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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A AGENDA ICARUS / Robert Ludlum
A AGENDA ICARUS / Robert Ludlum

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

O vulto delineado na porta entrou rapidamente na sala sem janelas. Fechou a porta e avançou pela escuridão, sobre o chão preto de vinil, até o abajur de bronze, à esquerda. Acendeu a luz, a lâmpada de poucos watts projetando sombras pelo estúdio confinado e revestido. A sala era pequena e sufocante, mas não sem ornamentos. Os objetos de arte, no entanto, não eram antigos nem de estágios avançados da história da arte. Na verdade, representavam o mais contemporâneo equipamento de alta tecnologia.
A parede da direita faiscava com reflexos de aço inoxidável e o zumbido suave de uma unidade de ar condicionado, inibindo e removendo a poeira, garantia uma limpeza absoluta. O dono e único ocupante daquela sala foi até uma cadeira na frente de um editor de textos computadorizado e sentou. Acionou um controle; a tela acendeu e ele datilografou um código. As letras verdes brilhantes responderam no mesmo instante:
Segurança Ultramáxima
Não Há Intercepções
Prossiga
O vulto inclinou-se sobre o teclado, sua ansiedade num nível febril, e começou a transmitir os dados.
Começo este diário agora, pois estou convencido de que os eventos subsequentes alterarão os rumos de uma nação. Um homem surgiu do nada, aparentemente, como um messias ingênuo, sem ter a menor suspeita de sua vocação ou destino. Está fadado a coisas além de sua compreensão e, se minhas projeções são acuradas, este será um registro da sua jornada.... Mal posso imaginar como começou, mas sei que começou no caos.

 


 


Livro Um
1
Mascate, Oman, sudoeste da Ásia
Terça-feira, 10 de agosto, 6:30 da manhã
As águas encapeladas do golfo de Oman eram um prelúdio para a tempestade que corria pelo estreito de Hormuz para o mar Arábico. Era o pôr do sol, caracterizado pelas estridentes orações anasaladas entoadas
por muezins barbudos nos minaretes das mesquitas da cidade portuária. O céu escurecia sob as nuvens negras que turbilhonavam ameaçadoras pela meia escuridão do anoitecer, como mamutes em tropel. Relâmpagos
incendiavam esporadicamente o horizonte a leste, sobre as montanhas Makran, de Turbat, a mais de trezentos quilômetros, no outro lado do mar, no Paquistão. Ao norte, além das fronteiras do Afeganistão,
uma guerra insensata e brutal continuava. A oeste campeava uma guerra ainda mais insensata, travada por crianças levadas à morte pelo louco delirante do Irã, empenhado em disseminar sua malignidade. E
ao sul havia o Líbano, onde os homens matavam sem compaixão, cada seita em seu fervor religioso chamando as outras de terroristas, quando todas - sem exceção - praticavam um terrorismo bárbaro.
O Oriente Médio, especialmente o sudoeste da Ásia, estava em chamas; e onde o fogo fora antes repelido, isso já não acontecia. Enquanto as águas do golfo de Oman espumavam furiosas naquele princípio de
noite e os céus prometiam momentos de destruição, as ruas de Mascate, a capital do sultanato de Oman, igualavam a turbulência da tempestade iminente. As orações encerradas, as multidões tornaram a convergir,
com tochas acesas, despejando-se de ruas transversais e vielas, uma coluna de protesto histérico, tendo como alvo os portões de ferro iluminados por holofotes da embaixada americana. A fachada de estuque
rosa, além, era patrulhada por crianças desmazeladas de cabelos compridos, empunhando desajeitadas armas automáticas. O gatilho significava morte, mas em seu fanatismo desvairado não podiam dar-se conta
dessa finalidade, pois eram advertidos de que não existia uma coisa como a morte, não importava o que seus olhos pudessem dizer. As recompensas do martírio, eram tudo; quanto mais doloroso o sacrifício,
mais glorioso o mártir... a dor dos inimigos nada significava. Cegueira! Loucura!
Era o vigésimo segundo dia daquela insanidade, 21 dias desde que o mundo civilizado fora forçado mais uma vez a aceitar o fato terrível da fúria incoerente. A onda fanática de Mascate irrompera do nada
e agora, subitamente, estava por toda parte e ninguém sabia por quê. Isto é, ninguém exceto os analistas das artes sinistras das insurreições localizadas, os homens e mulheres que passavam seus dias e
noites sondando, dissecando, finalmente percebendo as raízes da revolta orquestrada. Pois a chave era "orquestrada". Por quem? Por quê? O que realmente querem e como detê-los?
Fatos: Duzentos e quarenta e sete americanos haviam sido cercados sob a mira de armas e tomados como reféns. Onze foram mortos, os cadáveres jogados por janelas da embaixada, cada corpo acompanhado por
vidro estilhaçado, cada morte por uma janela diferente. Alguém dissera àquelas crianças como enfatizar cada execução com uma surpresa chocante. Apostas eram feitas no maior excitamento, além dos portões
de ferro, por maníacos a gritarem estridentes, mesmerizados pelo sangue. Que janela seria a próxima? O cadáver seria de homem ou de mulher? Quanto vale o seu palpite? Quanto? Aposte!
Sobre o telhado aberto ficava a luxuosa piscina da embaixada, por trás de uma treliça árabe que não fora feita para proteção contra balas. Em torno da piscina os reféns se ajoelhavam em filas, enquanto
grupos perambulantes de assassinos apontavam pistolas-metralhadoras para suas cabeças. Duzentos e trinta e seis americanos apavorados e extenuados, aguardando a execução.
Loucura!
Decisões: Apesar das bem-intencionadas ofertas israelenses, mantenham-nos a distância! Aquilo não era Entebbe e, apesar de toda a sua competência, o sangue que Israel derramara no Líbano rotularia qualquer
tentativa, aos olhos dos árabes, como uma abominação: os Estados Unidos financiando terroristas para combater terroristas. Inaceitável. O rápido lançamento de uma força de ataque? Quem podia escalar quatro
andares ou descer de helicóptero para o telhado e impedir as execuções quando os carrascos estavam francamente dispostos a morrer como mártires? Um bloqueio naval, com um batalhão de fuzileiros preparado
para a invasão de Oman? Além de uma demonstração de poderio irresistível, qual seria o propósito? O sultão e seus ministros eram as últimas pessoas do mundo que aprovavam aquela violência na embaixada.
A Polícia Real, de orientação pacífica, tentara conter a histeria, mas não era adversário para os bandos desenfreados de agitadores. Anos de tranquilidade na cidade não a preparara para tanto caos; e chamar
o Exército Real das fronteiras iemenitas poderia acarretar problemas inconcebíveis. As forças armadas patrulhando aquele santuário infeccionado de assassinos internacionais eram tão selvagens quanto seus
inimigos. Além do fato inevitável de que o retorno à capital levaria as fronteiras a desmoronarem em carnificina, o sangue certamente correria pelas ruas de Mascate, as sarjetas ficariam apinhadas com
os corpos de inocentes e culpados.
Impasse.
Soluções: Ceder às exigências apresentadas? Impossível, o que era perfeitamente compreendido pelos responsáveis, embora não por seus fantoches, as crianças que acreditavam nas suas loas, nos seus gritos.
Não havia a menor possibilidade de governos de toda a Europa e Oriente Médio libertarem oito mil terroristas de organizações como a Brigate Rosse, OLP, Baader-Meinhof e IRA, além de dezenas de grupos menores,
belicosos e sórdidos. Continuar tolerando a cobertura interminável, as câmaras inquisitivas e resmas de papel que concentravam a atenção do mundo nos fanáticos sequiosos de publicidade? Por que não? A
exposição constante, sem dúvida, impediria que reféns adicionais fossem mortos, já que as execuções haviam sido "suspensas temporariamente", a fim de que as "nações opressoras" pudessem ponderar sobre
suas opções. Encerrar a cobertura da imprensa só serviria para inflamar ainda mais os fanáticos em busca de martírio. O silêncio criaria a necessidade do choque. O choque era notícia e a morte era o supremo
choque.
Quem?
O quê?
Como?
Quem...? Essa era a questão essencial, cuja resposta levaria a uma solução - uma solução que tinha de ser encontrada em cinco dias. As execuções haviam sido suspensas por uma semana e dois dias já se tinham
passado, em atividade frenética, enquanto os líderes mais informados dos serviços de informações de seis países se reuniam em Londres. Todos chegarão em aviões supersônicos horas depois da decisão de unir
os recursos, pois cada um sabia que sua embaixada poderia ser a seguinte. Em algum lugar. Trabalharam sem descanso durante 48 horas. Resultados: Oman permanecia um enigma. Fora considerado um rochedo de
estabilidade no sudoeste da Ásia, um sultanato com uma liderança instruída, esclarecida, tão próxima do governo representativo quanto uma família divina do Islã podia permitir. Os soberanos eram de uma
família privilegiada que aparentemente respeitava os mandamentos de Alá - não apenas como um direito hereditário, mas também como uma responsabilidade, na segunda metade do século XX.
Conclusões: A insurreição fora planejada no exterior. Não mais que vinte dos duzentos e tantos jovens desgrenhados e frenéticos haviam sido inequivocamente identificados como omanitas. Por isso, agentes
secretos, com fontes em cada facção extremista do eixo mediterrâneo-árabe, começaram a trabalhar imediatamente, fazendo contatos, subornando, ameaçando.
- Quem são eles, Aziz? Há apenas uns poucos de Oman e quase todos parecem retardados. Pense bem, Aziz. Pode viver como um sultão. Indique um preço absurdo. Experimente.
- Seis segundos, Mahmet! Seis segundos e sua mão direita está no chão, sem o pulso! E depois a esquerda cairá também. Estamos na contagem regressiva, ladrão. Dê-me a informação! - Seis, cinco, quatro...
Sangue.
Nada. Zero. Loucura.
E depois uma abertura. Na forma de um velho muezim, um homem santo cujas palavras e memória eram tão trêmulas quanto o corpo esquelético aos ventos que agora sopravam forte por Hormuz.
- Não procurem onde logicamente esperariam encontrar. Procurem em outra parte.
- Onde?
- Onde os ressentimentos não derivam da pobreza e abandono. Onde Alá concedeu favor neste mundo, embora talvez não no outro.
- Seja mais claro, por favor, respeitável muezim.
- Alá não quer mais esclarecimento... Seja feita a Sua vontade. Talvez Ele não tome partido... Que assim seja.
- Mas certamente você deve ter uma razão para dizer o que está dizendo!
- Se Alá me deu essa razão... seja feita a Sua vontade.
- E então?
- Rumores discretos apreendidos nos cantos da mesquita. Sussurros que estes velhos ouvidos estavam destinados a ouvir. Ouço tão pouco que não deveria saber de nada, se Alá assim não desejasse.
- Tem de haver mais!
- Os sussurros falam daqueles que se beneficiariam com o derramamento de sangue.
- Quem?
- Não disseram nomes, não foram mencionados homens importantes.
- Algum grupo ou organização? Por favor! Uma seita, um país, um povo? Os xiitas, os sauditas... iraquianos, iranianos... os soviéticos?
- Não. Não falaram em infiéis ou fiéis, apenas se referiram a "eles".
- Eles?
- É o que ouvi sussurrado nos cantos escuros da mesquita, o que Alá quis que eu escutasse... seja feita a Sua vontade. Apenas a palavra "eles".
- Pode identificar qualquer uma das pessoas que ouviu?
- Sou quase cego e sempre há bem pouca luz quando aqueles poucos entre tantos fiéis falam. Não posso identificar ninguém. Sei apenas o que devo informar que ouvi, pois é a vontade de Alá.
- Por quê, muezim? Por que é a vontade de Alá?
- O derramamento de sangue deve cessar. O Corão diz que quando o sangue é derramado e justificado pela juventude arrebatada, as paixões devem ser examinadas, pois a juventude...
- Esqueça! Mandaremos dois homens acompanhá-lo de volta à mesquita. Faça um sinal quando ouvir alguma coisa.
- Dentro de um mês, ya Shaikh. Estou prestes a realizar minha peregrinação final a Meca. Você é apenas parte da minha jornada. É a vontade de...
- Oh, Deus!
- É o seu Deus, ya Shaikh. Não o meu. Não o nosso.
2
Washington, D.C.
Quarta-feira, 11 de agosto, 11:50 da manhã
O sol de meio-dia ardia sobre a capital; o ar de pleno verão estava parado, fazia um calor opressivo. Os pedestres andavam com uma determinação desconfortável, os colarinhos dos homens abertos, as gravatas
afrouxadas. Pastas e bolsas pendiam como pesos mortos, enquanto seus donos paravam impassíveis em cruzamentos, esperando a mudança de sinal. Embora dezenas de homens e mulheres - de um modo geral, servidores
do governo e, portanto, do povo - pudessem ter questões urgentes em sua mente, era difícil manter alguma urgência nas ruas. Um manto tórpido abatera-se sobre a cidade, entorpecendo os que se aventuravam
além das salas, escritórios e automóveis com ar condicionado.
Ocorrera um acidente de tráfego na esquina da Twenty-third Street com a Virginia Avenue. Não era grande em termos de danos ou ferimentos, mas estava longe de ser pequeno em termos de ânimos esquentados.
Um táxi colidira com uma limusine do governo que saíra da rampa de um estacionamento subterrâneo do Departamento de Estado. Os dois motoristas - indignados, veementes e temendo seus superiores - estavam
fora de seus veículos, com acusações mútuas, gritando ao sol escaldante, enquanto aguardavam a polícia, que fora chamada por um funcionário público de passagem. Não demorou muito para o trânsito ficar
congestionado; buzinas soavam insistentes e gritos irados partiam de janelas relutantemente abertas.
O passageiro do táxi saltou impaciente do banco traseiro. Era alto e esguio, uns quarenta e poucos anos, e parecia deslocado no ambiente de ternos de verão, vestidos estampados e pastas de executivo. Usava
uma calça cáqui amarrotada, botas e um blusão safári de algodão, um tanto sujo, em vez de camisa. Notava-se que o homem não pertencia à cidade, talvez fosse um guia profissional extraviado das montanhas
altas e selvagens. O rosto, no entanto, contradizia as roupas. Estava barbeado, as feições fortes e bem definidas, os olhos azul-claros e perceptivos contraindo-se, observando de um lado para outro, avaliando
o problema enquanto tomava uma decisão. Pôs a mão no ombro do motorista que discutia; o homem virou-se bruscamente e o passageiro deu-lhe duas notas de vinte dólares.
- Tenho de ir embora.
- Ei, cara, espere um pouco! Você viu tudo! Aquele filho da puta saiu sem buzinar, sem dar qualquer aviso!
- Sinto muito. Eu não poderia ajudá-lo. Não vi nem ouvi nada até a colisão.
- Essa não! O cara não vê e não ouve nada! Não quer se envolver, hem?
- Estou envolvido - respondeu o passageiro suavemente, pegando outra nota de vinte dólares e metendo-a no bolsinho do casaco do motorista. - Mas não aqui.
O homem estranhamente vestido esgueirou-se pela multidão que aumentava e começou a descer o quarteirão na direção da Third Street - a caminho das imponentes portas de vidro do Departamento de Estado. Era
a única pessoa correndo na calçada.
A sala conhecida como de situação no complexo subterrâneo do Departamento de Estado fora rotulada OHIO-Quatro-Zero. Traduzido, isso significava "Oman, alerta máximo". Além da porta de metal, fileiras de
computadores matraqueavam incessantemente; de vez em quando, uma máquina - depois de uma conferência instantânea com o banco de dados central - emitia um sinal curto e estridente, anunciando uma informação
nova ou não registrada antes. Homens e mulheres concentrados estudavam os impressos, tentando avaliar o que liam.
Nada. Zero. Loucura!
Dentro daquela sala grande e dinâmica havia outra porta de metal, menor que a de entrada e sem acesso para o corredor. Era a sala do encarregado da crise de Mascate; ao seu lado estava um painel telefônico,
com ligações diretas para todos os centros de poder e todas as fontes de informações em Washington. O atual ocupante do posto era um vice-diretor de meia-idade das Operações Consulares, a pequena e pouco
conhecida ramificação do Departamento de Estado que cuidava das atividades secretas. Seu nome era Frank Swann e, no momento - com um sol a pino que não incidia sobre ele - estava com a cabeça de cabelos
prematuramente grisalhos descansando sobre os braços cruzados na mesa. Não tinha uma noite de sono há quase uma semana e se aguentava apenas com cochilos como aquele.
O zumbido brusco do painel despertou-o sobressaltado; ele estendeu a mão direita. Apertou o botão iluminado e pegou o fone.
- Alô?... O quê?
Swann sacudiu a cabeça e engoliu ar às golfadas, apenas parcialmente aliviado por ouvir a voz de sua secretária, cinco andares acima. Escutou por um momento e depois disse, cansado:
- Quem? Deputado... um deputado? A última coisa de que preciso neste momento é de um deputado. Como é que ele descobriu meu nome?... Não importa. Trate de me salvar. Diga que estou numa reunião... com
Deus, se achar melhor... ou procure outra desculpa, diga que estou com o secretário.
- Já o preparei para algo assim. É por isso que estou ligando da sua sala. Disse a ele que só podia fazer contato com você por este telefone.
Swann piscou, aturdido.
- É ir um pouco longe, para a minha guarda pretoriana, Ivy-a-terrível. Por que tão longe, Ivy?
- Foi por causa do que ele disse, Frank. E também pelo que tive de anotar, porque não entendi.
- Pois informe logo as duas coisas.
- Ele disse que o assunto dele era o problema com que você está envolvido...
- Ninguém sabe com o que estou... Esqueça. O que mais?
- Anotei foneticamente. Ele me pediu para dizer o seguinte: "Ma efham zain". Faz algum sentido para você, Frank?
Atordoado, Swann tornou a sacudir a cabeça, tentando desanuviar melhor a mente, mas não precisando de qualquer outra informação para receber o visitante. O deputado desconhecido acabara de insinuar, em
árabe, que podia ser de alguma ajuda.
- Chame um guarda e mande trazê-lo aqui, Ivy.
Sete minutos depois a porta do escritório no complexo subterrâneo foi aberta por um sargento dos fuzileiros. O visitante entrou, acenando com a cabeça para a escolta, enquanto o guarda fechava a porta.
Swann levantou-se, apreensivo. O "deputado" não correspondia à imagem de qualquer membro da Câmara dos Representantes que já conhecera... pelo menos em Washington. Estava de botas e calça cáqui, e uma
túnica de caçador que evidentemente fora respingada muitas vezes pela gordura de frigideiras em acampamentos. Seria uma piada num momento tão inoportuno?
- Deputado...? - disse o vice-diretor, a voz definhando por falta de um nome, enquanto estendia a mão.
- Evan Kendrick, Sr. Swann - respondeu o visitante, aproximando-se da mesa e apertando a mão estendida. - Sou o representante no primeiro mandato do Nono Distrito do Colorado.
- Claro, claro, o Nono do Colorado. Desculpe não...
- Não há necessidade de desculpas, a não ser talvez da minha parte... pela maneira como estou me apresentando. Não há razão para saber quem eu sou...
- Pois então deixe-me acrescentar uma coisa - interrompeu-o Swann, incisivo. - Não há razão para que saiba quem eu sou, deputado.
- Sei disso, mas não foi muito difícil. Até mesmo os novos representantes têm acesso... ou pelo menos a secretária que herdei tem. Eu sabia onde procurar, precisava apenas refinar as perspectivas. Alguém
em Operações Consulares do Departamento de Estado...
- Esse não é um serviço dos mais conhecidos, Sr. Kendrick - Swann tornou a interromper, com a mesma ênfase.
- Na minha casa já foi... por algum tempo. Seja como for, eu não estava apenas procurando um especialista em Oriente Médio, mas um perito em assuntos do sudoeste árabe, alguém que conhecesse bem a língua
e uma dúzia de dialetos. O homem que eu procurava tinha de ser alguém como... E o seu nome aflorou, Sr. Swann.
- Esteve bastante ocupado.
- O que é também o seu caso - respondeu o deputado, acenando com a cabeça para a porta e os bancos de computadores no outro lado. - Presumo que entendeu o meu recado, caso contrário eu não estaria aqui.
- Tem razão - concordou o vice-diretor. - Disse que poderia ser de alguma ajuda. É verdade?
- Não posso garantir. Sei apenas que tinha alguma coisa a oferecer.
- Oferecer? Em que base?
- Posso sentar?
- Por favor. Não quero ser grosseiro, mas estou muito cansado. - Kendrick sentou; Swann também, olhando curioso para o político de primeiro mandato. - Continue, deputado. O tempo é valioso, cada minuto
conta, já estamos envolvidos com esse "problema", como disse à minha secretária, há algumas semanas, longas e difíceis. Não sei o que tem a dizer ou se é relevante ou não; mas se for, eu gostaria de saber
por que demorou tanto tempo para chegar aqui.
- Eu não estava a par dos eventos em Oman. Não soube logo o que aconteceu... o que está acontecendo.
- É quase impossível acreditar nisso. O deputado do Nono Distrito do Colorado estava passando o recesso da Câmara num mosteiro beneditino?
- Não exatamente.
- Ou talvez um novo e ambicioso deputado, que fala um pouco de árabe - continuou Swann, suavemente, mas implacável -, deduz alguns rumores sobre uma certa seção secreta do Departamento de Estado e decide
se insinuar, a fim de obter alguma vantagem política? Não seria a primeira vez.
Kendrick permaneceu imóvel na cadeira, a face sem qualquer expressão, mas não os olhos. Estavam ao mesmo tempo observadores e furiosos.
- Suas palavras são insultuosas.
- Porque eu me sinto facilmente ofendido, nas circunstâncias. Onze de nossos cidadãos foram mortos, inclusive três mulheres. E mais duzentos e trinta e seis estão esperando que suas cabeças sejam estouradas!
Pergunto se pode realmente ajudar e me responde que não sabe, mas tem alguma coisa a oferecer! Para mim, isso parece uma cobra sibilando e por isso tomo cuidado com o lugar em que ponho o pé. Entra aqui
com uma linguagem que provavelmente aprendeu ganhando muito dinheiro numa companhia petrolífera e acha que isso lhe dá direito a uma consideração especial. Talvez seja um "consultor"; soa muito bem. Um
político principiante é um consultor do Departamento de Estado numa crise nacional. O que quer que aconteça, você ganha. Isso lhe daria alguns votos no Nono Distrito do Colorado, não é mesmo?
- Imagino que daria, se alguém soubesse.
- O quê?
Mais uma vez, o vice-diretor olhou aturdido para o deputado, não tanto por sua irritação, mas por causa de algo mais. Acaso o conhecia?
- Está sob muita pressão e não quero aumentá-la. Mas se o que está pensando é uma barreira, vamos superá-la de uma vez. Se chegar à conclusão de que posso ser de alguma utilidade, eu só concordaria em
ajudar mediante uma garantia escrita de anonimato, e de nenhum outro modo. Ninguém saberia que estive aqui. Nunca falei com você nem com qualquer outra pessoa.
Perplexo, Swann recostou-se na cadeira e levou a mão ao queixo.
- Eu o conheço - murmurou.
- Nunca nos encontramos antes.
- Diga o que quer, deputado. Comece por algum lugar.
- Começarei oito horas atrás. Eu descia pelo rio Colorado para o Arizona, viajando há quase um mês... é o mosteiro beneditino que imaginou para o recesso. Passei por Lava Falls e cheguei a um acampamento.
Havia gente lá e foi a primeira vez que ouvi um rádio em quase quatro semanas.
- Quatro semanas? - repetiu Swann. - Esteve sem contato algum todo esse tempo? Costuma fazer isso com frequência?
- Praticamente todos os anos. Tornou-se uma espécie de ritual. - Uma pausa e Kendrick acrescentou suavemente: - Vou sozinho; mas isso não é pertinente.
- Que político... - murmurou o vice-diretor, pegando um lápis, distraído. - Pode esquecer o mundo, deputado, mas sempre precisa de eleitores.
- Não sou político - respondeu Evan Kendrick, permitindo-se um sorriso. - E meu eleitorado é puramente acidental. Seja como for, ouvi a notícia e vim tão depressa quanto pude. Contratei um hidroavião para
me levar a Flagstaff e tentei fretar um jato para Washington. Já era tarde da noite para conseguir um, e por isso voei para Phoenix, pegando o primeiro voo que saiu de lá. Os telefones de bordo são uma
maravilha. Monopolizei um, falando com uma secretária muito experiente e também com outras pessoas. Peço desculpa pela minha aparência; consegui um aparelho de barba no avião, mas não queria perder tempo
indo até em casa para mudar de roupa. Estou aqui, Sr. Swann, e é o homem com quem devo falar. Talvez não possa ajudar nada, e tenho certeza de que me dirá se for o caso. Mas, repito, tinha que oferecer.
Enquanto o visitante falava, o vice-diretor escrevera o nome "Kendrick" no bloco à sua frente. Na verdade, escrevera-o várias vezes, sublinhando o nome. Kendrick. Kendrick. Kendrick.
- Oferecer o quê? - ele perguntou, franzindo o rosto e levantando os olhos para o intruso. - O quê, deputado?
- Minha experiência sobre a região e as várias facções que operam por lá. Oman, os emirados, Bahrain, Qatar... Mascate, Dubai, Abu Dhabi... até o Kuwait para o norte e descendo para Riad. Vivi naquelas
bandas. Trabalhei lá. Conheço tudo muito bem.
- Viveu... trabalhou... por todo o mapa do sudoeste?
- Isso mesmo. Só em Mascate passei dezoito meses. Sob contrato com a família.
- O sultão?
- O falecido sultão; ele morreu, acho que há dois ou três anos. Eu tinha um contrato com ele e seus ministros. Um grupo bom e exigente. Era preciso conhecer o ofício.
- Então trabalhava para uma companhia - disse Swann, fazendo uma declaração, não uma pergunta.
- Exatamente.
- Qual?
- A minha.
- A sua?
- Foi o que eu disse.
O vice-diretor fitou o visitante com expressão aturdida, depois baixou os olhos para o nome que escrevera várias vezes no bloco.
- Santo Deus! - murmurou ele. - O Grupo Kendrick! Essa é a ligação, mas não percebi antes. Não ouço falar no seu nome há quatro ou cinco anos... talvez seis.
- Acertou na primeira vez. Quatro, é o número exato.
- Eu sabia que havia alguma coisa. E falei...
- Falou, sim, mas nunca nos encontramos antes.
- Vocês construíam tudo, de sistemas de abastecimento de água a pontes... hipódromos, conjuntos habitacionais, clubes campestres, aeroportos... tudo, enfim.
- Construíamos o que contratávamos.
- Estou lembrando. Foi há dez ou doze anos. Vocês eram os garotos maravilhosos nos emirados... e eram garotos mesmo. Dezenas de vocês, na casa dos vinte e trinta anos, com alta tecnologia e muita ousadia.
- Nem todos eram tão jovens assim...
- É verdade - interrompeu-o Swann, franzindo o rosto em pensamento. - Você tinha uma arma secreta um tanto murcha, um velho israelense, um mago da arquitetura. Isso mesmo, um israelense capaz de projetar
coisas no estilo islâmico e que partilhava o pão com todos os árabes ricos da região.
- Seu nome era Emmanuel Weingrass... Manny Weingrass... da Garden Street, no Bronx, em Nova York. Foi para Israel a fim de evitar problemas legais com a segunda ou terceira esposa. Está com uns oitenta
anos agora e vivendo em Paris. Creio que muito bem, pelo que posso deduzir de seus telefonemas.
- É isso mesmo - disse o vice-diretor. - Você vendeu sua companhia para Bechtel ou alguma outra corporação. Por trinta ou quarenta milhões.
- Não foi para a Bechtel. Foi para a Trans-International e não por trinta ou quarenta milhões, mas por vinte e cinco. Eles fizeram um bom negócio e eu caí fora. O melhor que podia acontecer para todos.
Swann estudou o rosto de Kendrick, especialmente os olhos azul-claros, que continham mais círculos de reserva enigmática quanto mais eram observados.
- Não foi bem assim - murmurou ele, toda a hostilidade desvanecida agora. - Estou lembrando. Houve um acidente numa de suas construções, nos arredores de Riad... um desmoronamento, quando uma tubulação
de gás defeituosa explodiu... mais de setenta pessoas morreram, inclusive seus sócios, os operários e algumas crianças.
- Os filhos deles - confirmou Evan, baixinho. - Todos eles, com suas esposas e filhos. Comemorávamos a conclusão da terceira fase. E todos estávamos lá. Os empregados, meus sócios... com as mulheres e
crianças. A estrutura desabou, com o pessoal lá dentro, enquanto Manny e eu estávamos do lado de fora... vestindo ridículos trajes de palhaço.
- Mas houve uma investigação que eximiu o Grupo Kendrick de qualquer culpa. A subempreiteira instalara condutos inferiores, falsamente certificados como de primeira qualidade.
- Essencialmente, foi isso mesmo.
- E foi essa a ocasião em que decidiu largar tudo?
- Nada disso é pertinente - protestou Kendrick. - Estamos perdendo tempo. Como já sabe quem sou, ou pelo menos quem era, há alguma coisa que eu possa fazer?
- Importa-se que lhe faça uma pergunta? Creio que não é perda de tempo e estou convencido de que é pertinente. Esclarecer tudo faz parte das minhas atividades, e é preciso fazer julgamentos. Muitas pessoas
do Capitólio estão sempre tentando obter vantagens políticas à nossa custa.
- Qual é a pergunta?
- Por que se tornou deputado, Sr. Kendrick? Não precisa disso, com seu dinheiro e reputação profissional. E não posso imaginar como se beneficiaria, pelo menos em comparação com o que poderia conseguir
no setor privado.
- Todas as pessoas que disputam cargos eletivos só estão interessadas em ganhos pessoais?
- Claro que não. - Swann fez uma pausa, depois sacudiu a cabeça. - Desculpe, mas não é bem assim. Essa é a resposta comum a uma pergunta comum e difícil... É verdade, deputado, na minha opinião tendenciosa
a maioria dos homens... e mulheres... que concorrem a tais cargos está interessada em projeção e, se vencer, no poder de influência. Combinando as duas coisas, tornam-se extremamente venais. Desculpe outra
vez, sei que é uma avaliação cínica. Mas estou há muito tempo nesta cidade e não vejo motivo para alterar esse julgamento. E você me confunde. Sei de onde vem, mas nunca ouvi falar do Nono Distrito do
Colorado. Só tenho certeza que não é Denver.
- Mal está no mapa - explicou Kendrick, a voz neutra. - Fica na base sudoeste das Montanhas Rochosas, um lugar praticamente isolado. Foi por isso que me instalei lá. Está fora do caminho de todo mundo.
- Mas por que a política? O garoto-maravilha dos emirados árabes encontra um distrito que pode conquistar para sua base, uma plataforma política?
- Nada podia estar mais longe dos meus pensamentos.
- Eis aí uma declaração, deputado, não uma resposta.
Evan Kendrick ficou em silêncio por um momento, sustentando o olhar de Swann. Depois deu de ombros. Swann sentiu um certo constrangimento.
- Está certo - disse Kendrick, com firmeza. - Vamos chamar isso uma aberração, não tornará a acontecer. Havia um candidato à reeleição estúpido e arrogante, que só se preocupava em encher os bolsos, num
distrito que não dava a menor atenção a esse fato. Eu tinha tempo de sobra e uma boca grande. E também tinha o dinheiro necessário para liquidá-lo. Não me sinto necessariamente orgulhoso do que fiz ou
como o fiz, mas ele saiu de cena e eu também pretendo cair fora em dois anos ou menos. A essa altura terei encontrado alguém melhor qualificado para tomar o meu lugar.
- Dois anos? - repetiu Swann. - Em novembro não completa um ano desde a sua eleição?
- Isso mesmo.
- E não tomou posse em janeiro?
- E daí?
- Detesto desiludi-lo, mas seu mandato é de dois anos. Tem mais um ano ou três, mas não dois ou menos.
- Não há uma verdadeira oposição partidária no Nono Distrito, mas para ter certeza de que a vaga não voltará à velha máquina política concordei em me candidatar à reeleição... e depois renunciar.
- É um acordo e tanto.
- E compulsório, pelo menos para mim. Quero sair.
- É bastante objetivo, mas não leva em consideração um possível efeito secundário.
- Não estou entendendo.
- E se nos próximos vinte e tantos meses chegar à conclusão que gosta daqui? O que acontece então?
- Não é possível e não vai acontecer, Sr. Swann. Mas vamos voltar a Mascate. É uma tremenda confusão... será que tenho autorização para fazer esse comentário?
- Está autorizado, porque sou eu quem autoriza. - O vice-diretor tornou a sacudir a cabeça grisalha. - Uma tremenda confusão, deputado, e estamos convencidos de que foi programada do exterior.
- Creio que não pode haver a menor dúvida quanto a isso - concordou Kendrick.
- Tem alguma ideia?
- Tenho, sim. A desestabilização total é um dos objetivos. Fechar o país e não deixar ninguém entrar.
- A conquista do poder? - indagou Swann. - Um putsch ao estilo de Khomeini?... Não daria certo; a situação é diferente. Não há Peacock, não há um ressentimento profundo, não há SAVAK. - Swann fez uma pausa
antes de acrescentar, pensativo: - Não há xá com um exército de ladrões e não há um aiatolá com um exército de fanáticos. Não é a mesma coisa.
- Não quis insinuar que era. Oman é apenas o começo. Quem quer que seja, não quer controlar o país; ele... ou eles... querem apenas impedir que os outros levem o dinheiro.
- Como assim? Que dinheiro?
- Bilhões. Projetos a longo prazo que estão em planejamento por todo o golfo Pérsico, Arábia Saudita e o resto do sudoeste da Ásia, as únicas áreas daquela parte do mundo que podem ser relativamente estabilizadas,
porque até mesmo os governos hostis assim exigem. O que está acontecendo agora em Oman não é muito diferente de paralisar o transporte por aqui ou fechar as docas de Nova York, Nova Orleans, Los Angeles
e San Francisco. Nada é legitimado por greves ou negociações coletivas... há apenas o terror e ameaças de mais terror, da parte de fanáticos incitados. E tudo para. As pessoas nas pranchetas e as que se
encontram nas equipes de levantamento no campo e cuidando dos equipamentos só querem cair fora o mais depressa possível.
- E depois que todas se forem - acrescentou Swann -, os que estão por trás dos terroristas entram em cena e o terror cessa. Simplesmente desaparece de um momento para outro. Parece até uma operação da
Máfia no cais.
- Ao estilo árabe - ressaltou Kendrick. - E para usar suas palavras, não seria a primeira vez.
- Como sabe disso?
- Nossa companhia foi ameaçada diversas vezes, mas, para citá-lo de novo, tínhamos uma arma secreta: Emmanuel Weingrass.
- Weingrass? O que podia ele fazer?
- Mentir com uma extraordinária convicção. Num momento era um general da reserva do exército israelense que podia convocar um ataque aéreo contra qualquer grupo árabe que nos ameaçasse, no momento seguinte
era um membro do Mossad que enviaria esquadrões da morte para eliminar todos os que nos perseguiam. Como muitos homens de gênio idosos, Manny era frequentemente excêntrico e quase sempre teatral. Divertia-se
demais. Infelizmente, suas muitas esposas não costumavam se divertir com ele por muito tempo. Seja como for, ninguém queria se meter com um israelense maluco. As táticas eram muito conhecidas.
- Está sugerindo que devemos recrutá-lo? - perguntou o vice-diretor.
- Não. Além da idade, ele está terminando a vida em Paris com as mais lindas mulheres que pode contratar e, tenho certeza, com o conhaque mais caro que consegue encontrar. Não poderia ajudar... Mas há
uma coisa que você pode fazer.
- E o que é?
- Prestar atenção ao que tenho a dizer. - Kendrick inclinou-se para a frente. - Tenho pensado sobre os acontecimentos nas últimas oito horas e a cada momento mais me convenço de que existe uma explicação
possível. O problema é que há bem poucos fatos... quase nenhum, na verdade... mas pode-se perceber um padrão, e é coerente com coisas que ouvimos há quatro anos.
- Que coisas? Que padrão?
- Apenas rumores, para começar, depois vieram as ameaças... e eram mesmo ameaças. Ninguém estava brincando.
- Continue. Estou escutando.
- Enquanto desarmava as ameaças à sua maneira, geralmente com uísque proibido, Weingrass ouviu uma coisa que fazia sentido demais para ser descartada como conversa de bêbado. Foi informado de que o consórcio
vinha sendo discretamente formado... um cartel industrial, se preferir. Estava adquirindo o controle de dezenas de companhias diferentes, com crescentes recursos em pessoal, tecnologia e equipamento. O
objetivo era óbvio naquela ocasião e, se a informação é acurada, ainda mais óbvio agora. Eles tencionam controlar o desenvolvimento industrial do sudoeste da Ásia. Até onde Weingrass pôde descobrir, essa
federação clandestina estava baseada em Bahrain, o que nada tem de surpreendente. Mas o que constituiu um choque e deixou Manny muito preocupado foi o fato de que, entre os diretores desconhecidos, havia
um homem que se intitulava "Mahdi"... como o fanático muçulmano que expulsou os britânicos de Khartum há um século.
- O Mahdi? Khartum?
- Exatamente. O símbolo é óbvio. Só que esse novo Mahdi não está interessado no Islã religioso e muito menos nos seus fanáticos agitados. Apenas os usa para afastar a concorrência e mantê-la a distância.
Quer os contratos e os lucros em mãos árabes... mais expressamente, em suas mãos.
- Espere um instante - interrompeu-o Swann, pensativo, enquanto pegava o fone e apertava um botão no painel. - Isso se liga com uma coisa que o MI-Seis enviou de Mascate ontem à noite. Não podíamos investigar
porque não havia o que investigar, nenhuma pista, mas era muito estranho... Ligue-me com Gerald Bryce, por favor... Gerry? Ontem à noite, às duas horas desta madrugada, para ser mais preciso, recebemos
um nada-zero dos britânicos em Ohio. Queria que descobrisse e lesse para mim devagar, porque vou anotar cada palavra. - O vice-diretor cobriu o bocal e acrescentou para o visitante subitamente alerta:
- Se o que você disse faz algum sentido, pode ser a primeira abertura concreta que conseguimos.
- É por isso que estou aqui, Sr. Swann, provavelmente ainda cheirando a peixe defumado.
O vice-diretor acenou com a cabeça devagar, impaciente, esperando que o homem a quem chamara de Bryce voltasse ao telefone.
- Um banho de chuveiro não lhe faria mal algum, deputado... Está bem, Gerry, pode falar... "Não procurem onde logicamente esperariam encontrar. Procurem em outra parte". Já anotei. Lembro disso. Acho que
foi logo depois... "Onde os ressentimentos não derivam da pobreza e abandono". É isso! E mais alguma coisa, tenho certeza... "Onde Alá concedeu favor neste mundo, embora talvez não no outro"... E agora
vamos um pouco mais adiante, alguma coisa sobre sussurros, é tudo o que me lembro... Aí está! Leia de novo... "Os sussurros falam daqueles que se beneficiariam com o derramamento de sangue". Obrigado,
Gerry, isso é tudo o que eu precisava. Todo o resto foi negativo, se bem me lembro. Nada de nomes, nada de organizações, apenas conversa mole... Foi o que eu pensei... Ainda não sei. Se houver alguma novidade,
você será o primeiro a saber. Enquanto isso, acione o equipamento e providencie uma lista de todas as empreiteiras em Bahrain. Se houver uma lista para o que chamamos de empreiteiros em geral ou industriais,
também vou querer... Quando? Ontem, pelo amor de Deus!
Swann desligou, baixou os olhos para as frases que anotara e depois fitou Kendrick.
- Ouviu tudo, deputado. Quer que eu repita?
- Não é necessário. Não são kalam-faregh, não é mesmo?
- Não, Sr. Kendrick, nada disso é lixo. Tudo é pertinente e eu gostaria muito de saber o que fazer.
- Pode me recrutar, Sr. Swann. Mande-me para Mascate pelo transporte mais rápido que for capaz de encontrar.
- Por quê? - indagou o vice-diretor, estudando o visitante. - O que poderia fazer que nossos homens experientes no campo não poderiam? Eles não só falam um árabe fluente, como também a maioria é árabe.
- E trabalham para Operações Consulares - arrematou Kendrick.
- E daí?
- Estão marcados. Foram marcados há quatro anos e continuam agora. Se tomarem qualquer iniciativa errada, o senhor pode ter uma dúzia de execuções em suas mãos.
- É uma declaração alarmante - murmurou Swann lentamente, os olhos contraídos, fixados no visitante. - Eles estão marcados? Não gostaria de explicar?
- Falei há poucos minutos que Operações Consulares tornou-se uma expressão comum por lá. E o senhor então fez um comentário gratuito, dizendo que eu dava ouvidos a rumores no Congresso. Acontece que eu
falava sério.
- Por que uma expressão comum?
- Posso ir mais longe, se quiser. Uma piada comum. Um ex-engenheiro militar e Manny Weingrass até inventaram algumas anedotas a respeito.
- Algumas...?
- Tenho certeza que poderá encontrá-las em algum lugar dos seus arquivos. Fomos procurados pelo pessoal de Hussein, que queria o projeto para um novo aeroporto assim que concluíssemos o que estávamos construindo
em Qufar, na Arábia Saudita. No dia seguinte dois dos nossos homens vieram falar conosco, fazendo indagações técnicas, destacando que como americanos tinham o dever de transmitir tais informações, já que
Hussein frequentemente conferenciava com os soviéticos... o que era irrelevante, é claro. Um aeroporto é um aeroporto e qualquer idiota pode voar sobre as escavações e determinar sua forma.
- E que mais?
- Manny e o engenheiro disseram a eles que as duas pistas principais teriam doze quilômetros de extensão, obviamente projetadas para equipamento de voo muito especial. Eles saíram correndo do escritório
como se fossem acometidos de diarreia aguda.
- Só isso? - indagou Swann, inclinando-se para a frente.
- No dia seguinte o pessoal de Hussein nos procurou e disse para esquecermos o projeto. Tínhamos recebido visitantes de Operações Consulares e isso não lhes agradava.
O vice-diretor recostou-se na cadeira, o sorriso cansado transmitindo uma ideia de futilidade.
- Às vezes tudo não passa de bobagem, concorda?
- Não acho que seja bobagem agora.
- Claro que não é. - Swann tornou a se inclinar para a frente. - Portanto, na sua opinião, toda essa confusão é por causa de dinheiro... O miserável dinheiro!
- E se não for contida, vai ficar pior - disse Kendrick. - Muito pior.
- De que jeito?
- Porque é uma fórmula comprovada para a conquista do poder econômico. Depois que imobilizarem o governo em Oman, eles usarão a mesma tática em outros lugares: Os emirados, Bahrain, Qatar, até mesmo com
os sauditas. Quem controla os fanáticos obtêm os contratos; e com todas aquelas operações maciças sob uma única entidade, quaisquer que sejam os nomes que eles usam, há uma força política perigosa na região,
com uma influência tão vital que não será do nosso agrado.
- Ei, você já pensou em tudo isso!
- Já disse que não pensei em outra coisa durante as últimas oito horas.
- Se eu o mandasse para lá, o que poderia fazer?
- Não saberei até chegar lá, mas tenho algumas ideias. Conheço diversos omanitas influentes e poderosos, que sabem o que está acontecendo por lá e não poderiam fazer parte dessa insanidade. Por vários
motivos, provavelmente a mesma desconfiança que sentíamos sempre que os seus lacaios de Operações Consulares apareciam, eles podem não falar com estranhos, mas a mim contarão tudo. Confiam em mim. Passei
dias, fins de semana, com suas famílias. Conheço suas esposas sem os véus e seus filhos...
- Esposas sem os véus e filhos - repetiu Swann, interrompendo-o. - O supremo shorbet no vocabulário árabe. A nata da amizade.
- Uma mistura harmoniosa de ingredientes - concordou o deputado. - Eles vão cooperar comigo, talvez não com você. Além disso, conheço a maioria dos fornecedores e dos escritórios de cargas, até mesmo as
pessoas que evitam qualquer contato oficial, porque ganham dinheiro com o que não podem obter legalmente. Quero descobrir de onde veio o dinheiro e as instruções que o acompanharam e terminaram no interior
da embaixada. Alguém, em algum lugar, está enviando as duas coisas.
- Fornecedores? - indagou Swann, arqueando as sobrancelhas, a voz incrédula. - Está se referindo a alimentos e suprimentos médicos, esse tipo de coisa?
- Isso é apenas...
- Está louco? Aqueles reféns são gente nossa! Abrimos os cofres para eles, mandamos qualquer coisa que eles precisarem, tudo que lhes pudermos fornecer!
- Como balas e armas, sem falar de peças sobressalentes para armas?
- Claro que não!
- Através de tudo o que li nas publicações que encontrei nas bancas de Flagstaff e Phoenix, sei que todas as noites depois de el Maghreb há quatro ou cinco horas de fogos de artifícios... milhares de tiros
disparados, áreas inteiras da embaixada crivadas com balas de rifles e metralhadoras.
- Tudo isso é parte do esquema de terror! - explicou Swann. - Pode imaginar como é estar lá dentro? Ser encostado numa parede à luz de refletores, enquanto em volta tudo é destruído a tiros, com receio
de que também vai ser morto a qualquer instante. Se algum dia tirarmos de lá aqueles infelizes, eles passarão anos em divãs de analistas tentando se livrar dos pesadelos.
Kendrick deixou passar a emoção do momento.
- Aqueles exaltados não possuem um arsenal, Sr. Swann. Não creio que as pessoas no controle fossem permitir. Recebem abastecimentos de fora. Assim como recebem mimeógrafos porque não sabem como operar
as copiadoras e editoras de textos para obter os boletins diários que imprimem para a imprensa. Tente compreender, por favor. Talvez não mais de um em cada vinte daqueles doidos tenha um mínimo de inteligência,
que dirá uma posição ideológica definida. Não passam da escória da humanidade manipulada, desfrutando seu histérico momento ao sol. Talvez seja culpa nossa, não sei, mas posso garantir que eles estão sendo
programados e você deve saber disso. E por trás dessa programação está um homem que quer todo o sudoeste da Ásia sob seu controle.
- O tal do Mahdi?
- Isso mesmo... quem quer que ele seja.
- Acha que pode descobri-lo?
- Precisarei de ajuda. Uma saída rápida do aeroporto; e trajes árabes. Farei uma lista.
O vice-diretor tornou a se recostar na cadeira, encostando os dedos no queixo.
- Por quê, deputado? Qual é o seu interesse em se meter nisso? Por que Evan Kendrick, empreiteiro multimilionário, quer arriscar a vida tão preciosa? Não tem mais nada a ganhar por lá. Então, por quê?
- Digamos que a resposta mais simples e mais honesta é a de que eu poderia ajudar de alguma forma. Como lembrou, ganhei muito dinheiro naquela região. Talvez seja este o momento de dar alguma coisa de
mim em troca.
- Se fosse apenas dinheiro ou "um pouco" de si mesmo, eu não teria a menor dificuldade para compreender. Mas se eu aceitar sua oferta, estará entrando num campo minado, sem o menor treinamento de sobrevivência.
Já lhe ocorreu essa possibilidade, deputado? Deveria pensar nisso.
- Não tenho a menor intenção de desfechar uma invasão da embaixada.
- Nem precisa. Basta fazer a pergunta errada à pessoa errada e o resultado será o mesmo.
- Bem, eu também poderia estar num táxi na esquina da Twenty-third Street com Virginia Avenue ao meio-dia de hoje e sofrer um acidente.
- Presumo que isso significa que sofreu.
- O que quero destacar é que eu não estava guiando. Apenas me encontrava dentro do táxi. Sou um homem cuidadoso, Sr. Swann, conheço bem o tráfego em Mascate, que não é tão imprevisível quanto o de Washington.
- Já prestou serviço militar?
- Não.
- Eu diria que estava na idade certa para o Vietnam. Alguma explicação?
- Recebi um adiamento para um curso de pós-graduação. Isso me manteve de fora.
- Alguma vez já usou uma arma?
- Tenho experiência limitada.
- O que significa que sabe onde fica o gatilho e qual a extremidade a apontar.
- Falei limitada, não imbecil. Durante os primeiros dias nos emirados portávamos sempre armas nos acampamentos de obras. E mais tarde isso também aconteceu algumas vezes.
- Já teve oportunidade de atirar? - insistiu o vice-diretor.
- Claro - respondeu Kendrick com voz calma, sem morder a isca. - Por isso pude aprender onde ficava o gatilho e com que extremidade apontar.
- Muito engraçado, mas o que eu queria saber era outra coisa: alguma vez disparou uma arma contra um ser humano?
- A pergunta é necessária?
- É, sim. Tenho de fazer um julgamento.
- Muito bem. A resposta é sim, já atirei.
- Quando foi isso?
- Aconteceu mais de uma vez. Entre meus associados e nossa equipe americana havia um geólogo, um especialista em logística de equipamento, e diversos refugiados do corpo de engenharia militar. Realizávamos
excursões frequentes a locais que poderiam ser canteiros de obras, efetuando testes do solo, levantando cercas para os equipamentos. Armávamos um acampamento e em diversas ocasiões fomos atacados por bandidos...
bandos de nômades em busca de despojos. Constituem um problema há anos e as autoridades sempre advertem sobre a necessidade de proteção a todos que viajam para o interior. Não é muito diferente de qualquer
grande cidade por aqui. Eu andava sempre armado naquele tempo.
- Para assustar ou para matar, Sr. Kendrick?
- De um modo geral, Sr. Swann, para assustar. Mas houve ocasiões em que tivemos de matar. Eles vinham dispostos a nos matar. E sempre comunicamos tais incidentes às autoridades.
- Entendi - murmurou o vice-diretor de Operações Consulares. - Qual é a sua condição física?
O visitante sacudiu a cabeça, exasperado.
- Fumo um charuto de vez em quando ou um cigarro depois de uma refeição, doutor. E bebo moderadamente. Mas não prático halterofilismo e não disputo maratonas. Por outro lado, costumo fazer excursões por
rios e montanhas com uma mochila nas costas sempre que posso. E também acho esse inquérito uma besteira.
- Pense o que quiser, Sr. Kendrick, mas estamos com premência de tempo. Perguntas simples e diretas podem nos ajudar a avaliar uma pessoa tão bem quanto um complexo relatório de uma de nossas clínicas
psiquiátricas na Virginia.
- Culpe os psiquiatras por isso.
- Fale-me a respeito - disse Swann, com uma risada hostil.
- Nada disso, quem vai falar agora é você. Seu jogo de perguntas e respostas acabou. Quero saber se vou ou não vou... e se não vou, por quê?
Swann fitou-o nos olhos.
- Você vai. Não porque seja a escolha ideal, mas porque não tenho outra. Estou disposto a tentar qualquer coisa, inclusive um filho da puta arrogante, o que acho que você provavelmente é, sob essa fachada
fria.
- Provavelmente está certo - concordou Kendrick. - Pode me dar um resumo de tudo o que tem até agora?
- Será entregue no avião, antes da decolagem da Base Andrews da Força Aérea. Mas o documento não poderá deixar o avião e você não deverá fazer anotações, deputado.
- Muito bem.
- Tem certeza de que está mesmo entendendo? Nós lhe daremos toda ajuda possível, mas as dificuldades são muitas. É um cidadão particular, agindo por conta própria, seja qual for a sua posição política.
Em outras palavras: se for apanhado por elementos hostis, nós não o conhecemos. Não poderíamos ajudá-lo. Não arriscaríamos as vidas de duzentos e trinta e seis reféns. É capaz de compreender isso?
- Claro que sim, tudo está de acordo com o que declarei ao entrar aqui. Quero uma garantia escrita de anonimato. Nunca estive aqui. Nunca o vi. Nunca falei com você. Mande um memorando ao secretário de
Estado. Diga que recebeu um telefonema de um aliado político no Colorado, mencionando meu nome e sugerindo que entrasse em contato comigo, pois eu poderia ajudar com minha experiência e conhecimento da
região. Rejeitou a sugestão, convencido de que era apenas mais um político tentando se aproveitar do Departamento de Estado... creio que não lhe será difícil fazer isso.
Kendrick tirou um bloco de anotações do bolso do paletó, inclinou-se e pegou o lápis de Swann.
- Vou lhe dar o endereço do meu advogado em Washington. Mande um mensageiro especial entregar-lhe uma cópia do memorando antes do meu embarque no avião de Andrews. Só embarcarei depois de ele me dizer
que recebeu o documento.
- Nosso objetivo mútuo neste caso é tão claro e tão definido que eu deveria estar satisfeito - comentou Swann. - Então, por que não estou? Por que continuo a pensar que você está omitindo alguma coisa?
- Porque é desconfiado por natureza e profissão. Não estaria nessa cadeira se não fosse.
- Esse sigilo em que tanto insiste...
- Como também é o seu caso, aparentemente - interrompeu-o Kendrick.
- Já expliquei os meus motivos. Há duzentas e trinta e seis pessoas naquela embaixada. Não queremos dar um pretexto a ninguém para puxar um gatilho. Você, por outro lado, teria muito a ganhar, se não for
morto. Então, por que o sigilo?
- Meus motivos não são muito diferentes dos seus. Fiz muitos amigos por toda aquela região. Mantenho contato com vários, trocamos correspondência, eles me visitam com regularidade... nossas associações
não constituem um segredo. Se meu nome aparecer, alguns fanáticos podem pensar em jaremat thaár.
- Castigo por amizade - traduziu Swann.
- E o clima é apropriado para isso.
- Imagino que é razão suficiente - declarou o vice-diretor, mas sem muita convicção. - Quando quer partir?
- O mais depressa possível. Não tenho nada para acertar aqui. Tomarei um táxi, irei para casa e trocarei de roupa...
- Nada de táxis, deputado. Daqui por diante, até chegar a Mascate, é considerado um agente de ligação do governo, sob proteção e voando em transporte militar. - Swann estendeu a mão para o telefone. -
Será escoltado até a garagem, onde sairá num carro oficial não identificado, que o levará para casa e depois para Andrews. Você é propriedade do governo durante as próximas doze horas e fará tudo o que
mandarmos.
Evan Kendrick sentou no banco traseiro do carro sem identificação do Departamento de Estado, olhando pela janela para a vegetação exuberante ao longo do Potomac. Dali a pouco o motorista viraria à esquerda
e entraria num longo corredor arborizado da paisagem da Virginia, a cinco minutos da sua casa. Sua casa isolada, ele refletiu, seu lar tão solitário, apesar de um casal de empregados que ali residia, ambos
velhos amigos, e a procissão discreta, mas não exagerada, de mulheres graciosas, também amigas, que partilhavam sua cama.
Quatro anos e nada permanente. Para ele, a permanência estava a meio mundo de distância, onde nada era permanente, a não ser a constante necessidade de se deslocar de um trabalho para o seguinte, encontrando
as melhores oportunidades disponíveis para todos e providenciando tutores para os filhos de seus associados... filhos que, às vezes, desejava fossem seus. Nunca tivera tempo para casamento e filhos; as
ideias eram suas esposas, os projetos a prole. Talvez por isso se tornara o líder; não tinha distrações domésticas. As mulheres com que fazia amor eram quase todas como ele, com os mesmos impulsos. Procuravam
a exultação transitória, até mesmo o conforto de ligações breves, mas a palavra essencial era "temporário". E depois aqueles anos maravilhosos de excitamento e alegria, as horas de medo e os momentos de
intensa satisfação, quando os resultados de um projeto excediam as expectativas. Estavam construindo um império... pequeno, é verdade, mas haveria de crescer com o tempo e, como Weingrass insistia, os
filhos do Grupo Kendrick cursariam as melhores escolas suíças, a poucas horas de distância pelo ar.
- Essas crianças vão se tornar um grupo de menschen internacionais! - bradara Manny. - Toda a excelente educação e todas as línguas que estão aprendendo! Estamos criando a maior coleção de estadistas,
homens e mulheres, desde Disraeli e Golda!
- Tio Manny, podemos pescar? - um jovem porta-voz invariavelmente implorava, conspiradores olhos arregalados por trás dele.
- Claro, David... que nome glorioso! O rio fica apenas a poucos quilômetros de distância. E prometo que todos pegaremos baleias!
- Manny, por favor! - uma das mães invariavelmente protestava. - As crianças precisam fazer os deveres de casa.
- Pois esse é um dever de casa... estudem a sintaxe. As baleias estão no rio!
Tudo aquilo era estabilidade para Evan Kendrick. E, subitamente, tudo fora destruído, mil espelhos quebrados ao sol, cada fragmento de vidro ensanguentado refletindo uma imagem de adorável realidade e
maravilhosas expectativas. Todos os espelhos tinham enegrecido, não havia reflexos em parte alguma. Morte.
- Não faça isso! - gritou Emmanuel Weingrass. - Sinto a dor tanto quanto você. Mas será que não percebe que é isso o que eles querem que você faça, o que esperam que faça? Não dê a eles... não dê a ele...
essa satisfação! Lute contra eles, lute contra ele! Eu lutarei com você. Mostre a sua coragem!
- Por quem, Manny? Contra quem?
- Sabe tão bem quanto eu! Somos apenas os primeiros; outros se seguirão. Outros "acidentes", pessoas queridas mortas, projetos abandonados. Vai permitir isso?
- Não me importo.
- Então vai deixar que ele vença?
- Ele quem?
- O Mahdi!
- Um rumor de bêbados, nada mais.
- Foi ele quem fez isso! Foi ele quem matou a todos! Tenho certeza!
- Não há mais nada aqui para mim, velho amigo, e não posso perseguir sombras. Não há mais nenhuma diversão. Esqueça, Manny. Eu o tornarei rico.
- Não quero seu dinheiro covarde!
- Não vai aceitar?
- Claro que aceitarei. Apenas não amo mais você.
E depois quatro anos de ansiedade, vazio e tédio, especulando quando o vento quente do amor ou o vento frio do ódio tornaria a soprar sobre as brasas fumegantes em seu íntimo. Dissera a si mesmo, muitas
vezes, que no momento em que o fogo irrompesse de repente, por qualquer motivo, esse seria o momento oportuno e ele estaria pronto. Pois estava pronto agora, e ninguém poderia detê-lo. Ódio.
O Mahdi.
Você tomou as vidas dos meus maiores amigos tão certamente quanto se tivesse instalado aqueles condutos com suas próprias mãos. Tive de identificar muitos corpos - os corpos mutilados, retorcidos, sangrando,
das pessoas que tanto significavam para mim. O ódio permanece, é profundo e frio, não se desvanece e não me deixa viver a minha vida enquanto você não morrer. Tenho de voltar e recolher os fragmentos,
tornar a ser eu e concluir o que todos estávamos construindo juntos. Manny tinha razão. Eu fugi, perdoando a mim mesmo por causa da dor, esquecendo os sonhos que acalentamos. Voltarei e acabarei agora.
Estou partindo no seu encalço, Mahdi, quem quer que você seja, onde quer que esteja. E ninguém saberá que estive lá.
- Senhor? Já chegamos.
- Como?
- Esta é a sua casa - informou o fuzileiro motorista. - Acho que estava tirando um cochilo, mas temos uma programação a cumprir.
- Não era um cochilo, cabo, mas é claro que você tem toda razão. - Kendrick segurou a maçaneta e abriu a porta. - Só vou demorar vinte minutos, por aí... Por que não entra? A criada pode servir um lanche
ou um café enquanto espera.
- Eu não sairia deste carro de jeito nenhum, senhor.
- E por que não?
- Está com OHIO, senhor. Eu provavelmente seria fuzilado.
Atordoado e já com metade do corpo para fora da porta, Evan Kendrick virou-se e olhou para trás. Na extremidade da rua, arborizada e deserta, sem qualquer casa à vista, um carro solitário estava estacionado
junto ao meio-fio. Dois vultos sentavam-se imóveis no banco da frente.
É propriedade do governo durante as próximas doze horas e fará tudo o que mandarmos.
O vulto delineado entrou rapidamente na sala sem janelas, fechou a porta e, no escuro, continuou até a mesa em que estava o pequeno abajur de bronze. Acendeu-o e foi até seu equipamento, na parede da direita.
Sentou-se na frente da editora de textos, apertou a tecla que ligava a tela e datilografou o código.
Segurança Ultramáxima
Não Há Intercepções
Prossiga
Ele continuou seu diário, os dedos tremendo de exultação.
Tudo está em movimento agora. O alvo se encontra a caminho, a jornada começou. Claro que não posso projetar os obstáculos que terá pela frente, muito menos seu sucesso ou fracasso; sei apenas, através
das minhas "ferramentas" bem desenvolvidas, que ele é excepcionalmente qualificado. Um dia poderemos computar mais acuradamente o quociente humano, mas esse dia ainda não chegou. Mesmo assim, se ele sobreviver,
o raio vai cair - minhas projeções deixam isso patente, de uma centena de opções diferentes computadas com pleno sucesso. O pequeno círculo de autoridades que precisam saber foi alertado através de comunicação
ultra max modem. Brincadeira de criança para minhas "ferramentas".
3
O tempo estimado de voo de Andrews para a base da Força Aérea dos Estados Unidos na Sicília era de sete horas. A chegada estava prevista para cinco horas da manhã, horário de Roma - oito horas da manhã
em Oman, que ficava a quatro ou cinco horas de distância em avião, dependendo dos ventos mediterrâneos predominantes e das rotas seguras que estivessem disponíveis. A decolagem para a escuridão do Atlântico
fora rápida no jato militar, um F-106 Delta adaptado, com uma cabine que incluía dois assentos contíguos no fundo, e pequenas mesas que serviam ao mesmo tempo de escrivaninhas em miniatura e superfícies
para comer e beber. Lâmpadas móveis no teto permitiam deslocar os fachos de luz para as áreas de concentração, quer fossem documentos, fotografias ou mapas. Kendrick recebeu as páginas de OHIO-Quatro-Zero
do homem à sua esquerda, uma página de cada vez, que só lhe era entregue depois da devolução da anterior. Em duas horas e doze minutos Evan completou a leitura do arquivo.
Estava prestes a recomeçar, quando o homem à esquerda, bem-apessoado, de olhos escuros, um membro de OHIO-Quatro-Zero que se apresentara simplesmente como um assessor do Departamento de Estado, levantou
a mão e indagou:
- Não podemos fazer uma pausa para comer alguma coisa, senhor?
- O quê? Ah, sim, claro... - Kendrick estirou-se no assento. - Falando francamente, não vi muita coisa útil.
- Eu não esperava que houvesse - comentou o jovem impecável.
Evan voltou a cabeça para fitá-lo, estudando-o pela primeira vez.
- Não falo isso com intenção depreciativa, juro que não, mas você me parece um pouco jovem para uma operação altamente secreta do Departamento de Estado. Não deve ter passado ainda da casa dos vinte anos.
- Quase isso. Mas sou muito bom no que faço.
- E o que é que você faz?
- Desculpe, senhor, mas não posso fazer comentários a respeito. E, agora, o que me diz da comida? É um longo voo.
- Que tal um drinque primeiro?
- Adotamos disposições especiais para os civis. - O jovem de cabelos escuros sorriu e fez sinal para o comissário de bordo da Força Aérea, um cabo ocupando uma poltrona encostada no anteparo, que se levantou
e se adiantou. - Um copo de vinho branco e um Canadian com gelo, por favor.
- Um Canadian...
- Não é o que costuma beber?
- Estou vendo que andaram ocupados.
- Nunca paramos. - O assessor acenou com a cabeça e o cabo se retirou para a cozinha em miniatura. O jovem de OHIO acrescentou: - Infelizmente, a comida é sempre a mesma, padronizada. De acordo com o corte
de verbas do Pentágono... e com certos lobbyistas da indústria da carne e outros produtos alimentícios. Filé com aspargos e batatas cozidas.
- Que corte de verbas!
- De acordo com alguns lobbyistas - repetiu o companheiro de Evan, sorrindo. - E depois há uma sobremesa chamada baked Alaska, um sorvete com base de bolo e suspiro por cima.
- É mesmo?
- Não se pode esquecer a turma dos laticínios.
Os drinques chegaram, o cabo foi para um telefone instalado no anteparo, onde uma luz branca piscava, e o assessor levantou o copo.
- À sua saúde.
- À sua também. Você tem um nome?
- Pode escolher qualquer um.
- Boa resposta. Joe está bem?
- Joe serve. Prazer em conhecê-lo, senhor.
- Como obviamente sabe quem eu sou, você está com a vantagem. Pode usar o meu nome.
- Não neste voo.
- Então, quem sou eu?
- Oficialmente, é um criptoanalista chamado Axelrod, a caminho da embaixada em Jedá, Arábia Saudita. O nome não significa muita coisa; é basicamente para o diário de bordo do piloto. Se alguém quiser sua
atenção, dirá apenas "senhor". Nomes são coisas mais ou menos proibidas nestas viagens.
- Dr. Axelrod?
A interferência do cabo fez o assessor do Departamento de Estado empalidecer.
- Doutor? - repetiu Evan, um pouco surpreso, olhando para "Joe".
- Não podia deixar de ser um Ph.D. - murmurou o assessor.
- Isso é ótimo - sussurrou Kendrick, levantando os olhos para o cabo. - O que é?
- O piloto gostaria de lhe falar, senhor. Pode me acompanhar à cabine de comando, por favor?
- Claro. - Evan entregou seu copo a "Joe", levantou a mesinha e acrescentou para o homem do Departamento de Estado: - Estava certo pelo menos numa coisa, Júnior. Ele me chamou de "senhor".
- E não gosto nada disso - protestou "Joe", em voz baixa, mas com alguma veemência. - Todas as comunicações envolvendo a sua pessoa devem ser canalizadas por meu intermédio.
- Quer fazer uma cena?
- Claro que não. É apenas um problema de ego. Ele quer ficar mais perto da carga especial.
- Como?
- Esqueça, Dr. Axelrod. Lembre-se apenas que nenhuma decisão deve ser tomada sem a minha aprovação.
- É um garoto duro.
- Muito mais do que imagina, dep... Dr. Axelrod. E também não sou "Júnior". Não para você.
- Devo transmitir seus sentimentos ao piloto?
- Pode dizer a ele que cortarei suas asas e também os colhões se fizer isso de novo.
- Como fui o último a embarcar, não cheguei a conhecê-lo, mas imagino que seja um general de brigada.
- Para mim não passa de um general de merda.
- Essa não! - exclamou Kendrick, rindo. - Rivalidade entre os serviços a quinze mil metros de altitude. Não tenho certeza se aprovo isso.
- Senhor?
O cabo da Força Aérea parecia ansioso.
- Já estou indo, cabo.
A compacta cabine de comando do F-106 Delta cintilava com uma profusão de pequenas luzes verdes e vermelhas, com mostradores e números por toda parte. O piloto e o copiloto estavam sentados na frente,
o navegador à direita, um fone acolchoado no ouvido esquerdo, os olhos fixados numa tela de computador reticulada. Evan teve de se abaixar para avançar uns poucos passos no espaço apertado.
- Queria me falar, general?
- Nem mesmo quero olhar para você, doutor - respondeu o piloto, a atenção concentrada nos painéis à sua frente. - Apenas vou ler uma mensagem de alguém chamado S. Conhece alguém chamado S?
- Acho que sim - respondeu Kendrick, presumindo que a mensagem fora enviada por Swann, do Departamento de Estado. - O que diz?
- É um pé no saco antes de mais nada! - berrou o general. - Nunca pousei lá! Não conheço o campo e já me disseram que aqueles sacanas são melhores em fazer molho de espaguete do que em dar instruções de
aproximação!
- É nossa própria base - protestou Evan.
- É porra nenhuma! - bradou o piloto, enquanto o copiloto sacudia a cabeça numa negativa enfática. - Estamos mudando o curso para a Sardenha! Não a Sicília, mas a Sardenha! Terei de explodir os motores
para caber naquela pista... se é que vamos conseguir encontrá-la!
- Qual é a mensagem, general? - perguntou Kendrick, calmamente. - Há em geral uma razão para a maioria das coisas, quando os planos são alterados.
- Então pode me explicar... Não, não explique nada! Já estou bastante aflito e irritado. Mas que idiotas!
- A mensagem, por favor?
- Aqui está. - O irado piloto leu de uma folha de papel perfurada. - "Alteração necessária. Jedá excluída. Todos os A.M. onde permitidos sob olhos..."
- O que significa isso? - interrompeu Evan. - Os A.M. sob olhos.
- O que diz.
- Em inglês, por favor.
- Desculpe, eu tinha esquecido. Quem quer que você seja, não é o que está registrado. Significa que todos os aviões militares na Sicília e Jedá estão sob observação, assim como todos os campos em que costumamos
pousar. Aqueles árabes filhos da puta esperam alguma coisa de vulto e mandaram seus nojentos psicóticos para toda parte, prontos para informar sobre qualquer fato ou qualquer pessoa fora do normal.
- Nem todos os árabes são filhos da puta, nojentos ou psicóticos, general.
- São no meu livro.
- Então é impublicável.
- O quê?
- Seu livro. O resto da mensagem, por favor.
O piloto fez um gesto obsceno com o braço direito, o papel perfurado na mão.
- Leia você mesmo, amante dos árabes. Mas não pode sair daqui.
Kendrick pegou o papel, virou-o para a luz do navegador e leu toda a mensagem: Alteração necessária. Jedá excluída. Todos os A.M. onde permitido sob olhos. Transferência para subsidiária civil na ilha
do sul. Rota por Chipre e Riad, até alvo. Tudo providenciado. Chegada prevista perto Segundo Pilar el Maghreb, melhor ocasião possível. Lamento. S. Evan estendeu a mensagem por cima do ombro do general
e largou-a.
- Presumo que "ilha do sul" é Sardenha.
- Acertou.
- Nesse caso, imagino que terei de passar pelo menos dez horas num avião ou aviões, através de Chipre, Arábia Saudita e finalmente Mascate.
- Posso lhe garantir uma coisa, amante dos árabes - continuou o piloto. - Fico contente que seja você quem vai voar naquelas banheiras e não eu. E um conselho de amigo: arrume um lugar ao lado de uma porta
de emergência, e se puder comprar um paraquedas não hesite em gastar o dinheiro. E compre também uma máscara contra gases. Já me disseram que aqueles aviões fedem demais.
- Tentarei me lembrar do seu generoso conselho.
- E agora me diga uma coisa. Que história é essa de "Segundo Pilar" e o troço em árabe?
- Costuma ir à igreja? - perguntou Evan.
- Claro que sim. Quando estou em casa, obrigo toda a família a ir... e não admito que ninguém se recuse, por Deus! Pelo menos uma vez por mês, é uma regra.
- Os árabes também vão, mas não uma vez por mês. Cinco vezes por dia. Têm uma fé tão grande quanto a sua... no mínimo tão profunda quanto a sua, não concorda? O Segundo Pilar de el Maghreb refere-se às
orações islâmicas ao pôr do sol. Não diria que é uma tremenda inconveniência? Eles suam seus rabos árabes num trabalho duro durante o dia inteiro, quase sempre por nada, e depois é o pôr do sol. Nada de
coquetéis, apenas orações para seu Deus. Talvez seja tudo o que eles tenham. Como os spirituals nas antigas fazendas.
O piloto virou-se lentamente. O rosto nas sombras da cabine surpreendeu Kendrick. Ele era preto.
- Você me pegou - disse ele.
- Desculpe... e falo sério, pois eu não sabia. Por outro lado, foi você quem provocou. Chamou-me de amante dos árabes.
Pôr do sol. Mascate, Oman. O velho turbojato bateu na pista com tanta força que alguns passageiros gritaram, os instintos do deserto alertas para a possibilidade de uma tragédia flamejante. Depois, com
a compreensão de que haviam chegado, de que se encontravam sãos e salvos, que teriam ali o que procuravam, começaram a entoar, muito excitados: Alá seja louvado por sua benevolência! Haviam recebido a
promessa de muitos riales por uma servidão que os omanitas não aceitavam. Que assim fosse. Era muito melhor do que a vida que haviam deixado para trás.
Os executivos de terno na frente do avião, lenços encostados no nariz, correram para a porta de saída segurando suas pastas, ansiosos por respirarem o ar de Oman. Kendrick ficou parado no corredor, o último
da fila, especulando o que Swann, do Departamento de Estado, quisera dizer ao informar na mensagem que fora "tudo providenciado".
- Venha comigo! - gritou um árabe de túnica no meio da multidão que se formava fora do terminal para a passagem pela imigração. - Temos outra saída, Dr. Axelrod.
- Meu passaporte não diz nada sobre Axelrod.
- Exatamente. É por isso que deve vir comigo.
- E a imigração?
- Guarde os documentos no bolso. Ninguém que vê-los. Eu não quero.
- Então como...
- Chega, ya Shaikh. Dê-me a sua bagagem e fique três metros atrás de mim. Vamos!
Evan entregou sua valise ao excitado contato e seguiu-o. Encaminharam-se para a direita, passaram pela extremidade do terminal marrom e branco de um andar, depois viraram para a esquerda, na direção da
alta cerca de metal, além da qual a fumaça de dezenas de táxis, ônibus e caminhões tingia o ar avermelhado. A multidão além da cerca do aeroporto corria de um lado para outro entre os veículos do congestionamento,
as túnicas esvoaçando, formulando advertências e gritando para chamar atenção. Ao longo da cerca, por uns vinte ou trinta metros, dezenas de outros árabes comprimiam os rostos contra os elos de metal,
espiando um mundo estranho de pistas de asfalto liso e aviões cintilantes que não era parte de suas vidas, gerando fantasias além da sua compreensão. Kendrick podia avistar à frente um enorme prédio de
metal. Era o armazém do aeroporto, de que ele se lembrava muito bem, pensando nas horas que ali passara em companhia de Manny Weingrass, à espera de equipamentos atrasados, prometidos em um voo ou outro,
muitas vezes furioso com as autoridades alfandegárias que frequentemente não entendiam os formulários que precisavam ser preenchidos para liberar o equipamento... se é que o equipamento de fato chegara.
O portão na frente das portas de hangar do armazém estava aberto, acomodando a fileira de containers de carga, repletos de caixotes desembarcados dos vários aviões. Guardas levando cachorros pela coleira
flanqueavam a esteira transportadora da alfândega, que levava as cargas para o interior do prédio, ao encontro de ansiosos fornecedores e atacadistas, de representantes sempre presentes e sempre frustrados
das empreiteiras. Os olhos dos guardas vagueavam constantemente pela atividade frenética, segurando pistolas-metralhadoras em suas mãos. Ali estavam não apenas para manter um arremedo de ordem no meio
do caos e apoiar os inspetores da alfândega no caso de divergências violentas, mas essencialmente à procura de armas e narcóticos contrabandeados para o sultanato. Cada engradado e caixa era examinado
pelos cães que rosnavam e latiam, ao ser levantado para a esteira transportadora.
O contato de Evan parou; ele fez a mesma coisa. O homem fez meia-volta e acenou com a cabeça para um pequeno portão lateral que exibia um aviso em árabe no alto: Pare. Só Pessoal Autorizado. Transgressores
Serão Fuzilados. Era uma saída para os guardas e outros empregados do governo. O portão tinha também uma placa de metal grande no lugar em que seria normalmente instalada uma tranca. E era mesmo uma tranca,
pensou Kendrick, uma tranca eletrônica, acionada do interior do armazém. O contato balançou a cabeça mais duas vezes, indicando que Evan deveria se encaminhar para o portão em que os "transgressores serão
fuzilados". Kendrick franziu o rosto, inquisitivo, sentindo o estômago se contrair. Com Mascate em estado de sítio, não precisaria muito para que alguém começasse a atirar. O árabe percebeu a dúvida em
seus olhos e acenou com a cabeça pela quarta vez, lentamente, tranquilizador. O contato virou-se e olhou para a direita, pela fileira de containers. E levantou a mão direita, de maneira quase imperceptível.
Subitamente, irrompeu uma briga ao lado dos containers. Houve trocas de insultos, braços se projetaram na maior violência, punhos agrediram.
- Contrabando!
- Mentiroso!
- Sua mãe é uma cabra fedorenta!
- Seu pai deita com putas! Você é uma consequência!
A poeira se levantou quando corpos engalfinhados caíram ao chão, acompanhados por outros que tomavam partido. Os cachorros ladravam ameaçadores, puxando as coleiras, arrastando os guardas para a confusão...
exceto um; e o sinal foi dado pelo contato de Evan. Juntos, correram para a deserta saída de pessoal.
- Boa sorte, senhor - murmurou o guarda solitário, seu cachorro farejando agressivo a calça de Kendrick, enquanto o homem batia rapidamente um código na placa com sua arma.
Uma campainha soou e o portão abriu. Kendrick e seu contato passaram, correndo ao longo da parede de metal do armazém. No estacionamento distante havia um caminhão dilapidado, os pneus parecendo apenas
meio cheios. O motor foi ligado e estampidos altos soaram do cano de descarga.
- Besuraa! - gritou o contato árabe, dizendo a Evan para se apressar. - Ali está seu transporte.
- Assim espero - murmurou Kendrick, a voz mesclada de dúvida.
- Seja bem-vindo a Mascate, Shaikh quem quer que seja.
- Você sabe quem eu sou - disse Evan, irritado. - Encontrou-me no meio da multidão! Quantos outros podem fazer isso?
- Bem poucos, senhor. E não sei quem é, juro por Alá.
- Então tenho de acreditar em você, não é mesmo? - indagou Kendrick, fitando o homem nos olhos.
- Eu não usaria o nome de Alá se não fosse assim. Por favor. Besuraa!
- Obrigado.
Evan pegou a valise e correu para a boleia do caminhão. O motorista gesticulou pela janela para que ele entrasse na traseira, coberta por uma lona. O caminhão arrancou com um solavanco, enquanto um par
de mãos o puxava para o interior.
Estendido sobre as tábuas, Kendrick levantou os olhos para o árabe que o fitava. O homem sorriu e apontou para a túnica comprida, aba, e para a camisa que descia até os tornozelos, conhecida como thobe,
penduradas num cabide na frente da traseira do caminhão; ao lado, num prego, estava o ghotra, o ornamento para a cabeça, e uma calça branca estufada; eram os trajes de rua de um árabe, tudo o que Evan
pedira a Frank Swann, do Departamento de Estado. E havia mais um catalisador, pequeno mas vital.
O árabe suspendeu-o. Era um tubo com geleia para escurecer a pele; quando generosamente aplicado, transformava o rosto e as mãos de um ocidental branco nos de um semita do Oriente Médio, cuja pele fora
permanentemente queimada pelo sol quente, rigoroso, quase equatorial. O pigmento aguentaria por um período de dez dias, antes de começar a se desvanecer. Dez dias. Uma vida inteira... para ele ou para
o monstro que se intitulava Mahdi.
A mulher estava dentro do aeroporto, a poucos centímetros dos elos de metal da cerca. Usava uma calça comprida branca, um pouco larga, e uma blusa de seda verde-escura amarrotada pela alça de couro da
bolsa. Cabelos escuros e longos emolduravam-lhe o rosto; as feições firmes e atraentes estavam meio disfarçadas por enormes óculos de lentes enfumaçadas. Na cabeça tinha um chapéu branco de aba larga,
com uma fita de seda verde circulando a coroa. À primeira vista parecia ser mais uma turista de alguma próspera cidade ocidental; Roma ou Paris, Londres ou Nova York. Contudo, um exame mais atento revelava
uma diferença sutil do estereótipo: era a cor da pele. O tom azeitonado, nem preto nem branco, sugeria o norte da África. Também pouco comum era o que ela tinha nas mãos e apenas poucos segundos antes
comprimira contra a cerca: uma câmera em miniatura não maior que cinco centímetros, com uma lente prismática convexa, projetada para a fotografia telescópica, equipamento associado ao pessoal do serviço
secreto. O velho caminhão saíra derrapando do estacionamento do armazém; a câmera já não era mais necessária. Ela guardou-a na bolsa.
- Khalehla! - gritou um homem obeso e calvo, de olhos arregalados, correndo na sua direção, o nome pronunciado como "Ca-lei-la". Carregava desajeitado duas malas, o suor encharcando a camisa e penetrando
pelo terno preto listrado de Savile Row. - Pelo amor de Deus, por que se afastou?
- Aquela fila horrível estava chata demais, querido - respondeu a mulher, o sotaque uma mistura indefinível de britânico e italiano, ou talvez de grego. - E resolvi dar uma volta.
- Santo Deus, Khalehla, será que não compreende que não pode fazer isso? - O inglês postou-se diante dela, o rosto balofo afogueado, o suor escorrendo. - Eu era o próximo na fila para aquele imbecil da
imigração, olhei ao redor e você não estava lá! E quando sai à sua procura, três malucos com armas... isso mesmo, empunhando armas!... me detiveram e levaram para uma sala, e revistaram nossa bagagem!
- Imagino que nada tinha a esconder, Tony.
- Os miseráveis confiscaram meu uísque!
- Ah, os sacrifícios de ser um homem bem-sucedido... Mas não se preocupe, querido. Providenciarei para substituí-lo.
Os olhos do executivo britânico vaguearam pelo rosto e corpo de Khalehla.
- Mas isso já pertence ao passado, não é mesmo? Podemos ir agora e acabar logo com as formalidades. - O homem obeso piscou, um olho depois de outro. - Arrumei esplêndidas acomodações para nós. Ficará muito
satisfeita, minha cara.
- Acomodações? Com você, querido?
- Claro.
- Ora, eu não poderia fazer isso.
- Como? Mas não disse...
- Eu disse? - interrompeu-o Khalehla, as sobrancelhas escuras arqueando-se por cima dos óculos.
- Pelo menos insinuou, de maneira um tanto enfática, posso acrescentar, que se eu lhe conseguisse um lugar naquele avião poderíamos nos divertir muito em Mascate.
- E é claro que vamos nos divertir. Drinques no Gulf, talvez as corridas, jantar em El Quaman... todas essas coisas. Mas quem falou no seu quarto?
- Bom... certos detalhes específicos não devem ser... especificados.
- Oh, meu caro Tony, como posso me desculpar por esse mal-entendido? Minha velha governanta inglesa na Universidade do Cairo sugeriu que eu o procurasse. Ela é uma das maiores amigas de sua esposa. Oh,
não, eu não poderia, de jeito nenhum...
- Mas que merda! - explodiu o vitorioso executivo inglês chamado Tony.
- Miraya! - gritou Kendrick, por cima do ruído ensurdecedor do velho caminhão, avançando aos solavancos por uma estrada secundária para Mascate.
- Não pediu um espelho, ya Shaikh - berrou em resposta o árabe na traseira do caminhão, num inglês de forte sotaque, mas bastante compreensível.
- Pois então pegue um dos espelhos laterais do caminhão. Fale com o motorista.
- Ele não pode me ouvir, ya Shaikh. Como tantos outros, este é um veículo velho, que passará despercebido. Não dá para falar com o motorista.
- Mas que droga! - exclamou Evan, com o tubo de geleia na mão. - Nesse caso, você será meus olhos, ya Sahbee - acrescentou ele, chamando o árabe de amigo. - Chegue mais perto e observe. E me avise quando
estiver certo. Abra a lona.
O árabe levantou uma parte da lona na traseira, deixando a luz do sol entrar. Cauteloso, segurando-se nas tiras, avançou até ficar a menos de meio metro de Kendrick.
- Isso é iddahwa, senhor? - ele perguntou, referindo-se ao tubo.
- Iwah - respondeu Evan, ao constatar que a geleia era mesmo o que precisava.
Começou a espalhá-la pelas mãos; os dois ficaram observando; o tempo de espera foi inferior a três minutos.
- Arma! - gritou o árabe, estendendo a mão direita; a cor da pele de Kendrick estava quase igual.
- Kwiyis - concordou Kendrick, tentando extrair a mesma proporção de geleia que passara nas mãos para aplicar no rosto.
Começou a aplicação, observando ansioso os olhos do árabe.
- Mahool! - gritou subitamente seu novo companheiro, com um sorriso de triunfo. - Delwatee anzur!
Ele conseguira. Sua pele agora era da cor de um árabe castigado pelo sol.
- Ajude-me com a thobe e o aba, por favor - pediu Evan, enquanto começava a se despir no caminhão aos solavancos.
- Está bem - disse o árabe, num inglês subitamente mais claro do que empregara antes. - Mas agora acabamos um com o outro. Perdoe-me por bancar o ingênuo com você, mas ninguém merece confiança por aqui...
nem mesmo o Departamento de Estado americano. Está assumindo riscos, ya Shaikh, muito mais do que eu, como o pai de meus filhos, tomaria, mas isso é da sua conta, não da minha. Será deixado no centro de
Mascate, daí por diante estará por conta própria.
- Obrigado por me levar até lá.
- E obrigado por ter vindo, ya Shaikh. Mas não tente descobrir aqueles que o ajudaram. Se fizer isso, a verdade é uma só: nós o mataríamos antes que o inimigo tivesse tempo de marcar sua execução. Somos
discretos, mas estamos vivos.
- E quem são vocês?
- Crentes, ya Shaikh. Não precisa saber de mais nada.
- Alfshukre - murmurou Evan, agradecendo ao recepcionista e dando uma gorjeta pela discrição que fora prometida.
Assinou o registro do hotel com um nome árabe falso e recebeu a chave da suíte. Não precisava de um carregador. Subiu no elevador para um andar errado e esperou no final de um corredor para descobrir se
fora seguido. Nada vendo de anormal, desceu pela escada para o seu andar e entrou na suíte.
Tempo. O tempo é valioso, cada minuto: Frank Swann, Departamento de Estado. As orações vespertinas de el Maghreb estavam encerradas; a escuridão se adensava e a loucura na embaixada podia ser ouvida a
distância. Evan levou a valise para um canto da sala, tirou a carteira de baixo dos trajes e pegou um papel dobrado em que escrevera os nomes e telefones - números que já tinham agora quase cinco anos
- das pessoas com quem queria fazer contato. Foi para a escrivaninha com o telefone, sentou-se e desdobrou o papel.
Trinta e cinco minutos mais tarde, depois das efusivas mas estranhamente contrafeitas saudações de três amigos do passado, o encontro fora combinado. Escolhera sete nomes, entre os homens mais influentes
de que se lembrava dos dias que vivera em Mascate. Dois haviam morrido; um estava fora do país; o quarto lhe disse com toda franqueza que o clima não era apropriado para um omanita se encontrar com um
americano. Os três que concordaram em vê-lo, com graus variados de relutância, chegariam separadamente, dentro de uma hora, indo direto para a suíte, sem passarem pela recepção.
Trinta e oito minutos decorreram, um tempo que Kendrick aproveitou para arrumar as poucas peças de roupa que trouxera e pedir marcas específicas de uísque ao serviço de quarto. A abstinência exigida pela
tradição islâmica era mais respeitada na violação, e ao lado de cada nome havia a indicação de sua bebida predileta; era uma lição que Evan aprendera com o irascível Emmanuel Weingrass. Um lubrificante
industrial, meu filho. Lembre-se do nome da esposa de um homem, isso o deixa satisfeito. Mas lembrar a marca de uísque que ele bebe é muito mais importante. Jamais esqueça.
A suave batida na porta rompeu o silêncio como raios de luz. Kendrick respirou fundo várias vezes, atravessou a sala e abriu a porta para o primeiro visitante.
- É você mesmo, Evan? Não se converteu, não é mesmo?
- Entre, Mustapha. É bom tornar a vê-lo.
- Mas será que estou vendo você? - disse o homem chamado Mustapha, que vestia um terno marrom-escuro. - E sua pele! Está tão moreno quanto eu, se não mais.
- Quero que saiba de tudo. - Kendrick fechou a porta e gesticulou para que o velho amigo escolhesse um lugar para sentar. - Pedi a sua marca de scotch. Aceita um drinque?
- Ah, Manny Weingrass nunca é esquecido, não é mesmo? - comentou Mustapha, encaminhando-se para um sofá de brocado e sentando. - O velho ladrão.
- Ora, Musty, deixe disso - protestou Evan rindo, enquanto seguia para o bar da suíte. - Ele nunca passou você para trás.
- É verdade. Nem ele, nem você, nem qualquer outro de seus associados jamais tentaram enganar a um de nós... Como conseguiu passar sem eles, meu amigo? Temos comentado a respeito, mesmo depois de quatro
anos.
- Houve ocasiões em que não foi nada fácil - confessou Kendrick com toda a sinceridade enquanto servia os drinques. - Mas é preciso aceitar. E aguentar.
Ele levou o scotch para Mustapha e sentou-se numa das três cadeiras em frente ao sofá. Levantou o copo e disse:
- Ao melhor, Musty.
- Não, velho amigo, este é o pior... o pior dos tempos, como escreveu o inglês Dickens.
- Vamos esperar que os outros cheguem.
- Eles não virão - murmurou Mustapha, tomando um gole do scotch.
- Como?
- Tivemos uma conversa. Eu sou, como se diz em muitas reuniões de negócios, o representante de certos interesses. Além disso, como o único ministro do gabinete do sultão, chegou-se à conclusão de que eu
poderia transmitir o consenso do governo.
- Sobre o quê? Está me pondo numa situação difícil.
- Não, Evan, foi você quem nos deixou numa situação difícil, ao vir aqui e nos procurar. Um de nós, talvez dois, até mesmo três, num caso extremo... mas sete foi demais. Foi uma temeridade de sua parte,
velho amigo, uma iniciativa perigosa para todos.
- Por quê?
- Pensou mesmo que três homens de posição destacada... para não falar em sete... poderiam convergir para um hotel a intervalos de minutos, e aí se encontrarem com um estrangeiro sem que a direção tomasse
conhecimento? Seria absurdo demais.
Evan estudou Mustapha antes de falar, os olhos de ambos se encontrando.
- Qual é o problema, Musty? O que está tentando me dizer? Isto aqui não é a embaixada, e a inadmissível confusão que está havendo ali nada tem a ver com os empresários ou o governo de Oman.
- É óbvio que não - concordou o árabe, com firmeza. - Mas o que estou tentando lhe dizer é que as coisas por aqui mudaram... de um jeito que muitos de nós não compreendem.
- Isso também é óbvio - interrompeu Kendrick. - Vocês não são terroristas.
- Tem razão, não somos. Mas gostaria de saber o que as pessoas... as pessoas responsáveis... estão dizendo?
- Pode falar.
- "Vai passar", dizem essas pessoas. "Não interfira; só serviria para inflamá-los ainda mais".
- Não interferir? - repetiu Evan, incrédulo.
- E "Deixem os políticos resolverem".
- Mas os políticos não podem resolver!
- E tem mais, Evan. "Há alguma base para a ira", dizem todos. "Não as mortes, é claro, mas no contexto de certos acontecimentos..." E assim por diante. Já ouvi isso também.
- O contexto de certos acontecimentos? Que acontecimentos?
- A história atual, velho amigo. "Eles estão reagindo a uma política bastante desigual dos Estados Unidos no Oriente Médio", dizem muitas pessoas. Essa é a essência do problema, Evan. "Os israelenses ganham
tudo e eles não recebem nada", alegam as pessoas. "São expulsos de suas terras e lares, obrigados a viver em acampamentos de refugiados apinhados e fétidos, enquanto na Margem Ocidental os judeus cospem
neles". Essas são as coisas que tenho ouvido.
- Tudo isso é besteira! - explodiu Kendrick. - Além do fato de que há outro lado, igualmente doloroso, nessa moeda de fanatismo, não tem nada a ver com aqueles duzentos e trinta e seis reféns ou com os
onze que já foram executados! Eles não fazem a política, desigual ou de qualquer outro tipo. São seres humanos inocentes, brutalizados e aterrorizados, levados à exaustão por autênticos animais! Como pessoas
responsáveis podem dizer essas coisas? Não são os membros do gabinete do presidente ou os falcões do Knesset que estão lá. São servidores civis, turistas e famílias do pessoal de empreiteiras. Repito...
tudo isso é besteira!
O homem chamado Mustapha estava rígido no sofá, os olhos ainda fixados nos de Evan.
- Eu sei disso e você sabe disso. E eles também sabem, meu amigo.
- Então por quê...?
- Vamos à verdade - continuou o árabe, a voz não mais alta do que antes. - Dois incidentes criaram um terrível consenso, se posso usar a palavra de maneira um pouco diferente agora... O motivo para que
essas coisas sejam ditas é que nenhum de nós quer transformar a própria carne em alvo.
- Alvo? Sua... carne?
- Dois homens, um chamarei de Mahmoud, o outro de Abdul... Não são seus verdadeiros nomes, é claro, pois é melhor que você não os conheça. A filha de Mahmoud... estuprada, o rosto retalhado. O filho de
Abdul, a garganta cortada numa viela, perto do escritório do pai nas docas. "Criminosos, estupradores, assassinos!", proclamaram as autoridades. Mas todos sabemos o que foi. Abdul e Mahmoud tentaram organizar
uma oposição. "Às armas!", eles clamaram. "Vamos atacar a embaixada", insistiram. "Não podemos permitir que Mascate vire outra Teerã!"... Mas não foram eles que sofreram. Foram os que lhes eram mais chegados,
seus bens mais preciosos... Foram avisos, Evan. Perdoe-me, mas se tivesse esposa e filho estaria disposto a sujeitá-los a tais riscos? Acho que não. As joias mais preciosas não são feitas de pedras, mas
de carne. Nossas famílias. Um verdadeiro herói supera o medo e arrisca a vida pelo que acredita, mas hesita quando o preço é a vida daqueles a quem ama. Não concorda, velho amigo?
- Santo Deus! - murmurou Evan. - Vocês não vão ajudar... não podem!
- Mas há alguém que o receberá e ouvirá o que tem a dizer. Só que o encontro deve ser realizado com extraordinária cautela, a quilômetros daqui, no deserto, perto das montanhas de Jabal Sham.
- E quem é?
- O sultão.
Kendrick ficou calado. Olhou para seu copo. Depois de um longo momento, levantou os olhos para Mustapha e disse:
- Não tenho qualquer vínculo oficial e um encontro com o sultão é bastante oficial. Não falo por meu governo e isso deve ficar bem claro.
- Está querendo dizer que não deseja se encontrar com o sultão?
- Ao contrário, quero e muito. Apenas devo deixar a minha posição bem clara. Não tenho qualquer ligação com a comunidade de informações, o Departamento de Estado ou a Casa Branca... Absolutamente nada
com a Casa Branca.
- Creio que não pode haver a menor dúvida quanto a isso; está confirmado por sua túnica e a cor da pele. E o sultão não quer nenhuma ligação oficial com você, como não quer Washington.
- Estou um pouco desatualizado - comentou Evan, bebendo. - O velho morreu mais ou menos um ano depois que fui embora, não é mesmo? Não acompanhei os acontecimento por aqui... talvez uma aversão natural.
- Perfeitamente compreensível. Nosso atual sultão é o filho dele; está mais próximo da sua idade do que da minha, até mais jovem que você. Depois da escola na Inglaterra, completou os estudos em seu país.
Dartmouth e Harvard, para ser mais exato.
- Seu nome é Ahmat - interveio Kendrick, lembrando. - Encontrei-o algumas vezes. - Ele franziu o rosto e depois acrescentou: - Economia e relações internacionais.
- Como?
- Foram os cursos que ele fez. Inclusive em pós-graduação.
- Ele é instruído e inteligente, mas jovem. Muito jovem para as tarefas que tem pela frente.
- Quando posso encontrá-lo?
- Esta noite. Antes que outros saibam de sua presença aqui. - Mustapha olhou para o relógio. - Saia do hotel dentro de trinta minutos e ande quatro quarteirões para o norte. Um veículo militar estará esperando
na esquina. Embarque e será levado às areias de Jabal Sham.
O árabe magro no aba imundo estava encolhido nas sombras da fachada de uma loja às escuras no outro lado da rua, em frente ao hotel. Permanecia em silêncio ao lado da mulher chamada Khalehla, agora vestindo
um costume preto, do tipo apreciado pelas executivas. Segurava meio sem jeito sua pequena câmara, à qual fora ajustada uma nova lente. Subitamente soaram dois bipes rápidos e estridentes na frente da loja.
- Depressa - murmurou o árabe. - Ele está a caminho. Já chegou ao saguão.
- O mais depressa que puder - respondeu a mulher, praguejando baixinho, enquanto ajeitava a lente. - Peço bem pouco aos meus superiores, mas um equipamento decente e que funcione direito é um deles...
Pronto. Podemos começar.
- Lá vem ele!
Khalehla levantou a câmera com a lente de teleobjetiva infravermelha para fotografias noturnas. Tirou rapidamente três fotos de Evan Kendrick de túnica.
- Fico imaginando por quanto tempo deixarão que ele continue a viver - ela comentou. - Tenho de arrumar um telefone.
Segurança Ultramáxima
Não Há Intercepções
Prossiga
E o diário foi continuado:
As informações que chegam de Mascate são espantosas. O alvo transformou-se num omanita completo, com trajes árabes e pele escura. Circula pela cidade como um nativo, aparentemente se encontrando com velhos
amigos e contatos de sua vida anterior. As informações, no entanto, são também vagas, já que a sombra do alvo envia tudo através de Langley e até agora ainda não consegui invadir os códigos de acesso da
CIA para as nações do Golfo. Quem sabe o que Langley esconde? Dei instruções a meus aparelhos para se empenharem com mais afinco. O Departamento de Estado, sem dúvida, é muito fácil. E por que não?
4
O vasto e árido deserto parecia interminável na noite, o luar esporádico delineando as montanhas de Jabal Sham a distância... uma fronteira inacessível e ameaçadora, assomando muito alta no horizonte escuro.
Por toda parte a superfície plana parecia uma mistura ressequida de terra e areia, a planície sem vento desprovida daquelas colinas estufadas e impermanentes, as dunas que sempre se associa às imagens
do grande Saara. A estrada sinuosa de terra batida era razoável; o sedã militar marrom sacolejava e derrapava nas curvas arenosas, a caminho do ponto de encontro real. Kendrick, seguindo as instruções,
sentava-se ao lado do motorista armado e uniformizado; no banco de trás estava um segundo homem, também armado, um oficial. A segurança começara no instante em que recolheram Evan; ele hesitou por um momento
e foi prontamente flanqueado. Além das saudações polidas, nenhum dos dois homens falara qualquer coisa.
- Esta região é um deserto - comentou Kendrick, em árabe. - Por que há tantas curvas?
- Há muitas estradas secundárias, senhor - respondeu o oficial do banco traseiro. - Uma pista reta nestas areias seria uma definição muito clara.
Segurança real, pensou Evan, sem fazer qualquer outro comentário.
Entraram numa "estrada secundária" depois de 25 minutos de viagem para oeste, a toda velocidade. Vários quilômetros adiante, à direita, surgiu o clarão de uma fogueira de acampamento. Ao se aproximarem,
Kendrick avistou um pelotão de guardas uniformizados em torno da fogueira, virados para fora, cobrindo todos os pontos cardeais; as silhuetas escuras de dois caminhões militares se destacavam ao longe.
O carro parou; o oficial saltou e abriu a porta para o americano.
- Queira acompanhar-me, senhor - disse ele, em inglês.
- Pois não.
Evan tentou reconhecer o jovem sultão à luz da fogueira. Não havia sinal dele, nem de qualquer pessoa que não estivesse de uniforme. Tentou recordar o rosto do rapaz-homem que conhecera há mais de quatro
anos, o estudante que voltara a Oman durante os feriados do Natal ou nas férias da primavera, mas lembrou apenas que o filho do sultão era um jovem cordial, tão conhecedor quanto entusiasmado dos esportes
americanos. Mas isso foi tudo: nenhum rosto aflorou em sua memória, apenas o nome, Ahmat, que Mustapha confirmara. Três soldados à sua frente abriram passagem; Evan e o oficial entraram no círculo protetor.
- Pode me dar sua permissão, senhor? - indagou um segundo oficial, parando subitamente diante de Kendrick.
- É usual, nas circunstâncias, revistar todos os visitantes.
- Claro.
O oficial revistou os trajes de maneira rápida e eficiente; levantou a manga direita além da área em que Evan espalhara a geleia para escurecer a pele. Vendo a pele branca, largou a manga e fitou Kendrick
nos olhos.
- Tem documentos, ya Shaikh?
- Sem documentos. Sem identificação.
- Entendo... também não está armado.
- Claro que não.
- Isso lhe cabe alegar e a nós determinar, senhor. - O oficial tirou do cinto um artefato preto e fino, não maior que um maço de cigarros. Apertou o que parecia ser um botão vermelho ou laranja. - Espere
aqui, por favor.
- Não vou a lugar nenhum - respondeu Evan, olhando para os guardas com os rifles levantados.
- Tem razão, não vai mesmo, ya Shaikh - concordou o oficial, recuando na direção da fogueira.
Kendrick virou-se para o oficial que falava inglês e o acompanhara na viagem desde Mascate.
- Eles não correm nenhum risco, não é mesmo?
- É a vontade de Alá Todo-poderoso, senhor. O sultão é nossa luz, nosso sol. E o senhor é um Aurobbi, um branco. Não protegeria sua linhagem para o paraíso?
- Se eu achasse que poderia garantir meu ingresso, claro que sim.
- Ele é um bom homem, ya Shaikh. Talvez um pouco jovem, mas sábio em muitas coisas. É o que já descobrimos.
- Quer dizer que ele está vindo para cá?
- Já chegou, senhor.
O zumbido suave de uma potente limusine cobriu o crepitar da fogueira. O veículo com as janelas escuras derrapou na frente do círculo de guardas e parou abruptamente. Antes que o motorista pudesse sair,
a porta traseira foi aberta e o sultão saltou. Usava os trajes do cargo real, mas pôs-se a tirá-los com a porta ainda aberta, jogando o aba no carro e deixando o ghotra na cabeça. Passou pelo círculo da
Guarda Real, um homem esguio e musculoso, estatura mediana, ombros largos. Exceto pelo ghotra, as roupas eram ocidentais. A calça era de gabardine bege e usava uma T-shirt, com a caricatura de um jogador
de futebol americano sob o tricórnio do revolucionário americano. Uma legenda por baixo dizia: New England Patriots.
- Faz muito tempo, Evan Kendrick, ya Shaikh - disse o jovem, com um sotaque ligeiramente britânico, sorrindo e estendendo a mão. - Gosto do seu traje, mas não é exatamente Brooks Brothers, não acha?
- E o seu também não é, a menos que Brooks Brothers tenham aderido às T-shirts. - Trocaram um aperto de mão. Kendrick pôde sentir a força do sultão. - Obrigado por me receber, Ahmat... Perdoe-me... eu
deveria dizer Sua Alteza Real. Minhas desculpas.
- Você me conheceu como Ahmat e eu o conheci como Shaikh, senhor. Devo continuar a chamá-lo de "senhor"?
- Creio que seria muito impróprio.
- Ótimo. Estamos nos entendendo.
- Parece diferente do que me lembro.
- Fui obrigado a crescer depressa... não por opção. De estudante a mestre, sem as qualificações devidas, infelizmente.
- É respeitado, pelo que já ouvi.
- Respeitam o cargo, não o homem. Devo aprender a ocupá-lo. Vamos conversar... longe daqui.
Ahmat, o sultão, pegou Evan pelo braço e começou a atravessar o círculo de guardas. Foi detido pelo oficial que revistara Kendrick.
- Sua segurança é a nossa vida, Alteza! Permaneça dentro do círculo, por favor.
- E ser um alvo à luz da fogueira?
- Nós o cercamos, senhor, e os homens se manterão em constante movimento. O terreno é plano.
- Em vez disso, apontem suas armas além das sombras, ya sahbee - disse Ahmat, chamando o oficial de seu amigo. - Estaremos a poucos metros de distância.
- Com a dor em nossos corações, Alteza.
- Vai passar. - Ahmat levou Kendrick além do círculo de guardas. - Meus compatriotas são um tanto propensos ao melodramático trivial.
- Não é tão trivial assim, se estão dispostos a formar um círculo em movimento e receber uma bala que lhe seria destinada.
- Não há nada de especial nisso, Evan, e para ser franco não conheço todos os homens naqueles corpos. E o que talvez tenhamos de dizer pode ser apenas para nossos ouvidos.
- Eu não podia imaginar... - Kendrick olhou para o jovem sultão de Oman, enquanto se afastavam pela escuridão. - Seus próprios guardas?
- Qualquer coisa é possível durante esta loucura. Pode-se estudar os olhos de um soldado profissional, mas não se consegue perceber os ressentimentos ou tentações por trás. Pronto, aqui já é suficiente.
Eles pararam na areia.
- A loucura - repetiu Evan, incisivo, à luz fraca da fogueira e ao luar intermitente. - Vamos falar a respeito.
- É por isso que está aqui, é claro.
- Tem razão, é por isso que estou aqui.
- E o que quer que eu faça? - indagou Ahmat, num sussurro áspero. - Qualquer movimento da minha parte e outro refém pode ser fuzilado, mais um corpo crivado de balas jogado por uma janela! - O jovem sultão
sacudiu a cabeça. - Sei que você e meu pai trabalhavam muito bem juntos... e nós dois até discutimos uns poucos projetos, em alguns jantares. Mas não espero que se lembre.
- Claro que me lembro - garantiu Kendrick. - Você veio de Harvard, no segundo ano do curso de pós-graduação, se não me engano. Sempre estava à esquerda de seu pai, a posição do herdeiro.
- Muito obrigado, Evan. Eu poderia ter arrumado um emprego excelente com E. F. Hutton.
- Tem um excelente emprego aqui.
- Sei disso - declarou Ahmat, a voz sussurrada tornando a se altear. - E é o motivo pelo qual tenho de fazer tudo direito. Não posso chamar o exército da fronteira iemenita e tomar a embaixada pela força...
e no processo garantir a morte de duzentos e trinta e seis americanos. Posso ver as manchetes dos jornais americanos: "Sultão Árabe Mata" e assim por diante. Árabe! O Knesset em Jerusalém teria um dia
cheio! Não há a menor possibilidade, companheiro. Não sou um caubói com o dedo coçando o gatilho, que arrisca vidas inocentes e na confusão acaba sendo rotulado por sua imprensa como antissemita. Por Cristo!
Washington e Israel parecem esquecer que somos todos semitas, que nem todos os árabes são palestinos e que nem todos os palestinos são terroristas! E não vou dar àqueles israelenses filhos da puta, intrometidos
e arrogantes, qualquer motivo para enviar seus F-14s americanos para matar mais árabes, tão inocentes quanto os seus reféns! Está me entendendo, Evan Shaikh?
- Entendi perfeitamente. E agora pode se acalmar e me ouvir?
O jovem e agitado sultão suspirou alto, balançando a cabeça.
- Claro que vou ouvir, mas ouvir não significa concordar.
- Está bem. - Evan fez uma pausa, querendo ser compreendido, apesar da informação estranha e obscura que estava prestes a transmitir. - Já ouviu falar do Mahdi?
- Khartum, década de 1880.
- Não. Bahrain, década de 1980.
- O quê?
Kendrick repetiu a história que contara a Frank Swann, no Departamento de Estado. A história de um financista desconhecido e obcecado que se intitulava Mahdi e cujo objetivo era expulsar os ocidentais
do Oriente Médio e do sudoeste da Ásia, mantendo a imensa riqueza da expansão industrial árabe em mãos árabes... mais especificamente, em suas mãos. Como esse mesmo homem, que espalhara seu evangelho de
pureza islâmica por todas as hordas de fanáticos, formara uma rede, um cartel silencioso de dezenas, talvez centenas, de companhias e corporações, todas ligadas sob o guarda-chuva de sua própria organização
secreta. Evan descreveu como seu velho arquiteto israelense, Emmanuel Weingrass, percebera os contornos dessa extraordinária conspiração econômica, inicialmente pelas ameaças contra o Grupo Kendrick -
as quais ele conjurara com suas próprias ameaças afrontosas de retaliação - e todo o resto que Manny descobrira, cada vez mais se convencendo de que a conspiração era verdadeira e crescente, e tinha de
ser denunciada.
- Recordando agora, não me sinto orgulhoso do que fiz - continuou Evan, à luz fraca da fogueira e da lua do deserto. - Mas racionalizei tudo em decorrência do que aconteceu. Tinha de sair de qualquer maneira
desta parte do mundo e por isso larguei meu negócio, abandonei a luta. Manny insistiu que devíamos partir para uma confrontação. Respondi que a imaginação dele estava exagerando, que estava concedendo
muita credibilidade a idiotas irresponsáveis... e muitas vezes bêbados. Lembro nitidamente o que ele me disse: "Minha imaginação mais delirante, e ainda menos a deles, poderia inventar um Mahdi? Foram
aqueles assassinos que provocaram o nosso suposto acidente, foi ele!" Manny estava certo na ocasião e está certo agora. A embaixada é atacada, lunáticos homicidas matam inocentes e aí está o supremo ultimato.
"Fique a distância, ocidental. Se vier para cá, mais um cadáver será lançado por uma janela". Será que não percebe, Ahmat? Há um Mahdi e ele está sistematicamente pressionando todo mundo através de puro
terror e manipulação.
- Posso ver que está mesmo convencido - respondeu o jovem sultão, cético.
- O que também acontece com outros aqui em Mascate. Eles apenas não compreendem. Não podem encontrar um padrão ou uma explicação, mas estão assustados, a tal ponto que recusaram encontrar-se comigo, um
velho amigo de muitos anos, um homem com quem trabalharam e em quem confiaram.
- O terror gera a ansiedade. O que esperava? E há mais uma coisa: você é um americano disfarçado de árabe. Basta isso para assustá-los.
- Eles não sabiam o que eu estava vestindo ou como parecia. Era apenas, uma voz ao telefone.
- Uma voz americana. Ainda mais assustador.
- Um ocidental?
- Há muitos ocidentais aqui. Mas o governo dos Estados Unidos, compreensivelmente, ordenou que todos os americanos saíssem e proibiu todos os voos comerciais americanos para cá. Seus amigos se perguntam
como você chegou aqui. E por quê. Com tantos lunáticos vagando pelas ruas, talvez eles, muito compreensivelmente, prefiram não se envolver na crise da embaixada.
- É isso mesmo. Porque já houve mortes... de filhos de homens que queriam se envolver.
Ahmat ficou rígido, os olhos escuros aturdidos, novamente furioso.
- Tem ocorrido crimes, é verdade, e a polícia faz o que pode, mas eu nada soube a respeito... de filhos que foram mortos.
- É a pura verdade. Uma filha foi estuprada, o rosto desfigurado; um filho foi morto, cortaram-lhe a garganta.
- Maldito seja, se está mentindo! Posso estar impotente em relação à embaixada, mas não ao que acontece fora! Quem foram eles? Dê-me os nomes!
- Nenhum me foi dado, não os reais. Não quiseram me informar.
- Mas Mustapha deve saber. Ninguém mais poderia ter lhe contado essa história.
- Tem razão.
- Pode apostar que ele me dirá os nomes verdadeiros.
- Percebe tudo agora, não é mesmo? - Kendrick estava quase suplicando. - O padrão está aí, Ahmat. Uma rede clandestina está sendo formada. Esse Mahdi e sua gente estão usando terroristas para expulsar
toda concorrência atual e potencial. Querem o controle absoluto; querem que todo o dinheiro seja canalizado para eles.
O jovem sultão protelou a resposta e acabou sacudindo a cabeça.
- Lamento, Evan, mas não posso aceitar isso; eles não se atreveriam a tentar.
- Por que não?
- Porque os computadores apontariam um padrão de pagamentos a um núcleo central dessa rede. Como acha que Cornfeld e Vesco foram apanhados? Em algum lugar tem de haver uma ligação, uma convergência.
- Você está muito à minha frente.
- Porque você está atrás em análises de computador - respondeu Ahmat. - Pode-se ter cem mil dispersões para vinte mil projetos diferentes. Antes levaria meses, até mesmo anos, para descobrir os vínculos
ocultos entre quinhentas corporações, falsas ou autênticas, mas agora os discos de computadores revelam tudo em uma ou duas horas.
- Muito esclarecedor - comentou Kendrick -, mas está esquecendo uma coisa.
- O quê?
- A descoberta dessas ligações ocorreria depois do fato consumado, depois que todas essas "dispersões" fossem efetuadas. A esta altura, a rede já estaria instalada e a raposa teria uma porção de galinhas.
Se me permite mais algumas metáforas mistas, não muitas pessoas estariam interessadas em montar armadilhas ou lançar seus cães na caçada, diante das circunstâncias. Quem poderia se importar? Os trens correm
no horário e ninguém os está explodindo. Claro que há agora um novo tipo de governo, com suas próprias regras... e se você e seus ministros por acaso não gostarem, podem ser substituídos. Mas, outra vez,
quem se importa? O sol nasce todas as manhãs e as pessoas têm de sair para seus empregos.
- Do jeito como fala, parece até atraente.
- E sempre é, no começo. Mussolini fez os trens correrem no horário e o Terceiro Reich sem dúvida revitalizou a indústria.
- Estou entendendo o que quer dizer, só que alega que o inverso acontece aqui. Um monopólio industrial pode ocupar um vazio e assumir meu governo, porque representa estabilidade e crescimento.
- O sultão acertou em cheio - concordou Evan. - E ganha outra joia para seu harém.
- Diga isso à minha esposa. Ela é uma presbiteriana de New Bedford, Massachusetts.
- Como conseguiu escapar impune com isso?
- Meu pai morreu e ela tem muito senso de humor.
- Não entendi.
- Deixemos esse ponto para outra ocasião. Vamos supor que você esteja certo e que a atual situação seja um balão de ensaio, destinado a verificar para onde sopram os ventos. Washington quer que continuemos
a conversar enquanto vocês formulam um plano que obviamente combina alguma espécie de penetração, seguida por uma Força Delta. Mas devemos ser realistas: a América e seus aliados esperam por uma abertura
diplomática, pois qualquer estratégia baseada na força poderia ser desastrosa. Fizeram contato com todos os líderes de fanáticos do Oriente Médio e estão dispostos a negociar com qualquer um; apesar das
declarações em contrário, fariam todas as concessões, menos nomear Arafat prefeito de Nova York. Qual é a sua ideia?
- A mesma que a sua quando diz que os computadores poderiam descobrir tudo dentro de dois anos, quando já seria tarde demais. Investigar a origem do que está sendo enviado para a embaixada. Não os alimentos
ou suprimentos médicos, mas armas e munições... e no meio disso as instruções que alguém está mandando. Em outras palavras, encontrar esse manipulador que se intitula Mahdi e eliminá-lo.
À luz bruxuleante da fogueira, o sultão de T-shirt fitou Evan com uma expressão pensativa.
- Já deve saber que boa parte da imprensa ocidental tem especulado que eu estou por trás da crise. Que sinto um profundo ressentimento contra a influência ocidental que se espalha pelo país. "Se não fosse
por isso", indagam os jornalistas, "por que ele não faz alguma coisa?"
- Sei disso, mas também acho, como o Departamento de Estado, que é um absurdo. Ninguém com meio cérebro poderia dar crédito a tais especulações.
- Seu Departamento de Estado... - murmurou Ahmat, pensativo, sem desviar os olhos de Kendrick. - Eles me procuraram em 1979, quando Teerã explodiu. Na ocasião eu era um estudante e não sei o que aqueles
caras esperavam encontrar; mas o que quer que fosse, não era alguém como eu. Provavelmente algum beduíno num aba comprido, sentado de pernas cruzadas e fumando um cachimbo de haxixe. Se eu estivesse vestido
a caráter, talvez me levassem a sério.
- Mais uma vez, não estou entendendo.
- Oh, desculpe... Depois de compreenderem que nem meu pai nem a família podiam fazer qualquer coisa, que não tínhamos ligações com os movimentos fundamentalistas, eles ficaram exasperados. Um dos homens
quase suplicou, dizendo que eu parecia ser um árabe razoável... significando que meu inglês era fluente, embora maculado por um sotaque britânico... querendo saber o que eu faria se estivesse dirigindo
as coisas em Washington. Ou seja, que conselhos daria, se meus conselhos fossem pedidos... E eu estava absolutamente certo!
- Mas o que disse a eles?
- Lembro com exatidão. Eu disse: "O que deveriam ter feito, deviam fazer logo no começo. Talvez seja um pouco tarde agora, mas ainda podem tentar." Recomendei que reunissem a mais eficiente força insurgente
que pudessem organizar e a mandassem não para Teerã, mas para Qum, o quartel-general de Khomeini no norte. Os ex-agentes da antiga SAVAK iriam na frente; aqueles miseráveis encontrariam uma maneira de
fazer o que fosse necessário, se o poder de fogo e as compensações fossem garantidos. "Peguem Khomeini em Qum", eu falei. "Peguem todos os mulás analfabetos que o cercam e tirem-nos de lá vivos, depois
os exibam na televisão mundial". Ele seria o supremo trunfo para uma negociação e aqueles fanáticos barbudos que constituem sua corte serviriam para mostrar como todos são ridículos. E seria possível então
chegar a um acordo.
Evan estudou o irado jovem por um momento e depois indagou, suavemente:
- Poderia dar certo, mas o que aconteceria se Khomeini decidisse resistir como um mártir?
- Ele jamais faria isso, tenho certeza. Aceitaria um acordo; haveria concessões, oferecidas por outros, mas determinadas por ele. Khomeini não tem o menor desejo de seguir tão depressa para o paraíso que
tanto louva nem de optar pelo martírio para o qual costuma mandar garotos de doze anos ao longo de campos minados.
- Por que está tão certo assim? - indagou Kendrick, que não se sentia seguro.
- Conheci esse imbecil em Paris... e não estou querendo justificar Pahlevi, a SAVAK ou seus parentes saqueadores, jamais poderia fazer isso... mas Khomeini não passa de um fanático senil que quer acreditar
na própria imortalidade e fará qualquer coisa para promovê-la. Ouvi-o dizer a um grupo de idiotas aduladores que em vez de dois ou três filhos ele tinha vinte ou trinta, talvez mesmo quarenta. "Espalhei
minha semente e continuarei a espalhá-la", ele proclamou. "É a vontade de Alá que minha semente se espalhe muito". É demais! Ele é apenas um velho babão e nojento, um caso clássico de hospício. Pode imaginar
uma coisa assim? Povoar este mundo doente com pequenos aiatolás? Eu disse ao seu pessoal que depois que o pegassem deveriam expô-lo em videoteipe, com a guarda arriada, fazendo um sermão para seus sumos-sacerdotes...
usando um desses espelhos que permitem a visão do outro lado. Sua sagrada pessoa ruiria numa onda global de riso.
- Está fazendo uma espécie de paralelo entre Khomeini e esse Mahdi que descrevi, não é mesmo?
- Não sei... acho que sim, se o seu Mahdi existe, o que duvido. Mas se você está certo e ele existe, então vem do polo oposto, um polo pragmático, sem nada de religioso. Mesmo assim, qualquer um que acha
que tem de espalhar o espectro do Mahdi nos dias de hoje tem alguns perigosos parafusos soltos... Ainda não estou convencido, Evan, mas você é persuasivo e farei tudo o que puder para ajudá-lo, ajudar
a todos nós. Mas tem de ser a distância, uma distância insondável. Darei um telefone para você ligar; é secreto... mais do que isso, inexistente... e apenas duas outras pessoas conhecem o número. Poderá
fazer contato comigo, mas apenas comigo. Deve compreender, Shaikh Kendrick, não posso deixar transparecer que o conheço.
- Sou bastante popular. Washington também não quer me conhecer.
- Claro que não. Ninguém quer ter nas mãos o sangue de reféns americanos.
- Precisarei de documentos pessoais e provavelmente de listas de transportadores por ar e mar de áreas que indicarei.
- Tudo falado, nada por escrito, exceto os documentos pessoais. Um nome e um endereço lhe serão fornecidos; pegue os documentos com esse homem.
- Obrigado. De passagem, o Departamento de Estado disse a mesma coisa. Nada do que eles me deram podia ser por escrito.
- Pelos mesmos motivos.
- Não precisa se preocupar. Tudo coincide com o que estou planejando. Deve compreender, Ahmat, que eu também não quero conhecê-lo.
- É mesmo?
- Foi esse o acordo que fiz com o Departamento de Estado. Sou uma não pessoa em seus arquivos e quero permanecer assim para você.
O jovem sultão franziu o rosto, pensativo, seus olhos se encontraram com os de Evan.
- Aceito o que diz, mas não posso fingir que compreendo. Se perder a vida, tudo bem, mas se obtiver algum sucesso a situação será muito diferente. Por quê? Fui informado que agora é um político. Um deputado.
- Pois vou deixar a política e voltar para cá, Ahmat. Pretendo recolher todos os pedaços da minha vida e retornar aonde melhor trabalhei, mas não quero trazer qualquer excesso de bagagem que possa me transformar
num alvo. Ou fazer com que qualquer pessoa a meu lado se torne um alvo.
- Muito bem, aceito isso e agradeço pelos dois lados. Meu pai sempre afirmou que você e seu pessoal foram os melhores. Lembro que ele me disse certa ocasião: "Aqueles camelos retardados nunca cobraram
um preço excessivo." Claro que ele falou isso num sentido generoso.
- E também é claro que geralmente nós conseguíamos o projeto seguinte... o que significa que não éramos tão retardados, concorda? Nossa ideia era trabalhar com margens de lucro razoáveis e sempre tivemos
o maior cuidado no controle de custos... Ahmat, só nos restam quatro dias antes que as execuções recomecem. Eu precisava saber se poderia recorrer a você caso precisasse de ajuda e agora já sei. Aceito
suas condições e você aceita as minhas. E, agora, por favor, não posso perder mais um momento sequer. Qual é o telefone pelo qual posso alcançá-lo?
- Não deve ser escrito.
- Entendido.
O sultão forneceu o número a Kendrick. Em vez do prefixo usual de Mascate, 745, era 555, seguido por três zeros e um quarto cinco.
- Pode se lembrar?
- Não é difícil - respondeu Kendrick. - Passa por uma mesa no palácio?
- Não. É uma linha direta para dois telefones, ambos trancados em gavetas de aço, um no meu escritório, o outro no quarto. Em vez de uma campainha tocar, pequenas luzes vermelhas se acendem; no escritório,
a luz é embutida na perna traseira direita da minha escrivaninha, enquanto no quarto fica na mesinha de cabeceira. Os dois aparelhos se transformam em máquinas automáticas depois do décimo toque.
- Por que tanto tempo?
- A fim de que eu possa me livrar das pessoas que por acaso estejam presentes e conversar particularmente. Quando estou fora do palácio, sempre levo um bipe que me informa quando o telefone tocou. Num
momento oportuno, uso o controle remoto e ouço a mensagem... usando um scrambler para gerar ruídos e impedir que a conversa seja interceptada mesmo se alguém grampear.
- Mencionou que apenas duas outras pessoas tinham esse número. Devo saber quem são ou não é da minha conta?
- Não tem importância - respondeu Ahmat, os olhos castanho-escuros fixados no americano. - O ministro da Segurança e minha esposa.
- Obrigado pela confiança.
O olhar ainda fixado em Kendrick, o jovem sultão continuou:
- Uma coisa terrível lhe aconteceu aqui, em nossa parte do mundo, Evan. Tantos mortos, tantos amigos íntimos, uma tragédia lamentável, sem o menor sentido, ainda maior pela ganância que havia por trás.
E tenho de lhe perguntar uma coisa. Esta loucura que ocorre agora em Mascate ressuscitou lembranças dolorosas, levando-o a se iludir, a procurar por teorias implausíveis, apenas para riscar os fantasmas?
- Não são fantasmas, Ahmat. E espero poder prová-lo.
- Talvez consiga... se viver.
- Repito o que declarei ao Departamento de Estado. Não tenho a menor intenção de desfechar um ataque de um homem só à embaixada.
- Se fizesse algo assim, talvez fosse considerado bastante louco para ser poupado. Os loucos reconhecem os seus.
- Agora é você quem está sendo implausível.
- Sem dúvida - concordou o sultão de Oman, os olhos ainda fixados no político do Colorado. - Já pensou no que pode acontecer, não se for descoberto e capturado pelos terroristas - não viveria tempo suficiente
para especular -, mas se as próprias pessoas com quem deseja se encontrar quiserem saber o propósito de sua presença aqui? O que lhes diria?
- Essencialmente a verdade... ou tão próximo quanto possível. Estou agindo por conta própria, sem qualquer ligação com o governo do meu país, o que pode ser comprovado. Ganhei muito dinheiro aqui e estou
de volta. Se puder ajudar de alguma forma, será em defesa dos meus próprios interesses.
- Ou seja, seu objetivo é o proveito pessoal. Tenciona voltar e será infinitamente mais lucrativo para você se for possível acabar com essa matança insana. Por outro lado, se não for possível, não terá
um negócio para o qual voltar. Tome cuidado, Evan. Poucas pessoas acreditarão em você, e se o medo entre seus amigos for tão intenso quanto me disse, é bem capaz de não ser o inimigo que tentará matá-lo.
- Já fui avisado sobre isso.
- Por quem?
- Por um homem num caminhão, um sahbee que me ajudou.
Kendrick estava estendido na cama, os olhos abertos, os pensamentos em turbilhão, deslocando-se de uma possibilidade para outra, de um nome vagamente lembrado para outro, um rosto, outro rosto, um escritório,
uma rua... o porto, o cais. Sempre voltava às docas - do sul de Mascate a Al Qurayyat e Ra’s al Hadd. Por quê?
Depois a memória despertou e Evan compreendeu o motivo. Quantas vezes ele e Manny Weingrass haviam providenciado para que equipamentos fossem trazidos em espaço excedente comprado em cargueiros de Bahrain
e dos emirados ao norte? Tantas que eram incontáveis. Aquele trecho de 150 quilômetros de costa ao sul de Mascate e seu porto-irmão de Matrah eram território aberto, ainda mais que Ra’s al Hadd. Mas de
lá até o curto estreito de Masirah as estradas eram excessivamente primitivas e os viajantes a caminho do interior se arriscavam a ser atacados por haramaya a cavalo... ladrões montados à procura de presas,
geralmente outros ladrões com transporte de contrabando. Apesar de tudo, mesmo levando em consideração a quantidade e excelência dos esforços combinados dos serviços de informações de pelo menos seis países
ocidentais concentrados em Mascate, a costa meridional de Oman era uma área lógica para se investigar intensamente. Isso não significava que os americanos, britânicos, franceses, italianos, alemães ocidentais
e quem mais estivesse cooperando no empenho de analisar e resolver a crise dos reféns em Mascate tivessem ignorado aquele trecho do litoral de Oman, mas a realidade é que havia bem poucos barcos de patrulha
americanos no Golfo, disponíveis para tal missão. Os outros que ali se encontravam não se afastariam de seus deveres, mas não possuíam aquela fúria especial que domina os homens no calor da busca, quando
sabem que seus compatriotas estão sendo massacrados. Podia até haver alguma relutância em enfrentar terroristas, por medo de serem responsabilizados por novas execuções de inocentes... que não eram os
seus. A costa meridional de Oman bem merecia um exame mais atento.
O som irrompeu tão bruscamente quanto o de uma sirene, sacudindo o ar quente e seco do quarto do hotel. O telefone tocava; Evan atendeu.
- Alô?
- Saia do hotel - disse uma voz baixa e tensa.
- Ahmat?
Evan impeliu as pernas e pôs os pés no chão, sentando na cama.
- Exato. Estamos protegidos pelo scrambler. Mesmo que o seu telefone esteja grampeado, só ouvirão minha voz como uma algaravia incompreensível.
- Acabei de dizer seu nome.
- Há milhares de pessoa com esse nome.
- O que aconteceu?
- Mustapha. Por causa dos filhos de que você falou, liguei para ele e ordenei que viesse imediatamente ao palácio. Infelizmente, dominado pela ira, mencionei minhas preocupações. Ele deve ter ligado para
alguém, disse alguma coisa antes de me procurar.
- Por que pensa assim?
- A caminho daqui, ele foi metralhado no seu carro.
- Oh, Deus!
- Se estou enganado, o único outro motivo para matá-lo era o encontro com você.
- Oh, não...
- Saia do hotel agora mesmo, mas não deixe qualquer identificação. Pode ser perigoso. Encontrará dois policiais; eles o acompanharão e protegerão... e em algum lugar na rua, um deles informará o nome do
homem que vai lhe fornecer os documentos de identidade.
- Já estou de saída - disse Kendrick, levantando-se, concentrando a mente em recolher itens como o passaporte, o cinturão com dinheiro, as passagens de avião e quaisquer outras coisas que pudessem ser
ligadas a um americano procedente de Riad.
- Evan Shaikh... - A voz de Ahmat soava baixa mas firme. - Estou convencido agora. O Mahdi existe. Os homens dele existem. Trate de encontrá-los. Descubra quem é o Mahdi.
5
- Hasib!
O aviso veio de trás, o grito de cuidado! Evan tentou virar-se, apenas para ser comprimido contra a parede de um prédio na rua estreita e apinhada, por um dos dois policiais que o acompanhavam. O rosto
contra a pedra, o ghotra protegendo a carne, ele voltou a cabeça para avistar dois jovens barbudos e desgrenhados, em uniformes paramilitares, avançando pelo bazar, brandindo pesadas e ameaçadoras armas
de repetição pretas, derrubando estandes de mercadores e esfregando as botas sujas nos tapetes de vendedores acocorados.
- Tudo bem, senhor! - sussurrou o policial em inglês, a voz áspera e irada, mas também um pouco exultante. - Eles não nos viram!
- Não estou entendendo.
Os jovens e arrogantes terroristas se aproximavam.
- Continue encostado na parede! - ordenou o árabe, empurrando Kendrick de volta às sombras, protegendo o corpo do americano com o seu.
- Por que...
Os arruaceiros armados passaram, batendo com os canos de suas armas, ameaçadores, nas pessoas que encontravam.
- Fique quieto, senhor. Eles estão bêbados, pelo álcool proibido ou pelo sangue que derramaram. Mas, louvado seja Alá, estão fora da embaixada.
- E o que significa isso?
- Nós, de uniforme, não temos permissão para chegar perto da embaixada, mas a situação é diferente quando eles saem de lá. Ficamos com as mãos desatadas.
- E o que acontece?
Adiante, um dos terroristas bateu com a coronha da arma na cabeça de um omanita que parecia ofensivo; seu companheiro apontou o rifle para a multidão, em advertência. O policial respondeu num sussurro,
os olhos contemplando a cena com raiva:
- Ou eles enfrentam a ira do Alá em que cospem ou vão se juntar aos outros porcos imundos e imprudentes! Fique aqui, ya Shaikh, senhor! Fique neste pequeno bazar. Eu voltarei, pois tenho um nome a informar.
- Os outros... Que outros porcos imundos?
As palavras de Evan se perderam; o agente da polícia do sultão afastou-se da parede e foi se juntar ao seu companheiro, agora arremetendo pelo mar sombreado e turbulento de abas. Kendrick puxou o ghotra
em torno do rosto e correu atrás deles.
O que se seguiu foi tão desconcertante e rápido para olhos destreinados quanto o bisturi de um cirurgião mergulhando num órgão com hemorragia. O segundo policial olhou para seu companheiro. Acenaram com
a cabeça um para o outro; ambos se adiantaram, diminuindo a distância que os separava dos dois arrogantes terroristas. Havia uma viela à direita, pouco adiante; como se um sinal silencioso se espalhasse
pelo estreito bazar, a multidão de vendedores e compradores se dispersou em várias direções. Quase no mesmo instante a viela ficou vazia, um túnel escuro e deserto.
As facas dos policiais cravaram-se subitamente na parte superior do braço direito dos dois assassinos. Gritos, abafados pelos murmúrios crescentes da multidão em movimento, as armas foram largadas involuntariamente,
enquanto o sangue esguichava da carne dilacerada, a arrogância se transformava em fraqueza enfurecida, a morte talvez preferível à desgraça, os olhos se esbugalhando em incredulidade.
Os terroristas foram arrastados para um beco escuro pelos homens da polícia de confiança de Ahmat; mãos invisíveis jogaram as duas enormes armas letais atrás deles. Kendrick abriu caminho pelos corpos
à sua frente e correu pelo túnel deserto. Seis ou sete metros além os jovens terroristas, de olhos arregalados, estavam caídos de costas sobre as pedras do calçamento, as facas dos policiais por cima de
suas gargantas.
- La! - gritou o protetor de Evan, dizendo-lhe Não! - Afaste-se! Vire-se!
Uma pausa e ele acrescentou em inglês, com receio de que Kendrick não o compreendesse:
- Esconda o rosto e fique em silêncio!
- Preciso falar com você! - gritou Kendrick, virando-se, mas desobedecendo à segunda ordem. - De qualquer modo, eles provavelmente não falam inglês...
- Provavelmente falam, ya Shaikh, senhor - interveio o outro policial. - O que quer que tenha a dizer, deixe para depois. Como porta-voz, minhas instruções devem ser acatadas sem contestação. Está me entendendo,
senhor?
- Estou.
Evan balançou a cabeça e encaminhou-se apressado para a entrada em arco do bazar.
- Voltarei num instante, ya Shaikh - disse o protetor de Kendrick, pairando sobre o prisioneiro. - Levaremos estes porcos para o outro lado e voltarei a procurá-lo...
As palavras do policial foram interrompidas por um grito veemente e agudo de desafio. Evan virou a cabeça e imediatamente arrependeu-se de tê-lo feito, ao mesmo tempo que se perguntava se a imagem algum
dia sairia de sua cabeça. O terrorista à esquerda se apossara da faca de lâmina comprida do policial e a puxara com força, cortando a própria garganta. A visão revoltou o estômago de Kendrick; ele pensou
que ia vomitar.
- Idiota! - berrou o segundo policial, não tanto de raiva, mas de angústia. - Moleque! Porco! Por que fez isso com você mesmo? Por que fez isso comigo?
O protesto foi em vão; o terrorista estava morto, o sangue cobrindo o rosto jovem e barbudo. De certa forma, pensou Evan, ele acabara de testemunhar um microcosmo da violência, angústia e inutilidade que
era o mundo do Oriente Médio e sudoeste da Ásia.
- Tudo está mudado - disse o primeiro policial, a faca suspensa sobre seu prisioneiro incrédulo e de boca escancarada, tocando no ombro do companheiro.
O segundo sacudiu a cabeça, como se tentasse livrar os olhos e a mente do cadáver jovem e ensanguentado a seus pés, depois balançou a cabeça rapidamente, indicando que compreendia. O primeiro policial
aproximou-se de Kendrick.
- Agora haverá um atraso. O incidente não deve se espalhar pelas outras ruas, e para isso precisamos agir depressa. O homem que procura, o homem que está à sua espera, é conhecido como El-Baz. Vai encontrá-lo
no mercado além da velha fortaleza sul, na enseada. Há uma padaria que vende torta de limão. Pergunte lá.
- A fortaleza sul... na enseada?
- Há duas fortalezas de pedra, construídas pelos portugueses há muitos séculos. Mirani e Jalili...
- Eu me lembro, é claro - interrompeu-o Evan, recuperando parte da sanidade, os olhos evitando o ferimento mortal do corpo mutilado na viela escura. - Dois fortes construídos para proteger o porto dos
piratas. Estão em ruínas agora... uma padaria que vende torta de limão.
- Dê-se pressa, senhor. Vá logo! Corra pelo outro lado. Não pode ser visto aqui por mais tempo. Depressa!
- Primeiro tem de responder à minha pergunta - insistiu Kendrick, irritando o policial por não se afastar. - Ou continuo aqui e poderá responder por isso ao sultão.
- Que pergunta? Vá logo!
- Disse que estes dois podiam se juntar aos "outros porcos imprudentes"... foram suas palavras. Que outros porcos? Onde?
- Não há tempo!
- Responda!
O policial aspirou fundo pelas narinas, tremendo de frustração.
- Está bem. Incidentes como o desta noite já aconteceram antes. Fizemos alguns prisioneiros, que são interrogados por muitas pessoas. Nada deve ser dito...
- Quantos?
- Uns trinta ou quarenta, talvez cinquenta a esta altura. Eles desaparecem da embaixada e outros, sempre outros, tomam o seu lugar.
- Onde?
O policial fitou Kendrick nos olhos e sacudiu a cabeça.
- Não, ya Shaikh, senhor, isso eu não posso revelar. E agora vá embora!
- Eu compreendo. Obrigado.
O deputado americano segurou seu aba e correu para a saída da viela, virando o rosto ao passar pelo terrorista morto, cujo sangue ainda derramado enchia as fendas entre as pedras do calçamento.
Ele saiu para a rua, olhou o céu e determinou sua direção. Para o mar, para as ruínas da antiga fortaleza no lado sul da enseada. Encontraria o homem chamado El-Baz e obteria os documentos necessários,
mas sua mente não se fixava nessa medida. Estava principalmente ocupada pela informação que ouvira poucos momentos antes: Uns trinta ou quarenta, talvez cinquenta a esta altura. Ou seja, entre trinta e
cinquenta terroristas se encontravam detidos em alguma prisão isolada, dentro ou fora da cidade, sendo interrogados com graus diversos de força pelos serviços de informações combinados. Contudo, se sua
teoria era correta, e aqueles carniceiros juvenis fossem apenas a escória maníaca do Islã, manipulada por um magnata do crime financeiro em Bahrain, todas as técnicas de interrogatório, dos faraós à Inquisição
e aos campos de prisioneiros em Hoa Binh, seriam inúteis. A menos que um nome que atiçasse as paixões mais profundas de um fanático fosse apresentado a um prisioneiro, persuadindo-o a denunciar o que normalmente
sacrificaria a própria vida para não revelar. Seria preciso encontrar um fanático muito especial, é verdade, mas era bem possível. Evan dissera a Frank Swann que talvez um em vinte terroristas pudesse
ser bastante inteligente para se ajustar à descrição - um em vinte, mais ou menos dez ou doze em todo o contingente de assassinos que ocupavam a embaixada - se ele estava certo. Poderia ser um dos trinta
a cinquenta prisioneiros na prisão isolada e secreta? As possibilidades eram mínimas, mas umas poucas horas lá dentro, no máximo uma noite, seriam suficientes. Era um tempo que valeria a pena consumir,
se pudesse. Para começar sua caçada, precisava de algumas palavras - um nome, um lugar, um ponto no litoral, um código de acesso que levasse a Bahrain. Alguma coisa! Tinha de entrar na tal prisão naquela
noite. As execuções seriam reiniciadas dentro de três dias, a contar do dia seguinte às dez horas da manhã.
Primeiro, os documentos, a serem obtidos com um homem chamado El-Baz.
As ruínas do velho forte português erguiam-se sinistras para o céu escuro, uma silhueta irregular que indicava a força e determinação de navegantes aventureiros de séculos passados. Evan atravessou rapidamente
a área da cidade conhecida como Harat Waljat, a caminho do mercado de Sabat Aynub, nome traduzido livremente como cesto de uvas, um mercado muito mais estruturado do que um bazar, com lojas bem cuidadas
em torno da praça, a arquitetura surpreendente, pois era uma mistura de antigo árabe, persa, indiano com as mais modernas influências ocidentais. Tudo isso, pensou Kendrick, devia desaparecer um dia, uma
presença omanita seria restaurada, mais uma vez confirmando a impermanência dos conquistadores... Militares, políticos ou terroristas. Eram os últimos que o preocupavam agora. O Mahdi.
Entrou na vasta praça. Um chafariz romano projetava esguichos de água por cima de um laguinho circular e escuro, em cujo centro se encontrava uma estátua, o conceito de algum escultor italiano de um xeque
do deserto, inclinado para a frente numa passada, a túnica esvoaçando, sem ir a parte alguma. Mas as multidões é que atraíram a atenção de Evan. A maior parte era de árabes, mercadores servindo a europeus
ricos e temerários, turistas indiferentes ao caos na embaixada, destacando-se pelas roupas ocidentais e profusão de correntes e pulseiras de ouro, símbolos faiscantes de desafio numa cidade enlouquecida.
Os omanitas, no entanto, pareciam robôs animados, fazendo esforços para se concentrarem no irrelevante, bloqueando os ouvidos ao constante tiroteio na embaixada americana, a menos de um quilômetro de distância.
Por toda parte, seus olhos piscavam e esquadrinhavam incessantemente, testas se franziam em incredulidade e dissociação. O que acontecia em sua pacífica Mascate estava além da compreensão daqueles homens;
não eram parte da loucura, não tinham a menor participação e por isso se empenhavam ao máximo em ignorá-la.
E, subitamente, Evan avistou a placa. Baklava bohrtooan. "Torta de limão", a especialidade da padaria. A loja pequena e marrom, em estilo turco, com uma série de minaretes pintados por cima do vidro na
fachada, espremia-se entre uma joalheria maior e intensamente iluminada e uma butique igualmente elegante especializada em peças de couro, o nome Paris em preto e dourado na vitrine, diante de blocos de
malas e outros acessórios. Kendrick atravessou a praça na diagonal, passou pelo chafariz e aproximou-se da porta da padaria.
- Vocês estavam certos - disse a mulher de cabelos escuros, no costume preto sob medida, emergindo das sombras do Harat Waljat, a câmera em miniatura na mão. Levantou-a e apertou o botão, o mecanismo automático
tirando chapas sucessivas, enquanto Evan Kendrick entrava na padaria no mercado de Sabat Aynub. - Ele foi notado no bazar?
Tornou a guardar a câmera na bolsa e fitou o árabe de túnica, baixo e de meia-idade, parado um pouco atrás, numa atitude cautelosa.
- Falou-se num homem correndo para a viela, atrás da polícia - respondeu o informante, sem desviar os olhos da padaria. - O que foi contestado, creio que de maneira convincente.
- Como? Ele foi visto.
- Mas no excitamento ele não foi visto a sair correndo de lá, segurando sua carteira, que presumivelmente fora furtada pelos porcos. Essa foi a informação que o nosso homem transmitiu com toda ênfase aos
espectadores. É claro que outros concordaram prontamente, pois pessoas histéricas sempre repetem novas informações desconhecidas para uma multidão de estranhos. Pensam que isso as eleva.
- Você é muito bom - comentou a mulher, rindo baixinho. - E seu pessoal também.
- Não podíamos deixar de ser, ya anisa Khalehla - respondeu o árabe, usando o título omanita de respeito. - Se fôssemos menos do que isso, enfrentaríamos alternativas que preferimos nem considerar.
- Por que a padaria? - indagou Khalehla. - Tem alguma ideia?
- Absolutamente nenhuma. Não gosto de baklava, esse tipo de torta de limão. O mel não pinga, escorre. Mas os judeus gostam, como sabe.
- E eu também.
- Então ambos esquecem o que os turcos fizeram com vocês.
- Não creio que nosso alvo tenha entrado naquela padaria à procura de baklava ou de um tratado histórico sobre os turcos contra as tribos do Egito e Israel.
- Uma filha de Cleópatra fala? - murmurou o informante, sorrindo.
- Esta filha de Cleópatra não sabe do que você está falando. Tento apenas aprender coisas.
- Então comece pelo sedã militar que recolheu o seu alvo vários quarteirões ao norte do hotel, depois das orações de el Maghreb. Possui um significado considerável.
- Ele deve ter amigos no exército.
- Só a guarnição do sultão está em Mascate.
- E daí?
- Os oficiais são revezados a cada dois meses entre a cidade e os postos em Jiddah e Marmul, além de uma dúzia ou mais de guarnições ao longo da fronteira com o Iêmen do Sul.
- Onde está querendo chegar?
- Quero ressaltar dois fatos, Khalehla. O primeiro é que acho uma coincidência inacreditável que o alvo, depois de quatro anos, conheça de forma tão conveniente um determinado amigo no grupo relativamente
pequeno de oficiais servindo nesta quinzena específica em Mascate, num oficialato que mudou ao longo dos anos...
- Uma coincidência excepcional, concordo, mas certamente possível. Qual é o segundo fato?
- Na verdade, o segundo anula o primeiro. Hoje em dia, nenhum veículo da guarnição de Mascate recolheria um estrangeiro do jeito como aconteceu com ele, daquela maneira disfarçada, sem autorização suprema.
- O sultão?
- Quem mais?
- Ele não ousaria! Está acuado. Um movimento em falso e seria responsabilizado por todas as execuções que ocorressem. Se tal coisa acontecesse, os americanos arrasariam Mascate. E ele sabe disso.
- Talvez saiba também que é considerado responsável tanto pelo que faz quanto pelo que não faz. Nessa situação, é melhor saber o que outros estão fazendo, pelo menos para oferecer alguma orientação...
ou abortar uma atividade improdutiva com mais uma execução.
À tênue claridade na periferia da praça, Khalehla olhou duro para o informante.
- Se aquele carro militar levou o alvo para um encontro com o sultão, também o trouxe de volta.
- Exato - concordou o homem de meia-idade, o tom incisivo, como se compreendesse a implicação.
- Isso significa que o que o alvo propôs não foi rejeitado sumariamente.
- É o que parece, ya anisa Khalehla.
- E nós temos de saber o que foi proposto, não é mesmo?
- Seria muito perigoso para todos nós não saber - murmurou o árabe, balançando a cabeça. - Estamos lidando com mais do que as mortes de duzentos e trinta e seis americanos. O que está em jogo é o destino
de uma nação. Minha nação, devo acrescentar, e farei tudo o que puder para que continue nossa. Está entendendo, minha cara Khalehla?
- Estou, sim, ya sahib el Aumer.
- É melhor um segredo morto do que um choque catastrófico.
- Eu compreendo.
- Compreende mesmo? Teve muito mais vantagens no seu Mediterrâneo do que jamais conseguimos em nosso obscuro Golfo. Agora é a nossa vez. Não vamos deixar ninguém nos deter.
- Quero que tenham a sua vez, caro amigo. Nós queremos que tenham.
- Então faça o que deve, ya sahbitee Khalehla.
- Está certo.
A mulher no costume sob medida tirou da bolsa uma automática de cano curto. Segurando-a com a mão esquerda, tornou a vasculhar a bolsa e pegou um pente de balas; enfiou-o na base da coronha com um estalido
firme e puxou a câmara de carregar. A arma estava pronta para entrar em ação.
- Vá agora, adeem sahbee - ela disse, ajeitando a alça da bolsa no ombro, a mão no interior, empunhando a automática. - Compreendemos um ao outro e você deve estar longe daqui, em algum lugar onde outros
possam vê-lo.
- Salaam aleikum, Khalehla. Vá com Alá.
- Mandarei aquele homem a Alá para defender o seu caso... Depressa! Ele está saindo da padaria. Vou segui-lo e fazer o que deve ser feito. Tem dez a quinze minutos para se reunir a outros, longe daqui.
- Afinal, você nos protege, não é mesmo? É um tesouro. Mas tome cuidado, Khalehla.
- Diga a ele para tomar cuidado. É um intruso.
- Irei à mesquita Zawadi e conversarei com os mulás e muezins idosos. Olhos santos não são questionados. A distância é curta, cinco minutos no máximo.
- Aleikum salaam - murmurou a mulher, começando a atravessar a praça, o olhar fixado no americano em trajes árabes, que passara pelo chafariz e avançava apressado pelas ruas escuras e estreitas para leste,
além do mercado de Sabat Aynub.
O que está fazendo aquele idiota?, pensou Khalehla, enquanto tirava o chapéu, amassava-o com a mão esquerda e o metia na bolsa, ao lado da arma que apertava febrilmente com a mão direita. Está seguindo
para o el Shari el Mishkwiyis, ela concluiu, misturando os pensamentos em árabe e inglês, referindo-se ao que é conhecido no Ocidente como o setor mais terrível da cidade, um lugar que os forasteiros evitam.
Eles tinham razão. O homem é um amador e não posso entrar aí vestida como estou. Mas preciso continuar. Por Deus, ele vai fazer com que nós dois sejamos mortos!
Evan Kendrick seguia apressado pelas camadas irregulares de pedras que formavam o calçamento da rua estreita, passando por prédios baixos em ruínas, congestionados, estruturas desmoronando, pedaços de
lona e peles de animal cobrindo janelas arrebentadas; as que permaneciam intactas eram protegidas por persianas quase sem tábuas. Fios desencapados pendiam por toda parte, os transformadores municipais
violados, a eletricidade roubada, oferecendo o maior perigo. Os cheiros pungentes da cozinha árabe misturavam-se com odores mais fortes, inconfundíveis - haxixe, folhas de coca ardendo, contrabandeadas
para angras não patrulhadas do Golfo, bolsões de excreção humana. Os habitantes daquele trecho do gueto moviam-se devagar, com extrema cautela, desconfiados, através das cavernas mal iluminadas do seu
mundo, à vontade com sua degradação, indiferentes aos muitos perigos, tranquilos na sua posição coletiva de párias - a despreocupação confirmada por súbitas explosões de riso por trás das janelas fechadas.
Os trajes rituais daquele el Shari el Mishkwiyis podiam ser qualquer coisa, mas havia uma coerência. Abas e ghotras coexistiam com jeans rasgados, minissaias proibidas e uniformes de marinheiros e soldados
de uma dúzia de nações diferentes - uniformes sujos, exclusivamente de praças, embora se comentasse que mais de um oficial tomava emprestadas as roupas de um subordinado para se aventurar por ali e saborear
os prazeres proibidos do lugar.
Homens se amontoavam em portais, para irritação de Evan, pois encobriam os números quase ilegíveis nas paredes de arenito. Ele sentia-se ainda mais irritado com as vielas transversais, que inexplicavelmente
faziam com que os números pulassem abruptamente de um trecho de rua para outro. El-Baz. Número 77, Shari el Balah - a rua das tâmaras. Onde era?
Ah, lá estava. Uma porta maciça e recuada, com grossas barras de ferro atrás de uma abertura fechada na parte superior, à altura dos olhos. Um homem em trajes desgrenhados estava agachado em diagonal contra
a pedra, bloqueando a porta, no lado direito da entrada que parecia um túnel.
- Esmahlee? - disse Kendrick, pedindo licença e adiantando-se.
- Lay? - respondeu o vulto acocorado, indagando por quê.
- Tenho um encontro - acrescentou Evan, em árabe. - Sou esperado.
- Quem o manda? - insistiu o homem, ainda sem se mexer.
- Isso não é da sua conta.
- Não estou aqui para receber essa resposta. - O árabe empertigou as costas, ajeitando-as contra a porta; o aba se entreabriu ligeiramente, revelando o cabo de uma pistola enfiada numa faixa. - E pergunto
de novo: quem o manda?
Evan especulou se o agente da polícia do sultão esquecera de lhe fornecer um nome, um código ou uma senha que garantisse o ingresso. E tinha tão pouco tempo! Não precisava daquela obstrução; pensou numa
resposta e disse:
- Visitei uma padaria no Sabat Aynub. Falei...
- Uma padaria? - interrompeu-o o homem acocorado, as sobrancelhas se arqueando sob o turbante. - Há pelo menos três padarias no Sabat Aynub.
- Mas que droga! Baklava! - explodiu Kendrick, a frustração aumentando, os olhos no cabo da arma. - E um...
- Já chega - disse o árabe, levantando-se rápido e ajeitando a túnica. - Era uma resposta simples para uma pergunta simples. Um padeiro o mandou, entende?
- Está certo. Posso entrar, por favor?
- Primeiro precisamos determinar quem veio visitar. A quem procura, senhor?
- Pelo amor de Deus! O homem que vive aqui... trabalha aqui.
- É um homem sem nome?
- E você tem o direito de saber?
O veemente sussurro de Evan prevaleceu sobre os ruídos da rua.
- Uma pergunta justa, senhor - murmurou o árabe, acenando com a cabeça numa expressão pensativa. - Contudo, já que eu tinha conhecimento de um padeiro no Sabat Aynub...
- Isso é demais! - exclamou Kendrick. - Está bem, está bem! Seu nome é El-Baz! Agora quer me deixar entrar? Estou com pressa!
- Terei o maior prazer em avisar ao residente, senhor. E ele o deixará entrar, se for essa a sua vontade. Tenho certeza que pode compreender a necessidade de...
Foi o máximo que o ponderado guarda conseguiu falar antes de voltar a cabeça abruptamente. Os ruídos da rua escura tiveram uma súbita erupção. Um homem gritou, outros rugiram, as vozes estridentes ecoando
pelas pedras.
- Elhahoonai!
- Udam!
E depois, cortando o coro de insultos, soou uma voz de mulher:
- Siboni fihalee! - ela gritou freneticamente, exigindo que a deixassem em paz, para acrescentar um instante depois, num inglês perfeito: - Seus miseráveis!
Evan e o guarda correram para a beira da rua, enquanto dois tiros abalavam a cacofonia humana, escalando-a para o frenesi, os ecos sinistros das balas em ricochete se desvanecendo na distância. O guarda
árabe atirou-se no chão de pedra da entrada. Kendrick também se agachou; tinha de saber o que estava acontecendo. Três vultos de túnica, acompanhados por um jovem e uma mulher em roupas ocidentais amarrotadas,
passaram correndo; o jovem usava uma calça cáqui rasgada e segurava o braço sangrando. Evan ergueu-se e espiou cauteloso pela beira do canto de pedra. E ficou atônito com o que viu.
Nas sombras da rua estreita estava uma mulher com a cabeça descoberta, uma faca de lâmina curta na mão esquerda, a direita empunhando uma automática. Lentamente, Kendrick saiu para a rua de pedras irregulares.
Os olhos se encontraram. A mulher levantou a arma; Evan ficou paralisado, tentando desesperadamente decidir o que fazer e quando fazer, supondo que ela atiraria se se mexesse. Para sua surpresa, porém,
deixando-o ainda mais espantado, ela começou a recuar para as sombras mais profundas, embora ainda lhe apontando a arma. E, subitamente, com a aproximação de vozes excitadas, pontuadas pelos repetidos
sons penetrantes de um apito estridente, a mulher virou-se e saiu correndo pela rua estreita e escura. E desapareceu em poucos segundos. Ela o seguira! Para matá-lo? Por quê? Quem era ela?
- Aqui! - O guarda chamava-o num sussurro em pânico. Evan voltou a cabeça; o árabe lhe gesticulava para passar pela porta pesada e proibida. - Depressa, senhor! Pode entrar agora! Depressa! Não deve ser
visto aqui!
A porta foi aberta e Evan enfiou-se por ela; no mesmo instante foi puxado para a esquerda pela mão forte de um homenzinho que gritou para o guarda à entrada:
- Saia daqui! Depressa!
O árabe bateu a porta e empurrou duas trancas de ferro, enquanto Kendrick contraía os olhos na semiescuridão. Estavam numa espécie de saguão largo e dilapidado, quase um corredor, com diversas portas fechadas
em ambos os lados. Vários pequenos tapetes persas cobriam a madeira áspera do assoalho - tapetes, pensou Kendrick, que alcançariam preços consideráveis em qualquer leilão ocidental. Nas paredes havia mais
tapetes, maiores; Evan sabia que valiam pequenas fortunas. O homem chamado El-Baz aplicava seus lucros em requintados tesouros de tapeçaria. As pessoas que conheciam tais coisas ficariam por certo impressionadas,
com a certeza de estarem lidando com um homem importante. Os outros, incluindo a maior parte da polícia e várias autoridades, pensariam que aquele homem furtivo cobria os assoalhos e paredes com artigos
para turistas, a fim de esconder defeitos constrangedores em sua residência. O artista chamado El-Baz sabia usar as técnicas de marketing.
- Sou El-Baz - disse o árabe nanico e um pouco encurvado em inglês, estendendo a desproporcional mãozona de veias saltadas. - É quem diz ser e tenho o maior prazer em conhecê-lo, de preferência não com
o nome que seus reverenciados pais lhe concederam. Por favor, venha comigo. Segunda porta à direita. É nossa primeira medida e a mais vital. Na verdade, o resto já foi feito.
- Já foi feito? O que já foi feito?
- O essencial - respondeu El-Baz. - Os papéis foram preparados de acordo com as informações que me transmitiram.
- Que informações?
- Quem você pode ser, o que pode ser, de onde pode ter vindo. Isso era tudo o que eu precisava.
- Quem deu as informações?
- Não tenho a menor ideia - disse o idoso árabe, tocando no braço de Kendrick e levando-o pelo saguão. - Uma voz desconhecida me deu instruções pelo telefone, não sei de onde. Mas ela usou as palavras
certas e eu soube que devia obedecer.
- Ela?
- O sexo não tinha o menor significado, ya Shaikh. Só as palavras tinham importância. Vamos, entre.
El-Baz abriu a porta de um pequeno estúdio fotográfico; o equipamento parecia antiquado. A rápida avaliação de Evan não passou despercebida a El-Baz, que explicou:
- A câmera da esquerda repete a qualidade granulosa dos documentos do governo, que adotou um processamento uniforme em toda parte e usa também sempre a mesma lente. Sente-se naquele banco. Será rápido
e indolor.
El-Baz trabalhou depressa; o filme era do tipo instantâneo e sem negativo, e ele não teve dificuldade para selecionar uma das fotografias. Queimando as demais, o velho calçou um par de finas luvas cirúrgicas,
levantou a foto e gesticulou na direção da área além do tecido cinza esticado que servia como fundo para as chapas. Adiantando-se, puxou a pesada cortina, revelando uma parede vazia, em estado lamentável.
Mas a aparência era enganadora. Pressionando com o pé direito certo ponto do rodapé rachado, e estendendo a mão direita enluvada sobre outro ponto, por cima, ele apertou os dois ao mesmo tempo. Uma rachadura
irregular na parede dividiu-se lentamente, o lado esquerdo desaparecendo por trás da cortina; havia agora uma abertura com pouco mais de meio metro de largura. O pequeno fornecedor de documentos falsos
ali entrou, fazendo sinal para que Kendrick o seguisse.
O que Evan viu então era tão moderno quanto qualquer máquina no seu escritório em Washington e até mesmo de qualidade superior. Havia dois computadores grandes, cada um com sua impressora, e quatro telefones
em cores diferentes, com módulos de comunicação, todos situados numa comprida mesa branca, impecavelmente limpa, diante de quatro cadeiras de datilografia.
- Ali - disse El-Baz, apontando para o computador à esquerda, a tela escura animada por brilhantes letras verdes. - Veja como é privilegiado, ya Shaikh. Fui instruído a lhe fornecer informações completas
bem como as respectivas fontes, mas naturalmente nada por escrito, exceto os documentos propriamente ditos. Queira sentar-se. Conheça a si mesmo.
- Conhecer a mim mesmo?
- É um saudita de Riad chamado Amal Bahrudi. É engenheiro civil e tem algum sangue europeu nas veias... um avô, se não me engano; está escrito na tela.
- Europeu?
- Explica as feições um tanto irregulares, caso alguém perguntar.
- Espere um instante. - Evan inclinou-se, olhando mais atentamente para a tela do computador. - Esta é uma pessoa real?
- Foi. Morreu ontem à noite, em Berlim Oriental... Soubemos pelo telefone verde.
- Morreu ontem à noite?
- O serviço secreto alemão oriental, controlado pelos soviéticos, é claro, manterá sua morte em sigilo por vários dias, talvez semanas, enquanto seus burocratas examinam tudo, estudando um possível proveito
para a KGB. Enquanto isso, a chegada do Sr. Bahrudi aqui foi devidamente registrada em nossas listas da imigração - aqui foi o telefone azul -, com um visto válido por trinta dias.
- Ou seja, se alguém quiser conferir, esse Bahrudi está legalmente aqui, e não morto em Berlim Oriental.
- É isso mesmo.
- O que pode me acontecer se for apanhado?
- Não precisaria se preocupar com isso. Tornar-se-ia imediatamente um cadáver.
- Mas os soviéticos podem criar problemas para nós. Eles sabem que não sou Bahrudi.
- Será mesmo? - O velho árabe deu de ombros. - Nunca desperdice uma oportunidade de confundir ou embaraçar a KGB, ya Shaikh.
Evan fez uma pausa, o rosto franzido.
- Acho que entendo o que está querendo dizer. Como conseguiu tudo isso? É demais um saudita morto em Berlim Oriental, a morte encoberta, um dossiê completo, até mesmo um avô europeu... Parece incrível!
- E pode estar certo, meu jovem amigo, que jamais o conheci, jamais o encontrei. Claro, tenho colaboradores em muitos lugares, mas não deve preocupar-se com isso. Basta estudar os fatos principais: nomes
dos pais reverenciados, escolas, universidades... duas, se não me engano, uma nos Estados Unidos, como tantos sauditas. Não precisará de mais do que isso. E se precisar, não fará a menor diferença, pois
estará morto.
Kendrick saiu da cidade do submundo dentro de uma cidade, contornando o terreno no Hospital Waljat, na seção nordeste de Mascate. Encontrou-se a menos de 150 metros dos portões da embaixada americana.
A larga rua estava agora apenas parcialmente ocupada por espectadores curiosos. As tochas e as rápidas rajadas de armas automáticas dentro da embaixada criavam a ilusão de que o populacho era muito maior
e mais histérico do que na realidade. Aquelas testemunhas do terror só estavam interessadas em se divertir; e seu número foi diminuindo à medida que, um por um, eram dominados pelo sono. Mais além, a menos
de um quilômetro distante do Harat Waljat, ficava o Palácio Alam, a mansão à beira-mar do jovem sultão. Evan olhou o seu relógio; a hora e o local em que se encontrava eram uma vantagem; dispunha de bem
pouco tempo e Ahmat tinha que agir depressa. Procurou por um telefone público, recordando que havia vários nas proximidades do hospital... novamente graças a Manny Weingrass. Por duas vezes o velho arquiteto
se queixara de que seu conhaque estava envenenado, e certa ocasião uma omanita lhe mordera a mão importuna com tanta força que precisara de sete pontos.
As coberturas de plástico branco e três telefones públicos refletiam ao longe a luz dos lampiões. Enfiando as mãos nos bolsos da túnica, onde guardara os documentos falsos, Evan desatou a correr, mas quase
em seguida se controlou e diminuiu a velocidade. O instinto lhe dizia que não devia parecer óbvio... nem ameaçador. Alcançou o primeiro telefone, inseriu a moeda necessária e discou o estranho número,
que havia gravado de maneira indelével em sua mente: 555-0005.
Gotas de suor formaram-se na linha dos cabelos, enquanto os toques chegavam a oito. Mais dois e uma máquina substituiria a voz humana! Por favor!
- Iwah? - foi a saudação simples: Alô?
- Inglês - disse Evan.
- Tão depressa? - indagou Ahmat, aturdido. - O que aconteceu?
- Uma coisa de cada vez... Uma mulher me seguiu. A claridade era mínima, mas pelo que pude observar era de estatura mediana, cabelos longos, vestida com o que parecia serem roupas ocidentais, dispendiosas.
Além disso, era fluente em árabe e inglês. Lembra-lhe de alguém?
- Se está se referindo a alguém que o pudesse seguir até a casa de El-Baz, absolutamente não. Por quê?
- Acho que ela tencionava me matar.
- O quê?
- E uma mulher transmitiu a El-Baz as informações a meu respeito... pelo telefone, é claro.
- Sei disso.
- Poderia haver uma ligação?
- Como assim?
- Alguém se infiltrando, querendo roubar documentos falsos.
- Espero que não - respondeu Ahmat, firmemente. - A mulher que falou com El-Baz foi minha esposa. Eu não confiaria sua presença aqui a mais ninguém.
- Obrigado por isso, mas alguém mais sabe que estou aqui.
- Falou com quatro homens, Evan, e um deles, nosso amigo comum Mustapha, foi morto. Concordo que mais alguém sabe da sua presença. É por isso que os outros três estão sob vigilância 24 horas por dia. Talvez
você deva ficar fora de circulação, escondido, pelo menos por um dia. Posso dar um jeito e talvez descubramos alguma coisa. Além disso, tenho um assunto que preciso discutir com você. Diz respeito a esse
Amal Bahrudi. Passe um dia escondido. Não acha que seria melhor?
- Não - respondeu Kendrick, a voz solene pelo que estava prestes a dizer. - Posso ficar fora de circulação, mas não escondido.
- Não estou entendendo.
- Quero ser preso, capturado como um terrorista. Quero ser levado à prisão especial que você mantém em algum lugar. E tenho de entrar lá ainda esta noite!
6
O vulto de albornoz correu pelo meio da larga avenida conhecida como Wadi Al Kabir. Emergira da escuridão além do maciço portão Mathaib, várias centenas de metros a oeste do antigo forte português chamado
Mirani. Os trajes estavam encharcados de óleo e sujos dos refugos do porto, o capuz grudando nos cabelos molhados, atrás da cabeça. Para os observadores - e ainda havia muitos na rua, mesmo tão tarde -,
o homem que corria desesperadamente era mais um cão do mar, um estrangeiro que pulara de um navio para conseguir a entrada ilegal naquele sultanato outrora pacífico, um fugitivo ou um terrorista.
Erupções estridentes de uma sirene de dois tempos foram se tornando mais altas enquanto um carro da polícia derrapava na esquina de Wadi Al Uwar e entrava na Al Kabir. A caçada era iminente, um alcaguete
da polícia revelara o local de ingresso e as autoridades estavam prontas. Naqueles dias, as autoridades estavam sempre prontas, ansiosas e frenéticas. Uma luz ofuscante varou a rua mal-iluminada, o facho
partindo de um refletor móvel montado no carro policial. O terrível clarão incidiu sobre o imigrante ilegal em pânico; ele virou para a esquerda, na direção de várias lojas, com fachadas escuras protegidas
por grades de ferro, uma proteção com que, apenas três semanas antes, ninguém se preocupava. O homem girou, arremetendo pela Al Kabir, à direita. Estacou abruptamente, bloqueado por diversos transeuntes
que se deslocavam juntos, permaneciam juntos, com algum medo nos olhos mas de certa forma anunciando coletivamente que não aguentavam mais. Queriam sua cidade de volta. Um cidadão baixo, de terno mas com
um turbante árabe na cabeça, adiantou-se... cautelosamente, é verdade, mas com determinação. Dois homens maiores, de albornoz, talvez mais cautelosos mas com igual determinação, juntaram-se a ele, logo
acompanhados por outros, um pouco hesitantes. Mais além, na Al Kabir, uma multidão se juntara; e formou uma linha, homens de mantos e mulheres de véu, criando uma parede humana de um lado a outro da rua,
a coragem aflorando relutante sob o estímulo da exasperação e fúria. Tinha que parar!
- Saiam daí! Espalhem-se! Ele pode ter granadas!
Um policial saltava do carro de patrulha e corria para a frente, a arma automática apontada para a presa.
- Dispersem! - gritou um segundo policial, correndo do lado esquerdo da rua. - Ou serão apanhados em nosso fogo cruzado!
Os transeuntes cautelosos e a multidão hesitante espalharam-se em todas as direções, correndo para a proteção da distância e os abrigos dos portais. Como se fosse uma oportunidade, o fugitivo abriu as
roupas encharcadas e estendeu a mão sob as dobras, num gesto ameaçador. Uma rajada automática explodiu na Al Kabir; o fugitivo gritou, clamando pelos poderes de um Alá furioso e de uma vingativa Al Fatah,
enquanto apertava o ombro, arqueava o pescoço e caía no chão. Tornou a gritar, convocando num rugido as fúrias de todo o Islã para se abaterem sobre as hordas de infiéis impuros. Os dois agentes da polícia
atiraram-se em cima dele, enquanto o carro de patrulha derrapava até parar, os pneus rangendo; um terceiro policial saltou da porta traseira aberta, gritando ordens.
- Desarmem-no! Revistem o homem! - Os dois subordinados já se haviam antecipado a essas ordens. - Pode ser ele!
O oficial superior agachou-se para examinar o fugitivo mais atentamente; e continuou a falar, a voz ainda mais alta do que antes:
- Ali está! Amarrado na coxa! Um pacote! Tragam aqui!
Os espectadores emergiram lentamente na semiescuridão, a curiosidade atraindo-os de volta à caçada furiosa que ocorria no meio da Al Kabir, à luz fraca dos lampiões.
- Acho que está certo, senhor! - gritou o policial à esquerda do prisioneiro. - Ali está a marca! Pode ser o que resta de uma cicatriz no pescoço.
- Bahrudi! - bradou o oficial de polícia em triunfo, enquanto estudava os documentos tirados da bolsa impermeável. - Amal Bahrudi! O homem de confiança! Ele estava em Berlim Oriental pelas últimas informações
e agora, por Alá, conseguimos pegá-lo!
- Todos vocês! - berrou o policial ajoelhado à direita do fugitivo, endereçando-se à multidão mesmerizada. - Vão embora! Afastem-se! Este porco pode ter protetores... é o infame Bahrudi, o terrorista europeu
oriental! Já chamamos pelo rádio os soldados da guarnição do sultão... Saiam daqui, se não querem morrer!
As testemunhas fugiram, uma debandada desconexa, disparando para o sul, pela Al Kabir. Haviam manifestado coragem, mas a perspectiva de uma batalha a tiros os deixava em pânico. Tudo era incerto, pontuado
pela morte; a única coisa de que a multidão tinha certeza era de que um notório terrorista internacional chamado Amal Bahrudi fora capturado.
- A notícia vai se espalhar depressa em nossa pequena cidade - disse o oficial de polícia, em inglês fluente, ajudando o "prisioneiro" a se levantar. - Nós ajudaremos, é claro, se for necessário.
- Tenho uma ou duas perguntas a fazer... talvez três! - Evan desatou o turbante, removeu-o e fitou o policial. - Que história é essa de homem de confiança, o líder islâmico europeu oriental ou qualquer
coisa parecida?
- Ao que parece, senhor, é a verdade.
- Não estou entendendo.
- Vamos logo para o carro, por favor. O tempo é vital. Temos de sair daqui.
- Quero respostas!
Os dois outros policiais postaram-se nos lados do político do Colorado, seguraram-no pelos braços e o escoltaram para a porta traseira do carro de patrulha.
- Aceitei a encenação da maneira como me disseram que deveria ser - continuou Evan, embarcando no sedã verde da polícia -, mas alguém esqueceu de mencionar que essa pessoa real, cujo nome estou assumindo,
é um assassino que anda jogando bombas por toda a Europa!
- Só posso dizer o que me mandaram dizer... e que, sinceramente, é tudo o que sei - respondeu o policial, acomodando-se ao lado de Kendrick. - Tudo lhe será explicado no laboratório do quartel-general.
- Já sei sobre o laboratório... o que não sei é sobre esse tal de Bahrudi.
- Ele existe, senhor.
- Sei disso também, mas não do resto...
- Depressa, motorista! - ordenou o oficial de polícia. - Vamos embora. Outros dois ficarão aqui.
O sedã verde movimentou-se em marcha à ré aos solavancos, fez uma curva em U, e depois disparou na direção da Wadi Al Uwar.
- Muito bem, ele é real, sei disso - insistiu Kendrick, ofegante. - Mas repito: ninguém me falou que era um terrorista!
- Na enfermaria do quartel-general, senhor.
O policial acendeu um cigarro árabe marrom, aspirou fundo e depois soprou a fumaça pelas narinas, aliviado. Sua parte na estranha missão terminara.
- Houve muita coisa que o computador de El-Baz não mostrou aos seus olhos - disse o médico omanita, examinando o ombro nu de Evan. Estavam a sós na sala da enfermaria, Kendrick sentado na mesa comprida
coberta por duras almofadas, os pés apoiados num banquinho, o cinturão com o dinheiro ao lado. - Como médico pessoal de Ahmat - perdoe-me -, como médico pessoal do grande sultão desde que ele tinha oito
anos de idade, sou agora o seu único contato com ele, caso não possa por qualquer motivo alcançá-lo pessoalmente. Está me entendendo?
- E como posso fazer contato com você?
- No hospital ou pelo meu telefone particular, que lhe darei quando acabarmos. Deve tirar a calça e a cueca e aplicar a tintura em todo o corpo, ya Shaikh. As revistas em que todos ficam nus são uma ocorrência
diária naquela prisão, às vezes até de hora em hora. Toda a sua carne deve ter uma cor só, e já não poderá portar um cinturão de lona cheio de dinheiro.
- Vai guardá-lo para mim?
- Claro.
- Voltemos a esse Bahrudi, por favor - pediu Kendrick, aplicando a geleia para escurecer a pele nas coxas e nas regiões inferiores, enquanto o médico omanita a passava em seus braços, peito e costas. -
Por que El-Baz não me contou tudo?
- Instruções de Ahmat. Ele achou que você poderia não gostar, e por isso queria lhe explicar pessoalmente.
- Falei com ele há menos de uma hora. Disse apenas que queria conversar sobre esse Bahrudi, mais nada.
- Você também estava com muita pressa e ele tinha de organizar várias coisas para promover a sua suposta captura. Por isso, incumbiu-me da explicação. Levante o braço mais um pouco, por favor.
- E qual é a explicação? - indagou Evan, menos furioso agora.
- Muito simples: se fosse capturado pelos terroristas, teria uma posição de recuo, pelo menos por algum tempo, talvez com sorte o suficiente para ajudá-lo... se qualquer ajuda for possível.
- Que posição de recuo?
- Seria considerado um deles. Até que descobrissem o contrário.
- Bahrudi está morto...
- Seu cadáver se encontra em poder da KGB - acrescentou o médico, sobrepondo-se prontamente ao protesto de Kendrick. - O Komitet é notoriamente indeciso, tem medo de se expor a qualquer situação embaraçosa.
- El-Baz fez algum comentário a respeito.
- Se alguém em Mascate pode saber, é El-Baz.
- Ou seja, se Bahrudi for aceito aqui em Oman, se eu for aceito como Bahrudi, posso ter alguma influência. Se os soviéticos não contarem o que sabem, fazendo soar os clarins.
- Eles vão examinar meticulosamente os clarins antes de levá-los aos lábios. Não podem ter certeza; vão temer uma armadilha, uma situação constrangedora, por isso aguardarão os acontecimentos. O outro
braço, por favor. Estenda para o alto.
- Uma pergunta. Se Amal Bahrudi supostamente passou por sua imigração, por que não foi apanhado? A força de segurança está muito reforçada nos últimos dias.
- Quantos John Smiths existem em seu país, ya Shaikh?
- E daí?
- Bahrudi é um nome árabe bastante comum, talvez mais no Cairo do que em Riad, mas mesmo assim não tem nada de excepcional. E Amal é o equivalente a seu "Joe" ou "Bill"... ou "John", é claro.
- Ainda assim, El-Baz registrou-o nos computadores da imigração. Haverá alertas...
- E rapidamente serão cancelados - interrompeu o omanita -, as autoridades ficando satisfeitas com a observação e um interrogatório rigoroso, embora rotineiro.
- Por que não há cicatriz no meu pescoço? - indagou Evan. - Um dos policiais na Al Kabir fez questão de apontar uma cicatriz no meu pescoço... o pescoço de Bahrudi.
- É uma informação sobre a qual nada sei, mas suponho que é possível; você não tem cicatriz. Mas há razões mais fundamentais.
- Por exemplo?
- Um terrorista não anuncia sua chegada num país estrangeiro, muito menos um país conturbado. Usa documentos falsos. É isso que as autoridades procuram, não a coincidência de um John W. Booth, um farmacêutico
de Philadelphia que foi amaldiçoado com o mesmo nome do assassino do Ford’s Theatre.
- Conhece muito as coisas americanas, não é mesmo?
- Faculdade de Medicina Johns Hopkins, Sr. Bahrudi. Cortesia do pai de nosso sultão, que encontrou um garoto beduíno ansioso por mais que uma existência tribal errante.
- Como aconteceu?
- É outra história. Pode baixar o braço agora.
Evan fitou o médico nos olhos.
- Imagino que gosta muito do sultão.
O médico sustentou o olhar de Kendrick.
- Eu mataria pela família, ya Shaikh - respondeu, suavemente. - Claro que o método seria não violento. Talvez veneno, uma crise médica mal diagnosticada ou um bisturi afoito... qualquer coisa condizente
com a minha dívida... mas pode estar certo de que não hesitaria.
- Não tenho a menor dúvida. E, por extensão, está do meu lado.
- Isso é óbvio. A prova que posso lhe oferecer e que antes desconhecia é numérica. Cinco, cinco, cinco... zero, zero, zero, cinco.
- É suficiente. Qual é o seu nome?
- Faisal... Dr. Amal Faisal.
- Entendo o que estava querendo dizer... "John Smith".
Kendrick saiu da mesa de exame e encaminhou-se nu para uma pequena pia, no outro lado da sala. Lavou as mãos, esfregando o sabonete para remover as manchas em excesso dos dedos, contemplou o corpo no espelho
por cima da pia. A pele branca estava se tornando parda; mais um pouco e estaria bastante escura para a prisão dos terroristas. Olhou para o médico refletido no espelho.
- Como é a prisão?
- Não é lugar para você.
- Não foi isso que perguntei. Quero saber como é. Há rituais de passagem, alguma coisa a que os novos prisioneiros são submetidos? Vocês devem ter instalado escutas por toda parte... seriam tolos se não
o fizessem.
- Claro que fizemos e temos de presumir que eles sabem disso; costumam se concentrar na porta, onde estão os principais microfones, e fazem o maior barulho. O teto é muito alto para uma transmissão audível
e as outras escutas ficam nos mecanismos de descarga das latrinas... uma reforma civilizada determinada por Ahmat há alguns anos, substituindo os buracos no chão. Têm sido inúteis, como se os prisioneiros
soubessem que estão plantadas ali... o que não podemos ter certeza, é claro. Contudo, o mínimo que ouvimos não é nada agradável. Os prisioneiros, como todos os extremistas, estão sempre disputando para
determinar quem é o mais fanático. Como há constantes recém-chegados, muitos não se conhecem. Em decorrência, as perguntas são objetivas e incisivas, os métodos de interrogatório muitas vezes brutais.
Eles são fanáticos, mas não idiotas no sentido aceito da palavra, ya Shaikh. Vigilância é o seu credo, e a infiltração uma ameaça permanente.
- Então será meu credo também. - Kendrick voltou à mesa do exame e à pilha de roupas da prisão que lhe haviam providenciado. - A minha vigilância. Serei tão fanático quanto qualquer outro ali. - Virou-se
para o omanita. - Preciso dos nomes dos líderes na embaixada. Não tive permissão para fazer anotações dos papéis com informações que me deram, mas memorizei dois nomes, porque se repetiam várias vezes.
Um era Abu Nassir e outro Abbas Zaher. Tem mais algum?
- Nassir não é visto há mais de uma semana; acredita-se que foi embora. E Zaher não é considerado um líder, apenas uma fachada ostensiva. Nos últimos dias, a pessoa mais proeminente parece ser uma mulher,
chamada Zaya Yateem. É fluente em inglês e lê os boletins para a televisão.
- Como é ela?
- Quem pode saber? Ela usa sempre um véu.
- Mais alguém?
- Um jovem que geralmente fica atrás dela; parece ser o seu companheiro e anda com uma arma russa... não sei de que tipo.
- Seu nome?
- É chamado simplesmente de Azra.
- Azul? A cor azul?
- Isso mesmo. E por falar em cores, há outra, um homem com os cabelos prematuramente grisalhos... o que é excepcional entre os árabes. É chamado Ahbyahd.
- Branco.
- Exatamente. Foi identificado como um dos sequestradores do avião da TWA em Beirute. Apenas por fotografias, no entanto; não se descobriu qualquer nome.
- Nassir, a mulher Yateem, Azul e Branco. Isso deve ser suficiente.
- Para quê? - perguntou o médico.
- Para o que vou fazer.
- Pense um pouco no que vai fazer - sugeriu o médico suavemente, observando Evan vestir a larga calça da prisão com elástico na cintura. - Ahmat está dividido, pois podemos descobrir muita coisa com seu
sacrifício, mas deve compreender que pode realmente ser um sacrifício. Ahmat quer que você saiba disso.
- Também não sou idiota. - Kendrick pôs a camisa cinza e calçou as sandálias de couro duro típicas das prisões árabes. - Se me sentir ameaçado, gritarei por socorro.
- Faça isso e todos cairão em cima de você como animais raivosos. Não sobreviveria dez segundos; ninguém poderia alcançá-lo a tempo.
- Muito bem, teremos um código. - Evan abotoou a camisa ordinária, enquanto corria os olhos pela enfermaria da prisão; observou várias chapas de raios X suspensas de um cordão. - Se o pessoal que controla
as escutas me ouvir dizer que filmes estão sendo contrabandeados para fora da embaixada, vocês devem entrar e me tirar de lá. Entendido?
- "Filmes contrabandeados para fora da embaixada"...
- Certo. Não vou dizer nem gritar isso a menos que pense que estão prestes a me atacarem... E agora espalhem a notícia. Os guardas devem escarnecer dos presos. Amal Bahrudi, líder dos terroristas islâmicos
na Europa Oriental foi capturado aqui em Oman. A estratégia do seu jovem sultão para a minha proteção temporária pode ser um grande salto à frente. É meu passaporte para o mundo podre dos terroristas.
- Não foi projetada para isso.
- Mas não concorda que veio a calhar? Quase como se Ahmat tivesse pensado a respeito antes de mim. E por falar nisso, até que é bem possível. Por que não?
- Isso é um absurdo! - protestou o médico, levantando as mãos para Evan. - Preste atenção. Podemos todos teorizar quanto quisermos, mas não podemos garantir. Aquela prisão é vigiada por soldados e não
podemos sondar a alma de cada homem. E se houver simpatizantes por lá? Lembre-se do que está acontecendo nas ruas. Animais desvairados aguardando a próxima execução, fazendo apostas. A América não é amada
por cada cidadão de aba, por cada homem de uniforme. Há histórias demais, muitos clamores pelo comportamento antiárabe dos americanos.
- Ahmat fez o mesmo comentário sobre a sua guarnição aqui em Mascate. Só que ele falou em fitar cada um nos olhos.
- Os olhos contêm os segredos da alma, ya Shaikh, e o sultão estava certo. Vivemos no medo constante de fraqueza e traição interna. Os soldados são jovens, impressionáveis, precipitados em formarem julgamentos
sobre insultos verdadeiros ou imaginários. Vamos supor, apenas supor, que a KGB resolva enviar uma mensagem, para desestabilizar a situação ainda mais: "Amal Bahrudi está morto e o homem que se apresenta
como ele não passa de um impostor!" Não haveria tempo para códigos ou gritos de socorro. E não se pode descartar como insignificante a maneira como você morreria.
- Ahmat deveria ter pensado nisso...
- Está sendo injusto - protestou Faisal. - Atribuiu-lhe coisas com que ele nunca sonhou. O disfarce de Bahrudi deveria ser usado apenas como uma tática diversionária, em último caso, não para qualquer
outra coisa. O fato de cidadãos comuns poderem declarar publicamente que testemunharam a captura de um terrorista, chegando ao ponto de indicar seu nome, criaria confusão... Era essa a estratégia. Confusão,
espanto, indecisão. Se contribuísse para protelar sua execução por algumas horas - qualquer tempo poderia ser valioso para arrancá-lo das mãos do inimigo -, era essa a intenção de Ahmat. Não a infiltração.
Evan encostou-se na mesa, os braços cruzados, estudando o omanita.
- Então não compreendo mais nada e falo sério, doutor. Não estou procurando demônios, mas acho que há um lapso na sua explicação.
- E qual é?
- Se encontrar para mim o nome de um terrorista... e um terrorista morto, cuja verdadeira identidade não poderia ser conferida, era parte da minha posição de recuo, como a chamou...
- Sua proteção temporária, como você chamou, com toda razão.
- Pois então vamos supor, apenas supor, o que poderia acontecer se eu não estivesse disponível para participar do pequeno melodrama na Al Kabir esta noite.
- E não deveria estar mesmo - respondeu o médico, calmamente. - Acontece apenas que antecipou a hora da encenação. Não deveria ocorrer à meia-noite, mas sim ao amanhecer, pouco antes das orações, perto
da mesquita de Khor. A notícia da captura de Bahrudi se espalharia pelos mercados como a chegada de um contrabando ordinário no porto. Outro homem se apresentaria como o impostor que você é. Era esse o
plano, não qualquer outra coisa.
- Nesse caso, como diriam os advogados, houve uma conveniente convergência de objetivos, realinhados no tempo e propósito, a fim de atender a todas as partes sem conflitos. Estou sempre ouvindo frases
assim em Washington. Muito inteligentes.
- Sou um médico, ya Shaikh, não um advogado.
- Sei disso. - Evan sorriu. - Mas tenho dúvidas sobre o nosso jovem amigo no palácio. Ele queria "discutir" Amal Bahrudi. E me pergunto para onde tal discussão nos levaria.
- Ele também não é advogado.
- Ele tem de ser tudo para dirigir esta terra. Tem de pensar. Especialmente agora. Mas estamos perdendo tempo, doutor. Quero que me machuque um pouco. Não os olhos ou a boca, mas as faces e o queixo. E
depois me corte o ombro e ponha uma atadura, mas sem deixar o sangue secar.
- Como?
- Exatamente o que eu falei. Não há a menor possibilidade de eu mesmo me cortar.
A pesada porta de aço foi puxada para trás por dois soldados que no instante imediato puseram as mãos na placa de ferro exterior, como se esperassem uma tentativa de escapar. Um terceiro guarda empurrou
o prisioneiro ferido e com hemorragia para a enorme câmara de concreto que servia de cela coletiva; a pouca claridade era difusa, proporcionada por lâmpadas de poucos watts cobertas por telas de arame,
brilhando em buracos no teto. Um grupo de presos convergiu no mesmo instante para o recém-chegado, vários segurando pelos ombros o homem pálido e sangrante que caíra de joelhos e tentava desajeitadamente
se levantar. Outros se agruparam junto da grande porta de metal, conversando em voz alta - meio gritando, para ser mais preciso - aparentemente para encobrir qualquer coisa que se pudesse dizer lá dentro.
- Khaleebalak! - berrou o recém-chegado.
O braço direito levantou-se bruscamente, se desvencilhando, depois o punho acertou a cara de um jovem prisioneiro, cuja careta revelou dentes podres. E Kendrick acrescentou, em árabe, erguendo-se em toda
a altura, que era alguns centímetros maior que o homem mais alto em torno dele:
- Por Alá, quebrarei a cabeça de qualquer imbecil que tente me tocar!
- Somos muitos e você não passa de um! - disse o jovem agredido, apertando o nariz para estancar a hemorragia.
- Vocês podem ser muitos, mas não passam de amantes de bodes! São estúpidos! Afastem-se de mim! Preciso pensar!
Com o último comentário, Evan lançou o braço esquerdo contra aqueles que o seguravam, puxando-o no momento seguinte para acertar com o cotovelo a garganta de outro preso próximo. Com o punho direito ainda
cerrado, virou-se e atingiu nos olhos o homem aturdido.
Ele não conseguia lembrar quando fora a última vez que acertara fisicamente outra pessoa, atacara outro ser humano. Se as lembranças súbitas estavam corretas, fora na escola primária. Um garoto chamado
Peter qualquer-coisa escondera a merendeira do seu melhor amigo - uma merendeira de metal com personagens de Walt Disney - e como o amigo era pequeno e Peter muito maior, ele desafiara o valentão. Infelizmente,
em sua raiva espancara tanto o garoto chamado Peter que o diretor chamara seu pai e os dois adultos lhe disseram que era terrivelmente errado o que fizera. Um garoto do tamanho dele não se metia em brigas.
Não era justo... Mas, senhor! Papai!... Nada de apelos. Ele tivera de aceitar a punição. Mas depois o pai lhe dissera que, se houvesse reincidência, deveria brigar de novo.
E houvera reincidência! Alguém o pegara pelo pescoço, por trás! Técnica de salva-vidas. Por que isso aflorava agora em sua mente? Comprima o nervo por baixo do cotovelo! Faz com que um homem mesmo se afogando
deixe de apertá-lo. Certificado de Salva-Vidas da Cruz Vermelha. Um emprego de verão no lago. Em pânico, deslizou a mão pelo braço exposto, alcançou a carne macia sob o cotovelo e apertou com toda a força.
O terrorista gritou; foi o suficiente. Kendrick sacudiu os ombros e alijou o homem de suas costas, jogando-o no chão de cimento com um soco violento.
- Mais alguém? - indagou o novo preso em tom ríspido, meio agachado, virando-se, a grande altura ainda assim à mostra. - Seus idiotas! Não fosse por vocês, seus imbecis, eu jamais seria apanhado! Desprezo
a todos! E agora me deixem em paz! Já disse que preciso pensar!
- Quem é você para nos insultar e dar ordens? - berrou um pós-adolescente com olhos desvairados, o lábio leporino prejudicando sua dicção.
Era uma cena kafkiana - prisioneiros meio enlouquecidos propensos à violência súbita, ao mesmo tempo nervosamente conscientes de que poderiam sofrer as mais brutais punições dos guardas. Sussurros transformaram-se
em ordens ásperas, insultos reprimidos viraram gritos de desafio, enquanto aqueles que falavam se mantinham de olhos fixados na porta, cuidando para que a balbúrdia encobrisse as palavras, evitando que
alcançasse os ouvidos do inimigo.
- Eu sou quem sou! E isso é mais do que suficiente para cabras idiotas...
- Os guardas nos disseram seu nome! - balbuciou outro preso, talvez com trinta anos, uma barba desleixada, cabelos compridos e imundos; cobriu os lábios com as mãos, como se quisesse abafar as palavras.
- "Amal Bahrudi!", gritou um guarda. "O homem de confiança de Berlim Oriental e nós o pegamos!"... E daí? Quem é você para nós? Nem mesmo gosto do seu jeito. Tem uma aparência muito esquisita. O que é
um Amal Bahrudi! E por que nós deveríamos nos importar com ele?
Kendrick olhou para a porta e para o agitado grupo de presos que falavam muito excitados. Deu um passo para a frente, outra vez sussurrando em tom áspero:
- Porque fui enviado por outros muito mais importantes do que qualquer um que está aqui ou na embaixada. Imensamente mais importantes. E agora vou pedir pela última vez: deixem-me pensar! Preciso encontrar
um meio de mandar informações...
- Tente isso e todos nós seremos levados a um pelotão de fuzilamento! - exclamou outro preso, os dentes semicerrados. Era baixo e estranhamente bem-arrumado, exceto por inexplicáveis manchas de urina na
calça da prisão.
- E isso o incomoda? - indagou Evan, olhando fixamente para o terrorista, a voz baixa e repleta de aversão. Era o momento de reforçar a sua credibilidade. - Diga-me uma coisa, garoto bonito: tem medo de
morrer?
- Só porque não poderia mais servir à nossa causa! - gritou o preso na defensiva, correndo os olhos ao redor, procurando justificativa.
Uns poucos na multidão concordaram; houve acenos de cabeça bruscos e emocionais dos que se encontravam bastante perto para ouvi-lo e ficaram contagiados por seus temores. Kendrick especulou até que ponto
seria difuso aquele desvio do fanatismo.
- Fale baixo, seu idiota! - disse-lhe Evan, friamente. - Seu martírio já é serviço suficiente.
Ele deu meia-volta e avançou entre os corpos que recuavam, hesitantes, até a parede de pedra da imensa cela em que havia uma janela retangular, com barras de ferro fincadas no concreto.
- Não tão depressa, estranho!
A voz rude, mal ouvida acima do barulho, partiu da margem da multidão. Um homem corpulento e barbudo adiantou-se. Os que estavam à sua frente se afastaram, como costuma acontecer na presença de um superior
imediato - talvez um sargento ou um capataz, não um coronel ou diretor de fábrica. Haveria alguém com mais autoridade ali?, especulou Evan. Alguém mais a observar atentamente, a dar ordens?
- Qual é o problema? - indagou Kendrick, com alguma irritação.
- Também não gosto da sua aparência. Não gosto de sua cara. E isso é suficiente para mim.
- Suficiente para quê? - perguntou Evan, desdenhoso, descartando o homem com um aceno de cabeça, enquanto se inclinava para a parede, as mãos segurando as barras de ferro da janela, olhando para o terreno
iluminado por refletores.
- Vire-se! - ordenou bruscamente o sargento ou capataz, atrás dele.
- Eu me virarei quando quiser - respondeu Kendrick, sem saber se fora ouvido.
- Agora! - insistiu o homem, em voz não mais alta que a de Evan... um prelúdio para a mão forte segurar de repente o ombro direito de Kendrick, apertando a carne em torno do ferimento a sangrar.
- Não me toque, e isto é uma ordem! - gritou Evan, mantendo a posição, as mãos apertando com toda força as barras de ferro, a fim de não deixar transparecer a dor que sentia, as antenas alertas para descobrir
o que queria saber.
E descobriu. Os dedos que apertavam seu ombro se separaram; a mão afastou-se à ordem de Evan, mas voltou um momento depois, hesitante. O que revelou a condição daquele homem: ele dava ordens bruscamente,
mas as recebia e executava com a maior presteza quando transmitidas por uma voz autoritária. Era suficiente. Aquele não era o homem que procurava. Estava situado bem alto no poste totêmico, mas não ocupava
a posição superior. Mas haveria outro? Era necessário um teste adicional.
Kendrick permaneceu rígido, depois virou-se de maneira inesperada para a direita, num movimento rápido desalojando a mão que ainda o segurava e fazendo o homem corpulento se desequilibrar vergonhosamente.
- Está bem! - disse ele, o sussurro ríspido não uma declaração, mas uma acusação. - O que é que você não gosta em mim? Transmitirei seu julgamento a outros. Tenho certeza de que eles vão se interessar,
pois gostariam muito de saber quem anda fazendo julgamentos aqui em Mascate!
Evan fez uma breve pausa e depois continuou zangado, a voz se alteando, como num desafio pessoal:
- Esses julgamentos são considerados por muitos como cozinhados em leite de pato. Qual é o problema, imbecil? O que não gosta em mim?
- Eu não faço julgamentos! - gritou o musculoso terrorista, tão defensivo quanto um adolescente que teme o pelotão de fuzilamento. Depois, com a mesma pressa em que irrompera sua explosão, o cauteloso
sargento-capataz, momentaneamente assustado com a possibilidade de suas palavras terem sido ouvidas acima da balbúrdia, recuperou o controle desconfiado; e acrescentou, num sussurro rouco, contraindo os
olhos: - Você é pródigo com as palavras, mas nada significam para nós. Como podemos saber quem e realmente e de onde veio? Nem mesmo parece um de nós. Parece muito diferente.
- Convivo em círculos em que você não entra... nem pode entrar. Eu posso.
- Ele tem olhos claros! - A exclamação abafada partiu do prisioneiro mais velho, barbudo, cabelos compridos e sujos, inclinando-se para a frente a fim de observar. - É um espião! Veio nos espionar!
Outros se aproximaram, estudando o estranho, que subitamente parecia mais ameaçador. Kendrick desviou a cabeça lentamente para o acusador.
- Você também poderia ter olhos assim, se seu avô fosse um europeu. Se eu quisesse alterar os olhos, em benefício de idiotas como vocês, umas poucas gotas de colírio seriam suficientes por uma semana.
Mas é claro que vocês não estão a par dessas técnicas.
- Tem palavras para tudo, não é mesmo? - disse o sargento-capataz. - Os mentirosos são pródigos em palavras, porque não custam nada.
- Exceto a própria vida - respondeu Evan, movimentando os olhos, fitando um rosto de cada vez. - Que não tenho a menor intenção de perder.
- Quer dizer que tem medo de morrer? - desafiou o jovem bem-posto, da calça manchada.
- Você respondeu a essa pergunta por mim. Não tenho medo da morte... nenhum de nós deve ter... mas temo não realizar a missão que me mandaram cumprir. É meu maior medo... pela nossa causa mais sagrada.
- Palavras de novo! - murmurou o corpulento suposto líder, irritado porque diversos presos escutavam o euro-árabe de aparência estranha e língua desembaraçada. - O que veio fazer em Mascate? Se somos estúpidos,
imbecis, por que não nos conta, não nos orienta?
- Falarei apenas com aqueles que me mandaram procurar. E com mais ninguém.
- Eu acho que deve falar para mim - disse o homem, agora mais sargento do que capataz, dando um passo ameaçador para cima do rígido deputado americano. - Não o conhecemos, mas você pode nos conhecer. E
isso lhe dá uma vantagem que não me agrada.
- A sua estupidez também não me agrada - sussurrou Kendrick, gesticulando as duas mãos, uma apontando para o ouvido direito, a outra para a multidão que tagarelava em movimento perto da porta. E acrescentou,
sua voz ecoando na cara do homem: - Afinal, não consegue entender? Você pode ser ouvido! Deve admitir que é mesmo estúpido.
- Ah, sim, somos todos assim, senhor.
O sargento - indubitavelmente um sargento - virou a cabeça, procurando por uma figura invisível, em algum lugar da vasta sala de concreto. Evan tentou acompanhar-lhe o olhar; com a sua altura, divisou
uma fileira de latrinas abertas na extremidade da câmara; várias se encontravam em uso, os ocupantes observando o tumulto com o maior interesse. Outros presos, curiosos, muitos frenéticos, corriam a todo
instante entre o grupo junto da porta e a multidão em torno do novo prisioneiro.
- Mas também, senhor, grande senhor - continuou o corpulento terrorista, zombeteiro -, temos métodos para superar nossa estupidez. Deve conceder às pessoas inferiores o crédito por tais coisas.
- Dou crédito a quem merece...
- Pois vamos cobrar nossa conta agora!
O musculoso fanático levantou subitamente o braço esquerdo. Era uma deixa, um sinal que levou as vozes a se elevarem num canto islâmico, acompanhadas por muitas outras, mais e mais, até que toda a cela
parecia tremer com as reverberações de cinquenta e tantos fanáticos berrando louvores às obscuras estações que conduziam aos braços de Alá. E depois aconteceu. Um sacrifício estava começando.
Corpos arremeteram contra Kendrick; punhos acertaram-lhe a barriga e o rosto. Ele não podia gritar - os lábios estavam comprimidos por dedos fortes que pareciam garras, a carne esticada, temeu que lhe
dilacerassem a boca. A dor era terrível. E depois, de repente, os lábios ficaram livres, a boca voltou ao lugar.
- Conte-nos tudo! - berrou o sargento-terrorista no ouvido de Kendrick, as palavras perdidas para os microfones, abafadas pelo canto islâmico que se acelerava de maneira frenética. Quem é você? De onde
veio?
- Eu sou quem eu sou! - gritou Evan, fazendo uma careta.
Ele tinha de resistir enquanto pudesse, convencido de que conhecia a mente árabe, acreditando que chegaria um momento em que o respeito pela morte de um inimigo acarretaria uns poucos segundos de silêncio,
antes que fosse aplicado o golpe final; seria o suficiente. A morte era reverenciada no Islã, tanto de amigo quanto de inimigo. Ele precisava desses segundos! Tinha de avisar os guardas! Oh, Deus, estava
sendo morto! Um punho cerrado atingiu seus testículos... Quando deixariam de golpeá-lo, por uns poucos e preciosos momentos?
Um vulto enevoado se encontrava subitamente por cima dele, inclinando-se, estudando-o. Outro punho acertou seu rim esquerdo; o grito interior não saiu pela boca. Não podia permitir.
- Parem! - gritou uma voz do contorno indefinido por cima dele. - Arranquem-lhe a camisa. Quero ver o pescoço. Dizem que tem uma marca que não se pode apagar.
Evan sentiu que o pano era rasgado a partir de seu peito, e quase parou de respirar, sabendo que o pior estava prestes a ser revelado. Não havia nenhuma cicatriz no pescoço.
- É mesmo Amal Bahrudi - anunciou o homem.
Kendrick, quase inconsciente, ouviu as palavras e ficou atordoado.
- O que está vendo? - perguntou o aturdido sargento-capataz, ainda furioso.
- O que não existe - respondeu a voz. - Por toda a Europa Amal Bahrudi é conhecido por uma cicatriz no pescoço. Uma fotografia dele circulou entre as autoridades, o rosto meio escuro, mas não o pescoço
nu, em que aparecia nitidamente a cicatriz de um ferimento a faca. Sempre foi a sua melhor cobertura, um disfarce dos mais engenhosos.
- Não estou entendendo nada! - bradou o homem corpulento, agachado junto de Kendrick, as palavras quase abafadas pelo cacofônico canto islâmico. - Que disfarce? Que cicatriz?
- Uma cicatriz que não havia, uma marca que jamais existiu. Todos procuram por uma mentira. Este é Bahrudi, o homem de olhos azuis que pode suportar a dor em silêncio, o homem de confiança que circula
pelas capitais ocidentais sem ser notado por causa dos genes de um avô europeu. Deve ter chegado a Oman a informação de que ele se encontrava a caminho daqui, mas mesmo assim será libertado pela manhã,
sem dúvida com um pedido de desculpa. Afinal, não há nenhuma cicatriz em sua garganta.
Em meio à mente enevoada e à dor terrível, Evan compreendeu que aquele era o momento de reagir. Forçou um sorriso através dos lábios que ardiam, os olhos azuis se concentrando no vulto indistinto por cima.
- Um homem são. - Ele tossiu, em agonia. - Por favor, levante-me. E mande esses homens se afastarem, antes que eu veja a todos no inferno.
- Amal Bahrudi fala? - indagou o desconhecido, estendendo a mão. - Deixem-no levantar-se.
- Não! - bradou o sargento-terrorista, inclinando-se e imobilizando os ombros de Kendrick. - Não há sentido no que você diz! Ele é quem diz ser só por causa de uma cicatriz que não existe? Onde está o
sentido nessa história?
- Eu saberei se ele mente - respondeu o vulto por cima, entrando lentamente em foco para Kendrick.
O rosto encovado era de um homem de vinte e poucos anos, com malares salientes, olhos escuros, brilhosos e inteligentes, flanqueando um nariz reto e pontiagudo. O corpo era esguio, magro, mas havia uma
força flexível na maneira como se agachava e empinava a cabeça. Os músculos do pescoço se destacavam.
- Deixem-no levantar-se - repetiu o terrorista mais jovem, o tom casual, mas nem por isso menos autoritário. - E você, dê instruções aos outros para cessarem gradativamente o canto... gradativamente, é
indispensável... mas depois continuem a conversar. Tudo deve parecer normal, inclusive as discussões incessantes, que você não precisa encorajar.
O furioso subordinado deu um último empurrão em Kendrick, abrindo ainda mais o talho no seu ombro e fazendo com que mais sangue se espalhasse pelo concreto. O mal-humorado sargento-capataz levantou-se
e observou a multidão, afastando-se para cumprir as ordens.
- Obrigado - disse Evan ofegante, trêmulo, pondo-se de joelhos, curvado pela dor que sentia por toda parte, consciente das contusões no rosto e no corpo, consciente das ardentes lacerações onde a carne
fora perfurada em todo o corpo. - Mais um minuto e eu me teria encontrado com Alá.
- O que ainda pode acontecer, e é por isso que não me darei ao trabalho de estancar sua hemorragia. - O jovem palestino empurrou Kendrick contra a parede, numa posição sentada, as pernas estendidas no
chão. - Saiba que não tenho a menor ideia se você é ou não Amal Bahrudi. Agi por instinto. Pelas descrições que ouvi, você pode ser ele. Fala um árabe refinado, o que também combina. Além disso, resistiu
a uma punição intensa, quando um gesto de submissão indicaria que estava disposto a nos dar a informação que era exigida. Por outro lado, reagiu com um desafio quando não podia deixar de saber que a qualquer
momento corria o risco de ser estrangulado... Esse não é o comportamento de um conspirador que preza vida na terra. É tal como qualquer um de nós, capaz de fazer tudo para não prejudicar a causa, que é,
como disse, uma causa santa. A mais sagrada possível.
Santo Deus!, pensou Kendrick, assumindo a expressão fria de um fanático feroz. Como você está enganado! Se eu chegasse a adivinhar... se tivesse pensado... Esqueça!
- O que poderá finalmente convencê-lo? Repito mais uma vez que não revelarei nada que não devo revelar. - Evan fez uma pausa, a mão cobrindo a garganta intumescida. - Mesmo que decidam recomeçar a punição
e me estrangular.
- São estas as duas declarações que eu esperava - disse o jovem terrorista, agachando-se diante de Kendrick. - Mas me diga o que veio fazer aqui. Por que o enviaram a Mascate? A quem o mandaram procurar?
Sua vida depende das suas respostas, Amal Bahrudi, e sou o único que pode tomar uma decisão.
Ele estava certo. Apesar de todas as dificuldades, acertara em cheio.
E agora, tinha de escapar. Fugir dali, junto com aquele jovem assassino por uma causa santa.
7
Kendrick fitou o palestino como se os olhos expressassem de fato o significado da alma de um homem, embora os dele estivessem inchados demais para revelar qualquer outra coisa além de uma dor física intensa...
Os microfones restantes estão nos mecanismos de descarga das latrinas: Dr. Amal Faisal, entre em contato com o sultão.
- Fui enviado para cá a fim de informá-lo que há traidores entre a sua gente na embaixada.
- Traidores? - O terrorista permaneceu imóvel, agachado diante de Evan; além do rosto um pouco franzido, não houve qualquer reação. Depois de vários momentos a estudar atentamente o rosto de "Amal Bahrudi",
ele acrescentou: - Isso é impossível.
- Não é, não, infelizmente. Vi a prova.
- Que prova?
Evan estremeceu subitamente, segurando o ombro ferido, a mão se cobrindo de sangue no mesmo instante.
- Se não quer acabar com esta hemorragia, eu darei um jeito!
Começou a fazer um esforço para se levantar, encostado na parede de pedra.
- Fique onde está! - ordenou o jovem terrorista.
- Por quê? Por que deveria ficar? Como posso saber que você não é parte da traição... ganhando dinheiro com o nosso trabalho?
- Dinheiro...? Que dinheiro?
- Não saberá nada até que eu esteja certo de que tem o direito de ser informado. - Evan tornou a se apoiar contra a parede, as mãos no piso, tentando se levantar. - Fala como um homem, mas não passa de
um menino.
- Cresci depressa - disse o terrorista, empurrando seu estranho prisioneiro de novo para o chão. - Aconteceu com a maioria por aqui.
- Pois cresça agora. Se eu sangrar até a morte, isso não servirá de nada para qualquer um de nós. - Kendrick afastou do ombro a camisa encharcada de sangue e acenou com a cabeça para o ferimento. - Está
todo sujo. Cheio de terra e limo, graças aos seus amigos animais.
- Não são animais e não são amigos. São meus irmãos.
- Escreva poesia no seu próprio tempo, o meu é valioso demais. Existe alguma água por aqui... água limpa?
- Nos banheiros - respondeu o palestino. - Há uma pia no da direita.
- Ajude-me a levantar.
- Não! Qual é a prova? A quem mandaram você encontrar?
- Idiota! - explodiu Evan. - Está bem... Onde está Nassir? Todo mundo pergunta: Onde está Nassir?
- Morto - respondeu o jovem, no rosto uma expressão ambígua.
- Como?
- Um fuzileiro atacou-o, tirou-lhe a arma, atirou nele. O fuzileiro teve morte instantânea.
- Mas ninguém disse nada...
- O que se poderia dizer que valesse a pena? Transformar em mártir um guarda americano? Revelar que um dos nossos foi dominado? Não exibimos nada que sugira fraqueza.
- Nassir? - indagou Kendrick, percebendo um tom de pesar na voz do jovem assassino. - Nassir era fraco?
- Era um teórico, não servia para este trabalho.
- Um teórico? - Evan franziu as sobrancelhas. - Nosso estudante é então um analista?
- Este estudante pode determinar os momentos em que o envolvimento ativo deve substituir o debate passivo, quando a força prevalece sobre as palavras. Nassir falava demais, justificava demais.
- E você não faz isso?
- Não sou eu quem está em discussão, mas você. Qual é a prova de traição?
- A mulher Yateem - disse Kendrick, respondendo à primeira pergunta, não à segunda. - Zaya Yateem. Fui informado de que ela era...
- Yateem uma traidora? - gritou o terrorista, os olhos furiosos.
- Eu não disse isso...
- O que disse então?
- Ela era de confiança...
- Muito mais do que isso, Amal Bahrudi! - O jovem segurou o pano restante da camisa de Evan. - Ela é devotada à nossa causa, um lutador incansável que se empenha mais do que qualquer outro na embaixada!
- Ela fala inglês - disse Kendrick, percebendo um tom diferente na voz do terrorista.
- Eu também falo! - berrou o furioso e autoproclamado estudante, soltando seu prisioneiro na prisão em que estavam ambos encarcerados.
- E eu também - murmurou Evan calmamente, olhando para os vários grupos de presos, muitos dos quais os observavam. - Podemos falar em inglês agora? - Tornou a examinar o ombro sangrando. - Diz que quer
uma prova, mas é claro que isso está além do que posso fazer. Contudo, vou lhe dizer o que vi com meus próprios olhos... em Berlim. E poderá determinar se estou ou não contando a verdade... já que é tão
competente em determinai as coisas. Mas não quero que nenhum dos animais seus irmãos entenda o que eu disser.
- É um homem arrogante, em circunstâncias que não permitem arrogância.
- Eu sou quem sou...
- Já disse isso. - O terrorista balançou a cabeça. Está bem, inglês. - Falou em Yateem. O que há com ela?
- Você presumiu que eu estava querendo dizer que ela era uma traidora.
- Quem ousa...
- Eu queria dizer justamente o oposto - insistiu Kendrick, estremecendo e apertando o ombro com mais força. - Ela é confiável, merece até ser enaltecida; está fazendo o seu trabalho de maneira brilhante.
Depois de Nassir, era ela a pessoa que eu deveria procurar.
Evan soltou um gemido de dor, um reflexo muito óbvio, e balbuciou as palavras seguintes:
- Se ela estivesse morta... eu deveria procurar um homem chamado Azra... E se ele também não estivesse mais aqui, outro com os cabelos grisalhos, conhecido como Ahbyahd.
- Eu sou Azra! - exclamou o estudante de olhos escuros. - Sou o chamado Azul!
Bingo!, pensou Kendrick, fitando atentamente o jovem terrorista com uma expressão inquisitiva.
- Mas você está aqui na prisão, não na embaixada...
- Uma decisão do nosso conselho de operações - explicou Azra. - Liderado por Yateem.
- Não estou entendendo.
- Recebemos o aviso. Havia prisioneiros mantidos em isolamento... torturados, subornados, quebrados de um jeito ou de outro para revelar informações. Decidiu-se que o mais forte no conselho devia deixar-se
prender também... para gerar liderança, resistência.
- E escolheram você? Ela escolheu você?
- Zaya sabia do que falava. Ela é minha irmã; eu, seu irmão de sangue. Tem tanta certeza da minha dedicação quanto eu tenho da dela. Lutamos juntos por nossas mortes, pois a morte é o nosso passado.
Na mosca! Evan arqueou o pescoço, a cabeça pendendo contra a dura parede de pedra, os olhos angustiados vagueando pelo teto com lâmpadas nuas envoltas por uma tela.
- E acabo encontrando meu contato vital no mais impossível dos lugares possíveis. Alá pode ter-nos abandonado, afinal de contas.
- Para o inferno com Alá! - exclamou Azra, surpreendendo Kendrick. - Você será solto pela manhã. Não há cicatriz na sua garganta. Ficará livre.
- Não tenha tanta certeza. - Evan tornou a estremecer e apertou o ombro. - Para ser franco, aquela minha fotografia foi traçada até uma célula da jihad em Roma e a cicatriz está agora sendo questionada.
Procuram em Riad e Manamá as minhas fichas médica e dentária. Se alguma ficou esquecida, se alguma for encontrada, estarei enfrentando um carrasco israelense... Mas isso não é problema seu... nem o meu,
pelo menos no momento.
- Sua coragem iguala sua arrogância.
- Já lhe disse antes, escreva poemas no seu próprio tempo. Se você é Azra, irmão de Yateem, precisa de informações. Deve saber o que eu vi em Berlim.
- A prova da traição?
- Se não de traição, de total estupidez, e se não de estupidez, de cobiça imperdoável, o que não é menos do que traição. - Evan começou a se erguer de novo, comprimindo as costas contra a parede, as mãos
contra o chão. Desta vez o terrorista não o deteve. - Vamos logo, ajude-me! Não posso pensar nestas condições. Tenho de lavar o sangue, limpar os olhos.
- Está bem - concordou o homem chamado Azra hesitante, sua expressão revelando intensa curiosidade. E acrescentou, sem entusiasmo: - Apoie-se em mim.
- Só pedi ajuda para me levantar! - resmungou Kendrick, empurrando-lhe o braço assim que ficou de pé. - Posso andar sozinho, obrigado. Não preciso da ajuda de garotos ignorantes.
- Pode precisar de mais ajuda do que estou disposto a oferecer...
- Tinha esquecido - interrompeu-o Evan, cambaleando trôpego para a fileira de quatro latrinas e a pia. - O estudante é ao mesmo tempo juiz e júri, além de mão direita de Alá, a quem ele manda para o diabo!
- Compreenda uma coisa, homem de fé - disse Azra com firmeza, acompanhando o estranho arrogante e insultuoso. - Minha guerra não é a favor ou contra Alá, Abraão ou Cristo. É uma luta para sobreviver e
viver como um ser humano, apesar daqueles que me destruiriam com suas balas e suas leis. Falo por muitos quando digo: Desfrute sua fé, pratique-a, mas não me sobrecarregue com ela. Já tenho o suficiente
para enfrentar com o esforço para permanecer vivo, quando menos para lutar por mais um dia.
Kendrick olhou para o jovem e furioso assassino ao se aproximarem da pia.
- Tenho minhas dúvidas se devo mesmo falar com você - murmurou, contraindo os olhos inchados. - Talvez não seja o Azra que me mandaram procurar.
- É possível - respondeu o terrorista. - Neste trabalho há acordos entre pessoas de muitas classes, muitos propósitos diferentes, e todos se beneficiam uns dos outros por motivos egoístas. Juntos, podemos
realizar mais por nossas próprias causas do que separados.
- Podemos nos compreender - disse Kendrick, sem qualquer insinuação na voz.
Alcançaram a pia enferrujada. Evan abriu a única torneira de água fria, depois reduziu o fluxo, e, consciente do barulho, mergulhou as mãos e o rosto na água. Espalhou-a por toda a parte superior do corpo,
molhando a cabeça e o peito, jogou-a em torno do ferimento sangrante no ombro. Prolongou o processo, sentindo a impaciência crescente de Azra, que transferia o peso do corpo de um pé para outro, sabendo
que o momento azado logo chegaria. Os microfones restantes estão nos mecanismos de descarga das latrinas. O momento chegara.
- Basta! - explodiu o frustrado terrorista, segurando o ombro ileso de Kendrick e afastando-o da pia. - Dê-me logo a sua informação! O que viu em Berlim? Agora! Qual é a prova de traição... ou de estupidez...
ou de ganância? O que aconteceu?
- Tem de haver mais de uma pessoa envolvida - começou Evan tossindo, cada tosse mais ruidosa, mais violenta que a anterior, o corpo inteiro tremendo. - Cada pessoa que saía os levava...
Subitamente Kendrick inclinou-se e levou a mão à garganta, cambaleando para a primeira latrina, à esquerda da pia imunda.
- Estou vomitando! - gritou, pondo as mãos na beira do vaso.
- Levavam o quê?
- Filmes! - gritou Evan, dirigindo a voz para a área em torno da alavanca da latrina. - Filmes contrabandeados para fora da embaixada!... Para vender!
- Filmes? Fotografias?
- Dois rolos. Interceptei-os, todos os dois! Identidades, métodos...
Nada mais se pôde ouvir na enorme cela de concreto dos terroristas. Campainhas ensurdecedoras explodiram; sons estrondosos indicando uma emergência reverberaram pelas paredes, enquanto um grupo de guardas
uniformizados entrava correndo, as armas levantadas, os olhos procurando freneticamente. Em segundos localizaram o alvo de sua busca; seis soldados correram na direção das latrinas.
- Nunca! - berrou o prisioneiro conhecido como Amal Bahrudi. - Podem me matar se quiserem, mas nada saberão de mim, pois vocês não são nada!
Dois guardas se adiantaram. Kendrick arremeteu, lançando o corpo contra os guardas atordoados, que pensavam estar resgatando um provocador prestes a ser morto. Ele esmagou os punhos nos rostos confusos.
Misericordiosamente, um terceiro soldado acertou com a coronha do rifle no crânio de Amal Bahrudi.
Tudo era escuro, mas ele sabia que estava na mesa de exames da enfermaria. Podia sentir a compressa fria nos olhos e bolsas de gelo sobre diversas partes do corpo; levantou a mão e removeu as compressas
grossas e úmidas. Os rostos por cima dele entraram em foco... rostos aturdidos, rostos furiosos. Não tinha tempo para eles!
- Faisal! - ele balbuciou em árabe. - Onde está Faisal, o doutor?
- Estou aqui, junto do seu pé esquerdo - respondeu o médico omanita em inglês. - Cuidando de um ferimento muito estranho. Alguém o mordeu, infelizmente.
- Posso ver seus dentes - comentou Evan, passando a falar também em inglês. - Eram como os de um peixe... serrilhados... só que amarelos.
- As dietas adequadas são escassas nesta parte do mundo.
- Mande todos saírem, doutor. Agora. Precisamos conversar... agora!
- Depois do que você fez lá dentro, duvido que eles saiam... e eu não tenho certeza se os deixaria sair. Ficou louco? Eles entraram para salvar a sua vida e você os atacou, quebrando o nariz de um e desmontando
a ponte de outro.
- Tinha de ser convincente, diga-lhes isso... não, não diga nada. Ainda não. Mande-os sair. Diga-lhes qualquer coisa que quiser, mas temos que conversar. E depois terá de entrar em contato com Ahmat para
mim... Há quanto tempo estou aqui?
- Quase uma hora...
- Santo Deus! Que horas são?
- Quatro e quinze da madrugada.
- Depressa! Pelo amor de Deus, depressa!
Faisal dispensou os soldados com palavras tranquilizadoras, explicando que certas coisas ele não podia explicar. Quando ia passar pela porta, o último soldado parou, tirou a automática do coldre e entregou-a
ao médico.
- Devo apontar isto para você enquanto conversamos? - indagou o omanita depois que o soldado se retirou.
- Antes do amanhecer - murmurou Kendrick, e, removendo as bolsas de gelo, sentou-se impelindo dolorosamente as pernas para fora da mesa. - Quero diversas armas apontadas para mim, mas não com a pontaria
tão acurada quanto seria possível.
- Que história é essa? Não pode estar falando sério.
- Uma fuga. Ahmat tem de arranjar uma fuga.
- Você ficou louco!
- Nunca estive mais são, doutor, nunca falei mais sério. Pegue dois ou três de seus melhores homens, o que significa homens em que tenha confiança absoluta, e encene alguma espécie de transferência...
- Transferência?
Evan sacudiu a cabeça e piscou, o inchaço nos olhos ainda evidente, embora reduzido pelas compressas frias. Tentou encontrar as palavras que precisava para o aturdido médico.
- Vamos pôr as coisas de outra maneira: alguém decidiu transferir alguns prisioneiros daqui para outro lugar.
- Quem faria isso? Por quê?
- Não importa! Tome a decisão e faça executá-la, não explique... Tem fotografias dos homens lá dentro?
- Claro. É o procedimento normal quando se efetua uma prisão, embora os nomes nada signifiquem. Quando dados, são sempre falsos.
- Pois quero ver todas. Direi quem são os escolhidos.
- Escolhidos para quê?
- Para a transferência. Os homens que vão para outro lugar.
- Para onde? O que você diz não faz o menor sentido.
- Não está prestando atenção. Em algum lugar pelo caminho, uma viela deserta ou uma estrada escura, vamos dominar os guardas e escapar.
- Como assim?
- Sou parte do grupo, parte da fuga. Voltarei para a cela.
- Isso é uma loucura total! - exclamou Faisal.
- Ao contrário, é sanidade total. Há um homem lá dentro que pode me levar ao lugar que quero ir. Levar-nos para onde temos que ir! Traga-me as fotografias da polícia e depois faça contato com Ahmat. Repita-lhe
o que falei, ele compreenderá... É exatamente o que aquele delinquente juvenil estava querendo desde o início!
- Tenho a impressão de que era também o que você queria, ya Shaikh ya Amreekánee.
- É possível. Talvez eu queira apenas lançar a responsabilidade para outro. Mas não me enquadro muito nesse tipo.
- Então alguma coisa interior o está impelindo, reformulando o homem que era. Essas coisa acontecem.
Kendrick fitou os suaves olhos castanhos do médico omanita.
- Tem razão, acontecem.
Súbito, a mente de Evan foi ocupada pelos contornos de uma silhueta sinistra; o vulto de um homem emergiu das chamas furiosas de um inferno na terra. Turbilhões de fumaça envolveram a aparição, enquanto
escombros caíam ruidosamente ao seu redor, abafando os gritos das vítimas. O Mahdi. Matador de mulheres e crianças, de amigos que lhe eram queridos, parceiros num sonho... sua família, a única família
que jamais desejara. Todos mortos, a visão se fundindo na fumaça da destruição, desaparecendo nos vapores que se elevavam, até nada mais restar a não ser o frio e a escuridão. O Mahdi!
- Acontecem - repetiu Kendrick, baixinho, esfregando a testa. - Providencie as fotografias e fale com Ahmat. Preciso voltar à cela em vinte minutos e quero ser tirado de lá dez minutos depois. Pelo amor
de Deus, mexa-se!
Ahmat, sultão de Oman, ainda de calça comprida e com a camiseta dos Patriots da Nova Inglaterra, estava sentado na cadeira de encosto alto, a luz vermelha do telefone particular brilhando por baixo da
perna direita da mesa. Com o fone no ouvido, escutava atentamente. Afinal, murmurou:
- Então aconteceu, Faisal. Louvado seja Alá, aconteceu!
- Ele me disse que você contava com isso - informou o médico com um tom inquisitivo.
- Contava é uma expressão muito forte, velho amigo. Tinha esperança seria mais apropriado.
- Extraí suas amígdalas, grande sultão, cuidei das suas pequenas doenças ao longo dos anos, inclusive de um grande tumor que se provou infundado.
Ahmat riu, mais para si mesmo do que para o interlocutor.
- Passei uma semana de loucura em Los Angeles, Amal. Quem sabe o que eu poderia ter contraído!
- Tínhamos um pacto. Jamais contei a seu pai.
- O que significa que pensa que não lhe estou contando alguma coisa agora.
- A possibilidade me ocorreu.
- Muito bem, velho amigo...
O jovem sultão levantou a cabeça subitamente quando a porta do gabinete real foi aberta. Duas mulheres entraram; a primeira, visivelmente grávida, era uma ocidental de New Bedford, Massachusetts, loura,
usando um roupão. A esposa. A outra, de pele azeitonada e cabelos escuros, vestia com elegância roupas de sair. Era conhecida apenas como Khalehla.
- Além do bom senso, meu bom doutor - Ahmat continuou a falar ao telefone. - Tenho certas fontes. Nosso conhecido precisava de ajuda, e quem melhor para proporcioná-la do que o soberano de Oman? Vazamos
informações para os animais na embaixada. Prisioneiros estavam detidos em algum lugar, submetidos a interrogatórios brutais. Alguém precisava ser enviado para lá, a fim de manter a ordem, a disciplina...
e Kendrick descobriu-o. Dê ao nosso americano qualquer coisa que ele quiser, mas retarde-o por quinze ou vinte minutos, até a chegada de meus dois agentes de polícia.
- O Al Kabir? Seus primos?
- Dois agentes especiais serão suficientes, meu amigo.
Houve um breve silêncio, uma voz procurando palavras.
- Os rumores são verdadeiros, não é mesmo Ahmat?
- Não tenho a menor ideia do que está querendo sugerir. Rumores são intrigas e não me interessam.
- Dizem que é muito sábio para a idade que tem...
- Isso e frivolidade - interrompeu-o o sultão.
- Ele disse que você era o indicado para... "dirigir este lugar" - murmurou Faisal. - É muito para alguém que o tratou de caxumba.
- Não fique pensando nisso, doutor. Apenas me mantenha informado.
Ahmat estendeu a mão para a gaveta em que se encontrava a base do telefone e apertou diversos números. Poucos segundos depois disse ao telefone:
- Peço-lhe desculpas, minha família. Sei que estão dormindo, mas devo incomodá-los outra vez. Sigam imediatamente para a prisão. Amal Bahrudi quer escapar. Com um peixe.
Ele desligou.
- O que aconteceu? - perguntou a esposa do jovem sultão, adiantando-se rapidamente.
- Por favor! - exclamou Ahmat, os olhos fixados na barriga da mulher a bambolear. - Só faltam seis semanas, Bobbie. Ande mais devagar.
- Ele é demais - disse Roberta Aldridge Yamenni, virando a cabeça e dirigindo-se a Khalehla ao seu lado. - Este meu velho corpo conseguiu chegar entre os dois mil da Maratona de Boston e agora ele quer
me dizer como devo carregar um bebê. Não acha que é demais?
- A prole real, Bobbie - comentou Khalehla, sorrindo.
- Real uma ova! As fraldas são igualitárias. Pergunte a minha mãe, ela teve quatro em seis anos... Mas o que aconteceu, querido?
- Nosso deputado americano fez contato na prisão. Estamos simulando uma fuga.
- Deu certo! - exclamou Khalehla, aproximando-se da mesa.
- A ideia foi sua - disse Ahmat.
- Por favor, esqueça. Estou fora da linha.
- Nada está fora da linha. Apesar das aparências, apesar dos riscos, precisamos de toda ajuda que pudermos obter, de todo conselho que pudermos recolher... Peço desculpas, Khalehla. Nem mesmo dei um alô.
Como meus primos, os policiais subalternos, lamento acordá-la a esta hora, mas tinha certeza de que você gostaria de estar aqui.
- Mais do que em qualquer outro lugar.
- Como conseguiu? Como pôde deixar o hotel às quatro horas da madrugada?
- Graças a Bobbie. Mas devo acrescentar, Ahmat, que nossas reputações sofreram alguns arranhões.
- É mesmo?
O sultão olhou para a esposa.
- Grande Senhor - entoou Bobbie, unindo as palmas, inclinando-se e falando com seu sotaque de Boston. - Esta atraente dama é uma cortesã do Cairo... não acha que soa bem? E nas circunstâncias... - Neste
ponto a esposa real contornou a barriga estufada com as mãos. - O privilégio de classe tem suas vantagens. Falando como uma de nossas professoras de história em Radcliffe, como minha ex-colega de quarto
aqui pode confirmar, Henrique VIII da Inglaterra chamava de "montar na sela". Aconteceu quando Ana Bolena estava indisposta demais para atender a seu monarca.
- Pelo amor de Deus, Roberta, isto não é O rei e eu, e eu não sou Yul Brynner.
- É agora, companheiro! - Rindo, a esposa de Ahmat olhou para Khalehla. - É claro que se você tocar nele eu lhe arrancarei os olhos.
- Não tenha medo, minha cara - disse Khalehla com uma seriedade zombeteira. - Não depois do que me disse.
- Parem, vocês duas - interveio Ahmat, o breve olhar expressando a gratidão que sentia por ambas as mulheres.
- Temos de rir de vez em quando - disse a esposa. - Do contrário ficaríamos freneticamente loucas.
- Já estão frenéticas como na loucura. - Ahmat olhou para a mulher do Cairo. - Como está o seu amigo executivo britânico?
- Frenético na embriaguez - respondeu Khalehla. - Foi visto pela última vez meio caído no American Bar do hotel, ainda me xingando.
- Não é a pior coisa que poderia acontecer à sua cobertura.
- Claro que não. Obviamente, aderi a quem pagou mais.
- O que me diz dos nossos superpatriotas, os idosos príncipes mercadores que preferem me ver fugindo em frustração para o Ocidente do que ficar aqui? Ainda acreditam que você está trabalhando com eles?
- Acreditam. Meu "amigo" me contou no mercado de Sabat Aynub que eles estão convencidos de que você se encontrou com Kendrick. Sua lógica foi tanta que tive de concordar que você era mesmo um idiota; estava
pedindo a pior encrenca possível. Sinto muito.
- Que lógica?
- Sabem que um carro da guarnição recolheu o americano a poucos quarteirões do hotel. Não pude contestar, eu estava lá.
- Então devem estar procurando por esse carro. Mas há veículos da guarnição por toda Mascate.
- Desculpe-me outra vez, Ahmat, mas foi um movimento errado. Eu poderia ter lhe dito isso, se conseguisse entrar em contato. O círculo foi rompido; eles sabiam que Kendrick estava aqui...
- Mustapha! - exclamou o jovem sultão, irritado. - Lamento sua morte, mas não o fechamento de sua grande boca.
- Talvez tenha sido ele, talvez não - disse Khalehla. - Washington pode ser responsável. Muitas pessoas estavam envolvidas na chegada de Kendrick, constatei isso também. Pelo que sei, foi uma operação
do Departamento de Estado; há outros que fazem essas coisas melhor.
- Não sabemos quem é o inimigo ou onde procurar. - Ahmat cerrou o punho, comprimindo os nós dos dedos contra os dentes. - Pode ter sido qualquer um, em qualquer lugar... e bem diante dos nossos olhos.
O que vamos fazer?
- Faça o que ele recomendou - respondeu a mulher do Cairo. - Deixe-o mergulhar. Ele já fez o contato; espere que o procure.
- Isso é tudo o que posso fazer? Esperar?
- Não há mais alguma coisa. Indique a rota de fuga e dê-me um dos seus carros mais velozes. Trouxe meu equipamento de cortesã... está numa valise na outra sala... e enquanto troco de roupa pode coordenar
os detalhes com seus primos e aquele doutor a quem chama de velho amigo.
- Ei, vamos com calma! - protestou Ahmat. - Sei que você e Bobbie se conhecem há muito tempo, mas isso não lhe dá o direito de me ordenar que arrisque a sua vida. De jeito nenhum.
- Não estamos falando sobre a minha vida - declarou Khalehla friamente, os olhos castanhos fixados em Ahmat. - Ou da sua, para falar francamente. Talvez nada resulte desta noite, mas meu trabalho é tentar
descobrir e o seu é me permitir fazê-lo. Afinal, estamos falando sobre o terrorismo e a sobrevivência do Sudoeste Asiático. E não fomos treinados para isso?
- E também dê a ela o número pelo qual pode fazer contato com você - acrescentou Roberta Yamenni, calmamente. - Contato conosco.
- Vá trocar de roupa - murmurou o jovem sultão de Oman balançando a cabeça, os olhos fechados.
- Obrigada, Ahmat. Vou me apressar, mas primeiro devo fazer contato com meu pessoal. Não tenho muito o que dizer e por isso serei rápida.
O homem calvo e bêbado, num amarfanhado terno listrado de Savile Row, foi escoltado para fora do elevador por dois conterrâneos. O volume e peso do corpo embriagado eram tão grandes que cada um tinha de
fazer o maior esforço para sustentar o seu lado.
- Isso é que é uma desgraça! - disse o homem à esquerda, olhando desajeitado para a chave do hotel que pendia dos dedos de sua mão direita, que estava enfiada, ainda mais sem jeito, sob a axila do bêbado.
- Deixe disso, Dickie - protestou seu companheiro. - Todos nós tomamos algumas a mais em muitas ocasiões.
- Não numa porra de um país que está pegando fogo, ateado por bárbaros negros! Ele podia ter começado uma porra de uma briga e nós seríamos enforcados em dois postes! Onde é a porra do quarto?
- No fim do corredor. O sacana é um tanto pesado, não é mesmo?
- Tudo banha e uísque puro, é o meu palpite.
- Não sei, não. Ele parece um cara bastante legal que foi passado para trás por uma puta de conversa mole. E esse tipo de coisa deixa qualquer um aporrinhado. Pegou direito para quem ele trabalha?
- Alguma firma têxtil de Manchester. Twillingame ou Burlingame, alguma coisa assim.
- Nunca ouvi falar - comentou o homem da direita, franzindo as sobrancelhas em surpresa. - Chegamos. Esta é a porta. Passe-me a chave.
- Vamos jogá-lo na cama e mais nenhuma cortesia além disso, está bem?
- Acha que aquele cara vai deixar o bar aberto para nós? Enquanto estamos cumprindo o nosso dever cristão, o sacana pode trancar as portas.
- Ele que não se atreva! - exclamou o homem chamado Dickie, enquanto os três cambaleavam pelo quarto escuro, a luz do corredor delineando os contornos da cama. - Eu lhe dei vinte libras para manter o lugar
aberto, pelo menos para nós. Se acha que vou fechar os olhos por um único segundo até embarcar naquele avião amanhã, está completamente pirado! Não vou deixar que algum crioulo com complexo messiânico
corte a minha garganta! Vamos jogar este sacana na cama!
- Boa noite, gordo príncipe - disse seu companheiro. - E que todos os morcegos negros o levem para algum lugar.
O homem corpulento de terno listrado levantou a cabeça da cama e virou o rosto na direção da porta. Os passos no corredor afastavam-se; num gesto deselegante, ele rolou a massa enorme na cama e levantou-se.
À claridade difusa proporcionada pelos lampiões da rua, abaixo da janela, ele tirou o paletó e pendurou-o com todo cuidado no armário aberto, alisando as rugas. Desfez o nó da gravata e tirou-a. Desabotoou
a camisa suja, recendendo a uísque, tirou-a também e jogou-a numa cesta de lixo. Foi até o banheiro, abriu as duas torneiras e lavou a parte superior do tronco; satisfeito, pegou um vidro de água-de-colônia
e espalhou o perfume generosamente sobre a pele. Enxugando-se, voltou ao quarto e apanhou sua valise no canto da prateleira de bagagem. Depois de abri-la, escolheu uma camisa de seda preta e vestiu-a.
Enquanto a abotoava e enfiava sob o cinto em torno da barriga volumosa, encaminhou-se para a janela, tirando uma caixa de fósforos do bolso da calça. Riscou um palito, deixou a chama assentar e teceu três
semicírculos na frente do vidro. Esperou dez segundos, dirigiu-se até a escrivaninha no meio da parede à esquerda e acendeu o abajur. Foi até a porta, soltou a tranca automática e voltou para a cama, onde
meticulosamente retirou os dois travesseiros de baixo da colcha, afofou-os para apoiar as costas e acomodou-se. Olhou o relógio e esperou.
Se alguém estivesse prestando atenção, ouviria o arranhar na porta em três fases distintas, cada uma semicircular na madeira.
- Entre - disse o homem de camisa de seda preta.
Um árabe de pele trigueira entrou, hesitante, aparentando um temor respeitoso pelo ambiente e pela pessoa que ali se encontrava. Sua túnica era limpa, embora não nova, e o turbante impecável; estava numa
missão privilegiada. Falou em voz suave e reverente:
- Fez o sinal sagrado do crescente e aqui estou, senhor.
- Muito obrigado - disse o inglês. - Entre e feche a porta, por favor.
- Pois não, Effendi.
O homem cumpriu a instrução, mas manteve sua postura de distanciamento.
- Trouxe o que eu preciso?
- Trouxe, sim, senhor. Tanto o equipamento como a informação.
- O equipamento primeiro, por favor.
- Está bem.
O árabe enfiou a mão por baixo da túnica e retirou uma pistola enorme, a aparência desproporcional devida a um cilindro perfurado preso no cano; era um silenciador. Com a outra mão, o mensageiro pegou
uma pequena caixa cinzenta; continha 27 pentes de munição. Adiantou-se submisso para a cama, estendendo o cabo da arma.
- Está carregada, senhor. Nove balas.
- Obrigado - disse o obeso inglês, aceitando o equipamento. Quando o árabe recuou, subserviente, ele acrescentou: - Agora a informação, por favor.
- Pois não, senhor. Mas primeiro devo dizer-lhe que a mulher foi há pouco levada de carro, do seu hotel na próxima rua, para o palácio...
- O quê? - Atônito, o executivo inglês empertigou-se na cama, virando as pernas pesadas e batendo com os pés no chão. - Tem certeza?
- Tenho, sim, senhor. Uma limusine real veio buscá-la.
- Quando?
- Há uns dez ou doze minutos. Claro que fui informado imediatamente. Ela está lá agora.
- Mas o que me diz dos anciãos, dos mercadores? - A voz do homem gordo era baixa e tensa, como se ele fizesse o maior esforço para se controlar. - Ela fez contato, não é mesmo?
- Fez, sim senhor - respondeu o árabe, trêmulo, como se temesse uma surra caso respondesse com uma negativa. - Tomou cafe rio Dakhil com um importador chamado Hajazzi, muito mais tarde voltou a se encontrar
com ele no mercado do Sabat. Estava tirando fotografias, seguindo alguém...
- Quem?
- Não sei, senhor. O Sabat estava apinhado e ela escapou. Não pude segui-la.
- O palácio...? - sussurrou o executivo em voz rouca, enquanto se levantava lentamente. - Incrível!
- É verdade, senhor. Minha informação é exata ou eu não a transmitiria a tão augusta pessoa... Na verdade, Effendi, devo louvar Alá com todo o meu coração, em cada prece, por ter conhecido um verdadeiro
discípulo do Mahdi!
Os olhos do inglês fixaram-se abruptamente na figura do mensageiro e ele indagou, suavemente:
- Já foi informado, não é mesmo?
- Fui abençoado com essa dádiva de conhecimento, escolhido entre meus irmãos para o privilégio.
- Quem mais sabe?
- Por minha vida, senhor, mais ninguém! A sua peregrinação é sagrada, deve ser efetuada em silêncio e invisível. Levarei para a sepultura o segredo da sua presença em Mascate.
- Uma esplêndida ideia - murmurou o avantajado homem imerso nas sombras, enquanto levantava a pistola.
Os dois estampidos soaram como tosses rápidas e abafadas, mas o poder da arma contradizia o som. No outro lado do quarto, o árabe foi projetado contra a parede, a túnica impecável subitamente encharcada
de sangue.
O American Bar do hotel estava escuro, exceto pela luz difusa dos tubos fluorescentes por baixo do balcão. O bartender, de avental, se encolhia num canto dos seus domínios, olhando de vez em quando, cansado,
para os dois vultos que ocupavam um reservado, junto de uma janela, a visão lá fora parcialmente bloqueada pelas persianas arriadas. Os ingleses são uns idiotas, pensou o bartender. Não que eles pudessem
ignorar os perigos... Que estrangeiro ou omanita são podia viver sossegado naqueles dias de cães danados à solta? Só que aqueles dois estariam mais a salvo do ataque de um cão danado por trás das portas
trancadas de seus quartos no hotel, despercebidos, ocultos... Ou não estariam?, refletiu o bartender, reconsiderando. Ele próprio avisara à gerência que os estrangeiros insistiam em permanecer ali, e a
gerência, sem saber o que os estrangeiros podiam estar fazendo, ou se alguém combinara um encontro com eles, postara três guardas armados no saguão, perto da única entrada do American Bar... De qualquer
forma, concluiu o bartender bocejando, sensatos ou insensatos, obtusos ou muito espertos, os ingleses eram extremamente generosos, e isso era tudo o que importava. Isso e a lembrança de sua própria arma,
coberta por uma toalha, por baixo do balcão. Ironicamente, era uma letal submetralhadora israelense que ele comprara de um judeu obsequioso no cais. Os judeus eram muito espertos. Desde que a loucura começara,
estavam armando a metade de Mascate.
- Dickie, olhe ali! - sussurrou o mais tolerante dos dois ingleses, a mão direita entreabrindo um par de ripas da persiana que cobria a janela.
- O que foi, Jack?
Dickie levantou a cabeça de chofre, pondo-se a piscar; estivera cochilando.
- Aquele que vai ali fora não é o nosso conterrâneo de porre?
- Quem? Onde...? Ei, é ele mesmo!
Na rua deserta e mal iluminada o homem corpulento - empertigado, nervoso, andando junto ao meio-fio a olhar rapidamente de um lado para outro - riscou de repente vários fósforos. Parecia fazer sinais com
a chama, jogando cada fósforo apagado na calçada, furioso, antes de acender o seguinte. Em noventa segundos um sedã preto apareceu, aproximando-se a toda velocidade; parou bruscamente, apagando os faróis.
Atônitos, Dickie e seu companheiro observavam pelas persianas, enquanto o gordo, com surpreendente agilidade e determinação, contornava a frente do carro. Ao se aproximar da porta de passageiros, um árabe
de albornoz na cabeça, mas vestindo um terno escuro ocidental, desembarcou. O corpulento britânico pôs-se a falar rapidamente com ele, espetando o indicador no rosto do homem à sua frente. Finalmente girou
o enorme tronco, levantou a cabeça e apontou para uma área nos andares superiores do hotel; o árabe deu meia-volta e atravessou a calçada correndo. Depois, ostensivamente, o obeso executivo sacou uma arma
enorme do cinto, enquanto abria a porta do carro e entrava, irritado.
- Santo Deus! - exclamou Dickie. - Você viu aquilo?
- Claro. Ele trocou de roupa.
- Trocou de roupa?
- Isso mesmo. A claridade é precária, mas não para um olho experiente. A camisa branca desapareceu, assim como o terno listrado. Ele usa agora uma camisa preta e o paletó e a calça também são pretos, eu
diria que de lã, o que não combina absolutamente com o clima.
- Mas do que está falando? - indagou Dickie, aturdido. - Eu me referia à arma!
- Bem, meu amigo, parece evidente que o ramo dele é metais ferrosos e não têxteis.
- Ora, companheiro! Você me deixa embasbacado! Vimos um cara de cento e vinte quilos, há quinze minutos atrás tão bêbado que tivemos de carregá-lo para cima, a correr pela rua subitamente sóbrio, dando
ordens a algum idiota e brandindo uma arma, enquanto embarca num carro guiado por um louco para quem, obviamente, fez sinal... e depois de tudo isso são as roupas dele que lhe pareceram estranhas!
- Claro, existem mais coisas surpreendentes, meu velho. Naturalmente vi a arma, vi o árabe esquisito, vi o carro - cujo motorista me pareceu um maluco -, e o mais absurdo de tudo isso é a roupa dele me
haver impressionado tanto, não percebe?
- Não, não percebo absolutamente nada.
- Talvez dizer que é "estranha" seja uma expressão fraca...
- Tente encontrar outra melhor, Jack.
- Está bem, tentarei... Aquele sacana gordo podia ou não estar de porre, mas era um dândi sem tirar nem pôr. Um terno listrado do melhor estame, uma camisa Angelo de East Bond, a melhor gravata foulard
que a Harrods tem, sapatos Benedictine... couro alemão e costurado sob medida na Itália. Ele está vestido para arrasar, pensei, tudo certinho para o clima.
- E daí? - indagou o exasperado Dickie.
- E daí que lá fora, na rua, ainda há pouco, eu o vejo num casaco e calça da pior qualidade, inadequados para este maldito tempo, certamente não o tipo de traje que se destacaria na multidão, muito menos
apropriado para uma manhã social ou um desjejum em Ascot. E já que estou falando nisso, não há uma única firma têxtil de Manchester que eu não conheça, e posso garantir que não existe nenhuma Twillingame
nem Burlingame ou qualquer outro nome parecido.
- Não me diga!
- Digo, sim.
- Afinal, acha que é um embuste?
- E também acho que não devemos pegar aquele avião pela manhã.
- Por quê?
- Acho que devemos ir à nossa embaixada e acordar alguém.
- Mas...
- Suponha, Dickie, que aquele sacana está vestido assim para matar.
Segurança Ultramáxima
Não Há Intercepções
Prossiga
Ele continuou o diário.
O último relatório é perturbador e até agora meus instrumentos não conseguiram penetrar nos códigos de acesso de Langley. Nem mesmo sei se os dados foram retidos ou não. O alvo fez contato. A sombra fala
em opção de alto risco que era "inevitável" - inevitável! - mas extremamente perigosa.
O que é que ele está fazendo, e como? Quais são os seus métodos, quem são os seus contatos? Preciso dos detalhes específicos! Se ele sobreviver, precisarei de cada minúcia, pois são as minúcias que proporcionam
credibilidade a qualquer ação extraordinária, e é a ação que impulsionará o alvo para a consciência da nação.
Mas ele sobreviverá ou será apenas mais uma estatística sepultada numa série de acontecimentos não revelados? Meus instrumentos não podem esclarecer, são capazes apenas de confirmar seu potencial, o que
nada significa se ele morrer. Porque todo o meu trabalho terá sido completamente em vão.
8
Os quatro terroristas prisioneiros estavam algemados, dois sentados no lado direito do furgão da polícia em alta velocidade, violentamente sacudidos, os outros dois em frente, no lado esquerdo. Como ficara
acertado, Kendrick sentava com o jovem fanático de olhos desvairados, cujo lábio leporino dificultava a pronúncia em guinchos; Azra encontrava-se no outro lado, junto com o ríspido assassino mais velho
que desafiara e agredira Evan, o homem que lhe parecera um sargento-capataz. Ao lado da porta de aço chocalhante do furgão estava um guarda, a mão esquerda segurando uma barra no teto para se manter equilibrado.
A mão direita empunhava uma pistola-metralhadora MAC-10, presa no ombro por uma tira de couro. Uma única rajada transformaria os quatro prisioneiros arfantes em exauridos cadáveres sangrentos, aderidos
às paredes do veículo em disparada. Havia também - como fora combinado - uma argola com chaves pendurada no cinto do guarda, as chaves que soltavam as algemas dos prisioneiros. Tudo fora uma corrida contra
o tempo, um tempo precioso. Minutos se transformavam em horas e as horas traziam um novo dia.
- Você está louco e sabe disso, não é mesmo?
- Não temos alternativa, doutor. Aquele homem é Azra... conhecido como Azul.
- Errado, errado, errado! Azra tem uma barbicha e cabelos compridos... todos o vimos na televisão...
- Pois raspou a barba e cortou os cabelos.
- Eu lhe pergunto: Você é Amal Bahrudi?
- Sou agora.
- Não é, não! Assim como ele não é Azra! Aquele homem foi trazido para cá há cinco horas, de um bazar no Waljat. É um bêbado imbecil, um palhaço arrogante, não mais do que isso. O porco que era seu companheiro
cortou a própria garganta com a faca de um policial!
- Eu estava lá, Faisal. Ele é Azra, irmão de Zaya Yateem.
- Porque ele assim lhe disse?
- Não. Porque falei com ele, ouvi o que tinha a dizer. Sua guerra não é a favor ou contra Alá, Abraão ou Cristo. Ele luta pela sobrevivência nesta vida, neste mundo.
- Loucura! Só há loucura em torno de nós!
- O que disse Ahmat?
- Para fazer como você quiser, mas deve esperar até a chegada da sua polícia. São dois homens em que ele confia plenamente... Têm as suas instruções, se não estou enganado.
- Os dois iguais? Os dois uniformes que me acompanharam do bazar a Al Kabir?
- Eles são especiais. Um deles guiará o veículo da polícia, o outro agirá como o guarda.
- Boa ideia. Estou realmente representando o roteiro de Ahmat, não é mesmo?
- Está sendo injusto, Sr. Kendrick.
- Ele próprio não está sendo tão íntegro... Aqui estão os outros dois prisioneiros que quero na transferência, no veículo com Azra e comigo.
- Por quê? Quem são eles?
- Um é um lunático que xingaria o próprio pelotão de fuzilamento... e o outro é a barba de Azra. Faz qualquer coisa que o Azul mandar. Retirem esses dois e não haverá ninguém para aguentar a situação.
- Fala de maneira enigmática.
- Os outros podem ser dobrados, doutor. Não chegam a saber de nada, mas podem ser dobrados. Sugiro que peguem três ou quatro de cada vez, ponham em celas menores e depois disparem alguns rifles nos fundos
da prisão. Talvez encontrem alguns fanáticos que não estejam muito ansiosos pela própria execução.
- Está removendo a sua própria pele, Shaikh Kendrick. Entrará num mundo de que nada conhece.
- Aprenderei, doutor. É por isso que estou aqui.
O sinal foi dado! O guarda junto à porta firmou-se, baixando a mão esquerda por um instante; sacudiu-a para restaurar a circulação e no momento seguinte levantou-a para agarrar de novo a barra no teto.
Repetiria a ação em menos de um minuto e então seria o momento para Evan entrar em ação. A coreografia fora improvisada às pressas na enfermaria da prisão: um ataque rápido e simples. A reação do guarda
seria fundamental para o sucesso. Vinte e dois segundos depois a mão esquerda do guarda tornou a baixar, num gesto de cansaço.
Kendrick projetou-se do banco, o corpo um míssil compacto colidindo contra o guarda, cuja cabeça bateu na porta com tanta força que a expressão subitamente histérica do homem se tornou passiva no mesmo
instante, enquanto caía.
- Depressa! - ordenou Eva, virando-se para Azra. - Ajude-me! Pegue as chaves!
O palestino pulou para a frente, acompanhado pelo sargento-capataz. Todas juntas, as mãos algemadas empurraram para o lado a pistola-metralhadora MAC-10 e arrancaram as chaves do cinto do guarda.
- Vou matar o guarda agora! - gritou estridente o fanático de lábio leporino, segurando a arma e avançando no veículo a balançar, o cano apontado para a cabeça do guarda.
- Detenha-o! - ordenou Azra.
- Idiota! - berrou o sargento-capataz, arrancando a arma do jovem fanático. - O motorista ouvirá os tiros!
- Ele é nosso santo inimigo!
- Ele é nossa santa saída, seu imbecil miserável! - disse Azra, abrindo as algemas de Kendrick e estendendo a chave para que Evan fizesse o mesmo por ele.
O deputado americano assim fez, depois voltou-se para os pulsos estendidos do sargento-capataz.
- Meu nome é Yosef - disse o homem mais velho. - É um nome hebraico, pois minha mãe era hebreia, mas não fazemos parte dos judeus de Israel... E você é um homem de coragem, Amal Bahrudi.
- Não gosto de pelotões de fuzilamento no deserto - disse Kendrick, jogando as algemas no chão e virando-se para o jovem terrorista que queria matar o guarda inconsciente no chão. - Não sei se devo libertá-lo
ou não.
- Por quê? - gritou o garoto, estridente. - Por que eu mato por nossa guerra santa, morro por nossa causa?
- Não, meu jovem, porque pode matar a todos nós e somos mais valiosos do que você.
- Amal! - gritou Azra, segurando o braço de Evan, tanto para se firmar quanto para atrair a atenção do outro. - Concordo que é um idiota, mas há circunstâncias especiais. Colonos na Margem Ocidental explodiram
a casa da família dele e a loja de roupas do pai. O pai morreu na explosão e a Comissão de Custódia de Israel vendeu as duas propriedades a novos colonos por quase nada. - Azul baixou a voz ao acrescentar
no ouvido de Kendrick: - Ele é um caso mental, mas não tinha ninguém a quem recorrer, exceto a nós. Yosef e eu o controlaremos. Deixe-o livre.
- Por sua cabeça, poeta - respondeu Evan, em tom ríspido, abrindo as algemas do jovem terrorista.
- Por que falou numa execução no deserto? - perguntou Yosef.
- Porque a estrada por baixo de nós é meio de areia - explicou Kendrick, que conhecia o percurso. - Não pode sentir? Nosso destino era desaparecer; queimados ou enterrados na areia.
- Por que justamente nós? - insistiu o terrorista mais velho.
- Posso explicar melhor a mim do que a você: não sabem o que fazer comigo, então por que não me matar? Se sou perigoso ou influente, tanto o perigo quanto a influência desaparecem comigo. - Evan fez uma
pausa, depois balançou a cabeça e acrescentou: - Pensando bem, isso provavelmente explica Yosef e o garoto; eram os prisioneiros mais ruidosos, e suas vozes devem ter sido identificadas... os dois são
facilmente distinguíveis.
- E eu? - indagou Azra, olhando para Kendrick.
- Eu diria que pode oferecer uma resposta sem a minha ajuda - disse Kendrick, sustentando o olhar do palestino, com algum desdém nos olhos. - Tentei me afastar quando vieram me procurar nas latrinas, mas
você foi muito lento.
- Quer dizer que eles nos viram juntos?
- O estudante conseguiria passar raspando. Não apenas juntos, mas também apartados dos outros. Foi a sua conferência, mandachuva.
- O caminhão está diminuindo a velocidade! - exclamou Yosef, enquanto o furgão freava um pouco, iniciando uma curva em descida.
- Temos de sair - disse Evan. - Agora. Se ele está descendo para um vale, haverá soldados lá embaixo. Depressa! Queremos um terreno alto; precisamos disso, pois jamais conseguiríamos subir.
- A porta! - gritou Azra. - Deve estar trancada com um cadeado por fora.
- Não tenho a menor ideia - mentiu Kendrick, seguindo o roteiro que fora rapidamente preparado na enfermaria da prisão. Os rebites haviam sido removidos e afrouxados em dois painéis. - Nunca fui feito
prisioneiro aqui, mas isso não tem importância. Afinal, é uma folha de aço com soldas. Nós quatro, forçando juntos, podemos arrebentar uma divisória. A do centro. É a mais fraca.
Evan segurou o garoto de lábio leporino pelo ombro, puxando-o para a esquerda.
- Muito bem, garoto selvagem, bata como se estivesse derrubando o Muro das Lamentações. Nós quatro. Agora!
- Esperem! - Azra cambaleou pelo furgão. - A arma!
Agarrou a pistola-metralhadora MAC-10 e pendurou-a no ombro, o cano apontado para baixo. Juntou-se aos outros e acrescentou:
- Podemos começar.
- Agora! - gritou Kendrick de novo.
Os quatro prisioneiros arremeteram contra o painel central da porta, enquanto o furgão passava aos solavancos pelas rochas da estrada, descendo numa curva. A divisória de metal cedeu, estufando nas soldas,
o luar infiltrando-se pelas aberturas.
- Mais uma vez! - bradou Yosef, os olhos em fogo.
- Lembrem-se! - ordenou o homem agora aceito como Amal Bahrudi. - Se conseguirmos sair, dobrem os joelhos ao baterem no chão. Não precisamos de ninguém ferido.
Outra vez eles correram para o painel parcialmente arrancado. Os rebites de baixo se desprenderam; o metal voou ao luar e os quatro prisioneiros projetaram-se para a estrada sinuosa que levava a um vale
no deserto. Dentro do furgão, o guarda rolou para a frente, com o movimento do veículo em descida, o rosto coberto de suor provocado pelo medo da morte. Engatinhou e bateu várias vezes na parede do compartimento
do motorista. Houve uma única batida em resposta. A metade da missão noturna estava cumprida.
Os fugitivos também rolaram, mas pela encosta, os movimentos interrompidos abruptamente, invertidos pela gravidade, cada um se esforçando para recuperar o equilíbrio. Azra e Yosef foram os primeiros a
ficar de pé, virando o pescoço e sacudindo a cabeça, instintivamente avaliando as contusões, em busca de algo pior. Kendrick seguiu-os, o ombro em fogo, as pernas em momentânea agonia e a mão esfolada,
mas grato pelas exigências árduas de excursionar nas montanhas e descer nas corredeiras; sentia alguma dor, mas não estava machucado. O jovem de lábio leporino foi quem teve a pior sorte; gemeu na terra
pedregosa com relva do deserto, estremecendo em fúria quando tentou se levantar e não conseguiu. Yosef correu para ele, enquanto Evan e Azra estudavam o vale lá embaixo. O rude homem mais velho chegou
a uma conclusão e gritou para os dois superiores:
- O garoto quebrou a perna!
- Mate-me agora! - berrou o palestino. - Irei para Alá e vocês continuarão a luta!
- Ora, cale essa boca! - disse Azra, pegando a MAC-10 e encaminhando-se junto com Kendrick para o garoto ferido. - Sua compulsão para morrer está se tornando insuportável, você vai acabar matando a todos
nós com essa sua voz esganiçada. Rasgue a camisa dele em tiras, Yosef. Amarre suas mãos e pés e leve-o para a estrada. Aquele caminhão voltará assim que chegar ao acampamento lá embaixo e os idiotas descobrirem
o que aconteceu. Eles o encontrarão.
- Vai me entregar ao inimigo? - berrou o adolescente.
- Fique quieto! - respondeu Azra, irritado, enquanto pendurava a pistola-metralhadora no ombro. - Vamos entregá-lo a um hospital, onde receberá os cuidados necessários. Crianças não são executadas, exceto
por bombas e mísseis... e com frequência demais, só que não por aqui.
- Não denunciarei nada!
- Nem poderia, pois não sabe de nada - disse o homem chamado Azul. - Amarre-o, Yosef. Deixe a perna tão confortável quanto possível. - Azra inclinou-se para o jovem. - Há maneiras melhores de lutar do
que morrer desnecessariamente. Deixe o inimigo curá-lo, e poderá voltar à luta... Volte para nós, meu obstinado guerreiro da liberdade. Precisamos de você... Yosef, depressa!
Enquanto o terrorista mais velho cumpria as ordens, Azra e Kendrick voltaram à estrada aberta na rocha. Mais adiante começavam as areias brancas, estendendo-se intermináveis ao luar, um vasto chão de alabastro,
tendo como telhado o escuro céu por cima. A distância, intrometendo-se no branco lençol, havia uma pequena erupção de amarelo, pulsando. Era uma fogueira no deserto, o ponto de encontro que seria uma parte
intrínseca da "fuga". Estava muito longe para que vultos pudessem ser divisados claramente, mas por certo ali estavam; os fugitivos presumiram que seriam soldados ou policiais omanitas, e com toda a razão.
Só que não eram os carrascos que os companheiros de Amal Bahrudi imaginavam.
- Conhece mais o terreno do que eu - disse Evan, em inglês. - Em quanto calcula a distância do acampamento?
- Dez quilômetros, talvez doze, não mais que isso. A estrada se torna reta lá embaixo; em pouco tempo poderão chegar aqui.
- Então vamos embora.
Kendrick olhou para trás, observando Yosef carregar o adolescente ferido para a estrada. Encaminhou-se para eles. Azra, porém, não se mexeu.
- Para onde, Amal Bahrudi? - gritou. - Para onde devemos ir?
Evan voltou a cabeça para trás, bruscamente.
- Para onde? - repetiu, em tom desdenhoso. - Sem dúvida, para longe daqui. Logo haverá claridade, e se sei do que estou falando... e posso garantir que sei... haverá uma dúzia de helicópteros voando a
baixa altitude à nossa procura. Poderíamos sumir na cidade, mas não aqui.
- Então o que faremos? Para onde ir?
Kendrick não podia enxergar direito ao fraco luar, mas sentiu o olhar intenso, inquisitivo, fixado nele. Estava sendo testado.
- Temos de mandar um aviso à embaixada. Para sua irmã, Yateem, ou para o homem chamado Ahbyahd. Que parem com as fotografias e matem os envolvidos.
- Como faremos isso? Como enviaremos o aviso à embaixada? Sua gente lhe ensinou como fazer isso, Amal Bahrudi?
Evan estava preparado; a pergunta era inevitável.
- Para ser franco, não sabiam qual era o canal de informações, mas presumiram que vocês o mudariam todos os dias, se tivessem alguma inteligência. Eu devia entregar uma mensagem nos portões, dirigida ao
seu conselho, pedindo para me deixarem passar... através do canal de comunicações, onde quer que estivesse no momento.
- Muitas mensagens assim poderiam ser uma armadilha. Por que a sua seria aceita?
Kendrick fez uma pausa; ao responder, a voz era baixa e calma, impregnada de insinuação.
- Porque estaria assinada pelo Mahdi.
Os olhos de Azra se arregalaram. Acenou com a cabeça lentamente e ergueu a mão.
- Quem é ele?
- O envelope estava lacrado com cera e não devia ser violado. Foi um insulto que tive dificuldade em aceitar, mas até mesmo eu acato as ordens dos que pagam o frete, se entende o que quero dizer.
- Sim, os que nos suprem com o dinheiro para fazer o que fazemos...
- Se havia um código indicando a autenticidade, cabia a um de vocês ou a todo o conselho saberem, não a mim.
- Dê-me a mensagem.
- Idiota! - exclamou com raiva o deputado do Nono Distrito do Colorado. - Quando vi a polícia me perseguindo, rasguei-a em pedacinhos e espalhei pelo Al Kabir! Você teria agido de outra maneira?
O palestino permaneceu imóvel.
- Não, claro que não - respondeu. - De qualquer forma, não vamos precisar. Darei um jeito para alcançarmos a embaixada. O canal de comunicações, como você o chama, funciona para dentro e para fora.
- E funciona tão bem que os filmes saem debaixo dos narizes de seus eficientes guardas. Transmita o aviso para sua irmã. Troquem todos os guardas, sem exceção, iniciem uma busca imediata da câmera. Quando
for encontrada, matem o dono e quem quer que pareça amigo dele. Matem todos.
- Com base numa observação tão superficial? - protestou Azra. - Correríamos o risco de desperdiçar vidas inocentes, guerreiros preciosos.
- Não vamos ser hipócritas. - Amal Bahrudi soltou uma risada. - Não temos tais hesitações com o inimigo. Não estamos matando "guerreiros preciosos", mas pessoas inocentes, a fim de obrigar o mundo a nos
ouvir, um mundo que se mantém cego e surdo às nossas lutas, à nossa sobrevivência.
- Por seu Alá todo-poderoso, agora é você quem está cego e surdo! - bradou Azra. - Acredita que a imprensa ocidental não pode ser questionada! Dos onze cadáveres, quatro já estavam mortos, entre eles duas
mulheres... uma por sua própria mão, pois era uma paranoica com medo do estupro... o estupro árabe. A outra, uma mulher muito mais forte, um tanto parecida com o fuzileiro que atacou Nassir, lançou-se
contra um jovem imbecil, cuja reação foi disparar a arma. Os dois homens eram velhos e enfermos, morreram do coração. Não nos absolve de causar mortes de inocentes, mas não se levantaram armas contra eles.
Tudo isso já foi explicado por Zaya, mas ninguém acredita em nós. Nunca vão acreditar!
- Não que isso tenha importância, mas o que me diz dos outros? Mais sete, se não estou enganado.
- Foram condenados por nosso conselho e com toda justiça. Eram agentes de informações, criavam redes contra nós por todo o Golfo e o Mediterrâneo, membros das infames Operações Consulares... inclusive
dois árabes que venderam suas almas ao nos trair, pagos pelos sionistas e seus fantoches americanos. Mereciam morrer, pois queriam a nossa morte, mas não antes de sermos desonrados, transformados em caricaturas
do mal, quando não há mal algum em nós... apenas o desejo de viver em nossa própria terra...
- Chega, poeta - interrompeu-o Kendrick, olhando para Yosef e o garoto terrorista que ansiava pelos braços de Alá. - Não há tempo para sermões, precisamos sair daqui.
- Para a embaixada - concordou Azra. - Através do canal de comunicações.
Kendrick voltou para junto do palestino, avançando devagar.
- Para a embaixada, sim, mas não através do canal, sigamos apenas até os portões. Ali enviará uma mensagem para sua irmã, explicando tudo. Com essas ordens, meu trabalho fica encerrado e o seu também...
o seu por pelo menos um ou dois dias.
- Afinal, do que está falando? - indagou o aturdido Azul.
- Tenho instruções para levar um de vocês a Bahrain, o mais depressa possível... e você é o escolhido. Me capturaram e consegui escapar, não posso mais correr nenhum risco. Não agora.
- Bahrain?
- Ao encontro do Mahdi. Será apenas por umas poucas horas, mas é urgente. Ele tem novas ordens para vocês, ordens que não confiará a ninguém que não seja membro do conselho. E você é um membro, nós dois
estamos do lado de fora, não lá dentro.
- O aeroporto está sendo vigiado - respondeu Azra, com toda firmeza. - É patrulhado por guardas e cães; ninguém pode entrar nem sair sem ser submetido a um interrogatório. Jamais conseguiríamos passar.
E a mesma coisa acontece no cais. Cada embarcação é detida e revistada, ou a explodem se não obedece às ordens.
- Nada disso impediu que seu pessoal entrasse e saísse através do canal de comunicações. Vi os resultados em Berlim.
- Mas disse que era "urgente", e o canal de comunicações é um processo de 24 a 48 horas.
- Por que tanto tempo?
- Viajamos para o sul apenas à noite e em uniformes das guarnições de fronteira iemenitas. Se nos detêm, declaramos estar patrulhando a costa. E depois fazemos contato com as lanchas velozes de águas profundas...
fornecidas por Bahrain, é claro.
- Claro.
Ele estava certo, pensou Evan. A costa meridional até Ra’s al Hadd e além, até o estreito de Masirah, era território aberto, um agreste de praias rochosas e interiores inóspitos, uma dádiva para assaltantes,
contrabandistas e, acima de tudo, terroristas. E que melhor proteção do que uniformes das guarnições da fronteira, soldados escolhidos por sua lealdade e sobretudo pela brutalidade, que igualava ou era
até superior à dos desesperados internacionais com um santuário garantido no Iêmen?
- Isso é ótimo - continuou Amal Bahrudi em tom profissional. - Mas como conseguem os uniformes, em nome de Alá? Sei que não são comuns... a cor mais clara, dragonas diferentes, botas projetadas para deserto
e água...
- Mandei fazê-los - interrompeu-o Azra, os olhos fixados no vale embaixo. - Em Bahrain, é claro. São contados e guardados num lugar seguro quando não estão em uso... Você tem razão, temos de partir logo.
Aquele caminhão chegará ao acampamento em menos de dois minutos. Conversaremos pelo caminho. Vamos embora!
Yosef deixara o jovem terrorista ferido na estrada, acalmando-o e dando instruções, em voz suave mas firme. Azra e Kendrick aproximaram-se; Evan falou:
- Convém seguirmos pela estrada por algum tempo, até avistarmos os faróis subindo do vale. E é melhor também nos apressarmos.
Depois de palavras finais de ânimo ao companheiro imobilizado, os três fugitivos começaram a correr pela estrada a caminho do terreno plano, várias dezenas de metros além. Havia ali uma combinação de mato
seco e rasteiro, em manchas na terra árida, com árvores baixas e retorcidas, estimuladas pela umidade soprada do mar à noite, apenas para serem frustradas pelo calor escaldante e o ar parado do dia. Até
onde os olhos podiam alcançar, à claridade difusa do luar, a estrada era reta. Respirando com dificuldade, o peito estufado arfando, Yosef disse:
- Três ou quatro quilômetros para o norte e encontraremos mais árvores, árvores mais altas e muito mais folhagem para nos escondermos.
- Tem certeza? - indagou Kendrick, desagradavelmente surpreso, pois pensava ser o único a saber onde se encontravam.
- Talvez não seja exatamente nesta estrada, embora haja bem poucas e todas sejam iguais - respondeu o rude terrorista mais velho. - Partindo das areias e na direção do Golfo, a paisagem muda. Tudo se torna
mais verde e há pequenas colinas. E súbito se está em Mascate. Acontece de repente.
- Yosef integrou o grupo de reconhecimento sob o comando de Ahbyahd - explicou Azra. - Passaram por aqui cinco dias antes de capturarmos a embaixada.
- Entendo... e também sei que toda a Floresta Negra não nos poderia ajudar após o raiar do dia, e Oman não é Schwarzwald. Haverá soldados, policiais e helicópteros vasculhando cada palmo do terreno. Não
há lugar para nos escondermos, a não ser Mascate. - Evan dirigiu as palavras seguintes ao homem chamado Azul: - Estou certo de que você tem contatos na cidade.
- Vários.
- O que significa isso?
- Entre dez e vinte, alguns em altas posições. E podem entrar e sair livremente.
- Reúna todos em Mascate e me leve a eles. Escolherei um.
- Escolherá um...
- Só preciso de um, mas tem que ser o homem certo. Ele levará uma mensagem, e despacharei você para Bahrain em três horas.
- Ao encontro do Mahdi?
- Exatamente.
- Mas você disse... insinuou... que não sabe quem ele é.
- E não sei mesmo.
- Mas sabe como alcançá-lo?
- Não - respondeu Kendrick, sentindo uma súbita dor no peito. - Outro insulto, só que mais fácil de compreender. Meu campo de operações é na Europa, não aqui. Apenas presumi que você saberia onde encontrá-lo
em Bahrain.
- Talvez, na mensagem que você destruiu em Al Kabir, houvesse um código...
- Há sempre sistemas de emergência! - interrompeu-o Evan asperamente, tentando controlar a ansiedade.
- Claro que há - respondeu Azra, pensativo. - Mas nenhum que envolva diretamente o Mahdi. Como deve saber, seu nome é pronunciado aos sussurros e apenas por uns poucos.
- Não sei de nada. Já lhe disse, não opero nesta parte do mundo... e, obviamente, foi por isso que me escolheram.
- Tem razão - concordou Azul. - Está longe da sua base, é o mensageiro inesperado.
- Não acredito nisso! - explodiu Kendrick. - Recebem instruções... e sem dúvida diariamente, não é mesmo?
- Claro. - Azra lançou um rápido olhar para Yosef. - Mas, como você, não passo de um mensageiro.
- O quê?
- Sou um membro do conselho, jovem, forte e não uma mulher. Mas também não sou um líder; minha idade não permite. Nassir, minha irmã Zaya e Ahbyahd... eles são os líderes designados do conselho. Até a
morte de Nassir, os três partilhavam a responsabilidade pela operação. Quando chegavam instruções lacradas, era eu quem as entregava, mas não rompia o lacre. Apenas Zaya e Ahbyahd sabem como fazer contato
com o Mahdi... não pessoalmente, é claro, mas através de várias pessoas que levam a ele, que transmitem um aviso.
- Pode fazer contato pelo rádio com sua irmã... numa frequência segura ou talvez por um telefone garantido? Ela lhe daria a informação.
- Impossível. O equipamento de interceptação do inimigo é muito bom. Não falamos nada pelo rádio ou telefone que não poderíamos dizer em público; temos de presumir que seria a mesma coisa.
- Seu pessoal em Mascate! - continuou Evan, falando depressa, enfático, sentindo as gotas de suor na linha dos cabelos. - Um deles não poderia entrar e trazer a informação?
- Informação sobre o Mahdi, não importa quão remota? - indagou Azra. - Ela executaria quem a procurasse.
- Mas precisamos da informação! Tenho de levá-lo a Bahrain... até ele... esta noite! Não vou arriscar as fontes de financiamento de nossas operações na Europa para ser responsabilizado por um fracasso
que não é meu!
- Só há uma solução - declarou Azra. - A que eu sugeri lá embaixo. Temos de ir à embaixada... entrar na embaixada.
- Não há tempo para essas complicações! - insistiu Kendrick, desesperado. - Conheço Bahrain. Escolherei uma locação e pediremos a alguém do seu pessoal para entrar na embaixada e transmitir o aviso à sua
irmã. Ela ou Ahbyahd encontrarão um meio de alcançar um dos contatos do Mahdi. Não pode haver menção a qualquer de nós, é claro... teremos de dizer que surgiu uma emergência. É isso, uma emergência; eles
saberão o que significa! Arranjarei o ponto de encontro. Uma rua, uma mesquita, um lugar no cais ou nos arredores do aeroporto. Alguém virá. Alguém tem de vir!
O jovem terrorista esguio e musculoso ficou de novo em silêncio, enquanto estudava o rosto do homem que acreditava ser seu equivalente na distante Europa.
- Faço uma pergunta, Bahrudi - ele disse, depois de quase dez segundos. - Você seria tão negligente, tão indisciplinado, com suas fontes financeiras em Berlim? Moscou, os bancos búlgaros em Sofia ou o
dinheiro invisível em Zagreb tolerariam comunicações tão descuidadas?
- Numa emergência, eles compreenderiam.
- Se você permitisse tal emergência, eles cortariam sua garganta e o substituiriam!
- Cuide de suas fontes e deixe que eu cuido das minhas, Sr. Azul.
- Muito bem, cuidarei das minhas. Aqui e agora. Vamos para a embaixada!
Os ventos do golfo de Oman passavam sobre os arbustos raquíticos e as árvores baixas e retorcidas, mas não podiam abafar o som longínquo e persistente da sirene, subindo do vale no deserto. Era o sinal.
Tratem de se esconder. Kendrick já esperava por isso.
- Corram! - gritou Yosef, segurando Azra pelo ombro e empurrando-o para a frente na estrada. - Corram, meus irmãos, como nunca correram antes em suas vidas!
- A embaixada! - gritou o homem chamado Azul. - Antes do dia clarear!
Para Evan Kendrick, deputado do Nono Distrito do Colorado, um pesadelo que o acompanharia pelo resto da vida estava prestes a começar.
9
Khalehla ficou aturdida. Os olhos haviam sido subitamente atraídos para o espelho retrovisor - uma mancha de luz, uma imagem de preto sobre um preto mais escuro, alguma coisa. E depois lá estava. A distância,
na colina por cima de Mascate, um carro a seguia! Não havia faróis, apenas uma sombra escura em movimento. Contornava uma curva na estrada deserta que levava à descida sinuosa para o vale... ao começo
das areias de Jabal Sham, onde a "fuga" deveria ocorrer. Havia apenas uma entrada e uma saída do vale no deserto e sua estratégia fora a de sair da estrada, onde ninguém pudesse ver, depois acompanhar
Evan Kendrick e os outros fugitivos a pé, assim que escapassem do furgão. A estratégia estava agora frustrada.
Oh, Deus, não posso ser apanhada! Eles matariam todos os reféns na embaixada! O que foi que eu fiz! Saia daqui! Vá embora!
Khalehla deu uma guinada no volante; o potente carro derrapou na terra macia e arenosa, saltando sobre buracos na estrada primitiva e mudando de direção. Pisou no acelerador, empurrando o pedal até o fundo;
momentos depois, com os faróis altos, ela passou pelo carro que corria em sentido contrário. Um vulto ao lado do atônito motorista tentou se abaixar, escondendo o rosto e o corpo, mas foi impossível.
E Khalehla não pôde acreditar no que viu!
Contudo, depois, foi forçada a acreditar. Num súbito momento de absoluta clareza, ela compreendeu que estava certo, perfeito... inconfundivelmente perfeito. Tony! O desajeitado, presunçoso e inarticulado
Anthony MacDonald. O rejeitado da companhia, mas com uma posição segura porque o dono era o pai de sua esposa, o que não impedira que fosse despachado para o Cairo, onde poderia causar menos danos. Um
representante sem pasta, que se limitava a oferecer jantares, em que ele e a mulher, também inepta e maçante, invariavelmente se embriagavam. Era como se um memorando da companhia estivesse tatuado em
suas testas: Não permitido no Reino Unido, exceto em obrigatórios funerais de família. Passagens de avião de volta compulsórias. Como era perfeitamente engenhoso! O idiota gordo, indulgente, desmiolado,
numa plumagem vistosa que não podia esconder seus excessos. O Pimpinela Escarlate não poderia igualar seu disfarce... e era de fato um disfarce, Khalehla não tinha a menor dúvida. Ao projetar seu próprio
disfarce, forçara um mestre a revelar o dele.
Ela tentou recordar, reconstituir como ele a atraíra, mas os passos eram indistintos, porque não pensara a respeito na ocasião. Não tinha nenhum motivo para duvidar de que Tom MacDonald, o enigma alcoolizado,
se desesperava com a perspectiva de viajar para Oman sozinho, sem a companhia de alguém que conhecesse as coisas. Queixara-se várias vezes, quase tremendo, que sua firma tinha contas em Mascate e deveria
atendê-las, apesar dos horrores que estavam acontecendo por lá. Ela respondera - várias vezes também - com palavras tranquilizadoras, que era basicamente um problema dos Estados Unidos e Israel, nada tinha
a ver com os britânicos, por isso ele não seria afetado. Era como se MacDonald esperasse que ela fosse enviada para lá. Quando as ordens chegaram, Khalehla lembrara de seus temores e lhe telefonara, convencida
de que seria a escolta perfeita para chegar a Oman. Ah, perfeita até demais!
Por Deus, que rede ele devia ter!, pensou Khalehla. Pouco mais de uma hora antes ele estava supostamente paralisado pelo álcool, bancando o idiota num bar de hotel, e agora se encontrava aqui, às cinco
horas da manhã, seguindo-a num enorme sedã com todas as luzes apagadas. Uma suposição era inevitável: ele a pusera sob uma vigilância de 24 horas e a seguira depois de ela passar pelos portões do palácio,
o que significava que seus informantes haviam descoberto sua ligação com o sultão de Oman. Mas para quem o excepcionalmente esperto MacDonald estaria trabalhando, com uma cobertura que lhe proporcionava
acesso a uma eficiente rede omanita de informantes e motoristas de potentes automóveis, a qualquer hora do dia e da noite - naquele país sitiado, onde cada estrangeiro se encontrava sob um microscópio?
De que lado ele estaria... e se era do errado, há quantos anos o ubíquo Tony MacDonald vinha se empenhando em seu jogo assassino?
Quem estaria por trás dele? A visita daquele contraditório inglês a Oman teria alguma relação com Evan Kendrick? Ahmat falara de maneira cautelosa e abstrata sobre o objetivo secreto do deputado americano
em Mascate, mas não quisera discorrer a respeito, apenas comentara que nenhuma teoria devia ser ignorada, por mais implausível que parecesse. Revelara apenas que o antigo empreiteiro no Sudoeste Asiático
estava convencido de que a captura sangrenta da embaixada podia ser traçada até um homem e uma conspiração industrial, cujas origens foram percebidas há quatro anos na Arábia Saudita - percebidas, mas
não provadas. Era muito mais do que lhe tinha informado o seu próprio pessoal. Contudo, um americano inteligente e bem-sucedido não se arriscaria a cair na clandestinidade, entre terroristas, se não tivesse
convicções extraordinárias. Para Ahmat, sultão de Oman e fã dos Patriots da Nova Inglaterra, isso era suficiente. Depois de enviá-lo para Oman, Washington não o reconheceria, não o ajudaria.
- Mas nós podemos! - exclamara Ahmat. - Eu posso!
E agora Anthony MacDonald parecia um fator sobremodo desconcertante na equação terrorista.
Os instintos profissionais exigiam que ela se afastasse, escapasse dali, mas Khalehla não podia fazer isso. Alguma coisa acontecera, alguém alterara o delicado equilíbrio do passado e a violência era iminente.
Não chamaria um pequeno jato para tirá-la de um platô rochoso desconhecido e levá-la de volta ao Cairo. Ainda não. Ainda não. Não agora! Havia muito para descobrir e tão pouco tempo! Não podia parar!
- Não pare! - bradou o obeso MacDonald, segurando a alça de couro por cima do assento, enquanto erguia o volumoso corpo no sedã. - Ela estava guiando nesta estrada por algum motivo, não por puro prazer,
a esta hora.
- Talvez o tenha visto, Effendi.
- Não é provável, mas se viu não passo de um cliente furioso, enganado por uma puta. Continue em frente e acenda os faróis. Alguém pode estar esperando por eles e precisamos saber quem é.
- Quem quer que seja, senhor, pode ser hostil.
- Nesse caso, sou apenas outro infiel bêbado, cuja firma contratou você para protegê-lo do seu próprio comportamento indigno. Não muito diferente de outros tempos, companheiro.
- Como quiser, Effendi.
O motorista acendeu os faróis.
- O que é que há lá na frente? - perguntou MacDonald.
- Nada, senhor. Apenas uma velha estrada que desce para o Jabal Sham.
- E o que é isso?
- O começo do deserto. Termina em montanhas distantes que são as fronteiras sauditas.
- Há outras estradas?
- Alguns quilômetros para o leste e menos carroçáveis, senhor, muito difíceis.
- Quando diz que não há nada pela frente, o que está querendo dizer exatamente?
- Exatamente o que eu disse, senhor. Apenas a estrada para o Jabal Sham.
- Mas esta estrada em que estamos, para onde vai?
- Não vai, senhor. Desvia à esquerda para...
- Esse Jabal qualquer coisa - interrompeu MacDonald. - Já entendi. Não estamos falando de duas estradas, mas de uma só, que por acaso se volta para a esquerda e segue até o seu miserável deserto.
- Isso mesmo, senhor...
- Um ponto de encontro - tornou a interromper o contato do Mahdi, num murmúrio para si mesmo. - Mudei de ideia, meu velho. Apague a droga dos faróis. Há luar suficiente para você enxergar a estrada, não
é mesmo?
- Claro que sim! - exclamou o motorista, num pequeno triunfo, apagando os faróis. - Conheço muito bem este caminho. Conheço perfeitamente todas as estradas de Mascate e Matrah. Até mesmo as intransitáveis,
para leste e sul. Mas devo dizer, Effendi, que não compreendo.
- É muito simples, meu garoto. Se nossa ocupada putinha não descer ao encontro da coisa ou pessoa que tencionava alcançar, alguém mais subirá por aqui... antes do dia amanhecer, eu espero, o que não deve
demorar muito.
- O céu clareia num instante, senhor.
- Não duvido.
MacDonald pôs a pistola em cima do painel, enfiou a mão no bolso do paletó e tirou um pequeno binóculo, com lentes grossas e protuberantes. Levou-o aos olhos e esquadrinhou a área à frente, através do
para-brisa.
- Ainda está muito escuro para ver, Effendi.
- Não para este binóculo - explicou o inglês, ao se aproximarem de outra curva, sob o débil luar. - Pode escurecer todo o céu e ainda assim contarei o número daquelas árvores atarracadas a mil metros de
distância.
Contornaram a curva fechada, o motorista pisando no freio e o sedã derrapando. A estrada era agora reta e plana, desaparecendo na escuridão.
- Mais dois quilômetros e alcançamos a descida para o Jabal Sham, senhor. Terei de avançar bem devagar, pois há muitas curvas, muitas pedras...
- Santo Deus! - bradou MacDonald, espiando pelo binóculo infravermelho. - Saia da estrada! Depressa!
- Como, senhor?
- Faça o que estou mandando! Desligue o carro!
- Senhor?
- Desligue! Deslize até onde puder pela areia!
O motorista virou o carro para a direita, sacolejando pelo terreno duro e esburacado, apertando o volante e dando guinadas repetidas, a fim de evitar as árvores raquíticas e dispersas que mal podiam ser
vistas na semiescuridão da noite. A vinte e poucos metros do ponto inicial o sedã parou de repente sobre a relva, com um solavanco; uma árvore retorcida, invisível de tão baixa, estava pressa no chassi.
- Senhor...?
- Fique quieto! - sussurrou o obeso inglês, guardando o binóculo no bolso e pegando a arma em cima do painel. Com a outra mão, ele segurou a maçaneta da porta, mas parou num repente. - As luzes acendem
quando a porta é aberta?
- Acendem, sim senhor - respondeu o motorista, apontando para o teto. - A luz de cima.
MacDonald bateu com o cano da pistola no vidro da luz no teto.
- Vou sair - ele avisou, sussurrando outra vez. - Fique aqui em silêncio, mantenha a mão bem afastada da buzina. Se eu ouvir qualquer som, você é um homem morto... entendido?
- Entendido, senhor. Em caso de uma emergência, no entanto, posso perguntar por quê?
- Há homens à frente na estrada... não pude determinar se eram três ou quatro. São apenas manchas indistintas... mas vêm para cá e estão correndo.
Sem fazer barulho, o inglês abriu a porta e saiu, depressa, de um jeito desconfortável. Mantendo-se tão próximo do solo quanto possível, avançou até seis ou sete metros da estrada. De calça e casaco escuros,
com a camisa de seda preta, baixou o corpo volumoso ao lado de um toco de árvore retorcida, pôs a arma à direita do tronco e tirou o binóculo do bolso. Focalizou-o na estrada, na direção do caminho pelo
qual os vultos se aproximavam. E, subitamente, lá estavam eles.
Azul! Era Azra. Sem a barba, mas inconfundível. O membro mais jovem do conselho, irmão de Zaya Yateem, o único par de cérebros naquele conselho. E o homem à esquerda... MacDonald não podia recordar-lhe
o nome, mas estudara as fotografias como se fossem o seu caminho para a riqueza infinita - o que de fato acontecia - e sabia quem era ele. Um nome judeu, um homem de certa idade, um terrorista havia quase
vinte anos... Yosef? Isso mesmo, Yosef! Treinado com as forças líbias, depois de fugir das colinas de Golan... Mas o homem à esquerda de Azra era desconcertante; por causa da sua aparência, o inglês sentiu
que devia conhecê-lo. Focalizando as lentes infravermelhas no rosto em movimento, MacDonald ficou perplexo. O homem era quase tão velho quanto Yosef e as poucas pessoas na embaixada com mais de trinta
anos se encontravam ali basicamente por um motivo conhecido de Bahrain; os restantes eram imbecis e exaltados... fanáticos fundamentalistas que podiam ser manipulados com a maior facilidade. Só então MacDonald
reparou no que deveria ter visto desde o início: os três homens vestiam roupas da prisão. Eram prisioneiros fugitivos. Nada mais fazia sentido! A puta Khalehla estaria indo ao encontro daqueles homens?
Se assim fosse, tudo se tornava duplamente incompreensível. A puta trabalhava para o inimigo no Cairo. A informação fora confirmada em Bahrain; era irrefutável! Por isso ele a cultivara, falando-lhe com
insistência dos interesses de sua firma em Oman, dizendo-se apavorado para ir até lá nas atuais circunstâncias e como se sentiria grato se o acompanhasse alguém que conhecesse as coisas. Ela engolira a
isca, aceitando sua oferta, e chegara mesmo a insistir que não poderia deixar o Cairo até um dia específico, uma hora específica, o que significava um voo específico, do qual só havia um por dia. Ele telefonara
para Bahrain e recebera instruções para atendê-la. E vigiá-la, o que fora feito. Não houvera encontro com ninguém, nenhuma indicação de contato visual. Contudo, ela conseguia escapulir no caos do serviço
de imigração tão preocupado com a segurança, em Mascate. Ela vagueara - isso mesmo, vagueara - para o armazém de carga aérea; quando a encontrara ali, a puta estava sozinha, de novo petulante. Fizera contato
com alguém naquele lugar, passara instruções ao inimigo? E se isso acontecera, teria alguma relação com os prisioneiros fugitivos que agora subiam correndo pela estrada?
Parecia irrefutável que havia uma ligação qualquer. E absolutamente absurda!
Enquanto os três vultos passavam, um suado Anthony MacDonald comprimiu-se contra o chão, grunhindo depois ao se levantar. Relutante - muito relutante -, compreendendo que milhões e milhões poderiam depender
das próximas horas, chegou a uma conclusão: o súbito enigma que era Khalehla tinha de ser resolvido e as respostas de que precisava tão desesperadamente estavam no interior da embaixada. Não apenas os
milhões podiam ser perdidos sem essas respostas, mas também, se a puta fosse fundamental em algum golpe hediondo e não conseguisse detê-la, era bem possível que Bahrain ordenasse sua execução. O Mahdi
não admitia o fracasso.
Tinha de entrar na embaixada e enfrentar o inferno que ali havia.
O Hércules Lockheed C-130 com insígnias israelenses cruzava a nove mil e quinhentos metros de altitude o deserto saudita, a leste de Al Ubaylah. O plano de voo desde Hebron era evasivo: para o sul, através
do Negev, entrando no golfo de Aqaba e mar Vermelho, seguindo outra vez para o sul, equidistante das costas do Egito, Sudão e Arábia Saudita. Em Hamdanah o curso foi alterado para norte-nordeste, entre
as redes de radar dos aeroportos de Meca e Qal Bishah, depois para leste em Al Khurmah, entrando no deserto de Rub al Khali, no sul da Arábia. O avião fora reabastecido em pleno ar ao largo do Sudão, a
oeste de Jedá, sobre o mar Vermelho; tornaria a repetir esse processo no voo de volta, agora sem os cinco passageiros.
Eles estavam sentados no porão de carga, cinco soldados em trajes civis ordinários, todos voluntários da Brigada Massada, uma unidade de elite meio misteriosa, uma força de ataque especializada em interdição,
resgate, sabotagem e assassinato. Nenhum tinha mais de 32 anos de idade, todos eram fluentes em hebraico, iídiche, árabe e inglês. Eram magníficos espécimes físicos, muito bronzeados pelo treinamento no
deserto e imbuídos de uma disciplina que gerava decisões em menos de um segundo, baseadas em reações instantâneas; cada um possuía um quociente intelectual dos mais altos e todos eram extremamente motivados
por tudo o que haviam sofrido - pessoalmente ou através de suas famílias. Embora fossem capazes de rir, eram melhores no odiar.
Sentavam-se num banco do lado bombordo do avião, inclinados para a frente, alisando distraídos as tiras dos paraquedas, que só haviam sido montados em suas costas um pouco antes. Conversavam em voz baixa...
isto é, quatro conversavam, um se mantinha calado. O homem silencioso era o líder; mantinha-se em posição de vanguarda e olhava, sem ver, o anteparo oposto. Devia ter vinte e tantos anos, os cabelos e
sobrancelhas desbotados para um branco-amarelado pelo sol implacável. Os olhos eram grandes, de um marrom escuro, os malares altos emoldurando um nariz semita, os lábios finos e contraídos. Não era o mais
velho nem o mais moço dos cinco mas era o líder, o que estava estampado em seu rosto, em seu olhos.
A missão em Oman fora determinada pelos mais altos conselhos do Ministério da Defesa de Israel. As possibilidades de sucesso eram mínimas, as possibilidades de fracasso e morte bem maiores, mas a tentativa
tinha de ser feita. Pois entre os 236 reféns restantes, mantidos na embaixada americana em Mascate, havia um diretor de campo do Mossad, o incomparável serviço de informações de Israel. Se fosse descoberto,
ele seria levado de avião para qualquer uma da dúzia de "clínicas médicas" de governos amigos e hostis, onde a aplicação intravenosa de agentes químicos seria muito mais eficaz do que a tortura. Mil segredos
poderiam ser revelados, segredos que poriam em perigo o Estado de Israel e castrariam o Mossad no Oriente Médio. O objetivo: Tirem-no de lá, se for possível. Matem-no, se não for.
O líder daquele grupo da Brigada Massada chamava-se Yaakov. O agente do Mossad mantido como refém em Mascate era seu pai.
- Adonim - disse a voz em hebraico pelo alto-falante do avião, uma voz calma e respeitosa, dirigindo-se aos passageiros: - Cavalheiros. Estamos iniciando a descida. O alvo será alcançado em seis minutos
e 34 segundos, a menos que encontremos ventos de proa inesperados sobre as montanhas, o que prolongaria nosso tempo para seis minutos e 48 segundos, talvez 55 segundos... mas afinal, quem está contando?
Quatro homens riram; Yaakov piscou, os olhos ainda fixados no anteparo em frente. O piloto continuou:
- Circularemos uma vez sobre o alvo, a dois mil e quinhentos metros; portanto, se tiverem de efetuar ajustamentos, mentais ou físicos, em relação a esses lençóis que carregam na espinha dorsal, tratem
de fazê-lo agora. Pessoalmente, não me agradaria sair e dar um passeio a dois mil e quinhentos metros de altitude.
Yaakov sorriu; os outros riram ainda mais alto. A voz acrescentou:
- A escotilha será aberta a dois mil e seiscentos metros por nosso irmão Jonathan Levy, o qual, como todos os porteiros experientes de Tel Aviv, espera uma generosa gorjeta de cada um por seus serviços.
Não aceita vales. A luz vermelha piscando indicará que devem deixar este hotel de luxo no céu; contudo, dadas as circunstâncias, os rapazes no estacionamento lá embaixo recusam-se a ir buscar seus automóveis.
Eles sabem ler e escrever, foram julgados mentalmente competentes, ao contrário de certos turistas anônimos neste cruzeiro aéreo.
Os risos agora ecoaram pelo avião; Yaakov soltou uma curta risada. O piloto manifestou-se de novo, a voz mais suave, o tom diferente:
- Nossa amada Israel possa existir pela eternidade, através da coragem de seus filhos e filhas. E que Deus todo-poderoso os acompanhe, meus amigos queridos. Caiam fora.
Um a um, os paraquedas se abriram no céu noturno por cima do deserto, um a um os cinco comandos da Brigada Massada pousaram, num raio de 150 metros da luz âmbar brilhante nas areias. Cada homem dispunha
de um rádio em miniatura que o mantinha em contato com os outros, para o caso de emergência. No local em que pousou, cada um cavou um buraco e enterrou o paraquedas, pondo a pá de lâmina larga junto do
tecido e lona. Depois todos convergiram para a luz âmbar que foi apagada, substituída pela lanterna de um homem que viera de Mascate, um agente veterano do Mossad.
- Deixem-me olhar para vocês - disse ele, fixando o facho da lanterna em cada homem. - Nada mau. Parecem rufiões do cais.
- De acordo com suas instruções, eu creio - comentou Yaakov.
- Nem sempre são seguidas - respondeu o agente. - Você deve ser...
- Não temos nomes - interrompeu-o Yaakov, bruscamente.
- Considero-me censurado - disse o homem do Mossad. - Para ser franco, conheço apenas o seu, o que julgo compreensível.
- Pois tire-o da cabeça.
- Como devo chamá-los?
- Somos cores, apenas cores. Da direita para a esquerda, Laranja, Cinza, Preto e Vermelho.
- É um privilégio conhecê-los - disse o agente, iluminando o rosto de cada um... da direita para a esquerda. O facho incidiu em Yaakov: - E você?
- Sou Azul.
- Claro. A bandeira.
- Não - disse o filho do refém em Mascate. - Azul é o fogo mais quente e isso é tudo o que você tem de compreender.
- É também na refração o gelo mais frio, meu jovem, mas não importa. Meu veículo está a várias centenas de metros para o norte. Infelizmente, tenho de lhes pedir para andar, depois do exultante passeio
pelo céu.
- Não é o meu caso - disse Cinza, adiantando-se. - Detesto estes saltos terríveis. Um homem pode se machucar, se entende o que estou querendo dizer.
O veículo era uma versão japonesa de um Land-Rover, sem os confortos e bastante amassado e arranhado para não atrair atenção num país árabe, em que a velocidade era uma abstração relativa e as colisões
muito frequentes. A viagem de pouco mais de uma hora até Mascate, no entanto, foi subitamente interrompida. Uma pequena luz âmbar piscou repetidamente na estrada, a vários quilômetros da cidade.
- É uma emergência - disse o agente do Mossad para Yaakov, ao seu lado no banco da frente. - Não gosto disso. Não deveria haver qualquer parada ao nos aproximarmos de Mascate. O sultão tem patrulhas por
toda parte. Saque sua arma, meu jovem. Nunca se sabe quem pode ter quebrado.
- Quem poderia quebrar? - indagou Yaakov irritado, tirando a arma no mesmo instante do coldre sob o casaco. - Estamos em sigilo total. Ninguém sabe da nossa missão... até minha mulher pensa que me encontro
no Negev em manobras.
- Foi necessário manter abertas as linhas subterrâneas de comunicações, Azul. E às vezes nossos inimigos escavam a terra bem fundo... Instrua seus companheiros. Todos devem se preparar para atirar.
Yaakov assim fez; armas foram empunhadas, cada homem numa janela. A preparação agressiva, no entanto, foi desnecessária.
- É Ben-Ami! - exclamou o homem do Mossad, parando o veículo, os pneus rangendo e pulando nos buracos do asfalto mal conservado. - Abra a porta!
Um homem pequeno e magro, vestindo uma calça jeans, uma camisa branca de algodão bem folgada e um ghotra na cabeça, pulou para dentro, espremendo Yaakov no assento.
- Continue em frente - ele ordenou. - Devagar. Não há patrulhas por aqui e teremos pelo menos dez minutos antes que alguém possa nos parar. Tem uma lanterna?
O motorista do Mossad estendeu sua lanterna. O intruso acendeu-a e inspecionou a carga humana no banco de trás e a seu lado.
- Ótimo! - ele exclamou. - Vocês parecem a ralé do cais. Se formos detidos, falem em árabe de maneira meio indistinta, gabando-se de suas fornicações. Entendido?
- Amém - disseram três vozes.
O quarto, Laranja, foi contrário.
- O Talmude exige a verdade - entoou. - Me arrume uma huri de peitos grandes e posso concordar.
- Cale-se! - gritou Yaakov, sem achar graça.
- O que aconteceu para trazê-lo até aqui? - perguntou o agente do Mossad.
- Insanidade - respondeu o recém-chegado. - Um dos nossos homens em Washington fez contato uma hora depois que vocês deixaram Hebron. A informação era sobre um americano. Um deputado, nada menos. Ele está
aqui e interfere... agindo secretamente, podem acreditar nisso?
- Se é verdade - murmurou o motorista, apertando o volante com toda força -, então todos os pensamentos que já tive sobre a incompetência da comunidade de informações americana estão confirmados. Se o
homem for apanhado, eles se tornarão os párias do mundo civilizado. Não é um risco que se possa assumir.
- Pois eles assumiram. O homem está aqui.
- Onde?
- Não sabemos.
- O que tem isso a ver conosco? - protestou Yaakov. - Um americano. Um idiota. Que credenciais ele tem?
- Consideráveis, lamento dizer - respondeu Ben-Ami. - E vamos lhe dar todo o apoio possível.
- O quê? - espantou-se o jovem líder da Brigada Massada. - Por quê?
- Porque, apesar do que diz meu colega, Washington está consciente dos riscos e das consequências potencialmente trágicas. Por isso cortou todos os vínculos. Ele está por conta própria. Se for apanhado,
não haverá apelo ao seu governo, pois não será reconhecido. Washington não pode reconhecê-lo. Ele age exclusivamente por iniciativa particular.
- Então tenho de perguntar de novo - insistiu Yaakov. - Se os americanos não querem nada com ele, por que devemos ajudá-lo?
- Porque nunca o deixariam vir para cá, em primeiro lugar, se alguém muito alto não soubesse que esse homem descobriu algo extraordinário.
- Mas por que nós? Temos o nosso próprio trabalho a fazer. Repito, por que nós?
- Talvez porque podemos... e eles não podem.
- É politicamente desastroso! - exclamou o motorista, enfático. - Washington arma algo que se põe em movimento, depois sai de cena, cobrindo seu rabo coletivo, e nos deixa na fogueira. Esse tipo de decisão
política deve ter sido tomado por arabistas no Departamento de Estado. Fracassamos, ou seja, ele fracassa enquanto estamos juntos, e as execuções que ocorreram são atribuídas aos judeus! Os assassinos
de Cristo voltaram a fazer das suas!
- Correção - interveio Ben-Ami. - Washington não nos "jogou na fogueira" porque ninguém em Washington sabe que estamos a par da situação. E se cumprirmos a missão corretamente, não vamos aparecer; apenas
prestaremos uma ajuda, se for necessário, cuja origem ninguém poderá traçar.
- Ainda não me respondeu! - gritou Yaakov. - Por quê?
- Eu respondi, meu jovem, mas você não estava prestando atenção; tem outras coisas na mente. Eu disse que fazemos o que fazemos porque talvez possamos fazer. E repito que talvez, não há qualquer garantia.
Há 236 seres humanos naquele lugar horrível, sofrendo de um modo que nós, como um povo, conhecemos tão bem. Entre eles está seu pai, um dos mais valiosos homens de Israel. Se esse homem, esse deputado,
possui pelo menos a perspectiva de uma solução, devemos fazer o possível, no mínimo para provar se ele está certo ou errado. Antes de mais nada, porém, devemos encontrá-lo.
- Quem é ele? - indagou o motorista do Mossad, desdenhoso. - Tem um nome ou os americanos esconderam isso também?
- O nome dele é Kendrick...
O veículo grande e amassado derrapou, interrompendo as palavras de Ben-Ami. O agente do Mossad reagira tão bruscamente àquele nome que quase saiu da estrada.
- Evan Kendrick? - ele perguntou, firmando o volante, os olhos arregalados de espanto.
- Isso mesmo.
- O Grupo Kendrick!
- O que é isso? - indagou Yaakov, observando o rosto do motorista.
- A companhia que ele dirigia aqui.
- O dossiê dele está sendo despachado de avião de Washington esta noite - informou Ben-Ami. - Nós o teremos pela manhã.
- Não precisamos disso! - exclamou o agente do Mossad. - Temos uma ficha dele tão grossa quanto as tábuas de Moisés. E também a de Emmanuel Weingrass... o que muitas vezes desejaríamos não ter!
- Está sendo rápido demais para mim.
- Não agora, Ben-Ami. Levaria várias horas e muito vinho... Maldito Weingrass! Ele me fez dizer isso!
- Pode ser mais objetivo, por favor?
- Mais sucinto, meu amigo, não necessariamente mais objetivo. Se Kendrick está de volta, é porque descobriu alguma coisa e veio acertar uma conta que ficou em suspenso por quatro anos... Uma explosão que
matou setenta e tantos homens, mulheres e crianças. Eram a sua família. Teria de conhecê-lo para compreender isso.
- Você o conheceu? - perguntou Ben-Ami, inclinando-se para a frente. - Conhece-o?
- Não muito bem, mas o suficiente para compreender. Quem o conhecia melhor - uma figura de pai, companheiro de bebida, confessor, conselheiro, gênio e maior amigo - era Emmanuel Weingrass.
- O homem que você obviamente desaprova - interveio Yaakov, os olhos ainda fixados no rosto do motorista.
- E desaprovo com toda veemência - concordou o agente de informações israelense. - Mas ele não é totalmente desprovido de valor. Gostaria que estivesse aqui, o que não acontece.
- De valor para o Mossad? - perguntou Ben-Ami.
Foi como se o homem ao volante experimentasse um súbito ímpeto de embaraço. Baixou a voz ao responder.
- Nós o usamos em Paris - disse, engolindo em seco. - Ele frequenta círculos estranhos, tem contato com marginais. Para dizer a verdade... oh, Deus, como detesto admitir isso!... tem se mostrado bastante
eficaz. Foi por seu intermédio que descobrimos os terroristas que explodiram aquele restaurante kosher na Rue du Bac. Nós mesmos resolvemos o problema, mas algum idiota permitiu-lhe participar da execução.
Uma tremenda estupidez! E para seu crédito - acrescentou o motorista, relutante, apertando ainda mais o volante -, ele fez contato conosco em Tel Aviv, fornecendo informações que frustraram cinco outros
atentados semelhantes.
- Ele salvou muitas vidas - comentou Yaakov. - Vidas judias. E mesmo assim você o desaprova?
- É que você não o conhece! Ninguém dá muito importância a um bon vivant de 78 anos, um boulevardier que desfila por Montaigne com uma ou duas "modelos" parisienses vestidas por ele na St.-Honoré com recursos
que recebeu do Grupo Kendrick.
- Por que isso diminui o seu valor? - indagou Ben-Ami.
- Ele nos cobra jantares em La Tour d’Argent! Três ou quatro mil siclos! Como podemos recusar? Ele entrega as encomendas e foi testemunha numa ocasião particularmente violenta em que fizemos justiça com
as próprias mãos. Um fato que às vezes nos lembra, se os pagamentos atrasam.
- Eu diria que ele tem esse direito - comentou Ben-Ami, balançando a cabeça. - É um agente do Mossad num país estrangeiro e precisa manter sua cobertura.
- Apanhados, estrangulados, nossos testículos num torno - murmurou o motorista do Mossad para si mesmo. - E o pior ainda está para acontecer.
- O que foi que você disse? - perguntou Yaakov.
- Se alguém pode descobrir Evan Kendrick em Oman, é Emmanuel Weingrass. Assim que chegarmos em Mascate, ao nosso quartel-general, farei uma ligação para Paris. Mas que droga!
- Je regrette - disse a telefonista do Pont Royale Hotel, em Paris. - Mas Monsieur Weingrass ausentou-se por alguns dias. Contudo, ele deixou um telefone em Monte Carlo...
- Je suis désolée - disse a telefonista do L’Hermitage, em Monte Carlo. - Monsieur Weingrass não se encontra em sua suíte. Foi jantar esta noite no Hôtel de Paris, em frente ao cassino.
- Tem o número, por favor?
- Claro! - respondeu a esfuziante telefonista. - Monsieur Weingrass é um homem encantador. Esta noite mesmo trouxe flores para todas nós; encheram a sala! Uma pessoa extraordinária. O telefone de lá é...
- Désolé - respondeu o telefonista do Hôtel de Paris, com um charme artificial. - O restaurante está fechado, mas o generoso Monsieur Weingrass nos informou que estaria na Mesa Onze do cassino durante
as próximas duas horas. Se houvesse alguma ligação, ele sugeriu que a pessoa ligasse para Armand, no cassino. O telefone é...
- Je suis très désolé - murmurou Armand, o obscuro factótum do Cassino de Paris, em Monte Carlo. - O maravilhoso Monsieur Weingrass e sua adorável acompanhante não tiveram sorte em nossa roleta esta noite
e por isso decidiram ir ao Loew’s, perto do mar... um estabelecimento de qualidade inferior, é claro, mas com crupiês competentes; os franceses, naturalmente, não os italianos. Peça para falar com Luigi,
um cretense semianalfabeto; ele poderá localizar Monsieur Weingrass. E transmita meus respeitos, diga-lhe que o espero aqui amanhã, quando sua sorte mudará. O telefone é...
- Naturalmente! - bradou o desconhecido Luigi, em triunfo. - O maior amigo que já tive em toda a minha vida! Signor Weingrass! Meu irmão hebreu que fala a língua de Como e Lago di Guardia feito um nativo...
não a gíria ou mesmo o napoletano; linguagem de bárbaros, deve compreender... Ah, ele está na frente dos meus olhos!
- Pode fazer o favor de chamá-lo ao telefone?
- Está muito ocupado, signore. Sua acompanhante está ganhando muito dinheiro. Não dá sorte interferir.
- Diga a esse filho da puta para vir atender imediatamente ou seus colhões hebreus serão postos a ferver em leite de cabra árabe!
- Che cosa?
- Faça o que estou mandando! Diga a ele que o nome é Mossad!
- Pazzo! - exclamou Luigi para ninguém em particular, largando o telefone na prateleira. E acrescentou, enquanto se adiantava cauteloso para a mesa de dados: - Instabile!
Emmanuel Weingrass, o bigode encerado com perfeição por baixo de um nariz aquilino que revelava o passado aristocrático e os cabelos brancos penteados de maneira impecável, ondulando sobre a cabeça que
parecia esculpida, estava quieto no meio dos corpos em movimento dos jogadores frenéticos. Vestindo um paletó amarelo-canário e uma gravata de xadrez vermelha, corria os olhos em torno da mesa, mais interessado
nos jogadores do que no jogo, consciente de vez em quando de que um jogador ocioso ou alguém da multidão excitada de espectadores o observava. Compreendia, assim como compreendia a maioria das coisas a
seu respeito, aprovando algumas, desaprovando muitas, mas muitas mesmo. Olhavam para seu rosto, um tanto mais compacto do que poderia ser, o rosto de um velho que não perdera as configurações da infância,
denunciando juventude apesar dos anos e com a ajuda de roupas elegantes, embora um tanto exóticas. Percebiam que seus olhos eram verdes e vivos, mesmo quando em repouso - os olhos de um andarilho, tanto
em termos intelectuais quanto geográficos, jamais satisfeitos, nunca em paz, desviando-se constantemente para as paisagens que queria explorar ou criar. À primeira vista sabia-se que era um excêntrico;
mas ninguém conhecia a extensão da sua excentricidade. Era um artista e um homem de negócios, mamífero e confusão. Era ele próprio e, para seu crédito, aceitara seu gênio arquitetônico como parte do jogo
infinitamente tolo da vida, um jogo que, contra a sua vontade, terminaria em breve, talvez, pensava esperançosamente, enquanto dormisse. Mas havia sempre coisas a viver, a experimentar, enquanto permanecesse
vivo; contudo, beirando os oitenta anos, tinha de ser realista, por mais que isso o contrariasse e assustasse. Ele olhou para a garota espalhafatosa e sensual ao seu lado, tão vibrante, tão vazia. Ele
a levaria para a cama, acariciaria seus seios... e depois dormiria. Mea culpa. Qual era o sentido?
- Signore? - sussurrou o italiano de smoking no ouvido de Weingrass. - Uma pessoa está à sua procura ao telefone, alguém por quem eu não poderia ter o menor respeito em minha vida.
- Um estranho comentário, Luigi.
- Ele o insultou, meu caro amigo e atencioso hóspede. Se assim desejar, posso dispensá-lo na linguagem dos bárbaros, que é o que ele merece.
- Nem todos me amam como você, Luigi. O que foi que ele disse?
- O que ele disse eu não poderia repetir na frente do mais grosseiro crupiê francês!
- É muito leal, meu amigo. Ele disse o nome?
- Disse, sim. Um tal de Signor Mossad. E posso lhe garantir que ele é perturbado, pazzo!
- Quase todos eles são - murmurou Weingrass, enquanto se encaminhava apressado para o telefone.
10
A claridade do amanhecer foi avançando progressivamente. Azra levantou os olhos para o céu da manhã, a praguejar consigo mesmo, mas incluindo o rude Yosef em suas imprecações, por ter seguido a curva errada
na Torre Kabritta, assim desperdiçando alguns minutos preciosos. Os três fugitivos haviam rasgado as calças da prisão bem acima dos tornozelos, no meio das pernas, e arrancado as mangas nos ombros. Sem
o benefício da luz do sol, podiam passar por trabalhadores importados do Líbano ou dos cortiços de Abu Dhabi, gastando seus riales na única recreação que lhes era acessível: as prostitutas e o uísque que
se encontra em El Shari el Mishkwiyis, uma ilha cercada de terra na cidade.
Estavam na recuada entrada de concreto dos empregados do Hospital Waljat, a menos de duzentos metros dos portões da embaixada. Uma rua estreita, à direita, cruzava a larga avenida. Em torno da esquina
havia diversas lojas, indistinguíveis por trás das portas de ferro. Todos os negócios estavam suspensos enquanto a loucura perdurasse. Ao longe, no lado de dentro dos portões da embaixada, havia bandos
de jovens apáticos andando lentamente, o peso das armas puxando para baixo seus braços e ombros, cumprindo o que lhes ordenava sua jihad, a guerra santa. A apatia, no entanto, ia dissolver-se com os primeiros
raios de sol, uma energia maníaca irrompendo com a primeira onda de espectadores, especialmente as equipes de rádio e televisão... e basicamente por causa dessas equipes. As crianças iradas iniciariam
o espetáculo dentro de uma hora.
Azra estudou a grande praça diante dos portões. No lado norte havia três prédios de escritórios brancos, de dois andares, bem próximos uns dos outros. As janelas fechadas por cortinas estavam escuras,
não havia sinal de luz em qualquer parte, o que era irrelevante, afinal de contas. Se lá dentro houvesse homens observando, estavam longe demais dos portões para ouvirem o que ele diria baixinho, através
das barras, e a claridade ainda era muito precária para poderem identificá-lo... se é que a notícia da sua fuga já chegara ao posto. E mesmo que isso tivesse acontecido, o inimigo não desfecharia um ataque
precipitado com base em vagas possibilidades; as consequências poderiam ser fatais. Na verdade, a praça se encontrava deserta, exceto por uma fileira de mendigos com roupas em farrapos, agachados na frente
do muro de arenito da embaixada, os pratos de esmolas diante deles, vários com os próprios excrementos visíveis por perto. Os mais imundos daqueles párias não eram agentes em potencial do sultão nem de
governos estrangeiros, mas outros poderiam ser. Azra focalizou cada um deles, atento a movimentos bruscos e súbitos que trairiam um homem não acostumado à postura hierática acocorada de um esmoler. Somente
alguém cujos músculos estivessem condicionados para resistir à tensão interminável da posição de um mendigo poderia permanecer imóvel por um tempo prolongado. Ninguém se mexeu, ninguém moveu uma perna;
não chegava a ser uma prova, mas era tudo o que ele podia querer. Azra estalou os dedos para Yosef, tirando a MAC-10 de baixo da camisa e estendendo-a para o terrorista mais velho.
- Estou indo para lá - disse em árabe. - Dê-me cobertura. Se algum daqueles mendigos fizer um movimento que não seja de mendigo, espero que você esteja atento.
- Pode ir. Ficarei logo atrás de você, à sombra do hospital, passando de porta em porta, pelo lado direito. Minha mira é incomparável e se houver um movimento que não seja de mendigo, não haverá mais mendigo.
- Não antecipe nada, Yosef. Não cometa o erro de atirar quando não deve. Tenho de fazer contato com um daqueles imbecis lá dentro. Vou avançar cambaleando, como se não fosse a melhor manhã da minha vida.
O jovem palestino virou-se para Kendrick, que estava agachado junto à folhagem escassa na parede do hospital, e sussurrou em inglês:
- Quando Yosef chegar ao primeiro prédio, saia devagar e siga-o, mas pelo amor de Deus não seja óbvio! Faça uma pausa de vez em quando para se coçar, cuspa com frequência, lembre-se de que sua aparência
não pertence a alguém que tenha boa postura.
- Sei de tudo isso! - mentiu Evan, taxativo, impressionado com o que estava aprendendo sobre os terroristas. - Acha que já não empreguei essa tática mil vezes mais do que você?
- Não sei o que achar - respondeu Azra. - Mas não gostei da maneira como passou pela mesquita Zawawi. Os mulás e muezins estavam se reunindo... Talvez você funcione melhor nas refinadas capitais da Europa.
- Posso lhe assegurar que sou adequado - declarou Kendrick friamente, sabendo que precisava manter a versão árabe de força.
Sua encenação, no entanto, foi prontamente esvaziada quando o jovem terrorista sorriu. Era um sorriso genuíno, o primeiro que ele observava no homem que se intitulava Azul.
- Sei disso - murmurou Azra, acenando com a cabeça. - Estou aqui, não sou um cadáver no deserto. E lhe agradeço por isso, Amal Bahrudi. Agora mantenha os olhos em mim. Vá para onde eu indicar.
Girando rapidamente, Azul levantou-se e atravessou hesitante o curto gramado do hospital, entrando na ampla avenida larga que levava à praça propriamente dita. Poucos segundos depois Yosef saiu correndo,
noventa graus à direita do seu superior, cruzando a estreita vereda a seis ou sete metros da esquina, mantendo-se no lado do prédio, nas sombras mais escuras. Enquanto o vulto solitário e isolado de Azra
entrava em plena claridade, cambaleando na direção dos portões da embaixada. Yosef virou a esquina; a última coisa que Evan viu foi a letal pistola-metralhadora MAC-10, empunhada pela mão esquerda do rude
sargento-capataz. Kendrick sabia que era o momento de se mexer e uma parte dele desejou subitamente estar de volta ao Colorado, a sudoeste de Telluride, na base das montanhas, em paz temporária com o mundo.
E no instante seguinte as imagens ressurgiram, preenchendo sua tela interior: Trovoada. Uma sucessão de explosões ensurdecedoras. Fumaça. Paredes desabando por toda parte, em meio aos gritos de crianças
aterrorizadas prestes a morrerem. Crianças! E mulheres - jovens mães - gritando em horror e protesto, enquanto toneladas de escombros caíam de trinta metros acima do solo. E homens impotentes - amigos,
maridos, pais - bradando em desafio contra o inferno desmoronante que sabiam seria sua tumba... O Mahdi!
Evan levantou-se, respirou fundo e começou a se encaminhar para a praça. Alcançou a calçada do lado norte, na frente das lojas trancadas, os ombros encurvados; parava com frequência a fim de se coçar e
cuspir.
- A mulher estava certa - sussurrou o árabe de pele escura em roupas ocidentais, espiando através de uma ripa solta na loja trancada que apenas 22 dias antes era um atraente botequim, dedicado a vender
café de cardamomo, bolos e frutas. - O porco mais velho chegou tão perto que eu poderia até tocá-lo quando passou! Posso lhe garantir que nem respirei.
- Psiu! - advertiu o homem a seu lado, num traje árabe. - Lá vem ele. O americano. Sua altura o trai.
- Outros o trairão também. Não sobreviverá.
- Quem é ele? - perguntou o homem de túnica, num sussurro quase inaudível.
- Não nos interessa saber. Que arrisque a vida por nós é tudo o que importa. Escutamos a mulher, essas são as nossas ordens.
Lá fora, o vulto encurvado passou pela loja, parando para coçar a virilha e cuspindo na calçada. Mais além, em diagonal pela praça, outro vulto, anuviado pela semiescuridão, aproximava-se dos portões da
embaixada. O árabe em roupas ocidentais continuou, ainda olhando pela ripa solta:
- Foi a mulher quem nos disse para vigiá-los no cais observando as pequenas embarcações, nas estradas do norte e sul, e mesmo aqui, o lugar em que eram menos esperados. Pois faça contato com ela e avise
que o inesperado aconteceu. Depois chame os outros nos Wadis Kalbah e Bustafi, diga que não precisam mais vigiar.
- Está certo - disse o homem de túnica, encaminhando-se para os fundos do café deserto, onde, em profusão, cadeiras permaneciam estranhamente empilhadas sobre as mesas, como se a direção esperasse fregueses
de outro mundo que desdenhavam o chão. O árabe parou de repente e voltou para junto de seu companheiro. - E depois, o que nós vamos fazer?
- A mulher lhe dirá. Depressa! O porco junto aos portões está gesticulando para alguém lá dentro. É isso o que eles vão fazer. Entrar!
Azra segurou as barras de ferro, os olhos subindo para o céu; a claridade se tornava mais intensa a leste, a cada minuto que passava. Muito em breve o cinza-escuro da praça seria dissipado pelo sol implacável
e ofuscante de Mascate; aconteceria a qualquer momento, como todas as manhãs: uma explosão de luz tornava-se subitamente total, abrangendo tudo. Depressa! Prestem atenção a mim, seus idiotas, seus cães
sarnentos! O inimigo está por toda parte, observando, esquadrinhando, esperando pelo instante para atacar, sou agora uma presa de valor extraordinário. Um de nós deve alcançar Bahrain, entrar em contato
com o Mahdi! Pelo amor do seu maldito Alá, alguém quer vir até aqui? Não posso elevar a voz!
Alguém se aproximou! Um garoto de uniforme sujo afastou-se hesitante de seu pelotão de cinco homens, contraindo os olhos na claridade ainda difusa mas aumentando, atraído pelo homem de estranha aparência
no lado esquerdo dos portões acorrentados. Ele passou a andar mais depressa ao chegar perto, a expressão mudando lentamente de irônica para espantada.
- Azra? - ele gritou. - É você?
- Quieto! - sussurrou Azul, comprimindo as palmas, repetidamente, através das barras.
O adolescente era um das dezenas de recrutas que ele instruíra no uso básico de armas de repetição e, se lembrava corretamente, não fora um dos discípulos mais destacados.
- Disseram que você tinha partido numa missão secreta, tão sagrada que deveríamos agradecer a Alá todo-poderoso por sua força!
- Fui capturado...
- Alá seja louvado!
- Pelo quê?
- Por você ter massacrado os infiéis. Se não o tivesse feito, estaria agora nos abençoados braços de Alá.
- Escapei...
- Sem massacrar os infiéis? - indagou o adolescente com tristeza na voz.
- Estão todos mortos - respondeu Azul, exasperado. - E agora preste atenção...
- Alá seja louvado!
- Alá fique quieto... E você fique quieto e preste atenção! Tenho de entrar e depressa. Procure Yateem ou Ahbyahd... corra como se sua vida dependesse disso...
- Minha vida não é nada!
- Mas a minha é! Encontre alguém que volte aqui com instruções! Corra!
A espera produziu um latejar no peito e nas têmporas de Azul, enquanto observava o céu e a claridade a leste prestes a incendiar aquela parte infinitesimal do mundo, sabendo que quando isso acontecesse,
estaria liquidado, morto, não poderia mais lutar contra os miseráveis que haviam roubado sua vida, roubado as vidas de seus pais e de Zaya numa rajada de tiros sancionada pelos assassinos de Israel.
Lembrava tudo nitidamente, com uma profunda angústia. Seu pai, um homem gentil e brilhante, que fora estudante de medicina em Tel Aviv até o terceiro ano, quando as autoridades resolveram que ele era mais
adequado para a vida de farmacêutico a fim de abrir uma vaga na faculdade para um imigrante judeu. Era uma prática comum. Afastar os árabes das profissões mais importantes, esse era o credo israelense.
À medida que os anos passaram, no entanto, o pai tornara-se o único "doutor" na sua aldeia da margem ocidental; os médicos visitantes do governo, vindos de Be’er Sheva, eram incompetentes forçados a ganhar
seus siclos em pequenas aldeias e acampamentos. Um deles se queixara, e funcionou como um pedido escrito encaixado no Muro das Lamentações. A farmácia fora fechada.
- Temos de viver nossas vidas simples; quando eles nos permitirão vivê-las? - bradara o pai e marido.
A resposta viera por uma filha chamada Zaya e um filho que se tornara Azra o Terrorista. A Comissão Israelense de Assuntos Árabes na Margem Ocidental tornara a fazer um pronunciamento. O pai era um agitador.
A família recebeu ordens para deixar a aldeia.
Seguiram para o norte, na direção do Líbano, procurando qualquer lugar que os aceitasse. Durante a viagem, seu êxodo, pararam num acampamento de refugiados chamado Shatila.
Enquanto irmão e irmã observavam por trás de um muro baixo de pedra, o pai e a mãe foram massacrados, assim como muitos outros, os corpos mutilados por sucessivas rajadas, o sangue esguichando dos olhos
e bocas. E lá em cima, nas colinas, o súbito trovejar da artilharia israelense representava para os ouvidos das crianças o som do triunfo ímpio. Não podia haver a menor dúvida de que alguém aprovara a
operação.
Assim surgira Zaya Yateem, transformada de uma criança gentil em uma estrategista fria, e seu irmão, conhecido para o mundo como Azra, o mais novo príncipe herdeiro dos terroristas.
As lembranças foram interrompidas pela visão de um homem a correr pelo lado de dentro dos portões da embaixada.
- Azul! - gritou Ahbyahd, as manchas brancas nos cabelos evidentes à claridade crescente, a voz um sussurro áspero e atônito, enquanto atravessava o pátio. - Em nome de Alá, o que aconteceu? Sua irmã está
fora de si, mas sabe que não pode sair, não como uma mulher, não a esta hora, ainda mais com você aqui. Há olhos por toda parte... o que aconteceu com você?
- Contarei tudo assim que entrarmos. Não há tempo agora. Temos de nos apressar.
- Nós?
- Eu, Yosef e um homem chamado Bahrudi... Ele vem da parte do Mahdi! Depressa! O sol está quase saindo! Para onde vamos?
- Deus todo-poderoso... o Mahdi!
- Por favor, Ahbyahd!
- O muro de leste, a cerca de quarenta metros do canto sul, há ali um velho esgoto...
- Sei disso. Vínhamos trabalhando nele. Está limpo agora?
- É preciso agachar-se muito e subir devagar, mas está desobstruído. Existe uma abertura...
- Por baixo das três pedras na água - murmurou Azra, acenando com a cabeça rapidamente. - Mande alguém para lá. Estamos correndo contra a luz!
O terrorista chamado Azul afastou-se dos portões acorrentados e, ganhando velocidade, livrando-se lentamente, sutilmente, da postura anterior, contornou o canto sul do muro. Parou, comprimindo as costas
contra a pedra, os olhos esquadrinhando as sombrias lojas barricadas. Yosef surgiu de um portal recuado; estivera observando Azra e queria que o jovem líder soubesse disso. O homem mais velho assoviou
e segundos depois "Amal Bahrudi" saiu de uma viela estreita entre os prédios; permanecendo nas sombras, ele correu pela calçada, juntando-se a Yosef. Azra gesticulou para a esquerda, indicando uma rua
de calçamento precário à sua frente, paralela ao muro da embaixada; ficava além da fileira de lojas na praça; no outro lado havia uma extensão vazia de entulho e relva. A distância, na direção do horizonte
em chamas, ficava a costa rochosa do golfo de Oman. Um depois do outro, os fugitivos correram por essa rua em suas roupas de prisioneiro rasgadas e sandálias de couro duro, passando dos muros da embaixada
para o súbito e assustador clarão do sol. Azra na frente, alcançaram um pequeno promontório por cima das ondas se esboroando. Com uma agilidade firme, o novo príncipe herdeiro dos terroristas começou a
descer pelos enormes afloramentos rochosos, parando de vez em quando a fim de gesticular para trás, apontando os trechos de musgo verde em que um homem podia perder a vida se escorregasse e caísse nas
rochas pontiagudas embaixo. Em menos de um minuto alcançaram uma depressão de estranho formato, no fundo do curto penhasco, onde enormes blocos se encontravam com o mar. Era assinalada por três pedras
formando um estranho triângulo, cuja base, uma abertura como a de uma caverna, não tinha mais de um metro de largura e sofria a investida constante das ondas.
- É aqui! - exclamou Azra, com exultação e alívio. - Eu sabia que poderia encontrar!
- O que é isso? - berrou Kendrick, tentando ser ouvido acima do barulho das ondas.
- Um esgoto antigo - berrou Azul. - Construído há centenas de anos, uma latrina comunitária que era continuamente lavada por água do mar, carregada por escravos.
- Foi escavado na rocha?
- Não, Amal. Abriram uma passagem na superfície e ajeitaram as pedras por cima; a natureza cuidou do resto. Um aqueduto invertido, se prefere assim. É um subida íngreme, mas como alguém teve de construí-la,
há pontos de apoio para os pés... pés de escravos, como nossos pés palestinos, não é mesmo?
- Como entramos aí?
- Avançamos pela água. Se o profeta Jesus pôde andar sobre a água, o mínimo que podemos fazer é andar através dela. Vamos logo! A embaixada nos espera!
Suando profusamente, Anthony MacDonald subiu pela escada aberta do cais, ao lado do velho armazém. O rangido dos degraus sob os seus pés juntou-se aos sons de madeira e corda que vinham do cais, onde cascos
e adriças estendidas roçavam nos atracadouros. Os primeiros raios amarelos do sol pulsavam sobre as águas da enseada, interrompidos por pequenos barcos e velhas traineiras partindo para a pesca do dia
e por patrulhas navais que navegavam de um lado para outro, de vez em quando fazendo sinal para alguma embarcação parar a fim de ser submetida a uma inspeção rigorosa.
Tony ordenara que o motorista voltasse para Mascate pela estrada deserta com os faróis apagados, até chegarem a uma rua secundária no As Saada, que atravessava a cidade até o cais. Só quando encontraram
os lampiões é que MacDonald permitiu ao motorista acender os faróis. Não tinha a menor ideia do local para onde os fugitivos corriam ou onde esperavam esconder-se à luz do dia, com um exército de policiais
a procurá-los, mas presumia que procurariam um dos mais improváveis agentes do Mahdi na cidade. Ele os evitaria; havia muito a descobrir, muitas coisas contraditórias a compreender, antes de uma confrontação
casual com o jovem e ambicioso Azra. Mas existia um lugar para onde ele podia ir, um homem a quem podia procurar, sem medo de ser visto. Um assassino de aluguel que cegamente obedecia a ordens por dinheiro,
um lixo humano que só fazia contato com os clientes em potencial nas vielas imundas de el Shari el Mishkwiyis. Apenas aqueles que precisavam saber tinham conhecimento do lugar onde ele vivia.
Tony escalou o último lance de degraus para a porta espessa e baixa no topo, que levava ao homem que procurava. E ficou paralisado ao alcançar o último degrau, a boca escancarada, os olhos esbugalhados.
Subitamente, de forma inesperada, a porta se abriu nas dobradiças bem untadas e o assassino seminu avançou para a pequena plataforma, uma faca na mão esquerda, a lâmina comprida e afiada como navalha faiscando
ao sol, enquanto a direita empunhava uma pistola de calibre 22. A lâmina pairou sobre a garganta de MacDonald, o cano da arma comprimiu-se contra sua têmpora esquerda; incapaz de respirar, o obeso inglês
agarrou a grade com as duas mãos, a fim de não cair de volta pelos degraus.
- É você - disse o homem esquelético de faces encovadas, retirando a pistola, mas mantendo a faca no lugar. - Não deveria vir aqui. Nunca deveria aparecer neste lugar.
Engolindo o ar, o corpo imenso rígido, MacDonald falou com a voz rouca, sentindo a lâmina do psicopata em sua garganta:
- Se não fosse uma emergência, eu nunca teria feito isso, quero deixar bem claro.
- A única coisa clara é que eu fui enganado! - respondeu o homem, movendo a faca. - Matei o filho daquele importador da mesma maneira que poderia matar você neste momento. Retalhei o rosto da garota e
deixei-a na rua com a saia por cima da cabeça, e fui enganado!
- Ninguém teve essa intenção.
- Mas alguém me enganou!
- Compensarei tudo. Precisamos conversar. Como falei antes, é uma emergência.
- Fale aqui. Não vai entrar. Ninguém entra!
- Está bem. Se tiver a gentileza de me permitir que fique de pé, em vez de inclinado nesta velha escada a pedir por minha preciosa vida...
- Fale!
Tony firmou-se no terceiro degrau, tirando um lenço do bolso e enxugando a testa suada, o olhar fixado na faca.
- É indispensável que eu faça contato com os líderes dentro da embaixada. Como eles não podem sair, é claro, só me resta entrar para encontrá-los.
- É muito perigoso, especialmente para quem o introduzir lá, já que ele ficará do lado de fora. - O esquelético assassino afastou a lâmina da garganta de MacDonald, apenas para reajustá-la com uma torção
do pulso, a ponta reluzente encostando agora na base do pescoço do inglês. - Pode falar com eles pelo telefone, as pessoas fazem isso a todo instante.
- O que tenho a dizer... o que devo perguntar a eles... não pode ser dito pelo telefone. É vital que apenas os líderes ouçam as minhas palavras e eu as suas respostas.
- Posso vender-lhe um número de telefone que não está nas listas.
- Estará registrado noutro lugar e mais pessoas podem também tê-lo, se você o tem. Não posso correr o risco. Só falarei lá dentro. Preciso entrar de qualquer maneira.
- Você é muito difícil - disse o psicopata, a pálpebra esquerda tremendo, as pupilas dilatadas. - Por que é tão difícil?
- Porque sou imensamente rico e você não é. Precisa do dinheiro para suas extravagâncias... seus hábitos.
- Você me insulta! - exclamou o assassino de aluguel com voz estridente mas não alta. O homem desvairado estava consciente da presença dos pescadores e estivadores iniciando as tarefas matutinas, três
andares abaixo.
- Só estou sendo realista. Preciso entrar. Quanto?
O assassino tossiu um bafo fétido na cara de MacDonald, afastando a lâmina e fixando o olhar remelento no benfeitor de ontem e de hoje.
- Custará muito dinheiro. Mais do que você jamais me pagou antes.
- Estou disposto a concordar com um aumento razoável... não exorbitante, é claro, mas razoável. Sempre teremos trabalho para você...
- Há uma entrevista coletiva na embaixada às dez horas desta manhã - interrompeu-o o homem parcialmente drogado. - Como sempre, os jornalistas e o pessoal da televisão serão escolhidos no último minuto,
os nomes chamados nos portões. Esteja lá e me dê um telefone para que eu possa lhe fornecer um nome dentro de duas horas.
Tony assim fez: informou seu hotel e o quarto. E acrescentou:
- Quanto, meu caro?
O assassino baixou a faca e enunciou a quantia em riales de Oman; equivalia a três mil libras inglesas, mais ou menos cinco mil dólares americanos.
- Tenho despesas - explicou. - Subornos devem ser pagos ou o subornador será um homem morto.
- É um absurdo! - protestou MacDonald.
- Pois então esqueça tudo.
- Está bem, eu aceito - declarou o inglês.
Khalehla andava de um lado para outro no seu quarto do hotel; embora tivesse deixado de fumar pela sexta vez em seus 32 anos, fumava um cigarro depois do outro, os olhos se desviando constantemente para
o telefone. Não poderia em nenhuma circunstância operar do palácio. Essa ligação já correra risco demais. Ao inferno com aquele filho da puta!
Anthony MacDonald - enigmático, bêbado... o agente extraordinário de alguém - tinha uma rede eficiente em Mascate, mas ela própria não estava desprovida de recursos, graças a uma colega de quarto em Radcliffe
que era agora a esposa de um sultão... graças ao fato de Khalehla ter apresentado um compatriota árabe à sua melhor amiga alguns anos antes, em Cambridge, Massachusetts. Oh, Deus, como o mundo se movia
em círculos menores, mais rápidos e cada vez mais familiares! Sua mãe, natural da California, conhecera o pai, um estudante de intercâmbio de Port Said, quando ambos estavam na escola de pós-graduação
em Berkeley, ela egiptóloga, ele candidato a doutorado em Civilização Ocidental, ambos pensando em carreiras acadêmicas. Apaixonaram-se e se casaram. A moça loura da California e o egípcio de pele azeitonada.
O tempo passou e o nascimento de Khalehla fez com que os racialmente aturdidos avós, de ambos os lados, descobrissem que havia mais nas crianças do que a pureza da espécie. As barreiras caíram num súbito
ímpeto de amor. Quatro pessoas mais velhas, dois casais predispostos a se detestarem, transpuseram os abismos de cultura, pele e crença, encontrando alegria numa criança e em outros prazeres mutuamente
partilhados. Tornaram-se inseparáveis, o banqueiro e sua esposa de San Diego e o rico exportador de Port Said e sua única esposa árabe.
- O que estou fazendo? - gritou Khalehla para si mesma.
Aquele não era o momento para pensar no passado, o presente era tudo! A seguir compreendeu por que sua mente vagueara... por dois motivos, na verdade. As pressões haviam se tornado muito grandes; precisava
de uns poucos minutos para si mesma, um tempo para pensar nela mesma e naqueles a quem amava, pelo menos para compreender o ódio que existia por toda parte. A última era a segunda e a mais importante razão.
Os rostos e as palavras pronunciadas num jantar, há muito tempo, espreitavam do fundo de sua mente, sobretudo as palavras ressoando em seu cérebro; haviam causado forte impressão numa garota de dezoito
anos prestes a deixar a América.
- Os monarcas do passado tiveram bem pouco para seu crédito global - o pai comentara naquela noite no Cairo, diante de toda a família reunida, inclusive os avós. - Mas eles compreenderam uma coisa que
nossos atuais líderes não levam em consideração... Nem podem levar, diga-se a bem da verdade, a menos que tentem tornar-se monarcas, o que não seria possível nestes tempos, por mais que alguns se esforcem.
- Mas o que é isso, meu jovem? - indagara o banqueiro da California. - Ainda não renunciei definitivamente a uma monarquia. Republicana, é claro.
- Começando com os nossos faraós e passando pelos sumos-sacerdotes da Grécia, os imperadores de Roma e todos os reis e rainhas da Europa e Rússia, eles promoveram casamentos de maneira a atrair as diversas
nações para suas famílias centrais. A partir do momento em que uma pessoa conhece outra nessas circunstâncias, jantando, dançando, caçando, até mesmo dizendo piadas, torna-se difícil manter um preconceito
estereotipado, não é mesmo?
Todos à volta da mesa se entreolharam, com sorrisos gentis e acenos de cabeça.
- Em tais círculos, no entanto, meu filho - dissera o exportador de Port Said -, as coisas nem sempre funcionaram de maneira tão feliz. Não sou um estudioso, mas sei que houve guerras, famílias em lutas
internas, ambições frustradas.
- É verdade, reverenciado pai, mas não seria ainda pior, não fossem todos aqueles casamentos arrumados? E muito pior, eu poderia garantir.
- Eu me recuso a ser usada como um instrumento geopolítico! - exclamara a mãe de Khalehla, rindo.
- Na verdade, minha querida, tudo entre nós foi combinado por nossos insidiosos pais. Tem alguma ideia do quanto eles lucraram com a nossa aliança?
- O único lucro que já tive é esta mocinha adorável, minha neta - dissera o banqueiro.
- Ela está de partida para a América, meu amigo - lembrara o exportador. - Seus lucros podem minguar.
- Como se sente, querida? Eu diria que é uma aventura e tanto para você.
- Não é a primeira vez, vovó. Já visitamos você e vovô muitas vezes e conheci várias cidades.
- Será diferente desta vez, querida. - Khalehla não se lembrava de quem pronunciara essas palavras, mas elas assinalaram o princípio de um dos mais estranhos capítulos da sua vida. E a pessoa, quem quer
que fosse, acrescentara: - Ficará vivendo por lá.
- Mal posso esperar. Todos sempre foram muito amigos, me fazendo sentir querida, bem-vinda.
Mais uma vez, as pessoas ao redor da mesa se entreolharam. O banqueiro rompera o silêncio:
- Talvez nem sempre se sinta assim. Haverá ocasiões em que não será querida nem apreciada, o que a vai confundir e certamente magoar.
- É difícil acreditar nisso, vovô - respondera uma exuberante jovem Khalehla apenas vagamente lembrada.
O californiano fitara o genro por um instante, com expressão angustiada.
- Tentando recordar agora, também para mim é difícil acreditar. Mas não se esqueça, mocinha, se surgir algum problema, se as coisas se tornarem difíceis, pegue o telefone e seguirei no primeiro avião.
- Ora, vovô, nem posso imaginar na possibilidade de fazer isso.
E ela jamais o fizera, embora houvesse ocasiões em que estivera prestes, impedida apenas pelo orgulho e a força que conseguira reunir. Shvartzeh Arviyah!... "Negra-árabe!" fora sua primeira introdução
ao ódio pessoal. Não o ódio cego e irracional das multidões correndo desenfreadas pelas ruas, brandindo cartazes e sinais toscos, insultando um inimigo invisível e distante, além das fronteiras, mas de
jovens como ela, numa comunidade pluralista de conhecimento, partilhando salas de aula e lanchonetes, em que o valor individual prevalecia, desde o ingresso até a graduação, através de uma avaliação constante.
Cada pessoa contribuía para o todo, mas como ela própria, não como um robô institucional, a não ser talvez nos campos esportivos, e mesmo ali o desempenho individual era reconhecido, em geral muito mais
na derrota, terrivelmente mais.
Contudo, por muito tempo ela não se sentira um indivíduo; perdera a si mesma. Fora erradicada, transferida para um coletivo racial abstrato e insidioso, chamado árabe. Árabe nojenta, árabe traidora, árabe
assassina - árabe, árabe, árabe - até que ela não pôde mais suportar. Permanecia sozinha em seu quarto, recusando os convites das colegas de dormitório para visitar os bares colegiais; duas vezes fora
o suficiente.
A primeira já deveria ter sido suficiente. Dirigira-se ao banheiro das mulheres, descobrindo que estava bloqueado por dois estudantes; eram estudantes judeus, sim, mas também estudantes americanos.
- Pensei que os árabes não bebessem! - gritara o jovem embriagado à sua esquerda.
- É uma opção de cada um - ela respondera.
- Contaram-me que vocês, Arviyah, mijam no chão de suas tendas! - gritara o outro, desdenhoso.
- Pois foi mal informado. Somos bastante meticulosos. Agora me deem licença para entrar, por favor...
- Não aqui, árabe. Não sabemos o que deixaria na tampa do vaso e temos duas yehudiyah conosco. Entendeu a mensagem, árabe?
O ponto de ruptura, no entanto, ocorrera ao final do segundo semestre. Saíra-se muito bem num curso dado por um famoso professor judeu, o suficiente para o professor considerá-la a aluna mais destacada.
O prêmio, evento anual na sua turma, era o exemplar autografado de uma de suas obras. Muitos colegas de Khalehla, judeus e não judeus, foram dar-lhe os parabéns. Mas quando ela deixara o prédio, três outros,
com máscaras de meias, interceptaram-na, detiveram-na num caminho arborizado para o dormitório.
- O que é que você fez? - perguntara um. - Ameaçou explodir a casa do professor?
- Ou esfaquear seus filhos com uma afiada adaga árabe?
- Nada disso! Ela ameaçou chamar Arafat!
- Vamos lhe dar uma lição, Shvartzeh Arviyah!
- Se o livro significa tanto para vocês, podem levá-lo.
- Nada disso, árabe, você vai receber o que merece.
E ela fora estuprada.
- Isto é por Munique!
- Isto é pelas crianças do kibbutz de Golan!
- Isto é pelo meu primo nas praias de Ashdod, onde vocês o mataram!
Não houvera gratificação sexual para os atacantes, apenas a fúria de infligir punição a uma árabe.
Ela voltara cambaleando e rastejando ao dormitório, e então uma pessoa muito importante entrara em sua vida. Uma certa Roberta Aldridge, a inestimável Bobbie Aldridge, filha iconoclasta dos Aldridges da
Nova Inglaterra.
- Canalhas! - gritara ela para as árvores de Cambridge, Massachusetts.
- Não deve contar nunca o que aconteceu! - suplicara a jovem egípcia. - Procure compreender!
- Não se preocupe com isso, meu bem. Em Boston, temos uma frase que significa a mesma coisa de Southie a Beacon Hill. "Aqueles que dão, recebem". E pode estar certa de que esses filhos da puta vão receber
o que merecem!
- Não! Depois viriam atrás de mim... Eles também não compreendem! Não odeio judeus... minha amiga mais querida desde a infância é a filha de um rabino, um dos colegas mais íntimos de meu pai. Não odeio
os judeus. Eles dirão que odeio, porque não passo de uma árabe nojenta, mas não é verdade. Minha família não é assim. Não odiamos.
- Fique calma, menina. Não falei nada sobre judeus, quem falou foi você. Falei em "filhos da puta", que é um termo que pode abranger todo mundo.
- Para mim, tudo acabou. Não tenho mais nada a fazer aqui. Vou embora.
- Vai coisa nenhuma! Primeiro irá ao meu médico, que sabe das coisas, e depois passará a viver comigo. Oh, Deus, há quase dois anos não tenho um problema para resolver!
Louvados sejam Deus e Alá e todas as outras divindades nos céus. Tenho uma amiga. E de alguma forma, dentro da angústia e do ódio daqueles dias nascera uma ideia que se transformara num compromisso. Uma
moça de dezoito anos soube o que fazer com o resto da sua vida.
O telefone tocou. O passado acabara, estava encerrado, o presente era tudo! Correu para o aparelho na mesinha de cabeceira, arrancou o fone do gancho.
- Alô?
- Ele está aqui.
- Onde?
- Na embaixada.
- Oh, Deus! O que está acontecendo? O que ele está fazendo lá?
- Chegou com mais dois...
- São três, não quatro?
- Só vimos três. Um está junto aos portões, entre os mendigos. Falou com os terroristas lá de dentro.
- E o americano? Onde está ele?
- Com o terceiro homem. Os dois permanecem nas sombras; apenas o primeiro homem aparece. É ele quem toma as decisões, não o americano.
- Como assim?
- Parece que ele está combinando a entrada dos três.
- Não! - gritou Khalehla: - Eles não podem... ele não pode, não deve! Detenham-no! Não o deixem entrar!
- Estas ordens deveriam vir do palácio, madame...
- Estas ordens partem de mim! Vocês foram avisados! A prisão era uma coisa, mas não a embaixada, nunca a embaixada, não para ele! Saiam e detenham-no, matem-no se for preciso! Matem ele!
- Depressa! - gritou o árabe de túnica, correndo para seu colega na frente do restaurante e puxando a trava da sua metralhadora para a posição de disparo. - As ordens são para pegá-los agora, detê-los,
deter o americano. Até matá-lo, se for necessário.
- Matá-lo? - indagou o atônito emissário do palácio.
- Essas são as ordens! Matá-lo!
- As ordens chegaram tarde demais. Ele já se foi.
Segurança Ultramáxima
Não Há Intercepções
Prossiga
O vulto na sala segura e sombria digitava as letras do teclado com uma precisão furiosa.
Consegui romper os códigos de acesso de Langley e é uma loucura! Não a CIA, pois a ligação não está escondendo nada. Agora a insanidade está com o alvo. Ele entrou na embaixada! Não pode sobreviver. Será
descoberto... no banheiro, numa refeição com ou sem utensílios, pela simples reação a uma frase. Esteve longe por muito tempo! Inclui todas as possibilidades, e meus instrumentos oferecem pouca esperança.
Talvez meus instrumentos e eu tenhamos sido muito precipitados em nosso julgamento. Talvez nosso messias nacional não passe de um tolo, mas todos os messias foram considerados tolos e idiotas, até prova
em contrário. Essa é a minha esperança, minha prece.
11
Os três prisioneiros fugitivos subiram rastejando pela escuridão através do antigo conduto de esgoto cheio de limo, até uma abertura gradeada no chão de pedra do pátio leste da embaixada. Fazendo esforços,
as mãos e pés esfolados e ensanguentados, saíram para o sol ofuscante apenas para depararem com uma cena que Evan Kendrick desejou, com todo o seu ser, tivesse permanecido nas trevas. Sessenta ou mais
reféns haviam sido removidos do telhado para o pátio, onde fariam suas abluções e receberiam a minguada refeição da manhã. As latrinas eram tábuas com buracos redondos por cima de jardineiras, os homens
ficavam separados das mulheres por uma enorme tela transparente arrancada de uma das janelas da embaixada. A degradação era total. Os guardas, homens e mulheres, andavam de um lado para outro diante dos
reféns, também homens e mulheres, rindo e gracejando sobre as dificuldades fisiológicas que os cativos experimentavam. O papel higiênico, zombeteiramente estendido além do alcance das mãos trêmulas antes
de ser entregue, eram os impressos dos computadores da embaixada.
No outro lado, à vista das pessoas apavoradas e humilhadas nas tábuas, os reféns haviam formado uma fila em direção a três mesas compridas e estreitas com pratos de metal contendo pão seco e pequenos pedaços
de um queijo suspeito. Havia alguns jarros imundos com um líquido branco-acinzentado, presumivelmente leite de cabra diluído, que era despejado com parcimônia nas tigelas de madeira dos prisioneiros por
um grupo de terroristas armados atrás das mesas. De vez em quando recusavam um prato ou uma colherada de leite a um prisioneiro; a súplica era inútil; resultava num tapa, murro ou a colher na cara quando
os gritos eram muito altos.
Subitamente, enquanto os olhos de Kendrick ainda se ajustavam à claridade intensa, um jovem prisioneiro, garoto que não devia ter mais do que quatorze ou quinze anos, as lágrimas escorrendo pelas faces,
as feições contorcidas, gritou em desafio:
- Seus filhos da puta nojentos! Minha mãe está doente! Não para de vomitar esta porcaria! Deem alguma coisa decente para ela comer, seus filhos da puta...
As palavras do menino foram interrompidas pelo cano de um rifle atingindo seu rosto e cortando sua face esquerda. Em vez de subjugar o garoto, o golpe só serviu para enfurecê-lo ainda mais. Arremeteu contra
o homem, agarrando-lhe a camisa, rasgando-a de seu peito, derrubando da mesa pratos de metal e jarros, com o maior estardalhaço. Em segundos os terroristas se lançaram em cima dele, afastando-o do tipo
barbudo com que ele se engalfinhava no chão, espancando-o com as coronhas dos rifles, chutando seu corpo a se contorcer no chão de pedra. Diversos outros reféns, a ira e a coragem despertadas pela ação
do menino, adiantaram-se correndo, com gritos débeis e roucos, agitando pateticamente os braços contra seus arrogantes inimigos, muito mais fortes. O que se seguiu foi uma brutal repressão à pequena revolta.
Os reféns caíam, inconscientes, e eram chutados como carcaças sendo processadas num matadouro.
- Animais! - bradou um velho, segurando a calça e avançando trôpego das latrinas, a determinação e a dignidade intacta. - Animais árabes! Selvagens! Nenhum de vocês tem um resquício de decência civilizada?
Espancar até a morte homens fracos e indefesos torna-os heróis do Islã? Se assim for, podem me pegar também e conseguir mais medalhas, mas em nome de Deus, parem de bater!
- O Deus de quem? - gritou um terrorista por cima do corpo do garoto inconsciente. - Um Jesus cristão, cujos seguidores armam nossos inimigos, para que possam massacrar nossas crianças com bombas e canhões?
Ou um Messias errante, cujo povo rouba nossas terras e mata nossos pais e mães? Defina os seus deuses!
- Agora chega! - ordenou Azra, adiantando-se rapidamente.
Kendrick seguiu-o, incapaz de se controlar, pensando que momentos antes poderia ter arrancado a MAC-10 do ombro de Azul e disparado contra os terroristas. Parando ao lado do garoto ensanguentado, Azra
acrescentou com voz calma:
- A lição foi ensinada; não exagerem ou vão deixar insensíveis aqueles que querem ensinar. Carreguem essas pessoas para a enfermaria, entreguem-nas ao médico deles... e descubram a mãe do menino. Levem-na
também para lá e providenciem lhe uma refeição.
- Por quê, Azra? - indagou o palestino. - Não demonstraram essa consideração com minha mãe! Ela foi...
- Nem com a minha! - interrompeu Azul firmemente, detendo o homem. - E olhe para nós agora. Levem essa criança para baixo e deixem que fique com sua mãe. Mande alguém conversar com eles sobre o excesso
de zelo, fingindo que se preocupa com o que aconteceu.
Kendrick observou com repulsa enquanto os corpos inertes e ensanguentados eram removidos do pátio.
- Fez o que era certo - ele disse a Azra, em inglês, as palavras friamente neutras, falando como um técnico. - Nem sempre as pessoas se importam, mas é preciso saber que há um momento de parar.
O novo príncipe dos terroristas estudou Evan através de olhos opacos.
- Falei sério. Olhe para nós agora. A morte dos nossos nos tornou diferentes. Um dia somos crianças, no dia seguinte somos adultos, não importam os anos, todos especialistas em morte, pois as lembranças
não nos abandonam.
- Eu compreendo.
- Não, Amal Bahrudi, você não compreende. A sua é uma guerra ideológica. Para você, a morte é um ato político. É um crente fervoroso, não tenho a menor dúvida... mas ainda assim a coisa em que acredita
é a política. Essa não é a minha guerra. Não tenho ideologia além da sobrevivência, quero pagar a morte com a morte... e continuar sobrevivendo.
- Para quê? - indagou Kendrick, subitamente muito interessado.
- Por mais estranho que pareça, para viver em paz, o que foi proibido a meus pais. Para todos nós vivermos em nossa própria terra, que nos foi roubada, entregue aos nossos inimigos e paga por nações ricas
para aliviar seu sentimento de culpa pelos crimes cometidos contra um povo, crimes que não foram nossos. Agora somos as vítimas; podemos fazer menos do que lutar?
- Se acha que isso não é política, sugiro que pense de novo. Continua um poeta, Azra.
- Com uma faca e uma pistola, além dos meus pensamentos, Bahrudi.
Houve uma nova comoção no outro lado do pátio, desta vez pacífica. Dois vultos saíram correndo de uma porta, uma mulher de véu e um homem com listras brancas nos cabelos. Zaya Yateem e Ahbyahd, o homem
chamado Branco, pensou Evan, permanecendo rígido, afastado. O cumprimento entre irmão e irmã foi estranho; trocaram um aperto de mão, formalmente, fitando-se, depois se lançaram a um abraço. A universal
proteção de uma irmã mais velha por um irmão mais moço - este tantas vezes desastrado, impulsivo aos olhos da irmã mais velha e mais sábia - transpunha raças e ideologias. O mais moço inevitavelmente se
tornaria mais forte, os braços musculosos da família, mas a irmã mais velha sempre estava ali para orientá-lo. Ahbyahd foi menos formal, abraçando o membro mais jovem e mais forte do Conselho de Operações,
beijando-o nas faces.
- Tem muito a nos contar! - exclamou o terrorista chamado Branco.
- E tenho mesmo, por causa deste homem - concordou Azra, virando-se para Evan Kendrick. - Ele é Amal Bahrudi, de Berlim Oriental, enviado pelo Mahdi para falar conosco aqui em Mascate.
Por cima do véu, os olhos intensos e até violentos de Zaya esquadrinharam o rosto de Evan.
- Amal Bahrudi - ela repetiu. - Já ouvi o nome, é claro. Os cordões do Mahdi se estendem por longas distâncias. Está bem afastado do seu trabalho.
- Demais - disse Kendrick no refinado dialeto de Riad. - Mas outros são observados, cada movimento é controlado. Chegou-se à conclusão de que alguém deveria vir para cá e Berlim Oriental é um lugar dos
mais convenientes para encontrar esse alguém. Pessoas jurarão que ainda permanece lá. Quando o Mahdi chamou, atendi. Na verdade, estabeleci o primeiro contato com a sua gente, a propósito de um problema
que existe aqui e que seu irmão lhe explicará. Podemos ter objetivos diferentes, mas todos progredimos pela cooperação mútua, especialmente quando nossas contas são pagas.
- Mas você... - murmurou Ahbyahd, franzindo o rosto. - O Bahrudi de Berlim Oriental, o homem que circula em qualquer lugar, por toda parte... você foi descoberto?
- É verdade que tenho a reputação de circular sem que nunca ninguém me descubra - respondeu Evan, permitindo-se a insinuação de um sorriso. - Agora sei que essa reputação não será melhorada pelo que me
aconteceu aqui.
- Quer dizer que foi traído? - perguntou Zaya Yateem.
- Exato. Sei quem foi e o encontrarei. Seu corpo será descoberto a flutuar no porto...
- Bahrudi nos libertou - interveio Azra. - Enquanto eu pensava, ele agia. Merece qualquer reputação que tenha.
- Vamos entrar, querido irmão. Conversaremos lá dentro.
- Querida irmã, temos traidores aqui e é isso o que Amal veio nos dizer... isso e mais uma coisa. Estão tirando fotografias nossas e contrabandeando-as para fora da embaixada, vendendo-as! Se sobrevivermos,
seremos caçados durante anos... Há um registro de nossas atividades para o mundo inteiro tomar conhecimento!
A irmã agora estudou o irmão com uma expressão inquisitiva nos olhos escuros por cima do véu.
- Fotografias? Tiradas por câmeras ocultas, com equipamentos sofisticados, para serem acionadas sem que ninguém perceba? Temos estudiosos tão avançados de fotografia entre nossos irmãos e irmãs aqui, a
maioria dos quais mal sabe ler?
- Ele viu as fotografias! Em Berlim Oriental!
- Conversaremos lá dentro.
Os dois ingleses estavam sentados na frente da enorme escrivaninha, na embaixada britânica, o exausto adido, ainda de roupão, esforçando-se para permanecer acordado.
- Só mais um pouco, companheiros - murmurou o adido, bocejando. - Eles estarão aqui a qualquer momento, e se me permitem dizê-lo, espero que haja substância no que vão nos contar. O MI-Seis está mergulhado
até o pescoço na confusão e eles não ficarão muito satisfeitos com uma dupla de nossos compatriotas a lhes roubar umas poucas horas de sono precioso.
- Este meu amigo Dickie esteve nos Grenadiers! - declarou Jack com ar protetor. - Se ele diz que tem alguma coisa a contar, então eu acho que vocês devem prestar toda atenção. Afinal, para que estamos
aqui?
- Para ganhar dinheiro para suas firmas? - sugeriu o adido.
- Esse é um pequeno detalhe, é claro - respondeu Jack. - Mas em primeiro lugar somos ingleses, não se esqueça disso. Não veremos o Império desaparecer no esquecimento. Certo, Dickie?
- Já desapareceu - murmurou o adido, reprimindo outro bocejo. - Há quarenta anos.
- Quero que compreenda - interveio Dickie. - Meu amigo Jack trabalha com metais ferrosos, mas eu opero com têxteis e por isso posso lhe garantir: pela maneira como o sacana se vestia, em oposição ao que
usava antes... ele não presta. A roupa não apenas determina o homem, mas também se relaciona com suas atividades... Tem sido assim desde que se fiou a primeira fibra de linho, provavelmente aqui mesmo,
nesta parte do mundo, diga-se de passagem...
- MI-Seis tem a informação - interrompeu o adido, com a expressão apática de um homem cansado pela repetição. - Eles estarão aqui em breve.
E foi exatamente o que aconteceu. Menos de cinco segundos depois do comentário do adido, dois homens com a camisa aberta, ambos precisando fazer a barba e nenhum deles parecendo particularmente satisfeito,
entraram na sala. O segundo homem carregava um grande envelope pardo; o primeiro homem falou, perguntando a Dickie e Jack:
- Vocês são os cavalheiros pelos quais viemos aqui?
- Richard Harding à minha esquerda - disse o adido. - E John Preston à direita. Posso me retirar?
- Desculpe, meu velho - respondeu o segundo homem, aproximando-se da mesa e abrindo o envelope. - Estamos aqui porque você nos chamou. Isso lhe dá o direito de ficar.
- É muito gentil - disse o adido, sem qualquer gentileza no tom. - Contudo, eu não os chamei, apenas transmiti a informação que dois cidadãos britânicos insistiam que eu transmitisse. Isso me dá direito
a dormir um pouco, já que não estou na mesma linha de trabalho de vocês.
- Para dizer a verdade - interveio Jack Preston -, foi Dickie quem insistiu, mas sempre achei que em momentos de crise não se deve ignorar qualquer instinto, e Dickie Harding, um antigo granadeiro, como
sabem, teve alguns excelentes instintos... no passado.
- Mas que diabo, Jack, isso não tem nada a ver com instinto, mas sim com o que ele estava vestindo! Um sujeito poderia suar no inverno nas Highlands debaixo daquela roupa, e se o brilho da camisa indicava
seda ou poliéster, ele certamente sufocaria. Algodão. Puro algodão é o único tecido para este clima. E o corte das roupas, como eu disse...
- Com licença, senhor? - Os olhos se desviando um momento para o teto, o segundo homem tirou uma pilha de fotografias do envelope e empurrou-as entre Preston e Harding, interrompendo o diálogo. - Poderiam
dar uma olhada nestas fotografias para ver se reconhecem alguém?
Onze segundos depois a tarefa estava concluída.
- É ele! - exclamou Dickie.
- Sem a menor sombra de dúvida - concordou Jack.
- E vocês são dois loucos - disse o primeiro homem do MI-Seis. - O homem é MacDonald, um bêbado que frequenta a alta sociedade do Cairo. O sogro é o dono da companhia para a qual ele trabalha... uma firma
de peças de automóveis... e foi enviado para cá porque é um idiota rematado. É o segundo homem no escritório do Cairo quem realmente comanda o espetáculo. Eis o resultado do seu instinto a esta hora da
manhã. Posso perguntar onde ambos passaram a noite?
- Ora, Dickie, eu disse que você podia estar reagindo com exagero, em bases um tanto superficiais...
- Um momento, por favor - interveio o segundo homem do MI-Seis, pegando a fotografia de passaporte ampliada e estudando-a. - Há cerca de um ano um dos nossos militares estacionados aqui nos procurou, querendo
marcar uma reunião sobre um problema de A.E. que pensava ser importante.
- Um problema do quê? - indagou o adido.
- "Avaliação de equipamento"... ou seja, espionagem. Não disse muita coisa pelo telefone, é claro, mas comentou que ficaríamos espantados com o suspeito. "Um idiota inglês muito inchado que trabalha no
Cairo" ou qualquer coisa parecida. Poderia ser esse homem?
- Claro que pode! - continuou Jack. - Insisti com Dickie para seguir seu instinto e não esconder nada!
- Um momento atrás, companheiro, não se mostrou tão entusiasmado. Quer saber de uma coisa, Jack? Ainda podemos pegar aquele avião com que você tanto se preocupava.
- O que aconteceu naquela reunião? - perguntou o adido inclinando-se para a frente, os olhos fixados no segundo homem do MI-Seis.
- Não aconteceu. Nosso militar foi morto nas cais, encontraram-no com a garganta cortada ao lado de um armazém. Classificaram a morte como latrocínio, já que não havia nada em seus bolsos.
- Acho que devemos pegar aquele avião de qualquer maneira, Dickie.
- O Mahdi? - disse Zaya Yateem, sentada atrás da escrivaninha no que três semanas antes era o gabinete do embaixador americano. - Você deve levar um de nós até ele, em Bahrain? Esta noite?
- Como eu disse a seu irmão - respondeu Kendrick, sentado na cadeira ao lado de Ahbyahd, de frente para a mulher. - As instruções estavam provavelmente na carta que eu devia entregar a vocês...
- Já sei, já sei - interrompeu-o Zaya, impaciente. - Ele me explicou tudo isso durante os poucos momentos em que ficamos juntos. Mas você está enganado, Bahrudi. Não tenho nenhum meio de chegar diretamente
ao Mahdi... ninguém sabe quem ele é.
- Presumo que pode fazer contato com alguém que, por sua vez, fará contato com ele.
- Claro, mas poderia demorar um dia, talvez dois. Os caminhos para ele são complicados. Cinco chamadas são feitas e dez vezes cinco são transmitidas para telefones que não constam da lista em Bahrain,
e apenas um pode fazer contato com o Mahdi.
- O que acontece numa emergência?
- Não são permitidas - informou Azra, encostado na parede ao lado de uma janela iluminada pelo sol. - Eu lhe disse isso.
- E isso, meu jovem amigo, é absurdo. Não podemos fazer o que fazemos com alguma eficiência sem levar em consideração o inesperado.
- Tem razão. - Zaya Yateem acenou com a cabeça, depois sacudiu-a lentamente. - Contudo, meu irmão está certo num ponto. Devemos nos manter nas emergências por semanas, se for preciso. Caso contrário, como
líderes, não nos dariam as missões.
- Está bem - disse o deputado do Nono Distrito do Colorado sentindo o suor escorrer pelo pescoço apesar da brisa fria da manhã que entrava pelas janelas abertas. - Então explique ao Mahdi por que não estamos
em Bahrain esta noite. Cumpri a minha parte, inclusive, eu creio, salvando a vida de seu irmão.
- Ele tem razão nesse ponto, Zaya - concordou Azra, afastando-se da parede. - Eu seria um cadáver no deserto a esta altura.
- Pelo que me sinto grata, Bahrudi, mas não posso fazer o impossível.
- Pois acho melhor tentar. - Kendrick olhou para Ahbyahd a seu lado e depois voltou a se fixar na irmã. - O seu Mahdi teve muita dificuldade e despesa para me enviar até aqui; sendo assim, presumo que
ele tem uma emergência.
- A notícia da sua captura explicaria o que aconteceu - comentou Ahbyahd.
- Acha mesmo que as forças de segurança de Oman espalharão a notícia de que me pegaram e que logo me deixaram escapar?
- Claro que não - respondeu Zaya Yateem.
- O Mahdi controla os cordões da sua bolsa - acrescentou Kendrick. - E pode influenciar a minha, o que não me agrada.
- Nossos suprimentos estão quase acabando - interveio Ahbyahd. - Precisamos das lanchas rápidas dos emirados ou tudo o que fizemos terá sido em vão. Em vez de sitiar, nós é que ficaremos sitiados.
- Pode haver um jeito - disse Zaya, levantando-se subitamente, as mãos sobre a mesa, os olhos escuros por cima do véu vagando a esmo, absorta em pensamentos. - Marcamos uma entrevista coletiva para esta
manhã; será assistida em toda parte e certamente pelo próprio Mahdi. Em algum momento direi que estamos enviando uma mensagem urgente para nossos amigos. Uma mensagem que exige uma resposta imediata.
- De que adiantaria? - indagou Azra. - Todas as comunicações são controladas, sabemos disso. Nenhum dos homens do Mahdi se arriscará a entrar em contato conosco.
- Não precisam - interveio Evan, inclinando-se para a frente. - Entendo o que sua irmã quer dizer. A resposta não precisa ser verbal; nenhuma comunicação é necessária. Não estamos pedindo instruções, estamos
dando. É o que você e eu conversamos há várias horas, Azra. Conheço Bahrain. Escolherei um lugar onde possamos esperar e deixaremos que um dos seus contatos aqui em Mascate a transmita, informando que
essa é a mensagem urgente de que sua irmã falou durante a entrevista coletiva. - Kendrick tornou a se virar para Yateem. - Não é isso o que você tinha em mente?
- Eu ainda não refinara a ideia, mas é viável - admitiu Zaya. - Meu pensamento era apenas o de acelerar o processo de estabelecer contato com o Mahdi. É plausível.
- É a solução! - exclamou Ahbyahd. - Bahrudi nos deu a resposta!
- Nada está resolvido por enquanto - disse a mulher de véu, sentando-se de novo. - Há o problema de enviar meu irmão e o senhor Bahrudi para Bahrain. Como pode ser feito?
- Já está providenciado - respondeu Evan. As batidas em seu peito se aceleraram. Estava espantado com o próprio controle e com a voz casual. Chegava mais perto! Cada vez mais perto do Mahdi! - Eu disse
a Azra que tenho um telefone... que não darei a vocês, não posso dar... mas com ele a umas poucas palavras teremos um avião.
- Sem nenhum problema? - indagou Ahbyahd.
- Seu benfeitor aqui em Oman tem métodos com que nunca sonhou.
- Todos os telefonemas da embaixada e para a embaixada estão grampeados - protestou Azra.
- O que eu disser poderá ser ouvido, mas não as palavras do meu interlocutor. Foi o que me asseguraram.
- Um aparelho que distorce a ligação para quem esteja na escuta? - perguntou Yateem.
- São parte de nossos equipamentos na Europa. Um cone simples, comprimido sobre o bocal. A distorção é absoluta, exceto na ligação direta.
- Faça a sua ligação - disse Zaya, levantando-se e contornando rapidamente a mesa.
Kendrick também se levantou e foi ocupar a cadeira no outro lado da mesa. Mantendo a mão por cima dos números, Evan discou.
- Alô? - disse a voz de Ahmat, antes do segundo toque da campainha.
- Um avião - disse Kendrick. - Dois passageiros. Onde? Quando?
- Por Deus! - exclamou o jovem sultão de Oman. - Deixe-me pensar... O aeroporto, é claro. Há uma curva na estrada, cerca de meio quilômetro antes da área de carga. Alguém estará esperando num carro da
guarnição. Diga que foi roubado para poderem passar pelos guardas.
- Quando?
- Vai demorar. A segurança é intensa por toda parte e preciso tomar as providências. Pode me dar um destino?
- A vigésima segunda letra dividida por dois.
- V... dividido... um I inclinado... Irã?
- Não. Divida pelos números.
- Vigésima segunda... dois. B?
- Isso.
- Bahrain!
- Isso.
- Ajuda bastante. Darei alguns telefonemas. Quando vai precisar?
- No auge das festividades. Temos de sair na confusão.
- Seria por volta do meio-dia.
- O que disser. De passagem, há um médico... ele tem uma coisa que posso precisar para minha saúde.
- O cinturão de dinheiro, é claro. Será entregue.
- Ótimo.
- A curva antes da área de carga. Esteja lá.
- Estaremos. - Evan desligou. - Deveremos estar no aeroporto por volta do meio-dia.
- Aeroporto? - gritou Azra. - Seremos apanhados!
- Na estrada antes do aeroporto. Alguém roubará um carro da guarnição e eles nos pegarão.
- Providenciarei para que um dos nossos contatos aqui na cidade leve vocês de carro - disse Zaya Yateem. - Será o homem a quem deverá comunicar o local em Bahrain, o ponto de encontro. Vocês têm pelo menos
cinco horas antes de partir.
- Precisaremos de roupas, um banho de chuveiro e algum repouso - disse Azra. - Não me lembro quando dormi pela última vez.
- Eu gostaria de dar uma olhada na operação - sugeriu Kendrick, levantando-se. - Posso aprender alguma coisa.
- Como quiser, Amal Bahrudi - disse Zaya Yateem, aproximando-se de Evan. - Salvou a vida do meu querido irmão e não tenho palavras adequadas para expressar meus agradecimentos.
- Basta levar-me ao aeroporto por volta do meio-dia - respondeu Kendrick, sem qualquer emoção na voz. - Para ser franco, quero voltar à Alemanha o mais depressa possível.
- Por volta do meio-dia - concordou a terrorista.
- Weingrass estará aqui por volta do meio-dia! - informou o agente do Mossad a Ben-Ami e aos cinco homens da Brigada Massada.
Eles estavam no portão de uma casa no Jabal Sa’ali, a minutos das fileiras de sepulturas inglesas, onde dezenas de corsários haviam sido enterrados séculos antes. O primitivo porão de pedra fora convertido
num centro de controle para o serviço de informações israelense.
- Como chegará aqui? - perguntou Ben-Ami, que tirara o ghotra da cabeça, a calça jeans e a camisa escura parecendo agora muito mais naturais. - Seu passaporte foi emitido em Jerusalém, não é o documento
mais bem-vindo aqui.
- Nunca se questiona Emmanuel Weingrass. Sem dúvida ele tem mais passaportes do que existem bagels[1] na praça Jabotinsky em Tel Aviv. Disse para não fazermos nada até ele chegar. "Absolutamente nada",
foram as suas palavras textuais.
- Você não parece tão desaprovador como de hábito - comentou Yaakov, codinome Azul, filho de um refém e líder da unidade da Massada.
- É porque não terei de visar as suas despesas! Não haverá despesas. Só precisei mencionar o nome de Kendrick e ele disse que estava a caminho.
- Isso não significa que ele não vai apresentar contas de despesas - disse Ben-Ami, rindo.
- Nada disso, fui bastante específico. Perguntei quanto nos custaria sua ajuda e ele respondeu, claramente: "Vá se foder! Esta é por minha conta!" É uma expressão americana que nos exime de qualquer pagamento.
- Estamos perdendo tempo! - protestou Yaakov. - Devemos efetuar um reconhecimento da embaixada. Estudamos as plantas; há meia dúzia de caminhos pelos quais podemos entrar e sair com meu pai!
Cabeças se voltaram, olhos se arregalaram fixados no jovem líder chamado Azul.
- Compreendemos a sua ansiedade - murmurou o agente do Mossad.
- Desculpe. Não consegui me conter.
- Você, entre todas as pessoas, tem o direito de estar ansioso - comentou Ben-Ami.
- Mas não deveria. Peço desculpas de novo. Mas por que devemos esperar por Weingrass?
- Porque é ele quem conhece as coisas por aqui, e sem a sua ajuda pouco podemos fazer.
- Entendi! Vocês do Mossad trocaram as bolas. Agora querem ajudar o americano, deixaram de lado o objetivo original! Que era meu pai!
- O resultado vai ser o mesmo, Yaakov...
- Não sou Yaakov! - bradou o jovem líder. - Para vocês sou apenas Azul... o filho de um pai que viu o pai e a mãe dele serem separados em Auschwitz, abraçando-se antes de serem levados para as câmaras
de gás. Quero tirar meu pai de lá, são e salvo, e posso conseguir isso! Quanto mais esse homem vai sofrer? Uma infância de horror, vendo crianças da idade dele serem enforcadas porque roubavam lixo para
comer, ou sodomizadas por porcos da Wehrmacht, ocultando-se, passando fome em florestas por toda a Polônia até os Aliados chegarem. Depois foi abençoado com três filhos apenas para ver dois deles mortos,
meus irmãos massacrados em Sidon por esses porcos nojentos... terroristas árabes! E agora devo me preocupar com um caubói americano, um político que quer virar herói para depois atuar em filmes e ter seu
retrato em caixas de cereais?
- Pelo que fui informado - disse Ben-Ami calmamente -, nada disso é verdade. Esse americano arrisca a vida sem a ajuda da sua própria gente, sem a perspectiva de recompensas futuras, se sobreviver. Como
nosso amigo aqui nos conta, ele faz o que está fazendo por um motivo não muito diferente do seu. Para reparar um erro terrível que foi cometido contra ele, contra sua família, por assim dizer.
- Ele que se dane! Era apenas uma família, não um povo! Digo que devemos ir logo para a embaixada!
- Pois eu digo que não - declarou o agente do Mossad, pondo sua pistola na mesa, calmamente. - Você se encontra agora sob o comando do Mossad e acatará nossas ordens.
- Porcos! - berrou Yaakov. - Todos vocês são porcos!
- Sim, somos - murmurou Ben-Ami. - Todos nós.
10:48, hora de Oman. A controlada entrevista coletiva terminara. Os repórteres e equipes de televisão seguravam seus equipamentos e blocos de anotações, prontos para serem conduzidos através da embaixada
para os portões patrulhados por uma centena de rapazes e moças de véu, marchando de um lado para outro, as armas em posições de disparo. Na sala em que fora concedida a entrevista, no entanto, um homem
gordo passou pelos guardas com palavras insinuantes e aproximou-se da mesa em que Zaya Yateem permanecia sentada. Com rifles apontados para sua cabeça, ele sussurrou:
- Venho da parte do Mahdi, que paga cada xelim que você deve.
- Você também? A emergência em Bahrain deve mesmo ser muito grave.
- Como?
- Ele já foi revistado? - Zaya perguntou aos guardas, que assentiram. - Podem deixá-lo comigo.
- Obrigado, madame... que emergência em Bahrain?
- Obviamente, não sabemos. Um dos nossos vai até lá esta noite para ser informado e voltará com as informações.
MacDonald fixou os olhos por cima do véu, uma dor intensa surgindo em seu peito enorme. O que estaria acontecendo? Por que Bahrain o passava para trás? Que novas decisões o estariam excluindo? Por quê?
O que teria feito a nojenta puta árabe?
- Madame - continuou o inglês lentamente, pesando as palavras -, a emergência em Bahrain parece ser uma nova evolução, enquanto eu estou preocupado com outro problema, igualmente grave. Nosso benfeitor
gostaria que fosse esclarecida... esclarecida imediatamente... a presença da mulher chamada Khalehla aqui em Mascate.
- Khalehla? Não há nenhuma mulher chamada Khalehla entre nós, embora os nomes agora nada signifiquem, não é mesmo?
- Ela não está aqui, não dentro deste prédio, mas lá fora e em contato com sua gente... com seu irmão, para ser mais preciso.
- Meu irmão?
- Exatamente. Três prisioneiros fugitivos correram ao encontro dela na estrada do Jabal Sham, ao encontro do inimigo!
- Afinal, que está querendo dizer?
- Não estou apenas querendo dizer, madame, estou exigindo... exigindo uma explicação. O Mahdi insiste nisso, de forma categórica.
- Não tenho a menor ideia do que está falando! É verdade de que três prisioneiros escaparam, um deles meu irmão, junto com Yosef e o outro emissário de nosso benfeitor, um homem chamado Bahrudi, de Berlim
Oriental.
- Oriental... Madame, está sendo rápida demais para mim.
- Se veio mesmo do Mahdi, estou espantada que não saiba dele. - Yateem fez uma pausa, os olhos grandes e penetrantes esquadrinhando o rosto de MacDonald. - Por outro lado, você pode ter vindo da parte
de qualquer um, de qualquer lugar.
- Enquanto estiver em Mascate, sou a única voz do Mahdi! Ligue para Bahrain e confirme pessoalmente, madame.
- Sabe muito bem que tais ligações não são permitidas. - Zaya estalou os dedos para os guardas, que correram até a mesa. - Levem este homem para a sala do conselho. Depois acordem meu irmão e Yosef, e
encontrem Amal Bahrudi. Outra reunião será realizada. Agora!
As roupas escolhidas por Evan eram uma mistura da moda terrorista: calça cáqui amarrotada, uma túnica suja ao estilo americano e uma camisa escura aberta até o meio do peito. Exceto pela idade e os olhos,
era similar, na aparência, à maioria dos jovens fanáticos que haviam capturado a embaixada. Mesmo os anos ficavam disfarçados sob a pele escurecida, e os olhos se achavam meio encobertos debaixo da pala
de um gorro de pano. Para completar a imagem que desejava, uma faca na bainha estava presa à túnica, e o volume de um revólver era evidente no bolso direito. O "homem de confiança" era confiado; salvara
a vida de Azra, príncipe dos terroristas, circulava livremente pela embaixada, passando de uma cena terrível para outra, de um grupo assustado, exausto e sem esperança para outro.
Esperança. Era tudo o que podia oferecer aos reféns sabendo que, em última análise, era provavelmente falsa, mas tinha de oferecer, dar-lhes alguma coisa a que pudessem se apegar ou em que pudessem pelo
menos pensar nas horas mais sinistras e aterradoras da noite.
- Sou um americano! - sussurrava para os atônitos reféns, onde quer que os encontrasse em grupos de três ou quatro, os olhos constantemente vagueando ao redor, vigiando os terroristas, que o imaginavam
insultando os prisioneiros com súbitas explosões de raiva. - Ninguém esqueceu vocês! Estamos fazendo tudo o que é possível! Não se importem se eu gritar com vocês! Preciso me comportar assim!
- Graças a Deus! - era a constante resposta inicial, seguida por lágrimas e descrições de horrores, incluindo invariavelmente a execução pública dos sete prisioneiros condenados.
- Eles vão nos matar! Pouco importa a eles! Os animais nojentos não se importam com a morte... a nossa ou a deles!
- Façam todo o possível para se manterem calmos, e falo sério! Tentem não demonstrar medo, o que é muito importante, mas muito importante mesmo! Não hostilizem, mas também não rastejem diante deles! Vê-los
com medo é como um excitante para eles! Não se esqueçam disso!
Em dado momento, Kendrick levantou-se subitamente e gritou insultos para um grupo de cinco americanos. Seus olhos atentos haviam percebido um dos guardas pessoais de Zaya Yateem, aproximando-se às pressas.
- Você! Bahrudi!
- O que é?
- Zaya quer lhe falar imediatamente. Venha para a sala do conselho.
Evan acompanhou o guarda pelo sótão e desceu três lances de escada para um corredor comprido. Tirou o gorro, agora encharcado de suor, e entrou pela porta aberta para uma grande sala da embaixada. Quatro
segundos depois seu mundo foi destruído pelas últimas palavras que queria ouvir:
- Santo Deus! Você é Evan Kendrick!
12
- Meen ir ráh-gill da? - disse Evan, a mente e o corpo paralisados, forçando-se a movimentos desembaraçados enquanto perguntava a Zaya quem era o homem gordo que falava inglês.
- Ele diz que veio da parte do Mahdi - respondeu Azra, colocando-se entre Yosef e Ahbyahd.
- E o que é que ele quis dizer?
- Você entendeu. Ele diz que você é alguém chamado Kendrick.
- Quem é este homem? - Evan perguntou em inglês, apontando para Anthony MacDonald, tentando desesperadamente manter o controle, enquanto se ajustava não apenas à visão de uma pessoa que não via há quase
cinco anos, mas também à sua presença naquela sala. MacDonald! O tolo bêbado da colônia britânica no Cairo! - Meu nome é Amal Bahrudi. Qual é o seu?
- Sabe muito bem quem sou! - gritou o inglês, espetando o dedo indicador no ar e olhando para os quatro conselheiros árabes, especialmente Zaya Yateem. - Ele não é Amal-qualquer-coisa e não veio da parte
do Mahdi! É um americano chamado Evan Kendrick!
- Estudei em duas universidades americanas - disse Evan, sorrindo -, mas ninguém jamais me chamou de Kendrick. De outras coisas, sim, mas não de Kendrick.
- Está mentindo!
- Ao contrário, é você o mentiroso, se diz que trabalha para o Mahdi. Mostraram-me as fotografias de todos os europeus em seu... digamos assim... grupo confidencial, e a sua não estava incluída. Eu com
certeza me lembraria, porque você... bem... possui um rosto e um corpo bem incomuns.
- Mentiroso! Impostor! Trabalha com Khalehla, a puta, a inimiga! No início desta manhã, antes do raiar do dia, ela estava a caminho para se encontrar com você!
- Do que ele está falando? - Kendrick olhou para Azra e Yosef. - Nunca ouvi falar de Khalehla nenhuma, quer como inimiga quer como meretriz... e antes do dia raiar meus amigos e eu estávamos correndo para
salvar nossas vidas. Posso lhe garantir que não tivemos tempo para qualquer outra coisa.
- Pois eu garanto que este homem está mentindo! Eu estava lá e vi! Vi todos vocês!
- Você nos viu? - indagou Evan, franzindo a testa. - Como?
- Saí com o carro da estrada...
- Você nos viu e não procurou ajudar? - interrompeu-o Kendrick, furioso. - E ainda diz que vem da parte do Mahdi?
- Ele tem razão, inglês - disse Zaya. - Por que não os ajudou?
- Tinha que descobrir certas coisas, foi por isso! E agora eu descobri! Khalehla... e ele!
- Tem fantasias extraordinárias, esse é o problema, qualquer que seja o seu nome. Uma coisa, porém, podemos esclarecer com a maior facilidade. Estamos a caminho de Bahrain para encontrar com o Mahdi. Nós
o levaremos conosco. O grande homem ficará satisfeito em vê-lo, se você é tão importante para ele.
- Concordo - declarou Azra, firmemente.
- Bahrain? - bradou MacDonald. - E como vamos chegar lá?
- Quer dizer que não sabe? - perguntou Kendrick.
Emmanuel Weingrass, o peito magro arfando de dor pelo mais recente acesso de tosse, saltou da limusine diante do cemitério em Jabal Sa’ali. Virou-se para o motorista que segurava a porta, e falou reverente,
com um exagerado sotaque britânico:
- Vou orar por meus ancestrais ingleses... Bem poucos o fazem. Volte dentro de uma hora.
- Hora? - indagou o homem, levantando um dedo e repetindo em árabe a palavra para hora: - Iss’a?
- Isso mesmo, meu amigo islâmico. É uma peregrinação compungida que faço todos os anos. Pode compreender?
- Claro, claro! El sallah. Allahoo Akbar!
O motorista balançou a cabeça, dizendo que compreendia orações e que Deus era grande. Também segurava na mão o dinheiro, que era mais do que esperara, sabendo que poderia ganhar outro tanto quando voltasse,
dentro de uma hora.
- Agora deixe-me - disse Weingrass. - Quero ficar sozinho... Sibni fihahlee.
- Claro, claro!
O motorista fechou a porta, correu para seu assento e partiu. Manny permitiu-se um breve espasmo, uma tosse vibrante idêntica à anterior, olhou ao redor para se orientar, em seguida começou a atravessar
o cemitério na direção de uma casa de pedra situada num campo, a várias centenas de metros. Dez minutos depois foi introduzido no porão, onde o serviço secreto israelense instalara seu posto de comando.
- Weingrass! - exclamou o agente do Mossad. - Que prazer tornar a vê-lo!
- Não sente prazer nenhum. Nunca fica feliz em me ver ou ouvir pelo telefone. Não sabe nada sobre o trabalho que faz, não passa de um contador... e dos mais avarentos, diga-se de passagem.
- Ora, Manny, não vamos começar...
- Pois eu acho que devemos começar imediatamente. - Weingrass olhou para Ben-Ami e os cinco membros da Brigada Massada. - Algum de vocês, desajustados, tem uísque? Sei que este zohlah não tem - acrescentou,
insinuando que o homem do Mossad era um miserável.
- Nem mesmo vinho - respondeu Ben-Ami. - Não foi incluído em nossas provisões.
- Sem dúvida determinadas pelo contador aqui. Muito bem, contador, conte-me tudo o que sabe. Onde está meu filho Evan Kendrick?
- Nesta cidade, mas isso é tudo o que sabemos.
- Não é de surpreender. Você sempre esteve três dias atrasado em relação ao Sabbath.
- Manny...
- Acalme-se. Vai acabar tendo uma parada cardíaca e não quero que Israel perca seu pior contador. Quem pode me dizer mais alguma coisa?
- Eu posso dizer! - gritou Yaakov, codinome Azul. - Deveríamos estar neste momento... há várias horas... estudando a embaixada. Temos uma missão a cumprir sem qualquer ligação com o seu americano!
- Portanto, além de um contador, temos aqui um jovem impetuoso demais - comentou Weingrass. - Mais alguém?
- Kendrick está aqui sem qualquer apoio - informou Ben-Ami. - Foi trazido de avião numa operação secreta, mas agora está entregue à própria sorte. Ninguém o reconhecerá se for capturado.
- De onde obteve essa informação?
- Um dos nossos homens em Washington. Não sei de quem ou de que departamento ou agência.
- Preciso de uma lista telefônica. Até que ponto este telefone é seguro? - indagou Weingrass, sentando à mesa.
- Nenhuma garantia - respondeu o homem do Mossad. - Foi instalado às pressas.
- Pelo mínimo possível de siclos, tenho certeza.
- Manny!
- Ora, cale a boca.
Weingrass tirou um caderninho de anotações do bolso, folheou as páginas, fixou-se em um nome e um número. Tirou o fone do gancho e discou. Em poucos segundos estava falando.
- Obrigado, meu prezado amigo no palácio, por ser tão cortês. Meu nome é Weingrass, insignificante para você mas não para o grande sultão Ahmat. Naturalmente, eu não gostaria de incomodar sua ilustre pessoa,
mas se puder avisá-lo de que liguei, talvez ele possa retribuir um grande favor. Anote o meu número, por obséquio. - Manny deu o número, contraindo os olhos para ler os dígitos no aparelho. - Obrigado,
meu prezado amigo, e gostaria de acrescentar, com todo respeito, que se trata de uma questão urgente. O sultão pode louvá-lo por sua diligência. Obrigado, mais uma vez.
O outrora famoso arquiteto desligou e recostou-se na cadeira, respirando fundo para conter o chiado que irrompia em seu peito.
- E agora vamos esperar - ele murmurou, olhando para o agente do Mossad. - E torcer para que o nosso sultão tenha mais inteligência e dinheiro do que você... Oh, Deus, ele voltou! Depois de quatro anos,
meu filho me ouviu e voltou!
- Por quê? - perguntou Yaakov.
- O Mahdi - respondeu Weingrass, falando baixo, furioso, os olhos fixados no chão.
- O quem?
- Vai descobrir logo, jovem impetuoso.
- Ele não é realmente seu filho, Manny.
- É o único filho que jamais desejei ter...
O telefone tocou; Weingrass atendeu, comprimindo o auscultador contra o ouvido.
- Alô?
- Emmanuel?
- Em determinada ocasião, quando nos encontramos em Los Angeles, você foi muito menos formal.
- Alá seja louvado, jamais esquecerei. Tive de fazer um exame quando voltei para cá.
- Diga-me uma coisa, meu jovem fedorento, conseguiu uma boa nota para aquela sua tese de economia no terceiro ano?
- Apenas regular, Manny. Deveria ter escutado o que me disse. Sugeriu que eu a fizesse muito mais complicada... pois eles gostavam de coisas complicadas.
- Pode falar? - perguntou Weingrass, a voz subitamente séria.
- Eu posso, mas você talvez não. Deste lado, tudo é estática. Está me entendendo?
- Estou, sim. Nosso conhecido mútuo. Onde está ele?
- A caminho de Bahrain, com duas outras pessoas que se encontravam na embaixada... Deveria haver mais uma, mas isso foi alterado no último minuto. Não sei por quê.
- Porque uma pista leva a outro alguém, provavelmente. Haveria mais alguém?
Ahmat fez uma breve pausa.
- Há, sim, Manny. Há outra pessoa com a qual você não deve interferir nem reconhecer seja qual for a circunstância. É uma mulher chamada Khalehla. Conto-lhe isso porque confio em você e sei que pode saber
que ela existe, mas ninguém mais deve tomar conhecimento. Sua presença aqui tem que permanecer em segredo, tanto quanto a do nosso amigo; sua descoberta seria uma catástrofe.
- Parece uma coisa séria, jovem amigo. Como reconheceria eu esse problema?
- Espero que não haja motivo para isso acontecer. Ela está escondida na cabine do piloto, que permanecerá trancada até chegarem a Bahrain.
- Bem, é tudo o que tem a me dizer?
- Sobre ela, sim.
- Preciso me mexer. O que pode fazer por mim?
- Mandá-lo em outro avião. Assim que puder, nosso amigo vai me ligar e contar o que está acontecendo. Quando você chegar lá, entre em contato comigo.
Ahmat forneceu a Weingrass o número do seu telefone confidencial.
- Deve ser uma estação nova - comentou Manny.
- Não é uma estação. Vai ficar neste telefone?
- Vou.
- Ligarei para informar os acertos. Se houver um voo comercial para breve, será muito fácil embarcá-lo.
- Lamento, mas não será possível.
- Por que não?
- Tudo tem de permanecer cego e surdo. Estou na companhia de sete pavões.
- Sete...?
- Isso mesmo. E se pensa que haveria problemas... como catástrofes... experimente essas aves altamente inteligentes, de plumas azuis e brancas.
Ahmat, sultão de Oman, soltou uma exclamação aturdida.
- O Mossad?
- É isso aí.
- Santa merda! - exclamou Ahmat.
O pequeno jato Rockwell de seis passageiros voava para noroeste a dez mil metros de altitude, sobrevoando os Emirados Árabes Unidos e penetrando no golfo Pérsico, no percurso de mil e trezentos quilômetros
até Bahrain. Anthony MacDonald, estranhamente tranquilo e confiante, acomodava-se sozinho na primeira fila de duas poltronas, Azra e Kendrick sentavam-se lado a lado na última. A porta do compartimento
do piloto estava trancada e, segundo o homem que os encontrara no carro da guarnição "roubado" e os levara pela área de carga até o avião na extremidade do aeroporto de Mascate, assim deveria permanecer
até os passageiros desembarcarem. Ninguém os veria; seriam recebidos no Aeroporto Internacional de Bahrain, em Muharraq, por alguém que os escoltaria através da imigração.
Evan e Azra haviam repassado o plano várias vezes. Como nunca estivera em Bahrain, o jovem terrorista fez anotações, basicamente sobre locais e como eram escritos. Era indispensável que Kendrick e Azra
se separassem, pelo menos por uma hora. O motivo era Anthony MacDonald, o mais improvável dos agentes do Mahdi. O inglês poderia levá-lo até o Mahdi e, se fosse o caso, Evan abandonaria o príncipe herdeiro
dos terroristas.
- Não se esqueça, escapamos juntos do Jabal Sham. Considerando a Interpol, sem falar dos serviços de informações combinados da Europa e América, haverá alertas à nossa procura por toda parte, inclusive
com nossas fotografias. Não podemos correr o risco de ser vistos juntos à luz do dia. Após o pôr do sol o risco será menor, mas ainda assim devemos tomar precauções.
- Que precauções?
- Comprar roupas diferentes, para começar; estas possuem as marcas de desordeiros da classe inferior, perfeitas para as condições em Mascate, mas não aqui. Tome um táxi para Manamah, que é a cidade na
ilha grande, alugue um quarto no Hotel Aradous, no Wadi Al Ahd. Há uma loja de roupas masculinas no saguão; compre um terno ocidental e corte os cabelos. Anote tudo!
- Estou anotando.
Azra escreveu ainda mais depressa.
- Registre-se sob o nome de... Pensando bem, Yateem é um nome bastante comum em Bahrain, mas não vamos correr o risco.
- O nome de minha mãe, Ishaad?
- Os computadores deles são eficientes. Use Farouk, é o que todo mundo faz. T. Farouk. Entrarei em contato com você dentro de uma ou duas horas.
- O que vai fazer?
- O que vou fazer? - murmurou Kendrick, agora dizendo a verdade. - Ficarei com o inglês que diz trabalhar para o Mahdi. Se afinal ele disse a verdade, e sua linha de comunicações acaso falhar, acertarei
facilmente a reunião desta noite. Mas para ser franco, não acredito nele... e se é o mentiroso que penso, devo descobrir para quem trabalha.
Azra fitou o homem que conhecia como Amal Bahrudi e falou suavemente:
- Vive num mundo mais complicado do que o meu. Conhecemos nossos inimigos; apontamos nossas armas para eles e tentamos matá-los, porque eles também nos querem matar. Contudo, me parece que você não consegue
ter essa certeza, que antes de disparar suas armas no calor da batalha deve se preocupar em descobrir quem é o inimigo.
- Você teve que se infiltrar e considerar a possibilidade de traidores; nossas precauções não são tão diferentes.
- A infiltração não é difícil quando milhares se vestem como nós, falam como nós. É uma questão de atitude; pressupomos a do inimigo. Quanto aos traidores, fracassamos em Mascate, você nos ensinou isso.
- Eu?
- As fotografias, Bahrudi.
- Claro. Desculpe. Minha mente está dispersa em outras coisas. - Estava mesmo, mas não podia repetir essa atitude, pensou Kendrick. O jovem terrorista fitava-o com curiosidade. Precisava remover dúvidas.
E depressa! - Mas por falar nessas fotografias, sua irmã terá que providenciar a prova de que liquidou com toda essa história de traição. Sugiro outras fotos. Cadáveres diante de uma câmera esmagada, com
declarações gravadas que se podem distribuir... confissões gravadas, é claro.
- Zaya saberá o que fazer; é a mais forte entre nós, a mais dedicada. Não descansará enquanto não desmontar cada cômodo, revistar cada irmão e irmã. Metodicamente.
- Palavras, poeta! - advertiu Evan, asperamente. - Talvez não compreenda. O que aconteceu em Mascate... o que foi negligentemente permitido que acontecesse... poderia afetar nossas operações por toda parte.
Se transpirar e ficar impune, agentes correrão para se infiltrar entre nós insinuando-se para nos denunciar com câmeras e gravadores!
- Está bem, está bem - disse Azra, balançando a cabeça, não querendo ouvir mais críticas. - Minha irmã cuidará de tudo. Acho que ela não estava convencida até saber o que você fez por nós no Jabal Sham,
até ver o que você podia conseguir com um telefonema. Posso garantir que ela tomará as medidas necessárias.
- Ótimo! Descanse agora, poeta furioso. Temos uma longa tarde e uma longa noite pela frente.
Kendrick recostou-se no assento, como se pretendesse cochilar, os olhos entreabertos cravados na nuca da cabeça grande e calva de Anthony MacDonald. Havia muito em que pensar, tantas coisas a considerar,
e seu tempo era escasso demais até para analisá-las. Acima de tudo, havia um Mahdi, o Mahdi! Não cercando e deixando à míngua Khartum e George Gordon, em meados do século XIX, mas vivendo e manipulando
o terror cem anos depois, em Bahrain! E havia uma complexa cadeia que levava ao monstro; estava oculta, sepultada, em termos profissionais, mas existia! Ele descobrira um apêndice terrorista, um tentáculo
talvez, mas parte do corpo anfitrião. O assassino a seu lado poderia levá-lo à fonte principal, como cada cabo elétrico de um prédio leva à origem central da energia. Cinco ligações são feitas, dez vezes
cinco para números não relacionados em Bahrain, e apenas uma pode fazer contato com o Mahdi: Zaya Yateem, que sabia do que falava. Cinquenta ligações, cinquenta telefones... um entre cinquenta homens ou
mulheres desconhecidos que sabia onde estava o Mahdi, e quem era!
Ele criara uma emergência. Manny Weingrass sempre lhe dissera para inventar emergências ao tratar com clientes em potencial que podiam ou não comunicar-se entre si. Diga ao primeiro idiota que precisa
de uma resposta até quarta-feira ou iremos nos transferir para Riad. Diga ao segundo palhaço que não podemos esperar além de quinta-feira, porque há um trabalho sensacional em Abu Dhabi à nossa espera.
Não era a mesma coisa, é claro - apenas uma variação da técnica. Os líderes terroristas na embaixada em Mascate estavam convencidos de que havia uma emergência para seu benfeitor, o Mahdi, pois ele providenciara
que "Amal Bahrudi", de Berlim Oriental, levasse um deles a Bahrain. Por outro lado, as forças do Mahdi haviam sido avisadas pela televisão internacional que uma "mensagem urgente" fora enviada "a amigos"
e exigia uma "resposta imediata" - emergência!
Manny, fiz tudo certo? Tenho de encontrá-lo, combatê-lo... Vou matá-lo pelo que fez a todos nós!
Emmanuel Weingrass, pensou Evan, os olhos começando a se fechar, o peso morto do sono se abatendo. Contudo, não pôde evitar: uma suave risada soou em sua garganta. Lembrou-se da primeira viagem que havia
feito a Bahrain.
- E agora, pelo amor de Deus, não se esqueça de que estamos tratando com pessoas que controlam um arquipélago, não uma massa continental beirando outra massa continental, que ambos os lados convenientemente
chamam de país. É um país formado por mais de trinta ilhas, no golfo Pérsico. Nada que se possa medir em acres, e nem querem que você faça isso... essa é a força deles.
- Onde está querendo chegar, Manny?
- Tente compreender, seu mecânico ignorante. Apele para esse senso de força. Este é um estado independente, uma sucessão de erupções do mar que protegem as enseadas das tempestades do Golfo e que se situam
convenientemente entre a península de Qatar e a costa de Hasa, na Arábia Saudita, a última muito importante, por causa da influência saudita.
- O que tem isso a ver com a porcaria de uma ilha que vira campo de golfe? Você joga golfe, Manny? Nunca pude me dar a esse luxo.
- Perseguir uma bolinha branca por cem acres de terra, enquanto a artrite o está matando e o coração explode de frustração nunca foi minha ideia de uma ocupação civilizada. Contudo, sei o que pusemos nessa
porcaria de campo de golfe.
- E o que foi?
- Lembranças de coisas passadas. Porque é um constante lembrete do presente deles, um lembrete para todos. Da sua força.
- Pode descer de órbita, por favor?
- Leia as crônicas históricas da Assíria, Pérsia, dos gregos e romanos. Dê uma olhada nos antigos desenhos dos cartógrafos portugueses e nos diários de bordo de Vasco da Gama. Em uma ocasião ou outra,
todos esses povos lutaram pelo controle do arquipélago... Os portugueses o ocuparam durante um século... por quê?
- Tenho certeza de que você vai me contar.
- Por causa da sua localização geográfica no Golfo, sua importância estratégica. Durante séculos foi um centro cobiçado para o comércio e o dinheiro gerado pelo comércio...
O muito mais jovem Evan Kendrick empertigara-se naquele momento; agora compreendia onde o excêntrico arquiteto estava querendo chegar.
- É o que está acontecendo agora - interrompeu ele -, bem depressa o dinheiro aflui de todas as partes do mundo.
- Como um estado independente, sem medo de ser conquistado no mundo de hoje - acrescentara Weingrass -, Bahrain serve tanto aos aliados quanto aos inimigos. Assim, nosso magnífico clube, nesta porcaria
de campo de golfe, refletirá sua história. Faremos isso com murais. Um executivo olha para as pinturas por cima do bar, vê todas essas coisas descritas e pensa: "Por Deus, é um lugar e tanto! Todo mundo
o queria! E olhe só o dinheiro que eles gastaram!" E se torna ainda mais ansioso em operar aqui. É do conhecimento geral que negócios são fechados em campos de golfe, jovem ignorante. Por que acha que
eles querem construir um!
Depois de construir a sede do clube, um tanto grotesca, no campo de golfe de segunda classe, o Grupo Kendrick fora contratado para três bancos e dois prédios do governo. E Manny Weingrass fora pessoalmente
perdoado por um dos ministros mais importantes ao perturbar a paz num café na estrada Al Zubara.
O zumbido do jato penetrou no cérebro de Evan. Seus olhos estavam cerrados.
- Protesto contra essa operação subsidiária e quero que isso fique registrado - declarou Yaakov, codinome Azul, da Brigada Massada, enquanto os sete homens embarcavam no jato, na extremidade leste do aeroporto
de Mascate.
Emmanuel Weingrass juntou-se imediatamente ao piloto e se acomodou no banco ao lado, tossindo baixo e rouco ao prender o cinto. O agente do Mossad ficara para trás; tinha trabalho a fazer em Oman; sua
pistola estava com o esguio Ben-Ami, que a mantivera fora do coldre até a unidade de cinco homens se acomodar no avião.
- Constará do registro, meu amigo - respondeu Ben-Ami, enquanto o avião corria pela pista. - Por favor, tente compreender que há coisas que não nos podem informar, e isso para o bem de todos nós. Somos
os ativistas, os soldados... e aqueles que tomam as decisões são o alto-comando. Eles fazem o trabalho deles e nós fazemos o nosso, que é o de cumprir ordens.
- Então devo protestar contra um paralelo dos mais repulsivos - disse o membro da unidade de codinome Cinza. - "Cumprir ordens" não é uma expressão que me pareça das mais agradáveis.
- Devo lembrá-lo de uma coisa, Sr. Ben-Ami - acrescentou Laranja. - Durante as três últimas semanas fomos treinados para uma missão que todos acreditávamos ser capazes de realizar, apesar das dúvidas profundas
na base. Estamos prontos, absolutamente preparados, mas de repente a missão é suspensa sem explicações e nos encontramos a caminho de Bahrain, atrás de um homem que não conhecemos, num avião que nunca
vimos.
- Se é que existe algum plano - comentou Preto. - E não uma mera dívida do Mossad com um velho desagradável, que quer encontrar um americano, um "filho" gentio que não é dele.
Weingrass voltou-se; o avião subia rapidamente, os motores um pouco abafados pela veloz ascensão.
- Escutem aqui, seus imbecis! - ele gritou. - Se esse americano foi para Bahrain com um terrorista árabe demente, isso significa que tem um motivo dos melhores. Provavelmente não ocorreu a nenhum de vocês,
seus cabeças de vento musculosos, mas Mascate não foi planejada por aqueles ioiôs subumanos que brincam com armas de fogo. Os miolos, se me permitem uma obscura referência, permanecem em Bahrain... e é
atrás disso que ele foi, à procura do homem que tramou tudo!
- Sua explicação, se verdadeira, não inclui um plano, senhor Weingrass - disse Branco. - Será que vamos jogar dados para decidir a questão?
- As chances poderiam ser piores, espertinho... mas não vamos fazer isso. Assim que desembarcarmos e nos instalarmos, passarei a ligar para Mascate a cada quinze minutos, até conseguir a informação de
que precisamos. Então teremos um plano.
- Como? - perguntou Azul, furioso e desconfiado.
- Nós o inventaremos, impetuoso garoto.
O inglês enorme estava imóvel, rígido de incredulidade, enquanto o terrorista Azra começava a se afastar com o emissário de Bahrain. O homem de uniforme aguardara o jato Rockwell além do último hangar
de manutenção, no aeroporto em Muharraq.
- Esperem! - gritou MacDonald, lançando um olhar frenético para Evan Kendrick firme ao seu lado. - Parem! Não podem me deixar com este homem! Eu já disse que ele não é quem diz ser! Não é um dos nossos!
- Não, não é - concordou o palestino, parando e olhando para trás. - É de Berlim Oriental e salvou a minha vida. Se você está dizendo a verdade, posso garantir que ele também salvará a sua.
- Não pode...
- Devo - interrompeu-o Azra, virando-se para o bahrainiano e acenando com a cabeça.
Sem qualquer comentário em palavras ou na expressão, o bahrainiano dirigiu-se a Kendrick:
- Como pode ver, minha conexão está deixando o hangar. Ele o acompanhará por outra saída. Seja bem-vindo ao nosso país.
- Azra! - berrou MacDonald, mas sua voz foi abafada pelo rugir dos jatos.
- Calma, Tony - disse Evan, enquanto o segundo bahrainiano se aproximava. - Estamos entrando ilegalmente e você pode fazer com que acabemos fuzilados.
- Você! Eu sabia que era você! Você é Kendrick!
- Claro que sou, e se algum dos nossos aqui em Bahrain souber que você usou meu nome, sua adorável e bêbada Cecilia... o nome é Cecilia, não é mesmo?... seria viúva antes de poder pedir outro drinque.
- Por Deus, não acredito! Você vendeu sua companhia e voltou para a América! Fui informado de que entrou mesmo para a política!
- Com a ajuda do Mahdi, posso até me tornar presidente.
- Oh, Senhor!
- Sorria, Tony. Este homem não gosta do que está fazendo e não quero que ele pense que somos ingratos. Sorria, seu gordo filho da puta!
Khalehla, vestindo uma calça castanho-amarelada, túnica de voo e quepe de piloto com viseira, estava na cauda de um jato Harrier, observando a cena, a trinta metros de distância. O jovem terrorista palestino
chamado Azul já se havia retirado; o deputado americano e o incrível MacDonald partiam agora, acompanhados pelo homem uniformizado, que os conduziu por um labirinto de passagens entre as cargas, esquivando-se
à imigração. Aquele Kendrick, aquele provável conformista com uma causa terrível, era melhor do que ela pensava. Não apenas sobrevivera aos horrores da embaixada - algo que ela julgara impossível nove
horas antes e que a fizera e entrar em pânico -, mas ainda acabara por separar o terrorista do agente do Mahdi. O que estaria ele planejando? O que estaria fazendo?
- Depressa! - Ela chamou o piloto, que conversava com um mecânico junto à asa de boreste. - Vamos embora!
O piloto assentiu, levantando os braços por um instante em desespero; os dois se encaminharam para a saída reservada ao pessoal de voo. Ahmat, o jovem sultão de Oman, apertara em Mascate todos os botões
à sua disposição - que eram muitos. Os três passageiros do jato deveriam ser levados para um trecho do pátio inferior do aeroporto, muito além do grande terminal, onde placas e sinais de uma fila de táxis
foram instalados em caráter temporário, na direção de cada carro um agente da polícia secreta de Bahrain. Ninguém recebera qualquer informação, houvera apenas uma ordem: "Informem o destino de cada passageiro."
Khalehla e o piloto despediram-se rapidamente e seguiram caminhos separados, ele para o Centro de Controle de Voo, onde receberia as instruções para o retorno a Mascate, ela para a área designada do pátio
em que tornaria a encontrar o americano e o seguiria. Precisava de toda a sua habilidade para permanecer invisível enquanto seguia Kendrick e MacDonald. Tony a reconheceria no mesmo instante e o americano,
obviamente alerta, poderia olhar duas vezes e lembrar-se de uma rua escura e imunda em el Shari el Mishkwiyis e de uma mulher que empunhava uma pistola. O fato de que não fora apontada para ele, mas sim
para as quatro pessoas que tentavam roubá-la ou fazer algo ainda pior, não seria facilmente admitido por um homem que vivia à beira de um perigo tão real. Propósito e paranoia convergiam nos recessos infinitos
de uma mente sob pressão intensa. Ele estava armado, e a explosão de uma imagem podia desencadear uma reação violenta. Khalehla não temia por sua vida; oito anos de treinamento, inclusive quatro anos no
agitado Oriente Médio, ensinaram-na a se antecipar, a matar antes de ser morta. Entristecia-a o fato de que aquele homem decente podia ter de morrer pelo que estava fazendo, e era bem possível que ela
se tornasse o carrasco. Uma possibilidade que aumentava a cada minuto.
Alcançou a área antes dos passageiros do jato procedente de Oman. O tráfego em Chegadas era frenético: limusines com janelas de vidro escuro; táxis; carros comuns; pickups de todos os tipos. O barulho
e a fumaça eram sufocantes, a cacofonia ensurdecedora sob o baixo teto de cimento. Khalehla encontrou um enclave sombreado entre dois containers de carga a esperou.
O primeiro a surgir foi o terrorista chamado Azra, acompanhado por um agente uniformizado. Este fez sinal para um táxi, que se aproximou no mesmo instante. Azra entrou e deu um endereço que leu num pedaço
de papel em sua mão.
Vários minutos depois o estranho americano e o incrível Anthony MacDonald saíram para a calçada. Alguma coisa está errada!, intuiu Khalehla no mesmo instante, sem realmente pensar, apenas observando. Tony
manifestava a personalidade que às vezes exibia no Cairo! Havia agitação em cada movimento do seu corpo enorme, energia desperdiçada ansiando por atenção, os olhos esbugalhados, a expressão facial mudando
constantemente, como um bêbado tentando exigir respeito - em contradição com o controle excepcional necessário a um operador clandestino com uma rede de informantes em situação de completa instabilidade.
Estava tudo errado!
E então aconteceu! Quando o táxi se aproximava, MacDonald subitamente lançou o tronco imenso contra o americano, empurrando-o para a rua coberta, atirando-o na frente do carro em movimento. Kendrick ricocheteou
no capô, o corpo projetou-se em direção ao tráfego intenso do pátio que parecia um túnel. Pneus rangeram, apitos soaram e o deputado americano do Nono Distrito ficou preso em torno do para-brisa espatifado
de um pequeno sedã japonês. Santo Deus, ele está morto!, pensou Khalehla, começando a correr. O americano ainda levantou os braços, mas logo os arriou de novo.
Ela avançou para o carro, rompendo um círculo de policiais e agentes secretos de Bahrain que haviam convergido para o local, deslocando um homem que se mantinha imóvel com um violento e preciso murro no
baço. Lançou seu corpo sobre o de Kendrick, em movimentos espasmódicos, ao mesmo tempo que removia a pistola da túnica de voo. Dirigiu-se ao homem uniformizado mais próximo, a arma apontada para sua cabeça:
- Meu nome é Khalehla e isso é tudo o que você precisa saber. Este homem é propriedade minha e vai comigo. Avise aos outros e tire-nos daqui ou eu o mato.
O vulto correu pela sala indevassável, tão agitado que bateu a porta depois de passar, quase tropeçando na escuridão, a caminho do equipamento. Com as mão trêmulas, ligou o equipamento.
Segurança Ultramáxima
Não Há Intercepções
Prossiga
Aconteceu alguma coisa! Abertura ou colapso, o caçador ou o caçado. As últimas informações vêm de Bahrain, mas sem detalhes específicos, apenas que o alvo se encontrava num estado de extrema ansiedade,
exigindo ser levado de avião para lá imediatamente. Claro, isso pressupõe que ele escapou da embaixada, foi tirado de lá por algum subterfúgio ou nunca chegou a entrar. Mas por que Bahrain? Tudo está incompleto
demais, como se a sombra do alvo estivesse obscurecendo os eventos por seus próprios motivos - uma possibilidade não improvável, considerando-se tudo o que aconteceu durante os últimos anos, os poderes
de intimação do Congresso e de vários promotores especiais.
O que aconteceu? O que está acontecendo agora? Meus instrumentos clamam por informações, mas não lhes posso dar coisa alguma! Inserir um nome sem dados específicos só vai produzir dados históricos enciclopédicos,
há muito conhecidos e atualizados. Às vezes penso que meu próprio talento me derrota, pois vejo além de fatores e equações, encontrando visões.
Mas ele é o homem! Meus instrumentos assim dizem e confio neles.
13
Evan debateu-se contra o esparadrapo que lhe apertava o ombro esquerdo e depois experimentou uma sensação de ardência, acompanhada pelo cheiro forte de álcool medicinal. Abriu os olhos, surpreso ao descobrir
que estava sentado numa cama, travesseiros sustentando suas costas. Era um quarto de mulher. Uma penteadeira, com uma poltrona baixa de orlas douradas, estava encostada na parede da esquerda. Uma profusão
de cremes e perfumes, em pequenos vidros ornamentados, destacava-se na frente do espelho grande de três facetas, margeado por pequenas lâmpadas. Janelas altas flanqueavam a penteadeira, as cortinas cor
de pêssego, feitas de algum tecido translúcido, virtualmente proclamando - como o resto dos móveis rococós - um alto custo de decorador. Uma cadeira forrada em cetim encontrava-se junto à janela fronteira,
ao lado de uma mesinha para telefone com uma prateleira de revistas por baixo e um tampo de mármore rosa. A parede oposta à cama, a seis ou sete metros, era ocupada por um armário embutido de portas espelhadas.
À sua direita, além da mesinha de cabeceira, havia uma escrivaninha cor de marfim, e mais uma cadeira de orlas douradas, depois a mais longa cômoda que ele já vira; era laqueada em pêssego - pêche, como
Manny Weingrass insistiria - e se estendia por toda a parede. O assoalho era coberto por um carpete branco, espesso e macio, parecendo capaz de massagear os pés descalços de quem se dispusesse a atravessá-lo.
A única coisa que faltava era um espelho por cima da cama.
A porta esculpida estava fechada, mas ele podia ouvir vozes, as de um homem e uma mulher. Virou o pulso para olhar o relógio; não o encontrou. Onde estaria? Como chegara até ali? Oh, Deus! O pátio do aeroporto...
Fora lançado contra um carro - dois carros em movimento - e uma multidão se concentrara ao seu redor, até que fora levado de lá, inerte. Azra! Azra o esperava no Hotel Aradous!... E MacDonald! Escapara!
Oh, céus, está tudo perdido! À beira do pânico, mal consciente do sol da tarde entrando pelas janelas, ele afastou o lençol e levantou-se da cama, trôpego, tremendo, rangendo os dentes a cada movimento;
mas podia mover-se, e isso era o que importava. Notou que estava nu, e a porta se abriu subitamente.
- Fico satisfeita que tenha conseguido levantar-se - disse a mulher de pele azeitonada, fechando a porta enquanto Kendrick corria de volta à cama e ao lençol pêche. - Confirma o diagnóstico do médico;
ele acaba de sair. Declarou que você sofreu uma concussão violenta, mas as radiografias mostram que não houve fratura de osso.
- Radiografias? Onde estamos? Quem é você?
- Não se lembra de mim?
- Se isto é o seu modesto pied-à-terre em Bahrain, posso lhe assegurar que nunca o tinha visto antes! - exclamou Evan furioso, indicando o quarto com um gesto circular da mão. - Não é um lugar que se possa
esquecer facilmente.
- Não é meu - respondeu Khalehla, balançando a cabeça, com uma insinuação de sorriso, encaminhando-se para o pé da cama. - Pertence a um membro da família real, um primo do emir, um homem idoso e sua esposa
jovem - a mais jovem -, que estão em Londres. Ele é um homem muito doente, o que explica os equipamentos médicos no porão. Classe e dinheiro têm privilégios por toda parte, mas especialmente aqui em Bahrain.
Seu amigo, o sultão de Oman, tornou isto possível para você.
- Mas alguém teve de tornar possível, ele saber o que aconteceu... para poder tornar isto real!
- Eu me encarreguei, é claro.
- Eu já conheço você - interrompeu Kendrick, franzindo a testa. - Apenas não consigo me lembrar de onde ou como.
- Eu não estava vestida assim, e nos encontramos em circunstâncias desagradáveis para ambos. Em Mascate, numa viela escura e imunda que funciona como rua...
- A cidade podre! - exclamou Evan, os olhos arregalados, a cabeça rígida. - El-Baz. Você é a mulher com a pistola; tentou me matar.
- Não é verdade. Eu estava me defendendo de quatro atacantes, três homens e uma mulher.
Kendrick fechou os olhos por um instante.
- Lembro disso. Um garoto de calça cáqui cortada, estendendo o braço.
- Não era um garoto - protestou Khalehla. - Era um viciado em tóxicos, assim como sua namorada, e os dois me matariam para pagar aos fornecedores árabes em troca do que precisavam. Eu seguia você, apenas
isso. Informação, esse é o meu ofício.
- Para quem?
- As pessoas para as quais trabalho.
- Como soube de mim?
- Não posso responder.
- Para quem trabalha?
- Num sentido amplo, uma organização que procura encontrar soluções para os múltiplos horrores do Oriente Médio.
- Israelense?
- Não - respondeu Khalehla, calmamente. - Minhas raízes são árabes.
- Isso não me diz absolutamente nada, mas me deixa assustado.
- Por quê? É tão impossível assim um americano pensar que os árabes podem querer encontrar soluções justas?
- Acabo de vir da embaixada em Mascate. O que vi por lá não era nada atraente... em termos árabes.
- Também não é para nós. Contudo, posso citar um deputado americano que disse no plenário da Câmara dos Representantes que "um terrorista não nasce, é feito".
Atônito, Evan fitou a mulher nos olhos.
- Esse foi o único comentário que já fiz para os anais da Câmara. O único.
- Disse isso depois de um discurso bastante violento de um deputado da California, que praticamente pediu o massacre de todos os palestinos vivendo no que classificou de Eretz Israel.
- Ele não sabia distinguir Eretz de Biarritz! Era um aristocrata idiota, um anglo-saxão, e achava que estava perdendo os votos dos judeus de Los Angeles. Disse-me isso no dia anterior. Tomou-me por um
aliado, pensando que eu aprovaria... e até piscou para mim!
- Ainda acredita no que disse?
- Acredito - respondeu Kendrick hesitante, como se estivesse questionando a própria resposta. - Ninguém que já conheceu a miséria dos acampamentos de refugiados pode pensar que algo sequer remotamente
normal sairá de lá. Mas o que vi em Mascate foi demais. Já não digo os gritos e os cantos frenéticos; havia ali algo frio como gelo, uma brutalidade metódica. Aqueles animais estavam se divertindo.
- A maioria daqueles jovens animais nunca teve um lar. Em suas lembranças mais antigas veem-se a vaguear pela sujeira dos acampamentos, tentando encontrar algo para comer, roupas para os irmãos e irmãs
menores. Apenas uns poucos têm alguma habilidade, alguma instrução básica. Essas coisas não lhes eram disponíveis. Párias em sua própria terra.
- Diga isso às crianças de Auschwitz e Dachau! - gritou Evan, com uma fúria fria. - Essas pessoas estão vivas, são parte da raça humana.
- Xeque-mate, senhor Kendrick. Não tenho resposta, apenas vergonha.
- Não quero sua vergonha. Quero apenas sair daqui.
- Não se acha em condições de continuar o que estava fazendo. Olhe só para você. Está exausto e ainda por cima foi bastante machucado.
O lençol em torno da cintura, Kendrick apoiou-se na beira da cama. Falou devagar.
- Eu tinha um revólver, uma faca e um relógio, entre diversos outros itens valiosos. Gostaria que os devolvesse, por favor.
- Acho que devemos discutir a situação...
- Não há nada a discutir - respondeu o deputado americano. - Absolutamente nada.
- E se eu lhe dissesse que descobrimos Tony MacDonald?
- Tony!
- Minha base de operações é o Cairo. Gostaria de lhe dizer que estamos atrás dele há meses, talvez anos, mas não seria verdade. A primeira indicação que tive foi esta madrugada, pouco antes do amanhecer.
Ele me seguiu num carro com os faróis apagados...
- Na estrada por cima do Jabal Sham? - perguntou Evan, interrompendo-a.
- Exatamente.
- Então você é Cawley ou qualquer coisa parecida. Cawley, a... inimiga, entre outras coisas.
- Meu nome é Khalehla, as duas primeiras sílabas pronunciadas como o porto francês de Calais; e sou mesmo inimiga de MacDonald... mas não as outras coisas, que posso facilmente imaginar.
- Estava me seguindo.
Uma declaração.
- Estava.
- Então sabia da "fuga"?
- Sabia.
- Ahmat?
- Ele confia em mim. Há muito tempo que nos conhecemos.
- Então ele deve confiar nas pessoas para as quais você trabalha.
- Não posso responder a isso. Eu disse que ele confia em mim.
- É uma declaração capciosa... duas declarações capciosas.
- A situação é capciosa.
- Onde está Tony?
- Escondido num quarto no Hotel Tylos, na estrada do Governo, sob o nome de Strickland.
- Como descobriu?
- Através da companhia de táxis. No caminho, ele parou numa loja de material esportivo, que se suspeita vender armas ilegais. Está armado... Digamos que o motorista foi cooperativo.
- "Digamos"?
- É o suficiente. Se MacDonald fizer qualquer movimento, você será imediatamente informado. Ele já deu onze telefonemas.
- Para quem?
- Os números não constam da lista telefônica. Um homem irá à Estação Central dentro de uma hora e descobrirá os nomes. Serão transmitidos a você assim que ele os obtiver e puder alcançar um telefone oficial
ou público.
- Obrigado. Preciso desses números.
Khalehla puxou a pequena poltrona rococó da frente da penteadeira e sentou-se diante de Kendrick.
- Conte-me o que está fazendo, deputado. Deixe-me ajudá-lo.
- Por que deveria? Você quer devolver minha pistola, a faca, o relógio... e mais um item que a esta altura provavelmente já vendeu. Nem mesmo quer me dizer para quem trabalha.
- Quanto à sua pistola, faca e relógio, assim como a carteira, um cinturão com cerca de cinquenta mil dólares americanos, isqueiro de ouro, um amassado maço de cigarros americanos não exportáveis... o
que foi uma tolice de sua parte, diga-se de passagem... poderá ter tudo de volta, se me convencer de que suas ações não resultarão no massacre de 236 americanos em Mascate. Nós, árabes, não podemos tolerar
essa possibilidade; já somos bastante desprezados pelas coisas horríveis que não podemos controlar. Quanto às pessoas para as quais trabalho, por que deveria ter alguma importância para você, já que não
tem para seu amigo e meu amigo Ahmat? Você confia nele, ele confia em mim. Portanto, você também pode confiar em mim. A é igual a B que é igual a C. Portanto, A é igual a C. Antes que eu me esqueça, suas
roupas foram desinfetadas, lavadas e passadas. Estão na porta esquerda do armário.
Evan, meio desajeitado na beira da cama, fitou atentamente a moça.
- É muita coisa de uma vez só. Terei de pensar um pouco em sua lógica alfabética.
- Não sei qual é o seu programa, mas não deve ter muito tempo.
- Entre onze e meia e meia-noite de hoje - informou Kendrick, sem intenção de revelar mais nada além do prazo. - Um jovem veio comigo no avião. É um terrorista da embaixada em Mascate.
- Registrou-se no Hotel Aradous, no Wadi Al Ahd, como "T. Farouk".
- Como...?
- Outro motorista cooperativo - respondeu Khalehla, permitindo-se um sorriso mais amplo. - Digamos assim.
- Quem quer que sejam as pessoas para quem você trabalha, têm fontes de informações em muitos lugares.
- Por mais estranho que possa parecer, as pessoas para as quais trabalho nada têm a ver com isso. Não chegariam a esse ponto.
- Mas você chegou.
- Precisava chegar. Motivos pessoais; além disso, eles estão fora de seus limites.
- Você não é fácil, Cawley.
- Khalehla. Por que não liga para seu amigo no Aradous? Ele comprou roupas na loja do hotel e também cortou os cabelos. Presumo que foram instruções suas. Mas ligue para ele; deixe-o tranquilo.
- Você está sendo quase cooperativa demais... como os motoristas.
- Porque não sou sua inimiga e quero cooperar. Ligue para Ahmat, se assim desejar. Ele lhe dirá a mesma coisa. Por falar nisso, eu também tenho o número do triplo cinco, como você.
Foi como se um véu invisível se afastasse do rosto da árabe, um rosto lindo e impressivo, pensou Evan, enquanto estudava os enormes olhos castanhos que continham tanto zelo e curiosidade. Apesar disso,
ele se censurou silenciosamente por ser um amador, sem saber o que era real e o que era falso! Entre onze e meia e meia-noite. Era a hora zero, o prazo de meia hora em que teria de encontrar um elo, a
ligação com o Mahdi. Poderia confiar naquela mulher tão eficiente, que apenas lhe contara algumas coisas e mais nada? Poderia fazer tudo sozinho? Ela tinha o número do triplo cinco... Como conseguira?
Subitamente, o quarto começou a girar, o sol entrando pelas janelas transformou-se numa rajada laranja. Onde estavam as janelas?
- Não, Kendrick! - gritou Khalehla. - Não agora! Não desmaie! Dê o telefonema, eu o ajudarei! Seu amigo precisa saber que está tudo bem! Ele é um terrorista perdido em Bahrain! Não tem para onde ir...
Você precisa fazer a ligação!
Evan sentiu os tapas firmes em seu rosto, golpes que fizeram o sangue afluir-lhe à cabeça, e a cabeça se aninhou subitamente no braço direito de Khalehla, enquanto ela estendia a mão esquerda para um copo
na mesinha de cabeceira.
- Tome isto! - ela ordenou, levando o copo aos seus lábios.
Evan obedeceu. O líquido explodiu na sua garganta.
- Santo Deus! - ele berrou.
- Vodca e conhaque - disse Khalehla, sorrindo, ainda amparando-o. - A receita é de um agente britânico do MI-Seis chamado Melvyn. Ele me disse: "Dê três doses disto a alguém e poderá lhe vender uma grosa
do que tiver na prateleira." Posso lhe vender uma coisa, deputado? Como um telefonema?
- Não estou comprando. Não tenho dinheiro. Você ficou com tudo.
- Faça a ligação, por favor - pediu Khalehla, soltando seu prisioneiro e recuando para a poltrona dourada da penteadeira. - Acho que é da maior importância.
Kendrick sacudiu a cabeça, tentando focalizar o telefone.
- Não sei o número.
- Tenho aqui. - Khalehla enfiou a mão no bolso da túnica e tirou um pedaço de papel. - O número é cinco, nove, cinco, nove, um.
- Obrigado, madame secretária.
Evan estendeu a mão para o telefone, sentindo mil dores pelo corpo ao se inclinar e pegá-lo, pondo-o no colo. A exaustão se espalhava; mal podia se mexer, mal conseguiu discar.
- Azra? - ele disse, ao ouvir a voz do terrorista. - Já estudou o mapa de Manamah? Ótimo. Eu o apanharei no hotel às dez horas. - Kendrick fez uma pausa, olhando para Khalehla. - Se por algum motivo eu
me atrasar, encontrarei com você na rua, na extremidade norte da mesquita Juma, onde cruza com a estrada Al Khalifa. Entendido? Ótimo.
Kendrick desligou, tremendo.
- Tem mais uma ligação a fazer, deputado.
- Dê-me dois ou três minutos.
Kendrick recostou-se nos travesseiros. Oh, Deus, como estava cansado!
- É melhor ligar agora. Deve comunicar a Ahmat onde se encontra, o que fez, o que está acontecendo. Ele espera. E merece ouvir de você, não de mim.
- Está bem, está bem. - Com enorme esforço, Evan inclinou-se para a frente e pegou o telefone, que ainda estava na cama. - É discagem direta aqui de Bahrain, não? Qual é o código para Mascate?
- Nove, seis, oito - respondeu Khalehla. - Disque zero, zero, um primeiro.
- Eu deveria fazer a ligação a cobrar - murmurou Kendrick discando, mas mal conseguindo ver os algarismos.
- Quando dormiu pela última vez? - perguntou Khalehla.
- Há dois dias... três.
- E quando comeu pela última vez?
- Não me lembro... E você? Também tem estado muito ocupada, madame.
- Também não me lembro... Ah, sim, comi alguma coisa. Quando deixei el Shari el Mishkwiyis, entrei naquela padaria horrível na praça e comi um bolo de laranja. Mais para descobrir quem estava lá do que
por qualquer outro motivo...
Evan levantou a mão; o telefone particular do sultão estava tocando.
- Iwah?
- Sou eu, Ahmat, Kendrick.
- Que alívio!
- Estou irritado.
- Mas por quê?
- Por que não me falou sobre ela?
- Ela quem?
Evan estendeu o fone para a surpresa Khalehla.
- Sou eu, Ahmat - ela disse, embaraçada. Oito segundos mais tarde, depois que a voz perplexa e furiosa do jovem sultão ressoou pelo quarto, Khalehla continuou: - Era isso ou deixar a imprensa descobrir
que um deputado americano, com cinquenta mil dólares, entrou em Bahrain sem passar pela alfândega. Quanto tempo decorreria antes de descobrirem que o avião era da casa real de Oman? E quanto tempo depois
começariam as especulações sobre a missão do americano em Mascate?... Usei seu nome com um irmão do emir que conheço há anos, e ele conseguiu um lugar para nós... Obrigada, Ahmat. Vou passar para ele.
Kendrick pegou o aparelho.
- Ela não é fácil, meu velho-jovem amigo, mas imagino que estou melhor aqui do que no lugar para onde poderia ter ido. Só peço que não me faça mais surpresas, está bem?... Por que está tão calado?... Esqueça.
Aqui está nosso programa... e lembre-se que não deve haver interferência, a menos que eu peça! Tenho o nosso garoto da embaixada no Hotel Aradous; e a situação de MacDonald, que presumo ser do seu conhecimento...
Khalehla acenou com a cabeça e Evan continuou, falando bem depressa:
- Calculo que já sabe de tudo. Ele está sendo vigiado no Tylos; receberemos uma lista das ligações que vem fazendo assim que largar o telefone. Mais uma coisa: os dois estão armados.
Exausto, Kendrick descreveu os detalhes do encontro, como haviam sido transmitidos aos agentes do Mahdi.
- Só precisamos de um, Ahmat, um homem que possa nos levar a ele. Não vou parar até obtermos a informação, porque não posso admitir qualquer outra coisa.
Kendrick desligou e recaiu contra os travesseiros.
- Você precisa comer - disse Khalehla.
- Mande buscar comida chinesa - murmurou Evan. - É você quem está com os cinquenta mil, não eu.
- Mandarei a cozinha preparar alguma coisa.
- Para mim? - As pálpebras meio fechadas, Kendrick fitou a mulher de pele de azeitona na ridícula poltrona rococó. Os brancos dos olhos castanho-escuros de Khalehla estavam injetados, havia olheiras arroxeadas,
as linhas do rosto se encontravam muito mais acentuadas do que sua idade justificava. - E você?
- Eu não tenho importância. Você tem.
- Está prestes a cair desse seu trono liliputiano, Rainha-Mãe.
- Posso dar um jeito, obrigada - declarou Khalehla, empertigando-se, piscando em desafio.
- Já que não quis dar meu relógio, pode me dizer que horas são?
- Quatro e dez.
- Está tudo em ordem - disse Evan, estendendo as pernas para o chão, por baixo do lençol. - E tenho certeza de que este suntuoso estabelecimento civilizado pode providenciar um telefonema para nos acordar.
"O descanso é uma arma", li certa ocasião. Muitas batalhas já foram vencidas e perdidas mais pelo sono e falta de sono do que pelo poder de fogo... Se recatadamente olhar para o lado, pegarei uma toalha
no que presumo ser o maior banheiro de Bahrain e encontrarei outra cama.
- Não podemos deixar este quarto, a não ser para sair da casa.
- Por que não?
- São as condições. O emir não está muito interessado na jovem esposa do primo, mas a profanação causada por sua presença fica restrita aos aposentos dela. Há guardas lá fora para impor o cumprimento da
ordem.
- Não acredito nisso!
- Não inventei as regras, apenas consegui um lugar para você.
Cerrando os olhos, Kendrick rolou para o outro lado da cama, levantando o lençol para transpor a distância.
- Está certo, Miss Cairo. A menos que queira escorregar dessa ridícula poltrona ou cair de cara no chão, aqui está o seu cantinho para a siesta. Antes de relaxar, duas coisas: Não ronque e providencie
para que eu seja acordado às oito e meia.
Vinte angustiantes minutos depois, incapaz de manter os olhos abertos e tendo caído da cadeira duas vezes, Khalehla acomodou-se na cama.
O incrível aconteceu, incrível porque nenhum dos dois esperava por isso, nem remotamente procuraram ou consideraram a possibilidade. Duas pessoas assustadas e exaustas sentiram a presença uma da outra
e, mais adormecidas do que despertas, aproximaram-se, a princípio apenas se encostando, mas depois, lentamente, com alguma hesitação, estendendo as mãos, finalmente segurando, se enlaçando; lábios inchados,
entreabertos, buscando, precisando desesperadamente do contato úmido que prometia a libertação dos medos. Fizeram amor num arroubo e frenesi... não como estranhos imitando animais, mas como um homem e
uma mulher que se haviam entendido e de alguma forma sabiam que tinha de haver um toque de afeto, de conforto, num mundo enlouquecido.
- Acho que eu deveria dizer que sinto muito - murmurou Evan, a cabeça nos travesseiros, o peito arfando como se sorvesse a última respiração.
- Por favor, não diga isso - respondeu Khalehla. - Eu não lamento. Às vezes... às vezes todos precisamos ser lembrados de que somos parte da raça humana. Não foram essas as suas palavras?
- Num contexto diferente, eu acho.
- Nem tanto. Não quando se pensa bem a respeito... Vá dormir, Evan Kendrick. Não direi seu nome outra vez.
- O que isso significa?
- Vá dormir.
Três horas depois, quase com exatidão, Khalehla saiu da cama, pegou suas roupas no carpete branco e, olhando para o americano adormecido, vestiu-se rapidamente. Escreveu um bilhete numa folha de papel
timbrado e colocou-o na mesinha de cabeceira, ao lado do telefone. Depois foi até a penteadeira, abriu uma gaveta, tirou os pertences de Kendrick, inclusive a pistola, a faca, o relógio e o cinturão de
dinheiro. Pôs tudo no chão, junto da cama, e meteu o maço de cigarros no próprio bolso, saindo sem fazer barulho.
- Esmah! - ela sussurrou para o guarda bahrainiano uniformizado, dizendo-lhe numa única palavra para obedecer às suas ordens. - Ele deve ser acordado exatamente às oito e meia. Entrarei em contato pessoalmente
com esta casa real para me certificar. Entendido?
- Iwah, iwah! - respondeu o guarda, o pescoço rígido, acenando com a cabeça em obediência.
- Pode haver um telefonema para ele, perguntando pelo "visitante". Deve ser interceptado, a informação anotada por escrito, posta num envelope, que será enfiado por baixo da porta. Acertarei tudo com as
autoridades. São apenas nomes e telefones de pessoas que fazem negócios com a firma dele. Entendido?
- Iwah, iwah!
- Muito bem.
Gentilmente, Khalehla pôs alguns dinares bahrainianos, no valor de cinquenta dólares americanos, no bolso do guarda. Ele lhe pertencia por uma vida inteira ou pelo menos por cinco horas. Ela desceu a escada
curva e ornamentada para o vasto saguão, e a porta da frente, toda entalhada, foi aberta por outro guarda, fazendo uma mesura subserviente. Khalehla saiu para a rua movimentada, onde túnicas e ternos escuros
passavam apressados em ambas as direções. Procurou um telefone público. Avistou um na esquina e seguiu para lá.
- Esta ligação será aceita, telefonista, posso lhe garantir - ela avisou, dando o número que fora instruída a chamar no caso de uma emergência extrema.
- Alô?
A voz a oito mil quilômetros de distância era ríspida, brusca.
- Meu nome é Khalehla. Você é a pessoa com quem eu deveria fazer contato, eu creio.
- Ninguém mais. A telefonista disse "Bahrain". Você confirma?
- Confirmo. Ele está aqui. Passei várias horas com ele.
- O que está acontecendo?
- Há um encontro entre onze e meia e meia-noite, perto da mesquita Juma e da estrada Al Khalifa. Devo comparecer, senhor. Ele não está preparado, não terá condições de cuidar da situação.
- De jeito nenhum!
- Ele não passa de uma criança em comparação com aquelas pessoas! Posso ajudar.
- E pode também envolver a nós, o que é inadmissível, e sabe disso tão bem quanto eu! E agora trate de sair daí!
- Esperava que dissesse isso... senhor. Mas, por favor, posso explicar o que considero serem aspectos negativos da equação nesta operação em particular?
- Não quero ouvir nenhuma história! Saia já daí!
Khalehla estremeceu, enquanto Frank Swann batia o telefone - em Washington, D. C.
- Conheço tanto o Aradous quanto o Tylos - disse Emmanuel Weingrass ao telefone, no pequeno escritório interno do aeroporto em Muharraq. - T. Farouk e Strickland... por Deus, não dá para acreditar! Aquele
narciso bêbado do Cairo?... Oh, desculpe, Stinker, eu tinha esquecido. Aquele lilás francês da Argélia, foi isso o que eu quis dizer. Continue.
Weingrass anotou a informação de Mascate, fornecida pelo jovem sultão, por quem começava a sentir o maior respeito. Conhecia homens com o dobro da idade de Ahmat e três vezes mais experientes que teriam
vergado sob as pressões que o sultão de Oman suportava, sem excluir a escandalosa imprensa ocidental, que não tinha a menor ideia da sua coragem. A coragem de assumir riscos que poderiam acarretar sua
queda e morte.
- Muito bem, já peguei tudo... E, Stinker, você é um sujeito e tanto. Cresceu para se tornar realmente um mensch.[2] Mas é claro que provavelmente aprendeu comigo.
- Aprendi uma coisa com você, Manny, uma verdade muito importante. Que é enfrentar as coisas como são e não ficar dando desculpas. Quer fosse na alegria ou na dor, você disse. E me disse ainda que uma
pessoa podia viver com o fracasso, mas não com as desculpas que cancelam o seu direito de fracassar. Levei muito tempo para compreender isso.
- É muita gentileza da sua parte, meu jovem. Passe o ensinamento ao garoto que está esperando, pelo que li nos jornais. Chame-o de adendo Weingrass aos Dez Mandamentos.
- Manny...
- O que é?
- Por favor, não use uma daquelas gravatas-borboleta amarelas ou de bolinhas vermelhas em Bahrain. Servem para caracterizá-lo... está me entendendo?
- Agora você é meu alfaiate?... Ficarei em contato, mensch. E deseje uma boa caçada a todos nós.
- Claro que desejo, meu amigo. Acima de tudo, gostaria de estar com vocês.
- Sei disso. Eu não estaria aqui se não soubesse disso... se nosso amigo não soubesse.
Weingrass desligou e virou-se para os seis homens atrás dele. Estavam empoleirados em mesas e cadeiras, vários segurando pistolas, outros verificando as pilhas de seus rádios portáteis, todos observando
e escutando atentamente o velho.
- Vamos nos dividir - anunciou Manny. - Ben-Ami e Cinza irão comigo para o Tylos. Azul, leve os outros para o Hotel Aradous...
Calou-se, dominado por um súbito acesso de tosse; o rosto ficou vermelho e o corpo esguio tremeu com violência. Ben-Ami e os integrantes da unidade da Brigada Massada se entreolharam; ninguém se mexeu,
cada um sabendo instintivamente que Weingrass recusaria qualquer ajuda. Mas uma coisa era clara para todos: fitavam um homem agonizante.
- Água? - perguntou-lhe Ben-Ami.
- Não - respondeu Manny, bruscamente, o acesso de tosse se desvanecendo. - A maldita bronquite, um tempo horrível na França... Muito bem, onde estávamos?
- Eu devia levar os outros para o Hotel Aradous - respondeu Yaakov, codinome Azul.
- Providenciem algumas roupas decentes, a fim de não serem expulsos do saguão. Há lojas aqui, no aeroporto, casacos limpos serão suficientes.
- Estas são as nossas roupas de trabalho - protestou Preto.
- Guardem-nas em sacos de papel - disse Weingrass.
- O que vamos fazer no Aradous? - indagou Azul, deixando a mesa em que sentava.
Manny consultou suas anotações e depois levantou os olhos para o jovem líder.
- No quarto dois-zero-um está um homem que se chama Azra.
- Árabe para "azul" - interveio Vermelho, olhando para Yaakov.
- Ele integra o conselho terrorista em Mascate - acrescentou Laranja. - Dizem que comandou o grupo que atacou o kibbutz Teverya, perto da Galileia, matando 32 pessoas, inclusive nove crianças.
- Ele plantou bombas em três colônias na Margem Ocidental - informou Cinza. - Também explodiu uma farmácia, escrevendo o nome "Azra" numa parede com uma lata de spray. Depois da explosão, a parede foi
reconstituída, como um quebra-cabeças, e lá estava. O nome Azra. Eu o vi na televisão.
- Porco! - murmurou Yaakov, ajustando as tiras da arma por baixo do casaco. - O que fazer quando chegarmos ao Aradous? Servimos chá e bolo ou apenas lhe entregamos uma medalha por atos humanitários?
- Fiquem fora da vista dele! - respondeu Weingrass, rispidamente. - Mas não o deixem ficar longe da vista de vocês. Dois de vocês se instalem em quartos próximos ao dele; vigiem a porta. Não bebam um copo
d’água, não vão ao banheiro, fiquem de olho em sua porta segundo a segundo. Os outros dois ocupem posições na rua, um na frente, o outro na saída de empregados. Permaneçam em contato pelo rádio. Combinem
códigos simples, códigos de uma palavra... em árabe. Se ele sair, tratem de acompanhá-lo, mas não deixem que desconfie por um instante sequer que vocês o vigiam. Lembrem-se de que ele é tão bom quanto
vocês; também teve de sobreviver.
- Vamos escoltá-lo silenciosamente para um jantar íntimo? - indagou Azul, sarcástico. - Este é um plano sem o esquema mais rudimentar!
- O esquema virá de Kendrick - murmurou Manny, por uma vez não reagindo ao insulto, para depois acrescentar, baixinho, em tom preocupado: - Se é que ele tem algum.
- Como?
Ben-Ami levantou-se da sua cadeira, não com raiva, apenas com espanto.
- Se tudo transcorrer de acordo com o previsto, ele pegará o árabe às dez horas da noite. Com seu terrorista de Mascate a reboque, espera fazer contato com um dos agentes do Mahdi, um que possa levá-lo
ao próprio Mahdi ou a outro alguém que possa fazê-lo.
- Com que base? - indagou o incrédulo Bem-Ami, do Mossad.
- Na verdade, a situação não é tão ruim quanto parece. O pessoal do Mahdi pensa que há uma emergência, mas não sabe do que se trata.
- Um amador! - bradou Vermelho, da Brigada Massada. - Haverá pontos de apoio, recuos, becos sem saída no esquema deles. O que estamos fazendo aqui?
- Estão aqui para cuidar dos apoios, recuos e becos sem saída deles! - gritou Weingrass em resposta. - Se eu tiver de lhes explicar o que devem procurar, é melhor que voltem e recomecem tudo com os escoteiros
em Tel Aviv. Vocês seguem, protegem, eliminam os bandidos. Deixem o caminho livre para o amador que está arriscando a vida. Esse Mahdi é a chave de tudo, e se vocês não compreenderam isso até agora, não
posso fazer mais nada. Uma palavra do Mahdi, de preferência com uma pistola apontada para a cabeça dele, e tudo termina em Oman.
- Não falta mérito à ideia - concordou Ben-Ami.
- Mas falta sentido! - protestou Yaakov. - Digamos que esse Kendrick faça contato com o Mahdi. O que é que ele vai fazer? O que dirá? - Código Azul passou a usar uma caricatura de um sotaque americano.
- Ei, parceiro, tenho um negócio sensacional para você, companheiro. Chame de volta os seus estúpidos pistoleiros e lhe darei minhas botas de couro novas. Absurdo! Ele levará um tiro na cabeça no momento
em que lhe perguntarem: "Qual é a emergência?"
- Também não falta mérito a essa possibilidade - comentou Ben-Ami.
- Agora tenho de lidar com advogados! - berrou Manny. - Pensam que meu filho é um idiota? Que ele criou um império de construção com ingenuidade? No momento em que tiver alguma coisa concreta... um nome,
um local, uma companhia... ele entra em contato com Mascate e nosso amigo comum, o sultão, chama os americanos, os ingleses, os franceses e todo mundo em que confia em Oman, e os põe em ação. E seu pessoal
aqui em Bahrain fecha o cerco.
- Mérito - murmurou Ben-Ami, mais uma vez, balançando a cabeça.
- Até que não falta - concordou Preto.
- E o que é que você estará fazendo? - indagou Yaakov, um pouco mais dócil, mas ainda belicoso.
- Enjaulando uma raposa gorda que tem devorado uma porção de galinhas, embora ninguém percebesse isso - respondeu Weingrass.
Os olhos de Kendrick abriram-se subitamente. Um som, um rangido - uma intromissão no silêncio do quarto que nada tinha a ver com o tráfego além das janelas. Era mais próximo, mais pessoal, um tanto íntimo.
Mas não era a mulher, Khalehla; ela se fora. Piscou por um momento para a depressão no travesseiro a seu lado e, apesar de tudo que sua mente projetava, sentiu uma repentina tristeza. Pois apreciara aquelas
breves horas com ela, sentindo entre ambos um afeto que fora parte do frenético ato de amor, que por sua vez não teria ocorrido sem esse sentimento.
Que horas são? Ele virou o pulso e... o relógio não estava ali. Ainda se encontrava em poder da sacana! Virou-se na cama e estendeu as pernas para o chão, sem se preocupar com o lençol que o cobria. Os
pés tocaram em objetos duros; baixou os olhos para o carpete branco como um urso polar e tornou a piscar. Tudo o que estivera em seus bolsos se encontrava ali... menos o maço de cigarros, que tanto queria
naquele momento. E depois seus olhos foram atraídos para um papel de margem dourada na mesinha de cabeceira; pegou-o.
Acho que ambos fomos gentis um com o outro, numa situação em que cada um carecia de certa gentileza. Não há decepção, exceto uma: Não tornarei a vê-lo. Adeus.
Sem nome, sem endereço, apenas Ciao, amico. Apenas isso para dois navios que se cruzavam no golfo Pérsico ou duas pessoas tensas e abaladas num final de tarde em Bahrain. Mas a tarde já finava em Bahrain,
Evan constatou. Mal conseguira ler o bilhete de Khalehla; a última claridade alaranjada do sol poente entrava agora pelas janelas. Apanhou seu relógio; faltavam cinco para as oito; dormira quase quatro
horas. Estava faminto e seus anos nos desertos, montanhas e corredeiras lhe haviam ensinado que não se viajava muito de barriga vazia. Um "guarda", ela dissera. "Lá fora", explicara. Evan tirou o lençol
da cama, enrolou-se e partiu para a porta do quarto. Parou de repente; havia um envelope no chão. O ruído que ouvira era o de um envelope sendo empurrado por baixo da porta, forçado por causa do carpete
grosso. Pegou-o, abriu-o e leu o conteúdo. Uma lista de dezesseis nomes, endereços e telefones. MacDonald! A lista das ligações que ele fizera em Bahrain. Um passo a mais na direção do Mahdi!
Evan abriu a porta; as saudações entre ele e o guarda uniformizado foram trocadas rapidamente, em árabe.
- Agora, está acordado, senhor. Não deveria ser incomodado até às oito e meia.
- Eu ficaria agradecido se me incomodasse agora com alguma coisa para comer. A mulher disse que eu poderia conseguir algo da sua cozinha.
- O que lhe aprouver, senhor.
- Qualquer coisa que puder providenciar. Carne, arroz, pão... e leite, eu gostaria de tomar um pouco de leite. E tudo o mais depressa possível, por favor.
- Bem depressa, senhor!
O guarda deu meia-volta e saiu em disparada pelo corredor, na direção da escada. Evan tornou a fechar a porta e ficou imóvel por um momento, orientando-se no quarto agora totalmente escuro. Acendeu um
abajur na beira da cômoda interminável, depois atravessou o carpete suntuoso para outra porta, que levava a um dos mais opulentos banheiros de Bahrain.
Saiu dez minutos depois, de banho tomado e barbeado, agora vestindo um roupão felpudo e curto. Encaminhou-se para o armário em que Khalehla dissera estarem suas roupas... "desinfetadas, lavadas e passadas".
Abriu a porta espelhada e mal reconheceu os insólitos paramentos de que se apossara na embaixada em Mascate; parecia um respeitável uniforme paramilitar. Deixando tudo nos cabides, estendeu o traje engomado
sobre a poltrona, voltou para a cama e sentou-se a olhar para seus pertences no chão. Sentiu-se tentado a conferir o cinturão com o dinheiro, para verificar se alguma das notas grandes estava faltando,
mas decidiu em contrário. Se Khalehla era uma ladra, ele não queria saber, não naquele momento.
O telefone tocou, a campainha estridente pouco menos que um prolongado grito metálico. Por um momento ele ficou olhando para o aparelho... Quem? Tinha a lista de MacDonald; era a única coisa que Khalehla
dissera que ele poderia esperar. Khalehla? Teria mudado de ideia? Com o ímpeto de um sentimento espontâneo, ele estendeu a mão para o fone e levou-o ao ouvido. Oito segundos depois desejou não tê-lo feito.
- Amreekanee - disse a voz de homem, o tom monótono mas transmitindo ódio. - Deixe essa casa real antes do amanhecer e será um homem morto. E amanhã volte quietinho para o lugar de onde veio, o lugar a
que pertence.
14
Emmanuel Weingrass levou aos lábios o rádio de Cinza e disse:
- Vá em frente e não se esqueça de deixar a linha aberta. Tenho de ouvir tudo!
- Se me dá licença, Weingrass - respondeu Ben-Ami, das sombras no outro lado da estrada do Governo -, eu me sentiria um pouco mais seguro se nosso colega Cinza também fosse ouvido. Você e eu não somos
tão competentes nestas situações quanto esses jovens.
- Eles não possuem um cérebro na sua cabeça coletiva. Nós temos dois.
- Isto não é shul,[3] Emmanuel, é o que eles chamam de campo e pode se tornar bastante desagradável.
- Tenho absoluta confiança em você, Benny, enquanto me garantir que os rádios dos garotos podem ser ouvidos através do aço.
- São tão claros quanto o melhor microfone eletrônico que existe, com a função adicional da transmissão direta. Basta alguém apertar os botões certos.
- Não será alguém, mas você - disse Weingrass. - Vá em frente, nós o seguiremos quando ouvirmos o que esse MacDonald-Strickland diz.
- Mande Cinza primeiro, por favor.
Saindo das sombras perto da marquise do Hotel Tylos, Ben-Ami fundiu-se na multidão nervosa em torno da entrada. Pessoas chegavam e saíam, a maioria homens, a maioria em trajes ocidentais, havendo algumas
mulheres em trajes exclusivamente ocidentais. Táxis desembarcavam passageiros, enquanto outros os tragavam, dando gorjetas a um porteiro ativo cuja única função era abrir e fechar portas, de vez em quando
soprando um apito estridente para chamar um carregador de bagagem. No meio dessa confusão, Ben-Ami entrou no hotel. Momentos depois, através do barulho de fundo do saguão, pôde ser ouvido a discar; contraindo
os olhos irritados, Manny levantou o rádio entre ele e Cinza, muito mais alto e musculoso. As primeiras palavras do Quarto 202 foram indistintas, depois o agente do Mossad falou:
- Shaikh Strickland?
- Quem está falando?
O sussurro cauteloso do inglês soava nítido agora; Ben-Ami ajustara o rádio.
- Estou aqui embaixo... Anah hénah, littee gáhrah...
- Seu maldito idiota! - gritou MacDonald. - Não falo essa algaravia! Por que está ligando do saguão?
- Estava testando-o, Sr. Strickland - Ben-Ami apressou-se em responder. - Um homem sob pressão muitas vezes se entrega. Poderia ter me perguntado para onde minha viagem de negócios me levava, talvez passando
para um código subsequente. Nesse caso eu saberia que não era o homem...
- Eu sei, eu sei! Graças a Deus que você está aqui! Levou muito tempo. Eu o esperava há meia hora. Deveria me dizer alguma coisa. Pois diga logo!
- Não pelo telefone - respondeu com firmeza o infiltrador do Mossad. - Nunca pelo telefone, deveria saber disso.
- Se acha que vou deixá-lo entrar no meu quarto...
- Eu não deixaria, se estivesse no seu lugar - Ben-Ami tornou a interrompê-lo. - Sabemos que está armado.
- Sabem?
- Temos conhecimento de cada arma vendida por baixo do balcão.
- Claro, claro.
- Abra sua porta com a corrente. Se minhas palavras forem incorretas, pode me matar.
- Está certo. Tenho certeza de que não será necessário. Mas quero que compreenda, quem quer que você seja, uma sílaba fora do lugar e torna-se um cadáver.
- Praticarei meu inglês, Shaikh Strickland.
Uma luzinha verde começou a piscar subitamente no pequeno rádio na mão de Weingrass.
- O que é isso? - perguntou Manny.
- Transmissão direta - respondeu Cinza. - Passe-me o aparelho. - O comando da Brigada Massada pegou o rádio e apertou um botão. - Pode falar.
- Ele está sozinho! - disse a voz de Ben-Ami. - Temos de agir depressa, pegá-lo agora!
- Não vamos agir coisa nenhuma, seu imbecil do Mossad! - bradou Weingrass, tornando a pegar o rádio. - Até mesmo aqueles mutantes de Operações Consulares do Departamento de Estado podem ouvir o que acabaram
de ser informados, mas não o sagrado Mossad! Eles só ouvem as próprias vozes e talvez a de Abraão, se ele tiver o código certo e uma voz saindo de uma caixa de flocos de milho!
- Manny, não preciso das suas advertências - protestou Ben-Ami, magoado, pelo rádio.
- Precisa de ouvidos, é isso o que está lhe faltando, ganza macher![4] Aquele narciso espera um contato do Mahdi a qualquer momento... alguém que não ligará do saguão, mas seguirá direto para o seu quarto.
Ele conhece as palavras para fazer MacDonald abrir a porta... e esse será o momento em que vamos entrar na festa e pegar os dois! O que estava pensando fazer? Arrombar a porta, cortesia do Neanderthal
aqui ao meu lado?
- De fato, era isso...
- Também não preciso de advertências - murmurou Cinza.
- Não é de admirar que tenham estragado tudo lá em Washington. Vocês pensaram que Password fosse uma senha do Mossad e não um programa de televisão.
- Manny!
- Leve seu secreto rabo para o segundo andar! Estaremos lá em dois minutos!
- Senhor Weingrass - disse código Cinza, os músculos do queixo se contraindo em fúria, enquanto desligava o rádio -, o senhor é, provavelmente o homem mais irritante que já conheci.
- Ah, essas palavras! No Bronx você levaria uma surra por elas... se dez ou doze dos meus amigos irlandeses ou italianos pudessem agarrá-lo. Vamos logo!
Manny começou a atravessar a estrada do Governo, seguido por Cinza, que sacudia a cabeça, não em discordância, mas apenas para expurgar os pensamentos que acalentava.
O corredor do hotel era longo, o carpete desgastado. Era a hora do jantar e a maioria dos hóspedes saíra. Weingrass postou-se numa extremidade; tentara fumar um Gauloise, mas esmagara-o, abrindo um buraco
fumegante no carpete, quando provocara um rumor doloroso no seu peito. Ben-Ami se encontrava no outro lado, junto do elevador, tipo do hóspede sempre irritado esperando por um transporte que não chegava.
Código Cinza estava mais perto do quarto 202, encostado na parede, próximo a uma porta, a cinco metros em diagonal do aposento do "Sr. Strickland". Era um profissional; assumira a postura do jovem esperando
ansioso por uma mulher, que talvez jamais iria encontrar, e chegava mesmo a sugerir que estava falando através da porta.
Aconteceu, e Weingrass ficou impressionado. O porteiro uniformizado que ficava sob a marquise na entrada do Tylos saiu subitamente de um elevador, o quepe de alamares dourados na mão; encaminhou-se para
o quarto 202. Parou, bateu, esperou que a porta com corrente fosse parcialmente aberta e falou. A corrente foi desprendida. Súbito, com a rapidez e determinação agressiva de um atleta olímpico, código
Cinza voou da parede e lançou-se contra os dois vultos na porta, conseguindo de alguma forma sacar o revólver de um esconderijo invisível. Seu corpo chocou-se contra os oponentes, pondo-os de lado, os
pés e os braços unindo os dois inimigos, como uma só entidade e empurrando-os pelo chão. Dois tiros surdos foram disparados pela arma do comando; a automática na mão de Anthony MacDonald foi arrancada,
junto com dois dedos.
Weingrass e Ben-Ami convergiram para a porta, entraram correndo e a bateram.
- Me acertaram! - gritou o inglês atirado no chão, segurando a mão direita ensanguentada com a outra. - Oh, Deus! Eu não...
- Apanhe uma toalha no banheiro - ordenou Cinza a Ben-Ami, calmamente.
O agente do Mossad obedeceu à ordem do homem mais moço.
- Sou apenas um mensageiro! - bradou o empregado do hotel junto da cama, tremendo de medo. - Eu devia apenas transmitir um recado!
- Uma ova que você é apenas um mensageiro - disse Emmanuel Weingrass, pondo-se ao lado do homem. - É um agente perfeito, seu filho da puta. Observa quem chega, quem entra... Os olhos deles! Vamos conversar.
- Perdi minha mão! - berrou o obeso MacDonald, o sangue escorrendo pelo braço.
- Tudo certo! - exclamou Ben-Ami, ajoelhando-se e enrolando uma toalha na mão do inglês.
- Não faça isso - ordenou código Cinza, arrancando a toalha e jogando-a no lado.
- Você me disse para fazer - protestou Ben-Ami, confuso.
- Mudei de ideia - disse Cinza, a voz subitamente fria. Abaixou o braço de MacDonald, o sangue escorrendo dos cotos dos dedos, enquanto acrescentava para o inglês, suavemente: - Sangue, especialmente o
sangue do braço direito... da aorta, expelindo-o do coração... não terá outro lugar para ir além do chão. Está me entendendo, khanzeer? Sabe o que vai acontecer, porco? Conte o que queremos saber ou sua
vida vai se esvair pelos dedos. Onde está o Mahdi? Quem é ele?
- Não sei! - gritou Anthony MacDonald, tossindo, lágrimas correndo por suas faces. - Como todo mundo, ligo para alguns telefones... e alguém me procura! Isso é tudo o que sei!
O comando levantou a cabeça abruptamente. Estava condicionado a ouvir coisas e sentir vibrações que outros não ouviam nem sentiam.
- Abaixem-se! - ele sussurrou bruscamente para Ben-Ami e Weingrass. - Rolem para as paredes! Por trás de cadeiras, qualquer coisa!
A porta do quarto foi arrombada. Três árabes em túnicas brancas, os rostos cobertos por panos, avançaram pela abertura, as pistolas-metralhadoras abafadas disparando, os alvos óbvios; MacDonald e o porteiro
do Tylos, cujos corpos prostrados e aos gritos ficaram se sacudindo sob a saraivada de balas, até que mais nenhum som saiu das bocas ensanguentadas. Súbito os assassinos tomaram conhecimento da presença
de outros no quarto; voltaram-se, as armas cortando o ar em busca de novos alvos, mas não eram adversários para o letal código Cinza, da Brigada Massada. O comando correra para a esquerda da porta aberta,
as costas comprimidas contra a parede, a Uzi arrancada das tiras sob o casaco. Com uma longa rajada ele derrubou instantaneamente os carrascos. Não houve reflexos de morte. Os crânios foram estourados.
- Fora! - gritou Cinza, correndo para Weingrass e levantando-o. - Pela escada ao lado dos elevadores!
- Se formos detidos - acrescentou Ben-Ami -, somos três pessoas fugindo em pânico por causa do tiroteio!
De volta à estrada do Governo, enquanto recuperavam o fôlego numa viela que levava ao Bulevar Shaikh Hamad, código Cinza subitamente praguejou baixinho, mais para si mesmo do que para seus companheiros.
- Droga, droga, droga! Eu tive de matá-los!
- Não tinha alternativa - disse o agente do Mossad. - Um dedo deles no gatilho e poderíamos estar todos mortos... ou pelo menos um de nós, com toda certeza.
- Mas bastaria um deles vivo para descobrirmos muita coisa - respondeu o homem da unidade Massada.
- Descobrimos alguma coisa, garoto - comentou Weingrass.
- Não me trate assim!
- Ora, meu jovem, garoto é um termo carinhoso...
- O que descobrimos, Manny?
- MacDonald falou demais. Em seu pânico, o inglês disse coisas pelo telefone que não deveria dizer, portanto tinha de ser morto pela boca frouxa.
- Como isso explica o porteiro? - perguntou código Cinza.
- Dispensável. Ele abriu a porta de MacDonald para o pelotão de fuzilamento do Mahdi. A sua arma foi uma surpresa, não a deles... E agora que sabemos da boca grande e da execução de MacDonald, podemos
presumir dois fatos vitais... como os fatores de tensão quando se está projetando a varanda saliente de um prédio, em busca do equilíbrio.
- Do que está falando, Manny?
- Meu menino, Kendrick, fez um trabalho melhor do que provavelmente imagina. O Mahdi está assustado. Não sabe realmente o que vem acontecendo, matou o boca grande e agora ninguém lhe pode contar. Ele cometeu
um erro... Isso não é da maior importância? O Mahdi cometeu um erro.
- Se os seus projetos arquitetônicos são tão obscuros quanto você, Weingrass - disse Cinza -, espero que não faça nenhum prédio em Israel.
- Ah, a maneira de falar desse garoto! Tem certeza de que não cursou a escola secundária de Ciência do Bronx? Não importa. Vamos dar uma olhada na cena da mesquita Juma... Diga-me uma coisa, garoto: alguma
vez já cometeu um erro?
- Acho que cometi um ao vir para Bahrain...
Emmanuel Weingrass não ouviu a resposta. Estava dobrado num novo acesso de tosse, encostado na parede da viela escura.
Atordoado, Kendrick ficou olhando para o fone em sua mão, depois bateu-o com raiva - raiva, frustração e medo. "Deixe essa casa real antes do amanhecer e será um homem morto... E amanhã volte quietinho
para o lugar de onde veio, o lugar a que pertence". Se precisasse de qualquer confirmação de que se aproximava do Mahdi, tinha-a agora por tudo que lhe acontecia. Era virtualmente um prisioneiro; um passo
fora da elegante casa e seria fuzilado pelos homens que o aguardavam. Mesmo suas roupas "desinfetadas, lavadas e passadas" não seriam confundidas com qualquer outra coisa, a não ser com o que eram: o traje
limpo de um terrorista. E a ordem para que voltasse ao lugar de onde viera dificilmente poderia ser levada a sério. Aceitava o fato de que haveria relutância em matar um deputado americano, mesmo um cuja
presença em Bahrain podia ser facilmente ligada aos horrores em Oman, onde ele um dia trabalhara. Uma Oman bombardeada e destruída, como grande parte do povo americano exigia cada vez mais, não seria do
interesse do Mahdi - mas o Mahdi também não podia permitir que o deputado voltasse a Washington. Apesar da ausência de provas concretas, ele sabia demais, muita coisa que outros, bem mais experientes nas
artes facciosas, poderiam aproveitar; a solução do Mahdi parecia bastante óbvia. O americano intrometido e curioso seria mais uma vítima daqueles tempos terríveis - junto com outros, é claro. Um massacre
num terminal de aeroporto; um avião explodido em pleno ar; uma bomba atirada num café - eram muitas as possibilidades e bastava que entre os mortos estivesse alguém que descobrira coisas demais.
Afinal, era como Evan concebera no início. Ele e o Mahdi. Ele ou o Mahdi. Agora ele perdera, tão certamente como se estivesse no interior de um prédio com mil toneladas de concreto e aço desabando sobre
sua cabeça. Houve uma batida firme na porta.
- Odkhul - ele disse em árabe, autorizando o visitante a entrar, enquanto instintivamente pegava a arma no carpete branco.
O guarda entrou, equilibrando habilmente uma bandeja na mão esquerda. Evan guardou a pistola por baixo de um travesseiro e levantou-se, enquanto o soldado levava a comida para a escrivaninha branca.
- Tudo pronto, senhor! - exclamou ele, com algum triunfo na voz. - Escolhi pessoalmente cada item, por seu sabor especial. Minha esposa diz que eu deveria ser um cozinheiro, não um guerreiro.
Kendrick não ouviu o resto do hino de louvor que o guerreiro entoava para si mesmo. Ele tinha pouco mais de um metro e oitenta de altura, ombros largos e uma cintura invejavelmente fina. Exceto pela cintura,
era mais ou menos do tamanho de Evan. Kendrick olhou para as roupas limpas e engomadas na poltrona e depois para o vistoso uniforme vermelho e azul do frustrado cozinheiro-militar. Sem realmente ter essa
intenção, Evan estendeu a mão para a arma oculta, enquanto o soldado, cantarolando como um cuciniere supremo italiano, distribuía os pratos fumegantes na mesa. O único pensamento que aflorava em sua mente
era de que o traje limpo de um terrorista seria um alvo perfeito para uma saraivada de balas, mas não o uniforme de um guarda real bahrainiano, sobretudo se saísse de uma casa real. Na verdade, não havia
alternativa. Se nada fizesse, estaria morto pela manhã - em algum lugar, de alguma forma. Tinha de fazer algo e não hesitou. Contornou a cama enorme, postou-se atrás do guarda e, com toda a força, acertou
a coronha da pistola na cabeça balouçante e musical do guarda.
O homem caiu no chão, inconsciente; mais uma vez sem pensar, Evan sentou-se à escrivaninha e comeu com a maior pressa de toda a sua vida. Doze minutos depois o guerreiro estava amordaçado e amarrado na
cama, enquanto Kendrick se inspecionava diante de um espelho do armário. O uniforme vermelho e azul um pouco amarrotado poderia melhorar no corpo dele se entregue aos dedos experientes de um alfaiate,
mas de um modo geral era aceitável, principalmente nas sombras noturnas das ruas.
Vasculhando o armário, encontrou uma bolsa de compras de plástico e ali meteu suas roupas de Mascate. Olhou para o telefone. Sabia que não usaria aquele aparelho, não poderia usá-lo. Se sobrevivesse à
sua saída, ligaria para Azra de outro telefone.
Sem o casaco, o coldre ajustado no ombro, Azra andava furioso de um lado para outro no quarto do Hotel Aradous, consumido por pensamentos de traição. Onde estava Amal Bahrudi - o homem de olhos azuis que
se dizia chamar Bahrudi? Seria na verdade outra pessoa, alguém que o inglês tolo e inchado chamara de "Kendrick"? Seria tudo uma armadilha, a fim de capturar um membro do conselho da organização em Mascate,
uma armadilha para o terrorista árabe conhecido como Azul?... Terrorista? Como era típico dos assassinos sionistas da Irgun Zvai Leumi e Haganah! Como apagavam facilmente os massacres de "Jephthah" e Deir
Yasin, para não citar os seus carrascos substitutos em Sabra e Shatila! Eles roubam uma pátria e vendem o que não lhes pertence, matam uma criança por carregar a bandeira palestina - "um acidente", é como
chamam a isso - e nós é que somos os terroristas!... Se o Hotel Aradous era mesmo uma armadilha, não podia permanecer engaiolado no quarto; contudo, se não era uma armadilha, tinha que ficar onde poderiam
fazer contato com ele. O Mahdi era tudo, seu chamado uma ordem, pois ele proporcionava os meios para manter a esperança, para espalhar a mensagem de legitimidade. Quando o mundo os compreenderia? Quando
os Mahdis do mundo seriam irrelevantes?
O telefone tocou e Azra correu para atender.
- Alô?
- Atrasei um pouco, mas já estou a caminho, descobriram-me; quase fui morto no aeroporto, mas escapei. Podem até ter descoberto você a esta altura.
- O quê?
- Vazamentos no sistema. Saia, mas não passe pelo saguão. Há uma escada própria para sair em caso de incêndio. Creio que fica na extremidade sul do corredor. Use-a e atravesse a cozinha do restaurante
para a saída de empregados. Você estará no Wadi Al Ahd. Atravesse a rua; eu o encontrarei lá.
- Você é mesmo Amal Bahrudi? Posso confiar em você?
- Nenhum dos dois tem qualquer alternativa, não é mesmo?
- Isso não é uma resposta.
- Não sou seu inimigo - mentiu Evan Kendrick. - Nunca seremos amigos, mas não sou seu inimigo. Não posso ser. E você está perdendo tempo, poeta, parte do qual me pertence. Estarei aí dentro de cinco minutos.
Depressa!
- Estou indo.
- Tome cuidado.
Azra desligou e foi buscar suas armas, que limpara várias vezes e colocara numa fileira impecável na cômoda. Agarrou a pequena automática Heckler & Koch P9S, ajoelhou-se, levantou a perna esquerda da calça,
inseriu a arma nas tiras cruzadas no meio da perna, atrás do joelho. Levantando-se, empunhou a pistola Mauser Parabellum, maior e mais poderosa, enfiou-a no coldre no ombro, guardando em seguida a faca
na bainha. Encaminhou-se para a cadeira em que largara o paletó do terno recém-adquirido, depois foi até a porta e saiu para o corredor.
Nada lhe teria parecido estranho se não fosse por sua concentração sobre o local da escada e o desejo de poupar tempo - um tempo agora medido em minutos e fragmentos de minutos. Seguiu para a direita,
na direção da extremidade sul do corredor, os olhos apenas parcialmente percebendo uma porta sendo fechada, não uma porta aberta, mas apenas entreaberta. Não tinha maior significação: um hóspede descuidado;
uma mulher ocidental carregando muitos embrulhos de compras. Depois, não conseguindo avistar o letreiro de uma escada, ele virou-se abruptamente para inspecionar o outro lado, a extremidade norte do corredor.
Uma segunda porta, esta entreaberta apenas cinco ou seis centímetros, foi fechada rapidamente, silenciosamente. Haviam-no descoberto! Seu quarto estava sendo vigiado. Por quem? Quem eram eles? Azra continuou
a andar, agora para a extremidade norte do corredor, mas no instante em que passou pela segunda porta voltou-se de chofre e se encostou na parede. Enfiando a mão por dentro do paletó, tirou a faca de caça
de lâmina comprida. Esperou. Poucos segundos depois a porta foi aberta; Azra virou-se para o batente, encarando um homem que sabia ser seu inimigo, musculoso e bronzeado, quase da sua idade. O treinamento
no deserto estava estampado no seu rosto, devia ser um comando israelense! Em vez de arma, o surpreso judeu tinha um rádio na mão; e estava desarmado!
Azra desferiu um golpe com a faca diretamente para a garganta do israelense. Num movimento rápido, a lâmina foi desviada; o terrorista baixou-a, cortando a mão do judeu; o rádio caiu no chão acarpetado,
enquanto Azra fechava a porta com um pontapé; ouviu o estalido da tranca automática.
Segurando o pulso, o israelense golpeou com o pé direito acertando a rótula do palestino. Azra cambaleou; outra biqueira de aço atingiu-o no lado do pescoço e uma terceira explodiu em suas costelas. Mas
avaliou o ângulo certo; o israelense estava desequilibrado! O terrorista arremeteu, a faca uma extensão do seu braço, visando a barriga do comando. O sangue jorrou, cobrindo o rosto de Azra, enquanto o
israelense, codinome Laranja, da Brigada Massada, caía no chão.
O palestino fez um esforço para se levantar, pontadas de dor irradiando-se das costelas e joelho, os tendões no pescoço quase paralisados. Subitamente, sem um rangido ou o barulho de passos, a porta foi
arrombada, a tranca voando do encaixe. O segundo comando - mais jovem, os braços grossos e nus se estufando de tensão, os olhos furiosos avaliando a cena à sua frente - estendeu a mão além do quadril direito
para uma arma no coldre. Azra lançou-se contra o israelense, empurrando o comando contra a porta e fechando-a. A arma de código Azul deslizou pelo chão, libertando sua mão direita para interceptar o braço
do palestino, que baixava a faca ensanguentada. O israelense levantou o joelho para as costelas do terrorista, enquanto virava o braço seguro para a direita, forçando Azra contra o chão. Mas nem assim
o palestino largou a faca! Os dois se separaram, meio agachados, olhando um para o outro, desprezo e ódio nos olhos de ambos.
- Se quer matar judeus, tente me matar, seu porco! - gritou Yaakov.
- Por que não? - respondeu Azra, estendendo a faca para a frente, a fim de atrair o israelense. - Você mata árabes! Matou minha mãe e meu pai como se tivesse puxado o gatilho pessoalmente!
- E você matou meus dois irmãos nas patrulhas de Sidon!
- Posso ter matado! Espero ter matado! Eu estava lá!
- Você é Azra!
Como dois animais raivosos, os jovens se arremessaram um contra o outro, com violência e determinação para acabar com uma vida - a vida odiada - como se essa fosse a única razão para estarem no mundo.
Sangue irrompeu de carne perfurada, ligamentos foram rompidos e ossos fraturados, em meio a gritos guturais de vingança e aversão. Finalmente aconteceu, o final tão vulcânico quanto a erupção do início;
a força bruta saiu vitoriosa.
A faca alojou-se na garganta do terrorista, e foi torcida e forçada para deixar sua marca, pelo comando da Brigada Massada.
Exausto e encharcado de sangue, Yaakov afastou-se do corpo do inimigo. Olhou para seu companheiro abatido, código Laranja, fechou os olhos.
- Shalom - ele sussurrou. - Encontre a paz que todos procuramos, meu amigo.
Não havia tempo para lamentos, pensou, enquanto arregalava os olhos. O corpo do seu companheiro, assim como o do inimigo, tinha de ser removido. Precisava estar na área do que aconteceria em seguida; tinha
de estabelecer contato com os outros. O assassino Azra estava morto! Podiam agora voar de volta a Mascate, tinham que voltar. Para seu pai! Angustiado, Azul claudicou até a cama e arrancou a colcha, revelando
a pistola-metralhadora Uzi do comando morto. Pegou-a, ajeitou-a no ombro, encaminhou-se até a porta para inspecionar o corredor. Seu pai!
Nas sombras distantes do Wadi Al Ahd, Kendrick compreendeu que não podia mais esperar e não podia correr o risco de usar um telefone. E também não podia permanecer na folhagem no outro lado do Aradous
sem fazer nada! O tempo corria e o contato do Mahdi esperava para encontrar o fantoche Azra, o novo príncipe dos terroristas. Agora tudo parecia evidente, refletiu. Fora descoberto, através dos acontecimentos
no aeroporto ou de um vazamento em Mascate - os homens em pânico, do passado, com quem falara, homens que, ao contrário de Mustapha, se recusaram a recebê-lo, podiam tê-lo traído para sua própria segurança,
assim como era certo que um deles matara Musty, pelo mesmo motivo. "Não podemos nos envolver! É loucura! Nossas famílias estão mortas! Nossas crianças estupradas, desfiguradas... mortas!"
A estratégia do Mahdi era óbvia. Isolem o americano e esperem que o terrorista se aproxime sozinho do ponto de encontro. Peguem o jovem assassino, e assim abortem a armadilha, pois não há armadilha sem
o americano. É apenas um palestino dispensável à solta. Matem-no, mas primeiro descubram o que aconteceu em Mascate.
Onde estava Azra? Trinta e sete minutos haviam transcorrido desde que lhe falara pelo telefone; o árabe chamado Azul estava trinta e dois minutos atrasado! Evan olhou para o relógio mais uma vez e praguejou
silenciosamente, furioso, as palavras não pronunciadas eram ao mesmo tempo uma súplica de ajuda e uma explosão de raiva em nuvens turbilhonantes de frustração. Tinha que se mexer, fazer alguma coisa! Descobrir
onde Azra se encontrava, pois sem o terrorista também não haveria armadilha para o Mahdi. O contato do Mahdi não se apresentaria a quem não conhecesse, a quem não pudesse reconhecer. Tão perto! E tão longe
na distância da realidade!
Kendrick jogou a bolsa de plástico com suas roupas engomadas de Mascate no interior mais denso das moitas que margeavam a calçada do Wadi Al Ahd. Atravessou o bulevar na direção da entrada dos empregados
- um Guarda Real empertigado e arrogante, em missão oficial. Enquanto avançava rapidamente pela viela calçada com pedras, a caminho da entrada de serviço, vários empregados que saíam se curvaram subservientes,
obviamente esperando não serem detidos e revistados pelos pequenos tesouros que haviam roubado do hotel: sabonetes, papel higiênico e pratos de comida, os restos dos jantares de ocidentais cansados da
viagem ou tão bêbados que não conseguiam comer muito. Era o procedimento padrão. Evan já estivera ali; por isso escolhera o Hotel Aradous. Outra vez Emmanuel Weingrass. Ele e o imprevisível Manny haviam
fugido do Aradous pela cozinha, porque um meio-irmão do emir soubera que Weingrass prometera a uma meia-irmã dele a cidadania nos Estados Unidos, se dormisse com ele. Por sinal, um privilégio que Manny
não tinha a menor condição de garantir.
Kendrick passou pela cozinha, alcançou a escada no lado sul e subiu cautelosamente para o segundo andar. Tirou a pistola de baixo da túnica escarlate e abriu a porta. O corredor estava vazio; era a hora
da noite em que os prósperos visitantes de Bahrain saíam para os cafés e cassinos clandestinos. Avançou junto à parede esquerda até o quarto 202, tomando todo cuidado em cada passo no carpete desgastado.
Ficou atento: não havia qualquer som. Bateu de leve.
- Odkhúloo - disse a voz em árabe, não se dirigindo a uma pessoa específica, mas supondo várias, mandando entrar.
Estranho... e errado, pensou Evan, enquanto estendia a mão para a maçaneta. Por que o plural, por que mais de um? Girou a maçaneta, recuou até a parede e chutou a porta para abri-la, com o pé direito.
Silêncio, como se o quarto fosse uma caverna vazia, a voz estranha uma gravação desencarnada. Apertando com toda força a arma pouco familiar, indesejável, mas necessária, Kendrick esgueirou-se pelo batente
e entrou... Oh, Deus! A cena com que deparou deixou-o paralisado de horror! Azra estava arriado contra a parede, uma faca cravada na garganta, os olhos arregalados na morte, o sangue ainda correndo pelo
peito.
- Seu amigo, o porco, está morto - disse a voz suave por trás de Kendrick.
Evan voltou-se para ver um jovem tão ensanguentado quanto Azra. O assassino ferido encostava-se na parede, mal conseguindo ficar de pé, empunhando uma pistola-metralhadora Uzi.
- Quem é você? - sussurrou Kendrick.
Uma pausa, e acrescentou, agora gritando:
- O que foi que você fez?
O homem claudicou apressado até a porta e fechou-a, a arma apontada para Evan.
- Matei um homem que mataria os meus tão depressa quanto pudesse encontrá-los, que me teria matado.
- Santo Deus, você é israelense!
- E você é o americano?
- Por que fez isso? O que está fazendo aqui?
- Não foi minha escolha.
- Isso não é resposta!
- Tenho ordens para não dar respostas.
- Precisava matá-lo? - gritou Kendrick, olhando e estremecendo à visão do palestino morto e mutilado.
- Para usar as palavras dele, "Por que não?" Eles matam nossas crianças nas escolas, explodem aviões e ônibus com nossos cidadãos, executam nossos atletas inocentes em Munique, atiram em velhos visando
a cabeça apenas porque todos são judeus. Rastejam pelas praias e assassinam nossos jovens, nossos irmãos e irmãs... por quê? Porque somos judeus, vivendo finalmente numa faixa de terra mínima, árida, selvagem,
que conseguimos domar. Nós! Não outros!
- Ele nunca teve a oportunidade...
- Poupe-se das suas palavras, americano. Sei o que está para dizer e me causa o maior nojo. Em última análise, é como sempre foi. Por baixo, em sussurros, o mundo ainda quer culpar os judeus. Depois de
tudo o que fizeram conosco, ainda somos os criadores de problemas incômodos. Pois saiba de uma coisa, seu amador intrometido: não queremos seus comentários, sua culpa ou sua compaixão. Queremos apenas
o que nos pertence! Saímos dos campos de concentração, dos fornos crematórios e das câmaras de gás para reivindicar o que é nosso!
- Miserável! - bradou Evan, apontando furioso para o cadáver ensanguentado do terrorista. - Você fala como ele! Exatamente como ele! Quando é que tudo isso vai acabar?
- Que diferença faz para você? Volte para o seu apartamento seguro e seu luxuoso clube campestre, americano. Deixe-nos em paz. Volte ao lugar a que pertence.
Se foi pela repetição das palavras que ouvira menos de uma hora antes ao telefone, ou pelas imagens súbitas de blocos de concreto desabando sobre setenta e oito pessoas amadas gritando, desamparadas, ou
ainda por compreender que o odiado Mahdi estava lhe escapando, ele nunca saberia. Tudo o que soube naquele momento foi que se jogou contra o israelense surpreso e ferido, lágrimas de fúria deslizando pelas
faces.
- Seu filho da puta arrogante! - Evan gritou, arrancando a Uzi das mãos do jovem e jogando-a para o outro lado do quarto, empurrando o comando contra a parede. - Que direito tem você de me dizer o que
fazer ou para onde ir? Observamos vocês se matarem uns aos outros, a se explodirem e tudo o mais, em nome de credos cegos! Gastamos vidas e dinheiro, esgotamos cérebros e energia, tentando incutir-lhes
um pouco de razão, mas nada adianta, vocês não cedem um centímetro! Talvez devêssemos mesmo deixá-los em paz, permitir que se massacrem uns aos outros, deixar que os fanáticos se retalhem até a morte,
para que possa finalmente sobrar alguém com um mínimo de bom senso!
Subitamente, Kendrick correu através do quarto e empunhou a Uzi. Voltou-se para o israelense, apontando-lhe a arma, ameaçador.
- Quem é você e por que está aqui?
- Sou o codinome Azul. Esta é a minha resposta e não direi mais nada...
- Codinome o quê?
- Azul.
- Oh, não... - balbuciou Evan, olhando para o cadáver de Azra. Tornou a se virar para o israelense e, sem comentários, entregou a pistola-metralhadora ao atordoado comando. E acrescentou, docemente: -
Tome, fuzile todo mundo. Não me importo.
Com essas palavras, Kendrick encaminhou-se para a porta e saiu. Yaakov viu o americano desaparecer, depois olhou para a porta fechada, a seguir para o cadáver arriado no chão, encostado na parede. Baixou
a arma com a mão esquerda e com a direita tirou o potente rádio miniaturizado do cinto. Apertou um botão.
- Itklem - disse a voz de código Preto, fora do hotel.
- Fez contato com os outros?
- Código V fez. Eles estão aqui... ou devo dizer que posso vê-los neste momento subindo pelo Al Ahd. Nosso colega mais velho está com V; e C está com o ancião. Mas há alguma coisa errada com o último,
que é amparado por C. E você, como está?
- Não estou bom para você agora, talvez mais tarde.
- Laranja?
- Morto...
- O quê?
- Não há tempo. O porco também morreu. O alvo está saindo; usa um uniforme vermelho e azul. Siga-o. Ele escapou ao controle. Chame-me em meu quarto, estarei lá.
Como se estivesse atordoado, Evan atravessou o Wadi Al Ahd e seguiu direto para os arbustos em que jogara a bolsa plástica de compras. Não tinha realmente importância continuar ali ou não; mas certamente
se sentiria mais à vontade se pudesse se movimentar mais depressa e ser menos um alvo tornando a vestir as roupas de Mascate. Apesar de tudo, conseguira chegar àquele ponto; não podia voltar. Um único
homem, ele não parava de repetir para si mesmo. Ah, se pudesse descobri-lo dentro dos parâmetros do ponto de encontro - o Mahdi! Tinha de descobri-lo!
A bolsa de compras estava onde a deixara e as sombras dos arbustos eram adequadas para seu propósito. Agachando-se nas moitas mais distantes, trocou lentamente de roupa, peça por peça. Saiu para a calçada
e seguiu para oeste, na direção da estrada Shaikh Isa e a mesquita Juma.
- Itklem - disse Yaakov pelo rádio. Estava estendido na cama, em seu quarto, com toalhas firmemente enroladas nos ferimentos, panos quentes e mornos, molhados, espalhados sobre a colcha.
- É C - disse código Cinza. - Como está você?
- Alguns talhos, basicamente. Alguma perda de sangue. Vou me recuperar.
- Então concorda que eu agora assuma o comando?
- Esse é o esquema.
- Queria ouvir isso de você.
- Já ouviu.
- Preciso ouvir mais uma coisa. Com o porco eliminado, quer que suspendamos a missão aqui e voltemos a Mascate? Posso dar um jeito, se sua resposta for sim.
Yaakov olhou para o teto, conflitos fervilhando em seu intimo, as palavras contundentes do americano ainda ardendo nos seus ouvidos.
- Não - respondeu, hesitante. - Ele veio de muito longe, arrisca demais. Fique com ele.
- Sobre W. Eu gostaria de deixá-lo para trás. Com você, talvez...
- Ele nunca permitiria. É o "filho" dele que está envolvido, lembra?
- Tem razão, eu havia esquecido. E posso acrescentar que ele é insuportável.
- Diga-me uma coisa que eu ainda são saiba.
- Está bem - respondeu código Cinza. - O alvo trocou o uniforme e acaba de passar por nós na rua. B o avistou. Ele anda como um morto.
- Provavelmente está.
- Desligando.
Kendrick mudou de ideia e de caminho para a mesquita Juma. O instinto lhe dizia para permanecer no meio das multidões no percurso para a mesquita. Depois de virar para o norte, na larga Bab Al Bahrain,
seguiria pela direita para a vasta praça Al Bab, entrando na estrada Al Khalifa. Pensamentos o bombardeavam, mas eram dispersos, desconexos, indefinidos. Caminhava para um labirinto, sabia disso, mas também
sabia que nesse labirinto haveria um homem ou homens observando, esperando que o falecido Azra aparecesse. Constituía a sua única vantagem, mas era considerável. Sabia quem e o que eles procuravam e eles
não o conheciam. Circularia pelo ponto de encontro como um gavião até avistar alguém, o tipo certo de alguém que compreendesse que poderia perder a vida se não levasse o príncipe herdeiro dos terroristas
ao Mahdi. O homem se trairia, talvez até detivesse as pessoas para inspecionar seus rostos, a ansiedade crescendo a cada minuto que passava. Evan encontraria esse alguém e o isolaria - era preciso capturá-lo
e dobrá-lo... Ou estava se iludindo, deixando que a obsessão o cegasse? Nada mais importava, nada importava, apenas um passo depois de outro sobre a calçada dura, esgueirando-se pela multidão noturna de
Bahrain.
A multidão. Podia sentir. Homens se agrupavam ao seu redor. Uma mão tocou em seu ombro! Ele virou-se e desferiu um golpe com o braço para se desvencilhar. E de repente sentiu a picada dolorosa de uma agulha
penetrando em sua carne, em algum lugar próximo da base da espinha. E depois houve escuridão. Total.
O telefone despertou Yaakov, que teve um sobressalto. Ele atendeu.
- Alô?
- Eles pegaram o americano! - disse código Cinza. - Mais importante, eles existem!
- Onde aconteceu? Como foi?
- Isso não importa; de qualquer forma, não conheço as ruas. O que importa é que sabemos para onde o levaram!
- Vocês o quê? Ora, não me diga que isso não é importante!
- Foi Weingrass. Isso mesmo, foi Weingrass quem conseguiu. Ele sabia que não poderíamos continuar a pé por muito mais tempo e por isso pagou a um delirante árabe dez mil dólares por seu velho táxi desconjuntado!
Aquele al harmmee vai passar seis meses de porre! Embarcamos todos, seguimos o alvo e vimos quando a coisa aconteceu. Porra, foi Weingrass!
- Controle suas tendências homicidas - ordenou Yaakov, com um sorriso súbito que se desvaneceu num instante. - Onde está o alvo... merda!... onde Kendrick se encontra preso?
- Num prédio chamado Sahalhuddin, na estrada Tujjar...
- Quem o apanhou?
- Dê-nos tempo, Azul. Dê um pouco de tempo a Weingrass. Ele está cobrando todas as dívidas que lhe devem em Bahrain e eu detestaria pensar no que diria a Comissão de Moral de Jerusalém se estivéssemos
presos a ele.
- Responda!
- Ao que tudo indica, seis firmas ocupam o complexo. É apenas uma questão de reduzir as alternativas...
- Alguém venha me buscar! - ordenou Yaakov.
- Então encontrou o Mahdi, deputado - disse o árabe de pele escura que vestia uma túnica branca imaculada, com um turbante branco de seda coroado por um punhado de safiras.
Estavam numa sala grande, com o teto em domo, coberto por um mosaico de ladrilhos; as janelas eram altas e estreitas, os móveis esparsos em madeira escura envernizada, a enorme escrivaninha de ébano mais
parecendo um altar ou um trono do que uma superfície funcional de trabalho. Havia um clima de mesquita naquela sala, como as câmaras de um sumo-sacerdote de uma ordem estranha mas poderosa, numa terra
apartada do resto do mundo.
- Está satisfeito agora? - continuou o Mahdi, de trás da mesa. - Ou talvez desapontado por descobrir que sou um homem como você... Não, não como você ou qualquer outro... mas ainda assim um homem.
- Você não passa de um assassino, seu filho da puta! - Evan projetou-se da cadeira de espaldar reto, mas foi agarrado pelos dois guardas que o flanqueavam e empurrado de volta. - Assassinou setenta e oito
pessoas inocentes... homens, mulheres e crianças, gritando enquanto o prédio desabava! É repulsivo!
- Era o começo de uma guerra, Kendrick. Todas as guerras têm baixas que não se restringem aos combatentes. Sei que venci aquela batalha muito importante... Você desapareceu durante quatro anos e nesse
período fiz um progresso extraordinário, um progresso que não teria conseguido com sua presença aqui. Ou com aquele judeu abominável, Weingrass, e sua boca flatulenta.
- Manny...? Ele continuou a falar contra você, advertindo-nos sempre!
- Eu silencio tais bocas com uma espada terrivelmente rápida! Pode interpretar isso como uma bala na cabeça... Mas quando recebi as notícias a seu respeito, compreendi que voltara por causa daquela primeira
batalha, há quatro anos. Você me moveu, como eles costumam dizer, uma caçada alegre, até nove horas atrás, Amal Bahrudi.
- Como?
- Há homens entre os soviéticos que gostam de participar de folhas de pagamento adicionais. Bahrudi, o euro-árabe, foi morto há vários dias em Berlim Oriental... O nome de Kendrick aflora; um árabe morto,
com olhos azuis e pronunciadas feições ocidentais, em Mascate... A equação era bastante imaginativa, quase inacreditável, mas equilibrada. Deve ter recebido auxílio, pois não é tão experiente nessas coisas.
Evan estudou atentamente o rosto extraordinário, com malares altos e olhos em fogo, que o fitavam com absoluta firmeza.
- Seus olhos - disse Kendrick, sacudindo a cabeça, dissipando os últimos efeitos da droga que lhe fora ministrada na rua. - Esse rosto que é uma máscara. Já vi você antes.
- Claro que já viu, Evan. Pense um pouco.
O Mahdi removeu o ghotra lentamente, revelando uma cabeça de cabelos negros em anéis, com alguns fios brancos. A testa larga e lisa estava agora enfatizada pelas escuras sobrancelhas arqueadas; era o rosto
de um homem que se entregava facilmente à obsessão, aplicando-a em qualquer propósito que assumisse.
- Encontrou-me numa tenda iraquiana? Ou talvez num certo arsenal do Meio-Oeste?
- Santo Deus! - balbuciou Kendrick, as imagens entrando em foco. - Você nos procurou em Basrá há sete ou oito anos e disse que nos faria ricos se recusássemos o contrato. Disse que havia planos para sacudir
o Irã, derrubar o xá, e não queria aeroportos modernos no Iraque.
- Foi o que aconteceu! Uma autêntica sociedade islâmica.
- Porra nenhuma! Você agora deve estar explorando os campos petrolíferos deles. E é tão islâmico quanto meu avô é escocês. Você veio de Chicago... esse é o arsenal do Meio-Oeste... e foi expulso de Chicago
há vinte anos porque até mesmo seus partidários negros, que explorou impiedosamente, não podiam mais suportar suas pregações fascistas! Roubou-lhes milhões e veio para cá espalhar lixo é ganhar mais alguns
milhões. Weingrass o conhecia e mandou que enfiasse tudo no rabo! Disse que você era um merda... merda nojento, se me lembro corretamente... e que se não saísse daquela tenda em Basrá ele acabaria perdendo
o controle e jogaria cal no seu rosto só para poder dizer que matara um nazista branco!
- Weingrass é... ou era... um judeu - disse o Mahdi calmamente. - Vilipendiou-me porque a grandeza que esperava para si mesmo desaparecia, enquanto começava a desabrochar a minha. Os judeus odeiam o sucesso
de qualquer um que não seja um dos seus. Por isso são os agitadores do mundo...
- A quem você pensa que está enganando? Ele o chamou de negro nojento e o adjetivo nada tinha a ver com brancos, pretos ou qualquer outra coisa! Você é pus e ódio, Al Falfa, ou como quer que se intitule,
a cor da sua pele é irrelevante... Depois de Riad, aquela batalha tão importante, quantos outros você matou, quantos massacrou?
- Apenas o que foi necessário em nossa guerra santa para manter a pureza da raça, cultura e crença nesta parte do mundo.
Os lábios do Mahdi de Chicago, Illinois, Estados Unidos, contraíram-se num sorriso lento e frio.
- Seu hipócrita filho da puta! - berrou Kendrick.
Incapaz de se controlar, tornou a projetar-se da cadeira, as mãos como duas garras voando através da mesa na direção da túnica branca do assassino-manipulador. Outras mãos o alcançaram antes que pudesse
tocar no Mahdi; foi lançado no chão e chutado simultaneamente na barriga e espinha. Tossindo, tentou se levantar; enquanto estava de joelhos, o guarda à esquerda agarrou-o pelos cabelos, puxando-lhe a
cabeça para trás, e o homem à direita estendeu uma faca com o fio sobre sua garganta.
- Seus gestos são tão patéticos quanto suas palavras - disse o Mahdi, levantando-se. - Estamos a caminho de construir um reino aqui e não há nada que o Ocidente paralisado possa fazer. Lançamos povo contra
povo, com forças que não podem controlar; dividimos completamente e conquistamos tudo, sem disparar um único tiro. E você, Evan Kendrick, prestou-nos um grande serviço. Temos fotografias suas no aeroporto,
quando chegou de Oman; também de suas armas, seus documentos falsos e seu cinturão de dinheiro, o último contendo provavelmente centenas de milhares de dólares. Temos provas documentadas de que você, um
deputado americano, usando o nome de Amal Bahrudi, conseguiu entrar na embaixada em Mascate, onde matou um líder ponderado e eloquente chamado Nassir e depois um jovem guerreiro da liberdade chamado Azra...
tudo isso durante os dias da preciosa trégua com que todos concordaram. Você é um agente do seu brutal governo. Como poderia ser de outra forma? Uma onda de repulsa se espalhará por todas as pretensas
democracias... O desajeitado e belicoso gigante tornou a fazer das suas, sem qualquer consideração pelas vidas dos seus.
- Você...
Evan levantou-se num pulo, segurando o pulso que empunhava a faca, desvencilhando a cabeça da mão que lhe agarrava os cabelos. Foi golpeado na nuca e esmurrado até cair de novo no chão.
- As execuções foram antecipadas - continuou o Mahdi. - Recomeçarão amanhã de manhã... provocadas por suas insidiosas atividades, que serão reveladas ao público. Caos e derramamento de sangue se seguirão,
por causa dos precipitados e desprezíveis americanos, até que seja encontrada uma solução, a nossa solução... a minha solução. Mas nada disso o envolverá, deputado. Você terá desaparecido da face da terra,
graças sem dúvida ao seu governo profundamente embaraçado, que não se esquiva em punir o fracasso evidente, ao mesmo tempo que apresenta veementes negativas. Não haverá corpus delicti, nenhuma indicação
do seu paradeiro. Amanhã, ao raiar do dia, você será levado de avião para o mar, um porco sangrando e esfolado amarrado a seu corpo nu. Vamos largá-lo nos baixios infestados de tubarões de Qatar.

 

 


C    O    N    T    I    N    U    A