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THE RANGER - Parte II
Series & Trilogias Literarias
Capítulo 11
Anna jogou o capuz para trás ao mesmo tempo que entrava na câmara de seu pai. Soltou a cesta na mesa e se sentou juntou a este e sua mãe ao calor das brasas da lareira. Inclusive no verão, os muros de pedra do castelo faziam dele um lugar frio e com correntes de ar.
Sua mãe levantou a cabeça do novo estandarte de seda no qual trabalhava e a olhou, sentida saudades.
—De onde vem, Annie querida? É tarde.
—Fui levar bolos aos monges do priorado —respondeu Anna inclinando-se para beijar sua mãe.
Encontrou-se com o olhar de seu pai. A expressão deste se escureceu ao ver respondida sua tácita pergunta com uma leve negação de cabeça. Tossiu antes que sua esposa pudesse fazer mais objeções. Embora Anna soubesse que o fazia e que propósito, aquele áspero e úmido som a preocupava.
—Não me falou de uma nova infusão de ervas do pai Gilbert que ajudaria a aliviar o encharcamento de meus pulmões?
Sua mãe se sobressaltou, afastou seus bordados e ficou em pé de repente.
—Tinha esquecido. Direi ao Cook que o prepare agora mesmo.
Assim que a porta se fechou atrás dela seu pai disse:
—O rei Eduardo não respondeu?
Anna negou com a cabeça.
—Já deveríamos ter notícias dele.
Seu pai se levantou e começou a perambular diante da chaminé, enfurecendo-se mais a cada passo que dava.
—Esses asquerosos rufiões de Bruce devem tê-lo interceptado. Parece que a metade de nossas mensagens não chega a seu destino, nem com a ajuda das mulheres — disse apertando a mandíbula — Mas dado que não ouvimos nada sobre o destacamento de soldados, acredito que podemos supor que não enviarão a ninguém. O jovem Eduardo está muito ocupado tentando salvar sua própria guarida para preocupar-se com a nossa.
Anna não podia acreditar que depois de tudo o que tinha feito seu pai pelo primeiro rei Eduardo, o novo rei o abandonaria de tal modo.
«Que se deita com crianças…»
Veio a sua mente essa velha história, mas Anna a tirou da cabeça porque em certo sentido lhe parecia desleal. Seu pai não teve outra opção. O primeiro rei Eduardo era muito poderoso. Depois da derrota de Wallace em Falkirk, ou se fazia aliado do rei inglês ou lhe confiscavam as terras. Quando Bruce usurpou a coroa, a aliança se fez mais necessária ainda. Se Bruce e os MacDonald estavam em um lado, os MacDougall não podiam mais que apoiar ao outro: Inglaterra.
—Não deveríamos tentar enviar outra missiva?
—Não temos tempo — espetou seu pai, claramente molesto pelo que percebia como uma pergunta estúpida — Os ingleses se movem com lentidão. Demorariam semanas em chegar tão ao norte carregando toda essa baixela e esses móveis para estar cômodos. Inclusive no caso de que Eduardo mudasse de opinião, necessitaria dias para reunir aos homens. O rei Hood estaria aqui junto a sua tropa de assassinos salteadores de caminhos antes que aos ingleses desse tempo de encher seus carros de ninharias.
Anna tentava não tomar como algo pessoal a cólera do pai. Tinha todo o direito a perder os nervos. O inimigo estava virtualmente em cima e ninguém vinha em sua ajuda. O conde de Ross, igual ao rei Eduardo, ainda não tinha respondido a sua petição de unir forças. Ia ficando patentemente claro que estariam sozinhos ante Bruce: oitocentos homens contra os três mil com que contava o usurpador conforme o informe.
O medo prendia a garganta. Os MacDougall eram ferozes combatentes e Lorn um dos melhores generais de Escócia na batalha, mas poderiam superar tal desvantagem? Seu pai estivera a ponto de derrotar ao Bruce anteriormente, mas então o rei foragido teve que fugir com umas poucas centenas de homens ante suas mais numerosas forças. Nessa ocasião seriam os MacDougall quem estaria em clara inferioridade numérica. «Pouco importa», pensou Anna com integridade. Seu pai ganharia de todos os modos. Somente um MacDougall valia por cinco rebeldes. Mesmo assim, por mais vezes que se dissesse que John de Lorn superaria inclusive a pior das apostas, seu leal coração não podia negar que existia a mais mínima, a ínfima possibilidade de que perdessem.
«Perder.»
Um calafrio lhe percorreu o corpo. Somente pensar nessa palavra lhe parecia a mais vil das blasfêmias. Não podia permitir que isso ocorresse. As conseqüências eram muito execráveis para as considerar. Mas tudo aquilo que apreciava, todas suas esperanças de um futuro feliz, parecia pender sobre a ponta de um alfinete, ou, neste caso, de uma espada. O mais leve empurrãozinho faria que tudo se precipitasse no vazio. Os grossos muros do castelo de repente lhe pareciam finas vidraças, dispostas a romper-se em mil pedaços. Sua situação era complicada, inclusive até desesperada. Contudo, havia um modo de conseguir atenuá-la um pouco.
O tempo pareceu deter-se. O pavor se apoderava de seu estômago em um tenso nó e o formigamento que isso provocava aumentava à medida que Anna via do que seria obrigada a fazer. A solução espreitava no mais profundo de sua mente desde fazia meses, mas não queria considerá-la.
Anna se aferrou às abas de sua capa como se fossem uma corda a qual pudesse agarrar-se.
—E o que passa com Ross? —perguntou em voz baixa — Ainda fica tempo para que se apresente.
Seu pai a olhou com certo desdém.
—Sim, mas como digo já, não o fará.
Era reprovação o que advertia em seu olhar? Acaso se arrependia de ter dado opção? Anna aspirou profunda e entrecortadamente em uma tentativa de controlar o ritmo frenético de seu pulso. Sua gelada pele se cobriu com uma fina pátina de suor. O peito lhe oprimia tanto que mal podia respirar. Todo seu ser se rebelava contra o que estava a ponto de sugerir. Mas não ficava alternativa. Um marido era um pequeno preço a pagar em comparação com a sobrevivência de seu clã. casaria-se até com o mesmo diabo se fosse necessário.
—E se lhe desse um motivo para pensar melhor? —Seu pai a olhou nos olhos. Anna soube que tinha adivinhado o que sugeria pelo ar de reflexão que adotou seu olhar, embora talvez isso fosse o que ele esperava dela de um princípio — O que passaria se fizesse um rogo pessoal ao conde?
Teve que deter suas palavras. Seus dedos agarravam a lã da capa com tanta força que cortava a circulação. O coração pulsava a um ritmo frenético e martelava em suas têmporas. O estômago se decompôs. «Tudo irá bem. Eu me encarregarei de que funcione. Não é um homem tão temível.» Sir Arthur era alto, musculoso, de uma beleza sombria e, não obstante, nunca ficava nervosa em sua presença. Talvez tivesse superado seu medo aos guerreiros.
«Sir Arthur.» O coração deu um tombo. A imagem do cavalheiro apareceu ante seus olhos, mas a afastou de sua mente. Não significava nada para ela. Pouco importava que seu coração tivesse querido voar para ele momentaneamente. Embora as coisas fossem diferentes, ele já tinha expressado com uma claridade dolorosa o que sentia por ela: nada.
Mas teria que passar toda a vida tentando esquecer aquele beijo.
Seu pai esperava que continuasse, mas Anna não era capaz de encontrar as palavras.
—O que aconteceria…? —Anna teve que se deter para clarear a garganta — Se a oferta de sir Hugh segue em pé, estou disposta a aceitar sua proposta de matrimônio. Em muda, talvez o conde veja o benefício de unir nossas forças.
Seu pai não disse nada durante um momento, mas sim ficou estudando seu rosto com uma intensidade tal que a Anna pareceu estar retorcendo-se em seu interior.
—Crê que seguirá te querendo? Não teve nenhuma graça que o rechaçasse.
Ardiam-lhe as bochechas de vergonha de não ter parado pra pensar nessa possibilidade. Seu pai tinha razão. O jovem cavalheiro, ferido em seu nobre orgulho pelo rechaço, ficou uma fúria.
—Não sei, mas merece a pena tentar.
Já tinham machucado seu orgulho há pouco. O que importava um pouco mais ou menos?
—A sua mãe não gostará da idéia — disse John de Lorn olhando para a porta — Os caminhos podem ser muito perigosos com Bruce e seus homens por aí soltos.
Nisso tinha pensado Anna.
—Não se preocupará se Alan me acompanha. Levaremos uma boa escolta.
Seu pai assentiu enquanto acariciava o queixo.
—Sim. Seu irmão te manterá a salvo — disse com um sorriso, enquanto ela tentava mascarar seu desengano. Havia uma parte de Anna que esperava que seu pai se negasse. Este se levantou e a beijou no cocuruto — É uma boa garota, Annie querida.
Em geral Anna transbordava de alegria quando seu pai lhe dirigia um elogio, mas nessa ocasião teve vontade de chorar. Sua felicidade era um pequeno preço a pagar, mas, mesmo assim, era um preço a pagar. Seu pai a beliscou no queixo para que o olhasse os olhos. Anna piscou diante da cálida e úmida bruma do lar.
—Sabe que não lhe pediria isso se tivesse uma alternativa.
Uma solitária lágrima escorregou por sua bochecha. Tremia-lhe a boca, mas se esforçou por sorrir.
—Sei.
Naquele momento supunha que era sua única esperança. Não importava quão mau parecesse. Faria tudo o que estivesse em sua mão para assegurar a aliança.
De todos os modos tampouco havia ninguém que se interessasse por ela.
Entretanto, quando Anna abandonou os aposentos de seu pai, todas essas lágrimas que estivera agüentando saíram precipitadas em uma corrente de esperança extinta, uma esperança que nem sequer era consciente de estar albergando.
A volta de Arthur ao castelo, sozinho, não foi tão difícil de explicar como imaginava. Lorn estava ansioso por ouvir um relatório do que seu filho tinha descoberto a respeito de seus inimigos do oeste. A luta pela supremacia entre os três principais ramos dos descendentes de Somerled, os MacDonald, MacDougall e MacRuairi, levava anos dominando a política das Highlands Ocidentais. Quando morreu o último dos chefes do clã MacRuairi, deixando a sua filha Christina das Ilhas como única herdeira ao trono, estes perderam poder e o terna se reduziu a dois. Lachlan e seus irmãos eram todos filhos bastardos, um título que em seu caso era completamente castigo.
A informação de Ewen oferecida por Arthur a respeito da mobilização de tropas dos MacDonald ao longo da costa ocidental não era nada surpreendente, mas mesmo assim provocou um substancial arrebatamento de fúria no Lorn, e também inquietação, apesar de que procurasse ocultá-lo. Embora talvez não tanta como devesse, o qual o fazia perguntar-se o que teria planejado aquele conspirador briguento. E agora, graças a seu descobrimento no priorado, sabia perfeitamente como averiguar.
Mas como sua volta ao castelo foi em uma hora tardia, sua reunião com lady Anna teria que esperar até a manhã seguinte. dizia a si mesmo que estava inquieto simplesmente porque teria que encontrar um motivo para algo que seria como uma mudança de parecer repentino: em lugar de evitá-la, inventaria desculpas para estar com ela. Mas tampouco queria dar falsas esperanças à moça. Apesar de ter cometido o engano de beijá-la, e Deus, um enorme engano tinha sido aquele, uma relação entre eles era algo impossível. Sabia que não seria fácil. Certamente a moça teria passado toda a semana pensando naquele beijo. Deus sabia que ele mesmo não tinha sido capaz de pensar em outra coisa.
Embora já tinha visto ela cruzando o jardim de Ardchattan, quando a viu entrar no grande salão na manhã seguinte seus sentidos se avivaram como se fosse a primeira vez. Tudo parecia estar mais vivo, mais intenso. Jamais antes o tinha afetado tanto a presença de alguém como fazia nesse momento lady Anna MacDougall. encantou-se dela, de cada um dos detalhes, de cada matiz, das mechas de cabelo dourado que escapavam de seu véu azul à altura da fronte e as têmporas até os finos bordados de seda do cotehardy que rodeava sua figura em todos os lugares apropriados.
«Não…»
Deixou cair o olhar sobre seus seios. Ficou com a boca seca. Via, embora fossem imaginações dele, o mal esboçado relevo de seus mamilos perolando essa parte do tecido. Assaltaram-lhe as lembranças e uma onda de calor saiu de sua virilha. Pensar no tato daquela exuberante suavidade fez que endurecesse seu pau. Que impressionante tinha sido embalar esse seio, sentir o peso dessas carnes perfeitamente arredondadas sobre a palma de sua mão ao mesmo tempo que seu polegar acariciava o teso broto de seu mamilo. Amaldiçoou para si, subitamente incomodado por aquelas lembranças, muito viscerais, em conjunto.
Estava quente. Excitado. Faminto.
Como demônios ia olhar a moça sem lembrar-se das sensações que procurava ter seu corpo pego ao dela? Como poderia ver o sensual arco rosado de sua boca sem recordar quão doce sabor, a suavidade daqueles lábios sob os seus, e que o erotismo de suas línguas entrelaçadas o tinha feito entrar em um torvelinho de desejo mais forte que qualquer outra coisa que houvesse sentido alguma vez? Jamais poderia olhar essa pálida pele suave como a de um bebê, que era como veludo ao tato, sem recordar como a havia tocado.
Deus, quão único queria era atirá-la na cama, enrolar suas pernas a sua cintura e afundar até esquecer-se de tudo. Jesus, tinha que deixar de pensar nisso. Tinha que parar de torturar-se com coisas impossíveis. Sempre tinha sido capaz de reprimir seus impulsos, mas com a Anna era diferente.
Porque ela era diferente. E não fazia nenhuma graça reconhecê-lo.
Arthur se dava conta de como o observava seu irmão, mas não podia afastar o olhar. Seu coração pulsava mais depressa a cada passo que ela dava e cada um de seus nervos ficava em tensão enquanto se preparava para o momento em que ela se inteirasse de sua presença. Mas assim que a teve mais perto percebeu uma estranha pontada. Algo não ia bem.
Não sorria. Seus olhos não brilhavam com alegria e travessura. E sua risada, esse leve e efervescente som ao que poderia ouvir durante horas, permanecia em completo silêncio. acostumou-se tanto a seu perpétuo bom humor, ao despreocupado encanto com o que parecia iluminar os aposentos, que o vazio deixado por sua ausência obscurecia o grande salão.
Maldição. teria feito mais dano de que pensava? A culpa o atormentava.
Por um instante pensou que passaria junto a ele, mas então notou o peso de seu olhar. ficaram contemplando o um ao outro. A quietude era absoluta.
Esperou ver sua reação. Esperava presenciar como a cor subia por suas bochechas, como lhe cortava a respiração e se acelerava o pulso em seu pescoço. Esperava que se delatasse. Mas em vez disso ficou em guarda.
Lady Anna levava todos seus pensamentos e sentimentos escritos no rosto. Essa era uma das coisas que Arthur encontrava tão cativantes e irresistíveis dela. A inocência e a emoção infantil que mostrava, sua preciosa vulnerabilidade. Mas essa expressão, antes sempre acessível, permanecia oculta.
Percebeu a frieza de seu olhar por um breve instante dantes que afastasse e passasse por ele. Como se tivesse deixado de existir. Como se ela jamais se derretera em seus braços. Como se o beijo no que não podia deixar de pensar jamais existira para ela. Como se não tivesse estado a ponto de sucumbir sob seu corpo.
Sua indiferença lhe corroía o peito como se de um ácido se tratasse. Queimava. Doía. O fazia perder o controle por completo, sentir a necessidade primitiva de cometer alguma loucura, como empurrá-la contra a parede e beijá-la até que se rendesse a seus pés uma vez mais.
Mas ele era um homem que mantinha o controle. refreava-se. Era diferente. Não tinha necessidades de tal tipo. E entretanto, com um só olhar de frieza, Anna MacDougall conseguia tirar dele os impulsos bárbaros que levava no sangue.
Ao que parecia tinha conseguido seu objetivo. Seu cruel rechaço sortia efeito. Não deixava de ser irônico que se mostrasse indiferente justo quando ele desejava que não fosse assim. Ou pode ser que nunca tivesse estado interessada nele. Talvez o único que queria fosse vigiá-lo.
azedou a expressão e se o flexionaram os músculos, mais molesto por esse pensamento do que gostaria de admitir. Por desgraça, seu irmão se mostrava perceptivo. Dugald simulou um calafrio.
—Vá, parece que faz um pouco de frio por aqui. Acredito que a dama já esqueceu o capricho, irmãozinho. Com o tanto que tentou, pensei que estaria mais contente — disse, fazendo uma pausa para negar com a cabeça — Será possível que ao fim te tenha feito cair uma mulher? Acreditava que isso não aconteceria nunca.
Arthur se recostou sobre a parede de pedra que tinha trás de si, aparentando uma indiferença que não sentia. Era certo que gostava dela, mas antes morto que deixar que Dugald conhecesse sua debilidade.
—Não é mais que uma moça apetecível.
—Mais apetecível ainda porque não pode tê-la.
Arthur encolheu os ombros e deu um longo gole a seu cuirm até esvaziar a taça.
—O que eu quero dela não é algo que possa me dar uma inocente jovem da nobreza.
Dugald riu e lhe deu uma palmada no braço.
—Compartilho sua dor, irmãozinho. Eu mesmo estou sentindo um pouco parecido. Sei de uma moça com uma boca talentosa que faria bastante por aliviá-lo. Mandarei a ti.
Arthur desviou o olhar para o tablado em que se acabava de sentar lady Anna. Tentava pelo menos. Tentava. Mas não lhe interessavam as mulheres de seu irmão. Franziu o cenho em um meia sorriso.
—Você compartilhando, irmão? Não parece você mesmo. Mas neste caso não será necessário. Não acredito que tenha problemas para encontrar alívio.
Se quisesse, sabia de algumas mulheres entre as que podia escolher. O problema era que não queria. Ao menos, não com elas.
Dugald encolheu os ombros.
—Como deseje — disse aproximando-se dele com um amplo sorriso — Mas não sabe o que te perde. Essa moça poderia deixar seca a uma vaca com a boca que tem e faz umas coisas com a língua que…
A voz do Dugald se confundiu com o ruído de fundo. As perversas habilidades que pudesse representar a fulana do Dugald não lhe interessavam. Arthur voltou o olhar para o estrado. Ela era quem o interessava, maldita seja. Embora Deus sabia que não deveria ser assim. Mas parecia que Arthur fosse invisível, porque não olhou uma só vez em sua direção. Sua irritação crescia a cada minuto. Aferrava com força a taça de estanho e a enchia uma e outra vez à medida que o ágape avançava. Seu plano para aproximar-se dela seria mais complicado do que pensava, mas acreditava que se livraria dele tão facilmente estava muito equivocada.
«Retornou.»
Anna se rebelou ante o inoportuno desejo que arremetia contra seu peito e se obrigou a não olhar em sua direção. A não pensar nele. Sir Arthur não era para ela. Jamais foi. Seu destino estava concretizado. Já tinha tomado sua decisão. Seu pai e seu clã contavam com ela. Era muito tarde para arrepender-se ou pensar melhor, por mais que vê-lo devolvesse todas essas ingratas emoções de repente em uma pancada.
Como não se fixou nele a princípio, quando nesse momento já não podia ver nenhuma outra pessoa? Aquele orgulhoso jovem cavalheiro de escura beleza era o homem mais bonito de toda a sala. E sem dúvida também o mais forte. Suas bochechas se acaloraram. somente olhar sua figura alta e de largos ombros voltavam as lembranças de seu torso nu. Cada um de seus esculturais músculos. Cada uma de suas rígidas linhas. Cada um dos gramas de sua musculosa carne.
Tentava ignorá-lo, mas sentia o peso de seu olhar enquanto comia. Ou tentava comer, já que tinha a boca completamente seca e a comida lhe parecia insípida e terrosa. Olhava-a com tal intensidade que dava vontade de sair correndo. Algo que fez assim que teve oportunidade.
Anna se apressou a sair do grande salão com mais sentimentos dos que podia albergar, correu pela escadas para sua câmara da torre e ficou a pinçar no armário em busca de sua capa de montaria. Precisava sair dali.
Um dia. Somente tinha que o evitar durante um dia e depois disso partiria. Tinham previsto partir para o castelo de Auldearn, a fortaleza real do conde de Ross, na manhã seguinte. por que não podia permanecer fosse do castelo até que ela partisse? Assim tudo teria sido muito mais fácil.
Em seu desespero por escapar, revolvia os montes de objetos de lã e de seda que penduravam de seu armário sem importar a desordem que criava. Onde estaria?
Estava a ponto de enfrentar o frio matinal e sair de todos os modos quando percebeu de que provavelmente sua criada já teria posto a capa em sua arca para a viagem. Abriu a tampa de madeira e deixou escapar um suspiro de alívio ao ver que a peça de lã axadrezado de cores cinza, azul e verde estava dobrada em cima de tudo. A jogou rapidamente sobre os ombros, agarrou em braços Escudeiro, temendo que o cachorrinho saísse correndo em busca do cavalheiro pródigo, e voltou a descer a escada como um torvelinho. antes de sair ao barmkin olhou pela fresta da porta para assegurar-se de que tinha via livre. Não queria correr nenhum risco de topar com ele. Sabia que aquilo era ridículo. Sir Arthur fazia todo o possível para evitá-la. Mas havia algo na forma em que a tinha olhado durante o café da manhã que chamava à cautela.
Cruzou o pátio e se dirigiu para os estábulos. Uma vez na segurança de seu interior soltou ao revoltoso cão no chão e fez que o cavalariço chamasse Robby enquanto ela preparava os arreios de seu cavalo.
Não tinha nenhum destino em mente, com tal de sair do castelo era suficiente. A impressionante fortificação de pedra e os grandiosos muros do barmkin pareciam muito pequenos de repente. Acabada sua tarefa, dispôs-se a recolher ao Escudeiro do chão quando a porta se abriu e o cachorrinho prorrompeu em uivos e ganidos ao mesmo tempo que saltava de seus braços disparado como uma flecha.
—Merda! —saiu de seus lábios antes que desse tempo a refrear-se.
Não precisava olhar para saber quem era. Se a reação de Escudeiro não dizia, assim fazia seu próprio corpo. O ar mudou. A pele lhe ardia. Seus sentidos despertaram. O aposento esquentou imediatamente e o leve aroma de fragrância masculina se filtrava através dos penetrantes e terrestres aromas do estábulo. Fechou os olhos, rezou uma prece que os céus lhe dessem força e ficou em pé lentamente para enfrentar a ele.
Seus olhares se encontraram. A repentina excitação que a embargou foi como um látego que a chamasse o ordem. Aquela era uma impressão que parecia não diminuir nunca. cortou a respiração, ao mesmo tempo que essa aguda e repentina opressão voltava a lhe envolver o peito e espremê-la. Um irritante acesso de nostalgia se formava em seu interior, mas esmagou com rapidez, sem compaixão. Ele não significava nada para ela. Já não. Não depois do ocorrido nos barracões. A tinha ensinado quão errado era para ela. E mais valia que acreditasse.
Controlou suas feições para fazer delas uma máscara impassível, tirando provisão de cada gota de sangue real que corria por suas veias. Era descendente de reis, tataraneta legítima, seis gerações depois, do poderoso Somerled. Saudou-o com uma ligeira inclinação da cabeça e disse friamente: —Sir Arthur, vejo que retornastes.
Sua tentativa de mostrar-se digna se viu em certo modo arruinado pela tremor de sua voz. Uma coisa era fingir que não lhe afetava sua presença em um salão cheio de gente e outra muito diferente fazê-lo em um pequeno estábulo. A sós. Enquanto ele a olhava dessa maneira tão intensa. Com raiva. Tinha o rosto avermelhado por completo, à exceção das comissuras da boca e de sua palpitante têmpora, que para sua desgraça estavam brancas.
O coração pulsava a toda pressa. Onde estava Iain? A cavalariço já deveria ter retornado.
Arthur pareceu ler sua mente e endureceu o olhar, algo que não fez a não ser enervá-la mais, dado que já era suficiente severo. Não tinha motivos para estar furioso com ela.
—O moço não virá. Disselhe que a levaria aonde precise ir.
Por Deus, isso não! Não queria ir com ele a nenhuma parte. Nem sequer queria o ter perto. Anna ergueu o queixo, negando-se a que a intimidasse a sensação de perigo que lhe transmitia. Não tinha feito nada mau. Somente esperava que não se inteirasse de como lhe tremiam as mãos.
—Isso não será necessário.
Arthur deu um passo à frente e Anna fez esforços em não cambalear-se. Mas o sangue pulsava com força em seu pescoço. E ele viu. O sorriso que se desenhou em seus lábios a fez sentir como um camundongo ante os olhos de um gato.
—Temo-me que sim, será. Se saíres do castelo partirei contigo. —Arthur a olhou de tal modo que fez que a Anna fervesse o sangue — Me parece que esquecestes algo.
Gaguejou, completamente deslocada pelo calor que fluía por suas veias.
—O que… o que?
—Sua cesta — disse olhando-a nos olhos. Anna ficou gelada, decomposta pela surpresa. Não era possível que soubesse. Quase suspirou de alívio quando ele acrescentou—: Não acredito ter visto sair do castelo sem ela.
Muito observador, mais do que convinha. Sir Arthur era perigoso em muitas e diferentes formas. Seu pai iria às nuvens se alguém descobrisse o que ela e algumas das outras mulheres faziam. Anna se recompôs em seguida, irritada por permitir que a angustiasse.
—Só tinha intenção de sair a cavalgar. Hoje não visito ninguém da vila.
Arthur ficou olhando-a por mais tempo do que devido, e Anna voltou a perguntar-se se saberia algo. Entretanto, nessa ocasião sua expressão não traiu seus pensamentos.
Uma série de latidos frenéticos fez que Arthur dirigisse sua atenção ao chão, para o cão que saltava sobre sua perna.
—Abaixo! —disse em uma voz que não aceitava discussão. O cão se sentou imediatamente e ficou olhando-o com cara de adoração — Seu cachorrinho precisa aprender maneiras.
Anna franziu os lábios.
—Gosta de ti.
«Deus saberá por que motivo.» Tentar tirar um pouco de afeto de Arthur Campbell era como querer extrair água de uma rocha, uma experiência condenada ao fracasso e a frustração. Arthur entreabriu os olhos como se Anna houvesse dito isso em voz alta.
—Normalmente os animais gozam de bons instintos.
—Normalmente sim — concedeu, deixando muito claro que ela pensava diferente nesse caso.
Aquele brilho perigoso voltou a encher seu olhar.
—E o que tem que você, Anna? O que dizem seus instintos?
«Corre. te esconda. te afaste dele tanto como possa para que não te faça mais dano.» Olhar essa mandíbula afiada e recortada, seus sensuais e carnudos lábios e esses olhos escuros jateados de âmbar era já suficientemente doloroso.
Afastou o olhar, contendo a emoção que ia a sua garganta.
—Eu não faço caso a meus instintos.
Ao menos já não fazia. Estavam errados. Seus instintos a tinham feito acreditar que entre eles havia algo especial. Que talvez ele tivesse necessidade dela. Que se sentia sozinho. E que possivelmente fosse diferente ao que parecia: um ambicioso cavalheiro, um soldado valente que vivia por e para sua espada.
Inclusive nesse preciso momento seus instintos lhe faziam acreditar que a tensão que bulia entre ambos significava algo, que bastaria que tomasse em seus braços e a beijasse de novo para que tudo voltasse para a normalidade. Mas era muito tarde para isso.
—Os instintos só servem para te obrigar a fazer coisas das que logo te arrepende — acrescentou.
Arthur esticou o queixo e o músculo de sua mandíbula começou a tremer de modo detestável. aproximou-se mais ainda. Tão perto que Anna sentia todo o calor que irradiava. Tão perto que cheirava o especiado aroma de sol que emanava sua pele. Começaram a tremer as pernas. Por Deus, tinha esquecido quão alto era. Parecia que muros se fechassem em volto dela. Custava-lhe respirar. Custava-lhe inclusive pensar enquanto se abatia sobre ela de tal modo. Usava sua selvagem masculinidade contra ela com a sutileza de um carneiro batendo-se em duelo.
—E arrependes de algo, Anna?
A enganadora suavidade de sua voz não a enganava absolutamente. Advertia perfeitamente a raiva contida em suas palavras, como se lhe importasse que seu coração tivesse mudado de parecer. por que fazia isso? por que tentava confundi-la? Fosse ele quem havia dito a ela que se afastasse.
—Que mais dá? E menos agora. Deixara tudo muito claro antes de fugir com meu irmão.
Anna tentou flanquear a porta e deixá-lo ali, mas Arthur a deteve com o implacável escudo de seu peito. Pela linha branca que se formou na comissura de sua boca não coube dúvida de que tinha captado a indireta.
—Então já acabastes com a espionagem. É isso?
Anna o observou atentamente. Nisso era que acreditava? Bom, que mais dava o que pensasse. Afastou lentamente seu olhar e a dirigiu para a porta.
—Sim, isso. Agora se me permitem, eu gostaria de partir.
Empurrou seu peito com o dorso da mão, mas era tão firme como um escarpado rochoso. Um escarpado com montões e montões de pedras cortantes e afiadas.
—Já vos disse que partiria contigo.
—Seus serviços já não são necessários. mudei de opinião. Não sairei a cavalgar esta manhã.
A maneira que flamejavam seus olhos revelava que não fazia nenhuma graça que o rechaçassem. Bem, pois pior para ele. Ela não o tinha escolhido como seu cavalheiro andante. Então notou que os músculos de suas costas se esticavam e se perguntou se não o teria levado muito longe. Mas Arthur não fez mais que torcer o gesto, representar uma reverência exagerada e afastar do caminho.
—Como desejais, milady. Mas se mudares de opinião já sabem onde me encontrar.
Anna passou junto a ele como um raio, com o queixo bem alto.
—Não o farei. Tenho muitas coisas que fazer antes de partir.
A mão que pousou sobre seu ombro a fez deter-se de repente. Mas inclusive essa forma rude de tocá-la fazia que seus sentidos se desatassem.
—Vais a alguma parte, lady Anna?
Tentou desembaraçar-se de seu braço e o fulminou com o olhar ao ver que não a deixava partir.
—Não é seu assunto.
Um brilho foi a seus olhos ao mesmo tempo em que Arthur se aproximava mais a ela. Anna sentia a energia que vibrava entre ambos e a arrastava consigo. Tinha a boca tão perto…
—me digas.
Não podia beijá-la, dizia-se Anna presa do pânico. Não podia permitir que a beijasse.
—Caso-me — disse bruscamente.
Capítulo 12
Arthur retirou o braço como se queimasse.
«Caso-me.» Suas palavras sentaram como um soco no estômago. Era incapaz de se mover. Cada osso, cada músculo, cada uma de suas terminações nervosas se petrificou.
—Com quem? —perguntou com uma voz mortiça, vagamente ameaçador, que não parecia a sua, soava como a do MacRuairi.
Anna não queria olhá-lo nos olhos. ficou a retorcer as grossas pregas de lã de sua saia com as mãos.
—Com sir Hugh Ross.
Uma faca encravada entre suas costelas teria resultado menos doloroso. O filho e herdeiro do conde de Ross. Arthur o conhecia, é obvio. O jovem cavalheiro já havia feito um nome por si mesmo. Era um guerreiro temível, um estrategista, dentro e fosse do campo de batalha. O fato de que fosse um bom partido piorava mais.
Não compreendia a raiva que consumia seu interior, nem por que se sentia traído. Não lhe pertencia, diabos. Jamais poderia lhe pertencer. Mas isso não o fazia esquecer que apenas quinze dias atrás a tinha tido em seus braços e que estivera a muito pouco de despoja-la de sua inocência.
—Ao que parece tiveste uma semana muito ocupada, milady. Não perde tempo.
Um quente rubor tingiu suas bochechas.
—Ainda não concretizamos os detalhes.
Arthur advertiu algo em sua voz que o fez entreabrir os olhos enviesadamente.
—A que detalhe se refere? Está prometida ou não?
Anna ergueu o queixo e ele captou o desafiante brilho de seu olhar apesar do sufoco de seu rosto.
—Sir Hugh me propôs matrimônio faz um ano, pouco depois de que morreu meu prometido.
—Acreditava que o tinha rechaçado.
—Assim foi. Pensei melhor.
Arthur compreendeu do que se tratava tudo aquilo de repente. Ao não contar com a ajuda do rei Eduardo, os MacDougall tinham decidido pedir ao Ross e oferecer a lady Anna como incentivo acrescentado para a aliança. Pouco importava se ela tinha pensado melhor ou era seu pai quem assim tinha decidido. Arthur não podia permitir que unissem suas forças. Uma aliança entre Ross e os MacDougall poria em perigo a vitória de Bruce. Seu trabalho, sua obrigação, era deter aquilo.
Arthur a olhou com dureza.
—E como sabe que sir Hugh se mostrará aberto a sua repentina mudança de pensamento?
—Não sei. —Anna lhe dirigiu um olhar penetrante — Mas farei tudo o que possa para persuadi-lo.
Não era necessário adivinhar a que se referia. Sua reação foi instantânea. Primitiva. Por um breve instante da ira se apoderou dele e perdeu o controle. Sentiu um vazio na mente. Lady Anna estava a escassos centímetros de ver-se esmagada contra a parede do estábulo com seus lábios selados pelos dele, toda sua virilidade entre as suas pernas e uma língua afundando-se no interior de sua boca, ali onde devia estar.
Mas inclusive no furor de sua raiva pedia mais a necessidade de protegê-la. Não confiava em si mesmo para tocá-la de tal modo.
Anna pôs os olhos como pratos e teve a prudência de dar um passo para trás. Mas ele a seguia cativando com a armadilha de seu penetrante olhar.
—Assim tem tudo bem planejado?
Assentiu.
—Sim. Será melhor para todos.
Que aquilo soasse como se estivesse tentando convencer-se a si mesmo não consolava absolutamente.
—Seu plano tem um problema.
Anna o olhou, dúbia.
—E qual é?
—Ross está ao norte. Os caminhos são muito perigosos para que te translades. É muito arriscado. Bruce e seus homens ficarão no caminho em qualquer momento. Seu pai não aprovará isso.
Lorn era um filho de cadela desalmado, mas parecia amar a sua filha de uma maneira genuína.
—Já o tem feito. Uma leva de guardiães me escoltará, junto com meu irmão Alan. Pode ser que o rei Hood seja um patife assassino, mas não faz guerra às mulheres.
Arthur lutava por manter sob controle seu gênio. Lorn tinha que estar muito desesperado para aceitar isso. O muito filho de cadela faria o que fosse para ganhar, inclusive pôr em perigo sua filha.
—Se se derem conta de que és uma mulher. Na escuridão, não serão tão fácil de distinguir. Poderiam a confundir com um mensageiro.
Acaso tinha esquecido o que estivera a ponto de lhe ocorrer no Ayr? Jesus, quando pensava no perigo… gelou o sangue. De novo teve vontade de empurrá-la contra a parede do estábulo, dessa vez para procurar que entrasse em razão. Poderiam feri-la. Assassiná-la.
—Meu irmão me protegerá. Estou segura de que não passará nada.
Arthur sentia uma veia a ponto de estalar na têmpora. Nem uma centena de homens poderiam lhe dar segurança. Seus esforços por controlar fracassariam.
—Não seja louca! Não podem ir! É muito perigoso. Mandem um mensageiro, é melhor.
Não necessitava mais que ver a posição de seu queixo e a maneira em que entreabria os olhos para saber que tinha cometido um engano. Poe tratar-se de uma moça de aparência tão doce mostrava uma teima digna de admiração.
—Já está decidido. E você, temo que não tenha nada que dizer a respeito.
As mulheres tinham que ser submissas e dóceis, maldita seja. E ali estava ela, cotovelo com cotovelo com ele, sem retroceder um centímetro. Se não estivesse tão furioso isso pareceria admirável.
Nessa ocasião, quando Anna deu meia volta e se dirigiu para a porta, Arthur não a deteve.
«Nada que dizer a respeito.» Isso veremos.
Se ela não entrava em razão, talvez seu pai fizesse.
Os homens de Bruce estavam batendo toda a área, assaltando, saqueando, fazendo tudo o que podiam por semear o caos e expandir o medo no coração do inimigo. A guerra não tinha lugar só no campo de batalha mas também no interior das mentes. Um grupo de escolta do clã MacDougall seria algo irresistível. Anna teria uma flecha no coração antes que pudessem se dar conta de seu engano.
Dizia a si mesmo que era a ameaça que isso supunha para a missão que fazia que se embolotassem todos seus músculos. Evitar esse tipo de aliança, manter isolado ao MacDougall, essa era a razão pela que estava ali. Mas não eram as mensagens nem a aliança em que pensava. Tudo que podia ver era Anna jogada em um atoleiro de sangue. Tinha que fazer que Lorn se afastasse desse estúpido caminho.
E se não podia… De nenhuma maneira a deixaria partir sozinha. Se Anna desse um passo fora desse castelo, ali estaria ele para acompanhá-la, ali onde pudesse a proteger e tê-la à vista. E havia uma coisa que tinha muito clara: não cabia nem a mais remota possibilidade de que a deixasse casar-se com Hugh Ross.
—Ocorre-te algo, Annie? Parece contrariada.
Anna ergueu o olhar para seu irmão Alan, que acabava de aproximar-se para cavalgar a seu lado. Depois de navegar em um birlinn nessa manhã o primeiro lance da viagem, o resto do trajeto fariam a cavalo. A rota marinha desde Dunstaffnage até a vila do Inverlochy através do lago Linnhe tinha levado menos de meia jornada, uma travessia em que teriam empregado vários dias ao fazê-la por terra. Oxalá o resto da viagem fosse igual de simples. Havia três lagos salgados e numerosos rios que percorriam Gleann Mor, o enguiço do Grande Glenn que dividia a Escócia entre o Inverlochy, no nascimento do lago Linnhe, até o Inverness e o fiorde de Moray, mas as rotas marinhas estavam separadas por terreno suficiente para fazer impraticável a viagem em navio. Em vez disso, cavalgariam os pouco mais de cem quilômetros que tinha que o Inverlochy até Nairn, ao leste do qual se encontrava o castelo do Auldearn. Com sorte demorariam quatro dias para chegar. Anna era consciente de que atrasava sua marcha, apesar de que galopavam em um ritmo muito mais castigador que aquele trote pausado ao que estava habituada.
Parecia irônico que estivesse fazendo virtualmente a mesma rota que tinha seguido o rei Hood no outono passado esperando acontecer através das Highlands e apoderando-se dos quatro castelos principais que balizavam o caminho: os castelos de Inverlochy e Urquhart, pertencentes aos Comyn, e os castelos reais de guarnição inglesa em Inverness e Nairn. Dado que esses castelos seguiam ocupados pelos rebeldes, veriam-se obrigados a procurar outra hospedagem que entranhasse menos perigo. Anna suspeitava que se quisessem evitar aos homens de Bruce teria que acostumar-se à paisagem dos bosques. Ao menos assim se livraria daquele sol abrasador por um tempo. Cavalgavam há várias horas e embora o véu protegesse seu rosto, tinha calor, estava pegajosa e, sim, também zangada, como tinha advertido seu irmão. Furiosa, para falar a verdade. O tempo, não obstante, não tinha nada que ver com seu incomum mau humor. Essa honra reservava a um certo cavalheiro intrometido.
Negou-se a lhe dirigir o olhar durante todo o dia. Mas isso não significava que não soubesse exatamente onde estava: cavalgando na cabeça do grupo, inspecionando o caminho que tinham pela frente em busca de sinais de perigo. «Perigo.» Isso era dizer pouco. O perigo era que ele os tivesse acompanhado na viagem.
—Estou bem —assegurou a seu irmão, conseguindo esboçar um sorriso forçado — Tenho calor e estou cansada, mas me encontro bem.
Alan a olhou de esguelha com um desinteresse enganoso.
—Acreditava que talvez tivesse algo a ver com o Campbell. Não parecia muito contente quando disse que nos acompanharia.
Seu irmão era muito ardiloso. Um traço que faria dele um bom chefe no futuro, mas nada que fosse apreciável para uma irmã que preferia guardar seus pensamentos para si mesma. Apesar de seus esforços em não reagir a essas palavras, chiavam-lhe os dentes.
—Não deveria ter-se intrometido.
Quando seu pai lhe contou que sir Arthur havia tentando dissuadir de que cancelasse a viagem, não podia acreditar. Ao fracassar nisso, pediu permissão para os acompanhar argumentando que suas habilidades como rastreador ajudariam a garantir sua segurança. E para maior desgraça de Anna seu pai tinha aceitado. De modo que em lugar de ignorá-lo durante uma só jornada, agora teria que suportar sua presença constante durante dias, semanas inclusive. Acaso tentava atormentá-la de propósito? Aquilo que tinha que fazer já era difícil sem que ele andasse revoando por aí.
—É um cavalheiro, Anna. Um explorador. Informar sobre a posição do inimigo é exatamente seu trabalho. E não posso dizer que não esteja agradecido de que venha conosco. Se for tão bom como diz ser, será muito útil.
Anna se dirigiu a Alan com cara de estar horrorizada.
—Está de acordo com nosso pai?
Alan endureceu o queixo. Jamais criticaria a seu pai de maneira aberta, embora quisesse fazê-lo, como era o caso.
—Teria preferido que ficasse em Dunstaffnage, embora entenda a razão pela que pai insistia em que viesse. Ross se mostrará mais disposto ante uma solicitude direta —disse com um sorriso — É uma danada, Annie querida, mas uma danadinha encantadora.
Anna torceu o lábio.
—E você é tão protetor que molestas, mas eu também te adoro.
Alan se pôs-se a rir e Anna não pôde a não ser unir-se a suas risadas.
Sir Arthur voltou a cabeça para ouvir e a pegou despreparada. Seus olhares se cruzaram por um momento antes que lhe desse tempo a afastar o olhar bruscamente. Mas foi suficiente para que sentisse uma boa pontada no peito. por que tinha que ser tão doloroso?
Alan não evitou esse intercambio de olhares. Voltou a ficar sério e a olhá-la com intensidade.
—Está segura de que isso é tudo o que acontece, Anna? Já sei o que disse, mas me parece que entre sir Arthur e você há algo mais que os trabalhos de vigilância que pai te encomendou. Eu acredito que sente algo por ele. —A pulsação que Anna sentia no peito lhe dizia que seu irmão tinha razão, por mais que gostaria que não fosse certo — Podemos apelar ao Ross sem necessidade de um compromisso —disse seu irmão com carinho — Não é necessário que sacrifique sua felicidade para chegar a um pacto.
Não pôde evitar emocionar-se. Era tão afortunada de poder contar com um irmão como ele… Sabia que poucos homens a tratariam com tal consideração. A felicidade não era algo a ter em conta no matrimônio entre nobres. O poder, as alianças, a riqueza, isso era o que importava. Mas o amor do que Alan desfrutou em seu matrimônio tinha dado a seu irmão uma perspectiva única. Apesar de tudo, teriam muitas mais oportunidades de conseguir o apoio de Ross com uma aliança. Alan sabia tão bem quanto ela. Além disso, ajudar a sua família jamais poderia constituir um sacrifício. Arthur tinha expressado com brutal claridade que não havia nada entre eles.
—Estou segura — disse com firmeza.
A firmeza de sua voz ajudou a convencê-lo. Alan seguiu cavalgando junto a ela um momento mais na lembrança de suas anteriores viagens nos excepcionais momentos de paz, mas ao final acabou voltando junto a seus homens.
Durante da primeira jornada fizeram grandes progressos e chegaram até o lago Lochy, onde passaram a noite em uma estalagem próxima à borda sul do mesmo. Aquele pequeno edifício de pedra com telhado de palha parecia antigo, e dada sua localização junto a uma ruína, Anna supôs que era.
Estava dura e dolorida. Suas pernas, traseiro e costas se ressentiam por cada uma das horas desse longo dia, de modo que agradecia estar debaixo de um teto e em uma cama, por mais rudimentares que fossem. Lavou-se e se compôs para comer um pouco de caldo de pescado e pão de centeio antes de cair rendida no camastro junto à Berta, sua criada, que roncava no jergon do lado.
A segunda noite, não obstante, não teriam tanta fortuna. Sua cama seria um simples cobertor em uma pequena tenda instalada na floresta ao sul do lago Ness.
Fora um dia longo, mais longo ainda graças ao constante fluxo de informes de exploração de sir Arthur. Para evitar cenários suscetíveis de perigo, tais como rotas a campo aberto ou lugares propícios para as emboscadas, havia vezes que se desviavam bastante do caminho. O qual significava que em lugar dos quarenta quilômetros que teriam percorrido, fizeram provavelmente uns cinqüenta e cinco através da espessura dos bosques e as colinas serpenteantes de Lochaber. Aquilo a Anna pareceu de uma precaução exagerada. por agora, não tinha visto nada fora do normal, mais que habitantes da vila, pescadores e algum que outro ocasional grupo de viajantes. Se os homens de Bruce patrulhavam os caminhos, não se tinham feito notar. Talvez esses quilômetros a mais fossem outra forma de tortura idealizada por sir Arthur? Como se não fosse suficiente sua presença.
As pernas de Anna, pouco acostumadas a passar dias cavalgando, tremeram ao se ajoelhar à borda do rio para lavar as mãos. Colocou a cabeça na corrente com a esperança de sacudir o cansaço, mas o frio golpe de água não a refrescava o suficiente. Quando tentou levantar-se, coisa que fez com muita dificuldade, teve que resmungar ao conscientizar-se da objeção de seus ossos e articulações, que rangiam como se tratasse do corpo de uma anciã. Tomou seu tempo para saborear o momento de solidão, sem nenhuma pressa por voltar para acampamento. Embora o resto do grupo estivesse a poucos metros dela, o denso tanto de árvores parecia absorver todo o som. de vez em quando chegava até ela o murmúrio apagado de suas vozes, mas além disso tudo permanecia em uma calma excepcional, o que representava o maior momento de paz que tinha desde sua chegada ao barmkin no dia anterior pela manhã, quando encontrou a sir Arthur Campbell preparado para sair com eles. Aqueles dois dias tentando forçar-se a não olhá-lo tinham cobrado sua cota. Era pior do que temia. Apesar de que o ignorasse e evitasse seus olhos cada vez que ele olhava em sua direção, cada um de seus movimentos lhe afetava de maneira dolorosa. O desassossego, que parecia lhe queimar o peito até furá-lo, era cada vez maior. Mais duro. Enfurecia-se com suas emoções, deixando-a nua e exposta. Não sabia por quanto mais poderia suportar. Por que tinha que estar ali?
Suspirou com aborrecimento e deu as costas à tranqüilizadora correnteza que corria sobre as rochas. Berta faria que seu irmão fosse procurá-la como um louco se não retornasse no par de minutos que tinha prometido. Além disso, estava ficando de noite.
Mal tinha dado uns passos em direção a floresta quando um homem saiu dentre as sombras e lhe fechou o passo. O pulso acelerou, presa do pânico. Esteve a ponto de dar a voz de alarme, mas seu gritou ficou sufocado ao reconhecê-lo. Fechou a boca de repente, mas seu pulso seguia igual de acelerado.
—Não faça isso! —espetou ao mesmo tempo em que erguia o olhar para o belo rosto de sir Arthur — Me destes um susto de morte.
Não tinha feito um só ruído. Como um homem tão corpulento podia mover-se com tal sigilo era algo que escapava a sua compreensão.
—Melhor —respondeu ele — Não deveria estar aqui sozinha.
—Não estava sozinha —disse Anna com um sorriso forçado — tinha você me espiando.
Anna sentiu um prazer enorme ao ver que esticava a mandíbula. Era horrível por sua parte que lhe agradasse tanto, mas tentar tirar algum tipo de reação daquele homem parecia um lucro absoluto. Sir Arthur lhe dirigiu um olhar pausado e penetrante.
—Algo do qual estou certo que conhece todos os segredos.
Agora tocava a ela endurecer o gesto. Havia muita proximidade. Embora seu irmão e o resto dos homens estivessem a um grito de distância, aquilo supunha uma intimidade com ele muito maior da que ela queria. Qualquer tipo de intimidade com ele podia ser perigosa.
Isso a fazia recordar coisas. Como o sabor especial de seus beijos. Ou o modo em que os grossos músculos de seu torso se esticavam à luz das velas. Ou a maneira em que as mechas onduladas de seu cabelo molhado caíam sobre seu pescoço. Ou seu aroma. «Aroma de sabão e a virilidade», pensou Anna enquanto aspirava.
Arthur não se barbeou, e a barba incipiente lhe dava um aspecto esfarrapado e perigoso que, maldito fosse, o fazia ainda mais atraente.
Ao comprovar que apesar de todo o ocorrido ainda conseguia lhe afetar do mesmo modo, Anna ficou furiosa e tratou de afastá-lo de seu caminho. Um exercício de futilidade como jamais houve algum.
—Não há motivos para preocupar-se.
Ele a agarrou seu braço para detê-la, como se a impenetrável barreira de seu torso não fosse suficiente.
—A próxima vez que te afastes do acampamento, não o façam sem guarda, preferivelmente eu ou seu irmão.
Suas bochechas se ruborizaram, zangada com o tom e sua atitude prepotente. Sir Arthur Campbell, cavalheiro ao serviço de seu pai, transpassava os limites.
—Não têm direito a me dar ordens. A última vez que olhei não fostes tu, a não ser meu irmão, quem estava ao mando.
Seus olhos brilharam ao mesmo em tempo que ele a agarrava pelo braço com mais força. Falava em voz baixa e sua boca… Anna ficou sem fôlego. Também sua boca estava baixa, a uma altura perigosa, tão perto da sua que doía. Se ficasse nas pontas dos pés, era possível inclusive que chegasse a tocá-la.
Deus, que vontade tinha de fazê-lo. Estava desesperada por fazê-lo. Uma onda de calor invadiu todo seu corpo, concentrando-se nos seios e no encontro das coxas. Os mamilos se puseram eretos; morriam de vontade por roçar-se com seu duro peito.
Aquela traição de seu corpo parecia humilhante. Ele não tinha nenhum direito a fazê-la sentir assim. Não depois de a rechaçar de maneira tão cruel. Não depois de que partisse e deixasse claro que era tal e como o tinha imaginado em princípio. por que não podia deixá-la em paz simplesmente?
—Não me desafiem nisto, Anna. Se quiserem que consiga a cumplicidade de seu irmão, farei. Quão único tentava era evitar a vergonha de que te tratem como a uma criança, mas farei tudo o que esteja em minha mão para te manter a salvo.
Houve algo em sua voz que fez que lhe deu calafrios.
—O que acontece? Estão os rebeldes perto daqui? Viu algo?
Uma sombra cruzou o olhar de Arthur. Negou com a cabeça.
—por agora não.
—Mas têm um pressentimento.
Arthur a olhou com total desconfiança, como se pensasse que tentava enganá-lo para que admitisse que ela tinha razão quanto às habilidades que tinha mostrado com antecedência. Parecia disposto a negá-lo, mas logo encolheu os ombros e lhe soltou o braço.
—Sim, sinto o perigo. E também vocês deveriam senti-lo. Não cometam o engano de pensar que não estão aí simplesmente porque não os tenhamos visto.
Assentiu, assombrada pelo que parecia uma preocupação sincera.
—Farei como me pede.
Ambos sabiam que não era uma petição, mas Arthur parecia estar satisfeito com sua aprovação e não quis discutir a semântica.
Anna era consciente de que devia sair dali quanto antes, mas houve algo que a fez perguntar:
—Por que estas aqui, sir Arthur? Por que insistiram em se unir a nosso grupo?
Ele afastou o olhar. A pergunta lhe incomodava. Muito.
Franziu o cenho.
—Pensei que poderia ser de ajuda a seu irmão.
—E eu pensei que não gostavas de fazer reconhecimento do terreno.
Sua boca se torceu em um irônico e enigmático sorriso.
—Não é tão mau como temia.
Anna observou seus traços com atenção, mas não estava muito segura do que procurava.
—E essa é a única razão? Para ajudar a meu irmão?
Arthur baixou o olhar para olhá-la nos olhos. A intensidade de seu olhar a penetrou com a sutileza de um raio. Era consciente do tic que pulsava sob seu queixo. estava-se controlando, mas do que?
—Dado que não atenderam a minhas advertências, não ficou outra opção que vir e me assegurar de que chegassem a seu destino a salvo.
Entregue a salvo às mãos de outro homem.
—Estou segura de que sir Hugh apreciará seus serviços.
Arthur ficou tenso e os olhos lhe brilharam com um fogo descontrolado. Por um momento Anna pensou que a empurraria contra a árvore e a beijaria. Mas não o fez. Em vez disso apertou os punhos e ficou olhando-a com raiva. Dizia a si mesma que não era decepção o que sentia. Isso dizia a si mesma. Mas não acreditava.
—Não me provoque, Anna.
Mas o tempo das advertências já tinha passado para ela.
—Que não lhes provoque? Como poderia o provocar se não vos afeta? Deixou muito claro naquela noite nos barracões. Fosse tu quem disse que me separasse de seu caminho e não ao contrário, recordam?
—Recordo.
A suavidade de sua voz lhe disse que não era isso tudo o que recordava. A pele começou a lhe arder e parecia sair dela. As lembranças crepitavam entre eles como um sopro de ar sobre brasas, acendendo-se, dispostos a prender-se fogo. Anna estava sumida na frustração. Não podia entender por que fazia aquilo.
—É que mudastes de opinião?
Em outro momento Arthur teria admirado aquele desafio. A franqueza e a naturalidade de Anna eram o que faziam dela uma mulher única. Mas nesse momento não. Não queria pensar em se tinha mudado de opinião. Estava lhe custando muito, Deus e ajuda simplesmente não lhe pôr as mãos em cima. por que não podia ser tímida e retraída? Aí sim se sentiria seguro.
Sabia que atuava como um idiota, mas esses dois dias junto a ela, vendo-a voltar o rosto para evitar seu olhar, atuando como se ele não fosse mais que uma espada mercenária, fazia que chegasse ao limite de seu autocontrole. Não poderia agüentar vê-la outra noite rondando pelo acampamento rindo e divertindo-se com os homens com uns sorrisos que brilhavam quando olhava em sua direção.
Gostava de estar à margem, maldita seja. Mas de seu posto nos limites do acampamento, longe da camaradagem da fogueira, encontrava-se suspirando pela calidez desses sorrisos. Por um pouco dessa risada. um pouco dessa luz.
Sua intenção era que ela reconhecesse sua presença. Mas tudo que tinha conseguido era revolver coisas que não precisavam ser revolvidas. Tais como o assustador desejo de empurrá-la contra a árvore e abusar dela. Quase podia sentir como seus braços lhe rodeavam o pescoço e suas pernas envolviam seus quadris, em tanto que ele se afundava em seu interior, lenta e profundamente. Quase via seu pequeno e suave corpo estirando-se contra o seu, todas essas sedutoras curvas fundindo-se sobre ele, a excitante turgidez de seus mamilos lhe roçando o peito…
Demônios!
Teve que agitar-se para recuperar a compostura. Mas o inchaço que ocultavam seus calções era duro e implacável. Aquilo não tinha que ser tão endiabradamente difícil.
«Te concentre. Faz seu trabalho. Mantem o bastante perto para vigiá-la, mas sem tocar. Não deixe que se aproxime muito.»
Havia muitas pessoas dependendo dele. Tinha que estar ciente do que realmente importava. Assegurar-se de que Bruce chegasse ao trono e derrotar seus adversários. Como John de Lorn. Essa era a oportunidade de ver como seu inimigo pagava pelo que tinha feito a seu pai.
Justiça. Vingança. Endireitar o errado. Sangue por sangue. Essa fora toda sua motivação desde que tinha uso de razão. Tinha dedicado sua vida a tentar consagrar-se como o melhor guerreiro com um só objetivo em mente: destruir a Lorn. Essa fria determinação era sua companheira há quatorze anos. A firme resolução de levar uma missão até suas últimas conseqüências, custasse o que custasse. Essa era a única coisa que tinham em comum todos os membros da Guarda Highlanders, apesar de suas grandes diferenças de personalidade, do irreprimível bom humor do MacSorley e a impulsividade do Seton até o mau gênio do MacRuairi. Mas nunca antes tinha tido tantos problemas para aferrar-se a isso.
Arthur deu um passo atrás com a intenção de dissipar a bruma de desejo que o atendia. Mas seu corpo bulia de desejos insatisfeitos. Uns desejos que cada vez lhe parecia mais difícil ignorar. Andar por aí com o membro duro pego ao ventre não era algo que fizesse muito para remediar seu mau humor. E sua mão tampouco parecia um grande alívio.
Ao ver que ele não respondia, Anna disse:
—E bem?
Tinha mudado de opinião? Negou com a cabeça.
—Não.
Nada tinha mudado. Seguia sendo a filha do homem ao que tinha ido aniquilar. Quão único o futuro lhes proporcionaria seria a traição. Não tinha intenção de piorar as coisas.
Anna não deu amostras de que sua resposta a decepcionasse. Melhor parecia algo que esperava.
—Então por que fazem isto? por que atua como se o importasse com quem contraio matrimônio? Não me quer mas tampouco quer que alguém me tenha, é isso?
Arthur murmurou uma imprecação ao mesmo tempo em que passava as mãos pelos cabelos.
—Não é isso.
De fato, era exatamente isso. Anna tinha dado justo no prego. Estava ciumento, maldita seja. Embora não tivesse nenhum direito a estar. Embora fosse ele quem a desalentasse. Embora não houvesse nenhuma possibilidade de que estivessem juntos. Pensar em que ela se casaria com outro homem fazia que caísse em ataques de ciúmes juvenis.
Anna o olhou nos olhos.
—Então expliquem - me disse isso em voz baixa — O que é o que sentem por mim?
«Jesus.» Essa era a última coisa em que queria pensar. Somente ela seria capaz de tal pergunta. Anna MacDougall não tinha nenhum pingo de acanhamento ou de desânimo. Era direta. Sem rodeios. Despretensiosa. Deus, era uma mulher incrível.
Nem todo o treinamento do mundo podia o fazer parar de mover os pés nervosamente. Não se sentia tão encurralado desde aquela vez em que seus irmãos o fizeram retroceder até a saliência de um escarpado e o provocaram para que se defendesse de seus golpes de espada.
—É complicado — disse, saindo-se pela tangente.
Os olhos dela não deixavam de escrutinar seu rosto em busca de algo que não havia neles.
—Complicado não me vale. —Anna baixou o olhar — Não quero que esteja aqui —acrescentou com uma voz tão rígida como a posição de seus ombros. Tampouco ele queria estar ali, mas não ficava mais opção que fazê-lo. Anna voltou a erguer os olhos para olhá-lo. Já não havia calidez nessas profundidades azul brilhante — O rogo isso, me deixem em paz, simplesmente.
O suave rogo dessa voz apelava a sua consciência, mas ardia no peito de igual forma. Anna deu meia volta e se afastou dali com o porte majestoso de uma rainha.
Desejaria poder fazê-lo, pelo bem de ambos. Mas sua missão vinha em primeiro. Algumas semanas mais. Poderia agüentar algumas semanas mais. Tinha resistido desafios muito mais perigosos. Tudo que tinha que fazer era escorar suas defesas, fechar as comportas e preparar-se para o assédio final.
Capítulo 13
Arthur partia na vanguarda, inspecionando o terreno com dois dos homens de MacDougall, quando percebeu de que algo não ia bem. Uma mudança no ar. Um calafrio que percorria a nuca. A súbita sensação que ativava todas suas terminações nervosas para lhe advertir: «Perigo».
Tinham completado a terceira jornada da viagem virtualmente em sua totalidade. O trajeto a cavalo pela ribeira oeste do lago Ness foi mais longo do esperado, não por tentar evitar aos homens de Bruce, a não ser devido a uma ponte impraticável de Invermoriston. Teriam tentado cruzar as turbulentas águas em caso de não levar consigo Anna, mas em vez disso tiveram que desviar-se outros oito quilômetros do caminho para chegar ao seguinte vau. assim, aproximaram-se do extremo sul dos bosques do Clunemore mais tarde que o que ele esperava. De ali virariam para o este, abandonando o caminho para afastar-se todo o possível do castelo Urquhart, ocupado pelos rebeldes. O plano era acampar a última noite à beira do lago Meiklie, o qual queria dizer que o dia seguinte seria mais exaustivo ainda, já que a relativamente plaina estrada daria lugar às colinas.
Apesar de que Arthur trabalhava melhor sozinho, Alan MacDougall insistiu em que lhe acompanhassem dois de seus homens se por acaso se encontrava com dificuldades. Ao não poder explicar ao irmão de Anna que esses homens representariam mais problemas que ajuda sem trair suas habilidades, Arthur teve que acessar a contra gosto.
À primeira sensação de perigo ergueu uma mão para que os homens se detivessem. Desceu do cavalo, ajoelhou-se e pôs uma palma plaina contra o chão. A leve reverberação confirmou o que seus sentidos já lhe tinham advertido.
Richard, o maior dos dois guerreiros e explorador habitual do MacDougall, ficou circunspeto.
—O que há?
Arthur baixou a voz.
—Voltem e digam a seu senhor que saiam do caminho imediatamente.
Alex, que era aprendiz de explorador, olhou-o com estranheza sob o aço de seu nasal. Ao contrário de Arthur, Alan e o punhado de cavalheiros que usavam elmo, cota de malha pesada e peitilho, os homens do clã dos MacDougall levavam armadura mais leve e o cotun de couro acolchoado que preferiam os highlanders. Essa indumentária de guerra fazia mais fácil o movimento. Não era a primeira vez que Arthur tinha vontade de desfazer-se de seu pomposo traje de cavalheiro e mandar a passeio a mascarada. O mais jovem dos homens olhou a seu redor.
—Por quê?
Arthur franziu os lábios. Ficou em pé e voltou rapidamente para seus arreios.
—Há um grupo numeroso de cavaleiros que se dirigem justo para nós.
Richard o olhou como se estivesse louco.
—Eu não ouço nada.
Aqueles idiotas acabariam fazendo que matassem a todos. Sem tempo para sutilezas, Arthur agarrou ao maior por seu grosso cangote, ergueu-o um par de centímetros dos arreios e aproximou seu rosto a dele.
—Façam o que digo, maldita seja. Dentro de alguns minutos será muito tarde. Querem que matem a dama por sua estupidez?
O homem negou com a cabeça, impressionado com a transformação que sofria o cavalheiro. Quando começou a boquejar para recuperar o fôlego Arthur o soltou de um empurrão.
—Eu os rodearei pelas costas e tentarei distraí-los. —Com sorte, disse, poderia desviá-los para o norte — Digam a sir Alan que saia do caminho imediatamente, que se dirija para o este e cavalguem tão rápido como podem. Abandonem as carretas se for necessário. Encontraremo-nos no lago assim que me seja possível.
Subitamente, Richard moveu sua grosa cabeça para o norte. Um leve som de pegadas de cavalos batia em sua direção. Voltou-se para Arthur com um olhar que albergava tanto temor como suspeita. Inconscientemente, deu meia volta com seu cavalo.
—Pelos ossos de Cristo, têm razão! Ouço-os.
Arthur não tinha tempo de preocupar-se com a inquietação do outro.
—Irei contigo - disse Alex.
—Não — repôs Arthur em um tom de voz que evitava qualquer discussão — Vou sozinho.
Assim seria mais fácil evitar que os capturassem. Além disso, sempre cabia a possibilidade de que conhecesse alguém. Supunha-se que MacGregor, Gordon e MacKay estavam no norte.
—Partam! —disse.
Os homens fizeram o que lhes pedia sem mais discussão.
Arthur tampouco perdeu mais tempo. Cavalo e homem se introduziram entre as árvores em sua carreira por alcançar aos cavaleiros pelas costas antes que aparecessem ante o grupo do MacDougall. Era consciente de que apesar de estar advertidos, demorariam certo tempo em conduzi-los até um lugar seguro. Anna era uma boa amazona, mas não podia dizê-lo mesmo de sua criada. As carretas aumentaram seu ritmo ainda mais. Se algo sabia das mulheres era que não gostavam nada de abandonar seus finos trajes e sapatos. Ao menos Anna não tinha insistido em levar com eles ao maldito cachorrinho. Arthur estava já cansado de limpar os pés.
Arthur ziguezagueou entre as árvores, usando o som dos cavalos como guia, e cavalgou em paralelo aos homens alguns poucos e preciosos minutos até que se dirigiu para eles. Agora vinha a parte delicada: aproximar-se o suficiente para chamar sua atenção, mas nem tanto para que o capturassem. Amaldiçoou para si ao ver pela primeira vez ao grupo de cavaleiros através de um vão entre as árvores. Tinham todo o aspecto de uma leva de guerreiros. Havia mais dos que gostaria, ao menos uma vintena de homens armados até os dentes com mantas de cores escuras, vestimenta de guerra e escudos obscurecidos com breu, um modo de camuflar-se na noite próprio dos Guardiões das Highlands que adotaram mais tarde muitos dos guerreiros de Bruce.
Normalmente não pensaria duas vezes ante um exército tão formidável. Estava adestrado para lutar contra coisas piores. Mas esses homens conheciam o terreno e ele não. Teriam vantagem. Um giro mal dado e acabaria em suas garras. Mesmo assim ele contava com vantagens que eles não tinham: sentidos afiados como facas, velocidade, uma força e um treinamento superiores e a habilidade de desaparecer entre as sombras.
Distinguiu ante ele uma ruptura na linha de árvores. Aí o tinha. Apertou os dentes, baixou a cabeça e saiu como um raio para o claro. Fingiu surpreender-se por sua presença e girou abruptamente para a esquerda, como se quisesse evitar ser visto. Um grito o alertou do cumprimento de seu objetivo. Não se atreveu a diminuir a marcha e olhar para trás para ver se tinham mordido o anzol. Uma fração de segundo de atraso podia significar a diferença entre escapar ou ser capturado. Mas, momentos depois ouviu o ensurdecedor som das pegadas de cavalo atrás dele e sorriu. A caça tinha começado.
Anna tentava não pensar em quão tarde era. Mas à medida que a escuridão descia e que a lua se erguia no céu lhe custava mais acreditar que se encontrava bem. Esse medo que permanecia em espera ante o tumulto de seus próprios esforços para escapar aos soldados inimigos retornou com toda sua força assim que estiveram a salvo. E a coisa piorava com cada hora que passava sem a volta de Arthur. Que lhe atormentasse tudo o que quisesse, isso não importava. Mas que voltasse são e salvo.
Ajustou a capa nos ombros e disse que não devia preocupar-se. Chegar até eles de novo tomaria seu tempo atrás da animada perseguição em que Arthur os embarcaria. «Mas tanto tempo?» mordeu o lábio em uma tentativa de mitigar a crescente sensação de pânico. «Ele não se deixaria apanhar.» Entretanto, eles eram um monte de homens e ele só um. «Não pode estar morto.» Se fosse assim saberia. O coração lhe deu um tombo. Não era isso certo?
—Milady, a sopa está deliciosa. Tome —disse Berta sustentando a colher ante ela — Provem. Embora seja só um pouco - acrescentou, como se Anna fosse uma menina de cinco anos que se negava a comer nabos.
Mas Anna seguia sem gostar dos nabos. Negou com a cabeça e se esforçou em sorrir a sua preocupada criada.
—Não tenho fome.
A anciã pôs cara de estar admirada, fazendo que as rugas de seus olhos cor mel se esparramassem por seu rosto. O aspecto de Berta, com sua apenas um e cinqüenta de estatura e tão magra como um palito, não é que fosse formidável. Mas naquele caso seu rosto era de decepção. Podia ser tão teimosa e áspera como uma mula velha.
—Têm que comer algo. Conseguirá te pôr doente.
Já estava. Doente de preocupação. Somente de pensar em comida lhe dava vontade de vomitar. Conteve o acesso de bílis que lhe chegou à garganta.
—Comerei —mentiu Anna — dentro de um momento.
Berta lhe deu um tapinha na mão, que descansava sobre o musgoso tronco que as separava. Reuniram-se em torno do fogo junto ao resto da escolta, mas o acampamento permanecia em uma quietude incomum e os homens estavam desanimados. Todos eram conscientes de que tinham escapado por pouco e não era ela a única que se perguntava o que teria ocorrido com o cavalheiro que os pôs sobre aviso.
—Que morras de fome não fará que volte antes.
Os pensamentos de Anna eram mais transparentes do que acreditava, mas estava muito preocupada para fingir que não sabia do que lhe falava Berta.
—Acredite que terá ocorrido algo?
Berta apertou sua mão e negou com a cabeça tristemente.
—Não sei pequena minha. Não sei.
O coração de Anna sofreu uma violenta sacudida. A perspectiva tinha que ser terrível para que Berta não se esforçasse por mentir sequer. Voltaram a ficar em silêncio. Anna olhava as chamas da fogueira sem vê-la enquanto Berta acabava sua sopa.
Então Anna ouviu um ramo que rangia atrás dela e se levantou de um salto. Voltou o rosto com o coração na boca, esperando ver um cavalheiro vestido com cota de malha sobre seu cavalo. Assim foi e por um segundo pensou que seria Arthur. Mas seu coração topou com uma decepção. Tratava-se simplesmente de seu irmão Alan, que desmontou do cavalo e atou as rédeas a uma árvore próxima. A expressão sombria que mudou seu rosto à medida que se aproximava a encheu de pavor.
—Tem descoberto algo? —perguntou.
—Não —repôs seu irmão negando com a cabeça — Nem rastro dele.
—Acredita que… —Anna não se atreveu a terminar a frase.
Alan a olhou com atenção.
—Já deveria ter retornado.
A verdade doía como um murro nas vísceras. Lágrimas de angústia afloraram em seus olhos. Acabava de brotar a primeira delas quando ouviu um assobio que atravessava a noite.
—É o sentinela noturno - disse Alan antes que Anna tivesse tempo de perguntar — Alguém se aproxima.
O alarme deu origem a uma pequena comoção. Anna foi primeira em saltar de seu assento de repente, mas isso mesmo foi o que fizeram o resto dos homens. O primeiro que ouviu antes de vê-lo foram os gritos provocados pela emoção e o alívio. Momentos depois, Arthur penetrava no círculo de luz que provia o acampamento e o coração de Anna dava tombos no interior de seu peito. Inspecionou ao cavalheiro em busca de sinais de ferida, mas além do cansaço que refletia seu bonito rosto e da sujeira e o pó de sua cota de malha se via em perfeitas condições. Completamente ileso.
A emoção a embargava com tal força que deu um passo adiante sem poder controlar-se. Lutou por dominar o impulso de ir atrás dele, de correr a seus braços, de rodeá-lo com os seus e chorar toda sua angústia na suja e poeirenta cota de malha que revestia seu peito. Não tinha direito a fazê-lo. Nem fundamentos. Não estavam prometidos, nem se cortejavam sequer. Não eram nada um para o outro. Logo ela pertenceria a outro homem.
Então Arthur a viu. Por um estúpido momento ela se convenceu de que a estava procurando. Seus olhos se encontraram com uma força letal que repercutia em seu peito e o golpeava com os ecos da nostalgia.
Se naquele momento ele houvesse virado o rosto, ignorando-a com frieza, provavelmente Anna teria confrontado seu futuro com uma resolução firme no coração. Mas em vez disso Arthur percebeu seu desespero e assentiu levemente. «Estou bem.»
Era pouco, mas ao menos era algo, e servia como reconhecimento de que existia uma conexão entre ambos. Entre eles dois havia algo especial. Não podia negá-lo por mais tempo. Importava-lhe.
Arthur a olhou por última vez e seguiu adiante para encontrar-se com o Alan.
As emoções de Anna estavam descontroladas. Afetava-lhe muito que acabava de ocorrer para concentrar-se em nada, assim escutou pela metade o relatório que fazia a seu irmão. Eram os homens de Bruce. Um grupo numeroso de guerreiros. O número chamou tanto a atenção que ficou sem fôlego. Vinte e cinco homens. O normal seria que Arthur estivesse morto. Primeiro os tinha desviado vários quilômetros do castelo do Urquhart e depois se dirigiu para o este. Entretanto, os malfeitores tinham dado provas de ser bons cães de presa, e Arthur se viu obrigado a voltar a pé para o acampamento. Anna suspeitava que estivesse deixando muitas coisas no tinteiro.
Alan lhe agradeceu os serviços prestados a todos e o ameaçou a que se sentasse enquanto pedia comida e bebida para ele. Seu irmão falou com Arthur um momento mais antes de lhe deixar comer, mas em voz baixa, de modo que ela não pôde escutar nada. Anna bicou um pedaço de carne-seca de vitela e torta de aveia e ficou rondando por ali, como fizera a maioria dos homens. Entretanto, à medida que caía a noite, algo começou a lhe preocupar. O acampamento se animou com sua volta, e parecia óbvio que todos se alegravam de que não o tivessem capturado, mas a celebração não era a esperada e isso a desconcertava. Além disso, acontecia algo anormal. Ninguém tinha aproximado, além de seu irmão. Em lugar dos tapinhas nas costas, as brincadeiras pesadas e os brinde que seriam de praxe, pareceu-lhe que mais de um o olhava com cara estranha.
Arthur não parecia conscientizar-se. Acabou com sua comida, terminou o odre de cerveja que lhe tinham levado e se retirou de novo à solidão dos bosques. Anna o observou partir e sentiu uma premente necessidade de fazer algo. Olhou aos homens do clã que tinha ao redor. O que lhes passava? Por que atuavam de tal modo?
Chegou um ponto no que já não pôde agüentar-se mais, desculpou-se e foi procurar seu irmão. Alan estava falando com alguns de seus homens, mas ao vê-la chegar os ordenou que se retirassem.
—Acreditei que estaria aliviada.
Evitou fazer como que não entendia do que falava.
—Estou.
—E então a que vem a ser esse rosto, pequena?
—Por que atuam os homens desse modo? Por que não lhe dão obrigado? Por que o evitam?
—Está segura que não é justamente o contrário, irmã? —repôs Alan esboçando um sorriso irônico — Campbell não é precisamente conhecido por sua sociabilidade. Gosta de estar sozinho. —Seu irmão tinha razão, mas nessa ocasião não se tratava só disso. Os soldados se mostravam incômodos, quase temerosos. Quando o fez saber, Alan suspirou e negou com a cabeça — Ocorreu algo hoje quando nossos homens batiam o terreno. Richard me contou isso e provavelmente também contou ao resto. Conforme parece, Campbell ouviu os cavaleiros antes o bastante, antes que houvesse sinal alguma deles. Richard disse que era coisa de bruxaria.
Todo o prazer que Anna pudesse sentir ao ver confirmadas suas próprias suspeitas em relação ao ocorrido com os lobos, empalideceu em comparação com a fúria que atormentava seu interior. Suas bochechas se ruborizaram de indignação.
—Isso é ridículo. É que não se dão conta de que salvou a todos? Teriam que estar agradecidos e não tratá-lo como a um cão.
—Estou de acordo. Mas já sabe quão supersticiosos podem ser os highlanders.
—Isso não é desculpa.
—Não, não é. Falarei com o Richard e tentarei acabar com isso.
Anna saltou de seu assento de repente.
—Faz ou falarei com ele eu mesma. Não penso permitir que rechacem sir Arthur por nos ajudar. Pelas chagas de Cristo, Alan! Sem essa bruxaria, é possível que agora estivéssemos todos mortos.
Alan a olhou com atenção, e o que viu nela pareceu lhe preocupar. Ficou pensativo, assentindo simplesmente com a cabeça, em lugar de criticar por usar essa linguagem vulgar. Anna partiu dali com o propósito de encontrar Arthur, mas seu irmão adivinhou seu destino, porque gritou: —Amanhã pela tarde chegaremos a Auldearn, Anna.
Ela se voltou e lhe dirigiu um olhar inquisitivo, perguntando-se a que viria aquilo.
—Sim.
—Se tiver intenção de ir a sério com o compromisso de casar-se, talvez fosse melhor que o deixasse tranqüilo.
Duvidou ao ouvir a verdade em palavras de seu próprio irmão. Mas não podia fazê-lo. As ações desse homem tinham despertado todos seus instintos de amparo. Tinha que agradecer-lhe embora os outros não fizessem.
Encontrou-o à beira do lago, sentado em uma rocha plaina, depois de ter tomado um banho. Tinha o cabelo molhado e vestia uma simples regata de linho com uma túnica e as perneiras de couro. Estava inclinado sobre seu peitilho, aplicando azeite com um trapo, e sua expressão, vista de perfil, era mais sombria que nunca. Embora parecesse óbvio que a tinha ouvido chegar, Arthur não deu a volta. Uma vez que esteve mais perto, Anna distinguiu o que limpava e o mundo lhe veio em cima.
«Sangue.»
Apressou-se para ele sem pensar, ajoelhou-se e pôs uma mão no braço.
—Está ferido.
Quando ergueu o olhar para olhá-la, a lua iluminou seu rosto.
—Não é meu - disse.
Uma sensação de alívio se expandiu por todo seu ser. Suspirou profundamente. Embora seu rosto permanecesse impassível, percebeu uma estranha emoção em sua voz. Virtualmente soava como se estivesse arrependido. Como se a morte de um de seus inimigos fosse algo que o perturbasse. Talvez para os guerreiros matar não fosse tão fácil como ela imaginava. Em qualquer caso não para ele. Isso o fazia mais humano em certo sentido. Mais vulnerável. Sir Arthur Campbell vulnerável? Esse pensamento a teria feito rir sozinho algumas semanas antes.
—Não tinha outra alternativa - disse Anna com ternura.
Arthur lhe manteve o olhar por um momento e depois dirigiu para a mão que tocava seu braço. Anna sentiu imediatamente a intimidade dessa cálida e rígida pele que apertava com seus dedos e se apressou a retirá-la. Mas isso não conteve a necessidade de aninhar-se junto a ele e repousar a bochecha contra o amplo escudo protetor de seu peito.
Arthur voltou para a tarefa de tirar as manchas incrustadas entre as pequenas peças de metal. Anna se sentou junto a ele em uma rocha mais baixa e o observou em silencio durante vários minutos.
—Por que está aqui, Anna?
—Queria lhes agradecer o que fez hoje.
Arthur encolheu levemente de ombros, sem levantar o olhar de sua tarefa.
—Não fiz mais que meu trabalho. Para isso estou aqui.
Anna mordeu o lábio ao recordar o quão furiosa que a pôs sua intromissão e o cepticismo com o que acolheu suas razões para lhes acompanhar.
—Ao que parecia tinham razão —admitiu — Lhes agradeço que nos tenham acompanhado na viagem. Todos o agradecemos - disse franzindo o gesto com irritação — Embora alguns tenham uma estranha forma de demonstrá-lo.
Os ombros de Arthur se esticaram quase imperceptivelmente.
—O que é o que dizem?
—Que sentiram aos cavaleiros antes que fosse possível fazê-lo.
Arthur arqueou uma sobrancelha, divertido com sua tentativa de suavizar o golpe.
—Seguro que disseram algo mais que isso.
As superstições de seus companheiros de clã ruborizaram as bochechas de Anna.
—É certo, verdade? É como aquilo que aconteceu os lobos e quando tropecei no escarpado. Podem ver as coisas antes que aconteçam.
Anna lhe suplicou com os olhos que não mentisse. Outra vez não. Ele ficou calado durante tanto tempo que pensou que não lhe responderia.
—Não é de tudo assim —disse finalmente — É mais como um pressentimento. Meus sentidos estão mais afinados do normal. Isso é tudo.
—Afinados? —repetiu ela — São extraordinários. —Seu louvor não pareceu a não ser o incomodar mais — Não entendo como o resto dos homens não é capaz de compreendê-lo. Salvaram a todos.
—Deixem estar, Anna. Não tem importância - disse olhando-a com gesto severo.
Parecia falar a sério, algo que mais que atenuar suas faculdades as ressaltava.
—Como podem dizer isso? É que não vos molesta? Teriam que lhes agradecer o que têm feito e elogiar suas extraordinárias habilidades, em lugar de atuar como crianças que tivessem medo de encontrar um trasgo na cama ou fantasmas dentro do armário.
A indignação que Anna sentia pelo trato que lhe dispensavam não encontrava a avaliação esperada. Uma vez mais pareceu que essa conversa lhe incomodava.
Arthur a olhou com dureza.
—Não é algo que me incomode e tampouco necessito que façam as coisas mais difíceis advogando por minha causa. Não quero que mencionem nada a respeito do que acreditaram ver. Deixem passar e cairá no esquecimento. Insistam e piorarão.
Falava da experiência.
Anna teve que apertar os lábios para não discutir. Aquilo não estava bem e a injustiça que suportava fazia aflorar todo seu instinto de amparo.
Incomodava-o. Tinha que ser, por mais que se mostrasse despreocupado. Que estivesse tão acostumado a essa sutil crueldade das pessoas e que a desse por certa fazia disso um pouco mais duro. Encolhia-lhe o coração. Quantas vezes o teriam rechaçado ou repudiado para que se convertesse em uma pessoa tão insensível e indiferente? Seria isso o que o afastava de outros? Todo seu distanciamento e individualismo lhe pareceram de repente uma máscara para sua solidão. Levava tanto tempo só que tinha chegado a convencer-se de que gostava. Seu coração se compadecia dele. Era tão afortunada de ter a sua família… Odiava pensar que uma pessoa pudesse estar sozinha.
—Anna? —disse ele procurando seus olhos à luz da lua. Teria adivinhado a direção que tomavam seus pensamentos? — me prometa que não dirá nada.
Anna pôs cara feia, mas assentiu. Ele se levantou para passar o apertado peitilho pela cabeça se vestiu com um tabardo limpo e trabalhou em excesso na sujeição de suas numerosas armas. Observar como se vestia era um ato que transbordava intimidade, mas a Anna não envergonhava fazê-lo. Ao contrário, parecia natural. Como se pudesse passar todos os dias de sua vida vendo como ele se preparava para a guerra. Aquele pensamento teria que tê-la horrorizado, mas, em vez disso, viu-se invadida por uma intensa sensação de desejo, de saudade por algo que lhe escapava das mãos. Fazia que se expusesse seu futuro e pensasse que talvez ele não fosse o homem errado, a não ser exatamente o adequado para ela. Um guerreiro estável. Isso parecia algo contraditório. Mas talvez fosse ela quem se equivocava de cabo a rabo.
—O que fará quando acabar a guerra? —perguntou.
Perguntava-se se não teria pensado em fazer algo com seus desenhos, talvez. Ou estaria simplesmente esperando a seguinte guerra para lutar nela?
A pergunta o pegou despreparado. Arthur estava atendo-se a espada e a deixou pela metade. O certo era que não tinha dedicado muito tempo a pensar. Fazia muitos anos que a guerra consumia sua vida. Lutar era para quão único servia. Primeiro junto a seu irmão Neil e logo como membro dos Guardiões das Highlands. Era um soldado profissional. Um dos melhores do mundo. Era o único que sabia fazer. Mas era isso o que ele queria? O teria escolhido ao ter a oportunidade? Uma vez que houvesse justiça para seu pai, que Bruce tivesse o trono assegurado, uma vez cumpridos os objetivos… o que faria então?
Terras e uma rica esposa seriam sua recompensa. Isso teria que bastar. Mas ao olhar a aquela mulher que o acabava de defender tão fervorosamente, que o via como alguém extraordinário em lugar de horripilante, que tinha um coração que não lhe cabia no peito, perguntava-se se realmente seria suficiente com isso. Ao olhar essa carinha arrebitada, banhada pela luz da lua entre tênues sombras, sentiu uma estranha angústia. Saber que era algo impossível não lhe impedia de seguir desejando-a. Mas já tinha mostrado muito de si mesmo. Estava tão acostumado a mentir a respeito de suas habilidades que lhe parecia estranho ouvir a verdade em voz alta. Estranho, mas também consolador. Manteve-se afastado do resto durante tanto tempo que esquecia o que era ter conexão com alguém.
Estava completamente louco.
Sua única desculpa era que o tinha pego em um momento de debilidade. O sangue que limpava de seu peitilho era a dos dois homens que se viu obrigado a matar para defender-se.
«Protege sua identidade custe o que custar. Protege a missão.»
Deus, às vezes odiava o que tinha que fazer. Acabou de ajustar o armamento antes de responder.
—Eu diria que isso dependerá do resultado.
Inclusive nesse lusco-fusco percebeu que o rosto de Anna empalidecia, mas se recuperou com rapidez.
—Não há mais que um resultado possível. Não conhece meu pai. Não perderá. —Arthur ficou tenso. Sabia isso melhor que ninguém. Essa era a razão pela que estava ali — O rei Hood e os rebeldes serão submetidos e levados diante da justiça.
Apesar de que soasse como o melhor e mais leal dos soldados do clã MacDougall, podia perceber a fragilidade que se escondia atrás daquela bravata. Anna seguia aferrando-se a ilusões que começavam a apresentar fissuras. Mas estava claro que era consciente do desesperado de sua situação, ou não estariam ali nesse momento.
—E mesmo assim acode ao Ross para lhe permutar por tropas adicionais.
Anna endireitou as costas de repente. Seus olhos brilhavam com intensidade ante o resplendor da lua.
—Não se trata exatamente disso.
Sim, se tratava disso. E seu trabalho era assegurar-se de que não ocorresse.
Não queria ser cruel, mas ela precisava confrontar a realidade. O pêndulo se afastava dos MacDougall. Bruce estava ganhando a guerra.
—E o que passará se fracassar, Anna? O que acontecerá Ross não está de acordo em mandar mais homens? Então o que?
—Meu pai pensará algo. —Soava tão desesperada que, sem se dar conta, esteve a ponto de aproximar-se até ela para consolá-la — por que falas de tal modo? —perguntou — Falas como um rebelde. Por que está aqui então, se não acredita em nossa vitória?
Amaldiçoou para si. Tinha razão. E logo descobriria quanta. Encolheu-lhe o estômago ao pensar em como a afetaria descobrir a verdade. Gostaria de poder suavizar o impacto de algum modo.
—Essa é justamente a razão pela que estou aqui, Anna. Por acreditar em uma causa. Por acreditar que ganhará o lado adequado. Mas as coisas não passam sempre do modo em que alguém pensa. Não quero lhe ver sofrer. —Deteve suas palavras e voltou para a questão original — Para quando a guerra acabe me prometeram terras e outras recompensas. Isso deveria bastar para me manter ocupado.
Anna inclinou um tanto a cabeça e umas linhas brancas diminutas povoaram seu sobrecenho.
—Outras recompensas? Que tipo de recompensas? —Embora não lhe respondeu, a resposta pareceu ir a sua cabeça de repente. Sobressaltou-se ao cair na conta e sua expressão de estranheza desvelou mais do que queria — Uma esposa? Eles prometeram uma esposa? —Arthur assentiu levemente, reconhecendo — Quem?
Uma das maiores herdeiras das Highlands ocidentais, a segunda irmã de Lachlan MacRuairi, lady Christina, senhora das Ilhas.
—Não sei —mentiu Arthur — Quando acabar a guerra me encontrarão uma esposa adequada.
Não era a primeira vez que desejava ser capaz algo precipitado, como tomá-la entre seus braços e lhe fazer promessas que jamais poderia cumprir.
—Já vejo —disse ela com voz diminuída — E por que não me contaram isso?
Ele a olhou com atenção.
—Como fizeram todos?
Anna estremeceu. Ao que parecia, tinha esquecido para onde se dirigiam. Mas ele não o tinha feito. A cada passo que os aproximava do Auldearn e Ross, Arthur sentia crescer a inquietação em seu interior. Sabia que tinha que fazer algo para evitar essa aliança, pela missão, conforme dizia a si mesmo. Mas o que?
Talvez não tivesse que fazer nada absolutamente. Era possível que Ross simplesmente se negasse a retomar as conversações sobre o compromisso. Mas com somente olhar a doce cara de Anna, Arthur foi consciente de que estava sonhando. Sir Hugh ficaria com ela com os olhos fechados. Apertou a mandíbula e lhe estendeu a mão.
—Vamos, temos que retornar. Faz-se tarde e temos um longo dia pela frente.
Quando Anna deslizou uma mão sobre a dele uma onda de calor invadiu todo seu ser. sentia-se… satisfeito. Como se não houvesse nada mais natural que ter essa pequena mão entre as suas. Todos seus instintos clamavam por agarrá-la e não deixá-la escapar.
Mas em vez disso, permitiu que seus dedos se desenlaçassem. Caminharam em silencio até o acampamento. Já se haviam dito suficiente. Talvez muito.
Capítulo 14
—Algo errado com sua comida?
A voz de sir Hugh tirou a Anna de seus pensamentos. Quanto tempo levava olhando sua tigela como uma boba e tirando o miolo ao pão pouco a pouco, sem dizer uma palavra? Tentou cobrir sua falta de tato com um sorriso ao mesmo tempo em que a vergonha se revelava em suas bochechas em forma de rubor.
—Não, está deliciosa. —Para dar fé disso meteu um pedaço de vitela na boca e fingiu deleitar-se. Uma vez o teve mastigado pediu desculpas — Temo que ainda esteja cansada pela viagem e não sou uma boa companhia.
Fazia duas noites que tinham chegado ao Auldearn. O último dia de marcha foi exaustivo, mas felizmente sem incidentes. Esperava em seu foro interno outra oportunidade para falar com sir Arthur antes que chegassem, e teve que levar uma decepção. Não era que ele a tivesse evitado, mas tampouco a tinha procurado.
Algo mudou aquela noite no lago, ao menos para a Anna. Arthur lhe tinha devotado uma parte de seu ser que parecia não revelar freqüentemente, uma parte dele que talvez a necessitasse. E o mais importante: não a tinha espantado. E por que não o tinha feito? Tudo teria resultado mais simples. Anna lutou por reprimir a cálida inflamação que ia a seus olhos e sua garganta enquanto a miséria se apoderava dela. Isso era o que lhe faltava, ficar a chorar em meio da comida como se fosse uma criada meio louca e doente de amor. Seguro que assim impressionaria sir Hugh.
Embora fosse jovem, apenas vinte e três anos, sir Hugh Ross era um homem cuja grandeza, superioridade e decidido atrativo se refletiam no perfil de seu perfeitamente torneado nariz até a ponta de seu afiado e curto queixo. Mas o orgulhoso cavalheiro parecia muito maior. Virtualmente parecia controlar-se em demasia, com tanta serenidade e tanto controle sobre si mesmo e essa arrogância de príncipe, algo que tampouco estava muito longe da verdade, dado a fila que ostentava entre a nobreza escocesa. Rígido, sem senso de humor, com esse aspecto frio e desumano tão próprio dos homens de sua época.
Sir Hugh lhe dirigiu um sorriso de compreensão que não melhorou em modo algum a severidade de seu semblante.
—É obvio, depois de cavalgar para tal passo e estar a ponto de ter uma topada com um grupo de rebeldes, é algo previsível. —Seu rosto adotou um aspecto sombrio — Teria que esfolar ao Bruce com suas próprias esporas por ser líder desse bando de piratas desalmados —acrescentou, voltando seu acerado olhar sobre ela — Foram muito afortunados de receber aviso a tempo de escapar —disse puxando a barba enquanto a observava. Anna não podia afastar os olhos de suas grandes e ossudas mãos, umas mãos que poderiam esmagar ou assassinar com a facilidade como que as suas rompiam um galhinho — Foi sir Arthur Campbell, não é certo? O irmão do rebelde Neil Campbell.
Anna assentiu, incomodada com seu próprio acanhamento. O nervosismo que sentia na presença de sir Hugh, o qual foi a primeira causa de que rechaçasse o compromisso, não fazia mais que agravar-se desde sua chegada. Sorrir e responder a suas educadas tentativas de conversa se convertia uma batalha. Observava-a como se pudesse ler seus pensamentos. Teria se delatado? Ela tinha tomado cuidado nem olhando na direção sir Arthur desde que chegaram. Ao menos acreditava não tê-lo feito. Mas estava mais que segura de que ele sim a estivera observando. O qual, provavelmente, explicava parte de sua inquietação. Seduzir a um homem sob o fulminante olhar de outro não era tarefa fácil. Mas tinha que fazer. Embora não gostasse da idéia. E a idéia não gostava absolutamente. Os dias passados encarregaram de deixar claro. Temia pensar muito no que sentia por Arthur por medo que descobririam.
—Tivemos muita sorte — comentou ao conscientizar de que sir Hugh esperava que dissesse algo.
Anna não sabia o que lhe acontecia. Jamais teve esse tipo de problemas na conversa com ninguém. Procurava controlar o tremor de suas mãos, mas lhe inquietava tanto a intensidade de seu olhar que atirou o pedaço de pão que tinha na mão. Caiu sobre a mesa, junto a sua taça e ao tentar recolhê-lo ao mesmo tempo em que Hugh Ross suas mãos se tocaram. Antes que desse tempo a retirar a sua, sir Hugh a cobriu com seus dedos. Seu pulso se acelerou até embarcá-la em uma sensação próxima ao pânico. Seu coração revoava em seu interior como se tratasse de um passarinho enjaulado.
—Está nervosa - disse lhe soltando a mão e lhe devolvendo o pão.
Ardiam-lhe as bochechas.
—Não têm nada que temer, lady Anna —disse visivelmente divertido — Sou bastante inofensivo. —Ela deve ter posto cara de não acreditar absolutamente, pois ele acrescentou—: Bom, pode ser que não completamente.
Essa inesperada amostra de humor a fez sorrir e pela primeira vez sentiu que começava a relaxar. Olhou-o do meio lado, protegida sob suas largas pestanas.
— Bom, milorde, é que sua pessoa é… certamente imponente.
—Tomarei como um elogio, embora não acredito que fosse essa sua intenção —disse entre risadas, para depois aproximar-se mais a ela e sussurrar—: O que parece se me esforço por ser imponente com todos menos contigo? Contigo serei o mais inofensivo. Será nosso segredo.
Anna, incapaz de resistir a seu encanto, sorriu até que lhe marcaram as covinhas. Sir Hugh Ross encantador? Jamais teria acreditado. Acaso o mal-humorado nobre ocultava mais do que Anna conhecia?
—Acredito que disso eu gostaria, milorde —disse sentindo que voltava para ela um pingo de seu atrevimento — Talvez ajudasse que sorrisse mais - acrescentou erguendo os olhos para olhá-lo.
Sim, quando sorria não parecia intimidar tanto.
Sir Hugh esboçou então um amplo sorriso e procurou seus olhos com o olhar.
—Pois então o farei - replicou. Fez uma pausa em seu discurso e Anna observou como se entretinha em riscar o relevo do pé da taça, interrompendo-se de um modo quase sensual que a devolveu a seu estado de inquietação — Estou muito contente de que tenham decidido viajar até o norte, lady Anna.
Cada vez estava mais tinta. Não lhe escapava o significado de suas palavras. Estava disposto a renovar as conversações em torno do compromisso. Sabia que devia sentir-se aliviada. Para isso tinha ido até ali. Poderia ajudar a salvar a sua família. Então por que notava como se uma estaca se atendasse em seu peito?
Assentiu com indolência, incapaz de encontrar-se com seu olhar de repente, temendo que revelasse muito. O peito lhe angustiava ao conscientizar de que o laço de seu futuro cada vez se atava com mais força. Seus sentimentos pessoais não importavam. Deveria contentar-se sabendo que tinha posto seu grãozinho de areia para ajudar à família. Isso seria recompensa suficiente, verdade?
Ross se voltou e fez gestos a uma criada que passava para que enchesse suas taças. Anna voltou o olhar inconscientemente para Arthur. Sabia onde estava sem necessidade de olhá-lo. Parecia atravessar toda a sala com o calor de sua ira. Seus olhares se encontraram durante um instante, mas foi tempo suficiente para que a força de sua ira ressonasse como o rugido de um ferreiro na forja. Em geral, continha tanto suas emoções que Anna se perguntava se realmente existiriam. Mas isso acabou. Jamais o tinha visto tão feroz e selvagem. Parecia um homem cuja contenção pendia de um fino fio.
Voltou-se, sobressaltada pela emoção que a embargava. Infelizmente não voltou o olhar com suficiente rapidez e sir Hugh apreciou parte do intercâmbio. Notou como ficava em guarda e entreabria os olhos olhando sir Arthur.
—Campbell não parece muito feliz com nosso acerto. Eu não gosto da forma em que vos olha - disse voltando o olhar para ela e arqueando uma sobrancelha de tal modo que parecia algo menos casual — Há algo que deveria saber lady Anna?
Amaldiçoou Arthur por sua imprudência. Arruinaria tudo. E para que? Já tinha tido oportunidades mais que suficientes para mostrar seus sentimentos, se é que albergava alguns. E agora não ficava opção. Seu pai contava com ela.
Mesmo assim duvidava. Essa seria sua última oportunidade para voltar atrás. Seu coração puxava em uma direção, e o dever e sua família puxavam a outra. Anna recordou a conversa mantida com sir Arthur. O ouvir falar de perder a guerra a tinha feito tremer. Inspirou profundamente e se desembaraçou de todas as dúvidas. Seus sentimentos pessoais não importavam. Tinha que fazê-lo. Quando Bruce chegasse, teriam muitas mais possibilidades com Ross e seus homens ao seu lado.
Negou com a cabeça.
—Não, não há nada que deveria saber.
A certeza de sua voz pareceu convencer sir Hugh. Assentiu.
—Bem —disse lhe estendendo a mão — Venham, há algo que eu gostaria de mostrar e acredito que há certas coisas que deveríamos discutir.
Anna ignorou a dor que lhe oprimia o coração e sorriu, embora tremulamente. Sem nenhum olhar mais, deu a mão ao Ross e lhe permitiu que a tirasse do grande salão com seu futuro já mais que decidido.
Isso era o que se sentia quando as pessoas perdiam o controle. Isso era o que se sentia quando alguém queria algo com tanta vontade que mataria por consegui-lo. Não pelo bem ou o mal, nem por estar no campo de batalha, mas sim pela pura satisfação de ver outro homem atravessado pela ponta de seu aço.
Arthur queria matar Hugh Ross. Dava-lhe vontade de matá-lo somente pela forma em que olhava a Anna. Pelos pensamentos luxuriosos que seguro percorriam a mente daquele filho de cadela. Arthur não acreditava ser capaz de conter-se no caso de que o olhar do Ross se detivesse de novo sobre seus seios. Atiraria uma lança no seu sobrecenho do outro lado do aposento. Poderia fazê-lo com os olhos fechados. Ficar afastado durante os últimos dois dias obrigado a contemplar como outro homem cortejava a essa mulher que, supostamente, não significava nada para ele era como uma lenta e agonizante descida à loucura. Arthur liberava uma batalha perdida. Suas tentativas de permanecer indiferente, de centrar-se na missão, não funcionavam. Todos esses anos de treinamentos e experiência na batalha não o tinham preparado para aquilo. Ver Anna e Hugh Ross juntos estava lhe fazendo em pedaços. Mas essa noite foi a gota que encheu o copo. Quando viu Ross lhe acariciar a mão, Arthur esteve a ponto de sair da ali feito uma fúria e lhe partir todos os dentes num murro. Ao diabo com o subterfúgio. Estavam rindo, maldita seja. Rindo.
Queria convencer-se de que ela não seria capaz de passar por isso. Não seria porque Anna não se mostrou precavida a respeito ao cavalheiro durante os últimos dois dias, precisamente. Mas Arthur tinha subestimado sua resolução, e também o encanto de sir Hugh. Quando se aproximou para lhe sussurrar ao ouvido teve que apertar os punhos. Não foi até que baixou o olhar e percebeu a palidez de seus nódulos que se deu conta de quão forte tinha a taça obstinada. Foi toda uma sorte que fosse de madeira; de outro modo, a teria destroçado.
Amaldiçoou consciente de que devia fazer algo. Tinha que pensar em sua missão. Sir Hugh não perdia tempo, e não é que pudesse culpá-lo. Se Arthur não fazia nada para impedir aquela aliança, seria muito tarde. Bebeu o conteúdo da taça. O uisgebeatha de cor ambarina fez que ardesse a garganta, mas não acalmou absolutamente a intranqüilidade que bulia em seu interior.
—Que diabos te passa, Campbell? Parece que queira matar a alguém - disse Alan MacDougall olhando de soslaio ao estrado. Sabia perfeitamente a quem queria matar Arthur. Aproximou-se para falar — Tome cuidado. Acredito que nosso anfitrião advertiu seu interesse por minha irmã.
Arthur economizou a vergonha de negá-lo. Alan MacDougall podia ser filho de um déspota desumano, mas não era nenhum idiota.
—E viestes para ordenar que me retire do conflito?
O guerreiro mais velho, muito experiente para delatar-se pela expressão de seu rosto, olhou-o com impassibilidade.
—Queres que o faça?
Arthur contraiu a mandíbula e apertou os dentes.
—Deveria — disse em um estranho momento de franqueza.
Não faria mais que arruinar sua vida. Se ele fosse seu irmão, ordenaria que o mandassem ao inferno diretamente e logo iria ele mesmo atrás. Mas se Alan pensou que havia algo estranho em sua resposta certamente não o exteriorizou. Em vez disso, sorriu com ironia.
—Parece-me que é muito tarde para isso.
Arthur afastou o olhar de sir Hugh e de Anna o tempo suficiente para olhar ao Alan enviesadamente. Não tinha idéia do que Alan acreditava saber, mas se equivocava. Ou não?
Diabos, já não sabia. Sua missão. Ciúmes. Sua intensa atração pela moça. Tudo isso se mesclava criando um caos absoluto. Voltou a beber de um gole o conteúdo da taça.
Alan observou como o fazia com uma expressão divertida.
—Acreditava que não bebia uísque.
—Não bebo - disse Arthur, e fez gestos à criada para que lhe enchesse a taça.
Alan estivera observando-o com mais atenção da que pensava. Aquilo o teria preocupado a não ser porque algo lhe fez voltar sua atenção para o estrado. Todos seus músculos ficaram rígidos quando viu que Anna deslizava sua mão sobre a do Ross. A ira percorria todo seu corpo ao mesmo tempo em que aquele homem se inclinava para falar brevemente com seu pai momentos antes de acompanhá-la ao exterior do salão. Justo antes que Hugh passasse pela porta olhou para Arthur. O tom malicioso de seu olhar fez que lhe gelasse o sangue. Uma sensação estranhamente próxima ao pânico subia por seu peito, algo ridículo por completo. Era um guerreiro de elite. Distante. Controlado. Pode ser que seu coração pulsasse muito depressa e que não pensasse com claridade, mas era indisputável que aquilo não podia ser pânico.
Mas onde demônios acreditava que ia? Ross, esse filho de puta lascivo, estava obviamente ansioso pelo compromisso. Quem sabia do que seria capaz para assegurá-lo? Acaso Anna não notava do que aconteceria quanto estivessem a sós? A mente de Arthur voltou para os barracões imediatamente.
«Por todos os diabos.»
Conseguiu resistir durante uns trinta segundos até que já não pôde agüentar mais. Levantou-se para partir, mas Alan o deteve movendo sua perna pela borda da mesa e lhe fechando o passo. Não era nenhum acidente. A princípio Arthur acreditava que queria detê-lo, mas para sua surpresa o guerreiro retirou a perna lentamente e lhe deixou passar, não sem antes fazer uma advertência.
—Se fizer mal a minha irmã, Campbell, terei que te matar.
Apesar de que falasse com tanta calma como se informasse o tempo, Arthur era consciente de que dizia muito sério. Que diabos, se Alan não fosse seu inimigo e o filho de um déspota, pode ser que inclusive lhe caísse bem. Arthur o olhou nos olhos e assentiu, com a suspeita de que Alan MacDougall não seria capaz de manter sua promessa. Pôr fim ao compromisso e deter a aliança, fazendo dano a Anna no processo, converteu-se em algo inevitável.
Anna esperava que sir Hugh a levasse fosse para passear pelo barmkin, mas em vez disso a fez entrar pelo corredor até a torre da comemoração. O castelo real do Auldearn fora construído uns cem anos antes por encargo do Guillermo o Leão. Sua torre da comemoração e o grande salão contíguo se erguiam no alto de um enorme Castro circular rodeado por um cerca de madeira. O muro de pedra que rodeava o pátio de armas que havia debaixo proporcionava um nível mais de defesa. O corredor iluminado pelas tochas parecia silencioso em comparação com o bulício do grande salão. Anna se inquietou ao ser consciente de que não havia ninguém mais ao redor. Embora os últimos raios de sol ainda reverberassem sobre o horizonte, a torre de pedra estava já às escuras. Tampouco a luz cintilante das tochas alinhadas nos muros lhe dava mais tranqüilidade.
—A…aonde vamos? — perguntou envergonhada pelo tremor de sua voz.
Sir Hugh lhe dirigiu um enigmático sorriso que fez que Anna se perguntasse se saberia a impressão que causava nela.
—Já quase chegamos.
Deteve-se frente à porta da câmara particular do conde. Uma vez aberta, Anna aliviou comprovar que a estadia estava bem iluminada pelo castiçal de ferro circular que pendia do teto. Infelizmente, Hugh a levou até outra porta que havia cruzando a sala, com o que Anna percebeu de que aquele não era seu destino final. O segundo aposento estava às escuras. Anna ficou na câmara até que sir Hugh acendeu umas velas. Então ficou sobressaltada.
Anna se esqueceu de seu nervosismo. Apressou-se a entrar no minúsculo aposento, não muito maior que uma despensa, e olhou com surpresa a seu redor. O centro da sala estava presidido por uma mesa e um banco, mas o que enchia seu assombro era o que havia sobre as paredes. Prateleiras e mais prateleiras cheias de grossas folhas de couro, alguns deles recobertos de ouro e outros com jóias incrustadas. Um tesouro oculto. Mais livros dos que tinha visto em sua vida em um só espaço.
Sir Hugh observou em que modo a maravilha e a incredulidade transformavam seu rosto.
—Pensei que isto poderia lhes interessar.
Anna deu uma palmada de puro prazer; seus dedos estavam impacientem por explorar os títulos. Por Deus bendito, se pareciam quatro volumes do Chrétien do Troyes!
—É magnífico — disse voltando-se para ele — Como sabias?
Hugh Ross encolheu de ombros.
—Em certa ocasião mencionaram que desfrutava da leitura.
Anna inclinou a cabeça e o olhou. Uma vez mais sentia como se o tivesse julgado mal.
—E se lembrou?
Sir Hugh não respondeu, mas a olhou de tal forma que um formigamento de inquietação lhe percorreu as costas. Desejava-a. De repente aquele minúsculo aposento pareceu uma armadilha a Anna. Olhou para a porta, mas já fosse intencionadamente ou não, ele se tinha colocado frente a ela lhe cortando o passo.
—por que me trouxestes aqui? —perguntou.
Sir Hugh deu um passo adiante e seus olhos brilharam de maneira perigosa entre as penumbras. Pegou-a pelo queixo e a obrigou a olhar em sua direção. O pulso lhe acelerou de pânico. Talvez fosse uns cinco centímetros mais baixo que sir Arthur, mas em certo modo seu tamanho lhe parecia ameaçador. Anna teve que reunir todo o valor com o que contava para não sair correndo.
—Queria lhes mostrar o que terá quando fores minha esposa. Esta sala estará a sua disposição. Será uma das damas mais importantes do reino. Para isso viestes, lady Anna. Não é assim? Para reatar as conversações sobre nosso compromisso.
—Sim - sussurrou ela, tentando controlar o tremor de sua voz.
Hugh cravou o olhar em seus olhos, desafiando-a.
—É isso o que quer realmente?
O coração lhe pulsava com fúria. Teve que obrigar-se a assentir.
—Sim.
—Então prove — pediu. Ela piscou de maneira inquisitiva — me beije.
Anna abriu os olhos de par em par pela surpresa.
Lutava por saber o que dizer. Mas, pelo amor de Deus, não podia. E ele sabia. Endureceu o olhar.
—Está jogando comigo, lady Anna? Asseguro-lhes que não tenho nenhum desejo de ser o corno de outro homem. Recorde que são vocês quem acudis a mim nesta ocasião. —Sir Hugh lhe pôs um dedo no lábio inferior e Anna conteve o fôlego, paralisada pelo medo — Decida o que quer antes de fazer algo que não possa ser desfeito. Uma vez estejamos comprometidos, asseguro-lhes que não tolerarei tais tolices.
As bochechas de Anna se avermelharam, envergonhada por quão certas eram suas acusações. Sacudiu o medo tentando recordar por que tinha ido até ali, tentando recordar quão importante era conseguir essa aliança para ela. Não podiam deixar escapar essa oportunidade. Por que se comportava como uma estúpida? Somente se tratava de um beijo.
—milorde, o temporal…
Ao ver que lhe soltava o queixo, Anna suspirou mostrando maior alívio do que devido.
—Temos que retornar ao salão - disse Ross fria e secamente — Seu irmão se estará perguntando aonde a levei.
Anna assentiu, sentindo sua impotência, consciente do que devia fazer, mas incapaz de pronunciar as palavras. Que o diabo levasse Arthur Campbell pelo que estava fazendo com ela! Por confundi-la. Ela estava preparada para levá-lo a cabo antes que ele voltasse a aparecer.
—Se não lhes importar, meu senhor, estou cansada e preferiria me retirar a meus aposentos.
Sir Hugh assentiu.
—Não há pressa. Querem tomar um livro emprestado, talvez? —Olhou-o nos olhos, consciente de que tentava tentá-la — Podemos falar sobre isso manhã.
Hugh Ross deu meia volta para partir, mas algo o fez mudar de idéia. Antes que ela pudesse conscientizar do que se dispunha a fazer, já a tinha atraído para si e a estava beijando. Anna ficou paralisada, muito surpreendida para resistir.
Seus lábios eram frios e duros, em consonância com sua pessoa. Acertou a distinguir um leve aroma a vinho, mas antes que pudesse descobrir algo mais já tinha acabado tudo. Sir Hugh baixou o olhar e sorriu ao ver o rosto de surpresa que Anna tinha posto.
—Têm toda a noite para decidir. Mas se quiserem que o compromisso siga adiante, espero que me dêem uma resposta amanhã. Uma que seja algo mais entusiasta que esta.
Ross não se fazia uma idéia do perto que estava da morte. Arthur apertava a adaga em sua mão, tentando controlar a sede de sangue que percorria suas artérias com cada um dos músculos. Tudo que tinha que fazer era dar um par de passos, sair de seu esconderijo depois das sombras do vão da porta e afundar sua folha no mais profundo das vísceras daquele filho de cadela.
Tinha-a beijado. Tinha-a tomado entre seus braços e tinha grudado sua boca a dela. Algo se rompeu em seu interior. Todos seus instintos lhe diziam que tinha que sair dali e matar ao homem que se atrevia a tocar aquilo que lhe pertencia. Mas algo deteve sua mão no último momento. Matar ao Ross poria fim a sua missão. Veria-se obrigado a fugir, acabando assim com sua oportunidade de destruir ao Lorn. Teve que aferrar-se ao mínimo de controle que ficava para não mover-se, mas deixou que Ross saísse do aposento. Deixou-lhe viver. Por essa vez.
Entretanto, Anna não escaparia a sua ira tão facilmente. Asseguraria-se de que não houvesse mais que uma resposta à manhã seguinte. O compromisso que ela tinha planejado estava a ponto de chegar a um final irrevogável.
Anna seguiu os passos do Ross apenas se desvaneceram suas pegadas. Assim que chegou à porta, Arthur saiu de entre as sombras e lhe fechou o avanço.
Ela ficou sem fôlego. Todo o medo que pudesse sentir logo desapareceu para dar passo ao brilho de ira que incendiava seu olhar.
—Como te atreve a me espiar? —exclamou. Tentou afastá-lo de seu caminho, mas ele imobilizou seus pulsos com uma mão — Deixe-me partir. Não tem nenhum direito.
Voltou a colocá-la no aposento e fechou a porta atrás dele.
—Tenho todo o direito —disse Arthur com fúria — Não se casará com ele.
Advertiu o rubor de suas bochechas à luz das velas. Seu busto, esses incríveis seios, tão grandes que não podia deixar de sonhar com eles, enchiam-se com uma indignação justificada. Anna ergueu o doce rosto com seu adorável e teimoso queixo para ele.
—Sim o farei.
Não gostava desse tom absolutamente. Nenhum pingo. Entreabriu os olhos.
—Nem sequer podia lhe beijar - disse aproximando-se mais a ela e aspirando a sensual calidez de sua fúria — Como pensa que será então deitar-se com ele?
A indignação de Anna se traduziu em um áspero gemido. A Arthur não cabia a menor duvida de que lhe teria parecido uma adaga entre as costelas se tivesse uma. Mas sua língua era igual de efetiva estripando-o.
—Suponho que chegarei a me acostumar. É possível que inclusive desfrute. Sir Hugh é um homem muito arrumado. E parece bastante decidido, não acredita? —disse lhe provocando com o olhar, desafiando-o, voltando-o louco — Se parecer em algo a esse beijo imagino que chegarei a desfrutar muito disso.
Agarrou-a pelo braço.
—Pare — disse agitando-a ante si — Pare.
Parecia estar a ponto de explodir. Suas provocadoras palavras exaltavam ao máximo aqueles sentimentos contidos durante tanto tempo. Uns sentimentos que Arthur não queria reconhecer. Uns sentimentos que não podia permitir que aflorassem. A cabeça lhe dava voltas. Queimava-lhe o peito. Deus, doía demais. Tinha que fazê-la parar.
—Por quê? —perguntou Anna aproximando-se mais a ele. Arthur sentiu seus mamilos lhe roçando o peito e teve que sacudir-se realmente, pois todo o controle com o que contava seu corpo pendia de um fio. O calor o puxava para um vórtice de luxúria e desejo. Queria esmagá-la contra si. Beijá-la. Possuí-la até deixá-la sem sentido. Fazê-la gritar seu nome e nenhum mais que o seu — Por que teria que parar? É a verdade. Sir Hugh me deseja muito como um homem que vê o que quer e não se detém ante nada até que o consegue.
Era consciente de que não fazia mais que provocá-lo, mas não lhe importava. Arthur sabia perfeitamente o que queria, maldita seja. A ela. Renegou, consciente de que a batalha estava perdida. Tomou entre seus braços e pregou sua boca a dela, cedendo a esses poderosos impulsos que liberavam uma guerra em seu interior. Beijou-a como jamais antes tinha beijado a mulher alguma. Beijou-a com toda a paixão que acumulava desde que a visse pela primeira vez. Beijou-a para que não seguisse falando. Beijou-a para apagar as odiosas imagens com as que tinham enchido sua cabeça. Beijou-a de modo tal que não pudesse voltar a pensar em outro homem em sua vida.
Não obstante, uma vez que Anna se fundiu ante ele em uma rendição silenciosa e abriu sua doce e pequena boca para recebê-lo com um suspiro e um gemido, Arthur não pensou mais em missões, alianças, clãs inimigos ou vingança. Não. Tudo assim que pensava era em fazê-la sua.
Capítulo 15
Anna sabia que se precipitava e que estava provocando-o, mas não lhe importava. A ira não lhe deixava ver mais que sua necessidade de arremeter contra ele. Odiava-o por intrometer-se, por fazê-la duvidar, por interferir em seus planos. Não queria outra coisa que proteger a sua família e manter a salvo às pessoas que amava. E quando tinha a oportunidade de conseguir, Arthur Campbell se interpunha em seu caminho.
Confundia-a. Desorientava-a. Fazia que tomasse carinho e logo a separava de seu lado. Em um momento a salvava e a protegia e ao seguinte a ignorava. Era um ingrato, um homem que se mantinha à margem e dava a impressão de não necessitar a ninguém. Mas também era um homem que estava sozinho, alguém afastado por seus próprios dons, obrigado a viver um tanto afastado de outros.
Queria-a? Necessitava-a?
Em qualquer dos casos teria que decidir-se. O tempo se esgotava para ambos. Era consciente de que estava ciumento, consciente de que tinha visto o beijo que lhe deu sir Hugh, consciente de que lutava por manter o controle. Assim o provocou.
Desejava-o com tanta vontade… A essa distância o único em que podia pensar era em seu doce aroma. E em que o aspecto desalinhado que lhe dava a escura sombra de sua barba o fazia mais arrumado ainda. No alto que era. A enmembrodura de seu peito. O suave que se viam seus lábios embora estivessem brancos de ira. Em que o daria tudo por que tomasse entre seus braços e não a abandonasse nunca. A dor rasgava seu peito como uma faca. Por que não a queria? Por que se reprimia?
Isso foi o que a levou a provocá-lo de maneira temerária, desesperada, com intenção de lhe ferir tanto como ele a feria. E se era mentira? E o que lhe gelava o sangue com somente imaginar-se na cama com outro homem? Desfrutar? Mal podia deixar de tremer de medo em presença de sir Hugh.
Então ele se desmoronou e Anna obteve sua recompensa. Encontrou-se em seus braços, com a boca de Arthur pegada à sua, beijando-a com toda essa paixão e emoção com que ela tinha sonhado. Ele a devorava com a boca e a língua, enquanto ela gemia e se entregava mais e mais a seu beijo, morrendo por sentir cada dobra de sua pele. Deslizava suas enormes mãos sobre ela de modo possessivo. Passou-a por suas costas e depois sobre os quadris, até que desceram para agarrar seu traseiro. Então rugiu de agrado sobre sua boca e a beijou com mais força ao mesmo tempo em que a acoplava firmemente contra seu corpo.
As sensações se desatavam em seu interior em um ataque de calor resplandecente.
OH, Deus, aquilo era perfeito. Seu peito contra o dele, os quadris colados e a dura confirmação do desejo masculino introduzindo-se entre suas pernas de uma maneira íntima. Era consciente de que o tamanho e o tato teriam que assombrá-la, mas o único que sentia era a excitação, uma excitação que fazia lhe acelerar o coração, sua pele se ruborizasse e sentisse comichões por todo o corpo.
Estavam cobertos um com o outro, mas aquilo não bastava. A cada delicioso roce de sua língua, a cada possessiva carícia de suas mãos, crescia a inquietação no interior de Anna. Respondeu a seu atrevimento com mais atrevimento. Agarrava com firmeza os duros músculos de seus braços, seus ombros e suas costas. Queria sentir cada centímetro de seu corpo sob os dedos, modelar seus músculos com as palmas de suas mãos. Conter toda sua força baixo elas.
Aquilo a fazia sentir… embriagada de desejo. Era a primeira vez na vida que tinha uma experiência de tal calibre. Seu corpo parecia ressuscitar. Reagia aos estímulos de maneira natural, como se soubesse o que estava fazendo. Tudo ocorria muito rápido para pensar. O desejo a tinha feito sua presa e não parecia disposto a soltá-la.
Aproximava-a de seu corpo cada vez com mais urgência, esfregando sua virilidade contra a mais feminina de suas partes. A fazia sentir estranha, com comichões, quente, ofegante. Mas não era suficiente. Ávida de fricção, sedenta por encontrar uma conexão mais profunda, descrevia círculos com seus quadris e se esfregava com essa grosa coluna de carne com mais força.
Arthur percorreu seu pescoço com a boca e a devorou com seus beijos. Sua barba de dois dias fazia sulcos em sua pele em chamas. O aposento jogava fumaça e ardia de paixão. Agarrou-a pela cintura e deslizou as mãos até seus seios. Anna ofegou e se pegou quanto pôde a seu membro viril ao mesmo tempo em que arqueava as costas procurando suas mãos. Arthur murmurou algo parecido a uma imprecação e roçou seus turgentes e ofegantes mamilos com os polegares enquanto sua boca se dava de presente com a tenra pele que aparecia por cima do corpete.
Estava muito quente. Sentia-se débil. Lânguida e pesada. Parecia que suas pernas não contassem com forças para sustentá-la. Desabou-se sobre Arthur, que a puxou de novo sobre a mesa para acalmá-la, e talvez também para acalmar a si mesmo. Aquele cavalheiro, que mostrava um controle tão férreo sobre si, parecia sofrer apuros igual aos selvagens e frenéticos dela.
Os escuros e sedosos cabelos de Arthur se derramaram sobre seu peito. Anna, incapaz de resistir, passou os dedos entre essas suaves ondas e o apertou contra si com força e ternura. A umidade de sua boca transpassava o tecido do vestido para chegar até seu mamilo ao mesmo tempo em que acariciava seus seios e os rodeava com suas mãos.
Mas não era suficiente.
Então sua língua pareceu perceber essa frustração e entrou sob o corpete. Um gritou escapou dos lábios de Anna ante tamanha perversão, ante o delicioso prazer que sentia. Aquela boca estava muito quente. Passou-lhe a língua de um lado a outro, até que pensou que já não poderia resistir mais. Retorceu-se contra ele suplicando para que desatasse a voragem que se formava em seu interior.
Por fim lhe deu um puxão do vestido até quase romper o tecido e o abriu para liberar seus seios. O frio ar soprou sobre sua pele e provocou formigamentos ali onde a tinha beijado.
—Jesus — exclamou Arthur, como se aquilo doesse — É incrivelmente bela.
Provavelmente ouvir sua voz teria quebrado seu estado de transe, mas Arthur cobriu seu ofegante mamilo com a boca e começou a chupá-lo antes que Anna pudesse acolher-se a esse momento de iluminação. Essa doce e aguda sensação a fez gritar. Era um prazer tão agudo que se aproximava muito à dor. Atendia-a com os dentes, dava-lhe linguadinhas e sugava sua cálida boca cada vez com mais intensidade. O calor se estendeu entre suas pernas em uma corrente de umidade. Sentia comichões em suas suaves carnes inflamadas.
Tinha-a aprisionada contra a mesa com as pernas abertas. Montou uma delas sobre seu quadril ao mesmo tempo em que se inclinava para lhe beijar o seio. Os ferozes pulsar do coração de Arthur troavam contra seu peito, seus músculos se esticavam da excitação e a cobriam com todo o peso de seu corpo. E Anna estava quente. Tão quente que queimava. Excitada até o ponto de não retorno.
Arthur deslizou a mão sob o vestido até fazer contato com a pele. Suavizou o impacto acariciando o mamilo pausadamente entre seus dentes. Então voltou a cobrir sua boca com beijos, e suas mãos… Céu santo estava colocando as mãos entre suas coxas! Envergonhada, tentou fechar as pernas. Mas ele não o permitiria. Sua boca a distraía com os longos e pausados movimentos de sua língua, ao mesmo tempo em que ele entrava em sua umidade com os dedos. O corpo de Anna tremeu ao sentir o contato. Seus protestos se dissolveram em uma onda de alívio estremecedor. Aquilo dava muito prazer. Um prazer surpreendente.
—Jesus, é tão doce…
Deixou de beijá-la e Anna se perguntou se teria feito algo indevido, até que percebeu de que era ele quem estava passando mal, tentando conter-se, como se lutasse por controlar-se. Como se tocá-la o tivesse despojado de suas últimas reservas de contenção. Como se muito em breve não pudesse controlar-se. Ficou olhando-a nos olhos ao mesmo tempo em que introduzia seu dedo nela com um pequeno e firme empurrãozinho. Aquele era o momento erótico mais perverso de sua vida. Tomou fôlego em uma tentativa de estabilizar as sensações, mas estas se precipitavam sobre ela em rápidas ondas que não davam trégua alguma. Acariciou-a. Primeiro com círculos pequenos e suaves, depois com mais força, mais rápido, com impulsos profundos e frenéticos que pareciam decalques dos beijos que acabava de lhe dar.
A sensação que se formava em seu interior era muito intensa. Muito poderosa para ser contida. Esticava-se e recuava em um endiabrado redemoinho de necessidade. Seu rosto era uma máscara de dor. O suor se acumulava sobre suas sobrancelhas. Arthur a olhava nos olhos de modo escuro e penetrante, agarrando-a de tal forma que o coração lhe estalava de felicidade. Anna por fim via a verdade em seus olhos, o que intuía desde o começo. Essa conexão que havia entre eles era especial. E também ele a sentia.
Não sabia o que lhe estava acontecendo, mas era perfeito. Cada uma de suas carícias a levava até limites que era incapaz de compreender. Retorcia-se de frustração. Seu corpo inteiro clamava por…
—Te relaxe, amor —sussurrou Arthur — Quero te fazer voar.
O som aveludado de sua voz abriu caminho através dos últimos vestígios de sua repressão de criada. Ficou sem respiração até que pareceu que seu corpo se faria em pedaços devido ao intenso prazer que procuravam os agudos espasmos e teve que libertar todo o ar em um gemido estremecedor. Era o momento mais maravilhoso de sua vida, mas à medida que olhava o escuro interior desses olhos com bolinhas douradas, soube que não era suficiente. Tinha satisfeito sua paixão, mas seu coração ainda palpitava pela necessidade de realizar-se. Queria uma conexão mais profunda. Queria senti-lo em seu interior. Queria ter tudo dele. Para sempre.
«Quero-te.» É obvio. Estava tão claro, era tão certo, que se perguntava como poderia ter sido de outra maneira. Guerreiro. Cavalheiro. Isso pouco importava. Porque em seu coração, Anna sabia que tinha encontrado ao homem com quem estava destinada a compartilhar sua vida.
Arthur já não podia esperar mais. A pressão se acumulava na base de sua coluna como um punho quente e conectava com a vibrante ponta de um membro que pedia alívio, que a tocasse, que atendesse a seus agudos gritos e ofegos de prazer e sentisse como seu corpo se derretia e se estremecia ao rodeá-la com a mão. Apertou os dentes tentando refrear-se, consciente de que estava a ponto de gozar como não o tinha feito antes na vida.
Jesus, que beleza mais embriagadora: cabelos dourados como o mel que se dispersavam atrás de sua cabeça e resplandeciam diante da luz das velas; olhos aturdidos e inflamados pela paixão; seios de formas perfeitas, grande e suave, que saía de seu corpete mostrando um pequeno e arrepiado mamilo avermelhado por suas dentadas.
Tinha o aspecto de uma fêmea no cio que clamava ao céu para que a montassem. «E esta fêmea é minha. Toda minha.».
«Jesus», repetiu para si a meio caminho entre a prece e a imprecação. Jamais antes havia se sentido de tal modo. O desejo o consumia.
—Arthur —choramingou ela — Lhes rogo isso.
O brutal desespero de sua voz foi o último fio de que precisava atirar. Não podia esperar mais para introduzir-se nela. Virtualmente rompeu a fivela e as ligaduras de suas meias e calções para liberar seu inchado membro. Mas tirar o membro de seu confinamento para que lhe desse ar não servia de grande alívio. A única coisa que lhe serviria para aplacar a dor nesse momento era estar dentro dela. Levantou uma de suas flexíveis e sedosas pernas de formas perfeitas, passou-a por trás de seu quadril e se colocou diante daquela abertura cálida e deliciosamente úmida. A próxima vez se tomaria seu tempo em saboreá-la, lhe colocar a língua e fazer que se gozasse sobre sua boca.
Não deixou de olhá-la em nenhum momento. Não se atrevia a afastar o olhar dela por medo de que se perdesse a poderosa conexão que se produziu entre ambos. Teria que ter sentido ao menos a sombra de uma dúvida, ter a sensação de que aquilo que fazia estava mal. A honra era importante para ele, apesar de que o código de cavalaria não o fosse. Mas não sentia nada disso. O único em que pensava era que não podia perdê-la, que tinha que fazê-la sua, e se era capaz de fazer isso, todo o resto sairia bem. Quando a sensível cabeça de seu membro se encontrou com o úmido calor de seu ninho, Arthur exalou um profundo som gutural de puro prazer. Esfregou-se contra sua suave umidade e se deteve ali, consciente de que uma vez dentro seria muito tarde. Tinha o corpo em chamas e todos os músculos em tensão, preparados para fazer entrada. Notava-se o pulso nas veias. Nas orelhas. Até nos ossos. Parecia-lhe ter a pele tensa e ardendo.
«Empurrar.» Deus, que vontade tinha de empurrar. Jamais teve tanta vontade de preencher, de meter-se profundamente em nenhuma mulher. Sabia que seria algo incrível. Seu corpo se ajustaria a ele como uma luva quente e o espremeria com puxões largos e duros até lhe fazer cair profundamente na mais absoluta das inconsciências. Queria ver como se movia sob seu corpo impulsionado pelo poder de seus embates, como levantava os quadris para acompanhar cada uma de suas profundas investidas. Queria ver como seu membro entrava e saía dela.
Apertou os dentes, sentindo uma necessidade de afundar-se nela virtualmente irrefreável. Mas não podia a machucar. Assim que se obrigou a ir devagar. Estimulou-a com sua grossa ereção para que se acostumasse ao tamanho e a força de seu membro e esfregou a ponta com sua umidade para facilitar a entrada. E coberta de maravilha. A pressão se acumulava na base de sua coluna e puxava cada vez com mais força.
Não pôde agüentá-lo mais. Começou a empurrar. Ela gritou, surpreendida.
«Jesus.» Apertou os dentes. O suor se acumulava sobre suas sobrancelhas. O sangue palpitava em suas veias. Tentador. Tão incrivelmente tentador… Tinha que tomar-lhe com calma e com cautela. Deus estava louco por gozar. Ficava muito pouco…
Um leve som penetrou aquela bruma.
Arthur sentiu um premonitório calafrio na nuca e ficou paralisado. O ar tinha mudado. Separou-se dela amaldiçoando enquanto todo seu ser estalava em protestos.
—Te cubra - disse, e lhe deu um puxão no vestido ao mesmo tempo em que tentava atar os calções torpemente.
Mas era muito tarde, ou muito cedo, se atendia à frustração que ardia em seu testículo nesse preciso instante. A porta se abriu de repente. Sir Hugh Ross estava atrás dela, com seu acerado olhar atento a cada detalhe do que acontecia no interior.
Apesar de que se trabalharam em excesso em vestir-se rapidamente, nada podia dissimular o que estavam fazendo. Anna seguia recostada sobre a mesa com as bochechas acesas e os olhos aturdidos, Arthur seguia entre suas pernas e a sala se achava impregnada com o quente e pesado ambiente que corresponde à almiscarada fragrância do emparelhamento, ou em seu caso do emparelhamento frustrado.
Anna ficou sem respiração. O horror apagou as marcas de prazer que ruborizavam seu rosto. Arthur se colocou frente a ela instintivamente, tentando afastar a de seu olhar, como se o escudo de seu corpo pudesse protegê-la do veneno que destilava o outro homem. O silêncio sepulcral, somente salpicado pelo crepitar das chamas, estendeu-se além do incômodo. Sir Hugh permanecia ali petrificado, com uma quietude exagerada, como se estivesse aguardando para equilibrar-se sobre eles. Arthur o observava como um falcão, esperando a primeiro sinal de movimento. Diabos, como gostaria que o fizesse.
—Ouvi um grito e me perguntei se lhe tinham feito mal - disse ao fim sir Hugh com o gesto torcido pelo asco e umas palavras que transpiravam contenção — Mas suponho que não necessitavam resgate.
A exclamação angustiada de Anna lhe partiu o coração. Arthur, consciente de que tinha que protegê-la da ira de sir Hugh, deu a volta e tomou pelos ombros.
—Vá para seus aposentos - disse bruscamente. Anna quis discuti-lo, mas ele a deteve — Falaremos mais tarde que isso. Agora mesmo preciso falar com sir Hugh. Permita que me encarregue disto.
Olhou-a nos olhos. A via confusa, horrorizada e atemorizada há um tempo, disposta a romper a chorar de um momento a outro. A Arthur custava respirar. Era como se lhe retorcessem o coração com uma faca. Ele tinha provocado isso. Era culpa dele. Sacudiu-a com cuidado, tentando fazer que se centrasse.
—Entendeste, Anna? —Então ela o olhou com um rosto tão perdido que lhe deu vontade de voltar a acolhê-la em seus braços — Tudo irá bem — prometeu, consciente de que aquilo não era certo.
Como poderia ir bem aquilo? Não só estava mentindo, mas sim, além disso, acabava de destruir toda possibilidade de aliança com o Ross e sabia quanto significava isso para ela. Anna amava a sua família. Falhar seria algo que… a faria pedaços.
Anna assentiu e a confiança cega que emanava seu olhar lhe fez sentir todo o peso da vergonha em seu interior. Era um completo filho de puta. Um filho de puta desalmado. Jamais poderia perdoar-se pelo que estava lhe fazendo. Anna não merecia. O que merecia era estar a salvo e protegida, ter um lar feliz, um marido que a amasse e seis ou sete crianças puxando suas saias. Ele nunca poderia lhe dar isso. Abandoná-la e lhe romper o coração, isso era quão único faria. Pode ser que não a tivesse despojado de sua virgindade, mas sua inocência desapareceria igualmente quando descobrisse a verdade sobre ele.
Lá onde fazia um momento reinava o desejo não ficava mais que pena e dor. Sir Hugh não se moveu de sua posição à entrada, mas assim que Arthur acompanhou Anna à saída, Hugh Ross se pôs a um lado para deixá-la passar. Arthur, sentindo-se esquecido na salinha, seguiu-a até o aposento principal. Não era muito maior, mas ao menos ali teria espaço para manobrar se fosse necessário. Sir Hugh parecia disposto a brigar e ele tinha tanta vontade ou mais de lhe dar guerra. Justo antes de sair Anna, olhou-o com incerteza.
—Vá - disse com doçura, tentando acalmar seus temores.
Então seu olhar reparou em sir Hugh e seu rosto se contraiu. O cavalheiro não se dignaria a olhá-la, mas cada uma dos nobres e orgulhosas dobras de sua pele irradiavam animal adversão. Arthur franziu os lábios, com uma vontade tremendas de matar a aquele homem por ferir seus sentimentos. Anna não tinha culpa de nada. Tudo era coisa dela. «Jesus.» Conscientizar-se disso foi como um soco. Tinha-o feito a propósito? Fosse essa sua intenção desde o começo? O que queria era acabar com qualquer opção de aliança. Não, mas não desse modo. Nunca quis levá-lo a tal extremo. Embora sim que tinha superestimado sua capacidade de controle e menosprezado a intensidade de seus desejos por ela. Era o único culpado de meter-se nesse esfregado. Fora ele quem tinha transpassado os limites, algo que não reportaria mais que dor para ambos.
—Deveria te matar — disse Ross assim que se fechou a porta.
O cavalheiro tentava intimidá-lo, mas Arthur aceitou o desafio.
—E por que não o faz?
O olhar do Ross se endureceu.
—Porque então teria que explicar os motivos.
A certeza de sua voz fez que Arthur sorrisse. Tinham mais ou menos a mesma idade e eram bastante semelhantes quanto à altura e músculos. Mas não quanto à destreza. Arthur não seria quem iria morrer. Sir Hugh, não obstante, não tinha nem idéia disso. Então por que…? A razão foi a ele de repente.
—E não quer que ninguém saiba que a moça o humilhou pela segunda vez. Primeiro ao rechaçar sua oferta e logo ao agarrá-la com outro homem ante seu nariz.
A verdade da acusação causou seu efeito no rosto do Ross, que avermelhou de ira, criando um marcado contraste com os sulcos brancos de seus lábios franzidos.
—Desfloraste-a?
Arthur apertou a mandíbula. Aquilo não era assunto seu absolutamente. Encheu de vontade de mentir, de reclamá-la para si, mas disse a verdade, já que queria salvar o que pudesse da reputação de Anna.
—Não.
Os olhos do Sir Hugh se mostravam frios.
—Mas o teria feito de não o tivesse interrompido.
Arthur encolheu os ombros, como se aquilo não fosse de sua incumbência. Ross deu um passo para ele com a mão na espada.
—Maldito filho de cadela! É um cavalheiro. É que não têm honra? Era uma mulher comprometida.
Arthur se moveu com rapidez. Pôs em prática uma manobra que tinha aprendido com Boyd e deixou o braço do Ross fosse de combate, obrigando-o a soltar a espada. Depois lhe retorceu esse mesmo braço pelas costas e o imobilizou fazendo contrapeso com seu próprio corpo.
—Não. Não estava comprometida.
Ross tentou escapar por ato reflito, mas seus movimentos só serviam para que Arthur lhe retorcesse mais o braço e lhe infligisse mais sofrimento.
—Estava a ponto de comprometer-se —disse entre dentes com uma voz cheia de dor — O matarei por isso! Solte-me!
—Não até que cheguemos a um entendimento a respeito do ocorrido aqui. Não quero que isto afete à moça. Não é culpa dela.
Ross teve a inteligência de optar por discuti-lo, mas Arthur percebia a raiva em seus olhos. Retorceu-lhe o braço com mais força, provocando que o furioso guerreiro gritasse.
—Por que voltou? —perguntou Arthur.
—Ouvi um grito…
—Uma merda - cortou Arthur.
A não ser que possuísse sentidos tão finos como os seus, era impossível que tivesse ouvido algo. Ross lhe dirigiu um olhar assassino. De sua sobrancelha caíam gotas de suor dolorido.
—Vi como a observava e que ela tentava não o olhar por todos os meios. Sabia que nos seguiria.
Arthur amaldiçoou.
—O que era isto então, uma prova de fogo?
—Não pensava permitir que tirassem o sarro. Não me casarei com uma mulher apaixonada por outro homem. Por muita vontade que tenha de fo…
Retorceu-lhe mais o braço.
—Não —disse — Não o diga.
Arthur, consciente do perto que estava de lhe partir o braço, optou por afastá-lo de seu lado de um forte empurrão. Ross tinha razão respeito a algo: quanto menos tivessem que explicar, melhor. Sir Hugh soltou ar e se massageou a parte superior do braço e o ombro. Mas havia algo em seu olhar que a Arthur fazia perguntar-se se o tinha posto a prova de novo. Se esse grosseiro comentário do Ross teria a intenção de provocar uma reação. Se for assim, tinha funcionado.
—Importa-te - disse Arthur, precavendo-se disto, na verdade era algo mais que uma aliança política para ti.
Ross não respondeu com palavras nem por meio da expressão de seu rosto, mas Arthur sabia que tinha acertado. Diabos, quase dava pena aquele pobre filho de cadela.
—Mas sabe o que é que a trouxe até aqui?
Uma vez recuperada as sensações em seu braço, Ross voltou a olhá-lo com desconfiança.
—Sim. Para conseguir apoio na luta contra Bruce. Esperava conseguir sua mão sem ter que recorrer a isso.
Arthur ficou olhando-o e o compreendeu tudo ao fim.
—Seu pai não tinha intenção de enviar homens com ou sem compromisso, não é certo? —Não era preciso que Ross respondesse. «Por todos os demônios.» Arthur tinha vontade de matá-lo ali mesmo — E a deixaram pensar que…?
Ross encolheu os ombros.
Maldito patife. Demônios, de não ser Anna a quem manipulava, Arthur teria admirado sua determinação.
—Partiremos assim que tenhamos tudo preparado. Depois de que informe Anna e sir Alan do que acaba de me contar.
O outro homem se mofou.
—E por que diabos eu ia fazer tal coisa?
Arthur deu um passo para ele com atitude ameaçadora. Em honra de Ross terá que dizer que não se moveu. Mas Arthur advertiu a inquietação em seus olhos.
—Porque não quero vê-la mais afetada do que já está. E apesar do que tenha passado aqui, não acredito que vocês queira isso tampouco.
Ficaram olhando durante um momento até que Ross assentiu. Arthur se dispôs a partir.
—Campbell. —Arthur deu a volta e viu que Ross seguia agarrando o ombro machucado — Onde aprendeu a fazer isso?
Arthur torceu a boca com dissimulação.
—Faça o que combinamos dito e talvez te conte isso algum dia.
Anna limpou as mãos em suas saias e procurou acalmar a náusea que ameaçava subindo por seu estômago ao mesmo tempo em que observava a quantidade de homens que se congregava no salão para tomar o café da manhã. Encontrou-se inconscientemente procurando Arthur, como se ver seu rosto pudesse lhe dar essa coragem que tanto necessitava. Ao não encontrá-lo sentado junto aos homens de seu irmão, disse que não havia por que preocupar-se. Ainda era cedo. A noite anterior Arthur tinha enviado a uma criada para lhe dizer que já estava tudo arrumado e que não tinha que preocupar-se.
«Não tenho que me preocupar.» Como se tal coisa fosse possível depois do que tinha acontecido. Pode ser que sua considerada mensagem não servisse para aliviar sua noite sem descanso, mas o apreciou igualmente. Ao menos se economizava o temor de que um dos dois estivesse morto ou em alguma masmorra desconhecida.
Respirou profundamente, obrigou-se a erguer o peito e erguer o queixo e entrou no salão. As pernas mal podiam sustentar do tanto que tremiam e seu coração batia contra a caixa torácica como as asas de um pássaro. Todos seus instintos clamavam por que fugisse, mas obrigou a seus pés a seguir adiante.
Sangue de reis corria por suas veias. Era uma MacDougall, não uma covarde. Apesar de que não quisesse mais que ocultar-se em sua câmara, fazer um novelo com seu corpo e pretender que nada disso tinha ocorrido o certo era que sim tinha ocorrido. Como mínimo devia uma desculpa a sir Hugh. Quando pensava no que tinha feito…
Revolvia-lhe o estômago. A vergonha a alagava. Não por sucumbir aos encantos de Arthur, já que não se envergonhava da paixão que existia entre eles, mas sim por falhar a sua família e aproveitar-se horrivelmente de sir Hugh no processo. Ele não se merecia aquilo. O orgulhoso cavalheiro não tinha feito mais que tratá-la com carinho. Não era culpa dela que estivesse apaixonada por outro homem.
«Apaixonada.» Inclusive sopesando a enorme gravidade do que tinha feito, um pequeno raio de felicidade aparecia por trás das nuvens de desesperança. Amava-o. E também ela significava algo para ele. Tinha que ser assim.
Mas esse pequeno lapso de alegria em seu coração só servia para fazê-la sentir mais culpada. Ao encontrar o amor tinha falhado a sua família. Como poderia chegar a perdoar-se? Tinha arruinado tudo. Seu pai e seu clã completo ficavam sozinhos ante o Robert Bruce. Depois do que sir Hugh havia presenciado na noite anterior não teria aliança.
Acenderam-lhe as bochechas ao recordar, ao considerar o que devia pensar aquele homem dela. «Puta. Rameira.»
Quase esperava ouvir vaias ao atravessar o salão para chegar até o assento do estrado junto ao homem ao que tinha ofendido. Mas sua entrada não causou nenhum comentário fora do habitual. O conde e a condessa a receberam com gentilezas usuais, igual fez seu filho quando tomou assento junto a ele.
Embora cada bocado que dava piorasse o enjôo que lhe punha o estômago de reverso, tinha que obrigar-se a comer. À medida que avançava a comida, sua ansiedade não fazia mais que aumentar. O breve intervalo de bom humor que entreviu em sir Hugh no dia anterior tinha desaparecido, algo não muito surpreendente. Estava sentado junto a ela completamente rígido, muito orgulhoso e imbuído do código de cavalaria para ignorá-la completamente, mas muito perto de fazê-lo. Agradeceu a presença da irmã do Hugh do outro lado da mesa e do ajudante do Ross a seu lado, que rompiam os incômodos momentos de silêncio.
Anna era consciente de que tinha que dizer algo, mas não sabia como tirar o tema em um entorno tão público. Seguia esperando que chegasse o momento oportuno quando sir Hugh se levantou da mesa e se desculpou para ausentar-se.
—Espere! —exclamou Anna, advertindo que vários olhos se voltavam em sua direção e que talvez tivesse falado muito alto.
Sir Hugh baixou o olhar para olhá-la e lhe dedicou toda sua atenção pela primeira vez. Anna procurava não morrer de vergonha enquanto ele esperava a que se pronunciasse.
—Eu… — disse o primeiro que veio à cabeça, desejando tê-lo feito antes, quando outros não prestavam atenção ao que dizia de maneira tão óbvia — Faz uma manhã estupenda. Se não estiver muito ocupado, pensei que poderiam me mostrar os arredores do castelo, como prometera.
Não lhe tinha feito tal promessa e se o fizesse saber, deixando clara sua pretensão de ficar a sós com ele, teria recebido o que merecia. Sir Hugh a olhou nos olhos e Anna por um momento pensou que se negaria a fazê-lo, mas ao que parecia puderam mais suas sensibilidades cavalheirescas. Fez uma reverência e lhe tendeu a mão.
—Será todo um prazer, milady.
Tal e como tinha feito poucas, mas significativas horas antes, permitiu que a acompanhasse ao sair do salão. Se o incomodava as falações de curiosidade que lhes seguiram não o mostrou em nenhum momento. Nessa ocasião, ao chegar ao final do corredor, conduziu-a ao exterior, ao pátio de armas. Havia um monte de gente daqui para lá: soldados praticando e protegendo as entradas, serventes atendendo a suas obrigações e um fluxo contínuo de homens passando através das portas do castelo, mas ninguém lhes prestava muita atenção.
—Há algo em particular que deseje ver? —perguntou ele.
Para ouvir a secura de sua voz o olhou de esguelha sob o véu de suas pestanas. Ele sabia que se tratava de uma desculpa, e das más. Anna negou com a cabeça.
—Sinto muito. Tinha que falar contigo —disse detendo-se para olhá-lo bem nos olhos — Devo me desculpar pelo ocorrido na noite passada. —Ao ver que franzia mais o cenho lhe falharam os nervos. Mas tinha que fazê-lo. Machucava a mão de apertar tanto os punhos. Não era capaz de falar disso com calma, de maneira que explodiu e soltou — Não posso oferecer mais desculpa pra dizer quanto sinto.
Sir Hugh ficou olhando-a nos olhos durante um momento e logo assentiu. Anna pensou que daria a volta e a deixaria ali, mas surpreendentemente a levou até um lugar afastado da fortificação de onde podiam ver muros longínquos e a cidade do Nairn ao fundo. Fazia vento e teve que acomodar atrás da orelha uma mecha de cabelo rebelde. Mas depois dessa noite de escuridão o resplendor do sol sobre seu rosto era rejuvenescedor.
—Ama-o?
Anna ficou petrificada. Não sabia o que esperava que dissesse, mas certamente isso não. Sir Hugh não parecia um homem que outorgasse muito valor nem desse muito crédito ao amor romântico. Parecia muito prático e frio para tudo isso. Mas merecia saber a verdade.
—Sim - disse em voz baixa.
—Mas teriam casado comigo para conseguir mais homens para seu pai?
Tal e como disse, de repente parecia que aquilo estivesse mal. Embora o matrimônio e a obrigação fossem parceiros, era o amor o que importava menos.
—Sim - disse Anna, sentindo que o desespero de sua situação cavalgava sobre seu peito. Apelou a seus sentimentos para que a compreendesse — Não entende? A única maneira de lutar contra os rebeldes é unir forças. Se nossos clãs se unirem poderemos derrotar ao usurpador. Somente nos arriscamos à derrota.
Por sua reação não pareceu que suas palavras tivessem influência alguma nele. A expressão de seu rosto permanecia severa e implacável. Era estranho. Agora que já não havia esperança de um compromisso entre ambos, todo o medo e o nervosismo de Anna pareciam desaparecer.
—Não pode absolver de toda culpa, lady Anna. —Ela o olhou inquisitivamente, protegendo os olhos do sol para lhe ver melhor. Sua boca se torceu em uma estranha careta — Meu pai não tinha intenção alguma de enviar homens ao Lorn.
Ficou sem respiração pela surpresa.
—Mas o compromisso… Permitiram que acreditasse que… — Hugh Ross encolheu os ombros como se não lhe importasse nada. Um arrebatamento de cólera penetrou através do sentimento de culpa de Anna — E quando me pensava contar isso?
—Teria-na informado com tempo suficiente.
—Depois de que anunciássemos nosso compromisso?
Ele se enfrentou à acusação de seus olhos sem alterar-se.
—Talvez.
—Mas por quê?
Pareceu interpretar mal sua pergunta a propósito.
—Não temos homens de sobra. Bruce virá também por nós e quando o fizer… —disse com palavras que se levava o vento — O rei Robert é muito poderoso. Nossos aliados nos abandonaram. Os Comyn, os MacDowell, os ingleses. Meu pai tem muito que perder.
Sir Hugh ficou com o olhar perdido além dos muros, para o pequeno reino que se estendia a seus pés. Tratava-se de um movimento revelador e teve que conter o fôlego ante o que significava. Muito que perder. Seu pai não pensava arriscar.
—Não —disse Anna dando um passo atrás — Não podem! Seu pai não pode render-se. Bruce o assassinará pelo que fez a sua esposa e a sua filha.
Falava sem pensar, e estava claro que o que fez seu pai quando violou o santuário e entregou às mulheres de Bruce aos ingleses não era algo que sir Hugh quisesse que o recordassem. Pela primeira vez, Anna viu algo um pouco parecido à vergonha em suas orgulhosas feições.
—Bruce prometeu perdoar a todos nobres que estavam contra ele que se renderem.
—E acreditam na palavra de um traidor? De verdade confiam em que o rei Hood perdoará a seu pai e aos sediciosos de Ross e Moray? Apenas se consumaram os fogos da perseguição ao Buchan.
Não discutiu com ela. Mas apertava fortemente a mandíbula quando disse:
—O que outra opção fica? As voltas mudaram a favor de Bruce. O povo pensa que é um herói, um guerreiro que derrotou aos ingleses. Render-se pode ser a única maneira de sobreviver. Meu pai está disposto a morrer se isso significar a continuidade do clã.
A cabeça de Anna dava voltas. Jamais, nem em suas mais escuras expectativas, teria imaginado que Ross se renderia. O que significaria isso para seu clã? Faria seu pai o mesmo? Não, seu pai jamais se renderia. E pela primeira vez Anna se precaveu de quão caro poderia lhes custar.
Preocupada com o que sir Hugh acabava de lhe confiar, Anna não encontrava muito consolo em saber que sua conduta não era reprovável.
—Obrigado por me contar isso.
Ele a olhou com atenção.
—O que fará?
—Lutar - respondeu.
Embora fosse sozinhos. Que mais podiam fazer?
—Casará com o Campbell?
Anna se ruborizou. Depois do que tinha passado a noite anterior era algo natural assumir que… Mas não tinham tido oportunidade de discutir seu futuro. Ele pareceu compreender seu silêncio.
—Conhecem-no muito bem?
O tom de advertência de sua voz despertou aquela vozinha de sua consciência que trabalhou em excesso em sossegar.
—Sir Arthur chegou ao Dunstaffnage faz um mês junto a seu irmão em resposta à chamada que fez meu pai aos cavalheiros e mercenários.
Aquilo pareceu lhe confirmar algo.
—Há algo estranho nele. Algo que não se enquadra. Não é quem parece ser.
Anna saltou em sua defesa imediatamente, pensando que sir Hugh se fixou nas incomuns habilidades de Arthur.
—É muito reservado —disse — custa a comunicar-se.
Sir Hugh a olhou inquisitivamente, como se quisesse acrescentar algo, mas em vez disso simplesmente assentiu. Foi um alívio que dissesse que se encarregaria de explicar tudo a seus pais e seus irmãos sem fazer menção alguma à situação comprometedora em que a tinha encontrado, acordando dizer que não combinavam um para o outro.
Para quando a acompanhou de novo até a torre Anna se sentia muito mais relaxada. Uma vez mitigada parte da culpa, permitiu-se viver um pouco da felicidade que supunha descobrir que o homem ao que amava tinha sentimentos por ela. Não podia esperar para lhe ver e falar com ele. Surpreendentemente, dadas as intimidades que tinham compartilhado, não estava envergonhada. Inclusive nesse momento, depois de todo o acontecido, parecia o correto.
Estava a ponto de subir o primeiro dos degraus que fossem do pátio à torre quando olhou à esquerda e viu que sir Arthur saía dos barracões. O coração lhe deu um tombo. Sorriu e deu um passo para ele de maneira instintiva, mas logo se deteve de repente. Levava a armadura e estava claro que se preparava para praticar, mas podia entrever seu rosto o suficiente sob a viseira do elmo.
Não era que esperasse que corresse pelo pátio a seu encontro, ao menos não com sir Hugh ainda a seu lado. Mas um olhar de carinho seria bom. Algo em comparação com esse rosto de arrependimento, sim, inclusive de vergonha, que escurecia seus bonitos traços. A alegria que fez saltar seu coração se consumiu e o devolveu ao chão de repente das alturas. Advertiu como sir Hugh ficava em guarda ao conscientizar do que ela tinha visto.
Arthur desviou o olhar para o outro cavalheiro. Podia sentir a animosidade acesa entre ambos. Foi Arthur quem se retirou primeiro. Saudou-os com uma inclinação da cabeça e se dirigiu a reunir-se com o resto dos guerreiros. Anna dizia a si mesma que não devia estar decepcionada, que não tinha que exagerar sua reação. Já falariam mais tarde. Em particular. Provavelmente o que adivinhava em seus olhos não era mais que imaginações.
Mas as seguintes palavras de sir Hugh lhe disseram o contrário.
—Se a coisa não for como espera, lady Anna, eu estarei aqui.
Um homem com quem podia contar.
Rezava por que Arthur também o fosse.
Capítulo 16
Demoraram mais do que Arthur pensava em sair do castelo de Auldearn. Alan MacDougall se encerrou em sua câmara com o conde, seu conselheiro e sir Hugh durante três dias mais, no que Arthur assumiu como uma tentativa de persuadir ao Ross para unir forças, apesar da ausência de compromisso. Felizmente, os esforços do Alan foram úteis. Dado que não tinham lhe contado os detalhes, Arthur não pôde estar seguro das razões do conde, mas o rechaço era um bom augúrio para o rei Robert. Passaria a informação assim que tivesse oportunidade de fazê-lo. Não acreditava que eles tivessem irradiado nenhuma mensagem, mas revisaria os pertences do Alan e de Anna para assegurar-se disso, assim que tivesse ocasião.
Saíram de Auldearn ao amanhecer, fazendo o mesmo trajeto de na semana anterior em sentido contrário e forçando o ritmo o primeiro dia para chegar a salvo mais à frente do castelo. Os homens, contagiados do humor de seu senhor e sua dama, pareciam perceber que as coisas não tinham ido como esperavam e a nuvem do fracasso se abatia sobre as cabeças dos viajantes. Levava uma predisposição algo sombria, por não dizer decididamente mal-humorada.
Arthur sabia que teria que sentir-se aliviado e satisfeito de ter completado sua missão. Ross e Lorn não uniriam forças. O fracasso dos MacDougall serviria como incentivo para aproximar de Bruce um passado mais para a vitória e a Arthur um passado mais para a destruição de seu inimigo. Assegurar-se de que John de Lorn pagava pelo que lhe tinha feito a seu pai era o que mais ansiava no mundo. Não era certo? Assim devia ser, maldita seja. Mas temia que aquilo lhe custasse muito mais do que pensou em um primeiro momento.
Coberto atrás de seu elmo podia ceder à tentação de olhá-la. De novo essa sensação, molesta e penetrante. Não era só consciência o que o remoia, a não ser algo mais. A dor que aguilhoava seu peito quando a olhava era virtualmente insuportável. Mas não fazê-lo parecia mais doloroso ainda.
Anna cavalgava na frente dele, junto a seu irmão e a criada, com o que somente oferecia seu perfil ao voltar-se. Arthur não precisava olhá-la para saber que o silêncio a respeito do ocorrido entre ambos lhe doía. E muito. Deus Santo, o que tinha feito? E o que era mais importante, que demônios faria a respeito? Agora que estavam longe do castelo já não podia evitar o tema nem evitá-la por muito mais tempo. Sabia o que devia fazer. Não precisava ser um cavalheiro para conscientizar de que depois do perto que estivera de lhe arrebatar a virgindade, a escassos centímetros literalmente, deveria a pedir em matrimônio. Não havia dúvida de que era o que ela esperava. E o que cabia esperar. Isso faria um homem com honra. Mas esses escassos centímetros lhe serviam de suficiente desculpa para não fazê-lo. A batalha que livrava em seu interior era cada vez mais cruel. Todos seus instintos exigiam que se aproximasse dela, que cedesse aos sentimentos e, por que não falar, maldição, às emoções que brigavam em seu interior. Mas a outra parte de seu ser, a racional, puxava-o para evitar maiores males.
Embora ele mesmo quisesse esquecer-se disso em algumas ocasiões, o certo era que a enganava. E estava claro como a água que não podia lhe dizer a verdade. Seu dever e sua lealdade pertenciam ao Bruce. Nenhum dos sentimentos que albergasse poderia mudar aquilo. Estavam em lados opostos de uma rixa a ponto de desatar-se. Ao final ela descobriria sua filiação verdadeira e se inteiraria de que a única razão que o tinha levado ao Dunstaffnage fosse espiar e propiciar a destruição de sua família. Sabia que pedi-la em matrimônio só serviria para que a traição final tivesse conseqüências muito piores.
Era uma situação impossível e tinha consciência de tê-la criado ele mesmo. Teria que ter-se afastado dela, mas suas boas intenções ficaram transbordadas por seu sorriso, vitalidade, doçura e amabilidade. Quando olhava o interior desses grandes olhos azuis começava a ter saudades de algo que nem sequer sabia que queria. Gostava de estar sozinho, maldita seja! Parecia mais fácil e muitíssimo menos chato. Entretanto Anna o fazia ansiar algo que ele não poderia permitir-se oferecer, à vista do que estava por chegar. E fazê-la sofrer desse modo, não ser capaz de fazer algo para mudar, partia-lhe a alma. Cada vez lhe custava mais concentrar-se em suas tarefas.
Embora não se voltasse para olhá-lo, Arthur sabia que ela era tão consciente de sua presença como ele mesmo. Advertiu a maneira em que seus ombros ficavam tensos quando situou seu cavalo atrás deles. Richard e Alex partiam em cabeça explorando o terreno, de modo que Arthur ficou ao fim para assegurar-se de que ninguém os seguia. Aproximava-se o final da primeira jornada da viagem e tinham que proceder com especial cautela agora que se aproximavam do castelo do Urquhart, lugar em que tinham aparecido os homens de Bruce quando foram para o castelo do Ross. Novamente, teriam que fazer uma boa volta para o oeste do caminho para evitar as patrulhas da fortaleza «inimiga».
—Pegue milady —ouviu que dizia sua criada — Lady Euphemia pediu ao cozinheiro que as prepare especialmente para ti em vista que gostas.
A anciã tentou enrolá-la com os doces, mas Anna negou com a cabeça em uma pobre tentativa de sorriso que lhe cravou outra pontada no coração.
—Não, obrigado, não tenho fome.
A criada se zangou, franziu os lábios e mastigou a delícia de amêndoas sem entusiasmo algum. Mal teve acabado de mastigar quando voltou para a carga e tirou de sua bolsa o que parecia um pequeno bolo de carne.
—O que me dizem de um pastezinho de cevada com cordeiro? —disse, cheirando-o teatralmente — Cheira divinamente. E ainda está quente.
Anna voltou a negar com a cabeça.
—Coma se quiser. Eu comerei quando nos detivermos.
A criada murmurou para si.
—Tem que comer algo, milady - urgiu entre murmúrios, ao mesmo tempo em que fulminava Arthur com o olhar.
Este apertou a mandíbula, adivinhando a quem culpava a criada pela falta de apetite de sua senhora.
—Comerei - disse Anna para apaziguá-la. Chamou a seu irmão, que cavalgava um pouco mais adiante — Quando pararemos para passar a noite, irmão?
—Logo, espero - respondeu Alan olhando a seu redor e fazendo gestos a Arthur ao ver que tinha retornado. Este se armou de valor e fez como lhe pediu, levantando o visor de seu elmo ao passar entre o punhado de cavaleiros que lhes separavam — Viu algo suspeito?
Arthur negou com a cabeça.
—Por agora não. Estaremos seguros quando voltarem Richard e Alex, mas se não ter nada extraordinário, poderemos nos deter o anoitecer como tínhamos previsto.
—Não voltaremos para lago em que acampamos a vez anterior?
Era ela quem falava. Arthur voltou o olhar lentamente, incapaz de evitá-la por mais tempo. Mas não estava preparado para o calor abrasador que lhe atravessaria ao encontrar-se com seu olhar. Ele, que apenas se movia quando uma flecha se afundava no mais profundo de seu ombro, quando uma espada lhe abria as vísceras nem nas numerosas ocasiões em que não tinha apanhado a adaga de seu irmão com suficiente presteza, sobressaltou-se ao ver a tristeza e a pergunta sem formular de seus olhos.
Parecia fatigada, de uma fragilidade insofrível. Umas pequenas linhas sulcavam as comissuras de seus olhos e sua pele estava muito mais pálida do normal. Apertou os dentes, lutando contra a desesperada necessidade que sentia de dar o que ela queria.
«Peça-a em matrimônio.»
Maldição, não podia fazê-lo. Não faria a não ser piorar as coisas.
—Não, milady —respondeu sem alterar a voz — Será mais seguro que não voltemos sobre nossos passos. Acamparemos em lugares diferentes cada noite. Há uma cascata na floresta dos pagamentos do Dhivach, ao sudeste do castelo, onde começa a ravina. Faremos pernoite ali.
Anna assentiu com cara de querer acrescentar algo, mas consciente de que não estavam sozinhos.
—Falta muito?
—Cinco ou seis quilômetros. Deveríamos chegar antes do anoitecer.
—Eu… — Anna deixou a frase pela metade. Não obstante, o modo em que o olhava era desencorajador — Obrigado.
Quando Arthur se decidiu a afastar o olhar se surpreendeu comprovar que um dos homens do Alan se situava atrás dele. Ficou circunspeto, mas estava muito imerso em sua própria confusão para atender à advertência.
Ao que parecia um das arcas de Anna não estava bem presa e caiu do carro. Arthur agradeceu a interrupção quando viu que Anna e sua criada fossem ao fim da fila para assegurar-se de não perder nada. Mas era consciente de que não poderia postergar a inevitável discussão por muito mais tempo. Isso ficou assegurado certamente pelas palavras de Alan antes de partir para ver o Richard e Alex.
—Não sei que diabos passou em Auldearn, Campbell, mas minha irmã está triste. —O cavalheiro cravou o olhar em Arthur com uns gélidos olhos azuis que não mostravam compaixão alguma. Depois de tudo, era filho de seu pai — Arrume ou me encarregarei eu de fazê-lo.
Arthur franziu o cenho até adotar uma expressão sombria. Não se incomodou em pretender que não sabia ao que se referia. A ameaça não lhe inquietava. O que lhe inquietava era que não podia fazer o que o irmão de Anna lhe pedia. Nada poderia arrumá-lo.
—Por que está me evitando?
Arthur, assombrado, ficou em pé de repente, fazendo saltar a armadilha que estava preparando. Tinha o surpreendido. Algo que Anna apostava que não ocorria muito freqüentemente. Talvez essa confusão que ela percebeu em seus olhos não foi imaginação. Olhava-a com uma saudade mal reprimida, mas algo o fazia conter-se.
O desengano que sentiu na primeira manhã não fazia mais que piorar a cada dia que passava. Ainda não tinha ido a seu encontro, por não falar de oferta de matrimônio alguma. Anna queria convencer-se de que simplesmente esperava para falar com seu pai, mas isso não explicava por que fugia dela.
—Está me seguindo outra vez, Anna?
Se tentava distrair ficando à defensiva, não funcionaria.
—Não sei como poderia dizer que te sigo quando o acampamento está a poucos passos daqui - disse assinalando os arranjos e cordas — Vi que tirava a armadilha da bolsa e supus que não iria muito longe.
Inspecionou suas feições, meio escondida entre as sombras. Ao menos ficava uma hora de luz solar, mas sob o espesso manto das árvores da floresta parecia quase noite fechada. Anna deu um passo para ele e estreitou o vão que os separava. Arthur franziu o cenho e todo seu corpo ficou rígido. Anna percebeu de que lhe moviam as aletas do nariz, como se o incomodasse tê-la tão perto. As lágrimas foram a seus olhos. Por que se comportava desse modo? Acaso era tão desagradável?
—Ides responder-me? —disse com uma voz quebrada pela emoção e a incerteza dos últimos dias. Queria pôr a mão sobre o peito para tranqüilizar-se, mas temia que ele retrocedesse e isso a fizesse pedaços — Acaso não mereço uma explicação?
Arthur suspirou e se separou dela com o pretexto de passar os dedos entre os cabelos. Embora ainda levasse posta a armadura, tirou o elmo e seu cabelo castanho escuro caía em suaves ondas sobre a borda da cota de malha.
—Sim, moça. Merece uma explicação. Tinha intenção de falar contigo uma vez que tivéssemos comido.
Não sabia se acreditava, mas o deixou continuar. Ela já havia dito suficiente. Era a ele a quem correspondia falar.
—O que ocorreu foi - Formoso? Incrível? Perfeito? pensou Anna—… desafortunado. —A Anna parou o coração. Não era a palavra que esperava — Me envergonho de meu comportamento —disse Arthur com palavras que pareciam próprias do cavalheiro mais contido da corte — Jamais devia permitir que chegasse tão longe.
Anna o deteve em seco, incapaz de resistir por mais tempo o tom distante e o arrependimento de sua voz.
—Por que fala assim? Por que atua como se não significasse nada? —Arthur esticou a mandíbula mais ainda. A palpitação de seus batimentos no pescoço não pressagiava nada bom. Tentou afastar-se de Anna, mas ela o agarrou pelo braço. O peito lhe ardia — Significou algo, Arthur? —Este a olhou nos olhos com uma intensidade que queimava. Anna aspirou profunda e entrecortadamente através de sua oprimida garganta — Para mim sim.
—Anna… - Parecia estar liberando algum tipo de guerra interior. Anna notava a rigidez de seus músculos sob seus próprios dedos. Seu poderoso corpo parecia irradiar tensão — por que põem as coisas tão difíceis?
—Eu? És tu quem põe as coisas difíceis. É uma pergunta muito simples. Ou significou algo para ti ou não significou nada.
Manteve o olhar, negando-se a lhe permitir partir sem que respondesse algo. Arthur tinha o rosto desfigurado, como se o estivesse torturando.
—Não entendes.
—Têm razão. Não entendo. Poderia explicar isso?
- Somos completamente inadequados um para o outro.
—Não posso. —Olhou-a com dureza — É que não vê que jamais funcionaria?
«Meu Deus!» Pareceu engasgar-se com seu próprio coração quando percebeu o que acontecia. «Não pensa me propor matrimônio.» Como era possível que tivesse interpretado tão mal a situação? Não! Não o tinha feito. Havia algo mais que lhe escapava.
—Por que não?
—Somos completamente inadequados um para o outro. A família é tudo para ti. E para mim? Meus pais morreram quando era um pirralho. Meus irmãos levam anos lutando em lados distintos. Não sei nada a respeito de família.
—Eu posso lhes ensinar…
—Não quero que me ensinem - repôs isso Arthur, cortando-a com raiva — Eu gosto de estar sozinho. E você… —disse com um gesto da mão — Tenho certeza que não estivestes sozinha nem um dia em sua vida. Merece estar rodeada de família e amigos, com um marido que lhe adore e um monte de crianças puxando suas saias. Não me diga que não quer isso, porque sei que é isso o que quer.
Era certo que queria isso, mas com ele.
—Não quer ter crianças?
Sua boca empalideceu como se a pergunta, pensar nisso tão sequer, fosse doloroso.
—Não entende a situação.
—Eu? Paraste a pensar que talvez não se trate de que gosta de estar sozinho, mas sim de que alguma vez estivera com as pessoas adequadas? —disse fazendo uma pausa para que o considerasse. Compreendia as razões que lhe levavam a solidão, mas suspeitava que seria diferente em caso de ter uma família que o amasse, que o aceitasse — Se sentires algo por mim, o resto não tem importância. —O rosto de Arthur se mostrava duro como o granito, mas ela seguiu pressionando — Sente algo por mim, Arthur?
Manteve o olhar, desafiando-o a que mentisse. E Arthur parecia querer fazer, mas ao final o admitiu.
—Sim. Mas isso não importa.
Sentia algo por ela. Não tinha errado. Negou com a cabeça.
—Isso é tudo o que importa.
—Não insista, Anna. Acredite-me quando digo que não funcionaria. Jamais poderia lhes dar o que necessita. Nunca poderia te fazer feliz.
A frustração e a raiva buliram em seu interior.
—Como te atreve a presumir que conhece minha mente melhor que eu? Eu sei exatamente o que quero. Depois do que passou como não pode compreender que é o único homem que pode me fazer feliz? Não te dá conta de que te amo?
Sua declaração de amor foi tão inesperada para ela como parecia ser para ele. Fechou a boca de repente, mas era muito tarde. Suas palavras seguiam ressonando no repentino silêncio. Arthur ficou completamente quieto, com uma expressão não muito diferente de quem tivesse recebido uma flechada no peito. Não se podia dizer que fosse a reação que ela esperava. Não esperava que respondesse a sua declaração de amor. Em realidade não. Não nesse momento, ao menos. Mas tampouco esperava encontrar-se com o silêncio. Um silêncio que lhe rompia o coração lenta e cruelmente.
«Amo-te» As palavras zumbiam em seus ouvidos. Como um palpite. Uma chamada. Tentava-o, caramba, tentava-o. Arthur permaneceu quieto como uma pedra, sem permitir o luxo de acreditar. Não podia fazer. Porque se o fizesse, era possível que encontrasse a felicidade. Uma felicidade maior da que tinha desfrutado na vida.
Não dizia a sério. Estava confusa. Anna MacDougall entregava seu coração a todos. Isso era parte do que a fazia tão irresistível. Negou com a cabeça, como se tentasse convencer a si mesmo.
—Não sabes o que diz. Não podem me amar. Nem sequer me conhece.
—Como podem dizer isso? Pois claro que lhes conheço.
—Há coisas sobre mim que se soubessem…
Não podia dizer nada mais. Já havia dito muito. Suas habilidades perceptivas eram excepcionais. Anna franziu os lábios e ele reconheceu o brilho teimoso de seu olhar.
—Acreditava que já tínhamos passado por isso. Suas faculdades são um dom, e se demonstraram extraordinariamente úteis em mais de uma ocasião. —Ele não falava de suas habilidades, mas sim do fato de ser um espião ao serviço de Bruce. O fato de que não havia pessoa no mundo a quem odiasse mais que ao pai de Anna e que tinha esperado quatorze anos para destruí-lo. Mas dificilmente poderia lhe contar a verdade — Sei tudo aquilo que importa sobre você - continuou — Sei que prefere observar e escutar a falar. Que não gosta de chamar a atenção e prefere estar em um segundo plano. Sei que conta com habilidades valiosas que prefere ocultar porque acredita que o faz diferente. Sei que está convencido de que é diferente e por isso não necessita a ninguém, de modo que procura espantar aos outros antes que se aproximem de ti. Sei que passou a maior parte de sua vida no campo de batalha, mas que pode dirigir a pluma de maneira tão efetiva quanto uma espada. —deteve-se o tempo preciso para tomar fôlego. Ele teria que tê-la cortado, mas estava muito indisposto para falar — Sei que é inteligente e que têm um caráter tão forte como seu corpo. Sei que quando estou contigo me sinto segura. Que faz ver que nada lhes importa, mas que me defenderia com sua própria vida. Sei que um homem que sustenta em seus braços a um bebê e que mostra paciência com um cachorrinho que não tem feito mais em dar problemas tem um coração bondoso. —Anna baixou a voz até deixá-la quase em um sussurro, dissipada já toda sua ira — Sei que desde a primeira vez que me beijou senti que jamais teria outro homem para mim. Que quando ergo o olhar para olhar, vejo o rosto que quero ver durante o resto de minha vida. —Seus olhos, que brilhavam com lágrimas não derramadas, encontraram-se com os dele — Sei que é leal e honrado e que te importo, mas que há algo que o faz se conter.
«Jesus.» Era como se lhe desse um soco. Ninguém antes lhe havia dito nada parecido. O fazia sentir-se humilde. Comovia-lhe. Dava-lhe um medo de morte.
Tinha visto muito de sua pessoa. Não significava só um perigo para sua missão, mas também para ele em formas que jamais tinha imaginado. Endureceu a mandíbula e o coração.
—Vê o que quer ver, Anna, não a realidade. —A guerra. Seu pai. Ele. Estava cega diante das faltas daqueles aos que professava amor — Mas as garotinhas que acreditam nos contos de fadas acabam desenganadas.
—Não faça isso —sussurrou Anna — Não tente me espantar.
Isso era o que fazia. O que sempre fazia. E embora pela primeira vez não desejasse fazer, era o que tinha que fazer. Pelo próprio bem de Anna. Agarrou-a pelo braço com intenção de sacudi-la e fazê-la entrar em razão, mas foi um engano. Tocá-la não fez mais que avivar o fogo de suas emoções até quase lhe fazer perder o controle.
—Então não atue apoiada em contos infantis. Estamos em meio de uma maldita guerra. Bruce está a ponto de cair com todo seu exército sobre sua cabeça e mesmo assim quer planejar seu futuro. Não há futuro, Anna. Somente existe o dia de hoje. Diabos, quem sabe se terá um lar daqui a um mês.
Sobressaltou-se como se a tivesse golpeado.
—Acredita que não sou consciente disso? —Anna sossegou um soluço na garganta. Seus preciosos olhos azuis se nublaram com lágrimas, atiçando o fogo que consumia seu peito — por que pensa que acudi ao Ross? Sei perfeitamente o que está em jogo. Mas não pude fazer. Não podia fazer por causa de ti.
—Seu pai jamais devia ter te pedido isso - repôs.
A expressão de assombro de Anna fez que Arthur desejasse poder retirar o dito. Tinha a perspectiva de uma menina para seu pai, a do cavalheiro perfeito que não podia fazer nada mal. Outra dessas ilusões que ele ajudaria a destruir.
—Não me pediu isso. Foi minha idéia. Fala de guerra e de incerteza, mas posso lhes dizer uma coisa certa. Se não arriscar, se seguir espantando as pessoas de seu lado, assegurará sua solidão. É isso o que quer?
Apertava a mandíbula com tanta força que lhe doíam os dentes.
—Sim.
«Maldita seja.»
—Muito bem. Porque isso é exatamente o que conseguirá - disse ela; as lágrimas rodavam por suas bochechas — Não sei por que faz isto, Arthur Campbell, mas é um covarde.
Um acesso de raiva subiu por seu corpo. Não era um covarde. Somente tentava fazer o correto. Mas não lhe deixava fazer. Não fazia mais que pressioná-lo para voltá-lo louco com uns sentimentos que não lhe pertenciam. Não podia pensar bem. Não queria mais que tomá-la entre seus braços e beijá-la até que cessasse o martelar que sentia na cabeça, e no coração.
Possivelmente isso tivesse feito se pudesse, mas não teve a oportunidade.
—Que diabos está acontecendo aqui?
Arthur voltou com a cabeça ainda lhe dando voltas, ao mesmo tempo em que Alan aparecia no claro. Amaldiçoou. Estava tão absorto em Anna que não ouviu o mínimo ruído. Que demônios ocorria? Estava fosse de controle. Tinha que tomar as rédeas de suas emoções. Seus sentidos estavam mesclados e confusos. Distraía-se muito. Estava tão confuso… Somente uma vez antes havia sentido de tal modo: o dia em que morreu seu pai. Estava perdendo os papéis.
Tanto que não se preparou para o que vinha depois.
—Deixe-a em paz - vociferou Alan, arrancando-a de seus braços ao mesmo tempo em que lançava o primeiro murro direto a sua mandíbula.
A cabeça de Arthur se propulsou para trás ao receber o golpe em cheio. Uma explosão de dor se apoderou dele. Ficou cego por um resplendor branco.
Anna gritou aterrada.
—Alan, por favor! Não é o que parece!
Mas seu irmão não a escutava. Como prova de sua eficiência com ambos os punhos, alcançou Arthur do outro lado com outro golpe. Depois no ventre. Logo no flanco.
—Vos disse que o arrumasse maldita seja. Não que a fizesse chorar. Que demônios lhe têm feito?
Arthur não tentava defender-se. Não porque não pudesse. Era evidente que MacDougall tinha um braço como o martelo de um ferreiro, mas Arthur tinha aprendido suficientes truques do melhor lutador corpo a corpo das Highlands e era capaz de tombá-lo em poucos segundos. Não se defendia porque merecia o castigo. Diabos, merecia muito mais pelo que estava a ponto de fazer.
—Para! Para! —choramingou Anna com uma voz a borda da histeria — Está lhe fazendo mal.
Alan o arrastou pelo pescoço e o empurrou com força contra uma árvore.
—O que lhe têm feito? —perguntou fulminando a sua irmã com o olhar — Será melhor que um dos dois me diga que demônios passa aqui. —Nenhum deles respondeu. Alan olhava alternadamente a um e outro com o rosto aceso pela raiva — Não me tomem por um maldito idiota! Não pensem que acreditei nem por um momento que Ross decidiu dar para trás de repente! —disse olhando a Anna enquanto seguia apertando fortemente o pescoço de Arthur com a mão — O que passou em Auldearn? É que este filho de cadela te tocou, Anna? —perguntou lhe apertando o pescoço — Te tocou? —insistiu empurrando com mais força — O fez?
Arthur sentia que o nó se esticava em torno de sua garganta e não era pela mão do MacDougall. Não. Sabia que teria que responder pelo que esteve a ponto de acontecer em Auldearn.
— O solte! —Alan advertiu o pânico na voz de Anna. Ela tentava lhe puxar o braço, mas sem obter resultado — Sim, mas não é o que pensa.
De fato, devia ser exatamente como o pensava.
—Maldito velhaco do demônio! —disse MacDougall estampando a cabeça de Arthur de novo contra a árvore — O matarei por isso.
Arthur não duvidava de suas intenções. Nem tampouco de sua capacidade para fazer. Mas não podia permitir. Estava a ponto de libertar-se quando ouviu um pequeno zumbido seguido por um suave vaio.
«Flecha.»
Seus sentidos se abriram em uma explosão de clarividência. Olhou por cima do ombro do MacDougall e viu a ponta de ferro sulcando o ar, apenas a um segundo de impactar no cangote do MacDougall. Arthur não pensou. Simplesmente reagiu. Golpeou para cima o braço do MacDougall com o antebraço em um perfeito movimento para libertar seu pescoço das garras dele e atrás disto enroscou sua perna ao redor do tornozelo para desequilibrá-lo. MacDougall caiu ao chão justo antes que a flecha impactasse na árvore com um som seco ao que logo seguiram os dilaceradores gritos de ataque.
Ouviu a exclamação de terror de Anna, mas não podia voltar para acalmá-la. O primeiro dos homens acabava de emergir de entre as árvores com a espada em alto. De novo a reação de Arthur foi instantânea. Jogou mão ao punho de sua adaga, extraiu-a de sua capa e a lançou. O atacante emitiu um gemido quando a folha deu com os poucos centímetros desprotegidos da pele de seu pescoço. Cambaleou-se e caiu ao chão.
Para quando o seguinte dos homens saltou sobre eles MacDougall já tinha tido tempo para entender o que acontecia e se pôs em pé. Desembainhou a espada, girou sobre si mesmo e a ergueu bem a tempo para repelir uma cutilada que lhe teria arrancado a cabeça.
«Anna.» Arthur desviou o olhar do assalto que estava por chegar justo o tempo suficiente para assegurar-se de que ela estava bem. Encontrou-a resguardada depois da árvore, com os olhos cheios de terror. O coração lhe acelerou ao conscientizar-se de quão vulnerável era e logo se paralisou quando se deu conta de quão vulnerável isso fazia a ele mesmo. Não podia permitir que lhe acontecesse nada. Tinha que protegê-la. Mataria a todos se fosse preciso. Seus olhares se encontraram só por um segundo. Mas a forma em que se olharam foi de uma intensidade inegável e brutal.
—Permaneçam abaixados - disse com voz pausada, a pesar do fluxo de sangue que corria por suas veias.
Arthur se situou frente a Anna, cotovelo com cotovelo com o MacDougall, quem seguia lutando com seu oponente, e recebeu com sua espada a avalanche de atacantes que saíam de entre as árvores. Uma vintena de homens. Talvez mais.
Não teve que esperar muito para encontrar-se com o primeiro deles. Pela primeira vez em quase dois anos, desde que se visse obrigado a abandonar os Guardiões das Highlands para infiltrar-se em campo inimigo, Arthur se deixou ir e lutou com toda a destreza e o frenesi que tão cuidadosamente mantinha ocultos. Tombou ao primeiro dos homens com um virulento movimento de espada, girou-se e aproveitou a inércia para derrubar ao seguinte.
Foram por ele com mais virulência. Mas não importava. Era como uma máquina de guerra que arrasava tudo o que saía a seu caminho. Três. Quatro. O ruído do metal sobre o metal atravessava o sombrio ar noturno, mesclando-se com os gemidos e os gritos da batalha. Esses sons tinham alertado aos homens do acampamento, que felizmente estava a poucos metros dali, e os soldados do MacDougall começaram a aparecer na pequena clareira, já envolto em uma escuridão absoluta. Mas os atacantes esperavam a chegada dos reforços. Em realidade o tinham planejado e aguardavam o momento. Saltavam das árvores à medida que eles abriam caminho por baixo e caíam sobre os despreparados homens do clã MacDougall.
—Vamos! —disse Arthur tentando lhes advertir — Disperse.
Se não se dispersavam os fariam pedaços com a facilidade que se cortam arenques de um barril. Mas essa foi toda a advertência que pôde fazer antes que os seguintes adversários distraíram sua atenção. Tinha a dois homens sobre ele. Dois homens com nasais, mantos obscurecidos e as características manchas de cinza negra nos rostos.
O pavor se instalou em seu estômago com o peso de uma pedra.
Os atacantes eram homens de Bruce. Pois claro que eram. Viu os corpos pulverizados no chão ante ele, homens que ele tinha matado, e veio um acesso de bílis à garganta. Jesus, no que estava pensando? Nem sequer pensava. O instinto de amparo para a Anna ultrapassava todo o resto. Mas era pior do que imaginava. Enquanto tentava incapacitar aos dois homens que lhe atacavam sem chegar a matá-los, um terceiro homem se uniu à refrega. Um homem que brandia duas espadas. Movia-se como um raio e foi a Arthur com uma ferocidade sem igual inclusive entre seus companheiros de elite dos Guardiões das Highlands.
Arthur se encontrou cara a cara na escuridão com LachlanMacRuairi e amaldiçoou para si.
Capítulo 17
Ocorreu tudo muito depressa. Em um momento tentava evitar que seu irmão assassinasse ao homem que amava e no seguinte estavam sendo atacados. Dizer que a situação era perigosa era pouco. De seu posto escondida entre as árvores, Anna se obrigava a respirar levianamente entre o estrepitoso pulsar de seu coração e observava com horror como aqueles homens caíam sobre eles como uma praga de gafanhotos. Pareciam que fossem centenas de inimigos contra só dois guerreiros.
Arthur parou os pés ao primeiro com tal superioridade que lhe pareceu algo bizarro. Mas então chegou o seguinte. E outro mais. Ficou olhando cheia de assombro como despachava sem esforço algum a todos quantos saíam a seu encontro. Sua destreza era tão extraordinária, mostrava tal superioridade, que parecia estar vendo outro homem. Tinha o espiado suficientes vezes enquanto praticava para reconhecer a diferença. Fazia que seu irmão, conhecido como um dos cavalheiros mais destros das Highlands parecesse um escudeiro. Arthur era mais rápido. Mais ágil quanto à técnica e movimentos. E o que era mais significativo, mais forte. Podia sentir como reverberava a terra com a força de seus golpes. Quando um de seus oponentes conseguia acertar com uma cutilada, o braço de Arthur apenas se movia ao bloqueá-lo e absorvia a força do impacto como se fosse nada. Seu braço… Os olhos lhe puseram como pratos. Era o braço direito.
Não entendia. Arthur era canhoto. Ao menos supunha que era, mas nesse momento, em somente observá-lo, sabia que estivera fingindo. Por que ocultaria algo assim? E por que não o tinha visto alguma vez antes lutar desse modo? Podia compreender os motivos para ocultar seus incomuns aguçados sentidos, mas não havia nada inapropriado em ter destreza no manejo da espada. Deus, poderia ser um dos cavalheiros mais venerados do reino se quisesse. Então por que não queria ser?
Mas essas perguntas se esfumaram de sua cabeça assim que viu a nova horda de atacantes que vinham de cima das árvores. Não cabia dúvida de que ao ver os corpos caídos de seus compatriotas tinham identificado a ameaça e se reuniam em torno de Arthur.
Anna reprimiu o grito de advertência, consciente de que não faria mais que lhe distrair. Mas tinha o coração em um punho. Dois homens. E um terceiro não muito longe deles.
De repente algo pareceu mudar em Arthur. Em lugar de frios e desumanos golpes mortais brandia a espada com menos intenção. Era quase como se seu objetivo tivesse mudado e não desejasse matá-los a não ser simplesmente repelir o ataque. Mas não tinha nenhum sentido. Tirou esse pensamento da cabeça. O que passava era que aqueles guerreiros estavam melhor treinados.
E era certo. Parecia difícil ver algo na penumbra. Levavam roupagens escuras e pareciam ter se sujado de fuligem a pele com algo…
Gelou-lhe o sangue ao recordar o ataque do ano anterior. Aqueles homens também levavam a pele suja. Seria possível que se tratasse dos espectros do exército fantasma de velhacos formado por Bruce, o homem que tinha instaurado o horror tanto nos corações da Escócia como da Inglaterra?
Seus piores temores se viram confirmados quando um terceiro homem desceu sobre Arthur como um cão do inferno. Em lugar do longo espadão de duas mãos que usavam os highlanders, este brandia duas espadas menores. Uma em cada mão.
Mas eram suas vestimentas as que a fizeram tremer com um terror que subia por todos seus ossos. Igual ao resto dos atacantes, levava um nasal escurecido e tinha sujado de fuligem sua pele com barro ou cinzas, mas o que a fez estremecer diante da lembrança era o resto de sua indumentária. Vestido de negro da cabeça aos pés, em lugar de cota de malha levava um peitilho de guerra de couro tachonado com peças de metal, perneiras de couro e uma manta envolta de maneira estranha. Justo como o homem que a tinha atacado no ano anterior, aquele rebelde de beleza absurda.
Esse homem era um deles. Anna sabia. O medo se transformou em pânico. Os conhecia por suas extraordinárias habilidades, por combater como demônios possuídos. «OH, Meu Deus, Arthur!» Sua respiração ficou detida na parte alta de seu peito ao ver que o atacante voava até ele com as espadas em alto a cada lado de sua cabeça. O tempo pareceu ir mais devagar. Arthur, ainda ocupando-se de um dos outros dois adversários, não poderia defender-se. Gelou-lhe o coração. O sangue. Arthur ia morrer.
Anna abriu a boca para gritar, mas no último momento Arthur golpeou a um dos homens que lhe atacavam com o punho de sua espada e pôde ergue-la a tempo para bloquear as duas folhas antes que lhe cruzasse o pescoço. O assaltante demoníaco e ele se encontraram cara a cara com as espadas engastadas sobre suas cabeças. O agressor tinha o impulso de vantagem já que caía das alturas, mas conseguiu repeli-lo fazendo uso de ambas as mãos. Embora Arthur lhe desse as costas, conseguiu distinguir o rosto de sua oponente graças à luz oferecida por um raio de lua. Tinha os olhos mais horripilantes que Anna jamais tivesse visto. Estremeceu. Pareciam brilhar na escuridão. Com essas escuras feições retorcidas pela raiva parecia um diabo recém saído do inferno, Lúcifer em pessoa. Uma difusa lembrança foi a sua memória. Deus santo! Era possível que…? Anna abriu os olhos sem acreditar de tudo. Parecia-se com Lachlan MacRuairi, o marido de sua falecida tia Juliana. Fazia anos que não o via, mas conforme tinha ouvido estava com os rebeldes. Sua tia Juliana, da qual sua irmã tinha recebido o nome, era muito mais jovem que seu pai, quase vinte anos. MacRuairi provavelmente tinha a mesma idade que seu irmão Alan. Ao aproximar-se de Arthur a expressão de seu rosto mudou. Não se teria notado se não tivesse observado com tanta atenção. Surpresa? Reconhecimento? O homem que parecia seu tio deu um passo atrás. Ou era imaginações delas? Estava escuro e não era fácil estar segura. Ambos seguiram trocando golpes, mas a intensidade e a ferocidade tinham desaparecido. Comparado com o anterior, parecia mais um treinamento que uma batalha em que se empregassem a fundo. Anna olhava através da escuridão tentado compreender o que ocorria. Então, viu pela extremidade do olho que seu irmão tropeçava para trás, com a espada no chão e ambas as mãos sobre a cabeça, cambaleando-se…
Anna lançou um grito, incapaz de dominar-se por mais tempo. Teria deslocado em sua ajuda, mas Arthur se atrasou até sua posição para lhe impedir o passo.
—Fique atrás, maldita seja! Fique atrás!
Observou com impotência como o agressor com o que lutava seu irmão erguia a espada para acabar com ele. Seu horripilante grito atravessou a noite como uma adaga.
Arthur pareceu vacilar, mas somente por um instante. De alguma forma arrumou para rebater um golpe do homem que se parecia com seu tio e dar meia volta a tempo para bloquear a estocada dirigida contra seu irmão. O braço do atacante, ao não estar preparado para essa defesa, veio-se abaixo e com ele seu corpo, que foi cair justo sobre a espada de Arthur. O homem, surpreso, abriu os olhos antes de fechá-los para sempre.
Inclusive no meio desse horrível pesadelo a truculenta imagem fora muito para ela. Voltou o olhar entre soluços. Momentos depois, um agudo assobio cerceava o ar da noite. Olhou para o tumulto e se surpreendeu ao ver que os atacantes se retiravam. Ao que parecia MacRuairi, ou um homem que se parecia muito a ele, tinha dado a ordem de retirada. A clareira fora invadida pelos homens de seu irmão. Correu ao encontro do Alan antes inclusive de que o último dos rebeldes saísse da floresta. Tinha conseguido ficar em pé, mas ainda parecia cambalear-se.
—Oh, Deus, Alan! Está bem?
Inclusive na escuridão advertiu que lhe custava muito enfocar o olhar pela maneira em que a olhava. Sacudiu a cabeça como se pudesse assim dissipar a nebulosa.
—Um golpe no cocuruto —disse — Estarei bem. Não há por que chorar. —Tomou-a pelo queixo e lhe dirigiu um sorriso carinhoso.
Anna assentiu e limpou as lágrimas com o dorso da mão, sem se dar conta sequer de que estava chorando. Voltou de maneira instintiva e o buscou. Arthur estava a poucos metros dela, observando-a. Anna tinha vontade de correr a seu encontro, de deitar-se em seus braços, enterrar a cabeça em seu peito e romper a chorar. Ele se encarregaria de sossegar o horror. Mas seu irmão estava ali mesmo. E o rosto de Arthur se via muito sombrio.
—Está ilesa? —perguntou.
Anna assentiu enquanto o examinava, detendo-se na mandíbula e as bochechas, arroxeadas pelos golpes de seu irmão.
—E você?
Arthur assentiu também como resposta.
Alan permanecia junto a sua irmã completamente rígido. Depois caminhou em direção de Arthur, e Anna ficou paralisada temendo o que estava a ponto de fazer. Deteve-se a poucos passos dele. Ambos os homens ficaram olhando-se no silêncio da escuridão até que ao final Alan disse: —Parece ser que estou em dívida contigo, não uma, a não ser duas vezes. —Arthur ficou impassível e logo encolheu os ombros levemente — Eu não gosto de ver minha irmã zangada —acrescentou Alan.
Anna assumiu que aquilo era uma desculpa.
—A mim tampouco - disse Arthur.
Alan o examinou por um momento e depois assentiu como se tivesse chegado a algum tipo de decisão.
—Lutastes bem - disse mudando o tema, mas não a intensidade de seu escrutínio.
Ao que parecia não era ela quão única tinha advertido a melhora de suas habilidades.
—O ardor da batalha - explicou Arthur.
Esteve a ponto de mencionar sua mudança de mão, mas algo a deteve. Se seu irmão também percebeu disso, não o desvelou. Mas seguia observando-o com atenção.
—Sim, há alguns homens que funciona assim. —Anna não pôde saber pelo tom de sua voz se Alan acreditava realmente a explicação de Arthur. Ao ver que este não respondia, acrescentou—: Os rebeldes estão mais bem treinados do que pensava.
—Não eram rebeldes qualquer, irmão - disse Anna.
Ambos a olharam, mas foi Alan quem fez a pergunta.
—A que te refere?
—Acredito que um deles era parte da Guarda fantasma de Bruce, mas pode ser que não fosse o único.
Anna explicou a similitude de vestimenta com o homem que dirigia o ataque do ano anterior à igreja. Alan cofiou a barba.
—Tem sentido. Acredito que poderia estar certa.
—Há mais. Não posso estar segura, mas acredito que reconheci a um deles. O das duas espadas.
—O que? —Ambos os homens reagiram. Seu irmão com entusiasmo e Arthur com… algo diferente a isso.
—Nosso tio, que era nosso tio.
Alan amaldiçoou.
—MacRuairi?
Anna assentiu. O rosto do Alan adotou um gesto severo.
—O nosso pai não gostará nada. —Anna não sabia de onde provinha a inimizade de seu pai com o que fosse seu tio político, mas sim que o ódio corria furiosamente por ambas as partes. Alan soltou uma gargalhada — Embora talvez devesse. Que Bruce fique em seu bando com esse filho de cadela oportunista e traiçoeiro. Lachlan MacRuairi somente professa lealdade a si mesmo. Se for esse o tipo de homem que recrutou para sua tropa de fantasmas, não temos nada do que nos preocupar.
Arthur permanecia em um estranho silêncio. Anna tinha vontade de lhe perguntar a respeito do ocorrido entre o que acreditava seu tio e ele, mas, do mesmo modo que anteriormente, algo a fez conter-se. Em vez disso perguntou: —O que é o que o fez fugir?
Seu irmão ficou circunspeto.
—Não estou seguro. Tinha a cabeça tonta. Não vi virtualmente nada.
—Seus homens fizeram aparição —explicou Arthur — Estavam em minoria numérica. —Não tinha parecido assim, mas estava muito pendente de seu irmão para emprestar atenção ao resto da batalha — Deveriam voltar para acampamento —disse.
—Sim —concedeu Alan — Um de meus homens te levará, Anna. Nós temos que nos encarregar de…
«Os mortos», completou ela mesma.
O horror do ataque, o horror daquilo ao que tinham escapado por pouco, golpeou-a então com toda sua força. As comportas se abriram e emergiram todas as emoções que estivera contendo atrás delas, ameaçando transbordando em muitas lágrimas. Voltou-se, advertindo que Arthur se pôs a seu lado. Este, alheio à presença do Alan, esticou o braço para lhe pôr depois da orelha uma mecha de cabelo rebelde. Seus dedos passaram roçando a bochecha e se detiveram ali. A ternura que havia nesse gesto fez que a Anna saltasse em lágrimas. Ergueu o olhar para ele. Advertiu o rosto de preocupação atrás de sua expressão séria. Sua sólida presença, sua força a desarmavam completamente. Se tomasse entre seus braços se romperia em pedaços. Arthur, que adivinhava que isso poderia ocorrer, não o fez.
—Tudo sairá bem —disse com delicadeza — Faça o que diz seu irmão.
—Mas…
Cortou seus protestos com uma negação da cabeça e expressão firme. Deveu adivinhar que ela tinha perguntas que fazer.
—Agora não - disse olhando em direção aos caídos — Depois.
Anna manteve os olhos no rosto de Arthur, procurando não seguir a direção de seu olhar. Já havia visto suficiente sangue para o resto de seus dias. As lembranças dessa noite a perseguiriam. Era uma reação compreensível. Anna era uma mulher e não alguém acostumado ao sangue e ao furor do campo de batalha. Arthur, entretanto, sim estava. Ou ao menos deveria estar. Mas havia algo em sua expressão, na tensão de sua mandíbula, a brancura da boca, a crueldade de seus olhos, que indicava que aquilo lhe afetava profundamente. Anna seguia os passos dos dois homens de seu irmão que a precediam com a suspeita de que ela não seria a única a que perseguiriam as lembranças daquela noite. A questão era por que.
Arthur não pôde conciliar o sonho. Quase esperava que MacRuairi se deslizasse na escuridão e lhe rachasse a garganta ou cravasse uma adaga nas costas pelo que tinha acontecido. Não seria a primeira vez. Não tinha ganhado o apelido de Víbora unicamente por sua venenosa personalidade, mas também por seu ataque silencioso e mortífero. Entretanto, Arthur não podia culpá-lo.
Tal e como tinha feito quase toda a noite, olhava o monte de corpos que tinham deixado apinhados a um lado da clareira, postos ali para que os «atacantes» os recolhessem. Nove homens de Bruce assassinados. Mais da metade pela ponta de sua espada. Equivocou-se. Muito. Em muitos aspectos para poder contá-los. Suficiente mal era que seus sentidos tivessem falhado, que não tivesse advertido os sinais do ataque, mas, além disso, parecia ter esquecido de que lado estava. Levava tanto tempo entrincheirado em campo inimigo que começava a acreditar em suas próprias mentiras.
«Cristo.» Fechou os olhos em uma tentativa de aplacar seus pensamentos. Viu-se obrigado a matar a seus próprios homens antes, mas nunca desse modo. Aquilo não era simplesmente defender-se. Tornou-se um louco fazendo. Estava tão concentrado em proteger Anna e matar a qualquer que supusera uma ameaça para ela que não tinha reparado em nada mais que isso. Nem sequer se deteve quando percebeu o que ocorria. Tinha salvado a vida do MacDougall em troca de um de seus compatriotas. Não podia tirar da cabeça o rosto que tinha posto MacRuairi quando Arthur atravessou ao homem que estava a ponto de acabar com o MacDougall. Pouco importava que sua intenção não fosse matá-lo. Não teria que ter intervindo. O pranto dilacerador de Anna não era desculpa, ao menos não uma desculpa que importasse para os de sua irmandade.
Levantou-se de seu solitário posto junto à árvore quando começaram a vislumbrar os primeiros raios do amanhecer através da floresta. Não acudiriam. Nem MacRuairi, nem tampouco Gordon, MacGregor e MacKay, a menos que tivesse errado ao identificar aos outros três membros dos Guardiões das Highlands quando se batiam em retirada. Tampouco esperava que o fizessem, embora gostasse de ter a oportunidade de explicar-se ante eles. Não se arriscariam de novo a revelar a identidade de Arthur. Para isso bastava a si mesmo.
Era consciente do perto que estivera de arruinar sua cobertura e de pôr toda sua missão em perigo. Anna, tal e como provavam suas perguntas, era muito observadora, inclusive sendo presa do pânico. E não era a única. Também Alan suspeitava da súbita melhora de suas habilidades como combatente e de quão rápido tinham fugido os atacantes. No momento os tinha contentado, mas sabia que ela tinha mais pergunta e não se atrevia tão sequer a pensar o que mais teria advertido.
Reconhecer ao MacRuairi já era mal por si só, mas relacioná-lo com os Guardiões das Highlands era um completo desastre. Manter suas identidades em segredo não era só um aplique à mística e ao medo que rodeavam a aquela guarda «fantasma», mas sim também ajudava a mantê-los a salvo. Se seus inimigos tinham conhecimento de suas identidades, além de pôr preço a suas cabeças, temia a segurança de suas famílias. Essa era a razão pela que tinham decidido usar nomes de guerra quando estavam em uma missão.
Quando Bruce se inteirasse de que tinham desmascarado ao MacRuairi, teria graves conseqüências. Não teria que ter ocorrido, maldita seja. A raiva e a culpa invadiam seu interior sem piedade. Arthur teria pressentido o ataque se não tivesse tão envolto com Anna e deixar-se dominar pela emoção. Aqueles homens não estariam mortos e tampouco teria posto a ela em perigo. Deus, poderiam tê-la matado. E tudo por não ser capaz de controlar suas emoções e implicar-se muito.
Voltou para acampamento justo no momento em que começavam a despertar os homens que não estavam de guarda. Olhou para a tenda de Anna e viu que as portinholas forradas de linho permaneciam fechadas. «Bem. Que durma.» Merecia. Tinha ido vê-la com freqüência no transcurso da noite para assegurar-se de que estava bem. Sabia o muito que a tinha afetado o ataque, mas combatia com seus próprios demônios, de modo que por mais que fosse ele quem devia fazer, não estava em condições de consolá-la. Não obstante, uma vez que teve retornado de encarregar-se dos cavalos, viu a portinhola aberta. Ao inspecionar o acampamento e não encontrá-la ficou circunspeto. Mas pouco depois teve oportunidade de espiá-la enquanto falava com seu irmão, que estava ocupado com alguns de seus homens. A exasperação que refletia seu semblante era tão corrente que suspirou aliviado, até sem querer reconhecer quanto se preocupou.
Quando seu olhar reparou nele, Anna titubeou, mas em seguida começou a avançar pelo terreno semeado de musgo e folhas em sua direção. Arthur percebeu de que levava um pedaço de pano nas mãos. Deteve-se frente a ele, inclinando seu pálido rosto para olhá-lo. Arthur sentiu uma angústia no peito. Ao que parecia, o sono também fora esquivo.
—Já que a regra que pusestes e meu irmão está ocupado, terá que me acompanhar.
Arthur a olhou de modo inquisitivo.
—Não me fizeram prometer que não abandonaria o campo sem sua companhia ou a de meu irmão?
Franziu o cenho até converter-se no primeiro sorriso que tinham parecido em anos.
—Sim.
—Preciso ir ao córrego me lavar.
O córrego ficava perfeitamente à vista do acampamento, mas Arthur não discutiu ao conscientizar de quanto a teria afetado o ataque. Fez uma reverência zombadora com um gesto exagerado da mão.
—Depois de ti.
Anna não parecia ter muita vontade de falar, algo que vinha a calhar. Esperou junto a uma árvore, fazendo como que não olhava, enquanto ela se encarregava de suas abluções matinais. Depois de arrumar o cabelo com um pente úmido e lavar os dentes com pós de um frasco que esfregou sobre um pequeno pedaço de tecido branco, mergulhou outro trapo branco na água. Tinha levado com ela uma pastilha de sabão, a qual esfregou sobre o tecido para depois proceder a lavar o rosto, o colo, as mãos e os braços. Era uma das imagens mais sensuais que jamais tivesse presenciado.
Quando meteu o trapo entre os seios já não pôde mais. Voltou-se, furioso por que um pouco tão mundano pudesse o excitar. Mas com esse sol caindo entre as árvores, que se refletia em seus cabelos dourados e os regatos de água que se derramavam em cascata por seu rosto e seu colo a via formosa, doce e verdadeiramente cativante. Um raio de luz na escuridão. E tudo que Arthur podia pensar era o perto que estivera do céu e a vontade insensata que tinha de tocá-la de novo. Deus, é que não tinha aprendido nada do ocorrido na noite anterior? Concentrou-se no que lhes rodeava com uma intensidade quase exagerada, aguçando seus sentidos para algo que se saísse do ordinário. Entretanto voltou o olhar atrás. Anna tinha terminado e caminhava para ele com o sol a contraluz pelas costas. Arthur teve que conter a respiração. Mas isso não evitou que o apanhasse o subjugador aroma de sua doce e feminina fragrância: pele recém lavada com um toque de pétalas de rosa.
—O que acontece? —perguntou Anna.
—Nada - disse com tensão.
—Parece como se lhe doesse algo - disse olhando-o nos olhos — Lhe dói o rosto? —perguntou tomando o arroxeado queixo na mão. Cada um dos músculos de Arthur ficou em guarda ante o contato — Quebrou algo o idiota de meu irmão? —Jesus, que mãos mais suaves. Seus dedos aveludados acariciavam o duro contorno da tensa mandíbula de Arthur — Olhem quantos hematomas. Isso deve doer — acrescentou, levando o dedo até sua boca — Têm o lábio partido.
Sim, doía. Aquele gesto de sensualidade inocente fazia correr o sangue até a virilha de Arthur e a incendiava de calor. Teve que obrigar-se a não lhe chupar o dedo. Não tinha nem idéia do que estava fazendo. Nem do que estava custando resistir a tocá-la.
Anna o olhou com uma preocupação que se refletia em seus olhos.
—Dói muito?
—O rosto não. —Arthur lhe dirigiu um olhar lascivo que dizia exatamente onde estava a origem de sua dor. Parecia que fosse estalar.
As bochechas de Anna se ruborizaram levemente. Se por acaso aquilo não fosse suficiente, começou a mordiscar esse suave lábio inferior que tinha.
—Oh, não me dava conta de que…
—Deveríamos voltar. Seu irmão queria sair cedo.
Anna assentiu e Arthur teve a impressão de que lhe dava um calafrio.
—Não me entristecerá partir daqui.
Arthur não pôde conter-se. Tomou pelo queixo e cravou o olhar em seus grandes olhos azuis.
—Está bem?
Anna tentou sorrir, mas lhe tremeu a boca.
—Não, mas arrumarei isso.
Arthur lhe soltou o queixo e sua boca adotou um gesto severo.
—O que ocorreu a noite passada não voltará a repetir-se.
Os delicados arcos das sobrancelhas de Anna se franziram.
—Como pode estar tão seguro?
—Porque não permitirei.
Anna o examinou com o olhar e abriu os olhos de repente ao compreendê-lo.
—Por Deus bendito, por isso está zangado. Culpa-se do ocorrido. Mas isso é ridículo. Jamais poderia ter sabido que…
—Sim, sim deveria saber. Se não tivesse tão distraído, não teria ocorrido.
—Então a culpa é minha?
—É obvio que não.
—Não é perfeito, Arthur. Sois humano. Comete enganos. —Ele não respondeu. Tinha a mandíbula tão apertada que lhe doíam os dentes - é o que pensa? —perguntou Anna com ternura — Não falharam seus sentidos alguma vez antes?
«Uma vez», pensou Arthur, afastando a lembrança de sua memória.
—Temos que retornar.
Começou a afastar-se dela, mas Anna o agarrou pelo braço para detê-lo.
—Não ides contar isso?
—Não há nada que contar.
—Tem algo que ver com seu pai? —ficou olhando-a, aniquilado. Como demônios tinha chegado a suspeitar? Anna advertiu sua surpresa — Quando falou de sua morte, deu-me a sensação de que não contava tudo.
Não tinha contado nem a metade do que aconteceu. Como por exemplo a participação do pai de Anna na tergiversação dos fatos. Anna esperava uma resposta. Ele não era muito dado a falar sobre seu passado, mas a expressão do rosto dela disse que aquilo lhe parecia algo muito importante.
—Não há muito que contar. Tratava-se de minha primeira batalha. Meu pai me levou com eles para me pôr a prova. Estava tão preocupado por lhe impressionar que não detectei os sinais do ataque. —Mas isso não era a pior parte, pensou Arthur — Vi como morria.
O rosto de Anna se encheu de comiseração.
—Deus, sinto muito. Deve ter sido horrível. Mas não era mais que um menino. Não podia fazer nada para ajudar.
—Teria que o ter avisado. —Se não estivesse tão afetado, tão assustado, teria visto os sinais, refletiu Arthur. Então, igual à noite anterior, a emoção se havia interposto em seu caminho — Estava distraído.
Mal teve tempo de franzir o sobrecenho antes que os olhos de Anna se iluminassem repentinamente de compreensão.
—Amava-o.
Arthur encolheu os ombros, incomodado com o tema.
—Isso não serve de muito.
—Inclusive Aquiles tinha um ponto débil, Arthur. —Ele a olhou com cara de estar admirado. Do que estava falando? — É difícil manter-se afastado e à expectativa com as pessoas às que alguém quer —disse Anna lhe oferecendo um sorriso de simpatia — Não podem te culpar por amar às pessoas. —Mas fazia. Do que servia suas tão apregoadas habilidades se não podia proteger a aqueles que amava? — Obrigado por me contar isso — Por que voltava a sentir que a tinha deixado ver muito de si?
—Não desejava que te preocupasse pensando em outro ataque surpresa.
—Não me preocupo —disse Anna — Confio em você.
Arthur sentiu uns ardores no peito que o consumiam por dentro. Queria a advertir que não fizesse, lhe dizer que não merecia, que o único que faria seria a machucar, que ela dava seu coração com muita facilidade, com os olhos fechados. Mas em vez disso assentiu e puseram rumo para o acampamento. Arthur subiu a costa com ela, e quando estiveram nas imediações, Anna o olhou de soslaio.
—Pareceu como se meu tio o reconhecesse.
A observação o colheu com a guarda completamente baixa. Algo para o qual parecia ter um talento especial. Arthur deu um passo um tanto vacilante. Não muito, mas temia que se desse conta.
—Está segura de que era seu tio? Não via bem. Eu estava muito mais perto e não pude reconhecer aquele rosto oculta depois do nasal.
Anna enrugou o nariz, um movimento adorável que chocava profundamente com a ameaça que representava para ele.
—Faz alguns anos que não o vejo, mas estou bastante segura de que era ele. Seus olhos são inesquecíveis — disse com um calafrio. Se tentava distrair de sua pergunta, não ia funcionar — Mas pareceu o reconhecer.
—Ah, sim? —disse Arthur encolhendo os ombros — Pode ser que nos tenhamos cruzado alguma vez.
Ela ficou um momento sem dizer uma palavra, mas infelizmente não pensava deixar o assunto correr.
—Então não o conhece?
Arthur lutou contra a ativação instintiva de seus alarmes.
—Pessoalmente não.
—Parecia aborrecido de lhe ver.
O rápido pulsar do pulso de Arthur contradizia sua calma exterior. Era perigosamente perceptiva e andava muito perto da verdade.
—Aborrecido? Por isso sei, Lachlan MacRuairi é um filho de…—disse, detendo-se ao recordar quem tinha por audiência — É um homem perverso com um caráter de cão. Provavelmente estava furioso por que matasse a tantos de seus homens.
Anna pareceu aceitar a explicação. Mas a seguinte pergunta lhe deixou claro que ainda não estava satisfeita.
—Por que se retiraram?
Arthur amaldiçoou para si. As vozes de alarme se acendiam com mais força.
—Como já vos disse, os homens de seu irmão chegaram até nós. Estavam em minoria.
Ficou circunspeta.
—Não me pareceu isso. Parecia que estavam ganhando.
Arthur se obrigou a forçar um sorriso irônico.
—Seu irmão estava em perigo —lhe recordou — Eu diria que estava distraída.
Anna ergueu o olhar para olhá-lo e lhe dedicou um meio sorriso.
—Pode ser que tenham razão. Estava concentrada em meu irmão. Ainda tenho que lhes agradecer o que fizeram. —Uma sombra sulcou seu rosto — Se não tivessem detido a esse homem…
—Não pensem mais nisso, Anna. Já passou.
Assentiu e voltou a olhar de relance.
—De todos os modos, agradeço-lhe. E também Alan o faz, apesar de que tenha uma estranha forma de demonstrá-lo.
MacDougall não ocultava seu interesse por eles. Arthur sentiu o peso de seu olhar durante todo o tempo. Ao encontrar-se com seus olhos, soube que a discussão a respeito do ocorrido no dia anterior ainda não tinha acabado.
—Tem direito a estar furioso, Anna. O que fiz esteve mau. Tudo que posso fazer é prometer que jamais voltará a acontecer.
A maneira em que sua respiração ficou sobressaltada foi como uma punhalada no peito. Parecia emocionada. Desconcertada. Como se esperasse algo diferente.
—Mas…
—Aguardam-nos — disse Arthur, e assinalou ao moço que preparava seus cavalos para que não seguisse falando. Não poderia suportar outra conversa como a do dia anterior — É hora de partir.
Essas palavras fossem dirigidas tanto a ela como a si mesmo. Ponto cego. Ponto débil. Não importa como o tivesse chamado. Seus sentimentos no que respeitava a Anna se converteram em um lastro. Tinha permitido que ela se aproximasse muito, e sua missão e sua coberta pendiam de um fio. A conta atrás tinha começado.
Capítulo 18
Dois dias sem acontecimentos depois, Anna atravessava as portas do castelo de Dunstaffnage ao lombo de seu cavalo. Um dos guardiães se adiantou, de modo que lhes esperavam. Pelo semblante de ira mal contida de seu pai advertiu que estava a par do fracasso de sua viagem. Anna sonhava desfrutando de uma noite de sonho reparador antes de confrontar as perguntas de seu senhor, mas sua tardia chegada não serve para atrasar o relatório. Alan e ela quase não tiveram tempo de lavar as mãos e fazer uma frugal refeição leve antes que os apresentassem nas dependências do senhor do castelo.
John de Lorn permanecia de pé em meio da sala, com as mãos à costas e os membros importantes de seu meinie atrás dele e ambos os lados. A expressão de duelo que todos compartilhavam sem exceção fez pensar a Anna que entrava em um túmulo funerário. Dado que nenhum deles tomou assento, ela e Alan tiveram que suportar o desconforto de estar de pé. Suas sensações não distavam muito das do menino ao que chamam para que responda de uma travessura atroz com resultados nefastos.
Apenas teve fechado a porta quando seu pai começou a falar. A atacar, em realidade.
—Ross rechaçou a oferta.
Não se tratava de uma pergunta. Ao notar o tom de acusação de sua voz, Anna teve vontade de explicar-se, mas não tocava a ela fazer.
Alan respondeu por ambos.
—Sim. A resposta do Ross a uma aliança foi quão mesma na ocasião anterior. Disse que Bruce partiria também contra ele e que não podia prescindir de nenhum de seus homens.
—Mas que passou com o compromisso? Não lhe fez mudar de idéia?
Anna sentiu o peso dos olhares de todos os homens sobre ela e suas bochechas se ruborizaram. Mantinha o olhar baixo para que seu pai não visse quão envergonhada estava. Independentemente de que supusera alguma mudança ou não, tinha fracassado na tarefa que lhe tinha encomendado.
—Não há compromisso —explicou Alan — Estiveram de acordo em que não encaixam um com o outro.
Anna desejava que ninguém mais detectasse como Alan acabava de medir suas palavras.
—Quer dizer que não te perdoou por rechaçá-lo na primeira vez? —perguntou o pai a Anna diretamente.
Ela se aventurou a olhá-lo e a contemplar seu rosto de raiva. O coração lhe encolheu. Não era bom para ele que se zangasse tanto. Quis lhe dizer algo a esse respeito, mas sabia que se lhe tratasse como a um inválido ante seus homens, ficaria mais furioso ainda. Não sabia o que dizer. Não queria mentir, mas tampouco podia contar toda a verdade.
—Eu… — disse, tropeçando com suas próprias palavras.
—Bem — repôs seu pai com impaciência—, acreditava que foste o persuadir.
As bochechas ardiam da vergonha.
—Tentei, mas temo que ele… percebeu que meus sentimentos estavam comprometidos com outra causa.
—O que quer dizer isso de «comprometidos com outra causa»? —Seu pai entreabriu os olhos, que a atravessavam como flechas. Sabia que havia algo que não lhe estava contando — Campbell —disse impassível em resposta a sua própria pergunta. Amaldiçoou para si com um olhar implacável — E como poderia perceber isso? O que fez?
Jamais tinha visto seu pai tão furioso com ela. Era a primeira vez que sua raiva a atemorizava. Que o merecesse não era algo que aplacasse seus devastadores efeitos. O que poderia ter dito? Felizmente, Alan teve piedade dela.
—O compromisso não teria mudado nada. Ross já tinha seus planos feitos. Temo que ainda não ouvistes a pior parte. —Anna temia o pior em relação à reação de seu pai. Tinha medo de que aquilo o levasse a um novo ataque de apoplexia. Ao que parecia, Alan decidiu que era melhor não dosar a verdade, a não ser soltar a de uma só e desagradável vez — Ross está pensando em render-se.
Seu pai não disse uma palavra. Mas Anna contemplava como sua fúria crescia como uma crista de espuma no horizonte que se dirigisse para a costa a toda velocidade até converter-se em uma temível onda que ameaçava rompendo. John de Lorn apertava os punhos com força, seu rosto estava vermelho como um tomate, as veias lhe palpitavam nas sobrancelhas e seus olhos ardiam como se fossem as portas do inferno. Anna deu um passo em sua direção, mas Alan a deteve com uma mão e negou com a cabeça em sinal de advertência.
Quando seu pai acabou por bem pronunciar-se foi para proferir uma enxurrada de insultos que teriam posto a sua mãe de joelhos durante semanas inteiras em penitencia por sua alma blasfema. Perambulou, iracundo pela pequena câmara como um leão enjaulado. Inclusive seus homens lhe deixaram espaço suficiente para que desse rédea solta a sua irritação.
—Ross é um tolo do demônio! —explorou com fúria — Bruce jamais lhe perdoará o que fez às mulheres. Pelo amor de Deus! Pendurou em jaulas a sua irmã e à condessa. Se se render, estará assinando sua própria ordem de execução. —Deteve suas palavras o justo para dar um murro sobre a mesa — Como pode pensar em prostrar-se ante esse assassino traiçoeiro? Cortou a meu parente em pedaços diante de um altar.
Anna não se atreveu a assinalar que a santidade da igreja não era algo que parecesse importar muito ao Ross. Depois de tudo, ele mesmo violou o santuário para capturar às mulheres de Bruce.
—O povo está com Bruce —disse Alan para acalmar a seu pai — despertou um ardor patriótico no campo que não se via desde Wallace. Acreditam que é um salvador, o segundo advento do rei Artur, que os liberou do jugo da tirania inglesa. Ross pensa em sua gente e no futuro de seu clã. Pensa no que é melhor para a Escócia.
Anna tentou ocultar sua surpresa. Felizmente seu pai estava muito furioso para ouvir o que Alan havia dito realmente. Mas embora seu pai não o tivesse feito, ela sim tinha ouvido o tom de reprimenda na voz de seu irmão. Pensaria Alan igual a Ross? Acreditava também ele que Bruce era a melhor opção para Escócia? Por Deus bendito, o que aconteceria seu pai se equivocava?
Anna não podia acreditar que fosse ela quem albergasse esse pensamento desleal. Mas os MacDougall, em seus dias ferventes patriotas, tinham dado seu apoio aos ingleses para não ver Bruce sentar-se no trono. Era isso o melhor para Escócia?
—Morrerei antes de ver esse assassino no trono — disse seu pai, consumida já a raiva de seus olhos, frios como o gelo.
Anna sentiu certo alívio para ouvir os murmúrios unânimes de seus homens que concordavam vigorosamente com essa idéia. Seu pai sabia o que fazia. Era um dos homens mais poderosos de Escócia. Tinha suas falhas, claro, que grande homem não os tinha? Mas ele faria que superassem aquilo.
Uma vez informado sobre a parte mais importante da viagem, Alan procedeu a lhe contar a seu pai o resto, dando conta brevemente do problema acontecido pelo caminho. Seu pai escutava, cada vez mais preocupado, empalidecendo visivelmente para ouvir como seu herdeiro escapava por pouco à morte, duas vezes. Entreabriu os olhos enviesadamente quando Alan o informou das suspeitas de Anna a respeito da implicação do MacRuairi e depois transbordou de emoção ao conscientizar-se da conexão que tinha com a guarda fantasma de Bruce.
—Bom trabalho — disse a Anna, quem sorriu radiantemente pela adulação.
Alan deu a versão de Arthur de sua retirada, mas seu pai também pareceu ter problemas em compreendê-lo.
Ao final, adiantou-se e a agarrou da mão.
—Não sofreste nenhum dano, filha?
Anna negou com a cabeça e ele a acolheu entre seus grandes e robustos braços, esquecendo aparentemente sua ira. Por um momento, Anna voltou a sentir-se como uma menina e a necessidade de chorar todas suas penas sobre sua túnica de finos bordados se apoderou dela. Arthur seguia inimizado com ela. O ataque não tinha mudado nada. Por acaso o tinha piorado. Tinha a esperança de que depois de seu bate-papo ele tivesse mudado de parecer. Arthur sentia algo por ela, mas havia um motivo que o fazia conter-se. Esses dois dias de caminho não lhe tinham dado novas perspectivas. Anna não podia livrar-se da sensação de que havia algo estranho no ataque. E tampouco podia tirar da cabeça a inquietação que lhe provocava suspeitar que ele ocultava algo.
Seu pai se voltou para trás para olhá-la.
—Está cansada. Já ouvirei o resto da história pela manhã.
Assentiu, aliviada de que o pior já tivesse passado. Ao menos isso é o que pensava.
—E, Alan — disse John de Lorn a seu filho—, faz que Campbell e seu irmão se reúnam conosco. Parece que sir Arthur tem que responder por muitas coisas — acrescentou dirigindo um olhar a Anna que a fez estremecer da cabeça aos pés.
Arthur estava preparado para a citação quando esta chegou. Não esperava, entretanto, que se incluísse nela a seu irmão.
—Que diabos tem feito? —perguntou Dugald com suspeita à medida que atravessavam o barmkin em direção à torre da comemoração — por que tem Lorn tanta vontade de ver-te?
Arthur e seu irmão subiram a escada compassando sua marcha com o tinido de seus peitilhos e suas armas.
—Suponho que tem perguntas que fazer em relação aos homens que nos atacaram.
—E o que sabe você deles?
—Nada — disse Arthur ao mesmo tempo que abria a enorme porta de madeira que dava entrada à torre.
—O que tenho eu que ver em tudo isto?
Arthur olhou ao Dugald. A expressão de seu irmão era um reflexo da impaciência que ambos sentiam. Ao Dugald gostava tão pouco como a ele que o chamassem a presença de Lorn. Apesar de que seu irmão e ele lutassem em diferentes lados da guerra, ainda podiam coincidir em seu ódio para o John de Lorn.
—Que me crucifiquem se sei — disse Arthur incomodado por essa incerteza. Um guarda bateu na porta para anunciar sua chegada. Quando lhes fizeram passar, voltou-se e acrescentou—: Mas estamos a ponto de averiguá-lo.
Examinou com rapidez aos ocupantes da sala: Lorn, sentado como um rei em uma poltrona que melhor parecia um trono com uma expressão impossível de discernir; Alan MacDougall de pé junto ao muro, com cara de não saber muito bem o que ocorria; e Anna sentada em um banco em frente ao fogo com aspecto de estar extremamente inquieta. À exceção do único guarda que os tinha admitido para deixá-los depois às ordens de Lorn, não havia nenhum outro membro presente de seu meinie.
Tratasse do que se tratasse, era um assunto pessoal. A pontada de inquietação que Arthur sentia se converteu em uma punhalada em toda regra. Lorn, imperioso filho de cadela, não os convidou a sentar-se, de modo que permaneceram de pé frente a ele. O ódio cego que atendia a alma de Arthur cada vez que se encontrava rosto o rosto com o homem que tinha assassinado seu pai não diminuía. Contraiu suas feições de modo que não revelassem emoção alguma, mas o fogo que queimava seu peito e a necessidade de afundar uma adaga no negro coração de Lorn eram algo mais difícil de reprimir.
—Desejava nos ver, milorde — disse Dugald com um tom que não mostrava deferência alguma.
Lorn tomou seu tempo em deixar a pluma a um lado e logo se recostou na poltrona para olhá-los. Tamborilou com os dedos sobre a mesa. Quando respondeu, não foi ao Dugald, a não ser a Arthur: —Ouvi que tiveram uma viagem cheia de peripécias.
Algo no tom de sua voz fez que soassem os sinos de alarme no mais profundo da cabeça de Arthur. Teve que controlar-se para não olhar a Anna. O que lhe teria contado?
—Sim —disse — Tivemos a sorte de escapar à primeira orda de velhacos, mas não à segunda. Fizemo-nos fugir bem a tempo.
Lorn o escrutinou com tal parada que lhe puseram todos os nervos de ponta.
—Isso eu ouvi. Meu filho não teve mais que louvores para suas habilidades na batalha. Conforme afirma, jamais viu nada igual. —Dugald se voltou bruscamente para Arthur com o rosto circunspeta — Tenho que admitir que me surpreendeu ouvir a descrição do enfrentamento —acrescentou Lorn com um sorriso. Mas seu olhar não tinha nada de divertido. Era frio e calculador — Me pergunto por que jamais antes tínhamos visto isso em você.
Lorn desviou seu olhar para o Dugald, avaliando sua reação. Infelizmente, a expressão do irmão de Arthur não fez a não ser admirar mais.
—Sir Alan é mais que generoso com suas adulações, meu senhor.
Alan deu um passo à frente, em claro desacordo com a forma de perguntar de seu pai.
—Sir Arthur foi chave na hora de derrotar aos rebeldes, pai, e ao salvar minha vida. Temos uma dívida de gratidão com ele.
—Sim, é obvio —disse Lorn — Estou muito agradecido. Mas me pergunto… — Fez uma pausa e tamborilou com um dedo sobre a mesa— pergunto-me se poderiam jogar um pouco de luz sobre o resto do ataque.
—É obvio — disse Arthur. Mas não gostava absolutamente dos roteiros que tomava aquele assunto. Lorn era um filho de cadela arrevesado. Gostava de ter aos o rodeavam em um punho. Acaso suspeitava algo? Quem podia saber.
—Minha filha acredita ter identificado a quem fosse meu irmão político, Lachlan MacRuairi, como um desses rufiões, e também pensa que pode ser um dos guerreiros secretos dos que tanto ouvimos falar.
—Cruzei-me com esse homem uma ou duas vezes, mas não o conheço tão bem para afirmar nenhuma coisa nem a outra. Se lady Anna tiver dúvidas, temo que eu não posso ajudar a resolver.
Arthur caminhava pela corda frouxa. Uma negação terminante poderia chamar suspeita, mas queria manter a semente da dúvida plantada na mente de Lorn, cujos traços se endureceram, fazendo patente o ódio que professava pelo que fosse seu cunhado.
—MacRuairi é uma serpente traiçoeira, um assassino desumano que venderia a sua mãe por uma peça de prata, mas há uma coisa que jamais faria, e é se dar por vencido. Jamais o vi retirar-se em uma batalha.
Bàs roimh Gèill. «Morrer antes que render-se» formava parte do credo dos Guardiões das Highlands, mas parecia funesto que essa frase desse ao Lorn algo no que fincar o dente. A corda frouxa pela que Arthur caminhava-se fazia mais instável por momentos.
Deu de ombros sem comprometer-se.
—Então é possível que não fosse ele?
Lorn voltou a dirigir o olhar a sua filha, quem o olhou nos olhos antes de responder:
—Não posso estar segura, pai. Estava muito escuro. Somente percebi seu rosto com claridade por um instante… e fazia anos que não o via.
Arthur sentiu uma opressão no peito. Tentava protegê-lo. Teria notado Lorn também disso?
—Havia algo que quisessem de mim, meu senhor? —perguntou Dugald cada vez mais impaciente.
Em outras palavras: que demônios fazia ele ali? Uma pergunta que também interessava Arthur.
—Estou chegando a esse ponto.
Lorn voltou a tamborilar sobre a mesa, e Arthur começou a imaginar-se que agarrava sua maça de guerra e punha fim a essa aporrinhação de uma vez por todas.
—Não estou seguro de que firmaram tanto do propósito que tinha a viagem ao norte para ver o Ross — disse ao Dugald — Era pra retomar as conversações para o compromisso de matrimônio entre minha filha e sir Hugh Ross, com a esperança de que uma aliança entre nós animaria ao conde a enviar tropas de apoio na guerra contra Bruce. Infelizmente, as coisas não fossem como tínhamos planejado.
Dugald fulminou de relance Arthur com o olhar.
—Ah, não?
—Não. —O olhar de Lorn voltou a recair sobre ele — Ao que parecia, sir Hugh percebeu que os afetos de minha filha estavam comprometidos com outra causa. Sabes algo disso, sir Arthur?
Arthur viu pela extremidade do olho como Anna empalidecia e apertava as mãos com força sobre seu regaço. Que diabos havia dito? Os dentes lhe chiavam. Sentia-se esquecido no aposento e sem espaço para mover-se.
—Sim.
—Pensei que talvez fosse assim —disse Lorn. O brilho de raiva de seu olhar disse a Arthur que provavelmente adivinhava parte do acontecido. Esperou tensos, preparando-se para o pior. O nó cada vez se apertava mais. Lorn se voltou para o Dugald. As razões pelas quais seu irmão estava ali tinham ficado claras — Diante dos dados e recentes acontecimentos, eu gostaria de propor uma aliança diferente. Uma que faria mais sólidos os laços entre nossas famílias e mostraria minha gratidão para sir Arthur pelo serviço que tem feito a meu filho, assim como também asseguraria a felicidade de minha filha. —Cada um dos músculos do corpo de Arthur ficou tensos enquanto esperava o que estava por chegar. Perguntava-se se ela teria algo ver com isso, mas os olhos de Anna não mostravam mais que surpresa quando seu pai disse—: Eu gostaria de propor um compromisso de bodas entre sir Arthur e minha filha.
Dugald soltou uma gargalhada.
—Um compromisso?
A boca de Lorn adotou um gesto severo.
—Acredito que isso é o que disse. Podemos falar sobre os detalhes mais tarde, mas tenham por seguro que o dote de minha filha é mais que generoso. Inclui certo castelo que acredito pode ser de interesse para ti.
Tanto Arthur como seu irmão ficaram de pedra.
Foi Dugald quem acabou por perguntar:
—Innis Chonnel?
Um sorriso retorcido se desenhou na boca de Lorn.
—Sim.
Arthur não podia acreditar. A fortaleza dos Campbell do lago Awe que tinham sido arrebatado a seu clã fazia anos, devolvida por casar-se com a mulher que queria mais que a tudo no mundo. Um autêntico pacto com o diabo. Por um momento, ficou duvidando, muito mais tentado do que gostaria de admitir. Mudar de bando era algo habitual naquela guerra. Mas ele não podia fazer. Inclusive no caso de que condescendesse a aliar-se com o homem que tinha assassinado a seu pai, havia muitas pessoas que contava com ele: Neil, o rei Robert, MacLeod e o resto dos membros dos Guardiões das Highlands. E tampouco podia ignorar sua própria consciência. Acreditava no que estavam fazendo.
A devolução do castelo dos Campbell, embora fosse ao irmão mais novo, bastou para convencer ao Dugald, que se voltou para Arthur.
—Eu não tenho objeção. Arthur?
Todos os olhos se voltaram para ele, mas somente era consciente de dois pares: os de Anna, que lhe observavam com o coração neles, e os de Lorn, que o contemplavam com a suspeita refletida.
Até no caso de que não tivesse intenção de levar a cabo, Arthur sabia que devia aceitá-lo para dissipar todo receio. Aquele compromisso era uma prova de lealdade. Tratava-se tanto de assegurar a felicidade de Anna como de provar sua aliança. Sua consciência liberava uma batalha com sua noção do dever, mas não durou muito. Não tinha outra opção. As espadas estavam em alto. Não podia pensar em quanto o odiaria Anna quando averiguasse a verdade.
—Será uma honra tomar lady Anna como esposa.
Talvez o pior fosse que, em realidade, dizia a sério.
Capítulo 19
Anna tinha tudo o que queria. Por que se sentia então tão miserável? Tinha passado uma semana desde dia em que seu pai anunciasse por surpresa o compromisso em sua câmara. Uma vez reposta da comoção, casar-se com o homem que amava… era algo que a deixava em um estado de euforia. Nada poderia fazê-la mais feliz. Exceto, talvez, a notícia de que Bruce decidisse que a coroa não lhe pertencia e desaparecesse nas ilhas Ocidentais como tinha feito anteriormente. Mas faltava muito ainda para que se cumprisse esse sonho.
Enquanto ela estava mais que entusiasmada, Arthur dava a impressão de ter que suportar uma pesada carga. Desde aquele dia se comportava com uma correção irrepreensível, cortês durante as refeições e também nas poucas ocasiões em que se cruzavam os caminhos de ambos. Inclusive permitia que Escudeiro o seguisse em qualquer parte sem queixar-se. A simples vista era o perfeito prometido, mas esse era o problema, que somente era a simples vista. Sua formalidade, esse distanciamento progressivo, reduzia sua felicidade ao mínimo. Cada vez que dizia: «Tivestes bom dia hoje, lady Anna?» ou: «Gostaria de outra taça de vinho, lady Anna?», provocava uma ferida diminuta em seu coração. Não podia entendê-lo. Segundo ele mesmo admitia, lhe importava. Então por que não se dava conta de que aquilo seria perfeito para ambos?
À medida que passavam os dias custava mais convencer-se de que isso era o que ele queria. Afastava-se dela por muitos momentos. Algo lhe pesava. Estava uma semana mais perto do final da trégua, já que os idos de março se aproximavam com presteza, mas sua crescente ansiedade se deixava ver em todo momento e não parecia que fosse por causa da batalha em floração. Gostaria que confiasse nela, mas rechaçava qualquer intento de diálogo, embora tampouco contavam com muitas oportunidades. Além dos breves intercâmbios das refeições, a única vez que tinha procurado sua companhia fosse poucos dias atrás, quando insistiu em acompanhá-la ao priorado do Ardchattan. Não esperava nenhuma missiva, assim não tinha nada que lhe ocultar. Talvez seu pai não pusesse já objeção alguma a que contasse a Arthur qual era seu papel na transmissão das mensagens. O compromisso parecia eliminar todas as suspeitas que ficassem em relação aos Campbell. À medida que se aproximava a guerra e que se intensificavam as preparações para a batalha, os Campbell passavam mais tempo junto a John de Lorn e de Alan, algo que Anna queria identificar como um sinal do degelo dessa geleira que significavam as velhas rixas.
Suspirou e passeou o olhar ao redor do aposento, enquanto sua criada terminava de lhe arrumar o cabelo. Era o sexto dia de agosto, um dia mais perto do fim da trégua. Ao olhar pela janela de sua câmara na torre viu um birlinn deitando a baía, o maior porto de ancoragem do castelo. Era um acontecimento habitual, algo que não teria chamado sua atenção a não ser pela rapidez a que se deslocava. O reluzente navio de madeira mal tinha chegado à borda quando seus ocupantes saltaram pela amurada e correram para as portas da fortaleza. O coração lhe deu um tombo, consciente de que algo estava passando. Sem incomodar em por o véu, baixou a escada da torre correndo e se apresentou no pátio de armas ao mesmo tempo que seu pai recebia ao contingente de homens do birlinn: os MacNab.
—Que novas trazem? —perguntou seu pai.
O rosto do capitão dos MacNab era desolador.
—O rei Hood, milorde. Está a caminho.
Anna ficou sem fôlego, seu sangue congelado pelo medo. Chegava o momento, o dia que tanto tinha temido e desejado ao mesmo tempo. A batalha que poderia significar o fim da guerra.
O castelo era um tumulto. Os guerreiros, agrupados, pareciam comovidos pela excitação, ansiosos pela oportunidade de destruir ao inimigo. Não obstante, as poucas mulheres que rondavam por ali tinham umas reações muito diferentes: preocupação e medo, exatamente o mesmo que sentia Anna. Seu olhar procurou Arthur de maneira instintiva. Também lhe afetavam as notícias. Observava-a com uma intensidade ardente que não via nele desde o ataque da floresta. Ficaram-se olhando uns instantes até que Arthur voltou o olhar para os MacNab.
O pai de Anna fez passar aos recém chegados ao grande salão. Anna os seguiu, ansiosa por saber tanto como pudesse. Infelizmente, os MacNab não tinham muita mais informação. Um de seus rastreadores lhes alertou de que Bruce tinha saído do castelo do conde de Garioch em Inverurie com tropas de ao menos três mil homens e se dirigia para o oeste. Três mil homens contra os oitocentos de seu pai! Não obstante, não sabiam se tinham intenção de dirigir-se primeiro ao Ross ou ao Lorn.
Bruce não perdia tempo. Estaria preparado para atacar assim que expirasse a trégua. Por Deus bendito, aqueles bárbaros estariam chamando a suas portas para a semana próxima.
Sua mãe e suas irmãs se apressaram a baixar ao salão para ouvir a comoção. Ao encontrar-se com ela depois da multidão, perguntaram-se pelo que acontecia. Anna as pôs em dia rapidamente e viu seu próprio medo refletido na inquietação de seus rostos. Era um dia que todos esperavam, mas então quando começavam a dobrar os sinos.
—Tão logo? —disse sua mãe, presa do medo — Mas se apenas acaba de se recuperar.
—Não lhe acontecerá nada, mãe — repôs Anna, tentando convencer-se também a si mesmo.
Mas não era seu pai o único que preocupava a Anna. O que aconteceria…? Não, não podia pensar nisso. Arthur retornaria. Tudo estariam logo de volta. Não obstante, a incerteza não se desvanecia. A arbitrariedade da guerra, isso era precisamente o que Anna sempre tinha desejado evitar. Por que tinha que apaixonar-se por um cavalheiro?
A reunião durou um momento mais. Ao entrar no salão perdeu a pista de Arthur e seus irmãos, mas assim que o bate-papo derivou para uma missão de reconhecimento, viu-o adiantar-se para a mesa de cavalete do estrado no que seu pai estava sentado junto a alguns de seus homens e o capitão MacNab. Quando Anna adivinhou o que estava a ponto de fazer lhe gelou o coração. Quis chamá-lo, lhe dizer que não o fizesse, mas era consciente de que isso era impossível, e Arthur fez justamente o que ela pensava.
—Eu irei, milorde — disse.
John de Lorn olhou para ele e assentiu, obviamente agradecido de que se apresentasse como voluntário. Alan também se ofereceu a ir, mas seu pai se negou, alegando que o necessitariam no castelo. Ao final, decidiu-se que seu irmão Ewen lideraria o grupo de reconhecimento, que também incluía os irmãos de Arthur.
Não perderam tempo. Em pouco menos de uma hora já estavam reunidos no barmkin para partir. Anna ficou ali de pé junto a sua mãe, sentindo-se como se estivesse dando voltas em um redemoinho sem nada ao que agarrar-se. Observava com o coração em um punho como Arthur se preparava para a marcha. Este acabou de assegurar seus pertences ao cavalo, tomou as rédeas e se situou ao pé do animal, disposto a montar. A Anna deu um tombo o coração. Acaso pretendia partir sem lhe dizer adeus?
Se essa era sua intenção, deveu mudar de idéia. Deu as rédeas a um dos cavalariços e se voltou para dirigir-se para ela. Tinha a mandíbula tão tensa como os ombros, como se temesse enfrentar-se com algo desagradável. «Eu», pensou Anna, sentindo uma pontada no peito.
—Lady Anna — disse Arthur com uma leve inclinação da cabeça.
A mãe e as irmãs deram a volta sem muita sutileza protegendo-os quanto podiam do resto da multidão para lhes dar um pouco de privacidade. Mas Anna seguia sendo plenamente consciente de que não estavam sozinhos.
—Têm que partir?
Odiou a si mesma por perguntar, mas não pôde evitá-lo. Sabia que esse era seu trabalho, mas não queria que partisse. Sempre seria assim?
—Sim.
Houve uma pausa tão larga que pareceu definitiva.
—Quanto tempo estará fora?
Seus olhos brilharam de um modo estranho, mas o brilho desapareceu antes que Anna pudesse reconhecer sua origem.
—Depende do rápido que se aproxime o exército. Um par de dias, talvez mais.
Ela ficou olhando seu bonito rosto, tentando memorizar as duras linhas de seus traços, as cicatrizes, o estranho dourado ambarino de seus olhos.
—Tomará cuidado?
Era uma pergunta estúpida, mas tinha que fazer de todas formas. Um simulacro de sorriso apareceu nas comissuras da boca de Arthur.
—Sim.
Manteve-lhe o olhar durante um instante mais, como se também ele tentasse retê-la na memória. Ela nunca tinha visto tal expressão de desconsolo em seu rosto. Um calafrio de pavor percorreu sua nuca. «É a guerra — disse — Está centrado na batalha que tem diante de si.»
Arthur tomou sua mão e a levou aos lábios fazendo que a estampagem cálida de seus lábios irradiasse por toda sua pele.
—Adeus, lady Anna.
Algo no tom de sua voz lhe rasgou o coração. Quando ele se voltou para partir, Anna ficou com vontade desesperada para voltar a chamá-lo. «O tipo de homem que está sempre olhando para a porta…» Não. Convenceu a si mesma de que se comportava como uma parva. Não a estava abandonando. Simplesmente estaria fora uns dias. Mas por que lhe parecia que aquela despedida era para sempre?
Então, como se não pudesse conter-se, Arthur deu meia volta, agarrou-a pelo queixo e baixou a cabeça para beijá-la. Seus lábios acariciaram os de Anna em um suave e terno beijo que fez vibrar seu coração. Aquele beijo tinha sabor de nostalgia. A dor. E a arrependimento. Mas sobre todas as coisas, tinha sabor de despedida. Anna queria prolongá-lo, queria que durasse mais, mas antes que lhe desse tempo a reagir, o beijo tinha acabado. Arthur lhe soltou o queixo, manteve o olhar por um segundo agonizante e partiu. Não voltou a olhar atrás. Nenhuma só vez. Ela ficou olhando sua partida, aniquilada, sem saber muito bem o que tinha ocorrido. Permaneceu tocando os lábios em uma tentativa de apreender o calor e seu sabor por tanto tempo como fosse possível. Mas antes que o último dos homens saísse pelas portas do castelo esse calor já era história.
Arthur procurava uma saída e ao fim a tinha encontrado. A viagem de exploração em volta do Este lhe dava a oportunidade de fazer algo que meses atrás parecia impossível: retirar-se da missão. Tinha que fazer algo. Não podia ficar ali e deixar que a situação piorasse. Os dias seguintes a seu compromisso tinham sido insuportáveis. Fingir acabaria com ele. Anna estava tão feliz, tão encantada de casar-se com o homem que a trairia… Cada sorriso indeciso, cada olhar em busca de um consolo que ele não podia lhe oferecer, era como uma gota de ácido que remoia sua consciência. Não era capaz de fazer isso. Embora significasse sacrificar sua missão. O irônico era que não podia ter escolhido maneira mais efetiva de infiltrar-se nos MacDougall que um compromisso com a filha do senhor das terras. O compromisso, unido ao feito de salvar a vida de Alan, deu-lhe acesso ao centro nevrálgico do poder: o conselho de nobres. Dizia a si mesmo que não sacrificava sua missão. Fazia suficiente identificando às mulheres como as transmissoras de mensagens, passando informação sobre a preparação e efetivos do MacDougall e entregando um mapa do terreno, assim como evitando uma aliança com o Ross, embora isso não ocorresse exatamente da maneira em que o tinha planejado. Estavam nas vésperas da batalha. O rei Robert entenderia.
Tinham passado três dias de sua desastrosa partida e caía a madrugada. Nunca acreditou que lhe custaria tanto despedir-se dela. Mas partir de seu lado, sabendo que possivelmente não a veria de novo, fez-lhe perder toda determinação. Não deveria tê-la beijado, mas ao olhar seus olhos e ver esse rosto de medo e preocupação, não pôde resistir. Era consciente de que jamais voltaria a ter essa sensação de conexão absoluta e precisava desfrutar dela uma vez mais.
Arthur olhou a retaguarda para assegurar-se de que ninguém o tinha seguido e atou o cavalo a uma árvore. Encontrava-se a menos de dois quilômetros do lugar onde os homens de Bruce tinham acampado a noite anterior. Faria o resto do trajeto a pé. Era provável que a essa hora da madrugada os sentinelas disparassem contra tudo que se aproximasse do acampamento sem fazer perguntas e o cavalo o delataria. Seus sentidos se aguçavam à medida que se aproximava do acampamento do rei, antecipando-se a qualquer sinal que delatasse a presença da Guarda que o circundava. Arriscava-se muito chegando sem prévio aviso, mas não havia alternativa. Não tinha tido tempo de combinar um encontro ou enviar uma mensagem a guarda, e a partida de reconhecimento dos MacDougall se preparava para retornar ao castelo de Dunstaffnage ao dia seguinte com o relatório. Ofereceu-se voluntário para fazer patrulha de noite, consciente de que essa seria sua única oportunidade. Sabia que Chefe teria a um dos membros dos Guardiões das Highlands fazendo turno de vigilância, como cada noite, assim tentaria contatar primeiro com algum de seus companheiros.
De repente sentiu um comichão na nuca. Deteve-se o notar a estranha mudança de ar que percebia cada vez que alguém se aproximava. Escondeu-se entre a escuridão da noite e esperou, sabendo de que antes de ver quem se aproximasse o ouviria chegar. Mas passados uns minutos percebeu de que algo não funcionava. Ou o homem se deslocou ou suas habilidades voltavam a falhar.
De novo.
Mas quando conseguiu ver a figura que emergia depois de uma árvore a pouco mais de cinco metros de distância percebeu de que havia uma terceira resposta: o sigilo daquele homem igualava suas capacidades perceptivas. «Maldição.» Não era isso o que necessitava. Emitiu o uivo que iria identificá-lo como presença amistosa. Não obstante, suspeitava que o homem que se aproximava podia ter uma opinião diferente a respeito.
MacRuairi ficou imóvel e apesar da contra-senha apontou com seu arco na direção da que provinha sua voz.
—Quem vem?
—Guardião - respondeu Arthur levantando o visor de aço de seu elmo e saindo de trás da árvore que o resguardava.
Inclusive na escuridão, apreciou o brilho diabólico nos olhos entreabertos do MacRuairi, que deslocou o braço para a esquerda para lhe apontar entre as sobrancelhas. MacRuairi possuía uma habilidade extraordinária para ver na escuridão, algo fatal de lembrar-se justo nesse momento.
—Ides fazer uso da arma? —disse Arthur.
—Ainda não decidi. Uma morte não me parece muito comparada com nove. Poderia alegar que pensei que era um traidor, o qual não estaria muito longe da verdade.
Arthur engoliu a grosseira réplica que foi a seus lábios. Saber que merecia o menosprezo daquele homem, mas não facilitava o fato de ouvi-lo. Ignorou a flecha que lhe apontava e seguiu adiante.
—Acha que não me arrependo do que aconteceu?
—Arrepende-te? Pois te asseguro que não saberia o que te dizer. Parecia desfrutar lutando junto a Alan MacDougall, por não mencionar que salvou sua puta vida.
Apenas os separavam alguns metros, mas MacRuairi não teria errado o tiro nem a centenas de metros de distância.
—Responderei ante o rei e não ante você, Víbora. Tenho que falar com ele.
—Está dormindo.
Arthur apertou os dentes e os punhos. Brigar com o MacRuairi não solucionaria nada, mas não tinha tempo para tolices.
—Pois então terá que despertá-lo. E também a meu irmão.
Ao final, MacRuairi optou por baixar o arco.
—Espero por seu bem que tragas boas notícias - disse, fulminando-o com o olhar — E será melhor que tudo aquilo valha a pena.
Tinha valido a pena? Arthur não teve tempo de pensar nesses termos naquele momento. Não teve tempo de fazer esse tipo de análise. Estava muito ocupado em defender-se e proteger a Anna.
Menos de quinze minutos depois o fizeram passar à tenda do rei. Se Bruce estava dormindo, não havia nada em seu rosto que indicasse que acabava de despertar. Levava seus escuros cabelos penteados, tinha os olhos tão limpos e chicoteados como sempre, além de ir vestido com as perneiras e uma sobreveste negra de finos bordados.
Estava sentado sobre uma arca. A ausência de mobiliário concordava com a ligeireza e a rapidez com as que se deslocava o exército. Ao rei Eduardo nem sequer teria passado pela cabeça fazer campanha sem carregar em seus carros seu equipamento doméstico e sua baixela. Mas detrás de viver como um foragido durante um ano aquartelado entre o povo, Robert Bruce havia se acostumado a contentar-se com muito menos.
A sua esquerda tinha ao Neil, ao qual se via um tanto mais desalinhado, e à direita ao Tor MacLeod, líder dos Guardiões das Highlands. Tanto a expressão deste como a do próprio rei eram desalentadoras. A pergunta que Arthur adivinhou no olhar de seu irmão cortava como uma faca. Seria possível que questionasse sua lealdade?
—Que diabos ocorreu, Guardião? —perguntou o rei.
Arthur narrou da maneira mais sucinta possível os eventos que levaram a sua inesperada viagem ao norte, o compromisso de bodas previsto entre a filha de Lorn e sir Hugh Ross, as esperanças de unir forças de Lorn e a intenção de Arthur de evitar que a aliança se levasse a cabo.
—Conseguiram-no? —perguntou Bruce.
Arthur manteve uma expressão neutra.
—Sim, majestade.
O rei assentiu, agradado. Nenhum dos pressente pareceu perguntar a respeito de como o tinha conseguido. Arthur continuou explicando como tinha obtido que a patrulha se desviasse do grupo dos MacDougall em seu caminho ao norte e afirmou que se viu obrigado a defender-se para proteger sua identidade.
—Assim foi você? —disse MacLeod — Nossos homens do castelo do Urquhart estavam muito zangados porque um só homem conseguisse escapar deles.
—Não de tudo. Oxalá tivesse podido, mas me encurralaram em um escarpado. Não podia lhes contar quem era.
Ninguém disse uma palavra. Todos sabiam tão bem como ele que essas situações eram inevitáveis para preservar sua identidade, mas a nenhum deles gostava.
Depois Arthur passou a explicar a forma em que MacRuairi e seus homens o tinham surpreendido quando voltavam para o Dunstaffnage.
Neil arqueou as sobrancelhas.
—Não os ouviu chegar?
Arthur negou com a cabeça sem dar mais explicações. Referiu a princípio, simplesmente reagiu ao ataque e que depois, ao se dar conta de quem eram, passou a manobras defensivas. Quando chegou à parte em que salvou a vida do Alan MacDougall não ofereceu mais desculpa que a verdade. Somente tentava deter o golpe, matar ao guerreiro fora um acidente.
Neil fez a pergunta que sem dúvida rondava as cabeças de todos eles.
—Mas por que teria que lhe salvar a vida? Proteger ao herdeiro de Lorn não era parte de sua missão. Assassinar a ele seria quase tão bom como assassinar ao próprio Lorn.
Arthur olhou a seu irmão nos olhos sem fugir a verdade.
—Não tentava protegê-lo.
—É pela moça —disse MacLeod, juntando todas as peças — Sente algo por ela.
Arthur se voltou para seu capitão. Não o negou.
—Sim.
—A filha de Lorn! —exclamou Neil sem poder ocultar sua indignação — Maldição, irmão. No que estava pensando?
Arthur não tinha uma resposta para isso. Não havia.
—O que estais dizendo, Guardião? —disse o rei com olhos negros tão duros como o ébano — Uma moça o tem feito esquecer em que lado está?
—Minha lealdade está contigo, meu senhor - disse Arthur com firmeza.
Mas o dardo envenenado do rei ardia.
Neil ficou olhando-o fixamente.
—Mudaste de ideia respeito ao Lorn? Esquece-se do que fez a nosso pai?
Arthur endureceu a expressão de seu rosto.
—É obvio que não. Mas minha vontade de ver a destruição do John de Lorn não se faz extensiva a sua filha. Por isso estou aqui. Preciso sair do castelo de Dunstaffnage.
A sala ficou em um silêncio sepulcral. Arthur notava que o olhar fixo de seu irmão queimava, mas não se atrevia a olhar em sua direção. Tinha falhado. Tinha falhado ao homem que era como um pai para ele. Não queria ver a decepção em seu rosto.
—Está em uma situação comprometida? —perguntou o rei — Há perigo de que o descubram?
Arthur negou com a cabeça.
—A moça sabe que oculto algo, mas não acredito que suspeite de nada.
—Então é a moça a causa de que desejes abandonar a missão antes de cumpri-la?
—A coisa se complicou.
Consciente de quão insuficiente parecia isso, inclusive para si mesmo, explicou que Lorn lhe tinha interrogado sobre o ataque e acrescentou que ao acreditar que o ancião suspeitava algo, viu-se obrigado a aceitar o compromisso.
—Mas isso são notícias fantásticas - disse o rei, contente pela primeira vez desde que Arthur entrasse na tenda — chegastes mais perto de Lorn do que jamais acreditei possível. Sinto muito que a moça esteja implicada, mas não sofrerá verdadeiro dano. O coração de uma jovem sara com facilidade.
Para falar a verdade, o rei, conhecido por seu êxito com as moças, tinha muita mais experiência que ele, mas nesse caso Arthur não acreditava que acertasse. Anna amava com muita bravura. Estava muito cega pelo amor.
—Não posso permitir que abandone —finalizou o rei — Ainda não. Não tendo a batalha tão perto. Necessito-te dentro para que me digas o que é o que se propõem. A informação que nos transmite é muito valiosa. A vitória está muito perto para deixá-la escapar no último momento. John de Lorn é um demônio com o coração podre, mas não por isso subestimo suas táticas de guerra nem sua capacidade para a surpresa.
Arthur sabia que o rei não atenderia a razões. Robert Bruce estava desejando desforrar-se. Lorn o tinha vencido antes e essa vez não permitiria que nada se interpusesse em seu caminho. O coração de uma mulher era um pequeno preço a pagar.
—Atacaremos o castelo na madrugada do dia dezesseis —disse MacLeod, dando a impressão de advertir sua frustração — Só serão alguns dias mais.
Mas ele não conhecia Anna MacDougall. Arthur teria preferido enfrentar-se às endiabradas máquinas de guerra do primeiro rei Eduardo que tentar resistir diante de Anna durante «somente uns dias mais».
C O N T I N U A
Capítulo 11
Anna jogou o capuz para trás ao mesmo tempo que entrava na câmara de seu pai. Soltou a cesta na mesa e se sentou juntou a este e sua mãe ao calor das brasas da lareira. Inclusive no verão, os muros de pedra do castelo faziam dele um lugar frio e com correntes de ar.
Sua mãe levantou a cabeça do novo estandarte de seda no qual trabalhava e a olhou, sentida saudades.
—De onde vem, Annie querida? É tarde.
—Fui levar bolos aos monges do priorado —respondeu Anna inclinando-se para beijar sua mãe.
Encontrou-se com o olhar de seu pai. A expressão deste se escureceu ao ver respondida sua tácita pergunta com uma leve negação de cabeça. Tossiu antes que sua esposa pudesse fazer mais objeções. Embora Anna soubesse que o fazia e que propósito, aquele áspero e úmido som a preocupava.
—Não me falou de uma nova infusão de ervas do pai Gilbert que ajudaria a aliviar o encharcamento de meus pulmões?
Sua mãe se sobressaltou, afastou seus bordados e ficou em pé de repente.
—Tinha esquecido. Direi ao Cook que o prepare agora mesmo.
Assim que a porta se fechou atrás dela seu pai disse:
—O rei Eduardo não respondeu?
Anna negou com a cabeça.
—Já deveríamos ter notícias dele.
Seu pai se levantou e começou a perambular diante da chaminé, enfurecendo-se mais a cada passo que dava.
—Esses asquerosos rufiões de Bruce devem tê-lo interceptado. Parece que a metade de nossas mensagens não chega a seu destino, nem com a ajuda das mulheres — disse apertando a mandíbula — Mas dado que não ouvimos nada sobre o destacamento de soldados, acredito que podemos supor que não enviarão a ninguém. O jovem Eduardo está muito ocupado tentando salvar sua própria guarida para preocupar-se com a nossa.
Anna não podia acreditar que depois de tudo o que tinha feito seu pai pelo primeiro rei Eduardo, o novo rei o abandonaria de tal modo.
«Que se deita com crianças…»
Veio a sua mente essa velha história, mas Anna a tirou da cabeça porque em certo sentido lhe parecia desleal. Seu pai não teve outra opção. O primeiro rei Eduardo era muito poderoso. Depois da derrota de Wallace em Falkirk, ou se fazia aliado do rei inglês ou lhe confiscavam as terras. Quando Bruce usurpou a coroa, a aliança se fez mais necessária ainda. Se Bruce e os MacDonald estavam em um lado, os MacDougall não podiam mais que apoiar ao outro: Inglaterra.
—Não deveríamos tentar enviar outra missiva?
—Não temos tempo — espetou seu pai, claramente molesto pelo que percebia como uma pergunta estúpida — Os ingleses se movem com lentidão. Demorariam semanas em chegar tão ao norte carregando toda essa baixela e esses móveis para estar cômodos. Inclusive no caso de que Eduardo mudasse de opinião, necessitaria dias para reunir aos homens. O rei Hood estaria aqui junto a sua tropa de assassinos salteadores de caminhos antes que aos ingleses desse tempo de encher seus carros de ninharias.
Anna tentava não tomar como algo pessoal a cólera do pai. Tinha todo o direito a perder os nervos. O inimigo estava virtualmente em cima e ninguém vinha em sua ajuda. O conde de Ross, igual ao rei Eduardo, ainda não tinha respondido a sua petição de unir forças. Ia ficando patentemente claro que estariam sozinhos ante Bruce: oitocentos homens contra os três mil com que contava o usurpador conforme o informe.
O medo prendia a garganta. Os MacDougall eram ferozes combatentes e Lorn um dos melhores generais de Escócia na batalha, mas poderiam superar tal desvantagem? Seu pai estivera a ponto de derrotar ao Bruce anteriormente, mas então o rei foragido teve que fugir com umas poucas centenas de homens ante suas mais numerosas forças. Nessa ocasião seriam os MacDougall quem estaria em clara inferioridade numérica. «Pouco importa», pensou Anna com integridade. Seu pai ganharia de todos os modos. Somente um MacDougall valia por cinco rebeldes. Mesmo assim, por mais vezes que se dissesse que John de Lorn superaria inclusive a pior das apostas, seu leal coração não podia negar que existia a mais mínima, a ínfima possibilidade de que perdessem.
«Perder.»
Um calafrio lhe percorreu o corpo. Somente pensar nessa palavra lhe parecia a mais vil das blasfêmias. Não podia permitir que isso ocorresse. As conseqüências eram muito execráveis para as considerar. Mas tudo aquilo que apreciava, todas suas esperanças de um futuro feliz, parecia pender sobre a ponta de um alfinete, ou, neste caso, de uma espada. O mais leve empurrãozinho faria que tudo se precipitasse no vazio. Os grossos muros do castelo de repente lhe pareciam finas vidraças, dispostas a romper-se em mil pedaços. Sua situação era complicada, inclusive até desesperada. Contudo, havia um modo de conseguir atenuá-la um pouco.
O tempo pareceu deter-se. O pavor se apoderava de seu estômago em um tenso nó e o formigamento que isso provocava aumentava à medida que Anna via do que seria obrigada a fazer. A solução espreitava no mais profundo de sua mente desde fazia meses, mas não queria considerá-la.
Anna se aferrou às abas de sua capa como se fossem uma corda a qual pudesse agarrar-se.
—E o que passa com Ross? —perguntou em voz baixa — Ainda fica tempo para que se apresente.
Seu pai a olhou com certo desdém.
—Sim, mas como digo já, não o fará.
Era reprovação o que advertia em seu olhar? Acaso se arrependia de ter dado opção? Anna aspirou profunda e entrecortadamente em uma tentativa de controlar o ritmo frenético de seu pulso. Sua gelada pele se cobriu com uma fina pátina de suor. O peito lhe oprimia tanto que mal podia respirar. Todo seu ser se rebelava contra o que estava a ponto de sugerir. Mas não ficava alternativa. Um marido era um pequeno preço a pagar em comparação com a sobrevivência de seu clã. casaria-se até com o mesmo diabo se fosse necessário.
—E se lhe desse um motivo para pensar melhor? —Seu pai a olhou nos olhos. Anna soube que tinha adivinhado o que sugeria pelo ar de reflexão que adotou seu olhar, embora talvez isso fosse o que ele esperava dela de um princípio — O que passaria se fizesse um rogo pessoal ao conde?
Teve que deter suas palavras. Seus dedos agarravam a lã da capa com tanta força que cortava a circulação. O coração pulsava a um ritmo frenético e martelava em suas têmporas. O estômago se decompôs. «Tudo irá bem. Eu me encarregarei de que funcione. Não é um homem tão temível.» Sir Arthur era alto, musculoso, de uma beleza sombria e, não obstante, nunca ficava nervosa em sua presença. Talvez tivesse superado seu medo aos guerreiros.
«Sir Arthur.» O coração deu um tombo. A imagem do cavalheiro apareceu ante seus olhos, mas a afastou de sua mente. Não significava nada para ela. Pouco importava que seu coração tivesse querido voar para ele momentaneamente. Embora as coisas fossem diferentes, ele já tinha expressado com uma claridade dolorosa o que sentia por ela: nada.
Mas teria que passar toda a vida tentando esquecer aquele beijo.
Seu pai esperava que continuasse, mas Anna não era capaz de encontrar as palavras.
—O que aconteceria…? —Anna teve que se deter para clarear a garganta — Se a oferta de sir Hugh segue em pé, estou disposta a aceitar sua proposta de matrimônio. Em muda, talvez o conde veja o benefício de unir nossas forças.
Seu pai não disse nada durante um momento, mas sim ficou estudando seu rosto com uma intensidade tal que a Anna pareceu estar retorcendo-se em seu interior.
—Crê que seguirá te querendo? Não teve nenhuma graça que o rechaçasse.
Ardiam-lhe as bochechas de vergonha de não ter parado pra pensar nessa possibilidade. Seu pai tinha razão. O jovem cavalheiro, ferido em seu nobre orgulho pelo rechaço, ficou uma fúria.
—Não sei, mas merece a pena tentar.
Já tinham machucado seu orgulho há pouco. O que importava um pouco mais ou menos?
—A sua mãe não gostará da idéia — disse John de Lorn olhando para a porta — Os caminhos podem ser muito perigosos com Bruce e seus homens por aí soltos.
Nisso tinha pensado Anna.
—Não se preocupará se Alan me acompanha. Levaremos uma boa escolta.
Seu pai assentiu enquanto acariciava o queixo.
—Sim. Seu irmão te manterá a salvo — disse com um sorriso, enquanto ela tentava mascarar seu desengano. Havia uma parte de Anna que esperava que seu pai se negasse. Este se levantou e a beijou no cocuruto — É uma boa garota, Annie querida.
Em geral Anna transbordava de alegria quando seu pai lhe dirigia um elogio, mas nessa ocasião teve vontade de chorar. Sua felicidade era um pequeno preço a pagar, mas, mesmo assim, era um preço a pagar. Seu pai a beliscou no queixo para que o olhasse os olhos. Anna piscou diante da cálida e úmida bruma do lar.
—Sabe que não lhe pediria isso se tivesse uma alternativa.
Uma solitária lágrima escorregou por sua bochecha. Tremia-lhe a boca, mas se esforçou por sorrir.
—Sei.
Naquele momento supunha que era sua única esperança. Não importava quão mau parecesse. Faria tudo o que estivesse em sua mão para assegurar a aliança.
De todos os modos tampouco havia ninguém que se interessasse por ela.
Entretanto, quando Anna abandonou os aposentos de seu pai, todas essas lágrimas que estivera agüentando saíram precipitadas em uma corrente de esperança extinta, uma esperança que nem sequer era consciente de estar albergando.
A volta de Arthur ao castelo, sozinho, não foi tão difícil de explicar como imaginava. Lorn estava ansioso por ouvir um relatório do que seu filho tinha descoberto a respeito de seus inimigos do oeste. A luta pela supremacia entre os três principais ramos dos descendentes de Somerled, os MacDonald, MacDougall e MacRuairi, levava anos dominando a política das Highlands Ocidentais. Quando morreu o último dos chefes do clã MacRuairi, deixando a sua filha Christina das Ilhas como única herdeira ao trono, estes perderam poder e o terna se reduziu a dois. Lachlan e seus irmãos eram todos filhos bastardos, um título que em seu caso era completamente castigo.
A informação de Ewen oferecida por Arthur a respeito da mobilização de tropas dos MacDonald ao longo da costa ocidental não era nada surpreendente, mas mesmo assim provocou um substancial arrebatamento de fúria no Lorn, e também inquietação, apesar de que procurasse ocultá-lo. Embora talvez não tanta como devesse, o qual o fazia perguntar-se o que teria planejado aquele conspirador briguento. E agora, graças a seu descobrimento no priorado, sabia perfeitamente como averiguar.
Mas como sua volta ao castelo foi em uma hora tardia, sua reunião com lady Anna teria que esperar até a manhã seguinte. dizia a si mesmo que estava inquieto simplesmente porque teria que encontrar um motivo para algo que seria como uma mudança de parecer repentino: em lugar de evitá-la, inventaria desculpas para estar com ela. Mas tampouco queria dar falsas esperanças à moça. Apesar de ter cometido o engano de beijá-la, e Deus, um enorme engano tinha sido aquele, uma relação entre eles era algo impossível. Sabia que não seria fácil. Certamente a moça teria passado toda a semana pensando naquele beijo. Deus sabia que ele mesmo não tinha sido capaz de pensar em outra coisa.
Embora já tinha visto ela cruzando o jardim de Ardchattan, quando a viu entrar no grande salão na manhã seguinte seus sentidos se avivaram como se fosse a primeira vez. Tudo parecia estar mais vivo, mais intenso. Jamais antes o tinha afetado tanto a presença de alguém como fazia nesse momento lady Anna MacDougall. encantou-se dela, de cada um dos detalhes, de cada matiz, das mechas de cabelo dourado que escapavam de seu véu azul à altura da fronte e as têmporas até os finos bordados de seda do cotehardy que rodeava sua figura em todos os lugares apropriados.
«Não…»
Deixou cair o olhar sobre seus seios. Ficou com a boca seca. Via, embora fossem imaginações dele, o mal esboçado relevo de seus mamilos perolando essa parte do tecido. Assaltaram-lhe as lembranças e uma onda de calor saiu de sua virilha. Pensar no tato daquela exuberante suavidade fez que endurecesse seu pau. Que impressionante tinha sido embalar esse seio, sentir o peso dessas carnes perfeitamente arredondadas sobre a palma de sua mão ao mesmo tempo que seu polegar acariciava o teso broto de seu mamilo. Amaldiçoou para si, subitamente incomodado por aquelas lembranças, muito viscerais, em conjunto.
Estava quente. Excitado. Faminto.
Como demônios ia olhar a moça sem lembrar-se das sensações que procurava ter seu corpo pego ao dela? Como poderia ver o sensual arco rosado de sua boca sem recordar quão doce sabor, a suavidade daqueles lábios sob os seus, e que o erotismo de suas línguas entrelaçadas o tinha feito entrar em um torvelinho de desejo mais forte que qualquer outra coisa que houvesse sentido alguma vez? Jamais poderia olhar essa pálida pele suave como a de um bebê, que era como veludo ao tato, sem recordar como a havia tocado.
Deus, quão único queria era atirá-la na cama, enrolar suas pernas a sua cintura e afundar até esquecer-se de tudo. Jesus, tinha que deixar de pensar nisso. Tinha que parar de torturar-se com coisas impossíveis. Sempre tinha sido capaz de reprimir seus impulsos, mas com a Anna era diferente.
Porque ela era diferente. E não fazia nenhuma graça reconhecê-lo.
Arthur se dava conta de como o observava seu irmão, mas não podia afastar o olhar. Seu coração pulsava mais depressa a cada passo que ela dava e cada um de seus nervos ficava em tensão enquanto se preparava para o momento em que ela se inteirasse de sua presença. Mas assim que a teve mais perto percebeu uma estranha pontada. Algo não ia bem.
Não sorria. Seus olhos não brilhavam com alegria e travessura. E sua risada, esse leve e efervescente som ao que poderia ouvir durante horas, permanecia em completo silêncio. acostumou-se tanto a seu perpétuo bom humor, ao despreocupado encanto com o que parecia iluminar os aposentos, que o vazio deixado por sua ausência obscurecia o grande salão.
Maldição. teria feito mais dano de que pensava? A culpa o atormentava.
Por um instante pensou que passaria junto a ele, mas então notou o peso de seu olhar. ficaram contemplando o um ao outro. A quietude era absoluta.
Esperou ver sua reação. Esperava presenciar como a cor subia por suas bochechas, como lhe cortava a respiração e se acelerava o pulso em seu pescoço. Esperava que se delatasse. Mas em vez disso ficou em guarda.
Lady Anna levava todos seus pensamentos e sentimentos escritos no rosto. Essa era uma das coisas que Arthur encontrava tão cativantes e irresistíveis dela. A inocência e a emoção infantil que mostrava, sua preciosa vulnerabilidade. Mas essa expressão, antes sempre acessível, permanecia oculta.
Percebeu a frieza de seu olhar por um breve instante dantes que afastasse e passasse por ele. Como se tivesse deixado de existir. Como se ela jamais se derretera em seus braços. Como se o beijo no que não podia deixar de pensar jamais existira para ela. Como se não tivesse estado a ponto de sucumbir sob seu corpo.
Sua indiferença lhe corroía o peito como se de um ácido se tratasse. Queimava. Doía. O fazia perder o controle por completo, sentir a necessidade primitiva de cometer alguma loucura, como empurrá-la contra a parede e beijá-la até que se rendesse a seus pés uma vez mais.
Mas ele era um homem que mantinha o controle. refreava-se. Era diferente. Não tinha necessidades de tal tipo. E entretanto, com um só olhar de frieza, Anna MacDougall conseguia tirar dele os impulsos bárbaros que levava no sangue.
Ao que parecia tinha conseguido seu objetivo. Seu cruel rechaço sortia efeito. Não deixava de ser irônico que se mostrasse indiferente justo quando ele desejava que não fosse assim. Ou pode ser que nunca tivesse estado interessada nele. Talvez o único que queria fosse vigiá-lo.
azedou a expressão e se o flexionaram os músculos, mais molesto por esse pensamento do que gostaria de admitir. Por desgraça, seu irmão se mostrava perceptivo. Dugald simulou um calafrio.
—Vá, parece que faz um pouco de frio por aqui. Acredito que a dama já esqueceu o capricho, irmãozinho. Com o tanto que tentou, pensei que estaria mais contente — disse, fazendo uma pausa para negar com a cabeça — Será possível que ao fim te tenha feito cair uma mulher? Acreditava que isso não aconteceria nunca.
Arthur se recostou sobre a parede de pedra que tinha trás de si, aparentando uma indiferença que não sentia. Era certo que gostava dela, mas antes morto que deixar que Dugald conhecesse sua debilidade.
—Não é mais que uma moça apetecível.
—Mais apetecível ainda porque não pode tê-la.
Arthur encolheu os ombros e deu um longo gole a seu cuirm até esvaziar a taça.
—O que eu quero dela não é algo que possa me dar uma inocente jovem da nobreza.
Dugald riu e lhe deu uma palmada no braço.
—Compartilho sua dor, irmãozinho. Eu mesmo estou sentindo um pouco parecido. Sei de uma moça com uma boca talentosa que faria bastante por aliviá-lo. Mandarei a ti.
Arthur desviou o olhar para o tablado em que se acabava de sentar lady Anna. Tentava pelo menos. Tentava. Mas não lhe interessavam as mulheres de seu irmão. Franziu o cenho em um meia sorriso.
—Você compartilhando, irmão? Não parece você mesmo. Mas neste caso não será necessário. Não acredito que tenha problemas para encontrar alívio.
Se quisesse, sabia de algumas mulheres entre as que podia escolher. O problema era que não queria. Ao menos, não com elas.
Dugald encolheu os ombros.
—Como deseje — disse aproximando-se dele com um amplo sorriso — Mas não sabe o que te perde. Essa moça poderia deixar seca a uma vaca com a boca que tem e faz umas coisas com a língua que…
A voz do Dugald se confundiu com o ruído de fundo. As perversas habilidades que pudesse representar a fulana do Dugald não lhe interessavam. Arthur voltou o olhar para o estrado. Ela era quem o interessava, maldita seja. Embora Deus sabia que não deveria ser assim. Mas parecia que Arthur fosse invisível, porque não olhou uma só vez em sua direção. Sua irritação crescia a cada minuto. Aferrava com força a taça de estanho e a enchia uma e outra vez à medida que o ágape avançava. Seu plano para aproximar-se dela seria mais complicado do que pensava, mas acreditava que se livraria dele tão facilmente estava muito equivocada.
«Retornou.»
Anna se rebelou ante o inoportuno desejo que arremetia contra seu peito e se obrigou a não olhar em sua direção. A não pensar nele. Sir Arthur não era para ela. Jamais foi. Seu destino estava concretizado. Já tinha tomado sua decisão. Seu pai e seu clã contavam com ela. Era muito tarde para arrepender-se ou pensar melhor, por mais que vê-lo devolvesse todas essas ingratas emoções de repente em uma pancada.
Como não se fixou nele a princípio, quando nesse momento já não podia ver nenhuma outra pessoa? Aquele orgulhoso jovem cavalheiro de escura beleza era o homem mais bonito de toda a sala. E sem dúvida também o mais forte. Suas bochechas se acaloraram. somente olhar sua figura alta e de largos ombros voltavam as lembranças de seu torso nu. Cada um de seus esculturais músculos. Cada uma de suas rígidas linhas. Cada um dos gramas de sua musculosa carne.
Tentava ignorá-lo, mas sentia o peso de seu olhar enquanto comia. Ou tentava comer, já que tinha a boca completamente seca e a comida lhe parecia insípida e terrosa. Olhava-a com tal intensidade que dava vontade de sair correndo. Algo que fez assim que teve oportunidade.
Anna se apressou a sair do grande salão com mais sentimentos dos que podia albergar, correu pela escadas para sua câmara da torre e ficou a pinçar no armário em busca de sua capa de montaria. Precisava sair dali.
Um dia. Somente tinha que o evitar durante um dia e depois disso partiria. Tinham previsto partir para o castelo de Auldearn, a fortaleza real do conde de Ross, na manhã seguinte. por que não podia permanecer fosse do castelo até que ela partisse? Assim tudo teria sido muito mais fácil.
Em seu desespero por escapar, revolvia os montes de objetos de lã e de seda que penduravam de seu armário sem importar a desordem que criava. Onde estaria?
Estava a ponto de enfrentar o frio matinal e sair de todos os modos quando percebeu de que provavelmente sua criada já teria posto a capa em sua arca para a viagem. Abriu a tampa de madeira e deixou escapar um suspiro de alívio ao ver que a peça de lã axadrezado de cores cinza, azul e verde estava dobrada em cima de tudo. A jogou rapidamente sobre os ombros, agarrou em braços Escudeiro, temendo que o cachorrinho saísse correndo em busca do cavalheiro pródigo, e voltou a descer a escada como um torvelinho. antes de sair ao barmkin olhou pela fresta da porta para assegurar-se de que tinha via livre. Não queria correr nenhum risco de topar com ele. Sabia que aquilo era ridículo. Sir Arthur fazia todo o possível para evitá-la. Mas havia algo na forma em que a tinha olhado durante o café da manhã que chamava à cautela.
Cruzou o pátio e se dirigiu para os estábulos. Uma vez na segurança de seu interior soltou ao revoltoso cão no chão e fez que o cavalariço chamasse Robby enquanto ela preparava os arreios de seu cavalo.
Não tinha nenhum destino em mente, com tal de sair do castelo era suficiente. A impressionante fortificação de pedra e os grandiosos muros do barmkin pareciam muito pequenos de repente. Acabada sua tarefa, dispôs-se a recolher ao Escudeiro do chão quando a porta se abriu e o cachorrinho prorrompeu em uivos e ganidos ao mesmo tempo que saltava de seus braços disparado como uma flecha.
—Merda! —saiu de seus lábios antes que desse tempo a refrear-se.
Não precisava olhar para saber quem era. Se a reação de Escudeiro não dizia, assim fazia seu próprio corpo. O ar mudou. A pele lhe ardia. Seus sentidos despertaram. O aposento esquentou imediatamente e o leve aroma de fragrância masculina se filtrava através dos penetrantes e terrestres aromas do estábulo. Fechou os olhos, rezou uma prece que os céus lhe dessem força e ficou em pé lentamente para enfrentar a ele.
Seus olhares se encontraram. A repentina excitação que a embargou foi como um látego que a chamasse o ordem. Aquela era uma impressão que parecia não diminuir nunca. cortou a respiração, ao mesmo tempo que essa aguda e repentina opressão voltava a lhe envolver o peito e espremê-la. Um irritante acesso de nostalgia se formava em seu interior, mas esmagou com rapidez, sem compaixão. Ele não significava nada para ela. Já não. Não depois do ocorrido nos barracões. A tinha ensinado quão errado era para ela. E mais valia que acreditasse.
Controlou suas feições para fazer delas uma máscara impassível, tirando provisão de cada gota de sangue real que corria por suas veias. Era descendente de reis, tataraneta legítima, seis gerações depois, do poderoso Somerled. Saudou-o com uma ligeira inclinação da cabeça e disse friamente: —Sir Arthur, vejo que retornastes.
Sua tentativa de mostrar-se digna se viu em certo modo arruinado pela tremor de sua voz. Uma coisa era fingir que não lhe afetava sua presença em um salão cheio de gente e outra muito diferente fazê-lo em um pequeno estábulo. A sós. Enquanto ele a olhava dessa maneira tão intensa. Com raiva. Tinha o rosto avermelhado por completo, à exceção das comissuras da boca e de sua palpitante têmpora, que para sua desgraça estavam brancas.
O coração pulsava a toda pressa. Onde estava Iain? A cavalariço já deveria ter retornado.
Arthur pareceu ler sua mente e endureceu o olhar, algo que não fez a não ser enervá-la mais, dado que já era suficiente severo. Não tinha motivos para estar furioso com ela.
—O moço não virá. Disselhe que a levaria aonde precise ir.
Por Deus, isso não! Não queria ir com ele a nenhuma parte. Nem sequer queria o ter perto. Anna ergueu o queixo, negando-se a que a intimidasse a sensação de perigo que lhe transmitia. Não tinha feito nada mau. Somente esperava que não se inteirasse de como lhe tremiam as mãos.
—Isso não será necessário.
Arthur deu um passo à frente e Anna fez esforços em não cambalear-se. Mas o sangue pulsava com força em seu pescoço. E ele viu. O sorriso que se desenhou em seus lábios a fez sentir como um camundongo ante os olhos de um gato.
—Temo-me que sim, será. Se saíres do castelo partirei contigo. —Arthur a olhou de tal modo que fez que a Anna fervesse o sangue — Me parece que esquecestes algo.
Gaguejou, completamente deslocada pelo calor que fluía por suas veias.
—O que… o que?
—Sua cesta — disse olhando-a nos olhos. Anna ficou gelada, decomposta pela surpresa. Não era possível que soubesse. Quase suspirou de alívio quando ele acrescentou—: Não acredito ter visto sair do castelo sem ela.
Muito observador, mais do que convinha. Sir Arthur era perigoso em muitas e diferentes formas. Seu pai iria às nuvens se alguém descobrisse o que ela e algumas das outras mulheres faziam. Anna se recompôs em seguida, irritada por permitir que a angustiasse.
—Só tinha intenção de sair a cavalgar. Hoje não visito ninguém da vila.
Arthur ficou olhando-a por mais tempo do que devido, e Anna voltou a perguntar-se se saberia algo. Entretanto, nessa ocasião sua expressão não traiu seus pensamentos.
Uma série de latidos frenéticos fez que Arthur dirigisse sua atenção ao chão, para o cão que saltava sobre sua perna.
—Abaixo! —disse em uma voz que não aceitava discussão. O cão se sentou imediatamente e ficou olhando-o com cara de adoração — Seu cachorrinho precisa aprender maneiras.
Anna franziu os lábios.
—Gosta de ti.
«Deus saberá por que motivo.» Tentar tirar um pouco de afeto de Arthur Campbell era como querer extrair água de uma rocha, uma experiência condenada ao fracasso e a frustração. Arthur entreabriu os olhos como se Anna houvesse dito isso em voz alta.
—Normalmente os animais gozam de bons instintos.
—Normalmente sim — concedeu, deixando muito claro que ela pensava diferente nesse caso.
Aquele brilho perigoso voltou a encher seu olhar.
—E o que tem que você, Anna? O que dizem seus instintos?
«Corre. te esconda. te afaste dele tanto como possa para que não te faça mais dano.» Olhar essa mandíbula afiada e recortada, seus sensuais e carnudos lábios e esses olhos escuros jateados de âmbar era já suficientemente doloroso.
Afastou o olhar, contendo a emoção que ia a sua garganta.
—Eu não faço caso a meus instintos.
Ao menos já não fazia. Estavam errados. Seus instintos a tinham feito acreditar que entre eles havia algo especial. Que talvez ele tivesse necessidade dela. Que se sentia sozinho. E que possivelmente fosse diferente ao que parecia: um ambicioso cavalheiro, um soldado valente que vivia por e para sua espada.
Inclusive nesse preciso momento seus instintos lhe faziam acreditar que a tensão que bulia entre ambos significava algo, que bastaria que tomasse em seus braços e a beijasse de novo para que tudo voltasse para a normalidade. Mas era muito tarde para isso.
—Os instintos só servem para te obrigar a fazer coisas das que logo te arrepende — acrescentou.
Arthur esticou o queixo e o músculo de sua mandíbula começou a tremer de modo detestável. aproximou-se mais ainda. Tão perto que Anna sentia todo o calor que irradiava. Tão perto que cheirava o especiado aroma de sol que emanava sua pele. Começaram a tremer as pernas. Por Deus, tinha esquecido quão alto era. Parecia que muros se fechassem em volto dela. Custava-lhe respirar. Custava-lhe inclusive pensar enquanto se abatia sobre ela de tal modo. Usava sua selvagem masculinidade contra ela com a sutileza de um carneiro batendo-se em duelo.
—E arrependes de algo, Anna?
A enganadora suavidade de sua voz não a enganava absolutamente. Advertia perfeitamente a raiva contida em suas palavras, como se lhe importasse que seu coração tivesse mudado de parecer. por que fazia isso? por que tentava confundi-la? Fosse ele quem havia dito a ela que se afastasse.
—Que mais dá? E menos agora. Deixara tudo muito claro antes de fugir com meu irmão.
Anna tentou flanquear a porta e deixá-lo ali, mas Arthur a deteve com o implacável escudo de seu peito. Pela linha branca que se formou na comissura de sua boca não coube dúvida de que tinha captado a indireta.
—Então já acabastes com a espionagem. É isso?
Anna o observou atentamente. Nisso era que acreditava? Bom, que mais dava o que pensasse. Afastou lentamente seu olhar e a dirigiu para a porta.
—Sim, isso. Agora se me permitem, eu gostaria de partir.
Empurrou seu peito com o dorso da mão, mas era tão firme como um escarpado rochoso. Um escarpado com montões e montões de pedras cortantes e afiadas.
—Já vos disse que partiria contigo.
—Seus serviços já não são necessários. mudei de opinião. Não sairei a cavalgar esta manhã.
A maneira que flamejavam seus olhos revelava que não fazia nenhuma graça que o rechaçassem. Bem, pois pior para ele. Ela não o tinha escolhido como seu cavalheiro andante. Então notou que os músculos de suas costas se esticavam e se perguntou se não o teria levado muito longe. Mas Arthur não fez mais que torcer o gesto, representar uma reverência exagerada e afastar do caminho.
—Como desejais, milady. Mas se mudares de opinião já sabem onde me encontrar.
Anna passou junto a ele como um raio, com o queixo bem alto.
—Não o farei. Tenho muitas coisas que fazer antes de partir.
A mão que pousou sobre seu ombro a fez deter-se de repente. Mas inclusive essa forma rude de tocá-la fazia que seus sentidos se desatassem.
—Vais a alguma parte, lady Anna?
Tentou desembaraçar-se de seu braço e o fulminou com o olhar ao ver que não a deixava partir.
—Não é seu assunto.
Um brilho foi a seus olhos ao mesmo tempo em que Arthur se aproximava mais a ela. Anna sentia a energia que vibrava entre ambos e a arrastava consigo. Tinha a boca tão perto…
—me digas.
Não podia beijá-la, dizia-se Anna presa do pânico. Não podia permitir que a beijasse.
—Caso-me — disse bruscamente.
Capítulo 12
Arthur retirou o braço como se queimasse.
«Caso-me.» Suas palavras sentaram como um soco no estômago. Era incapaz de se mover. Cada osso, cada músculo, cada uma de suas terminações nervosas se petrificou.
—Com quem? —perguntou com uma voz mortiça, vagamente ameaçador, que não parecia a sua, soava como a do MacRuairi.
Anna não queria olhá-lo nos olhos. ficou a retorcer as grossas pregas de lã de sua saia com as mãos.
—Com sir Hugh Ross.
Uma faca encravada entre suas costelas teria resultado menos doloroso. O filho e herdeiro do conde de Ross. Arthur o conhecia, é obvio. O jovem cavalheiro já havia feito um nome por si mesmo. Era um guerreiro temível, um estrategista, dentro e fosse do campo de batalha. O fato de que fosse um bom partido piorava mais.
Não compreendia a raiva que consumia seu interior, nem por que se sentia traído. Não lhe pertencia, diabos. Jamais poderia lhe pertencer. Mas isso não o fazia esquecer que apenas quinze dias atrás a tinha tido em seus braços e que estivera a muito pouco de despoja-la de sua inocência.
—Ao que parece tiveste uma semana muito ocupada, milady. Não perde tempo.
Um quente rubor tingiu suas bochechas.
—Ainda não concretizamos os detalhes.
Arthur advertiu algo em sua voz que o fez entreabrir os olhos enviesadamente.
—A que detalhe se refere? Está prometida ou não?
Anna ergueu o queixo e ele captou o desafiante brilho de seu olhar apesar do sufoco de seu rosto.
—Sir Hugh me propôs matrimônio faz um ano, pouco depois de que morreu meu prometido.
—Acreditava que o tinha rechaçado.
—Assim foi. Pensei melhor.
Arthur compreendeu do que se tratava tudo aquilo de repente. Ao não contar com a ajuda do rei Eduardo, os MacDougall tinham decidido pedir ao Ross e oferecer a lady Anna como incentivo acrescentado para a aliança. Pouco importava se ela tinha pensado melhor ou era seu pai quem assim tinha decidido. Arthur não podia permitir que unissem suas forças. Uma aliança entre Ross e os MacDougall poria em perigo a vitória de Bruce. Seu trabalho, sua obrigação, era deter aquilo.
Arthur a olhou com dureza.
—E como sabe que sir Hugh se mostrará aberto a sua repentina mudança de pensamento?
—Não sei. —Anna lhe dirigiu um olhar penetrante — Mas farei tudo o que possa para persuadi-lo.
Não era necessário adivinhar a que se referia. Sua reação foi instantânea. Primitiva. Por um breve instante da ira se apoderou dele e perdeu o controle. Sentiu um vazio na mente. Lady Anna estava a escassos centímetros de ver-se esmagada contra a parede do estábulo com seus lábios selados pelos dele, toda sua virilidade entre as suas pernas e uma língua afundando-se no interior de sua boca, ali onde devia estar.
Mas inclusive no furor de sua raiva pedia mais a necessidade de protegê-la. Não confiava em si mesmo para tocá-la de tal modo.
Anna pôs os olhos como pratos e teve a prudência de dar um passo para trás. Mas ele a seguia cativando com a armadilha de seu penetrante olhar.
—Assim tem tudo bem planejado?
Assentiu.
—Sim. Será melhor para todos.
Que aquilo soasse como se estivesse tentando convencer-se a si mesmo não consolava absolutamente.
—Seu plano tem um problema.
Anna o olhou, dúbia.
—E qual é?
—Ross está ao norte. Os caminhos são muito perigosos para que te translades. É muito arriscado. Bruce e seus homens ficarão no caminho em qualquer momento. Seu pai não aprovará isso.
Lorn era um filho de cadela desalmado, mas parecia amar a sua filha de uma maneira genuína.
—Já o tem feito. Uma leva de guardiães me escoltará, junto com meu irmão Alan. Pode ser que o rei Hood seja um patife assassino, mas não faz guerra às mulheres.
Arthur lutava por manter sob controle seu gênio. Lorn tinha que estar muito desesperado para aceitar isso. O muito filho de cadela faria o que fosse para ganhar, inclusive pôr em perigo sua filha.
—Se se derem conta de que és uma mulher. Na escuridão, não serão tão fácil de distinguir. Poderiam a confundir com um mensageiro.
Acaso tinha esquecido o que estivera a ponto de lhe ocorrer no Ayr? Jesus, quando pensava no perigo… gelou o sangue. De novo teve vontade de empurrá-la contra a parede do estábulo, dessa vez para procurar que entrasse em razão. Poderiam feri-la. Assassiná-la.
—Meu irmão me protegerá. Estou segura de que não passará nada.
Arthur sentia uma veia a ponto de estalar na têmpora. Nem uma centena de homens poderiam lhe dar segurança. Seus esforços por controlar fracassariam.
—Não seja louca! Não podem ir! É muito perigoso. Mandem um mensageiro, é melhor.
Não necessitava mais que ver a posição de seu queixo e a maneira em que entreabria os olhos para saber que tinha cometido um engano. Poe tratar-se de uma moça de aparência tão doce mostrava uma teima digna de admiração.
—Já está decidido. E você, temo que não tenha nada que dizer a respeito.
As mulheres tinham que ser submissas e dóceis, maldita seja. E ali estava ela, cotovelo com cotovelo com ele, sem retroceder um centímetro. Se não estivesse tão furioso isso pareceria admirável.
Nessa ocasião, quando Anna deu meia volta e se dirigiu para a porta, Arthur não a deteve.
«Nada que dizer a respeito.» Isso veremos.
Se ela não entrava em razão, talvez seu pai fizesse.
Os homens de Bruce estavam batendo toda a área, assaltando, saqueando, fazendo tudo o que podiam por semear o caos e expandir o medo no coração do inimigo. A guerra não tinha lugar só no campo de batalha mas também no interior das mentes. Um grupo de escolta do clã MacDougall seria algo irresistível. Anna teria uma flecha no coração antes que pudessem se dar conta de seu engano.
Dizia a si mesmo que era a ameaça que isso supunha para a missão que fazia que se embolotassem todos seus músculos. Evitar esse tipo de aliança, manter isolado ao MacDougall, essa era a razão pela que estava ali. Mas não eram as mensagens nem a aliança em que pensava. Tudo que podia ver era Anna jogada em um atoleiro de sangue. Tinha que fazer que Lorn se afastasse desse estúpido caminho.
E se não podia… De nenhuma maneira a deixaria partir sozinha. Se Anna desse um passo fora desse castelo, ali estaria ele para acompanhá-la, ali onde pudesse a proteger e tê-la à vista. E havia uma coisa que tinha muito clara: não cabia nem a mais remota possibilidade de que a deixasse casar-se com Hugh Ross.
—Ocorre-te algo, Annie? Parece contrariada.
Anna ergueu o olhar para seu irmão Alan, que acabava de aproximar-se para cavalgar a seu lado. Depois de navegar em um birlinn nessa manhã o primeiro lance da viagem, o resto do trajeto fariam a cavalo. A rota marinha desde Dunstaffnage até a vila do Inverlochy através do lago Linnhe tinha levado menos de meia jornada, uma travessia em que teriam empregado vários dias ao fazê-la por terra. Oxalá o resto da viagem fosse igual de simples. Havia três lagos salgados e numerosos rios que percorriam Gleann Mor, o enguiço do Grande Glenn que dividia a Escócia entre o Inverlochy, no nascimento do lago Linnhe, até o Inverness e o fiorde de Moray, mas as rotas marinhas estavam separadas por terreno suficiente para fazer impraticável a viagem em navio. Em vez disso, cavalgariam os pouco mais de cem quilômetros que tinha que o Inverlochy até Nairn, ao leste do qual se encontrava o castelo do Auldearn. Com sorte demorariam quatro dias para chegar. Anna era consciente de que atrasava sua marcha, apesar de que galopavam em um ritmo muito mais castigador que aquele trote pausado ao que estava habituada.
Parecia irônico que estivesse fazendo virtualmente a mesma rota que tinha seguido o rei Hood no outono passado esperando acontecer através das Highlands e apoderando-se dos quatro castelos principais que balizavam o caminho: os castelos de Inverlochy e Urquhart, pertencentes aos Comyn, e os castelos reais de guarnição inglesa em Inverness e Nairn. Dado que esses castelos seguiam ocupados pelos rebeldes, veriam-se obrigados a procurar outra hospedagem que entranhasse menos perigo. Anna suspeitava que se quisessem evitar aos homens de Bruce teria que acostumar-se à paisagem dos bosques. Ao menos assim se livraria daquele sol abrasador por um tempo. Cavalgavam há várias horas e embora o véu protegesse seu rosto, tinha calor, estava pegajosa e, sim, também zangada, como tinha advertido seu irmão. Furiosa, para falar a verdade. O tempo, não obstante, não tinha nada que ver com seu incomum mau humor. Essa honra reservava a um certo cavalheiro intrometido.
Negou-se a lhe dirigir o olhar durante todo o dia. Mas isso não significava que não soubesse exatamente onde estava: cavalgando na cabeça do grupo, inspecionando o caminho que tinham pela frente em busca de sinais de perigo. «Perigo.» Isso era dizer pouco. O perigo era que ele os tivesse acompanhado na viagem.
—Estou bem —assegurou a seu irmão, conseguindo esboçar um sorriso forçado — Tenho calor e estou cansada, mas me encontro bem.
Alan a olhou de esguelha com um desinteresse enganoso.
—Acreditava que talvez tivesse algo a ver com o Campbell. Não parecia muito contente quando disse que nos acompanharia.
Seu irmão era muito ardiloso. Um traço que faria dele um bom chefe no futuro, mas nada que fosse apreciável para uma irmã que preferia guardar seus pensamentos para si mesma. Apesar de seus esforços em não reagir a essas palavras, chiavam-lhe os dentes.
—Não deveria ter-se intrometido.
Quando seu pai lhe contou que sir Arthur havia tentando dissuadir de que cancelasse a viagem, não podia acreditar. Ao fracassar nisso, pediu permissão para os acompanhar argumentando que suas habilidades como rastreador ajudariam a garantir sua segurança. E para maior desgraça de Anna seu pai tinha aceitado. De modo que em lugar de ignorá-lo durante uma só jornada, agora teria que suportar sua presença constante durante dias, semanas inclusive. Acaso tentava atormentá-la de propósito? Aquilo que tinha que fazer já era difícil sem que ele andasse revoando por aí.
—É um cavalheiro, Anna. Um explorador. Informar sobre a posição do inimigo é exatamente seu trabalho. E não posso dizer que não esteja agradecido de que venha conosco. Se for tão bom como diz ser, será muito útil.
Anna se dirigiu a Alan com cara de estar horrorizada.
—Está de acordo com nosso pai?
Alan endureceu o queixo. Jamais criticaria a seu pai de maneira aberta, embora quisesse fazê-lo, como era o caso.
—Teria preferido que ficasse em Dunstaffnage, embora entenda a razão pela que pai insistia em que viesse. Ross se mostrará mais disposto ante uma solicitude direta —disse com um sorriso — É uma danada, Annie querida, mas uma danadinha encantadora.
Anna torceu o lábio.
—E você é tão protetor que molestas, mas eu também te adoro.
Alan se pôs-se a rir e Anna não pôde a não ser unir-se a suas risadas.
Sir Arthur voltou a cabeça para ouvir e a pegou despreparada. Seus olhares se cruzaram por um momento antes que lhe desse tempo a afastar o olhar bruscamente. Mas foi suficiente para que sentisse uma boa pontada no peito. por que tinha que ser tão doloroso?
Alan não evitou esse intercambio de olhares. Voltou a ficar sério e a olhá-la com intensidade.
—Está segura de que isso é tudo o que acontece, Anna? Já sei o que disse, mas me parece que entre sir Arthur e você há algo mais que os trabalhos de vigilância que pai te encomendou. Eu acredito que sente algo por ele. —A pulsação que Anna sentia no peito lhe dizia que seu irmão tinha razão, por mais que gostaria que não fosse certo — Podemos apelar ao Ross sem necessidade de um compromisso —disse seu irmão com carinho — Não é necessário que sacrifique sua felicidade para chegar a um pacto.
Não pôde evitar emocionar-se. Era tão afortunada de poder contar com um irmão como ele… Sabia que poucos homens a tratariam com tal consideração. A felicidade não era algo a ter em conta no matrimônio entre nobres. O poder, as alianças, a riqueza, isso era o que importava. Mas o amor do que Alan desfrutou em seu matrimônio tinha dado a seu irmão uma perspectiva única. Apesar de tudo, teriam muitas mais oportunidades de conseguir o apoio de Ross com uma aliança. Alan sabia tão bem quanto ela. Além disso, ajudar a sua família jamais poderia constituir um sacrifício. Arthur tinha expressado com brutal claridade que não havia nada entre eles.
—Estou segura — disse com firmeza.
A firmeza de sua voz ajudou a convencê-lo. Alan seguiu cavalgando junto a ela um momento mais na lembrança de suas anteriores viagens nos excepcionais momentos de paz, mas ao final acabou voltando junto a seus homens.
Durante da primeira jornada fizeram grandes progressos e chegaram até o lago Lochy, onde passaram a noite em uma estalagem próxima à borda sul do mesmo. Aquele pequeno edifício de pedra com telhado de palha parecia antigo, e dada sua localização junto a uma ruína, Anna supôs que era.
Estava dura e dolorida. Suas pernas, traseiro e costas se ressentiam por cada uma das horas desse longo dia, de modo que agradecia estar debaixo de um teto e em uma cama, por mais rudimentares que fossem. Lavou-se e se compôs para comer um pouco de caldo de pescado e pão de centeio antes de cair rendida no camastro junto à Berta, sua criada, que roncava no jergon do lado.
A segunda noite, não obstante, não teriam tanta fortuna. Sua cama seria um simples cobertor em uma pequena tenda instalada na floresta ao sul do lago Ness.
Fora um dia longo, mais longo ainda graças ao constante fluxo de informes de exploração de sir Arthur. Para evitar cenários suscetíveis de perigo, tais como rotas a campo aberto ou lugares propícios para as emboscadas, havia vezes que se desviavam bastante do caminho. O qual significava que em lugar dos quarenta quilômetros que teriam percorrido, fizeram provavelmente uns cinqüenta e cinco através da espessura dos bosques e as colinas serpenteantes de Lochaber. Aquilo a Anna pareceu de uma precaução exagerada. por agora, não tinha visto nada fora do normal, mais que habitantes da vila, pescadores e algum que outro ocasional grupo de viajantes. Se os homens de Bruce patrulhavam os caminhos, não se tinham feito notar. Talvez esses quilômetros a mais fossem outra forma de tortura idealizada por sir Arthur? Como se não fosse suficiente sua presença.
As pernas de Anna, pouco acostumadas a passar dias cavalgando, tremeram ao se ajoelhar à borda do rio para lavar as mãos. Colocou a cabeça na corrente com a esperança de sacudir o cansaço, mas o frio golpe de água não a refrescava o suficiente. Quando tentou levantar-se, coisa que fez com muita dificuldade, teve que resmungar ao conscientizar-se da objeção de seus ossos e articulações, que rangiam como se tratasse do corpo de uma anciã. Tomou seu tempo para saborear o momento de solidão, sem nenhuma pressa por voltar para acampamento. Embora o resto do grupo estivesse a poucos metros dela, o denso tanto de árvores parecia absorver todo o som. de vez em quando chegava até ela o murmúrio apagado de suas vozes, mas além disso tudo permanecia em uma calma excepcional, o que representava o maior momento de paz que tinha desde sua chegada ao barmkin no dia anterior pela manhã, quando encontrou a sir Arthur Campbell preparado para sair com eles. Aqueles dois dias tentando forçar-se a não olhá-lo tinham cobrado sua cota. Era pior do que temia. Apesar de que o ignorasse e evitasse seus olhos cada vez que ele olhava em sua direção, cada um de seus movimentos lhe afetava de maneira dolorosa. O desassossego, que parecia lhe queimar o peito até furá-lo, era cada vez maior. Mais duro. Enfurecia-se com suas emoções, deixando-a nua e exposta. Não sabia por quanto mais poderia suportar. Por que tinha que estar ali?
Suspirou com aborrecimento e deu as costas à tranqüilizadora correnteza que corria sobre as rochas. Berta faria que seu irmão fosse procurá-la como um louco se não retornasse no par de minutos que tinha prometido. Além disso, estava ficando de noite.
Mal tinha dado uns passos em direção a floresta quando um homem saiu dentre as sombras e lhe fechou o passo. O pulso acelerou, presa do pânico. Esteve a ponto de dar a voz de alarme, mas seu gritou ficou sufocado ao reconhecê-lo. Fechou a boca de repente, mas seu pulso seguia igual de acelerado.
—Não faça isso! —espetou ao mesmo tempo em que erguia o olhar para o belo rosto de sir Arthur — Me destes um susto de morte.
Não tinha feito um só ruído. Como um homem tão corpulento podia mover-se com tal sigilo era algo que escapava a sua compreensão.
—Melhor —respondeu ele — Não deveria estar aqui sozinha.
—Não estava sozinha —disse Anna com um sorriso forçado — tinha você me espiando.
Anna sentiu um prazer enorme ao ver que esticava a mandíbula. Era horrível por sua parte que lhe agradasse tanto, mas tentar tirar algum tipo de reação daquele homem parecia um lucro absoluto. Sir Arthur lhe dirigiu um olhar pausado e penetrante.
—Algo do qual estou certo que conhece todos os segredos.
Agora tocava a ela endurecer o gesto. Havia muita proximidade. Embora seu irmão e o resto dos homens estivessem a um grito de distância, aquilo supunha uma intimidade com ele muito maior da que ela queria. Qualquer tipo de intimidade com ele podia ser perigosa.
Isso a fazia recordar coisas. Como o sabor especial de seus beijos. Ou o modo em que os grossos músculos de seu torso se esticavam à luz das velas. Ou a maneira em que as mechas onduladas de seu cabelo molhado caíam sobre seu pescoço. Ou seu aroma. «Aroma de sabão e a virilidade», pensou Anna enquanto aspirava.
Arthur não se barbeou, e a barba incipiente lhe dava um aspecto esfarrapado e perigoso que, maldito fosse, o fazia ainda mais atraente.
Ao comprovar que apesar de todo o ocorrido ainda conseguia lhe afetar do mesmo modo, Anna ficou furiosa e tratou de afastá-lo de seu caminho. Um exercício de futilidade como jamais houve algum.
—Não há motivos para preocupar-se.
Ele a agarrou seu braço para detê-la, como se a impenetrável barreira de seu torso não fosse suficiente.
—A próxima vez que te afastes do acampamento, não o façam sem guarda, preferivelmente eu ou seu irmão.
Suas bochechas se ruborizaram, zangada com o tom e sua atitude prepotente. Sir Arthur Campbell, cavalheiro ao serviço de seu pai, transpassava os limites.
—Não têm direito a me dar ordens. A última vez que olhei não fostes tu, a não ser meu irmão, quem estava ao mando.
Seus olhos brilharam ao mesmo em tempo que ele a agarrava pelo braço com mais força. Falava em voz baixa e sua boca… Anna ficou sem fôlego. Também sua boca estava baixa, a uma altura perigosa, tão perto da sua que doía. Se ficasse nas pontas dos pés, era possível inclusive que chegasse a tocá-la.
Deus, que vontade tinha de fazê-lo. Estava desesperada por fazê-lo. Uma onda de calor invadiu todo seu corpo, concentrando-se nos seios e no encontro das coxas. Os mamilos se puseram eretos; morriam de vontade por roçar-se com seu duro peito.
Aquela traição de seu corpo parecia humilhante. Ele não tinha nenhum direito a fazê-la sentir assim. Não depois de a rechaçar de maneira tão cruel. Não depois de que partisse e deixasse claro que era tal e como o tinha imaginado em princípio. por que não podia deixá-la em paz simplesmente?
—Não me desafiem nisto, Anna. Se quiserem que consiga a cumplicidade de seu irmão, farei. Quão único tentava era evitar a vergonha de que te tratem como a uma criança, mas farei tudo o que esteja em minha mão para te manter a salvo.
Houve algo em sua voz que fez que lhe deu calafrios.
—O que acontece? Estão os rebeldes perto daqui? Viu algo?
Uma sombra cruzou o olhar de Arthur. Negou com a cabeça.
—por agora não.
—Mas têm um pressentimento.
Arthur a olhou com total desconfiança, como se pensasse que tentava enganá-lo para que admitisse que ela tinha razão quanto às habilidades que tinha mostrado com antecedência. Parecia disposto a negá-lo, mas logo encolheu os ombros e lhe soltou o braço.
—Sim, sinto o perigo. E também vocês deveriam senti-lo. Não cometam o engano de pensar que não estão aí simplesmente porque não os tenhamos visto.
Assentiu, assombrada pelo que parecia uma preocupação sincera.
—Farei como me pede.
Ambos sabiam que não era uma petição, mas Arthur parecia estar satisfeito com sua aprovação e não quis discutir a semântica.
Anna era consciente de que devia sair dali quanto antes, mas houve algo que a fez perguntar:
—Por que estas aqui, sir Arthur? Por que insistiram em se unir a nosso grupo?
Ele afastou o olhar. A pergunta lhe incomodava. Muito.
Franziu o cenho.
—Pensei que poderia ser de ajuda a seu irmão.
—E eu pensei que não gostavas de fazer reconhecimento do terreno.
Sua boca se torceu em um irônico e enigmático sorriso.
—Não é tão mau como temia.
Anna observou seus traços com atenção, mas não estava muito segura do que procurava.
—E essa é a única razão? Para ajudar a meu irmão?
Arthur baixou o olhar para olhá-la nos olhos. A intensidade de seu olhar a penetrou com a sutileza de um raio. Era consciente do tic que pulsava sob seu queixo. estava-se controlando, mas do que?
—Dado que não atenderam a minhas advertências, não ficou outra opção que vir e me assegurar de que chegassem a seu destino a salvo.
Entregue a salvo às mãos de outro homem.
—Estou segura de que sir Hugh apreciará seus serviços.
Arthur ficou tenso e os olhos lhe brilharam com um fogo descontrolado. Por um momento Anna pensou que a empurraria contra a árvore e a beijaria. Mas não o fez. Em vez disso apertou os punhos e ficou olhando-a com raiva. Dizia a si mesma que não era decepção o que sentia. Isso dizia a si mesma. Mas não acreditava.
—Não me provoque, Anna.
Mas o tempo das advertências já tinha passado para ela.
—Que não lhes provoque? Como poderia o provocar se não vos afeta? Deixou muito claro naquela noite nos barracões. Fosse tu quem disse que me separasse de seu caminho e não ao contrário, recordam?
—Recordo.
A suavidade de sua voz lhe disse que não era isso tudo o que recordava. A pele começou a lhe arder e parecia sair dela. As lembranças crepitavam entre eles como um sopro de ar sobre brasas, acendendo-se, dispostos a prender-se fogo. Anna estava sumida na frustração. Não podia entender por que fazia aquilo.
—É que mudastes de opinião?
Em outro momento Arthur teria admirado aquele desafio. A franqueza e a naturalidade de Anna eram o que faziam dela uma mulher única. Mas nesse momento não. Não queria pensar em se tinha mudado de opinião. Estava lhe custando muito, Deus e ajuda simplesmente não lhe pôr as mãos em cima. por que não podia ser tímida e retraída? Aí sim se sentiria seguro.
Sabia que atuava como um idiota, mas esses dois dias junto a ela, vendo-a voltar o rosto para evitar seu olhar, atuando como se ele não fosse mais que uma espada mercenária, fazia que chegasse ao limite de seu autocontrole. Não poderia agüentar vê-la outra noite rondando pelo acampamento rindo e divertindo-se com os homens com uns sorrisos que brilhavam quando olhava em sua direção.
Gostava de estar à margem, maldita seja. Mas de seu posto nos limites do acampamento, longe da camaradagem da fogueira, encontrava-se suspirando pela calidez desses sorrisos. Por um pouco dessa risada. um pouco dessa luz.
Sua intenção era que ela reconhecesse sua presença. Mas tudo que tinha conseguido era revolver coisas que não precisavam ser revolvidas. Tais como o assustador desejo de empurrá-la contra a árvore e abusar dela. Quase podia sentir como seus braços lhe rodeavam o pescoço e suas pernas envolviam seus quadris, em tanto que ele se afundava em seu interior, lenta e profundamente. Quase via seu pequeno e suave corpo estirando-se contra o seu, todas essas sedutoras curvas fundindo-se sobre ele, a excitante turgidez de seus mamilos lhe roçando o peito…
Demônios!
Teve que agitar-se para recuperar a compostura. Mas o inchaço que ocultavam seus calções era duro e implacável. Aquilo não tinha que ser tão endiabradamente difícil.
«Te concentre. Faz seu trabalho. Mantem o bastante perto para vigiá-la, mas sem tocar. Não deixe que se aproxime muito.»
Havia muitas pessoas dependendo dele. Tinha que estar ciente do que realmente importava. Assegurar-se de que Bruce chegasse ao trono e derrotar seus adversários. Como John de Lorn. Essa era a oportunidade de ver como seu inimigo pagava pelo que tinha feito a seu pai.
Justiça. Vingança. Endireitar o errado. Sangue por sangue. Essa fora toda sua motivação desde que tinha uso de razão. Tinha dedicado sua vida a tentar consagrar-se como o melhor guerreiro com um só objetivo em mente: destruir a Lorn. Essa fria determinação era sua companheira há quatorze anos. A firme resolução de levar uma missão até suas últimas conseqüências, custasse o que custasse. Essa era a única coisa que tinham em comum todos os membros da Guarda Highlanders, apesar de suas grandes diferenças de personalidade, do irreprimível bom humor do MacSorley e a impulsividade do Seton até o mau gênio do MacRuairi. Mas nunca antes tinha tido tantos problemas para aferrar-se a isso.
Arthur deu um passo atrás com a intenção de dissipar a bruma de desejo que o atendia. Mas seu corpo bulia de desejos insatisfeitos. Uns desejos que cada vez lhe parecia mais difícil ignorar. Andar por aí com o membro duro pego ao ventre não era algo que fizesse muito para remediar seu mau humor. E sua mão tampouco parecia um grande alívio.
Ao ver que ele não respondia, Anna disse:
—E bem?
Tinha mudado de opinião? Negou com a cabeça.
—Não.
Nada tinha mudado. Seguia sendo a filha do homem ao que tinha ido aniquilar. Quão único o futuro lhes proporcionaria seria a traição. Não tinha intenção de piorar as coisas.
Anna não deu amostras de que sua resposta a decepcionasse. Melhor parecia algo que esperava.
—Então por que fazem isto? por que atua como se o importasse com quem contraio matrimônio? Não me quer mas tampouco quer que alguém me tenha, é isso?
Arthur murmurou uma imprecação ao mesmo tempo em que passava as mãos pelos cabelos.
—Não é isso.
De fato, era exatamente isso. Anna tinha dado justo no prego. Estava ciumento, maldita seja. Embora não tivesse nenhum direito a estar. Embora fosse ele quem a desalentasse. Embora não houvesse nenhuma possibilidade de que estivessem juntos. Pensar em que ela se casaria com outro homem fazia que caísse em ataques de ciúmes juvenis.
Anna o olhou nos olhos.
—Então expliquem - me disse isso em voz baixa — O que é o que sentem por mim?
«Jesus.» Essa era a última coisa em que queria pensar. Somente ela seria capaz de tal pergunta. Anna MacDougall não tinha nenhum pingo de acanhamento ou de desânimo. Era direta. Sem rodeios. Despretensiosa. Deus, era uma mulher incrível.
Nem todo o treinamento do mundo podia o fazer parar de mover os pés nervosamente. Não se sentia tão encurralado desde aquela vez em que seus irmãos o fizeram retroceder até a saliência de um escarpado e o provocaram para que se defendesse de seus golpes de espada.
—É complicado — disse, saindo-se pela tangente.
Os olhos dela não deixavam de escrutinar seu rosto em busca de algo que não havia neles.
—Complicado não me vale. —Anna baixou o olhar — Não quero que esteja aqui —acrescentou com uma voz tão rígida como a posição de seus ombros. Tampouco ele queria estar ali, mas não ficava mais opção que fazê-lo. Anna voltou a erguer os olhos para olhá-lo. Já não havia calidez nessas profundidades azul brilhante — O rogo isso, me deixem em paz, simplesmente.
O suave rogo dessa voz apelava a sua consciência, mas ardia no peito de igual forma. Anna deu meia volta e se afastou dali com o porte majestoso de uma rainha.
Desejaria poder fazê-lo, pelo bem de ambos. Mas sua missão vinha em primeiro. Algumas semanas mais. Poderia agüentar algumas semanas mais. Tinha resistido desafios muito mais perigosos. Tudo que tinha que fazer era escorar suas defesas, fechar as comportas e preparar-se para o assédio final.
Capítulo 13
Arthur partia na vanguarda, inspecionando o terreno com dois dos homens de MacDougall, quando percebeu de que algo não ia bem. Uma mudança no ar. Um calafrio que percorria a nuca. A súbita sensação que ativava todas suas terminações nervosas para lhe advertir: «Perigo».
Tinham completado a terceira jornada da viagem virtualmente em sua totalidade. O trajeto a cavalo pela ribeira oeste do lago Ness foi mais longo do esperado, não por tentar evitar aos homens de Bruce, a não ser devido a uma ponte impraticável de Invermoriston. Teriam tentado cruzar as turbulentas águas em caso de não levar consigo Anna, mas em vez disso tiveram que desviar-se outros oito quilômetros do caminho para chegar ao seguinte vau. assim, aproximaram-se do extremo sul dos bosques do Clunemore mais tarde que o que ele esperava. De ali virariam para o este, abandonando o caminho para afastar-se todo o possível do castelo Urquhart, ocupado pelos rebeldes. O plano era acampar a última noite à beira do lago Meiklie, o qual queria dizer que o dia seguinte seria mais exaustivo ainda, já que a relativamente plaina estrada daria lugar às colinas.
Apesar de que Arthur trabalhava melhor sozinho, Alan MacDougall insistiu em que lhe acompanhassem dois de seus homens se por acaso se encontrava com dificuldades. Ao não poder explicar ao irmão de Anna que esses homens representariam mais problemas que ajuda sem trair suas habilidades, Arthur teve que acessar a contra gosto.
À primeira sensação de perigo ergueu uma mão para que os homens se detivessem. Desceu do cavalo, ajoelhou-se e pôs uma palma plaina contra o chão. A leve reverberação confirmou o que seus sentidos já lhe tinham advertido.
Richard, o maior dos dois guerreiros e explorador habitual do MacDougall, ficou circunspeto.
—O que há?
Arthur baixou a voz.
—Voltem e digam a seu senhor que saiam do caminho imediatamente.
Alex, que era aprendiz de explorador, olhou-o com estranheza sob o aço de seu nasal. Ao contrário de Arthur, Alan e o punhado de cavalheiros que usavam elmo, cota de malha pesada e peitilho, os homens do clã dos MacDougall levavam armadura mais leve e o cotun de couro acolchoado que preferiam os highlanders. Essa indumentária de guerra fazia mais fácil o movimento. Não era a primeira vez que Arthur tinha vontade de desfazer-se de seu pomposo traje de cavalheiro e mandar a passeio a mascarada. O mais jovem dos homens olhou a seu redor.
—Por quê?
Arthur franziu os lábios. Ficou em pé e voltou rapidamente para seus arreios.
—Há um grupo numeroso de cavaleiros que se dirigem justo para nós.
Richard o olhou como se estivesse louco.
—Eu não ouço nada.
Aqueles idiotas acabariam fazendo que matassem a todos. Sem tempo para sutilezas, Arthur agarrou ao maior por seu grosso cangote, ergueu-o um par de centímetros dos arreios e aproximou seu rosto a dele.
—Façam o que digo, maldita seja. Dentro de alguns minutos será muito tarde. Querem que matem a dama por sua estupidez?
O homem negou com a cabeça, impressionado com a transformação que sofria o cavalheiro. Quando começou a boquejar para recuperar o fôlego Arthur o soltou de um empurrão.
—Eu os rodearei pelas costas e tentarei distraí-los. —Com sorte, disse, poderia desviá-los para o norte — Digam a sir Alan que saia do caminho imediatamente, que se dirija para o este e cavalguem tão rápido como podem. Abandonem as carretas se for necessário. Encontraremo-nos no lago assim que me seja possível.
Subitamente, Richard moveu sua grosa cabeça para o norte. Um leve som de pegadas de cavalos batia em sua direção. Voltou-se para Arthur com um olhar que albergava tanto temor como suspeita. Inconscientemente, deu meia volta com seu cavalo.
—Pelos ossos de Cristo, têm razão! Ouço-os.
Arthur não tinha tempo de preocupar-se com a inquietação do outro.
—Irei contigo - disse Alex.
—Não — repôs Arthur em um tom de voz que evitava qualquer discussão — Vou sozinho.
Assim seria mais fácil evitar que os capturassem. Além disso, sempre cabia a possibilidade de que conhecesse alguém. Supunha-se que MacGregor, Gordon e MacKay estavam no norte.
—Partam! —disse.
Os homens fizeram o que lhes pedia sem mais discussão.
Arthur tampouco perdeu mais tempo. Cavalo e homem se introduziram entre as árvores em sua carreira por alcançar aos cavaleiros pelas costas antes que aparecessem ante o grupo do MacDougall. Era consciente de que apesar de estar advertidos, demorariam certo tempo em conduzi-los até um lugar seguro. Anna era uma boa amazona, mas não podia dizê-lo mesmo de sua criada. As carretas aumentaram seu ritmo ainda mais. Se algo sabia das mulheres era que não gostavam nada de abandonar seus finos trajes e sapatos. Ao menos Anna não tinha insistido em levar com eles ao maldito cachorrinho. Arthur estava já cansado de limpar os pés.
Arthur ziguezagueou entre as árvores, usando o som dos cavalos como guia, e cavalgou em paralelo aos homens alguns poucos e preciosos minutos até que se dirigiu para eles. Agora vinha a parte delicada: aproximar-se o suficiente para chamar sua atenção, mas nem tanto para que o capturassem. Amaldiçoou para si ao ver pela primeira vez ao grupo de cavaleiros através de um vão entre as árvores. Tinham todo o aspecto de uma leva de guerreiros. Havia mais dos que gostaria, ao menos uma vintena de homens armados até os dentes com mantas de cores escuras, vestimenta de guerra e escudos obscurecidos com breu, um modo de camuflar-se na noite próprio dos Guardiões das Highlands que adotaram mais tarde muitos dos guerreiros de Bruce.
Normalmente não pensaria duas vezes ante um exército tão formidável. Estava adestrado para lutar contra coisas piores. Mas esses homens conheciam o terreno e ele não. Teriam vantagem. Um giro mal dado e acabaria em suas garras. Mesmo assim ele contava com vantagens que eles não tinham: sentidos afiados como facas, velocidade, uma força e um treinamento superiores e a habilidade de desaparecer entre as sombras.
Distinguiu ante ele uma ruptura na linha de árvores. Aí o tinha. Apertou os dentes, baixou a cabeça e saiu como um raio para o claro. Fingiu surpreender-se por sua presença e girou abruptamente para a esquerda, como se quisesse evitar ser visto. Um grito o alertou do cumprimento de seu objetivo. Não se atreveu a diminuir a marcha e olhar para trás para ver se tinham mordido o anzol. Uma fração de segundo de atraso podia significar a diferença entre escapar ou ser capturado. Mas, momentos depois ouviu o ensurdecedor som das pegadas de cavalo atrás dele e sorriu. A caça tinha começado.
Anna tentava não pensar em quão tarde era. Mas à medida que a escuridão descia e que a lua se erguia no céu lhe custava mais acreditar que se encontrava bem. Esse medo que permanecia em espera ante o tumulto de seus próprios esforços para escapar aos soldados inimigos retornou com toda sua força assim que estiveram a salvo. E a coisa piorava com cada hora que passava sem a volta de Arthur. Que lhe atormentasse tudo o que quisesse, isso não importava. Mas que voltasse são e salvo.
Ajustou a capa nos ombros e disse que não devia preocupar-se. Chegar até eles de novo tomaria seu tempo atrás da animada perseguição em que Arthur os embarcaria. «Mas tanto tempo?» mordeu o lábio em uma tentativa de mitigar a crescente sensação de pânico. «Ele não se deixaria apanhar.» Entretanto, eles eram um monte de homens e ele só um. «Não pode estar morto.» Se fosse assim saberia. O coração lhe deu um tombo. Não era isso certo?
—Milady, a sopa está deliciosa. Tome —disse Berta sustentando a colher ante ela — Provem. Embora seja só um pouco - acrescentou, como se Anna fosse uma menina de cinco anos que se negava a comer nabos.
Mas Anna seguia sem gostar dos nabos. Negou com a cabeça e se esforçou em sorrir a sua preocupada criada.
—Não tenho fome.
A anciã pôs cara de estar admirada, fazendo que as rugas de seus olhos cor mel se esparramassem por seu rosto. O aspecto de Berta, com sua apenas um e cinqüenta de estatura e tão magra como um palito, não é que fosse formidável. Mas naquele caso seu rosto era de decepção. Podia ser tão teimosa e áspera como uma mula velha.
—Têm que comer algo. Conseguirá te pôr doente.
Já estava. Doente de preocupação. Somente de pensar em comida lhe dava vontade de vomitar. Conteve o acesso de bílis que lhe chegou à garganta.
—Comerei —mentiu Anna — dentro de um momento.
Berta lhe deu um tapinha na mão, que descansava sobre o musgoso tronco que as separava. Reuniram-se em torno do fogo junto ao resto da escolta, mas o acampamento permanecia em uma quietude incomum e os homens estavam desanimados. Todos eram conscientes de que tinham escapado por pouco e não era ela a única que se perguntava o que teria ocorrido com o cavalheiro que os pôs sobre aviso.
—Que morras de fome não fará que volte antes.
Os pensamentos de Anna eram mais transparentes do que acreditava, mas estava muito preocupada para fingir que não sabia do que lhe falava Berta.
—Acredite que terá ocorrido algo?
Berta apertou sua mão e negou com a cabeça tristemente.
—Não sei pequena minha. Não sei.
O coração de Anna sofreu uma violenta sacudida. A perspectiva tinha que ser terrível para que Berta não se esforçasse por mentir sequer. Voltaram a ficar em silêncio. Anna olhava as chamas da fogueira sem vê-la enquanto Berta acabava sua sopa.
Então Anna ouviu um ramo que rangia atrás dela e se levantou de um salto. Voltou o rosto com o coração na boca, esperando ver um cavalheiro vestido com cota de malha sobre seu cavalo. Assim foi e por um segundo pensou que seria Arthur. Mas seu coração topou com uma decepção. Tratava-se simplesmente de seu irmão Alan, que desmontou do cavalo e atou as rédeas a uma árvore próxima. A expressão sombria que mudou seu rosto à medida que se aproximava a encheu de pavor.
—Tem descoberto algo? —perguntou.
—Não —repôs seu irmão negando com a cabeça — Nem rastro dele.
—Acredita que… —Anna não se atreveu a terminar a frase.
Alan a olhou com atenção.
—Já deveria ter retornado.
A verdade doía como um murro nas vísceras. Lágrimas de angústia afloraram em seus olhos. Acabava de brotar a primeira delas quando ouviu um assobio que atravessava a noite.
—É o sentinela noturno - disse Alan antes que Anna tivesse tempo de perguntar — Alguém se aproxima.
O alarme deu origem a uma pequena comoção. Anna foi primeira em saltar de seu assento de repente, mas isso mesmo foi o que fizeram o resto dos homens. O primeiro que ouviu antes de vê-lo foram os gritos provocados pela emoção e o alívio. Momentos depois, Arthur penetrava no círculo de luz que provia o acampamento e o coração de Anna dava tombos no interior de seu peito. Inspecionou ao cavalheiro em busca de sinais de ferida, mas além do cansaço que refletia seu bonito rosto e da sujeira e o pó de sua cota de malha se via em perfeitas condições. Completamente ileso.
A emoção a embargava com tal força que deu um passo adiante sem poder controlar-se. Lutou por dominar o impulso de ir atrás dele, de correr a seus braços, de rodeá-lo com os seus e chorar toda sua angústia na suja e poeirenta cota de malha que revestia seu peito. Não tinha direito a fazê-lo. Nem fundamentos. Não estavam prometidos, nem se cortejavam sequer. Não eram nada um para o outro. Logo ela pertenceria a outro homem.
Então Arthur a viu. Por um estúpido momento ela se convenceu de que a estava procurando. Seus olhos se encontraram com uma força letal que repercutia em seu peito e o golpeava com os ecos da nostalgia.
Se naquele momento ele houvesse virado o rosto, ignorando-a com frieza, provavelmente Anna teria confrontado seu futuro com uma resolução firme no coração. Mas em vez disso Arthur percebeu seu desespero e assentiu levemente. «Estou bem.»
Era pouco, mas ao menos era algo, e servia como reconhecimento de que existia uma conexão entre ambos. Entre eles dois havia algo especial. Não podia negá-lo por mais tempo. Importava-lhe.
Arthur a olhou por última vez e seguiu adiante para encontrar-se com o Alan.
As emoções de Anna estavam descontroladas. Afetava-lhe muito que acabava de ocorrer para concentrar-se em nada, assim escutou pela metade o relatório que fazia a seu irmão. Eram os homens de Bruce. Um grupo numeroso de guerreiros. O número chamou tanto a atenção que ficou sem fôlego. Vinte e cinco homens. O normal seria que Arthur estivesse morto. Primeiro os tinha desviado vários quilômetros do castelo do Urquhart e depois se dirigiu para o este. Entretanto, os malfeitores tinham dado provas de ser bons cães de presa, e Arthur se viu obrigado a voltar a pé para o acampamento. Anna suspeitava que estivesse deixando muitas coisas no tinteiro.
Alan lhe agradeceu os serviços prestados a todos e o ameaçou a que se sentasse enquanto pedia comida e bebida para ele. Seu irmão falou com Arthur um momento mais antes de lhe deixar comer, mas em voz baixa, de modo que ela não pôde escutar nada. Anna bicou um pedaço de carne-seca de vitela e torta de aveia e ficou rondando por ali, como fizera a maioria dos homens. Entretanto, à medida que caía a noite, algo começou a lhe preocupar. O acampamento se animou com sua volta, e parecia óbvio que todos se alegravam de que não o tivessem capturado, mas a celebração não era a esperada e isso a desconcertava. Além disso, acontecia algo anormal. Ninguém tinha aproximado, além de seu irmão. Em lugar dos tapinhas nas costas, as brincadeiras pesadas e os brinde que seriam de praxe, pareceu-lhe que mais de um o olhava com cara estranha.
Arthur não parecia conscientizar-se. Acabou com sua comida, terminou o odre de cerveja que lhe tinham levado e se retirou de novo à solidão dos bosques. Anna o observou partir e sentiu uma premente necessidade de fazer algo. Olhou aos homens do clã que tinha ao redor. O que lhes passava? Por que atuavam de tal modo?
Chegou um ponto no que já não pôde agüentar-se mais, desculpou-se e foi procurar seu irmão. Alan estava falando com alguns de seus homens, mas ao vê-la chegar os ordenou que se retirassem.
—Acreditei que estaria aliviada.
Evitou fazer como que não entendia do que falava.
—Estou.
—E então a que vem a ser esse rosto, pequena?
—Por que atuam os homens desse modo? Por que não lhe dão obrigado? Por que o evitam?
—Está segura que não é justamente o contrário, irmã? —repôs Alan esboçando um sorriso irônico — Campbell não é precisamente conhecido por sua sociabilidade. Gosta de estar sozinho. —Seu irmão tinha razão, mas nessa ocasião não se tratava só disso. Os soldados se mostravam incômodos, quase temerosos. Quando o fez saber, Alan suspirou e negou com a cabeça — Ocorreu algo hoje quando nossos homens batiam o terreno. Richard me contou isso e provavelmente também contou ao resto. Conforme parece, Campbell ouviu os cavaleiros antes o bastante, antes que houvesse sinal alguma deles. Richard disse que era coisa de bruxaria.
Todo o prazer que Anna pudesse sentir ao ver confirmadas suas próprias suspeitas em relação ao ocorrido com os lobos, empalideceu em comparação com a fúria que atormentava seu interior. Suas bochechas se ruborizaram de indignação.
—Isso é ridículo. É que não se dão conta de que salvou a todos? Teriam que estar agradecidos e não tratá-lo como a um cão.
—Estou de acordo. Mas já sabe quão supersticiosos podem ser os highlanders.
—Isso não é desculpa.
—Não, não é. Falarei com o Richard e tentarei acabar com isso.
Anna saltou de seu assento de repente.
—Faz ou falarei com ele eu mesma. Não penso permitir que rechacem sir Arthur por nos ajudar. Pelas chagas de Cristo, Alan! Sem essa bruxaria, é possível que agora estivéssemos todos mortos.
Alan a olhou com atenção, e o que viu nela pareceu lhe preocupar. Ficou pensativo, assentindo simplesmente com a cabeça, em lugar de criticar por usar essa linguagem vulgar. Anna partiu dali com o propósito de encontrar Arthur, mas seu irmão adivinhou seu destino, porque gritou: —Amanhã pela tarde chegaremos a Auldearn, Anna.
Ela se voltou e lhe dirigiu um olhar inquisitivo, perguntando-se a que viria aquilo.
—Sim.
—Se tiver intenção de ir a sério com o compromisso de casar-se, talvez fosse melhor que o deixasse tranqüilo.
Duvidou ao ouvir a verdade em palavras de seu próprio irmão. Mas não podia fazê-lo. As ações desse homem tinham despertado todos seus instintos de amparo. Tinha que agradecer-lhe embora os outros não fizessem.
Encontrou-o à beira do lago, sentado em uma rocha plaina, depois de ter tomado um banho. Tinha o cabelo molhado e vestia uma simples regata de linho com uma túnica e as perneiras de couro. Estava inclinado sobre seu peitilho, aplicando azeite com um trapo, e sua expressão, vista de perfil, era mais sombria que nunca. Embora parecesse óbvio que a tinha ouvido chegar, Arthur não deu a volta. Uma vez que esteve mais perto, Anna distinguiu o que limpava e o mundo lhe veio em cima.
«Sangue.»
Apressou-se para ele sem pensar, ajoelhou-se e pôs uma mão no braço.
—Está ferido.
Quando ergueu o olhar para olhá-la, a lua iluminou seu rosto.
—Não é meu - disse.
Uma sensação de alívio se expandiu por todo seu ser. Suspirou profundamente. Embora seu rosto permanecesse impassível, percebeu uma estranha emoção em sua voz. Virtualmente soava como se estivesse arrependido. Como se a morte de um de seus inimigos fosse algo que o perturbasse. Talvez para os guerreiros matar não fosse tão fácil como ela imaginava. Em qualquer caso não para ele. Isso o fazia mais humano em certo sentido. Mais vulnerável. Sir Arthur Campbell vulnerável? Esse pensamento a teria feito rir sozinho algumas semanas antes.
—Não tinha outra alternativa - disse Anna com ternura.
Arthur lhe manteve o olhar por um momento e depois dirigiu para a mão que tocava seu braço. Anna sentiu imediatamente a intimidade dessa cálida e rígida pele que apertava com seus dedos e se apressou a retirá-la. Mas isso não conteve a necessidade de aninhar-se junto a ele e repousar a bochecha contra o amplo escudo protetor de seu peito.
Arthur voltou para a tarefa de tirar as manchas incrustadas entre as pequenas peças de metal. Anna se sentou junto a ele em uma rocha mais baixa e o observou em silencio durante vários minutos.
—Por que está aqui, Anna?
—Queria lhes agradecer o que fez hoje.
Arthur encolheu levemente de ombros, sem levantar o olhar de sua tarefa.
—Não fiz mais que meu trabalho. Para isso estou aqui.
Anna mordeu o lábio ao recordar o quão furiosa que a pôs sua intromissão e o cepticismo com o que acolheu suas razões para lhes acompanhar.
—Ao que parecia tinham razão —admitiu — Lhes agradeço que nos tenham acompanhado na viagem. Todos o agradecemos - disse franzindo o gesto com irritação — Embora alguns tenham uma estranha forma de demonstrá-lo.
Os ombros de Arthur se esticaram quase imperceptivelmente.
—O que é o que dizem?
—Que sentiram aos cavaleiros antes que fosse possível fazê-lo.
Arthur arqueou uma sobrancelha, divertido com sua tentativa de suavizar o golpe.
—Seguro que disseram algo mais que isso.
As superstições de seus companheiros de clã ruborizaram as bochechas de Anna.
—É certo, verdade? É como aquilo que aconteceu os lobos e quando tropecei no escarpado. Podem ver as coisas antes que aconteçam.
Anna lhe suplicou com os olhos que não mentisse. Outra vez não. Ele ficou calado durante tanto tempo que pensou que não lhe responderia.
—Não é de tudo assim —disse finalmente — É mais como um pressentimento. Meus sentidos estão mais afinados do normal. Isso é tudo.
—Afinados? —repetiu ela — São extraordinários. —Seu louvor não pareceu a não ser o incomodar mais — Não entendo como o resto dos homens não é capaz de compreendê-lo. Salvaram a todos.
—Deixem estar, Anna. Não tem importância - disse olhando-a com gesto severo.
Parecia falar a sério, algo que mais que atenuar suas faculdades as ressaltava.
—Como podem dizer isso? É que não vos molesta? Teriam que lhes agradecer o que têm feito e elogiar suas extraordinárias habilidades, em lugar de atuar como crianças que tivessem medo de encontrar um trasgo na cama ou fantasmas dentro do armário.
A indignação que Anna sentia pelo trato que lhe dispensavam não encontrava a avaliação esperada. Uma vez mais pareceu que essa conversa lhe incomodava.
Arthur a olhou com dureza.
—Não é algo que me incomode e tampouco necessito que façam as coisas mais difíceis advogando por minha causa. Não quero que mencionem nada a respeito do que acreditaram ver. Deixem passar e cairá no esquecimento. Insistam e piorarão.
Falava da experiência.
Anna teve que apertar os lábios para não discutir. Aquilo não estava bem e a injustiça que suportava fazia aflorar todo seu instinto de amparo.
Incomodava-o. Tinha que ser, por mais que se mostrasse despreocupado. Que estivesse tão acostumado a essa sutil crueldade das pessoas e que a desse por certa fazia disso um pouco mais duro. Encolhia-lhe o coração. Quantas vezes o teriam rechaçado ou repudiado para que se convertesse em uma pessoa tão insensível e indiferente? Seria isso o que o afastava de outros? Todo seu distanciamento e individualismo lhe pareceram de repente uma máscara para sua solidão. Levava tanto tempo só que tinha chegado a convencer-se de que gostava. Seu coração se compadecia dele. Era tão afortunada de ter a sua família… Odiava pensar que uma pessoa pudesse estar sozinha.
—Anna? —disse ele procurando seus olhos à luz da lua. Teria adivinhado a direção que tomavam seus pensamentos? — me prometa que não dirá nada.
Anna pôs cara feia, mas assentiu. Ele se levantou para passar o apertado peitilho pela cabeça se vestiu com um tabardo limpo e trabalhou em excesso na sujeição de suas numerosas armas. Observar como se vestia era um ato que transbordava intimidade, mas a Anna não envergonhava fazê-lo. Ao contrário, parecia natural. Como se pudesse passar todos os dias de sua vida vendo como ele se preparava para a guerra. Aquele pensamento teria que tê-la horrorizado, mas, em vez disso, viu-se invadida por uma intensa sensação de desejo, de saudade por algo que lhe escapava das mãos. Fazia que se expusesse seu futuro e pensasse que talvez ele não fosse o homem errado, a não ser exatamente o adequado para ela. Um guerreiro estável. Isso parecia algo contraditório. Mas talvez fosse ela quem se equivocava de cabo a rabo.
—O que fará quando acabar a guerra? —perguntou.
Perguntava-se se não teria pensado em fazer algo com seus desenhos, talvez. Ou estaria simplesmente esperando a seguinte guerra para lutar nela?
A pergunta o pegou despreparado. Arthur estava atendo-se a espada e a deixou pela metade. O certo era que não tinha dedicado muito tempo a pensar. Fazia muitos anos que a guerra consumia sua vida. Lutar era para quão único servia. Primeiro junto a seu irmão Neil e logo como membro dos Guardiões das Highlands. Era um soldado profissional. Um dos melhores do mundo. Era o único que sabia fazer. Mas era isso o que ele queria? O teria escolhido ao ter a oportunidade? Uma vez que houvesse justiça para seu pai, que Bruce tivesse o trono assegurado, uma vez cumpridos os objetivos… o que faria então?
Terras e uma rica esposa seriam sua recompensa. Isso teria que bastar. Mas ao olhar a aquela mulher que o acabava de defender tão fervorosamente, que o via como alguém extraordinário em lugar de horripilante, que tinha um coração que não lhe cabia no peito, perguntava-se se realmente seria suficiente com isso. Ao olhar essa carinha arrebitada, banhada pela luz da lua entre tênues sombras, sentiu uma estranha angústia. Saber que era algo impossível não lhe impedia de seguir desejando-a. Mas já tinha mostrado muito de si mesmo. Estava tão acostumado a mentir a respeito de suas habilidades que lhe parecia estranho ouvir a verdade em voz alta. Estranho, mas também consolador. Manteve-se afastado do resto durante tanto tempo que esquecia o que era ter conexão com alguém.
Estava completamente louco.
Sua única desculpa era que o tinha pego em um momento de debilidade. O sangue que limpava de seu peitilho era a dos dois homens que se viu obrigado a matar para defender-se.
«Protege sua identidade custe o que custar. Protege a missão.»
Deus, às vezes odiava o que tinha que fazer. Acabou de ajustar o armamento antes de responder.
—Eu diria que isso dependerá do resultado.
Inclusive nesse lusco-fusco percebeu que o rosto de Anna empalidecia, mas se recuperou com rapidez.
—Não há mais que um resultado possível. Não conhece meu pai. Não perderá. —Arthur ficou tenso. Sabia isso melhor que ninguém. Essa era a razão pela que estava ali — O rei Hood e os rebeldes serão submetidos e levados diante da justiça.
Apesar de que soasse como o melhor e mais leal dos soldados do clã MacDougall, podia perceber a fragilidade que se escondia atrás daquela bravata. Anna seguia aferrando-se a ilusões que começavam a apresentar fissuras. Mas estava claro que era consciente do desesperado de sua situação, ou não estariam ali nesse momento.
—E mesmo assim acode ao Ross para lhe permutar por tropas adicionais.
Anna endireitou as costas de repente. Seus olhos brilhavam com intensidade ante o resplendor da lua.
—Não se trata exatamente disso.
Sim, se tratava disso. E seu trabalho era assegurar-se de que não ocorresse.
Não queria ser cruel, mas ela precisava confrontar a realidade. O pêndulo se afastava dos MacDougall. Bruce estava ganhando a guerra.
—E o que passará se fracassar, Anna? O que acontecerá Ross não está de acordo em mandar mais homens? Então o que?
—Meu pai pensará algo. —Soava tão desesperada que, sem se dar conta, esteve a ponto de aproximar-se até ela para consolá-la — por que falas de tal modo? —perguntou — Falas como um rebelde. Por que está aqui então, se não acredita em nossa vitória?
Amaldiçoou para si. Tinha razão. E logo descobriria quanta. Encolheu-lhe o estômago ao pensar em como a afetaria descobrir a verdade. Gostaria de poder suavizar o impacto de algum modo.
—Essa é justamente a razão pela que estou aqui, Anna. Por acreditar em uma causa. Por acreditar que ganhará o lado adequado. Mas as coisas não passam sempre do modo em que alguém pensa. Não quero lhe ver sofrer. —Deteve suas palavras e voltou para a questão original — Para quando a guerra acabe me prometeram terras e outras recompensas. Isso deveria bastar para me manter ocupado.
Anna inclinou um tanto a cabeça e umas linhas brancas diminutas povoaram seu sobrecenho.
—Outras recompensas? Que tipo de recompensas? —Embora não lhe respondeu, a resposta pareceu ir a sua cabeça de repente. Sobressaltou-se ao cair na conta e sua expressão de estranheza desvelou mais do que queria — Uma esposa? Eles prometeram uma esposa? —Arthur assentiu levemente, reconhecendo — Quem?
Uma das maiores herdeiras das Highlands ocidentais, a segunda irmã de Lachlan MacRuairi, lady Christina, senhora das Ilhas.
—Não sei —mentiu Arthur — Quando acabar a guerra me encontrarão uma esposa adequada.
Não era a primeira vez que desejava ser capaz algo precipitado, como tomá-la entre seus braços e lhe fazer promessas que jamais poderia cumprir.
—Já vejo —disse ela com voz diminuída — E por que não me contaram isso?
Ele a olhou com atenção.
—Como fizeram todos?
Anna estremeceu. Ao que parecia, tinha esquecido para onde se dirigiam. Mas ele não o tinha feito. A cada passo que os aproximava do Auldearn e Ross, Arthur sentia crescer a inquietação em seu interior. Sabia que tinha que fazer algo para evitar essa aliança, pela missão, conforme dizia a si mesmo. Mas o que?
Talvez não tivesse que fazer nada absolutamente. Era possível que Ross simplesmente se negasse a retomar as conversações sobre o compromisso. Mas com somente olhar a doce cara de Anna, Arthur foi consciente de que estava sonhando. Sir Hugh ficaria com ela com os olhos fechados. Apertou a mandíbula e lhe estendeu a mão.
—Vamos, temos que retornar. Faz-se tarde e temos um longo dia pela frente.
Quando Anna deslizou uma mão sobre a dele uma onda de calor invadiu todo seu ser. sentia-se… satisfeito. Como se não houvesse nada mais natural que ter essa pequena mão entre as suas. Todos seus instintos clamavam por agarrá-la e não deixá-la escapar.
Mas em vez disso, permitiu que seus dedos se desenlaçassem. Caminharam em silencio até o acampamento. Já se haviam dito suficiente. Talvez muito.
Capítulo 14
—Algo errado com sua comida?
A voz de sir Hugh tirou a Anna de seus pensamentos. Quanto tempo levava olhando sua tigela como uma boba e tirando o miolo ao pão pouco a pouco, sem dizer uma palavra? Tentou cobrir sua falta de tato com um sorriso ao mesmo tempo em que a vergonha se revelava em suas bochechas em forma de rubor.
—Não, está deliciosa. —Para dar fé disso meteu um pedaço de vitela na boca e fingiu deleitar-se. Uma vez o teve mastigado pediu desculpas — Temo que ainda esteja cansada pela viagem e não sou uma boa companhia.
Fazia duas noites que tinham chegado ao Auldearn. O último dia de marcha foi exaustivo, mas felizmente sem incidentes. Esperava em seu foro interno outra oportunidade para falar com sir Arthur antes que chegassem, e teve que levar uma decepção. Não era que ele a tivesse evitado, mas tampouco a tinha procurado.
Algo mudou aquela noite no lago, ao menos para a Anna. Arthur lhe tinha devotado uma parte de seu ser que parecia não revelar freqüentemente, uma parte dele que talvez a necessitasse. E o mais importante: não a tinha espantado. E por que não o tinha feito? Tudo teria resultado mais simples. Anna lutou por reprimir a cálida inflamação que ia a seus olhos e sua garganta enquanto a miséria se apoderava dela. Isso era o que lhe faltava, ficar a chorar em meio da comida como se fosse uma criada meio louca e doente de amor. Seguro que assim impressionaria sir Hugh.
Embora fosse jovem, apenas vinte e três anos, sir Hugh Ross era um homem cuja grandeza, superioridade e decidido atrativo se refletiam no perfil de seu perfeitamente torneado nariz até a ponta de seu afiado e curto queixo. Mas o orgulhoso cavalheiro parecia muito maior. Virtualmente parecia controlar-se em demasia, com tanta serenidade e tanto controle sobre si mesmo e essa arrogância de príncipe, algo que tampouco estava muito longe da verdade, dado a fila que ostentava entre a nobreza escocesa. Rígido, sem senso de humor, com esse aspecto frio e desumano tão próprio dos homens de sua época.
Sir Hugh lhe dirigiu um sorriso de compreensão que não melhorou em modo algum a severidade de seu semblante.
—É obvio, depois de cavalgar para tal passo e estar a ponto de ter uma topada com um grupo de rebeldes, é algo previsível. —Seu rosto adotou um aspecto sombrio — Teria que esfolar ao Bruce com suas próprias esporas por ser líder desse bando de piratas desalmados —acrescentou, voltando seu acerado olhar sobre ela — Foram muito afortunados de receber aviso a tempo de escapar —disse puxando a barba enquanto a observava. Anna não podia afastar os olhos de suas grandes e ossudas mãos, umas mãos que poderiam esmagar ou assassinar com a facilidade como que as suas rompiam um galhinho — Foi sir Arthur Campbell, não é certo? O irmão do rebelde Neil Campbell.
Anna assentiu, incomodada com seu próprio acanhamento. O nervosismo que sentia na presença de sir Hugh, o qual foi a primeira causa de que rechaçasse o compromisso, não fazia mais que agravar-se desde sua chegada. Sorrir e responder a suas educadas tentativas de conversa se convertia uma batalha. Observava-a como se pudesse ler seus pensamentos. Teria se delatado? Ela tinha tomado cuidado nem olhando na direção sir Arthur desde que chegaram. Ao menos acreditava não tê-lo feito. Mas estava mais que segura de que ele sim a estivera observando. O qual, provavelmente, explicava parte de sua inquietação. Seduzir a um homem sob o fulminante olhar de outro não era tarefa fácil. Mas tinha que fazer. Embora não gostasse da idéia. E a idéia não gostava absolutamente. Os dias passados encarregaram de deixar claro. Temia pensar muito no que sentia por Arthur por medo que descobririam.
—Tivemos muita sorte — comentou ao conscientizar de que sir Hugh esperava que dissesse algo.
Anna não sabia o que lhe acontecia. Jamais teve esse tipo de problemas na conversa com ninguém. Procurava controlar o tremor de suas mãos, mas lhe inquietava tanto a intensidade de seu olhar que atirou o pedaço de pão que tinha na mão. Caiu sobre a mesa, junto a sua taça e ao tentar recolhê-lo ao mesmo tempo em que Hugh Ross suas mãos se tocaram. Antes que desse tempo a retirar a sua, sir Hugh a cobriu com seus dedos. Seu pulso se acelerou até embarcá-la em uma sensação próxima ao pânico. Seu coração revoava em seu interior como se tratasse de um passarinho enjaulado.
—Está nervosa - disse lhe soltando a mão e lhe devolvendo o pão.
Ardiam-lhe as bochechas.
—Não têm nada que temer, lady Anna —disse visivelmente divertido — Sou bastante inofensivo. —Ela deve ter posto cara de não acreditar absolutamente, pois ele acrescentou—: Bom, pode ser que não completamente.
Essa inesperada amostra de humor a fez sorrir e pela primeira vez sentiu que começava a relaxar. Olhou-o do meio lado, protegida sob suas largas pestanas.
— Bom, milorde, é que sua pessoa é… certamente imponente.
—Tomarei como um elogio, embora não acredito que fosse essa sua intenção —disse entre risadas, para depois aproximar-se mais a ela e sussurrar—: O que parece se me esforço por ser imponente com todos menos contigo? Contigo serei o mais inofensivo. Será nosso segredo.
Anna, incapaz de resistir a seu encanto, sorriu até que lhe marcaram as covinhas. Sir Hugh Ross encantador? Jamais teria acreditado. Acaso o mal-humorado nobre ocultava mais do que Anna conhecia?
—Acredito que disso eu gostaria, milorde —disse sentindo que voltava para ela um pingo de seu atrevimento — Talvez ajudasse que sorrisse mais - acrescentou erguendo os olhos para olhá-lo.
Sim, quando sorria não parecia intimidar tanto.
Sir Hugh esboçou então um amplo sorriso e procurou seus olhos com o olhar.
—Pois então o farei - replicou. Fez uma pausa em seu discurso e Anna observou como se entretinha em riscar o relevo do pé da taça, interrompendo-se de um modo quase sensual que a devolveu a seu estado de inquietação — Estou muito contente de que tenham decidido viajar até o norte, lady Anna.
Cada vez estava mais tinta. Não lhe escapava o significado de suas palavras. Estava disposto a renovar as conversações em torno do compromisso. Sabia que devia sentir-se aliviada. Para isso tinha ido até ali. Poderia ajudar a salvar a sua família. Então por que notava como se uma estaca se atendasse em seu peito?
Assentiu com indolência, incapaz de encontrar-se com seu olhar de repente, temendo que revelasse muito. O peito lhe angustiava ao conscientizar de que o laço de seu futuro cada vez se atava com mais força. Seus sentimentos pessoais não importavam. Deveria contentar-se sabendo que tinha posto seu grãozinho de areia para ajudar à família. Isso seria recompensa suficiente, verdade?
Ross se voltou e fez gestos a uma criada que passava para que enchesse suas taças. Anna voltou o olhar inconscientemente para Arthur. Sabia onde estava sem necessidade de olhá-lo. Parecia atravessar toda a sala com o calor de sua ira. Seus olhares se encontraram durante um instante, mas foi tempo suficiente para que a força de sua ira ressonasse como o rugido de um ferreiro na forja. Em geral, continha tanto suas emoções que Anna se perguntava se realmente existiriam. Mas isso acabou. Jamais o tinha visto tão feroz e selvagem. Parecia um homem cuja contenção pendia de um fino fio.
Voltou-se, sobressaltada pela emoção que a embargava. Infelizmente não voltou o olhar com suficiente rapidez e sir Hugh apreciou parte do intercâmbio. Notou como ficava em guarda e entreabria os olhos olhando sir Arthur.
—Campbell não parece muito feliz com nosso acerto. Eu não gosto da forma em que vos olha - disse voltando o olhar para ela e arqueando uma sobrancelha de tal modo que parecia algo menos casual — Há algo que deveria saber lady Anna?
Amaldiçoou Arthur por sua imprudência. Arruinaria tudo. E para que? Já tinha tido oportunidades mais que suficientes para mostrar seus sentimentos, se é que albergava alguns. E agora não ficava opção. Seu pai contava com ela.
Mesmo assim duvidava. Essa seria sua última oportunidade para voltar atrás. Seu coração puxava em uma direção, e o dever e sua família puxavam a outra. Anna recordou a conversa mantida com sir Arthur. O ouvir falar de perder a guerra a tinha feito tremer. Inspirou profundamente e se desembaraçou de todas as dúvidas. Seus sentimentos pessoais não importavam. Tinha que fazê-lo. Quando Bruce chegasse, teriam muitas mais possibilidades com Ross e seus homens ao seu lado.
Negou com a cabeça.
—Não, não há nada que deveria saber.
A certeza de sua voz pareceu convencer sir Hugh. Assentiu.
—Bem —disse lhe estendendo a mão — Venham, há algo que eu gostaria de mostrar e acredito que há certas coisas que deveríamos discutir.
Anna ignorou a dor que lhe oprimia o coração e sorriu, embora tremulamente. Sem nenhum olhar mais, deu a mão ao Ross e lhe permitiu que a tirasse do grande salão com seu futuro já mais que decidido.
Isso era o que se sentia quando as pessoas perdiam o controle. Isso era o que se sentia quando alguém queria algo com tanta vontade que mataria por consegui-lo. Não pelo bem ou o mal, nem por estar no campo de batalha, mas sim pela pura satisfação de ver outro homem atravessado pela ponta de seu aço.
Arthur queria matar Hugh Ross. Dava-lhe vontade de matá-lo somente pela forma em que olhava a Anna. Pelos pensamentos luxuriosos que seguro percorriam a mente daquele filho de cadela. Arthur não acreditava ser capaz de conter-se no caso de que o olhar do Ross se detivesse de novo sobre seus seios. Atiraria uma lança no seu sobrecenho do outro lado do aposento. Poderia fazê-lo com os olhos fechados. Ficar afastado durante os últimos dois dias obrigado a contemplar como outro homem cortejava a essa mulher que, supostamente, não significava nada para ele era como uma lenta e agonizante descida à loucura. Arthur liberava uma batalha perdida. Suas tentativas de permanecer indiferente, de centrar-se na missão, não funcionavam. Todos esses anos de treinamentos e experiência na batalha não o tinham preparado para aquilo. Ver Anna e Hugh Ross juntos estava lhe fazendo em pedaços. Mas essa noite foi a gota que encheu o copo. Quando viu Ross lhe acariciar a mão, Arthur esteve a ponto de sair da ali feito uma fúria e lhe partir todos os dentes num murro. Ao diabo com o subterfúgio. Estavam rindo, maldita seja. Rindo.
Queria convencer-se de que ela não seria capaz de passar por isso. Não seria porque Anna não se mostrou precavida a respeito ao cavalheiro durante os últimos dois dias, precisamente. Mas Arthur tinha subestimado sua resolução, e também o encanto de sir Hugh. Quando se aproximou para lhe sussurrar ao ouvido teve que apertar os punhos. Não foi até que baixou o olhar e percebeu a palidez de seus nódulos que se deu conta de quão forte tinha a taça obstinada. Foi toda uma sorte que fosse de madeira; de outro modo, a teria destroçado.
Amaldiçoou consciente de que devia fazer algo. Tinha que pensar em sua missão. Sir Hugh não perdia tempo, e não é que pudesse culpá-lo. Se Arthur não fazia nada para impedir aquela aliança, seria muito tarde. Bebeu o conteúdo da taça. O uisgebeatha de cor ambarina fez que ardesse a garganta, mas não acalmou absolutamente a intranqüilidade que bulia em seu interior.
—Que diabos te passa, Campbell? Parece que queira matar a alguém - disse Alan MacDougall olhando de soslaio ao estrado. Sabia perfeitamente a quem queria matar Arthur. Aproximou-se para falar — Tome cuidado. Acredito que nosso anfitrião advertiu seu interesse por minha irmã.
Arthur economizou a vergonha de negá-lo. Alan MacDougall podia ser filho de um déspota desumano, mas não era nenhum idiota.
—E viestes para ordenar que me retire do conflito?
O guerreiro mais velho, muito experiente para delatar-se pela expressão de seu rosto, olhou-o com impassibilidade.
—Queres que o faça?
Arthur contraiu a mandíbula e apertou os dentes.
—Deveria — disse em um estranho momento de franqueza.
Não faria mais que arruinar sua vida. Se ele fosse seu irmão, ordenaria que o mandassem ao inferno diretamente e logo iria ele mesmo atrás. Mas se Alan pensou que havia algo estranho em sua resposta certamente não o exteriorizou. Em vez disso, sorriu com ironia.
—Parece-me que é muito tarde para isso.
Arthur afastou o olhar de sir Hugh e de Anna o tempo suficiente para olhar ao Alan enviesadamente. Não tinha idéia do que Alan acreditava saber, mas se equivocava. Ou não?
Diabos, já não sabia. Sua missão. Ciúmes. Sua intensa atração pela moça. Tudo isso se mesclava criando um caos absoluto. Voltou a beber de um gole o conteúdo da taça.
Alan observou como o fazia com uma expressão divertida.
—Acreditava que não bebia uísque.
—Não bebo - disse Arthur, e fez gestos à criada para que lhe enchesse a taça.
Alan estivera observando-o com mais atenção da que pensava. Aquilo o teria preocupado a não ser porque algo lhe fez voltar sua atenção para o estrado. Todos seus músculos ficaram rígidos quando viu que Anna deslizava sua mão sobre a do Ross. A ira percorria todo seu corpo ao mesmo tempo em que aquele homem se inclinava para falar brevemente com seu pai momentos antes de acompanhá-la ao exterior do salão. Justo antes que Hugh passasse pela porta olhou para Arthur. O tom malicioso de seu olhar fez que lhe gelasse o sangue. Uma sensação estranhamente próxima ao pânico subia por seu peito, algo ridículo por completo. Era um guerreiro de elite. Distante. Controlado. Pode ser que seu coração pulsasse muito depressa e que não pensasse com claridade, mas era indisputável que aquilo não podia ser pânico.
Mas onde demônios acreditava que ia? Ross, esse filho de puta lascivo, estava obviamente ansioso pelo compromisso. Quem sabia do que seria capaz para assegurá-lo? Acaso Anna não notava do que aconteceria quanto estivessem a sós? A mente de Arthur voltou para os barracões imediatamente.
«Por todos os diabos.»
Conseguiu resistir durante uns trinta segundos até que já não pôde agüentar mais. Levantou-se para partir, mas Alan o deteve movendo sua perna pela borda da mesa e lhe fechando o passo. Não era nenhum acidente. A princípio Arthur acreditava que queria detê-lo, mas para sua surpresa o guerreiro retirou a perna lentamente e lhe deixou passar, não sem antes fazer uma advertência.
—Se fizer mal a minha irmã, Campbell, terei que te matar.
Apesar de que falasse com tanta calma como se informasse o tempo, Arthur era consciente de que dizia muito sério. Que diabos, se Alan não fosse seu inimigo e o filho de um déspota, pode ser que inclusive lhe caísse bem. Arthur o olhou nos olhos e assentiu, com a suspeita de que Alan MacDougall não seria capaz de manter sua promessa. Pôr fim ao compromisso e deter a aliança, fazendo dano a Anna no processo, converteu-se em algo inevitável.
Anna esperava que sir Hugh a levasse fosse para passear pelo barmkin, mas em vez disso a fez entrar pelo corredor até a torre da comemoração. O castelo real do Auldearn fora construído uns cem anos antes por encargo do Guillermo o Leão. Sua torre da comemoração e o grande salão contíguo se erguiam no alto de um enorme Castro circular rodeado por um cerca de madeira. O muro de pedra que rodeava o pátio de armas que havia debaixo proporcionava um nível mais de defesa. O corredor iluminado pelas tochas parecia silencioso em comparação com o bulício do grande salão. Anna se inquietou ao ser consciente de que não havia ninguém mais ao redor. Embora os últimos raios de sol ainda reverberassem sobre o horizonte, a torre de pedra estava já às escuras. Tampouco a luz cintilante das tochas alinhadas nos muros lhe dava mais tranqüilidade.
—A…aonde vamos? — perguntou envergonhada pelo tremor de sua voz.
Sir Hugh lhe dirigiu um enigmático sorriso que fez que Anna se perguntasse se saberia a impressão que causava nela.
—Já quase chegamos.
Deteve-se frente à porta da câmara particular do conde. Uma vez aberta, Anna aliviou comprovar que a estadia estava bem iluminada pelo castiçal de ferro circular que pendia do teto. Infelizmente, Hugh a levou até outra porta que havia cruzando a sala, com o que Anna percebeu de que aquele não era seu destino final. O segundo aposento estava às escuras. Anna ficou na câmara até que sir Hugh acendeu umas velas. Então ficou sobressaltada.
Anna se esqueceu de seu nervosismo. Apressou-se a entrar no minúsculo aposento, não muito maior que uma despensa, e olhou com surpresa a seu redor. O centro da sala estava presidido por uma mesa e um banco, mas o que enchia seu assombro era o que havia sobre as paredes. Prateleiras e mais prateleiras cheias de grossas folhas de couro, alguns deles recobertos de ouro e outros com jóias incrustadas. Um tesouro oculto. Mais livros dos que tinha visto em sua vida em um só espaço.
Sir Hugh observou em que modo a maravilha e a incredulidade transformavam seu rosto.
—Pensei que isto poderia lhes interessar.
Anna deu uma palmada de puro prazer; seus dedos estavam impacientem por explorar os títulos. Por Deus bendito, se pareciam quatro volumes do Chrétien do Troyes!
—É magnífico — disse voltando-se para ele — Como sabias?
Hugh Ross encolheu de ombros.
—Em certa ocasião mencionaram que desfrutava da leitura.
Anna inclinou a cabeça e o olhou. Uma vez mais sentia como se o tivesse julgado mal.
—E se lembrou?
Sir Hugh não respondeu, mas a olhou de tal forma que um formigamento de inquietação lhe percorreu as costas. Desejava-a. De repente aquele minúsculo aposento pareceu uma armadilha a Anna. Olhou para a porta, mas já fosse intencionadamente ou não, ele se tinha colocado frente a ela lhe cortando o passo.
—por que me trouxestes aqui? —perguntou.
Sir Hugh deu um passo adiante e seus olhos brilharam de maneira perigosa entre as penumbras. Pegou-a pelo queixo e a obrigou a olhar em sua direção. O pulso lhe acelerou de pânico. Talvez fosse uns cinco centímetros mais baixo que sir Arthur, mas em certo modo seu tamanho lhe parecia ameaçador. Anna teve que reunir todo o valor com o que contava para não sair correndo.
—Queria lhes mostrar o que terá quando fores minha esposa. Esta sala estará a sua disposição. Será uma das damas mais importantes do reino. Para isso viestes, lady Anna. Não é assim? Para reatar as conversações sobre nosso compromisso.
—Sim - sussurrou ela, tentando controlar o tremor de sua voz.
Hugh cravou o olhar em seus olhos, desafiando-a.
—É isso o que quer realmente?
O coração lhe pulsava com fúria. Teve que obrigar-se a assentir.
—Sim.
—Então prove — pediu. Ela piscou de maneira inquisitiva — me beije.
Anna abriu os olhos de par em par pela surpresa.
Lutava por saber o que dizer. Mas, pelo amor de Deus, não podia. E ele sabia. Endureceu o olhar.
—Está jogando comigo, lady Anna? Asseguro-lhes que não tenho nenhum desejo de ser o corno de outro homem. Recorde que são vocês quem acudis a mim nesta ocasião. —Sir Hugh lhe pôs um dedo no lábio inferior e Anna conteve o fôlego, paralisada pelo medo — Decida o que quer antes de fazer algo que não possa ser desfeito. Uma vez estejamos comprometidos, asseguro-lhes que não tolerarei tais tolices.
As bochechas de Anna se avermelharam, envergonhada por quão certas eram suas acusações. Sacudiu o medo tentando recordar por que tinha ido até ali, tentando recordar quão importante era conseguir essa aliança para ela. Não podiam deixar escapar essa oportunidade. Por que se comportava como uma estúpida? Somente se tratava de um beijo.
—milorde, o temporal…
Ao ver que lhe soltava o queixo, Anna suspirou mostrando maior alívio do que devido.
—Temos que retornar ao salão - disse Ross fria e secamente — Seu irmão se estará perguntando aonde a levei.
Anna assentiu, sentindo sua impotência, consciente do que devia fazer, mas incapaz de pronunciar as palavras. Que o diabo levasse Arthur Campbell pelo que estava fazendo com ela! Por confundi-la. Ela estava preparada para levá-lo a cabo antes que ele voltasse a aparecer.
—Se não lhes importar, meu senhor, estou cansada e preferiria me retirar a meus aposentos.
Sir Hugh assentiu.
—Não há pressa. Querem tomar um livro emprestado, talvez? —Olhou-o nos olhos, consciente de que tentava tentá-la — Podemos falar sobre isso manhã.
Hugh Ross deu meia volta para partir, mas algo o fez mudar de idéia. Antes que ela pudesse conscientizar do que se dispunha a fazer, já a tinha atraído para si e a estava beijando. Anna ficou paralisada, muito surpreendida para resistir.
Seus lábios eram frios e duros, em consonância com sua pessoa. Acertou a distinguir um leve aroma a vinho, mas antes que pudesse descobrir algo mais já tinha acabado tudo. Sir Hugh baixou o olhar e sorriu ao ver o rosto de surpresa que Anna tinha posto.
—Têm toda a noite para decidir. Mas se quiserem que o compromisso siga adiante, espero que me dêem uma resposta amanhã. Uma que seja algo mais entusiasta que esta.
Ross não se fazia uma idéia do perto que estava da morte. Arthur apertava a adaga em sua mão, tentando controlar a sede de sangue que percorria suas artérias com cada um dos músculos. Tudo que tinha que fazer era dar um par de passos, sair de seu esconderijo depois das sombras do vão da porta e afundar sua folha no mais profundo das vísceras daquele filho de cadela.
Tinha-a beijado. Tinha-a tomado entre seus braços e tinha grudado sua boca a dela. Algo se rompeu em seu interior. Todos seus instintos lhe diziam que tinha que sair dali e matar ao homem que se atrevia a tocar aquilo que lhe pertencia. Mas algo deteve sua mão no último momento. Matar ao Ross poria fim a sua missão. Veria-se obrigado a fugir, acabando assim com sua oportunidade de destruir ao Lorn. Teve que aferrar-se ao mínimo de controle que ficava para não mover-se, mas deixou que Ross saísse do aposento. Deixou-lhe viver. Por essa vez.
Entretanto, Anna não escaparia a sua ira tão facilmente. Asseguraria-se de que não houvesse mais que uma resposta à manhã seguinte. O compromisso que ela tinha planejado estava a ponto de chegar a um final irrevogável.
Anna seguiu os passos do Ross apenas se desvaneceram suas pegadas. Assim que chegou à porta, Arthur saiu de entre as sombras e lhe fechou o avanço.
Ela ficou sem fôlego. Todo o medo que pudesse sentir logo desapareceu para dar passo ao brilho de ira que incendiava seu olhar.
—Como te atreve a me espiar? —exclamou. Tentou afastá-lo de seu caminho, mas ele imobilizou seus pulsos com uma mão — Deixe-me partir. Não tem nenhum direito.
Voltou a colocá-la no aposento e fechou a porta atrás dele.
—Tenho todo o direito —disse Arthur com fúria — Não se casará com ele.
Advertiu o rubor de suas bochechas à luz das velas. Seu busto, esses incríveis seios, tão grandes que não podia deixar de sonhar com eles, enchiam-se com uma indignação justificada. Anna ergueu o doce rosto com seu adorável e teimoso queixo para ele.
—Sim o farei.
Não gostava desse tom absolutamente. Nenhum pingo. Entreabriu os olhos.
—Nem sequer podia lhe beijar - disse aproximando-se mais a ela e aspirando a sensual calidez de sua fúria — Como pensa que será então deitar-se com ele?
A indignação de Anna se traduziu em um áspero gemido. A Arthur não cabia a menor duvida de que lhe teria parecido uma adaga entre as costelas se tivesse uma. Mas sua língua era igual de efetiva estripando-o.
—Suponho que chegarei a me acostumar. É possível que inclusive desfrute. Sir Hugh é um homem muito arrumado. E parece bastante decidido, não acredita? —disse lhe provocando com o olhar, desafiando-o, voltando-o louco — Se parecer em algo a esse beijo imagino que chegarei a desfrutar muito disso.
Agarrou-a pelo braço.
—Pare — disse agitando-a ante si — Pare.
Parecia estar a ponto de explodir. Suas provocadoras palavras exaltavam ao máximo aqueles sentimentos contidos durante tanto tempo. Uns sentimentos que Arthur não queria reconhecer. Uns sentimentos que não podia permitir que aflorassem. A cabeça lhe dava voltas. Queimava-lhe o peito. Deus, doía demais. Tinha que fazê-la parar.
—Por quê? —perguntou Anna aproximando-se mais a ele. Arthur sentiu seus mamilos lhe roçando o peito e teve que sacudir-se realmente, pois todo o controle com o que contava seu corpo pendia de um fio. O calor o puxava para um vórtice de luxúria e desejo. Queria esmagá-la contra si. Beijá-la. Possuí-la até deixá-la sem sentido. Fazê-la gritar seu nome e nenhum mais que o seu — Por que teria que parar? É a verdade. Sir Hugh me deseja muito como um homem que vê o que quer e não se detém ante nada até que o consegue.
Era consciente de que não fazia mais que provocá-lo, mas não lhe importava. Arthur sabia perfeitamente o que queria, maldita seja. A ela. Renegou, consciente de que a batalha estava perdida. Tomou entre seus braços e pregou sua boca a dela, cedendo a esses poderosos impulsos que liberavam uma guerra em seu interior. Beijou-a como jamais antes tinha beijado a mulher alguma. Beijou-a com toda a paixão que acumulava desde que a visse pela primeira vez. Beijou-a para que não seguisse falando. Beijou-a para apagar as odiosas imagens com as que tinham enchido sua cabeça. Beijou-a de modo tal que não pudesse voltar a pensar em outro homem em sua vida.
Não obstante, uma vez que Anna se fundiu ante ele em uma rendição silenciosa e abriu sua doce e pequena boca para recebê-lo com um suspiro e um gemido, Arthur não pensou mais em missões, alianças, clãs inimigos ou vingança. Não. Tudo assim que pensava era em fazê-la sua.
Capítulo 15
Anna sabia que se precipitava e que estava provocando-o, mas não lhe importava. A ira não lhe deixava ver mais que sua necessidade de arremeter contra ele. Odiava-o por intrometer-se, por fazê-la duvidar, por interferir em seus planos. Não queria outra coisa que proteger a sua família e manter a salvo às pessoas que amava. E quando tinha a oportunidade de conseguir, Arthur Campbell se interpunha em seu caminho.
Confundia-a. Desorientava-a. Fazia que tomasse carinho e logo a separava de seu lado. Em um momento a salvava e a protegia e ao seguinte a ignorava. Era um ingrato, um homem que se mantinha à margem e dava a impressão de não necessitar a ninguém. Mas também era um homem que estava sozinho, alguém afastado por seus próprios dons, obrigado a viver um tanto afastado de outros.
Queria-a? Necessitava-a?
Em qualquer dos casos teria que decidir-se. O tempo se esgotava para ambos. Era consciente de que estava ciumento, consciente de que tinha visto o beijo que lhe deu sir Hugh, consciente de que lutava por manter o controle. Assim o provocou.
Desejava-o com tanta vontade… A essa distância o único em que podia pensar era em seu doce aroma. E em que o aspecto desalinhado que lhe dava a escura sombra de sua barba o fazia mais arrumado ainda. No alto que era. A enmembrodura de seu peito. O suave que se viam seus lábios embora estivessem brancos de ira. Em que o daria tudo por que tomasse entre seus braços e não a abandonasse nunca. A dor rasgava seu peito como uma faca. Por que não a queria? Por que se reprimia?
Isso foi o que a levou a provocá-lo de maneira temerária, desesperada, com intenção de lhe ferir tanto como ele a feria. E se era mentira? E o que lhe gelava o sangue com somente imaginar-se na cama com outro homem? Desfrutar? Mal podia deixar de tremer de medo em presença de sir Hugh.
Então ele se desmoronou e Anna obteve sua recompensa. Encontrou-se em seus braços, com a boca de Arthur pegada à sua, beijando-a com toda essa paixão e emoção com que ela tinha sonhado. Ele a devorava com a boca e a língua, enquanto ela gemia e se entregava mais e mais a seu beijo, morrendo por sentir cada dobra de sua pele. Deslizava suas enormes mãos sobre ela de modo possessivo. Passou-a por suas costas e depois sobre os quadris, até que desceram para agarrar seu traseiro. Então rugiu de agrado sobre sua boca e a beijou com mais força ao mesmo tempo em que a acoplava firmemente contra seu corpo.
As sensações se desatavam em seu interior em um ataque de calor resplandecente.
OH, Deus, aquilo era perfeito. Seu peito contra o dele, os quadris colados e a dura confirmação do desejo masculino introduzindo-se entre suas pernas de uma maneira íntima. Era consciente de que o tamanho e o tato teriam que assombrá-la, mas o único que sentia era a excitação, uma excitação que fazia lhe acelerar o coração, sua pele se ruborizasse e sentisse comichões por todo o corpo.
Estavam cobertos um com o outro, mas aquilo não bastava. A cada delicioso roce de sua língua, a cada possessiva carícia de suas mãos, crescia a inquietação no interior de Anna. Respondeu a seu atrevimento com mais atrevimento. Agarrava com firmeza os duros músculos de seus braços, seus ombros e suas costas. Queria sentir cada centímetro de seu corpo sob os dedos, modelar seus músculos com as palmas de suas mãos. Conter toda sua força baixo elas.
Aquilo a fazia sentir… embriagada de desejo. Era a primeira vez na vida que tinha uma experiência de tal calibre. Seu corpo parecia ressuscitar. Reagia aos estímulos de maneira natural, como se soubesse o que estava fazendo. Tudo ocorria muito rápido para pensar. O desejo a tinha feito sua presa e não parecia disposto a soltá-la.
Aproximava-a de seu corpo cada vez com mais urgência, esfregando sua virilidade contra a mais feminina de suas partes. A fazia sentir estranha, com comichões, quente, ofegante. Mas não era suficiente. Ávida de fricção, sedenta por encontrar uma conexão mais profunda, descrevia círculos com seus quadris e se esfregava com essa grosa coluna de carne com mais força.
Arthur percorreu seu pescoço com a boca e a devorou com seus beijos. Sua barba de dois dias fazia sulcos em sua pele em chamas. O aposento jogava fumaça e ardia de paixão. Agarrou-a pela cintura e deslizou as mãos até seus seios. Anna ofegou e se pegou quanto pôde a seu membro viril ao mesmo tempo em que arqueava as costas procurando suas mãos. Arthur murmurou algo parecido a uma imprecação e roçou seus turgentes e ofegantes mamilos com os polegares enquanto sua boca se dava de presente com a tenra pele que aparecia por cima do corpete.
Estava muito quente. Sentia-se débil. Lânguida e pesada. Parecia que suas pernas não contassem com forças para sustentá-la. Desabou-se sobre Arthur, que a puxou de novo sobre a mesa para acalmá-la, e talvez também para acalmar a si mesmo. Aquele cavalheiro, que mostrava um controle tão férreo sobre si, parecia sofrer apuros igual aos selvagens e frenéticos dela.
Os escuros e sedosos cabelos de Arthur se derramaram sobre seu peito. Anna, incapaz de resistir, passou os dedos entre essas suaves ondas e o apertou contra si com força e ternura. A umidade de sua boca transpassava o tecido do vestido para chegar até seu mamilo ao mesmo tempo em que acariciava seus seios e os rodeava com suas mãos.
Mas não era suficiente.
Então sua língua pareceu perceber essa frustração e entrou sob o corpete. Um gritou escapou dos lábios de Anna ante tamanha perversão, ante o delicioso prazer que sentia. Aquela boca estava muito quente. Passou-lhe a língua de um lado a outro, até que pensou que já não poderia resistir mais. Retorceu-se contra ele suplicando para que desatasse a voragem que se formava em seu interior.
Por fim lhe deu um puxão do vestido até quase romper o tecido e o abriu para liberar seus seios. O frio ar soprou sobre sua pele e provocou formigamentos ali onde a tinha beijado.
—Jesus — exclamou Arthur, como se aquilo doesse — É incrivelmente bela.
Provavelmente ouvir sua voz teria quebrado seu estado de transe, mas Arthur cobriu seu ofegante mamilo com a boca e começou a chupá-lo antes que Anna pudesse acolher-se a esse momento de iluminação. Essa doce e aguda sensação a fez gritar. Era um prazer tão agudo que se aproximava muito à dor. Atendia-a com os dentes, dava-lhe linguadinhas e sugava sua cálida boca cada vez com mais intensidade. O calor se estendeu entre suas pernas em uma corrente de umidade. Sentia comichões em suas suaves carnes inflamadas.
Tinha-a aprisionada contra a mesa com as pernas abertas. Montou uma delas sobre seu quadril ao mesmo tempo em que se inclinava para lhe beijar o seio. Os ferozes pulsar do coração de Arthur troavam contra seu peito, seus músculos se esticavam da excitação e a cobriam com todo o peso de seu corpo. E Anna estava quente. Tão quente que queimava. Excitada até o ponto de não retorno.
Arthur deslizou a mão sob o vestido até fazer contato com a pele. Suavizou o impacto acariciando o mamilo pausadamente entre seus dentes. Então voltou a cobrir sua boca com beijos, e suas mãos… Céu santo estava colocando as mãos entre suas coxas! Envergonhada, tentou fechar as pernas. Mas ele não o permitiria. Sua boca a distraía com os longos e pausados movimentos de sua língua, ao mesmo tempo em que ele entrava em sua umidade com os dedos. O corpo de Anna tremeu ao sentir o contato. Seus protestos se dissolveram em uma onda de alívio estremecedor. Aquilo dava muito prazer. Um prazer surpreendente.
—Jesus, é tão doce…
Deixou de beijá-la e Anna se perguntou se teria feito algo indevido, até que percebeu de que era ele quem estava passando mal, tentando conter-se, como se lutasse por controlar-se. Como se tocá-la o tivesse despojado de suas últimas reservas de contenção. Como se muito em breve não pudesse controlar-se. Ficou olhando-a nos olhos ao mesmo tempo em que introduzia seu dedo nela com um pequeno e firme empurrãozinho. Aquele era o momento erótico mais perverso de sua vida. Tomou fôlego em uma tentativa de estabilizar as sensações, mas estas se precipitavam sobre ela em rápidas ondas que não davam trégua alguma. Acariciou-a. Primeiro com círculos pequenos e suaves, depois com mais força, mais rápido, com impulsos profundos e frenéticos que pareciam decalques dos beijos que acabava de lhe dar.
A sensação que se formava em seu interior era muito intensa. Muito poderosa para ser contida. Esticava-se e recuava em um endiabrado redemoinho de necessidade. Seu rosto era uma máscara de dor. O suor se acumulava sobre suas sobrancelhas. Arthur a olhava nos olhos de modo escuro e penetrante, agarrando-a de tal forma que o coração lhe estalava de felicidade. Anna por fim via a verdade em seus olhos, o que intuía desde o começo. Essa conexão que havia entre eles era especial. E também ele a sentia.
Não sabia o que lhe estava acontecendo, mas era perfeito. Cada uma de suas carícias a levava até limites que era incapaz de compreender. Retorcia-se de frustração. Seu corpo inteiro clamava por…
—Te relaxe, amor —sussurrou Arthur — Quero te fazer voar.
O som aveludado de sua voz abriu caminho através dos últimos vestígios de sua repressão de criada. Ficou sem respiração até que pareceu que seu corpo se faria em pedaços devido ao intenso prazer que procuravam os agudos espasmos e teve que libertar todo o ar em um gemido estremecedor. Era o momento mais maravilhoso de sua vida, mas à medida que olhava o escuro interior desses olhos com bolinhas douradas, soube que não era suficiente. Tinha satisfeito sua paixão, mas seu coração ainda palpitava pela necessidade de realizar-se. Queria uma conexão mais profunda. Queria senti-lo em seu interior. Queria ter tudo dele. Para sempre.
«Quero-te.» É obvio. Estava tão claro, era tão certo, que se perguntava como poderia ter sido de outra maneira. Guerreiro. Cavalheiro. Isso pouco importava. Porque em seu coração, Anna sabia que tinha encontrado ao homem com quem estava destinada a compartilhar sua vida.
Arthur já não podia esperar mais. A pressão se acumulava na base de sua coluna como um punho quente e conectava com a vibrante ponta de um membro que pedia alívio, que a tocasse, que atendesse a seus agudos gritos e ofegos de prazer e sentisse como seu corpo se derretia e se estremecia ao rodeá-la com a mão. Apertou os dentes tentando refrear-se, consciente de que estava a ponto de gozar como não o tinha feito antes na vida.
Jesus, que beleza mais embriagadora: cabelos dourados como o mel que se dispersavam atrás de sua cabeça e resplandeciam diante da luz das velas; olhos aturdidos e inflamados pela paixão; seios de formas perfeitas, grande e suave, que saía de seu corpete mostrando um pequeno e arrepiado mamilo avermelhado por suas dentadas.
Tinha o aspecto de uma fêmea no cio que clamava ao céu para que a montassem. «E esta fêmea é minha. Toda minha.».
«Jesus», repetiu para si a meio caminho entre a prece e a imprecação. Jamais antes havia se sentido de tal modo. O desejo o consumia.
—Arthur —choramingou ela — Lhes rogo isso.
O brutal desespero de sua voz foi o último fio de que precisava atirar. Não podia esperar mais para introduzir-se nela. Virtualmente rompeu a fivela e as ligaduras de suas meias e calções para liberar seu inchado membro. Mas tirar o membro de seu confinamento para que lhe desse ar não servia de grande alívio. A única coisa que lhe serviria para aplacar a dor nesse momento era estar dentro dela. Levantou uma de suas flexíveis e sedosas pernas de formas perfeitas, passou-a por trás de seu quadril e se colocou diante daquela abertura cálida e deliciosamente úmida. A próxima vez se tomaria seu tempo em saboreá-la, lhe colocar a língua e fazer que se gozasse sobre sua boca.
Não deixou de olhá-la em nenhum momento. Não se atrevia a afastar o olhar dela por medo de que se perdesse a poderosa conexão que se produziu entre ambos. Teria que ter sentido ao menos a sombra de uma dúvida, ter a sensação de que aquilo que fazia estava mal. A honra era importante para ele, apesar de que o código de cavalaria não o fosse. Mas não sentia nada disso. O único em que pensava era que não podia perdê-la, que tinha que fazê-la sua, e se era capaz de fazer isso, todo o resto sairia bem. Quando a sensível cabeça de seu membro se encontrou com o úmido calor de seu ninho, Arthur exalou um profundo som gutural de puro prazer. Esfregou-se contra sua suave umidade e se deteve ali, consciente de que uma vez dentro seria muito tarde. Tinha o corpo em chamas e todos os músculos em tensão, preparados para fazer entrada. Notava-se o pulso nas veias. Nas orelhas. Até nos ossos. Parecia-lhe ter a pele tensa e ardendo.
«Empurrar.» Deus, que vontade tinha de empurrar. Jamais teve tanta vontade de preencher, de meter-se profundamente em nenhuma mulher. Sabia que seria algo incrível. Seu corpo se ajustaria a ele como uma luva quente e o espremeria com puxões largos e duros até lhe fazer cair profundamente na mais absoluta das inconsciências. Queria ver como se movia sob seu corpo impulsionado pelo poder de seus embates, como levantava os quadris para acompanhar cada uma de suas profundas investidas. Queria ver como seu membro entrava e saía dela.
Apertou os dentes, sentindo uma necessidade de afundar-se nela virtualmente irrefreável. Mas não podia a machucar. Assim que se obrigou a ir devagar. Estimulou-a com sua grossa ereção para que se acostumasse ao tamanho e a força de seu membro e esfregou a ponta com sua umidade para facilitar a entrada. E coberta de maravilha. A pressão se acumulava na base de sua coluna e puxava cada vez com mais força.
Não pôde agüentá-lo mais. Começou a empurrar. Ela gritou, surpreendida.
«Jesus.» Apertou os dentes. O suor se acumulava sobre suas sobrancelhas. O sangue palpitava em suas veias. Tentador. Tão incrivelmente tentador… Tinha que tomar-lhe com calma e com cautela. Deus estava louco por gozar. Ficava muito pouco…
Um leve som penetrou aquela bruma.
Arthur sentiu um premonitório calafrio na nuca e ficou paralisado. O ar tinha mudado. Separou-se dela amaldiçoando enquanto todo seu ser estalava em protestos.
—Te cubra - disse, e lhe deu um puxão no vestido ao mesmo tempo em que tentava atar os calções torpemente.
Mas era muito tarde, ou muito cedo, se atendia à frustração que ardia em seu testículo nesse preciso instante. A porta se abriu de repente. Sir Hugh Ross estava atrás dela, com seu acerado olhar atento a cada detalhe do que acontecia no interior.
Apesar de que se trabalharam em excesso em vestir-se rapidamente, nada podia dissimular o que estavam fazendo. Anna seguia recostada sobre a mesa com as bochechas acesas e os olhos aturdidos, Arthur seguia entre suas pernas e a sala se achava impregnada com o quente e pesado ambiente que corresponde à almiscarada fragrância do emparelhamento, ou em seu caso do emparelhamento frustrado.
Anna ficou sem respiração. O horror apagou as marcas de prazer que ruborizavam seu rosto. Arthur se colocou frente a ela instintivamente, tentando afastar a de seu olhar, como se o escudo de seu corpo pudesse protegê-la do veneno que destilava o outro homem. O silêncio sepulcral, somente salpicado pelo crepitar das chamas, estendeu-se além do incômodo. Sir Hugh permanecia ali petrificado, com uma quietude exagerada, como se estivesse aguardando para equilibrar-se sobre eles. Arthur o observava como um falcão, esperando a primeiro sinal de movimento. Diabos, como gostaria que o fizesse.
—Ouvi um grito e me perguntei se lhe tinham feito mal - disse ao fim sir Hugh com o gesto torcido pelo asco e umas palavras que transpiravam contenção — Mas suponho que não necessitavam resgate.
A exclamação angustiada de Anna lhe partiu o coração. Arthur, consciente de que tinha que protegê-la da ira de sir Hugh, deu a volta e tomou pelos ombros.
—Vá para seus aposentos - disse bruscamente. Anna quis discuti-lo, mas ele a deteve — Falaremos mais tarde que isso. Agora mesmo preciso falar com sir Hugh. Permita que me encarregue disto.
Olhou-a nos olhos. A via confusa, horrorizada e atemorizada há um tempo, disposta a romper a chorar de um momento a outro. A Arthur custava respirar. Era como se lhe retorcessem o coração com uma faca. Ele tinha provocado isso. Era culpa dele. Sacudiu-a com cuidado, tentando fazer que se centrasse.
—Entendeste, Anna? —Então ela o olhou com um rosto tão perdido que lhe deu vontade de voltar a acolhê-la em seus braços — Tudo irá bem — prometeu, consciente de que aquilo não era certo.
Como poderia ir bem aquilo? Não só estava mentindo, mas sim, além disso, acabava de destruir toda possibilidade de aliança com o Ross e sabia quanto significava isso para ela. Anna amava a sua família. Falhar seria algo que… a faria pedaços.
Anna assentiu e a confiança cega que emanava seu olhar lhe fez sentir todo o peso da vergonha em seu interior. Era um completo filho de puta. Um filho de puta desalmado. Jamais poderia perdoar-se pelo que estava lhe fazendo. Anna não merecia. O que merecia era estar a salvo e protegida, ter um lar feliz, um marido que a amasse e seis ou sete crianças puxando suas saias. Ele nunca poderia lhe dar isso. Abandoná-la e lhe romper o coração, isso era quão único faria. Pode ser que não a tivesse despojado de sua virgindade, mas sua inocência desapareceria igualmente quando descobrisse a verdade sobre ele.
Lá onde fazia um momento reinava o desejo não ficava mais que pena e dor. Sir Hugh não se moveu de sua posição à entrada, mas assim que Arthur acompanhou Anna à saída, Hugh Ross se pôs a um lado para deixá-la passar. Arthur, sentindo-se esquecido na salinha, seguiu-a até o aposento principal. Não era muito maior, mas ao menos ali teria espaço para manobrar se fosse necessário. Sir Hugh parecia disposto a brigar e ele tinha tanta vontade ou mais de lhe dar guerra. Justo antes de sair Anna, olhou-o com incerteza.
—Vá - disse com doçura, tentando acalmar seus temores.
Então seu olhar reparou em sir Hugh e seu rosto se contraiu. O cavalheiro não se dignaria a olhá-la, mas cada uma dos nobres e orgulhosas dobras de sua pele irradiavam animal adversão. Arthur franziu os lábios, com uma vontade tremendas de matar a aquele homem por ferir seus sentimentos. Anna não tinha culpa de nada. Tudo era coisa dela. «Jesus.» Conscientizar-se disso foi como um soco. Tinha-o feito a propósito? Fosse essa sua intenção desde o começo? O que queria era acabar com qualquer opção de aliança. Não, mas não desse modo. Nunca quis levá-lo a tal extremo. Embora sim que tinha superestimado sua capacidade de controle e menosprezado a intensidade de seus desejos por ela. Era o único culpado de meter-se nesse esfregado. Fora ele quem tinha transpassado os limites, algo que não reportaria mais que dor para ambos.
—Deveria te matar — disse Ross assim que se fechou a porta.
O cavalheiro tentava intimidá-lo, mas Arthur aceitou o desafio.
—E por que não o faz?
O olhar do Ross se endureceu.
—Porque então teria que explicar os motivos.
A certeza de sua voz fez que Arthur sorrisse. Tinham mais ou menos a mesma idade e eram bastante semelhantes quanto à altura e músculos. Mas não quanto à destreza. Arthur não seria quem iria morrer. Sir Hugh, não obstante, não tinha nem idéia disso. Então por que…? A razão foi a ele de repente.
—E não quer que ninguém saiba que a moça o humilhou pela segunda vez. Primeiro ao rechaçar sua oferta e logo ao agarrá-la com outro homem ante seu nariz.
A verdade da acusação causou seu efeito no rosto do Ross, que avermelhou de ira, criando um marcado contraste com os sulcos brancos de seus lábios franzidos.
—Desfloraste-a?
Arthur apertou a mandíbula. Aquilo não era assunto seu absolutamente. Encheu de vontade de mentir, de reclamá-la para si, mas disse a verdade, já que queria salvar o que pudesse da reputação de Anna.
—Não.
Os olhos do Sir Hugh se mostravam frios.
—Mas o teria feito de não o tivesse interrompido.
Arthur encolheu os ombros, como se aquilo não fosse de sua incumbência. Ross deu um passo para ele com a mão na espada.
—Maldito filho de cadela! É um cavalheiro. É que não têm honra? Era uma mulher comprometida.
Arthur se moveu com rapidez. Pôs em prática uma manobra que tinha aprendido com Boyd e deixou o braço do Ross fosse de combate, obrigando-o a soltar a espada. Depois lhe retorceu esse mesmo braço pelas costas e o imobilizou fazendo contrapeso com seu próprio corpo.
—Não. Não estava comprometida.
Ross tentou escapar por ato reflito, mas seus movimentos só serviam para que Arthur lhe retorcesse mais o braço e lhe infligisse mais sofrimento.
—Estava a ponto de comprometer-se —disse entre dentes com uma voz cheia de dor — O matarei por isso! Solte-me!
—Não até que cheguemos a um entendimento a respeito do ocorrido aqui. Não quero que isto afete à moça. Não é culpa dela.
Ross teve a inteligência de optar por discuti-lo, mas Arthur percebia a raiva em seus olhos. Retorceu-lhe o braço com mais força, provocando que o furioso guerreiro gritasse.
—Por que voltou? —perguntou Arthur.
—Ouvi um grito…
—Uma merda - cortou Arthur.
A não ser que possuísse sentidos tão finos como os seus, era impossível que tivesse ouvido algo. Ross lhe dirigiu um olhar assassino. De sua sobrancelha caíam gotas de suor dolorido.
—Vi como a observava e que ela tentava não o olhar por todos os meios. Sabia que nos seguiria.
Arthur amaldiçoou.
—O que era isto então, uma prova de fogo?
—Não pensava permitir que tirassem o sarro. Não me casarei com uma mulher apaixonada por outro homem. Por muita vontade que tenha de fo…
Retorceu-lhe mais o braço.
—Não —disse — Não o diga.
Arthur, consciente do perto que estava de lhe partir o braço, optou por afastá-lo de seu lado de um forte empurrão. Ross tinha razão respeito a algo: quanto menos tivessem que explicar, melhor. Sir Hugh soltou ar e se massageou a parte superior do braço e o ombro. Mas havia algo em seu olhar que a Arthur fazia perguntar-se se o tinha posto a prova de novo. Se esse grosseiro comentário do Ross teria a intenção de provocar uma reação. Se for assim, tinha funcionado.
—Importa-te - disse Arthur, precavendo-se disto, na verdade era algo mais que uma aliança política para ti.
Ross não respondeu com palavras nem por meio da expressão de seu rosto, mas Arthur sabia que tinha acertado. Diabos, quase dava pena aquele pobre filho de cadela.
—Mas sabe o que é que a trouxe até aqui?
Uma vez recuperada as sensações em seu braço, Ross voltou a olhá-lo com desconfiança.
—Sim. Para conseguir apoio na luta contra Bruce. Esperava conseguir sua mão sem ter que recorrer a isso.
Arthur ficou olhando-o e o compreendeu tudo ao fim.
—Seu pai não tinha intenção de enviar homens com ou sem compromisso, não é certo? —Não era preciso que Ross respondesse. «Por todos os demônios.» Arthur tinha vontade de matá-lo ali mesmo — E a deixaram pensar que…?
Ross encolheu os ombros.
Maldito patife. Demônios, de não ser Anna a quem manipulava, Arthur teria admirado sua determinação.
—Partiremos assim que tenhamos tudo preparado. Depois de que informe Anna e sir Alan do que acaba de me contar.
O outro homem se mofou.
—E por que diabos eu ia fazer tal coisa?
Arthur deu um passo para ele com atitude ameaçadora. Em honra de Ross terá que dizer que não se moveu. Mas Arthur advertiu a inquietação em seus olhos.
—Porque não quero vê-la mais afetada do que já está. E apesar do que tenha passado aqui, não acredito que vocês queira isso tampouco.
Ficaram olhando durante um momento até que Ross assentiu. Arthur se dispôs a partir.
—Campbell. —Arthur deu a volta e viu que Ross seguia agarrando o ombro machucado — Onde aprendeu a fazer isso?
Arthur torceu a boca com dissimulação.
—Faça o que combinamos dito e talvez te conte isso algum dia.
Anna limpou as mãos em suas saias e procurou acalmar a náusea que ameaçava subindo por seu estômago ao mesmo tempo em que observava a quantidade de homens que se congregava no salão para tomar o café da manhã. Encontrou-se inconscientemente procurando Arthur, como se ver seu rosto pudesse lhe dar essa coragem que tanto necessitava. Ao não encontrá-lo sentado junto aos homens de seu irmão, disse que não havia por que preocupar-se. Ainda era cedo. A noite anterior Arthur tinha enviado a uma criada para lhe dizer que já estava tudo arrumado e que não tinha que preocupar-se.
«Não tenho que me preocupar.» Como se tal coisa fosse possível depois do que tinha acontecido. Pode ser que sua considerada mensagem não servisse para aliviar sua noite sem descanso, mas o apreciou igualmente. Ao menos se economizava o temor de que um dos dois estivesse morto ou em alguma masmorra desconhecida.
Respirou profundamente, obrigou-se a erguer o peito e erguer o queixo e entrou no salão. As pernas mal podiam sustentar do tanto que tremiam e seu coração batia contra a caixa torácica como as asas de um pássaro. Todos seus instintos clamavam por que fugisse, mas obrigou a seus pés a seguir adiante.
Sangue de reis corria por suas veias. Era uma MacDougall, não uma covarde. Apesar de que não quisesse mais que ocultar-se em sua câmara, fazer um novelo com seu corpo e pretender que nada disso tinha ocorrido o certo era que sim tinha ocorrido. Como mínimo devia uma desculpa a sir Hugh. Quando pensava no que tinha feito…
Revolvia-lhe o estômago. A vergonha a alagava. Não por sucumbir aos encantos de Arthur, já que não se envergonhava da paixão que existia entre eles, mas sim por falhar a sua família e aproveitar-se horrivelmente de sir Hugh no processo. Ele não se merecia aquilo. O orgulhoso cavalheiro não tinha feito mais que tratá-la com carinho. Não era culpa dela que estivesse apaixonada por outro homem.
«Apaixonada.» Inclusive sopesando a enorme gravidade do que tinha feito, um pequeno raio de felicidade aparecia por trás das nuvens de desesperança. Amava-o. E também ela significava algo para ele. Tinha que ser assim.
Mas esse pequeno lapso de alegria em seu coração só servia para fazê-la sentir mais culpada. Ao encontrar o amor tinha falhado a sua família. Como poderia chegar a perdoar-se? Tinha arruinado tudo. Seu pai e seu clã completo ficavam sozinhos ante o Robert Bruce. Depois do que sir Hugh havia presenciado na noite anterior não teria aliança.
Acenderam-lhe as bochechas ao recordar, ao considerar o que devia pensar aquele homem dela. «Puta. Rameira.»
Quase esperava ouvir vaias ao atravessar o salão para chegar até o assento do estrado junto ao homem ao que tinha ofendido. Mas sua entrada não causou nenhum comentário fora do habitual. O conde e a condessa a receberam com gentilezas usuais, igual fez seu filho quando tomou assento junto a ele.
Embora cada bocado que dava piorasse o enjôo que lhe punha o estômago de reverso, tinha que obrigar-se a comer. À medida que avançava a comida, sua ansiedade não fazia mais que aumentar. O breve intervalo de bom humor que entreviu em sir Hugh no dia anterior tinha desaparecido, algo não muito surpreendente. Estava sentado junto a ela completamente rígido, muito orgulhoso e imbuído do código de cavalaria para ignorá-la completamente, mas muito perto de fazê-lo. Agradeceu a presença da irmã do Hugh do outro lado da mesa e do ajudante do Ross a seu lado, que rompiam os incômodos momentos de silêncio.
Anna era consciente de que tinha que dizer algo, mas não sabia como tirar o tema em um entorno tão público. Seguia esperando que chegasse o momento oportuno quando sir Hugh se levantou da mesa e se desculpou para ausentar-se.
—Espere! —exclamou Anna, advertindo que vários olhos se voltavam em sua direção e que talvez tivesse falado muito alto.
Sir Hugh baixou o olhar para olhá-la e lhe dedicou toda sua atenção pela primeira vez. Anna procurava não morrer de vergonha enquanto ele esperava a que se pronunciasse.
—Eu… — disse o primeiro que veio à cabeça, desejando tê-lo feito antes, quando outros não prestavam atenção ao que dizia de maneira tão óbvia — Faz uma manhã estupenda. Se não estiver muito ocupado, pensei que poderiam me mostrar os arredores do castelo, como prometera.
Não lhe tinha feito tal promessa e se o fizesse saber, deixando clara sua pretensão de ficar a sós com ele, teria recebido o que merecia. Sir Hugh a olhou nos olhos e Anna por um momento pensou que se negaria a fazê-lo, mas ao que parecia puderam mais suas sensibilidades cavalheirescas. Fez uma reverência e lhe tendeu a mão.
—Será todo um prazer, milady.
Tal e como tinha feito poucas, mas significativas horas antes, permitiu que a acompanhasse ao sair do salão. Se o incomodava as falações de curiosidade que lhes seguiram não o mostrou em nenhum momento. Nessa ocasião, ao chegar ao final do corredor, conduziu-a ao exterior, ao pátio de armas. Havia um monte de gente daqui para lá: soldados praticando e protegendo as entradas, serventes atendendo a suas obrigações e um fluxo contínuo de homens passando através das portas do castelo, mas ninguém lhes prestava muita atenção.
—Há algo em particular que deseje ver? —perguntou ele.
Para ouvir a secura de sua voz o olhou de esguelha sob o véu de suas pestanas. Ele sabia que se tratava de uma desculpa, e das más. Anna negou com a cabeça.
—Sinto muito. Tinha que falar contigo —disse detendo-se para olhá-lo bem nos olhos — Devo me desculpar pelo ocorrido na noite passada. —Ao ver que franzia mais o cenho lhe falharam os nervos. Mas tinha que fazê-lo. Machucava a mão de apertar tanto os punhos. Não era capaz de falar disso com calma, de maneira que explodiu e soltou — Não posso oferecer mais desculpa pra dizer quanto sinto.
Sir Hugh ficou olhando-a nos olhos durante um momento e logo assentiu. Anna pensou que daria a volta e a deixaria ali, mas surpreendentemente a levou até um lugar afastado da fortificação de onde podiam ver muros longínquos e a cidade do Nairn ao fundo. Fazia vento e teve que acomodar atrás da orelha uma mecha de cabelo rebelde. Mas depois dessa noite de escuridão o resplendor do sol sobre seu rosto era rejuvenescedor.
—Ama-o?
Anna ficou petrificada. Não sabia o que esperava que dissesse, mas certamente isso não. Sir Hugh não parecia um homem que outorgasse muito valor nem desse muito crédito ao amor romântico. Parecia muito prático e frio para tudo isso. Mas merecia saber a verdade.
—Sim - disse em voz baixa.
—Mas teriam casado comigo para conseguir mais homens para seu pai?
Tal e como disse, de repente parecia que aquilo estivesse mal. Embora o matrimônio e a obrigação fossem parceiros, era o amor o que importava menos.
—Sim - disse Anna, sentindo que o desespero de sua situação cavalgava sobre seu peito. Apelou a seus sentimentos para que a compreendesse — Não entende? A única maneira de lutar contra os rebeldes é unir forças. Se nossos clãs se unirem poderemos derrotar ao usurpador. Somente nos arriscamos à derrota.
Por sua reação não pareceu que suas palavras tivessem influência alguma nele. A expressão de seu rosto permanecia severa e implacável. Era estranho. Agora que já não havia esperança de um compromisso entre ambos, todo o medo e o nervosismo de Anna pareciam desaparecer.
—Não pode absolver de toda culpa, lady Anna. —Ela o olhou inquisitivamente, protegendo os olhos do sol para lhe ver melhor. Sua boca se torceu em uma estranha careta — Meu pai não tinha intenção alguma de enviar homens ao Lorn.
Ficou sem respiração pela surpresa.
—Mas o compromisso… Permitiram que acreditasse que… — Hugh Ross encolheu os ombros como se não lhe importasse nada. Um arrebatamento de cólera penetrou através do sentimento de culpa de Anna — E quando me pensava contar isso?
—Teria-na informado com tempo suficiente.
—Depois de que anunciássemos nosso compromisso?
Ele se enfrentou à acusação de seus olhos sem alterar-se.
—Talvez.
—Mas por quê?
Pareceu interpretar mal sua pergunta a propósito.
—Não temos homens de sobra. Bruce virá também por nós e quando o fizer… —disse com palavras que se levava o vento — O rei Robert é muito poderoso. Nossos aliados nos abandonaram. Os Comyn, os MacDowell, os ingleses. Meu pai tem muito que perder.
Sir Hugh ficou com o olhar perdido além dos muros, para o pequeno reino que se estendia a seus pés. Tratava-se de um movimento revelador e teve que conter o fôlego ante o que significava. Muito que perder. Seu pai não pensava arriscar.
—Não —disse Anna dando um passo atrás — Não podem! Seu pai não pode render-se. Bruce o assassinará pelo que fez a sua esposa e a sua filha.
Falava sem pensar, e estava claro que o que fez seu pai quando violou o santuário e entregou às mulheres de Bruce aos ingleses não era algo que sir Hugh quisesse que o recordassem. Pela primeira vez, Anna viu algo um pouco parecido à vergonha em suas orgulhosas feições.
—Bruce prometeu perdoar a todos nobres que estavam contra ele que se renderem.
—E acreditam na palavra de um traidor? De verdade confiam em que o rei Hood perdoará a seu pai e aos sediciosos de Ross e Moray? Apenas se consumaram os fogos da perseguição ao Buchan.
Não discutiu com ela. Mas apertava fortemente a mandíbula quando disse:
—O que outra opção fica? As voltas mudaram a favor de Bruce. O povo pensa que é um herói, um guerreiro que derrotou aos ingleses. Render-se pode ser a única maneira de sobreviver. Meu pai está disposto a morrer se isso significar a continuidade do clã.
A cabeça de Anna dava voltas. Jamais, nem em suas mais escuras expectativas, teria imaginado que Ross se renderia. O que significaria isso para seu clã? Faria seu pai o mesmo? Não, seu pai jamais se renderia. E pela primeira vez Anna se precaveu de quão caro poderia lhes custar.
Preocupada com o que sir Hugh acabava de lhe confiar, Anna não encontrava muito consolo em saber que sua conduta não era reprovável.
—Obrigado por me contar isso.
Ele a olhou com atenção.
—O que fará?
—Lutar - respondeu.
Embora fosse sozinhos. Que mais podiam fazer?
—Casará com o Campbell?
Anna se ruborizou. Depois do que tinha passado a noite anterior era algo natural assumir que… Mas não tinham tido oportunidade de discutir seu futuro. Ele pareceu compreender seu silêncio.
—Conhecem-no muito bem?
O tom de advertência de sua voz despertou aquela vozinha de sua consciência que trabalhou em excesso em sossegar.
—Sir Arthur chegou ao Dunstaffnage faz um mês junto a seu irmão em resposta à chamada que fez meu pai aos cavalheiros e mercenários.
Aquilo pareceu lhe confirmar algo.
—Há algo estranho nele. Algo que não se enquadra. Não é quem parece ser.
Anna saltou em sua defesa imediatamente, pensando que sir Hugh se fixou nas incomuns habilidades de Arthur.
—É muito reservado —disse — custa a comunicar-se.
Sir Hugh a olhou inquisitivamente, como se quisesse acrescentar algo, mas em vez disso simplesmente assentiu. Foi um alívio que dissesse que se encarregaria de explicar tudo a seus pais e seus irmãos sem fazer menção alguma à situação comprometedora em que a tinha encontrado, acordando dizer que não combinavam um para o outro.
Para quando a acompanhou de novo até a torre Anna se sentia muito mais relaxada. Uma vez mitigada parte da culpa, permitiu-se viver um pouco da felicidade que supunha descobrir que o homem ao que amava tinha sentimentos por ela. Não podia esperar para lhe ver e falar com ele. Surpreendentemente, dadas as intimidades que tinham compartilhado, não estava envergonhada. Inclusive nesse momento, depois de todo o acontecido, parecia o correto.
Estava a ponto de subir o primeiro dos degraus que fossem do pátio à torre quando olhou à esquerda e viu que sir Arthur saía dos barracões. O coração lhe deu um tombo. Sorriu e deu um passo para ele de maneira instintiva, mas logo se deteve de repente. Levava a armadura e estava claro que se preparava para praticar, mas podia entrever seu rosto o suficiente sob a viseira do elmo.
Não era que esperasse que corresse pelo pátio a seu encontro, ao menos não com sir Hugh ainda a seu lado. Mas um olhar de carinho seria bom. Algo em comparação com esse rosto de arrependimento, sim, inclusive de vergonha, que escurecia seus bonitos traços. A alegria que fez saltar seu coração se consumiu e o devolveu ao chão de repente das alturas. Advertiu como sir Hugh ficava em guarda ao conscientizar do que ela tinha visto.
Arthur desviou o olhar para o outro cavalheiro. Podia sentir a animosidade acesa entre ambos. Foi Arthur quem se retirou primeiro. Saudou-os com uma inclinação da cabeça e se dirigiu a reunir-se com o resto dos guerreiros. Anna dizia a si mesma que não devia estar decepcionada, que não tinha que exagerar sua reação. Já falariam mais tarde. Em particular. Provavelmente o que adivinhava em seus olhos não era mais que imaginações.
Mas as seguintes palavras de sir Hugh lhe disseram o contrário.
—Se a coisa não for como espera, lady Anna, eu estarei aqui.
Um homem com quem podia contar.
Rezava por que Arthur também o fosse.
Capítulo 16
Demoraram mais do que Arthur pensava em sair do castelo de Auldearn. Alan MacDougall se encerrou em sua câmara com o conde, seu conselheiro e sir Hugh durante três dias mais, no que Arthur assumiu como uma tentativa de persuadir ao Ross para unir forças, apesar da ausência de compromisso. Felizmente, os esforços do Alan foram úteis. Dado que não tinham lhe contado os detalhes, Arthur não pôde estar seguro das razões do conde, mas o rechaço era um bom augúrio para o rei Robert. Passaria a informação assim que tivesse oportunidade de fazê-lo. Não acreditava que eles tivessem irradiado nenhuma mensagem, mas revisaria os pertences do Alan e de Anna para assegurar-se disso, assim que tivesse ocasião.
Saíram de Auldearn ao amanhecer, fazendo o mesmo trajeto de na semana anterior em sentido contrário e forçando o ritmo o primeiro dia para chegar a salvo mais à frente do castelo. Os homens, contagiados do humor de seu senhor e sua dama, pareciam perceber que as coisas não tinham ido como esperavam e a nuvem do fracasso se abatia sobre as cabeças dos viajantes. Levava uma predisposição algo sombria, por não dizer decididamente mal-humorada.
Arthur sabia que teria que sentir-se aliviado e satisfeito de ter completado sua missão. Ross e Lorn não uniriam forças. O fracasso dos MacDougall serviria como incentivo para aproximar de Bruce um passado mais para a vitória e a Arthur um passado mais para a destruição de seu inimigo. Assegurar-se de que John de Lorn pagava pelo que lhe tinha feito a seu pai era o que mais ansiava no mundo. Não era certo? Assim devia ser, maldita seja. Mas temia que aquilo lhe custasse muito mais do que pensou em um primeiro momento.
Coberto atrás de seu elmo podia ceder à tentação de olhá-la. De novo essa sensação, molesta e penetrante. Não era só consciência o que o remoia, a não ser algo mais. A dor que aguilhoava seu peito quando a olhava era virtualmente insuportável. Mas não fazê-lo parecia mais doloroso ainda.
Anna cavalgava na frente dele, junto a seu irmão e a criada, com o que somente oferecia seu perfil ao voltar-se. Arthur não precisava olhá-la para saber que o silêncio a respeito do ocorrido entre ambos lhe doía. E muito. Deus Santo, o que tinha feito? E o que era mais importante, que demônios faria a respeito? Agora que estavam longe do castelo já não podia evitar o tema nem evitá-la por muito mais tempo. Sabia o que devia fazer. Não precisava ser um cavalheiro para conscientizar de que depois do perto que estivera de lhe arrebatar a virgindade, a escassos centímetros literalmente, deveria a pedir em matrimônio. Não havia dúvida de que era o que ela esperava. E o que cabia esperar. Isso faria um homem com honra. Mas esses escassos centímetros lhe serviam de suficiente desculpa para não fazê-lo. A batalha que livrava em seu interior era cada vez mais cruel. Todos seus instintos exigiam que se aproximasse dela, que cedesse aos sentimentos e, por que não falar, maldição, às emoções que brigavam em seu interior. Mas a outra parte de seu ser, a racional, puxava-o para evitar maiores males.
Embora ele mesmo quisesse esquecer-se disso em algumas ocasiões, o certo era que a enganava. E estava claro como a água que não podia lhe dizer a verdade. Seu dever e sua lealdade pertenciam ao Bruce. Nenhum dos sentimentos que albergasse poderia mudar aquilo. Estavam em lados opostos de uma rixa a ponto de desatar-se. Ao final ela descobriria sua filiação verdadeira e se inteiraria de que a única razão que o tinha levado ao Dunstaffnage fosse espiar e propiciar a destruição de sua família. Sabia que pedi-la em matrimônio só serviria para que a traição final tivesse conseqüências muito piores.
Era uma situação impossível e tinha consciência de tê-la criado ele mesmo. Teria que ter-se afastado dela, mas suas boas intenções ficaram transbordadas por seu sorriso, vitalidade, doçura e amabilidade. Quando olhava o interior desses grandes olhos azuis começava a ter saudades de algo que nem sequer sabia que queria. Gostava de estar sozinho, maldita seja! Parecia mais fácil e muitíssimo menos chato. Entretanto Anna o fazia ansiar algo que ele não poderia permitir-se oferecer, à vista do que estava por chegar. E fazê-la sofrer desse modo, não ser capaz de fazer algo para mudar, partia-lhe a alma. Cada vez lhe custava mais concentrar-se em suas tarefas.
Embora não se voltasse para olhá-lo, Arthur sabia que ela era tão consciente de sua presença como ele mesmo. Advertiu a maneira em que seus ombros ficavam tensos quando situou seu cavalo atrás deles. Richard e Alex partiam em cabeça explorando o terreno, de modo que Arthur ficou ao fim para assegurar-se de que ninguém os seguia. Aproximava-se o final da primeira jornada da viagem e tinham que proceder com especial cautela agora que se aproximavam do castelo do Urquhart, lugar em que tinham aparecido os homens de Bruce quando foram para o castelo do Ross. Novamente, teriam que fazer uma boa volta para o oeste do caminho para evitar as patrulhas da fortaleza «inimiga».
—Pegue milady —ouviu que dizia sua criada — Lady Euphemia pediu ao cozinheiro que as prepare especialmente para ti em vista que gostas.
A anciã tentou enrolá-la com os doces, mas Anna negou com a cabeça em uma pobre tentativa de sorriso que lhe cravou outra pontada no coração.
—Não, obrigado, não tenho fome.
A criada se zangou, franziu os lábios e mastigou a delícia de amêndoas sem entusiasmo algum. Mal teve acabado de mastigar quando voltou para a carga e tirou de sua bolsa o que parecia um pequeno bolo de carne.
—O que me dizem de um pastezinho de cevada com cordeiro? —disse, cheirando-o teatralmente — Cheira divinamente. E ainda está quente.
Anna voltou a negar com a cabeça.
—Coma se quiser. Eu comerei quando nos detivermos.
A criada murmurou para si.
—Tem que comer algo, milady - urgiu entre murmúrios, ao mesmo tempo em que fulminava Arthur com o olhar.
Este apertou a mandíbula, adivinhando a quem culpava a criada pela falta de apetite de sua senhora.
—Comerei - disse Anna para apaziguá-la. Chamou a seu irmão, que cavalgava um pouco mais adiante — Quando pararemos para passar a noite, irmão?
—Logo, espero - respondeu Alan olhando a seu redor e fazendo gestos a Arthur ao ver que tinha retornado. Este se armou de valor e fez como lhe pediu, levantando o visor de seu elmo ao passar entre o punhado de cavaleiros que lhes separavam — Viu algo suspeito?
Arthur negou com a cabeça.
—Por agora não. Estaremos seguros quando voltarem Richard e Alex, mas se não ter nada extraordinário, poderemos nos deter o anoitecer como tínhamos previsto.
—Não voltaremos para lago em que acampamos a vez anterior?
Era ela quem falava. Arthur voltou o olhar lentamente, incapaz de evitá-la por mais tempo. Mas não estava preparado para o calor abrasador que lhe atravessaria ao encontrar-se com seu olhar. Ele, que apenas se movia quando uma flecha se afundava no mais profundo de seu ombro, quando uma espada lhe abria as vísceras nem nas numerosas ocasiões em que não tinha apanhado a adaga de seu irmão com suficiente presteza, sobressaltou-se ao ver a tristeza e a pergunta sem formular de seus olhos.
Parecia fatigada, de uma fragilidade insofrível. Umas pequenas linhas sulcavam as comissuras de seus olhos e sua pele estava muito mais pálida do normal. Apertou os dentes, lutando contra a desesperada necessidade que sentia de dar o que ela queria.
«Peça-a em matrimônio.»
Maldição, não podia fazê-lo. Não faria a não ser piorar as coisas.
—Não, milady —respondeu sem alterar a voz — Será mais seguro que não voltemos sobre nossos passos. Acamparemos em lugares diferentes cada noite. Há uma cascata na floresta dos pagamentos do Dhivach, ao sudeste do castelo, onde começa a ravina. Faremos pernoite ali.
Anna assentiu com cara de querer acrescentar algo, mas consciente de que não estavam sozinhos.
—Falta muito?
—Cinco ou seis quilômetros. Deveríamos chegar antes do anoitecer.
—Eu… — Anna deixou a frase pela metade. Não obstante, o modo em que o olhava era desencorajador — Obrigado.
Quando Arthur se decidiu a afastar o olhar se surpreendeu comprovar que um dos homens do Alan se situava atrás dele. Ficou circunspeto, mas estava muito imerso em sua própria confusão para atender à advertência.
Ao que parecia um das arcas de Anna não estava bem presa e caiu do carro. Arthur agradeceu a interrupção quando viu que Anna e sua criada fossem ao fim da fila para assegurar-se de não perder nada. Mas era consciente de que não poderia postergar a inevitável discussão por muito mais tempo. Isso ficou assegurado certamente pelas palavras de Alan antes de partir para ver o Richard e Alex.
—Não sei que diabos passou em Auldearn, Campbell, mas minha irmã está triste. —O cavalheiro cravou o olhar em Arthur com uns gélidos olhos azuis que não mostravam compaixão alguma. Depois de tudo, era filho de seu pai — Arrume ou me encarregarei eu de fazê-lo.
Arthur franziu o cenho até adotar uma expressão sombria. Não se incomodou em pretender que não sabia ao que se referia. A ameaça não lhe inquietava. O que lhe inquietava era que não podia fazer o que o irmão de Anna lhe pedia. Nada poderia arrumá-lo.
—Por que está me evitando?
Arthur, assombrado, ficou em pé de repente, fazendo saltar a armadilha que estava preparando. Tinha o surpreendido. Algo que Anna apostava que não ocorria muito freqüentemente. Talvez essa confusão que ela percebeu em seus olhos não foi imaginação. Olhava-a com uma saudade mal reprimida, mas algo o fazia conter-se.
O desengano que sentiu na primeira manhã não fazia mais que piorar a cada dia que passava. Ainda não tinha ido a seu encontro, por não falar de oferta de matrimônio alguma. Anna queria convencer-se de que simplesmente esperava para falar com seu pai, mas isso não explicava por que fugia dela.
—Está me seguindo outra vez, Anna?
Se tentava distrair ficando à defensiva, não funcionaria.
—Não sei como poderia dizer que te sigo quando o acampamento está a poucos passos daqui - disse assinalando os arranjos e cordas — Vi que tirava a armadilha da bolsa e supus que não iria muito longe.
Inspecionou suas feições, meio escondida entre as sombras. Ao menos ficava uma hora de luz solar, mas sob o espesso manto das árvores da floresta parecia quase noite fechada. Anna deu um passo para ele e estreitou o vão que os separava. Arthur franziu o cenho e todo seu corpo ficou rígido. Anna percebeu de que lhe moviam as aletas do nariz, como se o incomodasse tê-la tão perto. As lágrimas foram a seus olhos. Por que se comportava desse modo? Acaso era tão desagradável?
—Ides responder-me? —disse com uma voz quebrada pela emoção e a incerteza dos últimos dias. Queria pôr a mão sobre o peito para tranqüilizar-se, mas temia que ele retrocedesse e isso a fizesse pedaços — Acaso não mereço uma explicação?
Arthur suspirou e se separou dela com o pretexto de passar os dedos entre os cabelos. Embora ainda levasse posta a armadura, tirou o elmo e seu cabelo castanho escuro caía em suaves ondas sobre a borda da cota de malha.
—Sim, moça. Merece uma explicação. Tinha intenção de falar contigo uma vez que tivéssemos comido.
Não sabia se acreditava, mas o deixou continuar. Ela já havia dito suficiente. Era a ele a quem correspondia falar.
—O que ocorreu foi - Formoso? Incrível? Perfeito? pensou Anna—… desafortunado. —A Anna parou o coração. Não era a palavra que esperava — Me envergonho de meu comportamento —disse Arthur com palavras que pareciam próprias do cavalheiro mais contido da corte — Jamais devia permitir que chegasse tão longe.
Anna o deteve em seco, incapaz de resistir por mais tempo o tom distante e o arrependimento de sua voz.
—Por que fala assim? Por que atua como se não significasse nada? —Arthur esticou a mandíbula mais ainda. A palpitação de seus batimentos no pescoço não pressagiava nada bom. Tentou afastar-se de Anna, mas ela o agarrou pelo braço. O peito lhe ardia — Significou algo, Arthur? —Este a olhou nos olhos com uma intensidade que queimava. Anna aspirou profunda e entrecortadamente através de sua oprimida garganta — Para mim sim.
—Anna… - Parecia estar liberando algum tipo de guerra interior. Anna notava a rigidez de seus músculos sob seus próprios dedos. Seu poderoso corpo parecia irradiar tensão — por que põem as coisas tão difíceis?
—Eu? És tu quem põe as coisas difíceis. É uma pergunta muito simples. Ou significou algo para ti ou não significou nada.
Manteve o olhar, negando-se a lhe permitir partir sem que respondesse algo. Arthur tinha o rosto desfigurado, como se o estivesse torturando.
—Não entendes.
—Têm razão. Não entendo. Poderia explicar isso?
- Somos completamente inadequados um para o outro.
—Não posso. —Olhou-a com dureza — É que não vê que jamais funcionaria?
«Meu Deus!» Pareceu engasgar-se com seu próprio coração quando percebeu o que acontecia. «Não pensa me propor matrimônio.» Como era possível que tivesse interpretado tão mal a situação? Não! Não o tinha feito. Havia algo mais que lhe escapava.
—Por que não?
—Somos completamente inadequados um para o outro. A família é tudo para ti. E para mim? Meus pais morreram quando era um pirralho. Meus irmãos levam anos lutando em lados distintos. Não sei nada a respeito de família.
—Eu posso lhes ensinar…
—Não quero que me ensinem - repôs isso Arthur, cortando-a com raiva — Eu gosto de estar sozinho. E você… —disse com um gesto da mão — Tenho certeza que não estivestes sozinha nem um dia em sua vida. Merece estar rodeada de família e amigos, com um marido que lhe adore e um monte de crianças puxando suas saias. Não me diga que não quer isso, porque sei que é isso o que quer.
Era certo que queria isso, mas com ele.
—Não quer ter crianças?
Sua boca empalideceu como se a pergunta, pensar nisso tão sequer, fosse doloroso.
—Não entende a situação.
—Eu? Paraste a pensar que talvez não se trate de que gosta de estar sozinho, mas sim de que alguma vez estivera com as pessoas adequadas? —disse fazendo uma pausa para que o considerasse. Compreendia as razões que lhe levavam a solidão, mas suspeitava que seria diferente em caso de ter uma família que o amasse, que o aceitasse — Se sentires algo por mim, o resto não tem importância. —O rosto de Arthur se mostrava duro como o granito, mas ela seguiu pressionando — Sente algo por mim, Arthur?
Manteve o olhar, desafiando-o a que mentisse. E Arthur parecia querer fazer, mas ao final o admitiu.
—Sim. Mas isso não importa.
Sentia algo por ela. Não tinha errado. Negou com a cabeça.
—Isso é tudo o que importa.
—Não insista, Anna. Acredite-me quando digo que não funcionaria. Jamais poderia lhes dar o que necessita. Nunca poderia te fazer feliz.
A frustração e a raiva buliram em seu interior.
—Como te atreve a presumir que conhece minha mente melhor que eu? Eu sei exatamente o que quero. Depois do que passou como não pode compreender que é o único homem que pode me fazer feliz? Não te dá conta de que te amo?
Sua declaração de amor foi tão inesperada para ela como parecia ser para ele. Fechou a boca de repente, mas era muito tarde. Suas palavras seguiam ressonando no repentino silêncio. Arthur ficou completamente quieto, com uma expressão não muito diferente de quem tivesse recebido uma flechada no peito. Não se podia dizer que fosse a reação que ela esperava. Não esperava que respondesse a sua declaração de amor. Em realidade não. Não nesse momento, ao menos. Mas tampouco esperava encontrar-se com o silêncio. Um silêncio que lhe rompia o coração lenta e cruelmente.
«Amo-te» As palavras zumbiam em seus ouvidos. Como um palpite. Uma chamada. Tentava-o, caramba, tentava-o. Arthur permaneceu quieto como uma pedra, sem permitir o luxo de acreditar. Não podia fazer. Porque se o fizesse, era possível que encontrasse a felicidade. Uma felicidade maior da que tinha desfrutado na vida.
Não dizia a sério. Estava confusa. Anna MacDougall entregava seu coração a todos. Isso era parte do que a fazia tão irresistível. Negou com a cabeça, como se tentasse convencer a si mesmo.
—Não sabes o que diz. Não podem me amar. Nem sequer me conhece.
—Como podem dizer isso? Pois claro que lhes conheço.
—Há coisas sobre mim que se soubessem…
Não podia dizer nada mais. Já havia dito muito. Suas habilidades perceptivas eram excepcionais. Anna franziu os lábios e ele reconheceu o brilho teimoso de seu olhar.
—Acreditava que já tínhamos passado por isso. Suas faculdades são um dom, e se demonstraram extraordinariamente úteis em mais de uma ocasião. —Ele não falava de suas habilidades, mas sim do fato de ser um espião ao serviço de Bruce. O fato de que não havia pessoa no mundo a quem odiasse mais que ao pai de Anna e que tinha esperado quatorze anos para destruí-lo. Mas dificilmente poderia lhe contar a verdade — Sei tudo aquilo que importa sobre você - continuou — Sei que prefere observar e escutar a falar. Que não gosta de chamar a atenção e prefere estar em um segundo plano. Sei que conta com habilidades valiosas que prefere ocultar porque acredita que o faz diferente. Sei que está convencido de que é diferente e por isso não necessita a ninguém, de modo que procura espantar aos outros antes que se aproximem de ti. Sei que passou a maior parte de sua vida no campo de batalha, mas que pode dirigir a pluma de maneira tão efetiva quanto uma espada. —deteve-se o tempo preciso para tomar fôlego. Ele teria que tê-la cortado, mas estava muito indisposto para falar — Sei que é inteligente e que têm um caráter tão forte como seu corpo. Sei que quando estou contigo me sinto segura. Que faz ver que nada lhes importa, mas que me defenderia com sua própria vida. Sei que um homem que sustenta em seus braços a um bebê e que mostra paciência com um cachorrinho que não tem feito mais em dar problemas tem um coração bondoso. —Anna baixou a voz até deixá-la quase em um sussurro, dissipada já toda sua ira — Sei que desde a primeira vez que me beijou senti que jamais teria outro homem para mim. Que quando ergo o olhar para olhar, vejo o rosto que quero ver durante o resto de minha vida. —Seus olhos, que brilhavam com lágrimas não derramadas, encontraram-se com os dele — Sei que é leal e honrado e que te importo, mas que há algo que o faz se conter.
«Jesus.» Era como se lhe desse um soco. Ninguém antes lhe havia dito nada parecido. O fazia sentir-se humilde. Comovia-lhe. Dava-lhe um medo de morte.
Tinha visto muito de sua pessoa. Não significava só um perigo para sua missão, mas também para ele em formas que jamais tinha imaginado. Endureceu a mandíbula e o coração.
—Vê o que quer ver, Anna, não a realidade. —A guerra. Seu pai. Ele. Estava cega diante das faltas daqueles aos que professava amor — Mas as garotinhas que acreditam nos contos de fadas acabam desenganadas.
—Não faça isso —sussurrou Anna — Não tente me espantar.
Isso era o que fazia. O que sempre fazia. E embora pela primeira vez não desejasse fazer, era o que tinha que fazer. Pelo próprio bem de Anna. Agarrou-a pelo braço com intenção de sacudi-la e fazê-la entrar em razão, mas foi um engano. Tocá-la não fez mais que avivar o fogo de suas emoções até quase lhe fazer perder o controle.
—Então não atue apoiada em contos infantis. Estamos em meio de uma maldita guerra. Bruce está a ponto de cair com todo seu exército sobre sua cabeça e mesmo assim quer planejar seu futuro. Não há futuro, Anna. Somente existe o dia de hoje. Diabos, quem sabe se terá um lar daqui a um mês.
Sobressaltou-se como se a tivesse golpeado.
—Acredita que não sou consciente disso? —Anna sossegou um soluço na garganta. Seus preciosos olhos azuis se nublaram com lágrimas, atiçando o fogo que consumia seu peito — por que pensa que acudi ao Ross? Sei perfeitamente o que está em jogo. Mas não pude fazer. Não podia fazer por causa de ti.
—Seu pai jamais devia ter te pedido isso - repôs.
A expressão de assombro de Anna fez que Arthur desejasse poder retirar o dito. Tinha a perspectiva de uma menina para seu pai, a do cavalheiro perfeito que não podia fazer nada mal. Outra dessas ilusões que ele ajudaria a destruir.
—Não me pediu isso. Foi minha idéia. Fala de guerra e de incerteza, mas posso lhes dizer uma coisa certa. Se não arriscar, se seguir espantando as pessoas de seu lado, assegurará sua solidão. É isso o que quer?
Apertava a mandíbula com tanta força que lhe doíam os dentes.
—Sim.
«Maldita seja.»
—Muito bem. Porque isso é exatamente o que conseguirá - disse ela; as lágrimas rodavam por suas bochechas — Não sei por que faz isto, Arthur Campbell, mas é um covarde.
Um acesso de raiva subiu por seu corpo. Não era um covarde. Somente tentava fazer o correto. Mas não lhe deixava fazer. Não fazia mais que pressioná-lo para voltá-lo louco com uns sentimentos que não lhe pertenciam. Não podia pensar bem. Não queria mais que tomá-la entre seus braços e beijá-la até que cessasse o martelar que sentia na cabeça, e no coração.
Possivelmente isso tivesse feito se pudesse, mas não teve a oportunidade.
—Que diabos está acontecendo aqui?
Arthur voltou com a cabeça ainda lhe dando voltas, ao mesmo tempo em que Alan aparecia no claro. Amaldiçoou. Estava tão absorto em Anna que não ouviu o mínimo ruído. Que demônios ocorria? Estava fosse de controle. Tinha que tomar as rédeas de suas emoções. Seus sentidos estavam mesclados e confusos. Distraía-se muito. Estava tão confuso… Somente uma vez antes havia sentido de tal modo: o dia em que morreu seu pai. Estava perdendo os papéis.
Tanto que não se preparou para o que vinha depois.
—Deixe-a em paz - vociferou Alan, arrancando-a de seus braços ao mesmo tempo em que lançava o primeiro murro direto a sua mandíbula.
A cabeça de Arthur se propulsou para trás ao receber o golpe em cheio. Uma explosão de dor se apoderou dele. Ficou cego por um resplendor branco.
Anna gritou aterrada.
—Alan, por favor! Não é o que parece!
Mas seu irmão não a escutava. Como prova de sua eficiência com ambos os punhos, alcançou Arthur do outro lado com outro golpe. Depois no ventre. Logo no flanco.
—Vos disse que o arrumasse maldita seja. Não que a fizesse chorar. Que demônios lhe têm feito?
Arthur não tentava defender-se. Não porque não pudesse. Era evidente que MacDougall tinha um braço como o martelo de um ferreiro, mas Arthur tinha aprendido suficientes truques do melhor lutador corpo a corpo das Highlands e era capaz de tombá-lo em poucos segundos. Não se defendia porque merecia o castigo. Diabos, merecia muito mais pelo que estava a ponto de fazer.
—Para! Para! —choramingou Anna com uma voz a borda da histeria — Está lhe fazendo mal.
Alan o arrastou pelo pescoço e o empurrou com força contra uma árvore.
—O que lhe têm feito? —perguntou fulminando a sua irmã com o olhar — Será melhor que um dos dois me diga que demônios passa aqui. —Nenhum deles respondeu. Alan olhava alternadamente a um e outro com o rosto aceso pela raiva — Não me tomem por um maldito idiota! Não pensem que acreditei nem por um momento que Ross decidiu dar para trás de repente! —disse olhando a Anna enquanto seguia apertando fortemente o pescoço de Arthur com a mão — O que passou em Auldearn? É que este filho de cadela te tocou, Anna? —perguntou lhe apertando o pescoço — Te tocou? —insistiu empurrando com mais força — O fez?
Arthur sentia que o nó se esticava em torno de sua garganta e não era pela mão do MacDougall. Não. Sabia que teria que responder pelo que esteve a ponto de acontecer em Auldearn.
— O solte! —Alan advertiu o pânico na voz de Anna. Ela tentava lhe puxar o braço, mas sem obter resultado — Sim, mas não é o que pensa.
De fato, devia ser exatamente como o pensava.
—Maldito velhaco do demônio! —disse MacDougall estampando a cabeça de Arthur de novo contra a árvore — O matarei por isso.
Arthur não duvidava de suas intenções. Nem tampouco de sua capacidade para fazer. Mas não podia permitir. Estava a ponto de libertar-se quando ouviu um pequeno zumbido seguido por um suave vaio.
«Flecha.»
Seus sentidos se abriram em uma explosão de clarividência. Olhou por cima do ombro do MacDougall e viu a ponta de ferro sulcando o ar, apenas a um segundo de impactar no cangote do MacDougall. Arthur não pensou. Simplesmente reagiu. Golpeou para cima o braço do MacDougall com o antebraço em um perfeito movimento para libertar seu pescoço das garras dele e atrás disto enroscou sua perna ao redor do tornozelo para desequilibrá-lo. MacDougall caiu ao chão justo antes que a flecha impactasse na árvore com um som seco ao que logo seguiram os dilaceradores gritos de ataque.
Ouviu a exclamação de terror de Anna, mas não podia voltar para acalmá-la. O primeiro dos homens acabava de emergir de entre as árvores com a espada em alto. De novo a reação de Arthur foi instantânea. Jogou mão ao punho de sua adaga, extraiu-a de sua capa e a lançou. O atacante emitiu um gemido quando a folha deu com os poucos centímetros desprotegidos da pele de seu pescoço. Cambaleou-se e caiu ao chão.
Para quando o seguinte dos homens saltou sobre eles MacDougall já tinha tido tempo para entender o que acontecia e se pôs em pé. Desembainhou a espada, girou sobre si mesmo e a ergueu bem a tempo para repelir uma cutilada que lhe teria arrancado a cabeça.
«Anna.» Arthur desviou o olhar do assalto que estava por chegar justo o tempo suficiente para assegurar-se de que ela estava bem. Encontrou-a resguardada depois da árvore, com os olhos cheios de terror. O coração lhe acelerou ao conscientizar-se de quão vulnerável era e logo se paralisou quando se deu conta de quão vulnerável isso fazia a ele mesmo. Não podia permitir que lhe acontecesse nada. Tinha que protegê-la. Mataria a todos se fosse preciso. Seus olhares se encontraram só por um segundo. Mas a forma em que se olharam foi de uma intensidade inegável e brutal.
—Permaneçam abaixados - disse com voz pausada, a pesar do fluxo de sangue que corria por suas veias.
Arthur se situou frente a Anna, cotovelo com cotovelo com o MacDougall, quem seguia lutando com seu oponente, e recebeu com sua espada a avalanche de atacantes que saíam de entre as árvores. Uma vintena de homens. Talvez mais.
Não teve que esperar muito para encontrar-se com o primeiro deles. Pela primeira vez em quase dois anos, desde que se visse obrigado a abandonar os Guardiões das Highlands para infiltrar-se em campo inimigo, Arthur se deixou ir e lutou com toda a destreza e o frenesi que tão cuidadosamente mantinha ocultos. Tombou ao primeiro dos homens com um virulento movimento de espada, girou-se e aproveitou a inércia para derrubar ao seguinte.
Foram por ele com mais virulência. Mas não importava. Era como uma máquina de guerra que arrasava tudo o que saía a seu caminho. Três. Quatro. O ruído do metal sobre o metal atravessava o sombrio ar noturno, mesclando-se com os gemidos e os gritos da batalha. Esses sons tinham alertado aos homens do acampamento, que felizmente estava a poucos metros dali, e os soldados do MacDougall começaram a aparecer na pequena clareira, já envolto em uma escuridão absoluta. Mas os atacantes esperavam a chegada dos reforços. Em realidade o tinham planejado e aguardavam o momento. Saltavam das árvores à medida que eles abriam caminho por baixo e caíam sobre os despreparados homens do clã MacDougall.
—Vamos! —disse Arthur tentando lhes advertir — Disperse.
Se não se dispersavam os fariam pedaços com a facilidade que se cortam arenques de um barril. Mas essa foi toda a advertência que pôde fazer antes que os seguintes adversários distraíram sua atenção. Tinha a dois homens sobre ele. Dois homens com nasais, mantos obscurecidos e as características manchas de cinza negra nos rostos.
O pavor se instalou em seu estômago com o peso de uma pedra.
Os atacantes eram homens de Bruce. Pois claro que eram. Viu os corpos pulverizados no chão ante ele, homens que ele tinha matado, e veio um acesso de bílis à garganta. Jesus, no que estava pensando? Nem sequer pensava. O instinto de amparo para a Anna ultrapassava todo o resto. Mas era pior do que imaginava. Enquanto tentava incapacitar aos dois homens que lhe atacavam sem chegar a matá-los, um terceiro homem se uniu à refrega. Um homem que brandia duas espadas. Movia-se como um raio e foi a Arthur com uma ferocidade sem igual inclusive entre seus companheiros de elite dos Guardiões das Highlands.
Arthur se encontrou cara a cara na escuridão com LachlanMacRuairi e amaldiçoou para si.
Capítulo 17
Ocorreu tudo muito depressa. Em um momento tentava evitar que seu irmão assassinasse ao homem que amava e no seguinte estavam sendo atacados. Dizer que a situação era perigosa era pouco. De seu posto escondida entre as árvores, Anna se obrigava a respirar levianamente entre o estrepitoso pulsar de seu coração e observava com horror como aqueles homens caíam sobre eles como uma praga de gafanhotos. Pareciam que fossem centenas de inimigos contra só dois guerreiros.
Arthur parou os pés ao primeiro com tal superioridade que lhe pareceu algo bizarro. Mas então chegou o seguinte. E outro mais. Ficou olhando cheia de assombro como despachava sem esforço algum a todos quantos saíam a seu encontro. Sua destreza era tão extraordinária, mostrava tal superioridade, que parecia estar vendo outro homem. Tinha o espiado suficientes vezes enquanto praticava para reconhecer a diferença. Fazia que seu irmão, conhecido como um dos cavalheiros mais destros das Highlands parecesse um escudeiro. Arthur era mais rápido. Mais ágil quanto à técnica e movimentos. E o que era mais significativo, mais forte. Podia sentir como reverberava a terra com a força de seus golpes. Quando um de seus oponentes conseguia acertar com uma cutilada, o braço de Arthur apenas se movia ao bloqueá-lo e absorvia a força do impacto como se fosse nada. Seu braço… Os olhos lhe puseram como pratos. Era o braço direito.
Não entendia. Arthur era canhoto. Ao menos supunha que era, mas nesse momento, em somente observá-lo, sabia que estivera fingindo. Por que ocultaria algo assim? E por que não o tinha visto alguma vez antes lutar desse modo? Podia compreender os motivos para ocultar seus incomuns aguçados sentidos, mas não havia nada inapropriado em ter destreza no manejo da espada. Deus, poderia ser um dos cavalheiros mais venerados do reino se quisesse. Então por que não queria ser?
Mas essas perguntas se esfumaram de sua cabeça assim que viu a nova horda de atacantes que vinham de cima das árvores. Não cabia dúvida de que ao ver os corpos caídos de seus compatriotas tinham identificado a ameaça e se reuniam em torno de Arthur.
Anna reprimiu o grito de advertência, consciente de que não faria mais que lhe distrair. Mas tinha o coração em um punho. Dois homens. E um terceiro não muito longe deles.
De repente algo pareceu mudar em Arthur. Em lugar de frios e desumanos golpes mortais brandia a espada com menos intenção. Era quase como se seu objetivo tivesse mudado e não desejasse matá-los a não ser simplesmente repelir o ataque. Mas não tinha nenhum sentido. Tirou esse pensamento da cabeça. O que passava era que aqueles guerreiros estavam melhor treinados.
E era certo. Parecia difícil ver algo na penumbra. Levavam roupagens escuras e pareciam ter se sujado de fuligem a pele com algo…
Gelou-lhe o sangue ao recordar o ataque do ano anterior. Aqueles homens também levavam a pele suja. Seria possível que se tratasse dos espectros do exército fantasma de velhacos formado por Bruce, o homem que tinha instaurado o horror tanto nos corações da Escócia como da Inglaterra?
Seus piores temores se viram confirmados quando um terceiro homem desceu sobre Arthur como um cão do inferno. Em lugar do longo espadão de duas mãos que usavam os highlanders, este brandia duas espadas menores. Uma em cada mão.
Mas eram suas vestimentas as que a fizeram tremer com um terror que subia por todos seus ossos. Igual ao resto dos atacantes, levava um nasal escurecido e tinha sujado de fuligem sua pele com barro ou cinzas, mas o que a fez estremecer diante da lembrança era o resto de sua indumentária. Vestido de negro da cabeça aos pés, em lugar de cota de malha levava um peitilho de guerra de couro tachonado com peças de metal, perneiras de couro e uma manta envolta de maneira estranha. Justo como o homem que a tinha atacado no ano anterior, aquele rebelde de beleza absurda.
Esse homem era um deles. Anna sabia. O medo se transformou em pânico. Os conhecia por suas extraordinárias habilidades, por combater como demônios possuídos. «OH, Meu Deus, Arthur!» Sua respiração ficou detida na parte alta de seu peito ao ver que o atacante voava até ele com as espadas em alto a cada lado de sua cabeça. O tempo pareceu ir mais devagar. Arthur, ainda ocupando-se de um dos outros dois adversários, não poderia defender-se. Gelou-lhe o coração. O sangue. Arthur ia morrer.
Anna abriu a boca para gritar, mas no último momento Arthur golpeou a um dos homens que lhe atacavam com o punho de sua espada e pôde ergue-la a tempo para bloquear as duas folhas antes que lhe cruzasse o pescoço. O assaltante demoníaco e ele se encontraram cara a cara com as espadas engastadas sobre suas cabeças. O agressor tinha o impulso de vantagem já que caía das alturas, mas conseguiu repeli-lo fazendo uso de ambas as mãos. Embora Arthur lhe desse as costas, conseguiu distinguir o rosto de sua oponente graças à luz oferecida por um raio de lua. Tinha os olhos mais horripilantes que Anna jamais tivesse visto. Estremeceu. Pareciam brilhar na escuridão. Com essas escuras feições retorcidas pela raiva parecia um diabo recém saído do inferno, Lúcifer em pessoa. Uma difusa lembrança foi a sua memória. Deus santo! Era possível que…? Anna abriu os olhos sem acreditar de tudo. Parecia-se com Lachlan MacRuairi, o marido de sua falecida tia Juliana. Fazia anos que não o via, mas conforme tinha ouvido estava com os rebeldes. Sua tia Juliana, da qual sua irmã tinha recebido o nome, era muito mais jovem que seu pai, quase vinte anos. MacRuairi provavelmente tinha a mesma idade que seu irmão Alan. Ao aproximar-se de Arthur a expressão de seu rosto mudou. Não se teria notado se não tivesse observado com tanta atenção. Surpresa? Reconhecimento? O homem que parecia seu tio deu um passo atrás. Ou era imaginações delas? Estava escuro e não era fácil estar segura. Ambos seguiram trocando golpes, mas a intensidade e a ferocidade tinham desaparecido. Comparado com o anterior, parecia mais um treinamento que uma batalha em que se empregassem a fundo. Anna olhava através da escuridão tentado compreender o que ocorria. Então, viu pela extremidade do olho que seu irmão tropeçava para trás, com a espada no chão e ambas as mãos sobre a cabeça, cambaleando-se…
Anna lançou um grito, incapaz de dominar-se por mais tempo. Teria deslocado em sua ajuda, mas Arthur se atrasou até sua posição para lhe impedir o passo.
—Fique atrás, maldita seja! Fique atrás!
Observou com impotência como o agressor com o que lutava seu irmão erguia a espada para acabar com ele. Seu horripilante grito atravessou a noite como uma adaga.
Arthur pareceu vacilar, mas somente por um instante. De alguma forma arrumou para rebater um golpe do homem que se parecia com seu tio e dar meia volta a tempo para bloquear a estocada dirigida contra seu irmão. O braço do atacante, ao não estar preparado para essa defesa, veio-se abaixo e com ele seu corpo, que foi cair justo sobre a espada de Arthur. O homem, surpreso, abriu os olhos antes de fechá-los para sempre.
Inclusive no meio desse horrível pesadelo a truculenta imagem fora muito para ela. Voltou o olhar entre soluços. Momentos depois, um agudo assobio cerceava o ar da noite. Olhou para o tumulto e se surpreendeu ao ver que os atacantes se retiravam. Ao que parecia MacRuairi, ou um homem que se parecia muito a ele, tinha dado a ordem de retirada. A clareira fora invadida pelos homens de seu irmão. Correu ao encontro do Alan antes inclusive de que o último dos rebeldes saísse da floresta. Tinha conseguido ficar em pé, mas ainda parecia cambalear-se.
—Oh, Deus, Alan! Está bem?
Inclusive na escuridão advertiu que lhe custava muito enfocar o olhar pela maneira em que a olhava. Sacudiu a cabeça como se pudesse assim dissipar a nebulosa.
—Um golpe no cocuruto —disse — Estarei bem. Não há por que chorar. —Tomou-a pelo queixo e lhe dirigiu um sorriso carinhoso.
Anna assentiu e limpou as lágrimas com o dorso da mão, sem se dar conta sequer de que estava chorando. Voltou de maneira instintiva e o buscou. Arthur estava a poucos metros dela, observando-a. Anna tinha vontade de correr a seu encontro, de deitar-se em seus braços, enterrar a cabeça em seu peito e romper a chorar. Ele se encarregaria de sossegar o horror. Mas seu irmão estava ali mesmo. E o rosto de Arthur se via muito sombrio.
—Está ilesa? —perguntou.
Anna assentiu enquanto o examinava, detendo-se na mandíbula e as bochechas, arroxeadas pelos golpes de seu irmão.
—E você?
Arthur assentiu também como resposta.
Alan permanecia junto a sua irmã completamente rígido. Depois caminhou em direção de Arthur, e Anna ficou paralisada temendo o que estava a ponto de fazer. Deteve-se a poucos passos dele. Ambos os homens ficaram olhando-se no silêncio da escuridão até que ao final Alan disse: —Parece ser que estou em dívida contigo, não uma, a não ser duas vezes. —Arthur ficou impassível e logo encolheu os ombros levemente — Eu não gosto de ver minha irmã zangada —acrescentou Alan.
Anna assumiu que aquilo era uma desculpa.
—A mim tampouco - disse Arthur.
Alan o examinou por um momento e depois assentiu como se tivesse chegado a algum tipo de decisão.
—Lutastes bem - disse mudando o tema, mas não a intensidade de seu escrutínio.
Ao que parecia não era ela quão única tinha advertido a melhora de suas habilidades.
—O ardor da batalha - explicou Arthur.
Esteve a ponto de mencionar sua mudança de mão, mas algo a deteve. Se seu irmão também percebeu disso, não o desvelou. Mas seguia observando-o com atenção.
—Sim, há alguns homens que funciona assim. —Anna não pôde saber pelo tom de sua voz se Alan acreditava realmente a explicação de Arthur. Ao ver que este não respondia, acrescentou—: Os rebeldes estão mais bem treinados do que pensava.
—Não eram rebeldes qualquer, irmão - disse Anna.
Ambos a olharam, mas foi Alan quem fez a pergunta.
—A que te refere?
—Acredito que um deles era parte da Guarda fantasma de Bruce, mas pode ser que não fosse o único.
Anna explicou a similitude de vestimenta com o homem que dirigia o ataque do ano anterior à igreja. Alan cofiou a barba.
—Tem sentido. Acredito que poderia estar certa.
—Há mais. Não posso estar segura, mas acredito que reconheci a um deles. O das duas espadas.
—O que? —Ambos os homens reagiram. Seu irmão com entusiasmo e Arthur com… algo diferente a isso.
—Nosso tio, que era nosso tio.
Alan amaldiçoou.
—MacRuairi?
Anna assentiu. O rosto do Alan adotou um gesto severo.
—O nosso pai não gostará nada. —Anna não sabia de onde provinha a inimizade de seu pai com o que fosse seu tio político, mas sim que o ódio corria furiosamente por ambas as partes. Alan soltou uma gargalhada — Embora talvez devesse. Que Bruce fique em seu bando com esse filho de cadela oportunista e traiçoeiro. Lachlan MacRuairi somente professa lealdade a si mesmo. Se for esse o tipo de homem que recrutou para sua tropa de fantasmas, não temos nada do que nos preocupar.
Arthur permanecia em um estranho silêncio. Anna tinha vontade de lhe perguntar a respeito do ocorrido entre o que acreditava seu tio e ele, mas, do mesmo modo que anteriormente, algo a fez conter-se. Em vez disso perguntou: —O que é o que o fez fugir?
Seu irmão ficou circunspeto.
—Não estou seguro. Tinha a cabeça tonta. Não vi virtualmente nada.
—Seus homens fizeram aparição —explicou Arthur — Estavam em minoria numérica. —Não tinha parecido assim, mas estava muito pendente de seu irmão para emprestar atenção ao resto da batalha — Deveriam voltar para acampamento —disse.
—Sim —concedeu Alan — Um de meus homens te levará, Anna. Nós temos que nos encarregar de…
«Os mortos», completou ela mesma.
O horror do ataque, o horror daquilo ao que tinham escapado por pouco, golpeou-a então com toda sua força. As comportas se abriram e emergiram todas as emoções que estivera contendo atrás delas, ameaçando transbordando em muitas lágrimas. Voltou-se, advertindo que Arthur se pôs a seu lado. Este, alheio à presença do Alan, esticou o braço para lhe pôr depois da orelha uma mecha de cabelo rebelde. Seus dedos passaram roçando a bochecha e se detiveram ali. A ternura que havia nesse gesto fez que a Anna saltasse em lágrimas. Ergueu o olhar para ele. Advertiu o rosto de preocupação atrás de sua expressão séria. Sua sólida presença, sua força a desarmavam completamente. Se tomasse entre seus braços se romperia em pedaços. Arthur, que adivinhava que isso poderia ocorrer, não o fez.
—Tudo sairá bem —disse com delicadeza — Faça o que diz seu irmão.
—Mas…
Cortou seus protestos com uma negação da cabeça e expressão firme. Deveu adivinhar que ela tinha perguntas que fazer.
—Agora não - disse olhando em direção aos caídos — Depois.
Anna manteve os olhos no rosto de Arthur, procurando não seguir a direção de seu olhar. Já havia visto suficiente sangue para o resto de seus dias. As lembranças dessa noite a perseguiriam. Era uma reação compreensível. Anna era uma mulher e não alguém acostumado ao sangue e ao furor do campo de batalha. Arthur, entretanto, sim estava. Ou ao menos deveria estar. Mas havia algo em sua expressão, na tensão de sua mandíbula, a brancura da boca, a crueldade de seus olhos, que indicava que aquilo lhe afetava profundamente. Anna seguia os passos dos dois homens de seu irmão que a precediam com a suspeita de que ela não seria a única a que perseguiriam as lembranças daquela noite. A questão era por que.
Arthur não pôde conciliar o sonho. Quase esperava que MacRuairi se deslizasse na escuridão e lhe rachasse a garganta ou cravasse uma adaga nas costas pelo que tinha acontecido. Não seria a primeira vez. Não tinha ganhado o apelido de Víbora unicamente por sua venenosa personalidade, mas também por seu ataque silencioso e mortífero. Entretanto, Arthur não podia culpá-lo.
Tal e como tinha feito quase toda a noite, olhava o monte de corpos que tinham deixado apinhados a um lado da clareira, postos ali para que os «atacantes» os recolhessem. Nove homens de Bruce assassinados. Mais da metade pela ponta de sua espada. Equivocou-se. Muito. Em muitos aspectos para poder contá-los. Suficiente mal era que seus sentidos tivessem falhado, que não tivesse advertido os sinais do ataque, mas, além disso, parecia ter esquecido de que lado estava. Levava tanto tempo entrincheirado em campo inimigo que começava a acreditar em suas próprias mentiras.
«Cristo.» Fechou os olhos em uma tentativa de aplacar seus pensamentos. Viu-se obrigado a matar a seus próprios homens antes, mas nunca desse modo. Aquilo não era simplesmente defender-se. Tornou-se um louco fazendo. Estava tão concentrado em proteger Anna e matar a qualquer que supusera uma ameaça para ela que não tinha reparado em nada mais que isso. Nem sequer se deteve quando percebeu o que ocorria. Tinha salvado a vida do MacDougall em troca de um de seus compatriotas. Não podia tirar da cabeça o rosto que tinha posto MacRuairi quando Arthur atravessou ao homem que estava a ponto de acabar com o MacDougall. Pouco importava que sua intenção não fosse matá-lo. Não teria que ter intervindo. O pranto dilacerador de Anna não era desculpa, ao menos não uma desculpa que importasse para os de sua irmandade.
Levantou-se de seu solitário posto junto à árvore quando começaram a vislumbrar os primeiros raios do amanhecer através da floresta. Não acudiriam. Nem MacRuairi, nem tampouco Gordon, MacGregor e MacKay, a menos que tivesse errado ao identificar aos outros três membros dos Guardiões das Highlands quando se batiam em retirada. Tampouco esperava que o fizessem, embora gostasse de ter a oportunidade de explicar-se ante eles. Não se arriscariam de novo a revelar a identidade de Arthur. Para isso bastava a si mesmo.
Era consciente do perto que estivera de arruinar sua cobertura e de pôr toda sua missão em perigo. Anna, tal e como provavam suas perguntas, era muito observadora, inclusive sendo presa do pânico. E não era a única. Também Alan suspeitava da súbita melhora de suas habilidades como combatente e de quão rápido tinham fugido os atacantes. No momento os tinha contentado, mas sabia que ela tinha mais pergunta e não se atrevia tão sequer a pensar o que mais teria advertido.
Reconhecer ao MacRuairi já era mal por si só, mas relacioná-lo com os Guardiões das Highlands era um completo desastre. Manter suas identidades em segredo não era só um aplique à mística e ao medo que rodeavam a aquela guarda «fantasma», mas sim também ajudava a mantê-los a salvo. Se seus inimigos tinham conhecimento de suas identidades, além de pôr preço a suas cabeças, temia a segurança de suas famílias. Essa era a razão pela que tinham decidido usar nomes de guerra quando estavam em uma missão.
Quando Bruce se inteirasse de que tinham desmascarado ao MacRuairi, teria graves conseqüências. Não teria que ter ocorrido, maldita seja. A raiva e a culpa invadiam seu interior sem piedade. Arthur teria pressentido o ataque se não tivesse tão envolto com Anna e deixar-se dominar pela emoção. Aqueles homens não estariam mortos e tampouco teria posto a ela em perigo. Deus, poderiam tê-la matado. E tudo por não ser capaz de controlar suas emoções e implicar-se muito.
Voltou para acampamento justo no momento em que começavam a despertar os homens que não estavam de guarda. Olhou para a tenda de Anna e viu que as portinholas forradas de linho permaneciam fechadas. «Bem. Que durma.» Merecia. Tinha ido vê-la com freqüência no transcurso da noite para assegurar-se de que estava bem. Sabia o muito que a tinha afetado o ataque, mas combatia com seus próprios demônios, de modo que por mais que fosse ele quem devia fazer, não estava em condições de consolá-la. Não obstante, uma vez que teve retornado de encarregar-se dos cavalos, viu a portinhola aberta. Ao inspecionar o acampamento e não encontrá-la ficou circunspeto. Mas pouco depois teve oportunidade de espiá-la enquanto falava com seu irmão, que estava ocupado com alguns de seus homens. A exasperação que refletia seu semblante era tão corrente que suspirou aliviado, até sem querer reconhecer quanto se preocupou.
Quando seu olhar reparou nele, Anna titubeou, mas em seguida começou a avançar pelo terreno semeado de musgo e folhas em sua direção. Arthur percebeu de que levava um pedaço de pano nas mãos. Deteve-se frente a ele, inclinando seu pálido rosto para olhá-lo. Arthur sentiu uma angústia no peito. Ao que parecia, o sono também fora esquivo.
—Já que a regra que pusestes e meu irmão está ocupado, terá que me acompanhar.
Arthur a olhou de modo inquisitivo.
—Não me fizeram prometer que não abandonaria o campo sem sua companhia ou a de meu irmão?
Franziu o cenho até converter-se no primeiro sorriso que tinham parecido em anos.
—Sim.
—Preciso ir ao córrego me lavar.
O córrego ficava perfeitamente à vista do acampamento, mas Arthur não discutiu ao conscientizar de quanto a teria afetado o ataque. Fez uma reverência zombadora com um gesto exagerado da mão.
—Depois de ti.
Anna não parecia ter muita vontade de falar, algo que vinha a calhar. Esperou junto a uma árvore, fazendo como que não olhava, enquanto ela se encarregava de suas abluções matinais. Depois de arrumar o cabelo com um pente úmido e lavar os dentes com pós de um frasco que esfregou sobre um pequeno pedaço de tecido branco, mergulhou outro trapo branco na água. Tinha levado com ela uma pastilha de sabão, a qual esfregou sobre o tecido para depois proceder a lavar o rosto, o colo, as mãos e os braços. Era uma das imagens mais sensuais que jamais tivesse presenciado.
Quando meteu o trapo entre os seios já não pôde mais. Voltou-se, furioso por que um pouco tão mundano pudesse o excitar. Mas com esse sol caindo entre as árvores, que se refletia em seus cabelos dourados e os regatos de água que se derramavam em cascata por seu rosto e seu colo a via formosa, doce e verdadeiramente cativante. Um raio de luz na escuridão. E tudo que Arthur podia pensar era o perto que estivera do céu e a vontade insensata que tinha de tocá-la de novo. Deus, é que não tinha aprendido nada do ocorrido na noite anterior? Concentrou-se no que lhes rodeava com uma intensidade quase exagerada, aguçando seus sentidos para algo que se saísse do ordinário. Entretanto voltou o olhar atrás. Anna tinha terminado e caminhava para ele com o sol a contraluz pelas costas. Arthur teve que conter a respiração. Mas isso não evitou que o apanhasse o subjugador aroma de sua doce e feminina fragrância: pele recém lavada com um toque de pétalas de rosa.
—O que acontece? —perguntou Anna.
—Nada - disse com tensão.
—Parece como se lhe doesse algo - disse olhando-o nos olhos — Lhe dói o rosto? —perguntou tomando o arroxeado queixo na mão. Cada um dos músculos de Arthur ficou em guarda ante o contato — Quebrou algo o idiota de meu irmão? —Jesus, que mãos mais suaves. Seus dedos aveludados acariciavam o duro contorno da tensa mandíbula de Arthur — Olhem quantos hematomas. Isso deve doer — acrescentou, levando o dedo até sua boca — Têm o lábio partido.
Sim, doía. Aquele gesto de sensualidade inocente fazia correr o sangue até a virilha de Arthur e a incendiava de calor. Teve que obrigar-se a não lhe chupar o dedo. Não tinha nem idéia do que estava fazendo. Nem do que estava custando resistir a tocá-la.
Anna o olhou com uma preocupação que se refletia em seus olhos.
—Dói muito?
—O rosto não. —Arthur lhe dirigiu um olhar lascivo que dizia exatamente onde estava a origem de sua dor. Parecia que fosse estalar.
As bochechas de Anna se ruborizaram levemente. Se por acaso aquilo não fosse suficiente, começou a mordiscar esse suave lábio inferior que tinha.
—Oh, não me dava conta de que…
—Deveríamos voltar. Seu irmão queria sair cedo.
Anna assentiu e Arthur teve a impressão de que lhe dava um calafrio.
—Não me entristecerá partir daqui.
Arthur não pôde conter-se. Tomou pelo queixo e cravou o olhar em seus grandes olhos azuis.
—Está bem?
Anna tentou sorrir, mas lhe tremeu a boca.
—Não, mas arrumarei isso.
Arthur lhe soltou o queixo e sua boca adotou um gesto severo.
—O que ocorreu a noite passada não voltará a repetir-se.
Os delicados arcos das sobrancelhas de Anna se franziram.
—Como pode estar tão seguro?
—Porque não permitirei.
Anna o examinou com o olhar e abriu os olhos de repente ao compreendê-lo.
—Por Deus bendito, por isso está zangado. Culpa-se do ocorrido. Mas isso é ridículo. Jamais poderia ter sabido que…
—Sim, sim deveria saber. Se não tivesse tão distraído, não teria ocorrido.
—Então a culpa é minha?
—É obvio que não.
—Não é perfeito, Arthur. Sois humano. Comete enganos. —Ele não respondeu. Tinha a mandíbula tão apertada que lhe doíam os dentes - é o que pensa? —perguntou Anna com ternura — Não falharam seus sentidos alguma vez antes?
«Uma vez», pensou Arthur, afastando a lembrança de sua memória.
—Temos que retornar.
Começou a afastar-se dela, mas Anna o agarrou pelo braço para detê-lo.
—Não ides contar isso?
—Não há nada que contar.
—Tem algo que ver com seu pai? —ficou olhando-a, aniquilado. Como demônios tinha chegado a suspeitar? Anna advertiu sua surpresa — Quando falou de sua morte, deu-me a sensação de que não contava tudo.
Não tinha contado nem a metade do que aconteceu. Como por exemplo a participação do pai de Anna na tergiversação dos fatos. Anna esperava uma resposta. Ele não era muito dado a falar sobre seu passado, mas a expressão do rosto dela disse que aquilo lhe parecia algo muito importante.
—Não há muito que contar. Tratava-se de minha primeira batalha. Meu pai me levou com eles para me pôr a prova. Estava tão preocupado por lhe impressionar que não detectei os sinais do ataque. —Mas isso não era a pior parte, pensou Arthur — Vi como morria.
O rosto de Anna se encheu de comiseração.
—Deus, sinto muito. Deve ter sido horrível. Mas não era mais que um menino. Não podia fazer nada para ajudar.
—Teria que o ter avisado. —Se não estivesse tão afetado, tão assustado, teria visto os sinais, refletiu Arthur. Então, igual à noite anterior, a emoção se havia interposto em seu caminho — Estava distraído.
Mal teve tempo de franzir o sobrecenho antes que os olhos de Anna se iluminassem repentinamente de compreensão.
—Amava-o.
Arthur encolheu os ombros, incomodado com o tema.
—Isso não serve de muito.
—Inclusive Aquiles tinha um ponto débil, Arthur. —Ele a olhou com cara de estar admirado. Do que estava falando? — É difícil manter-se afastado e à expectativa com as pessoas às que alguém quer —disse Anna lhe oferecendo um sorriso de simpatia — Não podem te culpar por amar às pessoas. —Mas fazia. Do que servia suas tão apregoadas habilidades se não podia proteger a aqueles que amava? — Obrigado por me contar isso — Por que voltava a sentir que a tinha deixado ver muito de si?
—Não desejava que te preocupasse pensando em outro ataque surpresa.
—Não me preocupo —disse Anna — Confio em você.
Arthur sentiu uns ardores no peito que o consumiam por dentro. Queria a advertir que não fizesse, lhe dizer que não merecia, que o único que faria seria a machucar, que ela dava seu coração com muita facilidade, com os olhos fechados. Mas em vez disso assentiu e puseram rumo para o acampamento. Arthur subiu a costa com ela, e quando estiveram nas imediações, Anna o olhou de soslaio.
—Pareceu como se meu tio o reconhecesse.
A observação o colheu com a guarda completamente baixa. Algo para o qual parecia ter um talento especial. Arthur deu um passo um tanto vacilante. Não muito, mas temia que se desse conta.
—Está segura de que era seu tio? Não via bem. Eu estava muito mais perto e não pude reconhecer aquele rosto oculta depois do nasal.
Anna enrugou o nariz, um movimento adorável que chocava profundamente com a ameaça que representava para ele.
—Faz alguns anos que não o vejo, mas estou bastante segura de que era ele. Seus olhos são inesquecíveis — disse com um calafrio. Se tentava distrair de sua pergunta, não ia funcionar — Mas pareceu o reconhecer.
—Ah, sim? —disse Arthur encolhendo os ombros — Pode ser que nos tenhamos cruzado alguma vez.
Ela ficou um momento sem dizer uma palavra, mas infelizmente não pensava deixar o assunto correr.
—Então não o conhece?
Arthur lutou contra a ativação instintiva de seus alarmes.
—Pessoalmente não.
—Parecia aborrecido de lhe ver.
O rápido pulsar do pulso de Arthur contradizia sua calma exterior. Era perigosamente perceptiva e andava muito perto da verdade.
—Aborrecido? Por isso sei, Lachlan MacRuairi é um filho de…—disse, detendo-se ao recordar quem tinha por audiência — É um homem perverso com um caráter de cão. Provavelmente estava furioso por que matasse a tantos de seus homens.
Anna pareceu aceitar a explicação. Mas a seguinte pergunta lhe deixou claro que ainda não estava satisfeita.
—Por que se retiraram?
Arthur amaldiçoou para si. As vozes de alarme se acendiam com mais força.
—Como já vos disse, os homens de seu irmão chegaram até nós. Estavam em minoria.
Ficou circunspeta.
—Não me pareceu isso. Parecia que estavam ganhando.
Arthur se obrigou a forçar um sorriso irônico.
—Seu irmão estava em perigo —lhe recordou — Eu diria que estava distraída.
Anna ergueu o olhar para olhá-lo e lhe dedicou um meio sorriso.
—Pode ser que tenham razão. Estava concentrada em meu irmão. Ainda tenho que lhes agradecer o que fizeram. —Uma sombra sulcou seu rosto — Se não tivessem detido a esse homem…
—Não pensem mais nisso, Anna. Já passou.
Assentiu e voltou a olhar de relance.
—De todos os modos, agradeço-lhe. E também Alan o faz, apesar de que tenha uma estranha forma de demonstrá-lo.
MacDougall não ocultava seu interesse por eles. Arthur sentiu o peso de seu olhar durante todo o tempo. Ao encontrar-se com seus olhos, soube que a discussão a respeito do ocorrido no dia anterior ainda não tinha acabado.
—Tem direito a estar furioso, Anna. O que fiz esteve mau. Tudo que posso fazer é prometer que jamais voltará a acontecer.
A maneira em que sua respiração ficou sobressaltada foi como uma punhalada no peito. Parecia emocionada. Desconcertada. Como se esperasse algo diferente.
—Mas…
—Aguardam-nos — disse Arthur, e assinalou ao moço que preparava seus cavalos para que não seguisse falando. Não poderia suportar outra conversa como a do dia anterior — É hora de partir.
Essas palavras fossem dirigidas tanto a ela como a si mesmo. Ponto cego. Ponto débil. Não importa como o tivesse chamado. Seus sentimentos no que respeitava a Anna se converteram em um lastro. Tinha permitido que ela se aproximasse muito, e sua missão e sua coberta pendiam de um fio. A conta atrás tinha começado.
Capítulo 18
Dois dias sem acontecimentos depois, Anna atravessava as portas do castelo de Dunstaffnage ao lombo de seu cavalo. Um dos guardiães se adiantou, de modo que lhes esperavam. Pelo semblante de ira mal contida de seu pai advertiu que estava a par do fracasso de sua viagem. Anna sonhava desfrutando de uma noite de sonho reparador antes de confrontar as perguntas de seu senhor, mas sua tardia chegada não serve para atrasar o relatório. Alan e ela quase não tiveram tempo de lavar as mãos e fazer uma frugal refeição leve antes que os apresentassem nas dependências do senhor do castelo.
John de Lorn permanecia de pé em meio da sala, com as mãos à costas e os membros importantes de seu meinie atrás dele e ambos os lados. A expressão de duelo que todos compartilhavam sem exceção fez pensar a Anna que entrava em um túmulo funerário. Dado que nenhum deles tomou assento, ela e Alan tiveram que suportar o desconforto de estar de pé. Suas sensações não distavam muito das do menino ao que chamam para que responda de uma travessura atroz com resultados nefastos.
Apenas teve fechado a porta quando seu pai começou a falar. A atacar, em realidade.
—Ross rechaçou a oferta.
Não se tratava de uma pergunta. Ao notar o tom de acusação de sua voz, Anna teve vontade de explicar-se, mas não tocava a ela fazer.
Alan respondeu por ambos.
—Sim. A resposta do Ross a uma aliança foi quão mesma na ocasião anterior. Disse que Bruce partiria também contra ele e que não podia prescindir de nenhum de seus homens.
—Mas que passou com o compromisso? Não lhe fez mudar de idéia?
Anna sentiu o peso dos olhares de todos os homens sobre ela e suas bochechas se ruborizaram. Mantinha o olhar baixo para que seu pai não visse quão envergonhada estava. Independentemente de que supusera alguma mudança ou não, tinha fracassado na tarefa que lhe tinha encomendado.
—Não há compromisso —explicou Alan — Estiveram de acordo em que não encaixam um com o outro.
Anna desejava que ninguém mais detectasse como Alan acabava de medir suas palavras.
—Quer dizer que não te perdoou por rechaçá-lo na primeira vez? —perguntou o pai a Anna diretamente.
Ela se aventurou a olhá-lo e a contemplar seu rosto de raiva. O coração lhe encolheu. Não era bom para ele que se zangasse tanto. Quis lhe dizer algo a esse respeito, mas sabia que se lhe tratasse como a um inválido ante seus homens, ficaria mais furioso ainda. Não sabia o que dizer. Não queria mentir, mas tampouco podia contar toda a verdade.
—Eu… — disse, tropeçando com suas próprias palavras.
—Bem — repôs seu pai com impaciência—, acreditava que foste o persuadir.
As bochechas ardiam da vergonha.
—Tentei, mas temo que ele… percebeu que meus sentimentos estavam comprometidos com outra causa.
—O que quer dizer isso de «comprometidos com outra causa»? —Seu pai entreabriu os olhos, que a atravessavam como flechas. Sabia que havia algo que não lhe estava contando — Campbell —disse impassível em resposta a sua própria pergunta. Amaldiçoou para si com um olhar implacável — E como poderia perceber isso? O que fez?
Jamais tinha visto seu pai tão furioso com ela. Era a primeira vez que sua raiva a atemorizava. Que o merecesse não era algo que aplacasse seus devastadores efeitos. O que poderia ter dito? Felizmente, Alan teve piedade dela.
—O compromisso não teria mudado nada. Ross já tinha seus planos feitos. Temo que ainda não ouvistes a pior parte. —Anna temia o pior em relação à reação de seu pai. Tinha medo de que aquilo o levasse a um novo ataque de apoplexia. Ao que parecia, Alan decidiu que era melhor não dosar a verdade, a não ser soltar a de uma só e desagradável vez — Ross está pensando em render-se.
Seu pai não disse uma palavra. Mas Anna contemplava como sua fúria crescia como uma crista de espuma no horizonte que se dirigisse para a costa a toda velocidade até converter-se em uma temível onda que ameaçava rompendo. John de Lorn apertava os punhos com força, seu rosto estava vermelho como um tomate, as veias lhe palpitavam nas sobrancelhas e seus olhos ardiam como se fossem as portas do inferno. Anna deu um passo em sua direção, mas Alan a deteve com uma mão e negou com a cabeça em sinal de advertência.
Quando seu pai acabou por bem pronunciar-se foi para proferir uma enxurrada de insultos que teriam posto a sua mãe de joelhos durante semanas inteiras em penitencia por sua alma blasfema. Perambulou, iracundo pela pequena câmara como um leão enjaulado. Inclusive seus homens lhe deixaram espaço suficiente para que desse rédea solta a sua irritação.
—Ross é um tolo do demônio! —explorou com fúria — Bruce jamais lhe perdoará o que fez às mulheres. Pelo amor de Deus! Pendurou em jaulas a sua irmã e à condessa. Se se render, estará assinando sua própria ordem de execução. —Deteve suas palavras o justo para dar um murro sobre a mesa — Como pode pensar em prostrar-se ante esse assassino traiçoeiro? Cortou a meu parente em pedaços diante de um altar.
Anna não se atreveu a assinalar que a santidade da igreja não era algo que parecesse importar muito ao Ross. Depois de tudo, ele mesmo violou o santuário para capturar às mulheres de Bruce.
—O povo está com Bruce —disse Alan para acalmar a seu pai — despertou um ardor patriótico no campo que não se via desde Wallace. Acreditam que é um salvador, o segundo advento do rei Artur, que os liberou do jugo da tirania inglesa. Ross pensa em sua gente e no futuro de seu clã. Pensa no que é melhor para a Escócia.
Anna tentou ocultar sua surpresa. Felizmente seu pai estava muito furioso para ouvir o que Alan havia dito realmente. Mas embora seu pai não o tivesse feito, ela sim tinha ouvido o tom de reprimenda na voz de seu irmão. Pensaria Alan igual a Ross? Acreditava também ele que Bruce era a melhor opção para Escócia? Por Deus bendito, o que aconteceria seu pai se equivocava?
Anna não podia acreditar que fosse ela quem albergasse esse pensamento desleal. Mas os MacDougall, em seus dias ferventes patriotas, tinham dado seu apoio aos ingleses para não ver Bruce sentar-se no trono. Era isso o melhor para Escócia?
—Morrerei antes de ver esse assassino no trono — disse seu pai, consumida já a raiva de seus olhos, frios como o gelo.
Anna sentiu certo alívio para ouvir os murmúrios unânimes de seus homens que concordavam vigorosamente com essa idéia. Seu pai sabia o que fazia. Era um dos homens mais poderosos de Escócia. Tinha suas falhas, claro, que grande homem não os tinha? Mas ele faria que superassem aquilo.
Uma vez informado sobre a parte mais importante da viagem, Alan procedeu a lhe contar a seu pai o resto, dando conta brevemente do problema acontecido pelo caminho. Seu pai escutava, cada vez mais preocupado, empalidecendo visivelmente para ouvir como seu herdeiro escapava por pouco à morte, duas vezes. Entreabriu os olhos enviesadamente quando Alan o informou das suspeitas de Anna a respeito da implicação do MacRuairi e depois transbordou de emoção ao conscientizar-se da conexão que tinha com a guarda fantasma de Bruce.
—Bom trabalho — disse a Anna, quem sorriu radiantemente pela adulação.
Alan deu a versão de Arthur de sua retirada, mas seu pai também pareceu ter problemas em compreendê-lo.
Ao final, adiantou-se e a agarrou da mão.
—Não sofreste nenhum dano, filha?
Anna negou com a cabeça e ele a acolheu entre seus grandes e robustos braços, esquecendo aparentemente sua ira. Por um momento, Anna voltou a sentir-se como uma menina e a necessidade de chorar todas suas penas sobre sua túnica de finos bordados se apoderou dela. Arthur seguia inimizado com ela. O ataque não tinha mudado nada. Por acaso o tinha piorado. Tinha a esperança de que depois de seu bate-papo ele tivesse mudado de parecer. Arthur sentia algo por ela, mas havia um motivo que o fazia conter-se. Esses dois dias de caminho não lhe tinham dado novas perspectivas. Anna não podia livrar-se da sensação de que havia algo estranho no ataque. E tampouco podia tirar da cabeça a inquietação que lhe provocava suspeitar que ele ocultava algo.
Seu pai se voltou para trás para olhá-la.
—Está cansada. Já ouvirei o resto da história pela manhã.
Assentiu, aliviada de que o pior já tivesse passado. Ao menos isso é o que pensava.
—E, Alan — disse John de Lorn a seu filho—, faz que Campbell e seu irmão se reúnam conosco. Parece que sir Arthur tem que responder por muitas coisas — acrescentou dirigindo um olhar a Anna que a fez estremecer da cabeça aos pés.
Arthur estava preparado para a citação quando esta chegou. Não esperava, entretanto, que se incluísse nela a seu irmão.
—Que diabos tem feito? —perguntou Dugald com suspeita à medida que atravessavam o barmkin em direção à torre da comemoração — por que tem Lorn tanta vontade de ver-te?
Arthur e seu irmão subiram a escada compassando sua marcha com o tinido de seus peitilhos e suas armas.
—Suponho que tem perguntas que fazer em relação aos homens que nos atacaram.
—E o que sabe você deles?
—Nada — disse Arthur ao mesmo tempo que abria a enorme porta de madeira que dava entrada à torre.
—O que tenho eu que ver em tudo isto?
Arthur olhou ao Dugald. A expressão de seu irmão era um reflexo da impaciência que ambos sentiam. Ao Dugald gostava tão pouco como a ele que o chamassem a presença de Lorn. Apesar de que seu irmão e ele lutassem em diferentes lados da guerra, ainda podiam coincidir em seu ódio para o John de Lorn.
—Que me crucifiquem se sei — disse Arthur incomodado por essa incerteza. Um guarda bateu na porta para anunciar sua chegada. Quando lhes fizeram passar, voltou-se e acrescentou—: Mas estamos a ponto de averiguá-lo.
Examinou com rapidez aos ocupantes da sala: Lorn, sentado como um rei em uma poltrona que melhor parecia um trono com uma expressão impossível de discernir; Alan MacDougall de pé junto ao muro, com cara de não saber muito bem o que ocorria; e Anna sentada em um banco em frente ao fogo com aspecto de estar extremamente inquieta. À exceção do único guarda que os tinha admitido para deixá-los depois às ordens de Lorn, não havia nenhum outro membro presente de seu meinie.
Tratasse do que se tratasse, era um assunto pessoal. A pontada de inquietação que Arthur sentia se converteu em uma punhalada em toda regra. Lorn, imperioso filho de cadela, não os convidou a sentar-se, de modo que permaneceram de pé frente a ele. O ódio cego que atendia a alma de Arthur cada vez que se encontrava rosto o rosto com o homem que tinha assassinado seu pai não diminuía. Contraiu suas feições de modo que não revelassem emoção alguma, mas o fogo que queimava seu peito e a necessidade de afundar uma adaga no negro coração de Lorn eram algo mais difícil de reprimir.
—Desejava nos ver, milorde — disse Dugald com um tom que não mostrava deferência alguma.
Lorn tomou seu tempo em deixar a pluma a um lado e logo se recostou na poltrona para olhá-los. Tamborilou com os dedos sobre a mesa. Quando respondeu, não foi ao Dugald, a não ser a Arthur: —Ouvi que tiveram uma viagem cheia de peripécias.
Algo no tom de sua voz fez que soassem os sinos de alarme no mais profundo da cabeça de Arthur. Teve que controlar-se para não olhar a Anna. O que lhe teria contado?
—Sim —disse — Tivemos a sorte de escapar à primeira orda de velhacos, mas não à segunda. Fizemo-nos fugir bem a tempo.
Lorn o escrutinou com tal parada que lhe puseram todos os nervos de ponta.
—Isso eu ouvi. Meu filho não teve mais que louvores para suas habilidades na batalha. Conforme afirma, jamais viu nada igual. —Dugald se voltou bruscamente para Arthur com o rosto circunspeta — Tenho que admitir que me surpreendeu ouvir a descrição do enfrentamento —acrescentou Lorn com um sorriso. Mas seu olhar não tinha nada de divertido. Era frio e calculador — Me pergunto por que jamais antes tínhamos visto isso em você.
Lorn desviou seu olhar para o Dugald, avaliando sua reação. Infelizmente, a expressão do irmão de Arthur não fez a não ser admirar mais.
—Sir Alan é mais que generoso com suas adulações, meu senhor.
Alan deu um passo à frente, em claro desacordo com a forma de perguntar de seu pai.
—Sir Arthur foi chave na hora de derrotar aos rebeldes, pai, e ao salvar minha vida. Temos uma dívida de gratidão com ele.
—Sim, é obvio —disse Lorn — Estou muito agradecido. Mas me pergunto… — Fez uma pausa e tamborilou com um dedo sobre a mesa— pergunto-me se poderiam jogar um pouco de luz sobre o resto do ataque.
—É obvio — disse Arthur. Mas não gostava absolutamente dos roteiros que tomava aquele assunto. Lorn era um filho de cadela arrevesado. Gostava de ter aos o rodeavam em um punho. Acaso suspeitava algo? Quem podia saber.
—Minha filha acredita ter identificado a quem fosse meu irmão político, Lachlan MacRuairi, como um desses rufiões, e também pensa que pode ser um dos guerreiros secretos dos que tanto ouvimos falar.
—Cruzei-me com esse homem uma ou duas vezes, mas não o conheço tão bem para afirmar nenhuma coisa nem a outra. Se lady Anna tiver dúvidas, temo que eu não posso ajudar a resolver.
Arthur caminhava pela corda frouxa. Uma negação terminante poderia chamar suspeita, mas queria manter a semente da dúvida plantada na mente de Lorn, cujos traços se endureceram, fazendo patente o ódio que professava pelo que fosse seu cunhado.
—MacRuairi é uma serpente traiçoeira, um assassino desumano que venderia a sua mãe por uma peça de prata, mas há uma coisa que jamais faria, e é se dar por vencido. Jamais o vi retirar-se em uma batalha.
Bàs roimh Gèill. «Morrer antes que render-se» formava parte do credo dos Guardiões das Highlands, mas parecia funesto que essa frase desse ao Lorn algo no que fincar o dente. A corda frouxa pela que Arthur caminhava-se fazia mais instável por momentos.
Deu de ombros sem comprometer-se.
—Então é possível que não fosse ele?
Lorn voltou a dirigir o olhar a sua filha, quem o olhou nos olhos antes de responder:
—Não posso estar segura, pai. Estava muito escuro. Somente percebi seu rosto com claridade por um instante… e fazia anos que não o via.
Arthur sentiu uma opressão no peito. Tentava protegê-lo. Teria notado Lorn também disso?
—Havia algo que quisessem de mim, meu senhor? —perguntou Dugald cada vez mais impaciente.
Em outras palavras: que demônios fazia ele ali? Uma pergunta que também interessava Arthur.
—Estou chegando a esse ponto.
Lorn voltou a tamborilar sobre a mesa, e Arthur começou a imaginar-se que agarrava sua maça de guerra e punha fim a essa aporrinhação de uma vez por todas.
—Não estou seguro de que firmaram tanto do propósito que tinha a viagem ao norte para ver o Ross — disse ao Dugald — Era pra retomar as conversações para o compromisso de matrimônio entre minha filha e sir Hugh Ross, com a esperança de que uma aliança entre nós animaria ao conde a enviar tropas de apoio na guerra contra Bruce. Infelizmente, as coisas não fossem como tínhamos planejado.
Dugald fulminou de relance Arthur com o olhar.
—Ah, não?
—Não. —O olhar de Lorn voltou a recair sobre ele — Ao que parecia, sir Hugh percebeu que os afetos de minha filha estavam comprometidos com outra causa. Sabes algo disso, sir Arthur?
Arthur viu pela extremidade do olho como Anna empalidecia e apertava as mãos com força sobre seu regaço. Que diabos havia dito? Os dentes lhe chiavam. Sentia-se esquecido no aposento e sem espaço para mover-se.
—Sim.
—Pensei que talvez fosse assim —disse Lorn. O brilho de raiva de seu olhar disse a Arthur que provavelmente adivinhava parte do acontecido. Esperou tensos, preparando-se para o pior. O nó cada vez se apertava mais. Lorn se voltou para o Dugald. As razões pelas quais seu irmão estava ali tinham ficado claras — Diante dos dados e recentes acontecimentos, eu gostaria de propor uma aliança diferente. Uma que faria mais sólidos os laços entre nossas famílias e mostraria minha gratidão para sir Arthur pelo serviço que tem feito a meu filho, assim como também asseguraria a felicidade de minha filha. —Cada um dos músculos do corpo de Arthur ficou tensos enquanto esperava o que estava por chegar. Perguntava-se se ela teria algo ver com isso, mas os olhos de Anna não mostravam mais que surpresa quando seu pai disse—: Eu gostaria de propor um compromisso de bodas entre sir Arthur e minha filha.
Dugald soltou uma gargalhada.
—Um compromisso?
A boca de Lorn adotou um gesto severo.
—Acredito que isso é o que disse. Podemos falar sobre os detalhes mais tarde, mas tenham por seguro que o dote de minha filha é mais que generoso. Inclui certo castelo que acredito pode ser de interesse para ti.
Tanto Arthur como seu irmão ficaram de pedra.
Foi Dugald quem acabou por perguntar:
—Innis Chonnel?
Um sorriso retorcido se desenhou na boca de Lorn.
—Sim.
Arthur não podia acreditar. A fortaleza dos Campbell do lago Awe que tinham sido arrebatado a seu clã fazia anos, devolvida por casar-se com a mulher que queria mais que a tudo no mundo. Um autêntico pacto com o diabo. Por um momento, ficou duvidando, muito mais tentado do que gostaria de admitir. Mudar de bando era algo habitual naquela guerra. Mas ele não podia fazer. Inclusive no caso de que condescendesse a aliar-se com o homem que tinha assassinado a seu pai, havia muitas pessoas que contava com ele: Neil, o rei Robert, MacLeod e o resto dos membros dos Guardiões das Highlands. E tampouco podia ignorar sua própria consciência. Acreditava no que estavam fazendo.
A devolução do castelo dos Campbell, embora fosse ao irmão mais novo, bastou para convencer ao Dugald, que se voltou para Arthur.
—Eu não tenho objeção. Arthur?
Todos os olhos se voltaram para ele, mas somente era consciente de dois pares: os de Anna, que lhe observavam com o coração neles, e os de Lorn, que o contemplavam com a suspeita refletida.
Até no caso de que não tivesse intenção de levar a cabo, Arthur sabia que devia aceitá-lo para dissipar todo receio. Aquele compromisso era uma prova de lealdade. Tratava-se tanto de assegurar a felicidade de Anna como de provar sua aliança. Sua consciência liberava uma batalha com sua noção do dever, mas não durou muito. Não tinha outra opção. As espadas estavam em alto. Não podia pensar em quanto o odiaria Anna quando averiguasse a verdade.
—Será uma honra tomar lady Anna como esposa.
Talvez o pior fosse que, em realidade, dizia a sério.
Capítulo 19
Anna tinha tudo o que queria. Por que se sentia então tão miserável? Tinha passado uma semana desde dia em que seu pai anunciasse por surpresa o compromisso em sua câmara. Uma vez reposta da comoção, casar-se com o homem que amava… era algo que a deixava em um estado de euforia. Nada poderia fazê-la mais feliz. Exceto, talvez, a notícia de que Bruce decidisse que a coroa não lhe pertencia e desaparecesse nas ilhas Ocidentais como tinha feito anteriormente. Mas faltava muito ainda para que se cumprisse esse sonho.
Enquanto ela estava mais que entusiasmada, Arthur dava a impressão de ter que suportar uma pesada carga. Desde aquele dia se comportava com uma correção irrepreensível, cortês durante as refeições e também nas poucas ocasiões em que se cruzavam os caminhos de ambos. Inclusive permitia que Escudeiro o seguisse em qualquer parte sem queixar-se. A simples vista era o perfeito prometido, mas esse era o problema, que somente era a simples vista. Sua formalidade, esse distanciamento progressivo, reduzia sua felicidade ao mínimo. Cada vez que dizia: «Tivestes bom dia hoje, lady Anna?» ou: «Gostaria de outra taça de vinho, lady Anna?», provocava uma ferida diminuta em seu coração. Não podia entendê-lo. Segundo ele mesmo admitia, lhe importava. Então por que não se dava conta de que aquilo seria perfeito para ambos?
À medida que passavam os dias custava mais convencer-se de que isso era o que ele queria. Afastava-se dela por muitos momentos. Algo lhe pesava. Estava uma semana mais perto do final da trégua, já que os idos de março se aproximavam com presteza, mas sua crescente ansiedade se deixava ver em todo momento e não parecia que fosse por causa da batalha em floração. Gostaria que confiasse nela, mas rechaçava qualquer intento de diálogo, embora tampouco contavam com muitas oportunidades. Além dos breves intercâmbios das refeições, a única vez que tinha procurado sua companhia fosse poucos dias atrás, quando insistiu em acompanhá-la ao priorado do Ardchattan. Não esperava nenhuma missiva, assim não tinha nada que lhe ocultar. Talvez seu pai não pusesse já objeção alguma a que contasse a Arthur qual era seu papel na transmissão das mensagens. O compromisso parecia eliminar todas as suspeitas que ficassem em relação aos Campbell. À medida que se aproximava a guerra e que se intensificavam as preparações para a batalha, os Campbell passavam mais tempo junto a John de Lorn e de Alan, algo que Anna queria identificar como um sinal do degelo dessa geleira que significavam as velhas rixas.
Suspirou e passeou o olhar ao redor do aposento, enquanto sua criada terminava de lhe arrumar o cabelo. Era o sexto dia de agosto, um dia mais perto do fim da trégua. Ao olhar pela janela de sua câmara na torre viu um birlinn deitando a baía, o maior porto de ancoragem do castelo. Era um acontecimento habitual, algo que não teria chamado sua atenção a não ser pela rapidez a que se deslocava. O reluzente navio de madeira mal tinha chegado à borda quando seus ocupantes saltaram pela amurada e correram para as portas da fortaleza. O coração lhe deu um tombo, consciente de que algo estava passando. Sem incomodar em por o véu, baixou a escada da torre correndo e se apresentou no pátio de armas ao mesmo tempo que seu pai recebia ao contingente de homens do birlinn: os MacNab.
—Que novas trazem? —perguntou seu pai.
O rosto do capitão dos MacNab era desolador.
—O rei Hood, milorde. Está a caminho.
Anna ficou sem fôlego, seu sangue congelado pelo medo. Chegava o momento, o dia que tanto tinha temido e desejado ao mesmo tempo. A batalha que poderia significar o fim da guerra.
O castelo era um tumulto. Os guerreiros, agrupados, pareciam comovidos pela excitação, ansiosos pela oportunidade de destruir ao inimigo. Não obstante, as poucas mulheres que rondavam por ali tinham umas reações muito diferentes: preocupação e medo, exatamente o mesmo que sentia Anna. Seu olhar procurou Arthur de maneira instintiva. Também lhe afetavam as notícias. Observava-a com uma intensidade ardente que não via nele desde o ataque da floresta. Ficaram-se olhando uns instantes até que Arthur voltou o olhar para os MacNab.
O pai de Anna fez passar aos recém chegados ao grande salão. Anna os seguiu, ansiosa por saber tanto como pudesse. Infelizmente, os MacNab não tinham muita mais informação. Um de seus rastreadores lhes alertou de que Bruce tinha saído do castelo do conde de Garioch em Inverurie com tropas de ao menos três mil homens e se dirigia para o oeste. Três mil homens contra os oitocentos de seu pai! Não obstante, não sabiam se tinham intenção de dirigir-se primeiro ao Ross ou ao Lorn.
Bruce não perdia tempo. Estaria preparado para atacar assim que expirasse a trégua. Por Deus bendito, aqueles bárbaros estariam chamando a suas portas para a semana próxima.
Sua mãe e suas irmãs se apressaram a baixar ao salão para ouvir a comoção. Ao encontrar-se com ela depois da multidão, perguntaram-se pelo que acontecia. Anna as pôs em dia rapidamente e viu seu próprio medo refletido na inquietação de seus rostos. Era um dia que todos esperavam, mas então quando começavam a dobrar os sinos.
—Tão logo? —disse sua mãe, presa do medo — Mas se apenas acaba de se recuperar.
—Não lhe acontecerá nada, mãe — repôs Anna, tentando convencer-se também a si mesmo.
Mas não era seu pai o único que preocupava a Anna. O que aconteceria…? Não, não podia pensar nisso. Arthur retornaria. Tudo estariam logo de volta. Não obstante, a incerteza não se desvanecia. A arbitrariedade da guerra, isso era precisamente o que Anna sempre tinha desejado evitar. Por que tinha que apaixonar-se por um cavalheiro?
A reunião durou um momento mais. Ao entrar no salão perdeu a pista de Arthur e seus irmãos, mas assim que o bate-papo derivou para uma missão de reconhecimento, viu-o adiantar-se para a mesa de cavalete do estrado no que seu pai estava sentado junto a alguns de seus homens e o capitão MacNab. Quando Anna adivinhou o que estava a ponto de fazer lhe gelou o coração. Quis chamá-lo, lhe dizer que não o fizesse, mas era consciente de que isso era impossível, e Arthur fez justamente o que ela pensava.
—Eu irei, milorde — disse.
John de Lorn olhou para ele e assentiu, obviamente agradecido de que se apresentasse como voluntário. Alan também se ofereceu a ir, mas seu pai se negou, alegando que o necessitariam no castelo. Ao final, decidiu-se que seu irmão Ewen lideraria o grupo de reconhecimento, que também incluía os irmãos de Arthur.
Não perderam tempo. Em pouco menos de uma hora já estavam reunidos no barmkin para partir. Anna ficou ali de pé junto a sua mãe, sentindo-se como se estivesse dando voltas em um redemoinho sem nada ao que agarrar-se. Observava com o coração em um punho como Arthur se preparava para a marcha. Este acabou de assegurar seus pertences ao cavalo, tomou as rédeas e se situou ao pé do animal, disposto a montar. A Anna deu um tombo o coração. Acaso pretendia partir sem lhe dizer adeus?
Se essa era sua intenção, deveu mudar de idéia. Deu as rédeas a um dos cavalariços e se voltou para dirigir-se para ela. Tinha a mandíbula tão tensa como os ombros, como se temesse enfrentar-se com algo desagradável. «Eu», pensou Anna, sentindo uma pontada no peito.
—Lady Anna — disse Arthur com uma leve inclinação da cabeça.
A mãe e as irmãs deram a volta sem muita sutileza protegendo-os quanto podiam do resto da multidão para lhes dar um pouco de privacidade. Mas Anna seguia sendo plenamente consciente de que não estavam sozinhos.
—Têm que partir?
Odiou a si mesma por perguntar, mas não pôde evitá-lo. Sabia que esse era seu trabalho, mas não queria que partisse. Sempre seria assim?
—Sim.
Houve uma pausa tão larga que pareceu definitiva.
—Quanto tempo estará fora?
Seus olhos brilharam de um modo estranho, mas o brilho desapareceu antes que Anna pudesse reconhecer sua origem.
—Depende do rápido que se aproxime o exército. Um par de dias, talvez mais.
Ela ficou olhando seu bonito rosto, tentando memorizar as duras linhas de seus traços, as cicatrizes, o estranho dourado ambarino de seus olhos.
—Tomará cuidado?
Era uma pergunta estúpida, mas tinha que fazer de todas formas. Um simulacro de sorriso apareceu nas comissuras da boca de Arthur.
—Sim.
Manteve-lhe o olhar durante um instante mais, como se também ele tentasse retê-la na memória. Ela nunca tinha visto tal expressão de desconsolo em seu rosto. Um calafrio de pavor percorreu sua nuca. «É a guerra — disse — Está centrado na batalha que tem diante de si.»
Arthur tomou sua mão e a levou aos lábios fazendo que a estampagem cálida de seus lábios irradiasse por toda sua pele.
—Adeus, lady Anna.
Algo no tom de sua voz lhe rasgou o coração. Quando ele se voltou para partir, Anna ficou com vontade desesperada para voltar a chamá-lo. «O tipo de homem que está sempre olhando para a porta…» Não. Convenceu a si mesma de que se comportava como uma parva. Não a estava abandonando. Simplesmente estaria fora uns dias. Mas por que lhe parecia que aquela despedida era para sempre?
Então, como se não pudesse conter-se, Arthur deu meia volta, agarrou-a pelo queixo e baixou a cabeça para beijá-la. Seus lábios acariciaram os de Anna em um suave e terno beijo que fez vibrar seu coração. Aquele beijo tinha sabor de nostalgia. A dor. E a arrependimento. Mas sobre todas as coisas, tinha sabor de despedida. Anna queria prolongá-lo, queria que durasse mais, mas antes que lhe desse tempo a reagir, o beijo tinha acabado. Arthur lhe soltou o queixo, manteve o olhar por um segundo agonizante e partiu. Não voltou a olhar atrás. Nenhuma só vez. Ela ficou olhando sua partida, aniquilada, sem saber muito bem o que tinha ocorrido. Permaneceu tocando os lábios em uma tentativa de apreender o calor e seu sabor por tanto tempo como fosse possível. Mas antes que o último dos homens saísse pelas portas do castelo esse calor já era história.
Arthur procurava uma saída e ao fim a tinha encontrado. A viagem de exploração em volta do Este lhe dava a oportunidade de fazer algo que meses atrás parecia impossível: retirar-se da missão. Tinha que fazer algo. Não podia ficar ali e deixar que a situação piorasse. Os dias seguintes a seu compromisso tinham sido insuportáveis. Fingir acabaria com ele. Anna estava tão feliz, tão encantada de casar-se com o homem que a trairia… Cada sorriso indeciso, cada olhar em busca de um consolo que ele não podia lhe oferecer, era como uma gota de ácido que remoia sua consciência. Não era capaz de fazer isso. Embora significasse sacrificar sua missão. O irônico era que não podia ter escolhido maneira mais efetiva de infiltrar-se nos MacDougall que um compromisso com a filha do senhor das terras. O compromisso, unido ao feito de salvar a vida de Alan, deu-lhe acesso ao centro nevrálgico do poder: o conselho de nobres. Dizia a si mesmo que não sacrificava sua missão. Fazia suficiente identificando às mulheres como as transmissoras de mensagens, passando informação sobre a preparação e efetivos do MacDougall e entregando um mapa do terreno, assim como evitando uma aliança com o Ross, embora isso não ocorresse exatamente da maneira em que o tinha planejado. Estavam nas vésperas da batalha. O rei Robert entenderia.
Tinham passado três dias de sua desastrosa partida e caía a madrugada. Nunca acreditou que lhe custaria tanto despedir-se dela. Mas partir de seu lado, sabendo que possivelmente não a veria de novo, fez-lhe perder toda determinação. Não deveria tê-la beijado, mas ao olhar seus olhos e ver esse rosto de medo e preocupação, não pôde resistir. Era consciente de que jamais voltaria a ter essa sensação de conexão absoluta e precisava desfrutar dela uma vez mais.
Arthur olhou a retaguarda para assegurar-se de que ninguém o tinha seguido e atou o cavalo a uma árvore. Encontrava-se a menos de dois quilômetros do lugar onde os homens de Bruce tinham acampado a noite anterior. Faria o resto do trajeto a pé. Era provável que a essa hora da madrugada os sentinelas disparassem contra tudo que se aproximasse do acampamento sem fazer perguntas e o cavalo o delataria. Seus sentidos se aguçavam à medida que se aproximava do acampamento do rei, antecipando-se a qualquer sinal que delatasse a presença da Guarda que o circundava. Arriscava-se muito chegando sem prévio aviso, mas não havia alternativa. Não tinha tido tempo de combinar um encontro ou enviar uma mensagem a guarda, e a partida de reconhecimento dos MacDougall se preparava para retornar ao castelo de Dunstaffnage ao dia seguinte com o relatório. Ofereceu-se voluntário para fazer patrulha de noite, consciente de que essa seria sua única oportunidade. Sabia que Chefe teria a um dos membros dos Guardiões das Highlands fazendo turno de vigilância, como cada noite, assim tentaria contatar primeiro com algum de seus companheiros.
De repente sentiu um comichão na nuca. Deteve-se o notar a estranha mudança de ar que percebia cada vez que alguém se aproximava. Escondeu-se entre a escuridão da noite e esperou, sabendo de que antes de ver quem se aproximasse o ouviria chegar. Mas passados uns minutos percebeu de que algo não funcionava. Ou o homem se deslocou ou suas habilidades voltavam a falhar.
De novo.
Mas quando conseguiu ver a figura que emergia depois de uma árvore a pouco mais de cinco metros de distância percebeu de que havia uma terceira resposta: o sigilo daquele homem igualava suas capacidades perceptivas. «Maldição.» Não era isso o que necessitava. Emitiu o uivo que iria identificá-lo como presença amistosa. Não obstante, suspeitava que o homem que se aproximava podia ter uma opinião diferente a respeito.
MacRuairi ficou imóvel e apesar da contra-senha apontou com seu arco na direção da que provinha sua voz.
—Quem vem?
—Guardião - respondeu Arthur levantando o visor de aço de seu elmo e saindo de trás da árvore que o resguardava.
Inclusive na escuridão, apreciou o brilho diabólico nos olhos entreabertos do MacRuairi, que deslocou o braço para a esquerda para lhe apontar entre as sobrancelhas. MacRuairi possuía uma habilidade extraordinária para ver na escuridão, algo fatal de lembrar-se justo nesse momento.
—Ides fazer uso da arma? —disse Arthur.
—Ainda não decidi. Uma morte não me parece muito comparada com nove. Poderia alegar que pensei que era um traidor, o qual não estaria muito longe da verdade.
Arthur engoliu a grosseira réplica que foi a seus lábios. Saber que merecia o menosprezo daquele homem, mas não facilitava o fato de ouvi-lo. Ignorou a flecha que lhe apontava e seguiu adiante.
—Acha que não me arrependo do que aconteceu?
—Arrepende-te? Pois te asseguro que não saberia o que te dizer. Parecia desfrutar lutando junto a Alan MacDougall, por não mencionar que salvou sua puta vida.
Apenas os separavam alguns metros, mas MacRuairi não teria errado o tiro nem a centenas de metros de distância.
—Responderei ante o rei e não ante você, Víbora. Tenho que falar com ele.
—Está dormindo.
Arthur apertou os dentes e os punhos. Brigar com o MacRuairi não solucionaria nada, mas não tinha tempo para tolices.
—Pois então terá que despertá-lo. E também a meu irmão.
Ao final, MacRuairi optou por baixar o arco.
—Espero por seu bem que tragas boas notícias - disse, fulminando-o com o olhar — E será melhor que tudo aquilo valha a pena.
Tinha valido a pena? Arthur não teve tempo de pensar nesses termos naquele momento. Não teve tempo de fazer esse tipo de análise. Estava muito ocupado em defender-se e proteger a Anna.
Menos de quinze minutos depois o fizeram passar à tenda do rei. Se Bruce estava dormindo, não havia nada em seu rosto que indicasse que acabava de despertar. Levava seus escuros cabelos penteados, tinha os olhos tão limpos e chicoteados como sempre, além de ir vestido com as perneiras e uma sobreveste negra de finos bordados.
Estava sentado sobre uma arca. A ausência de mobiliário concordava com a ligeireza e a rapidez com as que se deslocava o exército. Ao rei Eduardo nem sequer teria passado pela cabeça fazer campanha sem carregar em seus carros seu equipamento doméstico e sua baixela. Mas detrás de viver como um foragido durante um ano aquartelado entre o povo, Robert Bruce havia se acostumado a contentar-se com muito menos.
A sua esquerda tinha ao Neil, ao qual se via um tanto mais desalinhado, e à direita ao Tor MacLeod, líder dos Guardiões das Highlands. Tanto a expressão deste como a do próprio rei eram desalentadoras. A pergunta que Arthur adivinhou no olhar de seu irmão cortava como uma faca. Seria possível que questionasse sua lealdade?
—Que diabos ocorreu, Guardião? —perguntou o rei.
Arthur narrou da maneira mais sucinta possível os eventos que levaram a sua inesperada viagem ao norte, o compromisso de bodas previsto entre a filha de Lorn e sir Hugh Ross, as esperanças de unir forças de Lorn e a intenção de Arthur de evitar que a aliança se levasse a cabo.
—Conseguiram-no? —perguntou Bruce.
Arthur manteve uma expressão neutra.
—Sim, majestade.
O rei assentiu, agradado. Nenhum dos pressente pareceu perguntar a respeito de como o tinha conseguido. Arthur continuou explicando como tinha obtido que a patrulha se desviasse do grupo dos MacDougall em seu caminho ao norte e afirmou que se viu obrigado a defender-se para proteger sua identidade.
—Assim foi você? —disse MacLeod — Nossos homens do castelo do Urquhart estavam muito zangados porque um só homem conseguisse escapar deles.
—Não de tudo. Oxalá tivesse podido, mas me encurralaram em um escarpado. Não podia lhes contar quem era.
Ninguém disse uma palavra. Todos sabiam tão bem como ele que essas situações eram inevitáveis para preservar sua identidade, mas a nenhum deles gostava.
Depois Arthur passou a explicar a forma em que MacRuairi e seus homens o tinham surpreendido quando voltavam para o Dunstaffnage.
Neil arqueou as sobrancelhas.
—Não os ouviu chegar?
Arthur negou com a cabeça sem dar mais explicações. Referiu a princípio, simplesmente reagiu ao ataque e que depois, ao se dar conta de quem eram, passou a manobras defensivas. Quando chegou à parte em que salvou a vida do Alan MacDougall não ofereceu mais desculpa que a verdade. Somente tentava deter o golpe, matar ao guerreiro fora um acidente.
Neil fez a pergunta que sem dúvida rondava as cabeças de todos eles.
—Mas por que teria que lhe salvar a vida? Proteger ao herdeiro de Lorn não era parte de sua missão. Assassinar a ele seria quase tão bom como assassinar ao próprio Lorn.
Arthur olhou a seu irmão nos olhos sem fugir a verdade.
—Não tentava protegê-lo.
—É pela moça —disse MacLeod, juntando todas as peças — Sente algo por ela.
Arthur se voltou para seu capitão. Não o negou.
—Sim.
—A filha de Lorn! —exclamou Neil sem poder ocultar sua indignação — Maldição, irmão. No que estava pensando?
Arthur não tinha uma resposta para isso. Não havia.
—O que estais dizendo, Guardião? —disse o rei com olhos negros tão duros como o ébano — Uma moça o tem feito esquecer em que lado está?
—Minha lealdade está contigo, meu senhor - disse Arthur com firmeza.
Mas o dardo envenenado do rei ardia.
Neil ficou olhando-o fixamente.
—Mudaste de ideia respeito ao Lorn? Esquece-se do que fez a nosso pai?
Arthur endureceu a expressão de seu rosto.
—É obvio que não. Mas minha vontade de ver a destruição do John de Lorn não se faz extensiva a sua filha. Por isso estou aqui. Preciso sair do castelo de Dunstaffnage.
A sala ficou em um silêncio sepulcral. Arthur notava que o olhar fixo de seu irmão queimava, mas não se atrevia a olhar em sua direção. Tinha falhado. Tinha falhado ao homem que era como um pai para ele. Não queria ver a decepção em seu rosto.
—Está em uma situação comprometida? —perguntou o rei — Há perigo de que o descubram?
Arthur negou com a cabeça.
—A moça sabe que oculto algo, mas não acredito que suspeite de nada.
—Então é a moça a causa de que desejes abandonar a missão antes de cumpri-la?
—A coisa se complicou.
Consciente de quão insuficiente parecia isso, inclusive para si mesmo, explicou que Lorn lhe tinha interrogado sobre o ataque e acrescentou que ao acreditar que o ancião suspeitava algo, viu-se obrigado a aceitar o compromisso.
—Mas isso são notícias fantásticas - disse o rei, contente pela primeira vez desde que Arthur entrasse na tenda — chegastes mais perto de Lorn do que jamais acreditei possível. Sinto muito que a moça esteja implicada, mas não sofrerá verdadeiro dano. O coração de uma jovem sara com facilidade.
Para falar a verdade, o rei, conhecido por seu êxito com as moças, tinha muita mais experiência que ele, mas nesse caso Arthur não acreditava que acertasse. Anna amava com muita bravura. Estava muito cega pelo amor.
—Não posso permitir que abandone —finalizou o rei — Ainda não. Não tendo a batalha tão perto. Necessito-te dentro para que me digas o que é o que se propõem. A informação que nos transmite é muito valiosa. A vitória está muito perto para deixá-la escapar no último momento. John de Lorn é um demônio com o coração podre, mas não por isso subestimo suas táticas de guerra nem sua capacidade para a surpresa.
Arthur sabia que o rei não atenderia a razões. Robert Bruce estava desejando desforrar-se. Lorn o tinha vencido antes e essa vez não permitiria que nada se interpusesse em seu caminho. O coração de uma mulher era um pequeno preço a pagar.
—Atacaremos o castelo na madrugada do dia dezesseis —disse MacLeod, dando a impressão de advertir sua frustração — Só serão alguns dias mais.
Mas ele não conhecia Anna MacDougall. Arthur teria preferido enfrentar-se às endiabradas máquinas de guerra do primeiro rei Eduardo que tentar resistir diante de Anna durante «somente uns dias mais».
C O N T I N U A
Capítulo 11
Anna jogou o capuz para trás ao mesmo tempo que entrava na câmara de seu pai. Soltou a cesta na mesa e se sentou juntou a este e sua mãe ao calor das brasas da lareira. Inclusive no verão, os muros de pedra do castelo faziam dele um lugar frio e com correntes de ar.
Sua mãe levantou a cabeça do novo estandarte de seda no qual trabalhava e a olhou, sentida saudades.
—De onde vem, Annie querida? É tarde.
—Fui levar bolos aos monges do priorado —respondeu Anna inclinando-se para beijar sua mãe.
Encontrou-se com o olhar de seu pai. A expressão deste se escureceu ao ver respondida sua tácita pergunta com uma leve negação de cabeça. Tossiu antes que sua esposa pudesse fazer mais objeções. Embora Anna soubesse que o fazia e que propósito, aquele áspero e úmido som a preocupava.
—Não me falou de uma nova infusão de ervas do pai Gilbert que ajudaria a aliviar o encharcamento de meus pulmões?
Sua mãe se sobressaltou, afastou seus bordados e ficou em pé de repente.
—Tinha esquecido. Direi ao Cook que o prepare agora mesmo.
Assim que a porta se fechou atrás dela seu pai disse:
—O rei Eduardo não respondeu?
Anna negou com a cabeça.
—Já deveríamos ter notícias dele.
Seu pai se levantou e começou a perambular diante da chaminé, enfurecendo-se mais a cada passo que dava.
—Esses asquerosos rufiões de Bruce devem tê-lo interceptado. Parece que a metade de nossas mensagens não chega a seu destino, nem com a ajuda das mulheres — disse apertando a mandíbula — Mas dado que não ouvimos nada sobre o destacamento de soldados, acredito que podemos supor que não enviarão a ninguém. O jovem Eduardo está muito ocupado tentando salvar sua própria guarida para preocupar-se com a nossa.
Anna não podia acreditar que depois de tudo o que tinha feito seu pai pelo primeiro rei Eduardo, o novo rei o abandonaria de tal modo.
«Que se deita com crianças…»
Veio a sua mente essa velha história, mas Anna a tirou da cabeça porque em certo sentido lhe parecia desleal. Seu pai não teve outra opção. O primeiro rei Eduardo era muito poderoso. Depois da derrota de Wallace em Falkirk, ou se fazia aliado do rei inglês ou lhe confiscavam as terras. Quando Bruce usurpou a coroa, a aliança se fez mais necessária ainda. Se Bruce e os MacDonald estavam em um lado, os MacDougall não podiam mais que apoiar ao outro: Inglaterra.
—Não deveríamos tentar enviar outra missiva?
—Não temos tempo — espetou seu pai, claramente molesto pelo que percebia como uma pergunta estúpida — Os ingleses se movem com lentidão. Demorariam semanas em chegar tão ao norte carregando toda essa baixela e esses móveis para estar cômodos. Inclusive no caso de que Eduardo mudasse de opinião, necessitaria dias para reunir aos homens. O rei Hood estaria aqui junto a sua tropa de assassinos salteadores de caminhos antes que aos ingleses desse tempo de encher seus carros de ninharias.
Anna tentava não tomar como algo pessoal a cólera do pai. Tinha todo o direito a perder os nervos. O inimigo estava virtualmente em cima e ninguém vinha em sua ajuda. O conde de Ross, igual ao rei Eduardo, ainda não tinha respondido a sua petição de unir forças. Ia ficando patentemente claro que estariam sozinhos ante Bruce: oitocentos homens contra os três mil com que contava o usurpador conforme o informe.
O medo prendia a garganta. Os MacDougall eram ferozes combatentes e Lorn um dos melhores generais de Escócia na batalha, mas poderiam superar tal desvantagem? Seu pai estivera a ponto de derrotar ao Bruce anteriormente, mas então o rei foragido teve que fugir com umas poucas centenas de homens ante suas mais numerosas forças. Nessa ocasião seriam os MacDougall quem estaria em clara inferioridade numérica. «Pouco importa», pensou Anna com integridade. Seu pai ganharia de todos os modos. Somente um MacDougall valia por cinco rebeldes. Mesmo assim, por mais vezes que se dissesse que John de Lorn superaria inclusive a pior das apostas, seu leal coração não podia negar que existia a mais mínima, a ínfima possibilidade de que perdessem.
«Perder.»
Um calafrio lhe percorreu o corpo. Somente pensar nessa palavra lhe parecia a mais vil das blasfêmias. Não podia permitir que isso ocorresse. As conseqüências eram muito execráveis para as considerar. Mas tudo aquilo que apreciava, todas suas esperanças de um futuro feliz, parecia pender sobre a ponta de um alfinete, ou, neste caso, de uma espada. O mais leve empurrãozinho faria que tudo se precipitasse no vazio. Os grossos muros do castelo de repente lhe pareciam finas vidraças, dispostas a romper-se em mil pedaços. Sua situação era complicada, inclusive até desesperada. Contudo, havia um modo de conseguir atenuá-la um pouco.
O tempo pareceu deter-se. O pavor se apoderava de seu estômago em um tenso nó e o formigamento que isso provocava aumentava à medida que Anna via do que seria obrigada a fazer. A solução espreitava no mais profundo de sua mente desde fazia meses, mas não queria considerá-la.
Anna se aferrou às abas de sua capa como se fossem uma corda a qual pudesse agarrar-se.
—E o que passa com Ross? —perguntou em voz baixa — Ainda fica tempo para que se apresente.
Seu pai a olhou com certo desdém.
—Sim, mas como digo já, não o fará.
Era reprovação o que advertia em seu olhar? Acaso se arrependia de ter dado opção? Anna aspirou profunda e entrecortadamente em uma tentativa de controlar o ritmo frenético de seu pulso. Sua gelada pele se cobriu com uma fina pátina de suor. O peito lhe oprimia tanto que mal podia respirar. Todo seu ser se rebelava contra o que estava a ponto de sugerir. Mas não ficava alternativa. Um marido era um pequeno preço a pagar em comparação com a sobrevivência de seu clã. casaria-se até com o mesmo diabo se fosse necessário.
—E se lhe desse um motivo para pensar melhor? —Seu pai a olhou nos olhos. Anna soube que tinha adivinhado o que sugeria pelo ar de reflexão que adotou seu olhar, embora talvez isso fosse o que ele esperava dela de um princípio — O que passaria se fizesse um rogo pessoal ao conde?
Teve que deter suas palavras. Seus dedos agarravam a lã da capa com tanta força que cortava a circulação. O coração pulsava a um ritmo frenético e martelava em suas têmporas. O estômago se decompôs. «Tudo irá bem. Eu me encarregarei de que funcione. Não é um homem tão temível.» Sir Arthur era alto, musculoso, de uma beleza sombria e, não obstante, nunca ficava nervosa em sua presença. Talvez tivesse superado seu medo aos guerreiros.
«Sir Arthur.» O coração deu um tombo. A imagem do cavalheiro apareceu ante seus olhos, mas a afastou de sua mente. Não significava nada para ela. Pouco importava que seu coração tivesse querido voar para ele momentaneamente. Embora as coisas fossem diferentes, ele já tinha expressado com uma claridade dolorosa o que sentia por ela: nada.
Mas teria que passar toda a vida tentando esquecer aquele beijo.
Seu pai esperava que continuasse, mas Anna não era capaz de encontrar as palavras.
—O que aconteceria…? —Anna teve que se deter para clarear a garganta — Se a oferta de sir Hugh segue em pé, estou disposta a aceitar sua proposta de matrimônio. Em muda, talvez o conde veja o benefício de unir nossas forças.
Seu pai não disse nada durante um momento, mas sim ficou estudando seu rosto com uma intensidade tal que a Anna pareceu estar retorcendo-se em seu interior.
—Crê que seguirá te querendo? Não teve nenhuma graça que o rechaçasse.
Ardiam-lhe as bochechas de vergonha de não ter parado pra pensar nessa possibilidade. Seu pai tinha razão. O jovem cavalheiro, ferido em seu nobre orgulho pelo rechaço, ficou uma fúria.
—Não sei, mas merece a pena tentar.
Já tinham machucado seu orgulho há pouco. O que importava um pouco mais ou menos?
—A sua mãe não gostará da idéia — disse John de Lorn olhando para a porta — Os caminhos podem ser muito perigosos com Bruce e seus homens por aí soltos.
Nisso tinha pensado Anna.
—Não se preocupará se Alan me acompanha. Levaremos uma boa escolta.
Seu pai assentiu enquanto acariciava o queixo.
—Sim. Seu irmão te manterá a salvo — disse com um sorriso, enquanto ela tentava mascarar seu desengano. Havia uma parte de Anna que esperava que seu pai se negasse. Este se levantou e a beijou no cocuruto — É uma boa garota, Annie querida.
Em geral Anna transbordava de alegria quando seu pai lhe dirigia um elogio, mas nessa ocasião teve vontade de chorar. Sua felicidade era um pequeno preço a pagar, mas, mesmo assim, era um preço a pagar. Seu pai a beliscou no queixo para que o olhasse os olhos. Anna piscou diante da cálida e úmida bruma do lar.
—Sabe que não lhe pediria isso se tivesse uma alternativa.
Uma solitária lágrima escorregou por sua bochecha. Tremia-lhe a boca, mas se esforçou por sorrir.
—Sei.
Naquele momento supunha que era sua única esperança. Não importava quão mau parecesse. Faria tudo o que estivesse em sua mão para assegurar a aliança.
De todos os modos tampouco havia ninguém que se interessasse por ela.
Entretanto, quando Anna abandonou os aposentos de seu pai, todas essas lágrimas que estivera agüentando saíram precipitadas em uma corrente de esperança extinta, uma esperança que nem sequer era consciente de estar albergando.
A volta de Arthur ao castelo, sozinho, não foi tão difícil de explicar como imaginava. Lorn estava ansioso por ouvir um relatório do que seu filho tinha descoberto a respeito de seus inimigos do oeste. A luta pela supremacia entre os três principais ramos dos descendentes de Somerled, os MacDonald, MacDougall e MacRuairi, levava anos dominando a política das Highlands Ocidentais. Quando morreu o último dos chefes do clã MacRuairi, deixando a sua filha Christina das Ilhas como única herdeira ao trono, estes perderam poder e o terna se reduziu a dois. Lachlan e seus irmãos eram todos filhos bastardos, um título que em seu caso era completamente castigo.
A informação de Ewen oferecida por Arthur a respeito da mobilização de tropas dos MacDonald ao longo da costa ocidental não era nada surpreendente, mas mesmo assim provocou um substancial arrebatamento de fúria no Lorn, e também inquietação, apesar de que procurasse ocultá-lo. Embora talvez não tanta como devesse, o qual o fazia perguntar-se o que teria planejado aquele conspirador briguento. E agora, graças a seu descobrimento no priorado, sabia perfeitamente como averiguar.
Mas como sua volta ao castelo foi em uma hora tardia, sua reunião com lady Anna teria que esperar até a manhã seguinte. dizia a si mesmo que estava inquieto simplesmente porque teria que encontrar um motivo para algo que seria como uma mudança de parecer repentino: em lugar de evitá-la, inventaria desculpas para estar com ela. Mas tampouco queria dar falsas esperanças à moça. Apesar de ter cometido o engano de beijá-la, e Deus, um enorme engano tinha sido aquele, uma relação entre eles era algo impossível. Sabia que não seria fácil. Certamente a moça teria passado toda a semana pensando naquele beijo. Deus sabia que ele mesmo não tinha sido capaz de pensar em outra coisa.
Embora já tinha visto ela cruzando o jardim de Ardchattan, quando a viu entrar no grande salão na manhã seguinte seus sentidos se avivaram como se fosse a primeira vez. Tudo parecia estar mais vivo, mais intenso. Jamais antes o tinha afetado tanto a presença de alguém como fazia nesse momento lady Anna MacDougall. encantou-se dela, de cada um dos detalhes, de cada matiz, das mechas de cabelo dourado que escapavam de seu véu azul à altura da fronte e as têmporas até os finos bordados de seda do cotehardy que rodeava sua figura em todos os lugares apropriados.
«Não…»
Deixou cair o olhar sobre seus seios. Ficou com a boca seca. Via, embora fossem imaginações dele, o mal esboçado relevo de seus mamilos perolando essa parte do tecido. Assaltaram-lhe as lembranças e uma onda de calor saiu de sua virilha. Pensar no tato daquela exuberante suavidade fez que endurecesse seu pau. Que impressionante tinha sido embalar esse seio, sentir o peso dessas carnes perfeitamente arredondadas sobre a palma de sua mão ao mesmo tempo que seu polegar acariciava o teso broto de seu mamilo. Amaldiçoou para si, subitamente incomodado por aquelas lembranças, muito viscerais, em conjunto.
Estava quente. Excitado. Faminto.
Como demônios ia olhar a moça sem lembrar-se das sensações que procurava ter seu corpo pego ao dela? Como poderia ver o sensual arco rosado de sua boca sem recordar quão doce sabor, a suavidade daqueles lábios sob os seus, e que o erotismo de suas línguas entrelaçadas o tinha feito entrar em um torvelinho de desejo mais forte que qualquer outra coisa que houvesse sentido alguma vez? Jamais poderia olhar essa pálida pele suave como a de um bebê, que era como veludo ao tato, sem recordar como a havia tocado.
Deus, quão único queria era atirá-la na cama, enrolar suas pernas a sua cintura e afundar até esquecer-se de tudo. Jesus, tinha que deixar de pensar nisso. Tinha que parar de torturar-se com coisas impossíveis. Sempre tinha sido capaz de reprimir seus impulsos, mas com a Anna era diferente.
Porque ela era diferente. E não fazia nenhuma graça reconhecê-lo.
Arthur se dava conta de como o observava seu irmão, mas não podia afastar o olhar. Seu coração pulsava mais depressa a cada passo que ela dava e cada um de seus nervos ficava em tensão enquanto se preparava para o momento em que ela se inteirasse de sua presença. Mas assim que a teve mais perto percebeu uma estranha pontada. Algo não ia bem.
Não sorria. Seus olhos não brilhavam com alegria e travessura. E sua risada, esse leve e efervescente som ao que poderia ouvir durante horas, permanecia em completo silêncio. acostumou-se tanto a seu perpétuo bom humor, ao despreocupado encanto com o que parecia iluminar os aposentos, que o vazio deixado por sua ausência obscurecia o grande salão.
Maldição. teria feito mais dano de que pensava? A culpa o atormentava.
Por um instante pensou que passaria junto a ele, mas então notou o peso de seu olhar. ficaram contemplando o um ao outro. A quietude era absoluta.
Esperou ver sua reação. Esperava presenciar como a cor subia por suas bochechas, como lhe cortava a respiração e se acelerava o pulso em seu pescoço. Esperava que se delatasse. Mas em vez disso ficou em guarda.
Lady Anna levava todos seus pensamentos e sentimentos escritos no rosto. Essa era uma das coisas que Arthur encontrava tão cativantes e irresistíveis dela. A inocência e a emoção infantil que mostrava, sua preciosa vulnerabilidade. Mas essa expressão, antes sempre acessível, permanecia oculta.
Percebeu a frieza de seu olhar por um breve instante dantes que afastasse e passasse por ele. Como se tivesse deixado de existir. Como se ela jamais se derretera em seus braços. Como se o beijo no que não podia deixar de pensar jamais existira para ela. Como se não tivesse estado a ponto de sucumbir sob seu corpo.
Sua indiferença lhe corroía o peito como se de um ácido se tratasse. Queimava. Doía. O fazia perder o controle por completo, sentir a necessidade primitiva de cometer alguma loucura, como empurrá-la contra a parede e beijá-la até que se rendesse a seus pés uma vez mais.
Mas ele era um homem que mantinha o controle. refreava-se. Era diferente. Não tinha necessidades de tal tipo. E entretanto, com um só olhar de frieza, Anna MacDougall conseguia tirar dele os impulsos bárbaros que levava no sangue.
Ao que parecia tinha conseguido seu objetivo. Seu cruel rechaço sortia efeito. Não deixava de ser irônico que se mostrasse indiferente justo quando ele desejava que não fosse assim. Ou pode ser que nunca tivesse estado interessada nele. Talvez o único que queria fosse vigiá-lo.
azedou a expressão e se o flexionaram os músculos, mais molesto por esse pensamento do que gostaria de admitir. Por desgraça, seu irmão se mostrava perceptivo. Dugald simulou um calafrio.
—Vá, parece que faz um pouco de frio por aqui. Acredito que a dama já esqueceu o capricho, irmãozinho. Com o tanto que tentou, pensei que estaria mais contente — disse, fazendo uma pausa para negar com a cabeça — Será possível que ao fim te tenha feito cair uma mulher? Acreditava que isso não aconteceria nunca.
Arthur se recostou sobre a parede de pedra que tinha trás de si, aparentando uma indiferença que não sentia. Era certo que gostava dela, mas antes morto que deixar que Dugald conhecesse sua debilidade.
—Não é mais que uma moça apetecível.
—Mais apetecível ainda porque não pode tê-la.
Arthur encolheu os ombros e deu um longo gole a seu cuirm até esvaziar a taça.
—O que eu quero dela não é algo que possa me dar uma inocente jovem da nobreza.
Dugald riu e lhe deu uma palmada no braço.
—Compartilho sua dor, irmãozinho. Eu mesmo estou sentindo um pouco parecido. Sei de uma moça com uma boca talentosa que faria bastante por aliviá-lo. Mandarei a ti.
Arthur desviou o olhar para o tablado em que se acabava de sentar lady Anna. Tentava pelo menos. Tentava. Mas não lhe interessavam as mulheres de seu irmão. Franziu o cenho em um meia sorriso.
—Você compartilhando, irmão? Não parece você mesmo. Mas neste caso não será necessário. Não acredito que tenha problemas para encontrar alívio.
Se quisesse, sabia de algumas mulheres entre as que podia escolher. O problema era que não queria. Ao menos, não com elas.
Dugald encolheu os ombros.
—Como deseje — disse aproximando-se dele com um amplo sorriso — Mas não sabe o que te perde. Essa moça poderia deixar seca a uma vaca com a boca que tem e faz umas coisas com a língua que…
A voz do Dugald se confundiu com o ruído de fundo. As perversas habilidades que pudesse representar a fulana do Dugald não lhe interessavam. Arthur voltou o olhar para o estrado. Ela era quem o interessava, maldita seja. Embora Deus sabia que não deveria ser assim. Mas parecia que Arthur fosse invisível, porque não olhou uma só vez em sua direção. Sua irritação crescia a cada minuto. Aferrava com força a taça de estanho e a enchia uma e outra vez à medida que o ágape avançava. Seu plano para aproximar-se dela seria mais complicado do que pensava, mas acreditava que se livraria dele tão facilmente estava muito equivocada.
«Retornou.»
Anna se rebelou ante o inoportuno desejo que arremetia contra seu peito e se obrigou a não olhar em sua direção. A não pensar nele. Sir Arthur não era para ela. Jamais foi. Seu destino estava concretizado. Já tinha tomado sua decisão. Seu pai e seu clã contavam com ela. Era muito tarde para arrepender-se ou pensar melhor, por mais que vê-lo devolvesse todas essas ingratas emoções de repente em uma pancada.
Como não se fixou nele a princípio, quando nesse momento já não podia ver nenhuma outra pessoa? Aquele orgulhoso jovem cavalheiro de escura beleza era o homem mais bonito de toda a sala. E sem dúvida também o mais forte. Suas bochechas se acaloraram. somente olhar sua figura alta e de largos ombros voltavam as lembranças de seu torso nu. Cada um de seus esculturais músculos. Cada uma de suas rígidas linhas. Cada um dos gramas de sua musculosa carne.
Tentava ignorá-lo, mas sentia o peso de seu olhar enquanto comia. Ou tentava comer, já que tinha a boca completamente seca e a comida lhe parecia insípida e terrosa. Olhava-a com tal intensidade que dava vontade de sair correndo. Algo que fez assim que teve oportunidade.
Anna se apressou a sair do grande salão com mais sentimentos dos que podia albergar, correu pela escadas para sua câmara da torre e ficou a pinçar no armário em busca de sua capa de montaria. Precisava sair dali.
Um dia. Somente tinha que o evitar durante um dia e depois disso partiria. Tinham previsto partir para o castelo de Auldearn, a fortaleza real do conde de Ross, na manhã seguinte. por que não podia permanecer fosse do castelo até que ela partisse? Assim tudo teria sido muito mais fácil.
Em seu desespero por escapar, revolvia os montes de objetos de lã e de seda que penduravam de seu armário sem importar a desordem que criava. Onde estaria?
Estava a ponto de enfrentar o frio matinal e sair de todos os modos quando percebeu de que provavelmente sua criada já teria posto a capa em sua arca para a viagem. Abriu a tampa de madeira e deixou escapar um suspiro de alívio ao ver que a peça de lã axadrezado de cores cinza, azul e verde estava dobrada em cima de tudo. A jogou rapidamente sobre os ombros, agarrou em braços Escudeiro, temendo que o cachorrinho saísse correndo em busca do cavalheiro pródigo, e voltou a descer a escada como um torvelinho. antes de sair ao barmkin olhou pela fresta da porta para assegurar-se de que tinha via livre. Não queria correr nenhum risco de topar com ele. Sabia que aquilo era ridículo. Sir Arthur fazia todo o possível para evitá-la. Mas havia algo na forma em que a tinha olhado durante o café da manhã que chamava à cautela.
Cruzou o pátio e se dirigiu para os estábulos. Uma vez na segurança de seu interior soltou ao revoltoso cão no chão e fez que o cavalariço chamasse Robby enquanto ela preparava os arreios de seu cavalo.
Não tinha nenhum destino em mente, com tal de sair do castelo era suficiente. A impressionante fortificação de pedra e os grandiosos muros do barmkin pareciam muito pequenos de repente. Acabada sua tarefa, dispôs-se a recolher ao Escudeiro do chão quando a porta se abriu e o cachorrinho prorrompeu em uivos e ganidos ao mesmo tempo que saltava de seus braços disparado como uma flecha.
—Merda! —saiu de seus lábios antes que desse tempo a refrear-se.
Não precisava olhar para saber quem era. Se a reação de Escudeiro não dizia, assim fazia seu próprio corpo. O ar mudou. A pele lhe ardia. Seus sentidos despertaram. O aposento esquentou imediatamente e o leve aroma de fragrância masculina se filtrava através dos penetrantes e terrestres aromas do estábulo. Fechou os olhos, rezou uma prece que os céus lhe dessem força e ficou em pé lentamente para enfrentar a ele.
Seus olhares se encontraram. A repentina excitação que a embargou foi como um látego que a chamasse o ordem. Aquela era uma impressão que parecia não diminuir nunca. cortou a respiração, ao mesmo tempo que essa aguda e repentina opressão voltava a lhe envolver o peito e espremê-la. Um irritante acesso de nostalgia se formava em seu interior, mas esmagou com rapidez, sem compaixão. Ele não significava nada para ela. Já não. Não depois do ocorrido nos barracões. A tinha ensinado quão errado era para ela. E mais valia que acreditasse.
Controlou suas feições para fazer delas uma máscara impassível, tirando provisão de cada gota de sangue real que corria por suas veias. Era descendente de reis, tataraneta legítima, seis gerações depois, do poderoso Somerled. Saudou-o com uma ligeira inclinação da cabeça e disse friamente: —Sir Arthur, vejo que retornastes.
Sua tentativa de mostrar-se digna se viu em certo modo arruinado pela tremor de sua voz. Uma coisa era fingir que não lhe afetava sua presença em um salão cheio de gente e outra muito diferente fazê-lo em um pequeno estábulo. A sós. Enquanto ele a olhava dessa maneira tão intensa. Com raiva. Tinha o rosto avermelhado por completo, à exceção das comissuras da boca e de sua palpitante têmpora, que para sua desgraça estavam brancas.
O coração pulsava a toda pressa. Onde estava Iain? A cavalariço já deveria ter retornado.
Arthur pareceu ler sua mente e endureceu o olhar, algo que não fez a não ser enervá-la mais, dado que já era suficiente severo. Não tinha motivos para estar furioso com ela.
—O moço não virá. Disselhe que a levaria aonde precise ir.
Por Deus, isso não! Não queria ir com ele a nenhuma parte. Nem sequer queria o ter perto. Anna ergueu o queixo, negando-se a que a intimidasse a sensação de perigo que lhe transmitia. Não tinha feito nada mau. Somente esperava que não se inteirasse de como lhe tremiam as mãos.
—Isso não será necessário.
Arthur deu um passo à frente e Anna fez esforços em não cambalear-se. Mas o sangue pulsava com força em seu pescoço. E ele viu. O sorriso que se desenhou em seus lábios a fez sentir como um camundongo ante os olhos de um gato.
—Temo-me que sim, será. Se saíres do castelo partirei contigo. —Arthur a olhou de tal modo que fez que a Anna fervesse o sangue — Me parece que esquecestes algo.
Gaguejou, completamente deslocada pelo calor que fluía por suas veias.
—O que… o que?
—Sua cesta — disse olhando-a nos olhos. Anna ficou gelada, decomposta pela surpresa. Não era possível que soubesse. Quase suspirou de alívio quando ele acrescentou—: Não acredito ter visto sair do castelo sem ela.
Muito observador, mais do que convinha. Sir Arthur era perigoso em muitas e diferentes formas. Seu pai iria às nuvens se alguém descobrisse o que ela e algumas das outras mulheres faziam. Anna se recompôs em seguida, irritada por permitir que a angustiasse.
—Só tinha intenção de sair a cavalgar. Hoje não visito ninguém da vila.
Arthur ficou olhando-a por mais tempo do que devido, e Anna voltou a perguntar-se se saberia algo. Entretanto, nessa ocasião sua expressão não traiu seus pensamentos.
Uma série de latidos frenéticos fez que Arthur dirigisse sua atenção ao chão, para o cão que saltava sobre sua perna.
—Abaixo! —disse em uma voz que não aceitava discussão. O cão se sentou imediatamente e ficou olhando-o com cara de adoração — Seu cachorrinho precisa aprender maneiras.
Anna franziu os lábios.
—Gosta de ti.
«Deus saberá por que motivo.» Tentar tirar um pouco de afeto de Arthur Campbell era como querer extrair água de uma rocha, uma experiência condenada ao fracasso e a frustração. Arthur entreabriu os olhos como se Anna houvesse dito isso em voz alta.
—Normalmente os animais gozam de bons instintos.
—Normalmente sim — concedeu, deixando muito claro que ela pensava diferente nesse caso.
Aquele brilho perigoso voltou a encher seu olhar.
—E o que tem que você, Anna? O que dizem seus instintos?
«Corre. te esconda. te afaste dele tanto como possa para que não te faça mais dano.» Olhar essa mandíbula afiada e recortada, seus sensuais e carnudos lábios e esses olhos escuros jateados de âmbar era já suficientemente doloroso.
Afastou o olhar, contendo a emoção que ia a sua garganta.
—Eu não faço caso a meus instintos.
Ao menos já não fazia. Estavam errados. Seus instintos a tinham feito acreditar que entre eles havia algo especial. Que talvez ele tivesse necessidade dela. Que se sentia sozinho. E que possivelmente fosse diferente ao que parecia: um ambicioso cavalheiro, um soldado valente que vivia por e para sua espada.
Inclusive nesse preciso momento seus instintos lhe faziam acreditar que a tensão que bulia entre ambos significava algo, que bastaria que tomasse em seus braços e a beijasse de novo para que tudo voltasse para a normalidade. Mas era muito tarde para isso.
—Os instintos só servem para te obrigar a fazer coisas das que logo te arrepende — acrescentou.
Arthur esticou o queixo e o músculo de sua mandíbula começou a tremer de modo detestável. aproximou-se mais ainda. Tão perto que Anna sentia todo o calor que irradiava. Tão perto que cheirava o especiado aroma de sol que emanava sua pele. Começaram a tremer as pernas. Por Deus, tinha esquecido quão alto era. Parecia que muros se fechassem em volto dela. Custava-lhe respirar. Custava-lhe inclusive pensar enquanto se abatia sobre ela de tal modo. Usava sua selvagem masculinidade contra ela com a sutileza de um carneiro batendo-se em duelo.
—E arrependes de algo, Anna?
A enganadora suavidade de sua voz não a enganava absolutamente. Advertia perfeitamente a raiva contida em suas palavras, como se lhe importasse que seu coração tivesse mudado de parecer. por que fazia isso? por que tentava confundi-la? Fosse ele quem havia dito a ela que se afastasse.
—Que mais dá? E menos agora. Deixara tudo muito claro antes de fugir com meu irmão.
Anna tentou flanquear a porta e deixá-lo ali, mas Arthur a deteve com o implacável escudo de seu peito. Pela linha branca que se formou na comissura de sua boca não coube dúvida de que tinha captado a indireta.
—Então já acabastes com a espionagem. É isso?
Anna o observou atentamente. Nisso era que acreditava? Bom, que mais dava o que pensasse. Afastou lentamente seu olhar e a dirigiu para a porta.
—Sim, isso. Agora se me permitem, eu gostaria de partir.
Empurrou seu peito com o dorso da mão, mas era tão firme como um escarpado rochoso. Um escarpado com montões e montões de pedras cortantes e afiadas.
—Já vos disse que partiria contigo.
—Seus serviços já não são necessários. mudei de opinião. Não sairei a cavalgar esta manhã.
A maneira que flamejavam seus olhos revelava que não fazia nenhuma graça que o rechaçassem. Bem, pois pior para ele. Ela não o tinha escolhido como seu cavalheiro andante. Então notou que os músculos de suas costas se esticavam e se perguntou se não o teria levado muito longe. Mas Arthur não fez mais que torcer o gesto, representar uma reverência exagerada e afastar do caminho.
—Como desejais, milady. Mas se mudares de opinião já sabem onde me encontrar.
Anna passou junto a ele como um raio, com o queixo bem alto.
—Não o farei. Tenho muitas coisas que fazer antes de partir.
A mão que pousou sobre seu ombro a fez deter-se de repente. Mas inclusive essa forma rude de tocá-la fazia que seus sentidos se desatassem.
—Vais a alguma parte, lady Anna?
Tentou desembaraçar-se de seu braço e o fulminou com o olhar ao ver que não a deixava partir.
—Não é seu assunto.
Um brilho foi a seus olhos ao mesmo tempo em que Arthur se aproximava mais a ela. Anna sentia a energia que vibrava entre ambos e a arrastava consigo. Tinha a boca tão perto…
—me digas.
Não podia beijá-la, dizia-se Anna presa do pânico. Não podia permitir que a beijasse.
—Caso-me — disse bruscamente.
Capítulo 12
Arthur retirou o braço como se queimasse.
«Caso-me.» Suas palavras sentaram como um soco no estômago. Era incapaz de se mover. Cada osso, cada músculo, cada uma de suas terminações nervosas se petrificou.
—Com quem? —perguntou com uma voz mortiça, vagamente ameaçador, que não parecia a sua, soava como a do MacRuairi.
Anna não queria olhá-lo nos olhos. ficou a retorcer as grossas pregas de lã de sua saia com as mãos.
—Com sir Hugh Ross.
Uma faca encravada entre suas costelas teria resultado menos doloroso. O filho e herdeiro do conde de Ross. Arthur o conhecia, é obvio. O jovem cavalheiro já havia feito um nome por si mesmo. Era um guerreiro temível, um estrategista, dentro e fosse do campo de batalha. O fato de que fosse um bom partido piorava mais.
Não compreendia a raiva que consumia seu interior, nem por que se sentia traído. Não lhe pertencia, diabos. Jamais poderia lhe pertencer. Mas isso não o fazia esquecer que apenas quinze dias atrás a tinha tido em seus braços e que estivera a muito pouco de despoja-la de sua inocência.
—Ao que parece tiveste uma semana muito ocupada, milady. Não perde tempo.
Um quente rubor tingiu suas bochechas.
—Ainda não concretizamos os detalhes.
Arthur advertiu algo em sua voz que o fez entreabrir os olhos enviesadamente.
—A que detalhe se refere? Está prometida ou não?
Anna ergueu o queixo e ele captou o desafiante brilho de seu olhar apesar do sufoco de seu rosto.
—Sir Hugh me propôs matrimônio faz um ano, pouco depois de que morreu meu prometido.
—Acreditava que o tinha rechaçado.
—Assim foi. Pensei melhor.
Arthur compreendeu do que se tratava tudo aquilo de repente. Ao não contar com a ajuda do rei Eduardo, os MacDougall tinham decidido pedir ao Ross e oferecer a lady Anna como incentivo acrescentado para a aliança. Pouco importava se ela tinha pensado melhor ou era seu pai quem assim tinha decidido. Arthur não podia permitir que unissem suas forças. Uma aliança entre Ross e os MacDougall poria em perigo a vitória de Bruce. Seu trabalho, sua obrigação, era deter aquilo.
Arthur a olhou com dureza.
—E como sabe que sir Hugh se mostrará aberto a sua repentina mudança de pensamento?
—Não sei. —Anna lhe dirigiu um olhar penetrante — Mas farei tudo o que possa para persuadi-lo.
Não era necessário adivinhar a que se referia. Sua reação foi instantânea. Primitiva. Por um breve instante da ira se apoderou dele e perdeu o controle. Sentiu um vazio na mente. Lady Anna estava a escassos centímetros de ver-se esmagada contra a parede do estábulo com seus lábios selados pelos dele, toda sua virilidade entre as suas pernas e uma língua afundando-se no interior de sua boca, ali onde devia estar.
Mas inclusive no furor de sua raiva pedia mais a necessidade de protegê-la. Não confiava em si mesmo para tocá-la de tal modo.
Anna pôs os olhos como pratos e teve a prudência de dar um passo para trás. Mas ele a seguia cativando com a armadilha de seu penetrante olhar.
—Assim tem tudo bem planejado?
Assentiu.
—Sim. Será melhor para todos.
Que aquilo soasse como se estivesse tentando convencer-se a si mesmo não consolava absolutamente.
—Seu plano tem um problema.
Anna o olhou, dúbia.
—E qual é?
—Ross está ao norte. Os caminhos são muito perigosos para que te translades. É muito arriscado. Bruce e seus homens ficarão no caminho em qualquer momento. Seu pai não aprovará isso.
Lorn era um filho de cadela desalmado, mas parecia amar a sua filha de uma maneira genuína.
—Já o tem feito. Uma leva de guardiães me escoltará, junto com meu irmão Alan. Pode ser que o rei Hood seja um patife assassino, mas não faz guerra às mulheres.
Arthur lutava por manter sob controle seu gênio. Lorn tinha que estar muito desesperado para aceitar isso. O muito filho de cadela faria o que fosse para ganhar, inclusive pôr em perigo sua filha.
—Se se derem conta de que és uma mulher. Na escuridão, não serão tão fácil de distinguir. Poderiam a confundir com um mensageiro.
Acaso tinha esquecido o que estivera a ponto de lhe ocorrer no Ayr? Jesus, quando pensava no perigo… gelou o sangue. De novo teve vontade de empurrá-la contra a parede do estábulo, dessa vez para procurar que entrasse em razão. Poderiam feri-la. Assassiná-la.
—Meu irmão me protegerá. Estou segura de que não passará nada.
Arthur sentia uma veia a ponto de estalar na têmpora. Nem uma centena de homens poderiam lhe dar segurança. Seus esforços por controlar fracassariam.
—Não seja louca! Não podem ir! É muito perigoso. Mandem um mensageiro, é melhor.
Não necessitava mais que ver a posição de seu queixo e a maneira em que entreabria os olhos para saber que tinha cometido um engano. Poe tratar-se de uma moça de aparência tão doce mostrava uma teima digna de admiração.
—Já está decidido. E você, temo que não tenha nada que dizer a respeito.
As mulheres tinham que ser submissas e dóceis, maldita seja. E ali estava ela, cotovelo com cotovelo com ele, sem retroceder um centímetro. Se não estivesse tão furioso isso pareceria admirável.
Nessa ocasião, quando Anna deu meia volta e se dirigiu para a porta, Arthur não a deteve.
«Nada que dizer a respeito.» Isso veremos.
Se ela não entrava em razão, talvez seu pai fizesse.
Os homens de Bruce estavam batendo toda a área, assaltando, saqueando, fazendo tudo o que podiam por semear o caos e expandir o medo no coração do inimigo. A guerra não tinha lugar só no campo de batalha mas também no interior das mentes. Um grupo de escolta do clã MacDougall seria algo irresistível. Anna teria uma flecha no coração antes que pudessem se dar conta de seu engano.
Dizia a si mesmo que era a ameaça que isso supunha para a missão que fazia que se embolotassem todos seus músculos. Evitar esse tipo de aliança, manter isolado ao MacDougall, essa era a razão pela que estava ali. Mas não eram as mensagens nem a aliança em que pensava. Tudo que podia ver era Anna jogada em um atoleiro de sangue. Tinha que fazer que Lorn se afastasse desse estúpido caminho.
E se não podia… De nenhuma maneira a deixaria partir sozinha. Se Anna desse um passo fora desse castelo, ali estaria ele para acompanhá-la, ali onde pudesse a proteger e tê-la à vista. E havia uma coisa que tinha muito clara: não cabia nem a mais remota possibilidade de que a deixasse casar-se com Hugh Ross.
—Ocorre-te algo, Annie? Parece contrariada.
Anna ergueu o olhar para seu irmão Alan, que acabava de aproximar-se para cavalgar a seu lado. Depois de navegar em um birlinn nessa manhã o primeiro lance da viagem, o resto do trajeto fariam a cavalo. A rota marinha desde Dunstaffnage até a vila do Inverlochy através do lago Linnhe tinha levado menos de meia jornada, uma travessia em que teriam empregado vários dias ao fazê-la por terra. Oxalá o resto da viagem fosse igual de simples. Havia três lagos salgados e numerosos rios que percorriam Gleann Mor, o enguiço do Grande Glenn que dividia a Escócia entre o Inverlochy, no nascimento do lago Linnhe, até o Inverness e o fiorde de Moray, mas as rotas marinhas estavam separadas por terreno suficiente para fazer impraticável a viagem em navio. Em vez disso, cavalgariam os pouco mais de cem quilômetros que tinha que o Inverlochy até Nairn, ao leste do qual se encontrava o castelo do Auldearn. Com sorte demorariam quatro dias para chegar. Anna era consciente de que atrasava sua marcha, apesar de que galopavam em um ritmo muito mais castigador que aquele trote pausado ao que estava habituada.
Parecia irônico que estivesse fazendo virtualmente a mesma rota que tinha seguido o rei Hood no outono passado esperando acontecer através das Highlands e apoderando-se dos quatro castelos principais que balizavam o caminho: os castelos de Inverlochy e Urquhart, pertencentes aos Comyn, e os castelos reais de guarnição inglesa em Inverness e Nairn. Dado que esses castelos seguiam ocupados pelos rebeldes, veriam-se obrigados a procurar outra hospedagem que entranhasse menos perigo. Anna suspeitava que se quisessem evitar aos homens de Bruce teria que acostumar-se à paisagem dos bosques. Ao menos assim se livraria daquele sol abrasador por um tempo. Cavalgavam há várias horas e embora o véu protegesse seu rosto, tinha calor, estava pegajosa e, sim, também zangada, como tinha advertido seu irmão. Furiosa, para falar a verdade. O tempo, não obstante, não tinha nada que ver com seu incomum mau humor. Essa honra reservava a um certo cavalheiro intrometido.
Negou-se a lhe dirigir o olhar durante todo o dia. Mas isso não significava que não soubesse exatamente onde estava: cavalgando na cabeça do grupo, inspecionando o caminho que tinham pela frente em busca de sinais de perigo. «Perigo.» Isso era dizer pouco. O perigo era que ele os tivesse acompanhado na viagem.
—Estou bem —assegurou a seu irmão, conseguindo esboçar um sorriso forçado — Tenho calor e estou cansada, mas me encontro bem.
Alan a olhou de esguelha com um desinteresse enganoso.
—Acreditava que talvez tivesse algo a ver com o Campbell. Não parecia muito contente quando disse que nos acompanharia.
Seu irmão era muito ardiloso. Um traço que faria dele um bom chefe no futuro, mas nada que fosse apreciável para uma irmã que preferia guardar seus pensamentos para si mesma. Apesar de seus esforços em não reagir a essas palavras, chiavam-lhe os dentes.
—Não deveria ter-se intrometido.
Quando seu pai lhe contou que sir Arthur havia tentando dissuadir de que cancelasse a viagem, não podia acreditar. Ao fracassar nisso, pediu permissão para os acompanhar argumentando que suas habilidades como rastreador ajudariam a garantir sua segurança. E para maior desgraça de Anna seu pai tinha aceitado. De modo que em lugar de ignorá-lo durante uma só jornada, agora teria que suportar sua presença constante durante dias, semanas inclusive. Acaso tentava atormentá-la de propósito? Aquilo que tinha que fazer já era difícil sem que ele andasse revoando por aí.
—É um cavalheiro, Anna. Um explorador. Informar sobre a posição do inimigo é exatamente seu trabalho. E não posso dizer que não esteja agradecido de que venha conosco. Se for tão bom como diz ser, será muito útil.
Anna se dirigiu a Alan com cara de estar horrorizada.
—Está de acordo com nosso pai?
Alan endureceu o queixo. Jamais criticaria a seu pai de maneira aberta, embora quisesse fazê-lo, como era o caso.
—Teria preferido que ficasse em Dunstaffnage, embora entenda a razão pela que pai insistia em que viesse. Ross se mostrará mais disposto ante uma solicitude direta —disse com um sorriso — É uma danada, Annie querida, mas uma danadinha encantadora.
Anna torceu o lábio.
—E você é tão protetor que molestas, mas eu também te adoro.
Alan se pôs-se a rir e Anna não pôde a não ser unir-se a suas risadas.
Sir Arthur voltou a cabeça para ouvir e a pegou despreparada. Seus olhares se cruzaram por um momento antes que lhe desse tempo a afastar o olhar bruscamente. Mas foi suficiente para que sentisse uma boa pontada no peito. por que tinha que ser tão doloroso?
Alan não evitou esse intercambio de olhares. Voltou a ficar sério e a olhá-la com intensidade.
—Está segura de que isso é tudo o que acontece, Anna? Já sei o que disse, mas me parece que entre sir Arthur e você há algo mais que os trabalhos de vigilância que pai te encomendou. Eu acredito que sente algo por ele. —A pulsação que Anna sentia no peito lhe dizia que seu irmão tinha razão, por mais que gostaria que não fosse certo — Podemos apelar ao Ross sem necessidade de um compromisso —disse seu irmão com carinho — Não é necessário que sacrifique sua felicidade para chegar a um pacto.
Não pôde evitar emocionar-se. Era tão afortunada de poder contar com um irmão como ele… Sabia que poucos homens a tratariam com tal consideração. A felicidade não era algo a ter em conta no matrimônio entre nobres. O poder, as alianças, a riqueza, isso era o que importava. Mas o amor do que Alan desfrutou em seu matrimônio tinha dado a seu irmão uma perspectiva única. Apesar de tudo, teriam muitas mais oportunidades de conseguir o apoio de Ross com uma aliança. Alan sabia tão bem quanto ela. Além disso, ajudar a sua família jamais poderia constituir um sacrifício. Arthur tinha expressado com brutal claridade que não havia nada entre eles.
—Estou segura — disse com firmeza.
A firmeza de sua voz ajudou a convencê-lo. Alan seguiu cavalgando junto a ela um momento mais na lembrança de suas anteriores viagens nos excepcionais momentos de paz, mas ao final acabou voltando junto a seus homens.
Durante da primeira jornada fizeram grandes progressos e chegaram até o lago Lochy, onde passaram a noite em uma estalagem próxima à borda sul do mesmo. Aquele pequeno edifício de pedra com telhado de palha parecia antigo, e dada sua localização junto a uma ruína, Anna supôs que era.
Estava dura e dolorida. Suas pernas, traseiro e costas se ressentiam por cada uma das horas desse longo dia, de modo que agradecia estar debaixo de um teto e em uma cama, por mais rudimentares que fossem. Lavou-se e se compôs para comer um pouco de caldo de pescado e pão de centeio antes de cair rendida no camastro junto à Berta, sua criada, que roncava no jergon do lado.
A segunda noite, não obstante, não teriam tanta fortuna. Sua cama seria um simples cobertor em uma pequena tenda instalada na floresta ao sul do lago Ness.
Fora um dia longo, mais longo ainda graças ao constante fluxo de informes de exploração de sir Arthur. Para evitar cenários suscetíveis de perigo, tais como rotas a campo aberto ou lugares propícios para as emboscadas, havia vezes que se desviavam bastante do caminho. O qual significava que em lugar dos quarenta quilômetros que teriam percorrido, fizeram provavelmente uns cinqüenta e cinco através da espessura dos bosques e as colinas serpenteantes de Lochaber. Aquilo a Anna pareceu de uma precaução exagerada. por agora, não tinha visto nada fora do normal, mais que habitantes da vila, pescadores e algum que outro ocasional grupo de viajantes. Se os homens de Bruce patrulhavam os caminhos, não se tinham feito notar. Talvez esses quilômetros a mais fossem outra forma de tortura idealizada por sir Arthur? Como se não fosse suficiente sua presença.
As pernas de Anna, pouco acostumadas a passar dias cavalgando, tremeram ao se ajoelhar à borda do rio para lavar as mãos. Colocou a cabeça na corrente com a esperança de sacudir o cansaço, mas o frio golpe de água não a refrescava o suficiente. Quando tentou levantar-se, coisa que fez com muita dificuldade, teve que resmungar ao conscientizar-se da objeção de seus ossos e articulações, que rangiam como se tratasse do corpo de uma anciã. Tomou seu tempo para saborear o momento de solidão, sem nenhuma pressa por voltar para acampamento. Embora o resto do grupo estivesse a poucos metros dela, o denso tanto de árvores parecia absorver todo o som. de vez em quando chegava até ela o murmúrio apagado de suas vozes, mas além disso tudo permanecia em uma calma excepcional, o que representava o maior momento de paz que tinha desde sua chegada ao barmkin no dia anterior pela manhã, quando encontrou a sir Arthur Campbell preparado para sair com eles. Aqueles dois dias tentando forçar-se a não olhá-lo tinham cobrado sua cota. Era pior do que temia. Apesar de que o ignorasse e evitasse seus olhos cada vez que ele olhava em sua direção, cada um de seus movimentos lhe afetava de maneira dolorosa. O desassossego, que parecia lhe queimar o peito até furá-lo, era cada vez maior. Mais duro. Enfurecia-se com suas emoções, deixando-a nua e exposta. Não sabia por quanto mais poderia suportar. Por que tinha que estar ali?
Suspirou com aborrecimento e deu as costas à tranqüilizadora correnteza que corria sobre as rochas. Berta faria que seu irmão fosse procurá-la como um louco se não retornasse no par de minutos que tinha prometido. Além disso, estava ficando de noite.
Mal tinha dado uns passos em direção a floresta quando um homem saiu dentre as sombras e lhe fechou o passo. O pulso acelerou, presa do pânico. Esteve a ponto de dar a voz de alarme, mas seu gritou ficou sufocado ao reconhecê-lo. Fechou a boca de repente, mas seu pulso seguia igual de acelerado.
—Não faça isso! —espetou ao mesmo tempo em que erguia o olhar para o belo rosto de sir Arthur — Me destes um susto de morte.
Não tinha feito um só ruído. Como um homem tão corpulento podia mover-se com tal sigilo era algo que escapava a sua compreensão.
—Melhor —respondeu ele — Não deveria estar aqui sozinha.
—Não estava sozinha —disse Anna com um sorriso forçado — tinha você me espiando.
Anna sentiu um prazer enorme ao ver que esticava a mandíbula. Era horrível por sua parte que lhe agradasse tanto, mas tentar tirar algum tipo de reação daquele homem parecia um lucro absoluto. Sir Arthur lhe dirigiu um olhar pausado e penetrante.
—Algo do qual estou certo que conhece todos os segredos.
Agora tocava a ela endurecer o gesto. Havia muita proximidade. Embora seu irmão e o resto dos homens estivessem a um grito de distância, aquilo supunha uma intimidade com ele muito maior da que ela queria. Qualquer tipo de intimidade com ele podia ser perigosa.
Isso a fazia recordar coisas. Como o sabor especial de seus beijos. Ou o modo em que os grossos músculos de seu torso se esticavam à luz das velas. Ou a maneira em que as mechas onduladas de seu cabelo molhado caíam sobre seu pescoço. Ou seu aroma. «Aroma de sabão e a virilidade», pensou Anna enquanto aspirava.
Arthur não se barbeou, e a barba incipiente lhe dava um aspecto esfarrapado e perigoso que, maldito fosse, o fazia ainda mais atraente.
Ao comprovar que apesar de todo o ocorrido ainda conseguia lhe afetar do mesmo modo, Anna ficou furiosa e tratou de afastá-lo de seu caminho. Um exercício de futilidade como jamais houve algum.
—Não há motivos para preocupar-se.
Ele a agarrou seu braço para detê-la, como se a impenetrável barreira de seu torso não fosse suficiente.
—A próxima vez que te afastes do acampamento, não o façam sem guarda, preferivelmente eu ou seu irmão.
Suas bochechas se ruborizaram, zangada com o tom e sua atitude prepotente. Sir Arthur Campbell, cavalheiro ao serviço de seu pai, transpassava os limites.
—Não têm direito a me dar ordens. A última vez que olhei não fostes tu, a não ser meu irmão, quem estava ao mando.
Seus olhos brilharam ao mesmo em tempo que ele a agarrava pelo braço com mais força. Falava em voz baixa e sua boca… Anna ficou sem fôlego. Também sua boca estava baixa, a uma altura perigosa, tão perto da sua que doía. Se ficasse nas pontas dos pés, era possível inclusive que chegasse a tocá-la.
Deus, que vontade tinha de fazê-lo. Estava desesperada por fazê-lo. Uma onda de calor invadiu todo seu corpo, concentrando-se nos seios e no encontro das coxas. Os mamilos se puseram eretos; morriam de vontade por roçar-se com seu duro peito.
Aquela traição de seu corpo parecia humilhante. Ele não tinha nenhum direito a fazê-la sentir assim. Não depois de a rechaçar de maneira tão cruel. Não depois de que partisse e deixasse claro que era tal e como o tinha imaginado em princípio. por que não podia deixá-la em paz simplesmente?
—Não me desafiem nisto, Anna. Se quiserem que consiga a cumplicidade de seu irmão, farei. Quão único tentava era evitar a vergonha de que te tratem como a uma criança, mas farei tudo o que esteja em minha mão para te manter a salvo.
Houve algo em sua voz que fez que lhe deu calafrios.
—O que acontece? Estão os rebeldes perto daqui? Viu algo?
Uma sombra cruzou o olhar de Arthur. Negou com a cabeça.
—por agora não.
—Mas têm um pressentimento.
Arthur a olhou com total desconfiança, como se pensasse que tentava enganá-lo para que admitisse que ela tinha razão quanto às habilidades que tinha mostrado com antecedência. Parecia disposto a negá-lo, mas logo encolheu os ombros e lhe soltou o braço.
—Sim, sinto o perigo. E também vocês deveriam senti-lo. Não cometam o engano de pensar que não estão aí simplesmente porque não os tenhamos visto.
Assentiu, assombrada pelo que parecia uma preocupação sincera.
—Farei como me pede.
Ambos sabiam que não era uma petição, mas Arthur parecia estar satisfeito com sua aprovação e não quis discutir a semântica.
Anna era consciente de que devia sair dali quanto antes, mas houve algo que a fez perguntar:
—Por que estas aqui, sir Arthur? Por que insistiram em se unir a nosso grupo?
Ele afastou o olhar. A pergunta lhe incomodava. Muito.
Franziu o cenho.
—Pensei que poderia ser de ajuda a seu irmão.
—E eu pensei que não gostavas de fazer reconhecimento do terreno.
Sua boca se torceu em um irônico e enigmático sorriso.
—Não é tão mau como temia.
Anna observou seus traços com atenção, mas não estava muito segura do que procurava.
—E essa é a única razão? Para ajudar a meu irmão?
Arthur baixou o olhar para olhá-la nos olhos. A intensidade de seu olhar a penetrou com a sutileza de um raio. Era consciente do tic que pulsava sob seu queixo. estava-se controlando, mas do que?
—Dado que não atenderam a minhas advertências, não ficou outra opção que vir e me assegurar de que chegassem a seu destino a salvo.
Entregue a salvo às mãos de outro homem.
—Estou segura de que sir Hugh apreciará seus serviços.
Arthur ficou tenso e os olhos lhe brilharam com um fogo descontrolado. Por um momento Anna pensou que a empurraria contra a árvore e a beijaria. Mas não o fez. Em vez disso apertou os punhos e ficou olhando-a com raiva. Dizia a si mesma que não era decepção o que sentia. Isso dizia a si mesma. Mas não acreditava.
—Não me provoque, Anna.
Mas o tempo das advertências já tinha passado para ela.
—Que não lhes provoque? Como poderia o provocar se não vos afeta? Deixou muito claro naquela noite nos barracões. Fosse tu quem disse que me separasse de seu caminho e não ao contrário, recordam?
—Recordo.
A suavidade de sua voz lhe disse que não era isso tudo o que recordava. A pele começou a lhe arder e parecia sair dela. As lembranças crepitavam entre eles como um sopro de ar sobre brasas, acendendo-se, dispostos a prender-se fogo. Anna estava sumida na frustração. Não podia entender por que fazia aquilo.
—É que mudastes de opinião?
Em outro momento Arthur teria admirado aquele desafio. A franqueza e a naturalidade de Anna eram o que faziam dela uma mulher única. Mas nesse momento não. Não queria pensar em se tinha mudado de opinião. Estava lhe custando muito, Deus e ajuda simplesmente não lhe pôr as mãos em cima. por que não podia ser tímida e retraída? Aí sim se sentiria seguro.
Sabia que atuava como um idiota, mas esses dois dias junto a ela, vendo-a voltar o rosto para evitar seu olhar, atuando como se ele não fosse mais que uma espada mercenária, fazia que chegasse ao limite de seu autocontrole. Não poderia agüentar vê-la outra noite rondando pelo acampamento rindo e divertindo-se com os homens com uns sorrisos que brilhavam quando olhava em sua direção.
Gostava de estar à margem, maldita seja. Mas de seu posto nos limites do acampamento, longe da camaradagem da fogueira, encontrava-se suspirando pela calidez desses sorrisos. Por um pouco dessa risada. um pouco dessa luz.
Sua intenção era que ela reconhecesse sua presença. Mas tudo que tinha conseguido era revolver coisas que não precisavam ser revolvidas. Tais como o assustador desejo de empurrá-la contra a árvore e abusar dela. Quase podia sentir como seus braços lhe rodeavam o pescoço e suas pernas envolviam seus quadris, em tanto que ele se afundava em seu interior, lenta e profundamente. Quase via seu pequeno e suave corpo estirando-se contra o seu, todas essas sedutoras curvas fundindo-se sobre ele, a excitante turgidez de seus mamilos lhe roçando o peito…
Demônios!
Teve que agitar-se para recuperar a compostura. Mas o inchaço que ocultavam seus calções era duro e implacável. Aquilo não tinha que ser tão endiabradamente difícil.
«Te concentre. Faz seu trabalho. Mantem o bastante perto para vigiá-la, mas sem tocar. Não deixe que se aproxime muito.»
Havia muitas pessoas dependendo dele. Tinha que estar ciente do que realmente importava. Assegurar-se de que Bruce chegasse ao trono e derrotar seus adversários. Como John de Lorn. Essa era a oportunidade de ver como seu inimigo pagava pelo que tinha feito a seu pai.
Justiça. Vingança. Endireitar o errado. Sangue por sangue. Essa fora toda sua motivação desde que tinha uso de razão. Tinha dedicado sua vida a tentar consagrar-se como o melhor guerreiro com um só objetivo em mente: destruir a Lorn. Essa fria determinação era sua companheira há quatorze anos. A firme resolução de levar uma missão até suas últimas conseqüências, custasse o que custasse. Essa era a única coisa que tinham em comum todos os membros da Guarda Highlanders, apesar de suas grandes diferenças de personalidade, do irreprimível bom humor do MacSorley e a impulsividade do Seton até o mau gênio do MacRuairi. Mas nunca antes tinha tido tantos problemas para aferrar-se a isso.
Arthur deu um passo atrás com a intenção de dissipar a bruma de desejo que o atendia. Mas seu corpo bulia de desejos insatisfeitos. Uns desejos que cada vez lhe parecia mais difícil ignorar. Andar por aí com o membro duro pego ao ventre não era algo que fizesse muito para remediar seu mau humor. E sua mão tampouco parecia um grande alívio.
Ao ver que ele não respondia, Anna disse:
—E bem?
Tinha mudado de opinião? Negou com a cabeça.
—Não.
Nada tinha mudado. Seguia sendo a filha do homem ao que tinha ido aniquilar. Quão único o futuro lhes proporcionaria seria a traição. Não tinha intenção de piorar as coisas.
Anna não deu amostras de que sua resposta a decepcionasse. Melhor parecia algo que esperava.
—Então por que fazem isto? por que atua como se o importasse com quem contraio matrimônio? Não me quer mas tampouco quer que alguém me tenha, é isso?
Arthur murmurou uma imprecação ao mesmo tempo em que passava as mãos pelos cabelos.
—Não é isso.
De fato, era exatamente isso. Anna tinha dado justo no prego. Estava ciumento, maldita seja. Embora não tivesse nenhum direito a estar. Embora fosse ele quem a desalentasse. Embora não houvesse nenhuma possibilidade de que estivessem juntos. Pensar em que ela se casaria com outro homem fazia que caísse em ataques de ciúmes juvenis.
Anna o olhou nos olhos.
—Então expliquem - me disse isso em voz baixa — O que é o que sentem por mim?
«Jesus.» Essa era a última coisa em que queria pensar. Somente ela seria capaz de tal pergunta. Anna MacDougall não tinha nenhum pingo de acanhamento ou de desânimo. Era direta. Sem rodeios. Despretensiosa. Deus, era uma mulher incrível.
Nem todo o treinamento do mundo podia o fazer parar de mover os pés nervosamente. Não se sentia tão encurralado desde aquela vez em que seus irmãos o fizeram retroceder até a saliência de um escarpado e o provocaram para que se defendesse de seus golpes de espada.
—É complicado — disse, saindo-se pela tangente.
Os olhos dela não deixavam de escrutinar seu rosto em busca de algo que não havia neles.
—Complicado não me vale. —Anna baixou o olhar — Não quero que esteja aqui —acrescentou com uma voz tão rígida como a posição de seus ombros. Tampouco ele queria estar ali, mas não ficava mais opção que fazê-lo. Anna voltou a erguer os olhos para olhá-lo. Já não havia calidez nessas profundidades azul brilhante — O rogo isso, me deixem em paz, simplesmente.
O suave rogo dessa voz apelava a sua consciência, mas ardia no peito de igual forma. Anna deu meia volta e se afastou dali com o porte majestoso de uma rainha.
Desejaria poder fazê-lo, pelo bem de ambos. Mas sua missão vinha em primeiro. Algumas semanas mais. Poderia agüentar algumas semanas mais. Tinha resistido desafios muito mais perigosos. Tudo que tinha que fazer era escorar suas defesas, fechar as comportas e preparar-se para o assédio final.
Capítulo 13
Arthur partia na vanguarda, inspecionando o terreno com dois dos homens de MacDougall, quando percebeu de que algo não ia bem. Uma mudança no ar. Um calafrio que percorria a nuca. A súbita sensação que ativava todas suas terminações nervosas para lhe advertir: «Perigo».
Tinham completado a terceira jornada da viagem virtualmente em sua totalidade. O trajeto a cavalo pela ribeira oeste do lago Ness foi mais longo do esperado, não por tentar evitar aos homens de Bruce, a não ser devido a uma ponte impraticável de Invermoriston. Teriam tentado cruzar as turbulentas águas em caso de não levar consigo Anna, mas em vez disso tiveram que desviar-se outros oito quilômetros do caminho para chegar ao seguinte vau. assim, aproximaram-se do extremo sul dos bosques do Clunemore mais tarde que o que ele esperava. De ali virariam para o este, abandonando o caminho para afastar-se todo o possível do castelo Urquhart, ocupado pelos rebeldes. O plano era acampar a última noite à beira do lago Meiklie, o qual queria dizer que o dia seguinte seria mais exaustivo ainda, já que a relativamente plaina estrada daria lugar às colinas.
Apesar de que Arthur trabalhava melhor sozinho, Alan MacDougall insistiu em que lhe acompanhassem dois de seus homens se por acaso se encontrava com dificuldades. Ao não poder explicar ao irmão de Anna que esses homens representariam mais problemas que ajuda sem trair suas habilidades, Arthur teve que acessar a contra gosto.
À primeira sensação de perigo ergueu uma mão para que os homens se detivessem. Desceu do cavalo, ajoelhou-se e pôs uma palma plaina contra o chão. A leve reverberação confirmou o que seus sentidos já lhe tinham advertido.
Richard, o maior dos dois guerreiros e explorador habitual do MacDougall, ficou circunspeto.
—O que há?
Arthur baixou a voz.
—Voltem e digam a seu senhor que saiam do caminho imediatamente.
Alex, que era aprendiz de explorador, olhou-o com estranheza sob o aço de seu nasal. Ao contrário de Arthur, Alan e o punhado de cavalheiros que usavam elmo, cota de malha pesada e peitilho, os homens do clã dos MacDougall levavam armadura mais leve e o cotun de couro acolchoado que preferiam os highlanders. Essa indumentária de guerra fazia mais fácil o movimento. Não era a primeira vez que Arthur tinha vontade de desfazer-se de seu pomposo traje de cavalheiro e mandar a passeio a mascarada. O mais jovem dos homens olhou a seu redor.
—Por quê?
Arthur franziu os lábios. Ficou em pé e voltou rapidamente para seus arreios.
—Há um grupo numeroso de cavaleiros que se dirigem justo para nós.
Richard o olhou como se estivesse louco.
—Eu não ouço nada.
Aqueles idiotas acabariam fazendo que matassem a todos. Sem tempo para sutilezas, Arthur agarrou ao maior por seu grosso cangote, ergueu-o um par de centímetros dos arreios e aproximou seu rosto a dele.
—Façam o que digo, maldita seja. Dentro de alguns minutos será muito tarde. Querem que matem a dama por sua estupidez?
O homem negou com a cabeça, impressionado com a transformação que sofria o cavalheiro. Quando começou a boquejar para recuperar o fôlego Arthur o soltou de um empurrão.
—Eu os rodearei pelas costas e tentarei distraí-los. —Com sorte, disse, poderia desviá-los para o norte — Digam a sir Alan que saia do caminho imediatamente, que se dirija para o este e cavalguem tão rápido como podem. Abandonem as carretas se for necessário. Encontraremo-nos no lago assim que me seja possível.
Subitamente, Richard moveu sua grosa cabeça para o norte. Um leve som de pegadas de cavalos batia em sua direção. Voltou-se para Arthur com um olhar que albergava tanto temor como suspeita. Inconscientemente, deu meia volta com seu cavalo.
—Pelos ossos de Cristo, têm razão! Ouço-os.
Arthur não tinha tempo de preocupar-se com a inquietação do outro.
—Irei contigo - disse Alex.
—Não — repôs Arthur em um tom de voz que evitava qualquer discussão — Vou sozinho.
Assim seria mais fácil evitar que os capturassem. Além disso, sempre cabia a possibilidade de que conhecesse alguém. Supunha-se que MacGregor, Gordon e MacKay estavam no norte.
—Partam! —disse.
Os homens fizeram o que lhes pedia sem mais discussão.
Arthur tampouco perdeu mais tempo. Cavalo e homem se introduziram entre as árvores em sua carreira por alcançar aos cavaleiros pelas costas antes que aparecessem ante o grupo do MacDougall. Era consciente de que apesar de estar advertidos, demorariam certo tempo em conduzi-los até um lugar seguro. Anna era uma boa amazona, mas não podia dizê-lo mesmo de sua criada. As carretas aumentaram seu ritmo ainda mais. Se algo sabia das mulheres era que não gostavam nada de abandonar seus finos trajes e sapatos. Ao menos Anna não tinha insistido em levar com eles ao maldito cachorrinho. Arthur estava já cansado de limpar os pés.
Arthur ziguezagueou entre as árvores, usando o som dos cavalos como guia, e cavalgou em paralelo aos homens alguns poucos e preciosos minutos até que se dirigiu para eles. Agora vinha a parte delicada: aproximar-se o suficiente para chamar sua atenção, mas nem tanto para que o capturassem. Amaldiçoou para si ao ver pela primeira vez ao grupo de cavaleiros através de um vão entre as árvores. Tinham todo o aspecto de uma leva de guerreiros. Havia mais dos que gostaria, ao menos uma vintena de homens armados até os dentes com mantas de cores escuras, vestimenta de guerra e escudos obscurecidos com breu, um modo de camuflar-se na noite próprio dos Guardiões das Highlands que adotaram mais tarde muitos dos guerreiros de Bruce.
Normalmente não pensaria duas vezes ante um exército tão formidável. Estava adestrado para lutar contra coisas piores. Mas esses homens conheciam o terreno e ele não. Teriam vantagem. Um giro mal dado e acabaria em suas garras. Mesmo assim ele contava com vantagens que eles não tinham: sentidos afiados como facas, velocidade, uma força e um treinamento superiores e a habilidade de desaparecer entre as sombras.
Distinguiu ante ele uma ruptura na linha de árvores. Aí o tinha. Apertou os dentes, baixou a cabeça e saiu como um raio para o claro. Fingiu surpreender-se por sua presença e girou abruptamente para a esquerda, como se quisesse evitar ser visto. Um grito o alertou do cumprimento de seu objetivo. Não se atreveu a diminuir a marcha e olhar para trás para ver se tinham mordido o anzol. Uma fração de segundo de atraso podia significar a diferença entre escapar ou ser capturado. Mas, momentos depois ouviu o ensurdecedor som das pegadas de cavalo atrás dele e sorriu. A caça tinha começado.
Anna tentava não pensar em quão tarde era. Mas à medida que a escuridão descia e que a lua se erguia no céu lhe custava mais acreditar que se encontrava bem. Esse medo que permanecia em espera ante o tumulto de seus próprios esforços para escapar aos soldados inimigos retornou com toda sua força assim que estiveram a salvo. E a coisa piorava com cada hora que passava sem a volta de Arthur. Que lhe atormentasse tudo o que quisesse, isso não importava. Mas que voltasse são e salvo.
Ajustou a capa nos ombros e disse que não devia preocupar-se. Chegar até eles de novo tomaria seu tempo atrás da animada perseguição em que Arthur os embarcaria. «Mas tanto tempo?» mordeu o lábio em uma tentativa de mitigar a crescente sensação de pânico. «Ele não se deixaria apanhar.» Entretanto, eles eram um monte de homens e ele só um. «Não pode estar morto.» Se fosse assim saberia. O coração lhe deu um tombo. Não era isso certo?
—Milady, a sopa está deliciosa. Tome —disse Berta sustentando a colher ante ela — Provem. Embora seja só um pouco - acrescentou, como se Anna fosse uma menina de cinco anos que se negava a comer nabos.
Mas Anna seguia sem gostar dos nabos. Negou com a cabeça e se esforçou em sorrir a sua preocupada criada.
—Não tenho fome.
A anciã pôs cara de estar admirada, fazendo que as rugas de seus olhos cor mel se esparramassem por seu rosto. O aspecto de Berta, com sua apenas um e cinqüenta de estatura e tão magra como um palito, não é que fosse formidável. Mas naquele caso seu rosto era de decepção. Podia ser tão teimosa e áspera como uma mula velha.
—Têm que comer algo. Conseguirá te pôr doente.
Já estava. Doente de preocupação. Somente de pensar em comida lhe dava vontade de vomitar. Conteve o acesso de bílis que lhe chegou à garganta.
—Comerei —mentiu Anna — dentro de um momento.
Berta lhe deu um tapinha na mão, que descansava sobre o musgoso tronco que as separava. Reuniram-se em torno do fogo junto ao resto da escolta, mas o acampamento permanecia em uma quietude incomum e os homens estavam desanimados. Todos eram conscientes de que tinham escapado por pouco e não era ela a única que se perguntava o que teria ocorrido com o cavalheiro que os pôs sobre aviso.
—Que morras de fome não fará que volte antes.
Os pensamentos de Anna eram mais transparentes do que acreditava, mas estava muito preocupada para fingir que não sabia do que lhe falava Berta.
—Acredite que terá ocorrido algo?
Berta apertou sua mão e negou com a cabeça tristemente.
—Não sei pequena minha. Não sei.
O coração de Anna sofreu uma violenta sacudida. A perspectiva tinha que ser terrível para que Berta não se esforçasse por mentir sequer. Voltaram a ficar em silêncio. Anna olhava as chamas da fogueira sem vê-la enquanto Berta acabava sua sopa.
Então Anna ouviu um ramo que rangia atrás dela e se levantou de um salto. Voltou o rosto com o coração na boca, esperando ver um cavalheiro vestido com cota de malha sobre seu cavalo. Assim foi e por um segundo pensou que seria Arthur. Mas seu coração topou com uma decepção. Tratava-se simplesmente de seu irmão Alan, que desmontou do cavalo e atou as rédeas a uma árvore próxima. A expressão sombria que mudou seu rosto à medida que se aproximava a encheu de pavor.
—Tem descoberto algo? —perguntou.
—Não —repôs seu irmão negando com a cabeça — Nem rastro dele.
—Acredita que… —Anna não se atreveu a terminar a frase.
Alan a olhou com atenção.
—Já deveria ter retornado.
A verdade doía como um murro nas vísceras. Lágrimas de angústia afloraram em seus olhos. Acabava de brotar a primeira delas quando ouviu um assobio que atravessava a noite.
—É o sentinela noturno - disse Alan antes que Anna tivesse tempo de perguntar — Alguém se aproxima.
O alarme deu origem a uma pequena comoção. Anna foi primeira em saltar de seu assento de repente, mas isso mesmo foi o que fizeram o resto dos homens. O primeiro que ouviu antes de vê-lo foram os gritos provocados pela emoção e o alívio. Momentos depois, Arthur penetrava no círculo de luz que provia o acampamento e o coração de Anna dava tombos no interior de seu peito. Inspecionou ao cavalheiro em busca de sinais de ferida, mas além do cansaço que refletia seu bonito rosto e da sujeira e o pó de sua cota de malha se via em perfeitas condições. Completamente ileso.
A emoção a embargava com tal força que deu um passo adiante sem poder controlar-se. Lutou por dominar o impulso de ir atrás dele, de correr a seus braços, de rodeá-lo com os seus e chorar toda sua angústia na suja e poeirenta cota de malha que revestia seu peito. Não tinha direito a fazê-lo. Nem fundamentos. Não estavam prometidos, nem se cortejavam sequer. Não eram nada um para o outro. Logo ela pertenceria a outro homem.
Então Arthur a viu. Por um estúpido momento ela se convenceu de que a estava procurando. Seus olhos se encontraram com uma força letal que repercutia em seu peito e o golpeava com os ecos da nostalgia.
Se naquele momento ele houvesse virado o rosto, ignorando-a com frieza, provavelmente Anna teria confrontado seu futuro com uma resolução firme no coração. Mas em vez disso Arthur percebeu seu desespero e assentiu levemente. «Estou bem.»
Era pouco, mas ao menos era algo, e servia como reconhecimento de que existia uma conexão entre ambos. Entre eles dois havia algo especial. Não podia negá-lo por mais tempo. Importava-lhe.
Arthur a olhou por última vez e seguiu adiante para encontrar-se com o Alan.
As emoções de Anna estavam descontroladas. Afetava-lhe muito que acabava de ocorrer para concentrar-se em nada, assim escutou pela metade o relatório que fazia a seu irmão. Eram os homens de Bruce. Um grupo numeroso de guerreiros. O número chamou tanto a atenção que ficou sem fôlego. Vinte e cinco homens. O normal seria que Arthur estivesse morto. Primeiro os tinha desviado vários quilômetros do castelo do Urquhart e depois se dirigiu para o este. Entretanto, os malfeitores tinham dado provas de ser bons cães de presa, e Arthur se viu obrigado a voltar a pé para o acampamento. Anna suspeitava que estivesse deixando muitas coisas no tinteiro.
Alan lhe agradeceu os serviços prestados a todos e o ameaçou a que se sentasse enquanto pedia comida e bebida para ele. Seu irmão falou com Arthur um momento mais antes de lhe deixar comer, mas em voz baixa, de modo que ela não pôde escutar nada. Anna bicou um pedaço de carne-seca de vitela e torta de aveia e ficou rondando por ali, como fizera a maioria dos homens. Entretanto, à medida que caía a noite, algo começou a lhe preocupar. O acampamento se animou com sua volta, e parecia óbvio que todos se alegravam de que não o tivessem capturado, mas a celebração não era a esperada e isso a desconcertava. Além disso, acontecia algo anormal. Ninguém tinha aproximado, além de seu irmão. Em lugar dos tapinhas nas costas, as brincadeiras pesadas e os brinde que seriam de praxe, pareceu-lhe que mais de um o olhava com cara estranha.
Arthur não parecia conscientizar-se. Acabou com sua comida, terminou o odre de cerveja que lhe tinham levado e se retirou de novo à solidão dos bosques. Anna o observou partir e sentiu uma premente necessidade de fazer algo. Olhou aos homens do clã que tinha ao redor. O que lhes passava? Por que atuavam de tal modo?
Chegou um ponto no que já não pôde agüentar-se mais, desculpou-se e foi procurar seu irmão. Alan estava falando com alguns de seus homens, mas ao vê-la chegar os ordenou que se retirassem.
—Acreditei que estaria aliviada.
Evitou fazer como que não entendia do que falava.
—Estou.
—E então a que vem a ser esse rosto, pequena?
—Por que atuam os homens desse modo? Por que não lhe dão obrigado? Por que o evitam?
—Está segura que não é justamente o contrário, irmã? —repôs Alan esboçando um sorriso irônico — Campbell não é precisamente conhecido por sua sociabilidade. Gosta de estar sozinho. —Seu irmão tinha razão, mas nessa ocasião não se tratava só disso. Os soldados se mostravam incômodos, quase temerosos. Quando o fez saber, Alan suspirou e negou com a cabeça — Ocorreu algo hoje quando nossos homens batiam o terreno. Richard me contou isso e provavelmente também contou ao resto. Conforme parece, Campbell ouviu os cavaleiros antes o bastante, antes que houvesse sinal alguma deles. Richard disse que era coisa de bruxaria.
Todo o prazer que Anna pudesse sentir ao ver confirmadas suas próprias suspeitas em relação ao ocorrido com os lobos, empalideceu em comparação com a fúria que atormentava seu interior. Suas bochechas se ruborizaram de indignação.
—Isso é ridículo. É que não se dão conta de que salvou a todos? Teriam que estar agradecidos e não tratá-lo como a um cão.
—Estou de acordo. Mas já sabe quão supersticiosos podem ser os highlanders.
—Isso não é desculpa.
—Não, não é. Falarei com o Richard e tentarei acabar com isso.
Anna saltou de seu assento de repente.
—Faz ou falarei com ele eu mesma. Não penso permitir que rechacem sir Arthur por nos ajudar. Pelas chagas de Cristo, Alan! Sem essa bruxaria, é possível que agora estivéssemos todos mortos.
Alan a olhou com atenção, e o que viu nela pareceu lhe preocupar. Ficou pensativo, assentindo simplesmente com a cabeça, em lugar de criticar por usar essa linguagem vulgar. Anna partiu dali com o propósito de encontrar Arthur, mas seu irmão adivinhou seu destino, porque gritou: —Amanhã pela tarde chegaremos a Auldearn, Anna.
Ela se voltou e lhe dirigiu um olhar inquisitivo, perguntando-se a que viria aquilo.
—Sim.
—Se tiver intenção de ir a sério com o compromisso de casar-se, talvez fosse melhor que o deixasse tranqüilo.
Duvidou ao ouvir a verdade em palavras de seu próprio irmão. Mas não podia fazê-lo. As ações desse homem tinham despertado todos seus instintos de amparo. Tinha que agradecer-lhe embora os outros não fizessem.
Encontrou-o à beira do lago, sentado em uma rocha plaina, depois de ter tomado um banho. Tinha o cabelo molhado e vestia uma simples regata de linho com uma túnica e as perneiras de couro. Estava inclinado sobre seu peitilho, aplicando azeite com um trapo, e sua expressão, vista de perfil, era mais sombria que nunca. Embora parecesse óbvio que a tinha ouvido chegar, Arthur não deu a volta. Uma vez que esteve mais perto, Anna distinguiu o que limpava e o mundo lhe veio em cima.
«Sangue.»
Apressou-se para ele sem pensar, ajoelhou-se e pôs uma mão no braço.
—Está ferido.
Quando ergueu o olhar para olhá-la, a lua iluminou seu rosto.
—Não é meu - disse.
Uma sensação de alívio se expandiu por todo seu ser. Suspirou profundamente. Embora seu rosto permanecesse impassível, percebeu uma estranha emoção em sua voz. Virtualmente soava como se estivesse arrependido. Como se a morte de um de seus inimigos fosse algo que o perturbasse. Talvez para os guerreiros matar não fosse tão fácil como ela imaginava. Em qualquer caso não para ele. Isso o fazia mais humano em certo sentido. Mais vulnerável. Sir Arthur Campbell vulnerável? Esse pensamento a teria feito rir sozinho algumas semanas antes.
—Não tinha outra alternativa - disse Anna com ternura.
Arthur lhe manteve o olhar por um momento e depois dirigiu para a mão que tocava seu braço. Anna sentiu imediatamente a intimidade dessa cálida e rígida pele que apertava com seus dedos e se apressou a retirá-la. Mas isso não conteve a necessidade de aninhar-se junto a ele e repousar a bochecha contra o amplo escudo protetor de seu peito.
Arthur voltou para a tarefa de tirar as manchas incrustadas entre as pequenas peças de metal. Anna se sentou junto a ele em uma rocha mais baixa e o observou em silencio durante vários minutos.
—Por que está aqui, Anna?
—Queria lhes agradecer o que fez hoje.
Arthur encolheu levemente de ombros, sem levantar o olhar de sua tarefa.
—Não fiz mais que meu trabalho. Para isso estou aqui.
Anna mordeu o lábio ao recordar o quão furiosa que a pôs sua intromissão e o cepticismo com o que acolheu suas razões para lhes acompanhar.
—Ao que parecia tinham razão —admitiu — Lhes agradeço que nos tenham acompanhado na viagem. Todos o agradecemos - disse franzindo o gesto com irritação — Embora alguns tenham uma estranha forma de demonstrá-lo.
Os ombros de Arthur se esticaram quase imperceptivelmente.
—O que é o que dizem?
—Que sentiram aos cavaleiros antes que fosse possível fazê-lo.
Arthur arqueou uma sobrancelha, divertido com sua tentativa de suavizar o golpe.
—Seguro que disseram algo mais que isso.
As superstições de seus companheiros de clã ruborizaram as bochechas de Anna.
—É certo, verdade? É como aquilo que aconteceu os lobos e quando tropecei no escarpado. Podem ver as coisas antes que aconteçam.
Anna lhe suplicou com os olhos que não mentisse. Outra vez não. Ele ficou calado durante tanto tempo que pensou que não lhe responderia.
—Não é de tudo assim —disse finalmente — É mais como um pressentimento. Meus sentidos estão mais afinados do normal. Isso é tudo.
—Afinados? —repetiu ela — São extraordinários. —Seu louvor não pareceu a não ser o incomodar mais — Não entendo como o resto dos homens não é capaz de compreendê-lo. Salvaram a todos.
—Deixem estar, Anna. Não tem importância - disse olhando-a com gesto severo.
Parecia falar a sério, algo que mais que atenuar suas faculdades as ressaltava.
—Como podem dizer isso? É que não vos molesta? Teriam que lhes agradecer o que têm feito e elogiar suas extraordinárias habilidades, em lugar de atuar como crianças que tivessem medo de encontrar um trasgo na cama ou fantasmas dentro do armário.
A indignação que Anna sentia pelo trato que lhe dispensavam não encontrava a avaliação esperada. Uma vez mais pareceu que essa conversa lhe incomodava.
Arthur a olhou com dureza.
—Não é algo que me incomode e tampouco necessito que façam as coisas mais difíceis advogando por minha causa. Não quero que mencionem nada a respeito do que acreditaram ver. Deixem passar e cairá no esquecimento. Insistam e piorarão.
Falava da experiência.
Anna teve que apertar os lábios para não discutir. Aquilo não estava bem e a injustiça que suportava fazia aflorar todo seu instinto de amparo.
Incomodava-o. Tinha que ser, por mais que se mostrasse despreocupado. Que estivesse tão acostumado a essa sutil crueldade das pessoas e que a desse por certa fazia disso um pouco mais duro. Encolhia-lhe o coração. Quantas vezes o teriam rechaçado ou repudiado para que se convertesse em uma pessoa tão insensível e indiferente? Seria isso o que o afastava de outros? Todo seu distanciamento e individualismo lhe pareceram de repente uma máscara para sua solidão. Levava tanto tempo só que tinha chegado a convencer-se de que gostava. Seu coração se compadecia dele. Era tão afortunada de ter a sua família… Odiava pensar que uma pessoa pudesse estar sozinha.
—Anna? —disse ele procurando seus olhos à luz da lua. Teria adivinhado a direção que tomavam seus pensamentos? — me prometa que não dirá nada.
Anna pôs cara feia, mas assentiu. Ele se levantou para passar o apertado peitilho pela cabeça se vestiu com um tabardo limpo e trabalhou em excesso na sujeição de suas numerosas armas. Observar como se vestia era um ato que transbordava intimidade, mas a Anna não envergonhava fazê-lo. Ao contrário, parecia natural. Como se pudesse passar todos os dias de sua vida vendo como ele se preparava para a guerra. Aquele pensamento teria que tê-la horrorizado, mas, em vez disso, viu-se invadida por uma intensa sensação de desejo, de saudade por algo que lhe escapava das mãos. Fazia que se expusesse seu futuro e pensasse que talvez ele não fosse o homem errado, a não ser exatamente o adequado para ela. Um guerreiro estável. Isso parecia algo contraditório. Mas talvez fosse ela quem se equivocava de cabo a rabo.
—O que fará quando acabar a guerra? —perguntou.
Perguntava-se se não teria pensado em fazer algo com seus desenhos, talvez. Ou estaria simplesmente esperando a seguinte guerra para lutar nela?
A pergunta o pegou despreparado. Arthur estava atendo-se a espada e a deixou pela metade. O certo era que não tinha dedicado muito tempo a pensar. Fazia muitos anos que a guerra consumia sua vida. Lutar era para quão único servia. Primeiro junto a seu irmão Neil e logo como membro dos Guardiões das Highlands. Era um soldado profissional. Um dos melhores do mundo. Era o único que sabia fazer. Mas era isso o que ele queria? O teria escolhido ao ter a oportunidade? Uma vez que houvesse justiça para seu pai, que Bruce tivesse o trono assegurado, uma vez cumpridos os objetivos… o que faria então?
Terras e uma rica esposa seriam sua recompensa. Isso teria que bastar. Mas ao olhar a aquela mulher que o acabava de defender tão fervorosamente, que o via como alguém extraordinário em lugar de horripilante, que tinha um coração que não lhe cabia no peito, perguntava-se se realmente seria suficiente com isso. Ao olhar essa carinha arrebitada, banhada pela luz da lua entre tênues sombras, sentiu uma estranha angústia. Saber que era algo impossível não lhe impedia de seguir desejando-a. Mas já tinha mostrado muito de si mesmo. Estava tão acostumado a mentir a respeito de suas habilidades que lhe parecia estranho ouvir a verdade em voz alta. Estranho, mas também consolador. Manteve-se afastado do resto durante tanto tempo que esquecia o que era ter conexão com alguém.
Estava completamente louco.
Sua única desculpa era que o tinha pego em um momento de debilidade. O sangue que limpava de seu peitilho era a dos dois homens que se viu obrigado a matar para defender-se.
«Protege sua identidade custe o que custar. Protege a missão.»
Deus, às vezes odiava o que tinha que fazer. Acabou de ajustar o armamento antes de responder.
—Eu diria que isso dependerá do resultado.
Inclusive nesse lusco-fusco percebeu que o rosto de Anna empalidecia, mas se recuperou com rapidez.
—Não há mais que um resultado possível. Não conhece meu pai. Não perderá. —Arthur ficou tenso. Sabia isso melhor que ninguém. Essa era a razão pela que estava ali — O rei Hood e os rebeldes serão submetidos e levados diante da justiça.
Apesar de que soasse como o melhor e mais leal dos soldados do clã MacDougall, podia perceber a fragilidade que se escondia atrás daquela bravata. Anna seguia aferrando-se a ilusões que começavam a apresentar fissuras. Mas estava claro que era consciente do desesperado de sua situação, ou não estariam ali nesse momento.
—E mesmo assim acode ao Ross para lhe permutar por tropas adicionais.
Anna endireitou as costas de repente. Seus olhos brilhavam com intensidade ante o resplendor da lua.
—Não se trata exatamente disso.
Sim, se tratava disso. E seu trabalho era assegurar-se de que não ocorresse.
Não queria ser cruel, mas ela precisava confrontar a realidade. O pêndulo se afastava dos MacDougall. Bruce estava ganhando a guerra.
—E o que passará se fracassar, Anna? O que acontecerá Ross não está de acordo em mandar mais homens? Então o que?
—Meu pai pensará algo. —Soava tão desesperada que, sem se dar conta, esteve a ponto de aproximar-se até ela para consolá-la — por que falas de tal modo? —perguntou — Falas como um rebelde. Por que está aqui então, se não acredita em nossa vitória?
Amaldiçoou para si. Tinha razão. E logo descobriria quanta. Encolheu-lhe o estômago ao pensar em como a afetaria descobrir a verdade. Gostaria de poder suavizar o impacto de algum modo.
—Essa é justamente a razão pela que estou aqui, Anna. Por acreditar em uma causa. Por acreditar que ganhará o lado adequado. Mas as coisas não passam sempre do modo em que alguém pensa. Não quero lhe ver sofrer. —Deteve suas palavras e voltou para a questão original — Para quando a guerra acabe me prometeram terras e outras recompensas. Isso deveria bastar para me manter ocupado.
Anna inclinou um tanto a cabeça e umas linhas brancas diminutas povoaram seu sobrecenho.
—Outras recompensas? Que tipo de recompensas? —Embora não lhe respondeu, a resposta pareceu ir a sua cabeça de repente. Sobressaltou-se ao cair na conta e sua expressão de estranheza desvelou mais do que queria — Uma esposa? Eles prometeram uma esposa? —Arthur assentiu levemente, reconhecendo — Quem?
Uma das maiores herdeiras das Highlands ocidentais, a segunda irmã de Lachlan MacRuairi, lady Christina, senhora das Ilhas.
—Não sei —mentiu Arthur — Quando acabar a guerra me encontrarão uma esposa adequada.
Não era a primeira vez que desejava ser capaz algo precipitado, como tomá-la entre seus braços e lhe fazer promessas que jamais poderia cumprir.
—Já vejo —disse ela com voz diminuída — E por que não me contaram isso?
Ele a olhou com atenção.
—Como fizeram todos?
Anna estremeceu. Ao que parecia, tinha esquecido para onde se dirigiam. Mas ele não o tinha feito. A cada passo que os aproximava do Auldearn e Ross, Arthur sentia crescer a inquietação em seu interior. Sabia que tinha que fazer algo para evitar essa aliança, pela missão, conforme dizia a si mesmo. Mas o que?
Talvez não tivesse que fazer nada absolutamente. Era possível que Ross simplesmente se negasse a retomar as conversações sobre o compromisso. Mas com somente olhar a doce cara de Anna, Arthur foi consciente de que estava sonhando. Sir Hugh ficaria com ela com os olhos fechados. Apertou a mandíbula e lhe estendeu a mão.
—Vamos, temos que retornar. Faz-se tarde e temos um longo dia pela frente.
Quando Anna deslizou uma mão sobre a dele uma onda de calor invadiu todo seu ser. sentia-se… satisfeito. Como se não houvesse nada mais natural que ter essa pequena mão entre as suas. Todos seus instintos clamavam por agarrá-la e não deixá-la escapar.
Mas em vez disso, permitiu que seus dedos se desenlaçassem. Caminharam em silencio até o acampamento. Já se haviam dito suficiente. Talvez muito.
Capítulo 14
—Algo errado com sua comida?
A voz de sir Hugh tirou a Anna de seus pensamentos. Quanto tempo levava olhando sua tigela como uma boba e tirando o miolo ao pão pouco a pouco, sem dizer uma palavra? Tentou cobrir sua falta de tato com um sorriso ao mesmo tempo em que a vergonha se revelava em suas bochechas em forma de rubor.
—Não, está deliciosa. —Para dar fé disso meteu um pedaço de vitela na boca e fingiu deleitar-se. Uma vez o teve mastigado pediu desculpas — Temo que ainda esteja cansada pela viagem e não sou uma boa companhia.
Fazia duas noites que tinham chegado ao Auldearn. O último dia de marcha foi exaustivo, mas felizmente sem incidentes. Esperava em seu foro interno outra oportunidade para falar com sir Arthur antes que chegassem, e teve que levar uma decepção. Não era que ele a tivesse evitado, mas tampouco a tinha procurado.
Algo mudou aquela noite no lago, ao menos para a Anna. Arthur lhe tinha devotado uma parte de seu ser que parecia não revelar freqüentemente, uma parte dele que talvez a necessitasse. E o mais importante: não a tinha espantado. E por que não o tinha feito? Tudo teria resultado mais simples. Anna lutou por reprimir a cálida inflamação que ia a seus olhos e sua garganta enquanto a miséria se apoderava dela. Isso era o que lhe faltava, ficar a chorar em meio da comida como se fosse uma criada meio louca e doente de amor. Seguro que assim impressionaria sir Hugh.
Embora fosse jovem, apenas vinte e três anos, sir Hugh Ross era um homem cuja grandeza, superioridade e decidido atrativo se refletiam no perfil de seu perfeitamente torneado nariz até a ponta de seu afiado e curto queixo. Mas o orgulhoso cavalheiro parecia muito maior. Virtualmente parecia controlar-se em demasia, com tanta serenidade e tanto controle sobre si mesmo e essa arrogância de príncipe, algo que tampouco estava muito longe da verdade, dado a fila que ostentava entre a nobreza escocesa. Rígido, sem senso de humor, com esse aspecto frio e desumano tão próprio dos homens de sua época.
Sir Hugh lhe dirigiu um sorriso de compreensão que não melhorou em modo algum a severidade de seu semblante.
—É obvio, depois de cavalgar para tal passo e estar a ponto de ter uma topada com um grupo de rebeldes, é algo previsível. —Seu rosto adotou um aspecto sombrio — Teria que esfolar ao Bruce com suas próprias esporas por ser líder desse bando de piratas desalmados —acrescentou, voltando seu acerado olhar sobre ela — Foram muito afortunados de receber aviso a tempo de escapar —disse puxando a barba enquanto a observava. Anna não podia afastar os olhos de suas grandes e ossudas mãos, umas mãos que poderiam esmagar ou assassinar com a facilidade como que as suas rompiam um galhinho — Foi sir Arthur Campbell, não é certo? O irmão do rebelde Neil Campbell.
Anna assentiu, incomodada com seu próprio acanhamento. O nervosismo que sentia na presença de sir Hugh, o qual foi a primeira causa de que rechaçasse o compromisso, não fazia mais que agravar-se desde sua chegada. Sorrir e responder a suas educadas tentativas de conversa se convertia uma batalha. Observava-a como se pudesse ler seus pensamentos. Teria se delatado? Ela tinha tomado cuidado nem olhando na direção sir Arthur desde que chegaram. Ao menos acreditava não tê-lo feito. Mas estava mais que segura de que ele sim a estivera observando. O qual, provavelmente, explicava parte de sua inquietação. Seduzir a um homem sob o fulminante olhar de outro não era tarefa fácil. Mas tinha que fazer. Embora não gostasse da idéia. E a idéia não gostava absolutamente. Os dias passados encarregaram de deixar claro. Temia pensar muito no que sentia por Arthur por medo que descobririam.
—Tivemos muita sorte — comentou ao conscientizar de que sir Hugh esperava que dissesse algo.
Anna não sabia o que lhe acontecia. Jamais teve esse tipo de problemas na conversa com ninguém. Procurava controlar o tremor de suas mãos, mas lhe inquietava tanto a intensidade de seu olhar que atirou o pedaço de pão que tinha na mão. Caiu sobre a mesa, junto a sua taça e ao tentar recolhê-lo ao mesmo tempo em que Hugh Ross suas mãos se tocaram. Antes que desse tempo a retirar a sua, sir Hugh a cobriu com seus dedos. Seu pulso se acelerou até embarcá-la em uma sensação próxima ao pânico. Seu coração revoava em seu interior como se tratasse de um passarinho enjaulado.
—Está nervosa - disse lhe soltando a mão e lhe devolvendo o pão.
Ardiam-lhe as bochechas.
—Não têm nada que temer, lady Anna —disse visivelmente divertido — Sou bastante inofensivo. —Ela deve ter posto cara de não acreditar absolutamente, pois ele acrescentou—: Bom, pode ser que não completamente.
Essa inesperada amostra de humor a fez sorrir e pela primeira vez sentiu que começava a relaxar. Olhou-o do meio lado, protegida sob suas largas pestanas.
— Bom, milorde, é que sua pessoa é… certamente imponente.
—Tomarei como um elogio, embora não acredito que fosse essa sua intenção —disse entre risadas, para depois aproximar-se mais a ela e sussurrar—: O que parece se me esforço por ser imponente com todos menos contigo? Contigo serei o mais inofensivo. Será nosso segredo.
Anna, incapaz de resistir a seu encanto, sorriu até que lhe marcaram as covinhas. Sir Hugh Ross encantador? Jamais teria acreditado. Acaso o mal-humorado nobre ocultava mais do que Anna conhecia?
—Acredito que disso eu gostaria, milorde —disse sentindo que voltava para ela um pingo de seu atrevimento — Talvez ajudasse que sorrisse mais - acrescentou erguendo os olhos para olhá-lo.
Sim, quando sorria não parecia intimidar tanto.
Sir Hugh esboçou então um amplo sorriso e procurou seus olhos com o olhar.
—Pois então o farei - replicou. Fez uma pausa em seu discurso e Anna observou como se entretinha em riscar o relevo do pé da taça, interrompendo-se de um modo quase sensual que a devolveu a seu estado de inquietação — Estou muito contente de que tenham decidido viajar até o norte, lady Anna.
Cada vez estava mais tinta. Não lhe escapava o significado de suas palavras. Estava disposto a renovar as conversações em torno do compromisso. Sabia que devia sentir-se aliviada. Para isso tinha ido até ali. Poderia ajudar a salvar a sua família. Então por que notava como se uma estaca se atendasse em seu peito?
Assentiu com indolência, incapaz de encontrar-se com seu olhar de repente, temendo que revelasse muito. O peito lhe angustiava ao conscientizar de que o laço de seu futuro cada vez se atava com mais força. Seus sentimentos pessoais não importavam. Deveria contentar-se sabendo que tinha posto seu grãozinho de areia para ajudar à família. Isso seria recompensa suficiente, verdade?
Ross se voltou e fez gestos a uma criada que passava para que enchesse suas taças. Anna voltou o olhar inconscientemente para Arthur. Sabia onde estava sem necessidade de olhá-lo. Parecia atravessar toda a sala com o calor de sua ira. Seus olhares se encontraram durante um instante, mas foi tempo suficiente para que a força de sua ira ressonasse como o rugido de um ferreiro na forja. Em geral, continha tanto suas emoções que Anna se perguntava se realmente existiriam. Mas isso acabou. Jamais o tinha visto tão feroz e selvagem. Parecia um homem cuja contenção pendia de um fino fio.
Voltou-se, sobressaltada pela emoção que a embargava. Infelizmente não voltou o olhar com suficiente rapidez e sir Hugh apreciou parte do intercâmbio. Notou como ficava em guarda e entreabria os olhos olhando sir Arthur.
—Campbell não parece muito feliz com nosso acerto. Eu não gosto da forma em que vos olha - disse voltando o olhar para ela e arqueando uma sobrancelha de tal modo que parecia algo menos casual — Há algo que deveria saber lady Anna?
Amaldiçoou Arthur por sua imprudência. Arruinaria tudo. E para que? Já tinha tido oportunidades mais que suficientes para mostrar seus sentimentos, se é que albergava alguns. E agora não ficava opção. Seu pai contava com ela.
Mesmo assim duvidava. Essa seria sua última oportunidade para voltar atrás. Seu coração puxava em uma direção, e o dever e sua família puxavam a outra. Anna recordou a conversa mantida com sir Arthur. O ouvir falar de perder a guerra a tinha feito tremer. Inspirou profundamente e se desembaraçou de todas as dúvidas. Seus sentimentos pessoais não importavam. Tinha que fazê-lo. Quando Bruce chegasse, teriam muitas mais possibilidades com Ross e seus homens ao seu lado.
Negou com a cabeça.
—Não, não há nada que deveria saber.
A certeza de sua voz pareceu convencer sir Hugh. Assentiu.
—Bem —disse lhe estendendo a mão — Venham, há algo que eu gostaria de mostrar e acredito que há certas coisas que deveríamos discutir.
Anna ignorou a dor que lhe oprimia o coração e sorriu, embora tremulamente. Sem nenhum olhar mais, deu a mão ao Ross e lhe permitiu que a tirasse do grande salão com seu futuro já mais que decidido.
Isso era o que se sentia quando as pessoas perdiam o controle. Isso era o que se sentia quando alguém queria algo com tanta vontade que mataria por consegui-lo. Não pelo bem ou o mal, nem por estar no campo de batalha, mas sim pela pura satisfação de ver outro homem atravessado pela ponta de seu aço.
Arthur queria matar Hugh Ross. Dava-lhe vontade de matá-lo somente pela forma em que olhava a Anna. Pelos pensamentos luxuriosos que seguro percorriam a mente daquele filho de cadela. Arthur não acreditava ser capaz de conter-se no caso de que o olhar do Ross se detivesse de novo sobre seus seios. Atiraria uma lança no seu sobrecenho do outro lado do aposento. Poderia fazê-lo com os olhos fechados. Ficar afastado durante os últimos dois dias obrigado a contemplar como outro homem cortejava a essa mulher que, supostamente, não significava nada para ele era como uma lenta e agonizante descida à loucura. Arthur liberava uma batalha perdida. Suas tentativas de permanecer indiferente, de centrar-se na missão, não funcionavam. Todos esses anos de treinamentos e experiência na batalha não o tinham preparado para aquilo. Ver Anna e Hugh Ross juntos estava lhe fazendo em pedaços. Mas essa noite foi a gota que encheu o copo. Quando viu Ross lhe acariciar a mão, Arthur esteve a ponto de sair da ali feito uma fúria e lhe partir todos os dentes num murro. Ao diabo com o subterfúgio. Estavam rindo, maldita seja. Rindo.
Queria convencer-se de que ela não seria capaz de passar por isso. Não seria porque Anna não se mostrou precavida a respeito ao cavalheiro durante os últimos dois dias, precisamente. Mas Arthur tinha subestimado sua resolução, e também o encanto de sir Hugh. Quando se aproximou para lhe sussurrar ao ouvido teve que apertar os punhos. Não foi até que baixou o olhar e percebeu a palidez de seus nódulos que se deu conta de quão forte tinha a taça obstinada. Foi toda uma sorte que fosse de madeira; de outro modo, a teria destroçado.
Amaldiçoou consciente de que devia fazer algo. Tinha que pensar em sua missão. Sir Hugh não perdia tempo, e não é que pudesse culpá-lo. Se Arthur não fazia nada para impedir aquela aliança, seria muito tarde. Bebeu o conteúdo da taça. O uisgebeatha de cor ambarina fez que ardesse a garganta, mas não acalmou absolutamente a intranqüilidade que bulia em seu interior.
—Que diabos te passa, Campbell? Parece que queira matar a alguém - disse Alan MacDougall olhando de soslaio ao estrado. Sabia perfeitamente a quem queria matar Arthur. Aproximou-se para falar — Tome cuidado. Acredito que nosso anfitrião advertiu seu interesse por minha irmã.
Arthur economizou a vergonha de negá-lo. Alan MacDougall podia ser filho de um déspota desumano, mas não era nenhum idiota.
—E viestes para ordenar que me retire do conflito?
O guerreiro mais velho, muito experiente para delatar-se pela expressão de seu rosto, olhou-o com impassibilidade.
—Queres que o faça?
Arthur contraiu a mandíbula e apertou os dentes.
—Deveria — disse em um estranho momento de franqueza.
Não faria mais que arruinar sua vida. Se ele fosse seu irmão, ordenaria que o mandassem ao inferno diretamente e logo iria ele mesmo atrás. Mas se Alan pensou que havia algo estranho em sua resposta certamente não o exteriorizou. Em vez disso, sorriu com ironia.
—Parece-me que é muito tarde para isso.
Arthur afastou o olhar de sir Hugh e de Anna o tempo suficiente para olhar ao Alan enviesadamente. Não tinha idéia do que Alan acreditava saber, mas se equivocava. Ou não?
Diabos, já não sabia. Sua missão. Ciúmes. Sua intensa atração pela moça. Tudo isso se mesclava criando um caos absoluto. Voltou a beber de um gole o conteúdo da taça.
Alan observou como o fazia com uma expressão divertida.
—Acreditava que não bebia uísque.
—Não bebo - disse Arthur, e fez gestos à criada para que lhe enchesse a taça.
Alan estivera observando-o com mais atenção da que pensava. Aquilo o teria preocupado a não ser porque algo lhe fez voltar sua atenção para o estrado. Todos seus músculos ficaram rígidos quando viu que Anna deslizava sua mão sobre a do Ross. A ira percorria todo seu corpo ao mesmo tempo em que aquele homem se inclinava para falar brevemente com seu pai momentos antes de acompanhá-la ao exterior do salão. Justo antes que Hugh passasse pela porta olhou para Arthur. O tom malicioso de seu olhar fez que lhe gelasse o sangue. Uma sensação estranhamente próxima ao pânico subia por seu peito, algo ridículo por completo. Era um guerreiro de elite. Distante. Controlado. Pode ser que seu coração pulsasse muito depressa e que não pensasse com claridade, mas era indisputável que aquilo não podia ser pânico.
Mas onde demônios acreditava que ia? Ross, esse filho de puta lascivo, estava obviamente ansioso pelo compromisso. Quem sabia do que seria capaz para assegurá-lo? Acaso Anna não notava do que aconteceria quanto estivessem a sós? A mente de Arthur voltou para os barracões imediatamente.
«Por todos os diabos.»
Conseguiu resistir durante uns trinta segundos até que já não pôde agüentar mais. Levantou-se para partir, mas Alan o deteve movendo sua perna pela borda da mesa e lhe fechando o passo. Não era nenhum acidente. A princípio Arthur acreditava que queria detê-lo, mas para sua surpresa o guerreiro retirou a perna lentamente e lhe deixou passar, não sem antes fazer uma advertência.
—Se fizer mal a minha irmã, Campbell, terei que te matar.
Apesar de que falasse com tanta calma como se informasse o tempo, Arthur era consciente de que dizia muito sério. Que diabos, se Alan não fosse seu inimigo e o filho de um déspota, pode ser que inclusive lhe caísse bem. Arthur o olhou nos olhos e assentiu, com a suspeita de que Alan MacDougall não seria capaz de manter sua promessa. Pôr fim ao compromisso e deter a aliança, fazendo dano a Anna no processo, converteu-se em algo inevitável.
Anna esperava que sir Hugh a levasse fosse para passear pelo barmkin, mas em vez disso a fez entrar pelo corredor até a torre da comemoração. O castelo real do Auldearn fora construído uns cem anos antes por encargo do Guillermo o Leão. Sua torre da comemoração e o grande salão contíguo se erguiam no alto de um enorme Castro circular rodeado por um cerca de madeira. O muro de pedra que rodeava o pátio de armas que havia debaixo proporcionava um nível mais de defesa. O corredor iluminado pelas tochas parecia silencioso em comparação com o bulício do grande salão. Anna se inquietou ao ser consciente de que não havia ninguém mais ao redor. Embora os últimos raios de sol ainda reverberassem sobre o horizonte, a torre de pedra estava já às escuras. Tampouco a luz cintilante das tochas alinhadas nos muros lhe dava mais tranqüilidade.
—A…aonde vamos? — perguntou envergonhada pelo tremor de sua voz.
Sir Hugh lhe dirigiu um enigmático sorriso que fez que Anna se perguntasse se saberia a impressão que causava nela.
—Já quase chegamos.
Deteve-se frente à porta da câmara particular do conde. Uma vez aberta, Anna aliviou comprovar que a estadia estava bem iluminada pelo castiçal de ferro circular que pendia do teto. Infelizmente, Hugh a levou até outra porta que havia cruzando a sala, com o que Anna percebeu de que aquele não era seu destino final. O segundo aposento estava às escuras. Anna ficou na câmara até que sir Hugh acendeu umas velas. Então ficou sobressaltada.
Anna se esqueceu de seu nervosismo. Apressou-se a entrar no minúsculo aposento, não muito maior que uma despensa, e olhou com surpresa a seu redor. O centro da sala estava presidido por uma mesa e um banco, mas o que enchia seu assombro era o que havia sobre as paredes. Prateleiras e mais prateleiras cheias de grossas folhas de couro, alguns deles recobertos de ouro e outros com jóias incrustadas. Um tesouro oculto. Mais livros dos que tinha visto em sua vida em um só espaço.
Sir Hugh observou em que modo a maravilha e a incredulidade transformavam seu rosto.
—Pensei que isto poderia lhes interessar.
Anna deu uma palmada de puro prazer; seus dedos estavam impacientem por explorar os títulos. Por Deus bendito, se pareciam quatro volumes do Chrétien do Troyes!
—É magnífico — disse voltando-se para ele — Como sabias?
Hugh Ross encolheu de ombros.
—Em certa ocasião mencionaram que desfrutava da leitura.
Anna inclinou a cabeça e o olhou. Uma vez mais sentia como se o tivesse julgado mal.
—E se lembrou?
Sir Hugh não respondeu, mas a olhou de tal forma que um formigamento de inquietação lhe percorreu as costas. Desejava-a. De repente aquele minúsculo aposento pareceu uma armadilha a Anna. Olhou para a porta, mas já fosse intencionadamente ou não, ele se tinha colocado frente a ela lhe cortando o passo.
—por que me trouxestes aqui? —perguntou.
Sir Hugh deu um passo adiante e seus olhos brilharam de maneira perigosa entre as penumbras. Pegou-a pelo queixo e a obrigou a olhar em sua direção. O pulso lhe acelerou de pânico. Talvez fosse uns cinco centímetros mais baixo que sir Arthur, mas em certo modo seu tamanho lhe parecia ameaçador. Anna teve que reunir todo o valor com o que contava para não sair correndo.
—Queria lhes mostrar o que terá quando fores minha esposa. Esta sala estará a sua disposição. Será uma das damas mais importantes do reino. Para isso viestes, lady Anna. Não é assim? Para reatar as conversações sobre nosso compromisso.
—Sim - sussurrou ela, tentando controlar o tremor de sua voz.
Hugh cravou o olhar em seus olhos, desafiando-a.
—É isso o que quer realmente?
O coração lhe pulsava com fúria. Teve que obrigar-se a assentir.
—Sim.
—Então prove — pediu. Ela piscou de maneira inquisitiva — me beije.
Anna abriu os olhos de par em par pela surpresa.
Lutava por saber o que dizer. Mas, pelo amor de Deus, não podia. E ele sabia. Endureceu o olhar.
—Está jogando comigo, lady Anna? Asseguro-lhes que não tenho nenhum desejo de ser o corno de outro homem. Recorde que são vocês quem acudis a mim nesta ocasião. —Sir Hugh lhe pôs um dedo no lábio inferior e Anna conteve o fôlego, paralisada pelo medo — Decida o que quer antes de fazer algo que não possa ser desfeito. Uma vez estejamos comprometidos, asseguro-lhes que não tolerarei tais tolices.
As bochechas de Anna se avermelharam, envergonhada por quão certas eram suas acusações. Sacudiu o medo tentando recordar por que tinha ido até ali, tentando recordar quão importante era conseguir essa aliança para ela. Não podiam deixar escapar essa oportunidade. Por que se comportava como uma estúpida? Somente se tratava de um beijo.
—milorde, o temporal…
Ao ver que lhe soltava o queixo, Anna suspirou mostrando maior alívio do que devido.
—Temos que retornar ao salão - disse Ross fria e secamente — Seu irmão se estará perguntando aonde a levei.
Anna assentiu, sentindo sua impotência, consciente do que devia fazer, mas incapaz de pronunciar as palavras. Que o diabo levasse Arthur Campbell pelo que estava fazendo com ela! Por confundi-la. Ela estava preparada para levá-lo a cabo antes que ele voltasse a aparecer.
—Se não lhes importar, meu senhor, estou cansada e preferiria me retirar a meus aposentos.
Sir Hugh assentiu.
—Não há pressa. Querem tomar um livro emprestado, talvez? —Olhou-o nos olhos, consciente de que tentava tentá-la — Podemos falar sobre isso manhã.
Hugh Ross deu meia volta para partir, mas algo o fez mudar de idéia. Antes que ela pudesse conscientizar do que se dispunha a fazer, já a tinha atraído para si e a estava beijando. Anna ficou paralisada, muito surpreendida para resistir.
Seus lábios eram frios e duros, em consonância com sua pessoa. Acertou a distinguir um leve aroma a vinho, mas antes que pudesse descobrir algo mais já tinha acabado tudo. Sir Hugh baixou o olhar e sorriu ao ver o rosto de surpresa que Anna tinha posto.
—Têm toda a noite para decidir. Mas se quiserem que o compromisso siga adiante, espero que me dêem uma resposta amanhã. Uma que seja algo mais entusiasta que esta.
Ross não se fazia uma idéia do perto que estava da morte. Arthur apertava a adaga em sua mão, tentando controlar a sede de sangue que percorria suas artérias com cada um dos músculos. Tudo que tinha que fazer era dar um par de passos, sair de seu esconderijo depois das sombras do vão da porta e afundar sua folha no mais profundo das vísceras daquele filho de cadela.
Tinha-a beijado. Tinha-a tomado entre seus braços e tinha grudado sua boca a dela. Algo se rompeu em seu interior. Todos seus instintos lhe diziam que tinha que sair dali e matar ao homem que se atrevia a tocar aquilo que lhe pertencia. Mas algo deteve sua mão no último momento. Matar ao Ross poria fim a sua missão. Veria-se obrigado a fugir, acabando assim com sua oportunidade de destruir ao Lorn. Teve que aferrar-se ao mínimo de controle que ficava para não mover-se, mas deixou que Ross saísse do aposento. Deixou-lhe viver. Por essa vez.
Entretanto, Anna não escaparia a sua ira tão facilmente. Asseguraria-se de que não houvesse mais que uma resposta à manhã seguinte. O compromisso que ela tinha planejado estava a ponto de chegar a um final irrevogável.
Anna seguiu os passos do Ross apenas se desvaneceram suas pegadas. Assim que chegou à porta, Arthur saiu de entre as sombras e lhe fechou o avanço.
Ela ficou sem fôlego. Todo o medo que pudesse sentir logo desapareceu para dar passo ao brilho de ira que incendiava seu olhar.
—Como te atreve a me espiar? —exclamou. Tentou afastá-lo de seu caminho, mas ele imobilizou seus pulsos com uma mão — Deixe-me partir. Não tem nenhum direito.
Voltou a colocá-la no aposento e fechou a porta atrás dele.
—Tenho todo o direito —disse Arthur com fúria — Não se casará com ele.
Advertiu o rubor de suas bochechas à luz das velas. Seu busto, esses incríveis seios, tão grandes que não podia deixar de sonhar com eles, enchiam-se com uma indignação justificada. Anna ergueu o doce rosto com seu adorável e teimoso queixo para ele.
—Sim o farei.
Não gostava desse tom absolutamente. Nenhum pingo. Entreabriu os olhos.
—Nem sequer podia lhe beijar - disse aproximando-se mais a ela e aspirando a sensual calidez de sua fúria — Como pensa que será então deitar-se com ele?
A indignação de Anna se traduziu em um áspero gemido. A Arthur não cabia a menor duvida de que lhe teria parecido uma adaga entre as costelas se tivesse uma. Mas sua língua era igual de efetiva estripando-o.
—Suponho que chegarei a me acostumar. É possível que inclusive desfrute. Sir Hugh é um homem muito arrumado. E parece bastante decidido, não acredita? —disse lhe provocando com o olhar, desafiando-o, voltando-o louco — Se parecer em algo a esse beijo imagino que chegarei a desfrutar muito disso.
Agarrou-a pelo braço.
—Pare — disse agitando-a ante si — Pare.
Parecia estar a ponto de explodir. Suas provocadoras palavras exaltavam ao máximo aqueles sentimentos contidos durante tanto tempo. Uns sentimentos que Arthur não queria reconhecer. Uns sentimentos que não podia permitir que aflorassem. A cabeça lhe dava voltas. Queimava-lhe o peito. Deus, doía demais. Tinha que fazê-la parar.
—Por quê? —perguntou Anna aproximando-se mais a ele. Arthur sentiu seus mamilos lhe roçando o peito e teve que sacudir-se realmente, pois todo o controle com o que contava seu corpo pendia de um fio. O calor o puxava para um vórtice de luxúria e desejo. Queria esmagá-la contra si. Beijá-la. Possuí-la até deixá-la sem sentido. Fazê-la gritar seu nome e nenhum mais que o seu — Por que teria que parar? É a verdade. Sir Hugh me deseja muito como um homem que vê o que quer e não se detém ante nada até que o consegue.
Era consciente de que não fazia mais que provocá-lo, mas não lhe importava. Arthur sabia perfeitamente o que queria, maldita seja. A ela. Renegou, consciente de que a batalha estava perdida. Tomou entre seus braços e pregou sua boca a dela, cedendo a esses poderosos impulsos que liberavam uma guerra em seu interior. Beijou-a como jamais antes tinha beijado a mulher alguma. Beijou-a com toda a paixão que acumulava desde que a visse pela primeira vez. Beijou-a para que não seguisse falando. Beijou-a para apagar as odiosas imagens com as que tinham enchido sua cabeça. Beijou-a de modo tal que não pudesse voltar a pensar em outro homem em sua vida.
Não obstante, uma vez que Anna se fundiu ante ele em uma rendição silenciosa e abriu sua doce e pequena boca para recebê-lo com um suspiro e um gemido, Arthur não pensou mais em missões, alianças, clãs inimigos ou vingança. Não. Tudo assim que pensava era em fazê-la sua.
Capítulo 15
Anna sabia que se precipitava e que estava provocando-o, mas não lhe importava. A ira não lhe deixava ver mais que sua necessidade de arremeter contra ele. Odiava-o por intrometer-se, por fazê-la duvidar, por interferir em seus planos. Não queria outra coisa que proteger a sua família e manter a salvo às pessoas que amava. E quando tinha a oportunidade de conseguir, Arthur Campbell se interpunha em seu caminho.
Confundia-a. Desorientava-a. Fazia que tomasse carinho e logo a separava de seu lado. Em um momento a salvava e a protegia e ao seguinte a ignorava. Era um ingrato, um homem que se mantinha à margem e dava a impressão de não necessitar a ninguém. Mas também era um homem que estava sozinho, alguém afastado por seus próprios dons, obrigado a viver um tanto afastado de outros.
Queria-a? Necessitava-a?
Em qualquer dos casos teria que decidir-se. O tempo se esgotava para ambos. Era consciente de que estava ciumento, consciente de que tinha visto o beijo que lhe deu sir Hugh, consciente de que lutava por manter o controle. Assim o provocou.
Desejava-o com tanta vontade… A essa distância o único em que podia pensar era em seu doce aroma. E em que o aspecto desalinhado que lhe dava a escura sombra de sua barba o fazia mais arrumado ainda. No alto que era. A enmembrodura de seu peito. O suave que se viam seus lábios embora estivessem brancos de ira. Em que o daria tudo por que tomasse entre seus braços e não a abandonasse nunca. A dor rasgava seu peito como uma faca. Por que não a queria? Por que se reprimia?
Isso foi o que a levou a provocá-lo de maneira temerária, desesperada, com intenção de lhe ferir tanto como ele a feria. E se era mentira? E o que lhe gelava o sangue com somente imaginar-se na cama com outro homem? Desfrutar? Mal podia deixar de tremer de medo em presença de sir Hugh.
Então ele se desmoronou e Anna obteve sua recompensa. Encontrou-se em seus braços, com a boca de Arthur pegada à sua, beijando-a com toda essa paixão e emoção com que ela tinha sonhado. Ele a devorava com a boca e a língua, enquanto ela gemia e se entregava mais e mais a seu beijo, morrendo por sentir cada dobra de sua pele. Deslizava suas enormes mãos sobre ela de modo possessivo. Passou-a por suas costas e depois sobre os quadris, até que desceram para agarrar seu traseiro. Então rugiu de agrado sobre sua boca e a beijou com mais força ao mesmo tempo em que a acoplava firmemente contra seu corpo.
As sensações se desatavam em seu interior em um ataque de calor resplandecente.
OH, Deus, aquilo era perfeito. Seu peito contra o dele, os quadris colados e a dura confirmação do desejo masculino introduzindo-se entre suas pernas de uma maneira íntima. Era consciente de que o tamanho e o tato teriam que assombrá-la, mas o único que sentia era a excitação, uma excitação que fazia lhe acelerar o coração, sua pele se ruborizasse e sentisse comichões por todo o corpo.
Estavam cobertos um com o outro, mas aquilo não bastava. A cada delicioso roce de sua língua, a cada possessiva carícia de suas mãos, crescia a inquietação no interior de Anna. Respondeu a seu atrevimento com mais atrevimento. Agarrava com firmeza os duros músculos de seus braços, seus ombros e suas costas. Queria sentir cada centímetro de seu corpo sob os dedos, modelar seus músculos com as palmas de suas mãos. Conter toda sua força baixo elas.
Aquilo a fazia sentir… embriagada de desejo. Era a primeira vez na vida que tinha uma experiência de tal calibre. Seu corpo parecia ressuscitar. Reagia aos estímulos de maneira natural, como se soubesse o que estava fazendo. Tudo ocorria muito rápido para pensar. O desejo a tinha feito sua presa e não parecia disposto a soltá-la.
Aproximava-a de seu corpo cada vez com mais urgência, esfregando sua virilidade contra a mais feminina de suas partes. A fazia sentir estranha, com comichões, quente, ofegante. Mas não era suficiente. Ávida de fricção, sedenta por encontrar uma conexão mais profunda, descrevia círculos com seus quadris e se esfregava com essa grosa coluna de carne com mais força.
Arthur percorreu seu pescoço com a boca e a devorou com seus beijos. Sua barba de dois dias fazia sulcos em sua pele em chamas. O aposento jogava fumaça e ardia de paixão. Agarrou-a pela cintura e deslizou as mãos até seus seios. Anna ofegou e se pegou quanto pôde a seu membro viril ao mesmo tempo em que arqueava as costas procurando suas mãos. Arthur murmurou algo parecido a uma imprecação e roçou seus turgentes e ofegantes mamilos com os polegares enquanto sua boca se dava de presente com a tenra pele que aparecia por cima do corpete.
Estava muito quente. Sentia-se débil. Lânguida e pesada. Parecia que suas pernas não contassem com forças para sustentá-la. Desabou-se sobre Arthur, que a puxou de novo sobre a mesa para acalmá-la, e talvez também para acalmar a si mesmo. Aquele cavalheiro, que mostrava um controle tão férreo sobre si, parecia sofrer apuros igual aos selvagens e frenéticos dela.
Os escuros e sedosos cabelos de Arthur se derramaram sobre seu peito. Anna, incapaz de resistir, passou os dedos entre essas suaves ondas e o apertou contra si com força e ternura. A umidade de sua boca transpassava o tecido do vestido para chegar até seu mamilo ao mesmo tempo em que acariciava seus seios e os rodeava com suas mãos.
Mas não era suficiente.
Então sua língua pareceu perceber essa frustração e entrou sob o corpete. Um gritou escapou dos lábios de Anna ante tamanha perversão, ante o delicioso prazer que sentia. Aquela boca estava muito quente. Passou-lhe a língua de um lado a outro, até que pensou que já não poderia resistir mais. Retorceu-se contra ele suplicando para que desatasse a voragem que se formava em seu interior.
Por fim lhe deu um puxão do vestido até quase romper o tecido e o abriu para liberar seus seios. O frio ar soprou sobre sua pele e provocou formigamentos ali onde a tinha beijado.
—Jesus — exclamou Arthur, como se aquilo doesse — É incrivelmente bela.
Provavelmente ouvir sua voz teria quebrado seu estado de transe, mas Arthur cobriu seu ofegante mamilo com a boca e começou a chupá-lo antes que Anna pudesse acolher-se a esse momento de iluminação. Essa doce e aguda sensação a fez gritar. Era um prazer tão agudo que se aproximava muito à dor. Atendia-a com os dentes, dava-lhe linguadinhas e sugava sua cálida boca cada vez com mais intensidade. O calor se estendeu entre suas pernas em uma corrente de umidade. Sentia comichões em suas suaves carnes inflamadas.
Tinha-a aprisionada contra a mesa com as pernas abertas. Montou uma delas sobre seu quadril ao mesmo tempo em que se inclinava para lhe beijar o seio. Os ferozes pulsar do coração de Arthur troavam contra seu peito, seus músculos se esticavam da excitação e a cobriam com todo o peso de seu corpo. E Anna estava quente. Tão quente que queimava. Excitada até o ponto de não retorno.
Arthur deslizou a mão sob o vestido até fazer contato com a pele. Suavizou o impacto acariciando o mamilo pausadamente entre seus dentes. Então voltou a cobrir sua boca com beijos, e suas mãos… Céu santo estava colocando as mãos entre suas coxas! Envergonhada, tentou fechar as pernas. Mas ele não o permitiria. Sua boca a distraía com os longos e pausados movimentos de sua língua, ao mesmo tempo em que ele entrava em sua umidade com os dedos. O corpo de Anna tremeu ao sentir o contato. Seus protestos se dissolveram em uma onda de alívio estremecedor. Aquilo dava muito prazer. Um prazer surpreendente.
—Jesus, é tão doce…
Deixou de beijá-la e Anna se perguntou se teria feito algo indevido, até que percebeu de que era ele quem estava passando mal, tentando conter-se, como se lutasse por controlar-se. Como se tocá-la o tivesse despojado de suas últimas reservas de contenção. Como se muito em breve não pudesse controlar-se. Ficou olhando-a nos olhos ao mesmo tempo em que introduzia seu dedo nela com um pequeno e firme empurrãozinho. Aquele era o momento erótico mais perverso de sua vida. Tomou fôlego em uma tentativa de estabilizar as sensações, mas estas se precipitavam sobre ela em rápidas ondas que não davam trégua alguma. Acariciou-a. Primeiro com círculos pequenos e suaves, depois com mais força, mais rápido, com impulsos profundos e frenéticos que pareciam decalques dos beijos que acabava de lhe dar.
A sensação que se formava em seu interior era muito intensa. Muito poderosa para ser contida. Esticava-se e recuava em um endiabrado redemoinho de necessidade. Seu rosto era uma máscara de dor. O suor se acumulava sobre suas sobrancelhas. Arthur a olhava nos olhos de modo escuro e penetrante, agarrando-a de tal forma que o coração lhe estalava de felicidade. Anna por fim via a verdade em seus olhos, o que intuía desde o começo. Essa conexão que havia entre eles era especial. E também ele a sentia.
Não sabia o que lhe estava acontecendo, mas era perfeito. Cada uma de suas carícias a levava até limites que era incapaz de compreender. Retorcia-se de frustração. Seu corpo inteiro clamava por…
—Te relaxe, amor —sussurrou Arthur — Quero te fazer voar.
O som aveludado de sua voz abriu caminho através dos últimos vestígios de sua repressão de criada. Ficou sem respiração até que pareceu que seu corpo se faria em pedaços devido ao intenso prazer que procuravam os agudos espasmos e teve que libertar todo o ar em um gemido estremecedor. Era o momento mais maravilhoso de sua vida, mas à medida que olhava o escuro interior desses olhos com bolinhas douradas, soube que não era suficiente. Tinha satisfeito sua paixão, mas seu coração ainda palpitava pela necessidade de realizar-se. Queria uma conexão mais profunda. Queria senti-lo em seu interior. Queria ter tudo dele. Para sempre.
«Quero-te.» É obvio. Estava tão claro, era tão certo, que se perguntava como poderia ter sido de outra maneira. Guerreiro. Cavalheiro. Isso pouco importava. Porque em seu coração, Anna sabia que tinha encontrado ao homem com quem estava destinada a compartilhar sua vida.
Arthur já não podia esperar mais. A pressão se acumulava na base de sua coluna como um punho quente e conectava com a vibrante ponta de um membro que pedia alívio, que a tocasse, que atendesse a seus agudos gritos e ofegos de prazer e sentisse como seu corpo se derretia e se estremecia ao rodeá-la com a mão. Apertou os dentes tentando refrear-se, consciente de que estava a ponto de gozar como não o tinha feito antes na vida.
Jesus, que beleza mais embriagadora: cabelos dourados como o mel que se dispersavam atrás de sua cabeça e resplandeciam diante da luz das velas; olhos aturdidos e inflamados pela paixão; seios de formas perfeitas, grande e suave, que saía de seu corpete mostrando um pequeno e arrepiado mamilo avermelhado por suas dentadas.
Tinha o aspecto de uma fêmea no cio que clamava ao céu para que a montassem. «E esta fêmea é minha. Toda minha.».
«Jesus», repetiu para si a meio caminho entre a prece e a imprecação. Jamais antes havia se sentido de tal modo. O desejo o consumia.
—Arthur —choramingou ela — Lhes rogo isso.
O brutal desespero de sua voz foi o último fio de que precisava atirar. Não podia esperar mais para introduzir-se nela. Virtualmente rompeu a fivela e as ligaduras de suas meias e calções para liberar seu inchado membro. Mas tirar o membro de seu confinamento para que lhe desse ar não servia de grande alívio. A única coisa que lhe serviria para aplacar a dor nesse momento era estar dentro dela. Levantou uma de suas flexíveis e sedosas pernas de formas perfeitas, passou-a por trás de seu quadril e se colocou diante daquela abertura cálida e deliciosamente úmida. A próxima vez se tomaria seu tempo em saboreá-la, lhe colocar a língua e fazer que se gozasse sobre sua boca.
Não deixou de olhá-la em nenhum momento. Não se atrevia a afastar o olhar dela por medo de que se perdesse a poderosa conexão que se produziu entre ambos. Teria que ter sentido ao menos a sombra de uma dúvida, ter a sensação de que aquilo que fazia estava mal. A honra era importante para ele, apesar de que o código de cavalaria não o fosse. Mas não sentia nada disso. O único em que pensava era que não podia perdê-la, que tinha que fazê-la sua, e se era capaz de fazer isso, todo o resto sairia bem. Quando a sensível cabeça de seu membro se encontrou com o úmido calor de seu ninho, Arthur exalou um profundo som gutural de puro prazer. Esfregou-se contra sua suave umidade e se deteve ali, consciente de que uma vez dentro seria muito tarde. Tinha o corpo em chamas e todos os músculos em tensão, preparados para fazer entrada. Notava-se o pulso nas veias. Nas orelhas. Até nos ossos. Parecia-lhe ter a pele tensa e ardendo.
«Empurrar.» Deus, que vontade tinha de empurrar. Jamais teve tanta vontade de preencher, de meter-se profundamente em nenhuma mulher. Sabia que seria algo incrível. Seu corpo se ajustaria a ele como uma luva quente e o espremeria com puxões largos e duros até lhe fazer cair profundamente na mais absoluta das inconsciências. Queria ver como se movia sob seu corpo impulsionado pelo poder de seus embates, como levantava os quadris para acompanhar cada uma de suas profundas investidas. Queria ver como seu membro entrava e saía dela.
Apertou os dentes, sentindo uma necessidade de afundar-se nela virtualmente irrefreável. Mas não podia a machucar. Assim que se obrigou a ir devagar. Estimulou-a com sua grossa ereção para que se acostumasse ao tamanho e a força de seu membro e esfregou a ponta com sua umidade para facilitar a entrada. E coberta de maravilha. A pressão se acumulava na base de sua coluna e puxava cada vez com mais força.
Não pôde agüentá-lo mais. Começou a empurrar. Ela gritou, surpreendida.
«Jesus.» Apertou os dentes. O suor se acumulava sobre suas sobrancelhas. O sangue palpitava em suas veias. Tentador. Tão incrivelmente tentador… Tinha que tomar-lhe com calma e com cautela. Deus estava louco por gozar. Ficava muito pouco…
Um leve som penetrou aquela bruma.
Arthur sentiu um premonitório calafrio na nuca e ficou paralisado. O ar tinha mudado. Separou-se dela amaldiçoando enquanto todo seu ser estalava em protestos.
—Te cubra - disse, e lhe deu um puxão no vestido ao mesmo tempo em que tentava atar os calções torpemente.
Mas era muito tarde, ou muito cedo, se atendia à frustração que ardia em seu testículo nesse preciso instante. A porta se abriu de repente. Sir Hugh Ross estava atrás dela, com seu acerado olhar atento a cada detalhe do que acontecia no interior.
Apesar de que se trabalharam em excesso em vestir-se rapidamente, nada podia dissimular o que estavam fazendo. Anna seguia recostada sobre a mesa com as bochechas acesas e os olhos aturdidos, Arthur seguia entre suas pernas e a sala se achava impregnada com o quente e pesado ambiente que corresponde à almiscarada fragrância do emparelhamento, ou em seu caso do emparelhamento frustrado.
Anna ficou sem respiração. O horror apagou as marcas de prazer que ruborizavam seu rosto. Arthur se colocou frente a ela instintivamente, tentando afastar a de seu olhar, como se o escudo de seu corpo pudesse protegê-la do veneno que destilava o outro homem. O silêncio sepulcral, somente salpicado pelo crepitar das chamas, estendeu-se além do incômodo. Sir Hugh permanecia ali petrificado, com uma quietude exagerada, como se estivesse aguardando para equilibrar-se sobre eles. Arthur o observava como um falcão, esperando a primeiro sinal de movimento. Diabos, como gostaria que o fizesse.
—Ouvi um grito e me perguntei se lhe tinham feito mal - disse ao fim sir Hugh com o gesto torcido pelo asco e umas palavras que transpiravam contenção — Mas suponho que não necessitavam resgate.
A exclamação angustiada de Anna lhe partiu o coração. Arthur, consciente de que tinha que protegê-la da ira de sir Hugh, deu a volta e tomou pelos ombros.
—Vá para seus aposentos - disse bruscamente. Anna quis discuti-lo, mas ele a deteve — Falaremos mais tarde que isso. Agora mesmo preciso falar com sir Hugh. Permita que me encarregue disto.
Olhou-a nos olhos. A via confusa, horrorizada e atemorizada há um tempo, disposta a romper a chorar de um momento a outro. A Arthur custava respirar. Era como se lhe retorcessem o coração com uma faca. Ele tinha provocado isso. Era culpa dele. Sacudiu-a com cuidado, tentando fazer que se centrasse.
—Entendeste, Anna? —Então ela o olhou com um rosto tão perdido que lhe deu vontade de voltar a acolhê-la em seus braços — Tudo irá bem — prometeu, consciente de que aquilo não era certo.
Como poderia ir bem aquilo? Não só estava mentindo, mas sim, além disso, acabava de destruir toda possibilidade de aliança com o Ross e sabia quanto significava isso para ela. Anna amava a sua família. Falhar seria algo que… a faria pedaços.
Anna assentiu e a confiança cega que emanava seu olhar lhe fez sentir todo o peso da vergonha em seu interior. Era um completo filho de puta. Um filho de puta desalmado. Jamais poderia perdoar-se pelo que estava lhe fazendo. Anna não merecia. O que merecia era estar a salvo e protegida, ter um lar feliz, um marido que a amasse e seis ou sete crianças puxando suas saias. Ele nunca poderia lhe dar isso. Abandoná-la e lhe romper o coração, isso era quão único faria. Pode ser que não a tivesse despojado de sua virgindade, mas sua inocência desapareceria igualmente quando descobrisse a verdade sobre ele.
Lá onde fazia um momento reinava o desejo não ficava mais que pena e dor. Sir Hugh não se moveu de sua posição à entrada, mas assim que Arthur acompanhou Anna à saída, Hugh Ross se pôs a um lado para deixá-la passar. Arthur, sentindo-se esquecido na salinha, seguiu-a até o aposento principal. Não era muito maior, mas ao menos ali teria espaço para manobrar se fosse necessário. Sir Hugh parecia disposto a brigar e ele tinha tanta vontade ou mais de lhe dar guerra. Justo antes de sair Anna, olhou-o com incerteza.
—Vá - disse com doçura, tentando acalmar seus temores.
Então seu olhar reparou em sir Hugh e seu rosto se contraiu. O cavalheiro não se dignaria a olhá-la, mas cada uma dos nobres e orgulhosas dobras de sua pele irradiavam animal adversão. Arthur franziu os lábios, com uma vontade tremendas de matar a aquele homem por ferir seus sentimentos. Anna não tinha culpa de nada. Tudo era coisa dela. «Jesus.» Conscientizar-se disso foi como um soco. Tinha-o feito a propósito? Fosse essa sua intenção desde o começo? O que queria era acabar com qualquer opção de aliança. Não, mas não desse modo. Nunca quis levá-lo a tal extremo. Embora sim que tinha superestimado sua capacidade de controle e menosprezado a intensidade de seus desejos por ela. Era o único culpado de meter-se nesse esfregado. Fora ele quem tinha transpassado os limites, algo que não reportaria mais que dor para ambos.
—Deveria te matar — disse Ross assim que se fechou a porta.
O cavalheiro tentava intimidá-lo, mas Arthur aceitou o desafio.
—E por que não o faz?
O olhar do Ross se endureceu.
—Porque então teria que explicar os motivos.
A certeza de sua voz fez que Arthur sorrisse. Tinham mais ou menos a mesma idade e eram bastante semelhantes quanto à altura e músculos. Mas não quanto à destreza. Arthur não seria quem iria morrer. Sir Hugh, não obstante, não tinha nem idéia disso. Então por que…? A razão foi a ele de repente.
—E não quer que ninguém saiba que a moça o humilhou pela segunda vez. Primeiro ao rechaçar sua oferta e logo ao agarrá-la com outro homem ante seu nariz.
A verdade da acusação causou seu efeito no rosto do Ross, que avermelhou de ira, criando um marcado contraste com os sulcos brancos de seus lábios franzidos.
—Desfloraste-a?
Arthur apertou a mandíbula. Aquilo não era assunto seu absolutamente. Encheu de vontade de mentir, de reclamá-la para si, mas disse a verdade, já que queria salvar o que pudesse da reputação de Anna.
—Não.
Os olhos do Sir Hugh se mostravam frios.
—Mas o teria feito de não o tivesse interrompido.
Arthur encolheu os ombros, como se aquilo não fosse de sua incumbência. Ross deu um passo para ele com a mão na espada.
—Maldito filho de cadela! É um cavalheiro. É que não têm honra? Era uma mulher comprometida.
Arthur se moveu com rapidez. Pôs em prática uma manobra que tinha aprendido com Boyd e deixou o braço do Ross fosse de combate, obrigando-o a soltar a espada. Depois lhe retorceu esse mesmo braço pelas costas e o imobilizou fazendo contrapeso com seu próprio corpo.
—Não. Não estava comprometida.
Ross tentou escapar por ato reflito, mas seus movimentos só serviam para que Arthur lhe retorcesse mais o braço e lhe infligisse mais sofrimento.
—Estava a ponto de comprometer-se —disse entre dentes com uma voz cheia de dor — O matarei por isso! Solte-me!
—Não até que cheguemos a um entendimento a respeito do ocorrido aqui. Não quero que isto afete à moça. Não é culpa dela.
Ross teve a inteligência de optar por discuti-lo, mas Arthur percebia a raiva em seus olhos. Retorceu-lhe o braço com mais força, provocando que o furioso guerreiro gritasse.
—Por que voltou? —perguntou Arthur.
—Ouvi um grito…
—Uma merda - cortou Arthur.
A não ser que possuísse sentidos tão finos como os seus, era impossível que tivesse ouvido algo. Ross lhe dirigiu um olhar assassino. De sua sobrancelha caíam gotas de suor dolorido.
—Vi como a observava e que ela tentava não o olhar por todos os meios. Sabia que nos seguiria.
Arthur amaldiçoou.
—O que era isto então, uma prova de fogo?
—Não pensava permitir que tirassem o sarro. Não me casarei com uma mulher apaixonada por outro homem. Por muita vontade que tenha de fo…
Retorceu-lhe mais o braço.
—Não —disse — Não o diga.
Arthur, consciente do perto que estava de lhe partir o braço, optou por afastá-lo de seu lado de um forte empurrão. Ross tinha razão respeito a algo: quanto menos tivessem que explicar, melhor. Sir Hugh soltou ar e se massageou a parte superior do braço e o ombro. Mas havia algo em seu olhar que a Arthur fazia perguntar-se se o tinha posto a prova de novo. Se esse grosseiro comentário do Ross teria a intenção de provocar uma reação. Se for assim, tinha funcionado.
—Importa-te - disse Arthur, precavendo-se disto, na verdade era algo mais que uma aliança política para ti.
Ross não respondeu com palavras nem por meio da expressão de seu rosto, mas Arthur sabia que tinha acertado. Diabos, quase dava pena aquele pobre filho de cadela.
—Mas sabe o que é que a trouxe até aqui?
Uma vez recuperada as sensações em seu braço, Ross voltou a olhá-lo com desconfiança.
—Sim. Para conseguir apoio na luta contra Bruce. Esperava conseguir sua mão sem ter que recorrer a isso.
Arthur ficou olhando-o e o compreendeu tudo ao fim.
—Seu pai não tinha intenção de enviar homens com ou sem compromisso, não é certo? —Não era preciso que Ross respondesse. «Por todos os demônios.» Arthur tinha vontade de matá-lo ali mesmo — E a deixaram pensar que…?
Ross encolheu os ombros.
Maldito patife. Demônios, de não ser Anna a quem manipulava, Arthur teria admirado sua determinação.
—Partiremos assim que tenhamos tudo preparado. Depois de que informe Anna e sir Alan do que acaba de me contar.
O outro homem se mofou.
—E por que diabos eu ia fazer tal coisa?
Arthur deu um passo para ele com atitude ameaçadora. Em honra de Ross terá que dizer que não se moveu. Mas Arthur advertiu a inquietação em seus olhos.
—Porque não quero vê-la mais afetada do que já está. E apesar do que tenha passado aqui, não acredito que vocês queira isso tampouco.
Ficaram olhando durante um momento até que Ross assentiu. Arthur se dispôs a partir.
—Campbell. —Arthur deu a volta e viu que Ross seguia agarrando o ombro machucado — Onde aprendeu a fazer isso?
Arthur torceu a boca com dissimulação.
—Faça o que combinamos dito e talvez te conte isso algum dia.
Anna limpou as mãos em suas saias e procurou acalmar a náusea que ameaçava subindo por seu estômago ao mesmo tempo em que observava a quantidade de homens que se congregava no salão para tomar o café da manhã. Encontrou-se inconscientemente procurando Arthur, como se ver seu rosto pudesse lhe dar essa coragem que tanto necessitava. Ao não encontrá-lo sentado junto aos homens de seu irmão, disse que não havia por que preocupar-se. Ainda era cedo. A noite anterior Arthur tinha enviado a uma criada para lhe dizer que já estava tudo arrumado e que não tinha que preocupar-se.
«Não tenho que me preocupar.» Como se tal coisa fosse possível depois do que tinha acontecido. Pode ser que sua considerada mensagem não servisse para aliviar sua noite sem descanso, mas o apreciou igualmente. Ao menos se economizava o temor de que um dos dois estivesse morto ou em alguma masmorra desconhecida.
Respirou profundamente, obrigou-se a erguer o peito e erguer o queixo e entrou no salão. As pernas mal podiam sustentar do tanto que tremiam e seu coração batia contra a caixa torácica como as asas de um pássaro. Todos seus instintos clamavam por que fugisse, mas obrigou a seus pés a seguir adiante.
Sangue de reis corria por suas veias. Era uma MacDougall, não uma covarde. Apesar de que não quisesse mais que ocultar-se em sua câmara, fazer um novelo com seu corpo e pretender que nada disso tinha ocorrido o certo era que sim tinha ocorrido. Como mínimo devia uma desculpa a sir Hugh. Quando pensava no que tinha feito…
Revolvia-lhe o estômago. A vergonha a alagava. Não por sucumbir aos encantos de Arthur, já que não se envergonhava da paixão que existia entre eles, mas sim por falhar a sua família e aproveitar-se horrivelmente de sir Hugh no processo. Ele não se merecia aquilo. O orgulhoso cavalheiro não tinha feito mais que tratá-la com carinho. Não era culpa dela que estivesse apaixonada por outro homem.
«Apaixonada.» Inclusive sopesando a enorme gravidade do que tinha feito, um pequeno raio de felicidade aparecia por trás das nuvens de desesperança. Amava-o. E também ela significava algo para ele. Tinha que ser assim.
Mas esse pequeno lapso de alegria em seu coração só servia para fazê-la sentir mais culpada. Ao encontrar o amor tinha falhado a sua família. Como poderia chegar a perdoar-se? Tinha arruinado tudo. Seu pai e seu clã completo ficavam sozinhos ante o Robert Bruce. Depois do que sir Hugh havia presenciado na noite anterior não teria aliança.
Acenderam-lhe as bochechas ao recordar, ao considerar o que devia pensar aquele homem dela. «Puta. Rameira.»
Quase esperava ouvir vaias ao atravessar o salão para chegar até o assento do estrado junto ao homem ao que tinha ofendido. Mas sua entrada não causou nenhum comentário fora do habitual. O conde e a condessa a receberam com gentilezas usuais, igual fez seu filho quando tomou assento junto a ele.
Embora cada bocado que dava piorasse o enjôo que lhe punha o estômago de reverso, tinha que obrigar-se a comer. À medida que avançava a comida, sua ansiedade não fazia mais que aumentar. O breve intervalo de bom humor que entreviu em sir Hugh no dia anterior tinha desaparecido, algo não muito surpreendente. Estava sentado junto a ela completamente rígido, muito orgulhoso e imbuído do código de cavalaria para ignorá-la completamente, mas muito perto de fazê-lo. Agradeceu a presença da irmã do Hugh do outro lado da mesa e do ajudante do Ross a seu lado, que rompiam os incômodos momentos de silêncio.
Anna era consciente de que tinha que dizer algo, mas não sabia como tirar o tema em um entorno tão público. Seguia esperando que chegasse o momento oportuno quando sir Hugh se levantou da mesa e se desculpou para ausentar-se.
—Espere! —exclamou Anna, advertindo que vários olhos se voltavam em sua direção e que talvez tivesse falado muito alto.
Sir Hugh baixou o olhar para olhá-la e lhe dedicou toda sua atenção pela primeira vez. Anna procurava não morrer de vergonha enquanto ele esperava a que se pronunciasse.
—Eu… — disse o primeiro que veio à cabeça, desejando tê-lo feito antes, quando outros não prestavam atenção ao que dizia de maneira tão óbvia — Faz uma manhã estupenda. Se não estiver muito ocupado, pensei que poderiam me mostrar os arredores do castelo, como prometera.
Não lhe tinha feito tal promessa e se o fizesse saber, deixando clara sua pretensão de ficar a sós com ele, teria recebido o que merecia. Sir Hugh a olhou nos olhos e Anna por um momento pensou que se negaria a fazê-lo, mas ao que parecia puderam mais suas sensibilidades cavalheirescas. Fez uma reverência e lhe tendeu a mão.
—Será todo um prazer, milady.
Tal e como tinha feito poucas, mas significativas horas antes, permitiu que a acompanhasse ao sair do salão. Se o incomodava as falações de curiosidade que lhes seguiram não o mostrou em nenhum momento. Nessa ocasião, ao chegar ao final do corredor, conduziu-a ao exterior, ao pátio de armas. Havia um monte de gente daqui para lá: soldados praticando e protegendo as entradas, serventes atendendo a suas obrigações e um fluxo contínuo de homens passando através das portas do castelo, mas ninguém lhes prestava muita atenção.
—Há algo em particular que deseje ver? —perguntou ele.
Para ouvir a secura de sua voz o olhou de esguelha sob o véu de suas pestanas. Ele sabia que se tratava de uma desculpa, e das más. Anna negou com a cabeça.
—Sinto muito. Tinha que falar contigo —disse detendo-se para olhá-lo bem nos olhos — Devo me desculpar pelo ocorrido na noite passada. —Ao ver que franzia mais o cenho lhe falharam os nervos. Mas tinha que fazê-lo. Machucava a mão de apertar tanto os punhos. Não era capaz de falar disso com calma, de maneira que explodiu e soltou — Não posso oferecer mais desculpa pra dizer quanto sinto.
Sir Hugh ficou olhando-a nos olhos durante um momento e logo assentiu. Anna pensou que daria a volta e a deixaria ali, mas surpreendentemente a levou até um lugar afastado da fortificação de onde podiam ver muros longínquos e a cidade do Nairn ao fundo. Fazia vento e teve que acomodar atrás da orelha uma mecha de cabelo rebelde. Mas depois dessa noite de escuridão o resplendor do sol sobre seu rosto era rejuvenescedor.
—Ama-o?
Anna ficou petrificada. Não sabia o que esperava que dissesse, mas certamente isso não. Sir Hugh não parecia um homem que outorgasse muito valor nem desse muito crédito ao amor romântico. Parecia muito prático e frio para tudo isso. Mas merecia saber a verdade.
—Sim - disse em voz baixa.
—Mas teriam casado comigo para conseguir mais homens para seu pai?
Tal e como disse, de repente parecia que aquilo estivesse mal. Embora o matrimônio e a obrigação fossem parceiros, era o amor o que importava menos.
—Sim - disse Anna, sentindo que o desespero de sua situação cavalgava sobre seu peito. Apelou a seus sentimentos para que a compreendesse — Não entende? A única maneira de lutar contra os rebeldes é unir forças. Se nossos clãs se unirem poderemos derrotar ao usurpador. Somente nos arriscamos à derrota.
Por sua reação não pareceu que suas palavras tivessem influência alguma nele. A expressão de seu rosto permanecia severa e implacável. Era estranho. Agora que já não havia esperança de um compromisso entre ambos, todo o medo e o nervosismo de Anna pareciam desaparecer.
—Não pode absolver de toda culpa, lady Anna. —Ela o olhou inquisitivamente, protegendo os olhos do sol para lhe ver melhor. Sua boca se torceu em uma estranha careta — Meu pai não tinha intenção alguma de enviar homens ao Lorn.
Ficou sem respiração pela surpresa.
—Mas o compromisso… Permitiram que acreditasse que… — Hugh Ross encolheu os ombros como se não lhe importasse nada. Um arrebatamento de cólera penetrou através do sentimento de culpa de Anna — E quando me pensava contar isso?
—Teria-na informado com tempo suficiente.
—Depois de que anunciássemos nosso compromisso?
Ele se enfrentou à acusação de seus olhos sem alterar-se.
—Talvez.
—Mas por quê?
Pareceu interpretar mal sua pergunta a propósito.
—Não temos homens de sobra. Bruce virá também por nós e quando o fizer… —disse com palavras que se levava o vento — O rei Robert é muito poderoso. Nossos aliados nos abandonaram. Os Comyn, os MacDowell, os ingleses. Meu pai tem muito que perder.
Sir Hugh ficou com o olhar perdido além dos muros, para o pequeno reino que se estendia a seus pés. Tratava-se de um movimento revelador e teve que conter o fôlego ante o que significava. Muito que perder. Seu pai não pensava arriscar.
—Não —disse Anna dando um passo atrás — Não podem! Seu pai não pode render-se. Bruce o assassinará pelo que fez a sua esposa e a sua filha.
Falava sem pensar, e estava claro que o que fez seu pai quando violou o santuário e entregou às mulheres de Bruce aos ingleses não era algo que sir Hugh quisesse que o recordassem. Pela primeira vez, Anna viu algo um pouco parecido à vergonha em suas orgulhosas feições.
—Bruce prometeu perdoar a todos nobres que estavam contra ele que se renderem.
—E acreditam na palavra de um traidor? De verdade confiam em que o rei Hood perdoará a seu pai e aos sediciosos de Ross e Moray? Apenas se consumaram os fogos da perseguição ao Buchan.
Não discutiu com ela. Mas apertava fortemente a mandíbula quando disse:
—O que outra opção fica? As voltas mudaram a favor de Bruce. O povo pensa que é um herói, um guerreiro que derrotou aos ingleses. Render-se pode ser a única maneira de sobreviver. Meu pai está disposto a morrer se isso significar a continuidade do clã.
A cabeça de Anna dava voltas. Jamais, nem em suas mais escuras expectativas, teria imaginado que Ross se renderia. O que significaria isso para seu clã? Faria seu pai o mesmo? Não, seu pai jamais se renderia. E pela primeira vez Anna se precaveu de quão caro poderia lhes custar.
Preocupada com o que sir Hugh acabava de lhe confiar, Anna não encontrava muito consolo em saber que sua conduta não era reprovável.
—Obrigado por me contar isso.
Ele a olhou com atenção.
—O que fará?
—Lutar - respondeu.
Embora fosse sozinhos. Que mais podiam fazer?
—Casará com o Campbell?
Anna se ruborizou. Depois do que tinha passado a noite anterior era algo natural assumir que… Mas não tinham tido oportunidade de discutir seu futuro. Ele pareceu compreender seu silêncio.
—Conhecem-no muito bem?
O tom de advertência de sua voz despertou aquela vozinha de sua consciência que trabalhou em excesso em sossegar.
—Sir Arthur chegou ao Dunstaffnage faz um mês junto a seu irmão em resposta à chamada que fez meu pai aos cavalheiros e mercenários.
Aquilo pareceu lhe confirmar algo.
—Há algo estranho nele. Algo que não se enquadra. Não é quem parece ser.
Anna saltou em sua defesa imediatamente, pensando que sir Hugh se fixou nas incomuns habilidades de Arthur.
—É muito reservado —disse — custa a comunicar-se.
Sir Hugh a olhou inquisitivamente, como se quisesse acrescentar algo, mas em vez disso simplesmente assentiu. Foi um alívio que dissesse que se encarregaria de explicar tudo a seus pais e seus irmãos sem fazer menção alguma à situação comprometedora em que a tinha encontrado, acordando dizer que não combinavam um para o outro.
Para quando a acompanhou de novo até a torre Anna se sentia muito mais relaxada. Uma vez mitigada parte da culpa, permitiu-se viver um pouco da felicidade que supunha descobrir que o homem ao que amava tinha sentimentos por ela. Não podia esperar para lhe ver e falar com ele. Surpreendentemente, dadas as intimidades que tinham compartilhado, não estava envergonhada. Inclusive nesse momento, depois de todo o acontecido, parecia o correto.
Estava a ponto de subir o primeiro dos degraus que fossem do pátio à torre quando olhou à esquerda e viu que sir Arthur saía dos barracões. O coração lhe deu um tombo. Sorriu e deu um passo para ele de maneira instintiva, mas logo se deteve de repente. Levava a armadura e estava claro que se preparava para praticar, mas podia entrever seu rosto o suficiente sob a viseira do elmo.
Não era que esperasse que corresse pelo pátio a seu encontro, ao menos não com sir Hugh ainda a seu lado. Mas um olhar de carinho seria bom. Algo em comparação com esse rosto de arrependimento, sim, inclusive de vergonha, que escurecia seus bonitos traços. A alegria que fez saltar seu coração se consumiu e o devolveu ao chão de repente das alturas. Advertiu como sir Hugh ficava em guarda ao conscientizar do que ela tinha visto.
Arthur desviou o olhar para o outro cavalheiro. Podia sentir a animosidade acesa entre ambos. Foi Arthur quem se retirou primeiro. Saudou-os com uma inclinação da cabeça e se dirigiu a reunir-se com o resto dos guerreiros. Anna dizia a si mesma que não devia estar decepcionada, que não tinha que exagerar sua reação. Já falariam mais tarde. Em particular. Provavelmente o que adivinhava em seus olhos não era mais que imaginações.
Mas as seguintes palavras de sir Hugh lhe disseram o contrário.
—Se a coisa não for como espera, lady Anna, eu estarei aqui.
Um homem com quem podia contar.
Rezava por que Arthur também o fosse.
Capítulo 16
Demoraram mais do que Arthur pensava em sair do castelo de Auldearn. Alan MacDougall se encerrou em sua câmara com o conde, seu conselheiro e sir Hugh durante três dias mais, no que Arthur assumiu como uma tentativa de persuadir ao Ross para unir forças, apesar da ausência de compromisso. Felizmente, os esforços do Alan foram úteis. Dado que não tinham lhe contado os detalhes, Arthur não pôde estar seguro das razões do conde, mas o rechaço era um bom augúrio para o rei Robert. Passaria a informação assim que tivesse oportunidade de fazê-lo. Não acreditava que eles tivessem irradiado nenhuma mensagem, mas revisaria os pertences do Alan e de Anna para assegurar-se disso, assim que tivesse ocasião.
Saíram de Auldearn ao amanhecer, fazendo o mesmo trajeto de na semana anterior em sentido contrário e forçando o ritmo o primeiro dia para chegar a salvo mais à frente do castelo. Os homens, contagiados do humor de seu senhor e sua dama, pareciam perceber que as coisas não tinham ido como esperavam e a nuvem do fracasso se abatia sobre as cabeças dos viajantes. Levava uma predisposição algo sombria, por não dizer decididamente mal-humorada.
Arthur sabia que teria que sentir-se aliviado e satisfeito de ter completado sua missão. Ross e Lorn não uniriam forças. O fracasso dos MacDougall serviria como incentivo para aproximar de Bruce um passado mais para a vitória e a Arthur um passado mais para a destruição de seu inimigo. Assegurar-se de que John de Lorn pagava pelo que lhe tinha feito a seu pai era o que mais ansiava no mundo. Não era certo? Assim devia ser, maldita seja. Mas temia que aquilo lhe custasse muito mais do que pensou em um primeiro momento.
Coberto atrás de seu elmo podia ceder à tentação de olhá-la. De novo essa sensação, molesta e penetrante. Não era só consciência o que o remoia, a não ser algo mais. A dor que aguilhoava seu peito quando a olhava era virtualmente insuportável. Mas não fazê-lo parecia mais doloroso ainda.
Anna cavalgava na frente dele, junto a seu irmão e a criada, com o que somente oferecia seu perfil ao voltar-se. Arthur não precisava olhá-la para saber que o silêncio a respeito do ocorrido entre ambos lhe doía. E muito. Deus Santo, o que tinha feito? E o que era mais importante, que demônios faria a respeito? Agora que estavam longe do castelo já não podia evitar o tema nem evitá-la por muito mais tempo. Sabia o que devia fazer. Não precisava ser um cavalheiro para conscientizar de que depois do perto que estivera de lhe arrebatar a virgindade, a escassos centímetros literalmente, deveria a pedir em matrimônio. Não havia dúvida de que era o que ela esperava. E o que cabia esperar. Isso faria um homem com honra. Mas esses escassos centímetros lhe serviam de suficiente desculpa para não fazê-lo. A batalha que livrava em seu interior era cada vez mais cruel. Todos seus instintos exigiam que se aproximasse dela, que cedesse aos sentimentos e, por que não falar, maldição, às emoções que brigavam em seu interior. Mas a outra parte de seu ser, a racional, puxava-o para evitar maiores males.
Embora ele mesmo quisesse esquecer-se disso em algumas ocasiões, o certo era que a enganava. E estava claro como a água que não podia lhe dizer a verdade. Seu dever e sua lealdade pertenciam ao Bruce. Nenhum dos sentimentos que albergasse poderia mudar aquilo. Estavam em lados opostos de uma rixa a ponto de desatar-se. Ao final ela descobriria sua filiação verdadeira e se inteiraria de que a única razão que o tinha levado ao Dunstaffnage fosse espiar e propiciar a destruição de sua família. Sabia que pedi-la em matrimônio só serviria para que a traição final tivesse conseqüências muito piores.
Era uma situação impossível e tinha consciência de tê-la criado ele mesmo. Teria que ter-se afastado dela, mas suas boas intenções ficaram transbordadas por seu sorriso, vitalidade, doçura e amabilidade. Quando olhava o interior desses grandes olhos azuis começava a ter saudades de algo que nem sequer sabia que queria. Gostava de estar sozinho, maldita seja! Parecia mais fácil e muitíssimo menos chato. Entretanto Anna o fazia ansiar algo que ele não poderia permitir-se oferecer, à vista do que estava por chegar. E fazê-la sofrer desse modo, não ser capaz de fazer algo para mudar, partia-lhe a alma. Cada vez lhe custava mais concentrar-se em suas tarefas.
Embora não se voltasse para olhá-lo, Arthur sabia que ela era tão consciente de sua presença como ele mesmo. Advertiu a maneira em que seus ombros ficavam tensos quando situou seu cavalo atrás deles. Richard e Alex partiam em cabeça explorando o terreno, de modo que Arthur ficou ao fim para assegurar-se de que ninguém os seguia. Aproximava-se o final da primeira jornada da viagem e tinham que proceder com especial cautela agora que se aproximavam do castelo do Urquhart, lugar em que tinham aparecido os homens de Bruce quando foram para o castelo do Ross. Novamente, teriam que fazer uma boa volta para o oeste do caminho para evitar as patrulhas da fortaleza «inimiga».
—Pegue milady —ouviu que dizia sua criada — Lady Euphemia pediu ao cozinheiro que as prepare especialmente para ti em vista que gostas.
A anciã tentou enrolá-la com os doces, mas Anna negou com a cabeça em uma pobre tentativa de sorriso que lhe cravou outra pontada no coração.
—Não, obrigado, não tenho fome.
A criada se zangou, franziu os lábios e mastigou a delícia de amêndoas sem entusiasmo algum. Mal teve acabado de mastigar quando voltou para a carga e tirou de sua bolsa o que parecia um pequeno bolo de carne.
—O que me dizem de um pastezinho de cevada com cordeiro? —disse, cheirando-o teatralmente — Cheira divinamente. E ainda está quente.
Anna voltou a negar com a cabeça.
—Coma se quiser. Eu comerei quando nos detivermos.
A criada murmurou para si.
—Tem que comer algo, milady - urgiu entre murmúrios, ao mesmo tempo em que fulminava Arthur com o olhar.
Este apertou a mandíbula, adivinhando a quem culpava a criada pela falta de apetite de sua senhora.
—Comerei - disse Anna para apaziguá-la. Chamou a seu irmão, que cavalgava um pouco mais adiante — Quando pararemos para passar a noite, irmão?
—Logo, espero - respondeu Alan olhando a seu redor e fazendo gestos a Arthur ao ver que tinha retornado. Este se armou de valor e fez como lhe pediu, levantando o visor de seu elmo ao passar entre o punhado de cavaleiros que lhes separavam — Viu algo suspeito?
Arthur negou com a cabeça.
—Por agora não. Estaremos seguros quando voltarem Richard e Alex, mas se não ter nada extraordinário, poderemos nos deter o anoitecer como tínhamos previsto.
—Não voltaremos para lago em que acampamos a vez anterior?
Era ela quem falava. Arthur voltou o olhar lentamente, incapaz de evitá-la por mais tempo. Mas não estava preparado para o calor abrasador que lhe atravessaria ao encontrar-se com seu olhar. Ele, que apenas se movia quando uma flecha se afundava no mais profundo de seu ombro, quando uma espada lhe abria as vísceras nem nas numerosas ocasiões em que não tinha apanhado a adaga de seu irmão com suficiente presteza, sobressaltou-se ao ver a tristeza e a pergunta sem formular de seus olhos.
Parecia fatigada, de uma fragilidade insofrível. Umas pequenas linhas sulcavam as comissuras de seus olhos e sua pele estava muito mais pálida do normal. Apertou os dentes, lutando contra a desesperada necessidade que sentia de dar o que ela queria.
«Peça-a em matrimônio.»
Maldição, não podia fazê-lo. Não faria a não ser piorar as coisas.
—Não, milady —respondeu sem alterar a voz — Será mais seguro que não voltemos sobre nossos passos. Acamparemos em lugares diferentes cada noite. Há uma cascata na floresta dos pagamentos do Dhivach, ao sudeste do castelo, onde começa a ravina. Faremos pernoite ali.
Anna assentiu com cara de querer acrescentar algo, mas consciente de que não estavam sozinhos.
—Falta muito?
—Cinco ou seis quilômetros. Deveríamos chegar antes do anoitecer.
—Eu… — Anna deixou a frase pela metade. Não obstante, o modo em que o olhava era desencorajador — Obrigado.
Quando Arthur se decidiu a afastar o olhar se surpreendeu comprovar que um dos homens do Alan se situava atrás dele. Ficou circunspeto, mas estava muito imerso em sua própria confusão para atender à advertência.
Ao que parecia um das arcas de Anna não estava bem presa e caiu do carro. Arthur agradeceu a interrupção quando viu que Anna e sua criada fossem ao fim da fila para assegurar-se de não perder nada. Mas era consciente de que não poderia postergar a inevitável discussão por muito mais tempo. Isso ficou assegurado certamente pelas palavras de Alan antes de partir para ver o Richard e Alex.
—Não sei que diabos passou em Auldearn, Campbell, mas minha irmã está triste. —O cavalheiro cravou o olhar em Arthur com uns gélidos olhos azuis que não mostravam compaixão alguma. Depois de tudo, era filho de seu pai — Arrume ou me encarregarei eu de fazê-lo.
Arthur franziu o cenho até adotar uma expressão sombria. Não se incomodou em pretender que não sabia ao que se referia. A ameaça não lhe inquietava. O que lhe inquietava era que não podia fazer o que o irmão de Anna lhe pedia. Nada poderia arrumá-lo.
—Por que está me evitando?
Arthur, assombrado, ficou em pé de repente, fazendo saltar a armadilha que estava preparando. Tinha o surpreendido. Algo que Anna apostava que não ocorria muito freqüentemente. Talvez essa confusão que ela percebeu em seus olhos não foi imaginação. Olhava-a com uma saudade mal reprimida, mas algo o fazia conter-se.
O desengano que sentiu na primeira manhã não fazia mais que piorar a cada dia que passava. Ainda não tinha ido a seu encontro, por não falar de oferta de matrimônio alguma. Anna queria convencer-se de que simplesmente esperava para falar com seu pai, mas isso não explicava por que fugia dela.
—Está me seguindo outra vez, Anna?
Se tentava distrair ficando à defensiva, não funcionaria.
—Não sei como poderia dizer que te sigo quando o acampamento está a poucos passos daqui - disse assinalando os arranjos e cordas — Vi que tirava a armadilha da bolsa e supus que não iria muito longe.
Inspecionou suas feições, meio escondida entre as sombras. Ao menos ficava uma hora de luz solar, mas sob o espesso manto das árvores da floresta parecia quase noite fechada. Anna deu um passo para ele e estreitou o vão que os separava. Arthur franziu o cenho e todo seu corpo ficou rígido. Anna percebeu de que lhe moviam as aletas do nariz, como se o incomodasse tê-la tão perto. As lágrimas foram a seus olhos. Por que se comportava desse modo? Acaso era tão desagradável?
—Ides responder-me? —disse com uma voz quebrada pela emoção e a incerteza dos últimos dias. Queria pôr a mão sobre o peito para tranqüilizar-se, mas temia que ele retrocedesse e isso a fizesse pedaços — Acaso não mereço uma explicação?
Arthur suspirou e se separou dela com o pretexto de passar os dedos entre os cabelos. Embora ainda levasse posta a armadura, tirou o elmo e seu cabelo castanho escuro caía em suaves ondas sobre a borda da cota de malha.
—Sim, moça. Merece uma explicação. Tinha intenção de falar contigo uma vez que tivéssemos comido.
Não sabia se acreditava, mas o deixou continuar. Ela já havia dito suficiente. Era a ele a quem correspondia falar.
—O que ocorreu foi - Formoso? Incrível? Perfeito? pensou Anna—… desafortunado. —A Anna parou o coração. Não era a palavra que esperava — Me envergonho de meu comportamento —disse Arthur com palavras que pareciam próprias do cavalheiro mais contido da corte — Jamais devia permitir que chegasse tão longe.
Anna o deteve em seco, incapaz de resistir por mais tempo o tom distante e o arrependimento de sua voz.
—Por que fala assim? Por que atua como se não significasse nada? —Arthur esticou a mandíbula mais ainda. A palpitação de seus batimentos no pescoço não pressagiava nada bom. Tentou afastar-se de Anna, mas ela o agarrou pelo braço. O peito lhe ardia — Significou algo, Arthur? —Este a olhou nos olhos com uma intensidade que queimava. Anna aspirou profunda e entrecortadamente através de sua oprimida garganta — Para mim sim.
—Anna… - Parecia estar liberando algum tipo de guerra interior. Anna notava a rigidez de seus músculos sob seus próprios dedos. Seu poderoso corpo parecia irradiar tensão — por que põem as coisas tão difíceis?
—Eu? És tu quem põe as coisas difíceis. É uma pergunta muito simples. Ou significou algo para ti ou não significou nada.
Manteve o olhar, negando-se a lhe permitir partir sem que respondesse algo. Arthur tinha o rosto desfigurado, como se o estivesse torturando.
—Não entendes.
—Têm razão. Não entendo. Poderia explicar isso?
- Somos completamente inadequados um para o outro.
—Não posso. —Olhou-a com dureza — É que não vê que jamais funcionaria?
«Meu Deus!» Pareceu engasgar-se com seu próprio coração quando percebeu o que acontecia. «Não pensa me propor matrimônio.» Como era possível que tivesse interpretado tão mal a situação? Não! Não o tinha feito. Havia algo mais que lhe escapava.
—Por que não?
—Somos completamente inadequados um para o outro. A família é tudo para ti. E para mim? Meus pais morreram quando era um pirralho. Meus irmãos levam anos lutando em lados distintos. Não sei nada a respeito de família.
—Eu posso lhes ensinar…
—Não quero que me ensinem - repôs isso Arthur, cortando-a com raiva — Eu gosto de estar sozinho. E você… —disse com um gesto da mão — Tenho certeza que não estivestes sozinha nem um dia em sua vida. Merece estar rodeada de família e amigos, com um marido que lhe adore e um monte de crianças puxando suas saias. Não me diga que não quer isso, porque sei que é isso o que quer.
Era certo que queria isso, mas com ele.
—Não quer ter crianças?
Sua boca empalideceu como se a pergunta, pensar nisso tão sequer, fosse doloroso.
—Não entende a situação.
—Eu? Paraste a pensar que talvez não se trate de que gosta de estar sozinho, mas sim de que alguma vez estivera com as pessoas adequadas? —disse fazendo uma pausa para que o considerasse. Compreendia as razões que lhe levavam a solidão, mas suspeitava que seria diferente em caso de ter uma família que o amasse, que o aceitasse — Se sentires algo por mim, o resto não tem importância. —O rosto de Arthur se mostrava duro como o granito, mas ela seguiu pressionando — Sente algo por mim, Arthur?
Manteve o olhar, desafiando-o a que mentisse. E Arthur parecia querer fazer, mas ao final o admitiu.
—Sim. Mas isso não importa.
Sentia algo por ela. Não tinha errado. Negou com a cabeça.
—Isso é tudo o que importa.
—Não insista, Anna. Acredite-me quando digo que não funcionaria. Jamais poderia lhes dar o que necessita. Nunca poderia te fazer feliz.
A frustração e a raiva buliram em seu interior.
—Como te atreve a presumir que conhece minha mente melhor que eu? Eu sei exatamente o que quero. Depois do que passou como não pode compreender que é o único homem que pode me fazer feliz? Não te dá conta de que te amo?
Sua declaração de amor foi tão inesperada para ela como parecia ser para ele. Fechou a boca de repente, mas era muito tarde. Suas palavras seguiam ressonando no repentino silêncio. Arthur ficou completamente quieto, com uma expressão não muito diferente de quem tivesse recebido uma flechada no peito. Não se podia dizer que fosse a reação que ela esperava. Não esperava que respondesse a sua declaração de amor. Em realidade não. Não nesse momento, ao menos. Mas tampouco esperava encontrar-se com o silêncio. Um silêncio que lhe rompia o coração lenta e cruelmente.
«Amo-te» As palavras zumbiam em seus ouvidos. Como um palpite. Uma chamada. Tentava-o, caramba, tentava-o. Arthur permaneceu quieto como uma pedra, sem permitir o luxo de acreditar. Não podia fazer. Porque se o fizesse, era possível que encontrasse a felicidade. Uma felicidade maior da que tinha desfrutado na vida.
Não dizia a sério. Estava confusa. Anna MacDougall entregava seu coração a todos. Isso era parte do que a fazia tão irresistível. Negou com a cabeça, como se tentasse convencer a si mesmo.
—Não sabes o que diz. Não podem me amar. Nem sequer me conhece.
—Como podem dizer isso? Pois claro que lhes conheço.
—Há coisas sobre mim que se soubessem…
Não podia dizer nada mais. Já havia dito muito. Suas habilidades perceptivas eram excepcionais. Anna franziu os lábios e ele reconheceu o brilho teimoso de seu olhar.
—Acreditava que já tínhamos passado por isso. Suas faculdades são um dom, e se demonstraram extraordinariamente úteis em mais de uma ocasião. —Ele não falava de suas habilidades, mas sim do fato de ser um espião ao serviço de Bruce. O fato de que não havia pessoa no mundo a quem odiasse mais que ao pai de Anna e que tinha esperado quatorze anos para destruí-lo. Mas dificilmente poderia lhe contar a verdade — Sei tudo aquilo que importa sobre você - continuou — Sei que prefere observar e escutar a falar. Que não gosta de chamar a atenção e prefere estar em um segundo plano. Sei que conta com habilidades valiosas que prefere ocultar porque acredita que o faz diferente. Sei que está convencido de que é diferente e por isso não necessita a ninguém, de modo que procura espantar aos outros antes que se aproximem de ti. Sei que passou a maior parte de sua vida no campo de batalha, mas que pode dirigir a pluma de maneira tão efetiva quanto uma espada. —deteve-se o tempo preciso para tomar fôlego. Ele teria que tê-la cortado, mas estava muito indisposto para falar — Sei que é inteligente e que têm um caráter tão forte como seu corpo. Sei que quando estou contigo me sinto segura. Que faz ver que nada lhes importa, mas que me defenderia com sua própria vida. Sei que um homem que sustenta em seus braços a um bebê e que mostra paciência com um cachorrinho que não tem feito mais em dar problemas tem um coração bondoso. —Anna baixou a voz até deixá-la quase em um sussurro, dissipada já toda sua ira — Sei que desde a primeira vez que me beijou senti que jamais teria outro homem para mim. Que quando ergo o olhar para olhar, vejo o rosto que quero ver durante o resto de minha vida. —Seus olhos, que brilhavam com lágrimas não derramadas, encontraram-se com os dele — Sei que é leal e honrado e que te importo, mas que há algo que o faz se conter.
«Jesus.» Era como se lhe desse um soco. Ninguém antes lhe havia dito nada parecido. O fazia sentir-se humilde. Comovia-lhe. Dava-lhe um medo de morte.
Tinha visto muito de sua pessoa. Não significava só um perigo para sua missão, mas também para ele em formas que jamais tinha imaginado. Endureceu a mandíbula e o coração.
—Vê o que quer ver, Anna, não a realidade. —A guerra. Seu pai. Ele. Estava cega diante das faltas daqueles aos que professava amor — Mas as garotinhas que acreditam nos contos de fadas acabam desenganadas.
—Não faça isso —sussurrou Anna — Não tente me espantar.
Isso era o que fazia. O que sempre fazia. E embora pela primeira vez não desejasse fazer, era o que tinha que fazer. Pelo próprio bem de Anna. Agarrou-a pelo braço com intenção de sacudi-la e fazê-la entrar em razão, mas foi um engano. Tocá-la não fez mais que avivar o fogo de suas emoções até quase lhe fazer perder o controle.
—Então não atue apoiada em contos infantis. Estamos em meio de uma maldita guerra. Bruce está a ponto de cair com todo seu exército sobre sua cabeça e mesmo assim quer planejar seu futuro. Não há futuro, Anna. Somente existe o dia de hoje. Diabos, quem sabe se terá um lar daqui a um mês.
Sobressaltou-se como se a tivesse golpeado.
—Acredita que não sou consciente disso? —Anna sossegou um soluço na garganta. Seus preciosos olhos azuis se nublaram com lágrimas, atiçando o fogo que consumia seu peito — por que pensa que acudi ao Ross? Sei perfeitamente o que está em jogo. Mas não pude fazer. Não podia fazer por causa de ti.
—Seu pai jamais devia ter te pedido isso - repôs.
A expressão de assombro de Anna fez que Arthur desejasse poder retirar o dito. Tinha a perspectiva de uma menina para seu pai, a do cavalheiro perfeito que não podia fazer nada mal. Outra dessas ilusões que ele ajudaria a destruir.
—Não me pediu isso. Foi minha idéia. Fala de guerra e de incerteza, mas posso lhes dizer uma coisa certa. Se não arriscar, se seguir espantando as pessoas de seu lado, assegurará sua solidão. É isso o que quer?
Apertava a mandíbula com tanta força que lhe doíam os dentes.
—Sim.
«Maldita seja.»
—Muito bem. Porque isso é exatamente o que conseguirá - disse ela; as lágrimas rodavam por suas bochechas — Não sei por que faz isto, Arthur Campbell, mas é um covarde.
Um acesso de raiva subiu por seu corpo. Não era um covarde. Somente tentava fazer o correto. Mas não lhe deixava fazer. Não fazia mais que pressioná-lo para voltá-lo louco com uns sentimentos que não lhe pertenciam. Não podia pensar bem. Não queria mais que tomá-la entre seus braços e beijá-la até que cessasse o martelar que sentia na cabeça, e no coração.
Possivelmente isso tivesse feito se pudesse, mas não teve a oportunidade.
—Que diabos está acontecendo aqui?
Arthur voltou com a cabeça ainda lhe dando voltas, ao mesmo tempo em que Alan aparecia no claro. Amaldiçoou. Estava tão absorto em Anna que não ouviu o mínimo ruído. Que demônios ocorria? Estava fosse de controle. Tinha que tomar as rédeas de suas emoções. Seus sentidos estavam mesclados e confusos. Distraía-se muito. Estava tão confuso… Somente uma vez antes havia sentido de tal modo: o dia em que morreu seu pai. Estava perdendo os papéis.
Tanto que não se preparou para o que vinha depois.
—Deixe-a em paz - vociferou Alan, arrancando-a de seus braços ao mesmo tempo em que lançava o primeiro murro direto a sua mandíbula.
A cabeça de Arthur se propulsou para trás ao receber o golpe em cheio. Uma explosão de dor se apoderou dele. Ficou cego por um resplendor branco.
Anna gritou aterrada.
—Alan, por favor! Não é o que parece!
Mas seu irmão não a escutava. Como prova de sua eficiência com ambos os punhos, alcançou Arthur do outro lado com outro golpe. Depois no ventre. Logo no flanco.
—Vos disse que o arrumasse maldita seja. Não que a fizesse chorar. Que demônios lhe têm feito?
Arthur não tentava defender-se. Não porque não pudesse. Era evidente que MacDougall tinha um braço como o martelo de um ferreiro, mas Arthur tinha aprendido suficientes truques do melhor lutador corpo a corpo das Highlands e era capaz de tombá-lo em poucos segundos. Não se defendia porque merecia o castigo. Diabos, merecia muito mais pelo que estava a ponto de fazer.
—Para! Para! —choramingou Anna com uma voz a borda da histeria — Está lhe fazendo mal.
Alan o arrastou pelo pescoço e o empurrou com força contra uma árvore.
—O que lhe têm feito? —perguntou fulminando a sua irmã com o olhar — Será melhor que um dos dois me diga que demônios passa aqui. —Nenhum deles respondeu. Alan olhava alternadamente a um e outro com o rosto aceso pela raiva — Não me tomem por um maldito idiota! Não pensem que acreditei nem por um momento que Ross decidiu dar para trás de repente! —disse olhando a Anna enquanto seguia apertando fortemente o pescoço de Arthur com a mão — O que passou em Auldearn? É que este filho de cadela te tocou, Anna? —perguntou lhe apertando o pescoço — Te tocou? —insistiu empurrando com mais força — O fez?
Arthur sentia que o nó se esticava em torno de sua garganta e não era pela mão do MacDougall. Não. Sabia que teria que responder pelo que esteve a ponto de acontecer em Auldearn.
— O solte! —Alan advertiu o pânico na voz de Anna. Ela tentava lhe puxar o braço, mas sem obter resultado — Sim, mas não é o que pensa.
De fato, devia ser exatamente como o pensava.
—Maldito velhaco do demônio! —disse MacDougall estampando a cabeça de Arthur de novo contra a árvore — O matarei por isso.
Arthur não duvidava de suas intenções. Nem tampouco de sua capacidade para fazer. Mas não podia permitir. Estava a ponto de libertar-se quando ouviu um pequeno zumbido seguido por um suave vaio.
«Flecha.»
Seus sentidos se abriram em uma explosão de clarividência. Olhou por cima do ombro do MacDougall e viu a ponta de ferro sulcando o ar, apenas a um segundo de impactar no cangote do MacDougall. Arthur não pensou. Simplesmente reagiu. Golpeou para cima o braço do MacDougall com o antebraço em um perfeito movimento para libertar seu pescoço das garras dele e atrás disto enroscou sua perna ao redor do tornozelo para desequilibrá-lo. MacDougall caiu ao chão justo antes que a flecha impactasse na árvore com um som seco ao que logo seguiram os dilaceradores gritos de ataque.
Ouviu a exclamação de terror de Anna, mas não podia voltar para acalmá-la. O primeiro dos homens acabava de emergir de entre as árvores com a espada em alto. De novo a reação de Arthur foi instantânea. Jogou mão ao punho de sua adaga, extraiu-a de sua capa e a lançou. O atacante emitiu um gemido quando a folha deu com os poucos centímetros desprotegidos da pele de seu pescoço. Cambaleou-se e caiu ao chão.
Para quando o seguinte dos homens saltou sobre eles MacDougall já tinha tido tempo para entender o que acontecia e se pôs em pé. Desembainhou a espada, girou sobre si mesmo e a ergueu bem a tempo para repelir uma cutilada que lhe teria arrancado a cabeça.
«Anna.» Arthur desviou o olhar do assalto que estava por chegar justo o tempo suficiente para assegurar-se de que ela estava bem. Encontrou-a resguardada depois da árvore, com os olhos cheios de terror. O coração lhe acelerou ao conscientizar-se de quão vulnerável era e logo se paralisou quando se deu conta de quão vulnerável isso fazia a ele mesmo. Não podia permitir que lhe acontecesse nada. Tinha que protegê-la. Mataria a todos se fosse preciso. Seus olhares se encontraram só por um segundo. Mas a forma em que se olharam foi de uma intensidade inegável e brutal.
—Permaneçam abaixados - disse com voz pausada, a pesar do fluxo de sangue que corria por suas veias.
Arthur se situou frente a Anna, cotovelo com cotovelo com o MacDougall, quem seguia lutando com seu oponente, e recebeu com sua espada a avalanche de atacantes que saíam de entre as árvores. Uma vintena de homens. Talvez mais.
Não teve que esperar muito para encontrar-se com o primeiro deles. Pela primeira vez em quase dois anos, desde que se visse obrigado a abandonar os Guardiões das Highlands para infiltrar-se em campo inimigo, Arthur se deixou ir e lutou com toda a destreza e o frenesi que tão cuidadosamente mantinha ocultos. Tombou ao primeiro dos homens com um virulento movimento de espada, girou-se e aproveitou a inércia para derrubar ao seguinte.
Foram por ele com mais virulência. Mas não importava. Era como uma máquina de guerra que arrasava tudo o que saía a seu caminho. Três. Quatro. O ruído do metal sobre o metal atravessava o sombrio ar noturno, mesclando-se com os gemidos e os gritos da batalha. Esses sons tinham alertado aos homens do acampamento, que felizmente estava a poucos metros dali, e os soldados do MacDougall começaram a aparecer na pequena clareira, já envolto em uma escuridão absoluta. Mas os atacantes esperavam a chegada dos reforços. Em realidade o tinham planejado e aguardavam o momento. Saltavam das árvores à medida que eles abriam caminho por baixo e caíam sobre os despreparados homens do clã MacDougall.
—Vamos! —disse Arthur tentando lhes advertir — Disperse.
Se não se dispersavam os fariam pedaços com a facilidade que se cortam arenques de um barril. Mas essa foi toda a advertência que pôde fazer antes que os seguintes adversários distraíram sua atenção. Tinha a dois homens sobre ele. Dois homens com nasais, mantos obscurecidos e as características manchas de cinza negra nos rostos.
O pavor se instalou em seu estômago com o peso de uma pedra.
Os atacantes eram homens de Bruce. Pois claro que eram. Viu os corpos pulverizados no chão ante ele, homens que ele tinha matado, e veio um acesso de bílis à garganta. Jesus, no que estava pensando? Nem sequer pensava. O instinto de amparo para a Anna ultrapassava todo o resto. Mas era pior do que imaginava. Enquanto tentava incapacitar aos dois homens que lhe atacavam sem chegar a matá-los, um terceiro homem se uniu à refrega. Um homem que brandia duas espadas. Movia-se como um raio e foi a Arthur com uma ferocidade sem igual inclusive entre seus companheiros de elite dos Guardiões das Highlands.
Arthur se encontrou cara a cara na escuridão com LachlanMacRuairi e amaldiçoou para si.
Capítulo 17
Ocorreu tudo muito depressa. Em um momento tentava evitar que seu irmão assassinasse ao homem que amava e no seguinte estavam sendo atacados. Dizer que a situação era perigosa era pouco. De seu posto escondida entre as árvores, Anna se obrigava a respirar levianamente entre o estrepitoso pulsar de seu coração e observava com horror como aqueles homens caíam sobre eles como uma praga de gafanhotos. Pareciam que fossem centenas de inimigos contra só dois guerreiros.
Arthur parou os pés ao primeiro com tal superioridade que lhe pareceu algo bizarro. Mas então chegou o seguinte. E outro mais. Ficou olhando cheia de assombro como despachava sem esforço algum a todos quantos saíam a seu encontro. Sua destreza era tão extraordinária, mostrava tal superioridade, que parecia estar vendo outro homem. Tinha o espiado suficientes vezes enquanto praticava para reconhecer a diferença. Fazia que seu irmão, conhecido como um dos cavalheiros mais destros das Highlands parecesse um escudeiro. Arthur era mais rápido. Mais ágil quanto à técnica e movimentos. E o que era mais significativo, mais forte. Podia sentir como reverberava a terra com a força de seus golpes. Quando um de seus oponentes conseguia acertar com uma cutilada, o braço de Arthur apenas se movia ao bloqueá-lo e absorvia a força do impacto como se fosse nada. Seu braço… Os olhos lhe puseram como pratos. Era o braço direito.
Não entendia. Arthur era canhoto. Ao menos supunha que era, mas nesse momento, em somente observá-lo, sabia que estivera fingindo. Por que ocultaria algo assim? E por que não o tinha visto alguma vez antes lutar desse modo? Podia compreender os motivos para ocultar seus incomuns aguçados sentidos, mas não havia nada inapropriado em ter destreza no manejo da espada. Deus, poderia ser um dos cavalheiros mais venerados do reino se quisesse. Então por que não queria ser?
Mas essas perguntas se esfumaram de sua cabeça assim que viu a nova horda de atacantes que vinham de cima das árvores. Não cabia dúvida de que ao ver os corpos caídos de seus compatriotas tinham identificado a ameaça e se reuniam em torno de Arthur.
Anna reprimiu o grito de advertência, consciente de que não faria mais que lhe distrair. Mas tinha o coração em um punho. Dois homens. E um terceiro não muito longe deles.
De repente algo pareceu mudar em Arthur. Em lugar de frios e desumanos golpes mortais brandia a espada com menos intenção. Era quase como se seu objetivo tivesse mudado e não desejasse matá-los a não ser simplesmente repelir o ataque. Mas não tinha nenhum sentido. Tirou esse pensamento da cabeça. O que passava era que aqueles guerreiros estavam melhor treinados.
E era certo. Parecia difícil ver algo na penumbra. Levavam roupagens escuras e pareciam ter se sujado de fuligem a pele com algo…
Gelou-lhe o sangue ao recordar o ataque do ano anterior. Aqueles homens também levavam a pele suja. Seria possível que se tratasse dos espectros do exército fantasma de velhacos formado por Bruce, o homem que tinha instaurado o horror tanto nos corações da Escócia como da Inglaterra?
Seus piores temores se viram confirmados quando um terceiro homem desceu sobre Arthur como um cão do inferno. Em lugar do longo espadão de duas mãos que usavam os highlanders, este brandia duas espadas menores. Uma em cada mão.
Mas eram suas vestimentas as que a fizeram tremer com um terror que subia por todos seus ossos. Igual ao resto dos atacantes, levava um nasal escurecido e tinha sujado de fuligem sua pele com barro ou cinzas, mas o que a fez estremecer diante da lembrança era o resto de sua indumentária. Vestido de negro da cabeça aos pés, em lugar de cota de malha levava um peitilho de guerra de couro tachonado com peças de metal, perneiras de couro e uma manta envolta de maneira estranha. Justo como o homem que a tinha atacado no ano anterior, aquele rebelde de beleza absurda.
Esse homem era um deles. Anna sabia. O medo se transformou em pânico. Os conhecia por suas extraordinárias habilidades, por combater como demônios possuídos. «OH, Meu Deus, Arthur!» Sua respiração ficou detida na parte alta de seu peito ao ver que o atacante voava até ele com as espadas em alto a cada lado de sua cabeça. O tempo pareceu ir mais devagar. Arthur, ainda ocupando-se de um dos outros dois adversários, não poderia defender-se. Gelou-lhe o coração. O sangue. Arthur ia morrer.
Anna abriu a boca para gritar, mas no último momento Arthur golpeou a um dos homens que lhe atacavam com o punho de sua espada e pôde ergue-la a tempo para bloquear as duas folhas antes que lhe cruzasse o pescoço. O assaltante demoníaco e ele se encontraram cara a cara com as espadas engastadas sobre suas cabeças. O agressor tinha o impulso de vantagem já que caía das alturas, mas conseguiu repeli-lo fazendo uso de ambas as mãos. Embora Arthur lhe desse as costas, conseguiu distinguir o rosto de sua oponente graças à luz oferecida por um raio de lua. Tinha os olhos mais horripilantes que Anna jamais tivesse visto. Estremeceu. Pareciam brilhar na escuridão. Com essas escuras feições retorcidas pela raiva parecia um diabo recém saído do inferno, Lúcifer em pessoa. Uma difusa lembrança foi a sua memória. Deus santo! Era possível que…? Anna abriu os olhos sem acreditar de tudo. Parecia-se com Lachlan MacRuairi, o marido de sua falecida tia Juliana. Fazia anos que não o via, mas conforme tinha ouvido estava com os rebeldes. Sua tia Juliana, da qual sua irmã tinha recebido o nome, era muito mais jovem que seu pai, quase vinte anos. MacRuairi provavelmente tinha a mesma idade que seu irmão Alan. Ao aproximar-se de Arthur a expressão de seu rosto mudou. Não se teria notado se não tivesse observado com tanta atenção. Surpresa? Reconhecimento? O homem que parecia seu tio deu um passo atrás. Ou era imaginações delas? Estava escuro e não era fácil estar segura. Ambos seguiram trocando golpes, mas a intensidade e a ferocidade tinham desaparecido. Comparado com o anterior, parecia mais um treinamento que uma batalha em que se empregassem a fundo. Anna olhava através da escuridão tentado compreender o que ocorria. Então, viu pela extremidade do olho que seu irmão tropeçava para trás, com a espada no chão e ambas as mãos sobre a cabeça, cambaleando-se…
Anna lançou um grito, incapaz de dominar-se por mais tempo. Teria deslocado em sua ajuda, mas Arthur se atrasou até sua posição para lhe impedir o passo.
—Fique atrás, maldita seja! Fique atrás!
Observou com impotência como o agressor com o que lutava seu irmão erguia a espada para acabar com ele. Seu horripilante grito atravessou a noite como uma adaga.
Arthur pareceu vacilar, mas somente por um instante. De alguma forma arrumou para rebater um golpe do homem que se parecia com seu tio e dar meia volta a tempo para bloquear a estocada dirigida contra seu irmão. O braço do atacante, ao não estar preparado para essa defesa, veio-se abaixo e com ele seu corpo, que foi cair justo sobre a espada de Arthur. O homem, surpreso, abriu os olhos antes de fechá-los para sempre.
Inclusive no meio desse horrível pesadelo a truculenta imagem fora muito para ela. Voltou o olhar entre soluços. Momentos depois, um agudo assobio cerceava o ar da noite. Olhou para o tumulto e se surpreendeu ao ver que os atacantes se retiravam. Ao que parecia MacRuairi, ou um homem que se parecia muito a ele, tinha dado a ordem de retirada. A clareira fora invadida pelos homens de seu irmão. Correu ao encontro do Alan antes inclusive de que o último dos rebeldes saísse da floresta. Tinha conseguido ficar em pé, mas ainda parecia cambalear-se.
—Oh, Deus, Alan! Está bem?
Inclusive na escuridão advertiu que lhe custava muito enfocar o olhar pela maneira em que a olhava. Sacudiu a cabeça como se pudesse assim dissipar a nebulosa.
—Um golpe no cocuruto —disse — Estarei bem. Não há por que chorar. —Tomou-a pelo queixo e lhe dirigiu um sorriso carinhoso.
Anna assentiu e limpou as lágrimas com o dorso da mão, sem se dar conta sequer de que estava chorando. Voltou de maneira instintiva e o buscou. Arthur estava a poucos metros dela, observando-a. Anna tinha vontade de correr a seu encontro, de deitar-se em seus braços, enterrar a cabeça em seu peito e romper a chorar. Ele se encarregaria de sossegar o horror. Mas seu irmão estava ali mesmo. E o rosto de Arthur se via muito sombrio.
—Está ilesa? —perguntou.
Anna assentiu enquanto o examinava, detendo-se na mandíbula e as bochechas, arroxeadas pelos golpes de seu irmão.
—E você?
Arthur assentiu também como resposta.
Alan permanecia junto a sua irmã completamente rígido. Depois caminhou em direção de Arthur, e Anna ficou paralisada temendo o que estava a ponto de fazer. Deteve-se a poucos passos dele. Ambos os homens ficaram olhando-se no silêncio da escuridão até que ao final Alan disse: —Parece ser que estou em dívida contigo, não uma, a não ser duas vezes. —Arthur ficou impassível e logo encolheu os ombros levemente — Eu não gosto de ver minha irmã zangada —acrescentou Alan.
Anna assumiu que aquilo era uma desculpa.
—A mim tampouco - disse Arthur.
Alan o examinou por um momento e depois assentiu como se tivesse chegado a algum tipo de decisão.
—Lutastes bem - disse mudando o tema, mas não a intensidade de seu escrutínio.
Ao que parecia não era ela quão única tinha advertido a melhora de suas habilidades.
—O ardor da batalha - explicou Arthur.
Esteve a ponto de mencionar sua mudança de mão, mas algo a deteve. Se seu irmão também percebeu disso, não o desvelou. Mas seguia observando-o com atenção.
—Sim, há alguns homens que funciona assim. —Anna não pôde saber pelo tom de sua voz se Alan acreditava realmente a explicação de Arthur. Ao ver que este não respondia, acrescentou—: Os rebeldes estão mais bem treinados do que pensava.
—Não eram rebeldes qualquer, irmão - disse Anna.
Ambos a olharam, mas foi Alan quem fez a pergunta.
—A que te refere?
—Acredito que um deles era parte da Guarda fantasma de Bruce, mas pode ser que não fosse o único.
Anna explicou a similitude de vestimenta com o homem que dirigia o ataque do ano anterior à igreja. Alan cofiou a barba.
—Tem sentido. Acredito que poderia estar certa.
—Há mais. Não posso estar segura, mas acredito que reconheci a um deles. O das duas espadas.
—O que? —Ambos os homens reagiram. Seu irmão com entusiasmo e Arthur com… algo diferente a isso.
—Nosso tio, que era nosso tio.
Alan amaldiçoou.
—MacRuairi?
Anna assentiu. O rosto do Alan adotou um gesto severo.
—O nosso pai não gostará nada. —Anna não sabia de onde provinha a inimizade de seu pai com o que fosse seu tio político, mas sim que o ódio corria furiosamente por ambas as partes. Alan soltou uma gargalhada — Embora talvez devesse. Que Bruce fique em seu bando com esse filho de cadela oportunista e traiçoeiro. Lachlan MacRuairi somente professa lealdade a si mesmo. Se for esse o tipo de homem que recrutou para sua tropa de fantasmas, não temos nada do que nos preocupar.
Arthur permanecia em um estranho silêncio. Anna tinha vontade de lhe perguntar a respeito do ocorrido entre o que acreditava seu tio e ele, mas, do mesmo modo que anteriormente, algo a fez conter-se. Em vez disso perguntou: —O que é o que o fez fugir?
Seu irmão ficou circunspeto.
—Não estou seguro. Tinha a cabeça tonta. Não vi virtualmente nada.
—Seus homens fizeram aparição —explicou Arthur — Estavam em minoria numérica. —Não tinha parecido assim, mas estava muito pendente de seu irmão para emprestar atenção ao resto da batalha — Deveriam voltar para acampamento —disse.
—Sim —concedeu Alan — Um de meus homens te levará, Anna. Nós temos que nos encarregar de…
«Os mortos», completou ela mesma.
O horror do ataque, o horror daquilo ao que tinham escapado por pouco, golpeou-a então com toda sua força. As comportas se abriram e emergiram todas as emoções que estivera contendo atrás delas, ameaçando transbordando em muitas lágrimas. Voltou-se, advertindo que Arthur se pôs a seu lado. Este, alheio à presença do Alan, esticou o braço para lhe pôr depois da orelha uma mecha de cabelo rebelde. Seus dedos passaram roçando a bochecha e se detiveram ali. A ternura que havia nesse gesto fez que a Anna saltasse em lágrimas. Ergueu o olhar para ele. Advertiu o rosto de preocupação atrás de sua expressão séria. Sua sólida presença, sua força a desarmavam completamente. Se tomasse entre seus braços se romperia em pedaços. Arthur, que adivinhava que isso poderia ocorrer, não o fez.
—Tudo sairá bem —disse com delicadeza — Faça o que diz seu irmão.
—Mas…
Cortou seus protestos com uma negação da cabeça e expressão firme. Deveu adivinhar que ela tinha perguntas que fazer.
—Agora não - disse olhando em direção aos caídos — Depois.
Anna manteve os olhos no rosto de Arthur, procurando não seguir a direção de seu olhar. Já havia visto suficiente sangue para o resto de seus dias. As lembranças dessa noite a perseguiriam. Era uma reação compreensível. Anna era uma mulher e não alguém acostumado ao sangue e ao furor do campo de batalha. Arthur, entretanto, sim estava. Ou ao menos deveria estar. Mas havia algo em sua expressão, na tensão de sua mandíbula, a brancura da boca, a crueldade de seus olhos, que indicava que aquilo lhe afetava profundamente. Anna seguia os passos dos dois homens de seu irmão que a precediam com a suspeita de que ela não seria a única a que perseguiriam as lembranças daquela noite. A questão era por que.
Arthur não pôde conciliar o sonho. Quase esperava que MacRuairi se deslizasse na escuridão e lhe rachasse a garganta ou cravasse uma adaga nas costas pelo que tinha acontecido. Não seria a primeira vez. Não tinha ganhado o apelido de Víbora unicamente por sua venenosa personalidade, mas também por seu ataque silencioso e mortífero. Entretanto, Arthur não podia culpá-lo.
Tal e como tinha feito quase toda a noite, olhava o monte de corpos que tinham deixado apinhados a um lado da clareira, postos ali para que os «atacantes» os recolhessem. Nove homens de Bruce assassinados. Mais da metade pela ponta de sua espada. Equivocou-se. Muito. Em muitos aspectos para poder contá-los. Suficiente mal era que seus sentidos tivessem falhado, que não tivesse advertido os sinais do ataque, mas, além disso, parecia ter esquecido de que lado estava. Levava tanto tempo entrincheirado em campo inimigo que começava a acreditar em suas próprias mentiras.
«Cristo.» Fechou os olhos em uma tentativa de aplacar seus pensamentos. Viu-se obrigado a matar a seus próprios homens antes, mas nunca desse modo. Aquilo não era simplesmente defender-se. Tornou-se um louco fazendo. Estava tão concentrado em proteger Anna e matar a qualquer que supusera uma ameaça para ela que não tinha reparado em nada mais que isso. Nem sequer se deteve quando percebeu o que ocorria. Tinha salvado a vida do MacDougall em troca de um de seus compatriotas. Não podia tirar da cabeça o rosto que tinha posto MacRuairi quando Arthur atravessou ao homem que estava a ponto de acabar com o MacDougall. Pouco importava que sua intenção não fosse matá-lo. Não teria que ter intervindo. O pranto dilacerador de Anna não era desculpa, ao menos não uma desculpa que importasse para os de sua irmandade.
Levantou-se de seu solitário posto junto à árvore quando começaram a vislumbrar os primeiros raios do amanhecer através da floresta. Não acudiriam. Nem MacRuairi, nem tampouco Gordon, MacGregor e MacKay, a menos que tivesse errado ao identificar aos outros três membros dos Guardiões das Highlands quando se batiam em retirada. Tampouco esperava que o fizessem, embora gostasse de ter a oportunidade de explicar-se ante eles. Não se arriscariam de novo a revelar a identidade de Arthur. Para isso bastava a si mesmo.
Era consciente do perto que estivera de arruinar sua cobertura e de pôr toda sua missão em perigo. Anna, tal e como provavam suas perguntas, era muito observadora, inclusive sendo presa do pânico. E não era a única. Também Alan suspeitava da súbita melhora de suas habilidades como combatente e de quão rápido tinham fugido os atacantes. No momento os tinha contentado, mas sabia que ela tinha mais pergunta e não se atrevia tão sequer a pensar o que mais teria advertido.
Reconhecer ao MacRuairi já era mal por si só, mas relacioná-lo com os Guardiões das Highlands era um completo desastre. Manter suas identidades em segredo não era só um aplique à mística e ao medo que rodeavam a aquela guarda «fantasma», mas sim também ajudava a mantê-los a salvo. Se seus inimigos tinham conhecimento de suas identidades, além de pôr preço a suas cabeças, temia a segurança de suas famílias. Essa era a razão pela que tinham decidido usar nomes de guerra quando estavam em uma missão.
Quando Bruce se inteirasse de que tinham desmascarado ao MacRuairi, teria graves conseqüências. Não teria que ter ocorrido, maldita seja. A raiva e a culpa invadiam seu interior sem piedade. Arthur teria pressentido o ataque se não tivesse tão envolto com Anna e deixar-se dominar pela emoção. Aqueles homens não estariam mortos e tampouco teria posto a ela em perigo. Deus, poderiam tê-la matado. E tudo por não ser capaz de controlar suas emoções e implicar-se muito.
Voltou para acampamento justo no momento em que começavam a despertar os homens que não estavam de guarda. Olhou para a tenda de Anna e viu que as portinholas forradas de linho permaneciam fechadas. «Bem. Que durma.» Merecia. Tinha ido vê-la com freqüência no transcurso da noite para assegurar-se de que estava bem. Sabia o muito que a tinha afetado o ataque, mas combatia com seus próprios demônios, de modo que por mais que fosse ele quem devia fazer, não estava em condições de consolá-la. Não obstante, uma vez que teve retornado de encarregar-se dos cavalos, viu a portinhola aberta. Ao inspecionar o acampamento e não encontrá-la ficou circunspeto. Mas pouco depois teve oportunidade de espiá-la enquanto falava com seu irmão, que estava ocupado com alguns de seus homens. A exasperação que refletia seu semblante era tão corrente que suspirou aliviado, até sem querer reconhecer quanto se preocupou.
Quando seu olhar reparou nele, Anna titubeou, mas em seguida começou a avançar pelo terreno semeado de musgo e folhas em sua direção. Arthur percebeu de que levava um pedaço de pano nas mãos. Deteve-se frente a ele, inclinando seu pálido rosto para olhá-lo. Arthur sentiu uma angústia no peito. Ao que parecia, o sono também fora esquivo.
—Já que a regra que pusestes e meu irmão está ocupado, terá que me acompanhar.
Arthur a olhou de modo inquisitivo.
—Não me fizeram prometer que não abandonaria o campo sem sua companhia ou a de meu irmão?
Franziu o cenho até converter-se no primeiro sorriso que tinham parecido em anos.
—Sim.
—Preciso ir ao córrego me lavar.
O córrego ficava perfeitamente à vista do acampamento, mas Arthur não discutiu ao conscientizar de quanto a teria afetado o ataque. Fez uma reverência zombadora com um gesto exagerado da mão.
—Depois de ti.
Anna não parecia ter muita vontade de falar, algo que vinha a calhar. Esperou junto a uma árvore, fazendo como que não olhava, enquanto ela se encarregava de suas abluções matinais. Depois de arrumar o cabelo com um pente úmido e lavar os dentes com pós de um frasco que esfregou sobre um pequeno pedaço de tecido branco, mergulhou outro trapo branco na água. Tinha levado com ela uma pastilha de sabão, a qual esfregou sobre o tecido para depois proceder a lavar o rosto, o colo, as mãos e os braços. Era uma das imagens mais sensuais que jamais tivesse presenciado.
Quando meteu o trapo entre os seios já não pôde mais. Voltou-se, furioso por que um pouco tão mundano pudesse o excitar. Mas com esse sol caindo entre as árvores, que se refletia em seus cabelos dourados e os regatos de água que se derramavam em cascata por seu rosto e seu colo a via formosa, doce e verdadeiramente cativante. Um raio de luz na escuridão. E tudo que Arthur podia pensar era o perto que estivera do céu e a vontade insensata que tinha de tocá-la de novo. Deus, é que não tinha aprendido nada do ocorrido na noite anterior? Concentrou-se no que lhes rodeava com uma intensidade quase exagerada, aguçando seus sentidos para algo que se saísse do ordinário. Entretanto voltou o olhar atrás. Anna tinha terminado e caminhava para ele com o sol a contraluz pelas costas. Arthur teve que conter a respiração. Mas isso não evitou que o apanhasse o subjugador aroma de sua doce e feminina fragrância: pele recém lavada com um toque de pétalas de rosa.
—O que acontece? —perguntou Anna.
—Nada - disse com tensão.
—Parece como se lhe doesse algo - disse olhando-o nos olhos — Lhe dói o rosto? —perguntou tomando o arroxeado queixo na mão. Cada um dos músculos de Arthur ficou em guarda ante o contato — Quebrou algo o idiota de meu irmão? —Jesus, que mãos mais suaves. Seus dedos aveludados acariciavam o duro contorno da tensa mandíbula de Arthur — Olhem quantos hematomas. Isso deve doer — acrescentou, levando o dedo até sua boca — Têm o lábio partido.
Sim, doía. Aquele gesto de sensualidade inocente fazia correr o sangue até a virilha de Arthur e a incendiava de calor. Teve que obrigar-se a não lhe chupar o dedo. Não tinha nem idéia do que estava fazendo. Nem do que estava custando resistir a tocá-la.
Anna o olhou com uma preocupação que se refletia em seus olhos.
—Dói muito?
—O rosto não. —Arthur lhe dirigiu um olhar lascivo que dizia exatamente onde estava a origem de sua dor. Parecia que fosse estalar.
As bochechas de Anna se ruborizaram levemente. Se por acaso aquilo não fosse suficiente, começou a mordiscar esse suave lábio inferior que tinha.
—Oh, não me dava conta de que…
—Deveríamos voltar. Seu irmão queria sair cedo.
Anna assentiu e Arthur teve a impressão de que lhe dava um calafrio.
—Não me entristecerá partir daqui.
Arthur não pôde conter-se. Tomou pelo queixo e cravou o olhar em seus grandes olhos azuis.
—Está bem?
Anna tentou sorrir, mas lhe tremeu a boca.
—Não, mas arrumarei isso.
Arthur lhe soltou o queixo e sua boca adotou um gesto severo.
—O que ocorreu a noite passada não voltará a repetir-se.
Os delicados arcos das sobrancelhas de Anna se franziram.
—Como pode estar tão seguro?
—Porque não permitirei.
Anna o examinou com o olhar e abriu os olhos de repente ao compreendê-lo.
—Por Deus bendito, por isso está zangado. Culpa-se do ocorrido. Mas isso é ridículo. Jamais poderia ter sabido que…
—Sim, sim deveria saber. Se não tivesse tão distraído, não teria ocorrido.
—Então a culpa é minha?
—É obvio que não.
—Não é perfeito, Arthur. Sois humano. Comete enganos. —Ele não respondeu. Tinha a mandíbula tão apertada que lhe doíam os dentes - é o que pensa? —perguntou Anna com ternura — Não falharam seus sentidos alguma vez antes?
«Uma vez», pensou Arthur, afastando a lembrança de sua memória.
—Temos que retornar.
Começou a afastar-se dela, mas Anna o agarrou pelo braço para detê-lo.
—Não ides contar isso?
—Não há nada que contar.
—Tem algo que ver com seu pai? —ficou olhando-a, aniquilado. Como demônios tinha chegado a suspeitar? Anna advertiu sua surpresa — Quando falou de sua morte, deu-me a sensação de que não contava tudo.
Não tinha contado nem a metade do que aconteceu. Como por exemplo a participação do pai de Anna na tergiversação dos fatos. Anna esperava uma resposta. Ele não era muito dado a falar sobre seu passado, mas a expressão do rosto dela disse que aquilo lhe parecia algo muito importante.
—Não há muito que contar. Tratava-se de minha primeira batalha. Meu pai me levou com eles para me pôr a prova. Estava tão preocupado por lhe impressionar que não detectei os sinais do ataque. —Mas isso não era a pior parte, pensou Arthur — Vi como morria.
O rosto de Anna se encheu de comiseração.
—Deus, sinto muito. Deve ter sido horrível. Mas não era mais que um menino. Não podia fazer nada para ajudar.
—Teria que o ter avisado. —Se não estivesse tão afetado, tão assustado, teria visto os sinais, refletiu Arthur. Então, igual à noite anterior, a emoção se havia interposto em seu caminho — Estava distraído.
Mal teve tempo de franzir o sobrecenho antes que os olhos de Anna se iluminassem repentinamente de compreensão.
—Amava-o.
Arthur encolheu os ombros, incomodado com o tema.
—Isso não serve de muito.
—Inclusive Aquiles tinha um ponto débil, Arthur. —Ele a olhou com cara de estar admirado. Do que estava falando? — É difícil manter-se afastado e à expectativa com as pessoas às que alguém quer —disse Anna lhe oferecendo um sorriso de simpatia — Não podem te culpar por amar às pessoas. —Mas fazia. Do que servia suas tão apregoadas habilidades se não podia proteger a aqueles que amava? — Obrigado por me contar isso — Por que voltava a sentir que a tinha deixado ver muito de si?
—Não desejava que te preocupasse pensando em outro ataque surpresa.
—Não me preocupo —disse Anna — Confio em você.
Arthur sentiu uns ardores no peito que o consumiam por dentro. Queria a advertir que não fizesse, lhe dizer que não merecia, que o único que faria seria a machucar, que ela dava seu coração com muita facilidade, com os olhos fechados. Mas em vez disso assentiu e puseram rumo para o acampamento. Arthur subiu a costa com ela, e quando estiveram nas imediações, Anna o olhou de soslaio.
—Pareceu como se meu tio o reconhecesse.
A observação o colheu com a guarda completamente baixa. Algo para o qual parecia ter um talento especial. Arthur deu um passo um tanto vacilante. Não muito, mas temia que se desse conta.
—Está segura de que era seu tio? Não via bem. Eu estava muito mais perto e não pude reconhecer aquele rosto oculta depois do nasal.
Anna enrugou o nariz, um movimento adorável que chocava profundamente com a ameaça que representava para ele.
—Faz alguns anos que não o vejo, mas estou bastante segura de que era ele. Seus olhos são inesquecíveis — disse com um calafrio. Se tentava distrair de sua pergunta, não ia funcionar — Mas pareceu o reconhecer.
—Ah, sim? —disse Arthur encolhendo os ombros — Pode ser que nos tenhamos cruzado alguma vez.
Ela ficou um momento sem dizer uma palavra, mas infelizmente não pensava deixar o assunto correr.
—Então não o conhece?
Arthur lutou contra a ativação instintiva de seus alarmes.
—Pessoalmente não.
—Parecia aborrecido de lhe ver.
O rápido pulsar do pulso de Arthur contradizia sua calma exterior. Era perigosamente perceptiva e andava muito perto da verdade.
—Aborrecido? Por isso sei, Lachlan MacRuairi é um filho de…—disse, detendo-se ao recordar quem tinha por audiência — É um homem perverso com um caráter de cão. Provavelmente estava furioso por que matasse a tantos de seus homens.
Anna pareceu aceitar a explicação. Mas a seguinte pergunta lhe deixou claro que ainda não estava satisfeita.
—Por que se retiraram?
Arthur amaldiçoou para si. As vozes de alarme se acendiam com mais força.
—Como já vos disse, os homens de seu irmão chegaram até nós. Estavam em minoria.
Ficou circunspeta.
—Não me pareceu isso. Parecia que estavam ganhando.
Arthur se obrigou a forçar um sorriso irônico.
—Seu irmão estava em perigo —lhe recordou — Eu diria que estava distraída.
Anna ergueu o olhar para olhá-lo e lhe dedicou um meio sorriso.
—Pode ser que tenham razão. Estava concentrada em meu irmão. Ainda tenho que lhes agradecer o que fizeram. —Uma sombra sulcou seu rosto — Se não tivessem detido a esse homem…
—Não pensem mais nisso, Anna. Já passou.
Assentiu e voltou a olhar de relance.
—De todos os modos, agradeço-lhe. E também Alan o faz, apesar de que tenha uma estranha forma de demonstrá-lo.
MacDougall não ocultava seu interesse por eles. Arthur sentiu o peso de seu olhar durante todo o tempo. Ao encontrar-se com seus olhos, soube que a discussão a respeito do ocorrido no dia anterior ainda não tinha acabado.
—Tem direito a estar furioso, Anna. O que fiz esteve mau. Tudo que posso fazer é prometer que jamais voltará a acontecer.
A maneira em que sua respiração ficou sobressaltada foi como uma punhalada no peito. Parecia emocionada. Desconcertada. Como se esperasse algo diferente.
—Mas…
—Aguardam-nos — disse Arthur, e assinalou ao moço que preparava seus cavalos para que não seguisse falando. Não poderia suportar outra conversa como a do dia anterior — É hora de partir.
Essas palavras fossem dirigidas tanto a ela como a si mesmo. Ponto cego. Ponto débil. Não importa como o tivesse chamado. Seus sentimentos no que respeitava a Anna se converteram em um lastro. Tinha permitido que ela se aproximasse muito, e sua missão e sua coberta pendiam de um fio. A conta atrás tinha começado.
Capítulo 18
Dois dias sem acontecimentos depois, Anna atravessava as portas do castelo de Dunstaffnage ao lombo de seu cavalo. Um dos guardiães se adiantou, de modo que lhes esperavam. Pelo semblante de ira mal contida de seu pai advertiu que estava a par do fracasso de sua viagem. Anna sonhava desfrutando de uma noite de sonho reparador antes de confrontar as perguntas de seu senhor, mas sua tardia chegada não serve para atrasar o relatório. Alan e ela quase não tiveram tempo de lavar as mãos e fazer uma frugal refeição leve antes que os apresentassem nas dependências do senhor do castelo.
John de Lorn permanecia de pé em meio da sala, com as mãos à costas e os membros importantes de seu meinie atrás dele e ambos os lados. A expressão de duelo que todos compartilhavam sem exceção fez pensar a Anna que entrava em um túmulo funerário. Dado que nenhum deles tomou assento, ela e Alan tiveram que suportar o desconforto de estar de pé. Suas sensações não distavam muito das do menino ao que chamam para que responda de uma travessura atroz com resultados nefastos.
Apenas teve fechado a porta quando seu pai começou a falar. A atacar, em realidade.
—Ross rechaçou a oferta.
Não se tratava de uma pergunta. Ao notar o tom de acusação de sua voz, Anna teve vontade de explicar-se, mas não tocava a ela fazer.
Alan respondeu por ambos.
—Sim. A resposta do Ross a uma aliança foi quão mesma na ocasião anterior. Disse que Bruce partiria também contra ele e que não podia prescindir de nenhum de seus homens.
—Mas que passou com o compromisso? Não lhe fez mudar de idéia?
Anna sentiu o peso dos olhares de todos os homens sobre ela e suas bochechas se ruborizaram. Mantinha o olhar baixo para que seu pai não visse quão envergonhada estava. Independentemente de que supusera alguma mudança ou não, tinha fracassado na tarefa que lhe tinha encomendado.
—Não há compromisso —explicou Alan — Estiveram de acordo em que não encaixam um com o outro.
Anna desejava que ninguém mais detectasse como Alan acabava de medir suas palavras.
—Quer dizer que não te perdoou por rechaçá-lo na primeira vez? —perguntou o pai a Anna diretamente.
Ela se aventurou a olhá-lo e a contemplar seu rosto de raiva. O coração lhe encolheu. Não era bom para ele que se zangasse tanto. Quis lhe dizer algo a esse respeito, mas sabia que se lhe tratasse como a um inválido ante seus homens, ficaria mais furioso ainda. Não sabia o que dizer. Não queria mentir, mas tampouco podia contar toda a verdade.
—Eu… — disse, tropeçando com suas próprias palavras.
—Bem — repôs seu pai com impaciência—, acreditava que foste o persuadir.
As bochechas ardiam da vergonha.
—Tentei, mas temo que ele… percebeu que meus sentimentos estavam comprometidos com outra causa.
—O que quer dizer isso de «comprometidos com outra causa»? —Seu pai entreabriu os olhos, que a atravessavam como flechas. Sabia que havia algo que não lhe estava contando — Campbell —disse impassível em resposta a sua própria pergunta. Amaldiçoou para si com um olhar implacável — E como poderia perceber isso? O que fez?
Jamais tinha visto seu pai tão furioso com ela. Era a primeira vez que sua raiva a atemorizava. Que o merecesse não era algo que aplacasse seus devastadores efeitos. O que poderia ter dito? Felizmente, Alan teve piedade dela.
—O compromisso não teria mudado nada. Ross já tinha seus planos feitos. Temo que ainda não ouvistes a pior parte. —Anna temia o pior em relação à reação de seu pai. Tinha medo de que aquilo o levasse a um novo ataque de apoplexia. Ao que parecia, Alan decidiu que era melhor não dosar a verdade, a não ser soltar a de uma só e desagradável vez — Ross está pensando em render-se.
Seu pai não disse uma palavra. Mas Anna contemplava como sua fúria crescia como uma crista de espuma no horizonte que se dirigisse para a costa a toda velocidade até converter-se em uma temível onda que ameaçava rompendo. John de Lorn apertava os punhos com força, seu rosto estava vermelho como um tomate, as veias lhe palpitavam nas sobrancelhas e seus olhos ardiam como se fossem as portas do inferno. Anna deu um passo em sua direção, mas Alan a deteve com uma mão e negou com a cabeça em sinal de advertência.
Quando seu pai acabou por bem pronunciar-se foi para proferir uma enxurrada de insultos que teriam posto a sua mãe de joelhos durante semanas inteiras em penitencia por sua alma blasfema. Perambulou, iracundo pela pequena câmara como um leão enjaulado. Inclusive seus homens lhe deixaram espaço suficiente para que desse rédea solta a sua irritação.
—Ross é um tolo do demônio! —explorou com fúria — Bruce jamais lhe perdoará o que fez às mulheres. Pelo amor de Deus! Pendurou em jaulas a sua irmã e à condessa. Se se render, estará assinando sua própria ordem de execução. —Deteve suas palavras o justo para dar um murro sobre a mesa — Como pode pensar em prostrar-se ante esse assassino traiçoeiro? Cortou a meu parente em pedaços diante de um altar.
Anna não se atreveu a assinalar que a santidade da igreja não era algo que parecesse importar muito ao Ross. Depois de tudo, ele mesmo violou o santuário para capturar às mulheres de Bruce.
—O povo está com Bruce —disse Alan para acalmar a seu pai — despertou um ardor patriótico no campo que não se via desde Wallace. Acreditam que é um salvador, o segundo advento do rei Artur, que os liberou do jugo da tirania inglesa. Ross pensa em sua gente e no futuro de seu clã. Pensa no que é melhor para a Escócia.
Anna tentou ocultar sua surpresa. Felizmente seu pai estava muito furioso para ouvir o que Alan havia dito realmente. Mas embora seu pai não o tivesse feito, ela sim tinha ouvido o tom de reprimenda na voz de seu irmão. Pensaria Alan igual a Ross? Acreditava também ele que Bruce era a melhor opção para Escócia? Por Deus bendito, o que aconteceria seu pai se equivocava?
Anna não podia acreditar que fosse ela quem albergasse esse pensamento desleal. Mas os MacDougall, em seus dias ferventes patriotas, tinham dado seu apoio aos ingleses para não ver Bruce sentar-se no trono. Era isso o melhor para Escócia?
—Morrerei antes de ver esse assassino no trono — disse seu pai, consumida já a raiva de seus olhos, frios como o gelo.
Anna sentiu certo alívio para ouvir os murmúrios unânimes de seus homens que concordavam vigorosamente com essa idéia. Seu pai sabia o que fazia. Era um dos homens mais poderosos de Escócia. Tinha suas falhas, claro, que grande homem não os tinha? Mas ele faria que superassem aquilo.
Uma vez informado sobre a parte mais importante da viagem, Alan procedeu a lhe contar a seu pai o resto, dando conta brevemente do problema acontecido pelo caminho. Seu pai escutava, cada vez mais preocupado, empalidecendo visivelmente para ouvir como seu herdeiro escapava por pouco à morte, duas vezes. Entreabriu os olhos enviesadamente quando Alan o informou das suspeitas de Anna a respeito da implicação do MacRuairi e depois transbordou de emoção ao conscientizar-se da conexão que tinha com a guarda fantasma de Bruce.
—Bom trabalho — disse a Anna, quem sorriu radiantemente pela adulação.
Alan deu a versão de Arthur de sua retirada, mas seu pai também pareceu ter problemas em compreendê-lo.
Ao final, adiantou-se e a agarrou da mão.
—Não sofreste nenhum dano, filha?
Anna negou com a cabeça e ele a acolheu entre seus grandes e robustos braços, esquecendo aparentemente sua ira. Por um momento, Anna voltou a sentir-se como uma menina e a necessidade de chorar todas suas penas sobre sua túnica de finos bordados se apoderou dela. Arthur seguia inimizado com ela. O ataque não tinha mudado nada. Por acaso o tinha piorado. Tinha a esperança de que depois de seu bate-papo ele tivesse mudado de parecer. Arthur sentia algo por ela, mas havia um motivo que o fazia conter-se. Esses dois dias de caminho não lhe tinham dado novas perspectivas. Anna não podia livrar-se da sensação de que havia algo estranho no ataque. E tampouco podia tirar da cabeça a inquietação que lhe provocava suspeitar que ele ocultava algo.
Seu pai se voltou para trás para olhá-la.
—Está cansada. Já ouvirei o resto da história pela manhã.
Assentiu, aliviada de que o pior já tivesse passado. Ao menos isso é o que pensava.
—E, Alan — disse John de Lorn a seu filho—, faz que Campbell e seu irmão se reúnam conosco. Parece que sir Arthur tem que responder por muitas coisas — acrescentou dirigindo um olhar a Anna que a fez estremecer da cabeça aos pés.
Arthur estava preparado para a citação quando esta chegou. Não esperava, entretanto, que se incluísse nela a seu irmão.
—Que diabos tem feito? —perguntou Dugald com suspeita à medida que atravessavam o barmkin em direção à torre da comemoração — por que tem Lorn tanta vontade de ver-te?
Arthur e seu irmão subiram a escada compassando sua marcha com o tinido de seus peitilhos e suas armas.
—Suponho que tem perguntas que fazer em relação aos homens que nos atacaram.
—E o que sabe você deles?
—Nada — disse Arthur ao mesmo tempo que abria a enorme porta de madeira que dava entrada à torre.
—O que tenho eu que ver em tudo isto?
Arthur olhou ao Dugald. A expressão de seu irmão era um reflexo da impaciência que ambos sentiam. Ao Dugald gostava tão pouco como a ele que o chamassem a presença de Lorn. Apesar de que seu irmão e ele lutassem em diferentes lados da guerra, ainda podiam coincidir em seu ódio para o John de Lorn.
—Que me crucifiquem se sei — disse Arthur incomodado por essa incerteza. Um guarda bateu na porta para anunciar sua chegada. Quando lhes fizeram passar, voltou-se e acrescentou—: Mas estamos a ponto de averiguá-lo.
Examinou com rapidez aos ocupantes da sala: Lorn, sentado como um rei em uma poltrona que melhor parecia um trono com uma expressão impossível de discernir; Alan MacDougall de pé junto ao muro, com cara de não saber muito bem o que ocorria; e Anna sentada em um banco em frente ao fogo com aspecto de estar extremamente inquieta. À exceção do único guarda que os tinha admitido para deixá-los depois às ordens de Lorn, não havia nenhum outro membro presente de seu meinie.
Tratasse do que se tratasse, era um assunto pessoal. A pontada de inquietação que Arthur sentia se converteu em uma punhalada em toda regra. Lorn, imperioso filho de cadela, não os convidou a sentar-se, de modo que permaneceram de pé frente a ele. O ódio cego que atendia a alma de Arthur cada vez que se encontrava rosto o rosto com o homem que tinha assassinado seu pai não diminuía. Contraiu suas feições de modo que não revelassem emoção alguma, mas o fogo que queimava seu peito e a necessidade de afundar uma adaga no negro coração de Lorn eram algo mais difícil de reprimir.
—Desejava nos ver, milorde — disse Dugald com um tom que não mostrava deferência alguma.
Lorn tomou seu tempo em deixar a pluma a um lado e logo se recostou na poltrona para olhá-los. Tamborilou com os dedos sobre a mesa. Quando respondeu, não foi ao Dugald, a não ser a Arthur: —Ouvi que tiveram uma viagem cheia de peripécias.
Algo no tom de sua voz fez que soassem os sinos de alarme no mais profundo da cabeça de Arthur. Teve que controlar-se para não olhar a Anna. O que lhe teria contado?
—Sim —disse — Tivemos a sorte de escapar à primeira orda de velhacos, mas não à segunda. Fizemo-nos fugir bem a tempo.
Lorn o escrutinou com tal parada que lhe puseram todos os nervos de ponta.
—Isso eu ouvi. Meu filho não teve mais que louvores para suas habilidades na batalha. Conforme afirma, jamais viu nada igual. —Dugald se voltou bruscamente para Arthur com o rosto circunspeta — Tenho que admitir que me surpreendeu ouvir a descrição do enfrentamento —acrescentou Lorn com um sorriso. Mas seu olhar não tinha nada de divertido. Era frio e calculador — Me pergunto por que jamais antes tínhamos visto isso em você.
Lorn desviou seu olhar para o Dugald, avaliando sua reação. Infelizmente, a expressão do irmão de Arthur não fez a não ser admirar mais.
—Sir Alan é mais que generoso com suas adulações, meu senhor.
Alan deu um passo à frente, em claro desacordo com a forma de perguntar de seu pai.
—Sir Arthur foi chave na hora de derrotar aos rebeldes, pai, e ao salvar minha vida. Temos uma dívida de gratidão com ele.
—Sim, é obvio —disse Lorn — Estou muito agradecido. Mas me pergunto… — Fez uma pausa e tamborilou com um dedo sobre a mesa— pergunto-me se poderiam jogar um pouco de luz sobre o resto do ataque.
—É obvio — disse Arthur. Mas não gostava absolutamente dos roteiros que tomava aquele assunto. Lorn era um filho de cadela arrevesado. Gostava de ter aos o rodeavam em um punho. Acaso suspeitava algo? Quem podia saber.
—Minha filha acredita ter identificado a quem fosse meu irmão político, Lachlan MacRuairi, como um desses rufiões, e também pensa que pode ser um dos guerreiros secretos dos que tanto ouvimos falar.
—Cruzei-me com esse homem uma ou duas vezes, mas não o conheço tão bem para afirmar nenhuma coisa nem a outra. Se lady Anna tiver dúvidas, temo que eu não posso ajudar a resolver.
Arthur caminhava pela corda frouxa. Uma negação terminante poderia chamar suspeita, mas queria manter a semente da dúvida plantada na mente de Lorn, cujos traços se endureceram, fazendo patente o ódio que professava pelo que fosse seu cunhado.
—MacRuairi é uma serpente traiçoeira, um assassino desumano que venderia a sua mãe por uma peça de prata, mas há uma coisa que jamais faria, e é se dar por vencido. Jamais o vi retirar-se em uma batalha.
Bàs roimh Gèill. «Morrer antes que render-se» formava parte do credo dos Guardiões das Highlands, mas parecia funesto que essa frase desse ao Lorn algo no que fincar o dente. A corda frouxa pela que Arthur caminhava-se fazia mais instável por momentos.
Deu de ombros sem comprometer-se.
—Então é possível que não fosse ele?
Lorn voltou a dirigir o olhar a sua filha, quem o olhou nos olhos antes de responder:
—Não posso estar segura, pai. Estava muito escuro. Somente percebi seu rosto com claridade por um instante… e fazia anos que não o via.
Arthur sentiu uma opressão no peito. Tentava protegê-lo. Teria notado Lorn também disso?
—Havia algo que quisessem de mim, meu senhor? —perguntou Dugald cada vez mais impaciente.
Em outras palavras: que demônios fazia ele ali? Uma pergunta que também interessava Arthur.
—Estou chegando a esse ponto.
Lorn voltou a tamborilar sobre a mesa, e Arthur começou a imaginar-se que agarrava sua maça de guerra e punha fim a essa aporrinhação de uma vez por todas.
—Não estou seguro de que firmaram tanto do propósito que tinha a viagem ao norte para ver o Ross — disse ao Dugald — Era pra retomar as conversações para o compromisso de matrimônio entre minha filha e sir Hugh Ross, com a esperança de que uma aliança entre nós animaria ao conde a enviar tropas de apoio na guerra contra Bruce. Infelizmente, as coisas não fossem como tínhamos planejado.
Dugald fulminou de relance Arthur com o olhar.
—Ah, não?
—Não. —O olhar de Lorn voltou a recair sobre ele — Ao que parecia, sir Hugh percebeu que os afetos de minha filha estavam comprometidos com outra causa. Sabes algo disso, sir Arthur?
Arthur viu pela extremidade do olho como Anna empalidecia e apertava as mãos com força sobre seu regaço. Que diabos havia dito? Os dentes lhe chiavam. Sentia-se esquecido no aposento e sem espaço para mover-se.
—Sim.
—Pensei que talvez fosse assim —disse Lorn. O brilho de raiva de seu olhar disse a Arthur que provavelmente adivinhava parte do acontecido. Esperou tensos, preparando-se para o pior. O nó cada vez se apertava mais. Lorn se voltou para o Dugald. As razões pelas quais seu irmão estava ali tinham ficado claras — Diante dos dados e recentes acontecimentos, eu gostaria de propor uma aliança diferente. Uma que faria mais sólidos os laços entre nossas famílias e mostraria minha gratidão para sir Arthur pelo serviço que tem feito a meu filho, assim como também asseguraria a felicidade de minha filha. —Cada um dos músculos do corpo de Arthur ficou tensos enquanto esperava o que estava por chegar. Perguntava-se se ela teria algo ver com isso, mas os olhos de Anna não mostravam mais que surpresa quando seu pai disse—: Eu gostaria de propor um compromisso de bodas entre sir Arthur e minha filha.
Dugald soltou uma gargalhada.
—Um compromisso?
A boca de Lorn adotou um gesto severo.
—Acredito que isso é o que disse. Podemos falar sobre os detalhes mais tarde, mas tenham por seguro que o dote de minha filha é mais que generoso. Inclui certo castelo que acredito pode ser de interesse para ti.
Tanto Arthur como seu irmão ficaram de pedra.
Foi Dugald quem acabou por perguntar:
—Innis Chonnel?
Um sorriso retorcido se desenhou na boca de Lorn.
—Sim.
Arthur não podia acreditar. A fortaleza dos Campbell do lago Awe que tinham sido arrebatado a seu clã fazia anos, devolvida por casar-se com a mulher que queria mais que a tudo no mundo. Um autêntico pacto com o diabo. Por um momento, ficou duvidando, muito mais tentado do que gostaria de admitir. Mudar de bando era algo habitual naquela guerra. Mas ele não podia fazer. Inclusive no caso de que condescendesse a aliar-se com o homem que tinha assassinado a seu pai, havia muitas pessoas que contava com ele: Neil, o rei Robert, MacLeod e o resto dos membros dos Guardiões das Highlands. E tampouco podia ignorar sua própria consciência. Acreditava no que estavam fazendo.
A devolução do castelo dos Campbell, embora fosse ao irmão mais novo, bastou para convencer ao Dugald, que se voltou para Arthur.
—Eu não tenho objeção. Arthur?
Todos os olhos se voltaram para ele, mas somente era consciente de dois pares: os de Anna, que lhe observavam com o coração neles, e os de Lorn, que o contemplavam com a suspeita refletida.
Até no caso de que não tivesse intenção de levar a cabo, Arthur sabia que devia aceitá-lo para dissipar todo receio. Aquele compromisso era uma prova de lealdade. Tratava-se tanto de assegurar a felicidade de Anna como de provar sua aliança. Sua consciência liberava uma batalha com sua noção do dever, mas não durou muito. Não tinha outra opção. As espadas estavam em alto. Não podia pensar em quanto o odiaria Anna quando averiguasse a verdade.
—Será uma honra tomar lady Anna como esposa.
Talvez o pior fosse que, em realidade, dizia a sério.
Capítulo 19
Anna tinha tudo o que queria. Por que se sentia então tão miserável? Tinha passado uma semana desde dia em que seu pai anunciasse por surpresa o compromisso em sua câmara. Uma vez reposta da comoção, casar-se com o homem que amava… era algo que a deixava em um estado de euforia. Nada poderia fazê-la mais feliz. Exceto, talvez, a notícia de que Bruce decidisse que a coroa não lhe pertencia e desaparecesse nas ilhas Ocidentais como tinha feito anteriormente. Mas faltava muito ainda para que se cumprisse esse sonho.
Enquanto ela estava mais que entusiasmada, Arthur dava a impressão de ter que suportar uma pesada carga. Desde aquele dia se comportava com uma correção irrepreensível, cortês durante as refeições e também nas poucas ocasiões em que se cruzavam os caminhos de ambos. Inclusive permitia que Escudeiro o seguisse em qualquer parte sem queixar-se. A simples vista era o perfeito prometido, mas esse era o problema, que somente era a simples vista. Sua formalidade, esse distanciamento progressivo, reduzia sua felicidade ao mínimo. Cada vez que dizia: «Tivestes bom dia hoje, lady Anna?» ou: «Gostaria de outra taça de vinho, lady Anna?», provocava uma ferida diminuta em seu coração. Não podia entendê-lo. Segundo ele mesmo admitia, lhe importava. Então por que não se dava conta de que aquilo seria perfeito para ambos?
À medida que passavam os dias custava mais convencer-se de que isso era o que ele queria. Afastava-se dela por muitos momentos. Algo lhe pesava. Estava uma semana mais perto do final da trégua, já que os idos de março se aproximavam com presteza, mas sua crescente ansiedade se deixava ver em todo momento e não parecia que fosse por causa da batalha em floração. Gostaria que confiasse nela, mas rechaçava qualquer intento de diálogo, embora tampouco contavam com muitas oportunidades. Além dos breves intercâmbios das refeições, a única vez que tinha procurado sua companhia fosse poucos dias atrás, quando insistiu em acompanhá-la ao priorado do Ardchattan. Não esperava nenhuma missiva, assim não tinha nada que lhe ocultar. Talvez seu pai não pusesse já objeção alguma a que contasse a Arthur qual era seu papel na transmissão das mensagens. O compromisso parecia eliminar todas as suspeitas que ficassem em relação aos Campbell. À medida que se aproximava a guerra e que se intensificavam as preparações para a batalha, os Campbell passavam mais tempo junto a John de Lorn e de Alan, algo que Anna queria identificar como um sinal do degelo dessa geleira que significavam as velhas rixas.
Suspirou e passeou o olhar ao redor do aposento, enquanto sua criada terminava de lhe arrumar o cabelo. Era o sexto dia de agosto, um dia mais perto do fim da trégua. Ao olhar pela janela de sua câmara na torre viu um birlinn deitando a baía, o maior porto de ancoragem do castelo. Era um acontecimento habitual, algo que não teria chamado sua atenção a não ser pela rapidez a que se deslocava. O reluzente navio de madeira mal tinha chegado à borda quando seus ocupantes saltaram pela amurada e correram para as portas da fortaleza. O coração lhe deu um tombo, consciente de que algo estava passando. Sem incomodar em por o véu, baixou a escada da torre correndo e se apresentou no pátio de armas ao mesmo tempo que seu pai recebia ao contingente de homens do birlinn: os MacNab.
—Que novas trazem? —perguntou seu pai.
O rosto do capitão dos MacNab era desolador.
—O rei Hood, milorde. Está a caminho.
Anna ficou sem fôlego, seu sangue congelado pelo medo. Chegava o momento, o dia que tanto tinha temido e desejado ao mesmo tempo. A batalha que poderia significar o fim da guerra.
O castelo era um tumulto. Os guerreiros, agrupados, pareciam comovidos pela excitação, ansiosos pela oportunidade de destruir ao inimigo. Não obstante, as poucas mulheres que rondavam por ali tinham umas reações muito diferentes: preocupação e medo, exatamente o mesmo que sentia Anna. Seu olhar procurou Arthur de maneira instintiva. Também lhe afetavam as notícias. Observava-a com uma intensidade ardente que não via nele desde o ataque da floresta. Ficaram-se olhando uns instantes até que Arthur voltou o olhar para os MacNab.
O pai de Anna fez passar aos recém chegados ao grande salão. Anna os seguiu, ansiosa por saber tanto como pudesse. Infelizmente, os MacNab não tinham muita mais informação. Um de seus rastreadores lhes alertou de que Bruce tinha saído do castelo do conde de Garioch em Inverurie com tropas de ao menos três mil homens e se dirigia para o oeste. Três mil homens contra os oitocentos de seu pai! Não obstante, não sabiam se tinham intenção de dirigir-se primeiro ao Ross ou ao Lorn.
Bruce não perdia tempo. Estaria preparado para atacar assim que expirasse a trégua. Por Deus bendito, aqueles bárbaros estariam chamando a suas portas para a semana próxima.
Sua mãe e suas irmãs se apressaram a baixar ao salão para ouvir a comoção. Ao encontrar-se com ela depois da multidão, perguntaram-se pelo que acontecia. Anna as pôs em dia rapidamente e viu seu próprio medo refletido na inquietação de seus rostos. Era um dia que todos esperavam, mas então quando começavam a dobrar os sinos.
—Tão logo? —disse sua mãe, presa do medo — Mas se apenas acaba de se recuperar.
—Não lhe acontecerá nada, mãe — repôs Anna, tentando convencer-se também a si mesmo.
Mas não era seu pai o único que preocupava a Anna. O que aconteceria…? Não, não podia pensar nisso. Arthur retornaria. Tudo estariam logo de volta. Não obstante, a incerteza não se desvanecia. A arbitrariedade da guerra, isso era precisamente o que Anna sempre tinha desejado evitar. Por que tinha que apaixonar-se por um cavalheiro?
A reunião durou um momento mais. Ao entrar no salão perdeu a pista de Arthur e seus irmãos, mas assim que o bate-papo derivou para uma missão de reconhecimento, viu-o adiantar-se para a mesa de cavalete do estrado no que seu pai estava sentado junto a alguns de seus homens e o capitão MacNab. Quando Anna adivinhou o que estava a ponto de fazer lhe gelou o coração. Quis chamá-lo, lhe dizer que não o fizesse, mas era consciente de que isso era impossível, e Arthur fez justamente o que ela pensava.
—Eu irei, milorde — disse.
John de Lorn olhou para ele e assentiu, obviamente agradecido de que se apresentasse como voluntário. Alan também se ofereceu a ir, mas seu pai se negou, alegando que o necessitariam no castelo. Ao final, decidiu-se que seu irmão Ewen lideraria o grupo de reconhecimento, que também incluía os irmãos de Arthur.
Não perderam tempo. Em pouco menos de uma hora já estavam reunidos no barmkin para partir. Anna ficou ali de pé junto a sua mãe, sentindo-se como se estivesse dando voltas em um redemoinho sem nada ao que agarrar-se. Observava com o coração em um punho como Arthur se preparava para a marcha. Este acabou de assegurar seus pertences ao cavalo, tomou as rédeas e se situou ao pé do animal, disposto a montar. A Anna deu um tombo o coração. Acaso pretendia partir sem lhe dizer adeus?
Se essa era sua intenção, deveu mudar de idéia. Deu as rédeas a um dos cavalariços e se voltou para dirigir-se para ela. Tinha a mandíbula tão tensa como os ombros, como se temesse enfrentar-se com algo desagradável. «Eu», pensou Anna, sentindo uma pontada no peito.
—Lady Anna — disse Arthur com uma leve inclinação da cabeça.
A mãe e as irmãs deram a volta sem muita sutileza protegendo-os quanto podiam do resto da multidão para lhes dar um pouco de privacidade. Mas Anna seguia sendo plenamente consciente de que não estavam sozinhos.
—Têm que partir?
Odiou a si mesma por perguntar, mas não pôde evitá-lo. Sabia que esse era seu trabalho, mas não queria que partisse. Sempre seria assim?
—Sim.
Houve uma pausa tão larga que pareceu definitiva.
—Quanto tempo estará fora?
Seus olhos brilharam de um modo estranho, mas o brilho desapareceu antes que Anna pudesse reconhecer sua origem.
—Depende do rápido que se aproxime o exército. Um par de dias, talvez mais.
Ela ficou olhando seu bonito rosto, tentando memorizar as duras linhas de seus traços, as cicatrizes, o estranho dourado ambarino de seus olhos.
—Tomará cuidado?
Era uma pergunta estúpida, mas tinha que fazer de todas formas. Um simulacro de sorriso apareceu nas comissuras da boca de Arthur.
—Sim.
Manteve-lhe o olhar durante um instante mais, como se também ele tentasse retê-la na memória. Ela nunca tinha visto tal expressão de desconsolo em seu rosto. Um calafrio de pavor percorreu sua nuca. «É a guerra — disse — Está centrado na batalha que tem diante de si.»
Arthur tomou sua mão e a levou aos lábios fazendo que a estampagem cálida de seus lábios irradiasse por toda sua pele.
—Adeus, lady Anna.
Algo no tom de sua voz lhe rasgou o coração. Quando ele se voltou para partir, Anna ficou com vontade desesperada para voltar a chamá-lo. «O tipo de homem que está sempre olhando para a porta…» Não. Convenceu a si mesma de que se comportava como uma parva. Não a estava abandonando. Simplesmente estaria fora uns dias. Mas por que lhe parecia que aquela despedida era para sempre?
Então, como se não pudesse conter-se, Arthur deu meia volta, agarrou-a pelo queixo e baixou a cabeça para beijá-la. Seus lábios acariciaram os de Anna em um suave e terno beijo que fez vibrar seu coração. Aquele beijo tinha sabor de nostalgia. A dor. E a arrependimento. Mas sobre todas as coisas, tinha sabor de despedida. Anna queria prolongá-lo, queria que durasse mais, mas antes que lhe desse tempo a reagir, o beijo tinha acabado. Arthur lhe soltou o queixo, manteve o olhar por um segundo agonizante e partiu. Não voltou a olhar atrás. Nenhuma só vez. Ela ficou olhando sua partida, aniquilada, sem saber muito bem o que tinha ocorrido. Permaneceu tocando os lábios em uma tentativa de apreender o calor e seu sabor por tanto tempo como fosse possível. Mas antes que o último dos homens saísse pelas portas do castelo esse calor já era história.
Arthur procurava uma saída e ao fim a tinha encontrado. A viagem de exploração em volta do Este lhe dava a oportunidade de fazer algo que meses atrás parecia impossível: retirar-se da missão. Tinha que fazer algo. Não podia ficar ali e deixar que a situação piorasse. Os dias seguintes a seu compromisso tinham sido insuportáveis. Fingir acabaria com ele. Anna estava tão feliz, tão encantada de casar-se com o homem que a trairia… Cada sorriso indeciso, cada olhar em busca de um consolo que ele não podia lhe oferecer, era como uma gota de ácido que remoia sua consciência. Não era capaz de fazer isso. Embora significasse sacrificar sua missão. O irônico era que não podia ter escolhido maneira mais efetiva de infiltrar-se nos MacDougall que um compromisso com a filha do senhor das terras. O compromisso, unido ao feito de salvar a vida de Alan, deu-lhe acesso ao centro nevrálgico do poder: o conselho de nobres. Dizia a si mesmo que não sacrificava sua missão. Fazia suficiente identificando às mulheres como as transmissoras de mensagens, passando informação sobre a preparação e efetivos do MacDougall e entregando um mapa do terreno, assim como evitando uma aliança com o Ross, embora isso não ocorresse exatamente da maneira em que o tinha planejado. Estavam nas vésperas da batalha. O rei Robert entenderia.
Tinham passado três dias de sua desastrosa partida e caía a madrugada. Nunca acreditou que lhe custaria tanto despedir-se dela. Mas partir de seu lado, sabendo que possivelmente não a veria de novo, fez-lhe perder toda determinação. Não deveria tê-la beijado, mas ao olhar seus olhos e ver esse rosto de medo e preocupação, não pôde resistir. Era consciente de que jamais voltaria a ter essa sensação de conexão absoluta e precisava desfrutar dela uma vez mais.
Arthur olhou a retaguarda para assegurar-se de que ninguém o tinha seguido e atou o cavalo a uma árvore. Encontrava-se a menos de dois quilômetros do lugar onde os homens de Bruce tinham acampado a noite anterior. Faria o resto do trajeto a pé. Era provável que a essa hora da madrugada os sentinelas disparassem contra tudo que se aproximasse do acampamento sem fazer perguntas e o cavalo o delataria. Seus sentidos se aguçavam à medida que se aproximava do acampamento do rei, antecipando-se a qualquer sinal que delatasse a presença da Guarda que o circundava. Arriscava-se muito chegando sem prévio aviso, mas não havia alternativa. Não tinha tido tempo de combinar um encontro ou enviar uma mensagem a guarda, e a partida de reconhecimento dos MacDougall se preparava para retornar ao castelo de Dunstaffnage ao dia seguinte com o relatório. Ofereceu-se voluntário para fazer patrulha de noite, consciente de que essa seria sua única oportunidade. Sabia que Chefe teria a um dos membros dos Guardiões das Highlands fazendo turno de vigilância, como cada noite, assim tentaria contatar primeiro com algum de seus companheiros.
De repente sentiu um comichão na nuca. Deteve-se o notar a estranha mudança de ar que percebia cada vez que alguém se aproximava. Escondeu-se entre a escuridão da noite e esperou, sabendo de que antes de ver quem se aproximasse o ouviria chegar. Mas passados uns minutos percebeu de que algo não funcionava. Ou o homem se deslocou ou suas habilidades voltavam a falhar.
De novo.
Mas quando conseguiu ver a figura que emergia depois de uma árvore a pouco mais de cinco metros de distância percebeu de que havia uma terceira resposta: o sigilo daquele homem igualava suas capacidades perceptivas. «Maldição.» Não era isso o que necessitava. Emitiu o uivo que iria identificá-lo como presença amistosa. Não obstante, suspeitava que o homem que se aproximava podia ter uma opinião diferente a respeito.
MacRuairi ficou imóvel e apesar da contra-senha apontou com seu arco na direção da que provinha sua voz.
—Quem vem?
—Guardião - respondeu Arthur levantando o visor de aço de seu elmo e saindo de trás da árvore que o resguardava.
Inclusive na escuridão, apreciou o brilho diabólico nos olhos entreabertos do MacRuairi, que deslocou o braço para a esquerda para lhe apontar entre as sobrancelhas. MacRuairi possuía uma habilidade extraordinária para ver na escuridão, algo fatal de lembrar-se justo nesse momento.
—Ides fazer uso da arma? —disse Arthur.
—Ainda não decidi. Uma morte não me parece muito comparada com nove. Poderia alegar que pensei que era um traidor, o qual não estaria muito longe da verdade.
Arthur engoliu a grosseira réplica que foi a seus lábios. Saber que merecia o menosprezo daquele homem, mas não facilitava o fato de ouvi-lo. Ignorou a flecha que lhe apontava e seguiu adiante.
—Acha que não me arrependo do que aconteceu?
—Arrepende-te? Pois te asseguro que não saberia o que te dizer. Parecia desfrutar lutando junto a Alan MacDougall, por não mencionar que salvou sua puta vida.
Apenas os separavam alguns metros, mas MacRuairi não teria errado o tiro nem a centenas de metros de distância.
—Responderei ante o rei e não ante você, Víbora. Tenho que falar com ele.
—Está dormindo.
Arthur apertou os dentes e os punhos. Brigar com o MacRuairi não solucionaria nada, mas não tinha tempo para tolices.
—Pois então terá que despertá-lo. E também a meu irmão.
Ao final, MacRuairi optou por baixar o arco.
—Espero por seu bem que tragas boas notícias - disse, fulminando-o com o olhar — E será melhor que tudo aquilo valha a pena.
Tinha valido a pena? Arthur não teve tempo de pensar nesses termos naquele momento. Não teve tempo de fazer esse tipo de análise. Estava muito ocupado em defender-se e proteger a Anna.
Menos de quinze minutos depois o fizeram passar à tenda do rei. Se Bruce estava dormindo, não havia nada em seu rosto que indicasse que acabava de despertar. Levava seus escuros cabelos penteados, tinha os olhos tão limpos e chicoteados como sempre, além de ir vestido com as perneiras e uma sobreveste negra de finos bordados.
Estava sentado sobre uma arca. A ausência de mobiliário concordava com a ligeireza e a rapidez com as que se deslocava o exército. Ao rei Eduardo nem sequer teria passado pela cabeça fazer campanha sem carregar em seus carros seu equipamento doméstico e sua baixela. Mas detrás de viver como um foragido durante um ano aquartelado entre o povo, Robert Bruce havia se acostumado a contentar-se com muito menos.
A sua esquerda tinha ao Neil, ao qual se via um tanto mais desalinhado, e à direita ao Tor MacLeod, líder dos Guardiões das Highlands. Tanto a expressão deste como a do próprio rei eram desalentadoras. A pergunta que Arthur adivinhou no olhar de seu irmão cortava como uma faca. Seria possível que questionasse sua lealdade?
—Que diabos ocorreu, Guardião? —perguntou o rei.
Arthur narrou da maneira mais sucinta possível os eventos que levaram a sua inesperada viagem ao norte, o compromisso de bodas previsto entre a filha de Lorn e sir Hugh Ross, as esperanças de unir forças de Lorn e a intenção de Arthur de evitar que a aliança se levasse a cabo.
—Conseguiram-no? —perguntou Bruce.
Arthur manteve uma expressão neutra.
—Sim, majestade.
O rei assentiu, agradado. Nenhum dos pressente pareceu perguntar a respeito de como o tinha conseguido. Arthur continuou explicando como tinha obtido que a patrulha se desviasse do grupo dos MacDougall em seu caminho ao norte e afirmou que se viu obrigado a defender-se para proteger sua identidade.
—Assim foi você? —disse MacLeod — Nossos homens do castelo do Urquhart estavam muito zangados porque um só homem conseguisse escapar deles.
—Não de tudo. Oxalá tivesse podido, mas me encurralaram em um escarpado. Não podia lhes contar quem era.
Ninguém disse uma palavra. Todos sabiam tão bem como ele que essas situações eram inevitáveis para preservar sua identidade, mas a nenhum deles gostava.
Depois Arthur passou a explicar a forma em que MacRuairi e seus homens o tinham surpreendido quando voltavam para o Dunstaffnage.
Neil arqueou as sobrancelhas.
—Não os ouviu chegar?
Arthur negou com a cabeça sem dar mais explicações. Referiu a princípio, simplesmente reagiu ao ataque e que depois, ao se dar conta de quem eram, passou a manobras defensivas. Quando chegou à parte em que salvou a vida do Alan MacDougall não ofereceu mais desculpa que a verdade. Somente tentava deter o golpe, matar ao guerreiro fora um acidente.
Neil fez a pergunta que sem dúvida rondava as cabeças de todos eles.
—Mas por que teria que lhe salvar a vida? Proteger ao herdeiro de Lorn não era parte de sua missão. Assassinar a ele seria quase tão bom como assassinar ao próprio Lorn.
Arthur olhou a seu irmão nos olhos sem fugir a verdade.
—Não tentava protegê-lo.
—É pela moça —disse MacLeod, juntando todas as peças — Sente algo por ela.
Arthur se voltou para seu capitão. Não o negou.
—Sim.
—A filha de Lorn! —exclamou Neil sem poder ocultar sua indignação — Maldição, irmão. No que estava pensando?
Arthur não tinha uma resposta para isso. Não havia.
—O que estais dizendo, Guardião? —disse o rei com olhos negros tão duros como o ébano — Uma moça o tem feito esquecer em que lado está?
—Minha lealdade está contigo, meu senhor - disse Arthur com firmeza.
Mas o dardo envenenado do rei ardia.
Neil ficou olhando-o fixamente.
—Mudaste de ideia respeito ao Lorn? Esquece-se do que fez a nosso pai?
Arthur endureceu a expressão de seu rosto.
—É obvio que não. Mas minha vontade de ver a destruição do John de Lorn não se faz extensiva a sua filha. Por isso estou aqui. Preciso sair do castelo de Dunstaffnage.
A sala ficou em um silêncio sepulcral. Arthur notava que o olhar fixo de seu irmão queimava, mas não se atrevia a olhar em sua direção. Tinha falhado. Tinha falhado ao homem que era como um pai para ele. Não queria ver a decepção em seu rosto.
—Está em uma situação comprometida? —perguntou o rei — Há perigo de que o descubram?
Arthur negou com a cabeça.
—A moça sabe que oculto algo, mas não acredito que suspeite de nada.
—Então é a moça a causa de que desejes abandonar a missão antes de cumpri-la?
—A coisa se complicou.
Consciente de quão insuficiente parecia isso, inclusive para si mesmo, explicou que Lorn lhe tinha interrogado sobre o ataque e acrescentou que ao acreditar que o ancião suspeitava algo, viu-se obrigado a aceitar o compromisso.
—Mas isso são notícias fantásticas - disse o rei, contente pela primeira vez desde que Arthur entrasse na tenda — chegastes mais perto de Lorn do que jamais acreditei possível. Sinto muito que a moça esteja implicada, mas não sofrerá verdadeiro dano. O coração de uma jovem sara com facilidade.
Para falar a verdade, o rei, conhecido por seu êxito com as moças, tinha muita mais experiência que ele, mas nesse caso Arthur não acreditava que acertasse. Anna amava com muita bravura. Estava muito cega pelo amor.
—Não posso permitir que abandone —finalizou o rei — Ainda não. Não tendo a batalha tão perto. Necessito-te dentro para que me digas o que é o que se propõem. A informação que nos transmite é muito valiosa. A vitória está muito perto para deixá-la escapar no último momento. John de Lorn é um demônio com o coração podre, mas não por isso subestimo suas táticas de guerra nem sua capacidade para a surpresa.
Arthur sabia que o rei não atenderia a razões. Robert Bruce estava desejando desforrar-se. Lorn o tinha vencido antes e essa vez não permitiria que nada se interpusesse em seu caminho. O coração de uma mulher era um pequeno preço a pagar.
—Atacaremos o castelo na madrugada do dia dezesseis —disse MacLeod, dando a impressão de advertir sua frustração — Só serão alguns dias mais.
Mas ele não conhecia Anna MacDougall. Arthur teria preferido enfrentar-se às endiabradas máquinas de guerra do primeiro rei Eduardo que tentar resistir diante de Anna durante «somente uns dias mais».
C O N T I N U A
Capítulo 11
Anna jogou o capuz para trás ao mesmo tempo que entrava na câmara de seu pai. Soltou a cesta na mesa e se sentou juntou a este e sua mãe ao calor das brasas da lareira. Inclusive no verão, os muros de pedra do castelo faziam dele um lugar frio e com correntes de ar.
Sua mãe levantou a cabeça do novo estandarte de seda no qual trabalhava e a olhou, sentida saudades.
—De onde vem, Annie querida? É tarde.
—Fui levar bolos aos monges do priorado —respondeu Anna inclinando-se para beijar sua mãe.
Encontrou-se com o olhar de seu pai. A expressão deste se escureceu ao ver respondida sua tácita pergunta com uma leve negação de cabeça. Tossiu antes que sua esposa pudesse fazer mais objeções. Embora Anna soubesse que o fazia e que propósito, aquele áspero e úmido som a preocupava.
—Não me falou de uma nova infusão de ervas do pai Gilbert que ajudaria a aliviar o encharcamento de meus pulmões?
Sua mãe se sobressaltou, afastou seus bordados e ficou em pé de repente.
—Tinha esquecido. Direi ao Cook que o prepare agora mesmo.
Assim que a porta se fechou atrás dela seu pai disse:
—O rei Eduardo não respondeu?
Anna negou com a cabeça.
—Já deveríamos ter notícias dele.
Seu pai se levantou e começou a perambular diante da chaminé, enfurecendo-se mais a cada passo que dava.
—Esses asquerosos rufiões de Bruce devem tê-lo interceptado. Parece que a metade de nossas mensagens não chega a seu destino, nem com a ajuda das mulheres — disse apertando a mandíbula — Mas dado que não ouvimos nada sobre o destacamento de soldados, acredito que podemos supor que não enviarão a ninguém. O jovem Eduardo está muito ocupado tentando salvar sua própria guarida para preocupar-se com a nossa.
Anna não podia acreditar que depois de tudo o que tinha feito seu pai pelo primeiro rei Eduardo, o novo rei o abandonaria de tal modo.
«Que se deita com crianças…»
Veio a sua mente essa velha história, mas Anna a tirou da cabeça porque em certo sentido lhe parecia desleal. Seu pai não teve outra opção. O primeiro rei Eduardo era muito poderoso. Depois da derrota de Wallace em Falkirk, ou se fazia aliado do rei inglês ou lhe confiscavam as terras. Quando Bruce usurpou a coroa, a aliança se fez mais necessária ainda. Se Bruce e os MacDonald estavam em um lado, os MacDougall não podiam mais que apoiar ao outro: Inglaterra.
—Não deveríamos tentar enviar outra missiva?
—Não temos tempo — espetou seu pai, claramente molesto pelo que percebia como uma pergunta estúpida — Os ingleses se movem com lentidão. Demorariam semanas em chegar tão ao norte carregando toda essa baixela e esses móveis para estar cômodos. Inclusive no caso de que Eduardo mudasse de opinião, necessitaria dias para reunir aos homens. O rei Hood estaria aqui junto a sua tropa de assassinos salteadores de caminhos antes que aos ingleses desse tempo de encher seus carros de ninharias.
Anna tentava não tomar como algo pessoal a cólera do pai. Tinha todo o direito a perder os nervos. O inimigo estava virtualmente em cima e ninguém vinha em sua ajuda. O conde de Ross, igual ao rei Eduardo, ainda não tinha respondido a sua petição de unir forças. Ia ficando patentemente claro que estariam sozinhos ante Bruce: oitocentos homens contra os três mil com que contava o usurpador conforme o informe.
O medo prendia a garganta. Os MacDougall eram ferozes combatentes e Lorn um dos melhores generais de Escócia na batalha, mas poderiam superar tal desvantagem? Seu pai estivera a ponto de derrotar ao Bruce anteriormente, mas então o rei foragido teve que fugir com umas poucas centenas de homens ante suas mais numerosas forças. Nessa ocasião seriam os MacDougall quem estaria em clara inferioridade numérica. «Pouco importa», pensou Anna com integridade. Seu pai ganharia de todos os modos. Somente um MacDougall valia por cinco rebeldes. Mesmo assim, por mais vezes que se dissesse que John de Lorn superaria inclusive a pior das apostas, seu leal coração não podia negar que existia a mais mínima, a ínfima possibilidade de que perdessem.
«Perder.»
Um calafrio lhe percorreu o corpo. Somente pensar nessa palavra lhe parecia a mais vil das blasfêmias. Não podia permitir que isso ocorresse. As conseqüências eram muito execráveis para as considerar. Mas tudo aquilo que apreciava, todas suas esperanças de um futuro feliz, parecia pender sobre a ponta de um alfinete, ou, neste caso, de uma espada. O mais leve empurrãozinho faria que tudo se precipitasse no vazio. Os grossos muros do castelo de repente lhe pareciam finas vidraças, dispostas a romper-se em mil pedaços. Sua situação era complicada, inclusive até desesperada. Contudo, havia um modo de conseguir atenuá-la um pouco.
O tempo pareceu deter-se. O pavor se apoderava de seu estômago em um tenso nó e o formigamento que isso provocava aumentava à medida que Anna via do que seria obrigada a fazer. A solução espreitava no mais profundo de sua mente desde fazia meses, mas não queria considerá-la.
Anna se aferrou às abas de sua capa como se fossem uma corda a qual pudesse agarrar-se.
—E o que passa com Ross? —perguntou em voz baixa — Ainda fica tempo para que se apresente.
Seu pai a olhou com certo desdém.
—Sim, mas como digo já, não o fará.
Era reprovação o que advertia em seu olhar? Acaso se arrependia de ter dado opção? Anna aspirou profunda e entrecortadamente em uma tentativa de controlar o ritmo frenético de seu pulso. Sua gelada pele se cobriu com uma fina pátina de suor. O peito lhe oprimia tanto que mal podia respirar. Todo seu ser se rebelava contra o que estava a ponto de sugerir. Mas não ficava alternativa. Um marido era um pequeno preço a pagar em comparação com a sobrevivência de seu clã. casaria-se até com o mesmo diabo se fosse necessário.
—E se lhe desse um motivo para pensar melhor? —Seu pai a olhou nos olhos. Anna soube que tinha adivinhado o que sugeria pelo ar de reflexão que adotou seu olhar, embora talvez isso fosse o que ele esperava dela de um princípio — O que passaria se fizesse um rogo pessoal ao conde?
Teve que deter suas palavras. Seus dedos agarravam a lã da capa com tanta força que cortava a circulação. O coração pulsava a um ritmo frenético e martelava em suas têmporas. O estômago se decompôs. «Tudo irá bem. Eu me encarregarei de que funcione. Não é um homem tão temível.» Sir Arthur era alto, musculoso, de uma beleza sombria e, não obstante, nunca ficava nervosa em sua presença. Talvez tivesse superado seu medo aos guerreiros.
«Sir Arthur.» O coração deu um tombo. A imagem do cavalheiro apareceu ante seus olhos, mas a afastou de sua mente. Não significava nada para ela. Pouco importava que seu coração tivesse querido voar para ele momentaneamente. Embora as coisas fossem diferentes, ele já tinha expressado com uma claridade dolorosa o que sentia por ela: nada.
Mas teria que passar toda a vida tentando esquecer aquele beijo.
Seu pai esperava que continuasse, mas Anna não era capaz de encontrar as palavras.
—O que aconteceria…? —Anna teve que se deter para clarear a garganta — Se a oferta de sir Hugh segue em pé, estou disposta a aceitar sua proposta de matrimônio. Em muda, talvez o conde veja o benefício de unir nossas forças.
Seu pai não disse nada durante um momento, mas sim ficou estudando seu rosto com uma intensidade tal que a Anna pareceu estar retorcendo-se em seu interior.
—Crê que seguirá te querendo? Não teve nenhuma graça que o rechaçasse.
Ardiam-lhe as bochechas de vergonha de não ter parado pra pensar nessa possibilidade. Seu pai tinha razão. O jovem cavalheiro, ferido em seu nobre orgulho pelo rechaço, ficou uma fúria.
—Não sei, mas merece a pena tentar.
Já tinham machucado seu orgulho há pouco. O que importava um pouco mais ou menos?
—A sua mãe não gostará da idéia — disse John de Lorn olhando para a porta — Os caminhos podem ser muito perigosos com Bruce e seus homens por aí soltos.
Nisso tinha pensado Anna.
—Não se preocupará se Alan me acompanha. Levaremos uma boa escolta.
Seu pai assentiu enquanto acariciava o queixo.
—Sim. Seu irmão te manterá a salvo — disse com um sorriso, enquanto ela tentava mascarar seu desengano. Havia uma parte de Anna que esperava que seu pai se negasse. Este se levantou e a beijou no cocuruto — É uma boa garota, Annie querida.
Em geral Anna transbordava de alegria quando seu pai lhe dirigia um elogio, mas nessa ocasião teve vontade de chorar. Sua felicidade era um pequeno preço a pagar, mas, mesmo assim, era um preço a pagar. Seu pai a beliscou no queixo para que o olhasse os olhos. Anna piscou diante da cálida e úmida bruma do lar.
—Sabe que não lhe pediria isso se tivesse uma alternativa.
Uma solitária lágrima escorregou por sua bochecha. Tremia-lhe a boca, mas se esforçou por sorrir.
—Sei.
Naquele momento supunha que era sua única esperança. Não importava quão mau parecesse. Faria tudo o que estivesse em sua mão para assegurar a aliança.
De todos os modos tampouco havia ninguém que se interessasse por ela.
Entretanto, quando Anna abandonou os aposentos de seu pai, todas essas lágrimas que estivera agüentando saíram precipitadas em uma corrente de esperança extinta, uma esperança que nem sequer era consciente de estar albergando.
A volta de Arthur ao castelo, sozinho, não foi tão difícil de explicar como imaginava. Lorn estava ansioso por ouvir um relatório do que seu filho tinha descoberto a respeito de seus inimigos do oeste. A luta pela supremacia entre os três principais ramos dos descendentes de Somerled, os MacDonald, MacDougall e MacRuairi, levava anos dominando a política das Highlands Ocidentais. Quando morreu o último dos chefes do clã MacRuairi, deixando a sua filha Christina das Ilhas como única herdeira ao trono, estes perderam poder e o terna se reduziu a dois. Lachlan e seus irmãos eram todos filhos bastardos, um título que em seu caso era completamente castigo.
A informação de Ewen oferecida por Arthur a respeito da mobilização de tropas dos MacDonald ao longo da costa ocidental não era nada surpreendente, mas mesmo assim provocou um substancial arrebatamento de fúria no Lorn, e também inquietação, apesar de que procurasse ocultá-lo. Embora talvez não tanta como devesse, o qual o fazia perguntar-se o que teria planejado aquele conspirador briguento. E agora, graças a seu descobrimento no priorado, sabia perfeitamente como averiguar.
Mas como sua volta ao castelo foi em uma hora tardia, sua reunião com lady Anna teria que esperar até a manhã seguinte. dizia a si mesmo que estava inquieto simplesmente porque teria que encontrar um motivo para algo que seria como uma mudança de parecer repentino: em lugar de evitá-la, inventaria desculpas para estar com ela. Mas tampouco queria dar falsas esperanças à moça. Apesar de ter cometido o engano de beijá-la, e Deus, um enorme engano tinha sido aquele, uma relação entre eles era algo impossível. Sabia que não seria fácil. Certamente a moça teria passado toda a semana pensando naquele beijo. Deus sabia que ele mesmo não tinha sido capaz de pensar em outra coisa.
Embora já tinha visto ela cruzando o jardim de Ardchattan, quando a viu entrar no grande salão na manhã seguinte seus sentidos se avivaram como se fosse a primeira vez. Tudo parecia estar mais vivo, mais intenso. Jamais antes o tinha afetado tanto a presença de alguém como fazia nesse momento lady Anna MacDougall. encantou-se dela, de cada um dos detalhes, de cada matiz, das mechas de cabelo dourado que escapavam de seu véu azul à altura da fronte e as têmporas até os finos bordados de seda do cotehardy que rodeava sua figura em todos os lugares apropriados.
«Não…»
Deixou cair o olhar sobre seus seios. Ficou com a boca seca. Via, embora fossem imaginações dele, o mal esboçado relevo de seus mamilos perolando essa parte do tecido. Assaltaram-lhe as lembranças e uma onda de calor saiu de sua virilha. Pensar no tato daquela exuberante suavidade fez que endurecesse seu pau. Que impressionante tinha sido embalar esse seio, sentir o peso dessas carnes perfeitamente arredondadas sobre a palma de sua mão ao mesmo tempo que seu polegar acariciava o teso broto de seu mamilo. Amaldiçoou para si, subitamente incomodado por aquelas lembranças, muito viscerais, em conjunto.
Estava quente. Excitado. Faminto.
Como demônios ia olhar a moça sem lembrar-se das sensações que procurava ter seu corpo pego ao dela? Como poderia ver o sensual arco rosado de sua boca sem recordar quão doce sabor, a suavidade daqueles lábios sob os seus, e que o erotismo de suas línguas entrelaçadas o tinha feito entrar em um torvelinho de desejo mais forte que qualquer outra coisa que houvesse sentido alguma vez? Jamais poderia olhar essa pálida pele suave como a de um bebê, que era como veludo ao tato, sem recordar como a havia tocado.
Deus, quão único queria era atirá-la na cama, enrolar suas pernas a sua cintura e afundar até esquecer-se de tudo. Jesus, tinha que deixar de pensar nisso. Tinha que parar de torturar-se com coisas impossíveis. Sempre tinha sido capaz de reprimir seus impulsos, mas com a Anna era diferente.
Porque ela era diferente. E não fazia nenhuma graça reconhecê-lo.
Arthur se dava conta de como o observava seu irmão, mas não podia afastar o olhar. Seu coração pulsava mais depressa a cada passo que ela dava e cada um de seus nervos ficava em tensão enquanto se preparava para o momento em que ela se inteirasse de sua presença. Mas assim que a teve mais perto percebeu uma estranha pontada. Algo não ia bem.
Não sorria. Seus olhos não brilhavam com alegria e travessura. E sua risada, esse leve e efervescente som ao que poderia ouvir durante horas, permanecia em completo silêncio. acostumou-se tanto a seu perpétuo bom humor, ao despreocupado encanto com o que parecia iluminar os aposentos, que o vazio deixado por sua ausência obscurecia o grande salão.
Maldição. teria feito mais dano de que pensava? A culpa o atormentava.
Por um instante pensou que passaria junto a ele, mas então notou o peso de seu olhar. ficaram contemplando o um ao outro. A quietude era absoluta.
Esperou ver sua reação. Esperava presenciar como a cor subia por suas bochechas, como lhe cortava a respiração e se acelerava o pulso em seu pescoço. Esperava que se delatasse. Mas em vez disso ficou em guarda.
Lady Anna levava todos seus pensamentos e sentimentos escritos no rosto. Essa era uma das coisas que Arthur encontrava tão cativantes e irresistíveis dela. A inocência e a emoção infantil que mostrava, sua preciosa vulnerabilidade. Mas essa expressão, antes sempre acessível, permanecia oculta.
Percebeu a frieza de seu olhar por um breve instante dantes que afastasse e passasse por ele. Como se tivesse deixado de existir. Como se ela jamais se derretera em seus braços. Como se o beijo no que não podia deixar de pensar jamais existira para ela. Como se não tivesse estado a ponto de sucumbir sob seu corpo.
Sua indiferença lhe corroía o peito como se de um ácido se tratasse. Queimava. Doía. O fazia perder o controle por completo, sentir a necessidade primitiva de cometer alguma loucura, como empurrá-la contra a parede e beijá-la até que se rendesse a seus pés uma vez mais.
Mas ele era um homem que mantinha o controle. refreava-se. Era diferente. Não tinha necessidades de tal tipo. E entretanto, com um só olhar de frieza, Anna MacDougall conseguia tirar dele os impulsos bárbaros que levava no sangue.
Ao que parecia tinha conseguido seu objetivo. Seu cruel rechaço sortia efeito. Não deixava de ser irônico que se mostrasse indiferente justo quando ele desejava que não fosse assim. Ou pode ser que nunca tivesse estado interessada nele. Talvez o único que queria fosse vigiá-lo.
azedou a expressão e se o flexionaram os músculos, mais molesto por esse pensamento do que gostaria de admitir. Por desgraça, seu irmão se mostrava perceptivo. Dugald simulou um calafrio.
—Vá, parece que faz um pouco de frio por aqui. Acredito que a dama já esqueceu o capricho, irmãozinho. Com o tanto que tentou, pensei que estaria mais contente — disse, fazendo uma pausa para negar com a cabeça — Será possível que ao fim te tenha feito cair uma mulher? Acreditava que isso não aconteceria nunca.
Arthur se recostou sobre a parede de pedra que tinha trás de si, aparentando uma indiferença que não sentia. Era certo que gostava dela, mas antes morto que deixar que Dugald conhecesse sua debilidade.
—Não é mais que uma moça apetecível.
—Mais apetecível ainda porque não pode tê-la.
Arthur encolheu os ombros e deu um longo gole a seu cuirm até esvaziar a taça.
—O que eu quero dela não é algo que possa me dar uma inocente jovem da nobreza.
Dugald riu e lhe deu uma palmada no braço.
—Compartilho sua dor, irmãozinho. Eu mesmo estou sentindo um pouco parecido. Sei de uma moça com uma boca talentosa que faria bastante por aliviá-lo. Mandarei a ti.
Arthur desviou o olhar para o tablado em que se acabava de sentar lady Anna. Tentava pelo menos. Tentava. Mas não lhe interessavam as mulheres de seu irmão. Franziu o cenho em um meia sorriso.
—Você compartilhando, irmão? Não parece você mesmo. Mas neste caso não será necessário. Não acredito que tenha problemas para encontrar alívio.
Se quisesse, sabia de algumas mulheres entre as que podia escolher. O problema era que não queria. Ao menos, não com elas.
Dugald encolheu os ombros.
—Como deseje — disse aproximando-se dele com um amplo sorriso — Mas não sabe o que te perde. Essa moça poderia deixar seca a uma vaca com a boca que tem e faz umas coisas com a língua que…
A voz do Dugald se confundiu com o ruído de fundo. As perversas habilidades que pudesse representar a fulana do Dugald não lhe interessavam. Arthur voltou o olhar para o estrado. Ela era quem o interessava, maldita seja. Embora Deus sabia que não deveria ser assim. Mas parecia que Arthur fosse invisível, porque não olhou uma só vez em sua direção. Sua irritação crescia a cada minuto. Aferrava com força a taça de estanho e a enchia uma e outra vez à medida que o ágape avançava. Seu plano para aproximar-se dela seria mais complicado do que pensava, mas acreditava que se livraria dele tão facilmente estava muito equivocada.
«Retornou.»
Anna se rebelou ante o inoportuno desejo que arremetia contra seu peito e se obrigou a não olhar em sua direção. A não pensar nele. Sir Arthur não era para ela. Jamais foi. Seu destino estava concretizado. Já tinha tomado sua decisão. Seu pai e seu clã contavam com ela. Era muito tarde para arrepender-se ou pensar melhor, por mais que vê-lo devolvesse todas essas ingratas emoções de repente em uma pancada.
Como não se fixou nele a princípio, quando nesse momento já não podia ver nenhuma outra pessoa? Aquele orgulhoso jovem cavalheiro de escura beleza era o homem mais bonito de toda a sala. E sem dúvida também o mais forte. Suas bochechas se acaloraram. somente olhar sua figura alta e de largos ombros voltavam as lembranças de seu torso nu. Cada um de seus esculturais músculos. Cada uma de suas rígidas linhas. Cada um dos gramas de sua musculosa carne.
Tentava ignorá-lo, mas sentia o peso de seu olhar enquanto comia. Ou tentava comer, já que tinha a boca completamente seca e a comida lhe parecia insípida e terrosa. Olhava-a com tal intensidade que dava vontade de sair correndo. Algo que fez assim que teve oportunidade.
Anna se apressou a sair do grande salão com mais sentimentos dos que podia albergar, correu pela escadas para sua câmara da torre e ficou a pinçar no armário em busca de sua capa de montaria. Precisava sair dali.
Um dia. Somente tinha que o evitar durante um dia e depois disso partiria. Tinham previsto partir para o castelo de Auldearn, a fortaleza real do conde de Ross, na manhã seguinte. por que não podia permanecer fosse do castelo até que ela partisse? Assim tudo teria sido muito mais fácil.
Em seu desespero por escapar, revolvia os montes de objetos de lã e de seda que penduravam de seu armário sem importar a desordem que criava. Onde estaria?
Estava a ponto de enfrentar o frio matinal e sair de todos os modos quando percebeu de que provavelmente sua criada já teria posto a capa em sua arca para a viagem. Abriu a tampa de madeira e deixou escapar um suspiro de alívio ao ver que a peça de lã axadrezado de cores cinza, azul e verde estava dobrada em cima de tudo. A jogou rapidamente sobre os ombros, agarrou em braços Escudeiro, temendo que o cachorrinho saísse correndo em busca do cavalheiro pródigo, e voltou a descer a escada como um torvelinho. antes de sair ao barmkin olhou pela fresta da porta para assegurar-se de que tinha via livre. Não queria correr nenhum risco de topar com ele. Sabia que aquilo era ridículo. Sir Arthur fazia todo o possível para evitá-la. Mas havia algo na forma em que a tinha olhado durante o café da manhã que chamava à cautela.
Cruzou o pátio e se dirigiu para os estábulos. Uma vez na segurança de seu interior soltou ao revoltoso cão no chão e fez que o cavalariço chamasse Robby enquanto ela preparava os arreios de seu cavalo.
Não tinha nenhum destino em mente, com tal de sair do castelo era suficiente. A impressionante fortificação de pedra e os grandiosos muros do barmkin pareciam muito pequenos de repente. Acabada sua tarefa, dispôs-se a recolher ao Escudeiro do chão quando a porta se abriu e o cachorrinho prorrompeu em uivos e ganidos ao mesmo tempo que saltava de seus braços disparado como uma flecha.
—Merda! —saiu de seus lábios antes que desse tempo a refrear-se.
Não precisava olhar para saber quem era. Se a reação de Escudeiro não dizia, assim fazia seu próprio corpo. O ar mudou. A pele lhe ardia. Seus sentidos despertaram. O aposento esquentou imediatamente e o leve aroma de fragrância masculina se filtrava através dos penetrantes e terrestres aromas do estábulo. Fechou os olhos, rezou uma prece que os céus lhe dessem força e ficou em pé lentamente para enfrentar a ele.
Seus olhares se encontraram. A repentina excitação que a embargou foi como um látego que a chamasse o ordem. Aquela era uma impressão que parecia não diminuir nunca. cortou a respiração, ao mesmo tempo que essa aguda e repentina opressão voltava a lhe envolver o peito e espremê-la. Um irritante acesso de nostalgia se formava em seu interior, mas esmagou com rapidez, sem compaixão. Ele não significava nada para ela. Já não. Não depois do ocorrido nos barracões. A tinha ensinado quão errado era para ela. E mais valia que acreditasse.
Controlou suas feições para fazer delas uma máscara impassível, tirando provisão de cada gota de sangue real que corria por suas veias. Era descendente de reis, tataraneta legítima, seis gerações depois, do poderoso Somerled. Saudou-o com uma ligeira inclinação da cabeça e disse friamente: —Sir Arthur, vejo que retornastes.
Sua tentativa de mostrar-se digna se viu em certo modo arruinado pela tremor de sua voz. Uma coisa era fingir que não lhe afetava sua presença em um salão cheio de gente e outra muito diferente fazê-lo em um pequeno estábulo. A sós. Enquanto ele a olhava dessa maneira tão intensa. Com raiva. Tinha o rosto avermelhado por completo, à exceção das comissuras da boca e de sua palpitante têmpora, que para sua desgraça estavam brancas.
O coração pulsava a toda pressa. Onde estava Iain? A cavalariço já deveria ter retornado.
Arthur pareceu ler sua mente e endureceu o olhar, algo que não fez a não ser enervá-la mais, dado que já era suficiente severo. Não tinha motivos para estar furioso com ela.
—O moço não virá. Disselhe que a levaria aonde precise ir.
Por Deus, isso não! Não queria ir com ele a nenhuma parte. Nem sequer queria o ter perto. Anna ergueu o queixo, negando-se a que a intimidasse a sensação de perigo que lhe transmitia. Não tinha feito nada mau. Somente esperava que não se inteirasse de como lhe tremiam as mãos.
—Isso não será necessário.
Arthur deu um passo à frente e Anna fez esforços em não cambalear-se. Mas o sangue pulsava com força em seu pescoço. E ele viu. O sorriso que se desenhou em seus lábios a fez sentir como um camundongo ante os olhos de um gato.
—Temo-me que sim, será. Se saíres do castelo partirei contigo. —Arthur a olhou de tal modo que fez que a Anna fervesse o sangue — Me parece que esquecestes algo.
Gaguejou, completamente deslocada pelo calor que fluía por suas veias.
—O que… o que?
—Sua cesta — disse olhando-a nos olhos. Anna ficou gelada, decomposta pela surpresa. Não era possível que soubesse. Quase suspirou de alívio quando ele acrescentou—: Não acredito ter visto sair do castelo sem ela.
Muito observador, mais do que convinha. Sir Arthur era perigoso em muitas e diferentes formas. Seu pai iria às nuvens se alguém descobrisse o que ela e algumas das outras mulheres faziam. Anna se recompôs em seguida, irritada por permitir que a angustiasse.
—Só tinha intenção de sair a cavalgar. Hoje não visito ninguém da vila.
Arthur ficou olhando-a por mais tempo do que devido, e Anna voltou a perguntar-se se saberia algo. Entretanto, nessa ocasião sua expressão não traiu seus pensamentos.
Uma série de latidos frenéticos fez que Arthur dirigisse sua atenção ao chão, para o cão que saltava sobre sua perna.
—Abaixo! —disse em uma voz que não aceitava discussão. O cão se sentou imediatamente e ficou olhando-o com cara de adoração — Seu cachorrinho precisa aprender maneiras.
Anna franziu os lábios.
—Gosta de ti.
«Deus saberá por que motivo.» Tentar tirar um pouco de afeto de Arthur Campbell era como querer extrair água de uma rocha, uma experiência condenada ao fracasso e a frustração. Arthur entreabriu os olhos como se Anna houvesse dito isso em voz alta.
—Normalmente os animais gozam de bons instintos.
—Normalmente sim — concedeu, deixando muito claro que ela pensava diferente nesse caso.
Aquele brilho perigoso voltou a encher seu olhar.
—E o que tem que você, Anna? O que dizem seus instintos?
«Corre. te esconda. te afaste dele tanto como possa para que não te faça mais dano.» Olhar essa mandíbula afiada e recortada, seus sensuais e carnudos lábios e esses olhos escuros jateados de âmbar era já suficientemente doloroso.
Afastou o olhar, contendo a emoção que ia a sua garganta.
—Eu não faço caso a meus instintos.
Ao menos já não fazia. Estavam errados. Seus instintos a tinham feito acreditar que entre eles havia algo especial. Que talvez ele tivesse necessidade dela. Que se sentia sozinho. E que possivelmente fosse diferente ao que parecia: um ambicioso cavalheiro, um soldado valente que vivia por e para sua espada.
Inclusive nesse preciso momento seus instintos lhe faziam acreditar que a tensão que bulia entre ambos significava algo, que bastaria que tomasse em seus braços e a beijasse de novo para que tudo voltasse para a normalidade. Mas era muito tarde para isso.
—Os instintos só servem para te obrigar a fazer coisas das que logo te arrepende — acrescentou.
Arthur esticou o queixo e o músculo de sua mandíbula começou a tremer de modo detestável. aproximou-se mais ainda. Tão perto que Anna sentia todo o calor que irradiava. Tão perto que cheirava o especiado aroma de sol que emanava sua pele. Começaram a tremer as pernas. Por Deus, tinha esquecido quão alto era. Parecia que muros se fechassem em volto dela. Custava-lhe respirar. Custava-lhe inclusive pensar enquanto se abatia sobre ela de tal modo. Usava sua selvagem masculinidade contra ela com a sutileza de um carneiro batendo-se em duelo.
—E arrependes de algo, Anna?
A enganadora suavidade de sua voz não a enganava absolutamente. Advertia perfeitamente a raiva contida em suas palavras, como se lhe importasse que seu coração tivesse mudado de parecer. por que fazia isso? por que tentava confundi-la? Fosse ele quem havia dito a ela que se afastasse.
—Que mais dá? E menos agora. Deixara tudo muito claro antes de fugir com meu irmão.
Anna tentou flanquear a porta e deixá-lo ali, mas Arthur a deteve com o implacável escudo de seu peito. Pela linha branca que se formou na comissura de sua boca não coube dúvida de que tinha captado a indireta.
—Então já acabastes com a espionagem. É isso?
Anna o observou atentamente. Nisso era que acreditava? Bom, que mais dava o que pensasse. Afastou lentamente seu olhar e a dirigiu para a porta.
—Sim, isso. Agora se me permitem, eu gostaria de partir.
Empurrou seu peito com o dorso da mão, mas era tão firme como um escarpado rochoso. Um escarpado com montões e montões de pedras cortantes e afiadas.
—Já vos disse que partiria contigo.
—Seus serviços já não são necessários. mudei de opinião. Não sairei a cavalgar esta manhã.
A maneira que flamejavam seus olhos revelava que não fazia nenhuma graça que o rechaçassem. Bem, pois pior para ele. Ela não o tinha escolhido como seu cavalheiro andante. Então notou que os músculos de suas costas se esticavam e se perguntou se não o teria levado muito longe. Mas Arthur não fez mais que torcer o gesto, representar uma reverência exagerada e afastar do caminho.
—Como desejais, milady. Mas se mudares de opinião já sabem onde me encontrar.
Anna passou junto a ele como um raio, com o queixo bem alto.
—Não o farei. Tenho muitas coisas que fazer antes de partir.
A mão que pousou sobre seu ombro a fez deter-se de repente. Mas inclusive essa forma rude de tocá-la fazia que seus sentidos se desatassem.
—Vais a alguma parte, lady Anna?
Tentou desembaraçar-se de seu braço e o fulminou com o olhar ao ver que não a deixava partir.
—Não é seu assunto.
Um brilho foi a seus olhos ao mesmo tempo em que Arthur se aproximava mais a ela. Anna sentia a energia que vibrava entre ambos e a arrastava consigo. Tinha a boca tão perto…
—me digas.
Não podia beijá-la, dizia-se Anna presa do pânico. Não podia permitir que a beijasse.
—Caso-me — disse bruscamente.
Capítulo 12
Arthur retirou o braço como se queimasse.
«Caso-me.» Suas palavras sentaram como um soco no estômago. Era incapaz de se mover. Cada osso, cada músculo, cada uma de suas terminações nervosas se petrificou.
—Com quem? —perguntou com uma voz mortiça, vagamente ameaçador, que não parecia a sua, soava como a do MacRuairi.
Anna não queria olhá-lo nos olhos. ficou a retorcer as grossas pregas de lã de sua saia com as mãos.
—Com sir Hugh Ross.
Uma faca encravada entre suas costelas teria resultado menos doloroso. O filho e herdeiro do conde de Ross. Arthur o conhecia, é obvio. O jovem cavalheiro já havia feito um nome por si mesmo. Era um guerreiro temível, um estrategista, dentro e fosse do campo de batalha. O fato de que fosse um bom partido piorava mais.
Não compreendia a raiva que consumia seu interior, nem por que se sentia traído. Não lhe pertencia, diabos. Jamais poderia lhe pertencer. Mas isso não o fazia esquecer que apenas quinze dias atrás a tinha tido em seus braços e que estivera a muito pouco de despoja-la de sua inocência.
—Ao que parece tiveste uma semana muito ocupada, milady. Não perde tempo.
Um quente rubor tingiu suas bochechas.
—Ainda não concretizamos os detalhes.
Arthur advertiu algo em sua voz que o fez entreabrir os olhos enviesadamente.
—A que detalhe se refere? Está prometida ou não?
Anna ergueu o queixo e ele captou o desafiante brilho de seu olhar apesar do sufoco de seu rosto.
—Sir Hugh me propôs matrimônio faz um ano, pouco depois de que morreu meu prometido.
—Acreditava que o tinha rechaçado.
—Assim foi. Pensei melhor.
Arthur compreendeu do que se tratava tudo aquilo de repente. Ao não contar com a ajuda do rei Eduardo, os MacDougall tinham decidido pedir ao Ross e oferecer a lady Anna como incentivo acrescentado para a aliança. Pouco importava se ela tinha pensado melhor ou era seu pai quem assim tinha decidido. Arthur não podia permitir que unissem suas forças. Uma aliança entre Ross e os MacDougall poria em perigo a vitória de Bruce. Seu trabalho, sua obrigação, era deter aquilo.
Arthur a olhou com dureza.
—E como sabe que sir Hugh se mostrará aberto a sua repentina mudança de pensamento?
—Não sei. —Anna lhe dirigiu um olhar penetrante — Mas farei tudo o que possa para persuadi-lo.
Não era necessário adivinhar a que se referia. Sua reação foi instantânea. Primitiva. Por um breve instante da ira se apoderou dele e perdeu o controle. Sentiu um vazio na mente. Lady Anna estava a escassos centímetros de ver-se esmagada contra a parede do estábulo com seus lábios selados pelos dele, toda sua virilidade entre as suas pernas e uma língua afundando-se no interior de sua boca, ali onde devia estar.
Mas inclusive no furor de sua raiva pedia mais a necessidade de protegê-la. Não confiava em si mesmo para tocá-la de tal modo.
Anna pôs os olhos como pratos e teve a prudência de dar um passo para trás. Mas ele a seguia cativando com a armadilha de seu penetrante olhar.
—Assim tem tudo bem planejado?
Assentiu.
—Sim. Será melhor para todos.
Que aquilo soasse como se estivesse tentando convencer-se a si mesmo não consolava absolutamente.
—Seu plano tem um problema.
Anna o olhou, dúbia.
—E qual é?
—Ross está ao norte. Os caminhos são muito perigosos para que te translades. É muito arriscado. Bruce e seus homens ficarão no caminho em qualquer momento. Seu pai não aprovará isso.
Lorn era um filho de cadela desalmado, mas parecia amar a sua filha de uma maneira genuína.
—Já o tem feito. Uma leva de guardiães me escoltará, junto com meu irmão Alan. Pode ser que o rei Hood seja um patife assassino, mas não faz guerra às mulheres.
Arthur lutava por manter sob controle seu gênio. Lorn tinha que estar muito desesperado para aceitar isso. O muito filho de cadela faria o que fosse para ganhar, inclusive pôr em perigo sua filha.
—Se se derem conta de que és uma mulher. Na escuridão, não serão tão fácil de distinguir. Poderiam a confundir com um mensageiro.
Acaso tinha esquecido o que estivera a ponto de lhe ocorrer no Ayr? Jesus, quando pensava no perigo… gelou o sangue. De novo teve vontade de empurrá-la contra a parede do estábulo, dessa vez para procurar que entrasse em razão. Poderiam feri-la. Assassiná-la.
—Meu irmão me protegerá. Estou segura de que não passará nada.
Arthur sentia uma veia a ponto de estalar na têmpora. Nem uma centena de homens poderiam lhe dar segurança. Seus esforços por controlar fracassariam.
—Não seja louca! Não podem ir! É muito perigoso. Mandem um mensageiro, é melhor.
Não necessitava mais que ver a posição de seu queixo e a maneira em que entreabria os olhos para saber que tinha cometido um engano. Poe tratar-se de uma moça de aparência tão doce mostrava uma teima digna de admiração.
—Já está decidido. E você, temo que não tenha nada que dizer a respeito.
As mulheres tinham que ser submissas e dóceis, maldita seja. E ali estava ela, cotovelo com cotovelo com ele, sem retroceder um centímetro. Se não estivesse tão furioso isso pareceria admirável.
Nessa ocasião, quando Anna deu meia volta e se dirigiu para a porta, Arthur não a deteve.
«Nada que dizer a respeito.» Isso veremos.
Se ela não entrava em razão, talvez seu pai fizesse.
Os homens de Bruce estavam batendo toda a área, assaltando, saqueando, fazendo tudo o que podiam por semear o caos e expandir o medo no coração do inimigo. A guerra não tinha lugar só no campo de batalha mas também no interior das mentes. Um grupo de escolta do clã MacDougall seria algo irresistível. Anna teria uma flecha no coração antes que pudessem se dar conta de seu engano.
Dizia a si mesmo que era a ameaça que isso supunha para a missão que fazia que se embolotassem todos seus músculos. Evitar esse tipo de aliança, manter isolado ao MacDougall, essa era a razão pela que estava ali. Mas não eram as mensagens nem a aliança em que pensava. Tudo que podia ver era Anna jogada em um atoleiro de sangue. Tinha que fazer que Lorn se afastasse desse estúpido caminho.
E se não podia… De nenhuma maneira a deixaria partir sozinha. Se Anna desse um passo fora desse castelo, ali estaria ele para acompanhá-la, ali onde pudesse a proteger e tê-la à vista. E havia uma coisa que tinha muito clara: não cabia nem a mais remota possibilidade de que a deixasse casar-se com Hugh Ross.
—Ocorre-te algo, Annie? Parece contrariada.
Anna ergueu o olhar para seu irmão Alan, que acabava de aproximar-se para cavalgar a seu lado. Depois de navegar em um birlinn nessa manhã o primeiro lance da viagem, o resto do trajeto fariam a cavalo. A rota marinha desde Dunstaffnage até a vila do Inverlochy através do lago Linnhe tinha levado menos de meia jornada, uma travessia em que teriam empregado vários dias ao fazê-la por terra. Oxalá o resto da viagem fosse igual de simples. Havia três lagos salgados e numerosos rios que percorriam Gleann Mor, o enguiço do Grande Glenn que dividia a Escócia entre o Inverlochy, no nascimento do lago Linnhe, até o Inverness e o fiorde de Moray, mas as rotas marinhas estavam separadas por terreno suficiente para fazer impraticável a viagem em navio. Em vez disso, cavalgariam os pouco mais de cem quilômetros que tinha que o Inverlochy até Nairn, ao leste do qual se encontrava o castelo do Auldearn. Com sorte demorariam quatro dias para chegar. Anna era consciente de que atrasava sua marcha, apesar de que galopavam em um ritmo muito mais castigador que aquele trote pausado ao que estava habituada.
Parecia irônico que estivesse fazendo virtualmente a mesma rota que tinha seguido o rei Hood no outono passado esperando acontecer através das Highlands e apoderando-se dos quatro castelos principais que balizavam o caminho: os castelos de Inverlochy e Urquhart, pertencentes aos Comyn, e os castelos reais de guarnição inglesa em Inverness e Nairn. Dado que esses castelos seguiam ocupados pelos rebeldes, veriam-se obrigados a procurar outra hospedagem que entranhasse menos perigo. Anna suspeitava que se quisessem evitar aos homens de Bruce teria que acostumar-se à paisagem dos bosques. Ao menos assim se livraria daquele sol abrasador por um tempo. Cavalgavam há várias horas e embora o véu protegesse seu rosto, tinha calor, estava pegajosa e, sim, também zangada, como tinha advertido seu irmão. Furiosa, para falar a verdade. O tempo, não obstante, não tinha nada que ver com seu incomum mau humor. Essa honra reservava a um certo cavalheiro intrometido.
Negou-se a lhe dirigir o olhar durante todo o dia. Mas isso não significava que não soubesse exatamente onde estava: cavalgando na cabeça do grupo, inspecionando o caminho que tinham pela frente em busca de sinais de perigo. «Perigo.» Isso era dizer pouco. O perigo era que ele os tivesse acompanhado na viagem.
—Estou bem —assegurou a seu irmão, conseguindo esboçar um sorriso forçado — Tenho calor e estou cansada, mas me encontro bem.
Alan a olhou de esguelha com um desinteresse enganoso.
—Acreditava que talvez tivesse algo a ver com o Campbell. Não parecia muito contente quando disse que nos acompanharia.
Seu irmão era muito ardiloso. Um traço que faria dele um bom chefe no futuro, mas nada que fosse apreciável para uma irmã que preferia guardar seus pensamentos para si mesma. Apesar de seus esforços em não reagir a essas palavras, chiavam-lhe os dentes.
—Não deveria ter-se intrometido.
Quando seu pai lhe contou que sir Arthur havia tentando dissuadir de que cancelasse a viagem, não podia acreditar. Ao fracassar nisso, pediu permissão para os acompanhar argumentando que suas habilidades como rastreador ajudariam a garantir sua segurança. E para maior desgraça de Anna seu pai tinha aceitado. De modo que em lugar de ignorá-lo durante uma só jornada, agora teria que suportar sua presença constante durante dias, semanas inclusive. Acaso tentava atormentá-la de propósito? Aquilo que tinha que fazer já era difícil sem que ele andasse revoando por aí.
—É um cavalheiro, Anna. Um explorador. Informar sobre a posição do inimigo é exatamente seu trabalho. E não posso dizer que não esteja agradecido de que venha conosco. Se for tão bom como diz ser, será muito útil.
Anna se dirigiu a Alan com cara de estar horrorizada.
—Está de acordo com nosso pai?
Alan endureceu o queixo. Jamais criticaria a seu pai de maneira aberta, embora quisesse fazê-lo, como era o caso.
—Teria preferido que ficasse em Dunstaffnage, embora entenda a razão pela que pai insistia em que viesse. Ross se mostrará mais disposto ante uma solicitude direta —disse com um sorriso — É uma danada, Annie querida, mas uma danadinha encantadora.
Anna torceu o lábio.
—E você é tão protetor que molestas, mas eu também te adoro.
Alan se pôs-se a rir e Anna não pôde a não ser unir-se a suas risadas.
Sir Arthur voltou a cabeça para ouvir e a pegou despreparada. Seus olhares se cruzaram por um momento antes que lhe desse tempo a afastar o olhar bruscamente. Mas foi suficiente para que sentisse uma boa pontada no peito. por que tinha que ser tão doloroso?
Alan não evitou esse intercambio de olhares. Voltou a ficar sério e a olhá-la com intensidade.
—Está segura de que isso é tudo o que acontece, Anna? Já sei o que disse, mas me parece que entre sir Arthur e você há algo mais que os trabalhos de vigilância que pai te encomendou. Eu acredito que sente algo por ele. —A pulsação que Anna sentia no peito lhe dizia que seu irmão tinha razão, por mais que gostaria que não fosse certo — Podemos apelar ao Ross sem necessidade de um compromisso —disse seu irmão com carinho — Não é necessário que sacrifique sua felicidade para chegar a um pacto.
Não pôde evitar emocionar-se. Era tão afortunada de poder contar com um irmão como ele… Sabia que poucos homens a tratariam com tal consideração. A felicidade não era algo a ter em conta no matrimônio entre nobres. O poder, as alianças, a riqueza, isso era o que importava. Mas o amor do que Alan desfrutou em seu matrimônio tinha dado a seu irmão uma perspectiva única. Apesar de tudo, teriam muitas mais oportunidades de conseguir o apoio de Ross com uma aliança. Alan sabia tão bem quanto ela. Além disso, ajudar a sua família jamais poderia constituir um sacrifício. Arthur tinha expressado com brutal claridade que não havia nada entre eles.
—Estou segura — disse com firmeza.
A firmeza de sua voz ajudou a convencê-lo. Alan seguiu cavalgando junto a ela um momento mais na lembrança de suas anteriores viagens nos excepcionais momentos de paz, mas ao final acabou voltando junto a seus homens.
Durante da primeira jornada fizeram grandes progressos e chegaram até o lago Lochy, onde passaram a noite em uma estalagem próxima à borda sul do mesmo. Aquele pequeno edifício de pedra com telhado de palha parecia antigo, e dada sua localização junto a uma ruína, Anna supôs que era.
Estava dura e dolorida. Suas pernas, traseiro e costas se ressentiam por cada uma das horas desse longo dia, de modo que agradecia estar debaixo de um teto e em uma cama, por mais rudimentares que fossem. Lavou-se e se compôs para comer um pouco de caldo de pescado e pão de centeio antes de cair rendida no camastro junto à Berta, sua criada, que roncava no jergon do lado.
A segunda noite, não obstante, não teriam tanta fortuna. Sua cama seria um simples cobertor em uma pequena tenda instalada na floresta ao sul do lago Ness.
Fora um dia longo, mais longo ainda graças ao constante fluxo de informes de exploração de sir Arthur. Para evitar cenários suscetíveis de perigo, tais como rotas a campo aberto ou lugares propícios para as emboscadas, havia vezes que se desviavam bastante do caminho. O qual significava que em lugar dos quarenta quilômetros que teriam percorrido, fizeram provavelmente uns cinqüenta e cinco através da espessura dos bosques e as colinas serpenteantes de Lochaber. Aquilo a Anna pareceu de uma precaução exagerada. por agora, não tinha visto nada fora do normal, mais que habitantes da vila, pescadores e algum que outro ocasional grupo de viajantes. Se os homens de Bruce patrulhavam os caminhos, não se tinham feito notar. Talvez esses quilômetros a mais fossem outra forma de tortura idealizada por sir Arthur? Como se não fosse suficiente sua presença.
As pernas de Anna, pouco acostumadas a passar dias cavalgando, tremeram ao se ajoelhar à borda do rio para lavar as mãos. Colocou a cabeça na corrente com a esperança de sacudir o cansaço, mas o frio golpe de água não a refrescava o suficiente. Quando tentou levantar-se, coisa que fez com muita dificuldade, teve que resmungar ao conscientizar-se da objeção de seus ossos e articulações, que rangiam como se tratasse do corpo de uma anciã. Tomou seu tempo para saborear o momento de solidão, sem nenhuma pressa por voltar para acampamento. Embora o resto do grupo estivesse a poucos metros dela, o denso tanto de árvores parecia absorver todo o som. de vez em quando chegava até ela o murmúrio apagado de suas vozes, mas além disso tudo permanecia em uma calma excepcional, o que representava o maior momento de paz que tinha desde sua chegada ao barmkin no dia anterior pela manhã, quando encontrou a sir Arthur Campbell preparado para sair com eles. Aqueles dois dias tentando forçar-se a não olhá-lo tinham cobrado sua cota. Era pior do que temia. Apesar de que o ignorasse e evitasse seus olhos cada vez que ele olhava em sua direção, cada um de seus movimentos lhe afetava de maneira dolorosa. O desassossego, que parecia lhe queimar o peito até furá-lo, era cada vez maior. Mais duro. Enfurecia-se com suas emoções, deixando-a nua e exposta. Não sabia por quanto mais poderia suportar. Por que tinha que estar ali?
Suspirou com aborrecimento e deu as costas à tranqüilizadora correnteza que corria sobre as rochas. Berta faria que seu irmão fosse procurá-la como um louco se não retornasse no par de minutos que tinha prometido. Além disso, estava ficando de noite.
Mal tinha dado uns passos em direção a floresta quando um homem saiu dentre as sombras e lhe fechou o passo. O pulso acelerou, presa do pânico. Esteve a ponto de dar a voz de alarme, mas seu gritou ficou sufocado ao reconhecê-lo. Fechou a boca de repente, mas seu pulso seguia igual de acelerado.
—Não faça isso! —espetou ao mesmo tempo em que erguia o olhar para o belo rosto de sir Arthur — Me destes um susto de morte.
Não tinha feito um só ruído. Como um homem tão corpulento podia mover-se com tal sigilo era algo que escapava a sua compreensão.
—Melhor —respondeu ele — Não deveria estar aqui sozinha.
—Não estava sozinha —disse Anna com um sorriso forçado — tinha você me espiando.
Anna sentiu um prazer enorme ao ver que esticava a mandíbula. Era horrível por sua parte que lhe agradasse tanto, mas tentar tirar algum tipo de reação daquele homem parecia um lucro absoluto. Sir Arthur lhe dirigiu um olhar pausado e penetrante.
—Algo do qual estou certo que conhece todos os segredos.
Agora tocava a ela endurecer o gesto. Havia muita proximidade. Embora seu irmão e o resto dos homens estivessem a um grito de distância, aquilo supunha uma intimidade com ele muito maior da que ela queria. Qualquer tipo de intimidade com ele podia ser perigosa.
Isso a fazia recordar coisas. Como o sabor especial de seus beijos. Ou o modo em que os grossos músculos de seu torso se esticavam à luz das velas. Ou a maneira em que as mechas onduladas de seu cabelo molhado caíam sobre seu pescoço. Ou seu aroma. «Aroma de sabão e a virilidade», pensou Anna enquanto aspirava.
Arthur não se barbeou, e a barba incipiente lhe dava um aspecto esfarrapado e perigoso que, maldito fosse, o fazia ainda mais atraente.
Ao comprovar que apesar de todo o ocorrido ainda conseguia lhe afetar do mesmo modo, Anna ficou furiosa e tratou de afastá-lo de seu caminho. Um exercício de futilidade como jamais houve algum.
—Não há motivos para preocupar-se.
Ele a agarrou seu braço para detê-la, como se a impenetrável barreira de seu torso não fosse suficiente.
—A próxima vez que te afastes do acampamento, não o façam sem guarda, preferivelmente eu ou seu irmão.
Suas bochechas se ruborizaram, zangada com o tom e sua atitude prepotente. Sir Arthur Campbell, cavalheiro ao serviço de seu pai, transpassava os limites.
—Não têm direito a me dar ordens. A última vez que olhei não fostes tu, a não ser meu irmão, quem estava ao mando.
Seus olhos brilharam ao mesmo em tempo que ele a agarrava pelo braço com mais força. Falava em voz baixa e sua boca… Anna ficou sem fôlego. Também sua boca estava baixa, a uma altura perigosa, tão perto da sua que doía. Se ficasse nas pontas dos pés, era possível inclusive que chegasse a tocá-la.
Deus, que vontade tinha de fazê-lo. Estava desesperada por fazê-lo. Uma onda de calor invadiu todo seu corpo, concentrando-se nos seios e no encontro das coxas. Os mamilos se puseram eretos; morriam de vontade por roçar-se com seu duro peito.
Aquela traição de seu corpo parecia humilhante. Ele não tinha nenhum direito a fazê-la sentir assim. Não depois de a rechaçar de maneira tão cruel. Não depois de que partisse e deixasse claro que era tal e como o tinha imaginado em princípio. por que não podia deixá-la em paz simplesmente?
—Não me desafiem nisto, Anna. Se quiserem que consiga a cumplicidade de seu irmão, farei. Quão único tentava era evitar a vergonha de que te tratem como a uma criança, mas farei tudo o que esteja em minha mão para te manter a salvo.
Houve algo em sua voz que fez que lhe deu calafrios.
—O que acontece? Estão os rebeldes perto daqui? Viu algo?
Uma sombra cruzou o olhar de Arthur. Negou com a cabeça.
—por agora não.
—Mas têm um pressentimento.
Arthur a olhou com total desconfiança, como se pensasse que tentava enganá-lo para que admitisse que ela tinha razão quanto às habilidades que tinha mostrado com antecedência. Parecia disposto a negá-lo, mas logo encolheu os ombros e lhe soltou o braço.
—Sim, sinto o perigo. E também vocês deveriam senti-lo. Não cometam o engano de pensar que não estão aí simplesmente porque não os tenhamos visto.
Assentiu, assombrada pelo que parecia uma preocupação sincera.
—Farei como me pede.
Ambos sabiam que não era uma petição, mas Arthur parecia estar satisfeito com sua aprovação e não quis discutir a semântica.
Anna era consciente de que devia sair dali quanto antes, mas houve algo que a fez perguntar:
—Por que estas aqui, sir Arthur? Por que insistiram em se unir a nosso grupo?
Ele afastou o olhar. A pergunta lhe incomodava. Muito.
Franziu o cenho.
—Pensei que poderia ser de ajuda a seu irmão.
—E eu pensei que não gostavas de fazer reconhecimento do terreno.
Sua boca se torceu em um irônico e enigmático sorriso.
—Não é tão mau como temia.
Anna observou seus traços com atenção, mas não estava muito segura do que procurava.
—E essa é a única razão? Para ajudar a meu irmão?
Arthur baixou o olhar para olhá-la nos olhos. A intensidade de seu olhar a penetrou com a sutileza de um raio. Era consciente do tic que pulsava sob seu queixo. estava-se controlando, mas do que?
—Dado que não atenderam a minhas advertências, não ficou outra opção que vir e me assegurar de que chegassem a seu destino a salvo.
Entregue a salvo às mãos de outro homem.
—Estou segura de que sir Hugh apreciará seus serviços.
Arthur ficou tenso e os olhos lhe brilharam com um fogo descontrolado. Por um momento Anna pensou que a empurraria contra a árvore e a beijaria. Mas não o fez. Em vez disso apertou os punhos e ficou olhando-a com raiva. Dizia a si mesma que não era decepção o que sentia. Isso dizia a si mesma. Mas não acreditava.
—Não me provoque, Anna.
Mas o tempo das advertências já tinha passado para ela.
—Que não lhes provoque? Como poderia o provocar se não vos afeta? Deixou muito claro naquela noite nos barracões. Fosse tu quem disse que me separasse de seu caminho e não ao contrário, recordam?
—Recordo.
A suavidade de sua voz lhe disse que não era isso tudo o que recordava. A pele começou a lhe arder e parecia sair dela. As lembranças crepitavam entre eles como um sopro de ar sobre brasas, acendendo-se, dispostos a prender-se fogo. Anna estava sumida na frustração. Não podia entender por que fazia aquilo.
—É que mudastes de opinião?
Em outro momento Arthur teria admirado aquele desafio. A franqueza e a naturalidade de Anna eram o que faziam dela uma mulher única. Mas nesse momento não. Não queria pensar em se tinha mudado de opinião. Estava lhe custando muito, Deus e ajuda simplesmente não lhe pôr as mãos em cima. por que não podia ser tímida e retraída? Aí sim se sentiria seguro.
Sabia que atuava como um idiota, mas esses dois dias junto a ela, vendo-a voltar o rosto para evitar seu olhar, atuando como se ele não fosse mais que uma espada mercenária, fazia que chegasse ao limite de seu autocontrole. Não poderia agüentar vê-la outra noite rondando pelo acampamento rindo e divertindo-se com os homens com uns sorrisos que brilhavam quando olhava em sua direção.
Gostava de estar à margem, maldita seja. Mas de seu posto nos limites do acampamento, longe da camaradagem da fogueira, encontrava-se suspirando pela calidez desses sorrisos. Por um pouco dessa risada. um pouco dessa luz.
Sua intenção era que ela reconhecesse sua presença. Mas tudo que tinha conseguido era revolver coisas que não precisavam ser revolvidas. Tais como o assustador desejo de empurrá-la contra a árvore e abusar dela. Quase podia sentir como seus braços lhe rodeavam o pescoço e suas pernas envolviam seus quadris, em tanto que ele se afundava em seu interior, lenta e profundamente. Quase via seu pequeno e suave corpo estirando-se contra o seu, todas essas sedutoras curvas fundindo-se sobre ele, a excitante turgidez de seus mamilos lhe roçando o peito…
Demônios!
Teve que agitar-se para recuperar a compostura. Mas o inchaço que ocultavam seus calções era duro e implacável. Aquilo não tinha que ser tão endiabradamente difícil.
«Te concentre. Faz seu trabalho. Mantem o bastante perto para vigiá-la, mas sem tocar. Não deixe que se aproxime muito.»
Havia muitas pessoas dependendo dele. Tinha que estar ciente do que realmente importava. Assegurar-se de que Bruce chegasse ao trono e derrotar seus adversários. Como John de Lorn. Essa era a oportunidade de ver como seu inimigo pagava pelo que tinha feito a seu pai.
Justiça. Vingança. Endireitar o errado. Sangue por sangue. Essa fora toda sua motivação desde que tinha uso de razão. Tinha dedicado sua vida a tentar consagrar-se como o melhor guerreiro com um só objetivo em mente: destruir a Lorn. Essa fria determinação era sua companheira há quatorze anos. A firme resolução de levar uma missão até suas últimas conseqüências, custasse o que custasse. Essa era a única coisa que tinham em comum todos os membros da Guarda Highlanders, apesar de suas grandes diferenças de personalidade, do irreprimível bom humor do MacSorley e a impulsividade do Seton até o mau gênio do MacRuairi. Mas nunca antes tinha tido tantos problemas para aferrar-se a isso.
Arthur deu um passo atrás com a intenção de dissipar a bruma de desejo que o atendia. Mas seu corpo bulia de desejos insatisfeitos. Uns desejos que cada vez lhe parecia mais difícil ignorar. Andar por aí com o membro duro pego ao ventre não era algo que fizesse muito para remediar seu mau humor. E sua mão tampouco parecia um grande alívio.
Ao ver que ele não respondia, Anna disse:
—E bem?
Tinha mudado de opinião? Negou com a cabeça.
—Não.
Nada tinha mudado. Seguia sendo a filha do homem ao que tinha ido aniquilar. Quão único o futuro lhes proporcionaria seria a traição. Não tinha intenção de piorar as coisas.
Anna não deu amostras de que sua resposta a decepcionasse. Melhor parecia algo que esperava.
—Então por que fazem isto? por que atua como se o importasse com quem contraio matrimônio? Não me quer mas tampouco quer que alguém me tenha, é isso?
Arthur murmurou uma imprecação ao mesmo tempo em que passava as mãos pelos cabelos.
—Não é isso.
De fato, era exatamente isso. Anna tinha dado justo no prego. Estava ciumento, maldita seja. Embora não tivesse nenhum direito a estar. Embora fosse ele quem a desalentasse. Embora não houvesse nenhuma possibilidade de que estivessem juntos. Pensar em que ela se casaria com outro homem fazia que caísse em ataques de ciúmes juvenis.
Anna o olhou nos olhos.
—Então expliquem - me disse isso em voz baixa — O que é o que sentem por mim?
«Jesus.» Essa era a última coisa em que queria pensar. Somente ela seria capaz de tal pergunta. Anna MacDougall não tinha nenhum pingo de acanhamento ou de desânimo. Era direta. Sem rodeios. Despretensiosa. Deus, era uma mulher incrível.
Nem todo o treinamento do mundo podia o fazer parar de mover os pés nervosamente. Não se sentia tão encurralado desde aquela vez em que seus irmãos o fizeram retroceder até a saliência de um escarpado e o provocaram para que se defendesse de seus golpes de espada.
—É complicado — disse, saindo-se pela tangente.
Os olhos dela não deixavam de escrutinar seu rosto em busca de algo que não havia neles.
—Complicado não me vale. —Anna baixou o olhar — Não quero que esteja aqui —acrescentou com uma voz tão rígida como a posição de seus ombros. Tampouco ele queria estar ali, mas não ficava mais opção que fazê-lo. Anna voltou a erguer os olhos para olhá-lo. Já não havia calidez nessas profundidades azul brilhante — O rogo isso, me deixem em paz, simplesmente.
O suave rogo dessa voz apelava a sua consciência, mas ardia no peito de igual forma. Anna deu meia volta e se afastou dali com o porte majestoso de uma rainha.
Desejaria poder fazê-lo, pelo bem de ambos. Mas sua missão vinha em primeiro. Algumas semanas mais. Poderia agüentar algumas semanas mais. Tinha resistido desafios muito mais perigosos. Tudo que tinha que fazer era escorar suas defesas, fechar as comportas e preparar-se para o assédio final.
Capítulo 13
Arthur partia na vanguarda, inspecionando o terreno com dois dos homens de MacDougall, quando percebeu de que algo não ia bem. Uma mudança no ar. Um calafrio que percorria a nuca. A súbita sensação que ativava todas suas terminações nervosas para lhe advertir: «Perigo».
Tinham completado a terceira jornada da viagem virtualmente em sua totalidade. O trajeto a cavalo pela ribeira oeste do lago Ness foi mais longo do esperado, não por tentar evitar aos homens de Bruce, a não ser devido a uma ponte impraticável de Invermoriston. Teriam tentado cruzar as turbulentas águas em caso de não levar consigo Anna, mas em vez disso tiveram que desviar-se outros oito quilômetros do caminho para chegar ao seguinte vau. assim, aproximaram-se do extremo sul dos bosques do Clunemore mais tarde que o que ele esperava. De ali virariam para o este, abandonando o caminho para afastar-se todo o possível do castelo Urquhart, ocupado pelos rebeldes. O plano era acampar a última noite à beira do lago Meiklie, o qual queria dizer que o dia seguinte seria mais exaustivo ainda, já que a relativamente plaina estrada daria lugar às colinas.
Apesar de que Arthur trabalhava melhor sozinho, Alan MacDougall insistiu em que lhe acompanhassem dois de seus homens se por acaso se encontrava com dificuldades. Ao não poder explicar ao irmão de Anna que esses homens representariam mais problemas que ajuda sem trair suas habilidades, Arthur teve que acessar a contra gosto.
À primeira sensação de perigo ergueu uma mão para que os homens se detivessem. Desceu do cavalo, ajoelhou-se e pôs uma palma plaina contra o chão. A leve reverberação confirmou o que seus sentidos já lhe tinham advertido.
Richard, o maior dos dois guerreiros e explorador habitual do MacDougall, ficou circunspeto.
—O que há?
Arthur baixou a voz.
—Voltem e digam a seu senhor que saiam do caminho imediatamente.
Alex, que era aprendiz de explorador, olhou-o com estranheza sob o aço de seu nasal. Ao contrário de Arthur, Alan e o punhado de cavalheiros que usavam elmo, cota de malha pesada e peitilho, os homens do clã dos MacDougall levavam armadura mais leve e o cotun de couro acolchoado que preferiam os highlanders. Essa indumentária de guerra fazia mais fácil o movimento. Não era a primeira vez que Arthur tinha vontade de desfazer-se de seu pomposo traje de cavalheiro e mandar a passeio a mascarada. O mais jovem dos homens olhou a seu redor.
—Por quê?
Arthur franziu os lábios. Ficou em pé e voltou rapidamente para seus arreios.
—Há um grupo numeroso de cavaleiros que se dirigem justo para nós.
Richard o olhou como se estivesse louco.
—Eu não ouço nada.
Aqueles idiotas acabariam fazendo que matassem a todos. Sem tempo para sutilezas, Arthur agarrou ao maior por seu grosso cangote, ergueu-o um par de centímetros dos arreios e aproximou seu rosto a dele.
—Façam o que digo, maldita seja. Dentro de alguns minutos será muito tarde. Querem que matem a dama por sua estupidez?
O homem negou com a cabeça, impressionado com a transformação que sofria o cavalheiro. Quando começou a boquejar para recuperar o fôlego Arthur o soltou de um empurrão.
—Eu os rodearei pelas costas e tentarei distraí-los. —Com sorte, disse, poderia desviá-los para o norte — Digam a sir Alan que saia do caminho imediatamente, que se dirija para o este e cavalguem tão rápido como podem. Abandonem as carretas se for necessário. Encontraremo-nos no lago assim que me seja possível.
Subitamente, Richard moveu sua grosa cabeça para o norte. Um leve som de pegadas de cavalos batia em sua direção. Voltou-se para Arthur com um olhar que albergava tanto temor como suspeita. Inconscientemente, deu meia volta com seu cavalo.
—Pelos ossos de Cristo, têm razão! Ouço-os.
Arthur não tinha tempo de preocupar-se com a inquietação do outro.
—Irei contigo - disse Alex.
—Não — repôs Arthur em um tom de voz que evitava qualquer discussão — Vou sozinho.
Assim seria mais fácil evitar que os capturassem. Além disso, sempre cabia a possibilidade de que conhecesse alguém. Supunha-se que MacGregor, Gordon e MacKay estavam no norte.
—Partam! —disse.
Os homens fizeram o que lhes pedia sem mais discussão.
Arthur tampouco perdeu mais tempo. Cavalo e homem se introduziram entre as árvores em sua carreira por alcançar aos cavaleiros pelas costas antes que aparecessem ante o grupo do MacDougall. Era consciente de que apesar de estar advertidos, demorariam certo tempo em conduzi-los até um lugar seguro. Anna era uma boa amazona, mas não podia dizê-lo mesmo de sua criada. As carretas aumentaram seu ritmo ainda mais. Se algo sabia das mulheres era que não gostavam nada de abandonar seus finos trajes e sapatos. Ao menos Anna não tinha insistido em levar com eles ao maldito cachorrinho. Arthur estava já cansado de limpar os pés.
Arthur ziguezagueou entre as árvores, usando o som dos cavalos como guia, e cavalgou em paralelo aos homens alguns poucos e preciosos minutos até que se dirigiu para eles. Agora vinha a parte delicada: aproximar-se o suficiente para chamar sua atenção, mas nem tanto para que o capturassem. Amaldiçoou para si ao ver pela primeira vez ao grupo de cavaleiros através de um vão entre as árvores. Tinham todo o aspecto de uma leva de guerreiros. Havia mais dos que gostaria, ao menos uma vintena de homens armados até os dentes com mantas de cores escuras, vestimenta de guerra e escudos obscurecidos com breu, um modo de camuflar-se na noite próprio dos Guardiões das Highlands que adotaram mais tarde muitos dos guerreiros de Bruce.
Normalmente não pensaria duas vezes ante um exército tão formidável. Estava adestrado para lutar contra coisas piores. Mas esses homens conheciam o terreno e ele não. Teriam vantagem. Um giro mal dado e acabaria em suas garras. Mesmo assim ele contava com vantagens que eles não tinham: sentidos afiados como facas, velocidade, uma força e um treinamento superiores e a habilidade de desaparecer entre as sombras.
Distinguiu ante ele uma ruptura na linha de árvores. Aí o tinha. Apertou os dentes, baixou a cabeça e saiu como um raio para o claro. Fingiu surpreender-se por sua presença e girou abruptamente para a esquerda, como se quisesse evitar ser visto. Um grito o alertou do cumprimento de seu objetivo. Não se atreveu a diminuir a marcha e olhar para trás para ver se tinham mordido o anzol. Uma fração de segundo de atraso podia significar a diferença entre escapar ou ser capturado. Mas, momentos depois ouviu o ensurdecedor som das pegadas de cavalo atrás dele e sorriu. A caça tinha começado.
Anna tentava não pensar em quão tarde era. Mas à medida que a escuridão descia e que a lua se erguia no céu lhe custava mais acreditar que se encontrava bem. Esse medo que permanecia em espera ante o tumulto de seus próprios esforços para escapar aos soldados inimigos retornou com toda sua força assim que estiveram a salvo. E a coisa piorava com cada hora que passava sem a volta de Arthur. Que lhe atormentasse tudo o que quisesse, isso não importava. Mas que voltasse são e salvo.
Ajustou a capa nos ombros e disse que não devia preocupar-se. Chegar até eles de novo tomaria seu tempo atrás da animada perseguição em que Arthur os embarcaria. «Mas tanto tempo?» mordeu o lábio em uma tentativa de mitigar a crescente sensação de pânico. «Ele não se deixaria apanhar.» Entretanto, eles eram um monte de homens e ele só um. «Não pode estar morto.» Se fosse assim saberia. O coração lhe deu um tombo. Não era isso certo?
—Milady, a sopa está deliciosa. Tome —disse Berta sustentando a colher ante ela — Provem. Embora seja só um pouco - acrescentou, como se Anna fosse uma menina de cinco anos que se negava a comer nabos.
Mas Anna seguia sem gostar dos nabos. Negou com a cabeça e se esforçou em sorrir a sua preocupada criada.
—Não tenho fome.
A anciã pôs cara de estar admirada, fazendo que as rugas de seus olhos cor mel se esparramassem por seu rosto. O aspecto de Berta, com sua apenas um e cinqüenta de estatura e tão magra como um palito, não é que fosse formidável. Mas naquele caso seu rosto era de decepção. Podia ser tão teimosa e áspera como uma mula velha.
—Têm que comer algo. Conseguirá te pôr doente.
Já estava. Doente de preocupação. Somente de pensar em comida lhe dava vontade de vomitar. Conteve o acesso de bílis que lhe chegou à garganta.
—Comerei —mentiu Anna — dentro de um momento.
Berta lhe deu um tapinha na mão, que descansava sobre o musgoso tronco que as separava. Reuniram-se em torno do fogo junto ao resto da escolta, mas o acampamento permanecia em uma quietude incomum e os homens estavam desanimados. Todos eram conscientes de que tinham escapado por pouco e não era ela a única que se perguntava o que teria ocorrido com o cavalheiro que os pôs sobre aviso.
—Que morras de fome não fará que volte antes.
Os pensamentos de Anna eram mais transparentes do que acreditava, mas estava muito preocupada para fingir que não sabia do que lhe falava Berta.
—Acredite que terá ocorrido algo?
Berta apertou sua mão e negou com a cabeça tristemente.
—Não sei pequena minha. Não sei.
O coração de Anna sofreu uma violenta sacudida. A perspectiva tinha que ser terrível para que Berta não se esforçasse por mentir sequer. Voltaram a ficar em silêncio. Anna olhava as chamas da fogueira sem vê-la enquanto Berta acabava sua sopa.
Então Anna ouviu um ramo que rangia atrás dela e se levantou de um salto. Voltou o rosto com o coração na boca, esperando ver um cavalheiro vestido com cota de malha sobre seu cavalo. Assim foi e por um segundo pensou que seria Arthur. Mas seu coração topou com uma decepção. Tratava-se simplesmente de seu irmão Alan, que desmontou do cavalo e atou as rédeas a uma árvore próxima. A expressão sombria que mudou seu rosto à medida que se aproximava a encheu de pavor.
—Tem descoberto algo? —perguntou.
—Não —repôs seu irmão negando com a cabeça — Nem rastro dele.
—Acredita que… —Anna não se atreveu a terminar a frase.
Alan a olhou com atenção.
—Já deveria ter retornado.
A verdade doía como um murro nas vísceras. Lágrimas de angústia afloraram em seus olhos. Acabava de brotar a primeira delas quando ouviu um assobio que atravessava a noite.
—É o sentinela noturno - disse Alan antes que Anna tivesse tempo de perguntar — Alguém se aproxima.
O alarme deu origem a uma pequena comoção. Anna foi primeira em saltar de seu assento de repente, mas isso mesmo foi o que fizeram o resto dos homens. O primeiro que ouviu antes de vê-lo foram os gritos provocados pela emoção e o alívio. Momentos depois, Arthur penetrava no círculo de luz que provia o acampamento e o coração de Anna dava tombos no interior de seu peito. Inspecionou ao cavalheiro em busca de sinais de ferida, mas além do cansaço que refletia seu bonito rosto e da sujeira e o pó de sua cota de malha se via em perfeitas condições. Completamente ileso.
A emoção a embargava com tal força que deu um passo adiante sem poder controlar-se. Lutou por dominar o impulso de ir atrás dele, de correr a seus braços, de rodeá-lo com os seus e chorar toda sua angústia na suja e poeirenta cota de malha que revestia seu peito. Não tinha direito a fazê-lo. Nem fundamentos. Não estavam prometidos, nem se cortejavam sequer. Não eram nada um para o outro. Logo ela pertenceria a outro homem.
Então Arthur a viu. Por um estúpido momento ela se convenceu de que a estava procurando. Seus olhos se encontraram com uma força letal que repercutia em seu peito e o golpeava com os ecos da nostalgia.
Se naquele momento ele houvesse virado o rosto, ignorando-a com frieza, provavelmente Anna teria confrontado seu futuro com uma resolução firme no coração. Mas em vez disso Arthur percebeu seu desespero e assentiu levemente. «Estou bem.»
Era pouco, mas ao menos era algo, e servia como reconhecimento de que existia uma conexão entre ambos. Entre eles dois havia algo especial. Não podia negá-lo por mais tempo. Importava-lhe.
Arthur a olhou por última vez e seguiu adiante para encontrar-se com o Alan.
As emoções de Anna estavam descontroladas. Afetava-lhe muito que acabava de ocorrer para concentrar-se em nada, assim escutou pela metade o relatório que fazia a seu irmão. Eram os homens de Bruce. Um grupo numeroso de guerreiros. O número chamou tanto a atenção que ficou sem fôlego. Vinte e cinco homens. O normal seria que Arthur estivesse morto. Primeiro os tinha desviado vários quilômetros do castelo do Urquhart e depois se dirigiu para o este. Entretanto, os malfeitores tinham dado provas de ser bons cães de presa, e Arthur se viu obrigado a voltar a pé para o acampamento. Anna suspeitava que estivesse deixando muitas coisas no tinteiro.
Alan lhe agradeceu os serviços prestados a todos e o ameaçou a que se sentasse enquanto pedia comida e bebida para ele. Seu irmão falou com Arthur um momento mais antes de lhe deixar comer, mas em voz baixa, de modo que ela não pôde escutar nada. Anna bicou um pedaço de carne-seca de vitela e torta de aveia e ficou rondando por ali, como fizera a maioria dos homens. Entretanto, à medida que caía a noite, algo começou a lhe preocupar. O acampamento se animou com sua volta, e parecia óbvio que todos se alegravam de que não o tivessem capturado, mas a celebração não era a esperada e isso a desconcertava. Além disso, acontecia algo anormal. Ninguém tinha aproximado, além de seu irmão. Em lugar dos tapinhas nas costas, as brincadeiras pesadas e os brinde que seriam de praxe, pareceu-lhe que mais de um o olhava com cara estranha.
Arthur não parecia conscientizar-se. Acabou com sua comida, terminou o odre de cerveja que lhe tinham levado e se retirou de novo à solidão dos bosques. Anna o observou partir e sentiu uma premente necessidade de fazer algo. Olhou aos homens do clã que tinha ao redor. O que lhes passava? Por que atuavam de tal modo?
Chegou um ponto no que já não pôde agüentar-se mais, desculpou-se e foi procurar seu irmão. Alan estava falando com alguns de seus homens, mas ao vê-la chegar os ordenou que se retirassem.
—Acreditei que estaria aliviada.
Evitou fazer como que não entendia do que falava.
—Estou.
—E então a que vem a ser esse rosto, pequena?
—Por que atuam os homens desse modo? Por que não lhe dão obrigado? Por que o evitam?
—Está segura que não é justamente o contrário, irmã? —repôs Alan esboçando um sorriso irônico — Campbell não é precisamente conhecido por sua sociabilidade. Gosta de estar sozinho. —Seu irmão tinha razão, mas nessa ocasião não se tratava só disso. Os soldados se mostravam incômodos, quase temerosos. Quando o fez saber, Alan suspirou e negou com a cabeça — Ocorreu algo hoje quando nossos homens batiam o terreno. Richard me contou isso e provavelmente também contou ao resto. Conforme parece, Campbell ouviu os cavaleiros antes o bastante, antes que houvesse sinal alguma deles. Richard disse que era coisa de bruxaria.
Todo o prazer que Anna pudesse sentir ao ver confirmadas suas próprias suspeitas em relação ao ocorrido com os lobos, empalideceu em comparação com a fúria que atormentava seu interior. Suas bochechas se ruborizaram de indignação.
—Isso é ridículo. É que não se dão conta de que salvou a todos? Teriam que estar agradecidos e não tratá-lo como a um cão.
—Estou de acordo. Mas já sabe quão supersticiosos podem ser os highlanders.
—Isso não é desculpa.
—Não, não é. Falarei com o Richard e tentarei acabar com isso.
Anna saltou de seu assento de repente.
—Faz ou falarei com ele eu mesma. Não penso permitir que rechacem sir Arthur por nos ajudar. Pelas chagas de Cristo, Alan! Sem essa bruxaria, é possível que agora estivéssemos todos mortos.
Alan a olhou com atenção, e o que viu nela pareceu lhe preocupar. Ficou pensativo, assentindo simplesmente com a cabeça, em lugar de criticar por usar essa linguagem vulgar. Anna partiu dali com o propósito de encontrar Arthur, mas seu irmão adivinhou seu destino, porque gritou: —Amanhã pela tarde chegaremos a Auldearn, Anna.
Ela se voltou e lhe dirigiu um olhar inquisitivo, perguntando-se a que viria aquilo.
—Sim.
—Se tiver intenção de ir a sério com o compromisso de casar-se, talvez fosse melhor que o deixasse tranqüilo.
Duvidou ao ouvir a verdade em palavras de seu próprio irmão. Mas não podia fazê-lo. As ações desse homem tinham despertado todos seus instintos de amparo. Tinha que agradecer-lhe embora os outros não fizessem.
Encontrou-o à beira do lago, sentado em uma rocha plaina, depois de ter tomado um banho. Tinha o cabelo molhado e vestia uma simples regata de linho com uma túnica e as perneiras de couro. Estava inclinado sobre seu peitilho, aplicando azeite com um trapo, e sua expressão, vista de perfil, era mais sombria que nunca. Embora parecesse óbvio que a tinha ouvido chegar, Arthur não deu a volta. Uma vez que esteve mais perto, Anna distinguiu o que limpava e o mundo lhe veio em cima.
«Sangue.»
Apressou-se para ele sem pensar, ajoelhou-se e pôs uma mão no braço.
—Está ferido.
Quando ergueu o olhar para olhá-la, a lua iluminou seu rosto.
—Não é meu - disse.
Uma sensação de alívio se expandiu por todo seu ser. Suspirou profundamente. Embora seu rosto permanecesse impassível, percebeu uma estranha emoção em sua voz. Virtualmente soava como se estivesse arrependido. Como se a morte de um de seus inimigos fosse algo que o perturbasse. Talvez para os guerreiros matar não fosse tão fácil como ela imaginava. Em qualquer caso não para ele. Isso o fazia mais humano em certo sentido. Mais vulnerável. Sir Arthur Campbell vulnerável? Esse pensamento a teria feito rir sozinho algumas semanas antes.
—Não tinha outra alternativa - disse Anna com ternura.
Arthur lhe manteve o olhar por um momento e depois dirigiu para a mão que tocava seu braço. Anna sentiu imediatamente a intimidade dessa cálida e rígida pele que apertava com seus dedos e se apressou a retirá-la. Mas isso não conteve a necessidade de aninhar-se junto a ele e repousar a bochecha contra o amplo escudo protetor de seu peito.
Arthur voltou para a tarefa de tirar as manchas incrustadas entre as pequenas peças de metal. Anna se sentou junto a ele em uma rocha mais baixa e o observou em silencio durante vários minutos.
—Por que está aqui, Anna?
—Queria lhes agradecer o que fez hoje.
Arthur encolheu levemente de ombros, sem levantar o olhar de sua tarefa.
—Não fiz mais que meu trabalho. Para isso estou aqui.
Anna mordeu o lábio ao recordar o quão furiosa que a pôs sua intromissão e o cepticismo com o que acolheu suas razões para lhes acompanhar.
—Ao que parecia tinham razão —admitiu — Lhes agradeço que nos tenham acompanhado na viagem. Todos o agradecemos - disse franzindo o gesto com irritação — Embora alguns tenham uma estranha forma de demonstrá-lo.
Os ombros de Arthur se esticaram quase imperceptivelmente.
—O que é o que dizem?
—Que sentiram aos cavaleiros antes que fosse possível fazê-lo.
Arthur arqueou uma sobrancelha, divertido com sua tentativa de suavizar o golpe.
—Seguro que disseram algo mais que isso.
As superstições de seus companheiros de clã ruborizaram as bochechas de Anna.
—É certo, verdade? É como aquilo que aconteceu os lobos e quando tropecei no escarpado. Podem ver as coisas antes que aconteçam.
Anna lhe suplicou com os olhos que não mentisse. Outra vez não. Ele ficou calado durante tanto tempo que pensou que não lhe responderia.
—Não é de tudo assim —disse finalmente — É mais como um pressentimento. Meus sentidos estão mais afinados do normal. Isso é tudo.
—Afinados? —repetiu ela — São extraordinários. —Seu louvor não pareceu a não ser o incomodar mais — Não entendo como o resto dos homens não é capaz de compreendê-lo. Salvaram a todos.
—Deixem estar, Anna. Não tem importância - disse olhando-a com gesto severo.
Parecia falar a sério, algo que mais que atenuar suas faculdades as ressaltava.
—Como podem dizer isso? É que não vos molesta? Teriam que lhes agradecer o que têm feito e elogiar suas extraordinárias habilidades, em lugar de atuar como crianças que tivessem medo de encontrar um trasgo na cama ou fantasmas dentro do armário.
A indignação que Anna sentia pelo trato que lhe dispensavam não encontrava a avaliação esperada. Uma vez mais pareceu que essa conversa lhe incomodava.
Arthur a olhou com dureza.
—Não é algo que me incomode e tampouco necessito que façam as coisas mais difíceis advogando por minha causa. Não quero que mencionem nada a respeito do que acreditaram ver. Deixem passar e cairá no esquecimento. Insistam e piorarão.
Falava da experiência.
Anna teve que apertar os lábios para não discutir. Aquilo não estava bem e a injustiça que suportava fazia aflorar todo seu instinto de amparo.
Incomodava-o. Tinha que ser, por mais que se mostrasse despreocupado. Que estivesse tão acostumado a essa sutil crueldade das pessoas e que a desse por certa fazia disso um pouco mais duro. Encolhia-lhe o coração. Quantas vezes o teriam rechaçado ou repudiado para que se convertesse em uma pessoa tão insensível e indiferente? Seria isso o que o afastava de outros? Todo seu distanciamento e individualismo lhe pareceram de repente uma máscara para sua solidão. Levava tanto tempo só que tinha chegado a convencer-se de que gostava. Seu coração se compadecia dele. Era tão afortunada de ter a sua família… Odiava pensar que uma pessoa pudesse estar sozinha.
—Anna? —disse ele procurando seus olhos à luz da lua. Teria adivinhado a direção que tomavam seus pensamentos? — me prometa que não dirá nada.
Anna pôs cara feia, mas assentiu. Ele se levantou para passar o apertado peitilho pela cabeça se vestiu com um tabardo limpo e trabalhou em excesso na sujeição de suas numerosas armas. Observar como se vestia era um ato que transbordava intimidade, mas a Anna não envergonhava fazê-lo. Ao contrário, parecia natural. Como se pudesse passar todos os dias de sua vida vendo como ele se preparava para a guerra. Aquele pensamento teria que tê-la horrorizado, mas, em vez disso, viu-se invadida por uma intensa sensação de desejo, de saudade por algo que lhe escapava das mãos. Fazia que se expusesse seu futuro e pensasse que talvez ele não fosse o homem errado, a não ser exatamente o adequado para ela. Um guerreiro estável. Isso parecia algo contraditório. Mas talvez fosse ela quem se equivocava de cabo a rabo.
—O que fará quando acabar a guerra? —perguntou.
Perguntava-se se não teria pensado em fazer algo com seus desenhos, talvez. Ou estaria simplesmente esperando a seguinte guerra para lutar nela?
A pergunta o pegou despreparado. Arthur estava atendo-se a espada e a deixou pela metade. O certo era que não tinha dedicado muito tempo a pensar. Fazia muitos anos que a guerra consumia sua vida. Lutar era para quão único servia. Primeiro junto a seu irmão Neil e logo como membro dos Guardiões das Highlands. Era um soldado profissional. Um dos melhores do mundo. Era o único que sabia fazer. Mas era isso o que ele queria? O teria escolhido ao ter a oportunidade? Uma vez que houvesse justiça para seu pai, que Bruce tivesse o trono assegurado, uma vez cumpridos os objetivos… o que faria então?
Terras e uma rica esposa seriam sua recompensa. Isso teria que bastar. Mas ao olhar a aquela mulher que o acabava de defender tão fervorosamente, que o via como alguém extraordinário em lugar de horripilante, que tinha um coração que não lhe cabia no peito, perguntava-se se realmente seria suficiente com isso. Ao olhar essa carinha arrebitada, banhada pela luz da lua entre tênues sombras, sentiu uma estranha angústia. Saber que era algo impossível não lhe impedia de seguir desejando-a. Mas já tinha mostrado muito de si mesmo. Estava tão acostumado a mentir a respeito de suas habilidades que lhe parecia estranho ouvir a verdade em voz alta. Estranho, mas também consolador. Manteve-se afastado do resto durante tanto tempo que esquecia o que era ter conexão com alguém.
Estava completamente louco.
Sua única desculpa era que o tinha pego em um momento de debilidade. O sangue que limpava de seu peitilho era a dos dois homens que se viu obrigado a matar para defender-se.
«Protege sua identidade custe o que custar. Protege a missão.»
Deus, às vezes odiava o que tinha que fazer. Acabou de ajustar o armamento antes de responder.
—Eu diria que isso dependerá do resultado.
Inclusive nesse lusco-fusco percebeu que o rosto de Anna empalidecia, mas se recuperou com rapidez.
—Não há mais que um resultado possível. Não conhece meu pai. Não perderá. —Arthur ficou tenso. Sabia isso melhor que ninguém. Essa era a razão pela que estava ali — O rei Hood e os rebeldes serão submetidos e levados diante da justiça.
Apesar de que soasse como o melhor e mais leal dos soldados do clã MacDougall, podia perceber a fragilidade que se escondia atrás daquela bravata. Anna seguia aferrando-se a ilusões que começavam a apresentar fissuras. Mas estava claro que era consciente do desesperado de sua situação, ou não estariam ali nesse momento.
—E mesmo assim acode ao Ross para lhe permutar por tropas adicionais.
Anna endireitou as costas de repente. Seus olhos brilhavam com intensidade ante o resplendor da lua.
—Não se trata exatamente disso.
Sim, se tratava disso. E seu trabalho era assegurar-se de que não ocorresse.
Não queria ser cruel, mas ela precisava confrontar a realidade. O pêndulo se afastava dos MacDougall. Bruce estava ganhando a guerra.
—E o que passará se fracassar, Anna? O que acontecerá Ross não está de acordo em mandar mais homens? Então o que?
—Meu pai pensará algo. —Soava tão desesperada que, sem se dar conta, esteve a ponto de aproximar-se até ela para consolá-la — por que falas de tal modo? —perguntou — Falas como um rebelde. Por que está aqui então, se não acredita em nossa vitória?
Amaldiçoou para si. Tinha razão. E logo descobriria quanta. Encolheu-lhe o estômago ao pensar em como a afetaria descobrir a verdade. Gostaria de poder suavizar o impacto de algum modo.
—Essa é justamente a razão pela que estou aqui, Anna. Por acreditar em uma causa. Por acreditar que ganhará o lado adequado. Mas as coisas não passam sempre do modo em que alguém pensa. Não quero lhe ver sofrer. —Deteve suas palavras e voltou para a questão original — Para quando a guerra acabe me prometeram terras e outras recompensas. Isso deveria bastar para me manter ocupado.
Anna inclinou um tanto a cabeça e umas linhas brancas diminutas povoaram seu sobrecenho.
—Outras recompensas? Que tipo de recompensas? —Embora não lhe respondeu, a resposta pareceu ir a sua cabeça de repente. Sobressaltou-se ao cair na conta e sua expressão de estranheza desvelou mais do que queria — Uma esposa? Eles prometeram uma esposa? —Arthur assentiu levemente, reconhecendo — Quem?
Uma das maiores herdeiras das Highlands ocidentais, a segunda irmã de Lachlan MacRuairi, lady Christina, senhora das Ilhas.
—Não sei —mentiu Arthur — Quando acabar a guerra me encontrarão uma esposa adequada.
Não era a primeira vez que desejava ser capaz algo precipitado, como tomá-la entre seus braços e lhe fazer promessas que jamais poderia cumprir.
—Já vejo —disse ela com voz diminuída — E por que não me contaram isso?
Ele a olhou com atenção.
—Como fizeram todos?
Anna estremeceu. Ao que parecia, tinha esquecido para onde se dirigiam. Mas ele não o tinha feito. A cada passo que os aproximava do Auldearn e Ross, Arthur sentia crescer a inquietação em seu interior. Sabia que tinha que fazer algo para evitar essa aliança, pela missão, conforme dizia a si mesmo. Mas o que?
Talvez não tivesse que fazer nada absolutamente. Era possível que Ross simplesmente se negasse a retomar as conversações sobre o compromisso. Mas com somente olhar a doce cara de Anna, Arthur foi consciente de que estava sonhando. Sir Hugh ficaria com ela com os olhos fechados. Apertou a mandíbula e lhe estendeu a mão.
—Vamos, temos que retornar. Faz-se tarde e temos um longo dia pela frente.
Quando Anna deslizou uma mão sobre a dele uma onda de calor invadiu todo seu ser. sentia-se… satisfeito. Como se não houvesse nada mais natural que ter essa pequena mão entre as suas. Todos seus instintos clamavam por agarrá-la e não deixá-la escapar.
Mas em vez disso, permitiu que seus dedos se desenlaçassem. Caminharam em silencio até o acampamento. Já se haviam dito suficiente. Talvez muito.
Capítulo 14
—Algo errado com sua comida?
A voz de sir Hugh tirou a Anna de seus pensamentos. Quanto tempo levava olhando sua tigela como uma boba e tirando o miolo ao pão pouco a pouco, sem dizer uma palavra? Tentou cobrir sua falta de tato com um sorriso ao mesmo tempo em que a vergonha se revelava em suas bochechas em forma de rubor.
—Não, está deliciosa. —Para dar fé disso meteu um pedaço de vitela na boca e fingiu deleitar-se. Uma vez o teve mastigado pediu desculpas — Temo que ainda esteja cansada pela viagem e não sou uma boa companhia.
Fazia duas noites que tinham chegado ao Auldearn. O último dia de marcha foi exaustivo, mas felizmente sem incidentes. Esperava em seu foro interno outra oportunidade para falar com sir Arthur antes que chegassem, e teve que levar uma decepção. Não era que ele a tivesse evitado, mas tampouco a tinha procurado.
Algo mudou aquela noite no lago, ao menos para a Anna. Arthur lhe tinha devotado uma parte de seu ser que parecia não revelar freqüentemente, uma parte dele que talvez a necessitasse. E o mais importante: não a tinha espantado. E por que não o tinha feito? Tudo teria resultado mais simples. Anna lutou por reprimir a cálida inflamação que ia a seus olhos e sua garganta enquanto a miséria se apoderava dela. Isso era o que lhe faltava, ficar a chorar em meio da comida como se fosse uma criada meio louca e doente de amor. Seguro que assim impressionaria sir Hugh.
Embora fosse jovem, apenas vinte e três anos, sir Hugh Ross era um homem cuja grandeza, superioridade e decidido atrativo se refletiam no perfil de seu perfeitamente torneado nariz até a ponta de seu afiado e curto queixo. Mas o orgulhoso cavalheiro parecia muito maior. Virtualmente parecia controlar-se em demasia, com tanta serenidade e tanto controle sobre si mesmo e essa arrogância de príncipe, algo que tampouco estava muito longe da verdade, dado a fila que ostentava entre a nobreza escocesa. Rígido, sem senso de humor, com esse aspecto frio e desumano tão próprio dos homens de sua época.
Sir Hugh lhe dirigiu um sorriso de compreensão que não melhorou em modo algum a severidade de seu semblante.
—É obvio, depois de cavalgar para tal passo e estar a ponto de ter uma topada com um grupo de rebeldes, é algo previsível. —Seu rosto adotou um aspecto sombrio — Teria que esfolar ao Bruce com suas próprias esporas por ser líder desse bando de piratas desalmados —acrescentou, voltando seu acerado olhar sobre ela — Foram muito afortunados de receber aviso a tempo de escapar —disse puxando a barba enquanto a observava. Anna não podia afastar os olhos de suas grandes e ossudas mãos, umas mãos que poderiam esmagar ou assassinar com a facilidade como que as suas rompiam um galhinho — Foi sir Arthur Campbell, não é certo? O irmão do rebelde Neil Campbell.
Anna assentiu, incomodada com seu próprio acanhamento. O nervosismo que sentia na presença de sir Hugh, o qual foi a primeira causa de que rechaçasse o compromisso, não fazia mais que agravar-se desde sua chegada. Sorrir e responder a suas educadas tentativas de conversa se convertia uma batalha. Observava-a como se pudesse ler seus pensamentos. Teria se delatado? Ela tinha tomado cuidado nem olhando na direção sir Arthur desde que chegaram. Ao menos acreditava não tê-lo feito. Mas estava mais que segura de que ele sim a estivera observando. O qual, provavelmente, explicava parte de sua inquietação. Seduzir a um homem sob o fulminante olhar de outro não era tarefa fácil. Mas tinha que fazer. Embora não gostasse da idéia. E a idéia não gostava absolutamente. Os dias passados encarregaram de deixar claro. Temia pensar muito no que sentia por Arthur por medo que descobririam.
—Tivemos muita sorte — comentou ao conscientizar de que sir Hugh esperava que dissesse algo.
Anna não sabia o que lhe acontecia. Jamais teve esse tipo de problemas na conversa com ninguém. Procurava controlar o tremor de suas mãos, mas lhe inquietava tanto a intensidade de seu olhar que atirou o pedaço de pão que tinha na mão. Caiu sobre a mesa, junto a sua taça e ao tentar recolhê-lo ao mesmo tempo em que Hugh Ross suas mãos se tocaram. Antes que desse tempo a retirar a sua, sir Hugh a cobriu com seus dedos. Seu pulso se acelerou até embarcá-la em uma sensação próxima ao pânico. Seu coração revoava em seu interior como se tratasse de um passarinho enjaulado.
—Está nervosa - disse lhe soltando a mão e lhe devolvendo o pão.
Ardiam-lhe as bochechas.
—Não têm nada que temer, lady Anna —disse visivelmente divertido — Sou bastante inofensivo. —Ela deve ter posto cara de não acreditar absolutamente, pois ele acrescentou—: Bom, pode ser que não completamente.
Essa inesperada amostra de humor a fez sorrir e pela primeira vez sentiu que começava a relaxar. Olhou-o do meio lado, protegida sob suas largas pestanas.
— Bom, milorde, é que sua pessoa é… certamente imponente.
—Tomarei como um elogio, embora não acredito que fosse essa sua intenção —disse entre risadas, para depois aproximar-se mais a ela e sussurrar—: O que parece se me esforço por ser imponente com todos menos contigo? Contigo serei o mais inofensivo. Será nosso segredo.
Anna, incapaz de resistir a seu encanto, sorriu até que lhe marcaram as covinhas. Sir Hugh Ross encantador? Jamais teria acreditado. Acaso o mal-humorado nobre ocultava mais do que Anna conhecia?
—Acredito que disso eu gostaria, milorde —disse sentindo que voltava para ela um pingo de seu atrevimento — Talvez ajudasse que sorrisse mais - acrescentou erguendo os olhos para olhá-lo.
Sim, quando sorria não parecia intimidar tanto.
Sir Hugh esboçou então um amplo sorriso e procurou seus olhos com o olhar.
—Pois então o farei - replicou. Fez uma pausa em seu discurso e Anna observou como se entretinha em riscar o relevo do pé da taça, interrompendo-se de um modo quase sensual que a devolveu a seu estado de inquietação — Estou muito contente de que tenham decidido viajar até o norte, lady Anna.
Cada vez estava mais tinta. Não lhe escapava o significado de suas palavras. Estava disposto a renovar as conversações em torno do compromisso. Sabia que devia sentir-se aliviada. Para isso tinha ido até ali. Poderia ajudar a salvar a sua família. Então por que notava como se uma estaca se atendasse em seu peito?
Assentiu com indolência, incapaz de encontrar-se com seu olhar de repente, temendo que revelasse muito. O peito lhe angustiava ao conscientizar de que o laço de seu futuro cada vez se atava com mais força. Seus sentimentos pessoais não importavam. Deveria contentar-se sabendo que tinha posto seu grãozinho de areia para ajudar à família. Isso seria recompensa suficiente, verdade?
Ross se voltou e fez gestos a uma criada que passava para que enchesse suas taças. Anna voltou o olhar inconscientemente para Arthur. Sabia onde estava sem necessidade de olhá-lo. Parecia atravessar toda a sala com o calor de sua ira. Seus olhares se encontraram durante um instante, mas foi tempo suficiente para que a força de sua ira ressonasse como o rugido de um ferreiro na forja. Em geral, continha tanto suas emoções que Anna se perguntava se realmente existiriam. Mas isso acabou. Jamais o tinha visto tão feroz e selvagem. Parecia um homem cuja contenção pendia de um fino fio.
Voltou-se, sobressaltada pela emoção que a embargava. Infelizmente não voltou o olhar com suficiente rapidez e sir Hugh apreciou parte do intercâmbio. Notou como ficava em guarda e entreabria os olhos olhando sir Arthur.
—Campbell não parece muito feliz com nosso acerto. Eu não gosto da forma em que vos olha - disse voltando o olhar para ela e arqueando uma sobrancelha de tal modo que parecia algo menos casual — Há algo que deveria saber lady Anna?
Amaldiçoou Arthur por sua imprudência. Arruinaria tudo. E para que? Já tinha tido oportunidades mais que suficientes para mostrar seus sentimentos, se é que albergava alguns. E agora não ficava opção. Seu pai contava com ela.
Mesmo assim duvidava. Essa seria sua última oportunidade para voltar atrás. Seu coração puxava em uma direção, e o dever e sua família puxavam a outra. Anna recordou a conversa mantida com sir Arthur. O ouvir falar de perder a guerra a tinha feito tremer. Inspirou profundamente e se desembaraçou de todas as dúvidas. Seus sentimentos pessoais não importavam. Tinha que fazê-lo. Quando Bruce chegasse, teriam muitas mais possibilidades com Ross e seus homens ao seu lado.
Negou com a cabeça.
—Não, não há nada que deveria saber.
A certeza de sua voz pareceu convencer sir Hugh. Assentiu.
—Bem —disse lhe estendendo a mão — Venham, há algo que eu gostaria de mostrar e acredito que há certas coisas que deveríamos discutir.
Anna ignorou a dor que lhe oprimia o coração e sorriu, embora tremulamente. Sem nenhum olhar mais, deu a mão ao Ross e lhe permitiu que a tirasse do grande salão com seu futuro já mais que decidido.
Isso era o que se sentia quando as pessoas perdiam o controle. Isso era o que se sentia quando alguém queria algo com tanta vontade que mataria por consegui-lo. Não pelo bem ou o mal, nem por estar no campo de batalha, mas sim pela pura satisfação de ver outro homem atravessado pela ponta de seu aço.
Arthur queria matar Hugh Ross. Dava-lhe vontade de matá-lo somente pela forma em que olhava a Anna. Pelos pensamentos luxuriosos que seguro percorriam a mente daquele filho de cadela. Arthur não acreditava ser capaz de conter-se no caso de que o olhar do Ross se detivesse de novo sobre seus seios. Atiraria uma lança no seu sobrecenho do outro lado do aposento. Poderia fazê-lo com os olhos fechados. Ficar afastado durante os últimos dois dias obrigado a contemplar como outro homem cortejava a essa mulher que, supostamente, não significava nada para ele era como uma lenta e agonizante descida à loucura. Arthur liberava uma batalha perdida. Suas tentativas de permanecer indiferente, de centrar-se na missão, não funcionavam. Todos esses anos de treinamentos e experiência na batalha não o tinham preparado para aquilo. Ver Anna e Hugh Ross juntos estava lhe fazendo em pedaços. Mas essa noite foi a gota que encheu o copo. Quando viu Ross lhe acariciar a mão, Arthur esteve a ponto de sair da ali feito uma fúria e lhe partir todos os dentes num murro. Ao diabo com o subterfúgio. Estavam rindo, maldita seja. Rindo.
Queria convencer-se de que ela não seria capaz de passar por isso. Não seria porque Anna não se mostrou precavida a respeito ao cavalheiro durante os últimos dois dias, precisamente. Mas Arthur tinha subestimado sua resolução, e também o encanto de sir Hugh. Quando se aproximou para lhe sussurrar ao ouvido teve que apertar os punhos. Não foi até que baixou o olhar e percebeu a palidez de seus nódulos que se deu conta de quão forte tinha a taça obstinada. Foi toda uma sorte que fosse de madeira; de outro modo, a teria destroçado.
Amaldiçoou consciente de que devia fazer algo. Tinha que pensar em sua missão. Sir Hugh não perdia tempo, e não é que pudesse culpá-lo. Se Arthur não fazia nada para impedir aquela aliança, seria muito tarde. Bebeu o conteúdo da taça. O uisgebeatha de cor ambarina fez que ardesse a garganta, mas não acalmou absolutamente a intranqüilidade que bulia em seu interior.
—Que diabos te passa, Campbell? Parece que queira matar a alguém - disse Alan MacDougall olhando de soslaio ao estrado. Sabia perfeitamente a quem queria matar Arthur. Aproximou-se para falar — Tome cuidado. Acredito que nosso anfitrião advertiu seu interesse por minha irmã.
Arthur economizou a vergonha de negá-lo. Alan MacDougall podia ser filho de um déspota desumano, mas não era nenhum idiota.
—E viestes para ordenar que me retire do conflito?
O guerreiro mais velho, muito experiente para delatar-se pela expressão de seu rosto, olhou-o com impassibilidade.
—Queres que o faça?
Arthur contraiu a mandíbula e apertou os dentes.
—Deveria — disse em um estranho momento de franqueza.
Não faria mais que arruinar sua vida. Se ele fosse seu irmão, ordenaria que o mandassem ao inferno diretamente e logo iria ele mesmo atrás. Mas se Alan pensou que havia algo estranho em sua resposta certamente não o exteriorizou. Em vez disso, sorriu com ironia.
—Parece-me que é muito tarde para isso.
Arthur afastou o olhar de sir Hugh e de Anna o tempo suficiente para olhar ao Alan enviesadamente. Não tinha idéia do que Alan acreditava saber, mas se equivocava. Ou não?
Diabos, já não sabia. Sua missão. Ciúmes. Sua intensa atração pela moça. Tudo isso se mesclava criando um caos absoluto. Voltou a beber de um gole o conteúdo da taça.
Alan observou como o fazia com uma expressão divertida.
—Acreditava que não bebia uísque.
—Não bebo - disse Arthur, e fez gestos à criada para que lhe enchesse a taça.
Alan estivera observando-o com mais atenção da que pensava. Aquilo o teria preocupado a não ser porque algo lhe fez voltar sua atenção para o estrado. Todos seus músculos ficaram rígidos quando viu que Anna deslizava sua mão sobre a do Ross. A ira percorria todo seu corpo ao mesmo tempo em que aquele homem se inclinava para falar brevemente com seu pai momentos antes de acompanhá-la ao exterior do salão. Justo antes que Hugh passasse pela porta olhou para Arthur. O tom malicioso de seu olhar fez que lhe gelasse o sangue. Uma sensação estranhamente próxima ao pânico subia por seu peito, algo ridículo por completo. Era um guerreiro de elite. Distante. Controlado. Pode ser que seu coração pulsasse muito depressa e que não pensasse com claridade, mas era indisputável que aquilo não podia ser pânico.
Mas onde demônios acreditava que ia? Ross, esse filho de puta lascivo, estava obviamente ansioso pelo compromisso. Quem sabia do que seria capaz para assegurá-lo? Acaso Anna não notava do que aconteceria quanto estivessem a sós? A mente de Arthur voltou para os barracões imediatamente.
«Por todos os diabos.»
Conseguiu resistir durante uns trinta segundos até que já não pôde agüentar mais. Levantou-se para partir, mas Alan o deteve movendo sua perna pela borda da mesa e lhe fechando o passo. Não era nenhum acidente. A princípio Arthur acreditava que queria detê-lo, mas para sua surpresa o guerreiro retirou a perna lentamente e lhe deixou passar, não sem antes fazer uma advertência.
—Se fizer mal a minha irmã, Campbell, terei que te matar.
Apesar de que falasse com tanta calma como se informasse o tempo, Arthur era consciente de que dizia muito sério. Que diabos, se Alan não fosse seu inimigo e o filho de um déspota, pode ser que inclusive lhe caísse bem. Arthur o olhou nos olhos e assentiu, com a suspeita de que Alan MacDougall não seria capaz de manter sua promessa. Pôr fim ao compromisso e deter a aliança, fazendo dano a Anna no processo, converteu-se em algo inevitável.
Anna esperava que sir Hugh a levasse fosse para passear pelo barmkin, mas em vez disso a fez entrar pelo corredor até a torre da comemoração. O castelo real do Auldearn fora construído uns cem anos antes por encargo do Guillermo o Leão. Sua torre da comemoração e o grande salão contíguo se erguiam no alto de um enorme Castro circular rodeado por um cerca de madeira. O muro de pedra que rodeava o pátio de armas que havia debaixo proporcionava um nível mais de defesa. O corredor iluminado pelas tochas parecia silencioso em comparação com o bulício do grande salão. Anna se inquietou ao ser consciente de que não havia ninguém mais ao redor. Embora os últimos raios de sol ainda reverberassem sobre o horizonte, a torre de pedra estava já às escuras. Tampouco a luz cintilante das tochas alinhadas nos muros lhe dava mais tranqüilidade.
—A…aonde vamos? — perguntou envergonhada pelo tremor de sua voz.
Sir Hugh lhe dirigiu um enigmático sorriso que fez que Anna se perguntasse se saberia a impressão que causava nela.
—Já quase chegamos.
Deteve-se frente à porta da câmara particular do conde. Uma vez aberta, Anna aliviou comprovar que a estadia estava bem iluminada pelo castiçal de ferro circular que pendia do teto. Infelizmente, Hugh a levou até outra porta que havia cruzando a sala, com o que Anna percebeu de que aquele não era seu destino final. O segundo aposento estava às escuras. Anna ficou na câmara até que sir Hugh acendeu umas velas. Então ficou sobressaltada.
Anna se esqueceu de seu nervosismo. Apressou-se a entrar no minúsculo aposento, não muito maior que uma despensa, e olhou com surpresa a seu redor. O centro da sala estava presidido por uma mesa e um banco, mas o que enchia seu assombro era o que havia sobre as paredes. Prateleiras e mais prateleiras cheias de grossas folhas de couro, alguns deles recobertos de ouro e outros com jóias incrustadas. Um tesouro oculto. Mais livros dos que tinha visto em sua vida em um só espaço.
Sir Hugh observou em que modo a maravilha e a incredulidade transformavam seu rosto.
—Pensei que isto poderia lhes interessar.
Anna deu uma palmada de puro prazer; seus dedos estavam impacientem por explorar os títulos. Por Deus bendito, se pareciam quatro volumes do Chrétien do Troyes!
—É magnífico — disse voltando-se para ele — Como sabias?
Hugh Ross encolheu de ombros.
—Em certa ocasião mencionaram que desfrutava da leitura.
Anna inclinou a cabeça e o olhou. Uma vez mais sentia como se o tivesse julgado mal.
—E se lembrou?
Sir Hugh não respondeu, mas a olhou de tal forma que um formigamento de inquietação lhe percorreu as costas. Desejava-a. De repente aquele minúsculo aposento pareceu uma armadilha a Anna. Olhou para a porta, mas já fosse intencionadamente ou não, ele se tinha colocado frente a ela lhe cortando o passo.
—por que me trouxestes aqui? —perguntou.
Sir Hugh deu um passo adiante e seus olhos brilharam de maneira perigosa entre as penumbras. Pegou-a pelo queixo e a obrigou a olhar em sua direção. O pulso lhe acelerou de pânico. Talvez fosse uns cinco centímetros mais baixo que sir Arthur, mas em certo modo seu tamanho lhe parecia ameaçador. Anna teve que reunir todo o valor com o que contava para não sair correndo.
—Queria lhes mostrar o que terá quando fores minha esposa. Esta sala estará a sua disposição. Será uma das damas mais importantes do reino. Para isso viestes, lady Anna. Não é assim? Para reatar as conversações sobre nosso compromisso.
—Sim - sussurrou ela, tentando controlar o tremor de sua voz.
Hugh cravou o olhar em seus olhos, desafiando-a.
—É isso o que quer realmente?
O coração lhe pulsava com fúria. Teve que obrigar-se a assentir.
—Sim.
—Então prove — pediu. Ela piscou de maneira inquisitiva — me beije.
Anna abriu os olhos de par em par pela surpresa.
Lutava por saber o que dizer. Mas, pelo amor de Deus, não podia. E ele sabia. Endureceu o olhar.
—Está jogando comigo, lady Anna? Asseguro-lhes que não tenho nenhum desejo de ser o corno de outro homem. Recorde que são vocês quem acudis a mim nesta ocasião. —Sir Hugh lhe pôs um dedo no lábio inferior e Anna conteve o fôlego, paralisada pelo medo — Decida o que quer antes de fazer algo que não possa ser desfeito. Uma vez estejamos comprometidos, asseguro-lhes que não tolerarei tais tolices.
As bochechas de Anna se avermelharam, envergonhada por quão certas eram suas acusações. Sacudiu o medo tentando recordar por que tinha ido até ali, tentando recordar quão importante era conseguir essa aliança para ela. Não podiam deixar escapar essa oportunidade. Por que se comportava como uma estúpida? Somente se tratava de um beijo.
—milorde, o temporal…
Ao ver que lhe soltava o queixo, Anna suspirou mostrando maior alívio do que devido.
—Temos que retornar ao salão - disse Ross fria e secamente — Seu irmão se estará perguntando aonde a levei.
Anna assentiu, sentindo sua impotência, consciente do que devia fazer, mas incapaz de pronunciar as palavras. Que o diabo levasse Arthur Campbell pelo que estava fazendo com ela! Por confundi-la. Ela estava preparada para levá-lo a cabo antes que ele voltasse a aparecer.
—Se não lhes importar, meu senhor, estou cansada e preferiria me retirar a meus aposentos.
Sir Hugh assentiu.
—Não há pressa. Querem tomar um livro emprestado, talvez? —Olhou-o nos olhos, consciente de que tentava tentá-la — Podemos falar sobre isso manhã.
Hugh Ross deu meia volta para partir, mas algo o fez mudar de idéia. Antes que ela pudesse conscientizar do que se dispunha a fazer, já a tinha atraído para si e a estava beijando. Anna ficou paralisada, muito surpreendida para resistir.
Seus lábios eram frios e duros, em consonância com sua pessoa. Acertou a distinguir um leve aroma a vinho, mas antes que pudesse descobrir algo mais já tinha acabado tudo. Sir Hugh baixou o olhar e sorriu ao ver o rosto de surpresa que Anna tinha posto.
—Têm toda a noite para decidir. Mas se quiserem que o compromisso siga adiante, espero que me dêem uma resposta amanhã. Uma que seja algo mais entusiasta que esta.
Ross não se fazia uma idéia do perto que estava da morte. Arthur apertava a adaga em sua mão, tentando controlar a sede de sangue que percorria suas artérias com cada um dos músculos. Tudo que tinha que fazer era dar um par de passos, sair de seu esconderijo depois das sombras do vão da porta e afundar sua folha no mais profundo das vísceras daquele filho de cadela.
Tinha-a beijado. Tinha-a tomado entre seus braços e tinha grudado sua boca a dela. Algo se rompeu em seu interior. Todos seus instintos lhe diziam que tinha que sair dali e matar ao homem que se atrevia a tocar aquilo que lhe pertencia. Mas algo deteve sua mão no último momento. Matar ao Ross poria fim a sua missão. Veria-se obrigado a fugir, acabando assim com sua oportunidade de destruir ao Lorn. Teve que aferrar-se ao mínimo de controle que ficava para não mover-se, mas deixou que Ross saísse do aposento. Deixou-lhe viver. Por essa vez.
Entretanto, Anna não escaparia a sua ira tão facilmente. Asseguraria-se de que não houvesse mais que uma resposta à manhã seguinte. O compromisso que ela tinha planejado estava a ponto de chegar a um final irrevogável.
Anna seguiu os passos do Ross apenas se desvaneceram suas pegadas. Assim que chegou à porta, Arthur saiu de entre as sombras e lhe fechou o avanço.
Ela ficou sem fôlego. Todo o medo que pudesse sentir logo desapareceu para dar passo ao brilho de ira que incendiava seu olhar.
—Como te atreve a me espiar? —exclamou. Tentou afastá-lo de seu caminho, mas ele imobilizou seus pulsos com uma mão — Deixe-me partir. Não tem nenhum direito.
Voltou a colocá-la no aposento e fechou a porta atrás dele.
—Tenho todo o direito —disse Arthur com fúria — Não se casará com ele.
Advertiu o rubor de suas bochechas à luz das velas. Seu busto, esses incríveis seios, tão grandes que não podia deixar de sonhar com eles, enchiam-se com uma indignação justificada. Anna ergueu o doce rosto com seu adorável e teimoso queixo para ele.
—Sim o farei.
Não gostava desse tom absolutamente. Nenhum pingo. Entreabriu os olhos.
—Nem sequer podia lhe beijar - disse aproximando-se mais a ela e aspirando a sensual calidez de sua fúria — Como pensa que será então deitar-se com ele?
A indignação de Anna se traduziu em um áspero gemido. A Arthur não cabia a menor duvida de que lhe teria parecido uma adaga entre as costelas se tivesse uma. Mas sua língua era igual de efetiva estripando-o.
—Suponho que chegarei a me acostumar. É possível que inclusive desfrute. Sir Hugh é um homem muito arrumado. E parece bastante decidido, não acredita? —disse lhe provocando com o olhar, desafiando-o, voltando-o louco — Se parecer em algo a esse beijo imagino que chegarei a desfrutar muito disso.
Agarrou-a pelo braço.
—Pare — disse agitando-a ante si — Pare.
Parecia estar a ponto de explodir. Suas provocadoras palavras exaltavam ao máximo aqueles sentimentos contidos durante tanto tempo. Uns sentimentos que Arthur não queria reconhecer. Uns sentimentos que não podia permitir que aflorassem. A cabeça lhe dava voltas. Queimava-lhe o peito. Deus, doía demais. Tinha que fazê-la parar.
—Por quê? —perguntou Anna aproximando-se mais a ele. Arthur sentiu seus mamilos lhe roçando o peito e teve que sacudir-se realmente, pois todo o controle com o que contava seu corpo pendia de um fio. O calor o puxava para um vórtice de luxúria e desejo. Queria esmagá-la contra si. Beijá-la. Possuí-la até deixá-la sem sentido. Fazê-la gritar seu nome e nenhum mais que o seu — Por que teria que parar? É a verdade. Sir Hugh me deseja muito como um homem que vê o que quer e não se detém ante nada até que o consegue.
Era consciente de que não fazia mais que provocá-lo, mas não lhe importava. Arthur sabia perfeitamente o que queria, maldita seja. A ela. Renegou, consciente de que a batalha estava perdida. Tomou entre seus braços e pregou sua boca a dela, cedendo a esses poderosos impulsos que liberavam uma guerra em seu interior. Beijou-a como jamais antes tinha beijado a mulher alguma. Beijou-a com toda a paixão que acumulava desde que a visse pela primeira vez. Beijou-a para que não seguisse falando. Beijou-a para apagar as odiosas imagens com as que tinham enchido sua cabeça. Beijou-a de modo tal que não pudesse voltar a pensar em outro homem em sua vida.
Não obstante, uma vez que Anna se fundiu ante ele em uma rendição silenciosa e abriu sua doce e pequena boca para recebê-lo com um suspiro e um gemido, Arthur não pensou mais em missões, alianças, clãs inimigos ou vingança. Não. Tudo assim que pensava era em fazê-la sua.
Capítulo 15
Anna sabia que se precipitava e que estava provocando-o, mas não lhe importava. A ira não lhe deixava ver mais que sua necessidade de arremeter contra ele. Odiava-o por intrometer-se, por fazê-la duvidar, por interferir em seus planos. Não queria outra coisa que proteger a sua família e manter a salvo às pessoas que amava. E quando tinha a oportunidade de conseguir, Arthur Campbell se interpunha em seu caminho.
Confundia-a. Desorientava-a. Fazia que tomasse carinho e logo a separava de seu lado. Em um momento a salvava e a protegia e ao seguinte a ignorava. Era um ingrato, um homem que se mantinha à margem e dava a impressão de não necessitar a ninguém. Mas também era um homem que estava sozinho, alguém afastado por seus próprios dons, obrigado a viver um tanto afastado de outros.
Queria-a? Necessitava-a?
Em qualquer dos casos teria que decidir-se. O tempo se esgotava para ambos. Era consciente de que estava ciumento, consciente de que tinha visto o beijo que lhe deu sir Hugh, consciente de que lutava por manter o controle. Assim o provocou.
Desejava-o com tanta vontade… A essa distância o único em que podia pensar era em seu doce aroma. E em que o aspecto desalinhado que lhe dava a escura sombra de sua barba o fazia mais arrumado ainda. No alto que era. A enmembrodura de seu peito. O suave que se viam seus lábios embora estivessem brancos de ira. Em que o daria tudo por que tomasse entre seus braços e não a abandonasse nunca. A dor rasgava seu peito como uma faca. Por que não a queria? Por que se reprimia?
Isso foi o que a levou a provocá-lo de maneira temerária, desesperada, com intenção de lhe ferir tanto como ele a feria. E se era mentira? E o que lhe gelava o sangue com somente imaginar-se na cama com outro homem? Desfrutar? Mal podia deixar de tremer de medo em presença de sir Hugh.
Então ele se desmoronou e Anna obteve sua recompensa. Encontrou-se em seus braços, com a boca de Arthur pegada à sua, beijando-a com toda essa paixão e emoção com que ela tinha sonhado. Ele a devorava com a boca e a língua, enquanto ela gemia e se entregava mais e mais a seu beijo, morrendo por sentir cada dobra de sua pele. Deslizava suas enormes mãos sobre ela de modo possessivo. Passou-a por suas costas e depois sobre os quadris, até que desceram para agarrar seu traseiro. Então rugiu de agrado sobre sua boca e a beijou com mais força ao mesmo tempo em que a acoplava firmemente contra seu corpo.
As sensações se desatavam em seu interior em um ataque de calor resplandecente.
OH, Deus, aquilo era perfeito. Seu peito contra o dele, os quadris colados e a dura confirmação do desejo masculino introduzindo-se entre suas pernas de uma maneira íntima. Era consciente de que o tamanho e o tato teriam que assombrá-la, mas o único que sentia era a excitação, uma excitação que fazia lhe acelerar o coração, sua pele se ruborizasse e sentisse comichões por todo o corpo.
Estavam cobertos um com o outro, mas aquilo não bastava. A cada delicioso roce de sua língua, a cada possessiva carícia de suas mãos, crescia a inquietação no interior de Anna. Respondeu a seu atrevimento com mais atrevimento. Agarrava com firmeza os duros músculos de seus braços, seus ombros e suas costas. Queria sentir cada centímetro de seu corpo sob os dedos, modelar seus músculos com as palmas de suas mãos. Conter toda sua força baixo elas.
Aquilo a fazia sentir… embriagada de desejo. Era a primeira vez na vida que tinha uma experiência de tal calibre. Seu corpo parecia ressuscitar. Reagia aos estímulos de maneira natural, como se soubesse o que estava fazendo. Tudo ocorria muito rápido para pensar. O desejo a tinha feito sua presa e não parecia disposto a soltá-la.
Aproximava-a de seu corpo cada vez com mais urgência, esfregando sua virilidade contra a mais feminina de suas partes. A fazia sentir estranha, com comichões, quente, ofegante. Mas não era suficiente. Ávida de fricção, sedenta por encontrar uma conexão mais profunda, descrevia círculos com seus quadris e se esfregava com essa grosa coluna de carne com mais força.
Arthur percorreu seu pescoço com a boca e a devorou com seus beijos. Sua barba de dois dias fazia sulcos em sua pele em chamas. O aposento jogava fumaça e ardia de paixão. Agarrou-a pela cintura e deslizou as mãos até seus seios. Anna ofegou e se pegou quanto pôde a seu membro viril ao mesmo tempo em que arqueava as costas procurando suas mãos. Arthur murmurou algo parecido a uma imprecação e roçou seus turgentes e ofegantes mamilos com os polegares enquanto sua boca se dava de presente com a tenra pele que aparecia por cima do corpete.
Estava muito quente. Sentia-se débil. Lânguida e pesada. Parecia que suas pernas não contassem com forças para sustentá-la. Desabou-se sobre Arthur, que a puxou de novo sobre a mesa para acalmá-la, e talvez também para acalmar a si mesmo. Aquele cavalheiro, que mostrava um controle tão férreo sobre si, parecia sofrer apuros igual aos selvagens e frenéticos dela.
Os escuros e sedosos cabelos de Arthur se derramaram sobre seu peito. Anna, incapaz de resistir, passou os dedos entre essas suaves ondas e o apertou contra si com força e ternura. A umidade de sua boca transpassava o tecido do vestido para chegar até seu mamilo ao mesmo tempo em que acariciava seus seios e os rodeava com suas mãos.
Mas não era suficiente.
Então sua língua pareceu perceber essa frustração e entrou sob o corpete. Um gritou escapou dos lábios de Anna ante tamanha perversão, ante o delicioso prazer que sentia. Aquela boca estava muito quente. Passou-lhe a língua de um lado a outro, até que pensou que já não poderia resistir mais. Retorceu-se contra ele suplicando para que desatasse a voragem que se formava em seu interior.
Por fim lhe deu um puxão do vestido até quase romper o tecido e o abriu para liberar seus seios. O frio ar soprou sobre sua pele e provocou formigamentos ali onde a tinha beijado.
—Jesus — exclamou Arthur, como se aquilo doesse — É incrivelmente bela.
Provavelmente ouvir sua voz teria quebrado seu estado de transe, mas Arthur cobriu seu ofegante mamilo com a boca e começou a chupá-lo antes que Anna pudesse acolher-se a esse momento de iluminação. Essa doce e aguda sensação a fez gritar. Era um prazer tão agudo que se aproximava muito à dor. Atendia-a com os dentes, dava-lhe linguadinhas e sugava sua cálida boca cada vez com mais intensidade. O calor se estendeu entre suas pernas em uma corrente de umidade. Sentia comichões em suas suaves carnes inflamadas.
Tinha-a aprisionada contra a mesa com as pernas abertas. Montou uma delas sobre seu quadril ao mesmo tempo em que se inclinava para lhe beijar o seio. Os ferozes pulsar do coração de Arthur troavam contra seu peito, seus músculos se esticavam da excitação e a cobriam com todo o peso de seu corpo. E Anna estava quente. Tão quente que queimava. Excitada até o ponto de não retorno.
Arthur deslizou a mão sob o vestido até fazer contato com a pele. Suavizou o impacto acariciando o mamilo pausadamente entre seus dentes. Então voltou a cobrir sua boca com beijos, e suas mãos… Céu santo estava colocando as mãos entre suas coxas! Envergonhada, tentou fechar as pernas. Mas ele não o permitiria. Sua boca a distraía com os longos e pausados movimentos de sua língua, ao mesmo tempo em que ele entrava em sua umidade com os dedos. O corpo de Anna tremeu ao sentir o contato. Seus protestos se dissolveram em uma onda de alívio estremecedor. Aquilo dava muito prazer. Um prazer surpreendente.
—Jesus, é tão doce…
Deixou de beijá-la e Anna se perguntou se teria feito algo indevido, até que percebeu de que era ele quem estava passando mal, tentando conter-se, como se lutasse por controlar-se. Como se tocá-la o tivesse despojado de suas últimas reservas de contenção. Como se muito em breve não pudesse controlar-se. Ficou olhando-a nos olhos ao mesmo tempo em que introduzia seu dedo nela com um pequeno e firme empurrãozinho. Aquele era o momento erótico mais perverso de sua vida. Tomou fôlego em uma tentativa de estabilizar as sensações, mas estas se precipitavam sobre ela em rápidas ondas que não davam trégua alguma. Acariciou-a. Primeiro com círculos pequenos e suaves, depois com mais força, mais rápido, com impulsos profundos e frenéticos que pareciam decalques dos beijos que acabava de lhe dar.
A sensação que se formava em seu interior era muito intensa. Muito poderosa para ser contida. Esticava-se e recuava em um endiabrado redemoinho de necessidade. Seu rosto era uma máscara de dor. O suor se acumulava sobre suas sobrancelhas. Arthur a olhava nos olhos de modo escuro e penetrante, agarrando-a de tal forma que o coração lhe estalava de felicidade. Anna por fim via a verdade em seus olhos, o que intuía desde o começo. Essa conexão que havia entre eles era especial. E também ele a sentia.
Não sabia o que lhe estava acontecendo, mas era perfeito. Cada uma de suas carícias a levava até limites que era incapaz de compreender. Retorcia-se de frustração. Seu corpo inteiro clamava por…
—Te relaxe, amor —sussurrou Arthur — Quero te fazer voar.
O som aveludado de sua voz abriu caminho através dos últimos vestígios de sua repressão de criada. Ficou sem respiração até que pareceu que seu corpo se faria em pedaços devido ao intenso prazer que procuravam os agudos espasmos e teve que libertar todo o ar em um gemido estremecedor. Era o momento mais maravilhoso de sua vida, mas à medida que olhava o escuro interior desses olhos com bolinhas douradas, soube que não era suficiente. Tinha satisfeito sua paixão, mas seu coração ainda palpitava pela necessidade de realizar-se. Queria uma conexão mais profunda. Queria senti-lo em seu interior. Queria ter tudo dele. Para sempre.
«Quero-te.» É obvio. Estava tão claro, era tão certo, que se perguntava como poderia ter sido de outra maneira. Guerreiro. Cavalheiro. Isso pouco importava. Porque em seu coração, Anna sabia que tinha encontrado ao homem com quem estava destinada a compartilhar sua vida.
Arthur já não podia esperar mais. A pressão se acumulava na base de sua coluna como um punho quente e conectava com a vibrante ponta de um membro que pedia alívio, que a tocasse, que atendesse a seus agudos gritos e ofegos de prazer e sentisse como seu corpo se derretia e se estremecia ao rodeá-la com a mão. Apertou os dentes tentando refrear-se, consciente de que estava a ponto de gozar como não o tinha feito antes na vida.
Jesus, que beleza mais embriagadora: cabelos dourados como o mel que se dispersavam atrás de sua cabeça e resplandeciam diante da luz das velas; olhos aturdidos e inflamados pela paixão; seios de formas perfeitas, grande e suave, que saía de seu corpete mostrando um pequeno e arrepiado mamilo avermelhado por suas dentadas.
Tinha o aspecto de uma fêmea no cio que clamava ao céu para que a montassem. «E esta fêmea é minha. Toda minha.».
«Jesus», repetiu para si a meio caminho entre a prece e a imprecação. Jamais antes havia se sentido de tal modo. O desejo o consumia.
—Arthur —choramingou ela — Lhes rogo isso.
O brutal desespero de sua voz foi o último fio de que precisava atirar. Não podia esperar mais para introduzir-se nela. Virtualmente rompeu a fivela e as ligaduras de suas meias e calções para liberar seu inchado membro. Mas tirar o membro de seu confinamento para que lhe desse ar não servia de grande alívio. A única coisa que lhe serviria para aplacar a dor nesse momento era estar dentro dela. Levantou uma de suas flexíveis e sedosas pernas de formas perfeitas, passou-a por trás de seu quadril e se colocou diante daquela abertura cálida e deliciosamente úmida. A próxima vez se tomaria seu tempo em saboreá-la, lhe colocar a língua e fazer que se gozasse sobre sua boca.
Não deixou de olhá-la em nenhum momento. Não se atrevia a afastar o olhar dela por medo de que se perdesse a poderosa conexão que se produziu entre ambos. Teria que ter sentido ao menos a sombra de uma dúvida, ter a sensação de que aquilo que fazia estava mal. A honra era importante para ele, apesar de que o código de cavalaria não o fosse. Mas não sentia nada disso. O único em que pensava era que não podia perdê-la, que tinha que fazê-la sua, e se era capaz de fazer isso, todo o resto sairia bem. Quando a sensível cabeça de seu membro se encontrou com o úmido calor de seu ninho, Arthur exalou um profundo som gutural de puro prazer. Esfregou-se contra sua suave umidade e se deteve ali, consciente de que uma vez dentro seria muito tarde. Tinha o corpo em chamas e todos os músculos em tensão, preparados para fazer entrada. Notava-se o pulso nas veias. Nas orelhas. Até nos ossos. Parecia-lhe ter a pele tensa e ardendo.
«Empurrar.» Deus, que vontade tinha de empurrar. Jamais teve tanta vontade de preencher, de meter-se profundamente em nenhuma mulher. Sabia que seria algo incrível. Seu corpo se ajustaria a ele como uma luva quente e o espremeria com puxões largos e duros até lhe fazer cair profundamente na mais absoluta das inconsciências. Queria ver como se movia sob seu corpo impulsionado pelo poder de seus embates, como levantava os quadris para acompanhar cada uma de suas profundas investidas. Queria ver como seu membro entrava e saía dela.
Apertou os dentes, sentindo uma necessidade de afundar-se nela virtualmente irrefreável. Mas não podia a machucar. Assim que se obrigou a ir devagar. Estimulou-a com sua grossa ereção para que se acostumasse ao tamanho e a força de seu membro e esfregou a ponta com sua umidade para facilitar a entrada. E coberta de maravilha. A pressão se acumulava na base de sua coluna e puxava cada vez com mais força.
Não pôde agüentá-lo mais. Começou a empurrar. Ela gritou, surpreendida.
«Jesus.» Apertou os dentes. O suor se acumulava sobre suas sobrancelhas. O sangue palpitava em suas veias. Tentador. Tão incrivelmente tentador… Tinha que tomar-lhe com calma e com cautela. Deus estava louco por gozar. Ficava muito pouco…
Um leve som penetrou aquela bruma.
Arthur sentiu um premonitório calafrio na nuca e ficou paralisado. O ar tinha mudado. Separou-se dela amaldiçoando enquanto todo seu ser estalava em protestos.
—Te cubra - disse, e lhe deu um puxão no vestido ao mesmo tempo em que tentava atar os calções torpemente.
Mas era muito tarde, ou muito cedo, se atendia à frustração que ardia em seu testículo nesse preciso instante. A porta se abriu de repente. Sir Hugh Ross estava atrás dela, com seu acerado olhar atento a cada detalhe do que acontecia no interior.
Apesar de que se trabalharam em excesso em vestir-se rapidamente, nada podia dissimular o que estavam fazendo. Anna seguia recostada sobre a mesa com as bochechas acesas e os olhos aturdidos, Arthur seguia entre suas pernas e a sala se achava impregnada com o quente e pesado ambiente que corresponde à almiscarada fragrância do emparelhamento, ou em seu caso do emparelhamento frustrado.
Anna ficou sem respiração. O horror apagou as marcas de prazer que ruborizavam seu rosto. Arthur se colocou frente a ela instintivamente, tentando afastar a de seu olhar, como se o escudo de seu corpo pudesse protegê-la do veneno que destilava o outro homem. O silêncio sepulcral, somente salpicado pelo crepitar das chamas, estendeu-se além do incômodo. Sir Hugh permanecia ali petrificado, com uma quietude exagerada, como se estivesse aguardando para equilibrar-se sobre eles. Arthur o observava como um falcão, esperando a primeiro sinal de movimento. Diabos, como gostaria que o fizesse.
—Ouvi um grito e me perguntei se lhe tinham feito mal - disse ao fim sir Hugh com o gesto torcido pelo asco e umas palavras que transpiravam contenção — Mas suponho que não necessitavam resgate.
A exclamação angustiada de Anna lhe partiu o coração. Arthur, consciente de que tinha que protegê-la da ira de sir Hugh, deu a volta e tomou pelos ombros.
—Vá para seus aposentos - disse bruscamente. Anna quis discuti-lo, mas ele a deteve — Falaremos mais tarde que isso. Agora mesmo preciso falar com sir Hugh. Permita que me encarregue disto.
Olhou-a nos olhos. A via confusa, horrorizada e atemorizada há um tempo, disposta a romper a chorar de um momento a outro. A Arthur custava respirar. Era como se lhe retorcessem o coração com uma faca. Ele tinha provocado isso. Era culpa dele. Sacudiu-a com cuidado, tentando fazer que se centrasse.
—Entendeste, Anna? —Então ela o olhou com um rosto tão perdido que lhe deu vontade de voltar a acolhê-la em seus braços — Tudo irá bem — prometeu, consciente de que aquilo não era certo.
Como poderia ir bem aquilo? Não só estava mentindo, mas sim, além disso, acabava de destruir toda possibilidade de aliança com o Ross e sabia quanto significava isso para ela. Anna amava a sua família. Falhar seria algo que… a faria pedaços.
Anna assentiu e a confiança cega que emanava seu olhar lhe fez sentir todo o peso da vergonha em seu interior. Era um completo filho de puta. Um filho de puta desalmado. Jamais poderia perdoar-se pelo que estava lhe fazendo. Anna não merecia. O que merecia era estar a salvo e protegida, ter um lar feliz, um marido que a amasse e seis ou sete crianças puxando suas saias. Ele nunca poderia lhe dar isso. Abandoná-la e lhe romper o coração, isso era quão único faria. Pode ser que não a tivesse despojado de sua virgindade, mas sua inocência desapareceria igualmente quando descobrisse a verdade sobre ele.
Lá onde fazia um momento reinava o desejo não ficava mais que pena e dor. Sir Hugh não se moveu de sua posição à entrada, mas assim que Arthur acompanhou Anna à saída, Hugh Ross se pôs a um lado para deixá-la passar. Arthur, sentindo-se esquecido na salinha, seguiu-a até o aposento principal. Não era muito maior, mas ao menos ali teria espaço para manobrar se fosse necessário. Sir Hugh parecia disposto a brigar e ele tinha tanta vontade ou mais de lhe dar guerra. Justo antes de sair Anna, olhou-o com incerteza.
—Vá - disse com doçura, tentando acalmar seus temores.
Então seu olhar reparou em sir Hugh e seu rosto se contraiu. O cavalheiro não se dignaria a olhá-la, mas cada uma dos nobres e orgulhosas dobras de sua pele irradiavam animal adversão. Arthur franziu os lábios, com uma vontade tremendas de matar a aquele homem por ferir seus sentimentos. Anna não tinha culpa de nada. Tudo era coisa dela. «Jesus.» Conscientizar-se disso foi como um soco. Tinha-o feito a propósito? Fosse essa sua intenção desde o começo? O que queria era acabar com qualquer opção de aliança. Não, mas não desse modo. Nunca quis levá-lo a tal extremo. Embora sim que tinha superestimado sua capacidade de controle e menosprezado a intensidade de seus desejos por ela. Era o único culpado de meter-se nesse esfregado. Fora ele quem tinha transpassado os limites, algo que não reportaria mais que dor para ambos.
—Deveria te matar — disse Ross assim que se fechou a porta.
O cavalheiro tentava intimidá-lo, mas Arthur aceitou o desafio.
—E por que não o faz?
O olhar do Ross se endureceu.
—Porque então teria que explicar os motivos.
A certeza de sua voz fez que Arthur sorrisse. Tinham mais ou menos a mesma idade e eram bastante semelhantes quanto à altura e músculos. Mas não quanto à destreza. Arthur não seria quem iria morrer. Sir Hugh, não obstante, não tinha nem idéia disso. Então por que…? A razão foi a ele de repente.
—E não quer que ninguém saiba que a moça o humilhou pela segunda vez. Primeiro ao rechaçar sua oferta e logo ao agarrá-la com outro homem ante seu nariz.
A verdade da acusação causou seu efeito no rosto do Ross, que avermelhou de ira, criando um marcado contraste com os sulcos brancos de seus lábios franzidos.
—Desfloraste-a?
Arthur apertou a mandíbula. Aquilo não era assunto seu absolutamente. Encheu de vontade de mentir, de reclamá-la para si, mas disse a verdade, já que queria salvar o que pudesse da reputação de Anna.
—Não.
Os olhos do Sir Hugh se mostravam frios.
—Mas o teria feito de não o tivesse interrompido.
Arthur encolheu os ombros, como se aquilo não fosse de sua incumbência. Ross deu um passo para ele com a mão na espada.
—Maldito filho de cadela! É um cavalheiro. É que não têm honra? Era uma mulher comprometida.
Arthur se moveu com rapidez. Pôs em prática uma manobra que tinha aprendido com Boyd e deixou o braço do Ross fosse de combate, obrigando-o a soltar a espada. Depois lhe retorceu esse mesmo braço pelas costas e o imobilizou fazendo contrapeso com seu próprio corpo.
—Não. Não estava comprometida.
Ross tentou escapar por ato reflito, mas seus movimentos só serviam para que Arthur lhe retorcesse mais o braço e lhe infligisse mais sofrimento.
—Estava a ponto de comprometer-se —disse entre dentes com uma voz cheia de dor — O matarei por isso! Solte-me!
—Não até que cheguemos a um entendimento a respeito do ocorrido aqui. Não quero que isto afete à moça. Não é culpa dela.
Ross teve a inteligência de optar por discuti-lo, mas Arthur percebia a raiva em seus olhos. Retorceu-lhe o braço com mais força, provocando que o furioso guerreiro gritasse.
—Por que voltou? —perguntou Arthur.
—Ouvi um grito…
—Uma merda - cortou Arthur.
A não ser que possuísse sentidos tão finos como os seus, era impossível que tivesse ouvido algo. Ross lhe dirigiu um olhar assassino. De sua sobrancelha caíam gotas de suor dolorido.
—Vi como a observava e que ela tentava não o olhar por todos os meios. Sabia que nos seguiria.
Arthur amaldiçoou.
—O que era isto então, uma prova de fogo?
—Não pensava permitir que tirassem o sarro. Não me casarei com uma mulher apaixonada por outro homem. Por muita vontade que tenha de fo…
Retorceu-lhe mais o braço.
—Não —disse — Não o diga.
Arthur, consciente do perto que estava de lhe partir o braço, optou por afastá-lo de seu lado de um forte empurrão. Ross tinha razão respeito a algo: quanto menos tivessem que explicar, melhor. Sir Hugh soltou ar e se massageou a parte superior do braço e o ombro. Mas havia algo em seu olhar que a Arthur fazia perguntar-se se o tinha posto a prova de novo. Se esse grosseiro comentário do Ross teria a intenção de provocar uma reação. Se for assim, tinha funcionado.
—Importa-te - disse Arthur, precavendo-se disto, na verdade era algo mais que uma aliança política para ti.
Ross não respondeu com palavras nem por meio da expressão de seu rosto, mas Arthur sabia que tinha acertado. Diabos, quase dava pena aquele pobre filho de cadela.
—Mas sabe o que é que a trouxe até aqui?
Uma vez recuperada as sensações em seu braço, Ross voltou a olhá-lo com desconfiança.
—Sim. Para conseguir apoio na luta contra Bruce. Esperava conseguir sua mão sem ter que recorrer a isso.
Arthur ficou olhando-o e o compreendeu tudo ao fim.
—Seu pai não tinha intenção de enviar homens com ou sem compromisso, não é certo? —Não era preciso que Ross respondesse. «Por todos os demônios.» Arthur tinha vontade de matá-lo ali mesmo — E a deixaram pensar que…?
Ross encolheu os ombros.
Maldito patife. Demônios, de não ser Anna a quem manipulava, Arthur teria admirado sua determinação.
—Partiremos assim que tenhamos tudo preparado. Depois de que informe Anna e sir Alan do que acaba de me contar.
O outro homem se mofou.
—E por que diabos eu ia fazer tal coisa?
Arthur deu um passo para ele com atitude ameaçadora. Em honra de Ross terá que dizer que não se moveu. Mas Arthur advertiu a inquietação em seus olhos.
—Porque não quero vê-la mais afetada do que já está. E apesar do que tenha passado aqui, não acredito que vocês queira isso tampouco.
Ficaram olhando durante um momento até que Ross assentiu. Arthur se dispôs a partir.
—Campbell. —Arthur deu a volta e viu que Ross seguia agarrando o ombro machucado — Onde aprendeu a fazer isso?
Arthur torceu a boca com dissimulação.
—Faça o que combinamos dito e talvez te conte isso algum dia.
Anna limpou as mãos em suas saias e procurou acalmar a náusea que ameaçava subindo por seu estômago ao mesmo tempo em que observava a quantidade de homens que se congregava no salão para tomar o café da manhã. Encontrou-se inconscientemente procurando Arthur, como se ver seu rosto pudesse lhe dar essa coragem que tanto necessitava. Ao não encontrá-lo sentado junto aos homens de seu irmão, disse que não havia por que preocupar-se. Ainda era cedo. A noite anterior Arthur tinha enviado a uma criada para lhe dizer que já estava tudo arrumado e que não tinha que preocupar-se.
«Não tenho que me preocupar.» Como se tal coisa fosse possível depois do que tinha acontecido. Pode ser que sua considerada mensagem não servisse para aliviar sua noite sem descanso, mas o apreciou igualmente. Ao menos se economizava o temor de que um dos dois estivesse morto ou em alguma masmorra desconhecida.
Respirou profundamente, obrigou-se a erguer o peito e erguer o queixo e entrou no salão. As pernas mal podiam sustentar do tanto que tremiam e seu coração batia contra a caixa torácica como as asas de um pássaro. Todos seus instintos clamavam por que fugisse, mas obrigou a seus pés a seguir adiante.
Sangue de reis corria por suas veias. Era uma MacDougall, não uma covarde. Apesar de que não quisesse mais que ocultar-se em sua câmara, fazer um novelo com seu corpo e pretender que nada disso tinha ocorrido o certo era que sim tinha ocorrido. Como mínimo devia uma desculpa a sir Hugh. Quando pensava no que tinha feito…
Revolvia-lhe o estômago. A vergonha a alagava. Não por sucumbir aos encantos de Arthur, já que não se envergonhava da paixão que existia entre eles, mas sim por falhar a sua família e aproveitar-se horrivelmente de sir Hugh no processo. Ele não se merecia aquilo. O orgulhoso cavalheiro não tinha feito mais que tratá-la com carinho. Não era culpa dela que estivesse apaixonada por outro homem.
«Apaixonada.» Inclusive sopesando a enorme gravidade do que tinha feito, um pequeno raio de felicidade aparecia por trás das nuvens de desesperança. Amava-o. E também ela significava algo para ele. Tinha que ser assim.
Mas esse pequeno lapso de alegria em seu coração só servia para fazê-la sentir mais culpada. Ao encontrar o amor tinha falhado a sua família. Como poderia chegar a perdoar-se? Tinha arruinado tudo. Seu pai e seu clã completo ficavam sozinhos ante o Robert Bruce. Depois do que sir Hugh havia presenciado na noite anterior não teria aliança.
Acenderam-lhe as bochechas ao recordar, ao considerar o que devia pensar aquele homem dela. «Puta. Rameira.»
Quase esperava ouvir vaias ao atravessar o salão para chegar até o assento do estrado junto ao homem ao que tinha ofendido. Mas sua entrada não causou nenhum comentário fora do habitual. O conde e a condessa a receberam com gentilezas usuais, igual fez seu filho quando tomou assento junto a ele.
Embora cada bocado que dava piorasse o enjôo que lhe punha o estômago de reverso, tinha que obrigar-se a comer. À medida que avançava a comida, sua ansiedade não fazia mais que aumentar. O breve intervalo de bom humor que entreviu em sir Hugh no dia anterior tinha desaparecido, algo não muito surpreendente. Estava sentado junto a ela completamente rígido, muito orgulhoso e imbuído do código de cavalaria para ignorá-la completamente, mas muito perto de fazê-lo. Agradeceu a presença da irmã do Hugh do outro lado da mesa e do ajudante do Ross a seu lado, que rompiam os incômodos momentos de silêncio.
Anna era consciente de que tinha que dizer algo, mas não sabia como tirar o tema em um entorno tão público. Seguia esperando que chegasse o momento oportuno quando sir Hugh se levantou da mesa e se desculpou para ausentar-se.
—Espere! —exclamou Anna, advertindo que vários olhos se voltavam em sua direção e que talvez tivesse falado muito alto.
Sir Hugh baixou o olhar para olhá-la e lhe dedicou toda sua atenção pela primeira vez. Anna procurava não morrer de vergonha enquanto ele esperava a que se pronunciasse.
—Eu… — disse o primeiro que veio à cabeça, desejando tê-lo feito antes, quando outros não prestavam atenção ao que dizia de maneira tão óbvia — Faz uma manhã estupenda. Se não estiver muito ocupado, pensei que poderiam me mostrar os arredores do castelo, como prometera.
Não lhe tinha feito tal promessa e se o fizesse saber, deixando clara sua pretensão de ficar a sós com ele, teria recebido o que merecia. Sir Hugh a olhou nos olhos e Anna por um momento pensou que se negaria a fazê-lo, mas ao que parecia puderam mais suas sensibilidades cavalheirescas. Fez uma reverência e lhe tendeu a mão.
—Será todo um prazer, milady.
Tal e como tinha feito poucas, mas significativas horas antes, permitiu que a acompanhasse ao sair do salão. Se o incomodava as falações de curiosidade que lhes seguiram não o mostrou em nenhum momento. Nessa ocasião, ao chegar ao final do corredor, conduziu-a ao exterior, ao pátio de armas. Havia um monte de gente daqui para lá: soldados praticando e protegendo as entradas, serventes atendendo a suas obrigações e um fluxo contínuo de homens passando através das portas do castelo, mas ninguém lhes prestava muita atenção.
—Há algo em particular que deseje ver? —perguntou ele.
Para ouvir a secura de sua voz o olhou de esguelha sob o véu de suas pestanas. Ele sabia que se tratava de uma desculpa, e das más. Anna negou com a cabeça.
—Sinto muito. Tinha que falar contigo —disse detendo-se para olhá-lo bem nos olhos — Devo me desculpar pelo ocorrido na noite passada. —Ao ver que franzia mais o cenho lhe falharam os nervos. Mas tinha que fazê-lo. Machucava a mão de apertar tanto os punhos. Não era capaz de falar disso com calma, de maneira que explodiu e soltou — Não posso oferecer mais desculpa pra dizer quanto sinto.
Sir Hugh ficou olhando-a nos olhos durante um momento e logo assentiu. Anna pensou que daria a volta e a deixaria ali, mas surpreendentemente a levou até um lugar afastado da fortificação de onde podiam ver muros longínquos e a cidade do Nairn ao fundo. Fazia vento e teve que acomodar atrás da orelha uma mecha de cabelo rebelde. Mas depois dessa noite de escuridão o resplendor do sol sobre seu rosto era rejuvenescedor.
—Ama-o?
Anna ficou petrificada. Não sabia o que esperava que dissesse, mas certamente isso não. Sir Hugh não parecia um homem que outorgasse muito valor nem desse muito crédito ao amor romântico. Parecia muito prático e frio para tudo isso. Mas merecia saber a verdade.
—Sim - disse em voz baixa.
—Mas teriam casado comigo para conseguir mais homens para seu pai?
Tal e como disse, de repente parecia que aquilo estivesse mal. Embora o matrimônio e a obrigação fossem parceiros, era o amor o que importava menos.
—Sim - disse Anna, sentindo que o desespero de sua situação cavalgava sobre seu peito. Apelou a seus sentimentos para que a compreendesse — Não entende? A única maneira de lutar contra os rebeldes é unir forças. Se nossos clãs se unirem poderemos derrotar ao usurpador. Somente nos arriscamos à derrota.
Por sua reação não pareceu que suas palavras tivessem influência alguma nele. A expressão de seu rosto permanecia severa e implacável. Era estranho. Agora que já não havia esperança de um compromisso entre ambos, todo o medo e o nervosismo de Anna pareciam desaparecer.
—Não pode absolver de toda culpa, lady Anna. —Ela o olhou inquisitivamente, protegendo os olhos do sol para lhe ver melhor. Sua boca se torceu em uma estranha careta — Meu pai não tinha intenção alguma de enviar homens ao Lorn.
Ficou sem respiração pela surpresa.
—Mas o compromisso… Permitiram que acreditasse que… — Hugh Ross encolheu os ombros como se não lhe importasse nada. Um arrebatamento de cólera penetrou através do sentimento de culpa de Anna — E quando me pensava contar isso?
—Teria-na informado com tempo suficiente.
—Depois de que anunciássemos nosso compromisso?
Ele se enfrentou à acusação de seus olhos sem alterar-se.
—Talvez.
—Mas por quê?
Pareceu interpretar mal sua pergunta a propósito.
—Não temos homens de sobra. Bruce virá também por nós e quando o fizer… —disse com palavras que se levava o vento — O rei Robert é muito poderoso. Nossos aliados nos abandonaram. Os Comyn, os MacDowell, os ingleses. Meu pai tem muito que perder.
Sir Hugh ficou com o olhar perdido além dos muros, para o pequeno reino que se estendia a seus pés. Tratava-se de um movimento revelador e teve que conter o fôlego ante o que significava. Muito que perder. Seu pai não pensava arriscar.
—Não —disse Anna dando um passo atrás — Não podem! Seu pai não pode render-se. Bruce o assassinará pelo que fez a sua esposa e a sua filha.
Falava sem pensar, e estava claro que o que fez seu pai quando violou o santuário e entregou às mulheres de Bruce aos ingleses não era algo que sir Hugh quisesse que o recordassem. Pela primeira vez, Anna viu algo um pouco parecido à vergonha em suas orgulhosas feições.
—Bruce prometeu perdoar a todos nobres que estavam contra ele que se renderem.
—E acreditam na palavra de um traidor? De verdade confiam em que o rei Hood perdoará a seu pai e aos sediciosos de Ross e Moray? Apenas se consumaram os fogos da perseguição ao Buchan.
Não discutiu com ela. Mas apertava fortemente a mandíbula quando disse:
—O que outra opção fica? As voltas mudaram a favor de Bruce. O povo pensa que é um herói, um guerreiro que derrotou aos ingleses. Render-se pode ser a única maneira de sobreviver. Meu pai está disposto a morrer se isso significar a continuidade do clã.
A cabeça de Anna dava voltas. Jamais, nem em suas mais escuras expectativas, teria imaginado que Ross se renderia. O que significaria isso para seu clã? Faria seu pai o mesmo? Não, seu pai jamais se renderia. E pela primeira vez Anna se precaveu de quão caro poderia lhes custar.
Preocupada com o que sir Hugh acabava de lhe confiar, Anna não encontrava muito consolo em saber que sua conduta não era reprovável.
—Obrigado por me contar isso.
Ele a olhou com atenção.
—O que fará?
—Lutar - respondeu.
Embora fosse sozinhos. Que mais podiam fazer?
—Casará com o Campbell?
Anna se ruborizou. Depois do que tinha passado a noite anterior era algo natural assumir que… Mas não tinham tido oportunidade de discutir seu futuro. Ele pareceu compreender seu silêncio.
—Conhecem-no muito bem?
O tom de advertência de sua voz despertou aquela vozinha de sua consciência que trabalhou em excesso em sossegar.
—Sir Arthur chegou ao Dunstaffnage faz um mês junto a seu irmão em resposta à chamada que fez meu pai aos cavalheiros e mercenários.
Aquilo pareceu lhe confirmar algo.
—Há algo estranho nele. Algo que não se enquadra. Não é quem parece ser.
Anna saltou em sua defesa imediatamente, pensando que sir Hugh se fixou nas incomuns habilidades de Arthur.
—É muito reservado —disse — custa a comunicar-se.
Sir Hugh a olhou inquisitivamente, como se quisesse acrescentar algo, mas em vez disso simplesmente assentiu. Foi um alívio que dissesse que se encarregaria de explicar tudo a seus pais e seus irmãos sem fazer menção alguma à situação comprometedora em que a tinha encontrado, acordando dizer que não combinavam um para o outro.
Para quando a acompanhou de novo até a torre Anna se sentia muito mais relaxada. Uma vez mitigada parte da culpa, permitiu-se viver um pouco da felicidade que supunha descobrir que o homem ao que amava tinha sentimentos por ela. Não podia esperar para lhe ver e falar com ele. Surpreendentemente, dadas as intimidades que tinham compartilhado, não estava envergonhada. Inclusive nesse momento, depois de todo o acontecido, parecia o correto.
Estava a ponto de subir o primeiro dos degraus que fossem do pátio à torre quando olhou à esquerda e viu que sir Arthur saía dos barracões. O coração lhe deu um tombo. Sorriu e deu um passo para ele de maneira instintiva, mas logo se deteve de repente. Levava a armadura e estava claro que se preparava para praticar, mas podia entrever seu rosto o suficiente sob a viseira do elmo.
Não era que esperasse que corresse pelo pátio a seu encontro, ao menos não com sir Hugh ainda a seu lado. Mas um olhar de carinho seria bom. Algo em comparação com esse rosto de arrependimento, sim, inclusive de vergonha, que escurecia seus bonitos traços. A alegria que fez saltar seu coração se consumiu e o devolveu ao chão de repente das alturas. Advertiu como sir Hugh ficava em guarda ao conscientizar do que ela tinha visto.
Arthur desviou o olhar para o outro cavalheiro. Podia sentir a animosidade acesa entre ambos. Foi Arthur quem se retirou primeiro. Saudou-os com uma inclinação da cabeça e se dirigiu a reunir-se com o resto dos guerreiros. Anna dizia a si mesma que não devia estar decepcionada, que não tinha que exagerar sua reação. Já falariam mais tarde. Em particular. Provavelmente o que adivinhava em seus olhos não era mais que imaginações.
Mas as seguintes palavras de sir Hugh lhe disseram o contrário.
—Se a coisa não for como espera, lady Anna, eu estarei aqui.
Um homem com quem podia contar.
Rezava por que Arthur também o fosse.
Capítulo 16
Demoraram mais do que Arthur pensava em sair do castelo de Auldearn. Alan MacDougall se encerrou em sua câmara com o conde, seu conselheiro e sir Hugh durante três dias mais, no que Arthur assumiu como uma tentativa de persuadir ao Ross para unir forças, apesar da ausência de compromisso. Felizmente, os esforços do Alan foram úteis. Dado que não tinham lhe contado os detalhes, Arthur não pôde estar seguro das razões do conde, mas o rechaço era um bom augúrio para o rei Robert. Passaria a informação assim que tivesse oportunidade de fazê-lo. Não acreditava que eles tivessem irradiado nenhuma mensagem, mas revisaria os pertences do Alan e de Anna para assegurar-se disso, assim que tivesse ocasião.
Saíram de Auldearn ao amanhecer, fazendo o mesmo trajeto de na semana anterior em sentido contrário e forçando o ritmo o primeiro dia para chegar a salvo mais à frente do castelo. Os homens, contagiados do humor de seu senhor e sua dama, pareciam perceber que as coisas não tinham ido como esperavam e a nuvem do fracasso se abatia sobre as cabeças dos viajantes. Levava uma predisposição algo sombria, por não dizer decididamente mal-humorada.
Arthur sabia que teria que sentir-se aliviado e satisfeito de ter completado sua missão. Ross e Lorn não uniriam forças. O fracasso dos MacDougall serviria como incentivo para aproximar de Bruce um passado mais para a vitória e a Arthur um passado mais para a destruição de seu inimigo. Assegurar-se de que John de Lorn pagava pelo que lhe tinha feito a seu pai era o que mais ansiava no mundo. Não era certo? Assim devia ser, maldita seja. Mas temia que aquilo lhe custasse muito mais do que pensou em um primeiro momento.
Coberto atrás de seu elmo podia ceder à tentação de olhá-la. De novo essa sensação, molesta e penetrante. Não era só consciência o que o remoia, a não ser algo mais. A dor que aguilhoava seu peito quando a olhava era virtualmente insuportável. Mas não fazê-lo parecia mais doloroso ainda.
Anna cavalgava na frente dele, junto a seu irmão e a criada, com o que somente oferecia seu perfil ao voltar-se. Arthur não precisava olhá-la para saber que o silêncio a respeito do ocorrido entre ambos lhe doía. E muito. Deus Santo, o que tinha feito? E o que era mais importante, que demônios faria a respeito? Agora que estavam longe do castelo já não podia evitar o tema nem evitá-la por muito mais tempo. Sabia o que devia fazer. Não precisava ser um cavalheiro para conscientizar de que depois do perto que estivera de lhe arrebatar a virgindade, a escassos centímetros literalmente, deveria a pedir em matrimônio. Não havia dúvida de que era o que ela esperava. E o que cabia esperar. Isso faria um homem com honra. Mas esses escassos centímetros lhe serviam de suficiente desculpa para não fazê-lo. A batalha que livrava em seu interior era cada vez mais cruel. Todos seus instintos exigiam que se aproximasse dela, que cedesse aos sentimentos e, por que não falar, maldição, às emoções que brigavam em seu interior. Mas a outra parte de seu ser, a racional, puxava-o para evitar maiores males.
Embora ele mesmo quisesse esquecer-se disso em algumas ocasiões, o certo era que a enganava. E estava claro como a água que não podia lhe dizer a verdade. Seu dever e sua lealdade pertenciam ao Bruce. Nenhum dos sentimentos que albergasse poderia mudar aquilo. Estavam em lados opostos de uma rixa a ponto de desatar-se. Ao final ela descobriria sua filiação verdadeira e se inteiraria de que a única razão que o tinha levado ao Dunstaffnage fosse espiar e propiciar a destruição de sua família. Sabia que pedi-la em matrimônio só serviria para que a traição final tivesse conseqüências muito piores.
Era uma situação impossível e tinha consciência de tê-la criado ele mesmo. Teria que ter-se afastado dela, mas suas boas intenções ficaram transbordadas por seu sorriso, vitalidade, doçura e amabilidade. Quando olhava o interior desses grandes olhos azuis começava a ter saudades de algo que nem sequer sabia que queria. Gostava de estar sozinho, maldita seja! Parecia mais fácil e muitíssimo menos chato. Entretanto Anna o fazia ansiar algo que ele não poderia permitir-se oferecer, à vista do que estava por chegar. E fazê-la sofrer desse modo, não ser capaz de fazer algo para mudar, partia-lhe a alma. Cada vez lhe custava mais concentrar-se em suas tarefas.
Embora não se voltasse para olhá-lo, Arthur sabia que ela era tão consciente de sua presença como ele mesmo. Advertiu a maneira em que seus ombros ficavam tensos quando situou seu cavalo atrás deles. Richard e Alex partiam em cabeça explorando o terreno, de modo que Arthur ficou ao fim para assegurar-se de que ninguém os seguia. Aproximava-se o final da primeira jornada da viagem e tinham que proceder com especial cautela agora que se aproximavam do castelo do Urquhart, lugar em que tinham aparecido os homens de Bruce quando foram para o castelo do Ross. Novamente, teriam que fazer uma boa volta para o oeste do caminho para evitar as patrulhas da fortaleza «inimiga».
—Pegue milady —ouviu que dizia sua criada — Lady Euphemia pediu ao cozinheiro que as prepare especialmente para ti em vista que gostas.
A anciã tentou enrolá-la com os doces, mas Anna negou com a cabeça em uma pobre tentativa de sorriso que lhe cravou outra pontada no coração.
—Não, obrigado, não tenho fome.
A criada se zangou, franziu os lábios e mastigou a delícia de amêndoas sem entusiasmo algum. Mal teve acabado de mastigar quando voltou para a carga e tirou de sua bolsa o que parecia um pequeno bolo de carne.
—O que me dizem de um pastezinho de cevada com cordeiro? —disse, cheirando-o teatralmente — Cheira divinamente. E ainda está quente.
Anna voltou a negar com a cabeça.
—Coma se quiser. Eu comerei quando nos detivermos.
A criada murmurou para si.
—Tem que comer algo, milady - urgiu entre murmúrios, ao mesmo tempo em que fulminava Arthur com o olhar.
Este apertou a mandíbula, adivinhando a quem culpava a criada pela falta de apetite de sua senhora.
—Comerei - disse Anna para apaziguá-la. Chamou a seu irmão, que cavalgava um pouco mais adiante — Quando pararemos para passar a noite, irmão?
—Logo, espero - respondeu Alan olhando a seu redor e fazendo gestos a Arthur ao ver que tinha retornado. Este se armou de valor e fez como lhe pediu, levantando o visor de seu elmo ao passar entre o punhado de cavaleiros que lhes separavam — Viu algo suspeito?
Arthur negou com a cabeça.
—Por agora não. Estaremos seguros quando voltarem Richard e Alex, mas se não ter nada extraordinário, poderemos nos deter o anoitecer como tínhamos previsto.
—Não voltaremos para lago em que acampamos a vez anterior?
Era ela quem falava. Arthur voltou o olhar lentamente, incapaz de evitá-la por mais tempo. Mas não estava preparado para o calor abrasador que lhe atravessaria ao encontrar-se com seu olhar. Ele, que apenas se movia quando uma flecha se afundava no mais profundo de seu ombro, quando uma espada lhe abria as vísceras nem nas numerosas ocasiões em que não tinha apanhado a adaga de seu irmão com suficiente presteza, sobressaltou-se ao ver a tristeza e a pergunta sem formular de seus olhos.
Parecia fatigada, de uma fragilidade insofrível. Umas pequenas linhas sulcavam as comissuras de seus olhos e sua pele estava muito mais pálida do normal. Apertou os dentes, lutando contra a desesperada necessidade que sentia de dar o que ela queria.
«Peça-a em matrimônio.»
Maldição, não podia fazê-lo. Não faria a não ser piorar as coisas.
—Não, milady —respondeu sem alterar a voz — Será mais seguro que não voltemos sobre nossos passos. Acamparemos em lugares diferentes cada noite. Há uma cascata na floresta dos pagamentos do Dhivach, ao sudeste do castelo, onde começa a ravina. Faremos pernoite ali.
Anna assentiu com cara de querer acrescentar algo, mas consciente de que não estavam sozinhos.
—Falta muito?
—Cinco ou seis quilômetros. Deveríamos chegar antes do anoitecer.
—Eu… — Anna deixou a frase pela metade. Não obstante, o modo em que o olhava era desencorajador — Obrigado.
Quando Arthur se decidiu a afastar o olhar se surpreendeu comprovar que um dos homens do Alan se situava atrás dele. Ficou circunspeto, mas estava muito imerso em sua própria confusão para atender à advertência.
Ao que parecia um das arcas de Anna não estava bem presa e caiu do carro. Arthur agradeceu a interrupção quando viu que Anna e sua criada fossem ao fim da fila para assegurar-se de não perder nada. Mas era consciente de que não poderia postergar a inevitável discussão por muito mais tempo. Isso ficou assegurado certamente pelas palavras de Alan antes de partir para ver o Richard e Alex.
—Não sei que diabos passou em Auldearn, Campbell, mas minha irmã está triste. —O cavalheiro cravou o olhar em Arthur com uns gélidos olhos azuis que não mostravam compaixão alguma. Depois de tudo, era filho de seu pai — Arrume ou me encarregarei eu de fazê-lo.
Arthur franziu o cenho até adotar uma expressão sombria. Não se incomodou em pretender que não sabia ao que se referia. A ameaça não lhe inquietava. O que lhe inquietava era que não podia fazer o que o irmão de Anna lhe pedia. Nada poderia arrumá-lo.
—Por que está me evitando?
Arthur, assombrado, ficou em pé de repente, fazendo saltar a armadilha que estava preparando. Tinha o surpreendido. Algo que Anna apostava que não ocorria muito freqüentemente. Talvez essa confusão que ela percebeu em seus olhos não foi imaginação. Olhava-a com uma saudade mal reprimida, mas algo o fazia conter-se.
O desengano que sentiu na primeira manhã não fazia mais que piorar a cada dia que passava. Ainda não tinha ido a seu encontro, por não falar de oferta de matrimônio alguma. Anna queria convencer-se de que simplesmente esperava para falar com seu pai, mas isso não explicava por que fugia dela.
—Está me seguindo outra vez, Anna?
Se tentava distrair ficando à defensiva, não funcionaria.
—Não sei como poderia dizer que te sigo quando o acampamento está a poucos passos daqui - disse assinalando os arranjos e cordas — Vi que tirava a armadilha da bolsa e supus que não iria muito longe.
Inspecionou suas feições, meio escondida entre as sombras. Ao menos ficava uma hora de luz solar, mas sob o espesso manto das árvores da floresta parecia quase noite fechada. Anna deu um passo para ele e estreitou o vão que os separava. Arthur franziu o cenho e todo seu corpo ficou rígido. Anna percebeu de que lhe moviam as aletas do nariz, como se o incomodasse tê-la tão perto. As lágrimas foram a seus olhos. Por que se comportava desse modo? Acaso era tão desagradável?
—Ides responder-me? —disse com uma voz quebrada pela emoção e a incerteza dos últimos dias. Queria pôr a mão sobre o peito para tranqüilizar-se, mas temia que ele retrocedesse e isso a fizesse pedaços — Acaso não mereço uma explicação?
Arthur suspirou e se separou dela com o pretexto de passar os dedos entre os cabelos. Embora ainda levasse posta a armadura, tirou o elmo e seu cabelo castanho escuro caía em suaves ondas sobre a borda da cota de malha.
—Sim, moça. Merece uma explicação. Tinha intenção de falar contigo uma vez que tivéssemos comido.
Não sabia se acreditava, mas o deixou continuar. Ela já havia dito suficiente. Era a ele a quem correspondia falar.
—O que ocorreu foi - Formoso? Incrível? Perfeito? pensou Anna—… desafortunado. —A Anna parou o coração. Não era a palavra que esperava — Me envergonho de meu comportamento —disse Arthur com palavras que pareciam próprias do cavalheiro mais contido da corte — Jamais devia permitir que chegasse tão longe.
Anna o deteve em seco, incapaz de resistir por mais tempo o tom distante e o arrependimento de sua voz.
—Por que fala assim? Por que atua como se não significasse nada? —Arthur esticou a mandíbula mais ainda. A palpitação de seus batimentos no pescoço não pressagiava nada bom. Tentou afastar-se de Anna, mas ela o agarrou pelo braço. O peito lhe ardia — Significou algo, Arthur? —Este a olhou nos olhos com uma intensidade que queimava. Anna aspirou profunda e entrecortadamente através de sua oprimida garganta — Para mim sim.
—Anna… - Parecia estar liberando algum tipo de guerra interior. Anna notava a rigidez de seus músculos sob seus próprios dedos. Seu poderoso corpo parecia irradiar tensão — por que põem as coisas tão difíceis?
—Eu? És tu quem põe as coisas difíceis. É uma pergunta muito simples. Ou significou algo para ti ou não significou nada.
Manteve o olhar, negando-se a lhe permitir partir sem que respondesse algo. Arthur tinha o rosto desfigurado, como se o estivesse torturando.
—Não entendes.
—Têm razão. Não entendo. Poderia explicar isso?
- Somos completamente inadequados um para o outro.
—Não posso. —Olhou-a com dureza — É que não vê que jamais funcionaria?
«Meu Deus!» Pareceu engasgar-se com seu próprio coração quando percebeu o que acontecia. «Não pensa me propor matrimônio.» Como era possível que tivesse interpretado tão mal a situação? Não! Não o tinha feito. Havia algo mais que lhe escapava.
—Por que não?
—Somos completamente inadequados um para o outro. A família é tudo para ti. E para mim? Meus pais morreram quando era um pirralho. Meus irmãos levam anos lutando em lados distintos. Não sei nada a respeito de família.
—Eu posso lhes ensinar…
—Não quero que me ensinem - repôs isso Arthur, cortando-a com raiva — Eu gosto de estar sozinho. E você… —disse com um gesto da mão — Tenho certeza que não estivestes sozinha nem um dia em sua vida. Merece estar rodeada de família e amigos, com um marido que lhe adore e um monte de crianças puxando suas saias. Não me diga que não quer isso, porque sei que é isso o que quer.
Era certo que queria isso, mas com ele.
—Não quer ter crianças?
Sua boca empalideceu como se a pergunta, pensar nisso tão sequer, fosse doloroso.
—Não entende a situação.
—Eu? Paraste a pensar que talvez não se trate de que gosta de estar sozinho, mas sim de que alguma vez estivera com as pessoas adequadas? —disse fazendo uma pausa para que o considerasse. Compreendia as razões que lhe levavam a solidão, mas suspeitava que seria diferente em caso de ter uma família que o amasse, que o aceitasse — Se sentires algo por mim, o resto não tem importância. —O rosto de Arthur se mostrava duro como o granito, mas ela seguiu pressionando — Sente algo por mim, Arthur?
Manteve o olhar, desafiando-o a que mentisse. E Arthur parecia querer fazer, mas ao final o admitiu.
—Sim. Mas isso não importa.
Sentia algo por ela. Não tinha errado. Negou com a cabeça.
—Isso é tudo o que importa.
—Não insista, Anna. Acredite-me quando digo que não funcionaria. Jamais poderia lhes dar o que necessita. Nunca poderia te fazer feliz.
A frustração e a raiva buliram em seu interior.
—Como te atreve a presumir que conhece minha mente melhor que eu? Eu sei exatamente o que quero. Depois do que passou como não pode compreender que é o único homem que pode me fazer feliz? Não te dá conta de que te amo?
Sua declaração de amor foi tão inesperada para ela como parecia ser para ele. Fechou a boca de repente, mas era muito tarde. Suas palavras seguiam ressonando no repentino silêncio. Arthur ficou completamente quieto, com uma expressão não muito diferente de quem tivesse recebido uma flechada no peito. Não se podia dizer que fosse a reação que ela esperava. Não esperava que respondesse a sua declaração de amor. Em realidade não. Não nesse momento, ao menos. Mas tampouco esperava encontrar-se com o silêncio. Um silêncio que lhe rompia o coração lenta e cruelmente.
«Amo-te» As palavras zumbiam em seus ouvidos. Como um palpite. Uma chamada. Tentava-o, caramba, tentava-o. Arthur permaneceu quieto como uma pedra, sem permitir o luxo de acreditar. Não podia fazer. Porque se o fizesse, era possível que encontrasse a felicidade. Uma felicidade maior da que tinha desfrutado na vida.
Não dizia a sério. Estava confusa. Anna MacDougall entregava seu coração a todos. Isso era parte do que a fazia tão irresistível. Negou com a cabeça, como se tentasse convencer a si mesmo.
—Não sabes o que diz. Não podem me amar. Nem sequer me conhece.
—Como podem dizer isso? Pois claro que lhes conheço.
—Há coisas sobre mim que se soubessem…
Não podia dizer nada mais. Já havia dito muito. Suas habilidades perceptivas eram excepcionais. Anna franziu os lábios e ele reconheceu o brilho teimoso de seu olhar.
—Acreditava que já tínhamos passado por isso. Suas faculdades são um dom, e se demonstraram extraordinariamente úteis em mais de uma ocasião. —Ele não falava de suas habilidades, mas sim do fato de ser um espião ao serviço de Bruce. O fato de que não havia pessoa no mundo a quem odiasse mais que ao pai de Anna e que tinha esperado quatorze anos para destruí-lo. Mas dificilmente poderia lhe contar a verdade — Sei tudo aquilo que importa sobre você - continuou — Sei que prefere observar e escutar a falar. Que não gosta de chamar a atenção e prefere estar em um segundo plano. Sei que conta com habilidades valiosas que prefere ocultar porque acredita que o faz diferente. Sei que está convencido de que é diferente e por isso não necessita a ninguém, de modo que procura espantar aos outros antes que se aproximem de ti. Sei que passou a maior parte de sua vida no campo de batalha, mas que pode dirigir a pluma de maneira tão efetiva quanto uma espada. —deteve-se o tempo preciso para tomar fôlego. Ele teria que tê-la cortado, mas estava muito indisposto para falar — Sei que é inteligente e que têm um caráter tão forte como seu corpo. Sei que quando estou contigo me sinto segura. Que faz ver que nada lhes importa, mas que me defenderia com sua própria vida. Sei que um homem que sustenta em seus braços a um bebê e que mostra paciência com um cachorrinho que não tem feito mais em dar problemas tem um coração bondoso. —Anna baixou a voz até deixá-la quase em um sussurro, dissipada já toda sua ira — Sei que desde a primeira vez que me beijou senti que jamais teria outro homem para mim. Que quando ergo o olhar para olhar, vejo o rosto que quero ver durante o resto de minha vida. —Seus olhos, que brilhavam com lágrimas não derramadas, encontraram-se com os dele — Sei que é leal e honrado e que te importo, mas que há algo que o faz se conter.
«Jesus.» Era como se lhe desse um soco. Ninguém antes lhe havia dito nada parecido. O fazia sentir-se humilde. Comovia-lhe. Dava-lhe um medo de morte.
Tinha visto muito de sua pessoa. Não significava só um perigo para sua missão, mas também para ele em formas que jamais tinha imaginado. Endureceu a mandíbula e o coração.
—Vê o que quer ver, Anna, não a realidade. —A guerra. Seu pai. Ele. Estava cega diante das faltas daqueles aos que professava amor — Mas as garotinhas que acreditam nos contos de fadas acabam desenganadas.
—Não faça isso —sussurrou Anna — Não tente me espantar.
Isso era o que fazia. O que sempre fazia. E embora pela primeira vez não desejasse fazer, era o que tinha que fazer. Pelo próprio bem de Anna. Agarrou-a pelo braço com intenção de sacudi-la e fazê-la entrar em razão, mas foi um engano. Tocá-la não fez mais que avivar o fogo de suas emoções até quase lhe fazer perder o controle.
—Então não atue apoiada em contos infantis. Estamos em meio de uma maldita guerra. Bruce está a ponto de cair com todo seu exército sobre sua cabeça e mesmo assim quer planejar seu futuro. Não há futuro, Anna. Somente existe o dia de hoje. Diabos, quem sabe se terá um lar daqui a um mês.
Sobressaltou-se como se a tivesse golpeado.
—Acredita que não sou consciente disso? —Anna sossegou um soluço na garganta. Seus preciosos olhos azuis se nublaram com lágrimas, atiçando o fogo que consumia seu peito — por que pensa que acudi ao Ross? Sei perfeitamente o que está em jogo. Mas não pude fazer. Não podia fazer por causa de ti.
—Seu pai jamais devia ter te pedido isso - repôs.
A expressão de assombro de Anna fez que Arthur desejasse poder retirar o dito. Tinha a perspectiva de uma menina para seu pai, a do cavalheiro perfeito que não podia fazer nada mal. Outra dessas ilusões que ele ajudaria a destruir.
—Não me pediu isso. Foi minha idéia. Fala de guerra e de incerteza, mas posso lhes dizer uma coisa certa. Se não arriscar, se seguir espantando as pessoas de seu lado, assegurará sua solidão. É isso o que quer?
Apertava a mandíbula com tanta força que lhe doíam os dentes.
—Sim.
«Maldita seja.»
—Muito bem. Porque isso é exatamente o que conseguirá - disse ela; as lágrimas rodavam por suas bochechas — Não sei por que faz isto, Arthur Campbell, mas é um covarde.
Um acesso de raiva subiu por seu corpo. Não era um covarde. Somente tentava fazer o correto. Mas não lhe deixava fazer. Não fazia mais que pressioná-lo para voltá-lo louco com uns sentimentos que não lhe pertenciam. Não podia pensar bem. Não queria mais que tomá-la entre seus braços e beijá-la até que cessasse o martelar que sentia na cabeça, e no coração.
Possivelmente isso tivesse feito se pudesse, mas não teve a oportunidade.
—Que diabos está acontecendo aqui?
Arthur voltou com a cabeça ainda lhe dando voltas, ao mesmo tempo em que Alan aparecia no claro. Amaldiçoou. Estava tão absorto em Anna que não ouviu o mínimo ruído. Que demônios ocorria? Estava fosse de controle. Tinha que tomar as rédeas de suas emoções. Seus sentidos estavam mesclados e confusos. Distraía-se muito. Estava tão confuso… Somente uma vez antes havia sentido de tal modo: o dia em que morreu seu pai. Estava perdendo os papéis.
Tanto que não se preparou para o que vinha depois.
—Deixe-a em paz - vociferou Alan, arrancando-a de seus braços ao mesmo tempo em que lançava o primeiro murro direto a sua mandíbula.
A cabeça de Arthur se propulsou para trás ao receber o golpe em cheio. Uma explosão de dor se apoderou dele. Ficou cego por um resplendor branco.
Anna gritou aterrada.
—Alan, por favor! Não é o que parece!
Mas seu irmão não a escutava. Como prova de sua eficiência com ambos os punhos, alcançou Arthur do outro lado com outro golpe. Depois no ventre. Logo no flanco.
—Vos disse que o arrumasse maldita seja. Não que a fizesse chorar. Que demônios lhe têm feito?
Arthur não tentava defender-se. Não porque não pudesse. Era evidente que MacDougall tinha um braço como o martelo de um ferreiro, mas Arthur tinha aprendido suficientes truques do melhor lutador corpo a corpo das Highlands e era capaz de tombá-lo em poucos segundos. Não se defendia porque merecia o castigo. Diabos, merecia muito mais pelo que estava a ponto de fazer.
—Para! Para! —choramingou Anna com uma voz a borda da histeria — Está lhe fazendo mal.
Alan o arrastou pelo pescoço e o empurrou com força contra uma árvore.
—O que lhe têm feito? —perguntou fulminando a sua irmã com o olhar — Será melhor que um dos dois me diga que demônios passa aqui. —Nenhum deles respondeu. Alan olhava alternadamente a um e outro com o rosto aceso pela raiva — Não me tomem por um maldito idiota! Não pensem que acreditei nem por um momento que Ross decidiu dar para trás de repente! —disse olhando a Anna enquanto seguia apertando fortemente o pescoço de Arthur com a mão — O que passou em Auldearn? É que este filho de cadela te tocou, Anna? —perguntou lhe apertando o pescoço — Te tocou? —insistiu empurrando com mais força — O fez?
Arthur sentia que o nó se esticava em torno de sua garganta e não era pela mão do MacDougall. Não. Sabia que teria que responder pelo que esteve a ponto de acontecer em Auldearn.
— O solte! —Alan advertiu o pânico na voz de Anna. Ela tentava lhe puxar o braço, mas sem obter resultado — Sim, mas não é o que pensa.
De fato, devia ser exatamente como o pensava.
—Maldito velhaco do demônio! —disse MacDougall estampando a cabeça de Arthur de novo contra a árvore — O matarei por isso.
Arthur não duvidava de suas intenções. Nem tampouco de sua capacidade para fazer. Mas não podia permitir. Estava a ponto de libertar-se quando ouviu um pequeno zumbido seguido por um suave vaio.
«Flecha.»
Seus sentidos se abriram em uma explosão de clarividência. Olhou por cima do ombro do MacDougall e viu a ponta de ferro sulcando o ar, apenas a um segundo de impactar no cangote do MacDougall. Arthur não pensou. Simplesmente reagiu. Golpeou para cima o braço do MacDougall com o antebraço em um perfeito movimento para libertar seu pescoço das garras dele e atrás disto enroscou sua perna ao redor do tornozelo para desequilibrá-lo. MacDougall caiu ao chão justo antes que a flecha impactasse na árvore com um som seco ao que logo seguiram os dilaceradores gritos de ataque.
Ouviu a exclamação de terror de Anna, mas não podia voltar para acalmá-la. O primeiro dos homens acabava de emergir de entre as árvores com a espada em alto. De novo a reação de Arthur foi instantânea. Jogou mão ao punho de sua adaga, extraiu-a de sua capa e a lançou. O atacante emitiu um gemido quando a folha deu com os poucos centímetros desprotegidos da pele de seu pescoço. Cambaleou-se e caiu ao chão.
Para quando o seguinte dos homens saltou sobre eles MacDougall já tinha tido tempo para entender o que acontecia e se pôs em pé. Desembainhou a espada, girou sobre si mesmo e a ergueu bem a tempo para repelir uma cutilada que lhe teria arrancado a cabeça.
«Anna.» Arthur desviou o olhar do assalto que estava por chegar justo o tempo suficiente para assegurar-se de que ela estava bem. Encontrou-a resguardada depois da árvore, com os olhos cheios de terror. O coração lhe acelerou ao conscientizar-se de quão vulnerável era e logo se paralisou quando se deu conta de quão vulnerável isso fazia a ele mesmo. Não podia permitir que lhe acontecesse nada. Tinha que protegê-la. Mataria a todos se fosse preciso. Seus olhares se encontraram só por um segundo. Mas a forma em que se olharam foi de uma intensidade inegável e brutal.
—Permaneçam abaixados - disse com voz pausada, a pesar do fluxo de sangue que corria por suas veias.
Arthur se situou frente a Anna, cotovelo com cotovelo com o MacDougall, quem seguia lutando com seu oponente, e recebeu com sua espada a avalanche de atacantes que saíam de entre as árvores. Uma vintena de homens. Talvez mais.
Não teve que esperar muito para encontrar-se com o primeiro deles. Pela primeira vez em quase dois anos, desde que se visse obrigado a abandonar os Guardiões das Highlands para infiltrar-se em campo inimigo, Arthur se deixou ir e lutou com toda a destreza e o frenesi que tão cuidadosamente mantinha ocultos. Tombou ao primeiro dos homens com um virulento movimento de espada, girou-se e aproveitou a inércia para derrubar ao seguinte.
Foram por ele com mais virulência. Mas não importava. Era como uma máquina de guerra que arrasava tudo o que saía a seu caminho. Três. Quatro. O ruído do metal sobre o metal atravessava o sombrio ar noturno, mesclando-se com os gemidos e os gritos da batalha. Esses sons tinham alertado aos homens do acampamento, que felizmente estava a poucos metros dali, e os soldados do MacDougall começaram a aparecer na pequena clareira, já envolto em uma escuridão absoluta. Mas os atacantes esperavam a chegada dos reforços. Em realidade o tinham planejado e aguardavam o momento. Saltavam das árvores à medida que eles abriam caminho por baixo e caíam sobre os despreparados homens do clã MacDougall.
—Vamos! —disse Arthur tentando lhes advertir — Disperse.
Se não se dispersavam os fariam pedaços com a facilidade que se cortam arenques de um barril. Mas essa foi toda a advertência que pôde fazer antes que os seguintes adversários distraíram sua atenção. Tinha a dois homens sobre ele. Dois homens com nasais, mantos obscurecidos e as características manchas de cinza negra nos rostos.
O pavor se instalou em seu estômago com o peso de uma pedra.
Os atacantes eram homens de Bruce. Pois claro que eram. Viu os corpos pulverizados no chão ante ele, homens que ele tinha matado, e veio um acesso de bílis à garganta. Jesus, no que estava pensando? Nem sequer pensava. O instinto de amparo para a Anna ultrapassava todo o resto. Mas era pior do que imaginava. Enquanto tentava incapacitar aos dois homens que lhe atacavam sem chegar a matá-los, um terceiro homem se uniu à refrega. Um homem que brandia duas espadas. Movia-se como um raio e foi a Arthur com uma ferocidade sem igual inclusive entre seus companheiros de elite dos Guardiões das Highlands.
Arthur se encontrou cara a cara na escuridão com LachlanMacRuairi e amaldiçoou para si.
Capítulo 17
Ocorreu tudo muito depressa. Em um momento tentava evitar que seu irmão assassinasse ao homem que amava e no seguinte estavam sendo atacados. Dizer que a situação era perigosa era pouco. De seu posto escondida entre as árvores, Anna se obrigava a respirar levianamente entre o estrepitoso pulsar de seu coração e observava com horror como aqueles homens caíam sobre eles como uma praga de gafanhotos. Pareciam que fossem centenas de inimigos contra só dois guerreiros.
Arthur parou os pés ao primeiro com tal superioridade que lhe pareceu algo bizarro. Mas então chegou o seguinte. E outro mais. Ficou olhando cheia de assombro como despachava sem esforço algum a todos quantos saíam a seu encontro. Sua destreza era tão extraordinária, mostrava tal superioridade, que parecia estar vendo outro homem. Tinha o espiado suficientes vezes enquanto praticava para reconhecer a diferença. Fazia que seu irmão, conhecido como um dos cavalheiros mais destros das Highlands parecesse um escudeiro. Arthur era mais rápido. Mais ágil quanto à técnica e movimentos. E o que era mais significativo, mais forte. Podia sentir como reverberava a terra com a força de seus golpes. Quando um de seus oponentes conseguia acertar com uma cutilada, o braço de Arthur apenas se movia ao bloqueá-lo e absorvia a força do impacto como se fosse nada. Seu braço… Os olhos lhe puseram como pratos. Era o braço direito.
Não entendia. Arthur era canhoto. Ao menos supunha que era, mas nesse momento, em somente observá-lo, sabia que estivera fingindo. Por que ocultaria algo assim? E por que não o tinha visto alguma vez antes lutar desse modo? Podia compreender os motivos para ocultar seus incomuns aguçados sentidos, mas não havia nada inapropriado em ter destreza no manejo da espada. Deus, poderia ser um dos cavalheiros mais venerados do reino se quisesse. Então por que não queria ser?
Mas essas perguntas se esfumaram de sua cabeça assim que viu a nova horda de atacantes que vinham de cima das árvores. Não cabia dúvida de que ao ver os corpos caídos de seus compatriotas tinham identificado a ameaça e se reuniam em torno de Arthur.
Anna reprimiu o grito de advertência, consciente de que não faria mais que lhe distrair. Mas tinha o coração em um punho. Dois homens. E um terceiro não muito longe deles.
De repente algo pareceu mudar em Arthur. Em lugar de frios e desumanos golpes mortais brandia a espada com menos intenção. Era quase como se seu objetivo tivesse mudado e não desejasse matá-los a não ser simplesmente repelir o ataque. Mas não tinha nenhum sentido. Tirou esse pensamento da cabeça. O que passava era que aqueles guerreiros estavam melhor treinados.
E era certo. Parecia difícil ver algo na penumbra. Levavam roupagens escuras e pareciam ter se sujado de fuligem a pele com algo…
Gelou-lhe o sangue ao recordar o ataque do ano anterior. Aqueles homens também levavam a pele suja. Seria possível que se tratasse dos espectros do exército fantasma de velhacos formado por Bruce, o homem que tinha instaurado o horror tanto nos corações da Escócia como da Inglaterra?
Seus piores temores se viram confirmados quando um terceiro homem desceu sobre Arthur como um cão do inferno. Em lugar do longo espadão de duas mãos que usavam os highlanders, este brandia duas espadas menores. Uma em cada mão.
Mas eram suas vestimentas as que a fizeram tremer com um terror que subia por todos seus ossos. Igual ao resto dos atacantes, levava um nasal escurecido e tinha sujado de fuligem sua pele com barro ou cinzas, mas o que a fez estremecer diante da lembrança era o resto de sua indumentária. Vestido de negro da cabeça aos pés, em lugar de cota de malha levava um peitilho de guerra de couro tachonado com peças de metal, perneiras de couro e uma manta envolta de maneira estranha. Justo como o homem que a tinha atacado no ano anterior, aquele rebelde de beleza absurda.
Esse homem era um deles. Anna sabia. O medo se transformou em pânico. Os conhecia por suas extraordinárias habilidades, por combater como demônios possuídos. «OH, Meu Deus, Arthur!» Sua respiração ficou detida na parte alta de seu peito ao ver que o atacante voava até ele com as espadas em alto a cada lado de sua cabeça. O tempo pareceu ir mais devagar. Arthur, ainda ocupando-se de um dos outros dois adversários, não poderia defender-se. Gelou-lhe o coração. O sangue. Arthur ia morrer.
Anna abriu a boca para gritar, mas no último momento Arthur golpeou a um dos homens que lhe atacavam com o punho de sua espada e pôde ergue-la a tempo para bloquear as duas folhas antes que lhe cruzasse o pescoço. O assaltante demoníaco e ele se encontraram cara a cara com as espadas engastadas sobre suas cabeças. O agressor tinha o impulso de vantagem já que caía das alturas, mas conseguiu repeli-lo fazendo uso de ambas as mãos. Embora Arthur lhe desse as costas, conseguiu distinguir o rosto de sua oponente graças à luz oferecida por um raio de lua. Tinha os olhos mais horripilantes que Anna jamais tivesse visto. Estremeceu. Pareciam brilhar na escuridão. Com essas escuras feições retorcidas pela raiva parecia um diabo recém saído do inferno, Lúcifer em pessoa. Uma difusa lembrança foi a sua memória. Deus santo! Era possível que…? Anna abriu os olhos sem acreditar de tudo. Parecia-se com Lachlan MacRuairi, o marido de sua falecida tia Juliana. Fazia anos que não o via, mas conforme tinha ouvido estava com os rebeldes. Sua tia Juliana, da qual sua irmã tinha recebido o nome, era muito mais jovem que seu pai, quase vinte anos. MacRuairi provavelmente tinha a mesma idade que seu irmão Alan. Ao aproximar-se de Arthur a expressão de seu rosto mudou. Não se teria notado se não tivesse observado com tanta atenção. Surpresa? Reconhecimento? O homem que parecia seu tio deu um passo atrás. Ou era imaginações delas? Estava escuro e não era fácil estar segura. Ambos seguiram trocando golpes, mas a intensidade e a ferocidade tinham desaparecido. Comparado com o anterior, parecia mais um treinamento que uma batalha em que se empregassem a fundo. Anna olhava através da escuridão tentado compreender o que ocorria. Então, viu pela extremidade do olho que seu irmão tropeçava para trás, com a espada no chão e ambas as mãos sobre a cabeça, cambaleando-se…
Anna lançou um grito, incapaz de dominar-se por mais tempo. Teria deslocado em sua ajuda, mas Arthur se atrasou até sua posição para lhe impedir o passo.
—Fique atrás, maldita seja! Fique atrás!
Observou com impotência como o agressor com o que lutava seu irmão erguia a espada para acabar com ele. Seu horripilante grito atravessou a noite como uma adaga.
Arthur pareceu vacilar, mas somente por um instante. De alguma forma arrumou para rebater um golpe do homem que se parecia com seu tio e dar meia volta a tempo para bloquear a estocada dirigida contra seu irmão. O braço do atacante, ao não estar preparado para essa defesa, veio-se abaixo e com ele seu corpo, que foi cair justo sobre a espada de Arthur. O homem, surpreso, abriu os olhos antes de fechá-los para sempre.
Inclusive no meio desse horrível pesadelo a truculenta imagem fora muito para ela. Voltou o olhar entre soluços. Momentos depois, um agudo assobio cerceava o ar da noite. Olhou para o tumulto e se surpreendeu ao ver que os atacantes se retiravam. Ao que parecia MacRuairi, ou um homem que se parecia muito a ele, tinha dado a ordem de retirada. A clareira fora invadida pelos homens de seu irmão. Correu ao encontro do Alan antes inclusive de que o último dos rebeldes saísse da floresta. Tinha conseguido ficar em pé, mas ainda parecia cambalear-se.
—Oh, Deus, Alan! Está bem?
Inclusive na escuridão advertiu que lhe custava muito enfocar o olhar pela maneira em que a olhava. Sacudiu a cabeça como se pudesse assim dissipar a nebulosa.
—Um golpe no cocuruto —disse — Estarei bem. Não há por que chorar. —Tomou-a pelo queixo e lhe dirigiu um sorriso carinhoso.
Anna assentiu e limpou as lágrimas com o dorso da mão, sem se dar conta sequer de que estava chorando. Voltou de maneira instintiva e o buscou. Arthur estava a poucos metros dela, observando-a. Anna tinha vontade de correr a seu encontro, de deitar-se em seus braços, enterrar a cabeça em seu peito e romper a chorar. Ele se encarregaria de sossegar o horror. Mas seu irmão estava ali mesmo. E o rosto de Arthur se via muito sombrio.
—Está ilesa? —perguntou.
Anna assentiu enquanto o examinava, detendo-se na mandíbula e as bochechas, arroxeadas pelos golpes de seu irmão.
—E você?
Arthur assentiu também como resposta.
Alan permanecia junto a sua irmã completamente rígido. Depois caminhou em direção de Arthur, e Anna ficou paralisada temendo o que estava a ponto de fazer. Deteve-se a poucos passos dele. Ambos os homens ficaram olhando-se no silêncio da escuridão até que ao final Alan disse: —Parece ser que estou em dívida contigo, não uma, a não ser duas vezes. —Arthur ficou impassível e logo encolheu os ombros levemente — Eu não gosto de ver minha irmã zangada —acrescentou Alan.
Anna assumiu que aquilo era uma desculpa.
—A mim tampouco - disse Arthur.
Alan o examinou por um momento e depois assentiu como se tivesse chegado a algum tipo de decisão.
—Lutastes bem - disse mudando o tema, mas não a intensidade de seu escrutínio.
Ao que parecia não era ela quão única tinha advertido a melhora de suas habilidades.
—O ardor da batalha - explicou Arthur.
Esteve a ponto de mencionar sua mudança de mão, mas algo a deteve. Se seu irmão também percebeu disso, não o desvelou. Mas seguia observando-o com atenção.
—Sim, há alguns homens que funciona assim. —Anna não pôde saber pelo tom de sua voz se Alan acreditava realmente a explicação de Arthur. Ao ver que este não respondia, acrescentou—: Os rebeldes estão mais bem treinados do que pensava.
—Não eram rebeldes qualquer, irmão - disse Anna.
Ambos a olharam, mas foi Alan quem fez a pergunta.
—A que te refere?
—Acredito que um deles era parte da Guarda fantasma de Bruce, mas pode ser que não fosse o único.
Anna explicou a similitude de vestimenta com o homem que dirigia o ataque do ano anterior à igreja. Alan cofiou a barba.
—Tem sentido. Acredito que poderia estar certa.
—Há mais. Não posso estar segura, mas acredito que reconheci a um deles. O das duas espadas.
—O que? —Ambos os homens reagiram. Seu irmão com entusiasmo e Arthur com… algo diferente a isso.
—Nosso tio, que era nosso tio.
Alan amaldiçoou.
—MacRuairi?
Anna assentiu. O rosto do Alan adotou um gesto severo.
—O nosso pai não gostará nada. —Anna não sabia de onde provinha a inimizade de seu pai com o que fosse seu tio político, mas sim que o ódio corria furiosamente por ambas as partes. Alan soltou uma gargalhada — Embora talvez devesse. Que Bruce fique em seu bando com esse filho de cadela oportunista e traiçoeiro. Lachlan MacRuairi somente professa lealdade a si mesmo. Se for esse o tipo de homem que recrutou para sua tropa de fantasmas, não temos nada do que nos preocupar.
Arthur permanecia em um estranho silêncio. Anna tinha vontade de lhe perguntar a respeito do ocorrido entre o que acreditava seu tio e ele, mas, do mesmo modo que anteriormente, algo a fez conter-se. Em vez disso perguntou: —O que é o que o fez fugir?
Seu irmão ficou circunspeto.
—Não estou seguro. Tinha a cabeça tonta. Não vi virtualmente nada.
—Seus homens fizeram aparição —explicou Arthur — Estavam em minoria numérica. —Não tinha parecido assim, mas estava muito pendente de seu irmão para emprestar atenção ao resto da batalha — Deveriam voltar para acampamento —disse.
—Sim —concedeu Alan — Um de meus homens te levará, Anna. Nós temos que nos encarregar de…
«Os mortos», completou ela mesma.
O horror do ataque, o horror daquilo ao que tinham escapado por pouco, golpeou-a então com toda sua força. As comportas se abriram e emergiram todas as emoções que estivera contendo atrás delas, ameaçando transbordando em muitas lágrimas. Voltou-se, advertindo que Arthur se pôs a seu lado. Este, alheio à presença do Alan, esticou o braço para lhe pôr depois da orelha uma mecha de cabelo rebelde. Seus dedos passaram roçando a bochecha e se detiveram ali. A ternura que havia nesse gesto fez que a Anna saltasse em lágrimas. Ergueu o olhar para ele. Advertiu o rosto de preocupação atrás de sua expressão séria. Sua sólida presença, sua força a desarmavam completamente. Se tomasse entre seus braços se romperia em pedaços. Arthur, que adivinhava que isso poderia ocorrer, não o fez.
—Tudo sairá bem —disse com delicadeza — Faça o que diz seu irmão.
—Mas…
Cortou seus protestos com uma negação da cabeça e expressão firme. Deveu adivinhar que ela tinha perguntas que fazer.
—Agora não - disse olhando em direção aos caídos — Depois.
Anna manteve os olhos no rosto de Arthur, procurando não seguir a direção de seu olhar. Já havia visto suficiente sangue para o resto de seus dias. As lembranças dessa noite a perseguiriam. Era uma reação compreensível. Anna era uma mulher e não alguém acostumado ao sangue e ao furor do campo de batalha. Arthur, entretanto, sim estava. Ou ao menos deveria estar. Mas havia algo em sua expressão, na tensão de sua mandíbula, a brancura da boca, a crueldade de seus olhos, que indicava que aquilo lhe afetava profundamente. Anna seguia os passos dos dois homens de seu irmão que a precediam com a suspeita de que ela não seria a única a que perseguiriam as lembranças daquela noite. A questão era por que.
Arthur não pôde conciliar o sonho. Quase esperava que MacRuairi se deslizasse na escuridão e lhe rachasse a garganta ou cravasse uma adaga nas costas pelo que tinha acontecido. Não seria a primeira vez. Não tinha ganhado o apelido de Víbora unicamente por sua venenosa personalidade, mas também por seu ataque silencioso e mortífero. Entretanto, Arthur não podia culpá-lo.
Tal e como tinha feito quase toda a noite, olhava o monte de corpos que tinham deixado apinhados a um lado da clareira, postos ali para que os «atacantes» os recolhessem. Nove homens de Bruce assassinados. Mais da metade pela ponta de sua espada. Equivocou-se. Muito. Em muitos aspectos para poder contá-los. Suficiente mal era que seus sentidos tivessem falhado, que não tivesse advertido os sinais do ataque, mas, além disso, parecia ter esquecido de que lado estava. Levava tanto tempo entrincheirado em campo inimigo que começava a acreditar em suas próprias mentiras.
«Cristo.» Fechou os olhos em uma tentativa de aplacar seus pensamentos. Viu-se obrigado a matar a seus próprios homens antes, mas nunca desse modo. Aquilo não era simplesmente defender-se. Tornou-se um louco fazendo. Estava tão concentrado em proteger Anna e matar a qualquer que supusera uma ameaça para ela que não tinha reparado em nada mais que isso. Nem sequer se deteve quando percebeu o que ocorria. Tinha salvado a vida do MacDougall em troca de um de seus compatriotas. Não podia tirar da cabeça o rosto que tinha posto MacRuairi quando Arthur atravessou ao homem que estava a ponto de acabar com o MacDougall. Pouco importava que sua intenção não fosse matá-lo. Não teria que ter intervindo. O pranto dilacerador de Anna não era desculpa, ao menos não uma desculpa que importasse para os de sua irmandade.
Levantou-se de seu solitário posto junto à árvore quando começaram a vislumbrar os primeiros raios do amanhecer através da floresta. Não acudiriam. Nem MacRuairi, nem tampouco Gordon, MacGregor e MacKay, a menos que tivesse errado ao identificar aos outros três membros dos Guardiões das Highlands quando se batiam em retirada. Tampouco esperava que o fizessem, embora gostasse de ter a oportunidade de explicar-se ante eles. Não se arriscariam de novo a revelar a identidade de Arthur. Para isso bastava a si mesmo.
Era consciente do perto que estivera de arruinar sua cobertura e de pôr toda sua missão em perigo. Anna, tal e como provavam suas perguntas, era muito observadora, inclusive sendo presa do pânico. E não era a única. Também Alan suspeitava da súbita melhora de suas habilidades como combatente e de quão rápido tinham fugido os atacantes. No momento os tinha contentado, mas sabia que ela tinha mais pergunta e não se atrevia tão sequer a pensar o que mais teria advertido.
Reconhecer ao MacRuairi já era mal por si só, mas relacioná-lo com os Guardiões das Highlands era um completo desastre. Manter suas identidades em segredo não era só um aplique à mística e ao medo que rodeavam a aquela guarda «fantasma», mas sim também ajudava a mantê-los a salvo. Se seus inimigos tinham conhecimento de suas identidades, além de pôr preço a suas cabeças, temia a segurança de suas famílias. Essa era a razão pela que tinham decidido usar nomes de guerra quando estavam em uma missão.
Quando Bruce se inteirasse de que tinham desmascarado ao MacRuairi, teria graves conseqüências. Não teria que ter ocorrido, maldita seja. A raiva e a culpa invadiam seu interior sem piedade. Arthur teria pressentido o ataque se não tivesse tão envolto com Anna e deixar-se dominar pela emoção. Aqueles homens não estariam mortos e tampouco teria posto a ela em perigo. Deus, poderiam tê-la matado. E tudo por não ser capaz de controlar suas emoções e implicar-se muito.
Voltou para acampamento justo no momento em que começavam a despertar os homens que não estavam de guarda. Olhou para a tenda de Anna e viu que as portinholas forradas de linho permaneciam fechadas. «Bem. Que durma.» Merecia. Tinha ido vê-la com freqüência no transcurso da noite para assegurar-se de que estava bem. Sabia o muito que a tinha afetado o ataque, mas combatia com seus próprios demônios, de modo que por mais que fosse ele quem devia fazer, não estava em condições de consolá-la. Não obstante, uma vez que teve retornado de encarregar-se dos cavalos, viu a portinhola aberta. Ao inspecionar o acampamento e não encontrá-la ficou circunspeto. Mas pouco depois teve oportunidade de espiá-la enquanto falava com seu irmão, que estava ocupado com alguns de seus homens. A exasperação que refletia seu semblante era tão corrente que suspirou aliviado, até sem querer reconhecer quanto se preocupou.
Quando seu olhar reparou nele, Anna titubeou, mas em seguida começou a avançar pelo terreno semeado de musgo e folhas em sua direção. Arthur percebeu de que levava um pedaço de pano nas mãos. Deteve-se frente a ele, inclinando seu pálido rosto para olhá-lo. Arthur sentiu uma angústia no peito. Ao que parecia, o sono também fora esquivo.
—Já que a regra que pusestes e meu irmão está ocupado, terá que me acompanhar.
Arthur a olhou de modo inquisitivo.
—Não me fizeram prometer que não abandonaria o campo sem sua companhia ou a de meu irmão?
Franziu o cenho até converter-se no primeiro sorriso que tinham parecido em anos.
—Sim.
—Preciso ir ao córrego me lavar.
O córrego ficava perfeitamente à vista do acampamento, mas Arthur não discutiu ao conscientizar de quanto a teria afetado o ataque. Fez uma reverência zombadora com um gesto exagerado da mão.
—Depois de ti.
Anna não parecia ter muita vontade de falar, algo que vinha a calhar. Esperou junto a uma árvore, fazendo como que não olhava, enquanto ela se encarregava de suas abluções matinais. Depois de arrumar o cabelo com um pente úmido e lavar os dentes com pós de um frasco que esfregou sobre um pequeno pedaço de tecido branco, mergulhou outro trapo branco na água. Tinha levado com ela uma pastilha de sabão, a qual esfregou sobre o tecido para depois proceder a lavar o rosto, o colo, as mãos e os braços. Era uma das imagens mais sensuais que jamais tivesse presenciado.
Quando meteu o trapo entre os seios já não pôde mais. Voltou-se, furioso por que um pouco tão mundano pudesse o excitar. Mas com esse sol caindo entre as árvores, que se refletia em seus cabelos dourados e os regatos de água que se derramavam em cascata por seu rosto e seu colo a via formosa, doce e verdadeiramente cativante. Um raio de luz na escuridão. E tudo que Arthur podia pensar era o perto que estivera do céu e a vontade insensata que tinha de tocá-la de novo. Deus, é que não tinha aprendido nada do ocorrido na noite anterior? Concentrou-se no que lhes rodeava com uma intensidade quase exagerada, aguçando seus sentidos para algo que se saísse do ordinário. Entretanto voltou o olhar atrás. Anna tinha terminado e caminhava para ele com o sol a contraluz pelas costas. Arthur teve que conter a respiração. Mas isso não evitou que o apanhasse o subjugador aroma de sua doce e feminina fragrância: pele recém lavada com um toque de pétalas de rosa.
—O que acontece? —perguntou Anna.
—Nada - disse com tensão.
—Parece como se lhe doesse algo - disse olhando-o nos olhos — Lhe dói o rosto? —perguntou tomando o arroxeado queixo na mão. Cada um dos músculos de Arthur ficou em guarda ante o contato — Quebrou algo o idiota de meu irmão? —Jesus, que mãos mais suaves. Seus dedos aveludados acariciavam o duro contorno da tensa mandíbula de Arthur — Olhem quantos hematomas. Isso deve doer — acrescentou, levando o dedo até sua boca — Têm o lábio partido.
Sim, doía. Aquele gesto de sensualidade inocente fazia correr o sangue até a virilha de Arthur e a incendiava de calor. Teve que obrigar-se a não lhe chupar o dedo. Não tinha nem idéia do que estava fazendo. Nem do que estava custando resistir a tocá-la.
Anna o olhou com uma preocupação que se refletia em seus olhos.
—Dói muito?
—O rosto não. —Arthur lhe dirigiu um olhar lascivo que dizia exatamente onde estava a origem de sua dor. Parecia que fosse estalar.
As bochechas de Anna se ruborizaram levemente. Se por acaso aquilo não fosse suficiente, começou a mordiscar esse suave lábio inferior que tinha.
—Oh, não me dava conta de que…
—Deveríamos voltar. Seu irmão queria sair cedo.
Anna assentiu e Arthur teve a impressão de que lhe dava um calafrio.
—Não me entristecerá partir daqui.
Arthur não pôde conter-se. Tomou pelo queixo e cravou o olhar em seus grandes olhos azuis.
—Está bem?
Anna tentou sorrir, mas lhe tremeu a boca.
—Não, mas arrumarei isso.
Arthur lhe soltou o queixo e sua boca adotou um gesto severo.
—O que ocorreu a noite passada não voltará a repetir-se.
Os delicados arcos das sobrancelhas de Anna se franziram.
—Como pode estar tão seguro?
—Porque não permitirei.
Anna o examinou com o olhar e abriu os olhos de repente ao compreendê-lo.
—Por Deus bendito, por isso está zangado. Culpa-se do ocorrido. Mas isso é ridículo. Jamais poderia ter sabido que…
—Sim, sim deveria saber. Se não tivesse tão distraído, não teria ocorrido.
—Então a culpa é minha?
—É obvio que não.
—Não é perfeito, Arthur. Sois humano. Comete enganos. —Ele não respondeu. Tinha a mandíbula tão apertada que lhe doíam os dentes - é o que pensa? —perguntou Anna com ternura — Não falharam seus sentidos alguma vez antes?
«Uma vez», pensou Arthur, afastando a lembrança de sua memória.
—Temos que retornar.
Começou a afastar-se dela, mas Anna o agarrou pelo braço para detê-lo.
—Não ides contar isso?
—Não há nada que contar.
—Tem algo que ver com seu pai? —ficou olhando-a, aniquilado. Como demônios tinha chegado a suspeitar? Anna advertiu sua surpresa — Quando falou de sua morte, deu-me a sensação de que não contava tudo.
Não tinha contado nem a metade do que aconteceu. Como por exemplo a participação do pai de Anna na tergiversação dos fatos. Anna esperava uma resposta. Ele não era muito dado a falar sobre seu passado, mas a expressão do rosto dela disse que aquilo lhe parecia algo muito importante.
—Não há muito que contar. Tratava-se de minha primeira batalha. Meu pai me levou com eles para me pôr a prova. Estava tão preocupado por lhe impressionar que não detectei os sinais do ataque. —Mas isso não era a pior parte, pensou Arthur — Vi como morria.
O rosto de Anna se encheu de comiseração.
—Deus, sinto muito. Deve ter sido horrível. Mas não era mais que um menino. Não podia fazer nada para ajudar.
—Teria que o ter avisado. —Se não estivesse tão afetado, tão assustado, teria visto os sinais, refletiu Arthur. Então, igual à noite anterior, a emoção se havia interposto em seu caminho — Estava distraído.
Mal teve tempo de franzir o sobrecenho antes que os olhos de Anna se iluminassem repentinamente de compreensão.
—Amava-o.
Arthur encolheu os ombros, incomodado com o tema.
—Isso não serve de muito.
—Inclusive Aquiles tinha um ponto débil, Arthur. —Ele a olhou com cara de estar admirado. Do que estava falando? — É difícil manter-se afastado e à expectativa com as pessoas às que alguém quer —disse Anna lhe oferecendo um sorriso de simpatia — Não podem te culpar por amar às pessoas. —Mas fazia. Do que servia suas tão apregoadas habilidades se não podia proteger a aqueles que amava? — Obrigado por me contar isso — Por que voltava a sentir que a tinha deixado ver muito de si?
—Não desejava que te preocupasse pensando em outro ataque surpresa.
—Não me preocupo —disse Anna — Confio em você.
Arthur sentiu uns ardores no peito que o consumiam por dentro. Queria a advertir que não fizesse, lhe dizer que não merecia, que o único que faria seria a machucar, que ela dava seu coração com muita facilidade, com os olhos fechados. Mas em vez disso assentiu e puseram rumo para o acampamento. Arthur subiu a costa com ela, e quando estiveram nas imediações, Anna o olhou de soslaio.
—Pareceu como se meu tio o reconhecesse.
A observação o colheu com a guarda completamente baixa. Algo para o qual parecia ter um talento especial. Arthur deu um passo um tanto vacilante. Não muito, mas temia que se desse conta.
—Está segura de que era seu tio? Não via bem. Eu estava muito mais perto e não pude reconhecer aquele rosto oculta depois do nasal.
Anna enrugou o nariz, um movimento adorável que chocava profundamente com a ameaça que representava para ele.
—Faz alguns anos que não o vejo, mas estou bastante segura de que era ele. Seus olhos são inesquecíveis — disse com um calafrio. Se tentava distrair de sua pergunta, não ia funcionar — Mas pareceu o reconhecer.
—Ah, sim? —disse Arthur encolhendo os ombros — Pode ser que nos tenhamos cruzado alguma vez.
Ela ficou um momento sem dizer uma palavra, mas infelizmente não pensava deixar o assunto correr.
—Então não o conhece?
Arthur lutou contra a ativação instintiva de seus alarmes.
—Pessoalmente não.
—Parecia aborrecido de lhe ver.
O rápido pulsar do pulso de Arthur contradizia sua calma exterior. Era perigosamente perceptiva e andava muito perto da verdade.
—Aborrecido? Por isso sei, Lachlan MacRuairi é um filho de…—disse, detendo-se ao recordar quem tinha por audiência — É um homem perverso com um caráter de cão. Provavelmente estava furioso por que matasse a tantos de seus homens.
Anna pareceu aceitar a explicação. Mas a seguinte pergunta lhe deixou claro que ainda não estava satisfeita.
—Por que se retiraram?
Arthur amaldiçoou para si. As vozes de alarme se acendiam com mais força.
—Como já vos disse, os homens de seu irmão chegaram até nós. Estavam em minoria.
Ficou circunspeta.
—Não me pareceu isso. Parecia que estavam ganhando.
Arthur se obrigou a forçar um sorriso irônico.
—Seu irmão estava em perigo —lhe recordou — Eu diria que estava distraída.
Anna ergueu o olhar para olhá-lo e lhe dedicou um meio sorriso.
—Pode ser que tenham razão. Estava concentrada em meu irmão. Ainda tenho que lhes agradecer o que fizeram. —Uma sombra sulcou seu rosto — Se não tivessem detido a esse homem…
—Não pensem mais nisso, Anna. Já passou.
Assentiu e voltou a olhar de relance.
—De todos os modos, agradeço-lhe. E também Alan o faz, apesar de que tenha uma estranha forma de demonstrá-lo.
MacDougall não ocultava seu interesse por eles. Arthur sentiu o peso de seu olhar durante todo o tempo. Ao encontrar-se com seus olhos, soube que a discussão a respeito do ocorrido no dia anterior ainda não tinha acabado.
—Tem direito a estar furioso, Anna. O que fiz esteve mau. Tudo que posso fazer é prometer que jamais voltará a acontecer.
A maneira em que sua respiração ficou sobressaltada foi como uma punhalada no peito. Parecia emocionada. Desconcertada. Como se esperasse algo diferente.
—Mas…
—Aguardam-nos — disse Arthur, e assinalou ao moço que preparava seus cavalos para que não seguisse falando. Não poderia suportar outra conversa como a do dia anterior — É hora de partir.
Essas palavras fossem dirigidas tanto a ela como a si mesmo. Ponto cego. Ponto débil. Não importa como o tivesse chamado. Seus sentimentos no que respeitava a Anna se converteram em um lastro. Tinha permitido que ela se aproximasse muito, e sua missão e sua coberta pendiam de um fio. A conta atrás tinha começado.
Capítulo 18
Dois dias sem acontecimentos depois, Anna atravessava as portas do castelo de Dunstaffnage ao lombo de seu cavalo. Um dos guardiães se adiantou, de modo que lhes esperavam. Pelo semblante de ira mal contida de seu pai advertiu que estava a par do fracasso de sua viagem. Anna sonhava desfrutando de uma noite de sonho reparador antes de confrontar as perguntas de seu senhor, mas sua tardia chegada não serve para atrasar o relatório. Alan e ela quase não tiveram tempo de lavar as mãos e fazer uma frugal refeição leve antes que os apresentassem nas dependências do senhor do castelo.
John de Lorn permanecia de pé em meio da sala, com as mãos à costas e os membros importantes de seu meinie atrás dele e ambos os lados. A expressão de duelo que todos compartilhavam sem exceção fez pensar a Anna que entrava em um túmulo funerário. Dado que nenhum deles tomou assento, ela e Alan tiveram que suportar o desconforto de estar de pé. Suas sensações não distavam muito das do menino ao que chamam para que responda de uma travessura atroz com resultados nefastos.
Apenas teve fechado a porta quando seu pai começou a falar. A atacar, em realidade.
—Ross rechaçou a oferta.
Não se tratava de uma pergunta. Ao notar o tom de acusação de sua voz, Anna teve vontade de explicar-se, mas não tocava a ela fazer.
Alan respondeu por ambos.
—Sim. A resposta do Ross a uma aliança foi quão mesma na ocasião anterior. Disse que Bruce partiria também contra ele e que não podia prescindir de nenhum de seus homens.
—Mas que passou com o compromisso? Não lhe fez mudar de idéia?
Anna sentiu o peso dos olhares de todos os homens sobre ela e suas bochechas se ruborizaram. Mantinha o olhar baixo para que seu pai não visse quão envergonhada estava. Independentemente de que supusera alguma mudança ou não, tinha fracassado na tarefa que lhe tinha encomendado.
—Não há compromisso —explicou Alan — Estiveram de acordo em que não encaixam um com o outro.
Anna desejava que ninguém mais detectasse como Alan acabava de medir suas palavras.
—Quer dizer que não te perdoou por rechaçá-lo na primeira vez? —perguntou o pai a Anna diretamente.
Ela se aventurou a olhá-lo e a contemplar seu rosto de raiva. O coração lhe encolheu. Não era bom para ele que se zangasse tanto. Quis lhe dizer algo a esse respeito, mas sabia que se lhe tratasse como a um inválido ante seus homens, ficaria mais furioso ainda. Não sabia o que dizer. Não queria mentir, mas tampouco podia contar toda a verdade.
—Eu… — disse, tropeçando com suas próprias palavras.
—Bem — repôs seu pai com impaciência—, acreditava que foste o persuadir.
As bochechas ardiam da vergonha.
—Tentei, mas temo que ele… percebeu que meus sentimentos estavam comprometidos com outra causa.
—O que quer dizer isso de «comprometidos com outra causa»? —Seu pai entreabriu os olhos, que a atravessavam como flechas. Sabia que havia algo que não lhe estava contando — Campbell —disse impassível em resposta a sua própria pergunta. Amaldiçoou para si com um olhar implacável — E como poderia perceber isso? O que fez?
Jamais tinha visto seu pai tão furioso com ela. Era a primeira vez que sua raiva a atemorizava. Que o merecesse não era algo que aplacasse seus devastadores efeitos. O que poderia ter dito? Felizmente, Alan teve piedade dela.
—O compromisso não teria mudado nada. Ross já tinha seus planos feitos. Temo que ainda não ouvistes a pior parte. —Anna temia o pior em relação à reação de seu pai. Tinha medo de que aquilo o levasse a um novo ataque de apoplexia. Ao que parecia, Alan decidiu que era melhor não dosar a verdade, a não ser soltar a de uma só e desagradável vez — Ross está pensando em render-se.
Seu pai não disse uma palavra. Mas Anna contemplava como sua fúria crescia como uma crista de espuma no horizonte que se dirigisse para a costa a toda velocidade até converter-se em uma temível onda que ameaçava rompendo. John de Lorn apertava os punhos com força, seu rosto estava vermelho como um tomate, as veias lhe palpitavam nas sobrancelhas e seus olhos ardiam como se fossem as portas do inferno. Anna deu um passo em sua direção, mas Alan a deteve com uma mão e negou com a cabeça em sinal de advertência.
Quando seu pai acabou por bem pronunciar-se foi para proferir uma enxurrada de insultos que teriam posto a sua mãe de joelhos durante semanas inteiras em penitencia por sua alma blasfema. Perambulou, iracundo pela pequena câmara como um leão enjaulado. Inclusive seus homens lhe deixaram espaço suficiente para que desse rédea solta a sua irritação.
—Ross é um tolo do demônio! —explorou com fúria — Bruce jamais lhe perdoará o que fez às mulheres. Pelo amor de Deus! Pendurou em jaulas a sua irmã e à condessa. Se se render, estará assinando sua própria ordem de execução. —Deteve suas palavras o justo para dar um murro sobre a mesa — Como pode pensar em prostrar-se ante esse assassino traiçoeiro? Cortou a meu parente em pedaços diante de um altar.
Anna não se atreveu a assinalar que a santidade da igreja não era algo que parecesse importar muito ao Ross. Depois de tudo, ele mesmo violou o santuário para capturar às mulheres de Bruce.
—O povo está com Bruce —disse Alan para acalmar a seu pai — despertou um ardor patriótico no campo que não se via desde Wallace. Acreditam que é um salvador, o segundo advento do rei Artur, que os liberou do jugo da tirania inglesa. Ross pensa em sua gente e no futuro de seu clã. Pensa no que é melhor para a Escócia.
Anna tentou ocultar sua surpresa. Felizmente seu pai estava muito furioso para ouvir o que Alan havia dito realmente. Mas embora seu pai não o tivesse feito, ela sim tinha ouvido o tom de reprimenda na voz de seu irmão. Pensaria Alan igual a Ross? Acreditava também ele que Bruce era a melhor opção para Escócia? Por Deus bendito, o que aconteceria seu pai se equivocava?
Anna não podia acreditar que fosse ela quem albergasse esse pensamento desleal. Mas os MacDougall, em seus dias ferventes patriotas, tinham dado seu apoio aos ingleses para não ver Bruce sentar-se no trono. Era isso o melhor para Escócia?
—Morrerei antes de ver esse assassino no trono — disse seu pai, consumida já a raiva de seus olhos, frios como o gelo.
Anna sentiu certo alívio para ouvir os murmúrios unânimes de seus homens que concordavam vigorosamente com essa idéia. Seu pai sabia o que fazia. Era um dos homens mais poderosos de Escócia. Tinha suas falhas, claro, que grande homem não os tinha? Mas ele faria que superassem aquilo.
Uma vez informado sobre a parte mais importante da viagem, Alan procedeu a lhe contar a seu pai o resto, dando conta brevemente do problema acontecido pelo caminho. Seu pai escutava, cada vez mais preocupado, empalidecendo visivelmente para ouvir como seu herdeiro escapava por pouco à morte, duas vezes. Entreabriu os olhos enviesadamente quando Alan o informou das suspeitas de Anna a respeito da implicação do MacRuairi e depois transbordou de emoção ao conscientizar-se da conexão que tinha com a guarda fantasma de Bruce.
—Bom trabalho — disse a Anna, quem sorriu radiantemente pela adulação.
Alan deu a versão de Arthur de sua retirada, mas seu pai também pareceu ter problemas em compreendê-lo.
Ao final, adiantou-se e a agarrou da mão.
—Não sofreste nenhum dano, filha?
Anna negou com a cabeça e ele a acolheu entre seus grandes e robustos braços, esquecendo aparentemente sua ira. Por um momento, Anna voltou a sentir-se como uma menina e a necessidade de chorar todas suas penas sobre sua túnica de finos bordados se apoderou dela. Arthur seguia inimizado com ela. O ataque não tinha mudado nada. Por acaso o tinha piorado. Tinha a esperança de que depois de seu bate-papo ele tivesse mudado de parecer. Arthur sentia algo por ela, mas havia um motivo que o fazia conter-se. Esses dois dias de caminho não lhe tinham dado novas perspectivas. Anna não podia livrar-se da sensação de que havia algo estranho no ataque. E tampouco podia tirar da cabeça a inquietação que lhe provocava suspeitar que ele ocultava algo.
Seu pai se voltou para trás para olhá-la.
—Está cansada. Já ouvirei o resto da história pela manhã.
Assentiu, aliviada de que o pior já tivesse passado. Ao menos isso é o que pensava.
—E, Alan — disse John de Lorn a seu filho—, faz que Campbell e seu irmão se reúnam conosco. Parece que sir Arthur tem que responder por muitas coisas — acrescentou dirigindo um olhar a Anna que a fez estremecer da cabeça aos pés.
Arthur estava preparado para a citação quando esta chegou. Não esperava, entretanto, que se incluísse nela a seu irmão.
—Que diabos tem feito? —perguntou Dugald com suspeita à medida que atravessavam o barmkin em direção à torre da comemoração — por que tem Lorn tanta vontade de ver-te?
Arthur e seu irmão subiram a escada compassando sua marcha com o tinido de seus peitilhos e suas armas.
—Suponho que tem perguntas que fazer em relação aos homens que nos atacaram.
—E o que sabe você deles?
—Nada — disse Arthur ao mesmo tempo que abria a enorme porta de madeira que dava entrada à torre.
—O que tenho eu que ver em tudo isto?
Arthur olhou ao Dugald. A expressão de seu irmão era um reflexo da impaciência que ambos sentiam. Ao Dugald gostava tão pouco como a ele que o chamassem a presença de Lorn. Apesar de que seu irmão e ele lutassem em diferentes lados da guerra, ainda podiam coincidir em seu ódio para o John de Lorn.
—Que me crucifiquem se sei — disse Arthur incomodado por essa incerteza. Um guarda bateu na porta para anunciar sua chegada. Quando lhes fizeram passar, voltou-se e acrescentou—: Mas estamos a ponto de averiguá-lo.
Examinou com rapidez aos ocupantes da sala: Lorn, sentado como um rei em uma poltrona que melhor parecia um trono com uma expressão impossível de discernir; Alan MacDougall de pé junto ao muro, com cara de não saber muito bem o que ocorria; e Anna sentada em um banco em frente ao fogo com aspecto de estar extremamente inquieta. À exceção do único guarda que os tinha admitido para deixá-los depois às ordens de Lorn, não havia nenhum outro membro presente de seu meinie.
Tratasse do que se tratasse, era um assunto pessoal. A pontada de inquietação que Arthur sentia se converteu em uma punhalada em toda regra. Lorn, imperioso filho de cadela, não os convidou a sentar-se, de modo que permaneceram de pé frente a ele. O ódio cego que atendia a alma de Arthur cada vez que se encontrava rosto o rosto com o homem que tinha assassinado seu pai não diminuía. Contraiu suas feições de modo que não revelassem emoção alguma, mas o fogo que queimava seu peito e a necessidade de afundar uma adaga no negro coração de Lorn eram algo mais difícil de reprimir.
—Desejava nos ver, milorde — disse Dugald com um tom que não mostrava deferência alguma.
Lorn tomou seu tempo em deixar a pluma a um lado e logo se recostou na poltrona para olhá-los. Tamborilou com os dedos sobre a mesa. Quando respondeu, não foi ao Dugald, a não ser a Arthur: —Ouvi que tiveram uma viagem cheia de peripécias.
Algo no tom de sua voz fez que soassem os sinos de alarme no mais profundo da cabeça de Arthur. Teve que controlar-se para não olhar a Anna. O que lhe teria contado?
—Sim —disse — Tivemos a sorte de escapar à primeira orda de velhacos, mas não à segunda. Fizemo-nos fugir bem a tempo.
Lorn o escrutinou com tal parada que lhe puseram todos os nervos de ponta.
—Isso eu ouvi. Meu filho não teve mais que louvores para suas habilidades na batalha. Conforme afirma, jamais viu nada igual. —Dugald se voltou bruscamente para Arthur com o rosto circunspeta — Tenho que admitir que me surpreendeu ouvir a descrição do enfrentamento —acrescentou Lorn com um sorriso. Mas seu olhar não tinha nada de divertido. Era frio e calculador — Me pergunto por que jamais antes tínhamos visto isso em você.
Lorn desviou seu olhar para o Dugald, avaliando sua reação. Infelizmente, a expressão do irmão de Arthur não fez a não ser admirar mais.
—Sir Alan é mais que generoso com suas adulações, meu senhor.
Alan deu um passo à frente, em claro desacordo com a forma de perguntar de seu pai.
—Sir Arthur foi chave na hora de derrotar aos rebeldes, pai, e ao salvar minha vida. Temos uma dívida de gratidão com ele.
—Sim, é obvio —disse Lorn — Estou muito agradecido. Mas me pergunto… — Fez uma pausa e tamborilou com um dedo sobre a mesa— pergunto-me se poderiam jogar um pouco de luz sobre o resto do ataque.
—É obvio — disse Arthur. Mas não gostava absolutamente dos roteiros que tomava aquele assunto. Lorn era um filho de cadela arrevesado. Gostava de ter aos o rodeavam em um punho. Acaso suspeitava algo? Quem podia saber.
—Minha filha acredita ter identificado a quem fosse meu irmão político, Lachlan MacRuairi, como um desses rufiões, e também pensa que pode ser um dos guerreiros secretos dos que tanto ouvimos falar.
—Cruzei-me com esse homem uma ou duas vezes, mas não o conheço tão bem para afirmar nenhuma coisa nem a outra. Se lady Anna tiver dúvidas, temo que eu não posso ajudar a resolver.
Arthur caminhava pela corda frouxa. Uma negação terminante poderia chamar suspeita, mas queria manter a semente da dúvida plantada na mente de Lorn, cujos traços se endureceram, fazendo patente o ódio que professava pelo que fosse seu cunhado.
—MacRuairi é uma serpente traiçoeira, um assassino desumano que venderia a sua mãe por uma peça de prata, mas há uma coisa que jamais faria, e é se dar por vencido. Jamais o vi retirar-se em uma batalha.
Bàs roimh Gèill. «Morrer antes que render-se» formava parte do credo dos Guardiões das Highlands, mas parecia funesto que essa frase desse ao Lorn algo no que fincar o dente. A corda frouxa pela que Arthur caminhava-se fazia mais instável por momentos.
Deu de ombros sem comprometer-se.
—Então é possível que não fosse ele?
Lorn voltou a dirigir o olhar a sua filha, quem o olhou nos olhos antes de responder:
—Não posso estar segura, pai. Estava muito escuro. Somente percebi seu rosto com claridade por um instante… e fazia anos que não o via.
Arthur sentiu uma opressão no peito. Tentava protegê-lo. Teria notado Lorn também disso?
—Havia algo que quisessem de mim, meu senhor? —perguntou Dugald cada vez mais impaciente.
Em outras palavras: que demônios fazia ele ali? Uma pergunta que também interessava Arthur.
—Estou chegando a esse ponto.
Lorn voltou a tamborilar sobre a mesa, e Arthur começou a imaginar-se que agarrava sua maça de guerra e punha fim a essa aporrinhação de uma vez por todas.
—Não estou seguro de que firmaram tanto do propósito que tinha a viagem ao norte para ver o Ross — disse ao Dugald — Era pra retomar as conversações para o compromisso de matrimônio entre minha filha e sir Hugh Ross, com a esperança de que uma aliança entre nós animaria ao conde a enviar tropas de apoio na guerra contra Bruce. Infelizmente, as coisas não fossem como tínhamos planejado.
Dugald fulminou de relance Arthur com o olhar.
—Ah, não?
—Não. —O olhar de Lorn voltou a recair sobre ele — Ao que parecia, sir Hugh percebeu que os afetos de minha filha estavam comprometidos com outra causa. Sabes algo disso, sir Arthur?
Arthur viu pela extremidade do olho como Anna empalidecia e apertava as mãos com força sobre seu regaço. Que diabos havia dito? Os dentes lhe chiavam. Sentia-se esquecido no aposento e sem espaço para mover-se.
—Sim.
—Pensei que talvez fosse assim —disse Lorn. O brilho de raiva de seu olhar disse a Arthur que provavelmente adivinhava parte do acontecido. Esperou tensos, preparando-se para o pior. O nó cada vez se apertava mais. Lorn se voltou para o Dugald. As razões pelas quais seu irmão estava ali tinham ficado claras — Diante dos dados e recentes acontecimentos, eu gostaria de propor uma aliança diferente. Uma que faria mais sólidos os laços entre nossas famílias e mostraria minha gratidão para sir Arthur pelo serviço que tem feito a meu filho, assim como também asseguraria a felicidade de minha filha. —Cada um dos músculos do corpo de Arthur ficou tensos enquanto esperava o que estava por chegar. Perguntava-se se ela teria algo ver com isso, mas os olhos de Anna não mostravam mais que surpresa quando seu pai disse—: Eu gostaria de propor um compromisso de bodas entre sir Arthur e minha filha.
Dugald soltou uma gargalhada.
—Um compromisso?
A boca de Lorn adotou um gesto severo.
—Acredito que isso é o que disse. Podemos falar sobre os detalhes mais tarde, mas tenham por seguro que o dote de minha filha é mais que generoso. Inclui certo castelo que acredito pode ser de interesse para ti.
Tanto Arthur como seu irmão ficaram de pedra.
Foi Dugald quem acabou por perguntar:
—Innis Chonnel?
Um sorriso retorcido se desenhou na boca de Lorn.
—Sim.
Arthur não podia acreditar. A fortaleza dos Campbell do lago Awe que tinham sido arrebatado a seu clã fazia anos, devolvida por casar-se com a mulher que queria mais que a tudo no mundo. Um autêntico pacto com o diabo. Por um momento, ficou duvidando, muito mais tentado do que gostaria de admitir. Mudar de bando era algo habitual naquela guerra. Mas ele não podia fazer. Inclusive no caso de que condescendesse a aliar-se com o homem que tinha assassinado a seu pai, havia muitas pessoas que contava com ele: Neil, o rei Robert, MacLeod e o resto dos membros dos Guardiões das Highlands. E tampouco podia ignorar sua própria consciência. Acreditava no que estavam fazendo.
A devolução do castelo dos Campbell, embora fosse ao irmão mais novo, bastou para convencer ao Dugald, que se voltou para Arthur.
—Eu não tenho objeção. Arthur?
Todos os olhos se voltaram para ele, mas somente era consciente de dois pares: os de Anna, que lhe observavam com o coração neles, e os de Lorn, que o contemplavam com a suspeita refletida.
Até no caso de que não tivesse intenção de levar a cabo, Arthur sabia que devia aceitá-lo para dissipar todo receio. Aquele compromisso era uma prova de lealdade. Tratava-se tanto de assegurar a felicidade de Anna como de provar sua aliança. Sua consciência liberava uma batalha com sua noção do dever, mas não durou muito. Não tinha outra opção. As espadas estavam em alto. Não podia pensar em quanto o odiaria Anna quando averiguasse a verdade.
—Será uma honra tomar lady Anna como esposa.
Talvez o pior fosse que, em realidade, dizia a sério.
Capítulo 19
Anna tinha tudo o que queria. Por que se sentia então tão miserável? Tinha passado uma semana desde dia em que seu pai anunciasse por surpresa o compromisso em sua câmara. Uma vez reposta da comoção, casar-se com o homem que amava… era algo que a deixava em um estado de euforia. Nada poderia fazê-la mais feliz. Exceto, talvez, a notícia de que Bruce decidisse que a coroa não lhe pertencia e desaparecesse nas ilhas Ocidentais como tinha feito anteriormente. Mas faltava muito ainda para que se cumprisse esse sonho.
Enquanto ela estava mais que entusiasmada, Arthur dava a impressão de ter que suportar uma pesada carga. Desde aquele dia se comportava com uma correção irrepreensível, cortês durante as refeições e também nas poucas ocasiões em que se cruzavam os caminhos de ambos. Inclusive permitia que Escudeiro o seguisse em qualquer parte sem queixar-se. A simples vista era o perfeito prometido, mas esse era o problema, que somente era a simples vista. Sua formalidade, esse distanciamento progressivo, reduzia sua felicidade ao mínimo. Cada vez que dizia: «Tivestes bom dia hoje, lady Anna?» ou: «Gostaria de outra taça de vinho, lady Anna?», provocava uma ferida diminuta em seu coração. Não podia entendê-lo. Segundo ele mesmo admitia, lhe importava. Então por que não se dava conta de que aquilo seria perfeito para ambos?
À medida que passavam os dias custava mais convencer-se de que isso era o que ele queria. Afastava-se dela por muitos momentos. Algo lhe pesava. Estava uma semana mais perto do final da trégua, já que os idos de março se aproximavam com presteza, mas sua crescente ansiedade se deixava ver em todo momento e não parecia que fosse por causa da batalha em floração. Gostaria que confiasse nela, mas rechaçava qualquer intento de diálogo, embora tampouco contavam com muitas oportunidades. Além dos breves intercâmbios das refeições, a única vez que tinha procurado sua companhia fosse poucos dias atrás, quando insistiu em acompanhá-la ao priorado do Ardchattan. Não esperava nenhuma missiva, assim não tinha nada que lhe ocultar. Talvez seu pai não pusesse já objeção alguma a que contasse a Arthur qual era seu papel na transmissão das mensagens. O compromisso parecia eliminar todas as suspeitas que ficassem em relação aos Campbell. À medida que se aproximava a guerra e que se intensificavam as preparações para a batalha, os Campbell passavam mais tempo junto a John de Lorn e de Alan, algo que Anna queria identificar como um sinal do degelo dessa geleira que significavam as velhas rixas.
Suspirou e passeou o olhar ao redor do aposento, enquanto sua criada terminava de lhe arrumar o cabelo. Era o sexto dia de agosto, um dia mais perto do fim da trégua. Ao olhar pela janela de sua câmara na torre viu um birlinn deitando a baía, o maior porto de ancoragem do castelo. Era um acontecimento habitual, algo que não teria chamado sua atenção a não ser pela rapidez a que se deslocava. O reluzente navio de madeira mal tinha chegado à borda quando seus ocupantes saltaram pela amurada e correram para as portas da fortaleza. O coração lhe deu um tombo, consciente de que algo estava passando. Sem incomodar em por o véu, baixou a escada da torre correndo e se apresentou no pátio de armas ao mesmo tempo que seu pai recebia ao contingente de homens do birlinn: os MacNab.
—Que novas trazem? —perguntou seu pai.
O rosto do capitão dos MacNab era desolador.
—O rei Hood, milorde. Está a caminho.
Anna ficou sem fôlego, seu sangue congelado pelo medo. Chegava o momento, o dia que tanto tinha temido e desejado ao mesmo tempo. A batalha que poderia significar o fim da guerra.
O castelo era um tumulto. Os guerreiros, agrupados, pareciam comovidos pela excitação, ansiosos pela oportunidade de destruir ao inimigo. Não obstante, as poucas mulheres que rondavam por ali tinham umas reações muito diferentes: preocupação e medo, exatamente o mesmo que sentia Anna. Seu olhar procurou Arthur de maneira instintiva. Também lhe afetavam as notícias. Observava-a com uma intensidade ardente que não via nele desde o ataque da floresta. Ficaram-se olhando uns instantes até que Arthur voltou o olhar para os MacNab.
O pai de Anna fez passar aos recém chegados ao grande salão. Anna os seguiu, ansiosa por saber tanto como pudesse. Infelizmente, os MacNab não tinham muita mais informação. Um de seus rastreadores lhes alertou de que Bruce tinha saído do castelo do conde de Garioch em Inverurie com tropas de ao menos três mil homens e se dirigia para o oeste. Três mil homens contra os oitocentos de seu pai! Não obstante, não sabiam se tinham intenção de dirigir-se primeiro ao Ross ou ao Lorn.
Bruce não perdia tempo. Estaria preparado para atacar assim que expirasse a trégua. Por Deus bendito, aqueles bárbaros estariam chamando a suas portas para a semana próxima.
Sua mãe e suas irmãs se apressaram a baixar ao salão para ouvir a comoção. Ao encontrar-se com ela depois da multidão, perguntaram-se pelo que acontecia. Anna as pôs em dia rapidamente e viu seu próprio medo refletido na inquietação de seus rostos. Era um dia que todos esperavam, mas então quando começavam a dobrar os sinos.
—Tão logo? —disse sua mãe, presa do medo — Mas se apenas acaba de se recuperar.
—Não lhe acontecerá nada, mãe — repôs Anna, tentando convencer-se também a si mesmo.
Mas não era seu pai o único que preocupava a Anna. O que aconteceria…? Não, não podia pensar nisso. Arthur retornaria. Tudo estariam logo de volta. Não obstante, a incerteza não se desvanecia. A arbitrariedade da guerra, isso era precisamente o que Anna sempre tinha desejado evitar. Por que tinha que apaixonar-se por um cavalheiro?
A reunião durou um momento mais. Ao entrar no salão perdeu a pista de Arthur e seus irmãos, mas assim que o bate-papo derivou para uma missão de reconhecimento, viu-o adiantar-se para a mesa de cavalete do estrado no que seu pai estava sentado junto a alguns de seus homens e o capitão MacNab. Quando Anna adivinhou o que estava a ponto de fazer lhe gelou o coração. Quis chamá-lo, lhe dizer que não o fizesse, mas era consciente de que isso era impossível, e Arthur fez justamente o que ela pensava.
—Eu irei, milorde — disse.
John de Lorn olhou para ele e assentiu, obviamente agradecido de que se apresentasse como voluntário. Alan também se ofereceu a ir, mas seu pai se negou, alegando que o necessitariam no castelo. Ao final, decidiu-se que seu irmão Ewen lideraria o grupo de reconhecimento, que também incluía os irmãos de Arthur.
Não perderam tempo. Em pouco menos de uma hora já estavam reunidos no barmkin para partir. Anna ficou ali de pé junto a sua mãe, sentindo-se como se estivesse dando voltas em um redemoinho sem nada ao que agarrar-se. Observava com o coração em um punho como Arthur se preparava para a marcha. Este acabou de assegurar seus pertences ao cavalo, tomou as rédeas e se situou ao pé do animal, disposto a montar. A Anna deu um tombo o coração. Acaso pretendia partir sem lhe dizer adeus?
Se essa era sua intenção, deveu mudar de idéia. Deu as rédeas a um dos cavalariços e se voltou para dirigir-se para ela. Tinha a mandíbula tão tensa como os ombros, como se temesse enfrentar-se com algo desagradável. «Eu», pensou Anna, sentindo uma pontada no peito.
—Lady Anna — disse Arthur com uma leve inclinação da cabeça.
A mãe e as irmãs deram a volta sem muita sutileza protegendo-os quanto podiam do resto da multidão para lhes dar um pouco de privacidade. Mas Anna seguia sendo plenamente consciente de que não estavam sozinhos.
—Têm que partir?
Odiou a si mesma por perguntar, mas não pôde evitá-lo. Sabia que esse era seu trabalho, mas não queria que partisse. Sempre seria assim?
—Sim.
Houve uma pausa tão larga que pareceu definitiva.
—Quanto tempo estará fora?
Seus olhos brilharam de um modo estranho, mas o brilho desapareceu antes que Anna pudesse reconhecer sua origem.
—Depende do rápido que se aproxime o exército. Um par de dias, talvez mais.
Ela ficou olhando seu bonito rosto, tentando memorizar as duras linhas de seus traços, as cicatrizes, o estranho dourado ambarino de seus olhos.
—Tomará cuidado?
Era uma pergunta estúpida, mas tinha que fazer de todas formas. Um simulacro de sorriso apareceu nas comissuras da boca de Arthur.
—Sim.
Manteve-lhe o olhar durante um instante mais, como se também ele tentasse retê-la na memória. Ela nunca tinha visto tal expressão de desconsolo em seu rosto. Um calafrio de pavor percorreu sua nuca. «É a guerra — disse — Está centrado na batalha que tem diante de si.»
Arthur tomou sua mão e a levou aos lábios fazendo que a estampagem cálida de seus lábios irradiasse por toda sua pele.
—Adeus, lady Anna.
Algo no tom de sua voz lhe rasgou o coração. Quando ele se voltou para partir, Anna ficou com vontade desesperada para voltar a chamá-lo. «O tipo de homem que está sempre olhando para a porta…» Não. Convenceu a si mesma de que se comportava como uma parva. Não a estava abandonando. Simplesmente estaria fora uns dias. Mas por que lhe parecia que aquela despedida era para sempre?
Então, como se não pudesse conter-se, Arthur deu meia volta, agarrou-a pelo queixo e baixou a cabeça para beijá-la. Seus lábios acariciaram os de Anna em um suave e terno beijo que fez vibrar seu coração. Aquele beijo tinha sabor de nostalgia. A dor. E a arrependimento. Mas sobre todas as coisas, tinha sabor de despedida. Anna queria prolongá-lo, queria que durasse mais, mas antes que lhe desse tempo a reagir, o beijo tinha acabado. Arthur lhe soltou o queixo, manteve o olhar por um segundo agonizante e partiu. Não voltou a olhar atrás. Nenhuma só vez. Ela ficou olhando sua partida, aniquilada, sem saber muito bem o que tinha ocorrido. Permaneceu tocando os lábios em uma tentativa de apreender o calor e seu sabor por tanto tempo como fosse possível. Mas antes que o último dos homens saísse pelas portas do castelo esse calor já era história.
Arthur procurava uma saída e ao fim a tinha encontrado. A viagem de exploração em volta do Este lhe dava a oportunidade de fazer algo que meses atrás parecia impossível: retirar-se da missão. Tinha que fazer algo. Não podia ficar ali e deixar que a situação piorasse. Os dias seguintes a seu compromisso tinham sido insuportáveis. Fingir acabaria com ele. Anna estava tão feliz, tão encantada de casar-se com o homem que a trairia… Cada sorriso indeciso, cada olhar em busca de um consolo que ele não podia lhe oferecer, era como uma gota de ácido que remoia sua consciência. Não era capaz de fazer isso. Embora significasse sacrificar sua missão. O irônico era que não podia ter escolhido maneira mais efetiva de infiltrar-se nos MacDougall que um compromisso com a filha do senhor das terras. O compromisso, unido ao feito de salvar a vida de Alan, deu-lhe acesso ao centro nevrálgico do poder: o conselho de nobres. Dizia a si mesmo que não sacrificava sua missão. Fazia suficiente identificando às mulheres como as transmissoras de mensagens, passando informação sobre a preparação e efetivos do MacDougall e entregando um mapa do terreno, assim como evitando uma aliança com o Ross, embora isso não ocorresse exatamente da maneira em que o tinha planejado. Estavam nas vésperas da batalha. O rei Robert entenderia.
Tinham passado três dias de sua desastrosa partida e caía a madrugada. Nunca acreditou que lhe custaria tanto despedir-se dela. Mas partir de seu lado, sabendo que possivelmente não a veria de novo, fez-lhe perder toda determinação. Não deveria tê-la beijado, mas ao olhar seus olhos e ver esse rosto de medo e preocupação, não pôde resistir. Era consciente de que jamais voltaria a ter essa sensação de conexão absoluta e precisava desfrutar dela uma vez mais.
Arthur olhou a retaguarda para assegurar-se de que ninguém o tinha seguido e atou o cavalo a uma árvore. Encontrava-se a menos de dois quilômetros do lugar onde os homens de Bruce tinham acampado a noite anterior. Faria o resto do trajeto a pé. Era provável que a essa hora da madrugada os sentinelas disparassem contra tudo que se aproximasse do acampamento sem fazer perguntas e o cavalo o delataria. Seus sentidos se aguçavam à medida que se aproximava do acampamento do rei, antecipando-se a qualquer sinal que delatasse a presença da Guarda que o circundava. Arriscava-se muito chegando sem prévio aviso, mas não havia alternativa. Não tinha tido tempo de combinar um encontro ou enviar uma mensagem a guarda, e a partida de reconhecimento dos MacDougall se preparava para retornar ao castelo de Dunstaffnage ao dia seguinte com o relatório. Ofereceu-se voluntário para fazer patrulha de noite, consciente de que essa seria sua única oportunidade. Sabia que Chefe teria a um dos membros dos Guardiões das Highlands fazendo turno de vigilância, como cada noite, assim tentaria contatar primeiro com algum de seus companheiros.
De repente sentiu um comichão na nuca. Deteve-se o notar a estranha mudança de ar que percebia cada vez que alguém se aproximava. Escondeu-se entre a escuridão da noite e esperou, sabendo de que antes de ver quem se aproximasse o ouviria chegar. Mas passados uns minutos percebeu de que algo não funcionava. Ou o homem se deslocou ou suas habilidades voltavam a falhar.
De novo.
Mas quando conseguiu ver a figura que emergia depois de uma árvore a pouco mais de cinco metros de distância percebeu de que havia uma terceira resposta: o sigilo daquele homem igualava suas capacidades perceptivas. «Maldição.» Não era isso o que necessitava. Emitiu o uivo que iria identificá-lo como presença amistosa. Não obstante, suspeitava que o homem que se aproximava podia ter uma opinião diferente a respeito.
MacRuairi ficou imóvel e apesar da contra-senha apontou com seu arco na direção da que provinha sua voz.
—Quem vem?
—Guardião - respondeu Arthur levantando o visor de aço de seu elmo e saindo de trás da árvore que o resguardava.
Inclusive na escuridão, apreciou o brilho diabólico nos olhos entreabertos do MacRuairi, que deslocou o braço para a esquerda para lhe apontar entre as sobrancelhas. MacRuairi possuía uma habilidade extraordinária para ver na escuridão, algo fatal de lembrar-se justo nesse momento.
—Ides fazer uso da arma? —disse Arthur.
—Ainda não decidi. Uma morte não me parece muito comparada com nove. Poderia alegar que pensei que era um traidor, o qual não estaria muito longe da verdade.
Arthur engoliu a grosseira réplica que foi a seus lábios. Saber que merecia o menosprezo daquele homem, mas não facilitava o fato de ouvi-lo. Ignorou a flecha que lhe apontava e seguiu adiante.
—Acha que não me arrependo do que aconteceu?
—Arrepende-te? Pois te asseguro que não saberia o que te dizer. Parecia desfrutar lutando junto a Alan MacDougall, por não mencionar que salvou sua puta vida.
Apenas os separavam alguns metros, mas MacRuairi não teria errado o tiro nem a centenas de metros de distância.
—Responderei ante o rei e não ante você, Víbora. Tenho que falar com ele.
—Está dormindo.
Arthur apertou os dentes e os punhos. Brigar com o MacRuairi não solucionaria nada, mas não tinha tempo para tolices.
—Pois então terá que despertá-lo. E também a meu irmão.
Ao final, MacRuairi optou por baixar o arco.
—Espero por seu bem que tragas boas notícias - disse, fulminando-o com o olhar — E será melhor que tudo aquilo valha a pena.
Tinha valido a pena? Arthur não teve tempo de pensar nesses termos naquele momento. Não teve tempo de fazer esse tipo de análise. Estava muito ocupado em defender-se e proteger a Anna.
Menos de quinze minutos depois o fizeram passar à tenda do rei. Se Bruce estava dormindo, não havia nada em seu rosto que indicasse que acabava de despertar. Levava seus escuros cabelos penteados, tinha os olhos tão limpos e chicoteados como sempre, além de ir vestido com as perneiras e uma sobreveste negra de finos bordados.
Estava sentado sobre uma arca. A ausência de mobiliário concordava com a ligeireza e a rapidez com as que se deslocava o exército. Ao rei Eduardo nem sequer teria passado pela cabeça fazer campanha sem carregar em seus carros seu equipamento doméstico e sua baixela. Mas detrás de viver como um foragido durante um ano aquartelado entre o povo, Robert Bruce havia se acostumado a contentar-se com muito menos.
A sua esquerda tinha ao Neil, ao qual se via um tanto mais desalinhado, e à direita ao Tor MacLeod, líder dos Guardiões das Highlands. Tanto a expressão deste como a do próprio rei eram desalentadoras. A pergunta que Arthur adivinhou no olhar de seu irmão cortava como uma faca. Seria possível que questionasse sua lealdade?
—Que diabos ocorreu, Guardião? —perguntou o rei.
Arthur narrou da maneira mais sucinta possível os eventos que levaram a sua inesperada viagem ao norte, o compromisso de bodas previsto entre a filha de Lorn e sir Hugh Ross, as esperanças de unir forças de Lorn e a intenção de Arthur de evitar que a aliança se levasse a cabo.
—Conseguiram-no? —perguntou Bruce.
Arthur manteve uma expressão neutra.
—Sim, majestade.
O rei assentiu, agradado. Nenhum dos pressente pareceu perguntar a respeito de como o tinha conseguido. Arthur continuou explicando como tinha obtido que a patrulha se desviasse do grupo dos MacDougall em seu caminho ao norte e afirmou que se viu obrigado a defender-se para proteger sua identidade.
—Assim foi você? —disse MacLeod — Nossos homens do castelo do Urquhart estavam muito zangados porque um só homem conseguisse escapar deles.
—Não de tudo. Oxalá tivesse podido, mas me encurralaram em um escarpado. Não podia lhes contar quem era.
Ninguém disse uma palavra. Todos sabiam tão bem como ele que essas situações eram inevitáveis para preservar sua identidade, mas a nenhum deles gostava.
Depois Arthur passou a explicar a forma em que MacRuairi e seus homens o tinham surpreendido quando voltavam para o Dunstaffnage.
Neil arqueou as sobrancelhas.
—Não os ouviu chegar?
Arthur negou com a cabeça sem dar mais explicações. Referiu a princípio, simplesmente reagiu ao ataque e que depois, ao se dar conta de quem eram, passou a manobras defensivas. Quando chegou à parte em que salvou a vida do Alan MacDougall não ofereceu mais desculpa que a verdade. Somente tentava deter o golpe, matar ao guerreiro fora um acidente.
Neil fez a pergunta que sem dúvida rondava as cabeças de todos eles.
—Mas por que teria que lhe salvar a vida? Proteger ao herdeiro de Lorn não era parte de sua missão. Assassinar a ele seria quase tão bom como assassinar ao próprio Lorn.
Arthur olhou a seu irmão nos olhos sem fugir a verdade.
—Não tentava protegê-lo.
—É pela moça —disse MacLeod, juntando todas as peças — Sente algo por ela.
Arthur se voltou para seu capitão. Não o negou.
—Sim.
—A filha de Lorn! —exclamou Neil sem poder ocultar sua indignação — Maldição, irmão. No que estava pensando?
Arthur não tinha uma resposta para isso. Não havia.
—O que estais dizendo, Guardião? —disse o rei com olhos negros tão duros como o ébano — Uma moça o tem feito esquecer em que lado está?
—Minha lealdade está contigo, meu senhor - disse Arthur com firmeza.
Mas o dardo envenenado do rei ardia.
Neil ficou olhando-o fixamente.
—Mudaste de ideia respeito ao Lorn? Esquece-se do que fez a nosso pai?
Arthur endureceu a expressão de seu rosto.
—É obvio que não. Mas minha vontade de ver a destruição do John de Lorn não se faz extensiva a sua filha. Por isso estou aqui. Preciso sair do castelo de Dunstaffnage.
A sala ficou em um silêncio sepulcral. Arthur notava que o olhar fixo de seu irmão queimava, mas não se atrevia a olhar em sua direção. Tinha falhado. Tinha falhado ao homem que era como um pai para ele. Não queria ver a decepção em seu rosto.
—Está em uma situação comprometida? —perguntou o rei — Há perigo de que o descubram?
Arthur negou com a cabeça.
—A moça sabe que oculto algo, mas não acredito que suspeite de nada.
—Então é a moça a causa de que desejes abandonar a missão antes de cumpri-la?
—A coisa se complicou.
Consciente de quão insuficiente parecia isso, inclusive para si mesmo, explicou que Lorn lhe tinha interrogado sobre o ataque e acrescentou que ao acreditar que o ancião suspeitava algo, viu-se obrigado a aceitar o compromisso.
—Mas isso são notícias fantásticas - disse o rei, contente pela primeira vez desde que Arthur entrasse na tenda — chegastes mais perto de Lorn do que jamais acreditei possível. Sinto muito que a moça esteja implicada, mas não sofrerá verdadeiro dano. O coração de uma jovem sara com facilidade.
Para falar a verdade, o rei, conhecido por seu êxito com as moças, tinha muita mais experiência que ele, mas nesse caso Arthur não acreditava que acertasse. Anna amava com muita bravura. Estava muito cega pelo amor.
—Não posso permitir que abandone —finalizou o rei — Ainda não. Não tendo a batalha tão perto. Necessito-te dentro para que me digas o que é o que se propõem. A informação que nos transmite é muito valiosa. A vitória está muito perto para deixá-la escapar no último momento. John de Lorn é um demônio com o coração podre, mas não por isso subestimo suas táticas de guerra nem sua capacidade para a surpresa.
Arthur sabia que o rei não atenderia a razões. Robert Bruce estava desejando desforrar-se. Lorn o tinha vencido antes e essa vez não permitiria que nada se interpusesse em seu caminho. O coração de uma mulher era um pequeno preço a pagar.
—Atacaremos o castelo na madrugada do dia dezesseis —disse MacLeod, dando a impressão de advertir sua frustração — Só serão alguns dias mais.
Mas ele não conhecia Anna MacDougall. Arthur teria preferido enfrentar-se às endiabradas máquinas de guerra do primeiro rei Eduardo que tentar resistir diante de Anna durante «somente uns dias mais».
C O N T I N U A
Capítulo 11
Anna jogou o capuz para trás ao mesmo tempo que entrava na câmara de seu pai. Soltou a cesta na mesa e se sentou juntou a este e sua mãe ao calor das brasas da lareira. Inclusive no verão, os muros de pedra do castelo faziam dele um lugar frio e com correntes de ar.
Sua mãe levantou a cabeça do novo estandarte de seda no qual trabalhava e a olhou, sentida saudades.
—De onde vem, Annie querida? É tarde.
—Fui levar bolos aos monges do priorado —respondeu Anna inclinando-se para beijar sua mãe.
Encontrou-se com o olhar de seu pai. A expressão deste se escureceu ao ver respondida sua tácita pergunta com uma leve negação de cabeça. Tossiu antes que sua esposa pudesse fazer mais objeções. Embora Anna soubesse que o fazia e que propósito, aquele áspero e úmido som a preocupava.
—Não me falou de uma nova infusão de ervas do pai Gilbert que ajudaria a aliviar o encharcamento de meus pulmões?
Sua mãe se sobressaltou, afastou seus bordados e ficou em pé de repente.
—Tinha esquecido. Direi ao Cook que o prepare agora mesmo.
Assim que a porta se fechou atrás dela seu pai disse:
—O rei Eduardo não respondeu?
Anna negou com a cabeça.
—Já deveríamos ter notícias dele.
Seu pai se levantou e começou a perambular diante da chaminé, enfurecendo-se mais a cada passo que dava.
—Esses asquerosos rufiões de Bruce devem tê-lo interceptado. Parece que a metade de nossas mensagens não chega a seu destino, nem com a ajuda das mulheres — disse apertando a mandíbula — Mas dado que não ouvimos nada sobre o destacamento de soldados, acredito que podemos supor que não enviarão a ninguém. O jovem Eduardo está muito ocupado tentando salvar sua própria guarida para preocupar-se com a nossa.
Anna não podia acreditar que depois de tudo o que tinha feito seu pai pelo primeiro rei Eduardo, o novo rei o abandonaria de tal modo.
«Que se deita com crianças…»
Veio a sua mente essa velha história, mas Anna a tirou da cabeça porque em certo sentido lhe parecia desleal. Seu pai não teve outra opção. O primeiro rei Eduardo era muito poderoso. Depois da derrota de Wallace em Falkirk, ou se fazia aliado do rei inglês ou lhe confiscavam as terras. Quando Bruce usurpou a coroa, a aliança se fez mais necessária ainda. Se Bruce e os MacDonald estavam em um lado, os MacDougall não podiam mais que apoiar ao outro: Inglaterra.
—Não deveríamos tentar enviar outra missiva?
—Não temos tempo — espetou seu pai, claramente molesto pelo que percebia como uma pergunta estúpida — Os ingleses se movem com lentidão. Demorariam semanas em chegar tão ao norte carregando toda essa baixela e esses móveis para estar cômodos. Inclusive no caso de que Eduardo mudasse de opinião, necessitaria dias para reunir aos homens. O rei Hood estaria aqui junto a sua tropa de assassinos salteadores de caminhos antes que aos ingleses desse tempo de encher seus carros de ninharias.
Anna tentava não tomar como algo pessoal a cólera do pai. Tinha todo o direito a perder os nervos. O inimigo estava virtualmente em cima e ninguém vinha em sua ajuda. O conde de Ross, igual ao rei Eduardo, ainda não tinha respondido a sua petição de unir forças. Ia ficando patentemente claro que estariam sozinhos ante Bruce: oitocentos homens contra os três mil com que contava o usurpador conforme o informe.
O medo prendia a garganta. Os MacDougall eram ferozes combatentes e Lorn um dos melhores generais de Escócia na batalha, mas poderiam superar tal desvantagem? Seu pai estivera a ponto de derrotar ao Bruce anteriormente, mas então o rei foragido teve que fugir com umas poucas centenas de homens ante suas mais numerosas forças. Nessa ocasião seriam os MacDougall quem estaria em clara inferioridade numérica. «Pouco importa», pensou Anna com integridade. Seu pai ganharia de todos os modos. Somente um MacDougall valia por cinco rebeldes. Mesmo assim, por mais vezes que se dissesse que John de Lorn superaria inclusive a pior das apostas, seu leal coração não podia negar que existia a mais mínima, a ínfima possibilidade de que perdessem.
«Perder.»
Um calafrio lhe percorreu o corpo. Somente pensar nessa palavra lhe parecia a mais vil das blasfêmias. Não podia permitir que isso ocorresse. As conseqüências eram muito execráveis para as considerar. Mas tudo aquilo que apreciava, todas suas esperanças de um futuro feliz, parecia pender sobre a ponta de um alfinete, ou, neste caso, de uma espada. O mais leve empurrãozinho faria que tudo se precipitasse no vazio. Os grossos muros do castelo de repente lhe pareciam finas vidraças, dispostas a romper-se em mil pedaços. Sua situação era complicada, inclusive até desesperada. Contudo, havia um modo de conseguir atenuá-la um pouco.
O tempo pareceu deter-se. O pavor se apoderava de seu estômago em um tenso nó e o formigamento que isso provocava aumentava à medida que Anna via do que seria obrigada a fazer. A solução espreitava no mais profundo de sua mente desde fazia meses, mas não queria considerá-la.
Anna se aferrou às abas de sua capa como se fossem uma corda a qual pudesse agarrar-se.
—E o que passa com Ross? —perguntou em voz baixa — Ainda fica tempo para que se apresente.
Seu pai a olhou com certo desdém.
—Sim, mas como digo já, não o fará.
Era reprovação o que advertia em seu olhar? Acaso se arrependia de ter dado opção? Anna aspirou profunda e entrecortadamente em uma tentativa de controlar o ritmo frenético de seu pulso. Sua gelada pele se cobriu com uma fina pátina de suor. O peito lhe oprimia tanto que mal podia respirar. Todo seu ser se rebelava contra o que estava a ponto de sugerir. Mas não ficava alternativa. Um marido era um pequeno preço a pagar em comparação com a sobrevivência de seu clã. casaria-se até com o mesmo diabo se fosse necessário.
—E se lhe desse um motivo para pensar melhor? —Seu pai a olhou nos olhos. Anna soube que tinha adivinhado o que sugeria pelo ar de reflexão que adotou seu olhar, embora talvez isso fosse o que ele esperava dela de um princípio — O que passaria se fizesse um rogo pessoal ao conde?
Teve que deter suas palavras. Seus dedos agarravam a lã da capa com tanta força que cortava a circulação. O coração pulsava a um ritmo frenético e martelava em suas têmporas. O estômago se decompôs. «Tudo irá bem. Eu me encarregarei de que funcione. Não é um homem tão temível.» Sir Arthur era alto, musculoso, de uma beleza sombria e, não obstante, nunca ficava nervosa em sua presença. Talvez tivesse superado seu medo aos guerreiros.
«Sir Arthur.» O coração deu um tombo. A imagem do cavalheiro apareceu ante seus olhos, mas a afastou de sua mente. Não significava nada para ela. Pouco importava que seu coração tivesse querido voar para ele momentaneamente. Embora as coisas fossem diferentes, ele já tinha expressado com uma claridade dolorosa o que sentia por ela: nada.
Mas teria que passar toda a vida tentando esquecer aquele beijo.
Seu pai esperava que continuasse, mas Anna não era capaz de encontrar as palavras.
—O que aconteceria…? —Anna teve que se deter para clarear a garganta — Se a oferta de sir Hugh segue em pé, estou disposta a aceitar sua proposta de matrimônio. Em muda, talvez o conde veja o benefício de unir nossas forças.
Seu pai não disse nada durante um momento, mas sim ficou estudando seu rosto com uma intensidade tal que a Anna pareceu estar retorcendo-se em seu interior.
—Crê que seguirá te querendo? Não teve nenhuma graça que o rechaçasse.
Ardiam-lhe as bochechas de vergonha de não ter parado pra pensar nessa possibilidade. Seu pai tinha razão. O jovem cavalheiro, ferido em seu nobre orgulho pelo rechaço, ficou uma fúria.
—Não sei, mas merece a pena tentar.
Já tinham machucado seu orgulho há pouco. O que importava um pouco mais ou menos?
—A sua mãe não gostará da idéia — disse John de Lorn olhando para a porta — Os caminhos podem ser muito perigosos com Bruce e seus homens por aí soltos.
Nisso tinha pensado Anna.
—Não se preocupará se Alan me acompanha. Levaremos uma boa escolta.
Seu pai assentiu enquanto acariciava o queixo.
—Sim. Seu irmão te manterá a salvo — disse com um sorriso, enquanto ela tentava mascarar seu desengano. Havia uma parte de Anna que esperava que seu pai se negasse. Este se levantou e a beijou no cocuruto — É uma boa garota, Annie querida.
Em geral Anna transbordava de alegria quando seu pai lhe dirigia um elogio, mas nessa ocasião teve vontade de chorar. Sua felicidade era um pequeno preço a pagar, mas, mesmo assim, era um preço a pagar. Seu pai a beliscou no queixo para que o olhasse os olhos. Anna piscou diante da cálida e úmida bruma do lar.
—Sabe que não lhe pediria isso se tivesse uma alternativa.
Uma solitária lágrima escorregou por sua bochecha. Tremia-lhe a boca, mas se esforçou por sorrir.
—Sei.
Naquele momento supunha que era sua única esperança. Não importava quão mau parecesse. Faria tudo o que estivesse em sua mão para assegurar a aliança.
De todos os modos tampouco havia ninguém que se interessasse por ela.
Entretanto, quando Anna abandonou os aposentos de seu pai, todas essas lágrimas que estivera agüentando saíram precipitadas em uma corrente de esperança extinta, uma esperança que nem sequer era consciente de estar albergando.
A volta de Arthur ao castelo, sozinho, não foi tão difícil de explicar como imaginava. Lorn estava ansioso por ouvir um relatório do que seu filho tinha descoberto a respeito de seus inimigos do oeste. A luta pela supremacia entre os três principais ramos dos descendentes de Somerled, os MacDonald, MacDougall e MacRuairi, levava anos dominando a política das Highlands Ocidentais. Quando morreu o último dos chefes do clã MacRuairi, deixando a sua filha Christina das Ilhas como única herdeira ao trono, estes perderam poder e o terna se reduziu a dois. Lachlan e seus irmãos eram todos filhos bastardos, um título que em seu caso era completamente castigo.
A informação de Ewen oferecida por Arthur a respeito da mobilização de tropas dos MacDonald ao longo da costa ocidental não era nada surpreendente, mas mesmo assim provocou um substancial arrebatamento de fúria no Lorn, e também inquietação, apesar de que procurasse ocultá-lo. Embora talvez não tanta como devesse, o qual o fazia perguntar-se o que teria planejado aquele conspirador briguento. E agora, graças a seu descobrimento no priorado, sabia perfeitamente como averiguar.
Mas como sua volta ao castelo foi em uma hora tardia, sua reunião com lady Anna teria que esperar até a manhã seguinte. dizia a si mesmo que estava inquieto simplesmente porque teria que encontrar um motivo para algo que seria como uma mudança de parecer repentino: em lugar de evitá-la, inventaria desculpas para estar com ela. Mas tampouco queria dar falsas esperanças à moça. Apesar de ter cometido o engano de beijá-la, e Deus, um enorme engano tinha sido aquele, uma relação entre eles era algo impossível. Sabia que não seria fácil. Certamente a moça teria passado toda a semana pensando naquele beijo. Deus sabia que ele mesmo não tinha sido capaz de pensar em outra coisa.
Embora já tinha visto ela cruzando o jardim de Ardchattan, quando a viu entrar no grande salão na manhã seguinte seus sentidos se avivaram como se fosse a primeira vez. Tudo parecia estar mais vivo, mais intenso. Jamais antes o tinha afetado tanto a presença de alguém como fazia nesse momento lady Anna MacDougall. encantou-se dela, de cada um dos detalhes, de cada matiz, das mechas de cabelo dourado que escapavam de seu véu azul à altura da fronte e as têmporas até os finos bordados de seda do cotehardy que rodeava sua figura em todos os lugares apropriados.
«Não…»
Deixou cair o olhar sobre seus seios. Ficou com a boca seca. Via, embora fossem imaginações dele, o mal esboçado relevo de seus mamilos perolando essa parte do tecido. Assaltaram-lhe as lembranças e uma onda de calor saiu de sua virilha. Pensar no tato daquela exuberante suavidade fez que endurecesse seu pau. Que impressionante tinha sido embalar esse seio, sentir o peso dessas carnes perfeitamente arredondadas sobre a palma de sua mão ao mesmo tempo que seu polegar acariciava o teso broto de seu mamilo. Amaldiçoou para si, subitamente incomodado por aquelas lembranças, muito viscerais, em conjunto.
Estava quente. Excitado. Faminto.
Como demônios ia olhar a moça sem lembrar-se das sensações que procurava ter seu corpo pego ao dela? Como poderia ver o sensual arco rosado de sua boca sem recordar quão doce sabor, a suavidade daqueles lábios sob os seus, e que o erotismo de suas línguas entrelaçadas o tinha feito entrar em um torvelinho de desejo mais forte que qualquer outra coisa que houvesse sentido alguma vez? Jamais poderia olhar essa pálida pele suave como a de um bebê, que era como veludo ao tato, sem recordar como a havia tocado.
Deus, quão único queria era atirá-la na cama, enrolar suas pernas a sua cintura e afundar até esquecer-se de tudo. Jesus, tinha que deixar de pensar nisso. Tinha que parar de torturar-se com coisas impossíveis. Sempre tinha sido capaz de reprimir seus impulsos, mas com a Anna era diferente.
Porque ela era diferente. E não fazia nenhuma graça reconhecê-lo.
Arthur se dava conta de como o observava seu irmão, mas não podia afastar o olhar. Seu coração pulsava mais depressa a cada passo que ela dava e cada um de seus nervos ficava em tensão enquanto se preparava para o momento em que ela se inteirasse de sua presença. Mas assim que a teve mais perto percebeu uma estranha pontada. Algo não ia bem.
Não sorria. Seus olhos não brilhavam com alegria e travessura. E sua risada, esse leve e efervescente som ao que poderia ouvir durante horas, permanecia em completo silêncio. acostumou-se tanto a seu perpétuo bom humor, ao despreocupado encanto com o que parecia iluminar os aposentos, que o vazio deixado por sua ausência obscurecia o grande salão.
Maldição. teria feito mais dano de que pensava? A culpa o atormentava.
Por um instante pensou que passaria junto a ele, mas então notou o peso de seu olhar. ficaram contemplando o um ao outro. A quietude era absoluta.
Esperou ver sua reação. Esperava presenciar como a cor subia por suas bochechas, como lhe cortava a respiração e se acelerava o pulso em seu pescoço. Esperava que se delatasse. Mas em vez disso ficou em guarda.
Lady Anna levava todos seus pensamentos e sentimentos escritos no rosto. Essa era uma das coisas que Arthur encontrava tão cativantes e irresistíveis dela. A inocência e a emoção infantil que mostrava, sua preciosa vulnerabilidade. Mas essa expressão, antes sempre acessível, permanecia oculta.
Percebeu a frieza de seu olhar por um breve instante dantes que afastasse e passasse por ele. Como se tivesse deixado de existir. Como se ela jamais se derretera em seus braços. Como se o beijo no que não podia deixar de pensar jamais existira para ela. Como se não tivesse estado a ponto de sucumbir sob seu corpo.
Sua indiferença lhe corroía o peito como se de um ácido se tratasse. Queimava. Doía. O fazia perder o controle por completo, sentir a necessidade primitiva de cometer alguma loucura, como empurrá-la contra a parede e beijá-la até que se rendesse a seus pés uma vez mais.
Mas ele era um homem que mantinha o controle. refreava-se. Era diferente. Não tinha necessidades de tal tipo. E entretanto, com um só olhar de frieza, Anna MacDougall conseguia tirar dele os impulsos bárbaros que levava no sangue.
Ao que parecia tinha conseguido seu objetivo. Seu cruel rechaço sortia efeito. Não deixava de ser irônico que se mostrasse indiferente justo quando ele desejava que não fosse assim. Ou pode ser que nunca tivesse estado interessada nele. Talvez o único que queria fosse vigiá-lo.
azedou a expressão e se o flexionaram os músculos, mais molesto por esse pensamento do que gostaria de admitir. Por desgraça, seu irmão se mostrava perceptivo. Dugald simulou um calafrio.
—Vá, parece que faz um pouco de frio por aqui. Acredito que a dama já esqueceu o capricho, irmãozinho. Com o tanto que tentou, pensei que estaria mais contente — disse, fazendo uma pausa para negar com a cabeça — Será possível que ao fim te tenha feito cair uma mulher? Acreditava que isso não aconteceria nunca.
Arthur se recostou sobre a parede de pedra que tinha trás de si, aparentando uma indiferença que não sentia. Era certo que gostava dela, mas antes morto que deixar que Dugald conhecesse sua debilidade.
—Não é mais que uma moça apetecível.
—Mais apetecível ainda porque não pode tê-la.
Arthur encolheu os ombros e deu um longo gole a seu cuirm até esvaziar a taça.
—O que eu quero dela não é algo que possa me dar uma inocente jovem da nobreza.
Dugald riu e lhe deu uma palmada no braço.
—Compartilho sua dor, irmãozinho. Eu mesmo estou sentindo um pouco parecido. Sei de uma moça com uma boca talentosa que faria bastante por aliviá-lo. Mandarei a ti.
Arthur desviou o olhar para o tablado em que se acabava de sentar lady Anna. Tentava pelo menos. Tentava. Mas não lhe interessavam as mulheres de seu irmão. Franziu o cenho em um meia sorriso.
—Você compartilhando, irmão? Não parece você mesmo. Mas neste caso não será necessário. Não acredito que tenha problemas para encontrar alívio.
Se quisesse, sabia de algumas mulheres entre as que podia escolher. O problema era que não queria. Ao menos, não com elas.
Dugald encolheu os ombros.
—Como deseje — disse aproximando-se dele com um amplo sorriso — Mas não sabe o que te perde. Essa moça poderia deixar seca a uma vaca com a boca que tem e faz umas coisas com a língua que…
A voz do Dugald se confundiu com o ruído de fundo. As perversas habilidades que pudesse representar a fulana do Dugald não lhe interessavam. Arthur voltou o olhar para o estrado. Ela era quem o interessava, maldita seja. Embora Deus sabia que não deveria ser assim. Mas parecia que Arthur fosse invisível, porque não olhou uma só vez em sua direção. Sua irritação crescia a cada minuto. Aferrava com força a taça de estanho e a enchia uma e outra vez à medida que o ágape avançava. Seu plano para aproximar-se dela seria mais complicado do que pensava, mas acreditava que se livraria dele tão facilmente estava muito equivocada.
«Retornou.»
Anna se rebelou ante o inoportuno desejo que arremetia contra seu peito e se obrigou a não olhar em sua direção. A não pensar nele. Sir Arthur não era para ela. Jamais foi. Seu destino estava concretizado. Já tinha tomado sua decisão. Seu pai e seu clã contavam com ela. Era muito tarde para arrepender-se ou pensar melhor, por mais que vê-lo devolvesse todas essas ingratas emoções de repente em uma pancada.
Como não se fixou nele a princípio, quando nesse momento já não podia ver nenhuma outra pessoa? Aquele orgulhoso jovem cavalheiro de escura beleza era o homem mais bonito de toda a sala. E sem dúvida também o mais forte. Suas bochechas se acaloraram. somente olhar sua figura alta e de largos ombros voltavam as lembranças de seu torso nu. Cada um de seus esculturais músculos. Cada uma de suas rígidas linhas. Cada um dos gramas de sua musculosa carne.
Tentava ignorá-lo, mas sentia o peso de seu olhar enquanto comia. Ou tentava comer, já que tinha a boca completamente seca e a comida lhe parecia insípida e terrosa. Olhava-a com tal intensidade que dava vontade de sair correndo. Algo que fez assim que teve oportunidade.
Anna se apressou a sair do grande salão com mais sentimentos dos que podia albergar, correu pela escadas para sua câmara da torre e ficou a pinçar no armário em busca de sua capa de montaria. Precisava sair dali.
Um dia. Somente tinha que o evitar durante um dia e depois disso partiria. Tinham previsto partir para o castelo de Auldearn, a fortaleza real do conde de Ross, na manhã seguinte. por que não podia permanecer fosse do castelo até que ela partisse? Assim tudo teria sido muito mais fácil.
Em seu desespero por escapar, revolvia os montes de objetos de lã e de seda que penduravam de seu armário sem importar a desordem que criava. Onde estaria?
Estava a ponto de enfrentar o frio matinal e sair de todos os modos quando percebeu de que provavelmente sua criada já teria posto a capa em sua arca para a viagem. Abriu a tampa de madeira e deixou escapar um suspiro de alívio ao ver que a peça de lã axadrezado de cores cinza, azul e verde estava dobrada em cima de tudo. A jogou rapidamente sobre os ombros, agarrou em braços Escudeiro, temendo que o cachorrinho saísse correndo em busca do cavalheiro pródigo, e voltou a descer a escada como um torvelinho. antes de sair ao barmkin olhou pela fresta da porta para assegurar-se de que tinha via livre. Não queria correr nenhum risco de topar com ele. Sabia que aquilo era ridículo. Sir Arthur fazia todo o possível para evitá-la. Mas havia algo na forma em que a tinha olhado durante o café da manhã que chamava à cautela.
Cruzou o pátio e se dirigiu para os estábulos. Uma vez na segurança de seu interior soltou ao revoltoso cão no chão e fez que o cavalariço chamasse Robby enquanto ela preparava os arreios de seu cavalo.
Não tinha nenhum destino em mente, com tal de sair do castelo era suficiente. A impressionante fortificação de pedra e os grandiosos muros do barmkin pareciam muito pequenos de repente. Acabada sua tarefa, dispôs-se a recolher ao Escudeiro do chão quando a porta se abriu e o cachorrinho prorrompeu em uivos e ganidos ao mesmo tempo que saltava de seus braços disparado como uma flecha.
—Merda! —saiu de seus lábios antes que desse tempo a refrear-se.
Não precisava olhar para saber quem era. Se a reação de Escudeiro não dizia, assim fazia seu próprio corpo. O ar mudou. A pele lhe ardia. Seus sentidos despertaram. O aposento esquentou imediatamente e o leve aroma de fragrância masculina se filtrava através dos penetrantes e terrestres aromas do estábulo. Fechou os olhos, rezou uma prece que os céus lhe dessem força e ficou em pé lentamente para enfrentar a ele.
Seus olhares se encontraram. A repentina excitação que a embargou foi como um látego que a chamasse o ordem. Aquela era uma impressão que parecia não diminuir nunca. cortou a respiração, ao mesmo tempo que essa aguda e repentina opressão voltava a lhe envolver o peito e espremê-la. Um irritante acesso de nostalgia se formava em seu interior, mas esmagou com rapidez, sem compaixão. Ele não significava nada para ela. Já não. Não depois do ocorrido nos barracões. A tinha ensinado quão errado era para ela. E mais valia que acreditasse.
Controlou suas feições para fazer delas uma máscara impassível, tirando provisão de cada gota de sangue real que corria por suas veias. Era descendente de reis, tataraneta legítima, seis gerações depois, do poderoso Somerled. Saudou-o com uma ligeira inclinação da cabeça e disse friamente: —Sir Arthur, vejo que retornastes.
Sua tentativa de mostrar-se digna se viu em certo modo arruinado pela tremor de sua voz. Uma coisa era fingir que não lhe afetava sua presença em um salão cheio de gente e outra muito diferente fazê-lo em um pequeno estábulo. A sós. Enquanto ele a olhava dessa maneira tão intensa. Com raiva. Tinha o rosto avermelhado por completo, à exceção das comissuras da boca e de sua palpitante têmpora, que para sua desgraça estavam brancas.
O coração pulsava a toda pressa. Onde estava Iain? A cavalariço já deveria ter retornado.
Arthur pareceu ler sua mente e endureceu o olhar, algo que não fez a não ser enervá-la mais, dado que já era suficiente severo. Não tinha motivos para estar furioso com ela.
—O moço não virá. Disselhe que a levaria aonde precise ir.
Por Deus, isso não! Não queria ir com ele a nenhuma parte. Nem sequer queria o ter perto. Anna ergueu o queixo, negando-se a que a intimidasse a sensação de perigo que lhe transmitia. Não tinha feito nada mau. Somente esperava que não se inteirasse de como lhe tremiam as mãos.
—Isso não será necessário.
Arthur deu um passo à frente e Anna fez esforços em não cambalear-se. Mas o sangue pulsava com força em seu pescoço. E ele viu. O sorriso que se desenhou em seus lábios a fez sentir como um camundongo ante os olhos de um gato.
—Temo-me que sim, será. Se saíres do castelo partirei contigo. —Arthur a olhou de tal modo que fez que a Anna fervesse o sangue — Me parece que esquecestes algo.
Gaguejou, completamente deslocada pelo calor que fluía por suas veias.
—O que… o que?
—Sua cesta — disse olhando-a nos olhos. Anna ficou gelada, decomposta pela surpresa. Não era possível que soubesse. Quase suspirou de alívio quando ele acrescentou—: Não acredito ter visto sair do castelo sem ela.
Muito observador, mais do que convinha. Sir Arthur era perigoso em muitas e diferentes formas. Seu pai iria às nuvens se alguém descobrisse o que ela e algumas das outras mulheres faziam. Anna se recompôs em seguida, irritada por permitir que a angustiasse.
—Só tinha intenção de sair a cavalgar. Hoje não visito ninguém da vila.
Arthur ficou olhando-a por mais tempo do que devido, e Anna voltou a perguntar-se se saberia algo. Entretanto, nessa ocasião sua expressão não traiu seus pensamentos.
Uma série de latidos frenéticos fez que Arthur dirigisse sua atenção ao chão, para o cão que saltava sobre sua perna.
—Abaixo! —disse em uma voz que não aceitava discussão. O cão se sentou imediatamente e ficou olhando-o com cara de adoração — Seu cachorrinho precisa aprender maneiras.
Anna franziu os lábios.
—Gosta de ti.
«Deus saberá por que motivo.» Tentar tirar um pouco de afeto de Arthur Campbell era como querer extrair água de uma rocha, uma experiência condenada ao fracasso e a frustração. Arthur entreabriu os olhos como se Anna houvesse dito isso em voz alta.
—Normalmente os animais gozam de bons instintos.
—Normalmente sim — concedeu, deixando muito claro que ela pensava diferente nesse caso.
Aquele brilho perigoso voltou a encher seu olhar.
—E o que tem que você, Anna? O que dizem seus instintos?
«Corre. te esconda. te afaste dele tanto como possa para que não te faça mais dano.» Olhar essa mandíbula afiada e recortada, seus sensuais e carnudos lábios e esses olhos escuros jateados de âmbar era já suficientemente doloroso.
Afastou o olhar, contendo a emoção que ia a sua garganta.
—Eu não faço caso a meus instintos.
Ao menos já não fazia. Estavam errados. Seus instintos a tinham feito acreditar que entre eles havia algo especial. Que talvez ele tivesse necessidade dela. Que se sentia sozinho. E que possivelmente fosse diferente ao que parecia: um ambicioso cavalheiro, um soldado valente que vivia por e para sua espada.
Inclusive nesse preciso momento seus instintos lhe faziam acreditar que a tensão que bulia entre ambos significava algo, que bastaria que tomasse em seus braços e a beijasse de novo para que tudo voltasse para a normalidade. Mas era muito tarde para isso.
—Os instintos só servem para te obrigar a fazer coisas das que logo te arrepende — acrescentou.
Arthur esticou o queixo e o músculo de sua mandíbula começou a tremer de modo detestável. aproximou-se mais ainda. Tão perto que Anna sentia todo o calor que irradiava. Tão perto que cheirava o especiado aroma de sol que emanava sua pele. Começaram a tremer as pernas. Por Deus, tinha esquecido quão alto era. Parecia que muros se fechassem em volto dela. Custava-lhe respirar. Custava-lhe inclusive pensar enquanto se abatia sobre ela de tal modo. Usava sua selvagem masculinidade contra ela com a sutileza de um carneiro batendo-se em duelo.
—E arrependes de algo, Anna?
A enganadora suavidade de sua voz não a enganava absolutamente. Advertia perfeitamente a raiva contida em suas palavras, como se lhe importasse que seu coração tivesse mudado de parecer. por que fazia isso? por que tentava confundi-la? Fosse ele quem havia dito a ela que se afastasse.
—Que mais dá? E menos agora. Deixara tudo muito claro antes de fugir com meu irmão.
Anna tentou flanquear a porta e deixá-lo ali, mas Arthur a deteve com o implacável escudo de seu peito. Pela linha branca que se formou na comissura de sua boca não coube dúvida de que tinha captado a indireta.
—Então já acabastes com a espionagem. É isso?
Anna o observou atentamente. Nisso era que acreditava? Bom, que mais dava o que pensasse. Afastou lentamente seu olhar e a dirigiu para a porta.
—Sim, isso. Agora se me permitem, eu gostaria de partir.
Empurrou seu peito com o dorso da mão, mas era tão firme como um escarpado rochoso. Um escarpado com montões e montões de pedras cortantes e afiadas.
—Já vos disse que partiria contigo.
—Seus serviços já não são necessários. mudei de opinião. Não sairei a cavalgar esta manhã.
A maneira que flamejavam seus olhos revelava que não fazia nenhuma graça que o rechaçassem. Bem, pois pior para ele. Ela não o tinha escolhido como seu cavalheiro andante. Então notou que os músculos de suas costas se esticavam e se perguntou se não o teria levado muito longe. Mas Arthur não fez mais que torcer o gesto, representar uma reverência exagerada e afastar do caminho.
—Como desejais, milady. Mas se mudares de opinião já sabem onde me encontrar.
Anna passou junto a ele como um raio, com o queixo bem alto.
—Não o farei. Tenho muitas coisas que fazer antes de partir.
A mão que pousou sobre seu ombro a fez deter-se de repente. Mas inclusive essa forma rude de tocá-la fazia que seus sentidos se desatassem.
—Vais a alguma parte, lady Anna?
Tentou desembaraçar-se de seu braço e o fulminou com o olhar ao ver que não a deixava partir.
—Não é seu assunto.
Um brilho foi a seus olhos ao mesmo tempo em que Arthur se aproximava mais a ela. Anna sentia a energia que vibrava entre ambos e a arrastava consigo. Tinha a boca tão perto…
—me digas.
Não podia beijá-la, dizia-se Anna presa do pânico. Não podia permitir que a beijasse.
—Caso-me — disse bruscamente.
Capítulo 12
Arthur retirou o braço como se queimasse.
«Caso-me.» Suas palavras sentaram como um soco no estômago. Era incapaz de se mover. Cada osso, cada músculo, cada uma de suas terminações nervosas se petrificou.
—Com quem? —perguntou com uma voz mortiça, vagamente ameaçador, que não parecia a sua, soava como a do MacRuairi.
Anna não queria olhá-lo nos olhos. ficou a retorcer as grossas pregas de lã de sua saia com as mãos.
—Com sir Hugh Ross.
Uma faca encravada entre suas costelas teria resultado menos doloroso. O filho e herdeiro do conde de Ross. Arthur o conhecia, é obvio. O jovem cavalheiro já havia feito um nome por si mesmo. Era um guerreiro temível, um estrategista, dentro e fosse do campo de batalha. O fato de que fosse um bom partido piorava mais.
Não compreendia a raiva que consumia seu interior, nem por que se sentia traído. Não lhe pertencia, diabos. Jamais poderia lhe pertencer. Mas isso não o fazia esquecer que apenas quinze dias atrás a tinha tido em seus braços e que estivera a muito pouco de despoja-la de sua inocência.
—Ao que parece tiveste uma semana muito ocupada, milady. Não perde tempo.
Um quente rubor tingiu suas bochechas.
—Ainda não concretizamos os detalhes.
Arthur advertiu algo em sua voz que o fez entreabrir os olhos enviesadamente.
—A que detalhe se refere? Está prometida ou não?
Anna ergueu o queixo e ele captou o desafiante brilho de seu olhar apesar do sufoco de seu rosto.
—Sir Hugh me propôs matrimônio faz um ano, pouco depois de que morreu meu prometido.
—Acreditava que o tinha rechaçado.
—Assim foi. Pensei melhor.
Arthur compreendeu do que se tratava tudo aquilo de repente. Ao não contar com a ajuda do rei Eduardo, os MacDougall tinham decidido pedir ao Ross e oferecer a lady Anna como incentivo acrescentado para a aliança. Pouco importava se ela tinha pensado melhor ou era seu pai quem assim tinha decidido. Arthur não podia permitir que unissem suas forças. Uma aliança entre Ross e os MacDougall poria em perigo a vitória de Bruce. Seu trabalho, sua obrigação, era deter aquilo.
Arthur a olhou com dureza.
—E como sabe que sir Hugh se mostrará aberto a sua repentina mudança de pensamento?
—Não sei. —Anna lhe dirigiu um olhar penetrante — Mas farei tudo o que possa para persuadi-lo.
Não era necessário adivinhar a que se referia. Sua reação foi instantânea. Primitiva. Por um breve instante da ira se apoderou dele e perdeu o controle. Sentiu um vazio na mente. Lady Anna estava a escassos centímetros de ver-se esmagada contra a parede do estábulo com seus lábios selados pelos dele, toda sua virilidade entre as suas pernas e uma língua afundando-se no interior de sua boca, ali onde devia estar.
Mas inclusive no furor de sua raiva pedia mais a necessidade de protegê-la. Não confiava em si mesmo para tocá-la de tal modo.
Anna pôs os olhos como pratos e teve a prudência de dar um passo para trás. Mas ele a seguia cativando com a armadilha de seu penetrante olhar.
—Assim tem tudo bem planejado?
Assentiu.
—Sim. Será melhor para todos.
Que aquilo soasse como se estivesse tentando convencer-se a si mesmo não consolava absolutamente.
—Seu plano tem um problema.
Anna o olhou, dúbia.
—E qual é?
—Ross está ao norte. Os caminhos são muito perigosos para que te translades. É muito arriscado. Bruce e seus homens ficarão no caminho em qualquer momento. Seu pai não aprovará isso.
Lorn era um filho de cadela desalmado, mas parecia amar a sua filha de uma maneira genuína.
—Já o tem feito. Uma leva de guardiães me escoltará, junto com meu irmão Alan. Pode ser que o rei Hood seja um patife assassino, mas não faz guerra às mulheres.
Arthur lutava por manter sob controle seu gênio. Lorn tinha que estar muito desesperado para aceitar isso. O muito filho de cadela faria o que fosse para ganhar, inclusive pôr em perigo sua filha.
—Se se derem conta de que és uma mulher. Na escuridão, não serão tão fácil de distinguir. Poderiam a confundir com um mensageiro.
Acaso tinha esquecido o que estivera a ponto de lhe ocorrer no Ayr? Jesus, quando pensava no perigo… gelou o sangue. De novo teve vontade de empurrá-la contra a parede do estábulo, dessa vez para procurar que entrasse em razão. Poderiam feri-la. Assassiná-la.
—Meu irmão me protegerá. Estou segura de que não passará nada.
Arthur sentia uma veia a ponto de estalar na têmpora. Nem uma centena de homens poderiam lhe dar segurança. Seus esforços por controlar fracassariam.
—Não seja louca! Não podem ir! É muito perigoso. Mandem um mensageiro, é melhor.
Não necessitava mais que ver a posição de seu queixo e a maneira em que entreabria os olhos para saber que tinha cometido um engano. Poe tratar-se de uma moça de aparência tão doce mostrava uma teima digna de admiração.
—Já está decidido. E você, temo que não tenha nada que dizer a respeito.
As mulheres tinham que ser submissas e dóceis, maldita seja. E ali estava ela, cotovelo com cotovelo com ele, sem retroceder um centímetro. Se não estivesse tão furioso isso pareceria admirável.
Nessa ocasião, quando Anna deu meia volta e se dirigiu para a porta, Arthur não a deteve.
«Nada que dizer a respeito.» Isso veremos.
Se ela não entrava em razão, talvez seu pai fizesse.
Os homens de Bruce estavam batendo toda a área, assaltando, saqueando, fazendo tudo o que podiam por semear o caos e expandir o medo no coração do inimigo. A guerra não tinha lugar só no campo de batalha mas também no interior das mentes. Um grupo de escolta do clã MacDougall seria algo irresistível. Anna teria uma flecha no coração antes que pudessem se dar conta de seu engano.
Dizia a si mesmo que era a ameaça que isso supunha para a missão que fazia que se embolotassem todos seus músculos. Evitar esse tipo de aliança, manter isolado ao MacDougall, essa era a razão pela que estava ali. Mas não eram as mensagens nem a aliança em que pensava. Tudo que podia ver era Anna jogada em um atoleiro de sangue. Tinha que fazer que Lorn se afastasse desse estúpido caminho.
E se não podia… De nenhuma maneira a deixaria partir sozinha. Se Anna desse um passo fora desse castelo, ali estaria ele para acompanhá-la, ali onde pudesse a proteger e tê-la à vista. E havia uma coisa que tinha muito clara: não cabia nem a mais remota possibilidade de que a deixasse casar-se com Hugh Ross.
—Ocorre-te algo, Annie? Parece contrariada.
Anna ergueu o olhar para seu irmão Alan, que acabava de aproximar-se para cavalgar a seu lado. Depois de navegar em um birlinn nessa manhã o primeiro lance da viagem, o resto do trajeto fariam a cavalo. A rota marinha desde Dunstaffnage até a vila do Inverlochy através do lago Linnhe tinha levado menos de meia jornada, uma travessia em que teriam empregado vários dias ao fazê-la por terra. Oxalá o resto da viagem fosse igual de simples. Havia três lagos salgados e numerosos rios que percorriam Gleann Mor, o enguiço do Grande Glenn que dividia a Escócia entre o Inverlochy, no nascimento do lago Linnhe, até o Inverness e o fiorde de Moray, mas as rotas marinhas estavam separadas por terreno suficiente para fazer impraticável a viagem em navio. Em vez disso, cavalgariam os pouco mais de cem quilômetros que tinha que o Inverlochy até Nairn, ao leste do qual se encontrava o castelo do Auldearn. Com sorte demorariam quatro dias para chegar. Anna era consciente de que atrasava sua marcha, apesar de que galopavam em um ritmo muito mais castigador que aquele trote pausado ao que estava habituada.
Parecia irônico que estivesse fazendo virtualmente a mesma rota que tinha seguido o rei Hood no outono passado esperando acontecer através das Highlands e apoderando-se dos quatro castelos principais que balizavam o caminho: os castelos de Inverlochy e Urquhart, pertencentes aos Comyn, e os castelos reais de guarnição inglesa em Inverness e Nairn. Dado que esses castelos seguiam ocupados pelos rebeldes, veriam-se obrigados a procurar outra hospedagem que entranhasse menos perigo. Anna suspeitava que se quisessem evitar aos homens de Bruce teria que acostumar-se à paisagem dos bosques. Ao menos assim se livraria daquele sol abrasador por um tempo. Cavalgavam há várias horas e embora o véu protegesse seu rosto, tinha calor, estava pegajosa e, sim, também zangada, como tinha advertido seu irmão. Furiosa, para falar a verdade. O tempo, não obstante, não tinha nada que ver com seu incomum mau humor. Essa honra reservava a um certo cavalheiro intrometido.
Negou-se a lhe dirigir o olhar durante todo o dia. Mas isso não significava que não soubesse exatamente onde estava: cavalgando na cabeça do grupo, inspecionando o caminho que tinham pela frente em busca de sinais de perigo. «Perigo.» Isso era dizer pouco. O perigo era que ele os tivesse acompanhado na viagem.
—Estou bem —assegurou a seu irmão, conseguindo esboçar um sorriso forçado — Tenho calor e estou cansada, mas me encontro bem.
Alan a olhou de esguelha com um desinteresse enganoso.
—Acreditava que talvez tivesse algo a ver com o Campbell. Não parecia muito contente quando disse que nos acompanharia.
Seu irmão era muito ardiloso. Um traço que faria dele um bom chefe no futuro, mas nada que fosse apreciável para uma irmã que preferia guardar seus pensamentos para si mesma. Apesar de seus esforços em não reagir a essas palavras, chiavam-lhe os dentes.
—Não deveria ter-se intrometido.
Quando seu pai lhe contou que sir Arthur havia tentando dissuadir de que cancelasse a viagem, não podia acreditar. Ao fracassar nisso, pediu permissão para os acompanhar argumentando que suas habilidades como rastreador ajudariam a garantir sua segurança. E para maior desgraça de Anna seu pai tinha aceitado. De modo que em lugar de ignorá-lo durante uma só jornada, agora teria que suportar sua presença constante durante dias, semanas inclusive. Acaso tentava atormentá-la de propósito? Aquilo que tinha que fazer já era difícil sem que ele andasse revoando por aí.
—É um cavalheiro, Anna. Um explorador. Informar sobre a posição do inimigo é exatamente seu trabalho. E não posso dizer que não esteja agradecido de que venha conosco. Se for tão bom como diz ser, será muito útil.
Anna se dirigiu a Alan com cara de estar horrorizada.
—Está de acordo com nosso pai?
Alan endureceu o queixo. Jamais criticaria a seu pai de maneira aberta, embora quisesse fazê-lo, como era o caso.
—Teria preferido que ficasse em Dunstaffnage, embora entenda a razão pela que pai insistia em que viesse. Ross se mostrará mais disposto ante uma solicitude direta —disse com um sorriso — É uma danada, Annie querida, mas uma danadinha encantadora.
Anna torceu o lábio.
—E você é tão protetor que molestas, mas eu também te adoro.
Alan se pôs-se a rir e Anna não pôde a não ser unir-se a suas risadas.
Sir Arthur voltou a cabeça para ouvir e a pegou despreparada. Seus olhares se cruzaram por um momento antes que lhe desse tempo a afastar o olhar bruscamente. Mas foi suficiente para que sentisse uma boa pontada no peito. por que tinha que ser tão doloroso?
Alan não evitou esse intercambio de olhares. Voltou a ficar sério e a olhá-la com intensidade.
—Está segura de que isso é tudo o que acontece, Anna? Já sei o que disse, mas me parece que entre sir Arthur e você há algo mais que os trabalhos de vigilância que pai te encomendou. Eu acredito que sente algo por ele. —A pulsação que Anna sentia no peito lhe dizia que seu irmão tinha razão, por mais que gostaria que não fosse certo — Podemos apelar ao Ross sem necessidade de um compromisso —disse seu irmão com carinho — Não é necessário que sacrifique sua felicidade para chegar a um pacto.
Não pôde evitar emocionar-se. Era tão afortunada de poder contar com um irmão como ele… Sabia que poucos homens a tratariam com tal consideração. A felicidade não era algo a ter em conta no matrimônio entre nobres. O poder, as alianças, a riqueza, isso era o que importava. Mas o amor do que Alan desfrutou em seu matrimônio tinha dado a seu irmão uma perspectiva única. Apesar de tudo, teriam muitas mais oportunidades de conseguir o apoio de Ross com uma aliança. Alan sabia tão bem quanto ela. Além disso, ajudar a sua família jamais poderia constituir um sacrifício. Arthur tinha expressado com brutal claridade que não havia nada entre eles.
—Estou segura — disse com firmeza.
A firmeza de sua voz ajudou a convencê-lo. Alan seguiu cavalgando junto a ela um momento mais na lembrança de suas anteriores viagens nos excepcionais momentos de paz, mas ao final acabou voltando junto a seus homens.
Durante da primeira jornada fizeram grandes progressos e chegaram até o lago Lochy, onde passaram a noite em uma estalagem próxima à borda sul do mesmo. Aquele pequeno edifício de pedra com telhado de palha parecia antigo, e dada sua localização junto a uma ruína, Anna supôs que era.
Estava dura e dolorida. Suas pernas, traseiro e costas se ressentiam por cada uma das horas desse longo dia, de modo que agradecia estar debaixo de um teto e em uma cama, por mais rudimentares que fossem. Lavou-se e se compôs para comer um pouco de caldo de pescado e pão de centeio antes de cair rendida no camastro junto à Berta, sua criada, que roncava no jergon do lado.
A segunda noite, não obstante, não teriam tanta fortuna. Sua cama seria um simples cobertor em uma pequena tenda instalada na floresta ao sul do lago Ness.
Fora um dia longo, mais longo ainda graças ao constante fluxo de informes de exploração de sir Arthur. Para evitar cenários suscetíveis de perigo, tais como rotas a campo aberto ou lugares propícios para as emboscadas, havia vezes que se desviavam bastante do caminho. O qual significava que em lugar dos quarenta quilômetros que teriam percorrido, fizeram provavelmente uns cinqüenta e cinco através da espessura dos bosques e as colinas serpenteantes de Lochaber. Aquilo a Anna pareceu de uma precaução exagerada. por agora, não tinha visto nada fora do normal, mais que habitantes da vila, pescadores e algum que outro ocasional grupo de viajantes. Se os homens de Bruce patrulhavam os caminhos, não se tinham feito notar. Talvez esses quilômetros a mais fossem outra forma de tortura idealizada por sir Arthur? Como se não fosse suficiente sua presença.
As pernas de Anna, pouco acostumadas a passar dias cavalgando, tremeram ao se ajoelhar à borda do rio para lavar as mãos. Colocou a cabeça na corrente com a esperança de sacudir o cansaço, mas o frio golpe de água não a refrescava o suficiente. Quando tentou levantar-se, coisa que fez com muita dificuldade, teve que resmungar ao conscientizar-se da objeção de seus ossos e articulações, que rangiam como se tratasse do corpo de uma anciã. Tomou seu tempo para saborear o momento de solidão, sem nenhuma pressa por voltar para acampamento. Embora o resto do grupo estivesse a poucos metros dela, o denso tanto de árvores parecia absorver todo o som. de vez em quando chegava até ela o murmúrio apagado de suas vozes, mas além disso tudo permanecia em uma calma excepcional, o que representava o maior momento de paz que tinha desde sua chegada ao barmkin no dia anterior pela manhã, quando encontrou a sir Arthur Campbell preparado para sair com eles. Aqueles dois dias tentando forçar-se a não olhá-lo tinham cobrado sua cota. Era pior do que temia. Apesar de que o ignorasse e evitasse seus olhos cada vez que ele olhava em sua direção, cada um de seus movimentos lhe afetava de maneira dolorosa. O desassossego, que parecia lhe queimar o peito até furá-lo, era cada vez maior. Mais duro. Enfurecia-se com suas emoções, deixando-a nua e exposta. Não sabia por quanto mais poderia suportar. Por que tinha que estar ali?
Suspirou com aborrecimento e deu as costas à tranqüilizadora correnteza que corria sobre as rochas. Berta faria que seu irmão fosse procurá-la como um louco se não retornasse no par de minutos que tinha prometido. Além disso, estava ficando de noite.
Mal tinha dado uns passos em direção a floresta quando um homem saiu dentre as sombras e lhe fechou o passo. O pulso acelerou, presa do pânico. Esteve a ponto de dar a voz de alarme, mas seu gritou ficou sufocado ao reconhecê-lo. Fechou a boca de repente, mas seu pulso seguia igual de acelerado.
—Não faça isso! —espetou ao mesmo tempo em que erguia o olhar para o belo rosto de sir Arthur — Me destes um susto de morte.
Não tinha feito um só ruído. Como um homem tão corpulento podia mover-se com tal sigilo era algo que escapava a sua compreensão.
—Melhor —respondeu ele — Não deveria estar aqui sozinha.
—Não estava sozinha —disse Anna com um sorriso forçado — tinha você me espiando.
Anna sentiu um prazer enorme ao ver que esticava a mandíbula. Era horrível por sua parte que lhe agradasse tanto, mas tentar tirar algum tipo de reação daquele homem parecia um lucro absoluto. Sir Arthur lhe dirigiu um olhar pausado e penetrante.
—Algo do qual estou certo que conhece todos os segredos.
Agora tocava a ela endurecer o gesto. Havia muita proximidade. Embora seu irmão e o resto dos homens estivessem a um grito de distância, aquilo supunha uma intimidade com ele muito maior da que ela queria. Qualquer tipo de intimidade com ele podia ser perigosa.
Isso a fazia recordar coisas. Como o sabor especial de seus beijos. Ou o modo em que os grossos músculos de seu torso se esticavam à luz das velas. Ou a maneira em que as mechas onduladas de seu cabelo molhado caíam sobre seu pescoço. Ou seu aroma. «Aroma de sabão e a virilidade», pensou Anna enquanto aspirava.
Arthur não se barbeou, e a barba incipiente lhe dava um aspecto esfarrapado e perigoso que, maldito fosse, o fazia ainda mais atraente.
Ao comprovar que apesar de todo o ocorrido ainda conseguia lhe afetar do mesmo modo, Anna ficou furiosa e tratou de afastá-lo de seu caminho. Um exercício de futilidade como jamais houve algum.
—Não há motivos para preocupar-se.
Ele a agarrou seu braço para detê-la, como se a impenetrável barreira de seu torso não fosse suficiente.
—A próxima vez que te afastes do acampamento, não o façam sem guarda, preferivelmente eu ou seu irmão.
Suas bochechas se ruborizaram, zangada com o tom e sua atitude prepotente. Sir Arthur Campbell, cavalheiro ao serviço de seu pai, transpassava os limites.
—Não têm direito a me dar ordens. A última vez que olhei não fostes tu, a não ser meu irmão, quem estava ao mando.
Seus olhos brilharam ao mesmo em tempo que ele a agarrava pelo braço com mais força. Falava em voz baixa e sua boca… Anna ficou sem fôlego. Também sua boca estava baixa, a uma altura perigosa, tão perto da sua que doía. Se ficasse nas pontas dos pés, era possível inclusive que chegasse a tocá-la.
Deus, que vontade tinha de fazê-lo. Estava desesperada por fazê-lo. Uma onda de calor invadiu todo seu corpo, concentrando-se nos seios e no encontro das coxas. Os mamilos se puseram eretos; morriam de vontade por roçar-se com seu duro peito.
Aquela traição de seu corpo parecia humilhante. Ele não tinha nenhum direito a fazê-la sentir assim. Não depois de a rechaçar de maneira tão cruel. Não depois de que partisse e deixasse claro que era tal e como o tinha imaginado em princípio. por que não podia deixá-la em paz simplesmente?
—Não me desafiem nisto, Anna. Se quiserem que consiga a cumplicidade de seu irmão, farei. Quão único tentava era evitar a vergonha de que te tratem como a uma criança, mas farei tudo o que esteja em minha mão para te manter a salvo.
Houve algo em sua voz que fez que lhe deu calafrios.
—O que acontece? Estão os rebeldes perto daqui? Viu algo?
Uma sombra cruzou o olhar de Arthur. Negou com a cabeça.
—por agora não.
—Mas têm um pressentimento.
Arthur a olhou com total desconfiança, como se pensasse que tentava enganá-lo para que admitisse que ela tinha razão quanto às habilidades que tinha mostrado com antecedência. Parecia disposto a negá-lo, mas logo encolheu os ombros e lhe soltou o braço.
—Sim, sinto o perigo. E também vocês deveriam senti-lo. Não cometam o engano de pensar que não estão aí simplesmente porque não os tenhamos visto.
Assentiu, assombrada pelo que parecia uma preocupação sincera.
—Farei como me pede.
Ambos sabiam que não era uma petição, mas Arthur parecia estar satisfeito com sua aprovação e não quis discutir a semântica.
Anna era consciente de que devia sair dali quanto antes, mas houve algo que a fez perguntar:
—Por que estas aqui, sir Arthur? Por que insistiram em se unir a nosso grupo?
Ele afastou o olhar. A pergunta lhe incomodava. Muito.
Franziu o cenho.
—Pensei que poderia ser de ajuda a seu irmão.
—E eu pensei que não gostavas de fazer reconhecimento do terreno.
Sua boca se torceu em um irônico e enigmático sorriso.
—Não é tão mau como temia.
Anna observou seus traços com atenção, mas não estava muito segura do que procurava.
—E essa é a única razão? Para ajudar a meu irmão?
Arthur baixou o olhar para olhá-la nos olhos. A intensidade de seu olhar a penetrou com a sutileza de um raio. Era consciente do tic que pulsava sob seu queixo. estava-se controlando, mas do que?
—Dado que não atenderam a minhas advertências, não ficou outra opção que vir e me assegurar de que chegassem a seu destino a salvo.
Entregue a salvo às mãos de outro homem.
—Estou segura de que sir Hugh apreciará seus serviços.
Arthur ficou tenso e os olhos lhe brilharam com um fogo descontrolado. Por um momento Anna pensou que a empurraria contra a árvore e a beijaria. Mas não o fez. Em vez disso apertou os punhos e ficou olhando-a com raiva. Dizia a si mesma que não era decepção o que sentia. Isso dizia a si mesma. Mas não acreditava.
—Não me provoque, Anna.
Mas o tempo das advertências já tinha passado para ela.
—Que não lhes provoque? Como poderia o provocar se não vos afeta? Deixou muito claro naquela noite nos barracões. Fosse tu quem disse que me separasse de seu caminho e não ao contrário, recordam?
—Recordo.
A suavidade de sua voz lhe disse que não era isso tudo o que recordava. A pele começou a lhe arder e parecia sair dela. As lembranças crepitavam entre eles como um sopro de ar sobre brasas, acendendo-se, dispostos a prender-se fogo. Anna estava sumida na frustração. Não podia entender por que fazia aquilo.
—É que mudastes de opinião?
Em outro momento Arthur teria admirado aquele desafio. A franqueza e a naturalidade de Anna eram o que faziam dela uma mulher única. Mas nesse momento não. Não queria pensar em se tinha mudado de opinião. Estava lhe custando muito, Deus e ajuda simplesmente não lhe pôr as mãos em cima. por que não podia ser tímida e retraída? Aí sim se sentiria seguro.
Sabia que atuava como um idiota, mas esses dois dias junto a ela, vendo-a voltar o rosto para evitar seu olhar, atuando como se ele não fosse mais que uma espada mercenária, fazia que chegasse ao limite de seu autocontrole. Não poderia agüentar vê-la outra noite rondando pelo acampamento rindo e divertindo-se com os homens com uns sorrisos que brilhavam quando olhava em sua direção.
Gostava de estar à margem, maldita seja. Mas de seu posto nos limites do acampamento, longe da camaradagem da fogueira, encontrava-se suspirando pela calidez desses sorrisos. Por um pouco dessa risada. um pouco dessa luz.
Sua intenção era que ela reconhecesse sua presença. Mas tudo que tinha conseguido era revolver coisas que não precisavam ser revolvidas. Tais como o assustador desejo de empurrá-la contra a árvore e abusar dela. Quase podia sentir como seus braços lhe rodeavam o pescoço e suas pernas envolviam seus quadris, em tanto que ele se afundava em seu interior, lenta e profundamente. Quase via seu pequeno e suave corpo estirando-se contra o seu, todas essas sedutoras curvas fundindo-se sobre ele, a excitante turgidez de seus mamilos lhe roçando o peito…
Demônios!
Teve que agitar-se para recuperar a compostura. Mas o inchaço que ocultavam seus calções era duro e implacável. Aquilo não tinha que ser tão endiabradamente difícil.
«Te concentre. Faz seu trabalho. Mantem o bastante perto para vigiá-la, mas sem tocar. Não deixe que se aproxime muito.»
Havia muitas pessoas dependendo dele. Tinha que estar ciente do que realmente importava. Assegurar-se de que Bruce chegasse ao trono e derrotar seus adversários. Como John de Lorn. Essa era a oportunidade de ver como seu inimigo pagava pelo que tinha feito a seu pai.
Justiça. Vingança. Endireitar o errado. Sangue por sangue. Essa fora toda sua motivação desde que tinha uso de razão. Tinha dedicado sua vida a tentar consagrar-se como o melhor guerreiro com um só objetivo em mente: destruir a Lorn. Essa fria determinação era sua companheira há quatorze anos. A firme resolução de levar uma missão até suas últimas conseqüências, custasse o que custasse. Essa era a única coisa que tinham em comum todos os membros da Guarda Highlanders, apesar de suas grandes diferenças de personalidade, do irreprimível bom humor do MacSorley e a impulsividade do Seton até o mau gênio do MacRuairi. Mas nunca antes tinha tido tantos problemas para aferrar-se a isso.
Arthur deu um passo atrás com a intenção de dissipar a bruma de desejo que o atendia. Mas seu corpo bulia de desejos insatisfeitos. Uns desejos que cada vez lhe parecia mais difícil ignorar. Andar por aí com o membro duro pego ao ventre não era algo que fizesse muito para remediar seu mau humor. E sua mão tampouco parecia um grande alívio.
Ao ver que ele não respondia, Anna disse:
—E bem?
Tinha mudado de opinião? Negou com a cabeça.
—Não.
Nada tinha mudado. Seguia sendo a filha do homem ao que tinha ido aniquilar. Quão único o futuro lhes proporcionaria seria a traição. Não tinha intenção de piorar as coisas.
Anna não deu amostras de que sua resposta a decepcionasse. Melhor parecia algo que esperava.
—Então por que fazem isto? por que atua como se o importasse com quem contraio matrimônio? Não me quer mas tampouco quer que alguém me tenha, é isso?
Arthur murmurou uma imprecação ao mesmo tempo em que passava as mãos pelos cabelos.
—Não é isso.
De fato, era exatamente isso. Anna tinha dado justo no prego. Estava ciumento, maldita seja. Embora não tivesse nenhum direito a estar. Embora fosse ele quem a desalentasse. Embora não houvesse nenhuma possibilidade de que estivessem juntos. Pensar em que ela se casaria com outro homem fazia que caísse em ataques de ciúmes juvenis.
Anna o olhou nos olhos.
—Então expliquem - me disse isso em voz baixa — O que é o que sentem por mim?
«Jesus.» Essa era a última coisa em que queria pensar. Somente ela seria capaz de tal pergunta. Anna MacDougall não tinha nenhum pingo de acanhamento ou de desânimo. Era direta. Sem rodeios. Despretensiosa. Deus, era uma mulher incrível.
Nem todo o treinamento do mundo podia o fazer parar de mover os pés nervosamente. Não se sentia tão encurralado desde aquela vez em que seus irmãos o fizeram retroceder até a saliência de um escarpado e o provocaram para que se defendesse de seus golpes de espada.
—É complicado — disse, saindo-se pela tangente.
Os olhos dela não deixavam de escrutinar seu rosto em busca de algo que não havia neles.
—Complicado não me vale. —Anna baixou o olhar — Não quero que esteja aqui —acrescentou com uma voz tão rígida como a posição de seus ombros. Tampouco ele queria estar ali, mas não ficava mais opção que fazê-lo. Anna voltou a erguer os olhos para olhá-lo. Já não havia calidez nessas profundidades azul brilhante — O rogo isso, me deixem em paz, simplesmente.
O suave rogo dessa voz apelava a sua consciência, mas ardia no peito de igual forma. Anna deu meia volta e se afastou dali com o porte majestoso de uma rainha.
Desejaria poder fazê-lo, pelo bem de ambos. Mas sua missão vinha em primeiro. Algumas semanas mais. Poderia agüentar algumas semanas mais. Tinha resistido desafios muito mais perigosos. Tudo que tinha que fazer era escorar suas defesas, fechar as comportas e preparar-se para o assédio final.
Capítulo 13
Arthur partia na vanguarda, inspecionando o terreno com dois dos homens de MacDougall, quando percebeu de que algo não ia bem. Uma mudança no ar. Um calafrio que percorria a nuca. A súbita sensação que ativava todas suas terminações nervosas para lhe advertir: «Perigo».
Tinham completado a terceira jornada da viagem virtualmente em sua totalidade. O trajeto a cavalo pela ribeira oeste do lago Ness foi mais longo do esperado, não por tentar evitar aos homens de Bruce, a não ser devido a uma ponte impraticável de Invermoriston. Teriam tentado cruzar as turbulentas águas em caso de não levar consigo Anna, mas em vez disso tiveram que desviar-se outros oito quilômetros do caminho para chegar ao seguinte vau. assim, aproximaram-se do extremo sul dos bosques do Clunemore mais tarde que o que ele esperava. De ali virariam para o este, abandonando o caminho para afastar-se todo o possível do castelo Urquhart, ocupado pelos rebeldes. O plano era acampar a última noite à beira do lago Meiklie, o qual queria dizer que o dia seguinte seria mais exaustivo ainda, já que a relativamente plaina estrada daria lugar às colinas.
Apesar de que Arthur trabalhava melhor sozinho, Alan MacDougall insistiu em que lhe acompanhassem dois de seus homens se por acaso se encontrava com dificuldades. Ao não poder explicar ao irmão de Anna que esses homens representariam mais problemas que ajuda sem trair suas habilidades, Arthur teve que acessar a contra gosto.
À primeira sensação de perigo ergueu uma mão para que os homens se detivessem. Desceu do cavalo, ajoelhou-se e pôs uma palma plaina contra o chão. A leve reverberação confirmou o que seus sentidos já lhe tinham advertido.
Richard, o maior dos dois guerreiros e explorador habitual do MacDougall, ficou circunspeto.
—O que há?
Arthur baixou a voz.
—Voltem e digam a seu senhor que saiam do caminho imediatamente.
Alex, que era aprendiz de explorador, olhou-o com estranheza sob o aço de seu nasal. Ao contrário de Arthur, Alan e o punhado de cavalheiros que usavam elmo, cota de malha pesada e peitilho, os homens do clã dos MacDougall levavam armadura mais leve e o cotun de couro acolchoado que preferiam os highlanders. Essa indumentária de guerra fazia mais fácil o movimento. Não era a primeira vez que Arthur tinha vontade de desfazer-se de seu pomposo traje de cavalheiro e mandar a passeio a mascarada. O mais jovem dos homens olhou a seu redor.
—Por quê?
Arthur franziu os lábios. Ficou em pé e voltou rapidamente para seus arreios.
—Há um grupo numeroso de cavaleiros que se dirigem justo para nós.
Richard o olhou como se estivesse louco.
—Eu não ouço nada.
Aqueles idiotas acabariam fazendo que matassem a todos. Sem tempo para sutilezas, Arthur agarrou ao maior por seu grosso cangote, ergueu-o um par de centímetros dos arreios e aproximou seu rosto a dele.
—Façam o que digo, maldita seja. Dentro de alguns minutos será muito tarde. Querem que matem a dama por sua estupidez?
O homem negou com a cabeça, impressionado com a transformação que sofria o cavalheiro. Quando começou a boquejar para recuperar o fôlego Arthur o soltou de um empurrão.
—Eu os rodearei pelas costas e tentarei distraí-los. —Com sorte, disse, poderia desviá-los para o norte — Digam a sir Alan que saia do caminho imediatamente, que se dirija para o este e cavalguem tão rápido como podem. Abandonem as carretas se for necessário. Encontraremo-nos no lago assim que me seja possível.
Subitamente, Richard moveu sua grosa cabeça para o norte. Um leve som de pegadas de cavalos batia em sua direção. Voltou-se para Arthur com um olhar que albergava tanto temor como suspeita. Inconscientemente, deu meia volta com seu cavalo.
—Pelos ossos de Cristo, têm razão! Ouço-os.
Arthur não tinha tempo de preocupar-se com a inquietação do outro.
—Irei contigo - disse Alex.
—Não — repôs Arthur em um tom de voz que evitava qualquer discussão — Vou sozinho.
Assim seria mais fácil evitar que os capturassem. Além disso, sempre cabia a possibilidade de que conhecesse alguém. Supunha-se que MacGregor, Gordon e MacKay estavam no norte.
—Partam! —disse.
Os homens fizeram o que lhes pedia sem mais discussão.
Arthur tampouco perdeu mais tempo. Cavalo e homem se introduziram entre as árvores em sua carreira por alcançar aos cavaleiros pelas costas antes que aparecessem ante o grupo do MacDougall. Era consciente de que apesar de estar advertidos, demorariam certo tempo em conduzi-los até um lugar seguro. Anna era uma boa amazona, mas não podia dizê-lo mesmo de sua criada. As carretas aumentaram seu ritmo ainda mais. Se algo sabia das mulheres era que não gostavam nada de abandonar seus finos trajes e sapatos. Ao menos Anna não tinha insistido em levar com eles ao maldito cachorrinho. Arthur estava já cansado de limpar os pés.
Arthur ziguezagueou entre as árvores, usando o som dos cavalos como guia, e cavalgou em paralelo aos homens alguns poucos e preciosos minutos até que se dirigiu para eles. Agora vinha a parte delicada: aproximar-se o suficiente para chamar sua atenção, mas nem tanto para que o capturassem. Amaldiçoou para si ao ver pela primeira vez ao grupo de cavaleiros através de um vão entre as árvores. Tinham todo o aspecto de uma leva de guerreiros. Havia mais dos que gostaria, ao menos uma vintena de homens armados até os dentes com mantas de cores escuras, vestimenta de guerra e escudos obscurecidos com breu, um modo de camuflar-se na noite próprio dos Guardiões das Highlands que adotaram mais tarde muitos dos guerreiros de Bruce.
Normalmente não pensaria duas vezes ante um exército tão formidável. Estava adestrado para lutar contra coisas piores. Mas esses homens conheciam o terreno e ele não. Teriam vantagem. Um giro mal dado e acabaria em suas garras. Mesmo assim ele contava com vantagens que eles não tinham: sentidos afiados como facas, velocidade, uma força e um treinamento superiores e a habilidade de desaparecer entre as sombras.
Distinguiu ante ele uma ruptura na linha de árvores. Aí o tinha. Apertou os dentes, baixou a cabeça e saiu como um raio para o claro. Fingiu surpreender-se por sua presença e girou abruptamente para a esquerda, como se quisesse evitar ser visto. Um grito o alertou do cumprimento de seu objetivo. Não se atreveu a diminuir a marcha e olhar para trás para ver se tinham mordido o anzol. Uma fração de segundo de atraso podia significar a diferença entre escapar ou ser capturado. Mas, momentos depois ouviu o ensurdecedor som das pegadas de cavalo atrás dele e sorriu. A caça tinha começado.
Anna tentava não pensar em quão tarde era. Mas à medida que a escuridão descia e que a lua se erguia no céu lhe custava mais acreditar que se encontrava bem. Esse medo que permanecia em espera ante o tumulto de seus próprios esforços para escapar aos soldados inimigos retornou com toda sua força assim que estiveram a salvo. E a coisa piorava com cada hora que passava sem a volta de Arthur. Que lhe atormentasse tudo o que quisesse, isso não importava. Mas que voltasse são e salvo.
Ajustou a capa nos ombros e disse que não devia preocupar-se. Chegar até eles de novo tomaria seu tempo atrás da animada perseguição em que Arthur os embarcaria. «Mas tanto tempo?» mordeu o lábio em uma tentativa de mitigar a crescente sensação de pânico. «Ele não se deixaria apanhar.» Entretanto, eles eram um monte de homens e ele só um. «Não pode estar morto.» Se fosse assim saberia. O coração lhe deu um tombo. Não era isso certo?
—Milady, a sopa está deliciosa. Tome —disse Berta sustentando a colher ante ela — Provem. Embora seja só um pouco - acrescentou, como se Anna fosse uma menina de cinco anos que se negava a comer nabos.
Mas Anna seguia sem gostar dos nabos. Negou com a cabeça e se esforçou em sorrir a sua preocupada criada.
—Não tenho fome.
A anciã pôs cara de estar admirada, fazendo que as rugas de seus olhos cor mel se esparramassem por seu rosto. O aspecto de Berta, com sua apenas um e cinqüenta de estatura e tão magra como um palito, não é que fosse formidável. Mas naquele caso seu rosto era de decepção. Podia ser tão teimosa e áspera como uma mula velha.
—Têm que comer algo. Conseguirá te pôr doente.
Já estava. Doente de preocupação. Somente de pensar em comida lhe dava vontade de vomitar. Conteve o acesso de bílis que lhe chegou à garganta.
—Comerei —mentiu Anna — dentro de um momento.
Berta lhe deu um tapinha na mão, que descansava sobre o musgoso tronco que as separava. Reuniram-se em torno do fogo junto ao resto da escolta, mas o acampamento permanecia em uma quietude incomum e os homens estavam desanimados. Todos eram conscientes de que tinham escapado por pouco e não era ela a única que se perguntava o que teria ocorrido com o cavalheiro que os pôs sobre aviso.
—Que morras de fome não fará que volte antes.
Os pensamentos de Anna eram mais transparentes do que acreditava, mas estava muito preocupada para fingir que não sabia do que lhe falava Berta.
—Acredite que terá ocorrido algo?
Berta apertou sua mão e negou com a cabeça tristemente.
—Não sei pequena minha. Não sei.
O coração de Anna sofreu uma violenta sacudida. A perspectiva tinha que ser terrível para que Berta não se esforçasse por mentir sequer. Voltaram a ficar em silêncio. Anna olhava as chamas da fogueira sem vê-la enquanto Berta acabava sua sopa.
Então Anna ouviu um ramo que rangia atrás dela e se levantou de um salto. Voltou o rosto com o coração na boca, esperando ver um cavalheiro vestido com cota de malha sobre seu cavalo. Assim foi e por um segundo pensou que seria Arthur. Mas seu coração topou com uma decepção. Tratava-se simplesmente de seu irmão Alan, que desmontou do cavalo e atou as rédeas a uma árvore próxima. A expressão sombria que mudou seu rosto à medida que se aproximava a encheu de pavor.
—Tem descoberto algo? —perguntou.
—Não —repôs seu irmão negando com a cabeça — Nem rastro dele.
—Acredita que… —Anna não se atreveu a terminar a frase.
Alan a olhou com atenção.
—Já deveria ter retornado.
A verdade doía como um murro nas vísceras. Lágrimas de angústia afloraram em seus olhos. Acabava de brotar a primeira delas quando ouviu um assobio que atravessava a noite.
—É o sentinela noturno - disse Alan antes que Anna tivesse tempo de perguntar — Alguém se aproxima.
O alarme deu origem a uma pequena comoção. Anna foi primeira em saltar de seu assento de repente, mas isso mesmo foi o que fizeram o resto dos homens. O primeiro que ouviu antes de vê-lo foram os gritos provocados pela emoção e o alívio. Momentos depois, Arthur penetrava no círculo de luz que provia o acampamento e o coração de Anna dava tombos no interior de seu peito. Inspecionou ao cavalheiro em busca de sinais de ferida, mas além do cansaço que refletia seu bonito rosto e da sujeira e o pó de sua cota de malha se via em perfeitas condições. Completamente ileso.
A emoção a embargava com tal força que deu um passo adiante sem poder controlar-se. Lutou por dominar o impulso de ir atrás dele, de correr a seus braços, de rodeá-lo com os seus e chorar toda sua angústia na suja e poeirenta cota de malha que revestia seu peito. Não tinha direito a fazê-lo. Nem fundamentos. Não estavam prometidos, nem se cortejavam sequer. Não eram nada um para o outro. Logo ela pertenceria a outro homem.
Então Arthur a viu. Por um estúpido momento ela se convenceu de que a estava procurando. Seus olhos se encontraram com uma força letal que repercutia em seu peito e o golpeava com os ecos da nostalgia.
Se naquele momento ele houvesse virado o rosto, ignorando-a com frieza, provavelmente Anna teria confrontado seu futuro com uma resolução firme no coração. Mas em vez disso Arthur percebeu seu desespero e assentiu levemente. «Estou bem.»
Era pouco, mas ao menos era algo, e servia como reconhecimento de que existia uma conexão entre ambos. Entre eles dois havia algo especial. Não podia negá-lo por mais tempo. Importava-lhe.
Arthur a olhou por última vez e seguiu adiante para encontrar-se com o Alan.
As emoções de Anna estavam descontroladas. Afetava-lhe muito que acabava de ocorrer para concentrar-se em nada, assim escutou pela metade o relatório que fazia a seu irmão. Eram os homens de Bruce. Um grupo numeroso de guerreiros. O número chamou tanto a atenção que ficou sem fôlego. Vinte e cinco homens. O normal seria que Arthur estivesse morto. Primeiro os tinha desviado vários quilômetros do castelo do Urquhart e depois se dirigiu para o este. Entretanto, os malfeitores tinham dado provas de ser bons cães de presa, e Arthur se viu obrigado a voltar a pé para o acampamento. Anna suspeitava que estivesse deixando muitas coisas no tinteiro.
Alan lhe agradeceu os serviços prestados a todos e o ameaçou a que se sentasse enquanto pedia comida e bebida para ele. Seu irmão falou com Arthur um momento mais antes de lhe deixar comer, mas em voz baixa, de modo que ela não pôde escutar nada. Anna bicou um pedaço de carne-seca de vitela e torta de aveia e ficou rondando por ali, como fizera a maioria dos homens. Entretanto, à medida que caía a noite, algo começou a lhe preocupar. O acampamento se animou com sua volta, e parecia óbvio que todos se alegravam de que não o tivessem capturado, mas a celebração não era a esperada e isso a desconcertava. Além disso, acontecia algo anormal. Ninguém tinha aproximado, além de seu irmão. Em lugar dos tapinhas nas costas, as brincadeiras pesadas e os brinde que seriam de praxe, pareceu-lhe que mais de um o olhava com cara estranha.
Arthur não parecia conscientizar-se. Acabou com sua comida, terminou o odre de cerveja que lhe tinham levado e se retirou de novo à solidão dos bosques. Anna o observou partir e sentiu uma premente necessidade de fazer algo. Olhou aos homens do clã que tinha ao redor. O que lhes passava? Por que atuavam de tal modo?
Chegou um ponto no que já não pôde agüentar-se mais, desculpou-se e foi procurar seu irmão. Alan estava falando com alguns de seus homens, mas ao vê-la chegar os ordenou que se retirassem.
—Acreditei que estaria aliviada.
Evitou fazer como que não entendia do que falava.
—Estou.
—E então a que vem a ser esse rosto, pequena?
—Por que atuam os homens desse modo? Por que não lhe dão obrigado? Por que o evitam?
—Está segura que não é justamente o contrário, irmã? —repôs Alan esboçando um sorriso irônico — Campbell não é precisamente conhecido por sua sociabilidade. Gosta de estar sozinho. —Seu irmão tinha razão, mas nessa ocasião não se tratava só disso. Os soldados se mostravam incômodos, quase temerosos. Quando o fez saber, Alan suspirou e negou com a cabeça — Ocorreu algo hoje quando nossos homens batiam o terreno. Richard me contou isso e provavelmente também contou ao resto. Conforme parece, Campbell ouviu os cavaleiros antes o bastante, antes que houvesse sinal alguma deles. Richard disse que era coisa de bruxaria.
Todo o prazer que Anna pudesse sentir ao ver confirmadas suas próprias suspeitas em relação ao ocorrido com os lobos, empalideceu em comparação com a fúria que atormentava seu interior. Suas bochechas se ruborizaram de indignação.
—Isso é ridículo. É que não se dão conta de que salvou a todos? Teriam que estar agradecidos e não tratá-lo como a um cão.
—Estou de acordo. Mas já sabe quão supersticiosos podem ser os highlanders.
—Isso não é desculpa.
—Não, não é. Falarei com o Richard e tentarei acabar com isso.
Anna saltou de seu assento de repente.
—Faz ou falarei com ele eu mesma. Não penso permitir que rechacem sir Arthur por nos ajudar. Pelas chagas de Cristo, Alan! Sem essa bruxaria, é possível que agora estivéssemos todos mortos.
Alan a olhou com atenção, e o que viu nela pareceu lhe preocupar. Ficou pensativo, assentindo simplesmente com a cabeça, em lugar de criticar por usar essa linguagem vulgar. Anna partiu dali com o propósito de encontrar Arthur, mas seu irmão adivinhou seu destino, porque gritou: —Amanhã pela tarde chegaremos a Auldearn, Anna.
Ela se voltou e lhe dirigiu um olhar inquisitivo, perguntando-se a que viria aquilo.
—Sim.
—Se tiver intenção de ir a sério com o compromisso de casar-se, talvez fosse melhor que o deixasse tranqüilo.
Duvidou ao ouvir a verdade em palavras de seu próprio irmão. Mas não podia fazê-lo. As ações desse homem tinham despertado todos seus instintos de amparo. Tinha que agradecer-lhe embora os outros não fizessem.
Encontrou-o à beira do lago, sentado em uma rocha plaina, depois de ter tomado um banho. Tinha o cabelo molhado e vestia uma simples regata de linho com uma túnica e as perneiras de couro. Estava inclinado sobre seu peitilho, aplicando azeite com um trapo, e sua expressão, vista de perfil, era mais sombria que nunca. Embora parecesse óbvio que a tinha ouvido chegar, Arthur não deu a volta. Uma vez que esteve mais perto, Anna distinguiu o que limpava e o mundo lhe veio em cima.
«Sangue.»
Apressou-se para ele sem pensar, ajoelhou-se e pôs uma mão no braço.
—Está ferido.
Quando ergueu o olhar para olhá-la, a lua iluminou seu rosto.
—Não é meu - disse.
Uma sensação de alívio se expandiu por todo seu ser. Suspirou profundamente. Embora seu rosto permanecesse impassível, percebeu uma estranha emoção em sua voz. Virtualmente soava como se estivesse arrependido. Como se a morte de um de seus inimigos fosse algo que o perturbasse. Talvez para os guerreiros matar não fosse tão fácil como ela imaginava. Em qualquer caso não para ele. Isso o fazia mais humano em certo sentido. Mais vulnerável. Sir Arthur Campbell vulnerável? Esse pensamento a teria feito rir sozinho algumas semanas antes.
—Não tinha outra alternativa - disse Anna com ternura.
Arthur lhe manteve o olhar por um momento e depois dirigiu para a mão que tocava seu braço. Anna sentiu imediatamente a intimidade dessa cálida e rígida pele que apertava com seus dedos e se apressou a retirá-la. Mas isso não conteve a necessidade de aninhar-se junto a ele e repousar a bochecha contra o amplo escudo protetor de seu peito.
Arthur voltou para a tarefa de tirar as manchas incrustadas entre as pequenas peças de metal. Anna se sentou junto a ele em uma rocha mais baixa e o observou em silencio durante vários minutos.
—Por que está aqui, Anna?
—Queria lhes agradecer o que fez hoje.
Arthur encolheu levemente de ombros, sem levantar o olhar de sua tarefa.
—Não fiz mais que meu trabalho. Para isso estou aqui.
Anna mordeu o lábio ao recordar o quão furiosa que a pôs sua intromissão e o cepticismo com o que acolheu suas razões para lhes acompanhar.
—Ao que parecia tinham razão —admitiu — Lhes agradeço que nos tenham acompanhado na viagem. Todos o agradecemos - disse franzindo o gesto com irritação — Embora alguns tenham uma estranha forma de demonstrá-lo.
Os ombros de Arthur se esticaram quase imperceptivelmente.
—O que é o que dizem?
—Que sentiram aos cavaleiros antes que fosse possível fazê-lo.
Arthur arqueou uma sobrancelha, divertido com sua tentativa de suavizar o golpe.
—Seguro que disseram algo mais que isso.
As superstições de seus companheiros de clã ruborizaram as bochechas de Anna.
—É certo, verdade? É como aquilo que aconteceu os lobos e quando tropecei no escarpado. Podem ver as coisas antes que aconteçam.
Anna lhe suplicou com os olhos que não mentisse. Outra vez não. Ele ficou calado durante tanto tempo que pensou que não lhe responderia.
—Não é de tudo assim —disse finalmente — É mais como um pressentimento. Meus sentidos estão mais afinados do normal. Isso é tudo.
—Afinados? —repetiu ela — São extraordinários. —Seu louvor não pareceu a não ser o incomodar mais — Não entendo como o resto dos homens não é capaz de compreendê-lo. Salvaram a todos.
—Deixem estar, Anna. Não tem importância - disse olhando-a com gesto severo.
Parecia falar a sério, algo que mais que atenuar suas faculdades as ressaltava.
—Como podem dizer isso? É que não vos molesta? Teriam que lhes agradecer o que têm feito e elogiar suas extraordinárias habilidades, em lugar de atuar como crianças que tivessem medo de encontrar um trasgo na cama ou fantasmas dentro do armário.
A indignação que Anna sentia pelo trato que lhe dispensavam não encontrava a avaliação esperada. Uma vez mais pareceu que essa conversa lhe incomodava.
Arthur a olhou com dureza.
—Não é algo que me incomode e tampouco necessito que façam as coisas mais difíceis advogando por minha causa. Não quero que mencionem nada a respeito do que acreditaram ver. Deixem passar e cairá no esquecimento. Insistam e piorarão.
Falava da experiência.
Anna teve que apertar os lábios para não discutir. Aquilo não estava bem e a injustiça que suportava fazia aflorar todo seu instinto de amparo.
Incomodava-o. Tinha que ser, por mais que se mostrasse despreocupado. Que estivesse tão acostumado a essa sutil crueldade das pessoas e que a desse por certa fazia disso um pouco mais duro. Encolhia-lhe o coração. Quantas vezes o teriam rechaçado ou repudiado para que se convertesse em uma pessoa tão insensível e indiferente? Seria isso o que o afastava de outros? Todo seu distanciamento e individualismo lhe pareceram de repente uma máscara para sua solidão. Levava tanto tempo só que tinha chegado a convencer-se de que gostava. Seu coração se compadecia dele. Era tão afortunada de ter a sua família… Odiava pensar que uma pessoa pudesse estar sozinha.
—Anna? —disse ele procurando seus olhos à luz da lua. Teria adivinhado a direção que tomavam seus pensamentos? — me prometa que não dirá nada.
Anna pôs cara feia, mas assentiu. Ele se levantou para passar o apertado peitilho pela cabeça se vestiu com um tabardo limpo e trabalhou em excesso na sujeição de suas numerosas armas. Observar como se vestia era um ato que transbordava intimidade, mas a Anna não envergonhava fazê-lo. Ao contrário, parecia natural. Como se pudesse passar todos os dias de sua vida vendo como ele se preparava para a guerra. Aquele pensamento teria que tê-la horrorizado, mas, em vez disso, viu-se invadida por uma intensa sensação de desejo, de saudade por algo que lhe escapava das mãos. Fazia que se expusesse seu futuro e pensasse que talvez ele não fosse o homem errado, a não ser exatamente o adequado para ela. Um guerreiro estável. Isso parecia algo contraditório. Mas talvez fosse ela quem se equivocava de cabo a rabo.
—O que fará quando acabar a guerra? —perguntou.
Perguntava-se se não teria pensado em fazer algo com seus desenhos, talvez. Ou estaria simplesmente esperando a seguinte guerra para lutar nela?
A pergunta o pegou despreparado. Arthur estava atendo-se a espada e a deixou pela metade. O certo era que não tinha dedicado muito tempo a pensar. Fazia muitos anos que a guerra consumia sua vida. Lutar era para quão único servia. Primeiro junto a seu irmão Neil e logo como membro dos Guardiões das Highlands. Era um soldado profissional. Um dos melhores do mundo. Era o único que sabia fazer. Mas era isso o que ele queria? O teria escolhido ao ter a oportunidade? Uma vez que houvesse justiça para seu pai, que Bruce tivesse o trono assegurado, uma vez cumpridos os objetivos… o que faria então?
Terras e uma rica esposa seriam sua recompensa. Isso teria que bastar. Mas ao olhar a aquela mulher que o acabava de defender tão fervorosamente, que o via como alguém extraordinário em lugar de horripilante, que tinha um coração que não lhe cabia no peito, perguntava-se se realmente seria suficiente com isso. Ao olhar essa carinha arrebitada, banhada pela luz da lua entre tênues sombras, sentiu uma estranha angústia. Saber que era algo impossível não lhe impedia de seguir desejando-a. Mas já tinha mostrado muito de si mesmo. Estava tão acostumado a mentir a respeito de suas habilidades que lhe parecia estranho ouvir a verdade em voz alta. Estranho, mas também consolador. Manteve-se afastado do resto durante tanto tempo que esquecia o que era ter conexão com alguém.
Estava completamente louco.
Sua única desculpa era que o tinha pego em um momento de debilidade. O sangue que limpava de seu peitilho era a dos dois homens que se viu obrigado a matar para defender-se.
«Protege sua identidade custe o que custar. Protege a missão.»
Deus, às vezes odiava o que tinha que fazer. Acabou de ajustar o armamento antes de responder.
—Eu diria que isso dependerá do resultado.
Inclusive nesse lusco-fusco percebeu que o rosto de Anna empalidecia, mas se recuperou com rapidez.
—Não há mais que um resultado possível. Não conhece meu pai. Não perderá. —Arthur ficou tenso. Sabia isso melhor que ninguém. Essa era a razão pela que estava ali — O rei Hood e os rebeldes serão submetidos e levados diante da justiça.
Apesar de que soasse como o melhor e mais leal dos soldados do clã MacDougall, podia perceber a fragilidade que se escondia atrás daquela bravata. Anna seguia aferrando-se a ilusões que começavam a apresentar fissuras. Mas estava claro que era consciente do desesperado de sua situação, ou não estariam ali nesse momento.
—E mesmo assim acode ao Ross para lhe permutar por tropas adicionais.
Anna endireitou as costas de repente. Seus olhos brilhavam com intensidade ante o resplendor da lua.
—Não se trata exatamente disso.
Sim, se tratava disso. E seu trabalho era assegurar-se de que não ocorresse.
Não queria ser cruel, mas ela precisava confrontar a realidade. O pêndulo se afastava dos MacDougall. Bruce estava ganhando a guerra.
—E o que passará se fracassar, Anna? O que acontecerá Ross não está de acordo em mandar mais homens? Então o que?
—Meu pai pensará algo. —Soava tão desesperada que, sem se dar conta, esteve a ponto de aproximar-se até ela para consolá-la — por que falas de tal modo? —perguntou — Falas como um rebelde. Por que está aqui então, se não acredita em nossa vitória?
Amaldiçoou para si. Tinha razão. E logo descobriria quanta. Encolheu-lhe o estômago ao pensar em como a afetaria descobrir a verdade. Gostaria de poder suavizar o impacto de algum modo.
—Essa é justamente a razão pela que estou aqui, Anna. Por acreditar em uma causa. Por acreditar que ganhará o lado adequado. Mas as coisas não passam sempre do modo em que alguém pensa. Não quero lhe ver sofrer. —Deteve suas palavras e voltou para a questão original — Para quando a guerra acabe me prometeram terras e outras recompensas. Isso deveria bastar para me manter ocupado.
Anna inclinou um tanto a cabeça e umas linhas brancas diminutas povoaram seu sobrecenho.
—Outras recompensas? Que tipo de recompensas? —Embora não lhe respondeu, a resposta pareceu ir a sua cabeça de repente. Sobressaltou-se ao cair na conta e sua expressão de estranheza desvelou mais do que queria — Uma esposa? Eles prometeram uma esposa? —Arthur assentiu levemente, reconhecendo — Quem?
Uma das maiores herdeiras das Highlands ocidentais, a segunda irmã de Lachlan MacRuairi, lady Christina, senhora das Ilhas.
—Não sei —mentiu Arthur — Quando acabar a guerra me encontrarão uma esposa adequada.
Não era a primeira vez que desejava ser capaz algo precipitado, como tomá-la entre seus braços e lhe fazer promessas que jamais poderia cumprir.
—Já vejo —disse ela com voz diminuída — E por que não me contaram isso?
Ele a olhou com atenção.
—Como fizeram todos?
Anna estremeceu. Ao que parecia, tinha esquecido para onde se dirigiam. Mas ele não o tinha feito. A cada passo que os aproximava do Auldearn e Ross, Arthur sentia crescer a inquietação em seu interior. Sabia que tinha que fazer algo para evitar essa aliança, pela missão, conforme dizia a si mesmo. Mas o que?
Talvez não tivesse que fazer nada absolutamente. Era possível que Ross simplesmente se negasse a retomar as conversações sobre o compromisso. Mas com somente olhar a doce cara de Anna, Arthur foi consciente de que estava sonhando. Sir Hugh ficaria com ela com os olhos fechados. Apertou a mandíbula e lhe estendeu a mão.
—Vamos, temos que retornar. Faz-se tarde e temos um longo dia pela frente.
Quando Anna deslizou uma mão sobre a dele uma onda de calor invadiu todo seu ser. sentia-se… satisfeito. Como se não houvesse nada mais natural que ter essa pequena mão entre as suas. Todos seus instintos clamavam por agarrá-la e não deixá-la escapar.
Mas em vez disso, permitiu que seus dedos se desenlaçassem. Caminharam em silencio até o acampamento. Já se haviam dito suficiente. Talvez muito.
Capítulo 14
—Algo errado com sua comida?
A voz de sir Hugh tirou a Anna de seus pensamentos. Quanto tempo levava olhando sua tigela como uma boba e tirando o miolo ao pão pouco a pouco, sem dizer uma palavra? Tentou cobrir sua falta de tato com um sorriso ao mesmo tempo em que a vergonha se revelava em suas bochechas em forma de rubor.
—Não, está deliciosa. —Para dar fé disso meteu um pedaço de vitela na boca e fingiu deleitar-se. Uma vez o teve mastigado pediu desculpas — Temo que ainda esteja cansada pela viagem e não sou uma boa companhia.
Fazia duas noites que tinham chegado ao Auldearn. O último dia de marcha foi exaustivo, mas felizmente sem incidentes. Esperava em seu foro interno outra oportunidade para falar com sir Arthur antes que chegassem, e teve que levar uma decepção. Não era que ele a tivesse evitado, mas tampouco a tinha procurado.
Algo mudou aquela noite no lago, ao menos para a Anna. Arthur lhe tinha devotado uma parte de seu ser que parecia não revelar freqüentemente, uma parte dele que talvez a necessitasse. E o mais importante: não a tinha espantado. E por que não o tinha feito? Tudo teria resultado mais simples. Anna lutou por reprimir a cálida inflamação que ia a seus olhos e sua garganta enquanto a miséria se apoderava dela. Isso era o que lhe faltava, ficar a chorar em meio da comida como se fosse uma criada meio louca e doente de amor. Seguro que assim impressionaria sir Hugh.
Embora fosse jovem, apenas vinte e três anos, sir Hugh Ross era um homem cuja grandeza, superioridade e decidido atrativo se refletiam no perfil de seu perfeitamente torneado nariz até a ponta de seu afiado e curto queixo. Mas o orgulhoso cavalheiro parecia muito maior. Virtualmente parecia controlar-se em demasia, com tanta serenidade e tanto controle sobre si mesmo e essa arrogância de príncipe, algo que tampouco estava muito longe da verdade, dado a fila que ostentava entre a nobreza escocesa. Rígido, sem senso de humor, com esse aspecto frio e desumano tão próprio dos homens de sua época.
Sir Hugh lhe dirigiu um sorriso de compreensão que não melhorou em modo algum a severidade de seu semblante.
—É obvio, depois de cavalgar para tal passo e estar a ponto de ter uma topada com um grupo de rebeldes, é algo previsível. —Seu rosto adotou um aspecto sombrio — Teria que esfolar ao Bruce com suas próprias esporas por ser líder desse bando de piratas desalmados —acrescentou, voltando seu acerado olhar sobre ela — Foram muito afortunados de receber aviso a tempo de escapar —disse puxando a barba enquanto a observava. Anna não podia afastar os olhos de suas grandes e ossudas mãos, umas mãos que poderiam esmagar ou assassinar com a facilidade como que as suas rompiam um galhinho — Foi sir Arthur Campbell, não é certo? O irmão do rebelde Neil Campbell.
Anna assentiu, incomodada com seu próprio acanhamento. O nervosismo que sentia na presença de sir Hugh, o qual foi a primeira causa de que rechaçasse o compromisso, não fazia mais que agravar-se desde sua chegada. Sorrir e responder a suas educadas tentativas de conversa se convertia uma batalha. Observava-a como se pudesse ler seus pensamentos. Teria se delatado? Ela tinha tomado cuidado nem olhando na direção sir Arthur desde que chegaram. Ao menos acreditava não tê-lo feito. Mas estava mais que segura de que ele sim a estivera observando. O qual, provavelmente, explicava parte de sua inquietação. Seduzir a um homem sob o fulminante olhar de outro não era tarefa fácil. Mas tinha que fazer. Embora não gostasse da idéia. E a idéia não gostava absolutamente. Os dias passados encarregaram de deixar claro. Temia pensar muito no que sentia por Arthur por medo que descobririam.
—Tivemos muita sorte — comentou ao conscientizar de que sir Hugh esperava que dissesse algo.
Anna não sabia o que lhe acontecia. Jamais teve esse tipo de problemas na conversa com ninguém. Procurava controlar o tremor de suas mãos, mas lhe inquietava tanto a intensidade de seu olhar que atirou o pedaço de pão que tinha na mão. Caiu sobre a mesa, junto a sua taça e ao tentar recolhê-lo ao mesmo tempo em que Hugh Ross suas mãos se tocaram. Antes que desse tempo a retirar a sua, sir Hugh a cobriu com seus dedos. Seu pulso se acelerou até embarcá-la em uma sensação próxima ao pânico. Seu coração revoava em seu interior como se tratasse de um passarinho enjaulado.
—Está nervosa - disse lhe soltando a mão e lhe devolvendo o pão.
Ardiam-lhe as bochechas.
—Não têm nada que temer, lady Anna —disse visivelmente divertido — Sou bastante inofensivo. —Ela deve ter posto cara de não acreditar absolutamente, pois ele acrescentou—: Bom, pode ser que não completamente.
Essa inesperada amostra de humor a fez sorrir e pela primeira vez sentiu que começava a relaxar. Olhou-o do meio lado, protegida sob suas largas pestanas.
— Bom, milorde, é que sua pessoa é… certamente imponente.
—Tomarei como um elogio, embora não acredito que fosse essa sua intenção —disse entre risadas, para depois aproximar-se mais a ela e sussurrar—: O que parece se me esforço por ser imponente com todos menos contigo? Contigo serei o mais inofensivo. Será nosso segredo.
Anna, incapaz de resistir a seu encanto, sorriu até que lhe marcaram as covinhas. Sir Hugh Ross encantador? Jamais teria acreditado. Acaso o mal-humorado nobre ocultava mais do que Anna conhecia?
—Acredito que disso eu gostaria, milorde —disse sentindo que voltava para ela um pingo de seu atrevimento — Talvez ajudasse que sorrisse mais - acrescentou erguendo os olhos para olhá-lo.
Sim, quando sorria não parecia intimidar tanto.
Sir Hugh esboçou então um amplo sorriso e procurou seus olhos com o olhar.
—Pois então o farei - replicou. Fez uma pausa em seu discurso e Anna observou como se entretinha em riscar o relevo do pé da taça, interrompendo-se de um modo quase sensual que a devolveu a seu estado de inquietação — Estou muito contente de que tenham decidido viajar até o norte, lady Anna.
Cada vez estava mais tinta. Não lhe escapava o significado de suas palavras. Estava disposto a renovar as conversações em torno do compromisso. Sabia que devia sentir-se aliviada. Para isso tinha ido até ali. Poderia ajudar a salvar a sua família. Então por que notava como se uma estaca se atendasse em seu peito?
Assentiu com indolência, incapaz de encontrar-se com seu olhar de repente, temendo que revelasse muito. O peito lhe angustiava ao conscientizar de que o laço de seu futuro cada vez se atava com mais força. Seus sentimentos pessoais não importavam. Deveria contentar-se sabendo que tinha posto seu grãozinho de areia para ajudar à família. Isso seria recompensa suficiente, verdade?
Ross se voltou e fez gestos a uma criada que passava para que enchesse suas taças. Anna voltou o olhar inconscientemente para Arthur. Sabia onde estava sem necessidade de olhá-lo. Parecia atravessar toda a sala com o calor de sua ira. Seus olhares se encontraram durante um instante, mas foi tempo suficiente para que a força de sua ira ressonasse como o rugido de um ferreiro na forja. Em geral, continha tanto suas emoções que Anna se perguntava se realmente existiriam. Mas isso acabou. Jamais o tinha visto tão feroz e selvagem. Parecia um homem cuja contenção pendia de um fino fio.
Voltou-se, sobressaltada pela emoção que a embargava. Infelizmente não voltou o olhar com suficiente rapidez e sir Hugh apreciou parte do intercâmbio. Notou como ficava em guarda e entreabria os olhos olhando sir Arthur.
—Campbell não parece muito feliz com nosso acerto. Eu não gosto da forma em que vos olha - disse voltando o olhar para ela e arqueando uma sobrancelha de tal modo que parecia algo menos casual — Há algo que deveria saber lady Anna?
Amaldiçoou Arthur por sua imprudência. Arruinaria tudo. E para que? Já tinha tido oportunidades mais que suficientes para mostrar seus sentimentos, se é que albergava alguns. E agora não ficava opção. Seu pai contava com ela.
Mesmo assim duvidava. Essa seria sua última oportunidade para voltar atrás. Seu coração puxava em uma direção, e o dever e sua família puxavam a outra. Anna recordou a conversa mantida com sir Arthur. O ouvir falar de perder a guerra a tinha feito tremer. Inspirou profundamente e se desembaraçou de todas as dúvidas. Seus sentimentos pessoais não importavam. Tinha que fazê-lo. Quando Bruce chegasse, teriam muitas mais possibilidades com Ross e seus homens ao seu lado.
Negou com a cabeça.
—Não, não há nada que deveria saber.
A certeza de sua voz pareceu convencer sir Hugh. Assentiu.
—Bem —disse lhe estendendo a mão — Venham, há algo que eu gostaria de mostrar e acredito que há certas coisas que deveríamos discutir.
Anna ignorou a dor que lhe oprimia o coração e sorriu, embora tremulamente. Sem nenhum olhar mais, deu a mão ao Ross e lhe permitiu que a tirasse do grande salão com seu futuro já mais que decidido.
Isso era o que se sentia quando as pessoas perdiam o controle. Isso era o que se sentia quando alguém queria algo com tanta vontade que mataria por consegui-lo. Não pelo bem ou o mal, nem por estar no campo de batalha, mas sim pela pura satisfação de ver outro homem atravessado pela ponta de seu aço.
Arthur queria matar Hugh Ross. Dava-lhe vontade de matá-lo somente pela forma em que olhava a Anna. Pelos pensamentos luxuriosos que seguro percorriam a mente daquele filho de cadela. Arthur não acreditava ser capaz de conter-se no caso de que o olhar do Ross se detivesse de novo sobre seus seios. Atiraria uma lança no seu sobrecenho do outro lado do aposento. Poderia fazê-lo com os olhos fechados. Ficar afastado durante os últimos dois dias obrigado a contemplar como outro homem cortejava a essa mulher que, supostamente, não significava nada para ele era como uma lenta e agonizante descida à loucura. Arthur liberava uma batalha perdida. Suas tentativas de permanecer indiferente, de centrar-se na missão, não funcionavam. Todos esses anos de treinamentos e experiência na batalha não o tinham preparado para aquilo. Ver Anna e Hugh Ross juntos estava lhe fazendo em pedaços. Mas essa noite foi a gota que encheu o copo. Quando viu Ross lhe acariciar a mão, Arthur esteve a ponto de sair da ali feito uma fúria e lhe partir todos os dentes num murro. Ao diabo com o subterfúgio. Estavam rindo, maldita seja. Rindo.
Queria convencer-se de que ela não seria capaz de passar por isso. Não seria porque Anna não se mostrou precavida a respeito ao cavalheiro durante os últimos dois dias, precisamente. Mas Arthur tinha subestimado sua resolução, e também o encanto de sir Hugh. Quando se aproximou para lhe sussurrar ao ouvido teve que apertar os punhos. Não foi até que baixou o olhar e percebeu a palidez de seus nódulos que se deu conta de quão forte tinha a taça obstinada. Foi toda uma sorte que fosse de madeira; de outro modo, a teria destroçado.
Amaldiçoou consciente de que devia fazer algo. Tinha que pensar em sua missão. Sir Hugh não perdia tempo, e não é que pudesse culpá-lo. Se Arthur não fazia nada para impedir aquela aliança, seria muito tarde. Bebeu o conteúdo da taça. O uisgebeatha de cor ambarina fez que ardesse a garganta, mas não acalmou absolutamente a intranqüilidade que bulia em seu interior.
—Que diabos te passa, Campbell? Parece que queira matar a alguém - disse Alan MacDougall olhando de soslaio ao estrado. Sabia perfeitamente a quem queria matar Arthur. Aproximou-se para falar — Tome cuidado. Acredito que nosso anfitrião advertiu seu interesse por minha irmã.
Arthur economizou a vergonha de negá-lo. Alan MacDougall podia ser filho de um déspota desumano, mas não era nenhum idiota.
—E viestes para ordenar que me retire do conflito?
O guerreiro mais velho, muito experiente para delatar-se pela expressão de seu rosto, olhou-o com impassibilidade.
—Queres que o faça?
Arthur contraiu a mandíbula e apertou os dentes.
—Deveria — disse em um estranho momento de franqueza.
Não faria mais que arruinar sua vida. Se ele fosse seu irmão, ordenaria que o mandassem ao inferno diretamente e logo iria ele mesmo atrás. Mas se Alan pensou que havia algo estranho em sua resposta certamente não o exteriorizou. Em vez disso, sorriu com ironia.
—Parece-me que é muito tarde para isso.
Arthur afastou o olhar de sir Hugh e de Anna o tempo suficiente para olhar ao Alan enviesadamente. Não tinha idéia do que Alan acreditava saber, mas se equivocava. Ou não?
Diabos, já não sabia. Sua missão. Ciúmes. Sua intensa atração pela moça. Tudo isso se mesclava criando um caos absoluto. Voltou a beber de um gole o conteúdo da taça.
Alan observou como o fazia com uma expressão divertida.
—Acreditava que não bebia uísque.
—Não bebo - disse Arthur, e fez gestos à criada para que lhe enchesse a taça.
Alan estivera observando-o com mais atenção da que pensava. Aquilo o teria preocupado a não ser porque algo lhe fez voltar sua atenção para o estrado. Todos seus músculos ficaram rígidos quando viu que Anna deslizava sua mão sobre a do Ross. A ira percorria todo seu corpo ao mesmo tempo em que aquele homem se inclinava para falar brevemente com seu pai momentos antes de acompanhá-la ao exterior do salão. Justo antes que Hugh passasse pela porta olhou para Arthur. O tom malicioso de seu olhar fez que lhe gelasse o sangue. Uma sensação estranhamente próxima ao pânico subia por seu peito, algo ridículo por completo. Era um guerreiro de elite. Distante. Controlado. Pode ser que seu coração pulsasse muito depressa e que não pensasse com claridade, mas era indisputável que aquilo não podia ser pânico.
Mas onde demônios acreditava que ia? Ross, esse filho de puta lascivo, estava obviamente ansioso pelo compromisso. Quem sabia do que seria capaz para assegurá-lo? Acaso Anna não notava do que aconteceria quanto estivessem a sós? A mente de Arthur voltou para os barracões imediatamente.
«Por todos os diabos.»
Conseguiu resistir durante uns trinta segundos até que já não pôde agüentar mais. Levantou-se para partir, mas Alan o deteve movendo sua perna pela borda da mesa e lhe fechando o passo. Não era nenhum acidente. A princípio Arthur acreditava que queria detê-lo, mas para sua surpresa o guerreiro retirou a perna lentamente e lhe deixou passar, não sem antes fazer uma advertência.
—Se fizer mal a minha irmã, Campbell, terei que te matar.
Apesar de que falasse com tanta calma como se informasse o tempo, Arthur era consciente de que dizia muito sério. Que diabos, se Alan não fosse seu inimigo e o filho de um déspota, pode ser que inclusive lhe caísse bem. Arthur o olhou nos olhos e assentiu, com a suspeita de que Alan MacDougall não seria capaz de manter sua promessa. Pôr fim ao compromisso e deter a aliança, fazendo dano a Anna no processo, converteu-se em algo inevitável.
Anna esperava que sir Hugh a levasse fosse para passear pelo barmkin, mas em vez disso a fez entrar pelo corredor até a torre da comemoração. O castelo real do Auldearn fora construído uns cem anos antes por encargo do Guillermo o Leão. Sua torre da comemoração e o grande salão contíguo se erguiam no alto de um enorme Castro circular rodeado por um cerca de madeira. O muro de pedra que rodeava o pátio de armas que havia debaixo proporcionava um nível mais de defesa. O corredor iluminado pelas tochas parecia silencioso em comparação com o bulício do grande salão. Anna se inquietou ao ser consciente de que não havia ninguém mais ao redor. Embora os últimos raios de sol ainda reverberassem sobre o horizonte, a torre de pedra estava já às escuras. Tampouco a luz cintilante das tochas alinhadas nos muros lhe dava mais tranqüilidade.
—A…aonde vamos? — perguntou envergonhada pelo tremor de sua voz.
Sir Hugh lhe dirigiu um enigmático sorriso que fez que Anna se perguntasse se saberia a impressão que causava nela.
—Já quase chegamos.
Deteve-se frente à porta da câmara particular do conde. Uma vez aberta, Anna aliviou comprovar que a estadia estava bem iluminada pelo castiçal de ferro circular que pendia do teto. Infelizmente, Hugh a levou até outra porta que havia cruzando a sala, com o que Anna percebeu de que aquele não era seu destino final. O segundo aposento estava às escuras. Anna ficou na câmara até que sir Hugh acendeu umas velas. Então ficou sobressaltada.
Anna se esqueceu de seu nervosismo. Apressou-se a entrar no minúsculo aposento, não muito maior que uma despensa, e olhou com surpresa a seu redor. O centro da sala estava presidido por uma mesa e um banco, mas o que enchia seu assombro era o que havia sobre as paredes. Prateleiras e mais prateleiras cheias de grossas folhas de couro, alguns deles recobertos de ouro e outros com jóias incrustadas. Um tesouro oculto. Mais livros dos que tinha visto em sua vida em um só espaço.
Sir Hugh observou em que modo a maravilha e a incredulidade transformavam seu rosto.
—Pensei que isto poderia lhes interessar.
Anna deu uma palmada de puro prazer; seus dedos estavam impacientem por explorar os títulos. Por Deus bendito, se pareciam quatro volumes do Chrétien do Troyes!
—É magnífico — disse voltando-se para ele — Como sabias?
Hugh Ross encolheu de ombros.
—Em certa ocasião mencionaram que desfrutava da leitura.
Anna inclinou a cabeça e o olhou. Uma vez mais sentia como se o tivesse julgado mal.
—E se lembrou?
Sir Hugh não respondeu, mas a olhou de tal forma que um formigamento de inquietação lhe percorreu as costas. Desejava-a. De repente aquele minúsculo aposento pareceu uma armadilha a Anna. Olhou para a porta, mas já fosse intencionadamente ou não, ele se tinha colocado frente a ela lhe cortando o passo.
—por que me trouxestes aqui? —perguntou.
Sir Hugh deu um passo adiante e seus olhos brilharam de maneira perigosa entre as penumbras. Pegou-a pelo queixo e a obrigou a olhar em sua direção. O pulso lhe acelerou de pânico. Talvez fosse uns cinco centímetros mais baixo que sir Arthur, mas em certo modo seu tamanho lhe parecia ameaçador. Anna teve que reunir todo o valor com o que contava para não sair correndo.
—Queria lhes mostrar o que terá quando fores minha esposa. Esta sala estará a sua disposição. Será uma das damas mais importantes do reino. Para isso viestes, lady Anna. Não é assim? Para reatar as conversações sobre nosso compromisso.
—Sim - sussurrou ela, tentando controlar o tremor de sua voz.
Hugh cravou o olhar em seus olhos, desafiando-a.
—É isso o que quer realmente?
O coração lhe pulsava com fúria. Teve que obrigar-se a assentir.
—Sim.
—Então prove — pediu. Ela piscou de maneira inquisitiva — me beije.
Anna abriu os olhos de par em par pela surpresa.
Lutava por saber o que dizer. Mas, pelo amor de Deus, não podia. E ele sabia. Endureceu o olhar.
—Está jogando comigo, lady Anna? Asseguro-lhes que não tenho nenhum desejo de ser o corno de outro homem. Recorde que são vocês quem acudis a mim nesta ocasião. —Sir Hugh lhe pôs um dedo no lábio inferior e Anna conteve o fôlego, paralisada pelo medo — Decida o que quer antes de fazer algo que não possa ser desfeito. Uma vez estejamos comprometidos, asseguro-lhes que não tolerarei tais tolices.
As bochechas de Anna se avermelharam, envergonhada por quão certas eram suas acusações. Sacudiu o medo tentando recordar por que tinha ido até ali, tentando recordar quão importante era conseguir essa aliança para ela. Não podiam deixar escapar essa oportunidade. Por que se comportava como uma estúpida? Somente se tratava de um beijo.
—milorde, o temporal…
Ao ver que lhe soltava o queixo, Anna suspirou mostrando maior alívio do que devido.
—Temos que retornar ao salão - disse Ross fria e secamente — Seu irmão se estará perguntando aonde a levei.
Anna assentiu, sentindo sua impotência, consciente do que devia fazer, mas incapaz de pronunciar as palavras. Que o diabo levasse Arthur Campbell pelo que estava fazendo com ela! Por confundi-la. Ela estava preparada para levá-lo a cabo antes que ele voltasse a aparecer.
—Se não lhes importar, meu senhor, estou cansada e preferiria me retirar a meus aposentos.
Sir Hugh assentiu.
—Não há pressa. Querem tomar um livro emprestado, talvez? —Olhou-o nos olhos, consciente de que tentava tentá-la — Podemos falar sobre isso manhã.
Hugh Ross deu meia volta para partir, mas algo o fez mudar de idéia. Antes que ela pudesse conscientizar do que se dispunha a fazer, já a tinha atraído para si e a estava beijando. Anna ficou paralisada, muito surpreendida para resistir.
Seus lábios eram frios e duros, em consonância com sua pessoa. Acertou a distinguir um leve aroma a vinho, mas antes que pudesse descobrir algo mais já tinha acabado tudo. Sir Hugh baixou o olhar e sorriu ao ver o rosto de surpresa que Anna tinha posto.
—Têm toda a noite para decidir. Mas se quiserem que o compromisso siga adiante, espero que me dêem uma resposta amanhã. Uma que seja algo mais entusiasta que esta.
Ross não se fazia uma idéia do perto que estava da morte. Arthur apertava a adaga em sua mão, tentando controlar a sede de sangue que percorria suas artérias com cada um dos músculos. Tudo que tinha que fazer era dar um par de passos, sair de seu esconderijo depois das sombras do vão da porta e afundar sua folha no mais profundo das vísceras daquele filho de cadela.
Tinha-a beijado. Tinha-a tomado entre seus braços e tinha grudado sua boca a dela. Algo se rompeu em seu interior. Todos seus instintos lhe diziam que tinha que sair dali e matar ao homem que se atrevia a tocar aquilo que lhe pertencia. Mas algo deteve sua mão no último momento. Matar ao Ross poria fim a sua missão. Veria-se obrigado a fugir, acabando assim com sua oportunidade de destruir ao Lorn. Teve que aferrar-se ao mínimo de controle que ficava para não mover-se, mas deixou que Ross saísse do aposento. Deixou-lhe viver. Por essa vez.
Entretanto, Anna não escaparia a sua ira tão facilmente. Asseguraria-se de que não houvesse mais que uma resposta à manhã seguinte. O compromisso que ela tinha planejado estava a ponto de chegar a um final irrevogável.
Anna seguiu os passos do Ross apenas se desvaneceram suas pegadas. Assim que chegou à porta, Arthur saiu de entre as sombras e lhe fechou o avanço.
Ela ficou sem fôlego. Todo o medo que pudesse sentir logo desapareceu para dar passo ao brilho de ira que incendiava seu olhar.
—Como te atreve a me espiar? —exclamou. Tentou afastá-lo de seu caminho, mas ele imobilizou seus pulsos com uma mão — Deixe-me partir. Não tem nenhum direito.
Voltou a colocá-la no aposento e fechou a porta atrás dele.
—Tenho todo o direito —disse Arthur com fúria — Não se casará com ele.
Advertiu o rubor de suas bochechas à luz das velas. Seu busto, esses incríveis seios, tão grandes que não podia deixar de sonhar com eles, enchiam-se com uma indignação justificada. Anna ergueu o doce rosto com seu adorável e teimoso queixo para ele.
—Sim o farei.
Não gostava desse tom absolutamente. Nenhum pingo. Entreabriu os olhos.
—Nem sequer podia lhe beijar - disse aproximando-se mais a ela e aspirando a sensual calidez de sua fúria — Como pensa que será então deitar-se com ele?
A indignação de Anna se traduziu em um áspero gemido. A Arthur não cabia a menor duvida de que lhe teria parecido uma adaga entre as costelas se tivesse uma. Mas sua língua era igual de efetiva estripando-o.
—Suponho que chegarei a me acostumar. É possível que inclusive desfrute. Sir Hugh é um homem muito arrumado. E parece bastante decidido, não acredita? —disse lhe provocando com o olhar, desafiando-o, voltando-o louco — Se parecer em algo a esse beijo imagino que chegarei a desfrutar muito disso.
Agarrou-a pelo braço.
—Pare — disse agitando-a ante si — Pare.
Parecia estar a ponto de explodir. Suas provocadoras palavras exaltavam ao máximo aqueles sentimentos contidos durante tanto tempo. Uns sentimentos que Arthur não queria reconhecer. Uns sentimentos que não podia permitir que aflorassem. A cabeça lhe dava voltas. Queimava-lhe o peito. Deus, doía demais. Tinha que fazê-la parar.
—Por quê? —perguntou Anna aproximando-se mais a ele. Arthur sentiu seus mamilos lhe roçando o peito e teve que sacudir-se realmente, pois todo o controle com o que contava seu corpo pendia de um fio. O calor o puxava para um vórtice de luxúria e desejo. Queria esmagá-la contra si. Beijá-la. Possuí-la até deixá-la sem sentido. Fazê-la gritar seu nome e nenhum mais que o seu — Por que teria que parar? É a verdade. Sir Hugh me deseja muito como um homem que vê o que quer e não se detém ante nada até que o consegue.
Era consciente de que não fazia mais que provocá-lo, mas não lhe importava. Arthur sabia perfeitamente o que queria, maldita seja. A ela. Renegou, consciente de que a batalha estava perdida. Tomou entre seus braços e pregou sua boca a dela, cedendo a esses poderosos impulsos que liberavam uma guerra em seu interior. Beijou-a como jamais antes tinha beijado a mulher alguma. Beijou-a com toda a paixão que acumulava desde que a visse pela primeira vez. Beijou-a para que não seguisse falando. Beijou-a para apagar as odiosas imagens com as que tinham enchido sua cabeça. Beijou-a de modo tal que não pudesse voltar a pensar em outro homem em sua vida.
Não obstante, uma vez que Anna se fundiu ante ele em uma rendição silenciosa e abriu sua doce e pequena boca para recebê-lo com um suspiro e um gemido, Arthur não pensou mais em missões, alianças, clãs inimigos ou vingança. Não. Tudo assim que pensava era em fazê-la sua.
Capítulo 15
Anna sabia que se precipitava e que estava provocando-o, mas não lhe importava. A ira não lhe deixava ver mais que sua necessidade de arremeter contra ele. Odiava-o por intrometer-se, por fazê-la duvidar, por interferir em seus planos. Não queria outra coisa que proteger a sua família e manter a salvo às pessoas que amava. E quando tinha a oportunidade de conseguir, Arthur Campbell se interpunha em seu caminho.
Confundia-a. Desorientava-a. Fazia que tomasse carinho e logo a separava de seu lado. Em um momento a salvava e a protegia e ao seguinte a ignorava. Era um ingrato, um homem que se mantinha à margem e dava a impressão de não necessitar a ninguém. Mas também era um homem que estava sozinho, alguém afastado por seus próprios dons, obrigado a viver um tanto afastado de outros.
Queria-a? Necessitava-a?
Em qualquer dos casos teria que decidir-se. O tempo se esgotava para ambos. Era consciente de que estava ciumento, consciente de que tinha visto o beijo que lhe deu sir Hugh, consciente de que lutava por manter o controle. Assim o provocou.
Desejava-o com tanta vontade… A essa distância o único em que podia pensar era em seu doce aroma. E em que o aspecto desalinhado que lhe dava a escura sombra de sua barba o fazia mais arrumado ainda. No alto que era. A enmembrodura de seu peito. O suave que se viam seus lábios embora estivessem brancos de ira. Em que o daria tudo por que tomasse entre seus braços e não a abandonasse nunca. A dor rasgava seu peito como uma faca. Por que não a queria? Por que se reprimia?
Isso foi o que a levou a provocá-lo de maneira temerária, desesperada, com intenção de lhe ferir tanto como ele a feria. E se era mentira? E o que lhe gelava o sangue com somente imaginar-se na cama com outro homem? Desfrutar? Mal podia deixar de tremer de medo em presença de sir Hugh.
Então ele se desmoronou e Anna obteve sua recompensa. Encontrou-se em seus braços, com a boca de Arthur pegada à sua, beijando-a com toda essa paixão e emoção com que ela tinha sonhado. Ele a devorava com a boca e a língua, enquanto ela gemia e se entregava mais e mais a seu beijo, morrendo por sentir cada dobra de sua pele. Deslizava suas enormes mãos sobre ela de modo possessivo. Passou-a por suas costas e depois sobre os quadris, até que desceram para agarrar seu traseiro. Então rugiu de agrado sobre sua boca e a beijou com mais força ao mesmo tempo em que a acoplava firmemente contra seu corpo.
As sensações se desatavam em seu interior em um ataque de calor resplandecente.
OH, Deus, aquilo era perfeito. Seu peito contra o dele, os quadris colados e a dura confirmação do desejo masculino introduzindo-se entre suas pernas de uma maneira íntima. Era consciente de que o tamanho e o tato teriam que assombrá-la, mas o único que sentia era a excitação, uma excitação que fazia lhe acelerar o coração, sua pele se ruborizasse e sentisse comichões por todo o corpo.
Estavam cobertos um com o outro, mas aquilo não bastava. A cada delicioso roce de sua língua, a cada possessiva carícia de suas mãos, crescia a inquietação no interior de Anna. Respondeu a seu atrevimento com mais atrevimento. Agarrava com firmeza os duros músculos de seus braços, seus ombros e suas costas. Queria sentir cada centímetro de seu corpo sob os dedos, modelar seus músculos com as palmas de suas mãos. Conter toda sua força baixo elas.
Aquilo a fazia sentir… embriagada de desejo. Era a primeira vez na vida que tinha uma experiência de tal calibre. Seu corpo parecia ressuscitar. Reagia aos estímulos de maneira natural, como se soubesse o que estava fazendo. Tudo ocorria muito rápido para pensar. O desejo a tinha feito sua presa e não parecia disposto a soltá-la.
Aproximava-a de seu corpo cada vez com mais urgência, esfregando sua virilidade contra a mais feminina de suas partes. A fazia sentir estranha, com comichões, quente, ofegante. Mas não era suficiente. Ávida de fricção, sedenta por encontrar uma conexão mais profunda, descrevia círculos com seus quadris e se esfregava com essa grosa coluna de carne com mais força.
Arthur percorreu seu pescoço com a boca e a devorou com seus beijos. Sua barba de dois dias fazia sulcos em sua pele em chamas. O aposento jogava fumaça e ardia de paixão. Agarrou-a pela cintura e deslizou as mãos até seus seios. Anna ofegou e se pegou quanto pôde a seu membro viril ao mesmo tempo em que arqueava as costas procurando suas mãos. Arthur murmurou algo parecido a uma imprecação e roçou seus turgentes e ofegantes mamilos com os polegares enquanto sua boca se dava de presente com a tenra pele que aparecia por cima do corpete.
Estava muito quente. Sentia-se débil. Lânguida e pesada. Parecia que suas pernas não contassem com forças para sustentá-la. Desabou-se sobre Arthur, que a puxou de novo sobre a mesa para acalmá-la, e talvez também para acalmar a si mesmo. Aquele cavalheiro, que mostrava um controle tão férreo sobre si, parecia sofrer apuros igual aos selvagens e frenéticos dela.
Os escuros e sedosos cabelos de Arthur se derramaram sobre seu peito. Anna, incapaz de resistir, passou os dedos entre essas suaves ondas e o apertou contra si com força e ternura. A umidade de sua boca transpassava o tecido do vestido para chegar até seu mamilo ao mesmo tempo em que acariciava seus seios e os rodeava com suas mãos.
Mas não era suficiente.
Então sua língua pareceu perceber essa frustração e entrou sob o corpete. Um gritou escapou dos lábios de Anna ante tamanha perversão, ante o delicioso prazer que sentia. Aquela boca estava muito quente. Passou-lhe a língua de um lado a outro, até que pensou que já não poderia resistir mais. Retorceu-se contra ele suplicando para que desatasse a voragem que se formava em seu interior.
Por fim lhe deu um puxão do vestido até quase romper o tecido e o abriu para liberar seus seios. O frio ar soprou sobre sua pele e provocou formigamentos ali onde a tinha beijado.
—Jesus — exclamou Arthur, como se aquilo doesse — É incrivelmente bela.
Provavelmente ouvir sua voz teria quebrado seu estado de transe, mas Arthur cobriu seu ofegante mamilo com a boca e começou a chupá-lo antes que Anna pudesse acolher-se a esse momento de iluminação. Essa doce e aguda sensação a fez gritar. Era um prazer tão agudo que se aproximava muito à dor. Atendia-a com os dentes, dava-lhe linguadinhas e sugava sua cálida boca cada vez com mais intensidade. O calor se estendeu entre suas pernas em uma corrente de umidade. Sentia comichões em suas suaves carnes inflamadas.
Tinha-a aprisionada contra a mesa com as pernas abertas. Montou uma delas sobre seu quadril ao mesmo tempo em que se inclinava para lhe beijar o seio. Os ferozes pulsar do coração de Arthur troavam contra seu peito, seus músculos se esticavam da excitação e a cobriam com todo o peso de seu corpo. E Anna estava quente. Tão quente que queimava. Excitada até o ponto de não retorno.
Arthur deslizou a mão sob o vestido até fazer contato com a pele. Suavizou o impacto acariciando o mamilo pausadamente entre seus dentes. Então voltou a cobrir sua boca com beijos, e suas mãos… Céu santo estava colocando as mãos entre suas coxas! Envergonhada, tentou fechar as pernas. Mas ele não o permitiria. Sua boca a distraía com os longos e pausados movimentos de sua língua, ao mesmo tempo em que ele entrava em sua umidade com os dedos. O corpo de Anna tremeu ao sentir o contato. Seus protestos se dissolveram em uma onda de alívio estremecedor. Aquilo dava muito prazer. Um prazer surpreendente.
—Jesus, é tão doce…
Deixou de beijá-la e Anna se perguntou se teria feito algo indevido, até que percebeu de que era ele quem estava passando mal, tentando conter-se, como se lutasse por controlar-se. Como se tocá-la o tivesse despojado de suas últimas reservas de contenção. Como se muito em breve não pudesse controlar-se. Ficou olhando-a nos olhos ao mesmo tempo em que introduzia seu dedo nela com um pequeno e firme empurrãozinho. Aquele era o momento erótico mais perverso de sua vida. Tomou fôlego em uma tentativa de estabilizar as sensações, mas estas se precipitavam sobre ela em rápidas ondas que não davam trégua alguma. Acariciou-a. Primeiro com círculos pequenos e suaves, depois com mais força, mais rápido, com impulsos profundos e frenéticos que pareciam decalques dos beijos que acabava de lhe dar.
A sensação que se formava em seu interior era muito intensa. Muito poderosa para ser contida. Esticava-se e recuava em um endiabrado redemoinho de necessidade. Seu rosto era uma máscara de dor. O suor se acumulava sobre suas sobrancelhas. Arthur a olhava nos olhos de modo escuro e penetrante, agarrando-a de tal forma que o coração lhe estalava de felicidade. Anna por fim via a verdade em seus olhos, o que intuía desde o começo. Essa conexão que havia entre eles era especial. E também ele a sentia.
Não sabia o que lhe estava acontecendo, mas era perfeito. Cada uma de suas carícias a levava até limites que era incapaz de compreender. Retorcia-se de frustração. Seu corpo inteiro clamava por…
—Te relaxe, amor —sussurrou Arthur — Quero te fazer voar.
O som aveludado de sua voz abriu caminho através dos últimos vestígios de sua repressão de criada. Ficou sem respiração até que pareceu que seu corpo se faria em pedaços devido ao intenso prazer que procuravam os agudos espasmos e teve que libertar todo o ar em um gemido estremecedor. Era o momento mais maravilhoso de sua vida, mas à medida que olhava o escuro interior desses olhos com bolinhas douradas, soube que não era suficiente. Tinha satisfeito sua paixão, mas seu coração ainda palpitava pela necessidade de realizar-se. Queria uma conexão mais profunda. Queria senti-lo em seu interior. Queria ter tudo dele. Para sempre.
«Quero-te.» É obvio. Estava tão claro, era tão certo, que se perguntava como poderia ter sido de outra maneira. Guerreiro. Cavalheiro. Isso pouco importava. Porque em seu coração, Anna sabia que tinha encontrado ao homem com quem estava destinada a compartilhar sua vida.
Arthur já não podia esperar mais. A pressão se acumulava na base de sua coluna como um punho quente e conectava com a vibrante ponta de um membro que pedia alívio, que a tocasse, que atendesse a seus agudos gritos e ofegos de prazer e sentisse como seu corpo se derretia e se estremecia ao rodeá-la com a mão. Apertou os dentes tentando refrear-se, consciente de que estava a ponto de gozar como não o tinha feito antes na vida.
Jesus, que beleza mais embriagadora: cabelos dourados como o mel que se dispersavam atrás de sua cabeça e resplandeciam diante da luz das velas; olhos aturdidos e inflamados pela paixão; seios de formas perfeitas, grande e suave, que saía de seu corpete mostrando um pequeno e arrepiado mamilo avermelhado por suas dentadas.
Tinha o aspecto de uma fêmea no cio que clamava ao céu para que a montassem. «E esta fêmea é minha. Toda minha.».
«Jesus», repetiu para si a meio caminho entre a prece e a imprecação. Jamais antes havia se sentido de tal modo. O desejo o consumia.
—Arthur —choramingou ela — Lhes rogo isso.
O brutal desespero de sua voz foi o último fio de que precisava atirar. Não podia esperar mais para introduzir-se nela. Virtualmente rompeu a fivela e as ligaduras de suas meias e calções para liberar seu inchado membro. Mas tirar o membro de seu confinamento para que lhe desse ar não servia de grande alívio. A única coisa que lhe serviria para aplacar a dor nesse momento era estar dentro dela. Levantou uma de suas flexíveis e sedosas pernas de formas perfeitas, passou-a por trás de seu quadril e se colocou diante daquela abertura cálida e deliciosamente úmida. A próxima vez se tomaria seu tempo em saboreá-la, lhe colocar a língua e fazer que se gozasse sobre sua boca.
Não deixou de olhá-la em nenhum momento. Não se atrevia a afastar o olhar dela por medo de que se perdesse a poderosa conexão que se produziu entre ambos. Teria que ter sentido ao menos a sombra de uma dúvida, ter a sensação de que aquilo que fazia estava mal. A honra era importante para ele, apesar de que o código de cavalaria não o fosse. Mas não sentia nada disso. O único em que pensava era que não podia perdê-la, que tinha que fazê-la sua, e se era capaz de fazer isso, todo o resto sairia bem. Quando a sensível cabeça de seu membro se encontrou com o úmido calor de seu ninho, Arthur exalou um profundo som gutural de puro prazer. Esfregou-se contra sua suave umidade e se deteve ali, consciente de que uma vez dentro seria muito tarde. Tinha o corpo em chamas e todos os músculos em tensão, preparados para fazer entrada. Notava-se o pulso nas veias. Nas orelhas. Até nos ossos. Parecia-lhe ter a pele tensa e ardendo.
«Empurrar.» Deus, que vontade tinha de empurrar. Jamais teve tanta vontade de preencher, de meter-se profundamente em nenhuma mulher. Sabia que seria algo incrível. Seu corpo se ajustaria a ele como uma luva quente e o espremeria com puxões largos e duros até lhe fazer cair profundamente na mais absoluta das inconsciências. Queria ver como se movia sob seu corpo impulsionado pelo poder de seus embates, como levantava os quadris para acompanhar cada uma de suas profundas investidas. Queria ver como seu membro entrava e saía dela.
Apertou os dentes, sentindo uma necessidade de afundar-se nela virtualmente irrefreável. Mas não podia a machucar. Assim que se obrigou a ir devagar. Estimulou-a com sua grossa ereção para que se acostumasse ao tamanho e a força de seu membro e esfregou a ponta com sua umidade para facilitar a entrada. E coberta de maravilha. A pressão se acumulava na base de sua coluna e puxava cada vez com mais força.
Não pôde agüentá-lo mais. Começou a empurrar. Ela gritou, surpreendida.
«Jesus.» Apertou os dentes. O suor se acumulava sobre suas sobrancelhas. O sangue palpitava em suas veias. Tentador. Tão incrivelmente tentador… Tinha que tomar-lhe com calma e com cautela. Deus estava louco por gozar. Ficava muito pouco…
Um leve som penetrou aquela bruma.
Arthur sentiu um premonitório calafrio na nuca e ficou paralisado. O ar tinha mudado. Separou-se dela amaldiçoando enquanto todo seu ser estalava em protestos.
—Te cubra - disse, e lhe deu um puxão no vestido ao mesmo tempo em que tentava atar os calções torpemente.
Mas era muito tarde, ou muito cedo, se atendia à frustração que ardia em seu testículo nesse preciso instante. A porta se abriu de repente. Sir Hugh Ross estava atrás dela, com seu acerado olhar atento a cada detalhe do que acontecia no interior.
Apesar de que se trabalharam em excesso em vestir-se rapidamente, nada podia dissimular o que estavam fazendo. Anna seguia recostada sobre a mesa com as bochechas acesas e os olhos aturdidos, Arthur seguia entre suas pernas e a sala se achava impregnada com o quente e pesado ambiente que corresponde à almiscarada fragrância do emparelhamento, ou em seu caso do emparelhamento frustrado.
Anna ficou sem respiração. O horror apagou as marcas de prazer que ruborizavam seu rosto. Arthur se colocou frente a ela instintivamente, tentando afastar a de seu olhar, como se o escudo de seu corpo pudesse protegê-la do veneno que destilava o outro homem. O silêncio sepulcral, somente salpicado pelo crepitar das chamas, estendeu-se além do incômodo. Sir Hugh permanecia ali petrificado, com uma quietude exagerada, como se estivesse aguardando para equilibrar-se sobre eles. Arthur o observava como um falcão, esperando a primeiro sinal de movimento. Diabos, como gostaria que o fizesse.
—Ouvi um grito e me perguntei se lhe tinham feito mal - disse ao fim sir Hugh com o gesto torcido pelo asco e umas palavras que transpiravam contenção — Mas suponho que não necessitavam resgate.
A exclamação angustiada de Anna lhe partiu o coração. Arthur, consciente de que tinha que protegê-la da ira de sir Hugh, deu a volta e tomou pelos ombros.
—Vá para seus aposentos - disse bruscamente. Anna quis discuti-lo, mas ele a deteve — Falaremos mais tarde que isso. Agora mesmo preciso falar com sir Hugh. Permita que me encarregue disto.
Olhou-a nos olhos. A via confusa, horrorizada e atemorizada há um tempo, disposta a romper a chorar de um momento a outro. A Arthur custava respirar. Era como se lhe retorcessem o coração com uma faca. Ele tinha provocado isso. Era culpa dele. Sacudiu-a com cuidado, tentando fazer que se centrasse.
—Entendeste, Anna? —Então ela o olhou com um rosto tão perdido que lhe deu vontade de voltar a acolhê-la em seus braços — Tudo irá bem — prometeu, consciente de que aquilo não era certo.
Como poderia ir bem aquilo? Não só estava mentindo, mas sim, além disso, acabava de destruir toda possibilidade de aliança com o Ross e sabia quanto significava isso para ela. Anna amava a sua família. Falhar seria algo que… a faria pedaços.
Anna assentiu e a confiança cega que emanava seu olhar lhe fez sentir todo o peso da vergonha em seu interior. Era um completo filho de puta. Um filho de puta desalmado. Jamais poderia perdoar-se pelo que estava lhe fazendo. Anna não merecia. O que merecia era estar a salvo e protegida, ter um lar feliz, um marido que a amasse e seis ou sete crianças puxando suas saias. Ele nunca poderia lhe dar isso. Abandoná-la e lhe romper o coração, isso era quão único faria. Pode ser que não a tivesse despojado de sua virgindade, mas sua inocência desapareceria igualmente quando descobrisse a verdade sobre ele.
Lá onde fazia um momento reinava o desejo não ficava mais que pena e dor. Sir Hugh não se moveu de sua posição à entrada, mas assim que Arthur acompanhou Anna à saída, Hugh Ross se pôs a um lado para deixá-la passar. Arthur, sentindo-se esquecido na salinha, seguiu-a até o aposento principal. Não era muito maior, mas ao menos ali teria espaço para manobrar se fosse necessário. Sir Hugh parecia disposto a brigar e ele tinha tanta vontade ou mais de lhe dar guerra. Justo antes de sair Anna, olhou-o com incerteza.
—Vá - disse com doçura, tentando acalmar seus temores.
Então seu olhar reparou em sir Hugh e seu rosto se contraiu. O cavalheiro não se dignaria a olhá-la, mas cada uma dos nobres e orgulhosas dobras de sua pele irradiavam animal adversão. Arthur franziu os lábios, com uma vontade tremendas de matar a aquele homem por ferir seus sentimentos. Anna não tinha culpa de nada. Tudo era coisa dela. «Jesus.» Conscientizar-se disso foi como um soco. Tinha-o feito a propósito? Fosse essa sua intenção desde o começo? O que queria era acabar com qualquer opção de aliança. Não, mas não desse modo. Nunca quis levá-lo a tal extremo. Embora sim que tinha superestimado sua capacidade de controle e menosprezado a intensidade de seus desejos por ela. Era o único culpado de meter-se nesse esfregado. Fora ele quem tinha transpassado os limites, algo que não reportaria mais que dor para ambos.
—Deveria te matar — disse Ross assim que se fechou a porta.
O cavalheiro tentava intimidá-lo, mas Arthur aceitou o desafio.
—E por que não o faz?
O olhar do Ross se endureceu.
—Porque então teria que explicar os motivos.
A certeza de sua voz fez que Arthur sorrisse. Tinham mais ou menos a mesma idade e eram bastante semelhantes quanto à altura e músculos. Mas não quanto à destreza. Arthur não seria quem iria morrer. Sir Hugh, não obstante, não tinha nem idéia disso. Então por que…? A razão foi a ele de repente.
—E não quer que ninguém saiba que a moça o humilhou pela segunda vez. Primeiro ao rechaçar sua oferta e logo ao agarrá-la com outro homem ante seu nariz.
A verdade da acusação causou seu efeito no rosto do Ross, que avermelhou de ira, criando um marcado contraste com os sulcos brancos de seus lábios franzidos.
—Desfloraste-a?
Arthur apertou a mandíbula. Aquilo não era assunto seu absolutamente. Encheu de vontade de mentir, de reclamá-la para si, mas disse a verdade, já que queria salvar o que pudesse da reputação de Anna.
—Não.
Os olhos do Sir Hugh se mostravam frios.
—Mas o teria feito de não o tivesse interrompido.
Arthur encolheu os ombros, como se aquilo não fosse de sua incumbência. Ross deu um passo para ele com a mão na espada.
—Maldito filho de cadela! É um cavalheiro. É que não têm honra? Era uma mulher comprometida.
Arthur se moveu com rapidez. Pôs em prática uma manobra que tinha aprendido com Boyd e deixou o braço do Ross fosse de combate, obrigando-o a soltar a espada. Depois lhe retorceu esse mesmo braço pelas costas e o imobilizou fazendo contrapeso com seu próprio corpo.
—Não. Não estava comprometida.
Ross tentou escapar por ato reflito, mas seus movimentos só serviam para que Arthur lhe retorcesse mais o braço e lhe infligisse mais sofrimento.
—Estava a ponto de comprometer-se —disse entre dentes com uma voz cheia de dor — O matarei por isso! Solte-me!
—Não até que cheguemos a um entendimento a respeito do ocorrido aqui. Não quero que isto afete à moça. Não é culpa dela.
Ross teve a inteligência de optar por discuti-lo, mas Arthur percebia a raiva em seus olhos. Retorceu-lhe o braço com mais força, provocando que o furioso guerreiro gritasse.
—Por que voltou? —perguntou Arthur.
—Ouvi um grito…
—Uma merda - cortou Arthur.
A não ser que possuísse sentidos tão finos como os seus, era impossível que tivesse ouvido algo. Ross lhe dirigiu um olhar assassino. De sua sobrancelha caíam gotas de suor dolorido.
—Vi como a observava e que ela tentava não o olhar por todos os meios. Sabia que nos seguiria.
Arthur amaldiçoou.
—O que era isto então, uma prova de fogo?
—Não pensava permitir que tirassem o sarro. Não me casarei com uma mulher apaixonada por outro homem. Por muita vontade que tenha de fo…
Retorceu-lhe mais o braço.
—Não —disse — Não o diga.
Arthur, consciente do perto que estava de lhe partir o braço, optou por afastá-lo de seu lado de um forte empurrão. Ross tinha razão respeito a algo: quanto menos tivessem que explicar, melhor. Sir Hugh soltou ar e se massageou a parte superior do braço e o ombro. Mas havia algo em seu olhar que a Arthur fazia perguntar-se se o tinha posto a prova de novo. Se esse grosseiro comentário do Ross teria a intenção de provocar uma reação. Se for assim, tinha funcionado.
—Importa-te - disse Arthur, precavendo-se disto, na verdade era algo mais que uma aliança política para ti.
Ross não respondeu com palavras nem por meio da expressão de seu rosto, mas Arthur sabia que tinha acertado. Diabos, quase dava pena aquele pobre filho de cadela.
—Mas sabe o que é que a trouxe até aqui?
Uma vez recuperada as sensações em seu braço, Ross voltou a olhá-lo com desconfiança.
—Sim. Para conseguir apoio na luta contra Bruce. Esperava conseguir sua mão sem ter que recorrer a isso.
Arthur ficou olhando-o e o compreendeu tudo ao fim.
—Seu pai não tinha intenção de enviar homens com ou sem compromisso, não é certo? —Não era preciso que Ross respondesse. «Por todos os demônios.» Arthur tinha vontade de matá-lo ali mesmo — E a deixaram pensar que…?
Ross encolheu os ombros.
Maldito patife. Demônios, de não ser Anna a quem manipulava, Arthur teria admirado sua determinação.
—Partiremos assim que tenhamos tudo preparado. Depois de que informe Anna e sir Alan do que acaba de me contar.
O outro homem se mofou.
—E por que diabos eu ia fazer tal coisa?
Arthur deu um passo para ele com atitude ameaçadora. Em honra de Ross terá que dizer que não se moveu. Mas Arthur advertiu a inquietação em seus olhos.
—Porque não quero vê-la mais afetada do que já está. E apesar do que tenha passado aqui, não acredito que vocês queira isso tampouco.
Ficaram olhando durante um momento até que Ross assentiu. Arthur se dispôs a partir.
—Campbell. —Arthur deu a volta e viu que Ross seguia agarrando o ombro machucado — Onde aprendeu a fazer isso?
Arthur torceu a boca com dissimulação.
—Faça o que combinamos dito e talvez te conte isso algum dia.
Anna limpou as mãos em suas saias e procurou acalmar a náusea que ameaçava subindo por seu estômago ao mesmo tempo em que observava a quantidade de homens que se congregava no salão para tomar o café da manhã. Encontrou-se inconscientemente procurando Arthur, como se ver seu rosto pudesse lhe dar essa coragem que tanto necessitava. Ao não encontrá-lo sentado junto aos homens de seu irmão, disse que não havia por que preocupar-se. Ainda era cedo. A noite anterior Arthur tinha enviado a uma criada para lhe dizer que já estava tudo arrumado e que não tinha que preocupar-se.
«Não tenho que me preocupar.» Como se tal coisa fosse possível depois do que tinha acontecido. Pode ser que sua considerada mensagem não servisse para aliviar sua noite sem descanso, mas o apreciou igualmente. Ao menos se economizava o temor de que um dos dois estivesse morto ou em alguma masmorra desconhecida.
Respirou profundamente, obrigou-se a erguer o peito e erguer o queixo e entrou no salão. As pernas mal podiam sustentar do tanto que tremiam e seu coração batia contra a caixa torácica como as asas de um pássaro. Todos seus instintos clamavam por que fugisse, mas obrigou a seus pés a seguir adiante.
Sangue de reis corria por suas veias. Era uma MacDougall, não uma covarde. Apesar de que não quisesse mais que ocultar-se em sua câmara, fazer um novelo com seu corpo e pretender que nada disso tinha ocorrido o certo era que sim tinha ocorrido. Como mínimo devia uma desculpa a sir Hugh. Quando pensava no que tinha feito…
Revolvia-lhe o estômago. A vergonha a alagava. Não por sucumbir aos encantos de Arthur, já que não se envergonhava da paixão que existia entre eles, mas sim por falhar a sua família e aproveitar-se horrivelmente de sir Hugh no processo. Ele não se merecia aquilo. O orgulhoso cavalheiro não tinha feito mais que tratá-la com carinho. Não era culpa dela que estivesse apaixonada por outro homem.
«Apaixonada.» Inclusive sopesando a enorme gravidade do que tinha feito, um pequeno raio de felicidade aparecia por trás das nuvens de desesperança. Amava-o. E também ela significava algo para ele. Tinha que ser assim.
Mas esse pequeno lapso de alegria em seu coração só servia para fazê-la sentir mais culpada. Ao encontrar o amor tinha falhado a sua família. Como poderia chegar a perdoar-se? Tinha arruinado tudo. Seu pai e seu clã completo ficavam sozinhos ante o Robert Bruce. Depois do que sir Hugh havia presenciado na noite anterior não teria aliança.
Acenderam-lhe as bochechas ao recordar, ao considerar o que devia pensar aquele homem dela. «Puta. Rameira.»
Quase esperava ouvir vaias ao atravessar o salão para chegar até o assento do estrado junto ao homem ao que tinha ofendido. Mas sua entrada não causou nenhum comentário fora do habitual. O conde e a condessa a receberam com gentilezas usuais, igual fez seu filho quando tomou assento junto a ele.
Embora cada bocado que dava piorasse o enjôo que lhe punha o estômago de reverso, tinha que obrigar-se a comer. À medida que avançava a comida, sua ansiedade não fazia mais que aumentar. O breve intervalo de bom humor que entreviu em sir Hugh no dia anterior tinha desaparecido, algo não muito surpreendente. Estava sentado junto a ela completamente rígido, muito orgulhoso e imbuído do código de cavalaria para ignorá-la completamente, mas muito perto de fazê-lo. Agradeceu a presença da irmã do Hugh do outro lado da mesa e do ajudante do Ross a seu lado, que rompiam os incômodos momentos de silêncio.
Anna era consciente de que tinha que dizer algo, mas não sabia como tirar o tema em um entorno tão público. Seguia esperando que chegasse o momento oportuno quando sir Hugh se levantou da mesa e se desculpou para ausentar-se.
—Espere! —exclamou Anna, advertindo que vários olhos se voltavam em sua direção e que talvez tivesse falado muito alto.
Sir Hugh baixou o olhar para olhá-la e lhe dedicou toda sua atenção pela primeira vez. Anna procurava não morrer de vergonha enquanto ele esperava a que se pronunciasse.
—Eu… — disse o primeiro que veio à cabeça, desejando tê-lo feito antes, quando outros não prestavam atenção ao que dizia de maneira tão óbvia — Faz uma manhã estupenda. Se não estiver muito ocupado, pensei que poderiam me mostrar os arredores do castelo, como prometera.
Não lhe tinha feito tal promessa e se o fizesse saber, deixando clara sua pretensão de ficar a sós com ele, teria recebido o que merecia. Sir Hugh a olhou nos olhos e Anna por um momento pensou que se negaria a fazê-lo, mas ao que parecia puderam mais suas sensibilidades cavalheirescas. Fez uma reverência e lhe tendeu a mão.
—Será todo um prazer, milady.
Tal e como tinha feito poucas, mas significativas horas antes, permitiu que a acompanhasse ao sair do salão. Se o incomodava as falações de curiosidade que lhes seguiram não o mostrou em nenhum momento. Nessa ocasião, ao chegar ao final do corredor, conduziu-a ao exterior, ao pátio de armas. Havia um monte de gente daqui para lá: soldados praticando e protegendo as entradas, serventes atendendo a suas obrigações e um fluxo contínuo de homens passando através das portas do castelo, mas ninguém lhes prestava muita atenção.
—Há algo em particular que deseje ver? —perguntou ele.
Para ouvir a secura de sua voz o olhou de esguelha sob o véu de suas pestanas. Ele sabia que se tratava de uma desculpa, e das más. Anna negou com a cabeça.
—Sinto muito. Tinha que falar contigo —disse detendo-se para olhá-lo bem nos olhos — Devo me desculpar pelo ocorrido na noite passada. —Ao ver que franzia mais o cenho lhe falharam os nervos. Mas tinha que fazê-lo. Machucava a mão de apertar tanto os punhos. Não era capaz de falar disso com calma, de maneira que explodiu e soltou — Não posso oferecer mais desculpa pra dizer quanto sinto.
Sir Hugh ficou olhando-a nos olhos durante um momento e logo assentiu. Anna pensou que daria a volta e a deixaria ali, mas surpreendentemente a levou até um lugar afastado da fortificação de onde podiam ver muros longínquos e a cidade do Nairn ao fundo. Fazia vento e teve que acomodar atrás da orelha uma mecha de cabelo rebelde. Mas depois dessa noite de escuridão o resplendor do sol sobre seu rosto era rejuvenescedor.
—Ama-o?
Anna ficou petrificada. Não sabia o que esperava que dissesse, mas certamente isso não. Sir Hugh não parecia um homem que outorgasse muito valor nem desse muito crédito ao amor romântico. Parecia muito prático e frio para tudo isso. Mas merecia saber a verdade.
—Sim - disse em voz baixa.
—Mas teriam casado comigo para conseguir mais homens para seu pai?
Tal e como disse, de repente parecia que aquilo estivesse mal. Embora o matrimônio e a obrigação fossem parceiros, era o amor o que importava menos.
—Sim - disse Anna, sentindo que o desespero de sua situação cavalgava sobre seu peito. Apelou a seus sentimentos para que a compreendesse — Não entende? A única maneira de lutar contra os rebeldes é unir forças. Se nossos clãs se unirem poderemos derrotar ao usurpador. Somente nos arriscamos à derrota.
Por sua reação não pareceu que suas palavras tivessem influência alguma nele. A expressão de seu rosto permanecia severa e implacável. Era estranho. Agora que já não havia esperança de um compromisso entre ambos, todo o medo e o nervosismo de Anna pareciam desaparecer.
—Não pode absolver de toda culpa, lady Anna. —Ela o olhou inquisitivamente, protegendo os olhos do sol para lhe ver melhor. Sua boca se torceu em uma estranha careta — Meu pai não tinha intenção alguma de enviar homens ao Lorn.
Ficou sem respiração pela surpresa.
—Mas o compromisso… Permitiram que acreditasse que… — Hugh Ross encolheu os ombros como se não lhe importasse nada. Um arrebatamento de cólera penetrou através do sentimento de culpa de Anna — E quando me pensava contar isso?
—Teria-na informado com tempo suficiente.
—Depois de que anunciássemos nosso compromisso?
Ele se enfrentou à acusação de seus olhos sem alterar-se.
—Talvez.
—Mas por quê?
Pareceu interpretar mal sua pergunta a propósito.
—Não temos homens de sobra. Bruce virá também por nós e quando o fizer… —disse com palavras que se levava o vento — O rei Robert é muito poderoso. Nossos aliados nos abandonaram. Os Comyn, os MacDowell, os ingleses. Meu pai tem muito que perder.
Sir Hugh ficou com o olhar perdido além dos muros, para o pequeno reino que se estendia a seus pés. Tratava-se de um movimento revelador e teve que conter o fôlego ante o que significava. Muito que perder. Seu pai não pensava arriscar.
—Não —disse Anna dando um passo atrás — Não podem! Seu pai não pode render-se. Bruce o assassinará pelo que fez a sua esposa e a sua filha.
Falava sem pensar, e estava claro que o que fez seu pai quando violou o santuário e entregou às mulheres de Bruce aos ingleses não era algo que sir Hugh quisesse que o recordassem. Pela primeira vez, Anna viu algo um pouco parecido à vergonha em suas orgulhosas feições.
—Bruce prometeu perdoar a todos nobres que estavam contra ele que se renderem.
—E acreditam na palavra de um traidor? De verdade confiam em que o rei Hood perdoará a seu pai e aos sediciosos de Ross e Moray? Apenas se consumaram os fogos da perseguição ao Buchan.
Não discutiu com ela. Mas apertava fortemente a mandíbula quando disse:
—O que outra opção fica? As voltas mudaram a favor de Bruce. O povo pensa que é um herói, um guerreiro que derrotou aos ingleses. Render-se pode ser a única maneira de sobreviver. Meu pai está disposto a morrer se isso significar a continuidade do clã.
A cabeça de Anna dava voltas. Jamais, nem em suas mais escuras expectativas, teria imaginado que Ross se renderia. O que significaria isso para seu clã? Faria seu pai o mesmo? Não, seu pai jamais se renderia. E pela primeira vez Anna se precaveu de quão caro poderia lhes custar.
Preocupada com o que sir Hugh acabava de lhe confiar, Anna não encontrava muito consolo em saber que sua conduta não era reprovável.
—Obrigado por me contar isso.
Ele a olhou com atenção.
—O que fará?
—Lutar - respondeu.
Embora fosse sozinhos. Que mais podiam fazer?
—Casará com o Campbell?
Anna se ruborizou. Depois do que tinha passado a noite anterior era algo natural assumir que… Mas não tinham tido oportunidade de discutir seu futuro. Ele pareceu compreender seu silêncio.
—Conhecem-no muito bem?
O tom de advertência de sua voz despertou aquela vozinha de sua consciência que trabalhou em excesso em sossegar.
—Sir Arthur chegou ao Dunstaffnage faz um mês junto a seu irmão em resposta à chamada que fez meu pai aos cavalheiros e mercenários.
Aquilo pareceu lhe confirmar algo.
—Há algo estranho nele. Algo que não se enquadra. Não é quem parece ser.
Anna saltou em sua defesa imediatamente, pensando que sir Hugh se fixou nas incomuns habilidades de Arthur.
—É muito reservado —disse — custa a comunicar-se.
Sir Hugh a olhou inquisitivamente, como se quisesse acrescentar algo, mas em vez disso simplesmente assentiu. Foi um alívio que dissesse que se encarregaria de explicar tudo a seus pais e seus irmãos sem fazer menção alguma à situação comprometedora em que a tinha encontrado, acordando dizer que não combinavam um para o outro.
Para quando a acompanhou de novo até a torre Anna se sentia muito mais relaxada. Uma vez mitigada parte da culpa, permitiu-se viver um pouco da felicidade que supunha descobrir que o homem ao que amava tinha sentimentos por ela. Não podia esperar para lhe ver e falar com ele. Surpreendentemente, dadas as intimidades que tinham compartilhado, não estava envergonhada. Inclusive nesse momento, depois de todo o acontecido, parecia o correto.
Estava a ponto de subir o primeiro dos degraus que fossem do pátio à torre quando olhou à esquerda e viu que sir Arthur saía dos barracões. O coração lhe deu um tombo. Sorriu e deu um passo para ele de maneira instintiva, mas logo se deteve de repente. Levava a armadura e estava claro que se preparava para praticar, mas podia entrever seu rosto o suficiente sob a viseira do elmo.
Não era que esperasse que corresse pelo pátio a seu encontro, ao menos não com sir Hugh ainda a seu lado. Mas um olhar de carinho seria bom. Algo em comparação com esse rosto de arrependimento, sim, inclusive de vergonha, que escurecia seus bonitos traços. A alegria que fez saltar seu coração se consumiu e o devolveu ao chão de repente das alturas. Advertiu como sir Hugh ficava em guarda ao conscientizar do que ela tinha visto.
Arthur desviou o olhar para o outro cavalheiro. Podia sentir a animosidade acesa entre ambos. Foi Arthur quem se retirou primeiro. Saudou-os com uma inclinação da cabeça e se dirigiu a reunir-se com o resto dos guerreiros. Anna dizia a si mesma que não devia estar decepcionada, que não tinha que exagerar sua reação. Já falariam mais tarde. Em particular. Provavelmente o que adivinhava em seus olhos não era mais que imaginações.
Mas as seguintes palavras de sir Hugh lhe disseram o contrário.
—Se a coisa não for como espera, lady Anna, eu estarei aqui.
Um homem com quem podia contar.
Rezava por que Arthur também o fosse.
Capítulo 16
Demoraram mais do que Arthur pensava em sair do castelo de Auldearn. Alan MacDougall se encerrou em sua câmara com o conde, seu conselheiro e sir Hugh durante três dias mais, no que Arthur assumiu como uma tentativa de persuadir ao Ross para unir forças, apesar da ausência de compromisso. Felizmente, os esforços do Alan foram úteis. Dado que não tinham lhe contado os detalhes, Arthur não pôde estar seguro das razões do conde, mas o rechaço era um bom augúrio para o rei Robert. Passaria a informação assim que tivesse oportunidade de fazê-lo. Não acreditava que eles tivessem irradiado nenhuma mensagem, mas revisaria os pertences do Alan e de Anna para assegurar-se disso, assim que tivesse ocasião.
Saíram de Auldearn ao amanhecer, fazendo o mesmo trajeto de na semana anterior em sentido contrário e forçando o ritmo o primeiro dia para chegar a salvo mais à frente do castelo. Os homens, contagiados do humor de seu senhor e sua dama, pareciam perceber que as coisas não tinham ido como esperavam e a nuvem do fracasso se abatia sobre as cabeças dos viajantes. Levava uma predisposição algo sombria, por não dizer decididamente mal-humorada.
Arthur sabia que teria que sentir-se aliviado e satisfeito de ter completado sua missão. Ross e Lorn não uniriam forças. O fracasso dos MacDougall serviria como incentivo para aproximar de Bruce um passado mais para a vitória e a Arthur um passado mais para a destruição de seu inimigo. Assegurar-se de que John de Lorn pagava pelo que lhe tinha feito a seu pai era o que mais ansiava no mundo. Não era certo? Assim devia ser, maldita seja. Mas temia que aquilo lhe custasse muito mais do que pensou em um primeiro momento.
Coberto atrás de seu elmo podia ceder à tentação de olhá-la. De novo essa sensação, molesta e penetrante. Não era só consciência o que o remoia, a não ser algo mais. A dor que aguilhoava seu peito quando a olhava era virtualmente insuportável. Mas não fazê-lo parecia mais doloroso ainda.
Anna cavalgava na frente dele, junto a seu irmão e a criada, com o que somente oferecia seu perfil ao voltar-se. Arthur não precisava olhá-la para saber que o silêncio a respeito do ocorrido entre ambos lhe doía. E muito. Deus Santo, o que tinha feito? E o que era mais importante, que demônios faria a respeito? Agora que estavam longe do castelo já não podia evitar o tema nem evitá-la por muito mais tempo. Sabia o que devia fazer. Não precisava ser um cavalheiro para conscientizar de que depois do perto que estivera de lhe arrebatar a virgindade, a escassos centímetros literalmente, deveria a pedir em matrimônio. Não havia dúvida de que era o que ela esperava. E o que cabia esperar. Isso faria um homem com honra. Mas esses escassos centímetros lhe serviam de suficiente desculpa para não fazê-lo. A batalha que livrava em seu interior era cada vez mais cruel. Todos seus instintos exigiam que se aproximasse dela, que cedesse aos sentimentos e, por que não falar, maldição, às emoções que brigavam em seu interior. Mas a outra parte de seu ser, a racional, puxava-o para evitar maiores males.
Embora ele mesmo quisesse esquecer-se disso em algumas ocasiões, o certo era que a enganava. E estava claro como a água que não podia lhe dizer a verdade. Seu dever e sua lealdade pertenciam ao Bruce. Nenhum dos sentimentos que albergasse poderia mudar aquilo. Estavam em lados opostos de uma rixa a ponto de desatar-se. Ao final ela descobriria sua filiação verdadeira e se inteiraria de que a única razão que o tinha levado ao Dunstaffnage fosse espiar e propiciar a destruição de sua família. Sabia que pedi-la em matrimônio só serviria para que a traição final tivesse conseqüências muito piores.
Era uma situação impossível e tinha consciência de tê-la criado ele mesmo. Teria que ter-se afastado dela, mas suas boas intenções ficaram transbordadas por seu sorriso, vitalidade, doçura e amabilidade. Quando olhava o interior desses grandes olhos azuis começava a ter saudades de algo que nem sequer sabia que queria. Gostava de estar sozinho, maldita seja! Parecia mais fácil e muitíssimo menos chato. Entretanto Anna o fazia ansiar algo que ele não poderia permitir-se oferecer, à vista do que estava por chegar. E fazê-la sofrer desse modo, não ser capaz de fazer algo para mudar, partia-lhe a alma. Cada vez lhe custava mais concentrar-se em suas tarefas.
Embora não se voltasse para olhá-lo, Arthur sabia que ela era tão consciente de sua presença como ele mesmo. Advertiu a maneira em que seus ombros ficavam tensos quando situou seu cavalo atrás deles. Richard e Alex partiam em cabeça explorando o terreno, de modo que Arthur ficou ao fim para assegurar-se de que ninguém os seguia. Aproximava-se o final da primeira jornada da viagem e tinham que proceder com especial cautela agora que se aproximavam do castelo do Urquhart, lugar em que tinham aparecido os homens de Bruce quando foram para o castelo do Ross. Novamente, teriam que fazer uma boa volta para o oeste do caminho para evitar as patrulhas da fortaleza «inimiga».
—Pegue milady —ouviu que dizia sua criada — Lady Euphemia pediu ao cozinheiro que as prepare especialmente para ti em vista que gostas.
A anciã tentou enrolá-la com os doces, mas Anna negou com a cabeça em uma pobre tentativa de sorriso que lhe cravou outra pontada no coração.
—Não, obrigado, não tenho fome.
A criada se zangou, franziu os lábios e mastigou a delícia de amêndoas sem entusiasmo algum. Mal teve acabado de mastigar quando voltou para a carga e tirou de sua bolsa o que parecia um pequeno bolo de carne.
—O que me dizem de um pastezinho de cevada com cordeiro? —disse, cheirando-o teatralmente — Cheira divinamente. E ainda está quente.
Anna voltou a negar com a cabeça.
—Coma se quiser. Eu comerei quando nos detivermos.
A criada murmurou para si.
—Tem que comer algo, milady - urgiu entre murmúrios, ao mesmo tempo em que fulminava Arthur com o olhar.
Este apertou a mandíbula, adivinhando a quem culpava a criada pela falta de apetite de sua senhora.
—Comerei - disse Anna para apaziguá-la. Chamou a seu irmão, que cavalgava um pouco mais adiante — Quando pararemos para passar a noite, irmão?
—Logo, espero - respondeu Alan olhando a seu redor e fazendo gestos a Arthur ao ver que tinha retornado. Este se armou de valor e fez como lhe pediu, levantando o visor de seu elmo ao passar entre o punhado de cavaleiros que lhes separavam — Viu algo suspeito?
Arthur negou com a cabeça.
—Por agora não. Estaremos seguros quando voltarem Richard e Alex, mas se não ter nada extraordinário, poderemos nos deter o anoitecer como tínhamos previsto.
—Não voltaremos para lago em que acampamos a vez anterior?
Era ela quem falava. Arthur voltou o olhar lentamente, incapaz de evitá-la por mais tempo. Mas não estava preparado para o calor abrasador que lhe atravessaria ao encontrar-se com seu olhar. Ele, que apenas se movia quando uma flecha se afundava no mais profundo de seu ombro, quando uma espada lhe abria as vísceras nem nas numerosas ocasiões em que não tinha apanhado a adaga de seu irmão com suficiente presteza, sobressaltou-se ao ver a tristeza e a pergunta sem formular de seus olhos.
Parecia fatigada, de uma fragilidade insofrível. Umas pequenas linhas sulcavam as comissuras de seus olhos e sua pele estava muito mais pálida do normal. Apertou os dentes, lutando contra a desesperada necessidade que sentia de dar o que ela queria.
«Peça-a em matrimônio.»
Maldição, não podia fazê-lo. Não faria a não ser piorar as coisas.
—Não, milady —respondeu sem alterar a voz — Será mais seguro que não voltemos sobre nossos passos. Acamparemos em lugares diferentes cada noite. Há uma cascata na floresta dos pagamentos do Dhivach, ao sudeste do castelo, onde começa a ravina. Faremos pernoite ali.
Anna assentiu com cara de querer acrescentar algo, mas consciente de que não estavam sozinhos.
—Falta muito?
—Cinco ou seis quilômetros. Deveríamos chegar antes do anoitecer.
—Eu… — Anna deixou a frase pela metade. Não obstante, o modo em que o olhava era desencorajador — Obrigado.
Quando Arthur se decidiu a afastar o olhar se surpreendeu comprovar que um dos homens do Alan se situava atrás dele. Ficou circunspeto, mas estava muito imerso em sua própria confusão para atender à advertência.
Ao que parecia um das arcas de Anna não estava bem presa e caiu do carro. Arthur agradeceu a interrupção quando viu que Anna e sua criada fossem ao fim da fila para assegurar-se de não perder nada. Mas era consciente de que não poderia postergar a inevitável discussão por muito mais tempo. Isso ficou assegurado certamente pelas palavras de Alan antes de partir para ver o Richard e Alex.
—Não sei que diabos passou em Auldearn, Campbell, mas minha irmã está triste. —O cavalheiro cravou o olhar em Arthur com uns gélidos olhos azuis que não mostravam compaixão alguma. Depois de tudo, era filho de seu pai — Arrume ou me encarregarei eu de fazê-lo.
Arthur franziu o cenho até adotar uma expressão sombria. Não se incomodou em pretender que não sabia ao que se referia. A ameaça não lhe inquietava. O que lhe inquietava era que não podia fazer o que o irmão de Anna lhe pedia. Nada poderia arrumá-lo.
—Por que está me evitando?
Arthur, assombrado, ficou em pé de repente, fazendo saltar a armadilha que estava preparando. Tinha o surpreendido. Algo que Anna apostava que não ocorria muito freqüentemente. Talvez essa confusão que ela percebeu em seus olhos não foi imaginação. Olhava-a com uma saudade mal reprimida, mas algo o fazia conter-se.
O desengano que sentiu na primeira manhã não fazia mais que piorar a cada dia que passava. Ainda não tinha ido a seu encontro, por não falar de oferta de matrimônio alguma. Anna queria convencer-se de que simplesmente esperava para falar com seu pai, mas isso não explicava por que fugia dela.
—Está me seguindo outra vez, Anna?
Se tentava distrair ficando à defensiva, não funcionaria.
—Não sei como poderia dizer que te sigo quando o acampamento está a poucos passos daqui - disse assinalando os arranjos e cordas — Vi que tirava a armadilha da bolsa e supus que não iria muito longe.
Inspecionou suas feições, meio escondida entre as sombras. Ao menos ficava uma hora de luz solar, mas sob o espesso manto das árvores da floresta parecia quase noite fechada. Anna deu um passo para ele e estreitou o vão que os separava. Arthur franziu o cenho e todo seu corpo ficou rígido. Anna percebeu de que lhe moviam as aletas do nariz, como se o incomodasse tê-la tão perto. As lágrimas foram a seus olhos. Por que se comportava desse modo? Acaso era tão desagradável?
—Ides responder-me? —disse com uma voz quebrada pela emoção e a incerteza dos últimos dias. Queria pôr a mão sobre o peito para tranqüilizar-se, mas temia que ele retrocedesse e isso a fizesse pedaços — Acaso não mereço uma explicação?
Arthur suspirou e se separou dela com o pretexto de passar os dedos entre os cabelos. Embora ainda levasse posta a armadura, tirou o elmo e seu cabelo castanho escuro caía em suaves ondas sobre a borda da cota de malha.
—Sim, moça. Merece uma explicação. Tinha intenção de falar contigo uma vez que tivéssemos comido.
Não sabia se acreditava, mas o deixou continuar. Ela já havia dito suficiente. Era a ele a quem correspondia falar.
—O que ocorreu foi - Formoso? Incrível? Perfeito? pensou Anna—… desafortunado. —A Anna parou o coração. Não era a palavra que esperava — Me envergonho de meu comportamento —disse Arthur com palavras que pareciam próprias do cavalheiro mais contido da corte — Jamais devia permitir que chegasse tão longe.
Anna o deteve em seco, incapaz de resistir por mais tempo o tom distante e o arrependimento de sua voz.
—Por que fala assim? Por que atua como se não significasse nada? —Arthur esticou a mandíbula mais ainda. A palpitação de seus batimentos no pescoço não pressagiava nada bom. Tentou afastar-se de Anna, mas ela o agarrou pelo braço. O peito lhe ardia — Significou algo, Arthur? —Este a olhou nos olhos com uma intensidade que queimava. Anna aspirou profunda e entrecortadamente através de sua oprimida garganta — Para mim sim.
—Anna… - Parecia estar liberando algum tipo de guerra interior. Anna notava a rigidez de seus músculos sob seus próprios dedos. Seu poderoso corpo parecia irradiar tensão — por que põem as coisas tão difíceis?
—Eu? És tu quem põe as coisas difíceis. É uma pergunta muito simples. Ou significou algo para ti ou não significou nada.
Manteve o olhar, negando-se a lhe permitir partir sem que respondesse algo. Arthur tinha o rosto desfigurado, como se o estivesse torturando.
—Não entendes.
—Têm razão. Não entendo. Poderia explicar isso?
- Somos completamente inadequados um para o outro.
—Não posso. —Olhou-a com dureza — É que não vê que jamais funcionaria?
«Meu Deus!» Pareceu engasgar-se com seu próprio coração quando percebeu o que acontecia. «Não pensa me propor matrimônio.» Como era possível que tivesse interpretado tão mal a situação? Não! Não o tinha feito. Havia algo mais que lhe escapava.
—Por que não?
—Somos completamente inadequados um para o outro. A família é tudo para ti. E para mim? Meus pais morreram quando era um pirralho. Meus irmãos levam anos lutando em lados distintos. Não sei nada a respeito de família.
—Eu posso lhes ensinar…
—Não quero que me ensinem - repôs isso Arthur, cortando-a com raiva — Eu gosto de estar sozinho. E você… —disse com um gesto da mão — Tenho certeza que não estivestes sozinha nem um dia em sua vida. Merece estar rodeada de família e amigos, com um marido que lhe adore e um monte de crianças puxando suas saias. Não me diga que não quer isso, porque sei que é isso o que quer.
Era certo que queria isso, mas com ele.
—Não quer ter crianças?
Sua boca empalideceu como se a pergunta, pensar nisso tão sequer, fosse doloroso.
—Não entende a situação.
—Eu? Paraste a pensar que talvez não se trate de que gosta de estar sozinho, mas sim de que alguma vez estivera com as pessoas adequadas? —disse fazendo uma pausa para que o considerasse. Compreendia as razões que lhe levavam a solidão, mas suspeitava que seria diferente em caso de ter uma família que o amasse, que o aceitasse — Se sentires algo por mim, o resto não tem importância. —O rosto de Arthur se mostrava duro como o granito, mas ela seguiu pressionando — Sente algo por mim, Arthur?
Manteve o olhar, desafiando-o a que mentisse. E Arthur parecia querer fazer, mas ao final o admitiu.
—Sim. Mas isso não importa.
Sentia algo por ela. Não tinha errado. Negou com a cabeça.
—Isso é tudo o que importa.
—Não insista, Anna. Acredite-me quando digo que não funcionaria. Jamais poderia lhes dar o que necessita. Nunca poderia te fazer feliz.
A frustração e a raiva buliram em seu interior.
—Como te atreve a presumir que conhece minha mente melhor que eu? Eu sei exatamente o que quero. Depois do que passou como não pode compreender que é o único homem que pode me fazer feliz? Não te dá conta de que te amo?
Sua declaração de amor foi tão inesperada para ela como parecia ser para ele. Fechou a boca de repente, mas era muito tarde. Suas palavras seguiam ressonando no repentino silêncio. Arthur ficou completamente quieto, com uma expressão não muito diferente de quem tivesse recebido uma flechada no peito. Não se podia dizer que fosse a reação que ela esperava. Não esperava que respondesse a sua declaração de amor. Em realidade não. Não nesse momento, ao menos. Mas tampouco esperava encontrar-se com o silêncio. Um silêncio que lhe rompia o coração lenta e cruelmente.
«Amo-te» As palavras zumbiam em seus ouvidos. Como um palpite. Uma chamada. Tentava-o, caramba, tentava-o. Arthur permaneceu quieto como uma pedra, sem permitir o luxo de acreditar. Não podia fazer. Porque se o fizesse, era possível que encontrasse a felicidade. Uma felicidade maior da que tinha desfrutado na vida.
Não dizia a sério. Estava confusa. Anna MacDougall entregava seu coração a todos. Isso era parte do que a fazia tão irresistível. Negou com a cabeça, como se tentasse convencer a si mesmo.
—Não sabes o que diz. Não podem me amar. Nem sequer me conhece.
—Como podem dizer isso? Pois claro que lhes conheço.
—Há coisas sobre mim que se soubessem…
Não podia dizer nada mais. Já havia dito muito. Suas habilidades perceptivas eram excepcionais. Anna franziu os lábios e ele reconheceu o brilho teimoso de seu olhar.
—Acreditava que já tínhamos passado por isso. Suas faculdades são um dom, e se demonstraram extraordinariamente úteis em mais de uma ocasião. —Ele não falava de suas habilidades, mas sim do fato de ser um espião ao serviço de Bruce. O fato de que não havia pessoa no mundo a quem odiasse mais que ao pai de Anna e que tinha esperado quatorze anos para destruí-lo. Mas dificilmente poderia lhe contar a verdade — Sei tudo aquilo que importa sobre você - continuou — Sei que prefere observar e escutar a falar. Que não gosta de chamar a atenção e prefere estar em um segundo plano. Sei que conta com habilidades valiosas que prefere ocultar porque acredita que o faz diferente. Sei que está convencido de que é diferente e por isso não necessita a ninguém, de modo que procura espantar aos outros antes que se aproximem de ti. Sei que passou a maior parte de sua vida no campo de batalha, mas que pode dirigir a pluma de maneira tão efetiva quanto uma espada. —deteve-se o tempo preciso para tomar fôlego. Ele teria que tê-la cortado, mas estava muito indisposto para falar — Sei que é inteligente e que têm um caráter tão forte como seu corpo. Sei que quando estou contigo me sinto segura. Que faz ver que nada lhes importa, mas que me defenderia com sua própria vida. Sei que um homem que sustenta em seus braços a um bebê e que mostra paciência com um cachorrinho que não tem feito mais em dar problemas tem um coração bondoso. —Anna baixou a voz até deixá-la quase em um sussurro, dissipada já toda sua ira — Sei que desde a primeira vez que me beijou senti que jamais teria outro homem para mim. Que quando ergo o olhar para olhar, vejo o rosto que quero ver durante o resto de minha vida. —Seus olhos, que brilhavam com lágrimas não derramadas, encontraram-se com os dele — Sei que é leal e honrado e que te importo, mas que há algo que o faz se conter.
«Jesus.» Era como se lhe desse um soco. Ninguém antes lhe havia dito nada parecido. O fazia sentir-se humilde. Comovia-lhe. Dava-lhe um medo de morte.
Tinha visto muito de sua pessoa. Não significava só um perigo para sua missão, mas também para ele em formas que jamais tinha imaginado. Endureceu a mandíbula e o coração.
—Vê o que quer ver, Anna, não a realidade. —A guerra. Seu pai. Ele. Estava cega diante das faltas daqueles aos que professava amor — Mas as garotinhas que acreditam nos contos de fadas acabam desenganadas.
—Não faça isso —sussurrou Anna — Não tente me espantar.
Isso era o que fazia. O que sempre fazia. E embora pela primeira vez não desejasse fazer, era o que tinha que fazer. Pelo próprio bem de Anna. Agarrou-a pelo braço com intenção de sacudi-la e fazê-la entrar em razão, mas foi um engano. Tocá-la não fez mais que avivar o fogo de suas emoções até quase lhe fazer perder o controle.
—Então não atue apoiada em contos infantis. Estamos em meio de uma maldita guerra. Bruce está a ponto de cair com todo seu exército sobre sua cabeça e mesmo assim quer planejar seu futuro. Não há futuro, Anna. Somente existe o dia de hoje. Diabos, quem sabe se terá um lar daqui a um mês.
Sobressaltou-se como se a tivesse golpeado.
—Acredita que não sou consciente disso? —Anna sossegou um soluço na garganta. Seus preciosos olhos azuis se nublaram com lágrimas, atiçando o fogo que consumia seu peito — por que pensa que acudi ao Ross? Sei perfeitamente o que está em jogo. Mas não pude fazer. Não podia fazer por causa de ti.
—Seu pai jamais devia ter te pedido isso - repôs.
A expressão de assombro de Anna fez que Arthur desejasse poder retirar o dito. Tinha a perspectiva de uma menina para seu pai, a do cavalheiro perfeito que não podia fazer nada mal. Outra dessas ilusões que ele ajudaria a destruir.
—Não me pediu isso. Foi minha idéia. Fala de guerra e de incerteza, mas posso lhes dizer uma coisa certa. Se não arriscar, se seguir espantando as pessoas de seu lado, assegurará sua solidão. É isso o que quer?
Apertava a mandíbula com tanta força que lhe doíam os dentes.
—Sim.
«Maldita seja.»
—Muito bem. Porque isso é exatamente o que conseguirá - disse ela; as lágrimas rodavam por suas bochechas — Não sei por que faz isto, Arthur Campbell, mas é um covarde.
Um acesso de raiva subiu por seu corpo. Não era um covarde. Somente tentava fazer o correto. Mas não lhe deixava fazer. Não fazia mais que pressioná-lo para voltá-lo louco com uns sentimentos que não lhe pertenciam. Não podia pensar bem. Não queria mais que tomá-la entre seus braços e beijá-la até que cessasse o martelar que sentia na cabeça, e no coração.
Possivelmente isso tivesse feito se pudesse, mas não teve a oportunidade.
—Que diabos está acontecendo aqui?
Arthur voltou com a cabeça ainda lhe dando voltas, ao mesmo tempo em que Alan aparecia no claro. Amaldiçoou. Estava tão absorto em Anna que não ouviu o mínimo ruído. Que demônios ocorria? Estava fosse de controle. Tinha que tomar as rédeas de suas emoções. Seus sentidos estavam mesclados e confusos. Distraía-se muito. Estava tão confuso… Somente uma vez antes havia sentido de tal modo: o dia em que morreu seu pai. Estava perdendo os papéis.
Tanto que não se preparou para o que vinha depois.
—Deixe-a em paz - vociferou Alan, arrancando-a de seus braços ao mesmo tempo em que lançava o primeiro murro direto a sua mandíbula.
A cabeça de Arthur se propulsou para trás ao receber o golpe em cheio. Uma explosão de dor se apoderou dele. Ficou cego por um resplendor branco.
Anna gritou aterrada.
—Alan, por favor! Não é o que parece!
Mas seu irmão não a escutava. Como prova de sua eficiência com ambos os punhos, alcançou Arthur do outro lado com outro golpe. Depois no ventre. Logo no flanco.
—Vos disse que o arrumasse maldita seja. Não que a fizesse chorar. Que demônios lhe têm feito?
Arthur não tentava defender-se. Não porque não pudesse. Era evidente que MacDougall tinha um braço como o martelo de um ferreiro, mas Arthur tinha aprendido suficientes truques do melhor lutador corpo a corpo das Highlands e era capaz de tombá-lo em poucos segundos. Não se defendia porque merecia o castigo. Diabos, merecia muito mais pelo que estava a ponto de fazer.
—Para! Para! —choramingou Anna com uma voz a borda da histeria — Está lhe fazendo mal.
Alan o arrastou pelo pescoço e o empurrou com força contra uma árvore.
—O que lhe têm feito? —perguntou fulminando a sua irmã com o olhar — Será melhor que um dos dois me diga que demônios passa aqui. —Nenhum deles respondeu. Alan olhava alternadamente a um e outro com o rosto aceso pela raiva — Não me tomem por um maldito idiota! Não pensem que acreditei nem por um momento que Ross decidiu dar para trás de repente! —disse olhando a Anna enquanto seguia apertando fortemente o pescoço de Arthur com a mão — O que passou em Auldearn? É que este filho de cadela te tocou, Anna? —perguntou lhe apertando o pescoço — Te tocou? —insistiu empurrando com mais força — O fez?
Arthur sentia que o nó se esticava em torno de sua garganta e não era pela mão do MacDougall. Não. Sabia que teria que responder pelo que esteve a ponto de acontecer em Auldearn.
— O solte! —Alan advertiu o pânico na voz de Anna. Ela tentava lhe puxar o braço, mas sem obter resultado — Sim, mas não é o que pensa.
De fato, devia ser exatamente como o pensava.
—Maldito velhaco do demônio! —disse MacDougall estampando a cabeça de Arthur de novo contra a árvore — O matarei por isso.
Arthur não duvidava de suas intenções. Nem tampouco de sua capacidade para fazer. Mas não podia permitir. Estava a ponto de libertar-se quando ouviu um pequeno zumbido seguido por um suave vaio.
«Flecha.»
Seus sentidos se abriram em uma explosão de clarividência. Olhou por cima do ombro do MacDougall e viu a ponta de ferro sulcando o ar, apenas a um segundo de impactar no cangote do MacDougall. Arthur não pensou. Simplesmente reagiu. Golpeou para cima o braço do MacDougall com o antebraço em um perfeito movimento para libertar seu pescoço das garras dele e atrás disto enroscou sua perna ao redor do tornozelo para desequilibrá-lo. MacDougall caiu ao chão justo antes que a flecha impactasse na árvore com um som seco ao que logo seguiram os dilaceradores gritos de ataque.
Ouviu a exclamação de terror de Anna, mas não podia voltar para acalmá-la. O primeiro dos homens acabava de emergir de entre as árvores com a espada em alto. De novo a reação de Arthur foi instantânea. Jogou mão ao punho de sua adaga, extraiu-a de sua capa e a lançou. O atacante emitiu um gemido quando a folha deu com os poucos centímetros desprotegidos da pele de seu pescoço. Cambaleou-se e caiu ao chão.
Para quando o seguinte dos homens saltou sobre eles MacDougall já tinha tido tempo para entender o que acontecia e se pôs em pé. Desembainhou a espada, girou sobre si mesmo e a ergueu bem a tempo para repelir uma cutilada que lhe teria arrancado a cabeça.
«Anna.» Arthur desviou o olhar do assalto que estava por chegar justo o tempo suficiente para assegurar-se de que ela estava bem. Encontrou-a resguardada depois da árvore, com os olhos cheios de terror. O coração lhe acelerou ao conscientizar-se de quão vulnerável era e logo se paralisou quando se deu conta de quão vulnerável isso fazia a ele mesmo. Não podia permitir que lhe acontecesse nada. Tinha que protegê-la. Mataria a todos se fosse preciso. Seus olhares se encontraram só por um segundo. Mas a forma em que se olharam foi de uma intensidade inegável e brutal.
—Permaneçam abaixados - disse com voz pausada, a pesar do fluxo de sangue que corria por suas veias.
Arthur se situou frente a Anna, cotovelo com cotovelo com o MacDougall, quem seguia lutando com seu oponente, e recebeu com sua espada a avalanche de atacantes que saíam de entre as árvores. Uma vintena de homens. Talvez mais.
Não teve que esperar muito para encontrar-se com o primeiro deles. Pela primeira vez em quase dois anos, desde que se visse obrigado a abandonar os Guardiões das Highlands para infiltrar-se em campo inimigo, Arthur se deixou ir e lutou com toda a destreza e o frenesi que tão cuidadosamente mantinha ocultos. Tombou ao primeiro dos homens com um virulento movimento de espada, girou-se e aproveitou a inércia para derrubar ao seguinte.
Foram por ele com mais virulência. Mas não importava. Era como uma máquina de guerra que arrasava tudo o que saía a seu caminho. Três. Quatro. O ruído do metal sobre o metal atravessava o sombrio ar noturno, mesclando-se com os gemidos e os gritos da batalha. Esses sons tinham alertado aos homens do acampamento, que felizmente estava a poucos metros dali, e os soldados do MacDougall começaram a aparecer na pequena clareira, já envolto em uma escuridão absoluta. Mas os atacantes esperavam a chegada dos reforços. Em realidade o tinham planejado e aguardavam o momento. Saltavam das árvores à medida que eles abriam caminho por baixo e caíam sobre os despreparados homens do clã MacDougall.
—Vamos! —disse Arthur tentando lhes advertir — Disperse.
Se não se dispersavam os fariam pedaços com a facilidade que se cortam arenques de um barril. Mas essa foi toda a advertência que pôde fazer antes que os seguintes adversários distraíram sua atenção. Tinha a dois homens sobre ele. Dois homens com nasais, mantos obscurecidos e as características manchas de cinza negra nos rostos.
O pavor se instalou em seu estômago com o peso de uma pedra.
Os atacantes eram homens de Bruce. Pois claro que eram. Viu os corpos pulverizados no chão ante ele, homens que ele tinha matado, e veio um acesso de bílis à garganta. Jesus, no que estava pensando? Nem sequer pensava. O instinto de amparo para a Anna ultrapassava todo o resto. Mas era pior do que imaginava. Enquanto tentava incapacitar aos dois homens que lhe atacavam sem chegar a matá-los, um terceiro homem se uniu à refrega. Um homem que brandia duas espadas. Movia-se como um raio e foi a Arthur com uma ferocidade sem igual inclusive entre seus companheiros de elite dos Guardiões das Highlands.
Arthur se encontrou cara a cara na escuridão com LachlanMacRuairi e amaldiçoou para si.
Capítulo 17
Ocorreu tudo muito depressa. Em um momento tentava evitar que seu irmão assassinasse ao homem que amava e no seguinte estavam sendo atacados. Dizer que a situação era perigosa era pouco. De seu posto escondida entre as árvores, Anna se obrigava a respirar levianamente entre o estrepitoso pulsar de seu coração e observava com horror como aqueles homens caíam sobre eles como uma praga de gafanhotos. Pareciam que fossem centenas de inimigos contra só dois guerreiros.
Arthur parou os pés ao primeiro com tal superioridade que lhe pareceu algo bizarro. Mas então chegou o seguinte. E outro mais. Ficou olhando cheia de assombro como despachava sem esforço algum a todos quantos saíam a seu encontro. Sua destreza era tão extraordinária, mostrava tal superioridade, que parecia estar vendo outro homem. Tinha o espiado suficientes vezes enquanto praticava para reconhecer a diferença. Fazia que seu irmão, conhecido como um dos cavalheiros mais destros das Highlands parecesse um escudeiro. Arthur era mais rápido. Mais ágil quanto à técnica e movimentos. E o que era mais significativo, mais forte. Podia sentir como reverberava a terra com a força de seus golpes. Quando um de seus oponentes conseguia acertar com uma cutilada, o braço de Arthur apenas se movia ao bloqueá-lo e absorvia a força do impacto como se fosse nada. Seu braço… Os olhos lhe puseram como pratos. Era o braço direito.
Não entendia. Arthur era canhoto. Ao menos supunha que era, mas nesse momento, em somente observá-lo, sabia que estivera fingindo. Por que ocultaria algo assim? E por que não o tinha visto alguma vez antes lutar desse modo? Podia compreender os motivos para ocultar seus incomuns aguçados sentidos, mas não havia nada inapropriado em ter destreza no manejo da espada. Deus, poderia ser um dos cavalheiros mais venerados do reino se quisesse. Então por que não queria ser?
Mas essas perguntas se esfumaram de sua cabeça assim que viu a nova horda de atacantes que vinham de cima das árvores. Não cabia dúvida de que ao ver os corpos caídos de seus compatriotas tinham identificado a ameaça e se reuniam em torno de Arthur.
Anna reprimiu o grito de advertência, consciente de que não faria mais que lhe distrair. Mas tinha o coração em um punho. Dois homens. E um terceiro não muito longe deles.
De repente algo pareceu mudar em Arthur. Em lugar de frios e desumanos golpes mortais brandia a espada com menos intenção. Era quase como se seu objetivo tivesse mudado e não desejasse matá-los a não ser simplesmente repelir o ataque. Mas não tinha nenhum sentido. Tirou esse pensamento da cabeça. O que passava era que aqueles guerreiros estavam melhor treinados.
E era certo. Parecia difícil ver algo na penumbra. Levavam roupagens escuras e pareciam ter se sujado de fuligem a pele com algo…
Gelou-lhe o sangue ao recordar o ataque do ano anterior. Aqueles homens também levavam a pele suja. Seria possível que se tratasse dos espectros do exército fantasma de velhacos formado por Bruce, o homem que tinha instaurado o horror tanto nos corações da Escócia como da Inglaterra?
Seus piores temores se viram confirmados quando um terceiro homem desceu sobre Arthur como um cão do inferno. Em lugar do longo espadão de duas mãos que usavam os highlanders, este brandia duas espadas menores. Uma em cada mão.
Mas eram suas vestimentas as que a fizeram tremer com um terror que subia por todos seus ossos. Igual ao resto dos atacantes, levava um nasal escurecido e tinha sujado de fuligem sua pele com barro ou cinzas, mas o que a fez estremecer diante da lembrança era o resto de sua indumentária. Vestido de negro da cabeça aos pés, em lugar de cota de malha levava um peitilho de guerra de couro tachonado com peças de metal, perneiras de couro e uma manta envolta de maneira estranha. Justo como o homem que a tinha atacado no ano anterior, aquele rebelde de beleza absurda.
Esse homem era um deles. Anna sabia. O medo se transformou em pânico. Os conhecia por suas extraordinárias habilidades, por combater como demônios possuídos. «OH, Meu Deus, Arthur!» Sua respiração ficou detida na parte alta de seu peito ao ver que o atacante voava até ele com as espadas em alto a cada lado de sua cabeça. O tempo pareceu ir mais devagar. Arthur, ainda ocupando-se de um dos outros dois adversários, não poderia defender-se. Gelou-lhe o coração. O sangue. Arthur ia morrer.
Anna abriu a boca para gritar, mas no último momento Arthur golpeou a um dos homens que lhe atacavam com o punho de sua espada e pôde ergue-la a tempo para bloquear as duas folhas antes que lhe cruzasse o pescoço. O assaltante demoníaco e ele se encontraram cara a cara com as espadas engastadas sobre suas cabeças. O agressor tinha o impulso de vantagem já que caía das alturas, mas conseguiu repeli-lo fazendo uso de ambas as mãos. Embora Arthur lhe desse as costas, conseguiu distinguir o rosto de sua oponente graças à luz oferecida por um raio de lua. Tinha os olhos mais horripilantes que Anna jamais tivesse visto. Estremeceu. Pareciam brilhar na escuridão. Com essas escuras feições retorcidas pela raiva parecia um diabo recém saído do inferno, Lúcifer em pessoa. Uma difusa lembrança foi a sua memória. Deus santo! Era possível que…? Anna abriu os olhos sem acreditar de tudo. Parecia-se com Lachlan MacRuairi, o marido de sua falecida tia Juliana. Fazia anos que não o via, mas conforme tinha ouvido estava com os rebeldes. Sua tia Juliana, da qual sua irmã tinha recebido o nome, era muito mais jovem que seu pai, quase vinte anos. MacRuairi provavelmente tinha a mesma idade que seu irmão Alan. Ao aproximar-se de Arthur a expressão de seu rosto mudou. Não se teria notado se não tivesse observado com tanta atenção. Surpresa? Reconhecimento? O homem que parecia seu tio deu um passo atrás. Ou era imaginações delas? Estava escuro e não era fácil estar segura. Ambos seguiram trocando golpes, mas a intensidade e a ferocidade tinham desaparecido. Comparado com o anterior, parecia mais um treinamento que uma batalha em que se empregassem a fundo. Anna olhava através da escuridão tentado compreender o que ocorria. Então, viu pela extremidade do olho que seu irmão tropeçava para trás, com a espada no chão e ambas as mãos sobre a cabeça, cambaleando-se…
Anna lançou um grito, incapaz de dominar-se por mais tempo. Teria deslocado em sua ajuda, mas Arthur se atrasou até sua posição para lhe impedir o passo.
—Fique atrás, maldita seja! Fique atrás!
Observou com impotência como o agressor com o que lutava seu irmão erguia a espada para acabar com ele. Seu horripilante grito atravessou a noite como uma adaga.
Arthur pareceu vacilar, mas somente por um instante. De alguma forma arrumou para rebater um golpe do homem que se parecia com seu tio e dar meia volta a tempo para bloquear a estocada dirigida contra seu irmão. O braço do atacante, ao não estar preparado para essa defesa, veio-se abaixo e com ele seu corpo, que foi cair justo sobre a espada de Arthur. O homem, surpreso, abriu os olhos antes de fechá-los para sempre.
Inclusive no meio desse horrível pesadelo a truculenta imagem fora muito para ela. Voltou o olhar entre soluços. Momentos depois, um agudo assobio cerceava o ar da noite. Olhou para o tumulto e se surpreendeu ao ver que os atacantes se retiravam. Ao que parecia MacRuairi, ou um homem que se parecia muito a ele, tinha dado a ordem de retirada. A clareira fora invadida pelos homens de seu irmão. Correu ao encontro do Alan antes inclusive de que o último dos rebeldes saísse da floresta. Tinha conseguido ficar em pé, mas ainda parecia cambalear-se.
—Oh, Deus, Alan! Está bem?
Inclusive na escuridão advertiu que lhe custava muito enfocar o olhar pela maneira em que a olhava. Sacudiu a cabeça como se pudesse assim dissipar a nebulosa.
—Um golpe no cocuruto —disse — Estarei bem. Não há por que chorar. —Tomou-a pelo queixo e lhe dirigiu um sorriso carinhoso.
Anna assentiu e limpou as lágrimas com o dorso da mão, sem se dar conta sequer de que estava chorando. Voltou de maneira instintiva e o buscou. Arthur estava a poucos metros dela, observando-a. Anna tinha vontade de correr a seu encontro, de deitar-se em seus braços, enterrar a cabeça em seu peito e romper a chorar. Ele se encarregaria de sossegar o horror. Mas seu irmão estava ali mesmo. E o rosto de Arthur se via muito sombrio.
—Está ilesa? —perguntou.
Anna assentiu enquanto o examinava, detendo-se na mandíbula e as bochechas, arroxeadas pelos golpes de seu irmão.
—E você?
Arthur assentiu também como resposta.
Alan permanecia junto a sua irmã completamente rígido. Depois caminhou em direção de Arthur, e Anna ficou paralisada temendo o que estava a ponto de fazer. Deteve-se a poucos passos dele. Ambos os homens ficaram olhando-se no silêncio da escuridão até que ao final Alan disse: —Parece ser que estou em dívida contigo, não uma, a não ser duas vezes. —Arthur ficou impassível e logo encolheu os ombros levemente — Eu não gosto de ver minha irmã zangada —acrescentou Alan.
Anna assumiu que aquilo era uma desculpa.
—A mim tampouco - disse Arthur.
Alan o examinou por um momento e depois assentiu como se tivesse chegado a algum tipo de decisão.
—Lutastes bem - disse mudando o tema, mas não a intensidade de seu escrutínio.
Ao que parecia não era ela quão única tinha advertido a melhora de suas habilidades.
—O ardor da batalha - explicou Arthur.
Esteve a ponto de mencionar sua mudança de mão, mas algo a deteve. Se seu irmão também percebeu disso, não o desvelou. Mas seguia observando-o com atenção.
—Sim, há alguns homens que funciona assim. —Anna não pôde saber pelo tom de sua voz se Alan acreditava realmente a explicação de Arthur. Ao ver que este não respondia, acrescentou—: Os rebeldes estão mais bem treinados do que pensava.
—Não eram rebeldes qualquer, irmão - disse Anna.
Ambos a olharam, mas foi Alan quem fez a pergunta.
—A que te refere?
—Acredito que um deles era parte da Guarda fantasma de Bruce, mas pode ser que não fosse o único.
Anna explicou a similitude de vestimenta com o homem que dirigia o ataque do ano anterior à igreja. Alan cofiou a barba.
—Tem sentido. Acredito que poderia estar certa.
—Há mais. Não posso estar segura, mas acredito que reconheci a um deles. O das duas espadas.
—O que? —Ambos os homens reagiram. Seu irmão com entusiasmo e Arthur com… algo diferente a isso.
—Nosso tio, que era nosso tio.
Alan amaldiçoou.
—MacRuairi?
Anna assentiu. O rosto do Alan adotou um gesto severo.
—O nosso pai não gostará nada. —Anna não sabia de onde provinha a inimizade de seu pai com o que fosse seu tio político, mas sim que o ódio corria furiosamente por ambas as partes. Alan soltou uma gargalhada — Embora talvez devesse. Que Bruce fique em seu bando com esse filho de cadela oportunista e traiçoeiro. Lachlan MacRuairi somente professa lealdade a si mesmo. Se for esse o tipo de homem que recrutou para sua tropa de fantasmas, não temos nada do que nos preocupar.
Arthur permanecia em um estranho silêncio. Anna tinha vontade de lhe perguntar a respeito do ocorrido entre o que acreditava seu tio e ele, mas, do mesmo modo que anteriormente, algo a fez conter-se. Em vez disso perguntou: —O que é o que o fez fugir?
Seu irmão ficou circunspeto.
—Não estou seguro. Tinha a cabeça tonta. Não vi virtualmente nada.
—Seus homens fizeram aparição —explicou Arthur — Estavam em minoria numérica. —Não tinha parecido assim, mas estava muito pendente de seu irmão para emprestar atenção ao resto da batalha — Deveriam voltar para acampamento —disse.
—Sim —concedeu Alan — Um de meus homens te levará, Anna. Nós temos que nos encarregar de…
«Os mortos», completou ela mesma.
O horror do ataque, o horror daquilo ao que tinham escapado por pouco, golpeou-a então com toda sua força. As comportas se abriram e emergiram todas as emoções que estivera contendo atrás delas, ameaçando transbordando em muitas lágrimas. Voltou-se, advertindo que Arthur se pôs a seu lado. Este, alheio à presença do Alan, esticou o braço para lhe pôr depois da orelha uma mecha de cabelo rebelde. Seus dedos passaram roçando a bochecha e se detiveram ali. A ternura que havia nesse gesto fez que a Anna saltasse em lágrimas. Ergueu o olhar para ele. Advertiu o rosto de preocupação atrás de sua expressão séria. Sua sólida presença, sua força a desarmavam completamente. Se tomasse entre seus braços se romperia em pedaços. Arthur, que adivinhava que isso poderia ocorrer, não o fez.
—Tudo sairá bem —disse com delicadeza — Faça o que diz seu irmão.
—Mas…
Cortou seus protestos com uma negação da cabeça e expressão firme. Deveu adivinhar que ela tinha perguntas que fazer.
—Agora não - disse olhando em direção aos caídos — Depois.
Anna manteve os olhos no rosto de Arthur, procurando não seguir a direção de seu olhar. Já havia visto suficiente sangue para o resto de seus dias. As lembranças dessa noite a perseguiriam. Era uma reação compreensível. Anna era uma mulher e não alguém acostumado ao sangue e ao furor do campo de batalha. Arthur, entretanto, sim estava. Ou ao menos deveria estar. Mas havia algo em sua expressão, na tensão de sua mandíbula, a brancura da boca, a crueldade de seus olhos, que indicava que aquilo lhe afetava profundamente. Anna seguia os passos dos dois homens de seu irmão que a precediam com a suspeita de que ela não seria a única a que perseguiriam as lembranças daquela noite. A questão era por que.
Arthur não pôde conciliar o sonho. Quase esperava que MacRuairi se deslizasse na escuridão e lhe rachasse a garganta ou cravasse uma adaga nas costas pelo que tinha acontecido. Não seria a primeira vez. Não tinha ganhado o apelido de Víbora unicamente por sua venenosa personalidade, mas também por seu ataque silencioso e mortífero. Entretanto, Arthur não podia culpá-lo.
Tal e como tinha feito quase toda a noite, olhava o monte de corpos que tinham deixado apinhados a um lado da clareira, postos ali para que os «atacantes» os recolhessem. Nove homens de Bruce assassinados. Mais da metade pela ponta de sua espada. Equivocou-se. Muito. Em muitos aspectos para poder contá-los. Suficiente mal era que seus sentidos tivessem falhado, que não tivesse advertido os sinais do ataque, mas, além disso, parecia ter esquecido de que lado estava. Levava tanto tempo entrincheirado em campo inimigo que começava a acreditar em suas próprias mentiras.
«Cristo.» Fechou os olhos em uma tentativa de aplacar seus pensamentos. Viu-se obrigado a matar a seus próprios homens antes, mas nunca desse modo. Aquilo não era simplesmente defender-se. Tornou-se um louco fazendo. Estava tão concentrado em proteger Anna e matar a qualquer que supusera uma ameaça para ela que não tinha reparado em nada mais que isso. Nem sequer se deteve quando percebeu o que ocorria. Tinha salvado a vida do MacDougall em troca de um de seus compatriotas. Não podia tirar da cabeça o rosto que tinha posto MacRuairi quando Arthur atravessou ao homem que estava a ponto de acabar com o MacDougall. Pouco importava que sua intenção não fosse matá-lo. Não teria que ter intervindo. O pranto dilacerador de Anna não era desculpa, ao menos não uma desculpa que importasse para os de sua irmandade.
Levantou-se de seu solitário posto junto à árvore quando começaram a vislumbrar os primeiros raios do amanhecer através da floresta. Não acudiriam. Nem MacRuairi, nem tampouco Gordon, MacGregor e MacKay, a menos que tivesse errado ao identificar aos outros três membros dos Guardiões das Highlands quando se batiam em retirada. Tampouco esperava que o fizessem, embora gostasse de ter a oportunidade de explicar-se ante eles. Não se arriscariam de novo a revelar a identidade de Arthur. Para isso bastava a si mesmo.
Era consciente do perto que estivera de arruinar sua cobertura e de pôr toda sua missão em perigo. Anna, tal e como provavam suas perguntas, era muito observadora, inclusive sendo presa do pânico. E não era a única. Também Alan suspeitava da súbita melhora de suas habilidades como combatente e de quão rápido tinham fugido os atacantes. No momento os tinha contentado, mas sabia que ela tinha mais pergunta e não se atrevia tão sequer a pensar o que mais teria advertido.
Reconhecer ao MacRuairi já era mal por si só, mas relacioná-lo com os Guardiões das Highlands era um completo desastre. Manter suas identidades em segredo não era só um aplique à mística e ao medo que rodeavam a aquela guarda «fantasma», mas sim também ajudava a mantê-los a salvo. Se seus inimigos tinham conhecimento de suas identidades, além de pôr preço a suas cabeças, temia a segurança de suas famílias. Essa era a razão pela que tinham decidido usar nomes de guerra quando estavam em uma missão.
Quando Bruce se inteirasse de que tinham desmascarado ao MacRuairi, teria graves conseqüências. Não teria que ter ocorrido, maldita seja. A raiva e a culpa invadiam seu interior sem piedade. Arthur teria pressentido o ataque se não tivesse tão envolto com Anna e deixar-se dominar pela emoção. Aqueles homens não estariam mortos e tampouco teria posto a ela em perigo. Deus, poderiam tê-la matado. E tudo por não ser capaz de controlar suas emoções e implicar-se muito.
Voltou para acampamento justo no momento em que começavam a despertar os homens que não estavam de guarda. Olhou para a tenda de Anna e viu que as portinholas forradas de linho permaneciam fechadas. «Bem. Que durma.» Merecia. Tinha ido vê-la com freqüência no transcurso da noite para assegurar-se de que estava bem. Sabia o muito que a tinha afetado o ataque, mas combatia com seus próprios demônios, de modo que por mais que fosse ele quem devia fazer, não estava em condições de consolá-la. Não obstante, uma vez que teve retornado de encarregar-se dos cavalos, viu a portinhola aberta. Ao inspecionar o acampamento e não encontrá-la ficou circunspeto. Mas pouco depois teve oportunidade de espiá-la enquanto falava com seu irmão, que estava ocupado com alguns de seus homens. A exasperação que refletia seu semblante era tão corrente que suspirou aliviado, até sem querer reconhecer quanto se preocupou.
Quando seu olhar reparou nele, Anna titubeou, mas em seguida começou a avançar pelo terreno semeado de musgo e folhas em sua direção. Arthur percebeu de que levava um pedaço de pano nas mãos. Deteve-se frente a ele, inclinando seu pálido rosto para olhá-lo. Arthur sentiu uma angústia no peito. Ao que parecia, o sono também fora esquivo.
—Já que a regra que pusestes e meu irmão está ocupado, terá que me acompanhar.
Arthur a olhou de modo inquisitivo.
—Não me fizeram prometer que não abandonaria o campo sem sua companhia ou a de meu irmão?
Franziu o cenho até converter-se no primeiro sorriso que tinham parecido em anos.
—Sim.
—Preciso ir ao córrego me lavar.
O córrego ficava perfeitamente à vista do acampamento, mas Arthur não discutiu ao conscientizar de quanto a teria afetado o ataque. Fez uma reverência zombadora com um gesto exagerado da mão.
—Depois de ti.
Anna não parecia ter muita vontade de falar, algo que vinha a calhar. Esperou junto a uma árvore, fazendo como que não olhava, enquanto ela se encarregava de suas abluções matinais. Depois de arrumar o cabelo com um pente úmido e lavar os dentes com pós de um frasco que esfregou sobre um pequeno pedaço de tecido branco, mergulhou outro trapo branco na água. Tinha levado com ela uma pastilha de sabão, a qual esfregou sobre o tecido para depois proceder a lavar o rosto, o colo, as mãos e os braços. Era uma das imagens mais sensuais que jamais tivesse presenciado.
Quando meteu o trapo entre os seios já não pôde mais. Voltou-se, furioso por que um pouco tão mundano pudesse o excitar. Mas com esse sol caindo entre as árvores, que se refletia em seus cabelos dourados e os regatos de água que se derramavam em cascata por seu rosto e seu colo a via formosa, doce e verdadeiramente cativante. Um raio de luz na escuridão. E tudo que Arthur podia pensar era o perto que estivera do céu e a vontade insensata que tinha de tocá-la de novo. Deus, é que não tinha aprendido nada do ocorrido na noite anterior? Concentrou-se no que lhes rodeava com uma intensidade quase exagerada, aguçando seus sentidos para algo que se saísse do ordinário. Entretanto voltou o olhar atrás. Anna tinha terminado e caminhava para ele com o sol a contraluz pelas costas. Arthur teve que conter a respiração. Mas isso não evitou que o apanhasse o subjugador aroma de sua doce e feminina fragrância: pele recém lavada com um toque de pétalas de rosa.
—O que acontece? —perguntou Anna.
—Nada - disse com tensão.
—Parece como se lhe doesse algo - disse olhando-o nos olhos — Lhe dói o rosto? —perguntou tomando o arroxeado queixo na mão. Cada um dos músculos de Arthur ficou em guarda ante o contato — Quebrou algo o idiota de meu irmão? —Jesus, que mãos mais suaves. Seus dedos aveludados acariciavam o duro contorno da tensa mandíbula de Arthur — Olhem quantos hematomas. Isso deve doer — acrescentou, levando o dedo até sua boca — Têm o lábio partido.
Sim, doía. Aquele gesto de sensualidade inocente fazia correr o sangue até a virilha de Arthur e a incendiava de calor. Teve que obrigar-se a não lhe chupar o dedo. Não tinha nem idéia do que estava fazendo. Nem do que estava custando resistir a tocá-la.
Anna o olhou com uma preocupação que se refletia em seus olhos.
—Dói muito?
—O rosto não. —Arthur lhe dirigiu um olhar lascivo que dizia exatamente onde estava a origem de sua dor. Parecia que fosse estalar.
As bochechas de Anna se ruborizaram levemente. Se por acaso aquilo não fosse suficiente, começou a mordiscar esse suave lábio inferior que tinha.
—Oh, não me dava conta de que…
—Deveríamos voltar. Seu irmão queria sair cedo.
Anna assentiu e Arthur teve a impressão de que lhe dava um calafrio.
—Não me entristecerá partir daqui.
Arthur não pôde conter-se. Tomou pelo queixo e cravou o olhar em seus grandes olhos azuis.
—Está bem?
Anna tentou sorrir, mas lhe tremeu a boca.
—Não, mas arrumarei isso.
Arthur lhe soltou o queixo e sua boca adotou um gesto severo.
—O que ocorreu a noite passada não voltará a repetir-se.
Os delicados arcos das sobrancelhas de Anna se franziram.
—Como pode estar tão seguro?
—Porque não permitirei.
Anna o examinou com o olhar e abriu os olhos de repente ao compreendê-lo.
—Por Deus bendito, por isso está zangado. Culpa-se do ocorrido. Mas isso é ridículo. Jamais poderia ter sabido que…
—Sim, sim deveria saber. Se não tivesse tão distraído, não teria ocorrido.
—Então a culpa é minha?
—É obvio que não.
—Não é perfeito, Arthur. Sois humano. Comete enganos. —Ele não respondeu. Tinha a mandíbula tão apertada que lhe doíam os dentes - é o que pensa? —perguntou Anna com ternura — Não falharam seus sentidos alguma vez antes?
«Uma vez», pensou Arthur, afastando a lembrança de sua memória.
—Temos que retornar.
Começou a afastar-se dela, mas Anna o agarrou pelo braço para detê-lo.
—Não ides contar isso?
—Não há nada que contar.
—Tem algo que ver com seu pai? —ficou olhando-a, aniquilado. Como demônios tinha chegado a suspeitar? Anna advertiu sua surpresa — Quando falou de sua morte, deu-me a sensação de que não contava tudo.
Não tinha contado nem a metade do que aconteceu. Como por exemplo a participação do pai de Anna na tergiversação dos fatos. Anna esperava uma resposta. Ele não era muito dado a falar sobre seu passado, mas a expressão do rosto dela disse que aquilo lhe parecia algo muito importante.
—Não há muito que contar. Tratava-se de minha primeira batalha. Meu pai me levou com eles para me pôr a prova. Estava tão preocupado por lhe impressionar que não detectei os sinais do ataque. —Mas isso não era a pior parte, pensou Arthur — Vi como morria.
O rosto de Anna se encheu de comiseração.
—Deus, sinto muito. Deve ter sido horrível. Mas não era mais que um menino. Não podia fazer nada para ajudar.
—Teria que o ter avisado. —Se não estivesse tão afetado, tão assustado, teria visto os sinais, refletiu Arthur. Então, igual à noite anterior, a emoção se havia interposto em seu caminho — Estava distraído.
Mal teve tempo de franzir o sobrecenho antes que os olhos de Anna se iluminassem repentinamente de compreensão.
—Amava-o.
Arthur encolheu os ombros, incomodado com o tema.
—Isso não serve de muito.
—Inclusive Aquiles tinha um ponto débil, Arthur. —Ele a olhou com cara de estar admirado. Do que estava falando? — É difícil manter-se afastado e à expectativa com as pessoas às que alguém quer —disse Anna lhe oferecendo um sorriso de simpatia — Não podem te culpar por amar às pessoas. —Mas fazia. Do que servia suas tão apregoadas habilidades se não podia proteger a aqueles que amava? — Obrigado por me contar isso — Por que voltava a sentir que a tinha deixado ver muito de si?
—Não desejava que te preocupasse pensando em outro ataque surpresa.
—Não me preocupo —disse Anna — Confio em você.
Arthur sentiu uns ardores no peito que o consumiam por dentro. Queria a advertir que não fizesse, lhe dizer que não merecia, que o único que faria seria a machucar, que ela dava seu coração com muita facilidade, com os olhos fechados. Mas em vez disso assentiu e puseram rumo para o acampamento. Arthur subiu a costa com ela, e quando estiveram nas imediações, Anna o olhou de soslaio.
—Pareceu como se meu tio o reconhecesse.
A observação o colheu com a guarda completamente baixa. Algo para o qual parecia ter um talento especial. Arthur deu um passo um tanto vacilante. Não muito, mas temia que se desse conta.
—Está segura de que era seu tio? Não via bem. Eu estava muito mais perto e não pude reconhecer aquele rosto oculta depois do nasal.
Anna enrugou o nariz, um movimento adorável que chocava profundamente com a ameaça que representava para ele.
—Faz alguns anos que não o vejo, mas estou bastante segura de que era ele. Seus olhos são inesquecíveis — disse com um calafrio. Se tentava distrair de sua pergunta, não ia funcionar — Mas pareceu o reconhecer.
—Ah, sim? —disse Arthur encolhendo os ombros — Pode ser que nos tenhamos cruzado alguma vez.
Ela ficou um momento sem dizer uma palavra, mas infelizmente não pensava deixar o assunto correr.
—Então não o conhece?
Arthur lutou contra a ativação instintiva de seus alarmes.
—Pessoalmente não.
—Parecia aborrecido de lhe ver.
O rápido pulsar do pulso de Arthur contradizia sua calma exterior. Era perigosamente perceptiva e andava muito perto da verdade.
—Aborrecido? Por isso sei, Lachlan MacRuairi é um filho de…—disse, detendo-se ao recordar quem tinha por audiência — É um homem perverso com um caráter de cão. Provavelmente estava furioso por que matasse a tantos de seus homens.
Anna pareceu aceitar a explicação. Mas a seguinte pergunta lhe deixou claro que ainda não estava satisfeita.
—Por que se retiraram?
Arthur amaldiçoou para si. As vozes de alarme se acendiam com mais força.
—Como já vos disse, os homens de seu irmão chegaram até nós. Estavam em minoria.
Ficou circunspeta.
—Não me pareceu isso. Parecia que estavam ganhando.
Arthur se obrigou a forçar um sorriso irônico.
—Seu irmão estava em perigo —lhe recordou — Eu diria que estava distraída.
Anna ergueu o olhar para olhá-lo e lhe dedicou um meio sorriso.
—Pode ser que tenham razão. Estava concentrada em meu irmão. Ainda tenho que lhes agradecer o que fizeram. —Uma sombra sulcou seu rosto — Se não tivessem detido a esse homem…
—Não pensem mais nisso, Anna. Já passou.
Assentiu e voltou a olhar de relance.
—De todos os modos, agradeço-lhe. E também Alan o faz, apesar de que tenha uma estranha forma de demonstrá-lo.
MacDougall não ocultava seu interesse por eles. Arthur sentiu o peso de seu olhar durante todo o tempo. Ao encontrar-se com seus olhos, soube que a discussão a respeito do ocorrido no dia anterior ainda não tinha acabado.
—Tem direito a estar furioso, Anna. O que fiz esteve mau. Tudo que posso fazer é prometer que jamais voltará a acontecer.
A maneira em que sua respiração ficou sobressaltada foi como uma punhalada no peito. Parecia emocionada. Desconcertada. Como se esperasse algo diferente.
—Mas…
—Aguardam-nos — disse Arthur, e assinalou ao moço que preparava seus cavalos para que não seguisse falando. Não poderia suportar outra conversa como a do dia anterior — É hora de partir.
Essas palavras fossem dirigidas tanto a ela como a si mesmo. Ponto cego. Ponto débil. Não importa como o tivesse chamado. Seus sentimentos no que respeitava a Anna se converteram em um lastro. Tinha permitido que ela se aproximasse muito, e sua missão e sua coberta pendiam de um fio. A conta atrás tinha começado.
Capítulo 18
Dois dias sem acontecimentos depois, Anna atravessava as portas do castelo de Dunstaffnage ao lombo de seu cavalo. Um dos guardiães se adiantou, de modo que lhes esperavam. Pelo semblante de ira mal contida de seu pai advertiu que estava a par do fracasso de sua viagem. Anna sonhava desfrutando de uma noite de sonho reparador antes de confrontar as perguntas de seu senhor, mas sua tardia chegada não serve para atrasar o relatório. Alan e ela quase não tiveram tempo de lavar as mãos e fazer uma frugal refeição leve antes que os apresentassem nas dependências do senhor do castelo.
John de Lorn permanecia de pé em meio da sala, com as mãos à costas e os membros importantes de seu meinie atrás dele e ambos os lados. A expressão de duelo que todos compartilhavam sem exceção fez pensar a Anna que entrava em um túmulo funerário. Dado que nenhum deles tomou assento, ela e Alan tiveram que suportar o desconforto de estar de pé. Suas sensações não distavam muito das do menino ao que chamam para que responda de uma travessura atroz com resultados nefastos.
Apenas teve fechado a porta quando seu pai começou a falar. A atacar, em realidade.
—Ross rechaçou a oferta.
Não se tratava de uma pergunta. Ao notar o tom de acusação de sua voz, Anna teve vontade de explicar-se, mas não tocava a ela fazer.
Alan respondeu por ambos.
—Sim. A resposta do Ross a uma aliança foi quão mesma na ocasião anterior. Disse que Bruce partiria também contra ele e que não podia prescindir de nenhum de seus homens.
—Mas que passou com o compromisso? Não lhe fez mudar de idéia?
Anna sentiu o peso dos olhares de todos os homens sobre ela e suas bochechas se ruborizaram. Mantinha o olhar baixo para que seu pai não visse quão envergonhada estava. Independentemente de que supusera alguma mudança ou não, tinha fracassado na tarefa que lhe tinha encomendado.
—Não há compromisso —explicou Alan — Estiveram de acordo em que não encaixam um com o outro.
Anna desejava que ninguém mais detectasse como Alan acabava de medir suas palavras.
—Quer dizer que não te perdoou por rechaçá-lo na primeira vez? —perguntou o pai a Anna diretamente.
Ela se aventurou a olhá-lo e a contemplar seu rosto de raiva. O coração lhe encolheu. Não era bom para ele que se zangasse tanto. Quis lhe dizer algo a esse respeito, mas sabia que se lhe tratasse como a um inválido ante seus homens, ficaria mais furioso ainda. Não sabia o que dizer. Não queria mentir, mas tampouco podia contar toda a verdade.
—Eu… — disse, tropeçando com suas próprias palavras.
—Bem — repôs seu pai com impaciência—, acreditava que foste o persuadir.
As bochechas ardiam da vergonha.
—Tentei, mas temo que ele… percebeu que meus sentimentos estavam comprometidos com outra causa.
—O que quer dizer isso de «comprometidos com outra causa»? —Seu pai entreabriu os olhos, que a atravessavam como flechas. Sabia que havia algo que não lhe estava contando — Campbell —disse impassível em resposta a sua própria pergunta. Amaldiçoou para si com um olhar implacável — E como poderia perceber isso? O que fez?
Jamais tinha visto seu pai tão furioso com ela. Era a primeira vez que sua raiva a atemorizava. Que o merecesse não era algo que aplacasse seus devastadores efeitos. O que poderia ter dito? Felizmente, Alan teve piedade dela.
—O compromisso não teria mudado nada. Ross já tinha seus planos feitos. Temo que ainda não ouvistes a pior parte. —Anna temia o pior em relação à reação de seu pai. Tinha medo de que aquilo o levasse a um novo ataque de apoplexia. Ao que parecia, Alan decidiu que era melhor não dosar a verdade, a não ser soltar a de uma só e desagradável vez — Ross está pensando em render-se.
Seu pai não disse uma palavra. Mas Anna contemplava como sua fúria crescia como uma crista de espuma no horizonte que se dirigisse para a costa a toda velocidade até converter-se em uma temível onda que ameaçava rompendo. John de Lorn apertava os punhos com força, seu rosto estava vermelho como um tomate, as veias lhe palpitavam nas sobrancelhas e seus olhos ardiam como se fossem as portas do inferno. Anna deu um passo em sua direção, mas Alan a deteve com uma mão e negou com a cabeça em sinal de advertência.
Quando seu pai acabou por bem pronunciar-se foi para proferir uma enxurrada de insultos que teriam posto a sua mãe de joelhos durante semanas inteiras em penitencia por sua alma blasfema. Perambulou, iracundo pela pequena câmara como um leão enjaulado. Inclusive seus homens lhe deixaram espaço suficiente para que desse rédea solta a sua irritação.
—Ross é um tolo do demônio! —explorou com fúria — Bruce jamais lhe perdoará o que fez às mulheres. Pelo amor de Deus! Pendurou em jaulas a sua irmã e à condessa. Se se render, estará assinando sua própria ordem de execução. —Deteve suas palavras o justo para dar um murro sobre a mesa — Como pode pensar em prostrar-se ante esse assassino traiçoeiro? Cortou a meu parente em pedaços diante de um altar.
Anna não se atreveu a assinalar que a santidade da igreja não era algo que parecesse importar muito ao Ross. Depois de tudo, ele mesmo violou o santuário para capturar às mulheres de Bruce.
—O povo está com Bruce —disse Alan para acalmar a seu pai — despertou um ardor patriótico no campo que não se via desde Wallace. Acreditam que é um salvador, o segundo advento do rei Artur, que os liberou do jugo da tirania inglesa. Ross pensa em sua gente e no futuro de seu clã. Pensa no que é melhor para a Escócia.
Anna tentou ocultar sua surpresa. Felizmente seu pai estava muito furioso para ouvir o que Alan havia dito realmente. Mas embora seu pai não o tivesse feito, ela sim tinha ouvido o tom de reprimenda na voz de seu irmão. Pensaria Alan igual a Ross? Acreditava também ele que Bruce era a melhor opção para Escócia? Por Deus bendito, o que aconteceria seu pai se equivocava?
Anna não podia acreditar que fosse ela quem albergasse esse pensamento desleal. Mas os MacDougall, em seus dias ferventes patriotas, tinham dado seu apoio aos ingleses para não ver Bruce sentar-se no trono. Era isso o melhor para Escócia?
—Morrerei antes de ver esse assassino no trono — disse seu pai, consumida já a raiva de seus olhos, frios como o gelo.
Anna sentiu certo alívio para ouvir os murmúrios unânimes de seus homens que concordavam vigorosamente com essa idéia. Seu pai sabia o que fazia. Era um dos homens mais poderosos de Escócia. Tinha suas falhas, claro, que grande homem não os tinha? Mas ele faria que superassem aquilo.
Uma vez informado sobre a parte mais importante da viagem, Alan procedeu a lhe contar a seu pai o resto, dando conta brevemente do problema acontecido pelo caminho. Seu pai escutava, cada vez mais preocupado, empalidecendo visivelmente para ouvir como seu herdeiro escapava por pouco à morte, duas vezes. Entreabriu os olhos enviesadamente quando Alan o informou das suspeitas de Anna a respeito da implicação do MacRuairi e depois transbordou de emoção ao conscientizar-se da conexão que tinha com a guarda fantasma de Bruce.
—Bom trabalho — disse a Anna, quem sorriu radiantemente pela adulação.
Alan deu a versão de Arthur de sua retirada, mas seu pai também pareceu ter problemas em compreendê-lo.
Ao final, adiantou-se e a agarrou da mão.
—Não sofreste nenhum dano, filha?
Anna negou com a cabeça e ele a acolheu entre seus grandes e robustos braços, esquecendo aparentemente sua ira. Por um momento, Anna voltou a sentir-se como uma menina e a necessidade de chorar todas suas penas sobre sua túnica de finos bordados se apoderou dela. Arthur seguia inimizado com ela. O ataque não tinha mudado nada. Por acaso o tinha piorado. Tinha a esperança de que depois de seu bate-papo ele tivesse mudado de parecer. Arthur sentia algo por ela, mas havia um motivo que o fazia conter-se. Esses dois dias de caminho não lhe tinham dado novas perspectivas. Anna não podia livrar-se da sensação de que havia algo estranho no ataque. E tampouco podia tirar da cabeça a inquietação que lhe provocava suspeitar que ele ocultava algo.
Seu pai se voltou para trás para olhá-la.
—Está cansada. Já ouvirei o resto da história pela manhã.
Assentiu, aliviada de que o pior já tivesse passado. Ao menos isso é o que pensava.
—E, Alan — disse John de Lorn a seu filho—, faz que Campbell e seu irmão se reúnam conosco. Parece que sir Arthur tem que responder por muitas coisas — acrescentou dirigindo um olhar a Anna que a fez estremecer da cabeça aos pés.
Arthur estava preparado para a citação quando esta chegou. Não esperava, entretanto, que se incluísse nela a seu irmão.
—Que diabos tem feito? —perguntou Dugald com suspeita à medida que atravessavam o barmkin em direção à torre da comemoração — por que tem Lorn tanta vontade de ver-te?
Arthur e seu irmão subiram a escada compassando sua marcha com o tinido de seus peitilhos e suas armas.
—Suponho que tem perguntas que fazer em relação aos homens que nos atacaram.
—E o que sabe você deles?
—Nada — disse Arthur ao mesmo tempo que abria a enorme porta de madeira que dava entrada à torre.
—O que tenho eu que ver em tudo isto?
Arthur olhou ao Dugald. A expressão de seu irmão era um reflexo da impaciência que ambos sentiam. Ao Dugald gostava tão pouco como a ele que o chamassem a presença de Lorn. Apesar de que seu irmão e ele lutassem em diferentes lados da guerra, ainda podiam coincidir em seu ódio para o John de Lorn.
—Que me crucifiquem se sei — disse Arthur incomodado por essa incerteza. Um guarda bateu na porta para anunciar sua chegada. Quando lhes fizeram passar, voltou-se e acrescentou—: Mas estamos a ponto de averiguá-lo.
Examinou com rapidez aos ocupantes da sala: Lorn, sentado como um rei em uma poltrona que melhor parecia um trono com uma expressão impossível de discernir; Alan MacDougall de pé junto ao muro, com cara de não saber muito bem o que ocorria; e Anna sentada em um banco em frente ao fogo com aspecto de estar extremamente inquieta. À exceção do único guarda que os tinha admitido para deixá-los depois às ordens de Lorn, não havia nenhum outro membro presente de seu meinie.
Tratasse do que se tratasse, era um assunto pessoal. A pontada de inquietação que Arthur sentia se converteu em uma punhalada em toda regra. Lorn, imperioso filho de cadela, não os convidou a sentar-se, de modo que permaneceram de pé frente a ele. O ódio cego que atendia a alma de Arthur cada vez que se encontrava rosto o rosto com o homem que tinha assassinado seu pai não diminuía. Contraiu suas feições de modo que não revelassem emoção alguma, mas o fogo que queimava seu peito e a necessidade de afundar uma adaga no negro coração de Lorn eram algo mais difícil de reprimir.
—Desejava nos ver, milorde — disse Dugald com um tom que não mostrava deferência alguma.
Lorn tomou seu tempo em deixar a pluma a um lado e logo se recostou na poltrona para olhá-los. Tamborilou com os dedos sobre a mesa. Quando respondeu, não foi ao Dugald, a não ser a Arthur: —Ouvi que tiveram uma viagem cheia de peripécias.
Algo no tom de sua voz fez que soassem os sinos de alarme no mais profundo da cabeça de Arthur. Teve que controlar-se para não olhar a Anna. O que lhe teria contado?
—Sim —disse — Tivemos a sorte de escapar à primeira orda de velhacos, mas não à segunda. Fizemo-nos fugir bem a tempo.
Lorn o escrutinou com tal parada que lhe puseram todos os nervos de ponta.
—Isso eu ouvi. Meu filho não teve mais que louvores para suas habilidades na batalha. Conforme afirma, jamais viu nada igual. —Dugald se voltou bruscamente para Arthur com o rosto circunspeta — Tenho que admitir que me surpreendeu ouvir a descrição do enfrentamento —acrescentou Lorn com um sorriso. Mas seu olhar não tinha nada de divertido. Era frio e calculador — Me pergunto por que jamais antes tínhamos visto isso em você.
Lorn desviou seu olhar para o Dugald, avaliando sua reação. Infelizmente, a expressão do irmão de Arthur não fez a não ser admirar mais.
—Sir Alan é mais que generoso com suas adulações, meu senhor.
Alan deu um passo à frente, em claro desacordo com a forma de perguntar de seu pai.
—Sir Arthur foi chave na hora de derrotar aos rebeldes, pai, e ao salvar minha vida. Temos uma dívida de gratidão com ele.
—Sim, é obvio —disse Lorn — Estou muito agradecido. Mas me pergunto… — Fez uma pausa e tamborilou com um dedo sobre a mesa— pergunto-me se poderiam jogar um pouco de luz sobre o resto do ataque.
—É obvio — disse Arthur. Mas não gostava absolutamente dos roteiros que tomava aquele assunto. Lorn era um filho de cadela arrevesado. Gostava de ter aos o rodeavam em um punho. Acaso suspeitava algo? Quem podia saber.
—Minha filha acredita ter identificado a quem fosse meu irmão político, Lachlan MacRuairi, como um desses rufiões, e também pensa que pode ser um dos guerreiros secretos dos que tanto ouvimos falar.
—Cruzei-me com esse homem uma ou duas vezes, mas não o conheço tão bem para afirmar nenhuma coisa nem a outra. Se lady Anna tiver dúvidas, temo que eu não posso ajudar a resolver.
Arthur caminhava pela corda frouxa. Uma negação terminante poderia chamar suspeita, mas queria manter a semente da dúvida plantada na mente de Lorn, cujos traços se endureceram, fazendo patente o ódio que professava pelo que fosse seu cunhado.
—MacRuairi é uma serpente traiçoeira, um assassino desumano que venderia a sua mãe por uma peça de prata, mas há uma coisa que jamais faria, e é se dar por vencido. Jamais o vi retirar-se em uma batalha.
Bàs roimh Gèill. «Morrer antes que render-se» formava parte do credo dos Guardiões das Highlands, mas parecia funesto que essa frase desse ao Lorn algo no que fincar o dente. A corda frouxa pela que Arthur caminhava-se fazia mais instável por momentos.
Deu de ombros sem comprometer-se.
—Então é possível que não fosse ele?
Lorn voltou a dirigir o olhar a sua filha, quem o olhou nos olhos antes de responder:
—Não posso estar segura, pai. Estava muito escuro. Somente percebi seu rosto com claridade por um instante… e fazia anos que não o via.
Arthur sentiu uma opressão no peito. Tentava protegê-lo. Teria notado Lorn também disso?
—Havia algo que quisessem de mim, meu senhor? —perguntou Dugald cada vez mais impaciente.
Em outras palavras: que demônios fazia ele ali? Uma pergunta que também interessava Arthur.
—Estou chegando a esse ponto.
Lorn voltou a tamborilar sobre a mesa, e Arthur começou a imaginar-se que agarrava sua maça de guerra e punha fim a essa aporrinhação de uma vez por todas.
—Não estou seguro de que firmaram tanto do propósito que tinha a viagem ao norte para ver o Ross — disse ao Dugald — Era pra retomar as conversações para o compromisso de matrimônio entre minha filha e sir Hugh Ross, com a esperança de que uma aliança entre nós animaria ao conde a enviar tropas de apoio na guerra contra Bruce. Infelizmente, as coisas não fossem como tínhamos planejado.
Dugald fulminou de relance Arthur com o olhar.
—Ah, não?
—Não. —O olhar de Lorn voltou a recair sobre ele — Ao que parecia, sir Hugh percebeu que os afetos de minha filha estavam comprometidos com outra causa. Sabes algo disso, sir Arthur?
Arthur viu pela extremidade do olho como Anna empalidecia e apertava as mãos com força sobre seu regaço. Que diabos havia dito? Os dentes lhe chiavam. Sentia-se esquecido no aposento e sem espaço para mover-se.
—Sim.
—Pensei que talvez fosse assim —disse Lorn. O brilho de raiva de seu olhar disse a Arthur que provavelmente adivinhava parte do acontecido. Esperou tensos, preparando-se para o pior. O nó cada vez se apertava mais. Lorn se voltou para o Dugald. As razões pelas quais seu irmão estava ali tinham ficado claras — Diante dos dados e recentes acontecimentos, eu gostaria de propor uma aliança diferente. Uma que faria mais sólidos os laços entre nossas famílias e mostraria minha gratidão para sir Arthur pelo serviço que tem feito a meu filho, assim como também asseguraria a felicidade de minha filha. —Cada um dos músculos do corpo de Arthur ficou tensos enquanto esperava o que estava por chegar. Perguntava-se se ela teria algo ver com isso, mas os olhos de Anna não mostravam mais que surpresa quando seu pai disse—: Eu gostaria de propor um compromisso de bodas entre sir Arthur e minha filha.
Dugald soltou uma gargalhada.
—Um compromisso?
A boca de Lorn adotou um gesto severo.
—Acredito que isso é o que disse. Podemos falar sobre os detalhes mais tarde, mas tenham por seguro que o dote de minha filha é mais que generoso. Inclui certo castelo que acredito pode ser de interesse para ti.
Tanto Arthur como seu irmão ficaram de pedra.
Foi Dugald quem acabou por perguntar:
—Innis Chonnel?
Um sorriso retorcido se desenhou na boca de Lorn.
—Sim.
Arthur não podia acreditar. A fortaleza dos Campbell do lago Awe que tinham sido arrebatado a seu clã fazia anos, devolvida por casar-se com a mulher que queria mais que a tudo no mundo. Um autêntico pacto com o diabo. Por um momento, ficou duvidando, muito mais tentado do que gostaria de admitir. Mudar de bando era algo habitual naquela guerra. Mas ele não podia fazer. Inclusive no caso de que condescendesse a aliar-se com o homem que tinha assassinado a seu pai, havia muitas pessoas que contava com ele: Neil, o rei Robert, MacLeod e o resto dos membros dos Guardiões das Highlands. E tampouco podia ignorar sua própria consciência. Acreditava no que estavam fazendo.
A devolução do castelo dos Campbell, embora fosse ao irmão mais novo, bastou para convencer ao Dugald, que se voltou para Arthur.
—Eu não tenho objeção. Arthur?
Todos os olhos se voltaram para ele, mas somente era consciente de dois pares: os de Anna, que lhe observavam com o coração neles, e os de Lorn, que o contemplavam com a suspeita refletida.
Até no caso de que não tivesse intenção de levar a cabo, Arthur sabia que devia aceitá-lo para dissipar todo receio. Aquele compromisso era uma prova de lealdade. Tratava-se tanto de assegurar a felicidade de Anna como de provar sua aliança. Sua consciência liberava uma batalha com sua noção do dever, mas não durou muito. Não tinha outra opção. As espadas estavam em alto. Não podia pensar em quanto o odiaria Anna quando averiguasse a verdade.
—Será uma honra tomar lady Anna como esposa.
Talvez o pior fosse que, em realidade, dizia a sério.
Capítulo 19
Anna tinha tudo o que queria. Por que se sentia então tão miserável? Tinha passado uma semana desde dia em que seu pai anunciasse por surpresa o compromisso em sua câmara. Uma vez reposta da comoção, casar-se com o homem que amava… era algo que a deixava em um estado de euforia. Nada poderia fazê-la mais feliz. Exceto, talvez, a notícia de que Bruce decidisse que a coroa não lhe pertencia e desaparecesse nas ilhas Ocidentais como tinha feito anteriormente. Mas faltava muito ainda para que se cumprisse esse sonho.
Enquanto ela estava mais que entusiasmada, Arthur dava a impressão de ter que suportar uma pesada carga. Desde aquele dia se comportava com uma correção irrepreensível, cortês durante as refeições e também nas poucas ocasiões em que se cruzavam os caminhos de ambos. Inclusive permitia que Escudeiro o seguisse em qualquer parte sem queixar-se. A simples vista era o perfeito prometido, mas esse era o problema, que somente era a simples vista. Sua formalidade, esse distanciamento progressivo, reduzia sua felicidade ao mínimo. Cada vez que dizia: «Tivestes bom dia hoje, lady Anna?» ou: «Gostaria de outra taça de vinho, lady Anna?», provocava uma ferida diminuta em seu coração. Não podia entendê-lo. Segundo ele mesmo admitia, lhe importava. Então por que não se dava conta de que aquilo seria perfeito para ambos?
À medida que passavam os dias custava mais convencer-se de que isso era o que ele queria. Afastava-se dela por muitos momentos. Algo lhe pesava. Estava uma semana mais perto do final da trégua, já que os idos de março se aproximavam com presteza, mas sua crescente ansiedade se deixava ver em todo momento e não parecia que fosse por causa da batalha em floração. Gostaria que confiasse nela, mas rechaçava qualquer intento de diálogo, embora tampouco contavam com muitas oportunidades. Além dos breves intercâmbios das refeições, a única vez que tinha procurado sua companhia fosse poucos dias atrás, quando insistiu em acompanhá-la ao priorado do Ardchattan. Não esperava nenhuma missiva, assim não tinha nada que lhe ocultar. Talvez seu pai não pusesse já objeção alguma a que contasse a Arthur qual era seu papel na transmissão das mensagens. O compromisso parecia eliminar todas as suspeitas que ficassem em relação aos Campbell. À medida que se aproximava a guerra e que se intensificavam as preparações para a batalha, os Campbell passavam mais tempo junto a John de Lorn e de Alan, algo que Anna queria identificar como um sinal do degelo dessa geleira que significavam as velhas rixas.
Suspirou e passeou o olhar ao redor do aposento, enquanto sua criada terminava de lhe arrumar o cabelo. Era o sexto dia de agosto, um dia mais perto do fim da trégua. Ao olhar pela janela de sua câmara na torre viu um birlinn deitando a baía, o maior porto de ancoragem do castelo. Era um acontecimento habitual, algo que não teria chamado sua atenção a não ser pela rapidez a que se deslocava. O reluzente navio de madeira mal tinha chegado à borda quando seus ocupantes saltaram pela amurada e correram para as portas da fortaleza. O coração lhe deu um tombo, consciente de que algo estava passando. Sem incomodar em por o véu, baixou a escada da torre correndo e se apresentou no pátio de armas ao mesmo tempo que seu pai recebia ao contingente de homens do birlinn: os MacNab.
—Que novas trazem? —perguntou seu pai.
O rosto do capitão dos MacNab era desolador.
—O rei Hood, milorde. Está a caminho.
Anna ficou sem fôlego, seu sangue congelado pelo medo. Chegava o momento, o dia que tanto tinha temido e desejado ao mesmo tempo. A batalha que poderia significar o fim da guerra.
O castelo era um tumulto. Os guerreiros, agrupados, pareciam comovidos pela excitação, ansiosos pela oportunidade de destruir ao inimigo. Não obstante, as poucas mulheres que rondavam por ali tinham umas reações muito diferentes: preocupação e medo, exatamente o mesmo que sentia Anna. Seu olhar procurou Arthur de maneira instintiva. Também lhe afetavam as notícias. Observava-a com uma intensidade ardente que não via nele desde o ataque da floresta. Ficaram-se olhando uns instantes até que Arthur voltou o olhar para os MacNab.
O pai de Anna fez passar aos recém chegados ao grande salão. Anna os seguiu, ansiosa por saber tanto como pudesse. Infelizmente, os MacNab não tinham muita mais informação. Um de seus rastreadores lhes alertou de que Bruce tinha saído do castelo do conde de Garioch em Inverurie com tropas de ao menos três mil homens e se dirigia para o oeste. Três mil homens contra os oitocentos de seu pai! Não obstante, não sabiam se tinham intenção de dirigir-se primeiro ao Ross ou ao Lorn.
Bruce não perdia tempo. Estaria preparado para atacar assim que expirasse a trégua. Por Deus bendito, aqueles bárbaros estariam chamando a suas portas para a semana próxima.
Sua mãe e suas irmãs se apressaram a baixar ao salão para ouvir a comoção. Ao encontrar-se com ela depois da multidão, perguntaram-se pelo que acontecia. Anna as pôs em dia rapidamente e viu seu próprio medo refletido na inquietação de seus rostos. Era um dia que todos esperavam, mas então quando começavam a dobrar os sinos.
—Tão logo? —disse sua mãe, presa do medo — Mas se apenas acaba de se recuperar.
—Não lhe acontecerá nada, mãe — repôs Anna, tentando convencer-se também a si mesmo.
Mas não era seu pai o único que preocupava a Anna. O que aconteceria…? Não, não podia pensar nisso. Arthur retornaria. Tudo estariam logo de volta. Não obstante, a incerteza não se desvanecia. A arbitrariedade da guerra, isso era precisamente o que Anna sempre tinha desejado evitar. Por que tinha que apaixonar-se por um cavalheiro?
A reunião durou um momento mais. Ao entrar no salão perdeu a pista de Arthur e seus irmãos, mas assim que o bate-papo derivou para uma missão de reconhecimento, viu-o adiantar-se para a mesa de cavalete do estrado no que seu pai estava sentado junto a alguns de seus homens e o capitão MacNab. Quando Anna adivinhou o que estava a ponto de fazer lhe gelou o coração. Quis chamá-lo, lhe dizer que não o fizesse, mas era consciente de que isso era impossível, e Arthur fez justamente o que ela pensava.
—Eu irei, milorde — disse.
John de Lorn olhou para ele e assentiu, obviamente agradecido de que se apresentasse como voluntário. Alan também se ofereceu a ir, mas seu pai se negou, alegando que o necessitariam no castelo. Ao final, decidiu-se que seu irmão Ewen lideraria o grupo de reconhecimento, que também incluía os irmãos de Arthur.
Não perderam tempo. Em pouco menos de uma hora já estavam reunidos no barmkin para partir. Anna ficou ali de pé junto a sua mãe, sentindo-se como se estivesse dando voltas em um redemoinho sem nada ao que agarrar-se. Observava com o coração em um punho como Arthur se preparava para a marcha. Este acabou de assegurar seus pertences ao cavalo, tomou as rédeas e se situou ao pé do animal, disposto a montar. A Anna deu um tombo o coração. Acaso pretendia partir sem lhe dizer adeus?
Se essa era sua intenção, deveu mudar de idéia. Deu as rédeas a um dos cavalariços e se voltou para dirigir-se para ela. Tinha a mandíbula tão tensa como os ombros, como se temesse enfrentar-se com algo desagradável. «Eu», pensou Anna, sentindo uma pontada no peito.
—Lady Anna — disse Arthur com uma leve inclinação da cabeça.
A mãe e as irmãs deram a volta sem muita sutileza protegendo-os quanto podiam do resto da multidão para lhes dar um pouco de privacidade. Mas Anna seguia sendo plenamente consciente de que não estavam sozinhos.
—Têm que partir?
Odiou a si mesma por perguntar, mas não pôde evitá-lo. Sabia que esse era seu trabalho, mas não queria que partisse. Sempre seria assim?
—Sim.
Houve uma pausa tão larga que pareceu definitiva.
—Quanto tempo estará fora?
Seus olhos brilharam de um modo estranho, mas o brilho desapareceu antes que Anna pudesse reconhecer sua origem.
—Depende do rápido que se aproxime o exército. Um par de dias, talvez mais.
Ela ficou olhando seu bonito rosto, tentando memorizar as duras linhas de seus traços, as cicatrizes, o estranho dourado ambarino de seus olhos.
—Tomará cuidado?
Era uma pergunta estúpida, mas tinha que fazer de todas formas. Um simulacro de sorriso apareceu nas comissuras da boca de Arthur.
—Sim.
Manteve-lhe o olhar durante um instante mais, como se também ele tentasse retê-la na memória. Ela nunca tinha visto tal expressão de desconsolo em seu rosto. Um calafrio de pavor percorreu sua nuca. «É a guerra — disse — Está centrado na batalha que tem diante de si.»
Arthur tomou sua mão e a levou aos lábios fazendo que a estampagem cálida de seus lábios irradiasse por toda sua pele.
—Adeus, lady Anna.
Algo no tom de sua voz lhe rasgou o coração. Quando ele se voltou para partir, Anna ficou com vontade desesperada para voltar a chamá-lo. «O tipo de homem que está sempre olhando para a porta…» Não. Convenceu a si mesma de que se comportava como uma parva. Não a estava abandonando. Simplesmente estaria fora uns dias. Mas por que lhe parecia que aquela despedida era para sempre?
Então, como se não pudesse conter-se, Arthur deu meia volta, agarrou-a pelo queixo e baixou a cabeça para beijá-la. Seus lábios acariciaram os de Anna em um suave e terno beijo que fez vibrar seu coração. Aquele beijo tinha sabor de nostalgia. A dor. E a arrependimento. Mas sobre todas as coisas, tinha sabor de despedida. Anna queria prolongá-lo, queria que durasse mais, mas antes que lhe desse tempo a reagir, o beijo tinha acabado. Arthur lhe soltou o queixo, manteve o olhar por um segundo agonizante e partiu. Não voltou a olhar atrás. Nenhuma só vez. Ela ficou olhando sua partida, aniquilada, sem saber muito bem o que tinha ocorrido. Permaneceu tocando os lábios em uma tentativa de apreender o calor e seu sabor por tanto tempo como fosse possível. Mas antes que o último dos homens saísse pelas portas do castelo esse calor já era história.
Arthur procurava uma saída e ao fim a tinha encontrado. A viagem de exploração em volta do Este lhe dava a oportunidade de fazer algo que meses atrás parecia impossível: retirar-se da missão. Tinha que fazer algo. Não podia ficar ali e deixar que a situação piorasse. Os dias seguintes a seu compromisso tinham sido insuportáveis. Fingir acabaria com ele. Anna estava tão feliz, tão encantada de casar-se com o homem que a trairia… Cada sorriso indeciso, cada olhar em busca de um consolo que ele não podia lhe oferecer, era como uma gota de ácido que remoia sua consciência. Não era capaz de fazer isso. Embora significasse sacrificar sua missão. O irônico era que não podia ter escolhido maneira mais efetiva de infiltrar-se nos MacDougall que um compromisso com a filha do senhor das terras. O compromisso, unido ao feito de salvar a vida de Alan, deu-lhe acesso ao centro nevrálgico do poder: o conselho de nobres. Dizia a si mesmo que não sacrificava sua missão. Fazia suficiente identificando às mulheres como as transmissoras de mensagens, passando informação sobre a preparação e efetivos do MacDougall e entregando um mapa do terreno, assim como evitando uma aliança com o Ross, embora isso não ocorresse exatamente da maneira em que o tinha planejado. Estavam nas vésperas da batalha. O rei Robert entenderia.
Tinham passado três dias de sua desastrosa partida e caía a madrugada. Nunca acreditou que lhe custaria tanto despedir-se dela. Mas partir de seu lado, sabendo que possivelmente não a veria de novo, fez-lhe perder toda determinação. Não deveria tê-la beijado, mas ao olhar seus olhos e ver esse rosto de medo e preocupação, não pôde resistir. Era consciente de que jamais voltaria a ter essa sensação de conexão absoluta e precisava desfrutar dela uma vez mais.
Arthur olhou a retaguarda para assegurar-se de que ninguém o tinha seguido e atou o cavalo a uma árvore. Encontrava-se a menos de dois quilômetros do lugar onde os homens de Bruce tinham acampado a noite anterior. Faria o resto do trajeto a pé. Era provável que a essa hora da madrugada os sentinelas disparassem contra tudo que se aproximasse do acampamento sem fazer perguntas e o cavalo o delataria. Seus sentidos se aguçavam à medida que se aproximava do acampamento do rei, antecipando-se a qualquer sinal que delatasse a presença da Guarda que o circundava. Arriscava-se muito chegando sem prévio aviso, mas não havia alternativa. Não tinha tido tempo de combinar um encontro ou enviar uma mensagem a guarda, e a partida de reconhecimento dos MacDougall se preparava para retornar ao castelo de Dunstaffnage ao dia seguinte com o relatório. Ofereceu-se voluntário para fazer patrulha de noite, consciente de que essa seria sua única oportunidade. Sabia que Chefe teria a um dos membros dos Guardiões das Highlands fazendo turno de vigilância, como cada noite, assim tentaria contatar primeiro com algum de seus companheiros.
De repente sentiu um comichão na nuca. Deteve-se o notar a estranha mudança de ar que percebia cada vez que alguém se aproximava. Escondeu-se entre a escuridão da noite e esperou, sabendo de que antes de ver quem se aproximasse o ouviria chegar. Mas passados uns minutos percebeu de que algo não funcionava. Ou o homem se deslocou ou suas habilidades voltavam a falhar.
De novo.
Mas quando conseguiu ver a figura que emergia depois de uma árvore a pouco mais de cinco metros de distância percebeu de que havia uma terceira resposta: o sigilo daquele homem igualava suas capacidades perceptivas. «Maldição.» Não era isso o que necessitava. Emitiu o uivo que iria identificá-lo como presença amistosa. Não obstante, suspeitava que o homem que se aproximava podia ter uma opinião diferente a respeito.
MacRuairi ficou imóvel e apesar da contra-senha apontou com seu arco na direção da que provinha sua voz.
—Quem vem?
—Guardião - respondeu Arthur levantando o visor de aço de seu elmo e saindo de trás da árvore que o resguardava.
Inclusive na escuridão, apreciou o brilho diabólico nos olhos entreabertos do MacRuairi, que deslocou o braço para a esquerda para lhe apontar entre as sobrancelhas. MacRuairi possuía uma habilidade extraordinária para ver na escuridão, algo fatal de lembrar-se justo nesse momento.
—Ides fazer uso da arma? —disse Arthur.
—Ainda não decidi. Uma morte não me parece muito comparada com nove. Poderia alegar que pensei que era um traidor, o qual não estaria muito longe da verdade.
Arthur engoliu a grosseira réplica que foi a seus lábios. Saber que merecia o menosprezo daquele homem, mas não facilitava o fato de ouvi-lo. Ignorou a flecha que lhe apontava e seguiu adiante.
—Acha que não me arrependo do que aconteceu?
—Arrepende-te? Pois te asseguro que não saberia o que te dizer. Parecia desfrutar lutando junto a Alan MacDougall, por não mencionar que salvou sua puta vida.
Apenas os separavam alguns metros, mas MacRuairi não teria errado o tiro nem a centenas de metros de distância.
—Responderei ante o rei e não ante você, Víbora. Tenho que falar com ele.
—Está dormindo.
Arthur apertou os dentes e os punhos. Brigar com o MacRuairi não solucionaria nada, mas não tinha tempo para tolices.
—Pois então terá que despertá-lo. E também a meu irmão.
Ao final, MacRuairi optou por baixar o arco.
—Espero por seu bem que tragas boas notícias - disse, fulminando-o com o olhar — E será melhor que tudo aquilo valha a pena.
Tinha valido a pena? Arthur não teve tempo de pensar nesses termos naquele momento. Não teve tempo de fazer esse tipo de análise. Estava muito ocupado em defender-se e proteger a Anna.
Menos de quinze minutos depois o fizeram passar à tenda do rei. Se Bruce estava dormindo, não havia nada em seu rosto que indicasse que acabava de despertar. Levava seus escuros cabelos penteados, tinha os olhos tão limpos e chicoteados como sempre, além de ir vestido com as perneiras e uma sobreveste negra de finos bordados.
Estava sentado sobre uma arca. A ausência de mobiliário concordava com a ligeireza e a rapidez com as que se deslocava o exército. Ao rei Eduardo nem sequer teria passado pela cabeça fazer campanha sem carregar em seus carros seu equipamento doméstico e sua baixela. Mas detrás de viver como um foragido durante um ano aquartelado entre o povo, Robert Bruce havia se acostumado a contentar-se com muito menos.
A sua esquerda tinha ao Neil, ao qual se via um tanto mais desalinhado, e à direita ao Tor MacLeod, líder dos Guardiões das Highlands. Tanto a expressão deste como a do próprio rei eram desalentadoras. A pergunta que Arthur adivinhou no olhar de seu irmão cortava como uma faca. Seria possível que questionasse sua lealdade?
—Que diabos ocorreu, Guardião? —perguntou o rei.
Arthur narrou da maneira mais sucinta possível os eventos que levaram a sua inesperada viagem ao norte, o compromisso de bodas previsto entre a filha de Lorn e sir Hugh Ross, as esperanças de unir forças de Lorn e a intenção de Arthur de evitar que a aliança se levasse a cabo.
—Conseguiram-no? —perguntou Bruce.
Arthur manteve uma expressão neutra.
—Sim, majestade.
O rei assentiu, agradado. Nenhum dos pressente pareceu perguntar a respeito de como o tinha conseguido. Arthur continuou explicando como tinha obtido que a patrulha se desviasse do grupo dos MacDougall em seu caminho ao norte e afirmou que se viu obrigado a defender-se para proteger sua identidade.
—Assim foi você? —disse MacLeod — Nossos homens do castelo do Urquhart estavam muito zangados porque um só homem conseguisse escapar deles.
—Não de tudo. Oxalá tivesse podido, mas me encurralaram em um escarpado. Não podia lhes contar quem era.
Ninguém disse uma palavra. Todos sabiam tão bem como ele que essas situações eram inevitáveis para preservar sua identidade, mas a nenhum deles gostava.
Depois Arthur passou a explicar a forma em que MacRuairi e seus homens o tinham surpreendido quando voltavam para o Dunstaffnage.
Neil arqueou as sobrancelhas.
—Não os ouviu chegar?
Arthur negou com a cabeça sem dar mais explicações. Referiu a princípio, simplesmente reagiu ao ataque e que depois, ao se dar conta de quem eram, passou a manobras defensivas. Quando chegou à parte em que salvou a vida do Alan MacDougall não ofereceu mais desculpa que a verdade. Somente tentava deter o golpe, matar ao guerreiro fora um acidente.
Neil fez a pergunta que sem dúvida rondava as cabeças de todos eles.
—Mas por que teria que lhe salvar a vida? Proteger ao herdeiro de Lorn não era parte de sua missão. Assassinar a ele seria quase tão bom como assassinar ao próprio Lorn.
Arthur olhou a seu irmão nos olhos sem fugir a verdade.
—Não tentava protegê-lo.
—É pela moça —disse MacLeod, juntando todas as peças — Sente algo por ela.
Arthur se voltou para seu capitão. Não o negou.
—Sim.
—A filha de Lorn! —exclamou Neil sem poder ocultar sua indignação — Maldição, irmão. No que estava pensando?
Arthur não tinha uma resposta para isso. Não havia.
—O que estais dizendo, Guardião? —disse o rei com olhos negros tão duros como o ébano — Uma moça o tem feito esquecer em que lado está?
—Minha lealdade está contigo, meu senhor - disse Arthur com firmeza.
Mas o dardo envenenado do rei ardia.
Neil ficou olhando-o fixamente.
—Mudaste de ideia respeito ao Lorn? Esquece-se do que fez a nosso pai?
Arthur endureceu a expressão de seu rosto.
—É obvio que não. Mas minha vontade de ver a destruição do John de Lorn não se faz extensiva a sua filha. Por isso estou aqui. Preciso sair do castelo de Dunstaffnage.
A sala ficou em um silêncio sepulcral. Arthur notava que o olhar fixo de seu irmão queimava, mas não se atrevia a olhar em sua direção. Tinha falhado. Tinha falhado ao homem que era como um pai para ele. Não queria ver a decepção em seu rosto.
—Está em uma situação comprometida? —perguntou o rei — Há perigo de que o descubram?
Arthur negou com a cabeça.
—A moça sabe que oculto algo, mas não acredito que suspeite de nada.
—Então é a moça a causa de que desejes abandonar a missão antes de cumpri-la?
—A coisa se complicou.
Consciente de quão insuficiente parecia isso, inclusive para si mesmo, explicou que Lorn lhe tinha interrogado sobre o ataque e acrescentou que ao acreditar que o ancião suspeitava algo, viu-se obrigado a aceitar o compromisso.
—Mas isso são notícias fantásticas - disse o rei, contente pela primeira vez desde que Arthur entrasse na tenda — chegastes mais perto de Lorn do que jamais acreditei possível. Sinto muito que a moça esteja implicada, mas não sofrerá verdadeiro dano. O coração de uma jovem sara com facilidade.
Para falar a verdade, o rei, conhecido por seu êxito com as moças, tinha muita mais experiência que ele, mas nesse caso Arthur não acreditava que acertasse. Anna amava com muita bravura. Estava muito cega pelo amor.
—Não posso permitir que abandone —finalizou o rei — Ainda não. Não tendo a batalha tão perto. Necessito-te dentro para que me digas o que é o que se propõem. A informação que nos transmite é muito valiosa. A vitória está muito perto para deixá-la escapar no último momento. John de Lorn é um demônio com o coração podre, mas não por isso subestimo suas táticas de guerra nem sua capacidade para a surpresa.
Arthur sabia que o rei não atenderia a razões. Robert Bruce estava desejando desforrar-se. Lorn o tinha vencido antes e essa vez não permitiria que nada se interpusesse em seu caminho. O coração de uma mulher era um pequeno preço a pagar.
—Atacaremos o castelo na madrugada do dia dezesseis —disse MacLeod, dando a impressão de advertir sua frustração — Só serão alguns dias mais.
Mas ele não conhecia Anna MacDougall. Arthur teria preferido enfrentar-se às endiabradas máquinas de guerra do primeiro rei Eduardo que tentar resistir diante de Anna durante «somente uns dias mais».
C O N T I N U A
Capítulo 11
Anna jogou o capuz para trás ao mesmo tempo que entrava na câmara de seu pai. Soltou a cesta na mesa e se sentou juntou a este e sua mãe ao calor das brasas da lareira. Inclusive no verão, os muros de pedra do castelo faziam dele um lugar frio e com correntes de ar.
Sua mãe levantou a cabeça do novo estandarte de seda no qual trabalhava e a olhou, sentida saudades.
—De onde vem, Annie querida? É tarde.
—Fui levar bolos aos monges do priorado —respondeu Anna inclinando-se para beijar sua mãe.
Encontrou-se com o olhar de seu pai. A expressão deste se escureceu ao ver respondida sua tácita pergunta com uma leve negação de cabeça. Tossiu antes que sua esposa pudesse fazer mais objeções. Embora Anna soubesse que o fazia e que propósito, aquele áspero e úmido som a preocupava.
—Não me falou de uma nova infusão de ervas do pai Gilbert que ajudaria a aliviar o encharcamento de meus pulmões?
Sua mãe se sobressaltou, afastou seus bordados e ficou em pé de repente.
—Tinha esquecido. Direi ao Cook que o prepare agora mesmo.
Assim que a porta se fechou atrás dela seu pai disse:
—O rei Eduardo não respondeu?
Anna negou com a cabeça.
—Já deveríamos ter notícias dele.
Seu pai se levantou e começou a perambular diante da chaminé, enfurecendo-se mais a cada passo que dava.
—Esses asquerosos rufiões de Bruce devem tê-lo interceptado. Parece que a metade de nossas mensagens não chega a seu destino, nem com a ajuda das mulheres — disse apertando a mandíbula — Mas dado que não ouvimos nada sobre o destacamento de soldados, acredito que podemos supor que não enviarão a ninguém. O jovem Eduardo está muito ocupado tentando salvar sua própria guarida para preocupar-se com a nossa.
Anna não podia acreditar que depois de tudo o que tinha feito seu pai pelo primeiro rei Eduardo, o novo rei o abandonaria de tal modo.
«Que se deita com crianças…»
Veio a sua mente essa velha história, mas Anna a tirou da cabeça porque em certo sentido lhe parecia desleal. Seu pai não teve outra opção. O primeiro rei Eduardo era muito poderoso. Depois da derrota de Wallace em Falkirk, ou se fazia aliado do rei inglês ou lhe confiscavam as terras. Quando Bruce usurpou a coroa, a aliança se fez mais necessária ainda. Se Bruce e os MacDonald estavam em um lado, os MacDougall não podiam mais que apoiar ao outro: Inglaterra.
—Não deveríamos tentar enviar outra missiva?
—Não temos tempo — espetou seu pai, claramente molesto pelo que percebia como uma pergunta estúpida — Os ingleses se movem com lentidão. Demorariam semanas em chegar tão ao norte carregando toda essa baixela e esses móveis para estar cômodos. Inclusive no caso de que Eduardo mudasse de opinião, necessitaria dias para reunir aos homens. O rei Hood estaria aqui junto a sua tropa de assassinos salteadores de caminhos antes que aos ingleses desse tempo de encher seus carros de ninharias.
Anna tentava não tomar como algo pessoal a cólera do pai. Tinha todo o direito a perder os nervos. O inimigo estava virtualmente em cima e ninguém vinha em sua ajuda. O conde de Ross, igual ao rei Eduardo, ainda não tinha respondido a sua petição de unir forças. Ia ficando patentemente claro que estariam sozinhos ante Bruce: oitocentos homens contra os três mil com que contava o usurpador conforme o informe.
O medo prendia a garganta. Os MacDougall eram ferozes combatentes e Lorn um dos melhores generais de Escócia na batalha, mas poderiam superar tal desvantagem? Seu pai estivera a ponto de derrotar ao Bruce anteriormente, mas então o rei foragido teve que fugir com umas poucas centenas de homens ante suas mais numerosas forças. Nessa ocasião seriam os MacDougall quem estaria em clara inferioridade numérica. «Pouco importa», pensou Anna com integridade. Seu pai ganharia de todos os modos. Somente um MacDougall valia por cinco rebeldes. Mesmo assim, por mais vezes que se dissesse que John de Lorn superaria inclusive a pior das apostas, seu leal coração não podia negar que existia a mais mínima, a ínfima possibilidade de que perdessem.
«Perder.»
Um calafrio lhe percorreu o corpo. Somente pensar nessa palavra lhe parecia a mais vil das blasfêmias. Não podia permitir que isso ocorresse. As conseqüências eram muito execráveis para as considerar. Mas tudo aquilo que apreciava, todas suas esperanças de um futuro feliz, parecia pender sobre a ponta de um alfinete, ou, neste caso, de uma espada. O mais leve empurrãozinho faria que tudo se precipitasse no vazio. Os grossos muros do castelo de repente lhe pareciam finas vidraças, dispostas a romper-se em mil pedaços. Sua situação era complicada, inclusive até desesperada. Contudo, havia um modo de conseguir atenuá-la um pouco.
O tempo pareceu deter-se. O pavor se apoderava de seu estômago em um tenso nó e o formigamento que isso provocava aumentava à medida que Anna via do que seria obrigada a fazer. A solução espreitava no mais profundo de sua mente desde fazia meses, mas não queria considerá-la.
Anna se aferrou às abas de sua capa como se fossem uma corda a qual pudesse agarrar-se.
—E o que passa com Ross? —perguntou em voz baixa — Ainda fica tempo para que se apresente.
Seu pai a olhou com certo desdém.
—Sim, mas como digo já, não o fará.
Era reprovação o que advertia em seu olhar? Acaso se arrependia de ter dado opção? Anna aspirou profunda e entrecortadamente em uma tentativa de controlar o ritmo frenético de seu pulso. Sua gelada pele se cobriu com uma fina pátina de suor. O peito lhe oprimia tanto que mal podia respirar. Todo seu ser se rebelava contra o que estava a ponto de sugerir. Mas não ficava alternativa. Um marido era um pequeno preço a pagar em comparação com a sobrevivência de seu clã. casaria-se até com o mesmo diabo se fosse necessário.
—E se lhe desse um motivo para pensar melhor? —Seu pai a olhou nos olhos. Anna soube que tinha adivinhado o que sugeria pelo ar de reflexão que adotou seu olhar, embora talvez isso fosse o que ele esperava dela de um princípio — O que passaria se fizesse um rogo pessoal ao conde?
Teve que deter suas palavras. Seus dedos agarravam a lã da capa com tanta força que cortava a circulação. O coração pulsava a um ritmo frenético e martelava em suas têmporas. O estômago se decompôs. «Tudo irá bem. Eu me encarregarei de que funcione. Não é um homem tão temível.» Sir Arthur era alto, musculoso, de uma beleza sombria e, não obstante, nunca ficava nervosa em sua presença. Talvez tivesse superado seu medo aos guerreiros.
«Sir Arthur.» O coração deu um tombo. A imagem do cavalheiro apareceu ante seus olhos, mas a afastou de sua mente. Não significava nada para ela. Pouco importava que seu coração tivesse querido voar para ele momentaneamente. Embora as coisas fossem diferentes, ele já tinha expressado com uma claridade dolorosa o que sentia por ela: nada.
Mas teria que passar toda a vida tentando esquecer aquele beijo.
Seu pai esperava que continuasse, mas Anna não era capaz de encontrar as palavras.
—O que aconteceria…? —Anna teve que se deter para clarear a garganta — Se a oferta de sir Hugh segue em pé, estou disposta a aceitar sua proposta de matrimônio. Em muda, talvez o conde veja o benefício de unir nossas forças.
Seu pai não disse nada durante um momento, mas sim ficou estudando seu rosto com uma intensidade tal que a Anna pareceu estar retorcendo-se em seu interior.
—Crê que seguirá te querendo? Não teve nenhuma graça que o rechaçasse.
Ardiam-lhe as bochechas de vergonha de não ter parado pra pensar nessa possibilidade. Seu pai tinha razão. O jovem cavalheiro, ferido em seu nobre orgulho pelo rechaço, ficou uma fúria.
—Não sei, mas merece a pena tentar.
Já tinham machucado seu orgulho há pouco. O que importava um pouco mais ou menos?
—A sua mãe não gostará da idéia — disse John de Lorn olhando para a porta — Os caminhos podem ser muito perigosos com Bruce e seus homens por aí soltos.
Nisso tinha pensado Anna.
—Não se preocupará se Alan me acompanha. Levaremos uma boa escolta.
Seu pai assentiu enquanto acariciava o queixo.
—Sim. Seu irmão te manterá a salvo — disse com um sorriso, enquanto ela tentava mascarar seu desengano. Havia uma parte de Anna que esperava que seu pai se negasse. Este se levantou e a beijou no cocuruto — É uma boa garota, Annie querida.
Em geral Anna transbordava de alegria quando seu pai lhe dirigia um elogio, mas nessa ocasião teve vontade de chorar. Sua felicidade era um pequeno preço a pagar, mas, mesmo assim, era um preço a pagar. Seu pai a beliscou no queixo para que o olhasse os olhos. Anna piscou diante da cálida e úmida bruma do lar.
—Sabe que não lhe pediria isso se tivesse uma alternativa.
Uma solitária lágrima escorregou por sua bochecha. Tremia-lhe a boca, mas se esforçou por sorrir.
—Sei.
Naquele momento supunha que era sua única esperança. Não importava quão mau parecesse. Faria tudo o que estivesse em sua mão para assegurar a aliança.
De todos os modos tampouco havia ninguém que se interessasse por ela.
Entretanto, quando Anna abandonou os aposentos de seu pai, todas essas lágrimas que estivera agüentando saíram precipitadas em uma corrente de esperança extinta, uma esperança que nem sequer era consciente de estar albergando.
A volta de Arthur ao castelo, sozinho, não foi tão difícil de explicar como imaginava. Lorn estava ansioso por ouvir um relatório do que seu filho tinha descoberto a respeito de seus inimigos do oeste. A luta pela supremacia entre os três principais ramos dos descendentes de Somerled, os MacDonald, MacDougall e MacRuairi, levava anos dominando a política das Highlands Ocidentais. Quando morreu o último dos chefes do clã MacRuairi, deixando a sua filha Christina das Ilhas como única herdeira ao trono, estes perderam poder e o terna se reduziu a dois. Lachlan e seus irmãos eram todos filhos bastardos, um título que em seu caso era completamente castigo.
A informação de Ewen oferecida por Arthur a respeito da mobilização de tropas dos MacDonald ao longo da costa ocidental não era nada surpreendente, mas mesmo assim provocou um substancial arrebatamento de fúria no Lorn, e também inquietação, apesar de que procurasse ocultá-lo. Embora talvez não tanta como devesse, o qual o fazia perguntar-se o que teria planejado aquele conspirador briguento. E agora, graças a seu descobrimento no priorado, sabia perfeitamente como averiguar.
Mas como sua volta ao castelo foi em uma hora tardia, sua reunião com lady Anna teria que esperar até a manhã seguinte. dizia a si mesmo que estava inquieto simplesmente porque teria que encontrar um motivo para algo que seria como uma mudança de parecer repentino: em lugar de evitá-la, inventaria desculpas para estar com ela. Mas tampouco queria dar falsas esperanças à moça. Apesar de ter cometido o engano de beijá-la, e Deus, um enorme engano tinha sido aquele, uma relação entre eles era algo impossível. Sabia que não seria fácil. Certamente a moça teria passado toda a semana pensando naquele beijo. Deus sabia que ele mesmo não tinha sido capaz de pensar em outra coisa.
Embora já tinha visto ela cruzando o jardim de Ardchattan, quando a viu entrar no grande salão na manhã seguinte seus sentidos se avivaram como se fosse a primeira vez. Tudo parecia estar mais vivo, mais intenso. Jamais antes o tinha afetado tanto a presença de alguém como fazia nesse momento lady Anna MacDougall. encantou-se dela, de cada um dos detalhes, de cada matiz, das mechas de cabelo dourado que escapavam de seu véu azul à altura da fronte e as têmporas até os finos bordados de seda do cotehardy que rodeava sua figura em todos os lugares apropriados.
«Não…»
Deixou cair o olhar sobre seus seios. Ficou com a boca seca. Via, embora fossem imaginações dele, o mal esboçado relevo de seus mamilos perolando essa parte do tecido. Assaltaram-lhe as lembranças e uma onda de calor saiu de sua virilha. Pensar no tato daquela exuberante suavidade fez que endurecesse seu pau. Que impressionante tinha sido embalar esse seio, sentir o peso dessas carnes perfeitamente arredondadas sobre a palma de sua mão ao mesmo tempo que seu polegar acariciava o teso broto de seu mamilo. Amaldiçoou para si, subitamente incomodado por aquelas lembranças, muito viscerais, em conjunto.
Estava quente. Excitado. Faminto.
Como demônios ia olhar a moça sem lembrar-se das sensações que procurava ter seu corpo pego ao dela? Como poderia ver o sensual arco rosado de sua boca sem recordar quão doce sabor, a suavidade daqueles lábios sob os seus, e que o erotismo de suas línguas entrelaçadas o tinha feito entrar em um torvelinho de desejo mais forte que qualquer outra coisa que houvesse sentido alguma vez? Jamais poderia olhar essa pálida pele suave como a de um bebê, que era como veludo ao tato, sem recordar como a havia tocado.
Deus, quão único queria era atirá-la na cama, enrolar suas pernas a sua cintura e afundar até esquecer-se de tudo. Jesus, tinha que deixar de pensar nisso. Tinha que parar de torturar-se com coisas impossíveis. Sempre tinha sido capaz de reprimir seus impulsos, mas com a Anna era diferente.
Porque ela era diferente. E não fazia nenhuma graça reconhecê-lo.
Arthur se dava conta de como o observava seu irmão, mas não podia afastar o olhar. Seu coração pulsava mais depressa a cada passo que ela dava e cada um de seus nervos ficava em tensão enquanto se preparava para o momento em que ela se inteirasse de sua presença. Mas assim que a teve mais perto percebeu uma estranha pontada. Algo não ia bem.
Não sorria. Seus olhos não brilhavam com alegria e travessura. E sua risada, esse leve e efervescente som ao que poderia ouvir durante horas, permanecia em completo silêncio. acostumou-se tanto a seu perpétuo bom humor, ao despreocupado encanto com o que parecia iluminar os aposentos, que o vazio deixado por sua ausência obscurecia o grande salão.
Maldição. teria feito mais dano de que pensava? A culpa o atormentava.
Por um instante pensou que passaria junto a ele, mas então notou o peso de seu olhar. ficaram contemplando o um ao outro. A quietude era absoluta.
Esperou ver sua reação. Esperava presenciar como a cor subia por suas bochechas, como lhe cortava a respiração e se acelerava o pulso em seu pescoço. Esperava que se delatasse. Mas em vez disso ficou em guarda.
Lady Anna levava todos seus pensamentos e sentimentos escritos no rosto. Essa era uma das coisas que Arthur encontrava tão cativantes e irresistíveis dela. A inocência e a emoção infantil que mostrava, sua preciosa vulnerabilidade. Mas essa expressão, antes sempre acessível, permanecia oculta.
Percebeu a frieza de seu olhar por um breve instante dantes que afastasse e passasse por ele. Como se tivesse deixado de existir. Como se ela jamais se derretera em seus braços. Como se o beijo no que não podia deixar de pensar jamais existira para ela. Como se não tivesse estado a ponto de sucumbir sob seu corpo.
Sua indiferença lhe corroía o peito como se de um ácido se tratasse. Queimava. Doía. O fazia perder o controle por completo, sentir a necessidade primitiva de cometer alguma loucura, como empurrá-la contra a parede e beijá-la até que se rendesse a seus pés uma vez mais.
Mas ele era um homem que mantinha o controle. refreava-se. Era diferente. Não tinha necessidades de tal tipo. E entretanto, com um só olhar de frieza, Anna MacDougall conseguia tirar dele os impulsos bárbaros que levava no sangue.
Ao que parecia tinha conseguido seu objetivo. Seu cruel rechaço sortia efeito. Não deixava de ser irônico que se mostrasse indiferente justo quando ele desejava que não fosse assim. Ou pode ser que nunca tivesse estado interessada nele. Talvez o único que queria fosse vigiá-lo.
azedou a expressão e se o flexionaram os músculos, mais molesto por esse pensamento do que gostaria de admitir. Por desgraça, seu irmão se mostrava perceptivo. Dugald simulou um calafrio.
—Vá, parece que faz um pouco de frio por aqui. Acredito que a dama já esqueceu o capricho, irmãozinho. Com o tanto que tentou, pensei que estaria mais contente — disse, fazendo uma pausa para negar com a cabeça — Será possível que ao fim te tenha feito cair uma mulher? Acreditava que isso não aconteceria nunca.
Arthur se recostou sobre a parede de pedra que tinha trás de si, aparentando uma indiferença que não sentia. Era certo que gostava dela, mas antes morto que deixar que Dugald conhecesse sua debilidade.
—Não é mais que uma moça apetecível.
—Mais apetecível ainda porque não pode tê-la.
Arthur encolheu os ombros e deu um longo gole a seu cuirm até esvaziar a taça.
—O que eu quero dela não é algo que possa me dar uma inocente jovem da nobreza.
Dugald riu e lhe deu uma palmada no braço.
—Compartilho sua dor, irmãozinho. Eu mesmo estou sentindo um pouco parecido. Sei de uma moça com uma boca talentosa que faria bastante por aliviá-lo. Mandarei a ti.
Arthur desviou o olhar para o tablado em que se acabava de sentar lady Anna. Tentava pelo menos. Tentava. Mas não lhe interessavam as mulheres de seu irmão. Franziu o cenho em um meia sorriso.
—Você compartilhando, irmão? Não parece você mesmo. Mas neste caso não será necessário. Não acredito que tenha problemas para encontrar alívio.
Se quisesse, sabia de algumas mulheres entre as que podia escolher. O problema era que não queria. Ao menos, não com elas.
Dugald encolheu os ombros.
—Como deseje — disse aproximando-se dele com um amplo sorriso — Mas não sabe o que te perde. Essa moça poderia deixar seca a uma vaca com a boca que tem e faz umas coisas com a língua que…
A voz do Dugald se confundiu com o ruído de fundo. As perversas habilidades que pudesse representar a fulana do Dugald não lhe interessavam. Arthur voltou o olhar para o estrado. Ela era quem o interessava, maldita seja. Embora Deus sabia que não deveria ser assim. Mas parecia que Arthur fosse invisível, porque não olhou uma só vez em sua direção. Sua irritação crescia a cada minuto. Aferrava com força a taça de estanho e a enchia uma e outra vez à medida que o ágape avançava. Seu plano para aproximar-se dela seria mais complicado do que pensava, mas acreditava que se livraria dele tão facilmente estava muito equivocada.
«Retornou.»
Anna se rebelou ante o inoportuno desejo que arremetia contra seu peito e se obrigou a não olhar em sua direção. A não pensar nele. Sir Arthur não era para ela. Jamais foi. Seu destino estava concretizado. Já tinha tomado sua decisão. Seu pai e seu clã contavam com ela. Era muito tarde para arrepender-se ou pensar melhor, por mais que vê-lo devolvesse todas essas ingratas emoções de repente em uma pancada.
Como não se fixou nele a princípio, quando nesse momento já não podia ver nenhuma outra pessoa? Aquele orgulhoso jovem cavalheiro de escura beleza era o homem mais bonito de toda a sala. E sem dúvida também o mais forte. Suas bochechas se acaloraram. somente olhar sua figura alta e de largos ombros voltavam as lembranças de seu torso nu. Cada um de seus esculturais músculos. Cada uma de suas rígidas linhas. Cada um dos gramas de sua musculosa carne.
Tentava ignorá-lo, mas sentia o peso de seu olhar enquanto comia. Ou tentava comer, já que tinha a boca completamente seca e a comida lhe parecia insípida e terrosa. Olhava-a com tal intensidade que dava vontade de sair correndo. Algo que fez assim que teve oportunidade.
Anna se apressou a sair do grande salão com mais sentimentos dos que podia albergar, correu pela escadas para sua câmara da torre e ficou a pinçar no armário em busca de sua capa de montaria. Precisava sair dali.
Um dia. Somente tinha que o evitar durante um dia e depois disso partiria. Tinham previsto partir para o castelo de Auldearn, a fortaleza real do conde de Ross, na manhã seguinte. por que não podia permanecer fosse do castelo até que ela partisse? Assim tudo teria sido muito mais fácil.
Em seu desespero por escapar, revolvia os montes de objetos de lã e de seda que penduravam de seu armário sem importar a desordem que criava. Onde estaria?
Estava a ponto de enfrentar o frio matinal e sair de todos os modos quando percebeu de que provavelmente sua criada já teria posto a capa em sua arca para a viagem. Abriu a tampa de madeira e deixou escapar um suspiro de alívio ao ver que a peça de lã axadrezado de cores cinza, azul e verde estava dobrada em cima de tudo. A jogou rapidamente sobre os ombros, agarrou em braços Escudeiro, temendo que o cachorrinho saísse correndo em busca do cavalheiro pródigo, e voltou a descer a escada como um torvelinho. antes de sair ao barmkin olhou pela fresta da porta para assegurar-se de que tinha via livre. Não queria correr nenhum risco de topar com ele. Sabia que aquilo era ridículo. Sir Arthur fazia todo o possível para evitá-la. Mas havia algo na forma em que a tinha olhado durante o café da manhã que chamava à cautela.
Cruzou o pátio e se dirigiu para os estábulos. Uma vez na segurança de seu interior soltou ao revoltoso cão no chão e fez que o cavalariço chamasse Robby enquanto ela preparava os arreios de seu cavalo.
Não tinha nenhum destino em mente, com tal de sair do castelo era suficiente. A impressionante fortificação de pedra e os grandiosos muros do barmkin pareciam muito pequenos de repente. Acabada sua tarefa, dispôs-se a recolher ao Escudeiro do chão quando a porta se abriu e o cachorrinho prorrompeu em uivos e ganidos ao mesmo tempo que saltava de seus braços disparado como uma flecha.
—Merda! —saiu de seus lábios antes que desse tempo a refrear-se.
Não precisava olhar para saber quem era. Se a reação de Escudeiro não dizia, assim fazia seu próprio corpo. O ar mudou. A pele lhe ardia. Seus sentidos despertaram. O aposento esquentou imediatamente e o leve aroma de fragrância masculina se filtrava através dos penetrantes e terrestres aromas do estábulo. Fechou os olhos, rezou uma prece que os céus lhe dessem força e ficou em pé lentamente para enfrentar a ele.
Seus olhares se encontraram. A repentina excitação que a embargou foi como um látego que a chamasse o ordem. Aquela era uma impressão que parecia não diminuir nunca. cortou a respiração, ao mesmo tempo que essa aguda e repentina opressão voltava a lhe envolver o peito e espremê-la. Um irritante acesso de nostalgia se formava em seu interior, mas esmagou com rapidez, sem compaixão. Ele não significava nada para ela. Já não. Não depois do ocorrido nos barracões. A tinha ensinado quão errado era para ela. E mais valia que acreditasse.
Controlou suas feições para fazer delas uma máscara impassível, tirando provisão de cada gota de sangue real que corria por suas veias. Era descendente de reis, tataraneta legítima, seis gerações depois, do poderoso Somerled. Saudou-o com uma ligeira inclinação da cabeça e disse friamente: —Sir Arthur, vejo que retornastes.
Sua tentativa de mostrar-se digna se viu em certo modo arruinado pela tremor de sua voz. Uma coisa era fingir que não lhe afetava sua presença em um salão cheio de gente e outra muito diferente fazê-lo em um pequeno estábulo. A sós. Enquanto ele a olhava dessa maneira tão intensa. Com raiva. Tinha o rosto avermelhado por completo, à exceção das comissuras da boca e de sua palpitante têmpora, que para sua desgraça estavam brancas.
O coração pulsava a toda pressa. Onde estava Iain? A cavalariço já deveria ter retornado.
Arthur pareceu ler sua mente e endureceu o olhar, algo que não fez a não ser enervá-la mais, dado que já era suficiente severo. Não tinha motivos para estar furioso com ela.
—O moço não virá. Disselhe que a levaria aonde precise ir.
Por Deus, isso não! Não queria ir com ele a nenhuma parte. Nem sequer queria o ter perto. Anna ergueu o queixo, negando-se a que a intimidasse a sensação de perigo que lhe transmitia. Não tinha feito nada mau. Somente esperava que não se inteirasse de como lhe tremiam as mãos.
—Isso não será necessário.
Arthur deu um passo à frente e Anna fez esforços em não cambalear-se. Mas o sangue pulsava com força em seu pescoço. E ele viu. O sorriso que se desenhou em seus lábios a fez sentir como um camundongo ante os olhos de um gato.
—Temo-me que sim, será. Se saíres do castelo partirei contigo. —Arthur a olhou de tal modo que fez que a Anna fervesse o sangue — Me parece que esquecestes algo.
Gaguejou, completamente deslocada pelo calor que fluía por suas veias.
—O que… o que?
—Sua cesta — disse olhando-a nos olhos. Anna ficou gelada, decomposta pela surpresa. Não era possível que soubesse. Quase suspirou de alívio quando ele acrescentou—: Não acredito ter visto sair do castelo sem ela.
Muito observador, mais do que convinha. Sir Arthur era perigoso em muitas e diferentes formas. Seu pai iria às nuvens se alguém descobrisse o que ela e algumas das outras mulheres faziam. Anna se recompôs em seguida, irritada por permitir que a angustiasse.
—Só tinha intenção de sair a cavalgar. Hoje não visito ninguém da vila.
Arthur ficou olhando-a por mais tempo do que devido, e Anna voltou a perguntar-se se saberia algo. Entretanto, nessa ocasião sua expressão não traiu seus pensamentos.
Uma série de latidos frenéticos fez que Arthur dirigisse sua atenção ao chão, para o cão que saltava sobre sua perna.
—Abaixo! —disse em uma voz que não aceitava discussão. O cão se sentou imediatamente e ficou olhando-o com cara de adoração — Seu cachorrinho precisa aprender maneiras.
Anna franziu os lábios.
—Gosta de ti.
«Deus saberá por que motivo.» Tentar tirar um pouco de afeto de Arthur Campbell era como querer extrair água de uma rocha, uma experiência condenada ao fracasso e a frustração. Arthur entreabriu os olhos como se Anna houvesse dito isso em voz alta.
—Normalmente os animais gozam de bons instintos.
—Normalmente sim — concedeu, deixando muito claro que ela pensava diferente nesse caso.
Aquele brilho perigoso voltou a encher seu olhar.
—E o que tem que você, Anna? O que dizem seus instintos?
«Corre. te esconda. te afaste dele tanto como possa para que não te faça mais dano.» Olhar essa mandíbula afiada e recortada, seus sensuais e carnudos lábios e esses olhos escuros jateados de âmbar era já suficientemente doloroso.
Afastou o olhar, contendo a emoção que ia a sua garganta.
—Eu não faço caso a meus instintos.
Ao menos já não fazia. Estavam errados. Seus instintos a tinham feito acreditar que entre eles havia algo especial. Que talvez ele tivesse necessidade dela. Que se sentia sozinho. E que possivelmente fosse diferente ao que parecia: um ambicioso cavalheiro, um soldado valente que vivia por e para sua espada.
Inclusive nesse preciso momento seus instintos lhe faziam acreditar que a tensão que bulia entre ambos significava algo, que bastaria que tomasse em seus braços e a beijasse de novo para que tudo voltasse para a normalidade. Mas era muito tarde para isso.
—Os instintos só servem para te obrigar a fazer coisas das que logo te arrepende — acrescentou.
Arthur esticou o queixo e o músculo de sua mandíbula começou a tremer de modo detestável. aproximou-se mais ainda. Tão perto que Anna sentia todo o calor que irradiava. Tão perto que cheirava o especiado aroma de sol que emanava sua pele. Começaram a tremer as pernas. Por Deus, tinha esquecido quão alto era. Parecia que muros se fechassem em volto dela. Custava-lhe respirar. Custava-lhe inclusive pensar enquanto se abatia sobre ela de tal modo. Usava sua selvagem masculinidade contra ela com a sutileza de um carneiro batendo-se em duelo.
—E arrependes de algo, Anna?
A enganadora suavidade de sua voz não a enganava absolutamente. Advertia perfeitamente a raiva contida em suas palavras, como se lhe importasse que seu coração tivesse mudado de parecer. por que fazia isso? por que tentava confundi-la? Fosse ele quem havia dito a ela que se afastasse.
—Que mais dá? E menos agora. Deixara tudo muito claro antes de fugir com meu irmão.
Anna tentou flanquear a porta e deixá-lo ali, mas Arthur a deteve com o implacável escudo de seu peito. Pela linha branca que se formou na comissura de sua boca não coube dúvida de que tinha captado a indireta.
—Então já acabastes com a espionagem. É isso?
Anna o observou atentamente. Nisso era que acreditava? Bom, que mais dava o que pensasse. Afastou lentamente seu olhar e a dirigiu para a porta.
—Sim, isso. Agora se me permitem, eu gostaria de partir.
Empurrou seu peito com o dorso da mão, mas era tão firme como um escarpado rochoso. Um escarpado com montões e montões de pedras cortantes e afiadas.
—Já vos disse que partiria contigo.
—Seus serviços já não são necessários. mudei de opinião. Não sairei a cavalgar esta manhã.
A maneira que flamejavam seus olhos revelava que não fazia nenhuma graça que o rechaçassem. Bem, pois pior para ele. Ela não o tinha escolhido como seu cavalheiro andante. Então notou que os músculos de suas costas se esticavam e se perguntou se não o teria levado muito longe. Mas Arthur não fez mais que torcer o gesto, representar uma reverência exagerada e afastar do caminho.
—Como desejais, milady. Mas se mudares de opinião já sabem onde me encontrar.
Anna passou junto a ele como um raio, com o queixo bem alto.
—Não o farei. Tenho muitas coisas que fazer antes de partir.
A mão que pousou sobre seu ombro a fez deter-se de repente. Mas inclusive essa forma rude de tocá-la fazia que seus sentidos se desatassem.
—Vais a alguma parte, lady Anna?
Tentou desembaraçar-se de seu braço e o fulminou com o olhar ao ver que não a deixava partir.
—Não é seu assunto.
Um brilho foi a seus olhos ao mesmo tempo em que Arthur se aproximava mais a ela. Anna sentia a energia que vibrava entre ambos e a arrastava consigo. Tinha a boca tão perto…
—me digas.
Não podia beijá-la, dizia-se Anna presa do pânico. Não podia permitir que a beijasse.
—Caso-me — disse bruscamente.
Capítulo 12
Arthur retirou o braço como se queimasse.
«Caso-me.» Suas palavras sentaram como um soco no estômago. Era incapaz de se mover. Cada osso, cada músculo, cada uma de suas terminações nervosas se petrificou.
—Com quem? —perguntou com uma voz mortiça, vagamente ameaçador, que não parecia a sua, soava como a do MacRuairi.
Anna não queria olhá-lo nos olhos. ficou a retorcer as grossas pregas de lã de sua saia com as mãos.
—Com sir Hugh Ross.
Uma faca encravada entre suas costelas teria resultado menos doloroso. O filho e herdeiro do conde de Ross. Arthur o conhecia, é obvio. O jovem cavalheiro já havia feito um nome por si mesmo. Era um guerreiro temível, um estrategista, dentro e fosse do campo de batalha. O fato de que fosse um bom partido piorava mais.
Não compreendia a raiva que consumia seu interior, nem por que se sentia traído. Não lhe pertencia, diabos. Jamais poderia lhe pertencer. Mas isso não o fazia esquecer que apenas quinze dias atrás a tinha tido em seus braços e que estivera a muito pouco de despoja-la de sua inocência.
—Ao que parece tiveste uma semana muito ocupada, milady. Não perde tempo.
Um quente rubor tingiu suas bochechas.
—Ainda não concretizamos os detalhes.
Arthur advertiu algo em sua voz que o fez entreabrir os olhos enviesadamente.
—A que detalhe se refere? Está prometida ou não?
Anna ergueu o queixo e ele captou o desafiante brilho de seu olhar apesar do sufoco de seu rosto.
—Sir Hugh me propôs matrimônio faz um ano, pouco depois de que morreu meu prometido.
—Acreditava que o tinha rechaçado.
—Assim foi. Pensei melhor.
Arthur compreendeu do que se tratava tudo aquilo de repente. Ao não contar com a ajuda do rei Eduardo, os MacDougall tinham decidido pedir ao Ross e oferecer a lady Anna como incentivo acrescentado para a aliança. Pouco importava se ela tinha pensado melhor ou era seu pai quem assim tinha decidido. Arthur não podia permitir que unissem suas forças. Uma aliança entre Ross e os MacDougall poria em perigo a vitória de Bruce. Seu trabalho, sua obrigação, era deter aquilo.
Arthur a olhou com dureza.
—E como sabe que sir Hugh se mostrará aberto a sua repentina mudança de pensamento?
—Não sei. —Anna lhe dirigiu um olhar penetrante — Mas farei tudo o que possa para persuadi-lo.
Não era necessário adivinhar a que se referia. Sua reação foi instantânea. Primitiva. Por um breve instante da ira se apoderou dele e perdeu o controle. Sentiu um vazio na mente. Lady Anna estava a escassos centímetros de ver-se esmagada contra a parede do estábulo com seus lábios selados pelos dele, toda sua virilidade entre as suas pernas e uma língua afundando-se no interior de sua boca, ali onde devia estar.
Mas inclusive no furor de sua raiva pedia mais a necessidade de protegê-la. Não confiava em si mesmo para tocá-la de tal modo.
Anna pôs os olhos como pratos e teve a prudência de dar um passo para trás. Mas ele a seguia cativando com a armadilha de seu penetrante olhar.
—Assim tem tudo bem planejado?
Assentiu.
—Sim. Será melhor para todos.
Que aquilo soasse como se estivesse tentando convencer-se a si mesmo não consolava absolutamente.
—Seu plano tem um problema.
Anna o olhou, dúbia.
—E qual é?
—Ross está ao norte. Os caminhos são muito perigosos para que te translades. É muito arriscado. Bruce e seus homens ficarão no caminho em qualquer momento. Seu pai não aprovará isso.
Lorn era um filho de cadela desalmado, mas parecia amar a sua filha de uma maneira genuína.
—Já o tem feito. Uma leva de guardiães me escoltará, junto com meu irmão Alan. Pode ser que o rei Hood seja um patife assassino, mas não faz guerra às mulheres.
Arthur lutava por manter sob controle seu gênio. Lorn tinha que estar muito desesperado para aceitar isso. O muito filho de cadela faria o que fosse para ganhar, inclusive pôr em perigo sua filha.
—Se se derem conta de que és uma mulher. Na escuridão, não serão tão fácil de distinguir. Poderiam a confundir com um mensageiro.
Acaso tinha esquecido o que estivera a ponto de lhe ocorrer no Ayr? Jesus, quando pensava no perigo… gelou o sangue. De novo teve vontade de empurrá-la contra a parede do estábulo, dessa vez para procurar que entrasse em razão. Poderiam feri-la. Assassiná-la.
—Meu irmão me protegerá. Estou segura de que não passará nada.
Arthur sentia uma veia a ponto de estalar na têmpora. Nem uma centena de homens poderiam lhe dar segurança. Seus esforços por controlar fracassariam.
—Não seja louca! Não podem ir! É muito perigoso. Mandem um mensageiro, é melhor.
Não necessitava mais que ver a posição de seu queixo e a maneira em que entreabria os olhos para saber que tinha cometido um engano. Poe tratar-se de uma moça de aparência tão doce mostrava uma teima digna de admiração.
—Já está decidido. E você, temo que não tenha nada que dizer a respeito.
As mulheres tinham que ser submissas e dóceis, maldita seja. E ali estava ela, cotovelo com cotovelo com ele, sem retroceder um centímetro. Se não estivesse tão furioso isso pareceria admirável.
Nessa ocasião, quando Anna deu meia volta e se dirigiu para a porta, Arthur não a deteve.
«Nada que dizer a respeito.» Isso veremos.
Se ela não entrava em razão, talvez seu pai fizesse.
Os homens de Bruce estavam batendo toda a área, assaltando, saqueando, fazendo tudo o que podiam por semear o caos e expandir o medo no coração do inimigo. A guerra não tinha lugar só no campo de batalha mas também no interior das mentes. Um grupo de escolta do clã MacDougall seria algo irresistível. Anna teria uma flecha no coração antes que pudessem se dar conta de seu engano.
Dizia a si mesmo que era a ameaça que isso supunha para a missão que fazia que se embolotassem todos seus músculos. Evitar esse tipo de aliança, manter isolado ao MacDougall, essa era a razão pela que estava ali. Mas não eram as mensagens nem a aliança em que pensava. Tudo que podia ver era Anna jogada em um atoleiro de sangue. Tinha que fazer que Lorn se afastasse desse estúpido caminho.
E se não podia… De nenhuma maneira a deixaria partir sozinha. Se Anna desse um passo fora desse castelo, ali estaria ele para acompanhá-la, ali onde pudesse a proteger e tê-la à vista. E havia uma coisa que tinha muito clara: não cabia nem a mais remota possibilidade de que a deixasse casar-se com Hugh Ross.
—Ocorre-te algo, Annie? Parece contrariada.
Anna ergueu o olhar para seu irmão Alan, que acabava de aproximar-se para cavalgar a seu lado. Depois de navegar em um birlinn nessa manhã o primeiro lance da viagem, o resto do trajeto fariam a cavalo. A rota marinha desde Dunstaffnage até a vila do Inverlochy através do lago Linnhe tinha levado menos de meia jornada, uma travessia em que teriam empregado vários dias ao fazê-la por terra. Oxalá o resto da viagem fosse igual de simples. Havia três lagos salgados e numerosos rios que percorriam Gleann Mor, o enguiço do Grande Glenn que dividia a Escócia entre o Inverlochy, no nascimento do lago Linnhe, até o Inverness e o fiorde de Moray, mas as rotas marinhas estavam separadas por terreno suficiente para fazer impraticável a viagem em navio. Em vez disso, cavalgariam os pouco mais de cem quilômetros que tinha que o Inverlochy até Nairn, ao leste do qual se encontrava o castelo do Auldearn. Com sorte demorariam quatro dias para chegar. Anna era consciente de que atrasava sua marcha, apesar de que galopavam em um ritmo muito mais castigador que aquele trote pausado ao que estava habituada.
Parecia irônico que estivesse fazendo virtualmente a mesma rota que tinha seguido o rei Hood no outono passado esperando acontecer através das Highlands e apoderando-se dos quatro castelos principais que balizavam o caminho: os castelos de Inverlochy e Urquhart, pertencentes aos Comyn, e os castelos reais de guarnição inglesa em Inverness e Nairn. Dado que esses castelos seguiam ocupados pelos rebeldes, veriam-se obrigados a procurar outra hospedagem que entranhasse menos perigo. Anna suspeitava que se quisessem evitar aos homens de Bruce teria que acostumar-se à paisagem dos bosques. Ao menos assim se livraria daquele sol abrasador por um tempo. Cavalgavam há várias horas e embora o véu protegesse seu rosto, tinha calor, estava pegajosa e, sim, também zangada, como tinha advertido seu irmão. Furiosa, para falar a verdade. O tempo, não obstante, não tinha nada que ver com seu incomum mau humor. Essa honra reservava a um certo cavalheiro intrometido.
Negou-se a lhe dirigir o olhar durante todo o dia. Mas isso não significava que não soubesse exatamente onde estava: cavalgando na cabeça do grupo, inspecionando o caminho que tinham pela frente em busca de sinais de perigo. «Perigo.» Isso era dizer pouco. O perigo era que ele os tivesse acompanhado na viagem.
—Estou bem —assegurou a seu irmão, conseguindo esboçar um sorriso forçado — Tenho calor e estou cansada, mas me encontro bem.
Alan a olhou de esguelha com um desinteresse enganoso.
—Acreditava que talvez tivesse algo a ver com o Campbell. Não parecia muito contente quando disse que nos acompanharia.
Seu irmão era muito ardiloso. Um traço que faria dele um bom chefe no futuro, mas nada que fosse apreciável para uma irmã que preferia guardar seus pensamentos para si mesma. Apesar de seus esforços em não reagir a essas palavras, chiavam-lhe os dentes.
—Não deveria ter-se intrometido.
Quando seu pai lhe contou que sir Arthur havia tentando dissuadir de que cancelasse a viagem, não podia acreditar. Ao fracassar nisso, pediu permissão para os acompanhar argumentando que suas habilidades como rastreador ajudariam a garantir sua segurança. E para maior desgraça de Anna seu pai tinha aceitado. De modo que em lugar de ignorá-lo durante uma só jornada, agora teria que suportar sua presença constante durante dias, semanas inclusive. Acaso tentava atormentá-la de propósito? Aquilo que tinha que fazer já era difícil sem que ele andasse revoando por aí.
—É um cavalheiro, Anna. Um explorador. Informar sobre a posição do inimigo é exatamente seu trabalho. E não posso dizer que não esteja agradecido de que venha conosco. Se for tão bom como diz ser, será muito útil.
Anna se dirigiu a Alan com cara de estar horrorizada.
—Está de acordo com nosso pai?
Alan endureceu o queixo. Jamais criticaria a seu pai de maneira aberta, embora quisesse fazê-lo, como era o caso.
—Teria preferido que ficasse em Dunstaffnage, embora entenda a razão pela que pai insistia em que viesse. Ross se mostrará mais disposto ante uma solicitude direta —disse com um sorriso — É uma danada, Annie querida, mas uma danadinha encantadora.
Anna torceu o lábio.
—E você é tão protetor que molestas, mas eu também te adoro.
Alan se pôs-se a rir e Anna não pôde a não ser unir-se a suas risadas.
Sir Arthur voltou a cabeça para ouvir e a pegou despreparada. Seus olhares se cruzaram por um momento antes que lhe desse tempo a afastar o olhar bruscamente. Mas foi suficiente para que sentisse uma boa pontada no peito. por que tinha que ser tão doloroso?
Alan não evitou esse intercambio de olhares. Voltou a ficar sério e a olhá-la com intensidade.
—Está segura de que isso é tudo o que acontece, Anna? Já sei o que disse, mas me parece que entre sir Arthur e você há algo mais que os trabalhos de vigilância que pai te encomendou. Eu acredito que sente algo por ele. —A pulsação que Anna sentia no peito lhe dizia que seu irmão tinha razão, por mais que gostaria que não fosse certo — Podemos apelar ao Ross sem necessidade de um compromisso —disse seu irmão com carinho — Não é necessário que sacrifique sua felicidade para chegar a um pacto.
Não pôde evitar emocionar-se. Era tão afortunada de poder contar com um irmão como ele… Sabia que poucos homens a tratariam com tal consideração. A felicidade não era algo a ter em conta no matrimônio entre nobres. O poder, as alianças, a riqueza, isso era o que importava. Mas o amor do que Alan desfrutou em seu matrimônio tinha dado a seu irmão uma perspectiva única. Apesar de tudo, teriam muitas mais oportunidades de conseguir o apoio de Ross com uma aliança. Alan sabia tão bem quanto ela. Além disso, ajudar a sua família jamais poderia constituir um sacrifício. Arthur tinha expressado com brutal claridade que não havia nada entre eles.
—Estou segura — disse com firmeza.
A firmeza de sua voz ajudou a convencê-lo. Alan seguiu cavalgando junto a ela um momento mais na lembrança de suas anteriores viagens nos excepcionais momentos de paz, mas ao final acabou voltando junto a seus homens.
Durante da primeira jornada fizeram grandes progressos e chegaram até o lago Lochy, onde passaram a noite em uma estalagem próxima à borda sul do mesmo. Aquele pequeno edifício de pedra com telhado de palha parecia antigo, e dada sua localização junto a uma ruína, Anna supôs que era.
Estava dura e dolorida. Suas pernas, traseiro e costas se ressentiam por cada uma das horas desse longo dia, de modo que agradecia estar debaixo de um teto e em uma cama, por mais rudimentares que fossem. Lavou-se e se compôs para comer um pouco de caldo de pescado e pão de centeio antes de cair rendida no camastro junto à Berta, sua criada, que roncava no jergon do lado.
A segunda noite, não obstante, não teriam tanta fortuna. Sua cama seria um simples cobertor em uma pequena tenda instalada na floresta ao sul do lago Ness.
Fora um dia longo, mais longo ainda graças ao constante fluxo de informes de exploração de sir Arthur. Para evitar cenários suscetíveis de perigo, tais como rotas a campo aberto ou lugares propícios para as emboscadas, havia vezes que se desviavam bastante do caminho. O qual significava que em lugar dos quarenta quilômetros que teriam percorrido, fizeram provavelmente uns cinqüenta e cinco através da espessura dos bosques e as colinas serpenteantes de Lochaber. Aquilo a Anna pareceu de uma precaução exagerada. por agora, não tinha visto nada fora do normal, mais que habitantes da vila, pescadores e algum que outro ocasional grupo de viajantes. Se os homens de Bruce patrulhavam os caminhos, não se tinham feito notar. Talvez esses quilômetros a mais fossem outra forma de tortura idealizada por sir Arthur? Como se não fosse suficiente sua presença.
As pernas de Anna, pouco acostumadas a passar dias cavalgando, tremeram ao se ajoelhar à borda do rio para lavar as mãos. Colocou a cabeça na corrente com a esperança de sacudir o cansaço, mas o frio golpe de água não a refrescava o suficiente. Quando tentou levantar-se, coisa que fez com muita dificuldade, teve que resmungar ao conscientizar-se da objeção de seus ossos e articulações, que rangiam como se tratasse do corpo de uma anciã. Tomou seu tempo para saborear o momento de solidão, sem nenhuma pressa por voltar para acampamento. Embora o resto do grupo estivesse a poucos metros dela, o denso tanto de árvores parecia absorver todo o som. de vez em quando chegava até ela o murmúrio apagado de suas vozes, mas além disso tudo permanecia em uma calma excepcional, o que representava o maior momento de paz que tinha desde sua chegada ao barmkin no dia anterior pela manhã, quando encontrou a sir Arthur Campbell preparado para sair com eles. Aqueles dois dias tentando forçar-se a não olhá-lo tinham cobrado sua cota. Era pior do que temia. Apesar de que o ignorasse e evitasse seus olhos cada vez que ele olhava em sua direção, cada um de seus movimentos lhe afetava de maneira dolorosa. O desassossego, que parecia lhe queimar o peito até furá-lo, era cada vez maior. Mais duro. Enfurecia-se com suas emoções, deixando-a nua e exposta. Não sabia por quanto mais poderia suportar. Por que tinha que estar ali?
Suspirou com aborrecimento e deu as costas à tranqüilizadora correnteza que corria sobre as rochas. Berta faria que seu irmão fosse procurá-la como um louco se não retornasse no par de minutos que tinha prometido. Além disso, estava ficando de noite.
Mal tinha dado uns passos em direção a floresta quando um homem saiu dentre as sombras e lhe fechou o passo. O pulso acelerou, presa do pânico. Esteve a ponto de dar a voz de alarme, mas seu gritou ficou sufocado ao reconhecê-lo. Fechou a boca de repente, mas seu pulso seguia igual de acelerado.
—Não faça isso! —espetou ao mesmo tempo em que erguia o olhar para o belo rosto de sir Arthur — Me destes um susto de morte.
Não tinha feito um só ruído. Como um homem tão corpulento podia mover-se com tal sigilo era algo que escapava a sua compreensão.
—Melhor —respondeu ele — Não deveria estar aqui sozinha.
—Não estava sozinha —disse Anna com um sorriso forçado — tinha você me espiando.
Anna sentiu um prazer enorme ao ver que esticava a mandíbula. Era horrível por sua parte que lhe agradasse tanto, mas tentar tirar algum tipo de reação daquele homem parecia um lucro absoluto. Sir Arthur lhe dirigiu um olhar pausado e penetrante.
—Algo do qual estou certo que conhece todos os segredos.
Agora tocava a ela endurecer o gesto. Havia muita proximidade. Embora seu irmão e o resto dos homens estivessem a um grito de distância, aquilo supunha uma intimidade com ele muito maior da que ela queria. Qualquer tipo de intimidade com ele podia ser perigosa.
Isso a fazia recordar coisas. Como o sabor especial de seus beijos. Ou o modo em que os grossos músculos de seu torso se esticavam à luz das velas. Ou a maneira em que as mechas onduladas de seu cabelo molhado caíam sobre seu pescoço. Ou seu aroma. «Aroma de sabão e a virilidade», pensou Anna enquanto aspirava.
Arthur não se barbeou, e a barba incipiente lhe dava um aspecto esfarrapado e perigoso que, maldito fosse, o fazia ainda mais atraente.
Ao comprovar que apesar de todo o ocorrido ainda conseguia lhe afetar do mesmo modo, Anna ficou furiosa e tratou de afastá-lo de seu caminho. Um exercício de futilidade como jamais houve algum.
—Não há motivos para preocupar-se.
Ele a agarrou seu braço para detê-la, como se a impenetrável barreira de seu torso não fosse suficiente.
—A próxima vez que te afastes do acampamento, não o façam sem guarda, preferivelmente eu ou seu irmão.
Suas bochechas se ruborizaram, zangada com o tom e sua atitude prepotente. Sir Arthur Campbell, cavalheiro ao serviço de seu pai, transpassava os limites.
—Não têm direito a me dar ordens. A última vez que olhei não fostes tu, a não ser meu irmão, quem estava ao mando.
Seus olhos brilharam ao mesmo em tempo que ele a agarrava pelo braço com mais força. Falava em voz baixa e sua boca… Anna ficou sem fôlego. Também sua boca estava baixa, a uma altura perigosa, tão perto da sua que doía. Se ficasse nas pontas dos pés, era possível inclusive que chegasse a tocá-la.
Deus, que vontade tinha de fazê-lo. Estava desesperada por fazê-lo. Uma onda de calor invadiu todo seu corpo, concentrando-se nos seios e no encontro das coxas. Os mamilos se puseram eretos; morriam de vontade por roçar-se com seu duro peito.
Aquela traição de seu corpo parecia humilhante. Ele não tinha nenhum direito a fazê-la sentir assim. Não depois de a rechaçar de maneira tão cruel. Não depois de que partisse e deixasse claro que era tal e como o tinha imaginado em princípio. por que não podia deixá-la em paz simplesmente?
—Não me desafiem nisto, Anna. Se quiserem que consiga a cumplicidade de seu irmão, farei. Quão único tentava era evitar a vergonha de que te tratem como a uma criança, mas farei tudo o que esteja em minha mão para te manter a salvo.
Houve algo em sua voz que fez que lhe deu calafrios.
—O que acontece? Estão os rebeldes perto daqui? Viu algo?
Uma sombra cruzou o olhar de Arthur. Negou com a cabeça.
—por agora não.
—Mas têm um pressentimento.
Arthur a olhou com total desconfiança, como se pensasse que tentava enganá-lo para que admitisse que ela tinha razão quanto às habilidades que tinha mostrado com antecedência. Parecia disposto a negá-lo, mas logo encolheu os ombros e lhe soltou o braço.
—Sim, sinto o perigo. E também vocês deveriam senti-lo. Não cometam o engano de pensar que não estão aí simplesmente porque não os tenhamos visto.
Assentiu, assombrada pelo que parecia uma preocupação sincera.
—Farei como me pede.
Ambos sabiam que não era uma petição, mas Arthur parecia estar satisfeito com sua aprovação e não quis discutir a semântica.
Anna era consciente de que devia sair dali quanto antes, mas houve algo que a fez perguntar:
—Por que estas aqui, sir Arthur? Por que insistiram em se unir a nosso grupo?
Ele afastou o olhar. A pergunta lhe incomodava. Muito.
Franziu o cenho.
—Pensei que poderia ser de ajuda a seu irmão.
—E eu pensei que não gostavas de fazer reconhecimento do terreno.
Sua boca se torceu em um irônico e enigmático sorriso.
—Não é tão mau como temia.
Anna observou seus traços com atenção, mas não estava muito segura do que procurava.
—E essa é a única razão? Para ajudar a meu irmão?
Arthur baixou o olhar para olhá-la nos olhos. A intensidade de seu olhar a penetrou com a sutileza de um raio. Era consciente do tic que pulsava sob seu queixo. estava-se controlando, mas do que?
—Dado que não atenderam a minhas advertências, não ficou outra opção que vir e me assegurar de que chegassem a seu destino a salvo.
Entregue a salvo às mãos de outro homem.
—Estou segura de que sir Hugh apreciará seus serviços.
Arthur ficou tenso e os olhos lhe brilharam com um fogo descontrolado. Por um momento Anna pensou que a empurraria contra a árvore e a beijaria. Mas não o fez. Em vez disso apertou os punhos e ficou olhando-a com raiva. Dizia a si mesma que não era decepção o que sentia. Isso dizia a si mesma. Mas não acreditava.
—Não me provoque, Anna.
Mas o tempo das advertências já tinha passado para ela.
—Que não lhes provoque? Como poderia o provocar se não vos afeta? Deixou muito claro naquela noite nos barracões. Fosse tu quem disse que me separasse de seu caminho e não ao contrário, recordam?
—Recordo.
A suavidade de sua voz lhe disse que não era isso tudo o que recordava. A pele começou a lhe arder e parecia sair dela. As lembranças crepitavam entre eles como um sopro de ar sobre brasas, acendendo-se, dispostos a prender-se fogo. Anna estava sumida na frustração. Não podia entender por que fazia aquilo.
—É que mudastes de opinião?
Em outro momento Arthur teria admirado aquele desafio. A franqueza e a naturalidade de Anna eram o que faziam dela uma mulher única. Mas nesse momento não. Não queria pensar em se tinha mudado de opinião. Estava lhe custando muito, Deus e ajuda simplesmente não lhe pôr as mãos em cima. por que não podia ser tímida e retraída? Aí sim se sentiria seguro.
Sabia que atuava como um idiota, mas esses dois dias junto a ela, vendo-a voltar o rosto para evitar seu olhar, atuando como se ele não fosse mais que uma espada mercenária, fazia que chegasse ao limite de seu autocontrole. Não poderia agüentar vê-la outra noite rondando pelo acampamento rindo e divertindo-se com os homens com uns sorrisos que brilhavam quando olhava em sua direção.
Gostava de estar à margem, maldita seja. Mas de seu posto nos limites do acampamento, longe da camaradagem da fogueira, encontrava-se suspirando pela calidez desses sorrisos. Por um pouco dessa risada. um pouco dessa luz.
Sua intenção era que ela reconhecesse sua presença. Mas tudo que tinha conseguido era revolver coisas que não precisavam ser revolvidas. Tais como o assustador desejo de empurrá-la contra a árvore e abusar dela. Quase podia sentir como seus braços lhe rodeavam o pescoço e suas pernas envolviam seus quadris, em tanto que ele se afundava em seu interior, lenta e profundamente. Quase via seu pequeno e suave corpo estirando-se contra o seu, todas essas sedutoras curvas fundindo-se sobre ele, a excitante turgidez de seus mamilos lhe roçando o peito…
Demônios!
Teve que agitar-se para recuperar a compostura. Mas o inchaço que ocultavam seus calções era duro e implacável. Aquilo não tinha que ser tão endiabradamente difícil.
«Te concentre. Faz seu trabalho. Mantem o bastante perto para vigiá-la, mas sem tocar. Não deixe que se aproxime muito.»
Havia muitas pessoas dependendo dele. Tinha que estar ciente do que realmente importava. Assegurar-se de que Bruce chegasse ao trono e derrotar seus adversários. Como John de Lorn. Essa era a oportunidade de ver como seu inimigo pagava pelo que tinha feito a seu pai.
Justiça. Vingança. Endireitar o errado. Sangue por sangue. Essa fora toda sua motivação desde que tinha uso de razão. Tinha dedicado sua vida a tentar consagrar-se como o melhor guerreiro com um só objetivo em mente: destruir a Lorn. Essa fria determinação era sua companheira há quatorze anos. A firme resolução de levar uma missão até suas últimas conseqüências, custasse o que custasse. Essa era a única coisa que tinham em comum todos os membros da Guarda Highlanders, apesar de suas grandes diferenças de personalidade, do irreprimível bom humor do MacSorley e a impulsividade do Seton até o mau gênio do MacRuairi. Mas nunca antes tinha tido tantos problemas para aferrar-se a isso.
Arthur deu um passo atrás com a intenção de dissipar a bruma de desejo que o atendia. Mas seu corpo bulia de desejos insatisfeitos. Uns desejos que cada vez lhe parecia mais difícil ignorar. Andar por aí com o membro duro pego ao ventre não era algo que fizesse muito para remediar seu mau humor. E sua mão tampouco parecia um grande alívio.
Ao ver que ele não respondia, Anna disse:
—E bem?
Tinha mudado de opinião? Negou com a cabeça.
—Não.
Nada tinha mudado. Seguia sendo a filha do homem ao que tinha ido aniquilar. Quão único o futuro lhes proporcionaria seria a traição. Não tinha intenção de piorar as coisas.
Anna não deu amostras de que sua resposta a decepcionasse. Melhor parecia algo que esperava.
—Então por que fazem isto? por que atua como se o importasse com quem contraio matrimônio? Não me quer mas tampouco quer que alguém me tenha, é isso?
Arthur murmurou uma imprecação ao mesmo tempo em que passava as mãos pelos cabelos.
—Não é isso.
De fato, era exatamente isso. Anna tinha dado justo no prego. Estava ciumento, maldita seja. Embora não tivesse nenhum direito a estar. Embora fosse ele quem a desalentasse. Embora não houvesse nenhuma possibilidade de que estivessem juntos. Pensar em que ela se casaria com outro homem fazia que caísse em ataques de ciúmes juvenis.
Anna o olhou nos olhos.
—Então expliquem - me disse isso em voz baixa — O que é o que sentem por mim?
«Jesus.» Essa era a última coisa em que queria pensar. Somente ela seria capaz de tal pergunta. Anna MacDougall não tinha nenhum pingo de acanhamento ou de desânimo. Era direta. Sem rodeios. Despretensiosa. Deus, era uma mulher incrível.
Nem todo o treinamento do mundo podia o fazer parar de mover os pés nervosamente. Não se sentia tão encurralado desde aquela vez em que seus irmãos o fizeram retroceder até a saliência de um escarpado e o provocaram para que se defendesse de seus golpes de espada.
—É complicado — disse, saindo-se pela tangente.
Os olhos dela não deixavam de escrutinar seu rosto em busca de algo que não havia neles.
—Complicado não me vale. —Anna baixou o olhar — Não quero que esteja aqui —acrescentou com uma voz tão rígida como a posição de seus ombros. Tampouco ele queria estar ali, mas não ficava mais opção que fazê-lo. Anna voltou a erguer os olhos para olhá-lo. Já não havia calidez nessas profundidades azul brilhante — O rogo isso, me deixem em paz, simplesmente.
O suave rogo dessa voz apelava a sua consciência, mas ardia no peito de igual forma. Anna deu meia volta e se afastou dali com o porte majestoso de uma rainha.
Desejaria poder fazê-lo, pelo bem de ambos. Mas sua missão vinha em primeiro. Algumas semanas mais. Poderia agüentar algumas semanas mais. Tinha resistido desafios muito mais perigosos. Tudo que tinha que fazer era escorar suas defesas, fechar as comportas e preparar-se para o assédio final.
Capítulo 13
Arthur partia na vanguarda, inspecionando o terreno com dois dos homens de MacDougall, quando percebeu de que algo não ia bem. Uma mudança no ar. Um calafrio que percorria a nuca. A súbita sensação que ativava todas suas terminações nervosas para lhe advertir: «Perigo».
Tinham completado a terceira jornada da viagem virtualmente em sua totalidade. O trajeto a cavalo pela ribeira oeste do lago Ness foi mais longo do esperado, não por tentar evitar aos homens de Bruce, a não ser devido a uma ponte impraticável de Invermoriston. Teriam tentado cruzar as turbulentas águas em caso de não levar consigo Anna, mas em vez disso tiveram que desviar-se outros oito quilômetros do caminho para chegar ao seguinte vau. assim, aproximaram-se do extremo sul dos bosques do Clunemore mais tarde que o que ele esperava. De ali virariam para o este, abandonando o caminho para afastar-se todo o possível do castelo Urquhart, ocupado pelos rebeldes. O plano era acampar a última noite à beira do lago Meiklie, o qual queria dizer que o dia seguinte seria mais exaustivo ainda, já que a relativamente plaina estrada daria lugar às colinas.
Apesar de que Arthur trabalhava melhor sozinho, Alan MacDougall insistiu em que lhe acompanhassem dois de seus homens se por acaso se encontrava com dificuldades. Ao não poder explicar ao irmão de Anna que esses homens representariam mais problemas que ajuda sem trair suas habilidades, Arthur teve que acessar a contra gosto.
À primeira sensação de perigo ergueu uma mão para que os homens se detivessem. Desceu do cavalo, ajoelhou-se e pôs uma palma plaina contra o chão. A leve reverberação confirmou o que seus sentidos já lhe tinham advertido.
Richard, o maior dos dois guerreiros e explorador habitual do MacDougall, ficou circunspeto.
—O que há?
Arthur baixou a voz.
—Voltem e digam a seu senhor que saiam do caminho imediatamente.
Alex, que era aprendiz de explorador, olhou-o com estranheza sob o aço de seu nasal. Ao contrário de Arthur, Alan e o punhado de cavalheiros que usavam elmo, cota de malha pesada e peitilho, os homens do clã dos MacDougall levavam armadura mais leve e o cotun de couro acolchoado que preferiam os highlanders. Essa indumentária de guerra fazia mais fácil o movimento. Não era a primeira vez que Arthur tinha vontade de desfazer-se de seu pomposo traje de cavalheiro e mandar a passeio a mascarada. O mais jovem dos homens olhou a seu redor.
—Por quê?
Arthur franziu os lábios. Ficou em pé e voltou rapidamente para seus arreios.
—Há um grupo numeroso de cavaleiros que se dirigem justo para nós.
Richard o olhou como se estivesse louco.
—Eu não ouço nada.
Aqueles idiotas acabariam fazendo que matassem a todos. Sem tempo para sutilezas, Arthur agarrou ao maior por seu grosso cangote, ergueu-o um par de centímetros dos arreios e aproximou seu rosto a dele.
—Façam o que digo, maldita seja. Dentro de alguns minutos será muito tarde. Querem que matem a dama por sua estupidez?
O homem negou com a cabeça, impressionado com a transformação que sofria o cavalheiro. Quando começou a boquejar para recuperar o fôlego Arthur o soltou de um empurrão.
—Eu os rodearei pelas costas e tentarei distraí-los. —Com sorte, disse, poderia desviá-los para o norte — Digam a sir Alan que saia do caminho imediatamente, que se dirija para o este e cavalguem tão rápido como podem. Abandonem as carretas se for necessário. Encontraremo-nos no lago assim que me seja possível.
Subitamente, Richard moveu sua grosa cabeça para o norte. Um leve som de pegadas de cavalos batia em sua direção. Voltou-se para Arthur com um olhar que albergava tanto temor como suspeita. Inconscientemente, deu meia volta com seu cavalo.
—Pelos ossos de Cristo, têm razão! Ouço-os.
Arthur não tinha tempo de preocupar-se com a inquietação do outro.
—Irei contigo - disse Alex.
—Não — repôs Arthur em um tom de voz que evitava qualquer discussão — Vou sozinho.
Assim seria mais fácil evitar que os capturassem. Além disso, sempre cabia a possibilidade de que conhecesse alguém. Supunha-se que MacGregor, Gordon e MacKay estavam no norte.
—Partam! —disse.
Os homens fizeram o que lhes pedia sem mais discussão.
Arthur tampouco perdeu mais tempo. Cavalo e homem se introduziram entre as árvores em sua carreira por alcançar aos cavaleiros pelas costas antes que aparecessem ante o grupo do MacDougall. Era consciente de que apesar de estar advertidos, demorariam certo tempo em conduzi-los até um lugar seguro. Anna era uma boa amazona, mas não podia dizê-lo mesmo de sua criada. As carretas aumentaram seu ritmo ainda mais. Se algo sabia das mulheres era que não gostavam nada de abandonar seus finos trajes e sapatos. Ao menos Anna não tinha insistido em levar com eles ao maldito cachorrinho. Arthur estava já cansado de limpar os pés.
Arthur ziguezagueou entre as árvores, usando o som dos cavalos como guia, e cavalgou em paralelo aos homens alguns poucos e preciosos minutos até que se dirigiu para eles. Agora vinha a parte delicada: aproximar-se o suficiente para chamar sua atenção, mas nem tanto para que o capturassem. Amaldiçoou para si ao ver pela primeira vez ao grupo de cavaleiros através de um vão entre as árvores. Tinham todo o aspecto de uma leva de guerreiros. Havia mais dos que gostaria, ao menos uma vintena de homens armados até os dentes com mantas de cores escuras, vestimenta de guerra e escudos obscurecidos com breu, um modo de camuflar-se na noite próprio dos Guardiões das Highlands que adotaram mais tarde muitos dos guerreiros de Bruce.
Normalmente não pensaria duas vezes ante um exército tão formidável. Estava adestrado para lutar contra coisas piores. Mas esses homens conheciam o terreno e ele não. Teriam vantagem. Um giro mal dado e acabaria em suas garras. Mesmo assim ele contava com vantagens que eles não tinham: sentidos afiados como facas, velocidade, uma força e um treinamento superiores e a habilidade de desaparecer entre as sombras.
Distinguiu ante ele uma ruptura na linha de árvores. Aí o tinha. Apertou os dentes, baixou a cabeça e saiu como um raio para o claro. Fingiu surpreender-se por sua presença e girou abruptamente para a esquerda, como se quisesse evitar ser visto. Um grito o alertou do cumprimento de seu objetivo. Não se atreveu a diminuir a marcha e olhar para trás para ver se tinham mordido o anzol. Uma fração de segundo de atraso podia significar a diferença entre escapar ou ser capturado. Mas, momentos depois ouviu o ensurdecedor som das pegadas de cavalo atrás dele e sorriu. A caça tinha começado.
Anna tentava não pensar em quão tarde era. Mas à medida que a escuridão descia e que a lua se erguia no céu lhe custava mais acreditar que se encontrava bem. Esse medo que permanecia em espera ante o tumulto de seus próprios esforços para escapar aos soldados inimigos retornou com toda sua força assim que estiveram a salvo. E a coisa piorava com cada hora que passava sem a volta de Arthur. Que lhe atormentasse tudo o que quisesse, isso não importava. Mas que voltasse são e salvo.
Ajustou a capa nos ombros e disse que não devia preocupar-se. Chegar até eles de novo tomaria seu tempo atrás da animada perseguição em que Arthur os embarcaria. «Mas tanto tempo?» mordeu o lábio em uma tentativa de mitigar a crescente sensação de pânico. «Ele não se deixaria apanhar.» Entretanto, eles eram um monte de homens e ele só um. «Não pode estar morto.» Se fosse assim saberia. O coração lhe deu um tombo. Não era isso certo?
—Milady, a sopa está deliciosa. Tome —disse Berta sustentando a colher ante ela — Provem. Embora seja só um pouco - acrescentou, como se Anna fosse uma menina de cinco anos que se negava a comer nabos.
Mas Anna seguia sem gostar dos nabos. Negou com a cabeça e se esforçou em sorrir a sua preocupada criada.
—Não tenho fome.
A anciã pôs cara de estar admirada, fazendo que as rugas de seus olhos cor mel se esparramassem por seu rosto. O aspecto de Berta, com sua apenas um e cinqüenta de estatura e tão magra como um palito, não é que fosse formidável. Mas naquele caso seu rosto era de decepção. Podia ser tão teimosa e áspera como uma mula velha.
—Têm que comer algo. Conseguirá te pôr doente.
Já estava. Doente de preocupação. Somente de pensar em comida lhe dava vontade de vomitar. Conteve o acesso de bílis que lhe chegou à garganta.
—Comerei —mentiu Anna — dentro de um momento.
Berta lhe deu um tapinha na mão, que descansava sobre o musgoso tronco que as separava. Reuniram-se em torno do fogo junto ao resto da escolta, mas o acampamento permanecia em uma quietude incomum e os homens estavam desanimados. Todos eram conscientes de que tinham escapado por pouco e não era ela a única que se perguntava o que teria ocorrido com o cavalheiro que os pôs sobre aviso.
—Que morras de fome não fará que volte antes.
Os pensamentos de Anna eram mais transparentes do que acreditava, mas estava muito preocupada para fingir que não sabia do que lhe falava Berta.
—Acredite que terá ocorrido algo?
Berta apertou sua mão e negou com a cabeça tristemente.
—Não sei pequena minha. Não sei.
O coração de Anna sofreu uma violenta sacudida. A perspectiva tinha que ser terrível para que Berta não se esforçasse por mentir sequer. Voltaram a ficar em silêncio. Anna olhava as chamas da fogueira sem vê-la enquanto Berta acabava sua sopa.
Então Anna ouviu um ramo que rangia atrás dela e se levantou de um salto. Voltou o rosto com o coração na boca, esperando ver um cavalheiro vestido com cota de malha sobre seu cavalo. Assim foi e por um segundo pensou que seria Arthur. Mas seu coração topou com uma decepção. Tratava-se simplesmente de seu irmão Alan, que desmontou do cavalo e atou as rédeas a uma árvore próxima. A expressão sombria que mudou seu rosto à medida que se aproximava a encheu de pavor.
—Tem descoberto algo? —perguntou.
—Não —repôs seu irmão negando com a cabeça — Nem rastro dele.
—Acredita que… —Anna não se atreveu a terminar a frase.
Alan a olhou com atenção.
—Já deveria ter retornado.
A verdade doía como um murro nas vísceras. Lágrimas de angústia afloraram em seus olhos. Acabava de brotar a primeira delas quando ouviu um assobio que atravessava a noite.
—É o sentinela noturno - disse Alan antes que Anna tivesse tempo de perguntar — Alguém se aproxima.
O alarme deu origem a uma pequena comoção. Anna foi primeira em saltar de seu assento de repente, mas isso mesmo foi o que fizeram o resto dos homens. O primeiro que ouviu antes de vê-lo foram os gritos provocados pela emoção e o alívio. Momentos depois, Arthur penetrava no círculo de luz que provia o acampamento e o coração de Anna dava tombos no interior de seu peito. Inspecionou ao cavalheiro em busca de sinais de ferida, mas além do cansaço que refletia seu bonito rosto e da sujeira e o pó de sua cota de malha se via em perfeitas condições. Completamente ileso.
A emoção a embargava com tal força que deu um passo adiante sem poder controlar-se. Lutou por dominar o impulso de ir atrás dele, de correr a seus braços, de rodeá-lo com os seus e chorar toda sua angústia na suja e poeirenta cota de malha que revestia seu peito. Não tinha direito a fazê-lo. Nem fundamentos. Não estavam prometidos, nem se cortejavam sequer. Não eram nada um para o outro. Logo ela pertenceria a outro homem.
Então Arthur a viu. Por um estúpido momento ela se convenceu de que a estava procurando. Seus olhos se encontraram com uma força letal que repercutia em seu peito e o golpeava com os ecos da nostalgia.
Se naquele momento ele houvesse virado o rosto, ignorando-a com frieza, provavelmente Anna teria confrontado seu futuro com uma resolução firme no coração. Mas em vez disso Arthur percebeu seu desespero e assentiu levemente. «Estou bem.»
Era pouco, mas ao menos era algo, e servia como reconhecimento de que existia uma conexão entre ambos. Entre eles dois havia algo especial. Não podia negá-lo por mais tempo. Importava-lhe.
Arthur a olhou por última vez e seguiu adiante para encontrar-se com o Alan.
As emoções de Anna estavam descontroladas. Afetava-lhe muito que acabava de ocorrer para concentrar-se em nada, assim escutou pela metade o relatório que fazia a seu irmão. Eram os homens de Bruce. Um grupo numeroso de guerreiros. O número chamou tanto a atenção que ficou sem fôlego. Vinte e cinco homens. O normal seria que Arthur estivesse morto. Primeiro os tinha desviado vários quilômetros do castelo do Urquhart e depois se dirigiu para o este. Entretanto, os malfeitores tinham dado provas de ser bons cães de presa, e Arthur se viu obrigado a voltar a pé para o acampamento. Anna suspeitava que estivesse deixando muitas coisas no tinteiro.
Alan lhe agradeceu os serviços prestados a todos e o ameaçou a que se sentasse enquanto pedia comida e bebida para ele. Seu irmão falou com Arthur um momento mais antes de lhe deixar comer, mas em voz baixa, de modo que ela não pôde escutar nada. Anna bicou um pedaço de carne-seca de vitela e torta de aveia e ficou rondando por ali, como fizera a maioria dos homens. Entretanto, à medida que caía a noite, algo começou a lhe preocupar. O acampamento se animou com sua volta, e parecia óbvio que todos se alegravam de que não o tivessem capturado, mas a celebração não era a esperada e isso a desconcertava. Além disso, acontecia algo anormal. Ninguém tinha aproximado, além de seu irmão. Em lugar dos tapinhas nas costas, as brincadeiras pesadas e os brinde que seriam de praxe, pareceu-lhe que mais de um o olhava com cara estranha.
Arthur não parecia conscientizar-se. Acabou com sua comida, terminou o odre de cerveja que lhe tinham levado e se retirou de novo à solidão dos bosques. Anna o observou partir e sentiu uma premente necessidade de fazer algo. Olhou aos homens do clã que tinha ao redor. O que lhes passava? Por que atuavam de tal modo?
Chegou um ponto no que já não pôde agüentar-se mais, desculpou-se e foi procurar seu irmão. Alan estava falando com alguns de seus homens, mas ao vê-la chegar os ordenou que se retirassem.
—Acreditei que estaria aliviada.
Evitou fazer como que não entendia do que falava.
—Estou.
—E então a que vem a ser esse rosto, pequena?
—Por que atuam os homens desse modo? Por que não lhe dão obrigado? Por que o evitam?
—Está segura que não é justamente o contrário, irmã? —repôs Alan esboçando um sorriso irônico — Campbell não é precisamente conhecido por sua sociabilidade. Gosta de estar sozinho. —Seu irmão tinha razão, mas nessa ocasião não se tratava só disso. Os soldados se mostravam incômodos, quase temerosos. Quando o fez saber, Alan suspirou e negou com a cabeça — Ocorreu algo hoje quando nossos homens batiam o terreno. Richard me contou isso e provavelmente também contou ao resto. Conforme parece, Campbell ouviu os cavaleiros antes o bastante, antes que houvesse sinal alguma deles. Richard disse que era coisa de bruxaria.
Todo o prazer que Anna pudesse sentir ao ver confirmadas suas próprias suspeitas em relação ao ocorrido com os lobos, empalideceu em comparação com a fúria que atormentava seu interior. Suas bochechas se ruborizaram de indignação.
—Isso é ridículo. É que não se dão conta de que salvou a todos? Teriam que estar agradecidos e não tratá-lo como a um cão.
—Estou de acordo. Mas já sabe quão supersticiosos podem ser os highlanders.
—Isso não é desculpa.
—Não, não é. Falarei com o Richard e tentarei acabar com isso.
Anna saltou de seu assento de repente.
—Faz ou falarei com ele eu mesma. Não penso permitir que rechacem sir Arthur por nos ajudar. Pelas chagas de Cristo, Alan! Sem essa bruxaria, é possível que agora estivéssemos todos mortos.
Alan a olhou com atenção, e o que viu nela pareceu lhe preocupar. Ficou pensativo, assentindo simplesmente com a cabeça, em lugar de criticar por usar essa linguagem vulgar. Anna partiu dali com o propósito de encontrar Arthur, mas seu irmão adivinhou seu destino, porque gritou: —Amanhã pela tarde chegaremos a Auldearn, Anna.
Ela se voltou e lhe dirigiu um olhar inquisitivo, perguntando-se a que viria aquilo.
—Sim.
—Se tiver intenção de ir a sério com o compromisso de casar-se, talvez fosse melhor que o deixasse tranqüilo.
Duvidou ao ouvir a verdade em palavras de seu próprio irmão. Mas não podia fazê-lo. As ações desse homem tinham despertado todos seus instintos de amparo. Tinha que agradecer-lhe embora os outros não fizessem.
Encontrou-o à beira do lago, sentado em uma rocha plaina, depois de ter tomado um banho. Tinha o cabelo molhado e vestia uma simples regata de linho com uma túnica e as perneiras de couro. Estava inclinado sobre seu peitilho, aplicando azeite com um trapo, e sua expressão, vista de perfil, era mais sombria que nunca. Embora parecesse óbvio que a tinha ouvido chegar, Arthur não deu a volta. Uma vez que esteve mais perto, Anna distinguiu o que limpava e o mundo lhe veio em cima.
«Sangue.»
Apressou-se para ele sem pensar, ajoelhou-se e pôs uma mão no braço.
—Está ferido.
Quando ergueu o olhar para olhá-la, a lua iluminou seu rosto.
—Não é meu - disse.
Uma sensação de alívio se expandiu por todo seu ser. Suspirou profundamente. Embora seu rosto permanecesse impassível, percebeu uma estranha emoção em sua voz. Virtualmente soava como se estivesse arrependido. Como se a morte de um de seus inimigos fosse algo que o perturbasse. Talvez para os guerreiros matar não fosse tão fácil como ela imaginava. Em qualquer caso não para ele. Isso o fazia mais humano em certo sentido. Mais vulnerável. Sir Arthur Campbell vulnerável? Esse pensamento a teria feito rir sozinho algumas semanas antes.
—Não tinha outra alternativa - disse Anna com ternura.
Arthur lhe manteve o olhar por um momento e depois dirigiu para a mão que tocava seu braço. Anna sentiu imediatamente a intimidade dessa cálida e rígida pele que apertava com seus dedos e se apressou a retirá-la. Mas isso não conteve a necessidade de aninhar-se junto a ele e repousar a bochecha contra o amplo escudo protetor de seu peito.
Arthur voltou para a tarefa de tirar as manchas incrustadas entre as pequenas peças de metal. Anna se sentou junto a ele em uma rocha mais baixa e o observou em silencio durante vários minutos.
—Por que está aqui, Anna?
—Queria lhes agradecer o que fez hoje.
Arthur encolheu levemente de ombros, sem levantar o olhar de sua tarefa.
—Não fiz mais que meu trabalho. Para isso estou aqui.
Anna mordeu o lábio ao recordar o quão furiosa que a pôs sua intromissão e o cepticismo com o que acolheu suas razões para lhes acompanhar.
—Ao que parecia tinham razão —admitiu — Lhes agradeço que nos tenham acompanhado na viagem. Todos o agradecemos - disse franzindo o gesto com irritação — Embora alguns tenham uma estranha forma de demonstrá-lo.
Os ombros de Arthur se esticaram quase imperceptivelmente.
—O que é o que dizem?
—Que sentiram aos cavaleiros antes que fosse possível fazê-lo.
Arthur arqueou uma sobrancelha, divertido com sua tentativa de suavizar o golpe.
—Seguro que disseram algo mais que isso.
As superstições de seus companheiros de clã ruborizaram as bochechas de Anna.
—É certo, verdade? É como aquilo que aconteceu os lobos e quando tropecei no escarpado. Podem ver as coisas antes que aconteçam.
Anna lhe suplicou com os olhos que não mentisse. Outra vez não. Ele ficou calado durante tanto tempo que pensou que não lhe responderia.
—Não é de tudo assim —disse finalmente — É mais como um pressentimento. Meus sentidos estão mais afinados do normal. Isso é tudo.
—Afinados? —repetiu ela — São extraordinários. —Seu louvor não pareceu a não ser o incomodar mais — Não entendo como o resto dos homens não é capaz de compreendê-lo. Salvaram a todos.
—Deixem estar, Anna. Não tem importância - disse olhando-a com gesto severo.
Parecia falar a sério, algo que mais que atenuar suas faculdades as ressaltava.
—Como podem dizer isso? É que não vos molesta? Teriam que lhes agradecer o que têm feito e elogiar suas extraordinárias habilidades, em lugar de atuar como crianças que tivessem medo de encontrar um trasgo na cama ou fantasmas dentro do armário.
A indignação que Anna sentia pelo trato que lhe dispensavam não encontrava a avaliação esperada. Uma vez mais pareceu que essa conversa lhe incomodava.
Arthur a olhou com dureza.
—Não é algo que me incomode e tampouco necessito que façam as coisas mais difíceis advogando por minha causa. Não quero que mencionem nada a respeito do que acreditaram ver. Deixem passar e cairá no esquecimento. Insistam e piorarão.
Falava da experiência.
Anna teve que apertar os lábios para não discutir. Aquilo não estava bem e a injustiça que suportava fazia aflorar todo seu instinto de amparo.
Incomodava-o. Tinha que ser, por mais que se mostrasse despreocupado. Que estivesse tão acostumado a essa sutil crueldade das pessoas e que a desse por certa fazia disso um pouco mais duro. Encolhia-lhe o coração. Quantas vezes o teriam rechaçado ou repudiado para que se convertesse em uma pessoa tão insensível e indiferente? Seria isso o que o afastava de outros? Todo seu distanciamento e individualismo lhe pareceram de repente uma máscara para sua solidão. Levava tanto tempo só que tinha chegado a convencer-se de que gostava. Seu coração se compadecia dele. Era tão afortunada de ter a sua família… Odiava pensar que uma pessoa pudesse estar sozinha.
—Anna? —disse ele procurando seus olhos à luz da lua. Teria adivinhado a direção que tomavam seus pensamentos? — me prometa que não dirá nada.
Anna pôs cara feia, mas assentiu. Ele se levantou para passar o apertado peitilho pela cabeça se vestiu com um tabardo limpo e trabalhou em excesso na sujeição de suas numerosas armas. Observar como se vestia era um ato que transbordava intimidade, mas a Anna não envergonhava fazê-lo. Ao contrário, parecia natural. Como se pudesse passar todos os dias de sua vida vendo como ele se preparava para a guerra. Aquele pensamento teria que tê-la horrorizado, mas, em vez disso, viu-se invadida por uma intensa sensação de desejo, de saudade por algo que lhe escapava das mãos. Fazia que se expusesse seu futuro e pensasse que talvez ele não fosse o homem errado, a não ser exatamente o adequado para ela. Um guerreiro estável. Isso parecia algo contraditório. Mas talvez fosse ela quem se equivocava de cabo a rabo.
—O que fará quando acabar a guerra? —perguntou.
Perguntava-se se não teria pensado em fazer algo com seus desenhos, talvez. Ou estaria simplesmente esperando a seguinte guerra para lutar nela?
A pergunta o pegou despreparado. Arthur estava atendo-se a espada e a deixou pela metade. O certo era que não tinha dedicado muito tempo a pensar. Fazia muitos anos que a guerra consumia sua vida. Lutar era para quão único servia. Primeiro junto a seu irmão Neil e logo como membro dos Guardiões das Highlands. Era um soldado profissional. Um dos melhores do mundo. Era o único que sabia fazer. Mas era isso o que ele queria? O teria escolhido ao ter a oportunidade? Uma vez que houvesse justiça para seu pai, que Bruce tivesse o trono assegurado, uma vez cumpridos os objetivos… o que faria então?
Terras e uma rica esposa seriam sua recompensa. Isso teria que bastar. Mas ao olhar a aquela mulher que o acabava de defender tão fervorosamente, que o via como alguém extraordinário em lugar de horripilante, que tinha um coração que não lhe cabia no peito, perguntava-se se realmente seria suficiente com isso. Ao olhar essa carinha arrebitada, banhada pela luz da lua entre tênues sombras, sentiu uma estranha angústia. Saber que era algo impossível não lhe impedia de seguir desejando-a. Mas já tinha mostrado muito de si mesmo. Estava tão acostumado a mentir a respeito de suas habilidades que lhe parecia estranho ouvir a verdade em voz alta. Estranho, mas também consolador. Manteve-se afastado do resto durante tanto tempo que esquecia o que era ter conexão com alguém.
Estava completamente louco.
Sua única desculpa era que o tinha pego em um momento de debilidade. O sangue que limpava de seu peitilho era a dos dois homens que se viu obrigado a matar para defender-se.
«Protege sua identidade custe o que custar. Protege a missão.»
Deus, às vezes odiava o que tinha que fazer. Acabou de ajustar o armamento antes de responder.
—Eu diria que isso dependerá do resultado.
Inclusive nesse lusco-fusco percebeu que o rosto de Anna empalidecia, mas se recuperou com rapidez.
—Não há mais que um resultado possível. Não conhece meu pai. Não perderá. —Arthur ficou tenso. Sabia isso melhor que ninguém. Essa era a razão pela que estava ali — O rei Hood e os rebeldes serão submetidos e levados diante da justiça.
Apesar de que soasse como o melhor e mais leal dos soldados do clã MacDougall, podia perceber a fragilidade que se escondia atrás daquela bravata. Anna seguia aferrando-se a ilusões que começavam a apresentar fissuras. Mas estava claro que era consciente do desesperado de sua situação, ou não estariam ali nesse momento.
—E mesmo assim acode ao Ross para lhe permutar por tropas adicionais.
Anna endireitou as costas de repente. Seus olhos brilhavam com intensidade ante o resplendor da lua.
—Não se trata exatamente disso.
Sim, se tratava disso. E seu trabalho era assegurar-se de que não ocorresse.
Não queria ser cruel, mas ela precisava confrontar a realidade. O pêndulo se afastava dos MacDougall. Bruce estava ganhando a guerra.
—E o que passará se fracassar, Anna? O que acontecerá Ross não está de acordo em mandar mais homens? Então o que?
—Meu pai pensará algo. —Soava tão desesperada que, sem se dar conta, esteve a ponto de aproximar-se até ela para consolá-la — por que falas de tal modo? —perguntou — Falas como um rebelde. Por que está aqui então, se não acredita em nossa vitória?
Amaldiçoou para si. Tinha razão. E logo descobriria quanta. Encolheu-lhe o estômago ao pensar em como a afetaria descobrir a verdade. Gostaria de poder suavizar o impacto de algum modo.
—Essa é justamente a razão pela que estou aqui, Anna. Por acreditar em uma causa. Por acreditar que ganhará o lado adequado. Mas as coisas não passam sempre do modo em que alguém pensa. Não quero lhe ver sofrer. —Deteve suas palavras e voltou para a questão original — Para quando a guerra acabe me prometeram terras e outras recompensas. Isso deveria bastar para me manter ocupado.
Anna inclinou um tanto a cabeça e umas linhas brancas diminutas povoaram seu sobrecenho.
—Outras recompensas? Que tipo de recompensas? —Embora não lhe respondeu, a resposta pareceu ir a sua cabeça de repente. Sobressaltou-se ao cair na conta e sua expressão de estranheza desvelou mais do que queria — Uma esposa? Eles prometeram uma esposa? —Arthur assentiu levemente, reconhecendo — Quem?
Uma das maiores herdeiras das Highlands ocidentais, a segunda irmã de Lachlan MacRuairi, lady Christina, senhora das Ilhas.
—Não sei —mentiu Arthur — Quando acabar a guerra me encontrarão uma esposa adequada.
Não era a primeira vez que desejava ser capaz algo precipitado, como tomá-la entre seus braços e lhe fazer promessas que jamais poderia cumprir.
—Já vejo —disse ela com voz diminuída — E por que não me contaram isso?
Ele a olhou com atenção.
—Como fizeram todos?
Anna estremeceu. Ao que parecia, tinha esquecido para onde se dirigiam. Mas ele não o tinha feito. A cada passo que os aproximava do Auldearn e Ross, Arthur sentia crescer a inquietação em seu interior. Sabia que tinha que fazer algo para evitar essa aliança, pela missão, conforme dizia a si mesmo. Mas o que?
Talvez não tivesse que fazer nada absolutamente. Era possível que Ross simplesmente se negasse a retomar as conversações sobre o compromisso. Mas com somente olhar a doce cara de Anna, Arthur foi consciente de que estava sonhando. Sir Hugh ficaria com ela com os olhos fechados. Apertou a mandíbula e lhe estendeu a mão.
—Vamos, temos que retornar. Faz-se tarde e temos um longo dia pela frente.
Quando Anna deslizou uma mão sobre a dele uma onda de calor invadiu todo seu ser. sentia-se… satisfeito. Como se não houvesse nada mais natural que ter essa pequena mão entre as suas. Todos seus instintos clamavam por agarrá-la e não deixá-la escapar.
Mas em vez disso, permitiu que seus dedos se desenlaçassem. Caminharam em silencio até o acampamento. Já se haviam dito suficiente. Talvez muito.
Capítulo 14
—Algo errado com sua comida?
A voz de sir Hugh tirou a Anna de seus pensamentos. Quanto tempo levava olhando sua tigela como uma boba e tirando o miolo ao pão pouco a pouco, sem dizer uma palavra? Tentou cobrir sua falta de tato com um sorriso ao mesmo tempo em que a vergonha se revelava em suas bochechas em forma de rubor.
—Não, está deliciosa. —Para dar fé disso meteu um pedaço de vitela na boca e fingiu deleitar-se. Uma vez o teve mastigado pediu desculpas — Temo que ainda esteja cansada pela viagem e não sou uma boa companhia.
Fazia duas noites que tinham chegado ao Auldearn. O último dia de marcha foi exaustivo, mas felizmente sem incidentes. Esperava em seu foro interno outra oportunidade para falar com sir Arthur antes que chegassem, e teve que levar uma decepção. Não era que ele a tivesse evitado, mas tampouco a tinha procurado.
Algo mudou aquela noite no lago, ao menos para a Anna. Arthur lhe tinha devotado uma parte de seu ser que parecia não revelar freqüentemente, uma parte dele que talvez a necessitasse. E o mais importante: não a tinha espantado. E por que não o tinha feito? Tudo teria resultado mais simples. Anna lutou por reprimir a cálida inflamação que ia a seus olhos e sua garganta enquanto a miséria se apoderava dela. Isso era o que lhe faltava, ficar a chorar em meio da comida como se fosse uma criada meio louca e doente de amor. Seguro que assim impressionaria sir Hugh.
Embora fosse jovem, apenas vinte e três anos, sir Hugh Ross era um homem cuja grandeza, superioridade e decidido atrativo se refletiam no perfil de seu perfeitamente torneado nariz até a ponta de seu afiado e curto queixo. Mas o orgulhoso cavalheiro parecia muito maior. Virtualmente parecia controlar-se em demasia, com tanta serenidade e tanto controle sobre si mesmo e essa arrogância de príncipe, algo que tampouco estava muito longe da verdade, dado a fila que ostentava entre a nobreza escocesa. Rígido, sem senso de humor, com esse aspecto frio e desumano tão próprio dos homens de sua época.
Sir Hugh lhe dirigiu um sorriso de compreensão que não melhorou em modo algum a severidade de seu semblante.
—É obvio, depois de cavalgar para tal passo e estar a ponto de ter uma topada com um grupo de rebeldes, é algo previsível. —Seu rosto adotou um aspecto sombrio — Teria que esfolar ao Bruce com suas próprias esporas por ser líder desse bando de piratas desalmados —acrescentou, voltando seu acerado olhar sobre ela — Foram muito afortunados de receber aviso a tempo de escapar —disse puxando a barba enquanto a observava. Anna não podia afastar os olhos de suas grandes e ossudas mãos, umas mãos que poderiam esmagar ou assassinar com a facilidade como que as suas rompiam um galhinho — Foi sir Arthur Campbell, não é certo? O irmão do rebelde Neil Campbell.
Anna assentiu, incomodada com seu próprio acanhamento. O nervosismo que sentia na presença de sir Hugh, o qual foi a primeira causa de que rechaçasse o compromisso, não fazia mais que agravar-se desde sua chegada. Sorrir e responder a suas educadas tentativas de conversa se convertia uma batalha. Observava-a como se pudesse ler seus pensamentos. Teria se delatado? Ela tinha tomado cuidado nem olhando na direção sir Arthur desde que chegaram. Ao menos acreditava não tê-lo feito. Mas estava mais que segura de que ele sim a estivera observando. O qual, provavelmente, explicava parte de sua inquietação. Seduzir a um homem sob o fulminante olhar de outro não era tarefa fácil. Mas tinha que fazer. Embora não gostasse da idéia. E a idéia não gostava absolutamente. Os dias passados encarregaram de deixar claro. Temia pensar muito no que sentia por Arthur por medo que descobririam.
—Tivemos muita sorte — comentou ao conscientizar de que sir Hugh esperava que dissesse algo.
Anna não sabia o que lhe acontecia. Jamais teve esse tipo de problemas na conversa com ninguém. Procurava controlar o tremor de suas mãos, mas lhe inquietava tanto a intensidade de seu olhar que atirou o pedaço de pão que tinha na mão. Caiu sobre a mesa, junto a sua taça e ao tentar recolhê-lo ao mesmo tempo em que Hugh Ross suas mãos se tocaram. Antes que desse tempo a retirar a sua, sir Hugh a cobriu com seus dedos. Seu pulso se acelerou até embarcá-la em uma sensação próxima ao pânico. Seu coração revoava em seu interior como se tratasse de um passarinho enjaulado.
—Está nervosa - disse lhe soltando a mão e lhe devolvendo o pão.
Ardiam-lhe as bochechas.
—Não têm nada que temer, lady Anna —disse visivelmente divertido — Sou bastante inofensivo. —Ela deve ter posto cara de não acreditar absolutamente, pois ele acrescentou—: Bom, pode ser que não completamente.
Essa inesperada amostra de humor a fez sorrir e pela primeira vez sentiu que começava a relaxar. Olhou-o do meio lado, protegida sob suas largas pestanas.
— Bom, milorde, é que sua pessoa é… certamente imponente.
—Tomarei como um elogio, embora não acredito que fosse essa sua intenção —disse entre risadas, para depois aproximar-se mais a ela e sussurrar—: O que parece se me esforço por ser imponente com todos menos contigo? Contigo serei o mais inofensivo. Será nosso segredo.
Anna, incapaz de resistir a seu encanto, sorriu até que lhe marcaram as covinhas. Sir Hugh Ross encantador? Jamais teria acreditado. Acaso o mal-humorado nobre ocultava mais do que Anna conhecia?
—Acredito que disso eu gostaria, milorde —disse sentindo que voltava para ela um pingo de seu atrevimento — Talvez ajudasse que sorrisse mais - acrescentou erguendo os olhos para olhá-lo.
Sim, quando sorria não parecia intimidar tanto.
Sir Hugh esboçou então um amplo sorriso e procurou seus olhos com o olhar.
—Pois então o farei - replicou. Fez uma pausa em seu discurso e Anna observou como se entretinha em riscar o relevo do pé da taça, interrompendo-se de um modo quase sensual que a devolveu a seu estado de inquietação — Estou muito contente de que tenham decidido viajar até o norte, lady Anna.
Cada vez estava mais tinta. Não lhe escapava o significado de suas palavras. Estava disposto a renovar as conversações em torno do compromisso. Sabia que devia sentir-se aliviada. Para isso tinha ido até ali. Poderia ajudar a salvar a sua família. Então por que notava como se uma estaca se atendasse em seu peito?
Assentiu com indolência, incapaz de encontrar-se com seu olhar de repente, temendo que revelasse muito. O peito lhe angustiava ao conscientizar de que o laço de seu futuro cada vez se atava com mais força. Seus sentimentos pessoais não importavam. Deveria contentar-se sabendo que tinha posto seu grãozinho de areia para ajudar à família. Isso seria recompensa suficiente, verdade?
Ross se voltou e fez gestos a uma criada que passava para que enchesse suas taças. Anna voltou o olhar inconscientemente para Arthur. Sabia onde estava sem necessidade de olhá-lo. Parecia atravessar toda a sala com o calor de sua ira. Seus olhares se encontraram durante um instante, mas foi tempo suficiente para que a força de sua ira ressonasse como o rugido de um ferreiro na forja. Em geral, continha tanto suas emoções que Anna se perguntava se realmente existiriam. Mas isso acabou. Jamais o tinha visto tão feroz e selvagem. Parecia um homem cuja contenção pendia de um fino fio.
Voltou-se, sobressaltada pela emoção que a embargava. Infelizmente não voltou o olhar com suficiente rapidez e sir Hugh apreciou parte do intercâmbio. Notou como ficava em guarda e entreabria os olhos olhando sir Arthur.
—Campbell não parece muito feliz com nosso acerto. Eu não gosto da forma em que vos olha - disse voltando o olhar para ela e arqueando uma sobrancelha de tal modo que parecia algo menos casual — Há algo que deveria saber lady Anna?
Amaldiçoou Arthur por sua imprudência. Arruinaria tudo. E para que? Já tinha tido oportunidades mais que suficientes para mostrar seus sentimentos, se é que albergava alguns. E agora não ficava opção. Seu pai contava com ela.
Mesmo assim duvidava. Essa seria sua última oportunidade para voltar atrás. Seu coração puxava em uma direção, e o dever e sua família puxavam a outra. Anna recordou a conversa mantida com sir Arthur. O ouvir falar de perder a guerra a tinha feito tremer. Inspirou profundamente e se desembaraçou de todas as dúvidas. Seus sentimentos pessoais não importavam. Tinha que fazê-lo. Quando Bruce chegasse, teriam muitas mais possibilidades com Ross e seus homens ao seu lado.
Negou com a cabeça.
—Não, não há nada que deveria saber.
A certeza de sua voz pareceu convencer sir Hugh. Assentiu.
—Bem —disse lhe estendendo a mão — Venham, há algo que eu gostaria de mostrar e acredito que há certas coisas que deveríamos discutir.
Anna ignorou a dor que lhe oprimia o coração e sorriu, embora tremulamente. Sem nenhum olhar mais, deu a mão ao Ross e lhe permitiu que a tirasse do grande salão com seu futuro já mais que decidido.
Isso era o que se sentia quando as pessoas perdiam o controle. Isso era o que se sentia quando alguém queria algo com tanta vontade que mataria por consegui-lo. Não pelo bem ou o mal, nem por estar no campo de batalha, mas sim pela pura satisfação de ver outro homem atravessado pela ponta de seu aço.
Arthur queria matar Hugh Ross. Dava-lhe vontade de matá-lo somente pela forma em que olhava a Anna. Pelos pensamentos luxuriosos que seguro percorriam a mente daquele filho de cadela. Arthur não acreditava ser capaz de conter-se no caso de que o olhar do Ross se detivesse de novo sobre seus seios. Atiraria uma lança no seu sobrecenho do outro lado do aposento. Poderia fazê-lo com os olhos fechados. Ficar afastado durante os últimos dois dias obrigado a contemplar como outro homem cortejava a essa mulher que, supostamente, não significava nada para ele era como uma lenta e agonizante descida à loucura. Arthur liberava uma batalha perdida. Suas tentativas de permanecer indiferente, de centrar-se na missão, não funcionavam. Todos esses anos de treinamentos e experiência na batalha não o tinham preparado para aquilo. Ver Anna e Hugh Ross juntos estava lhe fazendo em pedaços. Mas essa noite foi a gota que encheu o copo. Quando viu Ross lhe acariciar a mão, Arthur esteve a ponto de sair da ali feito uma fúria e lhe partir todos os dentes num murro. Ao diabo com o subterfúgio. Estavam rindo, maldita seja. Rindo.
Queria convencer-se de que ela não seria capaz de passar por isso. Não seria porque Anna não se mostrou precavida a respeito ao cavalheiro durante os últimos dois dias, precisamente. Mas Arthur tinha subestimado sua resolução, e também o encanto de sir Hugh. Quando se aproximou para lhe sussurrar ao ouvido teve que apertar os punhos. Não foi até que baixou o olhar e percebeu a palidez de seus nódulos que se deu conta de quão forte tinha a taça obstinada. Foi toda uma sorte que fosse de madeira; de outro modo, a teria destroçado.
Amaldiçoou consciente de que devia fazer algo. Tinha que pensar em sua missão. Sir Hugh não perdia tempo, e não é que pudesse culpá-lo. Se Arthur não fazia nada para impedir aquela aliança, seria muito tarde. Bebeu o conteúdo da taça. O uisgebeatha de cor ambarina fez que ardesse a garganta, mas não acalmou absolutamente a intranqüilidade que bulia em seu interior.
—Que diabos te passa, Campbell? Parece que queira matar a alguém - disse Alan MacDougall olhando de soslaio ao estrado. Sabia perfeitamente a quem queria matar Arthur. Aproximou-se para falar — Tome cuidado. Acredito que nosso anfitrião advertiu seu interesse por minha irmã.
Arthur economizou a vergonha de negá-lo. Alan MacDougall podia ser filho de um déspota desumano, mas não era nenhum idiota.
—E viestes para ordenar que me retire do conflito?
O guerreiro mais velho, muito experiente para delatar-se pela expressão de seu rosto, olhou-o com impassibilidade.
—Queres que o faça?
Arthur contraiu a mandíbula e apertou os dentes.
—Deveria — disse em um estranho momento de franqueza.
Não faria mais que arruinar sua vida. Se ele fosse seu irmão, ordenaria que o mandassem ao inferno diretamente e logo iria ele mesmo atrás. Mas se Alan pensou que havia algo estranho em sua resposta certamente não o exteriorizou. Em vez disso, sorriu com ironia.
—Parece-me que é muito tarde para isso.
Arthur afastou o olhar de sir Hugh e de Anna o tempo suficiente para olhar ao Alan enviesadamente. Não tinha idéia do que Alan acreditava saber, mas se equivocava. Ou não?
Diabos, já não sabia. Sua missão. Ciúmes. Sua intensa atração pela moça. Tudo isso se mesclava criando um caos absoluto. Voltou a beber de um gole o conteúdo da taça.
Alan observou como o fazia com uma expressão divertida.
—Acreditava que não bebia uísque.
—Não bebo - disse Arthur, e fez gestos à criada para que lhe enchesse a taça.
Alan estivera observando-o com mais atenção da que pensava. Aquilo o teria preocupado a não ser porque algo lhe fez voltar sua atenção para o estrado. Todos seus músculos ficaram rígidos quando viu que Anna deslizava sua mão sobre a do Ross. A ira percorria todo seu corpo ao mesmo tempo em que aquele homem se inclinava para falar brevemente com seu pai momentos antes de acompanhá-la ao exterior do salão. Justo antes que Hugh passasse pela porta olhou para Arthur. O tom malicioso de seu olhar fez que lhe gelasse o sangue. Uma sensação estranhamente próxima ao pânico subia por seu peito, algo ridículo por completo. Era um guerreiro de elite. Distante. Controlado. Pode ser que seu coração pulsasse muito depressa e que não pensasse com claridade, mas era indisputável que aquilo não podia ser pânico.
Mas onde demônios acreditava que ia? Ross, esse filho de puta lascivo, estava obviamente ansioso pelo compromisso. Quem sabia do que seria capaz para assegurá-lo? Acaso Anna não notava do que aconteceria quanto estivessem a sós? A mente de Arthur voltou para os barracões imediatamente.
«Por todos os diabos.»
Conseguiu resistir durante uns trinta segundos até que já não pôde agüentar mais. Levantou-se para partir, mas Alan o deteve movendo sua perna pela borda da mesa e lhe fechando o passo. Não era nenhum acidente. A princípio Arthur acreditava que queria detê-lo, mas para sua surpresa o guerreiro retirou a perna lentamente e lhe deixou passar, não sem antes fazer uma advertência.
—Se fizer mal a minha irmã, Campbell, terei que te matar.
Apesar de que falasse com tanta calma como se informasse o tempo, Arthur era consciente de que dizia muito sério. Que diabos, se Alan não fosse seu inimigo e o filho de um déspota, pode ser que inclusive lhe caísse bem. Arthur o olhou nos olhos e assentiu, com a suspeita de que Alan MacDougall não seria capaz de manter sua promessa. Pôr fim ao compromisso e deter a aliança, fazendo dano a Anna no processo, converteu-se em algo inevitável.
Anna esperava que sir Hugh a levasse fosse para passear pelo barmkin, mas em vez disso a fez entrar pelo corredor até a torre da comemoração. O castelo real do Auldearn fora construído uns cem anos antes por encargo do Guillermo o Leão. Sua torre da comemoração e o grande salão contíguo se erguiam no alto de um enorme Castro circular rodeado por um cerca de madeira. O muro de pedra que rodeava o pátio de armas que havia debaixo proporcionava um nível mais de defesa. O corredor iluminado pelas tochas parecia silencioso em comparação com o bulício do grande salão. Anna se inquietou ao ser consciente de que não havia ninguém mais ao redor. Embora os últimos raios de sol ainda reverberassem sobre o horizonte, a torre de pedra estava já às escuras. Tampouco a luz cintilante das tochas alinhadas nos muros lhe dava mais tranqüilidade.
—A…aonde vamos? — perguntou envergonhada pelo tremor de sua voz.
Sir Hugh lhe dirigiu um enigmático sorriso que fez que Anna se perguntasse se saberia a impressão que causava nela.
—Já quase chegamos.
Deteve-se frente à porta da câmara particular do conde. Uma vez aberta, Anna aliviou comprovar que a estadia estava bem iluminada pelo castiçal de ferro circular que pendia do teto. Infelizmente, Hugh a levou até outra porta que havia cruzando a sala, com o que Anna percebeu de que aquele não era seu destino final. O segundo aposento estava às escuras. Anna ficou na câmara até que sir Hugh acendeu umas velas. Então ficou sobressaltada.
Anna se esqueceu de seu nervosismo. Apressou-se a entrar no minúsculo aposento, não muito maior que uma despensa, e olhou com surpresa a seu redor. O centro da sala estava presidido por uma mesa e um banco, mas o que enchia seu assombro era o que havia sobre as paredes. Prateleiras e mais prateleiras cheias de grossas folhas de couro, alguns deles recobertos de ouro e outros com jóias incrustadas. Um tesouro oculto. Mais livros dos que tinha visto em sua vida em um só espaço.
Sir Hugh observou em que modo a maravilha e a incredulidade transformavam seu rosto.
—Pensei que isto poderia lhes interessar.
Anna deu uma palmada de puro prazer; seus dedos estavam impacientem por explorar os títulos. Por Deus bendito, se pareciam quatro volumes do Chrétien do Troyes!
—É magnífico — disse voltando-se para ele — Como sabias?
Hugh Ross encolheu de ombros.
—Em certa ocasião mencionaram que desfrutava da leitura.
Anna inclinou a cabeça e o olhou. Uma vez mais sentia como se o tivesse julgado mal.
—E se lembrou?
Sir Hugh não respondeu, mas a olhou de tal forma que um formigamento de inquietação lhe percorreu as costas. Desejava-a. De repente aquele minúsculo aposento pareceu uma armadilha a Anna. Olhou para a porta, mas já fosse intencionadamente ou não, ele se tinha colocado frente a ela lhe cortando o passo.
—por que me trouxestes aqui? —perguntou.
Sir Hugh deu um passo adiante e seus olhos brilharam de maneira perigosa entre as penumbras. Pegou-a pelo queixo e a obrigou a olhar em sua direção. O pulso lhe acelerou de pânico. Talvez fosse uns cinco centímetros mais baixo que sir Arthur, mas em certo modo seu tamanho lhe parecia ameaçador. Anna teve que reunir todo o valor com o que contava para não sair correndo.
—Queria lhes mostrar o que terá quando fores minha esposa. Esta sala estará a sua disposição. Será uma das damas mais importantes do reino. Para isso viestes, lady Anna. Não é assim? Para reatar as conversações sobre nosso compromisso.
—Sim - sussurrou ela, tentando controlar o tremor de sua voz.
Hugh cravou o olhar em seus olhos, desafiando-a.
—É isso o que quer realmente?
O coração lhe pulsava com fúria. Teve que obrigar-se a assentir.
—Sim.
—Então prove — pediu. Ela piscou de maneira inquisitiva — me beije.
Anna abriu os olhos de par em par pela surpresa.
Lutava por saber o que dizer. Mas, pelo amor de Deus, não podia. E ele sabia. Endureceu o olhar.
—Está jogando comigo, lady Anna? Asseguro-lhes que não tenho nenhum desejo de ser o corno de outro homem. Recorde que são vocês quem acudis a mim nesta ocasião. —Sir Hugh lhe pôs um dedo no lábio inferior e Anna conteve o fôlego, paralisada pelo medo — Decida o que quer antes de fazer algo que não possa ser desfeito. Uma vez estejamos comprometidos, asseguro-lhes que não tolerarei tais tolices.
As bochechas de Anna se avermelharam, envergonhada por quão certas eram suas acusações. Sacudiu o medo tentando recordar por que tinha ido até ali, tentando recordar quão importante era conseguir essa aliança para ela. Não podiam deixar escapar essa oportunidade. Por que se comportava como uma estúpida? Somente se tratava de um beijo.
—milorde, o temporal…
Ao ver que lhe soltava o queixo, Anna suspirou mostrando maior alívio do que devido.
—Temos que retornar ao salão - disse Ross fria e secamente — Seu irmão se estará perguntando aonde a levei.
Anna assentiu, sentindo sua impotência, consciente do que devia fazer, mas incapaz de pronunciar as palavras. Que o diabo levasse Arthur Campbell pelo que estava fazendo com ela! Por confundi-la. Ela estava preparada para levá-lo a cabo antes que ele voltasse a aparecer.
—Se não lhes importar, meu senhor, estou cansada e preferiria me retirar a meus aposentos.
Sir Hugh assentiu.
—Não há pressa. Querem tomar um livro emprestado, talvez? —Olhou-o nos olhos, consciente de que tentava tentá-la — Podemos falar sobre isso manhã.
Hugh Ross deu meia volta para partir, mas algo o fez mudar de idéia. Antes que ela pudesse conscientizar do que se dispunha a fazer, já a tinha atraído para si e a estava beijando. Anna ficou paralisada, muito surpreendida para resistir.
Seus lábios eram frios e duros, em consonância com sua pessoa. Acertou a distinguir um leve aroma a vinho, mas antes que pudesse descobrir algo mais já tinha acabado tudo. Sir Hugh baixou o olhar e sorriu ao ver o rosto de surpresa que Anna tinha posto.
—Têm toda a noite para decidir. Mas se quiserem que o compromisso siga adiante, espero que me dêem uma resposta amanhã. Uma que seja algo mais entusiasta que esta.
Ross não se fazia uma idéia do perto que estava da morte. Arthur apertava a adaga em sua mão, tentando controlar a sede de sangue que percorria suas artérias com cada um dos músculos. Tudo que tinha que fazer era dar um par de passos, sair de seu esconderijo depois das sombras do vão da porta e afundar sua folha no mais profundo das vísceras daquele filho de cadela.
Tinha-a beijado. Tinha-a tomado entre seus braços e tinha grudado sua boca a dela. Algo se rompeu em seu interior. Todos seus instintos lhe diziam que tinha que sair dali e matar ao homem que se atrevia a tocar aquilo que lhe pertencia. Mas algo deteve sua mão no último momento. Matar ao Ross poria fim a sua missão. Veria-se obrigado a fugir, acabando assim com sua oportunidade de destruir ao Lorn. Teve que aferrar-se ao mínimo de controle que ficava para não mover-se, mas deixou que Ross saísse do aposento. Deixou-lhe viver. Por essa vez.
Entretanto, Anna não escaparia a sua ira tão facilmente. Asseguraria-se de que não houvesse mais que uma resposta à manhã seguinte. O compromisso que ela tinha planejado estava a ponto de chegar a um final irrevogável.
Anna seguiu os passos do Ross apenas se desvaneceram suas pegadas. Assim que chegou à porta, Arthur saiu de entre as sombras e lhe fechou o avanço.
Ela ficou sem fôlego. Todo o medo que pudesse sentir logo desapareceu para dar passo ao brilho de ira que incendiava seu olhar.
—Como te atreve a me espiar? —exclamou. Tentou afastá-lo de seu caminho, mas ele imobilizou seus pulsos com uma mão — Deixe-me partir. Não tem nenhum direito.
Voltou a colocá-la no aposento e fechou a porta atrás dele.
—Tenho todo o direito —disse Arthur com fúria — Não se casará com ele.
Advertiu o rubor de suas bochechas à luz das velas. Seu busto, esses incríveis seios, tão grandes que não podia deixar de sonhar com eles, enchiam-se com uma indignação justificada. Anna ergueu o doce rosto com seu adorável e teimoso queixo para ele.
—Sim o farei.
Não gostava desse tom absolutamente. Nenhum pingo. Entreabriu os olhos.
—Nem sequer podia lhe beijar - disse aproximando-se mais a ela e aspirando a sensual calidez de sua fúria — Como pensa que será então deitar-se com ele?
A indignação de Anna se traduziu em um áspero gemido. A Arthur não cabia a menor duvida de que lhe teria parecido uma adaga entre as costelas se tivesse uma. Mas sua língua era igual de efetiva estripando-o.
—Suponho que chegarei a me acostumar. É possível que inclusive desfrute. Sir Hugh é um homem muito arrumado. E parece bastante decidido, não acredita? —disse lhe provocando com o olhar, desafiando-o, voltando-o louco — Se parecer em algo a esse beijo imagino que chegarei a desfrutar muito disso.
Agarrou-a pelo braço.
—Pare — disse agitando-a ante si — Pare.
Parecia estar a ponto de explodir. Suas provocadoras palavras exaltavam ao máximo aqueles sentimentos contidos durante tanto tempo. Uns sentimentos que Arthur não queria reconhecer. Uns sentimentos que não podia permitir que aflorassem. A cabeça lhe dava voltas. Queimava-lhe o peito. Deus, doía demais. Tinha que fazê-la parar.
—Por quê? —perguntou Anna aproximando-se mais a ele. Arthur sentiu seus mamilos lhe roçando o peito e teve que sacudir-se realmente, pois todo o controle com o que contava seu corpo pendia de um fio. O calor o puxava para um vórtice de luxúria e desejo. Queria esmagá-la contra si. Beijá-la. Possuí-la até deixá-la sem sentido. Fazê-la gritar seu nome e nenhum mais que o seu — Por que teria que parar? É a verdade. Sir Hugh me deseja muito como um homem que vê o que quer e não se detém ante nada até que o consegue.
Era consciente de que não fazia mais que provocá-lo, mas não lhe importava. Arthur sabia perfeitamente o que queria, maldita seja. A ela. Renegou, consciente de que a batalha estava perdida. Tomou entre seus braços e pregou sua boca a dela, cedendo a esses poderosos impulsos que liberavam uma guerra em seu interior. Beijou-a como jamais antes tinha beijado a mulher alguma. Beijou-a com toda a paixão que acumulava desde que a visse pela primeira vez. Beijou-a para que não seguisse falando. Beijou-a para apagar as odiosas imagens com as que tinham enchido sua cabeça. Beijou-a de modo tal que não pudesse voltar a pensar em outro homem em sua vida.
Não obstante, uma vez que Anna se fundiu ante ele em uma rendição silenciosa e abriu sua doce e pequena boca para recebê-lo com um suspiro e um gemido, Arthur não pensou mais em missões, alianças, clãs inimigos ou vingança. Não. Tudo assim que pensava era em fazê-la sua.
Capítulo 15
Anna sabia que se precipitava e que estava provocando-o, mas não lhe importava. A ira não lhe deixava ver mais que sua necessidade de arremeter contra ele. Odiava-o por intrometer-se, por fazê-la duvidar, por interferir em seus planos. Não queria outra coisa que proteger a sua família e manter a salvo às pessoas que amava. E quando tinha a oportunidade de conseguir, Arthur Campbell se interpunha em seu caminho.
Confundia-a. Desorientava-a. Fazia que tomasse carinho e logo a separava de seu lado. Em um momento a salvava e a protegia e ao seguinte a ignorava. Era um ingrato, um homem que se mantinha à margem e dava a impressão de não necessitar a ninguém. Mas também era um homem que estava sozinho, alguém afastado por seus próprios dons, obrigado a viver um tanto afastado de outros.
Queria-a? Necessitava-a?
Em qualquer dos casos teria que decidir-se. O tempo se esgotava para ambos. Era consciente de que estava ciumento, consciente de que tinha visto o beijo que lhe deu sir Hugh, consciente de que lutava por manter o controle. Assim o provocou.
Desejava-o com tanta vontade… A essa distância o único em que podia pensar era em seu doce aroma. E em que o aspecto desalinhado que lhe dava a escura sombra de sua barba o fazia mais arrumado ainda. No alto que era. A enmembrodura de seu peito. O suave que se viam seus lábios embora estivessem brancos de ira. Em que o daria tudo por que tomasse entre seus braços e não a abandonasse nunca. A dor rasgava seu peito como uma faca. Por que não a queria? Por que se reprimia?
Isso foi o que a levou a provocá-lo de maneira temerária, desesperada, com intenção de lhe ferir tanto como ele a feria. E se era mentira? E o que lhe gelava o sangue com somente imaginar-se na cama com outro homem? Desfrutar? Mal podia deixar de tremer de medo em presença de sir Hugh.
Então ele se desmoronou e Anna obteve sua recompensa. Encontrou-se em seus braços, com a boca de Arthur pegada à sua, beijando-a com toda essa paixão e emoção com que ela tinha sonhado. Ele a devorava com a boca e a língua, enquanto ela gemia e se entregava mais e mais a seu beijo, morrendo por sentir cada dobra de sua pele. Deslizava suas enormes mãos sobre ela de modo possessivo. Passou-a por suas costas e depois sobre os quadris, até que desceram para agarrar seu traseiro. Então rugiu de agrado sobre sua boca e a beijou com mais força ao mesmo tempo em que a acoplava firmemente contra seu corpo.
As sensações se desatavam em seu interior em um ataque de calor resplandecente.
OH, Deus, aquilo era perfeito. Seu peito contra o dele, os quadris colados e a dura confirmação do desejo masculino introduzindo-se entre suas pernas de uma maneira íntima. Era consciente de que o tamanho e o tato teriam que assombrá-la, mas o único que sentia era a excitação, uma excitação que fazia lhe acelerar o coração, sua pele se ruborizasse e sentisse comichões por todo o corpo.
Estavam cobertos um com o outro, mas aquilo não bastava. A cada delicioso roce de sua língua, a cada possessiva carícia de suas mãos, crescia a inquietação no interior de Anna. Respondeu a seu atrevimento com mais atrevimento. Agarrava com firmeza os duros músculos de seus braços, seus ombros e suas costas. Queria sentir cada centímetro de seu corpo sob os dedos, modelar seus músculos com as palmas de suas mãos. Conter toda sua força baixo elas.
Aquilo a fazia sentir… embriagada de desejo. Era a primeira vez na vida que tinha uma experiência de tal calibre. Seu corpo parecia ressuscitar. Reagia aos estímulos de maneira natural, como se soubesse o que estava fazendo. Tudo ocorria muito rápido para pensar. O desejo a tinha feito sua presa e não parecia disposto a soltá-la.
Aproximava-a de seu corpo cada vez com mais urgência, esfregando sua virilidade contra a mais feminina de suas partes. A fazia sentir estranha, com comichões, quente, ofegante. Mas não era suficiente. Ávida de fricção, sedenta por encontrar uma conexão mais profunda, descrevia círculos com seus quadris e se esfregava com essa grosa coluna de carne com mais força.
Arthur percorreu seu pescoço com a boca e a devorou com seus beijos. Sua barba de dois dias fazia sulcos em sua pele em chamas. O aposento jogava fumaça e ardia de paixão. Agarrou-a pela cintura e deslizou as mãos até seus seios. Anna ofegou e se pegou quanto pôde a seu membro viril ao mesmo tempo em que arqueava as costas procurando suas mãos. Arthur murmurou algo parecido a uma imprecação e roçou seus turgentes e ofegantes mamilos com os polegares enquanto sua boca se dava de presente com a tenra pele que aparecia por cima do corpete.
Estava muito quente. Sentia-se débil. Lânguida e pesada. Parecia que suas pernas não contassem com forças para sustentá-la. Desabou-se sobre Arthur, que a puxou de novo sobre a mesa para acalmá-la, e talvez também para acalmar a si mesmo. Aquele cavalheiro, que mostrava um controle tão férreo sobre si, parecia sofrer apuros igual aos selvagens e frenéticos dela.
Os escuros e sedosos cabelos de Arthur se derramaram sobre seu peito. Anna, incapaz de resistir, passou os dedos entre essas suaves ondas e o apertou contra si com força e ternura. A umidade de sua boca transpassava o tecido do vestido para chegar até seu mamilo ao mesmo tempo em que acariciava seus seios e os rodeava com suas mãos.
Mas não era suficiente.
Então sua língua pareceu perceber essa frustração e entrou sob o corpete. Um gritou escapou dos lábios de Anna ante tamanha perversão, ante o delicioso prazer que sentia. Aquela boca estava muito quente. Passou-lhe a língua de um lado a outro, até que pensou que já não poderia resistir mais. Retorceu-se contra ele suplicando para que desatasse a voragem que se formava em seu interior.
Por fim lhe deu um puxão do vestido até quase romper o tecido e o abriu para liberar seus seios. O frio ar soprou sobre sua pele e provocou formigamentos ali onde a tinha beijado.
—Jesus — exclamou Arthur, como se aquilo doesse — É incrivelmente bela.
Provavelmente ouvir sua voz teria quebrado seu estado de transe, mas Arthur cobriu seu ofegante mamilo com a boca e começou a chupá-lo antes que Anna pudesse acolher-se a esse momento de iluminação. Essa doce e aguda sensação a fez gritar. Era um prazer tão agudo que se aproximava muito à dor. Atendia-a com os dentes, dava-lhe linguadinhas e sugava sua cálida boca cada vez com mais intensidade. O calor se estendeu entre suas pernas em uma corrente de umidade. Sentia comichões em suas suaves carnes inflamadas.
Tinha-a aprisionada contra a mesa com as pernas abertas. Montou uma delas sobre seu quadril ao mesmo tempo em que se inclinava para lhe beijar o seio. Os ferozes pulsar do coração de Arthur troavam contra seu peito, seus músculos se esticavam da excitação e a cobriam com todo o peso de seu corpo. E Anna estava quente. Tão quente que queimava. Excitada até o ponto de não retorno.
Arthur deslizou a mão sob o vestido até fazer contato com a pele. Suavizou o impacto acariciando o mamilo pausadamente entre seus dentes. Então voltou a cobrir sua boca com beijos, e suas mãos… Céu santo estava colocando as mãos entre suas coxas! Envergonhada, tentou fechar as pernas. Mas ele não o permitiria. Sua boca a distraía com os longos e pausados movimentos de sua língua, ao mesmo tempo em que ele entrava em sua umidade com os dedos. O corpo de Anna tremeu ao sentir o contato. Seus protestos se dissolveram em uma onda de alívio estremecedor. Aquilo dava muito prazer. Um prazer surpreendente.
—Jesus, é tão doce…
Deixou de beijá-la e Anna se perguntou se teria feito algo indevido, até que percebeu de que era ele quem estava passando mal, tentando conter-se, como se lutasse por controlar-se. Como se tocá-la o tivesse despojado de suas últimas reservas de contenção. Como se muito em breve não pudesse controlar-se. Ficou olhando-a nos olhos ao mesmo tempo em que introduzia seu dedo nela com um pequeno e firme empurrãozinho. Aquele era o momento erótico mais perverso de sua vida. Tomou fôlego em uma tentativa de estabilizar as sensações, mas estas se precipitavam sobre ela em rápidas ondas que não davam trégua alguma. Acariciou-a. Primeiro com círculos pequenos e suaves, depois com mais força, mais rápido, com impulsos profundos e frenéticos que pareciam decalques dos beijos que acabava de lhe dar.
A sensação que se formava em seu interior era muito intensa. Muito poderosa para ser contida. Esticava-se e recuava em um endiabrado redemoinho de necessidade. Seu rosto era uma máscara de dor. O suor se acumulava sobre suas sobrancelhas. Arthur a olhava nos olhos de modo escuro e penetrante, agarrando-a de tal forma que o coração lhe estalava de felicidade. Anna por fim via a verdade em seus olhos, o que intuía desde o começo. Essa conexão que havia entre eles era especial. E também ele a sentia.
Não sabia o que lhe estava acontecendo, mas era perfeito. Cada uma de suas carícias a levava até limites que era incapaz de compreender. Retorcia-se de frustração. Seu corpo inteiro clamava por…
—Te relaxe, amor —sussurrou Arthur — Quero te fazer voar.
O som aveludado de sua voz abriu caminho através dos últimos vestígios de sua repressão de criada. Ficou sem respiração até que pareceu que seu corpo se faria em pedaços devido ao intenso prazer que procuravam os agudos espasmos e teve que libertar todo o ar em um gemido estremecedor. Era o momento mais maravilhoso de sua vida, mas à medida que olhava o escuro interior desses olhos com bolinhas douradas, soube que não era suficiente. Tinha satisfeito sua paixão, mas seu coração ainda palpitava pela necessidade de realizar-se. Queria uma conexão mais profunda. Queria senti-lo em seu interior. Queria ter tudo dele. Para sempre.
«Quero-te.» É obvio. Estava tão claro, era tão certo, que se perguntava como poderia ter sido de outra maneira. Guerreiro. Cavalheiro. Isso pouco importava. Porque em seu coração, Anna sabia que tinha encontrado ao homem com quem estava destinada a compartilhar sua vida.
Arthur já não podia esperar mais. A pressão se acumulava na base de sua coluna como um punho quente e conectava com a vibrante ponta de um membro que pedia alívio, que a tocasse, que atendesse a seus agudos gritos e ofegos de prazer e sentisse como seu corpo se derretia e se estremecia ao rodeá-la com a mão. Apertou os dentes tentando refrear-se, consciente de que estava a ponto de gozar como não o tinha feito antes na vida.
Jesus, que beleza mais embriagadora: cabelos dourados como o mel que se dispersavam atrás de sua cabeça e resplandeciam diante da luz das velas; olhos aturdidos e inflamados pela paixão; seios de formas perfeitas, grande e suave, que saía de seu corpete mostrando um pequeno e arrepiado mamilo avermelhado por suas dentadas.
Tinha o aspecto de uma fêmea no cio que clamava ao céu para que a montassem. «E esta fêmea é minha. Toda minha.».
«Jesus», repetiu para si a meio caminho entre a prece e a imprecação. Jamais antes havia se sentido de tal modo. O desejo o consumia.
—Arthur —choramingou ela — Lhes rogo isso.
O brutal desespero de sua voz foi o último fio de que precisava atirar. Não podia esperar mais para introduzir-se nela. Virtualmente rompeu a fivela e as ligaduras de suas meias e calções para liberar seu inchado membro. Mas tirar o membro de seu confinamento para que lhe desse ar não servia de grande alívio. A única coisa que lhe serviria para aplacar a dor nesse momento era estar dentro dela. Levantou uma de suas flexíveis e sedosas pernas de formas perfeitas, passou-a por trás de seu quadril e se colocou diante daquela abertura cálida e deliciosamente úmida. A próxima vez se tomaria seu tempo em saboreá-la, lhe colocar a língua e fazer que se gozasse sobre sua boca.
Não deixou de olhá-la em nenhum momento. Não se atrevia a afastar o olhar dela por medo de que se perdesse a poderosa conexão que se produziu entre ambos. Teria que ter sentido ao menos a sombra de uma dúvida, ter a sensação de que aquilo que fazia estava mal. A honra era importante para ele, apesar de que o código de cavalaria não o fosse. Mas não sentia nada disso. O único em que pensava era que não podia perdê-la, que tinha que fazê-la sua, e se era capaz de fazer isso, todo o resto sairia bem. Quando a sensível cabeça de seu membro se encontrou com o úmido calor de seu ninho, Arthur exalou um profundo som gutural de puro prazer. Esfregou-se contra sua suave umidade e se deteve ali, consciente de que uma vez dentro seria muito tarde. Tinha o corpo em chamas e todos os músculos em tensão, preparados para fazer entrada. Notava-se o pulso nas veias. Nas orelhas. Até nos ossos. Parecia-lhe ter a pele tensa e ardendo.
«Empurrar.» Deus, que vontade tinha de empurrar. Jamais teve tanta vontade de preencher, de meter-se profundamente em nenhuma mulher. Sabia que seria algo incrível. Seu corpo se ajustaria a ele como uma luva quente e o espremeria com puxões largos e duros até lhe fazer cair profundamente na mais absoluta das inconsciências. Queria ver como se movia sob seu corpo impulsionado pelo poder de seus embates, como levantava os quadris para acompanhar cada uma de suas profundas investidas. Queria ver como seu membro entrava e saía dela.
Apertou os dentes, sentindo uma necessidade de afundar-se nela virtualmente irrefreável. Mas não podia a machucar. Assim que se obrigou a ir devagar. Estimulou-a com sua grossa ereção para que se acostumasse ao tamanho e a força de seu membro e esfregou a ponta com sua umidade para facilitar a entrada. E coberta de maravilha. A pressão se acumulava na base de sua coluna e puxava cada vez com mais força.
Não pôde agüentá-lo mais. Começou a empurrar. Ela gritou, surpreendida.
«Jesus.» Apertou os dentes. O suor se acumulava sobre suas sobrancelhas. O sangue palpitava em suas veias. Tentador. Tão incrivelmente tentador… Tinha que tomar-lhe com calma e com cautela. Deus estava louco por gozar. Ficava muito pouco…
Um leve som penetrou aquela bruma.
Arthur sentiu um premonitório calafrio na nuca e ficou paralisado. O ar tinha mudado. Separou-se dela amaldiçoando enquanto todo seu ser estalava em protestos.
—Te cubra - disse, e lhe deu um puxão no vestido ao mesmo tempo em que tentava atar os calções torpemente.
Mas era muito tarde, ou muito cedo, se atendia à frustração que ardia em seu testículo nesse preciso instante. A porta se abriu de repente. Sir Hugh Ross estava atrás dela, com seu acerado olhar atento a cada detalhe do que acontecia no interior.
Apesar de que se trabalharam em excesso em vestir-se rapidamente, nada podia dissimular o que estavam fazendo. Anna seguia recostada sobre a mesa com as bochechas acesas e os olhos aturdidos, Arthur seguia entre suas pernas e a sala se achava impregnada com o quente e pesado ambiente que corresponde à almiscarada fragrância do emparelhamento, ou em seu caso do emparelhamento frustrado.
Anna ficou sem respiração. O horror apagou as marcas de prazer que ruborizavam seu rosto. Arthur se colocou frente a ela instintivamente, tentando afastar a de seu olhar, como se o escudo de seu corpo pudesse protegê-la do veneno que destilava o outro homem. O silêncio sepulcral, somente salpicado pelo crepitar das chamas, estendeu-se além do incômodo. Sir Hugh permanecia ali petrificado, com uma quietude exagerada, como se estivesse aguardando para equilibrar-se sobre eles. Arthur o observava como um falcão, esperando a primeiro sinal de movimento. Diabos, como gostaria que o fizesse.
—Ouvi um grito e me perguntei se lhe tinham feito mal - disse ao fim sir Hugh com o gesto torcido pelo asco e umas palavras que transpiravam contenção — Mas suponho que não necessitavam resgate.
A exclamação angustiada de Anna lhe partiu o coração. Arthur, consciente de que tinha que protegê-la da ira de sir Hugh, deu a volta e tomou pelos ombros.
—Vá para seus aposentos - disse bruscamente. Anna quis discuti-lo, mas ele a deteve — Falaremos mais tarde que isso. Agora mesmo preciso falar com sir Hugh. Permita que me encarregue disto.
Olhou-a nos olhos. A via confusa, horrorizada e atemorizada há um tempo, disposta a romper a chorar de um momento a outro. A Arthur custava respirar. Era como se lhe retorcessem o coração com uma faca. Ele tinha provocado isso. Era culpa dele. Sacudiu-a com cuidado, tentando fazer que se centrasse.
—Entendeste, Anna? —Então ela o olhou com um rosto tão perdido que lhe deu vontade de voltar a acolhê-la em seus braços — Tudo irá bem — prometeu, consciente de que aquilo não era certo.
Como poderia ir bem aquilo? Não só estava mentindo, mas sim, além disso, acabava de destruir toda possibilidade de aliança com o Ross e sabia quanto significava isso para ela. Anna amava a sua família. Falhar seria algo que… a faria pedaços.
Anna assentiu e a confiança cega que emanava seu olhar lhe fez sentir todo o peso da vergonha em seu interior. Era um completo filho de puta. Um filho de puta desalmado. Jamais poderia perdoar-se pelo que estava lhe fazendo. Anna não merecia. O que merecia era estar a salvo e protegida, ter um lar feliz, um marido que a amasse e seis ou sete crianças puxando suas saias. Ele nunca poderia lhe dar isso. Abandoná-la e lhe romper o coração, isso era quão único faria. Pode ser que não a tivesse despojado de sua virgindade, mas sua inocência desapareceria igualmente quando descobrisse a verdade sobre ele.
Lá onde fazia um momento reinava o desejo não ficava mais que pena e dor. Sir Hugh não se moveu de sua posição à entrada, mas assim que Arthur acompanhou Anna à saída, Hugh Ross se pôs a um lado para deixá-la passar. Arthur, sentindo-se esquecido na salinha, seguiu-a até o aposento principal. Não era muito maior, mas ao menos ali teria espaço para manobrar se fosse necessário. Sir Hugh parecia disposto a brigar e ele tinha tanta vontade ou mais de lhe dar guerra. Justo antes de sair Anna, olhou-o com incerteza.
—Vá - disse com doçura, tentando acalmar seus temores.
Então seu olhar reparou em sir Hugh e seu rosto se contraiu. O cavalheiro não se dignaria a olhá-la, mas cada uma dos nobres e orgulhosas dobras de sua pele irradiavam animal adversão. Arthur franziu os lábios, com uma vontade tremendas de matar a aquele homem por ferir seus sentimentos. Anna não tinha culpa de nada. Tudo era coisa dela. «Jesus.» Conscientizar-se disso foi como um soco. Tinha-o feito a propósito? Fosse essa sua intenção desde o começo? O que queria era acabar com qualquer opção de aliança. Não, mas não desse modo. Nunca quis levá-lo a tal extremo. Embora sim que tinha superestimado sua capacidade de controle e menosprezado a intensidade de seus desejos por ela. Era o único culpado de meter-se nesse esfregado. Fora ele quem tinha transpassado os limites, algo que não reportaria mais que dor para ambos.
—Deveria te matar — disse Ross assim que se fechou a porta.
O cavalheiro tentava intimidá-lo, mas Arthur aceitou o desafio.
—E por que não o faz?
O olhar do Ross se endureceu.
—Porque então teria que explicar os motivos.
A certeza de sua voz fez que Arthur sorrisse. Tinham mais ou menos a mesma idade e eram bastante semelhantes quanto à altura e músculos. Mas não quanto à destreza. Arthur não seria quem iria morrer. Sir Hugh, não obstante, não tinha nem idéia disso. Então por que…? A razão foi a ele de repente.
—E não quer que ninguém saiba que a moça o humilhou pela segunda vez. Primeiro ao rechaçar sua oferta e logo ao agarrá-la com outro homem ante seu nariz.
A verdade da acusação causou seu efeito no rosto do Ross, que avermelhou de ira, criando um marcado contraste com os sulcos brancos de seus lábios franzidos.
—Desfloraste-a?
Arthur apertou a mandíbula. Aquilo não era assunto seu absolutamente. Encheu de vontade de mentir, de reclamá-la para si, mas disse a verdade, já que queria salvar o que pudesse da reputação de Anna.
—Não.
Os olhos do Sir Hugh se mostravam frios.
—Mas o teria feito de não o tivesse interrompido.
Arthur encolheu os ombros, como se aquilo não fosse de sua incumbência. Ross deu um passo para ele com a mão na espada.
—Maldito filho de cadela! É um cavalheiro. É que não têm honra? Era uma mulher comprometida.
Arthur se moveu com rapidez. Pôs em prática uma manobra que tinha aprendido com Boyd e deixou o braço do Ross fosse de combate, obrigando-o a soltar a espada. Depois lhe retorceu esse mesmo braço pelas costas e o imobilizou fazendo contrapeso com seu próprio corpo.
—Não. Não estava comprometida.
Ross tentou escapar por ato reflito, mas seus movimentos só serviam para que Arthur lhe retorcesse mais o braço e lhe infligisse mais sofrimento.
—Estava a ponto de comprometer-se —disse entre dentes com uma voz cheia de dor — O matarei por isso! Solte-me!
—Não até que cheguemos a um entendimento a respeito do ocorrido aqui. Não quero que isto afete à moça. Não é culpa dela.
Ross teve a inteligência de optar por discuti-lo, mas Arthur percebia a raiva em seus olhos. Retorceu-lhe o braço com mais força, provocando que o furioso guerreiro gritasse.
—Por que voltou? —perguntou Arthur.
—Ouvi um grito…
—Uma merda - cortou Arthur.
A não ser que possuísse sentidos tão finos como os seus, era impossível que tivesse ouvido algo. Ross lhe dirigiu um olhar assassino. De sua sobrancelha caíam gotas de suor dolorido.
—Vi como a observava e que ela tentava não o olhar por todos os meios. Sabia que nos seguiria.
Arthur amaldiçoou.
—O que era isto então, uma prova de fogo?
—Não pensava permitir que tirassem o sarro. Não me casarei com uma mulher apaixonada por outro homem. Por muita vontade que tenha de fo…
Retorceu-lhe mais o braço.
—Não —disse — Não o diga.
Arthur, consciente do perto que estava de lhe partir o braço, optou por afastá-lo de seu lado de um forte empurrão. Ross tinha razão respeito a algo: quanto menos tivessem que explicar, melhor. Sir Hugh soltou ar e se massageou a parte superior do braço e o ombro. Mas havia algo em seu olhar que a Arthur fazia perguntar-se se o tinha posto a prova de novo. Se esse grosseiro comentário do Ross teria a intenção de provocar uma reação. Se for assim, tinha funcionado.
—Importa-te - disse Arthur, precavendo-se disto, na verdade era algo mais que uma aliança política para ti.
Ross não respondeu com palavras nem por meio da expressão de seu rosto, mas Arthur sabia que tinha acertado. Diabos, quase dava pena aquele pobre filho de cadela.
—Mas sabe o que é que a trouxe até aqui?
Uma vez recuperada as sensações em seu braço, Ross voltou a olhá-lo com desconfiança.
—Sim. Para conseguir apoio na luta contra Bruce. Esperava conseguir sua mão sem ter que recorrer a isso.
Arthur ficou olhando-o e o compreendeu tudo ao fim.
—Seu pai não tinha intenção de enviar homens com ou sem compromisso, não é certo? —Não era preciso que Ross respondesse. «Por todos os demônios.» Arthur tinha vontade de matá-lo ali mesmo — E a deixaram pensar que…?
Ross encolheu os ombros.
Maldito patife. Demônios, de não ser Anna a quem manipulava, Arthur teria admirado sua determinação.
—Partiremos assim que tenhamos tudo preparado. Depois de que informe Anna e sir Alan do que acaba de me contar.
O outro homem se mofou.
—E por que diabos eu ia fazer tal coisa?
Arthur deu um passo para ele com atitude ameaçadora. Em honra de Ross terá que dizer que não se moveu. Mas Arthur advertiu a inquietação em seus olhos.
—Porque não quero vê-la mais afetada do que já está. E apesar do que tenha passado aqui, não acredito que vocês queira isso tampouco.
Ficaram olhando durante um momento até que Ross assentiu. Arthur se dispôs a partir.
—Campbell. —Arthur deu a volta e viu que Ross seguia agarrando o ombro machucado — Onde aprendeu a fazer isso?
Arthur torceu a boca com dissimulação.
—Faça o que combinamos dito e talvez te conte isso algum dia.
Anna limpou as mãos em suas saias e procurou acalmar a náusea que ameaçava subindo por seu estômago ao mesmo tempo em que observava a quantidade de homens que se congregava no salão para tomar o café da manhã. Encontrou-se inconscientemente procurando Arthur, como se ver seu rosto pudesse lhe dar essa coragem que tanto necessitava. Ao não encontrá-lo sentado junto aos homens de seu irmão, disse que não havia por que preocupar-se. Ainda era cedo. A noite anterior Arthur tinha enviado a uma criada para lhe dizer que já estava tudo arrumado e que não tinha que preocupar-se.
«Não tenho que me preocupar.» Como se tal coisa fosse possível depois do que tinha acontecido. Pode ser que sua considerada mensagem não servisse para aliviar sua noite sem descanso, mas o apreciou igualmente. Ao menos se economizava o temor de que um dos dois estivesse morto ou em alguma masmorra desconhecida.
Respirou profundamente, obrigou-se a erguer o peito e erguer o queixo e entrou no salão. As pernas mal podiam sustentar do tanto que tremiam e seu coração batia contra a caixa torácica como as asas de um pássaro. Todos seus instintos clamavam por que fugisse, mas obrigou a seus pés a seguir adiante.
Sangue de reis corria por suas veias. Era uma MacDougall, não uma covarde. Apesar de que não quisesse mais que ocultar-se em sua câmara, fazer um novelo com seu corpo e pretender que nada disso tinha ocorrido o certo era que sim tinha ocorrido. Como mínimo devia uma desculpa a sir Hugh. Quando pensava no que tinha feito…
Revolvia-lhe o estômago. A vergonha a alagava. Não por sucumbir aos encantos de Arthur, já que não se envergonhava da paixão que existia entre eles, mas sim por falhar a sua família e aproveitar-se horrivelmente de sir Hugh no processo. Ele não se merecia aquilo. O orgulhoso cavalheiro não tinha feito mais que tratá-la com carinho. Não era culpa dela que estivesse apaixonada por outro homem.
«Apaixonada.» Inclusive sopesando a enorme gravidade do que tinha feito, um pequeno raio de felicidade aparecia por trás das nuvens de desesperança. Amava-o. E também ela significava algo para ele. Tinha que ser assim.
Mas esse pequeno lapso de alegria em seu coração só servia para fazê-la sentir mais culpada. Ao encontrar o amor tinha falhado a sua família. Como poderia chegar a perdoar-se? Tinha arruinado tudo. Seu pai e seu clã completo ficavam sozinhos ante o Robert Bruce. Depois do que sir Hugh havia presenciado na noite anterior não teria aliança.
Acenderam-lhe as bochechas ao recordar, ao considerar o que devia pensar aquele homem dela. «Puta. Rameira.»
Quase esperava ouvir vaias ao atravessar o salão para chegar até o assento do estrado junto ao homem ao que tinha ofendido. Mas sua entrada não causou nenhum comentário fora do habitual. O conde e a condessa a receberam com gentilezas usuais, igual fez seu filho quando tomou assento junto a ele.
Embora cada bocado que dava piorasse o enjôo que lhe punha o estômago de reverso, tinha que obrigar-se a comer. À medida que avançava a comida, sua ansiedade não fazia mais que aumentar. O breve intervalo de bom humor que entreviu em sir Hugh no dia anterior tinha desaparecido, algo não muito surpreendente. Estava sentado junto a ela completamente rígido, muito orgulhoso e imbuído do código de cavalaria para ignorá-la completamente, mas muito perto de fazê-lo. Agradeceu a presença da irmã do Hugh do outro lado da mesa e do ajudante do Ross a seu lado, que rompiam os incômodos momentos de silêncio.
Anna era consciente de que tinha que dizer algo, mas não sabia como tirar o tema em um entorno tão público. Seguia esperando que chegasse o momento oportuno quando sir Hugh se levantou da mesa e se desculpou para ausentar-se.
—Espere! —exclamou Anna, advertindo que vários olhos se voltavam em sua direção e que talvez tivesse falado muito alto.
Sir Hugh baixou o olhar para olhá-la e lhe dedicou toda sua atenção pela primeira vez. Anna procurava não morrer de vergonha enquanto ele esperava a que se pronunciasse.
—Eu… — disse o primeiro que veio à cabeça, desejando tê-lo feito antes, quando outros não prestavam atenção ao que dizia de maneira tão óbvia — Faz uma manhã estupenda. Se não estiver muito ocupado, pensei que poderiam me mostrar os arredores do castelo, como prometera.
Não lhe tinha feito tal promessa e se o fizesse saber, deixando clara sua pretensão de ficar a sós com ele, teria recebido o que merecia. Sir Hugh a olhou nos olhos e Anna por um momento pensou que se negaria a fazê-lo, mas ao que parecia puderam mais suas sensibilidades cavalheirescas. Fez uma reverência e lhe tendeu a mão.
—Será todo um prazer, milady.
Tal e como tinha feito poucas, mas significativas horas antes, permitiu que a acompanhasse ao sair do salão. Se o incomodava as falações de curiosidade que lhes seguiram não o mostrou em nenhum momento. Nessa ocasião, ao chegar ao final do corredor, conduziu-a ao exterior, ao pátio de armas. Havia um monte de gente daqui para lá: soldados praticando e protegendo as entradas, serventes atendendo a suas obrigações e um fluxo contínuo de homens passando através das portas do castelo, mas ninguém lhes prestava muita atenção.
—Há algo em particular que deseje ver? —perguntou ele.
Para ouvir a secura de sua voz o olhou de esguelha sob o véu de suas pestanas. Ele sabia que se tratava de uma desculpa, e das más. Anna negou com a cabeça.
—Sinto muito. Tinha que falar contigo —disse detendo-se para olhá-lo bem nos olhos — Devo me desculpar pelo ocorrido na noite passada. —Ao ver que franzia mais o cenho lhe falharam os nervos. Mas tinha que fazê-lo. Machucava a mão de apertar tanto os punhos. Não era capaz de falar disso com calma, de maneira que explodiu e soltou — Não posso oferecer mais desculpa pra dizer quanto sinto.
Sir Hugh ficou olhando-a nos olhos durante um momento e logo assentiu. Anna pensou que daria a volta e a deixaria ali, mas surpreendentemente a levou até um lugar afastado da fortificação de onde podiam ver muros longínquos e a cidade do Nairn ao fundo. Fazia vento e teve que acomodar atrás da orelha uma mecha de cabelo rebelde. Mas depois dessa noite de escuridão o resplendor do sol sobre seu rosto era rejuvenescedor.
—Ama-o?
Anna ficou petrificada. Não sabia o que esperava que dissesse, mas certamente isso não. Sir Hugh não parecia um homem que outorgasse muito valor nem desse muito crédito ao amor romântico. Parecia muito prático e frio para tudo isso. Mas merecia saber a verdade.
—Sim - disse em voz baixa.
—Mas teriam casado comigo para conseguir mais homens para seu pai?
Tal e como disse, de repente parecia que aquilo estivesse mal. Embora o matrimônio e a obrigação fossem parceiros, era o amor o que importava menos.
—Sim - disse Anna, sentindo que o desespero de sua situação cavalgava sobre seu peito. Apelou a seus sentimentos para que a compreendesse — Não entende? A única maneira de lutar contra os rebeldes é unir forças. Se nossos clãs se unirem poderemos derrotar ao usurpador. Somente nos arriscamos à derrota.
Por sua reação não pareceu que suas palavras tivessem influência alguma nele. A expressão de seu rosto permanecia severa e implacável. Era estranho. Agora que já não havia esperança de um compromisso entre ambos, todo o medo e o nervosismo de Anna pareciam desaparecer.
—Não pode absolver de toda culpa, lady Anna. —Ela o olhou inquisitivamente, protegendo os olhos do sol para lhe ver melhor. Sua boca se torceu em uma estranha careta — Meu pai não tinha intenção alguma de enviar homens ao Lorn.
Ficou sem respiração pela surpresa.
—Mas o compromisso… Permitiram que acreditasse que… — Hugh Ross encolheu os ombros como se não lhe importasse nada. Um arrebatamento de cólera penetrou através do sentimento de culpa de Anna — E quando me pensava contar isso?
—Teria-na informado com tempo suficiente.
—Depois de que anunciássemos nosso compromisso?
Ele se enfrentou à acusação de seus olhos sem alterar-se.
—Talvez.
—Mas por quê?
Pareceu interpretar mal sua pergunta a propósito.
—Não temos homens de sobra. Bruce virá também por nós e quando o fizer… —disse com palavras que se levava o vento — O rei Robert é muito poderoso. Nossos aliados nos abandonaram. Os Comyn, os MacDowell, os ingleses. Meu pai tem muito que perder.
Sir Hugh ficou com o olhar perdido além dos muros, para o pequeno reino que se estendia a seus pés. Tratava-se de um movimento revelador e teve que conter o fôlego ante o que significava. Muito que perder. Seu pai não pensava arriscar.
—Não —disse Anna dando um passo atrás — Não podem! Seu pai não pode render-se. Bruce o assassinará pelo que fez a sua esposa e a sua filha.
Falava sem pensar, e estava claro que o que fez seu pai quando violou o santuário e entregou às mulheres de Bruce aos ingleses não era algo que sir Hugh quisesse que o recordassem. Pela primeira vez, Anna viu algo um pouco parecido à vergonha em suas orgulhosas feições.
—Bruce prometeu perdoar a todos nobres que estavam contra ele que se renderem.
—E acreditam na palavra de um traidor? De verdade confiam em que o rei Hood perdoará a seu pai e aos sediciosos de Ross e Moray? Apenas se consumaram os fogos da perseguição ao Buchan.
Não discutiu com ela. Mas apertava fortemente a mandíbula quando disse:
—O que outra opção fica? As voltas mudaram a favor de Bruce. O povo pensa que é um herói, um guerreiro que derrotou aos ingleses. Render-se pode ser a única maneira de sobreviver. Meu pai está disposto a morrer se isso significar a continuidade do clã.
A cabeça de Anna dava voltas. Jamais, nem em suas mais escuras expectativas, teria imaginado que Ross se renderia. O que significaria isso para seu clã? Faria seu pai o mesmo? Não, seu pai jamais se renderia. E pela primeira vez Anna se precaveu de quão caro poderia lhes custar.
Preocupada com o que sir Hugh acabava de lhe confiar, Anna não encontrava muito consolo em saber que sua conduta não era reprovável.
—Obrigado por me contar isso.
Ele a olhou com atenção.
—O que fará?
—Lutar - respondeu.
Embora fosse sozinhos. Que mais podiam fazer?
—Casará com o Campbell?
Anna se ruborizou. Depois do que tinha passado a noite anterior era algo natural assumir que… Mas não tinham tido oportunidade de discutir seu futuro. Ele pareceu compreender seu silêncio.
—Conhecem-no muito bem?
O tom de advertência de sua voz despertou aquela vozinha de sua consciência que trabalhou em excesso em sossegar.
—Sir Arthur chegou ao Dunstaffnage faz um mês junto a seu irmão em resposta à chamada que fez meu pai aos cavalheiros e mercenários.
Aquilo pareceu lhe confirmar algo.
—Há algo estranho nele. Algo que não se enquadra. Não é quem parece ser.
Anna saltou em sua defesa imediatamente, pensando que sir Hugh se fixou nas incomuns habilidades de Arthur.
—É muito reservado —disse — custa a comunicar-se.
Sir Hugh a olhou inquisitivamente, como se quisesse acrescentar algo, mas em vez disso simplesmente assentiu. Foi um alívio que dissesse que se encarregaria de explicar tudo a seus pais e seus irmãos sem fazer menção alguma à situação comprometedora em que a tinha encontrado, acordando dizer que não combinavam um para o outro.
Para quando a acompanhou de novo até a torre Anna se sentia muito mais relaxada. Uma vez mitigada parte da culpa, permitiu-se viver um pouco da felicidade que supunha descobrir que o homem ao que amava tinha sentimentos por ela. Não podia esperar para lhe ver e falar com ele. Surpreendentemente, dadas as intimidades que tinham compartilhado, não estava envergonhada. Inclusive nesse momento, depois de todo o acontecido, parecia o correto.
Estava a ponto de subir o primeiro dos degraus que fossem do pátio à torre quando olhou à esquerda e viu que sir Arthur saía dos barracões. O coração lhe deu um tombo. Sorriu e deu um passo para ele de maneira instintiva, mas logo se deteve de repente. Levava a armadura e estava claro que se preparava para praticar, mas podia entrever seu rosto o suficiente sob a viseira do elmo.
Não era que esperasse que corresse pelo pátio a seu encontro, ao menos não com sir Hugh ainda a seu lado. Mas um olhar de carinho seria bom. Algo em comparação com esse rosto de arrependimento, sim, inclusive de vergonha, que escurecia seus bonitos traços. A alegria que fez saltar seu coração se consumiu e o devolveu ao chão de repente das alturas. Advertiu como sir Hugh ficava em guarda ao conscientizar do que ela tinha visto.
Arthur desviou o olhar para o outro cavalheiro. Podia sentir a animosidade acesa entre ambos. Foi Arthur quem se retirou primeiro. Saudou-os com uma inclinação da cabeça e se dirigiu a reunir-se com o resto dos guerreiros. Anna dizia a si mesma que não devia estar decepcionada, que não tinha que exagerar sua reação. Já falariam mais tarde. Em particular. Provavelmente o que adivinhava em seus olhos não era mais que imaginações.
Mas as seguintes palavras de sir Hugh lhe disseram o contrário.
—Se a coisa não for como espera, lady Anna, eu estarei aqui.
Um homem com quem podia contar.
Rezava por que Arthur também o fosse.
Capítulo 16
Demoraram mais do que Arthur pensava em sair do castelo de Auldearn. Alan MacDougall se encerrou em sua câmara com o conde, seu conselheiro e sir Hugh durante três dias mais, no que Arthur assumiu como uma tentativa de persuadir ao Ross para unir forças, apesar da ausência de compromisso. Felizmente, os esforços do Alan foram úteis. Dado que não tinham lhe contado os detalhes, Arthur não pôde estar seguro das razões do conde, mas o rechaço era um bom augúrio para o rei Robert. Passaria a informação assim que tivesse oportunidade de fazê-lo. Não acreditava que eles tivessem irradiado nenhuma mensagem, mas revisaria os pertences do Alan e de Anna para assegurar-se disso, assim que tivesse ocasião.
Saíram de Auldearn ao amanhecer, fazendo o mesmo trajeto de na semana anterior em sentido contrário e forçando o ritmo o primeiro dia para chegar a salvo mais à frente do castelo. Os homens, contagiados do humor de seu senhor e sua dama, pareciam perceber que as coisas não tinham ido como esperavam e a nuvem do fracasso se abatia sobre as cabeças dos viajantes. Levava uma predisposição algo sombria, por não dizer decididamente mal-humorada.
Arthur sabia que teria que sentir-se aliviado e satisfeito de ter completado sua missão. Ross e Lorn não uniriam forças. O fracasso dos MacDougall serviria como incentivo para aproximar de Bruce um passado mais para a vitória e a Arthur um passado mais para a destruição de seu inimigo. Assegurar-se de que John de Lorn pagava pelo que lhe tinha feito a seu pai era o que mais ansiava no mundo. Não era certo? Assim devia ser, maldita seja. Mas temia que aquilo lhe custasse muito mais do que pensou em um primeiro momento.
Coberto atrás de seu elmo podia ceder à tentação de olhá-la. De novo essa sensação, molesta e penetrante. Não era só consciência o que o remoia, a não ser algo mais. A dor que aguilhoava seu peito quando a olhava era virtualmente insuportável. Mas não fazê-lo parecia mais doloroso ainda.
Anna cavalgava na frente dele, junto a seu irmão e a criada, com o que somente oferecia seu perfil ao voltar-se. Arthur não precisava olhá-la para saber que o silêncio a respeito do ocorrido entre ambos lhe doía. E muito. Deus Santo, o que tinha feito? E o que era mais importante, que demônios faria a respeito? Agora que estavam longe do castelo já não podia evitar o tema nem evitá-la por muito mais tempo. Sabia o que devia fazer. Não precisava ser um cavalheiro para conscientizar de que depois do perto que estivera de lhe arrebatar a virgindade, a escassos centímetros literalmente, deveria a pedir em matrimônio. Não havia dúvida de que era o que ela esperava. E o que cabia esperar. Isso faria um homem com honra. Mas esses escassos centímetros lhe serviam de suficiente desculpa para não fazê-lo. A batalha que livrava em seu interior era cada vez mais cruel. Todos seus instintos exigiam que se aproximasse dela, que cedesse aos sentimentos e, por que não falar, maldição, às emoções que brigavam em seu interior. Mas a outra parte de seu ser, a racional, puxava-o para evitar maiores males.
Embora ele mesmo quisesse esquecer-se disso em algumas ocasiões, o certo era que a enganava. E estava claro como a água que não podia lhe dizer a verdade. Seu dever e sua lealdade pertenciam ao Bruce. Nenhum dos sentimentos que albergasse poderia mudar aquilo. Estavam em lados opostos de uma rixa a ponto de desatar-se. Ao final ela descobriria sua filiação verdadeira e se inteiraria de que a única razão que o tinha levado ao Dunstaffnage fosse espiar e propiciar a destruição de sua família. Sabia que pedi-la em matrimônio só serviria para que a traição final tivesse conseqüências muito piores.
Era uma situação impossível e tinha consciência de tê-la criado ele mesmo. Teria que ter-se afastado dela, mas suas boas intenções ficaram transbordadas por seu sorriso, vitalidade, doçura e amabilidade. Quando olhava o interior desses grandes olhos azuis começava a ter saudades de algo que nem sequer sabia que queria. Gostava de estar sozinho, maldita seja! Parecia mais fácil e muitíssimo menos chato. Entretanto Anna o fazia ansiar algo que ele não poderia permitir-se oferecer, à vista do que estava por chegar. E fazê-la sofrer desse modo, não ser capaz de fazer algo para mudar, partia-lhe a alma. Cada vez lhe custava mais concentrar-se em suas tarefas.
Embora não se voltasse para olhá-lo, Arthur sabia que ela era tão consciente de sua presença como ele mesmo. Advertiu a maneira em que seus ombros ficavam tensos quando situou seu cavalo atrás deles. Richard e Alex partiam em cabeça explorando o terreno, de modo que Arthur ficou ao fim para assegurar-se de que ninguém os seguia. Aproximava-se o final da primeira jornada da viagem e tinham que proceder com especial cautela agora que se aproximavam do castelo do Urquhart, lugar em que tinham aparecido os homens de Bruce quando foram para o castelo do Ross. Novamente, teriam que fazer uma boa volta para o oeste do caminho para evitar as patrulhas da fortaleza «inimiga».
—Pegue milady —ouviu que dizia sua criada — Lady Euphemia pediu ao cozinheiro que as prepare especialmente para ti em vista que gostas.
A anciã tentou enrolá-la com os doces, mas Anna negou com a cabeça em uma pobre tentativa de sorriso que lhe cravou outra pontada no coração.
—Não, obrigado, não tenho fome.
A criada se zangou, franziu os lábios e mastigou a delícia de amêndoas sem entusiasmo algum. Mal teve acabado de mastigar quando voltou para a carga e tirou de sua bolsa o que parecia um pequeno bolo de carne.
—O que me dizem de um pastezinho de cevada com cordeiro? —disse, cheirando-o teatralmente — Cheira divinamente. E ainda está quente.
Anna voltou a negar com a cabeça.
—Coma se quiser. Eu comerei quando nos detivermos.
A criada murmurou para si.
—Tem que comer algo, milady - urgiu entre murmúrios, ao mesmo tempo em que fulminava Arthur com o olhar.
Este apertou a mandíbula, adivinhando a quem culpava a criada pela falta de apetite de sua senhora.
—Comerei - disse Anna para apaziguá-la. Chamou a seu irmão, que cavalgava um pouco mais adiante — Quando pararemos para passar a noite, irmão?
—Logo, espero - respondeu Alan olhando a seu redor e fazendo gestos a Arthur ao ver que tinha retornado. Este se armou de valor e fez como lhe pediu, levantando o visor de seu elmo ao passar entre o punhado de cavaleiros que lhes separavam — Viu algo suspeito?
Arthur negou com a cabeça.
—Por agora não. Estaremos seguros quando voltarem Richard e Alex, mas se não ter nada extraordinário, poderemos nos deter o anoitecer como tínhamos previsto.
—Não voltaremos para lago em que acampamos a vez anterior?
Era ela quem falava. Arthur voltou o olhar lentamente, incapaz de evitá-la por mais tempo. Mas não estava preparado para o calor abrasador que lhe atravessaria ao encontrar-se com seu olhar. Ele, que apenas se movia quando uma flecha se afundava no mais profundo de seu ombro, quando uma espada lhe abria as vísceras nem nas numerosas ocasiões em que não tinha apanhado a adaga de seu irmão com suficiente presteza, sobressaltou-se ao ver a tristeza e a pergunta sem formular de seus olhos.
Parecia fatigada, de uma fragilidade insofrível. Umas pequenas linhas sulcavam as comissuras de seus olhos e sua pele estava muito mais pálida do normal. Apertou os dentes, lutando contra a desesperada necessidade que sentia de dar o que ela queria.
«Peça-a em matrimônio.»
Maldição, não podia fazê-lo. Não faria a não ser piorar as coisas.
—Não, milady —respondeu sem alterar a voz — Será mais seguro que não voltemos sobre nossos passos. Acamparemos em lugares diferentes cada noite. Há uma cascata na floresta dos pagamentos do Dhivach, ao sudeste do castelo, onde começa a ravina. Faremos pernoite ali.
Anna assentiu com cara de querer acrescentar algo, mas consciente de que não estavam sozinhos.
—Falta muito?
—Cinco ou seis quilômetros. Deveríamos chegar antes do anoitecer.
—Eu… — Anna deixou a frase pela metade. Não obstante, o modo em que o olhava era desencorajador — Obrigado.
Quando Arthur se decidiu a afastar o olhar se surpreendeu comprovar que um dos homens do Alan se situava atrás dele. Ficou circunspeto, mas estava muito imerso em sua própria confusão para atender à advertência.
Ao que parecia um das arcas de Anna não estava bem presa e caiu do carro. Arthur agradeceu a interrupção quando viu que Anna e sua criada fossem ao fim da fila para assegurar-se de não perder nada. Mas era consciente de que não poderia postergar a inevitável discussão por muito mais tempo. Isso ficou assegurado certamente pelas palavras de Alan antes de partir para ver o Richard e Alex.
—Não sei que diabos passou em Auldearn, Campbell, mas minha irmã está triste. —O cavalheiro cravou o olhar em Arthur com uns gélidos olhos azuis que não mostravam compaixão alguma. Depois de tudo, era filho de seu pai — Arrume ou me encarregarei eu de fazê-lo.
Arthur franziu o cenho até adotar uma expressão sombria. Não se incomodou em pretender que não sabia ao que se referia. A ameaça não lhe inquietava. O que lhe inquietava era que não podia fazer o que o irmão de Anna lhe pedia. Nada poderia arrumá-lo.
—Por que está me evitando?
Arthur, assombrado, ficou em pé de repente, fazendo saltar a armadilha que estava preparando. Tinha o surpreendido. Algo que Anna apostava que não ocorria muito freqüentemente. Talvez essa confusão que ela percebeu em seus olhos não foi imaginação. Olhava-a com uma saudade mal reprimida, mas algo o fazia conter-se.
O desengano que sentiu na primeira manhã não fazia mais que piorar a cada dia que passava. Ainda não tinha ido a seu encontro, por não falar de oferta de matrimônio alguma. Anna queria convencer-se de que simplesmente esperava para falar com seu pai, mas isso não explicava por que fugia dela.
—Está me seguindo outra vez, Anna?
Se tentava distrair ficando à defensiva, não funcionaria.
—Não sei como poderia dizer que te sigo quando o acampamento está a poucos passos daqui - disse assinalando os arranjos e cordas — Vi que tirava a armadilha da bolsa e supus que não iria muito longe.
Inspecionou suas feições, meio escondida entre as sombras. Ao menos ficava uma hora de luz solar, mas sob o espesso manto das árvores da floresta parecia quase noite fechada. Anna deu um passo para ele e estreitou o vão que os separava. Arthur franziu o cenho e todo seu corpo ficou rígido. Anna percebeu de que lhe moviam as aletas do nariz, como se o incomodasse tê-la tão perto. As lágrimas foram a seus olhos. Por que se comportava desse modo? Acaso era tão desagradável?
—Ides responder-me? —disse com uma voz quebrada pela emoção e a incerteza dos últimos dias. Queria pôr a mão sobre o peito para tranqüilizar-se, mas temia que ele retrocedesse e isso a fizesse pedaços — Acaso não mereço uma explicação?
Arthur suspirou e se separou dela com o pretexto de passar os dedos entre os cabelos. Embora ainda levasse posta a armadura, tirou o elmo e seu cabelo castanho escuro caía em suaves ondas sobre a borda da cota de malha.
—Sim, moça. Merece uma explicação. Tinha intenção de falar contigo uma vez que tivéssemos comido.
Não sabia se acreditava, mas o deixou continuar. Ela já havia dito suficiente. Era a ele a quem correspondia falar.
—O que ocorreu foi - Formoso? Incrível? Perfeito? pensou Anna—… desafortunado. —A Anna parou o coração. Não era a palavra que esperava — Me envergonho de meu comportamento —disse Arthur com palavras que pareciam próprias do cavalheiro mais contido da corte — Jamais devia permitir que chegasse tão longe.
Anna o deteve em seco, incapaz de resistir por mais tempo o tom distante e o arrependimento de sua voz.
—Por que fala assim? Por que atua como se não significasse nada? —Arthur esticou a mandíbula mais ainda. A palpitação de seus batimentos no pescoço não pressagiava nada bom. Tentou afastar-se de Anna, mas ela o agarrou pelo braço. O peito lhe ardia — Significou algo, Arthur? —Este a olhou nos olhos com uma intensidade que queimava. Anna aspirou profunda e entrecortadamente através de sua oprimida garganta — Para mim sim.
—Anna… - Parecia estar liberando algum tipo de guerra interior. Anna notava a rigidez de seus músculos sob seus próprios dedos. Seu poderoso corpo parecia irradiar tensão — por que põem as coisas tão difíceis?
—Eu? És tu quem põe as coisas difíceis. É uma pergunta muito simples. Ou significou algo para ti ou não significou nada.
Manteve o olhar, negando-se a lhe permitir partir sem que respondesse algo. Arthur tinha o rosto desfigurado, como se o estivesse torturando.
—Não entendes.
—Têm razão. Não entendo. Poderia explicar isso?
- Somos completamente inadequados um para o outro.
—Não posso. —Olhou-a com dureza — É que não vê que jamais funcionaria?
«Meu Deus!» Pareceu engasgar-se com seu próprio coração quando percebeu o que acontecia. «Não pensa me propor matrimônio.» Como era possível que tivesse interpretado tão mal a situação? Não! Não o tinha feito. Havia algo mais que lhe escapava.
—Por que não?
—Somos completamente inadequados um para o outro. A família é tudo para ti. E para mim? Meus pais morreram quando era um pirralho. Meus irmãos levam anos lutando em lados distintos. Não sei nada a respeito de família.
—Eu posso lhes ensinar…
—Não quero que me ensinem - repôs isso Arthur, cortando-a com raiva — Eu gosto de estar sozinho. E você… —disse com um gesto da mão — Tenho certeza que não estivestes sozinha nem um dia em sua vida. Merece estar rodeada de família e amigos, com um marido que lhe adore e um monte de crianças puxando suas saias. Não me diga que não quer isso, porque sei que é isso o que quer.
Era certo que queria isso, mas com ele.
—Não quer ter crianças?
Sua boca empalideceu como se a pergunta, pensar nisso tão sequer, fosse doloroso.
—Não entende a situação.
—Eu? Paraste a pensar que talvez não se trate de que gosta de estar sozinho, mas sim de que alguma vez estivera com as pessoas adequadas? —disse fazendo uma pausa para que o considerasse. Compreendia as razões que lhe levavam a solidão, mas suspeitava que seria diferente em caso de ter uma família que o amasse, que o aceitasse — Se sentires algo por mim, o resto não tem importância. —O rosto de Arthur se mostrava duro como o granito, mas ela seguiu pressionando — Sente algo por mim, Arthur?
Manteve o olhar, desafiando-o a que mentisse. E Arthur parecia querer fazer, mas ao final o admitiu.
—Sim. Mas isso não importa.
Sentia algo por ela. Não tinha errado. Negou com a cabeça.
—Isso é tudo o que importa.
—Não insista, Anna. Acredite-me quando digo que não funcionaria. Jamais poderia lhes dar o que necessita. Nunca poderia te fazer feliz.
A frustração e a raiva buliram em seu interior.
—Como te atreve a presumir que conhece minha mente melhor que eu? Eu sei exatamente o que quero. Depois do que passou como não pode compreender que é o único homem que pode me fazer feliz? Não te dá conta de que te amo?
Sua declaração de amor foi tão inesperada para ela como parecia ser para ele. Fechou a boca de repente, mas era muito tarde. Suas palavras seguiam ressonando no repentino silêncio. Arthur ficou completamente quieto, com uma expressão não muito diferente de quem tivesse recebido uma flechada no peito. Não se podia dizer que fosse a reação que ela esperava. Não esperava que respondesse a sua declaração de amor. Em realidade não. Não nesse momento, ao menos. Mas tampouco esperava encontrar-se com o silêncio. Um silêncio que lhe rompia o coração lenta e cruelmente.
«Amo-te» As palavras zumbiam em seus ouvidos. Como um palpite. Uma chamada. Tentava-o, caramba, tentava-o. Arthur permaneceu quieto como uma pedra, sem permitir o luxo de acreditar. Não podia fazer. Porque se o fizesse, era possível que encontrasse a felicidade. Uma felicidade maior da que tinha desfrutado na vida.
Não dizia a sério. Estava confusa. Anna MacDougall entregava seu coração a todos. Isso era parte do que a fazia tão irresistível. Negou com a cabeça, como se tentasse convencer a si mesmo.
—Não sabes o que diz. Não podem me amar. Nem sequer me conhece.
—Como podem dizer isso? Pois claro que lhes conheço.
—Há coisas sobre mim que se soubessem…
Não podia dizer nada mais. Já havia dito muito. Suas habilidades perceptivas eram excepcionais. Anna franziu os lábios e ele reconheceu o brilho teimoso de seu olhar.
—Acreditava que já tínhamos passado por isso. Suas faculdades são um dom, e se demonstraram extraordinariamente úteis em mais de uma ocasião. —Ele não falava de suas habilidades, mas sim do fato de ser um espião ao serviço de Bruce. O fato de que não havia pessoa no mundo a quem odiasse mais que ao pai de Anna e que tinha esperado quatorze anos para destruí-lo. Mas dificilmente poderia lhe contar a verdade — Sei tudo aquilo que importa sobre você - continuou — Sei que prefere observar e escutar a falar. Que não gosta de chamar a atenção e prefere estar em um segundo plano. Sei que conta com habilidades valiosas que prefere ocultar porque acredita que o faz diferente. Sei que está convencido de que é diferente e por isso não necessita a ninguém, de modo que procura espantar aos outros antes que se aproximem de ti. Sei que passou a maior parte de sua vida no campo de batalha, mas que pode dirigir a pluma de maneira tão efetiva quanto uma espada. —deteve-se o tempo preciso para tomar fôlego. Ele teria que tê-la cortado, mas estava muito indisposto para falar — Sei que é inteligente e que têm um caráter tão forte como seu corpo. Sei que quando estou contigo me sinto segura. Que faz ver que nada lhes importa, mas que me defenderia com sua própria vida. Sei que um homem que sustenta em seus braços a um bebê e que mostra paciência com um cachorrinho que não tem feito mais em dar problemas tem um coração bondoso. —Anna baixou a voz até deixá-la quase em um sussurro, dissipada já toda sua ira — Sei que desde a primeira vez que me beijou senti que jamais teria outro homem para mim. Que quando ergo o olhar para olhar, vejo o rosto que quero ver durante o resto de minha vida. —Seus olhos, que brilhavam com lágrimas não derramadas, encontraram-se com os dele — Sei que é leal e honrado e que te importo, mas que há algo que o faz se conter.
«Jesus.» Era como se lhe desse um soco. Ninguém antes lhe havia dito nada parecido. O fazia sentir-se humilde. Comovia-lhe. Dava-lhe um medo de morte.
Tinha visto muito de sua pessoa. Não significava só um perigo para sua missão, mas também para ele em formas que jamais tinha imaginado. Endureceu a mandíbula e o coração.
—Vê o que quer ver, Anna, não a realidade. —A guerra. Seu pai. Ele. Estava cega diante das faltas daqueles aos que professava amor — Mas as garotinhas que acreditam nos contos de fadas acabam desenganadas.
—Não faça isso —sussurrou Anna — Não tente me espantar.
Isso era o que fazia. O que sempre fazia. E embora pela primeira vez não desejasse fazer, era o que tinha que fazer. Pelo próprio bem de Anna. Agarrou-a pelo braço com intenção de sacudi-la e fazê-la entrar em razão, mas foi um engano. Tocá-la não fez mais que avivar o fogo de suas emoções até quase lhe fazer perder o controle.
—Então não atue apoiada em contos infantis. Estamos em meio de uma maldita guerra. Bruce está a ponto de cair com todo seu exército sobre sua cabeça e mesmo assim quer planejar seu futuro. Não há futuro, Anna. Somente existe o dia de hoje. Diabos, quem sabe se terá um lar daqui a um mês.
Sobressaltou-se como se a tivesse golpeado.
—Acredita que não sou consciente disso? —Anna sossegou um soluço na garganta. Seus preciosos olhos azuis se nublaram com lágrimas, atiçando o fogo que consumia seu peito — por que pensa que acudi ao Ross? Sei perfeitamente o que está em jogo. Mas não pude fazer. Não podia fazer por causa de ti.
—Seu pai jamais devia ter te pedido isso - repôs.
A expressão de assombro de Anna fez que Arthur desejasse poder retirar o dito. Tinha a perspectiva de uma menina para seu pai, a do cavalheiro perfeito que não podia fazer nada mal. Outra dessas ilusões que ele ajudaria a destruir.
—Não me pediu isso. Foi minha idéia. Fala de guerra e de incerteza, mas posso lhes dizer uma coisa certa. Se não arriscar, se seguir espantando as pessoas de seu lado, assegurará sua solidão. É isso o que quer?
Apertava a mandíbula com tanta força que lhe doíam os dentes.
—Sim.
«Maldita seja.»
—Muito bem. Porque isso é exatamente o que conseguirá - disse ela; as lágrimas rodavam por suas bochechas — Não sei por que faz isto, Arthur Campbell, mas é um covarde.
Um acesso de raiva subiu por seu corpo. Não era um covarde. Somente tentava fazer o correto. Mas não lhe deixava fazer. Não fazia mais que pressioná-lo para voltá-lo louco com uns sentimentos que não lhe pertenciam. Não podia pensar bem. Não queria mais que tomá-la entre seus braços e beijá-la até que cessasse o martelar que sentia na cabeça, e no coração.
Possivelmente isso tivesse feito se pudesse, mas não teve a oportunidade.
—Que diabos está acontecendo aqui?
Arthur voltou com a cabeça ainda lhe dando voltas, ao mesmo tempo em que Alan aparecia no claro. Amaldiçoou. Estava tão absorto em Anna que não ouviu o mínimo ruído. Que demônios ocorria? Estava fosse de controle. Tinha que tomar as rédeas de suas emoções. Seus sentidos estavam mesclados e confusos. Distraía-se muito. Estava tão confuso… Somente uma vez antes havia sentido de tal modo: o dia em que morreu seu pai. Estava perdendo os papéis.
Tanto que não se preparou para o que vinha depois.
—Deixe-a em paz - vociferou Alan, arrancando-a de seus braços ao mesmo tempo em que lançava o primeiro murro direto a sua mandíbula.
A cabeça de Arthur se propulsou para trás ao receber o golpe em cheio. Uma explosão de dor se apoderou dele. Ficou cego por um resplendor branco.
Anna gritou aterrada.
—Alan, por favor! Não é o que parece!
Mas seu irmão não a escutava. Como prova de sua eficiência com ambos os punhos, alcançou Arthur do outro lado com outro golpe. Depois no ventre. Logo no flanco.
—Vos disse que o arrumasse maldita seja. Não que a fizesse chorar. Que demônios lhe têm feito?
Arthur não tentava defender-se. Não porque não pudesse. Era evidente que MacDougall tinha um braço como o martelo de um ferreiro, mas Arthur tinha aprendido suficientes truques do melhor lutador corpo a corpo das Highlands e era capaz de tombá-lo em poucos segundos. Não se defendia porque merecia o castigo. Diabos, merecia muito mais pelo que estava a ponto de fazer.
—Para! Para! —choramingou Anna com uma voz a borda da histeria — Está lhe fazendo mal.
Alan o arrastou pelo pescoço e o empurrou com força contra uma árvore.
—O que lhe têm feito? —perguntou fulminando a sua irmã com o olhar — Será melhor que um dos dois me diga que demônios passa aqui. —Nenhum deles respondeu. Alan olhava alternadamente a um e outro com o rosto aceso pela raiva — Não me tomem por um maldito idiota! Não pensem que acreditei nem por um momento que Ross decidiu dar para trás de repente! —disse olhando a Anna enquanto seguia apertando fortemente o pescoço de Arthur com a mão — O que passou em Auldearn? É que este filho de cadela te tocou, Anna? —perguntou lhe apertando o pescoço — Te tocou? —insistiu empurrando com mais força — O fez?
Arthur sentia que o nó se esticava em torno de sua garganta e não era pela mão do MacDougall. Não. Sabia que teria que responder pelo que esteve a ponto de acontecer em Auldearn.
— O solte! —Alan advertiu o pânico na voz de Anna. Ela tentava lhe puxar o braço, mas sem obter resultado — Sim, mas não é o que pensa.
De fato, devia ser exatamente como o pensava.
—Maldito velhaco do demônio! —disse MacDougall estampando a cabeça de Arthur de novo contra a árvore — O matarei por isso.
Arthur não duvidava de suas intenções. Nem tampouco de sua capacidade para fazer. Mas não podia permitir. Estava a ponto de libertar-se quando ouviu um pequeno zumbido seguido por um suave vaio.
«Flecha.»
Seus sentidos se abriram em uma explosão de clarividência. Olhou por cima do ombro do MacDougall e viu a ponta de ferro sulcando o ar, apenas a um segundo de impactar no cangote do MacDougall. Arthur não pensou. Simplesmente reagiu. Golpeou para cima o braço do MacDougall com o antebraço em um perfeito movimento para libertar seu pescoço das garras dele e atrás disto enroscou sua perna ao redor do tornozelo para desequilibrá-lo. MacDougall caiu ao chão justo antes que a flecha impactasse na árvore com um som seco ao que logo seguiram os dilaceradores gritos de ataque.
Ouviu a exclamação de terror de Anna, mas não podia voltar para acalmá-la. O primeiro dos homens acabava de emergir de entre as árvores com a espada em alto. De novo a reação de Arthur foi instantânea. Jogou mão ao punho de sua adaga, extraiu-a de sua capa e a lançou. O atacante emitiu um gemido quando a folha deu com os poucos centímetros desprotegidos da pele de seu pescoço. Cambaleou-se e caiu ao chão.
Para quando o seguinte dos homens saltou sobre eles MacDougall já tinha tido tempo para entender o que acontecia e se pôs em pé. Desembainhou a espada, girou sobre si mesmo e a ergueu bem a tempo para repelir uma cutilada que lhe teria arrancado a cabeça.
«Anna.» Arthur desviou o olhar do assalto que estava por chegar justo o tempo suficiente para assegurar-se de que ela estava bem. Encontrou-a resguardada depois da árvore, com os olhos cheios de terror. O coração lhe acelerou ao conscientizar-se de quão vulnerável era e logo se paralisou quando se deu conta de quão vulnerável isso fazia a ele mesmo. Não podia permitir que lhe acontecesse nada. Tinha que protegê-la. Mataria a todos se fosse preciso. Seus olhares se encontraram só por um segundo. Mas a forma em que se olharam foi de uma intensidade inegável e brutal.
—Permaneçam abaixados - disse com voz pausada, a pesar do fluxo de sangue que corria por suas veias.
Arthur se situou frente a Anna, cotovelo com cotovelo com o MacDougall, quem seguia lutando com seu oponente, e recebeu com sua espada a avalanche de atacantes que saíam de entre as árvores. Uma vintena de homens. Talvez mais.
Não teve que esperar muito para encontrar-se com o primeiro deles. Pela primeira vez em quase dois anos, desde que se visse obrigado a abandonar os Guardiões das Highlands para infiltrar-se em campo inimigo, Arthur se deixou ir e lutou com toda a destreza e o frenesi que tão cuidadosamente mantinha ocultos. Tombou ao primeiro dos homens com um virulento movimento de espada, girou-se e aproveitou a inércia para derrubar ao seguinte.
Foram por ele com mais virulência. Mas não importava. Era como uma máquina de guerra que arrasava tudo o que saía a seu caminho. Três. Quatro. O ruído do metal sobre o metal atravessava o sombrio ar noturno, mesclando-se com os gemidos e os gritos da batalha. Esses sons tinham alertado aos homens do acampamento, que felizmente estava a poucos metros dali, e os soldados do MacDougall começaram a aparecer na pequena clareira, já envolto em uma escuridão absoluta. Mas os atacantes esperavam a chegada dos reforços. Em realidade o tinham planejado e aguardavam o momento. Saltavam das árvores à medida que eles abriam caminho por baixo e caíam sobre os despreparados homens do clã MacDougall.
—Vamos! —disse Arthur tentando lhes advertir — Disperse.
Se não se dispersavam os fariam pedaços com a facilidade que se cortam arenques de um barril. Mas essa foi toda a advertência que pôde fazer antes que os seguintes adversários distraíram sua atenção. Tinha a dois homens sobre ele. Dois homens com nasais, mantos obscurecidos e as características manchas de cinza negra nos rostos.
O pavor se instalou em seu estômago com o peso de uma pedra.
Os atacantes eram homens de Bruce. Pois claro que eram. Viu os corpos pulverizados no chão ante ele, homens que ele tinha matado, e veio um acesso de bílis à garganta. Jesus, no que estava pensando? Nem sequer pensava. O instinto de amparo para a Anna ultrapassava todo o resto. Mas era pior do que imaginava. Enquanto tentava incapacitar aos dois homens que lhe atacavam sem chegar a matá-los, um terceiro homem se uniu à refrega. Um homem que brandia duas espadas. Movia-se como um raio e foi a Arthur com uma ferocidade sem igual inclusive entre seus companheiros de elite dos Guardiões das Highlands.
Arthur se encontrou cara a cara na escuridão com LachlanMacRuairi e amaldiçoou para si.
Capítulo 17
Ocorreu tudo muito depressa. Em um momento tentava evitar que seu irmão assassinasse ao homem que amava e no seguinte estavam sendo atacados. Dizer que a situação era perigosa era pouco. De seu posto escondida entre as árvores, Anna se obrigava a respirar levianamente entre o estrepitoso pulsar de seu coração e observava com horror como aqueles homens caíam sobre eles como uma praga de gafanhotos. Pareciam que fossem centenas de inimigos contra só dois guerreiros.
Arthur parou os pés ao primeiro com tal superioridade que lhe pareceu algo bizarro. Mas então chegou o seguinte. E outro mais. Ficou olhando cheia de assombro como despachava sem esforço algum a todos quantos saíam a seu encontro. Sua destreza era tão extraordinária, mostrava tal superioridade, que parecia estar vendo outro homem. Tinha o espiado suficientes vezes enquanto praticava para reconhecer a diferença. Fazia que seu irmão, conhecido como um dos cavalheiros mais destros das Highlands parecesse um escudeiro. Arthur era mais rápido. Mais ágil quanto à técnica e movimentos. E o que era mais significativo, mais forte. Podia sentir como reverberava a terra com a força de seus golpes. Quando um de seus oponentes conseguia acertar com uma cutilada, o braço de Arthur apenas se movia ao bloqueá-lo e absorvia a força do impacto como se fosse nada. Seu braço… Os olhos lhe puseram como pratos. Era o braço direito.
Não entendia. Arthur era canhoto. Ao menos supunha que era, mas nesse momento, em somente observá-lo, sabia que estivera fingindo. Por que ocultaria algo assim? E por que não o tinha visto alguma vez antes lutar desse modo? Podia compreender os motivos para ocultar seus incomuns aguçados sentidos, mas não havia nada inapropriado em ter destreza no manejo da espada. Deus, poderia ser um dos cavalheiros mais venerados do reino se quisesse. Então por que não queria ser?
Mas essas perguntas se esfumaram de sua cabeça assim que viu a nova horda de atacantes que vinham de cima das árvores. Não cabia dúvida de que ao ver os corpos caídos de seus compatriotas tinham identificado a ameaça e se reuniam em torno de Arthur.
Anna reprimiu o grito de advertência, consciente de que não faria mais que lhe distrair. Mas tinha o coração em um punho. Dois homens. E um terceiro não muito longe deles.
De repente algo pareceu mudar em Arthur. Em lugar de frios e desumanos golpes mortais brandia a espada com menos intenção. Era quase como se seu objetivo tivesse mudado e não desejasse matá-los a não ser simplesmente repelir o ataque. Mas não tinha nenhum sentido. Tirou esse pensamento da cabeça. O que passava era que aqueles guerreiros estavam melhor treinados.
E era certo. Parecia difícil ver algo na penumbra. Levavam roupagens escuras e pareciam ter se sujado de fuligem a pele com algo…
Gelou-lhe o sangue ao recordar o ataque do ano anterior. Aqueles homens também levavam a pele suja. Seria possível que se tratasse dos espectros do exército fantasma de velhacos formado por Bruce, o homem que tinha instaurado o horror tanto nos corações da Escócia como da Inglaterra?
Seus piores temores se viram confirmados quando um terceiro homem desceu sobre Arthur como um cão do inferno. Em lugar do longo espadão de duas mãos que usavam os highlanders, este brandia duas espadas menores. Uma em cada mão.
Mas eram suas vestimentas as que a fizeram tremer com um terror que subia por todos seus ossos. Igual ao resto dos atacantes, levava um nasal escurecido e tinha sujado de fuligem sua pele com barro ou cinzas, mas o que a fez estremecer diante da lembrança era o resto de sua indumentária. Vestido de negro da cabeça aos pés, em lugar de cota de malha levava um peitilho de guerra de couro tachonado com peças de metal, perneiras de couro e uma manta envolta de maneira estranha. Justo como o homem que a tinha atacado no ano anterior, aquele rebelde de beleza absurda.
Esse homem era um deles. Anna sabia. O medo se transformou em pânico. Os conhecia por suas extraordinárias habilidades, por combater como demônios possuídos. «OH, Meu Deus, Arthur!» Sua respiração ficou detida na parte alta de seu peito ao ver que o atacante voava até ele com as espadas em alto a cada lado de sua cabeça. O tempo pareceu ir mais devagar. Arthur, ainda ocupando-se de um dos outros dois adversários, não poderia defender-se. Gelou-lhe o coração. O sangue. Arthur ia morrer.
Anna abriu a boca para gritar, mas no último momento Arthur golpeou a um dos homens que lhe atacavam com o punho de sua espada e pôde ergue-la a tempo para bloquear as duas folhas antes que lhe cruzasse o pescoço. O assaltante demoníaco e ele se encontraram cara a cara com as espadas engastadas sobre suas cabeças. O agressor tinha o impulso de vantagem já que caía das alturas, mas conseguiu repeli-lo fazendo uso de ambas as mãos. Embora Arthur lhe desse as costas, conseguiu distinguir o rosto de sua oponente graças à luz oferecida por um raio de lua. Tinha os olhos mais horripilantes que Anna jamais tivesse visto. Estremeceu. Pareciam brilhar na escuridão. Com essas escuras feições retorcidas pela raiva parecia um diabo recém saído do inferno, Lúcifer em pessoa. Uma difusa lembrança foi a sua memória. Deus santo! Era possível que…? Anna abriu os olhos sem acreditar de tudo. Parecia-se com Lachlan MacRuairi, o marido de sua falecida tia Juliana. Fazia anos que não o via, mas conforme tinha ouvido estava com os rebeldes. Sua tia Juliana, da qual sua irmã tinha recebido o nome, era muito mais jovem que seu pai, quase vinte anos. MacRuairi provavelmente tinha a mesma idade que seu irmão Alan. Ao aproximar-se de Arthur a expressão de seu rosto mudou. Não se teria notado se não tivesse observado com tanta atenção. Surpresa? Reconhecimento? O homem que parecia seu tio deu um passo atrás. Ou era imaginações delas? Estava escuro e não era fácil estar segura. Ambos seguiram trocando golpes, mas a intensidade e a ferocidade tinham desaparecido. Comparado com o anterior, parecia mais um treinamento que uma batalha em que se empregassem a fundo. Anna olhava através da escuridão tentado compreender o que ocorria. Então, viu pela extremidade do olho que seu irmão tropeçava para trás, com a espada no chão e ambas as mãos sobre a cabeça, cambaleando-se…
Anna lançou um grito, incapaz de dominar-se por mais tempo. Teria deslocado em sua ajuda, mas Arthur se atrasou até sua posição para lhe impedir o passo.
—Fique atrás, maldita seja! Fique atrás!
Observou com impotência como o agressor com o que lutava seu irmão erguia a espada para acabar com ele. Seu horripilante grito atravessou a noite como uma adaga.
Arthur pareceu vacilar, mas somente por um instante. De alguma forma arrumou para rebater um golpe do homem que se parecia com seu tio e dar meia volta a tempo para bloquear a estocada dirigida contra seu irmão. O braço do atacante, ao não estar preparado para essa defesa, veio-se abaixo e com ele seu corpo, que foi cair justo sobre a espada de Arthur. O homem, surpreso, abriu os olhos antes de fechá-los para sempre.
Inclusive no meio desse horrível pesadelo a truculenta imagem fora muito para ela. Voltou o olhar entre soluços. Momentos depois, um agudo assobio cerceava o ar da noite. Olhou para o tumulto e se surpreendeu ao ver que os atacantes se retiravam. Ao que parecia MacRuairi, ou um homem que se parecia muito a ele, tinha dado a ordem de retirada. A clareira fora invadida pelos homens de seu irmão. Correu ao encontro do Alan antes inclusive de que o último dos rebeldes saísse da floresta. Tinha conseguido ficar em pé, mas ainda parecia cambalear-se.
—Oh, Deus, Alan! Está bem?
Inclusive na escuridão advertiu que lhe custava muito enfocar o olhar pela maneira em que a olhava. Sacudiu a cabeça como se pudesse assim dissipar a nebulosa.
—Um golpe no cocuruto —disse — Estarei bem. Não há por que chorar. —Tomou-a pelo queixo e lhe dirigiu um sorriso carinhoso.
Anna assentiu e limpou as lágrimas com o dorso da mão, sem se dar conta sequer de que estava chorando. Voltou de maneira instintiva e o buscou. Arthur estava a poucos metros dela, observando-a. Anna tinha vontade de correr a seu encontro, de deitar-se em seus braços, enterrar a cabeça em seu peito e romper a chorar. Ele se encarregaria de sossegar o horror. Mas seu irmão estava ali mesmo. E o rosto de Arthur se via muito sombrio.
—Está ilesa? —perguntou.
Anna assentiu enquanto o examinava, detendo-se na mandíbula e as bochechas, arroxeadas pelos golpes de seu irmão.
—E você?
Arthur assentiu também como resposta.
Alan permanecia junto a sua irmã completamente rígido. Depois caminhou em direção de Arthur, e Anna ficou paralisada temendo o que estava a ponto de fazer. Deteve-se a poucos passos dele. Ambos os homens ficaram olhando-se no silêncio da escuridão até que ao final Alan disse: —Parece ser que estou em dívida contigo, não uma, a não ser duas vezes. —Arthur ficou impassível e logo encolheu os ombros levemente — Eu não gosto de ver minha irmã zangada —acrescentou Alan.
Anna assumiu que aquilo era uma desculpa.
—A mim tampouco - disse Arthur.
Alan o examinou por um momento e depois assentiu como se tivesse chegado a algum tipo de decisão.
—Lutastes bem - disse mudando o tema, mas não a intensidade de seu escrutínio.
Ao que parecia não era ela quão única tinha advertido a melhora de suas habilidades.
—O ardor da batalha - explicou Arthur.
Esteve a ponto de mencionar sua mudança de mão, mas algo a deteve. Se seu irmão também percebeu disso, não o desvelou. Mas seguia observando-o com atenção.
—Sim, há alguns homens que funciona assim. —Anna não pôde saber pelo tom de sua voz se Alan acreditava realmente a explicação de Arthur. Ao ver que este não respondia, acrescentou—: Os rebeldes estão mais bem treinados do que pensava.
—Não eram rebeldes qualquer, irmão - disse Anna.
Ambos a olharam, mas foi Alan quem fez a pergunta.
—A que te refere?
—Acredito que um deles era parte da Guarda fantasma de Bruce, mas pode ser que não fosse o único.
Anna explicou a similitude de vestimenta com o homem que dirigia o ataque do ano anterior à igreja. Alan cofiou a barba.
—Tem sentido. Acredito que poderia estar certa.
—Há mais. Não posso estar segura, mas acredito que reconheci a um deles. O das duas espadas.
—O que? —Ambos os homens reagiram. Seu irmão com entusiasmo e Arthur com… algo diferente a isso.
—Nosso tio, que era nosso tio.
Alan amaldiçoou.
—MacRuairi?
Anna assentiu. O rosto do Alan adotou um gesto severo.
—O nosso pai não gostará nada. —Anna não sabia de onde provinha a inimizade de seu pai com o que fosse seu tio político, mas sim que o ódio corria furiosamente por ambas as partes. Alan soltou uma gargalhada — Embora talvez devesse. Que Bruce fique em seu bando com esse filho de cadela oportunista e traiçoeiro. Lachlan MacRuairi somente professa lealdade a si mesmo. Se for esse o tipo de homem que recrutou para sua tropa de fantasmas, não temos nada do que nos preocupar.
Arthur permanecia em um estranho silêncio. Anna tinha vontade de lhe perguntar a respeito do ocorrido entre o que acreditava seu tio e ele, mas, do mesmo modo que anteriormente, algo a fez conter-se. Em vez disso perguntou: —O que é o que o fez fugir?
Seu irmão ficou circunspeto.
—Não estou seguro. Tinha a cabeça tonta. Não vi virtualmente nada.
—Seus homens fizeram aparição —explicou Arthur — Estavam em minoria numérica. —Não tinha parecido assim, mas estava muito pendente de seu irmão para emprestar atenção ao resto da batalha — Deveriam voltar para acampamento —disse.
—Sim —concedeu Alan — Um de meus homens te levará, Anna. Nós temos que nos encarregar de…
«Os mortos», completou ela mesma.
O horror do ataque, o horror daquilo ao que tinham escapado por pouco, golpeou-a então com toda sua força. As comportas se abriram e emergiram todas as emoções que estivera contendo atrás delas, ameaçando transbordando em muitas lágrimas. Voltou-se, advertindo que Arthur se pôs a seu lado. Este, alheio à presença do Alan, esticou o braço para lhe pôr depois da orelha uma mecha de cabelo rebelde. Seus dedos passaram roçando a bochecha e se detiveram ali. A ternura que havia nesse gesto fez que a Anna saltasse em lágrimas. Ergueu o olhar para ele. Advertiu o rosto de preocupação atrás de sua expressão séria. Sua sólida presença, sua força a desarmavam completamente. Se tomasse entre seus braços se romperia em pedaços. Arthur, que adivinhava que isso poderia ocorrer, não o fez.
—Tudo sairá bem —disse com delicadeza — Faça o que diz seu irmão.
—Mas…
Cortou seus protestos com uma negação da cabeça e expressão firme. Deveu adivinhar que ela tinha perguntas que fazer.
—Agora não - disse olhando em direção aos caídos — Depois.
Anna manteve os olhos no rosto de Arthur, procurando não seguir a direção de seu olhar. Já havia visto suficiente sangue para o resto de seus dias. As lembranças dessa noite a perseguiriam. Era uma reação compreensível. Anna era uma mulher e não alguém acostumado ao sangue e ao furor do campo de batalha. Arthur, entretanto, sim estava. Ou ao menos deveria estar. Mas havia algo em sua expressão, na tensão de sua mandíbula, a brancura da boca, a crueldade de seus olhos, que indicava que aquilo lhe afetava profundamente. Anna seguia os passos dos dois homens de seu irmão que a precediam com a suspeita de que ela não seria a única a que perseguiriam as lembranças daquela noite. A questão era por que.
Arthur não pôde conciliar o sonho. Quase esperava que MacRuairi se deslizasse na escuridão e lhe rachasse a garganta ou cravasse uma adaga nas costas pelo que tinha acontecido. Não seria a primeira vez. Não tinha ganhado o apelido de Víbora unicamente por sua venenosa personalidade, mas também por seu ataque silencioso e mortífero. Entretanto, Arthur não podia culpá-lo.
Tal e como tinha feito quase toda a noite, olhava o monte de corpos que tinham deixado apinhados a um lado da clareira, postos ali para que os «atacantes» os recolhessem. Nove homens de Bruce assassinados. Mais da metade pela ponta de sua espada. Equivocou-se. Muito. Em muitos aspectos para poder contá-los. Suficiente mal era que seus sentidos tivessem falhado, que não tivesse advertido os sinais do ataque, mas, além disso, parecia ter esquecido de que lado estava. Levava tanto tempo entrincheirado em campo inimigo que começava a acreditar em suas próprias mentiras.
«Cristo.» Fechou os olhos em uma tentativa de aplacar seus pensamentos. Viu-se obrigado a matar a seus próprios homens antes, mas nunca desse modo. Aquilo não era simplesmente defender-se. Tornou-se um louco fazendo. Estava tão concentrado em proteger Anna e matar a qualquer que supusera uma ameaça para ela que não tinha reparado em nada mais que isso. Nem sequer se deteve quando percebeu o que ocorria. Tinha salvado a vida do MacDougall em troca de um de seus compatriotas. Não podia tirar da cabeça o rosto que tinha posto MacRuairi quando Arthur atravessou ao homem que estava a ponto de acabar com o MacDougall. Pouco importava que sua intenção não fosse matá-lo. Não teria que ter intervindo. O pranto dilacerador de Anna não era desculpa, ao menos não uma desculpa que importasse para os de sua irmandade.
Levantou-se de seu solitário posto junto à árvore quando começaram a vislumbrar os primeiros raios do amanhecer através da floresta. Não acudiriam. Nem MacRuairi, nem tampouco Gordon, MacGregor e MacKay, a menos que tivesse errado ao identificar aos outros três membros dos Guardiões das Highlands quando se batiam em retirada. Tampouco esperava que o fizessem, embora gostasse de ter a oportunidade de explicar-se ante eles. Não se arriscariam de novo a revelar a identidade de Arthur. Para isso bastava a si mesmo.
Era consciente do perto que estivera de arruinar sua cobertura e de pôr toda sua missão em perigo. Anna, tal e como provavam suas perguntas, era muito observadora, inclusive sendo presa do pânico. E não era a única. Também Alan suspeitava da súbita melhora de suas habilidades como combatente e de quão rápido tinham fugido os atacantes. No momento os tinha contentado, mas sabia que ela tinha mais pergunta e não se atrevia tão sequer a pensar o que mais teria advertido.
Reconhecer ao MacRuairi já era mal por si só, mas relacioná-lo com os Guardiões das Highlands era um completo desastre. Manter suas identidades em segredo não era só um aplique à mística e ao medo que rodeavam a aquela guarda «fantasma», mas sim também ajudava a mantê-los a salvo. Se seus inimigos tinham conhecimento de suas identidades, além de pôr preço a suas cabeças, temia a segurança de suas famílias. Essa era a razão pela que tinham decidido usar nomes de guerra quando estavam em uma missão.
Quando Bruce se inteirasse de que tinham desmascarado ao MacRuairi, teria graves conseqüências. Não teria que ter ocorrido, maldita seja. A raiva e a culpa invadiam seu interior sem piedade. Arthur teria pressentido o ataque se não tivesse tão envolto com Anna e deixar-se dominar pela emoção. Aqueles homens não estariam mortos e tampouco teria posto a ela em perigo. Deus, poderiam tê-la matado. E tudo por não ser capaz de controlar suas emoções e implicar-se muito.
Voltou para acampamento justo no momento em que começavam a despertar os homens que não estavam de guarda. Olhou para a tenda de Anna e viu que as portinholas forradas de linho permaneciam fechadas. «Bem. Que durma.» Merecia. Tinha ido vê-la com freqüência no transcurso da noite para assegurar-se de que estava bem. Sabia o muito que a tinha afetado o ataque, mas combatia com seus próprios demônios, de modo que por mais que fosse ele quem devia fazer, não estava em condições de consolá-la. Não obstante, uma vez que teve retornado de encarregar-se dos cavalos, viu a portinhola aberta. Ao inspecionar o acampamento e não encontrá-la ficou circunspeto. Mas pouco depois teve oportunidade de espiá-la enquanto falava com seu irmão, que estava ocupado com alguns de seus homens. A exasperação que refletia seu semblante era tão corrente que suspirou aliviado, até sem querer reconhecer quanto se preocupou.
Quando seu olhar reparou nele, Anna titubeou, mas em seguida começou a avançar pelo terreno semeado de musgo e folhas em sua direção. Arthur percebeu de que levava um pedaço de pano nas mãos. Deteve-se frente a ele, inclinando seu pálido rosto para olhá-lo. Arthur sentiu uma angústia no peito. Ao que parecia, o sono também fora esquivo.
—Já que a regra que pusestes e meu irmão está ocupado, terá que me acompanhar.
Arthur a olhou de modo inquisitivo.
—Não me fizeram prometer que não abandonaria o campo sem sua companhia ou a de meu irmão?
Franziu o cenho até converter-se no primeiro sorriso que tinham parecido em anos.
—Sim.
—Preciso ir ao córrego me lavar.
O córrego ficava perfeitamente à vista do acampamento, mas Arthur não discutiu ao conscientizar de quanto a teria afetado o ataque. Fez uma reverência zombadora com um gesto exagerado da mão.
—Depois de ti.
Anna não parecia ter muita vontade de falar, algo que vinha a calhar. Esperou junto a uma árvore, fazendo como que não olhava, enquanto ela se encarregava de suas abluções matinais. Depois de arrumar o cabelo com um pente úmido e lavar os dentes com pós de um frasco que esfregou sobre um pequeno pedaço de tecido branco, mergulhou outro trapo branco na água. Tinha levado com ela uma pastilha de sabão, a qual esfregou sobre o tecido para depois proceder a lavar o rosto, o colo, as mãos e os braços. Era uma das imagens mais sensuais que jamais tivesse presenciado.
Quando meteu o trapo entre os seios já não pôde mais. Voltou-se, furioso por que um pouco tão mundano pudesse o excitar. Mas com esse sol caindo entre as árvores, que se refletia em seus cabelos dourados e os regatos de água que se derramavam em cascata por seu rosto e seu colo a via formosa, doce e verdadeiramente cativante. Um raio de luz na escuridão. E tudo que Arthur podia pensar era o perto que estivera do céu e a vontade insensata que tinha de tocá-la de novo. Deus, é que não tinha aprendido nada do ocorrido na noite anterior? Concentrou-se no que lhes rodeava com uma intensidade quase exagerada, aguçando seus sentidos para algo que se saísse do ordinário. Entretanto voltou o olhar atrás. Anna tinha terminado e caminhava para ele com o sol a contraluz pelas costas. Arthur teve que conter a respiração. Mas isso não evitou que o apanhasse o subjugador aroma de sua doce e feminina fragrância: pele recém lavada com um toque de pétalas de rosa.
—O que acontece? —perguntou Anna.
—Nada - disse com tensão.
—Parece como se lhe doesse algo - disse olhando-o nos olhos — Lhe dói o rosto? —perguntou tomando o arroxeado queixo na mão. Cada um dos músculos de Arthur ficou em guarda ante o contato — Quebrou algo o idiota de meu irmão? —Jesus, que mãos mais suaves. Seus dedos aveludados acariciavam o duro contorno da tensa mandíbula de Arthur — Olhem quantos hematomas. Isso deve doer — acrescentou, levando o dedo até sua boca — Têm o lábio partido.
Sim, doía. Aquele gesto de sensualidade inocente fazia correr o sangue até a virilha de Arthur e a incendiava de calor. Teve que obrigar-se a não lhe chupar o dedo. Não tinha nem idéia do que estava fazendo. Nem do que estava custando resistir a tocá-la.
Anna o olhou com uma preocupação que se refletia em seus olhos.
—Dói muito?
—O rosto não. —Arthur lhe dirigiu um olhar lascivo que dizia exatamente onde estava a origem de sua dor. Parecia que fosse estalar.
As bochechas de Anna se ruborizaram levemente. Se por acaso aquilo não fosse suficiente, começou a mordiscar esse suave lábio inferior que tinha.
—Oh, não me dava conta de que…
—Deveríamos voltar. Seu irmão queria sair cedo.
Anna assentiu e Arthur teve a impressão de que lhe dava um calafrio.
—Não me entristecerá partir daqui.
Arthur não pôde conter-se. Tomou pelo queixo e cravou o olhar em seus grandes olhos azuis.
—Está bem?
Anna tentou sorrir, mas lhe tremeu a boca.
—Não, mas arrumarei isso.
Arthur lhe soltou o queixo e sua boca adotou um gesto severo.
—O que ocorreu a noite passada não voltará a repetir-se.
Os delicados arcos das sobrancelhas de Anna se franziram.
—Como pode estar tão seguro?
—Porque não permitirei.
Anna o examinou com o olhar e abriu os olhos de repente ao compreendê-lo.
—Por Deus bendito, por isso está zangado. Culpa-se do ocorrido. Mas isso é ridículo. Jamais poderia ter sabido que…
—Sim, sim deveria saber. Se não tivesse tão distraído, não teria ocorrido.
—Então a culpa é minha?
—É obvio que não.
—Não é perfeito, Arthur. Sois humano. Comete enganos. —Ele não respondeu. Tinha a mandíbula tão apertada que lhe doíam os dentes - é o que pensa? —perguntou Anna com ternura — Não falharam seus sentidos alguma vez antes?
«Uma vez», pensou Arthur, afastando a lembrança de sua memória.
—Temos que retornar.
Começou a afastar-se dela, mas Anna o agarrou pelo braço para detê-lo.
—Não ides contar isso?
—Não há nada que contar.
—Tem algo que ver com seu pai? —ficou olhando-a, aniquilado. Como demônios tinha chegado a suspeitar? Anna advertiu sua surpresa — Quando falou de sua morte, deu-me a sensação de que não contava tudo.
Não tinha contado nem a metade do que aconteceu. Como por exemplo a participação do pai de Anna na tergiversação dos fatos. Anna esperava uma resposta. Ele não era muito dado a falar sobre seu passado, mas a expressão do rosto dela disse que aquilo lhe parecia algo muito importante.
—Não há muito que contar. Tratava-se de minha primeira batalha. Meu pai me levou com eles para me pôr a prova. Estava tão preocupado por lhe impressionar que não detectei os sinais do ataque. —Mas isso não era a pior parte, pensou Arthur — Vi como morria.
O rosto de Anna se encheu de comiseração.
—Deus, sinto muito. Deve ter sido horrível. Mas não era mais que um menino. Não podia fazer nada para ajudar.
—Teria que o ter avisado. —Se não estivesse tão afetado, tão assustado, teria visto os sinais, refletiu Arthur. Então, igual à noite anterior, a emoção se havia interposto em seu caminho — Estava distraído.
Mal teve tempo de franzir o sobrecenho antes que os olhos de Anna se iluminassem repentinamente de compreensão.
—Amava-o.
Arthur encolheu os ombros, incomodado com o tema.
—Isso não serve de muito.
—Inclusive Aquiles tinha um ponto débil, Arthur. —Ele a olhou com cara de estar admirado. Do que estava falando? — É difícil manter-se afastado e à expectativa com as pessoas às que alguém quer —disse Anna lhe oferecendo um sorriso de simpatia — Não podem te culpar por amar às pessoas. —Mas fazia. Do que servia suas tão apregoadas habilidades se não podia proteger a aqueles que amava? — Obrigado por me contar isso — Por que voltava a sentir que a tinha deixado ver muito de si?
—Não desejava que te preocupasse pensando em outro ataque surpresa.
—Não me preocupo —disse Anna — Confio em você.
Arthur sentiu uns ardores no peito que o consumiam por dentro. Queria a advertir que não fizesse, lhe dizer que não merecia, que o único que faria seria a machucar, que ela dava seu coração com muita facilidade, com os olhos fechados. Mas em vez disso assentiu e puseram rumo para o acampamento. Arthur subiu a costa com ela, e quando estiveram nas imediações, Anna o olhou de soslaio.
—Pareceu como se meu tio o reconhecesse.
A observação o colheu com a guarda completamente baixa. Algo para o qual parecia ter um talento especial. Arthur deu um passo um tanto vacilante. Não muito, mas temia que se desse conta.
—Está segura de que era seu tio? Não via bem. Eu estava muito mais perto e não pude reconhecer aquele rosto oculta depois do nasal.
Anna enrugou o nariz, um movimento adorável que chocava profundamente com a ameaça que representava para ele.
—Faz alguns anos que não o vejo, mas estou bastante segura de que era ele. Seus olhos são inesquecíveis — disse com um calafrio. Se tentava distrair de sua pergunta, não ia funcionar — Mas pareceu o reconhecer.
—Ah, sim? —disse Arthur encolhendo os ombros — Pode ser que nos tenhamos cruzado alguma vez.
Ela ficou um momento sem dizer uma palavra, mas infelizmente não pensava deixar o assunto correr.
—Então não o conhece?
Arthur lutou contra a ativação instintiva de seus alarmes.
—Pessoalmente não.
—Parecia aborrecido de lhe ver.
O rápido pulsar do pulso de Arthur contradizia sua calma exterior. Era perigosamente perceptiva e andava muito perto da verdade.
—Aborrecido? Por isso sei, Lachlan MacRuairi é um filho de…—disse, detendo-se ao recordar quem tinha por audiência — É um homem perverso com um caráter de cão. Provavelmente estava furioso por que matasse a tantos de seus homens.
Anna pareceu aceitar a explicação. Mas a seguinte pergunta lhe deixou claro que ainda não estava satisfeita.
—Por que se retiraram?
Arthur amaldiçoou para si. As vozes de alarme se acendiam com mais força.
—Como já vos disse, os homens de seu irmão chegaram até nós. Estavam em minoria.
Ficou circunspeta.
—Não me pareceu isso. Parecia que estavam ganhando.
Arthur se obrigou a forçar um sorriso irônico.
—Seu irmão estava em perigo —lhe recordou — Eu diria que estava distraída.
Anna ergueu o olhar para olhá-lo e lhe dedicou um meio sorriso.
—Pode ser que tenham razão. Estava concentrada em meu irmão. Ainda tenho que lhes agradecer o que fizeram. —Uma sombra sulcou seu rosto — Se não tivessem detido a esse homem…
—Não pensem mais nisso, Anna. Já passou.
Assentiu e voltou a olhar de relance.
—De todos os modos, agradeço-lhe. E também Alan o faz, apesar de que tenha uma estranha forma de demonstrá-lo.
MacDougall não ocultava seu interesse por eles. Arthur sentiu o peso de seu olhar durante todo o tempo. Ao encontrar-se com seus olhos, soube que a discussão a respeito do ocorrido no dia anterior ainda não tinha acabado.
—Tem direito a estar furioso, Anna. O que fiz esteve mau. Tudo que posso fazer é prometer que jamais voltará a acontecer.
A maneira em que sua respiração ficou sobressaltada foi como uma punhalada no peito. Parecia emocionada. Desconcertada. Como se esperasse algo diferente.
—Mas…
—Aguardam-nos — disse Arthur, e assinalou ao moço que preparava seus cavalos para que não seguisse falando. Não poderia suportar outra conversa como a do dia anterior — É hora de partir.
Essas palavras fossem dirigidas tanto a ela como a si mesmo. Ponto cego. Ponto débil. Não importa como o tivesse chamado. Seus sentimentos no que respeitava a Anna se converteram em um lastro. Tinha permitido que ela se aproximasse muito, e sua missão e sua coberta pendiam de um fio. A conta atrás tinha começado.
Capítulo 18
Dois dias sem acontecimentos depois, Anna atravessava as portas do castelo de Dunstaffnage ao lombo de seu cavalo. Um dos guardiães se adiantou, de modo que lhes esperavam. Pelo semblante de ira mal contida de seu pai advertiu que estava a par do fracasso de sua viagem. Anna sonhava desfrutando de uma noite de sonho reparador antes de confrontar as perguntas de seu senhor, mas sua tardia chegada não serve para atrasar o relatório. Alan e ela quase não tiveram tempo de lavar as mãos e fazer uma frugal refeição leve antes que os apresentassem nas dependências do senhor do castelo.
John de Lorn permanecia de pé em meio da sala, com as mãos à costas e os membros importantes de seu meinie atrás dele e ambos os lados. A expressão de duelo que todos compartilhavam sem exceção fez pensar a Anna que entrava em um túmulo funerário. Dado que nenhum deles tomou assento, ela e Alan tiveram que suportar o desconforto de estar de pé. Suas sensações não distavam muito das do menino ao que chamam para que responda de uma travessura atroz com resultados nefastos.
Apenas teve fechado a porta quando seu pai começou a falar. A atacar, em realidade.
—Ross rechaçou a oferta.
Não se tratava de uma pergunta. Ao notar o tom de acusação de sua voz, Anna teve vontade de explicar-se, mas não tocava a ela fazer.
Alan respondeu por ambos.
—Sim. A resposta do Ross a uma aliança foi quão mesma na ocasião anterior. Disse que Bruce partiria também contra ele e que não podia prescindir de nenhum de seus homens.
—Mas que passou com o compromisso? Não lhe fez mudar de idéia?
Anna sentiu o peso dos olhares de todos os homens sobre ela e suas bochechas se ruborizaram. Mantinha o olhar baixo para que seu pai não visse quão envergonhada estava. Independentemente de que supusera alguma mudança ou não, tinha fracassado na tarefa que lhe tinha encomendado.
—Não há compromisso —explicou Alan — Estiveram de acordo em que não encaixam um com o outro.
Anna desejava que ninguém mais detectasse como Alan acabava de medir suas palavras.
—Quer dizer que não te perdoou por rechaçá-lo na primeira vez? —perguntou o pai a Anna diretamente.
Ela se aventurou a olhá-lo e a contemplar seu rosto de raiva. O coração lhe encolheu. Não era bom para ele que se zangasse tanto. Quis lhe dizer algo a esse respeito, mas sabia que se lhe tratasse como a um inválido ante seus homens, ficaria mais furioso ainda. Não sabia o que dizer. Não queria mentir, mas tampouco podia contar toda a verdade.
—Eu… — disse, tropeçando com suas próprias palavras.
—Bem — repôs seu pai com impaciência—, acreditava que foste o persuadir.
As bochechas ardiam da vergonha.
—Tentei, mas temo que ele… percebeu que meus sentimentos estavam comprometidos com outra causa.
—O que quer dizer isso de «comprometidos com outra causa»? —Seu pai entreabriu os olhos, que a atravessavam como flechas. Sabia que havia algo que não lhe estava contando — Campbell —disse impassível em resposta a sua própria pergunta. Amaldiçoou para si com um olhar implacável — E como poderia perceber isso? O que fez?
Jamais tinha visto seu pai tão furioso com ela. Era a primeira vez que sua raiva a atemorizava. Que o merecesse não era algo que aplacasse seus devastadores efeitos. O que poderia ter dito? Felizmente, Alan teve piedade dela.
—O compromisso não teria mudado nada. Ross já tinha seus planos feitos. Temo que ainda não ouvistes a pior parte. —Anna temia o pior em relação à reação de seu pai. Tinha medo de que aquilo o levasse a um novo ataque de apoplexia. Ao que parecia, Alan decidiu que era melhor não dosar a verdade, a não ser soltar a de uma só e desagradável vez — Ross está pensando em render-se.
Seu pai não disse uma palavra. Mas Anna contemplava como sua fúria crescia como uma crista de espuma no horizonte que se dirigisse para a costa a toda velocidade até converter-se em uma temível onda que ameaçava rompendo. John de Lorn apertava os punhos com força, seu rosto estava vermelho como um tomate, as veias lhe palpitavam nas sobrancelhas e seus olhos ardiam como se fossem as portas do inferno. Anna deu um passo em sua direção, mas Alan a deteve com uma mão e negou com a cabeça em sinal de advertência.
Quando seu pai acabou por bem pronunciar-se foi para proferir uma enxurrada de insultos que teriam posto a sua mãe de joelhos durante semanas inteiras em penitencia por sua alma blasfema. Perambulou, iracundo pela pequena câmara como um leão enjaulado. Inclusive seus homens lhe deixaram espaço suficiente para que desse rédea solta a sua irritação.
—Ross é um tolo do demônio! —explorou com fúria — Bruce jamais lhe perdoará o que fez às mulheres. Pelo amor de Deus! Pendurou em jaulas a sua irmã e à condessa. Se se render, estará assinando sua própria ordem de execução. —Deteve suas palavras o justo para dar um murro sobre a mesa — Como pode pensar em prostrar-se ante esse assassino traiçoeiro? Cortou a meu parente em pedaços diante de um altar.
Anna não se atreveu a assinalar que a santidade da igreja não era algo que parecesse importar muito ao Ross. Depois de tudo, ele mesmo violou o santuário para capturar às mulheres de Bruce.
—O povo está com Bruce —disse Alan para acalmar a seu pai — despertou um ardor patriótico no campo que não se via desde Wallace. Acreditam que é um salvador, o segundo advento do rei Artur, que os liberou do jugo da tirania inglesa. Ross pensa em sua gente e no futuro de seu clã. Pensa no que é melhor para a Escócia.
Anna tentou ocultar sua surpresa. Felizmente seu pai estava muito furioso para ouvir o que Alan havia dito realmente. Mas embora seu pai não o tivesse feito, ela sim tinha ouvido o tom de reprimenda na voz de seu irmão. Pensaria Alan igual a Ross? Acreditava também ele que Bruce era a melhor opção para Escócia? Por Deus bendito, o que aconteceria seu pai se equivocava?
Anna não podia acreditar que fosse ela quem albergasse esse pensamento desleal. Mas os MacDougall, em seus dias ferventes patriotas, tinham dado seu apoio aos ingleses para não ver Bruce sentar-se no trono. Era isso o melhor para Escócia?
—Morrerei antes de ver esse assassino no trono — disse seu pai, consumida já a raiva de seus olhos, frios como o gelo.
Anna sentiu certo alívio para ouvir os murmúrios unânimes de seus homens que concordavam vigorosamente com essa idéia. Seu pai sabia o que fazia. Era um dos homens mais poderosos de Escócia. Tinha suas falhas, claro, que grande homem não os tinha? Mas ele faria que superassem aquilo.
Uma vez informado sobre a parte mais importante da viagem, Alan procedeu a lhe contar a seu pai o resto, dando conta brevemente do problema acontecido pelo caminho. Seu pai escutava, cada vez mais preocupado, empalidecendo visivelmente para ouvir como seu herdeiro escapava por pouco à morte, duas vezes. Entreabriu os olhos enviesadamente quando Alan o informou das suspeitas de Anna a respeito da implicação do MacRuairi e depois transbordou de emoção ao conscientizar-se da conexão que tinha com a guarda fantasma de Bruce.
—Bom trabalho — disse a Anna, quem sorriu radiantemente pela adulação.
Alan deu a versão de Arthur de sua retirada, mas seu pai também pareceu ter problemas em compreendê-lo.
Ao final, adiantou-se e a agarrou da mão.
—Não sofreste nenhum dano, filha?
Anna negou com a cabeça e ele a acolheu entre seus grandes e robustos braços, esquecendo aparentemente sua ira. Por um momento, Anna voltou a sentir-se como uma menina e a necessidade de chorar todas suas penas sobre sua túnica de finos bordados se apoderou dela. Arthur seguia inimizado com ela. O ataque não tinha mudado nada. Por acaso o tinha piorado. Tinha a esperança de que depois de seu bate-papo ele tivesse mudado de parecer. Arthur sentia algo por ela, mas havia um motivo que o fazia conter-se. Esses dois dias de caminho não lhe tinham dado novas perspectivas. Anna não podia livrar-se da sensação de que havia algo estranho no ataque. E tampouco podia tirar da cabeça a inquietação que lhe provocava suspeitar que ele ocultava algo.
Seu pai se voltou para trás para olhá-la.
—Está cansada. Já ouvirei o resto da história pela manhã.
Assentiu, aliviada de que o pior já tivesse passado. Ao menos isso é o que pensava.
—E, Alan — disse John de Lorn a seu filho—, faz que Campbell e seu irmão se reúnam conosco. Parece que sir Arthur tem que responder por muitas coisas — acrescentou dirigindo um olhar a Anna que a fez estremecer da cabeça aos pés.
Arthur estava preparado para a citação quando esta chegou. Não esperava, entretanto, que se incluísse nela a seu irmão.
—Que diabos tem feito? —perguntou Dugald com suspeita à medida que atravessavam o barmkin em direção à torre da comemoração — por que tem Lorn tanta vontade de ver-te?
Arthur e seu irmão subiram a escada compassando sua marcha com o tinido de seus peitilhos e suas armas.
—Suponho que tem perguntas que fazer em relação aos homens que nos atacaram.
—E o que sabe você deles?
—Nada — disse Arthur ao mesmo tempo que abria a enorme porta de madeira que dava entrada à torre.
—O que tenho eu que ver em tudo isto?
Arthur olhou ao Dugald. A expressão de seu irmão era um reflexo da impaciência que ambos sentiam. Ao Dugald gostava tão pouco como a ele que o chamassem a presença de Lorn. Apesar de que seu irmão e ele lutassem em diferentes lados da guerra, ainda podiam coincidir em seu ódio para o John de Lorn.
—Que me crucifiquem se sei — disse Arthur incomodado por essa incerteza. Um guarda bateu na porta para anunciar sua chegada. Quando lhes fizeram passar, voltou-se e acrescentou—: Mas estamos a ponto de averiguá-lo.
Examinou com rapidez aos ocupantes da sala: Lorn, sentado como um rei em uma poltrona que melhor parecia um trono com uma expressão impossível de discernir; Alan MacDougall de pé junto ao muro, com cara de não saber muito bem o que ocorria; e Anna sentada em um banco em frente ao fogo com aspecto de estar extremamente inquieta. À exceção do único guarda que os tinha admitido para deixá-los depois às ordens de Lorn, não havia nenhum outro membro presente de seu meinie.
Tratasse do que se tratasse, era um assunto pessoal. A pontada de inquietação que Arthur sentia se converteu em uma punhalada em toda regra. Lorn, imperioso filho de cadela, não os convidou a sentar-se, de modo que permaneceram de pé frente a ele. O ódio cego que atendia a alma de Arthur cada vez que se encontrava rosto o rosto com o homem que tinha assassinado seu pai não diminuía. Contraiu suas feições de modo que não revelassem emoção alguma, mas o fogo que queimava seu peito e a necessidade de afundar uma adaga no negro coração de Lorn eram algo mais difícil de reprimir.
—Desejava nos ver, milorde — disse Dugald com um tom que não mostrava deferência alguma.
Lorn tomou seu tempo em deixar a pluma a um lado e logo se recostou na poltrona para olhá-los. Tamborilou com os dedos sobre a mesa. Quando respondeu, não foi ao Dugald, a não ser a Arthur: —Ouvi que tiveram uma viagem cheia de peripécias.
Algo no tom de sua voz fez que soassem os sinos de alarme no mais profundo da cabeça de Arthur. Teve que controlar-se para não olhar a Anna. O que lhe teria contado?
—Sim —disse — Tivemos a sorte de escapar à primeira orda de velhacos, mas não à segunda. Fizemo-nos fugir bem a tempo.
Lorn o escrutinou com tal parada que lhe puseram todos os nervos de ponta.
—Isso eu ouvi. Meu filho não teve mais que louvores para suas habilidades na batalha. Conforme afirma, jamais viu nada igual. —Dugald se voltou bruscamente para Arthur com o rosto circunspeta — Tenho que admitir que me surpreendeu ouvir a descrição do enfrentamento —acrescentou Lorn com um sorriso. Mas seu olhar não tinha nada de divertido. Era frio e calculador — Me pergunto por que jamais antes tínhamos visto isso em você.
Lorn desviou seu olhar para o Dugald, avaliando sua reação. Infelizmente, a expressão do irmão de Arthur não fez a não ser admirar mais.
—Sir Alan é mais que generoso com suas adulações, meu senhor.
Alan deu um passo à frente, em claro desacordo com a forma de perguntar de seu pai.
—Sir Arthur foi chave na hora de derrotar aos rebeldes, pai, e ao salvar minha vida. Temos uma dívida de gratidão com ele.
—Sim, é obvio —disse Lorn — Estou muito agradecido. Mas me pergunto… — Fez uma pausa e tamborilou com um dedo sobre a mesa— pergunto-me se poderiam jogar um pouco de luz sobre o resto do ataque.
—É obvio — disse Arthur. Mas não gostava absolutamente dos roteiros que tomava aquele assunto. Lorn era um filho de cadela arrevesado. Gostava de ter aos o rodeavam em um punho. Acaso suspeitava algo? Quem podia saber.
—Minha filha acredita ter identificado a quem fosse meu irmão político, Lachlan MacRuairi, como um desses rufiões, e também pensa que pode ser um dos guerreiros secretos dos que tanto ouvimos falar.
—Cruzei-me com esse homem uma ou duas vezes, mas não o conheço tão bem para afirmar nenhuma coisa nem a outra. Se lady Anna tiver dúvidas, temo que eu não posso ajudar a resolver.
Arthur caminhava pela corda frouxa. Uma negação terminante poderia chamar suspeita, mas queria manter a semente da dúvida plantada na mente de Lorn, cujos traços se endureceram, fazendo patente o ódio que professava pelo que fosse seu cunhado.
—MacRuairi é uma serpente traiçoeira, um assassino desumano que venderia a sua mãe por uma peça de prata, mas há uma coisa que jamais faria, e é se dar por vencido. Jamais o vi retirar-se em uma batalha.
Bàs roimh Gèill. «Morrer antes que render-se» formava parte do credo dos Guardiões das Highlands, mas parecia funesto que essa frase desse ao Lorn algo no que fincar o dente. A corda frouxa pela que Arthur caminhava-se fazia mais instável por momentos.
Deu de ombros sem comprometer-se.
—Então é possível que não fosse ele?
Lorn voltou a dirigir o olhar a sua filha, quem o olhou nos olhos antes de responder:
—Não posso estar segura, pai. Estava muito escuro. Somente percebi seu rosto com claridade por um instante… e fazia anos que não o via.
Arthur sentiu uma opressão no peito. Tentava protegê-lo. Teria notado Lorn também disso?
—Havia algo que quisessem de mim, meu senhor? —perguntou Dugald cada vez mais impaciente.
Em outras palavras: que demônios fazia ele ali? Uma pergunta que também interessava Arthur.
—Estou chegando a esse ponto.
Lorn voltou a tamborilar sobre a mesa, e Arthur começou a imaginar-se que agarrava sua maça de guerra e punha fim a essa aporrinhação de uma vez por todas.
—Não estou seguro de que firmaram tanto do propósito que tinha a viagem ao norte para ver o Ross — disse ao Dugald — Era pra retomar as conversações para o compromisso de matrimônio entre minha filha e sir Hugh Ross, com a esperança de que uma aliança entre nós animaria ao conde a enviar tropas de apoio na guerra contra Bruce. Infelizmente, as coisas não fossem como tínhamos planejado.
Dugald fulminou de relance Arthur com o olhar.
—Ah, não?
—Não. —O olhar de Lorn voltou a recair sobre ele — Ao que parecia, sir Hugh percebeu que os afetos de minha filha estavam comprometidos com outra causa. Sabes algo disso, sir Arthur?
Arthur viu pela extremidade do olho como Anna empalidecia e apertava as mãos com força sobre seu regaço. Que diabos havia dito? Os dentes lhe chiavam. Sentia-se esquecido no aposento e sem espaço para mover-se.
—Sim.
—Pensei que talvez fosse assim —disse Lorn. O brilho de raiva de seu olhar disse a Arthur que provavelmente adivinhava parte do acontecido. Esperou tensos, preparando-se para o pior. O nó cada vez se apertava mais. Lorn se voltou para o Dugald. As razões pelas quais seu irmão estava ali tinham ficado claras — Diante dos dados e recentes acontecimentos, eu gostaria de propor uma aliança diferente. Uma que faria mais sólidos os laços entre nossas famílias e mostraria minha gratidão para sir Arthur pelo serviço que tem feito a meu filho, assim como também asseguraria a felicidade de minha filha. —Cada um dos músculos do corpo de Arthur ficou tensos enquanto esperava o que estava por chegar. Perguntava-se se ela teria algo ver com isso, mas os olhos de Anna não mostravam mais que surpresa quando seu pai disse—: Eu gostaria de propor um compromisso de bodas entre sir Arthur e minha filha.
Dugald soltou uma gargalhada.
—Um compromisso?
A boca de Lorn adotou um gesto severo.
—Acredito que isso é o que disse. Podemos falar sobre os detalhes mais tarde, mas tenham por seguro que o dote de minha filha é mais que generoso. Inclui certo castelo que acredito pode ser de interesse para ti.
Tanto Arthur como seu irmão ficaram de pedra.
Foi Dugald quem acabou por perguntar:
—Innis Chonnel?
Um sorriso retorcido se desenhou na boca de Lorn.
—Sim.
Arthur não podia acreditar. A fortaleza dos Campbell do lago Awe que tinham sido arrebatado a seu clã fazia anos, devolvida por casar-se com a mulher que queria mais que a tudo no mundo. Um autêntico pacto com o diabo. Por um momento, ficou duvidando, muito mais tentado do que gostaria de admitir. Mudar de bando era algo habitual naquela guerra. Mas ele não podia fazer. Inclusive no caso de que condescendesse a aliar-se com o homem que tinha assassinado a seu pai, havia muitas pessoas que contava com ele: Neil, o rei Robert, MacLeod e o resto dos membros dos Guardiões das Highlands. E tampouco podia ignorar sua própria consciência. Acreditava no que estavam fazendo.
A devolução do castelo dos Campbell, embora fosse ao irmão mais novo, bastou para convencer ao Dugald, que se voltou para Arthur.
—Eu não tenho objeção. Arthur?
Todos os olhos se voltaram para ele, mas somente era consciente de dois pares: os de Anna, que lhe observavam com o coração neles, e os de Lorn, que o contemplavam com a suspeita refletida.
Até no caso de que não tivesse intenção de levar a cabo, Arthur sabia que devia aceitá-lo para dissipar todo receio. Aquele compromisso era uma prova de lealdade. Tratava-se tanto de assegurar a felicidade de Anna como de provar sua aliança. Sua consciência liberava uma batalha com sua noção do dever, mas não durou muito. Não tinha outra opção. As espadas estavam em alto. Não podia pensar em quanto o odiaria Anna quando averiguasse a verdade.
—Será uma honra tomar lady Anna como esposa.
Talvez o pior fosse que, em realidade, dizia a sério.
Capítulo 19
Anna tinha tudo o que queria. Por que se sentia então tão miserável? Tinha passado uma semana desde dia em que seu pai anunciasse por surpresa o compromisso em sua câmara. Uma vez reposta da comoção, casar-se com o homem que amava… era algo que a deixava em um estado de euforia. Nada poderia fazê-la mais feliz. Exceto, talvez, a notícia de que Bruce decidisse que a coroa não lhe pertencia e desaparecesse nas ilhas Ocidentais como tinha feito anteriormente. Mas faltava muito ainda para que se cumprisse esse sonho.
Enquanto ela estava mais que entusiasmada, Arthur dava a impressão de ter que suportar uma pesada carga. Desde aquele dia se comportava com uma correção irrepreensível, cortês durante as refeições e também nas poucas ocasiões em que se cruzavam os caminhos de ambos. Inclusive permitia que Escudeiro o seguisse em qualquer parte sem queixar-se. A simples vista era o perfeito prometido, mas esse era o problema, que somente era a simples vista. Sua formalidade, esse distanciamento progressivo, reduzia sua felicidade ao mínimo. Cada vez que dizia: «Tivestes bom dia hoje, lady Anna?» ou: «Gostaria de outra taça de vinho, lady Anna?», provocava uma ferida diminuta em seu coração. Não podia entendê-lo. Segundo ele mesmo admitia, lhe importava. Então por que não se dava conta de que aquilo seria perfeito para ambos?
À medida que passavam os dias custava mais convencer-se de que isso era o que ele queria. Afastava-se dela por muitos momentos. Algo lhe pesava. Estava uma semana mais perto do final da trégua, já que os idos de março se aproximavam com presteza, mas sua crescente ansiedade se deixava ver em todo momento e não parecia que fosse por causa da batalha em floração. Gostaria que confiasse nela, mas rechaçava qualquer intento de diálogo, embora tampouco contavam com muitas oportunidades. Além dos breves intercâmbios das refeições, a única vez que tinha procurado sua companhia fosse poucos dias atrás, quando insistiu em acompanhá-la ao priorado do Ardchattan. Não esperava nenhuma missiva, assim não tinha nada que lhe ocultar. Talvez seu pai não pusesse já objeção alguma a que contasse a Arthur qual era seu papel na transmissão das mensagens. O compromisso parecia eliminar todas as suspeitas que ficassem em relação aos Campbell. À medida que se aproximava a guerra e que se intensificavam as preparações para a batalha, os Campbell passavam mais tempo junto a John de Lorn e de Alan, algo que Anna queria identificar como um sinal do degelo dessa geleira que significavam as velhas rixas.
Suspirou e passeou o olhar ao redor do aposento, enquanto sua criada terminava de lhe arrumar o cabelo. Era o sexto dia de agosto, um dia mais perto do fim da trégua. Ao olhar pela janela de sua câmara na torre viu um birlinn deitando a baía, o maior porto de ancoragem do castelo. Era um acontecimento habitual, algo que não teria chamado sua atenção a não ser pela rapidez a que se deslocava. O reluzente navio de madeira mal tinha chegado à borda quando seus ocupantes saltaram pela amurada e correram para as portas da fortaleza. O coração lhe deu um tombo, consciente de que algo estava passando. Sem incomodar em por o véu, baixou a escada da torre correndo e se apresentou no pátio de armas ao mesmo tempo que seu pai recebia ao contingente de homens do birlinn: os MacNab.
—Que novas trazem? —perguntou seu pai.
O rosto do capitão dos MacNab era desolador.
—O rei Hood, milorde. Está a caminho.
Anna ficou sem fôlego, seu sangue congelado pelo medo. Chegava o momento, o dia que tanto tinha temido e desejado ao mesmo tempo. A batalha que poderia significar o fim da guerra.
O castelo era um tumulto. Os guerreiros, agrupados, pareciam comovidos pela excitação, ansiosos pela oportunidade de destruir ao inimigo. Não obstante, as poucas mulheres que rondavam por ali tinham umas reações muito diferentes: preocupação e medo, exatamente o mesmo que sentia Anna. Seu olhar procurou Arthur de maneira instintiva. Também lhe afetavam as notícias. Observava-a com uma intensidade ardente que não via nele desde o ataque da floresta. Ficaram-se olhando uns instantes até que Arthur voltou o olhar para os MacNab.
O pai de Anna fez passar aos recém chegados ao grande salão. Anna os seguiu, ansiosa por saber tanto como pudesse. Infelizmente, os MacNab não tinham muita mais informação. Um de seus rastreadores lhes alertou de que Bruce tinha saído do castelo do conde de Garioch em Inverurie com tropas de ao menos três mil homens e se dirigia para o oeste. Três mil homens contra os oitocentos de seu pai! Não obstante, não sabiam se tinham intenção de dirigir-se primeiro ao Ross ou ao Lorn.
Bruce não perdia tempo. Estaria preparado para atacar assim que expirasse a trégua. Por Deus bendito, aqueles bárbaros estariam chamando a suas portas para a semana próxima.
Sua mãe e suas irmãs se apressaram a baixar ao salão para ouvir a comoção. Ao encontrar-se com ela depois da multidão, perguntaram-se pelo que acontecia. Anna as pôs em dia rapidamente e viu seu próprio medo refletido na inquietação de seus rostos. Era um dia que todos esperavam, mas então quando começavam a dobrar os sinos.
—Tão logo? —disse sua mãe, presa do medo — Mas se apenas acaba de se recuperar.
—Não lhe acontecerá nada, mãe — repôs Anna, tentando convencer-se também a si mesmo.
Mas não era seu pai o único que preocupava a Anna. O que aconteceria…? Não, não podia pensar nisso. Arthur retornaria. Tudo estariam logo de volta. Não obstante, a incerteza não se desvanecia. A arbitrariedade da guerra, isso era precisamente o que Anna sempre tinha desejado evitar. Por que tinha que apaixonar-se por um cavalheiro?
A reunião durou um momento mais. Ao entrar no salão perdeu a pista de Arthur e seus irmãos, mas assim que o bate-papo derivou para uma missão de reconhecimento, viu-o adiantar-se para a mesa de cavalete do estrado no que seu pai estava sentado junto a alguns de seus homens e o capitão MacNab. Quando Anna adivinhou o que estava a ponto de fazer lhe gelou o coração. Quis chamá-lo, lhe dizer que não o fizesse, mas era consciente de que isso era impossível, e Arthur fez justamente o que ela pensava.
—Eu irei, milorde — disse.
John de Lorn olhou para ele e assentiu, obviamente agradecido de que se apresentasse como voluntário. Alan também se ofereceu a ir, mas seu pai se negou, alegando que o necessitariam no castelo. Ao final, decidiu-se que seu irmão Ewen lideraria o grupo de reconhecimento, que também incluía os irmãos de Arthur.
Não perderam tempo. Em pouco menos de uma hora já estavam reunidos no barmkin para partir. Anna ficou ali de pé junto a sua mãe, sentindo-se como se estivesse dando voltas em um redemoinho sem nada ao que agarrar-se. Observava com o coração em um punho como Arthur se preparava para a marcha. Este acabou de assegurar seus pertences ao cavalo, tomou as rédeas e se situou ao pé do animal, disposto a montar. A Anna deu um tombo o coração. Acaso pretendia partir sem lhe dizer adeus?
Se essa era sua intenção, deveu mudar de idéia. Deu as rédeas a um dos cavalariços e se voltou para dirigir-se para ela. Tinha a mandíbula tão tensa como os ombros, como se temesse enfrentar-se com algo desagradável. «Eu», pensou Anna, sentindo uma pontada no peito.
—Lady Anna — disse Arthur com uma leve inclinação da cabeça.
A mãe e as irmãs deram a volta sem muita sutileza protegendo-os quanto podiam do resto da multidão para lhes dar um pouco de privacidade. Mas Anna seguia sendo plenamente consciente de que não estavam sozinhos.
—Têm que partir?
Odiou a si mesma por perguntar, mas não pôde evitá-lo. Sabia que esse era seu trabalho, mas não queria que partisse. Sempre seria assim?
—Sim.
Houve uma pausa tão larga que pareceu definitiva.
—Quanto tempo estará fora?
Seus olhos brilharam de um modo estranho, mas o brilho desapareceu antes que Anna pudesse reconhecer sua origem.
—Depende do rápido que se aproxime o exército. Um par de dias, talvez mais.
Ela ficou olhando seu bonito rosto, tentando memorizar as duras linhas de seus traços, as cicatrizes, o estranho dourado ambarino de seus olhos.
—Tomará cuidado?
Era uma pergunta estúpida, mas tinha que fazer de todas formas. Um simulacro de sorriso apareceu nas comissuras da boca de Arthur.
—Sim.
Manteve-lhe o olhar durante um instante mais, como se também ele tentasse retê-la na memória. Ela nunca tinha visto tal expressão de desconsolo em seu rosto. Um calafrio de pavor percorreu sua nuca. «É a guerra — disse — Está centrado na batalha que tem diante de si.»
Arthur tomou sua mão e a levou aos lábios fazendo que a estampagem cálida de seus lábios irradiasse por toda sua pele.
—Adeus, lady Anna.
Algo no tom de sua voz lhe rasgou o coração. Quando ele se voltou para partir, Anna ficou com vontade desesperada para voltar a chamá-lo. «O tipo de homem que está sempre olhando para a porta…» Não. Convenceu a si mesma de que se comportava como uma parva. Não a estava abandonando. Simplesmente estaria fora uns dias. Mas por que lhe parecia que aquela despedida era para sempre?
Então, como se não pudesse conter-se, Arthur deu meia volta, agarrou-a pelo queixo e baixou a cabeça para beijá-la. Seus lábios acariciaram os de Anna em um suave e terno beijo que fez vibrar seu coração. Aquele beijo tinha sabor de nostalgia. A dor. E a arrependimento. Mas sobre todas as coisas, tinha sabor de despedida. Anna queria prolongá-lo, queria que durasse mais, mas antes que lhe desse tempo a reagir, o beijo tinha acabado. Arthur lhe soltou o queixo, manteve o olhar por um segundo agonizante e partiu. Não voltou a olhar atrás. Nenhuma só vez. Ela ficou olhando sua partida, aniquilada, sem saber muito bem o que tinha ocorrido. Permaneceu tocando os lábios em uma tentativa de apreender o calor e seu sabor por tanto tempo como fosse possível. Mas antes que o último dos homens saísse pelas portas do castelo esse calor já era história.
Arthur procurava uma saída e ao fim a tinha encontrado. A viagem de exploração em volta do Este lhe dava a oportunidade de fazer algo que meses atrás parecia impossível: retirar-se da missão. Tinha que fazer algo. Não podia ficar ali e deixar que a situação piorasse. Os dias seguintes a seu compromisso tinham sido insuportáveis. Fingir acabaria com ele. Anna estava tão feliz, tão encantada de casar-se com o homem que a trairia… Cada sorriso indeciso, cada olhar em busca de um consolo que ele não podia lhe oferecer, era como uma gota de ácido que remoia sua consciência. Não era capaz de fazer isso. Embora significasse sacrificar sua missão. O irônico era que não podia ter escolhido maneira mais efetiva de infiltrar-se nos MacDougall que um compromisso com a filha do senhor das terras. O compromisso, unido ao feito de salvar a vida de Alan, deu-lhe acesso ao centro nevrálgico do poder: o conselho de nobres. Dizia a si mesmo que não sacrificava sua missão. Fazia suficiente identificando às mulheres como as transmissoras de mensagens, passando informação sobre a preparação e efetivos do MacDougall e entregando um mapa do terreno, assim como evitando uma aliança com o Ross, embora isso não ocorresse exatamente da maneira em que o tinha planejado. Estavam nas vésperas da batalha. O rei Robert entenderia.
Tinham passado três dias de sua desastrosa partida e caía a madrugada. Nunca acreditou que lhe custaria tanto despedir-se dela. Mas partir de seu lado, sabendo que possivelmente não a veria de novo, fez-lhe perder toda determinação. Não deveria tê-la beijado, mas ao olhar seus olhos e ver esse rosto de medo e preocupação, não pôde resistir. Era consciente de que jamais voltaria a ter essa sensação de conexão absoluta e precisava desfrutar dela uma vez mais.
Arthur olhou a retaguarda para assegurar-se de que ninguém o tinha seguido e atou o cavalo a uma árvore. Encontrava-se a menos de dois quilômetros do lugar onde os homens de Bruce tinham acampado a noite anterior. Faria o resto do trajeto a pé. Era provável que a essa hora da madrugada os sentinelas disparassem contra tudo que se aproximasse do acampamento sem fazer perguntas e o cavalo o delataria. Seus sentidos se aguçavam à medida que se aproximava do acampamento do rei, antecipando-se a qualquer sinal que delatasse a presença da Guarda que o circundava. Arriscava-se muito chegando sem prévio aviso, mas não havia alternativa. Não tinha tido tempo de combinar um encontro ou enviar uma mensagem a guarda, e a partida de reconhecimento dos MacDougall se preparava para retornar ao castelo de Dunstaffnage ao dia seguinte com o relatório. Ofereceu-se voluntário para fazer patrulha de noite, consciente de que essa seria sua única oportunidade. Sabia que Chefe teria a um dos membros dos Guardiões das Highlands fazendo turno de vigilância, como cada noite, assim tentaria contatar primeiro com algum de seus companheiros.
De repente sentiu um comichão na nuca. Deteve-se o notar a estranha mudança de ar que percebia cada vez que alguém se aproximava. Escondeu-se entre a escuridão da noite e esperou, sabendo de que antes de ver quem se aproximasse o ouviria chegar. Mas passados uns minutos percebeu de que algo não funcionava. Ou o homem se deslocou ou suas habilidades voltavam a falhar.
De novo.
Mas quando conseguiu ver a figura que emergia depois de uma árvore a pouco mais de cinco metros de distância percebeu de que havia uma terceira resposta: o sigilo daquele homem igualava suas capacidades perceptivas. «Maldição.» Não era isso o que necessitava. Emitiu o uivo que iria identificá-lo como presença amistosa. Não obstante, suspeitava que o homem que se aproximava podia ter uma opinião diferente a respeito.
MacRuairi ficou imóvel e apesar da contra-senha apontou com seu arco na direção da que provinha sua voz.
—Quem vem?
—Guardião - respondeu Arthur levantando o visor de aço de seu elmo e saindo de trás da árvore que o resguardava.
Inclusive na escuridão, apreciou o brilho diabólico nos olhos entreabertos do MacRuairi, que deslocou o braço para a esquerda para lhe apontar entre as sobrancelhas. MacRuairi possuía uma habilidade extraordinária para ver na escuridão, algo fatal de lembrar-se justo nesse momento.
—Ides fazer uso da arma? —disse Arthur.
—Ainda não decidi. Uma morte não me parece muito comparada com nove. Poderia alegar que pensei que era um traidor, o qual não estaria muito longe da verdade.
Arthur engoliu a grosseira réplica que foi a seus lábios. Saber que merecia o menosprezo daquele homem, mas não facilitava o fato de ouvi-lo. Ignorou a flecha que lhe apontava e seguiu adiante.
—Acha que não me arrependo do que aconteceu?
—Arrepende-te? Pois te asseguro que não saberia o que te dizer. Parecia desfrutar lutando junto a Alan MacDougall, por não mencionar que salvou sua puta vida.
Apenas os separavam alguns metros, mas MacRuairi não teria errado o tiro nem a centenas de metros de distância.
—Responderei ante o rei e não ante você, Víbora. Tenho que falar com ele.
—Está dormindo.
Arthur apertou os dentes e os punhos. Brigar com o MacRuairi não solucionaria nada, mas não tinha tempo para tolices.
—Pois então terá que despertá-lo. E também a meu irmão.
Ao final, MacRuairi optou por baixar o arco.
—Espero por seu bem que tragas boas notícias - disse, fulminando-o com o olhar — E será melhor que tudo aquilo valha a pena.
Tinha valido a pena? Arthur não teve tempo de pensar nesses termos naquele momento. Não teve tempo de fazer esse tipo de análise. Estava muito ocupado em defender-se e proteger a Anna.
Menos de quinze minutos depois o fizeram passar à tenda do rei. Se Bruce estava dormindo, não havia nada em seu rosto que indicasse que acabava de despertar. Levava seus escuros cabelos penteados, tinha os olhos tão limpos e chicoteados como sempre, além de ir vestido com as perneiras e uma sobreveste negra de finos bordados.
Estava sentado sobre uma arca. A ausência de mobiliário concordava com a ligeireza e a rapidez com as que se deslocava o exército. Ao rei Eduardo nem sequer teria passado pela cabeça fazer campanha sem carregar em seus carros seu equipamento doméstico e sua baixela. Mas detrás de viver como um foragido durante um ano aquartelado entre o povo, Robert Bruce havia se acostumado a contentar-se com muito menos.
A sua esquerda tinha ao Neil, ao qual se via um tanto mais desalinhado, e à direita ao Tor MacLeod, líder dos Guardiões das Highlands. Tanto a expressão deste como a do próprio rei eram desalentadoras. A pergunta que Arthur adivinhou no olhar de seu irmão cortava como uma faca. Seria possível que questionasse sua lealdade?
—Que diabos ocorreu, Guardião? —perguntou o rei.
Arthur narrou da maneira mais sucinta possível os eventos que levaram a sua inesperada viagem ao norte, o compromisso de bodas previsto entre a filha de Lorn e sir Hugh Ross, as esperanças de unir forças de Lorn e a intenção de Arthur de evitar que a aliança se levasse a cabo.
—Conseguiram-no? —perguntou Bruce.
Arthur manteve uma expressão neutra.
—Sim, majestade.
O rei assentiu, agradado. Nenhum dos pressente pareceu perguntar a respeito de como o tinha conseguido. Arthur continuou explicando como tinha obtido que a patrulha se desviasse do grupo dos MacDougall em seu caminho ao norte e afirmou que se viu obrigado a defender-se para proteger sua identidade.
—Assim foi você? —disse MacLeod — Nossos homens do castelo do Urquhart estavam muito zangados porque um só homem conseguisse escapar deles.
—Não de tudo. Oxalá tivesse podido, mas me encurralaram em um escarpado. Não podia lhes contar quem era.
Ninguém disse uma palavra. Todos sabiam tão bem como ele que essas situações eram inevitáveis para preservar sua identidade, mas a nenhum deles gostava.
Depois Arthur passou a explicar a forma em que MacRuairi e seus homens o tinham surpreendido quando voltavam para o Dunstaffnage.
Neil arqueou as sobrancelhas.
—Não os ouviu chegar?
Arthur negou com a cabeça sem dar mais explicações. Referiu a princípio, simplesmente reagiu ao ataque e que depois, ao se dar conta de quem eram, passou a manobras defensivas. Quando chegou à parte em que salvou a vida do Alan MacDougall não ofereceu mais desculpa que a verdade. Somente tentava deter o golpe, matar ao guerreiro fora um acidente.
Neil fez a pergunta que sem dúvida rondava as cabeças de todos eles.
—Mas por que teria que lhe salvar a vida? Proteger ao herdeiro de Lorn não era parte de sua missão. Assassinar a ele seria quase tão bom como assassinar ao próprio Lorn.
Arthur olhou a seu irmão nos olhos sem fugir a verdade.
—Não tentava protegê-lo.
—É pela moça —disse MacLeod, juntando todas as peças — Sente algo por ela.
Arthur se voltou para seu capitão. Não o negou.
—Sim.
—A filha de Lorn! —exclamou Neil sem poder ocultar sua indignação — Maldição, irmão. No que estava pensando?
Arthur não tinha uma resposta para isso. Não havia.
—O que estais dizendo, Guardião? —disse o rei com olhos negros tão duros como o ébano — Uma moça o tem feito esquecer em que lado está?
—Minha lealdade está contigo, meu senhor - disse Arthur com firmeza.
Mas o dardo envenenado do rei ardia.
Neil ficou olhando-o fixamente.
—Mudaste de ideia respeito ao Lorn? Esquece-se do que fez a nosso pai?
Arthur endureceu a expressão de seu rosto.
—É obvio que não. Mas minha vontade de ver a destruição do John de Lorn não se faz extensiva a sua filha. Por isso estou aqui. Preciso sair do castelo de Dunstaffnage.
A sala ficou em um silêncio sepulcral. Arthur notava que o olhar fixo de seu irmão queimava, mas não se atrevia a olhar em sua direção. Tinha falhado. Tinha falhado ao homem que era como um pai para ele. Não queria ver a decepção em seu rosto.
—Está em uma situação comprometida? —perguntou o rei — Há perigo de que o descubram?
Arthur negou com a cabeça.
—A moça sabe que oculto algo, mas não acredito que suspeite de nada.
—Então é a moça a causa de que desejes abandonar a missão antes de cumpri-la?
—A coisa se complicou.
Consciente de quão insuficiente parecia isso, inclusive para si mesmo, explicou que Lorn lhe tinha interrogado sobre o ataque e acrescentou que ao acreditar que o ancião suspeitava algo, viu-se obrigado a aceitar o compromisso.
—Mas isso são notícias fantásticas - disse o rei, contente pela primeira vez desde que Arthur entrasse na tenda — chegastes mais perto de Lorn do que jamais acreditei possível. Sinto muito que a moça esteja implicada, mas não sofrerá verdadeiro dano. O coração de uma jovem sara com facilidade.
Para falar a verdade, o rei, conhecido por seu êxito com as moças, tinha muita mais experiência que ele, mas nesse caso Arthur não acreditava que acertasse. Anna amava com muita bravura. Estava muito cega pelo amor.
—Não posso permitir que abandone —finalizou o rei — Ainda não. Não tendo a batalha tão perto. Necessito-te dentro para que me digas o que é o que se propõem. A informação que nos transmite é muito valiosa. A vitória está muito perto para deixá-la escapar no último momento. John de Lorn é um demônio com o coração podre, mas não por isso subestimo suas táticas de guerra nem sua capacidade para a surpresa.
Arthur sabia que o rei não atenderia a razões. Robert Bruce estava desejando desforrar-se. Lorn o tinha vencido antes e essa vez não permitiria que nada se interpusesse em seu caminho. O coração de uma mulher era um pequeno preço a pagar.
—Atacaremos o castelo na madrugada do dia dezesseis —disse MacLeod, dando a impressão de advertir sua frustração — Só serão alguns dias mais.
Mas ele não conhecia Anna MacDougall. Arthur teria preferido enfrentar-se às endiabradas máquinas de guerra do primeiro rei Eduardo que tentar resistir diante de Anna durante «somente uns dias mais».
C O N T I N U A
Capítulo 11
Anna jogou o capuz para trás ao mesmo tempo que entrava na câmara de seu pai. Soltou a cesta na mesa e se sentou juntou a este e sua mãe ao calor das brasas da lareira. Inclusive no verão, os muros de pedra do castelo faziam dele um lugar frio e com correntes de ar.
Sua mãe levantou a cabeça do novo estandarte de seda no qual trabalhava e a olhou, sentida saudades.
—De onde vem, Annie querida? É tarde.
—Fui levar bolos aos monges do priorado —respondeu Anna inclinando-se para beijar sua mãe.
Encontrou-se com o olhar de seu pai. A expressão deste se escureceu ao ver respondida sua tácita pergunta com uma leve negação de cabeça. Tossiu antes que sua esposa pudesse fazer mais objeções. Embora Anna soubesse que o fazia e que propósito, aquele áspero e úmido som a preocupava.
—Não me falou de uma nova infusão de ervas do pai Gilbert que ajudaria a aliviar o encharcamento de meus pulmões?
Sua mãe se sobressaltou, afastou seus bordados e ficou em pé de repente.
—Tinha esquecido. Direi ao Cook que o prepare agora mesmo.
Assim que a porta se fechou atrás dela seu pai disse:
—O rei Eduardo não respondeu?
Anna negou com a cabeça.
—Já deveríamos ter notícias dele.
Seu pai se levantou e começou a perambular diante da chaminé, enfurecendo-se mais a cada passo que dava.
—Esses asquerosos rufiões de Bruce devem tê-lo interceptado. Parece que a metade de nossas mensagens não chega a seu destino, nem com a ajuda das mulheres — disse apertando a mandíbula — Mas dado que não ouvimos nada sobre o destacamento de soldados, acredito que podemos supor que não enviarão a ninguém. O jovem Eduardo está muito ocupado tentando salvar sua própria guarida para preocupar-se com a nossa.
Anna não podia acreditar que depois de tudo o que tinha feito seu pai pelo primeiro rei Eduardo, o novo rei o abandonaria de tal modo.
«Que se deita com crianças…»
Veio a sua mente essa velha história, mas Anna a tirou da cabeça porque em certo sentido lhe parecia desleal. Seu pai não teve outra opção. O primeiro rei Eduardo era muito poderoso. Depois da derrota de Wallace em Falkirk, ou se fazia aliado do rei inglês ou lhe confiscavam as terras. Quando Bruce usurpou a coroa, a aliança se fez mais necessária ainda. Se Bruce e os MacDonald estavam em um lado, os MacDougall não podiam mais que apoiar ao outro: Inglaterra.
—Não deveríamos tentar enviar outra missiva?
—Não temos tempo — espetou seu pai, claramente molesto pelo que percebia como uma pergunta estúpida — Os ingleses se movem com lentidão. Demorariam semanas em chegar tão ao norte carregando toda essa baixela e esses móveis para estar cômodos. Inclusive no caso de que Eduardo mudasse de opinião, necessitaria dias para reunir aos homens. O rei Hood estaria aqui junto a sua tropa de assassinos salteadores de caminhos antes que aos ingleses desse tempo de encher seus carros de ninharias.
Anna tentava não tomar como algo pessoal a cólera do pai. Tinha todo o direito a perder os nervos. O inimigo estava virtualmente em cima e ninguém vinha em sua ajuda. O conde de Ross, igual ao rei Eduardo, ainda não tinha respondido a sua petição de unir forças. Ia ficando patentemente claro que estariam sozinhos ante Bruce: oitocentos homens contra os três mil com que contava o usurpador conforme o informe.
O medo prendia a garganta. Os MacDougall eram ferozes combatentes e Lorn um dos melhores generais de Escócia na batalha, mas poderiam superar tal desvantagem? Seu pai estivera a ponto de derrotar ao Bruce anteriormente, mas então o rei foragido teve que fugir com umas poucas centenas de homens ante suas mais numerosas forças. Nessa ocasião seriam os MacDougall quem estaria em clara inferioridade numérica. «Pouco importa», pensou Anna com integridade. Seu pai ganharia de todos os modos. Somente um MacDougall valia por cinco rebeldes. Mesmo assim, por mais vezes que se dissesse que John de Lorn superaria inclusive a pior das apostas, seu leal coração não podia negar que existia a mais mínima, a ínfima possibilidade de que perdessem.
«Perder.»
Um calafrio lhe percorreu o corpo. Somente pensar nessa palavra lhe parecia a mais vil das blasfêmias. Não podia permitir que isso ocorresse. As conseqüências eram muito execráveis para as considerar. Mas tudo aquilo que apreciava, todas suas esperanças de um futuro feliz, parecia pender sobre a ponta de um alfinete, ou, neste caso, de uma espada. O mais leve empurrãozinho faria que tudo se precipitasse no vazio. Os grossos muros do castelo de repente lhe pareciam finas vidraças, dispostas a romper-se em mil pedaços. Sua situação era complicada, inclusive até desesperada. Contudo, havia um modo de conseguir atenuá-la um pouco.
O tempo pareceu deter-se. O pavor se apoderava de seu estômago em um tenso nó e o formigamento que isso provocava aumentava à medida que Anna via do que seria obrigada a fazer. A solução espreitava no mais profundo de sua mente desde fazia meses, mas não queria considerá-la.
Anna se aferrou às abas de sua capa como se fossem uma corda a qual pudesse agarrar-se.
—E o que passa com Ross? —perguntou em voz baixa — Ainda fica tempo para que se apresente.
Seu pai a olhou com certo desdém.
—Sim, mas como digo já, não o fará.
Era reprovação o que advertia em seu olhar? Acaso se arrependia de ter dado opção? Anna aspirou profunda e entrecortadamente em uma tentativa de controlar o ritmo frenético de seu pulso. Sua gelada pele se cobriu com uma fina pátina de suor. O peito lhe oprimia tanto que mal podia respirar. Todo seu ser se rebelava contra o que estava a ponto de sugerir. Mas não ficava alternativa. Um marido era um pequeno preço a pagar em comparação com a sobrevivência de seu clã. casaria-se até com o mesmo diabo se fosse necessário.
—E se lhe desse um motivo para pensar melhor? —Seu pai a olhou nos olhos. Anna soube que tinha adivinhado o que sugeria pelo ar de reflexão que adotou seu olhar, embora talvez isso fosse o que ele esperava dela de um princípio — O que passaria se fizesse um rogo pessoal ao conde?
Teve que deter suas palavras. Seus dedos agarravam a lã da capa com tanta força que cortava a circulação. O coração pulsava a um ritmo frenético e martelava em suas têmporas. O estômago se decompôs. «Tudo irá bem. Eu me encarregarei de que funcione. Não é um homem tão temível.» Sir Arthur era alto, musculoso, de uma beleza sombria e, não obstante, nunca ficava nervosa em sua presença. Talvez tivesse superado seu medo aos guerreiros.
«Sir Arthur.» O coração deu um tombo. A imagem do cavalheiro apareceu ante seus olhos, mas a afastou de sua mente. Não significava nada para ela. Pouco importava que seu coração tivesse querido voar para ele momentaneamente. Embora as coisas fossem diferentes, ele já tinha expressado com uma claridade dolorosa o que sentia por ela: nada.
Mas teria que passar toda a vida tentando esquecer aquele beijo.
Seu pai esperava que continuasse, mas Anna não era capaz de encontrar as palavras.
—O que aconteceria…? —Anna teve que se deter para clarear a garganta — Se a oferta de sir Hugh segue em pé, estou disposta a aceitar sua proposta de matrimônio. Em muda, talvez o conde veja o benefício de unir nossas forças.
Seu pai não disse nada durante um momento, mas sim ficou estudando seu rosto com uma intensidade tal que a Anna pareceu estar retorcendo-se em seu interior.
—Crê que seguirá te querendo? Não teve nenhuma graça que o rechaçasse.
Ardiam-lhe as bochechas de vergonha de não ter parado pra pensar nessa possibilidade. Seu pai tinha razão. O jovem cavalheiro, ferido em seu nobre orgulho pelo rechaço, ficou uma fúria.
—Não sei, mas merece a pena tentar.
Já tinham machucado seu orgulho há pouco. O que importava um pouco mais ou menos?
—A sua mãe não gostará da idéia — disse John de Lorn olhando para a porta — Os caminhos podem ser muito perigosos com Bruce e seus homens por aí soltos.
Nisso tinha pensado Anna.
—Não se preocupará se Alan me acompanha. Levaremos uma boa escolta.
Seu pai assentiu enquanto acariciava o queixo.
—Sim. Seu irmão te manterá a salvo — disse com um sorriso, enquanto ela tentava mascarar seu desengano. Havia uma parte de Anna que esperava que seu pai se negasse. Este se levantou e a beijou no cocuruto — É uma boa garota, Annie querida.
Em geral Anna transbordava de alegria quando seu pai lhe dirigia um elogio, mas nessa ocasião teve vontade de chorar. Sua felicidade era um pequeno preço a pagar, mas, mesmo assim, era um preço a pagar. Seu pai a beliscou no queixo para que o olhasse os olhos. Anna piscou diante da cálida e úmida bruma do lar.
—Sabe que não lhe pediria isso se tivesse uma alternativa.
Uma solitária lágrima escorregou por sua bochecha. Tremia-lhe a boca, mas se esforçou por sorrir.
—Sei.
Naquele momento supunha que era sua única esperança. Não importava quão mau parecesse. Faria tudo o que estivesse em sua mão para assegurar a aliança.
De todos os modos tampouco havia ninguém que se interessasse por ela.
Entretanto, quando Anna abandonou os aposentos de seu pai, todas essas lágrimas que estivera agüentando saíram precipitadas em uma corrente de esperança extinta, uma esperança que nem sequer era consciente de estar albergando.
A volta de Arthur ao castelo, sozinho, não foi tão difícil de explicar como imaginava. Lorn estava ansioso por ouvir um relatório do que seu filho tinha descoberto a respeito de seus inimigos do oeste. A luta pela supremacia entre os três principais ramos dos descendentes de Somerled, os MacDonald, MacDougall e MacRuairi, levava anos dominando a política das Highlands Ocidentais. Quando morreu o último dos chefes do clã MacRuairi, deixando a sua filha Christina das Ilhas como única herdeira ao trono, estes perderam poder e o terna se reduziu a dois. Lachlan e seus irmãos eram todos filhos bastardos, um título que em seu caso era completamente castigo.
A informação de Ewen oferecida por Arthur a respeito da mobilização de tropas dos MacDonald ao longo da costa ocidental não era nada surpreendente, mas mesmo assim provocou um substancial arrebatamento de fúria no Lorn, e também inquietação, apesar de que procurasse ocultá-lo. Embora talvez não tanta como devesse, o qual o fazia perguntar-se o que teria planejado aquele conspirador briguento. E agora, graças a seu descobrimento no priorado, sabia perfeitamente como averiguar.
Mas como sua volta ao castelo foi em uma hora tardia, sua reunião com lady Anna teria que esperar até a manhã seguinte. dizia a si mesmo que estava inquieto simplesmente porque teria que encontrar um motivo para algo que seria como uma mudança de parecer repentino: em lugar de evitá-la, inventaria desculpas para estar com ela. Mas tampouco queria dar falsas esperanças à moça. Apesar de ter cometido o engano de beijá-la, e Deus, um enorme engano tinha sido aquele, uma relação entre eles era algo impossível. Sabia que não seria fácil. Certamente a moça teria passado toda a semana pensando naquele beijo. Deus sabia que ele mesmo não tinha sido capaz de pensar em outra coisa.
Embora já tinha visto ela cruzando o jardim de Ardchattan, quando a viu entrar no grande salão na manhã seguinte seus sentidos se avivaram como se fosse a primeira vez. Tudo parecia estar mais vivo, mais intenso. Jamais antes o tinha afetado tanto a presença de alguém como fazia nesse momento lady Anna MacDougall. encantou-se dela, de cada um dos detalhes, de cada matiz, das mechas de cabelo dourado que escapavam de seu véu azul à altura da fronte e as têmporas até os finos bordados de seda do cotehardy que rodeava sua figura em todos os lugares apropriados.
«Não…»
Deixou cair o olhar sobre seus seios. Ficou com a boca seca. Via, embora fossem imaginações dele, o mal esboçado relevo de seus mamilos perolando essa parte do tecido. Assaltaram-lhe as lembranças e uma onda de calor saiu de sua virilha. Pensar no tato daquela exuberante suavidade fez que endurecesse seu pau. Que impressionante tinha sido embalar esse seio, sentir o peso dessas carnes perfeitamente arredondadas sobre a palma de sua mão ao mesmo tempo que seu polegar acariciava o teso broto de seu mamilo. Amaldiçoou para si, subitamente incomodado por aquelas lembranças, muito viscerais, em conjunto.
Estava quente. Excitado. Faminto.
Como demônios ia olhar a moça sem lembrar-se das sensações que procurava ter seu corpo pego ao dela? Como poderia ver o sensual arco rosado de sua boca sem recordar quão doce sabor, a suavidade daqueles lábios sob os seus, e que o erotismo de suas línguas entrelaçadas o tinha feito entrar em um torvelinho de desejo mais forte que qualquer outra coisa que houvesse sentido alguma vez? Jamais poderia olhar essa pálida pele suave como a de um bebê, que era como veludo ao tato, sem recordar como a havia tocado.
Deus, quão único queria era atirá-la na cama, enrolar suas pernas a sua cintura e afundar até esquecer-se de tudo. Jesus, tinha que deixar de pensar nisso. Tinha que parar de torturar-se com coisas impossíveis. Sempre tinha sido capaz de reprimir seus impulsos, mas com a Anna era diferente.
Porque ela era diferente. E não fazia nenhuma graça reconhecê-lo.
Arthur se dava conta de como o observava seu irmão, mas não podia afastar o olhar. Seu coração pulsava mais depressa a cada passo que ela dava e cada um de seus nervos ficava em tensão enquanto se preparava para o momento em que ela se inteirasse de sua presença. Mas assim que a teve mais perto percebeu uma estranha pontada. Algo não ia bem.
Não sorria. Seus olhos não brilhavam com alegria e travessura. E sua risada, esse leve e efervescente som ao que poderia ouvir durante horas, permanecia em completo silêncio. acostumou-se tanto a seu perpétuo bom humor, ao despreocupado encanto com o que parecia iluminar os aposentos, que o vazio deixado por sua ausência obscurecia o grande salão.
Maldição. teria feito mais dano de que pensava? A culpa o atormentava.
Por um instante pensou que passaria junto a ele, mas então notou o peso de seu olhar. ficaram contemplando o um ao outro. A quietude era absoluta.
Esperou ver sua reação. Esperava presenciar como a cor subia por suas bochechas, como lhe cortava a respiração e se acelerava o pulso em seu pescoço. Esperava que se delatasse. Mas em vez disso ficou em guarda.
Lady Anna levava todos seus pensamentos e sentimentos escritos no rosto. Essa era uma das coisas que Arthur encontrava tão cativantes e irresistíveis dela. A inocência e a emoção infantil que mostrava, sua preciosa vulnerabilidade. Mas essa expressão, antes sempre acessível, permanecia oculta.
Percebeu a frieza de seu olhar por um breve instante dantes que afastasse e passasse por ele. Como se tivesse deixado de existir. Como se ela jamais se derretera em seus braços. Como se o beijo no que não podia deixar de pensar jamais existira para ela. Como se não tivesse estado a ponto de sucumbir sob seu corpo.
Sua indiferença lhe corroía o peito como se de um ácido se tratasse. Queimava. Doía. O fazia perder o controle por completo, sentir a necessidade primitiva de cometer alguma loucura, como empurrá-la contra a parede e beijá-la até que se rendesse a seus pés uma vez mais.
Mas ele era um homem que mantinha o controle. refreava-se. Era diferente. Não tinha necessidades de tal tipo. E entretanto, com um só olhar de frieza, Anna MacDougall conseguia tirar dele os impulsos bárbaros que levava no sangue.
Ao que parecia tinha conseguido seu objetivo. Seu cruel rechaço sortia efeito. Não deixava de ser irônico que se mostrasse indiferente justo quando ele desejava que não fosse assim. Ou pode ser que nunca tivesse estado interessada nele. Talvez o único que queria fosse vigiá-lo.
azedou a expressão e se o flexionaram os músculos, mais molesto por esse pensamento do que gostaria de admitir. Por desgraça, seu irmão se mostrava perceptivo. Dugald simulou um calafrio.
—Vá, parece que faz um pouco de frio por aqui. Acredito que a dama já esqueceu o capricho, irmãozinho. Com o tanto que tentou, pensei que estaria mais contente — disse, fazendo uma pausa para negar com a cabeça — Será possível que ao fim te tenha feito cair uma mulher? Acreditava que isso não aconteceria nunca.
Arthur se recostou sobre a parede de pedra que tinha trás de si, aparentando uma indiferença que não sentia. Era certo que gostava dela, mas antes morto que deixar que Dugald conhecesse sua debilidade.
—Não é mais que uma moça apetecível.
—Mais apetecível ainda porque não pode tê-la.
Arthur encolheu os ombros e deu um longo gole a seu cuirm até esvaziar a taça.
—O que eu quero dela não é algo que possa me dar uma inocente jovem da nobreza.
Dugald riu e lhe deu uma palmada no braço.
—Compartilho sua dor, irmãozinho. Eu mesmo estou sentindo um pouco parecido. Sei de uma moça com uma boca talentosa que faria bastante por aliviá-lo. Mandarei a ti.
Arthur desviou o olhar para o tablado em que se acabava de sentar lady Anna. Tentava pelo menos. Tentava. Mas não lhe interessavam as mulheres de seu irmão. Franziu o cenho em um meia sorriso.
—Você compartilhando, irmão? Não parece você mesmo. Mas neste caso não será necessário. Não acredito que tenha problemas para encontrar alívio.
Se quisesse, sabia de algumas mulheres entre as que podia escolher. O problema era que não queria. Ao menos, não com elas.
Dugald encolheu os ombros.
—Como deseje — disse aproximando-se dele com um amplo sorriso — Mas não sabe o que te perde. Essa moça poderia deixar seca a uma vaca com a boca que tem e faz umas coisas com a língua que…
A voz do Dugald se confundiu com o ruído de fundo. As perversas habilidades que pudesse representar a fulana do Dugald não lhe interessavam. Arthur voltou o olhar para o estrado. Ela era quem o interessava, maldita seja. Embora Deus sabia que não deveria ser assim. Mas parecia que Arthur fosse invisível, porque não olhou uma só vez em sua direção. Sua irritação crescia a cada minuto. Aferrava com força a taça de estanho e a enchia uma e outra vez à medida que o ágape avançava. Seu plano para aproximar-se dela seria mais complicado do que pensava, mas acreditava que se livraria dele tão facilmente estava muito equivocada.
«Retornou.»
Anna se rebelou ante o inoportuno desejo que arremetia contra seu peito e se obrigou a não olhar em sua direção. A não pensar nele. Sir Arthur não era para ela. Jamais foi. Seu destino estava concretizado. Já tinha tomado sua decisão. Seu pai e seu clã contavam com ela. Era muito tarde para arrepender-se ou pensar melhor, por mais que vê-lo devolvesse todas essas ingratas emoções de repente em uma pancada.
Como não se fixou nele a princípio, quando nesse momento já não podia ver nenhuma outra pessoa? Aquele orgulhoso jovem cavalheiro de escura beleza era o homem mais bonito de toda a sala. E sem dúvida também o mais forte. Suas bochechas se acaloraram. somente olhar sua figura alta e de largos ombros voltavam as lembranças de seu torso nu. Cada um de seus esculturais músculos. Cada uma de suas rígidas linhas. Cada um dos gramas de sua musculosa carne.
Tentava ignorá-lo, mas sentia o peso de seu olhar enquanto comia. Ou tentava comer, já que tinha a boca completamente seca e a comida lhe parecia insípida e terrosa. Olhava-a com tal intensidade que dava vontade de sair correndo. Algo que fez assim que teve oportunidade.
Anna se apressou a sair do grande salão com mais sentimentos dos que podia albergar, correu pela escadas para sua câmara da torre e ficou a pinçar no armário em busca de sua capa de montaria. Precisava sair dali.
Um dia. Somente tinha que o evitar durante um dia e depois disso partiria. Tinham previsto partir para o castelo de Auldearn, a fortaleza real do conde de Ross, na manhã seguinte. por que não podia permanecer fosse do castelo até que ela partisse? Assim tudo teria sido muito mais fácil.
Em seu desespero por escapar, revolvia os montes de objetos de lã e de seda que penduravam de seu armário sem importar a desordem que criava. Onde estaria?
Estava a ponto de enfrentar o frio matinal e sair de todos os modos quando percebeu de que provavelmente sua criada já teria posto a capa em sua arca para a viagem. Abriu a tampa de madeira e deixou escapar um suspiro de alívio ao ver que a peça de lã axadrezado de cores cinza, azul e verde estava dobrada em cima de tudo. A jogou rapidamente sobre os ombros, agarrou em braços Escudeiro, temendo que o cachorrinho saísse correndo em busca do cavalheiro pródigo, e voltou a descer a escada como um torvelinho. antes de sair ao barmkin olhou pela fresta da porta para assegurar-se de que tinha via livre. Não queria correr nenhum risco de topar com ele. Sabia que aquilo era ridículo. Sir Arthur fazia todo o possível para evitá-la. Mas havia algo na forma em que a tinha olhado durante o café da manhã que chamava à cautela.
Cruzou o pátio e se dirigiu para os estábulos. Uma vez na segurança de seu interior soltou ao revoltoso cão no chão e fez que o cavalariço chamasse Robby enquanto ela preparava os arreios de seu cavalo.
Não tinha nenhum destino em mente, com tal de sair do castelo era suficiente. A impressionante fortificação de pedra e os grandiosos muros do barmkin pareciam muito pequenos de repente. Acabada sua tarefa, dispôs-se a recolher ao Escudeiro do chão quando a porta se abriu e o cachorrinho prorrompeu em uivos e ganidos ao mesmo tempo que saltava de seus braços disparado como uma flecha.
—Merda! —saiu de seus lábios antes que desse tempo a refrear-se.
Não precisava olhar para saber quem era. Se a reação de Escudeiro não dizia, assim fazia seu próprio corpo. O ar mudou. A pele lhe ardia. Seus sentidos despertaram. O aposento esquentou imediatamente e o leve aroma de fragrância masculina se filtrava através dos penetrantes e terrestres aromas do estábulo. Fechou os olhos, rezou uma prece que os céus lhe dessem força e ficou em pé lentamente para enfrentar a ele.
Seus olhares se encontraram. A repentina excitação que a embargou foi como um látego que a chamasse o ordem. Aquela era uma impressão que parecia não diminuir nunca. cortou a respiração, ao mesmo tempo que essa aguda e repentina opressão voltava a lhe envolver o peito e espremê-la. Um irritante acesso de nostalgia se formava em seu interior, mas esmagou com rapidez, sem compaixão. Ele não significava nada para ela. Já não. Não depois do ocorrido nos barracões. A tinha ensinado quão errado era para ela. E mais valia que acreditasse.
Controlou suas feições para fazer delas uma máscara impassível, tirando provisão de cada gota de sangue real que corria por suas veias. Era descendente de reis, tataraneta legítima, seis gerações depois, do poderoso Somerled. Saudou-o com uma ligeira inclinação da cabeça e disse friamente: —Sir Arthur, vejo que retornastes.
Sua tentativa de mostrar-se digna se viu em certo modo arruinado pela tremor de sua voz. Uma coisa era fingir que não lhe afetava sua presença em um salão cheio de gente e outra muito diferente fazê-lo em um pequeno estábulo. A sós. Enquanto ele a olhava dessa maneira tão intensa. Com raiva. Tinha o rosto avermelhado por completo, à exceção das comissuras da boca e de sua palpitante têmpora, que para sua desgraça estavam brancas.
O coração pulsava a toda pressa. Onde estava Iain? A cavalariço já deveria ter retornado.
Arthur pareceu ler sua mente e endureceu o olhar, algo que não fez a não ser enervá-la mais, dado que já era suficiente severo. Não tinha motivos para estar furioso com ela.
—O moço não virá. Disselhe que a levaria aonde precise ir.
Por Deus, isso não! Não queria ir com ele a nenhuma parte. Nem sequer queria o ter perto. Anna ergueu o queixo, negando-se a que a intimidasse a sensação de perigo que lhe transmitia. Não tinha feito nada mau. Somente esperava que não se inteirasse de como lhe tremiam as mãos.
—Isso não será necessário.
Arthur deu um passo à frente e Anna fez esforços em não cambalear-se. Mas o sangue pulsava com força em seu pescoço. E ele viu. O sorriso que se desenhou em seus lábios a fez sentir como um camundongo ante os olhos de um gato.
—Temo-me que sim, será. Se saíres do castelo partirei contigo. —Arthur a olhou de tal modo que fez que a Anna fervesse o sangue — Me parece que esquecestes algo.
Gaguejou, completamente deslocada pelo calor que fluía por suas veias.
—O que… o que?
—Sua cesta — disse olhando-a nos olhos. Anna ficou gelada, decomposta pela surpresa. Não era possível que soubesse. Quase suspirou de alívio quando ele acrescentou—: Não acredito ter visto sair do castelo sem ela.
Muito observador, mais do que convinha. Sir Arthur era perigoso em muitas e diferentes formas. Seu pai iria às nuvens se alguém descobrisse o que ela e algumas das outras mulheres faziam. Anna se recompôs em seguida, irritada por permitir que a angustiasse.
—Só tinha intenção de sair a cavalgar. Hoje não visito ninguém da vila.
Arthur ficou olhando-a por mais tempo do que devido, e Anna voltou a perguntar-se se saberia algo. Entretanto, nessa ocasião sua expressão não traiu seus pensamentos.
Uma série de latidos frenéticos fez que Arthur dirigisse sua atenção ao chão, para o cão que saltava sobre sua perna.
—Abaixo! —disse em uma voz que não aceitava discussão. O cão se sentou imediatamente e ficou olhando-o com cara de adoração — Seu cachorrinho precisa aprender maneiras.
Anna franziu os lábios.
—Gosta de ti.
«Deus saberá por que motivo.» Tentar tirar um pouco de afeto de Arthur Campbell era como querer extrair água de uma rocha, uma experiência condenada ao fracasso e a frustração. Arthur entreabriu os olhos como se Anna houvesse dito isso em voz alta.
—Normalmente os animais gozam de bons instintos.
—Normalmente sim — concedeu, deixando muito claro que ela pensava diferente nesse caso.
Aquele brilho perigoso voltou a encher seu olhar.
—E o que tem que você, Anna? O que dizem seus instintos?
«Corre. te esconda. te afaste dele tanto como possa para que não te faça mais dano.» Olhar essa mandíbula afiada e recortada, seus sensuais e carnudos lábios e esses olhos escuros jateados de âmbar era já suficientemente doloroso.
Afastou o olhar, contendo a emoção que ia a sua garganta.
—Eu não faço caso a meus instintos.
Ao menos já não fazia. Estavam errados. Seus instintos a tinham feito acreditar que entre eles havia algo especial. Que talvez ele tivesse necessidade dela. Que se sentia sozinho. E que possivelmente fosse diferente ao que parecia: um ambicioso cavalheiro, um soldado valente que vivia por e para sua espada.
Inclusive nesse preciso momento seus instintos lhe faziam acreditar que a tensão que bulia entre ambos significava algo, que bastaria que tomasse em seus braços e a beijasse de novo para que tudo voltasse para a normalidade. Mas era muito tarde para isso.
—Os instintos só servem para te obrigar a fazer coisas das que logo te arrepende — acrescentou.
Arthur esticou o queixo e o músculo de sua mandíbula começou a tremer de modo detestável. aproximou-se mais ainda. Tão perto que Anna sentia todo o calor que irradiava. Tão perto que cheirava o especiado aroma de sol que emanava sua pele. Começaram a tremer as pernas. Por Deus, tinha esquecido quão alto era. Parecia que muros se fechassem em volto dela. Custava-lhe respirar. Custava-lhe inclusive pensar enquanto se abatia sobre ela de tal modo. Usava sua selvagem masculinidade contra ela com a sutileza de um carneiro batendo-se em duelo.
—E arrependes de algo, Anna?
A enganadora suavidade de sua voz não a enganava absolutamente. Advertia perfeitamente a raiva contida em suas palavras, como se lhe importasse que seu coração tivesse mudado de parecer. por que fazia isso? por que tentava confundi-la? Fosse ele quem havia dito a ela que se afastasse.
—Que mais dá? E menos agora. Deixara tudo muito claro antes de fugir com meu irmão.
Anna tentou flanquear a porta e deixá-lo ali, mas Arthur a deteve com o implacável escudo de seu peito. Pela linha branca que se formou na comissura de sua boca não coube dúvida de que tinha captado a indireta.
—Então já acabastes com a espionagem. É isso?
Anna o observou atentamente. Nisso era que acreditava? Bom, que mais dava o que pensasse. Afastou lentamente seu olhar e a dirigiu para a porta.
—Sim, isso. Agora se me permitem, eu gostaria de partir.
Empurrou seu peito com o dorso da mão, mas era tão firme como um escarpado rochoso. Um escarpado com montões e montões de pedras cortantes e afiadas.
—Já vos disse que partiria contigo.
—Seus serviços já não são necessários. mudei de opinião. Não sairei a cavalgar esta manhã.
A maneira que flamejavam seus olhos revelava que não fazia nenhuma graça que o rechaçassem. Bem, pois pior para ele. Ela não o tinha escolhido como seu cavalheiro andante. Então notou que os músculos de suas costas se esticavam e se perguntou se não o teria levado muito longe. Mas Arthur não fez mais que torcer o gesto, representar uma reverência exagerada e afastar do caminho.
—Como desejais, milady. Mas se mudares de opinião já sabem onde me encontrar.
Anna passou junto a ele como um raio, com o queixo bem alto.
—Não o farei. Tenho muitas coisas que fazer antes de partir.
A mão que pousou sobre seu ombro a fez deter-se de repente. Mas inclusive essa forma rude de tocá-la fazia que seus sentidos se desatassem.
—Vais a alguma parte, lady Anna?
Tentou desembaraçar-se de seu braço e o fulminou com o olhar ao ver que não a deixava partir.
—Não é seu assunto.
Um brilho foi a seus olhos ao mesmo tempo em que Arthur se aproximava mais a ela. Anna sentia a energia que vibrava entre ambos e a arrastava consigo. Tinha a boca tão perto…
—me digas.
Não podia beijá-la, dizia-se Anna presa do pânico. Não podia permitir que a beijasse.
—Caso-me — disse bruscamente.
Capítulo 12
Arthur retirou o braço como se queimasse.
«Caso-me.» Suas palavras sentaram como um soco no estômago. Era incapaz de se mover. Cada osso, cada músculo, cada uma de suas terminações nervosas se petrificou.
—Com quem? —perguntou com uma voz mortiça, vagamente ameaçador, que não parecia a sua, soava como a do MacRuairi.
Anna não queria olhá-lo nos olhos. ficou a retorcer as grossas pregas de lã de sua saia com as mãos.
—Com sir Hugh Ross.
Uma faca encravada entre suas costelas teria resultado menos doloroso. O filho e herdeiro do conde de Ross. Arthur o conhecia, é obvio. O jovem cavalheiro já havia feito um nome por si mesmo. Era um guerreiro temível, um estrategista, dentro e fosse do campo de batalha. O fato de que fosse um bom partido piorava mais.
Não compreendia a raiva que consumia seu interior, nem por que se sentia traído. Não lhe pertencia, diabos. Jamais poderia lhe pertencer. Mas isso não o fazia esquecer que apenas quinze dias atrás a tinha tido em seus braços e que estivera a muito pouco de despoja-la de sua inocência.
—Ao que parece tiveste uma semana muito ocupada, milady. Não perde tempo.
Um quente rubor tingiu suas bochechas.
—Ainda não concretizamos os detalhes.
Arthur advertiu algo em sua voz que o fez entreabrir os olhos enviesadamente.
—A que detalhe se refere? Está prometida ou não?
Anna ergueu o queixo e ele captou o desafiante brilho de seu olhar apesar do sufoco de seu rosto.
—Sir Hugh me propôs matrimônio faz um ano, pouco depois de que morreu meu prometido.
—Acreditava que o tinha rechaçado.
—Assim foi. Pensei melhor.
Arthur compreendeu do que se tratava tudo aquilo de repente. Ao não contar com a ajuda do rei Eduardo, os MacDougall tinham decidido pedir ao Ross e oferecer a lady Anna como incentivo acrescentado para a aliança. Pouco importava se ela tinha pensado melhor ou era seu pai quem assim tinha decidido. Arthur não podia permitir que unissem suas forças. Uma aliança entre Ross e os MacDougall poria em perigo a vitória de Bruce. Seu trabalho, sua obrigação, era deter aquilo.
Arthur a olhou com dureza.
—E como sabe que sir Hugh se mostrará aberto a sua repentina mudança de pensamento?
—Não sei. —Anna lhe dirigiu um olhar penetrante — Mas farei tudo o que possa para persuadi-lo.
Não era necessário adivinhar a que se referia. Sua reação foi instantânea. Primitiva. Por um breve instante da ira se apoderou dele e perdeu o controle. Sentiu um vazio na mente. Lady Anna estava a escassos centímetros de ver-se esmagada contra a parede do estábulo com seus lábios selados pelos dele, toda sua virilidade entre as suas pernas e uma língua afundando-se no interior de sua boca, ali onde devia estar.
Mas inclusive no furor de sua raiva pedia mais a necessidade de protegê-la. Não confiava em si mesmo para tocá-la de tal modo.
Anna pôs os olhos como pratos e teve a prudência de dar um passo para trás. Mas ele a seguia cativando com a armadilha de seu penetrante olhar.
—Assim tem tudo bem planejado?
Assentiu.
—Sim. Será melhor para todos.
Que aquilo soasse como se estivesse tentando convencer-se a si mesmo não consolava absolutamente.
—Seu plano tem um problema.
Anna o olhou, dúbia.
—E qual é?
—Ross está ao norte. Os caminhos são muito perigosos para que te translades. É muito arriscado. Bruce e seus homens ficarão no caminho em qualquer momento. Seu pai não aprovará isso.
Lorn era um filho de cadela desalmado, mas parecia amar a sua filha de uma maneira genuína.
—Já o tem feito. Uma leva de guardiães me escoltará, junto com meu irmão Alan. Pode ser que o rei Hood seja um patife assassino, mas não faz guerra às mulheres.
Arthur lutava por manter sob controle seu gênio. Lorn tinha que estar muito desesperado para aceitar isso. O muito filho de cadela faria o que fosse para ganhar, inclusive pôr em perigo sua filha.
—Se se derem conta de que és uma mulher. Na escuridão, não serão tão fácil de distinguir. Poderiam a confundir com um mensageiro.
Acaso tinha esquecido o que estivera a ponto de lhe ocorrer no Ayr? Jesus, quando pensava no perigo… gelou o sangue. De novo teve vontade de empurrá-la contra a parede do estábulo, dessa vez para procurar que entrasse em razão. Poderiam feri-la. Assassiná-la.
—Meu irmão me protegerá. Estou segura de que não passará nada.
Arthur sentia uma veia a ponto de estalar na têmpora. Nem uma centena de homens poderiam lhe dar segurança. Seus esforços por controlar fracassariam.
—Não seja louca! Não podem ir! É muito perigoso. Mandem um mensageiro, é melhor.
Não necessitava mais que ver a posição de seu queixo e a maneira em que entreabria os olhos para saber que tinha cometido um engano. Poe tratar-se de uma moça de aparência tão doce mostrava uma teima digna de admiração.
—Já está decidido. E você, temo que não tenha nada que dizer a respeito.
As mulheres tinham que ser submissas e dóceis, maldita seja. E ali estava ela, cotovelo com cotovelo com ele, sem retroceder um centímetro. Se não estivesse tão furioso isso pareceria admirável.
Nessa ocasião, quando Anna deu meia volta e se dirigiu para a porta, Arthur não a deteve.
«Nada que dizer a respeito.» Isso veremos.
Se ela não entrava em razão, talvez seu pai fizesse.
Os homens de Bruce estavam batendo toda a área, assaltando, saqueando, fazendo tudo o que podiam por semear o caos e expandir o medo no coração do inimigo. A guerra não tinha lugar só no campo de batalha mas também no interior das mentes. Um grupo de escolta do clã MacDougall seria algo irresistível. Anna teria uma flecha no coração antes que pudessem se dar conta de seu engano.
Dizia a si mesmo que era a ameaça que isso supunha para a missão que fazia que se embolotassem todos seus músculos. Evitar esse tipo de aliança, manter isolado ao MacDougall, essa era a razão pela que estava ali. Mas não eram as mensagens nem a aliança em que pensava. Tudo que podia ver era Anna jogada em um atoleiro de sangue. Tinha que fazer que Lorn se afastasse desse estúpido caminho.
E se não podia… De nenhuma maneira a deixaria partir sozinha. Se Anna desse um passo fora desse castelo, ali estaria ele para acompanhá-la, ali onde pudesse a proteger e tê-la à vista. E havia uma coisa que tinha muito clara: não cabia nem a mais remota possibilidade de que a deixasse casar-se com Hugh Ross.
—Ocorre-te algo, Annie? Parece contrariada.
Anna ergueu o olhar para seu irmão Alan, que acabava de aproximar-se para cavalgar a seu lado. Depois de navegar em um birlinn nessa manhã o primeiro lance da viagem, o resto do trajeto fariam a cavalo. A rota marinha desde Dunstaffnage até a vila do Inverlochy através do lago Linnhe tinha levado menos de meia jornada, uma travessia em que teriam empregado vários dias ao fazê-la por terra. Oxalá o resto da viagem fosse igual de simples. Havia três lagos salgados e numerosos rios que percorriam Gleann Mor, o enguiço do Grande Glenn que dividia a Escócia entre o Inverlochy, no nascimento do lago Linnhe, até o Inverness e o fiorde de Moray, mas as rotas marinhas estavam separadas por terreno suficiente para fazer impraticável a viagem em navio. Em vez disso, cavalgariam os pouco mais de cem quilômetros que tinha que o Inverlochy até Nairn, ao leste do qual se encontrava o castelo do Auldearn. Com sorte demorariam quatro dias para chegar. Anna era consciente de que atrasava sua marcha, apesar de que galopavam em um ritmo muito mais castigador que aquele trote pausado ao que estava habituada.
Parecia irônico que estivesse fazendo virtualmente a mesma rota que tinha seguido o rei Hood no outono passado esperando acontecer através das Highlands e apoderando-se dos quatro castelos principais que balizavam o caminho: os castelos de Inverlochy e Urquhart, pertencentes aos Comyn, e os castelos reais de guarnição inglesa em Inverness e Nairn. Dado que esses castelos seguiam ocupados pelos rebeldes, veriam-se obrigados a procurar outra hospedagem que entranhasse menos perigo. Anna suspeitava que se quisessem evitar aos homens de Bruce teria que acostumar-se à paisagem dos bosques. Ao menos assim se livraria daquele sol abrasador por um tempo. Cavalgavam há várias horas e embora o véu protegesse seu rosto, tinha calor, estava pegajosa e, sim, também zangada, como tinha advertido seu irmão. Furiosa, para falar a verdade. O tempo, não obstante, não tinha nada que ver com seu incomum mau humor. Essa honra reservava a um certo cavalheiro intrometido.
Negou-se a lhe dirigir o olhar durante todo o dia. Mas isso não significava que não soubesse exatamente onde estava: cavalgando na cabeça do grupo, inspecionando o caminho que tinham pela frente em busca de sinais de perigo. «Perigo.» Isso era dizer pouco. O perigo era que ele os tivesse acompanhado na viagem.
—Estou bem —assegurou a seu irmão, conseguindo esboçar um sorriso forçado — Tenho calor e estou cansada, mas me encontro bem.
Alan a olhou de esguelha com um desinteresse enganoso.
—Acreditava que talvez tivesse algo a ver com o Campbell. Não parecia muito contente quando disse que nos acompanharia.
Seu irmão era muito ardiloso. Um traço que faria dele um bom chefe no futuro, mas nada que fosse apreciável para uma irmã que preferia guardar seus pensamentos para si mesma. Apesar de seus esforços em não reagir a essas palavras, chiavam-lhe os dentes.
—Não deveria ter-se intrometido.
Quando seu pai lhe contou que sir Arthur havia tentando dissuadir de que cancelasse a viagem, não podia acreditar. Ao fracassar nisso, pediu permissão para os acompanhar argumentando que suas habilidades como rastreador ajudariam a garantir sua segurança. E para maior desgraça de Anna seu pai tinha aceitado. De modo que em lugar de ignorá-lo durante uma só jornada, agora teria que suportar sua presença constante durante dias, semanas inclusive. Acaso tentava atormentá-la de propósito? Aquilo que tinha que fazer já era difícil sem que ele andasse revoando por aí.
—É um cavalheiro, Anna. Um explorador. Informar sobre a posição do inimigo é exatamente seu trabalho. E não posso dizer que não esteja agradecido de que venha conosco. Se for tão bom como diz ser, será muito útil.
Anna se dirigiu a Alan com cara de estar horrorizada.
—Está de acordo com nosso pai?
Alan endureceu o queixo. Jamais criticaria a seu pai de maneira aberta, embora quisesse fazê-lo, como era o caso.
—Teria preferido que ficasse em Dunstaffnage, embora entenda a razão pela que pai insistia em que viesse. Ross se mostrará mais disposto ante uma solicitude direta —disse com um sorriso — É uma danada, Annie querida, mas uma danadinha encantadora.
Anna torceu o lábio.
—E você é tão protetor que molestas, mas eu também te adoro.
Alan se pôs-se a rir e Anna não pôde a não ser unir-se a suas risadas.
Sir Arthur voltou a cabeça para ouvir e a pegou despreparada. Seus olhares se cruzaram por um momento antes que lhe desse tempo a afastar o olhar bruscamente. Mas foi suficiente para que sentisse uma boa pontada no peito. por que tinha que ser tão doloroso?
Alan não evitou esse intercambio de olhares. Voltou a ficar sério e a olhá-la com intensidade.
—Está segura de que isso é tudo o que acontece, Anna? Já sei o que disse, mas me parece que entre sir Arthur e você há algo mais que os trabalhos de vigilância que pai te encomendou. Eu acredito que sente algo por ele. —A pulsação que Anna sentia no peito lhe dizia que seu irmão tinha razão, por mais que gostaria que não fosse certo — Podemos apelar ao Ross sem necessidade de um compromisso —disse seu irmão com carinho — Não é necessário que sacrifique sua felicidade para chegar a um pacto.
Não pôde evitar emocionar-se. Era tão afortunada de poder contar com um irmão como ele… Sabia que poucos homens a tratariam com tal consideração. A felicidade não era algo a ter em conta no matrimônio entre nobres. O poder, as alianças, a riqueza, isso era o que importava. Mas o amor do que Alan desfrutou em seu matrimônio tinha dado a seu irmão uma perspectiva única. Apesar de tudo, teriam muitas mais oportunidades de conseguir o apoio de Ross com uma aliança. Alan sabia tão bem quanto ela. Além disso, ajudar a sua família jamais poderia constituir um sacrifício. Arthur tinha expressado com brutal claridade que não havia nada entre eles.
—Estou segura — disse com firmeza.
A firmeza de sua voz ajudou a convencê-lo. Alan seguiu cavalgando junto a ela um momento mais na lembrança de suas anteriores viagens nos excepcionais momentos de paz, mas ao final acabou voltando junto a seus homens.
Durante da primeira jornada fizeram grandes progressos e chegaram até o lago Lochy, onde passaram a noite em uma estalagem próxima à borda sul do mesmo. Aquele pequeno edifício de pedra com telhado de palha parecia antigo, e dada sua localização junto a uma ruína, Anna supôs que era.
Estava dura e dolorida. Suas pernas, traseiro e costas se ressentiam por cada uma das horas desse longo dia, de modo que agradecia estar debaixo de um teto e em uma cama, por mais rudimentares que fossem. Lavou-se e se compôs para comer um pouco de caldo de pescado e pão de centeio antes de cair rendida no camastro junto à Berta, sua criada, que roncava no jergon do lado.
A segunda noite, não obstante, não teriam tanta fortuna. Sua cama seria um simples cobertor em uma pequena tenda instalada na floresta ao sul do lago Ness.
Fora um dia longo, mais longo ainda graças ao constante fluxo de informes de exploração de sir Arthur. Para evitar cenários suscetíveis de perigo, tais como rotas a campo aberto ou lugares propícios para as emboscadas, havia vezes que se desviavam bastante do caminho. O qual significava que em lugar dos quarenta quilômetros que teriam percorrido, fizeram provavelmente uns cinqüenta e cinco através da espessura dos bosques e as colinas serpenteantes de Lochaber. Aquilo a Anna pareceu de uma precaução exagerada. por agora, não tinha visto nada fora do normal, mais que habitantes da vila, pescadores e algum que outro ocasional grupo de viajantes. Se os homens de Bruce patrulhavam os caminhos, não se tinham feito notar. Talvez esses quilômetros a mais fossem outra forma de tortura idealizada por sir Arthur? Como se não fosse suficiente sua presença.
As pernas de Anna, pouco acostumadas a passar dias cavalgando, tremeram ao se ajoelhar à borda do rio para lavar as mãos. Colocou a cabeça na corrente com a esperança de sacudir o cansaço, mas o frio golpe de água não a refrescava o suficiente. Quando tentou levantar-se, coisa que fez com muita dificuldade, teve que resmungar ao conscientizar-se da objeção de seus ossos e articulações, que rangiam como se tratasse do corpo de uma anciã. Tomou seu tempo para saborear o momento de solidão, sem nenhuma pressa por voltar para acampamento. Embora o resto do grupo estivesse a poucos metros dela, o denso tanto de árvores parecia absorver todo o som. de vez em quando chegava até ela o murmúrio apagado de suas vozes, mas além disso tudo permanecia em uma calma excepcional, o que representava o maior momento de paz que tinha desde sua chegada ao barmkin no dia anterior pela manhã, quando encontrou a sir Arthur Campbell preparado para sair com eles. Aqueles dois dias tentando forçar-se a não olhá-lo tinham cobrado sua cota. Era pior do que temia. Apesar de que o ignorasse e evitasse seus olhos cada vez que ele olhava em sua direção, cada um de seus movimentos lhe afetava de maneira dolorosa. O desassossego, que parecia lhe queimar o peito até furá-lo, era cada vez maior. Mais duro. Enfurecia-se com suas emoções, deixando-a nua e exposta. Não sabia por quanto mais poderia suportar. Por que tinha que estar ali?
Suspirou com aborrecimento e deu as costas à tranqüilizadora correnteza que corria sobre as rochas. Berta faria que seu irmão fosse procurá-la como um louco se não retornasse no par de minutos que tinha prometido. Além disso, estava ficando de noite.
Mal tinha dado uns passos em direção a floresta quando um homem saiu dentre as sombras e lhe fechou o passo. O pulso acelerou, presa do pânico. Esteve a ponto de dar a voz de alarme, mas seu gritou ficou sufocado ao reconhecê-lo. Fechou a boca de repente, mas seu pulso seguia igual de acelerado.
—Não faça isso! —espetou ao mesmo tempo em que erguia o olhar para o belo rosto de sir Arthur — Me destes um susto de morte.
Não tinha feito um só ruído. Como um homem tão corpulento podia mover-se com tal sigilo era algo que escapava a sua compreensão.
—Melhor —respondeu ele — Não deveria estar aqui sozinha.
—Não estava sozinha —disse Anna com um sorriso forçado — tinha você me espiando.
Anna sentiu um prazer enorme ao ver que esticava a mandíbula. Era horrível por sua parte que lhe agradasse tanto, mas tentar tirar algum tipo de reação daquele homem parecia um lucro absoluto. Sir Arthur lhe dirigiu um olhar pausado e penetrante.
—Algo do qual estou certo que conhece todos os segredos.
Agora tocava a ela endurecer o gesto. Havia muita proximidade. Embora seu irmão e o resto dos homens estivessem a um grito de distância, aquilo supunha uma intimidade com ele muito maior da que ela queria. Qualquer tipo de intimidade com ele podia ser perigosa.
Isso a fazia recordar coisas. Como o sabor especial de seus beijos. Ou o modo em que os grossos músculos de seu torso se esticavam à luz das velas. Ou a maneira em que as mechas onduladas de seu cabelo molhado caíam sobre seu pescoço. Ou seu aroma. «Aroma de sabão e a virilidade», pensou Anna enquanto aspirava.
Arthur não se barbeou, e a barba incipiente lhe dava um aspecto esfarrapado e perigoso que, maldito fosse, o fazia ainda mais atraente.
Ao comprovar que apesar de todo o ocorrido ainda conseguia lhe afetar do mesmo modo, Anna ficou furiosa e tratou de afastá-lo de seu caminho. Um exercício de futilidade como jamais houve algum.
—Não há motivos para preocupar-se.
Ele a agarrou seu braço para detê-la, como se a impenetrável barreira de seu torso não fosse suficiente.
—A próxima vez que te afastes do acampamento, não o façam sem guarda, preferivelmente eu ou seu irmão.
Suas bochechas se ruborizaram, zangada com o tom e sua atitude prepotente. Sir Arthur Campbell, cavalheiro ao serviço de seu pai, transpassava os limites.
—Não têm direito a me dar ordens. A última vez que olhei não fostes tu, a não ser meu irmão, quem estava ao mando.
Seus olhos brilharam ao mesmo em tempo que ele a agarrava pelo braço com mais força. Falava em voz baixa e sua boca… Anna ficou sem fôlego. Também sua boca estava baixa, a uma altura perigosa, tão perto da sua que doía. Se ficasse nas pontas dos pés, era possível inclusive que chegasse a tocá-la.
Deus, que vontade tinha de fazê-lo. Estava desesperada por fazê-lo. Uma onda de calor invadiu todo seu corpo, concentrando-se nos seios e no encontro das coxas. Os mamilos se puseram eretos; morriam de vontade por roçar-se com seu duro peito.
Aquela traição de seu corpo parecia humilhante. Ele não tinha nenhum direito a fazê-la sentir assim. Não depois de a rechaçar de maneira tão cruel. Não depois de que partisse e deixasse claro que era tal e como o tinha imaginado em princípio. por que não podia deixá-la em paz simplesmente?
—Não me desafiem nisto, Anna. Se quiserem que consiga a cumplicidade de seu irmão, farei. Quão único tentava era evitar a vergonha de que te tratem como a uma criança, mas farei tudo o que esteja em minha mão para te manter a salvo.
Houve algo em sua voz que fez que lhe deu calafrios.
—O que acontece? Estão os rebeldes perto daqui? Viu algo?
Uma sombra cruzou o olhar de Arthur. Negou com a cabeça.
—por agora não.
—Mas têm um pressentimento.
Arthur a olhou com total desconfiança, como se pensasse que tentava enganá-lo para que admitisse que ela tinha razão quanto às habilidades que tinha mostrado com antecedência. Parecia disposto a negá-lo, mas logo encolheu os ombros e lhe soltou o braço.
—Sim, sinto o perigo. E também vocês deveriam senti-lo. Não cometam o engano de pensar que não estão aí simplesmente porque não os tenhamos visto.
Assentiu, assombrada pelo que parecia uma preocupação sincera.
—Farei como me pede.
Ambos sabiam que não era uma petição, mas Arthur parecia estar satisfeito com sua aprovação e não quis discutir a semântica.
Anna era consciente de que devia sair dali quanto antes, mas houve algo que a fez perguntar:
—Por que estas aqui, sir Arthur? Por que insistiram em se unir a nosso grupo?
Ele afastou o olhar. A pergunta lhe incomodava. Muito.
Franziu o cenho.
—Pensei que poderia ser de ajuda a seu irmão.
—E eu pensei que não gostavas de fazer reconhecimento do terreno.
Sua boca se torceu em um irônico e enigmático sorriso.
—Não é tão mau como temia.
Anna observou seus traços com atenção, mas não estava muito segura do que procurava.
—E essa é a única razão? Para ajudar a meu irmão?
Arthur baixou o olhar para olhá-la nos olhos. A intensidade de seu olhar a penetrou com a sutileza de um raio. Era consciente do tic que pulsava sob seu queixo. estava-se controlando, mas do que?
—Dado que não atenderam a minhas advertências, não ficou outra opção que vir e me assegurar de que chegassem a seu destino a salvo.
Entregue a salvo às mãos de outro homem.
—Estou segura de que sir Hugh apreciará seus serviços.
Arthur ficou tenso e os olhos lhe brilharam com um fogo descontrolado. Por um momento Anna pensou que a empurraria contra a árvore e a beijaria. Mas não o fez. Em vez disso apertou os punhos e ficou olhando-a com raiva. Dizia a si mesma que não era decepção o que sentia. Isso dizia a si mesma. Mas não acreditava.
—Não me provoque, Anna.
Mas o tempo das advertências já tinha passado para ela.
—Que não lhes provoque? Como poderia o provocar se não vos afeta? Deixou muito claro naquela noite nos barracões. Fosse tu quem disse que me separasse de seu caminho e não ao contrário, recordam?
—Recordo.
A suavidade de sua voz lhe disse que não era isso tudo o que recordava. A pele começou a lhe arder e parecia sair dela. As lembranças crepitavam entre eles como um sopro de ar sobre brasas, acendendo-se, dispostos a prender-se fogo. Anna estava sumida na frustração. Não podia entender por que fazia aquilo.
—É que mudastes de opinião?
Em outro momento Arthur teria admirado aquele desafio. A franqueza e a naturalidade de Anna eram o que faziam dela uma mulher única. Mas nesse momento não. Não queria pensar em se tinha mudado de opinião. Estava lhe custando muito, Deus e ajuda simplesmente não lhe pôr as mãos em cima. por que não podia ser tímida e retraída? Aí sim se sentiria seguro.
Sabia que atuava como um idiota, mas esses dois dias junto a ela, vendo-a voltar o rosto para evitar seu olhar, atuando como se ele não fosse mais que uma espada mercenária, fazia que chegasse ao limite de seu autocontrole. Não poderia agüentar vê-la outra noite rondando pelo acampamento rindo e divertindo-se com os homens com uns sorrisos que brilhavam quando olhava em sua direção.
Gostava de estar à margem, maldita seja. Mas de seu posto nos limites do acampamento, longe da camaradagem da fogueira, encontrava-se suspirando pela calidez desses sorrisos. Por um pouco dessa risada. um pouco dessa luz.
Sua intenção era que ela reconhecesse sua presença. Mas tudo que tinha conseguido era revolver coisas que não precisavam ser revolvidas. Tais como o assustador desejo de empurrá-la contra a árvore e abusar dela. Quase podia sentir como seus braços lhe rodeavam o pescoço e suas pernas envolviam seus quadris, em tanto que ele se afundava em seu interior, lenta e profundamente. Quase via seu pequeno e suave corpo estirando-se contra o seu, todas essas sedutoras curvas fundindo-se sobre ele, a excitante turgidez de seus mamilos lhe roçando o peito…
Demônios!
Teve que agitar-se para recuperar a compostura. Mas o inchaço que ocultavam seus calções era duro e implacável. Aquilo não tinha que ser tão endiabradamente difícil.
«Te concentre. Faz seu trabalho. Mantem o bastante perto para vigiá-la, mas sem tocar. Não deixe que se aproxime muito.»
Havia muitas pessoas dependendo dele. Tinha que estar ciente do que realmente importava. Assegurar-se de que Bruce chegasse ao trono e derrotar seus adversários. Como John de Lorn. Essa era a oportunidade de ver como seu inimigo pagava pelo que tinha feito a seu pai.
Justiça. Vingança. Endireitar o errado. Sangue por sangue. Essa fora toda sua motivação desde que tinha uso de razão. Tinha dedicado sua vida a tentar consagrar-se como o melhor guerreiro com um só objetivo em mente: destruir a Lorn. Essa fria determinação era sua companheira há quatorze anos. A firme resolução de levar uma missão até suas últimas conseqüências, custasse o que custasse. Essa era a única coisa que tinham em comum todos os membros da Guarda Highlanders, apesar de suas grandes diferenças de personalidade, do irreprimível bom humor do MacSorley e a impulsividade do Seton até o mau gênio do MacRuairi. Mas nunca antes tinha tido tantos problemas para aferrar-se a isso.
Arthur deu um passo atrás com a intenção de dissipar a bruma de desejo que o atendia. Mas seu corpo bulia de desejos insatisfeitos. Uns desejos que cada vez lhe parecia mais difícil ignorar. Andar por aí com o membro duro pego ao ventre não era algo que fizesse muito para remediar seu mau humor. E sua mão tampouco parecia um grande alívio.
Ao ver que ele não respondia, Anna disse:
—E bem?
Tinha mudado de opinião? Negou com a cabeça.
—Não.
Nada tinha mudado. Seguia sendo a filha do homem ao que tinha ido aniquilar. Quão único o futuro lhes proporcionaria seria a traição. Não tinha intenção de piorar as coisas.
Anna não deu amostras de que sua resposta a decepcionasse. Melhor parecia algo que esperava.
—Então por que fazem isto? por que atua como se o importasse com quem contraio matrimônio? Não me quer mas tampouco quer que alguém me tenha, é isso?
Arthur murmurou uma imprecação ao mesmo tempo em que passava as mãos pelos cabelos.
—Não é isso.
De fato, era exatamente isso. Anna tinha dado justo no prego. Estava ciumento, maldita seja. Embora não tivesse nenhum direito a estar. Embora fosse ele quem a desalentasse. Embora não houvesse nenhuma possibilidade de que estivessem juntos. Pensar em que ela se casaria com outro homem fazia que caísse em ataques de ciúmes juvenis.
Anna o olhou nos olhos.
—Então expliquem - me disse isso em voz baixa — O que é o que sentem por mim?
«Jesus.» Essa era a última coisa em que queria pensar. Somente ela seria capaz de tal pergunta. Anna MacDougall não tinha nenhum pingo de acanhamento ou de desânimo. Era direta. Sem rodeios. Despretensiosa. Deus, era uma mulher incrível.
Nem todo o treinamento do mundo podia o fazer parar de mover os pés nervosamente. Não se sentia tão encurralado desde aquela vez em que seus irmãos o fizeram retroceder até a saliência de um escarpado e o provocaram para que se defendesse de seus golpes de espada.
—É complicado — disse, saindo-se pela tangente.
Os olhos dela não deixavam de escrutinar seu rosto em busca de algo que não havia neles.
—Complicado não me vale. —Anna baixou o olhar — Não quero que esteja aqui —acrescentou com uma voz tão rígida como a posição de seus ombros. Tampouco ele queria estar ali, mas não ficava mais opção que fazê-lo. Anna voltou a erguer os olhos para olhá-lo. Já não havia calidez nessas profundidades azul brilhante — O rogo isso, me deixem em paz, simplesmente.
O suave rogo dessa voz apelava a sua consciência, mas ardia no peito de igual forma. Anna deu meia volta e se afastou dali com o porte majestoso de uma rainha.
Desejaria poder fazê-lo, pelo bem de ambos. Mas sua missão vinha em primeiro. Algumas semanas mais. Poderia agüentar algumas semanas mais. Tinha resistido desafios muito mais perigosos. Tudo que tinha que fazer era escorar suas defesas, fechar as comportas e preparar-se para o assédio final.
Capítulo 13
Arthur partia na vanguarda, inspecionando o terreno com dois dos homens de MacDougall, quando percebeu de que algo não ia bem. Uma mudança no ar. Um calafrio que percorria a nuca. A súbita sensação que ativava todas suas terminações nervosas para lhe advertir: «Perigo».
Tinham completado a terceira jornada da viagem virtualmente em sua totalidade. O trajeto a cavalo pela ribeira oeste do lago Ness foi mais longo do esperado, não por tentar evitar aos homens de Bruce, a não ser devido a uma ponte impraticável de Invermoriston. Teriam tentado cruzar as turbulentas águas em caso de não levar consigo Anna, mas em vez disso tiveram que desviar-se outros oito quilômetros do caminho para chegar ao seguinte vau. assim, aproximaram-se do extremo sul dos bosques do Clunemore mais tarde que o que ele esperava. De ali virariam para o este, abandonando o caminho para afastar-se todo o possível do castelo Urquhart, ocupado pelos rebeldes. O plano era acampar a última noite à beira do lago Meiklie, o qual queria dizer que o dia seguinte seria mais exaustivo ainda, já que a relativamente plaina estrada daria lugar às colinas.
Apesar de que Arthur trabalhava melhor sozinho, Alan MacDougall insistiu em que lhe acompanhassem dois de seus homens se por acaso se encontrava com dificuldades. Ao não poder explicar ao irmão de Anna que esses homens representariam mais problemas que ajuda sem trair suas habilidades, Arthur teve que acessar a contra gosto.
À primeira sensação de perigo ergueu uma mão para que os homens se detivessem. Desceu do cavalo, ajoelhou-se e pôs uma palma plaina contra o chão. A leve reverberação confirmou o que seus sentidos já lhe tinham advertido.
Richard, o maior dos dois guerreiros e explorador habitual do MacDougall, ficou circunspeto.
—O que há?
Arthur baixou a voz.
—Voltem e digam a seu senhor que saiam do caminho imediatamente.
Alex, que era aprendiz de explorador, olhou-o com estranheza sob o aço de seu nasal. Ao contrário de Arthur, Alan e o punhado de cavalheiros que usavam elmo, cota de malha pesada e peitilho, os homens do clã dos MacDougall levavam armadura mais leve e o cotun de couro acolchoado que preferiam os highlanders. Essa indumentária de guerra fazia mais fácil o movimento. Não era a primeira vez que Arthur tinha vontade de desfazer-se de seu pomposo traje de cavalheiro e mandar a passeio a mascarada. O mais jovem dos homens olhou a seu redor.
—Por quê?
Arthur franziu os lábios. Ficou em pé e voltou rapidamente para seus arreios.
—Há um grupo numeroso de cavaleiros que se dirigem justo para nós.
Richard o olhou como se estivesse louco.
—Eu não ouço nada.
Aqueles idiotas acabariam fazendo que matassem a todos. Sem tempo para sutilezas, Arthur agarrou ao maior por seu grosso cangote, ergueu-o um par de centímetros dos arreios e aproximou seu rosto a dele.
—Façam o que digo, maldita seja. Dentro de alguns minutos será muito tarde. Querem que matem a dama por sua estupidez?
O homem negou com a cabeça, impressionado com a transformação que sofria o cavalheiro. Quando começou a boquejar para recuperar o fôlego Arthur o soltou de um empurrão.
—Eu os rodearei pelas costas e tentarei distraí-los. —Com sorte, disse, poderia desviá-los para o norte — Digam a sir Alan que saia do caminho imediatamente, que se dirija para o este e cavalguem tão rápido como podem. Abandonem as carretas se for necessário. Encontraremo-nos no lago assim que me seja possível.
Subitamente, Richard moveu sua grosa cabeça para o norte. Um leve som de pegadas de cavalos batia em sua direção. Voltou-se para Arthur com um olhar que albergava tanto temor como suspeita. Inconscientemente, deu meia volta com seu cavalo.
—Pelos ossos de Cristo, têm razão! Ouço-os.
Arthur não tinha tempo de preocupar-se com a inquietação do outro.
—Irei contigo - disse Alex.
—Não — repôs Arthur em um tom de voz que evitava qualquer discussão — Vou sozinho.
Assim seria mais fácil evitar que os capturassem. Além disso, sempre cabia a possibilidade de que conhecesse alguém. Supunha-se que MacGregor, Gordon e MacKay estavam no norte.
—Partam! —disse.
Os homens fizeram o que lhes pedia sem mais discussão.
Arthur tampouco perdeu mais tempo. Cavalo e homem se introduziram entre as árvores em sua carreira por alcançar aos cavaleiros pelas costas antes que aparecessem ante o grupo do MacDougall. Era consciente de que apesar de estar advertidos, demorariam certo tempo em conduzi-los até um lugar seguro. Anna era uma boa amazona, mas não podia dizê-lo mesmo de sua criada. As carretas aumentaram seu ritmo ainda mais. Se algo sabia das mulheres era que não gostavam nada de abandonar seus finos trajes e sapatos. Ao menos Anna não tinha insistido em levar com eles ao maldito cachorrinho. Arthur estava já cansado de limpar os pés.
Arthur ziguezagueou entre as árvores, usando o som dos cavalos como guia, e cavalgou em paralelo aos homens alguns poucos e preciosos minutos até que se dirigiu para eles. Agora vinha a parte delicada: aproximar-se o suficiente para chamar sua atenção, mas nem tanto para que o capturassem. Amaldiçoou para si ao ver pela primeira vez ao grupo de cavaleiros através de um vão entre as árvores. Tinham todo o aspecto de uma leva de guerreiros. Havia mais dos que gostaria, ao menos uma vintena de homens armados até os dentes com mantas de cores escuras, vestimenta de guerra e escudos obscurecidos com breu, um modo de camuflar-se na noite próprio dos Guardiões das Highlands que adotaram mais tarde muitos dos guerreiros de Bruce.
Normalmente não pensaria duas vezes ante um exército tão formidável. Estava adestrado para lutar contra coisas piores. Mas esses homens conheciam o terreno e ele não. Teriam vantagem. Um giro mal dado e acabaria em suas garras. Mesmo assim ele contava com vantagens que eles não tinham: sentidos afiados como facas, velocidade, uma força e um treinamento superiores e a habilidade de desaparecer entre as sombras.
Distinguiu ante ele uma ruptura na linha de árvores. Aí o tinha. Apertou os dentes, baixou a cabeça e saiu como um raio para o claro. Fingiu surpreender-se por sua presença e girou abruptamente para a esquerda, como se quisesse evitar ser visto. Um grito o alertou do cumprimento de seu objetivo. Não se atreveu a diminuir a marcha e olhar para trás para ver se tinham mordido o anzol. Uma fração de segundo de atraso podia significar a diferença entre escapar ou ser capturado. Mas, momentos depois ouviu o ensurdecedor som das pegadas de cavalo atrás dele e sorriu. A caça tinha começado.
Anna tentava não pensar em quão tarde era. Mas à medida que a escuridão descia e que a lua se erguia no céu lhe custava mais acreditar que se encontrava bem. Esse medo que permanecia em espera ante o tumulto de seus próprios esforços para escapar aos soldados inimigos retornou com toda sua força assim que estiveram a salvo. E a coisa piorava com cada hora que passava sem a volta de Arthur. Que lhe atormentasse tudo o que quisesse, isso não importava. Mas que voltasse são e salvo.
Ajustou a capa nos ombros e disse que não devia preocupar-se. Chegar até eles de novo tomaria seu tempo atrás da animada perseguição em que Arthur os embarcaria. «Mas tanto tempo?» mordeu o lábio em uma tentativa de mitigar a crescente sensação de pânico. «Ele não se deixaria apanhar.» Entretanto, eles eram um monte de homens e ele só um. «Não pode estar morto.» Se fosse assim saberia. O coração lhe deu um tombo. Não era isso certo?
—Milady, a sopa está deliciosa. Tome —disse Berta sustentando a colher ante ela — Provem. Embora seja só um pouco - acrescentou, como se Anna fosse uma menina de cinco anos que se negava a comer nabos.
Mas Anna seguia sem gostar dos nabos. Negou com a cabeça e se esforçou em sorrir a sua preocupada criada.
—Não tenho fome.
A anciã pôs cara de estar admirada, fazendo que as rugas de seus olhos cor mel se esparramassem por seu rosto. O aspecto de Berta, com sua apenas um e cinqüenta de estatura e tão magra como um palito, não é que fosse formidável. Mas naquele caso seu rosto era de decepção. Podia ser tão teimosa e áspera como uma mula velha.
—Têm que comer algo. Conseguirá te pôr doente.
Já estava. Doente de preocupação. Somente de pensar em comida lhe dava vontade de vomitar. Conteve o acesso de bílis que lhe chegou à garganta.
—Comerei —mentiu Anna — dentro de um momento.
Berta lhe deu um tapinha na mão, que descansava sobre o musgoso tronco que as separava. Reuniram-se em torno do fogo junto ao resto da escolta, mas o acampamento permanecia em uma quietude incomum e os homens estavam desanimados. Todos eram conscientes de que tinham escapado por pouco e não era ela a única que se perguntava o que teria ocorrido com o cavalheiro que os pôs sobre aviso.
—Que morras de fome não fará que volte antes.
Os pensamentos de Anna eram mais transparentes do que acreditava, mas estava muito preocupada para fingir que não sabia do que lhe falava Berta.
—Acredite que terá ocorrido algo?
Berta apertou sua mão e negou com a cabeça tristemente.
—Não sei pequena minha. Não sei.
O coração de Anna sofreu uma violenta sacudida. A perspectiva tinha que ser terrível para que Berta não se esforçasse por mentir sequer. Voltaram a ficar em silêncio. Anna olhava as chamas da fogueira sem vê-la enquanto Berta acabava sua sopa.
Então Anna ouviu um ramo que rangia atrás dela e se levantou de um salto. Voltou o rosto com o coração na boca, esperando ver um cavalheiro vestido com cota de malha sobre seu cavalo. Assim foi e por um segundo pensou que seria Arthur. Mas seu coração topou com uma decepção. Tratava-se simplesmente de seu irmão Alan, que desmontou do cavalo e atou as rédeas a uma árvore próxima. A expressão sombria que mudou seu rosto à medida que se aproximava a encheu de pavor.
—Tem descoberto algo? —perguntou.
—Não —repôs seu irmão negando com a cabeça — Nem rastro dele.
—Acredita que… —Anna não se atreveu a terminar a frase.
Alan a olhou com atenção.
—Já deveria ter retornado.
A verdade doía como um murro nas vísceras. Lágrimas de angústia afloraram em seus olhos. Acabava de brotar a primeira delas quando ouviu um assobio que atravessava a noite.
—É o sentinela noturno - disse Alan antes que Anna tivesse tempo de perguntar — Alguém se aproxima.
O alarme deu origem a uma pequena comoção. Anna foi primeira em saltar de seu assento de repente, mas isso mesmo foi o que fizeram o resto dos homens. O primeiro que ouviu antes de vê-lo foram os gritos provocados pela emoção e o alívio. Momentos depois, Arthur penetrava no círculo de luz que provia o acampamento e o coração de Anna dava tombos no interior de seu peito. Inspecionou ao cavalheiro em busca de sinais de ferida, mas além do cansaço que refletia seu bonito rosto e da sujeira e o pó de sua cota de malha se via em perfeitas condições. Completamente ileso.
A emoção a embargava com tal força que deu um passo adiante sem poder controlar-se. Lutou por dominar o impulso de ir atrás dele, de correr a seus braços, de rodeá-lo com os seus e chorar toda sua angústia na suja e poeirenta cota de malha que revestia seu peito. Não tinha direito a fazê-lo. Nem fundamentos. Não estavam prometidos, nem se cortejavam sequer. Não eram nada um para o outro. Logo ela pertenceria a outro homem.
Então Arthur a viu. Por um estúpido momento ela se convenceu de que a estava procurando. Seus olhos se encontraram com uma força letal que repercutia em seu peito e o golpeava com os ecos da nostalgia.
Se naquele momento ele houvesse virado o rosto, ignorando-a com frieza, provavelmente Anna teria confrontado seu futuro com uma resolução firme no coração. Mas em vez disso Arthur percebeu seu desespero e assentiu levemente. «Estou bem.»
Era pouco, mas ao menos era algo, e servia como reconhecimento de que existia uma conexão entre ambos. Entre eles dois havia algo especial. Não podia negá-lo por mais tempo. Importava-lhe.
Arthur a olhou por última vez e seguiu adiante para encontrar-se com o Alan.
As emoções de Anna estavam descontroladas. Afetava-lhe muito que acabava de ocorrer para concentrar-se em nada, assim escutou pela metade o relatório que fazia a seu irmão. Eram os homens de Bruce. Um grupo numeroso de guerreiros. O número chamou tanto a atenção que ficou sem fôlego. Vinte e cinco homens. O normal seria que Arthur estivesse morto. Primeiro os tinha desviado vários quilômetros do castelo do Urquhart e depois se dirigiu para o este. Entretanto, os malfeitores tinham dado provas de ser bons cães de presa, e Arthur se viu obrigado a voltar a pé para o acampamento. Anna suspeitava que estivesse deixando muitas coisas no tinteiro.
Alan lhe agradeceu os serviços prestados a todos e o ameaçou a que se sentasse enquanto pedia comida e bebida para ele. Seu irmão falou com Arthur um momento mais antes de lhe deixar comer, mas em voz baixa, de modo que ela não pôde escutar nada. Anna bicou um pedaço de carne-seca de vitela e torta de aveia e ficou rondando por ali, como fizera a maioria dos homens. Entretanto, à medida que caía a noite, algo começou a lhe preocupar. O acampamento se animou com sua volta, e parecia óbvio que todos se alegravam de que não o tivessem capturado, mas a celebração não era a esperada e isso a desconcertava. Além disso, acontecia algo anormal. Ninguém tinha aproximado, além de seu irmão. Em lugar dos tapinhas nas costas, as brincadeiras pesadas e os brinde que seriam de praxe, pareceu-lhe que mais de um o olhava com cara estranha.
Arthur não parecia conscientizar-se. Acabou com sua comida, terminou o odre de cerveja que lhe tinham levado e se retirou de novo à solidão dos bosques. Anna o observou partir e sentiu uma premente necessidade de fazer algo. Olhou aos homens do clã que tinha ao redor. O que lhes passava? Por que atuavam de tal modo?
Chegou um ponto no que já não pôde agüentar-se mais, desculpou-se e foi procurar seu irmão. Alan estava falando com alguns de seus homens, mas ao vê-la chegar os ordenou que se retirassem.
—Acreditei que estaria aliviada.
Evitou fazer como que não entendia do que falava.
—Estou.
—E então a que vem a ser esse rosto, pequena?
—Por que atuam os homens desse modo? Por que não lhe dão obrigado? Por que o evitam?
—Está segura que não é justamente o contrário, irmã? —repôs Alan esboçando um sorriso irônico — Campbell não é precisamente conhecido por sua sociabilidade. Gosta de estar sozinho. —Seu irmão tinha razão, mas nessa ocasião não se tratava só disso. Os soldados se mostravam incômodos, quase temerosos. Quando o fez saber, Alan suspirou e negou com a cabeça — Ocorreu algo hoje quando nossos homens batiam o terreno. Richard me contou isso e provavelmente também contou ao resto. Conforme parece, Campbell ouviu os cavaleiros antes o bastante, antes que houvesse sinal alguma deles. Richard disse que era coisa de bruxaria.
Todo o prazer que Anna pudesse sentir ao ver confirmadas suas próprias suspeitas em relação ao ocorrido com os lobos, empalideceu em comparação com a fúria que atormentava seu interior. Suas bochechas se ruborizaram de indignação.
—Isso é ridículo. É que não se dão conta de que salvou a todos? Teriam que estar agradecidos e não tratá-lo como a um cão.
—Estou de acordo. Mas já sabe quão supersticiosos podem ser os highlanders.
—Isso não é desculpa.
—Não, não é. Falarei com o Richard e tentarei acabar com isso.
Anna saltou de seu assento de repente.
—Faz ou falarei com ele eu mesma. Não penso permitir que rechacem sir Arthur por nos ajudar. Pelas chagas de Cristo, Alan! Sem essa bruxaria, é possível que agora estivéssemos todos mortos.
Alan a olhou com atenção, e o que viu nela pareceu lhe preocupar. Ficou pensativo, assentindo simplesmente com a cabeça, em lugar de criticar por usar essa linguagem vulgar. Anna partiu dali com o propósito de encontrar Arthur, mas seu irmão adivinhou seu destino, porque gritou: —Amanhã pela tarde chegaremos a Auldearn, Anna.
Ela se voltou e lhe dirigiu um olhar inquisitivo, perguntando-se a que viria aquilo.
—Sim.
—Se tiver intenção de ir a sério com o compromisso de casar-se, talvez fosse melhor que o deixasse tranqüilo.
Duvidou ao ouvir a verdade em palavras de seu próprio irmão. Mas não podia fazê-lo. As ações desse homem tinham despertado todos seus instintos de amparo. Tinha que agradecer-lhe embora os outros não fizessem.
Encontrou-o à beira do lago, sentado em uma rocha plaina, depois de ter tomado um banho. Tinha o cabelo molhado e vestia uma simples regata de linho com uma túnica e as perneiras de couro. Estava inclinado sobre seu peitilho, aplicando azeite com um trapo, e sua expressão, vista de perfil, era mais sombria que nunca. Embora parecesse óbvio que a tinha ouvido chegar, Arthur não deu a volta. Uma vez que esteve mais perto, Anna distinguiu o que limpava e o mundo lhe veio em cima.
«Sangue.»
Apressou-se para ele sem pensar, ajoelhou-se e pôs uma mão no braço.
—Está ferido.
Quando ergueu o olhar para olhá-la, a lua iluminou seu rosto.
—Não é meu - disse.
Uma sensação de alívio se expandiu por todo seu ser. Suspirou profundamente. Embora seu rosto permanecesse impassível, percebeu uma estranha emoção em sua voz. Virtualmente soava como se estivesse arrependido. Como se a morte de um de seus inimigos fosse algo que o perturbasse. Talvez para os guerreiros matar não fosse tão fácil como ela imaginava. Em qualquer caso não para ele. Isso o fazia mais humano em certo sentido. Mais vulnerável. Sir Arthur Campbell vulnerável? Esse pensamento a teria feito rir sozinho algumas semanas antes.
—Não tinha outra alternativa - disse Anna com ternura.
Arthur lhe manteve o olhar por um momento e depois dirigiu para a mão que tocava seu braço. Anna sentiu imediatamente a intimidade dessa cálida e rígida pele que apertava com seus dedos e se apressou a retirá-la. Mas isso não conteve a necessidade de aninhar-se junto a ele e repousar a bochecha contra o amplo escudo protetor de seu peito.
Arthur voltou para a tarefa de tirar as manchas incrustadas entre as pequenas peças de metal. Anna se sentou junto a ele em uma rocha mais baixa e o observou em silencio durante vários minutos.
—Por que está aqui, Anna?
—Queria lhes agradecer o que fez hoje.
Arthur encolheu levemente de ombros, sem levantar o olhar de sua tarefa.
—Não fiz mais que meu trabalho. Para isso estou aqui.
Anna mordeu o lábio ao recordar o quão furiosa que a pôs sua intromissão e o cepticismo com o que acolheu suas razões para lhes acompanhar.
—Ao que parecia tinham razão —admitiu — Lhes agradeço que nos tenham acompanhado na viagem. Todos o agradecemos - disse franzindo o gesto com irritação — Embora alguns tenham uma estranha forma de demonstrá-lo.
Os ombros de Arthur se esticaram quase imperceptivelmente.
—O que é o que dizem?
—Que sentiram aos cavaleiros antes que fosse possível fazê-lo.
Arthur arqueou uma sobrancelha, divertido com sua tentativa de suavizar o golpe.
—Seguro que disseram algo mais que isso.
As superstições de seus companheiros de clã ruborizaram as bochechas de Anna.
—É certo, verdade? É como aquilo que aconteceu os lobos e quando tropecei no escarpado. Podem ver as coisas antes que aconteçam.
Anna lhe suplicou com os olhos que não mentisse. Outra vez não. Ele ficou calado durante tanto tempo que pensou que não lhe responderia.
—Não é de tudo assim —disse finalmente — É mais como um pressentimento. Meus sentidos estão mais afinados do normal. Isso é tudo.
—Afinados? —repetiu ela — São extraordinários. —Seu louvor não pareceu a não ser o incomodar mais — Não entendo como o resto dos homens não é capaz de compreendê-lo. Salvaram a todos.
—Deixem estar, Anna. Não tem importância - disse olhando-a com gesto severo.
Parecia falar a sério, algo que mais que atenuar suas faculdades as ressaltava.
—Como podem dizer isso? É que não vos molesta? Teriam que lhes agradecer o que têm feito e elogiar suas extraordinárias habilidades, em lugar de atuar como crianças que tivessem medo de encontrar um trasgo na cama ou fantasmas dentro do armário.
A indignação que Anna sentia pelo trato que lhe dispensavam não encontrava a avaliação esperada. Uma vez mais pareceu que essa conversa lhe incomodava.
Arthur a olhou com dureza.
—Não é algo que me incomode e tampouco necessito que façam as coisas mais difíceis advogando por minha causa. Não quero que mencionem nada a respeito do que acreditaram ver. Deixem passar e cairá no esquecimento. Insistam e piorarão.
Falava da experiência.
Anna teve que apertar os lábios para não discutir. Aquilo não estava bem e a injustiça que suportava fazia aflorar todo seu instinto de amparo.
Incomodava-o. Tinha que ser, por mais que se mostrasse despreocupado. Que estivesse tão acostumado a essa sutil crueldade das pessoas e que a desse por certa fazia disso um pouco mais duro. Encolhia-lhe o coração. Quantas vezes o teriam rechaçado ou repudiado para que se convertesse em uma pessoa tão insensível e indiferente? Seria isso o que o afastava de outros? Todo seu distanciamento e individualismo lhe pareceram de repente uma máscara para sua solidão. Levava tanto tempo só que tinha chegado a convencer-se de que gostava. Seu coração se compadecia dele. Era tão afortunada de ter a sua família… Odiava pensar que uma pessoa pudesse estar sozinha.
—Anna? —disse ele procurando seus olhos à luz da lua. Teria adivinhado a direção que tomavam seus pensamentos? — me prometa que não dirá nada.
Anna pôs cara feia, mas assentiu. Ele se levantou para passar o apertado peitilho pela cabeça se vestiu com um tabardo limpo e trabalhou em excesso na sujeição de suas numerosas armas. Observar como se vestia era um ato que transbordava intimidade, mas a Anna não envergonhava fazê-lo. Ao contrário, parecia natural. Como se pudesse passar todos os dias de sua vida vendo como ele se preparava para a guerra. Aquele pensamento teria que tê-la horrorizado, mas, em vez disso, viu-se invadida por uma intensa sensação de desejo, de saudade por algo que lhe escapava das mãos. Fazia que se expusesse seu futuro e pensasse que talvez ele não fosse o homem errado, a não ser exatamente o adequado para ela. Um guerreiro estável. Isso parecia algo contraditório. Mas talvez fosse ela quem se equivocava de cabo a rabo.
—O que fará quando acabar a guerra? —perguntou.
Perguntava-se se não teria pensado em fazer algo com seus desenhos, talvez. Ou estaria simplesmente esperando a seguinte guerra para lutar nela?
A pergunta o pegou despreparado. Arthur estava atendo-se a espada e a deixou pela metade. O certo era que não tinha dedicado muito tempo a pensar. Fazia muitos anos que a guerra consumia sua vida. Lutar era para quão único servia. Primeiro junto a seu irmão Neil e logo como membro dos Guardiões das Highlands. Era um soldado profissional. Um dos melhores do mundo. Era o único que sabia fazer. Mas era isso o que ele queria? O teria escolhido ao ter a oportunidade? Uma vez que houvesse justiça para seu pai, que Bruce tivesse o trono assegurado, uma vez cumpridos os objetivos… o que faria então?
Terras e uma rica esposa seriam sua recompensa. Isso teria que bastar. Mas ao olhar a aquela mulher que o acabava de defender tão fervorosamente, que o via como alguém extraordinário em lugar de horripilante, que tinha um coração que não lhe cabia no peito, perguntava-se se realmente seria suficiente com isso. Ao olhar essa carinha arrebitada, banhada pela luz da lua entre tênues sombras, sentiu uma estranha angústia. Saber que era algo impossível não lhe impedia de seguir desejando-a. Mas já tinha mostrado muito de si mesmo. Estava tão acostumado a mentir a respeito de suas habilidades que lhe parecia estranho ouvir a verdade em voz alta. Estranho, mas também consolador. Manteve-se afastado do resto durante tanto tempo que esquecia o que era ter conexão com alguém.
Estava completamente louco.
Sua única desculpa era que o tinha pego em um momento de debilidade. O sangue que limpava de seu peitilho era a dos dois homens que se viu obrigado a matar para defender-se.
«Protege sua identidade custe o que custar. Protege a missão.»
Deus, às vezes odiava o que tinha que fazer. Acabou de ajustar o armamento antes de responder.
—Eu diria que isso dependerá do resultado.
Inclusive nesse lusco-fusco percebeu que o rosto de Anna empalidecia, mas se recuperou com rapidez.
—Não há mais que um resultado possível. Não conhece meu pai. Não perderá. —Arthur ficou tenso. Sabia isso melhor que ninguém. Essa era a razão pela que estava ali — O rei Hood e os rebeldes serão submetidos e levados diante da justiça.
Apesar de que soasse como o melhor e mais leal dos soldados do clã MacDougall, podia perceber a fragilidade que se escondia atrás daquela bravata. Anna seguia aferrando-se a ilusões que começavam a apresentar fissuras. Mas estava claro que era consciente do desesperado de sua situação, ou não estariam ali nesse momento.
—E mesmo assim acode ao Ross para lhe permutar por tropas adicionais.
Anna endireitou as costas de repente. Seus olhos brilhavam com intensidade ante o resplendor da lua.
—Não se trata exatamente disso.
Sim, se tratava disso. E seu trabalho era assegurar-se de que não ocorresse.
Não queria ser cruel, mas ela precisava confrontar a realidade. O pêndulo se afastava dos MacDougall. Bruce estava ganhando a guerra.
—E o que passará se fracassar, Anna? O que acontecerá Ross não está de acordo em mandar mais homens? Então o que?
—Meu pai pensará algo. —Soava tão desesperada que, sem se dar conta, esteve a ponto de aproximar-se até ela para consolá-la — por que falas de tal modo? —perguntou — Falas como um rebelde. Por que está aqui então, se não acredita em nossa vitória?
Amaldiçoou para si. Tinha razão. E logo descobriria quanta. Encolheu-lhe o estômago ao pensar em como a afetaria descobrir a verdade. Gostaria de poder suavizar o impacto de algum modo.
—Essa é justamente a razão pela que estou aqui, Anna. Por acreditar em uma causa. Por acreditar que ganhará o lado adequado. Mas as coisas não passam sempre do modo em que alguém pensa. Não quero lhe ver sofrer. —Deteve suas palavras e voltou para a questão original — Para quando a guerra acabe me prometeram terras e outras recompensas. Isso deveria bastar para me manter ocupado.
Anna inclinou um tanto a cabeça e umas linhas brancas diminutas povoaram seu sobrecenho.
—Outras recompensas? Que tipo de recompensas? —Embora não lhe respondeu, a resposta pareceu ir a sua cabeça de repente. Sobressaltou-se ao cair na conta e sua expressão de estranheza desvelou mais do que queria — Uma esposa? Eles prometeram uma esposa? —Arthur assentiu levemente, reconhecendo — Quem?
Uma das maiores herdeiras das Highlands ocidentais, a segunda irmã de Lachlan MacRuairi, lady Christina, senhora das Ilhas.
—Não sei —mentiu Arthur — Quando acabar a guerra me encontrarão uma esposa adequada.
Não era a primeira vez que desejava ser capaz algo precipitado, como tomá-la entre seus braços e lhe fazer promessas que jamais poderia cumprir.
—Já vejo —disse ela com voz diminuída — E por que não me contaram isso?
Ele a olhou com atenção.
—Como fizeram todos?
Anna estremeceu. Ao que parecia, tinha esquecido para onde se dirigiam. Mas ele não o tinha feito. A cada passo que os aproximava do Auldearn e Ross, Arthur sentia crescer a inquietação em seu interior. Sabia que tinha que fazer algo para evitar essa aliança, pela missão, conforme dizia a si mesmo. Mas o que?
Talvez não tivesse que fazer nada absolutamente. Era possível que Ross simplesmente se negasse a retomar as conversações sobre o compromisso. Mas com somente olhar a doce cara de Anna, Arthur foi consciente de que estava sonhando. Sir Hugh ficaria com ela com os olhos fechados. Apertou a mandíbula e lhe estendeu a mão.
—Vamos, temos que retornar. Faz-se tarde e temos um longo dia pela frente.
Quando Anna deslizou uma mão sobre a dele uma onda de calor invadiu todo seu ser. sentia-se… satisfeito. Como se não houvesse nada mais natural que ter essa pequena mão entre as suas. Todos seus instintos clamavam por agarrá-la e não deixá-la escapar.
Mas em vez disso, permitiu que seus dedos se desenlaçassem. Caminharam em silencio até o acampamento. Já se haviam dito suficiente. Talvez muito.
Capítulo 14
—Algo errado com sua comida?
A voz de sir Hugh tirou a Anna de seus pensamentos. Quanto tempo levava olhando sua tigela como uma boba e tirando o miolo ao pão pouco a pouco, sem dizer uma palavra? Tentou cobrir sua falta de tato com um sorriso ao mesmo tempo em que a vergonha se revelava em suas bochechas em forma de rubor.
—Não, está deliciosa. —Para dar fé disso meteu um pedaço de vitela na boca e fingiu deleitar-se. Uma vez o teve mastigado pediu desculpas — Temo que ainda esteja cansada pela viagem e não sou uma boa companhia.
Fazia duas noites que tinham chegado ao Auldearn. O último dia de marcha foi exaustivo, mas felizmente sem incidentes. Esperava em seu foro interno outra oportunidade para falar com sir Arthur antes que chegassem, e teve que levar uma decepção. Não era que ele a tivesse evitado, mas tampouco a tinha procurado.
Algo mudou aquela noite no lago, ao menos para a Anna. Arthur lhe tinha devotado uma parte de seu ser que parecia não revelar freqüentemente, uma parte dele que talvez a necessitasse. E o mais importante: não a tinha espantado. E por que não o tinha feito? Tudo teria resultado mais simples. Anna lutou por reprimir a cálida inflamação que ia a seus olhos e sua garganta enquanto a miséria se apoderava dela. Isso era o que lhe faltava, ficar a chorar em meio da comida como se fosse uma criada meio louca e doente de amor. Seguro que assim impressionaria sir Hugh.
Embora fosse jovem, apenas vinte e três anos, sir Hugh Ross era um homem cuja grandeza, superioridade e decidido atrativo se refletiam no perfil de seu perfeitamente torneado nariz até a ponta de seu afiado e curto queixo. Mas o orgulhoso cavalheiro parecia muito maior. Virtualmente parecia controlar-se em demasia, com tanta serenidade e tanto controle sobre si mesmo e essa arrogância de príncipe, algo que tampouco estava muito longe da verdade, dado a fila que ostentava entre a nobreza escocesa. Rígido, sem senso de humor, com esse aspecto frio e desumano tão próprio dos homens de sua época.
Sir Hugh lhe dirigiu um sorriso de compreensão que não melhorou em modo algum a severidade de seu semblante.
—É obvio, depois de cavalgar para tal passo e estar a ponto de ter uma topada com um grupo de rebeldes, é algo previsível. —Seu rosto adotou um aspecto sombrio — Teria que esfolar ao Bruce com suas próprias esporas por ser líder desse bando de piratas desalmados —acrescentou, voltando seu acerado olhar sobre ela — Foram muito afortunados de receber aviso a tempo de escapar —disse puxando a barba enquanto a observava. Anna não podia afastar os olhos de suas grandes e ossudas mãos, umas mãos que poderiam esmagar ou assassinar com a facilidade como que as suas rompiam um galhinho — Foi sir Arthur Campbell, não é certo? O irmão do rebelde Neil Campbell.
Anna assentiu, incomodada com seu próprio acanhamento. O nervosismo que sentia na presença de sir Hugh, o qual foi a primeira causa de que rechaçasse o compromisso, não fazia mais que agravar-se desde sua chegada. Sorrir e responder a suas educadas tentativas de conversa se convertia uma batalha. Observava-a como se pudesse ler seus pensamentos. Teria se delatado? Ela tinha tomado cuidado nem olhando na direção sir Arthur desde que chegaram. Ao menos acreditava não tê-lo feito. Mas estava mais que segura de que ele sim a estivera observando. O qual, provavelmente, explicava parte de sua inquietação. Seduzir a um homem sob o fulminante olhar de outro não era tarefa fácil. Mas tinha que fazer. Embora não gostasse da idéia. E a idéia não gostava absolutamente. Os dias passados encarregaram de deixar claro. Temia pensar muito no que sentia por Arthur por medo que descobririam.
—Tivemos muita sorte — comentou ao conscientizar de que sir Hugh esperava que dissesse algo.
Anna não sabia o que lhe acontecia. Jamais teve esse tipo de problemas na conversa com ninguém. Procurava controlar o tremor de suas mãos, mas lhe inquietava tanto a intensidade de seu olhar que atirou o pedaço de pão que tinha na mão. Caiu sobre a mesa, junto a sua taça e ao tentar recolhê-lo ao mesmo tempo em que Hugh Ross suas mãos se tocaram. Antes que desse tempo a retirar a sua, sir Hugh a cobriu com seus dedos. Seu pulso se acelerou até embarcá-la em uma sensação próxima ao pânico. Seu coração revoava em seu interior como se tratasse de um passarinho enjaulado.
—Está nervosa - disse lhe soltando a mão e lhe devolvendo o pão.
Ardiam-lhe as bochechas.
—Não têm nada que temer, lady Anna —disse visivelmente divertido — Sou bastante inofensivo. —Ela deve ter posto cara de não acreditar absolutamente, pois ele acrescentou—: Bom, pode ser que não completamente.
Essa inesperada amostra de humor a fez sorrir e pela primeira vez sentiu que começava a relaxar. Olhou-o do meio lado, protegida sob suas largas pestanas.
— Bom, milorde, é que sua pessoa é… certamente imponente.
—Tomarei como um elogio, embora não acredito que fosse essa sua intenção —disse entre risadas, para depois aproximar-se mais a ela e sussurrar—: O que parece se me esforço por ser imponente com todos menos contigo? Contigo serei o mais inofensivo. Será nosso segredo.
Anna, incapaz de resistir a seu encanto, sorriu até que lhe marcaram as covinhas. Sir Hugh Ross encantador? Jamais teria acreditado. Acaso o mal-humorado nobre ocultava mais do que Anna conhecia?
—Acredito que disso eu gostaria, milorde —disse sentindo que voltava para ela um pingo de seu atrevimento — Talvez ajudasse que sorrisse mais - acrescentou erguendo os olhos para olhá-lo.
Sim, quando sorria não parecia intimidar tanto.
Sir Hugh esboçou então um amplo sorriso e procurou seus olhos com o olhar.
—Pois então o farei - replicou. Fez uma pausa em seu discurso e Anna observou como se entretinha em riscar o relevo do pé da taça, interrompendo-se de um modo quase sensual que a devolveu a seu estado de inquietação — Estou muito contente de que tenham decidido viajar até o norte, lady Anna.
Cada vez estava mais tinta. Não lhe escapava o significado de suas palavras. Estava disposto a renovar as conversações em torno do compromisso. Sabia que devia sentir-se aliviada. Para isso tinha ido até ali. Poderia ajudar a salvar a sua família. Então por que notava como se uma estaca se atendasse em seu peito?
Assentiu com indolência, incapaz de encontrar-se com seu olhar de repente, temendo que revelasse muito. O peito lhe angustiava ao conscientizar de que o laço de seu futuro cada vez se atava com mais força. Seus sentimentos pessoais não importavam. Deveria contentar-se sabendo que tinha posto seu grãozinho de areia para ajudar à família. Isso seria recompensa suficiente, verdade?
Ross se voltou e fez gestos a uma criada que passava para que enchesse suas taças. Anna voltou o olhar inconscientemente para Arthur. Sabia onde estava sem necessidade de olhá-lo. Parecia atravessar toda a sala com o calor de sua ira. Seus olhares se encontraram durante um instante, mas foi tempo suficiente para que a força de sua ira ressonasse como o rugido de um ferreiro na forja. Em geral, continha tanto suas emoções que Anna se perguntava se realmente existiriam. Mas isso acabou. Jamais o tinha visto tão feroz e selvagem. Parecia um homem cuja contenção pendia de um fino fio.
Voltou-se, sobressaltada pela emoção que a embargava. Infelizmente não voltou o olhar com suficiente rapidez e sir Hugh apreciou parte do intercâmbio. Notou como ficava em guarda e entreabria os olhos olhando sir Arthur.
—Campbell não parece muito feliz com nosso acerto. Eu não gosto da forma em que vos olha - disse voltando o olhar para ela e arqueando uma sobrancelha de tal modo que parecia algo menos casual — Há algo que deveria saber lady Anna?
Amaldiçoou Arthur por sua imprudência. Arruinaria tudo. E para que? Já tinha tido oportunidades mais que suficientes para mostrar seus sentimentos, se é que albergava alguns. E agora não ficava opção. Seu pai contava com ela.
Mesmo assim duvidava. Essa seria sua última oportunidade para voltar atrás. Seu coração puxava em uma direção, e o dever e sua família puxavam a outra. Anna recordou a conversa mantida com sir Arthur. O ouvir falar de perder a guerra a tinha feito tremer. Inspirou profundamente e se desembaraçou de todas as dúvidas. Seus sentimentos pessoais não importavam. Tinha que fazê-lo. Quando Bruce chegasse, teriam muitas mais possibilidades com Ross e seus homens ao seu lado.
Negou com a cabeça.
—Não, não há nada que deveria saber.
A certeza de sua voz pareceu convencer sir Hugh. Assentiu.
—Bem —disse lhe estendendo a mão — Venham, há algo que eu gostaria de mostrar e acredito que há certas coisas que deveríamos discutir.
Anna ignorou a dor que lhe oprimia o coração e sorriu, embora tremulamente. Sem nenhum olhar mais, deu a mão ao Ross e lhe permitiu que a tirasse do grande salão com seu futuro já mais que decidido.
Isso era o que se sentia quando as pessoas perdiam o controle. Isso era o que se sentia quando alguém queria algo com tanta vontade que mataria por consegui-lo. Não pelo bem ou o mal, nem por estar no campo de batalha, mas sim pela pura satisfação de ver outro homem atravessado pela ponta de seu aço.
Arthur queria matar Hugh Ross. Dava-lhe vontade de matá-lo somente pela forma em que olhava a Anna. Pelos pensamentos luxuriosos que seguro percorriam a mente daquele filho de cadela. Arthur não acreditava ser capaz de conter-se no caso de que o olhar do Ross se detivesse de novo sobre seus seios. Atiraria uma lança no seu sobrecenho do outro lado do aposento. Poderia fazê-lo com os olhos fechados. Ficar afastado durante os últimos dois dias obrigado a contemplar como outro homem cortejava a essa mulher que, supostamente, não significava nada para ele era como uma lenta e agonizante descida à loucura. Arthur liberava uma batalha perdida. Suas tentativas de permanecer indiferente, de centrar-se na missão, não funcionavam. Todos esses anos de treinamentos e experiência na batalha não o tinham preparado para aquilo. Ver Anna e Hugh Ross juntos estava lhe fazendo em pedaços. Mas essa noite foi a gota que encheu o copo. Quando viu Ross lhe acariciar a mão, Arthur esteve a ponto de sair da ali feito uma fúria e lhe partir todos os dentes num murro. Ao diabo com o subterfúgio. Estavam rindo, maldita seja. Rindo.
Queria convencer-se de que ela não seria capaz de passar por isso. Não seria porque Anna não se mostrou precavida a respeito ao cavalheiro durante os últimos dois dias, precisamente. Mas Arthur tinha subestimado sua resolução, e também o encanto de sir Hugh. Quando se aproximou para lhe sussurrar ao ouvido teve que apertar os punhos. Não foi até que baixou o olhar e percebeu a palidez de seus nódulos que se deu conta de quão forte tinha a taça obstinada. Foi toda uma sorte que fosse de madeira; de outro modo, a teria destroçado.
Amaldiçoou consciente de que devia fazer algo. Tinha que pensar em sua missão. Sir Hugh não perdia tempo, e não é que pudesse culpá-lo. Se Arthur não fazia nada para impedir aquela aliança, seria muito tarde. Bebeu o conteúdo da taça. O uisgebeatha de cor ambarina fez que ardesse a garganta, mas não acalmou absolutamente a intranqüilidade que bulia em seu interior.
—Que diabos te passa, Campbell? Parece que queira matar a alguém - disse Alan MacDougall olhando de soslaio ao estrado. Sabia perfeitamente a quem queria matar Arthur. Aproximou-se para falar — Tome cuidado. Acredito que nosso anfitrião advertiu seu interesse por minha irmã.
Arthur economizou a vergonha de negá-lo. Alan MacDougall podia ser filho de um déspota desumano, mas não era nenhum idiota.
—E viestes para ordenar que me retire do conflito?
O guerreiro mais velho, muito experiente para delatar-se pela expressão de seu rosto, olhou-o com impassibilidade.
—Queres que o faça?
Arthur contraiu a mandíbula e apertou os dentes.
—Deveria — disse em um estranho momento de franqueza.
Não faria mais que arruinar sua vida. Se ele fosse seu irmão, ordenaria que o mandassem ao inferno diretamente e logo iria ele mesmo atrás. Mas se Alan pensou que havia algo estranho em sua resposta certamente não o exteriorizou. Em vez disso, sorriu com ironia.
—Parece-me que é muito tarde para isso.
Arthur afastou o olhar de sir Hugh e de Anna o tempo suficiente para olhar ao Alan enviesadamente. Não tinha idéia do que Alan acreditava saber, mas se equivocava. Ou não?
Diabos, já não sabia. Sua missão. Ciúmes. Sua intensa atração pela moça. Tudo isso se mesclava criando um caos absoluto. Voltou a beber de um gole o conteúdo da taça.
Alan observou como o fazia com uma expressão divertida.
—Acreditava que não bebia uísque.
—Não bebo - disse Arthur, e fez gestos à criada para que lhe enchesse a taça.
Alan estivera observando-o com mais atenção da que pensava. Aquilo o teria preocupado a não ser porque algo lhe fez voltar sua atenção para o estrado. Todos seus músculos ficaram rígidos quando viu que Anna deslizava sua mão sobre a do Ross. A ira percorria todo seu corpo ao mesmo tempo em que aquele homem se inclinava para falar brevemente com seu pai momentos antes de acompanhá-la ao exterior do salão. Justo antes que Hugh passasse pela porta olhou para Arthur. O tom malicioso de seu olhar fez que lhe gelasse o sangue. Uma sensação estranhamente próxima ao pânico subia por seu peito, algo ridículo por completo. Era um guerreiro de elite. Distante. Controlado. Pode ser que seu coração pulsasse muito depressa e que não pensasse com claridade, mas era indisputável que aquilo não podia ser pânico.
Mas onde demônios acreditava que ia? Ross, esse filho de puta lascivo, estava obviamente ansioso pelo compromisso. Quem sabia do que seria capaz para assegurá-lo? Acaso Anna não notava do que aconteceria quanto estivessem a sós? A mente de Arthur voltou para os barracões imediatamente.
«Por todos os diabos.»
Conseguiu resistir durante uns trinta segundos até que já não pôde agüentar mais. Levantou-se para partir, mas Alan o deteve movendo sua perna pela borda da mesa e lhe fechando o passo. Não era nenhum acidente. A princípio Arthur acreditava que queria detê-lo, mas para sua surpresa o guerreiro retirou a perna lentamente e lhe deixou passar, não sem antes fazer uma advertência.
—Se fizer mal a minha irmã, Campbell, terei que te matar.
Apesar de que falasse com tanta calma como se informasse o tempo, Arthur era consciente de que dizia muito sério. Que diabos, se Alan não fosse seu inimigo e o filho de um déspota, pode ser que inclusive lhe caísse bem. Arthur o olhou nos olhos e assentiu, com a suspeita de que Alan MacDougall não seria capaz de manter sua promessa. Pôr fim ao compromisso e deter a aliança, fazendo dano a Anna no processo, converteu-se em algo inevitável.
Anna esperava que sir Hugh a levasse fosse para passear pelo barmkin, mas em vez disso a fez entrar pelo corredor até a torre da comemoração. O castelo real do Auldearn fora construído uns cem anos antes por encargo do Guillermo o Leão. Sua torre da comemoração e o grande salão contíguo se erguiam no alto de um enorme Castro circular rodeado por um cerca de madeira. O muro de pedra que rodeava o pátio de armas que havia debaixo proporcionava um nível mais de defesa. O corredor iluminado pelas tochas parecia silencioso em comparação com o bulício do grande salão. Anna se inquietou ao ser consciente de que não havia ninguém mais ao redor. Embora os últimos raios de sol ainda reverberassem sobre o horizonte, a torre de pedra estava já às escuras. Tampouco a luz cintilante das tochas alinhadas nos muros lhe dava mais tranqüilidade.
—A…aonde vamos? — perguntou envergonhada pelo tremor de sua voz.
Sir Hugh lhe dirigiu um enigmático sorriso que fez que Anna se perguntasse se saberia a impressão que causava nela.
—Já quase chegamos.
Deteve-se frente à porta da câmara particular do conde. Uma vez aberta, Anna aliviou comprovar que a estadia estava bem iluminada pelo castiçal de ferro circular que pendia do teto. Infelizmente, Hugh a levou até outra porta que havia cruzando a sala, com o que Anna percebeu de que aquele não era seu destino final. O segundo aposento estava às escuras. Anna ficou na câmara até que sir Hugh acendeu umas velas. Então ficou sobressaltada.
Anna se esqueceu de seu nervosismo. Apressou-se a entrar no minúsculo aposento, não muito maior que uma despensa, e olhou com surpresa a seu redor. O centro da sala estava presidido por uma mesa e um banco, mas o que enchia seu assombro era o que havia sobre as paredes. Prateleiras e mais prateleiras cheias de grossas folhas de couro, alguns deles recobertos de ouro e outros com jóias incrustadas. Um tesouro oculto. Mais livros dos que tinha visto em sua vida em um só espaço.
Sir Hugh observou em que modo a maravilha e a incredulidade transformavam seu rosto.
—Pensei que isto poderia lhes interessar.
Anna deu uma palmada de puro prazer; seus dedos estavam impacientem por explorar os títulos. Por Deus bendito, se pareciam quatro volumes do Chrétien do Troyes!
—É magnífico — disse voltando-se para ele — Como sabias?
Hugh Ross encolheu de ombros.
—Em certa ocasião mencionaram que desfrutava da leitura.
Anna inclinou a cabeça e o olhou. Uma vez mais sentia como se o tivesse julgado mal.
—E se lembrou?
Sir Hugh não respondeu, mas a olhou de tal forma que um formigamento de inquietação lhe percorreu as costas. Desejava-a. De repente aquele minúsculo aposento pareceu uma armadilha a Anna. Olhou para a porta, mas já fosse intencionadamente ou não, ele se tinha colocado frente a ela lhe cortando o passo.
—por que me trouxestes aqui? —perguntou.
Sir Hugh deu um passo adiante e seus olhos brilharam de maneira perigosa entre as penumbras. Pegou-a pelo queixo e a obrigou a olhar em sua direção. O pulso lhe acelerou de pânico. Talvez fosse uns cinco centímetros mais baixo que sir Arthur, mas em certo modo seu tamanho lhe parecia ameaçador. Anna teve que reunir todo o valor com o que contava para não sair correndo.
—Queria lhes mostrar o que terá quando fores minha esposa. Esta sala estará a sua disposição. Será uma das damas mais importantes do reino. Para isso viestes, lady Anna. Não é assim? Para reatar as conversações sobre nosso compromisso.
—Sim - sussurrou ela, tentando controlar o tremor de sua voz.
Hugh cravou o olhar em seus olhos, desafiando-a.
—É isso o que quer realmente?
O coração lhe pulsava com fúria. Teve que obrigar-se a assentir.
—Sim.
—Então prove — pediu. Ela piscou de maneira inquisitiva — me beije.
Anna abriu os olhos de par em par pela surpresa.
Lutava por saber o que dizer. Mas, pelo amor de Deus, não podia. E ele sabia. Endureceu o olhar.
—Está jogando comigo, lady Anna? Asseguro-lhes que não tenho nenhum desejo de ser o corno de outro homem. Recorde que são vocês quem acudis a mim nesta ocasião. —Sir Hugh lhe pôs um dedo no lábio inferior e Anna conteve o fôlego, paralisada pelo medo — Decida o que quer antes de fazer algo que não possa ser desfeito. Uma vez estejamos comprometidos, asseguro-lhes que não tolerarei tais tolices.
As bochechas de Anna se avermelharam, envergonhada por quão certas eram suas acusações. Sacudiu o medo tentando recordar por que tinha ido até ali, tentando recordar quão importante era conseguir essa aliança para ela. Não podiam deixar escapar essa oportunidade. Por que se comportava como uma estúpida? Somente se tratava de um beijo.
—milorde, o temporal…
Ao ver que lhe soltava o queixo, Anna suspirou mostrando maior alívio do que devido.
—Temos que retornar ao salão - disse Ross fria e secamente — Seu irmão se estará perguntando aonde a levei.
Anna assentiu, sentindo sua impotência, consciente do que devia fazer, mas incapaz de pronunciar as palavras. Que o diabo levasse Arthur Campbell pelo que estava fazendo com ela! Por confundi-la. Ela estava preparada para levá-lo a cabo antes que ele voltasse a aparecer.
—Se não lhes importar, meu senhor, estou cansada e preferiria me retirar a meus aposentos.
Sir Hugh assentiu.
—Não há pressa. Querem tomar um livro emprestado, talvez? —Olhou-o nos olhos, consciente de que tentava tentá-la — Podemos falar sobre isso manhã.
Hugh Ross deu meia volta para partir, mas algo o fez mudar de idéia. Antes que ela pudesse conscientizar do que se dispunha a fazer, já a tinha atraído para si e a estava beijando. Anna ficou paralisada, muito surpreendida para resistir.
Seus lábios eram frios e duros, em consonância com sua pessoa. Acertou a distinguir um leve aroma a vinho, mas antes que pudesse descobrir algo mais já tinha acabado tudo. Sir Hugh baixou o olhar e sorriu ao ver o rosto de surpresa que Anna tinha posto.
—Têm toda a noite para decidir. Mas se quiserem que o compromisso siga adiante, espero que me dêem uma resposta amanhã. Uma que seja algo mais entusiasta que esta.
Ross não se fazia uma idéia do perto que estava da morte. Arthur apertava a adaga em sua mão, tentando controlar a sede de sangue que percorria suas artérias com cada um dos músculos. Tudo que tinha que fazer era dar um par de passos, sair de seu esconderijo depois das sombras do vão da porta e afundar sua folha no mais profundo das vísceras daquele filho de cadela.
Tinha-a beijado. Tinha-a tomado entre seus braços e tinha grudado sua boca a dela. Algo se rompeu em seu interior. Todos seus instintos lhe diziam que tinha que sair dali e matar ao homem que se atrevia a tocar aquilo que lhe pertencia. Mas algo deteve sua mão no último momento. Matar ao Ross poria fim a sua missão. Veria-se obrigado a fugir, acabando assim com sua oportunidade de destruir ao Lorn. Teve que aferrar-se ao mínimo de controle que ficava para não mover-se, mas deixou que Ross saísse do aposento. Deixou-lhe viver. Por essa vez.
Entretanto, Anna não escaparia a sua ira tão facilmente. Asseguraria-se de que não houvesse mais que uma resposta à manhã seguinte. O compromisso que ela tinha planejado estava a ponto de chegar a um final irrevogável.
Anna seguiu os passos do Ross apenas se desvaneceram suas pegadas. Assim que chegou à porta, Arthur saiu de entre as sombras e lhe fechou o avanço.
Ela ficou sem fôlego. Todo o medo que pudesse sentir logo desapareceu para dar passo ao brilho de ira que incendiava seu olhar.
—Como te atreve a me espiar? —exclamou. Tentou afastá-lo de seu caminho, mas ele imobilizou seus pulsos com uma mão — Deixe-me partir. Não tem nenhum direito.
Voltou a colocá-la no aposento e fechou a porta atrás dele.
—Tenho todo o direito —disse Arthur com fúria — Não se casará com ele.
Advertiu o rubor de suas bochechas à luz das velas. Seu busto, esses incríveis seios, tão grandes que não podia deixar de sonhar com eles, enchiam-se com uma indignação justificada. Anna ergueu o doce rosto com seu adorável e teimoso queixo para ele.
—Sim o farei.
Não gostava desse tom absolutamente. Nenhum pingo. Entreabriu os olhos.
—Nem sequer podia lhe beijar - disse aproximando-se mais a ela e aspirando a sensual calidez de sua fúria — Como pensa que será então deitar-se com ele?
A indignação de Anna se traduziu em um áspero gemido. A Arthur não cabia a menor duvida de que lhe teria parecido uma adaga entre as costelas se tivesse uma. Mas sua língua era igual de efetiva estripando-o.
—Suponho que chegarei a me acostumar. É possível que inclusive desfrute. Sir Hugh é um homem muito arrumado. E parece bastante decidido, não acredita? —disse lhe provocando com o olhar, desafiando-o, voltando-o louco — Se parecer em algo a esse beijo imagino que chegarei a desfrutar muito disso.
Agarrou-a pelo braço.
—Pare — disse agitando-a ante si — Pare.
Parecia estar a ponto de explodir. Suas provocadoras palavras exaltavam ao máximo aqueles sentimentos contidos durante tanto tempo. Uns sentimentos que Arthur não queria reconhecer. Uns sentimentos que não podia permitir que aflorassem. A cabeça lhe dava voltas. Queimava-lhe o peito. Deus, doía demais. Tinha que fazê-la parar.
—Por quê? —perguntou Anna aproximando-se mais a ele. Arthur sentiu seus mamilos lhe roçando o peito e teve que sacudir-se realmente, pois todo o controle com o que contava seu corpo pendia de um fio. O calor o puxava para um vórtice de luxúria e desejo. Queria esmagá-la contra si. Beijá-la. Possuí-la até deixá-la sem sentido. Fazê-la gritar seu nome e nenhum mais que o seu — Por que teria que parar? É a verdade. Sir Hugh me deseja muito como um homem que vê o que quer e não se detém ante nada até que o consegue.
Era consciente de que não fazia mais que provocá-lo, mas não lhe importava. Arthur sabia perfeitamente o que queria, maldita seja. A ela. Renegou, consciente de que a batalha estava perdida. Tomou entre seus braços e pregou sua boca a dela, cedendo a esses poderosos impulsos que liberavam uma guerra em seu interior. Beijou-a como jamais antes tinha beijado a mulher alguma. Beijou-a com toda a paixão que acumulava desde que a visse pela primeira vez. Beijou-a para que não seguisse falando. Beijou-a para apagar as odiosas imagens com as que tinham enchido sua cabeça. Beijou-a de modo tal que não pudesse voltar a pensar em outro homem em sua vida.
Não obstante, uma vez que Anna se fundiu ante ele em uma rendição silenciosa e abriu sua doce e pequena boca para recebê-lo com um suspiro e um gemido, Arthur não pensou mais em missões, alianças, clãs inimigos ou vingança. Não. Tudo assim que pensava era em fazê-la sua.
Capítulo 15
Anna sabia que se precipitava e que estava provocando-o, mas não lhe importava. A ira não lhe deixava ver mais que sua necessidade de arremeter contra ele. Odiava-o por intrometer-se, por fazê-la duvidar, por interferir em seus planos. Não queria outra coisa que proteger a sua família e manter a salvo às pessoas que amava. E quando tinha a oportunidade de conseguir, Arthur Campbell se interpunha em seu caminho.
Confundia-a. Desorientava-a. Fazia que tomasse carinho e logo a separava de seu lado. Em um momento a salvava e a protegia e ao seguinte a ignorava. Era um ingrato, um homem que se mantinha à margem e dava a impressão de não necessitar a ninguém. Mas também era um homem que estava sozinho, alguém afastado por seus próprios dons, obrigado a viver um tanto afastado de outros.
Queria-a? Necessitava-a?
Em qualquer dos casos teria que decidir-se. O tempo se esgotava para ambos. Era consciente de que estava ciumento, consciente de que tinha visto o beijo que lhe deu sir Hugh, consciente de que lutava por manter o controle. Assim o provocou.
Desejava-o com tanta vontade… A essa distância o único em que podia pensar era em seu doce aroma. E em que o aspecto desalinhado que lhe dava a escura sombra de sua barba o fazia mais arrumado ainda. No alto que era. A enmembrodura de seu peito. O suave que se viam seus lábios embora estivessem brancos de ira. Em que o daria tudo por que tomasse entre seus braços e não a abandonasse nunca. A dor rasgava seu peito como uma faca. Por que não a queria? Por que se reprimia?
Isso foi o que a levou a provocá-lo de maneira temerária, desesperada, com intenção de lhe ferir tanto como ele a feria. E se era mentira? E o que lhe gelava o sangue com somente imaginar-se na cama com outro homem? Desfrutar? Mal podia deixar de tremer de medo em presença de sir Hugh.
Então ele se desmoronou e Anna obteve sua recompensa. Encontrou-se em seus braços, com a boca de Arthur pegada à sua, beijando-a com toda essa paixão e emoção com que ela tinha sonhado. Ele a devorava com a boca e a língua, enquanto ela gemia e se entregava mais e mais a seu beijo, morrendo por sentir cada dobra de sua pele. Deslizava suas enormes mãos sobre ela de modo possessivo. Passou-a por suas costas e depois sobre os quadris, até que desceram para agarrar seu traseiro. Então rugiu de agrado sobre sua boca e a beijou com mais força ao mesmo tempo em que a acoplava firmemente contra seu corpo.
As sensações se desatavam em seu interior em um ataque de calor resplandecente.
OH, Deus, aquilo era perfeito. Seu peito contra o dele, os quadris colados e a dura confirmação do desejo masculino introduzindo-se entre suas pernas de uma maneira íntima. Era consciente de que o tamanho e o tato teriam que assombrá-la, mas o único que sentia era a excitação, uma excitação que fazia lhe acelerar o coração, sua pele se ruborizasse e sentisse comichões por todo o corpo.
Estavam cobertos um com o outro, mas aquilo não bastava. A cada delicioso roce de sua língua, a cada possessiva carícia de suas mãos, crescia a inquietação no interior de Anna. Respondeu a seu atrevimento com mais atrevimento. Agarrava com firmeza os duros músculos de seus braços, seus ombros e suas costas. Queria sentir cada centímetro de seu corpo sob os dedos, modelar seus músculos com as palmas de suas mãos. Conter toda sua força baixo elas.
Aquilo a fazia sentir… embriagada de desejo. Era a primeira vez na vida que tinha uma experiência de tal calibre. Seu corpo parecia ressuscitar. Reagia aos estímulos de maneira natural, como se soubesse o que estava fazendo. Tudo ocorria muito rápido para pensar. O desejo a tinha feito sua presa e não parecia disposto a soltá-la.
Aproximava-a de seu corpo cada vez com mais urgência, esfregando sua virilidade contra a mais feminina de suas partes. A fazia sentir estranha, com comichões, quente, ofegante. Mas não era suficiente. Ávida de fricção, sedenta por encontrar uma conexão mais profunda, descrevia círculos com seus quadris e se esfregava com essa grosa coluna de carne com mais força.
Arthur percorreu seu pescoço com a boca e a devorou com seus beijos. Sua barba de dois dias fazia sulcos em sua pele em chamas. O aposento jogava fumaça e ardia de paixão. Agarrou-a pela cintura e deslizou as mãos até seus seios. Anna ofegou e se pegou quanto pôde a seu membro viril ao mesmo tempo em que arqueava as costas procurando suas mãos. Arthur murmurou algo parecido a uma imprecação e roçou seus turgentes e ofegantes mamilos com os polegares enquanto sua boca se dava de presente com a tenra pele que aparecia por cima do corpete.
Estava muito quente. Sentia-se débil. Lânguida e pesada. Parecia que suas pernas não contassem com forças para sustentá-la. Desabou-se sobre Arthur, que a puxou de novo sobre a mesa para acalmá-la, e talvez também para acalmar a si mesmo. Aquele cavalheiro, que mostrava um controle tão férreo sobre si, parecia sofrer apuros igual aos selvagens e frenéticos dela.
Os escuros e sedosos cabelos de Arthur se derramaram sobre seu peito. Anna, incapaz de resistir, passou os dedos entre essas suaves ondas e o apertou contra si com força e ternura. A umidade de sua boca transpassava o tecido do vestido para chegar até seu mamilo ao mesmo tempo em que acariciava seus seios e os rodeava com suas mãos.
Mas não era suficiente.
Então sua língua pareceu perceber essa frustração e entrou sob o corpete. Um gritou escapou dos lábios de Anna ante tamanha perversão, ante o delicioso prazer que sentia. Aquela boca estava muito quente. Passou-lhe a língua de um lado a outro, até que pensou que já não poderia resistir mais. Retorceu-se contra ele suplicando para que desatasse a voragem que se formava em seu interior.
Por fim lhe deu um puxão do vestido até quase romper o tecido e o abriu para liberar seus seios. O frio ar soprou sobre sua pele e provocou formigamentos ali onde a tinha beijado.
—Jesus — exclamou Arthur, como se aquilo doesse — É incrivelmente bela.
Provavelmente ouvir sua voz teria quebrado seu estado de transe, mas Arthur cobriu seu ofegante mamilo com a boca e começou a chupá-lo antes que Anna pudesse acolher-se a esse momento de iluminação. Essa doce e aguda sensação a fez gritar. Era um prazer tão agudo que se aproximava muito à dor. Atendia-a com os dentes, dava-lhe linguadinhas e sugava sua cálida boca cada vez com mais intensidade. O calor se estendeu entre suas pernas em uma corrente de umidade. Sentia comichões em suas suaves carnes inflamadas.
Tinha-a aprisionada contra a mesa com as pernas abertas. Montou uma delas sobre seu quadril ao mesmo tempo em que se inclinava para lhe beijar o seio. Os ferozes pulsar do coração de Arthur troavam contra seu peito, seus músculos se esticavam da excitação e a cobriam com todo o peso de seu corpo. E Anna estava quente. Tão quente que queimava. Excitada até o ponto de não retorno.
Arthur deslizou a mão sob o vestido até fazer contato com a pele. Suavizou o impacto acariciando o mamilo pausadamente entre seus dentes. Então voltou a cobrir sua boca com beijos, e suas mãos… Céu santo estava colocando as mãos entre suas coxas! Envergonhada, tentou fechar as pernas. Mas ele não o permitiria. Sua boca a distraía com os longos e pausados movimentos de sua língua, ao mesmo tempo em que ele entrava em sua umidade com os dedos. O corpo de Anna tremeu ao sentir o contato. Seus protestos se dissolveram em uma onda de alívio estremecedor. Aquilo dava muito prazer. Um prazer surpreendente.
—Jesus, é tão doce…
Deixou de beijá-la e Anna se perguntou se teria feito algo indevido, até que percebeu de que era ele quem estava passando mal, tentando conter-se, como se lutasse por controlar-se. Como se tocá-la o tivesse despojado de suas últimas reservas de contenção. Como se muito em breve não pudesse controlar-se. Ficou olhando-a nos olhos ao mesmo tempo em que introduzia seu dedo nela com um pequeno e firme empurrãozinho. Aquele era o momento erótico mais perverso de sua vida. Tomou fôlego em uma tentativa de estabilizar as sensações, mas estas se precipitavam sobre ela em rápidas ondas que não davam trégua alguma. Acariciou-a. Primeiro com círculos pequenos e suaves, depois com mais força, mais rápido, com impulsos profundos e frenéticos que pareciam decalques dos beijos que acabava de lhe dar.
A sensação que se formava em seu interior era muito intensa. Muito poderosa para ser contida. Esticava-se e recuava em um endiabrado redemoinho de necessidade. Seu rosto era uma máscara de dor. O suor se acumulava sobre suas sobrancelhas. Arthur a olhava nos olhos de modo escuro e penetrante, agarrando-a de tal forma que o coração lhe estalava de felicidade. Anna por fim via a verdade em seus olhos, o que intuía desde o começo. Essa conexão que havia entre eles era especial. E também ele a sentia.
Não sabia o que lhe estava acontecendo, mas era perfeito. Cada uma de suas carícias a levava até limites que era incapaz de compreender. Retorcia-se de frustração. Seu corpo inteiro clamava por…
—Te relaxe, amor —sussurrou Arthur — Quero te fazer voar.
O som aveludado de sua voz abriu caminho através dos últimos vestígios de sua repressão de criada. Ficou sem respiração até que pareceu que seu corpo se faria em pedaços devido ao intenso prazer que procuravam os agudos espasmos e teve que libertar todo o ar em um gemido estremecedor. Era o momento mais maravilhoso de sua vida, mas à medida que olhava o escuro interior desses olhos com bolinhas douradas, soube que não era suficiente. Tinha satisfeito sua paixão, mas seu coração ainda palpitava pela necessidade de realizar-se. Queria uma conexão mais profunda. Queria senti-lo em seu interior. Queria ter tudo dele. Para sempre.
«Quero-te.» É obvio. Estava tão claro, era tão certo, que se perguntava como poderia ter sido de outra maneira. Guerreiro. Cavalheiro. Isso pouco importava. Porque em seu coração, Anna sabia que tinha encontrado ao homem com quem estava destinada a compartilhar sua vida.
Arthur já não podia esperar mais. A pressão se acumulava na base de sua coluna como um punho quente e conectava com a vibrante ponta de um membro que pedia alívio, que a tocasse, que atendesse a seus agudos gritos e ofegos de prazer e sentisse como seu corpo se derretia e se estremecia ao rodeá-la com a mão. Apertou os dentes tentando refrear-se, consciente de que estava a ponto de gozar como não o tinha feito antes na vida.
Jesus, que beleza mais embriagadora: cabelos dourados como o mel que se dispersavam atrás de sua cabeça e resplandeciam diante da luz das velas; olhos aturdidos e inflamados pela paixão; seios de formas perfeitas, grande e suave, que saía de seu corpete mostrando um pequeno e arrepiado mamilo avermelhado por suas dentadas.
Tinha o aspecto de uma fêmea no cio que clamava ao céu para que a montassem. «E esta fêmea é minha. Toda minha.».
«Jesus», repetiu para si a meio caminho entre a prece e a imprecação. Jamais antes havia se sentido de tal modo. O desejo o consumia.
—Arthur —choramingou ela — Lhes rogo isso.
O brutal desespero de sua voz foi o último fio de que precisava atirar. Não podia esperar mais para introduzir-se nela. Virtualmente rompeu a fivela e as ligaduras de suas meias e calções para liberar seu inchado membro. Mas tirar o membro de seu confinamento para que lhe desse ar não servia de grande alívio. A única coisa que lhe serviria para aplacar a dor nesse momento era estar dentro dela. Levantou uma de suas flexíveis e sedosas pernas de formas perfeitas, passou-a por trás de seu quadril e se colocou diante daquela abertura cálida e deliciosamente úmida. A próxima vez se tomaria seu tempo em saboreá-la, lhe colocar a língua e fazer que se gozasse sobre sua boca.
Não deixou de olhá-la em nenhum momento. Não se atrevia a afastar o olhar dela por medo de que se perdesse a poderosa conexão que se produziu entre ambos. Teria que ter sentido ao menos a sombra de uma dúvida, ter a sensação de que aquilo que fazia estava mal. A honra era importante para ele, apesar de que o código de cavalaria não o fosse. Mas não sentia nada disso. O único em que pensava era que não podia perdê-la, que tinha que fazê-la sua, e se era capaz de fazer isso, todo o resto sairia bem. Quando a sensível cabeça de seu membro se encontrou com o úmido calor de seu ninho, Arthur exalou um profundo som gutural de puro prazer. Esfregou-se contra sua suave umidade e se deteve ali, consciente de que uma vez dentro seria muito tarde. Tinha o corpo em chamas e todos os músculos em tensão, preparados para fazer entrada. Notava-se o pulso nas veias. Nas orelhas. Até nos ossos. Parecia-lhe ter a pele tensa e ardendo.
«Empurrar.» Deus, que vontade tinha de empurrar. Jamais teve tanta vontade de preencher, de meter-se profundamente em nenhuma mulher. Sabia que seria algo incrível. Seu corpo se ajustaria a ele como uma luva quente e o espremeria com puxões largos e duros até lhe fazer cair profundamente na mais absoluta das inconsciências. Queria ver como se movia sob seu corpo impulsionado pelo poder de seus embates, como levantava os quadris para acompanhar cada uma de suas profundas investidas. Queria ver como seu membro entrava e saía dela.
Apertou os dentes, sentindo uma necessidade de afundar-se nela virtualmente irrefreável. Mas não podia a machucar. Assim que se obrigou a ir devagar. Estimulou-a com sua grossa ereção para que se acostumasse ao tamanho e a força de seu membro e esfregou a ponta com sua umidade para facilitar a entrada. E coberta de maravilha. A pressão se acumulava na base de sua coluna e puxava cada vez com mais força.
Não pôde agüentá-lo mais. Começou a empurrar. Ela gritou, surpreendida.
«Jesus.» Apertou os dentes. O suor se acumulava sobre suas sobrancelhas. O sangue palpitava em suas veias. Tentador. Tão incrivelmente tentador… Tinha que tomar-lhe com calma e com cautela. Deus estava louco por gozar. Ficava muito pouco…
Um leve som penetrou aquela bruma.
Arthur sentiu um premonitório calafrio na nuca e ficou paralisado. O ar tinha mudado. Separou-se dela amaldiçoando enquanto todo seu ser estalava em protestos.
—Te cubra - disse, e lhe deu um puxão no vestido ao mesmo tempo em que tentava atar os calções torpemente.
Mas era muito tarde, ou muito cedo, se atendia à frustração que ardia em seu testículo nesse preciso instante. A porta se abriu de repente. Sir Hugh Ross estava atrás dela, com seu acerado olhar atento a cada detalhe do que acontecia no interior.
Apesar de que se trabalharam em excesso em vestir-se rapidamente, nada podia dissimular o que estavam fazendo. Anna seguia recostada sobre a mesa com as bochechas acesas e os olhos aturdidos, Arthur seguia entre suas pernas e a sala se achava impregnada com o quente e pesado ambiente que corresponde à almiscarada fragrância do emparelhamento, ou em seu caso do emparelhamento frustrado.
Anna ficou sem respiração. O horror apagou as marcas de prazer que ruborizavam seu rosto. Arthur se colocou frente a ela instintivamente, tentando afastar a de seu olhar, como se o escudo de seu corpo pudesse protegê-la do veneno que destilava o outro homem. O silêncio sepulcral, somente salpicado pelo crepitar das chamas, estendeu-se além do incômodo. Sir Hugh permanecia ali petrificado, com uma quietude exagerada, como se estivesse aguardando para equilibrar-se sobre eles. Arthur o observava como um falcão, esperando a primeiro sinal de movimento. Diabos, como gostaria que o fizesse.
—Ouvi um grito e me perguntei se lhe tinham feito mal - disse ao fim sir Hugh com o gesto torcido pelo asco e umas palavras que transpiravam contenção — Mas suponho que não necessitavam resgate.
A exclamação angustiada de Anna lhe partiu o coração. Arthur, consciente de que tinha que protegê-la da ira de sir Hugh, deu a volta e tomou pelos ombros.
—Vá para seus aposentos - disse bruscamente. Anna quis discuti-lo, mas ele a deteve — Falaremos mais tarde que isso. Agora mesmo preciso falar com sir Hugh. Permita que me encarregue disto.
Olhou-a nos olhos. A via confusa, horrorizada e atemorizada há um tempo, disposta a romper a chorar de um momento a outro. A Arthur custava respirar. Era como se lhe retorcessem o coração com uma faca. Ele tinha provocado isso. Era culpa dele. Sacudiu-a com cuidado, tentando fazer que se centrasse.
—Entendeste, Anna? —Então ela o olhou com um rosto tão perdido que lhe deu vontade de voltar a acolhê-la em seus braços — Tudo irá bem — prometeu, consciente de que aquilo não era certo.
Como poderia ir bem aquilo? Não só estava mentindo, mas sim, além disso, acabava de destruir toda possibilidade de aliança com o Ross e sabia quanto significava isso para ela. Anna amava a sua família. Falhar seria algo que… a faria pedaços.
Anna assentiu e a confiança cega que emanava seu olhar lhe fez sentir todo o peso da vergonha em seu interior. Era um completo filho de puta. Um filho de puta desalmado. Jamais poderia perdoar-se pelo que estava lhe fazendo. Anna não merecia. O que merecia era estar a salvo e protegida, ter um lar feliz, um marido que a amasse e seis ou sete crianças puxando suas saias. Ele nunca poderia lhe dar isso. Abandoná-la e lhe romper o coração, isso era quão único faria. Pode ser que não a tivesse despojado de sua virgindade, mas sua inocência desapareceria igualmente quando descobrisse a verdade sobre ele.
Lá onde fazia um momento reinava o desejo não ficava mais que pena e dor. Sir Hugh não se moveu de sua posição à entrada, mas assim que Arthur acompanhou Anna à saída, Hugh Ross se pôs a um lado para deixá-la passar. Arthur, sentindo-se esquecido na salinha, seguiu-a até o aposento principal. Não era muito maior, mas ao menos ali teria espaço para manobrar se fosse necessário. Sir Hugh parecia disposto a brigar e ele tinha tanta vontade ou mais de lhe dar guerra. Justo antes de sair Anna, olhou-o com incerteza.
—Vá - disse com doçura, tentando acalmar seus temores.
Então seu olhar reparou em sir Hugh e seu rosto se contraiu. O cavalheiro não se dignaria a olhá-la, mas cada uma dos nobres e orgulhosas dobras de sua pele irradiavam animal adversão. Arthur franziu os lábios, com uma vontade tremendas de matar a aquele homem por ferir seus sentimentos. Anna não tinha culpa de nada. Tudo era coisa dela. «Jesus.» Conscientizar-se disso foi como um soco. Tinha-o feito a propósito? Fosse essa sua intenção desde o começo? O que queria era acabar com qualquer opção de aliança. Não, mas não desse modo. Nunca quis levá-lo a tal extremo. Embora sim que tinha superestimado sua capacidade de controle e menosprezado a intensidade de seus desejos por ela. Era o único culpado de meter-se nesse esfregado. Fora ele quem tinha transpassado os limites, algo que não reportaria mais que dor para ambos.
—Deveria te matar — disse Ross assim que se fechou a porta.
O cavalheiro tentava intimidá-lo, mas Arthur aceitou o desafio.
—E por que não o faz?
O olhar do Ross se endureceu.
—Porque então teria que explicar os motivos.
A certeza de sua voz fez que Arthur sorrisse. Tinham mais ou menos a mesma idade e eram bastante semelhantes quanto à altura e músculos. Mas não quanto à destreza. Arthur não seria quem iria morrer. Sir Hugh, não obstante, não tinha nem idéia disso. Então por que…? A razão foi a ele de repente.
—E não quer que ninguém saiba que a moça o humilhou pela segunda vez. Primeiro ao rechaçar sua oferta e logo ao agarrá-la com outro homem ante seu nariz.
A verdade da acusação causou seu efeito no rosto do Ross, que avermelhou de ira, criando um marcado contraste com os sulcos brancos de seus lábios franzidos.
—Desfloraste-a?
Arthur apertou a mandíbula. Aquilo não era assunto seu absolutamente. Encheu de vontade de mentir, de reclamá-la para si, mas disse a verdade, já que queria salvar o que pudesse da reputação de Anna.
—Não.
Os olhos do Sir Hugh se mostravam frios.
—Mas o teria feito de não o tivesse interrompido.
Arthur encolheu os ombros, como se aquilo não fosse de sua incumbência. Ross deu um passo para ele com a mão na espada.
—Maldito filho de cadela! É um cavalheiro. É que não têm honra? Era uma mulher comprometida.
Arthur se moveu com rapidez. Pôs em prática uma manobra que tinha aprendido com Boyd e deixou o braço do Ross fosse de combate, obrigando-o a soltar a espada. Depois lhe retorceu esse mesmo braço pelas costas e o imobilizou fazendo contrapeso com seu próprio corpo.
—Não. Não estava comprometida.
Ross tentou escapar por ato reflito, mas seus movimentos só serviam para que Arthur lhe retorcesse mais o braço e lhe infligisse mais sofrimento.
—Estava a ponto de comprometer-se —disse entre dentes com uma voz cheia de dor — O matarei por isso! Solte-me!
—Não até que cheguemos a um entendimento a respeito do ocorrido aqui. Não quero que isto afete à moça. Não é culpa dela.
Ross teve a inteligência de optar por discuti-lo, mas Arthur percebia a raiva em seus olhos. Retorceu-lhe o braço com mais força, provocando que o furioso guerreiro gritasse.
—Por que voltou? —perguntou Arthur.
—Ouvi um grito…
—Uma merda - cortou Arthur.
A não ser que possuísse sentidos tão finos como os seus, era impossível que tivesse ouvido algo. Ross lhe dirigiu um olhar assassino. De sua sobrancelha caíam gotas de suor dolorido.
—Vi como a observava e que ela tentava não o olhar por todos os meios. Sabia que nos seguiria.
Arthur amaldiçoou.
—O que era isto então, uma prova de fogo?
—Não pensava permitir que tirassem o sarro. Não me casarei com uma mulher apaixonada por outro homem. Por muita vontade que tenha de fo…
Retorceu-lhe mais o braço.
—Não —disse — Não o diga.
Arthur, consciente do perto que estava de lhe partir o braço, optou por afastá-lo de seu lado de um forte empurrão. Ross tinha razão respeito a algo: quanto menos tivessem que explicar, melhor. Sir Hugh soltou ar e se massageou a parte superior do braço e o ombro. Mas havia algo em seu olhar que a Arthur fazia perguntar-se se o tinha posto a prova de novo. Se esse grosseiro comentário do Ross teria a intenção de provocar uma reação. Se for assim, tinha funcionado.
—Importa-te - disse Arthur, precavendo-se disto, na verdade era algo mais que uma aliança política para ti.
Ross não respondeu com palavras nem por meio da expressão de seu rosto, mas Arthur sabia que tinha acertado. Diabos, quase dava pena aquele pobre filho de cadela.
—Mas sabe o que é que a trouxe até aqui?
Uma vez recuperada as sensações em seu braço, Ross voltou a olhá-lo com desconfiança.
—Sim. Para conseguir apoio na luta contra Bruce. Esperava conseguir sua mão sem ter que recorrer a isso.
Arthur ficou olhando-o e o compreendeu tudo ao fim.
—Seu pai não tinha intenção de enviar homens com ou sem compromisso, não é certo? —Não era preciso que Ross respondesse. «Por todos os demônios.» Arthur tinha vontade de matá-lo ali mesmo — E a deixaram pensar que…?
Ross encolheu os ombros.
Maldito patife. Demônios, de não ser Anna a quem manipulava, Arthur teria admirado sua determinação.
—Partiremos assim que tenhamos tudo preparado. Depois de que informe Anna e sir Alan do que acaba de me contar.
O outro homem se mofou.
—E por que diabos eu ia fazer tal coisa?
Arthur deu um passo para ele com atitude ameaçadora. Em honra de Ross terá que dizer que não se moveu. Mas Arthur advertiu a inquietação em seus olhos.
—Porque não quero vê-la mais afetada do que já está. E apesar do que tenha passado aqui, não acredito que vocês queira isso tampouco.
Ficaram olhando durante um momento até que Ross assentiu. Arthur se dispôs a partir.
—Campbell. —Arthur deu a volta e viu que Ross seguia agarrando o ombro machucado — Onde aprendeu a fazer isso?
Arthur torceu a boca com dissimulação.
—Faça o que combinamos dito e talvez te conte isso algum dia.
Anna limpou as mãos em suas saias e procurou acalmar a náusea que ameaçava subindo por seu estômago ao mesmo tempo em que observava a quantidade de homens que se congregava no salão para tomar o café da manhã. Encontrou-se inconscientemente procurando Arthur, como se ver seu rosto pudesse lhe dar essa coragem que tanto necessitava. Ao não encontrá-lo sentado junto aos homens de seu irmão, disse que não havia por que preocupar-se. Ainda era cedo. A noite anterior Arthur tinha enviado a uma criada para lhe dizer que já estava tudo arrumado e que não tinha que preocupar-se.
«Não tenho que me preocupar.» Como se tal coisa fosse possível depois do que tinha acontecido. Pode ser que sua considerada mensagem não servisse para aliviar sua noite sem descanso, mas o apreciou igualmente. Ao menos se economizava o temor de que um dos dois estivesse morto ou em alguma masmorra desconhecida.
Respirou profundamente, obrigou-se a erguer o peito e erguer o queixo e entrou no salão. As pernas mal podiam sustentar do tanto que tremiam e seu coração batia contra a caixa torácica como as asas de um pássaro. Todos seus instintos clamavam por que fugisse, mas obrigou a seus pés a seguir adiante.
Sangue de reis corria por suas veias. Era uma MacDougall, não uma covarde. Apesar de que não quisesse mais que ocultar-se em sua câmara, fazer um novelo com seu corpo e pretender que nada disso tinha ocorrido o certo era que sim tinha ocorrido. Como mínimo devia uma desculpa a sir Hugh. Quando pensava no que tinha feito…
Revolvia-lhe o estômago. A vergonha a alagava. Não por sucumbir aos encantos de Arthur, já que não se envergonhava da paixão que existia entre eles, mas sim por falhar a sua família e aproveitar-se horrivelmente de sir Hugh no processo. Ele não se merecia aquilo. O orgulhoso cavalheiro não tinha feito mais que tratá-la com carinho. Não era culpa dela que estivesse apaixonada por outro homem.
«Apaixonada.» Inclusive sopesando a enorme gravidade do que tinha feito, um pequeno raio de felicidade aparecia por trás das nuvens de desesperança. Amava-o. E também ela significava algo para ele. Tinha que ser assim.
Mas esse pequeno lapso de alegria em seu coração só servia para fazê-la sentir mais culpada. Ao encontrar o amor tinha falhado a sua família. Como poderia chegar a perdoar-se? Tinha arruinado tudo. Seu pai e seu clã completo ficavam sozinhos ante o Robert Bruce. Depois do que sir Hugh havia presenciado na noite anterior não teria aliança.
Acenderam-lhe as bochechas ao recordar, ao considerar o que devia pensar aquele homem dela. «Puta. Rameira.»
Quase esperava ouvir vaias ao atravessar o salão para chegar até o assento do estrado junto ao homem ao que tinha ofendido. Mas sua entrada não causou nenhum comentário fora do habitual. O conde e a condessa a receberam com gentilezas usuais, igual fez seu filho quando tomou assento junto a ele.
Embora cada bocado que dava piorasse o enjôo que lhe punha o estômago de reverso, tinha que obrigar-se a comer. À medida que avançava a comida, sua ansiedade não fazia mais que aumentar. O breve intervalo de bom humor que entreviu em sir Hugh no dia anterior tinha desaparecido, algo não muito surpreendente. Estava sentado junto a ela completamente rígido, muito orgulhoso e imbuído do código de cavalaria para ignorá-la completamente, mas muito perto de fazê-lo. Agradeceu a presença da irmã do Hugh do outro lado da mesa e do ajudante do Ross a seu lado, que rompiam os incômodos momentos de silêncio.
Anna era consciente de que tinha que dizer algo, mas não sabia como tirar o tema em um entorno tão público. Seguia esperando que chegasse o momento oportuno quando sir Hugh se levantou da mesa e se desculpou para ausentar-se.
—Espere! —exclamou Anna, advertindo que vários olhos se voltavam em sua direção e que talvez tivesse falado muito alto.
Sir Hugh baixou o olhar para olhá-la e lhe dedicou toda sua atenção pela primeira vez. Anna procurava não morrer de vergonha enquanto ele esperava a que se pronunciasse.
—Eu… — disse o primeiro que veio à cabeça, desejando tê-lo feito antes, quando outros não prestavam atenção ao que dizia de maneira tão óbvia — Faz uma manhã estupenda. Se não estiver muito ocupado, pensei que poderiam me mostrar os arredores do castelo, como prometera.
Não lhe tinha feito tal promessa e se o fizesse saber, deixando clara sua pretensão de ficar a sós com ele, teria recebido o que merecia. Sir Hugh a olhou nos olhos e Anna por um momento pensou que se negaria a fazê-lo, mas ao que parecia puderam mais suas sensibilidades cavalheirescas. Fez uma reverência e lhe tendeu a mão.
—Será todo um prazer, milady.
Tal e como tinha feito poucas, mas significativas horas antes, permitiu que a acompanhasse ao sair do salão. Se o incomodava as falações de curiosidade que lhes seguiram não o mostrou em nenhum momento. Nessa ocasião, ao chegar ao final do corredor, conduziu-a ao exterior, ao pátio de armas. Havia um monte de gente daqui para lá: soldados praticando e protegendo as entradas, serventes atendendo a suas obrigações e um fluxo contínuo de homens passando através das portas do castelo, mas ninguém lhes prestava muita atenção.
—Há algo em particular que deseje ver? —perguntou ele.
Para ouvir a secura de sua voz o olhou de esguelha sob o véu de suas pestanas. Ele sabia que se tratava de uma desculpa, e das más. Anna negou com a cabeça.
—Sinto muito. Tinha que falar contigo —disse detendo-se para olhá-lo bem nos olhos — Devo me desculpar pelo ocorrido na noite passada. —Ao ver que franzia mais o cenho lhe falharam os nervos. Mas tinha que fazê-lo. Machucava a mão de apertar tanto os punhos. Não era capaz de falar disso com calma, de maneira que explodiu e soltou — Não posso oferecer mais desculpa pra dizer quanto sinto.
Sir Hugh ficou olhando-a nos olhos durante um momento e logo assentiu. Anna pensou que daria a volta e a deixaria ali, mas surpreendentemente a levou até um lugar afastado da fortificação de onde podiam ver muros longínquos e a cidade do Nairn ao fundo. Fazia vento e teve que acomodar atrás da orelha uma mecha de cabelo rebelde. Mas depois dessa noite de escuridão o resplendor do sol sobre seu rosto era rejuvenescedor.
—Ama-o?
Anna ficou petrificada. Não sabia o que esperava que dissesse, mas certamente isso não. Sir Hugh não parecia um homem que outorgasse muito valor nem desse muito crédito ao amor romântico. Parecia muito prático e frio para tudo isso. Mas merecia saber a verdade.
—Sim - disse em voz baixa.
—Mas teriam casado comigo para conseguir mais homens para seu pai?
Tal e como disse, de repente parecia que aquilo estivesse mal. Embora o matrimônio e a obrigação fossem parceiros, era o amor o que importava menos.
—Sim - disse Anna, sentindo que o desespero de sua situação cavalgava sobre seu peito. Apelou a seus sentimentos para que a compreendesse — Não entende? A única maneira de lutar contra os rebeldes é unir forças. Se nossos clãs se unirem poderemos derrotar ao usurpador. Somente nos arriscamos à derrota.
Por sua reação não pareceu que suas palavras tivessem influência alguma nele. A expressão de seu rosto permanecia severa e implacável. Era estranho. Agora que já não havia esperança de um compromisso entre ambos, todo o medo e o nervosismo de Anna pareciam desaparecer.
—Não pode absolver de toda culpa, lady Anna. —Ela o olhou inquisitivamente, protegendo os olhos do sol para lhe ver melhor. Sua boca se torceu em uma estranha careta — Meu pai não tinha intenção alguma de enviar homens ao Lorn.
Ficou sem respiração pela surpresa.
—Mas o compromisso… Permitiram que acreditasse que… — Hugh Ross encolheu os ombros como se não lhe importasse nada. Um arrebatamento de cólera penetrou através do sentimento de culpa de Anna — E quando me pensava contar isso?
—Teria-na informado com tempo suficiente.
—Depois de que anunciássemos nosso compromisso?
Ele se enfrentou à acusação de seus olhos sem alterar-se.
—Talvez.
—Mas por quê?
Pareceu interpretar mal sua pergunta a propósito.
—Não temos homens de sobra. Bruce virá também por nós e quando o fizer… —disse com palavras que se levava o vento — O rei Robert é muito poderoso. Nossos aliados nos abandonaram. Os Comyn, os MacDowell, os ingleses. Meu pai tem muito que perder.
Sir Hugh ficou com o olhar perdido além dos muros, para o pequeno reino que se estendia a seus pés. Tratava-se de um movimento revelador e teve que conter o fôlego ante o que significava. Muito que perder. Seu pai não pensava arriscar.
—Não —disse Anna dando um passo atrás — Não podem! Seu pai não pode render-se. Bruce o assassinará pelo que fez a sua esposa e a sua filha.
Falava sem pensar, e estava claro que o que fez seu pai quando violou o santuário e entregou às mulheres de Bruce aos ingleses não era algo que sir Hugh quisesse que o recordassem. Pela primeira vez, Anna viu algo um pouco parecido à vergonha em suas orgulhosas feições.
—Bruce prometeu perdoar a todos nobres que estavam contra ele que se renderem.
—E acreditam na palavra de um traidor? De verdade confiam em que o rei Hood perdoará a seu pai e aos sediciosos de Ross e Moray? Apenas se consumaram os fogos da perseguição ao Buchan.
Não discutiu com ela. Mas apertava fortemente a mandíbula quando disse:
—O que outra opção fica? As voltas mudaram a favor de Bruce. O povo pensa que é um herói, um guerreiro que derrotou aos ingleses. Render-se pode ser a única maneira de sobreviver. Meu pai está disposto a morrer se isso significar a continuidade do clã.
A cabeça de Anna dava voltas. Jamais, nem em suas mais escuras expectativas, teria imaginado que Ross se renderia. O que significaria isso para seu clã? Faria seu pai o mesmo? Não, seu pai jamais se renderia. E pela primeira vez Anna se precaveu de quão caro poderia lhes custar.
Preocupada com o que sir Hugh acabava de lhe confiar, Anna não encontrava muito consolo em saber que sua conduta não era reprovável.
—Obrigado por me contar isso.
Ele a olhou com atenção.
—O que fará?
—Lutar - respondeu.
Embora fosse sozinhos. Que mais podiam fazer?
—Casará com o Campbell?
Anna se ruborizou. Depois do que tinha passado a noite anterior era algo natural assumir que… Mas não tinham tido oportunidade de discutir seu futuro. Ele pareceu compreender seu silêncio.
—Conhecem-no muito bem?
O tom de advertência de sua voz despertou aquela vozinha de sua consciência que trabalhou em excesso em sossegar.
—Sir Arthur chegou ao Dunstaffnage faz um mês junto a seu irmão em resposta à chamada que fez meu pai aos cavalheiros e mercenários.
Aquilo pareceu lhe confirmar algo.
—Há algo estranho nele. Algo que não se enquadra. Não é quem parece ser.
Anna saltou em sua defesa imediatamente, pensando que sir Hugh se fixou nas incomuns habilidades de Arthur.
—É muito reservado —disse — custa a comunicar-se.
Sir Hugh a olhou inquisitivamente, como se quisesse acrescentar algo, mas em vez disso simplesmente assentiu. Foi um alívio que dissesse que se encarregaria de explicar tudo a seus pais e seus irmãos sem fazer menção alguma à situação comprometedora em que a tinha encontrado, acordando dizer que não combinavam um para o outro.
Para quando a acompanhou de novo até a torre Anna se sentia muito mais relaxada. Uma vez mitigada parte da culpa, permitiu-se viver um pouco da felicidade que supunha descobrir que o homem ao que amava tinha sentimentos por ela. Não podia esperar para lhe ver e falar com ele. Surpreendentemente, dadas as intimidades que tinham compartilhado, não estava envergonhada. Inclusive nesse momento, depois de todo o acontecido, parecia o correto.
Estava a ponto de subir o primeiro dos degraus que fossem do pátio à torre quando olhou à esquerda e viu que sir Arthur saía dos barracões. O coração lhe deu um tombo. Sorriu e deu um passo para ele de maneira instintiva, mas logo se deteve de repente. Levava a armadura e estava claro que se preparava para praticar, mas podia entrever seu rosto o suficiente sob a viseira do elmo.
Não era que esperasse que corresse pelo pátio a seu encontro, ao menos não com sir Hugh ainda a seu lado. Mas um olhar de carinho seria bom. Algo em comparação com esse rosto de arrependimento, sim, inclusive de vergonha, que escurecia seus bonitos traços. A alegria que fez saltar seu coração se consumiu e o devolveu ao chão de repente das alturas. Advertiu como sir Hugh ficava em guarda ao conscientizar do que ela tinha visto.
Arthur desviou o olhar para o outro cavalheiro. Podia sentir a animosidade acesa entre ambos. Foi Arthur quem se retirou primeiro. Saudou-os com uma inclinação da cabeça e se dirigiu a reunir-se com o resto dos guerreiros. Anna dizia a si mesma que não devia estar decepcionada, que não tinha que exagerar sua reação. Já falariam mais tarde. Em particular. Provavelmente o que adivinhava em seus olhos não era mais que imaginações.
Mas as seguintes palavras de sir Hugh lhe disseram o contrário.
—Se a coisa não for como espera, lady Anna, eu estarei aqui.
Um homem com quem podia contar.
Rezava por que Arthur também o fosse.
Capítulo 16
Demoraram mais do que Arthur pensava em sair do castelo de Auldearn. Alan MacDougall se encerrou em sua câmara com o conde, seu conselheiro e sir Hugh durante três dias mais, no que Arthur assumiu como uma tentativa de persuadir ao Ross para unir forças, apesar da ausência de compromisso. Felizmente, os esforços do Alan foram úteis. Dado que não tinham lhe contado os detalhes, Arthur não pôde estar seguro das razões do conde, mas o rechaço era um bom augúrio para o rei Robert. Passaria a informação assim que tivesse oportunidade de fazê-lo. Não acreditava que eles tivessem irradiado nenhuma mensagem, mas revisaria os pertences do Alan e de Anna para assegurar-se disso, assim que tivesse ocasião.
Saíram de Auldearn ao amanhecer, fazendo o mesmo trajeto de na semana anterior em sentido contrário e forçando o ritmo o primeiro dia para chegar a salvo mais à frente do castelo. Os homens, contagiados do humor de seu senhor e sua dama, pareciam perceber que as coisas não tinham ido como esperavam e a nuvem do fracasso se abatia sobre as cabeças dos viajantes. Levava uma predisposição algo sombria, por não dizer decididamente mal-humorada.
Arthur sabia que teria que sentir-se aliviado e satisfeito de ter completado sua missão. Ross e Lorn não uniriam forças. O fracasso dos MacDougall serviria como incentivo para aproximar de Bruce um passado mais para a vitória e a Arthur um passado mais para a destruição de seu inimigo. Assegurar-se de que John de Lorn pagava pelo que lhe tinha feito a seu pai era o que mais ansiava no mundo. Não era certo? Assim devia ser, maldita seja. Mas temia que aquilo lhe custasse muito mais do que pensou em um primeiro momento.
Coberto atrás de seu elmo podia ceder à tentação de olhá-la. De novo essa sensação, molesta e penetrante. Não era só consciência o que o remoia, a não ser algo mais. A dor que aguilhoava seu peito quando a olhava era virtualmente insuportável. Mas não fazê-lo parecia mais doloroso ainda.
Anna cavalgava na frente dele, junto a seu irmão e a criada, com o que somente oferecia seu perfil ao voltar-se. Arthur não precisava olhá-la para saber que o silêncio a respeito do ocorrido entre ambos lhe doía. E muito. Deus Santo, o que tinha feito? E o que era mais importante, que demônios faria a respeito? Agora que estavam longe do castelo já não podia evitar o tema nem evitá-la por muito mais tempo. Sabia o que devia fazer. Não precisava ser um cavalheiro para conscientizar de que depois do perto que estivera de lhe arrebatar a virgindade, a escassos centímetros literalmente, deveria a pedir em matrimônio. Não havia dúvida de que era o que ela esperava. E o que cabia esperar. Isso faria um homem com honra. Mas esses escassos centímetros lhe serviam de suficiente desculpa para não fazê-lo. A batalha que livrava em seu interior era cada vez mais cruel. Todos seus instintos exigiam que se aproximasse dela, que cedesse aos sentimentos e, por que não falar, maldição, às emoções que brigavam em seu interior. Mas a outra parte de seu ser, a racional, puxava-o para evitar maiores males.
Embora ele mesmo quisesse esquecer-se disso em algumas ocasiões, o certo era que a enganava. E estava claro como a água que não podia lhe dizer a verdade. Seu dever e sua lealdade pertenciam ao Bruce. Nenhum dos sentimentos que albergasse poderia mudar aquilo. Estavam em lados opostos de uma rixa a ponto de desatar-se. Ao final ela descobriria sua filiação verdadeira e se inteiraria de que a única razão que o tinha levado ao Dunstaffnage fosse espiar e propiciar a destruição de sua família. Sabia que pedi-la em matrimônio só serviria para que a traição final tivesse conseqüências muito piores.
Era uma situação impossível e tinha consciência de tê-la criado ele mesmo. Teria que ter-se afastado dela, mas suas boas intenções ficaram transbordadas por seu sorriso, vitalidade, doçura e amabilidade. Quando olhava o interior desses grandes olhos azuis começava a ter saudades de algo que nem sequer sabia que queria. Gostava de estar sozinho, maldita seja! Parecia mais fácil e muitíssimo menos chato. Entretanto Anna o fazia ansiar algo que ele não poderia permitir-se oferecer, à vista do que estava por chegar. E fazê-la sofrer desse modo, não ser capaz de fazer algo para mudar, partia-lhe a alma. Cada vez lhe custava mais concentrar-se em suas tarefas.
Embora não se voltasse para olhá-lo, Arthur sabia que ela era tão consciente de sua presença como ele mesmo. Advertiu a maneira em que seus ombros ficavam tensos quando situou seu cavalo atrás deles. Richard e Alex partiam em cabeça explorando o terreno, de modo que Arthur ficou ao fim para assegurar-se de que ninguém os seguia. Aproximava-se o final da primeira jornada da viagem e tinham que proceder com especial cautela agora que se aproximavam do castelo do Urquhart, lugar em que tinham aparecido os homens de Bruce quando foram para o castelo do Ross. Novamente, teriam que fazer uma boa volta para o oeste do caminho para evitar as patrulhas da fortaleza «inimiga».
—Pegue milady —ouviu que dizia sua criada — Lady Euphemia pediu ao cozinheiro que as prepare especialmente para ti em vista que gostas.
A anciã tentou enrolá-la com os doces, mas Anna negou com a cabeça em uma pobre tentativa de sorriso que lhe cravou outra pontada no coração.
—Não, obrigado, não tenho fome.
A criada se zangou, franziu os lábios e mastigou a delícia de amêndoas sem entusiasmo algum. Mal teve acabado de mastigar quando voltou para a carga e tirou de sua bolsa o que parecia um pequeno bolo de carne.
—O que me dizem de um pastezinho de cevada com cordeiro? —disse, cheirando-o teatralmente — Cheira divinamente. E ainda está quente.
Anna voltou a negar com a cabeça.
—Coma se quiser. Eu comerei quando nos detivermos.
A criada murmurou para si.
—Tem que comer algo, milady - urgiu entre murmúrios, ao mesmo tempo em que fulminava Arthur com o olhar.
Este apertou a mandíbula, adivinhando a quem culpava a criada pela falta de apetite de sua senhora.
—Comerei - disse Anna para apaziguá-la. Chamou a seu irmão, que cavalgava um pouco mais adiante — Quando pararemos para passar a noite, irmão?
—Logo, espero - respondeu Alan olhando a seu redor e fazendo gestos a Arthur ao ver que tinha retornado. Este se armou de valor e fez como lhe pediu, levantando o visor de seu elmo ao passar entre o punhado de cavaleiros que lhes separavam — Viu algo suspeito?
Arthur negou com a cabeça.
—Por agora não. Estaremos seguros quando voltarem Richard e Alex, mas se não ter nada extraordinário, poderemos nos deter o anoitecer como tínhamos previsto.
—Não voltaremos para lago em que acampamos a vez anterior?
Era ela quem falava. Arthur voltou o olhar lentamente, incapaz de evitá-la por mais tempo. Mas não estava preparado para o calor abrasador que lhe atravessaria ao encontrar-se com seu olhar. Ele, que apenas se movia quando uma flecha se afundava no mais profundo de seu ombro, quando uma espada lhe abria as vísceras nem nas numerosas ocasiões em que não tinha apanhado a adaga de seu irmão com suficiente presteza, sobressaltou-se ao ver a tristeza e a pergunta sem formular de seus olhos.
Parecia fatigada, de uma fragilidade insofrível. Umas pequenas linhas sulcavam as comissuras de seus olhos e sua pele estava muito mais pálida do normal. Apertou os dentes, lutando contra a desesperada necessidade que sentia de dar o que ela queria.
«Peça-a em matrimônio.»
Maldição, não podia fazê-lo. Não faria a não ser piorar as coisas.
—Não, milady —respondeu sem alterar a voz — Será mais seguro que não voltemos sobre nossos passos. Acamparemos em lugares diferentes cada noite. Há uma cascata na floresta dos pagamentos do Dhivach, ao sudeste do castelo, onde começa a ravina. Faremos pernoite ali.
Anna assentiu com cara de querer acrescentar algo, mas consciente de que não estavam sozinhos.
—Falta muito?
—Cinco ou seis quilômetros. Deveríamos chegar antes do anoitecer.
—Eu… — Anna deixou a frase pela metade. Não obstante, o modo em que o olhava era desencorajador — Obrigado.
Quando Arthur se decidiu a afastar o olhar se surpreendeu comprovar que um dos homens do Alan se situava atrás dele. Ficou circunspeto, mas estava muito imerso em sua própria confusão para atender à advertência.
Ao que parecia um das arcas de Anna não estava bem presa e caiu do carro. Arthur agradeceu a interrupção quando viu que Anna e sua criada fossem ao fim da fila para assegurar-se de não perder nada. Mas era consciente de que não poderia postergar a inevitável discussão por muito mais tempo. Isso ficou assegurado certamente pelas palavras de Alan antes de partir para ver o Richard e Alex.
—Não sei que diabos passou em Auldearn, Campbell, mas minha irmã está triste. —O cavalheiro cravou o olhar em Arthur com uns gélidos olhos azuis que não mostravam compaixão alguma. Depois de tudo, era filho de seu pai — Arrume ou me encarregarei eu de fazê-lo.
Arthur franziu o cenho até adotar uma expressão sombria. Não se incomodou em pretender que não sabia ao que se referia. A ameaça não lhe inquietava. O que lhe inquietava era que não podia fazer o que o irmão de Anna lhe pedia. Nada poderia arrumá-lo.
—Por que está me evitando?
Arthur, assombrado, ficou em pé de repente, fazendo saltar a armadilha que estava preparando. Tinha o surpreendido. Algo que Anna apostava que não ocorria muito freqüentemente. Talvez essa confusão que ela percebeu em seus olhos não foi imaginação. Olhava-a com uma saudade mal reprimida, mas algo o fazia conter-se.
O desengano que sentiu na primeira manhã não fazia mais que piorar a cada dia que passava. Ainda não tinha ido a seu encontro, por não falar de oferta de matrimônio alguma. Anna queria convencer-se de que simplesmente esperava para falar com seu pai, mas isso não explicava por que fugia dela.
—Está me seguindo outra vez, Anna?
Se tentava distrair ficando à defensiva, não funcionaria.
—Não sei como poderia dizer que te sigo quando o acampamento está a poucos passos daqui - disse assinalando os arranjos e cordas — Vi que tirava a armadilha da bolsa e supus que não iria muito longe.
Inspecionou suas feições, meio escondida entre as sombras. Ao menos ficava uma hora de luz solar, mas sob o espesso manto das árvores da floresta parecia quase noite fechada. Anna deu um passo para ele e estreitou o vão que os separava. Arthur franziu o cenho e todo seu corpo ficou rígido. Anna percebeu de que lhe moviam as aletas do nariz, como se o incomodasse tê-la tão perto. As lágrimas foram a seus olhos. Por que se comportava desse modo? Acaso era tão desagradável?
—Ides responder-me? —disse com uma voz quebrada pela emoção e a incerteza dos últimos dias. Queria pôr a mão sobre o peito para tranqüilizar-se, mas temia que ele retrocedesse e isso a fizesse pedaços — Acaso não mereço uma explicação?
Arthur suspirou e se separou dela com o pretexto de passar os dedos entre os cabelos. Embora ainda levasse posta a armadura, tirou o elmo e seu cabelo castanho escuro caía em suaves ondas sobre a borda da cota de malha.
—Sim, moça. Merece uma explicação. Tinha intenção de falar contigo uma vez que tivéssemos comido.
Não sabia se acreditava, mas o deixou continuar. Ela já havia dito suficiente. Era a ele a quem correspondia falar.
—O que ocorreu foi - Formoso? Incrível? Perfeito? pensou Anna—… desafortunado. —A Anna parou o coração. Não era a palavra que esperava — Me envergonho de meu comportamento —disse Arthur com palavras que pareciam próprias do cavalheiro mais contido da corte — Jamais devia permitir que chegasse tão longe.
Anna o deteve em seco, incapaz de resistir por mais tempo o tom distante e o arrependimento de sua voz.
—Por que fala assim? Por que atua como se não significasse nada? —Arthur esticou a mandíbula mais ainda. A palpitação de seus batimentos no pescoço não pressagiava nada bom. Tentou afastar-se de Anna, mas ela o agarrou pelo braço. O peito lhe ardia — Significou algo, Arthur? —Este a olhou nos olhos com uma intensidade que queimava. Anna aspirou profunda e entrecortadamente através de sua oprimida garganta — Para mim sim.
—Anna… - Parecia estar liberando algum tipo de guerra interior. Anna notava a rigidez de seus músculos sob seus próprios dedos. Seu poderoso corpo parecia irradiar tensão — por que põem as coisas tão difíceis?
—Eu? És tu quem põe as coisas difíceis. É uma pergunta muito simples. Ou significou algo para ti ou não significou nada.
Manteve o olhar, negando-se a lhe permitir partir sem que respondesse algo. Arthur tinha o rosto desfigurado, como se o estivesse torturando.
—Não entendes.
—Têm razão. Não entendo. Poderia explicar isso?
- Somos completamente inadequados um para o outro.
—Não posso. —Olhou-a com dureza — É que não vê que jamais funcionaria?
«Meu Deus!» Pareceu engasgar-se com seu próprio coração quando percebeu o que acontecia. «Não pensa me propor matrimônio.» Como era possível que tivesse interpretado tão mal a situação? Não! Não o tinha feito. Havia algo mais que lhe escapava.
—Por que não?
—Somos completamente inadequados um para o outro. A família é tudo para ti. E para mim? Meus pais morreram quando era um pirralho. Meus irmãos levam anos lutando em lados distintos. Não sei nada a respeito de família.
—Eu posso lhes ensinar…
—Não quero que me ensinem - repôs isso Arthur, cortando-a com raiva — Eu gosto de estar sozinho. E você… —disse com um gesto da mão — Tenho certeza que não estivestes sozinha nem um dia em sua vida. Merece estar rodeada de família e amigos, com um marido que lhe adore e um monte de crianças puxando suas saias. Não me diga que não quer isso, porque sei que é isso o que quer.
Era certo que queria isso, mas com ele.
—Não quer ter crianças?
Sua boca empalideceu como se a pergunta, pensar nisso tão sequer, fosse doloroso.
—Não entende a situação.
—Eu? Paraste a pensar que talvez não se trate de que gosta de estar sozinho, mas sim de que alguma vez estivera com as pessoas adequadas? —disse fazendo uma pausa para que o considerasse. Compreendia as razões que lhe levavam a solidão, mas suspeitava que seria diferente em caso de ter uma família que o amasse, que o aceitasse — Se sentires algo por mim, o resto não tem importância. —O rosto de Arthur se mostrava duro como o granito, mas ela seguiu pressionando — Sente algo por mim, Arthur?
Manteve o olhar, desafiando-o a que mentisse. E Arthur parecia querer fazer, mas ao final o admitiu.
—Sim. Mas isso não importa.
Sentia algo por ela. Não tinha errado. Negou com a cabeça.
—Isso é tudo o que importa.
—Não insista, Anna. Acredite-me quando digo que não funcionaria. Jamais poderia lhes dar o que necessita. Nunca poderia te fazer feliz.
A frustração e a raiva buliram em seu interior.
—Como te atreve a presumir que conhece minha mente melhor que eu? Eu sei exatamente o que quero. Depois do que passou como não pode compreender que é o único homem que pode me fazer feliz? Não te dá conta de que te amo?
Sua declaração de amor foi tão inesperada para ela como parecia ser para ele. Fechou a boca de repente, mas era muito tarde. Suas palavras seguiam ressonando no repentino silêncio. Arthur ficou completamente quieto, com uma expressão não muito diferente de quem tivesse recebido uma flechada no peito. Não se podia dizer que fosse a reação que ela esperava. Não esperava que respondesse a sua declaração de amor. Em realidade não. Não nesse momento, ao menos. Mas tampouco esperava encontrar-se com o silêncio. Um silêncio que lhe rompia o coração lenta e cruelmente.
«Amo-te» As palavras zumbiam em seus ouvidos. Como um palpite. Uma chamada. Tentava-o, caramba, tentava-o. Arthur permaneceu quieto como uma pedra, sem permitir o luxo de acreditar. Não podia fazer. Porque se o fizesse, era possível que encontrasse a felicidade. Uma felicidade maior da que tinha desfrutado na vida.
Não dizia a sério. Estava confusa. Anna MacDougall entregava seu coração a todos. Isso era parte do que a fazia tão irresistível. Negou com a cabeça, como se tentasse convencer a si mesmo.
—Não sabes o que diz. Não podem me amar. Nem sequer me conhece.
—Como podem dizer isso? Pois claro que lhes conheço.
—Há coisas sobre mim que se soubessem…
Não podia dizer nada mais. Já havia dito muito. Suas habilidades perceptivas eram excepcionais. Anna franziu os lábios e ele reconheceu o brilho teimoso de seu olhar.
—Acreditava que já tínhamos passado por isso. Suas faculdades são um dom, e se demonstraram extraordinariamente úteis em mais de uma ocasião. —Ele não falava de suas habilidades, mas sim do fato de ser um espião ao serviço de Bruce. O fato de que não havia pessoa no mundo a quem odiasse mais que ao pai de Anna e que tinha esperado quatorze anos para destruí-lo. Mas dificilmente poderia lhe contar a verdade — Sei tudo aquilo que importa sobre você - continuou — Sei que prefere observar e escutar a falar. Que não gosta de chamar a atenção e prefere estar em um segundo plano. Sei que conta com habilidades valiosas que prefere ocultar porque acredita que o faz diferente. Sei que está convencido de que é diferente e por isso não necessita a ninguém, de modo que procura espantar aos outros antes que se aproximem de ti. Sei que passou a maior parte de sua vida no campo de batalha, mas que pode dirigir a pluma de maneira tão efetiva quanto uma espada. —deteve-se o tempo preciso para tomar fôlego. Ele teria que tê-la cortado, mas estava muito indisposto para falar — Sei que é inteligente e que têm um caráter tão forte como seu corpo. Sei que quando estou contigo me sinto segura. Que faz ver que nada lhes importa, mas que me defenderia com sua própria vida. Sei que um homem que sustenta em seus braços a um bebê e que mostra paciência com um cachorrinho que não tem feito mais em dar problemas tem um coração bondoso. —Anna baixou a voz até deixá-la quase em um sussurro, dissipada já toda sua ira — Sei que desde a primeira vez que me beijou senti que jamais teria outro homem para mim. Que quando ergo o olhar para olhar, vejo o rosto que quero ver durante o resto de minha vida. —Seus olhos, que brilhavam com lágrimas não derramadas, encontraram-se com os dele — Sei que é leal e honrado e que te importo, mas que há algo que o faz se conter.
«Jesus.» Era como se lhe desse um soco. Ninguém antes lhe havia dito nada parecido. O fazia sentir-se humilde. Comovia-lhe. Dava-lhe um medo de morte.
Tinha visto muito de sua pessoa. Não significava só um perigo para sua missão, mas também para ele em formas que jamais tinha imaginado. Endureceu a mandíbula e o coração.
—Vê o que quer ver, Anna, não a realidade. —A guerra. Seu pai. Ele. Estava cega diante das faltas daqueles aos que professava amor — Mas as garotinhas que acreditam nos contos de fadas acabam desenganadas.
—Não faça isso —sussurrou Anna — Não tente me espantar.
Isso era o que fazia. O que sempre fazia. E embora pela primeira vez não desejasse fazer, era o que tinha que fazer. Pelo próprio bem de Anna. Agarrou-a pelo braço com intenção de sacudi-la e fazê-la entrar em razão, mas foi um engano. Tocá-la não fez mais que avivar o fogo de suas emoções até quase lhe fazer perder o controle.
—Então não atue apoiada em contos infantis. Estamos em meio de uma maldita guerra. Bruce está a ponto de cair com todo seu exército sobre sua cabeça e mesmo assim quer planejar seu futuro. Não há futuro, Anna. Somente existe o dia de hoje. Diabos, quem sabe se terá um lar daqui a um mês.
Sobressaltou-se como se a tivesse golpeado.
—Acredita que não sou consciente disso? —Anna sossegou um soluço na garganta. Seus preciosos olhos azuis se nublaram com lágrimas, atiçando o fogo que consumia seu peito — por que pensa que acudi ao Ross? Sei perfeitamente o que está em jogo. Mas não pude fazer. Não podia fazer por causa de ti.
—Seu pai jamais devia ter te pedido isso - repôs.
A expressão de assombro de Anna fez que Arthur desejasse poder retirar o dito. Tinha a perspectiva de uma menina para seu pai, a do cavalheiro perfeito que não podia fazer nada mal. Outra dessas ilusões que ele ajudaria a destruir.
—Não me pediu isso. Foi minha idéia. Fala de guerra e de incerteza, mas posso lhes dizer uma coisa certa. Se não arriscar, se seguir espantando as pessoas de seu lado, assegurará sua solidão. É isso o que quer?
Apertava a mandíbula com tanta força que lhe doíam os dentes.
—Sim.
«Maldita seja.»
—Muito bem. Porque isso é exatamente o que conseguirá - disse ela; as lágrimas rodavam por suas bochechas — Não sei por que faz isto, Arthur Campbell, mas é um covarde.
Um acesso de raiva subiu por seu corpo. Não era um covarde. Somente tentava fazer o correto. Mas não lhe deixava fazer. Não fazia mais que pressioná-lo para voltá-lo louco com uns sentimentos que não lhe pertenciam. Não podia pensar bem. Não queria mais que tomá-la entre seus braços e beijá-la até que cessasse o martelar que sentia na cabeça, e no coração.
Possivelmente isso tivesse feito se pudesse, mas não teve a oportunidade.
—Que diabos está acontecendo aqui?
Arthur voltou com a cabeça ainda lhe dando voltas, ao mesmo tempo em que Alan aparecia no claro. Amaldiçoou. Estava tão absorto em Anna que não ouviu o mínimo ruído. Que demônios ocorria? Estava fosse de controle. Tinha que tomar as rédeas de suas emoções. Seus sentidos estavam mesclados e confusos. Distraía-se muito. Estava tão confuso… Somente uma vez antes havia sentido de tal modo: o dia em que morreu seu pai. Estava perdendo os papéis.
Tanto que não se preparou para o que vinha depois.
—Deixe-a em paz - vociferou Alan, arrancando-a de seus braços ao mesmo tempo em que lançava o primeiro murro direto a sua mandíbula.
A cabeça de Arthur se propulsou para trás ao receber o golpe em cheio. Uma explosão de dor se apoderou dele. Ficou cego por um resplendor branco.
Anna gritou aterrada.
—Alan, por favor! Não é o que parece!
Mas seu irmão não a escutava. Como prova de sua eficiência com ambos os punhos, alcançou Arthur do outro lado com outro golpe. Depois no ventre. Logo no flanco.
—Vos disse que o arrumasse maldita seja. Não que a fizesse chorar. Que demônios lhe têm feito?
Arthur não tentava defender-se. Não porque não pudesse. Era evidente que MacDougall tinha um braço como o martelo de um ferreiro, mas Arthur tinha aprendido suficientes truques do melhor lutador corpo a corpo das Highlands e era capaz de tombá-lo em poucos segundos. Não se defendia porque merecia o castigo. Diabos, merecia muito mais pelo que estava a ponto de fazer.
—Para! Para! —choramingou Anna com uma voz a borda da histeria — Está lhe fazendo mal.
Alan o arrastou pelo pescoço e o empurrou com força contra uma árvore.
—O que lhe têm feito? —perguntou fulminando a sua irmã com o olhar — Será melhor que um dos dois me diga que demônios passa aqui. —Nenhum deles respondeu. Alan olhava alternadamente a um e outro com o rosto aceso pela raiva — Não me tomem por um maldito idiota! Não pensem que acreditei nem por um momento que Ross decidiu dar para trás de repente! —disse olhando a Anna enquanto seguia apertando fortemente o pescoço de Arthur com a mão — O que passou em Auldearn? É que este filho de cadela te tocou, Anna? —perguntou lhe apertando o pescoço — Te tocou? —insistiu empurrando com mais força — O fez?
Arthur sentia que o nó se esticava em torno de sua garganta e não era pela mão do MacDougall. Não. Sabia que teria que responder pelo que esteve a ponto de acontecer em Auldearn.
— O solte! —Alan advertiu o pânico na voz de Anna. Ela tentava lhe puxar o braço, mas sem obter resultado — Sim, mas não é o que pensa.
De fato, devia ser exatamente como o pensava.
—Maldito velhaco do demônio! —disse MacDougall estampando a cabeça de Arthur de novo contra a árvore — O matarei por isso.
Arthur não duvidava de suas intenções. Nem tampouco de sua capacidade para fazer. Mas não podia permitir. Estava a ponto de libertar-se quando ouviu um pequeno zumbido seguido por um suave vaio.
«Flecha.»
Seus sentidos se abriram em uma explosão de clarividência. Olhou por cima do ombro do MacDougall e viu a ponta de ferro sulcando o ar, apenas a um segundo de impactar no cangote do MacDougall. Arthur não pensou. Simplesmente reagiu. Golpeou para cima o braço do MacDougall com o antebraço em um perfeito movimento para libertar seu pescoço das garras dele e atrás disto enroscou sua perna ao redor do tornozelo para desequilibrá-lo. MacDougall caiu ao chão justo antes que a flecha impactasse na árvore com um som seco ao que logo seguiram os dilaceradores gritos de ataque.
Ouviu a exclamação de terror de Anna, mas não podia voltar para acalmá-la. O primeiro dos homens acabava de emergir de entre as árvores com a espada em alto. De novo a reação de Arthur foi instantânea. Jogou mão ao punho de sua adaga, extraiu-a de sua capa e a lançou. O atacante emitiu um gemido quando a folha deu com os poucos centímetros desprotegidos da pele de seu pescoço. Cambaleou-se e caiu ao chão.
Para quando o seguinte dos homens saltou sobre eles MacDougall já tinha tido tempo para entender o que acontecia e se pôs em pé. Desembainhou a espada, girou sobre si mesmo e a ergueu bem a tempo para repelir uma cutilada que lhe teria arrancado a cabeça.
«Anna.» Arthur desviou o olhar do assalto que estava por chegar justo o tempo suficiente para assegurar-se de que ela estava bem. Encontrou-a resguardada depois da árvore, com os olhos cheios de terror. O coração lhe acelerou ao conscientizar-se de quão vulnerável era e logo se paralisou quando se deu conta de quão vulnerável isso fazia a ele mesmo. Não podia permitir que lhe acontecesse nada. Tinha que protegê-la. Mataria a todos se fosse preciso. Seus olhares se encontraram só por um segundo. Mas a forma em que se olharam foi de uma intensidade inegável e brutal.
—Permaneçam abaixados - disse com voz pausada, a pesar do fluxo de sangue que corria por suas veias.
Arthur se situou frente a Anna, cotovelo com cotovelo com o MacDougall, quem seguia lutando com seu oponente, e recebeu com sua espada a avalanche de atacantes que saíam de entre as árvores. Uma vintena de homens. Talvez mais.
Não teve que esperar muito para encontrar-se com o primeiro deles. Pela primeira vez em quase dois anos, desde que se visse obrigado a abandonar os Guardiões das Highlands para infiltrar-se em campo inimigo, Arthur se deixou ir e lutou com toda a destreza e o frenesi que tão cuidadosamente mantinha ocultos. Tombou ao primeiro dos homens com um virulento movimento de espada, girou-se e aproveitou a inércia para derrubar ao seguinte.
Foram por ele com mais virulência. Mas não importava. Era como uma máquina de guerra que arrasava tudo o que saía a seu caminho. Três. Quatro. O ruído do metal sobre o metal atravessava o sombrio ar noturno, mesclando-se com os gemidos e os gritos da batalha. Esses sons tinham alertado aos homens do acampamento, que felizmente estava a poucos metros dali, e os soldados do MacDougall começaram a aparecer na pequena clareira, já envolto em uma escuridão absoluta. Mas os atacantes esperavam a chegada dos reforços. Em realidade o tinham planejado e aguardavam o momento. Saltavam das árvores à medida que eles abriam caminho por baixo e caíam sobre os despreparados homens do clã MacDougall.
—Vamos! —disse Arthur tentando lhes advertir — Disperse.
Se não se dispersavam os fariam pedaços com a facilidade que se cortam arenques de um barril. Mas essa foi toda a advertência que pôde fazer antes que os seguintes adversários distraíram sua atenção. Tinha a dois homens sobre ele. Dois homens com nasais, mantos obscurecidos e as características manchas de cinza negra nos rostos.
O pavor se instalou em seu estômago com o peso de uma pedra.
Os atacantes eram homens de Bruce. Pois claro que eram. Viu os corpos pulverizados no chão ante ele, homens que ele tinha matado, e veio um acesso de bílis à garganta. Jesus, no que estava pensando? Nem sequer pensava. O instinto de amparo para a Anna ultrapassava todo o resto. Mas era pior do que imaginava. Enquanto tentava incapacitar aos dois homens que lhe atacavam sem chegar a matá-los, um terceiro homem se uniu à refrega. Um homem que brandia duas espadas. Movia-se como um raio e foi a Arthur com uma ferocidade sem igual inclusive entre seus companheiros de elite dos Guardiões das Highlands.
Arthur se encontrou cara a cara na escuridão com LachlanMacRuairi e amaldiçoou para si.
Capítulo 17
Ocorreu tudo muito depressa. Em um momento tentava evitar que seu irmão assassinasse ao homem que amava e no seguinte estavam sendo atacados. Dizer que a situação era perigosa era pouco. De seu posto escondida entre as árvores, Anna se obrigava a respirar levianamente entre o estrepitoso pulsar de seu coração e observava com horror como aqueles homens caíam sobre eles como uma praga de gafanhotos. Pareciam que fossem centenas de inimigos contra só dois guerreiros.
Arthur parou os pés ao primeiro com tal superioridade que lhe pareceu algo bizarro. Mas então chegou o seguinte. E outro mais. Ficou olhando cheia de assombro como despachava sem esforço algum a todos quantos saíam a seu encontro. Sua destreza era tão extraordinária, mostrava tal superioridade, que parecia estar vendo outro homem. Tinha o espiado suficientes vezes enquanto praticava para reconhecer a diferença. Fazia que seu irmão, conhecido como um dos cavalheiros mais destros das Highlands parecesse um escudeiro. Arthur era mais rápido. Mais ágil quanto à técnica e movimentos. E o que era mais significativo, mais forte. Podia sentir como reverberava a terra com a força de seus golpes. Quando um de seus oponentes conseguia acertar com uma cutilada, o braço de Arthur apenas se movia ao bloqueá-lo e absorvia a força do impacto como se fosse nada. Seu braço… Os olhos lhe puseram como pratos. Era o braço direito.
Não entendia. Arthur era canhoto. Ao menos supunha que era, mas nesse momento, em somente observá-lo, sabia que estivera fingindo. Por que ocultaria algo assim? E por que não o tinha visto alguma vez antes lutar desse modo? Podia compreender os motivos para ocultar seus incomuns aguçados sentidos, mas não havia nada inapropriado em ter destreza no manejo da espada. Deus, poderia ser um dos cavalheiros mais venerados do reino se quisesse. Então por que não queria ser?
Mas essas perguntas se esfumaram de sua cabeça assim que viu a nova horda de atacantes que vinham de cima das árvores. Não cabia dúvida de que ao ver os corpos caídos de seus compatriotas tinham identificado a ameaça e se reuniam em torno de Arthur.
Anna reprimiu o grito de advertência, consciente de que não faria mais que lhe distrair. Mas tinha o coração em um punho. Dois homens. E um terceiro não muito longe deles.
De repente algo pareceu mudar em Arthur. Em lugar de frios e desumanos golpes mortais brandia a espada com menos intenção. Era quase como se seu objetivo tivesse mudado e não desejasse matá-los a não ser simplesmente repelir o ataque. Mas não tinha nenhum sentido. Tirou esse pensamento da cabeça. O que passava era que aqueles guerreiros estavam melhor treinados.
E era certo. Parecia difícil ver algo na penumbra. Levavam roupagens escuras e pareciam ter se sujado de fuligem a pele com algo…
Gelou-lhe o sangue ao recordar o ataque do ano anterior. Aqueles homens também levavam a pele suja. Seria possível que se tratasse dos espectros do exército fantasma de velhacos formado por Bruce, o homem que tinha instaurado o horror tanto nos corações da Escócia como da Inglaterra?
Seus piores temores se viram confirmados quando um terceiro homem desceu sobre Arthur como um cão do inferno. Em lugar do longo espadão de duas mãos que usavam os highlanders, este brandia duas espadas menores. Uma em cada mão.
Mas eram suas vestimentas as que a fizeram tremer com um terror que subia por todos seus ossos. Igual ao resto dos atacantes, levava um nasal escurecido e tinha sujado de fuligem sua pele com barro ou cinzas, mas o que a fez estremecer diante da lembrança era o resto de sua indumentária. Vestido de negro da cabeça aos pés, em lugar de cota de malha levava um peitilho de guerra de couro tachonado com peças de metal, perneiras de couro e uma manta envolta de maneira estranha. Justo como o homem que a tinha atacado no ano anterior, aquele rebelde de beleza absurda.
Esse homem era um deles. Anna sabia. O medo se transformou em pânico. Os conhecia por suas extraordinárias habilidades, por combater como demônios possuídos. «OH, Meu Deus, Arthur!» Sua respiração ficou detida na parte alta de seu peito ao ver que o atacante voava até ele com as espadas em alto a cada lado de sua cabeça. O tempo pareceu ir mais devagar. Arthur, ainda ocupando-se de um dos outros dois adversários, não poderia defender-se. Gelou-lhe o coração. O sangue. Arthur ia morrer.
Anna abriu a boca para gritar, mas no último momento Arthur golpeou a um dos homens que lhe atacavam com o punho de sua espada e pôde ergue-la a tempo para bloquear as duas folhas antes que lhe cruzasse o pescoço. O assaltante demoníaco e ele se encontraram cara a cara com as espadas engastadas sobre suas cabeças. O agressor tinha o impulso de vantagem já que caía das alturas, mas conseguiu repeli-lo fazendo uso de ambas as mãos. Embora Arthur lhe desse as costas, conseguiu distinguir o rosto de sua oponente graças à luz oferecida por um raio de lua. Tinha os olhos mais horripilantes que Anna jamais tivesse visto. Estremeceu. Pareciam brilhar na escuridão. Com essas escuras feições retorcidas pela raiva parecia um diabo recém saído do inferno, Lúcifer em pessoa. Uma difusa lembrança foi a sua memória. Deus santo! Era possível que…? Anna abriu os olhos sem acreditar de tudo. Parecia-se com Lachlan MacRuairi, o marido de sua falecida tia Juliana. Fazia anos que não o via, mas conforme tinha ouvido estava com os rebeldes. Sua tia Juliana, da qual sua irmã tinha recebido o nome, era muito mais jovem que seu pai, quase vinte anos. MacRuairi provavelmente tinha a mesma idade que seu irmão Alan. Ao aproximar-se de Arthur a expressão de seu rosto mudou. Não se teria notado se não tivesse observado com tanta atenção. Surpresa? Reconhecimento? O homem que parecia seu tio deu um passo atrás. Ou era imaginações delas? Estava escuro e não era fácil estar segura. Ambos seguiram trocando golpes, mas a intensidade e a ferocidade tinham desaparecido. Comparado com o anterior, parecia mais um treinamento que uma batalha em que se empregassem a fundo. Anna olhava através da escuridão tentado compreender o que ocorria. Então, viu pela extremidade do olho que seu irmão tropeçava para trás, com a espada no chão e ambas as mãos sobre a cabeça, cambaleando-se…
Anna lançou um grito, incapaz de dominar-se por mais tempo. Teria deslocado em sua ajuda, mas Arthur se atrasou até sua posição para lhe impedir o passo.
—Fique atrás, maldita seja! Fique atrás!
Observou com impotência como o agressor com o que lutava seu irmão erguia a espada para acabar com ele. Seu horripilante grito atravessou a noite como uma adaga.
Arthur pareceu vacilar, mas somente por um instante. De alguma forma arrumou para rebater um golpe do homem que se parecia com seu tio e dar meia volta a tempo para bloquear a estocada dirigida contra seu irmão. O braço do atacante, ao não estar preparado para essa defesa, veio-se abaixo e com ele seu corpo, que foi cair justo sobre a espada de Arthur. O homem, surpreso, abriu os olhos antes de fechá-los para sempre.
Inclusive no meio desse horrível pesadelo a truculenta imagem fora muito para ela. Voltou o olhar entre soluços. Momentos depois, um agudo assobio cerceava o ar da noite. Olhou para o tumulto e se surpreendeu ao ver que os atacantes se retiravam. Ao que parecia MacRuairi, ou um homem que se parecia muito a ele, tinha dado a ordem de retirada. A clareira fora invadida pelos homens de seu irmão. Correu ao encontro do Alan antes inclusive de que o último dos rebeldes saísse da floresta. Tinha conseguido ficar em pé, mas ainda parecia cambalear-se.
—Oh, Deus, Alan! Está bem?
Inclusive na escuridão advertiu que lhe custava muito enfocar o olhar pela maneira em que a olhava. Sacudiu a cabeça como se pudesse assim dissipar a nebulosa.
—Um golpe no cocuruto —disse — Estarei bem. Não há por que chorar. —Tomou-a pelo queixo e lhe dirigiu um sorriso carinhoso.
Anna assentiu e limpou as lágrimas com o dorso da mão, sem se dar conta sequer de que estava chorando. Voltou de maneira instintiva e o buscou. Arthur estava a poucos metros dela, observando-a. Anna tinha vontade de correr a seu encontro, de deitar-se em seus braços, enterrar a cabeça em seu peito e romper a chorar. Ele se encarregaria de sossegar o horror. Mas seu irmão estava ali mesmo. E o rosto de Arthur se via muito sombrio.
—Está ilesa? —perguntou.
Anna assentiu enquanto o examinava, detendo-se na mandíbula e as bochechas, arroxeadas pelos golpes de seu irmão.
—E você?
Arthur assentiu também como resposta.
Alan permanecia junto a sua irmã completamente rígido. Depois caminhou em direção de Arthur, e Anna ficou paralisada temendo o que estava a ponto de fazer. Deteve-se a poucos passos dele. Ambos os homens ficaram olhando-se no silêncio da escuridão até que ao final Alan disse: —Parece ser que estou em dívida contigo, não uma, a não ser duas vezes. —Arthur ficou impassível e logo encolheu os ombros levemente — Eu não gosto de ver minha irmã zangada —acrescentou Alan.
Anna assumiu que aquilo era uma desculpa.
—A mim tampouco - disse Arthur.
Alan o examinou por um momento e depois assentiu como se tivesse chegado a algum tipo de decisão.
—Lutastes bem - disse mudando o tema, mas não a intensidade de seu escrutínio.
Ao que parecia não era ela quão única tinha advertido a melhora de suas habilidades.
—O ardor da batalha - explicou Arthur.
Esteve a ponto de mencionar sua mudança de mão, mas algo a deteve. Se seu irmão também percebeu disso, não o desvelou. Mas seguia observando-o com atenção.
—Sim, há alguns homens que funciona assim. —Anna não pôde saber pelo tom de sua voz se Alan acreditava realmente a explicação de Arthur. Ao ver que este não respondia, acrescentou—: Os rebeldes estão mais bem treinados do que pensava.
—Não eram rebeldes qualquer, irmão - disse Anna.
Ambos a olharam, mas foi Alan quem fez a pergunta.
—A que te refere?
—Acredito que um deles era parte da Guarda fantasma de Bruce, mas pode ser que não fosse o único.
Anna explicou a similitude de vestimenta com o homem que dirigia o ataque do ano anterior à igreja. Alan cofiou a barba.
—Tem sentido. Acredito que poderia estar certa.
—Há mais. Não posso estar segura, mas acredito que reconheci a um deles. O das duas espadas.
—O que? —Ambos os homens reagiram. Seu irmão com entusiasmo e Arthur com… algo diferente a isso.
—Nosso tio, que era nosso tio.
Alan amaldiçoou.
—MacRuairi?
Anna assentiu. O rosto do Alan adotou um gesto severo.
—O nosso pai não gostará nada. —Anna não sabia de onde provinha a inimizade de seu pai com o que fosse seu tio político, mas sim que o ódio corria furiosamente por ambas as partes. Alan soltou uma gargalhada — Embora talvez devesse. Que Bruce fique em seu bando com esse filho de cadela oportunista e traiçoeiro. Lachlan MacRuairi somente professa lealdade a si mesmo. Se for esse o tipo de homem que recrutou para sua tropa de fantasmas, não temos nada do que nos preocupar.
Arthur permanecia em um estranho silêncio. Anna tinha vontade de lhe perguntar a respeito do ocorrido entre o que acreditava seu tio e ele, mas, do mesmo modo que anteriormente, algo a fez conter-se. Em vez disso perguntou: —O que é o que o fez fugir?
Seu irmão ficou circunspeto.
—Não estou seguro. Tinha a cabeça tonta. Não vi virtualmente nada.
—Seus homens fizeram aparição —explicou Arthur — Estavam em minoria numérica. —Não tinha parecido assim, mas estava muito pendente de seu irmão para emprestar atenção ao resto da batalha — Deveriam voltar para acampamento —disse.
—Sim —concedeu Alan — Um de meus homens te levará, Anna. Nós temos que nos encarregar de…
«Os mortos», completou ela mesma.
O horror do ataque, o horror daquilo ao que tinham escapado por pouco, golpeou-a então com toda sua força. As comportas se abriram e emergiram todas as emoções que estivera contendo atrás delas, ameaçando transbordando em muitas lágrimas. Voltou-se, advertindo que Arthur se pôs a seu lado. Este, alheio à presença do Alan, esticou o braço para lhe pôr depois da orelha uma mecha de cabelo rebelde. Seus dedos passaram roçando a bochecha e se detiveram ali. A ternura que havia nesse gesto fez que a Anna saltasse em lágrimas. Ergueu o olhar para ele. Advertiu o rosto de preocupação atrás de sua expressão séria. Sua sólida presença, sua força a desarmavam completamente. Se tomasse entre seus braços se romperia em pedaços. Arthur, que adivinhava que isso poderia ocorrer, não o fez.
—Tudo sairá bem —disse com delicadeza — Faça o que diz seu irmão.
—Mas…
Cortou seus protestos com uma negação da cabeça e expressão firme. Deveu adivinhar que ela tinha perguntas que fazer.
—Agora não - disse olhando em direção aos caídos — Depois.
Anna manteve os olhos no rosto de Arthur, procurando não seguir a direção de seu olhar. Já havia visto suficiente sangue para o resto de seus dias. As lembranças dessa noite a perseguiriam. Era uma reação compreensível. Anna era uma mulher e não alguém acostumado ao sangue e ao furor do campo de batalha. Arthur, entretanto, sim estava. Ou ao menos deveria estar. Mas havia algo em sua expressão, na tensão de sua mandíbula, a brancura da boca, a crueldade de seus olhos, que indicava que aquilo lhe afetava profundamente. Anna seguia os passos dos dois homens de seu irmão que a precediam com a suspeita de que ela não seria a única a que perseguiriam as lembranças daquela noite. A questão era por que.
Arthur não pôde conciliar o sonho. Quase esperava que MacRuairi se deslizasse na escuridão e lhe rachasse a garganta ou cravasse uma adaga nas costas pelo que tinha acontecido. Não seria a primeira vez. Não tinha ganhado o apelido de Víbora unicamente por sua venenosa personalidade, mas também por seu ataque silencioso e mortífero. Entretanto, Arthur não podia culpá-lo.
Tal e como tinha feito quase toda a noite, olhava o monte de corpos que tinham deixado apinhados a um lado da clareira, postos ali para que os «atacantes» os recolhessem. Nove homens de Bruce assassinados. Mais da metade pela ponta de sua espada. Equivocou-se. Muito. Em muitos aspectos para poder contá-los. Suficiente mal era que seus sentidos tivessem falhado, que não tivesse advertido os sinais do ataque, mas, além disso, parecia ter esquecido de que lado estava. Levava tanto tempo entrincheirado em campo inimigo que começava a acreditar em suas próprias mentiras.
«Cristo.» Fechou os olhos em uma tentativa de aplacar seus pensamentos. Viu-se obrigado a matar a seus próprios homens antes, mas nunca desse modo. Aquilo não era simplesmente defender-se. Tornou-se um louco fazendo. Estava tão concentrado em proteger Anna e matar a qualquer que supusera uma ameaça para ela que não tinha reparado em nada mais que isso. Nem sequer se deteve quando percebeu o que ocorria. Tinha salvado a vida do MacDougall em troca de um de seus compatriotas. Não podia tirar da cabeça o rosto que tinha posto MacRuairi quando Arthur atravessou ao homem que estava a ponto de acabar com o MacDougall. Pouco importava que sua intenção não fosse matá-lo. Não teria que ter intervindo. O pranto dilacerador de Anna não era desculpa, ao menos não uma desculpa que importasse para os de sua irmandade.
Levantou-se de seu solitário posto junto à árvore quando começaram a vislumbrar os primeiros raios do amanhecer através da floresta. Não acudiriam. Nem MacRuairi, nem tampouco Gordon, MacGregor e MacKay, a menos que tivesse errado ao identificar aos outros três membros dos Guardiões das Highlands quando se batiam em retirada. Tampouco esperava que o fizessem, embora gostasse de ter a oportunidade de explicar-se ante eles. Não se arriscariam de novo a revelar a identidade de Arthur. Para isso bastava a si mesmo.
Era consciente do perto que estivera de arruinar sua cobertura e de pôr toda sua missão em perigo. Anna, tal e como provavam suas perguntas, era muito observadora, inclusive sendo presa do pânico. E não era a única. Também Alan suspeitava da súbita melhora de suas habilidades como combatente e de quão rápido tinham fugido os atacantes. No momento os tinha contentado, mas sabia que ela tinha mais pergunta e não se atrevia tão sequer a pensar o que mais teria advertido.
Reconhecer ao MacRuairi já era mal por si só, mas relacioná-lo com os Guardiões das Highlands era um completo desastre. Manter suas identidades em segredo não era só um aplique à mística e ao medo que rodeavam a aquela guarda «fantasma», mas sim também ajudava a mantê-los a salvo. Se seus inimigos tinham conhecimento de suas identidades, além de pôr preço a suas cabeças, temia a segurança de suas famílias. Essa era a razão pela que tinham decidido usar nomes de guerra quando estavam em uma missão.
Quando Bruce se inteirasse de que tinham desmascarado ao MacRuairi, teria graves conseqüências. Não teria que ter ocorrido, maldita seja. A raiva e a culpa invadiam seu interior sem piedade. Arthur teria pressentido o ataque se não tivesse tão envolto com Anna e deixar-se dominar pela emoção. Aqueles homens não estariam mortos e tampouco teria posto a ela em perigo. Deus, poderiam tê-la matado. E tudo por não ser capaz de controlar suas emoções e implicar-se muito.
Voltou para acampamento justo no momento em que começavam a despertar os homens que não estavam de guarda. Olhou para a tenda de Anna e viu que as portinholas forradas de linho permaneciam fechadas. «Bem. Que durma.» Merecia. Tinha ido vê-la com freqüência no transcurso da noite para assegurar-se de que estava bem. Sabia o muito que a tinha afetado o ataque, mas combatia com seus próprios demônios, de modo que por mais que fosse ele quem devia fazer, não estava em condições de consolá-la. Não obstante, uma vez que teve retornado de encarregar-se dos cavalos, viu a portinhola aberta. Ao inspecionar o acampamento e não encontrá-la ficou circunspeto. Mas pouco depois teve oportunidade de espiá-la enquanto falava com seu irmão, que estava ocupado com alguns de seus homens. A exasperação que refletia seu semblante era tão corrente que suspirou aliviado, até sem querer reconhecer quanto se preocupou.
Quando seu olhar reparou nele, Anna titubeou, mas em seguida começou a avançar pelo terreno semeado de musgo e folhas em sua direção. Arthur percebeu de que levava um pedaço de pano nas mãos. Deteve-se frente a ele, inclinando seu pálido rosto para olhá-lo. Arthur sentiu uma angústia no peito. Ao que parecia, o sono também fora esquivo.
—Já que a regra que pusestes e meu irmão está ocupado, terá que me acompanhar.
Arthur a olhou de modo inquisitivo.
—Não me fizeram prometer que não abandonaria o campo sem sua companhia ou a de meu irmão?
Franziu o cenho até converter-se no primeiro sorriso que tinham parecido em anos.
—Sim.
—Preciso ir ao córrego me lavar.
O córrego ficava perfeitamente à vista do acampamento, mas Arthur não discutiu ao conscientizar de quanto a teria afetado o ataque. Fez uma reverência zombadora com um gesto exagerado da mão.
—Depois de ti.
Anna não parecia ter muita vontade de falar, algo que vinha a calhar. Esperou junto a uma árvore, fazendo como que não olhava, enquanto ela se encarregava de suas abluções matinais. Depois de arrumar o cabelo com um pente úmido e lavar os dentes com pós de um frasco que esfregou sobre um pequeno pedaço de tecido branco, mergulhou outro trapo branco na água. Tinha levado com ela uma pastilha de sabão, a qual esfregou sobre o tecido para depois proceder a lavar o rosto, o colo, as mãos e os braços. Era uma das imagens mais sensuais que jamais tivesse presenciado.
Quando meteu o trapo entre os seios já não pôde mais. Voltou-se, furioso por que um pouco tão mundano pudesse o excitar. Mas com esse sol caindo entre as árvores, que se refletia em seus cabelos dourados e os regatos de água que se derramavam em cascata por seu rosto e seu colo a via formosa, doce e verdadeiramente cativante. Um raio de luz na escuridão. E tudo que Arthur podia pensar era o perto que estivera do céu e a vontade insensata que tinha de tocá-la de novo. Deus, é que não tinha aprendido nada do ocorrido na noite anterior? Concentrou-se no que lhes rodeava com uma intensidade quase exagerada, aguçando seus sentidos para algo que se saísse do ordinário. Entretanto voltou o olhar atrás. Anna tinha terminado e caminhava para ele com o sol a contraluz pelas costas. Arthur teve que conter a respiração. Mas isso não evitou que o apanhasse o subjugador aroma de sua doce e feminina fragrância: pele recém lavada com um toque de pétalas de rosa.
—O que acontece? —perguntou Anna.
—Nada - disse com tensão.
—Parece como se lhe doesse algo - disse olhando-o nos olhos — Lhe dói o rosto? —perguntou tomando o arroxeado queixo na mão. Cada um dos músculos de Arthur ficou em guarda ante o contato — Quebrou algo o idiota de meu irmão? —Jesus, que mãos mais suaves. Seus dedos aveludados acariciavam o duro contorno da tensa mandíbula de Arthur — Olhem quantos hematomas. Isso deve doer — acrescentou, levando o dedo até sua boca — Têm o lábio partido.
Sim, doía. Aquele gesto de sensualidade inocente fazia correr o sangue até a virilha de Arthur e a incendiava de calor. Teve que obrigar-se a não lhe chupar o dedo. Não tinha nem idéia do que estava fazendo. Nem do que estava custando resistir a tocá-la.
Anna o olhou com uma preocupação que se refletia em seus olhos.
—Dói muito?
—O rosto não. —Arthur lhe dirigiu um olhar lascivo que dizia exatamente onde estava a origem de sua dor. Parecia que fosse estalar.
As bochechas de Anna se ruborizaram levemente. Se por acaso aquilo não fosse suficiente, começou a mordiscar esse suave lábio inferior que tinha.
—Oh, não me dava conta de que…
—Deveríamos voltar. Seu irmão queria sair cedo.
Anna assentiu e Arthur teve a impressão de que lhe dava um calafrio.
—Não me entristecerá partir daqui.
Arthur não pôde conter-se. Tomou pelo queixo e cravou o olhar em seus grandes olhos azuis.
—Está bem?
Anna tentou sorrir, mas lhe tremeu a boca.
—Não, mas arrumarei isso.
Arthur lhe soltou o queixo e sua boca adotou um gesto severo.
—O que ocorreu a noite passada não voltará a repetir-se.
Os delicados arcos das sobrancelhas de Anna se franziram.
—Como pode estar tão seguro?
—Porque não permitirei.
Anna o examinou com o olhar e abriu os olhos de repente ao compreendê-lo.
—Por Deus bendito, por isso está zangado. Culpa-se do ocorrido. Mas isso é ridículo. Jamais poderia ter sabido que…
—Sim, sim deveria saber. Se não tivesse tão distraído, não teria ocorrido.
—Então a culpa é minha?
—É obvio que não.
—Não é perfeito, Arthur. Sois humano. Comete enganos. —Ele não respondeu. Tinha a mandíbula tão apertada que lhe doíam os dentes - é o que pensa? —perguntou Anna com ternura — Não falharam seus sentidos alguma vez antes?
«Uma vez», pensou Arthur, afastando a lembrança de sua memória.
—Temos que retornar.
Começou a afastar-se dela, mas Anna o agarrou pelo braço para detê-lo.
—Não ides contar isso?
—Não há nada que contar.
—Tem algo que ver com seu pai? —ficou olhando-a, aniquilado. Como demônios tinha chegado a suspeitar? Anna advertiu sua surpresa — Quando falou de sua morte, deu-me a sensação de que não contava tudo.
Não tinha contado nem a metade do que aconteceu. Como por exemplo a participação do pai de Anna na tergiversação dos fatos. Anna esperava uma resposta. Ele não era muito dado a falar sobre seu passado, mas a expressão do rosto dela disse que aquilo lhe parecia algo muito importante.
—Não há muito que contar. Tratava-se de minha primeira batalha. Meu pai me levou com eles para me pôr a prova. Estava tão preocupado por lhe impressionar que não detectei os sinais do ataque. —Mas isso não era a pior parte, pensou Arthur — Vi como morria.
O rosto de Anna se encheu de comiseração.
—Deus, sinto muito. Deve ter sido horrível. Mas não era mais que um menino. Não podia fazer nada para ajudar.
—Teria que o ter avisado. —Se não estivesse tão afetado, tão assustado, teria visto os sinais, refletiu Arthur. Então, igual à noite anterior, a emoção se havia interposto em seu caminho — Estava distraído.
Mal teve tempo de franzir o sobrecenho antes que os olhos de Anna se iluminassem repentinamente de compreensão.
—Amava-o.
Arthur encolheu os ombros, incomodado com o tema.
—Isso não serve de muito.
—Inclusive Aquiles tinha um ponto débil, Arthur. —Ele a olhou com cara de estar admirado. Do que estava falando? — É difícil manter-se afastado e à expectativa com as pessoas às que alguém quer —disse Anna lhe oferecendo um sorriso de simpatia — Não podem te culpar por amar às pessoas. —Mas fazia. Do que servia suas tão apregoadas habilidades se não podia proteger a aqueles que amava? — Obrigado por me contar isso — Por que voltava a sentir que a tinha deixado ver muito de si?
—Não desejava que te preocupasse pensando em outro ataque surpresa.
—Não me preocupo —disse Anna — Confio em você.
Arthur sentiu uns ardores no peito que o consumiam por dentro. Queria a advertir que não fizesse, lhe dizer que não merecia, que o único que faria seria a machucar, que ela dava seu coração com muita facilidade, com os olhos fechados. Mas em vez disso assentiu e puseram rumo para o acampamento. Arthur subiu a costa com ela, e quando estiveram nas imediações, Anna o olhou de soslaio.
—Pareceu como se meu tio o reconhecesse.
A observação o colheu com a guarda completamente baixa. Algo para o qual parecia ter um talento especial. Arthur deu um passo um tanto vacilante. Não muito, mas temia que se desse conta.
—Está segura de que era seu tio? Não via bem. Eu estava muito mais perto e não pude reconhecer aquele rosto oculta depois do nasal.
Anna enrugou o nariz, um movimento adorável que chocava profundamente com a ameaça que representava para ele.
—Faz alguns anos que não o vejo, mas estou bastante segura de que era ele. Seus olhos são inesquecíveis — disse com um calafrio. Se tentava distrair de sua pergunta, não ia funcionar — Mas pareceu o reconhecer.
—Ah, sim? —disse Arthur encolhendo os ombros — Pode ser que nos tenhamos cruzado alguma vez.
Ela ficou um momento sem dizer uma palavra, mas infelizmente não pensava deixar o assunto correr.
—Então não o conhece?
Arthur lutou contra a ativação instintiva de seus alarmes.
—Pessoalmente não.
—Parecia aborrecido de lhe ver.
O rápido pulsar do pulso de Arthur contradizia sua calma exterior. Era perigosamente perceptiva e andava muito perto da verdade.
—Aborrecido? Por isso sei, Lachlan MacRuairi é um filho de…—disse, detendo-se ao recordar quem tinha por audiência — É um homem perverso com um caráter de cão. Provavelmente estava furioso por que matasse a tantos de seus homens.
Anna pareceu aceitar a explicação. Mas a seguinte pergunta lhe deixou claro que ainda não estava satisfeita.
—Por que se retiraram?
Arthur amaldiçoou para si. As vozes de alarme se acendiam com mais força.
—Como já vos disse, os homens de seu irmão chegaram até nós. Estavam em minoria.
Ficou circunspeta.
—Não me pareceu isso. Parecia que estavam ganhando.
Arthur se obrigou a forçar um sorriso irônico.
—Seu irmão estava em perigo —lhe recordou — Eu diria que estava distraída.
Anna ergueu o olhar para olhá-lo e lhe dedicou um meio sorriso.
—Pode ser que tenham razão. Estava concentrada em meu irmão. Ainda tenho que lhes agradecer o que fizeram. —Uma sombra sulcou seu rosto — Se não tivessem detido a esse homem…
—Não pensem mais nisso, Anna. Já passou.
Assentiu e voltou a olhar de relance.
—De todos os modos, agradeço-lhe. E também Alan o faz, apesar de que tenha uma estranha forma de demonstrá-lo.
MacDougall não ocultava seu interesse por eles. Arthur sentiu o peso de seu olhar durante todo o tempo. Ao encontrar-se com seus olhos, soube que a discussão a respeito do ocorrido no dia anterior ainda não tinha acabado.
—Tem direito a estar furioso, Anna. O que fiz esteve mau. Tudo que posso fazer é prometer que jamais voltará a acontecer.
A maneira em que sua respiração ficou sobressaltada foi como uma punhalada no peito. Parecia emocionada. Desconcertada. Como se esperasse algo diferente.
—Mas…
—Aguardam-nos — disse Arthur, e assinalou ao moço que preparava seus cavalos para que não seguisse falando. Não poderia suportar outra conversa como a do dia anterior — É hora de partir.
Essas palavras fossem dirigidas tanto a ela como a si mesmo. Ponto cego. Ponto débil. Não importa como o tivesse chamado. Seus sentimentos no que respeitava a Anna se converteram em um lastro. Tinha permitido que ela se aproximasse muito, e sua missão e sua coberta pendiam de um fio. A conta atrás tinha começado.
Capítulo 18
Dois dias sem acontecimentos depois, Anna atravessava as portas do castelo de Dunstaffnage ao lombo de seu cavalo. Um dos guardiães se adiantou, de modo que lhes esperavam. Pelo semblante de ira mal contida de seu pai advertiu que estava a par do fracasso de sua viagem. Anna sonhava desfrutando de uma noite de sonho reparador antes de confrontar as perguntas de seu senhor, mas sua tardia chegada não serve para atrasar o relatório. Alan e ela quase não tiveram tempo de lavar as mãos e fazer uma frugal refeição leve antes que os apresentassem nas dependências do senhor do castelo.
John de Lorn permanecia de pé em meio da sala, com as mãos à costas e os membros importantes de seu meinie atrás dele e ambos os lados. A expressão de duelo que todos compartilhavam sem exceção fez pensar a Anna que entrava em um túmulo funerário. Dado que nenhum deles tomou assento, ela e Alan tiveram que suportar o desconforto de estar de pé. Suas sensações não distavam muito das do menino ao que chamam para que responda de uma travessura atroz com resultados nefastos.
Apenas teve fechado a porta quando seu pai começou a falar. A atacar, em realidade.
—Ross rechaçou a oferta.
Não se tratava de uma pergunta. Ao notar o tom de acusação de sua voz, Anna teve vontade de explicar-se, mas não tocava a ela fazer.
Alan respondeu por ambos.
—Sim. A resposta do Ross a uma aliança foi quão mesma na ocasião anterior. Disse que Bruce partiria também contra ele e que não podia prescindir de nenhum de seus homens.
—Mas que passou com o compromisso? Não lhe fez mudar de idéia?
Anna sentiu o peso dos olhares de todos os homens sobre ela e suas bochechas se ruborizaram. Mantinha o olhar baixo para que seu pai não visse quão envergonhada estava. Independentemente de que supusera alguma mudança ou não, tinha fracassado na tarefa que lhe tinha encomendado.
—Não há compromisso —explicou Alan — Estiveram de acordo em que não encaixam um com o outro.
Anna desejava que ninguém mais detectasse como Alan acabava de medir suas palavras.
—Quer dizer que não te perdoou por rechaçá-lo na primeira vez? —perguntou o pai a Anna diretamente.
Ela se aventurou a olhá-lo e a contemplar seu rosto de raiva. O coração lhe encolheu. Não era bom para ele que se zangasse tanto. Quis lhe dizer algo a esse respeito, mas sabia que se lhe tratasse como a um inválido ante seus homens, ficaria mais furioso ainda. Não sabia o que dizer. Não queria mentir, mas tampouco podia contar toda a verdade.
—Eu… — disse, tropeçando com suas próprias palavras.
—Bem — repôs seu pai com impaciência—, acreditava que foste o persuadir.
As bochechas ardiam da vergonha.
—Tentei, mas temo que ele… percebeu que meus sentimentos estavam comprometidos com outra causa.
—O que quer dizer isso de «comprometidos com outra causa»? —Seu pai entreabriu os olhos, que a atravessavam como flechas. Sabia que havia algo que não lhe estava contando — Campbell —disse impassível em resposta a sua própria pergunta. Amaldiçoou para si com um olhar implacável — E como poderia perceber isso? O que fez?
Jamais tinha visto seu pai tão furioso com ela. Era a primeira vez que sua raiva a atemorizava. Que o merecesse não era algo que aplacasse seus devastadores efeitos. O que poderia ter dito? Felizmente, Alan teve piedade dela.
—O compromisso não teria mudado nada. Ross já tinha seus planos feitos. Temo que ainda não ouvistes a pior parte. —Anna temia o pior em relação à reação de seu pai. Tinha medo de que aquilo o levasse a um novo ataque de apoplexia. Ao que parecia, Alan decidiu que era melhor não dosar a verdade, a não ser soltar a de uma só e desagradável vez — Ross está pensando em render-se.
Seu pai não disse uma palavra. Mas Anna contemplava como sua fúria crescia como uma crista de espuma no horizonte que se dirigisse para a costa a toda velocidade até converter-se em uma temível onda que ameaçava rompendo. John de Lorn apertava os punhos com força, seu rosto estava vermelho como um tomate, as veias lhe palpitavam nas sobrancelhas e seus olhos ardiam como se fossem as portas do inferno. Anna deu um passo em sua direção, mas Alan a deteve com uma mão e negou com a cabeça em sinal de advertência.
Quando seu pai acabou por bem pronunciar-se foi para proferir uma enxurrada de insultos que teriam posto a sua mãe de joelhos durante semanas inteiras em penitencia por sua alma blasfema. Perambulou, iracundo pela pequena câmara como um leão enjaulado. Inclusive seus homens lhe deixaram espaço suficiente para que desse rédea solta a sua irritação.
—Ross é um tolo do demônio! —explorou com fúria — Bruce jamais lhe perdoará o que fez às mulheres. Pelo amor de Deus! Pendurou em jaulas a sua irmã e à condessa. Se se render, estará assinando sua própria ordem de execução. —Deteve suas palavras o justo para dar um murro sobre a mesa — Como pode pensar em prostrar-se ante esse assassino traiçoeiro? Cortou a meu parente em pedaços diante de um altar.
Anna não se atreveu a assinalar que a santidade da igreja não era algo que parecesse importar muito ao Ross. Depois de tudo, ele mesmo violou o santuário para capturar às mulheres de Bruce.
—O povo está com Bruce —disse Alan para acalmar a seu pai — despertou um ardor patriótico no campo que não se via desde Wallace. Acreditam que é um salvador, o segundo advento do rei Artur, que os liberou do jugo da tirania inglesa. Ross pensa em sua gente e no futuro de seu clã. Pensa no que é melhor para a Escócia.
Anna tentou ocultar sua surpresa. Felizmente seu pai estava muito furioso para ouvir o que Alan havia dito realmente. Mas embora seu pai não o tivesse feito, ela sim tinha ouvido o tom de reprimenda na voz de seu irmão. Pensaria Alan igual a Ross? Acreditava também ele que Bruce era a melhor opção para Escócia? Por Deus bendito, o que aconteceria seu pai se equivocava?
Anna não podia acreditar que fosse ela quem albergasse esse pensamento desleal. Mas os MacDougall, em seus dias ferventes patriotas, tinham dado seu apoio aos ingleses para não ver Bruce sentar-se no trono. Era isso o melhor para Escócia?
—Morrerei antes de ver esse assassino no trono — disse seu pai, consumida já a raiva de seus olhos, frios como o gelo.
Anna sentiu certo alívio para ouvir os murmúrios unânimes de seus homens que concordavam vigorosamente com essa idéia. Seu pai sabia o que fazia. Era um dos homens mais poderosos de Escócia. Tinha suas falhas, claro, que grande homem não os tinha? Mas ele faria que superassem aquilo.
Uma vez informado sobre a parte mais importante da viagem, Alan procedeu a lhe contar a seu pai o resto, dando conta brevemente do problema acontecido pelo caminho. Seu pai escutava, cada vez mais preocupado, empalidecendo visivelmente para ouvir como seu herdeiro escapava por pouco à morte, duas vezes. Entreabriu os olhos enviesadamente quando Alan o informou das suspeitas de Anna a respeito da implicação do MacRuairi e depois transbordou de emoção ao conscientizar-se da conexão que tinha com a guarda fantasma de Bruce.
—Bom trabalho — disse a Anna, quem sorriu radiantemente pela adulação.
Alan deu a versão de Arthur de sua retirada, mas seu pai também pareceu ter problemas em compreendê-lo.
Ao final, adiantou-se e a agarrou da mão.
—Não sofreste nenhum dano, filha?
Anna negou com a cabeça e ele a acolheu entre seus grandes e robustos braços, esquecendo aparentemente sua ira. Por um momento, Anna voltou a sentir-se como uma menina e a necessidade de chorar todas suas penas sobre sua túnica de finos bordados se apoderou dela. Arthur seguia inimizado com ela. O ataque não tinha mudado nada. Por acaso o tinha piorado. Tinha a esperança de que depois de seu bate-papo ele tivesse mudado de parecer. Arthur sentia algo por ela, mas havia um motivo que o fazia conter-se. Esses dois dias de caminho não lhe tinham dado novas perspectivas. Anna não podia livrar-se da sensação de que havia algo estranho no ataque. E tampouco podia tirar da cabeça a inquietação que lhe provocava suspeitar que ele ocultava algo.
Seu pai se voltou para trás para olhá-la.
—Está cansada. Já ouvirei o resto da história pela manhã.
Assentiu, aliviada de que o pior já tivesse passado. Ao menos isso é o que pensava.
—E, Alan — disse John de Lorn a seu filho—, faz que Campbell e seu irmão se reúnam conosco. Parece que sir Arthur tem que responder por muitas coisas — acrescentou dirigindo um olhar a Anna que a fez estremecer da cabeça aos pés.
Arthur estava preparado para a citação quando esta chegou. Não esperava, entretanto, que se incluísse nela a seu irmão.
—Que diabos tem feito? —perguntou Dugald com suspeita à medida que atravessavam o barmkin em direção à torre da comemoração — por que tem Lorn tanta vontade de ver-te?
Arthur e seu irmão subiram a escada compassando sua marcha com o tinido de seus peitilhos e suas armas.
—Suponho que tem perguntas que fazer em relação aos homens que nos atacaram.
—E o que sabe você deles?
—Nada — disse Arthur ao mesmo tempo que abria a enorme porta de madeira que dava entrada à torre.
—O que tenho eu que ver em tudo isto?
Arthur olhou ao Dugald. A expressão de seu irmão era um reflexo da impaciência que ambos sentiam. Ao Dugald gostava tão pouco como a ele que o chamassem a presença de Lorn. Apesar de que seu irmão e ele lutassem em diferentes lados da guerra, ainda podiam coincidir em seu ódio para o John de Lorn.
—Que me crucifiquem se sei — disse Arthur incomodado por essa incerteza. Um guarda bateu na porta para anunciar sua chegada. Quando lhes fizeram passar, voltou-se e acrescentou—: Mas estamos a ponto de averiguá-lo.
Examinou com rapidez aos ocupantes da sala: Lorn, sentado como um rei em uma poltrona que melhor parecia um trono com uma expressão impossível de discernir; Alan MacDougall de pé junto ao muro, com cara de não saber muito bem o que ocorria; e Anna sentada em um banco em frente ao fogo com aspecto de estar extremamente inquieta. À exceção do único guarda que os tinha admitido para deixá-los depois às ordens de Lorn, não havia nenhum outro membro presente de seu meinie.
Tratasse do que se tratasse, era um assunto pessoal. A pontada de inquietação que Arthur sentia se converteu em uma punhalada em toda regra. Lorn, imperioso filho de cadela, não os convidou a sentar-se, de modo que permaneceram de pé frente a ele. O ódio cego que atendia a alma de Arthur cada vez que se encontrava rosto o rosto com o homem que tinha assassinado seu pai não diminuía. Contraiu suas feições de modo que não revelassem emoção alguma, mas o fogo que queimava seu peito e a necessidade de afundar uma adaga no negro coração de Lorn eram algo mais difícil de reprimir.
—Desejava nos ver, milorde — disse Dugald com um tom que não mostrava deferência alguma.
Lorn tomou seu tempo em deixar a pluma a um lado e logo se recostou na poltrona para olhá-los. Tamborilou com os dedos sobre a mesa. Quando respondeu, não foi ao Dugald, a não ser a Arthur: —Ouvi que tiveram uma viagem cheia de peripécias.
Algo no tom de sua voz fez que soassem os sinos de alarme no mais profundo da cabeça de Arthur. Teve que controlar-se para não olhar a Anna. O que lhe teria contado?
—Sim —disse — Tivemos a sorte de escapar à primeira orda de velhacos, mas não à segunda. Fizemo-nos fugir bem a tempo.
Lorn o escrutinou com tal parada que lhe puseram todos os nervos de ponta.
—Isso eu ouvi. Meu filho não teve mais que louvores para suas habilidades na batalha. Conforme afirma, jamais viu nada igual. —Dugald se voltou bruscamente para Arthur com o rosto circunspeta — Tenho que admitir que me surpreendeu ouvir a descrição do enfrentamento —acrescentou Lorn com um sorriso. Mas seu olhar não tinha nada de divertido. Era frio e calculador — Me pergunto por que jamais antes tínhamos visto isso em você.
Lorn desviou seu olhar para o Dugald, avaliando sua reação. Infelizmente, a expressão do irmão de Arthur não fez a não ser admirar mais.
—Sir Alan é mais que generoso com suas adulações, meu senhor.
Alan deu um passo à frente, em claro desacordo com a forma de perguntar de seu pai.
—Sir Arthur foi chave na hora de derrotar aos rebeldes, pai, e ao salvar minha vida. Temos uma dívida de gratidão com ele.
—Sim, é obvio —disse Lorn — Estou muito agradecido. Mas me pergunto… — Fez uma pausa e tamborilou com um dedo sobre a mesa— pergunto-me se poderiam jogar um pouco de luz sobre o resto do ataque.
—É obvio — disse Arthur. Mas não gostava absolutamente dos roteiros que tomava aquele assunto. Lorn era um filho de cadela arrevesado. Gostava de ter aos o rodeavam em um punho. Acaso suspeitava algo? Quem podia saber.
—Minha filha acredita ter identificado a quem fosse meu irmão político, Lachlan MacRuairi, como um desses rufiões, e também pensa que pode ser um dos guerreiros secretos dos que tanto ouvimos falar.
—Cruzei-me com esse homem uma ou duas vezes, mas não o conheço tão bem para afirmar nenhuma coisa nem a outra. Se lady Anna tiver dúvidas, temo que eu não posso ajudar a resolver.
Arthur caminhava pela corda frouxa. Uma negação terminante poderia chamar suspeita, mas queria manter a semente da dúvida plantada na mente de Lorn, cujos traços se endureceram, fazendo patente o ódio que professava pelo que fosse seu cunhado.
—MacRuairi é uma serpente traiçoeira, um assassino desumano que venderia a sua mãe por uma peça de prata, mas há uma coisa que jamais faria, e é se dar por vencido. Jamais o vi retirar-se em uma batalha.
Bàs roimh Gèill. «Morrer antes que render-se» formava parte do credo dos Guardiões das Highlands, mas parecia funesto que essa frase desse ao Lorn algo no que fincar o dente. A corda frouxa pela que Arthur caminhava-se fazia mais instável por momentos.
Deu de ombros sem comprometer-se.
—Então é possível que não fosse ele?
Lorn voltou a dirigir o olhar a sua filha, quem o olhou nos olhos antes de responder:
—Não posso estar segura, pai. Estava muito escuro. Somente percebi seu rosto com claridade por um instante… e fazia anos que não o via.
Arthur sentiu uma opressão no peito. Tentava protegê-lo. Teria notado Lorn também disso?
—Havia algo que quisessem de mim, meu senhor? —perguntou Dugald cada vez mais impaciente.
Em outras palavras: que demônios fazia ele ali? Uma pergunta que também interessava Arthur.
—Estou chegando a esse ponto.
Lorn voltou a tamborilar sobre a mesa, e Arthur começou a imaginar-se que agarrava sua maça de guerra e punha fim a essa aporrinhação de uma vez por todas.
—Não estou seguro de que firmaram tanto do propósito que tinha a viagem ao norte para ver o Ross — disse ao Dugald — Era pra retomar as conversações para o compromisso de matrimônio entre minha filha e sir Hugh Ross, com a esperança de que uma aliança entre nós animaria ao conde a enviar tropas de apoio na guerra contra Bruce. Infelizmente, as coisas não fossem como tínhamos planejado.
Dugald fulminou de relance Arthur com o olhar.
—Ah, não?
—Não. —O olhar de Lorn voltou a recair sobre ele — Ao que parecia, sir Hugh percebeu que os afetos de minha filha estavam comprometidos com outra causa. Sabes algo disso, sir Arthur?
Arthur viu pela extremidade do olho como Anna empalidecia e apertava as mãos com força sobre seu regaço. Que diabos havia dito? Os dentes lhe chiavam. Sentia-se esquecido no aposento e sem espaço para mover-se.
—Sim.
—Pensei que talvez fosse assim —disse Lorn. O brilho de raiva de seu olhar disse a Arthur que provavelmente adivinhava parte do acontecido. Esperou tensos, preparando-se para o pior. O nó cada vez se apertava mais. Lorn se voltou para o Dugald. As razões pelas quais seu irmão estava ali tinham ficado claras — Diante dos dados e recentes acontecimentos, eu gostaria de propor uma aliança diferente. Uma que faria mais sólidos os laços entre nossas famílias e mostraria minha gratidão para sir Arthur pelo serviço que tem feito a meu filho, assim como também asseguraria a felicidade de minha filha. —Cada um dos músculos do corpo de Arthur ficou tensos enquanto esperava o que estava por chegar. Perguntava-se se ela teria algo ver com isso, mas os olhos de Anna não mostravam mais que surpresa quando seu pai disse—: Eu gostaria de propor um compromisso de bodas entre sir Arthur e minha filha.
Dugald soltou uma gargalhada.
—Um compromisso?
A boca de Lorn adotou um gesto severo.
—Acredito que isso é o que disse. Podemos falar sobre os detalhes mais tarde, mas tenham por seguro que o dote de minha filha é mais que generoso. Inclui certo castelo que acredito pode ser de interesse para ti.
Tanto Arthur como seu irmão ficaram de pedra.
Foi Dugald quem acabou por perguntar:
—Innis Chonnel?
Um sorriso retorcido se desenhou na boca de Lorn.
—Sim.
Arthur não podia acreditar. A fortaleza dos Campbell do lago Awe que tinham sido arrebatado a seu clã fazia anos, devolvida por casar-se com a mulher que queria mais que a tudo no mundo. Um autêntico pacto com o diabo. Por um momento, ficou duvidando, muito mais tentado do que gostaria de admitir. Mudar de bando era algo habitual naquela guerra. Mas ele não podia fazer. Inclusive no caso de que condescendesse a aliar-se com o homem que tinha assassinado a seu pai, havia muitas pessoas que contava com ele: Neil, o rei Robert, MacLeod e o resto dos membros dos Guardiões das Highlands. E tampouco podia ignorar sua própria consciência. Acreditava no que estavam fazendo.
A devolução do castelo dos Campbell, embora fosse ao irmão mais novo, bastou para convencer ao Dugald, que se voltou para Arthur.
—Eu não tenho objeção. Arthur?
Todos os olhos se voltaram para ele, mas somente era consciente de dois pares: os de Anna, que lhe observavam com o coração neles, e os de Lorn, que o contemplavam com a suspeita refletida.
Até no caso de que não tivesse intenção de levar a cabo, Arthur sabia que devia aceitá-lo para dissipar todo receio. Aquele compromisso era uma prova de lealdade. Tratava-se tanto de assegurar a felicidade de Anna como de provar sua aliança. Sua consciência liberava uma batalha com sua noção do dever, mas não durou muito. Não tinha outra opção. As espadas estavam em alto. Não podia pensar em quanto o odiaria Anna quando averiguasse a verdade.
—Será uma honra tomar lady Anna como esposa.
Talvez o pior fosse que, em realidade, dizia a sério.
Capítulo 19
Anna tinha tudo o que queria. Por que se sentia então tão miserável? Tinha passado uma semana desde dia em que seu pai anunciasse por surpresa o compromisso em sua câmara. Uma vez reposta da comoção, casar-se com o homem que amava… era algo que a deixava em um estado de euforia. Nada poderia fazê-la mais feliz. Exceto, talvez, a notícia de que Bruce decidisse que a coroa não lhe pertencia e desaparecesse nas ilhas Ocidentais como tinha feito anteriormente. Mas faltava muito ainda para que se cumprisse esse sonho.
Enquanto ela estava mais que entusiasmada, Arthur dava a impressão de ter que suportar uma pesada carga. Desde aquele dia se comportava com uma correção irrepreensível, cortês durante as refeições e também nas poucas ocasiões em que se cruzavam os caminhos de ambos. Inclusive permitia que Escudeiro o seguisse em qualquer parte sem queixar-se. A simples vista era o perfeito prometido, mas esse era o problema, que somente era a simples vista. Sua formalidade, esse distanciamento progressivo, reduzia sua felicidade ao mínimo. Cada vez que dizia: «Tivestes bom dia hoje, lady Anna?» ou: «Gostaria de outra taça de vinho, lady Anna?», provocava uma ferida diminuta em seu coração. Não podia entendê-lo. Segundo ele mesmo admitia, lhe importava. Então por que não se dava conta de que aquilo seria perfeito para ambos?
À medida que passavam os dias custava mais convencer-se de que isso era o que ele queria. Afastava-se dela por muitos momentos. Algo lhe pesava. Estava uma semana mais perto do final da trégua, já que os idos de março se aproximavam com presteza, mas sua crescente ansiedade se deixava ver em todo momento e não parecia que fosse por causa da batalha em floração. Gostaria que confiasse nela, mas rechaçava qualquer intento de diálogo, embora tampouco contavam com muitas oportunidades. Além dos breves intercâmbios das refeições, a única vez que tinha procurado sua companhia fosse poucos dias atrás, quando insistiu em acompanhá-la ao priorado do Ardchattan. Não esperava nenhuma missiva, assim não tinha nada que lhe ocultar. Talvez seu pai não pusesse já objeção alguma a que contasse a Arthur qual era seu papel na transmissão das mensagens. O compromisso parecia eliminar todas as suspeitas que ficassem em relação aos Campbell. À medida que se aproximava a guerra e que se intensificavam as preparações para a batalha, os Campbell passavam mais tempo junto a John de Lorn e de Alan, algo que Anna queria identificar como um sinal do degelo dessa geleira que significavam as velhas rixas.
Suspirou e passeou o olhar ao redor do aposento, enquanto sua criada terminava de lhe arrumar o cabelo. Era o sexto dia de agosto, um dia mais perto do fim da trégua. Ao olhar pela janela de sua câmara na torre viu um birlinn deitando a baía, o maior porto de ancoragem do castelo. Era um acontecimento habitual, algo que não teria chamado sua atenção a não ser pela rapidez a que se deslocava. O reluzente navio de madeira mal tinha chegado à borda quando seus ocupantes saltaram pela amurada e correram para as portas da fortaleza. O coração lhe deu um tombo, consciente de que algo estava passando. Sem incomodar em por o véu, baixou a escada da torre correndo e se apresentou no pátio de armas ao mesmo tempo que seu pai recebia ao contingente de homens do birlinn: os MacNab.
—Que novas trazem? —perguntou seu pai.
O rosto do capitão dos MacNab era desolador.
—O rei Hood, milorde. Está a caminho.
Anna ficou sem fôlego, seu sangue congelado pelo medo. Chegava o momento, o dia que tanto tinha temido e desejado ao mesmo tempo. A batalha que poderia significar o fim da guerra.
O castelo era um tumulto. Os guerreiros, agrupados, pareciam comovidos pela excitação, ansiosos pela oportunidade de destruir ao inimigo. Não obstante, as poucas mulheres que rondavam por ali tinham umas reações muito diferentes: preocupação e medo, exatamente o mesmo que sentia Anna. Seu olhar procurou Arthur de maneira instintiva. Também lhe afetavam as notícias. Observava-a com uma intensidade ardente que não via nele desde o ataque da floresta. Ficaram-se olhando uns instantes até que Arthur voltou o olhar para os MacNab.
O pai de Anna fez passar aos recém chegados ao grande salão. Anna os seguiu, ansiosa por saber tanto como pudesse. Infelizmente, os MacNab não tinham muita mais informação. Um de seus rastreadores lhes alertou de que Bruce tinha saído do castelo do conde de Garioch em Inverurie com tropas de ao menos três mil homens e se dirigia para o oeste. Três mil homens contra os oitocentos de seu pai! Não obstante, não sabiam se tinham intenção de dirigir-se primeiro ao Ross ou ao Lorn.
Bruce não perdia tempo. Estaria preparado para atacar assim que expirasse a trégua. Por Deus bendito, aqueles bárbaros estariam chamando a suas portas para a semana próxima.
Sua mãe e suas irmãs se apressaram a baixar ao salão para ouvir a comoção. Ao encontrar-se com ela depois da multidão, perguntaram-se pelo que acontecia. Anna as pôs em dia rapidamente e viu seu próprio medo refletido na inquietação de seus rostos. Era um dia que todos esperavam, mas então quando começavam a dobrar os sinos.
—Tão logo? —disse sua mãe, presa do medo — Mas se apenas acaba de se recuperar.
—Não lhe acontecerá nada, mãe — repôs Anna, tentando convencer-se também a si mesmo.
Mas não era seu pai o único que preocupava a Anna. O que aconteceria…? Não, não podia pensar nisso. Arthur retornaria. Tudo estariam logo de volta. Não obstante, a incerteza não se desvanecia. A arbitrariedade da guerra, isso era precisamente o que Anna sempre tinha desejado evitar. Por que tinha que apaixonar-se por um cavalheiro?
A reunião durou um momento mais. Ao entrar no salão perdeu a pista de Arthur e seus irmãos, mas assim que o bate-papo derivou para uma missão de reconhecimento, viu-o adiantar-se para a mesa de cavalete do estrado no que seu pai estava sentado junto a alguns de seus homens e o capitão MacNab. Quando Anna adivinhou o que estava a ponto de fazer lhe gelou o coração. Quis chamá-lo, lhe dizer que não o fizesse, mas era consciente de que isso era impossível, e Arthur fez justamente o que ela pensava.
—Eu irei, milorde — disse.
John de Lorn olhou para ele e assentiu, obviamente agradecido de que se apresentasse como voluntário. Alan também se ofereceu a ir, mas seu pai se negou, alegando que o necessitariam no castelo. Ao final, decidiu-se que seu irmão Ewen lideraria o grupo de reconhecimento, que também incluía os irmãos de Arthur.
Não perderam tempo. Em pouco menos de uma hora já estavam reunidos no barmkin para partir. Anna ficou ali de pé junto a sua mãe, sentindo-se como se estivesse dando voltas em um redemoinho sem nada ao que agarrar-se. Observava com o coração em um punho como Arthur se preparava para a marcha. Este acabou de assegurar seus pertences ao cavalo, tomou as rédeas e se situou ao pé do animal, disposto a montar. A Anna deu um tombo o coração. Acaso pretendia partir sem lhe dizer adeus?
Se essa era sua intenção, deveu mudar de idéia. Deu as rédeas a um dos cavalariços e se voltou para dirigir-se para ela. Tinha a mandíbula tão tensa como os ombros, como se temesse enfrentar-se com algo desagradável. «Eu», pensou Anna, sentindo uma pontada no peito.
—Lady Anna — disse Arthur com uma leve inclinação da cabeça.
A mãe e as irmãs deram a volta sem muita sutileza protegendo-os quanto podiam do resto da multidão para lhes dar um pouco de privacidade. Mas Anna seguia sendo plenamente consciente de que não estavam sozinhos.
—Têm que partir?
Odiou a si mesma por perguntar, mas não pôde evitá-lo. Sabia que esse era seu trabalho, mas não queria que partisse. Sempre seria assim?
—Sim.
Houve uma pausa tão larga que pareceu definitiva.
—Quanto tempo estará fora?
Seus olhos brilharam de um modo estranho, mas o brilho desapareceu antes que Anna pudesse reconhecer sua origem.
—Depende do rápido que se aproxime o exército. Um par de dias, talvez mais.
Ela ficou olhando seu bonito rosto, tentando memorizar as duras linhas de seus traços, as cicatrizes, o estranho dourado ambarino de seus olhos.
—Tomará cuidado?
Era uma pergunta estúpida, mas tinha que fazer de todas formas. Um simulacro de sorriso apareceu nas comissuras da boca de Arthur.
—Sim.
Manteve-lhe o olhar durante um instante mais, como se também ele tentasse retê-la na memória. Ela nunca tinha visto tal expressão de desconsolo em seu rosto. Um calafrio de pavor percorreu sua nuca. «É a guerra — disse — Está centrado na batalha que tem diante de si.»
Arthur tomou sua mão e a levou aos lábios fazendo que a estampagem cálida de seus lábios irradiasse por toda sua pele.
—Adeus, lady Anna.
Algo no tom de sua voz lhe rasgou o coração. Quando ele se voltou para partir, Anna ficou com vontade desesperada para voltar a chamá-lo. «O tipo de homem que está sempre olhando para a porta…» Não. Convenceu a si mesma de que se comportava como uma parva. Não a estava abandonando. Simplesmente estaria fora uns dias. Mas por que lhe parecia que aquela despedida era para sempre?
Então, como se não pudesse conter-se, Arthur deu meia volta, agarrou-a pelo queixo e baixou a cabeça para beijá-la. Seus lábios acariciaram os de Anna em um suave e terno beijo que fez vibrar seu coração. Aquele beijo tinha sabor de nostalgia. A dor. E a arrependimento. Mas sobre todas as coisas, tinha sabor de despedida. Anna queria prolongá-lo, queria que durasse mais, mas antes que lhe desse tempo a reagir, o beijo tinha acabado. Arthur lhe soltou o queixo, manteve o olhar por um segundo agonizante e partiu. Não voltou a olhar atrás. Nenhuma só vez. Ela ficou olhando sua partida, aniquilada, sem saber muito bem o que tinha ocorrido. Permaneceu tocando os lábios em uma tentativa de apreender o calor e seu sabor por tanto tempo como fosse possível. Mas antes que o último dos homens saísse pelas portas do castelo esse calor já era história.
Arthur procurava uma saída e ao fim a tinha encontrado. A viagem de exploração em volta do Este lhe dava a oportunidade de fazer algo que meses atrás parecia impossível: retirar-se da missão. Tinha que fazer algo. Não podia ficar ali e deixar que a situação piorasse. Os dias seguintes a seu compromisso tinham sido insuportáveis. Fingir acabaria com ele. Anna estava tão feliz, tão encantada de casar-se com o homem que a trairia… Cada sorriso indeciso, cada olhar em busca de um consolo que ele não podia lhe oferecer, era como uma gota de ácido que remoia sua consciência. Não era capaz de fazer isso. Embora significasse sacrificar sua missão. O irônico era que não podia ter escolhido maneira mais efetiva de infiltrar-se nos MacDougall que um compromisso com a filha do senhor das terras. O compromisso, unido ao feito de salvar a vida de Alan, deu-lhe acesso ao centro nevrálgico do poder: o conselho de nobres. Dizia a si mesmo que não sacrificava sua missão. Fazia suficiente identificando às mulheres como as transmissoras de mensagens, passando informação sobre a preparação e efetivos do MacDougall e entregando um mapa do terreno, assim como evitando uma aliança com o Ross, embora isso não ocorresse exatamente da maneira em que o tinha planejado. Estavam nas vésperas da batalha. O rei Robert entenderia.
Tinham passado três dias de sua desastrosa partida e caía a madrugada. Nunca acreditou que lhe custaria tanto despedir-se dela. Mas partir de seu lado, sabendo que possivelmente não a veria de novo, fez-lhe perder toda determinação. Não deveria tê-la beijado, mas ao olhar seus olhos e ver esse rosto de medo e preocupação, não pôde resistir. Era consciente de que jamais voltaria a ter essa sensação de conexão absoluta e precisava desfrutar dela uma vez mais.
Arthur olhou a retaguarda para assegurar-se de que ninguém o tinha seguido e atou o cavalo a uma árvore. Encontrava-se a menos de dois quilômetros do lugar onde os homens de Bruce tinham acampado a noite anterior. Faria o resto do trajeto a pé. Era provável que a essa hora da madrugada os sentinelas disparassem contra tudo que se aproximasse do acampamento sem fazer perguntas e o cavalo o delataria. Seus sentidos se aguçavam à medida que se aproximava do acampamento do rei, antecipando-se a qualquer sinal que delatasse a presença da Guarda que o circundava. Arriscava-se muito chegando sem prévio aviso, mas não havia alternativa. Não tinha tido tempo de combinar um encontro ou enviar uma mensagem a guarda, e a partida de reconhecimento dos MacDougall se preparava para retornar ao castelo de Dunstaffnage ao dia seguinte com o relatório. Ofereceu-se voluntário para fazer patrulha de noite, consciente de que essa seria sua única oportunidade. Sabia que Chefe teria a um dos membros dos Guardiões das Highlands fazendo turno de vigilância, como cada noite, assim tentaria contatar primeiro com algum de seus companheiros.
De repente sentiu um comichão na nuca. Deteve-se o notar a estranha mudança de ar que percebia cada vez que alguém se aproximava. Escondeu-se entre a escuridão da noite e esperou, sabendo de que antes de ver quem se aproximasse o ouviria chegar. Mas passados uns minutos percebeu de que algo não funcionava. Ou o homem se deslocou ou suas habilidades voltavam a falhar.
De novo.
Mas quando conseguiu ver a figura que emergia depois de uma árvore a pouco mais de cinco metros de distância percebeu de que havia uma terceira resposta: o sigilo daquele homem igualava suas capacidades perceptivas. «Maldição.» Não era isso o que necessitava. Emitiu o uivo que iria identificá-lo como presença amistosa. Não obstante, suspeitava que o homem que se aproximava podia ter uma opinião diferente a respeito.
MacRuairi ficou imóvel e apesar da contra-senha apontou com seu arco na direção da que provinha sua voz.
—Quem vem?
—Guardião - respondeu Arthur levantando o visor de aço de seu elmo e saindo de trás da árvore que o resguardava.
Inclusive na escuridão, apreciou o brilho diabólico nos olhos entreabertos do MacRuairi, que deslocou o braço para a esquerda para lhe apontar entre as sobrancelhas. MacRuairi possuía uma habilidade extraordinária para ver na escuridão, algo fatal de lembrar-se justo nesse momento.
—Ides fazer uso da arma? —disse Arthur.
—Ainda não decidi. Uma morte não me parece muito comparada com nove. Poderia alegar que pensei que era um traidor, o qual não estaria muito longe da verdade.
Arthur engoliu a grosseira réplica que foi a seus lábios. Saber que merecia o menosprezo daquele homem, mas não facilitava o fato de ouvi-lo. Ignorou a flecha que lhe apontava e seguiu adiante.
—Acha que não me arrependo do que aconteceu?
—Arrepende-te? Pois te asseguro que não saberia o que te dizer. Parecia desfrutar lutando junto a Alan MacDougall, por não mencionar que salvou sua puta vida.
Apenas os separavam alguns metros, mas MacRuairi não teria errado o tiro nem a centenas de metros de distância.
—Responderei ante o rei e não ante você, Víbora. Tenho que falar com ele.
—Está dormindo.
Arthur apertou os dentes e os punhos. Brigar com o MacRuairi não solucionaria nada, mas não tinha tempo para tolices.
—Pois então terá que despertá-lo. E também a meu irmão.
Ao final, MacRuairi optou por baixar o arco.
—Espero por seu bem que tragas boas notícias - disse, fulminando-o com o olhar — E será melhor que tudo aquilo valha a pena.
Tinha valido a pena? Arthur não teve tempo de pensar nesses termos naquele momento. Não teve tempo de fazer esse tipo de análise. Estava muito ocupado em defender-se e proteger a Anna.
Menos de quinze minutos depois o fizeram passar à tenda do rei. Se Bruce estava dormindo, não havia nada em seu rosto que indicasse que acabava de despertar. Levava seus escuros cabelos penteados, tinha os olhos tão limpos e chicoteados como sempre, além de ir vestido com as perneiras e uma sobreveste negra de finos bordados.
Estava sentado sobre uma arca. A ausência de mobiliário concordava com a ligeireza e a rapidez com as que se deslocava o exército. Ao rei Eduardo nem sequer teria passado pela cabeça fazer campanha sem carregar em seus carros seu equipamento doméstico e sua baixela. Mas detrás de viver como um foragido durante um ano aquartelado entre o povo, Robert Bruce havia se acostumado a contentar-se com muito menos.
A sua esquerda tinha ao Neil, ao qual se via um tanto mais desalinhado, e à direita ao Tor MacLeod, líder dos Guardiões das Highlands. Tanto a expressão deste como a do próprio rei eram desalentadoras. A pergunta que Arthur adivinhou no olhar de seu irmão cortava como uma faca. Seria possível que questionasse sua lealdade?
—Que diabos ocorreu, Guardião? —perguntou o rei.
Arthur narrou da maneira mais sucinta possível os eventos que levaram a sua inesperada viagem ao norte, o compromisso de bodas previsto entre a filha de Lorn e sir Hugh Ross, as esperanças de unir forças de Lorn e a intenção de Arthur de evitar que a aliança se levasse a cabo.
—Conseguiram-no? —perguntou Bruce.
Arthur manteve uma expressão neutra.
—Sim, majestade.
O rei assentiu, agradado. Nenhum dos pressente pareceu perguntar a respeito de como o tinha conseguido. Arthur continuou explicando como tinha obtido que a patrulha se desviasse do grupo dos MacDougall em seu caminho ao norte e afirmou que se viu obrigado a defender-se para proteger sua identidade.
—Assim foi você? —disse MacLeod — Nossos homens do castelo do Urquhart estavam muito zangados porque um só homem conseguisse escapar deles.
—Não de tudo. Oxalá tivesse podido, mas me encurralaram em um escarpado. Não podia lhes contar quem era.
Ninguém disse uma palavra. Todos sabiam tão bem como ele que essas situações eram inevitáveis para preservar sua identidade, mas a nenhum deles gostava.
Depois Arthur passou a explicar a forma em que MacRuairi e seus homens o tinham surpreendido quando voltavam para o Dunstaffnage.
Neil arqueou as sobrancelhas.
—Não os ouviu chegar?
Arthur negou com a cabeça sem dar mais explicações. Referiu a princípio, simplesmente reagiu ao ataque e que depois, ao se dar conta de quem eram, passou a manobras defensivas. Quando chegou à parte em que salvou a vida do Alan MacDougall não ofereceu mais desculpa que a verdade. Somente tentava deter o golpe, matar ao guerreiro fora um acidente.
Neil fez a pergunta que sem dúvida rondava as cabeças de todos eles.
—Mas por que teria que lhe salvar a vida? Proteger ao herdeiro de Lorn não era parte de sua missão. Assassinar a ele seria quase tão bom como assassinar ao próprio Lorn.
Arthur olhou a seu irmão nos olhos sem fugir a verdade.
—Não tentava protegê-lo.
—É pela moça —disse MacLeod, juntando todas as peças — Sente algo por ela.
Arthur se voltou para seu capitão. Não o negou.
—Sim.
—A filha de Lorn! —exclamou Neil sem poder ocultar sua indignação — Maldição, irmão. No que estava pensando?
Arthur não tinha uma resposta para isso. Não havia.
—O que estais dizendo, Guardião? —disse o rei com olhos negros tão duros como o ébano — Uma moça o tem feito esquecer em que lado está?
—Minha lealdade está contigo, meu senhor - disse Arthur com firmeza.
Mas o dardo envenenado do rei ardia.
Neil ficou olhando-o fixamente.
—Mudaste de ideia respeito ao Lorn? Esquece-se do que fez a nosso pai?
Arthur endureceu a expressão de seu rosto.
—É obvio que não. Mas minha vontade de ver a destruição do John de Lorn não se faz extensiva a sua filha. Por isso estou aqui. Preciso sair do castelo de Dunstaffnage.
A sala ficou em um silêncio sepulcral. Arthur notava que o olhar fixo de seu irmão queimava, mas não se atrevia a olhar em sua direção. Tinha falhado. Tinha falhado ao homem que era como um pai para ele. Não queria ver a decepção em seu rosto.
—Está em uma situação comprometida? —perguntou o rei — Há perigo de que o descubram?
Arthur negou com a cabeça.
—A moça sabe que oculto algo, mas não acredito que suspeite de nada.
—Então é a moça a causa de que desejes abandonar a missão antes de cumpri-la?
—A coisa se complicou.
Consciente de quão insuficiente parecia isso, inclusive para si mesmo, explicou que Lorn lhe tinha interrogado sobre o ataque e acrescentou que ao acreditar que o ancião suspeitava algo, viu-se obrigado a aceitar o compromisso.
—Mas isso são notícias fantásticas - disse o rei, contente pela primeira vez desde que Arthur entrasse na tenda — chegastes mais perto de Lorn do que jamais acreditei possível. Sinto muito que a moça esteja implicada, mas não sofrerá verdadeiro dano. O coração de uma jovem sara com facilidade.
Para falar a verdade, o rei, conhecido por seu êxito com as moças, tinha muita mais experiência que ele, mas nesse caso Arthur não acreditava que acertasse. Anna amava com muita bravura. Estava muito cega pelo amor.
—Não posso permitir que abandone —finalizou o rei — Ainda não. Não tendo a batalha tão perto. Necessito-te dentro para que me digas o que é o que se propõem. A informação que nos transmite é muito valiosa. A vitória está muito perto para deixá-la escapar no último momento. John de Lorn é um demônio com o coração podre, mas não por isso subestimo suas táticas de guerra nem sua capacidade para a surpresa.
Arthur sabia que o rei não atenderia a razões. Robert Bruce estava desejando desforrar-se. Lorn o tinha vencido antes e essa vez não permitiria que nada se interpusesse em seu caminho. O coração de uma mulher era um pequeno preço a pagar.
—Atacaremos o castelo na madrugada do dia dezesseis —disse MacLeod, dando a impressão de advertir sua frustração — Só serão alguns dias mais.
Mas ele não conhecia Anna MacDougall. Arthur teria preferido enfrentar-se às endiabradas máquinas de guerra do primeiro rei Eduardo que tentar resistir diante de Anna durante «somente uns dias mais».
C O N T I N U A
Capítulo 11
Anna jogou o capuz para trás ao mesmo tempo que entrava na câmara de seu pai. Soltou a cesta na mesa e se sentou juntou a este e sua mãe ao calor das brasas da lareira. Inclusive no verão, os muros de pedra do castelo faziam dele um lugar frio e com correntes de ar.
Sua mãe levantou a cabeça do novo estandarte de seda no qual trabalhava e a olhou, sentida saudades.
—De onde vem, Annie querida? É tarde.
—Fui levar bolos aos monges do priorado —respondeu Anna inclinando-se para beijar sua mãe.
Encontrou-se com o olhar de seu pai. A expressão deste se escureceu ao ver respondida sua tácita pergunta com uma leve negação de cabeça. Tossiu antes que sua esposa pudesse fazer mais objeções. Embora Anna soubesse que o fazia e que propósito, aquele áspero e úmido som a preocupava.
—Não me falou de uma nova infusão de ervas do pai Gilbert que ajudaria a aliviar o encharcamento de meus pulmões?
Sua mãe se sobressaltou, afastou seus bordados e ficou em pé de repente.
—Tinha esquecido. Direi ao Cook que o prepare agora mesmo.
Assim que a porta se fechou atrás dela seu pai disse:
—O rei Eduardo não respondeu?
Anna negou com a cabeça.
—Já deveríamos ter notícias dele.
Seu pai se levantou e começou a perambular diante da chaminé, enfurecendo-se mais a cada passo que dava.
—Esses asquerosos rufiões de Bruce devem tê-lo interceptado. Parece que a metade de nossas mensagens não chega a seu destino, nem com a ajuda das mulheres — disse apertando a mandíbula — Mas dado que não ouvimos nada sobre o destacamento de soldados, acredito que podemos supor que não enviarão a ninguém. O jovem Eduardo está muito ocupado tentando salvar sua própria guarida para preocupar-se com a nossa.
Anna não podia acreditar que depois de tudo o que tinha feito seu pai pelo primeiro rei Eduardo, o novo rei o abandonaria de tal modo.
«Que se deita com crianças…»
Veio a sua mente essa velha história, mas Anna a tirou da cabeça porque em certo sentido lhe parecia desleal. Seu pai não teve outra opção. O primeiro rei Eduardo era muito poderoso. Depois da derrota de Wallace em Falkirk, ou se fazia aliado do rei inglês ou lhe confiscavam as terras. Quando Bruce usurpou a coroa, a aliança se fez mais necessária ainda. Se Bruce e os MacDonald estavam em um lado, os MacDougall não podiam mais que apoiar ao outro: Inglaterra.
—Não deveríamos tentar enviar outra missiva?
—Não temos tempo — espetou seu pai, claramente molesto pelo que percebia como uma pergunta estúpida — Os ingleses se movem com lentidão. Demorariam semanas em chegar tão ao norte carregando toda essa baixela e esses móveis para estar cômodos. Inclusive no caso de que Eduardo mudasse de opinião, necessitaria dias para reunir aos homens. O rei Hood estaria aqui junto a sua tropa de assassinos salteadores de caminhos antes que aos ingleses desse tempo de encher seus carros de ninharias.
Anna tentava não tomar como algo pessoal a cólera do pai. Tinha todo o direito a perder os nervos. O inimigo estava virtualmente em cima e ninguém vinha em sua ajuda. O conde de Ross, igual ao rei Eduardo, ainda não tinha respondido a sua petição de unir forças. Ia ficando patentemente claro que estariam sozinhos ante Bruce: oitocentos homens contra os três mil com que contava o usurpador conforme o informe.
O medo prendia a garganta. Os MacDougall eram ferozes combatentes e Lorn um dos melhores generais de Escócia na batalha, mas poderiam superar tal desvantagem? Seu pai estivera a ponto de derrotar ao Bruce anteriormente, mas então o rei foragido teve que fugir com umas poucas centenas de homens ante suas mais numerosas forças. Nessa ocasião seriam os MacDougall quem estaria em clara inferioridade numérica. «Pouco importa», pensou Anna com integridade. Seu pai ganharia de todos os modos. Somente um MacDougall valia por cinco rebeldes. Mesmo assim, por mais vezes que se dissesse que John de Lorn superaria inclusive a pior das apostas, seu leal coração não podia negar que existia a mais mínima, a ínfima possibilidade de que perdessem.
«Perder.»
Um calafrio lhe percorreu o corpo. Somente pensar nessa palavra lhe parecia a mais vil das blasfêmias. Não podia permitir que isso ocorresse. As conseqüências eram muito execráveis para as considerar. Mas tudo aquilo que apreciava, todas suas esperanças de um futuro feliz, parecia pender sobre a ponta de um alfinete, ou, neste caso, de uma espada. O mais leve empurrãozinho faria que tudo se precipitasse no vazio. Os grossos muros do castelo de repente lhe pareciam finas vidraças, dispostas a romper-se em mil pedaços. Sua situação era complicada, inclusive até desesperada. Contudo, havia um modo de conseguir atenuá-la um pouco.
O tempo pareceu deter-se. O pavor se apoderava de seu estômago em um tenso nó e o formigamento que isso provocava aumentava à medida que Anna via do que seria obrigada a fazer. A solução espreitava no mais profundo de sua mente desde fazia meses, mas não queria considerá-la.
Anna se aferrou às abas de sua capa como se fossem uma corda a qual pudesse agarrar-se.
—E o que passa com Ross? —perguntou em voz baixa — Ainda fica tempo para que se apresente.
Seu pai a olhou com certo desdém.
—Sim, mas como digo já, não o fará.
Era reprovação o que advertia em seu olhar? Acaso se arrependia de ter dado opção? Anna aspirou profunda e entrecortadamente em uma tentativa de controlar o ritmo frenético de seu pulso. Sua gelada pele se cobriu com uma fina pátina de suor. O peito lhe oprimia tanto que mal podia respirar. Todo seu ser se rebelava contra o que estava a ponto de sugerir. Mas não ficava alternativa. Um marido era um pequeno preço a pagar em comparação com a sobrevivência de seu clã. casaria-se até com o mesmo diabo se fosse necessário.
—E se lhe desse um motivo para pensar melhor? —Seu pai a olhou nos olhos. Anna soube que tinha adivinhado o que sugeria pelo ar de reflexão que adotou seu olhar, embora talvez isso fosse o que ele esperava dela de um princípio — O que passaria se fizesse um rogo pessoal ao conde?
Teve que deter suas palavras. Seus dedos agarravam a lã da capa com tanta força que cortava a circulação. O coração pulsava a um ritmo frenético e martelava em suas têmporas. O estômago se decompôs. «Tudo irá bem. Eu me encarregarei de que funcione. Não é um homem tão temível.» Sir Arthur era alto, musculoso, de uma beleza sombria e, não obstante, nunca ficava nervosa em sua presença. Talvez tivesse superado seu medo aos guerreiros.
«Sir Arthur.» O coração deu um tombo. A imagem do cavalheiro apareceu ante seus olhos, mas a afastou de sua mente. Não significava nada para ela. Pouco importava que seu coração tivesse querido voar para ele momentaneamente. Embora as coisas fossem diferentes, ele já tinha expressado com uma claridade dolorosa o que sentia por ela: nada.
Mas teria que passar toda a vida tentando esquecer aquele beijo.
Seu pai esperava que continuasse, mas Anna não era capaz de encontrar as palavras.
—O que aconteceria…? —Anna teve que se deter para clarear a garganta — Se a oferta de sir Hugh segue em pé, estou disposta a aceitar sua proposta de matrimônio. Em muda, talvez o conde veja o benefício de unir nossas forças.
Seu pai não disse nada durante um momento, mas sim ficou estudando seu rosto com uma intensidade tal que a Anna pareceu estar retorcendo-se em seu interior.
—Crê que seguirá te querendo? Não teve nenhuma graça que o rechaçasse.
Ardiam-lhe as bochechas de vergonha de não ter parado pra pensar nessa possibilidade. Seu pai tinha razão. O jovem cavalheiro, ferido em seu nobre orgulho pelo rechaço, ficou uma fúria.
—Não sei, mas merece a pena tentar.
Já tinham machucado seu orgulho há pouco. O que importava um pouco mais ou menos?
—A sua mãe não gostará da idéia — disse John de Lorn olhando para a porta — Os caminhos podem ser muito perigosos com Bruce e seus homens por aí soltos.
Nisso tinha pensado Anna.
—Não se preocupará se Alan me acompanha. Levaremos uma boa escolta.
Seu pai assentiu enquanto acariciava o queixo.
—Sim. Seu irmão te manterá a salvo — disse com um sorriso, enquanto ela tentava mascarar seu desengano. Havia uma parte de Anna que esperava que seu pai se negasse. Este se levantou e a beijou no cocuruto — É uma boa garota, Annie querida.
Em geral Anna transbordava de alegria quando seu pai lhe dirigia um elogio, mas nessa ocasião teve vontade de chorar. Sua felicidade era um pequeno preço a pagar, mas, mesmo assim, era um preço a pagar. Seu pai a beliscou no queixo para que o olhasse os olhos. Anna piscou diante da cálida e úmida bruma do lar.
—Sabe que não lhe pediria isso se tivesse uma alternativa.
Uma solitária lágrima escorregou por sua bochecha. Tremia-lhe a boca, mas se esforçou por sorrir.
—Sei.
Naquele momento supunha que era sua única esperança. Não importava quão mau parecesse. Faria tudo o que estivesse em sua mão para assegurar a aliança.
De todos os modos tampouco havia ninguém que se interessasse por ela.
Entretanto, quando Anna abandonou os aposentos de seu pai, todas essas lágrimas que estivera agüentando saíram precipitadas em uma corrente de esperança extinta, uma esperança que nem sequer era consciente de estar albergando.
A volta de Arthur ao castelo, sozinho, não foi tão difícil de explicar como imaginava. Lorn estava ansioso por ouvir um relatório do que seu filho tinha descoberto a respeito de seus inimigos do oeste. A luta pela supremacia entre os três principais ramos dos descendentes de Somerled, os MacDonald, MacDougall e MacRuairi, levava anos dominando a política das Highlands Ocidentais. Quando morreu o último dos chefes do clã MacRuairi, deixando a sua filha Christina das Ilhas como única herdeira ao trono, estes perderam poder e o terna se reduziu a dois. Lachlan e seus irmãos eram todos filhos bastardos, um título que em seu caso era completamente castigo.
A informação de Ewen oferecida por Arthur a respeito da mobilização de tropas dos MacDonald ao longo da costa ocidental não era nada surpreendente, mas mesmo assim provocou um substancial arrebatamento de fúria no Lorn, e também inquietação, apesar de que procurasse ocultá-lo. Embora talvez não tanta como devesse, o qual o fazia perguntar-se o que teria planejado aquele conspirador briguento. E agora, graças a seu descobrimento no priorado, sabia perfeitamente como averiguar.
Mas como sua volta ao castelo foi em uma hora tardia, sua reunião com lady Anna teria que esperar até a manhã seguinte. dizia a si mesmo que estava inquieto simplesmente porque teria que encontrar um motivo para algo que seria como uma mudança de parecer repentino: em lugar de evitá-la, inventaria desculpas para estar com ela. Mas tampouco queria dar falsas esperanças à moça. Apesar de ter cometido o engano de beijá-la, e Deus, um enorme engano tinha sido aquele, uma relação entre eles era algo impossível. Sabia que não seria fácil. Certamente a moça teria passado toda a semana pensando naquele beijo. Deus sabia que ele mesmo não tinha sido capaz de pensar em outra coisa.
Embora já tinha visto ela cruzando o jardim de Ardchattan, quando a viu entrar no grande salão na manhã seguinte seus sentidos se avivaram como se fosse a primeira vez. Tudo parecia estar mais vivo, mais intenso. Jamais antes o tinha afetado tanto a presença de alguém como fazia nesse momento lady Anna MacDougall. encantou-se dela, de cada um dos detalhes, de cada matiz, das mechas de cabelo dourado que escapavam de seu véu azul à altura da fronte e as têmporas até os finos bordados de seda do cotehardy que rodeava sua figura em todos os lugares apropriados.
«Não…»
Deixou cair o olhar sobre seus seios. Ficou com a boca seca. Via, embora fossem imaginações dele, o mal esboçado relevo de seus mamilos perolando essa parte do tecido. Assaltaram-lhe as lembranças e uma onda de calor saiu de sua virilha. Pensar no tato daquela exuberante suavidade fez que endurecesse seu pau. Que impressionante tinha sido embalar esse seio, sentir o peso dessas carnes perfeitamente arredondadas sobre a palma de sua mão ao mesmo tempo que seu polegar acariciava o teso broto de seu mamilo. Amaldiçoou para si, subitamente incomodado por aquelas lembranças, muito viscerais, em conjunto.
Estava quente. Excitado. Faminto.
Como demônios ia olhar a moça sem lembrar-se das sensações que procurava ter seu corpo pego ao dela? Como poderia ver o sensual arco rosado de sua boca sem recordar quão doce sabor, a suavidade daqueles lábios sob os seus, e que o erotismo de suas línguas entrelaçadas o tinha feito entrar em um torvelinho de desejo mais forte que qualquer outra coisa que houvesse sentido alguma vez? Jamais poderia olhar essa pálida pele suave como a de um bebê, que era como veludo ao tato, sem recordar como a havia tocado.
Deus, quão único queria era atirá-la na cama, enrolar suas pernas a sua cintura e afundar até esquecer-se de tudo. Jesus, tinha que deixar de pensar nisso. Tinha que parar de torturar-se com coisas impossíveis. Sempre tinha sido capaz de reprimir seus impulsos, mas com a Anna era diferente.
Porque ela era diferente. E não fazia nenhuma graça reconhecê-lo.
Arthur se dava conta de como o observava seu irmão, mas não podia afastar o olhar. Seu coração pulsava mais depressa a cada passo que ela dava e cada um de seus nervos ficava em tensão enquanto se preparava para o momento em que ela se inteirasse de sua presença. Mas assim que a teve mais perto percebeu uma estranha pontada. Algo não ia bem.
Não sorria. Seus olhos não brilhavam com alegria e travessura. E sua risada, esse leve e efervescente som ao que poderia ouvir durante horas, permanecia em completo silêncio. acostumou-se tanto a seu perpétuo bom humor, ao despreocupado encanto com o que parecia iluminar os aposentos, que o vazio deixado por sua ausência obscurecia o grande salão.
Maldição. teria feito mais dano de que pensava? A culpa o atormentava.
Por um instante pensou que passaria junto a ele, mas então notou o peso de seu olhar. ficaram contemplando o um ao outro. A quietude era absoluta.
Esperou ver sua reação. Esperava presenciar como a cor subia por suas bochechas, como lhe cortava a respiração e se acelerava o pulso em seu pescoço. Esperava que se delatasse. Mas em vez disso ficou em guarda.
Lady Anna levava todos seus pensamentos e sentimentos escritos no rosto. Essa era uma das coisas que Arthur encontrava tão cativantes e irresistíveis dela. A inocência e a emoção infantil que mostrava, sua preciosa vulnerabilidade. Mas essa expressão, antes sempre acessível, permanecia oculta.
Percebeu a frieza de seu olhar por um breve instante dantes que afastasse e passasse por ele. Como se tivesse deixado de existir. Como se ela jamais se derretera em seus braços. Como se o beijo no que não podia deixar de pensar jamais existira para ela. Como se não tivesse estado a ponto de sucumbir sob seu corpo.
Sua indiferença lhe corroía o peito como se de um ácido se tratasse. Queimava. Doía. O fazia perder o controle por completo, sentir a necessidade primitiva de cometer alguma loucura, como empurrá-la contra a parede e beijá-la até que se rendesse a seus pés uma vez mais.
Mas ele era um homem que mantinha o controle. refreava-se. Era diferente. Não tinha necessidades de tal tipo. E entretanto, com um só olhar de frieza, Anna MacDougall conseguia tirar dele os impulsos bárbaros que levava no sangue.
Ao que parecia tinha conseguido seu objetivo. Seu cruel rechaço sortia efeito. Não deixava de ser irônico que se mostrasse indiferente justo quando ele desejava que não fosse assim. Ou pode ser que nunca tivesse estado interessada nele. Talvez o único que queria fosse vigiá-lo.
azedou a expressão e se o flexionaram os músculos, mais molesto por esse pensamento do que gostaria de admitir. Por desgraça, seu irmão se mostrava perceptivo. Dugald simulou um calafrio.
—Vá, parece que faz um pouco de frio por aqui. Acredito que a dama já esqueceu o capricho, irmãozinho. Com o tanto que tentou, pensei que estaria mais contente — disse, fazendo uma pausa para negar com a cabeça — Será possível que ao fim te tenha feito cair uma mulher? Acreditava que isso não aconteceria nunca.
Arthur se recostou sobre a parede de pedra que tinha trás de si, aparentando uma indiferença que não sentia. Era certo que gostava dela, mas antes morto que deixar que Dugald conhecesse sua debilidade.
—Não é mais que uma moça apetecível.
—Mais apetecível ainda porque não pode tê-la.
Arthur encolheu os ombros e deu um longo gole a seu cuirm até esvaziar a taça.
—O que eu quero dela não é algo que possa me dar uma inocente jovem da nobreza.
Dugald riu e lhe deu uma palmada no braço.
—Compartilho sua dor, irmãozinho. Eu mesmo estou sentindo um pouco parecido. Sei de uma moça com uma boca talentosa que faria bastante por aliviá-lo. Mandarei a ti.
Arthur desviou o olhar para o tablado em que se acabava de sentar lady Anna. Tentava pelo menos. Tentava. Mas não lhe interessavam as mulheres de seu irmão. Franziu o cenho em um meia sorriso.
—Você compartilhando, irmão? Não parece você mesmo. Mas neste caso não será necessário. Não acredito que tenha problemas para encontrar alívio.
Se quisesse, sabia de algumas mulheres entre as que podia escolher. O problema era que não queria. Ao menos, não com elas.
Dugald encolheu os ombros.
—Como deseje — disse aproximando-se dele com um amplo sorriso — Mas não sabe o que te perde. Essa moça poderia deixar seca a uma vaca com a boca que tem e faz umas coisas com a língua que…
A voz do Dugald se confundiu com o ruído de fundo. As perversas habilidades que pudesse representar a fulana do Dugald não lhe interessavam. Arthur voltou o olhar para o estrado. Ela era quem o interessava, maldita seja. Embora Deus sabia que não deveria ser assim. Mas parecia que Arthur fosse invisível, porque não olhou uma só vez em sua direção. Sua irritação crescia a cada minuto. Aferrava com força a taça de estanho e a enchia uma e outra vez à medida que o ágape avançava. Seu plano para aproximar-se dela seria mais complicado do que pensava, mas acreditava que se livraria dele tão facilmente estava muito equivocada.
«Retornou.»
Anna se rebelou ante o inoportuno desejo que arremetia contra seu peito e se obrigou a não olhar em sua direção. A não pensar nele. Sir Arthur não era para ela. Jamais foi. Seu destino estava concretizado. Já tinha tomado sua decisão. Seu pai e seu clã contavam com ela. Era muito tarde para arrepender-se ou pensar melhor, por mais que vê-lo devolvesse todas essas ingratas emoções de repente em uma pancada.
Como não se fixou nele a princípio, quando nesse momento já não podia ver nenhuma outra pessoa? Aquele orgulhoso jovem cavalheiro de escura beleza era o homem mais bonito de toda a sala. E sem dúvida também o mais forte. Suas bochechas se acaloraram. somente olhar sua figura alta e de largos ombros voltavam as lembranças de seu torso nu. Cada um de seus esculturais músculos. Cada uma de suas rígidas linhas. Cada um dos gramas de sua musculosa carne.
Tentava ignorá-lo, mas sentia o peso de seu olhar enquanto comia. Ou tentava comer, já que tinha a boca completamente seca e a comida lhe parecia insípida e terrosa. Olhava-a com tal intensidade que dava vontade de sair correndo. Algo que fez assim que teve oportunidade.
Anna se apressou a sair do grande salão com mais sentimentos dos que podia albergar, correu pela escadas para sua câmara da torre e ficou a pinçar no armário em busca de sua capa de montaria. Precisava sair dali.
Um dia. Somente tinha que o evitar durante um dia e depois disso partiria. Tinham previsto partir para o castelo de Auldearn, a fortaleza real do conde de Ross, na manhã seguinte. por que não podia permanecer fosse do castelo até que ela partisse? Assim tudo teria sido muito mais fácil.
Em seu desespero por escapar, revolvia os montes de objetos de lã e de seda que penduravam de seu armário sem importar a desordem que criava. Onde estaria?
Estava a ponto de enfrentar o frio matinal e sair de todos os modos quando percebeu de que provavelmente sua criada já teria posto a capa em sua arca para a viagem. Abriu a tampa de madeira e deixou escapar um suspiro de alívio ao ver que a peça de lã axadrezado de cores cinza, azul e verde estava dobrada em cima de tudo. A jogou rapidamente sobre os ombros, agarrou em braços Escudeiro, temendo que o cachorrinho saísse correndo em busca do cavalheiro pródigo, e voltou a descer a escada como um torvelinho. antes de sair ao barmkin olhou pela fresta da porta para assegurar-se de que tinha via livre. Não queria correr nenhum risco de topar com ele. Sabia que aquilo era ridículo. Sir Arthur fazia todo o possível para evitá-la. Mas havia algo na forma em que a tinha olhado durante o café da manhã que chamava à cautela.
Cruzou o pátio e se dirigiu para os estábulos. Uma vez na segurança de seu interior soltou ao revoltoso cão no chão e fez que o cavalariço chamasse Robby enquanto ela preparava os arreios de seu cavalo.
Não tinha nenhum destino em mente, com tal de sair do castelo era suficiente. A impressionante fortificação de pedra e os grandiosos muros do barmkin pareciam muito pequenos de repente. Acabada sua tarefa, dispôs-se a recolher ao Escudeiro do chão quando a porta se abriu e o cachorrinho prorrompeu em uivos e ganidos ao mesmo tempo que saltava de seus braços disparado como uma flecha.
—Merda! —saiu de seus lábios antes que desse tempo a refrear-se.
Não precisava olhar para saber quem era. Se a reação de Escudeiro não dizia, assim fazia seu próprio corpo. O ar mudou. A pele lhe ardia. Seus sentidos despertaram. O aposento esquentou imediatamente e o leve aroma de fragrância masculina se filtrava através dos penetrantes e terrestres aromas do estábulo. Fechou os olhos, rezou uma prece que os céus lhe dessem força e ficou em pé lentamente para enfrentar a ele.
Seus olhares se encontraram. A repentina excitação que a embargou foi como um látego que a chamasse o ordem. Aquela era uma impressão que parecia não diminuir nunca. cortou a respiração, ao mesmo tempo que essa aguda e repentina opressão voltava a lhe envolver o peito e espremê-la. Um irritante acesso de nostalgia se formava em seu interior, mas esmagou com rapidez, sem compaixão. Ele não significava nada para ela. Já não. Não depois do ocorrido nos barracões. A tinha ensinado quão errado era para ela. E mais valia que acreditasse.
Controlou suas feições para fazer delas uma máscara impassível, tirando provisão de cada gota de sangue real que corria por suas veias. Era descendente de reis, tataraneta legítima, seis gerações depois, do poderoso Somerled. Saudou-o com uma ligeira inclinação da cabeça e disse friamente: —Sir Arthur, vejo que retornastes.
Sua tentativa de mostrar-se digna se viu em certo modo arruinado pela tremor de sua voz. Uma coisa era fingir que não lhe afetava sua presença em um salão cheio de gente e outra muito diferente fazê-lo em um pequeno estábulo. A sós. Enquanto ele a olhava dessa maneira tão intensa. Com raiva. Tinha o rosto avermelhado por completo, à exceção das comissuras da boca e de sua palpitante têmpora, que para sua desgraça estavam brancas.
O coração pulsava a toda pressa. Onde estava Iain? A cavalariço já deveria ter retornado.
Arthur pareceu ler sua mente e endureceu o olhar, algo que não fez a não ser enervá-la mais, dado que já era suficiente severo. Não tinha motivos para estar furioso com ela.
—O moço não virá. Disselhe que a levaria aonde precise ir.
Por Deus, isso não! Não queria ir com ele a nenhuma parte. Nem sequer queria o ter perto. Anna ergueu o queixo, negando-se a que a intimidasse a sensação de perigo que lhe transmitia. Não tinha feito nada mau. Somente esperava que não se inteirasse de como lhe tremiam as mãos.
—Isso não será necessário.
Arthur deu um passo à frente e Anna fez esforços em não cambalear-se. Mas o sangue pulsava com força em seu pescoço. E ele viu. O sorriso que se desenhou em seus lábios a fez sentir como um camundongo ante os olhos de um gato.
—Temo-me que sim, será. Se saíres do castelo partirei contigo. —Arthur a olhou de tal modo que fez que a Anna fervesse o sangue — Me parece que esquecestes algo.
Gaguejou, completamente deslocada pelo calor que fluía por suas veias.
—O que… o que?
—Sua cesta — disse olhando-a nos olhos. Anna ficou gelada, decomposta pela surpresa. Não era possível que soubesse. Quase suspirou de alívio quando ele acrescentou—: Não acredito ter visto sair do castelo sem ela.
Muito observador, mais do que convinha. Sir Arthur era perigoso em muitas e diferentes formas. Seu pai iria às nuvens se alguém descobrisse o que ela e algumas das outras mulheres faziam. Anna se recompôs em seguida, irritada por permitir que a angustiasse.
—Só tinha intenção de sair a cavalgar. Hoje não visito ninguém da vila.
Arthur ficou olhando-a por mais tempo do que devido, e Anna voltou a perguntar-se se saberia algo. Entretanto, nessa ocasião sua expressão não traiu seus pensamentos.
Uma série de latidos frenéticos fez que Arthur dirigisse sua atenção ao chão, para o cão que saltava sobre sua perna.
—Abaixo! —disse em uma voz que não aceitava discussão. O cão se sentou imediatamente e ficou olhando-o com cara de adoração — Seu cachorrinho precisa aprender maneiras.
Anna franziu os lábios.
—Gosta de ti.
«Deus saberá por que motivo.» Tentar tirar um pouco de afeto de Arthur Campbell era como querer extrair água de uma rocha, uma experiência condenada ao fracasso e a frustração. Arthur entreabriu os olhos como se Anna houvesse dito isso em voz alta.
—Normalmente os animais gozam de bons instintos.
—Normalmente sim — concedeu, deixando muito claro que ela pensava diferente nesse caso.
Aquele brilho perigoso voltou a encher seu olhar.
—E o que tem que você, Anna? O que dizem seus instintos?
«Corre. te esconda. te afaste dele tanto como possa para que não te faça mais dano.» Olhar essa mandíbula afiada e recortada, seus sensuais e carnudos lábios e esses olhos escuros jateados de âmbar era já suficientemente doloroso.
Afastou o olhar, contendo a emoção que ia a sua garganta.
—Eu não faço caso a meus instintos.
Ao menos já não fazia. Estavam errados. Seus instintos a tinham feito acreditar que entre eles havia algo especial. Que talvez ele tivesse necessidade dela. Que se sentia sozinho. E que possivelmente fosse diferente ao que parecia: um ambicioso cavalheiro, um soldado valente que vivia por e para sua espada.
Inclusive nesse preciso momento seus instintos lhe faziam acreditar que a tensão que bulia entre ambos significava algo, que bastaria que tomasse em seus braços e a beijasse de novo para que tudo voltasse para a normalidade. Mas era muito tarde para isso.
—Os instintos só servem para te obrigar a fazer coisas das que logo te arrepende — acrescentou.
Arthur esticou o queixo e o músculo de sua mandíbula começou a tremer de modo detestável. aproximou-se mais ainda. Tão perto que Anna sentia todo o calor que irradiava. Tão perto que cheirava o especiado aroma de sol que emanava sua pele. Começaram a tremer as pernas. Por Deus, tinha esquecido quão alto era. Parecia que muros se fechassem em volto dela. Custava-lhe respirar. Custava-lhe inclusive pensar enquanto se abatia sobre ela de tal modo. Usava sua selvagem masculinidade contra ela com a sutileza de um carneiro batendo-se em duelo.
—E arrependes de algo, Anna?
A enganadora suavidade de sua voz não a enganava absolutamente. Advertia perfeitamente a raiva contida em suas palavras, como se lhe importasse que seu coração tivesse mudado de parecer. por que fazia isso? por que tentava confundi-la? Fosse ele quem havia dito a ela que se afastasse.
—Que mais dá? E menos agora. Deixara tudo muito claro antes de fugir com meu irmão.
Anna tentou flanquear a porta e deixá-lo ali, mas Arthur a deteve com o implacável escudo de seu peito. Pela linha branca que se formou na comissura de sua boca não coube dúvida de que tinha captado a indireta.
—Então já acabastes com a espionagem. É isso?
Anna o observou atentamente. Nisso era que acreditava? Bom, que mais dava o que pensasse. Afastou lentamente seu olhar e a dirigiu para a porta.
—Sim, isso. Agora se me permitem, eu gostaria de partir.
Empurrou seu peito com o dorso da mão, mas era tão firme como um escarpado rochoso. Um escarpado com montões e montões de pedras cortantes e afiadas.
—Já vos disse que partiria contigo.
—Seus serviços já não são necessários. mudei de opinião. Não sairei a cavalgar esta manhã.
A maneira que flamejavam seus olhos revelava que não fazia nenhuma graça que o rechaçassem. Bem, pois pior para ele. Ela não o tinha escolhido como seu cavalheiro andante. Então notou que os músculos de suas costas se esticavam e se perguntou se não o teria levado muito longe. Mas Arthur não fez mais que torcer o gesto, representar uma reverência exagerada e afastar do caminho.
—Como desejais, milady. Mas se mudares de opinião já sabem onde me encontrar.
Anna passou junto a ele como um raio, com o queixo bem alto.
—Não o farei. Tenho muitas coisas que fazer antes de partir.
A mão que pousou sobre seu ombro a fez deter-se de repente. Mas inclusive essa forma rude de tocá-la fazia que seus sentidos se desatassem.
—Vais a alguma parte, lady Anna?
Tentou desembaraçar-se de seu braço e o fulminou com o olhar ao ver que não a deixava partir.
—Não é seu assunto.
Um brilho foi a seus olhos ao mesmo tempo em que Arthur se aproximava mais a ela. Anna sentia a energia que vibrava entre ambos e a arrastava consigo. Tinha a boca tão perto…
—me digas.
Não podia beijá-la, dizia-se Anna presa do pânico. Não podia permitir que a beijasse.
—Caso-me — disse bruscamente.
Capítulo 12
Arthur retirou o braço como se queimasse.
«Caso-me.» Suas palavras sentaram como um soco no estômago. Era incapaz de se mover. Cada osso, cada músculo, cada uma de suas terminações nervosas se petrificou.
—Com quem? —perguntou com uma voz mortiça, vagamente ameaçador, que não parecia a sua, soava como a do MacRuairi.
Anna não queria olhá-lo nos olhos. ficou a retorcer as grossas pregas de lã de sua saia com as mãos.
—Com sir Hugh Ross.
Uma faca encravada entre suas costelas teria resultado menos doloroso. O filho e herdeiro do conde de Ross. Arthur o conhecia, é obvio. O jovem cavalheiro já havia feito um nome por si mesmo. Era um guerreiro temível, um estrategista, dentro e fosse do campo de batalha. O fato de que fosse um bom partido piorava mais.
Não compreendia a raiva que consumia seu interior, nem por que se sentia traído. Não lhe pertencia, diabos. Jamais poderia lhe pertencer. Mas isso não o fazia esquecer que apenas quinze dias atrás a tinha tido em seus braços e que estivera a muito pouco de despoja-la de sua inocência.
—Ao que parece tiveste uma semana muito ocupada, milady. Não perde tempo.
Um quente rubor tingiu suas bochechas.
—Ainda não concretizamos os detalhes.
Arthur advertiu algo em sua voz que o fez entreabrir os olhos enviesadamente.
—A que detalhe se refere? Está prometida ou não?
Anna ergueu o queixo e ele captou o desafiante brilho de seu olhar apesar do sufoco de seu rosto.
—Sir Hugh me propôs matrimônio faz um ano, pouco depois de que morreu meu prometido.
—Acreditava que o tinha rechaçado.
—Assim foi. Pensei melhor.
Arthur compreendeu do que se tratava tudo aquilo de repente. Ao não contar com a ajuda do rei Eduardo, os MacDougall tinham decidido pedir ao Ross e oferecer a lady Anna como incentivo acrescentado para a aliança. Pouco importava se ela tinha pensado melhor ou era seu pai quem assim tinha decidido. Arthur não podia permitir que unissem suas forças. Uma aliança entre Ross e os MacDougall poria em perigo a vitória de Bruce. Seu trabalho, sua obrigação, era deter aquilo.
Arthur a olhou com dureza.
—E como sabe que sir Hugh se mostrará aberto a sua repentina mudança de pensamento?
—Não sei. —Anna lhe dirigiu um olhar penetrante — Mas farei tudo o que possa para persuadi-lo.
Não era necessário adivinhar a que se referia. Sua reação foi instantânea. Primitiva. Por um breve instante da ira se apoderou dele e perdeu o controle. Sentiu um vazio na mente. Lady Anna estava a escassos centímetros de ver-se esmagada contra a parede do estábulo com seus lábios selados pelos dele, toda sua virilidade entre as suas pernas e uma língua afundando-se no interior de sua boca, ali onde devia estar.
Mas inclusive no furor de sua raiva pedia mais a necessidade de protegê-la. Não confiava em si mesmo para tocá-la de tal modo.
Anna pôs os olhos como pratos e teve a prudência de dar um passo para trás. Mas ele a seguia cativando com a armadilha de seu penetrante olhar.
—Assim tem tudo bem planejado?
Assentiu.
—Sim. Será melhor para todos.
Que aquilo soasse como se estivesse tentando convencer-se a si mesmo não consolava absolutamente.
—Seu plano tem um problema.
Anna o olhou, dúbia.
—E qual é?
—Ross está ao norte. Os caminhos são muito perigosos para que te translades. É muito arriscado. Bruce e seus homens ficarão no caminho em qualquer momento. Seu pai não aprovará isso.
Lorn era um filho de cadela desalmado, mas parecia amar a sua filha de uma maneira genuína.
—Já o tem feito. Uma leva de guardiães me escoltará, junto com meu irmão Alan. Pode ser que o rei Hood seja um patife assassino, mas não faz guerra às mulheres.
Arthur lutava por manter sob controle seu gênio. Lorn tinha que estar muito desesperado para aceitar isso. O muito filho de cadela faria o que fosse para ganhar, inclusive pôr em perigo sua filha.
—Se se derem conta de que és uma mulher. Na escuridão, não serão tão fácil de distinguir. Poderiam a confundir com um mensageiro.
Acaso tinha esquecido o que estivera a ponto de lhe ocorrer no Ayr? Jesus, quando pensava no perigo… gelou o sangue. De novo teve vontade de empurrá-la contra a parede do estábulo, dessa vez para procurar que entrasse em razão. Poderiam feri-la. Assassiná-la.
—Meu irmão me protegerá. Estou segura de que não passará nada.
Arthur sentia uma veia a ponto de estalar na têmpora. Nem uma centena de homens poderiam lhe dar segurança. Seus esforços por controlar fracassariam.
—Não seja louca! Não podem ir! É muito perigoso. Mandem um mensageiro, é melhor.
Não necessitava mais que ver a posição de seu queixo e a maneira em que entreabria os olhos para saber que tinha cometido um engano. Poe tratar-se de uma moça de aparência tão doce mostrava uma teima digna de admiração.
—Já está decidido. E você, temo que não tenha nada que dizer a respeito.
As mulheres tinham que ser submissas e dóceis, maldita seja. E ali estava ela, cotovelo com cotovelo com ele, sem retroceder um centímetro. Se não estivesse tão furioso isso pareceria admirável.
Nessa ocasião, quando Anna deu meia volta e se dirigiu para a porta, Arthur não a deteve.
«Nada que dizer a respeito.» Isso veremos.
Se ela não entrava em razão, talvez seu pai fizesse.
Os homens de Bruce estavam batendo toda a área, assaltando, saqueando, fazendo tudo o que podiam por semear o caos e expandir o medo no coração do inimigo. A guerra não tinha lugar só no campo de batalha mas também no interior das mentes. Um grupo de escolta do clã MacDougall seria algo irresistível. Anna teria uma flecha no coração antes que pudessem se dar conta de seu engano.
Dizia a si mesmo que era a ameaça que isso supunha para a missão que fazia que se embolotassem todos seus músculos. Evitar esse tipo de aliança, manter isolado ao MacDougall, essa era a razão pela que estava ali. Mas não eram as mensagens nem a aliança em que pensava. Tudo que podia ver era Anna jogada em um atoleiro de sangue. Tinha que fazer que Lorn se afastasse desse estúpido caminho.
E se não podia… De nenhuma maneira a deixaria partir sozinha. Se Anna desse um passo fora desse castelo, ali estaria ele para acompanhá-la, ali onde pudesse a proteger e tê-la à vista. E havia uma coisa que tinha muito clara: não cabia nem a mais remota possibilidade de que a deixasse casar-se com Hugh Ross.
—Ocorre-te algo, Annie? Parece contrariada.
Anna ergueu o olhar para seu irmão Alan, que acabava de aproximar-se para cavalgar a seu lado. Depois de navegar em um birlinn nessa manhã o primeiro lance da viagem, o resto do trajeto fariam a cavalo. A rota marinha desde Dunstaffnage até a vila do Inverlochy através do lago Linnhe tinha levado menos de meia jornada, uma travessia em que teriam empregado vários dias ao fazê-la por terra. Oxalá o resto da viagem fosse igual de simples. Havia três lagos salgados e numerosos rios que percorriam Gleann Mor, o enguiço do Grande Glenn que dividia a Escócia entre o Inverlochy, no nascimento do lago Linnhe, até o Inverness e o fiorde de Moray, mas as rotas marinhas estavam separadas por terreno suficiente para fazer impraticável a viagem em navio. Em vez disso, cavalgariam os pouco mais de cem quilômetros que tinha que o Inverlochy até Nairn, ao leste do qual se encontrava o castelo do Auldearn. Com sorte demorariam quatro dias para chegar. Anna era consciente de que atrasava sua marcha, apesar de que galopavam em um ritmo muito mais castigador que aquele trote pausado ao que estava habituada.
Parecia irônico que estivesse fazendo virtualmente a mesma rota que tinha seguido o rei Hood no outono passado esperando acontecer através das Highlands e apoderando-se dos quatro castelos principais que balizavam o caminho: os castelos de Inverlochy e Urquhart, pertencentes aos Comyn, e os castelos reais de guarnição inglesa em Inverness e Nairn. Dado que esses castelos seguiam ocupados pelos rebeldes, veriam-se obrigados a procurar outra hospedagem que entranhasse menos perigo. Anna suspeitava que se quisessem evitar aos homens de Bruce teria que acostumar-se à paisagem dos bosques. Ao menos assim se livraria daquele sol abrasador por um tempo. Cavalgavam há várias horas e embora o véu protegesse seu rosto, tinha calor, estava pegajosa e, sim, também zangada, como tinha advertido seu irmão. Furiosa, para falar a verdade. O tempo, não obstante, não tinha nada que ver com seu incomum mau humor. Essa honra reservava a um certo cavalheiro intrometido.
Negou-se a lhe dirigir o olhar durante todo o dia. Mas isso não significava que não soubesse exatamente onde estava: cavalgando na cabeça do grupo, inspecionando o caminho que tinham pela frente em busca de sinais de perigo. «Perigo.» Isso era dizer pouco. O perigo era que ele os tivesse acompanhado na viagem.
—Estou bem —assegurou a seu irmão, conseguindo esboçar um sorriso forçado — Tenho calor e estou cansada, mas me encontro bem.
Alan a olhou de esguelha com um desinteresse enganoso.
—Acreditava que talvez tivesse algo a ver com o Campbell. Não parecia muito contente quando disse que nos acompanharia.
Seu irmão era muito ardiloso. Um traço que faria dele um bom chefe no futuro, mas nada que fosse apreciável para uma irmã que preferia guardar seus pensamentos para si mesma. Apesar de seus esforços em não reagir a essas palavras, chiavam-lhe os dentes.
—Não deveria ter-se intrometido.
Quando seu pai lhe contou que sir Arthur havia tentando dissuadir de que cancelasse a viagem, não podia acreditar. Ao fracassar nisso, pediu permissão para os acompanhar argumentando que suas habilidades como rastreador ajudariam a garantir sua segurança. E para maior desgraça de Anna seu pai tinha aceitado. De modo que em lugar de ignorá-lo durante uma só jornada, agora teria que suportar sua presença constante durante dias, semanas inclusive. Acaso tentava atormentá-la de propósito? Aquilo que tinha que fazer já era difícil sem que ele andasse revoando por aí.
—É um cavalheiro, Anna. Um explorador. Informar sobre a posição do inimigo é exatamente seu trabalho. E não posso dizer que não esteja agradecido de que venha conosco. Se for tão bom como diz ser, será muito útil.
Anna se dirigiu a Alan com cara de estar horrorizada.
—Está de acordo com nosso pai?
Alan endureceu o queixo. Jamais criticaria a seu pai de maneira aberta, embora quisesse fazê-lo, como era o caso.
—Teria preferido que ficasse em Dunstaffnage, embora entenda a razão pela que pai insistia em que viesse. Ross se mostrará mais disposto ante uma solicitude direta —disse com um sorriso — É uma danada, Annie querida, mas uma danadinha encantadora.
Anna torceu o lábio.
—E você é tão protetor que molestas, mas eu também te adoro.
Alan se pôs-se a rir e Anna não pôde a não ser unir-se a suas risadas.
Sir Arthur voltou a cabeça para ouvir e a pegou despreparada. Seus olhares se cruzaram por um momento antes que lhe desse tempo a afastar o olhar bruscamente. Mas foi suficiente para que sentisse uma boa pontada no peito. por que tinha que ser tão doloroso?
Alan não evitou esse intercambio de olhares. Voltou a ficar sério e a olhá-la com intensidade.
—Está segura de que isso é tudo o que acontece, Anna? Já sei o que disse, mas me parece que entre sir Arthur e você há algo mais que os trabalhos de vigilância que pai te encomendou. Eu acredito que sente algo por ele. —A pulsação que Anna sentia no peito lhe dizia que seu irmão tinha razão, por mais que gostaria que não fosse certo — Podemos apelar ao Ross sem necessidade de um compromisso —disse seu irmão com carinho — Não é necessário que sacrifique sua felicidade para chegar a um pacto.
Não pôde evitar emocionar-se. Era tão afortunada de poder contar com um irmão como ele… Sabia que poucos homens a tratariam com tal consideração. A felicidade não era algo a ter em conta no matrimônio entre nobres. O poder, as alianças, a riqueza, isso era o que importava. Mas o amor do que Alan desfrutou em seu matrimônio tinha dado a seu irmão uma perspectiva única. Apesar de tudo, teriam muitas mais oportunidades de conseguir o apoio de Ross com uma aliança. Alan sabia tão bem quanto ela. Além disso, ajudar a sua família jamais poderia constituir um sacrifício. Arthur tinha expressado com brutal claridade que não havia nada entre eles.
—Estou segura — disse com firmeza.
A firmeza de sua voz ajudou a convencê-lo. Alan seguiu cavalgando junto a ela um momento mais na lembrança de suas anteriores viagens nos excepcionais momentos de paz, mas ao final acabou voltando junto a seus homens.
Durante da primeira jornada fizeram grandes progressos e chegaram até o lago Lochy, onde passaram a noite em uma estalagem próxima à borda sul do mesmo. Aquele pequeno edifício de pedra com telhado de palha parecia antigo, e dada sua localização junto a uma ruína, Anna supôs que era.
Estava dura e dolorida. Suas pernas, traseiro e costas se ressentiam por cada uma das horas desse longo dia, de modo que agradecia estar debaixo de um teto e em uma cama, por mais rudimentares que fossem. Lavou-se e se compôs para comer um pouco de caldo de pescado e pão de centeio antes de cair rendida no camastro junto à Berta, sua criada, que roncava no jergon do lado.
A segunda noite, não obstante, não teriam tanta fortuna. Sua cama seria um simples cobertor em uma pequena tenda instalada na floresta ao sul do lago Ness.
Fora um dia longo, mais longo ainda graças ao constante fluxo de informes de exploração de sir Arthur. Para evitar cenários suscetíveis de perigo, tais como rotas a campo aberto ou lugares propícios para as emboscadas, havia vezes que se desviavam bastante do caminho. O qual significava que em lugar dos quarenta quilômetros que teriam percorrido, fizeram provavelmente uns cinqüenta e cinco através da espessura dos bosques e as colinas serpenteantes de Lochaber. Aquilo a Anna pareceu de uma precaução exagerada. por agora, não tinha visto nada fora do normal, mais que habitantes da vila, pescadores e algum que outro ocasional grupo de viajantes. Se os homens de Bruce patrulhavam os caminhos, não se tinham feito notar. Talvez esses quilômetros a mais fossem outra forma de tortura idealizada por sir Arthur? Como se não fosse suficiente sua presença.
As pernas de Anna, pouco acostumadas a passar dias cavalgando, tremeram ao se ajoelhar à borda do rio para lavar as mãos. Colocou a cabeça na corrente com a esperança de sacudir o cansaço, mas o frio golpe de água não a refrescava o suficiente. Quando tentou levantar-se, coisa que fez com muita dificuldade, teve que resmungar ao conscientizar-se da objeção de seus ossos e articulações, que rangiam como se tratasse do corpo de uma anciã. Tomou seu tempo para saborear o momento de solidão, sem nenhuma pressa por voltar para acampamento. Embora o resto do grupo estivesse a poucos metros dela, o denso tanto de árvores parecia absorver todo o som. de vez em quando chegava até ela o murmúrio apagado de suas vozes, mas além disso tudo permanecia em uma calma excepcional, o que representava o maior momento de paz que tinha desde sua chegada ao barmkin no dia anterior pela manhã, quando encontrou a sir Arthur Campbell preparado para sair com eles. Aqueles dois dias tentando forçar-se a não olhá-lo tinham cobrado sua cota. Era pior do que temia. Apesar de que o ignorasse e evitasse seus olhos cada vez que ele olhava em sua direção, cada um de seus movimentos lhe afetava de maneira dolorosa. O desassossego, que parecia lhe queimar o peito até furá-lo, era cada vez maior. Mais duro. Enfurecia-se com suas emoções, deixando-a nua e exposta. Não sabia por quanto mais poderia suportar. Por que tinha que estar ali?
Suspirou com aborrecimento e deu as costas à tranqüilizadora correnteza que corria sobre as rochas. Berta faria que seu irmão fosse procurá-la como um louco se não retornasse no par de minutos que tinha prometido. Além disso, estava ficando de noite.
Mal tinha dado uns passos em direção a floresta quando um homem saiu dentre as sombras e lhe fechou o passo. O pulso acelerou, presa do pânico. Esteve a ponto de dar a voz de alarme, mas seu gritou ficou sufocado ao reconhecê-lo. Fechou a boca de repente, mas seu pulso seguia igual de acelerado.
—Não faça isso! —espetou ao mesmo tempo em que erguia o olhar para o belo rosto de sir Arthur — Me destes um susto de morte.
Não tinha feito um só ruído. Como um homem tão corpulento podia mover-se com tal sigilo era algo que escapava a sua compreensão.
—Melhor —respondeu ele — Não deveria estar aqui sozinha.
—Não estava sozinha —disse Anna com um sorriso forçado — tinha você me espiando.
Anna sentiu um prazer enorme ao ver que esticava a mandíbula. Era horrível por sua parte que lhe agradasse tanto, mas tentar tirar algum tipo de reação daquele homem parecia um lucro absoluto. Sir Arthur lhe dirigiu um olhar pausado e penetrante.
—Algo do qual estou certo que conhece todos os segredos.
Agora tocava a ela endurecer o gesto. Havia muita proximidade. Embora seu irmão e o resto dos homens estivessem a um grito de distância, aquilo supunha uma intimidade com ele muito maior da que ela queria. Qualquer tipo de intimidade com ele podia ser perigosa.
Isso a fazia recordar coisas. Como o sabor especial de seus beijos. Ou o modo em que os grossos músculos de seu torso se esticavam à luz das velas. Ou a maneira em que as mechas onduladas de seu cabelo molhado caíam sobre seu pescoço. Ou seu aroma. «Aroma de sabão e a virilidade», pensou Anna enquanto aspirava.
Arthur não se barbeou, e a barba incipiente lhe dava um aspecto esfarrapado e perigoso que, maldito fosse, o fazia ainda mais atraente.
Ao comprovar que apesar de todo o ocorrido ainda conseguia lhe afetar do mesmo modo, Anna ficou furiosa e tratou de afastá-lo de seu caminho. Um exercício de futilidade como jamais houve algum.
—Não há motivos para preocupar-se.
Ele a agarrou seu braço para detê-la, como se a impenetrável barreira de seu torso não fosse suficiente.
—A próxima vez que te afastes do acampamento, não o façam sem guarda, preferivelmente eu ou seu irmão.
Suas bochechas se ruborizaram, zangada com o tom e sua atitude prepotente. Sir Arthur Campbell, cavalheiro ao serviço de seu pai, transpassava os limites.
—Não têm direito a me dar ordens. A última vez que olhei não fostes tu, a não ser meu irmão, quem estava ao mando.
Seus olhos brilharam ao mesmo em tempo que ele a agarrava pelo braço com mais força. Falava em voz baixa e sua boca… Anna ficou sem fôlego. Também sua boca estava baixa, a uma altura perigosa, tão perto da sua que doía. Se ficasse nas pontas dos pés, era possível inclusive que chegasse a tocá-la.
Deus, que vontade tinha de fazê-lo. Estava desesperada por fazê-lo. Uma onda de calor invadiu todo seu corpo, concentrando-se nos seios e no encontro das coxas. Os mamilos se puseram eretos; morriam de vontade por roçar-se com seu duro peito.
Aquela traição de seu corpo parecia humilhante. Ele não tinha nenhum direito a fazê-la sentir assim. Não depois de a rechaçar de maneira tão cruel. Não depois de que partisse e deixasse claro que era tal e como o tinha imaginado em princípio. por que não podia deixá-la em paz simplesmente?
—Não me desafiem nisto, Anna. Se quiserem que consiga a cumplicidade de seu irmão, farei. Quão único tentava era evitar a vergonha de que te tratem como a uma criança, mas farei tudo o que esteja em minha mão para te manter a salvo.
Houve algo em sua voz que fez que lhe deu calafrios.
—O que acontece? Estão os rebeldes perto daqui? Viu algo?
Uma sombra cruzou o olhar de Arthur. Negou com a cabeça.
—por agora não.
—Mas têm um pressentimento.
Arthur a olhou com total desconfiança, como se pensasse que tentava enganá-lo para que admitisse que ela tinha razão quanto às habilidades que tinha mostrado com antecedência. Parecia disposto a negá-lo, mas logo encolheu os ombros e lhe soltou o braço.
—Sim, sinto o perigo. E também vocês deveriam senti-lo. Não cometam o engano de pensar que não estão aí simplesmente porque não os tenhamos visto.
Assentiu, assombrada pelo que parecia uma preocupação sincera.
—Farei como me pede.
Ambos sabiam que não era uma petição, mas Arthur parecia estar satisfeito com sua aprovação e não quis discutir a semântica.
Anna era consciente de que devia sair dali quanto antes, mas houve algo que a fez perguntar:
—Por que estas aqui, sir Arthur? Por que insistiram em se unir a nosso grupo?
Ele afastou o olhar. A pergunta lhe incomodava. Muito.
Franziu o cenho.
—Pensei que poderia ser de ajuda a seu irmão.
—E eu pensei que não gostavas de fazer reconhecimento do terreno.
Sua boca se torceu em um irônico e enigmático sorriso.
—Não é tão mau como temia.
Anna observou seus traços com atenção, mas não estava muito segura do que procurava.
—E essa é a única razão? Para ajudar a meu irmão?
Arthur baixou o olhar para olhá-la nos olhos. A intensidade de seu olhar a penetrou com a sutileza de um raio. Era consciente do tic que pulsava sob seu queixo. estava-se controlando, mas do que?
—Dado que não atenderam a minhas advertências, não ficou outra opção que vir e me assegurar de que chegassem a seu destino a salvo.
Entregue a salvo às mãos de outro homem.
—Estou segura de que sir Hugh apreciará seus serviços.
Arthur ficou tenso e os olhos lhe brilharam com um fogo descontrolado. Por um momento Anna pensou que a empurraria contra a árvore e a beijaria. Mas não o fez. Em vez disso apertou os punhos e ficou olhando-a com raiva. Dizia a si mesma que não era decepção o que sentia. Isso dizia a si mesma. Mas não acreditava.
—Não me provoque, Anna.
Mas o tempo das advertências já tinha passado para ela.
—Que não lhes provoque? Como poderia o provocar se não vos afeta? Deixou muito claro naquela noite nos barracões. Fosse tu quem disse que me separasse de seu caminho e não ao contrário, recordam?
—Recordo.
A suavidade de sua voz lhe disse que não era isso tudo o que recordava. A pele começou a lhe arder e parecia sair dela. As lembranças crepitavam entre eles como um sopro de ar sobre brasas, acendendo-se, dispostos a prender-se fogo. Anna estava sumida na frustração. Não podia entender por que fazia aquilo.
—É que mudastes de opinião?
Em outro momento Arthur teria admirado aquele desafio. A franqueza e a naturalidade de Anna eram o que faziam dela uma mulher única. Mas nesse momento não. Não queria pensar em se tinha mudado de opinião. Estava lhe custando muito, Deus e ajuda simplesmente não lhe pôr as mãos em cima. por que não podia ser tímida e retraída? Aí sim se sentiria seguro.
Sabia que atuava como um idiota, mas esses dois dias junto a ela, vendo-a voltar o rosto para evitar seu olhar, atuando como se ele não fosse mais que uma espada mercenária, fazia que chegasse ao limite de seu autocontrole. Não poderia agüentar vê-la outra noite rondando pelo acampamento rindo e divertindo-se com os homens com uns sorrisos que brilhavam quando olhava em sua direção.
Gostava de estar à margem, maldita seja. Mas de seu posto nos limites do acampamento, longe da camaradagem da fogueira, encontrava-se suspirando pela calidez desses sorrisos. Por um pouco dessa risada. um pouco dessa luz.
Sua intenção era que ela reconhecesse sua presença. Mas tudo que tinha conseguido era revolver coisas que não precisavam ser revolvidas. Tais como o assustador desejo de empurrá-la contra a árvore e abusar dela. Quase podia sentir como seus braços lhe rodeavam o pescoço e suas pernas envolviam seus quadris, em tanto que ele se afundava em seu interior, lenta e profundamente. Quase via seu pequeno e suave corpo estirando-se contra o seu, todas essas sedutoras curvas fundindo-se sobre ele, a excitante turgidez de seus mamilos lhe roçando o peito…
Demônios!
Teve que agitar-se para recuperar a compostura. Mas o inchaço que ocultavam seus calções era duro e implacável. Aquilo não tinha que ser tão endiabradamente difícil.
«Te concentre. Faz seu trabalho. Mantem o bastante perto para vigiá-la, mas sem tocar. Não deixe que se aproxime muito.»
Havia muitas pessoas dependendo dele. Tinha que estar ciente do que realmente importava. Assegurar-se de que Bruce chegasse ao trono e derrotar seus adversários. Como John de Lorn. Essa era a oportunidade de ver como seu inimigo pagava pelo que tinha feito a seu pai.
Justiça. Vingança. Endireitar o errado. Sangue por sangue. Essa fora toda sua motivação desde que tinha uso de razão. Tinha dedicado sua vida a tentar consagrar-se como o melhor guerreiro com um só objetivo em mente: destruir a Lorn. Essa fria determinação era sua companheira há quatorze anos. A firme resolução de levar uma missão até suas últimas conseqüências, custasse o que custasse. Essa era a única coisa que tinham em comum todos os membros da Guarda Highlanders, apesar de suas grandes diferenças de personalidade, do irreprimível bom humor do MacSorley e a impulsividade do Seton até o mau gênio do MacRuairi. Mas nunca antes tinha tido tantos problemas para aferrar-se a isso.
Arthur deu um passo atrás com a intenção de dissipar a bruma de desejo que o atendia. Mas seu corpo bulia de desejos insatisfeitos. Uns desejos que cada vez lhe parecia mais difícil ignorar. Andar por aí com o membro duro pego ao ventre não era algo que fizesse muito para remediar seu mau humor. E sua mão tampouco parecia um grande alívio.
Ao ver que ele não respondia, Anna disse:
—E bem?
Tinha mudado de opinião? Negou com a cabeça.
—Não.
Nada tinha mudado. Seguia sendo a filha do homem ao que tinha ido aniquilar. Quão único o futuro lhes proporcionaria seria a traição. Não tinha intenção de piorar as coisas.
Anna não deu amostras de que sua resposta a decepcionasse. Melhor parecia algo que esperava.
—Então por que fazem isto? por que atua como se o importasse com quem contraio matrimônio? Não me quer mas tampouco quer que alguém me tenha, é isso?
Arthur murmurou uma imprecação ao mesmo tempo em que passava as mãos pelos cabelos.
—Não é isso.
De fato, era exatamente isso. Anna tinha dado justo no prego. Estava ciumento, maldita seja. Embora não tivesse nenhum direito a estar. Embora fosse ele quem a desalentasse. Embora não houvesse nenhuma possibilidade de que estivessem juntos. Pensar em que ela se casaria com outro homem fazia que caísse em ataques de ciúmes juvenis.
Anna o olhou nos olhos.
—Então expliquem - me disse isso em voz baixa — O que é o que sentem por mim?
«Jesus.» Essa era a última coisa em que queria pensar. Somente ela seria capaz de tal pergunta. Anna MacDougall não tinha nenhum pingo de acanhamento ou de desânimo. Era direta. Sem rodeios. Despretensiosa. Deus, era uma mulher incrível.
Nem todo o treinamento do mundo podia o fazer parar de mover os pés nervosamente. Não se sentia tão encurralado desde aquela vez em que seus irmãos o fizeram retroceder até a saliência de um escarpado e o provocaram para que se defendesse de seus golpes de espada.
—É complicado — disse, saindo-se pela tangente.
Os olhos dela não deixavam de escrutinar seu rosto em busca de algo que não havia neles.
—Complicado não me vale. —Anna baixou o olhar — Não quero que esteja aqui —acrescentou com uma voz tão rígida como a posição de seus ombros. Tampouco ele queria estar ali, mas não ficava mais opção que fazê-lo. Anna voltou a erguer os olhos para olhá-lo. Já não havia calidez nessas profundidades azul brilhante — O rogo isso, me deixem em paz, simplesmente.
O suave rogo dessa voz apelava a sua consciência, mas ardia no peito de igual forma. Anna deu meia volta e se afastou dali com o porte majestoso de uma rainha.
Desejaria poder fazê-lo, pelo bem de ambos. Mas sua missão vinha em primeiro. Algumas semanas mais. Poderia agüentar algumas semanas mais. Tinha resistido desafios muito mais perigosos. Tudo que tinha que fazer era escorar suas defesas, fechar as comportas e preparar-se para o assédio final.
Capítulo 13
Arthur partia na vanguarda, inspecionando o terreno com dois dos homens de MacDougall, quando percebeu de que algo não ia bem. Uma mudança no ar. Um calafrio que percorria a nuca. A súbita sensação que ativava todas suas terminações nervosas para lhe advertir: «Perigo».
Tinham completado a terceira jornada da viagem virtualmente em sua totalidade. O trajeto a cavalo pela ribeira oeste do lago Ness foi mais longo do esperado, não por tentar evitar aos homens de Bruce, a não ser devido a uma ponte impraticável de Invermoriston. Teriam tentado cruzar as turbulentas águas em caso de não levar consigo Anna, mas em vez disso tiveram que desviar-se outros oito quilômetros do caminho para chegar ao seguinte vau. assim, aproximaram-se do extremo sul dos bosques do Clunemore mais tarde que o que ele esperava. De ali virariam para o este, abandonando o caminho para afastar-se todo o possível do castelo Urquhart, ocupado pelos rebeldes. O plano era acampar a última noite à beira do lago Meiklie, o qual queria dizer que o dia seguinte seria mais exaustivo ainda, já que a relativamente plaina estrada daria lugar às colinas.
Apesar de que Arthur trabalhava melhor sozinho, Alan MacDougall insistiu em que lhe acompanhassem dois de seus homens se por acaso se encontrava com dificuldades. Ao não poder explicar ao irmão de Anna que esses homens representariam mais problemas que ajuda sem trair suas habilidades, Arthur teve que acessar a contra gosto.
À primeira sensação de perigo ergueu uma mão para que os homens se detivessem. Desceu do cavalo, ajoelhou-se e pôs uma palma plaina contra o chão. A leve reverberação confirmou o que seus sentidos já lhe tinham advertido.
Richard, o maior dos dois guerreiros e explorador habitual do MacDougall, ficou circunspeto.
—O que há?
Arthur baixou a voz.
—Voltem e digam a seu senhor que saiam do caminho imediatamente.
Alex, que era aprendiz de explorador, olhou-o com estranheza sob o aço de seu nasal. Ao contrário de Arthur, Alan e o punhado de cavalheiros que usavam elmo, cota de malha pesada e peitilho, os homens do clã dos MacDougall levavam armadura mais leve e o cotun de couro acolchoado que preferiam os highlanders. Essa indumentária de guerra fazia mais fácil o movimento. Não era a primeira vez que Arthur tinha vontade de desfazer-se de seu pomposo traje de cavalheiro e mandar a passeio a mascarada. O mais jovem dos homens olhou a seu redor.
—Por quê?
Arthur franziu os lábios. Ficou em pé e voltou rapidamente para seus arreios.
—Há um grupo numeroso de cavaleiros que se dirigem justo para nós.
Richard o olhou como se estivesse louco.
—Eu não ouço nada.
Aqueles idiotas acabariam fazendo que matassem a todos. Sem tempo para sutilezas, Arthur agarrou ao maior por seu grosso cangote, ergueu-o um par de centímetros dos arreios e aproximou seu rosto a dele.
—Façam o que digo, maldita seja. Dentro de alguns minutos será muito tarde. Querem que matem a dama por sua estupidez?
O homem negou com a cabeça, impressionado com a transformação que sofria o cavalheiro. Quando começou a boquejar para recuperar o fôlego Arthur o soltou de um empurrão.
—Eu os rodearei pelas costas e tentarei distraí-los. —Com sorte, disse, poderia desviá-los para o norte — Digam a sir Alan que saia do caminho imediatamente, que se dirija para o este e cavalguem tão rápido como podem. Abandonem as carretas se for necessário. Encontraremo-nos no lago assim que me seja possível.
Subitamente, Richard moveu sua grosa cabeça para o norte. Um leve som de pegadas de cavalos batia em sua direção. Voltou-se para Arthur com um olhar que albergava tanto temor como suspeita. Inconscientemente, deu meia volta com seu cavalo.
—Pelos ossos de Cristo, têm razão! Ouço-os.
Arthur não tinha tempo de preocupar-se com a inquietação do outro.
—Irei contigo - disse Alex.
—Não — repôs Arthur em um tom de voz que evitava qualquer discussão — Vou sozinho.
Assim seria mais fácil evitar que os capturassem. Além disso, sempre cabia a possibilidade de que conhecesse alguém. Supunha-se que MacGregor, Gordon e MacKay estavam no norte.
—Partam! —disse.
Os homens fizeram o que lhes pedia sem mais discussão.
Arthur tampouco perdeu mais tempo. Cavalo e homem se introduziram entre as árvores em sua carreira por alcançar aos cavaleiros pelas costas antes que aparecessem ante o grupo do MacDougall. Era consciente de que apesar de estar advertidos, demorariam certo tempo em conduzi-los até um lugar seguro. Anna era uma boa amazona, mas não podia dizê-lo mesmo de sua criada. As carretas aumentaram seu ritmo ainda mais. Se algo sabia das mulheres era que não gostavam nada de abandonar seus finos trajes e sapatos. Ao menos Anna não tinha insistido em levar com eles ao maldito cachorrinho. Arthur estava já cansado de limpar os pés.
Arthur ziguezagueou entre as árvores, usando o som dos cavalos como guia, e cavalgou em paralelo aos homens alguns poucos e preciosos minutos até que se dirigiu para eles. Agora vinha a parte delicada: aproximar-se o suficiente para chamar sua atenção, mas nem tanto para que o capturassem. Amaldiçoou para si ao ver pela primeira vez ao grupo de cavaleiros através de um vão entre as árvores. Tinham todo o aspecto de uma leva de guerreiros. Havia mais dos que gostaria, ao menos uma vintena de homens armados até os dentes com mantas de cores escuras, vestimenta de guerra e escudos obscurecidos com breu, um modo de camuflar-se na noite próprio dos Guardiões das Highlands que adotaram mais tarde muitos dos guerreiros de Bruce.
Normalmente não pensaria duas vezes ante um exército tão formidável. Estava adestrado para lutar contra coisas piores. Mas esses homens conheciam o terreno e ele não. Teriam vantagem. Um giro mal dado e acabaria em suas garras. Mesmo assim ele contava com vantagens que eles não tinham: sentidos afiados como facas, velocidade, uma força e um treinamento superiores e a habilidade de desaparecer entre as sombras.
Distinguiu ante ele uma ruptura na linha de árvores. Aí o tinha. Apertou os dentes, baixou a cabeça e saiu como um raio para o claro. Fingiu surpreender-se por sua presença e girou abruptamente para a esquerda, como se quisesse evitar ser visto. Um grito o alertou do cumprimento de seu objetivo. Não se atreveu a diminuir a marcha e olhar para trás para ver se tinham mordido o anzol. Uma fração de segundo de atraso podia significar a diferença entre escapar ou ser capturado. Mas, momentos depois ouviu o ensurdecedor som das pegadas de cavalo atrás dele e sorriu. A caça tinha começado.
Anna tentava não pensar em quão tarde era. Mas à medida que a escuridão descia e que a lua se erguia no céu lhe custava mais acreditar que se encontrava bem. Esse medo que permanecia em espera ante o tumulto de seus próprios esforços para escapar aos soldados inimigos retornou com toda sua força assim que estiveram a salvo. E a coisa piorava com cada hora que passava sem a volta de Arthur. Que lhe atormentasse tudo o que quisesse, isso não importava. Mas que voltasse são e salvo.
Ajustou a capa nos ombros e disse que não devia preocupar-se. Chegar até eles de novo tomaria seu tempo atrás da animada perseguição em que Arthur os embarcaria. «Mas tanto tempo?» mordeu o lábio em uma tentativa de mitigar a crescente sensação de pânico. «Ele não se deixaria apanhar.» Entretanto, eles eram um monte de homens e ele só um. «Não pode estar morto.» Se fosse assim saberia. O coração lhe deu um tombo. Não era isso certo?
—Milady, a sopa está deliciosa. Tome —disse Berta sustentando a colher ante ela — Provem. Embora seja só um pouco - acrescentou, como se Anna fosse uma menina de cinco anos que se negava a comer nabos.
Mas Anna seguia sem gostar dos nabos. Negou com a cabeça e se esforçou em sorrir a sua preocupada criada.
—Não tenho fome.
A anciã pôs cara de estar admirada, fazendo que as rugas de seus olhos cor mel se esparramassem por seu rosto. O aspecto de Berta, com sua apenas um e cinqüenta de estatura e tão magra como um palito, não é que fosse formidável. Mas naquele caso seu rosto era de decepção. Podia ser tão teimosa e áspera como uma mula velha.
—Têm que comer algo. Conseguirá te pôr doente.
Já estava. Doente de preocupação. Somente de pensar em comida lhe dava vontade de vomitar. Conteve o acesso de bílis que lhe chegou à garganta.
—Comerei —mentiu Anna — dentro de um momento.
Berta lhe deu um tapinha na mão, que descansava sobre o musgoso tronco que as separava. Reuniram-se em torno do fogo junto ao resto da escolta, mas o acampamento permanecia em uma quietude incomum e os homens estavam desanimados. Todos eram conscientes de que tinham escapado por pouco e não era ela a única que se perguntava o que teria ocorrido com o cavalheiro que os pôs sobre aviso.
—Que morras de fome não fará que volte antes.
Os pensamentos de Anna eram mais transparentes do que acreditava, mas estava muito preocupada para fingir que não sabia do que lhe falava Berta.
—Acredite que terá ocorrido algo?
Berta apertou sua mão e negou com a cabeça tristemente.
—Não sei pequena minha. Não sei.
O coração de Anna sofreu uma violenta sacudida. A perspectiva tinha que ser terrível para que Berta não se esforçasse por mentir sequer. Voltaram a ficar em silêncio. Anna olhava as chamas da fogueira sem vê-la enquanto Berta acabava sua sopa.
Então Anna ouviu um ramo que rangia atrás dela e se levantou de um salto. Voltou o rosto com o coração na boca, esperando ver um cavalheiro vestido com cota de malha sobre seu cavalo. Assim foi e por um segundo pensou que seria Arthur. Mas seu coração topou com uma decepção. Tratava-se simplesmente de seu irmão Alan, que desmontou do cavalo e atou as rédeas a uma árvore próxima. A expressão sombria que mudou seu rosto à medida que se aproximava a encheu de pavor.
—Tem descoberto algo? —perguntou.
—Não —repôs seu irmão negando com a cabeça — Nem rastro dele.
—Acredita que… —Anna não se atreveu a terminar a frase.
Alan a olhou com atenção.
—Já deveria ter retornado.
A verdade doía como um murro nas vísceras. Lágrimas de angústia afloraram em seus olhos. Acabava de brotar a primeira delas quando ouviu um assobio que atravessava a noite.
—É o sentinela noturno - disse Alan antes que Anna tivesse tempo de perguntar — Alguém se aproxima.
O alarme deu origem a uma pequena comoção. Anna foi primeira em saltar de seu assento de repente, mas isso mesmo foi o que fizeram o resto dos homens. O primeiro que ouviu antes de vê-lo foram os gritos provocados pela emoção e o alívio. Momentos depois, Arthur penetrava no círculo de luz que provia o acampamento e o coração de Anna dava tombos no interior de seu peito. Inspecionou ao cavalheiro em busca de sinais de ferida, mas além do cansaço que refletia seu bonito rosto e da sujeira e o pó de sua cota de malha se via em perfeitas condições. Completamente ileso.
A emoção a embargava com tal força que deu um passo adiante sem poder controlar-se. Lutou por dominar o impulso de ir atrás dele, de correr a seus braços, de rodeá-lo com os seus e chorar toda sua angústia na suja e poeirenta cota de malha que revestia seu peito. Não tinha direito a fazê-lo. Nem fundamentos. Não estavam prometidos, nem se cortejavam sequer. Não eram nada um para o outro. Logo ela pertenceria a outro homem.
Então Arthur a viu. Por um estúpido momento ela se convenceu de que a estava procurando. Seus olhos se encontraram com uma força letal que repercutia em seu peito e o golpeava com os ecos da nostalgia.
Se naquele momento ele houvesse virado o rosto, ignorando-a com frieza, provavelmente Anna teria confrontado seu futuro com uma resolução firme no coração. Mas em vez disso Arthur percebeu seu desespero e assentiu levemente. «Estou bem.»
Era pouco, mas ao menos era algo, e servia como reconhecimento de que existia uma conexão entre ambos. Entre eles dois havia algo especial. Não podia negá-lo por mais tempo. Importava-lhe.
Arthur a olhou por última vez e seguiu adiante para encontrar-se com o Alan.
As emoções de Anna estavam descontroladas. Afetava-lhe muito que acabava de ocorrer para concentrar-se em nada, assim escutou pela metade o relatório que fazia a seu irmão. Eram os homens de Bruce. Um grupo numeroso de guerreiros. O número chamou tanto a atenção que ficou sem fôlego. Vinte e cinco homens. O normal seria que Arthur estivesse morto. Primeiro os tinha desviado vários quilômetros do castelo do Urquhart e depois se dirigiu para o este. Entretanto, os malfeitores tinham dado provas de ser bons cães de presa, e Arthur se viu obrigado a voltar a pé para o acampamento. Anna suspeitava que estivesse deixando muitas coisas no tinteiro.
Alan lhe agradeceu os serviços prestados a todos e o ameaçou a que se sentasse enquanto pedia comida e bebida para ele. Seu irmão falou com Arthur um momento mais antes de lhe deixar comer, mas em voz baixa, de modo que ela não pôde escutar nada. Anna bicou um pedaço de carne-seca de vitela e torta de aveia e ficou rondando por ali, como fizera a maioria dos homens. Entretanto, à medida que caía a noite, algo começou a lhe preocupar. O acampamento se animou com sua volta, e parecia óbvio que todos se alegravam de que não o tivessem capturado, mas a celebração não era a esperada e isso a desconcertava. Além disso, acontecia algo anormal. Ninguém tinha aproximado, além de seu irmão. Em lugar dos tapinhas nas costas, as brincadeiras pesadas e os brinde que seriam de praxe, pareceu-lhe que mais de um o olhava com cara estranha.
Arthur não parecia conscientizar-se. Acabou com sua comida, terminou o odre de cerveja que lhe tinham levado e se retirou de novo à solidão dos bosques. Anna o observou partir e sentiu uma premente necessidade de fazer algo. Olhou aos homens do clã que tinha ao redor. O que lhes passava? Por que atuavam de tal modo?
Chegou um ponto no que já não pôde agüentar-se mais, desculpou-se e foi procurar seu irmão. Alan estava falando com alguns de seus homens, mas ao vê-la chegar os ordenou que se retirassem.
—Acreditei que estaria aliviada.
Evitou fazer como que não entendia do que falava.
—Estou.
—E então a que vem a ser esse rosto, pequena?
—Por que atuam os homens desse modo? Por que não lhe dão obrigado? Por que o evitam?
—Está segura que não é justamente o contrário, irmã? —repôs Alan esboçando um sorriso irônico — Campbell não é precisamente conhecido por sua sociabilidade. Gosta de estar sozinho. —Seu irmão tinha razão, mas nessa ocasião não se tratava só disso. Os soldados se mostravam incômodos, quase temerosos. Quando o fez saber, Alan suspirou e negou com a cabeça — Ocorreu algo hoje quando nossos homens batiam o terreno. Richard me contou isso e provavelmente também contou ao resto. Conforme parece, Campbell ouviu os cavaleiros antes o bastante, antes que houvesse sinal alguma deles. Richard disse que era coisa de bruxaria.
Todo o prazer que Anna pudesse sentir ao ver confirmadas suas próprias suspeitas em relação ao ocorrido com os lobos, empalideceu em comparação com a fúria que atormentava seu interior. Suas bochechas se ruborizaram de indignação.
—Isso é ridículo. É que não se dão conta de que salvou a todos? Teriam que estar agradecidos e não tratá-lo como a um cão.
—Estou de acordo. Mas já sabe quão supersticiosos podem ser os highlanders.
—Isso não é desculpa.
—Não, não é. Falarei com o Richard e tentarei acabar com isso.
Anna saltou de seu assento de repente.
—Faz ou falarei com ele eu mesma. Não penso permitir que rechacem sir Arthur por nos ajudar. Pelas chagas de Cristo, Alan! Sem essa bruxaria, é possível que agora estivéssemos todos mortos.
Alan a olhou com atenção, e o que viu nela pareceu lhe preocupar. Ficou pensativo, assentindo simplesmente com a cabeça, em lugar de criticar por usar essa linguagem vulgar. Anna partiu dali com o propósito de encontrar Arthur, mas seu irmão adivinhou seu destino, porque gritou: —Amanhã pela tarde chegaremos a Auldearn, Anna.
Ela se voltou e lhe dirigiu um olhar inquisitivo, perguntando-se a que viria aquilo.
—Sim.
—Se tiver intenção de ir a sério com o compromisso de casar-se, talvez fosse melhor que o deixasse tranqüilo.
Duvidou ao ouvir a verdade em palavras de seu próprio irmão. Mas não podia fazê-lo. As ações desse homem tinham despertado todos seus instintos de amparo. Tinha que agradecer-lhe embora os outros não fizessem.
Encontrou-o à beira do lago, sentado em uma rocha plaina, depois de ter tomado um banho. Tinha o cabelo molhado e vestia uma simples regata de linho com uma túnica e as perneiras de couro. Estava inclinado sobre seu peitilho, aplicando azeite com um trapo, e sua expressão, vista de perfil, era mais sombria que nunca. Embora parecesse óbvio que a tinha ouvido chegar, Arthur não deu a volta. Uma vez que esteve mais perto, Anna distinguiu o que limpava e o mundo lhe veio em cima.
«Sangue.»
Apressou-se para ele sem pensar, ajoelhou-se e pôs uma mão no braço.
—Está ferido.
Quando ergueu o olhar para olhá-la, a lua iluminou seu rosto.
—Não é meu - disse.
Uma sensação de alívio se expandiu por todo seu ser. Suspirou profundamente. Embora seu rosto permanecesse impassível, percebeu uma estranha emoção em sua voz. Virtualmente soava como se estivesse arrependido. Como se a morte de um de seus inimigos fosse algo que o perturbasse. Talvez para os guerreiros matar não fosse tão fácil como ela imaginava. Em qualquer caso não para ele. Isso o fazia mais humano em certo sentido. Mais vulnerável. Sir Arthur Campbell vulnerável? Esse pensamento a teria feito rir sozinho algumas semanas antes.
—Não tinha outra alternativa - disse Anna com ternura.
Arthur lhe manteve o olhar por um momento e depois dirigiu para a mão que tocava seu braço. Anna sentiu imediatamente a intimidade dessa cálida e rígida pele que apertava com seus dedos e se apressou a retirá-la. Mas isso não conteve a necessidade de aninhar-se junto a ele e repousar a bochecha contra o amplo escudo protetor de seu peito.
Arthur voltou para a tarefa de tirar as manchas incrustadas entre as pequenas peças de metal. Anna se sentou junto a ele em uma rocha mais baixa e o observou em silencio durante vários minutos.
—Por que está aqui, Anna?
—Queria lhes agradecer o que fez hoje.
Arthur encolheu levemente de ombros, sem levantar o olhar de sua tarefa.
—Não fiz mais que meu trabalho. Para isso estou aqui.
Anna mordeu o lábio ao recordar o quão furiosa que a pôs sua intromissão e o cepticismo com o que acolheu suas razões para lhes acompanhar.
—Ao que parecia tinham razão —admitiu — Lhes agradeço que nos tenham acompanhado na viagem. Todos o agradecemos - disse franzindo o gesto com irritação — Embora alguns tenham uma estranha forma de demonstrá-lo.
Os ombros de Arthur se esticaram quase imperceptivelmente.
—O que é o que dizem?
—Que sentiram aos cavaleiros antes que fosse possível fazê-lo.
Arthur arqueou uma sobrancelha, divertido com sua tentativa de suavizar o golpe.
—Seguro que disseram algo mais que isso.
As superstições de seus companheiros de clã ruborizaram as bochechas de Anna.
—É certo, verdade? É como aquilo que aconteceu os lobos e quando tropecei no escarpado. Podem ver as coisas antes que aconteçam.
Anna lhe suplicou com os olhos que não mentisse. Outra vez não. Ele ficou calado durante tanto tempo que pensou que não lhe responderia.
—Não é de tudo assim —disse finalmente — É mais como um pressentimento. Meus sentidos estão mais afinados do normal. Isso é tudo.
—Afinados? —repetiu ela — São extraordinários. —Seu louvor não pareceu a não ser o incomodar mais — Não entendo como o resto dos homens não é capaz de compreendê-lo. Salvaram a todos.
—Deixem estar, Anna. Não tem importância - disse olhando-a com gesto severo.
Parecia falar a sério, algo que mais que atenuar suas faculdades as ressaltava.
—Como podem dizer isso? É que não vos molesta? Teriam que lhes agradecer o que têm feito e elogiar suas extraordinárias habilidades, em lugar de atuar como crianças que tivessem medo de encontrar um trasgo na cama ou fantasmas dentro do armário.
A indignação que Anna sentia pelo trato que lhe dispensavam não encontrava a avaliação esperada. Uma vez mais pareceu que essa conversa lhe incomodava.
Arthur a olhou com dureza.
—Não é algo que me incomode e tampouco necessito que façam as coisas mais difíceis advogando por minha causa. Não quero que mencionem nada a respeito do que acreditaram ver. Deixem passar e cairá no esquecimento. Insistam e piorarão.
Falava da experiência.
Anna teve que apertar os lábios para não discutir. Aquilo não estava bem e a injustiça que suportava fazia aflorar todo seu instinto de amparo.
Incomodava-o. Tinha que ser, por mais que se mostrasse despreocupado. Que estivesse tão acostumado a essa sutil crueldade das pessoas e que a desse por certa fazia disso um pouco mais duro. Encolhia-lhe o coração. Quantas vezes o teriam rechaçado ou repudiado para que se convertesse em uma pessoa tão insensível e indiferente? Seria isso o que o afastava de outros? Todo seu distanciamento e individualismo lhe pareceram de repente uma máscara para sua solidão. Levava tanto tempo só que tinha chegado a convencer-se de que gostava. Seu coração se compadecia dele. Era tão afortunada de ter a sua família… Odiava pensar que uma pessoa pudesse estar sozinha.
—Anna? —disse ele procurando seus olhos à luz da lua. Teria adivinhado a direção que tomavam seus pensamentos? — me prometa que não dirá nada.
Anna pôs cara feia, mas assentiu. Ele se levantou para passar o apertado peitilho pela cabeça se vestiu com um tabardo limpo e trabalhou em excesso na sujeição de suas numerosas armas. Observar como se vestia era um ato que transbordava intimidade, mas a Anna não envergonhava fazê-lo. Ao contrário, parecia natural. Como se pudesse passar todos os dias de sua vida vendo como ele se preparava para a guerra. Aquele pensamento teria que tê-la horrorizado, mas, em vez disso, viu-se invadida por uma intensa sensação de desejo, de saudade por algo que lhe escapava das mãos. Fazia que se expusesse seu futuro e pensasse que talvez ele não fosse o homem errado, a não ser exatamente o adequado para ela. Um guerreiro estável. Isso parecia algo contraditório. Mas talvez fosse ela quem se equivocava de cabo a rabo.
—O que fará quando acabar a guerra? —perguntou.
Perguntava-se se não teria pensado em fazer algo com seus desenhos, talvez. Ou estaria simplesmente esperando a seguinte guerra para lutar nela?
A pergunta o pegou despreparado. Arthur estava atendo-se a espada e a deixou pela metade. O certo era que não tinha dedicado muito tempo a pensar. Fazia muitos anos que a guerra consumia sua vida. Lutar era para quão único servia. Primeiro junto a seu irmão Neil e logo como membro dos Guardiões das Highlands. Era um soldado profissional. Um dos melhores do mundo. Era o único que sabia fazer. Mas era isso o que ele queria? O teria escolhido ao ter a oportunidade? Uma vez que houvesse justiça para seu pai, que Bruce tivesse o trono assegurado, uma vez cumpridos os objetivos… o que faria então?
Terras e uma rica esposa seriam sua recompensa. Isso teria que bastar. Mas ao olhar a aquela mulher que o acabava de defender tão fervorosamente, que o via como alguém extraordinário em lugar de horripilante, que tinha um coração que não lhe cabia no peito, perguntava-se se realmente seria suficiente com isso. Ao olhar essa carinha arrebitada, banhada pela luz da lua entre tênues sombras, sentiu uma estranha angústia. Saber que era algo impossível não lhe impedia de seguir desejando-a. Mas já tinha mostrado muito de si mesmo. Estava tão acostumado a mentir a respeito de suas habilidades que lhe parecia estranho ouvir a verdade em voz alta. Estranho, mas também consolador. Manteve-se afastado do resto durante tanto tempo que esquecia o que era ter conexão com alguém.
Estava completamente louco.
Sua única desculpa era que o tinha pego em um momento de debilidade. O sangue que limpava de seu peitilho era a dos dois homens que se viu obrigado a matar para defender-se.
«Protege sua identidade custe o que custar. Protege a missão.»
Deus, às vezes odiava o que tinha que fazer. Acabou de ajustar o armamento antes de responder.
—Eu diria que isso dependerá do resultado.
Inclusive nesse lusco-fusco percebeu que o rosto de Anna empalidecia, mas se recuperou com rapidez.
—Não há mais que um resultado possível. Não conhece meu pai. Não perderá. —Arthur ficou tenso. Sabia isso melhor que ninguém. Essa era a razão pela que estava ali — O rei Hood e os rebeldes serão submetidos e levados diante da justiça.
Apesar de que soasse como o melhor e mais leal dos soldados do clã MacDougall, podia perceber a fragilidade que se escondia atrás daquela bravata. Anna seguia aferrando-se a ilusões que começavam a apresentar fissuras. Mas estava claro que era consciente do desesperado de sua situação, ou não estariam ali nesse momento.
—E mesmo assim acode ao Ross para lhe permutar por tropas adicionais.
Anna endireitou as costas de repente. Seus olhos brilhavam com intensidade ante o resplendor da lua.
—Não se trata exatamente disso.
Sim, se tratava disso. E seu trabalho era assegurar-se de que não ocorresse.
Não queria ser cruel, mas ela precisava confrontar a realidade. O pêndulo se afastava dos MacDougall. Bruce estava ganhando a guerra.
—E o que passará se fracassar, Anna? O que acontecerá Ross não está de acordo em mandar mais homens? Então o que?
—Meu pai pensará algo. —Soava tão desesperada que, sem se dar conta, esteve a ponto de aproximar-se até ela para consolá-la — por que falas de tal modo? —perguntou — Falas como um rebelde. Por que está aqui então, se não acredita em nossa vitória?
Amaldiçoou para si. Tinha razão. E logo descobriria quanta. Encolheu-lhe o estômago ao pensar em como a afetaria descobrir a verdade. Gostaria de poder suavizar o impacto de algum modo.
—Essa é justamente a razão pela que estou aqui, Anna. Por acreditar em uma causa. Por acreditar que ganhará o lado adequado. Mas as coisas não passam sempre do modo em que alguém pensa. Não quero lhe ver sofrer. —Deteve suas palavras e voltou para a questão original — Para quando a guerra acabe me prometeram terras e outras recompensas. Isso deveria bastar para me manter ocupado.
Anna inclinou um tanto a cabeça e umas linhas brancas diminutas povoaram seu sobrecenho.
—Outras recompensas? Que tipo de recompensas? —Embora não lhe respondeu, a resposta pareceu ir a sua cabeça de repente. Sobressaltou-se ao cair na conta e sua expressão de estranheza desvelou mais do que queria — Uma esposa? Eles prometeram uma esposa? —Arthur assentiu levemente, reconhecendo — Quem?
Uma das maiores herdeiras das Highlands ocidentais, a segunda irmã de Lachlan MacRuairi, lady Christina, senhora das Ilhas.
—Não sei —mentiu Arthur — Quando acabar a guerra me encontrarão uma esposa adequada.
Não era a primeira vez que desejava ser capaz algo precipitado, como tomá-la entre seus braços e lhe fazer promessas que jamais poderia cumprir.
—Já vejo —disse ela com voz diminuída — E por que não me contaram isso?
Ele a olhou com atenção.
—Como fizeram todos?
Anna estremeceu. Ao que parecia, tinha esquecido para onde se dirigiam. Mas ele não o tinha feito. A cada passo que os aproximava do Auldearn e Ross, Arthur sentia crescer a inquietação em seu interior. Sabia que tinha que fazer algo para evitar essa aliança, pela missão, conforme dizia a si mesmo. Mas o que?
Talvez não tivesse que fazer nada absolutamente. Era possível que Ross simplesmente se negasse a retomar as conversações sobre o compromisso. Mas com somente olhar a doce cara de Anna, Arthur foi consciente de que estava sonhando. Sir Hugh ficaria com ela com os olhos fechados. Apertou a mandíbula e lhe estendeu a mão.
—Vamos, temos que retornar. Faz-se tarde e temos um longo dia pela frente.
Quando Anna deslizou uma mão sobre a dele uma onda de calor invadiu todo seu ser. sentia-se… satisfeito. Como se não houvesse nada mais natural que ter essa pequena mão entre as suas. Todos seus instintos clamavam por agarrá-la e não deixá-la escapar.
Mas em vez disso, permitiu que seus dedos se desenlaçassem. Caminharam em silencio até o acampamento. Já se haviam dito suficiente. Talvez muito.
Capítulo 14
—Algo errado com sua comida?
A voz de sir Hugh tirou a Anna de seus pensamentos. Quanto tempo levava olhando sua tigela como uma boba e tirando o miolo ao pão pouco a pouco, sem dizer uma palavra? Tentou cobrir sua falta de tato com um sorriso ao mesmo tempo em que a vergonha se revelava em suas bochechas em forma de rubor.
—Não, está deliciosa. —Para dar fé disso meteu um pedaço de vitela na boca e fingiu deleitar-se. Uma vez o teve mastigado pediu desculpas — Temo que ainda esteja cansada pela viagem e não sou uma boa companhia.
Fazia duas noites que tinham chegado ao Auldearn. O último dia de marcha foi exaustivo, mas felizmente sem incidentes. Esperava em seu foro interno outra oportunidade para falar com sir Arthur antes que chegassem, e teve que levar uma decepção. Não era que ele a tivesse evitado, mas tampouco a tinha procurado.
Algo mudou aquela noite no lago, ao menos para a Anna. Arthur lhe tinha devotado uma parte de seu ser que parecia não revelar freqüentemente, uma parte dele que talvez a necessitasse. E o mais importante: não a tinha espantado. E por que não o tinha feito? Tudo teria resultado mais simples. Anna lutou por reprimir a cálida inflamação que ia a seus olhos e sua garganta enquanto a miséria se apoderava dela. Isso era o que lhe faltava, ficar a chorar em meio da comida como se fosse uma criada meio louca e doente de amor. Seguro que assim impressionaria sir Hugh.
Embora fosse jovem, apenas vinte e três anos, sir Hugh Ross era um homem cuja grandeza, superioridade e decidido atrativo se refletiam no perfil de seu perfeitamente torneado nariz até a ponta de seu afiado e curto queixo. Mas o orgulhoso cavalheiro parecia muito maior. Virtualmente parecia controlar-se em demasia, com tanta serenidade e tanto controle sobre si mesmo e essa arrogância de príncipe, algo que tampouco estava muito longe da verdade, dado a fila que ostentava entre a nobreza escocesa. Rígido, sem senso de humor, com esse aspecto frio e desumano tão próprio dos homens de sua época.
Sir Hugh lhe dirigiu um sorriso de compreensão que não melhorou em modo algum a severidade de seu semblante.
—É obvio, depois de cavalgar para tal passo e estar a ponto de ter uma topada com um grupo de rebeldes, é algo previsível. —Seu rosto adotou um aspecto sombrio — Teria que esfolar ao Bruce com suas próprias esporas por ser líder desse bando de piratas desalmados —acrescentou, voltando seu acerado olhar sobre ela — Foram muito afortunados de receber aviso a tempo de escapar —disse puxando a barba enquanto a observava. Anna não podia afastar os olhos de suas grandes e ossudas mãos, umas mãos que poderiam esmagar ou assassinar com a facilidade como que as suas rompiam um galhinho — Foi sir Arthur Campbell, não é certo? O irmão do rebelde Neil Campbell.
Anna assentiu, incomodada com seu próprio acanhamento. O nervosismo que sentia na presença de sir Hugh, o qual foi a primeira causa de que rechaçasse o compromisso, não fazia mais que agravar-se desde sua chegada. Sorrir e responder a suas educadas tentativas de conversa se convertia uma batalha. Observava-a como se pudesse ler seus pensamentos. Teria se delatado? Ela tinha tomado cuidado nem olhando na direção sir Arthur desde que chegaram. Ao menos acreditava não tê-lo feito. Mas estava mais que segura de que ele sim a estivera observando. O qual, provavelmente, explicava parte de sua inquietação. Seduzir a um homem sob o fulminante olhar de outro não era tarefa fácil. Mas tinha que fazer. Embora não gostasse da idéia. E a idéia não gostava absolutamente. Os dias passados encarregaram de deixar claro. Temia pensar muito no que sentia por Arthur por medo que descobririam.
—Tivemos muita sorte — comentou ao conscientizar de que sir Hugh esperava que dissesse algo.
Anna não sabia o que lhe acontecia. Jamais teve esse tipo de problemas na conversa com ninguém. Procurava controlar o tremor de suas mãos, mas lhe inquietava tanto a intensidade de seu olhar que atirou o pedaço de pão que tinha na mão. Caiu sobre a mesa, junto a sua taça e ao tentar recolhê-lo ao mesmo tempo em que Hugh Ross suas mãos se tocaram. Antes que desse tempo a retirar a sua, sir Hugh a cobriu com seus dedos. Seu pulso se acelerou até embarcá-la em uma sensação próxima ao pânico. Seu coração revoava em seu interior como se tratasse de um passarinho enjaulado.
—Está nervosa - disse lhe soltando a mão e lhe devolvendo o pão.
Ardiam-lhe as bochechas.
—Não têm nada que temer, lady Anna —disse visivelmente divertido — Sou bastante inofensivo. —Ela deve ter posto cara de não acreditar absolutamente, pois ele acrescentou—: Bom, pode ser que não completamente.
Essa inesperada amostra de humor a fez sorrir e pela primeira vez sentiu que começava a relaxar. Olhou-o do meio lado, protegida sob suas largas pestanas.
— Bom, milorde, é que sua pessoa é… certamente imponente.
—Tomarei como um elogio, embora não acredito que fosse essa sua intenção —disse entre risadas, para depois aproximar-se mais a ela e sussurrar—: O que parece se me esforço por ser imponente com todos menos contigo? Contigo serei o mais inofensivo. Será nosso segredo.
Anna, incapaz de resistir a seu encanto, sorriu até que lhe marcaram as covinhas. Sir Hugh Ross encantador? Jamais teria acreditado. Acaso o mal-humorado nobre ocultava mais do que Anna conhecia?
—Acredito que disso eu gostaria, milorde —disse sentindo que voltava para ela um pingo de seu atrevimento — Talvez ajudasse que sorrisse mais - acrescentou erguendo os olhos para olhá-lo.
Sim, quando sorria não parecia intimidar tanto.
Sir Hugh esboçou então um amplo sorriso e procurou seus olhos com o olhar.
—Pois então o farei - replicou. Fez uma pausa em seu discurso e Anna observou como se entretinha em riscar o relevo do pé da taça, interrompendo-se de um modo quase sensual que a devolveu a seu estado de inquietação — Estou muito contente de que tenham decidido viajar até o norte, lady Anna.
Cada vez estava mais tinta. Não lhe escapava o significado de suas palavras. Estava disposto a renovar as conversações em torno do compromisso. Sabia que devia sentir-se aliviada. Para isso tinha ido até ali. Poderia ajudar a salvar a sua família. Então por que notava como se uma estaca se atendasse em seu peito?
Assentiu com indolência, incapaz de encontrar-se com seu olhar de repente, temendo que revelasse muito. O peito lhe angustiava ao conscientizar de que o laço de seu futuro cada vez se atava com mais força. Seus sentimentos pessoais não importavam. Deveria contentar-se sabendo que tinha posto seu grãozinho de areia para ajudar à família. Isso seria recompensa suficiente, verdade?
Ross se voltou e fez gestos a uma criada que passava para que enchesse suas taças. Anna voltou o olhar inconscientemente para Arthur. Sabia onde estava sem necessidade de olhá-lo. Parecia atravessar toda a sala com o calor de sua ira. Seus olhares se encontraram durante um instante, mas foi tempo suficiente para que a força de sua ira ressonasse como o rugido de um ferreiro na forja. Em geral, continha tanto suas emoções que Anna se perguntava se realmente existiriam. Mas isso acabou. Jamais o tinha visto tão feroz e selvagem. Parecia um homem cuja contenção pendia de um fino fio.
Voltou-se, sobressaltada pela emoção que a embargava. Infelizmente não voltou o olhar com suficiente rapidez e sir Hugh apreciou parte do intercâmbio. Notou como ficava em guarda e entreabria os olhos olhando sir Arthur.
—Campbell não parece muito feliz com nosso acerto. Eu não gosto da forma em que vos olha - disse voltando o olhar para ela e arqueando uma sobrancelha de tal modo que parecia algo menos casual — Há algo que deveria saber lady Anna?
Amaldiçoou Arthur por sua imprudência. Arruinaria tudo. E para que? Já tinha tido oportunidades mais que suficientes para mostrar seus sentimentos, se é que albergava alguns. E agora não ficava opção. Seu pai contava com ela.
Mesmo assim duvidava. Essa seria sua última oportunidade para voltar atrás. Seu coração puxava em uma direção, e o dever e sua família puxavam a outra. Anna recordou a conversa mantida com sir Arthur. O ouvir falar de perder a guerra a tinha feito tremer. Inspirou profundamente e se desembaraçou de todas as dúvidas. Seus sentimentos pessoais não importavam. Tinha que fazê-lo. Quando Bruce chegasse, teriam muitas mais possibilidades com Ross e seus homens ao seu lado.
Negou com a cabeça.
—Não, não há nada que deveria saber.
A certeza de sua voz pareceu convencer sir Hugh. Assentiu.
—Bem —disse lhe estendendo a mão — Venham, há algo que eu gostaria de mostrar e acredito que há certas coisas que deveríamos discutir.
Anna ignorou a dor que lhe oprimia o coração e sorriu, embora tremulamente. Sem nenhum olhar mais, deu a mão ao Ross e lhe permitiu que a tirasse do grande salão com seu futuro já mais que decidido.
Isso era o que se sentia quando as pessoas perdiam o controle. Isso era o que se sentia quando alguém queria algo com tanta vontade que mataria por consegui-lo. Não pelo bem ou o mal, nem por estar no campo de batalha, mas sim pela pura satisfação de ver outro homem atravessado pela ponta de seu aço.
Arthur queria matar Hugh Ross. Dava-lhe vontade de matá-lo somente pela forma em que olhava a Anna. Pelos pensamentos luxuriosos que seguro percorriam a mente daquele filho de cadela. Arthur não acreditava ser capaz de conter-se no caso de que o olhar do Ross se detivesse de novo sobre seus seios. Atiraria uma lança no seu sobrecenho do outro lado do aposento. Poderia fazê-lo com os olhos fechados. Ficar afastado durante os últimos dois dias obrigado a contemplar como outro homem cortejava a essa mulher que, supostamente, não significava nada para ele era como uma lenta e agonizante descida à loucura. Arthur liberava uma batalha perdida. Suas tentativas de permanecer indiferente, de centrar-se na missão, não funcionavam. Todos esses anos de treinamentos e experiência na batalha não o tinham preparado para aquilo. Ver Anna e Hugh Ross juntos estava lhe fazendo em pedaços. Mas essa noite foi a gota que encheu o copo. Quando viu Ross lhe acariciar a mão, Arthur esteve a ponto de sair da ali feito uma fúria e lhe partir todos os dentes num murro. Ao diabo com o subterfúgio. Estavam rindo, maldita seja. Rindo.
Queria convencer-se de que ela não seria capaz de passar por isso. Não seria porque Anna não se mostrou precavida a respeito ao cavalheiro durante os últimos dois dias, precisamente. Mas Arthur tinha subestimado sua resolução, e também o encanto de sir Hugh. Quando se aproximou para lhe sussurrar ao ouvido teve que apertar os punhos. Não foi até que baixou o olhar e percebeu a palidez de seus nódulos que se deu conta de quão forte tinha a taça obstinada. Foi toda uma sorte que fosse de madeira; de outro modo, a teria destroçado.
Amaldiçoou consciente de que devia fazer algo. Tinha que pensar em sua missão. Sir Hugh não perdia tempo, e não é que pudesse culpá-lo. Se Arthur não fazia nada para impedir aquela aliança, seria muito tarde. Bebeu o conteúdo da taça. O uisgebeatha de cor ambarina fez que ardesse a garganta, mas não acalmou absolutamente a intranqüilidade que bulia em seu interior.
—Que diabos te passa, Campbell? Parece que queira matar a alguém - disse Alan MacDougall olhando de soslaio ao estrado. Sabia perfeitamente a quem queria matar Arthur. Aproximou-se para falar — Tome cuidado. Acredito que nosso anfitrião advertiu seu interesse por minha irmã.
Arthur economizou a vergonha de negá-lo. Alan MacDougall podia ser filho de um déspota desumano, mas não era nenhum idiota.
—E viestes para ordenar que me retire do conflito?
O guerreiro mais velho, muito experiente para delatar-se pela expressão de seu rosto, olhou-o com impassibilidade.
—Queres que o faça?
Arthur contraiu a mandíbula e apertou os dentes.
—Deveria — disse em um estranho momento de franqueza.
Não faria mais que arruinar sua vida. Se ele fosse seu irmão, ordenaria que o mandassem ao inferno diretamente e logo iria ele mesmo atrás. Mas se Alan pensou que havia algo estranho em sua resposta certamente não o exteriorizou. Em vez disso, sorriu com ironia.
—Parece-me que é muito tarde para isso.
Arthur afastou o olhar de sir Hugh e de Anna o tempo suficiente para olhar ao Alan enviesadamente. Não tinha idéia do que Alan acreditava saber, mas se equivocava. Ou não?
Diabos, já não sabia. Sua missão. Ciúmes. Sua intensa atração pela moça. Tudo isso se mesclava criando um caos absoluto. Voltou a beber de um gole o conteúdo da taça.
Alan observou como o fazia com uma expressão divertida.
—Acreditava que não bebia uísque.
—Não bebo - disse Arthur, e fez gestos à criada para que lhe enchesse a taça.
Alan estivera observando-o com mais atenção da que pensava. Aquilo o teria preocupado a não ser porque algo lhe fez voltar sua atenção para o estrado. Todos seus músculos ficaram rígidos quando viu que Anna deslizava sua mão sobre a do Ross. A ira percorria todo seu corpo ao mesmo tempo em que aquele homem se inclinava para falar brevemente com seu pai momentos antes de acompanhá-la ao exterior do salão. Justo antes que Hugh passasse pela porta olhou para Arthur. O tom malicioso de seu olhar fez que lhe gelasse o sangue. Uma sensação estranhamente próxima ao pânico subia por seu peito, algo ridículo por completo. Era um guerreiro de elite. Distante. Controlado. Pode ser que seu coração pulsasse muito depressa e que não pensasse com claridade, mas era indisputável que aquilo não podia ser pânico.
Mas onde demônios acreditava que ia? Ross, esse filho de puta lascivo, estava obviamente ansioso pelo compromisso. Quem sabia do que seria capaz para assegurá-lo? Acaso Anna não notava do que aconteceria quanto estivessem a sós? A mente de Arthur voltou para os barracões imediatamente.
«Por todos os diabos.»
Conseguiu resistir durante uns trinta segundos até que já não pôde agüentar mais. Levantou-se para partir, mas Alan o deteve movendo sua perna pela borda da mesa e lhe fechando o passo. Não era nenhum acidente. A princípio Arthur acreditava que queria detê-lo, mas para sua surpresa o guerreiro retirou a perna lentamente e lhe deixou passar, não sem antes fazer uma advertência.
—Se fizer mal a minha irmã, Campbell, terei que te matar.
Apesar de que falasse com tanta calma como se informasse o tempo, Arthur era consciente de que dizia muito sério. Que diabos, se Alan não fosse seu inimigo e o filho de um déspota, pode ser que inclusive lhe caísse bem. Arthur o olhou nos olhos e assentiu, com a suspeita de que Alan MacDougall não seria capaz de manter sua promessa. Pôr fim ao compromisso e deter a aliança, fazendo dano a Anna no processo, converteu-se em algo inevitável.
Anna esperava que sir Hugh a levasse fosse para passear pelo barmkin, mas em vez disso a fez entrar pelo corredor até a torre da comemoração. O castelo real do Auldearn fora construído uns cem anos antes por encargo do Guillermo o Leão. Sua torre da comemoração e o grande salão contíguo se erguiam no alto de um enorme Castro circular rodeado por um cerca de madeira. O muro de pedra que rodeava o pátio de armas que havia debaixo proporcionava um nível mais de defesa. O corredor iluminado pelas tochas parecia silencioso em comparação com o bulício do grande salão. Anna se inquietou ao ser consciente de que não havia ninguém mais ao redor. Embora os últimos raios de sol ainda reverberassem sobre o horizonte, a torre de pedra estava já às escuras. Tampouco a luz cintilante das tochas alinhadas nos muros lhe dava mais tranqüilidade.
—A…aonde vamos? — perguntou envergonhada pelo tremor de sua voz.
Sir Hugh lhe dirigiu um enigmático sorriso que fez que Anna se perguntasse se saberia a impressão que causava nela.
—Já quase chegamos.
Deteve-se frente à porta da câmara particular do conde. Uma vez aberta, Anna aliviou comprovar que a estadia estava bem iluminada pelo castiçal de ferro circular que pendia do teto. Infelizmente, Hugh a levou até outra porta que havia cruzando a sala, com o que Anna percebeu de que aquele não era seu destino final. O segundo aposento estava às escuras. Anna ficou na câmara até que sir Hugh acendeu umas velas. Então ficou sobressaltada.
Anna se esqueceu de seu nervosismo. Apressou-se a entrar no minúsculo aposento, não muito maior que uma despensa, e olhou com surpresa a seu redor. O centro da sala estava presidido por uma mesa e um banco, mas o que enchia seu assombro era o que havia sobre as paredes. Prateleiras e mais prateleiras cheias de grossas folhas de couro, alguns deles recobertos de ouro e outros com jóias incrustadas. Um tesouro oculto. Mais livros dos que tinha visto em sua vida em um só espaço.
Sir Hugh observou em que modo a maravilha e a incredulidade transformavam seu rosto.
—Pensei que isto poderia lhes interessar.
Anna deu uma palmada de puro prazer; seus dedos estavam impacientem por explorar os títulos. Por Deus bendito, se pareciam quatro volumes do Chrétien do Troyes!
—É magnífico — disse voltando-se para ele — Como sabias?
Hugh Ross encolheu de ombros.
—Em certa ocasião mencionaram que desfrutava da leitura.
Anna inclinou a cabeça e o olhou. Uma vez mais sentia como se o tivesse julgado mal.
—E se lembrou?
Sir Hugh não respondeu, mas a olhou de tal forma que um formigamento de inquietação lhe percorreu as costas. Desejava-a. De repente aquele minúsculo aposento pareceu uma armadilha a Anna. Olhou para a porta, mas já fosse intencionadamente ou não, ele se tinha colocado frente a ela lhe cortando o passo.
—por que me trouxestes aqui? —perguntou.
Sir Hugh deu um passo adiante e seus olhos brilharam de maneira perigosa entre as penumbras. Pegou-a pelo queixo e a obrigou a olhar em sua direção. O pulso lhe acelerou de pânico. Talvez fosse uns cinco centímetros mais baixo que sir Arthur, mas em certo modo seu tamanho lhe parecia ameaçador. Anna teve que reunir todo o valor com o que contava para não sair correndo.
—Queria lhes mostrar o que terá quando fores minha esposa. Esta sala estará a sua disposição. Será uma das damas mais importantes do reino. Para isso viestes, lady Anna. Não é assim? Para reatar as conversações sobre nosso compromisso.
—Sim - sussurrou ela, tentando controlar o tremor de sua voz.
Hugh cravou o olhar em seus olhos, desafiando-a.
—É isso o que quer realmente?
O coração lhe pulsava com fúria. Teve que obrigar-se a assentir.
—Sim.
—Então prove — pediu. Ela piscou de maneira inquisitiva — me beije.
Anna abriu os olhos de par em par pela surpresa.
Lutava por saber o que dizer. Mas, pelo amor de Deus, não podia. E ele sabia. Endureceu o olhar.
—Está jogando comigo, lady Anna? Asseguro-lhes que não tenho nenhum desejo de ser o corno de outro homem. Recorde que são vocês quem acudis a mim nesta ocasião. —Sir Hugh lhe pôs um dedo no lábio inferior e Anna conteve o fôlego, paralisada pelo medo — Decida o que quer antes de fazer algo que não possa ser desfeito. Uma vez estejamos comprometidos, asseguro-lhes que não tolerarei tais tolices.
As bochechas de Anna se avermelharam, envergonhada por quão certas eram suas acusações. Sacudiu o medo tentando recordar por que tinha ido até ali, tentando recordar quão importante era conseguir essa aliança para ela. Não podiam deixar escapar essa oportunidade. Por que se comportava como uma estúpida? Somente se tratava de um beijo.
—milorde, o temporal…
Ao ver que lhe soltava o queixo, Anna suspirou mostrando maior alívio do que devido.
—Temos que retornar ao salão - disse Ross fria e secamente — Seu irmão se estará perguntando aonde a levei.
Anna assentiu, sentindo sua impotência, consciente do que devia fazer, mas incapaz de pronunciar as palavras. Que o diabo levasse Arthur Campbell pelo que estava fazendo com ela! Por confundi-la. Ela estava preparada para levá-lo a cabo antes que ele voltasse a aparecer.
—Se não lhes importar, meu senhor, estou cansada e preferiria me retirar a meus aposentos.
Sir Hugh assentiu.
—Não há pressa. Querem tomar um livro emprestado, talvez? —Olhou-o nos olhos, consciente de que tentava tentá-la — Podemos falar sobre isso manhã.
Hugh Ross deu meia volta para partir, mas algo o fez mudar de idéia. Antes que ela pudesse conscientizar do que se dispunha a fazer, já a tinha atraído para si e a estava beijando. Anna ficou paralisada, muito surpreendida para resistir.
Seus lábios eram frios e duros, em consonância com sua pessoa. Acertou a distinguir um leve aroma a vinho, mas antes que pudesse descobrir algo mais já tinha acabado tudo. Sir Hugh baixou o olhar e sorriu ao ver o rosto de surpresa que Anna tinha posto.
—Têm toda a noite para decidir. Mas se quiserem que o compromisso siga adiante, espero que me dêem uma resposta amanhã. Uma que seja algo mais entusiasta que esta.
Ross não se fazia uma idéia do perto que estava da morte. Arthur apertava a adaga em sua mão, tentando controlar a sede de sangue que percorria suas artérias com cada um dos músculos. Tudo que tinha que fazer era dar um par de passos, sair de seu esconderijo depois das sombras do vão da porta e afundar sua folha no mais profundo das vísceras daquele filho de cadela.
Tinha-a beijado. Tinha-a tomado entre seus braços e tinha grudado sua boca a dela. Algo se rompeu em seu interior. Todos seus instintos lhe diziam que tinha que sair dali e matar ao homem que se atrevia a tocar aquilo que lhe pertencia. Mas algo deteve sua mão no último momento. Matar ao Ross poria fim a sua missão. Veria-se obrigado a fugir, acabando assim com sua oportunidade de destruir ao Lorn. Teve que aferrar-se ao mínimo de controle que ficava para não mover-se, mas deixou que Ross saísse do aposento. Deixou-lhe viver. Por essa vez.
Entretanto, Anna não escaparia a sua ira tão facilmente. Asseguraria-se de que não houvesse mais que uma resposta à manhã seguinte. O compromisso que ela tinha planejado estava a ponto de chegar a um final irrevogável.
Anna seguiu os passos do Ross apenas se desvaneceram suas pegadas. Assim que chegou à porta, Arthur saiu de entre as sombras e lhe fechou o avanço.
Ela ficou sem fôlego. Todo o medo que pudesse sentir logo desapareceu para dar passo ao brilho de ira que incendiava seu olhar.
—Como te atreve a me espiar? —exclamou. Tentou afastá-lo de seu caminho, mas ele imobilizou seus pulsos com uma mão — Deixe-me partir. Não tem nenhum direito.
Voltou a colocá-la no aposento e fechou a porta atrás dele.
—Tenho todo o direito —disse Arthur com fúria — Não se casará com ele.
Advertiu o rubor de suas bochechas à luz das velas. Seu busto, esses incríveis seios, tão grandes que não podia deixar de sonhar com eles, enchiam-se com uma indignação justificada. Anna ergueu o doce rosto com seu adorável e teimoso queixo para ele.
—Sim o farei.
Não gostava desse tom absolutamente. Nenhum pingo. Entreabriu os olhos.
—Nem sequer podia lhe beijar - disse aproximando-se mais a ela e aspirando a sensual calidez de sua fúria — Como pensa que será então deitar-se com ele?
A indignação de Anna se traduziu em um áspero gemido. A Arthur não cabia a menor duvida de que lhe teria parecido uma adaga entre as costelas se tivesse uma. Mas sua língua era igual de efetiva estripando-o.
—Suponho que chegarei a me acostumar. É possível que inclusive desfrute. Sir Hugh é um homem muito arrumado. E parece bastante decidido, não acredita? —disse lhe provocando com o olhar, desafiando-o, voltando-o louco — Se parecer em algo a esse beijo imagino que chegarei a desfrutar muito disso.
Agarrou-a pelo braço.
—Pare — disse agitando-a ante si — Pare.
Parecia estar a ponto de explodir. Suas provocadoras palavras exaltavam ao máximo aqueles sentimentos contidos durante tanto tempo. Uns sentimentos que Arthur não queria reconhecer. Uns sentimentos que não podia permitir que aflorassem. A cabeça lhe dava voltas. Queimava-lhe o peito. Deus, doía demais. Tinha que fazê-la parar.
—Por quê? —perguntou Anna aproximando-se mais a ele. Arthur sentiu seus mamilos lhe roçando o peito e teve que sacudir-se realmente, pois todo o controle com o que contava seu corpo pendia de um fio. O calor o puxava para um vórtice de luxúria e desejo. Queria esmagá-la contra si. Beijá-la. Possuí-la até deixá-la sem sentido. Fazê-la gritar seu nome e nenhum mais que o seu — Por que teria que parar? É a verdade. Sir Hugh me deseja muito como um homem que vê o que quer e não se detém ante nada até que o consegue.
Era consciente de que não fazia mais que provocá-lo, mas não lhe importava. Arthur sabia perfeitamente o que queria, maldita seja. A ela. Renegou, consciente de que a batalha estava perdida. Tomou entre seus braços e pregou sua boca a dela, cedendo a esses poderosos impulsos que liberavam uma guerra em seu interior. Beijou-a como jamais antes tinha beijado a mulher alguma. Beijou-a com toda a paixão que acumulava desde que a visse pela primeira vez. Beijou-a para que não seguisse falando. Beijou-a para apagar as odiosas imagens com as que tinham enchido sua cabeça. Beijou-a de modo tal que não pudesse voltar a pensar em outro homem em sua vida.
Não obstante, uma vez que Anna se fundiu ante ele em uma rendição silenciosa e abriu sua doce e pequena boca para recebê-lo com um suspiro e um gemido, Arthur não pensou mais em missões, alianças, clãs inimigos ou vingança. Não. Tudo assim que pensava era em fazê-la sua.
Capítulo 15
Anna sabia que se precipitava e que estava provocando-o, mas não lhe importava. A ira não lhe deixava ver mais que sua necessidade de arremeter contra ele. Odiava-o por intrometer-se, por fazê-la duvidar, por interferir em seus planos. Não queria outra coisa que proteger a sua família e manter a salvo às pessoas que amava. E quando tinha a oportunidade de conseguir, Arthur Campbell se interpunha em seu caminho.
Confundia-a. Desorientava-a. Fazia que tomasse carinho e logo a separava de seu lado. Em um momento a salvava e a protegia e ao seguinte a ignorava. Era um ingrato, um homem que se mantinha à margem e dava a impressão de não necessitar a ninguém. Mas também era um homem que estava sozinho, alguém afastado por seus próprios dons, obrigado a viver um tanto afastado de outros.
Queria-a? Necessitava-a?
Em qualquer dos casos teria que decidir-se. O tempo se esgotava para ambos. Era consciente de que estava ciumento, consciente de que tinha visto o beijo que lhe deu sir Hugh, consciente de que lutava por manter o controle. Assim o provocou.
Desejava-o com tanta vontade… A essa distância o único em que podia pensar era em seu doce aroma. E em que o aspecto desalinhado que lhe dava a escura sombra de sua barba o fazia mais arrumado ainda. No alto que era. A enmembrodura de seu peito. O suave que se viam seus lábios embora estivessem brancos de ira. Em que o daria tudo por que tomasse entre seus braços e não a abandonasse nunca. A dor rasgava seu peito como uma faca. Por que não a queria? Por que se reprimia?
Isso foi o que a levou a provocá-lo de maneira temerária, desesperada, com intenção de lhe ferir tanto como ele a feria. E se era mentira? E o que lhe gelava o sangue com somente imaginar-se na cama com outro homem? Desfrutar? Mal podia deixar de tremer de medo em presença de sir Hugh.
Então ele se desmoronou e Anna obteve sua recompensa. Encontrou-se em seus braços, com a boca de Arthur pegada à sua, beijando-a com toda essa paixão e emoção com que ela tinha sonhado. Ele a devorava com a boca e a língua, enquanto ela gemia e se entregava mais e mais a seu beijo, morrendo por sentir cada dobra de sua pele. Deslizava suas enormes mãos sobre ela de modo possessivo. Passou-a por suas costas e depois sobre os quadris, até que desceram para agarrar seu traseiro. Então rugiu de agrado sobre sua boca e a beijou com mais força ao mesmo tempo em que a acoplava firmemente contra seu corpo.
As sensações se desatavam em seu interior em um ataque de calor resplandecente.
OH, Deus, aquilo era perfeito. Seu peito contra o dele, os quadris colados e a dura confirmação do desejo masculino introduzindo-se entre suas pernas de uma maneira íntima. Era consciente de que o tamanho e o tato teriam que assombrá-la, mas o único que sentia era a excitação, uma excitação que fazia lhe acelerar o coração, sua pele se ruborizasse e sentisse comichões por todo o corpo.
Estavam cobertos um com o outro, mas aquilo não bastava. A cada delicioso roce de sua língua, a cada possessiva carícia de suas mãos, crescia a inquietação no interior de Anna. Respondeu a seu atrevimento com mais atrevimento. Agarrava com firmeza os duros músculos de seus braços, seus ombros e suas costas. Queria sentir cada centímetro de seu corpo sob os dedos, modelar seus músculos com as palmas de suas mãos. Conter toda sua força baixo elas.
Aquilo a fazia sentir… embriagada de desejo. Era a primeira vez na vida que tinha uma experiência de tal calibre. Seu corpo parecia ressuscitar. Reagia aos estímulos de maneira natural, como se soubesse o que estava fazendo. Tudo ocorria muito rápido para pensar. O desejo a tinha feito sua presa e não parecia disposto a soltá-la.
Aproximava-a de seu corpo cada vez com mais urgência, esfregando sua virilidade contra a mais feminina de suas partes. A fazia sentir estranha, com comichões, quente, ofegante. Mas não era suficiente. Ávida de fricção, sedenta por encontrar uma conexão mais profunda, descrevia círculos com seus quadris e se esfregava com essa grosa coluna de carne com mais força.
Arthur percorreu seu pescoço com a boca e a devorou com seus beijos. Sua barba de dois dias fazia sulcos em sua pele em chamas. O aposento jogava fumaça e ardia de paixão. Agarrou-a pela cintura e deslizou as mãos até seus seios. Anna ofegou e se pegou quanto pôde a seu membro viril ao mesmo tempo em que arqueava as costas procurando suas mãos. Arthur murmurou algo parecido a uma imprecação e roçou seus turgentes e ofegantes mamilos com os polegares enquanto sua boca se dava de presente com a tenra pele que aparecia por cima do corpete.
Estava muito quente. Sentia-se débil. Lânguida e pesada. Parecia que suas pernas não contassem com forças para sustentá-la. Desabou-se sobre Arthur, que a puxou de novo sobre a mesa para acalmá-la, e talvez também para acalmar a si mesmo. Aquele cavalheiro, que mostrava um controle tão férreo sobre si, parecia sofrer apuros igual aos selvagens e frenéticos dela.
Os escuros e sedosos cabelos de Arthur se derramaram sobre seu peito. Anna, incapaz de resistir, passou os dedos entre essas suaves ondas e o apertou contra si com força e ternura. A umidade de sua boca transpassava o tecido do vestido para chegar até seu mamilo ao mesmo tempo em que acariciava seus seios e os rodeava com suas mãos.
Mas não era suficiente.
Então sua língua pareceu perceber essa frustração e entrou sob o corpete. Um gritou escapou dos lábios de Anna ante tamanha perversão, ante o delicioso prazer que sentia. Aquela boca estava muito quente. Passou-lhe a língua de um lado a outro, até que pensou que já não poderia resistir mais. Retorceu-se contra ele suplicando para que desatasse a voragem que se formava em seu interior.
Por fim lhe deu um puxão do vestido até quase romper o tecido e o abriu para liberar seus seios. O frio ar soprou sobre sua pele e provocou formigamentos ali onde a tinha beijado.
—Jesus — exclamou Arthur, como se aquilo doesse — É incrivelmente bela.
Provavelmente ouvir sua voz teria quebrado seu estado de transe, mas Arthur cobriu seu ofegante mamilo com a boca e começou a chupá-lo antes que Anna pudesse acolher-se a esse momento de iluminação. Essa doce e aguda sensação a fez gritar. Era um prazer tão agudo que se aproximava muito à dor. Atendia-a com os dentes, dava-lhe linguadinhas e sugava sua cálida boca cada vez com mais intensidade. O calor se estendeu entre suas pernas em uma corrente de umidade. Sentia comichões em suas suaves carnes inflamadas.
Tinha-a aprisionada contra a mesa com as pernas abertas. Montou uma delas sobre seu quadril ao mesmo tempo em que se inclinava para lhe beijar o seio. Os ferozes pulsar do coração de Arthur troavam contra seu peito, seus músculos se esticavam da excitação e a cobriam com todo o peso de seu corpo. E Anna estava quente. Tão quente que queimava. Excitada até o ponto de não retorno.
Arthur deslizou a mão sob o vestido até fazer contato com a pele. Suavizou o impacto acariciando o mamilo pausadamente entre seus dentes. Então voltou a cobrir sua boca com beijos, e suas mãos… Céu santo estava colocando as mãos entre suas coxas! Envergonhada, tentou fechar as pernas. Mas ele não o permitiria. Sua boca a distraía com os longos e pausados movimentos de sua língua, ao mesmo tempo em que ele entrava em sua umidade com os dedos. O corpo de Anna tremeu ao sentir o contato. Seus protestos se dissolveram em uma onda de alívio estremecedor. Aquilo dava muito prazer. Um prazer surpreendente.
—Jesus, é tão doce…
Deixou de beijá-la e Anna se perguntou se teria feito algo indevido, até que percebeu de que era ele quem estava passando mal, tentando conter-se, como se lutasse por controlar-se. Como se tocá-la o tivesse despojado de suas últimas reservas de contenção. Como se muito em breve não pudesse controlar-se. Ficou olhando-a nos olhos ao mesmo tempo em que introduzia seu dedo nela com um pequeno e firme empurrãozinho. Aquele era o momento erótico mais perverso de sua vida. Tomou fôlego em uma tentativa de estabilizar as sensações, mas estas se precipitavam sobre ela em rápidas ondas que não davam trégua alguma. Acariciou-a. Primeiro com círculos pequenos e suaves, depois com mais força, mais rápido, com impulsos profundos e frenéticos que pareciam decalques dos beijos que acabava de lhe dar.
A sensação que se formava em seu interior era muito intensa. Muito poderosa para ser contida. Esticava-se e recuava em um endiabrado redemoinho de necessidade. Seu rosto era uma máscara de dor. O suor se acumulava sobre suas sobrancelhas. Arthur a olhava nos olhos de modo escuro e penetrante, agarrando-a de tal forma que o coração lhe estalava de felicidade. Anna por fim via a verdade em seus olhos, o que intuía desde o começo. Essa conexão que havia entre eles era especial. E também ele a sentia.
Não sabia o que lhe estava acontecendo, mas era perfeito. Cada uma de suas carícias a levava até limites que era incapaz de compreender. Retorcia-se de frustração. Seu corpo inteiro clamava por…
—Te relaxe, amor —sussurrou Arthur — Quero te fazer voar.
O som aveludado de sua voz abriu caminho através dos últimos vestígios de sua repressão de criada. Ficou sem respiração até que pareceu que seu corpo se faria em pedaços devido ao intenso prazer que procuravam os agudos espasmos e teve que libertar todo o ar em um gemido estremecedor. Era o momento mais maravilhoso de sua vida, mas à medida que olhava o escuro interior desses olhos com bolinhas douradas, soube que não era suficiente. Tinha satisfeito sua paixão, mas seu coração ainda palpitava pela necessidade de realizar-se. Queria uma conexão mais profunda. Queria senti-lo em seu interior. Queria ter tudo dele. Para sempre.
«Quero-te.» É obvio. Estava tão claro, era tão certo, que se perguntava como poderia ter sido de outra maneira. Guerreiro. Cavalheiro. Isso pouco importava. Porque em seu coração, Anna sabia que tinha encontrado ao homem com quem estava destinada a compartilhar sua vida.
Arthur já não podia esperar mais. A pressão se acumulava na base de sua coluna como um punho quente e conectava com a vibrante ponta de um membro que pedia alívio, que a tocasse, que atendesse a seus agudos gritos e ofegos de prazer e sentisse como seu corpo se derretia e se estremecia ao rodeá-la com a mão. Apertou os dentes tentando refrear-se, consciente de que estava a ponto de gozar como não o tinha feito antes na vida.
Jesus, que beleza mais embriagadora: cabelos dourados como o mel que se dispersavam atrás de sua cabeça e resplandeciam diante da luz das velas; olhos aturdidos e inflamados pela paixão; seios de formas perfeitas, grande e suave, que saía de seu corpete mostrando um pequeno e arrepiado mamilo avermelhado por suas dentadas.
Tinha o aspecto de uma fêmea no cio que clamava ao céu para que a montassem. «E esta fêmea é minha. Toda minha.».
«Jesus», repetiu para si a meio caminho entre a prece e a imprecação. Jamais antes havia se sentido de tal modo. O desejo o consumia.
—Arthur —choramingou ela — Lhes rogo isso.
O brutal desespero de sua voz foi o último fio de que precisava atirar. Não podia esperar mais para introduzir-se nela. Virtualmente rompeu a fivela e as ligaduras de suas meias e calções para liberar seu inchado membro. Mas tirar o membro de seu confinamento para que lhe desse ar não servia de grande alívio. A única coisa que lhe serviria para aplacar a dor nesse momento era estar dentro dela. Levantou uma de suas flexíveis e sedosas pernas de formas perfeitas, passou-a por trás de seu quadril e se colocou diante daquela abertura cálida e deliciosamente úmida. A próxima vez se tomaria seu tempo em saboreá-la, lhe colocar a língua e fazer que se gozasse sobre sua boca.
Não deixou de olhá-la em nenhum momento. Não se atrevia a afastar o olhar dela por medo de que se perdesse a poderosa conexão que se produziu entre ambos. Teria que ter sentido ao menos a sombra de uma dúvida, ter a sensação de que aquilo que fazia estava mal. A honra era importante para ele, apesar de que o código de cavalaria não o fosse. Mas não sentia nada disso. O único em que pensava era que não podia perdê-la, que tinha que fazê-la sua, e se era capaz de fazer isso, todo o resto sairia bem. Quando a sensível cabeça de seu membro se encontrou com o úmido calor de seu ninho, Arthur exalou um profundo som gutural de puro prazer. Esfregou-se contra sua suave umidade e se deteve ali, consciente de que uma vez dentro seria muito tarde. Tinha o corpo em chamas e todos os músculos em tensão, preparados para fazer entrada. Notava-se o pulso nas veias. Nas orelhas. Até nos ossos. Parecia-lhe ter a pele tensa e ardendo.
«Empurrar.» Deus, que vontade tinha de empurrar. Jamais teve tanta vontade de preencher, de meter-se profundamente em nenhuma mulher. Sabia que seria algo incrível. Seu corpo se ajustaria a ele como uma luva quente e o espremeria com puxões largos e duros até lhe fazer cair profundamente na mais absoluta das inconsciências. Queria ver como se movia sob seu corpo impulsionado pelo poder de seus embates, como levantava os quadris para acompanhar cada uma de suas profundas investidas. Queria ver como seu membro entrava e saía dela.
Apertou os dentes, sentindo uma necessidade de afundar-se nela virtualmente irrefreável. Mas não podia a machucar. Assim que se obrigou a ir devagar. Estimulou-a com sua grossa ereção para que se acostumasse ao tamanho e a força de seu membro e esfregou a ponta com sua umidade para facilitar a entrada. E coberta de maravilha. A pressão se acumulava na base de sua coluna e puxava cada vez com mais força.
Não pôde agüentá-lo mais. Começou a empurrar. Ela gritou, surpreendida.
«Jesus.» Apertou os dentes. O suor se acumulava sobre suas sobrancelhas. O sangue palpitava em suas veias. Tentador. Tão incrivelmente tentador… Tinha que tomar-lhe com calma e com cautela. Deus estava louco por gozar. Ficava muito pouco…
Um leve som penetrou aquela bruma.
Arthur sentiu um premonitório calafrio na nuca e ficou paralisado. O ar tinha mudado. Separou-se dela amaldiçoando enquanto todo seu ser estalava em protestos.
—Te cubra - disse, e lhe deu um puxão no vestido ao mesmo tempo em que tentava atar os calções torpemente.
Mas era muito tarde, ou muito cedo, se atendia à frustração que ardia em seu testículo nesse preciso instante. A porta se abriu de repente. Sir Hugh Ross estava atrás dela, com seu acerado olhar atento a cada detalhe do que acontecia no interior.
Apesar de que se trabalharam em excesso em vestir-se rapidamente, nada podia dissimular o que estavam fazendo. Anna seguia recostada sobre a mesa com as bochechas acesas e os olhos aturdidos, Arthur seguia entre suas pernas e a sala se achava impregnada com o quente e pesado ambiente que corresponde à almiscarada fragrância do emparelhamento, ou em seu caso do emparelhamento frustrado.
Anna ficou sem respiração. O horror apagou as marcas de prazer que ruborizavam seu rosto. Arthur se colocou frente a ela instintivamente, tentando afastar a de seu olhar, como se o escudo de seu corpo pudesse protegê-la do veneno que destilava o outro homem. O silêncio sepulcral, somente salpicado pelo crepitar das chamas, estendeu-se além do incômodo. Sir Hugh permanecia ali petrificado, com uma quietude exagerada, como se estivesse aguardando para equilibrar-se sobre eles. Arthur o observava como um falcão, esperando a primeiro sinal de movimento. Diabos, como gostaria que o fizesse.
—Ouvi um grito e me perguntei se lhe tinham feito mal - disse ao fim sir Hugh com o gesto torcido pelo asco e umas palavras que transpiravam contenção — Mas suponho que não necessitavam resgate.
A exclamação angustiada de Anna lhe partiu o coração. Arthur, consciente de que tinha que protegê-la da ira de sir Hugh, deu a volta e tomou pelos ombros.
—Vá para seus aposentos - disse bruscamente. Anna quis discuti-lo, mas ele a deteve — Falaremos mais tarde que isso. Agora mesmo preciso falar com sir Hugh. Permita que me encarregue disto.
Olhou-a nos olhos. A via confusa, horrorizada e atemorizada há um tempo, disposta a romper a chorar de um momento a outro. A Arthur custava respirar. Era como se lhe retorcessem o coração com uma faca. Ele tinha provocado isso. Era culpa dele. Sacudiu-a com cuidado, tentando fazer que se centrasse.
—Entendeste, Anna? —Então ela o olhou com um rosto tão perdido que lhe deu vontade de voltar a acolhê-la em seus braços — Tudo irá bem — prometeu, consciente de que aquilo não era certo.
Como poderia ir bem aquilo? Não só estava mentindo, mas sim, além disso, acabava de destruir toda possibilidade de aliança com o Ross e sabia quanto significava isso para ela. Anna amava a sua família. Falhar seria algo que… a faria pedaços.
Anna assentiu e a confiança cega que emanava seu olhar lhe fez sentir todo o peso da vergonha em seu interior. Era um completo filho de puta. Um filho de puta desalmado. Jamais poderia perdoar-se pelo que estava lhe fazendo. Anna não merecia. O que merecia era estar a salvo e protegida, ter um lar feliz, um marido que a amasse e seis ou sete crianças puxando suas saias. Ele nunca poderia lhe dar isso. Abandoná-la e lhe romper o coração, isso era quão único faria. Pode ser que não a tivesse despojado de sua virgindade, mas sua inocência desapareceria igualmente quando descobrisse a verdade sobre ele.
Lá onde fazia um momento reinava o desejo não ficava mais que pena e dor. Sir Hugh não se moveu de sua posição à entrada, mas assim que Arthur acompanhou Anna à saída, Hugh Ross se pôs a um lado para deixá-la passar. Arthur, sentindo-se esquecido na salinha, seguiu-a até o aposento principal. Não era muito maior, mas ao menos ali teria espaço para manobrar se fosse necessário. Sir Hugh parecia disposto a brigar e ele tinha tanta vontade ou mais de lhe dar guerra. Justo antes de sair Anna, olhou-o com incerteza.
—Vá - disse com doçura, tentando acalmar seus temores.
Então seu olhar reparou em sir Hugh e seu rosto se contraiu. O cavalheiro não se dignaria a olhá-la, mas cada uma dos nobres e orgulhosas dobras de sua pele irradiavam animal adversão. Arthur franziu os lábios, com uma vontade tremendas de matar a aquele homem por ferir seus sentimentos. Anna não tinha culpa de nada. Tudo era coisa dela. «Jesus.» Conscientizar-se disso foi como um soco. Tinha-o feito a propósito? Fosse essa sua intenção desde o começo? O que queria era acabar com qualquer opção de aliança. Não, mas não desse modo. Nunca quis levá-lo a tal extremo. Embora sim que tinha superestimado sua capacidade de controle e menosprezado a intensidade de seus desejos por ela. Era o único culpado de meter-se nesse esfregado. Fora ele quem tinha transpassado os limites, algo que não reportaria mais que dor para ambos.
—Deveria te matar — disse Ross assim que se fechou a porta.
O cavalheiro tentava intimidá-lo, mas Arthur aceitou o desafio.
—E por que não o faz?
O olhar do Ross se endureceu.
—Porque então teria que explicar os motivos.
A certeza de sua voz fez que Arthur sorrisse. Tinham mais ou menos a mesma idade e eram bastante semelhantes quanto à altura e músculos. Mas não quanto à destreza. Arthur não seria quem iria morrer. Sir Hugh, não obstante, não tinha nem idéia disso. Então por que…? A razão foi a ele de repente.
—E não quer que ninguém saiba que a moça o humilhou pela segunda vez. Primeiro ao rechaçar sua oferta e logo ao agarrá-la com outro homem ante seu nariz.
A verdade da acusação causou seu efeito no rosto do Ross, que avermelhou de ira, criando um marcado contraste com os sulcos brancos de seus lábios franzidos.
—Desfloraste-a?
Arthur apertou a mandíbula. Aquilo não era assunto seu absolutamente. Encheu de vontade de mentir, de reclamá-la para si, mas disse a verdade, já que queria salvar o que pudesse da reputação de Anna.
—Não.
Os olhos do Sir Hugh se mostravam frios.
—Mas o teria feito de não o tivesse interrompido.
Arthur encolheu os ombros, como se aquilo não fosse de sua incumbência. Ross deu um passo para ele com a mão na espada.
—Maldito filho de cadela! É um cavalheiro. É que não têm honra? Era uma mulher comprometida.
Arthur se moveu com rapidez. Pôs em prática uma manobra que tinha aprendido com Boyd e deixou o braço do Ross fosse de combate, obrigando-o a soltar a espada. Depois lhe retorceu esse mesmo braço pelas costas e o imobilizou fazendo contrapeso com seu próprio corpo.
—Não. Não estava comprometida.
Ross tentou escapar por ato reflito, mas seus movimentos só serviam para que Arthur lhe retorcesse mais o braço e lhe infligisse mais sofrimento.
—Estava a ponto de comprometer-se —disse entre dentes com uma voz cheia de dor — O matarei por isso! Solte-me!
—Não até que cheguemos a um entendimento a respeito do ocorrido aqui. Não quero que isto afete à moça. Não é culpa dela.
Ross teve a inteligência de optar por discuti-lo, mas Arthur percebia a raiva em seus olhos. Retorceu-lhe o braço com mais força, provocando que o furioso guerreiro gritasse.
—Por que voltou? —perguntou Arthur.
—Ouvi um grito…
—Uma merda - cortou Arthur.
A não ser que possuísse sentidos tão finos como os seus, era impossível que tivesse ouvido algo. Ross lhe dirigiu um olhar assassino. De sua sobrancelha caíam gotas de suor dolorido.
—Vi como a observava e que ela tentava não o olhar por todos os meios. Sabia que nos seguiria.
Arthur amaldiçoou.
—O que era isto então, uma prova de fogo?
—Não pensava permitir que tirassem o sarro. Não me casarei com uma mulher apaixonada por outro homem. Por muita vontade que tenha de fo…
Retorceu-lhe mais o braço.
—Não —disse — Não o diga.
Arthur, consciente do perto que estava de lhe partir o braço, optou por afastá-lo de seu lado de um forte empurrão. Ross tinha razão respeito a algo: quanto menos tivessem que explicar, melhor. Sir Hugh soltou ar e se massageou a parte superior do braço e o ombro. Mas havia algo em seu olhar que a Arthur fazia perguntar-se se o tinha posto a prova de novo. Se esse grosseiro comentário do Ross teria a intenção de provocar uma reação. Se for assim, tinha funcionado.
—Importa-te - disse Arthur, precavendo-se disto, na verdade era algo mais que uma aliança política para ti.
Ross não respondeu com palavras nem por meio da expressão de seu rosto, mas Arthur sabia que tinha acertado. Diabos, quase dava pena aquele pobre filho de cadela.
—Mas sabe o que é que a trouxe até aqui?
Uma vez recuperada as sensações em seu braço, Ross voltou a olhá-lo com desconfiança.
—Sim. Para conseguir apoio na luta contra Bruce. Esperava conseguir sua mão sem ter que recorrer a isso.
Arthur ficou olhando-o e o compreendeu tudo ao fim.
—Seu pai não tinha intenção de enviar homens com ou sem compromisso, não é certo? —Não era preciso que Ross respondesse. «Por todos os demônios.» Arthur tinha vontade de matá-lo ali mesmo — E a deixaram pensar que…?
Ross encolheu os ombros.
Maldito patife. Demônios, de não ser Anna a quem manipulava, Arthur teria admirado sua determinação.
—Partiremos assim que tenhamos tudo preparado. Depois de que informe Anna e sir Alan do que acaba de me contar.
O outro homem se mofou.
—E por que diabos eu ia fazer tal coisa?
Arthur deu um passo para ele com atitude ameaçadora. Em honra de Ross terá que dizer que não se moveu. Mas Arthur advertiu a inquietação em seus olhos.
—Porque não quero vê-la mais afetada do que já está. E apesar do que tenha passado aqui, não acredito que vocês queira isso tampouco.
Ficaram olhando durante um momento até que Ross assentiu. Arthur se dispôs a partir.
—Campbell. —Arthur deu a volta e viu que Ross seguia agarrando o ombro machucado — Onde aprendeu a fazer isso?
Arthur torceu a boca com dissimulação.
—Faça o que combinamos dito e talvez te conte isso algum dia.
Anna limpou as mãos em suas saias e procurou acalmar a náusea que ameaçava subindo por seu estômago ao mesmo tempo em que observava a quantidade de homens que se congregava no salão para tomar o café da manhã. Encontrou-se inconscientemente procurando Arthur, como se ver seu rosto pudesse lhe dar essa coragem que tanto necessitava. Ao não encontrá-lo sentado junto aos homens de seu irmão, disse que não havia por que preocupar-se. Ainda era cedo. A noite anterior Arthur tinha enviado a uma criada para lhe dizer que já estava tudo arrumado e que não tinha que preocupar-se.
«Não tenho que me preocupar.» Como se tal coisa fosse possível depois do que tinha acontecido. Pode ser que sua considerada mensagem não servisse para aliviar sua noite sem descanso, mas o apreciou igualmente. Ao menos se economizava o temor de que um dos dois estivesse morto ou em alguma masmorra desconhecida.
Respirou profundamente, obrigou-se a erguer o peito e erguer o queixo e entrou no salão. As pernas mal podiam sustentar do tanto que tremiam e seu coração batia contra a caixa torácica como as asas de um pássaro. Todos seus instintos clamavam por que fugisse, mas obrigou a seus pés a seguir adiante.
Sangue de reis corria por suas veias. Era uma MacDougall, não uma covarde. Apesar de que não quisesse mais que ocultar-se em sua câmara, fazer um novelo com seu corpo e pretender que nada disso tinha ocorrido o certo era que sim tinha ocorrido. Como mínimo devia uma desculpa a sir Hugh. Quando pensava no que tinha feito…
Revolvia-lhe o estômago. A vergonha a alagava. Não por sucumbir aos encantos de Arthur, já que não se envergonhava da paixão que existia entre eles, mas sim por falhar a sua família e aproveitar-se horrivelmente de sir Hugh no processo. Ele não se merecia aquilo. O orgulhoso cavalheiro não tinha feito mais que tratá-la com carinho. Não era culpa dela que estivesse apaixonada por outro homem.
«Apaixonada.» Inclusive sopesando a enorme gravidade do que tinha feito, um pequeno raio de felicidade aparecia por trás das nuvens de desesperança. Amava-o. E também ela significava algo para ele. Tinha que ser assim.
Mas esse pequeno lapso de alegria em seu coração só servia para fazê-la sentir mais culpada. Ao encontrar o amor tinha falhado a sua família. Como poderia chegar a perdoar-se? Tinha arruinado tudo. Seu pai e seu clã completo ficavam sozinhos ante o Robert Bruce. Depois do que sir Hugh havia presenciado na noite anterior não teria aliança.
Acenderam-lhe as bochechas ao recordar, ao considerar o que devia pensar aquele homem dela. «Puta. Rameira.»
Quase esperava ouvir vaias ao atravessar o salão para chegar até o assento do estrado junto ao homem ao que tinha ofendido. Mas sua entrada não causou nenhum comentário fora do habitual. O conde e a condessa a receberam com gentilezas usuais, igual fez seu filho quando tomou assento junto a ele.
Embora cada bocado que dava piorasse o enjôo que lhe punha o estômago de reverso, tinha que obrigar-se a comer. À medida que avançava a comida, sua ansiedade não fazia mais que aumentar. O breve intervalo de bom humor que entreviu em sir Hugh no dia anterior tinha desaparecido, algo não muito surpreendente. Estava sentado junto a ela completamente rígido, muito orgulhoso e imbuído do código de cavalaria para ignorá-la completamente, mas muito perto de fazê-lo. Agradeceu a presença da irmã do Hugh do outro lado da mesa e do ajudante do Ross a seu lado, que rompiam os incômodos momentos de silêncio.
Anna era consciente de que tinha que dizer algo, mas não sabia como tirar o tema em um entorno tão público. Seguia esperando que chegasse o momento oportuno quando sir Hugh se levantou da mesa e se desculpou para ausentar-se.
—Espere! —exclamou Anna, advertindo que vários olhos se voltavam em sua direção e que talvez tivesse falado muito alto.
Sir Hugh baixou o olhar para olhá-la e lhe dedicou toda sua atenção pela primeira vez. Anna procurava não morrer de vergonha enquanto ele esperava a que se pronunciasse.
—Eu… — disse o primeiro que veio à cabeça, desejando tê-lo feito antes, quando outros não prestavam atenção ao que dizia de maneira tão óbvia — Faz uma manhã estupenda. Se não estiver muito ocupado, pensei que poderiam me mostrar os arredores do castelo, como prometera.
Não lhe tinha feito tal promessa e se o fizesse saber, deixando clara sua pretensão de ficar a sós com ele, teria recebido o que merecia. Sir Hugh a olhou nos olhos e Anna por um momento pensou que se negaria a fazê-lo, mas ao que parecia puderam mais suas sensibilidades cavalheirescas. Fez uma reverência e lhe tendeu a mão.
—Será todo um prazer, milady.
Tal e como tinha feito poucas, mas significativas horas antes, permitiu que a acompanhasse ao sair do salão. Se o incomodava as falações de curiosidade que lhes seguiram não o mostrou em nenhum momento. Nessa ocasião, ao chegar ao final do corredor, conduziu-a ao exterior, ao pátio de armas. Havia um monte de gente daqui para lá: soldados praticando e protegendo as entradas, serventes atendendo a suas obrigações e um fluxo contínuo de homens passando através das portas do castelo, mas ninguém lhes prestava muita atenção.
—Há algo em particular que deseje ver? —perguntou ele.
Para ouvir a secura de sua voz o olhou de esguelha sob o véu de suas pestanas. Ele sabia que se tratava de uma desculpa, e das más. Anna negou com a cabeça.
—Sinto muito. Tinha que falar contigo —disse detendo-se para olhá-lo bem nos olhos — Devo me desculpar pelo ocorrido na noite passada. —Ao ver que franzia mais o cenho lhe falharam os nervos. Mas tinha que fazê-lo. Machucava a mão de apertar tanto os punhos. Não era capaz de falar disso com calma, de maneira que explodiu e soltou — Não posso oferecer mais desculpa pra dizer quanto sinto.
Sir Hugh ficou olhando-a nos olhos durante um momento e logo assentiu. Anna pensou que daria a volta e a deixaria ali, mas surpreendentemente a levou até um lugar afastado da fortificação de onde podiam ver muros longínquos e a cidade do Nairn ao fundo. Fazia vento e teve que acomodar atrás da orelha uma mecha de cabelo rebelde. Mas depois dessa noite de escuridão o resplendor do sol sobre seu rosto era rejuvenescedor.
—Ama-o?
Anna ficou petrificada. Não sabia o que esperava que dissesse, mas certamente isso não. Sir Hugh não parecia um homem que outorgasse muito valor nem desse muito crédito ao amor romântico. Parecia muito prático e frio para tudo isso. Mas merecia saber a verdade.
—Sim - disse em voz baixa.
—Mas teriam casado comigo para conseguir mais homens para seu pai?
Tal e como disse, de repente parecia que aquilo estivesse mal. Embora o matrimônio e a obrigação fossem parceiros, era o amor o que importava menos.
—Sim - disse Anna, sentindo que o desespero de sua situação cavalgava sobre seu peito. Apelou a seus sentimentos para que a compreendesse — Não entende? A única maneira de lutar contra os rebeldes é unir forças. Se nossos clãs se unirem poderemos derrotar ao usurpador. Somente nos arriscamos à derrota.
Por sua reação não pareceu que suas palavras tivessem influência alguma nele. A expressão de seu rosto permanecia severa e implacável. Era estranho. Agora que já não havia esperança de um compromisso entre ambos, todo o medo e o nervosismo de Anna pareciam desaparecer.
—Não pode absolver de toda culpa, lady Anna. —Ela o olhou inquisitivamente, protegendo os olhos do sol para lhe ver melhor. Sua boca se torceu em uma estranha careta — Meu pai não tinha intenção alguma de enviar homens ao Lorn.
Ficou sem respiração pela surpresa.
—Mas o compromisso… Permitiram que acreditasse que… — Hugh Ross encolheu os ombros como se não lhe importasse nada. Um arrebatamento de cólera penetrou através do sentimento de culpa de Anna — E quando me pensava contar isso?
—Teria-na informado com tempo suficiente.
—Depois de que anunciássemos nosso compromisso?
Ele se enfrentou à acusação de seus olhos sem alterar-se.
—Talvez.
—Mas por quê?
Pareceu interpretar mal sua pergunta a propósito.
—Não temos homens de sobra. Bruce virá também por nós e quando o fizer… —disse com palavras que se levava o vento — O rei Robert é muito poderoso. Nossos aliados nos abandonaram. Os Comyn, os MacDowell, os ingleses. Meu pai tem muito que perder.
Sir Hugh ficou com o olhar perdido além dos muros, para o pequeno reino que se estendia a seus pés. Tratava-se de um movimento revelador e teve que conter o fôlego ante o que significava. Muito que perder. Seu pai não pensava arriscar.
—Não —disse Anna dando um passo atrás — Não podem! Seu pai não pode render-se. Bruce o assassinará pelo que fez a sua esposa e a sua filha.
Falava sem pensar, e estava claro que o que fez seu pai quando violou o santuário e entregou às mulheres de Bruce aos ingleses não era algo que sir Hugh quisesse que o recordassem. Pela primeira vez, Anna viu algo um pouco parecido à vergonha em suas orgulhosas feições.
—Bruce prometeu perdoar a todos nobres que estavam contra ele que se renderem.
—E acreditam na palavra de um traidor? De verdade confiam em que o rei Hood perdoará a seu pai e aos sediciosos de Ross e Moray? Apenas se consumaram os fogos da perseguição ao Buchan.
Não discutiu com ela. Mas apertava fortemente a mandíbula quando disse:
—O que outra opção fica? As voltas mudaram a favor de Bruce. O povo pensa que é um herói, um guerreiro que derrotou aos ingleses. Render-se pode ser a única maneira de sobreviver. Meu pai está disposto a morrer se isso significar a continuidade do clã.
A cabeça de Anna dava voltas. Jamais, nem em suas mais escuras expectativas, teria imaginado que Ross se renderia. O que significaria isso para seu clã? Faria seu pai o mesmo? Não, seu pai jamais se renderia. E pela primeira vez Anna se precaveu de quão caro poderia lhes custar.
Preocupada com o que sir Hugh acabava de lhe confiar, Anna não encontrava muito consolo em saber que sua conduta não era reprovável.
—Obrigado por me contar isso.
Ele a olhou com atenção.
—O que fará?
—Lutar - respondeu.
Embora fosse sozinhos. Que mais podiam fazer?
—Casará com o Campbell?
Anna se ruborizou. Depois do que tinha passado a noite anterior era algo natural assumir que… Mas não tinham tido oportunidade de discutir seu futuro. Ele pareceu compreender seu silêncio.
—Conhecem-no muito bem?
O tom de advertência de sua voz despertou aquela vozinha de sua consciência que trabalhou em excesso em sossegar.
—Sir Arthur chegou ao Dunstaffnage faz um mês junto a seu irmão em resposta à chamada que fez meu pai aos cavalheiros e mercenários.
Aquilo pareceu lhe confirmar algo.
—Há algo estranho nele. Algo que não se enquadra. Não é quem parece ser.
Anna saltou em sua defesa imediatamente, pensando que sir Hugh se fixou nas incomuns habilidades de Arthur.
—É muito reservado —disse — custa a comunicar-se.
Sir Hugh a olhou inquisitivamente, como se quisesse acrescentar algo, mas em vez disso simplesmente assentiu. Foi um alívio que dissesse que se encarregaria de explicar tudo a seus pais e seus irmãos sem fazer menção alguma à situação comprometedora em que a tinha encontrado, acordando dizer que não combinavam um para o outro.
Para quando a acompanhou de novo até a torre Anna se sentia muito mais relaxada. Uma vez mitigada parte da culpa, permitiu-se viver um pouco da felicidade que supunha descobrir que o homem ao que amava tinha sentimentos por ela. Não podia esperar para lhe ver e falar com ele. Surpreendentemente, dadas as intimidades que tinham compartilhado, não estava envergonhada. Inclusive nesse momento, depois de todo o acontecido, parecia o correto.
Estava a ponto de subir o primeiro dos degraus que fossem do pátio à torre quando olhou à esquerda e viu que sir Arthur saía dos barracões. O coração lhe deu um tombo. Sorriu e deu um passo para ele de maneira instintiva, mas logo se deteve de repente. Levava a armadura e estava claro que se preparava para praticar, mas podia entrever seu rosto o suficiente sob a viseira do elmo.
Não era que esperasse que corresse pelo pátio a seu encontro, ao menos não com sir Hugh ainda a seu lado. Mas um olhar de carinho seria bom. Algo em comparação com esse rosto de arrependimento, sim, inclusive de vergonha, que escurecia seus bonitos traços. A alegria que fez saltar seu coração se consumiu e o devolveu ao chão de repente das alturas. Advertiu como sir Hugh ficava em guarda ao conscientizar do que ela tinha visto.
Arthur desviou o olhar para o outro cavalheiro. Podia sentir a animosidade acesa entre ambos. Foi Arthur quem se retirou primeiro. Saudou-os com uma inclinação da cabeça e se dirigiu a reunir-se com o resto dos guerreiros. Anna dizia a si mesma que não devia estar decepcionada, que não tinha que exagerar sua reação. Já falariam mais tarde. Em particular. Provavelmente o que adivinhava em seus olhos não era mais que imaginações.
Mas as seguintes palavras de sir Hugh lhe disseram o contrário.
—Se a coisa não for como espera, lady Anna, eu estarei aqui.
Um homem com quem podia contar.
Rezava por que Arthur também o fosse.
Capítulo 16
Demoraram mais do que Arthur pensava em sair do castelo de Auldearn. Alan MacDougall se encerrou em sua câmara com o conde, seu conselheiro e sir Hugh durante três dias mais, no que Arthur assumiu como uma tentativa de persuadir ao Ross para unir forças, apesar da ausência de compromisso. Felizmente, os esforços do Alan foram úteis. Dado que não tinham lhe contado os detalhes, Arthur não pôde estar seguro das razões do conde, mas o rechaço era um bom augúrio para o rei Robert. Passaria a informação assim que tivesse oportunidade de fazê-lo. Não acreditava que eles tivessem irradiado nenhuma mensagem, mas revisaria os pertences do Alan e de Anna para assegurar-se disso, assim que tivesse ocasião.
Saíram de Auldearn ao amanhecer, fazendo o mesmo trajeto de na semana anterior em sentido contrário e forçando o ritmo o primeiro dia para chegar a salvo mais à frente do castelo. Os homens, contagiados do humor de seu senhor e sua dama, pareciam perceber que as coisas não tinham ido como esperavam e a nuvem do fracasso se abatia sobre as cabeças dos viajantes. Levava uma predisposição algo sombria, por não dizer decididamente mal-humorada.
Arthur sabia que teria que sentir-se aliviado e satisfeito de ter completado sua missão. Ross e Lorn não uniriam forças. O fracasso dos MacDougall serviria como incentivo para aproximar de Bruce um passado mais para a vitória e a Arthur um passado mais para a destruição de seu inimigo. Assegurar-se de que John de Lorn pagava pelo que lhe tinha feito a seu pai era o que mais ansiava no mundo. Não era certo? Assim devia ser, maldita seja. Mas temia que aquilo lhe custasse muito mais do que pensou em um primeiro momento.
Coberto atrás de seu elmo podia ceder à tentação de olhá-la. De novo essa sensação, molesta e penetrante. Não era só consciência o que o remoia, a não ser algo mais. A dor que aguilhoava seu peito quando a olhava era virtualmente insuportável. Mas não fazê-lo parecia mais doloroso ainda.
Anna cavalgava na frente dele, junto a seu irmão e a criada, com o que somente oferecia seu perfil ao voltar-se. Arthur não precisava olhá-la para saber que o silêncio a respeito do ocorrido entre ambos lhe doía. E muito. Deus Santo, o que tinha feito? E o que era mais importante, que demônios faria a respeito? Agora que estavam longe do castelo já não podia evitar o tema nem evitá-la por muito mais tempo. Sabia o que devia fazer. Não precisava ser um cavalheiro para conscientizar de que depois do perto que estivera de lhe arrebatar a virgindade, a escassos centímetros literalmente, deveria a pedir em matrimônio. Não havia dúvida de que era o que ela esperava. E o que cabia esperar. Isso faria um homem com honra. Mas esses escassos centímetros lhe serviam de suficiente desculpa para não fazê-lo. A batalha que livrava em seu interior era cada vez mais cruel. Todos seus instintos exigiam que se aproximasse dela, que cedesse aos sentimentos e, por que não falar, maldição, às emoções que brigavam em seu interior. Mas a outra parte de seu ser, a racional, puxava-o para evitar maiores males.
Embora ele mesmo quisesse esquecer-se disso em algumas ocasiões, o certo era que a enganava. E estava claro como a água que não podia lhe dizer a verdade. Seu dever e sua lealdade pertenciam ao Bruce. Nenhum dos sentimentos que albergasse poderia mudar aquilo. Estavam em lados opostos de uma rixa a ponto de desatar-se. Ao final ela descobriria sua filiação verdadeira e se inteiraria de que a única razão que o tinha levado ao Dunstaffnage fosse espiar e propiciar a destruição de sua família. Sabia que pedi-la em matrimônio só serviria para que a traição final tivesse conseqüências muito piores.
Era uma situação impossível e tinha consciência de tê-la criado ele mesmo. Teria que ter-se afastado dela, mas suas boas intenções ficaram transbordadas por seu sorriso, vitalidade, doçura e amabilidade. Quando olhava o interior desses grandes olhos azuis começava a ter saudades de algo que nem sequer sabia que queria. Gostava de estar sozinho, maldita seja! Parecia mais fácil e muitíssimo menos chato. Entretanto Anna o fazia ansiar algo que ele não poderia permitir-se oferecer, à vista do que estava por chegar. E fazê-la sofrer desse modo, não ser capaz de fazer algo para mudar, partia-lhe a alma. Cada vez lhe custava mais concentrar-se em suas tarefas.
Embora não se voltasse para olhá-lo, Arthur sabia que ela era tão consciente de sua presença como ele mesmo. Advertiu a maneira em que seus ombros ficavam tensos quando situou seu cavalo atrás deles. Richard e Alex partiam em cabeça explorando o terreno, de modo que Arthur ficou ao fim para assegurar-se de que ninguém os seguia. Aproximava-se o final da primeira jornada da viagem e tinham que proceder com especial cautela agora que se aproximavam do castelo do Urquhart, lugar em que tinham aparecido os homens de Bruce quando foram para o castelo do Ross. Novamente, teriam que fazer uma boa volta para o oeste do caminho para evitar as patrulhas da fortaleza «inimiga».
—Pegue milady —ouviu que dizia sua criada — Lady Euphemia pediu ao cozinheiro que as prepare especialmente para ti em vista que gostas.
A anciã tentou enrolá-la com os doces, mas Anna negou com a cabeça em uma pobre tentativa de sorriso que lhe cravou outra pontada no coração.
—Não, obrigado, não tenho fome.
A criada se zangou, franziu os lábios e mastigou a delícia de amêndoas sem entusiasmo algum. Mal teve acabado de mastigar quando voltou para a carga e tirou de sua bolsa o que parecia um pequeno bolo de carne.
—O que me dizem de um pastezinho de cevada com cordeiro? —disse, cheirando-o teatralmente — Cheira divinamente. E ainda está quente.
Anna voltou a negar com a cabeça.
—Coma se quiser. Eu comerei quando nos detivermos.
A criada murmurou para si.
—Tem que comer algo, milady - urgiu entre murmúrios, ao mesmo tempo em que fulminava Arthur com o olhar.
Este apertou a mandíbula, adivinhando a quem culpava a criada pela falta de apetite de sua senhora.
—Comerei - disse Anna para apaziguá-la. Chamou a seu irmão, que cavalgava um pouco mais adiante — Quando pararemos para passar a noite, irmão?
—Logo, espero - respondeu Alan olhando a seu redor e fazendo gestos a Arthur ao ver que tinha retornado. Este se armou de valor e fez como lhe pediu, levantando o visor de seu elmo ao passar entre o punhado de cavaleiros que lhes separavam — Viu algo suspeito?
Arthur negou com a cabeça.
—Por agora não. Estaremos seguros quando voltarem Richard e Alex, mas se não ter nada extraordinário, poderemos nos deter o anoitecer como tínhamos previsto.
—Não voltaremos para lago em que acampamos a vez anterior?
Era ela quem falava. Arthur voltou o olhar lentamente, incapaz de evitá-la por mais tempo. Mas não estava preparado para o calor abrasador que lhe atravessaria ao encontrar-se com seu olhar. Ele, que apenas se movia quando uma flecha se afundava no mais profundo de seu ombro, quando uma espada lhe abria as vísceras nem nas numerosas ocasiões em que não tinha apanhado a adaga de seu irmão com suficiente presteza, sobressaltou-se ao ver a tristeza e a pergunta sem formular de seus olhos.
Parecia fatigada, de uma fragilidade insofrível. Umas pequenas linhas sulcavam as comissuras de seus olhos e sua pele estava muito mais pálida do normal. Apertou os dentes, lutando contra a desesperada necessidade que sentia de dar o que ela queria.
«Peça-a em matrimônio.»
Maldição, não podia fazê-lo. Não faria a não ser piorar as coisas.
—Não, milady —respondeu sem alterar a voz — Será mais seguro que não voltemos sobre nossos passos. Acamparemos em lugares diferentes cada noite. Há uma cascata na floresta dos pagamentos do Dhivach, ao sudeste do castelo, onde começa a ravina. Faremos pernoite ali.
Anna assentiu com cara de querer acrescentar algo, mas consciente de que não estavam sozinhos.
—Falta muito?
—Cinco ou seis quilômetros. Deveríamos chegar antes do anoitecer.
—Eu… — Anna deixou a frase pela metade. Não obstante, o modo em que o olhava era desencorajador — Obrigado.
Quando Arthur se decidiu a afastar o olhar se surpreendeu comprovar que um dos homens do Alan se situava atrás dele. Ficou circunspeto, mas estava muito imerso em sua própria confusão para atender à advertência.
Ao que parecia um das arcas de Anna não estava bem presa e caiu do carro. Arthur agradeceu a interrupção quando viu que Anna e sua criada fossem ao fim da fila para assegurar-se de não perder nada. Mas era consciente de que não poderia postergar a inevitável discussão por muito mais tempo. Isso ficou assegurado certamente pelas palavras de Alan antes de partir para ver o Richard e Alex.
—Não sei que diabos passou em Auldearn, Campbell, mas minha irmã está triste. —O cavalheiro cravou o olhar em Arthur com uns gélidos olhos azuis que não mostravam compaixão alguma. Depois de tudo, era filho de seu pai — Arrume ou me encarregarei eu de fazê-lo.
Arthur franziu o cenho até adotar uma expressão sombria. Não se incomodou em pretender que não sabia ao que se referia. A ameaça não lhe inquietava. O que lhe inquietava era que não podia fazer o que o irmão de Anna lhe pedia. Nada poderia arrumá-lo.
—Por que está me evitando?
Arthur, assombrado, ficou em pé de repente, fazendo saltar a armadilha que estava preparando. Tinha o surpreendido. Algo que Anna apostava que não ocorria muito freqüentemente. Talvez essa confusão que ela percebeu em seus olhos não foi imaginação. Olhava-a com uma saudade mal reprimida, mas algo o fazia conter-se.
O desengano que sentiu na primeira manhã não fazia mais que piorar a cada dia que passava. Ainda não tinha ido a seu encontro, por não falar de oferta de matrimônio alguma. Anna queria convencer-se de que simplesmente esperava para falar com seu pai, mas isso não explicava por que fugia dela.
—Está me seguindo outra vez, Anna?
Se tentava distrair ficando à defensiva, não funcionaria.
—Não sei como poderia dizer que te sigo quando o acampamento está a poucos passos daqui - disse assinalando os arranjos e cordas — Vi que tirava a armadilha da bolsa e supus que não iria muito longe.
Inspecionou suas feições, meio escondida entre as sombras. Ao menos ficava uma hora de luz solar, mas sob o espesso manto das árvores da floresta parecia quase noite fechada. Anna deu um passo para ele e estreitou o vão que os separava. Arthur franziu o cenho e todo seu corpo ficou rígido. Anna percebeu de que lhe moviam as aletas do nariz, como se o incomodasse tê-la tão perto. As lágrimas foram a seus olhos. Por que se comportava desse modo? Acaso era tão desagradável?
—Ides responder-me? —disse com uma voz quebrada pela emoção e a incerteza dos últimos dias. Queria pôr a mão sobre o peito para tranqüilizar-se, mas temia que ele retrocedesse e isso a fizesse pedaços — Acaso não mereço uma explicação?
Arthur suspirou e se separou dela com o pretexto de passar os dedos entre os cabelos. Embora ainda levasse posta a armadura, tirou o elmo e seu cabelo castanho escuro caía em suaves ondas sobre a borda da cota de malha.
—Sim, moça. Merece uma explicação. Tinha intenção de falar contigo uma vez que tivéssemos comido.
Não sabia se acreditava, mas o deixou continuar. Ela já havia dito suficiente. Era a ele a quem correspondia falar.
—O que ocorreu foi - Formoso? Incrível? Perfeito? pensou Anna—… desafortunado. —A Anna parou o coração. Não era a palavra que esperava — Me envergonho de meu comportamento —disse Arthur com palavras que pareciam próprias do cavalheiro mais contido da corte — Jamais devia permitir que chegasse tão longe.
Anna o deteve em seco, incapaz de resistir por mais tempo o tom distante e o arrependimento de sua voz.
—Por que fala assim? Por que atua como se não significasse nada? —Arthur esticou a mandíbula mais ainda. A palpitação de seus batimentos no pescoço não pressagiava nada bom. Tentou afastar-se de Anna, mas ela o agarrou pelo braço. O peito lhe ardia — Significou algo, Arthur? —Este a olhou nos olhos com uma intensidade que queimava. Anna aspirou profunda e entrecortadamente através de sua oprimida garganta — Para mim sim.
—Anna… - Parecia estar liberando algum tipo de guerra interior. Anna notava a rigidez de seus músculos sob seus próprios dedos. Seu poderoso corpo parecia irradiar tensão — por que põem as coisas tão difíceis?
—Eu? És tu quem põe as coisas difíceis. É uma pergunta muito simples. Ou significou algo para ti ou não significou nada.
Manteve o olhar, negando-se a lhe permitir partir sem que respondesse algo. Arthur tinha o rosto desfigurado, como se o estivesse torturando.
—Não entendes.
—Têm razão. Não entendo. Poderia explicar isso?
- Somos completamente inadequados um para o outro.
—Não posso. —Olhou-a com dureza — É que não vê que jamais funcionaria?
«Meu Deus!» Pareceu engasgar-se com seu próprio coração quando percebeu o que acontecia. «Não pensa me propor matrimônio.» Como era possível que tivesse interpretado tão mal a situação? Não! Não o tinha feito. Havia algo mais que lhe escapava.
—Por que não?
—Somos completamente inadequados um para o outro. A família é tudo para ti. E para mim? Meus pais morreram quando era um pirralho. Meus irmãos levam anos lutando em lados distintos. Não sei nada a respeito de família.
—Eu posso lhes ensinar…
—Não quero que me ensinem - repôs isso Arthur, cortando-a com raiva — Eu gosto de estar sozinho. E você… —disse com um gesto da mão — Tenho certeza que não estivestes sozinha nem um dia em sua vida. Merece estar rodeada de família e amigos, com um marido que lhe adore e um monte de crianças puxando suas saias. Não me diga que não quer isso, porque sei que é isso o que quer.
Era certo que queria isso, mas com ele.
—Não quer ter crianças?
Sua boca empalideceu como se a pergunta, pensar nisso tão sequer, fosse doloroso.
—Não entende a situação.
—Eu? Paraste a pensar que talvez não se trate de que gosta de estar sozinho, mas sim de que alguma vez estivera com as pessoas adequadas? —disse fazendo uma pausa para que o considerasse. Compreendia as razões que lhe levavam a solidão, mas suspeitava que seria diferente em caso de ter uma família que o amasse, que o aceitasse — Se sentires algo por mim, o resto não tem importância. —O rosto de Arthur se mostrava duro como o granito, mas ela seguiu pressionando — Sente algo por mim, Arthur?
Manteve o olhar, desafiando-o a que mentisse. E Arthur parecia querer fazer, mas ao final o admitiu.
—Sim. Mas isso não importa.
Sentia algo por ela. Não tinha errado. Negou com a cabeça.
—Isso é tudo o que importa.
—Não insista, Anna. Acredite-me quando digo que não funcionaria. Jamais poderia lhes dar o que necessita. Nunca poderia te fazer feliz.
A frustração e a raiva buliram em seu interior.
—Como te atreve a presumir que conhece minha mente melhor que eu? Eu sei exatamente o que quero. Depois do que passou como não pode compreender que é o único homem que pode me fazer feliz? Não te dá conta de que te amo?
Sua declaração de amor foi tão inesperada para ela como parecia ser para ele. Fechou a boca de repente, mas era muito tarde. Suas palavras seguiam ressonando no repentino silêncio. Arthur ficou completamente quieto, com uma expressão não muito diferente de quem tivesse recebido uma flechada no peito. Não se podia dizer que fosse a reação que ela esperava. Não esperava que respondesse a sua declaração de amor. Em realidade não. Não nesse momento, ao menos. Mas tampouco esperava encontrar-se com o silêncio. Um silêncio que lhe rompia o coração lenta e cruelmente.
«Amo-te» As palavras zumbiam em seus ouvidos. Como um palpite. Uma chamada. Tentava-o, caramba, tentava-o. Arthur permaneceu quieto como uma pedra, sem permitir o luxo de acreditar. Não podia fazer. Porque se o fizesse, era possível que encontrasse a felicidade. Uma felicidade maior da que tinha desfrutado na vida.
Não dizia a sério. Estava confusa. Anna MacDougall entregava seu coração a todos. Isso era parte do que a fazia tão irresistível. Negou com a cabeça, como se tentasse convencer a si mesmo.
—Não sabes o que diz. Não podem me amar. Nem sequer me conhece.
—Como podem dizer isso? Pois claro que lhes conheço.
—Há coisas sobre mim que se soubessem…
Não podia dizer nada mais. Já havia dito muito. Suas habilidades perceptivas eram excepcionais. Anna franziu os lábios e ele reconheceu o brilho teimoso de seu olhar.
—Acreditava que já tínhamos passado por isso. Suas faculdades são um dom, e se demonstraram extraordinariamente úteis em mais de uma ocasião. —Ele não falava de suas habilidades, mas sim do fato de ser um espião ao serviço de Bruce. O fato de que não havia pessoa no mundo a quem odiasse mais que ao pai de Anna e que tinha esperado quatorze anos para destruí-lo. Mas dificilmente poderia lhe contar a verdade — Sei tudo aquilo que importa sobre você - continuou — Sei que prefere observar e escutar a falar. Que não gosta de chamar a atenção e prefere estar em um segundo plano. Sei que conta com habilidades valiosas que prefere ocultar porque acredita que o faz diferente. Sei que está convencido de que é diferente e por isso não necessita a ninguém, de modo que procura espantar aos outros antes que se aproximem de ti. Sei que passou a maior parte de sua vida no campo de batalha, mas que pode dirigir a pluma de maneira tão efetiva quanto uma espada. —deteve-se o tempo preciso para tomar fôlego. Ele teria que tê-la cortado, mas estava muito indisposto para falar — Sei que é inteligente e que têm um caráter tão forte como seu corpo. Sei que quando estou contigo me sinto segura. Que faz ver que nada lhes importa, mas que me defenderia com sua própria vida. Sei que um homem que sustenta em seus braços a um bebê e que mostra paciência com um cachorrinho que não tem feito mais em dar problemas tem um coração bondoso. —Anna baixou a voz até deixá-la quase em um sussurro, dissipada já toda sua ira — Sei que desde a primeira vez que me beijou senti que jamais teria outro homem para mim. Que quando ergo o olhar para olhar, vejo o rosto que quero ver durante o resto de minha vida. —Seus olhos, que brilhavam com lágrimas não derramadas, encontraram-se com os dele — Sei que é leal e honrado e que te importo, mas que há algo que o faz se conter.
«Jesus.» Era como se lhe desse um soco. Ninguém antes lhe havia dito nada parecido. O fazia sentir-se humilde. Comovia-lhe. Dava-lhe um medo de morte.
Tinha visto muito de sua pessoa. Não significava só um perigo para sua missão, mas também para ele em formas que jamais tinha imaginado. Endureceu a mandíbula e o coração.
—Vê o que quer ver, Anna, não a realidade. —A guerra. Seu pai. Ele. Estava cega diante das faltas daqueles aos que professava amor — Mas as garotinhas que acreditam nos contos de fadas acabam desenganadas.
—Não faça isso —sussurrou Anna — Não tente me espantar.
Isso era o que fazia. O que sempre fazia. E embora pela primeira vez não desejasse fazer, era o que tinha que fazer. Pelo próprio bem de Anna. Agarrou-a pelo braço com intenção de sacudi-la e fazê-la entrar em razão, mas foi um engano. Tocá-la não fez mais que avivar o fogo de suas emoções até quase lhe fazer perder o controle.
—Então não atue apoiada em contos infantis. Estamos em meio de uma maldita guerra. Bruce está a ponto de cair com todo seu exército sobre sua cabeça e mesmo assim quer planejar seu futuro. Não há futuro, Anna. Somente existe o dia de hoje. Diabos, quem sabe se terá um lar daqui a um mês.
Sobressaltou-se como se a tivesse golpeado.
—Acredita que não sou consciente disso? —Anna sossegou um soluço na garganta. Seus preciosos olhos azuis se nublaram com lágrimas, atiçando o fogo que consumia seu peito — por que pensa que acudi ao Ross? Sei perfeitamente o que está em jogo. Mas não pude fazer. Não podia fazer por causa de ti.
—Seu pai jamais devia ter te pedido isso - repôs.
A expressão de assombro de Anna fez que Arthur desejasse poder retirar o dito. Tinha a perspectiva de uma menina para seu pai, a do cavalheiro perfeito que não podia fazer nada mal. Outra dessas ilusões que ele ajudaria a destruir.
—Não me pediu isso. Foi minha idéia. Fala de guerra e de incerteza, mas posso lhes dizer uma coisa certa. Se não arriscar, se seguir espantando as pessoas de seu lado, assegurará sua solidão. É isso o que quer?
Apertava a mandíbula com tanta força que lhe doíam os dentes.
—Sim.
«Maldita seja.»
—Muito bem. Porque isso é exatamente o que conseguirá - disse ela; as lágrimas rodavam por suas bochechas — Não sei por que faz isto, Arthur Campbell, mas é um covarde.
Um acesso de raiva subiu por seu corpo. Não era um covarde. Somente tentava fazer o correto. Mas não lhe deixava fazer. Não fazia mais que pressioná-lo para voltá-lo louco com uns sentimentos que não lhe pertenciam. Não podia pensar bem. Não queria mais que tomá-la entre seus braços e beijá-la até que cessasse o martelar que sentia na cabeça, e no coração.
Possivelmente isso tivesse feito se pudesse, mas não teve a oportunidade.
—Que diabos está acontecendo aqui?
Arthur voltou com a cabeça ainda lhe dando voltas, ao mesmo tempo em que Alan aparecia no claro. Amaldiçoou. Estava tão absorto em Anna que não ouviu o mínimo ruído. Que demônios ocorria? Estava fosse de controle. Tinha que tomar as rédeas de suas emoções. Seus sentidos estavam mesclados e confusos. Distraía-se muito. Estava tão confuso… Somente uma vez antes havia sentido de tal modo: o dia em que morreu seu pai. Estava perdendo os papéis.
Tanto que não se preparou para o que vinha depois.
—Deixe-a em paz - vociferou Alan, arrancando-a de seus braços ao mesmo tempo em que lançava o primeiro murro direto a sua mandíbula.
A cabeça de Arthur se propulsou para trás ao receber o golpe em cheio. Uma explosão de dor se apoderou dele. Ficou cego por um resplendor branco.
Anna gritou aterrada.
—Alan, por favor! Não é o que parece!
Mas seu irmão não a escutava. Como prova de sua eficiência com ambos os punhos, alcançou Arthur do outro lado com outro golpe. Depois no ventre. Logo no flanco.
—Vos disse que o arrumasse maldita seja. Não que a fizesse chorar. Que demônios lhe têm feito?
Arthur não tentava defender-se. Não porque não pudesse. Era evidente que MacDougall tinha um braço como o martelo de um ferreiro, mas Arthur tinha aprendido suficientes truques do melhor lutador corpo a corpo das Highlands e era capaz de tombá-lo em poucos segundos. Não se defendia porque merecia o castigo. Diabos, merecia muito mais pelo que estava a ponto de fazer.
—Para! Para! —choramingou Anna com uma voz a borda da histeria — Está lhe fazendo mal.
Alan o arrastou pelo pescoço e o empurrou com força contra uma árvore.
—O que lhe têm feito? —perguntou fulminando a sua irmã com o olhar — Será melhor que um dos dois me diga que demônios passa aqui. —Nenhum deles respondeu. Alan olhava alternadamente a um e outro com o rosto aceso pela raiva — Não me tomem por um maldito idiota! Não pensem que acreditei nem por um momento que Ross decidiu dar para trás de repente! —disse olhando a Anna enquanto seguia apertando fortemente o pescoço de Arthur com a mão — O que passou em Auldearn? É que este filho de cadela te tocou, Anna? —perguntou lhe apertando o pescoço — Te tocou? —insistiu empurrando com mais força — O fez?
Arthur sentia que o nó se esticava em torno de sua garganta e não era pela mão do MacDougall. Não. Sabia que teria que responder pelo que esteve a ponto de acontecer em Auldearn.
— O solte! —Alan advertiu o pânico na voz de Anna. Ela tentava lhe puxar o braço, mas sem obter resultado — Sim, mas não é o que pensa.
De fato, devia ser exatamente como o pensava.
—Maldito velhaco do demônio! —disse MacDougall estampando a cabeça de Arthur de novo contra a árvore — O matarei por isso.
Arthur não duvidava de suas intenções. Nem tampouco de sua capacidade para fazer. Mas não podia permitir. Estava a ponto de libertar-se quando ouviu um pequeno zumbido seguido por um suave vaio.
«Flecha.»
Seus sentidos se abriram em uma explosão de clarividência. Olhou por cima do ombro do MacDougall e viu a ponta de ferro sulcando o ar, apenas a um segundo de impactar no cangote do MacDougall. Arthur não pensou. Simplesmente reagiu. Golpeou para cima o braço do MacDougall com o antebraço em um perfeito movimento para libertar seu pescoço das garras dele e atrás disto enroscou sua perna ao redor do tornozelo para desequilibrá-lo. MacDougall caiu ao chão justo antes que a flecha impactasse na árvore com um som seco ao que logo seguiram os dilaceradores gritos de ataque.
Ouviu a exclamação de terror de Anna, mas não podia voltar para acalmá-la. O primeiro dos homens acabava de emergir de entre as árvores com a espada em alto. De novo a reação de Arthur foi instantânea. Jogou mão ao punho de sua adaga, extraiu-a de sua capa e a lançou. O atacante emitiu um gemido quando a folha deu com os poucos centímetros desprotegidos da pele de seu pescoço. Cambaleou-se e caiu ao chão.
Para quando o seguinte dos homens saltou sobre eles MacDougall já tinha tido tempo para entender o que acontecia e se pôs em pé. Desembainhou a espada, girou sobre si mesmo e a ergueu bem a tempo para repelir uma cutilada que lhe teria arrancado a cabeça.
«Anna.» Arthur desviou o olhar do assalto que estava por chegar justo o tempo suficiente para assegurar-se de que ela estava bem. Encontrou-a resguardada depois da árvore, com os olhos cheios de terror. O coração lhe acelerou ao conscientizar-se de quão vulnerável era e logo se paralisou quando se deu conta de quão vulnerável isso fazia a ele mesmo. Não podia permitir que lhe acontecesse nada. Tinha que protegê-la. Mataria a todos se fosse preciso. Seus olhares se encontraram só por um segundo. Mas a forma em que se olharam foi de uma intensidade inegável e brutal.
—Permaneçam abaixados - disse com voz pausada, a pesar do fluxo de sangue que corria por suas veias.
Arthur se situou frente a Anna, cotovelo com cotovelo com o MacDougall, quem seguia lutando com seu oponente, e recebeu com sua espada a avalanche de atacantes que saíam de entre as árvores. Uma vintena de homens. Talvez mais.
Não teve que esperar muito para encontrar-se com o primeiro deles. Pela primeira vez em quase dois anos, desde que se visse obrigado a abandonar os Guardiões das Highlands para infiltrar-se em campo inimigo, Arthur se deixou ir e lutou com toda a destreza e o frenesi que tão cuidadosamente mantinha ocultos. Tombou ao primeiro dos homens com um virulento movimento de espada, girou-se e aproveitou a inércia para derrubar ao seguinte.
Foram por ele com mais virulência. Mas não importava. Era como uma máquina de guerra que arrasava tudo o que saía a seu caminho. Três. Quatro. O ruído do metal sobre o metal atravessava o sombrio ar noturno, mesclando-se com os gemidos e os gritos da batalha. Esses sons tinham alertado aos homens do acampamento, que felizmente estava a poucos metros dali, e os soldados do MacDougall começaram a aparecer na pequena clareira, já envolto em uma escuridão absoluta. Mas os atacantes esperavam a chegada dos reforços. Em realidade o tinham planejado e aguardavam o momento. Saltavam das árvores à medida que eles abriam caminho por baixo e caíam sobre os despreparados homens do clã MacDougall.
—Vamos! —disse Arthur tentando lhes advertir — Disperse.
Se não se dispersavam os fariam pedaços com a facilidade que se cortam arenques de um barril. Mas essa foi toda a advertência que pôde fazer antes que os seguintes adversários distraíram sua atenção. Tinha a dois homens sobre ele. Dois homens com nasais, mantos obscurecidos e as características manchas de cinza negra nos rostos.
O pavor se instalou em seu estômago com o peso de uma pedra.
Os atacantes eram homens de Bruce. Pois claro que eram. Viu os corpos pulverizados no chão ante ele, homens que ele tinha matado, e veio um acesso de bílis à garganta. Jesus, no que estava pensando? Nem sequer pensava. O instinto de amparo para a Anna ultrapassava todo o resto. Mas era pior do que imaginava. Enquanto tentava incapacitar aos dois homens que lhe atacavam sem chegar a matá-los, um terceiro homem se uniu à refrega. Um homem que brandia duas espadas. Movia-se como um raio e foi a Arthur com uma ferocidade sem igual inclusive entre seus companheiros de elite dos Guardiões das Highlands.
Arthur se encontrou cara a cara na escuridão com LachlanMacRuairi e amaldiçoou para si.
Capítulo 17
Ocorreu tudo muito depressa. Em um momento tentava evitar que seu irmão assassinasse ao homem que amava e no seguinte estavam sendo atacados. Dizer que a situação era perigosa era pouco. De seu posto escondida entre as árvores, Anna se obrigava a respirar levianamente entre o estrepitoso pulsar de seu coração e observava com horror como aqueles homens caíam sobre eles como uma praga de gafanhotos. Pareciam que fossem centenas de inimigos contra só dois guerreiros.
Arthur parou os pés ao primeiro com tal superioridade que lhe pareceu algo bizarro. Mas então chegou o seguinte. E outro mais. Ficou olhando cheia de assombro como despachava sem esforço algum a todos quantos saíam a seu encontro. Sua destreza era tão extraordinária, mostrava tal superioridade, que parecia estar vendo outro homem. Tinha o espiado suficientes vezes enquanto praticava para reconhecer a diferença. Fazia que seu irmão, conhecido como um dos cavalheiros mais destros das Highlands parecesse um escudeiro. Arthur era mais rápido. Mais ágil quanto à técnica e movimentos. E o que era mais significativo, mais forte. Podia sentir como reverberava a terra com a força de seus golpes. Quando um de seus oponentes conseguia acertar com uma cutilada, o braço de Arthur apenas se movia ao bloqueá-lo e absorvia a força do impacto como se fosse nada. Seu braço… Os olhos lhe puseram como pratos. Era o braço direito.
Não entendia. Arthur era canhoto. Ao menos supunha que era, mas nesse momento, em somente observá-lo, sabia que estivera fingindo. Por que ocultaria algo assim? E por que não o tinha visto alguma vez antes lutar desse modo? Podia compreender os motivos para ocultar seus incomuns aguçados sentidos, mas não havia nada inapropriado em ter destreza no manejo da espada. Deus, poderia ser um dos cavalheiros mais venerados do reino se quisesse. Então por que não queria ser?
Mas essas perguntas se esfumaram de sua cabeça assim que viu a nova horda de atacantes que vinham de cima das árvores. Não cabia dúvida de que ao ver os corpos caídos de seus compatriotas tinham identificado a ameaça e se reuniam em torno de Arthur.
Anna reprimiu o grito de advertência, consciente de que não faria mais que lhe distrair. Mas tinha o coração em um punho. Dois homens. E um terceiro não muito longe deles.
De repente algo pareceu mudar em Arthur. Em lugar de frios e desumanos golpes mortais brandia a espada com menos intenção. Era quase como se seu objetivo tivesse mudado e não desejasse matá-los a não ser simplesmente repelir o ataque. Mas não tinha nenhum sentido. Tirou esse pensamento da cabeça. O que passava era que aqueles guerreiros estavam melhor treinados.
E era certo. Parecia difícil ver algo na penumbra. Levavam roupagens escuras e pareciam ter se sujado de fuligem a pele com algo…
Gelou-lhe o sangue ao recordar o ataque do ano anterior. Aqueles homens também levavam a pele suja. Seria possível que se tratasse dos espectros do exército fantasma de velhacos formado por Bruce, o homem que tinha instaurado o horror tanto nos corações da Escócia como da Inglaterra?
Seus piores temores se viram confirmados quando um terceiro homem desceu sobre Arthur como um cão do inferno. Em lugar do longo espadão de duas mãos que usavam os highlanders, este brandia duas espadas menores. Uma em cada mão.
Mas eram suas vestimentas as que a fizeram tremer com um terror que subia por todos seus ossos. Igual ao resto dos atacantes, levava um nasal escurecido e tinha sujado de fuligem sua pele com barro ou cinzas, mas o que a fez estremecer diante da lembrança era o resto de sua indumentária. Vestido de negro da cabeça aos pés, em lugar de cota de malha levava um peitilho de guerra de couro tachonado com peças de metal, perneiras de couro e uma manta envolta de maneira estranha. Justo como o homem que a tinha atacado no ano anterior, aquele rebelde de beleza absurda.
Esse homem era um deles. Anna sabia. O medo se transformou em pânico. Os conhecia por suas extraordinárias habilidades, por combater como demônios possuídos. «OH, Meu Deus, Arthur!» Sua respiração ficou detida na parte alta de seu peito ao ver que o atacante voava até ele com as espadas em alto a cada lado de sua cabeça. O tempo pareceu ir mais devagar. Arthur, ainda ocupando-se de um dos outros dois adversários, não poderia defender-se. Gelou-lhe o coração. O sangue. Arthur ia morrer.
Anna abriu a boca para gritar, mas no último momento Arthur golpeou a um dos homens que lhe atacavam com o punho de sua espada e pôde ergue-la a tempo para bloquear as duas folhas antes que lhe cruzasse o pescoço. O assaltante demoníaco e ele se encontraram cara a cara com as espadas engastadas sobre suas cabeças. O agressor tinha o impulso de vantagem já que caía das alturas, mas conseguiu repeli-lo fazendo uso de ambas as mãos. Embora Arthur lhe desse as costas, conseguiu distinguir o rosto de sua oponente graças à luz oferecida por um raio de lua. Tinha os olhos mais horripilantes que Anna jamais tivesse visto. Estremeceu. Pareciam brilhar na escuridão. Com essas escuras feições retorcidas pela raiva parecia um diabo recém saído do inferno, Lúcifer em pessoa. Uma difusa lembrança foi a sua memória. Deus santo! Era possível que…? Anna abriu os olhos sem acreditar de tudo. Parecia-se com Lachlan MacRuairi, o marido de sua falecida tia Juliana. Fazia anos que não o via, mas conforme tinha ouvido estava com os rebeldes. Sua tia Juliana, da qual sua irmã tinha recebido o nome, era muito mais jovem que seu pai, quase vinte anos. MacRuairi provavelmente tinha a mesma idade que seu irmão Alan. Ao aproximar-se de Arthur a expressão de seu rosto mudou. Não se teria notado se não tivesse observado com tanta atenção. Surpresa? Reconhecimento? O homem que parecia seu tio deu um passo atrás. Ou era imaginações delas? Estava escuro e não era fácil estar segura. Ambos seguiram trocando golpes, mas a intensidade e a ferocidade tinham desaparecido. Comparado com o anterior, parecia mais um treinamento que uma batalha em que se empregassem a fundo. Anna olhava através da escuridão tentado compreender o que ocorria. Então, viu pela extremidade do olho que seu irmão tropeçava para trás, com a espada no chão e ambas as mãos sobre a cabeça, cambaleando-se…
Anna lançou um grito, incapaz de dominar-se por mais tempo. Teria deslocado em sua ajuda, mas Arthur se atrasou até sua posição para lhe impedir o passo.
—Fique atrás, maldita seja! Fique atrás!
Observou com impotência como o agressor com o que lutava seu irmão erguia a espada para acabar com ele. Seu horripilante grito atravessou a noite como uma adaga.
Arthur pareceu vacilar, mas somente por um instante. De alguma forma arrumou para rebater um golpe do homem que se parecia com seu tio e dar meia volta a tempo para bloquear a estocada dirigida contra seu irmão. O braço do atacante, ao não estar preparado para essa defesa, veio-se abaixo e com ele seu corpo, que foi cair justo sobre a espada de Arthur. O homem, surpreso, abriu os olhos antes de fechá-los para sempre.
Inclusive no meio desse horrível pesadelo a truculenta imagem fora muito para ela. Voltou o olhar entre soluços. Momentos depois, um agudo assobio cerceava o ar da noite. Olhou para o tumulto e se surpreendeu ao ver que os atacantes se retiravam. Ao que parecia MacRuairi, ou um homem que se parecia muito a ele, tinha dado a ordem de retirada. A clareira fora invadida pelos homens de seu irmão. Correu ao encontro do Alan antes inclusive de que o último dos rebeldes saísse da floresta. Tinha conseguido ficar em pé, mas ainda parecia cambalear-se.
—Oh, Deus, Alan! Está bem?
Inclusive na escuridão advertiu que lhe custava muito enfocar o olhar pela maneira em que a olhava. Sacudiu a cabeça como se pudesse assim dissipar a nebulosa.
—Um golpe no cocuruto —disse — Estarei bem. Não há por que chorar. —Tomou-a pelo queixo e lhe dirigiu um sorriso carinhoso.
Anna assentiu e limpou as lágrimas com o dorso da mão, sem se dar conta sequer de que estava chorando. Voltou de maneira instintiva e o buscou. Arthur estava a poucos metros dela, observando-a. Anna tinha vontade de correr a seu encontro, de deitar-se em seus braços, enterrar a cabeça em seu peito e romper a chorar. Ele se encarregaria de sossegar o horror. Mas seu irmão estava ali mesmo. E o rosto de Arthur se via muito sombrio.
—Está ilesa? —perguntou.
Anna assentiu enquanto o examinava, detendo-se na mandíbula e as bochechas, arroxeadas pelos golpes de seu irmão.
—E você?
Arthur assentiu também como resposta.
Alan permanecia junto a sua irmã completamente rígido. Depois caminhou em direção de Arthur, e Anna ficou paralisada temendo o que estava a ponto de fazer. Deteve-se a poucos passos dele. Ambos os homens ficaram olhando-se no silêncio da escuridão até que ao final Alan disse: —Parece ser que estou em dívida contigo, não uma, a não ser duas vezes. —Arthur ficou impassível e logo encolheu os ombros levemente — Eu não gosto de ver minha irmã zangada —acrescentou Alan.
Anna assumiu que aquilo era uma desculpa.
—A mim tampouco - disse Arthur.
Alan o examinou por um momento e depois assentiu como se tivesse chegado a algum tipo de decisão.
—Lutastes bem - disse mudando o tema, mas não a intensidade de seu escrutínio.
Ao que parecia não era ela quão única tinha advertido a melhora de suas habilidades.
—O ardor da batalha - explicou Arthur.
Esteve a ponto de mencionar sua mudança de mão, mas algo a deteve. Se seu irmão também percebeu disso, não o desvelou. Mas seguia observando-o com atenção.
—Sim, há alguns homens que funciona assim. —Anna não pôde saber pelo tom de sua voz se Alan acreditava realmente a explicação de Arthur. Ao ver que este não respondia, acrescentou—: Os rebeldes estão mais bem treinados do que pensava.
—Não eram rebeldes qualquer, irmão - disse Anna.
Ambos a olharam, mas foi Alan quem fez a pergunta.
—A que te refere?
—Acredito que um deles era parte da Guarda fantasma de Bruce, mas pode ser que não fosse o único.
Anna explicou a similitude de vestimenta com o homem que dirigia o ataque do ano anterior à igreja. Alan cofiou a barba.
—Tem sentido. Acredito que poderia estar certa.
—Há mais. Não posso estar segura, mas acredito que reconheci a um deles. O das duas espadas.
—O que? —Ambos os homens reagiram. Seu irmão com entusiasmo e Arthur com… algo diferente a isso.
—Nosso tio, que era nosso tio.
Alan amaldiçoou.
—MacRuairi?
Anna assentiu. O rosto do Alan adotou um gesto severo.
—O nosso pai não gostará nada. —Anna não sabia de onde provinha a inimizade de seu pai com o que fosse seu tio político, mas sim que o ódio corria furiosamente por ambas as partes. Alan soltou uma gargalhada — Embora talvez devesse. Que Bruce fique em seu bando com esse filho de cadela oportunista e traiçoeiro. Lachlan MacRuairi somente professa lealdade a si mesmo. Se for esse o tipo de homem que recrutou para sua tropa de fantasmas, não temos nada do que nos preocupar.
Arthur permanecia em um estranho silêncio. Anna tinha vontade de lhe perguntar a respeito do ocorrido entre o que acreditava seu tio e ele, mas, do mesmo modo que anteriormente, algo a fez conter-se. Em vez disso perguntou: —O que é o que o fez fugir?
Seu irmão ficou circunspeto.
—Não estou seguro. Tinha a cabeça tonta. Não vi virtualmente nada.
—Seus homens fizeram aparição —explicou Arthur — Estavam em minoria numérica. —Não tinha parecido assim, mas estava muito pendente de seu irmão para emprestar atenção ao resto da batalha — Deveriam voltar para acampamento —disse.
—Sim —concedeu Alan — Um de meus homens te levará, Anna. Nós temos que nos encarregar de…
«Os mortos», completou ela mesma.
O horror do ataque, o horror daquilo ao que tinham escapado por pouco, golpeou-a então com toda sua força. As comportas se abriram e emergiram todas as emoções que estivera contendo atrás delas, ameaçando transbordando em muitas lágrimas. Voltou-se, advertindo que Arthur se pôs a seu lado. Este, alheio à presença do Alan, esticou o braço para lhe pôr depois da orelha uma mecha de cabelo rebelde. Seus dedos passaram roçando a bochecha e se detiveram ali. A ternura que havia nesse gesto fez que a Anna saltasse em lágrimas. Ergueu o olhar para ele. Advertiu o rosto de preocupação atrás de sua expressão séria. Sua sólida presença, sua força a desarmavam completamente. Se tomasse entre seus braços se romperia em pedaços. Arthur, que adivinhava que isso poderia ocorrer, não o fez.
—Tudo sairá bem —disse com delicadeza — Faça o que diz seu irmão.
—Mas…
Cortou seus protestos com uma negação da cabeça e expressão firme. Deveu adivinhar que ela tinha perguntas que fazer.
—Agora não - disse olhando em direção aos caídos — Depois.
Anna manteve os olhos no rosto de Arthur, procurando não seguir a direção de seu olhar. Já havia visto suficiente sangue para o resto de seus dias. As lembranças dessa noite a perseguiriam. Era uma reação compreensível. Anna era uma mulher e não alguém acostumado ao sangue e ao furor do campo de batalha. Arthur, entretanto, sim estava. Ou ao menos deveria estar. Mas havia algo em sua expressão, na tensão de sua mandíbula, a brancura da boca, a crueldade de seus olhos, que indicava que aquilo lhe afetava profundamente. Anna seguia os passos dos dois homens de seu irmão que a precediam com a suspeita de que ela não seria a única a que perseguiriam as lembranças daquela noite. A questão era por que.
Arthur não pôde conciliar o sonho. Quase esperava que MacRuairi se deslizasse na escuridão e lhe rachasse a garganta ou cravasse uma adaga nas costas pelo que tinha acontecido. Não seria a primeira vez. Não tinha ganhado o apelido de Víbora unicamente por sua venenosa personalidade, mas também por seu ataque silencioso e mortífero. Entretanto, Arthur não podia culpá-lo.
Tal e como tinha feito quase toda a noite, olhava o monte de corpos que tinham deixado apinhados a um lado da clareira, postos ali para que os «atacantes» os recolhessem. Nove homens de Bruce assassinados. Mais da metade pela ponta de sua espada. Equivocou-se. Muito. Em muitos aspectos para poder contá-los. Suficiente mal era que seus sentidos tivessem falhado, que não tivesse advertido os sinais do ataque, mas, além disso, parecia ter esquecido de que lado estava. Levava tanto tempo entrincheirado em campo inimigo que começava a acreditar em suas próprias mentiras.
«Cristo.» Fechou os olhos em uma tentativa de aplacar seus pensamentos. Viu-se obrigado a matar a seus próprios homens antes, mas nunca desse modo. Aquilo não era simplesmente defender-se. Tornou-se um louco fazendo. Estava tão concentrado em proteger Anna e matar a qualquer que supusera uma ameaça para ela que não tinha reparado em nada mais que isso. Nem sequer se deteve quando percebeu o que ocorria. Tinha salvado a vida do MacDougall em troca de um de seus compatriotas. Não podia tirar da cabeça o rosto que tinha posto MacRuairi quando Arthur atravessou ao homem que estava a ponto de acabar com o MacDougall. Pouco importava que sua intenção não fosse matá-lo. Não teria que ter intervindo. O pranto dilacerador de Anna não era desculpa, ao menos não uma desculpa que importasse para os de sua irmandade.
Levantou-se de seu solitário posto junto à árvore quando começaram a vislumbrar os primeiros raios do amanhecer através da floresta. Não acudiriam. Nem MacRuairi, nem tampouco Gordon, MacGregor e MacKay, a menos que tivesse errado ao identificar aos outros três membros dos Guardiões das Highlands quando se batiam em retirada. Tampouco esperava que o fizessem, embora gostasse de ter a oportunidade de explicar-se ante eles. Não se arriscariam de novo a revelar a identidade de Arthur. Para isso bastava a si mesmo.
Era consciente do perto que estivera de arruinar sua cobertura e de pôr toda sua missão em perigo. Anna, tal e como provavam suas perguntas, era muito observadora, inclusive sendo presa do pânico. E não era a única. Também Alan suspeitava da súbita melhora de suas habilidades como combatente e de quão rápido tinham fugido os atacantes. No momento os tinha contentado, mas sabia que ela tinha mais pergunta e não se atrevia tão sequer a pensar o que mais teria advertido.
Reconhecer ao MacRuairi já era mal por si só, mas relacioná-lo com os Guardiões das Highlands era um completo desastre. Manter suas identidades em segredo não era só um aplique à mística e ao medo que rodeavam a aquela guarda «fantasma», mas sim também ajudava a mantê-los a salvo. Se seus inimigos tinham conhecimento de suas identidades, além de pôr preço a suas cabeças, temia a segurança de suas famílias. Essa era a razão pela que tinham decidido usar nomes de guerra quando estavam em uma missão.
Quando Bruce se inteirasse de que tinham desmascarado ao MacRuairi, teria graves conseqüências. Não teria que ter ocorrido, maldita seja. A raiva e a culpa invadiam seu interior sem piedade. Arthur teria pressentido o ataque se não tivesse tão envolto com Anna e deixar-se dominar pela emoção. Aqueles homens não estariam mortos e tampouco teria posto a ela em perigo. Deus, poderiam tê-la matado. E tudo por não ser capaz de controlar suas emoções e implicar-se muito.
Voltou para acampamento justo no momento em que começavam a despertar os homens que não estavam de guarda. Olhou para a tenda de Anna e viu que as portinholas forradas de linho permaneciam fechadas. «Bem. Que durma.» Merecia. Tinha ido vê-la com freqüência no transcurso da noite para assegurar-se de que estava bem. Sabia o muito que a tinha afetado o ataque, mas combatia com seus próprios demônios, de modo que por mais que fosse ele quem devia fazer, não estava em condições de consolá-la. Não obstante, uma vez que teve retornado de encarregar-se dos cavalos, viu a portinhola aberta. Ao inspecionar o acampamento e não encontrá-la ficou circunspeto. Mas pouco depois teve oportunidade de espiá-la enquanto falava com seu irmão, que estava ocupado com alguns de seus homens. A exasperação que refletia seu semblante era tão corrente que suspirou aliviado, até sem querer reconhecer quanto se preocupou.
Quando seu olhar reparou nele, Anna titubeou, mas em seguida começou a avançar pelo terreno semeado de musgo e folhas em sua direção. Arthur percebeu de que levava um pedaço de pano nas mãos. Deteve-se frente a ele, inclinando seu pálido rosto para olhá-lo. Arthur sentiu uma angústia no peito. Ao que parecia, o sono também fora esquivo.
—Já que a regra que pusestes e meu irmão está ocupado, terá que me acompanhar.
Arthur a olhou de modo inquisitivo.
—Não me fizeram prometer que não abandonaria o campo sem sua companhia ou a de meu irmão?
Franziu o cenho até converter-se no primeiro sorriso que tinham parecido em anos.
—Sim.
—Preciso ir ao córrego me lavar.
O córrego ficava perfeitamente à vista do acampamento, mas Arthur não discutiu ao conscientizar de quanto a teria afetado o ataque. Fez uma reverência zombadora com um gesto exagerado da mão.
—Depois de ti.
Anna não parecia ter muita vontade de falar, algo que vinha a calhar. Esperou junto a uma árvore, fazendo como que não olhava, enquanto ela se encarregava de suas abluções matinais. Depois de arrumar o cabelo com um pente úmido e lavar os dentes com pós de um frasco que esfregou sobre um pequeno pedaço de tecido branco, mergulhou outro trapo branco na água. Tinha levado com ela uma pastilha de sabão, a qual esfregou sobre o tecido para depois proceder a lavar o rosto, o colo, as mãos e os braços. Era uma das imagens mais sensuais que jamais tivesse presenciado.
Quando meteu o trapo entre os seios já não pôde mais. Voltou-se, furioso por que um pouco tão mundano pudesse o excitar. Mas com esse sol caindo entre as árvores, que se refletia em seus cabelos dourados e os regatos de água que se derramavam em cascata por seu rosto e seu colo a via formosa, doce e verdadeiramente cativante. Um raio de luz na escuridão. E tudo que Arthur podia pensar era o perto que estivera do céu e a vontade insensata que tinha de tocá-la de novo. Deus, é que não tinha aprendido nada do ocorrido na noite anterior? Concentrou-se no que lhes rodeava com uma intensidade quase exagerada, aguçando seus sentidos para algo que se saísse do ordinário. Entretanto voltou o olhar atrás. Anna tinha terminado e caminhava para ele com o sol a contraluz pelas costas. Arthur teve que conter a respiração. Mas isso não evitou que o apanhasse o subjugador aroma de sua doce e feminina fragrância: pele recém lavada com um toque de pétalas de rosa.
—O que acontece? —perguntou Anna.
—Nada - disse com tensão.
—Parece como se lhe doesse algo - disse olhando-o nos olhos — Lhe dói o rosto? —perguntou tomando o arroxeado queixo na mão. Cada um dos músculos de Arthur ficou em guarda ante o contato — Quebrou algo o idiota de meu irmão? —Jesus, que mãos mais suaves. Seus dedos aveludados acariciavam o duro contorno da tensa mandíbula de Arthur — Olhem quantos hematomas. Isso deve doer — acrescentou, levando o dedo até sua boca — Têm o lábio partido.
Sim, doía. Aquele gesto de sensualidade inocente fazia correr o sangue até a virilha de Arthur e a incendiava de calor. Teve que obrigar-se a não lhe chupar o dedo. Não tinha nem idéia do que estava fazendo. Nem do que estava custando resistir a tocá-la.
Anna o olhou com uma preocupação que se refletia em seus olhos.
—Dói muito?
—O rosto não. —Arthur lhe dirigiu um olhar lascivo que dizia exatamente onde estava a origem de sua dor. Parecia que fosse estalar.
As bochechas de Anna se ruborizaram levemente. Se por acaso aquilo não fosse suficiente, começou a mordiscar esse suave lábio inferior que tinha.
—Oh, não me dava conta de que…
—Deveríamos voltar. Seu irmão queria sair cedo.
Anna assentiu e Arthur teve a impressão de que lhe dava um calafrio.
—Não me entristecerá partir daqui.
Arthur não pôde conter-se. Tomou pelo queixo e cravou o olhar em seus grandes olhos azuis.
—Está bem?
Anna tentou sorrir, mas lhe tremeu a boca.
—Não, mas arrumarei isso.
Arthur lhe soltou o queixo e sua boca adotou um gesto severo.
—O que ocorreu a noite passada não voltará a repetir-se.
Os delicados arcos das sobrancelhas de Anna se franziram.
—Como pode estar tão seguro?
—Porque não permitirei.
Anna o examinou com o olhar e abriu os olhos de repente ao compreendê-lo.
—Por Deus bendito, por isso está zangado. Culpa-se do ocorrido. Mas isso é ridículo. Jamais poderia ter sabido que…
—Sim, sim deveria saber. Se não tivesse tão distraído, não teria ocorrido.
—Então a culpa é minha?
—É obvio que não.
—Não é perfeito, Arthur. Sois humano. Comete enganos. —Ele não respondeu. Tinha a mandíbula tão apertada que lhe doíam os dentes - é o que pensa? —perguntou Anna com ternura — Não falharam seus sentidos alguma vez antes?
«Uma vez», pensou Arthur, afastando a lembrança de sua memória.
—Temos que retornar.
Começou a afastar-se dela, mas Anna o agarrou pelo braço para detê-lo.
—Não ides contar isso?
—Não há nada que contar.
—Tem algo que ver com seu pai? —ficou olhando-a, aniquilado. Como demônios tinha chegado a suspeitar? Anna advertiu sua surpresa — Quando falou de sua morte, deu-me a sensação de que não contava tudo.
Não tinha contado nem a metade do que aconteceu. Como por exemplo a participação do pai de Anna na tergiversação dos fatos. Anna esperava uma resposta. Ele não era muito dado a falar sobre seu passado, mas a expressão do rosto dela disse que aquilo lhe parecia algo muito importante.
—Não há muito que contar. Tratava-se de minha primeira batalha. Meu pai me levou com eles para me pôr a prova. Estava tão preocupado por lhe impressionar que não detectei os sinais do ataque. —Mas isso não era a pior parte, pensou Arthur — Vi como morria.
O rosto de Anna se encheu de comiseração.
—Deus, sinto muito. Deve ter sido horrível. Mas não era mais que um menino. Não podia fazer nada para ajudar.
—Teria que o ter avisado. —Se não estivesse tão afetado, tão assustado, teria visto os sinais, refletiu Arthur. Então, igual à noite anterior, a emoção se havia interposto em seu caminho — Estava distraído.
Mal teve tempo de franzir o sobrecenho antes que os olhos de Anna se iluminassem repentinamente de compreensão.
—Amava-o.
Arthur encolheu os ombros, incomodado com o tema.
—Isso não serve de muito.
—Inclusive Aquiles tinha um ponto débil, Arthur. —Ele a olhou com cara de estar admirado. Do que estava falando? — É difícil manter-se afastado e à expectativa com as pessoas às que alguém quer —disse Anna lhe oferecendo um sorriso de simpatia — Não podem te culpar por amar às pessoas. —Mas fazia. Do que servia suas tão apregoadas habilidades se não podia proteger a aqueles que amava? — Obrigado por me contar isso — Por que voltava a sentir que a tinha deixado ver muito de si?
—Não desejava que te preocupasse pensando em outro ataque surpresa.
—Não me preocupo —disse Anna — Confio em você.
Arthur sentiu uns ardores no peito que o consumiam por dentro. Queria a advertir que não fizesse, lhe dizer que não merecia, que o único que faria seria a machucar, que ela dava seu coração com muita facilidade, com os olhos fechados. Mas em vez disso assentiu e puseram rumo para o acampamento. Arthur subiu a costa com ela, e quando estiveram nas imediações, Anna o olhou de soslaio.
—Pareceu como se meu tio o reconhecesse.
A observação o colheu com a guarda completamente baixa. Algo para o qual parecia ter um talento especial. Arthur deu um passo um tanto vacilante. Não muito, mas temia que se desse conta.
—Está segura de que era seu tio? Não via bem. Eu estava muito mais perto e não pude reconhecer aquele rosto oculta depois do nasal.
Anna enrugou o nariz, um movimento adorável que chocava profundamente com a ameaça que representava para ele.
—Faz alguns anos que não o vejo, mas estou bastante segura de que era ele. Seus olhos são inesquecíveis — disse com um calafrio. Se tentava distrair de sua pergunta, não ia funcionar — Mas pareceu o reconhecer.
—Ah, sim? —disse Arthur encolhendo os ombros — Pode ser que nos tenhamos cruzado alguma vez.
Ela ficou um momento sem dizer uma palavra, mas infelizmente não pensava deixar o assunto correr.
—Então não o conhece?
Arthur lutou contra a ativação instintiva de seus alarmes.
—Pessoalmente não.
—Parecia aborrecido de lhe ver.
O rápido pulsar do pulso de Arthur contradizia sua calma exterior. Era perigosamente perceptiva e andava muito perto da verdade.
—Aborrecido? Por isso sei, Lachlan MacRuairi é um filho de…—disse, detendo-se ao recordar quem tinha por audiência — É um homem perverso com um caráter de cão. Provavelmente estava furioso por que matasse a tantos de seus homens.
Anna pareceu aceitar a explicação. Mas a seguinte pergunta lhe deixou claro que ainda não estava satisfeita.
—Por que se retiraram?
Arthur amaldiçoou para si. As vozes de alarme se acendiam com mais força.
—Como já vos disse, os homens de seu irmão chegaram até nós. Estavam em minoria.
Ficou circunspeta.
—Não me pareceu isso. Parecia que estavam ganhando.
Arthur se obrigou a forçar um sorriso irônico.
—Seu irmão estava em perigo —lhe recordou — Eu diria que estava distraída.
Anna ergueu o olhar para olhá-lo e lhe dedicou um meio sorriso.
—Pode ser que tenham razão. Estava concentrada em meu irmão. Ainda tenho que lhes agradecer o que fizeram. —Uma sombra sulcou seu rosto — Se não tivessem detido a esse homem…
—Não pensem mais nisso, Anna. Já passou.
Assentiu e voltou a olhar de relance.
—De todos os modos, agradeço-lhe. E também Alan o faz, apesar de que tenha uma estranha forma de demonstrá-lo.
MacDougall não ocultava seu interesse por eles. Arthur sentiu o peso de seu olhar durante todo o tempo. Ao encontrar-se com seus olhos, soube que a discussão a respeito do ocorrido no dia anterior ainda não tinha acabado.
—Tem direito a estar furioso, Anna. O que fiz esteve mau. Tudo que posso fazer é prometer que jamais voltará a acontecer.
A maneira em que sua respiração ficou sobressaltada foi como uma punhalada no peito. Parecia emocionada. Desconcertada. Como se esperasse algo diferente.
—Mas…
—Aguardam-nos — disse Arthur, e assinalou ao moço que preparava seus cavalos para que não seguisse falando. Não poderia suportar outra conversa como a do dia anterior — É hora de partir.
Essas palavras fossem dirigidas tanto a ela como a si mesmo. Ponto cego. Ponto débil. Não importa como o tivesse chamado. Seus sentimentos no que respeitava a Anna se converteram em um lastro. Tinha permitido que ela se aproximasse muito, e sua missão e sua coberta pendiam de um fio. A conta atrás tinha começado.
Capítulo 18
Dois dias sem acontecimentos depois, Anna atravessava as portas do castelo de Dunstaffnage ao lombo de seu cavalo. Um dos guardiães se adiantou, de modo que lhes esperavam. Pelo semblante de ira mal contida de seu pai advertiu que estava a par do fracasso de sua viagem. Anna sonhava desfrutando de uma noite de sonho reparador antes de confrontar as perguntas de seu senhor, mas sua tardia chegada não serve para atrasar o relatório. Alan e ela quase não tiveram tempo de lavar as mãos e fazer uma frugal refeição leve antes que os apresentassem nas dependências do senhor do castelo.
John de Lorn permanecia de pé em meio da sala, com as mãos à costas e os membros importantes de seu meinie atrás dele e ambos os lados. A expressão de duelo que todos compartilhavam sem exceção fez pensar a Anna que entrava em um túmulo funerário. Dado que nenhum deles tomou assento, ela e Alan tiveram que suportar o desconforto de estar de pé. Suas sensações não distavam muito das do menino ao que chamam para que responda de uma travessura atroz com resultados nefastos.
Apenas teve fechado a porta quando seu pai começou a falar. A atacar, em realidade.
—Ross rechaçou a oferta.
Não se tratava de uma pergunta. Ao notar o tom de acusação de sua voz, Anna teve vontade de explicar-se, mas não tocava a ela fazer.
Alan respondeu por ambos.
—Sim. A resposta do Ross a uma aliança foi quão mesma na ocasião anterior. Disse que Bruce partiria também contra ele e que não podia prescindir de nenhum de seus homens.
—Mas que passou com o compromisso? Não lhe fez mudar de idéia?
Anna sentiu o peso dos olhares de todos os homens sobre ela e suas bochechas se ruborizaram. Mantinha o olhar baixo para que seu pai não visse quão envergonhada estava. Independentemente de que supusera alguma mudança ou não, tinha fracassado na tarefa que lhe tinha encomendado.
—Não há compromisso —explicou Alan — Estiveram de acordo em que não encaixam um com o outro.
Anna desejava que ninguém mais detectasse como Alan acabava de medir suas palavras.
—Quer dizer que não te perdoou por rechaçá-lo na primeira vez? —perguntou o pai a Anna diretamente.
Ela se aventurou a olhá-lo e a contemplar seu rosto de raiva. O coração lhe encolheu. Não era bom para ele que se zangasse tanto. Quis lhe dizer algo a esse respeito, mas sabia que se lhe tratasse como a um inválido ante seus homens, ficaria mais furioso ainda. Não sabia o que dizer. Não queria mentir, mas tampouco podia contar toda a verdade.
—Eu… — disse, tropeçando com suas próprias palavras.
—Bem — repôs seu pai com impaciência—, acreditava que foste o persuadir.
As bochechas ardiam da vergonha.
—Tentei, mas temo que ele… percebeu que meus sentimentos estavam comprometidos com outra causa.
—O que quer dizer isso de «comprometidos com outra causa»? —Seu pai entreabriu os olhos, que a atravessavam como flechas. Sabia que havia algo que não lhe estava contando — Campbell —disse impassível em resposta a sua própria pergunta. Amaldiçoou para si com um olhar implacável — E como poderia perceber isso? O que fez?
Jamais tinha visto seu pai tão furioso com ela. Era a primeira vez que sua raiva a atemorizava. Que o merecesse não era algo que aplacasse seus devastadores efeitos. O que poderia ter dito? Felizmente, Alan teve piedade dela.
—O compromisso não teria mudado nada. Ross já tinha seus planos feitos. Temo que ainda não ouvistes a pior parte. —Anna temia o pior em relação à reação de seu pai. Tinha medo de que aquilo o levasse a um novo ataque de apoplexia. Ao que parecia, Alan decidiu que era melhor não dosar a verdade, a não ser soltar a de uma só e desagradável vez — Ross está pensando em render-se.
Seu pai não disse uma palavra. Mas Anna contemplava como sua fúria crescia como uma crista de espuma no horizonte que se dirigisse para a costa a toda velocidade até converter-se em uma temível onda que ameaçava rompendo. John de Lorn apertava os punhos com força, seu rosto estava vermelho como um tomate, as veias lhe palpitavam nas sobrancelhas e seus olhos ardiam como se fossem as portas do inferno. Anna deu um passo em sua direção, mas Alan a deteve com uma mão e negou com a cabeça em sinal de advertência.
Quando seu pai acabou por bem pronunciar-se foi para proferir uma enxurrada de insultos que teriam posto a sua mãe de joelhos durante semanas inteiras em penitencia por sua alma blasfema. Perambulou, iracundo pela pequena câmara como um leão enjaulado. Inclusive seus homens lhe deixaram espaço suficiente para que desse rédea solta a sua irritação.
—Ross é um tolo do demônio! —explorou com fúria — Bruce jamais lhe perdoará o que fez às mulheres. Pelo amor de Deus! Pendurou em jaulas a sua irmã e à condessa. Se se render, estará assinando sua própria ordem de execução. —Deteve suas palavras o justo para dar um murro sobre a mesa — Como pode pensar em prostrar-se ante esse assassino traiçoeiro? Cortou a meu parente em pedaços diante de um altar.
Anna não se atreveu a assinalar que a santidade da igreja não era algo que parecesse importar muito ao Ross. Depois de tudo, ele mesmo violou o santuário para capturar às mulheres de Bruce.
—O povo está com Bruce —disse Alan para acalmar a seu pai — despertou um ardor patriótico no campo que não se via desde Wallace. Acreditam que é um salvador, o segundo advento do rei Artur, que os liberou do jugo da tirania inglesa. Ross pensa em sua gente e no futuro de seu clã. Pensa no que é melhor para a Escócia.
Anna tentou ocultar sua surpresa. Felizmente seu pai estava muito furioso para ouvir o que Alan havia dito realmente. Mas embora seu pai não o tivesse feito, ela sim tinha ouvido o tom de reprimenda na voz de seu irmão. Pensaria Alan igual a Ross? Acreditava também ele que Bruce era a melhor opção para Escócia? Por Deus bendito, o que aconteceria seu pai se equivocava?
Anna não podia acreditar que fosse ela quem albergasse esse pensamento desleal. Mas os MacDougall, em seus dias ferventes patriotas, tinham dado seu apoio aos ingleses para não ver Bruce sentar-se no trono. Era isso o melhor para Escócia?
—Morrerei antes de ver esse assassino no trono — disse seu pai, consumida já a raiva de seus olhos, frios como o gelo.
Anna sentiu certo alívio para ouvir os murmúrios unânimes de seus homens que concordavam vigorosamente com essa idéia. Seu pai sabia o que fazia. Era um dos homens mais poderosos de Escócia. Tinha suas falhas, claro, que grande homem não os tinha? Mas ele faria que superassem aquilo.
Uma vez informado sobre a parte mais importante da viagem, Alan procedeu a lhe contar a seu pai o resto, dando conta brevemente do problema acontecido pelo caminho. Seu pai escutava, cada vez mais preocupado, empalidecendo visivelmente para ouvir como seu herdeiro escapava por pouco à morte, duas vezes. Entreabriu os olhos enviesadamente quando Alan o informou das suspeitas de Anna a respeito da implicação do MacRuairi e depois transbordou de emoção ao conscientizar-se da conexão que tinha com a guarda fantasma de Bruce.
—Bom trabalho — disse a Anna, quem sorriu radiantemente pela adulação.
Alan deu a versão de Arthur de sua retirada, mas seu pai também pareceu ter problemas em compreendê-lo.
Ao final, adiantou-se e a agarrou da mão.
—Não sofreste nenhum dano, filha?
Anna negou com a cabeça e ele a acolheu entre seus grandes e robustos braços, esquecendo aparentemente sua ira. Por um momento, Anna voltou a sentir-se como uma menina e a necessidade de chorar todas suas penas sobre sua túnica de finos bordados se apoderou dela. Arthur seguia inimizado com ela. O ataque não tinha mudado nada. Por acaso o tinha piorado. Tinha a esperança de que depois de seu bate-papo ele tivesse mudado de parecer. Arthur sentia algo por ela, mas havia um motivo que o fazia conter-se. Esses dois dias de caminho não lhe tinham dado novas perspectivas. Anna não podia livrar-se da sensação de que havia algo estranho no ataque. E tampouco podia tirar da cabeça a inquietação que lhe provocava suspeitar que ele ocultava algo.
Seu pai se voltou para trás para olhá-la.
—Está cansada. Já ouvirei o resto da história pela manhã.
Assentiu, aliviada de que o pior já tivesse passado. Ao menos isso é o que pensava.
—E, Alan — disse John de Lorn a seu filho—, faz que Campbell e seu irmão se reúnam conosco. Parece que sir Arthur tem que responder por muitas coisas — acrescentou dirigindo um olhar a Anna que a fez estremecer da cabeça aos pés.
Arthur estava preparado para a citação quando esta chegou. Não esperava, entretanto, que se incluísse nela a seu irmão.
—Que diabos tem feito? —perguntou Dugald com suspeita à medida que atravessavam o barmkin em direção à torre da comemoração — por que tem Lorn tanta vontade de ver-te?
Arthur e seu irmão subiram a escada compassando sua marcha com o tinido de seus peitilhos e suas armas.
—Suponho que tem perguntas que fazer em relação aos homens que nos atacaram.
—E o que sabe você deles?
—Nada — disse Arthur ao mesmo tempo que abria a enorme porta de madeira que dava entrada à torre.
—O que tenho eu que ver em tudo isto?
Arthur olhou ao Dugald. A expressão de seu irmão era um reflexo da impaciência que ambos sentiam. Ao Dugald gostava tão pouco como a ele que o chamassem a presença de Lorn. Apesar de que seu irmão e ele lutassem em diferentes lados da guerra, ainda podiam coincidir em seu ódio para o John de Lorn.
—Que me crucifiquem se sei — disse Arthur incomodado por essa incerteza. Um guarda bateu na porta para anunciar sua chegada. Quando lhes fizeram passar, voltou-se e acrescentou—: Mas estamos a ponto de averiguá-lo.
Examinou com rapidez aos ocupantes da sala: Lorn, sentado como um rei em uma poltrona que melhor parecia um trono com uma expressão impossível de discernir; Alan MacDougall de pé junto ao muro, com cara de não saber muito bem o que ocorria; e Anna sentada em um banco em frente ao fogo com aspecto de estar extremamente inquieta. À exceção do único guarda que os tinha admitido para deixá-los depois às ordens de Lorn, não havia nenhum outro membro presente de seu meinie.
Tratasse do que se tratasse, era um assunto pessoal. A pontada de inquietação que Arthur sentia se converteu em uma punhalada em toda regra. Lorn, imperioso filho de cadela, não os convidou a sentar-se, de modo que permaneceram de pé frente a ele. O ódio cego que atendia a alma de Arthur cada vez que se encontrava rosto o rosto com o homem que tinha assassinado seu pai não diminuía. Contraiu suas feições de modo que não revelassem emoção alguma, mas o fogo que queimava seu peito e a necessidade de afundar uma adaga no negro coração de Lorn eram algo mais difícil de reprimir.
—Desejava nos ver, milorde — disse Dugald com um tom que não mostrava deferência alguma.
Lorn tomou seu tempo em deixar a pluma a um lado e logo se recostou na poltrona para olhá-los. Tamborilou com os dedos sobre a mesa. Quando respondeu, não foi ao Dugald, a não ser a Arthur: —Ouvi que tiveram uma viagem cheia de peripécias.
Algo no tom de sua voz fez que soassem os sinos de alarme no mais profundo da cabeça de Arthur. Teve que controlar-se para não olhar a Anna. O que lhe teria contado?
—Sim —disse — Tivemos a sorte de escapar à primeira orda de velhacos, mas não à segunda. Fizemo-nos fugir bem a tempo.
Lorn o escrutinou com tal parada que lhe puseram todos os nervos de ponta.
—Isso eu ouvi. Meu filho não teve mais que louvores para suas habilidades na batalha. Conforme afirma, jamais viu nada igual. —Dugald se voltou bruscamente para Arthur com o rosto circunspeta — Tenho que admitir que me surpreendeu ouvir a descrição do enfrentamento —acrescentou Lorn com um sorriso. Mas seu olhar não tinha nada de divertido. Era frio e calculador — Me pergunto por que jamais antes tínhamos visto isso em você.
Lorn desviou seu olhar para o Dugald, avaliando sua reação. Infelizmente, a expressão do irmão de Arthur não fez a não ser admirar mais.
—Sir Alan é mais que generoso com suas adulações, meu senhor.
Alan deu um passo à frente, em claro desacordo com a forma de perguntar de seu pai.
—Sir Arthur foi chave na hora de derrotar aos rebeldes, pai, e ao salvar minha vida. Temos uma dívida de gratidão com ele.
—Sim, é obvio —disse Lorn — Estou muito agradecido. Mas me pergunto… — Fez uma pausa e tamborilou com um dedo sobre a mesa— pergunto-me se poderiam jogar um pouco de luz sobre o resto do ataque.
—É obvio — disse Arthur. Mas não gostava absolutamente dos roteiros que tomava aquele assunto. Lorn era um filho de cadela arrevesado. Gostava de ter aos o rodeavam em um punho. Acaso suspeitava algo? Quem podia saber.
—Minha filha acredita ter identificado a quem fosse meu irmão político, Lachlan MacRuairi, como um desses rufiões, e também pensa que pode ser um dos guerreiros secretos dos que tanto ouvimos falar.
—Cruzei-me com esse homem uma ou duas vezes, mas não o conheço tão bem para afirmar nenhuma coisa nem a outra. Se lady Anna tiver dúvidas, temo que eu não posso ajudar a resolver.
Arthur caminhava pela corda frouxa. Uma negação terminante poderia chamar suspeita, mas queria manter a semente da dúvida plantada na mente de Lorn, cujos traços se endureceram, fazendo patente o ódio que professava pelo que fosse seu cunhado.
—MacRuairi é uma serpente traiçoeira, um assassino desumano que venderia a sua mãe por uma peça de prata, mas há uma coisa que jamais faria, e é se dar por vencido. Jamais o vi retirar-se em uma batalha.
Bàs roimh Gèill. «Morrer antes que render-se» formava parte do credo dos Guardiões das Highlands, mas parecia funesto que essa frase desse ao Lorn algo no que fincar o dente. A corda frouxa pela que Arthur caminhava-se fazia mais instável por momentos.
Deu de ombros sem comprometer-se.
—Então é possível que não fosse ele?
Lorn voltou a dirigir o olhar a sua filha, quem o olhou nos olhos antes de responder:
—Não posso estar segura, pai. Estava muito escuro. Somente percebi seu rosto com claridade por um instante… e fazia anos que não o via.
Arthur sentiu uma opressão no peito. Tentava protegê-lo. Teria notado Lorn também disso?
—Havia algo que quisessem de mim, meu senhor? —perguntou Dugald cada vez mais impaciente.
Em outras palavras: que demônios fazia ele ali? Uma pergunta que também interessava Arthur.
—Estou chegando a esse ponto.
Lorn voltou a tamborilar sobre a mesa, e Arthur começou a imaginar-se que agarrava sua maça de guerra e punha fim a essa aporrinhação de uma vez por todas.
—Não estou seguro de que firmaram tanto do propósito que tinha a viagem ao norte para ver o Ross — disse ao Dugald — Era pra retomar as conversações para o compromisso de matrimônio entre minha filha e sir Hugh Ross, com a esperança de que uma aliança entre nós animaria ao conde a enviar tropas de apoio na guerra contra Bruce. Infelizmente, as coisas não fossem como tínhamos planejado.
Dugald fulminou de relance Arthur com o olhar.
—Ah, não?
—Não. —O olhar de Lorn voltou a recair sobre ele — Ao que parecia, sir Hugh percebeu que os afetos de minha filha estavam comprometidos com outra causa. Sabes algo disso, sir Arthur?
Arthur viu pela extremidade do olho como Anna empalidecia e apertava as mãos com força sobre seu regaço. Que diabos havia dito? Os dentes lhe chiavam. Sentia-se esquecido no aposento e sem espaço para mover-se.
—Sim.
—Pensei que talvez fosse assim —disse Lorn. O brilho de raiva de seu olhar disse a Arthur que provavelmente adivinhava parte do acontecido. Esperou tensos, preparando-se para o pior. O nó cada vez se apertava mais. Lorn se voltou para o Dugald. As razões pelas quais seu irmão estava ali tinham ficado claras — Diante dos dados e recentes acontecimentos, eu gostaria de propor uma aliança diferente. Uma que faria mais sólidos os laços entre nossas famílias e mostraria minha gratidão para sir Arthur pelo serviço que tem feito a meu filho, assim como também asseguraria a felicidade de minha filha. —Cada um dos músculos do corpo de Arthur ficou tensos enquanto esperava o que estava por chegar. Perguntava-se se ela teria algo ver com isso, mas os olhos de Anna não mostravam mais que surpresa quando seu pai disse—: Eu gostaria de propor um compromisso de bodas entre sir Arthur e minha filha.
Dugald soltou uma gargalhada.
—Um compromisso?
A boca de Lorn adotou um gesto severo.
—Acredito que isso é o que disse. Podemos falar sobre os detalhes mais tarde, mas tenham por seguro que o dote de minha filha é mais que generoso. Inclui certo castelo que acredito pode ser de interesse para ti.
Tanto Arthur como seu irmão ficaram de pedra.
Foi Dugald quem acabou por perguntar:
—Innis Chonnel?
Um sorriso retorcido se desenhou na boca de Lorn.
—Sim.
Arthur não podia acreditar. A fortaleza dos Campbell do lago Awe que tinham sido arrebatado a seu clã fazia anos, devolvida por casar-se com a mulher que queria mais que a tudo no mundo. Um autêntico pacto com o diabo. Por um momento, ficou duvidando, muito mais tentado do que gostaria de admitir. Mudar de bando era algo habitual naquela guerra. Mas ele não podia fazer. Inclusive no caso de que condescendesse a aliar-se com o homem que tinha assassinado a seu pai, havia muitas pessoas que contava com ele: Neil, o rei Robert, MacLeod e o resto dos membros dos Guardiões das Highlands. E tampouco podia ignorar sua própria consciência. Acreditava no que estavam fazendo.
A devolução do castelo dos Campbell, embora fosse ao irmão mais novo, bastou para convencer ao Dugald, que se voltou para Arthur.
—Eu não tenho objeção. Arthur?
Todos os olhos se voltaram para ele, mas somente era consciente de dois pares: os de Anna, que lhe observavam com o coração neles, e os de Lorn, que o contemplavam com a suspeita refletida.
Até no caso de que não tivesse intenção de levar a cabo, Arthur sabia que devia aceitá-lo para dissipar todo receio. Aquele compromisso era uma prova de lealdade. Tratava-se tanto de assegurar a felicidade de Anna como de provar sua aliança. Sua consciência liberava uma batalha com sua noção do dever, mas não durou muito. Não tinha outra opção. As espadas estavam em alto. Não podia pensar em quanto o odiaria Anna quando averiguasse a verdade.
—Será uma honra tomar lady Anna como esposa.
Talvez o pior fosse que, em realidade, dizia a sério.
Capítulo 19
Anna tinha tudo o que queria. Por que se sentia então tão miserável? Tinha passado uma semana desde dia em que seu pai anunciasse por surpresa o compromisso em sua câmara. Uma vez reposta da comoção, casar-se com o homem que amava… era algo que a deixava em um estado de euforia. Nada poderia fazê-la mais feliz. Exceto, talvez, a notícia de que Bruce decidisse que a coroa não lhe pertencia e desaparecesse nas ilhas Ocidentais como tinha feito anteriormente. Mas faltava muito ainda para que se cumprisse esse sonho.
Enquanto ela estava mais que entusiasmada, Arthur dava a impressão de ter que suportar uma pesada carga. Desde aquele dia se comportava com uma correção irrepreensível, cortês durante as refeições e também nas poucas ocasiões em que se cruzavam os caminhos de ambos. Inclusive permitia que Escudeiro o seguisse em qualquer parte sem queixar-se. A simples vista era o perfeito prometido, mas esse era o problema, que somente era a simples vista. Sua formalidade, esse distanciamento progressivo, reduzia sua felicidade ao mínimo. Cada vez que dizia: «Tivestes bom dia hoje, lady Anna?» ou: «Gostaria de outra taça de vinho, lady Anna?», provocava uma ferida diminuta em seu coração. Não podia entendê-lo. Segundo ele mesmo admitia, lhe importava. Então por que não se dava conta de que aquilo seria perfeito para ambos?
À medida que passavam os dias custava mais convencer-se de que isso era o que ele queria. Afastava-se dela por muitos momentos. Algo lhe pesava. Estava uma semana mais perto do final da trégua, já que os idos de março se aproximavam com presteza, mas sua crescente ansiedade se deixava ver em todo momento e não parecia que fosse por causa da batalha em floração. Gostaria que confiasse nela, mas rechaçava qualquer intento de diálogo, embora tampouco contavam com muitas oportunidades. Além dos breves intercâmbios das refeições, a única vez que tinha procurado sua companhia fosse poucos dias atrás, quando insistiu em acompanhá-la ao priorado do Ardchattan. Não esperava nenhuma missiva, assim não tinha nada que lhe ocultar. Talvez seu pai não pusesse já objeção alguma a que contasse a Arthur qual era seu papel na transmissão das mensagens. O compromisso parecia eliminar todas as suspeitas que ficassem em relação aos Campbell. À medida que se aproximava a guerra e que se intensificavam as preparações para a batalha, os Campbell passavam mais tempo junto a John de Lorn e de Alan, algo que Anna queria identificar como um sinal do degelo dessa geleira que significavam as velhas rixas.
Suspirou e passeou o olhar ao redor do aposento, enquanto sua criada terminava de lhe arrumar o cabelo. Era o sexto dia de agosto, um dia mais perto do fim da trégua. Ao olhar pela janela de sua câmara na torre viu um birlinn deitando a baía, o maior porto de ancoragem do castelo. Era um acontecimento habitual, algo que não teria chamado sua atenção a não ser pela rapidez a que se deslocava. O reluzente navio de madeira mal tinha chegado à borda quando seus ocupantes saltaram pela amurada e correram para as portas da fortaleza. O coração lhe deu um tombo, consciente de que algo estava passando. Sem incomodar em por o véu, baixou a escada da torre correndo e se apresentou no pátio de armas ao mesmo tempo que seu pai recebia ao contingente de homens do birlinn: os MacNab.
—Que novas trazem? —perguntou seu pai.
O rosto do capitão dos MacNab era desolador.
—O rei Hood, milorde. Está a caminho.
Anna ficou sem fôlego, seu sangue congelado pelo medo. Chegava o momento, o dia que tanto tinha temido e desejado ao mesmo tempo. A batalha que poderia significar o fim da guerra.
O castelo era um tumulto. Os guerreiros, agrupados, pareciam comovidos pela excitação, ansiosos pela oportunidade de destruir ao inimigo. Não obstante, as poucas mulheres que rondavam por ali tinham umas reações muito diferentes: preocupação e medo, exatamente o mesmo que sentia Anna. Seu olhar procurou Arthur de maneira instintiva. Também lhe afetavam as notícias. Observava-a com uma intensidade ardente que não via nele desde o ataque da floresta. Ficaram-se olhando uns instantes até que Arthur voltou o olhar para os MacNab.
O pai de Anna fez passar aos recém chegados ao grande salão. Anna os seguiu, ansiosa por saber tanto como pudesse. Infelizmente, os MacNab não tinham muita mais informação. Um de seus rastreadores lhes alertou de que Bruce tinha saído do castelo do conde de Garioch em Inverurie com tropas de ao menos três mil homens e se dirigia para o oeste. Três mil homens contra os oitocentos de seu pai! Não obstante, não sabiam se tinham intenção de dirigir-se primeiro ao Ross ou ao Lorn.
Bruce não perdia tempo. Estaria preparado para atacar assim que expirasse a trégua. Por Deus bendito, aqueles bárbaros estariam chamando a suas portas para a semana próxima.
Sua mãe e suas irmãs se apressaram a baixar ao salão para ouvir a comoção. Ao encontrar-se com ela depois da multidão, perguntaram-se pelo que acontecia. Anna as pôs em dia rapidamente e viu seu próprio medo refletido na inquietação de seus rostos. Era um dia que todos esperavam, mas então quando começavam a dobrar os sinos.
—Tão logo? —disse sua mãe, presa do medo — Mas se apenas acaba de se recuperar.
—Não lhe acontecerá nada, mãe — repôs Anna, tentando convencer-se também a si mesmo.
Mas não era seu pai o único que preocupava a Anna. O que aconteceria…? Não, não podia pensar nisso. Arthur retornaria. Tudo estariam logo de volta. Não obstante, a incerteza não se desvanecia. A arbitrariedade da guerra, isso era precisamente o que Anna sempre tinha desejado evitar. Por que tinha que apaixonar-se por um cavalheiro?
A reunião durou um momento mais. Ao entrar no salão perdeu a pista de Arthur e seus irmãos, mas assim que o bate-papo derivou para uma missão de reconhecimento, viu-o adiantar-se para a mesa de cavalete do estrado no que seu pai estava sentado junto a alguns de seus homens e o capitão MacNab. Quando Anna adivinhou o que estava a ponto de fazer lhe gelou o coração. Quis chamá-lo, lhe dizer que não o fizesse, mas era consciente de que isso era impossível, e Arthur fez justamente o que ela pensava.
—Eu irei, milorde — disse.
John de Lorn olhou para ele e assentiu, obviamente agradecido de que se apresentasse como voluntário. Alan também se ofereceu a ir, mas seu pai se negou, alegando que o necessitariam no castelo. Ao final, decidiu-se que seu irmão Ewen lideraria o grupo de reconhecimento, que também incluía os irmãos de Arthur.
Não perderam tempo. Em pouco menos de uma hora já estavam reunidos no barmkin para partir. Anna ficou ali de pé junto a sua mãe, sentindo-se como se estivesse dando voltas em um redemoinho sem nada ao que agarrar-se. Observava com o coração em um punho como Arthur se preparava para a marcha. Este acabou de assegurar seus pertences ao cavalo, tomou as rédeas e se situou ao pé do animal, disposto a montar. A Anna deu um tombo o coração. Acaso pretendia partir sem lhe dizer adeus?
Se essa era sua intenção, deveu mudar de idéia. Deu as rédeas a um dos cavalariços e se voltou para dirigir-se para ela. Tinha a mandíbula tão tensa como os ombros, como se temesse enfrentar-se com algo desagradável. «Eu», pensou Anna, sentindo uma pontada no peito.
—Lady Anna — disse Arthur com uma leve inclinação da cabeça.
A mãe e as irmãs deram a volta sem muita sutileza protegendo-os quanto podiam do resto da multidão para lhes dar um pouco de privacidade. Mas Anna seguia sendo plenamente consciente de que não estavam sozinhos.
—Têm que partir?
Odiou a si mesma por perguntar, mas não pôde evitá-lo. Sabia que esse era seu trabalho, mas não queria que partisse. Sempre seria assim?
—Sim.
Houve uma pausa tão larga que pareceu definitiva.
—Quanto tempo estará fora?
Seus olhos brilharam de um modo estranho, mas o brilho desapareceu antes que Anna pudesse reconhecer sua origem.
—Depende do rápido que se aproxime o exército. Um par de dias, talvez mais.
Ela ficou olhando seu bonito rosto, tentando memorizar as duras linhas de seus traços, as cicatrizes, o estranho dourado ambarino de seus olhos.
—Tomará cuidado?
Era uma pergunta estúpida, mas tinha que fazer de todas formas. Um simulacro de sorriso apareceu nas comissuras da boca de Arthur.
—Sim.
Manteve-lhe o olhar durante um instante mais, como se também ele tentasse retê-la na memória. Ela nunca tinha visto tal expressão de desconsolo em seu rosto. Um calafrio de pavor percorreu sua nuca. «É a guerra — disse — Está centrado na batalha que tem diante de si.»
Arthur tomou sua mão e a levou aos lábios fazendo que a estampagem cálida de seus lábios irradiasse por toda sua pele.
—Adeus, lady Anna.
Algo no tom de sua voz lhe rasgou o coração. Quando ele se voltou para partir, Anna ficou com vontade desesperada para voltar a chamá-lo. «O tipo de homem que está sempre olhando para a porta…» Não. Convenceu a si mesma de que se comportava como uma parva. Não a estava abandonando. Simplesmente estaria fora uns dias. Mas por que lhe parecia que aquela despedida era para sempre?
Então, como se não pudesse conter-se, Arthur deu meia volta, agarrou-a pelo queixo e baixou a cabeça para beijá-la. Seus lábios acariciaram os de Anna em um suave e terno beijo que fez vibrar seu coração. Aquele beijo tinha sabor de nostalgia. A dor. E a arrependimento. Mas sobre todas as coisas, tinha sabor de despedida. Anna queria prolongá-lo, queria que durasse mais, mas antes que lhe desse tempo a reagir, o beijo tinha acabado. Arthur lhe soltou o queixo, manteve o olhar por um segundo agonizante e partiu. Não voltou a olhar atrás. Nenhuma só vez. Ela ficou olhando sua partida, aniquilada, sem saber muito bem o que tinha ocorrido. Permaneceu tocando os lábios em uma tentativa de apreender o calor e seu sabor por tanto tempo como fosse possível. Mas antes que o último dos homens saísse pelas portas do castelo esse calor já era história.
Arthur procurava uma saída e ao fim a tinha encontrado. A viagem de exploração em volta do Este lhe dava a oportunidade de fazer algo que meses atrás parecia impossível: retirar-se da missão. Tinha que fazer algo. Não podia ficar ali e deixar que a situação piorasse. Os dias seguintes a seu compromisso tinham sido insuportáveis. Fingir acabaria com ele. Anna estava tão feliz, tão encantada de casar-se com o homem que a trairia… Cada sorriso indeciso, cada olhar em busca de um consolo que ele não podia lhe oferecer, era como uma gota de ácido que remoia sua consciência. Não era capaz de fazer isso. Embora significasse sacrificar sua missão. O irônico era que não podia ter escolhido maneira mais efetiva de infiltrar-se nos MacDougall que um compromisso com a filha do senhor das terras. O compromisso, unido ao feito de salvar a vida de Alan, deu-lhe acesso ao centro nevrálgico do poder: o conselho de nobres. Dizia a si mesmo que não sacrificava sua missão. Fazia suficiente identificando às mulheres como as transmissoras de mensagens, passando informação sobre a preparação e efetivos do MacDougall e entregando um mapa do terreno, assim como evitando uma aliança com o Ross, embora isso não ocorresse exatamente da maneira em que o tinha planejado. Estavam nas vésperas da batalha. O rei Robert entenderia.
Tinham passado três dias de sua desastrosa partida e caía a madrugada. Nunca acreditou que lhe custaria tanto despedir-se dela. Mas partir de seu lado, sabendo que possivelmente não a veria de novo, fez-lhe perder toda determinação. Não deveria tê-la beijado, mas ao olhar seus olhos e ver esse rosto de medo e preocupação, não pôde resistir. Era consciente de que jamais voltaria a ter essa sensação de conexão absoluta e precisava desfrutar dela uma vez mais.
Arthur olhou a retaguarda para assegurar-se de que ninguém o tinha seguido e atou o cavalo a uma árvore. Encontrava-se a menos de dois quilômetros do lugar onde os homens de Bruce tinham acampado a noite anterior. Faria o resto do trajeto a pé. Era provável que a essa hora da madrugada os sentinelas disparassem contra tudo que se aproximasse do acampamento sem fazer perguntas e o cavalo o delataria. Seus sentidos se aguçavam à medida que se aproximava do acampamento do rei, antecipando-se a qualquer sinal que delatasse a presença da Guarda que o circundava. Arriscava-se muito chegando sem prévio aviso, mas não havia alternativa. Não tinha tido tempo de combinar um encontro ou enviar uma mensagem a guarda, e a partida de reconhecimento dos MacDougall se preparava para retornar ao castelo de Dunstaffnage ao dia seguinte com o relatório. Ofereceu-se voluntário para fazer patrulha de noite, consciente de que essa seria sua única oportunidade. Sabia que Chefe teria a um dos membros dos Guardiões das Highlands fazendo turno de vigilância, como cada noite, assim tentaria contatar primeiro com algum de seus companheiros.
De repente sentiu um comichão na nuca. Deteve-se o notar a estranha mudança de ar que percebia cada vez que alguém se aproximava. Escondeu-se entre a escuridão da noite e esperou, sabendo de que antes de ver quem se aproximasse o ouviria chegar. Mas passados uns minutos percebeu de que algo não funcionava. Ou o homem se deslocou ou suas habilidades voltavam a falhar.
De novo.
Mas quando conseguiu ver a figura que emergia depois de uma árvore a pouco mais de cinco metros de distância percebeu de que havia uma terceira resposta: o sigilo daquele homem igualava suas capacidades perceptivas. «Maldição.» Não era isso o que necessitava. Emitiu o uivo que iria identificá-lo como presença amistosa. Não obstante, suspeitava que o homem que se aproximava podia ter uma opinião diferente a respeito.
MacRuairi ficou imóvel e apesar da contra-senha apontou com seu arco na direção da que provinha sua voz.
—Quem vem?
—Guardião - respondeu Arthur levantando o visor de aço de seu elmo e saindo de trás da árvore que o resguardava.
Inclusive na escuridão, apreciou o brilho diabólico nos olhos entreabertos do MacRuairi, que deslocou o braço para a esquerda para lhe apontar entre as sobrancelhas. MacRuairi possuía uma habilidade extraordinária para ver na escuridão, algo fatal de lembrar-se justo nesse momento.
—Ides fazer uso da arma? —disse Arthur.
—Ainda não decidi. Uma morte não me parece muito comparada com nove. Poderia alegar que pensei que era um traidor, o qual não estaria muito longe da verdade.
Arthur engoliu a grosseira réplica que foi a seus lábios. Saber que merecia o menosprezo daquele homem, mas não facilitava o fato de ouvi-lo. Ignorou a flecha que lhe apontava e seguiu adiante.
—Acha que não me arrependo do que aconteceu?
—Arrepende-te? Pois te asseguro que não saberia o que te dizer. Parecia desfrutar lutando junto a Alan MacDougall, por não mencionar que salvou sua puta vida.
Apenas os separavam alguns metros, mas MacRuairi não teria errado o tiro nem a centenas de metros de distância.
—Responderei ante o rei e não ante você, Víbora. Tenho que falar com ele.
—Está dormindo.
Arthur apertou os dentes e os punhos. Brigar com o MacRuairi não solucionaria nada, mas não tinha tempo para tolices.
—Pois então terá que despertá-lo. E também a meu irmão.
Ao final, MacRuairi optou por baixar o arco.
—Espero por seu bem que tragas boas notícias - disse, fulminando-o com o olhar — E será melhor que tudo aquilo valha a pena.
Tinha valido a pena? Arthur não teve tempo de pensar nesses termos naquele momento. Não teve tempo de fazer esse tipo de análise. Estava muito ocupado em defender-se e proteger a Anna.
Menos de quinze minutos depois o fizeram passar à tenda do rei. Se Bruce estava dormindo, não havia nada em seu rosto que indicasse que acabava de despertar. Levava seus escuros cabelos penteados, tinha os olhos tão limpos e chicoteados como sempre, além de ir vestido com as perneiras e uma sobreveste negra de finos bordados.
Estava sentado sobre uma arca. A ausência de mobiliário concordava com a ligeireza e a rapidez com as que se deslocava o exército. Ao rei Eduardo nem sequer teria passado pela cabeça fazer campanha sem carregar em seus carros seu equipamento doméstico e sua baixela. Mas detrás de viver como um foragido durante um ano aquartelado entre o povo, Robert Bruce havia se acostumado a contentar-se com muito menos.
A sua esquerda tinha ao Neil, ao qual se via um tanto mais desalinhado, e à direita ao Tor MacLeod, líder dos Guardiões das Highlands. Tanto a expressão deste como a do próprio rei eram desalentadoras. A pergunta que Arthur adivinhou no olhar de seu irmão cortava como uma faca. Seria possível que questionasse sua lealdade?
—Que diabos ocorreu, Guardião? —perguntou o rei.
Arthur narrou da maneira mais sucinta possível os eventos que levaram a sua inesperada viagem ao norte, o compromisso de bodas previsto entre a filha de Lorn e sir Hugh Ross, as esperanças de unir forças de Lorn e a intenção de Arthur de evitar que a aliança se levasse a cabo.
—Conseguiram-no? —perguntou Bruce.
Arthur manteve uma expressão neutra.
—Sim, majestade.
O rei assentiu, agradado. Nenhum dos pressente pareceu perguntar a respeito de como o tinha conseguido. Arthur continuou explicando como tinha obtido que a patrulha se desviasse do grupo dos MacDougall em seu caminho ao norte e afirmou que se viu obrigado a defender-se para proteger sua identidade.
—Assim foi você? —disse MacLeod — Nossos homens do castelo do Urquhart estavam muito zangados porque um só homem conseguisse escapar deles.
—Não de tudo. Oxalá tivesse podido, mas me encurralaram em um escarpado. Não podia lhes contar quem era.
Ninguém disse uma palavra. Todos sabiam tão bem como ele que essas situações eram inevitáveis para preservar sua identidade, mas a nenhum deles gostava.
Depois Arthur passou a explicar a forma em que MacRuairi e seus homens o tinham surpreendido quando voltavam para o Dunstaffnage.
Neil arqueou as sobrancelhas.
—Não os ouviu chegar?
Arthur negou com a cabeça sem dar mais explicações. Referiu a princípio, simplesmente reagiu ao ataque e que depois, ao se dar conta de quem eram, passou a manobras defensivas. Quando chegou à parte em que salvou a vida do Alan MacDougall não ofereceu mais desculpa que a verdade. Somente tentava deter o golpe, matar ao guerreiro fora um acidente.
Neil fez a pergunta que sem dúvida rondava as cabeças de todos eles.
—Mas por que teria que lhe salvar a vida? Proteger ao herdeiro de Lorn não era parte de sua missão. Assassinar a ele seria quase tão bom como assassinar ao próprio Lorn.
Arthur olhou a seu irmão nos olhos sem fugir a verdade.
—Não tentava protegê-lo.
—É pela moça —disse MacLeod, juntando todas as peças — Sente algo por ela.
Arthur se voltou para seu capitão. Não o negou.
—Sim.
—A filha de Lorn! —exclamou Neil sem poder ocultar sua indignação — Maldição, irmão. No que estava pensando?
Arthur não tinha uma resposta para isso. Não havia.
—O que estais dizendo, Guardião? —disse o rei com olhos negros tão duros como o ébano — Uma moça o tem feito esquecer em que lado está?
—Minha lealdade está contigo, meu senhor - disse Arthur com firmeza.
Mas o dardo envenenado do rei ardia.
Neil ficou olhando-o fixamente.
—Mudaste de ideia respeito ao Lorn? Esquece-se do que fez a nosso pai?
Arthur endureceu a expressão de seu rosto.
—É obvio que não. Mas minha vontade de ver a destruição do John de Lorn não se faz extensiva a sua filha. Por isso estou aqui. Preciso sair do castelo de Dunstaffnage.
A sala ficou em um silêncio sepulcral. Arthur notava que o olhar fixo de seu irmão queimava, mas não se atrevia a olhar em sua direção. Tinha falhado. Tinha falhado ao homem que era como um pai para ele. Não queria ver a decepção em seu rosto.
—Está em uma situação comprometida? —perguntou o rei — Há perigo de que o descubram?
Arthur negou com a cabeça.
—A moça sabe que oculto algo, mas não acredito que suspeite de nada.
—Então é a moça a causa de que desejes abandonar a missão antes de cumpri-la?
—A coisa se complicou.
Consciente de quão insuficiente parecia isso, inclusive para si mesmo, explicou que Lorn lhe tinha interrogado sobre o ataque e acrescentou que ao acreditar que o ancião suspeitava algo, viu-se obrigado a aceitar o compromisso.
—Mas isso são notícias fantásticas - disse o rei, contente pela primeira vez desde que Arthur entrasse na tenda — chegastes mais perto de Lorn do que jamais acreditei possível. Sinto muito que a moça esteja implicada, mas não sofrerá verdadeiro dano. O coração de uma jovem sara com facilidade.
Para falar a verdade, o rei, conhecido por seu êxito com as moças, tinha muita mais experiência que ele, mas nesse caso Arthur não acreditava que acertasse. Anna amava com muita bravura. Estava muito cega pelo amor.
—Não posso permitir que abandone —finalizou o rei — Ainda não. Não tendo a batalha tão perto. Necessito-te dentro para que me digas o que é o que se propõem. A informação que nos transmite é muito valiosa. A vitória está muito perto para deixá-la escapar no último momento. John de Lorn é um demônio com o coração podre, mas não por isso subestimo suas táticas de guerra nem sua capacidade para a surpresa.
Arthur sabia que o rei não atenderia a razões. Robert Bruce estava desejando desforrar-se. Lorn o tinha vencido antes e essa vez não permitiria que nada se interpusesse em seu caminho. O coração de uma mulher era um pequeno preço a pagar.
—Atacaremos o castelo na madrugada do dia dezesseis —disse MacLeod, dando a impressão de advertir sua frustração — Só serão alguns dias mais.
Mas ele não conhecia Anna MacDougall. Arthur teria preferido enfrentar-se às endiabradas máquinas de guerra do primeiro rei Eduardo que tentar resistir diante de Anna durante «somente uns dias mais».