Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


THE RANGER / Monica Maccarty
THE RANGER / Monica Maccarty

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

 

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

Ano de Nosso Senhor de 1307
A guerra havia mudado, mas Robert Bruce ainda está longe de poder cantar vitória em sua perseguição ao trono escocês.
Com uma Inglaterra desolada pela morte de seu maior adversário, o rei Eduardo I, Bruce concentra seus esforços em derrotar aos inimigos internos. Muitos de seus compatriotas seguem opondo resistência, sendo os Comyn, os MacDowell, o conde de Ross e os MacDougall os mais importantes.
Bruce, com a ajuda de sua tropa secreta de guerreiros de elite, conhecida como Guardiões das Highlands, continua sua estratégia revolucionária, semeando a destruição entre os inimigos, que será recordada durante gerações inteiras. Submete aos MacDowell em Galloway antes de partir ao norte em direção às Terras Altas. Depois de assegurar tréguas temporárias com Ross e os MacDougall, Bruce ataca aos Comyn em Inverlochy, Urquhart, Inverness e Nairn. Mas justo quando a vitória parece estar ao alcance de sua mão, o aspirante ao trono contrai uma estranha enfermidade que o deixa às portas da morte. Os inimigos são o frio e a fome, já que seus homens se vêem obrigados a esperar que passe o inverno envoltos na incerteza.
No ano anterior, quando tudo parecia perdido e Bruce teve que fugir de seu reino como fugitivo, pôs suas esperanças nos Guardiões das Highlands para que o ajudassem a sobreviver. Agora, para derrotar aos poderosos nobres que se interpõem em seu caminho, necessitará deles mais que nunca.

 

 

 


 

 

 


PRÓLOGO

Igreja de St. John’s, Ayr, Escócia, 20 de abril de 1307

Arthur Campbell não estava ali. Ou ao menos se supunha que não devia estar. Tinha informado a Bruce da entrega da prata, que seria na igreja essa noite, pelo norte, o caminho das guarnições do castelo de Bothwell. Tinha completado sua parte da missão.

Os homens de Bruce estavam escondidos entre as árvores a pouco menos de cinqüenta metros, esperando que os cavaleiros fizessem sua aparição. Arthur não tinha que estar ali. De fato, nem sequer deveria estar ali. O mais importante era proteger sua identidade. Depois de dois anos pretendendo ser um cavalheiro leal ao rei Eduardo, tinha posto muito em jogo para arriscar tudo por um mau pressentimento. No caso de que o descobrissem, não teria que preocupar-se unicamente com as explicações que daria aos ingleses. Os homens de Bruce pensariam que era o que claramente parecia ser: o inimigo.

Só poucos homens conheciam a verdadeira identidade de Arthur. Sua vida dependia disso. E apesar de tudo, aí estava ele, escondido entre as sombras do arvoredo que cobria a ladeira da colina atrás da igreja, pela simples razão de que não podia tirar da cabeça a sensação de que algo sairia errado. Passou muitos anos confiando nessas intuições para começar a ignorá-las nesse momento.

O tangido do sino da igreja perturbou aquela tumba de escuridão. Completas1. O momento da oração noturna. Tinha chegado a hora. Ficou completamente quieto, com os sentidos aguçados, atento a qualquer sinal que delatasse a aproximação dos cavaleiros. Sabia por sua exploração inicial do terreno que os homens de Bruce estavam escondidos nas árvores do caminho que levava a igreja. Isso lhes oferecia uma boa visão de qualquer um que chegasse, dando também espaço suficiente para empreender a retirada caso os ocupantes da igreja, que servia como hospital improvisado para os soldados ingleses, tivessem conhecimento do ataque.

Terei que admitir que St. John’s não era o lugar ideal para lançar uma ofensiva. Se os soldados ingleses feridos não fossem uma ameaça suficiente, a guarnição de soldados posicionada no castelo de Ayr, a menos de um quilômetro, teria que servir para que os homens de Bruce pensassem melhor.

Entretanto, não restava mais remédio além de agir de acordo com a informação que possuíam. Arthur tinha averiguado que a prata mudaria de mãos essa noite na igreja, mas desconhecia que caminho tomariam. Tendo ao menos quatro rotas possíveis para sair da cidade para Bothwell, não podiam estar seguros de qual delas escolheriam os cavaleiros.

Mas nesse caso concreto a recompensa que obteriam valeria o risco. A prata, que talvez subisse a cinqüenta libras e que estava destinada ao pagamento da guarnição do castelo de Bothwell, poderia alimentar durante meses aos quatrocentos guerreiros de Bruce ocultos nos bosques de Galloway. Além disso, capturar aquela prata significaria mais que uma grande ajuda para Bruce, porque também feriria os ingleses em seu orgulho, algo que era justamente a intenção desses ataques surpresa; eram rápidos e violentos assaltos concebidos para que o inimigo permanecesse inquieto, interferir em suas comunicações, o fazer esquecer as vantagens que supunham sua superioridade quanto a dotação, armamento e meios e, sobretudo, semear o terror em seu seio. Em outras palavras, aquilo significava lutar como ele sempre tinha feito: como um highlander.

E estava dando resultado. Os covardes ingleses não gostava de viajar em grupos pequenos sem um exército que os protegesse, mas Bruce e seus homens lhes davam tantos quebras-cabeças que o inimigo se via obrigado a usar táticas furtivas, como tentar introduzir a prata através de diferentes mensageiros e sacerdotes.

De repente Arthur ficou imóvel. Pressentia a chegada de alguém, apesar de que não produzira som algum. Olhou em direção ao caminho e o esquadrinhou na escuridão. «Nada.» Nada que assinalasse a chegada dos cavaleiros. Mas tinha os pêlos da nuca arrepiados e todos seus instintos lhe diziam o contrário.

Então ouviu. Um suave, mas inconfundível ranger de folhas esmagadas sob pés que se aproximavam pelas costas.

«Pelas costas.»

Blasfemou. Os mensageiros chegavam através do atalho da praia e não pelo caminho da vila. Os homens de Bruce os veriam, mas o ataque estaria muito mais perto da igreja do que queriam. Estavam treinados para enfrentar ao imprevisível, mas aquilo era arriscado, muito arriscado. Desejou com todas suas forças que o sacerdote não decidisse sair a dar uma olhada. Quão último queria nesse momento era carregar a morte de um clérigo. Bastante enegrecida já estava sua alma.

Escutou com atenção. Eram dois pares de pisadas que ouvia. Uma era ligeira; a segunda, mais pesada. Rangeu um galho. Logo outro. Estavam se aproximando. Um momento depois, apareceu no caminho que ficava a seus pés, a primeira de duas silhuetas envoltas em capas. Alto e corpulento, aquele homem avançava com esforço pelo serpenteante atalho e afastava os ramos para o soldado que ia atrás. Arthur entreviu o brilho do metal e o colorido tabardo2 que levava debaixo as pesadas capas de lã quando passou junto a ele. Um cavalheiro.

Sim, estava claro que se tratava deles.

A segunda figura se aproximou um tanto. Era um homem mais baixo e magro que o anterior e de andar muito mais gracioso. Arthur descartou rapidamente este último como ameaça menor e se encaminhou de volta ao primeiro, mas algo fez que se detivesse. Olhou a segunda silhueta com mais atenção. A escuridão e o capuz que ocultava seu rosto faziam imprecisos os detalhes, mas não podia deixar de pensar que algo não enquadrava. Os pés desse soldado não pareciam roçar o caminho que tinha ante si. Levava algo sob o braço. Parecia uma cesta.

Veio tudo abaixo. Céu santo. Não era o mensageiro, a não ser uma moça. Uma moça com o dom da oportunidade. Sua intuição não tinha falhado. Algo mal aconteceria, sem dúvida. Estava claro que se a moça não se separasse do caminho, os homens de Bruce cometeriam o mesmo engano que ele. Atacariam mal a garota e sua cavalheiresca companhia aparecessem diante deles, o qual estava a ponto de acontecer. A moça passou a seu lado, deixando uma leve fragrância de rosas que o deixou na mais absoluta das inquietações. «Volte», pedia-lhe em silêncio. Então ela se deteve e inclinou a cabeça um tanto em sua direção, fazendo Arthur acreditar que talvez tivesse ouvido seu silencioso rogo. Entretanto, fez caso omisso e continuou seu caminho, direto para uma armadilha mortal.

Jesus… Um grande desastre. A missão acabava de perder-se. Os homens de Bruce estavam a ponto de perder o fator surpresa e de matar uma mulher no processo.

Não devia intervir. Não podia arriscar-se que o descobrissem. Supunha-se que tinha que permanecer entre as sombras, proceder desde elas. E não misturar-se. Fazer o que fosse necessário para proteger sua identidade: matar ou morrer. Bruce contava com ele. Suas apreciadas qualidades de reconhecimento pelas quais ingressou nas forças de elite conhecidas pelo nome de Guardiões das Highlands jamais fossem tão valiosas como nesse preciso momento. A habilidade que tinha Arthur para ocultar-se entre as sombras e penetrar no mais profundo das linhas inimigas para conseguir informação sobre terrenos, rotas de abastecimento, força e posições do contrário parecia mais importante que nunca, agora que esses ataques surpresas se convertiam no selo da guerra de estratégias de Bruce. Não podia arriscar tudo por uma moça. Por todos os Santos, supunha-se que nem sequer devia estar ali.

«Deixem partir.»

O coração palpitava com mais força à medida que a moça se aproximava. Ele não se misturava. Permanecia nas sombras. Não era assunto dele. Sob o pesado elmo de metal, o suor se acumulava sobre suas sobrancelhas. Tão somente tinha uma fração de segundo para decidir… «Maldita seja.»

Emergiu detrás das árvores. Aquilo era uma autêntica loucura, mas não podia ficar ali quieto enquanto contemplava o encontro de uma garota inocente com a morte. Talvez pudesse interceptá-los antes que os vissem. Talvez. Embora tampouco estivesse seguro da posição de todos os homens de Bruce. Moveu-se sigilosamente entre as sombras para situar-se atrás dela. Com um rápido movimento, levou a mão até sua boca para impedir que gritasse. Agarrou-a pela cintura com o braço e a apertou com força contra si. Talvez com muita força. Podia sentir cada uma de suas femininas curvas contra seu corpo, particularmente o suave traseiro que apertava entre suas pernas. Rosas. Voltou a sentir o cheiro. Um aroma, mais intenso agora, que lhe fez sentir-se estranhamente embriagado. Aspirou com vontade e percebeu algo mais. Algo quente e gorduroso com um tênue aroma de maçãs. Bolos, pensou. Da cesta.

Sua resistência despertou daquele momentâneo abandono. «Não lhes farei nenhum dano, moça», sussurrou. Mas seu corpo não parecia estar de acordo com ele e se avivava como as chamas de um incêndio diante das resistências da garota. Um ataque de luxúria inundou através dele. A moça tinha uns quadris pequenos, mas notava sobre seu braço o inconfundível peso de dois grandes e arrebatadores seios. Sua virilha se alagou de calor. Não era capaz de recordar a última vez que estivera com uma mulher. Grande momento para ficar pensando nisso…

Sua escolta ouviu movimento. O cavalheiro deu meia-volta.

—Milady?

Ao ver que Arthur a capturava fez menção de erguer a espada.

—Silêncio! —advertiu Arthur com cautela. Falou em voz baixa, para evitar tanto que ninguém mais os escutassem como que a moça o reconhecesse — Só tento lhes ajudar. Têm que sair daqui. —Afrouxou um pouco a mão com a qual tapava sua boca — A soltarei, mas não grite. Não, a menos que queira que caiam sobre nós. Entende?

A moça assentiu, de modo que tirou a mão da boca.

Ela se voltou para olhá-lo. À luz da lua que deixava escapar entre as árvores tudo que Arthur via eram uns olhos enormes e arregalados que o olhavam fixamente debaixo do folgado capuz de sua capa.

—Que caia sobre nós quem? Quem são vocês?

Tinha uma voz doce e suave, com um tom que era suave para que não chegasse ao ouvidos dos homens de Bruce. Assim esperava. Olhou-o dos pés à cabeça. Essa noite, como todas aquelas nas quais estava de serviço, viajava ligeiro, e só usava uma cota de malha enegrecida e calças com perneiras de couro. Não obstante eram de boa qualidade e, junto com o elmo e as armas, faziam com que fosse óbvio que se tratava de um cavalheiro.

—Não é um rebelde — observou ela, confirmando o que já tinham adivinhado seus instintos, que não era amigo de Bruce.

—Responda à dama — disse seu acompanhante— ou provará o aço de minha espada.

Arthur reprimiu sua vontade de rir. Aquele homem era todo força bruta e se movia com a soltura de uma barcaça gigantesca. Mas, consciente de sua situação, não quis perder o tempo provando ao soldado quão errado estava. Tinha que tirá-los dali tão rápida e sigilosamente como fosse possível.

—Sou um amigo, milady. Um cavalheiro a serviço do rei Eduardo.

Ao menos no momento.

De repente ficou completamente quieto. Algo tinha mudado. Não era capaz de precisar como sabia. Simplesmente notava uma advertência no mais profundo de seu ser e tinha a sensação de que o ar era diferente. Os homens de Bruce se aproximavam. Tinham-nos descoberto.

Amaldiçoou. Aquilo não podia sair bem. Não havia tempo para convencê-la com palavras doces.

—Deve partir já — disse com uma voz férrea que não dava capacidade às discussões.

Advertiu que um brilho de inquietação se acendia no olhar da moça. Ao que parecia, também ela pressentia o perigo. Mas era muito tarde. Muito tarde para todos.

Deu-lhe um forte empurrão que a fez cair depois da árvore mais próxima, momentos antes que o suave assobio das flechas atravessasse o ar da noite. A flecha dirigida à moça deu contra a árvore que a protegia, fazendo um ruído seco, mas houve outra que sim alcançou seu objetivo. A escolta emitiu um gemido ao tempo que a flecha, perfeitamente lançada, atravessava a cota de malha para atendar-se em suas vísceras.

Arthur mal teve tempo para reagir. Voltou-se no último instante, justo para que a flecha que se dirigia a seu coração lhe cravasse no ombro. Apertou os dentes, agarrou a flecha e a partiu. Não acreditava que a ponta se fincara muito fundo, mas tampouco queria correr riscos tentando tirá-la nesse momento.

Bruce e seus homens o tinham confuso com um dos mensageiros. Um engano compreensível, mas que lhe punha na terrível tarefa de combater a seus compatriotas ou trair sua identidade. Também podia fugir. Como não se deram conta de que se tratava de uma moça? Ainda assim, não acabava de acreditar. Se a abandonava, morreria. Quase não pôde considerar esse pensamento, já que no seguinte instante se desataram todos os infernos. Os homens de Bruce tinham caído sobre eles e saíam da escuridão como demônios do inferno. A escolta da dama, que ainda cambaleava pela flecha, recebeu um golpe de lança no flanco e uma pancada na cabeça. Desabou com um ruído seco e caiu derrubado ao chão como se tratasse de um carvalho enorme.

Arthur ouviu os gritos de espanto atrás dele e se adiantou ao impulso da moça, interpondo-se em seu caminho antes que esta avançasse para ajudar ao soldado caído. Já não precisava sua ajuda. Mas um dos homens de Bruce percebeu do movimento. O que ocorreu depois não foi mais que uma reação instintiva. Ocorreu muito às pressas para poder explicar-se de outro modo. Uma lança sulcava o ar com intenção de alcançar a moça em cheio. Arthur não pensou, simplesmente reagiu. Adiantou-se e agarrou ao vôo a lança a poucos centímetros de sua cabeça. Com um rápido movimento a pôs em seu joelho e a rompeu em dois, atirando os restos estilhaçados ao chão. Ouviu que a moça dava um grito afogado, mas não se atrevia a afastar o olhar do grupo de homens que corriam para ele.

—Esconda-se atrás dessa maldita árvore! —gritou com fúria antes de voltar-se a sua esquerda para interceptar um golpe de espada.

Ao fazê-lo o homem deixou um flanco descoberto, mas Arthur não quis aproveitá-lo. Blasfemou enquanto repelia outro golpe. Que diabos devia fazer? Revelar sua identidade? Acreditariam? Podia escapar dali lutando, mas o que aconteceria à moça? Momentos depois alguém lhe economizava a decisão, para o bem ou para mau. A voz de um homem chegou das árvores.

—Detenham-se!

Os guerreiros pareciam confusos, mas responderam imediatamente à ordem do recém aparecido e se detiveram em seco. Segundos depois, uma figura de aspecto familiar saía de entre as sombras.

—Que demônios faz aqui, Guardião?

Arthur negou com a cabeça sem poder acreditar e saiu ao encontro do guerreiro vestido de negro que surgia detrás das árvores: Gregor MacGregor. Isso sem dúvida explicava o disparo perfeito que acabava de presenciar. Gregor MacGregor era o melhor arqueiro das Highlands e fazia honra no nome de guerra, Flecha, que Bruce tinha escolhido para proteger sua identidade como membro da Guarda.

Não estava muito seguro a respeito se devia agradecer ou não a presença de seu outrora inimigo, convertido em companheiro nos Guardiões das Highlands e ao mesmo tempo o mais parecido a um amigo que tinha. Algo que tinha mudado quando obrigaram Arthur a sair dos Guardiões das Highlands fazia mais de um ano e meio. Naquele momento nenhum de seus companheiros conhecia a verdade, nem sequer MacGregor. Quando ouviram que se uniu ao inimigo pensaram que era um traidor. E, embora ao final conhecessem a verdade, sua missão como espião o mantinha à margem.

Uniram seus antebraços, e apesar das dúvidas iniciais, Arthur se encontrou a si mesmo sorrindo sob o elmo. Deus, tinha muita vontade de vê-lo.

—Vejo que ninguém danificou ainda esse rosto tão bonito — disse, consciente do muito que incomodava ao MacGregor que lhe recordassem sua boa aparência.

MacGregor riu.

—Seguem tentando. Alegro-me muito de te ver. Mas o que estás fazendo aqui? Têm sorte de que visse como apanhavam essa lança.

Arthur tinha salvado a vida do MacGregor em uma ocasião fazendo isso mesmo. Não era tão difícil como parecia, sempre que fosse capaz de te sobrepor ao medo. A maioria não podia. Mas ele não conhecia o medo.

—Perdão pela flecha — disse MacGregor assinalando seu ombro esquerdo, no que o sangue brotava ao redor da varinha estilhaçada, que ainda sobressaía do braço vários centímetros.

—Não é nada — disse Arthur encolhendo-se de ombros.

Tinha sofrido feridas piores.

—Conhece esse traidor, Capitão? —perguntou um dos homens.

—Sim — disse MacGregor antes que Arthur pudesse lhe advertir — E não é nenhum traidor. É dos nossos.

Maldição. A moça. Esquecera-se dela. Qualquer esperança de que não tivesse ouvido o MacGregor ou entendido o significado de suas palavras se desvaneceu assim que sentiu o sobressalto que tinham provocado nela.

Também o ouviu MacGregor, que tirou seu arco, mas Arthur o deteve.

—Estão a salvo —disse — Pode sair, moça.

—Moça? —perguntou MacGregor para depois amaldiçoar baixo — Assim que isso é o que acontece…

Arthur assentiu.

A mulher saiu detrás da árvore. Quando Arthur se adiantou para tomá-la pelo cotovelo ficou tensa, como se seu contato a ofendesse. Sim, tinha ouvido muito claramente.

Com tudo aquele caos o capuz tinha caído, descobrindo a uma cabeleira longa e brilhante de cabelos acobreados que caíam por suas costas em cachos abundantes e espessos. Sua insolente beleza parecia tão desconjurada que por um momento o deixou boquiaberto. Mas depois um raio de lua alcançou seu rosto e Arthur ficou sem respiração por completo. Era preciosa. Uns olhos grandes de pestanas enormes dominavam seu diminuto rosto em forma de coração. Tinha um nariz pequeno e ligeiramente torcido, queixo bicudo e sobrancelhas arqueadas timidamente. Seus lábios lhe faziam uma boca de pinhão rosada de formas perfeitas, e sua pele… sua pele era tão suave e branca como a nata. Tinha o aspecto doce e vulnerável de um animal de pelagem aveludada, como se fosse um coelho ou um gatinho.

Aquela inocente fragrância de feminilidade não era absolutamente o que ele esperava. Parecia algo do mais incongruente em meio de uma guerra. Não pôde mais que permanecer em silencio sem sair de seu assombro ao ver que o filho de cadela do MacGregor se adiantava, desprendia-se do elmo e lhe oferecia uma mão com galanteria.

—Minhas desculpas, milady — disse com um sorriso diante da que tinham sucumbido a metade dos corações femininos das Highlands. A outra metade ainda não o tinha conhecido — Esperávamos a outra pessoa.

Arthur ouviu o previsível suspiro da moça quando esta contemplou o rosto daquele ao que se conhecia como o homem mais bonito das Terras Altas. Entretanto a garota recuperou a compostura em seguida e, para sua surpresa, comportou-se de maneira muito lúcida. A maioria das mulheres nesse momento balbuciariam.

—Obviamente. Ou é que o rei Hood3 declarou a guerra às mulheres? —perguntou, fazendo uso do apelido que os ingleses davam ao rei proscrito — Ou talvez a simples sacerdotes? —acrescentou olhando para a igreja.

Por ser uma pessoa rodeada de inimigos demonstrava não ter medo algum. Embora essa fina capa forrada de arminho não a tivesse delatado, sabiam que era uma mulher da nobreza simplesmente por seu comportamento orgulhoso.

MacGregor fez uma careta.

—Tal e como disse, foi um engano. O rei só declara a guerra a aqueles que lhe denegam o que lhe pertence por direito.

A moça estalou a boca como amostra de seu desacordo.

—Se tivermos acabado com isto, tinha vindo a procurar o sacerdote. —Baixou o olhar a sua escolta abatido — É muito tarde para meu homem, mas talvez possa aliviar em algo aos que aguardam no castelo.

Extrema-unção, observou Arthur. Provavelmente para soldados feridos na batalha do Glen Trool da semana anterior. Apesar de ter o rosto coberto pelo elmo seguiu falando em voz baixa para preservar sua pessoa tudo que pudesse. Já tinha exposto o suficiente sua dupla identidade. Não queria brindar a jovem com uma oportunidade para poder identificá-lo. Provavelmente seria parente de algum de nobres tinham enviado ao Ayr para dar caça ao Bruce. Asseguraria-se de manter-se longe, muito longe do castelo.

—Qual é seu nome, milady? E por que viaja com um guardião tão nefasto?

A moça o olhou por cima do ombro, enrugando seu minúsculo nariz com expressão severa. Sendo tão chata poderia ter parecido algo ridículo, mas arrumou para manifestar seu desdém de uma maneira surpreendentemente eficaz.

—Ir procurar um sacerdote não costuma ser uma tarefa muito perigosa, como suponho que inclusive um espião será capaz de reconhecer.

Arthur lhe franziu o cenho por completo. Assim expressava sua gratidão. Talvez tivesse devido abandoná-la a sua sorte.

MacGregor rompeu uma lança em seu favor.

—Deves sua vida a este homem, milady. Se ele não tivesse intervindo — disse, e olhou à escolta caída— os dois estariam mortos.

Seus olhos se abriram ao conscientizar disso e uns dentes brancos morderam a suave almofada de seu lábio inferior. Arthur sentiu outro inesperado puxão sob o cinto de sua espada.

—Sinto muito — disse dirigindo-se a ele em voz baixa — Lhe agradeço isso.

A gratidão de uma bela mulher não era algo que ficasse sem efeito. Sentiu com mais força a pressão que subia por sua virilha, e o tom aveludado de sua voz lhe fez pensar em camas, corpos nus e palavras de prazer sussurradas.

—Seu braço… —A moça o olhou com incerteza — É grave a ferida?

Antes que Arthur pudesse formular a resposta, ouviu um ruído. Seu olhar se dirigiu das árvores à igreja e percebeu os sinais de movimento.

Maldição. O ruído do ataque devia ter alertado aos ocupantes da igreja.

—Têm que partir —disse ao MacGregor — Já vêm.

MacGregor tinha comprovado de primeira mão as habilidades de Arthur muitas vezes para duvidar dele. Fez gestos a seus homens para que ficassem em marcha e os guerreiros de Bruce voltaram a esconder-se entre as sombras das árvores.

—A próxima vez será — disse MacGregor antes de unir-se a eles.

Arthur o olhou nos olhos compreendendo a que se referia. Essa noite não teria prata. Em momentos a igreja seria um vespeiro de homens e estaria iluminada como uma cidade, advertindo do perigo a qualquer que se aproximasse.

Bruce não poderia contar com a prata para o provisionamento de seus homens por causa de uma moça. Teriam que confiar no que pudessem caçar e roubar do campo até que se apresentasse uma nova oportunidade.

—Será melhor que também partas - disse a moça com severidade. Quando viu que duvidava, suavizou um pouco suas palavras — Estarei bem. Vá. E obrigado — acrescentou depois de uma pausa.

Seus olhos se encontraram na escuridão. Apesar de que parecesse todo ridículo, por um momento Arthur se sentiu vulnerável. Mas ela não podia vê-lo. Com o elmo baixado as únicas aberturas do aço eram duas estreitas ranhuras para os olhos e os pequenos condutos para respirar. Mesmo assim, sentiu algo estranho. Se não estivesse castigado, teria dito que era uma conexão. Mas ele não sentia conexão com nenhuma mulher estranha, e muito menos com as inimigas. Maldita seja se não tinha conexão com ninguém. Tinha vontade de dizer algo, o diabo saberia o que, mas não teve a oportunidade. As tochas apareceram às portas da igreja. O sacerdote e vários dos soldados ingleses feridos se aproximavam em sua direção.

—De nada — disse para voltar-se para entrar nas sombras, ali onde pertencia.

Era um espectro. Um homem que não existia. Justamente como gostava que fosse. Inundou-se na escuridão açoitado pela exclamação de alívio da moça ao ir para os braços do sacerdote.

Sabia que podia arrepender-se do acontecido daquela noite. Ao salvar a vida da jovem não tinha sacrificado simplesmente a prata, mas também sua identidade. Mas não podia arrepender-se por isso. Já teria mais prata. Além disso, era pouco provável que seus caminhos voltassem a cruzar-se. Encarregaria-se disso pessoalmente.

Seu segredo estava a salvo.

No momento.


Capítulo 1

Castelo de Dunstaffnage, Argyll, Escócia, 24 de maio de 1308


«Por favor, que esteja morto. Por favor, que tudo tenha acabado.»

Anna MacDougall soltou a cesta no chão e se ajoelhou aos pés de seu pai, rezando por ouvir as notícias que poriam ponto final a essa guerra que tinha marcado cada um dos dias de sua existência.

Literalmente.

Anna nasceu em um dia famoso da história da Escócia: em dezenove de março do ano de Nosso Senhor de mil duzentos e oitenta e seis. No mesmo dia em que o rei Alexander III quis estar junto a sua jovem esposa e, ignorando o conselho de seus homens, cavalgou naquela noite tormentosa até Kinghorn, no Fife, para escorregar pelo caminho em um escarpado que lhe levaria a morte. A luxúria do rei deixou ao país sem um herdeiro direto ao trono, com um resultado de vinte e dois anos de guerra e de conflitos para determinar quem tinha que levar a coroa.

Houve um momento no que se disputavam ao trono quatorze aspirantes. Mas a verdadeira batalha sempre esteve entre os Balliol-Comyn e os the Bruce. Quando Robert Bruce decidiu encarregar do tema pessoalmente e assassinou ao líder de seus competidores, John Comyn o Vermelho, primo do pai de Anna, converteu-se para sempre em inimigo de sangue dos MacDougall. O desprezo para o Robert Bruce só era comparável com o que lhe inspiravam seus parentes os MacDonald. As ações de Bruce obrigaram aos MacDougall a uma precária aliança com a Inglaterra. Inclusive Eduard Plantageneta era preferível a ter um Bruce no trono.

Assim rezava pela morte de Robert Bruce. Do preciso momento em que chegou a notícia em meio da luta de que Bruce estava no leito de morte afligido de uma misteriosa enfermidade, Anna tinha rezado para que esta o levasse consigo, para que a natureza derrotasse ao inimigo. É obvio aquilo de rezar pela morte de um homem era um pecado horrível. Seria pecado rezar pela morte de qualquer pessoa, inclusive pela de um assassino sanguinário como Robert Bruce. As monjas da abadia estariam escandalizadas.

Mas não lhe importava. Não, se aquilo significava o final dessa maldita guerra esquecida de Deus. Uma guerra que já levara a seu irmão junto a sua prometida e que cobrou seu preço não só em seu ancião avô, Alexander MacDougall, lorde de Argyll, mas também do filho deste, John MacDougall, lorde de Lorn, o pai de Anna.

Seu pai mal pôde recuperar-se de suas recentes dores no peito. Não sabia se agüentaria muito mais. Os últimos triunfos de Bruce não fizeram a não ser piorar seu estado. Era um homem que odiava perder.

Custava acreditar que só fizesse um ano de que aquele rei Hood fugisse com alguns partidários e sua causa claramente perdida. E, entretanto, o rei fugitivo estava de volta e conseguia redobrar sua aposta pelo trono da Escócia, em boa parte graças à morte de Eduard I da Inglaterra.

Assim, já fosse pecaminoso ou não, Anna rezava pela morte de seu inimigo. Faria com gosto a penitência por esses malvados pensamentos se aquilo significava proteger a seu pai e a seu clã do homem que queria vê-los mortos. Além disso, tal e como as monjas lhe haviam dito incontáveis vezes antes, jamais estivera destinada para a vida monacal. Cantava muito. Ria muito. E o mais importante, jamais emprestou tanta devoção ao Senhor como sentia por sua família.

Anna estudou o rosto de seu pai, escrutinando-o em busca de alguma reação, no momento que este abria o selo da carta e a lia. Era tal sua ansiedade que nem sequer se incomodou em chamar seu tabelião. Tinha a fortuna de poder encontrar-se com ele a sós em sua câmara depois de que acabasse o conselho com seus homens. Sua mãe, que sempre revoava a seu redor queixando e dando amostras de sua irritação, tinha saído ao jardim a fiscalizar a coleta de umas ervas para uma nova tintura sugerida pelo sacerdote, que ajudaria a aliviar o encharcamento4 dos pulmões de seu pai.

Em seguida percebeu de que não eram boas notícias. Um acesso de ira avermelhou o bonito rosto de seu pai, os olhos brilharam como se tivesse febre e franziu a boca até adotar uma expressão de desgosto. Era um olhar que inspirava terror nos corações dos guerreiros mais curtidos, mas que em Anna só provocava preocupação. Sabia reconhecer ao pai amoroso que havia atrás dessa marruda fachada de guerreiro. Agarrou-se com tanta força ao braço da poltrona com forma de trono de seu pai que cravou o relevo da madeira esculpida na mão.

—O que ocorre, pai? O que passou?

Seu pai ergueu o olhar para olhá-la. Anna se viu invadida por um acesso de pânico ao ver como se encolerizava. Os ataques de ira de seu pai sempre fossem uma visão aterradora, que rivalizava com o famoso mau gênio angevino dos reis Plantageneta da Inglaterra, mas depois do ataque que tinha sofrido cresceram ainda mais. Foi a ira que lhe causou os dores no braço na ocasião anterior. Dores que lhe tinham paralisado, cortado a respiração e o deixado prostrado no leito durante quase dois meses.

Enrugou o pergaminho no interior de seu punho até convertê-lo em uma bola.

—Buchan fugiu. Derrotaram os Comyn.

Anna teve que piscar. Levou um momento compreender o que seu pai acabava de dizer, já que parecia algo impossível. John Comyn, conde de Buchan, parente de John Comyn lorde de Badenoch assassinado, era um dos homens mais poderosos de Escócia.

—Mas como…? —perguntou — Bruce estava às portas da morte.

Seu pai sempre tinha animado a seus filhos a que fizessem perguntas. Deplorava a ignorância, inclusive nas mulheres, e por essa razão tinha insistido em que todas suas filhas se educassem no convento. Mas ao ver sua expressão colérica e a rigidez de seu corpo a Anna quase teve vontade de retirar a pergunta.

—Esse bastardo se acerta para fazer milagres inclusive do leito de morte — disse a contra gosto — O povo começa a pensar que é um herói ou algo assim, como se fosse o segundo advento de Arthur e a corte de Camelot. Buchan tinha a esse filho de cadela encurralado perto do Inverurie, mas seus homens fraquejaram quando viram Bruce encabeçando o exército — disse esmurrando a mesa com o punho e derramando o vinho que continha sua taça — Os Comyn correram como galinhas ao ver que levavam a um doente à batalha. Fugiram de um maldito inválido!

Seu rosto avermelhou tanto que as veias da têmpora pareciam a ponto de estourar.

O medo inundou o peito de Anna, não porque temesse a ira de seu pai, mas sim pelo perigo que isso supunha para sua saúde. Lutou por reprimir as lágrimas que afloravam em seus olhos, porque seu indômito orgulho entenderia essas lágrimas como um sinal de que o via débil. Ele era um poderoso guerreiro e não um homem necessitado de mímicos. Mas essa guerra impunha sobre ele os certeiros efeitos de um lento veneno. Se pudesse conseguir que seu pai superasse esse problema com Bruce, tudo sairia bem. Por que não tinha sucumbido o falso rei à enfermidade tal e como se supunha que faria? Se tivesse ocorrido assim, todo aquilo teria acabado.

Tinha que acalmá-lo. Em lugar de servir-se de súplicas ou de lágrimas, pegou a mão de seu pai e se esforçou para sorrir.

—Será melhor que não permitas que a Mãe lhe ouça falar dessa forma em minha presença. Já sabem que vos culpa de que meu vocabulário não seja o de uma lady —Por um instante pensou que suas palavras não tinham sortido efeito, mas a bruma de ira começou a dissipar-se de seu rosto pouco a pouco. Quando ao final a olhou como se realmente a estivesse vendo, Anna acrescentou de maneira inocente— Talvez deva chamá-la?

Seu pai deixou escapar uma forte gargalhada que se confundiu com a tosse de seus pesados pulmões.

—Não te atreva. Obrigará-me a passar pelo gogó outra dessas asquerosas poções. O Senhor sabe que o faz por meu bem, mas poderia levar a perdição a um santo com essa preocupação constante. —Negou com a cabeça e lhe dirigiu um olhar de afeto, dando a entender que era plenamente consciente do que acabava de fazer — Não tem nada que temer, sabe? Sou como um carvalho. Mas é uma moça muito ardilosa, Annie querida — acrescentou entreabrindo os olhos — Te parece mais comigo que nenhum outro. Não é isso o que sempre digo?

Anna se ficou tão contente como lhe marcaram as covinhas

—Sim, pai.

Este continuou como se não tivesse respondido.

—Desde aquele dia em que entrou em minha câmara com o polegar na boca, jogou uma olhada ao mapa da batalha e pôs a nossos homens na posição de ataque perfeita.

Anna riu, sem recordar realmente aquele dia, embora tivesse ouvido a história muitas vezes antes.

—Pensei que aquelas figuras esculpidas eram brinquedos — disse.

—Sim, mas seus instintos eram puros. —John MacDougal suspirou — Mas temo que não seja tão fácil nesta ocasião. Buchan escreve que procurará refúgio na Inglaterra. Uma vez derrotados os Comyn, o usurpador virá por nós.

Nós? Anna tragou saliva. O medo se apoderou de seu ser.

—Mas e a trégua?

Fazia meses, quando começou sua marcha para o norte, Bruce dedicou seus esforços a lutar contra os homens de Argyll, ameaçando-os por terra e por mar. Seu pai, doente e com menos homens, pactuou uma trégua, tal e como tinha feito o conde de Ross no norte. Anna tinha a esperança de que aquela trégua significasse o fim das batalhas.

—Expira no começo de agosto. Cabe esperar que no dia seguinte tenhamos ao inimigo ante nossas portas. Já expulsou aos MacDowell do Galloway, e agora que os Comyn fugiram…

Seu pai voltou a expressar seu descontente franzindo o cenho. Ao dar-se conta de que a cólera o atacava de novo Anna lhe recordou: —O conde de Buchan jamais foi um bom general na batalha. Você mesmo o disse muitas vezes. O rei Hood não teria tido tanta sorte lutando contra ti, que sem dúvida é a razão primitiva pela que aceitou a trégua. Dal Righ está ainda muito fresco em sua memória.

Seu pai brincou com o broche de prata maciça que levava no pescoço. Aquele cristal ovalado rodeado de diminutas pérolas era um talismã que lhe recordava o perto que tinham estado de capturar ao rei fugitivo. Tinham ao Bruce literalmente em suas mãos quando o broche se desenganchou durante da resistência.

A sombra de um sorriso apareceu ao redor de sua boca, e Anna soube que aquelas palavras tinham sido de seu agrado.

—Tem razão, mas nossa vitória anterior não o fará deter-se nesta ocasião. Somos o único que se interpõe em seu caminho à coroa.

—Mas o que passará com o conde de Ross? —perguntou — É que não vai lutar a nosso lado?

A boca de John MacDougal adotou um gesto severo.

—Não podemos contar com o Ross. Negará a deixar suas terras desprotegida. Mas tentarei lhe persuadir de que devemos unir nossos esforços para derrotar ao rei Hood de uma vez por todas.

Não havia recriminação alguma nas palavras de seu pai, mas Anna se sentiu culpada de todos os modos. Persuadir ao Ross teria sido mais fácil se ela tivesse aceitado o matrimônio com seu filho Hugh no ano passado.

—Reunirei a meus barões e cavalheiros e me porei em contato com Eduard para lhe pedir ajuda. Não é nem a metade do rei do que foi seu pai, mas talvez a derrota do Comyn lhe faça ver a necessidade de enviar mais homens ao norte.

Não obstante, sua voz não destilava esperança alguma. Anna sabia tão bem como seu pai que não cabia esperar muita ajuda de Eduard II. O novo rei da Inglaterra tinha muitos problemas próprios para preocupar-se com a Escócia. Embora ainda tivesse soldados ingleses aquartelados na maioria dos castelos principais da Escócia, especialmente nos fronteiriços, Eduard tinha reclamado a quase todos seus generais, incluído o recém renomado conde de Pembroke, Aymer do Valence.

—E se não chegar ajuda? —disse mordendo o lábio.

Não era tão parva para perguntar a seu pai se renderia. Preferiria vê-los todos mortos antes que ajoelhados ante Bruce: «Conquistar ou morrer», o lema dos MacDougall estava bem enraizado nele.

A pesar do calor que fazia na câmara de seu pai Anna sentiu um calafrio.

—Então terei que derrotar a esse filho de cadela eu sozinho. Já estive a ponto de apanhá-lo no Dal Righ, a ponto de assassiná-lo com minhas próprias mãos. Desta vez tenho intenção de acabar o trabalho. Para o final do verão a cabeça do Robert Bruce pendurará às portas de meu castelo e os abutres lhe bicarão os olhos — disse e entreabriu os seus com ferocidade.

Anna ignorou quão incômoda a fazia sentir. Odiava quando seu pai falava desse modo. Fazia que parecesse um homem cruel e desumano, não o pai carinhoso ao que ela adorava. Ergueu o olhar para olhá-lo, e ao contemplar a firme resolução de sua expressão montês, não o pôs em dúvida nem por um segundo. Seu pai era um dos melhores guerreiros e generais de Escócia. Pode ser que o destino se voltasse contra eles, mas John de Lorn poria fim a isso.

Talvez o fim da guerra estivesse perto, depois de tudo. A incerteza, a morte, a destruição, o engano, tudo acabaria breve. O veneno que estava matando a seu pai se dissolveria. Sua família estaria a salvo. Casaria-se, teria um lar e filhos próprios. Tudo voltaria para a mais feliz das normalidades.

Não podia permitir-se ver de outro modo. Mas em algumas ocasiões parecia que tentava deter uma catarata com uma peneira ou nadar contra um redemoinho disposto a arrastá-la com tudo até o fundo: seus pais, suas irmãs e irmãos, suas sobrinhas e sobrinhos pequenos. Não deixaria que aquilo acontecesse. Faria o que fosse necessário para proteger a sua família.

—O que posso fazer?

Seu pai sorriu e lhe deu um beliscão indulgente na bochecha.

—É uma boa garota, Annie querida. O que diria de fazer uma visita a meu primo, o bispo? —Anna assentiu e se dispôs a levantar-se — E Anna —acrescentou olhando-a com curiosidade ao ver que agarrava a cesta— não se esqueça dos bolos. Já sabe como gosta — disse entre risadas.

****

Arredores de Inverurie, Aberdeenshire


Embora a lua cheia pendurasse sobre o antigo monumento de pedra, a coluna de fumaça velada das fogueiras próximas dava a sua luz uma bruma espectral. A vitória deixava um sabor acre na língua de Arthur e o fazia sentir uma queimação na garganta. Era perto da meia-noite, mas os ruídos das sublevações e a destruição desenfreada seguiam alagando o ar noturno. Bruce aprendeu de cor a lição de William Wallace e arrasava tudo a seu passo, sem deixar nada na terra que pudesse ser usado por seus inimigos. Tinham vencido ao Comyn da Escócia, mas a perseguição ao Buchan persistiria por um tempo.

Aquele bloco de granito na esplanada parecia apontar ao céu em um ângulo que não podia ser mais que intencionado. Sua intenção era algo que mal podia imaginar. Tinham passado muitos anos e o propósito daqueles blocos de pedra místicos dos druidas tinha caído no esquecimento. Mas como aquelas pedras sempre estavam em lugares isolados, era o ponto perfeito para um encontro. Arthur observava a esplanada oculta depois das sombras do círculo de árvores que rodeava o monumento com uma impaciência pela chegada dos homens pouco comum nele. Tinha a esperança de que aquilo fosse o fim da mascara. Estava farto de viver na mentira. Depois de anos de fingimento, custava-lhe recordar em que lado estava.

Seria a primeira vez em quase dois anos e meio, desde dia em que o tinham obrigado a abandonar o treinamento nos Guardiões das Highlands para «unir-se» ao inimigo, que veria o homem pelo qual lutava fosse do campo de batalha. O que dizia que seus dias como espião poderiam ser já contados, era o fato de que o rei se arriscasse a encontrar-se em pessoa com ele. Arthur tinha completado bem sua missão, provendo a informação estratégica prévia à batalha de Inverurie que permitiu ao Bruce e a seus homens derrotar ao conde de Buchan e que este saísse disparado para a Inglaterra com o rabo entre as pernas. Agora que tinham derrotado aos Comyn, Arthur esperava ocupar seu posto entre o resto dos membros dos Guardiões das Highlands, o melhor do melhor, uma tropa de guerreiros escolhidos pelo próprio Bruce por suas destacadas habilidades em cada uma das artes da guerra.

Ficou imóvel, com o olhar fixo em um vão aberto entre as árvores de sua direita. O leve ruído da fuga de um coelho ou um esquilo significava o primeiro som que delatava sua chegada. Estar atento aos detalhes mínimos, as observações mais ínfimas, era o que o fazia diferente do resto. Atravessou a arvoredo em diagonal sem fazer ruído algum e apareceu a suas costas. Uma vez confirmada a identidade dos homens, apresentou-se imitando o uivo de um mocho.

Os três homens, obviamente surpreendidos, deram a volta desembainhando as espadas. Seu irmão Neil foi o primeiro em recuperar-se.

—Pelos ossos de Cristo! Inclusive é melhor do que tinha imaginado. Ainda ficam ao menos cinqüenta passos para chegar à esplanada. —voltou-se e sorriu ao homem alto e de aspecto temível que estava junto a ele — Me devem um xelim.

Tor MacLeod, o capitão dos Guardiões das Highlands, emitiu um brusco som de desgosto e murmurou entre dentes. Neil fez caso omisso e se adiantou para saudar Arthur, sem ocultar o prazer que lhe procurava vê-lo.

—Estas inclusive melhor que antes, irmão. —Quando viu que Arthur o interrogava com o olhar a respeito do MacLeod, Neil o explicou—Apostei um xelim com este bárbaro teimoso aqui presente que nos encontraria antes que chegássemos à esplanada, por mais sigilosos que fôssemos. Fez um entalhe em seu orgulho de aço das Highlands.

Arthur teve que reprimir o sorriso. Tor MacLeod era o melhor guerreiro de todas as terras Altas e as ilhas Ocidentais. Seu orgulho não tinha entalhes. Mas estava claro que Arthur tinha impressionado a seu capitão, e também a seu irmão. Neil, seu irmão mais velho, tinha quase vinte e quatro anos e em muitos aspectos era como um pai para ele. Apesar de que Arthur fosse mais alto agora, ele sempre o veria como seu irmão maior. Neil era responsável pelo que Arthur tinha se tornado. De pequeno o tinha recolhido do barro mais vezes das que podia recordar quando seus outros irmãos tentavam fazer dele um guerreiro. Neil foi quem instigou a Arthur para que aguçasse suas habilidades e não as escondesse quem lhe ensinou a sentir-se orgulhoso das destrezas que incomodavam ao resto de seus familiares. Devia a seu irmão mais do que jamais poderia pagar, mas nunca cessaria em seu empenho por tentar.

MacLeod foi o saudar, agarrando-o pelo antebraço da mesma maneira em que o tinha feito seu irmão.

—Nunca tive oportunidade de lhes agradecer o que fizestes —disse com uma expressão de estranha intensidade — Se não tivesse intervindo, minha esposa… —Deixou em suspense a frase — Estou em dívida contigo.

Arthur assentiu. Fazia dois anos, justo antes que Bruce declarasse sua opção à coroa, Arthur evitara a morte da esposa de MacLeod. Estivera no lugar apropriado no momento justo, já que acabavam de «lhe jogar» dos Guardiões.

—Eu ouvi que tenho que te dar parabéns, Chefe — disse Arthur usando o nome de guerra atribuído para proteger sua identidade.

O pétreo rosto do capitão dos Guardiões das Highlands se quebrou em um estranho sorriso.

—Sim —disse — Tenho uma filha. Beatrix, como sua tia.

—Não acredito que a segure em seus braços por muito tempo —disse Neil entre risadas — Tinha medo de derrubá-la.

Tor o olhou com cara feia, mas não discutiu.

O terceiro homem saiu a seu encontro. Embora fosse mais baixo que os outros dois, mas sua figura era igual de imponente. De largos ombros, com os fortes e marcados músculos de um guerreiro, apesar da enfermidade que tinha causado estragos em sua saúde, levava uma cota de malha completa e um tabardo vermelho com o brasão de leão rampante5 sob a capa negra. Embora seus traços de corte duro e sua bicuda barba não se viam sob o elmo de aço, Arthur o teria reconhecido simplesmente pela aura majestosa que o rodeava. Ajoelhou-se e inclinou a cabeça ante o rei Robert Bruce.

—Senhor.

O rei respondeu a sua vassalagem assentindo com a cabeça.

—Ponha-se em pé, sir Arthur. —ele aproximou-se para saudá-lo com um apertão de antebraços — Assim poderei agradecer-lhe os serviços que fez em Inverurie. Sem sua informação não teríamos podido organizar um contra-ataque tão imediato. Tinhas razão. Buchan e seus homens estavam mal preparados e caíram ao mínimo empurrão.

Arthur examinou o rosto do rei e notou as rugas e a palidez cítrica que o envolviam. MacLeod tinha se colocado junto a ele para oferecer seu apoio sem que este o advertisse, embora a Arthur surpreendesse o feito de ver o rei em pé. Suspeitava que houvesse homens nas cercanias, preparados para levá-lo de volta ao acampamento.

—Está bem, meu senhor?

Bruce assentiu.

—Nossa vitória ante os Comyn foi muito melhor cura que qualquer das tinturas que os sacerdotes tenham preparado. Estou muito melhor.

—O rei insistiu em lhe agradecer pessoalmente — disse MacLeod com certo tom de recriminação na voz.

Mas ao rei não pareceu importar.

—Seu irmão e o Chefe são mais protetores que duas velhas caducas.

MacLeod conduziu ao rei até uma rocha plaina em que pudesse sentar-se e disse de maneira contumaz:

—Esse é meu trabalho.

O rei o olhou como se quisesse discutir, mas se deu conta da inutilidade disso e se voltou para Arthur.

—Essa é a razão de que estejamos aqui — disse — Tenho um novo trabalho para ti.

Por fim. O momento que tanto tinha esperado.

—Queres que volte a me unir aos Guardiões das Highlands — finalizou por ele.

Houve uma pausa incômoda. O rei ficou circunspeto. Obviamente não era isso o que estava a ponto de dizer.

—Não. Ainda não. Suas habilidades demonstraram ser muito valiosas trabalhando no lado inimigo. Mas nos inteiramos de uma nova oportunidade.

«Uma nova oportunidade.» Não voltaria para os Guardiões. Por mais decepcionado que pudesse estar com as notícias do rei, Arthur não o deixou ver. Seria melhor que permanecesse sozinho. De todas as maneiras nunca havia se sentido cômodo nos grupos. Gostava da liberdade de tomar suas próprias decisões. Não ter que dar explicações a ninguém nem prestar contas do que fazia. Como cavalheiro na casa de seu irmão Dugald, podia entrar e sair virtualmente quando lhe agradasse. Tal e como passava freqüentemente em muitas famílias de Escócia, os Campbell tinham se dividido depois da guerra. Seus irmãos Neil, Donald e Duncan estavam com Bruce, mas seus outros irmãos, Dugald e Gillespie, alistaram-se no exército do conde de Ross e, por conseguinte, da Inglaterra. Essa divisão na família fez muito mais fácil colocá-lo em campo inimigo.

—Que tipo de oportunidade? —perguntou.

—Infiltrar-se no coração do inimigo.

«Infiltrar-se.» Isso significava estar muito perto. Algo que Arthur tentava evitar por todos os meios. Essa era a razão de que não se unira a nenhuma das casas nobres como faziam a maioria dos cavalheiros.

—Trabalho melhor sozinho, meu senhor.

Do exterior. Onde pudesse mesclar-se sem passar a um primeiro plano. Onde pudesse passar despercebido.

Neil, que lhe conhecia bem, sorriu.

—Não acredito que te importe nesta ocasião.

Arthur procurou seu irmão com o olhar. A satisfação que viu em seus olhos lhe fez compreender ao que se referia.

—Lorn?

Aquela singela palavra caiu com a força do martelo de um ferreiro. Neil assentiu e um sorriso plácido sulcou seu rosto.

—Esta é a oportunidade que estávamos esperando.

MacLeod o explicou.

—John de Lorn chamou pras filas seus barões e cavalheiros. Seus irmãos, Arthur, responderão à chamada. Vá com eles. Averigúe o que os MacDougall planejam, quantos homens têm e quem se unirá a eles. Estão infiltrando mensageiros entre nossos homens e quero que os detenhas. Queremos que permaneçam no maior dos isolamentos até que expire a trégua. Tenho ao Falcão controlando as rotas marinhas, mas necessito a você em terra firme.

Terra firme era onde Arthur se movia melhor. Argyll era a pátria dos Campbell. Arthur nasceu em Innis Chonnel, um castelo no meio do lago Awe, e viveu ali até que os MacDougall se apoderaram dele.

A emoção percorreu todo seu corpo. Tratava-se do momento que estivera esperando fazia muito tempo. Quatorze anos, para ser exatos. Desde dia em que John de Lorn esfaqueara a seu pai traiçoeiramente ante seus próprios olhos. Arthur não o viu vir. Foi a única vez em que falharam seus sentidos.

Inclusive no caso de que Neil não tivesse pedido, embora Bruce não lhe tivesse devotado terras e a promessa de uma rica esposa por combater a seu lado, Arthur teria unido a sua tropa só pela oportunidade de destruir a John de Lorn e aos MacDougall. O sangue se pagava com sangue segundo o espírito highlander. Não pensava em falhar com seu irmão do mesmo modo em que tinha falhado a seu pai.

MacLeod interpretou mal seu silêncio como uma objeção e continuou:

—Com seu conhecimento do terreno não há ninguém em melhores condições para esta tarefa. Passastes mais de dois anos compondo essa falsa aliança justamente para este tipo de missão. Pode ser que Lorn não se sinta cômodo tendo aos Campbell perto, mas uma vez que Eduardo deu por acabada a luta e tendo-se reconciliado com seu irmão Dugald faz algum tempo, tem razões mais que suficientes para querer pensar que não são mais que o que parecem ser.

—Demônios. Se o próprio tio de Lorn luta no nosso lado — acrescentou Bruce, referindo-se a Duncan MacDougall de Dunollie — As famílias divididas é algo que conheces de sobra.

—John de Lorn não sabe o que você viu, irmão —disse Neil com voz fica referindo-se ao momento em que foi testemunha da morte do pai de ambos — Faz o que sempre faz. Mantem a discrição e observa. Para o grandalhão que és faz estupendamente o passar despercebido — disse esboçando um sorriso carinhoso ao recordar que nem sempre teve esse tamanho — Te afastes do caminho de Lorn e atua com cautela. A princípio pode ser que desconfie assim não lhe dê nunca as costas.

Isso ele sabia melhor que ninguém. E não era necessário que o convencessem. Qualquer reticência que pudesse ter a meter-se na casa do inimigo se desvaneceu para ouvir o nome de Lorn.

—Então? —perguntou Bruce.

Arthur o olhou nos olhos e pouco a pouco foi esboçando um sorriso malicioso em seus lábios.

—Quanto tenho que esperar para partir?

Desfrutaria com cada um dos minutos em que contemplasse a destruição do John de Lorn. Nada se interporia em seu caminho.


Capítulo 2

Castelo de Dustaffnage, Lorn, 11 de junho de 1308


Apenas três semanas depois do encontro com o rei junto aos blocos de pedra, Arthur Campbell já estava ali. Na mesma boca do lobo, o refúgio do leão, a guarida do diabo: o castelo de Dunstaffnage, a impressionante fortaleza do clã MacDougall.

Reunido no grande salão junto ao resto dos cavalheiros e homens que tinham respondido à chamada, esperando seu turno para aproximar-se do estrado, Arthur procurava não pensar na importância do que estava por chegar. Se havia algum momento em que John de Lorn se concentraria em cada uma de suas reações seria sem dúvida aquele. Inspecionou a sala com sua habitual intensidade, advertindo todas as possíveis entradas e saídas. Embora tampouco a escapada supusesse uma possibilidade real. Se Lorn averiguasse suas intenções, Arthur teria sérias dificuldades para sair dali com vida. Mas deixar-se guiar por seu instinto era para ele um costume, e era melhor estar preparado. Para tudo.

Ao tomar nota dos detalhes da sala teve que admitir que estava impressionado. O castelo era um dos mais formosos que vira. Construído uns oitenta anos atrás, Dunstaffnage estava estrategicamente situado no alto de um pequeno promontório de terra onde se encontravam o fiorde de Lorn com a borda sul do lago Etive, com o que resguardava o acesso ocidental a Escócia pelo mar. Construídos sobre uma base de rochas, seus imponentes muros recobertos de limo se erguiam uns quinze metros sobre a terra, com torres redondas em três de seus cantos. A maior destas, junto ao grande salão, servia como torre da comemoração e albergava as câmaras particulares do senhor do feudo. O desenho e a arquitetura do castelo refletiam o poder do homem que o tinha construído. Sendo ainda parte do reino da Noruega no momento de sua edificação, o responsável por sua construção, Duncan, filho do Dugald, filho do poderoso Somerled, fosse investido com o título de RI Innse Gall, rei das Ilhas, um título que os MacDougall seguiam tomando muito a sério.

Aquele castelo era digno de um rei. O grande salão ocupava a totalidade do primeiro andar desta asa ao redor de trinta metros de longitude e outros dez de amplitude. As vigas de madeira do teto deviam medir ao menos quinze metros no ponto mais alto. Painéis de madeira intrincadamente esculpidos, próprios da decoração da nave de uma igreja, revestiam o muro de acesso oriental, enquanto que os outros eram rebocados e embelezados com vistosos estandartes e delicadas tapeçarias.

A imensa lareira da maior parede do castelo esquentava as dependências e duas janelas ogivais duplas permitiam uma entrada de luz natural pouco habitual. Na parte principal da sala ocupavam mesas com cavaletes e bancos, enquanto ao fundo do aposento, do outro lado da entrada, ergueu-se um estrado. No centro do grandioso tablado que abrangia todo o espaço havia um trono de madeira colossal. Embora essa poltrona fosse ocupada por Alexander MacDougall, lorde de Argyll, chefe e cabeça do clã dos MacDougall, era o filho de cadela desalmado de sua direita quem ostentava o poder. Alexander MacDougall era um homem velho, ao menos teria setenta anos, conforme parecia a Arthur, e fazia tempo que tinha delegado sua autoridade a seu filho mais velho e herdeiro, John, lorde de Lorn.

Era o mais perto que estivera do assassino de seu pai em anos e lhe surpreendeu o ódio intenso que lhe embargava. Não estava habituado a emoções tão violentas e, não obstante, seu peito se inflamava com esta. Tinha esperado durante tantos anos a que chegasse esse momento que pensou que seria decepcionante. Mas não foi. E sim lhe assombrava a vontade que tinha de materializar sua vingança. Seria tão fácil, parecia tão tentador surpreendê-lo pelas costas com uma adaga… Mas ao contrário que seu inimigo, ele o mataria cara a cara. No campo de batalha. Além disso, matar a Lorn não era parte de sua missão. Ainda.

Viu o quanto tinha envelhecido seu inimigo. O cinza se abria entre seus cabelos escuros e as linhas que marcavam seu rosto eram mais profundas. Arthur tinha ouvido rumores a respeito de que padecia de uma enfermidade e começava a perguntar-se se não seriam certos. Mas aqueles olhos eram os mesmos. Frios e calculadores. Os olhos de um déspota que não se deteria ante nada para vencer. Arthur se esforçou por afastar o olhar do estrado, temendo que pudesse revelar inconscientemente ou que MacDougall chegasse a sentir a ameaça de algum modo. Tinha que ser precavido. Tinha que atuar com a maior cautela para não revelar nada. Se o descobrissem, sabia que o melhor que podia aspirar era uma morte rápida. O pior seria uma morte lenta.

Entretanto aquilo não lhe preocupava de tudo. Seguia tendo uma vintena de cavaleiros e ao menos cinco vezes esse número em fidalgos que tinham respondido à chamada de Lorn. Não se precaveram de sua presença. Neil estava no certo. Era bom permanecendo em segundo plano, sem chamar a atenção. Embora gostasse de poder dizer o mesmo a respeito de seu irmão. Estremeceu ao presenciar como Dugald soltava uma gargalhada e cruzava o rosto de seu escudeiro com o reverso da mão. O menino começou a sangrar e Arthur se apiedou dele, já que desde pequeno estivera do outro lado dos punhos de seu irmão mais vezes que queria recordar. Mas a compaixão não beneficiaria em nada ao moço. Não, se quisesse chegar a ser um guerreiro. Formava parte de seu treinamento. A intenção era fazê-lo mais forte. Ao final aprenderia a dominar os impulsos. Deixar de senti-los levaria mais tempo.

—Que moça ia fixar se em um vagabundo como você estando eu por aqui? —disse Dugald entre risadas.

O escudeiro se ruborizou por completo e Arthur sentiu mais pena por ele se coubesse. O moço seria desgraçado até que aprendesse a controlar suas emoções. Dugald colocaria o dedo na chaga e lhe tiraria essa debilidade a golpes se era necessário. Igual a acontecia com seu pai, a vida de seu irmão consistia em ser um guerreiro, um guerreiro implacável. Bom, isso e sua afeição às moças.

Pode ser que Dugald se comportasse às vezes como um fanfarrão insuportável, mas não o fazia por gosto. Embora não fosse tão alto como Arthur, era de compleição robusta e um guerreiro de características formidáveis. Também o conhecia como o mais bonito dos seis irmãos e sentia prazer em desempenhar esse papel.

—Não esperava que se fixassem em mim —disse o escudeiro com calor no rosto que fazia combinação com a cor de seu cabelo — Simplesmente me perguntava se seria tão formosa como diz o povo.

—Quem? —perguntou Arthur.

—Pelos ossos de St. Columba, irmãozinho! —Por um momento deu a impressão de que Dugald queria esbofetear também a Arthur, mas este já não era um menino. A devolveria. Embora tivesse procurado manter suas habilidades ocultas, a princípio por seu próprio bem e depois para que não lhe obrigassem a usar essas habilidades contra seus compatriotas, perguntava-se se Dugald teria entendido de que a balança de forças já não se decantava a seu favor. Empurrou-o, mas timidamente — Onde estiveste metido? Em uma cova com o rei Hood? —Dugald riu com mais força inclusive e atraiu os olhares de várias pessoas em sua direção — As filhas de Lorn são conhecidas por sua extraordinária beleza. Em particular a do meio, a preciosa lady Mary.

A Arthur aquilo não intrigava o mais mínimo. A beleza das mulheres se exageravam com freqüência. E além disso duvidava muito de que alguma delas chegasse à esposa do MacLeod à sola dos sapatos. Só tinha visto a Christina Fraser em uma ocasião, mas lhe pareceu a mulher mais bela sobre a face da terra.

Então lhe passou pela cabeça a imagem de outra mulher, cuja beleza estava mais em sua doçura que em um tipo clássico e, se admirando, afastou-a de seus pensamentos. Assombrou-lhe seguir pensando naquela moça da igreja a que tinha visto fazia um ano e só uma vez. Então o rei ficou feito uma fúria por perder a prata, sobretudo quando soube que se tratava do dobro do que em princípio acreditavam, mas compreendeu a razão pela que Arthur interveio.

—Todas elas têm uma falha primitiva — assinalou Arthur.

O escudeiro parecia confuso, mas Dugald entendia perfeitamente. A expressão de seu irmão mudou e sua boca se contraiu até endurecer o gesto. Pode ser que seu ambicioso irmão visse a conveniência de alinhar-se junto ao Ross e os ingleses, e por extensão junto aos MacDougall, mas isso não significava que sentisse mais aprecio pelo Lorn do que tinha Arthur.

—Sim, nisso tem razão, irmãozinho.

—Que falha? —aventurou-se a perguntar o escudeiro.

Arthur pensou que, sabendo o que seguiria a isso, o moço demonstrava ser valente.

—Para o que vão olhar mais te conviria que sua falha fosse que estejam todas cegas - disse depois de dar outro bofetão.

Passou uma hora da buliçosa conversa de seu irmão até que chegou seu turno. Ao fim, Arthur seguia seus passos para render a espada ante o MacDougall. Como cabeça de família, por quanto tocava ao conde de Ross e a coroa da Inglaterra, já que seus três irmãos maiores fossem declarados rebeldes, Dugald falou por todos eles. Alexander MacDougall levou a cabo as formalidades, mas Arthur percebeu do interesse imediato que suscitaram no Lorn.

—Sir Dugald de Torsa… —Lorn deixou em suspense a frase em atitude pensativa — Um dos filhos do Colin Mor. Mas não o mais velho deles.

Seu visceral e impetuoso irmão respondeu com uma surpreendente calma.

—Não, meu senhor. Meus três irmãos mais velhos lutam com os rebeldes. —Como Lorn sabia melhor que ninguém — Igual a seu tio — acrescentou Dugald com a dose justa de sarcasmo.

O gesto de Lorn se endureceu. Obviamente não gostava que recordassem a esse parente traidor.

—Recordo a seu irmão Neil — disse olhando-o fixamente nos olhos — Lutou com bravura na batalha de Rede Ford.

Rede Ford. A batalha em que os MacDougall e os Campbell lutaram por suas terras no Loch Awe. A batalha em que seu pai foi eliminado a sangue frio. Pelo Lorn. O muito filho de cadela estava desafiando-o. Dugald sabia. Arthur também sabia. Mas este só queria matá-lo por isso, já que era o único que o tinha presenciado. O grande Colin Mor Campbell morreu como um guerreiro no campo de batalha, mas só Arthur viu o modo traiçoeiro em que o assassinaram. Teria sido sua palavra contra a de Lorn. Neil fez o correto ao protegê-lo. Ninguém teria acreditado.

—Suponho que fosse muito jovem — disse Lorn em tom despreocupado.

—Naqueles dias eu era escudeiro com os MacNab - respondeu Dugald ao tempo que assentia.

Lorn recebeu a mensagem. Bastou nomeando o laço que unia aos aliados mais importantes e seu clã vizinho. Lorn parecia satisfeito e mesmo Arthur pôde relaxar-se um pouco. Já parecia o mais difícil. Tinham passado o primeiro exame e eram aceitos no rebanho. Com sorte, essa seria a última vez que Lorn se fixasse nele.

Estavam a ponto de partir quando abriu a porta e as risadas alagaram a sala. As risadas de uma garota. Despreocupada e cheia de uma diversão sem complicações. Era um tipo de risada que não ouvia fazia muito tempo e lhe provocou uma estranha sensação de nostalgia. Olhou para trás, mas com a soldadesca que abarrotava a sala não teve maneira de ver de onde procedia. De repente a multidão se abriu como o mar Vermelho e criou um corredor que percorria o centro do aposento. O escandaloso estrépito das vozes dos homens se foi desvanecendo até converter-se em um silêncio atônito. Pouco depois, duas moças se aproximaram do estrado com passos apressados. A primeira era uma das mais formosas criaturas que Arthur já vira, a rival loira da esposa do MacLeod. O véu celeste que a cobria, preso com um diadema de ouro, não conseguia ocultar de todo a alvoroçada profusão de cachos loiro platino que caíam sobre suas costas. Esses traços perfeitos, junto a sua pálida pele e seus olhos de um azul vibrante faziam dela um anjo.

Ouviu como seu irmão respirava fundo e murmurava algo que estava entre uma maldição e uma prece. Compreendia esse sentimento perfeitamente. Entretanto, foi a segunda das moças que atraiu sua atenção. Tinha certa auréola de…

A moça voltou a rir e olhou para trás, revelando longos cabelos acobreados atrás de seu véu rosado. Fixou-se em seu rosto. Tinha as bochechas rosadas pelo frio e olhos azul marinho que brilhavam com sua risada. Tinha sentido ele essa felicidade em algum momento de sua vida? Havia sentido essa liberdade?

Bastou um só instante para que a reconhecesse. O coração lhe deteve de repente. «Por Deus bendito. Não podia ser!» Mas se tratava dela. A moça da igreja.

Ouviu que Lorn dizia:

—Mary, Anna, retornastes!

Arthur juraria que a voz daquele filho de cadela insensível denotava uma alegria sincera. As duas garotas correram a seu encontro, mas Arthur só tinha olhos para uma. Esta rodeou ao Lorn com seus braços e lhe plantou um beijo enorme na bochecha.

—Pai! —disse emocionada.

«Pai.» A Arthur pareceu que lhe cravassem uma adaga nas vísceras. Tinha salvado à filha de Lorn. Teria rido com gosto diante da amarga ironia do assunto, a não ser porque supunha um desastre irreparável. Se o reconhecesse, sua cabeça estaria pendurando às portas do castelo para quando caísse a noite. Não lhe importava morrer. Mas sim o fracasso.

Tentou fazer um sinal a seu irmão para que se retirassem, mas Dugald parecia estar em transe e olhava lady Mary MacDougall como se esta acabasse de descer dos céus. Arthur afastou o olhar das mulheres, mas viu de relance que a segunda das moças ficava confusa ao olhar pela primeira vez ao redor da sala e se conscientizar da quantidade de olhos que as observavam. A jovem mordeu o lábio. Tratava-se de um gesto de um erotismo inocente que poderia ter afetado antes de saber que se tratava da filha de Lorn. Entretanto, quão único provocou nele foi o impulso de levar a mão à espada; a de aço.

—interrompemos algo —disse a jovem voltando-se para a outra moça, sua irmã, presumivelmente — Vamos, Mary. Já contaremos nossa viagem ao pai mais tarde.

Lorn negou com a cabeça.

—De maneira nenhuma. Não é necessário. Já quase terminamos com isto.

Arthur ia ficando petrificado, com o coração em um punho, à medida que a moça varria a multidão de soldados com o olhar para depois, maldita seja, voltar a ele. Aferrou o punho de sua espada com mais força de maneira instintiva. Um suor frio lhe percorria as costas. Nessa ocasião o elmo não lhe cobria o rosto, de modo que ela sentiu toda a intensidade de seu olhar. Paralisou-se ao ver que franzia levemente o sobrecenho. Durante um longo instante esperou que o desmascarasse, que sua voz pronunciasse as palavras que lhe condenariam à morte… e ao fracasso. Mas a ruga de seu cenho não fez mais que intensificar-se. E então, com um impulso temerário, soube exatamente o que tinha que fazer.

Tinha que mostrar segurança.

Ergueu o olhar para olhá-la nos olhos, lentamente. Não se moveu. Não respirou. Não piscou quando seus olhares se encontraram sem obstáculos pela primeira vez. Sentiu que se afundava nesses olhos do azul do mar. sentiu-se perdido, embora fosse por um instante. Quando viu que ela se sobressaltava, soube que tudo tinha acabado. Entretanto, a moça baixou rapidamente o olhar e um ligeiro rubor apareceu em suas bochechas. Arthur esteve a ponto de suspirar, aliviado. Não o tinha reconhecido. Simplesmente se envergonhava de que a tivessem pilhado olhando. Não obstante, seu alívio não durou muito. Pode ser que a garota não o tivesse denunciado como espião, mas sem querer o tinha feito exatamente aquilo que tinha a esperança de evitar: atrair a atenção do pai sobre ele.

—Qual dos irmãos é você? —perguntou Lorn, com uns olhos escuros e maliciosos que não perderam um só detalhe daquele intercâmbio.

—Meu irmão caçula —respondeu Dugald por ele — Sir Arthur, meu senhor. O que está junto a ele é meu irmão sir Gillespie.

Ambos assentiram, mas Lorn seguia interessado em Arthur, como um vira-lata ante um osso rodeado de carne.

—Sir Arthur… —murmurou, como se tentasse recordar o nome — Fostes renomado cavalheiro pelo próprio rei.

Arthur olhou nos olhos de seu inimigo pela primeira vez, sem revelar um ápice o ódio que corroía seu interior.

—Sim, meu senhor. O rei Eduardo me coroou cavalheiro depois da batalha do Methven.

—Do Valence, Pembroke, tem-lhe em alta estima.

Arthur se inclinou como se aquela adulação fosse agradável, algo que não podia estar mais longe da verdade, já que sabia que os louvores do general provinham do prejuízo causado a seus próprios amigos. Fazia quanto podia por evitar lutar contra os homens de Bruce, mas em ocasiões era inevitável. Para permanecer com vida e preservar sua verdadeira intensidade não tinha mais opção que defender-se, às vezes da morte. Era uma parte de sua missão em que nunca pensava e que, entretanto, sempre estava aí com ele.

Lorn o olhou longa e pausadamente até que por fim desviou o olhar. O seguinte grupo de homens se aproximou e Dugald encabeçou a comitiva de volta. Mas Arthur sentiu o peso dos olhares em suas costas durante todo o trajeto. Pensou que se tratava dos olhares das moças, não de Lorn, mas nem uma nem outra eram benéficas para sua missão. Uma coisa estava clara: tinha que manter-se afastado daquela jovem.

Anna MacDougall. Sua boca fez uma careta de desgosto. Não havia melhor arma contra o desejo que saber que a mulher que fazia palpitar seu coração era a filha do homem que tinha assassinado a seu pai.


Capítulo 3


Anna nem sequer olhava por aonde ia. Voltou para castelo com apenas tempo para se banhar e mudar o vestido para a festa, uma festa que tinha sido idéia dela, a modo de boas vindas para os barões, cavalheiros e guerreiros que tinham acudido ao Dunstaffnage à chamada de seu pai. Com uma guerra às portas de casa, uma celebração podia parecer estranha a muitos, como por exemplo, seu irmão Alan, mas Anna sabia quão importante era deixar as penas e a fatalidade de lado, embora fosse por uma só noite. Para recordar pelo que se lutava. Para atuar com normalidade, ou o que em meio da guerra pudesse chamar-se normalidade, ao menos durante um breve instante. Por sorte seu pai acessou e considerou oportuna a festa. Tinha a suspeita de que também ele estava desejoso de demonstrar a outros que já se recuperara por completo de sua enfermidade. Não obstante, fosse qual fosse a razão, Anna dava amostras de uma excitação fosse do comum. Teria quantidades indecentes de comida e bebida, música, um seannachie6 para congratular à multidão com histórias do clã e bailes. Dança! Fazia tanto tempo que não dançava…

Sua irmã e ela tinham passado horas decidindo o que usariam, planejando até o mais mínimo detalhe. E agora chegava tarde. Não é que se arrependesse. O bebê recém-nascido de Beth era adorável e Anna sabia a necessitada ajuda que precisava sua amiga recém viúva. Sentiu um arrebatamento de compaixão por aquela menina que não conheceria seu pai. Era desconsolador que houvesse tantos como ela. Uma razão mais pela que não via o momento de que cessasse aquela maldita guerra.

Ao ouvir os primeiros acordes da harpa murmurou uma das maldições favoritas de seu pai. Deixou atrás a luz para entrar como um torvelinho na sombria entrada do salão e deu de repente contra um muro. Ou ao menos isso pensou ela, até que o muro estendeu os braços e a segurou quando caía de costas, salvando-a do que presumia que teria sido um duro golpe no traseiro. A surpresa a deixou com a respiração entrecortada, primeiro pelo impacto e depois diante da embriagadora sensação de sentir-se sustentada pelos braços musculosos, extraordinariamente musculosos.

—Estás bem?

Céu santo, que voz! Envolvia-a com tanta firmeza como aqueles braços. Uma voz profunda e com caráter, com o toque justo de aspereza. Era uma voz que ressonaria pelas salas e até as colinas. Seguro que se o pai Gilbert tivesse essa voz seus sermões matutinos teriam sido escutados com maior atenção.

—Estou bem — disse um tanto aturdida.

Em realidade estava um pouco enjoada. Ergueu o olhar e piscou para limpar as estrelas que tinha ante si e ficou sem respiração de novo. Tratava-se do jovem cavalheiro no que tinha reparado dias antes. Aquele que a tinha pilhado olhando-o: sir Arthur Campbell. Suas bochechas se ruborizaram. Não sabia o que o que chamou a atenção sobre ele na última ocasião, mas voltava a sentir de novo. Era uma pequena aceleração do pulso, um arrebatamento de calor que se estendia por sua pele, uma nervosa revoada no estômago.

Esse homem tinha algo diferente, algo que não era capaz de descrever. Era como se emanasse intensidade do mais profundo de seu ser. Embora não o tivesse notado a princípio, era de uma beleza incontestável. Sua formosura, singela e descrente, não se fazia tão aparente como a de seu irmão, que possuía esse tipo de galhardia tão chamativa que parecia impossível não fixar-se nela. Como aquele Adônis7 que tinha repelido o ataque quando ela reconheceu a seu «salvador», a noite da igreja. Inclusive com aquelas manchas negras no rosto, Anna pensou então que era impossível que jamais tivesse visto um homem tão excepcionalmente bem formado. Mas, ao ser um rebelde, a atração que sentia se desvaneceu rapidamente.

Parecia estranho que voltasse a pensar naquela noite. Era a segunda vez que lhe ocorria na mesma semana. Acreditava ter deixado para trás esse episódio aterrador, que já não olhava a todos os homens com que cruzava como se pudessem ser ele. Esse homem que era de uma vez traidor e salvador. Tinham-no chamado «Guardião». Que tipo de nome era esse? Os guardiães eram homens que percorriam os campos para proteger e instaurar a lei e a ordem, algo que não combinava com um espião. Ou não era assim? Por seu relato e descrição do acontecido naquela noite, seu pai tinha suposto que aqueles dois homens pertenciam à elite secreta de guerreiros fantasmas de Bruce. Aqueles guerreiros, parte bicho-papão e parte heróis mitológicos, tinham semeado o terror entre os ingleses e seus aliados escoceses.

Mas nesse momento não podia pensar mais que no homem que a sustentava. Cheirava divinamente; uma cálida fragrância a sabão, pelo banho que certamente acabava de tomar. Seus cabelos negros ainda estavam molhados, e alguns cachos lhe caíam sobre a frente e o pescoço. Barbeara-se, embora Anna pudesse apreciar a sombra da barba sobre seu queixo cinzelado. Cinzelado o descrevia bem. Era todo ângulos afiados e traços duros, uma masculinidade rasgada que a ela jamais antes tinha parecido atraente. Preferia homens mais refinados, tanto quanto as maneiras como à aparência. Normalmente não se fixava nos guerreiros. Recordavam-lhe muito à guerra. Mas não cabia dúvida de que esse homem o era. Os músculos de seus braços lhe davam a compleição de um aríete. Parecia-lhe curioso que não percebera o quão alto e musculoso que era na primeira vez que o tinha visto. Mas a verdade é que cobertos com a cota de malha e a armadura quase todos os cavalheiros lhe pareciam iguais. Anna não era especialmente baixa por ser uma mulher, mas teve que jogar a cabeça para trás para olhá-lo no rosto. Por Deus, tinha que medir virtualmente dois metros! E era quase tão largo de ombros como a entrada ao salão. Seus olhares se cruzaram. Algo a sacudiu por dentro de cima abaixo. Jamais tinha visto olhos de tal cor. Âmbar com traçados dourados, em lugar de marrons, como pensou por um primeiro momento. Emoldurados por cílios extraordinariamente longos e suaves que inspirariam inveja em qualquer mulher.

Anna se deu conta de que a tinha reconhecido justo antes de soltá-la. De fato, mais que soltá-la a deixou cair, de uma maneira tão brusca que se salvou de dar com o traseiro no chão pelos cabelos. Tropeçou para trás, moveu os braços como de uma galinha cacarejando e, por sorte, engenhou para manter o equilíbrio. Muito para impressionar com sua agilidade. E não era que sua expressão indicasse que cabia a mínima possibilidade de impressioná-lo, pois jamais um jovem a tinha olhado com tamanha… indiferença, total e absoluta. Menos mal que não era uma jovem vaidosa. Ou ao menos não acreditava ser, embora naquele momento tivesse que admitir que acabara de sentir uma pontada em seu interior.

Ao conscientizar-se de que ficou olhando-o como se fosse uma donzela embevecida recém saída do convento baixou o olhar em seguida. Não podia ter deixado mais claro seu absoluto desinteresse por ela. Por todos os Santos, estivera a ponto de deixá-la cair. Talvez não o tivesse adestrado como cavalheiro na galanteria. Tentou recuperar algo um pouco parecido à compostura, sorriu e disse: —Sinto muito. Não vi que estavam aí de pé.

Arthur a olhou com olhar que parecia albergar certa impaciência arrogante.

—Isso é óbvio.

Anna apagou o sorriso e ficou circunspeta, sem saber o que dizer. Os momentos incômodos eram terra ignota para ela. Ao que parecia, não se tratava de um grande conversador.

—Estou atrasada — disse como desculpa.

O cavalheiro se retirou para lhe dar caminho.

—Então não permitam que lhes retenha por mais tempo.

Embora dissesse em um tom neutro e suas palavras não pareciam incorretas, apreciava-se nelas o caráter distintivo da frieza. «Não lhe caio bem.» Então se sentiu estúpida de repente e saiu correndo. Quem mais lhe dava cair bem ou não? Os guerreiros eram o tipo de homens que menos lhe interessavam. Já tinha tido suficiente guerra de por toda vida. Paz. Tranqüilidade. Um lar feliz e um marido cuja conversa não girasse em torno da guerra e as armas. Crianças. Isso era o que o futuro lhe proporcionaria. Justo antes de inundar-se no mar de gente que abarrotava o grande salão se aventurou a voltar o olhar para trás. O cavalheiro desviou o olhar. Mas a estava observando.

Arthur contava os minutos para poder partir. Sob circunstâncias normais não era muito dado aos festins e as celebrações ébrias, mas graças a Anna MacDougall parecia difícil inclusive pretender que estava relaxado e desfrutando. Era ele quem se dedicava a vigiar e observar, não ao contrário. Não necessitavam sentidos extremamente afinados nem estar olho atento para conscientizar-se de seu olhar. Ele estava sentado no canto do fundo do salão, o mais longe do estrado que era possível, mas igualmente poderia estar ao lado dela, dada a intensidade com que o observava. Interesse feminino e algo que parecia muito mais perigoso que isso: curiosidade. Algo que não gostava absolutamente. Por que não deixava de olhá-lo? E, pior ainda, por que estava custando tanto evitar olhá-la em resposta? Era bonita, inclusive formosa. Mas as mulheres formosas não eram algo tão estranho para que sofresse tanto por ignorá-la. Não tinha problema algum em afastar o olhar de sua irmã Mary, sendo esta uma das criaturas mais belas que tivesse visto. Mas havia algo em Anna MacDougall que atraía as olhadas. Inclusive em um aposento entre centenas de companheiros de clã e numerosas moças jovens e atraentes competindo por chamar a atenção, ela ressaltava como um diamante entre cristais. Não era pela beleza. Ao menos não só por isso. Não a olhavam os homens unicamente, também o faziam as mulheres. Sua risada tinha algo contagioso; seu sorriso, algo terno; seus olhos azul intenso algo cativante em seu brilho, e suas covinhas eram deliciosamente travessas. Covinhas. Estava claro que tinha que os ter. Que espírito adorável carecia deles?

Mas além de uma ou duas olhadas rápidas, esforçou-se diligentemente por evitá-la. Contenção. Controle. Disciplina. Essas eram as qualidades às que se encomendava. Elas eram as que faziam dele um guerreiro de elite.

Entretanto, quando começou o baile seu orgulho recebeu uma estocada. Um só olhar a seus sorridentes olhos e suas bochechas coradas fez que ficasse tão encantado como outros. Era uma moça alegre e vivaz que transbordava vitalidade e força juvenil. Soava a clichê, mas o certo era que levava a alegria escrita no rosto. Para um homem que único conhecia desde que fosse capaz de se sustentar uma espada eram a morte, a destruição e a desolação, um homem que tinha vivido nas sombras durante danos, evitando chamar a atenção em que ela tanto desfrutava, que jamais tinha experimentado tal alegria de viver, a sua era uma luz virtualmente cegante.

Tentou concentrar-se em suas imperfeições. Mas vá, não era capaz de encontrar cabelo em nenhum lugar estranho nem sinais indecorosos que danificassem a imaculada pele. Tinha o nariz um tanto arrebitado. A boca, um pouco larga. O queixo, um tanto bicudo. Mas tudo isso a fazia mais adorável e doce ainda. Apesar de que essa fosse exatamente a primeira impressão que lhe tinha dado, dizia a si mesmo que certamente era malcriada e seria altiva. Ou calculadora e malévola, como seu pai. Acabava de convencer-se disso quando a viu tropeçar. Saiu disparado de seu assento antes de se dar conta do que estava fazendo. A moça escorregou com um pé e deu um bom golpe no traseiro. A música se deteve, ao qual seguiu um silêncio de assombro. Pelo olhar de horror do membro do clã que estava junto a ela, Arthur imaginou que tinha sido o culpado de derrubá-la com seu empurrão. Esperava as lágrimas ou a pirraça furiosa que dirigiria ao culpado de seu desafeto. Mas teve uma decepção.

Anna MacDougall se viu ali jogada no chão e caiu na risada. Quando o homem a ajudou a levantar-se, Arthur advertiu que se mofou do horror que transluzia no rosto do jovem membro do clã para tranqüilizá-lo. Não estava mau, para ser uma moça altiva e malcriada. Sentiu a necessidade premente de beber, de modo que levantou sua taça e deu um longo gole na cerveja. Poderia olhá-la durante horas. Entretanto, consciente de que jogava com fogo, obrigou-se a olhar para outro lado. Estava mais claro que a água que não gostaria que ela visse como a olhava. Dado de quem se tratava, sua fascinação por essa jovem lhe parecia irritante. Deveria desprezá-la só por levar esse nome. Pelo amor de Deus, era a filha de Lorn.

Não obstante, não tinha sido desprezo o que sentiu pouco antes disso, quando caiu sobre seus braços. Sentiu que lhe punha duro. Excitação. Calor. Com muita vontade de afundar-se nessa suavidade. Grudar seu corpo ao dela. Notar todo o peso de seus seios sobre o torso e seus quadris em cima de seu membro. Que sua reação alcançasse tal intensidade o tinha surpreendido tanto que teve que deixá-la cair mais rápido do que era devido.

Mas o desejo, embora fosse incomodo, era algo fácil de reprimir. Não significava nada em comparação com o perigo ao que expor o interesse da garota por ele. Levava tempo suficiente fazendo aquilo para saber que quão único podia dar por desconto em cada uma das missões era que algo sairia mal. Mas defender-se de cuidados não requeridos por parte de uma moça formosa não era o tipo de problemas que tinha antecipado. As experiências de Arthur com as mulheres se reduziam a um tipo de relação mais primária. Embora sua beleza não fosse tão excepcional como a do MacGregor, graças a Deus, Arthur poderia atrair a muitas admiradoras se quisesse. Mas sua atitude não as animavam. E assim era como gostava que fosse. As mulheres eram muito mais perceptivas que os homens, em geral. Normalmente notavam algo diferente nele e seus instintos lhes diziam que se afastassem. Normalmente. Mas com Anna MacDougall se via obrigado a tomar medidas mais drásticas. Suas tentativas de desanimá-la, não obstante, não tinham funcionado. A menos que lhe fazer sentir como um imbecil contasse. Pode ser que o cavalheirismo e a galanteria não saíssem de modo natural, esse era bem o estilo de seu irmão, mas tampouco a rudeza descarada. A frieza com a que a tinha tratado não era convenientes, por mais que tivesse sido necessário.

Sacudiu a cabeça. Que demônios lhe estava passando? Anna MacDougall era a última moça do mundo pela que podia interessar-se. Algumas poucas palavras bruscas não eram nada em comparação com o que tinha ido fazer ali. Todo seu mundo estava a ponto de ser destruído. Embora não é que pudesse supor, pelos sorrisos de júbilo nos rostos das pessoas que o rodeava. Acaso não sabiam que as voltas tinham mudado, que seus aliados mais poderosos, os Comyn e Inglaterra, tinham-nos deixado sozinhos, que Bruce chegaria mal expirasse a trégua? Diabos, inclusive seu irmão atuava como se nada desse mundo lhe importasse, rindo e brincando junto a seus homens com a mesma intensidade que outros. Mais alto, talvez.

—Não gostas da cerveja, sir Arthur?

Ao voltar-se encontrou junto a ele ao escudeiro do Dugald sentado no mesmo banco.

—Eu gosto bastante — disse torcendo o gesto — Embora certamente não tanto como a meu irmão.

O moço sorriu. Aproximou-se um pouco mais e baixou a voz.

—Não pude evitar me fixar na dama, senhor. —Arthur não precisava olhar para saber a quem assinalava — esteve lhe observando. Talvez queira convidá-la a dançar?

Por desgraça não baixou a voz o suficiente. Ou talvez seu irmão Dugald não estivesse tão bêbado como ele pensava. Dugald o interrompeu a gritos.

—Não perca o tempo, Ned! Meu irmão preferiria dançar com sua própria espada antes que com uma dama jovem sem desposar.

Todos riram ao entender a brincadeira procaz.

Embora Dugald já tivesse terminado de comer, ainda tinha na mão a faca com punho de haste. Arthur advertiu que o escudeiro ficava nervoso e que abria os olhos exageradamente ao ver que Dugald lançava a faca ao ar para agarrá-la com uma mão. O menino, inconscientemente, começou a esfregar mãos e foi mais para frente no banco.

Arthur compreendia muito bem as reações do escudeiro. Um só olhar a suas próprias mãos, com dezenas de cicatrizes feitas com facas, davam a resposta a isso. Isso era o que Dugald entendia por jogo. Lançava a faca, ou a adaga, ou a lança, ao ar por um momento, e depois o jogava em alguém sem prévio aviso para que o outro o agarrasse. Supunha-se que melhorava os reflexos e obrigava a estar alerta, consciente e preparado. E o fazia, embora seja certo que com muita dor e sangue. Deus, como tinha temido essa maldita faca, um sentimento que compartilhava com o escudeiro, se é que o rosto lívido e em tensão que o moço tinha não o enganavam.

—Não cortejou a uma moça desde que era um escudeiro miúdo como você —continuou Dugald — Como se chamava, irmão?

Arthur passou um dedo sobre a borda de sua taça descuidadamente. Dugald o estava provocando, mas não pensava picar.

—Catherine.

—O que ocorreu, senhor? —perguntou o escudeiro a Arthur enquanto olhava de esguelha ao Dugald, sem perder por completo de sua visão a folha de aço de quinze centímetros.

Arthur encolheu os ombros.

—Não encaixávamos.

Dugald soltou uma gargalhada.

—Depois de que a fizesse sair apitando. Por Deus que foi um moço estranho. —Felizmente não se explicou, mas sim voltou a olhar ao escudeiro. Fez um rápido movimento com a mão, insinuando lhe atirando a adaga e rindo ao ver que se assustava — Brigava com menos graça que você, inclusive. Um afeminado, embora não possam acreditar. —Pela forma em que lhe olharam todos, ficou claro que não acreditavam — Adoentado e débil. Não podia levantar a espada até virtualmente cumprir os doze anos. Ninguém tinha esperanças de convertê-lo em um guerreiro. —Salvo Neil, pensou Arthur. Neil sempre acreditou nele — E olhem agora —disse Dugald — Um guerreiro do qual nosso pai estaria orgulhoso - disse enquanto lançava a adaga ao ar, recolhia-a e a jogava imediatamente para o escudeiro com um destro jogo de mãos.

Arthur podia repeli-la, mas o moço estava atento. Com os olhos fixos na resplandecente folha, arrumou para agarrar o cabo e ficar com ela. Dugald deixou escapar uma boa gargalhada.

—Ora! Talvez haja esperanças para ti, depois de tudo — disse acompanhado pelas risadas do resto dos homens.

Aquele elogio imprevisto a respeito das habilidades como guerreiro de Arthur lhe importava mais do que queria. Dugald e ele nunca teriam uma relação íntima, mas eram irmãos. «Lutando em lados diferentes», teve que recordar.

O escudeiro se afastou deles e outros voltaram para suas bebidas, mas Dugald ficou olhando a seu redor discretamente. Arthur sabia o que — ou melhor, a quem— procurava. A tal lady Mary MacDougall tinha atraído a atenção de seu irmão, algo excepcional fosse quem fosse a mulher.

—É uma verdadeira lástima — disse Dugald com dureza.

—Sim, irmão — disse Arthur assentindo com a cabeça - é mesmo.

As filhas de John de Lorn não foram feitas para eles.


Capítulo 4


Anna tinha mais defeitos do que era capaz de reconhecer. Depois da noite passada teria que incluir também vaidade e arrogância a lista, em que já estavam a sua conhecida teimosia: tinha sido ela quem tinha ameaçado simpaticamente a seu pai atando-o à cama se tentasse levantar-se; sua franqueza: supunha-se que as mulheres não deviam ter opinião, nem muito menos expor as mesmas, embora não podia culpá-la por isso, já que era seu pai quem a animava a fazê-lo; além dessa afeição tão imprópria em uma dama de repetir as imprecações favoritas de seu pai e seus irmãos, algo do que não estava disposta a dar exemplos para não acrescentar mais lenha ao fogo de seus pecados.

Acabava de descobrir nela uma necessidade de que outros a admirassem que raiava a perversão. Não era arrogante pensar que tinha que chamar a atenção de todos? É obvio que era. Embora fosse algo muito comum. Não teria que se preocupar que aquele jovem cavalheiro não se dignou a olhá-la. Nenhuma só vez. Em toda a noite. Mas lhe preocupava. Sobretudo porque por sua parte ela não tinha podido deixar de olhá-lo.

Ao mesmo tempo em que ria até que lhe doíam as mandíbulas, dançava até que machucava os pés, comia até que lhe arrebentava o estômago e bebia até afogar-se, encontrou-se a si mesmo percorrendo a sala com o olhar em um completo sem sentido, procurando a aquele cavalheiro de escura beleza que tão claro tinha deixado seu desinteresse por ela. Franziu o cenho. E por que não gostava dela? Mostrou-se amável, sorridente e disposta a manter uma conversa. Não tinha verrugas no nariz, nem pêlo no queixo ou os dentes podres. De fato, haviam-lhe dito muitas vezes, e não só os homens de sua família, que apesar de não ser tão bela como Mary — quem poderia ser?— sua imagem era muito agradável à vista.

Daí que tivesse caído na vaidade.

Talvez fosse pela inimizade que perdurava entre os velhos feudos dos Campbell e os MacDougall? Naqueles tempos ela era só uma menina e mal conhecia as circunstâncias. Sempre poderia perguntar a seu pai. Não obstante, o que não poderia explicar seria seu desespero por encontrar razões para o aparente desprezo do cavalheiro. Não teria por que lhe importar. Nem sequer o conhecia. E além disso era um guerreiro. Não havia nada de refinação nele. Aquilo em si deveria bastar.

O que importava um só homem? Havia uma multidão de homens que gostava dela. Entre eles Thomas MacNab, um homem culto e amável que acabava de ir buscar uma taça desse vinho doce que adorava, enquanto que ela descansava junto à janela aberta, recuperando-se daquela impetuosa dança e de sua abafadiça queda. Gostaria de dizer que normalmente não era tão desajeitada, mas não era certo. Considerava-o mais uma desgraça que um defeito.

Apoiou-se no parapeito de pedra, inalando baforadas de ar fresco ao mesmo tempo em que passeava o olhar pelo grande salão. Fazia um mormaço na sala, provocado não pelo fogo dos candelabros mas sim pela vívida energia dos participantes, que revoavam de um lado a outro. Por isso podia deduzir das gargalhadas e os sorrisos nos rostos dos homens e as mulheres, que a festa tinha sido um êxito clamoroso. Exceto por uma pessoa. Algo que a fazia perder o sorriso.

«Não olhe…» Mas é obvio que o fez. Supôs que teria que acrescentar a essa lista uma horrenda falta de autocontrole. Seu olhar se voltou imediatamente para a figura que havia no canto do fundo à direita do aposento. Seguia ali, o qual era surpreendente, já que parecia olhar para a porta como se não pudesse esperar em sair por ela. Segundo sua experiência, os guerreiros sempre estavam ansiosos por partir. Desejosos de chegar ao seguinte campo de batalha.

Ao contrário que o resto dos homens a seu redor, sir Arthur não se servia do vinho e da cerveja dos MacDougall. Sua jarra apenas se moveu da mesa que tinha frente a ele. Estava situado em um lugar do que dominava toda a sala, sentado de costas à parede e com o rosto impassível. Perguntou-se se aquilo seria intencional. Embora se via completamente relaxado, apoiado contra o muro e sorrindo de vez em quando ao que seus companheiros diziam, advertia seu estado de alerta. Como se estivesse todo o tempo em guarda e sopesando a situação. Era algo tão sutil que a princípio nem sequer reparou nisso. Mas estava ali, na firmeza de seu olhar e a quietude de sua posição. Embora permanecesse junto ao resto do grupo de guerreiros, incluindo os dois irmãos com que estava o primeiro dia, comportava-se mais como observador que como participante ativo na conversa. Parecia abstraído. Afastado. E não podia evitar que aquilo a inquietasse. Não gostava de ver que alguém ficava excluído. Talvez devesse olhar se… antes que pudesse terminar de formular esse pensamento sentiu que a agarravam por trás e a suspendiam no ar fazendo-a girar.

—Não tem com quem dançar, mucosa? —disse o homem zombeteiramente — Deveria dizer a algum de meus homens que te tire pra dançar?

Anna riu com vontade, sabendo perfeitamente de quem se tratava, apesar de que fazia muito tempo que não ouvia o tom de graça em sua voz.

—Nem te ocorra. Posso encontrar um companheiro sozinha. —Lutou com ele em uma tentativa de libertar-se de seu abraço de urso — me solte, monstrengo.

O homem voltou a colocar a com os pés no chão e lhe deu a volta para olhá-la à cara com severidade.

—Monstrengo? Deveria mostrar mais respeito por seu irmão mais velho, pequena.

—Disse monstrengo? —perguntou Anna, batendo suas pestanas com cara de inocência — Queria dizer sir Monstrengo.

O homem soltou uma gargalhada e enrugou a comissura de seus olhos, de idêntico azul aos dela. Seu coração se encheu ao ver o sorriso em seu rosto. Não havia visto seu irmão tão feliz desde que sua esposa morrera ao dar a luz a seu terceiro filho, quase um ano. Embora Alan fosse só dez anos mais velho que ela, tinha envelhecido durante os últimos meses. A profundidade das rugas de seu rosto mostrava o afeto que sentia por sua esposa. Seu cabelo castanho tinha agora entradas e começava a escassear no cocuruto, mas apesar de tudo isso seguia sendo um homem bonito. Sobretudo quando sorria, um pouco raro no sério herdeiro de Lorn e Argyll.

Alan agarrou a Anna pelo nariz entre o polegar e o indicador à maneira em que estava acostumado a fazer quando era uma menina.

—Estava certo, sabe?

—O que dizia? —perguntou Anna com uma mão na orelha — Há tanto ruído que não te ouço.

Alan negou com a cabeça.

—Malandrinha… Sabes perfeitamente do que falo. O banquete. Era justamente o que necessitávamos.

Sorriu sem ocultar sua satisfação. Não podia evitar. A opinião de seu irmão significava muito para ela. Sempre tinha sido assim.

—Diz a sério?

—A sério — respondeu Alan ao mesmo tempo em que assentia.

Agachou-se e a beijou no cocuruto. Embora seu irmão não fosse tão alto como certo cavalheiro jovem ao que acabava de conhecer, era um homem formidável. Media mais de um metro oitenta de altura e tinha a corpulência de seu pai e seu avô. Tanto Ewen como Alastair, seus outros dois irmãos, eram de compleição mais magra.

Uma nuvem de tristeza escureceu seus pensamentos. Somhairle estava a meio caminho entre os três. Alto, de largos ombros e com um corpo que era pura fibra, contava com uma figura imponente, a quinta-essência do guerreiro. Algo não muito longe de sir Arthur — por que seguia pensando nele? — Mas Somhairle, o segundo de seus irmãos, tinha morrido lutando junto a Wallace na batalha do Falkirk, fazia quase dez anos apenas. Tinha vinte anos.

Esforçou-se em afastar esses tristes pensamentos, já que não queria arruinar o excepcional bom humor de Alan.

—Onde estão todos esses homens que estiveram pululando a seu redor durante toda a noite? —perguntou seu irmão revelando um exagerado espírito protetor no brilho de seus olhos.

—Se havia algum, estou segura de que o terá espantado só por vir aqui - disse Anna erguendo os olhos ao teto.

—E assim é como deve ser — repôs Alan com um sorriso de satisfação.

Anna pigarreou com afetação.

—Thomas MacNab foi procurar para mim uma taça de vinho. Estou segura de que voltará quando você tenha ido.

Alan cruzou seus robustos braços sobre o peito e franziu o cenho.

—Esse neném… —disse conseguindo conter-se — Qualquer homem que não tenha o valor de enfrentar a um inofensivo irmão…

Anna soprou.

—Três bestas imponentes, quer dizer. Vi como o fulminavam com o olhar.

—… não te merece — continuou, repreendendo-a com o olhar e fazendo como se não o tivesse interrompido — O que você quer é um homem que tombe dragões e que ande de joelhos sobre as brasas do inferno para te proteger.

Anna o rodeou com seus braços e o estreitou fortemente. Alan, sabendo que um impressionante cavalheiro como sir Hugh Ross lhe tinha proposto matrimônio, não podia compreender que preferisse a um homem tranqüilo e estudioso como Thomas McNab, alguém que não saberia o que fazer com uma espada, inclusive no caso de que pudesse levar uma.

—Acreditava que para isso já tinha ao pai, Alastair, Ewen e você.

Alan lhe devolveu o abraço.

—Sim, Annie querida, isso já tens— disse sustentando-a pelas costas para olhá-la bem — É que não te interessa nenhum outro à exceção do tutor?

Sem pensar, seu olhar foi para o fundo da sala e se fixou um instante em sir Arthur Campbell. Foi suficiente. Seu observador irmão observou isso.

—A quem olhava?

—A ninguém — se apressou a dizer.

Apressou-se muito. Os olhos do irmão se entreabriram ao tempo que jogava uma olhada na direção a que ela olhava.

—Campbell?

Maldita fosse por ter a pele tão clara! Sentia perfeitamente como o rubor subia por suas bochechas. Seu irmão parecia surpreso.

—Sir Dugald? É um bom guerreiro. Embora talvez muito popular entre as moças — acrescentou franzindo o cenho.

Não pensava corrigi-lo. Não era nada. Sentia certa atração por sir Arthur, isso era tudo. Sua indiferença não tinha servido mais que para cravar um espinho em sua vaidade feminina.

—Fique de olho, querida. Se tentar algo contigo…

Anna o empurrou para que se fosse.

—Já sei a quem tenho que chamar. Por que não vai por ali e vais dançar com Morag? Leva toda a noite te olhando.

Esperava que ele se negasse de forma terminante, assim que lhe surpreendeu ver um brilho especulativo em seus olhos.

—Ah, sim?

Alan fixou seu olhar na bela e jovem viúva. Não disse nada mais, mas essa momentânea amostra de interesse deu esperanças a Anna para pensar que a existência quase vegetal de seu irmão acabaria por fim. Era um presidiário pelo luto por sua esposa, e embora essa tristeza fosse o testemunho de seu amor por ela, ele ainda seguia vivo.

Procurou Thomas entre a multidão e seguiu fazendo-o durante ao menos trinta segundos antes de voltar a dirigir o olhar para o canto. Olhou bem a tempo para ver como se aproximavam da mesa dos Campbell três jovens mulheres do clã, curiosamente três mulheres bonitas, exuberantes e conhecidas como as mais sedutoras do castelo. Anna amassou o suave veludo de suas saias com a ponta dos dedos. Sentiu uma espécie de pontada remotamente parecida com a irritação. Remotamente parecida com a maior das irritações. Saber que se tratava de algo irracional não ajudava em nada. Era normal que as garotas se interessassem por eles. Por que não fariam? Os recém chegados eram cavalheiros, bonitos e, isso Anna sabia, não eram casados. Uma combinação irresistível para qualquer jovem sem marido.

E tampouco lhe surpreendeu que fossem bem recebidas e as animassem a ficar com eles. Mas quando uma das mulheres, Christiana, a encantadora filha do valete de seu pai, de olhos azuis e cabelo negro azeviche, sentou-se junto a Arthur, todas suas costas ficou em tensão. O lugar parecia estar mais quente se pudesse. As bochechas lhe ruborizaram e o coração deu um brusco tombo. Dizia a si mesma que aquilo não era de sua incumbência, mas não podia deixar de olhá-lo.

Não teria que ter se preocupado. Depois de várias tentativas de sedução inadvertidas, incluindo sorrisos coquetes e uma nada sutil inclinação sobre a mesa para que ele pudesse ver com claridade seu amplo decote, Christiana se deu por vencida e dirigiu seus cuidados a outro de seus companheiros. Embora aquilo aliviasse a Anna mais do que se atrevia a admitir, tinha havido algo nessa interação que a escamava. Era possível que tivesse chegado a uma conclusão errônea? Talvez não tivesse nada a ver com ela. Possivelmente sir Arthur não tinha intenção de ser descortês, mas sim simplesmente era brusco, como acontecia com seu pai. Ou talvez tímido com as mulheres, como seu irmão Ewen?

Por mais que queria convencer-se de que essa era a questão, para assim esquecer-se dele, não podia fazê-lo. Ele antes não tinha sido acanhado. Melhor, parecia zangado, inclusive um pouco furioso. Como se ela o estivesse incomodando. Como um mosquito no verão ou um cachorrinho que te pisa nos calcanhares.

Certo, fosse ela quem se chocara contra ele, mas se tratava de um acidente. E estava claro que sua força era suficiente para agüentar o pequeno tranco de uma mulher. Pelo amor de Deus, se parecia capaz de agüentar o embate de uma marreta! Talvez a princípio Anna não fosse consciente de seu tamanho, mas agora sim. Apesar de sua postura relaxada e embora sua túnica de lã fosse folgada e avultada, esse homem tinha a compleição de uma rocha. Tudo nele eram músculos duros como o aço. Vá, mas se apenas se moveu um centímetro quando arremeteu contra ele. E quando a sustentou em seus braços sentiu tal sensação de segurança e confiança que… Como se nada pudesse lhe fazer dano se esse homem grande e poderoso a tinha junto de si. Até que a soltou, claro.

Arthur se afastou um pouco da mesa e se inclinou para dizer algo a seu irmão sir Dugald. Quando viu que caminhava para a porta, o coração de Anna deu um estranho salto. Ia embora. Ir-se! Mas se ainda não tinha escurecido. A festa duraria horas e horas. Não podia partir. Nem sequer tinha dançado ainda. Anna olhou para sua esquerda, viu Thomas, que mergulhou entre a multidão, e depois voltou a olhar para o jovem cavalheiro. Antes de se dar conta do que fazia já se dirigia para a porta com determinação. Não ia correndo, mas tampouco caminhando exatamente. Estava só uns passos da entrada onde tropeçara com ele, quando ela chegou. Não parecia contente em vê-la.

A expressão hostil de seu rosto fez que a jovem pensasse um momento, mas já não havia volta. Sempre gostara de ser direta com outros, embora normalmente isso não incluísse correr atrás de homens aos que não conhecia, pensou com um rubor de vergonha tardio. Não corria trás dele… exatamente. Era sua obrigação comprovar que todos os convidados passassem bem. Não era certo? E o que é pior, não podia tirar da cabeça o fato de que talvez o tivesse interpretado mal.

Anna sorriu, ignorando a expressão de seu rosto.

—Espero não ser eu a causa de que se vá tão cedo. —Se a sobrancelha que acabava de arquear representava algo, poderia dizer que o tinha surpreendido. Anna sorriu provocativamente e se explicou— Temia que tivessem que se ocupar dos hematomas provocados por minha estupidez anterior.

Arthur fez uma breve careta com a boca.

—Acredito que poderei me recuperar — disse secamente.

Senhor, era um demônio ainda mais formoso quando sorria. Sentiu essa mesma estranha revoada no estômago e a aceleração do pulso, só que o tendo tão perto era ainda pior. Toda a vida estivera rodeada de homens altos e musculosos, mas jamais tinha sido tão consciente da virilidade de um homem e de sua própria feminilidade. Desconcertava-a. Punha-a nervosa. Deslocava-a. Fazia que sentisse impulsos desconhecidos para ela. Tinha vontade de aproximar-se mais, de pôr a mão no peito e notar a força que se movia debaixo dele, de olhar seu rosto e memorizar cada um de seus duros traços, cada ruga, cada cicatriz. Era algo tão vergonhoso que parecia ridículo. Já tinha sentido atração por um homem antes, mas aquilo não se parecia absolutamente a nenhuma experiência anterior. Nada a ver com a estima que tinha a Roger, seu ex noivo. Era algo mais profundo. Mais intenso. Agarrava-a por dentro e a empurrava, atraindo-a para ele.

Ela esperava que dissesse algo. Estava claro que não ia facilitar as coisas.

—Então espero que não seja pela comida ou o espetáculo.

Negou com a cabeça.

—É um banquete estupendo, milady.

Desviou o olhar para a porta, dando a entender de maneira pouco sutil que desejava partir. Anna avançou até lhe gradear firmemente o passo.

—Não gostas de dançar, sir?

Ao ver que arqueava uma sobrancelha Anna se ruborizou, compreendendo quão direta soava a pergunta. Parecia como se quisesse que a convidasse pra dançar. O qual era certo, mas não era próprio de uma dama solicitá-lo tão descaradamente. Embora talvez isso fosse o que ele necessitava. Odiava pensar em alguém que permanecia alheio à diversão.

—Às vezes.

Ficou duvidando, e por um momento Anna pensou que pediria. Mas seguidamente seu olhar se pousou em um ponto atrás dela e ficou em tensão. Não teria advertido o brilho de frieza que adotavam seus olhos se não o estivesse observado com atenção. Voltou o olhar para ela, deixando-a passear por seu corpo de cima abaixo. Anna ficou sem fôlego. Jamais ninguém a tinha apreciado de uma maneira tão desavergonhada. Teria sido algo excitante, a não ser porque também estava isento de toda paixão. Era como se ela fosse um cavalo no mercado. E um dos não mais imponentes.

—Mas hoje não.

O sentido do dito não podia ser mais claro. Não queria dançar com ela. Não era que tivesse interpretado mal nem entendido mal. Não se tratava de que tivesse maneiras de guerreiro rude. A pontada que sentia por esse rechaço era surpreendentemente aguda por tratar-se de alguém a quem acabava de conhecer; surpreendentemente aguda por tratar-se de um homem que não teria que ter a interessado absolutamente.

Aquilo não deveria ser tão horrivelmente difícil. Mas ao estar ali, contemplando como as emoções sulcavam o rosto da moça, tão expressivas como um livro aberto, Arthur sentiu como se o retorcessem em um torniquete ou o abrissem em dois no cavalete de tortura. Não gostava de lhe fazer dano, a nenhuma mulher, corrigiu-se. Mas quando observou de que Lorn os observava, soube que tinha que pôr fim a aquilo. Fosse o que fosse. Não podia acreditar que tivesse chegado a pensar em dançar com a moça. Aquela amabilidade sincera e sua inocente expressão de gatinha causavam seu efeito. Mas o interesse de seu pai o havia devolvido à realidade de repente. Tinha a esperança de que seu grosseiro olhar servisse de cura contra qualquer ilusão romântica.

Tinha feito. Os olhos da moça se abriram e adotaram uma aparência de aflição que o fez sentir como um desastrado que acabara de pisar em sua branca e aveludada cauda (de gatinha).

—É obvio — disse Anna em voz baixa e com as bochechas rosadas pela vergonha — Sinto o ter incomodado.

Baixou o olhar e deu um passo para trás. Arthur voltou a sentir aquilo… A estranha compulsão que sentiu na noite da igreja. A incapacidade de deixá-la partir. Passou os dedos pelos cabelos, tentando lutar contra a necessidade de acalmar a repentina inquietação que bulia em seu interior. Não pôde conseguir.

«Ah, que diabos!», pensou ao tempo que esticava o braço.

—Esperes — disse agarrando-a para que não partisse.

Ao sentir o contato ela ficou em tensão, com as bochechas ainda avermelhadas, sem poder olhá-lo. Arthur a soltou. Quando viu que não dizia nada, Anna acabou elevando o queixo e voltando o rosto ligeiramente para ele. Teria desejado que a suave luz das velas ocultasse o tremor de seu queixo.

—Sim? —perguntou.

Mudaram um olhar e Arthur se amaldiçoou a si mesmo por ser tão estúpido. Que demônios pensava dizer? «Sinto-me adulado, mas jamais funcionaria. Estou aqui para destruir seu pai». Ou talvez: «Tenho medo de dançar contigo porque temo que descubram que sou o espião de Bruce que lhe salvou na igreja».

Ela o olhava com espera.

—Tenho que trabalhar — deixou escapar, sentindo-se como um imbecil. Normalmente não lhe escapava nada. E por que demônios dava explicações?

Sentia como o observava com seu agudo olhar e tinha a perturbadora suspeita de que era capaz de ver muito mais do que ele desejava.

—E nada mais — completou ela.

—Fica pouco tempo para o resto — disse encolhendo os ombros.

—Não permite aos cavalheiros nem um só dia de entretenimento e diversão? —perguntou Anna com o gesto torcido por um sorriso irônico.

Embora a reação dela fosse alegre, a de Arthur não foi.

—Não. Ao menos a mim. Não, tendo uma guerra no horizonte.

Ao ver o brilho alarmado que sulcou seus muito expressivos olhos azuis quase se arrependeu de ser tão honesto. Estava claro que a crua realidade da situação de seu pai não era algo no que ela queria pensar. Era possível que fosse tão ingênua ou que vivesse em seu mundo de fantasia? O seu era um mundo de celebrações e banquetes, instalado comodamente no seio de sua família, enquanto que além das portas do castelo reinava o caos da guerra?

Suas palavras cumpriram com o encargo que se propusera inicialmente. Quando Anna voltou a olhá-lo já não havia nela o mínimo sinal de interesse feminino. Olhava-o como se fosse qualquer outro de quão guerreiros tinha ido a servir a seu pai. Não notou quão diferente era seu olhar até que este desapareceu de seu rosto.

—Sua devoção pelo dever é digna de elogio. Estou segura de que meu pai é muito afortunado ao te ter a seu serviço.

Arthur ficou com vontade de rir. Se ela soubesse… Segurança seria quão único não traria para John de Lorn. Não era um cavalheiro. Simplesmente atuava como tal. Era um highlander. O único código pelo que vivia era a vitória. Matar ou morrer.

De repente, uma versão maior e mais cheia de sua irmã lady Mary apareceu a seu lado.

—Assim aqui está, querida. Procurei-te por toda parte.

—O que acontece, mãe?

O tom de preocupação na voz de Anna lhe incomodou. Não havia motivos para que se inquietasse.

—Os homens estão falando outra vez desse horrível Robert Bruce. —A ainda formosa mulher retorcia as mãos nervosamente — Seu pai está ficando furioso —continuou com uma voz em que refletia seu medo — Tem que fazer algo.

Anna murmurou entre dentes algo que soou parecido a «Pelos ossos de Santo Columba» e Arthur se deu conta de que tinha ouvido bem ao ver que sua mãe franzia o cenho.

—Não se preocupe —disse Anna lhe dando um golpezinho na mão de sua mãe — Já me encarrego.

Deu a sensação de que Anna se encarregava de cuidar de muitos assuntos. A mãe dirigiu um olhar a Arthur, parecendo se dar conta de que os tinha interrompido, e lhe ofereceu um sorriso a modo de desculpa.

—Sinto muito, senhor. Terão que esperar a próxima dança.

Não houve já sinal de rubor algum nas bochechas de Anna quando o olhou de soslaio.

—Não há dança —disse com firmeza — Sir Arthur já estava de saída.

Embora não havia nada descortês em sua voz, Arthur observou de que acabava de lhe dar permissão para ir. Anna seguiu a sua mãe através da multidão sem voltar a olhá-lo. Observou-a por mais tempo de que era devido, dizendo a si mesmo que teria que estar contente. Isso era o que ele queria. Assim tudo seria melhor. Mas não estava contente absolutamente. Teria dito se não soubesse o que lhe convinha, que o que sentia era arrependimento.

Horas depois, Anna batia na porta da câmara de seu pai. Este lhe pediu que entrasse, e ao ver que se tratava dela, despediu-se de sua guarda luchd-taighe8. Anna esperou a que os homens do clã partissem para entrar.

—Querias me ver, pai?

John MacDougall, lorde de Lorn, estava sentado a uma grande mesa de madeira e fez gestos para que ocupasse a cadeira que tinha de frente a si. Aquilo foi algo que Anna fez de boa vontade depois do cansaço da festa. Devia ser já perto da meia-noite. O servente pessoal de seu pai a tinha alcançado justo antes que se retirasse a seus aposentos, e apesar de que lhe custava manter os olhos abertos e de que lhe doíam todos os ossos do corpo, não lhe passou pela cabeça negar-se. Uma chamada de seu pai não podia ignorar-se. De modo que vestiu sobre a camisola uma capa forrada de veludo e se apressou a apresentar-se em sua câmara, perguntando-se por que queria vê-la à aquelas horas. Era possível que queria adulá-la, como Alan, por seus esforços para que a comemoração saísse bem.

—Há algo que eu gostaria que fizesse por mim — disse John de Lorn olhando-a com atenção.

Tentou não parecer decepcionada. Seu pai tinha muitas coisas na cabeça, muitas pessoas pelas quais preocupar-se para pensar no banquete. Já sabia que a apreciava; não necessitava que o dissesse. Teria que ter dado conta de que se a chamava a essas horas da noite seria por algo importante.

—É obvio —disse sem duvidar um instante — Querem que visite de novo a seu primo, o bispo de Argyll?

Seu pai negou com a cabeça ao tempo que um sorriso malicioso aparecia em seu rosto.

—Não, desta vez é outra coisa. —Fez uma pausa e lhe dirigiu um olhar de cumplicidade — Me dei conta antes que falava com um dos novos cavalheiros.

Anna mordeu o lábio com incerteza.

—Falei com muitos deles. Fiz algo que não devia? Pensei que gostarias que desse boas-vindas aos recém chegados.

Seu pai dissipou todos seus temores.

—Não fez nada mal. Justo antes que sua mãe te mandasse para me distrair com todas essas perguntas… —Franziu o cenho de maneira severa, mas ela simplesmente sorriu, sem incomodar-se por negar. Eram perguntas tolas, mas não pôde pensar em nada além de comida, assim estava curiosa — Vi que falava com um dos Campbell.

Apagou o sorriso. Assim que se tratava desse novo cavalheiro.

—Sir Arthur — informou, tentando que não quebrasse sua voz.

Mas de repente se sentiu incômoda ao suspeitar o que seu pai quereria que fizesse. Pode ser que não fosse capaz de brandir uma espada ou unir-se a seus irmãos no campo de batalha, mas Anna fazia o que podia por ajudar a pôr fim à guerra por outros meios, incluindo, em alguma ocasião, vigiar aos cavalheiros ou barões os quais ele não confiava. Não se tratava exatamente de espiar.

—Que opinião tem dele?

Não lhe surpreendeu a pergunta. Seu pai perguntava habitualmente por suas impressões a respeito dos visitantes ou dos novos soldados. A maioria dos líderes não se dignariam a perguntar a opinião de uma mulher, mas seu pai não era um homem comum. Acreditava no uso de qualquer ferramenta que estivesse ao seu dispor. Pensava que as mulheres eram mais perceptivas que os homens, de modo que se aproveitava dessa qualidade.

Anna encolheu os ombros levemente.

—Só mudamos algumas palavras. Parecia… —«Brusco. Frio. Distante», pensou. Mas acrescentou—Estar dedicado a suas obrigações.

Seu pai assentiu, como se estivesse de acordo nisso.

—Sim, é um cavalheiro capaz. Talvez não tão louvável como seu irmão, mas ainda assim um guerreiro consumado. Não houve nada que te chamasse a atenção?

Era consciente do escrutínio de seu pai e lutava por controlar a maré de calor que ameaçava subir a suas bochechas. Tinha lhe chamado a atenção que o cavalheiro era bonito e que seu corpo parecia feito de rochas, mas não pensava mencionar isso. Voltou a pensar na festa.

—Parecia preferir manter-se à margem de todos.

Os olhos lhe brilharam como se houvesse dito algo que lhe parecia interessante.

—A que te refere?

—Dava-me conta de que no banquete não parecia falar muito, nem sequer com seus irmãos. Não acredito nem que tenha escudeiro. Mal bebeu, não estava interessado em intimidades com nenhuma das moças nem em dançar, e partiu assim que pôde.

Seu pai franziu o cenho.

—Ao que parece fixaste-te muito nele.

Nessa ocasião Anna não pôde evitar que o rubor dominasse seu rosto.

—É possível —admitiu — Mas não importa.

—Mas como, por quê?

—Não acredito que goste muito de mim.

Seu pai não pôde ocultar que aquilo lhe divertia, o qual, dadas as circunstâncias, lhe pareceu um pouco insensível.

—De fato essa é a razão pela que tenhas te chamado.

—Porque não gosta de mim?

—Não, porque penso que melhor se trata do contrário e me pergunto por que se esforça tanto em esconder.

Anna pensou seriamente que seu pai se confundia em sua análise, mas não se incomodou em discutir. Como à maioria dos pais, parecia-lhe inconcebível que alguém rechaçasse a uma de suas amadas filhas.

—Talvez seja por essas velhas rixas —sugeriu — Seu pai morreu em uma batalha com nosso clã, não é certo?

Uma estranha careta sulcou o rosto do John MacDougall antes que fizesse um gesto com a mão para desprezar a idéia.

—Sim, faz muitos anos. Em parte poderia ser por isso, mas não acredito de tudo. Há algo nesse moço que me inquieta. Não poderia dizer o que é, mas eu gostaria que o vigiasse. Só por um tempo. Provavelmente seja uma tolice, mas agora que está terminando a trégua não quero me arriscar. Não obstante, tampouco posso me expor a uma ofensa. Os Campbell são guerreiros formidáveis e necessito tantos homens como posso conseguir.

O mundo lhe veio em cima. Seus piores temores fossem confirmados. Depois da conversa que tinham mantido horas atrás, quão último Anna queria era ter que vigiar a sir Arthur Campbell.

—Pai, deixou-me claro que…

—Não deixou claro nada — a interrompeu seu pai — Estás errada em relação aos sentimentos do Campbell para ti. —E logo acrescentou com uma voz mais benévola—: Não te estou pedindo que o seduza, só que o observe. Acreditava que queria ajudar, que podia contar contigo.

—E podes — se apressou a dizer, castigada.

John de Lorn entreabriu os olhos.

—É que ocorreu algo que não está me contando? Ele te tocou? Foi abusado?

—Não —insistiu — Lhe contei tudo. É obvio que farei o que me pedes. Simplesmente sugeria que talvez não seja tão fácil.

Qualquer dano que tivesse, empalidecia em comparação com sua promessa de fazer o quanto pudesse para ver o fim da guerra e uma vitória dos MacDougall. Embora isso significasse perseguir um homem que não queria que o perseguissem. Embora significasse que seu orgulho recebesse um severo golpe.

Seu pai sorriu.

—Eu acredito que será muito mais simples do que imagina.

Anna esperava que estivesse no certo, mas lhe dava a impressão de que tudo que concernia a Arthur Campbell não havia nada simples.


Capítulo 5


Arthur quase tinha conseguido. As portas estavam a menos de quinze metros. Um minuto mais e teria saído em busca de mais informação para Bruce.

—Sir Arthur!

Aquela voz feminina, doce e suave, fez que todos seus músculos ficassem tensos. «Outra vez não.» Calculou a distância até as portas e se perguntou se conseguiria chegar até elas correndo. Já podia ouvir os homens rindo baixo a seu redor quando aparecia a seu lado aquele rosto dolorosamente familiar, e o de doloroso dizia a sério, porque até os dentes lhe doíam.

Ela estava sorrindo. Sempre estava sorrindo. Por que demônios tinha que sorrir tanto? E por que esse sorriso tinha que lhe iluminar o rosto por completo, da suave curva de seus rosados lábios até o brilho que titilava em seus olhos azul intenso? Se fosse dado a desvairar como um bardo apaixonado a respeito de alusões poéticas à cor, teria dito que eram como safiras escuras. Mas tinha coisas muito mais importantes que fazer, de modo que eram simplesmente azul intenso.

«Safiras…»

Teve que olhá-la duas vezes. Deveria manter o olhar fixo em seu rosto, mas cometeu o engano de baixar os olhos e teve que suportar a dor. O insistente impulso que sentia entre as pernas lhe dava violentas sacudidas. Um estado ao que desgraçadamente começava a acostumar-se. Com somente lhe olhar o vestido ficava com vontade de ajoelhar-se e suplicar piedade ao Senhor. É que tentava acabar com ele?

Provavelmente sim. Cada vez lhe parecia mais difícil ignorar sua sedução e as insinuações cujo descaramento ia aumentando. Primeiro o buscava aqui fosse durante das refeições; logo insistiu em ajudar ao curandeiro quando recebeu um golpe no braço dias antes - se detraíra, maldita seja, ao vê-la pulular pelo jardim, rindo junto a suas irmãs— se apresentava no estábulo à mesma hora em que ele tinha previsto cavalgar pela manhã, e agora aquilo. Seu flamejante corpete amarelo lhe moldava o corpo por todos os lugares em que não deveria. Arthur se perguntava como era possível respirar. Ajustava-se tanto a seus seios e a sua fina cintura que parecia vir molhada do lago. Mas o pior de tudo era o baixo que ficava o decote sobre seu busto, sobre seu amplo, prodigiosamente amplo busto que lhe deixava a boca cheia de água.

Pelos pregos de Cristo, não podia afastar o olhar dessa pele suave e pálida que enchia, não, que se derramava sobre seu corpete. Maduros e exuberantes fossem as duas palavras que lhe vieram à mente. Mas isso nem sequer começava a descrever a perfeição de seus magníficos seios. Teria dado com gosto seu braço esquerdo por vê-los nus. E estava passando mal tentando não pensar no aspecto que teriam. Que gosto tinham, como se balançariam quando…

«Por todos os diabos.» Afastou o olhar bruscamente. Sob a armadura seu corpo estava em chamas. De desejo, certo. Mas também por um irracional estalo de cólera. Se essa mulher fosse sua a encerraria em seu quarto durante uma semana inteira por mostrar tal vestido em público. Depois de ter o arrancado a dentadas e depois queimá-lo. Não podia recordar a última vez que uma mulher tinha conseguido lhe pôr tão… desconcertado.

Anna, inconsciente dos violentos pensamentos que sacudiam Arthur, ergueu o olhar para olhá-lo com entusiasmo.

—Que sorte que tenha te pego a tempo — disse entre ofegos para tentar recuperar o fôlego.

Esses ofegos lhe faziam pensar em dar uma queda no feno com ela. Deus, tudo em o fazia pensar nisso… O mais provável é que tivesse saído correndo da torre ao lhe ver sair do estábulo. Não era a primeira vez que o fazia. Errou lhe dando atenção na festa da outra noite. Um equívoco fatídico. Após isso ela não tinha feito mais que redobrar seus esforços. Arthur tinha passado a semana vivendo no limite, sem saber nunca quando apareceria. Parecia que, fosse onde fosse, ali estava ela. Seus irmãos e o resto dos homens pensavam que aquilo era para morrer de rir. Ele… nem tanto.

Não era tão imune a seus encantos como gostaria. Parecia difícil que não gostasse da moça. Era tão… natural. Como a primeira flor da primavera.

Amaldiçoou seus miolos. Que demônios acontecia? Começava a soar como um maldito bardo.

—Há algo que eu gostaria de falar contigo, se tiveres um momento.

Tentou sorrir, mas lhe chiavam os dentes, de modo que teve a sensação de que saiu uma careta.

—Sairei a cavalgar todo o dia. Terá que esperar.

Em Anna lhe apagou o sorriso. Arthur respirou fundo e disse a si mesmo que não voltaria a deixar-se apanhar por essa sensação. Mas o fez. Sentiu-se como um imbecil. Assim tinha se sentido durante toda semana. Ao que parecia nunca seria fácil essa sensação de pisotear a cauda aveludada de gatinho.

—É obvio. Sinto muito - disse Anna piscando com tal inocência que Arthur sentiu como se as garras desse gatinho lhe cravassem no peito — Não queria lhes importunar, só faço porque é importante.

—Vamos, Arthur —disse seu irmão incapaz de conter o sorriso — A dama diz que te necessita. Cavalgará conosco outro dia.

Provavelmente o que deveria fazer era matar a seu irmão. Dugald o fazia de propósito. Encurralava-o em um canto e fazia impossível a escapada, simplesmente pelo prazer de o ver sofrer. A atitude de seu irmão para as filhas de Lorn era mais condescendente do num banquete. Mas ele sabia que Dugald, o muito filho de cadela, também criava de tal modo pelo desfrute que obtinha vendo como Arthur se retorcia por dentro, já que supunha quão incômodo devia sentir-se ao atrair a atenção da moça, algo que nessa altura parecia óbvio.

Aquela se estava convertendo na semana mais longa de sua vida. Era preferível passar outra vez pelas duas semanas de adestramento guerreiro de MacLeod, algo não em vão chamado «Inferno», que agüentar outro dia mais desse sofrimento.

Os olhos de Anna recuperaram o brilho e um sorriso voltou a aparecer sobre seu rosto.

—Estais seguro de que não incomodo nada? —Não lhe deu a oportunidade de mostrar-se em desacordo - Seria fantástico. Aonde iam?

—Não é nada importante — mentiu Arthur, tentando conter a raiva. Era a primeira oportunidade que tinha de fiscalizar o terreno da borda norte do lago Etive. Agora teria que encontrar outra desculpa. Não era a primeira vez que a moça se interpunha em sua missão durante da última semana. Tinha conseguido seguir a vários sacerdotes e manter uma estreita vigilância sobre a capela do castelo e o priorado próximo, mas a maior parte do tempo a tinha passado tentando esquivar-se de Anna.

Aquilo tinha que acabar.

—Que te divirta, irmãozinho —disse Dugald sem preocupar em ocultar o tom jocoso de sua voz — Nos vemos na volta.

Arthur contemplou sua partida. Normalmente não sentia prazer em procurar formas mesquinhas de vingança fraterna, mas começava a reconsiderar algumas.

Desmontou do cavalo e se dispôs a conduzir aos estábulos o rápido e ágil hobelar9 irlandês, um cavalo que tinha dado nome aos cavaleiros hobelar, de armadura leve. Anna o acompanhou gostosamente com um caminhar alegre. Arthur cuidava de manter a distância entre ambos. A moça era dada a lhe tocar o braço enquanto falava, e cada vez que o fazia, ele parecia sair-se de sua própria pele. Era um mecanismo de defesa, mas não se envergonhava disso. A essa altura estava em jogo sua própria sobrevivência.

Tinham-no adestrado para fazer parte dos melhores guerreiros de elite de Escócia. Uma máquina secreta e mortal que faria todo o necessário para proteger sua identidade. Podia misturar-se entre as linhas inimigas, mover-se sigilosamente pelo campo do adversário, acabar com uma dezena de soldados com uma só mão e matar a um homem sem fazer um só ruído. Mas havia uma coisa que ninguém tinha ensinado a fazer: escapulir de uma moça muito entusiasta.

Não entendia. A maioria das mulheres não confiavam nele. Pressentiam algo que não gostavam de tudo. Sentiam o perigo. Mas ela não. Olhava-o como se fosse uma pessoa «normal». Algo que parecia muito perturbador.

Mantinha o olhar à frente para não ver como o sol realçava as mechas douradas de seus longos e sedosos cabelos. Ou reparar na suavidade de sua pele. Ou perceber seu incrível aroma. Certamente a muito pícara se banhava com pétalas de rosa. Maldição. Melhor seria que não imaginasse banhando-se. Porque se pensasse em como se banhava teria que pensar obrigatoriamente em seu corpo nu e o seguinte seriam seus seios. Mas não acabaria aí a coisa. Seu olhar recaiu sobre seu busto, ali onde tinha descansado muitas vezes durante da passada semana. Sobre essas suaves e cremosas turgidez a ponto de estalar e sair do corpete. Pensaria em agarrar esses espetaculares seios com suas mãos, levar até a boca e lambê-los. «Por todos os diabos.» Arthur notou que o calor invadia sua virilha e afastou o olhar de repente.

—Espero que não vos importe muito não poder cavalgar — se atreveu a dizer Anna, sem dar muita importância.

Arthur encolheu os ombros e murmurou algo incompreensível. Ela não pareceu advertir sua falta de entusiasmo. Não saberia precisar se ignorava de propósito seu óbvio desinteresse ou simplesmente era tão feliz e tinha tão bom caráter que não notava isso.

Arthur entregou o cavalo a uma dos cavalariços e se voltou para olhá-la.

—O que é que querias me falar?

Anna enrugou o sobrecenho.

—Vocês não gostariam de entrar? Posso fazer que um dos serventes nos traga algo frio para beber.

—Aqui está bem — disse Arthur bruscamente.

«Mecanismos defensivos», recordou a si mesmo. A essa hora do dia o salão estaria tranqüilo. Um jardim repleto de gente indo de um lugar a outro era um lugar mais seguro. Graças a Deus, MacGregor e MacSorley não estavam ali para vê-lo. De ser assim, teria história para momento. Ao que parecia, sim que tinha uma veia de covardia em seu interior. Teria que contar a seu irmão Neil na próxima vez que o visse.

Anna franziu os lábios em uma tentativa de recriminação, mas ficou em um exercício pobre que só conseguiu lhe enrugar o nariz. E de uma maneira adorável, maldita seja.

—Muito bem —disse sem mostrar muito entusiasmo — Seu irmão mencionou que és bom com a lança.

Dugald não sabia nem da missa um terço. Arthur era cauteloso na hora de mostrar suas habilidades, já que não queria que o usassem contra seus amigos. Quando estava com seus inimigos era bom, mas nem tanto para chamar muito a atenção. Quanto a suas qualidades para reconhecer o terreno, tinha-as mostrado muito menos. Dugald ainda gostava de lhe recordar essas artes insuspeitas que fazia quando era um guri. Neil era o único que sabia que não só não tinham desaparecido, mas sim eram mais apuradas.

—E o que tem que ver minha habilidade com a lança em tudo isto? —disse com uma voz em que se entrevia sua impaciência.

—pensei que pudesse me ajudar a organizar as provas de habilidades para as justas de amanhã.

Arthur franziu o cenho.

—Que justas?

—Como este ano não pudemos fazer os Torneios das Highlands, pareceu-me que seria divertido pôr aos homens uma série de provas e desafios. Podem competir uns contra outros em lugar de contra outros clãs. A meu pai parece que é uma idéia estupenda.

Arthur ficou olhando-a, atônito.

—Isso é o que era tão importante? —Era por isso pelo que o privava de montar a cavalo? disse. Por alguns torneios? Diversão? Lutou por controlar seu temperamento, mas notava como ia as mãos. Maldita seja, ele não tinha mau caráter. E entretanto estava apertando os punhos. Essa garotinha vivia em um mundo de fantasia, sem idéia de quão precária era a situação de seu pai — Sabem por que não organizaram os torneios este ano?

Anna entrecerrou os olhos, sem perder um ápice do tom condescendente de sua voz.

—É obvio que sei. Pela guerra.

—E ainda assim idealizas jogos quando os homens tentam preparar-se para a batalha.

Arthur advertiu o brilho de seu olhar. Genial. Esperava que estivesse zangada. Pode ser que não queria pensar na guerra, mas tampouco podia ignorá-la. Talvez se desse conta do ridículo que era tudo aquilo. Igual era ridículo que ele se fixasse na longitude de suas pestanas ou no delicado arco que formavam suas sobrancelhas.

—trata-se de treinamento. Os jogos são somente uma forma de animá-los. A competição cairá bem, e além disso será divertido.

—As táticas de batalha não têm nada de divertido — disse Arthur, zangado.

—Talvez não — concedeu ela com voz tímida, dando a impressão de ver-se afetada pelo tom em que lhe falava. Então voltou a fazê-lo. Tocou-o. Aquela suave pressão em seu braço fez que cada um dos nervos de Arthur se expandisse como em uma das explosões de William Gordon, o Templario. Seus olhares se cruzaram e percebeu que o compreendia. Mas não queria essa compreensão nem a necessitava. Não era por ele que devia preocupar-se, mas sim por seu pai e outros membros do clã — Mas em ocasiões a guerra não se apóia só em táticas de batalha. O que acontece o ânimo dos homens? É que isso não é importante? —Arthur não disse nada. Não é que se mostrasse em desacordo, mas tampouco estava totalmente de acordo nisso. Advertiu que seus olhos escrutinavam a expressão de seu rosto — Se não queres me ajudar, encontrarei a outro, sem problemas.

Apertou a mandíbula, consciente de que deveria negar-se. Permitir que torturasse a qualquer outro pobre idiota. Mas essa idéia gostava menos ainda. Assim que encontrou a si mesmo perguntando entre dentes: —O que queres que faça?

O rosto de Anna se iluminou e a força que desprendia foi para ele como um soco no peito. Esteve a ponto de cambalear-se. Enquanto ouvia como sua excitada voz explicava o que necessitava quefizesse, Arthur compreendeu que teria que ter saído correndo quando teve oportunidade de fazê-lo.

O dia dos «Torneios» amanheceu com um sol radiante. Um bom presságio para os próprios jogos, como logo se demonstraria. Anna pensou com certo ar de suficiência que tinha acertado. Independentemente do que ele opinasse, aquilo era bom para os homens. No momento os jogos tinham resultado um êxito clamoroso. Não só para fidalgos e cavalheiros, mas também para os residentes no castelo e as pessoas da vila. Centenas de homens do clã seguiram os progressos dos guerreiros nos desafios de força e destreza, animando a seus favoritos, já perdessem ou ganhassem.

Pela manhã os espectadores se reuniram junto aos estaleiros que albergavam os navios de seu pai para ver as regatas e os concursos de natação na baía que havia depois do castelo. Depois, como prelúdio a um esplêndido banquete ao meio dia, transladaram-se ao barmkin para assistir ao concurso de espadas e arco e flecha, e nesse momento estavam todos agrupados entre as rochas e as áreas gramadas que cobriam o montículo situado logo depois das portas do castelo para presenciar o evento final: tiro com lança.

—Aí está seu cavalheiro — disse Mary zombeteiramente enquanto assinalava ao grupo de guerreiros que faziam fila a seus pés.

Anna estremeceu. Se Mary havia percebido era porque todos o tinham feito. A bendita inconsciência de sua irmã estava acostumada ser de tal magnitude que desafiava a regra de seu pai segundo a qual as mulheres eram mais perceptivas que os homens.

—Não é meu cavalheiro — disse sarcasticamente.

E com muita veemência, a julgar pelo sorriso de sua irmã mais velha.

—Pois dá toda a impressão de que quer que seja. Mas eu te daria um pequeno conselho de irmã mais velha: talvez tenhas que ser um pouco mais… hum, sutil.

Anna percebeu que sua irmã tentava conter a risada. Franziu os lábios. Isso já tinha tentado. E não tinha funcionado. Ergueu o queixo, fazendo como que não fizesse a menor idéia do que se referia sua irmã.

—Não faço mais que tentar me comportar como uma boa anfitriã. Ser simpática com todos os cavalheiros que responderam à chamada de papai.

Aquilo fez que suas duas irmãs estalassem em um ataque de risada histérica.

—Nossa! Pois espero que não seja igual de simpática com todos eles —disse Juliana — Você viu o vestido que colocastes ontem? —disse erguendo a cabeça para dirigir-se a Mary e evitando a Anna, que estava sentada entre ambas sobre uma manta xadrez escocesa — Pelo menos era de cinco anos atrás. Nem sequer Marion teria entrado — acrescentou, referindo-se a sua sobrinha de doze anos.

—A mãe se zangou muito —assentiu Mary com uns olhos que brilhavam maliciosamente — Tinha que ter visto o rosto que pôs quando Anna apareceu para o almoço. Não a tinha visto tão zangada desde que pai ficou doente.

Ao menos aquela humilhação serviu para algo. Foi maravilhoso comprovar que sua mãe deixava de lado suas preocupações para repreendê-la, embora fosse somente por um momento. Deus sabia que nada de bom conseguiu, além disso. Pelo interesse que sir Arthur demonstrara no vestido, poderia ter tido posto um saco de estopa.

Sabia que deveria envergonhar-se por rebaixar-se à mesquinharia de colocar um vestido indecente para chamar sua atenção. Mas em momentos desesperados, era preciso adotar medidas desesperadas. E depois de uma semana de se fazer de tola e de ir trás de um homem que não queria que ninguém fosse atrás dele, Anna tinha chegado ao limite de suas capacidades. Sir Arthur Campbell seguia sendo virtualmente o mesmo mistério da primeira vez que tropeçou com ele. Sabia que se tratava de um cavalheiro capaz, concentrado em suas obrigações e que era introspectivo, mas tudo isso já sabia antes. Era impossível desentranhar o que pensava esse homem. Acreditava inclusive que era impossível estar no mesmo aposento que ele. Inventar razões para permanecer a seu lado não fosse nada fácil, e a Anna estava cada vez mais frustrante seus esforços para tê-lo vigiado. Nenhum outro homem tinha dado tantos problemas. Certamente porque nenhum deles tentava evitá-la tanto.

Até então, a menos que responder com monossílabos e ser pouco comunicativo fossem razões para suspeita, não tinha descoberto nada digno de desconfiança. Provavelmente era o homem mais difícil com quem tinha tentado conversar. Sir Arthur era o professor das respostas curtas, por não falar de que se mostrava tão suscetível e irritável como um urso que acabara de sair da hibernação. Não é que não desse crédito ao que dizia seu pai, mas se essas eram as indicações de seu interesse por ela, não queria nem imaginar como seria quando alguém não lhe interessasse.

No dia anterior, entretanto, Anna fez um importante descobrimento. Tinha averiguado como o fazer falar: zangando-o. Talvez tivesse falhado em seu enfoque da questão a princípio.

Entreabriu os olhos para olhar ao enigmático cavalheiro, que nesse momento se transladava junto ao resto dos participantes para o outro lado do campo. Apesar de que não fazia nada suspeito, Anna não podia tirar da cabeça a idéia de que ocultava algo. Não obstante, não descobrira se isso devia a seu orgulho ferido ou aos poderes de sua intuição feminina. O que estava claro é que havia algo diferente nele.

—Tenho que admitir que estou surpresa por sua simpatia com o cavalheiro —disse Juliana tentando conter a risada depois do longo momento de gargalhadas que acabava de compartilhar com Mary — É visível o quão bonito é, mas normalmente evita aos homens desse tipo.

Aos guerreiros, queria dizer sua irmã. Tinha razão.

—Seu irmão é muito mais bonito — interpôs Mary com o olhar cravado na impressionante figura de sir Dugald.

Anna não estava de acordo, mas não pensava em dar mais munição para que zombassem dela.

—E sir Arthur não tem tanta fama entre as mulheres, nem de longe — assinalou Juliana a modo de advertência para Mary.

Falava por experiência. Fazia anos que ficara viúva, mas seu matrimônio nunca fosse feliz. Seu marido, sir Godfrey de Clare, um barão inglês, culpava-a por sua mútua incapacidade para gerar a um herdeiro e, segundo sua irmã, levantava cada saia que encontrava para tentar demonstrar.

Anna desejava que o próximo marido de sua irmã fosse alguém a quem esta pudesse amar. Embora em geral o amor não tivesse nada a ver com a maneira como se começavam os matrimônios, elas eram mais afortunadas a este respeito que a maioria. Três filhas em idade de desposar eram um tesouro para qualquer nobre que queria aumentar suas terras e reforçar suas alianças, mas seu pai era um homem razoável. Levava em consideração seus desejos na hora de lhes encontrar possíveis maridos.

Juliana quis casar-se com sir Godfrey, ao menos no princípio. Igual Anna quis casar-se com Roger. Sir Roger de Umfraville era o terceiro filho do irmão mais novo do velho conde de Angus. Conheceram-se vários anos atrás, em certa ocasião em que Anna acompanhou a seu pai ao Parlamento no castelo do Stirling. Aquele jovem e tranqüilo estudante de encantador sorriso e engenhoso senso de humor a agradou desde o começo. Roger, educado em Cambridge, era considerado um homem erudito e um político prometedor. Aborrecia os derramamentos de sangue. Como terceiro filho, deveria permanecer a salvo da guerra, mas quando morreram seus dois irmãos mais velhos, um em Falkirk e o outro por causa de febres, Roger sentiu a necessidade de brandir a espada. Anna ficou de coração partido quando uma ferida de aparência insignificante que tinha sofrido no Methven se infectou e lhe provocou a morte.

Mary, ao contrário que suas irmãs, ainda tinha que decidir-se por um marido. Anna suspeitava que se seu pai não fazia nenhuma pressão, porque esperava obter uma valiosa aliança, se possível inglesa, em muda de sua formosa irmã. Uma vez que submetessem ao Bruce, seu pai estaria em posição de buscar maridos para todas elas.

O coração lhe encolheu. «Quando a guerra acabar.»

—Eu acreditava que pai tinha pensado acertar um matrimônio com sir Thomas ou com algum desses bonitos e formais barões ingleses quando o rei Hood dobre os joelhos — disse sua irmã.

—Me acredite, Juliana, isto não tem nada que ver com matrimônio. Se nem sequer o conheço! —disse Anna com sinceridade.

Atraía-lhe, inclusive se via intrigada por sua indiferença de um modo perverso, mas um guerreiro highlander não era o tipo de marido que ela procurava. Uma vida em paz e tranqüila, um pai que chegasse a conhecer seus filhos, isso era o que ela queria.

Mas por que o rosto do Thomas McNab lhe parecia agora tão… efeminado? «Boiola», tinha-lhe chamado Alan. Teve que morder o lábio e estar quase de acordo com ele.

Tinha a tentação de explicar qual era a verdadeira razão de tudo aquilo, mas seu pai preferia que as tarefas que lhe encomendava ficassem entre eles dois. Certamente para que não chegassem aos ouvidos de sua mãe. Não podia estar segura de que se suas irmãs acreditavam as razões que tinha dado ou simplesmente deixavam de se meter com ela porque a prova estava a ponto de começar, mas agradeceu que voltassem seus olhos para o campo que tinham a seus pés. O lugar que ocupavam na borda de uma ladeira lhes oferecia uma perspectiva invejável de toda a palestra.

Foi idéia de sir Arthur de que os participantes não só jogassem as lanças a uma variada gama de objetivos, mas sim o fizessem cavalgando em galope e vestindo a armadura. Arthur, fazendo ornamento de seu aspecto seco e de sua praticidade, tinha-a ajudado a organizar os diferentes alvos de maneira rápida e eficiente. Anna tinha a sensação de que, em parte, seus esforços estavam dirigidos a afastá-la de si quanto antes. Albergava a esperança de passar todo o dia fazendo aquilo, mas em algumas horas já tinham terminado. Ele arrumou para receber ajuda de outros guerreiros mercenários, certamente para evitar estar a sós com ela.

Suspirou e voltou de novo seus olhos ao campo de tiro. Um por um, os homens cavalgavam suas montarias ao galope pelo atalho e jogavam as lanças em fardos de palha atados a um poste. Se aquilo fossem Torneios das Highlands verdadeiros, a prova consistiria tanto em lançamento como em cruzamento de lanças. Para este último se usavam lanças mais largas e o cavaleiro a colocava sob o braço à maneira das justas.

O desafio era mais difícil do que parecia, como mostravam as muitas lanças que não acertaram no alvo ou ficavam quebradas. Mas vários dos participantes eram muito bons, entre eles seu irmão Alan. Quando sua lança alcançou com precisão o centro do alvo, Anna cantou vitória junto a suas irmãs. Somente Alexander MacNaughton, o guardião do castelo real de Frechelan no lago Awe, fez tão bem como ele.

Sir Arthur pôs seu corcel em posição de saída e Anna se surpreendeu a si mesma aproximando-se mais a borda das rochas. Igual ao resto dos participantes levava um elmo de aço, a cota de malha e o tabardo bordado com seu brasão combinando com o escudo. Todos os brasões dos Campbell apresentavam o gironeado10 de oito com pele de marta e zibelina, o qual consistia basicamente em triângulos alternados entre negros e dourados, mas o seu estava personalizado com um urso no centro, que sem dúvida fazia referência à palavra gaélica artos, da qual derivava seu nome.

Sustentou a lança com a mão esquerda, as rédeas com a direita e começou a avançar. Sendo canhoto estaria em desvantagem, já que ao contrário do resto dos participantes ele teria que jogá-la por cima de seu próprio corpo para alcançar o alvo.

O pulso de Anna se acelerou à medida que fazia seu cavalo andar. Entusiasta amazona como era, se deu conta no momento de que Arthur era um formidável cavaleiro. Movia-se com uma soltura excepcional, com força e potência, como se ele e a arreios fossem um.

Aproximou-se do objetivo.

No momento em que levantou a arma sem duvidar um instante com um suave movimento para o fardo de palha, Anna cortou a respiração. Alcançou seu objetivo com um golpe contundente que ficou a escassos centímetros debaixo do centro do alvo. O fôlego de Anna se liberou em um grito de excitação que se uniu aos gritos do resto. Era um lançamento excelente. Não tão bom como o de seu irmão Alan ou o do MacNaughton, mas ainda estava na primeira tentativa.

A palestra de competidores ia diminuindo a cada rodada. Não obstante, até a terceira, o resultado seguia sendo o mesmo. Embora soubesse que não havia justificação, Anna se sentiu um tanto decepcionada. Por alguma razão esperava que Arthur ganhasse. Era um desejo estúpido e se apoiava tão somente em uma hipótese. Tinha desempenhado um grande papel ficando terceiro, atrás do MacNaughton e de seu irmão. Mas parecia estranho. Parecia perder sempre pela mesma distância cada vez, a uns poucos centímetros de onde acertavam MacNaughton ou seu irmão.

Os homens tiraram o elmo e entregaram seus arreios aos cavalariços. Sir Arthur parecia ter mais vontade de seguir os passos de seu cavalo para o estábulo que de permanecer ali e aceitar as felicitações da multidão.

Anna se apressou a ficar em pé, com vontade de sair correndo e apanhá-lo antes que pudesse fugir. Que tal se insistisse em que os melhores da competição se sentassem essa noite junto a eles à mesa principal para jantar? É possível que isso lhe desgostasse o suficiente para tirar o menos um par de frases. Ficou olhando Mary, que se tomava todo o tempo do mundo para levantar-se da manta.

—Aonde vai com tanta pressa?

—Eu gostaria de felicitar Alan, a ti não? —disse com as bochechas acaloradas.

Anna seguiu seu caminho pelo atalho rochoso na borda do desfiladeiro, tentando não olhar para baixo, ao mesmo tempo que pedia silenciosamente à multidão de espectadores que baixassem a colina com mais rapidez.

—Está segura de que não é ao jovem Campbell a quem quer felicitar, Annie querida? —provocou-a Juliana vindo atrás — Não olhe agora —sussurrou, apesar de que com a gritaria da multidão era completamente desnecessário— mas acredito que está te olhando.

É obvio que Anna olhou. Girou seu ombro esquerdo e baixou o olhar. Ficou sem fôlego. Juliana tinha razão. Olhava-a fixamente. Seus olhos tiveram uma súbita topada que repercutiu por todo seu corpo como uma terrível comoção. Era a primeira vez que não a olhava com indiferença. Em realidade, parecia que tivesse medo de algo.

Tão ocupada estava olhando-o que não se fixava em seus próprios passos.

—Cuidado, Anna! —gritou Mary.

Mas já era muito tarde. Tropeçou em uma rocha. Dobrou o tornozelo e perdeu o equilíbrio, algo que mesmo na melhor das circunstâncias não teria sido nada bom. Ao ver-se cair de costas, deu um passo para trás para tentar recompor-se, o qual teria sucesso, a não ser porque estava a bordo de um escarpado e as rochas se desprenderam sob seus pés.

—Anna! —gritou Mary uma vez que tentava alcançá-la.

«OH, Deus.» Durante um horrível instante, o tempo pareceu deter-se enquanto ela permanecia suspensa no ar. Então começou sua queda.

Pôde apreciar as horrorizadas caras de suas irmãs dançando por cima dela enquanto a inércia seguia impulsionando-a para trás. Uma sonora rajada de ar sossegou os gritos da multidão e por um momento se produziu um silêncio inquietante, como se estivesse em um estranho túnel. Caiu três metros. Cinco. Não havia tempo para mover o corpo e procurar cair de pé. Anna se preparou para impactar diretamente contra o chão. Mas não o fez. Tentou recuperar o fôlego ao se dar conta de que não estava estirada no chão com todos os ossos quebrados e os membros rasgados. Não, pois ao abrir os olhos se encontrou com o belo rosto de sir Arthur Campbell. Céu santo, tinha conseguido agarrá-la! Mas como? Como era possível que tivesse chegado ali tão rápido?

—Estás bem?

Assentiu, já que não podia pronunciar nenhuma palavra. Não tinha ficado muda pelo medo à queda, mas sim por outra coisa. Sua voz. O olhar daqueles incríveis olhos. Aquilo não era indiferença. Uma vez quebrada pela primeira vez sua impassível fachada, a consciência de seus sentimentos fez estremecer todo seu corpo. Talvez seu pai não estivesse errado, depois de tudo.


Capútulo 6


Arthur respirou profundamente e deixou que seus pulmões se enchessem com aquele ar de aroma tão acre. A liberdade, por mais que emprestasse a bosta de vaca, seguia sendo de doce aroma. Levava cinco dias longe do castelo, patrulhando as fronteiras orientais dos domínios de Lorn, em seu caso reconhecendo o terreno de maneira sub-repticiamente, e agora, por cortesia do bom frade, tinha conseguido dois dias mais. Em outras palavras, que desfrutaria de uma semana de liberdade longe daquela feiticeira de olhos azuis e cabelos de cor mel que o tinha atormentado com sua inocente sedução até não suportar mais.

Até que Anna caiu, e ele a agarrou, não soube que tinha que partir dali quanto antes. Havia muitas possibilidades de que descobrissem seu plano. Não se falava de outra coisa no castelo. Inclusive aquele feto do demônio de Lorn pensou que fazia uma honra insistindo em que lhes acompanhasse aquela noite sentado à mesa dos senhores do castelo. Qualquer um diria que estava comendo as unhas, porque isso era quão único saboreava. Teve que fazer uso de todas suas artes de farsa para mascarar o ódio que sentia durante o longo jantar. Dava a impressão de que aquele filho de cadela desumano tinha uma debilidade: suas filhas. Ao que parecia, inclusive ao diabo havia coisas que lhe importavam. Arthur advertiu o medo que emanava dos olhos de Lorn ao ouvir o relato do tropeço de Anna na ladeira da colina, mostrando uma gratidão que se via de tudo sincera.

Embora Lorn aceitou sua versão dos fatos, Anna MacDougall não fosse tão fácil de enganar. Era consciente de que não tragava essa explicação de «a sorte de estar no lugar apropriado quando ela caiu». Essa moça era muito intuitiva, o qual significava que era perigosa. E o último que precisava era que Dugald ou, pior ainda, Lorn começassem a fazer perguntas.

Grande confusão! Sua má sorte ia aumentando. Primeiro a moça que tinha resgatado, a única mulher que podia desmascará-lo, era a filha do homem ao que pretendia aniquilar. Depois, Deus sabia por que motivos, a garota se enrabichara por ele. E logo para piorar tudo, ela tropeçava em um escarpado, lhe obrigando a trair essas habilidades que poderiam chamar mais a atenção sobre ele ainda e o convertia no último dos heróis dos MacDougall, por não falar da nova fonte de divertimento oferecida aos homens. Eram incontáveis as vezes que no transcurso da viagem algum deles subia a uma rocha e fazia como que caía para gritar dramaticamente com uma voz aguda: «me agarre, sir Arthur!».

Para morrer de risada. Quase sentia falta do MacSorley.

Os «Torneios» em si não resultaram uma perda de tempo tão grande como ele imaginava. A moça estava no certo: a competição fosse boa para avivar o ânimo dos participantes. E mais, tinha aprendido bastante da respeito das habilidades dos soldados inimigos e poderia entregar essa informação a Bruce. Não obstante, consciente de que tinha que ter muita cautela com a moça, ou melhor ainda, afastar-se dela quanto pudesse, aproveitou a primeira ocasião que se apresentou para partir. Se aquilo parecia em uma oportunidade de explorar as terras de Lorn para Bruce, melhor ainda.

Precisava centrar-se na missão. Apesar de ser um dos guerreiros de elite melhor treinados do país e de que estava no meio da missão mais importante de sua vida, às vezes parecia estar atuando em uma farsa para jovenzinhas. Jamais antes se vira em tais apuros. Essa era a razão pela qual gostava de trabalhar sozinho. Do exterior. Infiltrar-se parecia muito pessoal. Muito próximo.

Aquela rajada de boa sorte continuou quando, de retorno ao castelo junto a seus irmãos e ao resto dos homens que formavam a patrulha, a maior parte dos membros dos MacNab e os MacNaughton, encontraram-se com frei John nas cercanias de Tyndrun. O bom frade vinha do Sant Andrew e percorria Escócia atravessando as terras de Lorn, caminho da ilha de Lismore, uma pequena e estreita ilha junto à costa, que servia como assentamento tradicional ao bispo do Argyll, que, curiosamente, era um MacDougall e além parente próximo de Lorn.

Como suspeitava de que fazia tempo que os MacDougall passavam informação através das Igrejas, ofereceu-se voluntário para escoltar ao frade até o Oban, bem ao sul do castelo, onde poderia tomar um bote. Arthur insistiu em que, de todos os modos, ele ia nessa mesma direção. O frade cavalgaria atrás dele. Embora viajariam a um passo muito mais lento que o resto, tampouco tinha pressa alguma por voltar. Ao dizer isto, ouviu várias risadinhas a suas costas. Arthur se convenceu mais ainda de que o frade tramava algo ao ver que tentava negar-se. Seria possível que tivesse descoberto a fonte das mensagens de MacDougall?

Franziu o cenho. O único ponto ruim foi que no último momento Dugald decidiu unir-se a eles. Provavelmente para lhe torturar até a morte com toda esse palavrório do concurso de lanças.

—Se tivesse pontuado um pouco mais alto e soltado o pulso como te ensinei, muito possivelmente teria ganho.

Arthur apertou os dentes e manteve o olhar fixo no atalho que tinha ante si.

—Fiz o melhor que pude — mentiu, sem saber por que as tentativas do Dugald de melhorar suas destrezas lhe crispavam tanto.

Poderia ter superado a qualquer um se quisesse. Mas preservar sua identidade era quão único importava. Já tinha «perdido» uma infinidade de vezes. Não sabia que demônios lhe ocorria ultimamente. Estava mais claro que a água que não lhe importava um nada impressionar às moças, a nenhuma delas em particular. O orgulho era algo que podia acabar com ele.

—E não bastou para que ganhasse — assinalou Dugald, se por acaso tinha esquecido.

Não o tinha feito.

—A seguinte igreja está cruzando o rio — disse o frade, mudando de tema por sorte.

Acabavam de atravessar Ben Cruachan, as montanhas mais altas do Argyll, pelo estreito e íngreme atalho do Brander ou Brannraidh: lugar de emboscada. Um nome muito apropriado, pensou. Ante eles se estendia o relativamente plano gramado da borda sul do lago Etive.

—Referem-se a Killespickerill? —perguntou Arthur.

Aquela ancestral igreja de Taynuilt dera abrigo ao bispo de Argyll.

—Ah, conhecem-na?

Arthur e Dugald mudaram um olhar. Obviamente o bom frade não estava familiarizado com a história entre os Campbell e os MacDougall.

—Um pouco — disse, soturnamente.

O pequeno povoado de Taynuilt estava situado num lugar chave entre o lago Etive e o rio Awe, que estavam unidos por correntes de águas subterrâneas de cinco quilômetros. Eram terras de Lorn, mas se achavam muito perto das dos Campbell. Quer dizer, das que fossem terras dos Campbell, pensou Arthur apertando os dentes.

—Se querem chegar ao Oban ao anoitecer, não deveríamos permanecer aqui muito tempo. Ainda ficam ao menos vinte quilômetros para chegar.

Nesse passo demorariam outros dois dias. Parecia que visitavam cada uma das Igrejas entre o Tyndrum e o lago Etive. Não é que Arthur se queixasse. Aquilo o brindava com mais oportunidades de inspecionar a zona. Quando Bruce e o resto dos homens partissem rumo oeste para o Dunstaffnage para enfrentar-se ao Lorn, teriam que passar por essas mesmas terras. E essa marcha lenta também atrasaria sua volta ao castelo, o qual lhe vinha como pérolas.

Mas acompanhar a esse frade não tinha ajudado a descobrir como passavam a informação os mensageiros através da rede do rei Robert. Pode ser que fossem clérigos, mas, no momento, esse clérigo não parecia ser um mensageiro. Não tinha visto o frade tirar nada da bolsa que tinha atada ao cinto. E tampouco descobriu nada na noite anterior enquanto o frade dormia, momento que Arthur aproveitou para assegurar-se disso.

—O irmão Rory faz o melhor caldo das Highlands —disse o frade — Não vão querer perder isso.

A igreja anterior tinha bolos de carne; a anterior a esta, geléia. Arthur tinha a impressão de que o encargo das paradas em todas aquelas Igrejas era mais provar as especialidades locais que atender às necessidades da fé. Qualquer um diria vendo o figurino daquele clérigo. O homem tinha mais ossos que carne e um temperamento mais dado ao bom saque que a apertar o cinturão.

Cruzaram o rio pela ponte do Awe e seguiram pela borda, avançando para o sul bordeando a floresta. A paisagem estava salpicada de singelas casas de pedra cinza que se faziam mais numerosas à medida que se aproximavam da vila. Minutos depois aparecia a velha igreja de pedra, grudada a um pequeno promontório no centro da ociosa vila. Havia várias pessoas nos arredores, a maioria delas mulheres, e o ar arrastava arrulhos de risadas e crianças jogando. Ficou petrificado ao ouvir o que parecia uma canção. Uma voz de mulher. Seus sentidos zumbiram como se acabasse de passar uma abelha por trás da cabeça.

—Aconteceu algo?

O frade, que cavalgava atrás dele, estava o suficiente perto para conscientizar-se de sua reação. Arthur esperou. Passeou o olhar de cima abaixo, mas não havia nada fosse do habitual e tampouco advertiu o inconfundível aroma do perigo. Negou com a cabeça.

—Não, nada.

Seguiram avançando até o interior do jardim da igreja para chegar ao edifício traseiro onde comia e dormia o sacerdote. Frei John falou a verdade. O caldo do irmão Rory era sem dúvida um de dos melhores que Arthur tinha provado. Depois de tomar duas tigelas, o teria encantado sentar-se em um banco dos do jardim do padre e desfrutar daquela cálida tarde do verão, mas tinham que prosseguir seu caminho. Ao levantar-se da mesa voltou a ouvir. Aqueles doces e melódicos tons eram de uma beleza impactante e o enchiam com uma sensação de arroubo próxima a aquela que se sente ao presenciar um prodígio da natureza. Como um pôr-do-sol perfeito. Ou a bruma sobre um lago à alvorada.

—Quem canta isso? —perguntou quase com veneração.

O irmão Rory o olhou de um modo tão estranho que Arthur despertou de seu estado de transe. Tinha falado sem pensar, longe de confiar em seu excepcional ouvido. O sacerdote prestou atenção e pareceu se dar conta do que tinha ouvido.

—Ah, a dama que nos visita hoje do castelo. Deve estar cantando ao Duncan. Desde que voltou não há coisa que goste mais que escutar cantar à dama. —Arthur ficou de pedra. Seus sentidos já não zumbiam, mas sim falavam com gritos. Não podia ser. O irmão Rory continuou, alheio às reações de Arthur — Todos esperam suas visitas com impaciência. Traz-nos sempre uma grande alegria —disse com o peito cheio de orgulho — A dama nunca nos esquece, nem a nós nem às pessoas que serviu a seu avô.

—Que dama? —perguntou Dugald.

—Lady Anna. A mais jovem das filhas de lorde de Lorn. Um anjo vindo do céu, isso é o que é.

Melhor, vinda do inferno para atormentar Arthur.

Dugald deu risada só vendo o rosto que punha.

—Parece que a moça conseguiu te encontrar.

Arthur não podia acreditar. Não era possível que o tivesse encontrado. Ou talvez sim? O resto dos homens teria retornado no dia anterior. Tirou isso da cabeça. Não, isso era impossível. Uma coincidência. «Uma desafortunada coincidência.»

O irmão Rory parecia confuso pela brincadeira de Dugald.

—A dama vem a cada duas sexta-feiras. Com a mesma pontualidade que a névoa das montanhas. Conhecem-na?

—Um pouco — disse Arthur antes que Dugald pudesse responder.

Apressou-se então até o poste do jardim no que tinham deixado seus cavalos, mais ansioso por partir inclusive que antes. Por desgraça, lady Anna escolheu precisamente esse momento para sair do casebre que estava visitando. Saiu no caminho, a menos de cinqüenta metros deles, e se voltou para despedir-se da mulher e os dois crianças pequenos que estavam na porta da casa. O sol se refletiu em seus cabelos lhe dando uma auréola de halos dourados. Arthur sentiu um estranho sobressalto no peito. Tinha pensado nela mais do que gostaria de admitir e que lhe crucificassem se vê-la não proporcionava um breve brilho de… «Diabos.» Era um brilho de felicidade. Como se tivesse sentido falta dela realmente. Mas estava claro que não podia ser. Ela não era mais que uma aporrinhação. Uma aporrinhação adorável.

Então olhou em sua direção. Ao notar como se sobressaltava soube que o tinha visto. Entretanto ela fez como que não tivesse, deu meia volta e baixou com passos rápidos o caminho que levava ao lago. Longe dele, com o soldado que a protegia seguindo seus passos lealmente. Arthur ficou circunspeto. Não só porque acabara de ignorá-lo. Não, era por sua escolta. Um único soldado. Antes que desse tempo de pensar melhor já estava gritando: «Lady Anna!».

Inclusive daquela distância advertiu que erguia os ombros até quase tocar orelhas com eles. Por que lhe irritava aquele movimento em particular era algo que não sabia, mas o certo é que lhe irritava. Ignorou a seu estúpido e sorridente irmão, voltou a atar seu cavalo ao poste e foi a seu encontro. Anna pareceu ficar em guarda. Endireitou as costas e agarrou com mais força a cesta, quase como se estivesse preparando para a batalha. «Está tensa», pensou, maldita seja.

—Sir Arthur — disse nessa voz baixa sufocada que ele tinha esquecido. «Estupendo», pensou ele — Sir Dugald. Que surpresa — acrescentou ao erguer o olhar além de seu ombro e identificar ao irmão de Arthur.

Não soava como uma surpresa agradável. Que diabos ocorria? Já tinha perdido o interesse? Maldita seja, mas isso não era o que ele queria?

Deteve-se em frente a ela, talvez um passo mais perto do que era devido. Se não conhecesse si mesmo o suficiente, teria dito que tentava intimidá-la. Que usava seu tamanho para lhe bloquear a saída. Mas ele não era nenhum bárbaro. Não fazia esse tipo de coisas.

—Onde está o resto de seus homens? —disse com brutalidade.

Anna franziu o cenho, fazendo aparecer essas conhecidas rugas sobre o nariz.

—Que homens?

Tentou soar paciente, mas não conseguiu.

—Não vejo mais que um guarda em sua escolta — disse saudando com a cabeça ao jovem soldado.

—Robbie sempre me acompanha nas sextas-feiras. Criou-se no povoado.

O ocasional mau gênio de Arthur voltou a tomar forma pouco a pouco. Robby, apesar de ser alto, não podia ter mais de dezoito anos e parecia óbvia e claramente que não poderia deter alguém que queria fazer mal à dama. Pelas barbas de Satanás, havia uma guerra aflorando! Em que demônios pensava Lorn deixando-a sair por aí como se tal coisa não fosse importante?

Voltou-se para seu irmão.

—Eu acompanharei ao frade até o Oban. Tu voltas para castelo com lady Anna.

«Por todos os demônios.» Quando viu seu irmão entreabrir os olhos, se deu conta de que Anna havia conseguido de novo. Uma vez mais conseguia que fizesse algo sem pensar. Acabava de dar uma ordem a seu capitão. Ele não cometia enganos desse calibre.

—Eu levarei ao frade — disse Dugald com certa aspereza. — E acompanharás lady Anna.

E a dama em questão pareceu conscientizar-se da súbita tensão entre os dois irmãos.

—Não necessito que ninguém acompanhe a nenhum lugar. Estou perfeitamente segura com o Robby.

Arthur se viu de novo esquecido. Dugald tinha marcado o território e não voltaria atrás. Acabava de desafiar sua autoridade e não podia permitir uma luta de poderes com seu irmão. Se alguém a acompanhasse, teria que ser ele. Mas aquilo significaria perder a oportunidade de comprovar se o frade era um dos mensageiros de Lorn. O que teria que fazer era deixá-la partir. O mais provável é que não lhe acontecesse nada. O mais provável… Os dias eram longos. Certamente teria luz até que chegasse ao castelo. Certamente.

Fechou os punhos para não dar saída para a frustração que se retorcia em seu interior.

—Estou seguro de que estão perfeitamente seguros— disse para preservar o orgulho do moço—, mas será uma honra a acompanhar ao castelo, milady.

Anna não estava contente em vê-lo, absolutamente. Depois de passar semanas evitando-a, aquele homem contraditório decidia desempenhar o papel de protetor acérrimo. É obvio que não esquecia o que tinha feito por ela. Quando ao erguer os olhos se encontrou com seus impressionantes olhos dourados e se deu conta de que tinha salvado, de que estivera a embalando entre seus braços… Tinha sido o momento mais romântico de sua vida.

O momento mais romântico sem ser um casal. Porque em seguida ele a pôs em pé, disselhe que tivesse mais cuidado e a deixou ali com a palavra na boca. Como tinha podido apanhá-la a tempo? Recordava o brilho alarmado de seus olhos. Era quase como se soubesse de antemão que cairia. Algo que é obvio, era ridículo… ou não?

Não obstante, Anna aproximou mais a cesta a seu regaço de maneira inconsciente. Aquele homem era muito observador. Teria que pensar em algo para se distrair.

—Nos acompanhem pois, se insistes — disse dando meia volta e dirigindo seus passos de volta ao caminho.

Entretanto, uma mão dele sobre o cotovelo a fez parar em seco. Igual ao que fez por um instante seu coração, justo antes de ficar a pulsar loucamente. Não a agarrava com força, mas podia notar cada um de seus dedos lhe queimando a pele. Ser consciente de seus sentimentos fez que lhe ardesse todo o corpo.

Dizia a si mesma que tinha exagerado a intensidade de sua reação ante ele. Mas não era assim. Por que ele? Essa atração que sentia era inexplicável.

—Onde está seu cavalo? —perguntou — O castelo está na outra direção.

—Não voltarei para castelo ainda. Ainda tenho que visitar vários casas na vila.

—Logo anoitecerá.

Caramba, que cara feia se pôs.

—Não anoitecerá até dentro de quatro horas, ao menos — repôs ela desembaraçando-se com cuidado da mão que agarrava seu cotovelo — Tenho tempo de sobra.

Antes que pudesse discutir já tinha começado a despedir do irmão Rory, do frade e sir Dugald e descia pelo caminho. O olhar de recriminação de Arthur lhe dizia que o acerto não tinha graça; mesmo assim, permaneceu a seu lado como uma antipática e taciturna sombra. Visitaram mais três lares. O primeiro pertencia a Malcolm, que tinha perdido o braço com o que brandia a espada lutando contra os rebeldes em Glen Trool e estava passando muito mal adaptando-se à vida longe do campo de batalha. Inclusive coberto de cicatrizes e com um braço a menos, Anna sabia que daria o outro com para poder retornar à luta. Não entendia o amor que aqueles homens professavam à guerra e jamais poderia fazê-lo. Estava cansada de cicatrizes, de membros amputados, de esposas sem marido e crianças sem pai.

Enrugou o nariz e olhou furtivamente ao homem no canto. Ao que parecia nem todas cicatrizes lhe desgostavam. Algumas delas pareciam digamos… atraentes. Ele tinha cicatrizes. Uma que lhe cruzava o queixo e se acentuava ao apertar os dentes, algo que parecia fazer freqüentemente quando ela estava ao seu redor, e uma pequena marca na bochecha direita. As mãos estavam repletas. Provavelmente teria alguma nos braços. E no peito.

Um ataque de calor invadiu seu corpo assim que visualizou a imagem de seu largo e poderoso torso. Nu. Pelos pregos de Cristo, o que lhe estava passando? As fantasias, caso elas as tivesse, eram algo muito inapropriado a plena luz do dia enquanto tentava ler para um homem aleijado.

Embora não pudesse pôr fim à guerra, faria todo o possível por ajudar, por mais que fosse algo insignificante.

Seonaid, a mulher de Malcolm, dizia que bebia menos uisgebeatha depois de que ela lia para ele, de modo que Anna sempre trazia consigo sua apreciada cópia de Tristan11 de Thomas da Bretanha. O velho guerreiro desfrutava quase tanto como ela da história do amor proibido entre o cavalheiro e a princesa irlandesa.

Anna queria ignorar ao homem taciturno encostado na porta, mas sentia o peso de seu olhar. Quando saíram da casa que Arthur disse: —Sabes ler.

Anna encolheu os ombros, consciente de que não era algo comum nas Highlands.

—Meu pai acreditava que era importante que todos seus filhos recebessem uma educação. —Olhou-o nos olhos, desafiando-o a que se pronunciasse ao respeito — Inclusive as garotas.

Olhou-a com atenção, de novo com o cenho franzido, mas não disse nada.

A seguinte casa que visitou pertencia ao curador da vila. Afraig já era idoso e já não viajava pela campina com a facilidade de antigamente, assim que cada vez que o visitava, Anna lhe levava algumas ervas e plantas que recolhia da floresta junto ao Dunstaffnage.

Anna deixou para o final a parada mais importante. Sua recém enviuvada amiga Beth tinha ficado com cinco filhos, entre eles o bebê Catrine, Cate, nascida há apenas três meses, seis meses depois de que o pai fosse assassinado pelos homens de Bruce em uma emboscada no castelo do Inverlochy, justo antes que este caísse em mãos dos rebeldes. A morte de seu marido não tinha feito mais que fortalecer a firmeza de Beth. Como Anna, também ela faria tudo o que estivesse em sua mão para derrotar ao rei Hood e pôr fim à guerra. Anna esperava que sir Arthur se aborrecesse com sua conversa e encontrasse algo que fazer, mas ele parecia contentar-se estar sentado à porta e esperar junto a Robby, observando-a com esse penetrante olhar dourado, muito intenso e perspicaz. Era como se soubesse que estava tramando algo.

Através de duas pequenas fendas na pedra Anna via os crianças maiores jogando com uma bola. Tinham aberto as portinhas de madeira para deixar que entrasse o ar fresco do verão e ventilasse a comprida construção de um só aposento. De repente o jogo cessou e teve a oportunidade que esperava. Ergueu o olhar sobre a cabeça do bebê que embalava em seus braços e olhou a sir Arthur.

—Parece que a bola dos crianças tornou a ficar obstruída no telhado do celeiro. Importaria-te…

—Eu o farei — disse Robby saltando do assento como se esperasse uma mínima desculpa para partir.

Teve que reprimir um sorriso ante sua impaciência. Talvez tivesse excedido um pouco ao pedir a Beth que descrevesse ao detalhe os últimos problemas digestivos do Cate, incluindo o arco de cores que adornava suas vestimentas.

Resultado perfeito. Homem errado.

—Suponho que teremos que nos pôr em marcha — disse levantando-se com a intenção de devolver o bebê a Beth. Mas então lhe ocorreu outra idéia. Teve que conter o sorriso que aflorou em seus lábios. Sabia exatamente como o distrairia — Quase esqueci —disse a Beth — trouxe uns bolos.

—E também eu tenho uns bolinhos doces para ti — disse Beth entendendo imediatamente.

Antes que ele se inteirasse do que pretendia, Anna colocou o bebê dormido sobre seu colo e agarrou sua cesta. Pôs tal cara de horror que a jovem teve que esforçar-se ao máximo para não rir. Aquela expressão quase fazia que valesse a pena todos os problemas que lhe tinha causado. Quase.

Arthur, por sua parte, tentou lhe devolver Cate imediatamente.

—Não sei nada de…

—Não há nada que saber —disse Anna com doçura — Mantenha a mão sob sua cabeça dessa forma e a menina estará bem.

Entretanto, ele tinha um aspecto decididamente angustiado.

Com tanto movimento, o bebê começou a agitar-se e emitiu uma série de pequenas queixas e prantos. O temível cavalheiro com aspecto de poder derrotar a todo um exército com uma só mão olhou a Anna pedindo clemência.

Embora aquilo a divertisse, havia algo extremamente fascinante na visão daquele alto e musculoso guerreiro embalando à pequenina em seus braços, horrivelmente, mas com um cuidado que fazia que o coração lhe desse um pequeno tombo. Seus olhares se encontraram e algo estranho vãorreu entre eles. Uma consciência animal da atração que crepitava entre ambos. Um reconhecimento de que aquelas bênçãos eram possíveis entre um homem e uma mulher. Como seria o ver sustentando a um filho de ambos?

Anna baixou o olhar, envergonhada pela descabelada direção que tomavam seus pensamentos. Imaginar ao possível bebê que pudesse ter com um homem que mal conhecia era uma experiência completamente nova para ela.

—Balance-a um pouco — disse para animá-lo, compadecendo-se um pouco dele — Ela gosta. Não demoraremos muito.

Dito isto, seguiu a Beth até o outro lado do aposento, onde estava a cozinha. E Cate, Deus benzera ao anjinho, fez sua parte. Seus suaves choros e seus lamentos cada vez mais altos encobriram o rápido intercâmbio entre Anna e Beth.

Quando Beth retornou para reclamar a seu bebê, sir Arthur tinha todo o aspecto de alguém a quem tinham arrastado ao inferno amarrado ao carro de Satã.

—Bom, não foi tão duro, verdade? —disse Anna enquanto saíam da pequena casa.

Arthur entreabriu os olhos em sinal de advertência. Parecia morrer de vontade de estrangulá-la. Provocar reações nele se demonstrava um pouco prazenteiro.

Anna se despediu dos crianças com a promessa de voltar logo. Robby já tinha levado os cavalos, de modo que não demoraram muito em se por no caminho. Sabia que deveria aproveitar a oportunidade para aprender mais dele, mas estava cansada do longo dia passado na vila e, se tinha que ser sincera, não estava de humor para que a rechaçassem. Aquele estranho momento na casa do Beth a fazia sentir… vulnerável. Não queria pensar nele desse modo. Não queria que seu coração fosse dando tombos. Vigiava-o unicamente por seu pai. Não ia trás dele a sério.

Durante os primeiros quilômetros cavalgaram em fila indiana, mas assim que a estrada se alargou sir Arthur abandonou a cabeceira e se colocou a seu lado. Surpreendeu-a que fosse ele quem falasse. Iniciar uma conversa? Primeira vez que ocorria.

—Por que o fazes? — Ela o olhou desconcertada, de modo que Arthur se explicou — ficar rodeada de tais… coisas —acrescentou, esforçando-se por encontrar uma palavra.

—Refere-se aos frutos da guerra? —disse Anna de maneira desafiante.

Não lhe surpreendia que não soubesse falar daquilo que ele mesmo tinha presenciado. Os guerreiros se concentravam na glória, na honra do campo de batalha, não no que acontecia quando as coisas saíam erradas. As pessoas entrevadas e os crianças sem pai não eram algo no que queria pensar um homem que ia à batalha. Compreendia que fechar a mente à esse tipo de pensamentos era algo necessário, mas isso não significava que fossem menos reais.

—Acreditava que milady não gostava e mesmo assim… —disse Arthur encolhendo-se de ombros.

—Odeio a guerra —disse Anna com voz áspera — E morro de vontade que acabe, mas isso não significa que evite fazer o que me toca. Isto é o que eu posso fazer. E se um par de canções ou histórias, ou sustentar a um bebê em braços durante um momento para que sua mãe tenha um instante de paz, reporta um pouco de alegria, por breve que seja, farei.

Arthur lhe dirigiu um olhar duro e crítico.

—Têm um coração muito brando — disse como se isso fosse algo mau — Aquele soldado não merecia seu tempo. Não faz mais que suicidar-se lentamente com a bebida.

Advertiu o tom de aversão em sua voz. Ao que parecia, pensava que aquele homem era débil.

—Talvez —admitiu Anna — Mas Malcolm lutou por meu pai com honra e lealdade durante danos. É que não merece uns instantes de meu tempo por seu sacrifício?

—Lutar é sua obrigação.

—Igual esta é a minha.

—Milady converteu isso em uma obrigação.

Nessa ocasião foi ela quem encolheu os ombros. Arthur voltou a olhá-la com o cenho franzido.

—Estais exausta.

Anna pensou que talvez começava a acostumar-se a esses olhares de recriminação, porque já somente lhe provocavam risada.

—Estou.

—O que cochichavam antes com sua amiga?

A súbita mudança de tema a pegou com a guarda baixa. Estremeceu-se, mas em seguida se recompôs.

—Coisas de mulheres.

—Que tipo de coisas de mulheres?

Os olhos de Anna brilharam ao tempo que lhe dirigia um olhar avesso.

—Estais seguro de que quer saber? —disse a modo de provocação.

Arthur voltou o rosto imediatamente.

—Talvez não.

«Meu deus, está se ruborizando.» Não pensava que aquilo fosse possível. Mas essa diminuta mácula em sua impassível fachada não fazia mais que aumentar seu atrativo. Era algo encantador. Ele era encantador. Não à maneira galante e beija-mão de um cortesão, mas sim de um modo mais sutil. Parecia que acabasse de levantar um pouco o véu para mostrar uma parte de si mesmo que não revelava com freqüência. O que adorava era essa insinuação de sua ingenuidade totalmente inesperada.

O nó que se o fazia no peito se esticou ainda mais. Anna era consciente de que estava em um apuro. Sir Arthur despertava sua curiosidade e isso parecia perigoso. Melhor pensar nele como um simples guerreiro, o tipo de homem que ela era capaz de compreender e também de rechaçar. Não queria saber nada de sua vida. Não queria descobrir um lado diferente nele. Não queria ser curiosa. E, sobretudo, não queria estar tão penetrada por ele.

Tinha sua vida planejada. Quando acabasse a guerra seu pai lhe buscaria um bom homem com quem casar-se. Teriam uma casa cheia de crianças, com sorte nas Highlands, perto de sua família, e viveriam na mais tranqüila e feliz das pazes. Já não teria que preocupar-se mais por que destruíram tudo o que conhecia, tudo o que amava. Estabilidade. Isso era o que queria.

Pode ser que a tivesse surpreendido, mas isso não mudava o problema essencial: sir Arthur era um guerreiro. Um homem que parecia ter nascido com uma espada sob o braço e que morreria dessa mesma forma. Ele jamais poderia lhe dar o que ela queria, já que Anna sabia que um homem que olhava sempre à porta como se queria partir acabaria indevidamente passando através dela.

Arthur não gostava de nada que começava a descobrir de Anna MacDougall. Era muito mais fácil rechaçá-la como uma princesinha ingênua e cordata que vivia em um mundo de fantasia sem entender nada do que ocorria a seu redor. Mas esse não era o caso absolutamente. Anna sabia o que acontecia em torno dela, talvez que melhor que ele mesmo. Como a maioria dos guerreiros, Arthur tomava distância em relação às repercussões da guerra. Não queria pensar a respeito do que acontecia depois. Ver a guerra através de seus olhos…

A morte. A devastação. Homens mutilados que aplacavam sua dor com a bebida. Mulheres abandonadas a sua própria sorte. Crianças sem pais. A realidade.

Ficou circunspeto. Quantas vezes teria passado diante daquela realidade sem vê-la? Quantas vezes tinha cavalgado junto a um castelo ou uma casa em chamas sem pensar nas pessoas que vivia neles? Tinha lutado durante quase toda sua vida, mas, de repente, sentia-se cansado.

—Por que não te caio bem?

A franqueza da pergunta o deixou desarmado, embora talvez não devesse tê-lo feito. Anna não se intimidava ante nada. Aberta e extrovertida, dizia o que pensava com a confiança que só se outorga uma vida de carinho, amor e ânimos constantes. Essa era uma das coisas mais incomuns, e fascinantes, que ela tinha.

Ficou pensando, sem saber o que responder.

—Não me cai mal — Pelo rosto que ela pôs, Arthur teria jurado que não acreditava — O que passa é, que como já vos disse, vim aqui para cumprir com meu trabalho. Não tenho tempo para nada mais.

—É pelas velhas rixas?

Ficou tenso, já que não gostava do rumo que começava a tomar o assunto. Essa não era uma conversa que queria ter com ninguém, e muito menos com ela.

—A inimizade entre nossas famílias acabou faz anos.

—Então tudo isso é coisa do passado? Não estais furioso por suas terras nem pelo castelo do lago Awe?

O pulso lhe acelerou de maneira imediata. Estava furioso, mas não com ela.

—Essas terras não me pertenceriam, seriam de meu irmão Neil. E as teria perdido depois do Methven. O rei Eduardo nos recompensou pela perda e distinguiu a meus irmãos e a mim por nossa lealdade.

—Então é por seu pai?

Ficou petrificado. «Por Deus!» Isso de atirar ao pescoço devia ser uma característica inata nos MacDougall. Apesar de ser bem intencionada, suas palavras fizeram sangue.

—Meu pai morreu na batalha.

—Nas mãos do meu —disse Anna em voz calma — Seria compreensível que me odiasse por isso.

Gostaria de ser capaz de fazer. Mas não podia culpar Anna dos pecados de seu pai.

—Não vos odeio — Ao contrário. Desejava-a. Mais do que tinha desejado jamais a nenhuma outra mulher — Aquilo é água passada.

Arthur notava todo o peso de seu olhar, mas continuou olhando à frente.

—Qual é a verdadeira razão pela que estais aqui?

—A que te referem?

—O que querer?

Justiça. Vingança. Palavras que nesse caso significavam exatamente o mesmo.

—O que a maior parte dos cavalheiros que lutam: terras e recompensa.

Em seu caso Bruce se comprometeu a devolver Innis Chonnel a seu irmão e deixou cair a promessa de uma esposa rica para Arthur, a mais rica das Highlands: Christina MacRuairi, senhora das Ilhas.

—E nada mais?

—Que acabe a guerra.

—Então queremos o mesmo.

Não sabia quão equivocada estava. O final da guerra para ele seria ver Bruce no trono e aos MacDougall aniquilados.

A olhou de esguelha. Era tão formosa que lhe doía o coração vê-la. Mas essa beleza parecia enganosa. Tinha percebido a inocente juventude de seu rosto e a doçura de seu sorriso, mas não a força que residia nela. Conscientizar-se desse engano era desconcertante para um homem que se orgulhava de suas capacidades perceptivas e de observação. Seu comportamento durante daquelas duas últimas semanas adotava outro matiz à luz do que tinha visto nesse dia. Talvez não fossem meras fantasias, a não ser um meio de amparo: fazer o que estava em sua mão para preservar um modo de vida que se desabava a seu redor.

Apesar de que a admirava, também se compadecia dela. A sua era uma batalha perdida. E inclusive em sua fortaleza, entrevia-se certa fragilidade que o fazia perguntar se não seria também ela consciente disso. O teria encantado poder protegê-la. Um pouco de uma vez irônico e ridículo, dado que ele estava ali para destruir tudo aquilo ao que Anna se aferrava com desespero.

Surpreendeu-lhe inquietar-se tanto por isso.

Gostasse ou não, Anna MacDougall era o inimigo.


Capítulo 7


Cavalgaram em silencio durante vários quilômetros até que Arthur voltou a falar.

—Há um córrego um pouco mais adiante onde podemos dar de beber aos cavalos e comer algo se tiveres fome — disse absorvendo o açucarado aroma da manteiga e o açúcar — O aroma desse pão-doce está despertando meu apetite.

Teve a impressão de que Anna empalideceu um tanto, mas talvez fosse que a luz se estava indo.

—Rogo-lhe isso, por mim não te detenhas. Os cavalos estarão bem até que…

Anna se deteve e jogou uma olhada entre as árvores, para a ribeira do regato que tinham ante eles.

—O que fazem esses crianças?

Arthur ouviu uns latidos histéricos afogados. Imaginou o que tinha no saco que levava um dos crianças no ombro.

—Vamos —disse — Já pararemos no seguinte córrego.

Anna entreabriu os olhos e logo os abriu de repente ao conscientizar-se do que acontecia.

—Não! —gritou ao tempo que cavalgava para os crianças, que já começavam afundar o saco na água — Detenha!

Os moços, cujas idades estariam entre os dez e os quinze anos, ergueram o olhar com a boca aberta ao tempo que ela se aproximava. Arthur mal podia imaginar a incredulidade dos crianças ao ver aquela ninfa sair da floresta como uma valkiria das cruzadas.

—O que levas na bolsa? —perguntou enquanto a olhavam com cara de abobalhados.

O maior dos crianças foi o primeiro em reagir.

—Não é mais que um vira-lata, milady. O cachorrinho repudiado da ninhada.

O agudo grito de desespero que saiu da garganta de Anna provocou uma estranha angústia em Arthur.

—Me deixem vê-lo — exigiu.

Um dos menores disse:

—Não o quererá milady. Sua própria mãe não o quer. Morrerá de fome se não nos desfizermos dele.

Anna emitiu outra dessas exclamações e a angústia que Arthur sentia no peito ficou mais aguda. Temia que seria capaz de fazer tudo com o intuito de não voltar a ouvir aquele gemido nunca mais.

—Mostrem à dama — disse com firmeza.

Os crianças começaram a mover os pés com inquietação como se os tivessem pego fazendo algo mau, apesar de que quão único queriam era fazer um favor ao cachorrinho. O maior soltou a bolsa no chão e afrouxou o laço. Afastou a borda do tecido e descobriu ao vira-lata mais adoentado e feio que Arthur tinha visto na vida.

—É adorável! —exclamou Anna saltando de suas arreios antes que Arthur ou Robby pudessem ajudá-la. Os crianças ficaram olhando-a como se estivesse completamente louca. Anna se ajoelhou e tomou entre seus braços aquela patética bolinha de pelo salpicada de cinza e negro — Pobre coisinha! Está apavorado — disse olhando a Arthur em busca de compreensão — Olhem como treme o pobre.

Arthur percebeu ao momento de que aquele jovem cão de caça tinha os dias contados. Era pequeno e estava tão magrelinho que dava pena vê-lo. Provavelmente sua mãe se negou a alimentá-lo desde dia em que nasceu.

—Os moços estão salvando ao cachorrinho de uma morte muito mais cruel —disse amavelmente — Não sobreviverá.

Anna entreabriu os olhos e franziu os lábios, fazendo ornamento de uma teima que Arthur só podia comparar com a sua.

—Ficarei com ele.

Seu bondoso coração lhe impedia de ver a realidade.

—Como lhe dará de comer?

Anna ergueu o queixo e o fulminou com o olhar, castigando-o por atrever-se a falar da realidade.

—Já pensarei em algo.

Notou a determinação de sua voz e soube que não teria maneira de dissuadi-la. Ninguém diria que alguém com essa aparência mansa como a de um gatinho pudesse ser tão teimosa.

—Não vale a pena, milady —disse um dos crianças — Jamais poderá ser um bom sabujo. Se quiseres um cão, podemos lhes dar um de seus irmãos.

O vira-lata se aninhou sob o braço de Anna, como se fosse consciente de que tinha encontrado a seu salvador. Anna negou com a cabeça e sorriu.

—Não quero a nenhum outro. É a este ao que quero.

«É a este ao que quero.» Aquelas palavras ressonaram na cabeça de Arthur. Demônios, por um momento quase sentiu ciúmes do maldito cão.

O moço encolheu os ombros, como se pensasse: «Que mais se pode fazer?». Estava claro que acreditava que a dama estava doida, mas era a neta do senhor das terras, assim não discutiria com ela. Arthur gostaria de pensar o mesmo quando viu com que carinho arrulhava ao cão, sobretudo porque não queria que vivesse a frustração de cuidar do cachorrinho para tentar lhe devolver a vida. Mas não podia. Aquele cachorrinho poderia ter sido ele mesmo, muitos anos atrás.

Era estranho inclusive pensar nisso. Jamais pensava no passado. Os sofrimentos de menino o tinham transformado no guerreiro que era na atualidade. Teve que esforçar-se mais. Teve que treinar mais. Teve que aceitar as habilidades que o diferenciavam do resto e as aperfeiçoar até as converter em algo extraordinário. Ele tinha forjado seu próprio destino. Talvez não tivesse nascido guerreiro, mas tinha feito de si mesmo um dos melhores. Houve um tempo em que estava tão concentrado nisso que não pensava em nada mais. Mas não foi sempre assim.

Arthur observava as preocupações que Anna tomava por aquela patética criatura que sustentava nos braços e sentiu que algo se removia em seu interior. Voltou o olhar de repente, irritado pelo broto de sentimentalismo que a compaixão da moça despertava nele. Recordava-se a si mesmo que ela era o inimigo. Mas inclusive aos seus ouvidos soava como algo gorado.

Sir Arthur se encerrou em seu escudo de silêncio e indiferença, mas Anna estava muito ocupada tentando acalmar a bola de pelo escuro que se retorcia entre seus braços para se dar conta disso. Bom, talvez se desse conta, mas estava ocupada. O cachorrinho parecia saber que tinha escapado ao perigo e seu aterrorizado tremor se transformou em choramingos de fome. Faltavam alguns quilômetros para chegar ao castelo quando pediu a Arthur que fizessem uma parada no caminho. Tinha que lhe dar algo de comer. Seus patéticos uivos faziam migalhas seu coração.

Embora tivesse ao menos meia hora para que o sol se pusesse, no profundo interior do espessa floresta que havia ao leste do castelo de Dunstaffnage já tinha escurecido. Não gostava da floresta de noite, assim naquele momento agradeceu que sir Arthur insistisse em acompanhá-la. Robby e ele se encarregaram dos cavalos, enquanto que ela fazia o próprio com sua nova carga. Envolveu ao cachorrinho na manta escocesa que tinha levado se por acaso refrescasse ao cair a tarde e a usou para fazer um pequeno leito onde o filhote repousasse enquanto procurava algo que lhe dar de comer. Tirou uma de suas finas luvas de couro, encheu-a de água do córrego e o fechou pelo pulso. Gostaria de ter leite, mas no momento o cachorrinho teria que conformar-se com água. Tirou uma agulha de sua cesta e fez um buraco em um dos dedos. Depois de cortar uns pedaços de um dos pãezinhos, voltou-se para o cão.

«Hóstias!», balbuciou imitando uma das imprecações favoritas de seu irmão Alan. O pequeno malandrinho escapou. Anna deixou a luva e os pedacinhos de pão sobre a manta e olhou ao sua redor com inquietação.

Sorriu. Não tinha ido muito longe. Distinguiu sua silhueta não muito longe de uma árvore grande. Chamou-o, mas o cachorrinho fugiu dela, obviamente atemorizado ainda. Pousava-se sobre as folhas e a terra como se suas patinhas fossem de madeira. Mas estava muito fraco para fazer muitos esforços, de modo que Anna o apanhou ao cabo de poucos minutos. Tomou entre seus braços e o aproximou ao peito.

—Olhe que traquinas —disse com voz afetuosa — não vou te fazer mal. É que não quer comer?

O cachorrinho lambeu a ponta do nariz como resposta e Anna caiu na risada.

—Então será melhor que voltemos — disse olhando a seu redor e precavendo-se de que tinha ido mais longe do que pensava.

Acelerou o passo, ansiosa por voltar para córrego, procurando não pensar nas sombras que se obscureciam e se tornavam mais ameaçadoras à medida que a floresta se fechava a seu redor. O coração lhe deu um tombo quando sir Arthur apareceu na frente dela de repente. Por Deus bendito! De onde tinha saído? Não tinha feito ruído algum!

—Onde diabos tinhas te metido? —perguntou.

Anna abriu os olhos surpresa, ainda mais pela linguagem grosseira que pelo brilho que tinha seu olhar. Parecia inquieto. Preocupado. Tudo, menos indiferente. Olhava-a do mesmo modo que quando a tinha salvado de cair pelo precipício. Quase tinha se convencido de que era imaginação dela.

—Soltei-o no chão para lhe buscar comida e escapou — disse aproximando-se do cachorrinho para lhe dar um beijinho na cabeça.

Arthur, para surpresa de Anna, aproximou-se e acariciou o queixo do cachorrinho. A delicadeza que se desprendia daquele gesto chegou ao coração de Anna. Pensou o doce que seriam essas carícias sobre seu próprio corpo e lhe deu tanta vontade de comprová-lo que ficou atordoada. Jamais antes desejou que a acariciasse um homem, e entretanto queria sentir o contato dessas mãos grandes e cheias de calos e cicatrizes de guerra sobre sua pele. Sobre seu rosto. Seu pescoço. E… seus seios.

Um ligeiro rubor avermelhou suas bochechas. Por todos os Santos! De onde tinha saído isso? Seus olhares se cruzaram, mas ela afastou o olhar imediatamente por medo de que pudesse adivinhar seus licenciosos pensamentos.

—A próxima vez, me faça saber aonde vai —disse bruscamente. Sua voz tinha um tom comedido e velado que Anna não chegava a compreender — Não é seguro.

Deteve-se de repente e ficou paralisado, como se tivesse ouvido algo. Anna permaneceu atenta, mas não ouvia nada. De fato havia uma estranha calma. Agarrou seu braço como por instinto e se aproximou dele.

—O que acontece?

—Temos que voltar para os cavalos. É pelo cachorrinho.

Desembainhou sua espada e protegeu a Anna com seu braço. Apesar do repentino salto de seu coração, sentiu-se segura. Protegida. E algo mais. Sentiu-se próxima a ele.

—O que acontece? —disse com inquietação enquanto tentava não ficar atrás — A que referes, com «é pelo cachorrinho»?

Ele não respondeu, mas sim a puxou para que se apressasse.

—Depressa. Já vêm.

—Quem vem? —perguntou com uma voz traída pelo medo — Eu não ouço nada.

—Os lobos.

Anna se estremeceu e olhou a seu redor com pânico.

—Eu não vejo… —Apertou o cachorrinho contra seu peito — Não penso abandoná-lo.

Arthur a olhou como se fosse um caso perdido.

—Já sei. —Mas então amaldiçoou. Empurrou-a depois de uma árvore grande, arrebatou-lhe o cachorrinho das mãos e usou seu corpo como um escudo para protegê-la — Fica trás de mim — ordenou — Se lhe disser que corra, faça rápido.

—Não vou a…

Arthur a olhou com fúria.

—Fará. Farei todo o possível por salvar a seu cão, mas não permitirei que percas a vida por ele.

Anna não compreendia nada. Como podia estar tão seguro? Ela não tinha visto nem ouvido nada. Mas então ouviu. Era um ruído de pegadas do mais leve. Correndo. Dirigindo-se para eles. Como pode saber…?

A ninhada saiu de entre as árvores com uma rapidez que gelava o coração. Os lobos eram tímidos por natureza e em geral evitavam aos humanos. «É pelo cachorrinho.» A isso se referia. Queriam ao cachorrinho.

A princípio pensou que havia ao menos uma dezena deles, mas quando sua mente se esclareceu o suficiente para poder contá-los viu que mal eram a metade disso.

—E Robby? —perguntou.

Sir Arthur negou com a cabeça.

—Ordenei-lhe que ficasse com os cavalos.

Suspirou, aliviada. Não queria que o jovem guardião topasse com eles sem saber e provocasse que os lobos os atacassem.


Sir Arthur brandia a espada e se girava de um lado a outro. Os lobos grunhiam, com os lombos arrepiados e os olhos postos no cachorrinho que sir Arthur protegia sob seu braço. Era imaginação dela, ou davam a impressão de estar famintos?

Pareciam permanecer à expectativa, examinando sagazmente a seu competidor, tentando averiguar seu ponto débil enquanto esperavam o momento adequado para equilibrar-se sobre ele. Embora não podia lhe ver o rosto, Anna sabia que sir Arthur fazia o mesmo que eles.

O maior dos lobos se adiantou ao resto, como se quisesse atrair sua atenção. E isso era exatamente o que fazia, conforme advertiu Anna. Os outros tinham começado a rodeá-los por trás. Deus, sim que eram preparados. O lobo chefe queria que sir Arthur se movesse em sua direção para que os outros pudessem atacar pelas costas. Mas em vez disso, sir Arthur agarrou ao cachorrinho pelo cangote e o sustentou no alto.

—O que fazes? —gritou Anna.

—Com sorte, me liberar do líder da manada. Te prepare —advertiu.

Ao ver que não respondia, olhou-a.

—Anna!

Assentiu com urgência, já que não queria distraí-lo. Sir Arthur girou justo no momento em que o lobo maior lançava seu ataque ao ar em busca do inquieto cachorrinho. Sir Arthur moveu-se mais rápido do que Anna pensava que fosse possível. Nunca antes tinha visto uns reflexos como os seus. levou as mãos à boca para afogar um grito ao mesmo tempo que ele punha o mascote fosse de perigo e rasgava o ar com o outro braço. Anna voltou o olhar ao ver a linha vermelha que cruzou o gogó do lobo. Um segundo mais tarde ouvia o ruído que este fazia ao desabar-se sobre o chão. Uma vez sem líder, o resto da manada parecia bater-se em retirada. Sir Arthur deu vários passos à frente e brandiu sua magnífica espada por cima da cabeça como se fosse nada, apesar de que o cachorrinho só lhe deixava uma mão livre. A direita, advertiu Anna. Nem sequer era sua mão boa.

Outro dos lobos se aventurou a adiantar-se com indecisão, mas um duro golpe com o dorso da espada serviu como cura para sua valentia. Depois disso, os lobos fugiram do lugar, desvanecendo-se na escuridão com a mesma rapidez com a que tinham aparecido. Aquilo não durou mais de um minuto, mas tinha sido o minuto mais longo da vida de Anna. Arthur baixou a espada e se voltou para ela. Anna não se deu conta de quem fez o primeiro movimento, mas se viu rodeada por seus braços, empurrada contra o duro escudo de seu peito. Refugiou sua cabeça nele de maneira parecida com como o fazia o cachorrinho em seu outro braço e deixou que percebesse seu medo.

—Estais bem?

Ergueu o olhar para olhá-lo. Tinha um rosto impassível, e o único sinal de como lhe tinha afetado aquilo eram as batidas de seu coração. Queria dizer que se encontrava bem, que jamais se havia sentido mais a salvo, mas sua boca estava tão perto que o único no que podia pensar era na vontade que tinha de que a beijasse, quão necessitada estava de um beijo dele.

Era tão bonito, com esse cabelo castanho escuro ondulado e seus estranhos olhos ambarinos. Gostava de seu queixo com aquela covinha e a pequena separação do nariz no lugar em que provavelmente tinham sido quebrado. Mas de onde não podia afastar o olhar era de sua boca, larga e de uma sensualidade impossível de evitar. Era muito suave e tentadora em contraste com o resto do corpo. Era tão forte, tão protetor…

Arthur emitiu um ruído cavernoso e gutural ao mesmo tempo em que a apertava mais contra si. Quando seu olhar pousou sobre seus lábios, Anna soube que a beijaria. Então lhe tocou o rosto com uma mão e sentiu a calosidade de seus dedos lhe sustentando o queixo. O coração vibrava como as cordas de um harpa, de uma maneira incrivelmente doce. Tal como ela tinha imaginado. Havia algo ardente em seu olhar que provocava formigamentos nas zonas mais pudicas de seu corpo. Olhava-lhe a boca como se queria devorá-la. As sensações eram tão fortes, tão evidentes, que quase podia sentir seus lábios sobre os dela. A suave e erótica carícia de sua boca. Sentia um estremecimento no estômago. Um embriagador aroma de especiarias. Estava tão convencida de que a beijaria que quando, em lugar de fazer isso, separou-se dela, tremeram-lhe as pernas.

Arthur afastou o olhar por um instante como se estivesse liberando uma batalha invisível e todo seu corpo se contraiu como a corda de um arco a ponto de disparar-se. De repente se voltou para ela, desaparecido já todo o desejo de seu olhar, e lhe entregou o cachorrinho.

—Temos que retornar.

Naquela ocasião sim, lhe doeu sua gélida indiferença. Para Anna, confusa pela intensidade das reações de seu corpo, por sua debilidade, essa capacidade para controlar-se foi como uma bofetada. Pode ser que ele a desejasse, mas não pensava abandonar-se a seus instintos.

Desejo. Isso era o que ela sentia. Isso era o que fazia que lhe acelerasse o pulso e seu corpo ardesse quando pensava que ele estava a ponto de beijá-la. E também essa era a razão da decepção que transpassava sua alma naqueles momentos. Anna apertou o cachorrinho contra si e lhe fez carinhos com a cabeça. Ao menos a esse caía bem. Os olhos lhe ardiam, mas se desembaraçou com raiva dessa sensação. Convenceu a si mesma de que a origem dessa emoção estava nos lobos. Sua vulnerabilidade se devia ao ataque, não que ele a tivesse rechaçado. Aspirou fundo e procurou recompor seus confusos sentimentos. Também ela estava disposta a fazer como se aquele momento jamais tivesse existido.

Uma vez mais, ele tinha saído em sua ajuda e quase se esquecia de agradecer-lhe, Arthur tentava tirá-la dali, mas ela o deteve.

—Obrigada — disse.

—Não foi nada — repôs ele tirando a importância.

Um cavalheiro modesto? Não pensava que existisse tal coisa. Mas talvez tivesse que ter adivinhado que ele seria assim. Parecia empenhado em passar despercebido.

—Sei que provavelmente não acreditará, mas em geral não estou tão necessitada de que me resgatem.

Arthur fez uma careta levantando o lábio.

—Esta vez não foi você, a não ser ele — disse assinalando ao cachorrinho que tinha em seus braços.

—Ambos fomos afortunados de o ter aqui cuidando de nós. Sois nosso cavalheiro andante de brilhante armadura.

Só tentava brincar, mas a expressão de Arthur voltou a tornar-se séria.

—Não acredite em contos de fadas, lady Anna. Acabarão desenganando.

Não fez cargo da advertência, mas sir Arthur se equivocava.

—Estivestes incrível. Jamais vi ninguém reagir com tal rapidez. Era como se…ficou circunspeta. Voltou a recordar o momento do ataque. Como sabia que os lobos atacariam? Isso mesmo tinha acontecido no escarpado. Era quase como se soubesse o que aconteceria, como se o pressentisse antes que efetivamente ocorresse.

Por Deus bendito… Isso era o que acontecia. Pôs cara de surpresa e cravou o olhar nele. Poderia ser essa a explicação à estranha intensidade que percebia bulindo sob a superfície? Em princípio o atribuiu a seu estado alerta e de observação tenaz, mas teria algo mais que isso?

Anna deu um passo atrás e se tampou a boca com a mão.

—Sabias.

Arthur notou como se lhe apertassem os músculos e ficava em tensão, enquanto que se preparava para o medo, para a aversão que seguia às estranhas ocasiões em que alguém vislumbrava suas incomuns habilidades. Inclusive seus próprios pais o olhavam com incrédula expressão no rosto. De pequeno tentava fingir que não era diferente dos outros. Tentava explicar, lhes fazer compreender que não era nenhum inseto estranho, que simplesmente seus sentidos estavam mais agudos e sua consciência mais desenvolvida, e que sua capacidade de observação e percepção era mais afinada. Não podia ver o futuro. Não tinha premonições. Eram mais como pressentimentos. Mas passado um tempo deixou de dar explicações. Parecia mais fácil não ter que lutar com isso. Assim preferia manter-se à margem e não permitir que ninguém se aproximasse o suficiente para ter oportunidade de adivinhar. Era diferente dos outros. Finalmente sabia. Tinha a sorte de contar com habilidades extraordinárias. Estar sozinho não era algo que lhe incomodasse. Diabos, preferia que fosse assim.

Mas Anna MacDougall não pensava permitir. Tentava resistir, mas ela seguia esticando a corda. E acabava de ver algo que nunca devia ter visto. Apesar de estar preparado para sua reação, aquele passo atrás instintivo lhe doeu. Parecia que lhe ardessem os pulmões. Fez como que não tinha ouvido suas palavras e se encaminhou de novo para onde estavam os cavalos. Que diabos se importava o que pensasse? Teria que estar contente de livrar-se dela.

—Espere —disse Anna indo atrás dele — por que estais zangado?

Arthur não a olhou, mas sim seguiu seu caminho.

—Não estou zangado — disse com um tom de voz que revelava justo o contrário.

—Espere — repetiu, agarrando-o no braço — Quero falar do que acaba de ocorrer.

Por que diabos tinha que lhe tocar sempre? Retirou o braço para largar de sua mão, mas cometeu o engano de olhar a sua cara.

—Maldita seja, deixem de me olhar deste modo — bramou.

Sua veemência a sobressaltou, o qual era bom, porque dissipava a dor.

—Como estou olhando?

—Como se acabasse de pisotear a esse seu cachorrinho.

Anna ergueu o queixo; os olhos brilhavam de uma maneira perigosa.

—Terás que me perdoar. Não me dei conta de que sentiam uma aversão tão forte a meu toque. Tentarei recordar no futuro.

Acaso estava louca? Teria se rido se não estivesse tão furioso. Aversão a seu toque? Teria que ser justo o contrário. O normal seria que saísse fugindo à carreira, não que o tocasse e, é obvio, tampouco que se ofendesse porque retirasse o braço. Que demônios passava com ela?

Não atuava do modo em que se supunha que devia atuar. Inclusive Catherine, a mulher que lhe tinha professado amor, negou-se a estar no mesmo aposento que ele quando a empurrou para afastá-la do lugar no que imediatamente depois cairia uma chuva de pedra. Talvez Anna não tivesse descoberto.

—Não queria o fazer sentir incômodo. Simplesmente me parece que o que acabam de fazer é extraordinário.

De acordo, tinha descoberto. Mas estava claro que isso que adivinhava em seu olhar não podia ser admiração. Apertou as mandíbulas.

—Desfazer-se de alguns lobos, qualquer poderia tê-lo feito. Estais exagerando um pouco. Vamos, Robby estará se perguntando o que nos ocorreu.

Se pensara que com aquelas palavras a faria calar se equivocava.

—Não foi só isso e sabeis. Os lobos estavam muito longe para que pudesse ouvi-los. E mesmo assim sabias que vinham. Sentiu-os antes que qualquer pessoa normal…

Estremeceu-se. Por mais que levasse vinte anos agüentando aquilo, seguia estremecendo-se. Isso era o que mais o zangava. Agarrou-a pelo braço e a atraiu para si, pondo sua boca a escassos centímetros da dela. Inclusive zangado como estava, sentia esse arrebatador desejo que lhe nublava a mente e revolvia as vísceras. A moça o pressionava a todas direções: sua incansável sedução, seu doce rosto e seu pecaminoso corpo, seu embriagador perfume, suas malditas perguntas; e não sabia o perto que estava de lhe dar o que estava procurando. Ele não seduzia. Não dançava. Não andava com tolices. Se uma mulher se oferecia, tomava. Assim simples e sem complicações. E assim seguiu atuando.

—Olhe — disse com firmeza. Vencer a vontade que tinha de possui-la até deixá-la sem sentido fazia que se desprendesse de qualquer sutileza. Atirá-la em cima da árvore que tinha ante si parecia muito apetecível — Não sei que diabos pensam ter visto, mas te equivoca. Ouvi como vinham os lobos e reagi a isso. Não te ponhas a imaginar coisas pelo simples feito de que você não ouviu.

—Jamais poderia tê-los ouvido —insistiu — Estavam muito longe.

—Para ti. Não estais treinada para identificar os sinais. Esse silêncio artificial, o aroma que traz o vento…

Mas ela não atendia a suas explicações. Arthur sentiu o peso de seus olhos sobre o rosto e se arrependeu de tê-la tão perto.

—O que tenta ocultar?

—Nada. —Arthur a soltou sem muita delicadeza.

O escrutínio de seu olhar se intensificou e teve que obrigar-se a não fugir. Por Deus bendito, mas se ele não fugia nada.

—Parece-me que estais mentindo —disse Anna em voz baixa — Me parece que não te relaciona com outros para que não vejam o que eu acabo de ver. E acredito que agora mesmo tenta te separar de mim por essa mesma razão.

Arthur ficou feito pedra. Todo seu corpo esfriou, à exceção de um pequeno lugar na parte mais íntima de seu ser. Isso o tinha ardendo.

Não queria sua compaixão, maldita seja. Não era um cachorrinho que necessitava que o resgatassem. Reagiu da única forma que sabia. Olhou-a nos olhos.

—Não te ocorre que a razão pela que me separo de ti é que não me interessa?

Anna ficou sobressaltada, estremecida pela pura e simples crueldade de suas palavras. Piscou várias vezes, e a cada piscada a queimação no peito de Arthur se tornava mais e mais intensa. Mas não pensava em consolá-la. O fazia para seu próprio bem. E mesmo assim, seu trêmulo sorriso quase o desarma.

—Não, para minha vergonha, não me tinha ocorrido. Vos rogo, desculpe as moléstias que tenha podido te causar.

Com a dignidade de uma grande rainha, deu meia volta e se afastou dele. E Arthur, apesar do fogo que o consumia por dentro, permitiu que o fizesse.


Capítulo 8


Aquele foi o trajeto mais longo na vida de Anna. Jamais havia se sentido tão humilhada. Mas quando chegaram ao castelo a humilhação se converteu em raiva. Tinha mentido com isso de que não lhe interessava. Tinha percebido em seus olhos quando a tinha segurado. Claro que lhe interessava. Mas, por alguma estranha razão, queria que ela pensasse o contrário.

Robby se aproximou para ajudá-la a descer do cavalo e Anna, determinada a provar que aquilo não eram imaginação dela, decidiu lhe dar o cachorrinho em lugar de aceitar seu oferecimento.

—Sir Arthur —disse com uma doçura exagerada — Se tiver a gentileza…

Ele a olhou com uma expressão imutável, mas começava a decifrar essas expressões imutáveis, de modo que entreviu o receio que se ocultava debaixo dela.

Não restava dúvida.

Quando tomou sua mão para ajudá-la a descer, Anna se tombou para frente com todo seu peso, obrigando-o a agarrá-la para não deixá-la cair no chão. Por um longo instante seu corpo ficou estendido sobre ele, com os braços ao redor de seu pescoço e as mãos acariciando essa espessa juba que era exatamente tão suave e sedosa como parecia. Ficou cheia de vontade de afundar os dedos entre seus cabelos e grudar seu rosto ao dela.

Ele emitiu um som brusco ante esse contato: um rugido. Isso é o que era. Um profundo e masculino rugido. E assim que o olhou nos olhos soube que mentia. Sim lhe interessava. E morria de vontade de tê-la, a julgar pelo apertar de sua boca e o nervoso tremor de seu queixo.

Tampouco ela permanecia impassível. Apesar de que mal pudesse surpreender no lugar que acabou, seu corpo se estremeceu e seu coração pulsava com força ante o frio e duro aço de um peito que mais que de carne, parecia feito de pura cota de malha. Quando a cabeça cessou de dar voltas, soltou-se de braços e deixou que seu corpo escorregasse sobre ele antes de afastar-se. Estava tão duro e firme como uma rocha, com todos os músculos do corpo rígidos. Anna notava essa tensão, que se desprendia dele como as chamas de um fogo.

—Sinto muito ter feito isso —disse com um sorriso de indiferença — Não sei o que me passa.

Arthur entreabriu os olhos maliciosamente, mas deu no mesmo. Tinha provado o que queria. Ela sabia, e o que era mais importante, ele sabia.

—Tomes cuidado, milady — a advertiu nesse escuro e velado tom de voz que tinha — Não quererá te ferir fazendo alguma tolice.

—Todo um detalhe de sua parte que te preocupes. —Esteve a ponto de lhe dar um tapinha na bochecha, mas pensou que isso podia ser colocar o dedo na chaga. Já tinha obtido sua vitória — Mas não é necessário que te preocupes. Sei perfeitamente o que faço.

Tomou seu cão de mãos de Robby e se pôs em marcha para o castelo. Embora estivesse tentada a fazer, não olhou pra trás. Já tinha visto esse olhar assassino muitas vezes para saber que aspecto tinha. Anna teria contentado deixando as coisas assim, com seu orgulho feminino intacto, de não ser porque despertava sua curiosidade. por que estava tão decidido a livrar-se dela? Ocultava algo, ou simplesmente evitava enredar-se? Era como se fosse cruel de propósito na floresta. Como se ela tivesse acionado alguma mola. Só queria lhe agradecer o que tinha feito e essas extraordinárias habilidades que tinha posto em cena, mas ele tinha tomado como se o acusasse de ser um monstro. Anna mordeu o lábio. Seria isso? Preocupava-se como reagiriam outros? Supunha que aquilo era compreensível. As diferenças não eram bem toleradas na sociedade daqueles tempos e provocavam medo e rechaço. esforçou-se em deixar claro que não tinha feito nada extraordinário. Mas tinha feito, ou não? pensou voltando a morder o lábio sem estar segura de tudo. Certamente, naquele momento pareceu. Ocorreu tudo muito rápido. Tinha advertido sinais que ela não percebeu ou houve algo mais? Em qualquer caso, não cabia dúvida de que ele não queria reconhecer que aquilo fosse extraordinário.

Mais tarde explicou a seu pai o que tinha ocorrido em termos parecidos como quando caiu no escarpado, minimizando em grande parte sua versão da história e dando uma explicação para cada coisa. Seu pai a repreendeu por expor sua vida por um cão e voltou a expressar sua gratidão a sir Arthur. Anna não compreendia por que este subtraía importância ao acontecido. Suas qualidades poderiam ser de grande ajuda na luta contra os rebeldes. Com suas aguçadas habilidades, Bruce e sua tropa de foragidos teriam muito mais dificuldade na hora de perpetrar aqueles ataques apoiados na emboscada. Mas quando comentou que tinha sugerido a seu pai que se aproveitasse de suas destrezas e lhe fizesse rastreador ou, melhor ainda, expedicionário, parecia que o tivesse sugerido limpar o guarda-roupa. Sir Arthur se zangou muitíssimo com ela. Durante os seguintes dias sentiu uma incomum intensidade em seu olhar cada vez que se encontrava com ela.

Agora lhe parecia mais fácil vigiar. E isso tinha que agradecer ao Escudeiro. Ao que parecia, seu novo cachorrinho tinha pego carinho a seu salvador. Escudeiro, cujo nome procedia das brincadeiras que os homens faziam a sir Arthur dizendo que por fim tinha um, ia direto para ele assim que Anna dava a volta. Já estivesse no jardim praticando junto aos homens, comendo no salão, ou inclusive nos barracões, o cão o encontrava. Se sir Arthur saía a cavalgar, o cão o esperava todo o dia às portas choramingando até que retornava. Aquilo não teria sido tão mau se não fosse porque a pobre criatura se excitava tão cada vez que o via que se fazia xixi. A última vez estivera a ponto fazê-lo sobre o pé de sir Arthur.

Dizer que o cachorrinho era uma moléstia para ele era dizer muito pouco. O cavalheiro ignorava ao cão, espantava-o e gritava para que se fosse, mas por mais que o rechaçasse o cachorrinho não se dava conta. Escudeiro mostrava devoção pelo castigo. Anna entendia o sentimento. Ao que parecia ambos tinham essa mesma debilidade pelos cavalheiros arrumados de traços duros, cabelo castanho ondulado, olhos marrons com nervuras douradas e o queixo com covinha. Atraía-lhe. Talvez sentisse igual ao cachorrinho, que sir Arthur necessitava a alguém junto a ele. Sua distância se percebia como solidão; seu afastamento, como um escudo que estava disposta a atravessar. O que esperava encontrar atrás dele era algo que entretanto não sabia. E à medida que passavam os dias sem causas para a suspeita, as desculpas para rondá-lo começavam a fraquejar. Mas se não o vigiava por seu pai, por quem o fazia?

Essa era a pergunta que se perguntou no caminho do grande salão para o jantar. Seu pai estaria já à espera de um relatório e teria que dar-lhe. Não tinha averiguado nada. As maiores ofensas do cavalheiro eram sua propensão a quietude e uma aguda habilidade para ignorar sua pessoa. Sabia que tinha chegado o momento de pôr fim à espionagem. Mas por que se mostrava tão relutdiante da deixá-lo tranqüilo? Sir Arthur não tinha nada a ver com os homens que normalmente a cativavam. Mas não podia negar que lhe atraía, e muito. mais do que jamais lhe tinha atraído ninguém. Quase o suficiente para fazer que se esquecesse de que ele era uma pessoa totalmente errada para ela. Sim, já era hora de dar por finalizado aquilo.

Estava a ponto de sair da escada em caracol da torre principal em direção ao corredor que levava a grande salão quando uma bola de cabelo cinza e negra adiantou a toda carreira e dando uivos. Anna, a ponto de cair, murmurou uma imprecação muito imprópria de uma dama ao se dar conta de que provavelmente não tinha fechado bem a porta da câmara que compartilhava com suas irmãs e Escudeiro conseguira escapar uma vez mais. Mas, por sorte, a porta fechada ao final da escada o deteve. Quando alcançou ao pequeno endiabrado, este estava esperando-a junto a aquela porta, ladrando e movendo a cauda com excitação. Ao recolhê-lo lambeu o rosto.

—Aonde acredita que vai? —perguntou — A ver, me deixe que adivinhe. Sir Arthur? —O cão ladrou como se afirmasse — É um caso perdido, pequenino. Quando aceitará que não o quer a seu redor? —O cão uivou e inclinou a cabeça como se não a tivesse ouvido bem. Anna suspirou e negou com a cabeça. Talvez devesse atender ela mesma a esse conselho — Está bem, está bem. Sinto — disse pondo-o no chão e abrindo a porta — Mas logo não diga que não lhe adverti isso.

Esperava que o cachorrinho se dirigisse para o grande salão, mas em vez disso foi para o pátio. Voltou a suspirar e seguiu seus passos até o exterior. O frio vento do mar e a bruma que caía atravessaram seu fino vestido de lã, lhe fazendo pensar que deveria ter levado uma capa, apesar de que quando tinha baixado para comer não tinha previsto fazer nenhum passeio vespertino, e que à exceção dos guardas que cobriam os muros, o barmkin estava deserto. Todos deviam estar dentro comendo. Então por que não o fazia também sir Arthur?

Escudeiro cruzou pelo centro do pátio onde estava o poço e passou pela frente das cozinhas para a asa noroeste. Ao que parecia, o cavalheiro estava nos barracões. O cachorrinho esperou na porta que Anna chegasse. Fosse estava tudo muito tranqüilo. Inquietantemente tranqüilo. E aquele canto do pátio em particular, especialmente escuro. Ainda não tinham acendido as tochas da entrada. À medida que se aproximava se avolumava sua apreensão, e perguntou de repente se aquilo seria uma boa idéia. Segui-lo até os barracões à luz do dia era uma coisa e outra diferente fazê-lo de noite. O cachorrinho também parecia tê-lo pensado melhor, porque tinha deixado de ladrar e a olhava com expressão vacilante.

—Você foste o que nos colocou nisto —murmurou — Já é muito tarde para acovarda-se.

Se falava com cão ou o dizia a si mesmo era difícil de decidir. Entreabriu a porta e olhou para o interior. Seus olhos examinaram a escura sala, somente iluminada pelas brasas meio consumidas do fogareiro que havia na parede em frente. Escudeiro, ao que parecia tinha vencido seu medo, saiu correndo para o centro do aposento deserto, adiantando-se a Anna. Murmurou outra de suas maldições favoritas, tentada de deixá-lo ali, mas em vez disso o seguiu até o interior. A porta se fechou de repente a suas costas lhe fazendo dar um salto do susto. Procurou manter o pulso calmo, sem saber por que tremia como um pudim.

—Escudeiro — sussurrou para chamá-lo, embora não visse razão para isso. Não havia ninguém ali.

O cachorrinho a ignorou e foi até o outro lado do longo e estreito edifício de madeira, saltando sobre o camastro12 que ela sabia que pertencia a sir Arthur. Seu pulso se acelerou de novo ao aproximar-se e ver o monte com seus pertences estendido sobre o jergón. Em qualquer lugar que tivesse ido, não pensava demorar muito.

mordeu o lábio enquanto considerava. Aquela era a oportunidade que sempre tinha esperado para aprender algo a respeito de sir Arthur Campbell. Pôs a um lado seu sentimento de culpa e se dispôs a revisar as coisas com cuidado, sem saber exatamente o que procurava. Além de sua malha, suas meias com perneiras, várias mudas e um broche de prata que não tinha visto antes, havia pouco mais, e certamente nada de natureza pessoal. Os cavalheiros levavam pouca bagagem; não sabia o que esperava encontrar. Talvez algo que ajudasse a desentranhar o mistério.

Escudeiro rebuscava entre sua cota de malha, tentando chegar a algo que havia sob o jergón. Não obstante, não teve tempo de investigá-lo, porque nesse mesmo momento Anna ouviu um ruído que a deixou gelada: uma porta que se abria e voltava a fechar-se. Passos. O resplendor de uma vela. Pelos pregos de Cristo, havia retornado!

O sentimento de culpa se transformou em pânico. Em vez de ficar ali de pé e dar alguma desculpa plausível para entrar nos barracões, agarrou ao cachorrinho do camastro e olhou a seu redor em busca de algum lugar onde esconder-se. Viu um poste de madeira enorme ao outro lado do aposento e se ocultou atrás dele justo no momento em que o círculo luminoso se fazia visível. Dava a impressão de que tinha detido a respiração. precaveu-se muito tarde de quão estúpido era esconder-se. O cão poderia delatá-la em qualquer momento. Mas Escudeiro parecia ter captado seu nervosismo e tinha a cabeça oculta no vão de seu braço.

Sir Arthur colocou a vela junto ao camastro e lhe ofereceu um claro olhar do que estava fazendo. Os olhos lhe abriram sem querer ao vê-lo atirar à cama a toalha que levava a pescoço. Tinha o cabelo e a camisa molhados. precaveu-se, muito tarde, pelo que estava fazendo e da razão pela que seus pertences estavam pulverizadas sobre a cama. Estava tomando um banho. Teve que afogar um gemido de estupor quando o viu puxar a camisa pela barra, passar por cima da cabeça e atirá-la junto à toalha. A boca lhe secou ao tempo que tentava assimilar a massa vibrante de músculos que o cobria de cintura para acima. Céu santo, era um homem formidável! Ombros largos, cintura esbelta, braços grossos e fortes e uma capa de pele sobre outra de músculos que cruzavam seu ventre de lado a lado. Jamais tinha visto com antecedência a uma pessoa que estivesse tão prodigiosamente… bem formada. Qualquer um teria dito, pela perfeição daquele corpo, que se tratava de uma estátua esculpida em pedra. Salvo porque era feito de carne e ossos, carne e ossos tão quentes… Tinha acertado ao pensar que seu corpo conduziria as marcas de sua profissão. As cicatrizes se estendiam livremente por seu ventre e seus braços. As piores pareciam um talho enorme que lhe atravessava o flanco e uma feia marca em forma de estrela que tinha no ombro.

Ficou pensando. Uma estranha marca negra aparecia embaixo dessa cicatriz no mesmo braço. Concentrou o olhar em plena escuridão em uma tentativa de distinguir o desenho do que parecia uma tatuagem. Embora sabia que as marcas não eram algo fosse do comum entre os guerreiros, nunca antes tinha visto uma de perto, de modo que tinha curiosidade. Talvez muita. inclinou-se para frente e Escudeiro tomou aquilo por um convite. Saltou de seu regaço e correu em direção ao guerreiro meio nu.

Quando Arthur descobriu que não estava sozinho ficou furioso. Quando percebeu quem estava ali e de que tinha engenhado para saltar todas suas defesas, ficou lívido. Fazia anos que ninguém não o surpreendia e o fato de que se tratasse de lady Anna piorava as coisas. Parecia uma prova justa do que aquela moça o distraía de suas obrigações. Suas intercessões já o tinham posto em perigo ao lhe fazer chamar muito a atenção. E não tinha nem idéia de no que se estava colocando. Era culpa dela que se convertera no explorador de Lorn, pelo amor de Deus! Ignorou ao fastidioso cachorrinho que saltava a seus pés e olhou fixamente para a escuridão para a fazer saber que a tinha descoberto.

Pouco depois Anna saía de seu esconderijo depois do poste.

—Sir Arthur — disse alegremente, apesar de que o nervoso gesto de espremer saia entre as mãos a delatasse — Que surpresa! Escudeiro e eu saíamos a dar um passeio e… bom, a porta estava aberta, e parece que queria lhe ver. porque entrou aqui antes que pudesse detê-lo e…

ficou em silêncio, olhando-o no rosto. Estava tão nervosa que suas bochechas empalideceram antes de ruborizar-se. Até esse momento Arthur não se lembrou de que não vestira a camisa. Mas a estúpida mucosa não teve suficiente sentido comum para olhar a outro lado, ou ao menos fazer como que não se dava conta. ficou olhando descaradamente e ele interpretou à perfeição o que estava pensando. «Jesus.»

O ar que havia entre ambos começou a esquentar-se. Arthur percebia quão afetada estava, não só pela vergonha, mas sim por algo muito mais poderoso: pura excitação. Anna se agachou para recolher ao cão.

—Estais… estais ocupado. Já íamos.

—Quieto! —ordenou-lhe à besta infernal antes que pudesse saltar sobre os braços de Anna.

Seria melhor que aquele pequeno saco de pulgas descarado não tentasse mijar em cima dele de novo. Tanto Anna como o cão ficaram paralisados para ouvir sua voz. E ambos o olhavam com cara de não ter quebrado um prato. Não sabia qual dos dois representava mais problemas. Mas era a moça quem lhe preocupava. Agarrou-a pelo braço e a sacudiu ante si.

—Lady Anna o que viestes a fazer aqui na realidade?

—Nada, eu… — disse baixando o olhar para o monte de coisas que havia sobre sua cama, declarando assim sua culpabilidade.

A Arthur gelou o sangue. Olhou para o lugar onde tinha deixado o mapa e se aliviou ver que ela não o havia tocado. Entretanto, algumas das coisas não estavam em seu lugar. Então caiu na conta. Assim que isso era o que acontecia? Era possível que seu interesse por ele fosse um mero pretexto para lhe espiar? Pelo sangue de Cristo, tudo fazia sentido. Lorn tinha usado a sua filha para vigiá-lo. Se não estivesse tão furioso inclusive teria rido diante da ironia.

—Estavas me espiando —disse sem mais — É por isso pelo que parece minha sombra desde que cheguei? Seu pai pediu que me vigiassem?

Anna tragou a saliva. Um rubor rosado subiu por suas bochechas, mas Arthur não podia saber se era por sentir-se culpado ou insultada.

—Não sei do que estais falando. Eu não sou sua sombra. E muito menos o estou espiando.

Mentia. Se fosse um homem já estaria morto pelo que tinha feito. Podia lhe partir o pescoço com uma só mão. Deus… Acaso acreditava que aquilo era um jogo? Se em algum momento a verdade chegasse a seu conhecimento, teria que…

Devia proteger seu disfarce a toda custo, assim melhor seria que se assegurasse de que isso nunca ocorresse. Jamais poderia lhe fazer dano.

Aproximou-a mais a si e sentiu como tremia sobre seu corpo. Inclusive através da bruma de ira que o assolava podia sentir o suave e embriagador perfume de sua pele. O desejo o torceu como um torniquete. A moça não tinha nem a menor ideia do perigo ao que enfrentava, e não só porque o estivesse espiando. Ficava completamente a sua mercê. Não sabia o perto que estava de aproveitar-se da situação. Estavam sozinhos. À luz das velas. Tinha o corpo dela grudado a seu torso nu e a cama justo ali, preparada para acolhê-los. Se é que dava para usar a cama. No momento, a parede lhe parecia perfeita. Seus músculos se esticaram. Conter-se era algo que parecia cada vez mais difícil.

—Então há alguma outra razão pela que a tenha encontrado em minha cama?

Os olhos de Anna se abriram completamente.

—Não estava em sua cama —replicou com indignação — Não estavas aqui. Escudeiro ansiava lhe ver e eu simplesmente tinha curiosidade — disse elevando o queixo — Talvez se fosses mais aberto, eu seria menos curiosa.

Arthur ficou de pedra. Estava realmente a pequena bruxa culpando-o de que ela mesma rebuscasse entre suas coisas? Jamais cessaria de lhe surpreender o manejo magistral da lógica nas mulheres.

—E saciastes sua curiosidade?

—Não — replicou Anna, evitando seu sarcasmo. Depois pousou o olhar sobre seu braço — Isso que têm aí é uma tatuagem?

Que não pronunciasse a imprecação que aflorou a seus lábios dava testemunho de quanto podia controlar-se. O leão rampante de seu braço era o único laço exterior que tinha com os Guardiões das Highlands e sua intenção era tanto servir de vínculo entre os guerreiros como um meio de identificação em caso de que surgisse a necessidade. Mantinha-o oculto para evitar perguntas, e procurava banhar-se e mudar-se de roupa de baixo quando não havia ninguém ao redor. Quão último precisava era que Anna MacDougall o visse. Mas assim tinha ocorrido. Consciente de que o dano já parecia, disse: —Sim, uma lembrança de meus dias como escudeiro.

—É a primeira vez que vejo uma.

antes que pudesse examiná-lo mais de perto, e Deus o evitasse, de que pudesse tocá-lo de novo como parecia estar a ponto de fazer, Arthur a soltou, inclinou-se para tirar uma camisa do monte de roupa e a passou por cima da cabeça. Cobrir sua nudez deveria ter aliviado um tanto a tensão, mas a inocente moça não teve o sentido comum de ocultar sua decepção, e à Arthur voltou a lhe ferver o sangue.

—Não deverias estar aqui — disse bruscamente.

—Têm medo de que o agarrem em uma situação comprometida, sir Arthur?

Sabia que não fazia mais que provocá-lo, mas não estava de humor para jogos. A moça esperava muito de sua venerabilidade como cavalheiro. Ele era um highlander, jogava segundo suas próprias regras. E nesse preciso momento teve que fazer uso de tudo que tinha para não lhe ensinar uma lição a respeito dos limites de um homem na hora de controlar-se.

—Tomem cuidado com o que pedes, lady Anna. É possível que o consigas. —A intensidade de seu olhar não deixava lugar a dúvidas sobre a que se referia — Não fui eu quem apareceu em sua câmara sem que ninguém me convidasse.

A pequena pulsação de seu pescoço se acelerou e suas bochechas se ruborizaram timidamente. Mas seus olhos, esses preciosos olhos do azul do mar, seguiam desafiando-o.

—Não lhe interesso. Recordas?

ficou paralisado. Tinha todos os sentidos a flor de pele. Estava a somente um fio de distância de lhe provar que se enganava. Mas houve algo em sua expressão que fez que lhe tremesse o pulso e optasse por uma rápida retirada.

—Além disso… foi Escudeiro quem quis vir — disse inclinando-se para acariciar ao cachorrinho, que não cessava de dar voltas sobre seu jergón.

O cachorrinho ladrou travessamente e começou a escavar com sua cabeça sob a manta. «Por todos os demônios.» Aquele maldito cão não estava jogando, pensou Arthur. O que fazia era tentar chegar a uma coisa.

—Fosse — disse Arthur para espantar ao problemático vira-lata. Mas já era tarde. Tinha visto.

—O que tem aí? —disse Anna ao cão.

antes que Arthur pudesse evitar, já estava puxando o canto do pergaminho que o cachorrinho tinha tirado de debaixo da manta. Amaldiçoou por dentro, com vontade de arrancar de suas mãos, mas se obrigou a fazer como se não passasse nada. Como diabos explicaria que tinha um mapa das terras de seu pai? Melhor seria que pensasse algo rápido.

—Parece um desenho — disse Anna, e ergueu o olhar — Foi tu que fizestes? —Arthur não disse uma palavra. Ela voltou o olhar ao mapa e passou os dedos pelas linhas de tinta arranjadas pela pluma — É precioso.

A admiração de sua voz o afetava mais do que queria. Recordou o quanto gostava sua mãe aqueles desenhos a giz que fazia quando pequeno. Uma vez que começou com seu treinamento já não teve tempo para essas coisas. Logo ela morreu e todo aquilo careceu de importância. Separou-se de sua mente aquelas lembranças. Pelo sangue de Cristo, a mucosa havia conseguido de novo. Em lugar de inventar uma desculpa para salvar sua pele, atuava como essa ferinha do demônio dela, lambia com suas adulações.

—Não é nada — disse com desdém.

Anna o olhou com aqueles olhos muito observadores que viam de muito mais do que ele queria. Sua expressão era implacável e não o delatou absolutamente, mas de algum modo ela sentiu que estava incômodo.

Felizmente o interpretou mal.

—Não há por que envergonhar-se — disse com um amável sorriso ao tempo que lhe punha uma mão sobre o braço.

por que diabos tinha que ser tão doce e lhe sorrir desse modo? Sua vida estava livre de complicações e assim era como gostava que fosse. Não queria sentir-se atraído para ela. Mas era impossível resistir a tanta calidez e gentileza.

—me parece uma maravilha. Esse modo em que soubestes captar o ar da campina… Têm um olho artístico para a perspectiva e os detalhes.

Arthur sentiu uma pressão no peito e se disse a si mesmo que era alívio. Estava claro que Anna pensava que era um esboço e que ele se envergonhava de que soubessem que tinha um passatempo tão impróprio de um guerreiro. Tinha uma sorte enorme de que o mapa estivesse pela metade. Embora essa era a razão de que não estivesse em sua bolsa, onde tinha que estar. Mas se desse a volta…

Seria muito complicado encontrar uma desculpa para as notas sobre o número de homens, cavalheiros, cavalos, e as provisões de armas. Amaldiçoou sua torpeza por não ocultar o documento antes de ir ao lago. Pensava que não o incomodariam. Mas teria que imaginar. Ao que parecia, não havia lugar algum no que pudesse livrar-se dela.

Deu um passo em sua direção com a mão em alto e uma expressão séria. Obviamente não tinha nenhuma vontade de renunciar ao mapa, porque ficou duvidando para depois sustentá-lo em alto e voltar a olhá-lo à luz da vela que ele tinha colocado sobre uma mesa junto ao camastro.

—O que são essas marcas?

O mundo veio em cima de Arthur quando percebeu de que ela acabava de ver as sombras do que tinha escrito por trás.

—Deixe estar já, Anna.

«me deixe estar.»

Anna ergueu o olhar e seus olhos se encontraram diante da trêmula luz da vela.

—Não posso. —Suas palavras pareceram surpreendê-la a ela mesma tanto como a ele. Entre suas sobrancelhas se desenharam umas rugas de desconcerto — É que não sente?

Arthur não queria ouvir o que lhe dizia, não queria reconhecer aquilo que era impossível. Ela era filha de Lorn. Estavam em lados opostos. Maldita seja, ele não sentia nada absolutamente.

—Acreditei que tinha deixado muito claro quando voltávamos da vila.

—Ouvi o que dizia, mas eu senti algo diferente — respondeu Anna com os olhos brilhantes.

Arthur sentiu um arrebatamento de fúria e o lançou contra ela.

—O que sentistes era luxúria. —Aproximou-a contra si para que sentisse todo o poder de seu corpo — É isso o que querer, Anna?

Ela ficou sem fôlego. Tentou livrar-se de seu abraço, como um passarinho revoando em uma jaula, mas ele não a soltava. Desta vez não. Já o tinha atormentado durante suficiente tempo. Tinha que aprender que aquilo não era nenhum jogo, que suas inferências eram perigosas em mais de um sentido. Não era somente o perigo que supunha para sua missão. Era uma dama e o que ele queria conseguir era algo que ela não podia lhe oferecer.

—me solte —disse Anna, escrutinando seu rosto com ansiedade — Está me assustando.

Arthur pôs a mão sob seu pescoço e acalmou a agitação de seu pulso com o polegar.

—Bem.

Deus sabia que era ela quem mais o assustava.

Instantes depois, Arthur punha sua boca na de Anna e se deixava levar por esse desejo que dava voltas em seu interior como um torvelinho a ponto de desatar-se.


Capítulo 9


Arthur a beijou com todas suas forças, apertando os lábios, com vontade de castigá-la por fazer isso com ele. Por tentá-lo. Distraí-lo. Por ser tão odiosamente doce. Queria lhe dar uma lição. Mas ao primeiro contato com sua boca pareceu que lhe puxavam uma marreta no peito. Bastou um rápido roçar para que o duro impacto dessa sensação aplacasse sua ira. O desejo invadiu seu corpo e o alagou com um intenso desejo. «Jesus.» Tinha sabor de anjos. Esses lábios eram muito suaves. Sua pele cheirava muito bem. E seu cabelo… «Deus, que glorioso cabelo…», pensou enquanto deixava que os sedosos cachos de cabelo passassem entre seus dedos. Era como de outro mundo.

Ela era de outro mundo. Um anjo enviado para lhe torturar.

Grunhiu de prazer e a soltou um pouco, suavizando o beijo ao mesmo tempo que acariciava, lenta e tranqüilamente essa vez. Embalou-a junto a seu peito e beijou seus lábios com doçura, roçando-a, provando-a, saboreando a deliciosa sensação que oferecia aquela boca movendo-se sob a sua.

Era algo incrível. Mais doce inclusive do que teria imaginado ou atrevido a fazer. Do primeiro momento em que pôs os olhos em Anna MacDougall a tinha desejado, mas se negava a pensar nisso como algo possível. E não era possível, demônios. Estava mau. Era perigoso. Uma perdição. Não deveria estar fazendo isso. Mas tampouco podia deter-se.

Não era mais que um beijo, dizia-se a si mesmo. Algo que já tinha feito incontáveis vezes. Nada que escapasse a seu controle. E entretanto não sentia aquilo como um beijo qualquer. «Sentia.» Essa era a diferença. Em geral, não fazia. Para ele um beijo não era mais que um meio para conseguir um propósito, um aplique ao ato principal e não algo que provocasse prazer em si mesmo. Não obstante, beijá-la propiciava prazer, mais agradável de que deveria.

Estava claro que acontecia algo estranho. Seu corpo não reagia da maneira devida ante um simples beijo. Estava ardendo. E por que demônios lhe pulsava tão depressa o coração? O desejo era algo controlável. Manejável. Não era a primeira mulher que lhe punha quente, mas não se viu tão consumido pela necessidade nem nos momentos prévios que fez com a primeira concubina em seus tempos de escudeiro. Estava duro feito pedra. Doía-lhe. Jamais na vida estivera tão quente.

Ao menos a luxúria era algo compreensível. O que não entendia era esse outro sentimento. A sensação que lhe enchia o peito e fazia que seu coração parecesse a ponto de explodir. A sensação de ter uma embriagante necessidade de protegê-la. De resguardá-la, de cuidar dela. O sentimento que dizia que a abraçasse e não a soltasse nunca mais. A intensidade dessas reações deveria ter servido como advertência. Mas estava muito ocupado deleitando-se com as emoções, aspirando sua doce fragrância, passando os dedos entre seus sedosos cabelos e saboreando a delicadeza de sua pele para ver a advertência. Tudo em que podia pensar era na mulher que se derretia entre seus braços e que jamais poderia ser dele.

Anna pensou por um arrepiante momento que talvez o tivesse levado muito longe. O olhar que percebeu em seus olhos justo antes que a beijasse foi aterradora. Apreciou então o reflexo de um homem ao que não tinha visto antes. Não era um cavalheiro distante e controlado, e sim um guerreiro selvagem e indomável. Um homem que parecia muito mais perigoso do que ela pensava. A ferocidade de seu beijo a sobressaltou. Era como se toda essa escura energia concentrada que ela sentia acumulando-se por debaixo explodisse de uma vez em um cruel abraço. Anna percebia a raiva contida no castigo inclemente de sua boca. Aquilo era para assustar, mas inclusive no caso de que ele estivesse furioso e perdesse o controle, sabia que jamais poderia a machucar. O que não sabia era por que estava tão segura. Mas estava.

E então, antes que pudesse reagir, antes que pudesse sacudir a comoção do corpo, antes que desse tempo pensar em quão bom era seu sabor, algo escuro e distintamente masculino, tudo mudou por completo. Arthur emitiu um gemido e foi como se toda sua raiva desaparecesse. O beijo cuja primeira intenção foi castigar, se convertia em súplica. O abraço que queria esmagar a embalava agora como se de um bebê se tratasse. O que se dispunha a ser uma violação cheia de paixão se transformava em uma devastadora ternura que ela jamais teria sido capaz de imaginar em um guerreiro de tal ferocidade.

Era algo perfeito. Ele era perfeito.

Cada uma das carícias de sua boca desatava um vendaval de novas sensações. Os breves beijos que mudara com Roger não tinham nada a ver com aquilo. Não a faziam sentir como se estivesse entrando em um forno de lenha. Não produziam comichões em lugares nos que não devia nem sequer pensar. Não provocavam um tombo em seu coração nem que tremessem as pernas. E, certamente, não a faziam pensar em romper a camisa em migalhas e estender suas mãos na pele nua que ficaria gravada na memória para sempre.

Seu corpo era tão grande e poderoso que seus duros músculos impunham como um muro de granito. Cada centímetro de suas carnes de aço proclamava sua profissão de guerreiro. Mas Anna jamais imaginou que aproximar seu corpo, que o aço fosse tão agradável. Nem quão quente podia ser o peito de um homem. Nem o segura e protegida que poderia sentir-se. Ou a vontade que teria de entranhar-se em seu interior e ficar ali.

E isso que fazia com a boca…Deus…

Era como um sonho. Seus lábios eram muito suaves; seus beijos, muito ternos. Era possível que se tratasse do mesmo homem? Como podia o implacável guerreiro que a olhava com tanta indiferença beijá-la com essa intensidade? Se até seu aroma parecia tirado de um sonho: sabão com um pingo de água salgada do lago. Mas não era um sonho. Jamais tinha vivido um sonho tão estranho. Não sabia o que lhe acontecia. Parecia desvanecer-se. Empapada de calor. Sensível e afetada. Receptiva desde a primeira até a última de suas terminações nervosas. Parecia que seu corpo não lhe pertencia. O prazer tinha tomado o mando e não a deixaria escapar. Não podia pensar em mais nada que no bem que se sentia. Em sua talentosa boca. O sutil roçar desse queixo contra seu queixo. O peso da mão sobre sua cintura. A suave carícia de seus dedos. E cada vez que a provocava com o roce de seus lábios a intensidade dessa sensação aumentava. Erguendo-se. Fazendo-a suplicar por algo mais. Algo que Anna não compreendia, mas que necessitava desesperadamente.

Arthur tentava tomar-lhe com calma, mas seus gemidos estavam o deixando louco. Embora queria afundar-se dentro dela, tinha ainda mais gana de lhe dar agradar. De modo que no lugar de forçá-la até deixá-la sem sentido, convenceu-a por meio das longas e lentas carícias de sua boca. E ela respondia. Vá se respondia. A princípio de maneira tímida, mas depois se viu persuadida para fazê-lo com mais atrevimento. Passou-lhe as mãos ao redor do pescoço e abriu a boca ao tempo que emitia um entusiasta gemido que lhe chegou diretamente até a virilha. Essa resposta instintiva teve sua réplica em um bramido de pura satisfação masculina que lhe atravessou todo o corpo.

Não havia nada que quisesse com mais gana que lhe colocar a língua até o fundo, tomar aquilo que lhe oferecia, mas era consciente de sua inocência, assim optou por roçar seus lábios com a ponta da língua por um instante e retirá-la imediatamente. Advertiu a excitação que a embargava, mas não a deixou pensar. Voltou a afundar a língua em sua boca, dessa vez durante mais tempo, para que se acostumasse à sensação. E logo, quando notou que se relaxava em seus braços, fez a ver o que queria. Enlaçou sua língua na dela e foi introduzindo cada vez com mais profundidade em sua boca.

Faltou pouco para que sua apaixonada resposta o fizesse em migalhas. O desejo, contido durante tanto tempo, fluía agora com liberdade em uma tormenta torrencial. Notava como seus mamilos se endureciam contra seu peito e o atormentavam, incitavam-no. Ao sentir a força suplicante que chegava desde sua virilha, grunhiu e se mergulhou dentro dela.

Anna respondia a seus beijos e apertava seu doce corpo contra o dele. O movimento instintivo de quadris com o que roçava seu membro estava a ponto de ser excessivo. A intensidade da sensação era desmesurada. Alterava o sangue. O coração quase saía do peito. As rédeas lhe escorregavam das mãos à medida que o desejo se encarregava delas. Seus beijos ficaram mais selvagens, mas insistentes, mais desumanos. Arthur lhe pôs a mão em um seio e ela emitiu uma exclamação de surpresa que ficou afogada por seus próprios gemidos. Eram cotas de prazer inimagináveis. Tinha sonhado com esses seios durante semanas e agora que os tinha em suas mãos… Eram incríveis. Grandes, suaves, ocupavam sua palma inteira. Acariciou por cima a dura ponta de seu mamilo, estimulando-a até que ela deixou escapar um suave gemido entre seus lábios e suas costas se arquearam procurando suas mãos.

Nua. Queria-a nua.

Deus, sim, era um caramelo. Tão disposta… Parecia não contentar-se com nada.

Estava descendo em espiral por um túnel de sensações. Transladando-se com rapidez a um lugar sem retorno. Queria que se corresse. Queria acariciá-la com as mãos, saboreá-la com a boca e enchê-la com seu pau. Queria tê-la úmida e morrendo de vontade.

Queria fazer Anna ser dominada pela paixão.

dizia a si mesmo que no final teria acabado recuperando o sentido, que teria arrumado para reencontrar-se com o controle que nunca antes tinha falhado, mas já jamais poderia saber. Foi o cão quem o fez por ele. O cachorrinho começou a uivar, provavelmente decidindo que já o tinham ignorado durante bastante tempo. Aquilo foi suficiente para atravessar a neblina. O impacto com a realidade foi como receber um balde de água fria. Arthur percebeu de repente a loucura que estava cometendo. Deixou de beijá-la e a separou de si com mais força do que pretendia.

Anna ficou sobressaltada pela surpresa.

Durante um instante, simplesmente permaneceram olhando o um ao outro à luz das velas com suas pesadas respirações como testemunha maldita do que estavam fazendo.

Deus santo. A incredulidade se mesclava com o cepticismo. Que demônios acabara de acontecer? Ele nunca tinha perdido o controle de tal modo, jamais. Um beijo, maldita seja. Supunha que não houve mais que isso. Um simples beijo para lhe ensinar uma lição. Não significava nada. Tinha beijado a centenas de mulheres. Não era algo que devesse o perturbar, nada que tivesse que o deixar tão… afetado. E estava, muito mais do que gostaria de admitir. Tocá-la tinha sido um engano. Em que diabos pensava? Não, não tinha parado pra pensar. Estava furioso. Atormentado. viu-se empurrado além de toda razão por suas provocações e sua sedução. Mas por mais que condenasse sua loucura, quando olhava seus inchados lábios e bochechas rosadas o único em que podia pensar era em fazê-lo de novo. E isso o afetava muito mais. O bastante para que não voltasse a acontecer de novo.

—foi suficiente para satisfazer sua curiosidade, milady?

Anna ficou estupefata.

—O que queres dizer com isso?

Arthur inspirou longa e profundamente em uma tentativa de acalmar o violento pulsar de seu coração.

—Significa que podes agradecer a seu cão em conservar a virtude intacta. —Olhou-a com olhos duros e implacáveis — Mas lhes juro pelo mais sagrado que, se seguirem com seus joguinhos, na próxima vez não será tão afortunada.

Anna se estremeceu como se a tivesse golpeado.

—Como podes dizer isso? Como podes me beijar de tal modo e fazer como se não significasse nada? Como se não sentisses…

—O que sentia era luxúria. Não cometam o engano de pensar que era outra coisa.

Ele não faria.

Não podia fazê-lo.

Deu um passo para trás com os olhos arrasados em lágrimas. Arthur sentia sacudidas e queimação no peito.

—por que fazes isso? por que tenta ser cruel de propósito?

Os punhos se fecharam diante da quase irreprimível necessidade de consolá-la. Só a estava protegendo contra uma situação impossível e o fazia por seu próprio bem, pelo bem de ambos.

—Simplesmente lhes estou fazendo uma advertência. acabaram-se os joguinhos. Seja o que seja o que estavam fazendo aqui, acaba-se a partir de já. —Anna ergueu o olhar para olhá-lo sem dizer uma palavra, tentando procurar algo em seu rosto que jamais encontraria — Agarre seu cão e vá —acrescentou Arthur com uma estranha dureza na voz.

Anna recolheu ao cachorrinho e se foi dali sem dizer mais uma palavra. Enquanto Arthur ficava olhando sua marcha, teve a sensação de que o aposento ficava às escuras.

Só ao final de tudo isto se lembrou do mapa. Olhou no chão. Ali estava, a seus pés, no mesmo lugar em que deve ter caído quando tinha escorregado da sua mão, aterrissando pela outro lado. Se tiver dado uma olhadela ao chão, Anna teria visto as notas escritas no verso. Mas, de algum modo, o desastre que conseguia evitar não parecia nada em comparação com aquele outro que não pode evitar.

Mal atravessou a soleira, as lágrimas de humilhação e dor transpassaram a couraça de orgulho de Anna. Não pensava lhe dar o gosto de presenciar o dano que lhe tinha feito. Desolada, não só pelo beijo, mas sim pelo cruel rechaço que seguiu a este, refugiou-se em sua câmara. não estava em situação de ver ninguém,e era muito afortunada de que todos parecessem estar celebrando o jantar. Comunicou a sua donzela que tinha dor de cabeça e fingiu estar dormindo quando chegaram suas irmãs. A criada deve ter descoberto que Anna mentia assim que a olhou à cara, mas se mostrou leal e seguiu o jogo. O último que gostaria Anna naquele momento era responder a perguntas ou falar a respeito do que tinha passado. Nem sequer queria pensar no que tinha passado.

Deus, o que dizia era certo. Terrivelmente certo. Se não tinha feito algo desastroso foi por um fio, ou nesse caso pelos uivos de um cachorrinho.

Seus beijos. Sua língua. Por Deus bendito, a incrível sensação de ter essas mãos sobre seus seios. Tudo tinha sido muito bom. Não queria que aquilo se detivesse. Tinha sucumbido a um desejo que ia muito além de sua experiência em resistir. O instinto superou à cautela, o prazer dominava à razão e a necessidade primária de unir-se a ele fizeram que tudo o resto desaparecesse sob sua esteira.

Seu corpo ardia de desejo por ele. acendia-se e clamava por que a tocasse. Pensou com um rubor que a cavidade escondida entre suas pernas estava molhada. Ele poderia tê-la desprovido de sua inocência sem que apenas oferecesse resistência. As lágrimas correram por suas bochechas e um áspero soluço abriu passo através de seu peito. Não, sem que oferecesse nenhuma resistência. O coração encolheu diante daquela atroz realidade. Desejava-o. O suficiente para fazer algo inconcebível. Um tanto precipitado e estúpido que jamais poderia desfazer-se.

Mas não foi somente desejo. Ao menos não para ela. Quando Arthur a sustentou entre seus braços e a beijou, Anna se emocionou de uma maneira assustadora. O que sentia por ele era intenso, poderoso… diferente. Mas esse beijo que tanto tinha significado para ela não tinha sido mais que uma cruel forma de lição para ele, um meio para que deixasse de «ser sua sombra».

A acusação era tão mais humilhante pelo tanto que havia de verdade nela. Era certo que o estivera perseguindo, e não teria sido tão mau se só o tivesse feito porque o pedia seu pai. Mas depois do que acabara de passar, Anna tinha que admitir a realidade: não se tratava simplesmente de um trabalho encomendado. Seu interesse por ele tinha tanto que ver com ela mesma como com seu pai. Talvez mais, inclusive.

Sua cruel lição tinha funcionado. Na manhã seguinte, já deixadas para trás as lágrimas, embora não a dor que as provocavam, Anna informou a seu pai do quanto tinha descoberto. Sir Arthur Campbell era exatamente o que aparentava: um ambicioso e capaz cavalheiro concentrado na futura batalha. Deixou de lado qualquer dúvida que albergasse sobre a possibilidade de que ocultasse algo.

Satisfeito com suas estimativas, seu pai ordenou que cessasse em seus esforços. A atenção que dirigia ao jovem cavalheiro tinha sido muito comentada e não queria que sir Arthur começasse a suspeitar. Anna não disse que já era tarde para isso.

ficou em seu aposento pelo resto do dia, aliviada de libertar-se de sua carga. Embora nada gostava mais que estar rodeada por sua família e em um salão resplandecente repleto de partidários do clã, aquele era um dia estranho em que queria estar sozinha. Temia também que seu mau humor fosse óbvio e não queria dar preocupações desnecessárias a sua bem-intencionada mãe e a suas irmãs. E mais, depois daquele beijo, sentia-se ainda muito vulnerável para topar com ele de novo.

Talvez fosse uma atitude covarde, mas necessitava tempo para repensar. Tinha pensado uma e outra vez no acontecido, e cada vez estava mais convencida de que não tinha trabalhado mau. Era impossível que Arthur Campbell a beijasse de tal modo sem sentir nada por ela. Embora ele queria a fazer acreditar que somente se tratava de desejo, no fundo de seu coração Anna sabia que havia algo mais. Entretanto, ele procurava afastar a de seu lado por alguma razão. Sua frieza e aquelas cruéis palavras pareciam calculadas justamente com essa intenção. Mas por que? E o que era mais importante, por que estava tão se desesperada por encontrar um motivo? Porque lhe importava. E, ao que parecia, albergava a estúpida e infantil esperança de que ele não acreditasse realmente no que havia dito, de que também a ele lhe importasse.

Aquilo não devia revestir importância alguma. Era uma pessoa completamente equivocada para ela. Um frio e distante guerreiro ao que não importava nada nem ninguém, tão somente a seguinte batalha a liberar. Mas por mais que queria colocá-lo nesse saco, o certo era que não cabia nele. Não era nem tão insensível como queria a fazer ver. Tinha notado sua emoção quando a agarrou depois de que tropeçasse no escarpado, e também quando os salvou dos lobos a Escudeiro e a ela. E além disso, a forma em que a tinha beijado não deixava dúvidas a respeito de que era um homem capaz de emoções profundas.

Jamais tinha sentido atração alguma pelos guerreiros, mas com Arthur era justamente o contrário: nunca lhe atraiu tanto um homem nem seu corpo. Quem teria imaginado que os músculos podiam ser tão… excitantes? Aquele físico forjado para a batalha teria que representar tudo o que ela odiava da guerra e, entretanto, jamais se sentiu mais protegida e segura que em seus braços. E o desenho. Isso foi o mais surpreendente de tudo. Que a mesma mão que brandia a espada e a lança com tal capacidade de aniquilação pudesse desenhar com tal mestria e beleza…

Arthur Campbell não era um típico guerreiro. Havia algo mais nele. Desde o começo, Anna sentiu que era diferente. Não só porque fosse reservado, mas sim pela estranha intensidade que se concentrava sob sua superfície e o afastava do resto. Talvez essa aura de solidão e tristeza influíra também em sua atração para ele. Inclusive diante de seu irmão e outros homens parecia um estrangeiro satisfeito de ser, um homem que não necessitava a ninguém mais. Mas todo mundo necessita a alguém. Ninguém podia querer, realmente, estar sozinho. Talvez não soubesse que havia outras opções… A sombra dessa possibilidade abriu passo através do coração de Anna. Apertou contra seu peito o cachorrinho que jazia enroscado sobre seu regaço e beijou a suave pelagem de sua cabeça. Talvez aquele homem fosse como Escudeiro e necessitasse que alguém lhe desse uma oportunidade. Alguém que lhe oferecesse um pouco de afeto.

No dia seguinte Anna já se sentia um pouco melhor. Voltou a sentar-se junto a seu irmão no estrado para tomar o café da manhã. O pulso alterava cada vez que alguém entrava na sala. Estava preparada para vê-lo. Queria comprovar se encontrava bem. Estava segura de que quando seus olhares voltassem a cruzar-se saberia se lhe importava ou não, se sua crueldade não era a não ser uma maneira de mantê-la a distância, como fazia com todos outros. À medida que transcorria a refeição e Arthur não aparecia, Anna começou a inquietar-se. O indomável bater de seu peito cessou em seco quando entraram os Campbell e o resto de seus homens. Infelizmente, esse estranho comportamento não passou desapercebido.

—Não está aqui — disse Alan, colocando sua mão sobre a dela.

Anna, agarrada por surpresa, afastou o olhar da entrada.

—Quem não está aqui?

Mas o quente rubor que tinha suas bochechas a delatava. Alan estreitou sua mão com carinho.

—Campbell.

Obviamente tinha acertado de qual deles se tratava.

Anna engenhou para oferecer um lânguido sorriso, sem incomodar sequer em fingir que não sabia do que falava. O interesse que mostrava pelo cavalheiro não passava desapercebido para seu protetor irmão.

—Somente queria lhe pedir um favor. Escudeiro vagou toda a manhã como alma penada e me perguntava se sir Arthur poderia levar-lhe com ele quando saísse a cavalgar.

O olhar de seu irmão sugeria que não poderia enganá-lo com uma desculpa tão ruim.

—Terá que buscar a outro que faça exercício com seu cão de caça por um tempo.

Uma sensação de angústia escorregou por seu peito até atendar-se incomodamente em seu estômago. A voz lhe tremeu.

—A que te refere?

preparou-se para o pior, mas havia uma parte dela que já sabia o que Alan responderia.

—Campbell partiu junto a Ewen para patrulhar as meridionais entre os castelos do Glassery e de Duntrune. Pai suspeita que os MacDonald estão tramando algo novo. Estará fosse vários dias, pode ser que semanas.

«Fosse. Foi embora.»

Como podia partir sem dizer uma palavra depois do que tinham compartilhado? Anna sentiu uma angústia no peito que a oprimia tanto que teve a sensação de que arrebentaria da pressão.

—Entendo — sussurrou.

Era uma parva. convenceu-se de que significava algo especial para ele pela singela razão de que ele era importante para ela. convenceu-se de que talvez fosse diferente apesar de ter visto seu verdadeiro ser.

Alan entreabriu os olhos.

—ocorreu algo? É que fez algo que não…?

—Nada —disse Anna negando com a cabeça irritada — Não aconteceu nada.

Nada significativo. Afastou a mão da de seu irmão e se cruzou de braços. Queria fazer uma bola e arrastar-se pelo chão, mas não o faria. Não merecia.

—Representa algo para ti, Annie querida? Tem interesse por ele? Pensava que somente fazia um favor a nosso pai.

Não estava a par de que Alan conhecesse suas incomuns atividades, mas talvez não teria por que se surpreender tanto. Dada a idade de seu avô e a enfermidade de seu pai, Alan vinha assumindo cada vez mais responsabilidades. Anna se perguntou o que era o que sabia. Supunha que não tudo, porque se fosse assim não estaria tão tranqüilo.

—E assim é —assegurou, para depois inspirar profundamente e voltar a encher os pulmões de ar — Não significa nada para mim — disse. E dizia a sério.

Sua primeira impressão tinha sido a correta: Arthur Campbell era um homem com um pé na porta. Jamais poderia lhe oferecer a estabilidade que ela ansiava. Quão único faria, se ela o permitia, seria lhe partir o coração.


Capítulo 10


—Está uma porcaria, Guardião. Que demônios está acontecendo com você?

Arthur procurava não mostrar seu aborrecimento, mas aquele despachado tinha uma habilidade assombrosa para colocar o dedo na chaga. Não acontecia nada, demônios. Nada que não se curasse com uma noite inteira de sono. Mas não tinha tido uma noite tranqüila desde que saíra de Dunstaffnage dez dias atrás. Seus sonhos eram invadidos por uma moça de grandes olhos azuis e cabelos loiros. Uma moça cuja expressão ao sair dos barracões ainda o perseguia. Sempre estava transbordante de alegria. Essa foi uma das primeiras coisas que o atraiu desde o começo. Mas ele a tinha entristecido. De fato, seu rosto dizia que a tinha destroçado. Desejava com toda vontade que já não albergasse ternos sentimentos por ele. Isso seria estúpido. «Muito estúpido», disse a si mesmo.

Esticou a mandíbula. Estava claro que não só invadia seus sonhos, a não ser todos seus pensamentos. Levava Anna MacDougall no mais profundo. Não podia entender por que não deixava de pensar nela. Tinha fugido, algo que sempre fazia quando uma mulher começava a pedir algo mais que momentos de cama, mas dessa vez não dava resultado. Quão único tinha conseguido era ficar com os nervos a flor da pele. Estava seguro de que essa irritante incapacidade para concentrar-se acabaria quando a visse e se assegurasse de que estava bem. Deveria ser capaz de tira-la da cabeça. Concentrar-se em sua tarefa. E não poder fazer o punha furioso. Mas tinha muito claro que não queria explicar nada daquilo a MacSorley. riria dele por toda vida.

—Eu também me alegro de lhe ver, Falcão — disse observando ao gigante das ilhas e reparando nas rugas de tensão que sulcavam seu rosto sob a fuligem cinza. Os guerreiros dos Guardiões das Highlands, além de levar uma couraça negra e mantas escuras, sujavam pele para confundir-se com a noite e assim mover-se sigilosamente através das sombras — Talvez devesse lhes perguntar o mesmo, não?

O homem que havia junto ao Falcão Erik MacSorley emitiu uma exclamação aguda, algo que recordava à risada, mas que tinha mais de brincadeira que de diversão.

—A mulher o tem pego pelos ovos. Falcão está que salta cada vez que ouve um ruído, acreditando que será o mensageiro. —Lachlan MacRuairi, conhecido pelo nome de guerra de Víbora entre os Guardiões das Highlanders, sacudiu a cabeça expressando seu rechaço — Não há nada mais patético.

Falcão esboçou um amplo sorriso.

—Minha mulher pode me agarrar pelos ovos tudo o que queira. E já veremos quão tranqüilo está você quando te tocar.

Uma escura sombra pareceu sulcar o rosto do MacRuairi, um tanto que seu penetrante e inteligente olhar brilhou como o de um gato selvagem no meio da noite. E pensar que as pessoas dizia que Arthur as punha de cabelos em pé…

—antes que isso ocorra gelará o inferno. Já tive uma esposa. E prefiro que me arranquem os ovos e me coloquem isso pelo nariz antes que ter outra.

De todos os membros dos Guardiões das Highlands, MacRuairi era o único que não caía bem a Arthur e em quem não confiava. Oriundo das Highlands Ocidentais e descendente do poderoso Somerled, rei das Ilhas, tinha o coração negro, muito mau gênio e uma língua viperina. MacRuairi, igual à serpente desalmada da qual recebia seu nome de guerra, também contava com um golpe mortal silencioso.

Os sentidos de Arthur se despertaram desde o começo, o advertindo que atuasse com cautela. Mas não se necessitavam qualidades extraordinárias para advertir a ira que emanava do MacRauairi, ou melhor dizendo, sua raiva. O que perturbava Arthur era a escuridão que ia associada a essa raiva. Uma escuridão que não tinha feito mais que aumentar desde que os ingleses capturassem à esposa do rei, sua filha, sua irmã e a Bela MacDuff estando estas sob sua custódia. Somente pensava em as resgatar. Meses atrás, tinha tentado libertar a Bela da jaula que pendia no mais alto do castelo do Berwick, mas aquilo se mostrara uma tarefa impossível, inclusive para os guerreiros de elite dos Guardiões das Highlands. Tinham conseguido libertá-la de seu cruel cativeiro fazia pouco tempo, embora ninguém sabia onde se encontrava.

Entretanto, MacRuairi era um homem útil. Além de brandir com mestria as espadas que tinha cruzadas à costas, era capaz de entrar e sair de qualquer lugar. Sua falta de consciência também parecia valiosa quando era preciso fazer tarefas desagradáveis. Para ganhar aquela guerra todos eles teriam que sujar as mãos. as do MacRuairi simplesmente estavam mais sujas que as de outros.

Somente MacRuairi estava menos integrado que Arthur nos Guardiões dos Highlands. A maioria dos homens não confiava no hostil ilhéu, e faziam bem. O líder da Guarda, Tor MacLeod, o tolerava e tinha chegado a algum tipo de entendimento com seu antigo inimigo de sangue, mas somente William Gordon e MacSorley pareciam lhe apreciar sinceramente.

—Nunca diga jamais, primo —disse MacSorley — Seu problema foi te casar com a mulher errada. Um destes dias chegará a adequada —acrescentou, para logo fazer uma pausa e o olhar com expressão matreira — Se é que não o tem feito já.

Arthur suspeitava que MacSorley se referia a Bela MacDuff, condessa de Buchan, que não tinha demorado para mostrar quão mal combinava com o infame guerreiro e pirata. Arthur pensava que o sentimento era mútuo, mas tampouco levava ali tempo suficiente para saber se MacSorley falava a sério. Mas se ele estivesse em seu lugar, vigiaria bem suas costas durante os seguintes dias. MacRuairi pôs cara de querer matá-lo.

—Não tem nem puta idéia do que falas.

MacSorley simplesmente sorriu.

—Vá, que linguagem mais vulgar. Acaso hei tocado sua fibra sensível?

Não por uns dias. Arthur vigiaria suas costas durante uma semana inteira. MacRuairi parecia a ponto de lhe saltar ao pescoço.

—Estou já até as pelotas de ouvi-lo. É como um padre tentando converter pagãos. Pulveriza seu veneno a respeito das maravilhas do matrimônio em outro lugar. Não me interessa.

O amplo sorriso de MacSorley parecia enfurecer ainda mais a seu parente. Arthur não podia acreditar que estivesse ouvindo o petulante cantar as excelências do matrimônio e da «mulher adequada». A arrasadora personalidade de MacSorley e seu atrevido encanto atraíam quase tanto às mulheres como o bonito rosto do MacGregor. Falcão amava às mulheres e as mulheres amavam a ele. Era difícil pensar que sentaria cabeça com uma só. Tinha que ser uma excepcional mulher. O enorme viking sempre tinha um bando de mulheres preciosas de corpos exuberantes a seus pés.

Arthur, consciente de que MacSorley não pararia de se meter com seu parente até que se atracassem a golpes, mudou de tema.

—Para que queriam me ver? Assumo que tem que ser importante para nos arriscar a um encontro como este.

O rei tomava grandes precauções para preservar a identidade de Arthur. Os encontros só eram arranjados em caso de necessidade, por meio de mensagens cifradas em algum dos numerosos monumentos de pedra que salpicavam a campina, tais como o círculo de menhires13 no que se reuniram aquela noite. O rei Robert sentia uma conexão pelo passado ancestral da Escócia, e aquelas pedras místicas pareciam uma alusão adequada a sua guarda secreta formada pelos melhores guerreiros da Escócia.

A maioria das comunicações se fazia através de mensageiros, rara vez se arriscava Arthur a encontrar-se com seus camaradas da Guarda. Depois de infiltrar-se entre os MacDougall, converteu-se em uma tarefa ainda mais difícil. Tinha perdido muita da liberdade de movimentos que desfrutava trabalhando a seu controle. Nessa noite, teve que escapulir do castelo de Duntrune quando tinha anoitecido e esperar com todas suas forças que ninguém notasse sua ausência.

MacSorley ficou sério.

—Sim. Recebemos notícias semana passada de que vinhas ao sul. Me alegro de que visse a mensagem.

Arthur procurava revisar os monumentos com tanta freqüência como podia. Quando viu as três pedras menores distribuídas em um triângulo no centro se deu por informado: era a chave para responder assim que fosse possível. Era a mesma mensagem que ele tinha deixado na cova norte do castelo Dunollie antes de partir para o sul. Ao ter saída para o mar, aquela cova era o lugar mais seguro para uma incursão dos homens de Bruce e estava a somente uns quilômetros de Dunstaffnage.

—Dou por certo que se sabiam de onde partira, é que recebestes o meu.

MacSorley assentiu.

—Surpreendeu-nos muito que partissem de Dunstaffnage.

Arthur se esforçou por ocultar suas emoções para que não traísse a bruma de culpa que se estendia por sua consciência. Maldita seja, não é que tivesse esquecido sua missão. Simplesmente tinha que sair dali.

—Não foi possível evitar —disse sem dar mais explicações — Lorn tem medo de que Angus Og esteja tramando algo. acompanhei a seu filho Ewen para ver o que podemos averiguar.

—Meu primo sempre está tramando algo —disse MacSorley do poderoso chefe MacDonald — Está mobilizando a sua frota para a batalha contra os MacDougall.

—Isso mesmo que acreditava.

O ataque por mar contra os MacDougall seria tanto ou mais importante que o ataque por terra. Bruce tinha pensado pressionar ao Lorn em ambas direções. Essa era uma das razões pelas quais as habilidades do MacSorley eram tão valiosas. Ele seria o encarregado de dirigir o ataque pelo mar.

—Lorn está bem informado — disse MacRuairi.

Arthur fez uma careta.

—Sim, está. Mas fui incapaz de averiguar como consegue. Não apareceu nenhum clérigo estranho por ali, nem tampouco vi mensageiro algum.

MacSorley sorriu.

—Por isso é pelo que o temos feito vir. Interceptei um dos mensageiros do Eduardo quando se dirigia para o norte com uma missiva para Lorn. É uma mensagem que Lorn aguardava, embora não as notícias que ele esperava —disse ampliando seu sorriso — O rei Eduardo declinou a petição de Lorn de enviar tropas adicionais ao norte. E graças a meu primo aqui presente, sabemos para onde se dirigia o mensageiro.

Arthur não tinha que perguntar como tinha conseguido que falasse. MacRuairi sempre conseguia que o fizessem.

—Ao priorado do Ardchattan.

Arthur estremeceu de emoção. O priorado estava perto de Dunstaffnage, justo no coração de Lorn. Aí a tinham: a oportunidade que estavam esperando.

—Assim estão usando clérigos — disse Arthur. Era o que ele suspeitava.

—Isso parece —concedeu MacSorley — Quão único têm que fazer é vigiar a igreja e ver quem vai recolher a mensagem. Como cavalheiro de Lorn, sua presença não será comprometedora em caso de que o descubram. Quando poderá escapar ?

—Partirei ao amanhecer.

—Poderá explicar essa necessidade repentina de voltar para castelo? —perguntou MacRuairi.

—Alguém terá que voltar para informar ao Lorn. Oferecerei-me de voluntário.

Arthur ansiava partir imediatamente uma vez que teve clara a missão, mas tomou uns minutos para comprovar como estavam seus companheiros da Guarda.

MacSorley e MacRuairi eram os únicos membros dos Guardiões das Highlands que estavam no oeste, vigiando as águas. MacKey, Gordon e MacGregor estavam ao norte, mantendo as rotas livres de mensageiros e semeando o caos e a destruição em torno de Ross, por isso tinha feito às mulheres, e o resto da equipe permanecia no este junto ao rei.

Aríete —Robert Boyd— e seu companheiro, Dragão —Alex Seton— acabavam de retornar de uma missão bem-sucedida ao sudoeste, com sir James Douglass e sir Edward Bruce, o único irmão que ficava ao monarca. O rei Robert tinha perdido rês irmãos em um ano, duas às mãos do MacDowell, o homem que tinham feito sair de Galloway com o rabo entre as pernas. Também Seton tinha perdido a um irmão.

—Notaram se Aríete e Dragão estão lutando no mesmo lado? —perguntou Arthur.

O fatal emparelhamento entre Seton, um cavalheiro inglês, e Boyd, o homem que odiava tudo que remetia a Inglaterra, foi um dos obstáculos mais complicados durante os primeiros momentos da Guarda.

—Estão pior que nunca — disse MacSorley com tal expressividade que a Arthur ficou claro que falava a sério — Dragão mudou depois da morte de seu irmão. Está furioso e a maior parte de sua fúria a dirige contra Aríete. —O sorriso voltou para seu rosto — Mas há boas novas. Acho que não sabe a quem trouxeram com eles, capturado perto do castelo do Caerlaverock em Galloway?

—A quem? —perguntou Arthur.

—A meu antigo companheiro, sir Thomas Randolph.

Arthur amaldiçoou sem ocultar sua surpresa.

—E o que fez o rei?

A notícia de que seu jovem sobrinho passou para o lado dos ingleses no ano anterior tinha significado um tormento para o rei, que tentava reconquistar seu reino. Infelizmente, mudar de lado era algo muito usual. O mesmo rei Robert o tinha feito muitas vezes durante os primeiros anos de guerra, mas a deserção de Randolph chegou num momento especialmente difícil. No momento mais baixo de sua luta.

MacSorley negou com a cabeça mostrando seu rechaço.

—Perdoou-lhe. Em minha opinião com muita facilidade. Especialmente depois de que o moço teve a coragem de criticar seu tio por lutar como um pirata e não como um cavalheiro.

—Ao que parecia, Falcão fracassou em sua tentativa de deixar rastro no guri — disse MacRuairi secamente.

—Pode ser —disse MacSorley — Mas terei outra oportunidade. O rei me prometeu mandar-me de novo para que o adestre.

Arthur arqueou uma sobrancelha.

—por que me dá a sensação de que o jovem cavalheiro terá seu castigo depois de tudo?

MacSorley encolheu os ombros de um modo não muito inocente.

—Conseguirei fazer desse moço um highlander — disse olhando a Arthur com ironia — Espero que você não tenha esquecido, sir Arthur. Se vê muito elegante com seu traje de cavalheiro.

A brincadeira esteve mais perto da verdade do que o esperado.

—Que se foda, Falcão. Queres que demonstre isso?

MacSorley soltou uma gargalhada.

—Pode ser que mais tarde. Minha esposa me arrancará as bolas se vier o mensageiro e não estou ali. E você deveria voltar para castelo de Duntrune antes que descubram que partistes.

Já tinham se despedido Quando Arthur se recordou.

—Pegue — disse tirando o mapa que tinha acabado dias atrás — É para o rei.

MacSorley o sustentou no alto à luz da lua para vê-lo melhor.

—Demônios, não está nada mal. O rei estará encantado. Necessitará para sua incursão pelo oeste. Mandarei um mensageiro em seguida.

Arthur assentiu.

—E eu mandarei notícias assim que tenha algo.

—Airson an Leòmhann — disse MacSorley.

«Pelo leão»: o símbolo do reino de Escócia e o grito de guerra dos Guardiões das Highlands.

Arthur repetiu as palavras e se deslizou entre as sombras sem saber quando os veria de novo ou se tão sequer teria ocasião de fazê-lo. Na guerra não havia nada seguro.

menos de vinte e quatro horas depois já estava em seu posto. De sua posição depois do pasto do outeiro ao leste do priorado tinha uma visão vantajosa tanto da igreja de pedra com planta de cruz como do claustro quadrangular que dava proteção aos monges ao sul. O priorado de Ardchattan, estabelecido por Duncan MacDougall, lorde de Argyll, uns setenta e cinco anos antes, era um dos três monastérios valliscaulianos14 da Escócia. Arthur não sabia muito a respeito dessa estranha ordem monacal, salvo que eram conhecidos por seguir um estrito código.

A dez quilômetros de Dunstaffnage, na ribeira norte do lago Etive, Ardchattan era a convocação perfeita para enviar mensagens dali, sobretudo sabendo que o prior pertencia ao clã MacDougall. Tinha sido um dos primeiros lugares nos que se fixara a sua chegada no mês anterior. Mas apesar do ter sob vigilância durante vários dias, Arthur não registrou mais visita para os monges que as de um par de mulheres da vila.

Agora, estendida a armadilha, não tinha mais que esperar para conseguir por fim algumas respostas, umas respostas que o fariam estar mais perto de cumprir sua missão para o rei Robert e de ver o John de Lorn pagar pelo que fez a seu pai.

Quatorze anos eram muitos, mas ele seguia recordando como se tivesse passado no dia anterior. Aos seus doze anos estava desesperado por impressionar ao homem que era um rei para ele.

Ainda se lembrava dos reflexos do sol na cota de malha de seu pai, que cobriam a figura do Cailean Mor, o Grande Colin, com uma auréola de luz prateada quando congregava seu guarda para a batalha no barmkin do castelo de Innis Chonnel. Naquela ocasião, seu pai tinha baixado o olhar para olhar a aquele filho ao que tentava ignorar a maior parte do tempo.

—É muito pequeno. Quão único conseguirá é que o matem.

Arthur estava a ponto de dizer algo em sua defesa, mas Neil o parou em seco fulminando-o com o olhar.

—O deixes vir, pai. Já tem idade.

Arthur notou o olhar de seu pai sobre ele e procurou não cair sob o peso de seu escrutínio, mas jamais em seus doze anos de vida se havia sentido tão fraco de forças. Pequeno para sua talha. Fracote. Débil. E ainda por cima disso, monstruoso.

«Não sou um monstro.» Mas isso era o que via nos olhos de seu pai.

—Mal pode levantar a espada — disse o pai.

A vergonha que refletia sua voz rasgava como uma faca. Arthur sabia o que estava pensando: «Como pode este miúdo mirrado ser sangue de meu sangue?». Um sangue que tinha forjado a alguns dos guerreiros mais ferozes e duros das Highlands. Os Campbell nasciam como guerreiros.

Todos menos ele.

—Eu me encarrego dele —disse Neil pondo uma mão sobre o ombro — Além disso, pode ser que nos seja de ajuda.

Seu pai enrugou o sobrecenho, incomodado por que o recordassem as estranhas habilidades de Arthur, mas assentiu.

—Simplesmente te assegure de que não se meta no meio.

Arthur estava tão emocionado que mal podia controlar-se. Talvez aquela fosse sua oportunidade. Pode ser que ao final tivesse ocasião de lhe provar a seu pai que suas habilidades poderiam ser úteis, como Neil havia dito.

Mas a coisa não foi como ele esperava. Estava muito excitado. Muito ansioso. Forçava muito e se precipitava muito. E estava muito emocionado. Seus sentidos não respondiam do modo em que normalmente faziam.

aproximavam-se das fronteiras entre as terras dos Campbell e os MacDougall, justo depois da borda leste do lago Avich, perto do cordão de Lorn, o velho caminho das colinas de Lorn que usavam os boiadeiros e os peregrinos em direção a Iona. Neil e ele cavalgavam na vanguarda junto ao explorador do terreno, antecipando-se a qualquer ataque surpresa do inimigo por aquele estreito caminho. Cruzaram um vau em um pequeno córrego e detiveram a marcha perto do Loch na Sreinge.

—Não tem nenhuma intuição ainda?

Arthur negou com a cabeça, com o coração pulsando a toda pressa e o suor acumulando-se sobre suas sobrancelhas em sua tentativa de afiar os sentidos. Mas aquela era sua primeira batalha e, desvanecida já a emoção, era presa do medo e da ansiedade.

—Não.

Então ouviram. Depois deles, a não mais de cinqüenta metros ao outro lado da arborizada ladeira. Gritos de ataque.

Neil amaldiçoou e o ordenou ocultar-se atrás de uma árvore.

—Fique aí. Não te mova até que venha por ti.

Para seu próprio horror seus olhos se alagaram em lágrimas, acrescentando mais miséria a seu desprezo por si mesmo. Como tinha podido falhar? Como não tinha percebido sua chegada? Todo aquilo era culpa dele. Tinha uma oportunidade se por a prova, de mostrar suas habilidades, e em vez disso deixava em desvantagem à única pessoa que confiava nele.

—Sinto muito, Neil.

Seu irmão o obsequiou com um sorriso alentador.

—Não é tua culpa, moço. Era a primeira vez que saía de campanha. A próxima sairá melhor.

A confiança cega de seu irmão nele não fazia a não ser piorar as coisas. Queria ir atrás deles, mas seu pai tinha razão, quão único conseguiria seria lhes estorvar. Pareceram transcorrer horas até que o fragor da batalha se desvaneceu e Neil seguia sem voltar. Arthur, temendo que algo ruim tivesse acontecido a seu irmão, não pôde esperar mais. Se arrastou entre as árvores com cuidado e se dirigiu para o campo de batalha. De repente se deteve. Quão sentidos acabavam de lhe trair afloravam de novo.

O choque do aço contra o aço parecia rodeá-lo por toda parte, impossível de distinguir, mas algo lhe disse que tinha que girar para a esquerda. Sentiu um arrebatamento de pânico e começou a correr na direção da que provinham os sons. Arrastava a espada entre as folhas e a terra, e se esforçava por não tropeçar à medida que recortava através das árvores e subia engatinhando uma pequena costa para encontrar refúgio atrás de uma rocha enorme.

Então os viu. Dois homens, a pouca distância do resto, ocultos pela curva que fazia a ladeira, estavam liberando um feroz combate de espadas na base de uma pequena cascata. tratava-se de seu pai e de um homem ao que somente tinha visto de longe uma vez na vida: seu inimigo, John MacDougall, lorde de Lorn, filho do chefe do clã MacDougall.

Arthur conteve a respiração enquanto observava como os dois homens, ambos na plenitude de sua maturidade, mudavam poderosas cutiladas com suas espadas. Quando já parecia que aquilo não poderia durar muito mais, seu pai ergueu a espada com ambas as mãos por cima da cabeça e a afundou sobre seu oponente. Arthur esteve a ponto de gritar de alivio ao ver que Lorn caía de joelhos pela força do golpe e lhe escapava a espada das mãos. gelou o sangue do medo. Sabia que estava a ponto de presenciar sua primeira morte no campo de batalha. Teve vontade de tampar os olhos, mas tirou o chapéu incapaz de olhar a outro lado. Era como se soubesse que ocorreria algo importante. O sol se refletia no elmo de Lorn. Seu pai ergueu a espada, mas em lugar de sentenciá-lo a morte colocou a afiada ponta sobre o pescoço.

Os homens estavam muito longe. A cascata devia ter afogado o som de suas vozes. Era impossível que pudesse ouvi-los. Mas o fazia.

—A batalha terminou —disse seu pai — Chamem a seus homens; os Campbell ganharam por hoje. —Arthur jogou um olhar para o outro lado da curva, perto do córrego, e comprovou que seu pai dizia a verdade. O corpo de seu inimigo jazia junto ao leito do regato, avermelhando as águas com seu sangue — Rendei-vos —ordenou seu pai— e lhes perdoarei a vida.

Arthur viu o brilho de ódio nos olhos de Lorn incluso depois do elmo com nasal que levava. Tinha a boca torcida pela raiva. Levou-lhe certo tempo, mas ao final assentiu.

—Sim.

Os Campbell tinham ganho! Arthur estava cheio de orgulho. Seu pai era o melhor guerreiro que jamais tivesse visto. O Grande Colin baixou a espada e começou a afastar-se dali. Arthur sentiu uma intuição, mas seu grito de advertência chegou muito tarde. Seu pai se voltou bem a tempo para que a folha da adaga do John de Lorn se atendesse em seu estômago em lugar das costas. Arthur ficou paralisado, imobilizado pelo horror, enquanto os olhos de seu pai encontravam os seus ocultos depois do penhasco. cambaleou-se, caiu de joelhos e a vida foi escapando de seu ser com uma lentidão dilaceradora. Seu pai manteve o olhar fixo em seus olhos todo o tempo e nele Arthur leu um simples rogo: «não venha».

Lorn gritou e vários de seus homens apareceram depois da curva como resposta à chamada. Ao ver o poderoso chefe do clã Campbell caído aos pés de seu líder emitiram um clamoroso grito de vitória. Lorn assinalou para a colina na direção em que se encontrava Arthur. Ele sabia que não podia vê-lo, mas devia ter ouvido o grito com o que alertou a seu pai. Quando começaram a andar em sua direção, Arthur deu meia volta e saiu correndo.

Não recordava muito do que aconteceu depois. ficou escondido entre árvores e rochas durante quase uma semana inteira, muito aterrorizado para se mover. Neil dizia que quando ao fim conseguiu retornar ao castelo chegou meio morto. Arthur contou a seu irmão o ocorrido imediatamente, mas então já era muito tarde para rebater a versão dos fatos dos MacDougall. Inclusive no caso de que Arthur pudesse explicar como tinha ouvido os homens naquela distância, Neil sabia que não acreditariam no que contava. Os MacDugall tinham ganho a batalha e Lorn apontava o fato de derrotar ao poderoso chefe dos Campbell.

Pouco depois disso Lorn sitiava Innis Chonnel e obrigava aos Campbell à rendição das armas. Desde aquele dia Arthur prometeu fazer justiça a seu pai. prometeu aniquilar ao MacDougall por esse assassinato traiçoeiro. E prometeu que jamais se deixaria dominar pelas emoções.

Quatorze anos levava esperando seu momento, trabalhando para converter-se em um dos melhores guerreiros das Highlands, um guerreiro do qual seu pai teria orgulho, e agora teria sua oportunidade. Não podia permitir que nada interferisse nisso. Tinha que permanecer em guarda. Seus sentidos já o tinham abandonado uma vez e tinha falhado a seu pai. Não pensava permitir que voltasse a ocorrer.

Mas no mais profundo desejava…

Que caralho importavam seus desejos? Havia certas coisas que nem sequer ele podia mudar. A moça era filha de Lorn. Que lhe fizesse desejar que as coisas fossem diferentes carecia de importância.

Recostou as costas em uma árvore próxima. Como ficava uma hora mais ou menos para o ocaso calculou que tinha tempo para relaxar-se. Depois do atropelado ritmo de sua marcha para o norte te sentou bem descansar um pouco. Embora suas instruções fossem simplesmente identificar ao mensageiro sem interferir, o qual significava não pôr ao MacDougall sobre aviso e permitir que Bruce interceptasse próximas mensagens, tinha que estar preparado para tudo. Mas estava tão tenso como uma mola a ponto de saltar e relaxar parecia impossível. Era consciente de que não era somente a armadilha para o mensageiro o que o deixava duro, a não ser a perspectiva de sua volta ao castelo.

Voltaria a vê-la.

A angústia que sentia no peito o traía. dizia a si mesmo que se devia somente que desejava assegurar-se de que estava bem e não que queria vê-la. Não que não pudesse deixar de pensar nela. E é obvio nada tinha que ver com que a sentisse falta dela. Não podia ser tão estúpido.

«Outro mês —se disse — te afastes dela durante um par de semanas mais e tudo terá acabado.» Assim que conhecesse a identidade do mensageiro poderia ver o que descobria a respeito dos planos do MacDougall para a batalha. Mas assim que esta começasse, sua missão estaria cumprida. partiria sem olhar atrás.

Tirou um pedaç de carne-seca de vaca e uma torta de aveia ao conscientizar-se de que não tinha comido nada desde de manhã, o comeu e o baixou tomando um pouco de água do córrego com a que tinha encheu seu odre. Depois ficou observando a verde paisagem distraidamente.

O coração lhe deu uma violenta sacudida. ficou petrificado por um momento. A fome se apoderou dele com uma avidez tão intensa que o deixava sem respiração. Observou como um homem ansioso por um prato de comida como a moça em que estivera pensando toda a semana se materializava ante ele como saída de seus próprios sonhos. Apesar de que ainda estava a uma distância considerável e de que levava um vestido com capuz por cima de seus cabelos dourados, sabia que era ela. Sentia sua cercania até nos ossos. Em seu mesmo sangue. Todos seus nervos ficaram a flor de pele enquanto a observava descer de um pequeno bote e começar a ascensão pelo frondoso atalho que levava do pequeno embarcadouro até o claustro.

esforçou-se por espionar uma pequena porção de seu rosto diante da evanescente luz do dia. A necessidade de vê-la, de assegurar-se a si mesmo que ela se encontrava bem, quase lhe fez esquecer onde se encontrava. Deu um passo à frente sem conscientizar-se do que acabava de fazer. Amaldiçoou e se escondeu depois da árvore antes que alguém o visse ali plantado como um louco cego de amor. Que diabos estava fazendo ela aí?

Levava consigo a cesta e, uma vez mais, somente trazia um homem como escolta. A moça tinha uma habilidade singular para estar no lugar errado no momento errado. Justamente igual na igreja do Ayr…

ficou estupefato. A verdade apareceu justo ante seus olhos. Não, aquilo não era possível. Mas não acreditava em coincidências. Ou Anna MacDougall tinha uma prodigiosa capacidade para aparecer exatamente ali onde não devia ou o mensageiro era ela.

«O mensageiro é ela.»

Levava as mensagens na cesta, ocultos sob os bolos ou o que fosse que carregasse nela. Arthur recordou quão inquieta se mostrou na vila. Como tinha deixado o bebê enquanto ela se levava a cesta à cozinha. A palidez de seu rosto quando mencionou a fome que estava dando o aroma dos pães-doces. E também ela foi encarregada de recolher a prata no Ayr. Tinha tido a verdade ante seu nariz todo o tempo. Como tinha podido estar tão cego?

esticou a mandíbula. Sabia quanto a tinha subestimado. Duas vezes. Porque era bonita, jovem e inocente, porque parecia tão amável e vulnerável, por ser uma moça, jamais se tinha perguntado por sua presença ali aquela noite, nem sequer depois de saber que estivera espiando-o.

Diabos, era uma idéia magnífica. Usar mulheres como mensageiras. Agora pensava nas mulheres que tinha visto ir e vir das Igrejas. Jamais lhe ocorreu que pudessem fazer outra coisa. penetraram passando diante de sua própria rede.

Teria sentido admiração, se não fosse que acabava de conscientizar-se de algo muito importante que o consumia por dentro. O sangue o gelou por completo e um fio de suor escorreu cangote abaixo. Pelos pregos de Cristo, como podia seu pai usar a desse modo? Se não tivesse planejado fazê-lo, poderia matar ao MacDougall somente pelo fato de pô-la em tamanho perigo. Acaso não se dava conta do que poderia lhe acontecer se ele não estivesse naquela noite para salvar a moça de MacGregor e seus homens? Poderiam tê-la matado.

O coração parecia sair-se o do peito à medida que ela se aproximava da porta. Apertou os punhos, lutando por não arrancar e correr até ela, puxá-la pelo ombro e tirá-la dali no momento. Sentia uma necessidade animal de levá-la a algum lugar seguro no que pudesse encerrá-la e protegê-la.

«Não é seu trabalho. Não é tua responsabilidade. Não é tua.»

O suor frio se acumulava em seu cenho. Quando pensava no risco que estava correndo, quase se voltava louco de… Se sobressaltou ao conscientizar-se do que era. Jesus, era medo! Não se sentia assim desde que Dugald tentou o curar de sua aversão aos ratos desarmando-o e encerrando-o em uma escura despensa cheia deles.

Anna bateu na porta. Um momento depois respondeu um sacerdote. Apesar de que Arthur mantinha os ouvidos atentos, falavam tão baixo que não pôde ouvir o que diziam. Não obstante, pela expressão de desculpa do monge e a negação que fez com a cabeça, deduziu que este dizia a Anna que não havia mensagens. Pareceu que ela encurvava os ombros. Mudaram algumas palavras mais e Anna retornou em seguida ao bote.

Arthur observou como partia e soube imediatamente que sua missão acabara de complicar-se muitíssimo mais do que já estava. Por todos os demônios, por que tinha que ser ela? Lutava contra aquilo que tinha que fazer. Mas manter-se afastado de Anna MacDougall já não era uma opção. Pouco importava o que seus instintos o advertissem, sua missão o obrigava a permanecer tão perto dela como fosse possível. Tinha que a par dos planos do MacDougall.

Estava a ponto de liberar uma batalha. Mas por uma vez em sua vida Arthur duvidou de sua habilidade para sair ileso.

 

 

 

 


C O N T I N U A