a ver se Vossas Mercês me ajudam. Suponho que não quereis morrer e a mim aborrece-me matar-vos. Onde posso fechar-vos para que não me causeis problemas? - perguntou-lhes, irónico.

Os soldados olharam-no perplexos, sem fazer ideia do que ele queria dizer. Eram rudes camponeses recrutados pelo exército, um par de rapazes que nos seus curtos anos tinham visto horrores, sobrevivido às matanças da guerra e passado muita fome. Não estavam para adivinhas. O Zorro simplificou a pergunta, acentuando as palavras com os estalos do chicote. Um deles, demasiado assustado para conseguir falar, apontou para a porta por onde tinham entrado. O mascarado sugeriu-lhes que rezassem as suas orações, porque, se o enganassem, iam morrer. A porta dava para um comprido corredor vazio, que percorreram em fila, os cativos à frente e ele atrás. Ao fundo, o corredor bifurcava-se: à direita havia uma porta escalavrada e à esquerda uma em melhor estado, com uma fechadura que se accionava pelo outro lado. O Zorro indicou aos seus prisioneiros que abrissem a da direita. À sua vista apareceu uma nauseabunda latrina, composta por quatro buracos no chão cheios de excrementos, uns baldes de água e uma lanterna imunda de moscas. Não havia mais ligação com o exterior, senão um pequeno postigo com barrotes de ferro.

- Perfeito! Lamento que a fragrância não seja de gardénias. Vamos a ver se, de futuro, limpais com mais cuidado - comentou, e com um movimento da pistola fez sinal aos espantados homens para que entrassem.

O Zorro trancou a retrete por fora e encaminhou-se para a outra porta, cuja fechadura era muito simples, conseguindo abri-la em poucos segundos com o alfinete de aço que trazia sempre na costura de uma bota para executar os seus truques de magia. Abriu com prudência e desceu sigiloso por uma escada de vários degraus. Calculou que conduziria ao subterrâneo, onde certamente ficavam as celas. No final das escadas, colado ao muro, deitou uma olhadela. Um único archote iluminava um vestíbulo sem ventilação, vigiado por um guarda que, obviamente, tão-pouco tinha provado o vinho de dormideira, porque estava a fazer uma paciência com um baralho gasto, sentado de pernas cruzadas no chão. A sua espingarda achava-se ao alcance da mão, mas não teve ocasião de a empunhar, porque o Zorro lhe apareceu subitamente à frente e lhe aplicou um pontapé no queixo que o fez cair de costas, após o que atirou a arma para longe com outro pontapé. A pestilência do lugar era tão atroz que sentiu a tentação de retroceder, mas não era momento para escrúpulos. Pegou no archote e assomou às pequenas celas, uns buracos insalubres, húmidos, infestados de bichos, onde os prisioneiros estavam amontoados na escuridão. Havia três ou quatro em cada cela e tinham de se manter de pé ou sentarem-se por turnos. Pareciam esqueletos com olhos de loucos. O ar fétido vibrava com a respiração ofegante daqueles infelizes. O jovem mascarado chamou por Manuel Escalante e uma voz respondeu-lhe de um dos calabouços. Ergueu o archote e viu um homem agarrado às grades, tão maltratado que a cara era uma única massa disforme e arroxeada onde não se distinguiam as feições.

- Se sois o verdugo, bem-vindo - disse o prisioneiro, e nessa altura, pela dignidade do seu porte e firmeza da sua voz, reconheceu-o.

- Venho libertar-vos, mestre, sou o Zorro.

- Muito boa ideia! As chaves estão penduradas ao pé da porta. De caminho, seria conveniente tratar do guarda, que começa a espertar... - retorquiu, sereno, Manuel Escalante.

O seu discípulo pegou no molho de chaves e abriu as grades. Os três prisioneiros que compartilhavam a cela saíram em tropel, empurrando-se e tropeçando, como animais, enlouquecidos por um misto de terror e dilaceradora esperança. O Zorro apontou-lhes a pistola.

- Não tão depressa, cavalheiros; primeiro, tendes de socorrer os vossos camaradas - ordenou-lhes.

O aspecto ameaçador do pistolão teve a virtude de lhes devolver um pouco da humanidade perdida. Enquanto eles se debatiam com chaves e fechaduras, Diego fechou o guarda na cela desocupada e Escalante apoderou-se da espingarda. Uma vez abertos todos os calabouços, ambos guiaram até à saída aqueles patéticos espectros em farrapos, desgrenhados, cobertos de sangue seco, sujidade e vomitado. Subiram as escadas, cruzaram o corredor, atravessaram o compartimento nu onde Diego tinha trepado à viga e conseguiram chegar perto da sala de armas, quando surgiu diante deles um grupo de guardas, alertados pelo barulho nos calabouços. Vinham preparados, de espada na mão. O Zorro disparou um único tiro da sua arma, acertando num dos guardas, que caiu inanimado, mas Escalante apercebeu-se de que a sua espingarda estava descarregada, não havendo tempo de a aprontar. Empunhou-a pelo cano e lançou-se em frente como uma tromba d'água, distribuindo golpes em todas as direcções. O Zorro desembainhou o seu aço e também empreendeu o ataque. Conseguiu deter um dos opositores, por uns segundos, dando oportunidade a Escalante de deitar a mão a uma das espadas que Diego arrebatara aos homens que encerrara na latrina. Entre os dois faziam mais barulho e estrago que um batalhão. Diego usara diariamente o florete desde criança, mas nunca tivera de lutar a sério. O seu único duelo de morte fora à pistola e tinha sido muito mais limpo. Verificou que não há nada de honroso num combate real, onde as regras nada valem. A única regra é vencer, custe o que custar. Os gumes das armas não se chocavam numa elegante coreografia, como nas aulas de esgrima, antes apontavam directamente ao inimigo para o trespassarem. O cavalheirismo não existia, os golpes eram ferozes e não se dava quartel a ninguém. A sensação que o aço transmitia ao entrar na carne de um homem era indescritível. Apoderou-se dele um misto de desapiedada exaltação, de repugnância e triunfo, perdeu a noção da realidade e transformou-se num animal. Os gritos de dor e as roupas tingidas de sangue dos seus adversários fizeram-no apreciar a técnica de combate dos membros de La Justicia, tão infalível no Círculo do Mestre como na cega luta corpo a corpo. Mais tarde, quando foi capaz de pensar, agradeceu os meses de prática com Bernardo, em que acabava tão esgotado que as pernas mal o sustinham de pé. No processo tinha desenvolvido reflexos muito rápidos, visão circular e adivinhava por instinto o que se passava à sua retaguarda. Numa fracção de segundo era capaz de prevenir os movimentos simultâneos de vários inimigos, avaliar as distâncias, calcular a velocidade e direcção de cada estocada, cobrir-se, atacar.

O mestre Escalante demonstrou ser tão eficiente como o seu discípulo, apesar da idade e dos terríveis maus tratos sofridos às mãos dos seus verdugos. Não tinha a agilidade e a força do Zorro, mas a sua experiência e calma compensavam de sobra essas carências. No fragor da luta, o jovem cobria-se de suor e perdia o fôlego, enquanto o mestre brandia o sabre com igual determinação, mas muito mais elegância. Em poucos minutos os dois conseguiram reduzir, desarmar ou ferir os seus contendores. Só quando o campo de batalha estava ganho, os prisioneiros resgatados se atreveram a aproximar-se. Nenhum tivera a coragem de ajudar os seus salvadores, mas agora estavam mais que dispostos a arrastar os guardas derrotados para as celas que eles mesmos ocupavam minutos antes, onde os encerraram com insultos e pancadas. Só então o Zorro recuperou a razão e deu uma olhadela em redor. Sangue em charcos pelo chão, sangue salpicado nas paredes, sangue nos corpos dos feridos que eram levados para as celas, sangue nas suas costas, sangue por todo o lado.

- Santa Mãe de Deus! - exclamou, espantado.

- Vamos, não há tempo para considerações - indicou-lhe

o mestre Escalante.

Saíram do quartel sem encontrar resistência. Os outros prófugos debandaram pelas vielas obscurecidas da cidade. Alguns conseguiriam salvar-se fugindo para o estrangeiro ou mantendo-se escondidos durante anos, mas outros seriam novamente presos e submetidos a tortura antes de serem executados, para que confessassem como tinham fugido. Esses homens nunca conseguiram dizer quem era o atrevido mascarado que os pusera em liberdade, porque não o sabiam. Apenas ouviram o seu nome, Zorro, que coincidia com o Z marcado na parede da sala de armas.

Decorreram, no total, quarenta minutos entre o momento em que os dois supostos bêbedos distraíram as sentinelas do quartel e aquele em que o Zorro resgatou o seu mestre. Na rua eram esperados pelos membros de La Justicia, ainda vestindo os uniformes dos guardas, que conduziram o fugitivo ao exílio. Ao despedirem-se, Diego e Manuel Escalante abraçaram-se pela primeira e última vez.

Ao amanhecer, uma vez que os homens do quartel se recompuseram dos efeitos da droga e conseguiram organizar-se e tratar dos feridos, o desventurado alferes teve de dar conta da ocorrência aos seus superiores. A única coisa a seu favor foi que, apesar do sucedido, nenhum dos seus subalternos tinha morrido na refrega. Informou que, ao que sabia, Eulália de Callís e Rafael Moncada estavam implicados no caso, porque deles provinha o fatídico barril de vinho que intoxicara a tropa.

Nessa mesma tarde apresentou-se um capitão diante dos suspeitos, escoltado por quatro guardas armados, mas com uma atitude servil e um rosário de bajulices na ponta da língua. Eulália e Rafael receberam-no como um vassalo, exigindo que se desculpasse por os incomodar com parvoíces. A dama mandou-o às cavalariças para verificar que o seu brasão de armas fora arrancado de uma das carruagens, prova que pareceu insuficiente ao capitão, mas não se atreveu a dizê-lo. Rafael Moncada, com o uniforme dos oficiais do rei, apresentava um aspecto tão intimidante que não lhe pediu explicações. Moncada não tinha qualquer álibi, mas com a sua posição social não precisava dele. Num abrir e fechar de olhos, aquele par de elevado nível ficou livre de qualquer suspeita.

- O oficial que se deixou enganar dessa maneira é um rematado imbecil e tem de receber um castigo exemplar. Exijo saber o que significa o Z marcado na parede do quartel e a identidade do bandido que se atreve a usar o meu nome e o do meu sobrinho para as suas malfeitorias. Compreendeu-me, senhor oficial? - desfechou Eulália ao militar.

- Não duvide de que faremos todos os possíveis para esclarecer este infeliz incidente, Excelência - assegurou-lhe o capitão, retrocedendo até à saída com profundas genuflexões.

Em Outubro, Rafael Moncada decidiu que chegara o momento de fazer sentir a sua autoridade perante Juliana, visto que a diplomacia e a paciência não haviam dado resultado algum. Talvez ela suspeitasse de que o assalto sofrido na rua tivesse sido obra sua, mas não tinha provas e aqueles que lhas poderiam dar, os ciganos, estavam longe e não se atreveriam a regressar a Barcelona. Entretanto, ele tinha indagado que a situação económica de Tomás de Romeu era insolvente. Os tempos haviam mudado; aquela família já não estava em condições de se fazer rogada. A sua própria posição era magnífica; só lhe faltava Juliana para ter as rédeas do seu destino na mão. É certo que não contava com a aprovação de Eulália de Callís para cortejar a jovem, mas decidiu que já não tinha idade para deixar que a sua dominadora tia mandasse nele. Não obstante, quando pretendeu anunciar a sua visita a Tomás de Romeu, a fim de o notificar dos seus planos, devolveram-lhe a missiva, porque este se ausentara da cidade com as filhas. Não souberam dizer-lhe onde se encontrava, mas ele tinha meios de o averiguar. Por coincidência, nesse mesmo dia, Eulália convocou-o para marcar a data em que lhe apresentaria a filha dos duques de Medinaceli.

- Lamento, tia. Por muito conveniente que esse enlace seja, não posso levá-lo a cabo. Como a tia sabe, amo Juliana de Romeu - anunciou-lhe Rafael com toda a firmeza de que conseguiu lançar mão.

- Tira essa jovem da cabeça, Rafael - advertiu-o Eulália. - Nunca foi bom partido, mas agora equivale a um suicídio social. Achas que a receberiam na corte ao saber-se que o pai é um afrancesado?

- Estou preparado para correr esse risco. É a única mulher que me interessou na vida.

- A tua vida ainda mal começou. Deseja-la porque te fez desfeitas e por nenhuma outra razão. Se a tivesses conseguido, já estarias farto dela. Precisas de uma esposa à tua altura, Rafael, alguém que te ajude na tua carreira. A De Romeu apenas serve como amante.

- Não fale assim de Juliana! - exclamou Rafael.

- Porque não? Falo como me der na real gana, especialmente quando tenho razão - retorquiu a matriarca num tom sem apelo. - Com os títulos de Medinaceli e a minha fortuna podes chegar muito longe. Desde a morte do meu pobre filho, és a minha única família, e por isso te trato com a consideração de uma mãe, mas a minha paciência tem limites, Rafael.

- Que eu saiba, tia, o seu defunto marido, Pedro Fages, que Deus o tenha no Seu santo seio, tão-pouco possuía títulos nem dinheiro quando a tia o conheceu - alegou o sobrinho.

- A diferença é que Pedro era valente, tinha uma folha de serviços impecável no exército e estava disposto a comer lagartixas no Novo Mundo contanto que fizesse fortuna. Em contrapartida, Juliana é uma fedelha mimada e o pai é um zé-ninguém. Se queres arruinar a tua vida com ela, não contes comigo para nada, estamos entendidos?

- Entendidíssimos, tia. Boa tarde.

Batendo os calcanhares, Moncada inclinou-se e saiu da sala. Tinha um aspecto esplêndido com o seu uniforme de oficial, as botas reluzentes e a espada com borlas à cinta. Dona Eulália não se perturbou. Conhecia a natureza humana e confiava no triunfo da ambição desmedida sobre qualquer demência de amor. O caso do sobrinho não tinha razão para ser excepcional.

Poucos dias mais tarde, Juliana, Isabel e Nuria regressaram a Barcelona a mata-cavalos na carruagem familiar, sem mais escolta que Jordi e dois lacaios. O barulho de cascos e o alvoroço no pátio alertaram Diego, que nessa altura se aprontava para sair. As três mulheres apareceram macilentas e cobertas de pó, com a notícia de que Tomás de Romeu fora preso. Um destacamento de soldados aparecera no casarão de campo, entrara de roldão e tinha-o levado sem lhe dar tempo para pegar num abafo. As raparigas só sabiam que fora acusado de traição e seria conduzido à temível Cidadela.

Quando Tomás de Romeu foi detido, Isabel assumiu a condução da família, porque Juliana, quatro anos mais velha, perdeu a cabeça. Com uma maturidade que até então não tinha demonstrado de modo nenhum, Isabel deu ordens para se embalar o indispensável e fechar a casa. Em menos de três horas viajava com Nuria e a irmã a todo o galope, de volta a Barcelona. Pelo caminho, teve tempo de se aperceber de que não contava com um único aliado naquela situação. O pai, que segundo julgava nunca tinha feito mal a ninguém, agora só tinha adversários. Ninguém estava disposto a comprometer-se para estender a mão às vítimas da perseguição do Estado. A única pessoa a quem podiam recorrer não era amigo, mas sim inimigo, porém não hesitou nem um instante em fazê-lo. Juliana teria de se prostrar aos pés de Rafael Moncada, se fosse necessário; nenhuma humilhação era intolerável quando se tratava de salvar o seu pai, como disse. Melodrama ou não, tinha razão. Assim o admitiu a própria Juliana; em seguida, Diego teve de aceitar a decisão, porque nem uma dúzia de Zorros era capaz de resgatar alguém da Cidadela. O forte era inexpugnável. Uma coisa fora introduzir-se num quartel de bairro, a cargo de um alferes imberbe, para resgatar Escalante, mas seria diferente enfrentar o grosso das tropas do rei em Barcelona. Não obstante, a ideia de Juliana ir pedir ajuda a Moncada revoltava-o. Insistiu em ir ele em sua vez.

- Não sejas ingénuo, Diego, a única que pode obter alguma coisa desse homem é Juliana. Tu não tens nada para lhe oferecer - retorquiu Isabel sem apelo.

Ela mesma escreveu uma missiva anunciando a visita da irmã e enviou-a por um criado a casa do tenaz galã, após o que mandou a irmã lavar-se e vestir-se com as suas melhores roupas. Juliana foi terminante em que só Nuria a acompanhasse, porque Isabel perdia as estribeiras com facilidade e Diego não fazia parte da família. Aliás, ele e Moncada odiavam-se. Poucas horas mais tarde, ainda olheirenta devido à fadiga da viagem, Juliana bateu à porta da mansão do homem que detestava, desafiando a norma de discrição estabelecida vários séculos antes. Só uma mulher de reputação mais que duvidosa se atrevia a visitar um homem solteiro, por muito que aparecesse acompanhada por uma severa ama. Debaixo do manto preto, embora já soprassem ventos de Outono, vestia um vaporoso vestido de Verão, cor de milho, uma jaquetinha curta bordada de missangas e um chapéu do tom do vestido, atado com um lenço de seda verde e coroado com plumas brancas de avestruz. De longe parecia um pássaro exótico, de perto estava mais bonita que nunca. Nuria aguardou no vestíbulo enquanto um criado conduzia Juliana ao salão onde o seu apaixonado a esperava.

Rafael viu-a entrar flutuando como uma náiade no ar quieto da tarde e fez as contas: havia quatro anos que esperava aquele momento. O desejo de lhe fazer pagar as humilhações do passado esteve a ponto de se apoderar dele, mas supôs que não devia esticar a corda; aquela frágil pomba devia estar no limite da sua resistência. A última coisa que imaginava era que a frágil pomba se mostrasse tão hábil para regatear como um turco do mercado. Ninguém soube exactamente como negociaram, porque depois Juliana só explicou os pontos fundamentais do acordo a que chegaram: Rafael obteria a liberdade de Tomás de Romeu e em troca ela casar-se-ia com ele. Nem um gesto, nem uma palavra a mais, traíram os sentimentos de Juliana. Meia hora mais tarde, saiu do salão em perfeita calma, acompanhada por Moncada, que a amparava levemente pelo braço. Fez um gesto peremptório a Nuria e dirigiu-se à sua carruagem, onde Jordi adormecia de esgotamento na boleia. Partiu sem volver um único olhar ao homem a quem tinha prometido a mão.

Durante mais de três semanas, as meninas De Romeu aguardaram os resultados das diligências de Moncada. As únicas saídas que fizeram nesse tempo foram à igreja para pedir a Eulália, a santa da cidade, que as socorresse. «A falta que Bernardo nos faz!», comentou mais de uma vez Isabel naqueles dias, porque estava convencida de que ele teria conseguido averiguar em que condições o pai estava, inclusivamente de fazer-lhe chegar uma mensagem. O que não se conseguia de cima, alcançava-o frequentemente Bernardo com as suas ligações.

- Sim, seria bom tê-lo aqui, mas ainda bem que se foi embora. Está finalmente com Raio na Noite, onde sempre quis estar - assegurou-lhe Diego.

- Recebeste notícias dele? Uma carta?

- Ainda não, isso demora.

- E então como é que sabes?

Diego encolheu os ombros. Não lhe podia explicar em que consistia aquilo a que os brancos da Califórnia chamavam o correio dos índios. Funcionava sem tropeços entre Bernardo e ele; desde crianças que conseguiam comunicar sem palavras e não havia razão para que não o pudessem fazer agora. Apenas o mar os separava, mas continuavam em contacto permanente, como sempre tinham estado.

Nuria comprou uma peça de grosseira lã de cor castanha e dedicou-se a coser saios de peregrino. Para reforçar a influência de Santa Eulália na corte celestial, tinha apelado também a Santiago de Compostela. Prometeu-lhe que, se soltassem o seu patrão, iria a pé com as raparigas ao seu santuário.

Não fazia a menor ideia do número de léguas que teriam de caminhar, mas supunha que, se havia gente que ia de França, não podiam ser muitas.

A situação da família era péssima. O mordomo foi-se embora sem explicações, mal soube que tinham prendido o amo. Os poucos criados que havia na casa andavam de monco caído e perante qualquer ordem respondiam com insolência, porque tinham perdido as esperanças de receberem os ordenados em atraso. Se não se iam embora era porque não tinham para onde ir. Os contabilistas e advogados que geriam os bens de Dom Tomás negaram-se a receber as filhas quando estas lhes foram pedir dinheiro para a despesa diária. Diego não podia ajudá-las, porque entregara quase tudo o que possuía aos ciganos; esperava uma remessa do pai, mas ainda não chegara. Entretanto, recorria a contactos mais terrenos que os de Nuria para averiguar as condições em que o preso estava. La Justicia já não o podia ajudar; os seus membros tinham-se dispersado. Era a primeira vez, ao longo dos séculos, que a sociedade secreta suspendia as suas actividades, porque mesmo nos piores momentos da sua história tinha funcionado. Alguns dos seus membros haviam fugido do país, outros estavam ocultos, e os menos afortunados achavam-se nas garras da Inquisição, que já não queimava os presos; preferia fazê-los desaparecer discretamente.

Em fins de Outubro, Rafael Moncada apareceu para falar com Juliana. Trazia um ar derrotado. Naquelas três semanas descobrira que o seu poder era bastante mais limitado do que supunha, explicou. Na hora da verdade, muito pouco pôde fazer contra a pesada burocracia do Estado. Fizera uma viagem a mata-cavalos a Madrid para interceder perante o rei em pessoa, mas este despachara-o para o seu secretário, um dos homens mais poderosos da corte, com a advertência de que não o incomodasse com patetices. Do secretário nada conseguira com boas palavras e não se atrevera a suborná-lo porque, caso se enganasse, isso poderia custar-lhe muito caro. Notificaram-no de que Tomás de Romeu, juntamente com um punhado de traidores, seria fuzilado. O secretário acrescentara que não queimasse as suas influências defendendo um abutre, porque podia lamentá-lo. A ameaça não podia ser mais clara. Ao regressar a Barcelona, permitiu-se o tempo estritamente necessário para se lavar e apresentou-se para contar tudo isto às raparigas, que o receberam pálidas, mas firmes. Para as consolar, assegurou-lhes que não pensava dar-se por vencido; continuaria a tentar por todos os meios que a sentença fosse comutada.

- Em qualquer caso, Vossas Mercês não ficarão sozinhas neste mundo. Poderão sempre contar com a minha estima e protecção - acrescentou, pesaroso.

- Veremos - retorquiu Juliana, sem uma lágrima. Quando Diego soube das trágicas novas, decidiu que se Eulália, a santa, não fora capaz de fazer nada por eles, deviam recorrer à sua homónima.

- Essa senhora é muito poderosa. Conhece os segredos de meio mundo. Têm medo dela. Aliás, nesta cidade o dinheiro conta mais que qualquer outra coisa. Iremos os três falar com ela - disse Diego.

- Eulália de Callís não conhece o meu pai e, segundo dizem, detesta a minha irmã - advertiu-o Isabel. Contudo, ele não podia deixar de o tentar.

O contraste entre aquele palacete atafulhado de adornos, como os mais luxuosos da época dourada do México, e a sobriedade de Barcelona, em geral, e da casa De Romeu, em particular, tornava-se impressionante. Diego, Juliana e Isabel atravessaram imensos salões de paredes pintadas com frescos ou cobertas de tapeçarias da Flandres, óleos de nobres antepassados e quadros de batalhas épicas. Havia criados de libré postados em cada porta e empregadas, ataviadas de rendas holandesas, a tratar dos horríveis cães chihuahua, que cravavam a vista no chão à passagem de qualquer pessoa de condição social superior. Refiro-me às criadas, claro, e não aos cãezinhos. Dona Eulália recebeu os seus visitantes no trono com baldaquino do salão principal, vestida como se fosse para um baile, embora sempre de luto rigoroso. Parecia um enorme leão-marinho, envolto em sucessivas camadas de gordura, com a sua cabeça pequena e os formosos olhos de longas pestanas, brilhantes como azeitonas. Se a velha senhora pretendia intimidá-los, conseguiu-o plenamente. As jovens sufocavam de vergonha no ar algo doentio daquele palacete: nunca se tinham visto numa situação semelhante; haviam nascido para dar, e não para pedir.

Eulália só tinha visto Juliana de longe e sentia uma certa curiosidade por observá-la de perto. Não pôde negar que a jovem era graciosa, mas o seu aspecto não justificava a tolice que o sobrinho estava disposto a cometer. Trouxe à lembrança os seus anos de mocidade e decidiu que tinha sido tão bela como a rapariga De Romeu. Além da sua cabeleira de fogo, possuía um corpo de amazona. Debaixo da gordura que agora a impedia de andar, continuava intacta a recordação da mulher que antes fora, sensual, imaginativa, cheia de energia. Por alguma coisa Pedro Farges a amara com inesgotável paixão e fora invejado por tantos homens. Juliana, em contrapartida, possuía uma atitude de gazela ferida. O que via Rafael naquela donzela delicada e pálida que, certamente, se portaria como uma freira na cama? Os homens são muito tolos, concluiu. A outra rapariguinha De Romeu - como se chamava ela? - afigurou-se-lhe mais interessante, porque não parecia tímida, mas o seu aspecto deixava muito a desejar, especialmente ao compará-la com Juliana. «Pouca sorte a daquela rapariga, ter uma célebre beldade por irmã», pensou. Em condições normais teria oferecido pelo menos um xerez e acepipes aos seus visitantes - ninguém a podia acusar de ser mesquinha com a comida; a sua casa era famosa pela boa cozinha -, mas não quis que se sentissem à vontade: tinha de manter a sua vantagem para o regateio que, sem dúvida, a esperava.

Diego tomou a palavra para expor a situação do pai das meninas, sem omitir que Rafael Moncada tinha ido a Madrid com a intenção de interceder por ele. Eulália escutou em silêncio, observando cada um deles com os seus olhos penetrantes e tirando as suas próprias conclusões. Adivinhou o acordo que Juliana devia ter feito com o seu sobrinho, caso contrário ele não se teria dado ao incómodo de arriscar a sua reputação para defender um liberal acusado de traição. Esse desajeitado lance podia custar-lhe o favor do rei. Por um momento sentiu-se satisfeita por Rafael não ter conseguido os seus propósitos, mas depois viu lágrimas nos olhos das raparigas, e o seu velho coração atraiçoou-a uma vez mais. Sucedia-lhe com frequência que o seu bom juízo para os negócios e o seu senso comum tropeçassem com os sentimentos. Isso tinha o seu preço, mas dava o dinheiro por bem empregado, porque os seus espontâneos arrebatamentos de compaixão eram os últimos resquícios que restavam da sua juventude perdida. À alegação de Diego de la Vega seguiu-se uma longa pausa. Por fim, a matriarca, comovida contra vontade, informou-os de que tinham uma ideia muito exagerada do seu poder. Não estava nas suas mãos salvar Tomás de Romeu. Ela nada podia fazer que o sobrinho não tivesse já feito, disse, excepto subornar os carcereiros para que ele fosse tratado com especial consideração até ao momento da execução. Tinham de compreender que não havia futuro para Juliana e Isabel em Espanha. Eram filhas de um traidor, quando o pai morresse passariam a ser filhas de um criminoso e o seu apelido seria desonrado. A coroa confiscar-lhes-ia os bens, ficariam na rua, sem meios para viverem neste país ou em qualquer outro da Europa.

Que seria delas? Teriam de ganhar a vida bordando lençóis para noivas ou como preceptoras de filhos alheios. É certo que Juliana poderia empenhar-se em caçar um incauto com quem casar, inclusivamente o próprio Rafael Moncada, mas esperava bem que na hora de tomar uma decisão tão grave, o seu sobrinho, que não era parvo nenhum, pusesse na balança a sua carreira e a sua posição social. Juliana não estava ao mesmo nível que Rafael. Aliás, não havia pior empecilho que uma mulher demasiado bonita, disse. Não convinha a nenhum homem casar-se com uma; atraíam todo o tipo de problemas. Acrescentou que, em Espanha, as beldades sem fortuna estavam destinadas ao teatro ou a serem mantidas por algum benfeitor, como era bem sabido. Desejava de todo o coração que Juliana escapasse a essa sorte. À medida que a matriarca expunha o caso, Juliana foi perdendo o controlo que procurara manter durante aquela terrível entrevista, e um rio de lágrimas molhou-lhe as faces e o decote. Diego achou que já tinham ouvido bastante e lamentou que Dona Eulália não fosse um homem, porque se teria batido ali mesmo. Tomou Juliana e Isabel pelos braços e, sem se despedir, empurrou-as para a saída. Não conseguiram chegar à porta; a voz de Dona Eulália deteve-os.

- Como disse, nada posso fazer por Dom Tomás de Romeu, mas posso fazer alguma coisa por vós.

Propôs-lhes comprar as propriedades da família, desde a arruinada mansão de Barcelona até às remotas quintas abandonadas da província, a bom preço e pagando a pronto; assim, as meninas disporiam do capital necessário para começarem outra vida longe, onde ninguém as conhecesse. No dia seguinte podia mandar o seu notário verificar os títulos e redigir os documentos necessários. Conseguiria do chefe militar de Barcelona que lhes permitisse visitar pela última vez o pai, para se despedirem dele e darem-lhe a assinar os papéis de venda, operação que devia fazer-se antes que as autoridades interviessem para confiscarem os bens.

- O que Vossa Excelência pretende é desfazer-se da minha irmã para que ela não se case com Rafael de Moncada! - acusou-a Isabel, tremendo de fúria.

Eulália recebeu o insulto como uma bofetada. Não estava habituada a que lhe levantassem a voz; desde que o marido morrera, nunca ninguém o fizera. Por instantes não conseguiu respirar, mas, com os anos, tinha aprendido a dominar o seu explosivo temperamento e a apreciar a verdade quando a tinha diante do nariz. Contou em silêncio até trinta antes de responder.

- Não estais em posição de recusar a minha oferta. O acordo é simples e claro: assim que receberdes o dinheiro, partireis de imediato - replicou.

- O seu sobrinho fez chantagem com a minha irmã para se casar com ela e agora a senhora faz chantagem com ela para que não o faça!

- Basta, por favor, Isabel - murmurou Juliana, enxugando as lágrimas. - Tomei uma decisão. Aceito a oferta e agradeço a sua generosidade, Excelência. Quando poderemos ver o nosso pai?

- Em breve, meninas. Avisar-vos-ei quando conseguir a entrevista - disse Eulália, satisfeita.

- Amanhã às onze receberemos o seu contabilista. Adeus, minha senhora.

Eulália cumpriu a sua promessa ao pé da letra. Às onze em ponto do dia seguinte três advogados compareceram na residência de Tomás de Romeu e puseram-se a escarvar nos seus papéis, a dar voltas ao conteúdo da sua escrivaninha, a inspeccionar a sua desordenada contabilidade e a fazer uma avaliação aproximada dos seus bens. Chegaram à conclusão de que não só tinha muito menos do que parecia, como estava crivado de dívidas. Tal como a situação se apresentava, os rendimentos das meninas seriam inadequados para as sustentar no nível que conheciam.

O notário, porém, levava instruções precisas da sua patroa. Ao fazer a sua oferta, Eulália não contemplava o valor do que pensava adquirir, mas sim de quanto as duas jovens precisavam para viver. Foi o que lhes ofereceu. Elas não acharam muito nem pouco, porque não faziam ideia de quanto custava uma fogaça de pão. Eram incapazes de imaginar a soma que a matriarca estava disposta a dar-lhes. Diego tão-pouco tinha experiência em finanças e de nada dispunha naquele momento para ajudar Juliana e Isabel. As irmãs aceitaram a quantia estipulada sem saberem que era o dobro do valor real dos bens do pai. Assim que os advogados redigiram os documentos, Eulália conseguiu-lhes uma entrevista na prisão.

A Cidadela era um monstruoso pentágono de pedra, madeira e cimento, desenhada em 1715 por um engenheiro holandês. Fora o coração do poderio militar dos Bourbons na Catalunha. Grossas muralhas, coroadas por um bastião em cada uma das suas cinco esquinas, limitavam a vasta superfície. Dali dominava-se toda a cidade. Para construir a inexpugnável fortaleza, os exércitos do rei Filipe V demoliram bairros inteiros, hospitais, conventos, mil e duzentas casas e abateram os bosques adjacentes. O pesado edifício e a sua lúgubre lenda pesavam sobre Barcelona como uma nuvem negra. Era o equivalente da Bastilha em França: um símbolo de opressão. Entre os seus muros tinham vivido diversos exércitos de ocupação, e nos seus calabouços haviam morrido milhares e milhares de prisioneiros. Dos seus bastiões pendiam os corpos dos enforcados, para servirem de exemplo à população. Segundo o dito popular, era mais fácil sair do inferno que da Cidadela.

Jordi conduziu Diego, Juliana e Isabel ao portão de entrada, onde apresentaram o salvo-conduto conseguido por Eulália de Callís.

O cocheiro teve de esperar no exterior; os jovens entraram a pé, acompanhados por quatro soldados de espingarda e baioneta calada. O caminho pareceu-lhes agoirento. Lá fora estava um dia frio, mas esplêndido, de céu claro e ar límpido. A água do mar era um espelho de prata e a luz do Sol desenhava reflexos festivos nas paredes brancas da cidade. Dentro da fortaleza, porém, o tempo tinha parado um século atrás e o clima era um eterno crepúsculo de Inverno. Do portão de entrada até ao edifício central, o percurso era longo e fizeram-no em silêncio. Entraram no funesto lugar por uma grossa porta lateral de carvalho com rebites de ferro, tendo sido guiados por longos corredores, onde o eco devolvia o ruído dos seus passos. Assobiavam correntes de ar e pairava aquele cheiro particular das guarnições militares. A humidade escorria do tecto, traçando mapas esverdeados nas paredes. Cruzaram vários umbrais e de todas as vezes uma pesada porta fechava-se atrás deles. Sentiam que a cada bater de porta se afastavam mais do mundo dos livres e da realidade conhecida para se aventurarem nas entranhas de uma gigantesca fera. As duas raparigas tremiam e Diego não podia deixar de perguntar a si mesmo se sairiam com vida daquele infausto lugar. Chegaram a um vestíbulo, onde tiveram de aguardar de pé durante um longo pedaço, vigiados pelos soldados. Foram, por fim, recebidos por um oficial numa sala pequena, onde havia uma tosca mesa e várias cadeiras como único mobiliário. O militar lançou um rápido olhar ao salvo-conduto para identificar o selo e a assinatura, mas decerto não sabia ler. Devolveu-o sem comentários. Era um homem de uns quarenta anos, com o rosto terso, cabelo cor do aço e olhos de um estranho tom azul-celeste, quase violeta. Dirigiu-se a eles em catalão para os advertir de que disporiam de quinze minutos para falar com o prisioneiro a três passos de distância, não podendo aproximar-se dele. Diego explicou-lhe que o senhor De Romeu tinha de assinar uns papéis e precisaria de tempo para os ler.

- Por favor, senhor oficial. Esta será a última vez que veremos o nosso pai. Peço-lhe encarecidamente, permita-nos que o abracemos - suplicou Juliana com um soluço atravessado no peito, caindo de joelhos diante do homem.

O militar retrocedeu com um misto de repugnância e fascinação, enquanto Diego e Isabel procuravam obrigar Juliana a pôr-se de pé, mas ela estava fincada no chão.

- Valha-me Deus! Levante-se, menina! - exclamou o militar em tom peremptório, mas logo abrandou e, tomando Juliana pelas mãos, puxou-a para cima com suavidade. - Eu não sou nenhum desalmado, menina. Também sou pai de família, tenho vários filhos e percebo quão dolorosa esta situação é. Está bem, disporão de meia hora para estar a sós com ele e mostrar-lhe esses documentos.

Ordenou a um guarda que fosse buscar o prisioneiro. Nos minutos seguintes, Juliana teve tempo de controlar a sua emoção e preparar-se para o encontro. Pouco depois entrou Tomás de Romeu escoltado por dois guardas. Vinha barbudo, sujo, descarnado, mas tinham-lhe tirado os grilhões. Nessas semanas não pudera barbear-se nem lavar-se, cheirava como um mendigo e tinha os olhos extraviados de um demente. A magra dieta do calabouço diminuíra-lhe a barriga de homem de boa vida, tinham-se-lhe afilado as feições, o nariz aquilino parecia enorme no rosto esverdeado, e as faces, antes rubicundas, caíam-lhe como peles, cobertas pela barba rala e grisalha. As filhas demoraram um minuto a reconhecê-lo e lançarem-se, chorando, nos seus braços. O oficial retirou-se com os guardas. A dor daquela família era tão crua, tão íntima, que Diego desejou ser invisível. Espalmou-se contra a parede, com o olhar cravado no chão, convulsionado pela cena.

- Vamos, vamos, meninas, acalmai-vos, não choreis, por favor. Dispomos de pouco tempo e há muito a fazer - disse Tomás de Romeu, enxugando as lágrimas com as costas da mão. - Disseram-me que tenho de assinar uns papéis...

Diego explicou-lhe sucintamente a oferta de Eulália e passou-lhe os documentos de venda, com o pedido de os assinar para salvar o escasso património das filhas.

- Isto confirma o que já sei. Não sairei daqui com vida - suspirou o prisioneiro.

Diego fez-lhe ver que, mesmo que um indulto do rei chegasse a tempo, de qualquer modo a família teria de ir para o estrangeiro e só podiam fazê-lo com dinheiro vivo na bolsa. Tomás de Romeu pegou na pena e no tinteiro que Diego lhe trouxera e assinou a transferência de todas as suas posses terrenas para o nome de Eulália de Callís. A seguir, pediu serenamente a Diego que tomasse conta das filhas, que as levasse para longe dali, onde ninguém soubesse que o pai fora supliciado como um criminoso.

- Nos anos que vos conheço, Diego, aprendi a confiar em vós como no filho que nunca tive. Se as minhas filhas ficarem sob a vossa protecção, poderei morrer em paz. Levai-as para a vossa casa da Califórnia e pedi ao meu amigo Alejandro de La Vega que cuide delas como se fossem suas - suplicou.

- Não deve desesperar, pai, por favor. Rafael Moncada assegurou-nos de que utilizará toda a sua influência para obter a sua liberdade - gemeu Juliana.

- A execução foi fixada para dentro de dois dias, Juliana. Moncada não fará nada para me ajudar, porque foi ele quem me denunciou.

- Pai! Tendes a certeza? - clamou a jovem.

- Não tenho provas, mas ouvi-o aos meus captores - explicou Tomás.

- Mas Rafael foi pedir o seu indulto ao rei!

- Não acredito, menina. Pode ter ido a Madrid, mas por

outras razões.

- Então a culpa é minha!

- Não tendes culpa da maldade alheia, filha. Não sois responsável pela minha morte.

Coragem! Não quero ver mais lágrimas.

De Romeu julgava que Moncada o delatara, não tanto por motivos políticos ou para se vingar das desfeitas de Juliana, mas sim por cálculo. Por sua morte, as filhas ficariam desamparadas e teriam de acolher-se à protecção do primeiro que lha oferecesse. E ele lá estaria, à espera de que Juliana caísse como uma rola nas suas mãos; por isso, o papel de Diego era tão importante naquele momento, acrescentou. O jovem esteve a ponto de lhe dizer que Juliana nunca cairia em poder de Moncada, que ele a adorava e de joelhos lha pedia em casamento, mas engoliu as palavras. Juliana nunca lhe dera motivos para supor que correspondia ao seu amor. Não era altura de mencionar tal. Além disso, sentia-se como um joão-ninguém, não podia oferecer àquelas raparigas um mínimo de segurança. A sua coragem, a sua espada, o seu amor, de pouco serviam neste caso. Apercebeu-se de que, sem o apoio da fortuna do pai, não podia fazer nada por elas.

- Podeis estar tranquilo, Dom Tomás. Daria a minha vida pelas vossas filhas. Velarei sempre por elas - disse, simplesmente.

Dois dias mais tarde, ao amanhecer, quando a névoa do mar cobria a cidade com um manto de intimidade e mistério, onze presos políticos, acusados de colaborar com os Franceses, foram supliciados num dos pátios da Cidadela. Meia hora antes, um sacerdote ministrou-lhes a extrema-unção, a fim de que partissem para o outro mundo limpos de culpas, como recém-nascidos, tal como explicou. Tomás de Romeu, que durante cinquenta anos vociferara contra o clero e os dogmas da Igreja, recebeu o sacramento como os restantes condenados e até comungou.

«Para o que der e vier, padre, não se perde nada...», comentou de brincadeira. Tinha andado doente de medo desde o momento em que ouvira os soldados chegarem à sua casa de campo, mas agora estava tranquilo. A sua angústia desapareceu no instante em que pôde despedir-se das filhas. Dormiu as noites seguintes sem sonhos e passou as jornadas animado. Abandonou-se à morte próxima com uma placidez que não tivera em vida. Começou a afeiçoar-se à ideia de pôr termo aos seus dias com um tiro, em vez de o fazer aos poucos, mergulhado no inevitável processo da decrepitude. Talvez pensasse nas filhas, entregues à sua sorte, desejando que Diego de La Vega cumprisse a sua palavra. Sentiu-as mais distantes que nunca. Nas semanas de cativeiro fora-se desprendendo de recordações e sentimentos, tendo assim adquirido uma liberdade nova: já nada tinha a perder. Ao pensar nas filhas, não conseguia visualizar os seus rostos ou diferençar as suas vozes: eram duas pequenas sem mãe a brincar com bonecas nos sombrios salões da sua casa. Dois dias antes, quando o foram visitar à prisão, maravilhara-se diante daquelas mulheres que tinham substituído as garotinhas de botins, bibes e lacinhos das suas reminiscências. «Porra, como o tempo passa», murmurara ao vê-las. Despedira-se delas sem pesar, surpreendido pela sua própria indiferença. Juliana e Isabel fariam as suas vidas sem ele; já não podia protegê-las. A partir desse instante pudera saborear as suas últimas horas e observar com curiosidade o ritual da sua execução.

Na madrugada da sua morte, Tomás de Romeu recebeu na sua cela o último presente de Eulália de Callís, uma cesta com abundante refrigério, uma garrafa do melhor vinho e um prato com os mais delicados bombons de chocolate da sua colecção. Autorizaram-no a lavar-se e barbear-se, vigiado por um guarda, e entregaram-lhe a muda de roupa lavada que as filhas lhe haviam enviado. Caminhou galhardo e impávido até ao local da execução, colocou-se diante do poste ensanguentado, onde o amarraram, e não permitiu que lhe vendassem os olhos. A comandar o pelotão estava o mesmo oficial das íris azul-celestes que recebera Juliana e Isabel na Cidadela. Foi a ele que coube pregar-lhe um tiro na têmpora quando verificou que tinha o corpo meio desfeito pelos disparos, mas continuava vivo. A última coisa que o condenado viu antes de o tiro de misericórdia lhe explodir no cérebro foi a luz dourada do amanhecer na névoa.

O militar, que não se impressionava com facilidade porque sofrera a guerra e estava habituado às brutalidades do quartel e dos calabouços, não conseguira esquecer o rosto banhado de lágrimas da virginal Juliana, ajoelhada diante dele. Quebrando a sua própria norma de separar o cumprimento do dever das suas emoções, foi levar-lhe a notícia pessoalmente. Não quis que as filhas do seu prisioneiro o soubessem por outros meios.

- Não sofreu, meninas - mentiu-lhes.

Rafael Moncada soube ao mesmo tempo da morte de Tomás de Romeu e do estratagema de Eulália para fazer sair Juliana de Espanha. A primeira estava incluída nos seus planos, mas o segundo provocou-lhe um acesso de cólera. Guardou-se, porém, de se confrontar com a tia, porque não tinha renunciado à ideia de obter Juliana sem perder a sua herança. Lamentava que a sua tia gozasse de tão boa saúde: provinha de uma família longeva e não havia esperança de que morresse cedo, deixando-o rico e livre para decidir o seu destino. Teria de conseguir que a matriarca aceitasse Juliana às boas, era a única solução. Nem pensar em apresentar-lhe o casamento como um facto consumado, porque ela nunca lho perdoaria, mas congeminou um plano, baseado na lenda de que na Califórnia, quando era a mulher do governador, Eulália transformara um perigoso guerreiro índio numa civilizada donzela cristã e espanhola.

Não desconfiava que essa personagem fosse a mãe de Diego de La Vega, porque tinha ouvido a história várias vezes da boca da própria Eulália, que padecia do vício de tentar controlar as vidas alheias e, aliás, se gabava disso. Pensava suplicar-lhe que recebesse as meninas De Romeu na sua corte, na qualidade de protegidas, visto que tinham perdido o pai e não contavam com família. Salvá-las da desonra e conseguir que fossem aceites de volta na sociedade seria um desfio interessante para Eulália, tal como o fora aquela índia na Califórnia, vinte e tantos anos atrás. Quando a matrona abrisse o seu coração a Juliana e Isabel, como no fim fazia com quase toda a gente, ele voltaria a colocar o assunto do casamento. Não obstante, se esse rebuscado plano não desse resultado, existia sempre a alternativa sugerida pela própria Eulália. As palavras da tia tinham-lhe causado uma impressão indelével: Juliana de Romeu poderia ser sua amante. Sem um pai que lhe valesse, a jovem acabaria mantida por algum protector. Ninguém melhor que ele mesmo para esse papel. Não era má ideia. Isso permitir-lhe-ia obter uma esposa de categoria, talvez a própria Medinaceli, sem renunciar a Juliana. «Tudo se pode fazer com discrição», pensou. Com isto em mente compareceu na residência de Tomás de Romeu.

A casa, que sempre lhe parecera decaída, afigurava-se agora arruinada. Em poucos meses, desde que a situação política em Espanha mudara e Tomás de Romeu se afundara nas suas preocupações e dívidas, o edifício adquirira o mesmo ar derrotado e suplicante do proprietário. As ervas daninhas haviam-se apoderado do jardim, as palmeiras anãs e os fetos secavam nos seus canteiros, havia bosta de cavalo, lixo, galinhas e cães no pátio nobre. No interior da mansão reinavam o pó e a penumbra; havia meses que não se abriam as cortinas nem se acendiam as lareiras. O sopro frio do Outono parecia aprisionado nas inóspitas salas. Nenhum mordomo veio recebê-lo; em seu lugar apareceu Nuria, tão mal-encarada e seca como sempre, que o conduziu à biblioteca.

A ama tinha tentado substituir o mordomo e fazia os possíveis por manter à tona aquele veleiro prestes a naufragar, mas faltava-lhe autoridade perante o resto da criadagem. Tão-pouco sobrava o dinheiro efectivo, porque tinham guardado até ao último maravedi para o futuro, o único dote que Juliana e Isabel teriam. Diego levara as letras de câmbio de Eulália de Callís a um banqueiro que ela própria recomendara, homem de escrupulosa honestidade, que lhe entregara o equivalente em pedras preciosas e alguns dobrões de ouro, com o conselho de coser aquele tesouro nos saiotes. Explicou-lhe que fora assim que os Hebreus tinham salvo os seus bens durante séculos de perseguição, pois se podia transportar facilmente e valia o mesmo em toda a parte. Juliana e Isabel não podiam crer que aquele punhado de pequenos vidros coloridos representasse tudo quanto a família possuíra.

Enquanto Rafael Moncada aguardava na biblioteca, entre os livros encadernados a pele que haviam sido o mundo privado de Tomás de Romeu, Nuria partiu para chamar Juliana. A jovem estava no seu quarto, cansada de chorar e rezar pela alma do pai.

- Não tens obrigação de falar com esse desalmado, menina - disse a ama. - Se quiseres, posso-lhe dizer que vá para o inferno.

- Passa-me o vestido cor de cereja e ajuda-me a pentear, Nuria. Não quero que me veja de luto nem vencida - decidiu a jovem.

Momentos mais tarde aparecia na biblioteca, tão deslumbrante como nos seus melhores tempos. À luz vacilante das velas, Rafael não conseguiu ver os seus olhos avermelhados pelo pranto, nem a palidez do luto. Pôs-se de pé de um salto, com o coração a galope, verificando, uma vez mais, o efeito inverosímil que aquela jovem tinha sobre os seus sentidos. Esperava vê-la desfeita de sofrimento; em contrapartida ali estava diante dele, tão bela, altiva e comovedora como sempre. Quando conseguiu encontrar a voz sem pigarrear, manifestou como lamentava a horrível tragédia que afectava a família e reiterou-lhe que não tinha deixado pedra por levantar em busca de ajuda para Dom Tomás, mas tudo fora inútil. Sabia, acrescentou, que a sua tia Eulália a aconselhara a sair de Espanha com a irmã, mas ele não o considerava necessário. Estava convencido de que em breve abrandaria o punho de ferro com que Fernando VII estrangulava os seus opositores. O país estava em ruínas, o povo tinha sofrido demasiados anos de violência e agora clamava por pão, trabalho e paz. Sugeriu que Juliana e Isabel usassem, dali em diante, apenas o apelido da mãe, visto que o do pai estava irrevogavelmente manchado, e se recolhessem durante um período de tempo prudente, até que se calassem as murmurações em torno de Tomás de Romeu. Talvez, então, pudessem reaparecer em sociedade. Entretanto, estariam sob a sua protecção. - Que sugere exactamente, senhor? - perguntou Juliana, na defensiva.

Moncada reiterou-lhe que nada o faria mais feliz do que tomá-la por esposa e que a sua oferta anterior continuava de pé; porém, dadas as circunstâncias, seria necessário guardar as aparências por uns meses. Também tinham de tornear a oposição de Eulália de Callís, mas isso não constituía um problema intransponível. Quando a sua tia tivesse ocasião de a conhecer melhor, mudaria sem dúvida de parecer. Supunha que agora, depois de tão graves acontecimentos, Juliana teria reflectido a respeito do seu futuro. Embora ele não a merecesse - não existia homem que a merecesse plenamente -, colocava a sua vida e a sua fortuna aos seus pés. A seu lado nunca lhe faltaria nada. Embora o casamento tivesse de ser protelado, ele poderia oferecer-lhes, a ela e à irmã, bem-estar e segurança. A sua oferta não era fútil; pedia-lhe que lhe desse a devida consideração. - Não peço uma resposta imediata.

Compreendo perfeitamente que a menina está de luto e talvez não seja o momento de falar de amor...

- Nunca falaremos de amor, senhor Moncada, mas podemos falar de negócios - interrompeu-o Juliana. - Por uma denúncia sua perdi o meu pai.

Rafael Moncada sentiu que o sangue lhe vinha à cabeça e que lhe faltava a respiração.

- Não me pode acusar de semelhante vilania! O seu pai cavou a sua própria sepultura, sem ajuda de ninguém. Só lhe perdoo este insulto porque está fora de si, ofuscada pela dor.

- Como pensa compensar-nos a mim e à minha irmã pela morte do nosso pai? - insistiu ela, com lúcida ira.

O seu tom era tão desdenhoso que Moncada perdeu por completo as estribeiras e decidiu, sem mais, que não valia a pena continuar a fingir um cavalheirismo inútil. Pelos vistos, ela era uma daquelas mulheres que respondem melhor perante a autoridade masculina. Agarrou-a pelos braços e, sacudindo-a com violência, atirou-lhe à cara que ela não estava em posição de negociar, mas sim de agradecer; não percebia, porventura, que podia acabar na rua ou na prisão juntamente com a irmã, tal como sucedera ao traidor do pai? A polícia estava avisada e só a sua oportuna intervenção impedira que fossem presas, mas isso podia acontecer a qualquer momento e só ele podia salvá-las da miséria e do calabouço. Juliana procurou libertar-se e no forcejar rasgou-se-lhe a manga do vestido, revelando o ombro, e desprenderam-se os ganchos que lhe prendiam o rolo do cabelo. A sua cabeleira negra caiu sobre as mãos de Moncada. Incapaz de se controlar, o homem empunhou a cheirosa massa de cabelos, atirou a cabeça da jovem para trás e beijou-a em cheio na boca.

Diego tinha espiado a cena da porta entreaberta, repetindo mudamente, como uma litania, o conselho do mestre Escalante na primeira lição de esgrima: nunca combater com raiva. Não obstante, quando Moncada se precipitou sobre Juliana para a beijar à força, não se pôde conter e irrompeu na biblioteca de espada na mão, resfolegando de indignação.

Moncada soltou a jovem, empurrando-a contra a parede, e puxou da sua arma. Os dois homens enfrentaram-se, de joelhos flectidos, as espadas na mão direita a fazer um ângulo de noventa graus com o corpo e o outro braço levantado por cima do ombro, para manter o equilíbrio. Assim que adoptou esta posição, a fúria de Diego esfumou-se e foi substituída por uma calma absoluta. Respirou fundo, esvaziou o ar do peito e sorriu satisfeito. Estava, por fim, no controlo da sua fogosidade, tal como o mestre Escalante insistira com ele desde o princípio. Nada de perder o fôlego. Tranquilidade de espírito, pensamento claro, firmeza do braço. Era aquela sensação fria, a percorrer-lhe as costas como um vento invernal, que devia preceder a euforia do combate. Nesse estado, a mente deixava de pensar e o corpo respondia por reflexo. A finalidade do severo treino de combate de La Justicia era que o instinto e a destreza dirigissem os seus movimentos. Os aços cruzaram-se um par de vezes, tenteando-se, e de imediato Moncada lançou uma estocada a fundo, que ele deteve de chofre. Desde as primeiras fintas, Diego pôde avaliar a classe do contendor que tinha pela frente. Moncada era muito bom espadachim, mas ele tinha mais agilidade e prática; não era em vão que fizera da esgrima a sua principal ocupação. Em vez de devolver a estocada com celeridade, fingiu falta de jeito, retrocedendo até ficar com as costas de encontro à parede, na defensiva. Parava os golpes com aparente esforço, à desesperada, mas, na realidade, o outro não conseguia meter-lhe o aço por lado nenhum.

Mais tarde, quando teve tempo de avaliar o sucedido, Diego apercebeu-se de que, sem o planear, representava duas personagens diferentes, consoante as circunstâncias e a roupa que trazia vestida. Assim, baixava as defesas do inimigo. Sabia que Rafael Moncada o desdenhava; ele próprio se tinha encarregado disso, fingindo maneirismos de adamado na sua presença. Fazia-o pela mesma razão que o fizera com o Chevalier e a sua filha Agnès: por precaução. Quando se batera a tiro com Moncada, este pudera medir a sua coragem, mas por orgulho tinha querido esquecê-lo. Depois, encontraram-se em várias ocasiões e em todas elas Diego reforçara a má opinião que o rival tinha dele, porque adivinhava que era um inimigo sem escrúpulos. Decidiu enfrentá-lo com astúcia, mais que com fanfarronices. Na fazenda do pai, as raposas costumavam dançar para atraírem os cordeirinhos que se aproximavam, curiosos, para as observar e ao primeiro descuido acabavam devorados. Com a táctica de fazer figura de bobo, despistava e confundia Moncada. Até esse momento não tivera consciência plena da sua dupla personalidade: de um lado, Diego de La Vega, elegante, melindroso, hipocondríaco, e do outro, o Zorro, audaz, atrevido, brincalhão. Supunha que em algum ponto intermédio estava o seu verdadeiro carácter, mas não sabia como era, se nenhum dos dois ou a soma de ambos. Perguntou a si próprio como o viam, por exemplo, Juliana e Isabel, e concluiu que não fazia a menor ideia; talvez se houvesse excedido no teatro e lhes tivesse dado a impressão de ser um farsante. Contudo, não havia tempo para meditar sobre estas interrogações, porque a vida se lhe tinha complicado e era precisa acção imediata. Assumiu que era duas pessoas e decidiu transformar isso numa vantagem.

Diego corricava entre os móveis da biblioteca, simulando fugir dos ataques de Moncada e, ao mesmo tempo, provocando-o com comentários irónicos, enquanto os golpes choviam e os aços cintilavam. Conseguiu enfurecê-lo. Moncada perdeu o sangue-frio do qual fazia alarde e começou a arquejar. A transpiração caía-lhe da fronte, cegando-o. Diego calculou que já o tinha em seu poder.

Como aos touros de lide, era preciso cansá-lo primeiro.

- Cuidado, Excelência, pode ferir alguém com essa espada! - exclamou Diego.

Por essa altura, Juliana tinha-se recomposto um pouco e clamava em altos gritos que depusessem as armas, por amor de Deus e por respeito à memória de seu pai. Diego deu mais um par de estocadas e seguidamente largou a arma e levantou as mãos por cima da cabeça, pedindo quartel. Era um risco, mas calculou que Moncada se coibiria de matar um homem desarmado à vista de Juliana; contudo, em lugar disso, o seu adversário caiu-lhe em cima com um grito de triunfo e o ímpeto de todo o seu corpo. Diego evitou o gume, que passou roçando-lhe um quadril, e com dois saltos alcançou a janela para se refugiar atrás de uma pesada cortina de felpa que pendia até ao chão. A espada de Moncada atravessou o tecido, levantando uma nuvem de pó, mas ficou enredada e o homem teve de se debater para a soltar. Isso deu a Diego uns instantes de vantagem para lhe lançar a cortina à cara e saltar para cima da mesa de acaju. Pegou num calhamaço encadernado a pele e atirou-lho, acertando-lhe no peito. Moncada esteve a ponto de perder o equilíbrio, mas endireitou-se rapidamente e arremeteu de novo. Diego esquivou um par de lances, disparou-lhe vários livros mais, a seguir atirou-se ao chão e arrastou-se para debaixo da mesa.

- Quartel! Quartel! Não quero morrer como um frango! - lamuriava em tom de franca zombaria, encolhido debaixo da mesa, com outro livro nas mãos, à guisa de escudo, para se defender das arremetidas cegas do seu adversário.

Junto da cadeira estava a bengala de cabo de marfim em que Tomás de Romeu se apoiava durante os seus ataques de gota. Diego usou-a para enganchar um tornozelo de Moncada. Puxou com força e este caiu sentado no chão, mas estava em boa condição física e pôs-se de pé num segundo, investindo de novo.

Nessa altura, Isabel e Nuria tinham acorrido aos gritos de Juliana. Bastou uma olhadela a Isabel para se aperceber da situação. Julgando que Diego estava prestes a ir parar ao cemitério, pegou na sua espada, que tinha voado para o outro extremo da divisão, e, sem vacilar, enfrentou Moncada. Era a sua primeira oportunidade de pôr em prática a habilidade adquirida em quatro anos de prática de esgrima diante de um espelho.

- En garde - desafiou-o, eufórica. Instintivamente, Rafael Moncada atirou-lhe uma estocada,

seguro de que ao primeiro golpe a desarmaria, mas deparou-se com uma resistência determinada. Nessa altura reagiu, apercebendo-se, apesar da raiva que o embrutecia, da loucura que significava bater-se com uma rapariguinha, para mais irmã da mulher que pretendia conquistar. Largou a arma, que caiu sem barulho sobre a carpete.

- Pensa assassinar-me a sangue-frio, Isabel? - perguntou-lhe, irónico.

- Pegue na sua espada, cobarde!

Como única resposta ele cruzou os braços sobre o peito, sorrindo depreciativamente.

- Isabel! Que fazes? - interveio Juliana, espantada.

A irmã ignorou-a. Pôs a ponta do aço debaixo do queixo de Rafael Moncada, mas não soube o que fazer a seguir. O ridículo da cena revelou-se-lhe em toda a sua magnitude.

- Trespassar o gasganete a este cavalheiro, como sem dúvida merece, acarreta alguns problemas legais, Isabel. Não se pode andar pelo mundo a matar gente. Mas alguma coisa temos de fazer com ele... - interveio Diego, tirando o lenço da manga e agitando-o no ar antes de enxugar a fronte com um gesto afectado.

Bastaram a Moncada aqueles segundos de distracção para agarrar o braço de Isabel e torcê-lo, obrigando-a a largar a espada. Empurrou-a com tal força que a rapariga foi parar longe, batendo com a cabeça na mesa. Caiu ao chão um pouco aturdida, enquanto Moncada apanhava a arma dela para enfrentar Diego, que retrocedeu a toda a pressa e se esquivou a várias estocadas do inimigo, procurando maneira de o desarmar para se envolver em luta corpo a corpo. Isabel espertou rapidamente, agarrou na espada de Moncada e, com um grito de alerta, atirou-a a Diego, que conseguiu agarrá-la no ar. Armado, sentiu-se seguro e recuperou o ar zombeteiro que tanto descontrolara o seu adversário momentos antes. Com um passe veloz feriu-o levemente no braço esquerdo, apenas uma arranhadura, mas exactamente no mesmo sítio em que fora ferido pelo tiro do duelo. Moncada soltou uma exclamação de surpresa e dor.

- Agora estamos quites - disse Diego, desarmando-o com uma estocada de revés.

O inimigo achava-se à sua mercê. Com a mão direita agarrava o braço ferido, por cima do rasgão da jaqueta, já manchada com um fio de sangue. Estava transtornado de fúria, mais que de temor. Diego pôs-lhe a espada ao peito, como se fosse trespassá-lo, mas em vez disso sorriu, amável.

- Tenho pela segunda vez o prazer de lhe perdoar a vida, senhor Moncada. A primeira foi durante o nosso memorável duelo. Espero que isto não se converta num hábito - disse, baixando o aço.

Não tiveram necessidade de o discutir demasiado. Tanto Diego como as meninas De Romeu sabiam que a ameaça de Moncada era verdadeira e os esbirros do rei podiam aparecer lá em casa de um momento para outro. Tinha-lhes chegado a hora de empreenderem viagem. Haviam-se preparado para essa eventualidade desde que Eulália comprara os bens da família e Tomás de Romeu fora executado, mas julgavam que podiam sair pela porta grande, em vez de saírem fugindo como meliantes. Concederam a si próprias meia hora ao todo para partirem com o que tinham no corpo, mais o ouro e as pedras preciosas que, tal como o banqueiro lhes indicara, tinham cosido nuns saiotes que amarraram à cintura, por baixo da roupa. Nuria teve a ideia de fechar Moncada na câmara oculta da biblioteca. Tirou um livro do seu lugar, puxou uma alavanca e a estante girou lentamente sobre si mesma, deixando à vista a entrada para uma divisão contígua, cuja existência Juliana e Isabel desconheciam por completo.

- O vosso pai tinha alguns segredos, mas nenhum que eu não conhecesse - disse Nuria à guisa de explicação.

Tratava-se de um compartimento pequeno, sem janelas e sem outra saída para o exterior além daquela porta disfarçada nas estantes. Ao acender um candeeiro, descobriram no seu interior caixas de conhaque e os charutos preferidos do dono da casa, estantes com mais livros e uns estranhos quadros pendurados nas paredes. Ao aproximarem-se, puderam ver que se tratava de uma colecção de seis desenhos a tinta preta representando os mais cruéis episódios da guerra, esquartejamentos, violações e até canibalismo, que Tomás de Romeu não queria que as filhas alguma vez vissem.

- Que arrepiante! - exclamou Juliana.

- São do mestre Goya! Isto vale muito; podemos vendê-los - disse Isabel.

- Não nos pertencem. Tudo o que esta casa contém agora é de Dona Eulália de Callís - recordou-lhe a irmã.

Os livros, em vários idiomas, eram todos proibidos; faziam parte da lista negra da Igreja ou da do Governo. Diego pegou num volume ao acaso; calhou tratar-se de uma história ilustrada da Inquisição, com desenhos muito realistas sobre os seus métodos de tortura. Fechou-o de repente, antes que Isabel, que já tinha assomado o nariz por cima do seu ombro, o visse.

Também havia uma secção dedicada ao erotismo, mas não houve tempo de a examinar. A hermética câmara era o lugar perfeito para deixar Rafael Moncada preso.

- Perdestes o juízo? Aqui morrerei de inanição ou sufocado pela falta de ar! - exclamou este ao compreender as malévolas intenções dos outros.

- Sua Excelência tem razão, Nuria. Um cavalheiro tão distinto como ele não pode subsistir só com álcool e tabaco. Trazei-lhe, por favor, um presunto da cozinha, para que não passe fome, e uma toalha para o braço - disse Diego, empurrando o seu rival para a câmara.

- Como vou sair daqui? - gemeu o cativo, aterrorizado.

- Há certamente um mecanismo secreto na câmara para abrir a porta por dentro. Terá tempo de sobra para o descobrir. Com astúcia e sorte, sairá em liberdade enquanto o diabo esfrega um olho - sorriu Diego.

- Deixar-lhe-emos um candeeiro, Moncada, mas não o aconselho a acendê-lo, porque consumirá todo o ar. Vamos a ver, Diego: quanto tempo calculas que uma pessoa possa viver aqui? - acrescentou Isabel, entusiasmada com o plano.

- Vários dias. Os suficientes para meditar a fundo sobre o sábio provérbio de que o fim não justifica os meios - retrucou

Diego.

Deixaram Rafael Moncada aprovisionado de água, pão e presunto, após o que Nuria lhe limpou e ligou o corte do braço. Infelizmente, não se esvairia em sangue por aquela arranhadura insignificante, opinou Isabel. Recomendaram-lhe que não perdesse ar e forças gritando, porque ninguém o ouviria; os poucos criados que restavam não se aproximavam daqueles lados. As últimas palavras do prisioneiro antes de a estante girar para fechar a entrada da câmara, mergulhando-o no silêncio e na escuridão, foram que bem sabiam quem era Rafael Moncada, que se arrependeriam de não o terem matado, que sairia daquele buraco e, mais tarde ou mais cedo, encontraria Juliana, mesmo que tivesse de persegui-la até ao próprio inferno.

- Não será preciso ir tão longe; vamos para a Califórnia - despediu-se Diego.

Lamento dizer-vos que não posso continuar, porque se me acabaram as penas de ganso que sempre uso, mas encomendei mais e depressa poderei concluir esta história. Não gosto das penas de pássaros vulgares, porque sujam o papel e roubam elegância ao texto. Ouvi dizer que alguns inventores sonham criar um aparelho mecânico para escrever, mas estou certa de que tão fantasioso invento jamais prosperaria. Certos processos não se podem mecanizar, porque requerem carinho, e a escrita é um deles.

Receio que esta narrativa se me tenha alongado, apesar do muito que omiti. Na vida do Zorro, como em todas as vidas, existem momentos brilhantes e outros sombrios, mas entre os extremos há muitas zonas neutras. Tereis notado, por exemplo, que no ano de 1813 sucedeu muito pouca coisa digna da menção ao nosso protagonista. Dedicou-se às suas coisas sem pena nem glória e não avançou nada na conquista de Juliana. Foi necessário que Rafael Moncada regressasse da sua odisseia do chocolate para que esta história recuperasse uma certa agilidade. Como disse antes, os vilões, tão antipáticos na vida real, tornam-se indispensáveis num romance, e estas páginas são-no. Ao princípio, propus-me escrever uma crónica ou biografia, mas não consigo contar a lenda do Zorro sem cair no desprestigiado género do romance. Entre cada uma das suas aventuras decorriam longos períodos sem interesse, que suprimi para não matar de aborrecimento os meus possíveis leitores. Pela mesma razão, adornei os episódios memoráveis, fiz uso generoso de adjectivos e acrescentei suspense às suas proezas, embora não tenha exagerado em demasia as suas louváveis virtudes. Chama-se a isto liberdade literária e, no meu entender, é mais legítimo que a mentira pura e simples.

Em qualquer caso, meus amigos, resta-me bastante no tinteiro. Nas próximas páginas, que calculo em número maior que cem, narrarei a viagem do Zorro com as meninas De Romeu e Nuria através de meio mundo e os perigos que enfrentaram no cumprimento dos seus destinos. Posso adiantar-vos, sem receio de estragar o final, que sobrevivem ilesos e pelo menos alguns deles chegam à Alta Califórnia, onde infelizmente nem tudo será oiro sobre azul. Na realidade, é apenas nesse lugar que começa a verdadeira epopeia do Zorro, a que lhe deu fama no mundo inteiro. Assim sendo, rogo-vos um pouco mais de paciência.

 

Espanha, finais de 1814 - princípios de 1815

Consegui novas penas de ganso para continuar com a juventude do Zorro. Demoraram um mês a chegar do México e, entretanto, perdi o ritmo da escrita. Veremos se o recupero. Deixámos Diego de La Vega a fugir de Rafael Moncada com as meninas De Romeu e Nuria numa Espanha convulsionada pela repressão política, a miséria e a violência. As nossas personagens encontravam-se numa difícil encruzilhada, contudo o galante Zorro não perdia o sono pelos perigos externos, mas sim pelos sobressaltos do seu rendido coração. O enamoramento é uma condição que costuma nublar a razão dos homens, porém não é grave; basta, em geral, que o paciente seja correspondido para que recupere o juízo e comece a farejar o ar em busca de outras presas. Como cronista desta história, terei alguns problemas com o final clássico de «casaram-se e foram muito felizes». Enfim, melhor será que retomemos a escrita, antes que me deprima.

Ao fechar-se a porta disfarçada nas estantes da biblioteca, Rafael Moncada ficou isolado na câmara secreta. Os seus gritos de socorro não chegavam ao exterior, porque as grossas paredes, livros, cortinados e carpetes amorteciam o som.

- Sairemos daqui mal escureça - disse Diego de la Vega a Juliana, Isabel e Nuria. - Levaremos o mínimo indispensável para a viagem, tal como combinámos.

- Tens a certeza de que existe um mecanismo para abrir a porta da câmara por dentro? - perguntou Juliana.

- Não.

- Esta brincadeira foi demasiado longe, Diego. Não podemos ficar com a morte de Rafael Moncada às costas, muito menos uma morte lenta e atroz num túmulo hermético.

- Mas repara no mal que ele nos fez! - exclamou Isabel.

- Não vamos pagar-lhe na mesma moeda, porque nós somos melhores pessoas do que ele - retorquiu, taxativa, a irmã.

- Não te preocupes, Juliana, o teu apaixonado não perecerá asfixiado nesta ocasião - riu-se Diego.

- Porquê? - interrompeu Isabel, decepcionada.

Diego pregou-lhe uma cotovelada e passou a explicar-lhes que, antes de partir, entregariam a Jordi uma missiva para ser entregue a Eulália de Callís em pessoa, dentro de dois dias. Nela iriam as chaves da casa e as instruções para encontrar e abrir a câmara. No caso de Rafael não ter conseguido abrir a porta, a sua tia resgatá-lo-ia. A mansão, tal como o resto dos bens da família De Romeu, pertencia agora àquela senhora, que se encarregaria de socorrer o seu sobrinho predilecto antes que este bebesse todo o conhaque. Para se assegurar de que Jordi cumpriria a missão, dar-lhe-iam uns maravedis, com a esperança de que Dona Eulália o premiasse com mais ao receber a missiva.

Saíram de noite num dos coches da família, conduzido por Diego. Juliana, Isabel e Nuria despediram-se com um derradeiro olhar da casa onde tinham decorrido as suas vidas. Para trás ficavam as recordações de uma época segura e feliz; para trás ficavam os objectos que davam testemunho da passagem de Tomás de Romeu por este mundo. As filhas não haviam podido enterrá-lo com decência; os seus restos mortais foram parar a uma vala comum, juntamente com os dos outros prisioneiros fuzilados na Cidadela. A única coisa que conservavam era o seu retrato em miniatura, pintado por um artista catalão, no qual aparecia jovem, magro, irreconhecível. As três mulheres pressentiam que nesse instante cruzavam um umbral definitivo e começava outra etapa das suas vidas. Iam em silêncio, temerosas e tristes. Nuria começou a rezar a meia voz o rosário e a doce cadência das orações acompanhou-as um pedaço, até que adormeceram. Na boleia, Diego incitava os cavalos e pensava em Bernardo, como fazia quase diariamente. Tinha tantas saudades dele que costumava surpreender-se a falar sozinho, como sempre fizera com ele. A muda presença do irmão, a sua pétrea firmeza para lhe servir de guarda-costas e defendê-lo de todo o perigo, era justamente aquilo de que precisava. Perguntou a si mesmo se seria capaz de ajudar as meninas De Romeu ou se, pelo contrário, as levava à sua perdição. O seu plano de atravessar Espanha bem podia ser mais uma das suas loucuras; essa dúvida martirizava-o. Tal como as suas passageiras, estava assustado. Não era o medo delicioso que precedia o perigo de um combate, aquele punho fechado na boca do estômago, aquele frio glacial na nuca, mas sim o peso opressivo de uma responsabilidade para a qual não estava preparado. Se acontecesse alguma coisa àquelas mulheres, sobretudo a Juliana... Não, preferia não pensar nessa eventualidade. Gritou, chamando por Bernardo e pela sua avó Coruja Branca, para que viessem apoiá-lo, mas a sua voz perdeu-se na noite, engolida pelo som do vento e dos cascos dos cavalos. Sabia que Rafael Moncada os procuraria em Madrid e outras cidades importantes, mandaria vigiar a fronteira com França e revistar cada barco que saísse de Barcelona ou de qualquer outro ponto do Mediterrâneo; contudo, supunha que não lhe ocorreria persegui-los até à outra costa. Pensava enganá-lo embarcando rumo à América no porto atlântico de La Coruna, porque ninguém no seu perfeito juízo escolheria ir de Barcelona até lá para apanhar um barco. Seria muito difícil que um comandante de navio corresse o risco de dar guarida a fugitivos à justiça, como lhe fez ver Juliana, mas não lhe ocorreu outra solução. Logo veria como resolver o problema de atravessar o oceano; primeiro, tinha de vencer os obstáculos em terra firme. Decidiu avançar o mais possível nas próximas horas e depois desfazer-se do coche, porque alguém podia tê-los visto sair de Barcelona.

Passada a meia-noite, os cavalos deram mostras de fadiga e Diego considerou que se tinham afastado o suficiente da cidade para descansarem um pedaço. Aproveitando o luar, saiu do caminho e conduziu o veículo até um bosque, onde desatrelou os animais e lhes permitiu pastar. A noite estava clara e fria. Dormiram os quatro dentro do coche, embrulhados em mantas, até que Diego acordou um par de horas mais tarde, quando ainda estava escuro, para compartilhar uma merenda de pão com salpicão. A seguir, Nuria distribuiu-lhes a roupa que usariam durante o resto da viagem: os hábitos de peregrinos que ela própria tinha feito para o caso de Santiago de Compostela salvar a vida de Tomás de Romeu. Eram túnicas até meio da perna, chapéus de aba larga, compridos bordões ou varas de madeira com as pontas curvas, de cada uma das quais pendia uma cabaça para recolher água. Para se precaverem contra o frio, abrigavam-se com saiotes e protegiam-se com meias e luvas de lã grossa. Além disso, Nuria levava um par de garrafas de uma potente bebida alcoólica muito útil para esquecer desgostos. A ama nunca imaginara que aqueles grosseiros saios serviriam para fugir com o que restava da família e muito menos que ela acabaria por pagar a promessa ao santo sem que este cumprisse a sua parte do acordo. Parecia-lhe uma brincadeira indigna de uma pessoa tão séria como o apóstolo Santiago, mas supôs que havia algum oculto desígnio que lhe seria revelado no momento oportuno. Ao princípio, a ideia de Diego parecera-lhe astuta, mas depois de lançar uma olhadela ao mapa dera-se conta do que significava atravessar Espanha a pé na sua parte mais larga. Não era um passeio, era uma epopeia. Esperavam-nos, pelo menos, dois meses de caminho ao relento, alimentando-se do que conseguissem obter da caridade e dormindo sob as estrelas. Além disso, estavam em Novembro, chovia a toda a hora e não tardaria que os solos amanhecessem cobertos de gelo. Nenhum deles tinha o costume de caminhar longos trechos e muito menos com sandálias de lavrador. Nuria permitiu-se insultar Santiago entre dentes e, de caminho, dizer a Diego o que pensava daquela descabelada romaria.

Uma vez vestidos de peregrinos e com o pequeno-almoço tomado, Diego decidiu abandonar o coche. Cada um pegou no que era seu, envolveu-o numa manta e amarrou o embrulho às costas, acomodando o resto em cima dos dois cavalos. Isabel trazia consigo a pistola do pai, escondida na roupa. Diego levava no embrulho a sua máscara de Zorro, da qual não fora capaz de se desfazer, e, sob o saio, duas adagas biscainhas de duplo gume, de um palmo de comprido. O chicote pendia-lhe da cintura, como sempre. Tivera de deixar a espada que o pai lhe oferecera na Califórnia, da qual, até então, não se tinha separado, porque era impossível dissimulá-la. Os peregrinos não andavam armados. Proliferavam malandrins da pior espécie pelos caminhos, mas em geral não se interessavam pelos viajantes que iam a Compostela, visto que faziam voto de pobreza enquanto durava a jornada. Ninguém podia imaginar que aqueles modestos caminhantes tivessem uma pequena fortuna em pedras preciosas cosida na roupa. Em nada se diferençavam dos penitentes habituais que iam prostrar-se diante do célebre Santiago, a quem se atribuía o milagre de ter salvo Espanha dos invasores muçulmanos. Durante séculos, os Árabes saíram vitoriosos das batalhas graças ao infalível braço de Maomé que os guiava, até que um pastor encontrou oportunamente os ossos de Santiago, abandonados num campo da Galiza. Como tinham chegado da Terra Santa até ali era parte do milagre. A relíquia lograra unificar os pequenos reinos cristãos da região e revelara-se tão eficiente na condução dos bravos de Espanha, que estes expulsaram os Mouros e recuperaram o solo para a cristandade. Santiago de Compostela converteu-se no local de peregrinação mais importante da Europa. Pelo menos assim era a história de Nuria, apenas um pouco mais adornada. A ama acreditava que a cabeça do apóstolo permanecia intacta e todas as Sextas-Feiras Santas derramava lágrimas verdadeiras. Os supostos restos haviam-se mantido num caixão de prata sob o altar da catedral, mas, na ânsia de os proteger das incursões do pirata Francis Drake, um bispo mandara escondê-los tão bem, que por muito tempo não os conseguiram encontrar. Por essa razão, pela guerra e não por falta de fé, tinha diminuído o número de peregrinos que antes atingia centenas de milhares. Os que se dirigiam ao santuário vindos de França, tomavam a rota do Norte, atravessando o País Basco, e foi essa que os nossos amigos escolheram. Durante séculos, igrejas, conventos, hospitais e até os lavradores mais pobres, ofereciam tecto e comida aos viajantes. Aquela tradição hospitaleira revelava-se conveniente para o pequeno grupo guiado por Diego, porque lhe permitia viajar sem o peso de vitualhas. Embora os peregrinos fossem raros nessa estação - preferiam viajar na Primavera e no Verão -, os amigos esperavam não chamar a atenção, porque o fervor religioso tinha aumentado desde que os Franceses se retiraram do país e muitos espanhóis tinham prometido visitar o santo se ganhassem a guerra. Amanhecia quando voltaram ao caminho e começaram a andar. Nesse primeiro dia caminharam mais de cinco léguas, até que Juliana e Nuria se deram por vencidas, porque os pés lhes sangravam e desfaleciam de fome. Por volta das quatro da tarde pararam numa choupana de campo, cuja dona calhou ser uma desgraçada mulher que tinha perdido o marido na guerra.

Tal como os informou, não perecera às mãos dos Franceses, mas sim massacrado por espanhóis, que o acusaram de esconder comida, em vez de a entregar à guerrilha. Sabia quem eram os assassinos, tinha-lhes visto bem as caras: lavradores como ela, que aproveitavam os maus tempos para cometer tropelias. Não eram guerrilheiros, mas sim delinquentes, que haviam violado a sua pobre filha, louca de nascença, que não fazia mal a ninguém, e lhe tinham levado os animais. Salvara-se uma cabra, que corria nos cerros, disse ela. Um dos tais homens tinha o nariz comido pela sífilis e o outro uma comprida cicatriz na cara; lembrava-se muito bem deles e não passava um dia sem que os maldissesse e clamasse por vingança, acrescentou. A sua única companhia era a filha, que mantinha amarrada a uma cadeira para que não se arranhasse. Na casa - um cubo de pedra e barro, chato, malcheiroso e sem janelas -, a mãe e a filha conviviam com uma leva de cães. A camponesa tinha muito pouco para dar e estava cansada de receber mendigos, mas não quis deixá-los ao relento. «Por negarem hospedagem a São José e à Virgem Maria, o Menino Jesus nasceu numa manjedoura», disse ela. Achava que recusar guarida a um peregrino se pagava com muitos séculos de sofrimento no Purgatório. Os viajantes sentaram-se no chão de terra, rodeados de cães pulguentos, a recomporem-se um pouco da fadiga, enquanto ela cozinhava umas batatas nas brasas e desenterrava um par de cebolas da sua mísera horta.

- É tudo o que há. A minha filha e eu não comemos outra coisa há meses, mas amanhã talvez consiga ordenhar a cabra - disse.

- Que Deus lhe pague, minha senhora - murmurou Diego.

A única luz da casa vinha pelo buraco da porta, que de noite se fechava com uma pele de cavalo esticada, e da pequena braseira onde se tinham assado as batatas.

Enquanto eles consumiam o frugal alimento, a camponesa observava-os de soslaio com os seus olhinhos remelosos. Viu mãos brancas e suaves, rostos nobres, portes esbeltos, recordou que vinham com dois cavalos e tirou as suas conclusões. Não quis averiguar pormenores, pensando que, quanto menos soubesse, a menos problemas se expunha; os tempos não estavam para fazer muitas perguntas. Quando os seus hóspedes acabaram de comer, emprestou-lhes umas peles de cordeiro mal curtidas e conduziu-os a um telheiro onde guardava lenha e maçarocas secas. Ali se instalaram. Nuria opinou que era de longe mais acolhedor que o interior do casinhoto, com o cheiro dos cães e os bramidos da louca. Distribuíram o espaço e as peles e aprontaram-se para uma longa noite. Estavam a acomodar-se o melhor possível, quando a camponesa reapareceu trazendo uma xícara com gordura, que lhes entregou com a recomendação de a usarem para as contusões. Ficou a olhar para o escalavrado grupo com um misto de desconfiança e curiosidade.

- Qual peregrinos, qual quê! Vê-se que sois gente fina. Não quero saber do que fugis, mas aqui vai um conselho de graça. Há muitos velhacos nestes caminhos. Não há que confiar. É melhor que não vejam as raparigas. Que tapem as caras, pelo menos - acrescentou, antes de dar meia volta e partir.

Diego não sabia como aliviar a incomodidade das mulheres, em especial da que mais lhe importava, Juliana. Tomás de Romeu tinha-lhe confiado as filhas e havia que ver as condições em que as desgraçadas estavam. Habituadas a colchão de penas e lençóis bordados, repousavam agora os ossos sobre uma pilha de maçarocas e coçavam-se das pulgas com as duas mãos. Juliana era admirável; não se tinha queixado uma única vez durante aquela árdua jornada, tendo inclusivamente comido a cebola crua do jantar sem comentários. Em justiça tinha de admitir que tão-pouco Nuria fizera má cara e, quanto a Isabel, bom, parecia encantada com a aventura. A afeição de Diego por elas aumentara, ao vê-las tão vulneráveis e corajosas. Sentiu uma ternura infinita por aqueles corpos magoados e um desejo imenso de lhes aliviar o cansaço, de abrigá-las do frio, de salvá-las de qualquer perigo. Não o preocupava tanto Isabel, que possuía a resistência de uma potra, nem Nuria, que se governava com goles de álcool, mas sim Juliana. As sandálias de lavrador encheram-lhe os pés de bolhas, apesar das meias de lã, e o roçar do hábito esfolara-lhe a pele. E que pensava Juliana, entretanto? Não sei, mas imagino que à luz agónica da tarde Diego lhe pareceu bonito. Havia um par de dias que não se barbeava e a sombra escura da barba dava-lhe um ar tosco e viril. Já não era o rapaz desajeitado, intenso, magro, todo sorriso e orelhas, que aparecera em sua casa quatro anos atrás. Era um homem. Dentro de uns meses completaria vinte anos bem vividos, ganhara corpo e tinha aprumo. Não estava nada mal; além disso, gostava dela com uma comovedora lealdade de cachorro. Juliana teria de ser de pedra para não amolecer. O pretexto da pomada curativa serviu a Diego para acariciar os pés da sua amada um bom pedaço e, de caminho, distrair-se dos seus funestos pensamentos. Não tardou que a sua natureza optimista prevalecesse e propôs-lhe estender a massagem às barrigas das pernas. «Não sejas depravado, Diego», increpou-o Isabel, quebrando o encanto num abrir e fechar de olhos.

As irmãs adormeceram, enquanto ele voltava a ruminar as suas variadas inquietações. Concluiu que a única coisa venturosa daquela viagem seria Juliana; o resto era só esforço e angústia. Rafael Moncada e outros possíveis pretendentes tinham ficado fora de cena; dispunha finalmente de uma oportunidade completa para conquistar a bela: semanas e semanas em estreita convivência. Ali estava, a menos de uma vara de distância, exausta, suja, dorida e frágil. Podia estender a mão e tocar-lhe a face avermelhada pelo sono, mas não se atrevia. Dormiria todas as noites ao seu lado, como castos esposos, e compartilharia com ela cada momento do dia. Juliana não contava com mais protecção neste mundo senão a dele, situação que o favorecia enormemente. Nunca se aproveitaria dessa vantagem, claro - era um cavalheiro -, mas não podia deixar de notar que num só dia se operara uma mudança nela. Juliana via-o com outros olhos. Deitara-se enovelada, tiritando debaixo das peles de cordeiro, a um canto do telheiro, mas daí a pouco aquecera e assomara metade da cabeça, procurando acomodar-se sobre as maçarocas. Pelas ranhuras das tábuas entrava o resplendor azul da lua, que lhe iluminava o rosto perfeito, abandonado no sono. Diego desejava que aquela peregrinação não terminasse nunca. Colocou-se tão perto dela que podia adivinhar a tepidez do seu hálito e a fragrância dos seus caracóis escuros. A boa camponesa tinha razão: era preciso esconder a sua beleza, para não atrair má sorte. Se fossem assaltados por um bando, ele sozinho mal a poderia defender, visto que nem sequer contava com uma espada. Existiam sobejos motivos para se angustiar; não havia, porém, nada de pecaminoso em dar rédea solta à fantasia, pelo que se distraiu imaginando a donzela exposta a terríveis perigos e salva uma e outra vez pelo invencível Zorro. «Se não conseguir conquistá-la agora, é porque sou um parvo sem remédio», murmurou.

Juliana e Isabel acordaram com o canto do galo e os abanões de Nuria, que lhes arranjara uma malga de leite de cabra acabada de ordenhar. Ela e Diego não tinham descansado com a mesma placidez que as raparigas. Nuria rezara durante horas, aterrada pelo futuro, e Diego repousara parcialmente, suspenso da proximidade de Juliana, com um olho aberto e uma mão na adaga para a defender, até que o tímido amanhecer de Inverno pusera fim àquela eterna noite. Os viajantes aprontaram-se para iniciar outra jornada, mas as pernas mal obedeciam a Juliana e Nuria; poucos passos andados tiveram de se amparar para não se abaterem no chão. Isabel, em contrapartida, demonstrou o seu estado físico com várias flexões, gabando-se das horas intermináveis que passara a praticar esgrima diante de um espelho. Diego aconselhou que começassem a andar, para que os músculos aquecessem e o entorpecimento passasse, mas não foi assim: a dor apenas piorou e, por fim, Juliana e Nuria tiveram de montar nos cavalos, enquanto Diego e Isabel carregavam as trouxas. Haveria de passar uma semana completa antes de conseguirem cumprir a meta de seis léguas diárias que se tinham proposto ao começar. Antes de partir, agradeceram a hospitalidade à camponesa e deixaram-lhe uns maravedis, para os quais ela ficou a olhar pasmada, como se nunca tivesse visto moedas. Em alguns trechos, o caminho era um carreiro de mulas; noutros, apenas um estreito rasto que serpenteava pelo meio da natureza. Operou-se uma transformação inesperada nos quatro peregrinos. A paz e o silêncio obrigaram-nos a escutar, a ver as árvores e as montanhas com outros olhos, abrir o coração à experiência única de pisar o rasto de milhares de viajantes que tinham feito aquele caminho durante nove séculos. Uns frades ensinaram-nos a guiarem-se pelas estrelas, como faziam os viajantes na Idade Média, e pelas pedras e marcos com o selo de Santiago, uma concha de vieira, deixados por caminhantes anteriores. Em determinados sítios encontraram frases esculpidas em pedaços de madeira ou escritas em desbotados fragmentos de pergaminho, mensagens de esperança e desejos de boa sorte. Aquela viagem à sepultura do apóstolo converteu-se numa exploração da própria alma. Iam em silêncio, doridos e cansados, mas contentes. Perderam o medo inicial e não tardou que se esquecessem de que fugiam. Ouviram lobos de noite e esperavam bandoleiros em qualquer volta do caminho, mas avançavam confiantes, como se uma força superior os protegesse.

Nuria começou a reconciliar-se com Santiago, que tinha insultado quando Tomás de Romeu fora executado. Atravessaram bosques, extensas planícies, montes solitários, numa paisagem mutante e sempre bela. Nunca lhes faltou hospedagem. Umas vezes, dormiam em casa de lavradores, outras, em mosteiros e conventos. Tão-pouco lhes faltou pão ou sopa, que gente desconhecida compartilhava com eles. Uma noite, dormiram numa igreja e acordaram com cantos gregorianos, envoltos numa névoa densa e azul, como que de outro mundo. Noutra ocasião, repousaram nas ruínas de uma pequena capela, onde faziam ninho milhares de pombas brancas, enviadas, segundo Nuria, pelo Espírito Santo. Seguindo o conselho da camponesa que os acolhera na primeira noite, as raparigas tapavam a cara ao aproximarem-se de lugares habitados. Nas aldeolas e estalagens, as irmãs ficavam para trás, enquanto Nuria e Diego se adiantavam para solicitar ajuda, fazendo-se passar por mãe e filho. Referiam-se sempre a Juliana e Isabel como se fossem do sexo masculino e esclareciam que não mostravam a cara porque estavam deformados pela peste; assim não despertavam o interesse de bandidos, ganhões e desertores do exército que vagueavam por aqueles campos por cultivar desde o começo da guerra.

Diego calculava a distância e o tempo que os separavam do porto de La Coruna e acrescentava a esta operação matemática os seus progressos com Juliana, que não eram espectaculares, mas, pelo menos, a jovem parecia sentir-se segura na sua companhia e tratava-o com menos ligeireza e mais coquetaria; apoiava-se no seu braço, permitia que lhe acariciasse os pés, lhe preparasse a cama e até que lhe desse colheradas de sopa à boca, quando estava demasiado cansada. À noite, Diego esperava que o resto do grupo adormecesse para se instalar o mais perto dela que a decência permitisse. Sonhava com ela e acordava no melhor dos mundos, com um braço sobre a sua cintura. Ela fingia não se dar conta daquela crescente intimidade e durante o dia comportava-se como se nunca se tivessem tocado, mas no negrume da noite facilitava o contacto, enquanto ele perguntava a si próprio se o faria por frio, por medo ou pelas mesmas razões apaixonadas que o moviam a ele. Aguardava esses momentos com uma ansiedade demente e aproveitava-os até onde podia. Isabel estava a par daquelas incursões nocturnas e não tinha rebuço em lhes dizer piadas a esse respeito. A maneira como a rapariga tomava conhecimento delas era um enigma, porque era a primeira a adormecer e a última a acordar.

Naquele dia tinham andado várias horas e a fadiga somava-se à demora causada por uma lesão na pata de um dos cavalos, que o obrigava a coxear. Tinha-se posto o Sol e ainda lhes faltava um bom pedaço para chegarem ao convento onde pensavam pernoitar. Viram sair fumo de uma casa próxima e decidiram que valia a pena aproximarem-se. Diego adiantou-se, confiante que seria bem recebido, porque parecia um lugar bastante próspero, pelo menos comparado com outros. Antes de bater à porta advertiu as meninas de que se cobrissem, apesar da penumbra. Elas envolveram a cara com trapos munidos de buracos para os olhos, que já estavam pardos de pó e lhes davam um aspecto de leprosas. Veio abrir-lhes um homem que, em contraluz, parecia quadrado, como um orangotango. Não conseguiam distinguir-lhe as feições, mas, a julgar pela sua atitude e tom descortês, não parecia satisfeito por vê-los. À partida, negou-se a recebê-los com o pretexto de que não tinha obrigação de socorrer peregrinos; isso competia a frades e freiras que para isso eram ricos. Acrescentou que, se viajavam com dois cavalos, não deviam ter voto de pobreza e podiam muito bem pagar as suas despesas. Diego regateou por um bocado; por fim, o lavrador aceitou dar-lhes qualquer coisa de comer e licença para dormirem debaixo de telha a troco de umas moedas, que tiveram de lhe entregar antecipadamente. Conduziu-os a um estábulo, onde havia uma vaca e dois cavalos percherões de lavoura; indicou-lhes um monte de palha para se instalarem e anunciou-lhes que voltaria com alguma coisa para comerem. Passada meia hora, quando começavam a perder a esperança de meterem alguma coisa no estômago, o homem reapareceu acompanhado por outro. O estábulo estava escuro como uma gruta, mas traziam uma lanterna. Deixaram no chão umas tigelas com uma convincente sopa camponesa, uma fogaça de pão negro e meia dúzia de ovos. Nessa altura, Diego e as mulheres puderam ver, à luz da lanterna, que um deles tinha a cara deformada por uma cicatriz que lhe atravessava um olho e a face, ao outro faltava o nariz. Eram baixos, fortes, sem pescoço, com os braços como cepos e um aspecto tão patibular que Diego apalpou as suas adagas e Isabel a sua pistola. As sinistras personagens não se moveram dali, enquanto os seus hóspedes mexiam a sopa e partiam o pão, observando com malévola curiosidade Juliana e Isabel, que procuravam comer debaixo do pano, sem descobrirem a cara.

- O que têm essas? - perguntou um deles, apontando para as raparigas.

- Febre-amarela - disse Nuria, que tinha ouvido Diego mencionar essa peste, mas não desconfiava em que consistia.

- É uma febre dos trópicos que corrói a pele como ácido e apodrece a língua e os olhos. Deviam ter morrido, mas o apóstolo salvou-as. É por isso que vamos em peregrinação ao santuário, para agradecer - acrescentou Diego, inventando no instante.

- Pega-se? - quis saber o anfitrião.

- De longe não se pega; só por contacto. Há que não lhes tocar - explicou Diego.

Os homens não pareciam muito convencidos, porque viram as mãos sãs e os corpos jovens das raparigas, que os saios não conseguiam dissimular. Além disso, suspeitaram que aqueles peregrinos traziam mais dinheiro com eles do que o habitual naqueles casos e deitaram o olho aos cavalos.

Embora um deles coxeasse um pouco, eram animais de boa raça, alguma coisa haviam de valer. Retiraram-se por fim com a lanterna, deixando-os mergulhados nas sombras.

- Temos de nos ir embora daqui; aqueles sujeitos são aterrorizantes - sussurrou Isabel.

- Não podemos viajar de noite e temos de descansar; eu montarei guarda - respondeu Diego no mesmo tom.

- Dormirei um par de horas e depois substituir-te-ei na vigilância - propôs Isabel.

Ainda tinham os ovos crus, a quatro dos quais Nuria fez um furo na casca, para os chupar, guardando os restantes. «É uma pena ter medo das vacas, senão podíamos obter um pouco de leite», suspirou a ama. Depois pediu a Diego que saísse por um bocado, para que as raparigas se pudessem lavar com um pano molhado. Por fim, acomodaram-se com as mantas em cima da palha e adormeceram. Decorreram à volta de três ou quatro horas, enquanto Diego cabeceava sentado, com as adagas ao alcance da mão, morto de fadiga, fazendo esforços por manter os olhos abertos. De repente foi sacudido pelo latir de um cão e deu-se conta de que tinha adormecido. Quanto tempo? Não fazia ideia, mas o sono era um prazer proibido naquelas circunstâncias. Para espertar saiu do estábulo, respirando a plenos pulmões o ar gelado da noite. Na casa ainda saía fumo pela chaminé e brilhava uma luz no único janelico da sólida parede de pedra, o que lhe permitiu calcular que talvez não tivesse passado tanto tempo adormecido como receava. Decidiu afastar-se um pouco para fazer as suas necessidades.

Ao regressar momentos mais tarde, viu umas silhuetas em movimento e adivinhou que eram os dois lavradores dirigindo-se ao estábulo em suspeito silêncio. Levavam qualquer coisa convincente nas mãos, talvez espingardas ou arrochos. Compreendeu que contra aqueles brutos armados, as suas adagas de curto alcance seriam pouco eficientes.

Desenrolou o chicote da cintura e sentiu de imediato o frio na nuca que sempre o preparava para uma luta. Sabia que Isabel tinha a pistola pronta, mas deixara-a a dormir e, além disso, a rapariga nunca tinha disparado uma arma. Contava com a vantagem da surpresa, mas não podia agir naquela escuridão. Rezando para não ser denunciado pelos cães, seguiu os homens até ao estábulo. Por uns minutos reinou um silêncio absoluto, enquanto os malfeitores se asseguravam de que os seus infelizes hóspedes estavam perdidos no sono. Uma vez tranquilizados, acenderam uma candeia e viram as figuras prostradas sobre a palha. Não se aperceberam de que faltava um, porque confundiram a manta de Diego com outro corpo tapado. Nisto, um dos cavalos relinchou e Isabel sentou-se, sobressaltada. Demorou uns instantes a recordar onde estava, ver os homens, dar-se conta da situação e tentar empunhar a pistola, que tinha deixado preparada debaixo do cobertor. Não conseguiu completar o gesto, porque um par de rugidos dos sujeitos, que brandiam grossos cepos, a gelou, paralisada. Nessa altura, também já Juliana e Nuria tinham espertado.

- Que quereis? - gritou Juliana.

- Queremo-las a vocês, rameiras, e ao dinheiro que trazeis! - retorquiu um dos homens, aproximando-se com o pau em riste.

Então, à luz vacilante da chama, os desalmados viram os rostos das suas vítimas. Com uma exclamação de absoluto terror retrocederam à pressa e deram consigo diante de Diego, que já tinha o braço no ar. Antes que pudessem refazer-se do susto, o chicote tinha-se abatido com um estalido seco sobre o mais próximo, arrancando-lhe o bordão e um grito de dor. O outro precipitou-se sobre Diego, que se esquivou à bordoada e lhe aplicou um pontapé no ventre que o dobrou em dois. Mas o primeiro já se repunha da chicotada e saltava sobre o jovem, com uma agilidade inesperada em alguém tão pesado, caindo-lhe em cima como um saco de pedras. O chicote tornava-se inútil em combate corpo a corpo, e o camponês tinha Diego agarrado pelo pulso com que segurava o punhal. Espalmou-o contra o solo, procurando-lhe a garganta com uma mão, enquanto lhe sacudia o braço armado com a outra. Tinha um aperto poderoso e uma força descomunal. O seu hálito fétido e a sua asquerosa saliva atingiram o jovem na cara, ao mesmo tempo que se defendia desesperado, sem compreender como conseguira aquela fera, num instante, o que o exímio lutador, Júlio César, não lograra no exame de coragem de La Justicia. Pelo rabo do olho conseguiu aperceber-se de que o outro fulano conseguira pôr-se de pé e deitava a mão ao pau. Havia mais luz, porque a candeia rolara pelo chão e a palha começava a arder. Nesse instante brilhou um clarão e o homem que estava de pé caiu berrando como um leão. Aquilo distraiu durante uma fracção de segundo o que estava sobre Diego, tempo suficiente para que este o sacudisse de cima com uma feroz joelhada na virilha.

O impacte do tiro pregou com Isabel sentada no chão. Tinha disparado quase às cegas, segurando a arma com ambas as mãos, e por um feliz acaso pulverizara um joelho ao seu atacante. Não conseguia acreditar. A ideia de que um leve movimento do seu dedo no gatilho tivesse tais consequências mal lhe entrava na cabeça. Uma ordem peremptória de Diego, que mantinha o outro fulano imobilizado com o seu chicote, arrancou-a ao transe. «Vamos! O estábulo está a arder! É preciso tirar daqui os animais!» As três mulheres puseram-se em acção para salvar a vaca e os cavalos, que relinchavam de pavor, enquanto Diego arrastava para o exterior os dois malfeitores, um dos quais continuava a rugir de dor, com a perna feita em polpa e encharcado em sangue.

O estábulo ardeu como uma imensa fogueira, iluminando a noite. Àquela claridade, Diego viu os rostos de Juliana e Isabel, que tanto tinham espantado os seus assaltantes, e também ele soltou uma exclamação de horror. A pele, amarelenta e gretada, como pele de crocodilo, brilhava purulenta em alguns sítios e noutros havia secado como uma crosta, repuxando as feições. Os olhos estavam deformados e os lábios tinham desaparecido: as meninas eram dois monstros.

- Que sucedeu? - gritou Diego.

- Febre-amarela - riu-se Isabel.

A ideia tinha sido de Nuria. A ama suspeitara de que os seus malévolos anfitriões podiam atacá-los durante a noite. Conhecia a maldade daqueles sujeitos pela descrição que deles fizera a camponesa, cujo marido tinham assassinado. Lembrara-se da sua antiga receita de beleza para aclarar a pele, à base de gemas de ovo, que as espanholas haviam aprendido com as mulheres muçulmanas, e usara o par de ovos que lhe sobrara do jantar para pintar a cara das raparigas. Ao secar, converteram-se em máscaras gretadas de uma cor repugnante. «Tira-se com água e faz muito bem à cútis», explicou Nuria, ufana.

Ligaram a ferida do ganhão da cicatriz, que não parava de gritar como um torturado, para impedir, pelo menos, que se esvaísse em sangue, embora houvesse poucas esperanças de que salvasse a perna desfeita pelo tiro. Ao outro deixaram-no bem amarrado a uma cadeira, mas não o amordaçaram, para que pudesse pedir auxílio. A casa não ficava longe do caminho e mais de um passante podia ouvi-lo. «Olho por olho, dente por dente, tudo se paga nesta vida ou no inferno», foram as palavras de despedida de Nuria. Levaram um presunto, que estava pendurado numa viga da casa, e os dois cavalos percherões, lentos e pesados. Não eram boas cavalgaduras, mas sempre seria melhor que ir a pé; além disso, não desejavam deixar meios de transporte àquele par de bandidos, para que não pudessem alcançá-los.

O incidente com o homem sem nariz e o seu compincha da cara esfaqueada serviu aos viajantes para serem mais precavidos. A partir de então, decidiram que só se hospedariam nos sítios designados, desde tempos imemoriais, para os peregrinos. Depois de várias semanas de marcha pelos caminhos do Norte, emagreceram os quatro e curtiu-se-lhes o corpo e a alma. A luz tostou-lhes a pele, o ar seco e as geadas gretaram-lha. O rosto de Nuria transformou-se num mapa de finas rugas e os anos abateram-se subitamente sobre ela. Aquela mulher dantes rija, aparentemente sem idade, arrastava agora os pés e tinham-se-lhe encurvado um pouco as costas, mas, longe de a desfear, isso embelezava-a. Descontraiu-se-lhe a expressão adusta e começou a aflorar nela um humor sorrateiro de avó excêntrica que, anteriormente, não tinha manifestado. Além disso, ficava melhor com o seu singelo saio de peregrina do que com o severo uniforme negro e touca que toda a vida tinha usado. As curvas de Juliana desapareceram, parecia mais pequena e jovem, com os olhos enormes e as faces estriadas e vermelhas. Tomava a precaução de aplicar lanolina na pele, para se proteger do sol, mas não pudera evitar o impacte dos elementos. Isabel, forte e magra, foi quem menos sofreu com a viagem. Afilaram-se-lhe as feições e adquiriu um passo comprido e seguro, que lhe dava um aspecto viril. Nunca tinha sido mais feliz; era feita para a liberdade. «Maldição! Porque não nasci homem?», exclamou numa ocasião. Nuria deu-lhe um beliscão, com a advertência de que semelhante blasfémia podia conduzi-la directamente aos caldeirões de Satanás, mas logo desatou a rir com vontade e comentou que, se tivesse nascido do sexo masculino, Isabel teria sido como Napoleão, pela muita guerra que sempre dava. Adaptaram-se às rotinas impostas pelo caminho. Diego assumiu o comando de forma natural, tomava decisões e dava a cara perante estranhos. Procurava que as mulheres dispusessem de uma certa privacidade para as suas necessidades mais íntimas, mas não as perdia de vista por mais de uns minutos. Bebiam e lavavam-se nos rios; para isso levavam cabaças, símbolo dos peregrinos. A cada légua percorrida foram esquecendo as comodidades do passado; um pedaço de pão sabia-lhes divinalmente, um gole de vinho era uma bênção. Num mosteiro deram-lhes malgas de chocolate doce e espesso, que saborearam lentamente, sentados num banco ao ar livre. Por vários dias não pensaram noutra coisa, não se lembravam de ter sentido nunca um prazer tão absoluto como aquela quente e aromática bebida sob as estrelas. Durante o dia mantinham-se com os restos da comida recebida nas hospedagens: pão, queijo duro, uma cebola, um pedaço de salpicão. Diego levava algum dinheiro à mão para emergências, mas procuravam não o usar; os peregrinos sobreviviam da caridade. Caso não houvesse outro remédio senão pagar por qualquer coisa, regateava longamente, até que o conseguia quase oferecido; assim não levantava suspeitas.

Tinham atravessado meio País Basco, quando o Inverno se abateu sem compaixão. Aguaceiros súbitos ensopavam-nos até aos ossos e as geadas mantinham-nos a tiritar debaixo das mantas molhadas. Os cavalos iam a passo, aflitos também pelo clima. As noites eram mais compridas, a bruma mais densa, a marcha mais lenta, a escarcha mais grossa e a viagem mais difícil, mas a paisagem tornava-se de uma beleza espantosa. Verde e mais verde, colinas de veludo verde, bosques imensos em todos os tons de verde, rios e cascatas de cristalinas águas verde-esmeralda. Durante longos trechos a pista perdia-se na humidade do solo, para reaparecer mais adiante sob a forma de um delicado carreiro entre as árvores, ou das lajes gastas de uma antiga via romana. Nuria convenceu Diego de que valia a pena gastar dinheiro em álcool, a única coisa que os conseguia aquecer de noite e fazê-los esquecer as misérias da jornada. Às vezes tinham de permanecer um par de dias numa hospedagem, porque chovia demasiado e precisavam de restabelecer as forças; nessa altura aproveitavam para ouvir as histórias de outros viajantes e dos religiosos, que tinham visto passar tantos pecadores pelo caminho de Santiago.

Um dia, em meados de Dezembro, encontravam-se ainda longe da próxima aldeia e não viam casas havia um bom pedaço, quando divisaram entre as árvores várias luzes trémulas, como indecisas fogueiras. Decidiram aproximar-se com cautela, porque podiam ser desertores do exército, mais perigosos do que qualquer patife. Costumavam vaguear em grupos, maltrapilhos, armados até aos dentes e dispostos a tudo. No melhor dos casos, esses veteranos de guerra sem trabalho eram contratados como mercenários para lutar a soldo, dirimir contendas, cumprir vinganças e outras ocupações pouco honrosas, mas preferíveis às de um bandido. Não tinham mais vida do que os seus aços, e a ideia de um trabalho manual era para eles impensável. Em Espanha, só trabalhavam os lavradores que, com o suor dos seus lombos, mantinham o peso imenso do império, desde o rei até ao último esbirro, chicaneiro, frade, batoteiro, pajem, galdéria ou pedinte.

Diego deixou as mulheres debaixo de uns arbustos, protegidas pela pistola, que Isabel tinha finalmente aprendido a usar, enquanto ele averiguava o significado daqueles remotos clarões. Poucos passos andados, encontrou-se perto e pôde verificar que, tal como imaginara, se tratava de várias fogueiras. Não lhe pareceu, porém, que fosse uma quadrilha de bandoleiros nem de desertores, porque lhe chegou aos ouvidos a melodia débil de uma guitarra. O coração deu-lhe um baque no peito ao reconhecer aquela música, um canto apaixonado de desgosto e lamento, que Amália costumava dançar com um revolver de saias e um chocalhar de castanholas, enquanto o resto da tribo marcava o ritmo com pandeiretas e palmas. Não era original; todos os ciganos tocavam canções semelhantes. Aproximou-se a passo no cavalo e distinguiu numa clareira do bosque várias tendas e fogueiras.

«Valha-me Deus!», murmurou, a ponto de gritar de alívio, porque estavam ali os seus amigos. Não lhe restaram dúvidas: era a família de Amália e Pelayo. Vários homens da tribo adiantaram-se para averiguar quem era o intruso e à luz cinzenta do entardecer viram um monge andrajoso e barbudo, que avançava para eles sobre um pesado cavalo de lavoura. Não o reconheceram a não ser quando ele saltou em terra e correu para eles, porque a última pessoa que esperavam ver era Diego de La Vega e muito menos com hábito de peregrino.

- Que diabo te aconteceu, homem? - exclamou Pelayo, dando-lhe uma palmada afectuosa no ombro, e Diego não soube se lhe corriam pela cara lágrimas ou novas gotas de chuva.

O cigano acompanhou-o para ir buscar Nuria e as raparigas. Uma vez sentados à volta da fogueira, os viajantes contaram em traços largos as suas recentes peripécias, desde a execução de Tomás de Romeu até ao sucedido com Rafael Moncada, omitindo os altos e baixos menores da fortuna, que nada acrescentavam à história.

- Como vedes, somos fugitivos e não peregrinos. Temos de chegar a La Coruna, para ver se lá conseguimos embarcar para a América, mas ainda nos falta metade do caminho e o Inverno morde-nos os calcanhares. Podemos seguir viagem convosco? - perguntou-lhes Diego.

Os Rom nunca tinham recebido um pedido daquela espécie por parte de um gadje. Por tradição desconfiavam dos estranhos, sobretudo quando estes demonstravam boas intenções, porque o mais provável era que trouxessem uma víbora escondida na manga, mas haviam tido ocasião de conhecer a fundo Diego e estimavam-no. Afastaram-se para se aconselharem entre si. Deixaram o grupo de gadjes a enxugar as roupas junto ao fogo e retiraram-se para uma das tendas, feita de pedaços de vários tecidos, andrajosa e cheia de buracos, que, apesar do seu lamentável aspecto, oferecia um bom resguardo contra os caprichos do clima.

A assembleia da tribo, chamada kris, durou uma boa parte da noite. Quem a dirigia era Rodolfo, o Rom baro, o homem de mais idade, patriarca, conselheiro e juiz, que conhecia as leis dos Rom. Essas leis não tinham sido escritas ou codificadas; passavam de uma geração para outra na memória dos Rom baro, que as interpretavam de acordo com as condições de cada época e lugar. Só os homens podiam participar nas decisões, mas os costumes tinham-se relaxado nesses anos de miséria e as mulheres não ficaram caladas, em especial Amália, que lhes lembrou que, em Barcelona, haviam salvo a pele graças a Diego e, além disso, este lhes dera uma bolsa com dinheiro, que lhes permitira fugir e sobreviver. De qualquer maneira, alguns membros do clã votaram contra, porque consideravam que a proibição de conviver com gadjes era mais forte do que qualquer forma de gratidão. Toda a associação não comercial com os gadjes acarretava marimé, ou má sorte, disseram eles. Conseguiram, por fim, chegar a acordo e Rodolfo resolveu a questão com um veredicto inapelável. Tinham visto muita traição e maldade nas suas vidas, disse, e deviam apreciar quando alguém lhes estendia a mão, para que ninguém pudesse dizer que os Rom eram mal agradecidos. Pelayo partiu para o comunicar a Diego. Encontrou-o a dormir por terra, apertado contra as mulheres, todos encolhidos de frio, porque a fogueira já se tinha apagado. Pareciam uma patética ninhada de cachorros.

- A assembleia aprovou que viajeis connosco até ao mar, desde que possais viver como os Rom e não violeis nenhum dos nossos tabus - notificou-os.

Os ciganos estavam mais pobres que nunca. Não tinham os seus carroções, queimados pelos soldados franceses no ano anterior, e as suas tendas haviam sido substituídas por outras mais esfarrapadas, mas tinham conseguido cavalos e possuíam forjas, caçarolas e um par de carroças para transportar os seus pertences. Haviam passado necessidades, mas estavam intactos; não faltava nem uma só das crianças. O único que parecia maltratado era Rodolfo, o gigante, que dantes levantava um cavalo nos braços e agora tinha traços de tuberculoso. Amália estava idêntica, mas Petrina convertera-se numa adolescente magnífica, que já não cabia numa talha de azeitonas, por muito que se dobrasse. Estava prometida em casamento a um primo afastado de outra tribo, que nunca tinha visto. A boda teria lugar no Verão, depois de a família do noivo pagar o darro, dinheiro para compensar a tribo pela perda de Petrina.

Juliana, Isabel e Nuria foram instaladas na tenda das mulheres. Ao princípio, a ama estava aterrorizada; julgava que os ciganos planeavam raptar as meninas De Romeu e vendê-las como concubinas aos mouros no Norte de África. Havia de passar uma semana antes de se atrever a perder as raparigas de vista e mais uma antes de dirigir a palavra a Amália, que estava encarregada de lhes ensinar os costumes, para evitar faltas de etiqueta. Esta deu-lhes saias largas, blusas decotadas e xailes com franjas do vestuário comum das mulheres, tudo velho e sujo, mas de cores vistosas e, em qualquer caso, mais cómodo e aconchegado que os saios de peregrino. Os Rom acreditavam que as mulheres são impuras da cintura até aos pés, de modo que mostrar as pernas era uma ofensa muito grave; tinham de lavar-se rio abaixo, longe dos homens, sobretudo nos dias em que eram menstruadas. Consideravam-nas inferiores aos homens, aos quais deviam submissão. Os furibundos protestos de Isabel não serviram de nada: fosse como fosse, teria de passar por trás dos homens, nunca pela frente, e não lhes podia tocar, porque isso os contaminaria. Amália explicou-lhes que estavam sempre rodeados de espíritos, que tinham de apaziguar com feitiços. A morte era um acontecimento antinatural, que aborrecia a vítima; por isso, havia que ter cuidado com a vingança dos defuntos. Rodolfo parecia doente, o que trazia o clã muito preocupado, sobretudo porque recentemente se ouvira o piar de corujas, augúrio de morte. Tinham enviado mensagens a familiares distantes, para que viessem despedir-se dele com o devido respeito antes da sua partida para o mundo dos espíritos. Se Rodolfo partisse com rancores ou de mau humor, podia voltar transformado em mulo. Para o que desse e viesse, haviam feito os preparativos para a cerimónia do funeral, apesar de o próprio Rodolfo fazer troça, convencido de que viveria vários anos mais. Amália ensinou-as a ler a sina na palma da mão, nas folhas do chá e em bolas de cristal, mas nenhuma das três gadjes demonstrou ter as condições de uma verdadeira drabardi. Em contrapartida, aprenderam o uso de certas ervas medicinais e a cozinhar à maneira dos Rom. Nuria incorporou nas receitas básicas da tribo - estufado de legumes, coelho, veado, javali, porco-espinho - os seus conhecimentos de comida catalã, com excelentes resultados. Os Rom repudiavam a crueldade com os animais; só os podiam matar por necessidade. Havia alguns cães no acampamento, mas nenhum gato, porque tinham reputação de impuros.

Entretanto, Diego teve de resignar-se a observar Juliana de longe, porque era de muito má educação aproximar-se das mulheres sem um propósito específico. Aproveitou o tempo, que já não empregava na contemplação da sua amada, para aprender a montar a cavalo como um verdadeiro Rom. Tinha sido criado a galopar nas vastas planícies da Alta Califórnia e orgulhava-se de ser um bom cavaleiro, até que pôde admirar as acrobacias de Pelayo e dos outros homens do clã. Em comparação, ele era um principiante. Ninguém no mundo sabia mais de cavalos do que aquela gente. Não só os criavam, treinavam e curavam se estavam doentes, como também eram capazes de comunicar com eles por palavras, como Bernardo fazia. Nenhum cigano usava chibata, porque bater num animal era considerado a pior das cobardias. Ao fim de uma semana, Diego conseguia escorregar para o solo em plena corrida, dar uma volta no ar e cair sentado ao contrário no dorso do seu corcel; era capaz de saltar de uma cavalgadura para outra e também de galopar de pé entre duas, com um pé em cada uma, seguro apenas pelas rédeas. Procurava fazer estas acrobacias na frente das mulheres ou, melhor dizendo, onde Juliana o pudesse ver, assim compensando um pouco a frustração de estarem separados. Vestia-se com a roupa de Pelayo, calção pelo joelho, botas altas, blusa de mangas largas, colete de pele, um pano na cabeça - que infelizmente lhe punha as orelhas em evidência - e um mosquete ao ombro. Parecia tão viril com as suas flamantes patilhas, com a sua pele dourada e os seus olhos cor de caramelo, que até a própria Juliana costumava admirá-lo de longe.

A tribo acampava por vários dias próximo de alguma povoação, onde os homens ofereciam os seus serviços na domesticação de cavalos ou em trabalhos de metal, enquanto as mulheres liam a sina e vendiam as suas poções e ervas curativas. Uma vez esgotada a clientela, seguiam viagem para a povoação seguinte. À noite comiam em redor do fogo, depois contavam-se sempre histórias e havia música e dança. Nos momentos de descanso, Pelayo acendia a forja e trabalhava na fabricação de uma espada, que prometera a Diego, uma arma muito especial, melhor que qualquer sabre toledano, conforme disse, feita com uma combinação de metais cujo segredo tinha mil e quinhentos anos de história e provinha da índia.

- Antigamente, as armas dos heróis temperavam-se atravessando o corpo de um prisioneiro ou um escravo com a folha ao rubro, acabada de sair da forja - comentou Pelayo.

- Contento-me com que temperemos a minha no rio - retorquiu Diego. - É o presente mais belo que alguma vez recebi. Chamar-lhe-ei Justina, porque estará sempre ao serviço de causas justas.

Diego e as suas amigas viveram e viajaram em companhia dos Rom até Fevereiro. Tiveram dois breves encontros com guardas, que não perdiam ocasião de fazer valer a sua autoridade e incomodar os ciganos, mas não se deram conta de que havia estranhos entre a gente da tribo. Diego deduziu que ninguém os procurava tão longe de Barcelona; a sua ideia de fugir em direcção ao Atlântico não tinha sido tão absurda como ao princípio parecia. Passaram a maior parte do Inverno protegidos do clima e dos perigos do caminho no seio da tribo, que os acolheu como nunca tinha feito a nenhum gadje. Diego não teve de defender as raparigas dos homens, porque a possibilidade de desposar uma estrangeira não lhes passava pela cabeça. Tão-pouco pareciam impressionados com a beleza de Juliana; em contrapartida, chamava-lhes a atenção que Isabel praticasse esgrima e se esmerasse em aprender a montar a cavalo como os homens. Durante aquelas semanas, os nossos amigos percorreram o que lhes faltava do País Basco e da Galiza, até que por fim se acharam às portas de La Coruna. Por uma ânsia sentimental, Nuria pediu que lhe permitissem ir a Compostela ver a catedral e prostrar-se diante do túmulo de Santiago. Acabara por se tornar amiga do apóstolo, após entender o seu tortuoso sentido de humor. A tribo inteira acompanhou-a.

A cidade, com as suas acanhadas vielas e passagens, casas antigas, lojas de artesanato, estalagens, casas de pasto, tabernas, praças e paróquias, estendia-se em camadas concêntricas em torno do sepulcro, um dos eixos espirituais da cristandade. Era um dia claro, de céu limpo, com um frio revigorante. A catedral apareceu diante deles em todo o seu milenar esplendor, deslumbrante e soberba, com os seus arcos e espigadas torres.

Os Rom alvoroçaram a paz proclamando em altos gritos as suas bugigangas, os seus métodos de adivinhação e as suas poções para curar males e ressuscitar mortos. Entretanto, Diego e as suas amigas, como todos os viajantes que chegavam a Compostela, ajoelharam diante do pórtico central da basílica e puseram as mãos na base da pedra. Tinham cumprido a sua peregrinação, era o fim de um longo caminho. Agradeceram ao apóstolo por os ter protegido e pediram-lhe que não os abandonasse ainda, que os ajudasse a atravessar o mar a salvo. Não tinham terminado de formular estas palavras, quando Diego se deu conta de que, a escassos passos de distância, se encontrava um homem de joelhos, rezando com exagerado fervor. Estava de perfil, apenas iluminado pelos reflexos multicores dos vitrais, mas reconheceu-o de imediato, apesar de não o ver havia cinco anos. Era Galileo Tempesta. Esperou que o marinheiro terminasse de bater no peito e se persignasse para se aproximar. Tempesta voltou-se admirado, ao ver-se abordado por um cigano de grandes patilhas e bigodes.

- Sou eu, senhor Tempesta, Diego de La Vega...

- Porca miséria! Diego! - exclamou o cozinheiro e, com os seus músculos de pedra, levantou-o um palmo do solo num efusivo abraço.

- Chiu! Mais respeito, estais na catedral - increpou-os um frade.

Saíram para o ar livre, eufóricos, dando palmadas nas costas um ao outro, sem acreditarem na sorte de se terem encontrado, embora aquele acaso fosse perfeitamente explicável. Galileo Tempesta continuava a trabalhar como cozinheiro no Madre de Dios e o navio estava fundeado em La Coruma a carregar armas, a fim de as levar para o México. Tempesta tinha aproveitado aqueles dias de licença em terra para visitar o santo e pedir-lhe que o curasse de um mal impronunciável. Em sussurros confessou que contraíra uma doença vergonhosa nas Caraíbas, castigo divino pelos seus pecados, sobretudo a machadada que pregara à sua infeliz esposa anos atrás, um lamentável repente, é certo, embora ela o merecesse. Só um milagre o podia salvar, acrescentou.

- Não sei se o apóstolo se dedica a esse tipo de milagres, senhor Tempesta, mas lembrei-me que Amália poderia ajudar-vos.

- Quem é Amália?

- Uma drabardi. Nasceu com o dom de ler o destino alheio e curar doenças. Os remédios dela são muito eficientes.

- Bendito seja Santiago, que a pôs no meu caminho! Vedes como se operam os milagres, jovem De La Vega?

- A propósito de Santiago, que é feito do comandante Santiago de León? - perguntou Diego.

- Continua no comando do Madre de Dios e está mais excêntrico que nunca, mas vai ficar muito satisfeito ao saber de vós.

- Talvez não, porque agora sou um fugitivo da lei...

- Por maioria de razão, nesse caso. Para que são os amigos se não for para dar uma mão quando a sorte falha? - interrompeu-o o cozinheiro.

Diego levou-o a uma esquina da praça, onde várias ciganas vendiam profecias, e apresentou-o a Amália, que ouviu a sua confissão e aceitou tratar-lhe o mal por um preço bastante elevado. Dois dias mais tarde, Galileo Tempesta combinou um encontro entre Diego e Santiago de León numa taberna de La Coruna. Mal o comandante se convenceu de que aquele cigano era o moço que transportara no seu navio em 1810, dispôs-se a escutar a sua história completa. Diego fez-lhe um resumo dos seus anos em Barcelona e falou-lhe de Juliana e Isabel de Romeu.

- Existe uma ordem de prisão contra essas pobres raparigas. Se fossem apanhadas, acabariam na prisão ou deportadas para as colónias.

- Que malfeitoria podem ter cometido essas pequenas?

- Nenhuma. São vítimas de um vilão despeitado. Antes de morrer, o pai das meninas, Dom Tomás de Romeu, pediu-me que as levasse para a Califórnia e as pusesse sob a protecção do meu pai, Dom Alejandro de La Vega. O senhor pode ajudar-nos a chegar à América, comandante?

- Eu trabalho para o Governo de Espanha, jovem De La Vega. Não posso transportar fugitivos.

- Sei que já o fez doutras vezes, comandante...

- Que está a insinuar, senhor?

Como única resposta, Diego abriu a camisa e mostrou-lhe o medalhão de La Justicia, que trazia sempre ao pescoço. Santiago de León observou a jóia por uns segundos e, pela primeira vez, Diego viu-o sorrir. O seu rosto de ave taciturna mudou por completo e o seu tom suavizou-se ao reconhecer um companheiro. Embora a sociedade secreta estivesse temporariamente inactiva, ambos estavam tão presos como antes ao juramento de proteger os perseguidos. De León explicou que o seu navio devia partir dentro de uns dias. O Inverno não era a melhor estação para atravessar o oceano, mas pior era o Verão, quando se desencadeavam os furacões. Tinha de transportar com urgência o seu carregamento de armas para combater a insurreição no México - trinta canhões desarmados, mil mosquetes, um milhão de munições de chumbo e pólvora. De León lamentava que a sua profissão e as necessidades económicas o obrigassem a isso, porque considerava legítima a luta de todos os povos pela independência. Espanha, decidida a recuperar as suas colónias, enviara dez mil homens para a América. As forças realistas tinham reconquistado a Venezuela e o Chile numa luta cruenta, de muito sangue e atrocidades. A insurreição mexicana fora também sufocada. «Se não fosse por causa da minha leal tripulação, que está há muitos anos comigo e precisa deste trabalho, deixaria o mar para me dedicar exclusivamente aos meus mapas», explicou o comandante. Acordaram que Diego e as mulheres subiriam a bordo a coberto das sombras e permaneceriam escondidos no navio até se encontrarem no mar alto. Ninguém, excepto o comandante e Galileo Tempesta, conheceria a identidade dos passageiros. Diego agradeceu-lhe comovido, mas o comandante replicou que apenas cumpria a sua obrigação. Qualquer membro de La Justicia faria o mesmo no seu lugar. A semana passou-se em preparativos para a viagem. Tiveram de descoser os saiotes para tirar os dobrões de ouro, porque desejavam deixar qualquer coisa aos Rom, que tão bem os tinham acolhido, e precisavam de comprar roupa adequada e outras coisas indispensáveis para a viagem. O punhado de pedras preciosas foi cosido de novo nas dobras da roupa interior. Tal como o banqueiro lhes tinha indicado, não havia melhor maneira de transportar dinheiro em tempos de dificuldade. As raparigas escolheram vestidos práticos e simples, adequados à vida que as esperava, todos pretos, porque podiam finalmente guardar luto pelo pai. Não havia muito para escolher nas modestas lojas dos arredores, mas conseguiram algumas peças de roupa e acessórios num barco inglês ancorado no porto. Por seu lado, Nuria, que se havia afeiçoado aos trapos de cores durante a sua estada com os ciganos, também tinha de usar preto, pelo menos durante um ano, em memória do seu falecido amo.

Diego e as suas amigas despediram-se da tribo Rom com pesar, mas sem expressões sentimentais, que teriam sido mal recebidas entre aquela gente endurecida pelo hábito de sofrer. Pelayo entregou a Diego a espada que forjara para ele, uma arma perfeita, forte, flexível e leve, tão bem equilibrada que se podia lançá-la ao ar com uma pirueta e apanhá-la pelo punho sem o menor esforço. No último momento, Amália tentou devolver a Juliana a tiara de pérolas, mas esta recusou-se a recebê-la, pretextando que desejava deixar-lhe uma recordação. «Eu não preciso disto para me recordar de vós», respondeu a cigana com um gesto quase depreciativo; entretanto guardou-a.

 

Embarcaram durante uma noite, em princípios de Março, umas horas depois de os guardas do porto subirem a bordo para inspeccionar a carga e autorizar o comandante a levantar ferro. Galileo Tempesta e Santiago de León conduziram os seus protegidos aos camarotes que lhes tinham destinado. O navio fora remodelado um par de anos antes e estava em melhores condições do que na primeira viagem de Diego; agora contava com espaço para quatro passageiros, em cubículos individuais a cada um dos lados da câmara de oficiais, à popa. Cada um tinha uma cama de madeira pendurada com cabos, uma mesa, uma cadeira, um baú e um pequeno armário para a roupa. Aquelas celas não eram cómodas, mas ofereciam privacidade, o maior luxo num navio. As três mulheres encerraram-se nos seus camarotes durante as primeiras vinte e quatro horas de navegação, sem meter nada no estômago, verdes de enjoo, convencidas de que não sobreviveriam ao horror da agitação da água durante semanas. Mal deixaram atrás a costa de Espanha, o comandante autorizou os passageiros a saírem, mas ordenou às raparigas que se mantivessem a uma distância discreta dos marinheiros, para evitar problemas. Não deu explicações aos tripulantes e estes não se atreveram a pedi-las, mas nas suas costas murmuravam que não era boa ideia trazer mulheres a bordo.

Ao segundo dia, as meninas De Romeu e Nuria ressuscitaram leves e sem náuseas, com o som surdo dos pés descalços dos marinheiros a render os quartos e o aroma de café. Por essa altura já se tinham habituado ao sino, que repicava todas as meias horas. Lavaram-se com água do mar e tiraram o sal com um pano molhado em água doce, após o que se vestiram e saíram a cambalear dos respectivos camarotes. Na câmara de oficiais havia uma mesa rectangular com oito cadeiras, onde Galileo Tempesta tinha posto o pequeno-almoço. O café adoçado com melaço e fortalecido com um cheirinho de rum devolveu-lhes a alma ao corpo. A aveia aromatizada com canela e cravo-aromático foi servida com um exótico mel americano, gentileza do comandante. Pela porta entreaberta viram Santiago de León e os seus dois jovens oficiais na mesa de trabalho, a verificarem as listas dos quartos e o inventário dos mantimentos, lenha e água, que tinham de ser distribuídos com prudência até ao próximo porto de abastecimento. Na parede havia uma agulha magnética que indicava o rumo do navio e um barómetro de mercúrio. Sobre a mesa, numa bela caixa de acaju, estava o cronometro, de que Santiago cuidava como uma relíquia. Cumprimentou com um lacónico bom-dia, sem manifestar surpresa ante a palidez mortal dos seus hóspedes. Isabel perguntou por Diego e ele indicou-lhe o convés com um gesto vago.

- Se nestes anos o jovem De La Vega não mudou, deve estar encarrapitado no mastro grande ou sentado na figura de proa. Não me parece que se aborreça, mas para vós esta travessia será muito longa - disse.

Não foi, contudo, assim: não tardou que cada uma encontrasse uma ocupação. Juliana dedicou-se a bordar e ler um a um os livros do comandante. Ao princípio pareceram-lhe aborrecidos, mas depois introduziu heróis e heroínas; assim, as guerras, revoluções e tratados filosóficos adquiriram um apropriado carácter romântico. Era livre de inventar amores ardentes e contrariados, além disso, podia decidir o final. Preferia os finais trágicos, porque se chora mais. Isabel constituiu-se ajudante do comandante para o traçado dos mapas fantásticos; uma vez provada a sua habilidade para o desenho, pediu licença para retratar a tripulação. O comandante acabou por lhe dar autorização e, assim, ela ganhou o respeito dos marinheiros. Estudou os mistérios da navegação, desde o uso do sextante até à forma de identificar as correntes submarinas pelas mudanças de cor da água ou pelo comportamento dos peixes. Entreteve-se a desenhar as tarefas de bordo, que eram muitas: calafetar rachas da madeira com fibra de carvalho e alcatrão, bombear a água que se juntava no porão, reparar velas, remendar cabos partidos, lubrificar mastros com gordura rançosa da cozinha, pintar, raspar e lavar conveses. Os tripulantes passavam o tempo a trabalhar; só ao domingo a rotina se relaxava, aproveitando para pescar, talhar figuras em pedaços de madeira, cortar o cabelo, remendar a roupa e fazer tatuagens ou catar os piolhos uns aos outros. Cheiravam que fediam, porque raras vezes mudavam de roupa e consideravam que o banho era perigoso para a saúde. Não conseguiam entender que o comandante o fizesse uma vez por semana e muito menos entendiam a mania dos quatro passageiros de se lavarem todos os dias. No Madre de Dios não imperava a disciplina cruel dos navios de guerra; Santiago de León fazia-se respeitar sem recorrer a castigos brutais. Permitia jogos de cartas e dados, proibidos noutros navios, contanto que não se apostasse a dinheiro; nunca se atrasava a pagar aos homens e quando atracavam num porto organizava turnos para que todos pudessem desembarcar, a fim de se divertirem. Embora houvesse um chicote de nove rabos num saco vermelho pendurado num lugar visível, nunca fora usado. Quando muito, condenava os infractores a uns dias sem álcool.

Nuria impôs a sua presença na cozinha, porque, na sua opinião, os pratos de Galileo Tempesta deixavam bastante a desejar. As suas inovações culinárias, preparadas com os limitados ingredientes de sempre, foram festejadas por todos, desde o comandante até ao último grumete. A ama habituou-se rapidamente ao cheiro nauseabundo das provisões, sobretudo dos queijos e da carne salgada, a cozinhar com água turva e aos peixes que Galileo Tempesta colocava sobre os sacos de bolachas para combater o gorgulho. Quando estes se enchiam de bicho, substituíam-se por outros, assim se mantendo as bolachas mais ou menos limpas.

Aprendeu a ordenhar as cabras que levavam a bordo. Não eram os únicos animais; havia também galinhas, patos e gansos em gaiolas e uma porca com as suas crias num curral, além das mascotes dos marinheiros - macacos e papagaios - e os indispensáveis gatos, sem os quais os ratos seriam amos e senhores da embarcação. Nuria descobriu a forma de multiplicar as possibilidades do leite e dos ovos, de maneira que havia diariamente sobremesa. Galileo Tempesta era homem de mau carácter e melindrou-se com a invasão de Nuria no seu território, mas ela encontrou a forma mais simples de resolver o problema. Da primeira vez que Tempesta lhe levantou a voz, ela aplicou-lhe um golpe seco na testa com o colherão e continuou a mexer o estufado sem se perturbar. Seis horas mais tarde, o genovês propôs-lhe que se casassem. Confessou-lhe que os remédios de Amália começavam a dar bom resultado e que juntara novecentos dólares americanos, o suficiente para montar um restaurante em Cuba e viverem como reis. Havia onze anos que esperava a mulher adequada, disse, e não lhe importava que ela fosse um pouco mais velha que ele. Nuria não se dignou responder-lhe.

Vários marinheiros que estavam no navio durante a primeira viagem de Diego não o reconheceram até ele lhes ganhar punhados de grãos-de-bico a jogar às cartas. O tempo dos navegantes tem as suas próprias leis - os anos passam sem marcar a lisa superfície do céu e do mar -, pelo que não os surpreendeu que o rapaz imberbe, que ainda ontem os assustava com histórias de mortos-vivos, fosse hoje um homem. Que fora feito desses cinco anos? Confortava-os o facto de, apesar de ele ter mudado e crescido, continuar a desfrutar da sua companhia. Diego passava uma boa parte do dia a trabalhar com eles nas manobras do navio, sobretudo das velas, que o fascinavam. Só ao entardecer desaparecia brevemente no seu camarote para se lavar e vestir de cavalheiro, a fim de comparecer diante de Juliana.

Os marinheiros deram-se conta, desde o primeiro dia, de que ele estava apaixonado pela jovem e, embora às vezes brincassem com ele, observavam aquela devoção com um misto de nostalgia pelo que nunca teriam e de curiosidade pelo desenlace. Juliana parecia-lhes tão irreal como as mitológicas sereias. Aquela pele imaculada, aqueles olhos translúcidos, aquela graça etérea não podiam ser deste mundo.

Impulsionado pelas correntes oceânicas e pelos ditames do vento, o Madre de Dios dirigiu-se para sul bordejando África, passou frente às ilhas Canárias sem parar e chegou a Cabo Verde para se abastecer de água e alimentos frescos, antes de iniciar a travessia do Atlântico, que podia durar mais de três semanas, dependendo do vento. Ali souberam que Napoleão tinha fugido do seu exílio na ilha de Elba e entrara triunfalmente em França, onde as tropas, enviadas para lhe barrar o caminho até Paris, se haviam passado para o seu lado. Recuperara o poder sem disparar um único tiro, enquanto a corte do rei Luís XVIII se refugiava em Gant, e dispunha-se a reiniciar a conquista da Europa. Em Cabo Verde, os viajantes foram recebidos pelas autoridades, que ofereceram um baile em honra das filhas do comandante, como as meninas De Romeu foram apresentadas. Santiago de León pensou que assim afastavam suspeitas, caso a ordem de as deter tivesse chegado até ali. Muitos funcionários administrativos eram casados com belas mulheres africanas, altas e orgulhosas, que se apresentaram na festa vestidas com um luxo espectacular. Em comparação, Isabel assemelhava-se a um cão lãzudo e até a própria Juliana parecia quase insignificante. Essa primeira impressão mudou por completo quando Juliana, pressionada por Diego, aceitou tocar harpa. Havia uma orquestra completa, mas, mal ela feriu as cordas, fez-se um silêncio no grande salão. Um par de baladas antigas bastou-lhe para seduzir todos os presentes. Durante o resto do serão, Diego teve de se pôr em fila com os restantes cavalheiros para dançar com ela.

Pouco depois, o Madre de Dios desfraldou as velas, deixando para trás a ilha. Nessa altura apareceram dois marinheiros com um volume embrulhado numa lona e depositaram-no na câmara de oficiais: oferta do comandante Santiago de León a Juliana. «Para que amanseis o vento e as ondas», disse, arredando o pano com ar galante. Era uma harpa italiana talhada em forma de cisne. A partir de então, todas as tardes transportavam a harpa para o convés e ela fazia chorar os homens com as suas melodias. Tinha bom ouvido e era capaz de interpretar qualquer canção que eles trauteassem. Não tardou que aparecessem guitarras, harmónicas, flautas e improvisados tambores para a acompanhar. O comandante, que escondia um violino no camarote para se consolar em segredo durante as longas noites em que o láudano não conseguia atenuar a dor da sua perna doente, juntou-se ao grupo e o navio encheu-se de música.

Estavam no meio de um desses concertos, quando a brisa do mar arrastou uma fetidez tão nauseabunda que se tornava impossível ignorá-la. Momentos depois, vislumbraram ao longe a silhueta de um veleiro. O comandante recorreu ao óculo para confirmar o que já sabia: era um barco de escravos. Entre os traficantes havia duas tendências: fardos pretos e fardos frouxos. Os primeiros amontoavam os seus prisioneiros como troncos, na maior promiscuidade, uns por cima dos outros, amarrados com correntes, mergulhados nos seus próprios excrementos e vomitado, os sãos misturados com doentes, moribundos e cadáveres. Metade morria no mar alto e os sobreviventes eram «engordados» no porto de chegada e a sua venda compensava as perdas; só os mais fortes chegavam ao destino e obtinha-se por eles um bom preço. Os negreiros de fardo frouxo carregavam menos escravos em condições um tanto ou quanto mais suportáveis, para não perderem demasiados durante a travessia. - Aquele barco deve ser de fardo preto; é por isso que se lhe sente o cheiro a várias léguas - disse o comandante.

- Temos de ajudar essa pobre gente, comandante! - exclamou Diego, horrorizado.

- Receio bem que neste caso La Justicia não possa fazer nada, meu amigo.

- Estamos armados, temos quarenta tripulantes, podemos atacar aquele navio e libertá-los.

- O tráfico é ilegal, aquele carregamento é contrabando. Se nos aproximarmos, atiram os escravos condenados ao mar, para que se afoguem de imediato. E, mesmo que pudéssemos libertá-los, não teriam para onde ir. Foram apresados no seu próprio país por traficantes africanos. Os negros vendem outros negros, não sabia?

Nessas semanas de navegação Diego recuperou terreno na conquista de Juliana, perdido durante a estada com os ciganos, na qual tiveram de se manter separados, sem nunca gozar de privacidade. Assim era também no navio, mas não faltavam pôres do Sol e outras novidades em que assomavam a ver o mar, como os apaixonados vêm fazendo desde tempos imemoriais. Nessa altura, Diego atrevia-se a pôr um braço nos ombros ou na cintura da bela, com muita delicadeza, para não a afugentar. Costumava ler-lhe em voz alta poesias de amor de outros autores, porque as suas eram tão medíocres que até ele próprio se envergonhava. Tivera a prudência de comprar em La Coruna, antes de embarcar, um par de livros que lhe foram de grande utilidade. As doces metáforas amoleciam Juliana, preparando-a para o instante em que ele lhe tomava a mão e a retinha entre as suas. Nada mais, infelizmente. Beijos, nem pensar, não por falta de iniciativa do nosso herói, mas sim porque Isabel, Nuria, o comandante e quarenta marinheiros não lhes tiravam a vista de cima. Além disso, ela não propiciava encontros atrás de alguma porta entreaberta, em parte porque não havia muitas portas a bordo e também porque não estava segura dos seus sentimentos, apesar de ter convivido com Diego durante meses e de não haver outros pretendentes no horizonte. Tinha-o explicado à irmã nas conversas confidenciais que costumavam ter à noite. Isabel guardava a sua opinião para si, visto que qualquer coisa que pudesse dizer podia inclinar a balança do amor em favor de Diego. Isso não lhe convinha. À sua maneira, Isabel amava o jovem desde os onze anos, mas isso não vem ao caso, visto que ele nunca o suspeitou. Diego continuava a considerar Isabel uma fedelha com quatro cotovelos e cabelo para duas cabeças, apesar de o aspecto dela ter melhorado alguma coisa com os anos; tinha quinze e não era tão feia como aos onze.

Em várias ocasiões viram à distância outros navios, que o comandante teve a prudência de evitar, porque havia muitos inimigos no mar alto, desde corsários até velozes bergantins americanos dispostos a apoderar-se do carregamento de armas. Os Americanos precisavam de cada espingarda a que pudessem deitar a mão para a guerra contra a Inglaterra. Santiago de León não prestava demasiada atenção à bandeira arvorada no mastro, porque costumavam trocá-la para enganar os incautos, mas averiguava a procedência por outros indícios; gabava-se de conhecer todos os navios que usavam aquela rota.

Várias borrascas invernais sacudiram o Madre de Dios durante essas semanas, mas nunca chegaram de surpresa, porque o comandante era capaz de as captar no ar antes de serem anunciadas pelo barómetro. Dava ordem de colher as velas, pear o necessário e fechar os animais. Em poucos minutos, a tripulação estava preparada e, quando o vento começava a soprar e o mar a encrespar-se, estava tudo bem seguro a bordo. As mulheres tinham instruções para se fecharem nos seus camarotes, a fim de não se molharem e para evitar acidentes. As ondas passavam por cima dos conveses, arrastando tudo quanto se encontrava no seu caminho; era fácil perder o pé e acabar no fundo do Atlântico. Depois do temporal, o navio ficava limpo, fresco, a cheirar a madeira, o céu e o mar limpavam e o horizonte dir-se-ia de prata pura. Subiam à superfície peixes diversos e não era um nem dois que terminavam fritos nas frigideiras de Galileo e Nuria. O comandante tomava as suas medidas para corrigir o rumo, enquanto a tripulação reparava os escassos estragos e se reintegrava nas suas rotinas quotidianas. A chuva, recolhida em lonas estendidas e despejada em barris, permitia-lhes o luxo de tomarem banho com sabão, o que era impossível com água salgada.

Chegaram, por fim, às águas das Caraíbas. Viram grandes tartarugas, peixes-espada, medusas translúcidas de longos tentáculos e polvos gigantes. O clima parecia benigno, mas o comandante estava nervoso. Sentia a mudança da pressão na perna. As breves borrascas anteriores não prepararam Diego e as suas amigas para uma verdadeira tempestade. Aprontavam-se para aproar a Porto Rico e dali à Jamaica, quando o comandante lhes comunicou que se ia abater sobre eles um desafio maior. O céu estava claro e o mar calmo, mas em menos de meia hora isso mudou; densas nuvens negras escureceram a luz do Sol, o ar tornou-se pegajoso e começou a chover a cântaros. Não tardou que os primeiros relâmpagos cruzassem o firmamento e se levantassem ondas enormes, coroadas de espuma. As madeiras rangiam e os mastros pareciam prestes a ser arrancados pela raiz. Os homens mal tiveram tempo de colher as velas. O comandante e os homens do leme tentavam controlar o navio com várias mãos. Entre eles havia um robusto negro de Santo Domingo, curtido por vinte anos de navegação, que lutava com o leme sem deixar de mastigar o seu tabaco, indiferente aos baldes de água que o cegavam. O navio baloiçava na crista de ondas descomunais e minutos depois precipitava-se no fundo de um abismo líquido. Com um balanço, abriu-se um curral e uma das cabras saiu voando pelos ares como um papagaio de papel, perdendo-se no céu. Os marinheiros seguravam-se como podiam para manobrar o barco; uma escorregadela significava morte certa. As três mulheres tremiam nos seus camarotes, doentes de medo e enjoo. Até o próprio Diego, que se prezava de ter um estômago de ferro, vomitou, mas não era o único: vários membros da tripulação acabaram na mesma. Pensou que só a arrogância humana se atreve a desafiar os elementos; o Madre de Dios era uma casca de noz, podendo partir-se a qualquer momento.

O comandante deu ordens para se pear a carga, porque a sua perda significaria a ruína económica. Aguentaram a tempestade durante dois dias completos, e quando finalmente parecia que começava a amainar, um relâmpago atingiu o mastro grande. O impacte sentiu-se como uma chicotada no navio. O comprido e pesado mastro, ferido ao meio, oscilou durante uns minutos, eternos para a atemorizada tripulação, até que, por fim, se quebrou, caindo com o seu velame e o seu emaranhado de cabos ao mar, arrastando consigo dois marinheiros, que não conseguiram pôr-se a salvo. O navio inclinou-se com o puxão e ficou de lado, prestes a soçobrar. O comandante correu gritando ordens. De imediato, vários homens se precipitaram com machados para cortar os cabos que prendiam o mastro quebrado ao navio, tarefa muito difícil, porque o pavimento estava inclinado e escorregadio, o vento açoitava-os, a chuva cegava-os e as ondas varriam o convés. Ao cabo de um bom pedaço conseguiram soltar o mastro, que se afastou flutuando, enquanto o navio se endireitava, cambaleando. Não havia esperança alguma de socorrer os homens caídos ao mar, que desapareceram engolidos pelo negro oceano.

Por fim, o vento e as ondas acalmaram um pouco, mas a chuva e os relâmpagos continuaram durante o resto dessa noite. Ao amanhecer, quando a luz voltou, puderam fazer um inventário dos estragos.

À parte os marinheiros afogados, havia outros com contusões e cortes. Galileo Tempesta partira um braço ao escorregar, mas, como o osso não aparecia por baixo da pele, o comandante não achou necessário amputá-lo. Deu-lhe uma ração dupla de rum e, com a ajuda de Nuria, colocou os ossos no lugar e pôs-lhe talas no braço. A tripulação dedicou-se a bombear a água acumulada no porão e a redistribuir a carga, enquanto o comandante percorria a embarcação de ponta a ponta para avaliar a situação. O navio estava tão avariado que se tornava impossível repará-lo no mar alto. Como a tempestade os desviara da rota, afastando-os de Porto Rico para norte, o comandante decidiu que, com os dois mastros e as velas que restavam, podiam chegar a Cuba.

Os dias seguintes passaram-se a navegar lentamente sem o mastro grande e fazendo água por vários rombos. Aqueles bravos marinheiros haviam passado por situações semelhantes sem perderem o ânimo, mas quando correu a voz de que as mulheres tinham atraído a desgraça, começaram a murmurar. O comandante fez-lhes uma prelecção e conseguiu impedir um motim, apesar de o descontentamento não diminuir. Nenhum deles voltou a pensar em concertos de harpa; recusavam-se a provar a comida de Nuria e desviavam a vista quando as passageiras apareciam no convés para se refrescarem. De noite, o navio quase não avançava em direcção a Cuba por águas perigosas. Não tardou que vissem tubarões, golfinhos azuis e grandes tartarugas, e também gaivotas, pelicanos e peixes-voadores no ar, que caíam como pedregulhos no convés, prontos para serem cozinhados por Tempesta. A brisa morna e um aroma remoto de fruta madura anunciaram-lhes a proximidade de terra.

Ao amanhecer, Diego saiu do seu camarote para tomar ar. O céu começava a clarear em tons alaranjados e uma bruma ténue como um véu matizava o contorno das coisas.

As luzes dos faróis acesos apareciam esfumadas na neblina. Navegavam entre dois ilhéus cobertos de mangais. O barco baloiçava com suavidade na ondulação e, à parte os eternos rangidos das madeiras, reinava o silêncio. Diego estendeu os braços, respirou fundo para espertar e endereçou um cumprimento com a mão ao homem do leme, que se dirigia ao seu posto, após o que desatou a correr, como fazia todas as manhãs para soltar os músculos entorpecidos. A cama ficava-lhe curta e dormia encolhido; várias voltas a trote no convés serviam-lhe para desanuviar a mente e pôr o corpo em acção. Ao chegar à proa assomou para dar uma palmada na cabeça da figura de proa, breve rito diário que observava com supersticiosa pontualidade. E nessa altura viu um vulto na bruma. Pareceu-lhe que podia ser um veleiro, embora não tivesse a certeza. Em qualquer caso, como se encontrava perto, preferiu avisar o comandante. Momentos mais tarde, Santiago de León saía do seu camarote a abotoar as calças, de óculo na mão. Bastou-lhe uma olhadela para dar o alarme e tocar o sino para chamar a tripulação, mas já era tarde: os piratas estavam a trepar pelos costados do Madre de Dios.

Diego viu os arpéus de ferro que usavam para o assalto, mas não havia tempo para tentar soltar os cabos. Precipitou-se para os camarotes da popa, advertindo aos gritos Juliana, Isabel e Nuria de que não saíssem por nenhum motivo, pegou na espada que Pelayo tinha feito e dispôs-se a defendê-las. Os primeiros assaltantes, com punhais entre os dentes, alcançaram o convés. Os tripulantes do Madre de Dios saíram como ratos de todo o lado, armados com o que encontraram, enquanto o comandante ladrava ordens inúteis, porque num instante se armou uma barulheira infernal e ninguém o ouvia. Diego e o comandante batiam-se lado a lado contra meia dúzia de atacantes, seres patibulares, marcados por horrendas cicatrizes, peludos, com adagas até nas botas, duas ou três pistolas à cinta e sabres curtos. Rugiam como tigres, mas lutavam com mais barulho e coragem do que técnica. Nenhum deles podia fazer frente a Diego sozinho, mas entre vários encurralaram-no. O jovem conseguiu romper o cerco e ferir um par deles, após o que deu um salto e se agarrou à vela da mezena, trepou pelos enfrechates e agarrou num cabo, que lhe permitiu baloiçar-se e atravessar o convés, tudo isto sem perder de vista os camarotes das mulheres. Só restava esperar que não ocorresse a nenhuma deitar o nariz de fora. Balançando-se no cabo, deu um impulso e caiu com um salto formidável mesmo em frente de um homem, que o esperava tranquilo, de sabre na mão. Contrariamente aos restantes, que eram um bando de andrajosos desalmados, este vestia como um príncipe, todo de preto, com uma faixa de seda amarela à cintura, colarinho e punhos de renda, finas botas altas com fivelas de ouro, fio do mesmo metal ao pescoço e anéis nos dedos. Tinha bom porte, cabelo comprido e lustroso, o rosto barbeado, expressivos olhos negros e um sorriso zombeteiro que lhe bailava nos lábios finos, de dentes alvos. Diego conseguiu apreciá-lo num rápido olhar e não se deteve a averiguar a sua identidade; supôs que deveria ser o chefe dos piratas, pela sua indumentária e atitude. O esmerado sujeito cumprimentou em francês e lançou a sua primeira estocada, que Diego conseguiu evitar por uma unha negra. Os aços cruzaram-se e daí a três ou quatro minutos ambos compreenderam que eram talhados no mesmo molde, feitos um para o outro. Ambos eram excelentes esgrimistas. Apesar das circunstâncias, sentiram o secreto prazer de se baterem com um rival à altura e, sem o combinarem, decidiram que o opositor merecia um combate limpo, ainda que de morte. O duelo parecia quase uma exibição artística; teria enchido de orgulho o mestre Manuel Escalante.

A bordo do Madre de Dios cada um lutava por si mesmo. Santiago de León lançou um olhar em redor e avaliou a situação num instante.

Os piratas eram duas ou três vezes mais numerosos, estavam bem armados, sabiam lutar e tinham-nos apanhado de surpresa. Os seus homens eram pacíficos marinheiros mercantes, vários deles já tinham cabelos brancos e sonhavam retirar-se do mar e constituir família; não era justo que perdessem a vida defendendo uma carga alheia. Com um esforço brutal conseguiu libertar-se dos seus atacantes e em dois saltos alcançou o sino para tocar à rendição. A tripulação obedeceu e depôs as armas, no meio da gritaria de triunfo dos assaltantes. Só Diego e o seu elegante adversário ignoraram o sino e continuaram a bater-se durante uns minutos, até que o primeiro conseguiu desarmar o segundo com um revés. A vitória de Diego foi de muito curta duração, porque logo se encontrou num círculo de sabres que lhe arranhavam a pele.

- Deixai-o, mas não mo percais de vista! Quero-o com vida - ordenou o seu rival, após o que cumprimentou Santiago de León em perfeito castelhano. - Jean Laffite, às suas ordens, comandante.

- Já o temia, senhor. Não podia ser outro senão o pirata Laffite - retorquiu De León, enxugando o suor da fronte.

- Pirata não, comandante. Disponho de patente de corsário de Cartagena da Colômbia.

- Para o caso é a mesma coisa. Que podemos esperar de si?

- Podeis esperar um tratamento justo. Não matamos, a menos que seja inevitável, porque nos convém a todos um arranjo comercial. Proponho que nos entendamos como cavalheiros. O seu nome, por favor.

- Santiago de León, marinheiro mercante.

- Só me interessa a sua carga, comandante De León, que, se estou bem informado, são armas e munições.

- Que acontecerá à minha tripulação?

- Poderão dispor dos seus botes. Com bom vento chegareis às Baamas ou a Cuba num par de dias, é tudo uma questão de sorte. Há alguma coisa a bordo que me possa interessar, à parte as armas?

- Livros e mapas... - respondeu Santiago de León.

Foi esse o momento que Isabel escolheu para sair do seu camarote em camisa de dormir, descalça e com a pistola do pai na mão. Mantivera-se encerrada, obedecendo à ordem de Diego, até que cessara o alvoroço da luta e o barulho dos tiros; nessa altura não aguentara mais a ansiedade e saíra para averiguar como terminara a batalha.

- Par dieu! Uma formosa dama... - exclamou Laffíte ao vê-la.

Isabel teve um sobressalto de surpresa e baixou a arma; era a primeira vez que alguém usava aquele adjectivo para a descrever. Laffíte aproximou-se a um passo de distância, cumprimentou-a com uma reverência, estendeu a mão e ela entregou-lhe a pistola sem protestar.

- Isto complica um pouco as coisas... Quantos passageiros há a bordo? - perguntou Laffíte ao comandante.

- Duas meninas e a sua ama, que viajam com Dom Diego de La Vega.

- Muito interessante.

Os dois comandantes fecharam-se a discutir a rendição, enquanto no convés um par de piratas mantinha Diego em respeito, assestando as pistolas sobre ele, e os restantes tomavam posse do navio. Ordenaram aos vencidos que se deitassem de barriga para baixo com as mãos na nuca, percorreram o barco à procura do saque, confortaram os feridos com rum, em seguida lançaram os mortos ao mar. Não faziam prisioneiros; era muito incómodo. Os seus próprios feridos foram transportados com grande cuidado para as suas chalupas de abordagem e dali para o navio corsário. Entretanto, Diego planeava a forma de se libertar e salvar as meninas De Romeu. No caso de poder chegar a elas, não imaginava como poderiam escapar. Os seus inimigos eram uma matilha brutal; a ideia de qualquer daqueles homens pôr as garras sobre as raparigas enlouquecia-o. Tinha de pensar com frieza, porque para sair daquela situação eram precisas astúcia e sorte; de pouco lhe serviriam os conhecimentos de esgrima. Santiago de León, os seus dois oficiais e os sobreviventes da tripulação compraram a liberdade com um quarto do seu salário anual, o habitual nestes casos. Foi oferecida aos marinheiros a opção de juntarem-se ao bando de Laffíte, e alguns aceitaram. O corsário sabia que a dívida do comandante e dos seus homens seria paga, como ditava a honra; quem não o fazia era desprezado até pelos seus melhores amigos. Tratava-se de uma transacção limpa e simples. Santiago de León teve de entregar os seus quatro passageiros a Jean Laffíte, que pensava cobrar resgate por eles. Explicou-lhe que as duas raparigas eram órfãs e sem fortuna, mas o corsário decidiu levá-las de qualquer maneira, porque havia uma grande procura de mulheres brancas nas casas alegres de Nova Orleães. De León suplicou-lhe que respeitasse aquele par de meninas virtuosas, que tanto tinham sofrido e não mereciam aquele terrível destino, mas esse tipo de consideração interferia com os negócios, coisa que Laffíte não se podia permitir, e, além disso, tal como explicou, ser cortesã era um trabalho muito agradável para a maioria das mulheres. O comandante saiu da reunião descontrolado. Não lhe importava perder as armas, pelo contrário, uma das razões pelas quais se rendera com tanta prontidão fora o desejo de se livrar daquela carga, mas horrorizava-o a ideia de que as meninas De Romeu, às quais tomara verdadeiro afecto, acabassem num bordel. Teve de informar os seus passageiros da sorte que os esperava, esclarecendo que o único com esperança de sair ileso era Diego de La Vega, porque, certamente, o pai faria o necessário para o salvar.

- O meu pai também pagará o resgate por Juliana, Isabel e Nuria, contanto que ninguém lhes ponha um dedo em cima. Mandar-lhe-emos imediatamente uma carta para a Califórnia - assegurou Diego a Laffite, mas mal o disse sentiu uma estranha opressão no peito, como um mau pressentimento.

- O correio costuma demorar, de maneira que sereis meus hóspedes por algumas semanas, talvez meses, até recebermos o resgate. Entretanto, as raparigas serão respeitadas. Para bem de todos, espero que o seu pai não se faça rogado com a resposta - retorquiu o corsário, sem despregar os olhos de Juliana.

As mulheres, que mal tiveram tempo de se vestir, desfaleceram ao ver na ponte aquele bando de temíveis desalmados, o sangue e os feridos. Juliana, porém, não estremecia só de terror, como se podia supor, mas também pelo impacte do olhar de Jean Laffite.

Os piratas atracaram o seu bergantim, colocaram pranchas entre ambas as pontes e formaram uma corrente humana para transportar de um barco para o outro o leve carregamento, incluindo animais, barris de cerveja e presuntos. Não tinham pressa, porque o Madre de Dios agora pertencia a Laffite. Trabalhavam com rapidez, já que o Madre de Dios se afundava a olhos vistos. O comandante De León presenciou, impassível, a manobra, mas tinha o coração aos saltos, porque amava o seu barco como uma noiva. No mastro inimigo drapejava, junto a uma bandeira colombiana, outra vermelha, chamada jolie rouge, que indicava o propósito de deixar os vencidos em liberdade a troco de um preço. Isso tranquilizou-o um pouco; sabia que o corsário, afinal de contas, lhe permitiria salvar a tripulação. Um pendão negro, que às vezes tinha uma caveira e duas tíbias cruzadas, teria indicado a decisão de lutar até ao último homem e massacrar os adversários. Quando terminaram o carregamento, Laffite cumpriu a sua palavra e autorizou Santiago de León a meter água doce e mantimentos nos botes, levar os seus instrumentos de navegação, sem os quais não se podia orientar, e embarcar com a sua gente.

Nesse momento apareceu Galileo Tempesta, que arranjara maneira de permanecer oculto durante a batalha, com o pretexto do braço partido, e instalou-se entre os primeiros num dos botes. O comandante despediu-se de Diego e das mulheres com um firme aperto de mão e a promessa de que voltariam a ver-se. Desejou-lhes boa sorte e embarcou num dos botes sem olhar para trás. Não queria presenciar o espectáculo do Madre de Dios, que tinha sido a sua única residência durante três décadas, em poder dos piratas.

No navio pirata, carregado até acima, era difícil mexerem-se. Laffite nunca estava mais de um par de dias no mar alto; por isso, podia amontoar cento e cinquenta tripulantes num espaço onde, normalmente, não caberiam mais de trinta. Tinha o seu quartel-general em Grande Isle, perto de Nova Orleães, um ilhéu na região pantanosa de Barataria. Era ali que esperava que os seus espiões lhe anunciassem a proximidade de uma possível presa para se lançar ao ataque. Aproveitava a bruma ou as sombras da noite, quando os barcos diminuíam a velocidade ou paravam, para os assaltar com sigilo e velocidade. A surpresa era sempre a sua maior vantagem. Utilizava os seus canhões para intimidar, mais que para afundar o navio inimigo; assim podia apoderar-se dele e integrá-lo na sua frota, composta por treze bergantins, goletas, polacas e faluchos.

Jean e o seu irmão Pierre eram os corsários mais temidos daqueles anos no mar, mas em terra firme podiam fazer-se passar por homens de negócios. O governador de Nova Orleães, farto do contrabando, do tráfico de escravos e de outras actividades ilegais dos Laffite, estabeleceu uma recompensa de quinhentos dólares pelas suas cabeças. Jean respondeu oferecendo mil e quinhentos pela do governador. Foi o culminar de muitas hostilidades.

Jean conseguiu fugir, mas Pierre esteve vários meses preso, a Grande Isle foi atacada e confiscaram toda a mercadoria. Não obstante, a situação alterou-se quando os Laffite se converteram em aliados das tropas americanas. O general Jackson chegou a Nova Orleães à frente de um contingente de homens paupérrimos e doentes de malária, com a missão de defender o enorme território da Luisiana contra os Ingleses. Não podia dar-se ao luxo de rejeitar a ajuda oferecida pelos piratas. Aqueles bandidos, uma mistura de negros, mulatos e brancos, revelaram-se essenciais na batalha. Jackson confrontou-se com o inimigo a 8 de Janeiro de 1815, quer dizer, três meses antes de os nossos amigos chegarem contra a sua vontade àquela região. A guerra entre a Inglaterra e a sua antiga colónia terminara duas semanas antes, mas nenhum dos lados o sabia. Com um punhado de homens de diversas procedências, que nem sequer compartilhavam uma língua comum, Jackson derrotou um exército organizado e bem armado de vinte mil ingleses. Enquanto os homens se assassinavam uns aos outros em Chalmette, a poucas léguas de Nova Orleães, mulheres e crianças rezavam no Convento das Ursulinas. No final da batalha, quando se puseram a contar os cadáveres, viram que a Inglaterra tinha perdido dois mil homens, ao passo que Jackson só deixara treze soldados no campo. Os mais valentes e ferozes foram os crioulos - gente de cor, mas livre - e os piratas. Uns dias mais tarde, comemorou-se o triunfo com arcos de flores e donzelas vestidas de branco, representando cada um dos estados da União, que coroaram o general Jackson de louros. Na assistência estavam os irmãos Laffite com os seus piratas, que, de proscritos, passaram a heróis.

Durante as quarenta horas que o barco de Laffite demorou a chegar a Grande Isle, mantiveram Diego de La Vega amarrado no convés e as três mulheres encerradas num pequeno camarote junto ao do comandante. Pierre Laffite, que não tinha participado no assalto ao Madre de Dios, porque ficara a tomar conta do navio pirata, revelou-se um homem muito diferente do irmão, mais tosco, robusto e brutal, com cabelo claro e metade da cara paralisada por uma apoplexia. Gostava de comer e beber em excesso e não podia resistir a uma mulher jovem, mas absteve-se de incomodar Juliana e Isabel, porque o irmão lhe lembrou que os negócios eram mais importantes que o prazer. Aquelas raparigas podiam trazer-lhes uma boa soma de dinheiro.

Jean mantinha as suas origens no mistério; ninguém sabia de onde era oriundo, mas confessava os seus trinta e cinco anos. Tinha um trato suave e modos requintados, falava várias línguas, entre elas o francês, o espanhol e o inglês, gostava imenso de música e dava grandes somas de dinheiro à ópera de Nova Orleães. Apesar do seu sucesso entre as mulheres, não as cobiçava como o irmão, preferindo cortejá-las com paciência; era galante, jovial, grande dançarino e contador de anedotas, a maioria inventada na altura. A sua simpatia pela causa americana era lendária; os seus comandantes sabiam que «quem ataca um navio americano, morre». Os três mil homens sob o seu comando chamavam-lhe boss, o chefe. Movimentava milhões em mercadoria, utilizando barcaças e pirogas pelos intrincados canais do delta do Mississipi. Ninguém conhecia aquela região como ele e os seus homens; as autoridades não conseguiam controlá-los nem dar-lhes caça. Vendia o produto da sua pirataria a escassas léguas de Nova Orleães, num antigo lugar sagrado dos índios, chamado El Templo. Donos de plantações, crioulos ricos, ou não tão ricos, e até os familiares do governador compravam a seu bel-prazer sem pagar impostos, a um preço razoável e num alegre ambiente de feira. Era também ali que se levavam a cabo os leilões de escravos, que ele adquiria baratos em Cuba e vendia caros nos estados americanos, onde o tráfico de negros era proibido, embora a escravatura não. Laffite anunciava as suas vendas em cartazes a cada esquina da cidade:

«Venham todos ao bazar e leilão de escravos de Jean Laffite em El Templo. Roupas, jóias, móveis e outros artigos dos sete mares!»

Jean convidou as suas três reféns femininas a compartilharem um refrigério a bordo, mas elas negaram-se a sair do seu camarote. Mandou-lhes uma bandeja com queijos, fiambres e uma boa garrafa de vinho espanhol, obtida no Madre de Dios, com os seus respeitosos cumprimentos. Juliana não conseguia tirá-lo da cabeça e morria de curiosidade por o conhecer, mas considerou mais prudente manter-se encerrada.

Diego passou aquelas quarenta horas ao relento, amarrado como um salpicão, sem alimento. Tiraram-lhe o medalhão de La Justicia e as poucas moedas que trazia no bolso, deram-lhe um pouco de água de vez em quando e pontapés, se se mexia demasiado. Jean Laffite aproximou-se dele num par de ocasiões para lhe assegurar que, ao chegar à ilha, estaria mais cómodo e pedia-lhe que perdoasse a pouca educação dos seus homens. Não estavam acostumados a lidar com gente fina, disse. Diego teve de engolir a ironia, murmurando de si para si que, mais tarde ou mais cedo, abaixaria a grimpa àquele desalmado. O importante era manter-se vivo. Sem ele, as duas meninas De Romeu estariam perdidas. Tinha ouvido falar das orgias de álcool, sexo e sangue que os piratas praticavam nas suas guaridas, quando regressavam triunfantes das suas malfeitorias, de como as infelizes mulheres prisioneiras sofriam os piores atropelos, dos corpos violados e mutilados que enterravam na areia durante essas bacanais. Tentava não pensar nisso, e sim na forma de escapar, mas aquelas imagens torturavam-no. Além disso, não o abandonava o desagradável pressentimento que o havia assaltado antes. Tinha que ver com o seu pai, disso estava certo. Havia semanas que não conseguia comunicar com Bernardo e decidiu aproveitar aquelas horas enfadonhas para o tentar. Concentrou-se em chamar o irmão, mas a telepatia não lhes funcionava por exercício da vontade: as mensagens iam e vinham sem padrão fixo e sem controlo por parte deles. Aquele longo silêncio, tão raro entre Bernardo e ele, parecia-lhe de muito mau agoiro. Perguntou a si mesmo o que se passaria na Alta Califórnia, o que seria de Bernardo e dos seus pais.

Grande Isle, na Barataria, onde os Laffite tinham o seu império, era vasta, húmida, plana e, como o resto da paisagem da região, tinha uma aura de mistério e decadência. Aquela natureza caprichosa e quente, que passava da calma bucólica a devastadores furacões, convidava a grandes paixões. Tudo se corrompia com rapidez, desde a vegetação até à alma humana. Nos momentos de bom tempo, como o que calhou a Diego e às amigas ao chegarem, uma cálida brisa arrastava um cheiro adocicado a flores de laranjeira, mas, mal a brisa cessava, abatia-se um calor de chumbo. Os piratas desembarcaram os prisioneiros e escoltaram-nos até à residência de Jean Laffite, instalada num promontório e rodeada por um bosque de palmeiras e carvalhos retorcidos, com as folhas queimadas pelo orvalho marinho. A povoação dos piratas, protegida do vento por um emaranhado de arbustos, mal se via entre as folhas. As flores de loendro davam uma nota de cor. A casa de Laffite era de dois andares, em estilo espanhol, com gelosias nas janelas e um amplo terraço virado para o mar, feita de tijolos cobertos com uma mistura de gesso e conchas de ostras moídas. Longe de ser uma caverna como a que os prisioneiros tinham imaginado, revelou-se limpa, organizada e até luxuosa. As divisões eram amplas e frescas, a vista das varandas espectacular, os soalhos de madeira clara reluziam, as paredes estavam pintadas de fresco e sobre cada mesa havia jarrões com flores, tabuleiros de fruta e jarros de vinho. Um par de escravas negras conduziu as mulheres aos compartimentos que lhes tinham atribuído. Proporcionaram a Diego uma bacia de água para se lavar, deram-lhe café e conduziram-no a um terraço, onde Jean Laffite descansava numa rede vermelha, tangendo um instrumento de cordas, com o olhar perdido no horizonte, acompanhado por dois papagaios de cores brilhantes. Diego pensou que o contraste entre a má reputação daquele homem e o seu refinado aspecto não podia ser mais surpreendente.

- Pode escolher entre ser meu prisioneiro ou meu hóspede, senhor De La Vega. Como prisioneiro tem o direito de tentar fugir e eu tenho o direito de o impedir como quer que seja. Como meu hóspede será bem tratado até recebermos o resgate do seu pai, mas ficará obrigado pelas leis da hospitalidade a respeitar a minha casa e as minhas instruções. Estamos entendidos?

- Antes de responder, senhor, tenho de conhecer os seus planos relativamente às irmãs De Romeu, que estão a meu cargo - retorquiu Diego.

- Estavam, senhor, já não o estão. Agora estão a meu cargo. A sorte delas depende da resposta do seu pai.

- Se aceitar ser seu hóspede, como saberá que não tentarei fugir de qualquer maneira?

- Porque não o faria sem as meninas De Romeu e porque me dará a sua palavra de honra - redarguiu o corsário.

- Tem-na, comandante Laffite - disse Diego, resignado.

- Muito bem. Por favor, faça-me companhia ao jantar com as suas amigas dentro de uma hora. Creio que o meu cozinheiro não o defraudará.

Entretanto, Juliana, Isabel e Nuria passavam por momentos desconcertantes. Vários homens colocaram umas selhas no seu quarto e encheram-nas de água; depois apareceram três jovens escravas munidas de sabão e escovas, sob as ordens de uma mulher alta e formosa, de feições cinzeladas e pescoço comprido, ataviada com um grande turbante na cabeça, que lhe dava mais um palmo de altura. Apresentou-se em francês como Madame Odília e esclareceu que era ela que mandava na casa de Laffite. Indicou às prisioneiras que se despojassem da roupa, porque iam receber um banho. Nenhuma das três se tinha despido na vida: lavavam-se com grande pudor por baixo de uma ligeira túnica de algodão. O espalhafato de Nuria provocou um ataque de riso nas escravas e a dama do turbante explicou que ninguém morre por tomar um banho. Isabel achou aquilo razoável e despiu o que trazia vestido. Juliana imitou-a, tapando as partes íntimas com as duas mãos. Isto provocou novas gargalhadas nas africanas, que comparavam a sua própria pele cor de madeira com a daquela rapariga, branca como a loiça da casa de jantar. Quanto a Nuria, tiveram de ser várias a agarrá-la para a despir, enquanto os seus gritos faziam estremecer as paredes. Introduziram-nas nas selhas e ensaboaram-nas dos pés à cabeça. Passado o primeiro susto, a experiência não se revelou tão terrível como parecia ao princípio e não tardou que Juliana e Isabel começassem a desfrutá-la. As escravas levaram a roupa delas sem oferecer explicações e em troca trouxeram-lhes ricos vestidos de brocado, pouco adequados para o clima quente. Estavam em bom estado, embora fosse evidente que haviam sido usados: um tinha nódoas de sangue na bainha. Que destino teria padecido a sua anterior dona? Seria também uma prisioneira? O melhor era não imaginar a sua sorte ou a que as esperava, a elas. Isabel deduziu que a pressa em despi-las obedecia a instruções precisas de Laffite, que desejava assegurar-se de que não escondiam nada debaixo das saias. Tinham-se preparado para essa eventualidade.

Diego decidiu aproveitar a liberdade condicional que o corsário lhe dava e foi percorrer os arredores, enquanto fazia tempo para o jantar. A povoação-pirata era formada por almas vagabundas de cada recanto do planeta. Alguns estavam instalados com as suas mulheres e garotos em casotas de palha; os solteiros deambulavam sem tecto fixo. Havia lugares onde comer bons pratos franceses e crioulos, bares e bordéis, além de oficinas e lojas de artesãos. Aqueles homens de diversas raças, línguas, crenças e costumes tinham em comum um feroz sentido de liberdade, mas aceitavam as leis de Barataria, porque lhes pareciam adequadas e o sistema era democrático. Tudo era decidido por votação; tinham inclusivamente direito a escolher e destituir os seus comandantes. As regras eram claras: quem incomodava uma mulher alheia acabava abandonado num ilhéu desértico com uma garrafa de água e uma pistola carregada; o roubo pagava-se com chicotadas, o assassínio com a forca. Não existia a submissão cega a um chefe, a não ser no mar alto durante uma acção bélica, mas era preciso obedecer às regras ou pagar as consequências. Noutros tempos tinham sido criminosos, aventureiros ou desertores de navios de guerra, sempre marginais, e agora estavam orgulhosos de pertencer a uma comunidade. Só os mais aptos embarcavam; os restantes trabalhavam em forjas, cozinhavam, criavam animais, reparavam navios e botes, construíam casas, pescavam. Diego viu mulheres, crianças e também homens doentes ou amputados e soube que os veteranos de batalhas, órfãos e viúvas recebiam protecção. Se um marinheiro perdia uma perna ou um braço no mar alto, era recompensado em ouro. O saque era repartido com equidade entre os homens e dava-se alguma coisa às viúvas; o resto das mulheres contava pouco. Eram prostitutas, escravas, cativas de assaltos e algumas corajosas mulheres livres, não muitas, que ali tinham chegado por sua própria decisão.

Na praia, Diego tropeçou com uma vintena de bêbedos entregues a lutar por gosto e a correr atrás das mulheres. À luz das fogueiras, reconheceu vários tripulantes do navio que destruíra o Madre de Dios; decidiu então que era a sua oportunidade de recuperar o medalhão de La Justicia, que um deles lhe havia arrancado.

- Senhores! Ouvi-me! - gritou.

Conseguiu captar a atenção dos menos embriagados e formou-se um círculo à sua volta, enquanto as mulheres aproveitavam a distracção para recolherem as suas roupas e afastarem-se rapidamente. Diego viu-se rodeado de rostos entumecidos pelo álcool, olhos injectados de sangue, bocas desdentadas que o insultavam, manápulas que já puxavam das facas. Não lhes deu tempo de se organizarem.

- Quero divertir-me um pouco. Algum de vós se atreve a bater-se comigo? - perguntou.

Um coro entusiástico respondeu-lhe afirmativamente, e o círculo fechou-se em torno de Diego, que sentia o cheiro do suor, o hálito a álcool, tabaco e alho dos homens.

- Um de cada vez, por favor. Começarei pelo valente que tem o meu medalhão e a seguir pregarei uma tareia por turnos a cada um de vós. Que acham?

Diversos corsários deitaram-se de costas na praia, esperneando de riso. Os restantes consultaram-se entre si e, no fim, um abriu a imunda camisa e mostrou o medalhão, disposto de bom grado a bater-se com aquele alfenim com mãos de mulher, que ainda cheirava a leite materno, como disse. Diego quis certificar-se de que era com efeito a sua jóia. O homem tirou-a do pescoço e agitou-a diante do seu nariz.

- Não percas de vista o meu medalhão, meu amigo, porque to tirarei ao primeiro descuido - desafiou-o.

O pirata sacou de imediato uma adaga curva do cinto e sacudiu o entorpecimento do álcool, enquanto os restantes se afastavam para lhes abrir espaço. Precipitou-se sobre Diego, que o esperava com os pés bem fincados na areia. Não tinha aprendido em vão o método secreto de luta de La Justicia. Recebeu o seu adversário com três movimentos simultâneos: desviou-lhe a mão armada, atirou-se para o lado e agachou-se, utilizando a seu favor o impulso do outro.

O pirata perdeu o equilíbrio e Diego levantou-o com o ombro, lançando-o ao ar com uma pirueta completa. Mal ele aterrou de costas, pôs-lhe o pé sobre o pulso e arrebatou-lhe a adaga. Depois, voltou-se para os espectadores com uma breve reverência.

- Onde está o meu medalhão? - perguntou, olhando os piratas um a um.

Aproximou-se do de maior tamanho, que se encontrava a vários passos de distância, e acusou-o de o ter escondido. O homem desembainhou o seu punhal, mas ele deteve-o com um gesto e indicou-lhe que tirasse o gorro, porque estava ali. Desorientado, o fulano obedeceu; nessa altura, Diego meteu a mão no gorro e extraiu a jóia com toda a limpeza. A surpresa paralisou os demais, que não sabiam se haviam de rir ou de o atacar, até que optaram pela ideia mais condizente com os seus temperamentos: dar uma boa lição àquele insolente zé-ninguém.

- Todos contra um? Não vos parece uma cobardia? - desafiou-os Diego, girando com o punhal na mão, pronto para saltar.

- Este cavalheiro tem razão, seria uma cobardia indigna de vós - disse uma voz.

Era Jean Laffíte, amável e sorridente, com a atitude de quem apanha ar num passeio, mas com a mão na pistola. Agarrou Diego por um braço e levou-o com calma, sem que ninguém tentasse detê-los.

- Esse medalhão deve ser muito valioso, para arriscar a vida por ele - comentou Laffíte.

- Foi a minha avozinha que mo ofereceu no seu leito de morte - gracejou Diego. - Com isto poderei comprar a minha liberdade e a das minhas amigas, comandante.

- Receio bem que não valha tanto.

- Talvez o nosso resgate nunca chegue. A Califórnia fica muito longe, pode suceder alguma desgraça pelo caminho. Se mo permite, irei jogar a Nova Orleães. Apostarei o medalhão e ganharei o suficiente para pagar o nosso resgate.

- E se perder?

- Nesse caso terá de esperar pelo dinheiro do meu pai, mas eu nunca perco às cartas.

- O senhor é um jovem original; creio que temos algumas coisas em comum - riu o pirata.

Nessa noite devolveram a Diego a Justina, a bela espada feita por Pelayo, e o baú com a sua roupa, salvo do naufrágio pela ganância de um pirata, que não o conseguira abrir e o levara, julgando que continha alguma coisa de valor. Os três reféns jantaram na sala de jantar de Laffíte, que estava muito elegante, todo de preto, barbeado e com o cabelo acabado de frisar. Diego pensou que em comparação a sua indumentária de Zorro parecia lamentável; tinha de copiar algumas ideias do corsário, como a faixa na cintura e as mangas largas da camisa. O jantar consistiu num desfile de pratos de influência africana, caribe e cajun, como se chamava aos imigrantes vindos do Canadá: gumbo de caranguejo, feijões vermelhos com arroz, ostras fritas, peru assado com nozes e passas, peixe com especiarias e os melhores vinhos roubados de galeões franceses, que o anfitrião mal provou. Havia um abanador de tecido, para agitar o ar e espantar as moscas, pendurado sobre a mesa, accionado por um rapazinho negro que puxava um cordel, e na varanda três músicos tocavam uma mistura irresistível de ritmo caribe e canções de escravos. Silenciosa como uma sombra, Madame Odilia dirigia com o olhar, da porta, as escravas que faziam parte da criadagem.

Pela primeira vez, Juliana pôde ver Jean Laffíte de perto. Quando o corsário se curvou para lhe beijar a mão, soube que o longo périplo dos últimos meses que a tinha conduzido até ali terminava, por fim. Descobriu por que razão não quisera casar-se com nenhum dos seus pretendentes, rejeitara Rafael Moncada até o enlouquecer e não correspondera aos avanços de Diego durante cinco anos. Tinha-se preparado a vida inteira para aquilo que nas suas novelazinhas românticas se definia como «a frechada de Cupido». De que outra forma se podia descrever aquele amor súbito? Era uma flecha no peito, uma dor aguda, uma ferida. (Perdoai-me, estimados leitores, por este eufemismo ridículo, mas os narizes-de-cera encerram grandes verdades.) O sombrio olhar de Laffite mergulhou na água verde dos seus olhos e a mão de dedos compridos do homem tomou a sua. Juliana cambaleou, como se fosse cair; nada de novo: costumava perder o equilíbrio com as emoções. Isabel e Nuria julgaram que era uma reacção de medo perante o corsário, porque os sintomas eram parecidos, mas Diego compreendeu de imediato que algo de irremediável tinha transtornado o seu destino. Comparado com Laffite, Rafael Moncada e todos os demais apaixonados de Juliana eram insignificantes. Madame Odilia também notou o efeito do corsário na rapariga e, tal como Diego, teve a intuição da gravidade do sucedido.

Laffite conduziu-os à mesa e instalou-se à cabeceira a conversar amavelmente. Juliana olhava-o hipnotizada, mas ele ignorava-a de propósito, tanto que Isabel perguntou a si mesma se porventura faltaria alguma coisa ao corsário. Talvez tivesse perdido a virilidade numa batalha; essas coisas costumavam acontecer, bastava uma bala distraída ou um golpe sem nenhum perigo e a parte mais interessante de um homem ficava reduzida a um figo seco. Não havia outra explicação para tratar a irmã com aquela indiferença.

- Agradecemos a sua hospitalidade, senhor Laffite, embora seja imposta à força; no entanto, não me parece que esta comunidade de piratas seja o lugar apropriado para as meninas De Romeu - disse Diego, calculando que devia tirar Juliana dali a toda a pressa.

- Que outra solução pode oferecer, senhor De La Vega?

- Ouvi falar do Convento das Ursulinas em Nova Orleães. As meninas poderiam esperar lá até chegarem notícias do meu

pai...

- Antes morta do que com aquelas freiras! Daqui ninguém me tira! - interrompeu-o Juliana com uma veemência que nunca lhe tinham visto.

Todos os olhares se voltaram para ela. Estava vermelha, febril, a suar debaixo do vestido de grosso brocado. A expressão do seu rosto não deixava lugar a dúvidas: dispunha-se a assassinar quem tentasse separá-la do seu pirata. Diego abriu a boca, mas não soube o que dizer e calou-se, derrotado. Jean Laffite recebeu a explosão de Juliana como uma mensagem desejada e temida, quase como uma carícia. Tinha tentado evitar a jovem, repetindo de si para si o mesmo que dizia sempre ao seu irmão Pierre, que o negócio está antes do prazer, mas pelos vistos ela estava tão presa como ele. Essa devastadora atracção confundia-o, porque se gabava de ter uma mente fria. Não era homem impulsivo e estava habituado à companhia de mulheres bonitas. Preferia as quarteironas, mulatas famosas pela sua graça e formosura, treinadas para satisfazerem os mais secretos caprichos de um homem. As mulheres brancas pareciam-lhe arrogantes e complicadas, adoeciam com frequência, não sabiam dançar e serviam de pouco na hora de fazer amor, porque não gostavam de se despentear. Não obstante, aquela jovem espanhola com olhos de gato era diferente. Podia competir em beleza com as mais célebres crioulas de Nova Orleães e, pelos vistos, a sua limpa inocência não interferia com o seu coração apaixonado. Dissimulou um suspiro, procurando não se abandonar às ciladas da imaginação.

O resto do serão decorreu como se todos estivessem sentados sobre pregos. A conversa arrastava-se com dificuldade. Diego observava Juliana, ela Laffite, o resto dos comensais olhavam para o prato com grande atenção. O calor era sufocante no interior da casa e no fim do jantar o corsário convidou-os para tomarem um refresco no terraço. Do tecto pendia um abanador de palmas, que um escravo movia com parcimónia. Laffite pegou na guitarra e começou a cantar com voz afinada e agradável, até que Diego anunciou que estavam cansados e preferiam retirar-se. Juliana fulminou-o com um olhar letal, mas não se atreveu a negar-se.

Ninguém dormiu naquela casa. A noite, com o seu concerto de sapos e o ruído distante de tambores, arrastou-se com uma lentidão pavorosa. Sem conseguir aguentar-se mais, Juliana confessou o seu segredo a Nuria e a Isabel em catalão, para que a escrava que as servia não percebesse.

- Agora sei o que é o amor. Quero-me casar com Jean Laffite - disse.

- Santa Maria, livra-nos desta desgraça - murmurou Nuria, persignando-se.

- És prisioneira dele, não sua noiva. Como pensas resolver esse pequeno dilema? - quis saber Isabel, bastante ciumenta, porque também estava muito impressionada com o corsário.

- Estou disposta a tudo, não posso viver sem ele - retorquiu a irmã com olhos de louca.

- Diego não vai gostar disso.

- Diego é o menos. O meu pai deve estar a revolver-se na tumba, mas não me importa! - exclamou Juliana.

Impotente, Diego presenciou a transformação da sua amada. Juliana apareceu no segundo dia de cativeiro em Barataria a cheirar a sabão, com o cabelo solto pelas costas e um vestido leve, obtido das escravas, que revelava os seus encantos. Foi assim que se apresentou ao meio-dia seguinte à mesa, onde Madame Odilia tinha posto uma abundante merenda. Jean Laffite estava à espera dela e, pelo brilho dos seus olhos, não restaram dúvidas de que preferia aquele estilo informal à moda europeia, insuportável naquele clima. Cumprimentou-a de novo com um beijo na mão, mas bastante mais intenso que o do dia anterior. As criadas trouxeram sumos de fruta com gelo, transportado pelo rio em caixas com serradura, desde montanhas distantes, luxo a que só os ricos se podiam dar. Juliana, habitualmente inapetente, bebeu dois copos da gelada beberagem e comeu com voracidade tudo quanto havia sobre a mesa, excitada e loquaz. Diego e Isabel tinham um peso na alma, enquanto ela e o corsário conversavam quase em sussurros. Conseguiram captar alguma coisa da conversa e deram-se conta de que Juliana explorava o terreno, experimentando as armas de sedução que nunca até então tivera necessidade de usar. Naquele momento estava a explicar-lhe, entre risos e pestanejos, que ela e a sua irmã não se importariam de ter certas comodidades. Para começar, uma harpa, um piano e partituras de música, e também livros, preferivelmente romances e poesia, assim como roupa leve. Perdera tudo o que tinha, e por culpa de quem?, perguntou fazendo beicinho. Além disso, desejavam liberdade para passear pelos arredores e uma certa privacidade; incomodava-as a vigilância constante das escravas. «E a propósito, senhor Laffite, devo dizer-vos que abomino a escravatura, é uma prática desumana.» Ele respondeu que, se passeassem sozinhas pela ilha, encontrariam gente vulgar, que não sabia lidar com donzelas tão delicadas como ela e a irmã. Acrescentou que a função das escravas não era vigiá-las, mas sim tratar delas e afugentar mosquitos, ratos e víboras, que se metiam nos quartos.

- Dê-me uma vassoura e eu mesma me encarregarei desse problema - retorquiu ela com um sorriso irresistível, que Diego não lhe conhecia.

- Relativamente ao mais que solicita, menina, talvez o encontremos no meu bazar.

Depois da sesta, quando refrescar um pouco, iremos todos ao Templo.

- Não temos dinheiro, mas suponho que o senhor pagará, visto que nos trouxe aqui pela força - retrucou ela, coquete.

- Será uma honra, menina.

- Pode chamar-me Juliana.

Madame Odilia seguia esta troca de galanteios de um recanto da sala com a mesma atenção que Diego e Isabel. A sua presença recordou a Jean que não podia seguir por aquele perigoso caminho; tinha obrigações iniludíveis. Indo buscar forças onde pôde, decidiu ser claro com Juliana. Chamou com um gesto a bela do turbante e sussurrou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Ela desapareceu durante uns minutos e regressou com um embrulho nos braços.

- Madame Odilia é a minha sogra e este é o meu filho Pierre - explicou Jean Laffite, pálido.

Diego soltou uma exclamação de alegria e Juliana uma de horror. Isabel pôs-se de pé e Madame Odilia mostrou-lhe o fardo. Ao contrário das mulheres normais, que costumam amolecer à vista de uma criança, Isabel não gostava de bebés, preferindo os cães, mas teve de admitir que aquele fedelho era simpático. Tinha o nariz arrebitado e os mesmos olhos que o pai.

- Não sabia que era casado, senhor pirata... - comentou Isabel.

- Corsário - corrigiu-a Laffite.

- Corsário, então. Podemos conhecer a sua esposa?

- Receio que não. Eu próprio não a pude visitar durante várias semanas; está fraca e não pode ver ninguém.

- Como se chama?

- Catherine Villars.

- Desculpai-me, sinto-me muito cansada... - murmurou Juliana, desfalecente.

Diego afastou-lhe a cadeira e acompanhou-a com ar compungido, embora estivesse encantado com a reviravolta dos acontecimentos. Que sorte tão extraordinária! Juliana não tinha outro remédio senão reavaliar os seus sentimentos. Já não se tratava só de Laffite ser um velho de trinta e cinco anos, mulherengo, criminoso, contrabandista e traficante de escravos, tudo coisas que uma menina como Juliana podia desculpar facilmente, mas sim de ter mulher e um filho. Obrigado, meu Deus! Não se podia pedir mais.

De tarde, Nuria ficou a aplicar panos frios na testa febril de Juliana, enquanto Diego e Isabel acompanhavam Laffite ao Templo. Foram num bote impelido por quatro remadores, que se introduziu num labirinto de pântanos malcheirosos, em cujas margens repousavam dezenas de caimões, enquanto ziguezagueavam víboras na água. Com a humidade, o cabelo de Isabel disparou em todas as direcções, encrespado e denso como um colchão. Os canais pareciam todos idênticos, a paisagem era plana, não havia um montículo para servir de referência naquela vegetação de altas pastagens. As árvores tinham as raízes na água e cabeleiras de musgo a pender dos ramos. Os piratas conheciam cada volta, cada árvore, cada pedregulho daquele território de pesadelo e avançavam sem uma única vacilação. Ao chegarem ao lugar onde ficava El Templo, viram as lanchas chatas em que os piratas transportavam a mercadoria, além das pirogas e botes de alguns fregueses, embora a maioria viesse por terra a cavalo e em vistosas carruagens. A fina-flor da sociedade tinha marcado encontro, desde aristocratas até cortesãs de cor. Os escravos haviam colocado toldos para que os seus amos repousassem e serviam comida e vinho, enquanto as damas percorriam o bazar examinando os produtos.

Os piratas vociferavam a mercadoria, tecidos da China, jarras de prata peruana, móveis de Viena, jóias de todas as proveniências, guloseimas, artigos de toucador, nada faltava naquela feira, onde regatear fazia parte da diversão. Pierre Laffite já lá estava, com um lustre na mão, anunciando aos gritos que estava tudo em liquidação, os preços eram baratos, comprem, messieurs et mesdames, porque não voltará a surgir outra oportunidade como esta. Com a chegada de Jean e os seus acompanhantes produziram-se murmúrios de curiosidade. Aproximaram-se várias mulheres do atraente corsário, misteriosas debaixo das suas alegres sombrinhas, entre elas a esposa do governador. Os cavalheiros fixaram-se em Isabel, divertidos com o seu cabelo indómito, parecido com o musgo das árvores. Na comunidade dos brancos havia dois homens para cada mulher e qualquer cara nova era bem-vinda, inclusivamente uma tão pouco usual como a de Isabel. Jean fez as apresentações, sem mencionar, de modo algum, a maneira como obtivera aqueles novos «amigos», e a seguir procurou os objectos mencionados por Juliana, embora soubesse que nenhum presente poderia consolá-la do golpe que lhe tinha infligido ao falar-lhe de Catherine de modo tão brutal. Não havia outra forma: tinha de cortar aquela atracção mútua pela raiz antes que ela os destruísse a ambos.

Em Barataria, Juliana jazia sobre a cama, mergulhada num lodaçal de humilhação e louco amor. Laffite acendera nela uma labareda diabólica, e agora tinha de lutar com toda a sua vontade contra a tentação de o arrebatar a Catherine Villars. A única solução que lhe ocorria era entrar como noviça no Convento das Ursulinas e acabar os seus dias tratando de doentes de varíola em Nova Orleães; pelo menos, assim, poderia respirar o mesmo ar que aquele homem. Não podia voltar a mostrar a cara a ninguém. Estava confundida, envergonhada, inquieta, como se um milhão de formigas se passeasse sob a sua pele; sentava-se, passeava, deitava-se na cama, dava voltas entre os lençóis.

Pensava na criança, no pequeno Pierre, e ainda chorava mais. «Não há mal que dure cem anos, minha menina, essa demência há-de passar-te, ninguém no seu perfeito juízo se apaixona por um pirata», consolava-a Nuria. Nisto, chegou Madame Odilia para perguntar como estava a menina. Trazia numa bandeja um copo de xerez e bolachas. Juliana decidiu que era a sua única oportunidade de averiguar pormenores e, engolindo o orgulho e o pranto, entabulou conversa com ela.

- Pode dizer-me, madame, se Catherine é escrava?

- A minha filha é livre, como eu. A minha mãe era uma rainha do Senegal e lá também eu seria rainha. O meu pai e o pai das minhas filhas eram brancos, donos de plantações de açúcar em Santo Domigo. Tivemos de fugir durante a revolta dos escravos - retorquiu, orgulhosa, Madame Odilia.

- Consta-me que os brancos não se podem casar com gente de cor - insistiu Juliana.

- Os brancos casam-se com brancas, mas as suas verdadeiras mulheres somos nós. Não precisamos da bênção de um padre, basta-nos o amor. Jean e Catherine amam-se.

Juliana desatou de novo a chorar. Nuria pregou-lhe um beliscão para que se controlasse, mas isso mais não fez do que aumentar a angústia da jovem. Pediu a Madame Odilia que lhe permitisse ver Catherine, pensando que assim teria argumentos para resistir ao embuste do amor.

- Isso não é possível. Beba o xerez, menina, far-lhe-á bem - e com isso deu meia volta e retirou-se.

Juliana, abrasada de sede, engoliu o conteúdo do copo em quatro goles. Momentos mais tarde, caiu rendida e dormiu trinta e seis horas sem se mexer. O xerez drogado não a curou da sua paixão, mas, tal como Madame Odilia supunha, deu-lhe coragem para enfrentar o futuro. Acordou com os ossos doridos, resolvida a renunciar a Laffite.

 

O corsário decidira também arrancar Juliana do coração e procurar um sítio para a instalar longe da sua casa, onde a sua proximidade não o torturasse. A jovem evitava-o, tendo deixado de aparecer às horas das refeições, mas ele adivinhava-a através das paredes. Julgava ver a sua silhueta num corredor, ouvir a sua voz no terraço, cheirar o seu perfume, mas era só uma sombra, um pássaro, o aroma do mar trazido pela brisa. Como um animal de presa, tinha sempre os sentidos alerta, procurando-a. O Convento das Ursulinas, como Diego sugerira, era má ideia; seria como condená-la à prisão. Conhecia várias crioulas em Nova Orleães que poderiam hospedar a jovem, mas corria o risco de que se soubesse a sua condição de refém. Se isso chegasse aos ouvidos das autoridades americanas, ele ver-se-ia em sérios problemas. Podia subornar o juiz, mas não o governador; um tropeção da sua parte e a sua cabeça voltaria a estar a prémio. Contemplava a possibilidade de se esquecer do resgate e enviar os seus cativos de imediato para a Califórnia, livrando-se assim do sarilho em que se achava, mas para isso precisava do consentimento do seu irmão Pierre, dos outros comandantes e do resto dos piratas; era esse o inconveniente de uma democracia. Pensava em Juliana, comparando-a com a doce e submissa Catherine, essa menina que tinha sido sua mulher desde os catorze anos e agora era a mãe do seu filho. Catherine merecia o seu amor incondicional. Sentia saudades dela. Só a separação prolongada que haviam sofrido podia explicar o seu enamoramento por Juliana; se dormisse abraçado à sua mulher, aquilo nunca teria acontecido. Desde o nascimento da criança, Madame Odilia tinha-a entregue aos cuidados de umas curandeiras africanas em Nova Orleães. Laffite não se opusera, porque os médicos a davam como perdida. Uma semana após o parto, quando Catherine continuava a arder em febre, Madame Odilia insistira em que a filha sofria de mau-olhado, provocado por uma rival ciumenta, e o único remédio era a magia. Entre os dois levaram Catherine, que não se tinha de pé, a consultar Marie Laveau, suma sacerdotisa do vudu. Internaram-se nos bosques mais cerrados, longe das plantações de açúcar dos brancos, entre ilhéus e pântanos, onde os tambores conjuravam os espíritos. À luz de fogueiras e archotes, os oficiantes dançavam ostentando máscaras de animais e demónios, com os corpos pintados com sangue de galos. Os potentes tambores vibravam, estremecendo o bosque e esquentando o sangue dos escravos. Uma prodigiosa energia ligava os seres humanos aos deuses e à natureza; os participantes fundiam-se num único ser e ninguém se subtraía ao encantamento. No centro do círculo, em cima de uma caixa que continha uma serpente sagrada, dançava Marie Laveau, soberba, formosa, coberta de suor, quase nua e grávida de nove meses, prestes a dar à luz. Ao entrar em transe, os seus membros agitavam-se sem controlo, contorcia-se, bamboleava o ventre de um lado para outro e soltava uma fiada de palavras em línguas que ninguém conhecia. O cântico subia e descia, como vagalhões, enquanto os recipientes com sangue dos sacrifícios passavam de mão em mão, para que todos bebessem. Os tambores aceleravam; homens e mulheres, convulsionados, caíam ao chão, transformavam-se em animais, comiam pasto, mordiam e arranhavam, alguns perdiam o conhecimento, outros partiam aos pares para o bosque. Madame Odilia explicou-lhe que na religião vudu, chegada ao Novo Mundo no coração dos escravos do Daomé e Ioruba, existiam três zonas ligadas: a dos vivos, a dos mortos e a dos que ainda não nasceram. Nas cerimónias honravam os antepassados, chamavam os deuses, clamavam por liberdade. As sacerdotisas como Marie Laveau efectuavam encantamentos, enfiavam alfinetes em bonecas para provocar doenças e usavam gris-gris, pós mágicos, para curar diversos males, mas nada disso resultou com Catherine.

Apesar da sua condição de prisioneiro e de rival em amores de Laffíte, Diego não podia deixar de o admirar. Como corsário não tinha escrúpulos nem piedade, mas quando fazia figura de cavalheiro ninguém o podia ultrapassar em boas maneiras, cultura e fascínio. Essa dupla personalidade fascinava Diego, porque ele próprio pretendia algo semelhante com o Zorro. Além disso, Laffíte era dos melhores espadachins que conhecera. Só Manuel Escalante se podia comparar com ele; Diego sentia-se honrado quando o seu captor o convidava para praticar esgrima com ele. Nessas semanas o jovem viu como funcionava uma democracia, coisa que até então fora para ele um conceito abstracto. Na nova nação americana, os homens brancos controlavam a democracia; em Grande Isle todos a exerciam, menos as mulheres, claro. As peculiares ideias de Laffíte pareciam-lhe dignas de consideração. O homem sustentava que os poderosos inventam leis para conservarem os seus privilégios e controlarem pobres e descontentes, em vista do que seria muito estúpido da sua parte obedecer-lhes. Por exemplo, os impostos, que, no fim de contas, eram os pobres que pagavam, enquanto os ricos arranjavam maneira de fugir-lhes. Sustentava que ninguém, e muito menos o Governo, podia tirar-lhe uma talhada do que era seu. Diego fez-lhe ver certas contradições. Laffíte castigava com chicotadas o roubo entre os seus homens, mas o seu império económico apoiava-se na pirataria, uma forma superior de roubo. O corsário retorquiu que nunca tirava aos pobres, só aos poderosos. Não era pecado, mas sim virtude, despojar os navios imperiais do que era roubado a ferro e chicote nas colónias. Tinha-se apoderado das armas que o comandante Santiago de León levava para as tropas realistas no México, para vendê-las a um preço muito razoável aos insurrectos do mesmo país. Essa operação parecia-lhe de uma justiça irrepreensível.

Laffíte levou Diego a Nova Orleães, uma cidade feita à medida do corsário, orgulhosa do seu carácter decadente, aventureira, gozadora da vida, mutável e tempestuosa. Sofria de guerras com ingleses e índios, furacões, inundações, incêndios, epidemias, mas nada lograva deprimir aquela soberba cortesã. Era um dos principais portos americanos, por onde saía tabaco, tinta, açúcar, e entrava toda a sorte de mercadoria. A população cosmopolita convivia sem fazer caso do calor, dos mosquitos, dos pântanos e muito menos da lei. Música, álcool, bordéis, casas de jogo clandestinas, de tudo havia naquelas ruas onde a vida começava ao pôr do Sol. Diego instalava-se na Plaza de Armas a observar a multidão, negros com cestos de laranjas e bananas, mulheres a ler a sina e a oferecer fetiches de vudu, saltimbancos, bailarinos, músicos. As vendedoras de doces, com turbantes e aventais azuis, levavam em bandejas os bolos de gengibre, de mel, de nozes. Nos postos ambulantes podia-se comprar cerveja, ostras frescas, pratos de camarões. Nunca faltavam bêbedos a fazer escândalo, lado a lado com cavalheiros de fina estampa, donos de plantações, comerciantes, funcionários. Freiras e padres misturavam-se com prostitutas, soldados, bandidos e escravos. As célebres quarteironas exibiam-se em lentos passeios, recebendo piropos de cavalheiros e olhares hostis das suas rivais. Não usavam jóias nem chapéus, proibidos por decreto para satisfazer as mulheres brancas, que não podiam competir com elas. Não precisavam deles: tinham fama de ser as mais bonitas do mundo, com a sua pele dourada, feições finas, grandes olhos líquidos, cabelos ondulados. Andavam sempre acompanhadas por mães ou paus-de-cabeleira, que não as perdiam de vista. Catherine Villars era uma dessas beldades crioulas. Laffíte conhecera-a num dos bailes que as mães ofereciam para apresentarem as filhas a homens ricos, outra das muitas maneiras de iludir leis absurdas, como explicou o corsário a Diego. Faltavam mulheres brancas e sobravam as de cor; não havia necessidade de matemática para ver a solução do dilema; não obstante, os casamentos mistos eram proibidos. Assim preservava-se a ordem social, garantia-se o poder dos brancos e mantinha-se a gente de cor submetida, mas isso não impedia os brancos de terem concubinas crioulas. As quarteironas encontraram uma solução conveniente para todos. Treinavam as filhas nas tarefas domésticas e artes de sedução, de que nenhuma mulher branca suspeitava, para fazerem delas uma estranha combinação de dona de casa e cortesã. Vestiam-nas com grande luxo, mas ensinavam-nas a fazer os seus próprios vestidos. Eram elegantes e trabalhadeiras. Nos bailes, aos quais só assistiam homens brancos, as mães colocavam as filhas com alguém capaz de lhes dar um bom nível. Manter uma daquelas bonitas raparigas era considerado um sinal de distinção para um cavalheiro; o celibato e a abstinência não eram virtudes, a não ser entre puritanos, mas desses havia poucos em Nova Orleães. As quarteironas viviam em casas pouco ostentosas, mas com comodidade e estilo, mantinham escravos, educavam os filhos nas melhores escolas e vestiam como rainhas em privado, embora em público fossem discretas. Estes arranjos eram levados a cabo de acordo com certas normas tácitas, com decoro e etiqueta.

- Em poucas palavras, as mães oferecem as filhas aos homens - resumiu Diego, escandalizado.

- Não é sempre assim? O casamento é um arranjo mediante o qual uma mulher presta serviços e dá filhos ao homem que a mantém. Aqui, uma branca tem menos liberdade para escolher do que uma crioula - retorquiu Laffite.

- Mas a crioula não tem protecção quando o amante decide casar-se ou substituí-la por outra concubina.

- O homem deixa-a com casa e uma pensão, para além de pagar as despesas dos filhos. Às vezes, ela constitui outra família com um crioulo. Muitos desses crioulos, filhos doutras quarteironas, são profissionais educados em França.

- E o senhor, comandante Laffite, teria duas famílias? - perguntou Diego, pensando em Juliana e Catherine.

- A vida é complicada, tudo pode acontecer - disse o pirata.

Laffite convidou Diego para os melhores restaurantes, para o teatro, para a ópera, e apresentou-o às suas amizades como o seu «amigo da Califórnia». A maioria era gente de cor, artesãos, comerciantes, artistas, profissionais. Conhecia alguns americanos, que se mantinham separados do resto da população crioula e francesa por uma linha imaginária, que dividia a cidade.

Preferia não a cruzar, porque do outro lado havia um ambiente moralista que não lhe convinha. Levou Diego a várias casas de jogo clandestino, tal como este lhe pedira. Pareceu-lhe suspeito que o jovem tivesse tanta certeza de ganhar e advertiu-o de que se coibisse de fazer batota, porque em Nova Orleães essa falta se pagava com um punhal nas costelas.

Diego não deu ouvidos aos conselhos de Laffite, porque o mau pressentimento que tivera uns dias atrás apenas se acentuara. Precisava de dinheiro. Não conseguia ouvir Bernardo com a clareza de sempre, mas sentia que ele o chamava. Tinha de voltar à Califórnia, não só para salvar Juliana de cair nas mãos de Laffite, como porque estava certo de que alguma coisa acontecera lá que exigia a sua presença. Com o medalhão como capital inicial, jogava em diferentes lugares, para não levantar suspeitas com os seus inusitados ganhos. Era muito fácil para ele, treinado em truques de ilusionismo, substituir uma carta por outra ou fazê-la desaparecer. Além disso, tinha boa memória e talento para os números; passados poucos minutos adivinhava o jogo dos seus opositores. Assim, não perdeu o medalhão e, em contrapartida, foi enchendo a bolsa; àquele ritmo juntaria em pouco tempo os oito mil dólares americanos do resgate. Sabia conter-se. Começava por perder, para criar confiança nos outros jogadores, após o que fixava uma hora para terminar o jogo, começando depois a ganhar. Nunca se excedia. Mal os outros homens começavam a ficar comichosos, ia para outro sítio. Um dia, porém, a sorte favoreceu-o tanto que não se quis retirar e continuou a apostar. Os seus opositores tinham bebido muito e mal conseguiam focar as cartas, mas chegava-lhes a lucidez para se darem conta de que Diego fazia batota. Não tardou a armar-se uma desordem e acabaram na rua, depois de expulsarem o jovem aos empurrões, com a justificada intenção de o desfazerem com pancada. Logo que Diego conseguiu fazer-se ouvir por cima da gritaria, desafiou-os com uma proposta original.

- Um momento, meus senhores! Estou disposto a devolver o dinheiro, que ganhei honestamente, a quem for capaz de rebentar aquela porta à cabeçada - anunciou, apontando para o portão de grossa madeira com rebites metálicos do presbitério, um edifício colonial que se erguia ao lado da catedral.

Aquilo captou de imediato a atenção dos bebedolas. Estavam a discutir os termos da competição, quando apareceu um sargento que, em vez de impor a ordem, se instalou a observar a cena. Pediram-lhe que fizesse de árbitro e ele aceitou de bom grado. Saíram músicos de vários estabelecimentos e puseram-se a tocar alegres canções; em poucos minutos a praça encheu-se de curiosos. Começava a escurecer e o sargento mandou acender candeeiros. Aos jogadores juntaram-se outros homens, que iam a passar e que quiseram participar naquele inédito desporto; a ideia de arrombar uma porta com o crânio parecia-lhes extremamente divertida. Diego decidiu que os «cabeça dura» deviam pagar cinco dólares cada um para entrar no jogo. O sargento recolheu quarenta e cinco num abrir e fechar de olhos; a seguir determinou a ordem da fila. Os músicos improvisaram um rufo de tambores e o primeiro sujeito lançou-se a trote contra a porta do presbitério, com um cachecol amarrado à cabeça. A pancada deixou-o estendido no chão. Uma salva de aplausos, apupos e gargalhadas acolheu a proeza. Um par de belas crioulas aproximou-se, solícito, para socorrer o caído com um copo de orchata, enquanto o segundo da fila aproveitava a sua oportunidade de partir a cabeça, sem melhores resultados que o primeiro. Alguns participantes arrependeram-se à última hora, mas não lhes foram devolvidos os seus cinco dólares. No fim, nenhum conseguiu arrombar a porta e Diego ficou com o dinheiro ganho à mesa de jogo, mais trinta e cinco dólares da colecta. O sargento recebeu dez pelo seu incómodo e toda a gente ficou feliz.

Trouxeram os escravos para a propriedade de Laffite de noite. Desembarcaram-nos sigilosamente na praia e fecharam-nos num barracão de madeira; eram cinco homens jovens e dois de mais idade, além de duas raparigas e uma mulher com uma criança de uns seis anos agarrada às suas pernas, e outra de poucos meses nos braços. Isabel tinha saído para se refrescar no terraço e distinguiu as silhuetas que se moviam na noite, alumiadas por alguns archotes. Sem conseguir resistir à curiosidade, aproximou-se e viu de perto aquela fila de patéticos seres humanos esfarrapados. As raparigas choravam, mas a mãe caminhava em silêncio, com o olhar fixo, como um zumbi; todos arrastavam os pés, extenuados e famintos. Iam vigiados por vários piratas armados, às ordens de Pierre Laffite, que deixou a «mercadoria» no barracão e a seguir foi dar contas ao seu irmão Jean, enquanto Isabel corria a contar o que tinha visto a Diego, Juliana e Nuria. Diego vira os anúncios na cidade e sabia que dentro de um par de dias haveria um leilão de escravos em El Templo.

Em Barataria, os amigos tinham tido tempo de sobra para se informarem sobre a escravatura. Não se podiam trazer escravos de África, mas mesmo assim eles vendiam-se e «criavam-se» na América. O primeiro impulso de Diego fora tentar pô-los em liberdade, mas as suas amigas fizeram-lhe ver que, mesmo que conseguisse entrar no barracão, quebrar as correntes e convencer aquela gente a fugir, eles não teriam para onde fugir. Iriam no seu encalço com cães. A sua única esperança seria chegarem ao Canadá, mas nunca poderiam fazê-lo sozinhos. Diego decidiu averiguar, pelo menos, as condições em que se achavam os prisioneiros. Sem lhes dizer o que pensava fazer, despediu-se das amigas, pôs a sua máscara de Zorro e, aproveitando a escuridão, saiu da casa. No terraço estavam os irmãos Laffite, Pierre com um copo de uma bebida alcoólica na mão e Jean a fumar, mas não se podia aproximar para os ouvir sem correr o risco de ser descoberto, de modo que seguiu até ao barracão. A luz de um archote iluminava um único pirata que montava guarda com um mosquete ao ombro. Aproximou-se com a ideia de o colher de surpresa, mas o surpreendido foi ele, porque outro homem apareceu à sua retaguarda.

- Boa noite, boss - cumprimentou.

Diego deu meia volta e enfrentou-o, pronto para se bater, mas o sujeito tinha uma atitude descontraída e amável. Apercebeu-se então de que na escuridão ele o confundira com Jean Laffite, que vestia sempre de preto. O outro pirata aproximou-se também.

- Demos-lhes de comer e estão a descansar, boss. Amanhã levamo-los e damos-lhes roupa. Estão em boas condições, menos o bebé, que tem febre. Não creio que dure muito.

- Abram a porta; quero vê-los - disse Diego em francês, imitando o tom do corsário.

Manteve a cara na sombra enquanto eles abriam a tranca da porta, precaução inútil, porque os piratas de nada suspeitavam. Ordenou-lhes que aguardassem fora e entrou. No barracão havia um candeeiro pendurado a um canto, que oferecia uma luz débil, mas suficiente para distinguir cada um daqueles rostos que o olhavam em silêncio, aterrorizados. Todos, menos a criança e o bebé, tinham argolas de ferro ao pescoço e correntes fixadas a uns postes. Diego abeirou-se com gestos tranquilizadores, mas, ao verem a máscara, os escravos julgaram achar-se diante de um demónio e encolheram-se até onde as correntes permitiam. Foi inútil tentar comunicar com eles; não o entendiam. Compreendeu que acabavam de chegar de África: tratava-se de «mercadoria fresca», como diziam os negreiros; não tinham tido oportunidade de aprender a língua dos seus captores. Possivelmente haviam-nos levado para Cuba, onde os irmãos Laffite os teriam comprado para os revenderem em Nova Orleães. Tinham sobrevivido à viagem por mar em horríveis condições e suportado maus tratos em terra. Seriam da mesma aldeia, da mesma família? No leilão seriam separados e não se voltariam a ver. Os sofrimentos haviam-lhes quebrado o espírito; possuíam uma expressão enlouquecida. Diego deixou-os com uma opressão insuportável no coração. Já uma vez, na Califórnia, sentira aquela mesma laje a espalmar-lhe o coração, quando Bernardo e ele presenciaram o ataque dos soldados a uma aldeia de índios. Lembrava-se da sensação de impotência que então sentira, idêntica à que o angustiava neste momento.

Regressou a casa de Laffite, mudou de roupa e reuniu-se com as meninas De Romeu e Nuria para lhes comunicar o que vira. Estava desesperado.

- Quanto custam esses escravos, Diego? - perguntou Juliana.

- Não sei exactamente, mas vi as listas de leilões em Nova Orleães e, a olho, calculo que os Laffite podem obter mil dólares por cada homem jovem, oitocentos pelos outros dois, seiscentos por cada uma das raparigas e mais ou menos mil pela mãe e pelos filhos. Não sei se podem vender as crianças separadamente; são menores de sete anos.

- Quanto seria o total?

- Digamos que à roda de oito mil e oitocentos dólares.

- É muito pouco mais do que pedem pelo nosso resgate.

- Não vejo a relação - disse Diego.

- Temos dinheiro. A Isabel, a Nuria e eu decidimos usá-lo para comprar esses escravos - disse Juliana.

- Têm dinheiro? - perguntou Diego, surpreendido.

- As pedras preciosas, não te lembras?

- Pensei que os piratas vo-las tinham tirado!

Juliana e Isabel explicaram-lhe a maneira como tinham salvo a sua modesta fortuna. Enquanto navegavam no navio dos corsários, Nuria tivera a brilhante ideia de esconder as pedras, porque, se os seus captores suspeitassem da sua existência, perdê-las-iam para sempre. Engoliram-nas uma a uma com goles de vinho. Mais cedo que tarde, os diamantes, rubis e esmeraldas saíram intactos pelo outro extremo do tubo digestivo; bastou-lhes estarem atentas ao conteúdo dos bacios para os recuperarem. Não fora uma solução agradável, mas funcionara e agora as pedras, bem lavadas, estavam outra vez cosidas nos saiotes.

- Com isso podeis comprar o vosso resgate! - exclamou Diego.

- É verdade, mas preferimos pôr os escravos em liberdade, porque, mesmo que o dinheiro do teu pai nunca chegue, sabemos que o vais ganhar com a batota - - retrucou Isabel.

Jean Laffite estava sentado no terraço, com uma chávena de café e um prato de beignets, saborosas filhoses francesas, a anotar números no seu livro de contabilidade, quando Juliana apareceu com um pano amarrado pelas quatro pontas e o colocou sobre a mesa. O corsário levantou a vista e, uma vez mais, o seu coração deu um salto diante daquela jovem, que o tinha acompanhado todas as noites nos seus sonhos. Desfez o embrulho e não conseguiu conter uma exclamação.

- Quanto acha que vale isto? - perguntou ela, com as faces afogueadas, e passou a propor-lhe o negócio que tinha em mente.

Para o corsário, a primeira surpresa foi descobrir que as irmãs tinham sido capazes de esconder as pedras; a segunda, que as destinassem a comprar os escravos em vez da sua própria liberdade. Que diriam Pierre e os outros comandantes a isto? A única coisa que desejava era desfazer a má impressão que a pirataria, e agora os escravos, haviam causado em Juliana. Pela primeira vez sentia-se envergonhado das suas acções, indigno. Não pretendia conquistar o amor daquela jovem, porque ele próprio não era livre para lhe oferecer o seu, mas precisava pelo menos do seu respeito. O dinheiro não lhe importava patavina neste caso; podia recuperá-lo e, aliás, tinha mais que suficiente para tapar a boca aos sócios.

- Isso vale muito, Juliana. Chega e sobra para comprar os escravos, pagar o seu resgate, o dos seus amigos e a viagem para a Califórnia. Também dá para o seu dote e o da sua irmã - disse ele.

Juliana não imaginara que aqueles cacos de cores servissem para tanto. Dividiu as pedras em dois montinhos, um grande e outro mais pequeno, embrulhou o primeiro no lenço, meteu-o no decote e deixou o resto em cima da mesa. Fez menção de se retirar, mas ele pôs-se de pé, agitado, e segurou-a por um braço.

- Que fará com os escravos?

- Tirar-lhes as correntes, antes de mais nada; depois verei como ajudá-los.

- Está bem. É livre, Juliana. Tratarei de que possa partir em breve. Desculpe-me os dissabores que a fiz passar; não sabe como desejaria que nos tivéssemos conhecido noutras circunstâncias. Por favor, aceite isto como um presente meu - disse o pirata, entregando-lhe as pedras que ela deixara em cima da mesa.

Juliana precisara de todas as suas forças para enfrentar aquele homem e agora este gesto desarmava-a por completo. Não estava segura do seu significado, mas o instinto advertia-a de que o sentimento que a transtornava era plenamente correspondido por Laffite: o presente era uma declaração de amor. O corsário viu-a vacilar e, sem pensar, tomou-a nos braços e beijou-a em cheio na boca. Foi o primeiro beijo de Juliana, certamente o mais longo e intenso que havia de receber na sua vida. Em qualquer caso, foi o mais memorável, como sempre acontece com o primeiro. A proximidade do pirata, os seus braços a envolverem-na, o seu hálito, o seu calor, o seu cheiro viril, a língua dele dentro da sua própria boca, estremeceram-na até aos ossos. Tinha-se preparado para aquele momento com centenas de romances de amor, com anos a imaginar o galã predestinado para ela. Desejava Laffite com uma paixão acabada de estrear, mas com uma certeza antiga e absoluta. Nunca amaria outro; este amor proibido seria o único que teria neste mundo. Agarrou-se a ele, segurando-o com as duas mãos pela camisa, e devolveu-lhe o beijo com igual intensidade, enquanto se dilacerava por dentro, porque sabia que aquela carícia era uma despedida. Quando, por fim, conseguiram separar-se, ela recostou-se no peito do pirata, entontecida, tentando recuperar a respiração e o ritmo do coração, ao mesmo tempo que ele repetia o seu nome, Juliana, Juliana, num longo murmúrio.

- Tenho de ir - disse ela, desprendendo-se.

- Amo-a com toda a minha alma, Juliana, mas também amo Catherine. Nunca a abandonarei. Consegue perceber isso?

- Sim, Jean. A minha desgraça é ter-me apaixonado por si e saber que nunca poderemos estar juntos. Mas amo-o mais pela sua fidelidade a Catherine. Deus queira que ela se restabeleça depressa e que sejam felizes...

Jean Laffite quis beijá-la de novo, mas ela retirou-se a correr. Nenhum dos dois, turbados como estavam, conseguiu ver Madame Odilia, que tinha presenciado a cena a curta distância.

Juliana não tinha dúvidas de que a sua vida terminara. Não valia a pena continuar neste mundo afastada de Jean. Preferia morrer, como as heroínas trágicas da literatura, mas não suspeitava de como se contrai a tuberculose ou outra doença fina e dar cabo de si com tifo parecia-lhe indigno. Pôs de parte morrer por suas próprias mãos, porque, por muito profundo que fosse o seu sofrimento, não se podia condenar ao inferno; nem sequer Laffite merecia tal sacrifício. Ir para freira vislumbrava-se como a única opção, mas a ideia de usar um hábito no calor de Nova Orleães era pouco tentadora. Imaginava o que diria o seu falecido pai que, com a graça de Deus, fora sempre ateu, se soubesse das suas intenções. Tomás de Romeu teria preferido vê-la casada com um pirata a freira. O melhor seria partir dali assim que conseguisse transporte e acabar os seus dias a tratar de índios sob as ordens do padre Mendoza, que era um bom homem, segundo Diego. Guardaria a lembrança clara e limpa daquele beijo e a imagem de Jean Laffite, do seu rosto apaixonado, dos seus olhos de azeviche, da sua cabeleira penteada para trás, do seu pescoço e do seu peito a assomar pela camisa de seda preta, do seu fio de ouro, das suas firmes mãos a abraçá-la. Não tinha o alívio do pranto. Estava seca, gastara a sua reserva completa de lágrimas nos dias anteriores e julgava que nunca mais choraria na vida.

Estava nisto, vendo a praia pela janela e sofrendo calada a dor do seu coração destroçado, quando sentiu alguém atrás de si. Era Madame Odilia, mais espectacular que nunca, toda de linho branco, com um turbante da mesma cor, vários colares de âmbar, pulseiras nos braços e brincos de ouro nas orelhas. Uma rainha do Senegal, como a sua mãe.

- Apaixonaste-te pelo Jean - disse num tom neutro, tratando-a por tu pela primeira vez.

- Não se preocupe, madame, nunca me interporia entre a sua filha e o seu genro. Partirei daqui e ele esquecer-me-á - retorquiu Juliana.

- Para que compraste os escravos?

- Para os libertar. A senhora pode ajudá-los? Ouvi dizer que os quacres protegem os escravos e os conduzem ao Canadá, mas não sei como contactar com eles.

- Em Nova Orleães há muitos negros livres. Podem arranjar trabalho e viver lá; eu me encarregarei de os colocar - disse a rainha.

Ficou em silêncio durante um longo pedaço, observando Juliana com os seus olhos cor de avelã, remexendo nas bolas de âmbar dos seus colares, estudando-a. Calculando. Por fim, o seu duro olhar pareceu suavizar-se um pouco.

- Queres ver a Catherine? - perguntou à queima-roupa.

- Sim, madame. E gostaria de ver também o menino, para levar uma imagem de ambos; assim será mais fácil para mim visualizar da Califórnia a felicidade de Jean.

Madame Odilia conduziu Juliana a outra ala da casa, tão limpa e bem decorada como o resto, onde tinha instalado um infantário para o neto. Parecia o quarto de um pequeno príncipe europeu, salvo pelos fetiches de vudu que o protegiam do mau-olhado. Num berço de bronze com folhos de renda dormia Pierre, acompanhado pela sua ama de leite, uma negra jovem de grandes seios e olhos lânguidos, e uma menina de tenra idade, encarregada de movimentar os abanadores. A avó afastou o mosquiteiro e Juliana inclinou-se para ver o filho do homem que adorava. Pareceu-lhe lindo. Não vira muitas crianças com quem o comparar, mas teria jurado que não havia outro mais belo no mundo. Tinha somente uma fralda posta e estava de costas, de braços e pernas abertos, abandonado ao sono. Com um gesto, Madame Odilia autorizou-a a tirá-lo do berço. Quando o teve nos braços e pôde sentir o cheiro da sua cabeça calva,

ver o seu sorriso sem dentes, tocar os seus dedos como lagartinhas, a enorme pedra negra que tinha no peito pareceu reduzir-se, esboroar-se, desaparecer. Começou a beijá-lo por todo o lado, os pés descalços, a barriga com o umbigo saliente, o pescoço húmido de suor; então, um rio de lágrimas quentes banhou-lhe a cara e caiu sobre a criança. Não chorava de ciúmes pelo que nunca teria, mas sim de irreprimível ternura. A avó pôs Pierre no berço e, sem uma palavra, fez-lhe sinal para a seguir.

Cruzaram o jardim de laranjeiras e loendros, afastaram-se da casa e chegaram à praia, onde já as esperava um remador com um bote para as conduzir a Nova Orleães. Percorreram rapidamente as ruas do centro e atravessaram o cemitério. As inundações impediam que se enterrassem os mortos debaixo da terra, de modo que o cemitério era uma pequena cidade de mausoléus, alguns decorados com estátuas de mármore, outros com grades de ferro forjado, cúpulas e campanários. Um pouco mais adiante viram uma rua de casas altas e estreitas, todas iguais, com uma porta ao centro e uma janela de cada lado. Chamavam-lhes «de tiro», porque uma bala disparada contra a porta principal atravessava toda a casa e saía pela porta traseira sem tocar nenhuma parede. Madame Odilia entrou sem bater. Lá dentro havia uma desordem inaudita de garotos de várias idades, tratados por duas mulheres vestidas com aventais de calicô. A casa estava atulhada de fetiches, frascos de poções, ervas penduradas em ramos do tecto, estátuas de madeira crivadas de pregos, máscaras e um sem-fim de objectos próprios da religião vudu. Havia um cheiro doce e pegajoso, como melaço. Madame Odilia cumprimentou as mulheres e dirigiu-se a um dos pequenos compartimentos. Juliana encontrou-se diante de uma mulata escura, de ossos largos e olhos amarelos de pantera, com a pele brilhante de suor, o cabelo colhido em meia centena de tranças decoradas com fitas e contas de cores, a amamentar um recém-nascido.

Era a célebre Marie Laveau, a pitonisa que aos domingos dançava com os escravos na Praça do Congo e durante as cerimónias sagradas no bosque entrava em transe, encarnando os deuses.

- Trouxe-ta, para que me digas se é ela - disse Madame Odilia.

Marie Laveau pôs-se de pé e aproximou-se de Juliana, com o bebé preso ao seio. Tinha-se proposto ter um filho todos os anos, enquanto a juventude lho permitisse, e já tinha cinco. Pôs-lhe três dedos na testa e olhou-a longamente nos olhos. Juliana sentiu uma energia formidável, uma chicotada que a sacudiu dos pés à cabeça. Passou um minuto completo.

- É ela - disse Marie Laveau.

- Mas é branca - objectou Madame Odilia.

- Já te disse que é ela - repetiu a sacerdotisa, com isso dando por terminada a entrevista.

A rainha do Senegal levou Juliana de regresso ao molhe, voltaram a cruzar o cemitério e a Plaza de Armas e reuniram-se ao remador, que as tinha esperado paciente, fumando o seu tabaco. O homem conduziu-as por outro caminho até à zona dos pântanos. Não tardou que se encontrassem no labirinto do lameiro, com os seus canais, charcos, lagoas e ilhéus. A solidão absoluta da paisagem, os miasmas do lodaçal, as súbitas rabanadas dos caimões, os gritos dos pássaros, tudo contribuía para criar um ar de mistério e perigo. Juliana deu-se conta de que não tinha avisado ninguém da sua partida. A irmã e Nuria já deviam andar à sua procura. Ocorreu-lhe que aquela mulher podia ter intenções malévolas, pois, no fim de contas, era a mãe de Catherine, mas imediatamente rejeitou a ideia. A travessia pareceu-lhe muito demorada, o calor começou a adormecê-la e sentia sede; caíra a tarde e o ar encheu-se de mosquitos. Não se atreveu a perguntar onde iam. Depois de um longo tempo de viagem, quando começava a escurecer, atracaram numa margem.

O remador ficou ao pé do bote e Madame Odilia acendeu uma lanterna, tomou Juliana pela mão e guiou-a entre os pastos altos, onde não havia nem um rasto que indicasse a direcção. «Cuidado para não pisares nenhuma víbora», foi tudo o que lhe disse. Caminharam um longo trecho e, por fim, a rainha encontrou o que procurava. Era uma pequena clareira entre as pastagens, com duas árvores altas, malhadas de musgo e marcadas com cruzes. Não eram cruzes cristãs, mas sim cruzes de vudu, que simbolizavam a intersecção dos dois mundos, o dos vivos e o dos mortos. Várias máscaras e figuras de deuses africanos, talhadas em madeira, vigiavam o lugar. À luz da lanterna e da lua, a cena era aterradora.

- A minha filha está ali - disse Madame Odilia, apontando o solo.

Catherine Villars morrera de febre puerperal havia cinco semanas. Nem os recursos da ciência médica, nem as orações cristãs, nem os encantamentos e ervas da magia africana tinham conseguido salvá-la. A mãe e outras mulheres envolveram o seu corpo, consumido pela infecção e pelas hemorragias, e transportaram-no para aquele lugar sagrado no lameiro, onde fora enterrado temporariamente, até que a jovem defunta apontasse a pessoa destinada a substituí-la. Catherine não podia permitir que o seu filho caísse nas mãos de qualquer mulher escolhida por Jean Laffite, segundo explicou a rainha do Senegal. O seu dever de mãe era ajudá-la nessa tarefa, razão pela qual ocultara a sua morte. Catherine encontrava-se numa região intermédia, ia e vinha entre dois mundos. Não ouvira, porventura, Juliana os seus passos na casa de Laffite? Não a tinha visto de pé junto à sua cama de noite? Aquele cheiro a laranjas que flutuava na ilha era o perfume de Catherine, que no seu novo estado vigiava o pequeno Pierre e procurava a madrasta adequada. Madame Odilia ficou surpreendida por Catherine ter ido ao outro lado do mundo para encontrar Juliana e não lhe agradava a ideia de ter escolhido uma branca, mas quem era ela para se opor? Da região dos espíritos, Catherine podia decidir melhor que ninguém o que era mais conveniente. Assim lhe tinha assegurado Marie Laveau ao ser consultada. «Quando aparecer a mulher adequada, eu saberei reconhecê-la», prometera a sacerdotisa. Madame Odilia tivera a primeira suspeita de que podia ser Juliana ao ver que ela amava Jean Laffite, estando disposta a renunciar a ele por respeito a Catherine, e a segunda, quando a jovem se compadecera da sorte dos escravos. Agora estava satisfeita, disse, porque a sua pobre filha descansaria tranquila no céu e poderia ser enterrada no cemitério, onde a subida das águas não arrastaria o seu corpo para o mar.

Teve de repetir vários pormenores, porque a história não entrava na cabeça a Juliana. Não podia acreditar que aquela mulher tivesse ocultado a verdade a Jean durante cinco semanas. Como lho explicaria agora? Madame Odilia disse que não havia nenhuma necessidade de que o genro tomasse conhecimento de todo o assunto. A data exacta vinha a dar no mesmo; dir-lhe-ia que Catherine tinha morrido no dia anterior.

- Mas Jean exigirá ver o corpo! - alegou Juliana.

- Isso não é possível. Só nós, as mulheres, podemos ver os cadáveres. A nossa missão é trazer crianças ao mundo e dizer adeus aos mortos. Jean terá de o aceitar. Depois do funeral de Catherine, ele pertence-te - replicou a rainha.

- Pertence-me?... - balbuciou Juliana, desconcertada.

- A única coisa que importa neste caso é o meu neto Pierre. Laffite é apenas o meio que Catherine usou para te confiar o filho. Ela e eu velaremos por que cumpras a tua obrigação. Para isso, é necessário que permaneças junto do pai da criança e o mantenhas satisfeito e tranquilo.

- Jean não é o tipo de homem que possa estar satisfeito e tranquilo; é um corsário, um aventureiro...

- Dar-te-ei poções mágicas e os segredos para o satisfazeres na cama, como os dei a Catherine quando fez doze anos.

- Não sou uma mulher dessas... - defendeu-se Juliana,

enrubescendo.

- Não te preocupes; sê-lo-ás, embora não tão hábil como Catherine, porque já és um pouco velha para aprender e tens muitas ideias parvas na cabeça, mas Jean não notará a diferença. Os homens são desajeitados, o desejo cega-os, sabem muito pouco do prazer.

- Não posso empregar truques de cortesã ou poções mágicas, madame!

- Queres Jean ou não, menina?

- Sim - admitiu Juliana.

- Então terás de te esforçar. Deixa-o nas minhas mãos. Fá-lo-ás feliz e é possível que tu também o sejas, mas aviso-te de que deves considerar Pierre como teu próprio filho ou terás de te haver comigo. Percebeste bem?

Não sei como transmitir-vos na sua verdadeira magnitude, estimados leitores, a reacção do infeliz Diego de La Vega ao saber o que acontecera. O barco seguinte para Cuba zarpava de Nova Orleães dentro de dois dias; comprara passagens e tinha tudo preparado para sair a toda a pressa do couto de caça de Jean Laffite com Juliana de rojo. Ia salvar a sua amada, no fim de contas. Votara-lhe a alma e o corpo, quando lhe saíram as contas furadas e, afinal, o seu rival era viúvo. Lançou-se aos pés de Juliana para a convencer da estupidez que estava a cometer. Bem, isto é uma maneira de dizer. Ficou de pé, a andar de um lado para outro a grandes passadas, gesticulando, arrepelando os cabelos, dando gritos, enquanto ela o olhava impávida, com um sorriso palerma no rosto de sereia. Vá lá alguém convencer uma mulher apaixonada! Diego julgava que na Califórnia, longe do corsário, a jovem recuperaria a razão e ele recuperaria o tempo perdido.

Juliana teria de ser muito burra para continuar a amar um sujeito que traficava com escravos. Confiava em que, no fim, Juliana saberia apreciar um homem como ele, tão bem-parecido e valente como Laffite, mas muito mais novo, honesto, de recto coração e sãs intenções, que podia oferecer-lhe uma vida muito confortável sem assassinar inocentes para os roubar. Ele era quase perfeito e adorava-a. Por Deus! Que mais queria Juliana? Nada lhe bastava! Era um poço sem fundo! A verdade é que tinham bastado umas poucas semanas em Barataria para apagar de uma penada os avanços que ele conseguira em cinco anos a cortejá-la. Qualquer um mais esperto teria chegado à conclusão de que aquela jovem possuía um coração volúvel, mas Diego não. A vaidade impedia-o de ver claro, como costuma ser o caso dos galãs como ele.

Isabel observava a cena, pasmada. Nas últimas quarenta e oito horas tinham sucedido tantas coisas, que era incapaz de as recordar por ordem. Digamos que foi mais ou menos assim: depois de soltar as correntes dos escravos, alimentá-los, dar-lhes roupa e explicar-lhes com grande dificuldade que eram livres, presenciaram uma cena lancinante quando morreu o bebé que tinha chegado agónico. Foi precisa a força de três homens para tirar o corpo inerte à mãe e não houve maneira de a acalmar; ainda se ouviam os seus uivos, acompanhados pelos cães da ilha. Os infelizes escravos não percebiam a diferença entre serem livres e não o serem, se, de qualquer maneira, tinham de permanecer naquele detestável lugar. O seu único desejo era regressar a África. Como iam sobreviver nesta terra hostil e bárbara? O negro que fazia de intérprete procurava apaziguá-los com a promessa de que não lhes faltaria como ganhar a vida; eram sempre precisos mais piratas na ilha, com um pouco de sorte as raparigas arranjariam marido, e a pobre mãe poderia arranjar emprego numa família; ensiná-la-iam a cozinhar e não teria de se separar da outra criança. Inútil: o mísero grupo repetia como uma litania que os enviassem de volta a África.

Juliana regressou da sua longa excursão com Madame Odilia transformada por uma imensa felicidade e contando uma história capaz de arrepiar os cabelos ao mais sensato. Fez Diego, Isabel e Nuria jurar que não repetiriam nem uma palavra, em seguida largou-lhes a novidade de que Catherine Villars não estava nada doente, sendo antes uma espécie de zumbi e, além disso, tinha-a escolhido a ela para ser a madrasta do pequeno Pierre. Casar-se-ia com Jean Laffite, só que ele ainda não o sabia; dir-lho-ia depois do funeral de Catherine. Como presente de casamento pensava pedir-lhe que renunciasse para sempre ao tráfico de escravos: era a única coisa que não podia tolerar; as outras velhacarias não lhe importavam tanto. Confessou, também, um pouco ruborizada, que Madame Odilia a ia ensinar a fazer amor como o pirata gostava. Nessa altura, Diego perdeu o controlo. Juliana estava demente, não restavam dúvidas. Havia uma mosca que transmitia aquela doença, decerto a tinha picado. Pensava que ele a deixaria nas mãos daquele criminoso? Não prometera porventura a Dom Tomás de Romeu, que Deus tenha, conduzi-la sã e salva à Califórnia? Cumpriria a sua promessa, nem que tivesse de levá-la à carolada.

Jean Laffite sofreu muitas e variadas emoções nessas horas. O beijo deixara-o atordoado. Renunciar a Juliana era a coisa mais difícil que lhe calhara na vida; precisaria de toda a coragem, que não era pouca, para se sobrepor ao despeito e à frustração. Reuniu-se com o irmão e os outros comandantes para lhes entregar a respectiva parte da venda dos escravos e do resgate dos reféns, que, por sua vez, eles repartiriam com justiça entre os restantes homens. O dinheiro saía da sua própria bolsa, foi a única explicação que ofereceu. Os comandantes, admirados, fizeram-lhe ver que, do ponto de vista comercial, aquilo não tinha o menor sentido: para que diabo trazia escravos e reféns, com as consabidas despesas e maçadas, se pensava soltá-los gratuitamente?

Pierre Laffite esperou que os outros saíssem para manifestar a sua opinião a Jean. Pensava que este perdera a capacidade para dirigir os negócios, tinha-lhe amolecido o cérebro, talvez tivesse chegado o momento de o destituir.

- De acordo, Pierre. Submetê-lo-emos a votação entre os homens, como é habitual. Desejas substituir-me? - desafiou-o Jean.

Como se não bastasse, daí a poucas horas viera a sogra dar-lhe a notícia de que Catherine tinha morrido. Não, não podia vê-la. O funeral realizar-se-ia dentro de um par de dias em Nova Orleães, com a presença da comunidade crioula. Haveria um breve rito cristão, para apaziguar o padre, e a seguir uma cerimónia africana, com banquete, música e dança, como competia. A mulher estava triste, mas serena, e teve suficiente fortaleza de ânimo para o consolar quando ele desatou a chorar como uma criança. Adorava Catherine, tinha sido a sua companheira, o seu único amor, soluçava Laffite. Madame Odilia dera-lhe um gole de rum e umas palmadinhas no ombro. Não sentia uma compaixão desmedida pelo viúvo, porque sabia que muito depressa esqueceria Catherine noutros braços. Por decência, Jean Laffite não podia ir a correr pedir a Juliana que se casasse com ele, tendo de esperar um espaço de tempo prudente, mas a ideia já tomara forma na sua mente e no seu coração, embora ainda não se atrevesse a traduzi-la em palavras. A perda da esposa era terrível, mas oferecia-lhe uma inesperada liberdade. Até na sepultura, a doce Catherine satisfazia os seus mais recônditos desejos. Estava disposto a mudar de rumo por Juliana. Os anos passavam depressa, estava farto de viver com uma pistola à cinta e a possibilidade de lhe porem a cabeça a prémio a qualquer momento. Naqueles anos tinha acumulado uma fortuna; Juliana e ele poderiam ir com o pequeno Pierre para o Texas, onde iam parar habitualmente os rufiões, e dedicar-se a outras actividades menos perigosas, embora sempre ilegais. Tráfico de escravos, nem pensar, claro está, porque, pelos vistos, irritava a sensibilidade de Juliana.

Laffite nunca tolerara que uma mulher interferisse nos seus negócios e ela não seria a primeira, mas tão-pouco podia arruinar o casamento discutindo por causa disso. Sim, iriam para o Texas, já o decidira. Esse lugar oferecia muitas possibilidades a um homem de moral flexível e espírito aventureiro. Estava disposto a renunciar à pirataria, embora isso não significasse converter-se em cidadão respeitável; também não era preciso exagerar.

 

Alta Califórnia, 1815

Diego, Isabel e Nuria embarcaram numa goleta no porto de Nova Orleães na Primavera de 1815. Juliana ficou. Lamento que assim fosse, porque todo o leitor de bom coração espera um desenlace romântico a favor do herói. Compreendo que a decisão de Juliana é decepcionante, mas não podia ser de outra maneira, visto que no seu lugar a maioria das mulheres teria agido do mesmo modo. Devolver um pecador ao bom caminho é um projecto irresistível, e Juliana propôs-se-lhe com zelo religioso. Isabel perguntou-lhe por que razão nunca tentara fazer o mesmo com Rafael Moncada e ela explicou-lhe que não valia a pena o esforço, porque Moncada não era homem de vícios espantosos, como Laffite, mas sim de mesquinhezes. «E essas, como toda a gente sabe, não têm cura», acrescentou a bela. Nessa época ainda faltava muito ao Zorro para merecer uma mulher que se desse ao trabalho de o reformar.

Chegámos à quinta e última parte deste livro. Falta pouco para nos despedirmos, estimados leitores, uma vez que a história termina quando o herói regressa ao ponto de partida, transformado pelas suas aventuras e pelos obstáculos superados. Isto é o habitual nas narrativas épicas, desde a Odisseia até aos contos de fadas, e não serei eu quem pretenda inovar.

 

O tremendo chinfrim que Diego fez ao ter conhecimento da decisão de Juliana de ficar com Laffite em Nova Orleães não valeu de nada, porque ela o enxotou como se fosse um mosquito. Quem era Diego para lhe dar ordens? Nem sequer estavam ligados por laços de sangue, alegou. Além disso, ela tinha idade de sobra para saber o que lhe convinha. Como último recurso, Diego desafiou o pirata para um duelo de morte «a fim de defender a honra da menina De Romeu», como disse, mas nessa altura este informou-o de que se tinham casado naquela mesma manhã numa paróquia crioula, na maior intimidade, sem outras testemunhas além do seu irmão Pierre e Madame Odilia. Tinham-no feito assim para evitarem as cenas que, sem dúvida, fariam aqueles que não entendiam as urgências do amor. Não havia nada a fazer, a união era legal. Assim, Diego perdeu para sempre a sua amada e, presa da maior angústia, jurou permanecer solteiro durante o resto dos seus dias. Ninguém o acreditou. Isabel fez-lhe ver que Laffite não duraria muito neste mundo, dado o seu perigoso estilo de vida, e que, mal Juliana ficasse viúva, ele podia voltar a persegui-la até à exaustão, mas este argumento foi insuficiente consolo para Diego.

Nuria e Isabel despediram-se de Juliana com muito choro, apesar das promessas de Laffite de que em breve iriam à Califórnia visitá-las. Nuria, que considerava as meninas De Romeu como suas próprias filhas, hesitava entre ficar com Juliana para a defender do vudu, dos piratas e de outros dissabores que, sem dúvida, o destino lhe reservava, e seguir para a Califórnia com Isabel, que, apesar de ser vários anos mais nova, precisava menos dela. Juliana resolveu o dilema exigindo-lhe que se fosse embora, porque a reputação de Isabel ficaria manchada para sempre se fosse sozinha com Diego de la Vega. Como presente de despedida, Laffite deu à ama um fio de ouro e uma peça da mais fina seda. Nuria escolheu-a de cor negra, por causa do luto.

A goleta afastou-se do porto no meio de um aguaceiro quente, como tantos que ocorriam diariamente nessa época, e Juliana ficou lavada em lágrimas e salpicada de chuva, com o pequeno Pierre nos braços, escoltada pelo seu inefável corsário e pela rainha do Senegal, constituída em sua instrutora e guardiã. Juliana vestia com simplicidade, ao gosto do marido, e irradiava tanta felicidade que Diego desatou a chorar. Nunca lhe tinha parecido tão formosa como no momento de a perder. Juliana e Laffite formavam um esplêndido par, ele todo de preto com um papagaio no ombro, ela de musselina branca, ambos parcialmente protegidos pelos guarda-chuvas seguros por duas raparigas africanas, antes escravas e agora livres. Nuria fechou-se no seu camarote para que não a vissem chorar aos gritos, enquanto Diego e Isabel, desconsolados, lhes diziam adeus com a mão até os perderem de vista. Diego engolia as lágrimas pelas razões que conhecemos e Isabel porque se separava da irmã. Além disso, há que dizê-lo, tinha alimentado ilusões a respeito de Laffite, o primeiro homem a chamar-lhe bonita. Assim é a vida, pura ironia. Retomemos a história.

O navio levou as nossas personagens a Cuba. A histórica cidade de Havana, com as suas casas coloniais e o seu longo molhe, banhada pelo mar cristalino e pela luz impossível das Caraíbas, oferecia prazeres decadentes que nenhuma soube aproveitar; Diego por estar despeitado, Nuria por se sentir velha e Isabel porque não lho permitiram. Vigiada pelos outros dois, a jovem não pôde visitar os casinos nem participar nos desfiles de alegres músicos ambulantes. Pobres e ricos, brancos e negros, comiam nas tabernas e casas de pasto da rua, bebiam desmesuradamente rum e dançavam até de madrugada. Se lhe tivessem dado oportunidade, Isabel teria renunciado à virtude espanhola, que de pouco lhe tinha valido até então, para fazer uma incursão na luxúria caribe, que parecia bem mais interessante, mas ficou com a vontade. Pelo dono do hotel tiveram notícias de Santiago de León. O comandante conseguira chegar a salvo a Cuba com os outros sobreviventes do ataque dos corsários e, mal se recuperara da insolação e do susto, embarcara para Inglaterra. Pensava cobrar o dinheiro de um seguro e retirar-se para uma casinha no campo, onde continuaria a desenhar mapas fantásticos para coleccionadores de raridades.

Os três amigos permaneceram em Havana vários dias, que Diego aproveitou para mandar fazer um par de indumentárias completas de Zorro, copiadas de Jean Laffite. Ao ver-se ao espelho da alfaiataria, teve de admitir que o seu rival era de uma elegância inquestionável. Viu-se de frente e de perfil, pôs uma mão na anca e outra no punho da arma, levantou o queixo e sorriu muito satisfeito; possuía uns dentes perfeitos e gostava de os mostrar. Pensou que tinha um ar magnífico. Pela primeira vez lamentou a questão da dupla personalidade; gostaria de andar sempre assim vestido. «Enfim, não se pode ter tudo na vida», suspirou. Só faltavam a máscara para achatar as orelhas e o bigodinho postiço para despistar os seus inimigos, e o Zorro estava pronto para aparecer onde a sua espada fosse necessária. «A propósito, jeitoso, precisas de uma segunda espada», disse à imagem do espelho. Nunca se separaria da sua querida Justina, mas um só aço não era suficiente. Mandou entregar as suas novas farpelas ao hotel e foi percorrer os armeiros do porto à procura de uma espada parecida com a que Pelayo lhe oferecera. Encontrou exactamente o que desejava e comprou também um par de adagas mouriscas, finas e flexíveis, mas muito fortes. O dinheiro mal ganho nas casas de jogo clandestino de Nova Orleães escapou-se-lhe rapidamente das mãos e, uns dias mais tarde, quando conseguiram embarcar rumo a Portobelo, ia tão pobre como quando Jean Laffite o sequestrara.

Para Diego, que havia atravessado antes o istmo do Panamá em sentido contrário, essa parte da viagem não foi tão interessante como para Nuria e Isabel, que nunca tinham visto sapos peçonhentos e muito menos indígenas nus. Horrorizada, Nuria cravou os olhos no rio Chagres, convencida de que os seus piores receios sobre a selvajaria das Américas se veriam confirmados. Isabel, em contrapartida, aproveitou aquela exibição de nudismo para satisfazer uma curiosidade antiga. Havia anos que perguntava a si mesma como seria a diferença entre homens e mulheres. Teve uma desilusão, porque essa diferença lhe cabia folgadamente no bolso, como lhe comentou a ama. Em todo o caso, graças aos rosários de Nuria, livraram-se de contrair malária ou de serem mordidos por víboras e chegaram sem tropeços ao porto do Panamá. Ali arranjaram um barco que os levou até à Alta Califórnia.

O barco largou ferro no pequeno porto de San Pedro, perto de Los Angeles, e os viajantes foram conduzidos de bote à praia. Não foi fácil descer Nuria pela escada de corda. Um marinheiro de boa vontade e firmes músculos agarrou-a pela cintura sem lhe pedir licença, pô-la ao ombro e arriou-a como se fosse um saco de açúcar. Ao aproximarem-se de terra, viram a figura de um índio que lhes fazia sinais com a mão. Momentos depois, Diego e Isabel começaram a soltar gritos de alegria ao reconhecerem Bernardo.

- Como sabia ele que chegávamos hoje? - perguntou Nuria, admirada.

- Eu avisei-o - retorquiu Diego, sem oferecer explicações

de como o fizera.

Bernardo tinha aguardado naquele sítio durante mais de uma semana, quando tivera o claro pressentimento de que o irmão estava para chegar.

Não duvidara da mensagem telepática e instalara-se a observar o mar com infinita paciência, certo de que, mais tarde ou mais cedo, apareceria um navio no horizonte. Não sabia que Diego vinha acompanhado, mas calculava que traria bastante bagagem, tendo por isso tomado a precaução de levar vários cavalos. Tinha mudado tanto que Nuria teve dificuldade em reconhecer naquele índio corpulento o discreto criado que conhecera em Barcelona. Bernardo vestia apenas umas calças de linho atadas à cintura com uma faixa de pele de vaca. Estava muito queimado do sol, com a pele muito escura e o cabelo comprido entrançado. Trazia um punhal à cinta e um mosquete em bandoleira.

- Como estão os meus pais? E Raio na Noite e o teu filho? - foram as primeiras inquietações de Diego.

Por sinais, Bernardo respondeu que havia más notícias e tinham de ir directamente para a Missão San Gabriel, onde o padre Mendoza lhes daria as devidas explicações. Ele próprio estava a viver entre os índios havia vários meses e não se encontrava a par dos pormenores. Amarraram parte da bagagem a um dos cavalos, enterraram o resto na areia e marcaram o sítio com pedras, para o recolherem mais tarde, após o que montaram nas outras cavalgaduras e seguiram para a missão. Diego apercebeu-se de que Bernardo os levava por um desvio, evitando o Camino Real e a fazenda De La Vega. Depois de galopar algumas léguas, viram os terrenos da missão. Diego deixou escapar uma exclamação de surpresa ao verificar que os campos, plantados com tanta dedicação pelo padre Mendoza, tinham sido invadidos pelas ervas daninhas, faltava metade das telhas aos telhados e as cabanas dos neófitos pareciam abandonadas. Reinava um ar de miséria no que antes fora uma propriedade muito próspera. Ao barulho de cascos surgiram umas quantas índias com as suas crianças às costas e, poucos instantes depois, apareceu o padre Mendoza no pátio. O missionário tinha-se desgastado muito naqueles cinco anos; parecia um ancião frágil, com uns cabelos ralos no crânio que não conseguiam tapar a cutilada da orelha perdida. Sabia que Bernardo estava à espera do irmão e não duvidava desse pressentimento, pelo que a chegada de Diego não foi uma surpresa. Abriu-lhe os braços e o jovem saltou do cavalo e correu a cumprimentá-lo. Diego, que agora media mais uma cabeça que o sacerdote, teve a sensação de estreitar apenas um monte de ossos e apertou-se-lhe o coração de angústia ao verificar a passagem do tempo.

- Esta menina é Isabel, filha de Dom Tomás de Romeu, que Deus tenha à Sua mão direita, e esta senhora é Nuria, a sua ama - apresentou-as Diego.

- Bem-vindas à missão, minhas filhas. Imagino que a viagem tenha sido muito cansativa. Podeis lavar-vos e descansar, enquanto Diego e eu pomos a escrita em dia. Avisar-vos-ei quando estivermos prontos para jantar - disse o padre Mendoza.

As notícias eram piores do que Diego imaginava. Os seus pais tinham-se separado havia cinco anos; no mesmo dia em que ele partira para ir estudar em Espanha, Regina saíra de casa levando apenas a roupa que tinha no corpo. Desde então, vivia com a tribo de Coruja Branca e ninguém a vira na povoação ou na missão; diziam que renunciara às suas maneiras de dama espanhola e estava convertida na mesma índia brava que fora na juventude. Bernardo, que vivia na mesma tribo, confirmou as suas palavras. A mãe de Diego usava agora o seu nome indígena, Toypurnia, e preparava-se para substituir um dia Coruja Branca como curandeira e xamã. A reputação de visionárias das duas mulheres tinha-se estendido para lá da serra e os índios de outras tribos vinham de longe para as consultarem. Entretanto, Alejandro de La Vega proibira a simples menção do nome de sua mulher, mas nunca conseguira habituar-se à sua ausência e envelhecera de tristeza. Para não dar explicações à mesquinha sociedade branca da colónia, deixara o seu cargo de alcaide e dedicara-se por completo à fazenda e aos seus negócios, multiplicando a sua fortuna. De pouco lhe valera o trabalho, porque havia uns meses, justamente quando Diego se encontrava com os ciganos em Espanha, Rafael Moncada tinha chegado à Califórnia, na qualidade de enviado plenipotenciário do rei Fernando VII, com a missão oficial de dar informações sobre o estado político e económico da colónia. O seu poder era superior ao do governador e do chefe militar da praça. Diego não teve dúvidas de que Moncada conseguira o cargo por intermédio da influência de sua tia Eulália de Callís, e que a sua única razão para se afastar da corte espanhola era a esperança de apanhar Juliana. Assim manifestara ao padre Mendoza.

- Moncada deve ter apanhado um balde de água fria ao verificar que a menina De Romeu não estava aqui - disse Diego.

- Supôs que vós viríeis a caminho, visto que ficou. Entretanto não perdeu o seu tempo; consta que está a fazer uma fortuna - retrucou o missionário.

- Esse homem odeia-me por muitas razões, sendo a principal que ajudei Juliana a furtar-se às suas atenções - explicou-lhe Diego.

- Agora percebo melhor o sucedido, Diego. A ganância não é a única motivação de Moncada; também se quis vingar de ti... - suspirou o padre Mendoza.

Rafael Moncada iniciou o seu mandato na Califórnia confiscando a fazenda De La Vega, depois de ordenar a prisão do seu dono, que acusou de encabeçar uma rebelião para tornar a Califórnia independente do reino de Espanha. Não existia tal movimento, assegurou o padre Mendoza a Diego; a ideia ainda não passava pelas cabeças dos colonos, apesar de o germe da rebelião ter começado em alguns países da América do Sul e estar a alastrar como pólvora no resto do continente. Com a infundada acusação de traição, Alejandro de La Vega fora dar com os ossos na temível prisão de El Diablo.

Moncada instalara-se com o seu séquito na fazenda, agora convertida em sua residência e quartel-general. O missionário acrescentou que aquele homem tinha feito muito mal em pouco tempo. Também ele estava na mira de Moncada, porque defendia os índios e atrevia-se a cantar-lhe certas verdades, mas pagava-as caras: a missão estava arruinada. Moncada negava-lhe os recursos habituais e, além disso, tinha levado os homens: não restavam braços para trabalhar a terra; só mulheres, crianças e velhos. As famílias indígenas estavam desfeitas, as pessoas desmoralizadas. Corriam rumores sobre um negócio de pérolas, montado por Rafael Moncada, para o qual empregava o trabalho forçado dos índios. As pérolas da Califórnia, mais valiosas que o ouro e a prata de outras colónias, tinham contribuído para o tesouro de Espanha durante dois séculos, mas chegara um momento em que a exploração desmedida acabara com elas, explicou o missionário. Ninguém voltara a recordar-se das pérolas durante cinquenta anos, o que dera tempo às ostras para se recuperarem. As autoridades, ocupadas com outros assuntos e embrenhadas na burocracia, careciam de iniciativa para empreender a busca. Supunha-se que os novos bancos de ostras estavam mais a norte, próximo de Los Angeles, mas ninguém se dera ao trabalho de o confirmar até que aparecera Moncada com umas cartas marítimas. O padre Mendoza julgava que se tinha proposto obter as pérolas sem informar Espanha, visto que, em princípio, estas pertenciam à Coroa. Para as explorar precisava de Carlos Alcázar, chefe da prisão de El Diablo, que providenciava escravos para o mergulho. Estavam ambos a enriquecer com rapidez e discrição. Antigamente, os pescadores de pérolas eram índios Yaquis do México, homens muito fortes, que durante gerações tinham trabalhado no mar e eram capazes de estar quase dois minutos completos debaixo de água, mas transferi-los para a Alta Califórnia teria chamado a atenção. Como alternativa, os sócios decidiram utilizar os índios da região, que não eram exímios nadadores e nunca se teriam prestado de boa vontade àquela faina. Isso não constituía problema: arrastavam-nos com qualquer desculpa e exploravam-nos até lhes rebentarem os pulmões. Embebedavam-nos ou moíam-nos de pancada e ensopavam-lhes a roupa de álcool, após o que os arrastavam à presença do juiz, que fazia vista grossa. Assim, os infelizes iam parar a El Diablo, apesar das desesperadas diligências do missionário. Diego quis saber se o seu pai se encontrava lá, e o padre Mendoza confirmou-lhe que assim era. Dom Alejandro estava doente, fraco, e não sobreviveria muito mais naquele lugar, acrescentou. Era o mais velho e o único branco entre os presos; os restantes eram índios ou mestiços. Quem entrava naquele inferno não saía com vida; tinham morrido vários nos últimos meses. Ninguém se atrevia a falar do que acontecia entre aquelas paredes, nem guardas nem presos; um silêncio sepulcral envolvia El Diablo.

- Já nem sequer posso levar consolo espiritual àquelas pobres almas. Dantes ia com frequência dizer missa, mas tive uma troca de palavras com Carlos Alcázar e proibiram-me a entrada. Em meu lugar virá em breve um sacerdote da Baixa Califórnia.

- Esse Carlos Alcázar é o ferrabrás tão temido quando éramos pequenos? - perguntou Diego.

- O mesmo, filho. Com os anos o seu carácter piorou, é um homem déspota e cobarde. A sua prima Lolita, em contrapartida, é uma santa. A rapariga costumava acompanhar-me à prisão para levar medicamentos, comida e cobertores aos presos, mas, infelizmente, não tem influência sobre Carlos.

- Eu lembro-me de Lolita. A família Pulido é nobre e virtuosa. Francisco, irmão de Lolita, estudava em Madrid. Mantivemos alguma correspondência quando eu estava em Barcelona - comentou Diego.

- Enfim, meu filho, a situação de Dom Alejandro é muito grave; és tu a sua única esperança, tens de intervir com urgência - concluiu o padre Mendoza.

Havia um bom pedaço que Diego se passeava pelo quarto procurando controlar a indignação que o embargava. Da sua cadeira, Bernardo seguia a conversa com os olhos pregados no irmão, enviando-lhe mensagens mentais. O primeiro impulso de Diego fora ir procurar Moncada para se bater com ele, mas o olhar de Bernardo fê-lo compreender que, naquelas circunstâncias, se requeria mais astúcia que coragem; aquela missão competia ao Zorro e seria necessário levá-la a cabo com a cabeça fria. Puxou de um lenço de renda para enxugar a fronte com ar afectado e suspirou.

- Irei a Monterrey falar com o governador. Ele é amigo do meu pai - propôs.

- Já o fiz, Diego. Quando Dom Alejandro foi detido, falei pessoalmente com o governador, mas ele respondeu-me que não tem autoridade sobre Moncada. Tão-pouco me escutou quando lhe sugeri que averiguasse por que razão morrem tantos presos em El Diablo - retorquiu o missionário.

- Então terei de ir ao México falar com o vice-rei.

- Isso demoraria meses! - alegou o padre Mendoza. Custava-lhe a crer que o atrevido rapaz, que trouxera ao mundo com as suas próprias mãos e vira crescer, se tivesse tornado um dândi. Espanha tinha-lhe amolecido o cérebro e os músculos, era uma vergonha. Tinha rezado muito para que Diego regressasse a tempo de salvar o pai e a resposta às suas orações era aquele janota com lencinho de renda. Mal conseguia disfarçar o desprezo que o jovem lhe causava.

O missionário mandou avisar Isabel e Nuria de que o jantar estava à espera e sentaram-se os quatro à mesa. Uma índia trouxe um tacho de greda com umas papas de milho e uns pedaços de carne cozida, dura e insonsa como sola. Não havia pão, vinho nem vegetais; faltava inclusivamente o café, o único vício que o padre Mendoza se permitia. Estavam a comer em silêncio, quando ouviram barulho de cascos e vozes no pátio; momentos mais tarde irrompeu na sala um grupo de homens uniformizados sob o comando de Rafael Moncada.

- Excelência! Que surpresa! - exclamou Diego, sem se pôr de pé.

- Acabo de tomar conhecimento da vossa chegada - retorquiu Moncada, procurando Juliana com o olhar.

- Aqui estamos, tal como lhe prometemos em Barcelona, senhor Moncada. Posso saber como saiu da câmara secreta? - perguntou-lhe Isabel, trocista.

- Onde está a sua irmã? - interrompeu-a Moncada.

- Ah! Encontra-se em Nova Orleães. Tenho o prazer de o notificar de que Juliana está felizmente casada.

- Casada! Não pode ser! Com quem? - gritou o despeitado pretendente.

- Com um endinheirado e bem-parecido homem de negócios, que conseguiu apaixoná-la à primeira vista - explicou Isabel, com a expressão mais inocente do mundo.

Rafael Moncada deu um murro na mesa e apertou os lábios para não soltar uma enfiada de impropérios. Não podia acreditar que Juliana se lhe tivesse escorrido mais uma vez das mãos. Tinha atravessado o mundo, deixado o seu lugar na corte e adiado a sua carreira por ela. Era tanta a sua fúria que, nesse instante, tê-la-ia estrangulado com as suas próprias mãos. Diego aproveitou a pausa para se aproximar de um sargento gordo e suado, que o olhava com olhos de cão manso.

- Garcia? - perguntou.

- Dom Diego de La Vega... Reconheceis-me... Que honra! - murmurou o sargento, feliz.

- Ora essa! O inconfundível Garcia! - exclamou Diego, abraçando-o.

Aquela inapropriada demonstração de afecto entre Diego e o seu próprio sargento desconcertou brevemente Moncada.

- Aproveito esta oportunidade para lhe perguntar pelo meu pai, Excelência - disse Diego.

- É um traidor e como tal será castigado - retorquiu Moncada, cuspindo cada palavra.

- Traidor? Não pode dizer isso do senhor De La Vega, Excelência! O senhor é novo por estas terras, não conhece as pessoas. Mas eu nasci aqui e posso dizer-lhe que a família De La Vega é a mais honrada e distinta de toda a Califórnia... - interveio o sargento Garcia, angustiado.

- Silêncio, Garcia! Ninguém pediu a tua opinião! - interrompeu-o Moncada, fulminando-o com um olhar cortante.

A seguir ladrou uma ordem, e o transpirado sargento não teve outro remédio senão cumprimentar batendo os tacões e encabeçar a retirada dos seus homens. Chegado à porta hesitou e, voltando-se para Diego, fez um gesto de impotência, a que o outro respondeu com uma piscadela de olho de cumplicidade.

- Permito-me recordar-lhe que o meu pai, Dom Alejandro de La Vega, é um fidalgo espanhol, herói de muitas batalhas ao serviço do rei. Só um tribunal espanhol qualificado pode julgá-lo - disse Diego a Moncada.

- O caso dele será investigado pelas autoridades pertinentes no México. Entretanto, o seu pai está a bom recato, onde não pode continuar a conspirar contra Espanha.

- O julgamento durará anos e Dom Alejandro é um ancião. Não pode permanecer em El Diablo - intercedeu o padre Mendoza.

- Antes de violar a lei, De La Vega devia ter pensado que arriscava a perda da sua liberdade e dos seus bens. Pela sua imprudência, o velho condenou a sua família à miséria - replicou Moncada em tom depreciativo.

A mão direita de Diego empunhou a espada, mas Bernardo agarrou-o pelo braço e segurou-o, para lhe recordar a necessidade de ter paciência. Moncada recomendou-lhe que procurasse maneira de ganhar a vida, visto que não dispunha da fortuna do pai, e com isso deu meia volta e saiu atrás dos seus homens. O padre Mendoza deu uma palmada solidária no ombro a Diego e repetiu a sua oferta de hospitalidade. Na missão a vida era austera e esforçada, disse, faltavam as comodidades a que eles estavam habituados, mas, pelo menos, teriam um tecto.

- Obrigado, padre. Um dia lhe contarei o que nos sucedeu desde a morte do meu pobre pai. Verá que percorremos a Espanha a pé, vivemos com ciganos e fomos raptados por piratas. Em mais de uma ocasião salvámos a vida por milagre. No que se refere à falta de comodidades, garanto-lhe que estamos bem curtidos - sorriu Isabel.

- E a partir de amanhã, padre, encarregar-me-ei eu da cozinha, porque aqui come-se pior que na guerra - acrescentou Nuria com um resmungo.

- A missão é muito pobre - desculpou-se o padre Mendoza.

- Com os mesmos ingredientes e um pouco mais de imaginação, comeremos como gente - retorquiu Nuria.

Nessa noite, quando os outros dormiam, Diego e Bernardo escapuliram-se dos seus quartos, agarraram num par de cavalos e, sem se deterem a pôr-lhes selas, partiram galopando em direcção às grutas dos índios onde tantas vezes tinham brincado na infância. Haviam decidido que a primeira coisa seria tirar Alejandro de La Vega da prisão e levá-lo para um lugar seguro, onde Moncada e Alcázar não o pudessem encontrar, seguindo-se então a difícil tarefa de limpar o seu nome da acusação de traição. Aquela era a semana do aniversário de ambos; havia exactamente vinte anos que tinham nascido. Diego achou que era um momento muito importante das suas vidas e quis marcá-lo com algo em especial, razão pela qual propôs ao irmão que fossem às grutas. Além disso, se a passagem que as ligava à fazenda De La Vega não tivesse sido desfeita pelos tremores de terra, talvez pudessem espiar Rafael Moncada.

Diego mal reconhecia o terreno, mas Bernardo conduziu-o sem vacilar à entrada, oculta por cerrados arbustos. Uma vez lá dentro, acenderam uma candeia e conseguiram orientar-se no labirinto de passagens, até darem com a caverna principal. Aspiraram às golfadas o indescritível cheiro subterrâneo de que tanto gostavam quando eram crianças. Diego lembrou-se do dia fatídico em que a sua casa fora assaltada por piratas e se escondera ali com a sua mãe ferida. Pareceu-lhe sentir o cheiro desse momento, um misto de sangue, suor, medo e da escura fragrância da terra. Estava tudo tal como o tinham deixado, desde os arcos e flechas, velas e frascos de mel ali armazenados cinco anos antes, até à Roda Mágica, que haviam feito com pedras quando aspiravam ao Okahué. Diego alumiou o altar circular com um par de archotes e colocou no centro o embrulho que tinha trazido, envolto num tecido escuro e atado com um cordel. - Irmão, esperei este instante por muito tempo. Fizemos vinte anos e estamos os dois preparados para o que te vou propor - anunciou a Bernardo com inesperada solenidade. - Lembras-te das virtudes do Okahué? Honra, justiça, respeito, dignidade e coragem. Procurei que essas virtudes guiassem a minha vida e sei que guiaram a tua.

Ao brilho avermelhado dos archotes, Diego pôs-se a abrir o embrulho, que continha a indumentária completa do Zorro - calças, blusa, capa, botas, chapéu e máscara - e entregou-a a Bernardo.

- Desejo que o Zorro seja o fundamento da minha vida, Bernardo. Dedicar-me-ei a lutar pela justiça e convido-te a acompanhares-me. Juntos multiplicar-nos-emos por mil, confundindo os nossos inimigos. Haverá dois Zorros, tu e eu, mas nunca serão vistos juntos.

O tom de Diego era tão sério que, por uma vez, Bernardo esteve tentado a responder-lhe com um gesto trocista. Deu-se conta de que o seu irmão de leite tinha pensado muito bem naquilo: não se tratava de um impulso nascido ao conhecer a sorte do pai, como provava o disfarce negro que trouxera da sua viagem. O jovem índio desfez-se das calças e com a mesma solenidade de Diego foi vestindo uma a uma as peças de vestuário, até ficar convertido numa réplica do Zorro. Nessa altura, Diego tirou da cintura a espada que comprara em Cuba e, segurando-a com ambas as mãos, ofereceu-lha.

- Juro defender os fracos e lutar pela justiça! - exclamou Diego.

Bernardo recebeu a arma e, num sussurro inaudível, repetiu as palavras do irmão.

Os dois jovens abriram com precaução a porta secreta da lareira que dava para o salão, verificando que, apesar dos anos decorridos, ela deslizava sem ruído no carril. Antigamente preocupavam-se em manter o metal lubrificado e, pelos vistos, cinco anos mais tarde ainda o estava. Os grandes troncos dentro da lareira eram os mesmos de sempre, agora cobertos por uma grossa camada de pó. Ninguém tinha acendido a fogueira em todo esse tempo. O resto da divisão estava intacto: os mesmos móveis comprados por Alejandro de La Vega no México para lisonjear a esposa, o mesmo grande candeeiro de cento e cinquenta velas no tecto, a mesma mesa de madeira e cadeiras estofadas, as mesmas pretensiosas pinturas. Tudo estava igual; contudo, pareceu-lhes que a casa era mais pequena e triste do que recordavam. Uma patina de esquecimento desfeava-a, um silêncio de cemitério pesava no ar, um cheiro a fechado e sujidade impregnava as paredes. Deslizaram como gatos pelos corredores, mal iluminados por umas quantas lanternas. Dantes havia um velho criado cuja única tarefa era fornecer luz; o homem dormia de dia e passava a noite a vigiar velas e candeeiros de sebo. Perguntaram a si mesmos se esse velho e outros antigos criados ainda viveriam na fazenda, ou se Moncada os tinha substituído pela sua própria gente.

Àquela hora tardia, os cães descansavam e só um homem montava guarda no pátio principal, com a arma ao ombro, lutando por manter os olhos abertos. Os dois jovens descobriram o dormitório dos soldados, onde contaram doze macas suspensas a diferentes alturas, umas por cima das outras, embora só oito estivessem ocupadas. Noutra divisão havia um arsenal de armas de fogo, pólvora e sabres. Não se atreveram a explorar os restantes compartimentos, por medo de serem surpreendidos, mas através de uma porta entreaberta vislumbraram Rafael Moncada a escrever ou a fazer contas na biblioteca. Diego abafou uma exclamação de raiva ao ver o seu inimigo instalado na cadeira do pai, usando o seu papel e a sua tinta. Bernardo deu-lhe uma cotovelada para que partissem; aquela expedição estava a ficar perigosa. Retiraram-se com sigilo pelo mesmo sítio por onde tinham entrado, depois de soprarem o espesso pó da lareira a fim de apagarem o rasto.

Chegaram à missão ao romper da aurora, hora a que Diego sentiu pela primeira vez a martelada da fadiga acumulada desde que desembarcara na praia, no dia anterior. Caiu na cama de bruços e dormiu até bem entrada a manhã seguinte, quando Bernardo o acordou para o avisar de que os cavalos estavam prontos. A ideia de ir ver Toypurnia e pedir-lhe ajuda para resgatar Alejandro de La Vega tinha sido sua. Não viram o padre Mendoza, que partira cedo para Los Angeles, mas Nuria serviu-lhes um pequeno-almoço notável de feijões, arroz e ovos estrelados. Isabel apareceu à mesa com o cabelo apanhado numa trança, saia de viagem e uma blusa de linho como as que os neófitos da missão usavam, anunciando que iria com eles, porque queria conhecer a mãe de Diego e ver como era uma aldeia de índios.

- Nesse caso terei de ir também - rezingou Nuria, que achava muito pouca graça a uma longa cavalgada naquela terra de bárbaros.

- Não. O padre Mendoza precisa de ti aqui. Voltaremos depressa - replicou Isabel, dando-lhe um beijo de consolação.

Os três jovens partiram nos melhores cavalos da missão, levando mais um com a bagagem. Teriam de viajar todo esse dia, acampar de noite sob as estrelas e iniciar a subida às montanhas na manhã seguinte. Para evitar os soldados, a tribo tinha partido para o mais longe possível e mudava de sítio amiúde, mas Bernardo sabia localizá-la. Isabel, que aprendera a montar escarranchada, mas não tinha o costume de longas cavalgadas, seguiu os seus dois amigos sem se queixar. Na primeira paragem que fizeram para se refrescarem num regato e repartirem a merenda preparada por Nuria, apercebeu-se de como estava dorida. Diego fez troça dela porque andava como um pato, mas Bernardo deu-lhe uma pomada de ervas, preparada por Coruja Branca, para esfregar os membros doridos.

No dia seguinte ao meio-dia, Bernardo assinalou umas marcas nas árvores que indicavam a proximidade de uma tribo; era assim que avisavam outros índios quando mudavam de lugar. Instantes depois, saiu-lhes ao encontro um par de homens quase nus, com os corpos pintados e os arcos prontos, mas, ao reconhecerem Bernardo, baixaram as armas e aproximaram-se para cumprimentar. Feitas as devidas apresentações, conduziram-nos por entre as árvores até à aldeia, um miserável conjunto de palhotas entre as quais pululavam uns quantos cães. Os índios assobiaram e daí a poucos minutos materializaram-se do nada os habitantes daquela fantasmagórica vitória, um patético grupo de índios, alguns nus e outros em farrapos. Com horror, Diego reconheceu a sua avó Coruja Branca e a mãe. Precisou de vários segundos para se refazer da angústia ao vê-las tão mal, desmontar de um salto e correr a abraçá-las. Tinha esquecido como os índios eram pobres, mas não esquecera a fragrância de fumo e de ervas da avó, que lhe chegou directo à alma, assim como o novo aroma da mãe. Regina cheirava a sabonete de leite e água de flores; Toypurnia cheirava a salva e suor.

- Como tu cresceste, Diego... - murmurou a mãe. Toypurnia falava-lhe na língua indígena, os primeiros sons que Diego ouvira na infância e que não esquecera. Nesse idioma podiam acariciar-se; em espanhol tratavam-se com formalidade, sem se tocarem. A primeira língua era para sentimentos, a segunda para ideias. As mãos calejadas de Toypurnia apalparam o filho, os braços, o peito, o pescoço, reconhecendo-o, medindo-o, assustada com as mudanças. Depois calhou a vez à avó de lhe dar as boas-vindas. Coruja Branca levantou-lhe o cabelo para lhe estudar as orelhas, como se essa fosse a única forma de o identificar sem margem de erro. Diego desatou a rir com vontade e, tomando-a pela cintura, levantou-a um palmo do chão. Pesava muito pouco, era como levantar uma criança, mas debaixo dos trapos e peles de coelho que a cobriam, Diego pôde apreciar um corpo fibroso e duro, pura madeira. Não estava tão velha nem tão frágil como lhe parecera à vista desarmada.

Bernardo só tinha olhos para Raio na Noite e para o filho, o pequeno Diego, um menino de cinco anos, da cor e da firmeza de um tijolo, com olhos retintos e o mesmo riso da mãe, nu e armado de um arco e flechas em miniatura. Diego, que conhecera Raio na Noite na infância, quando visitava a aldeia da avó, pelas escassas referências telepáticas de Bernardo e uma carta do padre Mendoza, ficou impressionado com a sua beleza. Com ela e o menino, Bernardo parecia outro homem, crescia em tamanho e iluminava-se-lhe a expressão.

Passada a primeira euforia do encontro, Diego lembrou-se de os apresentar a Isabel, que observava a cena a uma certa distância. Pelos episódios que Diego lhe contara da mãe e da avó, imaginava-as como figuras de quadros epopeicos, onde os conquistadores aparecem retratados em refulgentes armaduras e os indígenas americanos se afiguram semideuses emplumados. Aquelas mulheres escanzeladas, desgrenhadas e sujas não se pareciam, nem remotamente, com as dos quadros dos museus, mas tinham a mesma dignidade. Não podia comunicar com a avó, mas pouco tempo depois de chegar tinha confraternizado com Toypurnia. Propôs-se visitá-la amiúde, porque imaginava que podia aprender muito com aquela estranha e sábia mulher. «Quem me dera ser igualmente indómita», pensou. A simpatia foi mútua, porque Toypurnia gostou da jovem espanhola dos olhos tortos. Acreditava que isso indicava a capacidade de ver o que os outros não viam.

Da tribo restava um grupo numeroso de crianças, mulheres e velhos, mas apenas cinco caçadores, que tinham de se afastar muito para obterem uma presa, porque os brancos haviam repartido o terreno entre si e defendiam-no a tiro. Às vezes, a fome incitava-os a roubar gado, mas se eram surpreendidos pagavam-no com chicotadas ou a forca. A maioria dos homens estava empregada nos ranchos, mas o clã de Coruja Branca e Toypurnia preferira a liberdade, com todos os seus riscos. Não tinham problemas com tribos guerreiras, graças à reputação de xamãs e curandeiras das duas mulheres. Se chegavam desconhecidos ao acampamento, era para pedir conselhos e remédios, que retribuíam com comida e peles. Haviam sobrevivido, mas desde que Rafael Moncada e Carlos se dedicavam a deter os homens jovens, não podiam ficar num lugar fixo. A vida nómada acabara com as plantações de milho e outros cereais; tinham de se conformar com cogumelos e frutos selvagens, peixe e carne quando conseguiam.

Bernardo e Raio na Noite trouxeram o presente que tinham para Diego, um corcel negro, de grandes olhos inteligentes. Era Tornado, o potro sem mãe que Bernardo conhecera durante o seu rito de iniciação, sete anos antes, e que Raio na Noite tinha amansado e ensinara a obedecer com assobios. Era um animal de nobre estampa, um companheiro esplêndido. Diego acariciou-lhe o nariz e mergulhou a cara nas suas longas crinas, repetindo o seu nome.

- Teremos de te manter escondido, Tornado. Só o Zorro te montará - disse-lhe, e o cavalo respondeu com um relincho e uma sacudidela da cauda.

O resto da tarde passou-se a assar uns mapaches(1) e pássaros que tinham conseguido caçar e em porem-se em dia relativamente às más notícias. Ao cair da noite, Isabel, extenuada, embrulhou-se numa manta e adormeceu junto ao fogo. Entretanto, Toypurnia ouviu da boca do filho a tragédia de Alejandro de La Vega. Confessou-lhe que sentia saudades dele; era o único homem que amara, mas não tinha podido manter-se casada com ele. Preferia a miserável existência nómada da sua tribo aos luxos da fazenda, onde se sentia prisioneira. Passara a infância e a juventude ao ar livre, não suportava a opressão das paredes de adobe e de um tecto sobre a cabeça, a arrogância dos costumes, a incomodidade dos vestidos espanhóis, o peso do cristianismo. Com a idade, Alejandro tornara-se mais severo a julgar o próximo. No fim tinham pouco em comum e, quando o filho os deixara para rumar a Espanha e a paixão da juventude lhes esfriara, não tinha ficado nada. Não obstante, comoveu-a ouvir a sorte do marido e ofereceu a sua ajuda para o resgatar da masmorra,

 

*1. Mapache (Procyon lotor) - mamífero carnívoro procionídeo, de pelagem de cor amarela-acinzentada, com uma característica mancha negra nos olhos e na face, semelhante ao guaxinim ou mão-pelada. (N. do T.)

 

e escondê-lo no mais recôndito da natureza. A Califórnia era muito vasta e ela conhecia quase todos os caminhos. Confirmou-lhe que as suspeitas do padre Mendoza eram verdadeiras.

- Há um par de meses que têm uma barcaça grande fundeada no mar, perto dos bancos de ostras, e transportam os presos em botes pequenos - disse Toypurnia.

Explicou-lhe que tinham levado vários jovens da tribo e que os obrigavam a mergulhar desde o amanhecer até ao pôr do Sol. Largavam-nos até ao fundo amarrados a uma corda, com uma pedra como peso e um cesto para colocar as ostras. A colheita do dia era depositada na barcaça, onde outros presos abriam as ostras à procura das pérolas, tarefa que dava cabo das mãos. Toypurnia supunha que entre estes estava Alejandro, porque era demasiado velho para mergulhar. Acrescentou que os presos dormiam na praia, acorrentados sobre a areia, e passavam fome, porque ninguém pode viver só de ostras.

- Não vejo como podes salvar o teu pai desse inferno - disse.

Seria impossível enquanto estivesse no barco, mas Diego sabia, pelo padre Mendoza, que um sacerdote visitaria a prisão. Moncada e Alcázar, que tinham de manter em segredo o assunto das pérolas, haviam suspendido a operação por uns dias, para que os presos se achassem em El Diablo quando o padre chegasse. Essa seria a sua única oportunidade, explicou. Compreendeu que seria impossível ocultar a identidade do Zorro da mãe e da avó; precisava delas neste caso. Ao falar-lhes do Zorro e dos seus planos, ele próprio se apercebeu de que as suas palavras soavam a pura demência, pelo que o surpreendeu que as duas mulheres não se perturbassem, como se a ideia de pôr uma máscara e assaltar El Diablo fosse um assunto normal. As duas prometeram guardar o segredo. Combinaram que dentro de uns dias Bernardo, acompanhado por três homens da tribo, os mais atléticos e corajosos, compareceriam com vários cavalos em La Cruz de Las Calaveras, a poucas léguas de El Diablo, um cruzamento de caminhos onde tinham enforcado dois bandidos. As suas caveiras, branqueadas pela chuva e pelo sol, continuavam expostas sobre uma cruz de madeira. Aos índios não comunicariam os pormenores, porque quanto menos soubessem, melhor, no caso de serem detidos.

Diego explicou em traços largos o seu plano para resgatar o pai e, dentro do possível, os restantes presos. A maioria eram indígenas, conheciam muito bem o terreno e, se dispusessem de alguma vantagem, correriam a perder-se na natureza. Coruja Branca contou-lhe que muitos índios trabalharam na construção de El Diablo, entre eles o seu próprio irmão, a quem os brancos chamavam Arsénio, mas cujo nome verdadeiro era Olhos que Vêem na Sombra. Era cego, e os índios supunham que aqueles que nascem sem ver a luz do Sol podem ver na escuridão, como os morcegos, e Arsénio era um bom exemplo. Tinha habilidade manual, fabricava ferramentas e era capaz de reparar qualquer mecanismo. Conhecia a prisão como ninguém, movia-se lá dentro sem tropeços, porque era o seu único mundo desde havia quarenta anos. Já trabalhava lá muito antes da chegada de Carlos e tinha na sua prodigiosa memória a conta de todos os prisioneiros que haviam passado por El Diablo. A avó entregou a Diego umas penas de coruja.

- Talvez o meu irmão te possa ajudar. Se o vires, diz-lhe que és meu neto e dá-lhe as penas; assim saberá que não estás a mentir - disse.

No dia seguinte muito cedo, Diego empreendeu a viagem de regresso à missão, depois de combinar com Bernardo o sítio e o momento em que voltariam a encontrar-se. Bernardo ficou com a tribo para preparar a sua parte do equipamento, com alguns materiais que tinham subtraído da missão nas costas do padre Mendoza. «Este é um dos raros casos em que o fim justifica os meios», assegurara Diego, enquanto saqueavam a arrecadação do missionário à procura de uma corda comprida, salitre, pó de zinco e mechas.

Antes de partir, o jovem perguntou à mãe por que razão tinha escolhido o nome de Diego para ele.

- Era assim que se chamava o meu pai, o teu avô espanhol: Diego Salazar. Era um homem valente e bom, que compreendia a alma dos índios. Desertou do navio porque queria ser livre; nunca aceitou a obediência cega que lhe era exigida a bordo. Respeitava a minha mãe e adaptou-se aos costumes da nossa tribo. Ensinou-me muitas coisas, entre outras o castelhano. Porque mo perguntas? - retorquiu Toypurnia.

- Sempre tive curiosidade. Sabias que Diego quer dizer suplantador?

- Não. O que é isso?

- Alguém que toma o lugar de outro - explicou Diego.

Diego despediu-se dos seus amigos na missão para ir a Monterrey, como anunciou. Insistiria com o governador para que fizesse justiça no caso do pai. Não quis ir acompanhado; disse que faria a viagem sem esforço, parando nas missões ao longo do Camino Real. O padre Mendoza viu-o afastar-se montado num cavalo, com outro atrás, que transportava os sacos da bagagem. Tinha a certeza de que era uma viagem inútil, uma perda de tempo que podia custar a vida a Dom Alejandro, porque cada novo dia que o ancião passava em El Diablo podia ser o último. Os seus argumentos não haviam surtido efeito em Diego.

Assim que deixou para trás a missão, Diego saiu do caminho e, dando meia volta, dirigiu-se a um campo aberto em direcção a sul. Confiava que Bernardo teria preparado o que lhe competia e estaria à sua espera na Cruz de Las Calaveras.

Horas mais tarde, quando faltava pouco para chegar ao local designado, mudou de roupa. Vestiu o remendado hábito de frade que tinha subtraído ao bom padre Mendoza, colou uma barba, improvisada com umas madeixas do cabelo de Coruja Branca, e completou o disfarce com os óculos de Nuria. A ama devia andar à procura deles por todo o lado. Chegou ao cruzamento onde as caveiras dos bandidos saudavam, cravadas nos paus da cruz, e não teve de esperar muito; não tardou que Bernardo e três índios jovens saíssem do nada, vestidos apenas de tanga, armados de arcos e flechas, com os corpos pintados para a guerra. Bernardo não lhes revelou a identidade do viajante e tão-pouco deu explicações quando entregou os sacos com as bombas e a corda ao presumível religioso. Os irmãos trocaram uma piscadela de olho: estava tudo pronto. Diego notou que entre a meia dúzia de cavalos conduzidos pelos índios se achava Tornado e não pôde resistir à tentação de se aproximar para lhe acariciar o pescoço, antes de se despedir.

Diego tomou o caminho para a prisão a pé; pareceu-lhe que assim o seu aspecto era inofensivo, uma patética silhueta na reverberação branca do sol. Um dos cavalos carregava a sua bagagem e o outro os artigos preparados por Bernardo, incluindo uma grande cruz de madeira, de cinco palmos de altura. Ao assomar ao topo de uma pequena colina, pôde ver o mar ao longe e distinguir a mancha negra do sombrio edifício de El Diablo, erguido sobre os rochedos. Tinha sede e o hábito encharcado de suor, mas apressou o passo, porque estava ansioso por ver o pai e iniciar a aventura. Caminhara uns vinte minutos quando sentiu barulho de cascos e viu a poeira de uma carruagem. Não pôde evitar uma exclamação de ira: aquilo vinha complicar-lhe os planos, porque ninguém andava por aqueles lados, a menos que se dirigisse à fortaleza. Agachou a cabeça, ajeitou o capuz e assegurou-se de que a barba estava no sítio. O suor podia soltá-la, apesar de ter utilizado uma cola espessa, feita com a mais firme resina.

O coche deteve-se ao seu lado e, para sua imensa surpresa, uma jovem de muito bom aspecto assomou à janela.

- O senhor deve ser o sacerdote que vem à prisão, não é verdade? Estávamos à sua espera, padre - cumprimentou.

O sorriso da rapariga era encantador e o coração caprichoso de Diego deu um salto. Começava a recuperar-se do despeito causado por Juliana e estava capaz de admirar outras mulheres, especialmente uma tão engraçada como aquela. Teve de fazer um esforço para se lembrar do seu novo papel.

- Com efeito, filha, sou o padre Aguilar - respondeu com a voz mais apagada possível.

- Suba para o meu coche, padre; assim poderá descansar um pouco. Eu também vou a El Diablo ver o meu primo - revelou ela.

- Que Deus te pague, minha filha.

Com que então aquela beldade era Lolita Pulido! A mesma menina magra que lhe mandava bilhetes amorosos quando ele tinha quinze anos. Que golpe de sorte! Era-o na verdade, porque, quando o coche de Lolita chegou à prisão, com os dois cavalos do falso padre amarrados atrás, Diego não teve de dar explicações. Mal o cocheiro anunciou a jovem e o padre Aguilar, os guardas abriram-lhes as portas e receberam-nos com amabilidade. Lolita era uma figura conhecida; os soldados tratavam-na pelo nome e até um par de presos que se achavam no cepo lhe sorriram. «Dai água a esses pobres homens, estão a torrar ao sol», suplicou ela a um guarda, que correu a cumprir os seus desejos. Entretanto, Diego observava o edifício e contava à socapa os militares. Com a sua corda poderia escorregar pelo muro até ao exterior, mas não fazia ideia de como tirar de lá o pai; a prisão parecia inexpugnável e havia demasiados guardas.

Os visitantes foram de imediato conduzidos ao gabinete de Carlos Alcázar, uma sala sem mais móveis que uma mesa, cadeiras e estantes com os livros de registo da prisão.

Naqueles gastos calhamaços anotava-se desde a despesa em forragem de cavalos até às mortes dos presos, tudo menos as pérolas, que passavam directamente da ostra aos cofres de Moncada e Alcázar, sem deixar rastos visíveis. A um canto, uma estátua de gesso pintado da Virgem Maria esmagava o demónio com o pé. - Bem-vindo, padre - cumprimentou Carlos Alcázar, depois de beijar nas faces a prima, pela qual continuava tão apaixonado como na infância. - Só o esperávamos amanhã.

Diego, com a cabeça de banda, os olhos baixos, a voz untuosa, respondeu recitando a primeira coisa que lhe veio à cabeça em latim e coroou-a com um enfático sursum corda, que não vinha a propósito, mas se revelou esmagador. Carlos ficou a zero: nunca fora bom aluno em línguas mortas. Ainda era novo, não podia ter mais de uns vinte e três ou vinte e quatro anos, mas parecia mais velho pela expressão cínica. Tinha uns lábios cruéis e olhos de ratazana. Diego pensou que Lolita não podia ser da mesma família; aquela rapariga merecia melhor sorte do que ser prima de Carlos.

O substituto de padre aceitou um copo de água e anunciou que no dia seguinte diria missa, confessaria e daria a comunhão a quem pedisse os sacramentos. Estava muito cansado, acrescentou, mas desejava ver nessa mesma tarde os presos doentes e os castigados, incluindo o par que estava no cepo. Lolita juntou-se ao programa: entre outras coisas trazia uma caixa com remédios, que pôs à disposição do padre Aguilar.

- A minha prima tem o coração muito mole, padre. Já lhe disse que El Diablo não é lugar recomendável para meninas, mas ela não me dá ouvidos. Também não quer perceber que a maioria destes homens são animais sem moral nem sentimentos, capazes de morder a mão de quem lhes dá de comer.

- Ainda nenhum me mordeu, Carlos - redarguiu Lolita.

- Jantaremos daqui a pouco, padre. Não espere nenhum banquete; aqui vivemos com modéstia - disse Alcázar.

- Não vos preocupeis, meu filho, eu como muito pouco e esta semana estou a jejuar. Pão e água serão suficientes. Prefiro uma merenda no meu quarto, porque depois de ver os doentes tenho de rezar as minhas orações.

- Arsénio! - chamou Alcázar.

Um índio surgiu das sombras. Tinha estado todo o tempo no seu canto, tão silencioso e imóvel que Diego não dera pela sua presença. Reconheceu-o pela descrição de Coruja Branca. Tinha os olhos velados por uma película branca, mas movia-se com precisão.

- Conduz o padre ao seu quarto, para que se refresque. Fica às suas ordens, ouviste? - ordenou Alcázar.

- Sim, senhor.

- Podes levá-lo a ver os doentes.

- Ao Sebastián também, senhor?

- Não, a esse desgraçado não.

- Porquê? - interveio Diego.

- Esse não está doente. Tivemos de lhe aplicar umas chicotadas; nada de grave, não se preocupe, padre.

Lolita desatou a chorar: o primo tinha-lhe prometido que não haveria mais castigos desse tipo. Diego deixou-os a discutir e seguiu Arsénio até ao quarto que lhe tinham destinado, onde o esperavam intactos os sacos da sua bagagem, incluindo a grande cruz.

- O senhor não é um homem da igreja - disse Arsénio, quando ficaram de porta fechada no quarto do hóspede.

Diego teve um sobressalto de susto; se um cego era capaz de adivinhar que estava disfarçado, não tinha esperança de enganar os que viam.

- Não tem cheiro a padre - acrescentou Arsénio, à guisa de explicação.

- Não? A que cheiro eu? - perguntou Diego, admirado, porque vestia o hábito do padre Mendoza.

- A cabelo de índia e a cola para madeira - retorquiu Arsénio.

O jovem levou a mão à barba postiça e não conseguiu evitar uma gargalhada. Decidiu aproveitar a ocasião, porque certamente não haveria outra, e confessou a Arsénio que tinha vindo numa missão particular e precisava da sua ajuda. Pôs-lhe nas mãos as penas da avó. O cego apalpou-as com os seus dedos clarividentes e a emoção ao reconhecer a irmã plasmou-se-lhe no rosto. Diego esclareceu-lhe que era o neto de Coruja Branca e isso bastou para que Arsénio se abrisse; não tinha notícias dela havia anos, declarou. Confirmou-lhe que El Diablo tinha sido fortaleza, antes de ser prisão, e que ele ajudara a construí-la, após o que havia ficado a servir os soldados e agora os carcereiros. A existência sempre fora dura dentro daqueles muros, mas desde que Carlos Alcázar estava à frente era um inferno; a ganância e crueldade daquele homem eram indescritíveis, explicou. Alcázar impunha trabalhos forçados e castigos brutais aos prisioneiros, ficava com o dinheiro destinado à comida e alimentava-os com as sobras do rancho dos soldados. Naquele momento havia um agónico, outros com febre por causa do contacto com medusas venenosas e vários com os pulmões rebentados, a deitar sangue pelo nariz e pelos ouvidos.

- E Alejandro de La Vega? - perguntou Diego, em pulgas.

- Não durará muito mais; perdeu a vontade de viver, já quase não se mexe. Os outros presos fazem o trabalho dele, para não o castigarem, e dão-lhe a comida à boca - disse Arsénio.

- Por favor, Olhos que Vêem na Sombra, leva-me até onde

ele está.

Lá fora, o Sol ainda não se punha, mas dentro a prisão estava escura. Os grossos muros e as janelas estreitas mal deixavam entrar a luz.

Arsénio, que não precisava de uma candeia para se orientar, agarrou Diego por uma manga e conduziu-o sem vacilar pelos corredores na penumbra e pelas estreitas escadas do edifício até aos calabouços da cave, que tinham sido adicionados à fortaleza quando decidiram utilizá-la como prisão. Aquelas celas achavam-se debaixo do nível da água e quando a maré subia infiltrava-se humidade, produzindo uma patina esverdeada sobre as pedras e um cheiro nauseabundo. O guarda de turno, um mestiço picado da varíola, com um bigode de foca, abriu a grade de ferro que dava acesso a um corredor, e entregou a Arsénio o molho das chaves. Diego ficou surpreendido com o silêncio. Supunha que havia vários prisioneiros, mas, aparentemente, estes achavam-se tão esgotados e débeis que não emitiam sequer um murmúrio. Arsénio dirigiu-se a um dos calabouços, apalpou o molho de chaves, escolheu a adequada e abriu a grade sem hesitações. Diego precisou de vários segundos para adaptar a vista à escuridão e distinguir umas silhuetas recostadas contra a parede e um vulto no chão. Arsénio acendeu uma vela e ele ajoelhou junto do pai, tão emocionado que não conseguiu pronunciar nem uma palavra. Levantou com cuidado a cabeça de Alejandro de La Vega e pô-la no regaço, afastando-lhe da fronte as madeixas acaçapadas de cabelo. À luz da trémula chama, conseguiu vê-lo melhor e não o reconheceu. Nada restava do bem-parecido e soberbo fidalgo, herói de antigas batalhas, alcaide de Los Angeles e próspero fazendeiro. Estava imundo, escanzelado, com a pele gretada e terrosa, tremia de febre, tinha os olhos colados de remelas e escorria-lhe um fio de saliva pelo queixo.

- Dom Alejandro, consegue ouvir-me? Este é o padre Aguilar... - disse Arsénio.

- Vim socorrê-lo, senhor, vamos tirá-lo daqui - murmurou Diego.

Os outros três homens que havia na cela tiveram um lampejo de interesse, mas logo voltaram a recostar-se contra a parede. Estavam para além da esperança.

- Dê-me os últimos sacramentos, padre. Já é tarde para mim - murmurou o doente num fio de voz.

- Não é tarde. Vamos, senhor, sente-se... - suplicou-lhe Diego.

Conseguiu soerguê-lo e dar-lhe a beber água, após o que lhe limpou os olhos com a borda molhada do hábito.

- Faça um esforço para se pôr de pé, senhor, porque para sair tem de andar - insistiu Diego.

- Deixe-me, padre, não sairei daqui com vida.

- Sairá, sim. Garanto-lhe que verá novamente o seu filho e não quero dizer no céu, mas sim neste mundo...

- O meu filho, disse?

- Sou eu, Diego, Vossa Mercê não me reconhece? - sussurrou o frade, procurando que os outros não ouvissem.

Alejandro de La Vega observou-o por uns segundos, tentando fixar a vista com os seus olhos nublados, mas não encontrou a imagem conhecida naquele frade encapuçado e hirsuto. Sempre num murmúrio, o jovem explicou-lhe que estava de hábito e barba postiça porque ninguém devia saber que se encontrava em El Diablo.

- Diego... Diego... Deus escutou a minha súplica! Rezei tanto para voltar a ver-vos antes de morrer, meu filho!

- Vossa Mercê foi sempre um homem valente e esforçado. Não me deixeis ficar mal, peço-vos. Tendes de viver. Agora tenho de partir, mas preparai-vos, porque daqui a pouco virá um amigo meu resgatá-lo.

- Dizei ao vosso amigo que não é a mim que deve libertar, Diego, mas sim aos meus companheiros. Devo-lhes muito, tiraram o pão da boca para mo darem.

Diego voltou-se, a fim de olhar para os outros presos, três índios tão sujos e magros como o pai, com a mesma expressão de absoluto desalento, mas jovens e ainda sãos. Pelos vistos, aqueles homens tinham conseguido alterar em poucas semanas o sentido de superioridade que sustivera o fidalgo espanhol durante a sua longa vida. Pensou nas voltas do destino. O comandante Santiago de León tinha-lhe dito uma vez, quando observavam as estrelas no mar alto, que, se uma pessoa viver o suficiente, consegue rever as suas convicções e emendar algumas.

- Sairão com Vossa Mercê, prometo-vos - assegurou-lhe Diego, ao despedir-se.

Arsénio deixou o suposto sacerdote no seu quarto e depois levou-lhe uma singela merenda de pão velho, sopa aguada e um copo de vinho ordinário. Diego apercebeu-se de que tinha uma fome de lobo e lamentou ter anunciado a Carlos Alcázar que estava a fazer jejum. Não havia razão para ter levado tão longe a impostura. Pensou que a essa mesma hora Nuria devia estar a preparar um estufado de rabo de boi na Missão San Gabriel.

- Eu vim só explorar o terreno, Arsénio. Outra pessoa tentará soltar os presos e levar Dom Alejandro de La Vega para lugar seguro. Trata-se do Zorro, um valente cavaleiro vestido de preto e mascarado, que aparece sempre que é preciso fazer justiça - explicou ao cego.

Arsénio julgou que brincava com ele. Nunca tinha ouvido falar de semelhante personagem; havia cinquenta anos que via injustiça por todo o lado sem que ninguém tivesse mencionado um mascarado. Diego assegurou-lhe de que as coisas iam mudar na Califórnia, iam ver quem era o Zorro! Os fracos receberiam protecção e os malvados provariam o fio da sua espada e o golpe do seu chicote. Arsénio desatou a rir, agora completamente convencido de que aquele homem não estava bom da cabeça.

- Julgais que Coruja Branca me teria mandado falar convosco caso se tratasse de uma brincadeira? - exclamou Diego, já zangado.

Aquele argumento pareceu ter um certo efeito sobre o índio, porque perguntou como pensava o Zorro libertar os presos, considerando que nunca ninguém tinha escapado de El Diablo. Não se podia propriamente sair com toda a tranquilidade pela porta principal. Diego explicou-lhe que, por muito magnífico que o mascarado fosse, não podia fazê-lo sozinho: precisava de ajuda. O outro ficou a pensar um bom bocado e informou-o, por fim, de que havia outra saída, mas não sabia se estava em boas condições. Quando construíram a fortaleza, tinham escavado um túnel como via de fuga em caso de cerco. Nessa época eram frequentes os assaltos de piratas e dizia-se que os Russos pensavam apoderar-se da Califórnia. O túnel, que nunca fora usado e do qual já ninguém se lembrava, emergia no meio de um bosque cerrado, a curta distância, para oeste, precisamente num antigo lugar sagrado dos índios.

- Bendito seja Deus! Isso é justamente aquilo de que preciso, quer dizer, de que o Zorro precisa. Onde fica a entrada do túnel?

- Se esse Zorro aparecer, mostrar-lha-ei - retorquiu Arsénio em tom trocista.

Uma vez a sós, Diego passou a abrir a sua equipagem, que continha o fato negro, o chicote e uma pistola. Nos sacos de Bernardo encontrou a corda, uma âncora metálica e vários recipientes de greda. Eram as bombas de fumo, preparadas com nitrato e pó de zinco, segundo as instruções copiadas, juntamente com outras curiosidades, dos livros do comandante Santiago de León. Tinha planeado fazer uma daquelas bombas para pregar um susto a Bernardo; nunca imaginara que seria para salvar o pai. Tirou a barba com bastante dificuldade, mordendo-se para não gritar de dor com os repelões. Ficou com a cara irritada, como se a tivesse queimado, e decidiu que não valia a pena colar o bigode, bastando a máscara, mas que, mais tarde ou mais cedo, teria de deixar crescer o bigode. Lavou-se com a água que Arsénio deixara numa bacia e vestiu-se de Zorro. Seguidamente, pôs-se a desarmar a grande cruz de madeira e extraiu lá de dentro a sua espada. Calçou as luvas de pele e fez uns passes, experimentando a flexibilidade do aço e a firmeza dos seus músculos. Sorriu satisfeito.

Assomou à janela, viu que lá fora já estava escuro e supôs que Carlos e Lolita teriam jantado e provavelmente estariam nos seus quartos. A prisão achava-se tranquila e em silêncio; tinha chegado o momento de agir. Pôs o chicote e a pistola à cinta, embainhou a espada e dispôs-se a sair. «Em nome de Deus!», murmurou, cruzando os dedos, para que ao desígnio divino se somasse a boa sorte. Tinha memorizado o plano do edifício e contado os degraus da escada, para se deslocar sem luz. O fato escuro permitia-lhe desaparecer na sombra e confiava em que não houvesse demasiada vigilância.

Deslizando sem fazer barulho, chegou a um dos terraços e procurou onde esconder as bombas, que foi trazendo duas a duas. Eram pesadas e não podia correr o risco de que lhe caíssem. Na última viagem pôs ao ombro a corda enrolada e a âncora de ferro. Depois de se certificar de que as bombas estavam a bom recato, saltou do terraço para a muralha periférica que cercava a prisão, feita de pedra e argamassa, com largura suficiente para que as sentinelas passeassem e iluminada por archotes de cinquenta em cinquenta passos. Do seu refúgio viu passar um guarda e contou os minutos até passar o segundo. Quando teve a certeza de que só havia dois homens a circular, calculou que disporia do tempo à justa para executar o passo seguinte. Correu acaçapado até à ala Sul da prisão, porque tinha combinado com Bernardo que o esperasse nesse sítio, onde um pequeno promontório de rochedos poderia facilitar a escalada.

Ambos conheciam os arredores da prisão porque em mais de uma ocasião os tinham explorado na infância. Uma vez localizado o sítio preciso, deixou passar a sentinela antes de pegar num dos archotes e traçar com ele vários arcos de luz; era o sinal para Bernardo. Depois prendeu a âncora de ferro no muro e lançou a corda para o exterior, rezando para que alcançasse o chão e o seu irmão a visse. Teve de se esconder de novo, porque se aproximava a segunda sentinela, que parou a olhar o céu a dois palmos da âncora metálica. O coração deu-lhe um salto, sentindo que se lhe molhava a máscara de suor ao ver que as pernas do homem estavam tão perto da âncora que poderia tocá-la. Se isso acontecesse, teria de lhe dar um empurrão e precipitá-lo por cima da muralha, mas esse tipo de violência repugnava-lhe. Tal como explicara uma vez a Bernardo, o maior desafio era fazer justiça sem manchar a consciência com sangue alheio. Bernardo, sempre com os pés bem assentes na terra, tinha-lhe feito ver que esse ideal nem sempre seria possível. O guarda retomou o seu passeio no mesmo momento em que Bernardo puxava a corda de baixo, movendo a âncora. O barulho pareceu atroador ao Zorro, mas a sentinela só vacilou por uns segundos, após o que ajeitou a arma ao ombro e continuou o seu caminho. Com um suspiro de alívio, o mascarado assomou ao outro lado da parede. Embora não conseguisse ver os seus companheiros, a tensão da corda indicava-lhe que estes tinham iniciado a escalada. Tal como previra, os quatro chegaram ao cimo justamente a tempo de se esconderem antes de ouvirem os passos do outro guarda na sua ronda. O Zorro indicou aos índios a localização da saída do túnel no bosque, tal como Arsénio lhe dissera, e pediu a dois deles que descessem ao pátio da prisão e espantassem os cavalos da guarnição para evitar que os soldados os seguissem. Depois cada um partiu para executar

a sua tarefa.

O Zorro voltou ao terraço onde escondera as bombas e, depois de trocar com Bernardo um breve ladrido de coiote, foi-as atirando uma a uma para a muralha. Ficou com duas, que lhe calhavam a ele, para as usar dentro do edifício. Bernardo acendeu as mechas das suas e passou-as ao índio que o acompanhava, e ambos correram ao longo do muro, silenciosos e velozes, tal como faziam quando iam à caça. Posicionaram-se em diferentes lugares e, no momento em que as chamas consumiam as mechas, atingindo o conteúdo das vasilhas de greda, atiraram-nas contra os seus objectivos: a cavalariça, o arsenal de armas, o albergue dos soldados e o pátio. Quando a espessa fumarada branca das bombas envolvia a prisão, o Zorro fazia rebentar as suas no primeiro e segundo andares do edifício principal. Em poucos minutos, o pânico alastrou. À voz de «Fogo!» os soldados saíram aos tropeções, enfiando calças e botas, ao mesmo tempo que soava o sino de alarme. Toda a gente corria para salvar o que pudesse; uns passavam baldes de água de mão em mão e despejavam-nos às cegas, sufocados, outros abriam as cavalariças e obrigavam os animais a sair. O lugar encheu-se de cavalos espavoridos, contribuindo para o pandemónio. Os dois índios de Toypurnia, que tinham descido do muro e estavam escondidos no pátio, aproveitaram a situação para abrir o portão da fortaleza e provocar uma debandada dos cavalos, que saíram a corta-mato. Eram animais domesticados e não chegaram muito longe; agruparam-se a curta distância, onde os índios os alcançaram. Montaram um par deles e guiaram os restantes até ao local de reunião indicado pelo Zorro, nas proximidades da saída do túnel.

Carlos Alcázar acordou com o sino e saiu para indagar a causa de tanta algazarra. Tentou impor a calma entre os seus homens, explicando que as paredes de pedra eram incombustíveis, mas ninguém lhe deu ouvidos, porque os índios tinham disparado flechas a arder contra a palha das cavalariças e viam-se chamas no meio da fumarada. Nessa altura, o fumo dentro do edifício era já intolerável e Alcázar correu a procurar a sua amada prima, mas antes de atingir o seu quarto deparou-se com ela no meio do corredor. «Os presos! É preciso salvar os presos!», exclamou Lolita, desesperada, mas ele tinha outras prioridades. Não podia permitir que o incêndio destruísse as suas belas pérolas.

Naquele par de meses, os presos haviam apanhado milhares de ostras e Moncada e Alcázar já possuíam vários punhados de pérolas. Na distribuição cabiam dois terços a Moncada, que financiava a operação, e o outro terço a Alcázar, que a dirigia. Não mantinham nenhum registo, uma vez que o negócio era ilegal, mas tinham esboçado um sistema de contabilidade. Introduziam as pérolas por um pequeno orifício num cofre selado, fixado por duas barras metálicas ao solo, que se abria com duas chaves. Cada sócio estava na posse de uma das chaves e no final da temporada juntar-se-iam para abrir o cofre e repartir o conteúdo. Moncada designara um homem da sua confiança para vigiar a colheita no barco e exigia que fosse Arsénio que as colocasse uma a uma no cofre. O cego, com a sua extraordinária memória táctil, era o único capaz de recordar o número exacto de pérolas e, se fosse necessário, talvez pudesse descrever o tamanho e forma de cada uma. Carlos Alcázar detestava-o, porque mantinha esses números na mente e tinha provado ser incorruptível. Coibia-se de o tratar mal, pois Moncada protegia-o, mas não perdia ocasião de o humilhar. Em contrapartida, tinha subornado o homem que vigiava o barco e, por meio de um pagamento razoável, este permitia que Alcázar subtraísse as pérolas mais redondas, maiores e de melhor brilho, que não passavam pelas mãos de Arsénio nem chegavam ao cofre. Rafael Moncada nunca saberia da sua existência.

Enquanto os três índios da tribo de Toypurnia acabavam de semear o caos e roubavam os cavalos, Bernardo introduziu-se no edifício, onde o esperava o Zorro, que o guiou até aos calabouços. Tinham percorrido uns quantos metros de corredor, tapando a cara com lenços molhados para suportarem o fumo, quando uma mão agarrou o braço do Zorro.

- Padre Aguilar! Siga-me, por aqui é mais curto...

Era Arsénio, que não podia apreciar a transformação do suposto missionário no inefável Zorro, mas lhe reconhecera a voz. Não era indispensável corrigir-lhe o erro. Os irmãos aprestaram-se a segui-lo, mas a figura de Carlos Alcázar apareceu de súbito no corredor, bloqueando o caminho. Ao ver aquele par de desconhecidos, um deles vestido da maneira mais pitoresca, o chefe da prisão puxou da pistola e disparou. Um grito de dor ressoou entre as paredes e o tiro incrustou-se numa viga do tecto: o Zorro tinha-lhe arrancado a pistola com uma chicotada no pulso no instante em que ele apertava o gatilho. Bernardo e Arsénio dirigiram-se aos calabouços, enquanto ele, de espada na mão, seguia Alcázar pelas escadas acima. Acabava de ocorrer-lhe uma ideia para resolver os problemas do padre Mendoza e, de caminho, fazer com que Moncada passasse um mau bocado. «Realmente, sou um génio», concluiu à pressa.

Alcázar atingiu o seu gabinete em quatro saltos e conseguiu fechar a porta e dar a volta à chave antes de o outro conseguir alcançá-lo. O fumo não tinha penetrado dentro daquela divisão. O Zorro descarregou a pistola na fechadura da porta e empurrou-a, mas esta não cedeu: tinha uma tranca por dentro. Perdera o seu único tiro, não dispunha de tempo para carregar a arma e cada minuto contava. Sabia, porque já estivera naquela sala, que as janelas davam para a varanda exterior. Era evidente à vista desarmada que não podia alcançá-la de um salto, como pretendia, sem risco de partir a cabeça nas pedras do pátio, mas no andar superior assomava uma gárgula decorativa talhada na pedra.

Conseguiu enrolar nela a ponta do chicote, deu um puxão para a firmar e, rezando para que a figura resistisse ao seu peso, balançou-se, caindo direitinho na varanda. Dentro do seu gabinete, Carlos Alcázar estava ocupado a carregar a pistola para arrombar os ferrolhos do cofre a tiro e não viu a sombra na janela. O Zorro esperou que ele desfechasse a arma, pulverizando um dos cadeados, e irrompeu no compartimento pela janela aberta. A capa enredou-se-lhe e fê-lo vacilar por um segundo, tempo suficiente para que Alcázar largasse a pistola, agora inútil, e agarrasse na espada. Aquele homem, tão cruel com os fracos, era cobarde diante de um opositor à sua altura e, além disso, tinha pouca prática de esgrima; em menos de três minutos o seu aço saltara pelos ares e ele achava-se de braços no ar, com a ponta de uma espada no peito.

- Poderia matar-te, mas não quero sujar-me com sangue de cão. Sou o Zorro e venho buscar as tuas pérolas.

- As pérolas pertencem ao senhor Moncada!

- Pertenciam. Agora são minhas. Abre o cofre.

- São precisas duas chaves e eu só tenho uma.

- Usa a pistola. Cuidado: ao menor gesto suspeito, trespassar-te-ei o pescoço sem o menor escrúpulo. O Zorro é generoso; perdoar-te-á a vida, desde que obedeças - ameaçou-o o mascarado.

Tremendo, Alcázar conseguiu carregar a pistola e rebentar com um tiro o outro cadeado. Levantou a tampa de madeira e apareceu o tesouro, tão branco e reluzente que não conseguiu evitar a tentação de mergulhar a mão e deixar que as maravilhosas pérolas lhe escorressem por entre os dedos. Por seu lado, o Zorro nunca tinha visto nada de tanto valor. Comparadas com aquilo, as pedras preciosas que haviam obtido em Barcelona pelo valor das propriedades de Tomás de Romeu pareciam modestas. Naquela caixa havia uma fortuna. Indicou ao seu adversário que esvaziasse o conteúdo numa sacola.

- O fogo atingirá o paiol de um momento para o outro e El Diablo irá pelos ares. Cumpro a minha palavra: tens a tua vida; que te faça bom proveito.

O outro não respondeu. Em vez de se precipitar para a saída, como era de esperar, ficou no gabinete. O Zorro notara que ele lançava olhares furtivos ao outro extremo do compartimento, onde estava a estátua da Virgem Maria sobre o seu pedestal de pedra. Pelos vistos, aquilo interessava-lhe mais que a própria vida. Pegou na sacola com as pedras, tirou a tranca da porta e desapareceu no corredor, mas não foi longe. Esperou, contando os segundos, e, como Alcázar não saísse, voltou ao gabinete a tempo de o surpreender a desfazer a cabeça da estátua com a coronha da pistola.

- Que maneira tão irreverente de tratar Nossa Senhora! - exclamou.

Carlos Alcázar voltou-se, desfigurado pela fúria, e arremessou-lhe a pistola à cara, errando por uma larga margem, ao mesmo tempo que deitava a mão à espada, que jazia no solo a dois passos de distância. Mal conseguiu erguer-se, já o mascarado estava em cima dele, enquanto a branca fumarada do corredor começava a invadir a sala. Cruzaram os aços durante vários minutos, cegos pelo fumo, tossindo. Alcázar foi retrocedendo até à sua mesa de trabalho e, no momento em que perdia a espada pela segunda vez, tirou da gaveta uma pistola carregada. Não teve ocasião de apontar, porque um formidável pontapé no braço o desarmou; a seguir o Zorro marcou-lhe a face com três traços vertiginosos do seu aço, formando a letra Z. Alcázar soltou um berro, caiu de joelhos e levou as mãos à cara.

- Não é mortal, homem; é a marca do Zorro, para que não me esqueças - disse o mascarado.

No chão, entre os pedaços quebrados da estátua, havia uma bolsinha de camurça, que o Zorro apanhou de súbito antes de sair correndo.

Só mais tarde, ao examinar o seu conteúdo, veria que nela havia cento e três pérolas magníficas, mais valiosas que todas as do cofre.

O Zorro tinha decorado o caminho e deu rapidamente com os calabouços. A cave era a única parte de El Diablo onde o fumo não chegara nem se ouvia a barulheira das badaladas, correrias e gritos. Os presos ignoravam o sucedido lá fora até aparecer Lolita dando o alarme. A rapariga descera em camisa de dormir e descalça para exigir aos guardas que salvassem as pessoas. Perante a eventualidade de um incêndio, os guardas arrebataram o archote da parede e fugiram a correr, sem se lembrarem nem pouco mais ou menos dos prisioneiros, e Lolita deu por si às apalpadelas na escuridão à procura das chaves. Ao compreenderem que se tratava de um incêndio, os aterrados cativos começaram a dar gritos e a abanar as grades tentando sair. Nisto apareceram Arsénio e Bernardo. O primeiro dirigiu-se com calma ao pequeno armário onde se guardavam as velas e as chaves para abrir as celas, que conseguia reconhecer pelo tacto, enquanto o segundo acendia luzes e procurava tranquilizar Lolita.

Um momento depois fez a sua entrada o Zorro. Lolita soltou uma exclamação ao ver aquele mascarado de luto a brandir uma espada ensanguentada, mas esse susto converteu-se em curiosidade quando ele embainhou o aço e se inclinou para lhe beijar a mão. Bernardo interveio dando uma palmada no ombro do irmão: não era momento para galanterias.

- Calma! É só fumo! Segui o Arsénio, ele conhece outra saída - indicou o Zorro aos presos que emergiam dos seus calabouços.

Atirou a capa ao chão e colocaram Alejandro de La Vega sobre ela.

Quatro índios levantaram a capa pelas pontas, como uma maca, e levaram o enfermo. Outros ajudaram o infeliz que tinha sido açoitado e todos, incluindo Lolita, seguiram Arsénio até ao túnel, com Bernardo e o Zorro na retaguarda para os protegerem. A entrada achava-se atrás de uma pilha de barris e tarecos, não por intenção de a esconder, mas sim porque nunca fora usada e, com o tempo, se tinham acumulado coisas no seu lugar. Era evidente que ninguém dera pela sua existência. Desimpediram a portinhola e entraram um a um na negra caverna. O Zorro explicou a Lolita que não havia perigo de incêndio: o fumo era uma distracção para salvar aqueles homens, na sua maioria inocentes. Ela mal percebia as suas palavras, mas dizia com a cabeça que sim como que hipnotizada. Quem era aquele jovem tão atraente? Talvez um foragido, e por isso escondia a cara, mas semelhante possibilidade, longe de a refrear, avivava o seu entusiasmo. Estava disposta a segui-lo até ao fim do mundo, coisa que ele não lho pediu, indicando-lhe, em contrapartida, que voltasse a empilhar os barris e tarecos diante da portinhola, uma vez que tivessem todos entrado no túnel. Além disso, devia deitar fogo à palha dos calabouços; isso dar-lhes-ia mais tempo para fugirem, assinalou. Lolita, perdida a vontade, disse que sim com um sorriso pateta, mas o olhar ardente.

- Obrigado, menina - disse ele.

- Quem é você?

- O meu nome é Zorro.

- Que espécie de tolice é essa, senhor?

- Nenhuma tolice, garanto-lhe, Lolita. Por agora não lhe posso dar mais explicações, visto que o tempo urge, mas voltaremos a ver-nos - retorquiu ele.

- Quando?

- Em breve. Não feche a janela da sua varanda e uma destas noites irei visitá-la.

Esta proposta devia ser tomada como um insulto, mas o tom do desconhecido era galante e os seus dentes muito brancos. Lolita não soube o que responder e, quando o braço firme dele a rodeou pela cintura, não fez nada para o afastar; pelo contrário, fechou os olhos e ofereceu-lhe os lábios. O Zorro, um pouco surpreendido perante a rapidez com que avançava naquele terreno, beijou-a sem vestígio da timidez que antes sentia diante de Juliana. Oculto atrás da máscara do Zorro, podia dar rédea solta à sua galanteria. Dadas as circunstâncias, foi um beijo bastante bom. Na realidade, teria sido perfeito se não estivessem os dois a tossir por causa do fumo. O Zorro soltou-se dela a contragosto e introduziu-se no túnel, seguindo os outros. Lolita precisou de três minutos completos para recuperar o uso da razão e o fôlego, após o que passou a cumprir as instruções do fascinante mascarado, com o qual pensava casar-se um dia não muito distante, já o decidira. Era uma rapariga espevitada.

Meia hora depois de rebentarem as bombas, o fumo começou a dissipar-se; nessa altura, os soldados já tinham apagado o fogo nas cavalariças e lidavam com o dos calabouços, enquanto Carlos Alcázar, estancando o sangue da face com um pano, recuperara o controlo da situação. Ainda não conseguia perceber o sucedido. Os seus homens encontraram as flechas que haviam iniciado o fogo, mas ninguém vira os responsáveis. Não acreditava que se tratasse de um ataque de índios, coisa que não acontecia desde havia vinte e cinco anos; devia ser uma manobra de diversão do tal Zorro para roubar as pérolas. Não soube, a não ser um momento mais tarde, que os presos tinham desaparecido sem deixar rasto.

O túnel, reforçado com tábuas para evitar aluimentos, era estreito, mas permitia folgadamente a passagem de uma pessoa. O ar estava rarefeito; as condutas de ventilação tinham-se obstruído com a passagem do tempo e o Zorro decidiu que não podiam consumir o escasso oxigénio disponível com as chamas das velas; teriam de avançar às escuras. Arsénio, que não precisava de luz, ia à frente, com a única vela permitida, como sinal para os outros. A sensação de estarem enterrados vivos e a ideia de que um desabamento os aprisionasse ali para sempre eram aterradoras. Bernardo muito raramente perdia a calma, mas estava habituado a grandes espaços e ali sentia-se como uma toupeira; o pânico ia-se apoderando dele. Não podia avançar mais depressa nem retroceder, faltava-lhe o ar, abafava, julgava pisar ratazanas e serpentes, tinha a certeza de que o túnel se estreitava por momentos e nunca mais poderia sair. Quando o terror o fazia parar, a mão firme do irmão nas costas e a sua voz tranquilizadora davam-lhe ânimo. O Zorro era o único do grupo que não se sentia afectado por aquele confinamento, porque estava muito ocupado a pensar em Lolita. Tal como Coruja Branca lhe dissera durante a sua iniciação, as grutas e a noite eram os elementos da raposa.

O trajecto do túnel pareceu-lhes muito longo, embora a saída não ficasse longe da prisão. De dia, os guardas teriam conseguido vê-los, mas em plena noite os fugitivos conseguiram emergir do túnel sem perigo de serem vistos, protegidos pelas árvores. Saíram cobertos de terra, sedentos, ansiosos por respirar ar puro. Os índios despojaram-se dos seus andrajos de prisioneiros, sacudiram a terra e, nus, levantaram os braços e a cara ao céu para comemorarem aquele primeiro momento de liberdade. Ao compreenderem que estavam num lugar sagrado, sentiram-se reconfortados: era um bom augúrio. Uns assobios responderam aos de Bernardo e não tardaram a aparecer os índios de Toypurnia conduzindo os cavalos roubados e os deles, entre os quais vinha Tornado. Os fugitivos montaram aos pares nas cavalgaduras e dispersaram-se em direcção aos cerros. Era gente da região e poderiam reunir-se às suas tribos antes que os soldados se organizassem para os alcançarem. Pensavam manter-se o mais longe possível dos brancos, até que a normalidade regressasse à Califórnia.

O Zorro sacudiu a terra, lamentando que a sua indumentária recentemente comprada em Cuba já estivesse imunda, e congratulou-se por as coisas terem saído até melhor que o planeado. Arsénio levou na garupa do seu cavalo o homem que tinha sido flagelado; Bernardo instalou Alejandro de La Vega no seu e ele sentou-se atrás para o segurar. O caminho da montanha era escarpado e fariam a maior parte durante a noite. O ar frio sacudira o letargo do ancião e a alegria de ver o filho tinha-lhe devolvido a esperança. Bernardo assegurou-lhe que Toypurnia e Coruja Branca tratariam dele até que pudesse regressar à fazenda.

Entretanto, o Zorro galopava em Tornado rumo à Missão San Gabriel.

O padre Mendoza passou várias noites a dar voltas no seu catre sem conseguir dormir. Tinha lido e rezado sem encontrar tranquilidade para o seu espírito desde que descobrira que faltavam coisas na arrecadação e o seu hábito de reserva. Só tinha dois, que alternava de três em três semanas para os lavar, e tão usados e rotos que não conseguia imaginar quem teria tido a tentação de lhe subtrair um. Quisera dar ao ladrão oportunidade de devolver o que roubara, mas já não podia adiar mais a decisão de agir. A ideia de reunir os seus neófitos, pregar-lhes um sermão sobre o terceiro mandamento e averiguar quem era o responsável tirava-lhe o sono. Sabia que a sua gente passava muitas necessidades e não era o momento de impor castigos, mas não podia deixar passar aquela falta. Não compreendia por que razão, em vez de furtarem alimentos, tinham levado cordas, nitrato, zinco e o seu hábito; o assunto não fazia sentido. Estava cansado de tanta luta, trabalho e solidão, doíam-lhe os ossos e a alma. Os tempos haviam mudado tanto que já não reconhecia o mundo, reinava a ganância, ninguém se lembrava dos ensinamentos de Cristo, já ninguém o respeitava, não podia proteger os seus neófitos dos abusos dos brancos. Às vezes perguntava a si mesmo se os índios não estariam melhor antes, quando eram donos da Califórnia e viviam à sua maneira, com os seus costumes e os seus deuses, mas logo se persignava e pedia perdão a Deus por tamanha heresia. «Onde iremos parar, se eu mesmo duvido do cristianismo!», suspirava, arrependido.

A situação tinha piorado muito com a chegada de Rafael Moncada, que representava o pior da colonização: vinha para fazer fortuna depressa e pôr-se a andar. Para ele, os índios eram bestas de carga. Nos mais de vinte anos que tinha de San Gabriel, o missionário passara por momentos críticos - terramotos, epidemias, secas e até um ataque de índios -, mas nunca desanimara, porque tinha a certeza de que cumpria um mandato divino. Agora sentia-se abandonado por Deus.

Caía a noite e tinham acendido archotes no pátio. Depois de uma jornada de duro trabalho, o padre Mendoza, de mangas arregaçadas e suado, estava a rachar lenha para a cozinha. Levantava o machado com dificuldade: cada dia lhe parecia mais pesado, cada dia a madeira era mais dura. Nisto, sentiu um galope de cavalo. Fez uma pausa e afirmou a vista, que já não era a mesma de antigamente, perguntando a si mesmo quem viria tão apressado àquela hora tardia. Quando o cavaleiro se aproximou, viu que se tratava de um homem vestido de escuro e com a cara tapada por uma máscara, sem dúvida um bandido. Deu o alarme, para que mulheres e crianças se refugiassem, após o que se aprontou para o enfrentar com o machado nas mãos e uma oração nos lábios; não havia tempo de ir à procura do seu velho mosquete. O desconhecido não esperou que o corcel parasse para saltar em terra, chamando o missionário pelo nome:

- Não tenha medo, padre Mendoza, sou um amigo!

- Então a máscara está a mais. O teu nome, filho - volveu o sacerdote.

- Zorro. Bem sei que parece estranho, mas mais estranho é o que lhe vou dizer, padre. Vamos para dentro, por favor.

O missionário conduziu o desconhecido à capela, com a ideia de que ali contava com protecção celestial e poderia convencê-lo de que naquele lugar não havia nada de valor. O indivíduo parecia temível - trazia espada, pistola e chicote, estava armado para a guerra -, mas tinha um ar vagamente familiar. Onde ouvira aquela voz? O Zorro começou por lhe assegurar de que não era um rufião e seguidamente confirmou-lhe as suas suspeitas sobre a exploração de pérolas de Moncada e Alcázar. Legalmente, só lhes pertenciam dez por cento; o resto do tesouro era de Espanha. Utilizavam os índios como escravos, seguros de que ninguém, excepto o padre Mendoza, intercederia por eles.

- Não tenho a quem apelar, filho. O governador é um homem fraco e teme Moncada - alegou o missionário.

- Então deverá recorrer às autoridades do México e de Espanha, padre.

- Com que provas? Ninguém me acreditará; tenho fama de ser um velho fanático, obcecado com o bem-estar dos índios.

- A prova é esta - disse o Zorro, colocando-lhe uma pesada sacola nas mãos.

O missionário olhou para o conteúdo e soltou uma exclamação de surpresa ao ver o monte de pérolas.

- Como obtiveste isto, filho, por Deus?

- Isso não importa.

O Zorro sugeriu-lhe que levasse o saque ao bispo do México e denunciasse o sucedido, única forma de evitar que escravizassem os índios. Se Espanha decidisse explorar os bancos de ostras, contratariam os índios Yaquis, tal como se fazia dantes. Depois pediu-lhe que informasse Diego de La Vega de que o pai se encontrava livre e a salvo. O missionário comentou que esse jovem se revelara uma desilusão, não parecia filho de Alejandro e Regina, faltava-lhe fibra. Pediu de novo ao visitante que lhe mostrasse a cara, caso contrário não lhe era possível confiar na sua palavra, podia ser uma cilada. O outro retorquiu que a sua identidade devia permanecer secreta, mas prometeu-lhe que já não estaria só no seu empenho de defender os pobres, porque, de agora em diante, o Zorro velava pela justiça. O padre Mendoza soltou uma risada nervosa; o fulano podia ser um doido à solta.

- Uma última coisa, padre... Esta bolsinha de camurça contém cento e três pérolas muito mais finas que as restantes, que valem uma fortuna. São suas. Não tem nada que as mencionar a ninguém; asseguro-lhe de que a única pessoa que sabe da sua existência não se atreverá a perguntar por elas.

- Imagino que sejam roubadas.

- São, sim, mas, em justiça, pertencem a quem as arrancou ao mar com o seu último fôlego. O senhor saberá dar-lhes bom uso.

- Se foram mal obtidas, não as quero ver, meu filho.

- Não tem que o fazer, padre, mas guarde-as - tornou o Zorro com uma piscadela de olho de cumplicidade.

O missionário escondeu a bolsa nas dobras do hábito e acompanhou o visitante ao pátio, onde o esperava o lustroso cavalo negro, rodeado pelas crianças da missão. O homem montou o corcel e, para divertir os pequenos, fê-lo curvetear com um assobio, após o que fez a espada luzir à luz dos archotes e cantou um verso que ele próprio tinha composto nos meses de ócio em Nova Orleães, a respeito de um valente cavaleiro que nas noites de luar sai para defender a justiça, castigar os malvados e traçar o Z com o seu aço. O pormenor da canção seduziu as crianças, mas aumentou o receio do padre Mendoza de que o sujeito fosse desaparafusado. Isabel e Nuria, que passavam a maior parte do dia fechadas no seu quarto a coser, assomaram ao pátio a tempo de vislumbrar a galante figura a fazer piruetas sobre o negro corcel, antes de desaparecer. Perguntaram quem era aquela atraente personagem e o padre Mendoza respondeu que, se não fosse um demónio, devia ser um anjo enviado por Deus para lhe reforçar a fé.

Nessa mesma noite, Diego de La Vega regressou à missão coberto de pó, contando que tivera de encurtar a viagem porque estivera a ponto de perecer às mãos de uns bandidos. Vira vir de longe um par de fulanos suspeitos e para os evitar saíra do Camino Real, desatara a galopar em direcção aos bosques, mas perdera-se. Passara a noite encolhido debaixo das árvores, a salvo de bandoleiros, mas à mercê de ursos e lobos. Ao alvorecer conseguira orientar-se e decidira voltar a San Gabriel; era uma imprudência prosseguir sozinho. Tinha cavalgado o dia inteiro sem meter nada à boca, estava morto de fadiga e com dores de cabeça. Sairia para Monterrey dentro de uns dias, mas desta vez iria bem armado e com escolta. O padre Mendoza informou-o de que já não seria precisa a sua visita ao governador, porque Dom Alejandro de La Vega fora resgatado da prisão por um bravo desconhecido. A única coisa que Diego tinha pela frente era o dever de recuperar os bens da família. Calou as dúvidas de que aquele peralvilho hipocondríaco fosse capaz de o fazer.

- Quem resgatou o meu pai? - perguntou Diego.

- Dizia chamar-se Zorro e tinha uma máscara - disse o missionário.

- Máscara? Um bandoleiro, porventura? - inquiriu o jovem.

- Eu também o vi, Diego, e para bandoleiro o homem não era nada de se deitar fora. Nem queiras saber como era bonito e elegante! Além disso, montava um cavalo que lhe deve ter custado os olhos da cara - - interveio Isabel, entusiasmada.

- Tu sempre tiveste mais imaginação que a conveniente - retorquiu ele.

Nuria interrompeu para anunciar o jantar. Nessa noite, Diego comeu com voracidade, apesar da tão anunciada enxaqueca, e ao terminar felicitou a ama, que tinha melhorado a dieta da missão. Isabel interrogou-o sem piedade: queria averiguar por que razão os seus cavalos não tinham chegado cansados, o aspecto dos supostos malandrins, o tempo que levara a ir de um ponto a outro e a razão pela qual não se hospedara noutras missões, a uma jornada apenas de caminho. O padre Mendoza não percebeu o carácter vago das respostas, mergulhado como estava nas suas meditações. Com a mão direita comia e com a esquerda apalpava na algibeira a bolsa de camurça, calculando que o seu conteúdo poderia devolver à missão o seu antigo bem-estar. Tinha pecado ao aceitar aquelas pérolas manchadas de sofrimento e ganância? Não. Pecado, nem por sombras, mas podiam trazer-lhe azar... Sorriu ao verificar que com os anos se tinha tornado mais supersticioso.

Um par de dias mais tarde, quando o padre Mendoza já tinha enviado uma carta sobre as pérolas para o México e preparava a bagagem para a jornada com Diego, chegaram Rafael Moncada e Carlos Alcázar, à cabeça de vários soldados, entre eles o obeso sargento Garcia. Alcázar exibia uma feia costura na face, que lhe deformava a cara, e vinha inquieto, porque não conseguira convencer o seu sócio da forma como as pérolas se tinham esfumado. A verdade não lhe valia neste caso, porque teria posto em evidência o seu triste papel na defesa da prisão e do saque. Preferiu dizer-lhe que meia centena de índios incendiara El Diablo, enquanto um bando de foragidos, às ordens de um mascarado vestido de preto, que se identificara como o Zorro, se introduzira no edifício. Depois de cruenta luta, em que ele próprio fora ferido, os assaltantes haviam logrado submeter os soldados, pondo-se em fuga com as pérolas. Na confusão, os presos tinham fugido. Sabia que Moncada não ficaria tranquilo enquanto não averiguasse a verdade e encontrasse as pérolas. Os presos fugitivos eram o menos; havia mão-de-obra indígena de sobra para os substituir.

A curiosa forma do corte na cara de Alcázar - um perfeito Z - recordou a Moncada um mascarado cuja descrição correspondia ao Zorro, que traçara uma letra semelhante na residência do Chevalier Duchamp e num quartel de Barcelona. Em ambas as ocasiões, o pretexto fora libertar uns presos, como em El Diablo. Além disso, no segundo caso tivera a audácia de utilizar o seu próprio nome e o de sua tia Eulália. Jurara fazê-lo pagar aquele insulto, mas nunca haviam conseguido deitar-lhe a luva. Chegou rapidamente à única conclusão possível: Diego de La Vega estava em Barcelona na época em que alguém traçava um Z nas paredes e, mal desembarcara na Califórnia, tinham marcado a mesma letra na face de Alcázar. Não era simples coincidência. O tal Zorro não podia ser outro senão Diego. Custava a crer, mas, de qualquer maneira, era um bom pretexto para lhe fazer pagar os incómodos que lhe havia causado. Chegou à missão a mata-cavalos, porque pensava que a sua presa podia ter fugido, e encontrou Diego sentado debaixo de uma latada a beber limonada e a ler poesias. Ordenou ao sargento Garcia que o prendesse e o pobre gordo, que continuava a ter por Diego a mesma incondicional admiração da infância, dispôs-se de má vontade a obedecer, mas o padre Mendoza alegou que o mascarado que devia ser o Zorro não era, nem remotamente, parecido com Diego de La Vega. Isabel apoiou-o: nem um tolo podia confundir aqueles dois homens, disse; conhecia Diego como um irmão, tinha vivido com ele durante cinco anos, era bom rapaz, inofensivo, sentimental, enfermiço, de bandido não tinha nada e muito menos de herói.

- Obrigado - atalhou-a Diego, ofendido, mas notou que o olho errante da amiga girava como um pião.

- O Zorro ajudou os índios porque estão inocentes; sabe-o tão bem como eu, senhor Moncada. Não roubou as pérolas; tomou-as como prova do que se passa em El Diablo - disse o missionário.

- De que pérolas fala? - interrompeu-o Carlos Alcázar, muito nervoso, porque até esse momento ninguém as tinha mencionado e ignorava quanto sabia o padre das suas trapacices.

O padre Mendoza admitiu que o Zorro lhe havia entregado a sacola com o encargo de ir com ela aos tribunais do México. Rafael Moncada dissimulou um suspiro de alívio: tinha sido mais fácil recuperar o seu tesouro do que imaginara. Aquele velho ridículo não constituía problema: podia apagá-lo do mapa com um sopro, sucediam acidentes lamentáveis a toda a hora. Com expressão preocupada, agradeceu-lhe o estratagema para recuperar as pérolas e o zelo de cuidar delas, após o que lhe exigiu que lhas entregasse; ele se encarregaria do assunto. Se Carlos Alcázar, como chefe da prisão, tinha cometido irregularidades, tomar-se-iam as medidas pertinentes; não havia motivo para incomodar ninguém no México. O padre teve de obedecer. Não se atreveu a acusá-lo de cumplicidade com Alcázar, porque um passo em falso lhe custaria o que mais lhe importava neste mundo: a sua missão. Foi buscar a sacola e colocou-a sobre a mesa.

- Isto pertence a Espanha. Mandei uma carta aos meus superiores e haverá uma investigação a esse respeito - disse.

- Uma carta? Mas se o barco ainda não chegou... - interrompeu Alcázar.

- Disponho de outros meios, mais rápidos e seguros que o barco.

- Estão aqui as pérolas todas? - perguntou Moncada, contrariado.

- Como posso eu saber? Não estava presente quando foram subtraídas, não sei quantas havia originariamente. Só Carlos pode responder a essa pergunta - retrucou o missionário. Aquelas palavras aumentaram as suspeitas que Moncada já tinha do seu sócio. Pegou no missionário por um braço e levou-o à viva força até à frente do crucifixo que havia numa mísula na parede.

- Jure diante da cruz de Nosso Senhor que não viu outras pérolas. Se mentir, a sua alma estará condenada ao inferno - ordenou-lhe.

Um silêncio carregado de presságios dominou a sala; todos retiveram a respiração e até o ar se imobilizou. Lívido, o padre Mendoza soltou-se com um puxão do aperto que o paralisava.

- Como se atreve? - exclamou entre dentes.

- Jure! - repetiu o outro.

Diego e Isabel adiantaram-se para intervir, mas o padre Mendoza, detendo-os com um gesto, pôs um joelho no chão, a mão direita no peito e os olhos no Cristo esculpido em madeira pelas mãos de um índio. Tremia de emoção e de raiva pela violência a que era submetido, mas não receava ir parar ao inferno, pelo menos por aquele motivo.

- Juro diante da Cruz que não vi outras pérolas. Que a minha alma seja condenada se minto - disse com voz firme.

Durante uma longa pausa ninguém disse uma só palavra; o único som foi o suspiro de alívio de Carlos Alcázar, cuja vida não valia um centavo se Rafael Moncada tomasse conhecimento de que tinha ficado com a melhor parte do saque. Supunha que a bolsa de camurça estava em poder do mascarado, mas não percebia por que razão este tinha entregado as restantes pérolas ao padre, podendo ficar com todas. Diego adivinhou o curso dos seus pensamentos e sorriu-lhe, desafiador. Moncada teve de aceitar o juramento do padre Mendoza, mas lembrou a todos que não dava o assunto por concluído, enquanto não pendurasse o culpado na forca. «Garcia! Prende De La Vega!», repetiu Rafael Moncada.

O gordo enxugou a testa com a manga do uniforme e dispôs-se a cumprir de má vontade a sua incumbência. «Sinto muito», balbuciou, indicando a dois soldados que o levassem. Isabel pôs-se à frente de Moncada, aduzindo que não havia provas contra o seu amigo, mas ele afastou-a com um brusco empurrão.

Diego de La Vega passou a noite encerrado num dos antigos quartos da criadagem da fazenda onde nascera. Lembrava-se até de quem o ocupava na época em que ali vivia com os pais, uma índia mexicana de seu nome Roberta, que tinha metade da cara queimada por um acidente com uma panela de chocolate a ferver. Que seria feito dela? Não se lembrava, em contrapartida, de que aqueles quartos fossem tão miseráveis, cubículos sem janelas, com chão de terra e paredes de adobe por pintar, mobilados com um enxergão de palha, uma cadeira e uma arca de madeira. Pensou que Bernardo passara assim a infância, enquanto a poucos metros de distância ele dormia numa cama de bronze com uma cortina de tule para o proteger das aranhas, num aposento atulhado de brinquedos. Como não tinha reparado nisso então? A casa estava dividida por uma linha invisível, que separava o espaço da família do complexo universo dos criados. O primeiro, amplo e luxuoso, decorado em estilo colonial, era um prodígio de ordem, calma e limpeza, cheirava a ramos de flores e ao tabaco do pai. No segundo fervia a vida: tagarelice incessante, animais domésticos, bulhas, trabalho. Aquela parte da casa cheirava a pimento moído, a pão do forno, a roupa de molho em lixívia, a lixo. Os terraços da família, com os seus azulejos pintados, as suas buganvílias e fontes, eram um paraíso de frescura, ao passo que os pátios da criadagem se enchiam de poeira no Verão e de lama no Inverno.

Diego passou horas incontáveis no enxergão por terra, a suar o calor de Maio, sem ver luz natural. Faltava-lhe o ar, ardia-lhe o peito. Não podia medir o tempo, mas sentia que tinha ali passado vários dias. Tinha a boca seca e receava que o plano de Moncada fosse vencê-lo pela sede e pela fome. De vez em quando fechava os olhos e tentava dormir, mas estava demasiado mal instalado. Não havia espaço para dar mais de dois passos, sentia os músculos entorpecidos. Examinou o quarto palmo a palmo, procurando a forma de sair, e não a encontrou. A porta tinha uma sólida barra de ferro por fora; nem Galileo Tempesta teria podido abri-la de dentro. Tentou soltar as tábuas do tecto, mas estavam reforçadas; tornava-se evidente que o lugar era utilizado como cela. Muito tempo mais tarde, a porta do seu túmulo abriu-se e o rosto rubicundo do sargento Garcia apareceu no umbral. Apesar da fraqueza que sentia, Diego calculou que podia aturdir o bom sargento com um mínimo de violência, utilizando a pressão no pescoço que o mestre Manuel Escalante lhe ensinara, quando o treinava no método de luta dos membros de La Justicia, porém não queria causar problemas com Moncada ao seu antigo amigo. Aliás, dessa maneira poderia sair da sua cela, mas não conseguiria fugir da fazenda; era melhor esperar. O gordo colocou no solo um jarro de água e uma malga com feijões e arroz.

- Que horas são, meu amigo? - perguntou-lhe Diego, simulando um bom humor que estava longe de sentir.

Garcia respondeu com trejeitos e gestos dos dedos.

- Nove da manhã de terça-feira, dizes? Isso significa que estive aqui duas noites e um dia. Que bem dormi! Sabes quais são as intenções de Moncada?

Garcia negou com a cabeça.

- Que se passa contigo? Tens ordens para não falar comigo? Bom, mas ninguém te disse que não me podias ouvir, pois não?

- Humm - assentiu o outro.

Diego espreguiçou-se, bocejou, bebeu água e saboreou com parcimónia a comida, que lhe pareceu deliciosa, como comentou a Garcia, enquanto conversava sobre tempos passados: as estupendas aventuras da infância, a coragem que Garcia sempre demonstrara ao enfrentar Alcázar e caçar um urso vivo. Com razão era admirado pelos rapazes da escola, concluiu. Não era exactamente assim que o sargento recordava aquela época, mas as palavras derramaram-se como um bálsamo na sua alma magoada.

- Em nome da nossa amizade, Garcia, tens de me ajudar a sair daqui - concluiu Diego.

- Gostaria, mas sou soldado e o dever está acima de tudo - respondeu o outro num sussurro, olhando por cima do ombro para verificar que ninguém os ouvia.

- Nunca te pediria que faltasses ao teu dever ou cometesses um acto ilegal, Garcia, mas ninguém te pode culpar se a porta não ficar bem trancada...

Não houve tempo de continuar a conversa, porque apareceu um soldado a indicar ao sargento que Dom Rafael Moncada esperava o prisioneiro. Garcia endireitou a casaca, pôs o peito para fora e bateu os tacões com ar marcial, mas piscou o olho a Diego. Levantaram o detido pelos braços e conduziram-no ao salão principal, sustendo-o quase em peso até se poder firmar nas pernas adormecidas pela imobilidade. Com pena, Diego verificou mais uma vez as mudanças: o seu lar tinha aspecto de quartel. Sentaram-no numa das cadeiras do salão e amarraram-no pelo peito ao espaldar e pelos tornozelos às pernas do móvel. Apercebeu-se de que o sargento cumpria parcialmente a sua obrigação: as cordas não ficaram bem apertadas e com alguma habilidade poderia soltar-se, mas havia soldados por todo o lado. «Preciso de uma espada», sussurrou a Garcia num momento em que o outro militar se afastou um par de passos. O gordo por pouco não sufocou de susto diante de semelhante pedido.

Diego estava a passar das marcas: como ia dar-lhe uma arma em semelhantes circunstâncias? Custar-lhe-ia vários dias no cepo e a sua carreira militar. Deu-lhe umas palmadinhas carinhosas no ombro e foi-se embora, cabisbaixo e arrastando os pés, enquanto o guarda se postava a um canto a vigiar o cativo.

Diego passou mais de duas horas na cadeira, tempo que empregou para libertar dissimuladamente as mãos das cordas, mas não podia desatar os tornozelos sem chamar a atenção do soldado, um inalterável mestiço com aspecto de estátua asteca. Tentou atraí-lo fingindo que sufocava de tosse, após o que lhe pediu que lhe desse um cigarro, um copo de água, um lenço, mas não houve maneira de ele se aproximar. Por única resposta aperrava a arma e observava-o com os seus olhos de pedra, que mal assomavam sobre os pómulos proeminentes. Diego concluiu que, se aquilo era uma estratégia de Moncada para lhe abaixar a grimpa e amolecer-lhe a vontade, estava a dar bom resultado.

Por fim, a meio da tarde, fez a sua entrada Rafael Moncada, pedindo desculpa por ter incomodado uma pessoa tão fina como Diego. Nada mais longe do seu espírito do que fazer-lhe passar um mau bocado, disse, mas, dadas as circunstâncias, não podia agir de outra maneira. Sabia Diego quanto tempo estivera encerrado no quarto da criadagem? Exactamente o mesmo número de horas que ele permanecera na câmara secreta de Tomás de Romeu, antes de aparecer a sua tia para o tirar de lá. Uma curiosa coincidência. Embora ele se prezasse de ter sentido de humor, aquela brincadeira fora um tanto ou quanto pesada. Em qualquer caso, agradecia-lhe que o tivesse livrado de Juliana; desposar uma mulher de condição inferior teria arruinado a sua carreira, tal como a tia o advertira tantas vezes, mas enfim, não estavam ali para falar de Juliana. Supunha que Diego - ou devia chamar-lhe Zorro? - desejava conhecer a sorte que o esperava. Era um delinquente da mesma espécie que o seu pai, Alejandro de La Vega: tal pai, tal filho. Prenderiam o velho, disso não havia dúvida, e ele consumir-se-ia num calabouço. Nada lhe daria mais prazer do que enforcar o Zorro com as suas próprias mãos, mas não era esse o seu papel, acrescentou. Mandá-lo-ia para Espanha, acorrentado e sob estrita vigilância, para que fosse julgado no preciso local onde iniciara a sua carreira criminosa e onde deixara suficientes pistas para o condenarem. No governo de Fernando VII aplicava-se o peso da lei com a firmeza adequada, não era como nas colónias, onde a autoridade era uma brincadeira. Aos delitos cometidos em Espanha somavam-se os da Califórnia: tinha assaltado a prisão de El Diablo, provocado um incêndio, destruído propriedade do reino, ferido um militar e conspirado para a fuga de prisioneiros.

- Consta-me que o autor dessas tropelias é um sujeito chamado Zorro. E creio que, além disso, se apoderou de umas pérolas. Ou prefere Vossa Excelência não falar desse assunto? - retorquiu Diego.

- O Zorro sois vós, De La Vega!

- Oxalá o fosse (o homem parece fascinante), mas a minha delicada saúde não me permite tais aventuras. Sofro de asma, dores de cabeça e palpitações no coração.

Rafael Moncada colocou-lhe um documento diante do nariz, redigido pelo seu próprio punho, à falta de escrivão, e exigiu-lhe que firmasse o seu nome. O prisioneiro objectou que seria uma imprudência assinar uma coisa sem conhecer o conteúdo. Nesse momento não podia lê-lo, visto que se tinha esquecido dos óculos e era curto de vista, outra diferença do Zorro, ao qual se atribuíam uma prodigiosa pontaria com o chicote e celeridade com a espada. Nenhum cegueta possuía tais habilidades, acrescentou.

- Basta! - exclamou Moncada, atravessando-lhe a cara com uma bofetada.

Diego estava à espera de uma reacção violenta, mas, mesmo assim, teve de fazer um tremendo esforço para se controlar e não saltar contra Moncada. Ainda não tinha chegado a sua oportunidade. Manteve as mãos atrás, segurando as cordas, enquanto o sangue do nariz e da boca lhe sujavam a camisa. Naquele preciso instante irrompeu o sargento Garcia que, ao ver o seu amigo de infância naquele estado, parou de chofre, sem saber que partido tomar. A voz de comando de Moncada arrancou-o ao seu estupor.

- Não te chamei, Garcia!

- Excelência... Diego de La Vega está inocente. Eu bem lhe disse que não podia ser o Zorro! Acabamos de ver o Zorro lá fora... - tartamudeou o sargento.

- Que diabo dizes, homem?

- É verdade, Excelência, todos o vimos.

Moncada saiu como um foguete, seguido pelo sargento, mas o guarda permaneceu na sala, apontando a sua arma a Diego. No portão do jardim, Moncada viu pela primeira vez a teatral figura do Zorro recortada com nitidez contra o céu arroxeado do entardecer, e a surpresa paralisou-o por uns segundos.

- Sigam-no, imbecis! - gritou, sacando da pistola e disparando sem apontar.

Alguns soldados voaram para ir buscar os cavalos e outros dispararam as suas armas, mas já o cavaleiro se afastava a galope. O sargento, mais interessado que ninguém em descobrir a identidade do Zorro, saltou para a montada com inesperada agilidade, cravou as esporas e partiu em sua perseguição, seguido por meia dúzia de homens. Perderam-se correndo em direcção ao sul, atravessando colinas e bosques. O mascarado levava-lhes vantagem e conhecia bem o terreno, mas ainda assim a distância entre ele e a tropa foi-se encurtando. Passada meia hora de galope, quando os cavalos começavam a suar espuma, o Sol tinha desaparecido e os soldados estavam quase a alcançá-lo, chegaram aos despenhadeiros: o Zorro estava encurralado entre eles e o mar.

Entretanto, no salão da casa, Diego teve a impressão de que a portinhola dissimulada na lareira se abria. Só podia tratar-se de Bernardo, que, de algum modo, tinha arranjado maneira de voltar à fazenda. Desconhecia os pormenores do sucedido lá fora, mas pelas blasfémias de Moncada, pelos gritos, pelos disparos e pela agitação dos cavalos, imaginava que o irmão conseguira confundir o inimigo. Para distrair o guarda, fingiu outro aparatoso ataque de tosse, após o que deu um impulso, fez girar a cadeira e ficou deitado de flanco no solo. O homem postou-se ao lado dele e ordenou-lhe que ficasse quieto ou estoirar-lhe-ia os miolos, mas Diego notou que o seu tom era vacilante; talvez as instruções da estátua asteca não incluíssem matá-lo. Pelo rabo do olho distinguiu uma sombra que se afastava da lareira e se aproximava. Diego soltou as mãos e aplicou-lhe um tremendo golpe entre as pernas, mas o fulano devia ser de pedra maciça, porque não se mexeu. Nesse instante, o guarda sentiu o cano de uma pistola na têmpora e viu um mascarado que lhe sorria sem dizer palavra.

- Rendei-vos, bom homem, antes que se escape uma bala ao Zorro - aconselhou-o Diego do chão, ao mesmo tempo que se libertava rapidamente dos laços dos tornozelos.

O outro Zorro desarmou o soldado, atirou a espingarda a Diego, que a apanhou no ar, e a seguir retrocedeu com rapidez até às sombras da lareira. Despedindo-se com uma piscadela de olho de cumplicidade, Diego não deu ocasião ao guarda de ver o que sucedia atrás de si; atirou-o ao chão com uma única pancada seca da mão em cutelo no pescoço. O homem esteve desmaiado uns minutos, que Diego empregou para o amarrar com as mesmas cordas que tinham usado nele; em seguida quebrou a janela a pontapé, tendo o cuidado de não deixar vidros cortantes nas bordas, porque pensava regressar por ali mesmo, e deslizou pela portinhola secreta até às grutas.

Ao voltar ao salão, Rafael Moncada deparou-se com o facto de que De La Vega se tinha esfumado e o homem encarregado de o vigiar ocupava o seu lugar na cadeira. A janela estava quebrada e a única coisa de que o atordoado guarda se lembrava era de uma silhueta escura e do frio glacial de uma pistola na têmpora. «Imbecis, imbecis sem remédio», foi a conclusão de Moncada. Nesse momento, metade dos seus homens galopava atrás de um fantasma, enquanto o seu prisioneiro tinha empreendido a fuga nas suas próprias barbas. Apesar das evidências, continuava convencido de que o Zorro e Diego de La Vega eram a mesma pessoa.

Na gruta, Diego não encontrou Bernardo, como esperava, mas este tinha-lhe deixado vários candeeiros de sebo acesos, o seu disfarce, a sua espada e o seu cavalo. Tornado resfolegava impaciente, sacudindo a frondosa crina escura e dando patadas no solo. «Depressa te habituarás a este lugar, meu amigo», disse-lhe Diego, acariciando o pescoço lustroso do animal. Também encontrou um odre com vinho, queijo e mel para se repor dos maus bocados que passara. Pelos vistos, não escapava nem um pormenor ao seu irmão. Também tinha de admirar a sua habilidade para iludir a perseguição dos soldados e aparecer por obra de magia a resgatá-lo no instante devido. Com que silenciosa elegância tinha agido! Bernardo era tão bom Zorro como ele próprio; juntos seriam invencíveis, concluiu. Não havia pressa para o passo seguinte; tinha de esperar pela noite cerrada, quando a agitação na casa acalmasse. Depois de comer, fez umas quantas flexões para se desentorpecer e pôs-se a dormir a poucos passos de Tornado, com a beatitude de quem realizou um bom trabalho.

Acordou horas mais tarde descansado e alegre. Lavou-se e mudou de roupa, voltou a pôr a máscara e até teve alento para o bigode. «Preciso de um espelho, não é fácil colar os pêlos de cor. Está decidido, tenho de deixar crescer o bigode, é inevitável. Esta gruta requer certas comodidades; isso facilitará as nossas andanças, não achas?», comentou para Tornado. Esfregou as mãos encantado perante as imensas possibilidades do futuro; enquanto tivesse saúde e força, nunca se aborreceria. Pensou em Lolita e sentiu um formigueiro no estômago semelhante ao que dantes Juliana lhe provocava, mas não os relacionou. A sua atracção por Lolita era tão fresca como se fosse a primeira e a única da sua vida. Cuidado! Não devia esquecer que ela era prima de Carlos Alcázar e por isso não podia ser sua namorada. Namorada? Riu-se com vontade: nunca se casaria, as raposas eram animais solitários.

Verificou que a sua espada Justina deslizava com facilidade na bainha, ajeitou o chapéu e dispôs-se à acção. Conduziu Tornado à saída das grutas, que Bernardo tivera a precaução de dissimular muito bem com rochas e arbustos, montou-o e dirigiu-se à fazenda. Não queria correr o risco de que se descobrisse a passagem secreta da lareira. Calculou que tinha dormido várias horas; devia passar da meia-noite e possivelmente todos, excepto as sentinelas, estariam a dormir. Deixou Tornado com as rédeas soltas debaixo de umas árvores próximas, certo de que ele não se moveria enquanto não o chamasse: tinha assimilado bem os ensinamentos de Raio na Noite. Embora tivessem dobrado a guarda, não teve qualquer obstáculo em aproximar-se da casa e espiar pela janela do salão, a única com luz. Em cima da mesa havia um candelabro de três velas, que alumiava um sector, mas o resto estava na penumbra. Passou as pernas com cuidado através da janela quebrada, entrou no compartimento e, escondendo-se entre os móveis alinhados contra as paredes, avançou em direcção à lareira, onde conseguiu acaçapar-se atrás dos grandes troncos. No outro extremo da divisão, Rafael Moncada passeava-se, fumando, e o sargento Garcia, perfilado e olhando em frente, procurava explicar-lhe o sucedido. Tinham seguido o Zorro a galope largo até aos despenhadeiros, disse, mas, quando estavam prestes a apanhá-lo, o foragido preferira saltar para o mar a render-se. Nessa altura já restava pouca luz e, aliás, era impossível aproximarem-se da borda, com medo de escorregarem nas pedras soltas. Embora não vissem o fundo do precipício, esvaziaram as armas, de modo que o Zorro tinha partido a cabeça nos rochedos, recebendo, além disso, uma salva de balas.

- Imbecil! - repetiu Moncada pela enésima vez. - Esse indivíduo arranjou maneira de te enganar e, entretanto, De La Vega escapou.

Uma inocente expressão de alívio bailou brevemente no rosto corado de Garcia, mas desapareceu instantaneamente, fulminada pelo olhar cortante do seu superior.

- Amanhã irás à missão com um destacamento de oito homens armados. Se De La Vega lá estiver, prende-lo de imediato; se resistir, mata-lo. Caso não esteja, trazes-me o padre Mendoza e Isabel de Romeu. Serão meus reféns, até que o bandido se entregue, percebeste?

- Mas como vamos fazer semelhante coisa ao padre? Penso que...

- Não penses, Garcia! O cérebro não te dá para isso. Obedece e cala a boca.

- Sim, Excelência.

Do seu esconderijo na escura fornalha da lareira, Diego perguntava a si mesmo como teria Bernardo arranjado maneira de estar em dois sítios ao mesmo tempo. Moncada acabou de insultar Garcia e despachou-o, após o que se serviu de um cálice do conhaque de Alejandro de La Vega e se sentou a meditar, baloiçando-se na cadeira, com os pés em cima da mesa. As coisas tinham-se complicado, havia pontas soltas, teria de eliminar várias pessoas; caso contrário, não conseguiria manter as pérolas em segredo. Bebeu sem pressa a bebida, examinou o documento que escrevera para Diego assinar e, por último, dirigiu-se a um pesado armário e tirou de lá a sacola. Uma das velas acabou de se consumir e o cerol gotejou sobre a mesa antes de ele terminar de contar mais uma vez as pérolas. O Zorro aguardou durante um espaço de tempo prudente e depois saiu com sigilo de gato do seu refúgio. Tinha dado vários passos cosido com a parede quando Moncada, sentindo-se observado, se voltou. Os seus olhos poisaram sobre o homem mimetizado nas sombras, sem o ver, mas o instinto advertiu-o do perigo. Pegou na fina espada com punho de prata e borlas de seda vermelha que pendia da cadeira.

- Quem anda aí? - perguntou.

- O Zorro. Acho que temos uns assuntozinhos pendentes... - disse este, adiantando-se.

Moncada não lhe deu tempo para continuar, caindo-lhe em cima com um grito de ódio, decidido a trespassá-lo de lado a lado. O Zorro evitou o aço com um passe de toureiro, incluindo uma graciosa volta da capa, e com dois saltos afastou-se, sempre com garbo, a mão direita enluvada no punho, a esquerda na cintura, o olhar atento e um sorriso escancarado sob o bigodinho retorcido. Ao segundo lance esquivado desembainhou a sua espada sem pressa, como se a insistência do outro em o matar fosse um aborrecimento.

- Má coisa é bater-se com raiva - desafiou-o.

Parou três mandobres e um corte de revés mal levantando a arma, após o que retrocedeu para dar confiança ao adversário, que, sem vacilar, arremeteu de novo. O Zorro trepou com um único impulso à mesa e dali de cima defendeu-se, quase dançando, das estocadas a fundo de Moncada. Algumas passavam-lhe entre as pernas, outras evitava-as ele com cabriolas ou detinha-as com tal firmeza que os ferros soltavam faíscas. Desceu da mesa e afastou-se dando saltos sobre as cadeiras, perseguido de perto por Moncada, cada vez mais frenético. «Não vos canseis, que não é bom para o coração», espicaçava-o. De vez em quando, o Zorro perdia-se nas sombras dos recantos, onde a débil luz das velas não chegava, mas, em vez de aproveitar a vantagem para atacar à traição, reaparecia por outro lado, chamando o seu opositor com um assobio. Moncada tinha muito bom domínio da espada e em combate desportivo teria dado trabalho a qualquer adversário, mas cegava-o um rancor fanático. Não podia suportar aquele atrevido que desafiava a autoridade, infringia a ordem e troçava da lei. Tinha de o matar antes que ele destruísse aquilo que mais prezava: os privilégios que lhe competiam por nascimento.

O duelo continuou da mesma maneira, um atacando com desesperada fúria e o outro esquivando-se com zombeteira ligeireza. Quando Moncada estava pronto para cravar o Zorro contra a parede, este rebolava pelo chão e levantava-se com uma pirueta de acrobata a duas varas de distância. Moncada compreendeu, por fim, que não ganhava terreno, antes o perdia, e começou a dar gritos chamando os seus homens; nessa altura, o Zorro deu o jogo por encerrado. Com três largas passadas alcançou a porta e deu duas voltas à chave com uma mão, enquanto com a outra mantinha o inimigo em respeito. A seguir passou o aço para a mão esquerda, truque que desconcertava sempre o contendor, pelo menos por uns segundos. Saltou de novo para cima da mesa e dali pendurou-se no grande lustre de ferro do tecto e baloiçou-se, caindo por trás de Moncada no meio de uma chuva de cento e cinquenta velas poeirentas, que ali estavam desde a reconstrução da casa. Antes que Moncada conseguisse aperceber-se do sucedido, encontrou-se desarmado e com a ponta de outra espada na nuca. A manobra tinha durado poucos segundos, mas já meia dúzia de soldados abria a porta à coronhada e a pontapé e irrompia no salão com os mosquetes preparados. (Pelo menos assim contou o Zorro em repetidas ocasiões e, como ninguém o desmentiu, tenho de acreditar nele, embora tenda a exagerar as suas proezas. Desculpai este breve parêntese e voltemos ao salão.) Dizia que os soldados entraram em tropel sob o comando do sargento Garcia, que acabava de sair da cama e estava em cuecas, mas com o chapéu do uniforme enfiado por cima do cabelo gorduroso. Os homens pisaram as velas e vários deles rolaram pelo chão. Saiu um tiro a um, que passou roçando a cabeça de Rafael Moncada e foi acertar no quadro da lareira, perfurando um olho da rainha Isabel, a Católica.

- Cuidado, imbecis! - bramou Moncada.

- Dai ouvidos ao vosso chefe, amigos! - recomendou-lhes amavelmente o Zorro.

O sargento Garcia não podia acreditar no que via. Teria apostado a sua alma que o Zorro jazia sobre os rochedos no fundo do despenhadeiro, e afinal estava ali ressuscitado, como Lázaro, a picar o cachaço a Sua Excelência. A situação era muito grave; por que razão sentia então um agradável adejar de borboletas na sua ampla barriga de glutão? Indicou aos seus homens que retrocedessem, tarefa nada fácil porque escorregavam nas velas, e, logo que saíram, fechou a porta e ficou lá dentro.

- O mosquete e o sabre, sargento, por favor - pediu-lhe o Zorro no mesmo tom amistoso.

Garcia desfez-se das suas armas com suspeita prontidão, a seguir postou-se diante da porta de pernas abertas e braços cruzados sobre o peito; imponente, apesar das cuecas. Restava apurar se velava pela integridade física do seu superior ou se se dispunha a gozar o espectáculo.

O Zorro indicou a Rafael Moncada que se sentasse diante da mesa e lesse o documento em voz alta. Era uma confissão de ter incitado os colonos a rebelarem-se contra o rei e declarar a independência da Califórnia. Essa traição pagava-se com a morte, para além de que a família do acusado perdia os seus bens e a honra. O papel não estava assinado; só faltava o nome do culpado. Pelos vistos, Alejandro de La Vega tinha-se recusado a assiná-lo, sendo a isso que se devia a insistência de Moncada em que o filho o fizesse.

- Bem pensado, Moncada. Como vedes, sobra espaço ao fundo da página. Pegai na pluma e escrevei o que a seguir vos vou ditar - mandou o Zorro.

Rafael Moncada viu-se forçado a acrescentar ao documento o negócio das pérolas, para além do delito de escravizar os índios.

- Assinai-o.

- Nunca assinarei isto!

- Porquê? Está escrito com a vossa letra e é a pura verdade. Assinai-o! - ordenou-lhe o mascarado.

Rafael Moncada poisou a pluma na mesa e fez menção de se levantar, mas com três rápidos movimentos a espada do Zorro traçou-lhe um Z no pescoço, por baixo da orelha esquerda. Um rugido de dor e de ira escapou-se do peito de Moncada. Levou a mão à ferida e retirou-a ensanguentada. A ponta do aço apoiou-se na sua jugular e a voz firme do inimigo indicou-lhe que contaria até três e, se ele não apusesse a sua assinatura e o seu selo, o mataria com o maior prazer. Um... dois... e... Moncada colocou a sua assinatura ao fundo da folha, após o que derreteu o lacre na chama de uma vela, deixou cair umas gotas sobre o papel e estampou o seu anel com o selo da família. O Zorro esperou que a tinta secasse e o lacre arrefecesse, a seguir chamou Garcia e ordenou-lhe que assinasse como testemunha. O gordo escreveu o seu nome com dolorosa lentidão, após o que enrolou o documento e, sem conseguir disfarçar um sorriso de satisfação, passou-o ao mascarado, que o guardou no peito.

- Muito bem, Moncada. Tomareis o barco dentro de um par de dias e saireis daqui para sempre. Guardarei esta confissão a bom recato e, se voltardes por estes lados, pôr-lhe-ei data e apresentá-la-ei aos tribunais; caso contrário, ninguém a verá. Só o sargento e eu sabemos da sua existência.

- A mim não me meta nisto, por favor, senhor Zorro - balbuciou Garcia, espantado.

- Em relação às pérolas, não deveis preocupar-vos, porque eu me encarregarei do problema. Quando as autoridades perguntarem por elas, o sargento Garcia dirá a verdade, que o Zorro as levou.

Pegou na sacola, dirigiu-se à janela quebrada e emitiu um agudo assobio. Momentos depois, ouviu os cascos de Tornado no pátio, cumprimentou com um gesto e saltou para o exterior. Rafael Moncada e o sargento Garcia correram atrás dele, chamando a tropa. Recortada contra a lua cheia, viram a silhueta negra do misterioso mascarado no seu magnífico corcel.

- Até à vista, senhores! - despediu-se o Zorro, não fazendo caso das balas que passavam roçando-o.

Dois dias mais tarde, Rafael Moncada embarcou no navio Santa Lucía com a sua avultada bagagem e os criados que trouxera de Espanha para o seu serviço pessoal. Diego, Isabel e o padre Mendoza acompanharam-no à praia, em parte, para se certificarem de que partia e, em parte, pelo prazer de lhe verem a cara de fúria. Diego perguntou-lhe em tom inocente porque se ia embora tão de repente e porque trazia uma ligadura no pescoço. Para Moncada, a imagem daquele jovem aperaltado, que chupava pastilhas de anis para a dor de cabeça e usava um lenço de renda, não encaixava de modo nenhum na do Zorro, mas continuava agarrado à suspeita de que ambos eram o mesmo homem.

A última coisa que lhes disse ao embarcar foi que não descansaria um único dia até desmascarar o Zorro e vingar-se. Nessa mesma noite, Diego e Bernardo encontraram-se nas grutas. Não se viam desde a oportuna aparição de Bernardo na fazenda para salvar o Zorro. Entraram pela lareira da casa, que Diego recuperara e começara a reparar dos abusos da soldadesca, com a ideia de que, tão logo estivesse pronta, Alejandro de La Vega voltaria a ocupá-la. De momento, este convalescia tratado por Toypurnia e Coruja Branca, enquanto o filho esclarecia a sua situação legal. Com Rafael Moncada fora de cena, não seria difícil conseguir que o governador levantasse as acusações. Os dois jovens dispunham-se a iniciar a tarefa de converter as grutas na guarida do Zorro.

Diego quis saber como tinha feito Bernardo para surgir na fazenda, galopar um bom pedaço perseguido pela tropa, saltar dos despenhadeiros para o vazio e simultaneamente aparecer na portinhola da lareira no salão da casa. Teve de repetir a pergunta, porque Bernardo não percebeu bem do que falava. Nunca estivera na casa, assegurou-lhe por gestos; Diego devia ter sonhado esse episódio. Atirara-se ao mar com o cavalo porque conhecia bem o terreno e sabia exactamente onde cair. Era noite cerrada, explicou, mas a Lua nascera, iluminando a água, e conseguira dar com a praia sem dificuldade. Uma vez em terra firme, compreendera que não podia exigir mais do seu extenuado corcel e deixara-o em liberdade. Tivera de andar várias horas para chegar ao amanhecer à Missão San Gabriel. Muito antes deixara Tornado na gruta, para que Diego o encontrasse, porque tinha a certeza de que este arranjaria maneira de fugir, uma vez que ele distraísse os seus captores.

- Já te disse que o Zorro apareceu na fazenda para me ajudar. Se não eras tu, quem foi? Vi-o com os meus próprios olhos.

Nessa altura, Bernardo deu um assobio e das sombras saiu o Zorro com a sua esplêndida indumentária, todo de preto, com chapéu, máscara e bigode, a capa posta sobre um ombro e a mão direita no punho da espada. Nada faltava ao impecável herói; trazia até o chicote enrolado à cintura. Ali estava, de corpo inteiro, iluminado por várias dúzias de candeeiros de sebo e um par de archotes, soberbo, elegante e inconfundível.

Diego ficou pasmado, enquanto Bernardo e o Zorro continham o riso, saboreando o momento. A incógnita durou menos do que estes teriam desejado, porque Diego se apercebeu de que o mascarado tinha os olhos tortos.

- Isabel! Só podia tratar-se de ti! - exclamou com uma gargalhada.

A rapariga tinha-o seguido quando fora à gruta com Bernardo, na primeira noite em que desembarcaram na Califórnia. Espiara-os quando Diego dera o fato preto ao irmão e planearam a existência de dois Zorros em vez de um; nessa altura ocorrera-lhe que melhor ainda seria três. Custara-lhe muito pouco obter a cumplicidade de Bernardo, que condescendia com ela em tudo. Ajudada por Nuria, cortara a peça de tafetá preto, oferta de Laffíte, e cosera o disfarce. Diego argumentou que aquilo era um trabalho de homens, mas ela recordou-lhe que o tinha resgatado das mãos de Moncada.

- É preciso mais um justiceiro, porque há muita maldade neste mundo, Diego. Tu serás o Zorro e Bernardo e eu ajudar-te-emos - determinou Isabel.

Não houve outro remédio senão aceitá-la no grupo, porque, como argumento final, ela ameaçou revelar a identidade do Zorro se a excluíssem.

Os irmãos vestiram os seus disfarces e os três Zorros formaram um círculo dentro da antiga Roda Mágica dos índios que tinham desenhado com pedras na infância. Com a faca de Bernardo fizeram um corte na mão esquerda. «Pela justiça!», exclamaram em uníssono Diego e Isabel. Bernardo juntou-se-lhes fazendo o signo apropriado na sua linguagem de sinais.

E nesse momento, quando o sangue misturado dos amigos gotejava no centro do círculo, pareceu-lhes ver que surgia do fundo da terra uma luz incandescente, que bailou no ar durante vários segundos. Era o sinal do Okahué, prometido pela avó Coruja Branca.

 

Alta Califórnia, 1840

A menos que sejais leitores muito distraídos, tereis sem dúvida adivinhado que a cronista desta história sou eu, Isabel de Romeu. Escrevo trinta anos depois de ter conhecido Diego de La Vega em casa de meu pai, em 1810, e desde então muitas coisas sucederam. Apesar da passagem do tempo, não receio incorrer em graves inexactidões, porque ao longo da vida tomei notas e, se me falhar a memória, consulto Bernardo. Nos episódios em que ele esteve presente, vi-me obrigada a escrever com um certo rigor, porque não me permito interpretar os factos à minha maneira. Nos restantes, tive mais liberdade. Às vezes o meu amigo faz-me sair fora dos eixos. Dizem que os anos outorgam flexibilidade às pessoas, mas não é o seu caso; tem quarenta e cinco anos e não perdeu a rigidez. Em vão lhe expliquei que não há verdades absolutas, tudo passa pelo filtro do observador. A memória é frágil e caprichosa, cada um recorda e esquece segundo as suas conveniências. O passado é um caderno de muitas folhas, onde anotamos a vida com uma tinta que muda consoante o estado de espírito. No meu caso, o caderno parece-se com os mapas fantásticos do comandante Santiago de León e merece ser incluído na Enciclopédia de Desejos, versão integral. No caso de Bernardo, o caderno é uma chumbada. Enfim, pelo menos essa exactidão serviu-lhe para criar vários filhos e administrar com bom critério a fazenda De La Vega. Multiplicou a sua fortuna e a de Diego, que continua ocupado em fazer justiça, em parte por ter bom coração, mas mais que qualquer outra coisa porque adora vestir-se de Zorro e viver aventuras de capa e espada. Não menciono pistolas porque não tardou a abandonar o seu uso; considera que as armas de fogo, além de serem imprecisas, não são dignas de um valente. Para se bater só precisa da Justina, a espada que ama como uma noiva. Já não tem idade para essas criancices, mas, pelos vistos, o meu amigo nunca tomará juízo.

Suponho que desejais saber de outras personagens desta história; ninguém gosta de ficar com pontos de interrogação depois de ter lido tantas páginas, não é verdade? Não há nada tão insatisfatório como um fim com pontas soltas, essa tendência moderna de deixar os livros a meio. Nuria tem a cabeça branca, reduziu-se ao tamanho de uma anã e respira com muito barulho, como os leões-marinhos, mas está de saúde. Não pensa morrer; diz que teremos de a matar à paulada. Há pouco coube-nos enterrar Toypurnia, com quem mantive uma excelente amizade. Não voltou a viver entre os brancos; ficou com a sua tribo, mas às vezes visitava o seu marido na fazenda. Eram bons amigos. Nove anos antes enterrámos Alejandro de La Vega e o padre Mendoza, falecidos durante a epidemia de gripe. A saúde de Dom Alejandro nunca se recompôs completamente da experiência em El Diablo, mas até ao último dia da sua vida tratou da sua fazenda a cavalo. Era um verdadeiro patriarca; já não há homens como ele.

O correio dos índios difundiu a notícia de que o padre Mendoza estava a morrer e apareceram tribos inteiras para se despedirem dele. Vieram da Alta e da Baixa Califórnia, do Arizona e do Colorado, Chumashes, Shoshones e muitos outros. Durante dias e noites dançaram, salmodiando cânticos funerários, e antes de partirem colocaram na sua sepultura presentes de conchas, plumas e ossos. Os mais velhos repetiam a lenda das pérolas, de como o missionário as encontrara um dia na praia, trazidas pelos golfinhos do fundo do mar para socorrer os índios.

De Juliana e Laffite podeis saber por outros meios, visto que não me cabe mais nestas páginas. Escreveu-se nos jornais sobre o corsário, embora o seu destino actual seja um mistério. Desapareceu depois de os Americanos, que ele tinha defendido em mais de uma batalha, arrasarem o seu império em Grande Isle. Posso somente dizer-vos que Juliana, convertida numa robusta matrona, teve a originalidade de permanecer apaixonada pelo marido. Jean Laffite mudou de nome, comprou um rancho no Texas e faz figura de homem respeitável, embora, no fundo, seja sempre um bandido, com a graça de Deus. O casal tem oito filhos e já perdi a conta aos netos.

De Rafael Moncada prefiro não falar - esse velhaco nunca nos deixará em paz -, mas Carlos Alcázar foi despachado para o outro mundo a tiro numa taberna de San Diego, pouco depois da primeira intervenção do Zorro. Não foram encontrados os culpados, mas disse-se que tinham sido assassinos a soldo. Quem os contratara? Gostaria de vos dizer que foi Moncada, ao tomar conhecimento de que o sócio o tinha enganado com as pérolas, mas seria um truque literário para arredondar esta história, porque Moncada estava de regresso a Espanha quando balearam Alcázar. A sua morte, muito merecida, por sinal, deixou o caminho livre a Diego de La Vega para cortejar Lolita, à qual teve de confessar a identidade do Zorro antes de ser aceite. Estiveram casados só um par de anos, porque ela partiu a cabeça numa queda do cavalo. Pouca sorte. Anos depois, Diego casou-se com outra jovem, de nome Esperanza, que também morreu tragicamente, mas a sua história não cabe neste relato.

Se me vísseis, amigos, creio que me reconheceríeis, visto que não mudei muito. As mulheres bonitas desfeiam-se com a idade.

As mulheres como eu envelhecem apenas e algumas até melhoram de aspecto. Eu suavizei-me com os anos. O meu cabelo está salpicado de grisalho e não me caiu, como ao Zorro; ainda chega para duas cabeças. Tenho algumas rugas, que me dão carácter, conservo quase todos os dentes e continuo a ser forte, ossuda e vesga. Não me acho mal para os meus anos bem vividos. Exibo várias orgulhosas cicatrizes de sabre e de bala, é certo, obtidas a ajudar o Zorro nas suas missões de justiça. Perguntar-me-eis, sem dúvida, se continuo apaixonada por ele e terei de confessar que sim, mas não sofro por isso. Lembro-me de quando o vi pela primeira vez, tinha ele quinze anos e eu onze, éramos um par de fedelhos. Eu trazia um vestido amarelo, que me dava um aspecto de canário molhado. Apaixonei-me por ele então e foi o meu único amor, excepto por um breve período em que tive uma paixoneta pelo corsário Jean Laffite, mas a minha irmã arrebatou-mo, como sabeis. Isso não significa que eu seja virgem, nem pensar; não me faltaram amantes de boa vontade, uns melhores que outros, mas nenhum memorável. Por sorte, não me apaixonei pelo Zorro loucamente, como acontece à maioria das mulheres ao conhecerem-no; mantive sempre a cabeça fria relativamente a ele. Apercebi-me a tempo de que o nosso herói só é capaz de amar as que não lhe correspondem e decidi ser uma delas. Pretendeu casar-se comigo de todas as vezes que lhe falha uma das suas noivas ou fica viúvo - isso aconteceu um par de vezes - e eu recusei-me. Talvez por isso sonhe comigo quando come de mais. Se o aceitasse como marido, não tardaria a sentir-se encurralado e eu teria de morrer para o deixar livre, como fizeram as suas duas esposas. Prefiro esperar a nossa vez com paciência de beduíno. Sei que ficaremos juntos quando ele for um velho de pernas bambas e cabeça fraca, quando outras raposas mais jovens o tiverem substituído e, no caso improvável de que alguma dama lhe abra a sua varanda, ele não seja capaz de a trepar. Nessa altura vingar-me-ei das penúrias que o Zorro me fez passar!

E com isto termina a minha narração, caros leitores. Prometi contar-vos as origens da lenda e cumpri; agora posso dedicar-me aos meus próprios assuntos. Estou farta do Zorro e creio que chegou o momento de lhe pôr ponto final.

 

 

                                                                  Isabel Allende

 

 

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