Biblio VT
A luz entrou pela janela, gotejando manhã por todo o quarto. Tatiana Metanova dormia o sono dos inocentes, o sono da alegria incansável, das noites cálidas e brancas de Leningrado, do junho perfumado de jasmim. Mas, sobretudo, inebriada de vida, dormia o sono exuberante da juventude indômita.
Ela não dormiu muito mais tempo.
Quando os raios de sol atravessaram o quarto e repousaram ao pé da cama de Tatiana, ela puxou o lençol sobre a cabeça, tentando neutralizar a luz do dia. A porta do quarto abriu-se, e ela ouviu o ranger do assoalho uma vez. Era sua irmã, Dasha.
Daria, Dasha, Dashenka, Dashka.
Ela representava, para Tatiana, tudo de mais querido.
No momento, porém, Tatiana queria esganar a irmã, pois Dasha tentava acordá-la e, infelizmente, conseguia. As mãos vigorosas de Dasha sacudiam Tatiana com força, enquanto sua voz, usualmente harmoniosa, era agora um silvo dissonante:
– Psst! Tania! Acorda. Acorda!
Tatiana gemeu. Dasha puxou o lençol.
A diferença de sete anos entre as duas nunca fora mais evidente do que agora, quando Tatiana queria dormir, e Dasha...
– Para com isso – Tatiana murmurou, procurando, impotente, retomar o lençol e cobrir a cabeça. – Não vê que estou dormindo? Quem é você? Minha mãe?
A porta do quarto se abriu. Dois rangidos no assoalho. Era sua mãe.
– Tania? Está acordada? Levante-se já.
Tatiana jamais diria que a voz de sua mãe era harmoniosa. Irina Metanova nada tinha de suave. Era pequena, áspera, cheia de uma energia indignada, transbordante. Usava um lenço na cabeça para manter o cabelo fora do rosto, pois provavelmente estivera de joelhos lavando o banheiro comunitário em seu vestido azul de verão. Ela se via suja, exausta, naquele domingo.
– O que é, Mamãe? – Tatiana disse, sem tirar a cabeça do travesseiro. O cabelo de Dasha tocava as costas de Tatiana, a mão na perna da irmã, inclinada como se fosse beijá-la. Tatiana sentiu uma ternura momentânea, mas antes que Dasha pudesse dizer algo, a voz desagradável de Mamãe irrompeu.
– Levante-se rápido. Vai haver um anúncio importante no rádio em poucos minutos.
Tatiana murmurou à irmã:
– Onde você estava ontem à noite? Chegou já de madrugada.
– Posso evitar – Dasha sussurrou com prazer – que a madrugada de ontem fosse à meia-noite? Cheguei nessa respeitável hora, meia-noite – ela sorria. – Vocês todos dormiam.
– Madrugada era às três, e você não tinha chegado em casa – Tatiana respondeu.
Dasha fez uma pausa.
– Direi ao Papai que fiquei retida do outro lado do rio quando as pontes subiram, às três.
– Sim, faça isso. Explique a ele o que você fazia do outro lado do rio às três da manhã. – Tatiana virou-se. Dasha parecia particularmente admirável naquela manhã. Cabelos castanho-escuros, indisciplinados, um rosto animado, redondo, olhos negros, prontos para qualquer reação. Reação, naquele momento, de alegre exasperação. Tatiana também estava exasperada, porém menos alegre. Queria continuar dormindo.
Ela captou um vislumbre da tensa expressão de sua mãe.
– Anúncio do quê?
A mãe tirava as roupas de cama do sofá.
– Mamãe! Que anúncio? – Tatiana repetiu.
– Um anúncio do governo, em poucos minutos, só sei isso – Mamãe disse, de forma obstinada, sacudindo a cabeça, como se estivesse dizendo: “o que é para não entender?”.
Tatiana, relutante, acordava. Anúncio. Acontecimento raro, a música interrompida por uma palavra do governo. – Quem sabe invadimos a Finlândia outra vez. – Esfregou os olhos.
– Silêncio – disse Mamãe.
– Ou talvez eles nos invadiram. Desde o ano passado querem de volta as fronteiras perdidas – Tatiana retrucou.
– Nós não os invadimos – Dasha disse. – No ano passado, nós fomos lá para retomar nossas fronteiras, aquelas que perdemos na Grande Guerra. E você devia parar de ouvir as conversas de adultos.
– Não perdemos nossas fronteiras – Tatiana disse. – O Camarada Lênin as doou de livre e espontânea vontade. Isso não conta.
– Tania, não estamos em guerra com a Finlândia. Saia da cama.
Tatiana não saiu da cama.
– E a Letônia, então? Lituânia? Bielorrússia? Por acaso não ficamos com elas, também, depois do pacto de Hitler e Stálin?
– Tatiana Georgievna! Pare com isso! – A mãe sempre a chamava pelos seus dois nomes quando queria mostrar que não estava para brincadeira.
Tatiana fingiu falar sério.
– O que sobrou? Já temos metade da Polônia.
– Eu disse pare! – Mamãe exclamou. – Já chega de joguinhos. Saia da cama. Daria Georgievna, tire sua irmã da cama.
Dasha não se mexeu.
Rosnando, Mamãe saiu do quarto.
Virando-se rápido para Tatiana, Dasha sussurrou, num tom conspiratório:
– Tenho uma coisa para lhe contar!
– Coisa boa?
Tatiana ficou logo curiosa. Dasha pouco falava de sua vida de adulta. Tatiana sentou-se na cama.
– Coisa fantástica! – disse Dasha. – Estou apaixonada!
Tatiana virou os olhos e deitou-se de novo.
– Para com isso! – Dasha disse, pulando em cima da irmã. – Falo sério, Tânia.
– Sim, tudo bem. Você o conheceu ontem quando as pontes subiam? – Ela sorriu.
– Ontem foi a terceira vez.
Tatiana sacudiu a cabeça, olhando fixamente para Dasha, cuja alegria era contagiante.
– Pode me deixar em paz?
– Não, não posso – Dasha disse, fazendo cócegas na irmã. – Não até que você diga: “estou feliz, Dasha”.
– E por que eu diria isso? – exclamou Tatiana, rindo. – Não estou feliz. Para com isso! Por que eu deveria estar feliz? Não estou apaixonada. Corta essa!
Mamãe voltou ao quarto, trazendo seis xícaras numa bandeja redonda e um samovar de prata, um utensílio de metal com uma torneirinha, usado para ferver a água do chá. – Vocês duas parem já com isso! Me ouviram?
– Sim, Mamãe – disse Dasha, fazendo na irmã uma última e forte cócega.
– Ai! – disse Tatiana em alto e bom som. – Mamãe, acho que ela quebrou minhas costelas.
– E eu vou quebrar já mais alguma coisa. Vocês duas já estão grandinhas para essas brincadeiras.
Dasha mostrou a língua à Tatiana.
– Bem crescidinhas – Tatiana disse. – Nossa Mamochka não sabe que você tem apenas dois anos.
Dasha continuou com a língua de fora. Tatiana esticou-se e pegou a coisa escorregadia entre seus dedos. Dasha berrou. Tatiana soltou a mão.
– O que eu disse! – Mamãe urrou.
Dasha se abaixou e murmurou à Tatiana:
– Espera até conhecê-lo. Você nunca viu alguém tão bonito.
– Mais bonito ainda que aquele Sergei com quem você me torturou! Você não me disse que ele era tão bonito?
– Para com isso – Dasha sibilou, batendo na perna de Tatiana.
– Claro – Tatiana sorriu. – E isso não foi na semana passada?
– Você nunca entenderá porque ainda é uma criança incorrigível. – Outra batida na perna.
Mamãe gritou. As meninas pararam.
O pai de Tatiana, Georgi Vasilievich Metanov, entrou no quarto. Baixo, quarentão, ele exibia uma cabeça com cabelos negros e desalinhados, que já começavam a ficar grisalhos. Dasha herdou de Papai seu cabelo encaracolado. Passou ao lado da cama, olhou vagamente para Tatiana, pernas ainda debaixo dos lençóis, e disse:
– Tania, é meio-dia. Levante-se. Ou vai haver problema. Preciso de você vestida em dois minutos.
– Fácil – Tatiana respondeu, pulando na cama e mostrando à família que ainda vestia a blusa e a saia do dia anterior. Dasha e Mamãe balançaram a cabeça. Mamãe meio que sorriu.
Papai desviou o olhar na direção da janela.
– O que vamos fazer com ela, Irina?
Nada, Tatiana pensou, nada enquanto Papai tiver os olhos para o outro lado.
– Eu preciso me casar – Dasha disse, ainda sentada na cama. – Então finalmente terei um quarto só meu para me vestir.
– Você está brincando – disse Tatiana, pulando na cama. – Vai ficar direitinho aqui com o seu marido. Eu, você, ele, todos dormindo numa única cama, e Pasha aos nossos pés. Romântico, não é?
– Não se case, Dashenka – sua mãe disse meio distraída. – Tania tem razão desta vez. Não temos lugar para ele.
Seu pai nada disse e ligou o rádio.
O longo e estreito quarto tinha uma cama ampla, em que dormiam Tatiana e Dasha, um sofá, no qual dormiam Mamãe e Papai, e um catre baixo de metal para o irmão gêmeo de Tatiana, Pasha. Seu catre ficava ao pé da cama das meninas, e por isso Pasha dizia-se seu pequeno cão de guarda.
Os avós de Tatiana, Babushka e Deda, moravam no quarto adjacente, ligado ao deles por um curto corredor. Dasha às vezes dormia no pequeno sofá no corredor, quando voltava tarde e não queria perturbar seus pais e ter problemas no dia seguinte. O sofá tinha só um metro e meio de comprimento, mais adequado para Tatiana dormir, já que ela media justo isso. Tatiana, contudo, não precisava dormir no corredor porque raramente voltava tarde, mas com Dasha era outra história.
– Onde está o Pasha? – Tatiana perguntou.
– Terminando o café da manhã – Mamãe respondeu.
Ela não podia parar de se mexer. Enquanto Papai sentava no velho sofá, imóvel como um edifício, Mamãe se alvoroçava ao redor dele, recolhendo maços de cigarros vazios, arrumando livros na estante, limpando a pequena mesa com a mão. Tatiana continuava em pé na cama. Dasha continuava sentada.
Tinham sorte os Metanovs, pois dispunham de dois quartos e de uma parte do corredor comunitário. Haviam construído, seis anos antes, uma porta para separar o final do corredor. Era quase como ter um apartamento próprio. Os Iglenkos, do fundo do corredor, tinham que dormir, os seis, num quarto grande – fora do corredor. Isso é que era má sorte.
A luz do sol infiltrava-se através das ondulantes cortinas brancas.
Tatiana sabia que haveria um único instante, um fugaz bruxuleio de tempo que a banhava com as possibilidades do dia. Num momento tudo teria ido embora. E num momento era tudo. Ainda assim... aquele sol irrompendo no quarto, o ronco distante dos ônibus através da janela aberta, o leve vento.
Esse era o período do domingo que Tatiana mais curtia: o começo.
Pasha entrou com Deda e Babushka. Embora fosse gêmeo de Tatiana, não parecia com ela. Menino de compleição robusta, cabelos escuros, uma versão menor do pai. Ele registrou a presença de Tatiana com um leve sinal de cabeça e a frase:“cabelo bonito”.
Tatiana mostrou-lhe a língua. Ela ainda não escovara nem prendera o cabelo.
Pasha sentou-se no seu catre baixo, e Babushka aninhou-se junto dele. Por ser a mais alta dos Metanovs, a família acatava todas as suas decisões, exceto em assuntos de moralidade, nos quais Deda tinha a última palavra. Babushka era imponente, franca e direta, de cabelos grisalhos. Deda era modesto, melancólico e bondoso. Ele se sentou junto a Papai no sofá e murmurou:
– É coisa grande, filho.
Papai assentiu ansioso.
Mamãe continuava limpando ansiosamente.
Tatiana observou Babushka acariciar Pasha nas costas.
– Pasha – Tatiana sussurrou, se arrastando à beira da cama e puxando o irmão –, quer ir mais tarde ao Parque Tauride? Eu ganho a guerra de você.
– Vai sonhando – disse Pasha –, você nunca vai ganhar de mim.
O rádio começou a fazer uma série de ruídos estáticos. Era meio-dia e meia do dia 22 de junho de 1941.
– Tania, fique quieta e sente-se – Papai ordenou à filha. – Está para começar. Irina, você também. Sente-se.
O Camarada Vyacheslav Molotov, Ministro de Relações Exteriores de Joseph Stálin, começou:
– Homens e mulheres, cidadãos da União Soviética – o governo Soviético e seu chefe máximo, o Camarada Stálin, instruíram-me a fazer o seguinte anúncio. Às quatro da tarde, sem declaração de guerra e nenhuma exigência feita à União Soviética, tropas alemãs atacaram nosso país, atacaram nossa fronteira em muitos pontos, e do ar bombardearam Shitomir, Kiev, Sevastopol, Kaunas e outras cidades. Fez-se esse ataque mesmo diante do fato de que existia um pacto de não agressão entre a União Soviética e a Alemanha, pacto cujos termos eram observados de maneira escrupulosa pela União Soviética. Fomos atacados, embora, durante o período do pacto, o Governo Alemão não fizesse a mais leve queixa em relação ao cumprimento das nossas obrigações.
O governo convoca a todos, homens e mulheres, cidadãos da União Soviética, para apoiar ainda mais o glorioso Partido Bolchevique, o governo Soviético e nosso grande líder, Camarada Stálin. Nossa causa é justa. O inimigo será esmagado. Nossa será a vitória.
O rádio emudeceu, e a família ficou sentada sob um silêncio perplexo e pesado.
Finalmente, Papai disse:
– Oh, meu Deus. – E do sofá ele olhou firme para Pasha.
– Temos que tirar já nosso dinheiro do banco – Mamãe disse.
– Evacuação de novo não. Podemos sobreviver a outra? É bem melhor ficar na cidade – Babushka Anna disse.
– Será que consigo outro trabalho de professor se houver uma nova evacuação? – Deda disse. – Estou beirando os 64 anos. Hora de morrer, não de mudar.
– A guarnição de Leningrado não vai à guerra, certo? – Dasha disse. – A guerra vem à guarnição de Leningrado?
– Guerra! Ouviu isso, Tania? Vou me alistar. – Pasha anunciou. – Vou lutar pela Mãe Rússia.
Antes que Tania pudesse dizer o que pensava, sobreveio um excitadíssimo grito de: “Uau!”.
Seu pai pulou do sofá e, respondendo só a Pasha, exclamou:
– O que você pensa? Quem você acha que vai aceitá-lo?
– Ora, Papochka – Pasha disse, sorrindo. – Guerras sempre precisam de bons homens.
– De bons homens, sim. Não de crianças – Papai vociferou, enquanto se agachava no chão, olhando debaixo da cama de Tatiana e Dasha.
– Guerra, bem, isso não é possível – Tatiana disse devagar. – O Camarada Stálin não assinou um tratado de paz?
Mamãe serviu o chá e disse:
– Tania, é pra valer. É pra valer.
Tatiana tentou evitar um tom emocionado na voz quando disse:
– Vamos ter que... evacuar?
Papai puxou de baixo da cama uma mala velha, gasta.
– Tão rápido? – disse Tatiana.
Ela ouvira histórias de evacuação contadas por Deda e Babushka, dos tempos conturbados da Revolução de 1917, quando foram para o oeste das Montanhas dos Urais para morar num vilarejo cujo nome Tatiana nunca conseguia lembrar. Esperando o trem com todos seus pertences, amontoada, cruzando o Volga em barcaças...
O que excitava Tatiana era a mudança. Era o desconhecido. Uma vez, aos oito anos, ela estivera em Moscou por um minuto. Isso não contava? Moscou não era exótica. Não era África nem América. Não era nem mesmo os Urais. Era só Moscou. Além da Praça Vermelha, não havia nada, nem mesmo um pouco de beleza.
A família Metanov dera um passeio de dois dias em Tsarskoye Selo e Peterhof. Os palácios de verão dos czares haviam sido transformados pelos bolcheviques em suntuosos museus rodeados de jardins. Quando Tatiana percorreu os halls de Peterhof, pisando com cuidado o frio e estriado mármore, ela não podia acreditar que houve um tempo em que as pessoas tinham tudo isso para morar.
Mas então a família voltaria a Leningrado, aos seus dois quartos na Fifth Soviet, e antes que Tania chegasse ao seu quarto, teria que passar pelos seis Iglenkos, que moravam fora do corredor, com a porta aberta.
Quando Tatiana tinha três anos, a família passou as férias na mesma Crimeia que fora atacada agora de manhã pelos alemães. Durante essa viagem, ela se lembrava, comeu uma batata crua pela primeira vez. E também pela última vez. Viu girinos num pequeno lago e dormiu com um cobertor numa tenda. Lembrava vagamente o cheiro de água salgada. No frígido Mar Negro de abril, Tatiana sentiu pela primeira e última vez as águas-vivas, flutuando ao lado do seu corpinho e fazendo-a arrepiar-se com delicioso terror.
A perspectiva de evacuação excitava a imaginação de Tatiana. Nascida em 1924, ano da morte de Lênin, depois da revolução, depois da fome, depois da guerra civil, ela nascera depois do pior, porém antes de qualquer coisa boa. Ela nascera durante.
Levantando seus olhos negros na direção de Tatiana, como se quisesse medir suas emoções, Deda falou:
– Tanechka, em que você está pensando?
Ela tentou manter o rosto calmo.
– Nada.
– O que passa por essa sua cabeça? É guerra. Entende?
– Entendo.
– Não, acho que não entende – Deda fez uma pausa. – Tania, a vida que você conhece acabou. Marque minhas palavras. De hoje em diante, nada será como você imaginou.
– Sim! – Pasha exclamou. – Vamos chutar os alemães de volta ao inferno, o lugar deles. – Ele sorriu para Tatiana e ela retribuiu.
Mamãe e Papai estavam calados.
– Sim. E daí? – Papai disse.
Babushka sentou-se no sofá ao lado de Deda. Colocou suas mãos grandes sobre as dele, apertou os lábios e assentiu com a cabeça, de um jeito que mostrou a Tatiana que Babushka sabia coisas, mas não as revelava. Deda também sabia, mas, fosse o que fosse que eles soubessem, não se comparava ao tumulto de Tatiana.
Tudo bem, ela pensou. Eles não entendem. Não são jovens.
Mamãe quebrou o silêncio de sete pessoas:
– O que você está fazendo, Georgi Vasilievich?
– Muitos filhos, Irina Fedorovna. Muitos filhos para me preocupar – ele, desconsolado, disse a ela, lutando com a maleta de Pasha.
– É mesmo, Papai? – disse Tatiana. – E com qual dos seus filhos o senhor não gostaria de se preocupar?
Sem responder, Papai foi às gavetas de Pasha, no armário dividido por todos, e começou a jogar, de qualquer jeito, as roupas do menino dentro da maleta.
– Estou mandando-o embora, Irina. Estou mandando-o acampar em Tolmachevo. De todo modo, ele ia mesmo na próxima semana com Volodya Iglenko. Agora ele vai um pouco mais cedo. Volodya vai com ele. Nina ficará contente de tê-los lá uma semana antes. Você verá. Vai ficar tudo bem.
Mamãe abriu a boca e sacudiu a cabeça.
– Tomalchevo? Estará seguro lá? Você tem certeza?
– Absoluta – disse Papai.
– De jeito nenhum – disse Pasha. – Papai, a guerra já começou! Não vou acampar. Vou me alistar.
Bom para você, Pasha, pensou Tatiana.
Entretanto, Papai virou-se rápido para olhar Pasha, e, respirando fundo, Tatiana de repente entendeu tudo.
Papai pegou Pasha pelos ombros e começou a sacudi-lo.
– O que você está dizendo? Ficou louco? Alistar-se?
Pasha tentava desvencilhar-se. Papai não deixava.
– Papai, me solte.
– Pavel, você é meu filho e vai me ouvir. A primeira coisa a fazer é sair de Leningrado. Depois discutimos o assunto do alistamento. Agora temos que tomar um trem.
Havia algo constrangedor e inconveniente numa cena física, dentro de um quarto pequeno, com tanta gente olhando. Tatiana queria desviar o olhar, mas não tinha para onde. Na sua frente estavam os avós, Dasha atrás dela, os pais e o irmão do seu lado esquerdo. Ela examinou as mãos e fechou os olhos. Imaginou-se deitada no meio de um campo de verão comendo trevo-de-cheiro. Não havia ninguém por perto.
Como mudaram as coisas em questão de segundos?
Ela abriu os olhos e piscou. Um segundo. Piscou de novo. Outro segundo.
Segundos atrás, dormia.
Segundos atrás, Molotov falou.
Segundos atrás, sentia-se animada.
Segundos atrás, Papai falou.
E, agora, Pasha ia embora. Pisca, pisca, pisca.
Como sempre, Deda e Babushka mantinham um silêncio diplomático. Deda, que Deus o abençoe, nunca perdia uma oportunidade de ficar quieto. Nesse sentido, Babushka era bem o contrário dele, mas, nessa circunstância particular, ela decidiu segui-lo. Talvez fosse a mão dele apertando sua perna cada vez que ela abria a boca, mas por alguma razão ela não disse nada.
Dasha, sem medo do pai, tampouco desanimada pela perspectiva de guerra, levantou-se e disse:
– Papai, isso é uma loucura. Por que você o manda embora? Os alemães estão longe de Leningrado. O senhor ouviu o Camarada Molotov. Eles estão na Crimeia, a milhares de quilômetros daqui.
– Fique quieta, Dashenka – disse Papai. Você não sabe nada sobre os alemães.
– Eles não estão aqui, Papai – Dasha repetiu em sua voz forte, que não permitia contestação.
Tatiana gostaria de falar com a mesma persuasão da irmã. Sua própria voz era suave, como se algum hormônio feminino ainda não tivesse se manifestado em seu corpo. De muitas maneiras, pouco fizera. Ela começara a menstruar somente no ano anterior, e ainda assim... mal conseguia ter seus períodos regularmente. Vinham a cada trimestre. Vieram no inverno, não gostaram, e foram embora até o outono. No outono vieram e ficaram como se nunca fossem embora. Desde então, Tatiana os vira duas vezes. Talvez, se viessem mais vezes, ela tivesse uma voz expressiva como a de Dasha, cujas regras mensais eram exatas como um relógio.
– Daria! Não vou discutir com você este assunto! – Papai exclamou. – Seu irmão não ficará em Leningrado. Pasha, vista-se, ponha as calças e uma bela camisa.
– Papai, por favor.
– Pasha! Eu disse vista-se. Não podemos perder tempo. Garanto que aqueles acampamentos infantis vão se encher em uma hora, e você então não será aceito.
Talvez tenha sido um erro dizer aquilo a Pasha, pois Tatiana nunca vira o irmão se mexer tão devagar. Ele deve haver gasto bem uns dez minutos procurando sua única camisa. Todos desviaram o olhar enquanto ele se trocava. Tatiana fechou os olhos de novo, procurando o seu prado, o agradável cheiro de verão da cereja branca e das urtigas. Ela queria amoras. Percebeu que tinha um pouco de fome. Abriu os olhos e olhou ao redor do quarto.
– Não quero ir – queixou-se Pasha.
– É só por pouco tempo, filho – disse Papai. – Por precaução. Você estará seguro no acampamento, fora de perigo. Fica lá talvez um mês, até vermos como vai a guerra. Depois, então, volta, e se houver evacuação, tiramos daqui você e suas irmãs.
Sim! Era o que Tatiana queria ouvir.
– Georg – Deda chamou suavemente. – Georg.
– Sim, Papochka? – disse respeitoso o pai de Tatiana. Ninguém amava mais Deda do que ele, nem mesmo Tatiana.
– Georg, você não pode impedir o recrutamento do menino. Não pode.
– Claro que posso. Ele só tem dezessete anos.
Deda sacudiu a cabeça arrumada e prateada.
– Exatamente, dezessete. Eles vão levá-lo.
Pelo rosto de Papai passou uma fugaz e contida expressão de medo.
– Eles não vão levá-lo, Papochka – disse Papai, rouco. – Nem sei do que você está falando.
Ele era incapaz de dizer o que sentia: todo mundo pare de falar e me deixem salvar meu filho da única forma que eu posso. Deda sentou-se no sofá.
Tatiana, sentindo-se preocupada com o pai e querendo ajudar, começou a dizer:
– Ainda não estamos...
Mas Mamãe cortou em cima:
– Pashechka, ponha um suéter, querido.
– Não ponho suéter, Mamãe – ele exclamou. – Estamos no meio do verão.
– Fez frio duas semanas atrás.
– E agora faz calor. Não visto isso.
– Ouça sua mãe, Pavel – disse Papai. – As noites serão frias em Tolmachevo. Pegue o suéter.
Pasha suspirou fundo, meio rebelde, mas pegou o suéter e o jogou dentro da maleta. Papai fechou a maleta e anunciou:
– Ouçam todos. Este é o meu plano...
– Que plano? – Tatiana disse meio frustrada. – Espero que esse plano inclua alguma comida. Porque...
– Eu sei por que – Papai respondeu rápido. – Agora fiquem quietos e ouçam. Isso também diz respeito a vocês. – Ele começou a lhes dizer o que precisavam fazer.
Tatiana deitou-se de novo. Caso não evacuassem naquele instante, ela não queria ouvir mais nada.
Pasha ia ao acampamento todo verão, em Tolmachevo, Luga ou Gatchina. Ele preferia Luga, onde havia o melhor rio para nadar. Tatiana preferia ter Pasha em Luga, porque assim ele ficava perto da dacha da família, a casa de veraneio, e ela podia visitá-lo. O acampamento de Luga ficava só a cinco quilômetros de distância da dacha, por um caminho direto através de um bosque. Por outro lado, Tolmachevo estava a vinte quilômetros de Luga, e lá os conselheiros eram rigorosos e queriam todo mundo acordado ao raiar do dia.
Pasha dizia que era como estar no Exército. Bem, agora era como se alistar, ela pensou, não ouvindo o que o pai falava.
Ela sentiu um forte beliscão na perna, era Dasha.
– Ai – gritou de propósito, esperando com isso que a irmã fosse repreendida. Ninguém ligou. Ninguém disse nada. Nem mesmo a olharam. Todos os olhos estavam em cima de Pasha, enquanto ele se mantinha todo desajeitado em suas calças marrons e camisa bege desbotada no meio do aposento, no florescer final da adolescência, tão amado. E ele sabia disso.
Ele era a criança favorita de todos, neto favorito, irmão favorito.
Porque ele era o único filho.
Tatiana levantou-se da cama e ficou ao lado de Pasha. Colocou um braço em seu ombro e disse:
– Ânimo. Você tem muita sorte. Vai acampar. Eu não vou a lugar algum.
Ele se afastou um pouco dela, só um pouco; afastou-se não porque se sentia incomodado, Tatiana sabia, mas porque não se achava tão sortudo assim. Ela sabia que o irmão queria, mais que tudo, ser soldado. Não queria ficar inativo num acampamento qualquer.
– Pasha – ela disse, toda animada –, primeiro você tem que ganhar de mim numa guerra. Depois então pode se alistar e combater os alemães.
– Cala a boca, Tania – disse Pasha.
– Cala a boca, Tania – disse Papai.
– Papai – disse Tatiana –, posso fazer minha mala? Também quero acampar.
– Está pronto, Pasha? Vamos embora – disse Papai, nem respondendo a Tatiana. Não existiam acampamentos para meninas.
– Tenho uma piada pra você, querido Pasha – disse Tatiana, não querendo desistir, nada desanimada pela relutância do irmão.
– Não quero ouvir suas piadinhas bobas, querida Tania.
– Desta você vai gostar.
– Duvido muito.
– Tatiana! Não é hora de brincadeira – Papai disse.
Deda interveio a favor de Tatiana.
– Georg, deixe a menina falar.
Com um sinal de cabeça a Deda, Tatiana disse:
– Um soldado é levado para ser executado. “O tempo está ruim”, ele diz aos guardas. “Olha só quem se queixa”, eles dizem. “Temos que voltar”.
Ninguém se mexeu. Ninguém sorriu.
Pasha ergueu as sobrancelhas, beliscou a irmã e sussurrou-lhe:
– Boa tentativa, Tania.
Ela suspirou. Algum dia seu espírito voaria, mas não hoje.
2
– Tatiana, nada de longas despedidas. Você verá seu irmão dentro de um mês. Desça e nos abra a porta. Sua mãe está com dor nas costas – Papai disse-lhe enquanto se preparavam para carregar as coisas de Pasha, incluindo bolsas com alimentos de reserva.
– Tudo bem, Papai.
O apartamento fora desenhado como um trem – um corredor comprido com nove quartos. Havia duas cozinhas, uma na frente, outra atrás. Os banheiros e os toaletes eram ligados às cozinhas. Nos nove quartos, viviam vinte e cinco pessoas. Cinco anos antes, havia trinta e três pessoas no apartamento, mas oito haviam mudado ou morrido ou...
A família de Tatiana vivia no fundo. Era melhor morar no fundo. A cozinha de trás era maior, além de ter escada para o telhado e para o pátio. Tatiana gostava de usar a escada traseira, porque assim podia sair sem passar pelo quarto do louco Slavin.
A cozinha de trás tinha um fogão maior e um banheiro, também mais amplo. E só três outras famílias dividiam a cozinha e o banheiro com os Metanov – os Petrovs, os Sarkovs e o louco Slavin, que nunca cozinhava nem tomava banho.
Slavin não estava em casa naquele momento. Bom.
Ao se dirigir à porta da frente pelo corredor, ela passou pelo telefone coletivo. Petr Petrov usava-o, e Tatiana teve tempo de pensar como tinham sorte de que o aparelho funcionava.
Uma prima de Tatiana, Marina, morava num apartamento em que o telefone quebrava o tempo todo, havia fios elétricos defeituosos. Era difícil comunicar-se com ela, a não ser que Tatiana lhe escrevesse ou fosse vê-la, coisa que não fazia com frequência, pois Marina morava do outro lado da cidade, além do rio Neva.
Ao se aproximar de Petr, ela percebeu que ele estava muito agitado. Era óbvio que esperava que se completasse uma ligação e, embora o fio fosse muito curto para que andasse, ele se mexia com o corpo inteiro parado no mesmo lugar. Petr conseguiu sua ligação bem na hora em que Tatiana passava por ele no corredor estreito. Tatiana percebeu isso porque ele gritou ao telefone:
– Luba! É você? É você, Luba?
Tão inesperado e agudo foi seu grito que Tatiana pulou de perto dele e bateu na parede. Recompondo-se, ela passou rápido ao seu lado e, depois, diminuindo o passo, ficou escutando.
– Luba, você me ouve? A ligação está ruim. Todo mundo quer falar. Luba, volte a Leningrado! Me ouviu? A guerra começou. Recolha o que der, deixe o resto, e pegue o próximo trem. Luba! Não, não em uma hora, nem amanhã: agora, entendeu? Volte imediatamente! – Breve pausa. – Esqueça nossas coisas, estou lhe dizendo! Está me ouvindo, mulher?
Ao virar-se, Tatiana viu de relance o dorso rijo de Petr.
– Tatiana! – Papai a olhava com uma expressão que dizia: se você não vier aqui agora...
Tatiana, porém, fazia-se de boba, queria ouvir mais. O pai gritou através do corredor:
– Tatiana Georgievna! Venha e ajude.
Como sua mãe, o pai pronunciava o nome completo da filha só quando queria que ela soubesse que ele falava sério. Tatiana apressou-se, pensando em Petr Petrov e perguntando-se por que o irmão não conseguia abrir a porta sozinho.
Volodya Iglenko, da mesma idade de Pasha e que iria com ele para o acampamento, desceu com os Metanovs, segurando sua própria mala e abrindo a porta. Ele era um de quatro irmãos. Ele tinha que se virar sozinho.
– Pasha, me deixe mostrar a você – Tatiana disse baixinho. – É assim. Ponha a mão no trinco e empurre. A porta se abre. Você sai à rua. E ela se fecha. Vamos ver se pode fazer isso.
– Abra a porta, Tatiana – disse Pasha. Não vê que estou carregando minha maleta?
Na rua, ficaram parados por um momento.
– Tania – disse Papai. – Pegue os cento e cinquenta rublos que eu lhe dei e vá comprar alguma comida para nós. Mas não enrole como sempre. Vá já, me ouviu?
– Ouvi, Papai, vou já.
– Você vai voltar para a cama – Pasha bufou e sussurrou à irmã.
– Vamos embora – Mamãe disse.
– Sim – disse Papai. – Vamos embora, Pasha.
– Até logo – disse Tatiana, tocando o braço de Pasha.
Ele resmungou uma resposta e puxou-lhe os cabelos.
– Arrume seu cabelo antes de sair, sim? – ele disse. – Do jeito que está, você vai assustar as pessoas na rua.
– Cale a boca – Tatiana disse brincando –, ou eu corto tudo agora mesmo.
– Muito bem, vamos embora – disse Papai, cutucando Pasha.
Tatiana despediu-se de Volodya, acenou à mãe, lançou um derradeiro olhar a Pasha pelas costas e subiu de novo.
Deda e Babushka estavam de saída com Dasha. Iam ao banco retirar sua poupança.
Tatiana ficou sozinha.
Ela deu um suspiro de alívio e caiu na cama.
Tatiana sabia que nascera muito tarde na família. Ela e Pasha. Deveria haver nascido em 1917, como Dasha. Depois dela houve outras crianças, mas não por muito tempo: dois irmãos, um nascido em 1919, outro em 1921, morreram de tifo. Uma menina, nascida em 1922, morreu de escarlatina em 1923. Aí, então, em 1924, enquanto Lênin morria e o Novo Plano Econômico – aquele efêmero retorno à livre iniciativa – chegava ao fim, com Stálin tramando para ampliar sua base de poder no Presidium por meio do pelotão de fuzilamento, Pasha e Tatiana nasciam, com uma diferença de sete minutos, do ventre de uma cansada mulher de vinte e cinco anos, Irina Fedorovna. A família queria Pasha, seu menino, mas Tatiana foi uma formidável surpresa. Ninguém tinha gêmeos. Quem tinha gêmeos? Quase nunca se ouvia falar de gêmeos. E não havia lugar para ela. Ela e Pasha tiveram que dividir um berço em seus três primeiros anos de vida. Daí em diante, Tatiana dormia com Dasha.
O problema, porém, continuava – ela ocupava um valioso espaço na cama. Dasha não podia se casar porque Tania tomava o lugar onde seu futuro marido repousaria. Com frequência, Dasha dizia a Tatiana: “por sua causa vou morrer solteirona”. Ao que Tatiana respondia no ato: “logo, espero. Aí então posso me casar e ter meu marido bem junto de mim na cama.”
Depois de graduada na escola, no mês anterior, Tatiana conseguiu um emprego; então, não teria que passar outro verão ocioso em Luga lendo, remando ou encarando aquelas brincadeiras bobas com os meninos na estrada poeirenta. Tatiana passara todos seus verões de infância na dacha da família, em Luga, e no lago Ilmen, ali perto, em Novgorod, onde sua prima Marina também tinha uma dacha com os pais.
No passado, Tatiana costumava esperar com ansiedade pelos pepinos em junho, tomates em julho e talvez um pouco de framboesa em agosto, bem como colher cogumelos e amora, pescar no rio – pequenos grandes prazeres. Este verão, contudo, seria diferente.
Tatiana estava cansada de ser criança. Ao mesmo tempo não sabia como ser outra coisa, e por isso conseguiu um trabalho na fábrica de Kirov, ao sul de Leningrado. Era quase como ser adulta. Ela agora trabalhava e lia o jornal, balançando a cabeça em relação à França, ao Marechal Pétain, a Dunquerque, a Neville Chamberlain. Ela tentava ser muito séria, concordava com as notícias sobre as crises nos Países Baixos e no Extremo Oriente. Eram essas as concessões de Tatiana à idade adulta – Kirov e Pravda.
Ela gostava de seu emprego na Kirov, a maior fábrica industrial de Leningrado e, provavelmente, de toda a União Soviética. Tatiana ouvira falar que em algum lugar da fábrica os trabalhadores construíam tanques. Ela era cética. Não vira nenhum.
Ela cuidava dos talheres. Sua função era colocar as facas, garfos e colheres em caixas. Era a segunda na linha de montagem. A jovem depois dela fechava as caixas. Tatiana sentia pena da colega, era tão chato esse serviço. Tatiana pelo menos manuseava três tipos diferentes de utensílios.
Ia ser divertido trabalhar nesse verão na Kirov, ela pensou, deitada na cama, mas não tão divertido como teria sido a evacuação.
Tatiana teria gostado de conseguir algumas horas de leitura. Ela apenas começara a ler os contos de Mikhail Zoshchenko sobre as irônicas realidades da vida soviética, de um sádico humor, mas as instruções de seu pai haviam sido muito claras. Olhou o livro com saudade. Afinal, para que tanta pressa? Os adultos se comportavam como se houvesse um incêndio. Os alemães estavam a dois mil quilômetros de distância. O Camarada Stálin não permitiria que aquele traidor do Hitler penetrasse fundo no país. E Tatiana nunca ficava sozinha em casa.
Tão logo Tatiana percebeu que não haveria uma evacuação imediata, ela ficou menos excitada com a guerra. Era interessante? Sim. Mas o conto de Zoshchenko, Banya – A casa de banho – sobre um homem que vai a um lugar como esse e ali lava suas roupas, e perde o canhoto de seu casaco, era hilariante. Onde um homem nu guardaria o canhoto do casaco? O canhoto sumiu nas águas do banho. Só ficou o barbante. Ofereço o barbante ao atendente. Ele não aceita. Qualquer um pode cortar o barbante, ele diz. Não vai haver casacos suficientes por aí. Espere até que os outros clientes vão embora. Eu lhe dou o que sobrar.
Já que não ia haver evacuação alguma, Tatiana leu o conto duas vezes, deitada na cama, pernas para cima, encostadas na parede, mole de tanto rir na segunda vez.
Ainda assim, ordens eram ordens. Tinha que sair e comprar comida.
Mas hoje era domingo, e Tatiana não gostava de sair aos domingos, a não ser bem-vestida. Sem perguntar, pegou emprestadas as sandálias vermelhas de Dasha, as de salto alto, nas quais andava como um bezerro recém-nascido com duas pernas quebradas. Dasha andava melhor com elas, estava mais acostumada.
Tatiana escovou seus longos cabelos loiros, no fundo desejando ter espessos cachos escuros, como o resto da família. O dela era tão liso, de um loiro sem graça. Prendia os cabelos para trás, num rabo de cavalo ou com tranças. Hoje fez o rabo de cavalo. Não havia explicação para o liso e o loiro de seus cabelos. Em defesa da filha, Mamãe diria que ela mesma, quando criança, tinha cabelos lisos e loiros. Sim, e Babushka disse que quando se casou pesava só 47 quilos.
Tatiana pôs o único vestido de domingo que possuía, conferiu rosto, dentes e mãos, brilhando de limpos, e deixou o apartamento.
Cento e cinquenta rublos era uma soma colossal de dinheiro. Tatiana não sabia onde o pai conseguira tudo isso, mas, como num passe de mágica, apareceu nas mãos dele, e não cabia a ela perguntar nada. Dela esperava-se que voltasse com – o que disse seu pai? Arroz? Vodka? Ela já esquecera.
– Georg, não a mande sair. Ela não vai comprar nada – Mamãe disse.
Tatiana assentiu com a cabeça.
– Mamãe tem razão. Mande a Dasha, Papai.
– Não! – Papai exclamou. – Eu sei que você pode fazer isso. Vá ao mercado, pegue uma bolsa, e volte com...
O que ele disse a ela para comprar? Batatas? Farinha de trigo?
Tatiana passou pelo quarto dos Sarkovs e viu Zhanna e Zhenia Sarkov sentadas em poltronas, tomando chá, lendo. Pareciam muito relaxadas, como se fosse um domingo qualquer. Que sorte terem um quarto grande todo para elas, pensou Tatiana. O louco Slavin não estava no hall. Ótimo.
Era como se o pronunciamento de Molotov, duas horas antes, tivesse sido uma aberração num dia normal. Tatiana até duvidava que ouvira direito ao Camarada Molotov, até sair à rua e virar a esquina na avenida Grechesky, onde gente apinhada em grupos corria rumo à avenida Nevsky, a principal rua de comércio em Leningrado.
Tatiana não se lembrava quando vira pela última vez tais multidões nas ruas de Leningrado. Deu rápida meia volta e foi na direção da avenida Suvorovsky. Queria desviar-se das aglomerações. Se todos iam às lojas da avenida Nevsky, ela iria no caminho contrário, ao Parque Tauride, onde os armazéns, embora mal-abastecidos, também tinham escassa clientela.
Um homem e uma mulher passaram perto dela, olharam-na bem e ao seu vestido, e sorriram. Ela abaixou os olhos e também sorriu.
Tatiana envergava seu belo vestido branco com rosas vermelhas. Tinha esse vestido desde 1938, quando fez quatorze anos. Seu pai o comprara num mercado de uma cidade chamada Swietokryst, na Polônia, aonde fora numa viagem de negócios para o reservatório de água de Leningrado. Ele foi a Swietokryst, Varsóvia e Lublin. Tatiana achou que o pai fosse um viajante do mundo quando ele voltou. Dasha e Mamãe ganharam chocolates de Varsóvia, há muito tempo consumidos – dois anos e trezentos e sessenta dias. Mas aqui estava Tatiana, ainda usando seu vestido com rosas carmim, bordadas no algodão espesso e macio, branco como a neve. As rosas não eram botões, elas floresciam. Era um perfeito vestido de verão, com alças finas no ombro, sem mangas. Era ajustado através da cintura e depois esticado como uma saia bem solta, um pouco acima dos joelhos, e se ela girasse rápido a saia rodopiava como um paraquedas.
Só havia um problema com esse vestido em junho de 1941: era muito pequeno para Tatiana. As alças de cetim cruzadas nas costas, que Tatiana antes podia amarrar, agora precisavam ser afrouxadas com frequência.
Ela se sentia vexada ao ver que o seu corpo, que a incomodava mais e mais, já não cabia no seu vestido favorito. Não que o seu corpo florescesse, parecendo com o de Dasha, farto de quadris e seios e coxas e braços. Não, nada disso. Os quadris de Tatiana, embora redondos, continuavam pequenos, braços e pernas esguios, mas os seios cresciam, e aí residia o problema. Tivessem os seios ficado do mesmo tamanho, Tatiana não teria precisado afrouxar as alças, expondo ao mundo o dorso nu debaixo dos cruzamentos das lâminas do ombro até o final das costas.
Tatiana gostava do aviamento do vestido, gostava do toque do algodão em sua pele e das rosas bordadas sob seus dedos, mas não gostava de sentir seu corpo crescendo preso dentro de um material sufocante. Mas o que ela curtia mesmo era a lembrança de uma menina de quatorze anos, magra como um palito, pondo aquele vestido pela primeira vez e saindo para um passeio dominical em Nevsky. Foi em homenagem àquela sensação que ela de novo usou o vestido neste domingo, dia em que a Alemanha invadiu a União Soviética.
Contudo, num nível consciente, em alto e bom som, o que Tatiana também amava no vestido era uma pequena etiqueta que dizia: Fabriqué en France.
Fabriqué em France! Era gratificante ter um pedaço de qualquer coisa, não malfeita pelos soviéticos, mas, ao contrário, benfeita, romanticamente, pelos franceses: pois quem era mais romântico que os franceses? Os franceses eram mestres do amor. Todas as nações eram diferentes. Os russos eram insuperáveis em seu sofrimento, os ingleses em sua reserva, os americanos em seu amor à vida, os italianos em seu amor a Cristo e os franceses em sua esperança de amor. Assim, quando eles fizeram o vestido para Tatiana, fizeram-no cheio de promessas. Eles o fizeram como se dissessem a ela: vista-o, chérie, e nesse vestido você, também, será amada como nós amamos; vista-o e o amor será seu. E dessa forma Tatiana nunca se desesperou em seu vestido branco com rosas vermelhas. Tivessem os americanos feito o vestido, ela teria sido feliz. Fossem os italianos, ela teria começado a rezar, fossem os britânicos, ela teria endireitado os ombros, mas porque os franceses o haviam feito, ela nunca perdeu a esperança.
Embora, naquele momento, ela descesse a Suvorovsky com o vestido muito apertado contra seu inchado peito adolescente.
O tempo estava fresco e morno, e era como um choque na consciência lembrar este belo e ensolarado dia cheio de promessas. Hitler estava na União Soviética. Tatiana balançou a cabeça enquanto andava. Deda nunca confiou nesse Hitler e disse isso desde o começo. Quando o Camarada Stálin assinou o pacto de não agressão com Hitler, em 1939, Deda disse que Stálin se enfiara na cama com o diabo. E agora o diabo traíra a Stálin. E por que isso era uma surpresa? E por que esperávamos mais dele? Esperávamos que o diabo se comportasse honradamente?
Tatiana achava Deda o homem mais esperto da Terra. Desde que a Polônia fora esmagada, em 1939, Deda dizia que Hitler se dirigia à União Soviética. Meses atrás, na primavera, ele de repente começou a trazer para casa comida em lata. Muita comida em lata para o gosto de Babushka. A ela não interessava gastar parte do salário de Deda em situações intangíveis, do tipo: pelo sim, pelo não. Ela zombava dele.
– Do que você está falando, guerra? – ela dizia, olhando fixamente o presunto enlatado. – Quem vai comer isso? Eu nunca vou comer esse lixo, por que você gasta bom dinheiro com lixo? Por que não compra cogumelos em escabeche, ou tomates?
E Deda, que amava Babushka mais do que uma mulher merece ser amada por um homem, abaixava a cabeça e deixava que ela desabafasse, nada dizia, mas no mês seguinte trazia mais latas de presunto. Também comprava açúcar, café, tabaco, e vodka. Menos sorte ele tinha em manter estocados esses produtos, pois a cada nascimento, aniversário, Dia do Trabalho, abria-se a vodka, fumava-se o tabaco e bebia-se o café, punha-se açúcar no pão, na torta, e no chá. Deda era um homem incapaz de negar qualquer coisa à família, negava a si próprio. Assim, em seu aniversário, recusou-se a abrir a vodka. Mas Babushka abriu a bolsa de açúcar para fazer uma torta de amora para o marido. A única coisa constante e que crescia na base de uma ou duas latas por mês era o presunto, que todos odiavam e ninguém comia.
A tarefa de Tatiana de comprar o máximo possível de arroz e vodka complicou-se mais do que ela previra.
Os armazéns na rua Suvorovsky não tinham mais vodka. Tinham queijo. O queijo, porém, era de difícil de ser conservado. Tinham pão, mas o pão tampouco se conserva bem. O salame acabara, as latas também. E a farinha de trigo.
Passo acelerado, Tatiana desceu a rua Suvorovsky, onze quarteirões, um quilômetro e nenhum armazém dispunha mais de comida em lata ou provisões de longa duração. Eram somente três da tarde.
Tatiana passou por dois bancos de poupança. Ambos fechados. Cartazes escritos à mão, às pressas, diziam: Fechamos Mais Cedo. Surpreendeu-se. Por que os bancos fechariam mais cedo? Não seria por falta de dinheiro. Eram bancos. Riu sozinha.
Ela se deu conta de que os Metanovs haviam esperado muito, sentados, fazendo as malas de Pasha, brigando, olhando-se com desânimo. Eles deveriam ter saído num instante, mas em vez disso Pasha foi enviado ao acampamento. E Tatiana ainda lera Zoschenko. Devia ter saído uma hora antes. Se ao menos tivesse ido à avenida Nevsky, agora estaria na fila com o resto das multidões.
Embora caminhasse desconsolada ao longo da rua Suvorovska, pois não encontrara nem uma caixa de fósforos para comprar, Tatiana sentia o cálido ar de verão e, trazido por ele, um anômalo perfume de origem, um perfume de uma série de coisas por acontecer que ela desconhecia e não entendia. Me lembrarei sempre deste dia? Tatiana pensou, respirando fundo. Eu disse isso antes: oh, o dia de hoje eu lembrarei, mas esqueci dias que pensei nunca esquecer. Lembro quando vi meu primeiro girino. Quem diria? Lembro o gosto da água salgada do mar Negro. Lembro de quando me perdi no bosque. Talvez a gente só lembre das primeiras vezes. Nunca estive numa guerra de verdade, Tatiana pensou. Provavelmente disso me lembrarei.
Ela foi rumo aos armazéns perto do Parque Tauride. Gostava dessa área da cidade, longe da correria da avenida Nevsky. As árvores eram exuberantes e altas, e havia menos gente. Ela curtia a sensação de um bocadinho de solidão.
Depois de olhar dentro de três ou quatro armazéns, Tatiana queria desistir. Pensou seriamente em voltar para casa e dizer ao pai que não conseguiu achar nada, mas só de pensar em contar a ele que fracassara numa tarefa tão pequena sentia enorme ansiedade. Continuou andando. Perto da esquina da Suvorovsky e com a rua Saltykov-Schedrin, havia um armazém com uma longa fila, numa rua normalmente vazia.
Respeitosa, colocou-se atrás da última pessoa na fila.
Trocando de pé, Tatiana aguentou e aguentou, perguntou as horas, aguentou, aguentou. A fila andou um metro. Suspirando, perguntou à mulher à sua frente pelo que estavam esperando na fila. A mulher deu de ombros, agressivamente, e ficou de costas.
– O quê, quê? – ela retrucou, apertando a bolsa contra o peito, como se Tatiana fosse roubá-la. – Fique na fila como todo mundo, e não faça perguntas bobas.
Tatiana esperou. A fila andou outro metro. De novo, ela perguntou as horas.
– Dez minutos depois da última vez em que você me perguntou! – vociferou a mulher.
Quando ouviu a jovem mulher à frente da senhora resmungona dizer a palavra “bancos”, Tatiana como que despertou.
– Acabou o dinheiro – dizia a jovem mulher a uma outra mais velha ao seu lado. – A senhora sabia disso? Os bancos de poupança estão a zero. Não sei o que vão fazer agora. Espero que a senhora tenha algum debaixo do colchão.
A mulher mais velha balançou a cabeça, preocupada.
– Eu tinha 200 rublos, poupança da vida inteira. É o que tenho agora comigo.
– Bem, compre, compre. Compre de tudo. Especialmente enlatados – A mulher mais velha de novo balançou a cabeça.
– Não gosto de comida em lata.
– Bem, então compre caviar. Ouvi dizer que uma mulher comprou dez quilos de caviar no Elisey, na Newsky. O que ela vai fazer com esse caviar? Mas não tenho nada com isso. Vou comprar azeite. E fósforos.
– Compre um pouco de sal – disse sabiamente a mulher mais velha. – Você pode beber chá sem açúcar, mas não pode comer mingau sem sal.
– Não gosto de mingau – disse a mulher mais jovem. – Nunca gostei. Não como isso, é papinha.
– Bem, então, compre caviar. Gosta de caviar, não?
– Não. Talvez um pouco de linguiça – disse pensativa a mulher mais jovem. – Um pouco de uma bela kolbasa defumada. Ouça, há mais de vinte anos que o proletariado tem sido o czar. Sei agora o que esperar.
A mulher na frente de Tatiana bufou alto. As duas mulheres na frente dela viraram.
– Você não sabe o que esperar! – a mulher disse num tom mais estridente. É guerra. – A mulher soltou um ronco triste parecido com o som explosivo de um motor de trem.
– Quem lhe perguntou?
– Guerra, camaradas! Bem-vindas à realidade trazida a vocês por Hitler. Comprem seu caviar e manteiga, comam tudo hoje à noite. E gravem bem minhas palavras, seus duzentos rublos não comprarão nem um naco de pão em janeiro que vem.
– Cale-se!
Tatiana abaixou a cabeça. Não gostava de brigas. Nem em casa, nem com estranhos na rua.
Duas pessoas saíram do armazém com bolsas grandes sob os braços.
– O que tem aí dentro? – Tatiana perguntou educadamente.
– Kolbasa defumada – respondeu-lhe um homem, ríspido, apressando o passo. Ele parecia temeroso de que Tatiana o seguisse e o agredisse para roubar-lhe sua maldita kolbasa defumada. Tatiana continuou na fila. Ela nem mesmo gostava de linguiça.
Depois de outra meia hora ela foi embora.
Por não querer desapontar o pai, correu ao ponto de ônibus. Ia tomar o 22 rumo ao armazém Elisey, na avenida Nevsky, onde, tinha certeza, havia pelo menos caviar.
Mas aí ela pensou: caviar? Temos que comê-lo na próxima semana. Com certeza o caviar não dura até o inverno, não? Mas esse é o objetivo? Comida para o inverno? Não podia ser, ela decidiu. O inverno ainda estava muito distante. O Exército Vermelho era invencível; o próprio Camarada Stálin dissera isso. Os porcos alemães estariam fora ao redor de setembro.
Quando ela virou a esquina da rua Saltykov – Schedrin, a fita de borracha que prendia seu cabelo soltou-se e quebrou.
O ponto de ônibus ficava do outro lado da rua, no Parque Tauride. Usualmente ela pegava ali o 136 para, depois de atravessar a cidade, visitar a prima Marina. Hoje o 22 a levaria ao armazém Elisey, mas ela sabia que precisava se apressar. Do jeito que aquelas mulheres falavam, logo o caviar acabaria.
Bem à sua frente, Tatiana viu um quiosque em que se vendia sorvete.
Sorvete!
De repente o dia se enchia de possibilidades.Um homem estava sentado num pequeno banco, debaixo de um guarda-chuva para se proteger do sol, enquanto lia o jornal.
Tatiana apressou o passo.
Atrás, ela ouviu o barulho do ônibus, virou-se e viu o ônibus a meia distância. Ela sabia que se corresse poderia pegá-lo facilmente. Desceu a guia para atravessar a rua, olhou então o quiosque de sorvete, olhou de novo o ônibus, olhou o quiosque de sorvete. Parou.
Tatiana realmente queria um sorvete.
Mordeu os lábios e deixou o ônibus passar. Tudo bem, ela pensou, o próximo vem logo, e enquanto isso eu sento no ponto de ônibus e tomo um sorvete.
Aproximou-se do homem do quiosque e disse, ansiosa:
– Sorvete, sim?
– Aí diz sorvete, não diz? Estou sentado aqui, não estou? O que você quer? – ele levantou os olhos do jornal e sua expressão dura amaciou. – O que você quer, querida?
– O senhor tem... – ela tremeu um pouquinho. – O senhor tem crème brûlée?
– Sim. Ele abriu a porta do freezer. Um cone ou um copinho?
– Um cone, por favor – Tatiana respondeu, dando um pulinho.
Ela pagou o homem alegremente; teria pago em dobro. Antecipando o prazer que estava prestes a receber, Tatiana percorreu a rua em seus saltos altos, correndo ao banco debaixo das árvores, onde poderia tomar seu sorvete em paz, enquanto esperava o ônibus que a levaria para comprar caviar, porque a guerra já começara.
Não havia ninguém mais esperando o ônibus, e ela estava contente com aquele belo momento de fazer a festa sozinha. Removeu o papel branco, jogou no cesto de lixo ao lado do banco, cheirou o sorvete e deu uma lambida no caramelo doce, cremoso e frio. Fechou os olhos de felicidade, sorriu e rolou o sorvete na boca, esperando que se derretesse na língua.
Muito bom, Tatiana pensou. Muito bom mesmo.
O vento soprou o seu cabelo e ela o segurou com uma mão, enquanto lambia o sorvete em círculos ao redor da bola macia. Cruzou e descruzou as pernas, balançou a cabeça para trás, soltou o sorvete na garganta, e cantarolou a canção que todo mundo cantava nestes dias:
– Algum dia nos encontraremos em Lvov, meu amor e eu.
Era um dia perfeito. Por cinco minutos não havia guerra e era simplesmente um domingo glorioso num junho de Leningrado.
Quando Tatiana tirou os olhos do sorvete, viu um soldado, que a observava do outro lado da rua.
Não era nada incomum numa cidade de guarnições, como Leningrado, ver um soldado.
Leningrado estava cheia de soldados. Ver soldados na rua era como ver velhas senhoras com bolsas de compras, ou filas, ou cervejarias. Tatiana o teria olhado de relance ao longo da rua e continuado em frente, só que esse soldado estava do outro lado, olhando-a com uma expressão que ela nunca vira antes. Parou de tomar o sorvete.
Uma sombra já descera no lado da rua em que ela estava, mas via-se o lado dele banhado pela luz do cair da tarde. Tatiana olhou-o firme por um momento, e, ao olhar o seu rosto, alguma coisa mexeu dentro dela; ela gostaria que fosse de uma forma imperceptível, mas esse não era bem o caso. Foi como se seu coração começasse a bombear sangue através das quatro câmaras de uma vez, lançando-o em seus pulmões e inundando o seu corpo. Ela piscou e perdeu um pouco o fôlego. O soldado derretia no asfalto debaixo da pálida luz amarela do sol.
O ônibus chegou, obstruindo a visão de Tatiana. Ela quase gritou e levantou-se, não para subir no ônibus, não, mas para correr adiante através da rua, para não perdê-lo de vista. A porta do ônibus abriu, e o motorista olhou, esperando. Tatiana, suave e silenciosa, quase gritou com ele para que saísse da frente.
– Vai subir, senhorita? Não posso esperar para sempre.
– Subir? Não, não, não vou.
– Então que diabo está fazendo esperando pelo ônibus? – o motorista gritou e bateu a porta.
Tatiana voltou ao banco e viu o soldado correndo ao redor do ônibus.
Ele parou.
Ela parou.
De novo se abriram as portas do ônibus.
– Precisa do ônibus? – perguntou o motorista.
O soldado olhou para Tatiana e depois para o motorista.
– Oh! Pelo amor de Lênin e Stálin! – o motorista berrou, batendo a porta do veículo pela segunda vez. Tatiana ficou em pé na frente do banco. Recuou, tropeçou e rápido sentou-se.
Num tom casual, dando de ombros e rolando os olhos, o soldado disse:
– Pensei que era o meu ônibus.
– Sim, eu também – ela proferiu, rouca a voz.
– Seu sorvete está derretendo – ele disse, solícito.
E de fato derretia, através da ponta do cone, em seu vestido.
– Oh, não – ela disse. Tatiana afastou o sorvete mas acabou criando uma mancha. – Maravilha – ela murmurou, e notou que tremia a mão com que limpava o vestido.
– Faz tempo que você espera? – perguntou o soldado. Sua voz era forte e funda e tinha um traço de... ela não sabia.
Não é daqui, ela pensou, mantendo o olhar baixo.
– Não faz muito tempo – ela respondeu baixinho, e, segurando a respiração, levantou os olhos para vê-lo melhor. Ele era alto.
Ele vestia uma farda de gala. O uniforme bege parecia sua melhor roupa domingueira, e seu quepe era enfeitado na frente com uma estrela vermelha esmaltada. Ele vestia ombreiras amplas decoradas com laços metálicos cinza. Eram impressionantes, mas Tatiana não tinha ideia do que significavam. Ele era um soldado? Ele carregava um rifle. Soldados carregam rifles? Do lado esquerdo do peito ele exibia uma medalha de prata decorada com ouro.
Debaixo do seu quepe marrom-escuro, ele tinha cabelos pretos. A juventude e o cabelo preto o beneficiavam, Tatiana pensou, quando os olhos dela encontraram os dele, que eram cor de caramelo – um tom mais escuro que o sorvete dela. Eram olhos de um soldado? Eram olhos de um homem? Eram pacíficos e sorridentes.
Por um momento ou dois, Tatiana e o soldado olharam um ao outro, mas foi um momento muito longo. Estranhos, olharam um ao outro fugazmente, antes de desviar os olhos. Tatiana sentiu que podia abrir a boca e pronunciar o nome dele. Ela desviou o olhar, sentindo-se insegura e cálida.
– O seu sorvete ainda está derretendo – o soldado repetiu prestimoso.
Vermelha, Tatiana disse rápido:
– Oh, este sorvete. Acabei. – Ela se levantou e jogou o sorvete no lixo, desejando muito ter um lenço para limpar o vestido.
Tatiana não sabia se ele era jovem como ela; não, ele parecia mais velho. Como um homem jovem, olhando-a com os olhos de um homem. De novo ela corou, olhos pregados no asfalto entre as suas sandálias vermelhas e as botas militares negras dele.
Um ônibus chegou. O soldado afastou-se dela e foi na direção do ônibus. Tatiana o observou. Até mesmo o seu andar era de outro mundo: a pisada era muito segura, o passo muito longo, mas de alguma forma tudo parecia correto, com aparência certa, a sensação adequada. Era como achar um livro que você pensava haver perdido. Ah, sim, lá está.
Num minuto as portas se abririam e ele subiria e daria um tchauzinho e ela não o veria nunca mais. Não vá embora! Tatiana gritou em sua mente.
Quando o soldado chegou mais perto do ônibus, ele diminuiu o passo e parou. No último minuto, recuou mexendo a cabeça para o motorista, que fez um movimento frustrado com as mãos, bateu as portas do veículo e arrancou da curva.
O soldado voltou e sentou no banco.
O resto do dia desapareceu da cabeça dela sem nenhuma despedida.
Tatiana e o soldado estavam em silêncio. Como podemos ficar em silêncio? Tatiana pensou. Acabamos de nos conhecer. Espere. Não nos conhecemos. Não conhecemos um ao outro. Como poderíamos ter alguma coisa?
Nervosa, ela olhou a rua de alto a baixo. De repente lhe ocorreu que ele poderia ouvir a palpitação em seu peito, como não ouviria? O barulho afugentara os corvos das árvores atrás deles. Os pássaros haviam voado em pânico, as asas batendo com força. Ela sabia – era ela.
Agora ela precisava que o seu ônibus chegasse. Agora.
Ele era um soldado, sim, mas ela vira soldados antes. E ele era bonitão, sim, mas ela vira bonitões antes. Uma ou duas vezes, no verão passado, ela até conhecera soldados bonitões. Um deles, ela esqueceu o seu nome agora – como se esqueceu de quase tudo agora – comprara sorvete para ela.
Não era a farda de soldado que afetava Tatiana, não eram tampouco seus traços. Era a maneira como ele a olhara do outro lado da rua, separado dela por dez metros de concreto, um ônibus e os fios elétricos da linha do bonde.
Ele tirou um maço de cigarros do bolso do uniforme.
– Quer um?
– Oh, não – Tatiana respondeu –, não fumo.
O soldado guardou os cigarros no bolso.
– Não conheço ninguém que não fume – ele disse levemente.
Ela e o avô eram os únicos que não fumavam. Ela não podia continuar em silêncio; era patético. Mas, quando Tatiana abriu a boca para falar, todas as palavras lhe pareciam tão estúpidas que ela simplesmente fechou a boca e em silêncio suplicou que o ônibus chegasse.
Não chegou.
Finalmente o soldado falou outra vez.
– Você está esperando o 22?
– Sim – Tatiana respondeu numa voz miúda. – Espere, não. – Ela viu um ônibus chegando, com três números. Era o 136. – Vou pegar esse – ela disse sem pensar e, rapidamente, levantou-se.
– Cento e trinta seis? – ela o ouviu murmurar.
Tatiana foi na direção do ônibus, tirou cinco kopecks e subiu a bordo. Depois de pagar, foi para o fundo do ônibus e sentou-se bem a tempo de ver o soldado subir e também se dirigir ao fundo.
Ele se sentou um banco atrás dela, do outro lado.
Tatiana grudou-se na janela e tentou não pensar nele. Aonde ela queria ir no ônibus 136? Oh, sim, o ônibus que ela tomava para ir à casa de Marina, na Avenida Polustrovsky. Ela iria lá. Desceria na Polustrovsky e tocaria a campainha de Marina.
De viés, Tatiana podia ver o soldado.
Aonde ele iria no ônibus 136?
O ônibus passou o Parque Tauride e virou na avenida Liteiny.
Tatiana ajeitou o vestido e com os dedos tocou os tons bordados das rosas. Agachada entre os assentos, ajustou as sandálias. Mas o que ela principalmente fazia a cada parada era esperar que o soldado não descesse. Aqui não, ela pensou, aqui não. E aqui tampouco. Tatiana não sabia onde queria que ele descesse; o que ela sabia era que não queria que ele descesse aqui.
O soldado não desceu. Tatiana o via sentado muito calmo, olhando pela janela. De vez em quando, ele olhava para a frente do ônibus, e Tatiana podia jurar que ele a olhava.
Depois de cruzar a ponte Liteiny, sobre o rio Neva, o ônibus continou atravessando a cidade. Os poucos armazéns que Tatiana viu pela janela ou tinham longas filas ou estavam fechados.
As ruas ficaram mais e mais vazias. Iluminadas, desertas, ruas de Leningrado.
Uma parada atrás da outra. Ela estava indo mais longe, rumo ao norte de Leningrado.
Com a cabeça um pouco mais clara, Tatiana percebeu que já passara o ponto da casa de Marina, perto da Polustrovsky. Agora ela nem mais sabia onde estava. Inquieta, tensa, ela se mexia no assento.
Aonde ela ia? Não sabia, mas não podia descer do ônibus.
Em primeiro lugar, o soldado não se movia para dar o sinal e, em segundo lugar, ela não sabia onde estava. Se descesse aqui, teria que atravessar a rua e pegar de novo o ônibus.
O que ela esperava fazer? Ver onde ele desceria? E depois passar outro dia com Marina? O pensamento fez Tatiana arrepiar-se indócil.
Voltar para encontrar o seu soldado.
Era ridículo. No momento, ela só esperava uma saída digna e uma volta para casa.
Pouco a pouco, outros passageiros desceram do ônibus. Finalmente, só ficaram Tatiana e o soldado.
O ônibus acelerou. Tatiana não sabia mais o que fazer. O soldado não descia. No que fui me meter? Ela pensou. Decidiu descer, mas quando deu sinal, o motorista virou-se e disse:
– Quer descer aqui, menina? Aqui só tem prédios industriais, vai encontrar alguém?
– Oh, não – ela gaguejou.
– Bem, então, espere, a próxima parada é a última.
Mortificada, Tatiana sentou de novo com um baque.
O ônibus entrou em um terminal poeirento.
O motorista disse:
– Último ponto.
Tatiana desceu do ônibus numa estação quente coberta de terra, que era um terreno no fim de uma rua vazia. Temia virar-se. Colocou a mão no peito para acalmar o seu agitado coração. O que devia fazer agora? Nada, só pegar o ônibus de volta. Devagar, saiu da estação.
Depois – e só depois –, respirando fundo, Tatiana finalmente olhou à sua direita, e lá estava ele, sorrindo alegremente para ela. Ele tinha perfeitos dentes brancos, coisa incomum para um russo. Ela só podia retribuir-lhe o sorriso. Seu rosto deve ter mostrado alívio. Alívio e apreensão e ansiedade; tudo isso e alguma coisa a mais também.
Sorrindo, o soldado disse:
– Tudo bem, eu desisto. Aonde você vai?
O que Tatiana podia dizer?
Ele falava russo com certo sotaque. Era um russo correto, só que havia algo acentuado. Ela tentava descobrir se o sotaque e os dentes brancos vinham do mesmo lugar e, se assim fosse, onde era esse lugar? Geórgia, Armênia, algum ponto perto do Mar Negro? Ele parecia vir de um lugar de água salgada.
– Desculpe, como? – Tatiana disse por fim.
O soldado sorriu de novo:
– Aonde você vai?
Ao olhar o soldado, Tatiana sentiu uma cãibra no pescoço. Era como uma garotinha frágil, e o soldado pairava sobre ela. Mesmo com seu salto alto ela mal chegava à base do pescoço dele. Outra coisa que deveria perguntar a ele, se pudesse ter de volta sua língua: a altura. Os dentes, o sotaque e a altura, tudo do mesmo lugar, camarada?
Eles haviam parado, estupidamente, no meio da rua deserta. Não havia muita atividade ao redor do terminal de ônibus, quando a guerra começara. Ao invés de se juntarem perto do ônibus, as pessoas estavam na fila comprando comida. Tatiana, não. Estava parada, estupidamente, no meio da rua.
– Acho que passei do meu ponto – Tatiana murmurou. Tenho que voltar.
– Aonde você ia? – ele repetiu educadamente, ainda de pé na frente dela, sem se mexer, nenhum movimento. Em pé, completamente parado, tapando o sol.
– Aonde? – ela perguntou retoricamente.
Seu cabelo era uma bela bagunça, não? Tatiana nunca usou maquiagem, mas gostaria de um toque de batom. Um pouco, qualquer coisa, assim não se sentiria tão simples e boba.
– Vamos sair do meio da rua – disse o soldado. Atravessaram. – Você quer sentar? – ele apontou um banco perto do sinal de parada. – Podemos esperar o próximo ônibus aqui. – Sentaram. Ele se sentou bem perto dela.
– Sabe, é a coisa mais estranha – Tatiana começou, depois de limpar bem a garganta. – Minha prima Marina mora na avenida Polustrovsky. Eu ia lá.
– Isso ficou muitos quilômetros atrás. Umas doze paradas do ônibus.
– Não – Tatiana disse afobada. – Eu devo ter perdido o ponto.
Ele fez uma cara séria.
– Não se preocupe. Você vai voltar direitinho. Um ônibus chega em poucos minutos.
Olhando para ele, ela perguntou:
– Aonde... você ia?
– Eu? Estou com a guarnição. Hoje faço patrulha urbana. – Os olhos dele brilhavam.
Oh, perfeito, Tatiana pensou, desviando o olhar. Ele só patrulhava a cidade e eu me dirigia praticamente a Murmansk. Que idiota! Envergonhada, o rosto todo vermelho, ela de repente sentiu a cabeça fraca. Olhou os sapatos.
– Exceto pelo sorvete, não comi nada o dia inteiro – disse debilmente.
Sua consciência se perdendo numa questão de segundos suspensos. O braço do soldado segurou Tatiana pelas costas, e sua voz calma e firme disse:
– Não, não desmaie. Fique acordada.
E ela ficou.
Zonza e desorientada, ela não queria ver a cabeça dele inclinada, olhando-a, todo solícito. Ela o cheirou, alguma coisa agradável e masculina, nem álcool nem suor, como a maioria dos russos. O que era? Sabonete? Colônia para homens? Os homens na União Soviética não usavam colônia. Não, só ele.
– Sinto muito – Tatiana disse, ainda fraca, tentando se levantar. Ele a ajudou. – Obrigada.
– De nada. Você está bem?
– Completamente, só faminta, eu acho.
Ele ainda a segurava. O perímetro do seu braço estava dentro da mão dele, do tamanho de um país pequeno, a Polônia talvez. Um pouco trêmula, Tatiana endireitou-se, e ele a soltou, deixando um cálido espaço vazio onde estivera a sua mão.
– Sentada no ônibus, agora aqui fora, no sol... – disse o soldado com uma ponta de preocupação na voz. – Você vai ficar boa. Vamos – ele apontou dizendo: – aqui está nosso ônibus.
O ônibus chegou, e o motorista, o mesmo que os levara, ao vê-los franziu a testa e nada disse.
Dessa vez eles sentaram juntos, Tatiana na janela, o soldado com seu braço fardado sobre a parte de trás do assento dela.
Era realmente impossível olhá-lo de tão perto. Não havia como se esconder dos seus olhos. Mas os seus olhos eram o que Tatiana mais queria ver.
– Normalmente eu não desmaio – ela disse, olhando pela janela. Mentira. Ela desmaiava o tempo todo. Era só alguém esbarrar uma cadeira em seu joelho e ela caia ao chão, inconsciente. Os professores na escola costumavam mandar à sua casa dois ou três avisos por mês sobre os seus desmaios.
Ela o olhou.
Com um sorriso perfeito, o soldado perguntou:
– Qual é o seu nome?
– Tatiana – ela disse, notando a leve barba em seu rosto, as linhas agudas do seu nariz, as sobrancelhas negras, e a pequena e cinza cicatriz na testa. Sob a barba, ele era bronzeado. Seus dentes brancos destacavam-se.
– Tatiana – ele repetiu em sua funda voz. – Tatiana – ele disse mais devagar, mais gentil. – Tania? Tanechka?
– Tania – ela respondeu e estendeu-lhe a mão.
Antes de dizer seu nome a ela, tomou-lhe a mão. A pequena mão de Tania, esguia e branca, desapareceu nas mãos dele, enormes, cálidas, escuras. Ela pensou que ele devia ter ouvido o seu coração através dos seus dedos, através do seu pulso, através de todas as veias debaixo de sua pele.
– Sou Alexander – ele disse.
A mão dela continuava estendida na dele.
– Tatiana. Um nome tão russo.
– Alexander, também – ela disse e abaixou os olhos.
Finalmente, relutante, ela tirou a mão. As mãos dele, grandes, eram limpas, os dedos longos e grossos, as unhas cortadas. Unhas bem-cuidadas num homem eram outra anomalia na vida soviética de Tatiana.
Ela desviou o olhar em direção à rua. A janela do ônibus estava suja.
Ela imaginou quem lavava a janela e com que frequência. Qualquer coisa para não pensar. O que ela sentia, porém, era como se ele estivesse pedindo que ela não se afastasse, quase como se as mãos dele pegassem o seu rosto. Ela se virou para ele, levantou os olhos e sorriu.
– Quer ouvir uma piada?
– Morro de vontade.
– Um soldado é levado ao paredão – Tatiana começou. – “O tempo está ruim”, ele diz aos seus executores. “Olha só quem está se queixando”, eles dizem. “Temos que voltar”.
Alexander riu na hora, muito alto, seus olhos alegres nunca deixando o rosto dela, de tal forma que Tatiana se sentiu só um pouquinho derretendo por dentro.
– É engraçado, Tania – ele disse.
– Obrigada. – Ela sorriu e disse rapidamente: – Tenho outra piada: “general, o que o senhor acha da batalha que vem pela frente?...”
Alexander disse:
– Essa eu conheço. O general diz: “Deus sabe que será perdida.”
Tatiana continuou:
– “Então por que devemos tentar?”
E Alexander terminou:
– “Para descobrir quem é o perdedor.”
Os dois sorriram e desviaram o olhar.
– Suas tiras estão desamarradas – ela o ouviu dizer.
– Minhas o quê?
– Suas tiras. Nas costas do vestido. Desamarraram. Aqui, fique um pouco de costas para mim, e eu as amarro para você.
Ela se virou de costas para ele e sentiu seus dedos puxando as fitas de cetim.
– Você quer muito apertadas?
– Assim está bem – ela disse rouca, mal respirando. Ocorreu-lhe que ele devia estar olhando suas costas nuas debaixo das tiras, e ela de repente ficou muita acanhada.
Quando ela se virou de frente para ele, Alexander pigarreou e perguntou:
– Você vai descer na Polustrovsky para ver a sua prima Marina? O ônibus está chegando. Ou você quer que eu a leve para casa?
– Polustrovsky? – Tatiana repetiu, como se ouvisse a palavra pela primeira vez. Demorou um momento. – Opa. – Colocou a mão na testa e disse: – Oh, não, você não vai acreditar. Não posso ir para casa. Se for, vou ter um belo problema.
– Por quê? – Alexander perguntou. – O que posso fazer para ajudar?
Por que ela achava que ele queria mesmo ajudar? E, mais ainda, por que de repente sentiu-se aliviada e fortalecida, sem medo de voltar para casa?
Depois que ela contou a ele sobre os rublos que trazia e a busca fracassada por comida, Tatiana rematou:
– Não sei por que meu pai me daria essa tarefa. Eu sou na minha família a pessoa menos capaz de realmente acertar.
– Não se subestime, Tatiana – disse Alexander. – Além do mais, eu posso ajudá-la.
– Pode mesmo?
Ele disse que a levaria a uma das lojas exclusivas para oficiais do Exército, chamadas Voentorgs, onde ela poderia comprar muitas coisas de que precisava.
– Mas eu não sou um oficial – ela ponderou.
– Sim, mas eu sou.
– Você é?
– Sim – ele disse. – Alexander Belov, primeiro-tenente. Impressionada?
– Cética – ela disse.
Alexander riu. Tatiana não queria que ele fosse velho o suficiente para ser um primeiro-tenente.
– E para que é essa medalha? – ela perguntou, olhando no peito dele.
– Valor militar – ele disse com um dar de ombros indiferente.
– Oh? – ela deu um tímido sorriso de admiração. – O que você fez de tão militar e valente?
– Não muito. Onde você mora, Tania?
– Perto do Parque Tauride, na esquina de Grechesky com a Quinta Soviet – ela respondeu depressa. – Sabe onde é?
Alexander assentiu.
– Eu patrulho por todo lado. Você mora com seus pais?
– Claro. Com meus pais, meus avós, minha irmã e meu irmão gêmeo.
– Todos num único aposento? – Alexander perguntou, sem inflexão.
– Não, temos dois! – Tatiana exclamou toda contente. – E meus avós estão numa lista habitacional para conseguir outro quarto, quando houver um disponível.
– E há quanto tempo eles estão nessa lista? – Alexander perguntou.
– Desde 1924 – Tatiana respondeu, e os dois riram.
Eles estavam no ônibus para sempre e por um segundo.
– Nunca conheci um gêmeo – disse Alexander quando desciam do ônibus. – Vocês são muito apegados?
– Sim, mas Pasha às vezes é muito irritante. Ele acha que por ser um menino sempre tem que ganhar.
– E nem sempre ganha?
– Não se eu puder evitar – Tatiana disse, desviando o olhar dos olhos provocadores dele. – Você tem algum irmão ou irmã?
– Não – respondeu Alexander. – Eu fui o único filho dos meus pais – ele piscou e depois continuou rápido –, fechamos o círculo, não? Felizmente, não estamos longe da loja. Você quer ir andando, ou quer esperar o ônibus 22?
Tatiana o observou.
Ele disse fui?
Ele disse isso, eu fui o único filho dos meus pais?
– Podemos caminhar – Tatiana disse devagar, olhando pensativa o rosto dele, sem se mexer.
De sua testa alta até seu queixo quadrado, seus ossos faciais eram salientes e claramente visíveis aos olhos curiosos dela. E tudo parecia armado como cimento, no momento. Como se ele estivesse rangendo os dentes.
Com cuidado, ela perguntou:
– Então, de onde você é, Alexander? Você tem um leve... sotaque.
– Não tenho. Tenho? – ele perguntou, olhando para os pés de Tatiana. – Você vai andar bem com esses sapatos?
– Sim, estou bem – ela respondeu.
Ele tentava mudar de assunto? A tira do vestido escorregou do seu ombro. De repente, Alexander, com seu dedo indicador, puxou a tira de volta, seu dedo deslizando na pele dela. Tatiana ficou vermelha. Ela odiava isso. Ficava vermelha o tempo todo sem nenhuma razão.
Alexander fixou os olhos nela. Seu rosto relaxara um pouco. O que era aquilo nos seus olhos? Parecia quase como um deslumbramento. Tania...
– Vamos caminhar então – Tatiana disse, atenta à luz prolongada do dia, às cinzas ardentes e à voz dele. Havia alguma coisa nauseante sobre essas sensações súbitas que nela se grudavam como roupa molhada.
As sandálias machucavam os seus pés, mas ela não queria que ele soubesse.
– A loja é longe daqui?
– Não muito – ele disse. – Temos que parar nas barracas por um minuto, preciso assinar a saída. Terei que tampar os seus olhos o resto do caminho. Não posso deixar que você saiba onde estão as barracas dos soldados. Não é mesmo?
Tatiana não queria olhar Alexandre para saber se ele estava brincando.
– Então – ela disse, tentando parecer casual –, aqui estamos, e não falamos sobre a guerra. – Ela fez uma cara bem séria. – Alexander, o que você acha das ações de Hitler?
Por que ele parecia se divertir tanto com ela? O que ela acabava de dizer era assim tão engraçado?
– Você quer mesmo falar sobre a guerra?
– Claro – ela confirmou. – É um assunto grave.
Ele mantinha um olhar de espanto.
– É guerra, só isso – ele disse. – Era tão inevitável. Vínhamos esperando por isso. Vamos por aqui.
Eles passaram pelo Palácio Mikhailosvki ou Castelo do Engenheiro, como também era chamado, sobre a curta ponte do canal Fontanka, na interseção aquosa dos canais de Fontanka e Moika. Tatiana adorava a ponte marrom de granito, ligeiramente arqueada e, às vezes, subia nos parapeitos baixos e percorria o rebordo. Hoje não, claro. Ela não ia dar uma de criança hoje.
Eles passaram pela extremidade ocidental do Letniy Sad, o Jardim de Verão, e saíram nos terrenos de grama de desfiles Marsovo Póle, o Campo de Marte.
– Temos que deixar este país para Hitler – disse Alexander –, ou precisamos ficar e lutar pela Mãe Rússia, mas, se ficarmos, é uma luta até a morte.
Ele apontou.
– As barracas estão do outro lado do campo.
– Até a morte? Verdade? – Tatiana levantou os olhos, agitada, e diminuiu o passo na grama, queria tirar os sapatos. – Você vai para o front?
– Eu vou aonde eles me mandam.
Alexander também reduziu o passo, depois parou.
– Tania, porque você não tira os sapatos? Vai ficar mais confortável.
– Estou bem – ela disse. Como ele sabia que os seus pés a estavam matando? Era tão óbvio isso?
– Vá em frente – ele insistiu gentilmente. – Será mais fácil para você andar na grama.
Ele tinha razão. Ela deu um suspiro de alívio, inclinou-se, desamarrou as sandálias e tirou-as dos pés. Endireitou-se, levantou os olhos para ele e disse:
– Assim ficou um pouco melhor.
Alexander estava quieto.
– Você é bem pequena – ele disse por fim.
– Eu não sou pequena – ela devolveu. – Você é que é grande demais.– Vermelha, ela baixou os olhos.
– Quantos anos você tem?
– Mais anos do que você pensa – Tatiana disse, querendo parecer velha e madura. A cálida brisa de Leningrado jogou seus cabelos louros sobre o seu rosto. Segurando os sapatos com uma mão, ela tentava arrumar os cabelos com a outra mão. Queria tanto ter um elástico para prender o rabo de cavalo. Na sua frente, Alexander esticou o braço e arrumou os cabelos dela. Seus olhos iam dos cabelos aos olhos dela, à boca, onde pararam.
Teria ela ainda sorvete nos lábios? Sim, deve ser isso. Que embaraçoso. Ela lambeu os lábios tentando limpar os cantos.
– O quê? – ela disse. – Tenho sorvete...
– Como você sabe que eu sei a sua idade? – ele perguntou. – Me diz, qual é a sua idade?
– Vou fazer dezessete logo – ela disse.
– Quando?
– Amanhã.
– Você não tem nem dezessete – Alexander ecoou.
– Dezessete amanhã – ela repetiu, indignada.
– Dezessete, bom. Bem crescidinha.
Seus olhos dançavam.
– E você, que idade tem?
– Vinte e dois – ele disse. – Vinte e dois, só.
– Oh – ela disse, e não podia esconder a decepção em sua voz.
– O quê? Tão velho assim? – Alexander perguntou, querendo disfarçar um sorriso.
– Ancião – Tatiana respondeu, tentando disfarçar um sorriso.
Juntos, devagar, cruzaram o Campo de Marte, Tatiana descalça, carregando as sandálias vermelhas nas mãos, que balançavam ligeiramente.
Quando voltaram ao asfalto, ela calçou de novo as sandálias e eles atravessaram a rua, parando junto a um edifício de estuque marrom de quatro andares, que não tinha uma porta da frente. Um corredor fundo e escuro alongava-se para dentro.
– Estas são as Barracas Pavlov – Alexander disse –, onde estou aquartelado.
– Estas são as famosas Barracas Pavlov? – Tatiana olhou o sujo edifício. – Com certeza não podem ser.
– O que você esperava? Um palácio coberto de gelo talvez?
– Posso entrar?
– Só até o portão. Vou entregar a minha arma e assinar. Você espere, está bem?
– Espero.
Depois de caminhar através da longa arcada, eles chegaram a um portão de ferro, bem fundo na entrada. Um jovem sentinela fez continência a Alexander.
– Continue, Tenente, quem está com o senhor?
– Tatiana. Ela vai me esperar aqui, Sargento Petrenko.
– Claro que sim – o guarda disse olhando Tatiana de forma sub-reptícia, mas não tanto que ela não percebesse.
Tatiana observou Alexander caminhar além do portão de ferro, através de um pátio, fazer continência a um oficial alto, depois parar e conversar brevemente com um grupo de soldados que fumavam, riam e se dispersavam. Nada diferenciava Alexander dos outros, exceto que ele era mais alto do que todos e tinha cabelo mais escuro, dentes mais brancos, ombros mais largos e um passo mais amplo. Ele era vívido, e eles eram silenciosos.
Petrenko perguntou se ela queria se sentar.
Ela balançou a cabeça. Alexander dissera que esperasse ali. Certamente ela não ia se sentar na cadeira de algum outro soldado, embora tivesse vontade.
Enquanto olhava através do portão da guarnição esperando por Alexander, Tatiana sentiu-se flutuando na nuvem do destino que naquela tarde a enlaçara com improbabilidade e desejo.
Desejo de viver.
Uma das frases de Deda que ela mais gostava era: “a vida é tão imprevisível. É o que eu menos gosto dela. Se a vida fosse mais parecida com matemática”.
Neste dia Tatiana tinha que discordar dele.
Ela preferia um dia como este a um dia na escola ou na fábrica. Ela decidiu que um dia como este superaria qualquer outro em sua vida.
Tatiana deu um passo adiante na direção do guarda e perguntou:
– Me diga, civis podem entrar?
Sorridente, Petrenko disse com uma piscada:
– Bem, depende do que a sentinela recebe em troca.
– Chega, Sargento – Alexander disse, passando rápido por ele. – Vamos embora, Tania – ele não mais carregava o seu rifle.
Quando estavam prestes a percorrer o corredor de volta às ruas, um soldado pulou na frente deles, saindo de uma porta secreta que Tatiana não vira. Ele a assustou tanto que ela de fato gritou como se tivesse sido picada. Com a mão nas costas de Tatiana, Alexander mexeu a cabeça.
– Por quê, Dimitri?
O soldado riu ruidosamente.
– Suas caras! Foi por isso.
Tatiana arrumou-se. Ela estaria errada, ou Alexander chegou não só perto dela como mais perto e de frente, não para ficar junto dela, mas para protegê-la. Que absurdo.
Sorrindo, o soldado disse:
– Então, Alex, quem é a sua nova amiga?
– Dimitri, esta é a Tatiana.
Dimitri apertou com vigor a mão de Tatiana, segurando-a.Graciosamente, ela tirou a mão.
Dimitri tinha a altura média dos padrões russos, mas era baixo se comparado a Alexander. Tinha um rosto russo bem grande, traços ligeiramente pálidos, como se as cores tivessem secado, seu nariz era amplo e virado para cima, os lábios extremamente finos. Eram como duas tiras elásticas mal amarradas. Sua garganta estava marcada em vários lugares pelos cortes da lâmina; debaixo do seu olho esquerdo, ele tinha uma pequena marca de nascença preta. O quepe de Dimitri não tinha a estrela vermelha bordada como o de Alexander, nem eram metálicas suas ombreiras. As de Dimitri eram vermelhas, com uma tira fina azul. Sua farda túnica não exibia medalhas.
– Muito prazer – disse Dimitri. – Aonde vocês vão?
Alexander contou a ele.
– Se quiser – disse Dimitri –, posso ajudar, com muito gosto, a carregar as compras até sua casa.
– Nós cuidamos disso, Dima, obrigado.
– Não, não, de nada – Dimitri sorriu. – Será um prazer. – Ele olhava Tatiana. – Então, Tatiana, como você conheceu o nosso tenente? – perguntou Dimitri, andando ao lado dela, enquanto Alexander vinha atrás.
Tatiana virou-se e viu que ele a olhava com ansiedade. Seus olhares tocaram-se e desviaram-se. Alexander alcançou-os e levou-os ao longo da rua. A loja Voentorg ficava logo ao virar a esquina.
– Dei com ele dentro do ônibus – Tatiana respondeu a Dimitri. – Ele ficou com pena de mim e me ofereceu ajuda.
– Bem, foi uma sorte para você – Dimitri disse. – O nosso Alexander, mais do que ninguém, gosta de ajudar uma donzela em apuros.
– Eu não sou uma donzela em apuros – Tatiana murmurou, enquanto Alexander tocava seu corpo, dirigindo-a para dentro da loja e acabando com a conversa.
Tatiana estava maravilhada com o que encontrou detrás de uma simples porta de vidro com um letreiro que dizia: “Só para Oficiais”. Primeiro, não havia fila. Segundo, a loja tinha estoques cheios de sacos e bolsas e cheirava a presunto e peixe defumados, envolta no aroma de cigarro e café.
Alexander perguntou quanto dinheiro ela trazia, e ela respondeu achando que a cifra ia surpreendê-lo. Ele simplesmente encolheu os ombros e disse:
– Podíamos gastar tudo isso em açúcar, mas vamos ser previdentes, não?
– Não sei para que estou comprando. Como posso ser previdente?
– Compre – ele disse – como se você nunca mais fosse ver estes produtos.
Ela deu-lhe o dinheiro sem pensar duas vezes.
Ele comprou para ela quatro quilos de açúcar, quatro quilos de farinha de trigo branca, três quilos de aveia, cinco quilos de cevada, três quilos de café, dez latas de cogumelos em escabeche, cinco latas de tomate. Ela comprou também um quilo de caviar negro e, com os poucos rublos que sobraram, comprou duas latas de presunto para agradar a Deda. Para agradar a si própria comprou uma pequena barra de chocolate.
Sorrindo, Alexander disse-lhe que pagaria o chocolate com seu próprio dinheiro e comprou-lhe cinco barras.
Ele sugeriu que ela comprasse fósforos. Tatiana brincou de leve com ele:
– Por quê? – ela ponderou. Pensava com inteligência: – Não se pode comer fósforos.
Ele sugeriu que ela comprasse um pouco de óleo de motor. Ela disse que não tinha um carro, ele disse que comprasse assim mesmo. Ela não queria. Não queria gastar o dinheiro do pai em coisas bobas como óleo e fósforos.
– Mas, Tania – Alexander insistiu –, como você vai usar bem a farinha de trigo se não tem um fósforo para acender o fogo? Vai ficar difícil assar esse pão.
Ela concordou somente depois de descobrir que os fósforos custavam alguns poucos kopecks, e mesmo assim só comprou uma caixa com duzentos.
– Não esqueça do óleo de motor, Tania.
– Quando eu tiver um carro, compro óleo de motor.
– E se não houver querosene neste inverno? – disse Alexander.
– E daí? – ela disse. – Temos eletricidade.
Ele cruzou os braços.
– Compre – ele disse.
– Você disse este inverno? – Tatiana contestou-o. – Do que você está falando, inverno? Estamos em junho. Não estaremos em combate com os alemães neste inverno.
– Diga isso aos londrinos – Alexander disse. – Diga isso aos franceses, aos belgas, aos holandeses. Eles têm combatido...
– Se é que podemos chamar de combate o que fazem os franceses.
Alexander riu e disse:
– Tatiana, compre o óleo de motor. Você não vai se arrepender. – Ela o teria ouvido, mas era mais forte a voz de seu pai, advertindo-a de que não desperdiçasse o seu dinheiro. Ela recusou.
Ela pediu ao atendente um elástico e prendeu bem o cabelo, enquanto Alexander pagava. Tatiana perguntou como levariam todas as provisões para a casa.
Dimitri disse:
– Não se preocupe. Para isso vou junto.
– Dima – disse Alexander. – Eu acho que não precisamos.
– Alexander – disse Tatiana. – Temos muito...
– Dimitri é o burro de carga – disse Dimitri. – Fico feliz em te ajudar, Alexander.
Ele sorriu de forma afetada.
Tatiana notou o sorriso, lembrando o que sentiu quando Dimitri entrou na loja, passou a porta de vidro com o letreiro “Só para oficiais”, e parecia tão surpreso, assim como ela, de se achar dentro da Voentorg.
– Você e o Alexander estão na mesma unidade? – Tatiana perguntou a Dimitri, enquanto empilhavam as compras em caixas de maçãs de madeira e saíam da loja.
– Oh, não – disse Dimitri. – Alexander é um oficial, e eu não passo de um mero soldado. Não, ele está numa hierarquia mais alta. O que lhe permite enviar-me ao front na Finlândia – Dimitri disse com o seu sorriso.
– Finlândia não – Alexander corrigiu suavemente. – E não ao front, mas para revisar reforços em Lisiy Nos. Do que você se queixa?
– Não estou me queixando. Estou elogiando sua prudência.
Tatiana olhou de relance para Alexander, indecisa sobre como responder ao sorrisinho irônico dos lábios de borracha de Dimitri.
– Onde é esse Lisiy Nos – ela perguntou?
– No istmo Karelian – Alexander respondeu. – Você vai poder andar bem?
– Claro. – Tatiana mal podia esperar para chegar à sua casa. Sua irmã cairia de costas quando ela aparecesse com dois soldados. Ela levava o engradado mais leve, em que havia caviar e café.
– Está muito pesado para você? – Alexander perguntou.
– Não – ela disse.
Na verdade era bem pesado e ela não sabia como chegaria ao ônibus. Eles iam de ônibus? Não estavam planejando andar até a Quinta Soviet do Campo de Marte?
O pavimento era estreito, por isso eles andavam em fila única: Alexander primeiro, Tatiana em seguida e Dimitri na rabeira.
– Alexander – Tatiana disse ofegante –, estamos planejando caminhar até em casa? – ela perdeu o fôlego.
Alexander parou.
– Me dá isso – ele disse.
– Estou bem.
Ele colocou no chão o seu engradado, pegou o dela e o colocou em cima, levantando os dois facilmente. – Seus pés devem estar matando você nesses sapatos. Vamos embora.
O pavimento abria-se, e agora ela podia caminhar ao lado de Alexander. Dimitri ia à sua esquerda.
– Tania, você acha que conseguimos vodka para compensar nossos problemas?
– Sim, eu acho que meu pai pode conseguir alguma vodka para vocês.
– Então, Tania, diga uma coisa – Dimitri perguntou –, você sai muito?
– Sair? – Que pergunta mais estranha. – Não muito – ela disse acanhada.
– Já foi a um lugar chamado Sadko?
– Não, mas a minha irmã vai muito. Ela diz que é legal.
Dimitri inclinou-se um pouco.
– Na próxima semana, quer vir com a gente ao Sadko?
– Hum, não, obrigada – ela respondeu, abaixando os olhos.
– Vamos – Dimitri disse. – Vai ser divertido. Não é, Alexander?
Alexander não respondeu. Os três caminharam em uma única coluna ao longo do amplo pavimento. Tatiana estava no meio. Quando outros pedestres vinham na direção deles, Dimitri punha-se atrás de Tatiana para deixá-los passar.
Tatiana percebeu que Dimitri movia-se atrás dela com um suspiro relutante, como se fosse um último recurso, uma batalha, como se ele cedesse território ao inimigo. Em princípio Tatiana pensou que o inimigo eram os transeuntes, mas logo compreendeu que não: ela e Alexander eram os inimigos, porque nunca abriam o caminho, continuavam a andar lado a lado, ombro a ombro.
Alexander perguntou baixinho:
– Você está cansada?
Tatiana assentiu com a cabeça.
– Você quer descansar um minuto? – ele colocou no chão as suas caixas.
Dimitri também, olhando a Tania.
– Então, Tania, aonde você vai para se divertir?
– Divertir? Eu não sei. Vou ao parque. Vamos para nossa dacha, em Luga.
Em seguida, ela se virou para Alexander e perguntou:
– Então, você vai me dizer de onde é, ou vou ter que adivinhar?
– Acho que você vai ter que adivinhar, Tania.
– Algum lugar perto de água salgada, Alexander.
– Então, ele ainda não lhe disse nada? – disse Dimitri, chegando bem perto deles.
– Não consigo uma resposta direta dele.
– Ora, isso é surpreendente.
– Muito bom, Tania – Alexander disse. – Sou de Krasnodar, perto do Mar Negro.
– Sim, Krasnodar – disse Dimitri. – Já esteve lá?
– Não – ela respondeu. – Nunca estive em lugar algum.
Dimitri olhou para Alexander, que pegou as caixas e disse de forma educada:
– Vamos embora.
Eles passaram a igreja e cruzaram a avenida Grechesky. Tão absorta estava Tatiana, pensando em como ver Alexander outra vez, que ela acabou passando o seu prédio. Ela estava a uns cem metros à frente, quase perto da esquina com a Suvorovsky, quando parou.
– Quer dar outra descansada? – Alexander perguntou.
– Não – ela disse, tentando esconder em sua voz o que sentia. – Passamos o meu prédio.
– Passamos? – exclamou Dimitri. – Como é possível isso?
– Passamos, é isso – disse Tatiana. – É na outra esquina.
Sorridente, Alexander baixou a cabeça. Voltaram devagar.
Depois de entrar, Tatiana disse:
– Estou no terceiro andar. Tudo bem para vocês?
– E temos escolha? – Dimitri perguntou. – Tem elevador? Claro que não – ele acrescentou. – Isto não é a América ou é, Alexander?
– Acho que não – Alexander respondeu.
Eles subiram as escadas na frente de Tatiana.
– Obrigada – ela sussurrou atrás de Alexander, mais para si mesma; na verdade, só estava pensando em voz alta. Os pensamentos eram muito altos, isso era tudo.
– Não é nada – ele disse, sem se virar.
Tropeçando, ela continuou subindo.
Quando abriu a porta do seu prédio comunitário, Tatiana esperava que o louco Slavin não estivesse deitado no chão, no meio do corredor. Dessa vez, suas esperanças se frustraram. Lá estava ele, torso no corredor, pernas dentro do quarto, um homem-cobra, magro, sujo, malcheiroso, o cabelão desalinhado e seboso cobrindo quase todo o seu rosto.
– O Slavin anda puxando de novo o cabelo – ela murmurou a Alexander, que estava bem atrás.
– Acho que é o menor dos problemas dele – Alexander murmurou de volta.
Com um rosnado, Slavin deixou Tatiana passar, mas agarrou a perna de Alexander e riu histericamente.
– Camarada – disse Dimitri, vindo atrás de Alexander e colocando sua bota em cima da munheca de Slavin –, largue o tenente.
– Tudo bem, Dimitri – disse Alexander, afastando o soldado com o cotovelo. – Posso lidar com ele.
Slavin gritou com prazer e apertou ainda mais forte a bota de Alexander.
– A nossa Tanechka trouxe para casa um belo soldado – Slavin berrou. – Me desculpe... Dois belos soldados! O que seu pai vai dizer, Tanechka? Ele vai aprovar isso, acho que não! Acho que não mesmo. Ele não gosta que você traga rapazes para casa. Vai dizer que dois é muito para você. Dê um a sua irmã, dê a ela um, minha querida.
Com alegria, Slavin riu como louco, Alexander removeu sua perna com vigor.
Slavin tentou agarrar a de Dimitri, depois olhou o rosto do soldado e soltou a mão sem tocá-lo.
Provocando os três, Slavin gritou:
– Sim, Tanechka, traga-os para casa. Traga mais! Traga todos, porque estarão todos mortos em três dias. Mortos! Fuzilados pelo Camarada Hitler, tão bom amigo do Camarada Stálin.
– Ele esteve numa guerra – Tatiana disse, aliviada por livrar-se do vizinho. – Ele me ignora quando estou sozinha.
– Por que duvido disso? – disse Alexander.
– É verdade. Ele se chateia com a gente porque nós o ignoramos – Tatiana disse, vermelha.
Inclinando-se a ela, Alexander disse:
– Não é ótima a vida comunitária?
Isso a surpreendeu.
– E o que mais?
– Nada – ele respondeu. – Isso é o que vamos precisar para reconstruir nossas almas egoístas, burguesas.
– Isso é o que diz o Camarada Stálin! – Tatiana exclamou.
– Eu sei – disse Alexander, fazendo uma cara séria. – Repito as palavras dele.
Tentando conter o riso, Tatiana o levou à sua porta. Antes de abri-la, olhou de novo para Alexander e para Dimitri e disse com um suspiro excitado:
– Tudo bem. Lar. – Abriu a porta e, sorrindo, disse: – Entre, Alexander.
– Posso entrar também? – Dimitri perguntou.
– Entre, Dimitri.
A família de Tatiana estava no quarto de Babushka; Deda, ao redor da grande mesa de jantar. Do hall, Tatiana esticou a cabeça.
– Cheguei!
Ninguém sequer levantou os olhos. Mamãe disse num tom neutro:
– Por onde você andou?
Ela poderia estar dizendo “mais pão”?
– Mamãe, Papai! Olhem a comida que eu trouxe.
Papai tirou os olhos de seu copo de vodka.
– Bom, filha – ele disse. Ela poderia ter voltado de mãos vazias.
Com um pequeno suspiro, Tania olhou para Alexander em pé no corredor. O que era aquilo em seu rosto? Solidariedade? Não, não era bem isso.Algo mais cálido. Ela sussurrou a ele:
– Ponha as caixas no chão e venha comigo.
– Mamãe, Papai, Babushka, Deda – disse Tatiana, entrando no quarto e tentando disfarçar qualquer emoção na voz naquela apresentação iminente. – Quero que conheçam o Alexander.
– E o Dimitri – este disse rápido, como se Tatiana o tivesse esquecido.
– E o Dimitri – Tatiana corrigiu.
Todos trocaram apertos de mão e olharam incrédulos para Alexander e depois para Tatiana. Mamãe e Papai permaneceram sentados à mesa com uma garrafa de vodka entre eles e dois copinhos. Deda e Babushka sentaram-se no sofá para dar mais espaço aos soldados à mesa. Tatiana achou seus pais meio tristes. Estariam eles bebendo e comendo picles para despedir-se de Pasha?
Papai levantou-se.
– Muito bem, Tania, estou orgulhoso de você. – Ele se dirigiu a Alexander e Dimitri. – Venham, bebam um pouco de vodka.
Alexander educadamente balançou a cabeça.
– Não, obrigado, entro em serviço mais tarde.
– Fale por você – disse Dimitri, dando um passo à frente.
Papai verteu a bebida, franzindo a testa a Alexander. Que classe de homem recusaria um gole de vodka? Alexander podia ter suas razões para rejeitar a hospitalidade de seu pai, mas Tatiana sabia que, por causa disso, ele ia gostar mais de Dimitri. Embora fosse uma coisa pequena, os sentimentos que viriam seriam permanentes. E por causa de sua recusa, Tatiana gostou mais ainda de Alexander.
– Tania, imagino que você comprou um pouco de leite, não? – Mamãe perguntou.
– O Papai me disse para comprar só alimentos secos.
– De onde você é? – o pai de Tatiana perguntou a Alexander.
– Da região de Krasnodar – ele disse.
Papai balançou a cabeça.
– Eu vivi em Krasnodar na minha juventude. Você não fala como alguém que vem de lá.
– Bem, mas eu sou de lá – disse Alexander suavemente.
Para mudar de assunto, Tatiana perguntou:
– Alexander, você prefere um chá? Posso fazer um pouco.
Ele se sentou mais perto dela e Tatiana teve que segurar a respiração.
– Não, obrigado – ele disse, carinhoso. – Não posso ficar muito tempo, Tania, preciso voltar.
Tatiana tirou as sandálias.
– Desculpe – ela disse. – Meus pés estão... – Sorriu. Tentara fingir que os pés não a incomodavam, mas as bolhas em seus dedos sangravam.
Alexander olhou os pés dela, sacudindo a cabeça. Olhou então para o seu rosto. Aquela expressão de novo pintou em seus olhos amendoados.
– Descalça é melhor – ele disse bem baixinho.
Dasha entrou na sala. Parou e olhou os dois soldados.
Ela parecia saudável, radiante como o dia, mas antes que pudesse dizer alguma coisa, Dasha exclamou, a voz plena de prazer:
– Alexander! O que você faz aqui? – Dasha nem mesmo olhou para Tatiana, que, perplexa, olhou para Alexander e disse:
– Você conhece a Dasha...? – Mas parou no meio da pergunta, ao ver em seu calado rosto, além de uma aceitação consciente do fato, uma ponta de infelicidade.
Tatiana olhou para Dasha, depois para Alexander. Ela se sentiu como se estivesse empalada. Oh, oh, ela queria dizer, oh, não, como é possível isso?
O rosto de Alexander ficou impassível. Ele sorriu para Dasha e disse sem olhar para Tatiana:
– Sim, Dasha e eu nos conhecemos.
– Pode repetir isso? – Dasha disse com uma risada e um beliscão no seu braço. – Alexander, o que você está fazendo aqui?
Tatiana olhou ao redor da sala para ver se alguém notara o que ela notara. Dimitri comia picles. Deda lia o jornal, óculos postos. Papai tomava outro drinque. Mamãe abria alguns biscoitos e Babushka estava de olhos fechados. Ninguém notou.
Mamãe disse:
– Os soldados vieram com Tatiana. Trouxeram comida.
– É mesmo? – Dasha disse, seu rosto voltado para Alexander, cheio de leve curiosidade.
– Como você conheceu a minha irmã?
– Eu não a conhecia – disse Alexander. – Dei com ela no ônibus.
– Você deu com a minha irmãzinha? – disse Dasha. – Incrível! É coisa do destino! – De novo, ela tocou-lhe o braço.
– Vamos sentar – disse Alexander. – Acho que agora vou aceitar aquele drinque. – Ele foi à mesa no meio da sala, junto à parede, enquanto Dasha e Tatiana continuavam na porta. Dasha inclinou-se e murmurou:
– Ele é quem eu te falei! – Dasha achou que estava murmurando.
– Ele quem?
– Hoje de manhã – Dasha silvou.
– Hoje de manhã?
– Por que você é tão boba? É ele!
Tatiana entendeu. Ela não era boba. Não houve manhã. Só houve a espera pelo ônibus e o encontro com Alexander.
– Oh – ela disse, querendo evitar qualquer sentimento. Estava muito aturdida.
Dasha sentou-se numa cadeira ao lado dele. Olhando com tristeza as costas fardadas de Alexander, Tatiana foi guardar a comida.
– Tanechka – Mamãe a chamou –, ponha tudo no lugar certo, não como sempre.
Tatiana ouviu Alexander dizer:
– Não se preocupe com goles. Coloque o meu puro num copo.
– É isso aí, rapaz – disse Papai, enchendo-lhe um copo. – Um brinde. Aos novos amigos.
– Aos novos amigos – todos fizeram coro.
Dimitri disse:
– Tania, venha e brinde conosco.
Tatiana foi, mas Papai disse não, Tania era muito jovem para beber. Dimitri desculpou-se, Dasha disse que beberia por ela e pela irmã e Papai disse:
– Como se ela ainda não tivesse bebido.
Todos riram, exceto Babushka, que tentava tirar uma soneca, e Tatiana, que queria que o dia terminasse naquele mesmo instante.
Do corredor, enquanto pegava as caixas e as carregava uma após outra para dentro da cozinha, ela ouviu fragmentos de conversas.
– É preciso acelerar o trabalho nas fortificações.
– As tropas devem ser levadas às fronteiras.
– Os aeroportos devem funcionar bem. As armas devem ser instaladas em posições de frente. Tudo isso deve ser feito num ritmo febril.
Mais tarde, ela ouviu Papai dizer:
– Oh, a nossa Tania trabalha na Kirov. Ela acaba de se formar, um ano antes! Ela planeja ir para a Universidade de Leningrado no ano que vem, quando fizer dezoito anos. Só de olhar para ela ninguém diria que se formou um ano antes, eu já disse isso?
Tatiana sorriu ao pai.
– Não sei por que ela quis trabalhar em Kirov – disse Mamãe. – É tão longe, praticamente fora de Leningrado. Ela não sabe ainda se cuidar sozinha – acrescentou.
– E por que ela deveria saber? Você tem feito tudo para ela – Papai fulminou.
– Tania! – gritou Mamãe –, lave os pratos do jantar enquanto você está aí na cozinha, está bem?
Na cozinha, Tatiana guardou tudo que havia comprado. Enquanto carregava as caixas, olhava a sala de relance para ver as costas de Alexander. Karelia, e os finlandeses, e suas fronteiras, e os tanques, e a superioridade em armas, e os traiçoeiros bosques pantanosos, onde era tão duro ganhar terreno, e a guerra com a Finlândia em 1940, e...
Ela estava na cozinha quando Alexander, Dasha e Dimitri entraram. Alexander não olhou para ela. Era como se ele fosse um cano cheio de água, e Dasha fechara a torneira.
– Tania, se despeça – Dasha disse. – Eles vão embora.
Tatiana desejou ser invisível.
– Até logo – ela disse de longe, limpando em seu vestido branco as mãos sujas de farinha de trigo. – De novo, obrigada por sua ajuda.
Dasha segurou o braço de Alexander e disse:
– Eu levo vocês.
Dimitri aproximou-se de Tania e perguntou se podia encontrá-la de novo. Ela pode ter dito sim, pode ter concordado. Mal o ouviu.
Olhos postos nela, Alexander disse:
– Foi um prazer conhecê-la, Tatiana.
Tatiana pode haver dito: “O mesmo digo eu.” Mas achava que não.
Os três foram embora, e Tatiana ficou sozinha, em pé, na cozinha. Mamãe apareceu e disse:
– O oficial esqueceu seu quepe.
Tatiana pegou o quepe das mãos de Mamãe, mas antes que pudesse dar um passo ao corredor, Alexander havia voltado, sozinho.
– Esqueci o meu quepe.
Tatiana passou-lhe o quepe sem dizer nada e sem olhar para ele.
Ao pegar o quepe, seus dedos descansaram nos dedos de Tatiana por um momento. Ela levantou os olhos. Tatiana o olhou com tristeza. O que fazem os adultos? Ela queria chorar. Nada podia fazer, só engolir a dor na garganta e agir como adulta.
– Sinto muito – disse Alexander, tão baixinho que Tatiana pensou ter ouvido mal. Ele se virou e foi embora.
Tatiana pegou sua mãe examinando-a.
– O que você acha que está fazendo?
– Agradeça que conseguimos um pouco de comida – disse Tatiana, e começou a preparar alguma coisa para comer.
Passou manteiga no pão, comeu um pedaço meio distraída, deu um pulinho e jogou o resto fora.
Não tinha para onde ir. Não na cozinha, não no corredor, nem no quarto. Queria um quartinho só para ela, aonde pudesse ir e anotar coisinhas no seu diário.
Tatiana não tinha seu próprio quartinho. Por isso, não tinha diário.Diários, segundo lera nos livros, deviam ser cheios de escritos pessoais e palavras íntimas. Bem, no mundo de Tatiana não havia palavras íntimas. Todas as palavras íntimas você guarda na cabeça, deitada ao lado de outra pessoa, mesmo que seja sua irmã. Leon Tolstoy, um de seus escritores favoritos, escreveu um diário de sua vida como menino, adolescente, jovem homem. Aquele diário se destinava a ser lido por milhares de pessoas. Esse não era o tipo de diário que Tatiana queria manter. Queria manter um diário no qual pudesse escrever o nome de Alexander e ninguém leria. Queria ter um quarto onde pudesse pronunciar o nome dele e ninguém ouviria.
– Alexander.
Em vez disso, ela voltou ao quarto, sentou-se ao lado da mãe e comeu um biscoito doce.
Seus pais falavam sobre o dinheiro que Dasha não conseguira tirar do banco, que fechou mais cedo, e um pouco sobre a evacuação, mas nada disseram sobre Pasha. Como poderiam? E Tatiana nada disse sobre Alexander. Como poderia? Seu pai falou sobre Dimitri, que ótimo rapaz ele parecia ser. Tatiana, em silêncio, sentada à mesa, reunia suas forças adolescentes. Quando Dasha voltou, chamou a irmã ao quarto, Tatiana foi em seguida. Dando um rodopio, Dasha disse:
– Então, o que você achou?
– Do quê? – disse Tatiana numa voz cansada.
– Tania, dele! O que você achou dele?
– Simpático.
– Simpático?Ah, para com isso! O que eu te disse? Você nunca conheceu alguém tão bonito.
Tatiana ensaiou um pequeno sorriso.
– Eu tinha razão, não tinha? – Dasha riu.
– Tinha, Dasha – disse Tatiana.
– Não é incrível que você o tenha encontrado?
– Não é mesmo? – disse Tatiana sem nenhuma emoção, em pé e querendo sair do quarto, mas Dasha bloqueou a porta com seu corpo trêmulo, sem querer, desafiando Tatiana, que não estava a fim de uma briga, nem grande nem pequena. Sem reação, ela nada disse e nada fez. Sempre foi assim. Dasha era sete anos mais velha. Era mais forte, mais esperta, mais divertida, mais atraente. Ganhava sempre. Tatiana sentou-se na cama.
Dasha sentou-se junto dela.
– E o Dimitri? Você gosta dele?
– Acho que sim. Ouça, não se preocupe comigo, Dasha.
– Quem está preocupada? – Dasha disse, desarrumando os cabelos de Tatiana. – Dê uma chance ao Dima. Eu acho que ele gostou de você. – Dasha disse isso quase como se estivesse surpreendida. – Deve ser o seu vestido.
– Deve ser. Ouça, estou cansada. Foi um longo dia.
Dasha passou o braço nas costas de Tatiana.
– Eu realmente gosto do Alexander, Tania – ela disse. – Gosto tanto dele, não posso nem explicar.
Tatiana sentiu um calafrio. Depois de conhecê-lo, andar com ele, sorrir para ele, Tatiana entendia, de forma implacável, que a relação de Alexander com Dasha não era um flerte passageiro fadado a terminar nos degraus de Peterhof ou nos jardins do Almirantado. Tatiana não duvidava de que dessa vez a irmã estivesse determinada.
– Não explique nada, Dasha – disse Tatiana.
– Tania, algum dia você entenderá.
Num olhar de relance, Tatiana viu a irmã sentada na beira da cama. Ela abriu a boca. Passou um momento.
Ela queria dizer, mas, Dasha, Alexander atravessou a rua por mim.
Ele subiu no ônibus por minha causa, foi até as aforas da cidade por mim.
Tatiana, porém, não podia dizer nada daquilo à irmã mais velha.
O que ela queria dizer para Dasha era: “você tem tido muito de tudo. Pode conseguir outro quando quiser. Você é charmosa e brilhante e bela, todo mundo gosta de você. Mas eu quero ele para mim.”
O que ela queria dizer era: “mas e se ele gosta mais de mim?”
Tatiana não disse nada. Não tinha certeza se aquilo era verdadeiro. Sobretudo a última parte.
Como ele poderia gostar mais de mim? Olhem só o cabelo e a pele de Dasha. E talvez Alexander tenha atravessado a rua por causa de Dasha, também. Ele talvez tenha atravessado a cidade, o rio, por Dasha, às três horas, na luminosa manhã, quando as pontes do rio Neva estavam levantadas.
Tatiana nada tinha a dizer. Fechou a boca. Que perda de tempo, tudo não passara de uma piada.
Dasha a examinou.
– Tania, Dimitri é um soldado... Não sei se você está pronta para um soldado.
– O que significa isso?
– Nada, nada. Mas talvez seja preciso dar uma enfeitada em você.
– Enfeitada, Dasha? – disse Tatiana, o coração apertado entre os pulmões.
– Bem, você sabe, talvez um batonzinho, talvez uma conversinha... – Dasha puxou os cabelos de Tatiana.
– Talvez façamos isso. Outro dia, porém, tudo bem?
Em seu vestido branco com rosas vermelhas, Tatiana enroscou-se, de frente para a parede.
3
Alexander descia rápido a rua Ligovsky.
Depois de alguns minutos de silêncio entre os dois, Dimitri, ainda ofegante, disse:
– Bela família.
– Belíssima – disse Alexander, calmamente. Ele não perdera o fôlego. E não queria falar dos Metanovs com Dimitri.
– Eu me lembro de Dasha – Dimitri disse, mal alcançando Alexander. – Eu a vi com você algumas vezes no Sadko, não foi?
– Sim.
– A irmã dela é impressionante, você não acha?
Alexander não respondeu.
Dimitri continuou.
– Georgi Vasilievich disse que Tania tem quase dezessete. – Sua cabeça estremeceu. – Dezessete! Lembra-se da gente aos dezessete, Alexander?
Alexander continuou andando.
– Muito bem. – Ele até gostaria de lembrar menos dos seus dezessete. Dimitri falava com ele. – Não ouvi. O quê?
– Eu disse – Dimitri falou com paciência. – Você acha que ela é uma jovem de dezessete ou uma velha de dezessete?
– Seja como for, muito jovem para você, Dimitri – Alexander disse, friamente.
Dimitri ficou quieto.
– Ela é muito bonita – ele finalmente disse.
– Sim. Ainda assim muito jovem para você.
– O que te importa? Você é chegado na irmã mais velha, eu vou conhecer melhor a mais jovem. – Dimitri riu. – Por que não? Podíamos fazer um...quarteto, não acha? Dois bons amigos, duas irmãs... Há uma simetria.
– Dima – disse Alexander –, e a Elena de ontem à noite? Ela me disse que gostou de você. Posso te apresentar na semana que vem.
Com um gesto negativo, Dimitri disse:
– Você falou mesmo com ela? – ele riu. – Não. Posso pegar uma dúzia como Elena. Além do mais, por que não Elena, também? Não. Tatiana não é como as outras. – Ele esfregou as mãos e sorriu.
Impassível fitou o rosto de Alexander. Nenhum tique em seu olho, nenhuma contração em seus lábios, testa sem vinco algum. Nada se mexia, exceto suas pernas, mais e mais rápidas ao descer a rua.
Dimitri trotou.
– Alexander, espere. É sobre a Tania... Quero ter certeza... você não se incomoda, sim?
– Claro que não, Dima – Alexander respondeu, sereno. – Por que eu me incomodaria?
– Absolutamente! – Ele deu um tapinha nas costas de Alexander. – Você é um bom homem. Pergunta rápida: quer que eu arrume alguma diversão para...
– Não!
– Mas você vai ficar de plantão a noite inteira. Vamos lá. Vamos nos divertir como sempre.
– Não, hoje à noite não. – Fez uma pausa. – Outra vez não, entendeu?
– Mas...
– Estou atrasado – disse Alexander. – Vou correr. Te vejo nas barracas.
Caminhos desconhecidos
1
Na manhã seguinte, quando Tatiana acordou, a primeira imagem que lhe veio à mente foi o rosto de Alexander. Ela não falou com Dasha; na verdade, tentou não olhar para a irmã, que, quando saiu, disse-lhe:
– Feliz aniversário.
– Sim, Tanechka, feliz aniversário – disse Mamãe, apressada. – Não se esqueça de trancar a porta.
Papai beijou-a na cabeça e disse:
– Seu irmão também faz dezessete hoje, você sabe, não é?
– Sim, Papai, eu sei.
Papai trabalhava como engenheiro de tubulação na usina hidráulica de Leningrado. Mamãe era costureira no setor de uniformes de um hospital em Nevsky. Dasha era assistente de um dentista. Estava no emprego desde que deixou a faculdade, havia dois anos. Haviam namorado, mas, tão logo isso terminou, ela continuou no consultório porque gostava do trabalho. Ganhava bem, e o trabalho exigia pouco.
Tatiana foi para a fábrica de Kirov, onde, durante toda a manhã, participou de reuniões e discursos patrióticos. O gerente do seu departamento, Sergei Krasenko, perguntou se alguém queria aderir ao Exército Voluntário do Povo para cavar trincheiras no sul, e assim ajudar a derrotar os odiados alemães.
Hoje o alemão era odiado. Ontem era amado. E amanhã?
Ontem Tatiana conhecera Alexander.
Krasenko continuava falando. As fortificações ao norte de Leningrado, ao longo da antiga fronteira com a Finlândia, deveriam ser colocadas em plena posição defensiva. O Exército Vermelho suspeitava que os finlandeses iam querer recuperar Karelia. Tatiana animou-se. Karelia, Finlândia. Alexander falou sobre isso ontem. Alexander... Tatiana desanimou.
As mulheres ouviam Krasenko, mas ninguém se ofereceu como voluntário para nada. Ninguém, quer dizer, exceto Tamara, a mulher atrás de Tatiana na linha de montagem.
– O que eu tenho a perder? – ela sussurrou com fervor, enquanto lutava para equilibrar-se com os pés. Tatiana desconfiava que a tarefa de Tamara era muito chata.
Hoje, antes do almoço, ela recebeu óculos, uma máscara de proteção para os cabelos e um casaco marrom da fábrica. Depois do almoço não embrulhava mais colheres e garfos. Agora vinham a ela, na linha de montagem, balas cilíndricas de metal. Caiam às dúzias dentro de pequenos contêineres de papelão, e o trabalho de Tatiana era colocar os contêineres dentro de grandes caixas de madeira.
Às cinco da tarde, Tatiana tirou o casaco, a máscara e os óculos, lavou o rosto, arrumou bem os cabelos num rabo de cavalo e deixou o edifício. Caminhou pela a avenida Stachek, ao longo do famoso Muro Kirov, uma estrutura de concreto de sete pés de altura, que se estendia por quinze quarteirões da cidade. Ela percorreu três desses quarteirões até o ponto de ônibus.
E à sua espera no ponto de ônibus estava Alexander.
Quando Tatiana o viu não pôde evitar, seu rosto iluminou-se. Pôs a mão no peito, parou por um momento, mas ele sorriu e ela corou, e, engolindo em seco, foi na direção dele. Notou que ele levava nas mãos o quepe de oficial. Quis ter lavado melhor o rosto.
Tantas palavras na cabeça faziam-na incapaz de conversinhas, bem num momento em que mais precisava disso.
– O que você faz aqui? – ela perguntou, timidamente.
– Estamos em guerra com a Alemanha – Alexander disse. – Não tenho tempo para fingimentos.
Tatiana queria dizer alguma coisa, qualquer coisa, não deixar as palavras dele perdidas no ar. Então ela disse:
– Oh.
– Feliz aniversário.
– Obrigada.
– Vai fazer alguma coisa especial hoje à noite?
– Não sei. Hoje é segunda-feira, todo mundo estará cansado. Vamos jantar. Tomar um drinque.
Ela suspirou. Talvez num mundo diferente poderia convidá-lo para jantar em casa no seu aniversário. Mas não neste mundo.
Esperaram. Gente sombria ao seu redor. Tatiana não se sentia sombria. Ela imaginou: mas vou ficar assim, como eles, sozinha, esperando o ônibus?
É assim que vou ficar para o resto da minha vida?
E aí ela pensou: estamos em guerra. Como será então o resto da minha vida?
– Como você soube que eu estaria aqui?
– Seu pai me contou ontem que você trabalhava na Kirov. Apostei que estaria esperando o ônibus.
– Por quê? – ela perguntou de leve. – Temos tido tanta sorte assim com o transporte público?
Alexander sorriu.
– Esse nós se refere ao povo soviético ou a você e eu?
De novo ela corou.
O ônibus 20 chegou, com lugar para duas dúzias de passageiros; porém, apinhado, com 36 pessoas. Alexander e Tatiana esperaram.
– Venha, vamos caminhar – ele por fim disse, levando-a.
– Caminhar para onde?
– De volta para casa. Quero falar algo com você.
Ela o olhou meio na dúvida.
– A casa fica a oito quilômetros daqui. – Ela olhou os pés.
– Os seus sapatos hoje estão mais confortáveis? – Ele sorria.
– Sim, obrigada – ela disse, amaldiçoando sua própria maneira de menininha desajeitada.
– Te digo uma coisa – ele sugeriu. – Por que não andamos um longo quarteirão até a rua Govorova, e lá pegamos o bonde número 1? Você aguenta andar um longo quarteirão? Todo mundo aqui espera o ônibus ou o trólebus. Nós, em vez disso, pegamos o bonde número 1.
Tatiana pensou.
– Eu acho que esse bonde não me deixa no meu prédio.
– Não, não deixa, mas você pode descer na estação ferroviária, em Varsóvia, e pegar o bonde número 16, que te leva à esquina de Grechesky com a Quinta Soviet, ou pode pegar comigo o número 2, que me deixa perto das minhas barracas e a você no Museu Russo. – Ele fez uma pausa. – Ou podemos andar.
– Não vou andar oito quilômetros – disse Tatiana. – Mesmo com sapatos mais cômodos. Vamos pegar o bonde.
A essa altura ela já sabia que não ia descer em nenhuma estação ferroviária para pegar outro bonde de volta para casa sozinha.
Como já esperavam havia vinte minutos e o bonde não vinha, Tatiana concordou em andar alguns poucos quilômetros até o bonde número 16. A rua Govorova virava na rua Skapina e depois serpenteava em diagonal rumo ao norte, até terminar no dique do Canal Obvodnoy, o Canal Circular.
Tatiana não queria pegar o bonde. Ela não queria que ele pegasse o bonde. Ela queria andar ao longo do canal azul. Como dizer-lhe isso? Havia também outras coisas para perguntar a ele. Ela sempre tentou ser menos direta. Sempre tentou achar a coisa certa para dizer e não confiava no termômetro da etiqueta sobre sua cabeça, e assim simplesmente não dizia nada, atitude que era vista ou como uma penosa timidez ou arrogância. Dasha nunca teve esse problema. Ela dizia a primeira coisa que lhe vinha à cabeça.
Tatiana sabia que precisava confiar mais em sua voz interior. Era certamente alta o suficiente.
Tatiana queria perguntar a Alexander sobre Dasha.
Mas ele começou com:
– Não sei como te contar isso. Você pode achar que estou sendo presunçoso. Mas... – Ele parou.
– Se eu pensar que você está sendo presunçoso – Tatiana afirmou –, então provavelmente está mesmo.
Ele ficou em silêncio.
– De todo modo, me diga.
– Você tem que dizer ao seu pai, Tatiana, que ele precisa trazer de volta de Tolmachevo o seu irmão.
Ao ouvir essas palavras, ela viu, do outro lado da rua, a estação de trem de Varsóvia, ornada em estilo imperial, e pensou fugazmente em como seria conhecer Varsóvia e Lublin e Swietokryst, e de repente vinham Pasha e Tolmachevo, e...
Tatiana não esperava isso. Queria alguma coisa mais. Em vez disso, Alexander mencionara Pasha, que ele não conhecia, nunca vira.
– Por quê? – Tatiana perguntou.
– Porque há um certo perigo – Alexander disse, depois de uma pausa – de que Tolmachevo caia nas mãos dos alemães.
– Do que você está falando?
Ela não entendia e, mesmo que entendesse, não queria. Ela teria escolhido não entender. Não queria se aborrecer. Estava muito feliz por Alexander ter ido vê-la sem ser convidado, de sua própria vontade. Mas havia algo na sua voz. Pasha, Tolmachevo, alemães, essas três palavras fluíam juntas em uma sentença, ditas por um quase estranho com olhos cálidos e num tom frio. Ele viera até Kirov para alarmá-la? Para quê?
– O que eu posso fazer? – ela perguntou.
– Fale com seu pai para que tire Pasha de Tolmachevo. Por que o mandou para lá? – ele exclamou. – Por segurança?
Alexander estremeceu, e uma sombra passou por seu rosto. Sem piscar, ela o observou atentamente para mais, para menos, para uma explicação. Mas não houve mais nada. Nem mesmo palavras.
Tatiana pigarreou.
– Lá tem acampamentos para meninos. Por isso ele mandou Pasha.
Ele assentiu.
– Eu sei. Muita, muita gente de Leningrado mandou seus filhos para lá ontem. – Seu rosto nada expressava.
– Alexander, os alemães estão na Crimeia – disse Tatiana. – O próprio Camarada Molotov disse isso. Você não ouviu o discurso dele?
– Sim, estão na Crimeia. Mas nós temos uma fronteira com a Europa de dois mil quilômetros. O exército de Hitler ocupa cada metro dessa fronteira, Tania, da Bulgária, ao sul, até a Polônia, ao norte. – Ele fez uma pausa. Ela não disse nada.
– Por agora, Leningrado é o lugar mais seguro para Pasha. De verdade.
Tatiana estava cética.
– Por que tanta certeza? – Ela se animou. – Por que o rádio sempre diz que o Exército Vermelho é o mais forte do mundo? Temos tanques, temos aviões, temos artilharia, temos canhões. O rádio, Alexander, não tem dito o que você está dizendo. – Ela pronunciou essas palavras quase como uma reprimenda.
Ele balançou a cabeça.
– Tania, Tania, Tania.
– O quê, o quê, o quê? – ela disse, e viu que Alexander, apesar de sua cara séria, quase ria. Ela também quase riu, apesar de sua cara séria.
– Tania, Lenigrado há tantos anos vive com uma fronteira hostil com a Finlândia, a só vinte quilômetros ao norte que nós esquecemos de armar o sul. E é aí onde mora o perigo.
– Se é aí onde está o perigo, então como você manda o Dimitri para a Finlândia, onde, você mesmo sugere, está tudo calmo?
Alexander ficou em silêncio.
– Reconhecimento – ele disse por fim. Tatiana sentiu que ele deixou alguma coisa sem dizer. – Meu ponto é – ele prosseguiu –, todas as nossas defesas de precaução se concentram no norte. Mas no sul e no sudoeste, Leningrado não tem uma simples divisão, um único regimento, nem uma unidade militar pronta para combate. Você entende o que estou lhe dizendo?
– Não – ela disse num tom meio desafiador.
– Fale com seu pai sobre o Pasha – ele reiterou.
Em silêncio, caminharam lado a lado ao longo das ruas tranquilas. Amortecido estava o sol, imóveis as folhas e somente Alexander e Tatiana se moviam languidamente através do verão, os dois mais devagar ao fim de cada quarteirão, olhando o pavimento, vendo os sinais urbanos. Tatiana pensava: por favor, não deixe isto terminar tão cedo. O que ele pensava?
– Ouça – Alexander disse –, sobre ontem... Sinto muito o incidente. O que eu podia fazer? Sua irmã e eu...Eu não sabia que ela era sua irmã. Nós nos conhecemos no Sadko.
– Eu sei. Claro. Não precisa explicar nada – interrompeu Tatiana.
Foi ele quem tocou no assunto. Isso significava muito.
– Oh, preciso, sim. Sinto muito se – fez uma pausa – aborreci você.
– Não, nada disso. Está tudo bem. Ela me falou sobre você. Ela e você... – Tatiana parou, querendo reforçar que estava tudo bem, mas sua fala emperrou. – Como é o Dimitri? Ele é legal? Quando ele volta de Karelia? – Ela disse isso só para causar algum efeito? Tatiana não tinha certeza. Ela só queria mudar de assunto.
– Eu não sei. Quando terminar o seu trabalho de reconhecimento. Dentro de alguns dias.
– Ouça, estou ficando cansada. Podemos pegar um bonde?
– Claro – Alexander disse, devagar. – Vamos esperar o número 16.
Eles já estavam sentados, quando ele falou de novo.
– Tatiana, nada sério entre sua irmã e eu. Eu vou dizer a ela.
– Não! – Ela exclamou. Os dois homens fortes na frente dela viraram intrigados. – Não! – ela repetiu mais baixo, mas não menos firme. – Alexander, é impossível. – Ela colocou as mãos no rosto e em seguida as afastou. – Ela é minha irmã mais velha. Você entende isso?
– Eu fui o único filho dos meus pais. – Suas palavras, como que ao som de violinos, ecoaram no peito de Tatiana.
Mais gentilmente, Tatiana disse:
– Ela é minha única irmã. – Fez uma pausa. – E ela leva a sério essa relação com você. – Precisava dizer mais? Ela achava que não, mas a julgar por seu olhar de desagrado, sim, precisava dizer mais. – Outros rapazes virão – ela finalmente acrescentou, com um dar de ombros galante –, mas eu nunca terei outra irmã.
Alexander só disse:
– Eu não sou um rapaz.
– Homens, então – Tatiana gaguejou. Era muito difícil para ela.
– O que faz você pensar que haverá outros homens?
Perplexa, Tatiana mesmo assim persistiu:
– Porque vocês perfazem metade do mundo. Mas o fato é que eu só tenho uma irmã.
Como Alexander não comentou nada, ela arriscou:
– Você gosta da Dasha, não gosta?
Ele respondeu baixinho:
– Claro, mas...
– Então – Tatiana interrompeu –, está definido. Não há porque continuar falando disso. – Ela suspirou pesadamente.
– Não – Alexander disse, suspirando curto. – Acho que não.
– Então, tudo bem. – Ela olhou pela janela.
Quando Tatiana pensava sobre o que gostaria de ser na vida, ela sempre pensou em seu avô e na dignidade com que ele conduziu a sua existência simples. Seu avô poderia ter sido qualquer coisa, mas ele escolheu ser um professor de matemática. Tatiana não sabia se era o ensino irrefutável da matemática que fazia Deda lidar com assuntos mais intangíveis com o mesmo código preto e branco ou se era a própria essência de seu caráter que o atraía aos absolutos da matemática, mas, fosse o que fosse, Tatiana sempre se maravilhava com isso. Quando as pessoas perguntavam o que queria ser quando crescesse, ela invariavelmente dizia: “Quero ser como o meu avô.”
Tatiana sabia o que Deda faria. Ele nunca machucaria o coração da sua própria irmã.
O bonde passou pela Praça da Insurreição. Alexander pediu a ela para descer algumas paradas antes da Quinta Soviet, perto do hospital de tijolos vermelhos, o Greshesky, na Segunda Soviet com a Greshesky.
– Eu nasci nesse hospital – Tatiana disse, apontando-o.
– Então, Tania, me diga uma coisa, você gosta do Dimitri?
Um bom minuto passou antes que Tatiana pudesse responder.
Que tipo de resposta ele procurava? Perguntava como se fosse um espião para Dimitri ou para ele próprio? E o que ela deveria dizer? Se fosse por Dimitri e Tatiana dissesse não, não gostava dele, então magoaria a Dimitri, e ela não queria fazer isso.
Se fosse por Alexander e ela dissesse sim, gostava do Dimitri, então magoaria Alexander, e tampouco queria fazer isso. O que deveriam dizer as meninas? Não era o papel delas armar algum tipo de jogo? Seduzir, pular fora, fingir.
Alexander pertencia à Dasha. Devia a irmã mais jovem de Dasha dar-lhe uma resposta honesta?
Ele queria uma?
Ele queria uma.
– Não – ela finalmente disse. Tatiana não queria, acima de tudo, magoar a Alexander.
Ela viu pelo seu rosto que lhe havia dado a resposta certa.
– Dasha diz que eu devo dar a ele uma chance. O que você acha?
– Não – ele respondeu em cima.
Eles pararam na esquina da Segunda Soviet com a Avenida Greshesky. A uma distância de cem metros de seu edifício, reluzia a cúpula da igreja. Tatiana não podia aceitar a ideia de que ele iria embora. Agora que ele viera, perguntara o impossível e fora recusado, ela temia não vê-lo assim outra vez. Sozinho assim outra vez.
Ela não podia deixá-lo ir embora. Ainda não.
– Alexander – ela disse baixinho, olhando o seu rosto –, sua mãe e seu pai ainda estão em Krasnodar?
– Não – ele disse. – Não estão em Krasnodar.
Ela não desviou os olhos. Os olhos dele sobre ela se verteram.
– Tania, tantas coisas não posso explicar, mas quero.
– Então explique – Tatiana disse suavemente, segurando a respiração.
– Lembre-se do que acontece agora no Exército Vermelho: a confusão, a falta de preparo, a desorganização, tudo isso só pode ser explicado por meio dos eventos dos últimos quatro anos. Entendeu?
Tatiana ficou imóvel.
– Não entendo. O que isso tem a ver com os seus pais?
Alexander deu um passo à frente, protegendo-a do sol que se punha.
– Os meus pais estão mortos. Minha mãe em morreu em 1936; e meu pai, em 1937. – Ele abaixou ainda mais a sua voz. – Fuzilados – ele murmurou. – Pela NKVD, a polícia não tão secreta. Agora preciso ir, tudo bem?
Pelo jeito a expressão chocada de Tatiana deteve Alexander, porque ele lhe deu um tapinha no braço e disse, com um sorriso triste:
– Não se preocupe. Às vezes as coisas não funcionam como esperamos, não é mesmo? Não importa o quanto planejamos, o quanto queremos. Não é verdade?
– Não, não funcionam – respondeu Tatiana, abaixando os olhos. Por alguma razão, ela achou que ele não falava só de seus pais. – Alexander, você quer...
– Tenho que ir embora – ele cortou. – Falamos depois.
Tudo que ela queria perguntar era: quando? Mas tudo que ela disse foi: muito bem.
Tatiana não queria voltar para o apartamento, para dentro da cozinha.
Queria estar no bonde outra vez, ou no ponto de ônibus, até mesmo na loja, na rua – qualquer lugar, desde que não fosse no apartamento sem ele.
Quando Tatiana chegou ao edifício, ela parou, meio abobada, na entrada, desenhando distraída o esboço da figura 8 com os dedos, pronta para subir e ir adiante.
Com um coração pesado ela percorreu as escadas.
2
A família discutia a guerra. Não havia jantar de aniversário, mas havia muita bebida. E muito debate em voz alta. O que aconteceria a Leningrado? Quando Tatiana chegou, seu pai e seu avô discordavam sobre as intenções de Hitler – como se os dois o conhecessem pessoalmente. Mamãe só queria saber por que o Camarada Stálin não falara ao povo.
Dasha queria saber se devia continuar trabalhando.
– Existe outra opção? – fulminou papai, irritado. – Olhe a Tatiana. Ela nem completou dezessete anos e não pergunta se deve continuar trabalhando.
Todos olharam para Tatiana, incluindo Dasha, de um jeito triste.
Tatiana pôs no chão a sua bolsa.
– Dezessete, hoje, Papai.
– Ah, sim! – Papai exclamou. – Claro, foi um dia tão louco. Vamos brindar pela saúde de Pasha. – Ele fez uma pausa. – E pela de Tania.
A sala, de alguma forma, diminuíra porque Pasha não estava com eles.
Tatiana apoiou-se na parede, imaginando quando seria uma boa hora de falar do irmão e Tolmachevo. Quase ninguém notou que ela se segurava na parede, exceto Dasha, que, sentada no sofá, a olhou e disse:
– Porque você não toma um pouco de canja? Está no fogão.
Tatiana achou uma boa ideia. Na cozinha, ela pôs no prato duas conchas de cenouras e um pedaço de frango, sentou-se junto à janela e olhou o pátio lá fora, enquanto a sopa esfriava. Não podia comer nada quente. Ela queimava por dentro.
Quando Tatiana voltou aos quartos, ouviu a mãe consolando o pai:
– Esta guerra não vai continuar até o inverno. Já deverá estar terminada até lá.
Papai estava silencioso, esfregando as dobras da camisa. Ele disse:
– Você sabe, Napoleão também veio à União Soviética com os seus exércitos em junho.
– Napoleão! – Mamãe gritou. – O que Napoleão tem a ver com tudo isso, Georgi Vasilievich? Por favor. Pelo amor de Deus.
Tatiana abriu a boca para falar, para dizer alguma coisa sobre Tolmachevo, mas, além de ela não estar segura da mensagem que devia passar à sua família madura, informada, insofrível, de repente lhe ocorreu que ela teria que explicar como obteve essa informação do futuro avanço da Alemanha sobre a Rússia.
Teria? Ela pensou. Fechou a boca.
Papai sentava ao lado de mamãe, olhando o copo vazio.
– Vamos tomar outro gole – ele disse – e brindar por Pasha.
– Vamos para Luga! – Mamãe exclamou.
– Vamos para nossa dacha, ficar longe da cidade.
Como poderia Tatiana deixar de dizer alguma coisa agora?
– Talvez – ela pigarreou, munida da confiança de uma ovelha, perplexa com sua própria audácia –, talvez pudéssemos, enquanto isso, trazer Pasha de volta.
Papai, Mamãe, Dasha, Deda e Babushka, todos olharam para Tatiana, confusos e arrependidos, como se, em primeiro lugar, estivessem surpreendidos que ela podia falar e, em segundo, lamentavam por dizer coisas de adultos na presença de uma criança.
Mamãe começou a chorar.
– Devíamos trazê-lo de volta. Hoje é o seu aniversário e ele está sozinho.
É o meu aniversário também, Tatiana pensou. Levantou-se, decidida a sair dali e tomar um banho.
– Aonde você vai? – Papai a chamou.
– Vou lavar.
– Lavar o quê? – vociferou mamãe. – Leve alguns pratos à cozinha, por favor.
– Vou me lavar – respondeu Tatiana, recolhendo os pratos sujos da mesa.
Dasha saiu, Tatiana não perguntou para onde. Desconfiava que ia ver Alexander. Tatiana não era do tipo que tinha pena de si própria, e não ia começar isso agora. Se alguma coisa havia a lamentar, era a série de eventos que introduzira um sentimento no seu coração, logo depois esmagado pelas mãos maldosas do destino. Ela não iria permitir uma inútil autopiedade, aquele furioso inimigo.
Tatiana se forçou a reler alguns contos de Chekhov, que sempre a acalmavam por causa de seu tom inerte. Com a leitura de sete de seus relatos, ela estava pronta para dormir, o último deles era sobre uma menina sentada num banco com um homem mais velho.
Ela continuou ouvindo Deda e papai discutindo sobre a guerra. A ideia de guerra era terrível, Deda disse, mas muita gente não via isso como uma tragédia pura. Podia trazer-lhes liberdade. Podia dar-lhes uma chance de uma vida normal. Tatiana ouviu a voz de papai ensopada de vodka:
– Nada removerá da Rússia o fardo selvagem dos Bolcheviques. Nada nos trará uma vida normal.
Tatiana achava papai um pessimista. Com a vodka ele ficava ainda mais taciturno.
Alguma coisa tinha que trazer a todos uma chance para uma nova vida. Mas o quê? Como se ela tivesse respostas. Dormiu.
Acordou às quinze para as duas da madrugada por causa de um som que nunca ouvira antes, vindo do lado de fora. Era uma sirene berrando e furando a noite sombria. Ela gritou, e o pai aproximou-se, dizendo-lhe que não se preocupasse, era só uma sirene de ataque aéreo. Queria saber se era preciso levantar; os alemães já estavam bombardeando?
– Durma, Tanechka, querida, – disse Papai. Mas como ela podia dormir com a sirene diminuindo e Dasha fora de casa? A sirene parou depois de poucos minutos, mas Dasha ainda não chegara.
3
Na reunião matinal em Kirov, no dia seguinte, Tatiana foi informada de que o expediente, em honra dos esforços de guerra, se estenderia agora até as sete da noite, até outro aviso. Até outro aviso, Tatiana intuía, era até o fim da guerra. Krasenko informou aos trabalhadores que ele e o secretário do Partido de Moscou decidiram acelerar a produção do KV-1, tanque pesado para a defesa de Leningrado. Krasenko disse que Leningrado seria defendida com tanques, munição, artilharia que pudessem ser fabricados em Kirov. Stálin não transferiria armas do front sul para o front de Leningrado para proteger a cidade.
O que Leningrado podia produzir em sua própria defesa – armamento e comida – teria que ser suficiente.
Depois daquela reunião, tantos trabalhadores foram como voluntários ao front que Tatiana achou que a fábrica seria fechada. Mas a sorte não foi tanta. Ela e outra trabalhadora, uma mulher de meia-idade, exaurida, chamada Zina, voltaram aos seus postos na linha de montagem. No final do dia, quebrou a pistola de pregos, e Tatiana teve que fechar as caixas com um martelo. Ao redor das sete horas, doíam suas costas e braço.
Tatiana e Zina caminharam ao longo do muro de Kirov e, antes de chegar ao ponto de ônibus, ela viu a cabeça de cabelos negros de Alexander por cima da onda de gente.
– Preciso ir – Tatiana disse, perdendo fôlego e acelerando. – Nos vemos amanhã.
Zina resmungou alguma coisa de volta.
– Oi – ela o cumprimentou, o coração disparado, a voz firme. – O que você está fazendo aqui? – Ela estava muito cansada para fingir desinteresse. Sorriu.
– Vim para levá-la para casa. Passou bem o seu aniversário? Falou com seus pais?
– Não – Tatiana respondeu.
– Com nenhum dos dois?
– Não falei com eles, Alexander – Tatiana disse, evitando o assunto aniversário. – Talvez Dasha possa falar com eles? Ela é muito mais corajosa do que eu.
– É mesmo?
– Oh, muito – disse Tatiana. – Eu sou muito medrosa.
– Tentei falar com ela sobre o Pasha. Ela está ainda menos preocupada que você. – Ele deu de ombros. – Não é problema meu. Estou só fazendo o que posso. – Ele olhou a fila de gente. – Nunca vamos subir neste ônibus, quer andar?
– Só se for seguindo o ritmo do bonde – ela disse. Não posso me mexer hoje, estou muito cansada. – Ela parou, ajeitando o rabo de cavalo. – Faz tempo que você espera?
– Duas horas – ele respondeu.
Tatiana, de repente, sentiu-se menos cansada. Com surpresa, fixou os olhos em Alexander.
– Faz duas horas que você espera? – O que ela não dissera foi: “você espera por mim há duas horas?” – Meu expediente agora vai até as sete. Sinto muito que tenha esperado tanto – ela disse suavemente a ele.
Afastaram-se da multidão, atravessaram a rua e foram rumo à rua Govorova.
– Por que você carrega isso? – Tatiana perguntou, apontando para o rifle de Alexander. Você está em serviço?
– Estou liberado até as dez, mas recebi ordens de portar minha arma o tempo todo.
– Eles ainda não estão aqui, estão? – Tatiana perguntou, tentando ser jovial.
– Ainda não – foi sua curta resposta.
– O rifle é pesado?
– Não. – Ele fez uma pausa e sorriu. – Você quer pegá-lo?
– Sim – ela disse. – Vamos ver, nunca segurei um rifle antes.
Ao pegar a arma, surpreendeu-se com o peso e como era difícil segurá-la com ambas as mãos. Carregou um pouco o rifle e depois o devolveu a Alexander.
– Não sei como você faz – ela disse. – Carregar a sua arma e também todas as outras coisas.
– Não é só carregar a arma, Tania, mas disparar com ela. E correr, e jogar-se ao chão, e levantar com ela em minhas mãos, com todas as outras coisas nas minhas costas.
– Não sei como você faz isso.
Ela gostaria de ser fisicamente forte assim. Pasha nunca mais ganharia dela uma guerra.
O bonde veio, e eles subiram. Estava lotado. Tatiana cedeu seu lugar a uma senhora mais velha, enquanto Alexander dava a impressão de não querer sentar. Com uma mão, segurou-se numa correia marrom na parte de cima, com a outra segurou seu rifle. Tatiana apoiou-se no cabo metálico, já meio enferrujado. De vez em quando o bonde dava uma freada brusca e ela batia nele. E a cada vez se desculpava. O corpo de Alexander era sólido como o muro de Kirov.
Tatiana queria sentar-se a sós com ele em algum lugar e perguntar-lhe sobre os seus pais. Claro que não podia fazer isso no bonde. E seria uma boa coisa saber mais de seus pais? Afinal, saber mais sobre a sua vida a faria mais próxima dele, quando o que precisava era distanciar-se dele o máximo possível.
Tatiana permaneceu calada enquanto o bonde os levava à avenida Vosnesensky, onde pegaram o bonde número 2 para o Museu Russo.
– Bem, vou indo – Tatiana disse, extremamente relutante, depois que desceram.
– Você quer descansar um minuto? – Alexander perguntou de repente. – Podemos sentar num dos bancos nos Jardins Italianos. Quer?
– Tudo bem – Tatiana disse, tentando não explodir de alegria, enquanto andava em curtos passos ao lado dele.
Sentados, Tatiana sentia que algo pesava na cabeça de Alexander. Algo que ele queria dizer e não podia. Ela esperava que não fosse sobre Dasha. Ela pensou, mas já não superamos isso? Ela não superara. Mas ele era mais velho, devia haver superado.
– Alexander, que edifício é aquele? – ela perguntou, apontando para o outro lado da rua.
– Oh, é o Hotel Europeu – Alexander respondeu. – Esse e o Astoria são os melhores hotéis em Leningrado.
– Parece um palácio. Quem pode se hospedar lá?
– Estrangeiros.
Tatiana disse:
– Certa vez, há poucos anos, o meu pai foi à Polônia a negócios e, quando voltou, contou que em seu hotel em Varsóvia poloneses da Cracóvia ali se hospedavam, já imaginou? Nós não acreditamos nele por uma semana. Como era possível poloneses se hospedarem num hotel em Varsóvia? – ela riu. – É como se eu ficasse hospedada lá no Europeu.
Alexander olhou para ela com uma expressão divertida e disse:
– Há lugares para onde as pessoas podem viajar como quiserem em seu próprio país.
Tatiana fez um gesto negativo.
– Imagino – ela disse. – Como a Polônia. – Engoliu em seco e limpou a garganta. – Alexander... sinto muito sobre seus pais. – Ela tocou-lhe de leve o ombro. – Por favor, me conte o que aconteceu.
Com um suspiro de alívio, Alexander disse:
– Seu pai tem razão, você sabe. – Fez uma pausa. – Eu não sou de Krasnodar.
– Verdade? De onde você é?
– Já ouviu falar de uma cidade chamada Barrington?
– Não. Onde é?
– Massachusetts.
Ela achou que ouvira mal, seus olhos agrandaram-se.
– Massachusetts? – ela engasgou. – Como na, como na América?
– Sim.
– Você é de Massachusetts, América? – disse Tatiana, assombrada.
– Sim.
Por um minuto cheio, talvez dois, Tatiana não podia falar, seu coração batia surdo e elétrico em suas orelhas. Ela queria o maxilar fechado.
– Você está brincando comigo – ela disse por fim. – Não sou tão bobinha.
Alexander balançou a cabeça.
– Não estou brincando.
– Sabe por que eu não acredito em você?
– Sim – disse Alexander. – Você está pensando: quem desejaria vir para cá?
– É exatamente o que estou pensando.
– A vida comunitária foi uma grande desilusão para nós – Alexander disse a Tatiana. – Viemos para cá. Meu pai, de todo modo, tão cheio de esperança e de repente não havia chuveiros.
– Chuveiros?
– Não importa. Onde estava a água quente? Não podíamos nem mesmo tomar um banho no hotel residencial onde estávamos hospedados. Vocês têm água quente?
– Claro que não. Fervemos água no fogão e a misturamos com a água fria da banheira. Todo sábado vamos a um banho público para nos lavar. Como todo mundo em Leningrado.
Alexander concordou.
– Em Leningrado, em Moscou, em Kiev, em toda a União Soviética.
– Temos sorte. Na verdade, nas grandes cidades temos água corrente. Nas cidades do interior, eles não têm nem isso. Deda me contou isso sobre o Molotov.
– Ele tem razão – Alexander assentiu. – Mas até mesmo em Moscou as privadas tinham uma descarga que funcionava esporadicamente; o fedor se acumulava nos banheiros. De qualquer forma, meus pais e eu nos adaptamos. Cozinhávamos com lenha e pensávamos ser a família Ingalls.
– Quem?
– A família Ingalls viveu no oeste americano no final dos anos 1800. Contudo, aqui estávamos nós, e esta era a utopia socialista. Certa vez eu disse ao meu pai, com alguma ironia, que ele tinha razão, isto era melhor que Massachusetts. Ele respondeu que não se constrói socialismo em um país sem uma luta. Por um tempo, acho, ele realmente acreditou nisso.
– Quando você veio?
– Em 1930, logo depois da quebra da Bolsa de Nova York, em 1929. – Alexander notou o olhar inexpressivo de Tatiana, suspirou. – Não importa. Eu tinha onze anos. Para começar, nunca quis sair de Barrington.
– Oh, não – Tatiana murmurou.
– Cozinhar num pequeno fogão a querosene, um Primus, nos deprimia. Vivíamos no escuro, rodeados de maus cheiros. Isso ensombrecia nossos espíritos de uma maneira inimaginável. Minha mãe deu para beber. Bem, por que não? Todo mundo bebia.
– Sim – disse Tatiana. O pai dela bebia.
– E depois que ela bebia, e o banheiro era ocupado por outros estrangeiros vivendo no nosso palácio de Moscou – ele fez uma pausa –, não como o Europeu, minha mãe se dirigia ao parque local e lá fazia as suas necessidades nos banheiros públicos: só um buraco no solo para a minha mãe.
Ele sentiu um arrepio ao pronunciar essas palavras, e Tatiana também arrepiou-se, na refrescante noite de Leningrado. Suavemente, ela tocou de novo o ombro de Alexander, e porque ele não se mexeu, e porque eles sentavam-se abrigados sob as árvores, e porque não havia uma alma ao redor, Tatiana pressionou seus dedos delgados no tecido de sua farda e ali os deixou.
– Aos sábados – Alexander continuou –, meu pai e eu, como você, sua mãe e irmã, íamos ao banho público e esperávamos duas horas na fila para entrar. Minha mãe ia sozinha às sextas-feiras, desejando, eu acho, que tivesse parido uma filha, assim não estaria tão sozinha, assim não sofreria tanto por minha causa.
– Ela sofreu por sua causa?
– Tremendamente. A princípio eu estava bem, mas, com o passar do tempo, comecei a culpá-los pela minha vida. Na época, vivíamos em Moscou. Setenta de nós, idealistas, e não só idealistas, mas idealistas com filhos, viviam como vocês, dividindo três banheiros e três pequenas cozinhas em um grande andar.
– Ahmm – Tatiana disse.
– Que tal isso?
Ela pensou.
– Somos apenas 25 no nosso andar, mas... o que posso dizer? Eu gosto mais da nossa dacha em Luga. – Ela olhou para ele. – Os tomates são frescos, e o ar matinal tem um cheiro tão puro.
– Sim! – Alexander exclamou, como se ela tivesse dito a palavra mágica: puro.
Ela acrescentou:
– Eu não gosto de estar amontoada o tempo todo. Ter um pouco de... – Ela silenciou. Não conseguia encontrar a palavra certa.
Pernas esticadas, Alexander virou-se um pouco mais para ela, olhando direto no seu rosto.
– Você sabe o que quero dizer? – Tatiana disse timidamente.
Ele concordou.
– Sim, eu sei, Tania.
– Então devemos nos alegrar porque os alemães nos atacaram?
– Isso é como trocar Satanás pelo Diabo.
Tatiana balançou a cabeça e disse:
– Não deixe que ouçam você falando assim. – Mas ela manifestava uma curiosidade juvenil. – Qual deles é o Satanás?
– Stálin. Ele é ligeiramente menos louco.
– Você e o meu avô – Tatiana murmurou.
– O quê? Seu avô concorda comigo? – Alexander sorriu.
– Não. – Ela retribuiu o sorriso. – Você concorda com o meu avô.
– Tania, não se engane por um minuto. Hitler talvez seja visto por algumas pessoas, especialmente na Ucrânia, como o libertador do jugo de Stálin, mas logo se verá como ele vai destruir tais ilusões. Da mesma forma como as destruiu na Áustria, Checoslováquia e Polônia. De todo modo, terminada a guerra, qualquer que seja o resultado para o mundo, sinto que aqui na União Soviética vamos voltar ao mesmo lugar. – Alexander batalhou com as palavras. – Você tem sido... protegida pela sua família? – ele perguntou preocupado. – De como as coisas estão acontecendo?
De novo pressionando os dedos no ombro dele, Tatiana disse:
– Na realidade, não temos tido muita experiência pessoal com isso. – Ela não gostava de falar sobre o assunto. Assustava-se um pouco com isso. – Certa ocasião, eu soube que alguém no trabalho de papai fora preso. E um homem e sua filha no edifício sumiram alguns anos atrás, e o Sarkovs vieram morar no lugar deles. – Ela meditou suas palavras. Seu pai afirmava que os Sarvoks, cáusticos e pesadões, eram informantes da NKVD. – Sim, de alguma forma, tenho sido protegida.
– Mas eu não – disse Alexander pegando um cigarro e o isqueiro. – Nem um pouco. E assim não posso deixar de pensar em meus pais, que aqui vieram com tal esperança e foram esmagados pelas crenças por eles nutridas desde o nascimento.
Ele acendeu o cigarro.
– Você não se importa que eu fume?
– De forma alguma – Tatiana disse observando-o. Ela gostava de seu rosto. – O que houve? – ela perguntou. – Viver na América não deve ser tão bom assim, se um americano, como o seu pai, podia renunciar ao seu país.
Alexander não falava enquanto fumava o cigarro inteiro.
– Deixe-me contar exatamente o que houve: o Comunismo na América nos anos 1920, a Década Vermelha, estava bem na moda entre os ricos.
O pai de Alexander, Harold Barrington, queria que ele fosse membro do grupo juvenil comunista Os Jovens Pioneiros da América na sua cidade, quando o menino fez dez anos.
O grupo tinha uma afiliação muito pequena, Harold dizia, e era preciso reforçá-lo. Alexander recusou-se. Ele já integrava um grupo de escoteiros, disse ao seu pai. Barrington era uma pequena cidade no Massachusetts oriental, assim denominada em homenagem aos Barringtons, que lá viviam desde os tempos de Benjamin Franklin. O pai de Alexander lutara na Guerra Revolucionária. No século XIX, os Barringtons produziram quatro prefeitos, e três dos ancestrais de Alexander serviram e morreram na Guerra Civil.
O pai de Alexander queria deixar sua própria marca no clã dos Barringtons. Ele queria trilhar seu próprio caminho. A mãe de Alexander, Gina, veio da Itália na virada do século, quando tinha dezoito anos, adotando então o modo de vida americano. Mudou o seu nome para Jane e casou-se com Harold Barrington aos dezenove, a isso entregou-se com todo o seu coração. Ela deixara sua família na Itália para também trilhar seu próprio caminho.
A princípio, Jane e Harold foram radicais, depois social-democratas, e então comunistas. Eles viviam num país que lhes permitia isso, e abraçaram o comunismo com todo fervor. Mulher moderna e progressista, Jane Barrington não queria ter filhos, e Margaret Sanger, fundadora da Paternidade Planejada, disse-lhe que não precisava.
Depois de onze anos como radical ao lado de Harold, Jane decidiu ter filhos.
Custou-lhe cinco anos de abortos ter uma criança – Alexander, nascido em 1919, quando ela tinha trinta e cinco anos, e Harold, trinta e sete.
Alexander viveu e respirou a doutrina comunista desde a época em que já podia entender inglês. No conforto de seu lar americano, rodeado por uma lareira e cobertores de lã, Alexander pronunciava palavras como “proletariado”, “igualdade”, “manifesto”, “leninismo”, antes de ser maduro o suficiente para saber o seu significado.
Quando ele tinha onze anos, seus pais decidiram pôr em prática as palavras que tanto proferiam. Com frequência, Harold Barrington era preso ao participar de demonstrações pouco pacíficas nas ruas de Boston, e finalmente ele foi à União Americana das Liberdades Civis e pediu-lhes ajuda para conseguir asilo voluntário na União Soviética. Para tanto, ele estava disposto a renunciar à sua cidadania americana e mudar para a União Soviética, onde poderia ser parte do povo. Sem classes sociais. Sem desemprego. Sem preconceito. Sem religião. Os Barringtons não apreciavam essa parte da não religião, mas eles eram progressistas, gente intelectual, que queria e podia deixar Deus de lado para ajudar a construir o grande experimento comunista.
Harold e Jane Barrington entregaram seus passaportes e, logo que chegaram a Moscou, foram recebidos e tratados como membros da realeza. Só Alexander parecia notar o mau cheiro dos banheiros, a falta de sabonete, os mendigos que, impudentes, pés envoltos em trapos, se amontoavam do lado de fora das janelas dos restaurantes, esperando que os pratos sujos fossem levados à cozinha e assim pudessem comer os restos. Tão deprimente era a miséria dos alcoólatras nas cervejarias onde Harold levava o filho que Alexander finalmente parou de ir. A ele não importava o quanto queria estar com o pai.
No hotel residencial, onde estavam hospedados, eles recebiam tratamento especial, junto com outros expatriados da Inglaterra, Itália e Bélgica.
Harold e Jane obtiveram seus novos passaportes soviéticos, dessa forma cortando de vez seus laços com os Estados Unidos. Na condição de menor, Alexander só teria seu passaporte soviético quando fizesse dezesseis anos e tivesse que se registrar para o serviço militar obrigatório.
Alexander foi para a escola, aprendeu russo, fez muitos amigos. Aos poucos, ele se adaptava à sua nova vida, quando, em 1935, os Barringtons foram informados de que teriam que deixar suas acomodações gratuitas e encontrar outra moradia. O governo soviético não podia mais mantê-los. O problema é que eles não conseguiam encontrar um quarto em Moscou. Nem um quarto simples em apartamentos comunitários. Mudaram-se para Leningrado e, depois de semanas indo de um comitê de moradia a outro, finalmente encontraram dois quartos num sórdido edifício no lado sul do rio Neva. Harold conseguiu trabalho numa fábrica em Izhorsky. Jane passou a beber mais. Alexander mantinha a cabeça baixa e se concentrava na escola.
Tudo terminou em maio de 1936, quando Alexander fez dezessete anos.
Jane e Harold foram presos da forma mais inesperada, mas também a mais comum. Certo dia ela não voltou para casa do mercado.
Tudo o que Harold queria era de algum jeito mandar uma mensagem a Alexander, mas eles haviam trocado amargas palavras e havia duas noites que ele não via o rapaz.
Quatro dias depois do desaparecimento de sua mulher, houve uma leve batida na porta de Harold, às três da manhã.
O que Harold não sabia era que representantes do Comissariado do Povo para Assuntos Internos já haviam levado Alexander.
Um homem chamado Leonid Slonko era o interrogador de Jane na prisão.
– Que coisas engraçadas a senhora diz, Camarada Barrington – ele disse a ela. – Como eu podia saber que a senhora iria dizê-las?
– O senhor nunca me conheceu – ela disse.
– Conheci milhares como a senhora.
Realmente, milhares, ela queria dizer. E por acaso são milhares de nós que vêm dos Estados Unidos?
– Sim, milhares – confirmou Slonko. Como se ela tivesse dito o que pensou em dizer. – Eles vêm todos. Para melhorar a nossa sociedade, para viver a vida livre do capitalismo. O comunismo exige um sacrifício, a senhora sabe disso. É preciso deixar de lado sua estética burguesa e nos olhar como uma nova mulher soviética reformada, não como uma americana.
– Eu deixei de lado minha estética burguesa – Jane disse. – Abandonei meu lar, meu emprego, meus amigos, minha vida inteira. Vim aqui e comecei uma nova vida porque acreditava. Tudo o que o senhor tinha a fazer era não me trair.
– E como fizemos isso? Alimentando a senhora? Vestindo-a? Dando-lhe um emprego? Um lugar para morar?
– Então por que estou aqui? – ela perguntou.
– Por que foi a senhora quem nos traiu – disse Slonko. – Não podemos tolerar sua desilusão enquanto tentamos reconstruir a raça humana para benefício de toda a humanidade. Quando tentamos erradicar a pobreza e sofrimento deste mundo.
Slonko acrescentou:
– E me permita perguntar-lhe, Camarada Barrington, quando a senhora manifestou desprezo por nosso país ao visitar a embaixada americana em Moscou, semanas atrás, talvez tenha esquecido que rompeu sua lealdade com os Estados Unidos ao advogar a derrubada da democracia, não? Por estar ligada à Frente Popular? Por renunciar à sua cidadania americana? A senhora não é uma cidadã americana, eles não se importam se a senhora vive ou morre. – Slonko riu. – Que bobos são vocês. Vêm aqui de seus países, caluniando os seus governos, os seus costumes, seus modos de vida que lhes parecem repulsivos, mas ao primeiro sinal de problema, a quem vocês procuram? – Slonko bateu na mesa. – Tenha certeza, Camarada, que o governo americano não tem o menor interesse na senhora agora. Eles se esqueceram de quem é a senhora. Os seus registros, os do seu marido e os do seu filho foram lacrados pelo Ministério da Justiça americano e colocados num cofre. Vocês agora nos pertencem.
Era verdade. Jane fora à embaixada americana em Moscou duas semanas antes de ser presa. Ela pegara o trem com Alexander. Deve ter sido seguida. Foi atendida com frieza na recepção: os americanos não tinham nenhum interesse em ajudá-la ou ao seu filho.
– Fui seguida? – ela perguntou a Slonko.
– O que a senhora acha? – ele disse. – A senhora demonstrou que a sua lealdade é instável. Estávamos certos ao segui-la. Certos em não confiar na senhora. Agora será julgada por traição, como reza o Artigo 58 da Constituição Soviética. A senhora sabe disso também, sabe o que vem pela frente.
– Sim – ela disse. – Só gostaria que viesse logo.
– De que serviria isso? – Slonko era um homem grandalhão, imponente, já de idade avançada, mas ainda parecendo forte e hábil. – A senhora entende como está encarando o governo soviético. A senhora rompeu com o país onde nasceu e depois cuspiu no país que lhe deu guarida e à sua família. Vocês estavam indo muito bem na América, bem mesmo, vocês, os Barringtons, de Massachusetts, até que decidiram mudar a sua vida. Aqui vieram. Bom, dissemos. Tínhamos a convicção de que vocês eram espiões. Nós os observamos por precaução, não por vingança. Nós os observamos e então queríamos que vocês encontrassem o seu próprio caminho. Nós prometemos cuidar de vocês, mas para tanto precisávamos de sua eterna lealdade. O Camarada Stálin espera, não, exige nada menos. A senhora foi à embaixada porque mudou de ideia a nosso respeito, da mesma forma que mudou de ideia sobre a América. Eles disseram: lamentamos, mas não a conhecemos. Nós dissemos: lamentamos, mas não a queremos. Então o que lhe resta fazer? Para onde ir? Eles não vão aceitá-la, nós não queremos aceitá-la. A senhora nos mostrou que não é de confiança. E agora?
– Agora a morte – disse Jane. – Mas eu lhe suplico que poupe o meu único filho. – Ela abaixou a cabeça. – Ele era só um menino. Nunca renunciou sua cidadania americana.
– Renunciou quando se registrou no Exército Vermelho e se tornou um cidadão soviético – disse Slonko.
– Mas o Ministério de Relações Exteriores dos Estados Unidos não o tem fichado como subversivo. Ele nunca entrou no Partido Comunista americano, ele não faz parte disso... eu lhe suplico.
– Ora, Camarada – Slonko disse –, ele é o mais perigoso de todos vocês.
Jane viu o marido mais uma vez, antes de apresentar-se em um tribunal presidido por Slonko. Depois de um julgamento sumário, foi posta na frente de um pelotão de fuzilamento, os olhos vendados.
Até ser preso, a preocupação de Harold Barrington com Alexander não era maior que o seu desespero de ver os seus sonhos irem ao chão.
Ele estivera preso antes; o encarceramento não o incomodava. Estar preso por causa de suas crenças era afinal um símbolo de honra, e ele usara esse símbolo com muito orgulho na América.
– Estive em algumas das melhores prisões de Massachusetts – Harold costumava dizer. – Na Nova Inglaterra ninguém aguentou mais do que eu, por conta das minhas crenças.
A União Soviética acabara sendo uma terra de refeitórios públicos. O comunismo não funcionava bem na Rússia, como todo mundo esperava, por que era a Rússia. Teria funcionado muito bem na América, Harold pensava. Lá era o lugar para o comunismo. Harold queria trazê-lo para casa.
Casa.
Ele não podia acreditar que ainda dizia isso, casa.
A União Soviética estava bem e era boa, mas não era a sua casa, os comunistas soviéticos sabiam disso. Eles não mais o protegiam, não importa o quanto recusou-se a acreditar nisso. Ele era agora o inimigo do povo. Ele entendia.
Harold ridicularizava a América. Ele desprezava a América por sua superficialidade e falsa moralidade, ele odiava a ética individualista e acreditava que a ideia de democracia era adotada somente por um tipo especial de idiota. Agora, porém, que ele estava sentado numa cela de concreto soviética, Harold queria ver o seu filho de volta a essa América, a qualquer custo, e a qualquer preço.
A União Soviética não podia salvar Alexander. Apenas a América poderia fazer isso.
O que eu fiz ao meu filho? Harold pensava. O que deixei para ele? Harold não conseguia lembrar mais o que era o comunismo. Tudo o que via era a expressão admirada de Alexander quando ele subiu a um púlpito em Greenwich, Connecticut, berrando injúrias, numa tarde de sábado em 1927.
Quem é o menino que chamo de Alexander? Se eu não sei, como pode ele saber? Eu encontrei o meu caminho, mas como ele encontrará o seu num país que não o quer?
Tudo o que queria Harold durante o seu ano de intermináveis interrogatórios, negativas, apelos e confusão era ver Alexander uma vez mais antes de morrer. Ele apelou ao sentimento humanitário de Slonko.
– Não conte com a minha humanidade – Slonko disse. – Não tenho nenhuma. Além do mais, humanidade não tem nada a ver com Comunismo, com a criação de uma ordem social mais elevada. Isso, Camarada, requer disciplina, perseverança e certa postura desapegada.
– Não somente desapegada – disse Harold –, mas cortada.
– Seu filho não virá visitá-lo – Slonko disse. – Seu filho está morto.
Sem palavras, Tatiana sentava junto de Alexander, ambas mãos acariciando o seu braço para cima e para baixo.
– Sinto muito – ela sussurrou, louca de vontade de tocar o seu rosto, mas incapaz de fazê-lo. – Alexander, você me ouve? Sinto muito.
– Ouço, tudo bem, Tania – ele disse levantando. – Meus pais foram embora, mas eu ainda estou aqui. Isso já é alguma coisa.
Ela não podia sair do banco.
– Alexander, espere, espere. Como você veio de Barrington a Belove? E o que aconteceu aos seus pais? Você nunca mais os viu?
Ele olhou o relógio.
– O que acontece ao tempo quando estou com você? – ele murmurou. – Preciso correr, deixamos isso para outro dia. – Deu a mão a Tatiana para que ela se levantasse. – Outro dia.
Angustiou-se seu coração. Haveria outro dia, então? Devagar saíram do parque.
– Você contou alguma coisa a Dasha? – Tatiana perguntou.
– Não, Tatiana, não – Alexander respondeu sem olhar para ela.
Ela caminhava suavemente ao lado dele.
– Fico contente que você me contou – ela disse por fim.
– Sim, eu também – disse Alexander.
– Prometa que algum dia vai me contar o resto.
– Algum dia farei essa promessa. – Ele sorriu.
– Não posso acreditar que você seja da América, Alexander. É para mim uma novidade.
Ela corou quando disse isso. Ele se inclinou e beijou-a suavemente no rosto. Seus lábios eram cálidos e sua escassa barba roçava.
– Cuidado ao voltar para casa – Alexander disse.
Doía o coração de Tatiana. Ela concordou, observando-o ir embora com um aparente sentimento de desespero.
E se ele se virasse e a visse? Ela devia parecer uma boba, ali em pé, olhando-o. Antes que ela pudesse pensar outra coisa, Alexander virou-se. Surpreendida, ela tentou se mexer, as pernas lentas traíam a sua confusão. Ele a cumprimentou. O que ele deve pensar me vendo assim a observá-lo, enquanto ele vai embora? Ela desejou ser mais atrevida e jurou em silêncio que iria conseguir. E então ela levantou a mão e o cumprimentou de volta.
4
Dasha estava no telhado. Cada edifício já havia designado seus plantonistas de ataques aéreos, primeiro limpando os detritos dos sótãos, depois alternando-se em seus postos, de olho em aviões alemães.
Dasha sentava sobre o forro de papel do telhado, fumando um cigarro e falando alto com os dois jovens irmãos Iglenko, Anton e Killiu. Junto deles havia baldes de água e pesados sacos de areia. Tatiana queria sentar ao lado da irmã, mas não podia.
Dasha levantou-se e disse:
– Ouça, estou indo. Você fica bem aqui?
– Claro, Dasha, o Anton vai me proteger. – Anton era o amigo mais chegado de Tatiana.
Dasha tocou os cabelos da irmã.
– Não fique aqui em cima muito tempo. Está cansada? Você chega tão tarde. Sabíamos que Kirov seria muito longe para você. Por que não consegue um emprego com Papai? Você estaria em casa em 15 minutos.
– Não se preocupe, Dash, estou bem. – Ela sorriu como se quisesse provar isso.
Depois que Dasha foi embora, Anton Iglenko tentou animar Tatiana, mas ela não queria falar com ninguém. Só queria pensar um minuto, uma hora, um ano. Tatiana precisava descobrir a si mesma, o que estava sentindo.
Finalmente ela cedeu e entrou com Anton no vertiginoso jogo geográfico. Colocou as mãos sobre os olhos enquanto Anton a girava, parando de repente, e ela tinha que apontar na direção da Finlândia. Na direção de Krasnodar. Em que rumo estavam os Urais? E a América?
Tatiana então girou Anton.
Eles brincaram muito na tentativa de achar o máximo de lugares e, quando terminaram, contaram seus acertos.
Como vencedora, Tatiana podia pular para cima e para baixo.
Hoje à noite Tatiana não pulou para cima e para baixo. Sentou-se, pesadona, no telhado. Só conseguia pensar em Alexander e na América.
Anton, um rapaz loiro e magricela, disse:
– Não fique tão triste. É tudo tão excitante.
– É mesmo? – ela disse.
– Ora, sim, em dois anos poderei me alistar. O Petka foi embora ontem.
– Embora para onde?
– Para o front. – Ele riu. – Se você ainda não notou, Tania, estamos em guerra.
– Eu notei, sim, tudo bem – disse Tatiana, um pouco trêmula. – Você sabe alguma coisa do Volodya? – Volodya estava com Pacha em Tolmachevo.
– Não. Kirill e eu queríamos ter ido. Kirill está ansioso para fazer dezessete. Ele diz que o Exército vai aceitá-lo com dezessete.
– O Exército vai aceitá-lo com dezessete? – disse Tatiana, levantando.
– Tania, alguém vai aceitar você aos dezessete? – Anton sorriu.
– Acho que não, Anton – ela respondeu.
– Nos vemos amanhã. Diga à sua mãe que eu tenho um pouco de chocolate para ela. Que pode vir amanhã à noite.
Tatiana desceu. Seus avós liam em silêncio no sofá. A pequena lâmpada estava acesa. Ela se acomodou entre os dois, quase no colo deles.
– O que há, querida? – disse seu avô. – Não tenha medo.
– Deda, não tenho medo, só estou muito, muito confusa. – E, ela pensou, não tenho com quem falar.
– É sobre a guerra?
Tatiana ponderou. Contar-lhes estava fora de cogitação. Em vez disso, ela perguntou:
– Deda, você sempre me disse: Tania, há tanta coisa pela sua frente. Seja paciente com a vida. Você ainda se sente assim?
Seu avô não respondeu na hora, e ela sentiu que tinha a sua resposta.
– Oh, Deda – ela disse com tristeza.
– Oh, Tania – ele disse, colocando o seu braço protetor sobre a neta, enquanto a avó acariciava o seu joelho. – As coisas mudaram da noite para o dia neste mundo.
– Assim parece – disse Tatiana.
– Talvez você devesse ser menos paciente.
– Foi o que eu pensei – ela concordou. – De todo modo, acho que paciência é uma virtude superestimada.
– Mas não seja menos moral – disse Deda –, nem menos correta. Lembre-se das três questões que eu lhe disse para perguntar a você mesma para saber quem é você.
Ela não queria que Deda a lembrasse. Não tinha interesse algum em se fazer aquelas perguntas hoje à noite.
– Deda, nesta família deixamos a correção para você – Tatiana disse com um vago sorriso. – Nada fica para nós.
Seu avô balançou a cabeça de espessos cabelos grisalhos e disse:
– Tania, isso é tudo que fica.
Deitada em silêncio na cama, Tatiana pensou em Alexander. Ela pensava não apenas no fato de ele ter lhe contado sua vida, mas de tê-la afogado nela. Da mesma forma que ele próprio estava afogado naquilo tudo. Enquanto o ouvia, Tatiana havia parado de respirar, a boca ligeiramente aberta, para que assim Alexander pudesse transmitir a sua tristeza – de suas palavras, de seu próprio respirar – para dentro dos pulmões de Tatiana. Ele precisava de alguém para suportar o peso de sua vida.
Precisava dela.
Tatiana esperava estar pronta.
Ela não podia pensar em Dasha.
5
A caminho de Kirov na manhã de quarta-feira, Tatiana viu bombeiros construindo novos depósitos de água e instalando o que pareciam ser hidrantes de incêndio. Será que Leningrado esperava tantos incêndios?, ela pensou. Será que as bombas alemãs iam incinerar a cidade? Ela não podia imaginar isso. Era tão inimaginável como a América.
À distância, a grande Catedral e o Mosteiro Smolny começavam a ganhar forma e figura irreconhecíveis. Redes de camuflagem eram estendidas sobre a construção por operários, pintadas de verde, marrom e cinza. O que fariam os trabalhadores para cobrir o mais difícil, embora mais fácil de se detectar do ar: os pináculos da Catedral de São Pedro e São Paulo e o Almirantado? Por enquanto, permaneciam em plena e luminosa vista.
Antes de sair do trabalho, Tatiana esfregou as mãos e o rosto até que brilhassem, depois ficou na frente do espelho junto ao seu armário e deu uma longa escovada nos cabelos, deixando-os longos e soltos. Naquela manhã, ela vestia uma saia estampada de flores e uma blusa azul de mangas curtas e botões brancos. Enquanto se examinava no espelho, não conseguia decidir – tinha doze ou treze anos? Era a irmã menor de quem? Ah, sim, de Dasha. Por favor, esteja à minha espera, ela pensou antes de sair apressada.
Apressou-se rumo ao ponto de ônibus e lá estava Alexander, quepe nas mãos esperando por ela.
– Gosto do seu cabelo, Tania – ele disse sorrindo.
– Obrigada – ela murmurou. – Eu gostaria de não cheirar como se tivesse trabalhado o dia inteiro com petróleo. Petróleo e graxa.
– Oh, não – ele disse, revirando os olhos. – Você não estava fazendo bombas outra vez?
Ela riu.
Eles olharam a multidão cansada e carrancuda que esperava o ônibus, entreolharam-se e juntos disseram: – Bonde? – E concordaram, atravessando a rua.
– Pelo menos ainda estamos trabalhando – Tatiana disse num tom ligeiro. – O Pravda diz que as coisas não vão muito bem com a questão do emprego na sua América. Emprego pleno aqui na União Soviética, Alexander.
– Sim – Alexander disse, inclinando-se sobre ela enquanto andavam. – Não há desemprego na União Soviética ou na prisão Dartmoor, e pela mesma razão.
Sorrindo, Tatiana quis chamá-lo de subversivo, mas não o fez.
Enquanto esperavam pelo bonde, Alexander disse:
– Eu trouxe uma coisa para você. – E deu-lhe um pacotinho embrulhado em papel marrom. – Eu sei que o seu aniversário foi na segunda-feira, mas eu não pude antes...
– O que é?
Surpreendida, ela pegou o pacotinho. Um pequeno caroço brotou em sua garganta.
Ele abaixou a voz e disse:
– Temos um costume na América. Quando você ganha presentes no seu aniversário, espera-se que você abra-os e agradeça.
Tatiana, nervosa, olhou o presente.
– Obrigada.
Ela não estava acostumada a presentes. Presentes embrulhados? Jamais, mesmo que viessem embrulhados somente em papel marrom.
– Não. Abra primeiro. Depois agradeça.
Ela sorriu.
– O que eu faço? Tiro o papel?
– Sim. Rasgue.
– E depois?
– Depois jogue fora.
– O presente inteiro ou só o papel?
Ele disse devagar:
– Só o papel.
– Mas você fez um embrulhinho tão bonito. Porque jogá-lo fora?
– É só papel.
– Se é só papel, porque você fez o embrulho?
– Por favor, pode abrir o meu presente? – disse Alexander.
Ansiosa, Tatiana rasgou o papel. Dentro estavam três livros: um robusto volume de Aleksandr Pushkin, denominado O Cavaleiro de Bronze e Outros Poemas, e dois livros menores, um de um autor que ela nunca ouvira falar, chamado John Stuart Mill, intitulado Sobre a Liberdade. Era em inglês. O terceiro livro era um dicionário de inglês-russo.
– Inglês-russo? – Tatiana disse sorrindo. – Ajuda menos do que você imagina. Eu não falo inglês. Esse livro era seu quando você chegou aqui?
– Sim – ele disse. – E sem ele você não vai conseguir ler o Mill.
– Muito obrigada pelos três, ela disse.
– O Cavaleiro de Bronze era da minha mãe – disse Alexander. – Ela me deu poucas semanas antes de ser presa.
Tatiana não sabia o que dizer.
– Eu amo Pushkin – disse bem baixinho.
– Eu pensei isso. Todo russo ama Pushkin.
– Você sabe o que o poeta Maikov escreveu sobre Pushkin?
– Não – Alexander respondeu.
Perturbada pelo seu olhar, Tatiana tentou lembrar as frases.
– Ele disse... Vejamos... “Seus sons não parecem feitos à moda deste mundo... como se impregnada com o seu imortal fermento... Toda matéria terrena, emoções, angústia, paixão, foi transmutada à matéria celestial.”
– “Toda matéria terrena, emoções, angústia, paixão, foi transmutada à matéria celestial” – Alexander repetiu.
Tatiana corou e olhou a rua. Onde estava esse bonde?
– Você já leu Pushkin? – ela perguntou numa voz bem fraquinha.
– Sim, eu já li Pushkin – Alexander respondeu, pegando o papel de embrulho e jogando-o fora. – O Cavaleiro de Bronze é o meu poema favorito.
– O meu também! – ecoou Tatiana, olhando para ele admirada. – “Houve um tempo, nossas lembranças mantêm seus horrores frescos e próximos, deste relato que me faz sofrer, para contar a vocês, amáveis leitores, uma história que será opressiva.”
– Tania, você cita Pushkin como uma autêntica russa.
– Eu sou uma autêntica russa.
O bonde chegou.
No Museu Russo, Alexander perguntou:
– Quer andar um pouquinho?
Tatiana não podia dizer não, mesmo se quisesse.
Mesmo se quisesse.
Caminharam rumo ao Campo de Marte.
– Quando você trabalha? – ela perguntou. – Dimitri está numa missão em Karelia. Você não precisa fazer nada?
– Sim, eu fico na retaguarda – Alexander disse com um sorriso – e ensino os outros soldados a jogar pôquer.
– Pôquer?
– É um jogo de cartas americano. Algum dia talvez eu ensine você a jogar. Além do mais, fui designado como o oficial a cargo de todo o recrutamento e treinamento do Exército Voluntário do Povo. Estou de serviço das sete às seis. Dou plantão de sentinela cada duas noites, das dez à meia-noite. – Fez uma pausa.
Tatiana sabia. Isso deve haver sido quando Dasha foi vê-lo.
Alexander continuou rápido:
– Graças a tudo isso tenho folga nos fins de semana. Não sei quanto tempo isso vai durar. Desconfio que não muito. Estou aqui com a guarnição de Leningrado para proteger a cidade. Essa é a minha função. Quando não houver mais homens no front, então eu serei enviado para lá.
Mas então ficaríamos sem você, ela pensou. – Aonde vamos?
– Ao Letniy Sad, Jardim de Verão. Mas espere. – Alexander parou não longe das barracas. Do outro lado da rua, ladeando o Campo de Marte, havia alguns bancos. – Por que você não senta, e eu vou buscar um jantar para nós?
– Jantar?
– Sim, por seu aniversário. Teremos um jantar de aniversário.
Ele ofereceu-lhe trazer um pouco de pão e carne.
– Talvez eu possa achar até um pouco de caviar. – Ele sorriu. – Você, Tania, como uma autêntica russa, gosta de caviar, não?
– Hum! – ela disse. – E os fósforos? – ela perguntou, tentando não parecer provocadora, não sabia como ele ia reagir. – Não vou precisar de alguns fósforos, talvez? – Lembrando a loja Voentorg.
– Se você precisa acender alguma coisa, acendemos na chama eterna no Campo de Marte. Passamos por ela domingo passado, lembra?
Ela lembrava.
– Não posso tocar aquela ousada chama Bolchevique – ela disse, se afastando. – Isso é quase um sacrilégio.
Alexander riu.
– Às vezes, nela cozinhamos shish kebabs, nas nossas noites de folga. Isso é um sacrilégio? Além do mais, eu pensei que não havia Deus.
Tatiana olhou para ele, mas não por muito tempo. Ele a provocava?
– É isso mesmo. Não há Deus.
– Claro que não – ele disse. – Nós estamos na Rússia comunista, somos todos ateus.
Tatiana lembrou de uma piada.
– “O Camarada Um diz ao Camarada Dois: Como está a safra de batatas deste ano? O Camarada Dois responde: Muito boa, muito boa. Com a ajuda de Deus, a safra chegará até os pés Dele. O Camarada Um diz: Camarada! O que você está dizendo, você sabe que o Partido diz que Deus não existe. O Camarada Dois diz: Tampouco existem batatas”.
Alexander riu.
– Você tem muita razão sobre as batatas. Não há nenhuma. Agora, vá – ele disse. – Espere por mim no banco. Volto logo.
Ela atravessou a rua e afundou-se no banco. Alisou os cabelos, enfiou a mão na bolsa de lona, acariciou os livros que ele lhe dera, e sentiu-se inundada com...
O que fazia? Estava tão cansada, não estava pensando. Alexander não devia estar aqui com ela.
Ele devia estar aqui com Dasha. Eu sei disso com certeza. Tatiana pensou: porque se Dasha me pergunta onde estive, não terei como lhe dizer.
Tatiana levantou-se e começou a afastar-se quando ouviu Alexander chamando-a.
– Tania!
Ele se aproximou, sem fôlego, carregando duas bolsas de papel.
– Aonde você vai?
Ela não precisou dizer nada. Ele viu o seu rosto.
– Tania – Alexander disse amavelmente. – Eu prometo, jantamos e levo você para casa, tudo bem? – Com as bolsas numa mão, ele colocou a outra nos cabelos de Tatiana.
– É pelo seu aniversário. Anime-se.
Ela não podia ir embora, e sabia disso. Será que Alexander sabia também? Isso era pior ainda. Saberia ele como ela se sentia amarrada, que indescritível fluxo de sentimentos e confusão?
Eles cruzaram o Campo de Marte rumo ao Jardim de Verão. Rua abaixo o rio Neva reluzia na luz do sol, embora fossem quase nove horas da noite.
O Jardim de Verão era o lugar errado para eles.
Alexander e Tatiana não conseguiam encontrar um banco vazio entre as longas veredas, as estátuas gregas, os enormes olmos e os entrelaçados amantes como galhos de rosas enroscados.
Enquanto andavam, Tatiana mantinha a cabeça baixa.
Finalmente encontraram um ponto perto da estátua de Saturno. Não era o lugar ideal para sentar, Tatiana pensou, pois a boca de Saturno estava toda aberta e nela ele enfiava uma criança com um cuidado delirante.
Alexander trouxera um pouco de vodka, um pouco de presunto Bolonha e pão branco. Trouxera também um pote de caviar negro e uma barra de chocolate. Tatiana estava faminta. Alexander disse a ela que pegasse todo o caviar. A princípio, ela protestou, mas sem muito vigor. Depois que havia comido mais da metade, recolhendo o caviar com uma colherinha, passou a ele o resto.
– Por favor – ela disse. – Termine. Faço questão.
Ela tomou um gole de vodka direto da garrafa e tremeu toda; odiava vodka, mas não queria que ele soubesse como ela era infantil. Alexander riu ao vê-la tremer, pegou a garrafa e tomou um trago.
– Ouça, você não precisa beber isso. Eu trouxe a vodka para comemorar o seu aniversário, mas esqueci os copos.
Ele se espalhara sobre o banco e sentava bem perto dela. Se Tatiana respirasse, uma parte sua tocaria uma parte dele. Tatiana estava muito inebriada para falar, enquanto seus intensos sentimentos caíam fundo no poço luminoso dentro dela.
– Tania? – Alexander disse todo gentil. – Tania, a comida estava boa?
– Sim, boa. – Ela pigarreou e disse: – Quero dizer, muito boa, obrigada.
– Você quer mais um pouco de vodka?
– Não.
Ela evitou o quanto pôde os olhos sorridentes de Alexander quando ele lhe perguntava:
– Alguma vez você bebeu muita vodka?
– Ahn – ela assentiu, sem levantar a cabeça. – Eu tinha dois anos. Engoli meio litro ou coisa parecida. Fui levada à ala infantil do Hospital Greshesky.
– Dois? Depois não? – As pernas de Alexander tocaram sem querer as pernas de Tatiana.
Ela de novo corou.
– Não, desde então não mais.
Mexeu a perna e mudou de assunto, voltando aos alemães. Ela o ouviu suspirar e depois falar um pouco sobre o que acontecia na guarnição. Mas quando era Alexander quem falava, Tatiana podia contemplá-lo, os seus olhos percorrendo o rosto dele. Ela notou sua barba escura e queria perguntar se alguma vez ele se barbeava, mas concluiu que isso era muito atrevido e não se arriscou. A barba era muito pronunciada ao redor da boca, onde a negra moldura do cabelo facial fazia os seus lábios ainda mais vívidos. Ela queria lhe perguntar sobre o seu dente lateral ligeiramente lascado, mas também não disse nada. Ela queria lhe pedir que tirasse de seus olhos de sorvete aquele toque suave, sorridente.
Ela queria retribuir-lhe o sorriso.
– Então, Alexander...Você ainda fala inglês?
– Sim, eu falo inglês. Não pratico muito, não falo desde que minha mãe e meu pai... – ele interrompeu.
Mexendo a cabeça, Tatiana disse:
– Não, eu sinto muito. Não tive a intenção... só queria saber se você conhecia algumas palavras em inglês que pudesse me ensinar.
Os olhos de Alexander brilharam tanto que Tatiana sentiu como se todo o sangue de seu corpo subisse ao seu rosto.
– Tania, que palavras? – ele perguntou devagar. – Você gostaria que eu lhe ensinasse inglês?
Ela não podia responder com medo de gaguejar.
– Eu não sei – ela finalmente conseguiu: – Que tal vodka?
– Ah, bom, isso é fácil – ele disse. – É vodka – e riu.
Alexander tinha uma bela risada. Sincera, contente, profunda risada masculina, começando no seu peito, e contagiante, terminando no dela.
Ele pegou a garrafa de vodka e abriu a tampa.
– Ao que brindamos? – ele perguntou, levantando a garrafa. – É o seu aniversário, um brinde a você. Ao aniversário do ano que vem. Salut. Espero que seja bom.
– Obrigada. Bebo um golinho então – ela disse, pegando a garrafa de volta. – Gosto de comemorar meu aniversário com Pasha ao meu lado.
Sem responder aos comentários dela, Alexander afastou a garrafa, olhando a estátua de Saturno.
– Seria melhor outra estátua, você não acha? – ele perguntou. – Minha comida não desce, só de olhar Saturno devorar inteiro um de seus próprios filhos.
– Onde mais você gostaria de sentar? – perguntou Tatiana, chupando um pequeno pedaço de chocolate.
– Eu não sei. Talvez perto de Marco Antonio lá adiante. – Ele olhou ao redor. – Você acha que há uma estátua de Afro?
– Podemos ir embora? – Tatiana disse, levantando de repente. – Preciso andar para digerir toda essa comida. – O que ela fazia ali?
Quando eles deixavam o parque e caminhavam rumo ao rio, Tatiana queria perguntar se alguma vez ele foi chamado por outro nome, que não fosse Alexander. Era uma pergunta imprópria, e ela não a fez. Uma caminhada ao longo do dique de granito numa tarde que desaparecia teria que ser boa o suficiente. Ela também não podia perguntar por qual nome cativante, afetuoso, ele gostaria de ser chamado.
– Você quer sentar? – Alexander perguntou depois de um tempo.
– Estou bem – Tatiana respondeu. – A não ser que você queira sentar.
– Sim, vamos sentar.
Eles sentaram em um dos bancos de frente para o rio Neva. Do outro lado do rio estava o pináculo dourado da Catedral de São Pedro e São Paulo. Alexander ocupou quase a metade do assento, suas longas pernas abertas, seus braços sobre a parte de trás do banco. Tatiana ajeitou-se com cuidado, não deixando que sua perna tocasse a dele.
Alexander tinha um jeito descontraído, despreocupado. Ele se mexia, sentava, descansava e relaxava, como se estivesse completamente alheio ao efeito que causava a uma tímida menina de dezessete anos.
Todos os seus confiantes membros projetavam uma crença sanguínea em seu próprio lugar no universo. Isso tudo me foi dado, ele parecia dizer. Meu corpo, meu rosto, minha altura, minha força. Não pedi isso, não fiz isso, não construí isso. Não lutei por isso.
Isso é um presente pelo qual agradeço todos os dias quando lavo e penteio o meu cabelo, um presente do qual eu não abuso nem reflito a respeito durante o meu dia. Não estou orgulhoso disso, tampouco me sinto humilde por isso. Não me faz arrogante ou vaidoso, mas tampouco falsamente modesto ou dócil.
Eu sei o que eu sou, Alexander dizia com cada movimento do seu corpo.
Tatiana se esquecera de respirar. Agora inspirava, voltando a sua atenção para o rio Neva.
– Adoro olhar esse rio – Alexander disse baixinho. – Especialmente durante as noites brancas. Não temos nada como isso na América, sabe?
– Talvez no Alaska?
– Talvez – ele disse. – Mas isto, o rio Neva reluzindo, a cidade ao redor de suas margens, o sol se pondo atrás da Universidade de Leningrado, do lado esquerdo, e se levantando na nossa frente sobre a Catedral...
Balançando a cabeça, ele parou de falar. Sentavam silenciosos.
– Como Pushkin escreveu no Cavaleiro de Bronze? – Alexander perguntou-lhe. – “E ao invés de deixar a escuridão mais suave... a acetinada luz dourada do céu...” – ele interrompeu. – Não lembro o resto.
Tatiana conhecia o Cavaleiro de Bronze praticamente de memória. Ela continuou para ele:
– “Um brilho de crepúsculo corre sobre o outro... para conceder meia hora hoje à noite.”
Alexander virou-se para o lugar de Tatiana, que continuava contemplando o rio.
– Tania... Como apareceram todas essas sardas? – ele perguntou suavemente.
– Eu sei, elas são tão irritantes, é o sol – ela respondeu, corando novamente e tocando o rosto como se quisesse eliminar as sardas que cobriam a ponta do seu nariz e espalhavam-se em pontinhos sob seus olhos. Por favor, pare de me olhar, ela pensou, temerosa dos olhos dele e apavorada com seu próprio coração.
– E o seu cabelo loiro? – ele continuou, sempre de forma suave. – É por causa do sol também?
Tatiana sentiu forte o braço dele no banco, por trás dela, se ele quisesse poderia mover a mão alguns centímetros e tocar-lhe os cabelos que caiam sobre as costas dela. Ele não o fez.
– As noites brancas são uma maravilha, você não acha? – ele disse, sem tirar os olhos dela.
Ela murmurou:
– Nós, contudo, as compensamos com o inverno de Leningrado.
– Sim, o inverno não é muito divertido por aqui.
Tatiana disse:
– Às vezes, no inverno, quando o Neva se congela, patinamos no gelo. Até mesmo à noite. Sob as luzes fugazes do nordeste.
– Você e quem?
– Pasha, eu, nossos amigos. Às vezes, eu e a Dasha. Mas ela é muito mais velha. Eu não saio muito com ela. – Por que mencionou o fato de Dasha ser muito mais velha? Estava querendo ser má? Cale-se, Tatiana disse a si mesma.
– Você deve amá-la muito – disse Alexander.
O que ele queria dizer com isso? Ela preferia não saber.
– Você é tão chegado a ela como é ao Pasha? – ele perguntou.
– É diferente. Pasha e eu... – Tatiana interrrompeu.
Ela e Pasha comiam no mesmo prato, juntos. Dasha preparava e servia-lhes o prato.
– Minha irmã e eu dividimos uma cama. Ela me diz que nunca posso me casar porque não quer meu marido dormindo na mesma cama com a gente.
Seus olhares se encontraram. Tatiana não conseguia desviar os olhos. Ela esperava que ele não notasse sua cor carmesim sob a luz dourada do sol.
– Você é muito jovem para casar – Alexander disse baixinho.
– Eu sei – Tatiana disse, como sempre um pouco defensiva quanto à sua idade. – Mas eu não sou muito jovem.
– Muito jovem para o quê?
Tatiana pensou, e nem bem terminava sua reflexão, Alexander disse numa voz contida:
– Muito jovem para o quê?
A expressão nos olhos dele era demasiada para ela. Muito para o Neva, muito nos Jardins de Verão, demasiada.
Ela não sabia o que dizer. O que diria Dasha? O que diria um adulto?
– Não muito jovem para servir nos Voluntários do Povo – ela finalmente disse. – Talvez eu possa aderir? E você me treinaria? – Ela riu e depois sentiu-se muito constrangida.
– Sério? – Alexander vacilou um pouco, mas disse – Você é muito jovem até mesmo para os Voluntários do Povo. Eles não te aceitarão até... – Ele não terminou. E ela sentiu sua sentença inacabada, mas não podia captar o significado da hesitação na voz de Alexander nem das palpitações de seus lábios.
Havia um corte no meio do seu lábio inferior, quase como uma suave fenda.
De repente, Tatiana não podia olhar por mais um segundo os lábios de Alexander, enquanto os dois sentavam à beira do rio na noite ainda iluminada pelo sol.
Ela se levantou do banco.
– É melhor eu ir para casa. Está ficando tarde.
– Tudo bem – Alexander disse, também se levantando bem mais devagar. – É uma bela noite.
– Sim – ela concordou baixinho sem olhar para ele. Começaram a andar ao longo do rio. – Alexander, você sente saudades de sua América?
– Sim.
– Você voltaria se pudesse?
– Imagino que sim – ele respondeu num tom neutro.
– Você poderia?
Ele olhou para Tatiana.
– Como eu chegaria lá? Quem me daria permissão? Que direitos eu teria com o meu nome americano?
Tatiana sentiu uma enorme vontade de pegar a sua mão, tocá-lo, de alguma forma acalmá-lo.
– Me diz uma coisa sobre a América? – ela perguntou. – Você já viu um oceano?
– Sim, o Atlântico, e é outra maravilha.
– É salgado?
– Sim, frio e imenso, e tem águas-vivas e veleiros brancos.
– Eu vi uma água-viva uma vez. Que cor tem o Atlântico?
– Verde.
– Verde como as árvores?
Ele olhou ao redor, ao Neva, às árvores, a ela.
– Verde um pouquinho como a cor dos seus olhos.
– Um verde meio lamacento, escuro?
A emoção fazia forte pressão em seu peito, dificultando a sua respiração. Eu não preciso respirar agora, ela pensou. Tenho respirado toda a minha vida.
Alexander sugeriu caminhar de volta através do Jardim de Verão. Tatiana concordou, mas depois lembrou-se dos amantes sinuosos.
– Talvez não seja bom. Tem um caminho mais rápido?
– Não.
Longas sombras projetavam os altos olmos, enquanto o sol caía por trás deles.
Eles passaram o portão e desceram a estreita vereda entre as estátuas.
– O parque parece diferente à noite – ela disse.
– Você nunca esteve aqui à noite?
– Não – ela admitiu, acrescentando rápido –, mas já estive à noite em outros lugares, certa vez eu...
Alexander inclinou-se.
– Tania, quer saber de uma coisa?
– O quê? – ela disse, afastando-se.
– Quanto menores forem suas saídas à noite, mais eu aprecio isso.
Sem dizer nada, ela foi em frente, um pouco trôpega, olhando os próprios pés.
Ele andava ao lado dela, diminuindo seu passo militar para ficar junto de Tatiana. Era uma noite cálida; os braços nus de Tatiana duas vezes tocaram o áspero tecido da farda de Alexander.
– Esta é a melhor hora, Tatiana. – Alexander disse. – Quer saber por quê?
– Por favor, não me diga.
– Não haverá outro momento como este. Tão simples, tão descomplicado.
– Você chama isso de descomplicado? – Tatiana balançou a cabeça.
– Claro. – Alexander fez uma pausa – Somos só amigos, caminhando através de Leningrado.
Eles pararam na Ponte Fontanka.
– Tenho um plantão às dez – ele disse. – Não fosse isso, eu te levaria para casa.
– Não, não. Estarei bem. Não se preocupe. Obrigada pelo jantar.
Não era possível olhar o rosto de Alexander. O toque gracioso de Tatiana, providencial, era a sua altura. Tatiana olhava os botões de sua farda. Não tinha medo deles.
Ele pigarreou.
– Me diga então – ele perguntou. – Como eles chamam você por outro nome que não seja Tania ou Tatiana?
O coração dela disparou.
Eles quem?
Alexander nada disse durante alguns minutos. Tatiana afastou-se dele e, quando estava a cinco metros de distância, olhou o seu rosto. Tudo o que ela queria era olhar o seu belo rosto.
– Às vezes – ela disse –, eles me chamam de Tatia.
Ele sorriu.
O silêncio a atormentava. O que fazer durante isso?
– Você é muito bonita, Tatia – disse Alexander.
– Pare – ela disse, inaudível. Nenhuma sensação nas pernas.
Ele disse a ela:
– Se você quiser, pode me chamar de Shura.
– Shura! – ela repete. – Que maravilhosa ternura. Eu adoraria chamar você de Shura, ela queria lhe dizer. – Quem te chama de Shura?
– Ninguém – Alexander respondeu com uma continência.
Tatiana não só caminhava para casa. Ela voava. Cresceram-lhe asas de um vermelho brilhante, e nelas, Tatiana velejava através do céu azul de Leningrado.
Já próxima de casa, seu coração vergado de culpa a trouxe de volta ao chão e as asas desapareceram. Prendeu o cabelo e conferiu se os seus livros estavam bem no fundo da bolsa. Mas ela não podia subir durante alguns minutos, parada junto à parede do prédio, ambos os punhos fechados no peito.
Dasha estava sentada à mesa de jantar com uma surpresa, Dimitri.
– Há três horas esperamos por você – disse Dasha petulante. – Onde você andou?
Tatiana perguntava-se se eles podiam intuir Alexander andando ao lado dela através de Leningrado. Será que ela exalava o perfume de jasmim do verão, do cálido sol em seus braços nus, da vodka, do caviar, do chocolate? Podiam ver as novas sardas na ponta do seu nariz? Eu tenho andado sob as luzes do Polo Norte. Eu tenho andado e aquecido o meu rosto com o sol do norte. Podiam eles ver tudo isso em seus belos e angustiados olhos?
– Sinto muito pela espera. Nestes dias tenho trabalhado até mais tarde.
– Está com fome? – Dasha perguntou. – Babushka fez costeletas e purê de batatas. Você deve estar faminta. Coma alguma coisa.
– Não estou com fome. Estou cansada. Dima, com a sua licença – disse Tatiana, indo lavar o rosto.
Dimitri ficou mais duas horas. Os avós queriam o seu quarto de volta às onze, e por isso Dimitri, Dasha e Tatiana subiram ao telhado e lá sentaram até de madrugada, conversando sob a luz que se esvaía. Tatiana não podia falar muito. Dimitri, amigável, soltava a língua, ele mostrou às meninas as bolhas em suas mãos de tanto cavar trincheiras por dois dias seguidos. Tatiana sentia que ele a observava, buscando algum contato de olhos e sorrindo quando conseguia.
Dasha disse:
– Dima, me diga, você é muito ligado ao Alexander?
– Sim, Alexander e eu nos conhecemos há muito tempo – respondeu Dimitri. – Somos como irmãos.
Tatiana, um pouco desorientada, piscou duas vezes, enquanto o seu cérebro tentava se concentrar nas palavras de Dimitri.
Querido Deus, Tatiana rezou na cama naquela noite, virando-se para a parede puxando o lençol branco e o fino cobertor marrom sobre sua cabeça. Se você está em algum lugar, por favor, me ensine a esconder o que eu nunca soube mostrar.
6
Durante toda a quinta-feira, enquanto trabalhava com os lança-chamas, Tatiana pensava em Alexander. E, depois do expediente, ele a esperava. Hoje à noite, ela não perguntou porque ele viera. E ele não explicou. Ele não tinha presentes e nem perguntas. Só veio.
Mal se falaram; só seus braços batiam um contra o outro e, quando o bonde freou bruscamente, Tatiana caiu em cima dele; e ele, sem mexer o corpo, endireitou-a, colocando sua mão ao redor da cintura dela.
– Dasha me convidou para uma visita hoje à noite – ele disse baixinho a Tatiana.
– Oh – Tatiana disse –, isso é ótimo, claro, meus pais ficarão contentes por ver você outra vez. Hoje de manhã eles estavam de muito bom humor – ela continuou. – Ontem, Mamãe falou com Pasha por telefone, e pelo jeito ele vai bem, muito bem.
Ela parou de falar. De repente, sentiu-se muito triste para continuar.
Eles caminharam bem devagar para o bonde número 16, em silêncio, seus braços pressionavam-se um contra o outro, até que o veículo parou no Hospital Greshesky.
– Vejo você depois, Tenente. – Ela queria dizer Shura, mas não conseguiu.
– Vejo você depois, Tatia. – disse Alexander.
Mais tarde, naquela noite, foi a primeira vez que os quatro se encontraram na Quinta Soviet e saíram para uma caminhada juntos. Compraram sorvete, milkshake e uma cerveja. Dasha agarrou-se ao braço de Alexander como percevejo. Tatiana mantinha uma educada distância de Dimitri, usando cada recurso de sua escassa possessão de recursos para não olhar Dasha agarrada a Alexander. Tatiana surpreendia-se com a sensação de profundo desagrado ao ver a irmã tocando-o. Para Tatiana, era infinitamente preferível que Dasha o visse em algum lugar nebuloso, inimaginável, inexplorado de Leningrado, longe de seus olhos.
Alexander parecia descontraído e contente como estaria qualquer soldado na companhia de alguém como Dasha. Ele mal olhava Tatiana. Como Dasha e Alexander pareciam juntos? Pareciam bem? Melhor do que ela e Alexander? Não tinha respostas. Não sabia como se afigurava quando estava perto dele. Só sabia como se sentia quando junto de Alexander.
– Tatiana! – Dimitri falava com ela.
– Desculpe, Dima, o que disse? – Por que ele levantou a voz?
– Tania, você não acha que Alexander devia me transferir da Divisão de Rifles para algum outro lugar, talvez com ele no Setor Motorizado?
– Acho. Isso é possível? Você não precisa saber como dirigir um tanque? Ou alguma coisa motorizada?
Alexander sorriu. Dimitri nada disse.
– Tania! – exclamou Dasha. – O que sabe você sobre o que se faz no Motorizado? Fique quieta. Alex, você vai atravessar rios e atacar o inimigo? – ela riu.
– Não – disse Dimitri. – Primeiro, Alexander me envia para ter certeza de que é seguro, depois ele vai. Ele recebe outra promoção, certo, Alexander?
– Alguma coisa assim, Dima – Alexander disse, andando ao lado dele. – Embora eu leve você comigo quando vou pessoalmente.
Tatiana mal podia ouvir.
Porque Dasha caminhava tão perto dele? E como podia ele ir e levar Dimitri junto? O que significava aquilo?
– Tania! – Dimitri disse – Tania, está me ouvindo?
– Sim, claro – ela disse. Por que ele continua levantando a voz?
– Você parece desligada.
– Não, de jeito algum, noite agradável, não é?
– Quer pegar o meu braço? Você está com jeito de quem vai cair.
Com um olhar despreocupado a Tatiana, Dasha disse:
– Cuidado, ela pode desmaiar de repente.
Naquela noite, quando Tatiana deitou ela puxou o cobertor sobre a sua cabeça, fingindo dormir. Mesmo quando Dasha deitou ao seu lado e sussurrou:
– Tania, Tania, você está dormindo? – e a cutucou de leve.
Tatiana não queria falar com Dasha no escuro, fazendo confidências. Ela só queria dizer o nome dele uma vez e bem alto. Shura.
7
Na sexta-feira, ao voltar ao trabalho, Tatiana notou que quase ninguém do pessoal experiente ficara em Kirov. Somente gente muito jovem, como ela, e os mais velhos.
Os poucos homens que ali permaneciam tinham mais de sessenta anos ou ocupavam posições de gerência – ou ambas as coisas.
Nos primeiros cinco dias da guerra houve, e isso era suspeito, poucas notícias do front. Os locutores enalteciam grandes vitórias soviéticas, mas nada falavam do poder militar alemão, nada sobre a posição alemã na União Soviética, nada em absoluto sobre o perigo que corria Leningrado ou sobre evacuação. O rádio estava no ar o dia inteiro, enquanto Tatiana enchia os lança-chamas com petróleo grosso e nitrocelulose, ao mesmo tempo que, através das duas portas abertas, a máquina de metal despejava projéteis de diferentes tamanhos na esteira transportadora.
Ela ouvia o clink, clink, clink do metal redondo como o passo dos segundos, e havia muitos segundos em seu longo dia, e tudo o que ela ouvia então era clink, clink, clink.
E Tatiana só pensava nas sete horas da noite.
Durante o almoço ela ouviu no rádio que o racionamento podia começar na próxima semana. Ainda durante o almoço, Krasenko disse à sua minguante equipe que, na segunda-feira, provavelmente, eles começariam exercícios militares, e que o expediente se estenderia até as oito da noite.
Antes de ir embora, Tatiana esfregou as mãos por dez minutos para remover o cheiro de petróleo, mas não conseguiu. Ao passar apressada pelos portões da fábrica, junto com Zina, rumo ao Muro de Kirov, ela queria desabafar com alguém sobre sua ambivalência e sofrimento.
Mas viu então o quepe de oficial de Alexander, virado de lado, e observou quando ele o tirou da cabeça e o colocou nas mãos para esperar que ela viesse até ele. Tatiana esqueceu tudo. Fez um esforço para não sair correndo. Atravessaram a rua e encaminharam-se na direção da Ulitsa Govorova.
– Vamos andar um pouquinho.
Tatiana mal acreditava que pronunciara essas palavras depois do dia que tivera. Mas ela não sentiu seu dia. Sabia que não teria um minuto com ele no fim de semana.
– O que é um pouquinho? – Ela respirou fundo.
– Vamos andar tudo então.
Devagar, percorreram as ruas quase desertas, anônimos aos olhos de qualquer um. À sua direita, os trilhos da ferrovia e os campos agrícolas; à esquerda, os prédios industriais do bairro de Kirov. Não havia sirenes de ataques aéreos, nenhum avião sobrevoando, só o pálido brilho do sol. Ninguém por perto.
– Alexander, por que o Dima não é um oficial como você?
Alexander fez uma curta pausa.
– Ele queria ser um oficial. Entramos juntos na escola de oficiais.
Tatiana não sabia disso. Disse que Dimitri nunca comentara o assunto.
– Ele não comentaria. Mas fomos juntos, achando que ficaríamos juntos, mas infelizmente o Dima não conseguiu.
– O que aconteceu?
– Nada aconteceu. Ele não podia ficar debaixo da água muito tempo, entrava em pânico, não conseguia segurar a respiração, não ficava quieto nos exercícios de fogo simulado, não mantinha a calma, perdia o controle, não fez um bom tempo na corrida de sete quilômetros. Não podia fazer cinquenta flexões de braço de uma tacada. Ele simplesmente não conseguiu. Em muitos níveis. Ele é um bom soldado. Muito bom soldado.
Alexander acrescentou:
– Ele não tinha o perfil de um oficial.
– Não como você – disse Tatiana, respirando com excitação no você.
Alexander lançou um olhar divertido a ela e balançou a cabeça.
– Eu – ele disse – sou um guerreiro.
O bonde parou bem na frente deles. Hesitantes, subiram.
– Como o Dimitri encarou tudo isso?
Tatiana parou de evitar Alexander cada vez que o bonde balançava. Ela agora vivia para esse balanço. Cada vez que o bonde se movia, ela ia junto, ao encontro de Alexander, mal segurando a alça. Ele ali ficava em pé, como uma pirâmide invertida, pegando a cintura dela com o braço. Hoje à noite, quando ele a segurou, sua mão permaneceu ao redor dela. Ele fez um sinal para que continuasse falando. Mas ela não podia até que ele tirasse a mão.
Ele tirou a mão.
– A respeito do quê? De não se formar oficial?
– Não. É sobre você.
– O que você pensaria sobre isso?
O bonde parou. Para segurá-la, Alexander pegou o braço de Tatiana. Ela se arrepiou toda. Ele a soltou e continuou.
– Eu acho que o Dimitri pensa que as coisas são muito fáceis para mim.
– Que coisas? – Tatiana perguntou, atrevida.
– Não sei. Coisas em geral. O Exército, o campo de tiro...
Ele parou. Ela olhou para ele, esperando. O que ia dizer agora? O que mais vinha muito fácil para Alexander?
– Nada vem fácil para você, Alexander – Tatiana disse por fim. – Você teve a vida mais dura.
– E mal começou – ele disse. Mas quando falou de novo, Tatiana percebeu uma brandura forçada. – Ouça, Dimitri e eu temos uma longa história juntos. Se eu conheço o Dima, ele logo vai lhe contar coisas a meu respeito que você não vai querer acreditar. Me surpreende que ainda não tenha feito isso.
– Coisas que são verdadeiras ou mentiras completas?
– Não posso responder isso – Alexander replicou. – Algumas coisas serão verdades, outras mentiras completas. O Dimitri tem o dom, por assim dizer, de misturar mentiras com suficientes verdades para enlouquecer a gente.
– Belo dom – ela disse. – Como saberei?
– Não saberá. Vai parecer verdade.
Alexander olhou para ela.
– Se você quer saber a verdade, me pergunte e eu lhe conto.
– Se eu perguntar, você me conta a verdade sobre qualquer coisa? – ela o encarou.
– Sim.
Tatiana segurou a respiração porque, por um momento, seu coração havia parado de bater. Parou quando ela mordia os lábios para não perguntar. Você me ama?, ela queria perguntar a ele. Queria mergulhar numa espécie de terror que a deixasse paralisada e sem condições de pensar, mas não podia. Ele queria uma pergunta? Essa era a pergunta que gritava entre seus dentes cerrados e seu silêncio e seu coração ofegante.
– Você quer me fazer uma pergunta, Tania? – ele disse suavemente.
– Não – ela respondeu, olhando a alça de metal e a cabeça grisalha da mulher à sua frente.
– Aqui estamos – disse Alexander, quando desciam no Canal Obvodnoy.
Eles não pegaram o segundo bonde como de costume. Caminharam cinco quilômetros de volta para casa. Passaram por um portão de ferro e, por trás dele, uma porta. O portão e a porta não pareciam a entrada de um edifício, mas era como se tivessem sido construídos e agora não levassem a nenhum lugar. Apontando, Alexander disse:
– Esses portões, essas portas, todos eles podem estar ouvindo agora, ontem, amanhã, a você em Kirov, deitada junto a um vidro na parede do outro lado da sua cama.
– Eu sei que você está brincando. Meus avós ficam do outro lado da minha cama. Você está dizendo que eles são informantes?
– Não estou dizendo isso. – Ele fez uma pausa. – O que estou dizendo é... não podemos confiar em ninguém. E ninguém está seguro.
– Ninguém? – Tatiana perguntou provocando, olhando para ele. – Nem mesmo com você?
– Especialmente comigo.
– Não é de confiança ou não é seguro? – Ela sorriu.
Ele retribuiu o sorriso.
– Não é seguro.
– Mas você é um oficial do Exército Vermelho!
– Sim? Diga isso aos oficiais do Exército Vermelho em 1937 e 1938. Foram todos fuzilados. É por isso que ninguém agora quer ser responsável por esta guerra.
Silenciosa, ela se colocou ao lado dele e finalmente perguntou:
– Estou segura?
– Tatiana – ele sussurrou, falando perto de sua orelha. – Somos seguidos sempre, em todo lado. Dia virá em que alguém, saindo de uma porta secreta, vai pular em cima de você, e, em seguida, a levará a um homem atrás de uma mesa, e ele vai querer saber o que Alexander Belov disse a você naquelas caminhadas rumo à sua casa.
– Você já me contou muito, Alexander Belov – Tatiana declarou, afastando-se dele. – Por que fez isso se achava que eu seria interrogada a seu respeito?
– Eu precisava confiar em alguém.
– Por que você não disse à Dasha, arriscando a vida dela?
Alexander, depois de uma pausa, respondeu:
– Porque eu precisava confiar em você.
– Você pode confiar em mim – Tatiana disse animada, nele encostando de leve –, mas me faça um favor, não me conte mais nada, tudo bem?
– Tarde demais – ele disse encostando-se nela de leve.
– Você está dizendo que estamos condenados? – ela perguntou rindo.
– Eternamente – respondeu Alexander. – Quer um sorvete?
– Sim, por favor. – Ela vibrava.
– Crème Brûleé, não é isso?
– Sempre.
Sentaram em um banco enquanto ela tomava o sorvete. Quando ela terminou, continuaram sentados conversando, só se mexendo no momento em que Alexander olhou o relógio e levantou-se.
Eram quase dez horas quando eles pararam na esquina da Grechesky e Segunda Soviet, a três quarteirões do edifício de Tatiana.
Ela fez uma pausa.
– Você vem mais tarde? – suspirou. – A Dasha disse que talvez você viesse.
– Sim. – Ele também suspirou. – Com o Dimitri.
Tatiana ficou em silêncio. Os dois se olhavam.
Tão perto ele estava que ela podia sentir o seu cheiro. Nunca conhecera alguém que cheirasse tão bem e tão limpo como Alexander.
Ela sentiu que ele queria lhe dizer alguma coisa. Ele abriu a boca, inclinou a cabeça para frente e franziu a testa. Tensa, ela esperava, querendo isso desesperadamente, ao mesmo tempo não querendo, odiando suas feias botas marrons de trabalho, desejando estar usando as sandálias vermelhas, então lembrando que pertenciam a Dasha, lembrando que não tinha sapatos bonitos, querendo ficar descalça na frente dele, e tomada de sentimento e culpa, até então desconhecidos para ela. Tatiana deu um passo para trás.
Alexander deu um passo atrás.
– Vá – ele disse. – Vejo você hoje à noite.
Ela se afastou, sentindo os olhos dele por trás. Ao virar, ela o viu olhando-a à distância.
8
Alexander e Dimitri chegaram pouco depois das onze da noite. Ainda havia luz do lado de fora. Dasha não chegara. Seu patrão, o dentista, exigia que ela fizesse horas extras, extraindo o ouro dos dentes dos clientes. Em épocas de crise, as pessoas preferiam ter ouro em lugar de moeda viva para negociar. O ouro mantinha o seu valor. Dasha trabalhava cada vez até mais tarde, coisa que odiava, queria que todo mundo se comportasse como se a vida pudesse continuar no verão de Leningrado como sempre fora: lenta, cálida, poeirenta e cheia de gente jovem e apaixonada.
Tatiana, Dimitri e Alexander estavam na cozinha, meio sem jeito, enquanto a água pingava na pia de ferro fundido.
– Então, o que há com vocês dois, garotos tristes? – disse Dimitri, olhando Tatiana e Alexander.
– Bem, estou cansada – disse Tatiana. Era só meia mentira.
– E eu estou com fome – disse Alexander, olhando para ela.
– Tania, vamos dar uma volta?
– Não, Dima.
– Sim, deixamos o Alexander aqui esperando a Dasha. – Dimitri sorriu. – Eles não precisam da gente. Adorariam ficar sozinhos. Estou certo, Alexander?
– Eles não terão muita sorte aqui – Tatiana murmurou. – Graças a Deus.
Alexander foi à janela e olhou o pátio.
– Eu não posso mesmo – Tatiana protestou. – Eu...
Dimitri pegou Tatiana pelo braço.
– Vamos, Tanechka. Você já comeu? Não é mesmo? Vamos. Voltamos logo, eu prometo.
Tatiana viu os ombros rijos de Alexander.
Ela queria chamá-lo de Shura.
– Alexander – ela disse –, você quer que a gente traga alguma coisa?
– Não, Tania – ele respondeu, olhando-a.
Seus olhos infelizes brilharam por um momento e logo se retraíram por sua própria vontade.
– Por que você não entra? Babushka fez carne pirozhki. Experimente um pouco. Tem vorscht também.
Dimitri já puxava Tatiana pela mão ao longo do hall. Eles passaram por cima de Slavin no corredor, ele descansava quietamente no chão e parecia que não haveria nenhum incidente, mas tão logo Tatiana chegou perto, ele se mexeu, levantou a cabeça e agarrou o tornozelo dela.
Dimitri, num movimento brusco, pisou no punho de Slavin, e ele gritou, soltando Tatiana, enquanto olhava para ela e dizia:
– Fique em casa, querida Tanechka, é tarde da noite para você sair! Fique em casa!
Ele não olhou para Dimitri, que o amaldiçoou e de novo pisou em seu punho.
Na rua, Dimitri perguntou se ela queria um sorvete. Ela não queria que ele comprasse sorvete, mas disse:
– Tudo bem. Um cone de baunilha.
Enquanto caminhavam, ela, com um jeito infeliz, comeu o sorvete. A noite estava quente. Ela só pensava numa coisa.
– Em que você está pensando?
– Na guerra – ela mentiu. – E você?
– Em você. Nunca conheci alguém como você, Tania. Você é bem diferente das meninas que eu usualmente conheço.
Tatiana murmurou um pálido obrigada, concentrada em seu sorvete.
– Espero que o Alexander entre e coma – ela disse. – Dasha deve demorar ainda mais uma hora.
– Tania – disse Dimitri –, é sobre Alexander que você quer falar?
Até mesmo Tatiana, ainda inexperiente, captou um tom gelado na voz de Dimitri.
– Não, claro que não – ela disse rápido. – Só estou tentando conversar. Ela mudou de assunto. – O que você fez hoje?
– Cavei mais trincheiras, a linha do front ao norte está quase completa. Estaremos prontos para aqueles finlandeses na próxima semana. – Ele riu com malícia. – Então, Tania, sei que você deve estar pensando por que não sou um oficial como Alexander.
Tania nada disse.
– Por que você não me perguntou?
– Não sei. – Seu coração bateu mais rápido.
– É como se você já soubesse.
– Soubesse? Não. – Ela queria jogar fora o que sobrava do sorvete e correr para casa.
– Você tem conversado com Alexander a meu respeito?
– Não – ela disse com firmeza.
– E como não perguntou por que sou apenas um frontovik e ele é um oficial?
Tatiana não tinha resposta para isso. Era tudo muito bobo. Ela odiava mentir. Não dizer nada, manter uma expressão impassível, desviar os olhos, isso tudo já era bastante difícil. Mas mentir direto? Sua língua e garganta não estavam acostumadas a isso.
– Alex e eu tínhamos a intenção de sermos oficiais juntos. Era esse nosso plano original.
– Que plano?
Dimitri não respondeu, e a pergunta de Tatiana ficou no ar e depois alojou-se em sua cabeça.
Tremiam levemente as mãos de Tatiana.
Ela não queria sair à noite sozinha com Dimitri.
Ela não se sentia segura.
Eles chegaram à esquina de Suvorosky e Parque Tauride. Embora o sol ainda estivesse a trinta graus no céu, as árvores do parque davam sombra.
– Você quer andar um pouco ao redor dos jardins? – Dimitri perguntou.
– Que horas são?
– Não sei.
– Sabe de uma coisa? – Tatiana disse. – Preciso voltar.
– Você não precisa.
– Preciso, Dimitri. Meus pais não estão acostumados que eu fique fora de casa tarde da noite. Eles vão se chatear.
– Não vão se chatear. Eles gostam de mim. – Ele chegou mais perto dela. – Seu pai gosta muito de mim. Além do mais – ele disse –, seus pais estão muito ocupados pensando em Pasha para notar a que horas você chega ou sai de casa.
Tatiana parou e deu meia volta.
– Vou para casa. – E começou a subir a rua Sworosky, distanciando-se dele.
Ele agarrou o braço dela.
– Tania, não se afaste de mim.
Sem soltá-la, ele disse:
– Vamos, venha sentar comigo no banco perto das árvores.
– Dimitri – ela disse sem se mexer –, não vou para perto das árvores com você. Pode me soltar?
– Venha comigo para perto das árvores.
– Não, Dimitri, me solte agora.
Ele se aproximou mais dela, segurando-a com firmeza. Seus dedos penetraram na pele dela.
– Bom, e se eu não quiser soltar você, Tanechka?
Tatiana não se soltou dele. O braço livre do soldado pegou sua cintura e a trouxe mais perto dele.
– Dima – disse Tatiana, resoluta e sem medo, encarando-o –, o que você está fazendo? Ficou louco?
– Sim – ele disse e abaixou o rosto para beijá-la. Com um pequeno grito, Tatiana virou o rosto para baixo bruscamente.
– Não! Me solte, Dimitri – ela disse. Ela não levantou a cabeça.
De repente, ele a soltou.
– Sinto muito – ele disse com um tremor na voz.
– Eu preciso ir para casa agora – ela disse, andando o mais rápido que podia. – Dima, você é muito velho para mim.
– Não. Não. Por favor. Só tenho vinte e três anos.
– Eu não quis dizer isso. Sou muito jovem para você. Preciso de alguém que... – ela fez uma pausa – que espere menos – ela completou.
– Quanto menos?
– Alguém que espere nada.
– Sinto muito mesmo, Tania – ele disse. – Eu não quis assustar você daquela forma.
– Está bem – ela disse sem olhar para ele. – Eu não sou o tipo de garota que vai para baixo das árvores. – Com você, ela pensou com o coração angustiado, lembrando o Jardim de Verão.
– Sei disso agora. Acho que por isso realmente gosto de você. Às vezes, não sei como agir com você.
– Seja respeitoso e paciente.
– Bem, serei tão paciente quanto Jó. – Dimitri inclinou-se na direção dela. – Porque, Tanechka – ele disse –, não tenho nenhuma intenção de deixar você sozinha.
Ela subiu apressada a Rua Suvorosky.
De repente, Dimitri disse:
– Espero que Dasha goste do Alexander.
– A Dasha gosta do Alexander.
– Porque ele de fato gosta dela.
– Ah, sim? – Tatiana disse baixinho. – Como você sabe?
– Ele praticamente parou suas atividades extracurriculares, que antes mal controlava. Não diga isso a Dasha, claro. Isso a magoaria.
Tatiana queria dizer a Dimitri que não tinha a menor ideia do que ele estava falando, mas ela muito temia que ele lhe contaria.
Quando chegaram em casa, Dasha e Alexander, sentados juntos no pequeno sofá no corredor, liam um volume de contos de Zoshchenko e riam. Tatiana, mal-humorada e irritada, só conseguiu dizer:
– Esse livro é meu.
Por alguma razão, Dasha achou aquilo muito engraçado e até mesmo Alexander sorriu. Quando Tatiana passou por ele, as pernas do oficial estavam tão esticadas que ela tropeçou e teria, com certeza, dado com a cara no chão se ele não a tivesse segurado na hora. E com a mesma rapidez, soltado-a.
– Tania – Alexander disse –, o que é isso no seu braço?
– O quê? Não é nada.
Com desculpas apressadas, alegando exaustão, ela disse boa noite e desapareceu dentro do quarto dos avós, onde sentou entre Deda e Babushka no sofá e ouviu o rádio. Eles conversavam baixinho sobre Pasha e ela logo sentiu-se melhor.
Tarde da noite, quando olhava a parede, ouviu o sussurro de Dasha.
– Tania? Tania?
Tania virou-se para a irmã.
– O que é? Estou cansada.
Dasha beijou-lhe o ombro.
– Tania, não conversamos mais. O nosso Pasha foi embora e nós nunca conversamos, você sente saudades dele, não sente? Ele volta logo.
– Sinto saudades dele. Você está ocupada. Conversamos amanhã, Dashenka – disse Tatiana.
– Estou apaixonada, Tania! – Dasha sussurrou.
Tatiana sussurrou de volta:
– Fico contente por você, Dashenka.
E virou-se para a parede.
Dasha beijou a nuca de Tatiana. – Eu acho que é pra valer, de verdade. Oh, Tanechka, não sei o que fazer comigo mesma!
– Já tentou dormir?
– Tania, não consigo pensar em mais nada. Ele está me enlouquecendo. Ele é tão... quente e frio. Hoje à noite, ele estava bem, relaxado, divertido, mas outros dias... Não consigo entendê-lo.
Tatiana não disse nada.
Dasha continuou:
– Sei que não posso esperar muito logo de início. Já é um milagre que ele finalmente tenha vindo aqui. Não consegui trazê-lo até o último domingo, quando ele veio com você e Dima.
Tatiana queria esclarecer que não fora Dasha quem trouxera Alexander à casa, mas, claro, não disse nada.
– Não estou olhando os dentes de um cavalo dado de presente. Acho que ele gosta da nossa família. Você sabia que ele é de Krasnodar? Desde que se incorporou ao Exército, não voltou lá. Não tem irmãos ou irmãs. Não fala de seus pais. Ele é... Não posso explicar. Muito reservado. Não gosta de falar nem de seu próprio ofício. – Fez uma pausa. – Mas pergunta sobre o meu trabalho.
– Oh? – era tudo o que Tatiana podia articular.
– Ele diz que desejaria que não estivéssemos em uma guerra.
– Sim – disse Tatiana. – Todos nós gostaríamos que não houvesse uma guerra.
– Mas existe alguma esperança nisso, não acha? Como se uma vida melhor com ele fosse possível tão logo a guerra acabasse. Tania – disse Dasha, revolvendo o cabelo da irmã –, você gosta do Dimitri?
Tania falou com dificuldade.
– Eu gosto dele – ela sussurrou.
– Ele realmente gosta de você.
– Ele não gosta.
– Gosta, sim. Você não sabe dessas coisas.
– Sei um pouco, ele não gosta.
– Tem alguma coisa que você queira conversar comigo, queira me perguntar?
– Não!
Desdenhosa, Dasha disse:
– Tania, você não deve ser tão tímida. Já tem dezessete anos. Por que não cede um pouco?
– Ceder a Dimitri? – sussurrou Tatiana. – Nunca, Dasha.
Minutos antes de cair no sono, Tatiana percebeu que temia menos o intangível da guerra do que a tangível decepção amorosa.
9
No sábado, Tatiana foi à Biblioteca Pública de Leningrado e pegou emprestado um livro de frases em russo e inglês. Em certo grau, ela já conhecia o estranho alfabeto, aprendido na escola. Passou a maior parte da tarde tentando dizer em voz alta algumas das frases mais ridículas. Os ths, ws e os suaves rs eram muito difíceis. A frase The weather will be thunder and rain tomorrow estava construída de forma a atormentá-la. Ela podia dizer be muito bem.
No domingo, quando Alexander veio, ele sozinho colou tiras de papel nas janelas para evitar que os vidros se fragmentassem nas ondas explosivas que podem vir com o bombardeio, se e quando as bombas caíssem sobre Leningrado.
– Todo mundo deve tapar as suas janelas – ele disse. – As patrulhas logo rodarão pela cidade para conferir se as janelas foram todas tapadas. Não teremos como encontrar novos vidros em lugar algum, se os alemães chegarem a Leningrado.
Os Metanovs o observavam com grande interesse, e Mamãe comentava a cada minuto como ele era alto, seu bom trabalho, suas mãos firmes, como ele ficava solidamente em pé no parapeito. Mamãe queria saber onde ele aprendera fazer aquilo. Impaciente, Dasha respondeu:
– Ora, Mamãe, ele está no Exército Vermelho!
– Foi no Exército Vermelho que ensinaram você a ficar de pé no parapeito da janela? – Tatiana perguntou.
– Cale a boca, Tania – Dasha disse, rindo. Alexander riu também, mas não disse cale a boca, Tania.
– Que desenho é esse que você fez nas nossas janelas? – Mamãe disse quando Alexander desceu do parapeito.
Tatiana, Dasha, Mamãe e Babushka examinaram a forma do papel colado na janela. Em vez das linhas brancas cruzadas que tinham visto em outras janelas em Leningrado, o desenho de Alexander parecia uma árvore. Um grosso tronco, ligeiramente inclinado de um lado, com folhas alongadas saindo de dentro, mais compridas no fundo, mais curtas no topo.
– O que é isso, moço? – Babushka perguntou de forma imperiosa.
Alexander disse:
– Isso, Anna Lvovna, é uma palmeira.
– Uma o quê? – disse Dasha, ao lado dele.
Por que sempre tão perto?
– Uma palmeira.
Tatiana, de pé junto à porta, observou-o sem piscar.
– Uma palmeira? – Dasha disse intrigada.
– É uma árvore tropical. Cresce nas Américas e no Pacífico Sul.
– Hmm – disse Mamãe. – É uma escolha estranha para nossas janelas, você não acha?
– É melhor que as velhas linhas cruzadas – murmurou Tatiana.
Alexander sorriu para ela. E ela retribuiu de leve o sorriso.
Ríspida, Babushka disse:
– Bem, moço, quando cuidar das minhas janelas, não faça coisas extravagantes. Para mim, só uma simples linha cruzada. Eu não preciso de palmeiras.
Mais tarde, Alexander e Dasha saíram juntos, deixando Tatiana com sua melancólica e exausta família. Tatiana foi à Biblioteca de Leningrado, onde passou horas pronunciando estranhos sons em inglês. Parecia extremamente difícil ler nessa língua, nela falar e escrever. Na próxima vez que visse Alexander pediria que ele lhe dissesse algumas coisas em inglês. Só para ouvir o som das palavras. Já pensava sobre a próxima vez que veria Alexander, como se isso fosse uma certeza.
Ela jurou dizer a ele que talvez, quem sabe, ele não devia vir mais a Kirov. Ela fez a promessa a si mesma naquela noite, quando estava na cama de frente para a parede, prometeu à parede, tocando o seu velho papel, acariciando-o para cima e para baixo e dizendo: eu prometo, eu prometo, eu prometo. Ela então colocou os pés no chão entre a cama e a parede e tocou o livro O Cavaleiro de Bronze, que Alexander lhe dera. Talvez ela dissesse aquilo a ele outro dia. Depois que ouvisse dele um pouco de inglês, e depois que ele falasse a ela sobre a guerra, e depois...
Outra sirene de ataque aéreo soou. Dasha voltou para casa bem depois disso, acordando Tatiana, cujos dedos permaneceram na parede de escuta.
10
Na segunda-feira, na fábrica, Krasenko chamou Tatiana ao seu escritório e disse-lhe que, embora ela estivesse fazendo um bom trabalho nos lança-chamas, ele precisava transferi-la de imediato para a área de produção de tanques. É que, segundo uma ordem de Moscou, Kirov tinha que fabricar 180 tanques por mês, tivesse ou não condições e gente para isso.
– E quem vai fabricar os lança-chamas?
– Os que lá ficarem cuidam disso – disse Krasenko, acendendo um cigarro. – Você é uma boa menina, Tania, pode ir. Tome uma sopa no refeitório.
– O senhor acha que os Voluntários do Povo me aceitariam? – ela perguntou-lhe.
– Não!
– Ouvi falar que 15 mil pessoas de Kirov já se integraram, para reforçar as trincheiras da linha de Luga. Isso é verdade?
– A verdade é que você não pode ir. Agora, saia daqui.
– Há algum perigo em Luga? – Pasha estava perto de Luga.
– Não – Krasenko respondeu. – Os alemães estão longe, é só uma precaução, agora vá.
Havia muito mais gente na produção de tanques, a linha de montagem era muito mais complexa, mas por causa disso Tatiana tinha menos o que fazer. Ela colocava os pistões nos cilindros debaixo das câmaras de combustão dos tanques V-12 de motor a diesel.
A instalação era do tamanho de um hangar de avião, cinza e escura por dentro.
No final do dia, o motor a diesel estava no lugar, graças a Tatiana, e o trilho nos pneus, a estrutura fortemente parafusada, mas não havia nada no interior, não havia instrumentos, painéis, armas, caixas de mísseis, lançadores de munição, não havia teto.
Basicamente a máquina não faria nada diferente de qualquer outro pesado veículo blindado.
Mas, ao contrário do encaixotamento de munição para pequenas armas, ou a fabricação de lança-chamas, ou a lubrificação de bombas GP altamente explosivas, fabricar meio tanque dava a Tatiana uma sensação de trabalho bem executado, coisa que não sentira em todo o primeiro mês de atividade em tempo integral. Ela sentia como se tivesse feito o KV-1 sozinha. Outro motivo de orgulho: à tarde, Krasenko contara a ela que os alemães não poderiam nem conceber um tanque tão bem construído, bem armado, tão fácil, tão ágil, tão simples, ainda assim todo blindado com 45 milímetros de aço, equipado com um canhão de 85 milímetros. Os alemães achavam que o seu Panzer IV era o melhor tanque de todos.
– Tania – ele disse –, você fez um excelente trabalho com o motor a diesel. Talvez você devesse ser uma mecânica quando crescer.
Às oito da noite, Tatiana saiu com as mãos limpas, colarinho endireitado, cabelo escovado, mal acreditando que podia correr ao fim de um dia de onze horas, ainda assim corria, temerosa de que Alexander não estivesse esperando por ela.
Mas ele estava.
Ele esperava por ela, mas não sorria.
Ofegante, Tatiana tentou recuperar a calma. Ela estava sozinha com ele pela primeira vez desde a última sexta-feira, sozinha, num mar de estranhos. Ela queria dizer: estou tão feliz porque você veio me ver. O que aconteceu ao não venha e não me veja mais?
Alguém gritou o nome dela; Tatiana virou-se com relutância. Era Ilya, um menino de dezesseis anos: que trabalhava ao lado dela na área de tanques.
– Vai pegar o ônibus? – ele perguntou, olhando para Alexander, que nada disse.
– Não, Ilya, vejo você amanhã. – Tatiana fez um sinal a Alexander para que atravessasse a rua.
– Quem era esse? – Alexander perguntou.
Intrigada, Tatiana olhou para ele.
– Quem? Ah, é só um rapaz com quem eu trabalho.
– Ele está incomodando você?
– O quê? Não, não. – Na verdade, Ilya estava incomodando-a um pouquinho. – Eu comecei num novo departamento. Estamos construindo tanques para enviar à linha de Luga – ela disse orgulhosa.
Ele assentiu com a cabeça e perguntou:
– Com que rapidez vocês podem fabricá-los?
– Meu departamento está fazendo um a cada dois dias. Isso é bom, não?
– Para ajudar a linha de Luga – Alexander disse – vocês vão precisar de dez por dia.
Ela detectou alguma coisa... Olhou para ele, tentou entender o que acontecia e não conseguia.
– Você está bem?
– Sim.
Ela pensou.
– Qual é o problema?
– Nada.
As pessoas esperavam em silêncio no ponto do bonde, fumando. Ninguém falava com ninguém.
– Você quer voltar para casa? – Tatiana perguntou timidamente.
Alexander balançou a cabeça.
– Passei o dia inteiro em treinamento militar.
Ela cutucou Alexander com os dedos e disse-lhe num tom provocador:
– Eu pensei que você já estava no Exército.
– Sim. Não para mim, para eles. Manobras, treinamento com armas, mais abrigos antiaéreos. – Por alguma razão ele parecia esgotado. Teria ela captado os tons de sua voz, de seu rosto?
– Qual é o problema? – ela perguntou de novo.
– Nada – ele repetiu.
Mas aí ele pegou o braço dela e levantou um pouco a manga, revelando hematomas escuros na parte de dentro.
– Tania, o que é isso?
– Ah, nada. – Ela tentou tirar o braço. Ele não a soltava e estava bem perto dela.
– Nada mesmo – ela disse sem olhar para ele. – Vamos embora, estou bem.
– Não acredito em você – Alexander falou. – Eu disse a você para não discutir com Dimitri.
– Não discuti com ele – Tatiana disse.
Eles se olharam, e Tatiana então olhou os botões do uniforme de Alexander.
– Não é nada, Alexander – ela disse. – Ele só queria que eu sentasse ao seu lado.
– Quero que você me conte se ele machucar de novo o seu braço, ouviu? – Alexander disse, soltando-a.
Ela não queria que seus dedos ternos e firmes a soltassem.
– O Dima é um bom rapaz. Acho que ele está acostumado a um tipo diferente de menina. – Ela tossiu. – E quem não está? Bem, ouça, eu cuidei disso. Não vai acontecer de novo, tenho certeza.
– Ah, sim? – Alexander disse. – Como você cuidou de conversar a respeito do Pasha com sua família?
Tatiana não respondeu na hora, depois disse:
– Alexander, eu disse a você que ia ser muito difícil para mim. Você nem consegue convencer minha irmã, que tem vinte e quatro anos, a abordar o assunto. Por que você não tenta? Venha jantar uma noite, beber um pouco de vodca com Papai e toque no assunto. Veja como eles reagem. Me mostre como se faz, porque eu não posso fazer.
– Você não pode falar com sua família sobre seu irmão, mas pode enfrentar o Dimitri?
– É isso mesmo – Tatiana respondeu, levantando um pouco a voz e pensou triste: Estamos brigando? Por que estamos brigando?
Havia um lugar para eles no bonde. Tatiana sentou-se num banco em sua frente. Alexander tinha as mãos dobradas no colo. Ele estava calado e não olhava para ela. Alguma coisa ainda o incomodava. Seria o Dimitri? Ainda assim eles sentavam bem juntos, o braço dele pressionando o braço dela, a perna dele pressionando a perna dela. A perna de Alexander parecia de mármore. Tatiana não se afastou dele: como se ela pudesse, como se houvesse até mesmo uma opção. Estava magnetizada.
Na tentativa de aliviar a tensão entre os dois, Tatiana perguntou da guerra.
– Onde é o front agora, Alexander?
– Na direção norte.
– Mas ainda está longe certo? Longe de...? – Ele não olhou para ela.
– Apesar de toda nossa fanfarronice militar, somos um país de civis. – Ele ironizou. – Nossas tolas manobras, nossos exercícios, nossos aviões que não voam, nossos patéticos tanques. Nós não sabíamos com quem estávamos lidando.
Ela o pressionou um pouco no braço, assimilando-o através de sua própria pele.
– Alexander, por que o Dimitri parece tão relutante em ir à guerra e lutar? Afinal, trata-se de tirar os alemães do nosso país.
– Ele não se importa com os alemães. Ele só se importa com uma coisa – ele interrompeu.
Tatiana esperou.
– Tania, você vai aprender uma coisa sobre o Dimitri. Ele considera a autoconservação um direito inalienável.
Ela olhou para ele.
– Alexander, o que é... inalienável?
Ele sorriu.
– Um direito que ninguém pode atacar.
Tatiana pensou.
– Quem diz isso? Temos esse tipo de direito? Não são normalmente reservados ao Estado?
– Nós? Onde?
– Aqui. – Ela abaixou a voz. – Na União Soviética.
– Não, Tania. Aqui não. Aqui esses direitos são reservados ao Estado. – Alexander fez uma pausa. – E ao Dimitri. Especialmente autoconservação.
– Inalienável. Eu nunca ouvi alguém dizer essa palavra antes – Tatiana disse pensativa.
– Não, você não ouviria – ele disse, seu rosto mais suave agora. – Como foi o resto do seu domingo? O que você fez? Como está a sua mãe? Cada vez que a vejo, ela parece pronta para cair.
– Sim, temos muito que nos preocupar com Mamãe.
Tatiana virou-se para a janela. Ela não queria falar sobre Pasha outra vez.
– Você quer saber o que fiz ontem? Aprendi algumas palavras em inglês, quer ouvir?
– Vamos descer, e aí então quero ouvir, e muito. Boas palavras?
Ela não sabia bem o que ele queria dizer, mas de todo modo ficou vermelha.
Eles desceram do bonde e, enquanto passavam pela Estação Varsóvia, Tatiana viu uma multidão de gente encolhida: mulheres com os seus filhos, idosos com bagagem, esperando numa desordem organizada.
– O que eles estão esperando? – ela perguntou.
– Um trem. Eles são os espertos. Estão deixando a cidade – disse Alexander.
– Deixando?
– Sim. – Ele fez uma pausa. – Tania...Você também devia ir embora.
– Ir embora para onde?
– Qualquer lugar. Longe daqui.
Por que uma semana atrás a ideia de evacuação era tão excitante, mas agora parecia uma sentença de morte? Não era evacuação. Era exílio.
– O que eu ouço – Alexander continuou – é que estamos sendo levados pelos alemães. Trucidados. Estamos despreparados, desequipados, não temos nem tanques nem armas.
– Não se preocupe – Tatiana disse com uma falsa descontração. – Teremos um tanque amanhã.
– Não temos nada, só homens, Tania. Não importa o que dizem de bom no rádio.
– Eles são bem animados – Tatiana disse, tentando ela mesma se animar, não conseguindo.
– Tania?
– Sim.
– Está me ouvindo? Os alemães eventualmente se dirigem a Leningrado. Não é seguro. Você tem mesmo que ir embora.
– Mas minha família fica aqui!
– E daí? Vá embora sem eles.
– Alexander, do que você está falando? – Tatiana exclamou e riu. – Eu nunca fiquei sozinha em toda minha vida! Não vou sozinha nem ao armazém. Não posso ir embora sozinha. Aonde? Sozinha aos Urais ou a algum outro lugar onde evacuam gente? É onde você quer que eu vá? Ou talvez América, de onde você é. Estarei segura lá? – Tatiana riu. Era tudo absurdo.
– Certamente se você fosse para lá, de onde eu sou, estaria segura – Alexander disse, áspero.
Quando chegou em casa naquela noite, Tatiana conversou com o pai sobre evacuação e sobre Pasha.
Papai ouviu-a enquanto dava três tragadas em seu cigarro. Tatiana contou-as.
Ele então se levantou e, apagando o cigarro para pontuar suas palavras, disse:
– Tanyusha, onde diabos você pega essas ideias? Os alemães não estão vindo. Não vou embora daqui. E Pasha está seguro. Eu sei. Ouça, se você se sente melhor com isso, a Mamãe vai telefonar para ele amanhã para saber se está tudo bem. É melhor assim?
Deda disse:
– Tania, eu pedi para ser evacuado lá para o leste, Molotov ou Oublast, perto dos Urais. Eu tenho um primo em Molotov.
– Ele morreu há dez anos, Vazili – disse Babushka, balançando a cabeçona. – Desde a grande fome de 1931.
– A mulher dele ainda mora lá.
– Ela morreu de disenteria em 1928.
– Essa era a sua segunda mulher. A primeira, Naira Mikhailovna, ainda mora lá.
– Não, em Molotov. Lembra? Ela mora onde nós morávamos, naquele povoado chamado...
– Mulher! – Deda interrompeu. – Você quer vir comigo ou não?
– Eu vou com você, Deda – Tatiana disse animada. – E Molotov é legal?
– Eu vou com você também, Vazili – disse Babushka –, mas não finja que temos família em Molotov. Podemos muito bem ir para Chukhotka.
Tatiana interveio.
– Chukhotka... isso não fica perto do Círculo Ártico?
– Sim – disse Deda.
– Perto do Estreito de Bering?
– Sim – ele disse de novo.
– Bem, talvez devêssemos ir para Chukhotka – Tatiana disse –, se tivermos que ir a algum lugar.
– Chukhotka? Quem vai me dar permissão para ir para lá? – Deda protestou. – Vocês acham que posso ensinar matemática lá?
– Tania é uma boba – concordou Mamãe.
Tatiana ficou quieta. Ela não estava pensando em Deda, tampouco em suas aulas de matemática. Pensava em alguma coisa ridícula. Tão estranha que se não estivesse na frente de sua sentenciosa família, teria rido.
– Tania, por que você pensa no Estreito de Bering? – perguntou Deda.
– Ela sempre pensa em coisas extravagantes – Dasha entrou na conversa. – Ela tem uma vida interior extravagante.
– Eu não tenho vida interior, Dasha – disse Tatiana. – O que há do outro lado do Estreito de Bering?
– Ora, Alaska – disse Deda. – O que isso tem a ver com tudo?
– Sim, Tania, cale a boca, sim? – disse Mamãe.
Na noite seguinte, o pai de Tatiana voltou para casa com carnês de racionamento para a família.
– Podem acreditar? – ele disse. – Racionamento agora. Bem, podemos lidar com isso. Na verdade, não está tão ruim.
Os trabalhadores recebiam oitocentos gramas de pão por dia. Além disso, um quilo de carne por semana e meio quilo de cereais. Parecia muita comida.
– Mamãe, a senhora tentou telefonar ao Pasha? – Tatiana queria saber.
– Tentei – ela respondeu. – Até fui à cabine pública na Rua Ulitza Chelyavova. Não consegui falar. Tento novamente amanhã.
Era sinistra a informação vinda do front. Os boletins de guerra, colocados por toda Leningrado em placas de madeira, onde antes se colocavam os jornais diários, eram, por causa de seu tom vago, assustadores. O locutor de rádio dizia que o Exército Vermelho estava ganhando, mas as forças alemãs já ocupavam algum terreno.
Como era possível o Exército Vermelho estar ganhando se os alemães já ocupavam terreno? Tatiana se perguntava.
Alguns dias depois, Deda disse que eram boas as possibilidades de conseguir o posto de evacuação em Molotov e sugeriu que a família começasse a pensar em fazer as malas.
– Eu não vou embora sem o Pasha – fulminou Mamãe. – Além do mais – ela disse em uma voz mais calma –, agora estou fazendo uniformes para o Exército Vermelho na fábrica. Precisam de mim no esforço de guerra. – Ela assentiu. – Está tudo bem. A guerra vai acabar logo, vocês ouviram no rádio. O Exército Vermelho está ganhando. Eles estão repelindo o inimigo.
Deda balançou a cabeça.
– Oh, Irina Fedorovna – ele disse calmamente. – O inimigo é o Exército mais bem armado e mais bem treinado do mundo. Você não ouviu? Há dezoito meses a Inglaterra combate os alemães. Sozinha. A Inglaterra, com sua RAF, não venceu o inimigo.
– Sim, mas, Paposhka – Papai interveio na defesa de sua mulher –, agora os nazistas estão engajados numa guerra de verdade, não simplesmente numa guerra aérea. O front soviético é muito sólido. Os alemães terão conosco muitas dificuldades.
– Mas não vamos ficar para ver até que ponto.
Mamãe repetiu:
– Eu não vou embora.
Dasha disse:
– Concordo com Mamãe.
Claro que concorda, pensou Tatiana.
Pasha já não estava mais ali, e assim não disse nada.
Eles sentavam na sala comprida e estreita, Papai e Mamãe fumando, Baba e Deda balançando suas silenciosas e grisalhas cabeças. Dasha costurando.
Tatiana pensava: bom, eu também não vou embora.
Ela estava aprisionada. Havia cavado uma trincheira ao seu redor chamada Alexander, e dela não podia sair. Tatiana vivia para aquela hora noturna com ele, hora que a propelia ao futuro e para dentro de sentimentos incipientes e penosos, que não conseguia expressar nem entender.Amigos caminhando por um luminoso crepúsculo. Nada mais havia que ela pudesse receber dele, e o que ela mais queria de Alexander era aquela hora no fim do seu longo dia, quando seu coração batia, e seu fôlego era curto e ela estava feliz.
Em casa, Tatiana, rodeada por sua família, sentia-se protegia; contudo, afastava-se deles, queria estar longe deles. Ela os observava à noite, como fazia agora, observava o estado de espírito deles, não confiava nele.
– Mamãe, a senhora telefonou ao Pasha?
– Sim, eu consegui. Mas não houve resposta – Mamãe disse. – Ninguém atendeu no acampamento. Acho que disquei o número errado. Chamei então o vilarejo de Dohotino, onde está o acampamento, mas tampouco houve uma resposta do conselho soviético lá. Vou tentar de novo amanhã. Todo mundo está chamando. As linhas estão sobrecarregadas.
Mamãe tentou várias outras vezes, mas não houve nenhum sinal de Pasha, e não houve boas notícias do front, e não houve evacuação.
À noite, Alexander não ia ao apartamento. Dasha trabalhava até tarde. Dimitri estava perto da Finlândia.
Mas todo dia, depois do trabalho, Tatiana escovava os cabelos e corria para fora, pensando, por favor, esteja lá, e todo dia depois do trabalho, Alexander ali estava. Embora ele nunca mais a tenha convidado para ir ao Jardim de Verão, ou sentar no banco debaixo das árvores, ele tinha o seu quepe sempre nas mãos.
Exaustos e lentos, eles serpenteavam do bonde ao canal e ao bonde, e, relutantes, se despediam em Grechesky Prospekt, a três quarteirões de distância do edifício de Tatiana.
Durante suas caminhadas, às vezes eles falavam sobre a América de Alexander ou sua vida em Moscou, outras vezes falavam sobre o lago Ilmen de Tatiana e seus verões em Luga e, às vezes, conversavam sobre a guerra, cada vez menos por causa da preocupação com Pasha, e às vezes Alexander ensinava um pouco de inglês a Tatiana. Às vezes eles contavam piadas, às vezes mal se falavam. Algumas poucas vezes, Alexander deixou Tatiana carregar seu rifle como uma bengala enquanto ela percorria um alto rebordo ao lado do Canal Obvodnoy.
– Não caia na água, Tania – ele disse certa vez –, porque eu não sei nadar.
– Verdade? – ela perguntou incrédula, quase tropeçando.
Alexander segurou na ponta do rifle para equilibrar Tatiana, dizendo com um sorriso:
– É melhor nem saber, não é mesmo? Eu não quero perder minha arma.
– Está bem – Tatiana disse balançando precariamente no rebordo e rindo. – Sei nadar muito bem. Eu salvo sua arma para você. Quer ver?
– Não, obrigado.
E às vezes, quando Alexander falava, Tatiana sentia seu queixo cair, e de repente, toda sem jeito, percebia que de tanto olhar para ele sua boca ficava aberta. Ela não sabia o que olhar quando ele falava: seus olhos caramelados, que piscavam, e sorriam, e brilhavam, e que eram austeros, ou sua boca vibrante, que se mexia, e abria, e respirava, e falava. Os olhos de Tatiana iam dos olhos aos lábios dele, do cabelo ao queixo dele, como se temessem que ela perderia alguma coisa se não olhasse tudo de uma vez.
Alexander não queria falar sobre alguns pedaços de sua fascinante vida, e não falava.
Não sobre a última vez em que viu seu pai, não como se tornou Alexander Belove, não como recebeu sua medalha de herói. Tatiana não se importava com isso e nunca o pressionou. Dele ela receberia o que ele precisasse lhe dar, e ela, impaciente, esperava o resto.
11
– Meus dias são muito longos – Tatiana disse a ele numa noite de sexta-feira, com um sorriso cansado de alguém que trabalhara duramente 12 horas. – Hoje eu fiz um tanque inteiro para você, Alexander! Com uma estrela vermelha e o número 36. Você sabe dirigir um tanque?
– Melhor que isso – ele respondeu. – Eu sei comandá-lo.
– Qual é a diferença?
– Eu não faço nada, exceto gritar ordens e morrer.
Tatiana não sorriu de volta.
– Como isso é melhor? – ela murmurou. – Eu quero ser transferida para o setor de panificação. Ao invés de tanques, alguns sortudos estão fazendo pão.
– Quanto mais, melhor – disse Alexander.
– Tanques?
– Pão.
– Eles nos prometeram um bônus – você acredita? – se fizéssemos tanques além de nossa cota.
– Um bônus?
Tatiana riu.
– A economia do lucro durante a guerra: é estranho que tenhamos vontade de trabalhar duro por mais alguns rublos, isso contraria tudo o que nos ensinaram desde o nascimento – mas aí está.
– De fato, Tatiana, aí está – disse Alexander. – Mas não se preocupe, eles não vão parar de reconstruir você até que não queira trabalhar mais, mesmo que seja por alguns rublos a mais.
– Deixe de ser subversivo – ela sorriu. – Não é de admirar que você não esteja seguro. Seja como for, isso quase matou Zina. Ela disse que estava pronta para aderir aos Voluntários, que não poderia ser pior que esta pressão.
Alexander estava pensativo. A rua era ampla, mas eles andavam bem juntos, os braços se tocando.
– Zina tem razão – ele disse por fim. – Não se engane. Você ouviu a história de Karl Ots, não?
– Quem?
– Ele era o diretor da fábrica de Kirov quando ela ainda se chamava Putilov Works. Karl Martovich Ots. Depois do assassinato de Kirov, em 1934, Ots tentou manter a ordem, proteger os seus trabalhadores da ameaça de... retaliação, na falta de uma palavra melhor.
Tatiana ouvira alguma coisa sobre Sergei Kirov de seu pai e de seu avô.
– Prisão? Morte? – ela disse.
Alexander assentiu.
– Sim e sim. De todo modo, quando certo dia se inspecionava um tanque T-28, deu-se pela falta de um parafuso. O tanque estava prestes a ser entregue ao Exército. Houve, é claro, um escândalo e uma busca louca dos sabotadores inimigos. – Alexander respirou fundo. Tatiana esperou. – Ora, Ots sabia – ele continuou enquanto parava em um cruzamento – que havia sido simplesmente um erro estúpido, uma falha do mecânico que se esquecera de colocar o parafuso, nada mais, nada menos. Ots sabia, e por isso não permitiu uma caça às bruxas.
– Me deixe adivinhar – Tatiana disse. – Ele falhou.
– Era como entrar num tornado e dizer: mas é só um ventinho.
– Um tornado? – Tatiana perguntou intrigada.
Alexander continuou.
– Centenas de pessoas sumiram da fábrica. – Tatiana abaixou a cabeça.
– Ots?
– Hmm. Com ele sumiram seu competente sucessor, os chefes do departamento de contabilidade, as unidades de produção de tanques, departamento de pessoal, oficina de ferramentas, sem falar nos antigos trabalhadores da fábrica Putilov, os que haviam subido e ocupavam agora altas posições no governo, como o Secretário do Partido em Novosibirsk, o Secretário do Partido da região de Neva. Oh, e não vamos esquecer do prefeito de Leningrado, ele também sumiu.
O semáforo ficou verde e depois vermelho, verde outra vez. Quando ficou vermelho, os dois atravessaram a rua não mais tocando os braços. Tatiana estava bem pensativa. Finalmente ela falou:
– O que você está dizendo então é: cuidado com os parafusos?
– É o que estou dizendo.
– A Zina está certa. Não precisamos desse tipo de pressão. Ela está exausta. Tudo que ela quer é ir para Minskie ficar com a irmã.
Minski era a capital da Bielorrússia.
Alexander esfregou os olhos e ajustou o seu quepe.
– Diga a ela – ele disse tenso – para esquecer Minsky e que se concentre nos tanques. Quantos vocês devem fazer por mês?
– Cento e oitenta. Mas estamos ficando para trás.
– Eles estão pedindo muito de vocês.
– Espere, espere. – Tatiana pôs a mão no braço dele e então, surpresa, a retirou. – Por que esquecer Minski?
– Minski caiu nas mãos dos alemães há treze dias – Alexander disse num tom grave.
– O quê?
– Sim.
– Treze dias atrás? Oh, não, não. – Ela balançou a cabeça. – Não, Alexander, não pode ser. Minski está somente há poucos quilômetros ao sul de... – Tatiana não podia dizer.
– Poucos não, muitos – ele disse como que querendo consolar Tatiana. – Centenas de quilômetros.
– Não, Alexander – disse Tatiana, sentindo as pernas fraquejarem. – Não tanto. Por que você não me disse?
– Tania, é informação confidencial do Exército! Revelo o máximo que posso, e não mais. E fico torcendo para que você ouça no rádio alguma coisa que pareça verdadeira. Se você não ouvir nada, então eu lhe conto um pouco mais. Minski caiu depois de somente seis dias de guerra. Até mesmo o Camarada Stálin ficou surpreso.
– Por que ele não nos contou isso em sua fala da semana passada?
– Ele chamou vocês de irmãos e irmãs, não foi? Ele queria que vocês se levantassem com raiva e lutassem. Que benefício traria revelar o quanto os alemães entraram fundo na União Soviética?
– Quanto já conseguiram entrar?
Quando Alexander não respondeu, ela perguntou numa voz desesperada, mal conseguindo articular as palavras:
– E o nosso Pasha?
– Tania! – ele disse em voz alta. – Não entendo o que você quer que eu faça. Tenho vindo aqui e dito a você, desde o primeiro dia, para tirá-lo de Tolmachevo!
Tatiana virou o rosto e lutou para não chorar. Ela não queria que ele percebesse.
– Eles ainda não estão em Luga – disse Alexander mais baixinho. – Eles não chegaram a Tolmachevo. Mas não se preocupe. Só vou lhe dizer que no primeiro dia de guerra nós perdemos 1200 aviões.
– Eu não sabia que tínhamos 1200 aviões.
– Temos tudo isso.
– O que nós vamos fazer?
– Nós? – disse Alexander olhando para ela e fazendo uma pausa. – Eu já lhe disse, Tania. Vá embora de Leningrado.
– E eu disse a você que a minha família não vai embora sem o Pasha.
Alexander nada disse. Continuaram caminhando.
– Você está cansada? – ele perguntou baixinho. – Quer ir para casa?
Estou cansada. Não quero ir para casa.
Quando Tatiana não respondeu, Alexander disse:
– Quer caminhar até a Ponte do Palácio? Acho que eles ainda vendem sorvete numa loja perto do rio.
Depois de tomar o sorvete, Alexander e Tatiana caminhavam ao longo da represa do rio Neva, rumo oeste, na direção do pôr do sol e através do esplendor verde-branco do Palácio de Verão quando, do outro lado da rua, Tatiana percebeu um homem que a fez parar de repente.
Um homem alto, magro, de meia-idade, com uma longa e grisalha barba jupiteriana estava do lado de fora do Museu Hermitage, no rosto havia uma expressão de absoluto e despedaçado pesar.
No mesmo instante, Tatiana impressionou-se com aquele rosto. O que faria um homem ter aquele aspecto?
Ele estava em pé, na parte de trás de um caminhão militar, observando jovens carregando caixas de madeira rampa abaixo do Palácio de Verão. Eram essas caixas que ele olhava com tão profundo desgosto como se fosse a perda do seu primeiro amor.
– Quem é aquele homem? – ela perguntou, tremendamente abalada por sua expressão.
– O curador do Hermitage.
– Porque ele olha as caixas daquele jeito?
Alexander disse:
– Elas são a única paixão de sua vida. Ele não sabe se vai vê-las outra vez.
Tatiana olhou fixamente o homem. Ela quase queria ir confortá-lo.
– Ele devia ter mais fé, você não acha?
– Concordo, Tania. – Alexander sorriu. – Ele devia ter mais um pouquinho de fé. Terminada a guerra, ele verá suas caixas novamente.
– Do jeito que ele olha essas caixas, terminada a guerra, ele vai trazê-las de volta com as próprias mãos.
Quatro caminhões blindados de cor cinza estavam estacionados do lado de fora do museu.
– O que você acha que está acontecendo?
Alexander nada disse mas não deixou que ela fosse mais em frente, fazendo um sinal para que observasse. Logo mais quatro homens saíram pelas amplas portas verdes carregando caixas de madeira rampa abaixo. As caixas tinham buracos.
– Pinturas?
Ele concordou.
– Quatro caminhões carregados de pinturas?
– Isso não é nada. É só uma pequena porcentagem da carga.
– Alexander, por que eles estão removendo as pinturas do Hermitage?
– Porque tem uma guerra em andamento.
– Então eles estão levando obras de arte? – Tatiana disse indignada.
– Sim.
– Se estão tão preocupados com a chegada de Hitler a Leningrado, por que não evacuam as pessoas?
Alexander sorriu para ela, e Tatiana quase esqueceu sua pergunta.
– Tania, quem vai combater os nazistas se a população for removida? Pinturas não podem lutar por Leningrado.
– Espere, nós não temos treinamento de combate.
– Mas nós temos. Por isso estou aqui. Nossa guarnição é formada de milhares de soldados. Vamos proteger a cidade com uma barricada e lutar. Primeiro, vamos mandar o frontovik.
– Você quer dizer o Dimitri?
– Sim, ele. Nas ruas, e armado. Quando ele morrer, lá vou eu com um tanque, como aquele que você está fabricando para mim. Quando eu morrer, todas as barricadas derrubadas, todas as armas e tanques liquidados, eles enviarão você com um foguete.
– E quando eu morrer? – Tatiana perguntou.
– Você é a última linha de defesa. Quando morrer, Hitler marchará através de Leningrado como ele fez em Paris. Você se lembra disso?
– Isso não é justo, os franceses não lutaram – Tatiana disse, querendo estar longe dali, mas permanecendo diante dos homens carregando as pinturas do Hermitage e colocando-as em caminhões blindados.
– Eles não lutaram, Tania, mas você lutará. Por cada rua e por cada edifício. E quando você perder...
– A arte será salva.
– Sim! A arte será salva – Alexander disse emocionado. – E outro artista pintará um quadro glorioso, imortalizando você, na mão erguida um porrete, pronto para atingir o tanque alemão prestes a esmagá-la, tudo isso tendo ao fundo a estátua de Pedro, o Grande, cavalgando o seu cavalo de bronze. E essa pintura será exibida no Hermitage, e no começo da próxima guerra o curador de novo estará na rua, chorando por causa de suas caixas que desaparecem.
Tatiana observava os homens sumirem por trás das portas verdes, e um pouco depois descerem a rampa com mais caixas.
– Você faz parecer tudo tão romântico – ela disse a ele. – Do jeito que você fala, quase vale a pena morrer por Leningrado.
– E não vale a pena?
– Talvez não seja tão ruim ser um nazista. – Tatiana levantou o braço direito para frente e para cima. – Podemos saudar o Führer. De todo modo, saudamos o Camarada Stálin agora. – Ela dobrou o braço numa saudação. – Não seremos livres, seremos todos escravos. Mas e daí? Teremos comida, teremos nossa vida. Uma vida livre é melhor, mas qualquer vida é melhor que nenhuma vida, não é mesmo?
Como Alexander, olhando-a, não respondeu, Tatiana continuou:
– Não teremos como ir para outros países. Mas não podemos agora. Seja como for, quem quer ir para os cortiços do livre e dissoluto mundo Ocidental, onde estranhos se matam por cinquenta, como é? Centavos? Não é o que eles nos ensinam nas escolas soviéticas?
Tatiana perscrutou os olhos de Alexander.
– Sabe – ela disse –, talvez eu preferisse morrer diante do Cavaleiro de Bronze com uma pedra na mão e ter alguém mais para viver a liberdade que nem mesmo posso imaginar.
– Sim – Alexander disse com voz rouca –, você imaginaria.
E num gesto desesperado e terno ele colocou a palma da mão na pele nua de Tatiana bem debaixo da garganta dela. Sua palma era tão grande que a cobria da clavícula até em cima do seio. O coração de Tatiana quase voou para fora do peito, para a mão dele.
Tatiana, indefesa, olhou para ele e o observou inclinar-se para ela, mas um guarda fardado apareceu na esquina e gritou:
– Vocês dois saiam! Saiam! O que vocês estão olhando? O que tem aí para olhar? Chega! Vocês já viram tudo. Saiam!
Alexander tirou sua mão de Tatiana, virou-se e olhou o guarda, que recuou, resmungando que oficiais do Exército Vermelho estavam tão sujeitos à lei como qualquer outro cidadão.
Quando eles se despediram, minutos depois, não falaram sobre o que acontecera, mas Tatiana não podia olhar para Alexander, coisa conveniente, porque ele também não olhou para ela.
Em casa ela encontrou um jantar de batatas frias e cebolas fritas frias. Tatiana comeu rápido e depois subiu ao telhado, onde se sentou para vigiar aviões inimigos, mas os aviões podiam vir e arrasar a cidade inteira porque Tatiana só podia ver os olhos apaixonados de Alexander, tudo o que podia sentir era a mão apaixonada de Alexander e seu coração disparado.
Em algum lugar, naquelas semanas, Tatiana perdera sua inocência. A inocência da honestidade fora embora para sempre, pois ela sabia que teria que viver no engano, a cada dia em verso e prosa, fechada entre as quatro paredes, na mesma cama, a cada noite quando os seus pés tocassem os de Dasha, viveria no engano. Porque ela se apaixonou por ele.
Mas o que Tatiana sentia por Alexander era verdadeiro.
O que Tatiana sentia por Alexander era imune aos reclamos da consciência.
Oh, andar por Leningrado noite branca após noite branca, a madrugada e o crepúsculo se fundindo como minério de platina. Tatiana pensou, virando-se para a parede, de novo, para a parede, para a parede, como sempre: Alexander, minhas noites, meus dias, cada pensamento meu. Você logo se afastará de mim, não é? E eu serei inteira outra vez, e vou me apaixonar por alguém mais, como todo mundo faz.
Minha inocência, porém, foi-se para sempre.
12
Dois dias depois, no segundo domingo de julho, Alexander e Dimitri, vestidos com roupas civis, visitaram Tatiana e Dasha. Alexander trazia calças de linho preto e uma camisa branca de algodão, de mangas curtas. Tatiana nunca o havia visto de mangas curtas antes, nunca havia visto pele, além de seu rosto e mãos. Seus antebraços eram musculosos e bronzeados, seu rosto bem barbeado. Ela nunca o vira bem barbeado. No começo da noite, Alexander sempre tinha barba por fazer. Tatiana pensou, seu coração batendo por ele, que parecia quase dono de uma beleza impossível.
– Onde vocês, meninas, querem ir? Vamos a algum lugar especial – disse Dimitri. – Vamos a Peterhof.
Eles embrulharam um pouco de comida e foram pegar o trem na Estação Varsóvia.
Peterhof ficava a uma hora de trem. Os quatro caminharam um quarteirão ao longo do Canal Obvodnoy, onde Alexander e Tatiana passeavam todos os dias.
Tatiana caminhava em silêncio. A certa altura, quando Alexander pulou fora do pavimento estreito e caminhou adiante dela com Dasha, seu braço nu roçou o braço nu de Tatiana.
No trem Dasha disse:
– Tania, diga ao Dima e ao Alex como você chama Peterhof. Diga-lhes.
Tatiana interrompeu seus pensamentos.
– O quê? Oh, eu chamo de Versalhes da União Soviética.
Dasha disse:
– Quando Tania era ainda menininha, ela queria ser uma rainha e morar no grande palácio, não é, Tanechka?
– Hmm.
– Como os meninos em Luga chamavam você?
– Não me lembro, Dasha.
– Não, eles te chamavam de uma maneira tão engraçada. A rainha do... a rainha do...
Tatiana olhou para Alexander, que olhou para Tatiana.
– Tania – Dimitri perguntou. – Qual teria sido o seu primeiro ato como rainha?
– Restaurar a paz na monarquia – ela disse. – E depois decapitar todos os transgressores.
Todos riram. Dimitri disse:
– Senti saudades suas, Tania.
Alexander parou de rir e olhou pela janela. Tatiana também olhou pela janela. Eles sentavam em diagonal, um de frente para o outro.
Dimitri tocou o rabo de cavalo bem arrumado de Tatiana e disse:
– Tania, por que você não solta os cabelos? Eu vi uma vez assim. Tão bonito.
Dasha disfarçou e disse:
– Dima, esqueça, ela é tão teimosa. Nós dissemos a ela, uma e outra vez: “Por que você mantém o cabelo tão longo se não faz nada com ele?” Mas não. Ela nunca solta os cabelos, não é, Tania?
– Não, Dasha – disse Tatiana, querendo ter por perto a sua parede, qualquer coisa, de forma que o seu rosto vermelho não fosse visto pelos olhos cheios de Alexander.
– Desmancha agora o seu rabo de cavalo, Tanechka – disse Dimitri. – Vai!
– Vai, Tania – disse Dasha.
Devagar, Tania tirou o elástico de seu cabelo e virou-se para a janela, não mais falando até a parada onde iam descer.
Em Peterhof, ao invés de fazer um trajeto organizado, eles passearam ao redor do palácio e seus terrenos bem cuidados, finalmente encontrando um lugar isolado no jardim, sob as árvores, perto da Grande Fonte de Cascata, para fazer o seu piquenique.
Cheios de apetite, eles comeram o lanche de ovos cozidos e pão e queijo. Dasha até trouxera vodca. Ela, Alexander e Dimitri beberam da garrafa, mas Tatiana não quis.
Todos fumaram, menos Tatiana.
– Tania – Dimitri disse –, você não fuma, não bebe. O que você faz?
– Cambalhotas! – exclamou Dasha. – Não é, Tania? Lá em Luga, Tania ensinou todos os meninos a dar cambalhotas.
– Todos os meninos? – disse Alexander.
– Sim, sim – ecoou Dimitri. – Havia meninos em Luga.
– Como moscas em cima de Tania.
– Do que você está falando, Dasha? – Tatiana disse, de repente, embaraçada. Com esforço evitou os olhos de Alexander.
Dasha beliscou Tatiana na coxa.
– Tania, diga ao Dima e ao Alex como aqueles animais nunca deixavam você em paz. – Ela riu. – Você era como mel para ursos.
– Sim, conta pra gente! – disse Dimitri.
Alexander nada disse.
Tatiana ficou vermelha como uma beterraba.
– Dasha, eu tinha talvez sete anos. Havia um grupo. Meninos e meninas.
– Sim, e eles todos se agitavam ao seu redor – Dasha completou olhando com carinho para Tatiana. – Nossa Tania era a criança mais graciosa. Tinha olhos redondos como botões, sim, e aquelas pequenas sardas, e não somente cabelos loiros, mas brancos-loiros! Ela era como uma bola de luz do sol, branca, ao redor de Luga. Todas as senhoras mais velhas queriam segurá-la.
– Só as senhoras mais velhas? – Alexander perguntou em cima.
– Faça uma cambalhota, Tania – disse Dimitri com a mão nas costas de Tatiana. – Mostre o que você pode fazer.
– Sim, Tania! – Dasha disse. – Vai. Este é o lugar perfeito para isso, você não acha? Aqui, diante de um palácio majestoso, fontes, jardim, gardênias em flor.
– Alemães em Minski – disse Tatiana, tentando evitar olhar para Alexander, deitado no cobertor ao seu lado, apoiado no cotovelo. Ele parecia tão descontraído, tão familiar, tão...
E ainda assim, ao mesmo tempo, profundamente intocável e inatingível.
– Esqueça os alemães – disse Dimitri. – Este é o lugar para o amor.
É o que Tatiana temia.
– Vamos, Tania. – Alexander disse, bem suave, sentando e cruzando as pernas. – Vamos ver essas famosas cambalhotas. – Ele acendeu um cigarro.
Dasha cutucou a irmã.
– Nunca se diz não a uma cambalhota.
Tatiana hoje queria dizer não.
Ela suspirou e levantou-se do velho cobertor.
– Bom. Francamente, eu não sei que espécie de rainha eu seria, dando cambalhotas para os meus súditos.
Tatiana usava um vestido, não o vestido, mas um vestido de verão rosa e casual. Ela se afastou alguns metros do grupo e disse:
– Estão prontos?
E, à distância, viu como os olhos de Alexander a devoravam.
– Observem – ela disse, pondo o pé direito para a frente.
Ela se lançou para baixo apoiada no braço direito, balançando o corpo num perfeito arco ao redor do braço esquerdo e depois o pé esquerdo, e então, sem inspirar e com os cabelos voando, girou, uma e outra vez num círculo empírico, numa trajetória para baixo sob a grama, na direção do Grande Palácio, na direção da infância e inocência, distante de Dimitri e Dasha e Alexander.
Quando ela voltou, o rosto vermelho e os cabelos despenteados, ela se permitiu olhar o rosto de Alexander. Tudo o que ela queria ver, lá estava.
Rindo, Dasha, caiu em cima de Alexander e disse:
– O que eu disse a vocês? Ela tem talentos ocultos.
Tatiana abaixou os olhos e sentou no cobertor.
Dimitri esfregou as costas de Tatiana e disse:
– Hmm, Tania, que outros truques você tem na cartola?
– É isso aí – ela respondeu secamente.
Pouco depois, Dimitri, perguntou:
– Dasha, Tania, meninas, como vocês definem amor?
– O quê?
– Como vocês definiriam amor? O que o amor significa para vocês?
– Dima! Quem quer saber? – Dasha sorriu para Alexander.
– É só uma pergunta, Dasha.
Dimitri bebeu um pouco mais de vodca.
– Este é um bom lugar, um belo domingo para essa pergunta. – Ele sorriu para Tatiana.
– Não sei, Alexander. Devo responder isso? – Dasha perguntou.
Alexander, fumando, deu de ombros e disse:
– Responda se quiser.
O cobertor era muito pequeno para os quatro, Tatiana pensou.
Ela sentava numa posição de lótus, Dima, à sua esquerda, de barriga pra baixo, e Alexander e Dasha à sua frente. Dasha inclinada sob Alexander.
– Muito bem. Amor... Vamos ver – disse Dasha. – Me ajude aqui, Tania, sim?
– Dasha, você pode fazer isso, eu sei que pode. – Tatiana não queria dizer que Dasha já tinha muita experiência.
– Hmm... Amor... Amor é... Quando ele chega, como disse que ia chegar – ela disse, cutucando Alexander. – Amor é quando ele demora, mas diz que sente muito. – Ela sorriu. – Amor é quando ele não olha nenhuma outra menina, só a mim. – Ela o cutucou duas vezes. – Que tal?
– Muito bom, Dasha – disse Alexander.
Tatiana tossiu.
– Tania! O quê?
– Você não gostou? – Dasha perguntou.
– Não, não. É muito bom. – Mas era claro em sua voz um tom hesitante, provocador.
– O quê, alguma objeção inteligente. O que eu não disse?
– Oh, não. Dasha. Tudo. Mas me parece que o que você descreveu significa o que é ser amado. – Ela fez uma pausa. Ninguém mais falou. – Não é o amor que você dá a ele, não o que ele dá a você? Há alguma diferença? Estou completamente errada?
– Completamente – disse Dasha sorrindo a Tatiana. – O que você sabe?
– Nada – Tatiana disse, sem olhar a ninguém.
– Tanechka – disse Dimitri –, o que você acha que é o amor?
Tatiana sentiu que ali vinha uma armadilha.
– Tania? Diga-nos. O que significa o amor para você – Dimitri repetiu.
– Sim, vá em frente – disse Dasha. – Diga ao Dimitri o que o amor significa para você.
E num tom de voz afetuoso e provocador, Dasha disse:
– Para Tania, vejamos, amor significa ficar sozinha no verão inteiro para ler em paz. Amor é... dormir até mais tarde, esse é o amor número um. Amor é... sorvete de crème brûleé; não, esse é o amor número um. Tania, diga a verdade, se você pudesse dormir até tarde, todo o verão, e ler enquanto toma sorvete o dia inteiro, não me diga que isso não seria a maior felicidade! – Dasha riu. – O amor, é, oh, eu sei... Deda! Ele é o número um. Amor é este Grande Palácio. Amor é nos contar aquelas piadas bobas, tentando nos fazer rir. Amor é Pasha... ele é definitivamente número um. Amor é... oh! Cambalhotas nuas! – Dasha exclamou com alegria.
– Cambalhotas nuas? – perguntou Alexander, que não tirara os seus olhos de cima de Tatiana.
Dimitri disse:
– Podemos ver isso?
– Oh, Tania! Eles deviam ver como você faz aquelas cambalhotas! No lago Ilmen ela se lançava, nua, cinco vezes na água. – O rosto de Dasha era só prazer. – Espere, é isso! É como você era chamada. Os garotos chamavam você de rainha das cambalhotas do lago Ilmen!
– Sim – disse Tatiana calmamente. – Não a rainha nua das cambalhotas do Lago Ilmen.
Alexander tentava conter o riso. Dasha e Dimitri rolavam no cobertor. Tatiana, vermelha, jogou um pedaço de pão na irmã e disse:
– Eu tinha sete anos, Dashka.
– Você tem sete agora.
– Cale a boca.
Dasha jogou Tatiana para trás e pulou em cima dela.
– Tania, Tania, Tania – ela gritava, fazendo cócegas em Tatiana –, você é a garota mais divertida.
E quando estava bem perto do rosto de Tatiana, ela disse:
– Olhe todas as suas sardas. – Dasha inclinou a cabeça e as beijou. – Elas realmente pipocaram. Você tem andado muito ao ar livre. Você não caminha de Kirov para casa, não é?
– Não, e saia de cima de mim. Você é muito pesada – disse Tatiana, fazendo cócegas na irmã e empurrando-a.
Dimitri disse:
– Tania, você não respondeu à pergunta.
– Sim – disse Alexander. – Deixem Tatiana responder à pergunta.
Custou um pouco a Tatiana recuperar o fôlego. Finalmente, ela disse:
– Amor é...
E com o coração pulsante, ela pensou sobre o que podia dizer e o que seria uma grande mentira. Qual seria a verdade? Meia verdade, verdade inteira? Quanto ela poderia dar agora? Conhecendo quem a ouvia.
– Amor é – ela repetiu devagar, olhando só para Dasha – quando ele tem fome e você o alimenta. Amor é saber quando ele tem fome.
Dasha disse:
– Mas, Tania, você não sabe cozinhar! Ele morreria de fome, não é mesmo?
Dimitri gargalhou.
– E quando ele estiver excitado, o que você faz então? – De tanto rir, ele começou a soluçar. – O amor é saber quando ele está excitado e alimentá-lo?
– Cale a boca, Dimitri – disse Alexander.
– Dima, você é tão vulgar – disse Dasha. – Você não tem classe. – Virando-se para Alexander e sorrindo, ela o puxou de leve e disse numa voz ansiosa. – Tudo bem, agora é sua vez.
Tatiana, sentada quieta em sua posição de lótus, olhou mais além de Alexander na direção do Grande Palácio, pensando na sala do trono dourado e todos os seus sonhos florescendo aqui em Peterhof quando ela era uma criança.
– Amor é ser amado – disse Alexander – em retorno.
Lábio inferior trêmulo, Tatiana não tirava os olhos de Pedro, O Grande, do Palácio de Verão.
Dasha inclinou-se a ele com um sorriso.
– Que bonito, Alexander.
Somente quando eles se levantaram e dobraram o cobertor para pegar o trem de volta, ocorreu a Tatiana que ninguém perguntara a Dimitri o que o amor significava para ele.
Naquela noite, quando ela se virou para a parede, sentiu-se tomada, desde o mais fundo dos seus ossos, por um tremendo remorso com Alexander. Afastá-lo assim de Dasha era como admitir o inadmissível, aceitar o inaceitável, perdoar o imperdoável. Afastar-se significava que a desilusão se tornaria seu modo de vida, enquanto ela tivesse uma parede obscura para colocar o seu rosto.
Como podia Tatiana viver uma vida, respirar em uma vida em que ela podia dormir junto de sua irmã, de costas, todas as noites? Sua irmã, que, doze anos atrás, a ajudava a colher cogumelos só com uma cestinha, nem faca e nem bolsa de papel. “E assim os cogumelos não teriam medo”, Dasha dissera. Sua irmã, que ensinou Tatiana a amarrar os sapatos aos cinco anos e andar de bicicleta aos seis, e comer trevo. Sua irmã, que dela cuidou verão após verão, que acobertou todas as suas travessuras, que para ela cozinhou e fez tranças em seu cabelo e deu-lhe banho quando ela era pequena. Sua irmã, que certa vez, numa saída noturna a levou junto com os seus namorados rebeldes, fazendo com que Tatiana visse como os homens jovens se comportavam com as mulheres jovens. Tatiana ficara em pé, toda sem jeito encostada na parede da Avenida Nevsky comendo o seu sorvete enquanto os rapazes mais velhos beijavam as meninas mais velhas. Dasha nunca mais levou a irmã com ela, e, depois daquela noite, passou a protegê-la mais do que nunca.
Tatiana não podia continuar assim, nem mais um dia.
Ela precisava pedir a Alexander que não fosse mais a Kirov.
Tatiana sentia de um jeito, isso era indiscutível, mas tinha que comportar-se de outra maneira. Isso também era indiscutível.
Ela se virou da parede para Dasha e suavemente acariciou os espessos cachos de sua irmã.
– Sensação gostosa, Tanechka – murmurou Dasha.
– Eu te amo, Dasha – disse Tatiana, enquanto suas lágrimas escorriam no travesseiro.
– Mmm, eu também te amo, agora durma.
Enquanto a sua mente estabelecia a lei inatacável do certo e do errado, a respiração de Tatiana sussurrava o nome dele na batida rítmica do seu coração. SHU-rah, SHU-rah, SHU-rah.
13
Na segunda-feira depois de Peterhof, quando Alexander, sorridente, encontrou Tatiana em Kirov, ela, muito séria, disse-lhe antes mesmo de um oi:
– Alexander, você não pode vir mais aqui.
Ele, não mais sorrindo, ficou em silêncio diante dela, por fim cutucando-a com a mão.
– Vamos andar.
Caminharam o longo quarteirão até Govorova.
– Qual é o problema? – Ele olhava para o chão.
– Alexander, eu não posso mais fazer isso. Simplesmente não posso.
Ele permaneceu calado.
– Não posso mais – disse Tatiana, apoiada no pavimento de concreto sob os seus pés.
Ela achava ótimo andar e não ter que olhar o rosto dele.
– É muito duro para mim.
– Por quê?
– Por quê? – Desconcertada pela pergunta, ela ficou em silêncio.
Não podia dizer em voz alta nenhuma de suas respostas.
– Somos apenas amigos, Tania, certo? – Alexander disse baixinho. – Bons amigos, eu venho porque sei que você está cansada. Teve um longo dia, tem um longo caminho para casa e uma longa noite pela frente. Eu venho porque, às vezes, você sorri quando está comigo, e eu acho que você está feliz. Estou errado? É por isso que eu venho. Assim de simples.
– Alexander! – ela exclamou. – Sim, nós fingimos não estarmos a fim de muita coisa. Mas, por favor. – Ela respirou fundo. – Por que você não diz a Dasha então que me traz de Kirov até em casa? Por que todos os dias descemos três quarteirões antes do meu edifício?
Devagar, ele disse:
– Dasha não entenderia, isso a magoaria.
– Claro que a magoaria!
– Mas, Tania, isto nada tem a ver com Dasha.
Os esforços de Tatiana para ficar calma empalideciam seus dedos.
– Alexander, isto tem tudo a ver com Dasha. Não posso, noite após noite, dormir ao lado dela com medo, por favor – ela disse.
Eles chegaram no ponto do bonde. Alexander estava diante dela.
– Tania, olhe para mim.
Ela virou a cabeça para o outro lado.
– Não.
– Olhe para mim – ele disse, pegando as duas mãos de Tatiana.
Ela levantou os olhos para Alexander. Suas mãos grandes a reconfortaram.
– Tatia, olhe para mim e diga: Alexander, não quero que você venha mais.
– Alexander – ela disse num sussurro –, não quero que você venha mais.
Ele não soltou as mãos dela nem se afastou. Nem ela se afastou.
– Depois de ontem, você não quer que eu venha mais? – ele perguntou com a voz bem fraca.
Tatiana não podia olhar para ele enquanto falava.
– Principalmente depois de ontem.
– Tania! – ele exclamou de repente. – Vamos contar a ela!
– O quê? – Ela pensou que ouvira mal.
– Sim! Vamos contar a ela.
– Contar a ela o quê? – Tatiana disse. A língua subitamente cheia de medo congelado. Ela tremeu toda em sua blusa sem mangas. – Não há nada a contar para ela.
– Tatiana, por favor! – Os olhos de Alexander brilharam. – Vamos contar a verdade e viver com as consequências. Vamos fazer a coisa honesta. Ela merece isso. Vou esclarecer isso com ela e...
– Não! – Ela tentou livrar as mãos. – Por favor, não. Por favor. Ela vai ficar arrasada.
Ela fez uma pausa.
– Temos que pensar nos outros.
– E nós? – Ele apertou as mãos dela. – Tania... – ele murmurou. – E como ficamos eu e você?
– Alexander! – Ela era só nervos. – Por favor...
– Por favor, digo eu! – ele falou alto. – Estou farto disso! Tudo porque você não quer fazer a coisa certa.
– E quando é certo magoar outras pessoas?
– Dasha supera isso.
– E o Dimitri?
Quando Alexander não respondeu, Tatiana repetiu:
– E o Dimitri?
– Deixe que eu me preocupo com o Dimitri, tudo bem?
– E você se engana. A Dasha nunca vai superar isso. Ela pensa que você é o amor da vida dela.
– Ela pensa errado. Nem mesmo me conhece.
Tatiana não podia ouvir mais nada. Puxou as suas mãos.
– Não, não! Pare de falar!
Alexander estava adiante dela na rua.
– Eu sou um soldado do Exército Vermelho. Não sou um médico na América. Não sou um cientista na Grã-Bretanha. Eu sou um soldado na União Soviética. Eu posso morrer a qualquer minuto, de mil maneiras diferentes, de hoje até domingo. Este pode ser o último minuto em que estamos juntos. Você não quer passar esse minuto comigo?
Hipnotizada por ele, Tatiana resmungou:
– Neste momento, eu só quero me enfiar na cama...
– Sim – ele exclamou com fervor –, enfie-se na cama comigo!
Enfraquecida, Tatiana balançou a cabeça.
– Não temos lugar algum para ir... – ela sussurrou.
Alexander aproximou-se e pegou o rosto de Tatiana, enquanto dizia numa voz trêmula, cheia de coragem:
– Vamos resolver isso, Tatiasha, eu prometo, de alguma forma nós...
– Não! – ela gritou. Ele abaixou as mãos. – Você... entendeu mal – gaguejou. – Eu quis dizer que não há nada que fazer por nós.
Os olhos dele abaixaram. Os dela também.
– Ela é minha irmã – Tatiana disse. – Por que você não entende isso? Não partirei o coração de minha irmã.
Alexander deu um passo atrás e disse friamente:
– Oh, tudo bem, você já me disse. Haverá outros rapazes. Mas não outra irmã.
Sem mais uma palavra, ele se virou e começou a ir embora.
Tatiana correu atrás dele.
– Alexander, espere!
Ele continuou andando.
Tatiana não podia alcançá-lo.
– Por favor, espere!
Ela o chamou já na Ulitsa Govorova. Apoiou-se na parede de um edifício de estuque amarelo, sussurrando:
– Volte, por favor.
Alexander voltou.
– Vamos embora – ele disse de forma neutra. – Tenho que voltar às barracas.
Tatiana insistiu.
– Ouça. Se pararmos agora pelo menos não haverá nada a contar às pessoas próximas a nós, que nos amam, que dependem de nós para não serem traídas. Dasha...
– Tatiana!
Tão de repente Alexander se aproximou que ela cambaleou para trás, largou da parede e quase caiu. Ele a susteve pelos braços.
– Do que você está falando? – ele disse. – A traição é uma coisa objetiva. Você acha que só porque ainda não contamos para eles, não é uma traição?
– Pare.
Ele não parou.
– Você acha que não pode olhar para mim porque tem medo que todo mundo veja o que eu vejo, isso não é uma traição? Quando o seu rosto se ilumina de longe, quando você sai voando do seu estúpido emprego? Quando você solta os seus cabelos, quando esses seus lábios tremem? Não estão traindo a você? – Ele respirava ofegante.
– Pare com isso – ela disse, vermelha, irritada, tentando sem sucesso soltar-se dele.
– Tatiana, cada minuto que você passou comigo, você mentiu para a sua irmã, mentiu para o Dimitri, aos seus pais, a Deus e a você mesma. Quando você vai parar?
– Alexander – Tatiana disse em um sussurro –, pare você.
Ele a soltou, ela estava ofegante.
– Você tem razão – Tatiana disse, sem poder respirar direito –, mas eu não menti a mim mesma. É por essa razão que não posso mais continuar com isso. – Fez uma pausa. – Por favor... não quero brigar com você e não tenho forças para magoar a Dasha. Não tenho força para nada disso.
– A força ou o desejo, Tania?
Ela abriu as mãos como rezando e disse:
– A força. Eu nunca menti na minha vida como agora. – Ao perceber o que admitia, Tatiana, ruborizada, sentiu-se constrangida, mas o que ela podia fazer? Tinha que continuar, com coragem. – Você não tem ideia do que me custa cada dia, cada minuto, cada noite, me esconder de Dasha. Meu olhar perdido, meus dentes cerrados, meu leve desligamento...Você tem alguma ideia do que me custa tudo isso?
– Oh, eu tenho – ele disse, com a severidade dos soldados. – Eu sou aquele que sabe a verdade. E por isso eu quero acabar com esta charada.
– E depois como fica? – Tatiana exclamou, furiosa. – Você já pensou em tudo isso? – Ela levantou a voz – Você acaba com isso e depois como fica? Eu tenho que continuar vivendo com a Dasha! – Exasperada, ela riu. – O que você acha, acha que pode me encontrar depois que terminar com ela? Você acha que, depois de eu contar para ele, e contar para ela, você pode vir jantar comigo em casa? Conversar com a minha família? E, Alexander, como eu fico? Para onde devo ir? Às barracas com você? Você não entende que eu durmo na mesma cama com ela? E que eu não tenho para onde ir! – Tatiana gritou. – Entenda – ela disse –, você pode fazer o que quiser, pode terminar com a Dasha, mas, se fizer isso, nunca mais vai me ver.
– Não me ameace, Tatiana – Alexander disse em voz alta, olhos fulminantes. – E eu pensei que aquilo era o ponto central de tudo isso.
Tatiana gemeu, quase chorando.
Ele abaixou a voz e disse:
– Tudo bem, não se aborreça. – Ele acariciou o braço de Tatiana.
– Então pare de me aborrecer!
Ele tirou a mão.
– Continue com a sua vida – Tatiana disse. – Você é um homem. – Ela abaixou os olhos. – Continue com a Dasha, ela é perfeita para você. Ela é uma mulher e eu sou...
– Cega! – Alexander exclamou.
Tatiana permanecia na Ulitsa Govorova, desolada pela derrota na batalha do seu coração.
– Oh, Alexander – ela disse. – O que você quer de mim...
– Tudo! – ele sussurrou num tom feroz.
Tatiana balançou a cabeça, fechando os punhos no seu próprio peito.
Alexander passou a mão pelos cabelos de Tatiana e disse:
– Tatia, estou lhe pedindo pela última vez.
– E estou lhe dizendo pela última vez – ela disse, mal conseguindo dizer as palavras.
Firme, Alexander parou de tocá-la.
Ela deu um passo à frente, nele colocando a sua mão gentil.
– Shura... eu não sou dona da vida de Dasha – Tatiana disse. – Não posso sacrificar a vida de minha irmã. Eu não posso fazer isso só para agradar a você e a mim.
– Está bem – ele interrompeu, tirando o braço. – Você foi muito clara. Vejo agora que me enganei a seu respeito. Você pode parar agora. Mas eu lhe digo, vou agir da minha maneira e não da sua. Vou terminar com a Dasha, e você não me verá mais.
– Não, por favor...
– Vá embora – Alexander disse apontando a rua. – Afaste-se de mim e vá para casa. Volte para sua Dasha.
– Shura... – ela disse angustiada.
– Não me chame assim – a voz dele era fria. Ele cruzou os braços. – Vá, eu disse! Vá embora!
Tatiana piscou. Todas as noites, quando eles se despediam, um suspiro dolorido saía de seus pulmões onde Alexander havia estado. Ela se sentia fisicamente mais vazia na ausência dele. E no seu quarto ela se rodeava de outras pessoas para senti-lo menos, querê-lo menos. Mas todas as noites, invariavelmente, Tatiana tinha que se deitar ao lado de sua irmã, e todas as noites virava-se para a parede implorando por força.
Posso fazer isso, ela pensou. Passei dezessete anos com Dasha e só três semanas com Alexander. Posso fazer isso. Sentir de um jeito. Comportar-me de outro, também.
Tatiana virou-se e foi embora.
14
Fiel à sua palavra, quando Dasha veio vê-lo novamente, Alexander a levou para uma curta caminhada na Rua Nevsky e disse a ela que precisava de algum tempo para pensar sobre a situação. Dasha chorou, ele detestou isso, porque odiava ver uma mulher chorando, e ela suplicou, coisa de que ele também não gostou muito. Mas não cedeu. Alexander não podia dizer a Dasha que estava furioso com a sua irmã menor. Furioso com uma coisa pequena, tímida, que caberia na palma de sua mão, se ela se agachasse, mas ela não se rendia nem um centímetro, nem mesmo para ele.
Poucos dias depois, Alexander quase se sentiu contente por não ver mais o rosto de Tatiana. Ele soube que os alemães estavam a apenas dezoito quilômetros ao sul da escassamente fortificada linha de Luga; por sua vez, a só dezoito quilômetros ao sul de Tolmachevo.
Informação chegada à guarnição dizia que os alemães haviam vasculhado a cidade de Novgorod em questão de poucas horas. Novgorod, a cidade ao sudeste de Luga, foi onde Tatiana deu uma cambalhota e caiu no lago Ilmen.
O Exército de Voluntários do Povo, embora composto de milhares de integrantes, mal começara a cavar as trincheiras em Luga.
Em antecipação à ameaça dos finlandeses, grande parte dos recursos para campos minados, trincheiras antitanque e reforços de concreto haviam sido enviados ao norte de Leningrado. A linha do front Finlandês – Soviético, ao sul de Karelia, era a mais bem defendida na União Soviética, e a mais tranquila. Dimitri devia estar feliz, Alexander pensou.
Contudo, o avanço precipitado de Hitler ao sul de Leningrado pegara o Exército Vermelho de surpresa. E eles se mobilizaram rápido para construir uma linha de defesa ao longo de 125 quilômetros do rio Luga, do lago Ilmen à Narva. Houve alguns entrincheiramentos, colocação de alguns canhões, algumas armadilhas para tanques, mas não era suficiente. O comando de Leningrado, percebendo que alguma coisa precisava ser feita de imediato, carregou as barreiras de concreto de tanques de Karelia e as despachou de caminhão para Luga.
Enquanto isso o Exército Vermelho vinha recuando depois de dias de combate constante.
Não era só uma retirada. Era ceder terreno aos alemães numa média de quinhentos quilômetros nas três primeiras semanas de guerra. Não havia mais apoio aéreo, e os poucos tanques do Exército Vermelho eram insuficientes, apesar dos melhores esforços de Tatiana.
Em meados de julho, o Exército resumia-se quase todo a esquadrões armados com rifles contra as unidades alemãs de tanques, os Panzer, artilharia móvel, aviões e infantaria. Os soviéticos ficavam sem armas e sem homens. A esperança na defesa de Luga agora recaía nas hordas dos Voluntários do Povo, que não tinham treinamento e, pior ainda, não tinham rifles. Eles eram apenas um muro de homens velhos e mulheres jovens, levantando-se contra Hitler. As armas que conseguiam eram tiradas dos soldados mortos do Exército Vermelho. Alguns voluntários tinham pás, machados e picaretas, mas muitos deles nem isso.
Alexander nem queria pensar sobre como pedaços de pau enfrentariam os tanques alemães. Ele sabia.
Fumaça e trovão
1
O mundo de Tatiana mudara depois que Alexander deixou de vê-la. Ela era agora uma das últimas pessoas a sair do trabalho. Enquanto, devagar, passava pelas portas duplas da fábrica, ela ainda virava a cabeça na esperança de que talvez o veria, sua farda, seu rifle, o quepe em suas mãos.
Tatiana andava ao longo do muro de Kirov, esperando que os ônibus recolhessem passageiros. Ela sentava no banco e esperava por ele. E depois caminhava os oito quilômetros de volta à Quinta Soviet, procurando por ele, vendo-o, na verdade, em todo lado.
Quando chegava em casa às onze ou mais tarde, o jantar preparado pela família às sete da noite estava passado e frio. Todos ali, tensos, ouviam o rádio, não falando sobre a única coisa que tinham em mente, Pasha.
Certa noite Dasha chegou em casa chorando e disse a Tatiana que Alexander queria dar um tempo. Ela chorou durante cinco minutos, enquanto Tatiana acariciava as suas costas.
– Bom, não vou desistir, Tania – disse Dasha. – Não vou desistir. Ele significa muito para mim. Alguma coisa acontece com ele. Acho que tem medo de compromissos, como a maioria dos soldados. Mas eu não vou desistir. Ele disse que precisa de um pouco de tempo para pensar. Isso não significa para sempre; é só até ele mesmo resolver as suas dúvidas, certo?
– Não sei, Dashenka. – Que tipo de pessoa disse que ia fazer alguma coisa e assim fez? Ninguém que Tatiana conhecesse.
Dimitri veio visitá-la uma vez, e eles passaram uma hora juntos rodeados pela família. Ela se surpreendeu um pouco por ele não ter aparecido mais vezes, mas ele deu uma desculpa, que a ela soou fraca. Ele parecia distraído. Não tinha informação sobre a posição dos alemães na União Soviética. O toque de sua boca no rosto de Tatiana, no final da noite, resultava tão distante quanto a Finlândia.
Lá em cima, no telhado, os garotos do prédio procuravam se divertir desativando bombas incendiárias. Não havia bomba alguma. Era uma noite silenciosa, exceto pela risada de Anton e seus amigos perto dela e pelas batidas de seu coração.
Lá em cima, no telhado, Tatiana pensava sobre o minuto noturno, o minuto em que ela costumava passar pelas portas da fábrica, virar a cabeça para a esquerda, antes mesmo que o seu corpo virasse, e procurar o rosto de Alexander. O minuto noturno enquanto ela descia as ruas apressada, sua felicidade ondulando sua boca para cima, ao branco céu, as asas vermelhas levando-a para ele, para vê-lo e sorrir.
À noite ela ainda estava virada para a parede, de costas para a ausente Dasha, que nunca estava em casa. Tatiana teria continuado a trilhar tão infeliz caminho, mas certa manhã os Metanovs ouviram no rádio que os alemães abriam caminho ferozmente através do interior do país e, apesar das medidas tomadas pelos heroicos soldados soviéticos, estavam quase perto de Luga.
Não era a situação de Luga que chocava a família e a deixava incapaz de comer ou conversar um com o outro. O que os angustiava era saber que Luga estava a poucos quilômetros de Tolmachevo, onde Pasha se encontrava seguro, eles pensavam – não, eles tinham certeza –, escondido no acampamento.
Caso os alemães estivessem a ponto de penetrar em Luga, o que aconteceria a Tolmachevo? Onde estava o seu filho, o seu neto, o seu irmão?
Tatiana tentava consolar a família com palavras vazias.
– Ele está bem, estará bem. – Mas como isso não funcionou, ela tentou: – Entraremos em contato com ele. Vamos, Mamãe, não chore – E quando isso tampouco funcionou, ela tentou mais uma vez: – Mamãe, eu sinto que ele ainda está lá. Ele é meu irmão gêmeo. Ele está bem, estou lhe dizendo. – Nada funcionou.
Não havia nenhum sinal de Pasha, e Tatiana, apesar de suas palavras encorajadoras, começou a temer pelo seu irmão.
O Soviete local não tinha respostas. O Soviete regional também não tinha respostas. Tatiana e sua mãe foram lá juntas.
– O que eu posso lhe dizer? – disse à Mamãe a mulher bigoduda, com jeito severo. – A informação que eu tenho é que os alemães estão perto de Luga. Nada diz sobre Tolmachevo.
– Então por que ninguém atende ao telefone no acampamento? – Mamãe exigiu saber. – Por que os telefones não funcionam?
– E eu lá tenho cara de Camarada Stálin? Tenho todas as respostas?
– Podemos ir para Tolmachevo? – Mamãe perguntou.
– Do que a senhora está falando? Ir para o front? Pegar um ônibus, Camarada, para o front? Sim, claro. Boa sorte.
O bigode cinza da mulher mexia quando ela ria.
– Natalia, venha aqui, você precisa ouvir isto.
Tatiana queria responder com dureza, mas não teve coragem. Frustrada por não haver convencido a família sobre Pasha, ela levou a mãe embora da repartição pública.
Naquela noite, quando Tatiana fingia dormir, seu rosto virado para a parede, a mão no chão sobre o exemplar de Alexander do Cavaleiro de Bronze, ela ouviu seus pais, chorosos, sussurrando um ao outro. Sua mãe soluçava baixinho, seu pai a confortava “Shh, shh”. Ele então soluçava, e Tatiana queria estar em qualquer lugar, menos ali.
Pequenos sussurros a ela chegavam, sentenças fragmentadas, lúgubres anseios.
– Talvez ele esteja bem – ela ouviu a mãe dizer.
– Talvez – ecoou o seu pai.
– Oh, Georgi. Não podemos perder o nosso Pasha. Não podemos – ela gemeu. – Nosso menino.
– Nosso menino favorito – Papai acrescentou. – Nosso único filho.
Mamãe soluçou.
Tatiana ouviu o farfalhar dos lençóis. Sua mãe fungou.
– Que Deus é este que o levaria embora?
– Deus não existe. Calma, Irina. – Papai disse numa voz confortadora – Não fale tão alto. Você acorda as meninas.
Mamãe gritou:
– Não me importa. – ela disse, apesar de voltar a sussurar. – Por que Deus não leva uma delas?
– Não diga isso, Irina. Você não quer dizer isso.
– Por que, Georgi? Por quê? Eu sei que você pensa da mesma maneira. Você não trocaria a Tania pelo nosso filho ou até mesmo a Dasha? Mas a Tania, tão tímida e fraca, nunca será coisa alguma na vida.
– De todo modo, que espécie de vida ela pode ter aqui, tímida ou não? – disse o pai de Tatiana.
– Não como nosso filho – disse Mamãe. – Não como nosso Pasha.
Tatiana puxou o lençol e cobriu a cabeça para não ouvir mais nada. Dasha continuava dormindo. Mamãe e Papai logo adormeceram. Tatiana, porém, permaneceu acordada, as palavras ressoando, num tom agonizante, em seus ouvidos. Por que Deus não podia levar Tania em vez de Pasha?
2
No dia seguinte depois do expediente, muito apreensiva, não acreditando em sua própria coragem, Tatiana foi às Barracas Pavlov. Ela deu o nome de Alexander ao sorridente sargento Petrenko e esperou apoiada na parede, contando com alguma força em suas pernas.
Minutos depois Alexander apareceu no portão. A forte tensão em seu rosto por um momento dissolveu-se em... Mas só por um momento. Ele tinha olheiras.
– Oi, Tatiana – ele disse friamente, e ficou a uma distância educada no úmido corredor. – Está tudo bem?
– Mais ou menos – Tatiana respondeu. – E você? Você parece...
Alexander piscou e respondeu:
– Está tudo bem. Como vai você?
– Não tão bem – Tatiana admitiu e logo teve medo que ele achasse que era por sua causa. – Uma coisa... – ela queria evitar que sua voz quebrasse. Havia medo por Pasha, mas também havia alguma coisa a mais. Ela não queria que Alexander soubesse. Tentaria esconder isso. – Alexander, há alguma maneira de você saber notícias do Pasha..?
Ele a olhou com pena.
– Oh, Tania – ele disse. – Para quê?
– Por favor. Você faria isso? – ela acrescentou – Meus pais estão desesperados.
– É melhor não saber.
– Por favor. Mamãe e Papai precisam saber. Eles não podem continuar assim. Eu preciso saber. Não posso continuar assim.
– Você acha que seria mais fácil se eles soubessem?
– Absolutamente. É sempre melhor saber. Porque assim eles poderiam lidar com a realidade. – Ela desviou o olhar enquanto falava. – Essa incerteza sobre o Pasha está acabando com eles.
Como Alexander não respondeu, Tatiana, mordendo os lábios, disse:
– Se eles soubessem, então Dasha e eu, e talvez Mamãe também, iríamos para Molotov com Deda e Babushka.
Alexander acendeu um cigarro.
– Você vai tentar, Alexander?
Ela estava contente de dizer o nome dele em voz alta. Ela queria tocar o seu braço.Tão feliz e tão infeliz de ver o seu rosto outra vez, ela queria ficar mais perto dele. Ele não trazia o seu uniforme completo. Devia ter vindo de seus aposentos, porque só usava uma camisa mal abotoada fora da calça. Podia ela aproximar-se mais dele? Não, ela não podia.
Ele fumava em silêncio. Ele inclinou a cabeça e não parou de olhar para ela.
Tatiana tentava esconder dele a expressão que tinha nos olhos. Ela ensaiou um pálido sorriso.
– Você vai para Molotov? – Alexander perguntou.
– Sim.
– Bom – Alexander disse sem nenhuma inflexão ou hesitação. – Tania, se quer eu descubra ou não alguma coisa sobre o Pasha, saiba isto: você tem que ir. Seu avô tem sorte de conseguir um posto. A maioria das pessoas não está sendo evacuada.
– Meus pais dizem que a cidade é ainda o lugar mais seguro agora. Por isso, milhares de pessoas deixam o interior e vêm para Leningrado – Tatiana disse com modesta autoridade.
– Nenhum lugar na União Soviética é seguro.
– Cuidado – ela disse abaixando a voz.
Alexander inclinou-se para ela, e Tatiana levantou os olhos para ele, não só ansiosa como ávida.
– O quê? – ela sussurrou.
Mas, antes que ele pudesse dizer alguma coisa, Dimitri surgiu no portão.
– Oi! – ele disse a Tatiana, franzindo a testa. – O que você faz aqui?
– Eu vim ver você – Tatiana disse rápido.
– E eu estou fumando – disse Alexander.
– Ele precisa parar de fumar justo quando você vem me ver – Dimitri disse a Tatiana e sorriu. – Mas que legal que você veio. Estou comovido. – Ele a abraçou. – Me deixe levá-la para casa, Tanechka – ele disse, conduzindo-a. – Você quer ir a algum lugar? A noite está agradável.
– A gente se vê, Tania – ela ouviu Alexander dizer.
Tatiana estava pronta para sucumbir.
Alexander foi falar com o Coronel Mikhail Stepanov.
Alexander servira sob o comando do coronel na Guerra do Inverno, em 1940, com a Finlândia, quando o coronel era capitão, e Alexander, segundo tenente. O coronel tivera muitas chances de promoção, não somente para brigadeiro, como para major general, mas ele se recusou, preferindo manter seu posto e comandar a guarnição de Leningrado.
O Coronel Stepanov era um homem alto, quase tão alto como Alexander.
Era magro e algo tenso, mas seus movimentos eram suaves, havendo em seus olhos azuis um toque de tristeza, até mesmo quando sorriu a Alexander.
– Bom dia, senhor – Alexander disse, batendo-lhe continência.
– Bom dia, Tenente – disse o coronel, saindo de trás de sua mesa. – Descansar, soldado.
Apertaram as mãos. Em seguida, Stepanov afastou-se e voltou para trás de sua mesa.
– Como vai você?
– Muito bem, senhor.
– O que anda acontecendo? Como o Major Orlov tem tratado você?
– Está tudo bem, senhor. Obrigado.
– Como posso ajudá-lo?
Alexander pigarreou.
– Venho em busca de uma informação.
– Eu disse descansar.
Alexander separou os pés e colocou as mãos nas costas.
– Os voluntários, senhor, o que acontece com eles?
– Os voluntários? Você sabe o que tem acontecido, Tenente Belov. Você os tem treinado.
– Quero dizer, perto de Luga, perto de Novgorod.
– Novgorod? – Stepanov balançou a cabeça. – Os voluntários se envolveram em algumas batalhas lá. A situação em Novgorod não é boa.
– Oh?
– Mulheres soviéticas, sem treino algum, lançavam granadas nos tanques Panzer. Algumas nem granadas tinham. Jogavam pedras. – O coronel Stepanov examinou o rosto de Alexander. – Qual é o seu interesse nisso?
– Coronel – disse Alexander batendo os calcanhares –, estou tentando encontrar um menino de dezessete anos que foi para um acampamento juvenil perto de Tolmachevo. Não há resposta dos acampamentos e a família está em pânico.
Alexander parou, olhando o coronel.
– Um rapaz, senhor. Seu nome é Pavel Metanov. Ele foi para um acampamento em Dohotino.
O coronel ficou em silêncio por alguns momentos, estudando Alexander, e por fim disse:
– Vá cuidar de seus deveres. Vou ver o que posso descobrir. Mas não prometo nada.
Alexander bateu-lhe continência.
– Obrigado, senhor.
Naquela noite, mais tarde, Dimitri foi aos aposentos que Alexander dividia com três outros oficiais. Todos jogavam cartas. Alexander prendia languidamente seu cigarro entre os lábios enquanto embaralhava as cartas.
Ele mal virou a cabeça para olhar a Dimitri.
Agachado ao lado da cadeira de Alexander, Dimitri pigarreou.
– Faça continência ao seu oficial comandante, Chernenko – disse o Segundo Tenente Anatoly Marazov, sem tirar os olhos de suas cartas.
Dimitri levantou-se e bateu continência para Marazov.
– Senhor – ele disse.
– Descansar, Soldado.
– O que há, Dima? – Alexander perguntou.
– Nada demais – disse Dimitri baixinho, de novo se agachando. Nenhum lugar para irmos conversar?
– Fale aqui mesmo. Tudo bem?
– Bem, bem. Rumores de que estamos parados aqui.
– Não estamos parados, Chernenko – disse Marazov. – Estamos aqui para defender Leningrado.
– Os finlandeses se autodenominam cobeligerantes. – Dimitri bufou com desdenho. – Se eles se unem aos alemães, nós estamos mortos. Podemos pendurar nossas armas.
– Esse é o espírito – disse Marazov. – Belov, você me deu esse soldado?
Alexander virou-se para Dimitri.
– O Tenente Marazov tem razão. Dima, sua atitude me surpreende. Francamente, não combina com você. – Alexander disse isso em voz neutra.
Dimitri sorriu de leve.
– Alexander – ele disse –, não é bem o que esperávamos quando entramos para o Exército?
Quando Alexander não respondeu, Dimitri disse:
– Quero dizer a guerra.
– Não, guerra não é o que eu esperava? Alguém espera isso? – Alexander fez uma pausa. – É o que você esperava?
– De jeito algum, como você sabe. Mas eu tinha menos escolhas que você.
– Você tinha escolhas, Belov? – perguntou Marazov.
Alexander botou as suas cartas na mesa, apagou o cigarro e levantou-se.
– Eu já volto – ele disse aos outros oficiais e saiu.
Dimitri, a passos menores, foi atrás dele. Havia muitos oficiais no corredor. Eles desceram as escadas e através da porta lateral saíram num pátio pavimentado. Passava da uma da manhã. O céu estava mais escuro que cinza.
Um pouco mais à frente deles, três soldados fumavam. Isso era o máximo de isolamento que eles teriam. Alexander disse:
– Dima, pare com essa bobagem. Eu não tinha escolhas. Não acredite nisso. Que escolhas eu tinha?
– A escolha de estar em algum outro lugar.
Alexander não respondeu. Ele queria mesmo estar em outro lugar, não na frente de Dimitri, que disse:
– A Finlândia não é muito perigosa para nós neste momento.
– Eu sei. – Alexander não queria falar sobre a Finlândia.
– Homens demais dos dois lados, tropas de fronteira da NKVD em todo lado. A área de Lisiy Nos está cheia de tropas, deles e nossa, e arame farpado e minas. Nenhuma segurança. Eu não sei o que vamos fazer. Você tem certeza de que os finlandeses virão de Vyvorgpara Lisiy Nos?
Alexander fumava e não disse nada. Finalmente ele falou:
– Sim. Finalmente eles vão querer de volta sua velha fronteira. Virão para Lisiy Nos.
– O que mais podemos fazer? Esperar nossa hora – Dimitri disse.
Quando Alexander nada comentou, Dimitri continuou:
– Virá de novo, o tempo certo, Alex?
– Eu não sei, Dima. Temos que esperar e ver.
Dimitri suspirou.
– Bem, enquanto isso, você pode me tirar do primeiro regimento de rifles?
– Dima, eu já tirei você do segundo batalhão de infantaria.
– Eu sei, mas ainda estou muito perto de um possível ataque. Os homens de Marazov são a segunda linha. Eu preferia estar no reconhecimento, ou na limpeza. Ou no suprimento, alguma coisa assim. – Ele fez uma pausa. – O melhor seria em suprimento, você não acha?
– Você quer ir para o suprimento? Levar munição para as tropas na linha de frente? – Alexander perguntou surpreso.
– Eu estava pensando mais em correspondência e cigarros para as unidades de retaguarda.
Alexander sorriu.
– Vou ver o que posso fazer, tudo bem?
– Vamos – Dimitri disse apagando o seu cigarro no chão. – Anime-se um pouco mais. O que há com você ultimamente? Tudo ainda está bem. Os alemães não estão aqui; vivemos um grande verão.
Alexander não disse nada.
– Alex – disse Dimitri –, quero falar com você sobre uma coisa... Tania é uma garota legal.
– O quê?
– Tania. Ela é tão legal.
– Sim.
Dimitri nada disse em seguida.
– E eu quero que ela permaneça assim. Ela não deveria vir aqui. E, sobretudo, conversar com você.
– Eu concordo.
– Eu sei que somos todos bons amigos, e ela é a irmã menor de sua mulher maravilha, mas francamente, não quero que a sua reputação respingue na minha garota legal. Afinal, ela não é como nenhum dos cafajestes de sua guarnição.
Alexander deu um passo à frente e disse a Dimitri:
– Chega.
Dimitri riu.
– Estou brincando. A Dasha ainda vem ver você? Eu não tenho ido muito lá. A Tania trabalha nas horas mais loucas. Mas a Dasha ainda vem, não?
– Sim.
Com efeito, todas as noites, sem falta, Dasha aparecia tentando tudo o que sabia fazer para tê-lo de volta. Ele, porém, não tencionava contar a Dimitri sobre seu assunto com Dasha.
– Bem, mais uma razão para que Tania não venha aqui. Isso chatearia muito a Dasha, sem necessidade, se ela soubesse, não é mesmo?
– Você está certo. – Alexander olhou fixo a Dimitri, que não empalideceu.
– Você tem outro cigarro?
Dimitri imediatamente enfiou a mão no bolso de suas calças cáqui.
– Adoro isso. Um primeiro-tenente pedindo a um mísero soldado um cigarro. Eu sempre gosto quando me pede para fazer alguma coisa para você.
Alexander pegou o cigarro e não disse nada.
Dimitri pigarreou.
– Se eu não soubesse das coisas, diria que você sente alguma coisa pela pequenina Tanechka.
– Mas você sabe das coisas, não é mesmo?
Dimitri deu de ombros.
– Acho que sim. Só pelo jeito que você olhava para ela.
– Esqueça – disse Alexander cortando o papo e dando uma funda tragada no cigarro. – Isso é coisa da sua cabeça.
Dimitri suspirou.
– Eu sei, eu sei – ele disse. – O que posso dizer? Me apaixonei por aquela menina.
O cigarro aos poucos virou cinza entre os dedos de Alexander.
– Você se apaixonou? – ele por fim perguntou.
– Sim. Qual é a surpresa? – Dimitri riu com muita vontade. – Você acha que um grosseirão como eu é muito pouca coisa para uma menina como Tania?
– Não, de jeito nenhum – Alexander disse. – Mas pelo que eu tenho ouvido, você não parou com as suas atividades no Sadko.
De novo Dimitri deu de ombros.
– O que isso tem a ver com tudo?
Antes que Alexander pudesse responder, Dimitri chegou mais perto dele, abaixou a voz, e disse:
– Tania é jovem e me pediu para ir devagar. Eu respeito muito os seus desejos e sou paciente com ela. – Ele levantou as sobrancelhas. – Mas ela está se aproximando.
Alexander jogou o cigarro no chão e o pisou com a sua bota.
– Muito bem, então – ele disse. – Acabou. – Ele começou a andar de volta para seu edifício.
Dimitri alcançou-o e agarrou-o pelo braço.
Alexander virou-se, soltando-se fácil de Dimitri.
– Não me segure, Dimitri. – Seus olhos fulminavam. O seu céu ficou um pouco mais cinzento. – Eu não sou Tatiana.
Com alguns passos para trás, Dimitri afastou-se de Alexander e disse:
– Tudo bem, tudo bem. Pare com isso. – Ele deu outro passo para trás. – Você precisa fazer alguma coisa com esse seu temperamento, Alexander Barrington. – Ele enunciou cada sílaba. E então se afastou um pouco mais e sorriu. Ele parecia menor, seus pequenos dentes mais pontiagudos e mais amarelos, seu cabelo mais gorduroso, seus olhos mais contraídos na chegada da noite.
3
Esperançosa, Tatiana correu ao trabalho na manhã seguinte. Ela aprendera a ignorar a vil presença das tropas da milícia da NKVD, de uniforme azul, paradas nas portas da frente de Kirov, com seus rifles obscenos, andando pela fábrica, quase marchando, carregando suas armas perto da cintura. Alguns deles olhavam-na quando ela passava, sendo essa a única vez em sua vida que ela desejou ser ainda menor do que já era e menos fácil de notar.
Com suas fisionomias graves e duras, eles olhavam Tatiana, mal piscando, enquanto ela piscava com frequência ao passar rápido por eles e atravessar as portas rumo ao relativo anonimato da linha de montagem.
Para que os trabalhadores não caíssem na monotonia e, dessa forma, ficassem negligentes em qualquer fase da produção do KV-1, eles trocavam de lugar a cada duas horas.
Tatiana foi remanejada do setor de roldana, que levantava o tanque ainda sem esteiras para colocá-lo no trilho, para o de pintura da estrela vermelha num tanque terminado e nivelado, pronto para entrar em produção. Ela pintava com spray não só a estrela vermelha, como também as palavras brancas Por Stálin! no casco que se destacava contra a brilhante pintura verde.
Ilya, um menino magrinho e de cabelo à escovinha, não deixava Tatiana em paz depois que Alexander parou de vir à noite. Ele fazia todo tipo de perguntas que ela, muito educada, respondia, mas no fim acabou sendo um pouco rude.
– Eu devo me concentrar no meu trabalho – ela dizia a ele, perguntando-se como ele sempre conseguia um lugar perto dela, não importasse quantas vezes ela fosse transferida durante o dia para diferentes responsabilidades na construção dos tanques. No refeitório, Ilya pegava o seu prato e sentava-se ao lado dela e de Zina, que não o suportava e lhe dizia isso com frequência.
Hoje, porém, Tatiana sentiu pena dele.
– Ele está solitário – ela disse, mordendo a costeleta de carne, passada no molho, a boca cheia. – Parece que ele não tem ninguém. Fique, Ilya. – E assim Ilya ficou.
Tatiana podia se dar o luxo de ser generosa, ela mal podia esperar o dia terminar. Depois de ter ido ver Alexander no dia anterior, ela tinha certeza de que ele iria vê-la em Kirov depois do expediente. Ela vestia sua saia mais leve e a blusa mais suave e até mesmo tomara um banho pela manhã, embora tivesse tomado outro na noite anterior.
Naquela noite ela passou rápido pelas portas de Kirov, soltos e brilhantes seus cabelos dourados, o rosto limpo e rosa, virando a sua cabeça sorridente, ofegante à procura de Alexander.
Ele não estava lá.
Já passava das oito, e ela se sentou no banco até as nove, as mãos no colo. Então levantou-se e foi para casa.
Não havia nenhuma notícia de Pasha, e Mamãe e Papai estavam desconsolados. Eles choravam de forma intermitente. Dasha não estava em casa. Deda e Babushka, lentos, empacotavam seus pertences. Tatiana subiu ao telhado e lá se sentou, observando balões dirigíveis flutuarem como baleias brancas através do céu do norte, ouvindo Anton e Kirill, que liam Guerra e Paz, de Tolstoy, evocando o irmão Volodya perdido em Tolmachevo. Tatiana meio que ouvia, pensando em seu irmão Pasha perdido em Tolmachevo.
Alexander não veio vê-la. Ele não tinha notícias. Ou as notícias que tinha eram ruins e ele não podia encará-la.Tatiana, contudo, sabia a verdade: ele não viera vê-la porque ele ali terminara. Terminara com ela, com as suas posturas infantis, terminara com aquela parte de sua vida. Eles haviam sido amigos caminhando no Jardim de Verão, mas ele era um homem, e agora terminava tudo.
Ele estava certo, claro, em não vir. E ela não choraria.
Mas enfrentar Kirov dia após dia sem ele e sem Pasha, também, enfrentar noite após noite sem ele e sem Pasha, enfrentar a guerra, enfrentar a si própria sem Alexander e sem Pasha, tudo isso provocava em Tatiana um penetrante vazio, de tal forma que ela quase gemia em voz alta, bem na frente de Anton e Kirill, os dois rindo.
Ela precisava só de uma coisa agora: repousar os seus olhos no menino que com ela respirara o mesmo ar durante dezessete anos, na mesma escola, na mesma classe, no mesmo quarto, no mesmo útero. Ela queria de volta o seu amigo, o seu gêmeo.
Tatiana pensou que poderia sentir Pasha enquanto estava sentada no telhado, sob o céu escurecido. As noites brancas haviam terminado em dezesseis de julho. Seu irmão não estava ferido. Ele esperava que Tatiana fosse por ele, e ela não falharia. Ela não ficaria como o resto da família, sentada, fumando, preocupando-se. Nada fazendo. Tatiana sabia: cinco minutos com o coração leve de Pasha e ela esqueceria grande parte do último mês.
Ela esqueceria Alexander. E ela precisava fazer alguma coisa para esquecer Alexander.
Depois que o Anton e Kirill foram dormir, Tatiana desceu, pegou um par de tesouras de cozinha, e começou, sem dó nem piedade, a cortar seu cabelo loiro, vendo-o cair em longos fios na pia comunitária. Depois o pequeno e encardido espelho mostrava somente um vago reflexo. Tudo o que ela via eram os seus lábios amoados e seus olhos tristes e vazios que agora brilhavam mais verdes sem o cabelo que emoldurava o seu rosto. As sardas do nariz e de debaixo dos olhos faziam-se ainda mais proeminentes. Ela parecia um menino? Melhor ainda. Ela parecia mais jovem, mais frágil, o que pensaria Alexander ao vê-la agora sem cabelo? Quem se importava? Ela sabia o que ele pensaria. Shura, Shura, Shura.
Quase ao raiar do dia, Tatiana vestiu o único par de calças bege que encontrou, embrulhou um pouquinho de bicarbonato de sódio e peróxido para os dentes, a escova de dentes – nunca viajava sem a escova de dentes –, pegou o saco de dormir de Pasha, que ele usava no acampamento, escreveu um bilhete de uma sentença para a família e foi a pé para Kirov.
Durante sua última manhã no trabalho, Tatiana foi transferida para os motores a diesel aparafusando as velas de incandescência na câmara de combustão, as quais aqueciam o ar comprimido nos cilindros antes que se desse a ignição. Ela era muito boa nesse setor da linha de montagem, porque fez isso muitas vezes antes, e assim trabalhava despreocupada, enquanto durante toda a manhã lutava com os seus nervos.
Na hora do almoço, ela foi ver Krasenko, levando junto uma animada Zina, e disse a ele que ambas queriam integrar o Exército dos Voluntários do Povo. Há mais de uma semana Zina vinha falando em aderir aos Voluntários.
Krasenko disse a Tatiana que ela era muito jovem.
Ela persistiu.
– Por que você está fazendo isso, Tania? – Krasenko perguntou com uma voz compreensiva. – Luga não é um lugar para uma menina como você.
Ela disse a ele que sabia como andavam mal as coisas lá. Os quadros de aviso na fábrica anunciavam: Para Luga – às trincheiras!
Ela disse saber que meninos e meninas de catorze e quinze anos trabalhavam nos campos cavando trincheiras. Ela e Zina queriam fazer tudo para ajudar os soldados do Exército Vermelho. Muda, Zina assentiu. Tatiana sabia que precisava de uma dispensa especial de Krasenko.
– Por favor, Serguei Andrevich – ela disse.
– Não – ele respondeu.
Tatiana persistiu. Ela disse a Krasenko que tinha direito a uma licença, começando amanhã, e que iria a Luga de um jeito ou de outro se fosse preciso. Ela iria embora, com ou sem a ajuda dele. Tatiana não tinha medo de Krasenko. Sabia que ele gostava dela.
– Serguei Andrevich, você não pode reter-me aqui. Que impressão daria se você impedisse Voluntários dispostos a ajudar sua terra natal, ajudando o Exército Vermelho?
Zina, ao lado de Tatiana, só assentia com a cabeça.
Krasenko suspirou pesado, fez os passes e permissões para deixar Kirov e carimbou os seus passaportes domésticos. Quando elas já estavam de saída, ele se levantou e desejou-lhes boa sorte. Tatiana queria dizer a ele que ia à procura do irmão, mas ela não queria que ele a demovesse disso, e por isso não disse nada além de obrigada.
As meninas foram para um salão escuro do tamanho de um ginásio, onde passaram por um exame físico e foram equipadas com picaretas e pás, muito pesadas para Tatiana, e foram enviadas de ônibus à estação de Varsóvia, onde pegariam um caminhão militar especial de transporte destinado a Luga.
Tatiana se perguntava se eram caminhões blindados como aqueles que transportavam pinturas do Hermitage ou como aqueles que Alexander dizia haver dirigido algumas vezes para o sul de Leningrado.
Não eram. Eram somente caminhões comuns cobertos com lona cáqui do tipo que Tatiana via sempre ao redor de Leningrado.
Tatiana e Zina subiram a bordo. Outras quarenta pessoas ali se amontoaram. Tatiana observou os soldados colocando caixas no caminhão. Teriam que sentar nessas caixas.
– O que tem aí dentro? – ela perguntou a um dos soldados.
– Granadas – ele respondeu, sorrindo.
Tatiana ficou em pé.
Os caminhões deixaram a estação Varsóvia num comboio de sete e pegaram a estrada com destino ao sul, para Luga.
Todos desceram em Gatchina e pegaram um trem militar para o resto do caminho.
– Zina – Tatiana disse à sua amiga. – É bom que vamos de trem. Assim podemos descer em Tolmachevo, tudo bem?
– Você ficou louca? – disse Zina. – Vamos todos para Luga.
– Eu sei. Você e eu descemos e então voltamos em outro trem e vamos para Luga.
– Não.
– Zina, sim. Por favor. Eu tenho que descer em Tolmachevo, tenho que encontrar o meu irmão.
Incrédula, Zina olhou fundo a Tatiana.
– Tania! Quando você me contou que Minsky havia caído, por acaso eu lhe disse: venha comigo porque tenho que encontrar a minha irmã? – ela disse, seus pequenos e obscuros olhos piscando, a boca tensa.
– Não, Zina, mas eu não acho que Tolmachevo já tenha caído nas mãos dos alemães. Ainda tenho esperança.
– Eu não vou descer – Zina disse. – Vou para Luga como todos os demais, e vou ajudar nossos soldados, como todo mundo. Não quero ser fuzilada pela NKVD como uma desertora.
– Zina! – Tatiana exclamou. – Como você pode ser uma desertora? Você é uma voluntária. Por favor, venha comigo.
– Eu não vou descer e ponto final – Zina disse, afastando-se de Tatiana.
– Muito bem – disse Tatiana –, mas eu vou descer.
4
Um cabo enfiou a cabeça nos aposentos de Alexander e gritou-lhe que o Coronel Stepanov queria vê-lo.
O Coronel escrevia em seu diário. Ele parecia mais cansado do que há três dias. Paciente, Alexander esperou. O Coronel levantou os olhos, e Alexander viu as escuras bolsas debaixo dos seus olhos azuis. E linhas tensas no rosto provocadas pelo trato difícil com subordinados rebeldes.
– Tenente, desculpe-me a demora. Temo não ter boas notícias para você.
– Eu entendo.
O Coronel olhou de novo o seu diário.
– A situação em Novgorod era desesperadora. Quando o Exército Vermelho percebeu que os alemães rodeavam os vilarejos próximos, eles recrutaram os jovens de vários acampamentos ao redor de Luga e Tolmachevo para ajudar no entrincheiramento da cidade. Um desses campos era Dohotino. Não tenho informação específica sobre um Pavel Metanova... – O Coronel pigarreou. – Como você sabe, o avanço alemão foi mais rápido do que antecipamos.
Era sovietês. Era como ouvir o rádio. Eles diziam isso, mas queriam dizer aquilo.
– Coronel? O quê?
– Os alemães passaram Novgorod.
– O que aconteceu aos meninos dos acampamentos?
– Tenente, não sei mais do que já lhe disse – ele fez uma pausa. – Você conhece bem esse menino?
– Eu conheço bem a família, senhor.
– Um interesse pessoal nisso?
Alexander piscou.
– Sim, senhor.
O Coronel Stepanov, muito quieto, brincava com a caneta, olhando as páginas do seu diário, evitando olhar para Alexander, mesmo quando finalmente falou:
– Eu gostaria, Alexander, de ter alguma coisa melhor para lhe dizer. Os alemães passaram por cima de Novgorod com os seus tanques. Lembra-se do Coronel Yanov? Ele pereceu. De forma indiscriminada, os alemães fuzilaram soldados e civis, saquearam o que puderam e depois incendiaram a cidade.
Sem dar um passo atrás da mesa, sem deixar de olhar o Coronel Stepanov, Alexander disse com firmeza:
– Permita-me entender. O Exército Vermelho enviou menores ao meio das batalhas?
Stepanov estava em pé, atrás de sua mesa.
– Certamente você não está nos dizendo como conduzir a nossa guerra, não é, Tenente?
– Não quero ser desrespeitoso. – Alexander bateu os calcanhares, fez continência ao Coronel, mas não se mexeu. – Contudo, usar meninos destreinados junto com oficiais experientes como forragem para os nazistas é pura loucura militar.
O Coronel Stepanov não saiu de trás da mesa. Os dois homens silenciaram, um jovem, o outro já envelhecido aos 45 anos. O Coronel então falou:
– Informe a família que o seu filho morreu para salvar a Mãe Rússia – ele disse com a voz quebrada. – Ele morreu a serviço do nosso grande líder, o Camarada Stálin.
Mais tarde naquela manhã, Alexander foi chamado ao portão de entrada. Ele desceu temeroso de que fosse Tatiana. Ele ainda não podia encará-la. Ia encontrá-la à noite em Kirov. Ele viu Dasha ao lado de Petrenko. Ela parecia abatida e tensa.
– O que houve? – ele perguntou levando-a de lado, esperando que ela também não lhe perguntasse sobre Tolmachevo e Pasha. Mas ela enfiou-lhe um pedaço de papel em sua mão e disse:
– Olhe isto aqui.Veja o que a louca da minha irmã fez!
Ele abriu o bilhete. Era a primeira vez que via a letra de Tatiana. Era redonda, pequena e caprichada. Queridos Mamãe e Papai, dizia a nota. Vou me alistar nos Voluntários do Povo para encontrar Pasha e trazê-lo de volta para vocês. Tania.
Com o maior esforço para controlar sua expressão facial, Alexander devolveu o bilhete a Dasha, com cuidado, e disse:
– Quando ela foi?
– Ontem de manhã. Levantamos, e ela já tinha ido embora.
– Dasha, por que não me procurou então? Ela foi embora ontem?
– Achamos que ela estava brincando. Que voltaria.
– Vocês esperavam – Alexander falou devagar – que ela voltaria com Pasha?
– Não sabemos! Ela mete essas ideias na cabeça. Honestamente, não sei o que ela pensa. Não pode ir sozinha ao mercado, muito menos para o front. Mamãe e Papai estão perturbados. Estavam tão preocupados com Pasha, e agora isso.
– Eles estão preocupados, ou sentem raiva? – Alexander perguntou.
– Estão frenéticos. Têm um medo mortal de que algo aconteça. Ela – Dasha irrompeu em lágrimas. – Meu querido – Dasha disse, chegando mais perto dele. Ela o abraçou, mas o rosto de Alexander permaneceu trancado. – Alexander – ela disse. – Eu não sabia a quem recorrer. Por favor, nos ajude. Ajude-nos a encontrar minha irmã. Não podemos perder minha Tania...
– Eu sei – ele disse.
– Por favor? – Dasha disse. – Você vai fazer isso... por mim?
Ele afagou-lhe as costas, afastou-se e disse:
– Vou ver o que posso fazer.
Alexander ignorou o seu comandante imediato, o Major Orlov, e foi direto ao Coronel Stepanov. Ele conseguiu autorização para levar vinte voluntários e dois sargentos para dirigir um caminhão blindado carregado de munições, rumo ao sul, para Luga. Alexander sabia que a linha precisava muito de um reforço. Ele disse a Stepanov que voltaria em poucos dias.
Antes de dispensar Alexander, Stepanov disse:
– Traga a si mesmo e os homens de volta, Tenente – fez uma pausa. – Como sempre.
– Farei tudo o que estiver ao meu alcance, senhor – disse Alexander. Ele não vira muitos voluntários voltarem à guarnição.
Antes de partir, ele foi ver Dimitri e lhe ofereceu um lugar no esquadrão. Dimitri recusou.
– Dima – disse Alexander –, você deveria vir.
– Vou onde eles me mandam – disse Dimitri, balançando a cabeça –, mas não enfio a cabeça de livre e espontânea vontade na boca do tubarão. Você ouviu falar do que aconteceu a Novgorod?
O próprio Alexander dirigia o caminhão blindado. Estava carregado de homens, 35 rifles Nagant, 35 rifles Tokarev, novos em folha, duas caixas de granadas de mão, três engradados de minas de campo, sete caixas de munição, uma pilha de projéteis ovais de artilharia e um barril de pólvora para os morteiros. Alexander achava bom que o caminhão era blindado.
Ele gostaria de ter um dos tanques feitos por Tatiana.
As três cidades vinham em seguida depois de Leningrado: Gatchina primeiro, depois Tolmachevo, e então Luga. Ao chegar a Gatchina, Alexander podia ouvir o estrondo distante da artilharia. Detrás dele, seus homens tremiam enquanto ele abria caminho na estrada sem asfalto. Ele ouvia bombas explodirem como fogos de artifício, como num sonho via o rosto do seu pai surgir, querendo saber o que ele fazia tão perto da morte antes de chegar sua hora. Ele disse:
– Papai, vou por ela.
O sargento Oleg Kashnikov, um soldado jovem e musculoso, perguntou:
– O que o senhor falou, Tenente?
– Nada. Às vezes, eu faço isso. Converso com o meu pai.
– Mas, Tenente, não era russo – Kashnikov disse. – Parecia inglês, mas o que sei eu?
– Inglês não, só palavrório – disse Alexander.
Quando Alexander e seus homens chegaram a Luga, o barulho do fogo de artilharia já não era distante. A terra era plana, e, no horizonte, havia fumaça e som. Não era um som sem significado, pensou Alexander. Era o estrondo de fúria e de morte.
Durante a noite, no churrasco de 4 de julho, a família fora velejar no mar, em Namtuckt Sound, observando de seu barco os fogos de artifício. Alexander, com sete anos de idade, levantava a cabeça ao céu, encantado pelas luzes do arco-íris que explodiam ruidosamente no alto. Ele não podia imaginar nada mais espetacular que essas cores vibrantes inundando de vida o céu.
Mais à frente ficava a aproximação ao rio Luga. À esquerda havia campos, à direita, uma floresta. Alexander viu crianças, talvez com dez anos de idade, apanhando o que sobrara das colheitas. No perímetro dos campos, soldados e homens mais velhos e mulheres cavavam trincheiras. Ele sabia que, recolhidas as colheitas, os campos seriam minados.
Calmamente, segurando firme seu rifle, Alexander disse aos seus homens que ficassem de sobreaviso, enquanto ele ia à procura do Coronel Pyadyshev, que organizava a linha de defesa para um trecho de doze quilômetros ao longo do rio. Pyadyshev mostrou-se satisfeito com as armas extras e, de imediato, mandou seus soldados abri-las e dividi-las entre eles.
– Só setenta rifles, Tenente? – ele disse a Alexander.
– É tudo que temos, senhor – Alexander respondeu. – Estão chegando mais.
Alexander então levou os seus vinte comandados para mais perto das margens do rio, onde receberam pás e cavaram por algumas horas. Com um binóculo, Alexander vasculhou a floresta do outro lado do rio, concluindo que os alemães já haviam avançado para fazer contato, embora ainda não estivessem em plena posição ofensiva.
Os homens se alimentavam pouco com a comida enlatada que haviam trazido. Bebiam água do rio. Alexander então deixou no comando os seus dois sargentos, Kashnikov e Shaekov, e foi ao encontro do grupo de voluntários que viera da fábrica de Kirov há quatro dias.
Ele não encontrou ninguém naquele dia. Porém, no dia seguinte, achou Zina. Ela estava no campo, debruçada com sua pá. Escavava as batatas e jogava-as num cesto, com sujeira e tudo. Alexander sugeriu que ela primeiro limpasse a sujeira, para dar mais espaço às batatas que recolhia. Zina olhou para ele, preparada para dizer alguma coisa grosseira, mas então viu sua estrela vermelha e seu rifle e nada disse.
Alexander percebeu que ela não o reconheceu. Nem todo mundo tem a minha memória para rostos, ele pensou.
– Estou procurando a sua amiga – ele disse a Zina. – Ela está aqui com você? É uma menina, Tatiana.
Zina olhou para ele, seus olhos revelavam medo.
– Não a tenho visto – Zina disse. – Acho que ela deve estar lá. – Mexeu os braços.
Do que ela tinha medo?, perguntou-seAlexander, dando um suspiro de alívio. – Então ela está aqui? Onde?
– Não sei. Nós nos separamos depois que descemos do trem.
– Separaram-se onde?
– Não sei.
Ela estava bem nervosa. Não acertava a cesta, e as batatas se espalhavam pelo chão. Não as recolhia, continuava escavando.
Alexander bateu no chão com seu rifle duas vezes.
– Camarada Atapova! Pare. Endireite-se. Fique em pé, não se mexa.
Zina obedeceu rápido.
– Você se lembra de mim?
Ela fez não com a cabeça.
– Nem imagina como sei o seu nome?
– Você tem como descobrir essas coisas – balbuciou Zina.
– Eu sou Alexander Belov. Eu costumava ir a Kirov para encontrar a Tatiana. É como eu sei o seu nome. Lembra agora?
O rosto de Zina, sujo e pouco amigável, mostrou um certo alívio.
– A família de Tatiana está muito preocupada com ela. Você sabe onde ela está?
O alívio agora se misturava a uma atitude defensiva.
– Ouça – Zina vociferou –, ela queria que eu descesse junto, mas eu disse que não podia. Não sou uma desertora.
– Descer com ela onde? E você não pode ser uma desertora – disse Alexander. – Você está no exército voluntário.
Zina parecia não entender ou não querer entender.
– Bem, seja como for, faz dias que não a vejo. Ela não veio a Luga com a gente. Pulou do trem em Tolmachevo.
Alexander empalideceu.
– Quando você diz que ela pulou do trem...
– Quero dizer, o trem diminuiu um pouco a velocidade num cruzamento, e ela desceu a escadinha e pulou. Eu vi quando ela rolava colina abaixo.
Rosto endurecido, ele disse:
– Por que você deixou que ela pulasse do trem?
Zina levantou a voz e disse:
– Deixar? Quem a deixou? Eu disse: não faça isso. Ela queria que eu fosse junto. – Zina riu. – Ela queria que eu pulasse de um trem! Por que eu deveria ir com ela? Não estou procurando meu irmão.Vim para me unir ao Exército Voluntário do Povo. Pela Mãe Rússia.
Ao afastar-se dela, Alexander disse:
– Então, Camarada, pela Mãe Rússia você pularia do trem?
Zina não tinha resposta. Afastou-se dele e continuou a escavar as batatas, balbuciando:
– Eu não ia pular de nenhum trem. Não seria uma desertora.
Alexander foi rápido à procura de algum de seus homens. Ele pegou Kashnikov e cinco voluntários e dirigiu o caminhão, agora vazio de munições, em direção ao norte, a Tolmachevo. A cidade estava quase deserta. Eles circularam pelas ruas, finalmente encontrando uma mulher que carregava uma criança e uma sacola. A mulher disse que Dohotino ficava a três quilômetros a oeste.
– Mas vocês não vão encontrar ninguém lá – ela disse. – Não tem ninguém lá.
De todo modo, para lá eles se dirigiram. A mulher tinha razão. Todas as cabanas há muito estavam abandonadas, e o vilarejo, bombardeado. Houve um incêndio que queimou meia dúzia de casas. Ainda assim, Alexander gritou nome dela.
– Tania! Tatiana!
Ele olhou dentro de cada cabana, até mesmo as queimadas. Seus comandados também gritaram o nome de Tatiana. Pronunciado por línguas de estranhos, o nome de Tatiana parecia-lhe estrangeiro. Mas Kashnikov era um bom sargento. Ele não contrariava Alexander. Os homens gostavam de ajudar, assim pelo menos fugindo da monotonia de cavar trincheiras.
– Tania! Tania! – Suas vozes ecoavam através do pequeno vilarejo agrícola no meio de campos e bosques. Não encontraram uma única alma. Encontraram restos e pedaços no chão, cobertores, mochilas chamuscadas, escovas de dente.
Nos arredores de Dohotino, havia um pequeno letreiro com uma flecha: Acampamento de Meninos de Dohotino. Os sete homens percorreram dois quilômetros através de um caminho arborizado e saíram numa campina onde estavam dez tendas abandonadas, enfileiradas, perto de um grande lago.
Alexander olhou dentro das tendas e descobriu que deviam ter sido onze, não dez. Uma das tendas havia sido derrubada e as estacas removidas. O terreno de onde as estacas haviam sido arrancadas ainda estava fresco. Alexander achou aquilo uma boa ideia e disse aos soldados que removessem as outras dez tendas. Elas eram grandes e feitas de lona grossa.
A fogueira armada pelos meninos já esfriara, como se não tivesse sido acesa há semanas. Não havia por perto nenhum sinal de comida velha, de lixo deixado pelos meninos ou por uma jovem Tatiana.
Já era tarde da noite quando eles voltaram à Luga. Alexander e seus homens montaram suas novas tendas perto da floresta, no fundo do acampamento militar. Alexander cobriu-se com uma capa impermeável e deitou no terreno. Ele não conseguiu dormir por um longo tempo.
Antigamente na América, os Escoteiros Mirins costumavam armar tendas e dormir nos bosques e comer amoras e peixe, que pescavam no lago, além de acender fogueiras à noite. Abriam suas latas de presunto, tostavam malvaviscos, cantavam canções dos Escoteiros Mirins, e dormiam tarde, e durante o dia aprendiam como sobreviver nos bosques e como atar nós. Era uma existência idílica para Alexander, então só um menino de oito, nove e dez anos. Os meses de verão que ele passou no acampamento dos Escoteiros Mirins foram de longe os melhores de sua infância.
Ele sabia que Tatiana não quebrara o pescoço pulando do trem, ela deve ter encontrado o acampamento vazio. Talvez, se fosse esperta, ela tenha levado a tenda que faltava. Mas o que faria em seguida? Voltaria a Leningrado?
Alexander não pensava assim. Se estava decidida a encontrar Pasha, ele não via como ela podia retornar sem alguma resposta sobre o seu paradeiro. Depois de Tolmachevo, aonde ela iria?
Luga. A nenhum outro lugar. Iria para Luga, porque era onde ela achava que Pasha tinha ido – ajudar a construir a linha de Luga.
Reanimado e esperançoso, ele dormiu.
Na manhã seguinte, ao raiar do sol, Alexander ouviu o ronco distante de aviões. Esperava que fossem aviões soviéticos.
Seria muita sorte. A suástica negra era bem visível a trezentos metros do chão. Dezesseis aviões em duas formações mergulharam, ele viu que lançavam alguma coisa. Ouviu gritos de pânico, mas não havia bombas. Em poucos momentos, pedaços de papel branco e marrom flutuavam como minúsculos paraquedas. Um papelzinho caiu na frente de sua tenda. Ele o apanhou. Homem soviético!, o papel proclamava. O fim está aqui! Junte-se ao lado vencedor – e viva! Renda-se e viva! O Nazismo é superior ao Comunismo. Você terá comida, você terá empregos, você terá liberdade! Agora!
Outro pedaço de papel era um passe efetivo para cruzar a linha do front. Balançando a cabeça, Alexander jogou ambos os papéis no chão e foi se lavar no rio dentro do bosque.
Ao redor das nove da manhã, Alexander viu mais aviões, todos com o símbolo nazista. Eles voavam bem baixo, a uns cem metros do chão. As pesadas metralhadoras dentro dos aviões produziam sons estridentes enquanto fuzilavam trabalhadores nos campos.
Todos, procurando cobertura, correram para as árvores. Uma das tendas pegou fogo. Os nazistas não estavam jogando bombas, Alexander pensou enquanto colocava o seu capacete e se abrigava numa trincheira. Não, eles estavam economizando suas preciosas bombas.
Alexander então percebeu que eles podiam economizar algumas bombas, mas não as de fragmentação, que por fim caíram dos aviões e explodiram no alto. Alexander ouviu gritos abafados pelo contínuo bombardeio.
Ele olhou nas trincheiras à procura de seus homens, mas não podia achar nenhum conhecido. O bombardeio continuou por outros trinta minutos, depois os aviões foram embora, mas não sem antes jogar novos panfletos. Render-se ou morrer! Só isso diziam.
Render-se ou morrer.
A fumaça negra flutuava no ar, os incêndios se espalhavam, os seres humanos que gemiam pareciam apocalípticos para Alexander. Corpos flutuavam no Luga, nas margens do rio, ao longo das valas e dos buracos reforçados de concreto, gente ferida se retorcia no chão. Alexander encontrou Kashnikov vivo, mas sem parte de uma orelha. O ferimento sangrava muito, encharcando seu uniforme. Shapkov resistira bem. Alexander passou o resto da manhã ajudando a levar os feridos às tendas de campo e o resto do dia cavando. Dessa vez não eram trincheiras, mas sepulturas coletivas. Ele e dezesseis de seus homens abriram um grande buraco na floresta e nele colocaram os corpos de 23 pessoas que haviam morrido naquela manhã. Onze mulheres, nove homens, um velho e duas crianças com menos de dez anos. Nenhum deles soldados.
Alexander olhou no rosto de cada uma das mulheres e, a cada vez, seu coração parava.
Ele então caminhou entre as dúzias de feridos, mas de novo não encontrou Tatiana. Até mesmo procurou Pasha, aproveitando que vira uma foto do garoto aos treze anos de idade, de calção de banho ao lado de Tatiana, puxando suas tranças loiras.
Ele procurava Pasha apenas por procurar. Sabia que ele não estava em Luga.
Alexander não conseguiu encontrar Zina de novo.
Ele por fim foi falar com o Coronel Pyadyshev. Em pé, em forma, durante alguns momentos, Alexander disse:
– Difícil trabalhar nessas condições, não é mesmo, senhor?
– Não, Tenente – disse Pyadyshev, um homem careca e ameaçador. – Que condições seriam essas? As condições da guerra?
– Não, senhor. As condições do mau preparo para enfrentar um inimigo incansável. Eu só estou expressando um pouco de solidariedade pela luta que vem pela frente. Amanhã retomamos o fortalecimento da linha.
– Tenente, o senhor retomará esse trabalho hoje à noite, até que não haja mais luz. O que acha, que amanhã é feriado para os nazistas? Acha que não vão nos bombardear outra vez?
Alexander tinha certeza de que eles iriam bombardear outra vez.
– Tenente Belov – continuou o Coronel Pyadyshev –, o senhor acabou de chegar aqui e já trabalhou muito duro hoje...
– Cheguei aqui há três dias, senhor – disse Alexander.
– Três dias atrás, bom. Bem, os alemães têm bombardeado a linha nos últimos dez dias. Houve bombas ontem, eu não sei onde o senhor estava, e no dia anterior. Todas as manhãs, como relógio, das nove às onze. Primeiro, eles lançam os panfletos nos dizendo para aderir ao seu lado, depois jogam as bombas em cima da gente. Passamos o resto do dia enterrando corpos e cavando trincheiras. Suas principais unidades estão avançando a uma média de quinze quilômetros por dia. Eles nos dizimaram em Minsky, nos arrasaram em Brestlitovsk e agora estão nos esmagando em Novgorod. Somos os próximos. O senhor tem razão, não temos a menor chance. Mas quando o senhor me diz que estamos despreparados, eu lhe digo não, fazemos todo o possível, e então morremos. Isso é tudo.
Pyadyshev acendeu um cigarro com mãos trêmulas e apoiou-se na sua pequena mesa. Alexander bateu-lhe continência.
– Continuaremos fazendo todo o possível.
Enquanto ainda havia luz, Alexander, com três de seus homens, deu uma volta pela linha de frente do acampamento. Ao passar pelas centenas de soldados nas margens do Luga, que esperavam os alemães, jogando cartas, fumando, ele se surpreendeu com quantos deles exibiam símbolos coloridos de hierarquia em seus ombros. Parecia que um de cada dez homens era um oficial. Muitos eram tenentes, alguns primeiros, outros segundos, mas havia capitães e um bom número de majores, todos na linha de frente para enfrentar o inimigo. Linha de frente. Quem ficaria para comandar as tropas se os majores fossem abatidos? Alexander nem queria pensar nisso.
Diligente, ele percorreu os campos, usando o método grid, indo para cima e para baixo, olhando no rosto de cada pessoa, estivesse ela escavando batatas ou escavando trincheiras. Ele não a encontrou.
Alexander foi de novo conversar com Pyadyshev.
– Senhor, mais uma questão. Há cinco dias, alguns voluntários vieram da fábrica de Kirov. Tem algum outro lugar além deste para onde eles possam haver sido enviados, para ajudar no esforço de guerra? Poderia algum deles ter sido enviado mais longe, ao leste?
– Eu comando estes doze quilômetros e do resto não sei nada. Estes doze são a última linha de defesa daqui a Leningrado. Depois disto não há mais nada. Só existe retirada. Ou rendição.
– Não há rendição, Coronel – Alexander disse com firmeza. – “Morte antes de rendição”.
Agora era a vez do Coronel piscar.
– Volte para Leningrado, Tenente Belov. Volte a Leningrado enquanto o senhor pode e leve consigo os voluntários que trouxe. Salve-os.
Na manhã seguinte, quando Alexander foi falar com Pyadyshev, viu que a tenda do Coronel fora desmantelada durante a noite, as estacas removidas e os buracos das estacas tapados. Mais e mais soldados chegavam ao rio e o front foi dividido em três setores, cada um com seu próprio comandante, pois já ficara bem claro que era difícil organizar tão grande regimento de tropas com um único posto de comando. A tenda do novo comandante foi armada a cinquenta metros da antiga tenda de Pyadyshev. O novo comandante só não sabia onde estava Pyadyshev, ele nem mesmo sabia quem era Pyadyshev. Era 23 de julho.
Alexander não teve tempo para se maravilhar com o rápido trabalho da NKVD, porque às nove o bombardeio começou outra vez, e dessa vez foi até o meio-dia. Os alemães tentavam matar os soldados da linha de frente antes que atacassem com tropas de infantaria. Eles ganhavam tempo, mas não muito. Alexander suspeitava que era só uma questão de dias antes da segunda parte da blitzkrieg. Ou ele encontrava Tatiana, ou permanecia em Luga e enfrentava os tanques alemães.
Com o coração pesado, Alexander subiu e desceu o rio à procura dela; seus homens foram para o serviço de trincheiras. Aqueles por ele treinados haviam recebido rifles. Foram informados de que era um crime punido com morte separar-se de suas armas. – Perder sua arma é um crime contra a Mãe Pátria! – Mas durante o seguinte ataque aéreo, ele viu três de seus homens abandonarem seus rifles quando corriam para se proteger.
Terminado o ataque aéreo, eles sorriram encabulados a Alexander, que, cansado, sorriu de volta, balançando a cabeça.
Outro dia passou. Enquanto os soldados assumiam suas posições ao longo das margens, montando os canhões de artilharia e minando os campos de batata, enquanto carregavam o que podiam de vegetais nos caminhões que os levavam de volta a Leningrado, o aperto que Alexander sentia no peito não dava trégua, de manhã até a noite.
Eles perderam Pasha, isso era mais que óbvio. Mas onde estava Tatiana? Por que ele não conseguia encontrá-la?
5
Tatiana pulou do trem e rolou colina abaixo sem muito esforço. Era coisa fácil comparada ao que eles faziam em Luga, ela e os amigos, dando um salto com corrida e caindo ofegantes nas margens duras e escarpadas do rio cheias de cascalho. A colina gramada era positivamente suave em comparação. Doía-lhe um pouco o ombro sobre o qual caiu.
Ao encontrar o acampamento dos meninos em Dohotino abandonado, Tatiana ficou traumatizada, e durante um dia permaneceu numa das tendas do local, sem saber o que fazer. Nadou no lago e comeu amoras. Havia trazido alguns pedaços de pão secos e tostados, mas queria guardá-los.
Quando ela e o irmão eram menores, costumavam correr através do rio Luga para ver quem nadava mais rápido. Pasha era um pouco maior e mais forte que Tatiana, mas não aguentava muito. Ele ganhou a primeira corrida. E ganhou a segunda. Perdeu na terceira. Tatiana sorriu ao pensar nisso, sorriu ao lembrar de Pasha gritando de frustração, ao lembrar dela própria vibrando de alegria.
Ela ainda não ia desistir de encontrar o irmão. Tatiana imaginava que Pasha e seus companheiros haviam sido levados para trabalho voluntário em algum lugar perto de Luga. Decidiu ir para Luga procurar Pasha e talvez encontrar Zina também e convencê-la a voltar a Leningrado. Ela não queria que Zina fosse um peso em sua consciência, como era Pasha.
Na manhã seguinte, contudo, quando ela estava pronta para partir, os aviões alemães bombardearam o vilarejo de Dohotino, onde Tatiana andava completamente sozinha. Ela correu e escondeu-se numa das cabanas, mas de repente uma pequena bomba incendiária entrou pelo telhado e torrou a parede de madeira na sua frente. Ela viu a tempo a velha lâmpada de querosene. Esqueceu tudo, correu como louca, e a casa explodiu segundos depois, incinerando a cabana, três outras ao redor e um estábulo próximo. Ela ficou sem a tenda, sem o saco de dormir, sem a mochila, sem o pão tostado.
Tatiana agachou-se nos arbustos atrás das cabanas, rastejou através das urtigas e escondeu-se debaixo de um carvalho caído. O bombardeio continuou sobre o vilarejo e perto de Tolmachevo durante mais uma hora. Ela podia ver as urtigas queimando, as urtigas pelas quais acabara de passar rastejando estavam queimando. As bombas caíam na floresta, queimando os galhos superiores, que vinham em chamas ao chão onde Tatiana se escondia.
Eu vou morrer, ela pensou. Sozinha, neste vilarejo, debaixo de um carvalho. Nunca vão me encontrar. Quem da minha família virá à minha procura? Vou morrer aqui sozinha, no bosque, e virar musgo, e lá, na Quinta Soviética, eles abrirão outra garrafa de vodca e comerão picles e dirão: um brinde à nossa Tania.
Terminado o bombardeio, ela ficou mais uma hora e pouco debaixo do carvalho, só por precaução. Tinha o rosto e os braços inchados e ferroados. Urtigas. Melhor isso que as bombas. Ela se sentia agradecida por sua própria decisão em guardar no bolso da camisa o passaporte doméstico carimbado por Krasenko. Sem ele, não iria longe, seria detida numa das muitas barreiras do Exército, ou talvez num setor oficial.
Tatiana caminhou de volta a Tolmachevo e bateu à porta de uma casa, onde pediu alguma coisa para comer. A família permitiu que ela ficasse até amanhecer. Quando ela saiu, viu um caminhão militar perto da cidade: soviéticos. Mostrou seu passaporte e pediu uma carona até Luga. O caminhão deixou-a na extremidade leste da linha de defesa de Luga, bem perto de Novgorod.
No primeiro dia, Tatiana cavou em busca de batatas e depois abriu trincheiras através do campo. Como não viu grupos de meninos vestidos com os uniformes do acampamento, ela perguntou a um sargento do Exército sobre os voluntários, e ele balbuciou alguma coisa sobre Novgorod.
– Os voluntários do acampamento foram mandados para lá – ele disse e foi embora.
Novgorod? Lago Ilmen? Era onde estava o seu Pasha? Era para lá que ela estava destinada a ir? Tatiana lavou-se um pouco no riacho e dormiu na grama perto de uma árvore.
Na manhã seguinte, os aviões alemães bombardearam as batatas, as trincheiras e Tatiana.
Era aterrador ver a explosão das bombas de fragmentação, que pareciam feitas para matar só a ela. Percebeu então que tinha que sair de Luga de qualquer jeito. Imaginando como iria achar o caminho até Novgorod, Tatiana perambulava através da fumaça. Nem bem pensava sobre o lago Ilmen e três soldados apareceram, perguntando-lhe se estava ferida e então ordenando-lhe que fosse com eles à tenda do hospital de campanha. Relutante, ela os acompanhou. Mais relutante ainda ficou quando descobriu o que eles queriam que ela fizesse: cuidar dos moribundos. E havia muitos morrendo. Soldados, mulheres civis, crianças do vilarejo, velhos. Todos na improvisada tenda militar, todos morrendo.
Como nunca vira antes a morte de perto, Tatiana fechava os olhos e queria voltar para casa, mas não havia meia volta e nem como voltar.
A milícia da NKVD guarnecia todas as entradas, pronta para manter a ordem e assegurar que um voluntário como Tatiana ficasse onde devia ficar.
Coração e dentes cerrados, Tatiana aprendeu a coagular ferimentos, pressionando-os com bandagens estéreis. Os ferimentos coagulavam e os feridos então morriam. O que Tatiana não podia fazer era transfusões de sangue, porque não havia nada de sangue. O que ela não podia fazer era evitar a infecção dos membros, o que ela não podia fazer era amenizar as dores nos membros. Os médicos se recusavam a dar morfina aos moribundos, as ordens eram para administrá-la aos feridos de menor gravidade, que podiam ser enviados de volta à linha do front.
Tatiana percebia que muita gente poderia haver sido salva se houvesse ali um pouco de sangue, ou um pouco daquele novo medicamento, a penicilina. No mínimo poderiam ter sido poupados da agonia de morrer sem morfina. A penetrante impotência que ela sentiu na primeira noite no hospital de campanha quase sufocou a impotência que sentia por não achar o irmão.
Na manhã seguinte, um dos soldados, ferido de morte no peito, perguntou-lhe se ela era menina ou menino.
– Sou uma menina – ela disse com tristeza.
– Prove-o – ele disse. Mas antes que ela tivesse uma chance de provar, o soldado morreu.
No rádio perto da tenda dos oficiais, Tatiana ouviu vozes alemãs falando russo num sotaque pesado, convidando-a para ir com eles para a Alemanha. Eles jogavam passes para ela cruzar a linha de frente, e como ela não foi, tentaram matá-la com bombas e fogo de metralhadora. Os alemães então ficaram quietos até a noite, quando reiniciaram o bombardeio. Em meio aos ataques, Tatiana lavava os moribundos e enfaixava os seus ferimentos.
Na tarde do dia seguinte, ela penetrou por um quilômetro nos campos na busca de uma batata para comer. Ouviu os aviões antes de vê-los e pensou: mas ainda não é noite. Imediatamente se jogou no chão entre os arbustos baixos. Ali ficou por quinze minutos.
Quando os aviões foram embora, Tatiana levantou-se e correu de volta à tenda de campanha, onde vislumbrou uma fogueira no seu lugar, com corpos carbonizados de gente que gemia, rastejando para se salvar.
Centenas de voluntários sobreviventes pegaram capacetes, baldes e vasilhames, o que podiam encontrar, corriam ao rio e voltavam para ajudar a apagar o fogo. Demorou três horas, bem dentro da tarde, quando houve mais bombardeio, e aí caiu a noite. Já não havia mais tendas para os feridos. Eles ficavam no chão em cima de cobertores ou na grama, gemendo seus últimos alentos no ar de verão. Tatiana não podia ajudar ninguém. Usando um capacete verde com uma estrela vermelha, com o qual fora buscar água no rio, tudo o que podia fazer era sentar-se ao lado de uma mulher que perdera sua criança no ataque e que também estava gravemente ferida na barriga. Agora, deitada na frente de Tatiana, chorava por sua menininha. Tatiana ajustou melhor o capacete na cabeça da mulher, pegou a mão dela e a segurou até que ela parasse de chorar por sua menininha.
Levantou-se então e foi para perto da linha das árvores e deitou no chão. Sou a próxima, ela pensou. Eu sinto isso. Sou a próxima.
Como ela chegaria a Novgorod, a cem quilômetros a leste dali?
Lavou-se e dormiu no campo com o capacete na cabeça.Quando o dia clareou, ela olhou o outro lado do rio e viu as torres e os canhões dos tanques alemães. Um cabo, que vinha dormindo por perto, juntou Tatiana e alguns poucos voluntários, ordenando-lhes ir embora imediatamente e retornar à cidade de Luga.
Ela puxou o cabo de lado e bem baixinho perguntou-lhe se havia uma maneira de chegar a Novgorod. O cabo a empurrou com seu rifle e gritou:
– Você ficou louca? Novgorod está nas mãos dos alemães!
A expressão no rosto de Tatiana deteve o cabo.
– Camarada, como é o seu nome? – ele perguntou de forma mais razoável.
– Tatiana Metanova.
– Camarada Metanova, ouça, você é muito jovem para estar aqui. Que idade tem, quinze?
– Dezessete.
– Por favor. Volte a Luga imediatamente. Acho que ainda há trens militares saindo da estação de Luga para Leningrado. Você é de Leningrado?
– Sim. – Ela não queria chorar na frente de um estranho. – Novgorod inteira está nas mãos dos alemães? – ela perguntou num tom fraco. – E os nossos voluntários lá?
– Diabos, quer parar de falar de Novgorod! – o cabo gritou. – Você não me ouviu? Não há mais soviéticos em Novgorod. E logo não haverá mais soviéticos em Luga, nem mesmo você. Faça um favor a você mesma, vá embora daqui. Me deixe ver seu passaporte.
Ela mostrou-lhe o documento.
Ele o devolveu e disse:
– Você tem autorização de Kirov. Volte a Kirov. Vá para casa.
Como ela voltaria para casa sem Pasha? Mas Tatiana não podia dizer isso ao cabo.
Eram nove no grupo de Tatiana. Ela era a menor e a mais jovem.Levaram o resto do dia para caminhar através dos campos e florestas, doze quilômetros de volta a Luga. Tatiana disse que chegariam a Luga bem a tempo para o bombardeio noturno. Seus companheiros, cansados, pouco caso lhe fizeram. Ela se sentiu como se estivesse de volta à sua família.
O grupo chegou à estação de Luga às seis e meia e esperou o trem. O trem não veio, mas às sete horas Tatiana ouviu os aviões alemães. Os voluntários foram amontoados dentro da pequena estação, que a princípio parecia tão segura, construída que fora com tijolos, podendo assim aguentar um pouco de bombardeio e fogo de armas.
Contudo, durante o ataque, uma das mulheres ficou tão apavorada que gritou e correu para fora, onde foi estraçalhada na hora. Os outros oito viram tudo horrorizados, mas logo ficou claro que os alemães queriam arrasar a estação que os escondia. Os nazistas estavam determinados a destruir a ferrovia. Os aviões não iriam embora até que a estação não ficasse mais em pé. Tatiana, sentada no chão com os joelhos no peito, puxava o capacete verde sobre os seus olhos fechados. Ela pensava que o capacete abafaria o som da morte.
A estação de trem desmoronou como papel molhado. Tatiana arrastou-se para longe das vigas e do fogo. Mas não havia nenhum lugar para ir. Através da fumaça podia sentir corpos ao seu redor. Quente e fraca, ela os apalpava com as mãos. O tiroteio vinha do lado direito da porta, mas quando uma viga metálica despencou do teto, todos os sons cessaram, tudo cessou, e não havia mais medo. Só restou arrependimento. Arrependimento por Alexander.
6
Alexander começou a perder a esperança. À distância, do outro lado do rio, o limite natural do front, ele podia ver os alemães concentrando suas tropas e tanques e batalhões de soldados bem armados, agressivos, impecavelmente treinados, que não se deteriam diante de nada, muito menos diante de centenas de voluntários municiados com pás.
Até onde alcançavam os seus olhos, havia somente dois tanques soviéticos. Do outro lado do rio havia pelo menos trinta Panzers. A unidade de vinte homens de Alexander estava reduzida a doze, e agora campos minados se estendiam entre ele e Leningrado. Três de seus homens morreram quando uma mina que plantavam explodiu. Não tinham experiência com minas, só com rifles, mas todos seus rifles haviam sido tomados pelo Exército, menos o de Alexander e seus dois sargentos.
Desviando os olhos do rio, ele não sabia para onde olhar.
Tarde da noite, o novo Coronel chamou Alexander à sua sala de comando. Alexander não gostava dele como gostava de Pyadyshev.
– Tenente, quantos homens o senhor ainda tem sob o seu comando?
– Só doze, senhor.
– Bastante.
– Bastante para quê?
– Os alemães acabam de bombardear a estação de trem de Luga – disse o Coronel. – Agora os trens de Leningrado carregando mais homens e munição não podem chegar ao front. Precisamos que você e seus homens removam os escombros espalhados nos trilhos da ferrovia, para que os engenheiros possam repará-la e nós possamos reiniciar serviço amanhã cedo.
– Está escurecendo, senhor.
– Eu sei, Tenente. Eu gostaria de lhe dar luz de dia, mas não posso. As noites brancas ficaram para trás, e isso tem que ser feito imediatamente.
Quando Alexander estava saindo, o Coronel acrescentou:
– Oh, me informaram que havia voluntários escondidos na estação quando as bombas destruíram tudo. Você pode querer removê-los.
Na Estação de Luga, Alexander e seus homens usaram lâmpadas de querosene para avaliar os estragos. O antigo prédio de tijolos estava em pedaços no terreno, e os trilhos da ferrovia arrebentados ao longo de cinquenta metros.
Alexander gritou:
– Tem alguém aí embaixo? Fale!
Ninguém respondeu.
Chegando mais perto dos destroços, repetiu:
– Tem alguém aí?
Ele achou ter ouvido um gemido.
– Estão todos mortos, Tenente – disse Kashnikov. – Olhe só isso.
– Sim, mas ouça. Tem alguém aí? – Ele mesmo começou a mover os grandes pedaços de pedra. – Me ajude, por favor?
– Devemos primeiro cuidar dos trilhos – Kashnikov sugeriu. – Assim os engenheiros podem restaurar a eletricidade na ferrovia.
Alexander endireitou-se e, com um olhar frio em direção ao sargento, disse:
– Trilhos de ferrovia antes de pessoas, Sargento?
– São ordens do Coronel, Tenente – Kashnikov balbuciou.
– Não, sargento! São minhas ordens. Agora, mexa-se. – Alexander afastou os pedregulhos e pedaços de janela e molduras de porta. Havia pouca luz, era difícil enxergar. Poeira e escombros enchiam suas mãos, e ele se cortou num vidro quebrado sem sentir nada. Só percebeu quando o sangue gotejou de uma mão para a outra.
Alexander com toda a certeza ouviu alguma coisa além dos grilos.
– Você ouviu isso? – ele disse.
Era um suave gemido.
– Não, senhor – disse Kashnikov, olhando-o com preocupação.
– Kashnikov, suas mãos caíram? Mais rápido, estou lhe dizendo.
Eles trabalharam mais rápido. Finalmente, debaixo dos tijolos e das vigas queimadas, encontraram um corpo. Depois dois. Depois três. Depois uma pilha de corpos, um em cima do outro, numa pirâmide sob os escombros. Alexander achou os corpos muito alinhados. Uma força aleatória não podia tê-los empilhado assim. Haviam sido colocados dessa forma. Não poderiam ter-se empilhado sozinhos. Ele fez força para ouvir.
De novo aquele gemido. Removeu um homem morto, outra mulher morta, enfiando, ansioso, a lâmpada de querosene em seus rostos. Outro gemido.
No fundo, debaixo do terceiro corpo, Alexander encontrou Tatiana.
Ela estava de costas para ele, e na cabeça tinha um capacete militar. Ele não a reconheceu nem pelas roupas nem pelo capacete, mas mesmo antes de remover o capacete, sabia que era ela por causa do formato do seu corpo pequeno e macio, que ele observara atentamente durante vários dias.
– Tatia – ele disse numa voz incrédula. Alexander livrou-se do resto dos corpos, removeu a última das vigas e tirou o cabelo do rosto de Tatiana. Ela estava apenas inconsciente e, sob a fraca luz das lâmpadas, mal parecia viva, mas dela eram os suaves gemidos, que continuavam a cada poucos segundos.
Suas roupas, seu cabelo, seus sapatos, seu rosto estavam cobertos de poeira e sangue.
– Tania, vamos – ele disse, esfregando suas bochechas, ajoelhado-se ao lado dela. – Vamos.
Seu rosto estava quente. Era um bom sinal.
– Esta é a Tania? – perguntou Kashnikov.
Alexander não respondeu. Ele pensava como levantá-la direito. Não podia saber, coberta de sangue como estava, onde tinha ferimentos.
– Acho que ela está morrendo – disse Kashnikov.
– Oh! Você agora é um porra de um médico? – Alexander fulminou. – Ela não está morrendo, agora pare de falar. Fique aqui com os homens e limpe a área, eles precisam de sua ajuda. Entrego-lhe o comando, Sargento. Em seguida, vá rápido de volta a Leningrado, ouviu? Pode fazer isso? Nós demos a eles nossas armas e oito de nossos homens e nós a encontramos. Terminamos aqui em Luga. Se apresse.
Com todo cuidado, ele virou Tatiana e levantou-a em seus braços. Ela estava flácida e ainda gemia.
– Tenente, e os feridos?
– Você ouve mais algum barulho? Você nem ouviu este. Agora de repente fica preocupado. O resto está morto. Verifique você mesmo se quiser. Eu vou levá-la ao médico.
– Precisa que eu vá junto com o senhor? Ela vai necessitar uma maca – Kashnikov disse.
– Não, não vai – disse Alexander. – Eu mesmo vou carregá-la.
Eram as onze da noite quando Alexander concluiu os três quilômetros de volta ao acampamento com Tatiana em seus braços à procura do médico.
Ele não o encontrou, mas achou o assistente, Mark, dormindo numa tenda.
– O médico morreu – Mark disse –, cortado em dois por um fragmento.
– Temos outro médico?
– Não – disse Mark. – Eu cuido disso.
– Cuidará.
Ele olhou o corpo ensopado de Tatiana e disse:
– Ela sangrou muito. Deixe-a do lado de fora. – E, de novo, ele deitou em seu catre.
– Ela não sangrou tanto – disse Alexander. – Não acho que seja o sangue dela.
O assistente obviamente queria dormir mais um pouco. Alexander não concordava.
– É difícil dizer com tão pouca luz – Mark disse. – Se ela viver até de manhã, então eu dou uma olhada.
Alexander não cedeu, segurava Tatiana em seus braços.
– Cabo – ele disse –, você vai olhar ela agora.
Sentado em seu catre, Mark suspirou.
– Tenente, já é muito tarde.
– Tarde para o quê? Você tem um lençol ou outra cama para ela?
– Uma cama? O que é isto aqui, um balneário? Vou pegar um lençol.
Mark abriu o lençol branco no chão. Alexander primeiro ajoelhou-se com ela nos seus braços e depois a deitou. Ao examiná-la, Mark espiou a cabeça, o couro cabeludo, o rosto e os dentes. Olhou o pescoço e levantou os braços dela. Quando ele levantou a perna, Tatiana gemeu mais alto.
– Ah! – disse Mark. – Você tem aí sua faca?
Alexander passou-lhe sua faca.
Ela vestia calças compridas. Mark cortou uma perna da calça e depois a outra. Alexander viu que o tornozelo direito e a canela estavam inchados e escuros.
– Tíbia quebrada – Mark disse. Tanto sangue e só isso até agora. De todo modo, está bastante quebrada, fraturada em vários lugares. Vamos ver o resto.
Ele desabotoou sua blusa, cortou o que antes fora um vestido branco, e examinou seu peito, costelas e abdômen.
O sangue manchava seu corpo frágil.
Alexander queria desviar os olhos.
Mark suspirou.
– Não posso dizer o que é sangue dela, e o que não é – ele disse. – Nada nas pernas está jorrando sangue fresco. – Ele apalpou o abdômen de Tatiana. – Você tinha razão. Ela não está pegajosa nem fria.
Parado no mesmo lugar, Alexander nada disse. Seu coração estava pesado e aliviado.
– Vê aqui? Ela tem três costelas quebradas no lado direito. Onde a encontrou?
– Debaixo da estação de trem. Debaixo de tijolos e cadáveres.
– Bem, isso explica tudo. Ela tem sorte de estar viva. Privilegiada, eu diria. – Mark levantou-se. – Não tenho cama para ela no hospital de campanha. Leve-a para lá e deixe-a no chão. De manhã, alguém cuida dela.
– Não vou deixá-la no chão até de manhã.
– O que preocupa o senhor? Ela não está ferida como alguns outros. – Mark balançou a cabeça. – O senhor devia vê-los.
– Eu sou um oficial do Exército Vermelho, Cabo – disse Alexander. – Eu já vi muitos homens feridos. Tem certeza que não tem um catre para ela em algum lugar?
Mark deu de ombros.
– Ela não tem estilhaços nos olhos, nenhum ferimento fatal. Não vou tirar alguém ferido no abdômen para dar lugar a ela.
– Claro que não.
– Não sei o que o senhor vai fazer com ela amanhã – Mark disse. – Ela precisa de um hospital apropriado. As pernas devem ser engessadas imediatamente. Não podemos fazer isso aqui.
Alexander balançou a cabeça. A ferrovia fora destruída pelas bombas, e o Exército levara embora seu caminhão.
– Não se preocupe com ela amanhã – ele disse. – Você tem mais toalhas e algumas ataduras para hoje à noite?
Alexander curvou-se e cobriu Tatiana com o lençol no qual ela deitava. E a levantou.
– E outro lençol.
Relutante, Mark foi pegar sua maleta de médico.
– Tem alguma morfina aí?
– Não, Tenente. – Ele riu. – Não tenho morfina para ela. Nenhuma morfina para uma menina com alguns ossos quebrados. Ela vai ter que aguentar as dores.
Mark colocou três toalhas em algumas ataduras em cima de Tatiana, e Alexander a carregou para sua tenda.
Depois de deitá-la no lençol, ele fechou bem sua blusa e foi ao riacho pegar um pouco de água num balde. Quando voltou, cortou uma toalha em pedaços pequenos, molhou um deles na água fria e começou a limpar o rosto e o cabelo de Tatiana. Limpou sua testa e as bochechas, os olhos e a boca.
– Tatia – ele sussurrou. – Que tipo de louquinha você é?
Alexander viu que ela abriu os olhos. Eles se olharam em silêncio.
– Tatia – ele sussurrou de novo.
A mão de Tatiana tocou-lhe o rosto.
– Alexander – ela disse, fraca, sem surpresa. – Estou sonhando?
– Não – ele disse.
– Devo estar... – ela continuou. – Era só um sonho... com o seu rosto. O que aconteceu?
– Você está na minha tenda. O que fazia na Estação de Luga? Foi destruída pelos alemães.
Tatiana esperou um momento para responder.
– Voltando a Leningrado – ela respondeu. – O que você está fazendo aqui?
Ele poderia ter mentido. Ele pensou alguma vez em mentir, tão furioso se sentia, traído pela maneira como ela o dispensou. Mas a verdade era tão simples.
– Procurando você.
Os olhos dela se encheram de lágrimas outra vez.
– O que aconteceu? Por que eu estou tão fria?
– Nada – ele disse apressado. – O médico assistente, Mark, teve que abrir suas calças e sua...
Tatiana levantou as mãos e apalpou suas roupas abertas. Alexander desviou os olhos. Ele aprendera a fingir tão bem com ela em Kirov, mantendo a distância, mas não podia agora fingir que nada significava encontrá-la viva e coberta de sangue, que nada significava salvá-la, que ela nada significava.
Ela tocou seu próprio rosto e olhou o sangue.
– É meu esse sangue?
– Não acho.
– Então que problema tenho? Por que não posso me mexer?
– Costelas quebradas.
Ela gemeu.
– E sua perna.
– Minhas costas – ela sussurrou. – Tem alguma coisa errada com as minhas costas.
Ansioso e preocupado, Alexander disse:
– Qual é o problema?
– Eu não sei. Está queimando.
– São as costelas, provavelmente – ele diz. – Eu quebrei uma na Guerra de Inverno, no ano passado. Parece que as costas pegam fogo.
– Suando.
Alexander deixou o trapo molhado no balde de água e examinou o rosto de Tatiana.
– Tania, você me ouve bem?
– Hmm.
– Pode sentar?
Tatiana tentou sentar-se.
– Não consigo – ela sussurrou. Segurava com as mãos a túnica rasgada e a camiseta.
O coração de Alexander desmanchava-se. Ele levantou-a e colocou-a sentada.
– Me deixe tirar suas roupas. Já não servem mais; estão encharcadas de sangue. Você não pode usá-las.
Ela balançou a cabeça.
– Tenho que tirá-las de você – ele disse. – Darei uma olhada nas suas costas, e depois limpo você. Não vai querer pegar uma infecção. Se deixar feridas abertas, pega. Eu limpo você, tiro o sangue do seu cabelo e depois enfaixo suas costelas e a sua perna. Você vai se sentir melhor na hora, graças às bandagens.
Ela balançou a cabeça, sentada, apoiada nele.
– Não se assuste, Tania – Alexander disse.
Ele a segurou bem perto e, depois de uns poucos momentos, quando ela nada disse, ele cuidadosamente tirou-lhe a túnica e depois o vestido. Pequena, ferida e fraca, ela pressionou o seu corpo nu contra ele; suas costas cobertas de sangue estavam debaixo das mãos dele, a pele dela, quente.
Ela precisa tanto que eu a cuide, Alexander pensou, procurando suavemente algum corte. E eu preciso, desesperadamente, cuidar dela.
– Onde dói?
– Onde você está me tocando – ela sussurrou. – Bem debaixo de seus dedos.
Ele se inclinou para examinar o ombro dela. Suas costas estavam sujas, mas o sangue já coagulara.
– Acho que você se cortou. Vou lavar suas costas em um minuto, mas acho que você está bem.
Alexander pressionou a cabeça de Tatiana contra o seu peito. Seus lábios pressionavam os cabelos úmidos dela.
Ele a ajeitou no lençol branco. Com as mãos, ela cobriu os seios, e fechou os olhos.
– Tatiasha – Alexander disse. – Preciso limpar você.
Os olhos ainda fechados, ela sussurrou:
– Eu mesma faço isso.
– Tudo bem – ele disse. – Mas você não pode nem sentar sozinha.
Ela não respondeu no ato.
– Me dê uma toalha molhada, e eu mesma me limpo.
– Tatia, me deixe cuidar de você. – Ele parou e respirou fundo. – Por favor. Não tenha medo. Eu nunca farei mal a você.
– Eu sei disso – ela murmurou, não podendo ou não querendo abrir os olhos.
– Eu vou lhe dizer uma coisa – Alexander falou. – Não se preocupe, fique assim e eu lavo ao seu redor.
Ele lavou os cabelos dela, os braços, a barriga e a parte superior de seu peito, tudo sob o reflexo da luz de uma lâmpada de querosene no canto da tenda. Tatiana gemeu alto quando ele tocou o seu tórax machucado.
Enquanto a limpava, Alexander sussurrava num tom tranquilizador:
– Algum dia desses, um único dia, não vou dizer agora, mas logo, talvez você possa me explicar o que fazia numa estação de trem durante o bombardeio. Entendeu? Eu quero que você pense sobre o que vai me dizer. Veja como tem sorte. Mexa os braços um pouco, depois de secá-la, enfaixo suas costelas. Elas se curam sozinhas, em poucas semanas. Você ficará como nova.
Com os olhos ainda fechados, Tatiana virou o rosto, as mãos nos seios. Alexander tirou-lhe as calças rasgadas, deixando-a só de calcinha, e lavou suas pernas.
Ela se encolheu e desmaiou quando ele tocou sua tíbia quebrada. Ele esperou que ela voltasse a si.
– Dói muito?
– É como se fosse ser cortada – murmurou Tatiana. – Você tem alguma coisa para a dor?
– Só vodca.
– Não gosto muito de vodca.
Enquanto ele secava a barriga dela com uma toalha, Tatiana, os olhos ainda fechados, as mãos ainda cobrindo o seu corpo, sussurrou:
– Por favor... Não me olhe. – Sua voz embargou.
Alexander, também com a voz embargada, disse:
– Tudo bem, Tatiasha. – Ele se curvou e beijou o alto de seu suave seio, acima da mão de Tatiana. – Está tudo bem. – Por um momento, ele deixou os lábios na pele de Tatiana e depois endireitou-se. – Preciso virar você, tenho que limpar o que falta.
– Não posso me virar sozinha.
– Eu viro você.
E assim ele fez, limpando-lhe as costas com a mesma cuidadosa e terna meticulosidade com que já limpara cada parte dela.
– Suas costas estão bem. Muitos cortes de vidro. O que queima você por dentro são as costelas.
Rosto enfiado no lençol, Tatiana balbuciou:
– O que vou vestir? Era a única roupa que eu tinha.
– Não se preocupe. Amanhã arrumamos alguma coisa. – Ele a virou, a assentou, e a enxugou. Passou-lhe as ataduras por trás de modo que seu rosto não ficasse tão perto dos seios de Tatiana, os quais ela continuava cobrindo. Ele enrolou as bandagens ao redor das costelas, amarrando-as com cuidado debaixo dos braços dela, querendo beijar seu ombro. Não o fez.
Depois de deitá-la, ele cobriu a parte superior do seu corpo com um cobertor e então fez uma bandagem bem apertada na sua perna, usando uma tala de madeira de reforço.
– O que você acha? – ele perguntou, sorrindo. – Eu lhe disse que ficaria nova em folha. Bem, venha aqui, segure em mim. – Ela mal podia levantar os braços ao pescoço dele.
Alexander colocou-a na cama feita com o seu casaco, no chão, e quando ela deitou, apoiou-se nele por um momento antes de se soltar. Ele a cobriu com um cobertor de lã. Ela puxou o cobertor até o pescoço e perguntou:
– Por que estou tão fria? Estou morrendo?
– Não – Alexander disse, enquanto limpava os lençóis e as toalhas. – Você vai ficar boa. – Ele sorriu. – Só temos que levá-la de volta à cidade.
– Não posso andar. Como vamos fazer isso?
Alexander deu-lhe um leve tapa na perna e disse:
– Tânia, quando você estiver comigo, não se preocupe. Eu cuido de tudo.
– Não estou preocupada – disse ela, olhando para ele de forma intensa sob a pálida luz.
– Talvez consertem a ferrovia até amanhã. São só três quilômetros daqui. Eu queria ter meu caminhão, mas o Exército levou embora, eles precisam mais. – Ele fez uma pausa. – Precisamos sair amanhã bem cedo. – Ele chegou um pouco mais perto dela. – Onde você estava antes de decidir ficar sob fogo alemão?
– Rio abaixo. Debaixo de fogo alemão. – Tatiana engoliu. – Eles estão do outro lado.
– Eu sei. Amanhã ou no dia seguinte estarão aqui deste lado. Temos que sair ao raiar do dia. Agora, fique aqui, não vá a nenhum lado. – Ele sorriu. – Meu fogão Primus está aí fora. Vou pegar um pouco de água limpa do riacho, me lavo, e depois faço um chá para você.
Ele tirou da mochila uma garrafa de vodca, levou-a aos lábios de Tatiana, levantando levemente sua cabeça.
– Eu não...
– Por favor, beba. Você vai ficar muito dolorida. Com a bebida, você melhora um pouco. Você quebrou alguma coisa antes?
– Meu braço, faz anos – Tatiana respondeu e bebeu com um arrepio.
– Por que cortou seu cabelo? – Alexander perguntou, segurando a cabeça de Tatiana, olhando-a. Ele fechou os olhos por um momento para não continuar olhando-a tão de perto.
– Não queria que me atrapalhasse – ela disse. – Você detestou? – Ela olhou para ele com aqueles seus doces e indefesos olhos.
– Eu não detesto – Alexander disse com voz rouca. Enorme esforço custou-lhe não se curvar e beijá-la. Ele a deitou em cima de seu casaco e saiu da tenda, precisava recompor-se emocionalmente. O desamparo e a vulnerabilidade de Tatiana trouxeram à tona os sentimentos ocultos que ele nutria por ela, e que agora pairavam no ar, torturantes, dolorosos.
Ele foi ao riacho, fez um pouco de chá e voltou à tenda. Ela estava meio acordada e meio consciente. Ele queria ter um pouco de morfina.
– Eu tenho chocolate. Quer um pedaço?
Tatiana ajeitou-se no seu lado bom e chupou um pequeno pedaço de chocolate, enquanto Alexander ficava sentado na grama, joelhos para cima.
– Quer saber o resto?
Ele assentiu com a cabeça.
– Por que você fez essa loucura, Tania?
– Para achar meu irmão. – Ela olhou para ele e em seguida desviou os olhos.
– Por que você não me procurou nas barracas?
– Eu já tinha ido uma vez. Pensei que se você soubesse alguma coisa, viria me ver. – Ela olhou para ele. – Você...
– Eu sinto muito – disse Alexander.
Ele observou seu rosto redondo e pálido. Ela tentava ser corajosa.
– Tania, eu sinto muito – ele disse –, mas o Pasha foi enviado a Novgorod.
Com um choro sufocante, Tatiana disse:
– Oh... Não. Por favor, não diga mais nada. – Ela começou a tremer e não podia parar. – Sinto tanto frio – ela disse, sua mão apoiada na bota de Alexander. – Posso tomar meu chá antes que eu caia no sono?
Ele segurou-lhe a cabeça e o copo na sua boca enquanto ela bebia.
– Estou cansada – sussurrou, deitando. Seus olhos nunca deixaram o rosto de Alexander. Como em Kirov.
Alexander começava a se afastar, quando ouviu sua voz.
– Aonde você vai?
– A lugar nenhum. Aqui mesmo – ele respondeu. – Eu durmo aqui e amanhã cedo vamos para casa.
– Você vai sentir frio na grama – ela sussurrou. – Venha aqui.
Alexander balançou a cabeça.
– Por favor, Shura – disse Tatiana em sua voz adocicada, a mão estendida a ele. – Por favor, fique perto de mim.
Ele não podia dizer não, mesmo que quisesse. Desligou a lâmpada, tirou as botas e seu uniforme ensanguentado e encharcado, procurou na mochila uma camiseta limpa e deitou em cima de seu casaco, ao lado de Tatiana, cobrindo a ambos com o cobertor de lã.
A escuridão na tenda era total. Ele se deitou de costas, e ela do seu lado esquerdo, na curva do braço dele. Alexander ouviu o barulho dos grilos. Ouviu o suave respirar de Tatiana. Ele sentia seu alento quente no ombro e no peito. Ele sentia o corpo nu de Tatiana debaixo do seu braço, pressionando-o de lado. Ele não podia respirar.
– Tania?
– Sim? – Sua voz, expectante, tremia.
– Você está cansada? Muito cansada para conversar?
– Não muito cansada para conversar. – Menos expectante.
– Comece do começo e não pare até chegar à Estação de Luga. O que aconteceu com você?
Depois que ela lhe contou tudo, ele esperou um momento e então perguntou, incrédulo:
– Você se cobriu rastejando debaixo de uma pilha de corpos antes da estação ruir?
– Sim – ela respondeu.
De novo Alexander silenciou por alguns momentos.
– Bela manobra militar, Tatia.
– Obrigada.
Ficaram em silêncio e, então, ele a ouviu chorar. Ele a segurou mais perto.
– Sinto muito sobre seu irmão.
– Shura – Tatiana disse, tão baixinho que ele fez um esforço para ouvir – Lembra o que eu contei a você como Pasha e eu íamos ao lago Ilmen em Novgorod?
– Lembro, Tania. – Ele acariciou seu cabelo.
– Minha tia Rita e o tio Boris e a minha prima Marina...
– A prima Marina?
– O que você quer dizer?
– A prima Marina que você ia visitar de ônibus? – Ele sorriu no escuro e sentiu a mão dela, beliscando-o de leve na barriga.
– Sim. Eles tinham uma dacha e um barco a remo, naquele lago, o Pasha e eu remávamos em turnos. Eu remava uma metade do lago, ele fazia a outra metade. Bem, certo dia, brigamos feio por discordar sobre qual era a metade exata. Ele simplesmente não queria que eu remasse, discutiu e discutiu, então gritou e depois berrou, e finalmente disse: “Você quer este remo? Bom, pode ficar com ele” e o jogou para cima de mim, e com o choque caí no lago. – Tatiana tremeu. Alexander ouviu-a rir um pouco. – Caí na água, e tudo bem, mas eu não queria que ele pensasse que eu estava legal, então prendi minha respiração e fui para baixo do barco e aí ouvi que ele gritava meu nome no maior pânico, mais e mais frenético, e de repente pulou na água para me resgatar, e eu nadei para o outro lado do barco, nele subi, peguei um dos remos e assobiei para ele. Assim que ele virou, dei-lhe uma remada na cabeça. – Tatiana limpou o rosto com a mão que há pouco tocara Alexander. – Bem, com a sorte que eu tenho, ele, claro, desmaiou. Ele vestia um colete salva-vida.
– Ao contrário de você?
– Ao contrário de mim. Eu vi o Pasha flutuando na água, cara para baixo, e pensei que ele estava só brincando comigo, também. Eu queria ver o quanto ele aguentava segurar o fôlego. Eu estava convencida de que ele não poderia segurar tanto tempo como eu. Assim, eu o deixei flutuar por um minuto, depois outro minuto. Finalmente pulei na água e o puxei para o barco. Não sei como consegui isso e remei de volta à margem, sozinha, enquanto ele ficava ali deitado gemendo, dizendo que eu o atingira duro, muito duro. Ah, o que eu ouvi dos meus pais quando eles viram o machucado na cabeça do Pasha. E depois que eu fui rigorosamente castigada, Pasha disse a todos que era tudo mentirinha, que esteve consciente todo o tempo. – Ela começou a chorar de novo. – Você percebe como eu me sinto agora? Como se estivesse esperando que em qualquer minuto o Pasha saia da água e me diga que foi tudo uma grande piada.
Com a voz embargada, Alexander disse:
– Tatiasha, os porras dos alemães acertaram feio a cabeça dele com aquele remo.
– Eu sei – ela sussurrou. – Me entristece muito que ele estava sozinho, longe de todos nós.
Ela silenciou, Alexander também, enquanto ele, deitado, ouvia a respiração de Tatiana recuperar o ritmo. Que ele estava sozinho sem você, Tatiana, pensou Alexander. Ele teria se sentido melhor se estivesse com você.
Ele ouviu a respiração pausada de Tatiana como se ela quisesse lhe perguntar alguma coisa. Ele continuou afagando o cabelo dela para lhe dar mais força.
– O quê, Tania?
– Shura, você está dormindo?
– Não.
– Sentia sua falta... quando você não ia a Kirov. Fica bem dizer isso?
– E eu senti sua falta – disse Alexander, roçando com os seus lábios os cabelos dourados e sedosos de Tatiana, soltos. – E fica bem dizer isso.
Nenhum outro sinal de Tatiana, exceto por sua mão, que se mexia no peito dele, suavemente, ternamente, para cima e para baixo. Ele a segurou mais perto. Ela gemeu de dor, outra e outra vez.
Minutos passaram.
Depois horas.
– Shura, você dormiu?
– Não.
– Eu só queria dizer... obrigada, soldado.
Os olhos de Alexander se fixaram na escuridão, enquanto ele tentava repassar momentos de sua própria vida, de sua infância, de sua mãe e pai, os Barringtons.
Ele nada viu. Nada sentia, exceto Tatiana deitada em seu braço adormecido, acariciando seu peito. Ela parou e colocou a mão sobre o coração acelerado de Alexander. Ele sentiu os seus lábios ligeiramente pressionados contra sua camisa, e então ela dormiu. Por fim, ele dormiu também.
Quando Alexander vislumbrou um traço de luz azul cinza vindo do lado de fora, ele disse:
– Tania?
– Estou acordada – ela disse, sua mão ainda no peito dele.
Ele se desvencilhou e foi lavar-se num riacho no bosque, onde ainda estava escuro. Não havia como fazer isso às margens do rio Luga. Os alemães estavam somente a setenta e cinco metros do outro lado da água, canhões e artilharia apontados aos soldados soviéticos que dormiram abraçados às suas metralhadoras. Alexander não; ele dormira abraçado a Tatiana.
De volta à tenda com água limpa, ele sentou Tatiana, ainda envolta ao seu cobertor, ajudou-a a se lavar e depois lhe deu um pouco de pão e mais um pouco de chá.
– Como você está se sentindo agora? – ele perguntou. – Viva? – Sorriu.
– Sim – ela disse ainda fraca. – Eu acho que posso andar com a minha perna boa. – Pelo rosto contraído de Tatiana, ele percebeu que ela ainda sentia dores terríveis.
Alexander disse a ela que voltaria logo e foi acordar o médico, pedindo-lhe algumas roupas para ela e algum remédio.
Mark não tinha nenhum medicamento, mas encontrou um vestido que havia pertencido a uma enfermeira morta dias antes.
– Cabo, eu preciso de um mísero gramo de morfina.
– Não tenho – Mark fulminou. – Eles fuzilam quem rouba morfina. Eu não a tenho nem mesmo para uma perna quebrada. Se ela chegar aqui com um problema intestinal sério, tampouco tenho morfina.Você quer que ela ou um capitão do Exército Vermelho receba a nossa preciosa morfina?
Alexander não respondeu à pergunta.
De volta à tenda, ele sentou Tatiana novamente e puxou-lhe o vestido sobre a cabeça, cuidando para não machucá-la ou olhar o seu corpo nu enfaixado.
– Você é um bom homem, Alexander – ela disse, colocando sua pequena palma no rosto dele.
– Mas primeiro um homem – ele disse baixinho, inclinando-se sob a mão de Tatiana. Fez uma pausa antes de continuar. – Sua perna deve doer muito. Beba um pouco mais de vodca. Ameniza a dor.
– Tudo bem – ela disse. – O que você disser.
Ele deixou que ela tomasse alguns goles.
– Pronta para ir?
– Me deixe – Tatiana disse. – Vá sozinho, me deixe. Logo haverá lugar para mim na tenda de campanha. As pessoas morrem, as camas ficam vazias.
– Você acha que eu vim até Luga para deixar você à espera de uma cama de hospital? – Ele desmantelou a sua tenda e guardou o seu casaco e cobertor. Ela sentava no chão. – Me deixe ajudar. Você fica em pé numa perna?
– Sim – ela disse gemendo.
Tatiana ficou na frente de Alexander, mal alcançando o alto do seu peito. Tudo o que ele queria era beijá-la na cabeça. Por favor, não olhe para mim, Alexander pensou. Ela, desequilibrada, segurava nos braços dele e balançava.
– Deixe que eu carregue sua mochila – ela disse. – Ficará mais fácil para você.
Ele fez isso.
– Tania, vou ficar agachado na sua frente, e você vai pegar o meu pescoço. Segure bem firme, ouviu?
– Tudo bem. E o seu rifle?
– Você nas minhas costas, o rifle nas minhas mãos – Alexander disse. – Vamos, temos que ir embora.
Ela se agarrou nele, Alexander levantou-se com Tatiana nas costas e pegou a sua arma.
– Pronta?
– Sim.
Alexander ouviu os gemidos.
– Está doendo muito?
Com os braços ao redor do seu pescoço, ela o apertou.
– Não muito.
Alexander carregou Tatiana nas costas por três quilômetros até a Estação de Luga, a qual, frustrando sua esperança, ainda não fora reparada.
– E agora? – ela perguntou ansiosa quando ele parou para um descanso.
Ele deu a ela um pouco de água.
– Agora vamos, através dos bosques, até a próxima estação.
– Quantos quilômetros são?
– Seis.
– Alexander, não. Você não pode me carregar outros seis quilômetros.
– Alguma outra ideia? – ele perguntou, agachado na frente dela. – Vamos embora.
Eles estavam numa estrada lateral da floresta, a caminho da próxima estação de trem, ao norte, quando ouviram os aviões bem acima das árvores. Sozinho, Alexander teria continuado a andar, mas não queria ir em frente com Tatiana nas suas costas. Se uma bomba caísse, ela seria a primeira atingida.
Ele saiu da estrada, trazendo-a de volta ao bosque e sentando-a ao lado de uma árvore caída.
– Fique deitada – ele disse a ela, ajudando-a a se acomodar. Ele deitou ao lado dela, segurando o rifle. – Vire-se de barriga para baixo – ele disse – e proteja sua cabeça. – Ela não se mexeu. – Não tenha medo, Tania.
– Como posso ter medo agora? – ela disse, vacilante, deitada de costas e olhando para ele. Ela não se mexia. Colocou as suas mãos no peito de Alexander.
– Continue – ele disse olhando para ela. – O quê? Precisa que eu lhe ajude? Eu devia ter pegado seu capacete verde na estação.
– Alexander.
– Agora que amanheceu, de repente sou Alexander outra vez?
Tatiana olhou para ele e sussurrou:
– Oh, Shura... – E Alexander não aguentava mais.Curvou-se perto de seu rosto e a beijou. Como ele imaginara, os lábios de Tatiana eram macios, jovens e cheios. Tremia o corpo inteiro de Tatiana enquanto ela o beijava com tamanha ternura, tamanha paixão, tamanha carência, que Alexander, sem querer, deu um pequeno gemido.Ele estava aturdido pelas mãos de Tatiana, que puxavam sua cabeça e não a soltavam.
– Meu Deus... – ele sussurrou na boca semiaberta de Tatiana.
O barulho explosivo das bombas sobre suas cabeças os paralisou.Alexander sentia que alguma coisa tinha que detê-lo. A ponta de um pinheiro próximo pegou fogo, e fragmentos dos galhos queimados caíram na úmida floresta, muito perto deles. Ele a virou de barriga para baixo e deitou-se ao seu lado no musgo, com o seu braço em meio corpo cobrindo-a.
– Você está bem? – ele sussurrou. – As bombas te assustam?
– Bombas são o menor problema – ela sussurrou de volta.
Tão logo o bombardeio parou, Alexander disse:
– Vamos embora. Temos que chegar até o trem. Vamos nos apressar.
Ela se levantou, mas não olhou para ele. De costas para ela, ele se agachou e ela subiu. Ele a carregava, as armas debaixo dos joelhos dela, as mãos segurando o rifle.
– Sou pesada – ela disse nas suas costas.
– Não mais do que a minha mochila – ele disse ofegante. – Aguente firme. Logo chegamos lá.
De vez em quando o rifle batia na perna quebrada de Tatiana, e Alexander podia sentir como ela se contraia de dor, mas não gemia, não chorava.
A certa altura, ele sentiu que ela pusera a cabeça nas suas costas.
Ele esperava que ela estivesse bem.
Debaixo de um céu esfumaçado em meio a bosques incendiados, Alexander carregou Tatiana nas costas seis quilômetros até a próxima estação. Havia cessado o bombardeio mais próximo, mas o barulho das explosões e das armas de artilharia continuavam ao redor.
Na estação, Alexander sentou Tatiana no chão e afundou-se ao lado dela. Ela chegou mais perto dele, ainda mais junto.
– Cansado? – ela perguntou carinhosamente.
Ele assentiu com a cabeça.
Esperaram. A estação estava cheia de mais gente: mulheres com bebês, com os seus pais idosos, com todos os seus pertences. Sujos e traumatizados pelas bombas, esperavam o trem. Alexander pegou um pedaço do que lhe sobrava do pão e o dividiu com Tatiana.
– Não, coma você – ela disse. – Precisa mais do que eu.
– Você comeu alguma coisa ontem? – Alexander perguntou a ela. – Não, claro que não.
– Eu comi uma batata crua e algumas amoras na floresta. E o chocolate que você me deu. – Ela pressionava o seu corpo contra o dele. Repousou a cabeça no braço de Alexander e fechou os olhos.
Alexander a abraçou.
– Você vai ficar boa – ele disse, beijando-a na testa. – Você verá. Um pouco mais e estará ótima. Eu prometo. – O trem chegou. Era de transporte de gado, sem lugar para sentar.
– Você quer esperar? – ele perguntou. – Um trem de passageiros?
– Não – ela respondeu ainda fraca. – Eu não me sinto bem. É melhor chegar logo a Leningrado. Vamos subir. Eu me aguento com uma perna.
Alexander a colocou na plataforma primeiro e depois subiu. O vagão estava cheio. Eles ficaram em pé na beirada do vagão, de onde podiam ver o campo através das portas abertas. Durante várias horas, eles ficaram comprimidos um contra o outro, Tatiana apoiada nele, a cabeça em seu peito, e Alexander segurando-a como podia pelos braços.
Ele não podia segurá-la com força ao redor das costelas ou nas costas. A certa altura, sentiu que o corpo de Tatiana escorregava.
– Não, fique em pé, fique em pé – ele disse a ela, endireitando-a.
E em pé ela ficou, os braços ao redor dele.
As portas do vagão ficavam abertas, caso as pessoas quisessem pular. O trem atravessava campos e estradas sujas cheias de agricultores soviéticos arrastando vacas, porcos e cabras, além dos refugiados que empurravam carrinhos com as suas possessões terrenas. Ambulâncias tentavam circular pelas mesmas estradas, passando ao lado de multidões de gente, motociclistas, também. Alexander observava o rosto sombrio de Tatiana.
– O que você está pensando, Tatia?
– Por que essa gente boba carrega suas vidas inteiras nas costas? Se eu fosse embora não levaria nada. Só a mim mesma.
Ele sorriu.
– E todas as suas coisas? Você tem coisas, não tem?
– Sim. Mas eu não levaria nada comigo.
– Nem mesmo o meu livro Cavaleiro de Bronze? Você devia levá-lo.
Ela levantou os olhos, ensaiando um sorriso.
– Talvez isso. Mas ou eu vou embora para me salvar ou eu me sobrecarrego, diminuindo meu passo, facilitando para o inimigo. Você não acha que devemos nos perguntar qual é o nosso objetivo? Estamos deixando nossa casa? Estamos começando uma vida nova? Ou planejamos continuar a vida velha em outro lugar?
– São todas boas perguntas.
– Sim. – Pensativa, ela olhou os campos.
Alexander curvou-se e roçou o rosto na cabeça rapada de Tatiana, com as mãos pressionando-a para mais perto. Só uma coisa sobrara de sua vida passada; de outra forma, a América não existia, só em sua lembrança.
– Eu queria tanto ter encontrado meu irmão – ela disse num sussurro.
– Eu sei – disse Alexander emocionado. – Eu queria tê-lo encontrado para você.
Depois de um suspiro dolorido, Tatiana permaneceu calada.
O trem chegou na Estação de Varsóvia no começo da noite. Eles sentaram no banco de frente para o Canal Obvodnoy e esperaram o bonde 16, que os levaria ao hospital Grechesky, perto da casa de Tatiana. O bonde chegou, Alexander perguntou:
– Quer subir?
– Não.
Sentaram.
Veio o segundo bonde.
– Vamos neste?
– Não – ela respondeu.
Veio o terceiro.
– Não – Tatiana disse antes que ele perguntasse, e colocou a cabeça no braço de Alexander.
Quatro bondes vieram e foram embora.
E eles continuavam sentados, bem juntos, sem nada a dizer, olhando o canal.
Só mais um suspiro, Tatiana disse finalmente:
– No próximo trem você vai me levar de volta à minha antiga vida.
Alexander nada disse.
Tatiana, com a voz chorosa, sussurrou:
– O que vamos fazer?
Ele não respondeu.
– Em Kirov, naquele dia – ela perguntou –, quando brigamos, você... tinha um plano?
Ele queria mesmo tirá-la de Leningrado. Ela não estava segura na cidade.
– De fato, não.
– Eu também achava isso – ela disse, a cabeça apoiada no braço dele.
Outro bonde veio e foi embora.
– Shura, o que eu digo à minha família sobre o Pasha?
Lábios contraídos, ele tocou o rosto de Tatiana.
– Diga-lhes que você sente muito. Diga-lhes que você fez todo o possível.
– Talvez, como eu, ele esteja vivo em algum lugar?
– Você não está em algum lugar – disse Alexander. – Você está comigo.
Tatiana engoliu antes de continuar.
– Sim, mas até ontem eu não estava com você. Eu estava em algum lugar também. – Ela o olhou de um jeito esperançoso. – Talvez?
Alexander balançou a cabeça.
– Oh, Tania.
Tatiana desviou o olhar.
– Foi difícil me encontrar?
– Não muito – ele não queria contar a ela como vasculhara cada metro de Luga à sua procura.
– Mas como você soube que eu estaria em Luga?
– Procurei você em Tolmachevo também.
– Mas por que, afinal, você foi à minha procura? – Tatiana perguntou.
Alexander viu no olhar de Tatiana uma expressão de carência e esperança que ele não podia suportar.
– Ouça... – ele disse. – Foi a Dasha que me pediu para encontrar você.
– Oh? – A fisionomia de Tatiana esmoreceu. – Oh!
Ela se afastou dele, não queria nenhuma parte de seu corpo tocando em Alexander.
– Tatia...
– Olhe, nosso bonde está aqui – ela disse, tentando levantar-se. – Vamos embora.
Alexander segurou-lhe o braço.
– Me deixe ajudar.
– Estou bem – ela disse, e levantou-se ainda apoiada nele, gemendo de dor.
Abriram-se as portas do bonde.
– Pare – Alexander urgiu. – Deixe-me ajudá-la, eu disse.
– E eu disse que estou bem.
– Pare – ele disse com mais firmeza –, ou então vou deixá-la.
– Então deixe.
Exasperado, ele suspirou e deu uma volta ao redor para ficar na frente de Tatiana.
– Pare de levantar. Suas costelas reclamam. Segure em mim – ele disse. – E eu coloco você dentro.
Já sentados, a caminho, Alexander perguntou:
– Por quê você está chateada?
– Não estou chateada.
Depois de um momento, ele colocou o braço no ombro dela. Tatiana sentava impassível, olhando pela janela.
Depois de quinze minutos de silêncio mútuo, eles chegaram ao hospital na rua Grechesky. Alexander a carregou para dentro, onde as enfermeiras logo a colocaram numa cama, vestiram-na com roupa limpa do hospital e, imediatamente, deram-lhe alguma coisa para as dores.
– Muito melhor com a morfina? – Ele sorriu. – O médico estará aqui em mais um minuto. Ele vai endireitar sua perna e engessá-la; você vai dormir. Enquanto isso, vou embora. Vou informar à sua família que você está aqui. E então vou ao resgate dos meus homens. – Ele suspirou. – Tenho certeza de que ainda estão estagnados em Luga.
Tatiana apoiou-se nos travesseiros, e disse friamente:
– Obrigada pela ajuda.
Alexander sentou na beira da cama. Tatiana virou a cabeça. Ele colocou dois dedos embaixo do queixo dela e virou o seu rosto de volta. Havia lágrimas nos olhos dela.
– Tatia? – ele disse. – Por que você está tão aborrecida? Se a Dasha não tivesse me procurado, eu nunca teria ido a Luga para encontrar você. – Ele deu de ombros. – Eu não sei por que, mas assim é que deve ser, você está em casa, você está bem. – Ele acariciou-lhe o queixo. – Você está sofrendo muito agora, muita coisa se quebrou...
Ela fungou, tentando de novo virar a cabeça, mas ele não deixava, sentia uma ternura arrebatadora, devastadora.
– Shh... Venha aqui – ele disse e a abraçou carinhosamente. – Tania, seja quais forem as suas perguntas, a resposta é sim para todas elas – ele sussurrou beijando-lhe o cabelo, sentindo que ela tentava afastar-se.
– Não tenho perguntas – ela disse num tom neutro. – Todas foram respondidas. Você fez isso por causa de Dasha. Ela ficará muito grata.
Alexander sacudiu a cabeça, riu incrédulo. Deixando que ela colocasse a cabeça no travesseiro, ele disse:
– Eu também beijei você por causa de Dasha? – Ela ficou vermelha. – Tania – ele disse baixinho –, não podemos ter esta conversa, não depois de tudo que passamos juntos.
– Você tem razão, não devíamos nem estar conversando. – Ela nem olhava para ele.
– Devíamos, mas não só sobre esse assunto.
– Vá embora, Alexander, vá e diga à minha irmã como você me salvou a pedido dela.
– Eu não salvei você por isso – ele disse já em pé. – Salvei você por mim. E você, Tania, não está sendo justa.
– Eu sei – ela assentiu com tristeza, olhando o cobertor. – Não há nada justo nesse assunto.
Alexander pegou a mão de Tatiana, lutando para não beijá-la outra vez, a fim de não causar dores mais profundas a ela e a si próprio. No final, coração machucado, ele pressionou com os seus lábios a trêmula palma da mão de Tatiana e foi embora.
Espetada no espaço
1
Depois que Alexander foi embora, Tatiana quis chorar, mas as suas costelas doíam muito. Ela colocou o braço sob o rosto, quando a enfermeira Vera entrou e disse:
– Pronto, pronto, você vai ficar boa. Sua família logo estará aqui. Não chore, você se machuca. Você quebrou as costelas. Por que não dorme? Eu lhe dou alguma coisa para dormir.
– Um pouquinho mais de morfina?
– Já lhe dei dois gramas. Quanto mais você quer? – Vera riu.
– Outro quilo?
Tatiana dormiu.
Quando abriu os olhos, sua família estava sentada em cadeiras ao redor da cama, todos olhando ora encantados, ora horrorizados para o que viam. Dasha segurava sua mão, Mamãe limpava seu rosto, Babushka, ansiosa, batia os dedos na mão de Deda, Papai olhava Tatiana com um jeito de desaprovação.
– Tania, você ficou fora dois dias – disse Dasha, que não parava de beijar o cabelo cortado de Tatiana.
Mamãe afagava suas mãos.
– O que você pensava? – ela repetia numa voz chorosa.
– Eu queria achar o nosso Pasha – Tatiana disse, apertando a mão da mãe. – Eu sinto muito não ter conseguido.
– Tania, não diga disparates – disse Papai, indo até a janela. – Você não foi à escola? Não se formou um ano antes? O que eles lhe ensinaram lá? Obviamente, não foi bom-senso.
Mamãe disse:
– Tanechka, você é a nossa garotinha, nosso anjo de menininha. O que teríamos feito se também perdêssemos você? – Ela soluçava. – Como poderíamos seguir adiante?
Papai disse a Mamãe que não falasse besteira.
– Não perdemos Pasha! Voluntários voltam da linha o tempo todo. Há esperança.
– Diga isso à Nina Iglenko – disse Dasha. – É só pisar no corredor para ouvi-la gritando pelo filho Volodya.
– Nina tem quatro filhos – Papai disse sombrio –, que devem ir para o front, se esta guerra não terminar logo. É melhor que se acostume a perdê-los. – Ele abaixou a cabeça. – Mas nós só temos um filho, e eu preciso ter esperança.
Tivesse Tatiana força, ela teria se afastado de todos eles, incapaz de encará-los com a verdade que havia visto no rio Luga. Se ela lhes contasse que tinha envolvido cadáveres, que vira gente morrer na sua frente, que tinha visto membros queimados e estraçalhados, além de crianças pequenas massacradas, sua família não lhe teria acreditado. A própria Tatiana mal acreditava em tudo aquilo.
– Você está completamente louca, Tania – disse Dasha. – Você nos causou enorme sofrimento, além de arriscar a vida do coitado do meu Alexander. Ele foi à sua procura. Eu implorei que fizesse isso; ele não queria. Precisou passar por cima do seu oficial comandante.
– Tatiana – disse Deda –, ele salvou a sua vida.
– É mesmo? – ela disse, enfraquecida.
– Oh, coitadinha – disse Mamãe, esfregando a mão de Tatiana. – Você não lembra nada. Georgi, ela não lembra. O que você deve ter passado.
– Mamãe, você não ouviu? – disse Dasha. – A estação caiu em cima dela. Alexander a resgatou debaixo dos escombros!
– Que homem, Dashenka! – exclamou Papai. – Onde você o encontrou? Ele é ouro, ouro puro. Fique com ele.
– Essa é minha intenção, Papai.
Naquele exato momento, o homem que era ouro puro, entrou com Dimitri.
A família correu a ele. Papai e Deda apertaram-lhe as mãos vigorosamente. Mamãe e Babushka o abraçaram. Dasha o beijou na boca.
E o beijou, e o beijou.
– Chega, Daria Georgievena – disse Papai. – Deixe o soldado respirar.
Dimitri chegou perto de Tatiana, abraçando-a. Seus olhos estavam preocupados e intrigados.
– Bem, Tanechka – ele disse beijando-lhe a cabeça –, você tem muita sorte em estar viva.
– Tatiana, eu acho que você tem alguma coisa a dizer ao Tenente Belov – disse Papai, todo solene.
– Eles vão dar ao nosso Tenente outra medalha de coragem militar – Dimitri bufou. – Depois de trazer Tatiana de volta, ele retornou com os seus homens, trazendo onze dos vinte de sua unidade para Leningrado. E a maioria desses homens não tinha nenhum treinamento. Melhor ainda que a Finlândia certo, Alex?
Alexander aproximou-se da cama e disse:
– Tania, como você se sente?
– Espere, o que aconteceu na Finlândia? – perguntou Dasha, grudada no braço de Alexander.
– Como você se sente, Tânia? – Alexander repetiu.
– Ótima – Tatiana respondeu, sem poder olhar para ele. Ela sorriu para a mãe. – Eu estou bem, Mamãe, logo estarei em casa.
Dasha disse:
– O que aconteceu na Finlândia? – Ainda grudada em Alexander.
– Não quero falar sobre isso – Alexander disse.
– Eu lhes conto – Dimitri disse todo animado. – Na Finlândia, Alexander só trouxe quatro de um grupo de trinta homens, mas mesmo assim conseguiu fazer daquela derrota uma vitória. Uma medalha e uma promoção, não foi, Alexander?
Sem responder a Dimitri, Alexander perguntou a Tania:
– Como está sua perna?
– Bem – ela respondeu. – Logo estará como nova.
– Logo não! – exclamou Mamãe. – Setembro! Você vai ficar engessada até setembro, Tania. O que vai fazer?
– Eu acho – disse Tatiana – que estarei engessada até setembro.
Mamãe, balançando a cabeça e fungando, disse:
– Não, Alexander a carregou nas costas, Georgi, nas costas.
Ela pegou as mãos de Alexander e disse:
– Como podemos lhe agradecer?
– Não precisa nenhum agradecimento – Alexander respondeu sorrindo para a mãe de Tatiana. – Só cuidem de Tania.
– Alex, que bom que a nossa Tania pesa somente uns três quilos – Dasha disse com uma risadinha.
– Agradeça a ele, Tania – insistiu Papai, quase caindo na cama de Tatiana por causa de sua ansiedade e gratidão. – Agradeça ao homem por haver salvado a sua vida, pelo amor de Deus!
Forçando um sorriso, com Dimitri ainda segurando sua mão, Tatiana de alguma maneira conseguiu olhar direto para Alexander e disse:
– Obrigada, Tenente.
Antes que ele pudesse responder, Dasha o abraçou de novo.
– Alexander, você vê o que fez pela nossa família? Como posso lhe agradecer? – Ela sorriu, esfregando-se nele.
Felizmente, a enfermeira entrou e disse que todos tinham que sair do quarto.
Dimitri curvou-se e pressionou sua boca borrachuda no canto da boca de Tatiana.
– Boa noite, querida – ele disse. – Venho ver você amanhã.
Ela queria gritar.
Dasha ficou no quarto para endireitar os cobertores de Tatiana e colocar-lhe o travesseiro debaixo da perna. Ela parecia agitada de um jeito que Tatiana não via há semanas.
– Tania – ela sussurrou. – Se existe Deus, agradeço a ele por você. Depois que ele trouxe você de volta, tivemos uma longa conversa. Eu estava tão grata a ele por ter achado você, e o convenci a nos dar outra chance. Com a guerra tão próxima, eu disse, o que temos a perder? Eu disse: Alexander, veja o que você fez por mim; você não faria isso se não sentisse alguma coisa por mim. Ele disse: Dasha, eu nunca disse que não sentia alguma coisa por você.
Dasha beijou a cabeça de Tatiana.
– Obrigada, minha irmãzinha, obrigada por ficar viva até que ele achasse você.
– De nada – disse Tatiana numa voz tediosa. Se ele estava de novo na vida de Dasha, estaria na vida dela novamente. Por que ela se sentia tão vazia?
– Tania...Você acha que o Pasha está vivo em algum lugar?
Tatiana pensou nos panfletos que flutuavam no céu como confetes, nos projéteis explodindo no ar como chuva metálica, da frieza das armas de artilharia apontadas para ela, para Alexander. E para Pasha.
– Eu acho que não – disse Tatiana, fechando os olhos. O que quer que tivesse acontecido a ele, Pasha estava irremediavelmente perdido.
Tatiana tinha os olhos fechados ainda uma hora depois, quando pensou haver ouvido o ranger da porta. Quando abriu os olhos, Alexander estava sentado na cama. Como ele fizera isso, com o seu corpo e o seu rifle, de forma tão silenciosa?
– O que você está fazendo aqui? – ela perguntou.
– Vim ver você.
– Você deixou a Dasha?
Ele assentiu com a cabeça.
– Estou a caminho da Catedral de Santo Isaac. Dou plantão de ataque aéreo lá, acima do domo, na galeria rotunda. Até a uma. Petrenko está de serviço antes de mim. Ele é um bom soldado. Ele me cobre se eu me atrasar um pouco.
A Catedral de Santo Isaac era a estrutura mais alta de Leningrado.
– O que você faz aqui? – Tatiana repetiu.
– Queria ter certeza de que você está bem. E queria falar com você sobre a Dasha.
– Estou ótima. Mesmo. E você não devia fazer isso. Vir aqui desse jeito. A Dasha tem razão. Eu já aprontei confusão suficiente. Você não deve se atrasar para o seu plantão.
– Não se preocupe comigo. Como você se sente?
– Bem – olhando-o. – Você é o herói, não é, Alexander? – ela disse. – Minha família pensa que a Dasha não podia ter feito melhor. – Tatiana abaixou os olhos.
– Tatia...
– Ela me disse que vocês dois estão juntos novamente – Tatiana disse fingindo animação. – Por que não? Com a guerra tão próxima, o que vocês têm a perder, não é? O fracasso inteiro de Luga na verdade funcionou ao contrário.
– Tatia...
– Não me chame de Tatia – ela fulminou.
Alexander suspirou.
– O que você quer que eu faça?
– Me deixe em paz, Alexander.
– Como posso fazer isso, Tatiana?
– Eu não sei. Mas é melhor você encontrar um jeito. Você já notou como o Dimitri está tão atencioso comigo? Isso revelou também suas melhores qualidades – Tatiana disse. – Eu nunca imaginei que ele pudesse ser tão bondoso.
– Sim, ele beija você gentilmente – disse Alexander. Seus olhos escurecendo.
– Ele tem sido muito amável.
– E você facilita.
– Como? – Tatiana disse. – Bem, pelo menos não estou agarrando-o à força.
Alexander engoliu em seco. Tatiana também. Ela não acreditava no que acabava de dizer.
– O quê? – Ele disse mordaz. – Este é o passo seguinte para vocês dois?
Abalada, ela não respondeu.
Uma enfermeira entrou e deixou a porta aberta.
– Para que circule ar fresco.
Quando estavam outra vez sozinhos, ele disse:
– Tania, eu não sei o que você quer eu faça. Desde o começo eu lhe disse, não vamos brincar com isso. – Fez uma pausa. – Mas agora é muito tarde. Agora o Dimitri. – Alexander interrompeu balançando a cabeça. – Agora ficou duplamente difícil.
Tudo que ela queria era que ele a beijasse de novo.
– O que me leva, pela terceira vez, à minha seguinte pergunta – ela disse brava. – O que você está fazendo aqui?
– Não se aborreça.
– Não estou aborrecida!
Alexander levantou a mão para tocá-la. Ela desviou o rosto.
– Oh – ele disse, levantando-se. – De mim você se afasta? – Ele já estava na porta quando se virou. – E para a sua informação – vociferou–, é impossível para você agarrá-lo.
A enfermeira Vera, vivaz, disse a Tatiana que ela teria que permanecer no hospital até meados de agosto, quando suas costelas já estariam curadas o suficiente para que ela pudesse andar de muletas. A tíbia se fraturara em três lugares e fora engessada dos joelhos aos dedos.
A família de Tatiana levou comida, que ela devorou, Pirozhki com repolho, costeletas de frango, hambúrgueres e torta de amora de sobremesa, que não apreciou como antes, pois praticamente só comeu essa fruta durante sua passagem pelo Exército Voluntário.
No começo, Mamãe e Papai a visitavam todos os dias. Depois, dia sim, dia não. Dasha surgia, radiante, saudável, animada, de braço dado com o Tenente fardado Alexander Belov, beijava Tania na cabeça e dizia que não podia ficar mais tempo. Dimitri vinha e, com seu braço ao redor dela, sentava-se ao seu lado e então ia embora com eles.
Certa noite, quando os quatro jogavam cartas para passar o tempo, Dasha contou a Tatiana que o dentista, seu patrão, fora evacuado. Ele havia pedido a Dasha que o acompanhasse a Sverdlovsk, do outro lado dos Urais, mas Dasha recusara, preferindo trabalhar com Mamãe na fábrica de uniformes.
– Agora, não posso ser evacuada. Sou indispensável ao esforço de guerra, também – disse Dasha, sorrindo a Alexander e mostrando a Tatiana a mão cheia de dentes de ouro.
– Onde você conseguiu isso? – Tatiana perguntou.
Dasha respondeu que conseguira tudo aquilo como pagamento dos clientes que haviam estado no consultório no mês passado, pedindo que o dentista removesse o ouro de suas bocas.
– Você ficou com os dentes de ouro deles? – Tatiana perguntou surpresa.
– Os dentes de ouro eram o meu pagamento – Dasha disse, sem desculpar-se de nada. – Não podemos todos ser tão puros como você.
Tatiana não insistiu. Quem era ela para julgar Dasha?
Tatiana mudou o assunto para a guerra. Guerra era como o tempo, sempre havia assunto.
Alexander disse que a linha de Luga estava prestes a cair qualquer dia, e ela de novo sentiu o cheiro do fracasso. Todo aquele esforço da parte de milhares para que tudo ruísse em poucos dias. Ela parou de perguntar. Sua permanência no hospital a imbuía com um sentido do irreal, mais até do que estar no vilarejo deserto de Dohotino. Ela estava presa entre quatro paredes e uma janela e não via ninguém, só os que vinham visitá-la de forma esporádica. Ela não sabia nada, exceto o que escolhia perguntar. Talvez se não perguntasse mais sobre a guerra, quando saísse do hospital, de alguma forma, a guerra estaria terminada.
E daí?, Tatiana se perguntaria.
Nada, ela responderia na escuridão da noite. Nada, exceto a vida que eu tive. Voltarei ao trabalho. No próximo ano talvez eu vá para a faculdade, como planejei. Sim, irei para a faculdade, estudarei inglês, e conhecerei alguém. Conhecerei algum belo jovem russo que estuda para ser engenheiro. Nos casaremos, e vamos morar com a mãe e avó dele num apartamento comunitário, e então teremos um filho.
Tatiana não podia imaginar aquela vida. Ela não podia imaginar nenhuma vida, exceto esta cama de hospital, exceto esta janela de hospital de frente para os prédios na Avenida Grechesky, exceto comer cereal no café da manhã, sopa no almoço, e canja no jantar. Tudo o que ela queria era que Alexander viesse vê-la sozinho. Ela queria dizer que estava errada, que não tinha o direito de se comportar mal. Ela queria sentir-se perto dele outra vez.
Ela leu os contos engraçados de Zoshchenko sobre as irônicas realidades da vida soviética, mas de repente não achou graça em nenhum deles.
Tatiana ficava deitada no quarto dia após dia; os dias eram longos, e à noite ela não podia dormir. As lágrimas que viu nos olhos da mãe consumiam seu coração, e o silêncio do pai a torturava ainda mais. A sensação de fracasso em relação a Pasha a deixava doente. Mas a ausência de Alexander era o que mais exauria Tatiana.
A princípio, ela lamentava, depois ficou furiosa e, em seguida, furiosa por ficar furiosa. Depois, sentiu-se magoada. Finalmente sentiu-se resignada.
E no dia em que se sentiu resignada, Alexander apareceu no meio da tarde, quando ela não o esperava, logo depois do almoço. E trouxe-lhe um sorvete.
– Obrigada – ela disse baixinho.
– De nada – ele também respondeu baixinho, e então sentou-se numa cadeira ao lado da cama, observando-a comer o sorvete. – Estou na patrulha urbana – ele disse. – Faço a ronda das ruas assegurando que as janelas estejam todas tapadas, conferindo se há por perto algum distúrbio estranho.
– Sozinho?
– Não – ele disse, rolando os olhos. – Com um grupo de sete homens quarentões, que nunca portaram um rifle.
– Ensine-os, Alexander. Você deve ser um bom professor.
Ele a olhou e disse:
– Passamos a manhã inteira colocando barricadas de tanque na Avenida Moscou, rumo ao sul. Os bondes não circulam por lá agora. – Fez uma pausa. – Mas a Kirov ainda está aberta e fabrica aqueles tanques. Eles decidem agora sobre a mudança da produção para o leste. Pouco a pouco, outras indústrias estão indo embora em caminhões e os últimos trens. – Fez nova pausa. – Tania, você está me ouvindo?
– O quê? – Ela se livrou do ruído ensurdecedor em sua cabeça.
– Gostou do sorvete?
– Muito bom. Um banquete inesperado.
– Essa é uma boa forma de pensar sobre muitas coisas na vida – Alexander disse, levantando-se. – Preciso ir.
– Não! – Tatiana disse rápido, e depois mais baixinho – Espere.
Alexander sentou-se de novo.
– É sobre a noite passada... – ela disse. – Eu sinto muito. Eu...
Alexander balançou a cabeça.
– Esqueça.
Tatiana não podia dizer nada mais que palavras desanimadoras.
– Por que você demorou tanto para vir?
– O que você quer dizer com isso? Eu tenho vindo ver você todos os dias.
Tatiana não disse nada, ele tampouco. Os dois se olharam.
– Eu teria vindo sozinho – ele disse –, mas achei que não adiantava. Isso não faria com que eu e você nos sentíssemos melhores.
Uma imagem brotou, a imagem dele curvando-se sobre ela, limpando o sangue do seu corpo nu. Ela respirava com dificuldade. Outra imagem... Dormindo junto a ele, em seus braços, os lábios dela no peito dele, suas mãos tocando-o. Sentindo-se mais perto dele do que de qualquer um na terra. Em pé, no trem, com os seus braços ao redor dele. E pior: a sensação visceral dos lábios dele abrindo os lábios dela. Ela virou o rosto.
– Você tem razão, eu sei – ela sussurrou.
Alexander levantou-se e, dessa vez, Tatiana não o deteve.
– Vejo você depois – ele disse, curvando-se sobre ela e beijando-a na cabeça.
– Bem, minha cabeça, já é alguma coisa – disse Tatiana.
Quando ele estava na porta, ela perguntou:
– Você vem outra vez? Se puder. Só por uns minutos.
Com o quepe nas mãos ele disse:
– Tania...
– Eu sei. Você tem razão. Não venha.
– Tania, todas as enfermeiras aqui... Alguém vai mencionar minha visita na frente da sua família. E isso vai acabar mal.
Mas vai acabar.
– Você tem razão – ela disse. – Não venha.
Depois que ele foi embora, Tatiana pensou, numa deplorável autoflagelação: Sou uma má irmã, sempre me considerei uma boa irmã mas percebo agora que nunca fui testada. A primeira vez que sou testada... Olhem só como me comporto.