Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
ZORRO - O começo da lenda
Segunda Parte
Diego devolveu a carta a Bernardo e ambos ficaram em silêncio, enquanto a luz do dia se apagava na janela. Bernardo, que por necessidade de comunicar tinha um rosto muito expressivo, parecia naquele momento esculpido em granito. Começou a tocar uma melodia triste, refugiando-se na flauta para não dar explicações. Diego não lhas pediu, porque sentia no seu próprio peito as pancadas do coração do irmão. Tinha chegado o momento de se separarem. Bernardo não podia continuar a viver como um rapaz; as suas raízes reclamavam-no, desejava regressar à Califórnia e assumir as suas novas responsabilidades. Nunca se sentira à vontade longe da sua terra. Vivera vários anos a contar os dias e as horas, naquela cidade de pedra e de gelados Invernos, devido à férrea lealdade que o unia a Diego, mas já não podia mais; o vazio no peito ia crescendo como uma insondável caverna. O amor absoluto que sentia por Raio na Noite adquiria agora uma terrível urgência, porque não tinha a menor dúvida de que aquele menino era seu filho. Diego aceitou os silenciosos argumentos com um aperto no peito e respondeu com um discurso aos borbotões vindo da alma.
- Terás de ir sozinho, irmão, porque me faltam vários meses para me formar no Colégio de Humanidades; entretanto, pretendo convencer Juliana a casar-se comigo, mas antes de me declarar e pedir a sua mão a Dom Tomás, tenho de esperar que se refaça da desilusão que Rafael Moncada lhe causou. Perdoa, irmão, sou muito egoísta, não é o momento de te maçar com as minhas fantasias de amor, mas sim de falar de ti.
Durante estes anos diverti-me como um menino mimado, enquanto tu estiveste doente de saudades de Raio na Noite, sem sequer saberes que ela te tinha dado um filho. Como aguentaste tanto? Não quero que te vás, mas o teu lugar é na Califórnia, disso não há dúvida. Agora compreendo o que o meu pai e tu próprio sempre me disseram, que os nossos destinos são diferentes: eu nasci com fortuna e privilégios que tu não tens. Não é justo, porque somos irmãos. Um dia serei dono da fazenda De La Vega e então poderei dar-te a metade que te cabe; entretanto, escreverei ao meu pai para lhe pedir que te entregue suficiente dinheiro para te instalares com Raio na Noite e o teu filho onde quiseres; não tens de morar na missão. Prometo-te que, enquanto eu puder, nunca faltará nada de material à tua família. Não sei porque choro como uma criança; deve ser por ter saudades tuas antecipadas. Que farei sem ti? Não fazes ideia de quanto preciso da tua força e da tua sabedoria, Bernardo.
Os dois jovens abraçaram-se, primeiro comovidos e depois com um riso forçado, porque se gabavam de não serem sentimentais. Tinha terminado uma etapa da juventude.
Bernardo não pôde partir de imediato, como desejava. Teve de aguardar até Janeiro para conseguir que uma fragata mercante o conduzisse à América. Tinha muito pouco dinheiro, mas aceitaram que pagasse a passagem trabalhando como marinheiro a bordo. Deixou uma carta a Diego com a recomendação de que tivesse cuidado com o Zorro, não só pelo risco de ser descoberto, como também porque a personagem acabaria por apoderar-se dele. «Não te esqueças de que és Diego de La Vega, um homem de carne e osso, ao passo que esse Zorro é uma criatura da tua imaginação», dizia-lhe na carta. Custou-lhe despedir-se de Isabel, à qual acabara por se afeiçoar como a uma irmã mais nova, porque receava não a voltar a ver, apesar de ela lhe prometer cem vezes que iria à Califórnia assim que o pai lhe desse autorização.
- Ver-nos-emos de novo, Bernardo, mesmo que o Diego nunca se case com a Juliana. O mundo é redondo e, se eu lhe der a volta, um dia hei-de chegar à tua casa - assegurou-lhe Isabel, assoando o nariz e enxugando as lágrimas às palmadas.
O ano de 1814 anunciou-se pleno de esperanças para os Espanhóis. Napoleão estava debilitado pelas suas derrotas na Europa e pela situação interna em França. O Tratado de Valençay devolveu a coroa a Fernando VII, que se preparava para voltar à pátria. Em Janeiro, o Chevalier deu ordem ao mordomo para embalar o conteúdo do seu palacete, tarefa nada fácil, porque se deslocava com esplendor principesco. Suspeitava que restasse pouco tempo a Napoleão no poder e, nesse caso, o seu próprio destino estava em perigo, já que, na sua qualidade de homem de confiança do imperador, não tinha futuro em qualquer governo que o substituísse. Para não alterar o ânimo da filha, apresentou-lhe a viagem como uma promoção na sua carreira: voltavam finalmente a Paris. Agnès lançou-lhe os braços ao pescoço, encantada. Estava farta de sombrios espanhóis, campanários mudos, ruas mortas pelo recolher obrigatório e, sobretudo, de que lhe atirassem lixo à carruagem e lhe fizessem desfeitas. Odiava a guerra, as privações, a frugalidade catalã e a Espanha em geral. Lançou-se em frenéticos preparativos para a viagem. Nas suas visitas a casa de Juliana, palrava excitada a propósito da vida social e das diversões de França.
- Tendes de visitar-me no Verão, a época mais bonita de Paris. Nessa altura, o papá e eu estaremos instalados como deve ser. Moraremos muito perto do palácio do Louvre.
De caminho, também ofereceu hospitalidade a Diego, porque na sua opinião este não podia regressar à Califórnia sem ter conhecido Paris. Tudo o que era importante acontecia naquela cidade: a moda, as artes e as ideias, disse; até os revolucionários americanos se tinham formado em França. Não era a Califórnia uma colónia de Espanha? Ah, então havia que dar-lhe a independência! Talvez em Paris Diego se curasse dos seus achaques e dores de cabeça e se convertesse num militar famoso, como aquele da América do Sul a quem chamavam o Libertador. Simón Bolívar, ou coisa parecida.
Entretanto, na biblioteca, o Chevalier Duchamp compartilhava o último conhaque com Tomás de Romeu, a coisa mais parecida com um amigo que conseguira durante vários anos naquela cidade hostil. Sem lhe revelar informação estratégica, pô-lo a par da situação política e sugeriu-lhe que aproveitasse aquele momento para ir de viagem ao estrangeiro com as filhas. As raparigas estavam na idade perfeita para conhecerem Florença e Veneza, disse ele, ninguém que aprecie a cultura pode deixar de conhecer essas cidades. Tomás respondeu que iria pensar nisso, que não era má ideia, talvez o fizessem no Verão.
- O imperador autorizou o regresso de Fernando VII a Espanha. Pode suceder de um momento para o outro. Acho conveniente que não vos encontreis aqui na altura - insinuou o Chevalier.
- Porquê, Excelência? Sabeis como aplaudo a influência francesa em Espanha, mas creio que o regresso de o Desejado acabará com a guerrilha, que já dura há seis anos, e permitirá a este país reorganizar-se. Fernando VII terá de governar com a Constituição liberal de 1812 - redarguiu Tomás de Romeu.
- Assim espero, para o bem de Espanha e o vosso, meu amigo - concluiu o outro.
Pouco depois, o Chevalier Duchamp voltou a França com a sua filha Agnès. O comboio das suas carruagens foi interceptado no sopé dos Pirenéus por um bando de inflamados guerrilheiros, dos últimos que ainda restavam. Os assaltantes estavam bem informados: conheciam a identidade do garboso viajante e sabiam que era a eminência parda da Cidadela, o responsável por inúmeras torturas e execuções. Não se conseguiram vingar como pretendiam, porque o Chevalier viajava protegido por um contingente de guardas bem armados, que os receberam com os mosquetes preparados. A primeira salva deixou vários espanhóis num charco de sangue e o resto fizeram-no os sabres. O recontro durou menos de dez minutos. Os guerrilheiros sobreviventes dispersaram, deixando atrás vários homens feridos, que foram trespassados sem piedade pelos aços. O Chevalier, que não se mexeu da carruagem e parecia mais aborrecido que assustado, teria esquecido facilmente a escaramuça, se uma bala perdida não tivesse ferido Agnès. Passou roçando-lhe a cara e esfacelou-lhe uma face e parte do nariz. A horrenda cicatriz havia de alterar a vida da rapariga. Encerrou-se durante muitos anos na casa de campo da família em Saint-Maurice. A princípio, sucumbiu à depressão absoluta de ter perdido a beleza, mas com o tempo deixou de chorar e começou a ler qualquer coisa mais que os romances sentimentais que partilhava com Juliana de Romeu. Um a um, foi lendo todos os livros da biblioteca do pai e a seguir pediu-lhe outros. Durante as tardes solitárias da sua juventude, truncada por aquela bala fatídica, estudou filosofia, história e política. Depois começou a escrever sob um pseudónimo masculino e hoje, muitos anos mais tarde, a sua obra é conhecida em muitas partes do mundo; mas essa não é a nossa história. Voltemos a Espanha e à época que nos interessa.
Apesar dos conselhos de Bernardo, nesse ano Diego de La Vega viu-se envolvido em acontecimentos que haviam de convertê-lo definitivamente no Zorro. As tropas francesas abandonaram Espanha, umas de barco, outras em marcha forçada por terra, como uma pesada fera, sob os insultos e pedradas do povo. Em Março, Fernando VII regressou do seu exílio dourado em França. O cortejo real com o Desejado atravessou a fronteira em Abril e entrou no país pela Catalunha. Culminava, por fim, a longa luta do povo para expulsar os invasores. Ao princípio, o júbilo nacional foi transbordante e incondicional. Desde a nobreza até ao último camponês, incluindo a maioria dos ilustrados como Tomás de Romeu, viram com alegria o regresso do rei e passaram por alto as tremendas falhas do seu carácter, postas em evidência desde tenra idade. Supunham que o exílio teria feito amadurecer aquele príncipe de poucas luzes, que voltaria curado de ciúmes, mesquinhezes e paixão pela intriga cortesã. Enganaram-se. Fernando VII continuava a ser um homem pusilânime, que via inimigos por todo o lado e se rodeava de aduladores.
Um mês mais tarde, Napoleão Bonaparte foi obrigado a abdicar do trono de França. O monarca mais poderoso da Europa sucumbiu, derrotado por uma imponente conjunção de forças políticas e militares. À sublevação dos países submetidos, como Espanha, somou-se a aliança para o destruir da Prússia, Áustria, Grã-Bretanha e Rússia. Foi deportado para a ilha de Elba, mas permitiram-lhe conservar o, agora irónico, título de imperador. No dia seguinte, Napoleão tentou, sem êxito, suicidar-se.
Em Espanha, o regozijo geral pelo regresso de o Desejado transformou-se poucas semanas depois em violência. Isolado pelo clero católico e pelas forças mais conservadoras da nobreza, do exército e da administração pública, o flamante rei revogou a Constituição de 1812 e as reformas liberais, fazendo o país retroceder em poucos meses à época feudal. Foi restaurada a Inquisição, assim como os privilégios da nobreza, do clero e dos militares, e desencadeou-se uma perseguição desapiedada a dissidentes e opositores, a liberais, afrancesados e a antigos colaboradores do governo de José Bonaparte. Regentes, ministros e deputados foram detidos, doze mil famílias tiveram de atravessar as fronteiras procurando refúgio no estrangeiro, e a repressão alastrou de tal forma que ninguém estava seguro; bastava a menor suspeita ou uma acusação sem fundamento para se ser preso e executado sem processo.
Eulália de Callís estava no sétimo céu. Tinha esperado muito tempo a volta do rei para recuperar a sua posição de antigamente. Não gostava da insolência da plebe nem da desordem; preferia o absolutismo de um monarca, mesmo que fosse um fulano medíocre. O seu lema era: cada um no seu lugar, um lugar para cada um. E o seu era nos píncaros, evidentemente. Ao contrário de outros nobres que tinham perdido as suas fortunas naqueles anos revolucionários por se agarrarem às tradições, ela não tivera escrúpulos em recorrer a métodos burgueses para enriquecer. Tinha faro para o negócio. Estava mais rica do que nunca, poderosa, com amigos na corte de Fernando VII e disposta a ver o extermínio sistemático das ideias liberais, que haviam feito perigar uma boa parte daquilo que sustentava a sua existência. Não obstante, ainda restava alguma coisa da generosidade do passado escondida nas pregas da sua corpulenta humanidade, porque, ao ver tanto sofrimento à sua volta, abriu as suas arcas para socorrer os famintos, sem lhes perguntar a que partido político pertenciam. Assim, acabou por esconder nas suas casas de campo ou arranjar maneira de mandar para França mais de uma família de refugiados.
Embora não precisasse de o fazer, porque, de qualquer maneira, a sua situação era magnífica, Rafael Moncada entrou de imediato no corpo de oficiais do exército, onde os títulos e ligações da família lhe garantiam uma ascensão rápida. Conferia-lhe prestígio anunciar aos quatro ventos que, finalmente, podia servir Espanha num exército monárquico, católico e tradicional. A tia concordou, pois era de opinião que até o mais pateta fica bem de uniforme.
Tomás de Romeu compreendeu então quanta razão tivera o seu amigo, o Chevalier Duchamp, ao aconselhá-lo a ir para o estrangeiro com as filhas. Convocou os seus contabilistas com o propósito de analisar o estado dos seus bens e descobriu que o seu rendimento não chegava para viver com decência noutro país.
Receava, além disso, que, ao exilar-se noutro lugar, o governo de Fernando VII confiscasse as propriedades que ainda lhe restavam. Depois de ter manifestado durante uma vida o seu desprezo pelos assuntos materiais, tinha agora de se agarrar às suas posses. A pobreza causava-lhe horror. Não se preocupara demasiado com a diminuição sistemática da fortuna herdada da mulher, porque supunha que haveria sempre o suficiente para continuar a viver da maneira a que estava habituado. Nunca encarara seriamente a possibilidade de perder a sua posição social. Não queria imaginar as filhas privadas da comodidade de que sempre haviam gozado. Decidiu que o melhor seria ir para longe, a fim de esperar que passasse a vaga de violência e perseguição. Na sua idade tinha visto muita coisa e sabia que, mais tarde ou mais cedo, o pêndulo político oscila na direcção oposta; era tudo questão de se manter invisível até que a situação normalizasse. Não podia nem pensar ir para a casa patriarcal de Santa Fé, onde era demasiado conhecido e odiado, mas lembrou-se de umas terras da mulher a caminho de Lérida, que nunca visitara. Essa propriedade, que não trouxera rendimento, apenas problemas, podia ser agora a sua salvação. Consistia numas colinas plantadas com velhas oliveiras, onde viviam umas quantas famílias camponesas muito pobres e atrasadas, que não viam um patrão havia tanto tempo que julgavam não o ter. A quinta estava provida de um horrendo casarão quase em ruínas, construído por volta do ano de 1500, um cubo maciço, fechado como um túmulo para preservar os seus habitantes dos perigos dos Sarracenos, soldados e bandidos que haviam assolado a região durante séculos, mas Tomás determinou que sempre seria preferível a uma prisão. Poderia ali permanecer uns meses com as filhas. Despediu a maior parte da criadagem, fechou metade da sua mansão de Barcelona, deixou o resto a cargo do mordomo e empreendeu a viagem em vários coches, porque tinha de transportar os móveis necessários.
Diego presenciou o êxodo da família com um mau pressentimento; contudo, Tomás de Romeu tranquilizou-o com o argumento de que não tinha exercido cargos na administração napoleónica e muito pouca gente estava a par da sua amizade com o Chevalier, de modo que não haveria nada a temer. «Por uma vez, agrada-me não ser uma pessoa importante», sorriu ao despedir-se. Juliana e Isabel não faziam bem ideia da situação em que se encontravam e partiram como quem vai para umas estranhas férias. Não compreendiam as razões do pai para as levar para ali, tão longe da civilização, mas estavam habituadas a obedecer e não fizeram perguntas. Diego beijou Juliana em ambas as faces e sussurrou-lhe ao ouvido que não desesperasse, porque a separação seria breve. Ela respondeu com um olhar de desconcerto. Como tantas coisas que Diego lhe insinuava, aquela tornou-se-lhe incompreensível.
Nada teria agradado mais a Diego do que acompanhar a família até ao campo, como Tomás de Romeu lhe pedira. A ideia de passar uns tempos longe do mundo e na companhia de Juliana era muito tentadora, mas não podia naquele momento afastar-se de Barcelona. Os membros de La Justicia estavam muito ocupados; tinham de multiplicar os seus recursos para ajudar a multidão de refugiados que procurava sair de Espanha. Era preciso escondê-los, arranjar transporte, introduzi-los em França pelos Pirenéus ou enviá-los para outros países da Europa. A Inglaterra, que combatera afincadamente Napoleão até o derrotar, apoiava agora o rei Fernando VII e, salvo excepções, não dava protecção aos inimigos do seu governo. Tal como lhe explicara o mestre Escalante, nunca até aí La Justicia tinha estado tão perto de ser descoberta. A Inquisição voltara mais forte do que antes, com plenos poderes para defender a fé a qualquer preço, mas como a linha divisória entre hereges e opositores era difusa, qualquer um podia cair nas suas garras. Durante os anos em que estivera abolida, os membros de La Justicia descuraram as medidas de segurança, convencidos de que no mundo moderno não havia lugar para o fanatismo religioso. Julgavam que os tempos de queimar gente na fogueira tinham sido ultrapassados para sempre. Agora pagavam as consequências do seu excessivo optimismo. Diego estava tão absorto nas missões de La Justicia, que deixou de ir às aulas do Colégio de Humanidades, onde a educação, tal como no resto do país, era censurada. Muitos dos seus professores e colegas haviam sido detidos por expressarem as suas opiniões. Naquela época, o rotundo reitor da Universidade de Cervera pronunciou perante o rei a frase que definia a vida académica de Espanha: «Longe de nós a funesta mania de pensar.»
Em princípios de Setembro detiveram um membro de La Justicia, que se escondera durante várias semanas em casa do mestre Manuel Escalante. A Inquisição, como braço da Igreja, preferia não derramar sangue. Os seus métodos mais recorrentes de interrogatório eram desconjuntar as vítimas no potro ou queimá-las com ferros em brasa. O infeliz prisioneiro confessou os nomes dos que o tinham socorrido; pouco depois, o mestre de esgrima foi detido. Antes de ser arrastado para a sinistra carruagem dos aguazis, teve tempo à justa para avisar o criado, que levou a má nova a Diego. Ao amanhecer do dia seguinte, este conseguiu apurar que Escalante não fora conduzido à Cidadela, como era habitual no caso de presos políticos, mas sim a um quartel do bairro do porto, porque pensavam conduzi-lo nos próximos dias a Toledo, onde estava centralizada a funesta burocracia da Inquisição. Diego pôs-se de imediato em contacto com Júlio César, o homem com quem tinha lutado no tabernáculo da sociedade secreta durante a sua iniciação.
- Isso é muito grave. Podem prender-nos a todos - disse este.
- Nunca conseguirão fazer o mestre Escalante confessar - opinou Diego.
- Têm métodos infalíveis, desenvolvidos ao longo de séculos. Detiveram vários dos nossos; já possuem muitas informações. O círculo aperta-se à nossa volta. Teremos de dissolver a sociedade a título temporário.
- E Dom Manuel Escalante?
- Espero, para bem de todos, que consiga pôr fim aos seus dias antes de ser submetido a suplício - suspirou Júlio César.
- Têm o mestre num quartel do bairro, não é na Cidadela; temos de tentar resgatá-lo... - propôs Diego.
- Resgatá-lo? Impossível!
- Difícil, mas não impossível. Vou precisar da ajuda de La Justicia. Fá-lo-emos esta mesma noite - retorquiu Diego, passando a explicar o seu plano.
- Acho uma loucura, mas vale a pena tentar. Ajudar-vos-emos - decidiu o seu companheiro.
- É preciso tirar o mestre imediatamente da cidade.
- Claro. Estará um bote com um remador de plena confiança à espera no porto. Acho que poderemos iludir a vigilância. O remador conduzirá o mestre a um navio que larga amanhã de madrugada para Nápoles. Ali estará a salvo.
Diego suspirou, pensando que poucas vezes tinha sentido mais a falta de Bernardo. Esta prova era mais séria do que introduzirem-se no palacete do Chevalier Duchamp. Não era brincadeira assaltar um quartel, dominar os guardas - não sabia quantos -, libertar o preso e levá-lo ileso para um bote, antes de lhes caírem em cima as garras da lei.
Dirigiu-se a cavalo à mansão de Eulália de Callís, cuja planta se dera ao trabalho de estudar com atenção em todas as oportunidades que a visitara. Deixou o cavalo na rua e, sem ser visto, avançou agachado pelos jardins, encaminhando-se para o pátio de serviço, onde pululavam animais domésticos entre mesas para matar porcos e aves, artesas de lavagem, panelas para ferver lençóis e arames com a roupa estendida a secar. Ao fundo ficavam os barracões das carruagens e os estábulos dos cavalos. Viam-se por todo o lado cozinheiros, lacaios e criadas, cada um ocupado com as suas incumbências. Ninguém lhe dirigiu sequer um olhar. Introduziu-se nos barracões, dissimulando-se entre as carruagens, escolheu a que lhe convinha e aguardou encolhido no seu interior, a fazer figas para que nenhum moço de estrebaria o descobrisse. Sabia que às cinco tocavam um sino para chamar a criadagem à cozinha; fora a própria Eulália de Callís que lho contara. Era a hora a que a matriarca oferecia uma merenda ao seu exército de criados: almoçadeiras de espumante chocolate com leite e pão para ensopar. Meia hora mais tarde, Diego ouviu as badaladas e, às duas por três, o pátio esvaziou-se de gente. A brisa trouxe-lhe o delicado aroma do chocolate e encheu-se-lhe a boca de saliva. Desde que a família partira para o campo, comia-se muito mal na casa De Romeu. Diego, consciente de que só dispunha de dez ou quinze minutos, arrancou rapidamente o brasão de armas da portinhola duma carruagem e apoderou-se de um par de jaquetas do elegante uniforme dos lacaios, que estavam penduradas nos respectivos cabides. Eram librés de veludo azul-celeste com gola e forro carmesim, botões e charlateiras douradas. Completavam a indumentária colarinhos de renda, calças brancas, sapatos de verniz preto com fivelas de prata e uma faixa de brocado vermelho à cintura. Como dizia Tomás de Romeu, nem Napoleão Bonaparte se vestia com tanto luxo como os criados de Eulália. Uma vez seguro de que o pátio estava desimpedido, saiu com a sua carga, escondendo-se entre os arbustos, e procurou o cavalo. Pouco depois trotava rua abaixo.
Em casa de Tomás de Romeu achava-se a desconjuntada carruagem da família, demasiado frágil e antiga para a levar até ao campo. Comparada com qualquer uma das de Dona Eulália, era uma ruína, mas Diego esperava que, de noite e com pressa, ninguém notasse o seu decrépito aspecto. Tinha de esperar que o Sol se pusesse e medir o seu tempo com cuidado; disso dependeria o êxito da sua missão. Depois de cravar o escudo na carruagem, dirigiu-se à adega, que o mordomo mantinha sempre fechada à chave, insignificante estorvo para Diego que aprendera a arrombar toda a espécie de fechaduras. Abriu a adega, tirou de lá um barril de vinho e transportou-o a rolar mesmo debaixo das barbas dos criados, que não lhe fizeram perguntas, julgando que Dom Tomás lhe tinha dado a chave antes de partir.
Durante mais de quatro anos Diego guardara como um tesouro o frasco de xarope de dormideira que lhe dera sua avó Coruja Branca como presente de despedida, com a promessa de que só o devia usar para salvar vidas. Era justamente esse o destino que tencionava dar-lhe. Muitos anos antes, com aquela poção, o padre Mendoza tinha amputado uma perna e ele aturdira um urso. Não sabia quão poderosa seria a droga dissolvida naquela quantidade de vinho, mas tinha de o tentar. Despejou o conteúdo do frasco no tonel e rebolou-o para o misturar. Pouco depois, chegaram os cúmplices de La Justicia, que puseram cabeleiras brancas de lacaios e as librés do uniforme da casa de Callís, para o acompanhar. Diego vestiu-se como um príncipe, com a sua melhor indumentária de colete de veludo cor de café com passamanaria de ouro e prata, gola de pele, gravata de peitilho presa com um broche de pérolas, calças cor de manteiga, sapatos de petimetre com fivelas douradas e chapéu alto. Assim o conduziram os seus camaradas na carruagem até ao quartel. Era noite cerrada quando compareceu frente à porta, mal iluminada por umas candeias. Diego ordenou a duas sentinelas, com a voz altissonante de alguém habituado a mandar, que chamassem o seu superior. Calhou este ser um jovem alferes de forte sotaque andaluz, que se impressionou com a esmagadora elegância de Diego e com o escudo de armas da carruagem.
- Sua Excelência, Dona Eulália de Callís, envia-vos um tonel do melhor vinho das suas adegas, para que façais um brinde em sua honra com os vossos homens nesta mesma noite. É o seu aniversário - anunciou Diego com ar de superioridade.
- Parece-me estranho... - conseguiu balbuciar o homem, surpreendido.
- Estranho? Deveis ser novo em Barcelona! - interrompeu-o Diego. - Sua Excelência mandou sempre vinho ao quartel por ocasião do seu aniversário e com maioria de razão o faz agora, quando a pátria está livre do déspota ateu.
Desconcertado, o alferes ordenou aos seus subalternos que tirassem o barril e inclusivamente convidou Diego para beber com eles, mas este escusou-se, alegando que tinha de distribuir outros presentes similares na Cidadela.
- Daqui a pouco, Sua Excelência enviar-vos-á o seu guisado predilecto, pé de porco com nabos. Quantas bocas há aqui? - perguntou Diego.
- Dezanove.
- Bem. Boa noite.
- O seu nome, senhor, por favor...
- Sou Dom Rafael Moncada, sobrinho de Sua Excelência, Dona Eulália de Callís - retorquiu Diego e, batendo com a bengala na portinhola da carruagem, ordenou ao falso cocheiro que empreendesse a retirada.
Às três da madrugada, quando a cidade dormia e as ruas se achavam vazias, Diego dispôs-se a levar a cabo a segunda etapa do plano. Calculava que àquela hora os homens do quartel teriam bebido o seu vinho e, se não estivessem a dormir, pelo menos estariam atordoados. Essa seria a sua única vantagem. Tinha mudado de roupa e vestia como o Zorro. Trazia chicote, pistola e a sua espada afiada como uma navalha. Para não chamar a atenção com os cascos de um cavalo sobre as pedras da calçada, foi a pé. Deslizando colado às paredes, chegou até uma das ruelas próximas do quartel, onde verificou que as mesmas sentinelas, bocejando de fadiga, continuavam debaixo dos candeeiros. Nas sombras de um barracão esperavam-no Júlio César e outro membro de La Justicia, disfarçados de marinheiros, tal como haviam combinado. Diego deu-lhes as suas instruções, que incluíam a ordem terminante de não intervirem para o ajudar, acontecesse o que acontecesse. Cada um devia cuidar de si mesmo. Desejaram sorte uns aos outros em nome de Deus e separaram-se.
Os «marinheiros» simularam uma rixa de bêbedos perto do quartel, enquanto Diego esperava a sua oportunidade, oculto na escuridão. A briga atraiu a atenção das sentinelas, que abandonaram brevemente os seus postos para averiguarem a causa do tumulto. Aproximaram-se dos supostos ébrios para os advertir de que se afastassem ou seriam presos, mas estes continuaram a aplicar desajeitados bofetões um ao outro, como se não os ouvissem. Tanto cambaleavam e balbuciavam parvoíces, que as sentinelas desataram a rir com vontade, mas, quando se dispuseram a dispersá-los à pancada, os bêbedos recuperaram milagrosamente o equilíbrio e caíram-lhes em cima. Apanhados de surpresa, os guardas não se conseguiram defender. Aturdiram-nos num instante, agarraram-nos pelos tornozelos e arrastaram-nos sem considerações para uma viela adjacente, onde havia uma porta de anões dissimulada num portal. Bateram três vezes, abriu-se uma portinhola, disseram a contra-senha e uma sexagenária, vestida de preto, abriu-lhes a porta. Entraram agachados, para evitar darem cabeçadas no baixíssimo lintel, e introduziram os seus prisioneiros inertes numa cave de carvão. Ali os deixaram com as mãos amarradas e encapuçados, depois de os despirem. Vestiram os uniformes e voltaram à porta do quartel para se postarem sob os candeeiros. Nos escassos minutos que durou a operação de substituir as duas sentinelas, Diego tinha-se introduzido no edifício, de espada e pistola na mão.
Lá dentro, o sítio parecia deserto; reinava um silêncio sepulcral e havia muito pouca luz, porque metade das candeias tinha ficado sem azeite. Invisível como um espectro, o Zorro atravessou o vestíbulo. Empurrou cautelosamente uma porta e assomou à sala de armas, onde sem dúvida tinham distribuído o conteúdo do barril, porque estava meia dúzia de homens a ressonar no chão, incluindo o alferes. Assegurou-se de que nenhum estava acordado e a seguir inspeccionou o tonel. Tinha sido esvaziado até à última gota.
- Saúde, senhores! - exclamou satisfeito e, num impulso zombeteiro, traçou no muro uma letra Z com três traços da sua espada. Veio-lhe à mente a advertência de Bernardo de que o Zorro acabaria por se apoderar dele, mas já era tarde.
Confiscou rapidamente as armas de fogo e os sabres, amontoou-os nos baús do vestíbulo e a seguir continuou a sua excursão pelo edifício, apagando candeeiros e velas à medida que avançava. As sombras tinham sido sempre as suas melhores aliadas. Encontrou outros três homens derrotados pelo xarope de Coruja Branca e calculou que, se não lhe tinham mentido, restavam à volta de oito. Esperava dar com as celas dos presos sem ter de os enfrentar, mas chegaram-lhe aos ouvidos vozes próximas e compreendeu que tinha de se esconder depressa. Achava-se numa ampla divisão quase nua. Não sabia onde resguardar-se e tão-pouco conseguia apagar os dois archotes no muro oposto, a quinze passos de distância. Olhou em redor; a única coisa que lhe podia servir eram as grossas vigas do telhado, demasiado altas para as alcançar de um salto. Embainhou a espada, enfiou a pistola no cinto, desenrolou o chicote e com um gesto do pulso enroscou a ponta numa das vigas, puxou para o retesar e trepou com um par de braçadas, como tantas vezes tinha feito nos cabos dos mastros e no circo dos ciganos. Uma vez lá em cima, recolheu o chicote e espalmou-se sobre a viga, tranquilo porque a luz dos archotes não chegava lá. Nesse momento entraram dois homens a conversar; a julgar pela maneira como pareciam animados, não tinham recebido a sua ração de vinho.
Diego decidiu interceptá-los antes que chegassem à sala de armas, onde os seus companheiros jaziam esparramados no melhor dos sonos. Esperou que passassem por baixo da viga e atirou-se lá de cima como um enorme pássaro negro, a capa aberta em leque e o chicote numa mão. Paralisados, os homens demoraram-se a desembainhar os sabres, dando-lhe tempo para lhes vergar as pernas com duas certeiras chicotadas.
- Muito boa noite, senhores! - cumprimentou com uma pequena reverência zombeteira as vítimas, que estavam de joelhos. - Peço-vos que coloqueis os sabres com muito cuidado no chão.
Fez estalar o chicote à guisa de advertência, enquanto puxava da pistola que trazia à cintura. Os homens obedeceram-lhe sem chus nem bus e ele atirou os sabres com um pontapé para um canto.
- Vamos a ver se Vossas Mercês me ajudam. Suponho que não quereis morrer e a mim aborrece-me matar-vos. Onde posso fechar-vos para que não me causeis problemas? - perguntou-lhes, irónico.
Os soldados olharam-no perplexos, sem fazer ideia do que ele queria dizer. Eram rudes camponeses recrutados pelo exército, um par de rapazes que nos seus curtos anos tinham visto horrores, sobrevivido às matanças da guerra e passado muita fome. Não estavam para adivinhas. O Zorro simplificou a pergunta, acentuando as palavras com os estalos do chicote. Um deles, demasiado assustado para conseguir falar, apontou para a porta por onde tinham entrado. O mascarado sugeriu-lhes que rezassem as suas orações, porque, se o enganassem, iam morrer. A porta dava para um comprido corredor vazio, que percorreram em fila, os cativos à frente e ele atrás. Ao fundo, o corredor bifurcava-se: à direita havia uma porta escalavrada e à esquerda uma em melhor estado, com uma fechadura que se accionava pelo outro lado. O Zorro indicou aos seus prisioneiros que abrissem a da direita. À sua vista apareceu uma nauseabunda latrina, composta por quatro buracos no chão cheios de excrementos, uns baldes de água e uma lanterna imunda de moscas. Não havia mais ligação com o exterior, senão um pequeno postigo com barrotes de ferro.
- Perfeito! Lamento que a fragrância não seja de gardénias. Vamos a ver se, de futuro, limpais com mais cuidado - comentou, e com um movimento da pistola fez sinal aos espantados homens para que entrassem.
O Zorro trancou a retrete por fora e encaminhou-se para a outra porta, cuja fechadura era muito simples, conseguindo abri-la em poucos segundos com o alfinete de aço que trazia sempre na costura de uma bota para executar os seus truques de magia. Abriu com prudência e desceu sigiloso por uma escada de vários degraus. Calculou que conduziria ao subterrâneo, onde certamente ficavam as celas. No final das escadas, colado ao muro, deitou uma olhadela. Um único archote iluminava um vestíbulo sem ventilação, vigiado por um guarda que, obviamente, tão-pouco tinha provado o vinho de dormideira, porque estava a fazer uma paciência com um baralho gasto, sentado de pernas cruzadas no chão. A sua espingarda achava-se ao alcance da mão, mas não teve ocasião de a empunhar, porque o Zorro lhe apareceu subitamente à frente e lhe aplicou um pontapé no queixo que o fez cair de costas, após o que atirou a arma para longe com outro pontapé. A pestilência do lugar era tão atroz que sentiu a tentação de retroceder, mas não era momento para escrúpulos. Pegou no archote e assomou às pequenas celas, uns buracos insalubres, húmidos, infestados de bichos, onde os prisioneiros estavam amontoados na escuridão. Havia três ou quatro em cada cela e tinham de se manter de pé ou sentarem-se por turnos. Pareciam esqueletos com olhos de loucos. O ar fétido vibrava com a respiração ofegante daqueles infelizes. O jovem mascarado chamou por Manuel Escalante e uma voz respondeu-lhe de um dos calabouços. Ergueu o archote e viu um homem agarrado às grades, tão maltratado que a cara era uma única massa disforme e arroxeada onde não se distinguiam as feições.
- Se sois o verdugo, bem-vindo - disse o prisioneiro, e nessa altura, pela dignidade do seu porte e firmeza da sua voz, reconheceu-o.
- Venho libertar-vos, mestre, sou o Zorro.
- Muito boa ideia! As chaves estão penduradas ao pé da porta. De caminho, seria conveniente tratar do guarda, que começa a espertar... - retorquiu, sereno, Manuel Escalante.
O seu discípulo pegou no molho de chaves e abriu as grades. Os três prisioneiros que compartilhavam a cela saíram em tropel, empurrando-se e tropeçando, como animais, enlouquecidos por um misto de terror e dilaceradora esperança. O Zorro apontou-lhes a pistola.
- Não tão depressa, cavalheiros; primeiro, tendes de socorrer os vossos camaradas - ordenou-lhes.
O aspecto ameaçador do pistolão teve a virtude de lhes devolver um pouco da humanidade perdida. Enquanto eles se debatiam com chaves e fechaduras, Diego fechou o guarda na cela desocupada e Escalante apoderou-se da espingarda. Uma vez abertos todos os calabouços, ambos guiaram até à saída aqueles patéticos espectros em farrapos, desgrenhados, cobertos de sangue seco, sujidade e vomitado. Subiram as escadas, cruzaram o corredor, atravessaram o compartimento nu onde Diego tinha trepado à viga e conseguiram chegar perto da sala de armas, quando surgiu diante deles um grupo de guardas, alertados pelo barulho nos calabouços. Vinham preparados, de espada na mão. O Zorro disparou um único tiro da sua arma, acertando num dos guardas, que caiu inanimado, mas Escalante apercebeu-se de que a sua espingarda estava descarregada, não havendo tempo de a aprontar. Empunhou-a pelo cano e lançou-se em frente como uma tromba d'água, distribuindo golpes em todas as direcções. O Zorro desembainhou o seu aço e também empreendeu o ataque. Conseguiu deter um dos opositores, por uns segundos, dando oportunidade a Escalante de deitar a mão a uma das espadas que Diego arrebatara aos homens que encerrara na latrina. Entre os dois faziam mais barulho e estrago que um batalhão. Diego usara diariamente o florete desde criança, mas nunca tivera de lutar a sério. O seu único duelo de morte fora à pistola e tinha sido muito mais limpo. Verificou que não há nada de honroso num combate real, onde as regras nada valem. A única regra é vencer, custe o que custar. Os gumes das armas não se chocavam numa elegante coreografia, como nas aulas de esgrima, antes apontavam directamente ao inimigo para o trespassarem. O cavalheirismo não existia, os golpes eram ferozes e não se dava quartel a ninguém. A sensação que o aço transmitia ao entrar na carne de um homem era indescritível. Apoderou-se dele um misto de desapiedada exaltação, de repugnância e triunfo, perdeu a noção da realidade e transformou-se num animal. Os gritos de dor e as roupas tingidas de sangue dos seus adversários fizeram-no apreciar a técnica de combate dos membros de La Justicia, tão infalível no Círculo do Mestre como na cega luta corpo a corpo. Mais tarde, quando foi capaz de pensar, agradeceu os meses de prática com Bernardo, em que acabava tão esgotado que as pernas mal o sustinham de pé. No processo tinha desenvolvido reflexos muito rápidos, visão circular e adivinhava por instinto o que se passava à sua retaguarda. Numa fracção de segundo era capaz de prevenir os movimentos simultâneos de vários inimigos, avaliar as distâncias, calcular a velocidade e direcção de cada estocada, cobrir-se, atacar.
O mestre Escalante demonstrou ser tão eficiente como o seu discípulo, apesar da idade e dos terríveis maus tratos sofridos às mãos dos seus verdugos. Não tinha a agilidade e a força do Zorro, mas a sua experiência e calma compensavam de sobra essas carências. No fragor da luta, o jovem cobria-se de suor e perdia o fôlego, enquanto o mestre brandia o sabre com igual determinação, mas muito mais elegância. Em poucos minutos os dois conseguiram reduzir, desarmar ou ferir os seus contendores. Só quando o campo de batalha estava ganho, os prisioneiros resgatados se atreveram a aproximar-se. Nenhum tivera a coragem de ajudar os seus salvadores, mas agora estavam mais que dispostos a arrastar os guardas derrotados para as celas que eles mesmos ocupavam minutos antes, onde os encerraram com insultos e pancadas. Só então o Zorro recuperou a razão e deu uma olhadela em redor. Sangue em charcos pelo chão, sangue salpicado nas paredes, sangue nos corpos dos feridos que eram levados para as celas, sangue nas suas costas, sangue por todo o lado.
- Santa Mãe de Deus! - exclamou, espantado.
- Vamos, não há tempo para considerações - indicou-lhe o mestre Escalante.
Saíram do quartel sem encontrar resistência. Os outros prófugos debandaram pelas vielas obscurecidas da cidade. Alguns conseguiriam salvar-se fugindo para o estrangeiro ou mantendo-se escondidos durante anos, mas outros seriam novamente presos e submetidos a tortura antes de serem executados, para que confessassem como tinham fugido. Esses homens nunca conseguiram dizer quem era o atrevido mascarado que os pusera em liberdade, porque não o sabiam. Apenas ouviram o seu nome, Zorro, que coincidia com o Z marcado na parede da sala de armas.
Decorreram, no total, quarenta minutos entre o momento em que os dois supostos bêbedos distraíram as sentinelas do quartel e aquele em que o Zorro resgatou o seu mestre. Na rua eram esperados pelos membros de La Justicia, ainda vestindo os uniformes dos guardas, que conduziram o fugitivo ao exílio. Ao despedirem-se, Diego e Manuel Escalante abraçaram-se pela primeira e última vez.
Ao amanhecer, uma vez que os homens do quartel se recompuseram dos efeitos da droga e conseguiram organizar-se e tratar dos feridos, o desventurado alferes teve de dar conta da ocorrência aos seus superiores. A única coisa a seu favor foi que, apesar do sucedido, nenhum dos seus subalternos tinha morrido na refrega. Informou que, ao que sabia, Eulália de Callís e Rafael Moncada estavam implicados no caso, porque deles provinha o fatídico barril de vinho que intoxicara a tropa.
Nessa mesma tarde apresentou-se um capitão diante dos suspeitos, escoltado por quatro guardas armados, mas com uma atitude servil e um rosário de bajulices na ponta da língua. Eulália e Rafael receberam-no como um vassalo, exigindo que se desculpasse por os incomodar com parvoíces. A dama mandou-o às cavalariças para verificar que o seu brasão de armas fora arrancado de uma das carruagens, prova que pareceu insuficiente ao capitão, mas não se atreveu a dizê-lo. Rafael Moncada, com o uniforme dos oficiais do rei, apresentava um aspecto tão intimidante que não lhe pediu explicações. Moncada não tinha qualquer álibi, mas com a sua posição social não precisava dele. Num abrir e fechar de olhos, aquele par de elevado nível ficou livre de qualquer suspeita.
- O oficial que se deixou enganar dessa maneira é um rematado imbecil e tem de receber um castigo exemplar. Exijo saber o que significa o Z marcado na parede do quartel e a identidade do bandido que se atreve a usar o meu nome e o do meu sobrinho para as suas malfeitorias. Compreendeu-me, senhor oficial? - desfechou Eulália ao militar.
- Não duvide de que faremos todos os possíveis para esclarecer este infeliz incidente, Excelência - assegurou-lhe o capitão, retrocedendo até à saída com profundas genuflexões.
Em Outubro, Rafael Moncada decidiu que chegara o momento de fazer sentir a sua autoridade perante Juliana, visto que a diplomacia e a paciência não haviam dado resultado algum. Talvez ela suspeitasse de que o assalto sofrido na rua tivesse sido obra sua, mas não tinha provas e aqueles que lhas poderiam dar, os ciganos, estavam longe e não se atreveriam a regressar a Barcelona. Entretanto, ele tinha indagado que a situação económica de Tomás de Romeu era insolvente. Os tempos haviam mudado; aquela família já não estava em condições de se fazer rogada. A sua própria posição era magnífica; só lhe faltava Juliana para ter as rédeas do seu destino na mão. É certo que não contava com a aprovação de Eulália de Callís para cortejar a jovem, mas decidiu que já não tinha idade para deixar que a sua dominadora tia mandasse nele. Não obstante, quando pretendeu anunciar a sua visita a Tomás de Romeu, a fim de o notificar dos seus planos, devolveram-lhe a missiva, porque este se ausentara da cidade com as filhas. Não souberam dizer-lhe onde se encontrava, mas ele tinha meios de o averiguar. Por coincidência, nesse mesmo dia, Eulália convocou-o para marcar a data em que lhe apresentaria a filha dos duques de Medinaceli.
- Lamento, tia. Por muito conveniente que esse enlace seja, não posso levá-lo a cabo. Como a tia sabe, amo Juliana de Romeu - anunciou-lhe Rafael com toda a firmeza de que conseguiu lançar mão.
- Tira essa jovem da cabeça, Rafael - advertiu-o Eulália. - Nunca foi bom partido, mas agora equivale a um suicídio social. Achas que a receberiam na corte ao saber-se que o pai é um afrancesado?
- Estou preparado para correr esse risco. É a única mulher que me interessou na vida.
- A tua vida ainda mal começou. Deseja-la porque te fez desfeitas e por nenhuma outra razão. Se a tivesses conseguido, já estarias farto dela. Precisas de uma esposa à tua altura, Rafael, alguém que te ajude na tua carreira. A De Romeu apenas serve como amante.
- Não fale assim de Juliana! - exclamou Rafael.
- Porque não? Falo como me der na real gana, especialmente quando tenho razão - retorquiu a matriarca num tom sem apelo. - Com os títulos de Medinaceli e a minha fortuna podes chegar muito longe. Desde a morte do meu pobre filho, és a minha única família, e por isso te trato com a consideração de uma mãe, mas a minha paciência tem limites, Rafael.
- Que eu saiba, tia, o seu defunto marido, Pedro Fages, que Deus o tenha no Seu santo seio, tão-pouco possuía títulos nem dinheiro quando a tia o conheceu - alegou o sobrinho.
- A diferença é que Pedro era valente, tinha uma folha de serviços impecável no exército e estava disposto a comer lagartixas no Novo Mundo contanto que fizesse fortuna. Em contrapartida, Juliana é uma fedelha mimada e o pai é um zé-ninguém. Se queres arruinar a tua vida com ela, não contes comigo para nada, estamos entendidos?
- Entendidíssimos, tia. Boa tarde.
Batendo os calcanhares, Moncada inclinou-se e saiu da sala. Tinha um aspecto esplêndido com o seu uniforme de oficial, as botas reluzentes e a espada com borlas à cinta. Dona Eulália não se perturbou. Conhecia a natureza humana e confiava no triunfo da ambição desmedida sobre qualquer demência de amor. O caso do sobrinho não tinha razão para ser excepcional.
Poucos dias mais tarde, Juliana, Isabel e Nuria regressaram a Barcelona a mata-cavalos na carruagem familiar, sem mais escolta que Jordi e dois lacaios. O barulho de cascos e o alvoroço no pátio alertaram Diego, que nessa altura se aprontava para sair. As três mulheres apareceram macilentas e cobertas de pó, com a notícia de que Tomás de Romeu fora preso. Um destacamento de soldados aparecera no casarão de campo, entrara de roldão e tinha-o levado sem lhe dar tempo para pegar num abafo. As raparigas só sabiam que fora acusado de traição e seria conduzido à temível Cidadela.
Quando Tomás de Romeu foi detido, Isabel assumiu a condução da família, porque Juliana, quatro anos mais velha, perdeu a cabeça. Com uma maturidade que até então não tinha demonstrado de modo nenhum, Isabel deu ordens para se embalar o indispensável e fechar a casa. Em menos de três horas viajava com Nuria e a irmã a todo o galope, de volta a Barcelona. Pelo caminho, teve tempo de se aperceber de que não contava com um único aliado naquela situação. O pai, que segundo julgava nunca tinha feito mal a ninguém, agora só tinha adversários. Ninguém estava disposto a comprometer-se para estender a mão às vítimas da perseguição do Estado. A única pessoa a quem podiam recorrer não era amigo, mas sim inimigo, porém não hesitou nem um instante em fazê-lo. Juliana teria de se prostrar aos pés de Rafael Moncada, se fosse necessário; nenhuma humilhação era intolerável quando se tratava de salvar o seu pai, como disse. Melodrama ou não, tinha razão. Assim o admitiu a própria Juliana; em seguida, Diego teve de aceitar a decisão, porque nem uma dúzia de Zorros era capaz de resgatar alguém da Cidadela. O forte era inexpugnável. Uma coisa fora introduzir-se num quartel de bairro, a cargo de um alferes imberbe, para resgatar Escalante, mas seria diferente enfrentar o grosso das tropas do rei em Barcelona. Não obstante, a ideia de Juliana ir pedir ajuda a Moncada revoltava-o. Insistiu em ir ele em sua vez.
- Não sejas ingénuo, Diego, a única que pode obter alguma coisa desse homem é Juliana. Tu não tens nada para lhe oferecer - retorquiu Isabel sem apelo.
Ela mesma escreveu uma missiva anunciando a visita da irmã e enviou-a por um criado a casa do tenaz galã, após o que mandou a irmã lavar-se e vestir-se com as suas melhores roupas. Juliana foi terminante em que só Nuria a acompanhasse, porque Isabel perdia as estribeiras com facilidade e Diego não fazia parte da família. Aliás, ele e Moncada odiavam-se. Poucas horas mais tarde, ainda olheirenta devido à fadiga da viagem, Juliana bateu à porta da mansão do homem que detestava, desafiando a norma de discrição estabelecida vários séculos antes. Só uma mulher de reputação mais que duvidosa se atrevia a visitar um homem solteiro, por muito que aparecesse acompanhada por uma severa ama. Debaixo do manto preto, embora já soprassem ventos de Outono, vestia um vaporoso vestido de Verão, cor de milho, uma jaquetinha curta bordada de missangas e um chapéu do tom do vestido, atado com um lenço de seda verde e coroado com plumas brancas de avestruz. De longe parecia um pássaro exótico, de perto estava mais bonita que nunca. Nuria aguardou no vestíbulo enquanto um criado conduzia Juliana ao salão onde o seu apaixonado a esperava.
Rafael viu-a entrar flutuando como uma náiade no ar quieto da tarde e fez as contas: havia quatro anos que esperava aquele momento. O desejo de lhe fazer pagar as humilhações do passado esteve a ponto de se apoderar dele, mas supôs que não devia esticar a corda; aquela frágil pomba devia estar no limite da sua resistência. A última coisa que imaginava era que a frágil pomba se mostrasse tão hábil para regatear como um turco do mercado. Ninguém soube exactamente como negociaram, porque depois Juliana só explicou os pontos fundamentais do acordo a que chegaram: Rafael obteria a liberdade de Tomás de Romeu e em troca ela casar-se-ia com ele. Nem um gesto, nem uma palavra a mais, traíram os sentimentos de Juliana. Meia hora mais tarde, saiu do salão em perfeita calma, acompanhada por Moncada, que a amparava levemente pelo braço. Fez um gesto peremptório a Nuria e dirigiu-se à sua carruagem, onde Jordi adormecia de esgotamento na boleia. Partiu sem volver um único olhar ao homem a quem tinha prometido a mão.
Durante mais de três semanas, as meninas De Romeu aguardaram os resultados das diligências de Moncada. As únicas saídas que fizeram nesse tempo foram à igreja para pedir a Eulália, a santa da cidade, que as socorresse. «A falta que Bernardo nos faz!», comentou mais de uma vez Isabel naqueles dias, porque estava convencida de que ele teria conseguido averiguar em que condições o pai estava, inclusivamente de fazer-lhe chegar uma mensagem. O que não se conseguia de cima, alcançava-o frequentemente Bernardo com as suas ligações.
- Sim, seria bom tê-lo aqui, mas ainda bem que se foi embora. Está finalmente com Raio na Noite, onde sempre quis estar - assegurou-lhe Diego.
- Recebeste notícias dele? Uma carta?
- Ainda não, isso demora.
- E então como é que sabes?
Diego encolheu os ombros. Não lhe podia explicar em que consistia aquilo a que os brancos da Califórnia chamavam o correio dos índios. Funcionava sem tropeços entre Bernardo e ele; desde crianças que conseguiam comunicar sem palavras e não havia razão para que não o pudessem fazer agora. Apenas o mar os separava, mas continuavam em contacto permanente, como sempre tinham estado.
Nuria comprou uma peça de grosseira lã de cor castanha e dedicou-se a coser saios de peregrino. Para reforçar a influência de Santa Eulália na corte celestial, tinha apelado também a Santiago de Compostela. Prometeu-lhe que, se soltassem o seu patrão, iria a pé com as raparigas ao seu santuário.
Não fazia a menor ideia do número de léguas que teriam de caminhar, mas supunha que, se havia gente que ia de França, não podiam ser muitas.
A situação da família era péssima. O mordomo foi-se embora sem explicações, mal soube que tinham prendido o amo. Os poucos criados que havia na casa andavam de monco caído e perante qualquer ordem respondiam com insolência, porque tinham perdido as esperanças de receberem os ordenados em atraso. Se não se iam embora era porque não tinham para onde ir. Os contabilistas e advogados que geriam os bens de Dom Tomás negaram-se a receber as filhas quando estas lhes foram pedir dinheiro para a despesa diária. Diego não podia ajudá-las, porque entregara quase tudo o que possuía aos ciganos; esperava uma remessa do pai, mas ainda não chegara. Entretanto, recorria a contactos mais terrenos que os de Nuria para averiguar as condições em que o preso estava. La Justicia já não o podia ajudar; os seus membros tinham-se dispersado. Era a primeira vez, ao longo dos séculos, que a sociedade secreta suspendia as suas actividades, porque mesmo nos piores momentos da sua história tinha funcionado. Alguns dos seus membros haviam fugido do país, outros estavam ocultos, e os menos afortunados achavam-se nas garras da Inquisição, que já não queimava os presos; preferia fazê-los desaparecer discretamente.
Em fins de Outubro, Rafael Moncada apareceu para falar com Juliana. Trazia um ar derrotado. Naquelas três semanas descobrira que o seu poder era bastante mais limitado do que supunha, explicou. Na hora da verdade, muito pouco pôde fazer contra a pesada burocracia do Estado. Fizera uma viagem a mata-cavalos a Madrid para interceder perante o rei em pessoa, mas este despachara-o para o seu secretário, um dos homens mais poderosos da corte, com a advertência de que não o incomodasse com patetices. Do secretário nada conseguira com boas palavras e não se atrevera a suborná-lo porque, caso se enganasse, isso poderia custar-lhe muito caro. Notificaram-no de que Tomás de Romeu, juntamente com um punhado de traidores, seria fuzilado. O secretário acrescentara que não queimasse as suas influências defendendo um abutre, porque podia lamentá-lo. A ameaça não podia ser mais clara. Ao regressar a Barcelona, permitiu-se o tempo estritamente necessário para se lavar e apresentou-se para contar tudo isto às raparigas, que o receberam pálidas, mas firmes. Para as consolar, assegurou-lhes que não pensava dar-se por vencido; continuaria a tentar por todos os meios que a sentença fosse comutada.
- Em qualquer caso, Vossas Mercês não ficarão sozinhas neste mundo. Poderão sempre contar com a minha estima e protecção - acrescentou, pesaroso.
- Veremos - retorquiu Juliana, sem uma lágrima. Quando Diego soube das trágicas novas, decidiu que se Eulália, a santa, não fora capaz de fazer nada por eles, deviam recorrer à sua homónima.
- Essa senhora é muito poderosa. Conhece os segredos de meio mundo. Têm medo dela. Aliás, nesta cidade o dinheiro conta mais que qualquer outra coisa. Iremos os três falar com ela - disse Diego.
- Eulália de Callís não conhece o meu pai e, segundo dizem, detesta a minha irmã - advertiu-o Isabel. Contudo, ele não podia deixar de o tentar.
O contraste entre aquele palacete atafulhado de adornos, como os mais luxuosos da época dourada do México, e a sobriedade de Barcelona, em geral, e da casa De Romeu, em particular, tornava-se impressionante. Diego, Juliana e Isabel atravessaram imensos salões de paredes pintadas com frescos ou cobertas de tapeçarias da Flandres, óleos de nobres antepassados e quadros de batalhas épicas. Havia criados de libré postados em cada porta e empregadas, ataviadas de rendas holandesas, a tratar dos horríveis cães chihuahua, que cravavam a vista no chão à passagem de qualquer pessoa de condição social superior. Refiro-me às criadas, claro, e não aos cãezinhos. Dona Eulália recebeu os seus visitantes no trono com baldaquino do salão principal, vestida como se fosse para um baile, embora sempre de luto rigoroso. Parecia um enorme leão-marinho, envolto em sucessivas camadas de gordura, com a sua cabeça pequena e os formosos olhos de longas pestanas, brilhantes como azeitonas. Se a velha senhora pretendia intimidá-los, conseguiu-o plenamente. As jovens sufocavam de vergonha no ar algo doentio daquele palacete: nunca se tinham visto numa situação semelhante; haviam nascido para dar, e não para pedir.
Eulália só tinha visto Juliana de longe e sentia uma certa curiosidade por observá-la de perto. Não pôde negar que a jovem era graciosa, mas o seu aspecto não justificava a tolice que o sobrinho estava disposto a cometer. Trouxe à lembrança os seus anos de mocidade e decidiu que tinha sido tão bela como a rapariga De Romeu. Além da sua cabeleira de fogo, possuía um corpo de amazona. Debaixo da gordura que agora a impedia de andar, continuava intacta a recordação da mulher que antes fora, sensual, imaginativa, cheia de energia. Por alguma coisa Pedro Farges a amara com inesgotável paixão e fora invejado por tantos homens. Juliana, em contrapartida, possuía uma atitude de gazela ferida. O que via Rafael naquela donzela delicada e pálida que, certamente, se portaria como uma freira na cama? Os homens são muito tolos, concluiu. A outra rapariguinha De Romeu - como se chamava ela? - afigurou-se-lhe mais interessante, porque não parecia tímida, mas o seu aspecto deixava muito a desejar, especialmente ao compará-la com Juliana. «Pouca sorte a daquela rapariga, ter uma célebre beldade por irmã», pensou. Em condições normais teria oferecido pelo menos um xerez e acepipes aos seus visitantes - ninguém a podia acusar de ser mesquinha com a comida; a sua casa era famosa pela boa cozinha -, mas não quis que se sentissem à vontade: tinha de manter a sua vantagem para o regateio que, sem dúvida, a esperava.
Diego tomou a palavra para expor a situação do pai das meninas, sem omitir que Rafael Moncada tinha ido a Madrid com a intenção de interceder por ele. Eulália escutou em silêncio, observando cada um deles com os seus olhos penetrantes e tirando as suas próprias conclusões. Adivinhou o acordo que Juliana devia ter feito com o seu sobrinho, caso contrário ele não se teria dado ao incómodo de arriscar a sua reputação para defender um liberal acusado de traição. Esse desajeitado lance podia custar-lhe o favor do rei. Por um momento sentiu-se satisfeita por Rafael não ter conseguido os seus propósitos, mas depois viu lágrimas nos olhos das raparigas, e o seu velho coração atraiçoou-a uma vez mais. Sucedia-lhe com frequência que o seu bom juízo para os negócios e o seu senso comum tropeçassem com os sentimentos. Isso tinha o seu preço, mas dava o dinheiro por bem empregado, porque os seus espontâneos arrebatamentos de compaixão eram os últimos resquícios que restavam da sua juventude perdida. À alegação de Diego de la Vega seguiu-se uma longa pausa. Por fim, a matriarca, comovida contra vontade, informou-os de que tinham uma ideia muito exagerada do seu poder. Não estava nas suas mãos salvar Tomás de Romeu. Ela nada podia fazer que o sobrinho não tivesse já feito, disse, excepto subornar os carcereiros para que ele fosse tratado com especial consideração até ao momento da execução. Tinham de compreender que não havia futuro para Juliana e Isabel em Espanha. Eram filhas de um traidor, quando o pai morresse passariam a ser filhas de um criminoso e o seu apelido seria desonrado. A coroa confiscar-lhes-ia os bens, ficariam na rua, sem meios para viverem neste país ou em qualquer outro da Europa.
Que seria delas? Teriam de ganhar a vida bordando lençóis para noivas ou como preceptoras de filhos alheios. É certo que Juliana poderia empenhar-se em caçar um incauto com quem casar, inclusivamente o próprio Rafael Moncada, mas esperava bem que na hora de tomar uma decisão tão grave, o seu sobrinho, que não era parvo nenhum, pusesse na balança a sua carreira e a sua posição social. Juliana não estava ao mesmo nível que Rafael. Aliás, não havia pior empecilho que uma mulher demasiado bonita, disse. Não convinha a nenhum homem casar-se com uma; atraíam todo o tipo de problemas. Acrescentou que, em Espanha, as beldades sem fortuna estavam destinadas ao teatro ou a serem mantidas por algum benfeitor, como era bem sabido. Desejava de todo o coração que Juliana escapasse a essa sorte. À medida que a matriarca expunha o caso, Juliana foi perdendo o controlo que procurara manter durante aquela terrível entrevista, e um rio de lágrimas molhou-lhe as faces e o decote. Diego achou que já tinham ouvido bastante e lamentou que Dona Eulália não fosse um homem, porque se teria batido ali mesmo. Tomou Juliana e Isabel pelos braços e, sem se despedir, empurrou-as para a saída. Não conseguiram chegar à porta; a voz de Dona Eulália deteve-os.
- Como disse, nada posso fazer por Dom Tomás de Romeu, mas posso fazer alguma coisa por vós.
Propôs-lhes comprar as propriedades da família, desde a arruinada mansão de Barcelona até às remotas quintas abandonadas da província, a bom preço e pagando a pronto; assim, as meninas disporiam do capital necessário para começarem outra vida longe, onde ninguém as conhecesse. No dia seguinte podia mandar o seu notário verificar os títulos e redigir os documentos necessários. Conseguiria do chefe militar de Barcelona que lhes permitisse visitar pela última vez o pai, para se despedirem dele e darem-lhe a assinar os papéis de venda, operação que devia fazer-se antes que as autoridades interviessem para confiscarem os bens.
- O que Vossa Excelência pretende é desfazer-se da minha irmã para que ela não se case com Rafael de Moncada! - acusou-a Isabel, tremendo de fúria.
Eulália recebeu o insulto como uma bofetada. Não estava habituada a que lhe levantassem a voz; desde que o marido morrera, nunca ninguém o fizera. Por instantes não conseguiu respirar, mas, com os anos, tinha aprendido a dominar o seu explosivo temperamento e a apreciar a verdade quando a tinha diante do nariz. Contou em silêncio até trinta antes de responder.
- Não estais em posição de recusar a minha oferta. O acordo é simples e claro: assim que receberdes o dinheiro, partireis de imediato - replicou.
- O seu sobrinho fez chantagem com a minha irmã para se casar com ela e agora a senhora faz chantagem com ela para que não o faça!
- Basta, por favor, Isabel - murmurou Juliana, enxugando as lágrimas. - Tomei uma decisão. Aceito a oferta e agradeço a sua generosidade, Excelência. Quando poderemos ver o nosso pai?
- Em breve, meninas. Avisar-vos-ei quando conseguir a entrevista - disse Eulália, satisfeita.
- Amanhã às onze receberemos o seu contabilista. Adeus, minha senhora.
Eulália cumpriu a sua promessa ao pé da letra. Às onze em ponto do dia seguinte três advogados compareceram na residência de Tomás de Romeu e puseram-se a escarvar nos seus papéis, a dar voltas ao conteúdo da sua escrivaninha, a inspeccionar a sua desordenada contabilidade e a fazer uma avaliação aproximada dos seus bens. Chegaram à conclusão de que não só tinha muito menos do que parecia, como estava crivado de dívidas. Tal como a situação se apresentava, os rendimentos das meninas seriam inadequados para as sustentar no nível que conheciam.
O notário, porém, levava instruções precisas da sua patroa. Ao fazer a sua oferta, Eulália não contemplava o valor do que pensava adquirir, mas sim de quanto as duas jovens precisavam para viver. Foi o que lhes ofereceu. Elas não acharam muito nem pouco, porque não faziam ideia de quanto custava uma fogaça de pão. Eram incapazes de imaginar a soma que a matriarca estava disposta a dar-lhes. Diego tão-pouco tinha experiência em finanças e de nada dispunha naquele momento para ajudar Juliana e Isabel. As irmãs aceitaram a quantia estipulada sem saberem que era o dobro do valor real dos bens do pai. Assim que os advogados redigiram os documentos, Eulália conseguiu-lhes uma entrevista na prisão.
A Cidadela era um monstruoso pentágono de pedra, madeira e cimento, desenhada em 1715 por um engenheiro holandês. Fora o coração do poderio militar dos Bourbons na Catalunha. Grossas muralhas, coroadas por um bastião em cada uma das suas cinco esquinas, limitavam a vasta superfície. Dali dominava-se toda a cidade. Para construir a inexpugnável fortaleza, os exércitos do rei Filipe V demoliram bairros inteiros, hospitais, conventos, mil e duzentas casas e abateram os bosques adjacentes. O pesado edifício e a sua lúgubre lenda pesavam sobre Barcelona como uma nuvem negra. Era o equivalente da Bastilha em França: um símbolo de opressão. Entre os seus muros tinham vivido diversos exércitos de ocupação, e nos seus calabouços haviam morrido milhares e milhares de prisioneiros. Dos seus bastiões pendiam os corpos dos enforcados, para servirem de exemplo à população. Segundo o dito popular, era mais fácil sair do inferno que da Cidadela.
Jordi conduziu Diego, Juliana e Isabel ao portão de entrada, onde apresentaram o salvo-conduto conseguido por Eulália de Callís.
O cocheiro teve de esperar no exterior; os jovens entraram a pé, acompanhados por quatro soldados de espingarda e baioneta calada. O caminho pareceu-lhes agoirento. Lá fora estava um dia frio, mas esplêndido, de céu claro e ar límpido. A água do mar era um espelho de prata e a luz do Sol desenhava reflexos festivos nas paredes brancas da cidade. Dentro da fortaleza, porém, o tempo tinha parado um século atrás e o clima era um eterno crepúsculo de Inverno. Do portão de entrada até ao edifício central, o percurso era longo e fizeram-no em silêncio. Entraram no funesto lugar por uma grossa porta lateral de carvalho com rebites de ferro, tendo sido guiados por longos corredores, onde o eco devolvia o ruído dos seus passos. Assobiavam correntes de ar e pairava aquele cheiro particular das guarnições militares. A humidade escorria do tecto, traçando mapas esverdeados nas paredes. Cruzaram vários umbrais e de todas as vezes uma pesada porta fechava-se atrás deles. Sentiam que a cada bater de porta se afastavam mais do mundo dos livres e da realidade conhecida para se aventurarem nas entranhas de uma gigantesca fera. As duas raparigas tremiam e Diego não podia deixar de perguntar a si mesmo se sairiam com vida daquele infausto lugar. Chegaram a um vestíbulo, onde tiveram de aguardar de pé durante um longo pedaço, vigiados pelos soldados. Foram, por fim, recebidos por um oficial numa sala pequena, onde havia uma tosca mesa e várias cadeiras como único mobiliário. O militar lançou um rápido olhar ao salvo-conduto para identificar o selo e a assinatura, mas decerto não sabia ler. Devolveu-o sem comentários. Era um homem de uns quarenta anos, com o rosto terso, cabelo cor do aço e olhos de um estranho tom azul-celeste, quase violeta. Dirigiu-se a eles em catalão para os advertir de que disporiam de quinze minutos para falar com o prisioneiro a três passos de distância, não podendo aproximar-se dele. Diego explicou-lhe que o senhor De Romeu tinha de assinar uns papéis e precisaria de tempo para os ler.
- Por favor, senhor oficial. Esta será a última vez que veremos o nosso pai. Peço-lhe encarecidamente, permita-nos que o abracemos - suplicou Juliana com um soluço atravessado no peito, caindo de joelhos diante do homem.
O militar retrocedeu com um misto de repugnância e fascinação, enquanto Diego e Isabel procuravam obrigar Juliana a pôr-se de pé, mas ela estava fincada no chão.
- Valha-me Deus! Levante-se, menina! - exclamou o militar em tom peremptório, mas logo abrandou e, tomando Juliana pelas mãos, puxou-a para cima com suavidade. - Eu não sou nenhum desalmado, menina. Também sou pai de família, tenho vários filhos e percebo quão dolorosa esta situação é. Está bem, disporão de meia hora para estar a sós com ele e mostrar-lhe esses documentos.
Ordenou a um guarda que fosse buscar o prisioneiro. Nos minutos seguintes, Juliana teve tempo de controlar a sua emoção e preparar-se para o encontro. Pouco depois entrou Tomás de Romeu escoltado por dois guardas. Vinha barbudo, sujo, descarnado, mas tinham-lhe tirado os grilhões. Nessas semanas não pudera barbear-se nem lavar-se, cheirava como um mendigo e tinha os olhos extraviados de um demente. A magra dieta do calabouço diminuíra-lhe a barriga de homem de boa vida, tinham-se-lhe afilado as feições, o nariz aquilino parecia enorme no rosto esverdeado, e as faces, antes rubicundas, caíam-lhe como peles, cobertas pela barba rala e grisalha. As filhas demoraram um minuto a reconhecê-lo e lançarem-se, chorando, nos seus braços. O oficial retirou-se com os guardas. A dor daquela família era tão crua, tão íntima, que Diego desejou ser invisível. Espalmou-se contra a parede, com o olhar cravado no chão, convulsionado pela cena.
- Vamos, vamos, meninas, acalmai-vos, não choreis, por favor. Dispomos de pouco tempo e há muito a fazer - disse Tomás de Romeu, enxugando as lágrimas com as costas da mão. - Disseram-me que tenho de assinar uns papéis...
Diego explicou-lhe sucintamente a oferta de Eulália e passou-lhe os documentos de venda, com o pedido de os assinar para salvar o escasso património das filhas.
- Isto confirma o que já sei. Não sairei daqui com vida - suspirou o prisioneiro.
Diego fez-lhe ver que, mesmo que um indulto do rei chegasse a tempo, de qualquer modo a família teria de ir para o estrangeiro e só podiam fazê-lo com dinheiro vivo na bolsa. Tomás de Romeu pegou na pena e no tinteiro que Diego lhe trouxera e assinou a transferência de todas as suas posses terrenas para o nome de Eulália de Callís. A seguir, pediu serenamente a Diego que tomasse conta das filhas, que as levasse para longe dali, onde ninguém soubesse que o pai fora supliciado como um criminoso.
- Nos anos que vos conheço, Diego, aprendi a confiar em vós como no filho que nunca tive. Se as minhas filhas ficarem sob a vossa protecção, poderei morrer em paz. Levai-as para a vossa casa da Califórnia e pedi ao meu amigo Alejandro de La Vega que cuide delas como se fossem suas - suplicou.
- Não deve desesperar, pai, por favor. Rafael Moncada assegurou-nos de que utilizará toda a sua influência para obter a sua liberdade - gemeu Juliana.
- A execução foi fixada para dentro de dois dias, Juliana. Moncada não fará nada para me ajudar, porque foi ele quem me
denunciou.
- Pai! Tendes a certeza? - clamou a jovem.
- Não tenho provas, mas ouvi-o aos meus captores - explicou Tomás.
- Mas Rafael foi pedir o seu indulto ao rei!
- Não acredito, menina. Pode ter ido a Madrid, mas por
outras razões.
- Então a culpa é minha!
- Não tendes culpa da maldade alheia, filha. Não sois responsável pela minha morte.
Coragem! Não quero ver mais lágrimas.
De Romeu julgava que Moncada o delatara, não tanto por motivos políticos ou para se vingar das desfeitas de Juliana, mas sim por cálculo. Por sua morte, as filhas ficariam desamparadas e teriam de acolher-se à protecção do primeiro que lha oferecesse. E ele lá estaria, à espera de que Juliana caísse como uma rola nas suas mãos; por isso, o papel de Diego era tão importante naquele momento, acrescentou. O jovem esteve a ponto de lhe dizer que Juliana nunca cairia em poder de Moncada, que ele a adorava e de joelhos lha pedia em casamento, mas engoliu as palavras. Juliana nunca lhe dera motivos para supor que correspondia ao seu amor. Não era altura de mencionar tal. Além disso, sentia-se como um joão-ninguém, não podia oferecer àquelas raparigas um mínimo de segurança. A sua coragem, a sua espada, o seu amor, de pouco serviam neste caso. Apercebeu-se de que, sem o apoio da fortuna do pai, não podia fazer nada por elas.
- Podeis estar tranquilo, Dom Tomás. Daria a minha vida pelas vossas filhas. Velarei sempre por elas - disse, simplesmente.
Dois dias mais tarde, ao amanhecer, quando a névoa do mar cobria a cidade com um manto de intimidade e mistério, onze presos políticos, acusados de colaborar com os Franceses, foram supliciados num dos pátios da Cidadela. Meia hora antes, um sacerdote ministrou-lhes a extrema-unção, a fim de que partissem para o outro mundo limpos de culpas, como recém-nascidos, tal como explicou. Tomás de Romeu, que durante cinquenta anos vociferara contra o clero e os dogmas da Igreja, recebeu o sacramento como os restantes condenados e até comungou.
«Para o que der e vier, padre, não se perde nada...», comentou de brincadeira. Tinha andado doente de medo desde o momento em que ouvira os soldados chegarem à sua casa de campo, mas agora estava tranquilo. A sua angústia desapareceu no instante em que pôde despedir-se das filhas. Dormiu as noites seguintes sem sonhos e passou as jornadas animado. Abandonou-se à morte próxima com uma placidez que não tivera em vida. Começou a afeiçoar-se à ideia de pôr termo aos seus dias com um tiro, em vez de o fazer aos poucos, mergulhado no inevitável processo da decrepitude. Talvez pensasse nas filhas, entregues à sua sorte, desejando que Diego de La Vega cumprisse a sua palavra. Sentiu-as mais distantes que nunca. Nas semanas de cativeiro fora-se desprendendo de recordações e sentimentos, tendo assim adquirido uma liberdade nova: já nada tinha a perder. Ao pensar nas filhas, não conseguia visualizar os seus rostos ou diferençar as suas vozes: eram duas pequenas sem mãe a brincar com bonecas nos sombrios salões da sua casa. Dois dias antes, quando o foram visitar à prisão, maravilhara-se diante daquelas mulheres que tinham substituído as garotinhas de botins, bibes e lacinhos das suas reminiscências. «Porra, como o tempo passa», murmurara ao vê-las. Despedira-se delas sem pesar, surpreendido pela sua própria indiferença. Juliana e Isabel fariam as suas vidas sem ele; já não podia protegê-las. A partir desse instante pudera saborear as suas últimas horas e observar com curiosidade o ritual da sua execução.
Na madrugada da sua morte, Tomás de Romeu recebeu na sua cela o último presente de Eulália de Callís, uma cesta com abundante refrigério, uma garrafa do melhor vinho e um prato com os mais delicados bombons de chocolate da sua colecção. Autorizaram-no a lavar-se e barbear-se, vigiado por um guarda, e entregaram-lhe a muda de roupa lavada que as filhas lhe haviam enviado. Caminhou galhardo e impávido até ao local da execução, colocou-se diante do poste ensanguentado, onde o amarraram, e não permitiu que lhe vendassem os olhos. A comandar o pelotão estava o mesmo oficial das íris azul-celestes que recebera Juliana e Isabel na Cidadela. Foi a ele que coube pregar-lhe um tiro na têmpora quando verificou que tinha o corpo meio desfeito pelos disparos, mas continuava vivo. A última coisa que o condenado viu antes de o tiro de misericórdia lhe explodir no cérebro foi a luz dourada do amanhecer na névoa.
O militar, que não se impressionava com facilidade porque sofrera a guerra e estava habituado às brutalidades do quartel e dos calabouços, não conseguira esquecer o rosto banhado de lágrimas da virginal Juliana, ajoelhada diante dele. Quebrando a sua própria norma de separar o cumprimento do dever das suas emoções, foi levar-lhe a notícia pessoalmente. Não quis que as filhas do seu prisioneiro o soubessem por outros meios.
- Não sofreu, meninas - mentiu-lhes.
Rafael Moncada soube ao mesmo tempo da morte de Tomás de Romeu e do estratagema de Eulália para fazer sair Juliana de Espanha. A primeira estava incluída nos seus planos, mas o segundo provocou-lhe um acesso de cólera. Guardou-se, porém, de se confrontar com a tia, porque não tinha renunciado à ideia de obter Juliana sem perder a sua herança. Lamentava que a sua tia gozasse de tão boa saúde: provinha de uma família longeva e não havia esperança de que morresse cedo, deixando-o rico e livre para decidir o seu destino. Teria de conseguir que a matriarca aceitasse Juliana às boas, era a única solução. Nem pensar em apresentar-lhe o casamento como um facto consumado, porque ela nunca lho perdoaria, mas congeminou um plano, baseado na lenda de que na Califórnia, quando era a mulher do governador, Eulália transformara um perigoso guerreiro índio numa civilizada donzela cristã e espanhola.
Não desconfiava que essa personagem fosse a mãe de Diego de La Vega, porque tinha ouvido a história várias vezes da boca da própria Eulália, que padecia do vício de tentar controlar as vidas alheias e, aliás, se gabava disso. Pensava suplicar-lhe que recebesse as meninas De Romeu na sua corte, na qualidade de protegidas, visto que tinham perdido o pai e não contavam com família. Salvá-las da desonra e conseguir que fossem aceites de volta na sociedade seria um desfio interessante para Eulália, tal como o fora aquela índia na Califórnia, vinte e tantos anos atrás. Quando a matrona abrisse o seu coração a Juliana e Isabel, como no fim fazia com quase toda a gente, ele voltaria a colocar o assunto do casamento. Não obstante, se esse rebuscado plano não desse resultado, existia sempre a alternativa sugerida pela própria Eulália. As palavras da tia tinham-lhe causado uma impressão indelével: Juliana de Romeu poderia ser sua amante. Sem um pai que lhe valesse, a jovem acabaria mantida por algum protector. Ninguém melhor que ele mesmo para esse papel. Não era má ideia. Isso permitir-lhe-ia obter uma esposa de categoria, talvez a própria Medinaceli, sem renunciar a Juliana. «Tudo se pode fazer com discrição», pensou. Com isto em mente compareceu na residência de Tomás de Romeu.
A casa, que sempre lhe parecera decaída, afigurava-se agora arruinada. Em poucos meses, desde que a situação política em Espanha mudara e Tomás de Romeu se afundara nas suas preocupações e dívidas, o edifício adquirira o mesmo ar derrotado e suplicante do proprietário. As ervas daninhas haviam-se apoderado do jardim, as palmeiras anãs e os fetos secavam nos seus canteiros, havia bosta de cavalo, lixo, galinhas e cães no pátio nobre. No interior da mansão reinavam o pó e a penumbra; havia meses que não se abriam as cortinas nem se acendiam as lareiras. O sopro frio do Outono parecia aprisionado nas inóspitas salas. Nenhum mordomo veio recebê-lo; em seu lugar apareceu Nuria, tão mal-encarada e seca como sempre, que o conduziu à biblioteca.
A ama tinha tentado substituir o mordomo e fazia os possíveis por manter à tona aquele veleiro prestes a naufragar, mas faltava-lhe autoridade perante o resto da criadagem. Tão-pouco sobrava o dinheiro efectivo, porque tinham guardado até ao último maravedi para o futuro, o único dote que Juliana e Isabel teriam. Diego levara as letras de câmbio de Eulália de Callís a um banqueiro que ela própria recomendara, homem de escrupulosa honestidade, que lhe entregara o equivalente em pedras preciosas e alguns dobrões de ouro, com o conselho de coser aquele tesouro nos saiotes. Explicou-lhe que fora assim que os Hebreus tinham salvo os seus bens durante séculos de perseguição, pois se podia transportar facilmente e valia o mesmo em toda a parte. Juliana e Isabel não podiam crer que aquele punhado de pequenos vidros coloridos representasse tudo quanto a família possuíra.
Enquanto Rafael Moncada aguardava na biblioteca, entre os livros encadernados a pele que haviam sido o mundo privado de Tomás de Romeu, Nuria partiu para chamar Juliana. A jovem estava no seu quarto, cansada de chorar e rezar pela alma do pai.
- Não tens obrigação de falar com esse desalmado, menina - disse a ama. - Se quiseres, posso-lhe dizer que vá para o inferno.
- Passa-me o vestido cor de cereja e ajuda-me a pentear, Nuria. Não quero que me veja de luto nem vencida - decidiu a jovem.
Momentos mais tarde aparecia na biblioteca, tão deslumbrante como nos seus melhores tempos. À luz vacilante das velas, Rafael não conseguiu ver os seus olhos avermelhados pelo pranto, nem a palidez do luto. Pôs-se de pé de um salto, com o coração a galope, verificando, uma vez mais, o efeito inverosímil que aquela jovem tinha sobre os seus sentidos. Esperava vê-la desfeita de sofrimento; em contrapartida ali estava diante dele, tão bela, altiva e comovedora como sempre. Quando conseguiu encontrar a voz sem pigarrear, manifestou como lamentava a horrível tragédia que afectava a família e reiterou-lhe que não tinha deixado pedra por levantar em busca de ajuda para Dom Tomás, mas tudo fora inútil. Sabia, acrescentou, que a sua tia Eulália a aconselhara a sair de Espanha com a irmã, mas ele não o considerava necessário. Estava convencido de que em breve abrandaria o punho de ferro com que Fernando VII estrangulava os seus opositores. O país estava em ruínas, o povo tinha sofrido demasiados anos de violência e agora clamava por pão, trabalho e paz. Sugeriu que Juliana e Isabel usassem, dali em diante, apenas o apelido da mãe, visto que o do pai estava irrevogavelmente manchado, e se recolhessem durante um período de tempo prudente, até que se calassem as murmurações em torno de Tomás de Romeu. Talvez, então, pudessem reaparecer em sociedade. Entretanto, estariam sob a sua protecção. - Que sugere exactamente, senhor? - perguntou Juliana, na defensiva.
Moncada reiterou-lhe que nada o faria mais feliz do que tomá-la por esposa e que a sua oferta anterior continuava de pé; porém, dadas as circunstâncias, seria necessário guardar as aparências por uns meses. Também tinham de tornear a oposição de Eulália de Callís, mas isso não constituía um problema intransponível. Quando a sua tia tivesse ocasião de a conhecer melhor, mudaria sem dúvida de parecer. Supunha que agora, depois de tão graves acontecimentos, Juliana teria reflectido a respeito do seu futuro. Embora ele não a merecesse - não existia homem que a merecesse plenamente -, colocava a sua vida e a sua fortuna aos seus pés. A seu lado nunca lhe faltaria nada. Embora o casamento tivesse de ser protelado, ele poderia oferecer-lhes, a ela e à irmã, bem-estar e segurança. A sua oferta não era fútil; pedia-lhe que lhe desse a devida consideração. - Não peço uma resposta imediata.
Compreendo perfeitamente que a menina está de luto e talvez não seja o momento de falar de amor...
- Nunca falaremos de amor, senhor Moncada, mas podemos falar de negócios - interrompeu-o Juliana. - Por uma denúncia sua perdi o meu pai.
Rafael Moncada sentiu que o sangue lhe vinha à cabeça e que lhe faltava a respiração.
- Não me pode acusar de semelhante vilania! O seu pai cavou a sua própria sepultura, sem ajuda de ninguém. Só lhe perdoo este insulto porque está fora de si, ofuscada pela dor.
- Como pensa compensar-nos a mim e à minha irmã pela morte do nosso pai? - insistiu ela, com lúcida ira.
O seu tom era tão desdenhoso que Moncada perdeu por completo as estribeiras e decidiu, sem mais, que não valia a pena continuar a fingir um cavalheirismo inútil. Pelos vistos, ela era uma daquelas mulheres que respondem melhor perante a autoridade masculina. Agarrou-a pelos braços e, sacudindo-a com violência, atirou-lhe à cara que ela não estava em posição de negociar, mas sim de agradecer; não percebia, porventura, que podia acabar na rua ou na prisão juntamente com a irmã, tal como sucedera ao traidor do pai? A polícia estava avisada e só a sua oportuna intervenção impedira que fossem presas, mas isso podia acontecer a qualquer momento e só ele podia salvá-las da miséria e do calabouço. Juliana procurou libertar-se e no forcejar rasgou-se-lhe a manga do vestido, revelando o ombro, e desprenderam-se os ganchos que lhe prendiam o rolo do cabelo. A sua cabeleira negra caiu sobre as mãos de Moncada. Incapaz de se controlar, o homem empunhou a cheirosa massa de cabelos, atirou a cabeça da jovem para trás e beijou-a em cheio na boca.
Diego tinha espiado a cena da porta entreaberta, repetindo mudamente, como uma litania, o conselho do mestre Escalante na primeira lição de esgrima: nunca combater com raiva. Não obstante, quando Moncada se precipitou sobre Juliana para a beijar à força, não se pôde conter e irrompeu na biblioteca de espada na mão, resfolegando de indignação.
Moncada soltou a jovem, empurrando-a contra a parede, e puxou da sua arma. Os dois homens enfrentaram-se, de joelhos flectidos, as espadas na mão direita a fazer um ângulo de noventa graus com o corpo e o outro braço levantado por cima do ombro, para manter o equilíbrio. Assim que adoptou esta posição, a fúria de Diego esfumou-se e foi substituída por uma calma absoluta. Respirou fundo, esvaziou o ar do peito e sorriu satisfeito. Estava, por fim, no controlo da sua fogosidade, tal como o mestre Escalante insistira com ele desde o princípio. Nada de perder o fôlego. Tranquilidade de espírito, pensamento claro, firmeza do braço. Era aquela sensação fria, a percorrer-lhe as costas como um vento invernal, que devia preceder a euforia do combate. Nesse estado, a mente deixava de pensar e o corpo respondia por reflexo. A finalidade do severo treino de combate de La Justicia era que o instinto e a destreza dirigissem os seus movimentos. Os aços cruzaram-se um par de vezes, tenteando-se, e de imediato Moncada lançou uma estocada a fundo, que ele deteve de chofre. Desde as primeiras fintas, Diego pôde avaliar a classe do contendor que tinha pela frente. Moncada era muito bom espadachim, mas ele tinha mais agilidade e prática; não era em vão que fizera da esgrima a sua principal ocupação. Em vez de devolver a estocada com celeridade, fingiu falta de jeito, retrocedendo até ficar com as costas de encontro à parede, na defensiva. Parava os golpes com aparente esforço, à desesperada, mas, na realidade, o outro não conseguia meter-lhe o aço por lado nenhum.
Mais tarde, quando teve tempo de avaliar o sucedido, Diego apercebeu-se de que, sem o planear, representava duas personagens diferentes, consoante as circunstâncias e a roupa que trazia vestida. Assim, baixava as defesas do inimigo. Sabia que Rafael Moncada o desdenhava; ele próprio se tinha encarregado disso, fingindo maneirismos de adamado na sua presença. Fazia-o pela mesma razão que o fizera com o Chevalier e a sua filha Agnès: por precaução. Quando se batera a tiro com Moncada, este pudera medir a sua coragem, mas por orgulho tinha querido esquecê-lo. Depois, encontraram-se em várias ocasiões e em todas elas Diego reforçara a má opinião que o rival tinha dele, porque adivinhava que era um inimigo sem escrúpulos. Decidiu enfrentá-lo com astúcia, mais que com fanfarronices. Na fazenda do pai, as raposas costumavam dançar para atraírem os cordeirinhos que se aproximavam, curiosos, para as observar e ao primeiro descuido acabavam devorados. Com a táctica de fazer figura de bobo, despistava e confundia Moncada. Até esse momento não tivera consciência plena da sua dupla personalidade: de um lado, Diego de La Vega, elegante, melindroso, hipocondríaco, e do outro, o Zorro, audaz, atrevido, brincalhão. Supunha que em algum ponto intermédio estava o seu verdadeiro carácter, mas não sabia como era, se nenhum dos dois ou a soma de ambos. Perguntou a si próprio como o viam, por exemplo, Juliana e Isabel, e concluiu que não fazia a menor ideia; talvez se houvesse excedido no teatro e lhes tivesse dado a impressão de ser um farsante. Contudo, não havia tempo para meditar sobre estas interrogações, porque a vida se lhe tinha complicado e era precisa acção imediata. Assumiu que era duas pessoas e decidiu transformar isso numa vantagem.
Diego corricava entre os móveis da biblioteca, simulando fugir dos ataques de Moncada e, ao mesmo tempo, provocando-o com comentários irónicos, enquanto os golpes choviam e os aços cintilavam. Conseguiu enfurecê-lo. Moncada perdeu o sangue-frio do qual fazia alarde e começou a arquejar. A transpiração caía-lhe da fronte, cegando-o. Diego calculou que já o tinha em seu poder.
Como aos touros de lide, era preciso cansá-lo primeiro.
- Cuidado, Excelência, pode ferir alguém com essa espada! - exclamou Diego.
Por essa altura, Juliana tinha-se recomposto um pouco e clamava em altos gritos que depusessem as armas, por amor de Deus e por respeito à memória de seu pai. Diego deu mais um par de estocadas e seguidamente largou a arma e levantou as mãos por cima da cabeça, pedindo quartel. Era um risco, mas calculou que Moncada se coibiria de matar um homem desarmado à vista de Juliana; contudo, em lugar disso, o seu adversário caiu-lhe em cima com um grito de triunfo e o ímpeto de todo o seu corpo. Diego evitou o gume, que passou roçando-lhe um quadril, e com dois saltos alcançou a janela para se refugiar atrás de uma pesada cortina de felpa que pendia até ao chão. A espada de Moncada atravessou o tecido, levantando uma nuvem de pó, mas ficou enredada e o homem teve de se debater para a soltar. Isso deu a Diego uns instantes de vantagem para lhe lançar a cortina à cara e saltar para cima da mesa de acaju. Pegou num calhamaço encadernado a pele e atirou-lho, acertando-lhe no peito. Moncada esteve a ponto de perder o equilíbrio, mas endireitou-se rapidamente e arremeteu de novo. Diego esquivou um par de lances, disparou-lhe vários livros mais, a seguir atirou-se ao chão e arrastou-se para debaixo da mesa.
- Quartel! Quartel! Não quero morrer como um frango! - lamuriava em tom de franca zombaria, encolhido debaixo da mesa, com outro livro nas mãos, à guisa de escudo, para se defender das arremetidas cegas do seu adversário.
Junto da cadeira estava a bengala de cabo de marfim em que Tomás de Romeu se apoiava durante os seus ataques de gota. Diego usou-a para enganchar um tornozelo de Moncada. Puxou com força e este caiu sentado no chão, mas estava em boa condição física e pôs-se de pé num segundo, investindo de novo.
Nessa altura, Isabel e Nuria tinham acorrido aos gritos de Juliana. Bastou uma olhadela a Isabel para se aperceber da situação. Julgando que Diego estava prestes a ir parar ao cemitério, pegou na sua espada, que tinha voado para o outro extremo da divisão, e, sem vacilar, enfrentou Moncada. Era a sua primeira oportunidade de pôr em prática a habilidade adquirida em quatro anos de prática de esgrima diante de um espelho.
- En garde - desafiou-o, eufórica. Instintivamente, Rafael Moncada atirou-lhe uma estocada, seguro de que ao primeiro golpe a desarmaria, mas deparou-se com uma resistência determinada. Nessa altura reagiu, apercebendo-se, apesar da raiva que o embrutecia, da loucura que significava bater-se com uma rapariguinha, para mais irmã da mulher que pretendia conquistar. Largou a arma, que caiu sem barulho sobre a carpete.
- Pensa assassinar-me a sangue-frio, Isabel? - perguntou-lhe, irónico.
- Pegue na sua espada, cobarde!
Como única resposta ele cruzou os braços sobre o peito, sorrindo depreciativamente.
- Isabel! Que fazes? - interveio Juliana, espantada.
A irmã ignorou-a. Pôs a ponta do aço debaixo do queixo de Rafael Moncada, mas não soube o que fazer a seguir. O ridículo da cena revelou-se-lhe em toda a sua magnitude.
- Trespassar o gasganete a este cavalheiro, como sem dúvida merece, acarreta alguns problemas legais, Isabel. Não se pode andar pelo mundo a matar gente. Mas alguma coisa temos de fazer com ele... - interveio Diego, tirando o lenço da manga e agitando-o no ar antes de enxugar a fronte com um gesto afectado.
Bastaram a Moncada aqueles segundos de distracção para agarrar o braço de Isabel e torcê-lo, obrigando-a a largar a espada. Empurrou-a com tal força que a rapariga foi parar longe, batendo com a cabeça na mesa. Caiu ao chão um pouco aturdida, enquanto Moncada apanhava a arma dela para enfrentar Diego, que retrocedeu a toda a pressa e se esquivou a várias estocadas do inimigo, procurando maneira de o desarmar para se envolver em luta corpo a corpo. Isabel espertou rapidamente, agarrou na espada de Moncada e, com um grito de alerta, atirou-a a Diego, que conseguiu agarrá-la no ar. Armado, sentiu-se seguro e recuperou o ar zombeteiro que tanto descontrolara o seu adversário momentos antes. Com um passe veloz feriu-o levemente no braço esquerdo, apenas uma arranhadura, mas exactamente no mesmo sítio em que fora ferido pelo tiro do duelo. Moncada soltou uma exclamação de surpresa e dor.
- Agora estamos quites - disse Diego, desarmando-o com uma estocada de revés.
O inimigo achava-se à sua mercê. Com a mão direita agarrava o braço ferido, por cima do rasgão da jaqueta, já manchada com um fio de sangue. Estava transtornado de fúria, mais que de temor. Diego pôs-lhe a espada ao peito, como se fosse trespassá-lo, mas em vez disso sorriu, amável.
- Tenho pela segunda vez o prazer de lhe perdoar a vida, senhor Moncada. A primeira foi durante o nosso memorável duelo. Espero que isto não se converta num hábito - disse, baixando o aço.
Não tiveram necessidade de o discutir demasiado. Tanto Diego como as meninas De Romeu sabiam que a ameaça de Moncada era verdadeira e os esbirros do rei podiam aparecer lá em casa de um momento para outro. Tinha-lhes chegado a hora de empreenderem viagem. Haviam-se preparado para essa eventualidade desde que Eulália comprara os bens da família e Tomás de Romeu fora executado, mas julgavam que podiam sair pela porta grande, em vez de saírem fugindo como meliantes. Concederam a si próprias meia hora ao todo para partirem com o que tinham no corpo, mais o ouro e as pedras preciosas que, tal como o banqueiro lhes indicara, tinham cosido nuns saiotes que amarraram à cintura, por baixo da roupa. Nuria teve a ideia de fechar Moncada na câmara oculta da biblioteca. Tirou um livro do seu lugar, puxou uma alavanca e a estante girou lentamente sobre si mesma, deixando à vista a entrada para uma divisão contígua, cuja existência Juliana e Isabel desconheciam por completo.
- O vosso pai tinha alguns segredos, mas nenhum que eu não conhecesse - disse Nuria à guisa de explicação.
Tratava-se de um compartimento pequeno, sem janelas e sem outra saída para o exterior além daquela porta disfarçada nas estantes. Ao acender um candeeiro, descobriram no seu interior caixas de conhaque e os charutos preferidos do dono da casa, estantes com mais livros e uns estranhos quadros pendurados nas paredes. Ao aproximarem-se, puderam ver que se tratava de uma colecção de seis desenhos a tinta preta representando os mais cruéis episódios da guerra, esquartejamentos, violações e até canibalismo, que Tomás de Romeu não queria que as filhas alguma vez vissem.
- Que arrepiante! - exclamou Juliana.
- São do mestre Goya! Isto vale muito; podemos vendê-los - disse Isabel.
- Não nos pertencem. Tudo o que esta casa contém agora é de Dona Eulália de Callís - recordou-lhe a irmã.
Os livros, em vários idiomas, eram todos proibidos; faziam parte da lista negra da Igreja ou da do Governo. Diego pegou num volume ao acaso; calhou tratar-se de uma história ilustrada da Inquisição, com desenhos muito realistas sobre os seus métodos de tortura. Fechou-o de repente, antes que Isabel, que já tinha assomado o nariz por cima do seu ombro, o visse.
Também havia uma secção dedicada ao erotismo, mas não houve tempo de a examinar. A hermética câmara era o lugar perfeito para deixar Rafael Moncada preso.
- Perdestes o juízo? Aqui morrerei de inanição ou sufocado pela falta de ar! - exclamou este ao compreender as malévolas intenções dos outros.
- Sua Excelência tem razão, Nuria. Um cavalheiro tão distinto como ele não pode subsistir só com álcool e tabaco. Trazei-lhe, por favor, um presunto da cozinha, para que não passe fome, e uma toalha para o braço - disse Diego, empurrando o seu rival para a câmara.
- Como vou sair daqui? - gemeu o cativo, aterrorizado.
- Há certamente um mecanismo secreto na câmara para abrir a porta por dentro. Terá tempo de sobra para o descobrir. Com astúcia e sorte, sairá em liberdade enquanto o diabo esfrega um olho - sorriu Diego.
- Deixar-lhe-emos um candeeiro, Moncada, mas não o aconselho a acendê-lo, porque consumirá todo o ar. Vamos a ver, Diego: quanto tempo calculas que uma pessoa possa viver aqui? - acrescentou Isabel, entusiasmada com o plano.
- Vários dias. Os suficientes para meditar a fundo sobre o sábio provérbio de que o fim não justifica os meios – retrucou Diego.
Deixaram Rafael Moncada aprovisionado de água, pão e presunto, após o que Nuria lhe limpou e ligou o corte do braço. Infelizmente, não se esvairia em sangue por aquela arranhadura insignificante, opinou Isabel. Recomendaram-lhe que não perdesse ar e forças gritando, porque ninguém o ouviria; os poucos criados que restavam não se aproximavam daqueles lados. As últimas palavras do prisioneiro antes de a estante girar para fechar a entrada da câmara, mergulhando-o no silêncio e na escuridão, foram que bem sabiam quem era Rafael Moncada, que se arrependeriam de não o terem matado, que sairia daquele buraco e, mais tarde ou mais cedo, encontraria Juliana, mesmo que tivesse de persegui-la até ao próprio inferno.
- Não será preciso ir tão longe; vamos para a Califórnia - despediu-se Diego.
Lamento dizer-vos que não posso continuar, porque se me acabaram as penas de ganso que sempre uso, mas encomendei mais e depressa poderei concluir esta história. Não gosto das penas de pássaros vulgares, porque sujam o papel e roubam elegância ao texto. Ouvi dizer que alguns inventores sonham criar um aparelho mecânico para escrever, mas estou certa de que tão fantasioso invento jamais prosperaria. Certos processos não se podem mecanizar, porque requerem carinho, e a escrita é um deles.
Receio que esta narrativa se me tenha alongado, apesar do muito que omiti. Na vida do Zorro, como em todas as vidas, existem momentos brilhantes e outros sombrios, mas entre os extremos há muitas zonas neutras. Tereis notado, por exemplo, que no ano de 1813 sucedeu muito pouca coisa digna da menção ao nosso protagonista. Dedicou-se às suas coisas sem pena nem glória e não avançou nada na conquista de Juliana. Foi necessário que Rafael Moncada regressasse da sua odisseia do chocolate para que esta história recuperasse uma certa agilidade. Como disse antes, os vilões, tão antipáticos na vida real, tornam-se indispensáveis num romance, e estas páginas são-no. Ao princípio, propus-me escrever uma crónica ou biografia, mas não consigo contar a lenda do Zorro sem cair no desprestigiado género do romance. Entre cada uma das suas aventuras decorriam longos períodos sem interesse, que suprimi para não matar de aborrecimento os meus possíveis leitores. Pela mesma razão, adornei os episódios memoráveis, fiz uso generoso de adjectivos e acrescentei suspense às suas proezas, embora não tenha exagerado em demasia as suas louváveis virtudes. Chama-se a isto liberdade literária e, no meu entender, é mais legítimo que a mentira pura e simples.
Em qualquer caso, meus amigos, resta-me bastante no tinteiro. Nas próximas páginas, que calculo em número maior que cem, narrarei a viagem do Zorro com as meninas De Romeu e Nuria através de meio mundo e os perigos que enfrentaram no cumprimento dos seus destinos. Posso adiantar-vos, sem receio de estragar o final, que sobrevivem ilesos e pelo menos alguns deles chegam à Alta Califórnia, onde infelizmente nem tudo será oiro sobre azul. Na realidade, é apenas nesse lugar que começa a verdadeira epopeia do Zorro, a que lhe deu fama no mundo inteiro. Assim sendo, rogo-vos um pouco mais de paciência.
Espanha, finais de 1814 - princípios de 1815
Consegui novas penas de ganso para continuar com a juventude do Zorro. Demoraram um mês a chegar do México e, entretanto, perdi o ritmo da escrita. Veremos se o recupero. Deixámos Diego de La Vega a fugir de Rafael Moncada com as meninas De Romeu e Nuria numa Espanha convulsionada pela repressão política, a miséria e a violência. As nossas personagens encontravam-se numa difícil encruzilhada, contudo o galante Zorro não perdia o sono pelos perigos externos, mas sim pelos sobressaltos do seu rendido coração. O enamoramento é uma condição que costuma nublar a razão dos homens, porém não é grave; basta, em geral, que o paciente seja correspondido para que recupere o juízo e comece a farejar o ar em busca de outras presas. Como cronista desta história, terei alguns problemas com o final clássico de «casaram-se e foram muito felizes». Enfim, melhor será que retomemos a escrita, antes que me deprima.
Ao fechar-se a porta disfarçada nas estantes da biblioteca, Rafael Moncada ficou isolado na câmara secreta. Os seus gritos de socorro não chegavam ao exterior, porque as grossas paredes, livros, cortinados e carpetes amorteciam o som.
- Sairemos daqui mal escureça - disse Diego de la Vega a Juliana, Isabel e Nuria. - Levaremos o mínimo indispensável para a viagem, tal como combinámos.
- Tens a certeza de que existe um mecanismo para abrir a porta da câmara por dentro? - perguntou Juliana.
- Não.
- Esta brincadeira foi demasiado longe, Diego. Não podemos ficar com a morte de Rafael Moncada às costas, muito menos uma morte lenta e atroz num túmulo hermético.
- Mas repara no mal que ele nos fez! - exclamou Isabel.
- Não vamos pagar-lhe na mesma moeda, porque nós somos melhores pessoas do que ele - retorquiu, taxativa, a irmã.
- Não te preocupes, Juliana, o teu apaixonado não perecerá asfixiado nesta ocasião - riu-se Diego.
- Porquê? - interrompeu Isabel, decepcionada.
Diego pregou-lhe uma cotovelada e passou a explicar-lhes que, antes de partir, entregariam a Jordi uma missiva para ser entregue a Eulália de Callís em pessoa, dentro de dois dias. Nela iriam as chaves da casa e as instruções para encontrar e abrir a câmara. No caso de Rafael não ter conseguido abrir a porta, a sua tia resgatá-lo-ia. A mansão, tal como o resto dos bens da família De Romeu, pertencia agora àquela senhora, que se encarregaria de socorrer o seu sobrinho predilecto antes que este bebesse todo o conhaque. Para se assegurar de que Jordi cumpriria a missão, dar-lhe-iam uns maravedis, com a esperança de que Dona Eulália o premiasse com mais ao receber a missiva.
Saíram de noite num dos coches da família, conduzido por Diego. Juliana, Isabel e Nuria despediram-se com um derradeiro olhar da casa onde tinham decorrido as suas vidas. Para trás ficavam as recordações de uma época segura e feliz; para trás ficavam os objectos que davam testemunho da passagem de Tomás de Romeu por este mundo. As filhas não haviam podido enterrá-lo com decência; os seus restos mortais foram parar a uma vala comum, juntamente com os dos outros prisioneiros fuzilados na Cidadela. A única coisa que conservavam era o seu retrato em miniatura, pintado por um artista catalão, no qual aparecia jovem, magro, irreconhecível. As três mulheres pressentiam que nesse instante cruzavam um umbral definitivo e começava outra etapa das suas vidas. Iam em silêncio, temerosas e tristes. Nuria começou a rezar a meia voz o rosário e a doce cadência das orações acompanhou-as um pedaço, até que adormeceram. Na boleia, Diego incitava os cavalos e pensava em Bernardo, como fazia quase diariamente. Tinha tantas saudades dele que costumava surpreender-se a falar sozinho, como sempre fizera com ele. A muda presença do irmão, a sua pétrea firmeza para lhe servir de guarda-costas e defendê-lo de todo o perigo, era justamente aquilo de que precisava. Perguntou a si mesmo se seria capaz de ajudar as meninas De Romeu ou se, pelo contrário, as levava à sua perdição. O seu plano de atravessar Espanha bem podia ser mais uma das suas loucuras; essa dúvida martirizava-o. Tal como as suas passageiras, estava assustado. Não era o medo delicioso que precedia o perigo de um combate, aquele punho fechado na boca do estômago, aquele frio glacial na nuca, mas sim o peso opressivo de uma responsabilidade para a qual não estava preparado. Se acontecesse alguma coisa àquelas mulheres, sobretudo a Juliana... Não, preferia não pensar nessa eventualidade. Gritou, chamando por Bernardo e pela sua avó Coruja Branca, para que viessem apoiá-lo, mas a sua voz perdeu-se na noite, engolida pelo som do vento e dos cascos dos cavalos. Sabia que Rafael Moncada os procuraria em Madrid e outras cidades importantes, mandaria vigiar a fronteira com França e revistar cada barco que saísse de Barcelona ou de qualquer outro ponto do Mediterrâneo; contudo, supunha que não lhe ocorreria persegui-los até à outra costa. Pensava enganá-lo embarcando rumo à América no porto atlântico de La Coruna, porque ninguém no seu perfeito juízo escolheria ir de Barcelona até lá para apanhar um barco. Seria muito difícil que um comandante de navio corresse o risco de dar guarida a fugitivos à justiça, como lhe fez ver Juliana, mas não lhe ocorreu outra solução. Logo veria como resolver o problema de atravessar o oceano; primeiro, tinha de vencer os obstáculos em terra firme. Decidiu avançar o mais possível nas próximas horas e depois desfazer-se do coche, porque alguém podia tê-los visto sair de Barcelona.
Passada a meia-noite, os cavalos deram mostras de fadiga e Diego considerou que se tinham afastado o suficiente da cidade para descansarem um pedaço. Aproveitando o luar, saiu do caminho e conduziu o veículo até um bosque, onde desatrelou os animais e lhes permitiu pastar. A noite estava clara e fria. Dormiram os quatro dentro do coche, embrulhados em mantas, até que Diego acordou um par de horas mais tarde, quando ainda estava escuro, para compartilhar uma merenda de pão com salpicão. A seguir, Nuria distribuiu-lhes a roupa que usariam durante o resto da viagem: os hábitos de peregrinos que ela própria tinha feito para o caso de Santiago de Compostela salvar a vida de Tomás de Romeu. Eram túnicas até meio da perna, chapéus de aba larga, compridos bordões ou varas de madeira com as pontas curvas, de cada uma das quais pendia uma cabaça para recolher água. Para se precaverem contra o frio, abrigavam-se com saiotes e protegiam-se com meias e luvas de lã grossa. Além disso, Nuria levava um par de garrafas de uma potente bebida alcoólica muito útil para esquecer desgostos. A ama nunca imaginara que aqueles grosseiros saios serviriam para fugir com o que restava da família e muito menos que ela acabaria por pagar a promessa ao santo sem que este cumprisse a sua parte do acordo. Parecia-lhe uma brincadeira indigna de uma pessoa tão séria como o apóstolo Santiago, mas supôs que havia algum oculto desígnio que lhe seria revelado no momento oportuno. Ao princípio, a ideia de Diego parecera-lhe astuta, mas depois de lançar uma olhadela ao mapa dera-se conta do que significava atravessar Espanha a pé na sua parte mais larga. Não era um passeio, era uma epopeia. Esperavam-nos, pelo menos, dois meses de caminho ao relento, alimentando-se do que conseguissem obter da caridade e dormindo sob as estrelas. Além disso, estavam em Novembro, chovia a toda a hora e não tardaria que os solos amanhecessem cobertos de gelo. Nenhum deles tinha o costume de caminhar longos trechos e muito menos com sandálias de lavrador. Nuria permitiu-se insultar Santiago entre dentes e, de caminho, dizer a Diego o que pensava daquela descabelada romaria.
Uma vez vestidos de peregrinos e com o pequeno-almoço tomado, Diego decidiu abandonar o coche. Cada um pegou no que era seu, envolveu-o numa manta e amarrou o embrulho às costas, acomodando o resto em cima dos dois cavalos. Isabel trazia consigo a pistola do pai, escondida na roupa. Diego levava no embrulho a sua máscara de Zorro, da qual não fora capaz de se desfazer, e, sob o saio, duas adagas biscainhas de duplo gume, de um palmo de comprido. O chicote pendia-lhe da cintura, como sempre. Tivera de deixar a espada que o pai lhe oferecera na Califórnia, da qual, até então, não se tinha separado, porque era impossível dissimulá-la. Os peregrinos não andavam armados. Proliferavam malandrins da pior espécie pelos caminhos, mas em geral não se interessavam pelos viajantes que iam a Compostela, visto que faziam voto de pobreza enquanto durava a jornada. Ninguém podia imaginar que aqueles modestos caminhantes tivessem uma pequena fortuna em pedras preciosas cosida na roupa. Em nada se diferençavam dos penitentes habituais que iam prostrar-se diante do célebre Santiago, a quem se atribuía o milagre de ter salvo Espanha dos invasores muçulmanos. Durante séculos, os Árabes saíram vitoriosos das batalhas graças ao infalível braço de Maomé que os guiava, até que um pastor encontrou oportunamente os ossos de Santiago, abandonados num campo da Galiza. Como tinham chegado da Terra Santa até ali era parte do milagre. A relíquia lograra unificar os pequenos reinos cristãos da região e revelara-se tão eficiente na condução dos bravos de Espanha, que estes expulsaram os Mouros e recuperaram o solo para a cristandade. Santiago de Compostela converteu-se no local de peregrinação mais importante da Europa. Pelo menos assim era a história de Nuria, apenas um pouco mais adornada. A ama acreditava que a cabeça do apóstolo permanecia intacta e todas as Sextas-Feiras Santas derramava lágrimas verdadeiras. Os supostos restos haviam-se mantido num caixão de prata sob o altar da catedral, mas, na ânsia de os proteger das incursões do pirata Francis Drake, um bispo mandara escondê-los tão bem, que por muito tempo não os conseguiram encontrar. Por essa razão, pela guerra e não por falta de fé, tinha diminuído o número de peregrinos que antes atingia centenas de milhares. Os que se dirigiam ao santuário vindos de França, tomavam a rota do Norte, atravessando o País Basco, e foi essa que os nossos amigos escolheram. Durante séculos, igrejas, conventos, hospitais e até os lavradores mais pobres, ofereciam tecto e comida aos viajantes. Aquela tradição hospitaleira revelava-se conveniente para o pequeno grupo guiado por Diego, porque lhe permitia viajar sem o peso de vitualhas. Embora os peregrinos fossem raros nessa estação - preferiam viajar na Primavera e no Verão -, os amigos esperavam não chamar a atenção, porque o fervor religioso tinha aumentado desde que os Franceses se retiraram do país e muitos espanhóis tinham prometido visitar o santo se ganhassem a guerra. Amanhecia quando voltaram ao caminho e começaram a andar. Nesse primeiro dia caminharam mais de cinco léguas, até que Juliana e Nuria se deram por vencidas, porque os pés lhes sangravam e desfaleciam de fome. Por volta das quatro da tarde pararam numa choupana de campo, cuja dona calhou ser uma desgraçada mulher que tinha perdido o marido na guerra.
Tal como os informou, não perecera às mãos dos Franceses, mas sim massacrado por espanhóis, que o acusaram de esconder comida, em vez de a entregar à guerrilha. Sabia quem eram os assassinos, tinha-lhes visto bem as caras: lavradores como ela, que aproveitavam os maus tempos para cometer tropelias. Não eram guerrilheiros, mas sim delinquentes, que haviam violado a sua pobre filha, louca de nascença, que não fazia mal a ninguém, e lhe tinham levado os animais. Salvara-se uma cabra, que corria nos cerros, disse ela. Um dos tais homens tinha o nariz comido pela sífilis e o outro uma comprida cicatriz na cara; lembrava-se muito bem deles e não passava um dia sem que os maldissesse e clamasse por vingança, acrescentou. A sua única companhia era a filha, que mantinha amarrada a uma cadeira para que não se arranhasse. Na casa - um cubo de pedra e barro, chato, malcheiroso e sem janelas -, a mãe e a filha conviviam com uma leva de cães. A camponesa tinha muito pouco para dar e estava cansada de receber mendigos, mas não quis deixá-los ao relento. «Por negarem hospedagem a São José e à Virgem Maria, o Menino Jesus nasceu numa manjedoura», disse ela. Achava que recusar guarida a um peregrino se pagava com muitos séculos de sofrimento no Purgatório. Os viajantes sentaram-se no chão de terra, rodeados de cães pulguentos, a recomporem-se um pouco da fadiga, enquanto ela cozinhava umas batatas nas brasas e desenterrava um par de cebolas da sua mísera horta.
- É tudo o que há. A minha filha e eu não comemos outra coisa há meses, mas amanhã talvez consiga ordenhar a cabra - disse.
- Que Deus lhe pague, minha senhora - murmurou Diego.
A única luz da casa vinha pelo buraco da porta, que de noite se fechava com uma pele de cavalo esticada, e da pequena braseira onde se tinham assado as batatas.
Enquanto eles consumiam o frugal alimento, a camponesa observava-os de soslaio com os seus olhinhos remelosos. Viu mãos brancas e suaves, rostos nobres, portes esbeltos, recordou que vinham com dois cavalos e tirou as suas conclusões. Não quis averiguar pormenores, pensando que, quanto menos soubesse, a menos problemas se expunha; os tempos não estavam para fazer muitas perguntas. Quando os seus hóspedes acabaram de comer, emprestou-lhes umas peles de cordeiro mal curtidas e conduziu-os a um telheiro onde guardava lenha e maçarocas secas. Ali se instalaram. Nuria opinou que era de longe mais acolhedor que o interior do casinhoto, com o cheiro dos cães e os bramidos da louca. Distribuíram o espaço e as peles e aprontaram-se para uma longa noite. Estavam a acomodar-se o melhor possível, quando a camponesa reapareceu trazendo uma xícara com gordura, que lhes entregou com a recomendação de a usarem para as contusões. Ficou a olhar para o escalavrado grupo com um misto de desconfiança e curiosidade.
- Qual peregrinos, qual quê! Vê-se que sois gente fina. Não quero saber do que fugis, mas aqui vai um conselho de graça. Há muitos velhacos nestes caminhos. Não há que confiar. É melhor que não vejam as raparigas. Que tapem as caras, pelo menos - acrescentou, antes de dar meia volta e partir.
Diego não sabia como aliviar a incomodidade das mulheres, em especial da que mais lhe importava, Juliana. Tomás de Romeu tinha-lhe confiado as filhas e havia que ver as condições em que as desgraçadas estavam. Habituadas a colchão de penas e lençóis bordados, repousavam agora os ossos sobre uma pilha de maçarocas e coçavam-se das pulgas com as duas mãos. Juliana era admirável; não se tinha queixado uma única vez durante aquela árdua jornada, tendo inclusivamente comido a cebola crua do jantar sem comentários. Em justiça tinha de admitir que tão-pouco Nuria fizera má cara e, quanto a Isabel, bom, parecia encantada com a aventura. A afeição de Diego por elas aumentara, ao vê-las tão vulneráveis e corajosas. Sentiu uma ternura infinita por aqueles corpos magoados e um desejo imenso de lhes aliviar o cansaço, de abrigá-las do frio, de salvá-las de qualquer perigo. Não o preocupava tanto Isabel, que possuía a resistência de uma potra, nem Nuria, que se governava com goles de álcool, mas sim Juliana. As sandálias de lavrador encheram-lhe os pés de bolhas, apesar das meias de lã, e o roçar do hábito esfolara-lhe a pele. E que pensava Juliana, entretanto? Não sei, mas imagino que à luz agónica da tarde Diego lhe pareceu bonito. Havia um par de dias que não se barbeava e a sombra escura da barba dava-lhe um ar tosco e viril. Já não era o rapaz desajeitado, intenso, magro, todo sorriso e orelhas, que aparecera em sua casa quatro anos atrás. Era um homem. Dentro de uns meses completaria vinte anos bem vividos, ganhara corpo e tinha aprumo. Não estava nada mal; além disso, gostava dela com uma comovedora lealdade de cachorro. Juliana teria de ser de pedra para não amolecer. O pretexto da pomada curativa serviu a Diego para acariciar os pés da sua amada um bom pedaço e, de caminho, distrair-se dos seus funestos pensamentos. Não tardou que a sua natureza optimista prevalecesse e propôs-lhe estender a massagem às barrigas das pernas. «Não sejas depravado, Diego», increpou-o Isabel, quebrando o encanto num abrir e fechar de olhos.
As irmãs adormeceram, enquanto ele voltava a ruminar as suas variadas inquietações. Concluiu que a única coisa venturosa daquela viagem seria Juliana; o resto era só esforço e angústia. Rafael Moncada e outros possíveis pretendentes tinham ficado fora de cena; dispunha finalmente de uma oportunidade completa para conquistar a bela: semanas e semanas em estreita convivência. Ali estava, a menos de uma vara de distância, exausta, suja, dorida e frágil. Podia estender a mão e tocar-lhe a face avermelhada pelo sono, mas não se atrevia. Dormiria todas as noites ao seu lado, como castos esposos, e compartilharia com ela cada momento do dia. Juliana não contava com mais protecção neste mundo senão a dele, situação que o favorecia enormemente. Nunca se aproveitaria dessa vantagem, claro - era um cavalheiro -, mas não podia deixar de notar que num só dia se operara uma mudança nela. Juliana via-o com outros olhos. Deitara-se enovelada, tiritando debaixo das peles de cordeiro, a um canto do telheiro, mas daí a pouco aquecera e assomara metade da cabeça, procurando acomodar-se sobre as maçarocas. Pelas ranhuras das tábuas entrava o resplendor azul da lua, que lhe iluminava o rosto perfeito, abandonado no sono. Diego desejava que aquela peregrinação não terminasse nunca. Colocou-se tão perto dela que podia adivinhar a tepidez do seu hálito e a fragrância dos seus caracóis escuros. A boa camponesa tinha razão: era preciso esconder a sua beleza, para não atrair má sorte. Se fossem assaltados por um bando, ele sozinho mal a poderia defender, visto que nem sequer contava com uma espada. Existiam sobejos motivos para se angustiar; não havia, porém, nada de pecaminoso em dar rédea solta à fantasia, pelo que se distraiu imaginando a donzela exposta a terríveis perigos e salva uma e outra vez pelo invencível Zorro. «Se não conseguir conquistá-la agora, é porque sou um parvo sem remédio», murmurou.
Juliana e Isabel acordaram com o canto do galo e os abanões de Nuria, que lhes arranjara uma malga de leite de cabra acabada de ordenhar. Ela e Diego não tinham descansado com a mesma placidez que as raparigas. Nuria rezara durante horas, aterrada pelo futuro, e Diego repousara parcialmente, suspenso da proximidade de Juliana, com um olho aberto e uma mão na adaga para a defender, até que o tímido amanhecer de Inverno pusera fim àquela eterna noite. Os viajantes aprontaram-se para iniciar outra jornada, mas as pernas mal obedeciam a Juliana e Nuria; poucos passos andados tiveram de se amparar para não se abaterem no chão. Isabel, em contrapartida, demonstrou o seu estado físico com várias flexões, gabando-se das horas intermináveis que passara a praticar esgrima diante de um espelho. Diego aconselhou que começassem a andar, para que os músculos aquecessem e o entorpecimento passasse, mas não foi assim: a dor apenas piorou e, por fim, Juliana e Nuria tiveram de montar nos cavalos, enquanto Diego e Isabel carregavam as trouxas. Haveria de passar uma semana completa antes de conseguirem cumprir a meta de seis léguas diárias que se tinham proposto ao começar. Antes de partir, agradeceram a hospitalidade à camponesa e deixaram-lhe uns maravedis, para os quais ela ficou a olhar pasmada, como se nunca tivesse visto moedas. Em alguns trechos, o caminho era um carreiro de mulas; noutros, apenas um estreito rasto que serpenteava pelo meio da natureza. Operou-se uma transformação inesperada nos quatro peregrinos. A paz e o silêncio obrigaram-nos a escutar, a ver as árvores e as montanhas com outros olhos, abrir o coração à experiência única de pisar o rasto de milhares de viajantes que tinham feito aquele caminho durante nove séculos. Uns frades ensinaram-nos a guiarem-se pelas estrelas, como faziam os viajantes na Idade Média, e pelas pedras e marcos com o selo de Santiago, uma concha de vieira, deixados por caminhantes anteriores. Em determinados sítios encontraram frases esculpidas em pedaços de madeira ou escritas em desbotados fragmentos de pergaminho, mensagens de esperança e desejos de boa sorte. Aquela viagem à sepultura do apóstolo converteu-se numa exploração da própria alma. Iam em silêncio, doridos e cansados, mas contentes. Perderam o medo inicial e não tardou que se esquecessem de que fugiam. Ouviram lobos de noite e esperavam bandoleiros em qualquer volta do caminho, mas avançavam confiantes, como se uma força superior os protegesse.
Nuria começou a reconciliar-se com Santiago, que tinha insultado quando Tomás de Romeu fora executado. Atravessaram bosques, extensas planícies, montes solitários, numa paisagem mutante e sempre bela. Nunca lhes faltou hospedagem. Umas vezes, dormiam em casa de lavradores, outras, em mosteiros e conventos. Tão-pouco lhes faltou pão ou sopa, que gente desconhecida compartilhava com eles. Uma noite, dormiram numa igreja e acordaram com cantos gregorianos, envoltos numa névoa densa e azul, como que de outro mundo. Noutra ocasião, repousaram nas ruínas de uma pequena capela, onde faziam ninho milhares de pombas brancas, enviadas, segundo Nuria, pelo Espírito Santo. Seguindo o conselho da camponesa que os acolhera na primeira noite, as raparigas tapavam a cara ao aproximarem-se de lugares habitados. Nas aldeolas e estalagens, as irmãs ficavam para trás, enquanto Nuria e Diego se adiantavam para solicitar ajuda, fazendo-se passar por mãe e filho. Referiam-se sempre a Juliana e Isabel como se fossem do sexo masculino e esclareciam que não mostravam a cara porque estavam deformados pela peste; assim não despertavam o interesse de bandidos, ganhões e desertores do exército que vagueavam por aqueles campos por cultivar desde o começo da guerra.
Diego calculava a distância e o tempo que os separavam do porto de La Coruna e acrescentava a esta operação matemática os seus progressos com Juliana, que não eram espectaculares, mas, pelo menos, a jovem parecia sentir-se segura na sua companhia e tratava-o com menos ligeireza e mais coquetaria; apoiava-se no seu braço, permitia que lhe acariciasse os pés, lhe preparasse a cama e até que lhe desse colheradas de sopa à boca, quando estava demasiado cansada. À noite, Diego esperava que o resto do grupo adormecesse para se instalar o mais perto dela que a decência permitisse. Sonhava com ela e acordava no melhor dos mundos, com um braço sobre a sua cintura. Ela fingia não se dar conta daquela crescente intimidade e durante o dia comportava-se como se nunca se tivessem tocado, mas no negrume da noite facilitava o contacto, enquanto ele perguntava a si próprio se o faria por frio, por medo ou pelas mesmas razões apaixonadas que o moviam a ele. Aguardava esses momentos com uma ansiedade demente e aproveitava-os até onde podia. Isabel estava a par daquelas incursões nocturnas e não tinha rebuço em lhes dizer piadas a esse respeito. A maneira como a rapariga tomava conhecimento delas era um enigma, porque era a primeira a adormecer e a última a acordar.
Naquele dia tinham andado várias horas e a fadiga somava-se à demora causada por uma lesão na pata de um dos cavalos, que o obrigava a coxear. Tinha-se posto o Sol e ainda lhes faltava um bom pedaço para chegarem ao convento onde pensavam pernoitar. Viram sair fumo de uma casa próxima e decidiram que valia a pena aproximarem-se. Diego adiantou-se, confiante que seria bem recebido, porque parecia um lugar bastante próspero, pelo menos comparado com outros. Antes de bater à porta advertiu as meninas de que se cobrissem, apesar da penumbra. Elas envolveram a cara com trapos munidos de buracos para os olhos, que já estavam pardos de pó e lhes davam um aspecto de leprosas. Veio abrir-lhes um homem que, em contraluz, parecia quadrado, como um orangotango. Não conseguiam distinguir-lhe as feições, mas, a julgar pela sua atitude e tom descortês, não parecia satisfeito por vê-los. À partida, negou-se a recebê-los com o pretexto de que não tinha obrigação de socorrer peregrinos; isso competia a frades e freiras que para isso eram ricos. Acrescentou que, se viajavam com dois cavalos, não deviam ter voto de pobreza e podiam muito bem pagar as suas despesas. Diego regateou por um bocado; por fim, o lavrador aceitou dar-lhes qualquer coisa de comer e licença para dormirem debaixo de telha a troco de umas moedas, que tiveram de lhe entregar antecipadamente. Conduziu-os a um estábulo, onde havia uma vaca e dois cavalos percherões de lavoura; indicou-lhes um monte de palha para se instalarem e anunciou-lhes que voltaria com alguma coisa para comerem. Passada meia hora, quando começavam a perder a esperança de meterem alguma coisa no estômago, o homem reapareceu acompanhado por outro. O estábulo estava escuro como uma gruta, mas traziam uma lanterna. Deixaram no chão umas tigelas com uma convincente sopa camponesa, uma fogaça de pão negro e meia dúzia de ovos. Nessa altura, Diego e as mulheres puderam ver, à luz da lanterna, que um deles tinha a cara deformada por uma cicatriz que lhe atravessava um olho e a face, ao outro faltava o nariz. Eram baixos, fortes, sem pescoço, com os braços como cepos e um aspecto tão patibular que Diego apalpou as suas adagas e Isabel a sua pistola. As sinistras personagens não se moveram dali, enquanto os seus hóspedes mexiam a sopa e partiam o pão, observando com malévola curiosidade Juliana e Isabel, que procuravam comer debaixo do pano, sem descobrirem a cara.
- O que têm essas? - perguntou um deles, apontando para as raparigas.
- Febre-amarela - disse Nuria, que tinha ouvido Diego mencionar essa peste, mas não desconfiava em que consistia.
- É uma febre dos trópicos que corrói a pele como ácido e apodrece a língua e os olhos. Deviam ter morrido, mas o apóstolo salvou-as. É por isso que vamos em peregrinação ao santuário, para agradecer - acrescentou Diego, inventando no instante.
- Pega-se? - quis saber o anfitrião.
- De longe não se pega; só por contacto. Há que não lhes tocar - explicou Diego.
Os homens não pareciam muito convencidos, porque viram as mãos sãs e os corpos jovens das raparigas, que os saios não conseguiam dissimular. Além disso, suspeitaram que aqueles peregrinos traziam mais dinheiro com eles do que o habitual naqueles casos e deitaram o olho aos cavalos.
Embora um deles coxeasse um pouco, eram animais de boa raça, alguma coisa haviam de valer. Retiraram-se por fim com a lanterna, deixando-os mergulhados nas sombras.
- Temos de nos ir embora daqui; aqueles sujeitos são aterrorizantes - sussurrou Isabel.
- Não podemos viajar de noite e temos de descansar; eu montarei guarda - respondeu Diego no mesmo tom.
- Dormirei um par de horas e depois substituir-te-ei na vigilância - propôs Isabel.
Ainda tinham os ovos crus, a quatro dos quais Nuria fez um furo na casca, para os chupar, guardando os restantes. «É uma pena ter medo das vacas, senão podíamos obter um pouco de leite», suspirou a ama. Depois pediu a Diego que saísse por um bocado, para que as raparigas se pudessem lavar com um pano molhado. Por fim, acomodaram-se com as mantas em cima da palha e adormeceram. Decorreram à volta de três ou quatro horas, enquanto Diego cabeceava sentado, com as adagas ao alcance da mão, morto de fadiga, fazendo esforços por manter os olhos abertos. De repente foi sacudido pelo latir de um cão e deu-se conta de que tinha adormecido. Quanto tempo? Não fazia ideia, mas o sono era um prazer proibido naquelas circunstâncias. Para espertar saiu do estábulo, respirando a plenos pulmões o ar gelado da noite. Na casa ainda saía fumo pela chaminé e brilhava uma luz no único janelico da sólida parede de pedra, o que lhe permitiu calcular que talvez não tivesse passado tanto tempo adormecido como receava. Decidiu afastar-se um pouco para fazer as suas necessidades.
Ao regressar momentos mais tarde, viu umas silhuetas em movimento e adivinhou que eram os dois lavradores dirigindo-se ao estábulo em suspeito silêncio. Levavam qualquer coisa convincente nas mãos, talvez espingardas ou arrochos. Compreendeu que contra aqueles brutos armados, as suas adagas de curto alcance seriam pouco eficientes.
Desenrolou o chicote da cintura e sentiu de imediato o frio na nuca que sempre o preparava para uma luta. Sabia que Isabel tinha a pistola pronta, mas deixara-a a dormir e, além disso, a rapariga nunca tinha disparado uma arma. Contava com a vantagem da surpresa, mas não podia agir naquela escuridão. Rezando para não ser denunciado pelos cães, seguiu os homens até ao estábulo. Por uns minutos reinou um silêncio absoluto, enquanto os malfeitores se asseguravam de que os seus infelizes hóspedes estavam perdidos no sono. Uma vez tranquilizados, acenderam uma candeia e viram as figuras prostradas sobre a palha. Não se aperceberam de que faltava um, porque confundiram a manta de Diego com outro corpo tapado. Nisto, um dos cavalos relinchou e Isabel sentou-se, sobressaltada. Demorou uns instantes a recordar onde estava, ver os homens, dar-se conta da situação e tentar empunhar a pistola, que tinha deixado preparada debaixo do cobertor. Não conseguiu completar o gesto, porque um par de rugidos dos sujeitos, que brandiam grossos cepos, a gelou, paralisada. Nessa altura, também já Juliana e Nuria tinham espertado.
- Que quereis? - gritou Juliana.
- Queremo-las a vocês, rameiras, e ao dinheiro que trazeis! - retorquiu um dos homens, aproximando-se com o pau em riste.
Então, à luz vacilante da chama, os desalmados viram os rostos das suas vítimas. Com uma exclamação de absoluto terror retrocederam à pressa e deram consigo diante de Diego, que já tinha o braço no ar. Antes que pudessem refazer-se do susto, o chicote tinha-se abatido com um estalido seco sobre o mais próximo, arrancando-lhe o bordão e um grito de dor. O outro precipitou-se sobre Diego, que se esquivou à bordoada e lhe aplicou um pontapé no ventre que o dobrou em dois. Mas o primeiro já se repunha da chicotada e saltava sobre o jovem, com uma agilidade inesperada em alguém tão pesado, caindo-lhe em cima como um saco de pedras. O chicote tornava-se inútil em combate corpo a corpo, e o camponês tinha Diego agarrado pelo pulso com que segurava o punhal. Espalmou-o contra o solo, procurando-lhe a garganta com uma mão, enquanto lhe sacudia o braço armado com a outra. Tinha um aperto poderoso e uma força descomunal. O seu hálito fétido e a sua asquerosa saliva atingiram o jovem na cara, ao mesmo tempo que se defendia desesperado, sem compreender como conseguira aquela fera, num instante, o que o exímio lutador, Júlio César, não lograra no exame de coragem de La Justicia. Pelo rabo do olho conseguiu aperceber-se de que o outro fulano conseguira pôr-se de pé e deitava a mão ao pau. Havia mais luz, porque a candeia rolara pelo chão e a palha começava a arder. Nesse instante brilhou um clarão e o homem que estava de pé caiu berrando como um leão. Aquilo distraiu durante uma fracção de segundo o que estava sobre Diego, tempo suficiente para que este o sacudisse de cima com uma feroz joelhada na virilha.
O impacte do tiro pregou com Isabel sentada no chão. Tinha disparado quase às cegas, segurando a arma com ambas as mãos, e por um feliz acaso pulverizara um joelho ao seu atacante. Não conseguia acreditar. A ideia de que um leve movimento do seu dedo no gatilho tivesse tais consequências mal lhe entrava na cabeça. Uma ordem peremptória de Diego, que mantinha o outro fulano imobilizado com o seu chicote, arrancou-a ao transe. «Vamos! O estábulo está a arder! É preciso tirar daqui os animais!» As três mulheres puseram-se em acção para salvar a vaca e os cavalos, que relinchavam de pavor, enquanto Diego arrastava para o exterior os dois malfeitores, um dos quais continuava a rugir de dor, com a perna feita em polpa e encharcado em sangue.
O estábulo ardeu como uma imensa fogueira, iluminando a noite. Àquela claridade, Diego viu os rostos de Juliana e Isabel, que tanto tinham espantado os seus assaltantes, e também ele soltou uma exclamação de horror. A pele, amarelenta e gretada, como pele de crocodilo, brilhava purulenta em alguns sítios e noutros havia secado como uma crosta, repuxando as feições. Os olhos estavam deformados e os lábios tinham desaparecido: as meninas eram dois monstros.
- Que sucedeu? - gritou Diego.
- Febre-amarela - riu-se Isabel.
A ideia tinha sido de Nuria. A ama suspeitara de que os seus malévolos anfitriões podiam atacá-los durante a noite. Conhecia a maldade daqueles sujeitos pela descrição que deles fizera a camponesa, cujo marido tinham assassinado. Lembrara-se da sua antiga receita de beleza para aclarar a pele, à base de gemas de ovo, que as espanholas haviam aprendido com as mulheres muçulmanas, e usara o par de ovos que lhe sobrara do jantar para pintar a cara das raparigas. Ao secar, converteram-se em máscaras gretadas de uma cor repugnante. «Tira-se com água e faz muito bem à cútis», explicou Nuria, ufana.
Ligaram a ferida do ganhão da cicatriz, que não parava de gritar como um torturado, para impedir, pelo menos, que se esvaísse em sangue, embora houvesse poucas esperanças de que salvasse a perna desfeita pelo tiro. Ao outro deixaram-no bem amarrado a uma cadeira, mas não o amordaçaram, para que pudesse pedir auxílio. A casa não ficava longe do caminho e mais de um passante podia ouvi-lo. «Olho por olho, dente por dente, tudo se paga nesta vida ou no inferno», foram as palavras de despedida de Nuria. Levaram um presunto, que estava pendurado numa viga da casa, e os dois cavalos percherões, lentos e pesados. Não eram boas cavalgaduras, mas sempre seria melhor que ir a pé; além disso, não desejavam deixar meios de transporte àquele par de bandidos, para que não pudessem alcançá-los.
O incidente com o homem sem nariz e o seu compincha da cara esfaqueada serviu aos viajantes para serem mais precavidos. A partir de então, decidiram que só se hospedariam nos sítios designados, desde tempos imemoriais, para os peregrinos. Depois de várias semanas de marcha pelos caminhos do Norte, emagreceram os quatro e curtiu-se-lhes o corpo e a alma. A luz tostou-lhes a pele, o ar seco e as geadas gretaram-lha. O rosto de Nuria transformou-se num mapa de finas rugas e os anos abateram-se subitamente sobre ela. Aquela mulher dantes rija, aparentemente sem idade, arrastava agora os pés e tinham-se-lhe encurvado um pouco as costas, mas, longe de a desfear, isso embelezava-a. Descontraiu-se-lhe a expressão adusta e começou a aflorar nela um humor sorrateiro de avó excêntrica que, anteriormente, não tinha manifestado. Além disso, ficava melhor com o seu singelo saio de peregrina do que com o severo uniforme negro e touca que toda a vida tinha usado. As curvas de Juliana desapareceram, parecia mais pequena e jovem, com os olhos enormes e as faces estriadas e vermelhas. Tomava a precaução de aplicar lanolina na pele, para se proteger do sol, mas não pudera evitar o impacte dos elementos. Isabel, forte e magra, foi quem menos sofreu com a viagem. Afilaram-se-lhe as feições e adquiriu um passo comprido e seguro, que lhe dava um aspecto viril. Nunca tinha sido mais feliz; era feita para a liberdade. «Maldição! Porque não nasci homem?», exclamou numa ocasião. Nuria deu-lhe um beliscão, com a advertência de que semelhante blasfémia podia conduzi-la directamente aos caldeirões de Satanás, mas logo desatou a rir com vontade e comentou que, se tivesse nascido do sexo masculino, Isabel teria sido como Napoleão, pela muita guerra que sempre dava. Adaptaram-se às rotinas impostas pelo caminho. Diego assumiu o comando de forma natural, tomava decisões e dava a cara perante estranhos. Procurava que as mulheres dispusessem de uma certa privacidade para as suas necessidades mais íntimas, mas não as perdia de vista por mais de uns minutos. Bebiam e lavavam-se nos rios; para isso levavam cabaças, símbolo dos peregrinos. A cada légua percorrida foram esquecendo as comodidades do passado; um pedaço de pão sabia-lhes divinalmente, um gole de vinho era uma bênção. Num mosteiro deram-lhes malgas de chocolate doce e espesso, que saborearam lentamente, sentados num banco ao ar livre. Por vários dias não pensaram noutra coisa, não se lembravam de ter sentido nunca um prazer tão absoluto como aquela quente e aromática bebida sob as estrelas. Durante o dia mantinham-se com os restos da comida recebida nas hospedagens: pão, queijo duro, uma cebola, um pedaço de salpicão. Diego levava algum dinheiro à mão para emergências, mas procuravam não o usar; os peregrinos sobreviviam da caridade. Caso não houvesse outro remédio senão pagar por qualquer coisa, regateava longamente, até que o conseguia quase oferecido; assim não levantava suspeitas.
Tinham atravessado meio País Basco, quando o Inverno se abateu sem compaixão. Aguaceiros súbitos ensopavam-nos até aos ossos e as geadas mantinham-nos a tiritar debaixo das mantas molhadas. Os cavalos iam a passo, aflitos também pelo clima. As noites eram mais compridas, a bruma mais densa, a marcha mais lenta, a escarcha mais grossa e a viagem mais difícil, mas a paisagem tornava-se de uma beleza espantosa. Verde e mais verde, colinas de veludo verde, bosques imensos em todos os tons de verde, rios e cascatas de cristalinas águas verde-esmeralda. Durante longos trechos a pista perdia-se na humidade do solo, para reaparecer mais adiante sob a forma de um delicado carreiro entre as árvores, ou das lajes gastas de uma antiga via romana. Nuria convenceu Diego de que valia a pena gastar dinheiro em álcool, a única coisa que os conseguia aquecer de noite e fazê-los esquecer as misérias da jornada. Às vezes tinham de permanecer um par de dias numa hospedagem, porque chovia demasiado e precisavam de restabelecer as forças; nessa altura aproveitavam para ouvir as histórias de outros viajantes e dos religiosos, que tinham visto passar tantos pecadores pelo caminho de Santiago.
Um dia, em meados de Dezembro, encontravam-se ainda longe da próxima aldeia e não viam casas havia um bom pedaço, quando divisaram entre as árvores várias luzes trémulas, como indecisas fogueiras. Decidiram aproximar-se com cautela, porque podiam ser desertores do exército, mais perigosos do que qualquer patife. Costumavam vaguear em grupos, maltrapilhos, armados até aos dentes e dispostos a tudo. No melhor dos casos, esses veteranos de guerra sem trabalho eram contratados como mercenários para lutar a soldo, dirimir contendas, cumprir vinganças e outras ocupações pouco honrosas, mas preferíveis às de um bandido. Não tinham mais vida do que os seus aços, e a ideia de um trabalho manual era para eles impensável. Em Espanha, só trabalhavam os lavradores que, com o suor dos seus lombos, mantinham o peso imenso do império, desde o rei até ao último esbirro, chicaneiro, frade, batoteiro, pajem, galdéria ou pedinte.
Diego deixou as mulheres debaixo de uns arbustos, protegidas pela pistola, que Isabel tinha finalmente aprendido a usar, enquanto ele averiguava o significado daqueles remotos clarões. Poucos passos andados, encontrou-se perto e pôde verificar que, tal como imaginara, se tratava de várias fogueiras. Não lhe pareceu, porém, que fosse uma quadrilha de bandoleiros nem de desertores, porque lhe chegou aos ouvidos a melodia débil de uma guitarra. O coração deu-lhe um baque no peito ao reconhecer aquela música, um canto apaixonado de desgosto e lamento, que Amália costumava dançar com um revolver de saias e um chocalhar de castanholas, enquanto o resto da tribo marcava o ritmo com pandeiretas e palmas. Não era original; todos os ciganos tocavam canções semelhantes. Aproximou-se a passo no cavalo e distinguiu numa clareira do bosque várias tendas e fogueiras.
«Valha-me Deus!», murmurou, a ponto de gritar de alívio, porque estavam ali os seus amigos. Não lhe restaram dúvidas: era a família de Amália e Pelayo. Vários homens da tribo adiantaram-se para averiguar quem era o intruso e à luz cinzenta do entardecer viram um monge andrajoso e barbudo, que avançava para eles sobre um pesado cavalo de lavoura. Não o reconheceram a não ser quando ele saltou em terra e correu para eles, porque a última pessoa que esperavam ver era Diego de La Vega e muito menos com hábito de peregrino.
- Que diabo te aconteceu, homem? - exclamou Pelayo, dando-lhe uma palmada afectuosa no ombro, e Diego não soube se lhe corriam pela cara lágrimas ou novas gotas de chuva.
O cigano acompanhou-o para ir buscar Nuria e as raparigas. Uma vez sentados à volta da fogueira, os viajantes contaram em traços largos as suas recentes peripécias, desde a execução de Tomás de Romeu até ao sucedido com Rafael Moncada, omitindo os altos e baixos menores da fortuna, que nada acrescentavam à história.
- Como vedes, somos fugitivos e não peregrinos. Temos de chegar a La Coruna, para ver se lá conseguimos embarcar para a América, mas ainda nos falta metade do caminho e o Inverno morde-nos os calcanhares. Podemos seguir viagem convosco? - perguntou-lhes Diego.
Os Rom nunca tinham recebido um pedido daquela espécie por parte de um gadje. Por tradição desconfiavam dos estranhos, sobretudo quando estes demonstravam boas intenções, porque o mais provável era que trouxessem uma víbora escondida na manga, mas haviam tido ocasião de conhecer a fundo Diego e estimavam-no. Afastaram-se para se aconselharem entre si. Deixaram o grupo de gadjes a enxugar as roupas junto ao fogo e retiraram-se para uma das tendas, feita de pedaços de vários tecidos, andrajosa e cheia de buracos, que, apesar do seu lamentável aspecto, oferecia um bom resguardo contra os caprichos do clima.
A assembleia da tribo, chamada kris, durou uma boa parte da noite. Quem a dirigia era Rodolfo, o Rom baro, o homem de mais idade, patriarca, conselheiro e juiz, que conhecia as leis dos Rom. Essas leis não tinham sido escritas ou codificadas; passavam de uma geração para outra na memória dos Rom baro, que as interpretavam de acordo com as condições de cada época e lugar. Só os homens podiam participar nas decisões, mas os costumes tinham-se relaxado nesses anos de miséria e as mulheres não ficaram caladas, em especial Amália, que lhes lembrou que, em Barcelona, haviam salvo a pele graças a Diego e, além disso, este lhes dera uma bolsa com dinheiro, que lhes permitira fugir e sobreviver. De qualquer maneira, alguns membros do clã votaram contra, porque consideravam que a proibição de conviver com gadjes era mais forte do que qualquer forma de gratidão. Toda a associação não comercial com os gadjes acarretava marimé, ou má sorte, disseram eles. Conseguiram, por fim, chegar a acordo e Rodolfo resolveu a questão com um veredicto inapelável. Tinham visto muita traição e maldade nas suas vidas, disse, e deviam apreciar quando alguém lhes estendia a mão, para que ninguém pudesse dizer que os Rom eram mal agradecidos. Pelayo partiu para o comunicar a Diego. Encontrou-o a dormir por terra, apertado contra as mulheres, todos encolhidos de frio, porque a fogueira já se tinha apagado. Pareciam uma patética ninhada de cachorros.
- A assembleia aprovou que viajeis connosco até ao mar, desde que possais viver como os Rom e não violeis nenhum dos nossos tabus - notificou-os.
Os ciganos estavam mais pobres que nunca. Não tinham os seus carroções, queimados pelos soldados franceses no ano anterior, e as suas tendas haviam sido substituídas por outras mais esfarrapadas, mas tinham conseguido cavalos e possuíam forjas, caçarolas e um par de carroças para transportar os seus pertences. Haviam passado necessidades, mas estavam intactos; não faltava nem uma só das crianças. O único que parecia maltratado era Rodolfo, o gigante, que dantes levantava um cavalo nos braços e agora tinha traços de tuberculoso. Amália estava idêntica, mas Petrina convertera-se numa adolescente magnífica, que já não cabia numa talha de azeitonas, por muito que se dobrasse. Estava prometida em casamento a um primo afastado de outra tribo, que nunca tinha visto. A boda teria lugar no Verão, depois de a família do noivo pagar o darro, dinheiro para compensar a tribo pela perda de Petrina.
Juliana, Isabel e Nuria foram instaladas na tenda das mulheres. Ao princípio, a ama estava aterrorizada; julgava que os ciganos planeavam raptar as meninas De Romeu e vendê-las como concubinas aos mouros no Norte de África. Havia de passar uma semana antes de se atrever a perder as raparigas de vista e mais uma antes de dirigir a palavra a Amália, que estava encarregada de lhes ensinar os costumes, para evitar faltas de etiqueta. Esta deu-lhes saias largas, blusas decotadas e xailes com franjas do vestuário comum das mulheres, tudo velho e sujo, mas de cores vistosas e, em qualquer caso, mais cómodo e aconchegado que os saios de peregrino. Os Rom acreditavam que as mulheres são impuras da cintura até aos pés, de modo que mostrar as pernas era uma ofensa muito grave; tinham de lavar-se rio abaixo, longe dos homens, sobretudo nos dias em que eram menstruadas. Consideravam-nas inferiores aos homens, aos quais deviam submissão. Os furibundos protestos de Isabel não serviram de nada: fosse como fosse, teria de passar por trás dos homens, nunca pela frente, e não lhes podia tocar, porque isso os contaminaria. Amália explicou-lhes que estavam sempre rodeados de espíritos, que tinham de apaziguar com feitiços. A morte era um acontecimento antinatural, que aborrecia a vítima; por isso, havia que ter cuidado com a vingança dos defuntos. Rodolfo parecia doente, o que trazia o clã muito preocupado, sobretudo porque recentemente se ouvira o piar de corujas, augúrio de morte. Tinham enviado mensagens a familiares distantes, para que viessem despedir-se dele com o devido respeito antes da sua partida para o mundo dos espíritos. Se Rodolfo partisse com rancores ou de mau humor, podia voltar transformado em mulo. Para o que desse e viesse, haviam feito os preparativos para a cerimónia do funeral, apesar de o próprio Rodolfo fazer troça, convencido de que viveria vários anos mais. Amália ensinou-as a ler a sina na palma da mão, nas folhas do chá e em bolas de cristal, mas nenhuma das três gadjes demonstrou ter as condições de uma verdadeira drabardi. Em contrapartida, aprenderam o uso de certas ervas medicinais e a cozinhar à maneira dos Rom. Nuria incorporou nas receitas básicas da tribo - estufado de legumes, coelho, veado, javali, porco-espinho - os seus conhecimentos de comida catalã, com excelentes resultados. Os Rom repudiavam a crueldade com os animais; só os podiam matar por necessidade. Havia alguns cães no acampamento, mas nenhum gato, porque tinham reputação de impuros.
Entretanto, Diego teve de resignar-se a observar Juliana de longe, porque era de muito má educação aproximar-se das mulheres sem um propósito específico. Aproveitou o tempo, que já não empregava na contemplação da sua amada, para aprender a montar a cavalo como um verdadeiro Rom. Tinha sido criado a galopar nas vastas planícies da Alta Califórnia e orgulhava-se de ser um bom cavaleiro, até que pôde admirar as acrobacias de Pelayo e dos outros homens do clã. Em comparação, ele era um principiante. Ninguém no mundo sabia mais de cavalos do que aquela gente. Não só os criavam, treinavam e curavam se estavam doentes, como também eram capazes de comunicar com eles por palavras, como Bernardo fazia. Nenhum cigano usava chibata, porque bater num animal era considerado a pior das cobardias. Ao fim de uma semana, Diego conseguia escorregar para o solo em plena corrida, dar uma volta no ar e cair sentado ao contrário no dorso do seu corcel; era capaz de saltar de uma cavalgadura para outra e também de galopar de pé entre duas, com um pé em cada uma, seguro apenas pelas rédeas. Procurava fazer estas acrobacias na frente das mulheres ou, melhor dizendo, onde Juliana o pudesse ver, assim compensando um pouco a frustração de estarem separados. Vestia-se com a roupa de Pelayo, calção pelo joelho, botas altas, blusa de mangas largas, colete de pele, um pano na cabeça - que infelizmente lhe punha as orelhas em evidência - e um mosquete ao ombro. Parecia tão viril com as suas flamantes patilhas, com a sua pele dourada e os seus olhos cor de caramelo, que até a própria Juliana costumava admirá-lo de longe.
A tribo acampava por vários dias próximo de alguma povoação, onde os homens ofereciam os seus serviços na domesticação de cavalos ou em trabalhos de metal, enquanto as mulheres liam a sina e vendiam as suas poções e ervas curativas. Uma vez esgotada a clientela, seguiam viagem para a povoação seguinte. À noite comiam em redor do fogo, depois contavam-se sempre histórias e havia música e dança. Nos momentos de descanso, Pelayo acendia a forja e trabalhava na fabricação de uma espada, que prometera a Diego, uma arma muito especial, melhor que qualquer sabre toledano, conforme disse, feita com uma combinação de metais cujo segredo tinha mil e quinhentos anos de história e provinha da índia.
- Antigamente, as armas dos heróis temperavam-se atravessando o corpo de um prisioneiro ou um escravo com a folha ao rubro, acabada de sair da forja - comentou Pelayo.
- Contento-me com que temperemos a minha no rio - retorquiu Diego. - É o presente mais belo que alguma vez recebi. Chamar-lhe-ei Justina, porque estará sempre ao serviço de causas justas.
Diego e as suas amigas viveram e viajaram em companhia dos Rom até Fevereiro. Tiveram dois breves encontros com guardas, que não perdiam ocasião de fazer valer a sua autoridade e incomodar os ciganos, mas não se deram conta de que havia estranhos entre a gente da tribo. Diego deduziu que ninguém os procurava tão longe de Barcelona; a sua ideia de fugir em direcção ao Atlântico não tinha sido tão absurda como ao princípio parecia. Passaram a maior parte do Inverno protegidos do clima e dos perigos do caminho no seio da tribo, que os acolheu como nunca tinha feito a nenhum gadje. Diego não teve de defender as raparigas dos homens, porque a possibilidade de desposar uma estrangeira não lhes passava pela cabeça. Tão-pouco pareciam impressionados com a beleza de Juliana; em contrapartida, chamava-lhes a atenção que Isabel praticasse esgrima e se esmerasse em aprender a montar a cavalo como os homens. Durante aquelas semanas, os nossos amigos percorreram o que lhes faltava do País Basco e da Galiza, até que por fim se acharam às portas de La Coruna. Por uma ânsia sentimental, Nuria pediu que lhe permitissem ir a Compostela ver a catedral e prostrar-se diante do túmulo de Santiago. Acabara por se tornar amiga do apóstolo, após entender o seu tortuoso sentido de humor. A tribo inteira acompanhou-a.
A cidade, com as suas acanhadas vielas e passagens, casas antigas, lojas de artesanato, estalagens, casas de pasto, tabernas, praças e paróquias, estendia-se em camadas concêntricas em torno do sepulcro, um dos eixos espirituais da cristandade. Era um dia claro, de céu limpo, com um frio revigorante. A catedral apareceu diante deles em todo o seu milenar esplendor, deslumbrante e soberba, com os seus arcos e espigadas torres.
Os Rom alvoroçaram a paz proclamando em altos gritos as suas bugigangas, os seus métodos de adivinhação e as suas poções para curar males e ressuscitar mortos. Entretanto, Diego e as suas amigas, como todos os viajantes que chegavam a Compostela, ajoelharam diante do pórtico central da basílica e puseram as mãos na base da pedra. Tinham cumprido a sua peregrinação, era o fim de um longo caminho. Agradeceram ao apóstolo por os ter protegido e pediram-lhe que não os abandonasse ainda, que os ajudasse a atravessar o mar a salvo. Não tinham terminado de formular estas palavras, quando Diego se deu conta de que, a escassos passos de distância, se encontrava um homem de joelhos, rezando com exagerado fervor. Estava de perfil, apenas iluminado pelos reflexos multicores dos vitrais, mas reconheceu-o de imediato, apesar de não o ver havia cinco anos. Era Galileo Tempesta. Esperou que o marinheiro terminasse de bater no peito e se persignasse para se aproximar. Tempesta voltou-se admirado, ao ver-se abordado por um cigano de grandes patilhas e bigodes.
- Sou eu, senhor Tempesta, Diego de La Vega...
- Porca miséria! Diego! - exclamou o cozinheiro e, com os seus músculos de pedra, levantou-o um palmo do solo num efusivo abraço.
- Chiu! Mais respeito, estais na catedral - increpou-os um frade.
Saíram para o ar livre, eufóricos, dando palmadas nas costas um ao outro, sem acreditarem na sorte de se terem encontrado, embora aquele acaso fosse perfeitamente explicável. Galileo Tempesta continuava a trabalhar como cozinheiro no Madre de Dios e o navio estava fundeado em La Coruma a carregar armas, a fim de as levar para o México. Tempesta tinha aproveitado aqueles dias de licença em terra para visitar o santo e pedir-lhe que o curasse de um mal impronunciável. Em sussurros confessou que contraíra uma doença vergonhosa nas Caraíbas, castigo divino pelos seus pecados, sobretudo a machadada que pregara à sua infeliz esposa anos atrás, um lamentável repente, é certo, embora ela o merecesse. Só um milagre o podia salvar, acrescentou.
- Não sei se o apóstolo se dedica a esse tipo de milagres, senhor Tempesta, mas lembrei-me que Amália poderia ajudar-vos.
- Quem é Amália?
- Uma drabardi. Nasceu com o dom de ler o destino alheio e curar doenças. Os remédios dela são muito eficientes.
- Bendito seja Santiago, que a pôs no meu caminho! Vedes como se operam os milagres, jovem De La Vega?
- A propósito de Santiago, que é feito do comandante Santiago de León? - perguntou Diego.
- Continua no comando do Madre de Dios e está mais excêntrico que nunca, mas vai ficar muito satisfeito ao saber de vós.
- Talvez não, porque agora sou um fugitivo da lei...
- Por maioria de razão, nesse caso. Para que são os amigos se não for para dar uma mão quando a sorte falha? - interrompeu-o o cozinheiro.
Diego levou-o a uma esquina da praça, onde várias ciganas vendiam profecias, e apresentou-o a Amália, que ouviu a sua confissão e aceitou tratar-lhe o mal por um preço bastante elevado. Dois dias mais tarde, Galileo Tempesta combinou um encontro entre Diego e Santiago de León numa taberna de La Coruna. Mal o comandante se convenceu de que aquele cigano era o moço que transportara no seu navio em 1810, dispôs-se a escutar a sua história completa. Diego fez-lhe um resumo dos seus anos em Barcelona e falou-lhe de Juliana e Isabel de Romeu.
- Existe uma ordem de prisão contra essas pobres raparigas. Se fossem apanhadas, acabariam na prisão ou deportadas para as colónias.
- Que malfeitoria podem ter cometido essas pequenas?
- Nenhuma. São vítimas de um vilão despeitado. Antes de morrer, o pai das meninas, Dom Tomás de Romeu, pediu-me que as levasse para a Califórnia e as pusesse sob a protecção do meu pai, Dom Alejandro de La Vega. O senhor pode ajudar-nos a chegar à América, comandante?
- Eu trabalho para o Governo de Espanha, jovem De La Vega. Não posso transportar fugitivos.
- Sei que já o fez doutras vezes, comandante...
- Que está a insinuar, senhor?
Como única resposta, Diego abriu a camisa e mostrou-lhe o medalhão de La Justicia, que trazia sempre ao pescoço. Santiago de León observou a jóia por uns segundos e, pela primeira vez, Diego viu-o sorrir. O seu rosto de ave taciturna mudou por completo e o seu tom suavizou-se ao reconhecer um companheiro. Embora a sociedade secreta estivesse temporariamente inactiva, ambos estavam tão presos como antes ao juramento de proteger os perseguidos. De León explicou que o seu navio devia partir dentro de uns dias. O Inverno não era a melhor estação para atravessar o oceano, mas pior era o Verão, quando se desencadeavam os furacões. Tinha de transportar com urgência o seu carregamento de armas para combater a insurreição no México - trinta canhões desarmados, mil mosquetes, um milhão de munições de chumbo e pólvora. De León lamentava que a sua profissão e as necessidades económicas o obrigassem a isso, porque considerava legítima a luta de todos os povos pela independência. Espanha, decidida a recuperar as suas colónias, enviara dez mil homens para a América. As forças realistas tinham reconquistado a Venezuela e o Chile numa luta cruenta, de muito sangue e atrocidades. A insurreição mexicana fora também sufocada. «Se não fosse por causa da minha leal tripulação, que está há muitos anos comigo e precisa deste trabalho, deixaria o mar para me dedicar exclusivamente aos meus mapas», explicou o comandante. Acordaram que Diego e as mulheres subiriam a bordo a coberto das sombras e permaneceriam escondidos no navio até se encontrarem no mar alto. Ninguém, excepto o comandante e Galileo Tempesta, conheceria a identidade dos passageiros. Diego agradeceu-lhe comovido, mas o comandante replicou que apenas cumpria a sua obrigação. Qualquer membro de La Justicia faria o mesmo no seu lugar. A semana passou-se em preparativos para a viagem. Tiveram de descoser os saiotes para tirar os dobrões de ouro, porque desejavam deixar qualquer coisa aos Rom, que tão bem os tinham acolhido, e precisavam de comprar roupa adequada e outras coisas indispensáveis para a viagem. O punhado de pedras preciosas foi cosido de novo nas dobras da roupa interior. Tal como o banqueiro lhes tinha indicado, não havia melhor maneira de transportar dinheiro em tempos de dificuldade. As raparigas escolheram vestidos práticos e simples, adequados à vida que as esperava, todos pretos, porque podiam finalmente guardar luto pelo pai. Não havia muito para escolher nas modestas lojas dos arredores, mas conseguiram algumas peças de roupa e acessórios num barco inglês ancorado no porto. Por seu lado, Nuria, que se havia afeiçoado aos trapos de cores durante a sua estada com os ciganos, também tinha de usar preto, pelo menos durante um ano, em memória do seu falecido amo.
Diego e as suas amigas despediram-se da tribo Rom com pesar, mas sem expressões sentimentais, que teriam sido mal recebidas entre aquela gente endurecida pelo hábito de sofrer. Pelayo entregou a Diego a espada que forjara para ele, uma arma perfeita, forte, flexível e leve, tão bem equilibrada que se podia lançá-la ao ar com uma pirueta e apanhá-la pelo punho sem o menor esforço. No último momento, Amália tentou devolver a Juliana a tiara de pérolas, mas esta recusou-se a recebê-la, pretextando que desejava deixar-lhe uma recordação. «Eu não preciso disto para me recordar de vós», respondeu a cigana com um gesto quase depreciativo; entretanto guardou-a.
Embarcaram durante uma noite, em princípios de Março, umas horas depois de os guardas do porto subirem a bordo para inspeccionar a carga e autorizar o comandante a levantar ferro. Galileo Tempesta e Santiago de León conduziram os seus protegidos aos camarotes que lhes tinham destinado. O navio fora remodelado um par de anos antes e estava em melhores condições do que na primeira viagem de Diego; agora contava com espaço para quatro passageiros, em cubículos individuais a cada um dos lados da câmara de oficiais, à popa. Cada um tinha uma cama de madeira pendurada com cabos, uma mesa, uma cadeira, um baú e um pequeno armário para a roupa. Aquelas celas não eram cómodas, mas ofereciam privacidade, o maior luxo num navio. As três mulheres encerraram-se nos seus camarotes durante as primeiras vinte e quatro horas de navegação, sem meter nada no estômago, verdes de enjoo, convencidas de que não sobreviveriam ao horror da agitação da água durante semanas. Mal deixaram atrás a costa de Espanha, o comandante autorizou os passageiros a saírem, mas ordenou às raparigas que se mantivessem a uma distância discreta dos marinheiros, para evitar problemas. Não deu explicações aos tripulantes e estes não se atreveram a pedi-las, mas nas suas costas murmuravam que não era boa ideia trazer mulheres a bordo.
Ao segundo dia, as meninas De Romeu e Nuria ressuscitaram leves e sem náuseas, com o som surdo dos pés descalços dos marinheiros a render os quartos e o aroma de café. Por essa altura já se tinham habituado ao sino, que repicava todas as meias horas. Lavaram-se com água do mar e tiraram o sal com um pano molhado em água doce, após o que se vestiram e saíram a cambalear dos respectivos camarotes. Na câmara de oficiais havia uma mesa rectangular com oito cadeiras, onde Galileo Tempesta tinha posto o pequeno-almoço. O café adoçado com melaço e fortalecido com um cheirinho de rum devolveu-lhes a alma ao corpo. A aveia aromatizada com canela e cravo-aromático foi servida com um exótico mel americano, gentileza do comandante. Pela porta entreaberta viram Santiago de León e os seus dois jovens oficiais na mesa de trabalho, a verificarem as listas dos quartos e o inventário dos mantimentos, lenha e água, que tinham de ser distribuídos com prudência até ao próximo porto de abastecimento. Na parede havia uma agulha magnética que indicava o rumo do navio e um barómetro de mercúrio. Sobre a mesa, numa bela caixa de acaju, estava o cronometro, de que Santiago cuidava como uma relíquia. Cumprimentou com um lacónico bom-dia, sem manifestar surpresa ante a palidez mortal dos seus hóspedes. Isabel perguntou por Diego e ele indicou-lhe o convés com um gesto vago.
- Se nestes anos o jovem De La Vega não mudou, deve estar encarrapitado no mastro grande ou sentado na figura de proa. Não me parece que se aborreça, mas para vós esta travessia será muito longa - disse.
Não foi, contudo, assim: não tardou que cada uma encontrasse uma ocupação. Juliana dedicou-se a bordar e ler um a um os livros do comandante. Ao princípio pareceram-lhe aborrecidos, mas depois introduziu heróis e heroínas; assim, as guerras, revoluções e tratados filosóficos adquiriram um apropriado carácter romântico. Era livre de inventar amores ardentes e contrariados, além disso, podia decidir o final. Preferia os finais trágicos, porque se chora mais. Isabel constituiu-se ajudante do comandante para o traçado dos mapas fantásticos; uma vez provada a sua habilidade para o desenho, pediu licença para retratar a tripulação. O comandante acabou por lhe dar autorização e, assim, ela ganhou o respeito dos marinheiros. Estudou os mistérios da navegação, desde o uso do sextante até à forma de identificar as correntes submarinas pelas mudanças de cor da água ou pelo comportamento dos peixes. Entreteve-se a desenhar as tarefas de bordo, que eram muitas: calafetar rachas da madeira com fibra de carvalho e alcatrão, bombear a água que se juntava no porão, reparar velas, remendar cabos partidos, lubrificar mastros com gordura rançosa da cozinha, pintar, raspar e lavar conveses. Os tripulantes passavam o tempo a trabalhar; só ao domingo a rotina se relaxava, aproveitando para pescar, talhar figuras em pedaços de madeira, cortar o cabelo, remendar a roupa e fazer tatuagens ou catar os piolhos uns aos outros. Cheiravam que fediam, porque raras vezes mudavam de roupa e consideravam que o banho era perigoso para a saúde. Não conseguiam entender que o comandante o fizesse uma vez por semana e muito menos entendiam a mania dos quatro passageiros de se lavarem todos os dias. No Madre de Dios não imperava a disciplina cruel dos navios de guerra; Santiago de León fazia-se respeitar sem recorrer a castigos brutais. Permitia jogos de cartas e dados, proibidos noutros navios, contanto que não se apostasse a dinheiro; nunca se atrasava a pagar aos homens e quando atracavam num porto organizava turnos para que todos pudessem desembarcar, a fim de se divertirem. Embora houvesse um chicote de nove rabos num saco vermelho pendurado num lugar visível, nunca fora usado. Quando muito, condenava os infractores a uns dias sem álcool.
Nuria impôs a sua presença na cozinha, porque, na sua opinião, os pratos de Galileo Tempesta deixavam bastante a desejar. As suas inovações culinárias, preparadas com os limitados ingredientes de sempre, foram festejadas por todos, desde o comandante até ao último grumete. A ama habituou-se rapidamente ao cheiro nauseabundo das provisões, sobretudo dos queijos e da carne salgada, a cozinhar com água turva e aos peixes que Galileo Tempesta colocava sobre os sacos de bolachas para combater o gorgulho. Quando estes se enchiam de bicho, substituíam-se por outros, assim se mantendo as bolachas mais ou menos limpas.
Aprendeu a ordenhar as cabras que levavam a bordo. Não eram os únicos animais; havia também galinhas, patos e gansos em gaiolas e uma porca com as suas crias num curral, além das mascotes dos marinheiros - macacos e papagaios - e os indispensáveis gatos, sem os quais os ratos seriam amos e senhores da embarcação. Nuria descobriu a forma de multiplicar as possibilidades do leite e dos ovos, de maneira que havia diariamente sobremesa. Galileo Tempesta era homem de mau carácter e melindrou-se com a invasão de Nuria no seu território, mas ela encontrou a forma mais simples de resolver o problema. Da primeira vez que Tempesta lhe levantou a voz, ela aplicou-lhe um golpe seco na testa com o colherão e continuou a mexer o estufado sem se perturbar. Seis horas mais tarde, o genovês propôs-lhe que se casassem. Confessou-lhe que os remédios de Amália começavam a dar bom resultado e que juntara novecentos dólares americanos, o suficiente para montar um restaurante em Cuba e viverem como reis. Havia onze anos que esperava a mulher adequada, disse, e não lhe importava que ela fosse um pouco mais velha que ele. Nuria não se dignou responder-lhe.
Vários marinheiros que estavam no navio durante a primeira viagem de Diego não o reconheceram até ele lhes ganhar punhados de grãos-de-bico a jogar às cartas. O tempo dos navegantes tem as suas próprias leis - os anos passam sem marcar a lisa superfície do céu e do mar -, pelo que não os surpreendeu que o rapaz imberbe, que ainda ontem os assustava com histórias de mortos-vivos, fosse hoje um homem. Que fora feito desses cinco anos? Confortava-os o facto de, apesar de ele ter mudado e crescido, continuar a desfrutar da sua companhia. Diego passava uma boa parte do dia a trabalhar com eles nas manobras do navio, sobretudo das velas, que o fascinavam. Só ao entardecer desaparecia brevemente no seu camarote para se lavar e vestir de cavalheiro, a fim de comparecer diante de Juliana.
Os marinheiros deram-se conta, desde o primeiro dia, de que ele estava apaixonado pela jovem e, embora às vezes brincassem com ele, observavam aquela devoção com um misto de nostalgia pelo que nunca teriam e de curiosidade pelo desenlace. Juliana parecia-lhes tão irreal como as mitológicas sereias. Aquela pele imaculada, aqueles olhos translúcidos, aquela graça etérea não podiam ser deste mundo.
Impulsionado pelas correntes oceânicas e pelos ditames do vento, o Madre de Dios dirigiu-se para sul bordejando África, passou frente às ilhas Canárias sem parar e chegou a Cabo Verde para se abastecer de água e alimentos frescos, antes de iniciar a travessia do Atlântico, que podia durar mais de três semanas, dependendo do vento. Ali souberam que Napoleão tinha fugido do seu exílio na ilha de Elba e entrara triunfalmente em França, onde as tropas, enviadas para lhe barrar o caminho até Paris, se haviam passado para o seu lado. Recuperara o poder sem disparar um único tiro, enquanto a corte do rei Luís XVIII se refugiava em Gant, e dispunha-se a reiniciar a conquista da Europa. Em Cabo Verde, os viajantes foram recebidos pelas autoridades, que ofereceram um baile em honra das filhas do comandante, como as meninas De Romeu foram apresentadas. Santiago de León pensou que assim afastavam suspeitas, caso a ordem de as deter tivesse chegado até ali. Muitos funcionários administrativos eram casados com belas mulheres africanas, altas e orgulhosas, que se apresentaram na festa vestidas com um luxo espectacular. Em comparação, Isabel assemelhava-se a um cão lãzudo e até a própria Juliana parecia quase insignificante. Essa primeira impressão mudou por completo quando Juliana, pressionada por Diego, aceitou tocar harpa. Havia uma orquestra completa, mas, mal ela feriu as cordas, fez-se um silêncio no grande salão. Um par de baladas antigas bastou-lhe para seduzir todos os presentes. Durante o resto do serão, Diego teve de se pôr em fila com os restantes cavalheiros para dançar com ela.
Pouco depois, o Madre de Dios desfraldou as velas, deixando para trás a ilha. Nessa altura apareceram dois marinheiros com um volume embrulhado numa lona e depositaram-no na câmara de oficiais: oferta do comandante Santiago de León a Juliana. «Para que amanseis o vento e as ondas», disse, arredando o pano com ar galante. Era uma harpa italiana talhada em forma de cisne. A partir de então, todas as tardes transportavam a harpa para o convés e ela fazia chorar os homens com as suas melodias. Tinha bom ouvido e era capaz de interpretar qualquer canção que eles trauteassem. Não tardou que aparecessem guitarras, harmónicas, flautas e improvisados tambores para a acompanhar. O comandante, que escondia um violino no camarote para se consolar em segredo durante as longas noites em que o láudano não conseguia atenuar a dor da sua perna doente, juntou-se ao grupo e o navio encheu-se de música.
Estavam no meio de um desses concertos, quando a brisa do mar arrastou uma fetidez tão nauseabunda que se tornava impossível ignorá-la. Momentos depois, vislumbraram ao longe a silhueta de um veleiro. O comandante recorreu ao óculo para confirmar o que já sabia: era um barco de escravos. Entre os traficantes havia duas tendências: fardos pretos e fardos frouxos. Os primeiros amontoavam os seus prisioneiros como troncos, na maior promiscuidade, uns por cima dos outros, amarrados com correntes, mergulhados nos seus próprios excrementos e vomitado, os sãos misturados com doentes, moribundos e cadáveres. Metade morria no mar alto e os sobreviventes eram «engordados» no porto de chegada e a sua venda compensava as perdas; só os mais fortes chegavam ao destino e obtinha-se por eles um bom preço. Os negreiros de fardo frouxo carregavam menos escravos em condições um tanto ou quanto mais suportáveis, para não perderem demasiados durante a travessia. - Aquele barco deve ser de fardo preto; é por isso que se lhe sente o cheiro a várias léguas - disse o comandante.
- Temos de ajudar essa pobre gente, comandante! - exclamou Diego, horrorizado.
- Receio bem que neste caso La Justicia não possa fazer nada, meu amigo.
- Estamos armados, temos quarenta tripulantes, podemos atacar aquele navio e libertá-los.
- O tráfico é ilegal, aquele carregamento é contrabando. Se nos aproximarmos, atiram os escravos condenados ao mar, para que se afoguem de imediato. E, mesmo que pudéssemos libertá-los, não teriam para onde ir. Foram apresados no seu próprio país por traficantes africanos. Os negros vendem outros negros, não sabia?
Nessas semanas de navegação Diego recuperou terreno na conquista de Juliana, perdido durante a estada com os ciganos, na qual tiveram de se manter separados, sem nunca gozar de privacidade. Assim era também no navio, mas não faltavam pôres do Sol e outras novidades em que assomavam a ver o mar, como os apaixonados vêm fazendo desde tempos imemoriais. Nessa altura, Diego atrevia-se a pôr um braço nos ombros ou na cintura da bela, com muita delicadeza, para não a afugentar. Costumava ler-lhe em voz alta poesias de amor de outros autores, porque as suas eram tão medíocres que até ele próprio se envergonhava. Tivera a prudência de comprar em La Coruna, antes de embarcar, um par de livros que lhe foram de grande utilidade. As doces metáforas amoleciam Juliana, preparando-a para o instante em que ele lhe tomava a mão e a retinha entre as suas. Nada mais, infelizmente. Beijos, nem pensar, não por falta de iniciativa do nosso herói, mas sim porque Isabel, Nuria, o comandante e quarenta marinheiros não lhes tiravam a vista de cima. Além disso, ela não propiciava encontros atrás de alguma porta entreaberta, em parte porque não havia muitas portas a bordo e também porque não estava segura dos seus sentimentos, apesar de ter convivido com Diego durante meses e de não haver outros pretendentes no horizonte. Tinha-o explicado à irmã nas conversas confidenciais que costumavam ter à noite. Isabel guardava a sua opinião para si, visto que qualquer coisa que pudesse dizer podia inclinar a balança do amor em favor de Diego. Isso não lhe convinha. À sua maneira, Isabel amava o jovem desde os onze anos, mas isso não vem ao caso, visto que ele nunca o suspeitou. Diego continuava a considerar Isabel uma fedelha com quatro cotovelos e cabelo para duas cabeças, apesar de o aspecto dela ter melhorado alguma coisa com os anos; tinha quinze e não era tão feia como aos onze.
Em várias ocasiões viram à distância outros navios, que o comandante teve a prudência de evitar, porque havia muitos inimigos no mar alto, desde corsários até velozes bergantins americanos dispostos a apoderar-se do carregamento de armas. Os Americanos precisavam de cada espingarda a que pudessem deitar a mão para a guerra contra a Inglaterra. Santiago de León não prestava demasiada atenção à bandeira arvorada no mastro, porque costumavam trocá-la para enganar os incautos, mas averiguava a procedência por outros indícios; gabava-se de conhecer todos os navios que usavam aquela rota.
Várias borrascas invernais sacudiram o Madre de Dios durante essas semanas, mas nunca chegaram de surpresa, porque o comandante era capaz de as captar no ar antes de serem anunciadas pelo barómetro. Dava ordem de colher as velas, pear o necessário e fechar os animais. Em poucos minutos, a tripulação estava preparada e, quando o vento começava a soprar e o mar a encrespar-se, estava tudo bem seguro a bordo. As mulheres tinham instruções para se fecharem nos seus camarotes, a fim de não se molharem e para evitar acidentes. As ondas passavam por cima dos conveses, arrastando tudo quanto se encontrava no seu caminho; era fácil perder o pé e acabar no fundo do Atlântico. Depois do temporal, o navio ficava limpo, fresco, a cheirar a madeira, o céu e o mar limpavam e o horizonte dir-se-ia de prata pura. Subiam à superfície peixes diversos e não era um nem dois que terminavam fritos nas frigideiras de Galileo e Nuria. O comandante tomava as suas medidas para corrigir o rumo, enquanto a tripulação reparava os escassos estragos e se reintegrava nas suas rotinas quotidianas. A chuva, recolhida em lonas estendidas e despejada em barris, permitia-lhes o luxo de tomarem banho com sabão, o que era impossível com água salgada.
Chegaram, por fim, às águas das Caraíbas. Viram grandes tartarugas, peixes-espada, medusas translúcidas de longos tentáculos e polvos gigantes. O clima parecia benigno, mas o comandante estava nervoso. Sentia a mudança da pressão na perna. As breves borrascas anteriores não prepararam Diego e as suas amigas para uma verdadeira tempestade. Aprontavam-se para aproar a Porto Rico e dali à Jamaica, quando o comandante lhes comunicou que se ia abater sobre eles um desafio maior. O céu estava claro e o mar calmo, mas em menos de meia hora isso mudou; densas nuvens negras escureceram a luz do Sol, o ar tornou-se pegajoso e começou a chover a cântaros. Não tardou que os primeiros relâmpagos cruzassem o firmamento e se levantassem ondas enormes, coroadas de espuma. As madeiras rangiam e os mastros pareciam prestes a ser arrancados pela raiz. Os homens mal tiveram tempo de colher as velas. O comandante e os homens do leme tentavam controlar o navio com várias mãos. Entre eles havia um robusto negro de Santo Domingo, curtido por vinte anos de navegação, que lutava com o leme sem deixar de mastigar o seu tabaco, indiferente aos baldes de água que o cegavam. O navio baloiçava na crista de ondas descomunais e minutos depois precipitava-se no fundo de um abismo líquido. Com um balanço, abriu-se um curral e uma das cabras saiu voando pelos ares como um papagaio de papel, perdendo-se no céu. Os marinheiros seguravam-se como podiam para manobrar o barco; uma escorregadela significava morte certa. As três mulheres tremiam nos seus camarotes, doentes de medo e enjoo. Até o próprio Diego, que se prezava de ter um estômago de ferro, vomitou, mas não era o único: vários membros da tripulação acabaram na mesma. Pensou que só a arrogância humana se atreve a desafiar os elementos; o Madre de Dios era uma casca de noz, podendo partir-se a qualquer momento.
O comandante deu ordens para se pear a carga, porque a sua perda significaria a ruína económica. Aguentaram a tempestade durante dois dias completos, e quando finalmente parecia que começava a amainar, um relâmpago atingiu o mastro grande. O impacte sentiu-se como uma chicotada no navio. O comprido e pesado mastro, ferido ao meio, oscilou durante uns minutos, eternos para a atemorizada tripulação, até que, por fim, se quebrou, caindo com o seu velame e o seu emaranhado de cabos ao mar, arrastando consigo dois marinheiros, que não conseguiram pôr-se a salvo. O navio inclinou-se com o puxão e ficou de lado, prestes a soçobrar. O comandante correu gritando ordens. De imediato, vários homens se precipitaram com machados para cortar os cabos que prendiam o mastro quebrado ao navio, tarefa muito difícil, porque o pavimento estava inclinado e escorregadio, o vento açoitava-os, a chuva cegava-os e as ondas varriam o convés. Ao cabo de um bom pedaço conseguiram soltar o mastro, que se afastou flutuando, enquanto o navio se endireitava, cambaleando. Não havia esperança alguma de socorrer os homens caídos ao mar, que desapareceram engolidos pelo negro oceano.
Por fim, o vento e as ondas acalmaram um pouco, mas a chuva e os relâmpagos continuaram durante o resto dessa noite. Ao amanhecer, quando a luz voltou, puderam fazer um inventário dos estragos.
À parte os marinheiros afogados, havia outros com contusões e cortes. Galileo Tempesta partira um braço ao escorregar, mas, como o osso não aparecia por baixo da pele, o comandante não achou necessário amputá-lo. Deu-lhe uma ração dupla de rum e, com a ajuda de Nuria, colocou os ossos no lugar e pôs-lhe talas no braço. A tripulação dedicou-se a bombear a água acumulada no porão e a redistribuir a carga, enquanto o comandante percorria a embarcação de ponta a ponta para avaliar a situação. O navio estava tão avariado que se tornava impossível repará-lo no mar alto. Como a tempestade os desviara da rota, afastando-os de Porto Rico para norte, o comandante decidiu que, com os dois mastros e as velas que restavam, podiam chegar a Cuba.
Os dias seguintes passaram-se a navegar lentamente sem o mastro grande e fazendo água por vários rombos. Aqueles bravos marinheiros haviam passado por situações semelhantes sem perderem o ânimo, mas quando correu a voz de que as mulheres tinham atraído a desgraça, começaram a murmurar. O comandante fez-lhes uma prelecção e conseguiu impedir um motim, apesar de o descontentamento não diminuir. Nenhum deles voltou a pensar em concertos de harpa; recusavam-se a provar a comida de Nuria e desviavam a vista quando as passageiras apareciam no convés para se refrescarem. De noite, o navio quase não avançava em direcção a Cuba por águas perigosas. Não tardou que vissem tubarões, golfinhos azuis e grandes tartarugas, e também gaivotas, pelicanos e peixes-voadores no ar, que caíam como pedregulhos no convés, prontos para serem cozinhados por Tempesta. A brisa morna e um aroma remoto de fruta madura anunciaram-lhes a proximidade de terra.
Ao amanhecer, Diego saiu do seu camarote para tomar ar. O céu começava a clarear em tons alaranjados e uma bruma ténue como um véu matizava o contorno das coisas.
As luzes dos faróis acesos apareciam esfumadas na neblina. Navegavam entre dois ilhéus cobertos de mangais. O barco baloiçava com suavidade na ondulação e, à parte os eternos rangidos das madeiras, reinava o silêncio. Diego estendeu os braços, respirou fundo para espertar e endereçou um cumprimento com a mão ao homem do leme, que se dirigia ao seu posto, após o que desatou a correr, como fazia todas as manhãs para soltar os músculos entorpecidos. A cama ficava-lhe curta e dormia encolhido; várias voltas a trote no convés serviam-lhe para desanuviar a mente e pôr o corpo em acção. Ao chegar à proa assomou para dar uma palmada na cabeça da figura de proa, breve rito diário que observava com supersticiosa pontualidade. E nessa altura viu um vulto na bruma. Pareceu-lhe que podia ser um veleiro, embora não tivesse a certeza. Em qualquer caso, como se encontrava perto, preferiu avisar o comandante. Momentos mais tarde, Santiago de León saía do seu camarote a abotoar as calças, de óculo na mão. Bastou-lhe uma olhadela para dar o alarme e tocar o sino para chamar a tripulação, mas já era tarde: os piratas estavam a trepar pelos costados do Madre de Dios.
Diego viu os arpéus de ferro que usavam para o assalto, mas não havia tempo para tentar soltar os cabos. Precipitou-se para os camarotes da popa, advertindo aos gritos Juliana, Isabel e Nuria de que não saíssem por nenhum motivo, pegou na espada que Pelayo tinha feito e dispôs-se a defendê-las. Os primeiros assaltantes, com punhais entre os dentes, alcançaram o convés. Os tripulantes do Madre de Dios saíram como ratos de todo o lado, armados com o que encontraram, enquanto o comandante ladrava ordens inúteis, porque num instante se armou uma barulheira infernal e ninguém o ouvia. Diego e o comandante batiam-se lado a lado contra meia dúzia de atacantes, seres patibulares, marcados por horrendas cicatrizes, peludos, com adagas até nas botas, duas ou três pistolas à cinta e sabres curtos. Rugiam como tigres, mas lutavam com mais barulho e coragem do que técnica. Nenhum deles podia fazer frente a Diego sozinho, mas entre vários encurralaram-no. O jovem conseguiu romper o cerco e ferir um par deles, após o que deu um salto e se agarrou à vela da mezena, trepou pelos enfrechates e agarrou num cabo, que lhe permitiu baloiçar-se e atravessar o convés, tudo isto sem perder de vista os camarotes das mulheres. Só restava esperar que não ocorresse a nenhuma deitar o nariz de fora. Balançando-se no cabo, deu um impulso e caiu com um salto formidável mesmo em frente de um homem, que o esperava tranquilo, de sabre na mão. Contrariamente aos restantes, que eram um bando de andrajosos desalmados, este vestia como um príncipe, todo de preto, com uma faixa de seda amarela à cintura, colarinho e punhos de renda, finas botas altas com fivelas de ouro, fio do mesmo metal ao pescoço e anéis nos dedos. Tinha bom porte, cabelo comprido e lustroso, o rosto barbeado, expressivos olhos negros e um sorriso zombeteiro que lhe bailava nos lábios finos, de dentes alvos. Diego conseguiu apreciá-lo num rápido olhar e não se deteve a averiguar a sua identidade; supôs que deveria ser o chefe dos piratas, pela sua indumentária e atitude. O esmerado sujeito cumprimentou em francês e lançou a sua primeira estocada, que Diego conseguiu evitar por uma unha negra. Os aços cruzaram-se e daí a três ou quatro minutos ambos compreenderam que eram talhados no mesmo molde, feitos um para o outro. Ambos eram excelentes esgrimistas. Apesar das circunstâncias, sentiram o secreto prazer de se baterem com um rival à altura e, sem o combinarem, decidiram que o opositor merecia um combate limpo, ainda que de morte. O duelo parecia quase uma exibição artística; teria enchido de orgulho o mestre Manuel Escalante.
A bordo do Madre de Dios cada um lutava por si mesmo. Santiago de León lançou um olhar em redor e avaliou a situação num instante.
Os piratas eram duas ou três vezes mais numerosos, estavam bem armados, sabiam lutar e tinham-nos apanhado de surpresa. Os seus homens eram pacíficos marinheiros mercantes, vários deles já tinham cabelos brancos e sonhavam retirar-se do mar e constituir família; não era justo que perdessem a vida defendendo uma carga alheia. Com um esforço brutal conseguiu libertar-se dos seus atacantes e em dois saltos alcançou o sino para tocar à rendição. A tripulação obedeceu e depôs as armas, no meio da gritaria de triunfo dos assaltantes. Só Diego e o seu elegante adversário ignoraram o sino e continuaram a bater-se durante uns minutos, até que o primeiro conseguiu desarmar o segundo com um revés. A vitória de Diego foi de muito curta duração, porque logo se encontrou num círculo de sabres que lhe arranhavam a pele.
- Deixai-o, mas não mo percais de vista! Quero-o com vida - ordenou o seu rival, após o que cumprimentou Santiago de León em perfeito castelhano. - Jean Laffite, às suas ordens, comandante.
- Já o temia, senhor. Não podia ser outro senão o pirata Laffite - retorquiu De León, enxugando o suor da fronte.
- Pirata não, comandante. Disponho de patente de corsário de Cartagena da Colômbia.
- Para o caso é a mesma coisa. Que podemos esperar de si?
- Podeis esperar um tratamento justo. Não matamos, a menos que seja inevitável, porque nos convém a todos um arranjo comercial. Proponho que nos entendamos como cavalheiros. O seu nome, por favor.
- Santiago de León, marinheiro mercante.
- Só me interessa a sua carga, comandante De León, que, se estou bem informado, são armas e munições.
- Que acontecerá à minha tripulação?
- Poderão dispor dos seus botes. Com bom vento chegareis às Baamas ou a Cuba num par de dias, é tudo uma questão de sorte. Há alguma coisa a bordo que me possa interessar, à parte as armas?
- Livros e mapas... - respondeu Santiago de León.
Foi esse o momento que Isabel escolheu para sair do seu camarote em camisa de dormir, descalça e com a pistola do pai na mão. Mantivera-se encerrada, obedecendo à ordem de Diego, até que cessara o alvoroço da luta e o barulho dos tiros; nessa altura não aguentara mais a ansiedade e saíra para averiguar como terminara a batalha.
- Par dieu! Uma formosa dama... - exclamou Laffíte ao vê-la.
Isabel teve um sobressalto de surpresa e baixou a arma; era a primeira vez que alguém usava aquele adjectivo para a descrever. Laffíte aproximou-se a um passo de distância, cumprimentou-a com uma reverência, estendeu a mão e ela entregou-lhe a pistola sem protestar.
- Isto complica um pouco as coisas... Quantos passageiros há a bordo? - perguntou Laffíte ao comandante.
- Duas meninas e a sua ama, que viajam com Dom Diego de La Vega.
- Muito interessante.
Os dois comandantes fecharam-se a discutir a rendição, enquanto no convés um par de piratas mantinha Diego em respeito, assestando as pistolas sobre ele, e os restantes tomavam posse do navio. Ordenaram aos vencidos que se deitassem de barriga para baixo com as mãos na nuca, percorreram o barco à procura do saque, confortaram os feridos com rum, em seguida lançaram os mortos ao mar. Não faziam prisioneiros; era muito incómodo. Os seus próprios feridos foram transportados com grande cuidado para as suas chalupas de abordagem e dali para o navio corsário. Entretanto, Diego planeava a forma de se libertar e salvar as meninas De Romeu. No caso de poder chegar a elas, não imaginava como poderiam escapar. Os seus inimigos eram uma matilha brutal; a ideia de qualquer daqueles homens pôr as garras sobre as raparigas enlouquecia-o. Tinha de pensar com frieza, porque para sair daquela situação eram precisas astúcia e sorte; de pouco lhe serviriam os conhecimentos de esgrima. Santiago de León, os seus dois oficiais e os sobreviventes da tripulação compraram a liberdade com um quarto do seu salário anual, o habitual nestes casos. Foi oferecida aos marinheiros a opção de juntarem-se ao bando de Laffíte, e alguns aceitaram. O corsário sabia que a dívida do comandante e dos seus homens seria paga, como ditava a honra; quem não o fazia era desprezado até pelos seus melhores amigos. Tratava-se de uma transacção limpa e simples. Santiago de León teve de entregar os seus quatro passageiros a Jean Laffíte, que pensava cobrar resgate por eles. Explicou-lhe que as duas raparigas eram órfãs e sem fortuna, mas o corsário decidiu levá-las de qualquer maneira, porque havia uma grande procura de mulheres brancas nas casas alegres de Nova Orleães. De León suplicou-lhe que respeitasse aquele par de meninas virtuosas, que tanto tinham sofrido e não mereciam aquele terrível destino, mas esse tipo de consideração interferia com os negócios, coisa que Laffíte não se podia permitir, e, além disso, tal como explicou, ser cortesã era um trabalho muito agradável para a maioria das mulheres. O comandante saiu da reunião descontrolado. Não lhe importava perder as armas, pelo contrário, uma das razões pelas quais se rendera com tanta prontidão fora o desejo de se livrar daquela carga, mas horrorizava-o a ideia de que as meninas De Romeu, às quais tomara verdadeiro afecto, acabassem num bordel. Teve de informar os seus passageiros da sorte que os esperava, esclarecendo que o único com esperança de sair ileso era Diego de La Vega, porque, certamente, o pai faria o necessário para o salvar.
- O meu pai também pagará o resgate por Juliana, Isabel e Nuria, contanto que ninguém lhes ponha um dedo em cima. Mandar-lhe-emos imediatamente uma carta para a Califórnia - assegurou Diego a Laffite, mas mal o disse sentiu uma estranha opressão no peito, como um mau pressentimento.
- O correio costuma demorar, de maneira que sereis meus hóspedes por algumas semanas, talvez meses, até recebermos o resgate. Entretanto, as raparigas serão respeitadas. Para bem de todos, espero que o seu pai não se faça rogado com a resposta - retorquiu o corsário, sem despregar os olhos de Juliana.
As mulheres, que mal tiveram tempo de se vestir, desfaleceram ao ver na ponte aquele bando de temíveis desalmados, o sangue e os feridos. Juliana, porém, não estremecia só de terror, como se podia supor, mas também pelo impacte do olhar de Jean Laffite.
Os piratas atracaram o seu bergantim, colocaram pranchas entre ambas as pontes e formaram uma corrente humana para transportar de um barco para o outro o leve carregamento, incluindo animais, barris de cerveja e presuntos. Não tinham pressa, porque o Madre de Dios agora pertencia a Laffite. Trabalhavam com rapidez, já que o Madre de Dios se afundava a olhos vistos. O comandante De León presenciou, impassível, a manobra, mas tinha o coração aos saltos, porque amava o seu barco como uma noiva. No mastro inimigo drapejava, junto a uma bandeira colombiana, outra vermelha, chamada jolie rouge, que indicava o propósito de deixar os vencidos em liberdade a troco de um preço. Isso tranquilizou-o um pouco; sabia que o corsário, afinal de contas, lhe permitiria salvar a tripulação. Um pendão negro, que às vezes tinha uma caveira e duas tíbias cruzadas, teria indicado a decisão de lutar até ao último homem e massacrar os adversários. Quando terminaram o carregamento, Laffite cumpriu a sua palavra e autorizou Santiago de León a meter água doce e mantimentos nos botes, levar os seus instrumentos de navegação, sem os quais não se podia orientar, e embarcar com a sua gente.
Nesse momento apareceu Galileo Tempesta, que arranjara maneira de permanecer oculto durante a batalha, com o pretexto do braço partido, e instalou-se entre os primeiros num dos botes. O comandante despediu-se de Diego e das mulheres com um firme aperto de mão e a promessa de que voltariam a ver-se. Desejou-lhes boa sorte e embarcou num dos botes sem olhar para trás. Não queria presenciar o espectáculo do Madre de Dios, que tinha sido a sua única residência durante três décadas, em poder dos piratas.
No navio pirata, carregado até acima, era difícil mexerem-se. Laffite nunca estava mais de um par de dias no mar alto; por isso, podia amontoar cento e cinquenta tripulantes num espaço onde, normalmente, não caberiam mais de trinta. Tinha o seu quartel-general em Grande Isle, perto de Nova Orleães, um ilhéu na região pantanosa de Barataria. Era ali que esperava que os seus espiões lhe anunciassem a proximidade de uma possível presa para se lançar ao ataque. Aproveitava a bruma ou as sombras da noite, quando os barcos diminuíam a velocidade ou paravam, para os assaltar com sigilo e velocidade. A surpresa era sempre a sua maior vantagem. Utilizava os seus canhões para intimidar, mais que para afundar o navio inimigo; assim podia apoderar-se dele e integrá-lo na sua frota, composta por treze bergantins, goletas, polacas e faluchos.
Jean e o seu irmão Pierre eram os corsários mais temidos daqueles anos no mar, mas em terra firme podiam fazer-se passar por homens de negócios. O governador de Nova Orleães, farto do contrabando, do tráfico de escravos e de outras actividades ilegais dos Laffite, estabeleceu uma recompensa de quinhentos dólares pelas suas cabeças. Jean respondeu oferecendo mil e quinhentos pela do governador. Foi o culminar de muitas hostilidades.
Jean conseguiu fugir, mas Pierre esteve vários meses preso, a Grande Isle foi atacada e confiscaram toda a mercadoria. Não obstante, a situação alterou-se quando os Laffite se converteram em aliados das tropas americanas. O general Jackson chegou a Nova Orleães à frente de um contingente de homens paupérrimos e doentes de malária, com a missão de defender o enorme território da Luisiana contra os Ingleses. Não podia dar-se ao luxo de rejeitar a ajuda oferecida pelos piratas. Aqueles bandidos, uma mistura de negros, mulatos e brancos, revelaram-se essenciais na batalha. Jackson confrontou-se com o inimigo a 8 de Janeiro de 1815, quer dizer, três meses antes de os nossos amigos chegarem contra a sua vontade àquela região. A guerra entre a Inglaterra e a sua antiga colónia terminara duas semanas antes, mas nenhum dos lados o sabia. Com um punhado de homens de diversas procedências, que nem sequer compartilhavam uma língua comum, Jackson derrotou um exército organizado e bem armado de vinte mil ingleses. Enquanto os homens se assassinavam uns aos outros em Chalmette, a poucas léguas de Nova Orleães, mulheres e crianças rezavam no Convento das Ursulinas. No final da batalha, quando se puseram a contar os cadáveres, viram que a Inglaterra tinha perdido dois mil homens, ao passo que Jackson só deixara treze soldados no campo. Os mais valentes e ferozes foram os crioulos - gente de cor, mas livre - e os piratas. Uns dias mais tarde, comemorou-se o triunfo com arcos de flores e donzelas vestidas de branco, representando cada um dos estados da União, que coroaram o general Jackson de louros. Na assistência estavam os irmãos Laffite com os seus piratas, que, de proscritos, passaram a heróis.
Durante as quarenta horas que o barco de Laffite demorou a chegar a Grande Isle, mantiveram Diego de La Vega amarrado no convés e as três mulheres encerradas num pequeno camarote junto ao do comandante. Pierre Laffite, que não tinha participado no assalto ao Madre de Dios, porque ficara a tomar conta do navio pirata, revelou-se um homem muito diferente do irmão, mais tosco, robusto e brutal, com cabelo claro e metade da cara paralisada por uma apoplexia. Gostava de comer e beber em excesso e não podia resistir a uma mulher jovem, mas absteve-se de incomodar Juliana e Isabel, porque o irmão lhe lembrou que os negócios eram mais importantes que o prazer. Aquelas raparigas podiam trazer-lhes uma boa soma de dinheiro.
Jean mantinha as suas origens no mistério; ninguém sabia de onde era oriundo, mas confessava os seus trinta e cinco anos. Tinha um trato suave e modos requintados, falava várias línguas, entre elas o francês, o espanhol e o inglês, gostava imenso de música e dava grandes somas de dinheiro à ópera de Nova Orleães. Apesar do seu sucesso entre as mulheres, não as cobiçava como o irmão, preferindo cortejá-las com paciência; era galante, jovial, grande dançarino e contador de anedotas, a maioria inventada na altura. A sua simpatia pela causa americana era lendária; os seus comandantes sabiam que «quem ataca um navio americano, morre». Os três mil homens sob o seu comando chamavam-lhe boss, o chefe. Movimentava milhões em mercadoria, utilizando barcaças e pirogas pelos intrincados canais do delta do Mississipi. Ninguém conhecia aquela região como ele e os seus homens; as autoridades não conseguiam controlá-los nem dar-lhes caça. Vendia o produto da sua pirataria a escassas léguas de Nova Orleães, num antigo lugar sagrado dos índios, chamado El Templo. Donos de plantações, crioulos ricos, ou não tão ricos, e até os familiares do governador compravam a seu bel-prazer sem pagar impostos, a um preço razoável e num alegre ambiente de feira. Era também ali que se levavam a cabo os leilões de escravos, que ele adquiria baratos em Cuba e vendia caros nos estados americanos, onde o tráfico de negros era proibido, embora a escravatura não. Laffite anunciava as suas vendas em cartazes a cada esquina da cidade:
«Venham todos ao bazar e leilão de escravos de Jean Laffite em El Templo. Roupas, jóias, móveis e outros artigos dos sete mares!»
Jean convidou as suas três reféns femininas a compartilharem um refrigério a bordo, mas elas negaram-se a sair do seu camarote. Mandou-lhes uma bandeja com queijos, fiambres e uma boa garrafa de vinho espanhol, obtida no Madre de Dios, com os seus respeitosos cumprimentos. Juliana não conseguia tirá-lo da cabeça e morria de curiosidade por o conhecer, mas considerou mais prudente manter-se encerrada.
Diego passou aquelas quarenta horas ao relento, amarrado como um salpicão, sem alimento. Tiraram-lhe o medalhão de La Justicia e as poucas moedas que trazia no bolso, deram-lhe um pouco de água de vez em quando e pontapés, se se mexia demasiado. Jean Laffite aproximou-se dele num par de ocasiões para lhe assegurar que, ao chegar à ilha, estaria mais cómodo e pedia-lhe que perdoasse a pouca educação dos seus homens. Não estavam acostumados a lidar com gente fina, disse. Diego teve de engolir a ironia, murmurando de si para si que, mais tarde ou mais cedo, abaixaria a grimpa àquele desalmado. O importante era manter-se vivo. Sem ele, as duas meninas De Romeu estariam perdidas. Tinha ouvido falar das orgias de álcool, sexo e sangue que os piratas praticavam nas suas guaridas, quando regressavam triunfantes das suas malfeitorias, de como as infelizes mulheres prisioneiras sofriam os piores atropelos, dos corpos violados e mutilados que enterravam na areia durante essas bacanais. Tentava não pensar nisso, e sim na forma de escapar, mas aquelas imagens torturavam-no. Além disso, não o abandonava o desagradável pressentimento que o havia assaltado antes. Tinha que ver com o seu pai, disso estava certo. Havia semanas que não conseguia comunicar com Bernardo e decidiu aproveitar aquelas horas enfadonhas para o tentar. Concentrou-se em chamar o irmão, mas a telepatia não lhes funcionava por exercício da vontade: as mensagens iam e vinham sem padrão fixo e sem controlo por parte deles. Aquele longo silêncio, tão raro entre Bernardo e ele, parecia-lhe de muito mau agoiro. Perguntou a si mesmo o que se passaria na Alta Califórnia, o que seria de Bernardo e dos seus pais.
Grande Isle, na Barataria, onde os Laffite tinham o seu império, era vasta, húmida, plana e, como o resto da paisagem da região, tinha uma aura de mistério e decadência. Aquela natureza caprichosa e quente, que passava da calma bucólica a devastadores furacões, convidava a grandes paixões. Tudo se corrompia com rapidez, desde a vegetação até à alma humana. Nos momentos de bom tempo, como o que calhou a Diego e às amigas ao chegarem, uma cálida brisa arrastava um cheiro adocicado a flores de laranjeira, mas, mal a brisa cessava, abatia-se um calor de chumbo. Os piratas desembarcaram os prisioneiros e escoltaram-nos até à residência de Jean Laffite, instalada num promontório e rodeada por um bosque de palmeiras e carvalhos retorcidos, com as folhas queimadas pelo orvalho marinho. A povoação dos piratas, protegida do vento por um emaranhado de arbustos, mal se via entre as folhas. As flores de loendro davam uma nota de cor. A casa de Laffite era de dois andares, em estilo espanhol, com gelosias nas janelas e um amplo terraço virado para o mar, feita de tijolos cobertos com uma mistura de gesso e conchas de ostras moídas. Longe de ser uma caverna como a que os prisioneiros tinham imaginado, revelou-se limpa, organizada e até luxuosa. As divisões eram amplas e frescas, a vista das varandas espectacular, os soalhos de madeira clara reluziam, as paredes estavam pintadas de fresco e sobre cada mesa havia jarrões com flores, tabuleiros de fruta e jarros de vinho. Um par de escravas negras conduziu as mulheres aos compartimentos que lhes tinham atribuído. Proporcionaram a Diego uma bacia de água para se lavar, deram-lhe café e conduziram-no a um terraço, onde Jean Laffite descansava numa rede vermelha, tangendo um instrumento de cordas, com o olhar perdido no horizonte, acompanhado por dois papagaios de cores brilhantes. Diego pensou que o contraste entre a má reputação daquele homem e o seu refinado aspecto não podia ser mais surpreendente.
- Pode escolher entre ser meu prisioneiro ou meu hóspede, senhor De La Vega. Como prisioneiro tem o direito de tentar fugir e eu tenho o direito de o impedir como quer que seja. Como meu hóspede será bem tratado até recebermos o resgate do seu pai, mas ficará obrigado pelas leis da hospitalidade a respeitar a minha casa e as minhas instruções. Estamos entendidos?
- Antes de responder, senhor, tenho de conhecer os seus planos relativamente às irmãs De Romeu, que estão a meu cargo - retorquiu Diego.
- Estavam, senhor, já não o estão. Agora estão a meu cargo. A sorte delas depende da resposta do seu pai.
- Se aceitar ser seu hóspede, como saberá que não tentarei fugir de qualquer maneira?
- Porque não o faria sem as meninas De Romeu e porque me dará a sua palavra de honra - redarguiu o corsário.
- Tem-na, comandante Laffite - disse Diego, resignado.
- Muito bem. Por favor, faça-me companhia ao jantar com as suas amigas dentro de uma hora. Creio que o meu cozinheiro não o defraudará.
Entretanto, Juliana, Isabel e Nuria passavam por momentos desconcertantes. Vários homens colocaram umas selhas no seu quarto e encheram-nas de água; depois apareceram três jovens escravas munidas de sabão e escovas, sob as ordens de uma mulher alta e formosa, de feições cinzeladas e pescoço comprido, ataviada com um grande turbante na cabeça, que lhe dava mais um palmo de altura. Apresentou-se em francês como Madame Odília e esclareceu que era ela que mandava na casa de Laffite. Indicou às prisioneiras que se despojassem da roupa, porque iam receber um banho. Nenhuma das três se tinha despido na vida: lavavam-se com grande pudor por baixo de uma ligeira túnica de algodão. O espalhafato de Nuria provocou um ataque de riso nas escravas e a dama do turbante explicou que ninguém morre por tomar um banho. Isabel achou aquilo razoável e despiu o que trazia vestido. Juliana imitou-a, tapando as partes íntimas com as duas mãos. Isto provocou novas gargalhadas nas africanas, que comparavam a sua própria pele cor de madeira com a daquela rapariga, branca como a loiça da casa de jantar. Quanto a Nuria, tiveram de ser várias a agarrá-la para a despir, enquanto os seus gritos faziam estremecer as paredes. Introduziram-nas nas selhas e ensaboaram-nas dos pés à cabeça. Passado o primeiro susto, a experiência não se revelou tão terrível como parecia ao princípio e não tardou que Juliana e Isabel começassem a desfrutá-la. As escravas levaram a roupa delas sem oferecer explicações e em troca trouxeram-lhes ricos vestidos de brocado, pouco adequados para o clima quente. Estavam em bom estado, embora fosse evidente que haviam sido usados: um tinha nódoas de sangue na bainha. Que destino teria padecido a sua anterior dona? Seria também uma prisioneira? O melhor era não imaginar a sua sorte ou a que as esperava, a elas. Isabel deduziu que a pressa em despi-las obedecia a instruções precisas de Laffite, que desejava assegurar-se de que não escondiam nada debaixo das saias. Tinham-se preparado para essa eventualidade.
Diego decidiu aproveitar a liberdade condicional que o corsário lhe dava e foi percorrer os arredores, enquanto fazia tempo para o jantar. A povoação-pirata era formada por almas vagabundas de cada recanto do planeta. Alguns estavam instalados com as suas mulheres e garotos em casotas de palha; os solteiros deambulavam sem tecto fixo. Havia lugares onde comer bons pratos franceses e crioulos, bares e bordéis, além de oficinas e lojas de artesãos. Aqueles homens de diversas raças, línguas, crenças e costumes tinham em comum um feroz sentido de liberdade, mas aceitavam as leis de Barataria, porque lhes pareciam adequadas e o sistema era democrático. Tudo era decidido por votação; tinham inclusivamente direito a escolher e destituir os seus comandantes. As regras eram claras: quem incomodava uma mulher alheia acabava abandonado num ilhéu desértico com uma garrafa de água e uma pistola carregada; o roubo pagava-se com chicotadas, o assassínio com a forca. Não existia a submissão cega a um chefe, a não ser no mar alto durante uma acção bélica, mas era preciso obedecer às regras ou pagar as consequências. Noutros tempos tinham sido criminosos, aventureiros ou desertores de navios de guerra, sempre marginais, e agora estavam orgulhosos de pertencer a uma comunidade. Só os mais aptos embarcavam; os restantes trabalhavam em forjas, cozinhavam, criavam animais, reparavam navios e botes, construíam casas, pescavam. Diego viu mulheres, crianças e também homens doentes ou amputados e soube que os veteranos de batalhas, órfãos e viúvas recebiam protecção. Se um marinheiro perdia uma perna ou um braço no mar alto, era recompensado em ouro. O saque era repartido com equidade entre os homens e dava-se alguma coisa às viúvas; o resto das mulheres contava pouco. Eram prostitutas, escravas, cativas de assaltos e algumas corajosas mulheres livres, não muitas, que ali tinham chegado por sua própria decisão.
Na praia, Diego tropeçou com uma vintena de bêbedos entregues a lutar por gosto e a correr atrás das mulheres. À luz das fogueiras, reconheceu vários tripulantes do navio que destruíra o Madre de Dios; decidiu então que era a sua oportunidade de recuperar o medalhão de La Justicia, que um deles lhe havia arrancado.
- Senhores! Ouvi-me! - gritou.
Conseguiu captar a atenção dos menos embriagados e formou-se um círculo à sua volta, enquanto as mulheres aproveitavam a distracção para recolherem as suas roupas e afastarem-se rapidamente. Diego viu-se rodeado de rostos entumecidos pelo álcool, olhos injectados de sangue, bocas desdentadas que o insultavam, manápulas que já puxavam das facas. Não lhes deu tempo de se organizarem.
- Quero divertir-me um pouco. Algum de vós se atreve a bater-se comigo? - perguntou.
Um coro entusiástico respondeu-lhe afirmativamente, e o círculo fechou-se em torno de Diego, que sentia o cheiro do suor, o hálito a álcool, tabaco e alho dos homens.
- Um de cada vez, por favor. Começarei pelo valente que tem o meu medalhão e a seguir pregarei uma tareia por turnos a cada um de vós. Que acham?
Diversos corsários deitaram-se de costas na praia, esperneando de riso. Os restantes consultaram-se entre si e, no fim, um abriu a imunda camisa e mostrou o medalhão, disposto de bom grado a bater-se com aquele alfenim com mãos de mulher, que ainda cheirava a leite materno, como disse. Diego quis certificar-se de que era com efeito a sua jóia. O homem tirou-a do pescoço e agitou-a diante do seu nariz.
- Não percas de vista o meu medalhão, meu amigo, porque to tirarei ao primeiro descuido - desafiou-o.
O pirata sacou de imediato uma adaga curva do cinto e sacudiu o entorpecimento do álcool, enquanto os restantes se afastavam para lhes abrir espaço. Precipitou-se sobre Diego, que o esperava com os pés bem fincados na areia. Não tinha aprendido em vão o método secreto de luta de La Justicia. Recebeu o seu adversário com três movimentos simultâneos: desviou-lhe a mão armada, atirou-se para o lado e agachou-se, utilizando a seu favor o impulso do outro.
O pirata perdeu o equilíbrio e Diego levantou-o com o ombro, lançando-o ao ar com uma pirueta completa. Mal ele aterrou de costas, pôs-lhe o pé sobre o pulso e arrebatou-lhe a adaga. Depois, voltou-se para os espectadores com uma breve reverência.
- Onde está o meu medalhão? - perguntou, olhando os piratas um a um.
Aproximou-se do de maior tamanho, que se encontrava a vários passos de distância, e acusou-o de o ter escondido. O homem desembainhou o seu punhal, mas ele deteve-o com um gesto e indicou-lhe que tirasse o gorro, porque estava ali. Desorientado, o fulano obedeceu; nessa altura, Diego meteu a mão no gorro e extraiu a jóia com toda a limpeza. A surpresa paralisou os demais, que não sabiam se haviam de rir ou de o atacar, até que optaram pela ideia mais condizente com os seus temperamentos: dar uma boa lição àquele insolente zé-ninguém.
- Todos contra um? Não vos parece uma cobardia? - desafiou-os Diego, girando com o punhal na mão, pronto para saltar.
- Este cavalheiro tem razão, seria uma cobardia indigna de vós - disse uma voz.
Era Jean Laffíte, amável e sorridente, com a atitude de quem apanha ar num passeio, mas com a mão na pistola. Agarrou Diego por um braço e levou-o com calma, sem que ninguém tentasse detê-los.
- Esse medalhão deve ser muito valioso, para arriscar a vida por ele - comentou Laffíte.
- Foi a minha avozinha que mo ofereceu no seu leito de morte - gracejou Diego. - Com isto poderei comprar a minha liberdade e a das minhas amigas, comandante.
- Receio bem que não valha tanto.
- Talvez o nosso resgate nunca chegue. A Califórnia fica muito longe, pode suceder alguma desgraça pelo caminho. Se mo permite, irei jogar a Nova Orleães. Apostarei o medalhão e ganharei o suficiente para pagar o nosso resgate.
- E se perder?
- Nesse caso terá de esperar pelo dinheiro do meu pai, mas eu nunca perco às cartas.
- O senhor é um jovem original; creio que temos algumas coisas em comum - riu o pirata.
Nessa noite devolveram a Diego a Justina, a bela espada feita por Pelayo, e o baú com a sua roupa, salvo do naufrágio pela ganância de um pirata, que não o conseguira abrir e o levara, julgando que continha alguma coisa de valor. Os três reféns jantaram na sala de jantar de Laffíte, que estava muito elegante, todo de preto, barbeado e com o cabelo acabado de frisar. Diego pensou que em comparação a sua indumentária de Zorro parecia lamentável; tinha de copiar algumas ideias do corsário, como a faixa na cintura e as mangas largas da camisa. O jantar consistiu num desfile de pratos de influência africana, caribe e cajun, como se chamava aos imigrantes vindos do Canadá: gumbo de caranguejo, feijões vermelhos com arroz, ostras fritas, peru assado com nozes e passas, peixe com especiarias e os melhores vinhos roubados de galeões franceses, que o anfitrião mal provou. Havia um abanador de tecido, para agitar o ar e espantar as moscas, pendurado sobre a mesa, accionado por um rapazinho negro que puxava um cordel, e na varanda três músicos tocavam uma mistura irresistível de ritmo caribe e canções de escravos. Silenciosa como uma sombra, Madame Odilia dirigia com o olhar, da porta, as escravas que faziam parte da criadagem.
Pela primeira vez, Juliana pôde ver Jean Laffíte de perto. Quando o corsário se curvou para lhe beijar a mão, soube que o longo périplo dos últimos meses que a tinha conduzido até ali terminava, por fim. Descobriu por que razão não quisera casar-se com nenhum dos seus pretendentes, rejeitara Rafael Moncada até o enlouquecer e não correspondera aos avanços de Diego durante cinco anos. Tinha-se preparado a vida inteira para aquilo que nas suas novelazinhas românticas se definia como «a frechada de Cupido». De que outra forma se podia descrever aquele amor súbito? Era uma flecha no peito, uma dor aguda, uma ferida. (Perdoai-me, estimados leitores, por este eufemismo ridículo, mas os narizes-de-cera encerram grandes verdades.) O sombrio olhar de Laffite mergulhou na água verde dos seus olhos e a mão de dedos compridos do homem tomou a sua. Juliana cambaleou, como se fosse cair; nada de novo: costumava perder o equilíbrio com as emoções. Isabel e Nuria julgaram que era uma reacção de medo perante o corsário, porque os sintomas eram parecidos, mas Diego compreendeu de imediato que algo de irremediável tinha transtornado o seu destino. Comparado com Laffite, Rafael Moncada e todos os demais apaixonados de Juliana eram insignificantes. Madame Odilia também notou o efeito do corsário na rapariga e, tal como Diego, teve a intuição da gravidade do sucedido.
Laffite conduziu-os à mesa e instalou-se à cabeceira a conversar amavelmente. Juliana olhava-o hipnotizada, mas ele ignorava-a de propósito, tanto que Isabel perguntou a si mesma se porventura faltaria alguma coisa ao corsário. Talvez tivesse perdido a virilidade numa batalha; essas coisas costumavam acontecer, bastava uma bala distraída ou um golpe sem nenhum perigo e a parte mais interessante de um homem ficava reduzida a um figo seco. Não havia outra explicação para tratar a irmã com aquela indiferença.
- Agradecemos a sua hospitalidade, senhor Laffite, embora seja imposta à força; no entanto, não me parece que esta comunidade de piratas seja o lugar apropriado para as meninas De Romeu - disse Diego, calculando que devia tirar Juliana dali a toda a pressa.
- Que outra solução pode oferecer, senhor De La Vega?
- Ouvi falar do Convento das Ursulinas em Nova Orleães. As meninas poderiam esperar lá até chegarem notícias do meu pai...
- Antes morta do que com aquelas freiras! Daqui ninguém me tira! - interrompeu-o Juliana com uma veemência que nunca lhe tinham visto.
Todos os olhares se voltaram para ela. Estava vermelha, febril, a suar debaixo do vestido de grosso brocado. A expressão do seu rosto não deixava lugar a dúvidas: dispunha-se a assassinar quem tentasse separá-la do seu pirata. Diego abriu a boca, mas não soube o que dizer e calou-se, derrotado. Jean Laffite recebeu a explosão de Juliana como uma mensagem desejada e temida, quase como uma carícia. Tinha tentado evitar a jovem, repetindo de si para si o mesmo que dizia sempre ao seu irmão Pierre, que o negócio está antes do prazer, mas pelos vistos ela estava tão presa como ele. Essa devastadora atracção confundia-o, porque se gabava de ter uma mente fria. Não era homem impulsivo e estava habituado à companhia de mulheres bonitas. Preferia as quarteironas, mulatas famosas pela sua graça e formosura, treinadas para satisfazerem os mais secretos caprichos de um homem. As mulheres brancas pareciam-lhe arrogantes e complicadas, adoeciam com frequência, não sabiam dançar e serviam de pouco na hora de fazer amor, porque não gostavam de se despentear. Não obstante, aquela jovem espanhola com olhos de gato era diferente. Podia competir em beleza com as mais célebres crioulas de Nova Orleães e, pelos vistos, a sua limpa inocência não interferia com o seu coração apaixonado. Dissimulou um suspiro, procurando não se abandonar às ciladas da imaginação.
O resto do serão decorreu como se todos estivessem sentados sobre pregos. A conversa arrastava-se com dificuldade. Diego observava Juliana, ela Laffite, o resto dos comensais olhavam para o prato com grande atenção. O calor era sufocante no interior da casa e no fim do jantar o corsário convidou-os para tomarem um refresco no terraço. Do tecto pendia um abanador de palmas, que um escravo movia com parcimónia. Laffite pegou na guitarra e começou a cantar com voz afinada e agradável, até que Diego anunciou que estavam cansados e preferiam retirar-se. Juliana fulminou-o com um olhar letal, mas não se atreveu a negar-se.
Ninguém dormiu naquela casa. A noite, com o seu concerto de sapos e o ruído distante de tambores, arrastou-se com uma lentidão pavorosa. Sem conseguir aguentar-se mais, Juliana confessou o seu segredo a Nuria e a Isabel em catalão, para que a escrava que as servia não percebesse.
- Agora sei o que é o amor. Quero-me casar com Jean Laffite - disse.
- Santa Maria, livra-nos desta desgraça - murmurou Nuria, persignando-se.
- És prisioneira dele, não sua noiva. Como pensas resolver esse pequeno dilema? - quis saber Isabel, bastante ciumenta, porque também estava muito impressionada com o corsário.
- Estou disposta a tudo, não posso viver sem ele - retorquiu a irmã com olhos de louca.
- Diego não vai gostar disso.
- Diego é o menos. O meu pai deve estar a revolver-se na tumba, mas não me importa! - - exclamou Juliana.
Impotente, Diego presenciou a transformação da sua amada. Juliana apareceu no segundo dia de cativeiro em Barataria a cheirar a sabão, com o cabelo solto pelas costas e um vestido leve, obtido das escravas, que revelava os seus encantos. Foi assim que se apresentou ao meio-dia seguinte à mesa, onde Madame Odilia tinha posto uma abundante merenda. Jean Laffite estava à espera dela e, pelo brilho dos seus olhos, não restaram dúvidas de que preferia aquele estilo informal à moda europeia, insuportável naquele clima. Cumprimentou-a de novo com um beijo na mão, mas bastante mais intenso que o do dia anterior. As criadas trouxeram sumos de fruta com gelo, transportado pelo rio em caixas com serradura, desde montanhas distantes, luxo a que só os ricos se podiam dar. Juliana, habitualmente inapetente, bebeu dois copos da gelada beberagem e comeu com voracidade tudo quanto havia sobre a mesa, excitada e loquaz. Diego e Isabel tinham um peso na alma, enquanto ela e o corsário conversavam quase em sussurros. Conseguiram captar alguma coisa da conversa e deram-se conta de que Juliana explorava o terreno, experimentando as armas de sedução que nunca até então tivera necessidade de usar. Naquele momento estava a explicar-lhe, entre risos e pestanejos, que ela e a sua irmã não se importariam de ter certas comodidades. Para começar, uma harpa, um piano e partituras de música, e também livros, preferivelmente romances e poesia, assim como roupa leve. Perdera tudo o que tinha, e por culpa de quem?, perguntou fazendo beicinho. Além disso, desejavam liberdade para passear pelos arredores e uma certa privacidade; incomodava-as a vigilância constante das escravas. «E a propósito, senhor Laffite, devo dizer-vos que abomino a escravatura, é uma prática desumana.» Ele respondeu que, se passeassem sozinhas pela ilha, encontrariam gente vulgar, que não sabia lidar com donzelas tão delicadas como ela e a irmã. Acrescentou que a função das escravas não era vigiá-las, mas sim tratar delas e afugentar mosquitos, ratos e víboras, que se metiam nos quartos.
- Dê-me uma vassoura e eu mesma me encarregarei desse problema - retorquiu ela com um sorriso irresistível, que Diego não lhe conhecia.
- Relativamente ao mais que solicita, menina, talvez o encontremos no meu bazar.
Depois da sesta, quando refrescar um pouco, iremos todos ao Templo.
- Não temos dinheiro, mas suponho que o senhor pagará, visto que nos trouxe aqui pela força - retrucou ela, coquete.
- Será uma honra, menina.
- Pode chamar-me Juliana.
Madame Odilia seguia esta troca de galanteios de um recanto da sala com a mesma atenção que Diego e Isabel. A sua presença recordou a Jean que não podia seguir por aquele perigoso caminho; tinha obrigações iniludíveis. Indo buscar forças onde pôde, decidiu ser claro com Juliana. Chamou com um gesto a bela do turbante e sussurrou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Ela desapareceu durante uns minutos e regressou com um embrulho nos braços.
- Madame Odilia é a minha sogra e este é o meu filho Pierre - explicou Jean Laffite, pálido.
Diego soltou uma exclamação de alegria e Juliana uma de horror. Isabel pôs-se de pé e Madame Odilia mostrou-lhe o fardo. Ao contrário das mulheres normais, que costumam amolecer à vista de uma criança, Isabel não gostava de bebés, preferindo os cães, mas teve de admitir que aquele fedelho era simpático. Tinha o nariz arrebitado e os mesmos olhos que o pai.
- Não sabia que era casado, senhor pirata... - comentou Isabel.
- Corsário - corrigiu-a Laffite.
- Corsário, então. Podemos conhecer a sua esposa?
- Receio que não. Eu próprio não a pude visitar durante várias semanas; está fraca e não pode ver ninguém.
- Como se chama?
- Catherine Villars.
- Desculpai-me, sinto-me muito cansada... - murmurou Juliana, desfalecente.
Diego afastou-lhe a cadeira e acompanhou-a com ar compungido, embora estivesse encantado com a reviravolta dos acontecimentos. Que sorte tão extraordinária! Juliana não tinha outro remédio senão reavaliar os seus sentimentos. Já não se tratava só de Laffite ser um velho de trinta e cinco anos, mulherengo, criminoso, contrabandista e traficante de escravos, tudo coisas que uma menina como Juliana podia desculpar facilmente, mas sim de ter mulher e um filho. Obrigado, meu Deus! Não se podia pedir mais.
De tarde, Nuria ficou a aplicar panos frios na testa febril de Juliana, enquanto Diego e Isabel acompanhavam Laffite ao Templo. Foram num bote impelido por quatro remadores, que se introduziu num labirinto de pântanos malcheirosos, em cujas margens repousavam dezenas de caimões, enquanto ziguezagueavam víboras na água. Com a humidade, o cabelo de Isabel disparou em todas as direcções, encrespado e denso como um colchão. Os canais pareciam todos idênticos, a paisagem era plana, não havia um montículo para servir de referência naquela vegetação de altas pastagens. As árvores tinham as raízes na água e cabeleiras de musgo a pender dos ramos. Os piratas conheciam cada volta, cada árvore, cada pedregulho daquele território de pesadelo e avançavam sem uma única vacilação. Ao chegarem ao lugar onde ficava El Templo, viram as lanchas chatas em que os piratas transportavam a mercadoria, além das pirogas e botes de alguns fregueses, embora a maioria viesse por terra a cavalo e em vistosas carruagens. A fina-flor da sociedade tinha marcado encontro, desde aristocratas até cortesãs de cor. Os escravos haviam colocado toldos para que os seus amos repousassem e serviam comida e vinho, enquanto as damas percorriam o bazar examinando os produtos.
Os piratas vociferavam a mercadoria, tecidos da China, jarras de prata peruana, móveis de Viena, jóias de todas as proveniências, guloseimas, artigos de toucador, nada faltava naquela feira, onde regatear fazia parte da diversão. Pierre Laffite já lá estava, com um lustre na mão, anunciando aos gritos que estava tudo em liquidação, os preços eram baratos, comprem, messieurs et mesdames, porque não voltará a surgir outra oportunidade como esta. Com a chegada de Jean e os seus acompanhantes produziram-se murmúrios de curiosidade. Aproximaram-se várias mulheres do atraente corsário, misteriosas debaixo das suas alegres sombrinhas, entre elas a esposa do governador. Os cavalheiros fixaram-se em Isabel, divertidos com o seu cabelo indómito, parecido com o musgo das árvores. Na comunidade dos brancos havia dois homens para cada mulher e qualquer cara nova era bem-vinda, inclusivamente uma tão pouco usual como a de Isabel. Jean fez as apresentações, sem mencionar, de modo algum, a maneira como obtivera aqueles novos «amigos», e a seguir procurou os objectos mencionados por Juliana, embora soubesse que nenhum presente poderia consolá-la do golpe que lhe tinha infligido ao falar-lhe de Catherine de modo tão brutal. Não havia outra forma: tinha de cortar aquela atracção mútua pela raiz antes que ela os destruísse a ambos.
Em Barataria, Juliana jazia sobre a cama, mergulhada num lodaçal de humilhação e louco amor. Laffite acendera nela uma labareda diabólica, e agora tinha de lutar com toda a sua vontade contra a tentação de o arrebatar a Catherine Villars. A única solução que lhe ocorria era entrar como noviça no Convento das Ursulinas e acabar os seus dias tratando de doentes de varíola em Nova Orleães; pelo menos, assim, poderia respirar o mesmo ar que aquele homem. Não podia voltar a mostrar a cara a ninguém. Estava confundida, envergonhada, inquieta, como se um milhão de formigas se passeasse sob a sua pele; sentava-se, passeava, deitava-se na cama, dava voltas entre os lençóis.
Pensava na criança, no pequeno Pierre, e ainda chorava mais. «Não há mal que dure cem anos, minha menina, essa demência há-de passar-te, ninguém no seu perfeito juízo se apaixona por um pirata», consolava-a Nuria. Nisto, chegou Madame Odilia para perguntar como estava a menina. Trazia numa bandeja um copo de xerez e bolachas. Juliana decidiu que era a sua única oportunidade de averiguar pormenores e, engolindo o orgulho e o pranto, entabulou conversa com ela.
- Pode dizer-me, madame, se Catherine é escrava?
- A minha filha é livre, como eu. A minha mãe era uma rainha do Senegal e lá também eu seria rainha. O meu pai e o pai das minhas filhas eram brancos, donos de plantações de açúcar em Santo Domigo. Tivemos de fugir durante a revolta dos escravos - retorquiu, orgulhosa, Madame Odilia.
- Consta-me que os brancos não se podem casar com gente de cor - insistiu Juliana.
- Os brancos casam-se com brancas, mas as suas verdadeiras mulheres somos nós. Não precisamos da bênção de um padre, basta-nos o amor. Jean e Catherine amam-se.
Juliana desatou de novo a chorar. Nuria pregou-lhe um beliscão para que se controlasse, mas isso mais não fez do que aumentar a angústia da jovem. Pediu a Madame Odilia que lhe permitisse ver Catherine, pensando que assim teria argumentos para resistir ao embuste do amor.
- Isso não é possível. Beba o xerez, menina, far-lhe-á bem - e com isso deu meia volta e retirou-se.
Juliana, abrasada de sede, engoliu o conteúdo do copo em quatro goles. Momentos mais tarde, caiu rendida e dormiu trinta e seis horas sem se mexer. O xerez drogado não a curou da sua paixão, mas, tal como Madame Odilia supunha, deu-lhe coragem para enfrentar o futuro. Acordou com os ossos doridos, resolvida a renunciar a Laffite.
O corsário decidira também arrancar Juliana do coração e procurar um sítio para a instalar longe da sua casa, onde a sua proximidade não o torturasse. A jovem evitava-o, tendo deixado de aparecer às horas das refeições, mas ele adivinhava-a através das paredes. Julgava ver a sua silhueta num corredor, ouvir a sua voz no terraço, cheirar o seu perfume, mas era só uma sombra, um pássaro, o aroma do mar trazido pela brisa. Como um animal de presa, tinha sempre os sentidos alerta, procurando-a. O Convento das Ursulinas, como Diego sugerira, era má ideia; seria como condená-la à prisão. Conhecia várias crioulas em Nova Orleães que poderiam hospedar a jovem, mas corria o risco de que se soubesse a sua condição de refém. Se isso chegasse aos ouvidos das autoridades americanas, ele ver-se-ia em sérios problemas. Podia subornar o juiz, mas não o governador; um tropeção da sua parte e a sua cabeça voltaria a estar a prémio. Contemplava a possibilidade de se esquecer do resgate e enviar os seus cativos de imediato para a Califórnia, livrando-se assim do sarilho em que se achava, mas para isso precisava do consentimento do seu irmão Pierre, dos outros comandantes e do resto dos piratas; era esse o inconveniente de uma democracia. Pensava em Juliana, comparando-a com a doce e submissa Catherine, essa menina que tinha sido sua mulher desde os catorze anos e agora era a mãe do seu filho. Catherine merecia o seu amor incondicional. Sentia saudades dela. Só a separação prolongada que haviam sofrido podia explicar o seu enamoramento por Juliana; se dormisse abraçado à sua mulher, aquilo nunca teria acontecido. Desde o nascimento da criança, Madame Odilia tinha-a entregue aos cuidados de umas curandeiras africanas em Nova Orleães. Laffite não se opusera, porque os médicos a davam como perdida. Uma semana após o parto, quando Catherine continuava a arder em febre, Madame Odilia insistira em que a filha sofria de mau-olhado, provocado por uma rival ciumenta, e o único remédio era a magia. Entre os dois levaram Catherine, que não se tinha de pé, a consultar Marie Laveau, suma sacerdotisa do vudu. Internaram-se nos bosques mais cerrados, longe das plantações de açúcar dos brancos, entre ilhéus e pântanos, onde os tambores conjuravam os espíritos. À luz de fogueiras e archotes, os oficiantes dançavam ostentando máscaras de animais e demónios, com os corpos pintados com sangue de galos. Os potentes tambores vibravam, estremecendo o bosque e esquentando o sangue dos escravos. Uma prodigiosa energia ligava os seres humanos aos deuses e à natureza; os participantes fundiam-se num único ser e ninguém se subtraía ao encantamento. No centro do círculo, em cima de uma caixa que continha uma serpente sagrada, dançava Marie Laveau, soberba, formosa, coberta de suor, quase nua e grávida de nove meses, prestes a dar à luz. Ao entrar em transe, os seus membros agitavam-se sem controlo, contorcia-se, bamboleava o ventre de um lado para outro e soltava uma fiada de palavras em línguas que ninguém conhecia. O cântico subia e descia, como vagalhões, enquanto os recipientes com sangue dos sacrifícios passavam de mão em mão, para que todos bebessem. Os tambores aceleravam; homens e mulheres, convulsionados, caíam ao chão, transformavam-se em animais, comiam pasto, mordiam e arranhavam, alguns perdiam o conhecimento, outros partiam aos pares para o bosque. Madame Odilia explicou-lhe que na religião vudu, chegada ao Novo Mundo no coração dos escravos do Daomé e Ioruba, existiam três zonas ligadas: a dos vivos, a dos mortos e a dos que ainda não nasceram. Nas cerimónias honravam os antepassados, chamavam os deuses, clamavam por liberdade. As sacerdotisas como Marie Laveau efectuavam encantamentos, enfiavam alfinetes em bonecas para provocar doenças e usavam gris-gris, pós mágicos, para curar diversos males, mas nada disso resultou com Catherine.
Apesar da sua condição de prisioneiro e de rival em amores de Laffíte, Diego não podia deixar de o admirar. Como corsário não tinha escrúpulos nem piedade, mas quando fazia figura de cavalheiro ninguém o podia ultrapassar em boas maneiras, cultura e fascínio. Essa dupla personalidade fascinava Diego, porque ele próprio pretendia algo semelhante com o Zorro. Além disso, Laffíte era dos melhores espadachins que conhecera. Só Manuel Escalante se podia comparar com ele; Diego sentia-se honrado quando o seu captor o convidava para praticar esgrima com ele. Nessas semanas o jovem viu como funcionava uma democracia, coisa que até então fora para ele um conceito abstracto. Na nova nação americana, os homens brancos controlavam a democracia; em Grande Isle todos a exerciam, menos as mulheres, claro. As peculiares ideias de Laffíte pareciam-lhe dignas de consideração. O homem sustentava que os poderosos inventam leis para conservarem os seus privilégios e controlarem pobres e descontentes, em vista do que seria muito estúpido da sua parte obedecer-lhes. Por exemplo, os impostos, que, no fim de contas, eram os pobres que pagavam, enquanto os ricos arranjavam maneira de fugir-lhes. Sustentava que ninguém, e muito menos o Governo, podia tirar-lhe uma talhada do que era seu. Diego fez-lhe ver certas contradições. Laffíte castigava com chicotadas o roubo entre os seus homens, mas o seu império económico apoiava-se na pirataria, uma forma superior de roubo. O corsário retorquiu que nunca tirava aos pobres, só aos poderosos. Não era pecado, mas sim virtude, despojar os navios imperiais do que era roubado a ferro e chicote nas colónias. Tinha-se apoderado das armas que o comandante Santiago de León levava para as tropas realistas no México, para vendê-las a um preço muito razoável aos insurrectos do mesmo país. Essa operação parecia-lhe de uma justiça irrepreensível.
Laffíte levou Diego a Nova Orleães, uma cidade feita à medida do corsário, orgulhosa do seu carácter decadente, aventureira, gozadora da vida, mutável e tempestuosa. Sofria de guerras com ingleses e índios, furacões, inundações, incêndios, epidemias, mas nada lograva deprimir aquela soberba cortesã. Era um dos principais portos americanos, por onde saía tabaco, tinta, açúcar, e entrava toda a sorte de mercadoria. A população cosmopolita convivia sem fazer caso do calor, dos mosquitos, dos pântanos e muito menos da lei. Música, álcool, bordéis, casas de jogo clandestinas, de tudo havia naquelas ruas onde a vida começava ao pôr do Sol. Diego instalava-se na Plaza de Armas a observar a multidão, negros com cestos de laranjas e bananas, mulheres a ler a sina e a oferecer fetiches de vudu, saltimbancos, bailarinos, músicos. As vendedoras de doces, com turbantes e aventais azuis, levavam em bandejas os bolos de gengibre, de mel, de nozes. Nos postos ambulantes podia-se comprar cerveja, ostras frescas, pratos de camarões. Nunca faltavam bêbedos a fazer escândalo, lado a lado com cavalheiros de fina estampa, donos de plantações, comerciantes, funcionários. Freiras e padres misturavam-se com prostitutas, soldados, bandidos e escravos. As célebres quarteironas exibiam-se em lentos passeios, recebendo piropos de cavalheiros e olhares hostis das suas rivais. Não usavam jóias nem chapéus, proibidos por decreto para satisfazer as mulheres brancas, que não podiam competir com elas. Não precisavam deles: tinham fama de ser as mais bonitas do mundo, com a sua pele dourada, feições finas, grandes olhos líquidos, cabelos ondulados. Andavam sempre acompanhadas por mães ou paus-de-cabeleira, que não as perdiam de vista. Catherine Villars era uma dessas beldades crioulas. Laffíte conhecera-a num dos bailes que as mães ofereciam para apresentarem as filhas a homens ricos, outra das muitas maneiras de iludir leis absurdas, como explicou o corsário a Diego. Faltavam mulheres brancas e sobravam as de cor; não havia necessidade de matemática para ver a solução do dilema; não obstante, os casamentos mistos eram proibidos. Assim preservava-se a ordem social, garantia-se o poder dos brancos e mantinha-se a gente de cor submetida, mas isso não impedia os brancos de terem concubinas crioulas. As quarteironas encontraram uma solução conveniente para todos. Treinavam as filhas nas tarefas domésticas e artes de sedução, de que nenhuma mulher branca suspeitava, para fazerem delas uma estranha combinação de dona de casa e cortesã. Vestiam-nas com grande luxo, mas ensinavam-nas a fazer os seus próprios vestidos. Eram elegantes e trabalhadeiras. Nos bailes, aos quais só assistiam homens brancos, as mães colocavam as filhas com alguém capaz de lhes dar um bom nível. Manter uma daquelas bonitas raparigas era considerado um sinal de distinção para um cavalheiro; o celibato e a abstinência não eram virtudes, a não ser entre puritanos, mas desses havia poucos em Nova Orleães. As quarteironas viviam em casas pouco ostentosas, mas com comodidade e estilo, mantinham escravos, educavam os filhos nas melhores escolas e vestiam como rainhas em privado, embora em público fossem discretas. Estes arranjos eram levados a cabo de acordo com certas normas tácitas, com decoro e etiqueta.
- Em poucas palavras, as mães oferecem as filhas aos homens - resumiu Diego, escandalizado.
- Não é sempre assim? O casamento é um arranjo mediante o qual uma mulher presta serviços e dá filhos ao homem que a mantém. Aqui, uma branca tem menos liberdade para escolher do que uma crioula - retorquiu Laffite.
- Mas a crioula não tem protecção quando o amante decide casar-se ou substituí-la por outra concubina.
- O homem deixa-a com casa e uma pensão, para além de pagar as despesas dos filhos. Às vezes, ela constitui outra família com um crioulo. Muitos desses crioulos, filhos doutras quarteironas, são profissionais educados em França.
- E o senhor, comandante Laffite, teria duas famílias? - perguntou Diego, pensando em Juliana e Catherine.
- A vida é complicada, tudo pode acontecer - disse o pirata.
Laffite convidou Diego para os melhores restaurantes, para o teatro, para a ópera, e apresentou-o às suas amizades como o seu «amigo da Califórnia». A maioria era gente de cor, artesãos, comerciantes, artistas, profissionais. Conhecia alguns americanos, que se mantinham separados do resto da população crioula e francesa por uma linha imaginária, que dividia a cidade.
Preferia não a cruzar, porque do outro lado havia um ambiente moralista que não lhe convinha. Levou Diego a várias casas de jogo clandestino, tal como este lhe pedira. Pareceu-lhe suspeito que o jovem tivesse tanta certeza de ganhar e advertiu-o de que se coibisse de fazer batota, porque em Nova Orleães essa falta se pagava com um punhal nas costelas.
Diego não deu ouvidos aos conselhos de Laffite, porque o mau pressentimento que tivera uns dias atrás apenas se acentuara. Precisava de dinheiro. Não conseguia ouvir Bernardo com a clareza de sempre, mas sentia que ele o chamava. Tinha de voltar à Califórnia, não só para salvar Juliana de cair nas mãos de Laffite, como porque estava certo de que alguma coisa acontecera lá que exigia a sua presença. Com o medalhão como capital inicial, jogava em diferentes lugares, para não levantar suspeitas com os seus inusitados ganhos. Era muito fácil para ele, treinado em truques de ilusionismo, substituir uma carta por outra ou fazê-la desaparecer. Além disso, tinha boa memória e talento para os números; passados poucos minutos adivinhava o jogo dos seus opositores. Assim, não perdeu o medalhão e, em contrapartida, foi enchendo a bolsa; àquele ritmo juntaria em pouco tempo os oito mil dólares americanos do resgate. Sabia conter-se. Começava por perder, para criar confiança nos outros jogadores, após o que fixava uma hora para terminar o jogo, começando depois a ganhar. Nunca se excedia. Mal os outros homens começavam a ficar comichosos, ia para outro sítio. Um dia, porém, a sorte favoreceu-o tanto que não se quis retirar e continuou a apostar. Os seus opositores tinham bebido muito e mal conseguiam focar as cartas, mas chegava-lhes a lucidez para se darem conta de que Diego fazia batota. Não tardou a armar-se uma desordem e acabaram na rua, depois de expulsarem o jovem aos empurrões, com a justificada intenção de o desfazerem com pancada. Logo que Diego conseguiu fazer-se ouvir por cima da gritaria, desafiou-os com uma proposta original.
- Um momento, meus senhores! Estou disposto a devolver o dinheiro, que ganhei honestamente, a quem for capaz de rebentar aquela porta à cabeçada - anunciou, apontando para o portão de grossa madeira com rebites metálicos do presbitério, um edifício colonial que se erguia ao lado da catedral.
Aquilo captou de imediato a atenção dos bebedolas. Estavam a discutir os termos da competição, quando apareceu um sargento que, em vez de impor a ordem, se instalou a observar a cena. Pediram-lhe que fizesse de árbitro e ele aceitou de bom grado. Saíram músicos de vários estabelecimentos e puseram-se a tocar alegres canções; em poucos minutos a praça encheu-se de curiosos. Começava a escurecer e o sargento mandou acender candeeiros. Aos jogadores juntaram-se outros homens, que iam a passar e que quiseram participar naquele inédito desporto; a ideia de arrombar uma porta com o crânio parecia-lhes extremamente divertida. Diego decidiu que os «cabeça dura» deviam pagar cinco dólares cada um para entrar no jogo. O sargento recolheu quarenta e cinco num abrir e fechar de olhos; a seguir determinou a ordem da fila. Os músicos improvisaram um rufo de tambores e o primeiro sujeito lançou-se a trote contra a porta do presbitério, com um cachecol amarrado à cabeça. A pancada deixou-o estendido no chão. Uma salva de aplausos, apupos e gargalhadas acolheu a proeza. Um par de belas crioulas aproximou-se, solícito, para socorrer o caído com um copo de orchata, enquanto o segundo da fila aproveitava a sua oportunidade de partir a cabeça, sem melhores resultados que o primeiro. Alguns participantes arrependeram-se à última hora, mas não lhes foram devolvidos os seus cinco dólares. No fim, nenhum conseguiu arrombar a porta e Diego ficou com o dinheiro ganho à mesa de jogo, mais trinta e cinco dólares da colecta. O sargento recebeu dez pelo seu incómodo e toda a gente ficou feliz.
Trouxeram os escravos para a propriedade de Laffite de noite. Desembarcaram-nos sigilosamente na praia e fecharam-nos num barracão de madeira; eram cinco homens jovens e dois de mais idade, além de duas raparigas e uma mulher com uma criança de uns seis anos agarrada às suas pernas, e outra de poucos meses nos braços. Isabel tinha saído para se refrescar no terraço e distinguiu as silhuetas que se moviam na noite, alumiadas por alguns archotes. Sem conseguir resistir à curiosidade, aproximou-se e viu de perto aquela fila de patéticos seres humanos esfarrapados. As raparigas choravam, mas a mãe caminhava em silêncio, com o olhar fixo, como um zumbi; todos arrastavam os pés, extenuados e famintos. Iam vigiados por vários piratas armados, às ordens de Pierre Laffite, que deixou a «mercadoria» no barracão e a seguir foi dar contas ao seu irmão Jean, enquanto Isabel corria a contar o que tinha visto a Diego, Juliana e Nuria. Diego vira os anúncios na cidade e sabia que dentro de um par de dias haveria um leilão de escravos em El Templo.
Em Barataria, os amigos tinham tido tempo de sobra para se informarem sobre a escravatura. Não se podiam trazer escravos de África, mas mesmo assim eles vendiam-se e «criavam-se» na América. O primeiro impulso de Diego fora tentar pô-los em liberdade, mas as suas amigas fizeram-lhe ver que, mesmo que conseguisse entrar no barracão, quebrar as correntes e convencer aquela gente a fugir, eles não teriam para onde fugir. Iriam no seu encalço com cães. A sua única esperança seria chegarem ao Canadá, mas nunca poderiam fazê-lo sozinhos. Diego decidiu averiguar, pelo menos, as condições em que se achavam os prisioneiros. Sem lhes dizer o que pensava fazer, despediu-se das amigas, pôs a sua máscara de Zorro e, aproveitando a escuridão, saiu da casa. No terraço estavam os irmãos Laffite, Pierre com um copo de uma bebida alcoólica na mão e Jean a fumar, mas não se podia aproximar para os ouvir sem correr o risco de ser descoberto, de modo que seguiu até ao barracão. A luz de um archote iluminava um único pirata que montava guarda com um mosquete ao ombro. Aproximou-se com a ideia de o colher de surpresa, mas o surpreendido foi ele, porque outro homem apareceu à sua retaguarda.
- Boa noite, boss - cumprimentou.
Diego deu meia volta e enfrentou-o, pronto para se bater, mas o sujeito tinha uma atitude descontraída e amável. Apercebeu-se então de que na escuridão ele o confundira com Jean Laffite, que vestia sempre de preto. O outro pirata aproximou-se também.
- Demos-lhes de comer e estão a descansar, boss. Amanhã levamo-los e damos-lhes roupa. Estão em boas condições, menos o bebé, que tem febre. Não creio que dure muito.
- Abram a porta; quero vê-los - disse Diego em francês, imitando o tom do corsário.
Manteve a cara na sombra enquanto eles abriam a tranca da porta, precaução inútil, porque os piratas de nada suspeitavam. Ordenou-lhes que aguardassem fora e entrou. No barracão havia um candeeiro pendurado a um canto, que oferecia uma luz débil, mas suficiente para distinguir cada um daqueles rostos que o olhavam em silêncio, aterrorizados. Todos, menos a criança e o bebé, tinham argolas de ferro ao pescoço e correntes fixadas a uns postes. Diego abeirou-se com gestos tranquilizadores, mas, ao verem a máscara, os escravos julgaram achar-se diante de um demónio e encolheram-se até onde as correntes permitiam. Foi inútil tentar comunicar com eles; não o entendiam. Compreendeu que acabavam de chegar de África: tratava-se de «mercadoria fresca», como diziam os negreiros; não tinham tido oportunidade de aprender a língua dos seus captores. Possivelmente haviam-nos levado para Cuba, onde os irmãos Laffite os teriam comprado para os revenderem em Nova Orleães. Tinham sobrevivido à viagem por mar em horríveis condições e suportado maus tratos em terra. Seriam da mesma aldeia, da mesma família? No leilão seriam separados e não se voltariam a ver. Os sofrimentos haviam-lhes quebrado o espírito; possuíam uma expressão enlouquecida. Diego deixou-os com uma opressão insuportável no coração. Já uma vez, na Califórnia, sentira aquela mesma laje a espalmar-lhe o coração, quando Bernardo e ele presenciaram o ataque dos soldados a uma aldeia de índios. Lembrava-se da sensação de impotência que então sentira, idêntica à que o angustiava neste momento.
Regressou a casa de Laffite, mudou de roupa e reuniu-se com as meninas De Romeu e Nuria para lhes comunicar o que vira. Estava desesperado.
- Quanto custam esses escravos, Diego? - perguntou Juliana.
- Não sei exactamente, mas vi as listas de leilões em Nova Orleães e, a olho, calculo que os Laffite podem obter mil dólares por cada homem jovem, oitocentos pelos outros dois, seiscentos por cada uma das raparigas e mais ou menos mil pela mãe e pelos filhos. Não sei se podem vender as crianças separadamente; são menores de sete anos.
- Quanto seria o total?
- Digamos que à roda de oito mil e oitocentos dólares.
- É muito pouco mais do que pedem pelo nosso resgate.
- Não vejo a relação - disse Diego.
- Temos dinheiro. A Isabel, a Nuria e eu decidimos usá-lo para comprar esses escravos - disse Juliana.
- Têm dinheiro? - perguntou Diego, surpreendido.
- As pedras preciosas, não te lembras?
- Pensei que os piratas vo-las tinham tirado!
Juliana e Isabel explicaram-lhe a maneira como tinham salvo a sua modesta fortuna. Enquanto navegavam no navio dos corsários, Nuria tivera a brilhante ideia de esconder as pedras, porque, se os seus captores suspeitassem da sua existência, perdê-las-iam para sempre. Engoliram-nas uma a uma com goles de vinho. Mais cedo que tarde, os diamantes, rubis e esmeraldas saíram intactos pelo outro extremo do tubo digestivo; bastou-lhes estarem atentas ao conteúdo dos bacios para os recuperarem. Não fora uma solução agradável, mas funcionara e agora as pedras, bem lavadas, estavam outra vez cosidas nos saiotes.
- Com isso podeis comprar o vosso resgate! - exclamou Diego.
- É verdade, mas preferimos pôr os escravos em liberdade, porque, mesmo que o dinheiro do teu pai nunca chegue, sabemos que o vais ganhar com a batota - - retrucou Isabel.
Jean Laffite estava sentado no terraço, com uma chávena de café e um prato de beignets, saborosas filhoses francesas, a anotar números no seu livro de contabilidade, quando Juliana apareceu com um pano amarrado pelas quatro pontas e o colocou sobre a mesa. O corsário levantou a vista e, uma vez mais, o seu coração deu um salto diante daquela jovem, que o tinha acompanhado todas as noites nos seus sonhos. Desfez o embrulho e não conseguiu conter uma exclamação.
- Quanto acha que vale isto? - perguntou ela, com as faces afogueadas, e passou a propor-lhe o negócio que tinha em mente.
Para o corsário, a primeira surpresa foi descobrir que as irmãs tinham sido capazes de esconder as pedras; a segunda, que as destinassem a comprar os escravos em vez da sua própria liberdade. Que diriam Pierre e os outros comandantes a isto? A única coisa que desejava era desfazer a má impressão que a pirataria, e agora os escravos, haviam causado em Juliana. Pela primeira vez sentia-se envergonhado das suas acções, indigno. Não pretendia conquistar o amor daquela jovem, porque ele próprio não era livre para lhe oferecer o seu, mas precisava pelo menos do seu respeito. O dinheiro não lhe importava patavina neste caso; podia recuperá-lo e, aliás, tinha mais que suficiente para tapar a boca aos sócios.
- Isso vale muito, Juliana. Chega e sobra para comprar os escravos, pagar o seu resgate, o dos seus amigos e a viagem para a Califórnia. Também dá para o seu dote e o da sua irmã - disse ele.
Juliana não imaginara que aqueles cacos de cores servissem para tanto. Dividiu as pedras em dois montinhos, um grande e outro mais pequeno, embrulhou o primeiro no lenço, meteu-o no decote e deixou o resto em cima da mesa. Fez menção de se retirar, mas ele pôs-se de pé, agitado, e segurou-a por um braço.
- Que fará com os escravos?
- Tirar-lhes as correntes, antes de mais nada; depois verei como ajudá-los.
- Está bem. É livre, Juliana. Tratarei de que possa partir em breve. Desculpe-me os dissabores que a fiz passar; não sabe como desejaria que nos tivéssemos conhecido noutras circunstâncias. Por favor, aceite isto como um presente meu - disse o pirata, entregando-lhe as pedras que ela deixara em cima da mesa.
Juliana precisara de todas as suas forças para enfrentar aquele homem e agora este gesto desarmava-a por completo. Não estava segura do seu significado, mas o instinto advertia-a de que o sentimento que a transtornava era plenamente correspondido por Laffite: o presente era uma declaração de amor. O corsário viu-a vacilar e, sem pensar, tomou-a nos braços e beijou-a em cheio na boca. Foi o primeiro beijo de Juliana, certamente o mais longo e intenso que havia de receber na sua vida. Em qualquer caso, foi o mais memorável, como sempre acontece com o primeiro. A proximidade do pirata, os seus braços a envolverem-na, o seu hálito, o seu calor, o seu cheiro viril, a língua dele dentro da sua própria boca, estremeceram-na até aos ossos. Tinha-se preparado para aquele momento com centenas de romances de amor, com anos a imaginar o galã predestinado para ela. Desejava Laffite com uma paixão acabada de estrear, mas com uma certeza antiga e absoluta. Nunca amaria outro; este amor proibido seria o único que teria neste mundo. Agarrou-se a ele, segurando-o com as duas mãos pela camisa, e devolveu-lhe o beijo com igual intensidade, enquanto se dilacerava por dentro, porque sabia que aquela carícia era uma despedida. Quando, por fim, conseguiram separar-se, ela recostou-se no peito do pirata, entontecida, tentando recuperar a respiração e o ritmo do coração, ao mesmo tempo que ele repetia o seu nome, Juliana, Juliana, num longo murmúrio.
- Tenho de ir - disse ela, desprendendo-se.
- Amo-a com toda a minha alma, Juliana, mas também amo Catherine. Nunca a abandonarei. Consegue perceber isso?
- Sim, Jean. A minha desgraça é ter-me apaixonado por si e saber que nunca poderemos estar juntos. Mas amo-o mais pela sua fidelidade a Catherine. Deus queira que ela se restabeleça depressa e que sejam felizes...
Jean Laffite quis beijá-la de novo, mas ela retirou-se a correr. Nenhum dos dois, turbados como estavam, conseguiu ver Madame Odilia, que tinha presenciado a cena a curta distância.
Juliana não tinha dúvidas de que a sua vida terminara. Não valia a pena continuar neste mundo afastada de Jean. Preferia morrer, como as heroínas trágicas da literatura, mas não suspeitava de como se contrai a tuberculose ou outra doença fina e dar cabo de si com tifo parecia-lhe indigno. Pôs de parte morrer por suas próprias mãos, porque, por muito profundo que fosse o seu sofrimento, não se podia condenar ao inferno; nem sequer Laffite merecia tal sacrifício. Ir para freira vislumbrava-se como a única opção, mas a ideia de usar um hábito no calor de Nova Orleães era pouco tentadora. Imaginava o que diria o seu falecido pai que, com a graça de Deus, fora sempre ateu, se soubesse das suas intenções. Tomás de Romeu teria preferido vê-la casada com um pirata a freira. O melhor seria partir dali assim que conseguisse transporte e acabar os seus dias a tratar de índios sob as ordens do padre Mendoza, que era um bom homem, segundo Diego. Guardaria a lembrança clara e limpa daquele beijo e a imagem de Jean Laffite, do seu rosto apaixonado, dos seus olhos de azeviche, da sua cabeleira penteada para trás, do seu pescoço e do seu peito a assomar pela camisa de seda preta, do seu fio de ouro, das suas firmes mãos a abraçá-la. Não tinha o alívio do pranto. Estava seca, gastara a sua reserva completa de lágrimas nos dias anteriores e julgava que nunca mais choraria na vida.
Estava nisto, vendo a praia pela janela e sofrendo calada a dor do seu coração destroçado, quando sentiu alguém atrás de si. Era Madame Odilia, mais espectacular que nunca, toda de linho branco, com um turbante da mesma cor, vários colares de âmbar, pulseiras nos braços e brincos de ouro nas orelhas. Uma rainha do Senegal, como a sua mãe.
- Apaixonaste-te pelo Jean - disse num tom neutro, tratando-a por tu pela primeira vez.
- Não se preocupe, madame, nunca me interporia entre a sua filha e o seu genro. Partirei daqui e ele esquecer-me-á - retorquiu Juliana.
- Para que compraste os escravos?
- Para os libertar. A senhora pode ajudá-los? Ouvi dizer que os quacres protegem os escravos e os conduzem ao Canadá, mas não sei como contactar com eles.
- Em Nova Orleães há muitos negros livres. Podem arranjar trabalho e viver lá; eu me encarregarei de os colocar - disse a rainha.
Ficou em silêncio durante um longo pedaço, observando Juliana com os seus olhos cor de avelã, remexendo nas bolas de âmbar dos seus colares, estudando-a. Calculando. Por fim, o seu duro olhar pareceu suavizar-se um pouco.
- Queres ver a Catherine? - perguntou à queima-roupa.
- Sim, madame. E gostaria de ver também o menino, para levar uma imagem de ambos; assim será mais fácil para mim visualizar da Califórnia a felicidade de Jean.
Madame Odilia conduziu Juliana a outra ala da casa, tão limpa e bem decorada como o resto, onde tinha instalado um infantário para o neto. Parecia o quarto de um pequeno príncipe europeu, salvo pelos fetiches de vudu que o protegiam do mau-olhado. Num berço de bronze com folhos de renda dormia Pierre, acompanhado pela sua ama de leite, uma negra jovem de grandes seios e olhos lânguidos, e uma menina de tenra idade, encarregada de movimentar os abanadores. A avó afastou o mosquiteiro e Juliana inclinou-se para ver o filho do homem que adorava. Pareceu-lhe lindo. Não vira muitas crianças com quem o comparar, mas teria jurado que não havia outro mais belo no mundo. Tinha somente uma fralda posta e estava de costas, de braços e pernas abertos, abandonado ao sono. Com um gesto, Madame Odilia autorizou-a a tirá-lo do berço. Quando o teve nos braços e pôde sentir o cheiro da sua cabeça calva,
ver o seu sorriso sem dentes, tocar os seus dedos como lagartinhas, a enorme pedra negra que tinha no peito pareceu reduzir-se, esboroar-se, desaparecer. Começou a beijá-lo por todo o lado, os pés descalços, a barriga com o umbigo saliente, o pescoço húmido de suor; então, um rio de lágrimas quentes banhou-lhe a cara e caiu sobre a criança. Não chorava de ciúmes pelo que nunca teria, mas sim de irreprimível ternura. A avó pôs Pierre no berço e, sem uma palavra, fez-lhe sinal para a seguir.
Cruzaram o jardim de laranjeiras e loendros, afastaram-se da casa e chegaram à praia, onde já as esperava um remador com um bote para as conduzir a Nova Orleães. Percorreram rapidamente as ruas do centro e atravessaram o cemitério. As inundações impediam que se enterrassem os mortos debaixo da terra, de modo que o cemitério era uma pequena cidade de mausoléus, alguns decorados com estátuas de mármore, outros com grades de ferro forjado, cúpulas e campanários. Um pouco mais adiante viram uma rua de casas altas e estreitas, todas iguais, com uma porta ao centro e uma janela de cada lado. Chamavam-lhes «de tiro», porque uma bala disparada contra a porta principal atravessava toda a casa e saía pela porta traseira sem tocar nenhuma parede. Madame Odilia entrou sem bater. Lá dentro havia uma desordem inaudita de garotos de várias idades, tratados por duas mulheres vestidas com aventais de calicô. A casa estava atulhada de fetiches, frascos de poções, ervas penduradas em ramos do tecto, estátuas de madeira crivadas de pregos, máscaras e um sem-fim de objectos próprios da religião vudu. Havia um cheiro doce e pegajoso, como melaço. Madame Odilia cumprimentou as mulheres e dirigiu-se a um dos pequenos compartimentos. Juliana encontrou-se diante de uma mulata escura, de ossos largos e olhos amarelos de pantera, com a pele brilhante de suor, o cabelo colhido em meia centena de tranças decoradas com fitas e contas de cores, a amamentar um recém-nascido.
Era a célebre Marie Laveau, a pitonisa que aos domingos dançava com os escravos na Praça do Congo e durante as cerimónias sagradas no bosque entrava em transe, encarnando os deuses.
- Trouxe-ta, para que me digas se é ela - disse Madame Odilia.
Marie Laveau pôs-se de pé e aproximou-se de Juliana, com o bebé preso ao seio. Tinha-se proposto ter um filho todos os anos, enquanto a juventude lho permitisse, e já tinha cinco. Pôs-lhe três dedos na testa e olhou-a longamente nos olhos. Juliana sentiu uma energia formidável, uma chicotada que a sacudiu dos pés à cabeça. Passou um minuto completo.
- É ela - disse Marie Laveau.
- Mas é branca - objectou Madame Odilia.
- Já te disse que é ela - repetiu a sacerdotisa, com isso dando por terminada a entrevista.
A rainha do Senegal levou Juliana de regresso ao molhe, voltaram a cruzar o cemitério e a Plaza de Armas e reuniram-se ao remador, que as tinha esperado paciente, fumando o seu tabaco. O homem conduziu-as por outro caminho até à zona dos pântanos. Não tardou que se encontrassem no labirinto do lameiro, com os seus canais, charcos, lagoas e ilhéus. A solidão absoluta da paisagem, os miasmas do lodaçal, as súbitas rabanadas dos caimões, os gritos dos pássaros, tudo contribuía para criar um ar de mistério e perigo. Juliana deu-se conta de que não tinha avisado ninguém da sua partida. A irmã e Nuria já deviam andar à sua procura. Ocorreu-lhe que aquela mulher podia ter intenções malévolas, pois, no fim de contas, era a mãe de Catherine, mas imediatamente rejeitou a ideia. A travessia pareceu-lhe muito demorada, o calor começou a adormecê-la e sentia sede; caíra a tarde e o ar encheu-se de mosquitos. Não se atreveu a perguntar onde iam. Depois de um longo tempo de viagem, quando começava a escurecer, atracaram numa margem.
O remador ficou ao pé do bote e Madame Odilia acendeu uma lanterna, tomou Juliana pela mão e guiou-a entre os pastos altos, onde não havia nem um rasto que indicasse a direcção. «Cuidado para não pisares nenhuma víbora», foi tudo o que lhe disse. Caminharam um longo trecho e, por fim, a rainha encontrou o que procurava. Era uma pequena clareira entre as pastagens, com duas árvores altas, malhadas de musgo e marcadas com cruzes. Não eram cruzes cristãs, mas sim cruzes de vudu, que simbolizavam a intersecção dos dois mundos, o dos vivos e o dos mortos. Várias máscaras e figuras de deuses africanos, talhadas em madeira, vigiavam o lugar. À luz da lanterna e da lua, a cena era aterradora.
- A minha filha está ali - disse Madame Odilia, apontando o solo.
Catherine Villars morrera de febre puerperal havia cinco semanas. Nem os recursos da ciência médica, nem as orações cristãs, nem os encantamentos e ervas da magia africana tinham conseguido salvá-la. A mãe e outras mulheres envolveram o seu corpo, consumido pela infecção e pelas hemorragias, e transportaram-no para aquele lugar sagrado no lameiro, onde fora enterrado temporariamente, até que a jovem defunta apontasse a pessoa destinada a substituí-la. Catherine não podia permitir que o seu filho caísse nas mãos de qualquer mulher escolhida por Jean Laffite, segundo explicou a rainha do Senegal. O seu dever de mãe era ajudá-la nessa tarefa, razão pela qual ocultara a sua morte. Catherine encontrava-se numa região intermédia, ia e vinha entre dois mundos. Não ouvira, porventura, Juliana os seus passos na casa de Laffite? Não a tinha visto de pé junto à sua cama de noite? Aquele cheiro a laranjas que flutuava na ilha era o perfume de Catherine, que no seu novo estado vigiava o pequeno Pierre e procurava a madrasta adequada. Madame Odilia ficou surpreendida por Catherine ter ido ao outro lado do mundo para encontrar Juliana e não lhe agradava a ideia de ter escolhido uma branca, mas quem era ela para se opor? Da região dos espíritos, Catherine podia decidir melhor que ninguém o que era mais conveniente. Assim lhe tinha assegurado Marie Laveau ao ser consultada. «Quando aparecer a mulher adequada, eu saberei reconhecê-la», prometera a sacerdotisa. Madame Odilia tivera a primeira suspeita de que podia ser Juliana ao ver que ela amava Jean Laffite, estando disposta a renunciar a ele por respeito a Catherine, e a segunda, quando a jovem se compadecera da sorte dos escravos. Agora estava satisfeita, disse, porque a sua pobre filha descansaria tranquila no céu e poderia ser enterrada no cemitério, onde a subida das águas não arrastaria o seu corpo para o mar.
Teve de repetir vários pormenores, porque a história não entrava na cabeça a Juliana. Não podia acreditar que aquela mulher tivesse ocultado a verdade a Jean durante cinco semanas. Como lho explicaria agora? Madame Odilia disse que não havia nenhuma necessidade de que o genro tomasse conhecimento de todo o assunto. A data exacta vinha a dar no mesmo; dir-lhe-ia que Catherine tinha morrido no dia anterior.
- Mas Jean exigirá ver o corpo! - alegou Juliana.
- Isso não é possível. Só nós, as mulheres, podemos ver os cadáveres. A nossa missão é trazer crianças ao mundo e dizer adeus aos mortos. Jean terá de o aceitar. Depois do funeral de Catherine, ele pertence-te - replicou a rainha.
- Pertence-me?... - balbuciou Juliana, desconcertada.
- A única coisa que importa neste caso é o meu neto Pierre. Laffite é apenas o meio que Catherine usou para te confiar o filho. Ela e eu velaremos por que cumpras a tua obrigação. Para isso, é necessário que permaneças junto do pai da criança e o mantenhas satisfeito e tranquilo.
- Jean não é o tipo de homem que possa estar satisfeito e tranquilo; é um corsário, um aventureiro...
- Dar-te-ei poções mágicas e os segredos para o satisfazeres na cama, como os dei a Catherine quando fez doze anos.
- Não sou uma mulher dessas... - defendeu-se Juliana, enrubescendo.
- Não te preocupes; sê-lo-ás, embora não tão hábil como Catherine, porque já és um pouco velha para aprender e tens muitas ideias parvas na cabeça, mas Jean não notará a diferença. Os homens são desajeitados, o desejo cega-os, sabem muito pouco do prazer.
- Não posso empregar truques de cortesã ou poções mágicas, madame!
- Queres Jean ou não, menina?
- Sim - admitiu Juliana.
- Então terás de te esforçar. Deixa-o nas minhas mãos. Fá-lo-ás feliz e é possível que tu também o sejas, mas aviso-te de que deves considerar Pierre como teu próprio filho ou terás de te haver comigo. Percebeste bem?
Não sei como transmitir-vos na sua verdadeira magnitude, estimados leitores, a reacção do infeliz Diego de La Vega ao saber o que acontecera. O barco seguinte para Cuba zarpava de Nova Orleães dentro de dois dias; comprara passagens e tinha tudo preparado para sair a toda a pressa do couto de caça de Jean Laffite com Juliana de rojo. Ia salvar a sua amada, no fim de contas. Votara-lhe a alma e o corpo, quando lhe saíram as contas furadas e, afinal, o seu rival era viúvo. Lançou-se aos pés de Juliana para a convencer da estupidez que estava a cometer. Bem, isto é uma maneira de dizer. Ficou de pé, a andar de um lado para outro a grandes passadas, gesticulando, arrepelando os cabelos, dando gritos, enquanto ela o olhava impávida, com um sorriso palerma no rosto de sereia. Vá lá alguém convencer uma mulher apaixonada! Diego julgava que na Califórnia, longe do corsário, a jovem recuperaria a razão e ele recuperaria o tempo perdido.
Juliana teria de ser muito burra para continuar a amar um sujeito que traficava com escravos. Confiava em que, no fim, Juliana saberia apreciar um homem como ele, tão bem-parecido e valente como Laffite, mas muito mais novo, honesto, de recto coração e sãs intenções, que podia oferecer-lhe uma vida muito confortável sem assassinar inocentes para os roubar. Ele era quase perfeito e adorava-a. Por Deus! Que mais queria Juliana? Nada lhe bastava! Era um poço sem fundo! A verdade é que tinham bastado umas poucas semanas em Barataria para apagar de uma penada os avanços que ele conseguira em cinco anos a cortejá-la. Qualquer um mais esperto teria chegado à conclusão de que aquela jovem possuía um coração volúvel, mas Diego não. A vaidade impedia-o de ver claro, como costuma ser o caso dos galãs como ele.
Isabel observava a cena, pasmada. Nas últimas quarenta e oito horas tinham sucedido tantas coisas, que era incapaz de as recordar por ordem. Digamos que foi mais ou menos assim: depois de soltar as correntes dos escravos, alimentá-los, dar-lhes roupa e explicar-lhes com grande dificuldade que eram livres, presenciaram uma cena lancinante quando morreu o bebé que tinha chegado agónico. Foi precisa a força de três homens para tirar o corpo inerte à mãe e não houve maneira de a acalmar; ainda se ouviam os seus uivos, acompanhados pelos cães da ilha. Os infelizes escravos não percebiam a diferença entre serem livres e não o serem, se, de qualquer maneira, tinham de permanecer naquele detestável lugar. O seu único desejo era regressar a África. Como iam sobreviver nesta terra hostil e bárbara? O negro que fazia de intérprete procurava apaziguá-los com a promessa de que não lhes faltaria como ganhar a vida; eram sempre precisos mais piratas na ilha, com um pouco de sorte as raparigas arranjariam marido, e a pobre mãe poderia arranjar emprego numa família; ensiná-la-iam a cozinhar e não teria de se separar da outra criança. Inútil: o mísero grupo repetia como uma litania que os enviassem de volta a África.
Juliana regressou da sua longa excursão com Madame Odilia transformada por uma imensa felicidade e contando uma história capaz de arrepiar os cabelos ao mais sensato. Fez Diego, Isabel e Nuria jurar que não repetiriam nem uma palavra, em seguida largou-lhes a novidade de que Catherine Villars não estava nada doente, sendo antes uma espécie de zumbi e, além disso, tinha-a escolhido a ela para ser a madrasta do pequeno Pierre. Casar-se-ia com Jean Laffite, só que ele ainda não o sabia; dir-lho-ia depois do funeral de Catherine. Como presente de casamento pensava pedir-lhe que renunciasse para sempre ao tráfico de escravos: era a única coisa que não podia tolerar; as outras velhacarias não lhe importavam tanto. Confessou, também, um pouco ruborizada, que Madame Odilia a ia ensinar a fazer amor como o pirata gostava. Nessa altura, Diego perdeu o controlo. Juliana estava demente, não restavam dúvidas. Havia uma mosca que transmitia aquela doença, decerto a tinha picado. Pensava que ele a deixaria nas mãos daquele criminoso? Não prometera porventura a Dom Tomás de Romeu, que Deus tenha, conduzi-la sã e salva à Califórnia? Cumpriria a sua promessa, nem que tivesse de levá-la à carolada.
Jean Laffite sofreu muitas e variadas emoções nessas horas. O beijo deixara-o atordoado. Renunciar a Juliana era a coisa mais difícil que lhe calhara na vida; precisaria de toda a coragem, que não era pouca, para se sobrepor ao despeito e à frustração. Reuniu-se com o irmão e os outros comandantes para lhes entregar a respectiva parte da venda dos escravos e do resgate dos reféns, que, por sua vez, eles repartiriam com justiça entre os restantes homens. O dinheiro saía da sua própria bolsa, foi a única explicação que ofereceu. Os comandantes, admirados, fizeram-lhe ver que, do ponto de vista comercial, aquilo não tinha o menor sentido: para que diabo trazia escravos e reféns, com as consabidas despesas e maçadas, se pensava soltá-los gratuitamente?
Pierre Laffite esperou que os outros saíssem para manifestar a sua opinião a Jean. Pensava que este perdera a capacidade para dirigir os negócios, tinha-lhe amolecido o cérebro, talvez tivesse chegado o momento de o destituir.
- De acordo, Pierre. Submetê-lo-emos a votação entre os homens, como é habitual. Desejas substituir-me? - desafiou-o Jean.
Como se não bastasse, daí a poucas horas viera a sogra dar-lhe a notícia de que Catherine tinha morrido. Não, não podia vê-la. O funeral realizar-se-ia dentro de um par de dias em Nova Orleães, com a presença da comunidade crioula. Haveria um breve rito cristão, para apaziguar o padre, e a seguir uma cerimónia africana, com banquete, música e dança, como competia. A mulher estava triste, mas serena, e teve suficiente fortaleza de ânimo para o consolar quando ele desatou a chorar como uma criança. Adorava Catherine, tinha sido a sua companheira, o seu único amor, soluçava Laffite. Madame Odilia dera-lhe um gole de rum e umas palmadinhas no ombro. Não sentia uma compaixão desmedida pelo viúvo, porque sabia que muito depressa esqueceria Catherine noutros braços. Por decência, Jean Laffite não podia ir a correr pedir a Juliana que se casasse com ele, tendo de esperar um espaço de tempo prudente, mas a ideia já tomara forma na sua mente e no seu coração, embora ainda não se atrevesse a traduzi-la em palavras. A perda da esposa era terrível, mas oferecia-lhe uma inesperada liberdade. Até na sepultura, a doce Catherine satisfazia os seus mais recônditos desejos. Estava disposto a mudar de rumo por Juliana. Os anos passavam depressa, estava farto de viver com uma pistola à cinta e a possibilidade de lhe porem a cabeça a prémio a qualquer momento. Naqueles anos tinha acumulado uma fortuna; Juliana e ele poderiam ir com o pequeno Pierre para o Texas, onde iam parar habitualmente os rufiões, e dedicar-se a outras actividades menos perigosas, embora sempre ilegais. Tráfico de escravos, nem pensar, claro está, porque, pelos vistos, irritava a sensibilidade de Juliana.
Laffite nunca tolerara que uma mulher interferisse nos seus negócios e ela não seria a primeira, mas tão-pouco podia arruinar o casamento discutindo por causa disso. Sim, iriam para o Texas, já o decidira. Esse lugar oferecia muitas possibilidades a um homem de moral flexível e espírito aventureiro. Estava disposto a renunciar à pirataria, embora isso não significasse converter-se em cidadão respeitável; também não era preciso exagerar.
Alta Califórnia, 1815
Diego, Isabel e Nuria embarcaram numa goleta no porto de Nova Orleães na Primavera de 1815. Juliana ficou. Lamento que assim fosse, porque todo o leitor de bom coração espera um desenlace romântico a favor do herói. Compreendo que a decisão de Juliana é decepcionante, mas não podia ser de outra maneira, visto que no seu lugar a maioria das mulheres teria agido do mesmo modo. Devolver um pecador ao bom caminho é um projecto irresistível, e Juliana propôs-se-lhe com zelo religioso. Isabel perguntou-lhe por que razão nunca tentara fazer o mesmo com Rafael Moncada e ela explicou-lhe que não valia a pena o esforço, porque Moncada não era homem de vícios espantosos, como Laffite, mas sim de mesquinhezes. «E essas, como toda a gente sabe, não têm cura», acrescentou a bela. Nessa época ainda faltava muito ao Zorro para merecer uma mulher que se desse ao trabalho de o reformar.
Chegámos à quinta e última parte deste livro. Falta pouco para nos despedirmos, estimados leitores, uma vez que a história termina quando o herói regressa ao ponto de partida, transformado pelas suas aventuras e pelos obstáculos superados. Isto é o habitual nas narrativas épicas, desde a Odisseia até aos contos de fadas, e não serei eu quem pretenda inovar.
O tremendo chinfrim que Diego fez ao ter conhecimento da decisão de Juliana de ficar com Laffite em Nova Orleães não valeu de nada, porque ela o enxotou como se fosse um mosquito. Quem era Diego para lhe dar ordens? Nem sequer estavam ligados por laços de sangue, alegou. Além disso, ela tinha idade de sobra para saber o que lhe convinha. Como último recurso, Diego desafiou o pirata para um duelo de morte «a fim de defender a honra da menina De Romeu», como disse, mas nessa altura este informou-o de que se tinham casado naquela mesma manhã numa paróquia crioula, na maior intimidade, sem outras testemunhas além do seu irmão Pierre e Madame Odilia. Tinham-no feito assim para evitarem as cenas que, sem dúvida, fariam aqueles que não entendiam as urgências do amor. Não havia nada a fazer, a união era legal. Assim, Diego perdeu para sempre a sua amada e, presa da maior angústia, jurou permanecer solteiro durante o resto dos seus dias. Ninguém o acreditou. Isabel fez-lhe ver que Laffite não duraria muito neste mundo, dado o seu perigoso estilo de vida, e que, mal Juliana ficasse viúva, ele podia voltar a persegui-la até à exaustão, mas este argumento foi insuficiente consolo para Diego.
Nuria e Isabel despediram-se de Juliana com muito choro, apesar das promessas de Laffite de que em breve iriam à Califórnia visitá-las. Nuria, que considerava as meninas De Romeu como suas próprias filhas, hesitava entre ficar com Juliana para a defender do vudu, dos piratas e de outros dissabores que, sem dúvida, o destino lhe reservava, e seguir para a Califórnia com Isabel, que, apesar de ser vários anos mais nova, precisava menos dela. Juliana resolveu o dilema exigindo-lhe que se fosse embora, porque a reputação de Isabel ficaria manchada para sempre se fosse sozinha com Diego de la Vega. Como presente de despedida, Laffite deu à ama um fio de ouro e uma peça da mais fina seda. Nuria escolheu-a de cor negra, por causa do luto.
A goleta afastou-se do porto no meio de um aguaceiro quente, como tantos que ocorriam diariamente nessa época, e Juliana ficou lavada em lágrimas e salpicada de chuva, com o pequeno Pierre nos braços, escoltada pelo seu inefável corsário e pela rainha do Senegal, constituída em sua instrutora e guardiã. Juliana vestia com simplicidade, ao gosto do marido, e irradiava tanta felicidade que Diego desatou a chorar. Nunca lhe tinha parecido tão formosa como no momento de a perder. Juliana e Laffite formavam um esplêndido par, ele todo de preto com um papagaio no ombro, ela de musselina branca, ambos parcialmente protegidos pelos guarda-chuvas seguros por duas raparigas africanas, antes escravas e agora livres. Nuria fechou-se no seu camarote para que não a vissem chorar aos gritos, enquanto Diego e Isabel, desconsolados, lhes diziam adeus com a mão até os perderem de vista. Diego engolia as lágrimas pelas razões que conhecemos e Isabel porque se separava da irmã. Além disso, há que dizê-lo, tinha alimentado ilusões a respeito de Laffite, o primeiro homem a chamar-lhe bonita. Assim é a vida, pura ironia. Retomemos a história.
O navio levou as nossas personagens a Cuba. A histórica cidade de Havana, com as suas casas coloniais e o seu longo molhe, banhada pelo mar cristalino e pela luz impossível das Caraíbas, oferecia prazeres decadentes que nenhuma soube aproveitar; Diego por estar despeitado, Nuria por se sentir velha e Isabel porque não lho permitiram. Vigiada pelos outros dois, a jovem não pôde visitar os casinos nem participar nos desfiles de alegres músicos ambulantes. Pobres e ricos, brancos e negros, comiam nas tabernas e casas de pasto da rua, bebiam desmesuradamente rum e dançavam até de madrugada. Se lhe tivessem dado oportunidade, Isabel teria renunciado à virtude espanhola, que de pouco lhe tinha valido até então, para fazer uma incursão na luxúria caribe, que parecia bem mais interessante, mas ficou com a vontade. Pelo dono do hotel tiveram notícias de Santiago de León. O comandante conseguira chegar a salvo a Cuba com os outros sobreviventes do ataque dos corsários e, mal se recuperara da insolação e do susto, embarcara para Inglaterra. Pensava cobrar o dinheiro de um seguro e retirar-se para uma casinha no campo, onde continuaria a desenhar mapas fantásticos para coleccionadores de raridades.
Os três amigos permaneceram em Havana vários dias, que Diego aproveitou para mandar fazer um par de indumentárias completas de Zorro, copiadas de Jean Laffite. Ao ver-se ao espelho da alfaiataria, teve de admitir que o seu rival era de uma elegância inquestionável. Viu-se de frente e de perfil, pôs uma mão na anca e outra no punho da arma, levantou o queixo e sorriu muito satisfeito; possuía uns dentes perfeitos e gostava de os mostrar. Pensou que tinha um ar magnífico. Pela primeira vez lamentou a questão da dupla personalidade; gostaria de andar sempre assim vestido. «Enfim, não se pode ter tudo na vida», suspirou. Só faltavam a máscara para achatar as orelhas e o bigodinho postiço para despistar os seus inimigos, e o Zorro estava pronto para aparecer onde a sua espada fosse necessária. «A propósito, jeitoso, precisas de uma segunda espada», disse à imagem do espelho. Nunca se separaria da sua querida Justina, mas um só aço não era suficiente. Mandou entregar as suas novas farpelas ao hotel e foi percorrer os armeiros do porto à procura de uma espada parecida com a que Pelayo lhe oferecera. Encontrou exactamente o que desejava e comprou também um par de adagas mouriscas, finas e flexíveis, mas muito fortes. O dinheiro mal ganho nas casas de jogo clandestino de Nova Orleães escapou-se-lhe rapidamente das mãos e, uns dias mais tarde, quando conseguiram embarcar rumo a Portobelo, ia tão pobre como quando Jean Laffite o sequestrara.
Para Diego, que havia atravessado antes o istmo do Panamá em sentido contrário, essa parte da viagem não foi tão interessante como para Nuria e Isabel, que nunca tinham visto sapos peçonhentos e muito menos indígenas nus. Horrorizada, Nuria cravou os olhos no rio Chagres, convencida de que os seus piores receios sobre a selvajaria das Américas se veriam confirmados. Isabel, em contrapartida, aproveitou aquela exibição de nudismo para satisfazer uma curiosidade antiga. Havia anos que perguntava a si mesma como seria a diferença entre homens e mulheres. Teve uma desilusão, porque essa diferença lhe cabia folgadamente no bolso, como lhe comentou a ama. Em todo o caso, graças aos rosários de Nuria, livraram-se de contrair malária ou de serem mordidos por víboras e chegaram sem tropeços ao porto do Panamá. Ali arranjaram um barco que os levou até à Alta Califórnia.
O barco largou ferro no pequeno porto de San Pedro, perto de Los Angeles, e os viajantes foram conduzidos de bote à praia. Não foi fácil descer Nuria pela escada de corda. Um marinheiro de boa vontade e firmes músculos agarrou-a pela cintura sem lhe pedir licença, pô-la ao ombro e arriou-a como se fosse um saco de açúcar. Ao aproximarem-se de terra, viram a figura de um índio que lhes fazia sinais com a mão. Momentos depois, Diego e Isabel começaram a soltar gritos de alegria ao reconhecerem Bernardo.
- Como sabia ele que chegávamos hoje? - perguntou Nuria, admirada.
- Eu avisei-o - retorquiu Diego, sem oferecer explicações
de como o fizera.
Bernardo tinha aguardado naquele sítio durante mais de uma semana, quando tivera o claro pressentimento de que o irmão estava para chegar.
Não duvidara da mensagem telepática e instalara-se a observar o mar com infinita paciência, certo de que, mais tarde ou mais cedo, apareceria um navio no horizonte. Não sabia que Diego vinha acompanhado, mas calculava que traria bastante bagagem, tendo por isso tomado a precaução de levar vários cavalos. Tinha mudado tanto que Nuria teve dificuldade em reconhecer naquele índio corpulento o discreto criado que conhecera em Barcelona. Bernardo vestia apenas umas calças de linho atadas à cintura com uma faixa de pele de vaca. Estava muito queimado do sol, com a pele muito escura e o cabelo comprido entrançado. Trazia um punhal à cinta e um mosquete em bandoleira.
- Como estão os meus pais? E Raio na Noite e o teu filho? - foram as primeiras inquietações de Diego.
Por sinais, Bernardo respondeu que havia más notícias e tinham de ir directamente para a Missão San Gabriel, onde o padre Mendoza lhes daria as devidas explicações. Ele próprio estava a viver entre os índios havia vários meses e não se encontrava a par dos pormenores. Amarraram parte da bagagem a um dos cavalos, enterraram o resto na areia e marcaram o sítio com pedras, para o recolherem mais tarde, após o que montaram nas outras cavalgaduras e seguiram para a missão. Diego apercebeu-se de que Bernardo os levava por um desvio, evitando o Camino Real e a fazenda De La Vega. Depois de galopar algumas léguas, viram os terrenos da missão. Diego deixou escapar uma exclamação de surpresa ao verificar que os campos, plantados com tanta dedicação pelo padre Mendoza, tinham sido invadidos pelas ervas daninhas, faltava metade das telhas aos telhados e as cabanas dos neófitos pareciam abandonadas. Reinava um ar de miséria no que antes fora uma propriedade muito próspera. Ao barulho de cascos surgiram umas quantas índias com as suas crianças às costas e, poucos instantes depois, apareceu o padre Mendoza no pátio. O missionário tinha-se desgastado muito naqueles cinco anos; parecia um ancião frágil, com uns cabelos ralos no crânio que não conseguiam tapar a cutilada da orelha perdida. Sabia que Bernardo estava à espera do irmão e não duvidava desse pressentimento, pelo que a chegada de Diego não foi uma surpresa. Abriu-lhe os braços e o jovem saltou do cavalo e correu a cumprimentá-lo. Diego, que agora media mais uma cabeça que o sacerdote, teve a sensação de estreitar apenas um monte de ossos e apertou-se-lhe o coração de angústia ao verificar a passagem do tempo.
- Esta menina é Isabel, filha de Dom Tomás de Romeu, que Deus tenha à Sua mão direita, e esta senhora é Nuria, a sua ama - apresentou-as Diego.
- Bem-vindas à missão, minhas filhas. Imagino que a viagem tenha sido muito cansativa. Podeis lavar-vos e descansar, enquanto Diego e eu pomos a escrita em dia. Avisar-vos-ei quando estivermos prontos para jantar - disse o padre Mendoza.
As notícias eram piores do que Diego imaginava. Os seus pais tinham-se separado havia cinco anos; no mesmo dia em que ele partira para ir estudar em Espanha, Regina saíra de casa levando apenas a roupa que tinha no corpo. Desde então, vivia com a tribo de Coruja Branca e ninguém a vira na povoação ou na missão; diziam que renunciara às suas maneiras de dama espanhola e estava convertida na mesma índia brava que fora na juventude. Bernardo, que vivia na mesma tribo, confirmou as suas palavras. A mãe de Diego usava agora o seu nome indígena, Toypurnia, e preparava-se para substituir um dia Coruja Branca como curandeira e xamã. A reputação de visionárias das duas mulheres tinha-se estendido para lá da serra e os índios de outras tribos vinham de longe para as consultarem. Entretanto, Alejandro de La Vega proibira a simples menção do nome de sua mulher, mas nunca conseguira habituar-se à sua ausência e envelhecera de tristeza. Para não dar explicações à mesquinha sociedade branca da colónia, deixara o seu cargo de alcaide e dedicara-se por completo à fazenda e aos seus negócios, multiplicando a sua fortuna. De pouco lhe valera o trabalho, porque havia uns meses, justamente quando Diego se encontrava com os ciganos em Espanha, Rafael Moncada tinha chegado à Califórnia, na qualidade de enviado plenipotenciário do rei Fernando VII, com a missão oficial de dar informações sobre o estado político e económico da colónia. O seu poder era superior ao do governador e do chefe militar da praça. Diego não teve dúvidas de que Moncada conseguira o cargo por intermédio da influência de sua tia Eulália de Callís, e que a sua única razão para se afastar da corte espanhola era a esperança de apanhar Juliana. Assim manifestara ao padre Mendoza.
- Moncada deve ter apanhado um balde de água fria ao verificar que a menina De Romeu não estava aqui - disse Diego.
- Supôs que vós viríeis a caminho, visto que ficou. Entretanto não perdeu o seu tempo; consta que está a fazer uma fortuna - retrucou o missionário.
- Esse homem odeia-me por muitas razões, sendo a principal que ajudei Juliana a furtar-se às suas atenções - explicou-lhe Diego.
- Agora percebo melhor o sucedido, Diego. A ganância não é a única motivação de Moncada; também se quis vingar de ti... - suspirou o padre Mendoza.
Rafael Moncada iniciou o seu mandato na Califórnia confiscando a fazenda De La Vega, depois de ordenar a prisão do seu dono, que acusou de encabeçar uma rebelião para tornar a Califórnia independente do reino de Espanha. Não existia tal movimento, assegurou o padre Mendoza a Diego; a ideia ainda não passava pelas cabeças dos colonos, apesar de o germe da rebelião ter começado em alguns países da América do Sul e estar a alastrar como pólvora no resto do continente. Com a infundada acusação de traição, Alejandro de La Vega fora dar com os ossos na temível prisão de El Diablo.
Moncada instalara-se com o seu séquito na fazenda, agora convertida em sua residência e quartel-general. O missionário acrescentou que aquele homem tinha feito muito mal em pouco tempo. Também ele estava na mira de Moncada, porque defendia os índios e atrevia-se a cantar-lhe certas verdades, mas pagava-as caras: a missão estava arruinada. Moncada negava-lhe os recursos habituais e, além disso, tinha levado os homens: não restavam braços para trabalhar a terra; só mulheres, crianças e velhos. As famílias indígenas estavam desfeitas, as pessoas desmoralizadas. Corriam rumores sobre um negócio de pérolas, montado por Rafael Moncada, para o qual empregava o trabalho forçado dos índios. As pérolas da Califórnia, mais valiosas que o ouro e a prata de outras colónias, tinham contribuído para o tesouro de Espanha durante dois séculos, mas chegara um momento em que a exploração desmedida acabara com elas, explicou o missionário. Ninguém voltara a recordar-se das pérolas durante cinquenta anos, o que dera tempo às ostras para se recuperarem. As autoridades, ocupadas com outros assuntos e embrenhadas na burocracia, careciam de iniciativa para empreender a busca. Supunha-se que os novos bancos de ostras estavam mais a norte, próximo de Los Angeles, mas ninguém se dera ao trabalho de o confirmar até que aparecera Moncada com umas cartas marítimas. O padre Mendoza julgava que se tinha proposto obter as pérolas sem informar Espanha, visto que, em princípio, estas pertenciam à Coroa. Para as explorar precisava de Carlos Alcázar, chefe da prisão de El Diablo, que providenciava escravos para o mergulho. Estavam ambos a enriquecer com rapidez e discrição. Antigamente, os pescadores de pérolas eram índios Yaquis do México, homens muito fortes, que durante gerações tinham trabalhado no mar e eram capazes de estar quase dois minutos completos debaixo de água, mas transferi-los para a Alta Califórnia teria chamado a atenção. Como alternativa, os sócios decidiram utilizar os índios da região, que não eram exímios nadadores e nunca se teriam prestado de boa vontade àquela faina. Isso não constituía problema: arrastavam-nos com qualquer desculpa e exploravam-nos até lhes rebentarem os pulmões. Embebedavam-nos ou moíam-nos de pancada e ensopavam-lhes a roupa de álcool, após o que os arrastavam à presença do juiz, que fazia vista grossa. Assim, os infelizes iam parar a El Diablo, apesar das desesperadas diligências do missionário. Diego quis saber se o seu pai se encontrava lá, e o padre Mendoza confirmou-lhe que assim era. Dom Alejandro estava doente, fraco, e não sobreviveria muito mais naquele lugar, acrescentou. Era o mais velho e o único branco entre os presos; os restantes eram índios ou mestiços. Quem entrava naquele inferno não saía com vida; tinham morrido vários nos últimos meses. Ninguém se atrevia a falar do que acontecia entre aquelas paredes, nem guardas nem presos; um silêncio sepulcral envolvia El Diablo.
- Já nem sequer posso levar consolo espiritual àquelas pobres almas. Dantes ia com frequência dizer missa, mas tive uma troca de palavras com Carlos Alcázar e proibiram-me a entrada. Em meu lugar virá em breve um sacerdote da Baixa Califórnia.
- Esse Carlos Alcázar é o ferrabrás tão temido quando éramos pequenos? - perguntou Diego.
- O mesmo, filho. Com os anos o seu carácter piorou, é um homem déspota e cobarde. A sua prima Lolita, em contrapartida, é uma santa. A rapariga costumava acompanhar-me à prisão para levar medicamentos, comida e cobertores aos presos, mas, infelizmente, não tem influência sobre Carlos.
- Eu lembro-me de Lolita. A família Pulido é nobre e virtuosa. Francisco, irmão de Lolita, estudava em Madrid. Mantivemos alguma correspondência quando eu estava em Barcelona - comentou Diego.
- Enfim, meu filho, a situação de Dom Alejandro é muito grave; és tu a sua única esperança, tens de intervir com urgência - concluiu o padre Mendoza.
Havia um bom pedaço que Diego se passeava pelo quarto procurando controlar a indignação que o embargava. Da sua cadeira, Bernardo seguia a conversa com os olhos pregados no irmão, enviando-lhe mensagens mentais. O primeiro impulso de Diego fora ir procurar Moncada para se bater com ele, mas o olhar de Bernardo fê-lo compreender que, naquelas circunstâncias, se requeria mais astúcia que coragem; aquela missão competia ao Zorro e seria necessário levá-la a cabo com a cabeça fria. Puxou de um lenço de renda para enxugar a fronte com ar afectado e suspirou.
- Irei a Monterrey falar com o governador. Ele é amigo do meu pai - propôs.
- Já o fiz, Diego. Quando Dom Alejandro foi detido, falei pessoalmente com o governador, mas ele respondeu-me que não tem autoridade sobre Moncada. Tão-pouco me escutou quando lhe sugeri que averiguasse por que razão morrem tantos presos em El Diablo - retorquiu o missionário.
- Então terei de ir ao México falar com o vice-rei.
- Isso demoraria meses! - alegou o padre Mendoza. Custava-lhe a crer que o atrevido rapaz, que trouxera ao mundo com as suas próprias mãos e vira crescer, se tivesse tornado um dândi. Espanha tinha-lhe amolecido o cérebro e os músculos, era uma vergonha. Tinha rezado muito para que Diego regressasse a tempo de salvar o pai e a resposta às suas orações era aquele janota com lencinho de renda. Mal conseguia disfarçar o desprezo que o jovem lhe causava.
O missionário mandou avisar Isabel e Nuria de que o jantar estava à espera e sentaram-se os quatro à mesa. Uma índia trouxe um tacho de greda com umas papas de milho e uns pedaços de carne cozida, dura e insonsa como sola. Não havia pão, vinho nem vegetais; faltava inclusivamente o café, o único vício que o padre Mendoza se permitia. Estavam a comer em silêncio, quando ouviram barulho de cascos e vozes no pátio; momentos mais tarde irrompeu na sala um grupo de homens uniformizados sob o comando de Rafael Moncada.
- Excelência! Que surpresa! - exclamou Diego, sem se pôr de pé.
- Acabo de tomar conhecimento da vossa chegada - retorquiu Moncada, procurando Juliana com o olhar.
- Aqui estamos, tal como lhe prometemos em Barcelona, senhor Moncada. Posso saber como saiu da câmara secreta? - perguntou-lhe Isabel, trocista.
- Onde está a sua irmã? - interrompeu-a Moncada.
- Ah! Encontra-se em Nova Orleães. Tenho o prazer de o notificar de que Juliana está felizmente casada.
- Casada! Não pode ser! Com quem? - gritou o despeitado pretendente.
- Com um endinheirado e bem-parecido homem de negócios, que conseguiu apaixoná-la à primeira vista - explicou Isabel, com a expressão mais inocente do mundo.
Rafael Moncada deu um murro na mesa e apertou os lábios para não soltar uma enfiada de impropérios. Não podia acreditar que Juliana se lhe tivesse escorrido mais uma vez das mãos. Tinha atravessado o mundo, deixado o seu lugar na corte e adiado a sua carreira por ela. Era tanta a sua fúria que, nesse instante, tê-la-ia estrangulado com as suas próprias mãos. Diego aproveitou a pausa para se aproximar de um sargento gordo e suado, que o olhava com olhos de cão manso.
- Garcia? - perguntou.
- Dom Diego de La Vega... Reconheceis-me... Que honra! - murmurou o sargento, feliz.
- Ora essa! O inconfundível Garcia! - exclamou Diego, abraçando-o.
Aquela inapropriada demonstração de afecto entre Diego e o seu próprio sargento desconcertou brevemente Moncada.
- Aproveito esta oportunidade para lhe perguntar pelo meu pai, Excelência - disse Diego.
- É um traidor e como tal será castigado - retorquiu Moncada, cuspindo cada palavra.
- Traidor? Não pode dizer isso do senhor De La Vega, Excelência! O senhor é novo por estas terras, não conhece as pessoas. Mas eu nasci aqui e posso dizer-lhe que a família De La Vega é a mais honrada e distinta de toda a Califórnia... - interveio o sargento Garcia, angustiado.
- Silêncio, Garcia! Ninguém pediu a tua opinião! - interrompeu-o Moncada, fulminando-o com um olhar cortante.
A seguir ladrou uma ordem, e o transpirado sargento não teve outro remédio senão cumprimentar batendo os tacões e encabeçar a retirada dos seus homens. Chegado à porta hesitou e, voltando-se para Diego, fez um gesto de impotência, a que o outro respondeu com uma piscadela de olho de cumplicidade.
- Permito-me recordar-lhe que o meu pai, Dom Alejandro de La Vega, é um fidalgo espanhol, herói de muitas batalhas ao serviço do rei. Só um tribunal espanhol qualificado pode julgá-lo - disse Diego a Moncada.
- O caso dele será investigado pelas autoridades pertinentes no México. Entretanto, o seu pai está a bom recato, onde não pode continuar a conspirar contra Espanha.
- O julgamento durará anos e Dom Alejandro é um ancião. Não pode permanecer em El Diablo - intercedeu o padre Mendoza.
- Antes de violar a lei, De La Vega devia ter pensado que arriscava a perda da sua liberdade e dos seus bens. Pela sua imprudência, o velho condenou a sua família à miséria - replicou Moncada em tom depreciativo.
A mão direita de Diego empunhou a espada, mas Bernardo agarrou-o pelo braço e segurou-o, para lhe recordar a necessidade de ter paciência. Moncada recomendou-lhe que procurasse maneira de ganhar a vida, visto que não dispunha da fortuna do pai, e com isso deu meia volta e saiu atrás dos seus homens. O padre Mendoza deu uma palmada solidária no ombro a Diego e repetiu a sua oferta de hospitalidade. Na missão a vida era austera e esforçada, disse, faltavam as comodidades a que eles estavam habituados, mas, pelo menos, teriam um tecto.
- Obrigado, padre. Um dia lhe contarei o que nos sucedeu desde a morte do meu pobre pai. Verá que percorremos a Espanha a pé, vivemos com ciganos e fomos raptados por piratas. Em mais de uma ocasião salvámos a vida por milagre. No que se refere à falta de comodidades, garanto-lhe que estamos bem curtidos - sorriu Isabel.
- E a partir de amanhã, padre, encarregar-me-ei eu da cozinha, porque aqui come-se pior que na guerra - acrescentou Nuria com um resmungo.
- A missão é muito pobre - desculpou-se o padre Mendoza.
- Com os mesmos ingredientes e um pouco mais de imaginação, comeremos como gente - retorquiu Nuria.
Nessa noite, quando os outros dormiam, Diego e Bernardo escapuliram-se dos seus quartos, agarraram num par de cavalos e, sem se deterem a pôr-lhes selas, partiram galopando em direcção às grutas dos índios onde tantas vezes tinham brincado na infância. Haviam decidido que a primeira coisa seria tirar Alejandro de La Vega da prisão e levá-lo para um lugar seguro, onde Moncada e Alcázar não o pudessem encontrar, seguindo-se então a difícil tarefa de limpar o seu nome da acusação de traição. Aquela era a semana do aniversário de ambos; havia exactamente vinte anos que tinham nascido. Diego achou que era um momento muito importante das suas vidas e quis marcá-lo com algo em especial, razão pela qual propôs ao irmão que fossem às grutas. Além disso, se a passagem que as ligava à fazenda De La Vega não tivesse sido desfeita pelos tremores de terra, talvez pudessem espiar Rafael Moncada.
Diego mal reconhecia o terreno, mas Bernardo conduziu-o sem vacilar à entrada, oculta por cerrados arbustos. Uma vez lá dentro, acenderam uma candeia e conseguiram orientar-se no labirinto de passagens, até darem com a caverna principal. Aspiraram às golfadas o indescritível cheiro subterrâneo de que tanto gostavam quando eram crianças. Diego lembrou-se do dia fatídico em que a sua casa fora assaltada por piratas e se escondera ali com a sua mãe ferida. Pareceu-lhe sentir o cheiro desse momento, um misto de sangue, suor, medo e da escura fragrância da terra. Estava tudo tal como o tinham deixado, desde os arcos e flechas, velas e frascos de mel ali armazenados cinco anos antes, até à Roda Mágica, que haviam feito com pedras quando aspiravam ao Okahué. Diego alumiou o altar circular com um par de archotes e colocou no centro o embrulho que tinha trazido, envolto num tecido escuro e atado com um cordel. - Irmão, esperei este instante por muito tempo. Fizemos vinte anos e estamos os dois preparados para o que te vou propor - anunciou a Bernardo com inesperada solenidade. - Lembras-te das virtudes do Okahué? Honra, justiça, respeito, dignidade e coragem. Procurei que essas virtudes guiassem a minha vida e sei que guiaram a tua.
Ao brilho avermelhado dos archotes, Diego pôs-se a abrir o embrulho, que continha a indumentária completa do Zorro - calças, blusa, capa, botas, chapéu e máscara - e entregou-a a Bernardo.
- Desejo que o Zorro seja o fundamento da minha vida, Bernardo. Dedicar-me-ei a lutar pela justiça e convido-te a acompanhares-me. Juntos multiplicar-nos-emos por mil, confundindo os nossos inimigos. Haverá dois Zorros, tu e eu, mas nunca serão vistos juntos.
O tom de Diego era tão sério que, por uma vez, Bernardo esteve tentado a responder-lhe com um gesto trocista. Deu-se conta de que o seu irmão de leite tinha pensado muito bem naquilo: não se tratava de um impulso nascido ao conhecer a sorte do pai, como provava o disfarce negro que trouxera da sua viagem. O jovem índio desfez-se das calças e com a mesma solenidade de Diego foi vestindo uma a uma as peças de vestuário, até ficar convertido numa réplica do Zorro. Nessa altura, Diego tirou da cintura a espada que comprara em Cuba e, segurando-a com ambas as mãos, ofereceu-lha.
- Juro defender os fracos e lutar pela justiça! - exclamou Diego.
Bernardo recebeu a arma e, num sussurro inaudível, repetiu as palavras do irmão.
Os dois jovens abriram com precaução a porta secreta da lareira que dava para o salão, verificando que, apesar dos anos decorridos, ela deslizava sem ruído no carril. Antigamente preocupavam-se em manter o metal lubrificado e, pelos vistos, cinco anos mais tarde ainda o estava. Os grandes troncos dentro da lareira eram os mesmos de sempre, agora cobertos por uma grossa camada de pó. Ninguém tinha acendido a fogueira em todo esse tempo. O resto da divisão estava intacto: os mesmos móveis comprados por Alejandro de La Vega no México para lisonjear a esposa, o mesmo grande candeeiro de cento e cinquenta velas no tecto, a mesma mesa de madeira e cadeiras estofadas, as mesmas pretensiosas pinturas. Tudo estava igual; contudo, pareceu-lhes que a casa era mais pequena e triste do que recordavam. Uma patina de esquecimento desfeava-a, um silêncio de cemitério pesava no ar, um cheiro a fechado e suj idade impregnava as paredes. Deslizaram como gatos pelos corredores, mal iluminados por umas quantas lanternas. Dantes havia um velho criado cuja única tarefa era fornecer luz; o homem dormia de dia e passava a noite a vigiar velas e candeeiros de sebo. Perguntaram a si mesmos se esse velho e outros antigos criados ainda viveriam na fazenda, ou se Moncada os tinha substituído pela sua própria gente.
Àquela hora tardia, os cães descansavam e só um homem montava guarda no pátio principal, com a arma ao ombro, lutando por manter os olhos abertos. Os dois jovens descobriram o dormitório dos soldados, onde contaram doze macas suspensas a diferentes alturas, umas por cima das outras, embora só oito estivessem ocupadas. Noutra divisão havia um arsenal de armas de fogo, pólvora e sabres. Não se atreveram a explorar os restantes compartimentos, por medo de serem surpreendidos, mas através de uma porta entreaberta vislumbraram Rafael Moncada a escrever ou a fazer contas na biblioteca. Diego abafou uma exclamação de raiva ao ver o seu inimigo instalado na cadeira do pai, usando o seu papel e a sua tinta. Bernardo deu-lhe uma cotovelada para que partissem; aquela expedição estava a ficar perigosa. Retiraram-se com sigilo pelo mesmo sítio por onde tinham entrado, depois de soprarem o espesso pó da lareira a fim de apagarem o rasto.
Chegaram à missão ao romper da aurora, hora a que Diego sentiu pela primeira vez a martelada da fadiga acumulada desde que desembarcara na praia, no dia anterior. Caiu na cama de bruços e dormiu até bem entrada a manhã seguinte, quando Bernardo o acordou para o avisar de que os cavalos estavam prontos. A ideia de ir ver Toypurnia e pedir-lhe ajuda para resgatar Alejandro de La Vega tinha sido sua. Não viram o padre Mendoza, que partira cedo para Los Angeles, mas Nuria serviu-lhes um pequeno-almoço notável de feijões, arroz e ovos estrelados. Isabel apareceu à mesa com o cabelo apanhado numa trança, saia de viagem e uma blusa de linho como as que os neófitos da missão usavam, anunciando que iria com eles, porque queria conhecer a mãe de Diego e ver como era uma aldeia de índios.
- Nesse caso terei de ir também - rezingou Nuria, que achava muito pouca graça a uma longa cavalgada naquela terra de bárbaros.
- Não. O padre Mendoza precisa de ti aqui. Voltaremos depressa - replicou Isabel, dando-lhe um beijo de consolação.
Os três jovens partiram nos melhores cavalos da missão, levando mais um com a bagagem. Teriam de viajar todo esse dia, acampar de noite sob as estrelas e iniciar a subida às montanhas na manhã seguinte. Para evitar os soldados, a tribo tinha partido para o mais longe possível e mudava de sítio amiúde, mas Bernardo sabia localizá-la. Isabel, que aprendera a montar escarranchada, mas não tinha o costume de longas cavalgadas, seguiu os seus dois amigos sem se queixar. Na primeira paragem que fizeram para se refrescarem num regato e repartirem a merenda preparada por Nuria, apercebeu-se de como estava dorida. Diego fez troça dela porque andava como um pato, mas Bernardo deu-lhe uma pomada de ervas, preparada por Coruja Branca, para esfregar os membros doridos.
No dia seguinte ao meio-dia, Bernardo assinalou umas marcas nas árvores que indicavam a proximidade de uma tribo; era assim que avisavam outros índios quando mudavam de lugar. Instantes depois, saiu-lhes ao encontro um par de homens quase nus, com os corpos pintados e os arcos prontos, mas, ao reconhecerem Bernardo, baixaram as armas e aproximaram-se para cumprimentar. Feitas as devidas apresentações, conduziram-nos por entre as árvores até à aldeia, um miserável conjunto de palhotas entre as quais pululavam uns quantos cães. Os índios assobiaram e daí a poucos minutos materializaram-se do nada os habitantes daquela fantasmagórica vitória, um patético grupo de índios, alguns nus e outros em farrapos. Com horror, Diego reconheceu a sua avó Coruja Branca e a mãe. Precisou de vários segundos para se refazer da angústia ao vê-las tão mal, desmontar de um salto e correr a abraçá-las. Tinha esquecido como os índios eram pobres, mas não esquecera a fragrância de fumo e de ervas da avó, que lhe chegou directo à alma, assim como o novo aroma da mãe. Regina cheirava a sabonete de leite e água de flores; Toypurnia cheirava a salva e suor.
- Como tu cresceste, Diego... - murmurou a mãe. Toypurnia falava-lhe na língua indígena, os primeiros sons que Diego ouvira na infância e que não esquecera. Nesse idioma podiam acariciar-se; em espanhol tratavam-se com formalidade, sem se tocarem. A primeira língua era para sentimentos, a segunda para ideias. As mãos calejadas de Toypurnia apalparam o filho, os braços, o peito, o pescoço, reconhecendo-o, medindo-o, assustada com as mudanças. Depois calhou a vez à avó de lhe dar as boas-vindas. Coruja Branca levantou-lhe o cabelo para lhe estudar as orelhas, como se essa fosse a única forma de o identificar sem margem de erro. Diego desatou a rir com vontade e, tomando-a pela cintura, levantou-a um palmo do chão. Pesava muito pouco, era como levantar uma criança, mas debaixo dos trapos e peles de coelho que a cobriam, Diego pôde apreciar um corpo fibroso e duro, pura madeira. Não estava tão velha nem tão frágil como lhe parecera à vista desarmada.
Bernardo só tinha olhos para Raio na Noite e para o filho, o pequeno Diego, um menino de cinco anos, da cor e da firmeza de um tijolo, com olhos retintos e o mesmo riso da mãe, nu e armado de um arco e flechas em miniatura. Diego, que conhecera Raio na Noite na infância, quando visitava a aldeia da avó, pelas escassas referências telepáticas de Bernardo e uma carta do padre Mendoza, ficou impressionado com a sua beleza. Com ela e o menino, Bernardo parecia outro homem, crescia em tamanho e iluminava-se-lhe a expressão.
Passada a primeira euforia do encontro, Diego lembrou-se de os apresentar a Isabel, que observava a cena a uma certa distância. Pelos episódios que Diego lhe contara da mãe e da avó, imaginava-as como figuras de quadros epopeicos, onde os conquistadores aparecem retratados em refulgentes armaduras e os indígenas americanos se afiguram semideuses emplumados. Aquelas mulheres escanzeladas, desgrenhadas e sujas não se pareciam, nem remotamente, com as dos quadros dos museus, mas tinham a mesma dignidade. Não podia comunicar com a avó, mas pouco tempo depois de chegar tinha confraternizado com Toypurnia. Propôs-se visitá-la amiúde, porque imaginava que podia aprender muito com aquela estranha e sábia mulher. «Quem me dera ser igualmente indómita», pensou. A simpatia foi mútua, porque Toypurnia gostou da jovem espanhola dos olhos tortos. Acreditava que isso indicava a capacidade de ver o que os outros não viam.
Da tribo restava um grupo numeroso de crianças, mulheres e velhos, mas apenas cinco caçadores, que tinham de se afastar muito para obterem uma presa, porque os brancos haviam repartido o terreno entre si e defendiam-no a tiro. Às vezes, a fome incitava-os a roubar gado, mas se eram surpreendidos pagavam-no com chicotadas ou a forca. A maioria dos homens estava empregada nos ranchos, mas o clã de Coruja Branca e Toypurnia preferira a liberdade, com todos os seus riscos. Não tinham problemas com tribos guerreiras, graças à reputação de xamãs e curandeiras das duas mulheres. Se chegavam desconhecidos ao acampamento, era para pedir conselhos e remédios, que retribuíam com comida e peles. Haviam sobrevivido, mas desde que Rafael Moncada e Carlos se dedicavam a deter os homens jovens, não podiam ficar num lugar fixo. A vida nómada acabara com as plantações de milho e outros cereais; tinham de se conformar com cogumelos e frutos selvagens, peixe e carne quando conseguiam.
Bernardo e Raio na Noite trouxeram o presente que tinham para Diego, um corcel negro, de grandes olhos inteligentes. Era Tornado, o potro sem mãe que Bernardo conhecera durante o seu rito de iniciação, sete anos antes, e que Raio na Noite tinha amansado e ensinara a obedecer com assobios. Era um animal de nobre estampa, um companheiro esplêndido. Diego acariciou-lhe o nariz e mergulhou a cara nas suas longas crinas, repetindo o seu nome.
- Teremos de te manter escondido, Tornado. Só o Zorro te montará - disse-lhe, e o cavalo respondeu com um relincho e uma sacudidela da cauda.
O resto da tarde passou-se a assar uns mapaches(1) e pássaros que tinham conseguido caçar e em porem-se em dia relativamente às más notícias. Ao cair da noite, Isabel, extenuada, embrulhou-se numa manta e adormeceu junto ao fogo. Entretanto, Toypurnia ouviu da boca do filho a tragédia de Alejandro de La Vega. Confessou-lhe que sentia saudades dele; era o único homem que amara, mas não tinha podido manter-se casada com ele. Preferia a miserável existência nómada da sua tribo aos luxos da fazenda, onde se sentia prisioneira. Passara a infância e a juventude ao ar livre, não suportava a opressão das paredes de adobe e de um tecto sobre a cabeça, a arrogância dos costumes, a incomodidade dos vestidos espanhóis, o peso do cristianismo. Com a idade, Alejandro tornara-se mais severo a julgar o próximo. No fim tinham pouco em comum e, quando o filho os deixara para rumar a Espanha e a paixão da juventude lhes esfriara, não tinha ficado nada. Não obstante, comoveu-a ouvir a sorte do marido e ofereceu a sua ajuda para o resgatar da masmorra,
*1. Mapache (Procyon lotor) - mamífero carnívoro procionídeo, de pelagem de cor amarela-acinzentada, com uma característica mancha negra nos olhos e na face, semelhante ao guaxinim ou mão-pelada. (N. do T.)
e escondê-lo no mais recôndito da natureza. A Califórnia era muito vasta e ela conhecia quase todos os caminhos. Confirmou-lhe que as suspeitas do padre Mendoza eram verdadeiras.
- Há um par de meses que têm uma barcaça grande fundeada no mar, perto dos bancos de ostras, e transportam os presos em botes pequenos - disse Toypurnia.
Explicou-lhe que tinham levado vários jovens da tribo e que os obrigavam a mergulhar desde o amanhecer até ao pôr do Sol. Largavam-nos até ao fundo amarrados a uma corda, com uma pedra como peso e um cesto para colocar as ostras. A colheita do dia era depositada na barcaça, onde outros presos abriam as ostras à procura das pérolas, tarefa que dava cabo das mãos. Toypurnia supunha que entre estes estava Alejandro, porque era demasiado velho para mergulhar. Acrescentou que os presos dormiam na praia, acorrentados sobre a areia, e passavam fome, porque ninguém pode viver só de ostras.
- Não vejo como podes salvar o teu pai desse inferno - disse.
Seria impossível enquanto estivesse no barco, mas Diego sabia, pelo padre Mendoza, que um sacerdote visitaria a prisão. Moncada e Alcázar, que tinham de manter em segredo o assunto das pérolas, haviam suspendido a operação por uns dias, para que os presos se achassem em El Diablo quando o padre chegasse. Essa seria a sua única oportunidade, explicou. Compreendeu que seria impossível ocultar a identidade do Zorro da mãe e da avó; precisava delas neste caso. Ao falar-lhes do Zorro e dos seus planos, ele próprio se apercebeu de que as suas palavras soavam a pura demência, pelo que o surpreendeu que as duas mulheres não se perturbassem, como se a ideia de pôr uma máscara e assaltar El Diablo fosse um assunto normal. As duas prometeram guardar o segredo. Combinaram que dentro de uns dias Bernardo, acompanhado por três homens da tribo, os mais atléticos e corajosos, compareceriam com vários cavalos em La Cruz de Las Calaveras, a poucas léguas de El Diablo, um cruzamento de caminhos onde tinham enforcado dois bandidos. As suas caveiras, branqueadas pela chuva e pelo sol, continuavam expostas sobre uma cruz de madeira. Aos índios não comunicariam os pormenores, porque quanto menos soubessem, melhor, no caso de serem detidos.
Diego explicou em traços largos o seu plano para resgatar o pai e, dentro do possível, os restantes presos. A maioria eram indígenas, conheciam muito bem o terreno e, se dispusessem de alguma vantagem, correriam a perder-se na natureza. Coruja Branca contou-lhe que muitos índios trabalharam na construção de El Diablo, entre eles o seu próprio irmão, a quem os brancos chamavam Arsénio, mas cujo nome verdadeiro era Olhos que Vêem na Sombra. Era cego, e os índios supunham que aqueles que nascem sem ver a luz do Sol podem ver na escuridão, como os morcegos, e Arsénio era um bom exemplo. Tinha habilidade manual, fabricava ferramentas e era capaz de reparar qualquer mecanismo. Conhecia a prisão como ninguém, movia-se lá dentro sem tropeços, porque era o seu único mundo desde havia quarenta anos. Já trabalhava lá muito antes da chegada de Carlos e tinha na sua prodigiosa memória a conta de todos os prisioneiros que haviam passado por El Diablo. A avó entregou a Diego umas penas de coruja.
- Talvez o meu irmão te possa ajudar. Se o vires, diz-lhe que és meu neto e dá-lhe as penas; assim saberá que não estás a mentir - disse.
No dia seguinte muito cedo, Diego empreendeu a viagem de regresso à missão, depois de combinar com Bernardo o sítio e o momento em que voltariam a encontrar-se. Bernardo ficou com a tribo para preparar a sua parte do equipamento, com alguns materiais que tinham subtraído da missão nas costas do padre Mendoza. «Este é um dos raros casos em que o fim justifica os meios», assegurara Diego, enquanto saqueavam a arrecadação do missionário à procura de uma corda comprida, salitre, pó de zinco e mechas.
Antes de partir, o jovem perguntou à mãe por que razão tinha escolhido o nome de Diego para ele.
- Era assim que se chamava o meu pai, o teu avô espanhol: Diego Salazar. Era um homem valente e bom, que compreendia a alma dos índios. Desertou do navio porque queria ser livre; nunca aceitou a obediência cega que lhe era exigida a bordo. Respeitava a minha mãe e adaptou-se aos costumes da nossa tribo. Ensinou-me muitas coisas, entre outras o castelhano. Porque mo perguntas? - retorquiu Toypurnia.
- Sempre tive curiosidade. Sabias que Diego quer dizer suplantador?
- Não. O que é isso?
- Alguém que toma o lugar de outro - explicou Diego.
Diego despediu-se dos seus amigos na missão para ir a Monterrey, como anunciou. Insistiria com o governador para que fizesse justiça no caso do pai. Não quis ir acompanhado; disse que faria a viagem sem esforço, parando nas missões ao longo do Camino Real. O padre Mendoza viu-o afastar-se montado num cavalo, com outro atrás, que transportava os sacos da bagagem. Tinha a certeza de que era uma viagem inútil, uma perda de tempo que podia custar a vida a Dom Alejandro, porque cada novo dia que o ancião passava em El Diablo podia ser o último. Os seus argumentos não haviam surtido efeito em Diego.
Assim que deixou para trás a missão, Diego saiu do caminho e, dando meia volta, dirigiu-se a um campo aberto em direcção a sul. Confiava que Bernardo teria preparado o que lhe competia e estaria à sua espera na Cruz de Las Calaveras.
Horas mais tarde, quando faltava pouco para chegar ao local designado, mudou de roupa. Vestiu o remendado hábito de frade que tinha subtraído ao bom padre Mendoza, colou uma barba, improvisada com umas madeixas do cabelo de Coruja Branca, e completou o disfarce com os óculos de Nuria. A ama devia andar à procura deles por todo o lado. Chegou ao cruzamento onde as caveiras dos bandidos saudavam, cravadas nos paus da cruz, e não teve de esperar muito; não tardou que Bernardo e três índios jovens saíssem do nada, vestidos apenas de tanga, armados de arcos e flechas, com os corpos pintados para a guerra. Bernardo não lhes revelou a identidade do viajante e tão-pouco deu explicações quando entregou os sacos com as bombas e a corda ao presumível religioso. Os irmãos trocaram uma piscadela de olho: estava tudo pronto. Diego notou que entre a meia dúzia de cavalos conduzidos pelos índios se achava Tornado e não pôde resistir à tentação de se aproximar para lhe acariciar o pescoço, antes de se despedir.
Diego tomou o caminho para a prisão a pé; pareceu-lhe que assim o seu aspecto era inofensivo, uma patética silhueta na reverberação branca do sol. Um dos cavalos carregava a sua bagagem e o outro os artigos preparados por Bernardo, incluindo uma grande cruz de madeira, de cinco palmos de altura. Ao assomar ao topo de uma pequena colina, pôde ver o mar ao longe e distinguir a mancha negra do sombrio edifício de El Diablo, erguido sobre os rochedos. Tinha sede e o hábito encharcado de suor, mas apressou o passo, porque estava ansioso por ver o pai e iniciar a aventura. Caminhara uns vinte minutos quando sentiu barulho de cascos e viu a poeira de uma carruagem. Não pôde evitar uma exclamação de ira: aquilo vinha complicar-lhe os planos, porque ninguém andava por aqueles lados, a menos que se dirigisse à fortaleza. Agachou a cabeça, ajeitou o capuz e assegurou-se de que a barba estava no sítio. O suor podia soltá-la, apesar de ter utilizado uma cola espessa, feita com a mais firme resina.
O coche deteve-se ao seu lado e, para sua imensa surpresa, uma jovem de muito bom aspecto assomou à janela.
- O senhor deve ser o sacerdote que vem à prisão, não é verdade? Estávamos à sua espera, padre - cumprimentou.
O sorriso da rapariga era encantador e o coração caprichoso de Diego deu um salto. Começava a recuperar-se do despeito causado por Juliana e estava capaz de admirar outras mulheres, especialmente uma tão engraçada como aquela. Teve de fazer um esforço para se lembrar do seu novo papel.
- Com efeito, filha, sou o padre Aguilar - respondeu com a voz mais apagada possível.
- Suba para o meu coche, padre; assim poderá descansar um pouco. Eu também vou a El Diablo ver o meu primo - revelou ela.
- Que Deus te pague, minha filha.
Com que então aquela beldade era Lolita Pulido! A mesma menina magra que lhe mandava bilhetes amorosos quando ele tinha quinze anos. Que golpe de sorte! Era-o na verdade, porque, quando o coche de Lolita chegou à prisão, com os dois cavalos do falso padre amarrados atrás, Diego não teve de dar explicações. Mal o cocheiro anunciou a jovem e o padre Aguilar, os guardas abriram-lhes as portas e receberam-nos com amabilidade. Lolita era uma figura conhecida; os soldados tratavam-na pelo nome e até um par de presos que se achavam no cepo lhe sorriram. «Dai água a esses pobres homens, estão a torrar ao sol», suplicou ela a um guarda, que correu a cumprir os seus desejos. Entretanto, Diego observava o edifício e contava à socapa os militares. Com a sua corda poderia escorregar pelo muro até ao exterior, mas não fazia ideia de como tirar de lá o pai; a prisão parecia inexpugnável e havia demasiados guardas.
Os visitantes foram de imediato conduzidos ao gabinete de Carlos Alcázar, uma sala sem mais móveis que uma mesa, cadeiras e estantes com os livros de registo da prisão.
Naqueles gastos calhamaços anotava-se desde a despesa em forragem de cavalos até às mortes dos presos, tudo menos as pérolas, que passavam directamente da ostra aos cofres de Moncada e Alcázar, sem deixar rastos visíveis. A um canto, uma estátua de gesso pintado da Virgem Maria esmagava o demónio com o pé. - Bem-vindo, padre - cumprimentou Carlos Alcázar, depois de beijar nas faces a prima, pela qual continuava tão apaixonado como na infância. - Só o esperávamos amanhã.
Diego, com a cabeça de banda, os olhos baixos, a voz untuosa, respondeu recitando a primeira coisa que lhe veio à cabeça em latim e coroou-a com um enfático sursum corda, que não vinha a propósito, mas se revelou esmagador. Carlos ficou a zero: nunca fora bom aluno em línguas mortas. Ainda era novo, não podia ter mais de uns vinte e três ou vinte e quatro anos, mas parecia mais velho pela expressão cínica. Tinha uns lábios cruéis e olhos de ratazana. Diego pensou que Lolita não podia ser da mesma família; aquela rapariga merecia melhor sorte do que ser prima de Carlos.
O substituto de padre aceitou um copo de água e anunciou que no dia seguinte diria missa, confessaria e daria a comunhão a quem pedisse os sacramentos. Estava muito cansado, acrescentou, mas desejava ver nessa mesma tarde os presos doentes e os castigados, incluindo o par que estava no cepo. Lolita juntou-se ao programa: entre outras coisas trazia uma caixa com remédios, que pôs à disposição do padre Aguilar.
- A minha prima tem o coração muito mole, padre. Já lhe disse que El Diablo não é lugar recomendável para meninas, mas ela não me dá ouvidos. Também não quer perceber que a maioria destes homens são animais sem moral nem sentimentos, capazes de morder a mão de quem lhes dá de comer.
- Ainda nenhum me mordeu, Carlos - redarguiu Lolita.
- Jantaremos daqui a pouco, padre. Não espere nenhum banquete; aqui vivemos com modéstia - disse Alcázar.
- Não vos preocupeis, meu filho, eu como muito pouco e esta semana estou a jejuar. Pão e água serão suficientes. Prefiro uma merenda no meu quarto, porque depois de ver os doentes tenho de rezar as minhas orações.
- Arsénio! - chamou Alcázar.
Um índio surgiu das sombras. Tinha estado todo o tempo no seu canto, tão silencioso e imóvel que Diego não dera pela sua presença. Reconheceu-o pela descrição de Coruja Branca. Tinha os olhos velados por uma película branca, mas movia-se com precisão.
- Conduz o padre ao seu quarto, para que se refresque. Fica às suas ordens, ouviste? - ordenou Alcázar.
- Sim, senhor.
- Podes levá-lo a ver os doentes.
- Ao Sebastián também, senhor?
- Não, a esse desgraçado não.
- Porquê? - interveio Diego.
- Esse não está doente. Tivemos de lhe aplicar umas chicotadas; nada de grave, não se preocupe, padre.
Lolita desatou a chorar: o primo tinha-lhe prometido que não haveria mais castigos desse tipo. Diego deixou-os a discutir e seguiu Arsénio até ao quarto que lhe tinham destinado, onde o esperavam intactos os sacos da sua bagagem, incluindo a grande cruz.
- O senhor não é um homem da igreja - disse Arsénio, quando ficaram de porta fechada no quarto do hóspede.
Diego teve um sobressalto de susto; se um cego era capaz de adivinhar que estava disfarçado, não tinha esperança de enganar os que viam.
- Não tem cheiro a padre - acrescentou Arsénio, à guisa de explicação.
- Não? A que cheiro eu? - perguntou Diego, admirado, porque vestia o hábito do padre Mendoza.
- A cabelo de índia e a cola para madeira - retorquiu Arsénio.
O jovem levou a mão à barba postiça e não conseguiu evitar uma gargalhada. Decidiu aproveitar a ocasião, porque certamente não haveria outra, e confessou a Arsénio que tinha vindo numa missão particular e precisava da sua ajuda. Pôs-lhe nas mãos as penas da avó. O cego apalpou-as com os seus dedos clarividentes e a emoção ao reconhecer a irmã plasmou-se-lhe no rosto. Diego esclareceu-lhe que era o neto de Coruja Branca e isso bastou para que Arsénio se abrisse; não tinha notícias dela havia anos, declarou. Confirmou-lhe que El Diablo tinha sido fortaleza, antes de ser prisão, e que ele ajudara a construí-la, após o que havia ficado a servir os soldados e agora os carcereiros. A existência sempre fora dura dentro daqueles muros, mas desde que Carlos Alcázar estava à frente era um inferno; a ganância e crueldade daquele homem eram indescritíveis, explicou. Alcázar impunha trabalhos forçados e castigos brutais aos prisioneiros, ficava com o dinheiro destinado à comida e alimentava-os com as sobras do rancho dos soldados. Naquele momento havia um agónico, outros com febre por causa do contacto com medusas venenosas e vários com os pulmões rebentados, a deitar sangue pelo nariz e pelos ouvidos.
- E Alejandro de La Vega? - perguntou Diego, em pulgas.
- Não durará muito mais; perdeu a vontade de viver, já quase não se mexe. Os outros presos fazem o trabalho dele, para não o castigarem, e dão-lhe a comida à boca - disse Arsénio.
- Por favor, Olhos que Vêem na Sombra, leva-me até onde ele está.
Lá fora, o Sol ainda não se punha, mas dentro a prisão estava escura. Os grossos muros e as janelas estreitas mal deixavam entrar a luz.
Arsénio, que não precisava de uma candeia para se orientar, agarrou Diego por uma manga e conduziu-o sem vacilar pelos corredores na penumbra e pelas estreitas escadas do edifício até aos calabouços da cave, que tinham sido adicionados à fortaleza quando decidiram utilizá-la como prisão. Aquelas celas achavam-se debaixo do nível da água e quando a maré subia infiltrava-se humidade, produzindo uma patina esverdeada sobre as pedras e um cheiro nauseabundo. O guarda de turno, um mestiço picado da varíola, com um bigode de foca, abriu a grade de ferro que dava acesso a um corredor, e entregou a Arsénio o molho das chaves. Diego ficou surpreendido com o silêncio. Supunha que havia vários prisioneiros, mas, aparentemente, estes achavam-se tão esgotados e débeis que não emitiam sequer um murmúrio. Arsénio dirigiu-se a um dos calabouços, apalpou o molho de chaves, escolheu a adequada e abriu a grade sem hesitações. Diego precisou de vários segundos para adaptar a vista à escuridão e distinguir umas silhuetas recostadas contra a parede e um vulto no chão. Arsénio acendeu uma vela e ele ajoelhou junto do pai, tão emocionado que não conseguiu pronunciar nem uma palavra. Levantou com cuidado a cabeça de Alejandro de La Vega e pô-la no regaço, afastando-lhe da fronte as madeixas acaçapadas de cabelo. À luz da trémula chama, conseguiu vê-lo melhor e não o reconheceu. Nada restava do bem-parecido e soberbo fidalgo, herói de antigas batalhas, alcaide de Los Angeles e próspero fazendeiro. Estava imundo, escanzelado, com a pele gretada e terrosa, tremia de febre, tinha os olhos colados de remelas e escorria-lhe um fio de saliva pelo queixo.
- Dom Alejandro, consegue ouvir-me? Este é o padre Aguilar... - disse Arsénio.
- Vim socorrê-lo, senhor, vamos tirá-lo daqui - murmurou Diego.
Os outros três homens que havia na cela tiveram um lampejo de interesse, mas logo voltaram a recostar-se contra a parede. Estavam para além da esperança.
- Dê-me os últimos sacramentos, padre. Já é tarde para mim - murmurou o doente num fio de voz.
- Não é tarde. Vamos, senhor, sente-se... - suplicou-lhe Diego.
Conseguiu soerguê-lo e dar-lhe a beber água, após o que lhe limpou os olhos com a borda molhada do hábito.
- Faça um esforço para se pôr de pé, senhor, porque para sair tem de andar - insistiu Diego.
- Deixe-me, padre, não sairei daqui com vida.
- Sairá, sim. Garanto-lhe que verá novamente o seu filho e não quero dizer no céu, mas sim neste mundo...
- O meu filho, disse?
- Sou eu, Diego, Vossa Mercê não me reconhece? - sussurrou o frade, procurando que os outros não ouvissem.
Alejandro de La Vega observou-o por uns segundos, tentando fixar a vista com os seus olhos nublados, mas não encontrou a imagem conhecida naquele frade encapuçado e hirsuto. Sempre num murmúrio, o jovem explicou-lhe que estava de hábito e barba postiça porque ninguém devia saber que se encontrava em El Diablo.
- Diego... Diego... Deus escutou a minha súplica! Rezei tanto para voltar a ver-vos antes de morrer, meu filho!
- Vossa Mercê foi sempre um homem valente e esforçado. Não me deixeis ficar mal, peço-vos. Tendes de viver. Agora tenho de partir, mas preparai-vos, porque daqui a pouco virá um amigo meu resgatá-lo.
- Dizei ao vosso amigo que não é a mim que deve libertar, Diego, mas sim aos meus companheiros. Devo-lhes muito, tiraram o pão da boca para mo darem.
Diego voltou-se, a fim de olhar para os outros presos, três índios tão sujos e magros como o pai, com a mesma expressão de absoluto desalento, mas jovens e ainda sãos. Pelos vistos, aqueles homens tinham conseguido alterar em poucas semanas o sentido de superioridade que sustivera o fidalgo espanhol durante a sua longa vida. Pensou nas voltas do destino. O comandante Santiago de León tinha-lhe dito uma vez, quando observavam as estrelas no mar alto, que, se uma pessoa viver o suficiente, consegue rever as suas convicções e emendar algumas.
- Sairão com Vossa Mercê, prometo-vos - assegurou-lhe Diego, ao despedir-se.
Arsénio deixou o suposto sacerdote no seu quarto e depois levou-lhe uma singela merenda de pão velho, sopa aguada e um copo de vinho ordinário. Diego apercebeu-se de que tinha uma fome de lobo e lamentou ter anunciado a Carlos Alcázar que estava a fazer jejum. Não havia razão para ter levado tão longe a impostura. Pensou que a essa mesma hora Nuria devia estar a preparar um estufado de rabo de boi na Missão San Gabriel.
- Eu vim só explorar o terreno, Arsénio. Outra pessoa tentará soltar os presos e levar Dom Alejandro de La Vega para lugar seguro. Trata-se do Zorro, um valente cavaleiro vestido de preto e mascarado, que aparece sempre que é preciso fazer justiça - explicou ao cego.
Arsénio julgou que brincava com ele. Nunca tinha ouvido falar de semelhante personagem; havia cinquenta anos que via injustiça por todo o lado sem que ninguém tivesse mencionado um mascarado. Diego assegurou-lhe de que as coisas iam mudar na Califórnia, iam ver quem era o Zorro! Os fracos receberiam protecção e os malvados provariam o fio da sua espada e o golpe do seu chicote. Arsénio desatou a rir, agora completamente convencido de que aquele homem não estava bom da cabeça.
- Julgais que Coruja Branca me teria mandado falar convosco caso se tratasse de uma brincadeira? - exclamou Diego, já zangado.
Aquele argumento pareceu ter um certo efeito sobre o índio, porque perguntou como pensava o Zorro libertar os presos, considerando que nunca ninguém tinha escapado de El Diablo. Não se podia propriamente sair com toda a tranquilidade pela porta principal. Diego explicou-lhe que, por muito magnífico que o mascarado fosse, não podia fazê-lo sozinho: precisava de ajuda. O outro ficou a pensar um bom bocado e informou-o, por fim, de que havia outra saída, mas não sabia se estava em boas condições. Quando construíram a fortaleza, tinham escavado um túnel como via de fuga em caso de cerco. Nessa época eram frequentes os assaltos de piratas e dizia-se que os Russos pensavam apoderar-se da Califórnia. O túnel, que nunca fora usado e do qual já ninguém se lembrava, emergia no meio de um bosque cerrado, a curta distância, para oeste, precisamente num antigo lugar sagrado dos índios.
- Bendito seja Deus! Isso é justamente aquilo de que preciso, quer dizer, de que o Zorro precisa. Onde fica a entrada do túnel?
- Se esse Zorro aparecer, mostrar-lha-ei - retorquiu Arsénio em tom trocista.
Uma vez a sós, Diego passou a abrir a sua equipagem, que continha o fato negro, o chicote e uma pistola. Nos sacos de Bernardo encontrou a corda, uma âncora metálica e vários recipientes de greda. Eram as bombas de fumo, preparadas com nitrato e pó de zinco, segundo as instruções copiadas, juntamente com outras curiosidades, dos livros do comandante Santiago de León. Tinha planeado fazer uma daquelas bombas para pregar um susto a Bernardo; nunca imaginara que seria para salvar o pai. Tirou a barba com bastante dificuldade, mordendo-se para não gritar de dor com os repelões. Ficou com a cara irritada, como se a tivesse queimado, e decidiu que não valia a pena colar o bigode, bastando a máscara, mas que, mais tarde ou mais cedo, teria de deixar crescer o bigode. Lavou-se com a água que Arsénio deixara numa bacia e vestiu-se de Zorro. Seguidamente, pôs-se a desarmar a grande cruz de madeira e extraiu lá de dentro a sua espada. Calçou as luvas de pele e fez uns passes, experimentando a flexibilidade do aço e a firmeza dos seus músculos. Sorriu satisfeito.
Assomou à janela, viu que lá fora já estava escuro e supôs que Carlos e Lolita teriam jantado e provavelmente estariam nos seus quartos. A prisão achava-se tranquila e em silêncio; tinha chegado o momento de agir. Pôs o chicote e a pistola à cinta, embainhou a espada e dispôs-se a sair. «Em nome de Deus!», murmurou, cruzando os dedos, para que ao desígnio divino se somasse a boa sorte. Tinha memorizado o plano do edifício e contado os degraus da escada, para se deslocar sem luz. O fato escuro permitia-lhe desaparecer na sombra e confiava em que não houvesse demasiada vigilância.
Deslizando sem fazer barulho, chegou a um dos terraços e procurou onde esconder as bombas, que foi trazendo duas a duas. Eram pesadas e não podia correr o risco de que lhe caíssem. Na última viagem pôs ao ombro a corda enrolada e a âncora de ferro. Depois de se certificar de que as bombas estavam a bom recato, saltou do terraço para a muralha periférica que cercava a prisão, feita de pedra e argamassa, com largura suficiente para que as sentinelas passeassem e iluminada por archotes de cinquenta em cinquenta passos. Do seu refúgio viu passar um guarda e contou os minutos até passar o segundo. Quando teve a certeza de que só havia dois homens a circular, calculou que disporia do tempo à justa para executar o passo seguinte. Correu acaçapado até à ala Sul da prisão, porque tinha combinado com Bernardo que o esperasse nesse sítio, onde um pequeno promontório de rochedos poderia facilitar a escalada.
Ambos conheciam os arredores da prisão porque em mais de uma ocasião os tinham explorado na infância. Uma vez localizado o sítio preciso, deixou passar a sentinela antes de pegar num dos archotes e traçar com ele vários arcos de luz; era o sinal para Bernardo. Depois prendeu a âncora de ferro no muro e lançou a corda para o exterior, rezando para que alcançasse o chão e o seu irmão a visse. Teve de se esconder de novo, porque se aproximava a segunda sentinela, que parou a olhar o céu a dois palmos da âncora metálica. O coração deu-lhe um salto, sentindo que se lhe molhava a máscara de suor ao ver que as pernas do homem estavam tão perto da âncora que poderia tocá-la. Se isso acontecesse, teria de lhe dar um empurrão e precipitá-lo por cima da muralha, mas esse tipo de violência repugnava-lhe. Tal como explicara uma vez a Bernardo, o maior desafio era fazer justiça sem manchar a consciência com sangue alheio. Bernardo, sempre com os pés bem assentes na terra, tinha-lhe feito ver que esse ideal nem sempre seria possível. O guarda retomou o seu passeio no mesmo momento em que Bernardo puxava a corda de baixo, movendo a âncora. O barulho pareceu atroador ao Zorro, mas a sentinela só vacilou por uns segundos, após o que ajeitou a arma ao ombro e continuou o seu caminho. Com um suspiro de alívio, o mascarado assomou ao outro lado da parede. Embora não conseguisse ver os seus companheiros, a tensão da corda indicava-lhe que estes tinham iniciado a escalada. Tal como previra, os quatro chegaram ao cimo justamente a tempo de se esconderem antes de ouvirem os passos do outro guarda na sua ronda. O Zorro indicou aos índios a localização da saída do túnel no bosque, tal como Arsénio lhe dissera, e pediu a dois deles que descessem ao pátio da prisão e espantassem os cavalos da guarnição para evitar que os soldados os seguissem. Depois cada um partiu para executar a sua tarefa.
O Zorro voltou ao terraço onde escondera as bombas e, depois de trocar com Bernardo um breve ladrido de coiote, foi-as atirando uma a uma para a muralha. Ficou com duas, que lhe calhavam a ele, para as usar dentro do edifício. Bernardo acendeu as mechas das suas e passou-as ao índio que o acompanhava, e ambos correram ao longo do muro, silenciosos e velozes, tal como faziam quando iam à caça. Posicionaram-se em diferentes lugares e, no momento em que as chamas consumiam as mechas, atingindo o conteúdo das vasilhas de greda, atiraram-nas contra os seus objectivos: a cavalariça, o arsenal de armas, o albergue dos soldados e o pátio. Quando a espessa fumarada branca das bombas envolvia a prisão, o Zorro fazia rebentar as suas no primeiro e segundo andares do edifício principal. Em poucos minutos, o pânico alastrou. À voz de «Fogo!» os soldados saíram aos tropeções, enfiando calças e botas, ao mesmo tempo que soava o sino de alarme. Toda a gente corria para salvar o que pudesse; uns passavam baldes de água de mão em mão e despejavam-nos às cegas, sufocados, outros abriam as cavalariças e obrigavam os animais a sair. O lugar encheu-se de cavalos espavoridos, contribuindo para o pandemónio. Os dois índios de Toypurnia, que tinham descido do muro e estavam escondidos no pátio, aproveitaram a situação para abrir o portão da fortaleza e provocar uma debandada dos cavalos, que saíram a corta-mato. Eram animais domesticados e não chegaram muito longe; agruparam-se a curta distância, onde os índios os alcançaram. Montaram um par deles e guiaram os restantes até ao local de reunião indicado pelo Zorro, nas proximidades da saída do túnel.
Carlos Alcázar acordou com o sino e saiu para indagar a causa de tanta algazarra. Tentou impor a calma entre os seus homens, explicando que as paredes de pedra eram incombustíveis, mas ninguém lhe deu ouvidos, porque os índios tinham disparado flechas a arder contra a palha das cavalariças e viam-se chamas no meio da fumarada. Nessa altura, o fumo dentro do edifício era já intolerável e Alcázar correu a procurar a sua amada prima, mas antes de atingir o seu quarto deparou-se com ela no meio do corredor. «Os presos! É preciso salvar os presos!», exclamou Lolita, desesperada, mas ele tinha outras prioridades. Não podia permitir que o incêndio destruísse as suas belas pérolas.
Naquele par de meses, os presos haviam apanhado milhares de ostras e Moncada e Alcázar já possuíam vários punhados de pérolas. Na distribuição cabiam dois terços a Moncada, que financiava a operação, e o outro terço a Alcázar, que a dirigia. Não mantinham nenhum registo, uma vez que o negócio era ilegal, mas tinham esboçado um sistema de contabilidade. Introduziam as pérolas por um pequeno orifício num cofre selado, fixado por duas barras metálicas ao solo, que se abria com duas chaves. Cada sócio estava na posse de uma das chaves e no final da temporada juntar-se-iam para abrir o cofre e repartir o conteúdo. Moncada designara um homem da sua confiança para vigiar a colheita no barco e exigia que fosse Arsénio que as colocasse uma a uma no cofre. O cego, com a sua extraordinária memória táctil, era o único capaz de recordar o número exacto de pérolas e, se fosse necessário, talvez pudesse descrever o tamanho e forma de cada uma. Carlos Alcázar detestava-o, porque mantinha esses números na mente e tinha provado ser incorruptível. Coibia-se de o tratar mal, pois Moncada protegia-o, mas não perdia ocasião de o humilhar. Em contrapartida, tinha subornado o homem que vigiava o barco e, por meio de um pagamento razoável, este permitia que Alcázar subtraísse as pérolas mais redondas, maiores e de melhor brilho, que não passavam pelas mãos de Arsénio nem chegavam ao cofre. Rafael Moncada nunca saberia da sua existência.
Enquanto os três índios da tribo de Toypurnia acabavam de semear o caos e roubavam os cavalos, Bernardo introduziu-se no edifício, onde o esperava o Zorro, que o guiou até aos calabouços. Tinham percorrido uns quantos metros de corredor, tapando a cara com lenços molhados para suportarem o fumo, quando uma mão agarrou o braço do Zorro.
- Padre Aguilar! Siga-me, por aqui é mais curto...
Era Arsénio, que não podia apreciar a transformação do suposto missionário no inefável Zorro, mas lhe reconhecera a voz. Não era indispensável corrigir-lhe o erro. Os irmãos aprestaram-se a segui-lo, mas a figura de Carlos Alcázar apareceu de súbito no corredor, bloqueando o caminho. Ao ver aquele par de desconhecidos, um deles vestido da maneira mais pitoresca, o chefe da prisão puxou da pistola e disparou. Um grito de dor ressoou entre as paredes e o tiro incrustou-se numa viga do tecto: o Zorro tinha-lhe arrancado a pistola com uma chicotada no pulso no instante em que ele apertava o gatilho. Bernardo e Arsénio dirigiram-se aos calabouços, enquanto ele, de espada na mão, seguia Alcázar pelas escadas acima. Acabava de ocorrer-lhe uma ideia para resolver os problemas do padre Mendoza e, de caminho, fazer com que Moncada passasse um mau bocado. «Realmente, sou um génio», concluiu à pressa.
Alcázar atingiu o seu gabinete em quatro saltos e conseguiu fechar a porta e dar a volta à chave antes de o outro conseguir alcançá-lo. O fumo não tinha penetrado dentro daquela divisão. O Zorro descarregou a pistola na fechadura da porta e empurrou-a, mas esta não cedeu: tinha uma tranca por dentro. Perdera o seu único tiro, não dispunha de tempo para carregar a arma e cada minuto contava. Sabia, porque já estivera naquela sala, que as janelas davam para a varanda exterior. Era evidente à vista desarmada que não podia alcançá-la de um salto, como pretendia, sem risco de partir a cabeça nas pedras do pátio, mas no andar superior assomava uma gárgula decorativa talhada na pedra.
Conseguiu enrolar nela a ponta do chicote, deu um puxão para a firmar e, rezando para que a figura resistisse ao seu peso, balançou-se, caindo direitinho na varanda. Dentro do seu gabinete, Carlos Alcázar estava ocupado a carregar a pistola para arrombar os ferrolhos do cofre a tiro e não viu a sombra na janela. O Zorro esperou que ele desfechasse a arma, pulverizando um dos cadeados, e irrompeu no compartimento pela janela aberta. A capa enredou-se-lhe e fê-lo vacilar por um segundo, tempo suficiente para que Alcázar largasse a pistola, agora inútil, e agarrasse na espada. Aquele homem, tão cruel com os fracos, era cobarde diante de um opositor à sua altura e, além disso, tinha pouca prática de esgrima; em menos de três minutos o seu aço saltara pelos ares e ele achava-se de braços no ar, com a ponta de uma espada no peito.
- Poderia matar-te, mas não quero sujar-me com sangue de cão. Sou o Zorro e venho buscar as tuas pérolas.
- As pérolas pertencem ao senhor Moncada!
- Pertenciam. Agora são minhas. Abre o cofre.
- São precisas duas chaves e eu só tenho uma.
- Usa a pistola. Cuidado: ao menor gesto suspeito, trespassar-te-ei o pescoço sem o menor escrúpulo. O Zorro é generoso; perdoar-te-á a vida, desde que obedeças - ameaçou-o o mascarado.
Tremendo, Alcázar conseguiu carregar a pistola e rebentar com um tiro o outro cadeado. Levantou a tampa de madeira e apareceu o tesouro, tão branco e reluzente que não conseguiu evitar a tentação de mergulhar a mão e deixar que as maravilhosas pérolas lhe escorressem por entre os dedos. Por seu lado, o Zorro nunca tinha visto nada de tanto valor. Comparadas com aquilo, as pedras preciosas que haviam obtido em Barcelona pelo valor das propriedades de Tomás de Romeu pareciam modestas. Naquela caixa havia uma fortuna. Indicou ao seu adversário que esvaziasse o conteúdo numa sacola.
- O fogo atingirá o paiol de um momento para o outro e El Diablo irá pelos ares. Cumpro a minha palavra: tens a tua vida; que te faça bom proveito.
O outro não respondeu. Em vez de se precipitar para a saída, como era de esperar, ficou no gabinete. O Zorro notara que ele lançava olhares furtivos ao outro extremo do compartimento, onde estava a estátua da Virgem Maria sobre o seu pedestal de pedra. Pelos vistos, aquilo interessava-lhe mais que a própria vida. Pegou na sacola com as pedras, tirou a tranca da porta e desapareceu no corredor, mas não foi longe. Esperou, contando os segundos, e, como Alcázar não saísse, voltou ao gabinete a tempo de o surpreender a desfazer a cabeça da estátua com a coronha da pistola.
- Que maneira tão irreverente de tratar Nossa Senhora! - exclamou.
Carlos Alcázar voltou-se, desfigurado pela fúria, e arremessou-lhe a pistola à cara, errando por uma larga margem, ao mesmo tempo que deitava a mão à espada, que jazia no solo a dois passos de distância. Mal conseguiu erguer-se, já o mascarado estava em cima dele, enquanto a branca fumarada do corredor começava a invadir a sala. Cruzaram os aços durante vários minutos, cegos pelo fumo, tossindo. Alcázar foi retrocedendo até à sua mesa de trabalho e, no momento em que perdia a espada pela segunda vez, tirou da gaveta uma pistola carregada. Não teve ocasião de apontar, porque um formidável pontapé no braço o desarmou; a seguir o Zorro marcou-lhe a face com três traços vertiginosos do seu aço, formando a letra Z. Alcázar soltou um berro, caiu de joelhos e levou as mãos à cara.
- Não é mortal, homem; é a marca do Zorro, para que não me esqueças - disse o mascarado.
No chão, entre os pedaços quebrados da estátua, havia uma bolsinha de camurça, que o Zorro apanhou de súbito antes de sair correndo.
Só mais tarde, ao examinar o seu conteúdo, veria que nela havia cento e três pérolas magníficas, mais valiosas que todas as do cofre.
O Zorro tinha decorado o caminho e deu rapidamente com os calabouços. A cave era a única parte de El Diablo onde o fumo não chegara nem se ouvia a barulheira das badaladas, correrias e gritos. Os presos ignoravam o sucedido lá fora até aparecer Lolita dando o alarme. A rapariga descera em camisa de dormir e descalça para exigir aos guardas que salvassem as pessoas. Perante a eventualidade de um incêndio, os guardas arrebataram o archote da parede e fugiram a correr, sem se lembrarem nem pouco mais ou menos dos prisioneiros, e Lolita deu por si às apalpadelas na escuridão à procura das chaves. Ao compreenderem que se tratava de um incêndio, os aterrados cativos começaram a dar gritos e a abanar as grades tentando sair. Nisto apareceram Arsénio e Bernardo. O primeiro dirigiu-se com calma ao pequeno armário onde se guardavam as velas e as chaves para abrir as celas, que conseguia reconhecer pelo tacto, enquanto o segundo acendia luzes e procurava tranquilizar Lolita.
Um momento depois fez a sua entrada o Zorro. Lolita soltou uma exclamação ao ver aquele mascarado de luto a brandir uma espada ensanguentada, mas esse susto converteu-se em curiosidade quando ele embainhou o aço e se inclinou para lhe beijar a mão. Bernardo interveio dando uma palmada no ombro do irmão: não era momento para galanterias.
- Calma! É só fumo! Segui o Arsénio, ele conhece outra saída - indicou o Zorro aos presos que emergiam dos seus calabouços.
Atirou a capa ao chão e colocaram Alejandro de La Vega sobre ela.
Quatro índios levantaram a capa pelas pontas, como uma maca, e levaram o enfermo. Outros ajudaram o infeliz que tinha sido açoitado e todos, incluindo Lolita, seguiram Arsénio até ao túnel, com Bernardo e o Zorro na retaguarda para os protegerem. A entrada achava-se atrás de uma pilha de barris e tarecos, não por intenção de a esconder, mas sim porque nunca fora usada e, com o tempo, se tinham acumulado coisas no seu lugar. Era evidente que ninguém dera pela sua existência. Desimpediram a portinhola e entraram um a um na negra caverna. O Zorro explicou a Lolita que não havia perigo de incêndio: o fumo era uma distracção para salvar aqueles homens, na sua maioria inocentes. Ela mal percebia as suas palavras, mas dizia com a cabeça que sim como que hipnotizada. Quem era aquele jovem tão atraente? Talvez um foragido, e por isso escondia a cara, mas semelhante possibilidade, longe de a refrear, avivava o seu entusiasmo. Estava disposta a segui-lo até ao fim do mundo, coisa que ele não lho pediu, indicando-lhe, em contrapartida, que voltasse a empilhar os barris e tarecos diante da portinhola, uma vez que tivessem todos entrado no túnel. Além disso, devia deitar fogo à palha dos calabouços; isso dar-lhes-ia mais tempo para fugirem, assinalou. Lolita, perdida a vontade, disse que sim com um sorriso pateta, mas o olhar ardente.
- Obrigado, menina - disse ele.
- Quem é você?
- O meu nome é Zorro.
- Que espécie de tolice é essa, senhor?
- Nenhuma tolice, garanto-lhe, Lolita. Por agora não lhe posso dar mais explicações, visto que o tempo urge, mas voltaremos a ver-nos - retorquiu ele.
- Quando?
- Em breve. Não feche a janela da sua varanda e uma destas noites irei visitá-la.
Esta proposta devia ser tomada como um insulto, mas o tom do desconhecido era galante e os seus dentes muito brancos. Lolita não soube o que responder e, quando o braço firme dele a rodeou pela cintura, não fez nada para o afastar; pelo contrário, fechou os olhos e ofereceu-lhe os lábios. O Zorro, um pouco surpreendido perante a rapidez com que avançava naquele terreno, beijou-a sem vestígio da timidez que antes sentia diante de Juliana. Oculto atrás da máscara do Zorro, podia dar rédea solta à sua galanteria. Dadas as circunstâncias, foi um beijo bastante bom. Na realidade, teria sido perfeito se não estivessem os dois a tossir por causa do fumo. O Zorro soltou-se dela a contragosto e introduziu-se no túnel, seguindo os outros. Lolita precisou de três minutos completos para recuperar o uso da razão e o fôlego, após o que passou a cumprir as instruções do fascinante mascarado, com o qual pensava casar-se um dia não muito distante, já o decidira. Era uma rapariga espevitada.
Meia hora depois de rebentarem as bombas, o fumo começou a dissipar-se; nessa altura, os soldados já tinham apagado o fogo nas cavalariças e lidavam com o dos calabouços, enquanto Carlos Alcázar, estancando o sangue da face com um pano, recuperara o controlo da situação. Ainda não conseguia perceber o sucedido. Os seus homens encontraram as flechas que haviam iniciado o fogo, mas ninguém vira os responsáveis. Não acreditava que se tratasse de um ataque de índios, coisa que não acontecia desde havia vinte e cinco anos; devia ser uma manobra de diversão do tal Zorro para roubar as pérolas. Não soube, a não ser um momento mais tarde, que os presos tinham desaparecido sem deixar rasto.
O túnel, reforçado com tábuas para evitar aluimentos, era estreito, mas permitia folgadamente a passagem de uma pessoa. O ar estava rarefeito; as condutas de ventilação tinham-se obstruído com a passagem do tempo e o Zorro decidiu que não podiam consumir o escasso oxigénio disponível com as chamas das velas; teriam de avançar às escuras. Arsénio, que não precisava de luz, ia à frente, com a única vela permitida, como sinal para os outros. A sensação de estarem enterrados vivos e a ideia de que um desabamento os aprisionasse ali para sempre eram aterradoras. Bernardo muito raramente perdia a calma, mas estava habituado a grandes espaços e ali sentia-se como uma toupeira; o pânico ia-se apoderando dele. Não podia avançar mais depressa nem retroceder, faltava-lhe o ar, abafava, julgava pisar ratazanas e serpentes, tinha a certeza de que o túnel se estreitava por momentos e nunca mais poderia sair. Quando o terror o fazia parar, a mão firme do irmão nas costas e a sua voz tranquilizadora davam-lhe ânimo. O Zorro era o único do grupo que não se sentia afectado por aquele confinamento, porque estava muito ocupado a pensar em Lolita. Tal como Coruja Branca lhe dissera durante a sua iniciação, as grutas e a noite eram os elementos da raposa.
O trajecto do túnel pareceu-lhes muito longo, embora a saída não ficasse longe da prisão. De dia, os guardas teriam conseguido vê-los, mas em plena noite os fugitivos conseguiram emergir do túnel sem perigo de serem vistos, protegidos pelas árvores. Saíram cobertos de terra, sedentos, ansiosos por respirar ar puro. Os índios despojaram-se dos seus andrajos de prisioneiros, sacudiram a terra e, nus, levantaram os braços e a cara ao céu para comemorarem aquele primeiro momento de liberdade. Ao compreenderem que estavam num lugar sagrado, sentiram-se reconfortados: era um bom augúrio. Uns assobios responderam aos de Bernardo e não tardaram a aparecer os índios de Toypurnia conduzindo os cavalos roubados e os deles, entre os quais vinha Tornado. Os fugitivos montaram aos pares nas cavalgaduras e dispersaram-se em direcção aos cerros. Era gente da região e poderiam reunir-se às suas tribos antes que os soldados se organizassem para os alcançarem. Pensavam manter-se o mais longe possível dos brancos, até que a normalidade regressasse à Califórnia.
O Zorro sacudiu a terra, lamentando que a sua indumentária recentemente comprada em Cuba já estivesse imunda, e congratulou-se por as coisas terem saído até melhor que o planeado. Arsénio levou na garupa do seu cavalo o homem que tinha sido flagelado; Bernardo instalou Alejandro de La Vega no seu e ele sentou-se atrás para o segurar. O caminho da montanha era escarpado e fariam a maior parte durante a noite. O ar frio sacudira o letargo do ancião e a alegria de ver o filho tinha-lhe devolvido a esperança. Bernardo assegurou-lhe que Toypurnia e Coruja Branca tratariam dele até que pudesse regressar à fazenda.
Entretanto, o Zorro galopava em Tornado rumo à Missão San Gabriel.
O padre Mendoza passou várias noites a dar voltas no seu catre sem conseguir dormir. Tinha lido e rezado sem encontrar tranquilidade para o seu espírito desde que descobrira que faltavam coisas na arrecadação e o seu hábito de reserva. Só tinha dois, que alternava de três em três semanas para os lavar, e tão usados e rotos que não conseguia imaginar quem teria tido a tentação de lhe subtrair um. Quisera dar ao ladrão oportunidade de devolver o que roubara, mas já não podia adiar mais a decisão de agir. A ideia de reunir os seus neófitos, pregar-lhes um sermão sobre o terceiro mandamento e averiguar quem era o responsável tirava-lhe o sono. Sabia que a sua gente passava muitas necessidades e não era o momento de impor castigos, mas não podia deixar passar aquela falta. Não compreendia por que razão, em vez de furtarem alimentos, tinham levado cordas, nitrato, zinco e o seu hábito; o assunto não fazia sentido. Estava cansado de tanta luta, trabalho e solidão, doíam-lhe os ossos e a alma. Os tempos haviam mudado tanto que já não reconhecia o mundo, reinava a ganância, ninguém se lembrava dos ensinamentos de Cristo, já ninguém o respeitava, não podia proteger os seus neófitos dos abusos dos brancos. Às vezes perguntava a si mesmo se os índios não estariam melhor antes, quando eram donos da Califórnia e viviam à sua maneira, com os seus costumes e os seus deuses, mas logo se persignava e pedia perdão a Deus por tamanha heresia. «Onde iremos parar, se eu mesmo duvido do cristianismo!», suspirava, arrependido.
A situação tinha piorado muito com a chegada de Rafael Moncada, que representava o pior da colonização: vinha para fazer fortuna depressa e pôr-se a andar. Para ele, os índios eram bestas de carga. Nos mais de vinte anos que tinha de San Gabriel, o missionário passara por momentos críticos - terramotos, epidemias, secas e até um ataque de índios -, mas nunca desanimara, porque tinha a certeza de que cumpria um mandato divino. Agora sentia-se abandonado por Deus.
Caía a noite e tinham acendido archotes no pátio. Depois de uma jornada de duro trabalho, o padre Mendoza, de mangas arregaçadas e suado, estava a rachar lenha para a cozinha. Levantava o machado com dificuldade: cada dia lhe parecia mais pesado, cada dia a madeira era mais dura. Nisto, sentiu um galope de cavalo. Fez uma pausa e afirmou a vista, que já não era a mesma de antigamente, perguntando a si mesmo quem viria tão apressado àquela hora tardia. Quando o cavaleiro se aproximou, viu que se tratava de um homem vestido de escuro e com a cara tapada por uma máscara, sem dúvida um bandido. Deu o alarme, para que mulheres e crianças se refugiassem, após o que se aprontou para o enfrentar com o machado nas mãos e uma oração nos lábios; não havia tempo de ir à procura do seu velho mosquete. O desconhecido não esperou que o corcel parasse para saltar em terra, chamando o missionário pelo nome:
- Não tenha medo, padre Mendoza, sou um amigo!
- Então a máscara está a mais. O teu nome, filho - volveu o sacerdote.
- Zorro. Bem sei que parece estranho, mas mais estranho é o que lhe vou dizer, padre. Vamos para dentro, por favor.
O missionário conduziu o desconhecido à capela, com a ideia de que ali contava com protecção celestial e poderia convencê-lo de que naquele lugar não havia nada de valor. O indivíduo parecia temível - trazia espada, pistola e chicote, estava armado para a guerra -, mas tinha um ar vagamente familiar. Onde ouvira aquela voz? O Zorro começou por lhe assegurar de que não era um rufião e seguidamente confirmou-lhe as suas suspeitas sobre a exploração de pérolas de Moncada e Alcázar. Legalmente, só lhes pertenciam dez por cento; o resto do tesouro era de Espanha. Utilizavam os índios como escravos, seguros de que ninguém, excepto o padre Mendoza, intercederia por eles.
- Não tenho a quem apelar, filho. O governador é um homem fraco e teme Moncada - alegou o missionário.
- Então deverá recorrer às autoridades do México e de Espanha, padre.
- Com que provas? Ninguém me acreditará; tenho fama de ser um velho fanático, obcecado com o bem-estar dos índios.
- A prova é esta - disse o Zorro, colocando-lhe uma pesada sacola nas mãos.
O missionário olhou para o conteúdo e soltou uma exclamação de surpresa ao ver o monte de pérolas.
- Como obtiveste isto, filho, por Deus?
- Isso não importa.
O Zorro sugeriu-lhe que levasse o saque ao bispo do México e denunciasse o sucedido, única forma de evitar que escravizassem os índios. Se Espanha decidisse explorar os bancos de ostras, contratariam os índios Yaquis, tal como se fazia dantes. Depois pediu-lhe que informasse Diego de La Vega de que o pai se encontrava livre e a salvo. O missionário comentou que esse jovem se revelara uma desilusão, não parecia filho de Alejandro e Regina, faltava-lhe fibra. Pediu de novo ao visitante que lhe mostrasse a cara, caso contrário não lhe era possível confiar na sua palavra, podia ser uma cilada. O outro retorquiu que a sua identidade devia permanecer secreta, mas prometeu-lhe que já não estaria só no seu empenho de defender os pobres, porque, de agora em diante, o Zorro velava pela justiça. O padre Mendoza soltou uma risada nervosa; o fulano podia ser um doido à solta.
- Uma última coisa, padre... Esta bolsinha de camurça contém cento e três pérolas muito mais finas que as restantes, que valem uma fortuna. São suas. Não tem nada que as mencionar a ninguém; asseguro-lhe de que a única pessoa que sabe da sua existência não se atreverá a perguntar por elas.
- Imagino que sejam roubadas.
- São, sim, mas, em justiça, pertencem a quem as arrancou ao mar com o seu último fôlego. O senhor saberá dar-lhes bom uso.
- Se foram mal obtidas, não as quero ver, meu filho.
- Não tem que o fazer, padre, mas guarde-as - tornou o Zorro com uma piscadela de olho de cumplicidade.
O missionário escondeu a bolsa nas dobras do hábito e acompanhou o visitante ao pátio, onde o esperava o lustroso cavalo negro, rodeado pelas crianças da missão. O homem montou o corcel e, para divertir os pequenos, fê-lo curvetear com um assobio, após o que fez a espada luzir à luz dos archotes e cantou um verso que ele próprio tinha composto nos meses de ócio em Nova Orleães, a respeito de um valente cavaleiro que nas noites de luar sai para defender a justiça, castigar os malvados e traçar o Z com o seu aço. O pormenor da canção seduziu as crianças, mas aumentou o receio do padre Mendoza de que o sujeito fosse desaparafusado. Isabel e Nuria, que passavam a maior parte do dia fechadas no seu quarto a coser, assomaram ao pátio a tempo de vislumbrar a galante figura a fazer piruetas sobre o negro corcel, antes de desaparecer. Perguntaram quem era aquela atraente personagem e o padre Mendoza respondeu que, se não fosse um demónio, devia ser um anjo enviado por Deus para lhe reforçar a fé.
Nessa mesma noite, Diego de La Vega regressou à missão coberto de pó, contando que tivera de encurtar a viagem porque estivera a ponto de perecer às mãos de uns bandidos. Vira vir de longe um par de fulanos suspeitos e para os evitar saíra do Camino Real, desatara a galopar em direcção aos bosques, mas perdera-se. Passara a noite encolhido debaixo das árvores, a salvo de bandoleiros, mas à mercê de ursos e lobos. Ao alvorecer conseguira orientar-se e decidira voltar a San Gabriel; era uma imprudência prosseguir sozinho. Tinha cavalgado o dia inteiro sem meter nada à boca, estava morto de fadiga e com dores de cabeça. Sairia para Monterrey dentro de uns dias, mas desta vez iria bem armado e com escolta. O padre Mendoza informou-o de que já não seria precisa a sua visita ao governador, porque Dom Alejandro de La Vega fora resgatado da prisão por um bravo desconhecido. A única coisa que Diego tinha pela frente era o dever de recuperar os bens da família. Calou as dúvidas de que aquele peralvilho hipocondríaco fosse capaz de o fazer.
- Quem resgatou o meu pai? - perguntou Diego.
- Dizia chamar-se Zorro e tinha uma máscara - disse o missionário.
- Máscara? Um bandoleiro, porventura? - inquiriu o jovem.
- Eu também o vi, Diego, e para bandoleiro o homem não era nada de se deitar fora. Nem queiras saber como era bonito e elegante! Além disso, montava um cavalo que lhe deve ter custado os olhos da cara - - interveio Isabel, entusiasmada.
- Tu sempre tiveste mais imaginação que a conveniente - retorquiu ele.
Nuria interrompeu para anunciar o jantar. Nessa noite, Diego comeu com voracidade, apesar da tão anunciada enxaqueca, e ao terminar felicitou a ama, que tinha melhorado a dieta da missão. Isabel interrogou-o sem piedade: queria averiguar por que razão os seus cavalos não tinham chegado cansados, o aspecto dos supostos malandrins, o tempo que levara a ir de um ponto a outro e a razão pela qual não se hospedara noutras missões, a uma jornada apenas de caminho. O padre Mendoza não percebeu o carácter vago das respostas, mergulhado como estava nas suas meditações. Com a mão direita comia e com a esquerda apalpava na algibeira a bolsa de camurça, calculando que o seu conteúdo poderia devolver à missão o seu antigo bem-estar. Tinha pecado ao aceitar aquelas pérolas manchadas de sofrimento e ganância? Não. Pecado, nem por sombras, mas podiam trazer-lhe azar... Sorriu ao verificar que com os anos se tinha tornado mais supersticioso.
Um par de dias mais tarde, quando o padre Mendoza já tinha enviado uma carta sobre as pérolas para o México e preparava a bagagem para a jornada com Diego, chegaram Rafael Moncada e Carlos Alcázar, à cabeça de vários soldados, entre eles o obeso sargento Garcia. Alcázar exibia uma feia costura na face, que lhe deformava a cara, e vinha inquieto, porque não conseguira convencer o seu sócio da forma como as pérolas se tinham esfumado. A verdade não lhe valia neste caso, porque teria posto em evidência o seu triste papel na defesa da prisão e do saque. Preferiu dizer-lhe que meia centena de índios incendiara El Diablo, enquanto um bando de foragidos, às ordens de um mascarado vestido de preto, que se identificara como o Zorro, se introduzira no edifício. Depois de cruenta luta, em que ele próprio fora ferido, os assaltantes haviam logrado submeter os soldados, pondo-se em fuga com as pérolas. Na confusão, os presos tinham fugido. Sabia que Moncada não ficaria tranquilo enquanto não averiguasse a verdade e encontrasse as pérolas. Os presos fugitivos eram o menos; havia mão-de-obra indígena de sobra para os substituir.
A curiosa forma do corte na cara de Alcázar - um perfeito Z - recordou a Moncada um mascarado cuja descrição correspondia ao Zorro, que traçara uma letra semelhante na residência do Chevalier Duchamp e num quartel de Barcelona. Em ambas as ocasiões, o pretexto fora libertar uns presos, como em El Diablo. Além disso, no segundo caso tivera a audácia de utilizar o seu próprio nome e o de sua tia Eulália. Jurara fazê-lo pagar aquele insulto, mas nunca haviam conseguido deitar-lhe a luva. Chegou rapidamente à única conclusão possível: Diego de La Vega estava em Barcelona na época em que alguém traçava um Z nas paredes e, mal desembarcara na Califórnia, tinham marcado a mesma letra na face de Alcázar. Não era simples coincidência. O tal Zorro não podia ser outro senão Diego. Custava a crer, mas, de qualquer maneira, era um bom pretexto para lhe fazer pagar os incómodos que lhe havia causado. Chegou à missão a mata-cavalos, porque pensava que a sua presa podia ter fugido, e encontrou Diego sentado debaixo de uma latada a beber limonada e a ler poesias. Ordenou ao sargento Garcia que o prendesse e o pobre gordo, que continuava a ter por Diego a mesma incondicional admiração da infância, dispôs-se de má vontade a obedecer, mas o padre Mendoza alegou que o mascarado que devia ser o Zorro não era, nem remotamente, parecido com Diego de La Vega. Isabel apoiou-o: nem um tolo podia confundir aqueles dois homens, disse; conhecia Diego como um irmão, tinha vivido com ele durante cinco anos, era bom rapaz, inofensivo, sentimental, enfermiço, de bandido não tinha nada e muito menos de herói.
- Obrigado - atalhou-a Diego, ofendido, mas notou que o olho errante da amiga girava como um pião.
- O Zorro ajudou os índios porque estão inocentes; sabe-o tão bem como eu, senhor Moncada. Não roubou as pérolas; tomou-as como prova do que se passa em El Diablo - disse o missionário.
- De que pérolas fala? - interrompeu-o Carlos Alcázar, muito nervoso, porque até esse momento ninguém as tinha mencionado e ignorava quanto sabia o padre das suas trapacices.
O padre Mendoza admitiu que o Zorro lhe havia entregado a sacola com o encargo de ir com ela aos tribunais do México. Rafael Moncada dissimulou um suspiro de alívio: tinha sido mais fácil recuperar o seu tesouro do que imaginara. Aquele velho ridículo não constituía problema: podia apagá-lo do mapa com um sopro, sucediam acidentes lamentáveis a toda a hora. Com expressão preocupada, agradeceu-lhe o estratagema para recuperar as pérolas e o zelo de cuidar delas, após o que lhe exigiu que lhas entregasse; ele se encarregaria do assunto. Se Carlos Alcázar, como chefe da prisão, tinha cometido irregularidades, tomar-se-iam as medidas pertinentes; não havia motivo para incomodar ninguém no México. O padre teve de obedecer. Não se atreveu a acusá-lo de cumplicidade com Alcázar, porque um passo em falso lhe custaria o que mais lhe importava neste mundo: a sua missão. Foi buscar a sacola e colocou-a sobre a mesa.
- Isto pertence a Espanha. Mandei uma carta aos meus superiores e haverá uma investigação a esse respeito - disse.
- Uma carta? Mas se o barco ainda não chegou... - interrompeu Alcázar.
- Disponho de outros meios, mais rápidos e seguros que o barco.
- Estão aqui as pérolas todas? - perguntou Moncada, contrariado.
- Como posso eu saber? Não estava presente quando foram subtraídas, não sei quantas havia originariamente. Só Carlos pode responder a essa pergunta - retrucou o missionário. Aquelas palavras aumentaram as suspeitas que Moncada já tinha do seu sócio. Pegou no missionário por um braço e levou-o à viva força até à frente do crucifixo que havia numa mísula na parede.
- Jure diante da cruz de Nosso Senhor que não viu outras pérolas. Se mentir, a sua alma estará condenada ao inferno - ordenou-lhe.
Um silêncio carregado de presságios dominou a sala; todos retiveram a respiração e até o ar se imobilizou. Lívido, o padre Mendoza soltou-se com um puxão do aperto que o paralisava.
- Como se atreve? - exclamou entre dentes.
- Jure! - repetiu o outro.
Diego e Isabel adiantaram-se para intervir, mas o padre Mendoza, detendo-os com um gesto, pôs um joelho no chão, a mão direita no peito e os olhos no Cristo esculpido em madeira pelas mãos de um índio. Tremia de emoção e de raiva pela violência a que era submetido, mas não receava ir parar ao inferno, pelo menos por aquele motivo.
- Juro diante da Cruz que não vi outras pérolas. Que a minha alma seja condenada se minto - disse com voz firme.
Durante uma longa pausa ninguém disse uma só palavra; o único som foi o suspiro de alívio de Carlos Alcázar, cuja vida não valia um centavo se Rafael Moncada tomasse conhecimento de que tinha ficado com a melhor parte do saque. Supunha que a bolsa de camurça estava em poder do mascarado, mas não percebia por que razão este tinha entregado as restantes pérolas ao padre, podendo ficar com todas. Diego adivinhou o curso dos seus pensamentos e sorriu-lhe, desafiador. Moncada teve de aceitar o juramento do padre Mendoza, mas lembrou a todos que não dava o assunto por concluído, enquanto não pendurasse o culpado na forca. «Garcia! Prende De La Vega!», repetiu Rafael Moncada.
O gordo enxugou a testa com a manga do uniforme e dispôs-se a cumprir de má vontade a sua incumbência. «Sinto muito», balbuciou, indicando a dois soldados que o levassem. Isabel pôs-se à frente de Moncada, aduzindo que não havia provas contra o seu amigo, mas ele afastou-a com um brusco empurrão.
Diego de La Vega passou a noite encerrado num dos antigos quartos da criadagem da fazenda onde nascera. Lembrava-se até de quem o ocupava na época em que ali vivia com os pais, uma índia mexicana de seu nome Roberta, que tinha metade da cara queimada por um acidente com uma panela de chocolate a ferver. Que seria feito dela? Não se lembrava, em contrapartida, de que aqueles quartos fossem tão miseráveis, cubículos sem janelas, com chão de terra e paredes de adobe por pintar, mobilados com um enxergão de palha, uma cadeira e uma arca de madeira. Pensou que Bernardo passara assim a infância, enquanto a poucos metros de distância ele dormia numa cama de bronze com uma cortina de tule para o proteger das aranhas, num aposento atulhado de brinquedos. Como não tinha reparado nisso então? A casa estava dividida por uma linha invisível, que separava o espaço da família do complexo universo dos criados. O primeiro, amplo e luxuoso, decorado em estilo colonial, era um prodígio de ordem, calma e limpeza, cheirava a ramos de flores e ao tabaco do pai. No segundo fervia a vida: tagarelice incessante, animais domésticos, bulhas, trabalho. Aquela parte da casa cheirava a pimento moído, a pão do forno, a roupa de molho em lixívia, a lixo. Os terraços da família, com os seus azulejos pintados, as suas buganvílias e fontes, eram um paraíso de frescura, ao passo que os pátios da criadagem se enchiam de poeira no Verão e de lama no Inverno.
Diego passou horas incontáveis no enxergão por terra, a suar o calor de Maio, sem ver luz natural. Faltava-lhe o ar, ardia-lhe o peito. Não podia medir o tempo, mas sentia que tinha ali passado vários dias. Tinha a boca seca e receava que o plano de Moncada fosse vencê-lo pela sede e pela fome. De vez em quando fechava os olhos e tentava dormir, mas estava demasiado mal instalado. Não havia espaço para dar mais de dois passos, sentia os músculos entorpecidos. Examinou o quarto palmo a palmo, procurando a forma de sair, e não a encontrou. A porta tinha uma sólida barra de ferro por fora; nem Galileo Tempesta teria podido abri-la de dentro. Tentou soltar as tábuas do tecto, mas estavam reforçadas; tornava-se evidente que o lugar era utilizado como cela. Muito tempo mais tarde, a porta do seu túmulo abriu-se e o rosto rubicundo do sargento Garcia apareceu no umbral. Apesar da fraqueza que sentia, Diego calculou que podia aturdir o bom sargento com um mínimo de violência, utilizando a pressão no pescoço que o mestre Manuel Escalante lhe ensinara, quando o treinava no método de luta dos membros de La Justicia, porém não queria causar problemas com Moncada ao seu antigo amigo. Aliás, dessa maneira poderia sair da sua cela, mas não conseguiria fugir da fazenda; era melhor esperar. O gordo colocou no solo um jarro de água e uma malga com feijões e arroz.
- Que horas são, meu amigo? - perguntou-lhe Diego, simulando um bom humor que estava longe de sentir.
Garcia respondeu com trejeitos e gestos dos dedos.
- Nove da manhã de terça-feira, dizes? Isso significa que estive aqui duas noites e um dia. Que bem dormi! Sabes quais são as intenções de Moncada?
Garcia negou com a cabeça.
- Que se passa contigo? Tens ordens para não falar comigo? Bom, mas ninguém te disse que não me podias ouvir, pois não?
- Humm - assentiu o outro.
Diego espreguiçou-se, bocejou, bebeu água e saboreou com parcimónia a comida, que lhe pareceu deliciosa, como comentou a Garcia, enquanto conversava sobre tempos passados: as estupendas aventuras da infância, a coragem que Garcia sempre demonstrara ao enfrentar Alcázar e caçar um urso vivo. Com razão era admirado pelos rapazes da escola, concluiu. Não era exactamente assim que o sargento recordava aquela época, mas as palavras derramaram-se como um bálsamo na sua alma magoada.
- Em nome da nossa amizade, Garcia, tens de me ajudar a sair daqui - concluiu Diego.
- Gostaria, mas sou soldado e o dever está acima de tudo - respondeu o outro num sussurro, olhando por cima do ombro para verificar que ninguém os ouvia.
- Nunca te pediria que faltasses ao teu dever ou cometesses um acto ilegal, Garcia, mas ninguém te pode culpar se a porta não ficar bem trancada...
Não houve tempo de continuar a conversa, porque apareceu um soldado a indicar ao sargento que Dom Rafael Moncada esperava o prisioneiro. Garcia endireitou a casaca, pôs o peito para fora e bateu os tacões com ar marcial, mas piscou o olho a Diego. Levantaram o detido pelos braços e conduziram-no ao salão principal, sustendo-o quase em peso até se poder firmar nas pernas adormecidas pela imobilidade. Com pena, Diego verificou mais uma vez as mudanças: o seu lar tinha aspecto de quartel. Sentaram-no numa das cadeiras do salão e amarraram-no pelo peito ao espaldar e pelos tornozelos às pernas do móvel. Apercebeu-se de que o sargento cumpria parcialmente a sua obrigação: as cordas não ficaram bem apertadas e com alguma habilidade poderia soltar-se, mas havia soldados por todo o lado. «Preciso de uma espada», sussurrou a Garcia num momento em que o outro militar se afastou um par de passos. O gordo por pouco não sufocou de susto diante de semelhante pedido.
Diego estava a passar das marcas: como ia dar-lhe uma arma em semelhantes circunstâncias? Custar-lhe-ia vários dias no cepo e a sua carreira militar. Deu-lhe umas palmadinhas carinhosas no ombro e foi-se embora, cabisbaixo e arrastando os pés, enquanto o guarda se postava a um canto a vigiar o cativo.
Diego passou mais de duas horas na cadeira, tempo que empregou para libertar dissimuladamente as mãos das cordas, mas não podia desatar os tornozelos sem chamar a atenção do soldado, um inalterável mestiço com aspecto de estátua asteca. Tentou atraí-lo fingindo que sufocava de tosse, após o que lhe pediu que lhe desse um cigarro, um copo de água, um lenço, mas não houve maneira de ele se aproximar. Por única resposta aperrava a arma e observava-o com os seus olhos de pedra, que mal assomavam sobre os pómulos proeminentes. Diego concluiu que, se aquilo era uma estratégia de Moncada para lhe abaixar a grimpa e amolecer-lhe a vontade, estava a dar bom resultado.
Por fim, a meio da tarde, fez a sua entrada Rafael Moncada, pedindo desculpa por ter incomodado uma pessoa tão fina como Diego. Nada mais longe do seu espírito do que fazer-lhe passar um mau bocado, disse, mas, dadas as circunstâncias, não podia agir de outra maneira. Sabia Diego quanto tempo estivera encerrado no quarto da criadagem? Exactamente o mesmo número de horas que ele permanecera na câmara secreta de Tomás de Romeu, antes de aparecer a sua tia para o tirar de lá. Uma curiosa coincidência. Embora ele se prezasse de ter sentido de humor, aquela brincadeira fora um tanto ou quanto pesada. Em qualquer caso, agradecia-lhe que o tivesse livrado de Juliana; desposar uma mulher de condição inferior teria arruinado a sua carreira, tal como a tia o advertira tantas vezes, mas enfim, não estavam ali para falar de Juliana. Supunha que Diego - ou devia chamar-lhe Zorro? - desejava conhecer a sorte que o esperava. Era um delinquente da mesma espécie que o seu pai, Alejandro de La Vega: tal pai, tal filho. Prenderiam o velho, disso não havia dúvida, e ele consumir-se-ia num calabouço. Nada lhe daria mais prazer do que enforcar o Zorro com as suas próprias mãos, mas não era esse o seu papel, acrescentou. Mandá-lo-ia para Espanha, acorrentado e sob estrita vigilância, para que fosse julgado no preciso local onde iniciara a sua carreira criminosa e onde deixara suficientes pistas para o condenarem. No governo de Fernando VII aplicava-se o peso da lei com a firmeza adequada, não era como nas colónias, onde a autoridade era uma brincadeira. Aos delitos cometidos em Espanha somavam-se os da Califórnia: tinha assaltado a prisão de El Diablo, provocado um incêndio, destruído propriedade do reino, ferido um militar e conspirado para a fuga de prisioneiros.
- Consta-me que o autor dessas tropelias é um sujeito chamado Zorro. E creio que, além disso, se apoderou de umas pérolas. Ou prefere Vossa Excelência não falar desse assunto? - retorquiu Diego.
- O Zorro sois vós, De La Vega!
- Oxalá o fosse (o homem parece fascinante), mas a minha delicada saúde não me permite tais aventuras. Sofro de asma, dores de cabeça e palpitações no coração.
Rafael Moncada colocou-lhe um documento diante do nariz, redigido pelo seu próprio punho, à falta de escrivão, e exigiu-lhe que firmasse o seu nome. O prisioneiro objectou que seria uma imprudência assinar uma coisa sem conhecer o conteúdo. Nesse momento não podia lê-lo, visto que se tinha esquecido dos óculos e era curto de vista, outra diferença do Zorro, ao qual se atribuíam uma prodigiosa pontaria com o chicote e celeridade com a espada. Nenhum cegueta possuía tais habilidades, acrescentou.
- Basta! - exclamou Moncada, atravessando-lhe a cara com uma bofetada.
Diego estava à espera de uma reacção violenta, mas, mesmo assim, teve de fazer um tremendo esforço para se controlar e não saltar contra Moncada. Ainda não tinha chegado a sua oportunidade. Manteve as mãos atrás, segurando as cordas, enquanto o sangue do nariz e da boca lhe sujavam a camisa. Naquele preciso instante irrompeu o sargento Garcia que, ao ver o seu amigo de infância naquele estado, parou de chofre, sem saber que partido tomar. A voz de comando de Moncada arrancou-o ao seu estupor.
- Não te chamei, Garcia!
- Excelência... Diego de La Vega está inocente. Eu bem lhe disse que não podia ser o Zorro! Acabamos de ver o Zorro lá fora... - tartamudeou o sargento.
- Que diabo dizes, homem?
- É verdade, Excelência, todos o vimos.
Moncada saiu como um foguete, seguido pelo sargento, mas o guarda permaneceu na sala, apontando a sua arma a Diego. No portão do jardim, Moncada viu pela primeira vez a teatral figura do Zorro recortada com nitidez contra o céu arroxeado do entardecer, e a surpresa paralisou-o por uns segundos.
- Sigam-no, imbecis! - gritou, sacando da pistola e disparando sem apontar.
Alguns soldados voaram para ir buscar os cavalos e outros dispararam as suas armas, mas já o cavaleiro se afastava a galope. O sargento, mais interessado que ninguém em descobrir a identidade do Zorro, saltou para a montada com inesperada agilidade, cravou as esporas e partiu em sua perseguição, seguido por meia dúzia de homens. Perderam-se correndo em direcção ao sul, atravessando colinas e bosques. O mascarado levava-lhes vantagem e conhecia bem o terreno, mas ainda assim a distância entre ele e a tropa foi-se encurtando. Passada meia hora de galope, quando os cavalos começavam a suar espuma, o Sol tinha desaparecido e os soldados estavam quase a alcançá-lo, chegaram aos despenhadeiros: o Zorro estava encurralado entre eles e o mar.
Entretanto, no salão da casa, Diego teve a impressão de que a portinhola dissimulada na lareira se abria. Só podia tratar-se de Bernardo, que, de algum modo, tinha arranjado maneira de voltar à fazenda. Desconhecia os pormenores do sucedido lá fora, mas pelas blasfémias de Moncada, pelos gritos, pelos disparos e pela agitação dos cavalos, imaginava que o irmão conseguira confundir o inimigo. Para distrair o guarda, fingiu outro aparatoso ataque de tosse, após o que deu um impulso, fez girar a cadeira e ficou deitado de flanco no solo. O homem postou-se ao lado dele e ordenou-lhe que ficasse quieto ou estoirar-lhe-ia os miolos, mas Diego notou que o seu tom era vacilante; talvez as instruções da estátua asteca não incluíssem matá-lo. Pelo rabo do olho distinguiu uma sombra que se afastava da lareira e se aproximava. Diego soltou as mãos e aplicou-lhe um tremendo golpe entre as pernas, mas o fulano devia ser de pedra maciça, porque não se mexeu. Nesse instante, o guarda sentiu o cano de uma pistola na têmpora e viu um mascarado que lhe sorria sem dizer palavra.
- Rendei-vos, bom homem, antes que se escape uma bala ao Zorro - aconselhou-o Diego do chão, ao mesmo tempo que se libertava rapidamente dos laços dos tornozelos.
O outro Zorro desarmou o soldado, atirou a espingarda a Diego, que a apanhou no ar, e a seguir retrocedeu com rapidez até às sombras da lareira. Despedindo-se com uma piscadela de olho de cumplicidade, Diego não deu ocasião ao guarda de ver o que sucedia atrás de si; atirou-o ao chão com uma única pancada seca da mão em cutelo no pescoço. O homem esteve desmaiado uns minutos, que Diego empregou para o amarrar com as mesmas cordas que tinham usado nele; em seguida quebrou a janela a pontapé, tendo o cuidado de não deixar vidros cortantes nas bordas, porque pensava regressar por ali mesmo, e deslizou pela portinhola secreta até às grutas.
Ao voltar ao salão, Rafael Moncada deparou-se com o facto de que De La Vega se tinha esfumado e o homem encarregado de o vigiar ocupava o seu lugar na cadeira. A janela estava quebrada e a única coisa de que o atordoado guarda se lembrava era de uma silhueta escura e do frio glacial de uma pistola na têmpora. «Imbecis, imbecis sem remédio», foi a conclusão de Moncada. Nesse momento, metade dos seus homens galopava atrás de um fantasma, enquanto o seu prisioneiro tinha empreendido a fuga nas suas próprias barbas. Apesar das evidências, continuava convencido de que o Zorro e Diego de La Vega eram a mesma pessoa.
Na gruta, Diego não encontrou Bernardo, como esperava, mas este tinha-lhe deixado vários candeeiros de sebo acesos, o seu disfarce, a sua espada e o seu cavalo. Tornado resfolegava impaciente, sacudindo a frondosa crina escura e dando patadas no solo. «Depressa te habituarás a este lugar, meu amigo», disse-lhe Diego, acariciando o pescoço lustroso do animal. Também encontrou um odre com vinho, queijo e mel para se repor dos maus bocados que passara. Pelos vistos, não escapava nem um pormenor ao seu irmão. Também tinha de admirar a sua habilidade para iludir a perseguição dos soldados e aparecer por obra de magia a resgatá-lo no instante devido. Com que silenciosa elegância tinha agido! Bernardo era tão bom Zorro como ele próprio; juntos seriam invencíveis, concluiu. Não havia pressa para o passo seguinte; tinha de esperar pela noite cerrada, quando a agitação na casa acalmasse. Depois de comer, fez umas quantas flexões para se desentorpecer e pôs-se a dormir a poucos passos de Tornado, com a beatitude de quem realizou um bom trabalho.
Acordou horas mais tarde descansado e alegre. Lavou-se e mudou de roupa, voltou a pôr a máscara e até teve alento para o bigode. «Preciso de um espelho, não é fácil colar os pêlos de cor. Está decidido, tenho de deixar crescer o bigode, é inevitável. Esta gruta requer certas comodidades; isso facilitará as nossas andanças, não achas?», comentou para Tornado. Esfregou as mãos encantado perante as imensas possibilidades do futuro; enquanto tivesse saúde e força, nunca se aborreceria. Pensou em Lolita e sentiu um formigueiro no estômago semelhante ao que dantes Juliana lhe provocava, mas não os relacionou. A sua atracção por Lolita era tão fresca como se fosse a primeira e a única da sua vida. Cuidado! Não devia esquecer que ela era prima de Carlos Alcázar e por isso não podia ser sua namorada. Namorada? Riu-se com vontade: nunca se casaria, as raposas eram animais solitários.
Verificou que a sua espada Justina deslizava com facilidade na bainha, ajeitou o chapéu e dispôs-se à acção. Conduziu Tornado à saída das grutas, que Bernardo tivera a precaução de dissimular muito bem com rochas e arbustos, montou-o e dirigiu-se à fazenda. Não queria correr o risco de que se descobrisse a passagem secreta da lareira. Calculou que tinha dormido várias horas; devia passar da meia-noite e possivelmente todos, excepto as sentinelas, estariam a dormir. Deixou Tornado com as rédeas soltas debaixo de umas árvores próximas, certo de que ele não se moveria enquanto não o chamasse: tinha assimilado bem os ensinamentos de Raio na Noite. Embora tivessem dobrado a guarda, não teve qualquer obstáculo em aproximar-se da casa e espiar pela janela do salão, a única com luz. Em cima da mesa havia um candelabro de três velas, que alumiava um sector, mas o resto estava na penumbra. Passou as pernas com cuidado através da janela quebrada, entrou no compartimento e, escondendo-se entre os móveis alinhados contra as paredes, avançou em direcção à lareira, onde conseguiu acaçapar-se atrás dos grandes troncos. No outro extremo da divisão, Rafael Moncada passeava-se, fumando, e o sargento Garcia, perfilado e olhando em frente, procurava explicar-lhe o sucedido. Tinham seguido o Zorro a galope largo até aos despenhadeiros, disse, mas, quando estavam prestes a apanhá-lo, o foragido preferira saltar para o mar a render-se. Nessa altura já restava pouca luz e, aliás, era impossível aproximarem-se da borda, com medo de escorregarem nas pedras soltas. Embora não vissem o fundo do precipício, esvaziaram as armas, de modo que o Zorro tinha partido a cabeça nos rochedos, recebendo, além disso, uma salva de balas.
- Imbecil! - repetiu Moncada pela enésima vez. - Esse indivíduo arranjou maneira de te enganar e, entretanto, De La Vega escapou.
Uma inocente expressão de alívio bailou brevemente no rosto corado de Garcia, mas desapareceu instantaneamente, fulminada pelo olhar cortante do seu superior.
- Amanhã irás à missão com um destacamento de oito homens armados. Se De La Vega lá estiver, prende-lo de imediato; se resistir, mata-lo. Caso não esteja, trazes-me o padre Mendoza e Isabel de Romeu. Serão meus reféns, até que o bandido se entregue, percebeste?
- Mas como vamos fazer semelhante coisa ao padre? Penso que...
- Não penses, Garcia! O cérebro não te dá para isso. Obedece e cala a boca.
- Sim, Excelência.
Do seu esconderijo na escura fornalha da lareira, Diego perguntava a si mesmo como teria Bernardo arranjado maneira de estar em dois sítios ao mesmo tempo. Moncada acabou de insultar Garcia e despachou-o, após o que se serviu de um cálice do conhaque de Alejandro de La Vega e se sentou a meditar, baloiçando-se na cadeira, com os pés em cima da mesa. As coisas tinham-se complicado, havia pontas soltas, teria de eliminar várias pessoas; caso contrário, não conseguiria manter as pérolas em segredo. Bebeu sem pressa a bebida, examinou o documento que escrevera para Diego assinar e, por último, dirigiu-se a um pesado armário e tirou de lá a sacola. Uma das velas acabou de se consumir e o cerol gotejou sobre a mesa antes de ele terminar de contar mais uma vez as pérolas. O Zorro aguardou durante um espaço de tempo prudente e depois saiu com sigilo de gato do seu refúgio. Tinha dado vários passos cosido com a parede quando Moncada, sentindo-se observado, se voltou. Os seus olhos poisaram sobre o homem mimetizado nas sombras, sem o ver, mas o instinto advertiu-o do perigo. Pegou na fina espada com punho de prata e borlas de seda vermelha que pendia da cadeira.
- Quem anda aí? - perguntou.
- O Zorro. Acho que temos uns assuntozinhos pendentes... - disse este, adiantando-se.
Moncada não lhe deu tempo para continuar, caindo-lhe em cima com um grito de ódio, decidido a trespassá-lo de lado a lado. O Zorro evitou o aço com um passe de toureiro, incluindo uma graciosa volta da capa, e com dois saltos afastou-se, sempre com garbo, a mão direita enluvada no punho, a esquerda na cintura, o olhar atento e um sorriso escancarado sob o bigodinho retorcido. Ao segundo lance esquivado desembainhou a sua espada sem pressa, como se a insistência do outro em o matar fosse um aborrecimento.
- Má coisa é bater-se com raiva - desafiou-o.
Parou três mandobres e um corte de revés mal levantando a arma, após o que retrocedeu para dar confiança ao adversário, que, sem vacilar, arremeteu de novo. O Zorro trepou com um único impulso à mesa e dali de cima defendeu-se, quase dançando, das estocadas a fundo de Moncada. Algumas passavam-lhe entre as pernas, outras evitava-as ele com cabriolas ou detinha-as com tal firmeza que os ferros soltavam faíscas. Desceu da mesa e afastou-se dando saltos sobre as cadeiras, perseguido de perto por Moncada, cada vez mais frenético. «Não vos canseis, que não é bom para o coração», espicaçava-o. De vez em quando, o Zorro perdia-se nas sombras dos recantos, onde a débil luz das velas não chegava, mas, em vez de aproveitar a vantagem para atacar à traição, reaparecia por outro lado, chamando o seu opositor com um assobio. Moncada tinha muito bom domínio da espada e em combate desportivo teria dado trabalho a qualquer adversário, mas cegava-o um rancor fanático. Não podia suportar aquele atrevido que desafiava a autoridade, infringia a ordem e troçava da lei. Tinha de o matar antes que ele destruísse aquilo que mais prezava: os privilégios que lhe competiam por nascimento.
O duelo continuou da mesma maneira, um atacando com desesperada fúria e o outro esquivando-se com zombeteira ligeireza. Quando Moncada estava pronto para cravar o Zorro contra a parede, este rebolava pelo chão e levantava-se com uma pirueta de acrobata a duas varas de distância. Moncada compreendeu, por fim, que não ganhava terreno, antes o perdia, e começou a dar gritos chamando os seus homens; nessa altura, o Zorro deu o jogo por encerrado. Com três largas passadas alcançou a porta e deu duas voltas à chave com uma mão, enquanto com a outra mantinha o inimigo em respeito. A seguir passou o aço para a mão esquerda, truque que desconcertava sempre o contendor, pelo menos por uns segundos. Saltou de novo para cima da mesa e dali pendurou-se no grande lustre de ferro do tecto e baloiçou-se, caindo por trás de Moncada no meio de uma chuva de cento e cinquenta velas poeirentas, que ali estavam desde a reconstrução da casa. Antes que Moncada conseguisse aperceber-se do sucedido, encontrou-se desarmado e com a ponta de outra espada na nuca. A manobra tinha durado poucos segundos, mas já meia dúzia de soldados abria a porta à coronhada e a pontapé e irrompia no salão com os mosquetes preparados. (Pelo menos assim contou o Zorro em repetidas ocasiões e, como ninguém o desmentiu, tenho de acreditar nele, embora tenda a exagerar as suas proezas. Desculpai este breve parêntese e voltemos ao salão.) Dizia que os soldados entraram em tropel sob o comando do sargento Garcia, que acabava de sair da cama e estava em cuecas, mas com o chapéu do uniforme enfiado por cima do cabelo gorduroso. Os homens pisaram as velas e vários deles rolaram pelo chão. Saiu um tiro a um, que passou roçando a cabeça de Rafael Moncada e foi acertar no quadro da lareira, perfurando um olho da rainha Isabel, a Católica.
- Cuidado, imbecis! - bramou Moncada.
- Dai ouvidos ao vosso chefe, amigos! - recomendou-lhes amavelmente o Zorro.
O sargento Garcia não podia acreditar no que via. Teria apostado a sua alma que o Zorro jazia sobre os rochedos no fundo do despenhadeiro, e afinal estava ali ressuscitado, como Lázaro, a picar o cachaço a Sua Excelência. A situação era muito grave; por que razão sentia então um agradável adejar de borboletas na sua ampla barriga de glutão? Indicou aos seus homens que retrocedessem, tarefa nada fácil porque escorregavam nas velas, e, logo que saíram, fechou a porta e ficou lá dentro.
- O mosquete e o sabre, sargento, por favor - pediu-lhe o Zorro no mesmo tom amistoso.
Garcia desfez-se das suas armas com suspeita prontidão, a seguir postou-se diante da porta de pernas abertas e braços cruzados sobre o peito; imponente, apesar das cuecas. Restava apurar se velava pela integridade física do seu superior ou se se dispunha a gozar o espectáculo.
O Zorro indicou a Rafael Moncada que se sentasse diante da mesa e lesse o documento em voz alta. Era uma confissão de ter incitado os colonos a rebelarem-se contra o rei e declarar a independência da Califórnia. Essa traição pagava-se com a morte, para além de que a família do acusado perdia os seus bens e a honra. O papel não estava assinado; só faltava o nome do culpado. Pelos vistos, Alejandro de La Vega tinha-se recusado a assiná-lo, sendo a isso que se devia a insistência de Moncada em que o filho o fizesse.
- Bem pensado, Moncada. Como vedes, sobra espaço ao fundo da página. Pegai na pluma e escrevei o que a seguir vos vou ditar - mandou o Zorro.
Rafael Moncada viu-se forçado a acrescentar ao documento o negócio das pérolas, para além do delito de escravizar os índios.
- Assinai-o.
- Nunca assinarei isto!
- Porquê? Está escrito com a vossa letra e é a pura verdade. Assinai-o! - ordenou-lhe o mascarado.
Rafael Moncada poisou a pluma na mesa e fez menção de se levantar, mas com três rápidos movimentos a espada do Zorro traçou-lhe um Z no pescoço, por baixo da orelha esquerda. Um rugido de dor e de ira escapou-se do peito de Moncada. Levou a mão à ferida e retirou-a ensanguentada. A ponta do aço apoiou-se na sua jugular e a voz firme do inimigo indicou-lhe que contaria até três e, se ele não apusesse a sua assinatura e o seu selo, o mataria com o maior prazer. Um... dois... e... Moncada colocou a sua assinatura ao fundo da folha, após o que derreteu o lacre na chama de uma vela, deixou cair umas gotas sobre o papel e estampou o seu anel com o selo da família. O Zorro esperou que a tinta secasse e o lacre arrefecesse, a seguir chamou Garcia e ordenou-lhe que assinasse como testemunha. O gordo escreveu o seu nome com dolorosa lentidão, após o que enrolou o documento e, sem conseguir disfarçar um sorriso de satisfação, passou-o ao mascarado, que o guardou no peito.
- Muito bem, Moncada. Tomareis o barco dentro de um par de dias e saireis daqui para sempre. Guardarei esta confissão a bom recato e, se voltardes por estes lados, pôr-lhe-ei data e apresentá-la-ei aos tribunais; caso contrário, ninguém a verá. Só o sargento e eu sabemos da sua existência.
- A mim não me meta nisto, por favor, senhor Zorro - balbuciou Garcia, espantado.
- Em relação às pérolas, não deveis preocupar-vos, porque eu me encarregarei do problema. Quando as autoridades perguntarem por elas, o sargento Garcia dirá a verdade, que o Zorro as levou.
Pegou na sacola, dirigiu-se à janela quebrada e emitiu um agudo assobio. Momentos depois, ouviu os cascos de Tornado no pátio, cumprimentou com um gesto e saltou para o exterior. Rafael Moncada e o sargento Garcia correram atrás dele, chamando a tropa. Recortada contra a lua cheia, viram a silhueta negra do misterioso mascarado no seu magnífico corcel.
- Até à vista, senhores! - despediu-se o Zorro, não fazendo caso das balas que passavam roçando-o.
Dois dias mais tarde, Rafael Moncada embarcou no navio Santa Lucía com a sua avultada bagagem e os criados que trouxera de Espanha para o seu serviço pessoal. Diego, Isabel e o padre Mendoza acompanharam-no à praia, em parte, para se certificarem de que partia e, em parte, pelo prazer de lhe verem a cara de fúria. Diego perguntou-lhe em tom inocente porque se ia embora tão de repente e porque trazia uma ligadura no pescoço. Para Moncada, a imagem daquele jovem aperaltado, que chupava pastilhas de anis para a dor de cabeça e usava um lenço de renda, não encaixava de modo nenhum na do Zorro, mas continuava agarrado à suspeita de que ambos eram o mesmo homem.
A última coisa que lhes disse ao embarcar foi que não descansaria um único dia até desmascarar o Zorro e vingar-se. Nessa mesma noite, Diego e Bernardo encontraram-se nas grutas. Não se viam desde a oportuna aparição de Bernardo na fazenda para salvar o Zorro. Entraram pela lareira da casa, que Diego recuperara e começara a reparar dos abusos da soldadesca, com a ideia de que, tão logo estivesse pronta, Alejandro de La Vega voltaria a ocupá-la. De momento, este convalescia tratado por Toypurnia e Coruja Branca, enquanto o filho esclarecia a sua situação legal. Com Rafael Moncada fora de cena, não seria difícil conseguir que o governador levantasse as acusações. Os dois jovens dispunham-se a iniciar a tarefa de converter as grutas na guarida do Zorro.
Diego quis saber como tinha feito Bernardo para surgir na fazenda, galopar um bom pedaço perseguido pela tropa, saltar dos despenhadeiros para o vazio e simultaneamente aparecer na portinhola da lareira no salão da casa. Teve de repetir a pergunta, porque Bernardo não percebeu bem do que falava. Nunca estivera na casa, assegurou-lhe por gestos; Diego devia ter sonhado esse episódio. Atirara-se ao mar com o cavalo porque conhecia bem o terreno e sabia exactamente onde cair. Era noite cerrada, explicou, mas a Lua nascera, iluminando a água, e conseguira dar com a praia sem dificuldade. Uma vez em terra firme, compreendera que não podia exigir mais do seu extenuado corcel e deixara-o em liberdade. Tivera de andar várias horas para chegar ao amanhecer à Missão San Gabriel. Muito antes deixara Tornado na gruta, para que Diego o encontrasse, porque tinha a certeza de que este arranjaria maneira de fugir, uma vez que ele distraísse os seus captores.
- Já te disse que o Zorro apareceu na fazenda para me ajudar. Se não eras tu, quem foi? Vi-o com os meus próprios olhos.
Nessa altura, Bernardo deu um assobio e das sombras saiu o Zorro com a sua esplêndida indumentária, todo de preto, com chapéu, máscara e bigode, a capa posta sobre um ombro e a mão direita no punho da espada. Nada faltava ao impecável herói; trazia até o chicote enrolado à cintura. Ali estava, de corpo inteiro, iluminado por várias dúzias de candeeiros de sebo e um par de archotes, soberbo, elegante e inconfundível.
Diego ficou pasmado, enquanto Bernardo e o Zorro continham o riso, saboreando o momento. A incógnita durou menos do que estes teriam desejado, porque Diego se apercebeu de que o mascarado tinha os olhos tortos.
- Isabel! Só podia tratar-se de ti! - exclamou com uma gargalhada.
A rapariga tinha-o seguido quando fora à gruta com Bernardo, na primeira noite em que desembarcaram na Califórnia. Espiara-os quando Diego dera o fato preto ao irmão e planearam a existência de dois Zorros em vez de um; nessa altura ocorrera-lhe que melhor ainda seria três. Custara-lhe muito pouco obter a cumplicidade de Bernardo, que condescendia com ela em tudo. Ajudada por Nuria, cortara a peça de tafetá preto, oferta de Laffíte, e cosera o disfarce. Diego argumentou que aquilo era um trabalho de homens, mas ela recordou-lhe que o tinha resgatado das mãos de Moncada.
- É preciso mais um justiceiro, porque há muita maldade neste mundo, Diego. Tu serás o Zorro e Bernardo e eu ajudar-te-emos - determinou Isabel.
Não houve outro remédio senão aceitá-la no grupo, porque, como argumento final, ela ameaçou revelar a identidade do Zorro se a excluíssem.
Os irmãos vestiram os seus disfarces e os três Zorros formaram um círculo dentro da antiga Roda Mágica dos índios que tinham desenhado com pedras na infância. Com a faca de Bernardo fizeram um corte na mão esquerda. «Pela justiça!», exclamaram em uníssono Diego e Isabel. Bernardo juntou-se-lhes fazendo o signo apropriado na sua linguagem de sinais.
E nesse momento, quando o sangue misturado dos amigos gotejava no centro do círculo, pareceu-lhes ver que surgia do fundo da terra uma luz incandescente, que bailou no ar durante vários segundos. Era o sinal do Okahué, prometido pela avó Coruja Branca.
Alta Califórnia, 1840
A menos que sejais leitores muito distraídos, tereis sem dúvida adivinhado que a cronista desta história sou eu, Isabel de Romeu. Escrevo trinta anos depois de ter conhecido Diego de La Vega em casa de meu pai, em 1810, e desde então muitas coisas sucederam. Apesar da passagem do tempo, não receio incorrer em graves inexactidões, porque ao longo da vida tomei notas e, se me falhar a memória, consulto Bernardo. Nos episódios em que ele esteve presente, vi-me obrigada a escrever com um certo rigor, porque não me permito interpretar os factos à minha maneira. Nos restantes, tive mais liberdade. Às vezes o meu amigo faz-me sair fora dos eixos. Dizem que os anos outorgam flexibilidade às pessoas, mas não é o seu caso; tem quarenta e cinco anos e não perdeu a rigidez. Em vão lhe expliquei que não há verdades absolutas, tudo passa pelo filtro do observador. A memória é frágil e caprichosa, cada um recorda e esquece segundo as suas conveniências. O passado é um caderno de muitas folhas, onde anotamos a vida com uma tinta que muda consoante o estado de espírito. No meu caso, o caderno parece-se com os mapas fantásticos do comandante Santiago de León e merece ser incluído na Enciclopédia de Desejos, versão integral. No caso de Bernardo, o caderno é uma chumbada. Enfim, pelo menos essa exactidão serviu-lhe para criar vários filhos e administrar com bom critério a fazenda De La Vega. Multiplicou a sua fortuna e a de Diego, que continua ocupado em fazer justiça, em parte por ter bom coração, mas mais que qualquer outra coisa porque adora vestir-se de Zorro e viver aventuras de capa e espada. Não menciono pistolas porque não tardou a abandonar o seu uso; considera que as armas de fogo, além de serem imprecisas, não são dignas de um valente. Para se bater só precisa da Justina, a espada que ama como uma noiva. Já não tem idade para essas criancices, mas, pelos vistos, o meu amigo nunca tomará juízo.
Suponho que desejais saber de outras personagens desta história; ninguém gosta de ficar com pontos de interrogação depois de ter lido tantas páginas, não é verdade? Não há nada tão insatisfatório como um fim com pontas soltas, essa tendência moderna de deixar os livros a meio. Nuria tem a cabeça branca, reduziu-se ao tamanho de uma anã e respira com muito barulho, como os leões-marinhos, mas está de saúde. Não pensa morrer; diz que teremos de a matar à paulada. Há pouco coube-nos enterrar Toypurnia, com quem mantive uma excelente amizade. Não voltou a viver entre os brancos; ficou com a sua tribo, mas às vezes visitava o seu marido na fazenda. Eram bons amigos. Nove anos antes enterrámos Alejandro de La Vega e o padre Mendoza, falecidos durante a epidemia de gripe. A saúde de Dom Alejandro nunca se recompôs completamente da experiência em El Diablo, mas até ao último dia da sua vida tratou da sua fazenda a cavalo. Era um verdadeiro patriarca; já não há homens como ele.
O correio dos índios difundiu a notícia de que o padre Mendoza estava a morrer e apareceram tribos inteiras para se despedirem dele. Vieram da Alta e da Baixa Califórnia, do Arizona e do Colorado, Chumashes, Shoshones e muitos outros. Durante dias e noites dançaram, salmodiando cânticos funerários, e antes de partirem colocaram na sua sepultura presentes de conchas, plumas e ossos. Os mais velhos repetiam a lenda das pérolas, de como o missionário as encontrara um dia na praia, trazidas pelos golfinhos do fundo do mar para socorrer os índios.
De Juliana e Laffite podeis saber por outros meios, visto que não me cabe mais nestas páginas. Escreveu-se nos jornais sobre o corsário, embora o seu destino actual seja um mistério. Desapareceu depois de os Americanos, que ele tinha defendido em mais de uma batalha, arrasarem o seu império em Grande Isle. Posso somente dizer-vos que Juliana, convertida numa robusta matrona, teve a originalidade de permanecer apaixonada pelo marido. Jean Laffite mudou de nome, comprou um rancho no Texas e faz figura de homem respeitável, embora, no fundo, seja sempre um bandido, com a graça de Deus. O casal tem oito filhos e já perdi a conta aos netos.
De Rafael Moncada prefiro não falar - esse velhaco nunca nos deixará em paz -, mas Carlos Alcázar foi despachado para o outro mundo a tiro numa taberna de San Diego, pouco depois da primeira intervenção do Zorro. Não foram encontrados os culpados, mas disse-se que tinham sido assassinos a soldo. Quem os contratara? Gostaria de vos dizer que foi Moncada, ao tomar conhecimento de que o sócio o tinha enganado com as pérolas, mas seria um truque literário para arredondar esta história, porque Moncada estava de regresso a Espanha quando balearam Alcázar. A sua morte, muito merecida, por sinal, deixou o caminho livre a Diego de La Vega para cortejar Lolita, à qual teve de confessar a identidade do Zorro antes de ser aceite. Estiveram casados só um par de anos, porque ela partiu a cabeça numa queda do cavalo. Pouca sorte. Anos depois, Diego casou-se com outra jovem, de nome Esperanza, que também morreu tragicamente, mas a sua história não cabe neste relato.
Se me vísseis, amigos, creio que me reconheceríeis, visto que não mudei muito. As mulheres bonitas desfeiam-se com a idade.
As mulheres como eu envelhecem apenas e algumas até melhoram de aspecto. Eu suavizei-me com os anos. O meu cabelo está salpicado de grisalho e não me caiu, como ao Zorro; ainda chega para duas cabeças. Tenho algumas rugas, que me dão carácter, conservo quase todos os dentes e continuo a ser forte, ossuda e vesga. Não me acho mal para os meus anos bem vividos. Exibo várias orgulhosas cicatrizes de sabre e de bala, é certo, obtidas a ajudar o Zorro nas suas missões de justiça. Perguntar-me-eis, sem dúvida, se continuo apaixonada por ele e terei de confessar que sim, mas não sofro por isso. Lembro-me de quando o vi pela primeira vez, tinha ele quinze anos e eu onze, éramos um par de fedelhos. Eu trazia um vestido amarelo, que me dava um aspecto de canário molhado. Apaixonei-me por ele então e foi o meu único amor, excepto por um breve período em que tive uma paixoneta pelo corsário Jean Laffite, mas a minha irmã arrebatou-mo, como sabeis. Isso não significa que eu seja virgem, nem pensar; não me faltaram amantes de boa vontade, uns melhores que outros, mas nenhum memorável. Por sorte, não me apaixonei pelo Zorro loucamente, como acontece à maioria das mulheres ao conhecerem-no; mantive sempre a cabeça fria relativamente a ele. Apercebi-me a tempo de que o nosso herói só é capaz de amar as que não lhe correspondem e decidi ser uma delas. Pretendeu casar-se comigo de todas as vezes que lhe falha uma das suas noivas ou fica viúvo - isso aconteceu um par de vezes - e eu recusei-me. Talvez por isso sonhe comigo quando come de mais. Se o aceitasse como marido, não tardaria a sentir-se encurralado e eu teria de morrer para o deixar livre, como fizeram as suas duas esposas. Prefiro esperar a nossa vez com paciência de beduíno. Sei que ficaremos juntos quando ele for um velho de pernas bambas e cabeça fraca, quando outras raposas mais jovens o tiverem substituído e, no caso improvável de que alguma dama lhe abra a sua varanda, ele não seja capaz de a trepar. Nessa altura vingar-me-ei das penúrias que o Zorro me fez passar!
E com isto termina a minha narração, caros leitores. Prometi contar-vos as origens da lenda e cumpri; agora posso dedicar-me aos meus próprios assuntos. Estou farta do Zorro e creio que chegou o momento de lhe pôr ponto final.
Isabel Alende
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