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A AGENDA ICARUS / Parte II
15
- Não há nada aqui! - gritou Weingrass, examinando os papéis sobre a mesa, na sala de jantar de uma autoridade bahrainiana que conhecera desde que o Grupo Kendrick construíra um country club numa ilha
do arquipélago, anos antes. - Depois de tudo o que fiz por você, Hassan, todas as pequenas e não tão pequenas comissões que lhe dei, é isto o que me oferece?
- Está chegando mais, Emmanuel - respondeu o nervoso árabe, nervoso porque as palavras de Weingrass eram ouvidas por Ben-Ami e os quatro comandos, sentados a seis ou sete metros, na sala de estar ocidentalizada
nos arredores da cidade.
Um médico fora chamado para suturar e enfaixar Yaakov, que se recusava a deitar e estava sentado numa poltrona. O homem chamado Hassan olhou para ele e comentou, pelo menos tentando mudar do assunto sobre
o seu passado com o velho arquiteto:
- O garoto não parece nada bem, Manny.
- Ele se meteu numa briga, o que mais posso lhe dizer? Alguém tentou roubar seus patins. O que está para chegar, e quando? Estas são as companhias e os produtos ou serviços que vendem. Tenho de ver os
nomes, pessoas!
- É o que está chegando. Não foi fácil convencer o Ministro dos Regulamentos Industriais a deixar sua casa às duas horas da madrugada e ir ao escritório cometer um ato ilegal.
- Industriais e regulamentos são palavras mutuamente exclusivas em Bahrain.
- Os documentos são secretos!
- Um imperativo bahrainiano.
- Isso não é verdade, Manny!
- Ora, cale essa boca e me arrume um uísque.
- Você é mesmo incorrigível, meu velho amigo.
- Eu bem que sei disso.
A voz de código Cinza veio da sala de estar. Ele acabara de voltar do telefone que vinha usando com permissão, mas sem ser questionado, a cada quinze minutos.
- Posso lhes servir alguma coisa, cavalheiros? - perguntou Hassan, atravessando a arcada da sala de jantar.
- O café de cardamomo é suficiente - respondeu Ben-Ami, o mais velho. - E é também delicioso.
- Também tenho bebidas alcoólicas, se desejarem... como certamente já adivinharam pelo que disse o senhor Weingrass. Esta é uma casa religiosa, mas não impomos nossas crenças aos outros.
- Poderia pôr isso no papel, senhor? - disse código Preto, rindo. - Entregarei à minha esposa e direi que é da parte de um mulá. Tenho de atravessar toda a cidade para comer ovos com bacon.
- Obrigado, senhor Hassan, mas nada de álcool - acrescentou Cinza, dando um tapa no joelho de Preto. - Com um pouco de sorte teremos trabalho ainda esta noite.
- Com mais sorte, minhas mãos não serão cortadas - murmurou o árabe, encaminhando-se para a cozinha.
Parou de repente, interrompido pelo ruído de carrilhão da porta da frente. O importante funcionário chegara.
Quarenta e oito minutos depois, com impressos de computador espalhados sobre a mesa de jantar, Weingrass estudou duas páginas, passando de uma para outra.
- Fale-me sobre esta firma, a Zareeba, Limited.
- O nome vem da língua sudanesa - respondeu o alto funcionário de túnica, que se recusara a ser apresentado. - Pode-se traduzi-lo como um acampamento protegido, cercado por rocha ou folhagem.
- O Sudão...?
- É uma nação na África...
- Sei o que é. Khartum.
- É a capital...
- Essa não, pensei que era Buffalo! - interrompeu Weingrass, bruscamente. - Como pode ter tantas subsidiárias?
- É uma companhia holding; seus interesses são amplos. Se uma companhia deseja licenças do governo para múltiplas exportações e importações, elas podem ser concedidas mais depressa pelo guarda-chuva corporativo
de uma sólida organização.
- Mas que porra!
- Como?
- É uma expressão do Bronx para "ora essa!". Quem a dirige?
- Há um conselho de diretores...
- Há sempre um conselho de diretores. Perguntei quem a dirige.
- Ninguém realmente sabe, para ser franco. O principal executivo é um homem bastante jovial... já tomei café com ele... mas não parece ser particularmente agressivo, se entende o que quero dizer.
- Então há mais alguém.
- Não posso afirmar...
- Onde está a relação dos diretores?
- Bem na sua frente. Por baixo da página, à direita.
Weingrass levantou a página e apanhou a que estava por baixo. Pela primeira vez, em duas horas, ele sentou-se, os olhos esquadrinhando a relação de nomes várias vezes.
- Zareeba... Khartum - ele murmurava seguidamente, de vez em quando fechando os olhos com toda força, o rosto vincado se contraindo em repetidas caretas, como se tentasse com desespero recordar alguma
coisa esquecida.
Finalmente pegou um lápis e circulou um nome; empurrou a página para o alto funcionário bahrainiano, ainda de pé e rígido.
- Ele é um preto - informou o homem.
- Quem é preto e quem é branco por aqui?
- Geralmente se distingue pelas feições. Mas é claro que séculos de miscigenação afro-árabe muitas vezes obscurecem o problema.
- Existe um problema?
- Para alguns, não para a maioria.
- De onde ele veio?
- Se é um imigrante, seu país de origem deve estar citado aí.
- Aqui diz "confidencial".
- Isso geralmente indica que a pessoa fugiu de um regime autoritário, fascista ou comunista. Protegemos tais pessoas se contribuem para nossa sociedade. Obviamente, ele contribui.
- Sahibe al Farrahkhaliffe - disse Weingrass, enfatizando cada parte do nome. - Que nacionalidade é essa?
- Não tenho a menor ideia. Parte africana, obviamente; parte árabe, mais obviamente. Há lógica.
- Errado, companheiro! - exclamou Manny, surpreendendo a todos nas duas salas. - É pura fraude americana! Se este é quem eu penso, então não passa de um preto filho da puta de Chicago que foi expulso por
sua própria gente! Ficaram furiosos porque ele desviou o dinheiro da comunidade, cerca de vinte milhões, diga-se de passagem, para vários bancos complacentes neste lado do Atlântico. Há uns dezoito ou
vinte anos ele era um fanático incendiário chamado Al Farrah... a porra do seu ego não lhe permitiria abandonar essa parte do passado, o coro de aleluia. Sabíamos que o filho da puta integrava o conselho
de diretores de uma grande corporação, mas nunca pudemos descobrir qual. Além do mais, estávamos procurando na direção errada. Khartum? Uma ova! South Side de Chicago! Aqui está o seu Mahdi.
- Tem certeza? - perguntou Hassan, parado na arcada. - A acusação é perigosa!
- Tenho certeza - respondeu Weingrass calmamente. - Eu deveria ter fuzilado o sacana naquela tenda em Basrá.
- Não entendi.
O alto funcionário bahrainiano estava visivelmente abalado.
- Esqueça...
- Ninguém deixou o prédio Sahalhuddin esta noite! - comunicou código Cinza, atravessando a arcada.
- Tem certeza?
- Paguei a um motorista de táxi que se mostrou disposto a aceitar uma vultosa quantia, com a promessa de muito mais se fizesse o que eu pedia. Telefono para ele a intervalos de alguns minutos, para um
telefone público. Os dois carros ainda estão lá.
- Pode confiar nele? - indagou Yaakov, da poltrona.
- Tenho seu nome e placa.
- Isso nada representa! - protestou Manny.
- Disse a ele que, se mentisse, eu o encontraria e mataria.
- Retiro a declaração, garoto.
- Quer fazer...
- Fique calado. Que parte do Sahalhuddin essa companhia Zareeba ocupa?
- Os dois últimos andares, se não estou enganado. Os andares inferiores são arrendados por suas subsidiárias. A Zareeba é proprietária do prédio.
- Muito conveniente - comentou Weingrass. - Pode me obter as plantas atualizadas do prédio, inclusive os sistemas de incêndio e segurança? Sei ler essas coisas muito bem.
- A esta hora? - protestou o homem. - São mais de três horas da madrugada! Eu não saberia como...
- Experimente por um milhão de dólares, americanos - interrompeu-o Manny, suavemente. - Enviarei de Paris. Palavra de honra.
- Hem?
- Divida o dinheiro como quiser. É meu filho quem está lá. Arrume as plantas.
A pequena sala estava escura, a única claridade provinha dos raios suaves da lua brilhando através de uma janela no alto da parede - alta demais para alcançar, pois não havia móveis, apenas um catre com
a lona rasgada. Um guarda deixara-o com uma garrafa de seeber-too ahbyahd, um uísque local entorpecente, sugerindo que era melhor ficar num estado de estupor alcoólico para enfrentar o que pretendia. Ele
sentia-se tentado; estava ansioso, corroído pelo medo que o fazia suar, encharcando a sua camisa, molhando os seus cabelos. O que o impedia de desarrolhar a garrafa e esvaziá-la era o remanescente da raiva
- e um último ato que devia desempenhar. Lutaria com toda a violência de que era capaz, na esperança, no fundo da sua mente, de que uma bala pudesse acabar com tudo depressa.
Oh, Deus, como pudera pensar que conseguiria? O que o possuíra para acreditar que tinha condições de fazer o que pessoas mais experientes consideravam um suicídio? Claro que a própria pergunta era a resposta:
ele fora possuído. Os ventos quentes do ódio dominaram-no; não imaginara que poderiam queimá-lo. E não houvera, afinal, um fracasso completo; ia perder a vida, mas isso porque alcançara um relativo sucesso.
Provara a existência do Mahdi! Abrira uma trilha através da densa selva de embuste e manipulação. Outros a seguiriam; havia algum conforto nisso.
Tornou a olhar para a garrafa, para o líquido branco que o deixaria insensível. Inconscientemente, balançou a cabeça para a frente e para trás. O Mahdi dissera que seus gestos eram tão patéticos quanto
suas palavras. Não seriam patéticos no avião a caminho dos baixios de Qatar.
Cada soldado da Brigada Massada aceitara isso desde o início, e cada um deles verificou a fita adesiva no pulso esquerdo para se certificar de que a cápsula de cianureto se encontrava no lugar. Nenhum
levava documentos ou qualquer coisa que pudesse identificá-los; as roupas de "trabalho", até os sapatos e os ordinários botões de conchas das calças, haviam sido compradas por agentes do Mossad em Benghazi,
Líbia, o centro de recrutamento terrorista. Naqueles tempos de agentes químicos injetados, as anfetaminas e escopolaminas, nenhum membro da unidade Massada podia permitir ser capturado vivo quando suas
ações pudessem ser relacionadas, mesmo que remotamente, aos acontecimentos em Oman. Israel não podia ser responsabilizado pelo massacre de 236 reféns americanos e o espectro da interferência israelense
tinha de ser evitado a qualquer custo, mesmo que fosse o suicídio ímpio de cada homem enviado para o Sudoeste Asiático. Cada um deles compreendia isso; cada um estendera o pulso no aeroporto em Hebron
para que o médico prendesse a fita adesiva. Cada um observara quando o médico mostrara como levar rapidamente a mão esquerda à boca, onde os dentes e a bolha redonda e macia se encontravam. Uma rápida
mordida acarretaria a morte.
A Tujjar estava deserta, a rua e os lampiões obscurecidos por bolsões de neblina que flutuavam do golfo Pérsico. O prédio conhecido como Sahalhuddin estava escuro, exceto por várias salas iluminadas no
último andar e, cinco andares abaixo, a claridade difusa dos neons no saguão, além das portas de vidro da entrada, onde um homem entediado sentava-se a uma mesa lendo um jornal. Um pequeno sedã azul e
uma limusine permaneciam estacionados juntos ao meio-fio. Dois guardas particulares, uniformizados, postavam-se na frente das portas, o que significava que provavelmente também havia segurança nos fundos.
Códigos Cinza, Preto e Vermelho voltaram ao táxi desmantelado, duzentos metros a oeste, na esquina da estrada Al Mothanna. No banco de trás, sentado, o ferido Yaakov; na frente, Ben-Ami e Emmanuel Weingrass,
este ainda estudando, sob a claridade do painel, as plantas do prédio. Código Cinza transmitiu a informação através da janela aberta; Yaakov deu as instruções.
- Vocês, Preto e Vermelho, cuidem dos guardas e entrem. Cinza, acompanhe Ben-Ami e corte os fios...
- Espere um instante, escoteiro! - disse Weingrass, virando-se do banco da frente. - Esta relíquia do Mossad sentada ao meu lado não sabe coisa alguma sobre sistemas de alarme, exceto provavelmente como
acioná-los.
- Não é verdade, Manny - protestou Ben-Ami.
- Vai seguir fios pré-codificados com alterações propositais conduzindo a falsos receptáculos armados para pessoas como você? Provocaria um festival pirotécnico aqui embaixo! Eu irei com eles.
- Sr. Weingrass - interveio código Azul, do banco traseiro -, suponhamos que comece a tossir... que tenha um dos seus acessos que todos já observamos com tanta tristeza.
- Isso não vai acontecer - garantiu o arquiteto. - Já disse, é meu filho quem está lá dentro.
- Acredito nele - disse Cinza, da janela. - E sou eu quem pagará, se estiver enganado.
- Está se revelando, garoto.
- Quer fazer o favor...
- Ora, cale essa boca. Vamos embora logo.
Se houvesse um observador desinteressado na Tujjar àquela hora, os minutos seguintes teriam parecido como os movimentos intrincados de um enorme relógio, cada roda dentada encaixando-se na outra, que por
sua vez transmitia o movimento no impulso frenético do mecanismo, sem que nenhum dente das engrenagens saísse da sequência ou fizesse um movimento em falso.
Códigos Vermelho e Preto removeram os guardas particulares da frente do prédio, antes que qualquer dos dois percebesse uma presença hostil a cem metros de distância. Vermelho tirou seu casaco, espremeu-se
na túnica de um dos guardas, abotoou-a, pôs o quepe com pala, puxou-o para baixo e rapidamente correu para as portas de vidro. Bateu de leve, comprimindo a barriga com a mão esquerda e suplicando nas sombras,
com gestos cômicos, que lhe permitissem entrar a fim de aliviar a pressão. Intestinos desregulados são uma calamidade universal; o homem lá dentro riu, largou o jornal e apertou um botão na mesa. A campainha
foi ativada; códigos Vermelho e Preto entraram correndo e o recepcionista noturno ficou inconsciente no chão de mármore antes de compreender o erro que cometera. Código Cinza seguiu-os, arrastando um guarda
inerte pela porta da esquerda, que segurara antes de fechar. Acompanhava-o Emmanuel Weingrass, carregando o casaco descartado de Vermelho. Código Preto correu para buscar o segundo guarda lá fora, enquanto
Weingrass segurava a porta. Todos no saguão, códigos Vermelho e Cinza amarraram e amordaçaram os três seguranças por trás da larga mesa de recepção, enquanto Preto tirava uma seringa comprida do bolso;
removeu a tampa de plástico, verificou o nível do conteúdo e injetou o líquido na base do pescoço de cada árabe inconsciente. Os três comandos puxaram os três corpos imóveis do Sahalhuddin para os recessos
mais distantes do enorme saguão.
- Saia da luz! - sussurrou Vermelho, a ordem dirigida a Weingrass. - Vá para o corredor ao lado dos elevadores!
- O que...?
- Ouvi alguma coisa lá fora!
- Ouviu?
- Duas ou três pessoas, talvez. Depressa!
Silêncio. Além das grossas portas de vidro, dois americanos, obviamente embriagados, cambaleavam pela calçada. As palavras de uma melodia familiar eram mais murmuradas do que cantadas: Às mesas lá no Mory’s,
ao lugar que tanto amo...
- Você ouviu-os mesmo, seu filho da puta? - perguntou Weingrass, impressionado.
- Vá para os fundos - disse Cinza e Preto. - Conhece o caminho?
- Li as plantas... claro que conheço. Esperarei pelo sinal e apagarei até o último. Meu elixir mágico ainda está pela metade.
Código Preto desapareceu no corredor sul, enquanto Cinza atravessava correndo o saguão do Sahalhuddin; Weingrass estava agora à sua frente, encaminhando-se para a porta de aço que levava ao porão do prédio.
- Merda! - exclamou Manny. - Está trancada!
- Era de esperar - murmurou Cinza, tirando do bolso uma caixinha preta e abrindo-a. - Não chega a ser um problema.
O comando removeu uma bolinha de massa da caixa e inseriu um estopim de dois centímetros.
- Recue, por favor. Não vai explodir, mas o calor é intenso.
Weingrass ficou observando, admirado, enquanto a geleia se tornava primeiro um vermelho intenso e depois o azul mais azul que já vira.
O aço derreteu antes que pudesse desviar os olhos e o mecanismo da fechadura caísse.
- Você é sensacional, garoto...
- Não me trate assim!
- Está bem.
Encontraram o sistema de segurança; ficava num enorme painel de aço na extremidade norte do complexo subterrâneo do Sahalhuddin.
- É um Guardian sofisticado - anunciou o arquiteto, tirando um alicate do bolso esquerdo. - Há dois receptáculos falsos para cada seis condutos, cada conduto cobrindo de mil e quinhentos a dois mil metros
quadrados de entrada possível, o que provavelmente significa, levando-se em consideração o tamanho da estrutura, não mais do que dezoito fios.
- Dezoito fios - repetiu Cinza, hesitante. - Portanto, seis falsos receptáculos...
- É isso mesmo, garoto... mas esqueça.
- Obrigado.
- Cortamos um deles e teremos uma banda de rock-muchacha tocando na rua.
- Como pode distinguir? Disse que alteraram fios pré-codificados... para amadores como Ben-Ami. Como você pode distingui-los?
- Cortesia dos eletricistas, meu amigo. Os idiotas que trabalham nestas coisas detestam ler plantas e procuram facilitar seu trabalho e o dos outros que devem cuidar da manutenção do sistema. Fazem uma
marca em cada fio falso, geralmente com um alicate pequeno, no alto, perto do terminal principal. Assim, quando têm de fazer a manutenção, eles podem dizer que passaram uma hora procurando os falsos, porque
as plantas não estavam muito claras... e nunca estão mesmo.
- E se estiver enganado, senhor Weingrass? E se trabalhou aqui um eletricista honesto?
- Impossível - respondeu Manny, tirando do bolso uma pequena lanterna e um buril. - São raros. Abra o painel; temos cerca de oitenta a noventa segundos para cortar os doze condutos. Pode imaginar? Aquele
filho da puta ordinário do Hassan disse que as baterias por aqui são muito fracas. Vamos logo!
- Posso usar plastique - sugeriu código Cinza.
- E com o calor acionar todos os alarmes daqui, inclusive o sistema de sprinkler? Meshuga![5] Vou mandá-lo de volta ao shul!
- Está me deixando muito aborrecido, senhor...
- Cale essa boca. Faça o seu trabalho e lhe conseguirei uma medalha.
O arquiteto entregou a código Cinza o buril que pegara com Hassan, sabendo que seria necessário pelas plantas do sistema de segurança do Sahalhuddin.
- Trabalhe depressa; estas coisas são muito sensíveis.
O comando enfiou o buril por baixo da tranca do painel e empurrou para a frente, com a força de três homens normais, conseguindo logo abri-lo.
- Dê-me a lanterna! - disse o israelense. - Eu a seguro enquanto você procura os fios!
Um a um, Emmanuel Weingrass foi examinando os fios coloridos, deslocando-os da direita para a esquerda. Oito, nove, dez... onze.
- Onde está o doze? - gritou Manny. - Já identifiquei todos os fios falsos! Tem que haver mais um! Sem isso o alarme será acionado!
- Aqui! Há uma marca aqui! - exclamou código Cinza, tocando no sétimo fio. - Está ao lado do terceiro conduto falso! Passou por ele sem perceber!
- Consegui!
Subitamente, Weingrass arriou num acesso de tosse; dobrou o corpo para o chão, esforçando-se além de sua resistência para reprimir a tosse.
- Pode tossir, senhor Weingrass - disse Cinza, gentilmente, tocando no ombro do velho. - Alivie-se. Ninguém pode ouvi-lo.
- Eu prometi que não tossiria...
- Há promessas além de nossa capacidade de cumprir, senhor.
- Pare de ser um sacana tão polido!
Manny tossiu até o último espasmo e depois empertigou-se desajeitado, dolorido. O comando, deliberadamente, não ofereceu qualquer ajuda.
- Muito bem, soldado-menino - disse Weingrass, respirando fundo. - O lugar está seguro... do nosso ponto de vista. Vamos descobrir meu filho.
Código Cinza não se mexeu.
- Apesar da sua personalidade menos do que generosa, senhor, eu o respeito. E para a segurança de todos nós, não posso permitir que nos acompanhe.
- Você o quê?
- Ninguém sabe o que vamos encontrar nos andares superiores...
- Pois eu sei, seu filho da puta! Meu filho está lá em cima! Dê-me uma arma, garoto, ou mandarei um telegrama ao ministro da Defesa de Israel dizendo que você possui uma criação de porcos!
Weingrass chutou subitamente as canelas do comando.
- Incorrigível! - murmurou código Cinza, sem afastar as pernas. - Insuportável!
- Vamos logo, bubbelah.[6] Uma arma pequena. Sei que está com uma.
- Por favor, não a use, a menos que eu mande - disse o comando, levantando a perna esquerda da calça e se abaixando para empunhar o pequeno revólver atrás do joelho.
- Já lhe contei que fiz parte da Haganah?
- Da Haganah?
- Isso mesmo. Eu e Menachem tivemos muitas brigas...
- Menachem nunca foi da Haganah...
- Então deve ter sido algum outro camarada careca. Vamos embora!
Nas sombras da entrada do Sahalhuddin, com a Uzi nas mãos, Ben-Ami mantinha contato pelo rádio.
- Mas por que é que ele está com você? - perguntou o agente do Mossad.
- Porque é insuportável! - respondeu a voz irritada de código Cinza.
- Isso não é uma resposta! - insistiu Ben-Ami.
- Não tenho outra. Desligo. Chegamos ao sexto andar. Entrarei em contato com você quando for possível.
- Entendido.
Dois dos comandos flanqueavam a larga porta dupla à direita do patamar; o terceiro se encontrava na outra extremidade, junto da única porta em que havia luz aparecendo por baixo. Emmanuel Weingrass permanecia
relutante na escada de mármore; a ansiedade provocava rumores em seu peito, os quais reprimia com grande esforço.
- Agora! - sussurrou código Cinza.
Os dois homens se lançaram contra a porta, abrindo-a com o impacto dos ombros, jogando-se ao chão no segundo seguinte, enquanto os dois árabes de túnica, um em cada extremidade da sala, se viravam, disparando
as armas de repetição. Não eram adversários para as Uzis; ambos caíram sob duas rajadas das pistolas-metralhadoras israelenses. Um terceiro e um quarto homem começaram a correr, um de túnica branca saído
de trás da enorme escrivaninha de ébano, o outro do lado esquerdo.
- Parem! - gritou código Cinza. - Ou ambos morrerão!
O homem de pele escura metido na túnica de um suntuoso aba, permaneceu imóvel, os olhos raivosos fixados no israelense.
- Tem alguma ideia do que fez? - ele indagou, a voz baixa, ameaçadora. - A segurança neste prédio é a melhor em Bahrain. A polícia estará aqui em poucos minutos. Deponham as armas ou serão mortos.
- Cale-se, vagabundo! - gritou Emmanuel Weingrass, entrando na sala com o esforço dos velhos quando as pernas já não funcionam tão bem quanto antigamente, sobretudo depois de um grande excitamento. - O
sistema não é tão bom assim, não quando se pagou uma ninharia pela instalação.
- Você!
- Quem mais poderia ser? Eu deveria ter acabado com você há alguns anos, em Basrá. Mas sabia que meu menino ia voltar para descobri-lo, seu rebotalho. Era apenas uma questão de tempo. Onde está ele?
- Minha vida pela dele.
- Você não está em condições de barganhar...
- Talvez esteja - interrompeu-o o Mahdi. - Ele se encontra a caminho de um aeroporto, de onde um avião o levará para o mar. Destino... os baixios de Qatar.
- Os tubarões - murmurou Weingrass, com uma fúria fria.
- Isso mesmo. Uma das conveniências da natureza. E agora, vamos negociar? Apenas eu posso detê-los.
O velho arquiteto, o corpo frágil a tremer enquanto respirava fundo, fitou atentamente o alto preto de túnica, a voz tensa ao responder.
- Muito bem, vamos negociar. E por Deus todo-poderoso, é melhor entregá-lo a mim... ou caçarei você por toda parte com um exército de mercenários.
- Sempre foi um judeu um tanto melodramático, não é mesmo? - O Mahdi olhou o relógio. - Há tempo. Como é o costume em tais voos, não pode haver contato de rádio terra-ar, nenhum exame policial posterior
do avião. Eles vão decolar ao nascer do dia. Depois que eu deixar o prédio, farei a ligação; o avião não partirá, mas você e seu pequeno exército irão embora.
- Não pense em qualquer truque, seu tipo ordinário... Faremos um acordo.
- Não! - Código Cinza empunhou sua faca, avançou para o Mahdi, agarrou-o pela túnica e o derrubou em cima da mesa. - Não há barganhas, não há acordos, não há nenhuma negociação. Há apenas a sua vida neste
momento!
Cinza espetou a ponta da lâmina na carne por baixo do olho esquerdo do homem de Chicago. O Mahdi gritou, enquanto o sangue lhe escorria pela face e entrava na boca aberta.
- Faça a ligação agora ou perde este olho, depois o outro! A partir deste momento não terá mais importância onde minha faca espetará, pois você não poderá ver.
O comando inclinou-se, pegou o telefone em cima da mesa e colocou-o ao lado da cabeça sangrando.
- É a sua barganha, miserável! Dê-me o número. Discarei para você... apenas para ter certeza de que é mesmo um aeroporto e não algum quartel. Vamos logo!
- Não... não, não posso!
- A lâmina vai penetrar!
- Não! Pare! Não há nenhum aeroporto! Nenhum avião!
- Mentiroso!
- Não ainda. Mas haverá mais tarde!
- Vai perder o primeiro olho, mentiroso!
- Ele está aqui! Oh, Deus, pare! Ele está aqui!
- Onde? - berrou Manny, correndo para a mesa.
- A ala oeste... há uma escada no corredor, à direita, um pequeno depósito logo abaixo do telhado...
Emmanuel Weingrass não ouviu mais nada. Saiu correndo da sala, gritando com todo o seu fôlego:
- Evan! Evan...!
Estou começando a ter alucinações, pensou Kendrick; uma pessoa do passado, que lhe era muito querida, chamava-o, incutindo coragem. O singular privilégio de um condenado, ele refletiu. Levantou os olhos
do catre para a janela; a lua se afastava, a claridade diminuindo. Não veria outra lua. Muito em breve não haveria outra coisa além de escuridão.
- Evan! Evan!
Era tão parecido com Manny... Ele sempre estava presente quando o jovem amigo precisava. E agora, ao final, estava aqui para lhe proporcionar conforto. Santo Deus, Manny, espero que você saiba de alguma
forma que eu voltei! Que finalmente acatei o que você dizia. Eu o encontrei, Manny! Outros também o encontrarão, tenho certeza! Por favor, sinta um pouco de orgulho de mim...
- Mas que diabo, Kendrick! Onde está você?
Aquela voz não era alucinação! E também não o eram os passos na escada estreita! E outros passos! Santo Deus, acaso já estaria morto?
- Manny...? Manny?
- Aqui! Nesta sala! Arrombe a porta!
A porta da pequena sala foi arrombada como um tumulto ensurdecedor.
- Mas que coisa, menino! - gritou Emmanuel Weingrass, vendo Kendrick levantar-se cambaleando do catre. - Isso é jeito de um respeitável deputado se comportar? Pensei que o tinha ensinado melhor!
Com lágrimas nos olhos, pai e filho se abraçaram.
Estavam todos no living ocidentalizado de Hassan, nos arredores da cidade. Ben-Ami monopolizara o telefone desde que Weingrass encerrara uma prolongada ligação para Mascate e uma animada conversa com o
jovem sultão Ahmat. A cinco ou seis metros de distância, na sala de jantar, em torno da mesa, sentavam-se autoridades representando os governos de Bahrain, Oman, França, Reino Unido, Alemanha Ocidental,
Israel e a Organização de Libertação da Palestina. Conforme o combinado, não havia representante de Washington, mas também nada havia a temer em termos dos interesses clandestinos da América em relação
a um certo deputado. Emmanuel Weingrass estava entre o israelense e o homem da OLP.
Evan se encontrava ao lado do ferido Yaakov, ambos em poltronas, uma cortesia para os dois. Código Azul disse:
- Ouvi suas palavras no Aradous e estive pensando a respeito.
- Bem, isso é tudo o que lhe peço para fazer.
- É difícil, Kendrick. Passamos por muita coisa, não eu, é claro, mas nossos pais e mães, avôs e avós...
- E gerações antes deles - acrescentou Evan. - Ninguém com um mínimo de inteligência ou sensibilidade pode negar isso. Mas, de certa forma, eles também sofreram. Os palestinos não foram responsáveis pelos
pogroms nem pelo Holocausto. Mas porque o mundo livre se encontrava dominado pela culpa, como não poderia deixar de ser, eles se tornaram as novas vítimas, sem saber por quê.
- Sei disso. - Yaakov balançou a cabeça lentamente. - Tenho ouvido os fanáticos na Margem Ocidental e em Gaza. Tenho escutado os Meir Kahanes e eles me assustam...
- Assustam você?
- Claro. Empregam as palavras que eram usadas contra nós há gerações, como você disse... Apesar de tudo, porém, eles matam! Mataram meus dois irmãos e incontáveis outros!
- É preciso parar em algum momento. O desperdício é terrível.
- Preciso pensar.
- Já é um começo.
Os homens ao redor da mesa de jantar levantaram-se abruptamente. Acenaram com a cabeça uns para os outros e, um a um, atravessaram a sala de estar para a porta da frente e saíram para seus carros, sem
reconhecerem a presença de qualquer outra pessoa na casa. O anfitrião, Hassan, passou pela arcada e falou aos últimos hóspedes. A princípio foi difícil ouvir suas palavras, pois Emmanuel Weingrass estava
dobrado num acesso de tosse, na sala de jantar. Evan começou a se levantar. Yaakov, fazendo-lhe um sinal, segurou o braço de Kendrick. Evan compreendeu; acenou com a cabeça e tornou a sentar.
- A embaixada americana em Mascate será desocupada em três horas, os terroristas terão um salvo-conduto até um navio no cais, fornecido por Sahibe al Farrahkhaliffe.
- E o que vai acontecer com ele? - indagou Kendrick, furioso.
- A resposta será dada nesta sala, mas não poderá sair daqui. Fui instruído pela Casa Real a informá-los de que não devem passá-la adiante. Esta condição está compreendida e aceita?
Todos acenaram com a cabeça.
- Sahibe al Farrahkhaliffe, conhecido de vocês como o Mahdi, será executado sem julgamento ou sentença, pois seus crimes contra a humanidade são tão revoltantes que não merecem a dignidade da jurisprudência.
Como dizem os americanos, cuidaremos de tudo "à nossa maneira".
- Posso falar? - perguntou Ben-Ami.
- Claro - respondeu Hassan.
- Foram tomadas as providências necessárias para que eu e meus companheiros sejamos levados de volta a Israel. Como nenhum de nós tem passaporte ou qualquer outro documento, um avião especial foi fornecido
pelo emir. Devemos estar no aeroporto dentro de uma hora. Perdoe-nos por nossa partida abrupta. Vamos embora, cavalheiros.
- Vocês é que devem nos perdoar - disse Hassan, balançando a cabeça. - Por não termos os meios de agradecer-lhes.
- Tem algum uísque? - perguntou código Vermelho.
- Qualquer coisa que desejar.
- Qualquer coisa de que possa dispor. É uma longa e terrível viagem de volta e eu detesto voar. Fico apavorado.
Evan Kendrick e Emmanuel Weingrass sentaram-se lado a lado nas poltronas do living de Hassan. Aguardavam suas instruções de um afobado e aturdido embaixador americano que só tinha permissão para fazer
contato pelo telefone. Era como se os dois velhos amigos nunca se tivessem separado - o muitas vezes aturdido estudante e o mestre clamoroso. Contudo, o estudante era o líder, o que abria caminhos; e o
mestre compreendia.
- Ahmat deve estar no espaço, com tanto alívio - comentou Evan, tomando um gole de conhaque.
- Há algumas coisas que o estão mantendo no solo.
- É mesmo?
- Parece que há um grupo que queria se livrar dele, mandá-lo de volta aos Estados Unidos, porque achavam que ele era muito jovem e inexperiente para controlar as coisas. Ele os chamou de seus arrogantes
príncipes mercadores. Convocou-os ao palácio para acertar os ponteiros.
- Isso é um problema. O que mais?
- Há outro grupo que queria resolver tudo com as próprias mãos, explodir a embaixada se fosse necessário, qualquer coisa para recuperar o controle do seu país. São os obcecados da metralhadora; os mesmos
que foram recrutados por Operações Consulares para tirar você do aeroporto.
- O que Ahmat fará com eles?
- Absolutamente nada, a menos que você queira que seu nome seja anunciado dos minaretes. Se Ahmat os apertar, eles vão proclamar suas ligações com o Departamento de Estado e os malucos do Oriente Médio
terão outra causa.
- Ahmat sabe o que é melhor... deixá-los em paz.
- Há um último problema e ele tem que resolvê-lo para seu próprio bem. Precisa explodir o navio dos terroristas no mar e matar todos aqueles filhos das putas.
- Não, Manny, não é assim que se faz. Nesse caso as mortes apenas continuariam...
- Errado! - gritou Weingrass. - Você está redondamente enganado! É preciso dar exemplos, muitas e muitas vezes, até que todos aprendam o preço que deverão pagar!
O velho arquiteto foi dominado por outro acesso de tosse violento e prolongado, chiando nas mais profundas cavidades do seu peito. O rosto ficou vermelho, as veias no pescoço e na testa se tornaram azuis
e dilatadas. Evan segurou o ombro do amigo para apoiá-lo.
- Conversaremos sobre isso mais tarde - disse ele, enquanto a tosse do velho ia passando. - Quero que volte comigo, Manny.
- Por causa da tosse? - Weingrass sacudiu a cabeça, defensivo. - É apenas um resfriado. Um tempo horrível na França, mais nada.
- Não era nisso que eu estava pensando - mentiu Kendrick, esperando que de maneira convincente. - Preciso de você.
- Para quê?
- Posso me lançar em vários projetos e preciso do seu conselho. - Era outra mentira, mais fraca, por isso ele se apressou em acrescentar: - Ademais, minha casa tem que ser completamente reformada.
- Pensei que tivesse acabado de construí-la.
- Estava envolvido com outras coisas e não lhe prestei muita atenção. O projeto é horrível; não tenho vista para a metade dos panoramas que deveria contemplar, inclusive as montanhas e os lagos.
- Nunca foi muito bom em analisar as plantas de exteriores.
- Preciso de você. Por favor.
- Tenho negócios em Paris. Tenho que enviar o dinheiro. Dei minha palavra.
- Mande o meu.
- Um milhão?
- Dez, se quiser. Estou aqui e não no estômago de algum tubarão... Não vou suplicar, Manny, mas realmente preciso de você, por favor.
- Talvez por uma ou duas semanas - murmurou o velho, irascível. - Também precisam de mim em Paris. Você sabe disso.
- Se não, a merda vai cair por toda a cidade, sei disso - murmurou Evan, aliviado.
- Como?
Felizmente o telefone tocou nesse instante, evitando que Kendrick fosse obrigado a repetir o comentário. Eram as instruções para os dois.
- Sou o homem que você jamais encontrou, com quem nunca falou - disse Evan pelo telefone público na Base Aérea Andrews, na Virginia. - Estou de partida para as montanhas e as corredeiras, onde passei os
últimos cinco dias. Entendido?
- Entendido - respondeu Frank Swann, vice-diretor de Operações Consulares do Departamento de Estado. - Nem mesmo tentarei agradecer-lhe.
- Não o faça.
- Não poderia. Nem sequer sei seu nome.
Segurança Ultramáxima
Não Há Intercepções
Prossiga
O vulto estava sentado, inclinado sobre as teclas, os olhos irrequietos, a mente alerta, embora o corpo estivesse dominado pela exaustão. Respirava fundo, como se cada respiração mantivesse o cérebro em
funcionamento. Não dormia há quase 48 horas, esperando pelos acontecimentos em Bahrain. Houvera um blecaute, uma suspensão das comunicações... e silêncio. O pequeno círculo de pessoas-que-precisam-saber
no Departamento de Estado e na CIA podem agora respirar fundo, ele refletiu, mas não podiam antes. Antes tinham que prender a respiração coletiva. Bahrain representava o irreversível, o momento final,
a conclusão inequívoca. O que já não acontecia mais. Estava acabado, o alvo em pleno ar. Ele vencera. O vulto começou a bater no teclado.
Nosso homem conseguiu. Meus instrumentos estão extasiados; embora tenham se recusado a dar qualquer certeza, indicaram que ele podia ter sucesso. À sua maneira inanimada, eles perceberam a minha visão.
O alvo chegou aqui esta manhã, sob sigilo absoluto, pensando que tudo acabou, que sua vida voltará à sua anormal normalidade, mas ele está enganado. Tudo está no lugar, o registro escrito. Os meios devem
ser encontrados e serão encontrados. O raio vai cair e ele será o raio que muda uma nação. Para ele, é apenas o começo.
Livro Dois
Segurança Ultramáxima
Não Há Intercepções
Prossiga
Os meios foram encontrados! Como nas antigas escrituras védicas, um deus do fogo chegou, como um mensageiro para o povo. Ele se fez conhecido para mim e eu para ele. O arquivo de Oman está agora completo.
Tudo! E eu obtive tudo através de acesso e penetração e entreguei tudo a ele. É um homem extraordinário, como eu realisticamente creio que também sou, e possui uma dedicação que se compara à minha.
Com o arquivo completo e registrado em sua totalidade, este diário está concluído. Outro está prestes a começar.
16
Um ano depois
Domingo, 20 de agosto, 8:30 da noite
Uma a uma, como coches silenciosos e elegantes, as cinco limusines depositaram seus proprietários diante dos degraus de mármore que levavam à entrada em colunas da propriedade à margem da baía de Chesapeake.
As chegadas eram espaçadas de maneira irregular, a fim de que nenhum senso de urgência fosse transmitido aos espectadores subitamente curiosos, na estrada ou através das árvores, na rica comunidade de
Eastern Shore, Maryland. Era apenas outra discreta reunião social dos imensamente ricos, um acontecimento comum naquele enclave de agentes do poder financeiro. Um próspero banqueiro local podia olhar por
sua janela, ver as reluzentes limusines passarem, e desejar o privilégio de ouvir a conversa dos homens enquanto tomavam conhaque ou jogavam bilhar, mas suas ponderações não iriam além desse ponto.
Os imensamente ricos eram generosos com seu ambiente suburbano, e os habitantes locais se tornavam ainda mais ricos pela presença deles. Migalhas de suas mesas proporcionavam gratificações frequentes:
havia exércitos de criadagem doméstica e de jardineiros, cujos parentes engrossavam a folha de pagamento sem qualquer protesto dos proprietários, desde que as propriedades estivessem em perfeita ordem
no seu retorno de Londres, Paris ou Gstaad. E para aqueles que se encontravam em posições superiores na escala das profissões, havia o aviso ocasional sobre um bom investimento no mercado financeiro durante
um drinque amigável na taverna comercialmente exótica no centro da pequena cidade. Os banqueiros, comerciantes e os residentes perpetuamente respeitosos gostavam de seus aristocratas; e resguardavam a
privacidade daqueles homens e mulheres especiais com uma suave firmeza. E se proteger essa privacidade significava distorcer algumas leis de vez em quando, era um pequeno preço a pagar, até mesmo num sentido
moral, quando se considerava como os vendilhões de intrigas e as publicações de escândalos projetavam tudo além de suas reais proporções, a fim de vender jornais e revistas. O homem comum podia tomar um
pileque clamoroso ou travar uma briga sangrenta com a mulher ou o vizinho, talvez mesmo sofrer um acidente de automóvel, sem que ninguém tirasse fotografias grotescas dele para espalhá-las pelos tabloides
sensacionalistas. Por que os ricos eram escolhidos para proporcionar leitura escandalosa a pessoas que não tinham um pingo do seu talento? Os ricos eram mesmo diferentes. Proporcionavam empregos, contribuíam
generosamente para as campanhas de caridade, e muitas vezes tornavam a vida um pouco mais fácil para aqueles com quem mantinham contato; então, por que deveriam ser perseguidos?
Essa era a lógica dos moradores locais. Não exigia muito esforço a polícia local manter os registros um pouco mais limpos do que deveriam ser; isso permitia relações harmoniosas. Também possibilitava diversos
segredos bem guardados naquele torrão privilegiado em que se situava a propriedade na Baía de Chesapeake.
Contudo o sigilo é relativo. O segredo de um homem é a piada de outro; um certo arquivo do governo marcado "confidencial" já apareceu com bastante frequência na imprensa; e os apetites sexuais de um membro
destacado do gabinete só é sigiloso, basicamente, em termos da descoberta pela esposa, o inverso também acontecendo. "Que eu caia morto se contar" é uma promessa feita por crianças de todas as idades que
não conseguem manter sua palavra, mas quando a morte extraordinária está em jogo, o círculo de sigilo deve ser impenetrável. Era o que ocorria naquela noite, quando as cinco limusines passaram pela aldeia
de Cynwid Hollow, a caminho da baía de Chesapeake.
No interior da enorme casa, na ala mais próxima da água, a biblioteca de teto alto era pomposamente masculina. Couro e madeira envernizada predominavam, enquanto enormes janelas davam para um requintado
jardim iluminado por refletores; estantes de mais de dois metros de altura formavam um imponente muro de erudição, onde quer que o espaço permitisse. Poltronas macias em couro marrom, com abajures ao lado,
flanqueavam as janelas; uma larga escrivaninha de cerejeira se encontrava no canto direito da sala, tendo por trás uma cadeira giratória de encosto alto, estofada em couro. Completando os aspectos típicos
da sala, havia uma enorme mesa redonda no centro, um ponto de encontro para reuniões realizadas com mais segurança no campo.
Com todos esses detalhes e tal ambiente, no entanto, terminavam as aparências comuns, e o insólito, se não mesmo estranho, tornava-se então patente. Na superfície da mesa, diante de cada lugar, havia um
abajur de latão, o foco de luz dirigido para um bloco de papel amarelo que fazia parte do cenário. Era como se os pequenos e fortes círculos de luz tornassem mais fácil às pessoas à mesa concentrar sua
atenção nas anotações que faziam, sem a distração de rostos plenamente iluminados - e de olhos - dos que se encontravam ao lado ou na frente. Pois não havia outras luzes na sala; gente entrava e saía das
sombras, expressões discerníveis, mas não para um exame meticuloso. Na extremidade oeste da biblioteca, preso na sanca existente no alto da parede, havia um tubo preto, comprido, que podia ser acionado
eletricamente para projetar uma tela prateada, a qual descia até a metade do percurso para o chão de parquete, como acontecia agora. Servia a outro equipamento insólito, principalmente por causa da sua
permanência.
Embutido na parede de leste além e acima da mesa, projetado eletronicamente para a frente como acontecia agora, havia um painel de componentes audiovisuais que incluía projetores para televisão instantânea
e teipes, filmes, slides fotográficos e gravações de vozes. Através da tecnologia de um disco de periscópio no teto, com controle remoto, a sofisticada unidade era capaz de captar transmissões de satélite
e de ondas curtas de qualquer parte do mundo. Naquele momento, uma luzinha vermelha brilhava no lado do painel; um carrossel de slides fora inserido e estava pronto para operar.
Todos esses equipamentos eram certamente incomuns numa tal biblioteca, mesmo sendo dos muito ricos, pois sua inclusão irradiava outro ambiente - a de uma sala de estratégia longe da Casa Branca ou do Pentágono,
longe das salas impenetráveis da Agência de Segurança Nacional. Apertava-se um botão e o mundo, passado e presente, era apresentado para inspeção, os julgamentos feitos naquele isolado claro-escuro.
Mas no canto direito daquela sala extraordinária havia um curioso anacronismo. Distante, a vários metros da parede forrada de livros, havia um velho fogareiro Franklin, cuja fumaça subia para o teto. A
seu lado estava um balde de metal cheio de carvão. O mais estranho era o fato do fogareiro estar aceso, apesar do zumbido suave do ar-condicionado central, indispensável na noite quente e úmida na baía
de Chesapeake.
Aquele fogareiro, no entanto, era necessário à reunião que estava prestes a ocorrer numa praia de Cynwid Hollow. Tudo que ali se escrevesse deveria ser queimado, inclusive os blocos, pois nada que aquelas
pessoas dissessem poderia sair para o mundo exterior. Era uma tradição nascida da contingência internacional. Governos podiam cair, economias subirem ou baixarem a partir de suas palavras; guerras podiam
ser precipitadas ou evitadas por suas decisões. Eram os herdeiros da mais poderosa organização silente do mundo livre.
Eles eram cinco.
E eram humanos.
- O presidente será reeleito por uma maioria esmagadora em novembro, daqui a dois anos - disse o homem de cabeça branca, com um aquilino rosto aristocrático, à cabeceira da mesa de reunião. - Nem precisamos
de nossas projeções para determinar isso. Ele tem o país na palma da mão e, exceto por erros catastróficos, que seus assessores mais ponderados devem evitar, não há nada que alguém possa fazer contra isso,
nem mesmo nós. Portanto, devemos nos preparar para o inevitável e manter nosso homem no lugar.
- Um termo estranho, "nosso homem" - comentou um tipo magro e calvo, de setenta e poucos anos, com as faces encovadas e olhos grandes e gentis, balançando a cabeça. - Teremos de agir depressa. E, no entanto,
as coisas podem mudar de novo. O presidente é um homem encantador, atraente, desejoso de que todos gostem dele... que o amem, eu imagino.
- Muito superficial - interveio um negro de meia-idade, ombros largos, sem qualquer hostilidade na voz, as roupas impecáveis indicando bom gosto e riqueza. - Pessoalmente não tenho ressentimento contra
ele, pois seus instintos são dignos; é um homem decente, parece um homem de bem. É o que as pessoas veem e provavelmente estão certas. O problema não é ele, mas aqueles vira-latas por trás... tão atrás
que provavelmente ele nem sabe que existem, exceto como contribuintes para a campanha.
- Ele não sabe - garantiu um homem rotundo, de meia-idade, com o rosto de um querubim e os olhos impacientes de um estudioso por baixo da cabeleira ruiva desgrenhada. Seu paletó de tweed com proteções
de couro nos cotovelos indicava que era um acadêmico. - E aposto dez das minhas patentes que ocorrerá algum profundo erro de cálculo antes de terminar seu primeiro mandato.
- Você perderia - disse a quinta pessoa à mesa, uma mulher idosa de cabelos prateados, trajando um elegante vestido de seda preta e usando bem poucas joias. A voz refinada tinha vestígios de inflexão e
cadência do que muitas vezes se descrevia como atlântico médio. - Não porque o subestima, o que de fato acontece, mas porque ele e os que estão por trás vão consolidar o crescente consenso, até que se
torne politicamente invencível. A retórica será acentuada, mas não haverá decisões profundas até a oposição ficar reduzida ao quase silêncio. Em outras palavras, eles estão poupando os canhões para o segundo
mandato.
- Então concorda com Jacob que temos de agir depressa - disse Samuel Winters, o homem de cabelos brancos, acenando com a cabeça para o esquelético Jacob Mandel, à sua direita.
- Claro que concordo, Sam - respondeu Margaret Lowell, alisando casualmente os cabelos e depois se inclinando para a frente, os cotovelos na mesa, as mãos cruzadas. Era um movimento abruptamente masculino
numa mulher extremamente feminina, mas ninguém à mesa percebeu. Seu raciocínio era o ponto focal. - Objetivamente, não tenho certeza se podemos agir depressa. Talvez precisemos considerar um tratamento
mais brusco.
- Não, Peg - interveio Eric Sundstrom, o homem ruivo à esquerda de Lowell. - Tudo deve ser absolutamente normal, condizente com uma administração moderna, que converte desvantagens em benefícios. Este
deve ser o nosso tratamento. A natureza sendo imprevisível, qualquer desvio do princípio da evolução natural irradiaria alarmes insuportáveis. Esse consenso desinformado que você mencionou se concentraria
na causa, estimulado pelos vira-latas de Gid. Teríamos um estado policial.
Gideon Logan acenou com a enorme cabeça preta em concordância, um sorriso lhe contraindo os lábios.
- Invadiriam os acampamentos, liquidariam todas as pessoas de boa aparência, queimariam os rabos dos políticos. - Fez uma pausa, olhando para a mulher no outro lado da mesa. - Não há atalhos, Margaret.
Eric tem razão nesse ponto.
- Eu não estava fazendo melodrama - insistiu Lowell. - Nada de tiros de rifle em Dallas nem garotos perturbados com obsessões. Só me referia ao tempo. Nós temos tempo?
- Se o usarmos corretamente, sim - garantiu Jacob Mandel. - O fator fundamental é o candidato.
- Pois então vamos a ele - interveio o grisalho Samuel Winters. - Como todos sabem, nosso colega senhor Varak concluiu sua pesquisa e está convencido de que encontrou nosso homem. Não vou entediá-los com
suas muitas eliminações, exceto para dizer que, se não houver unanimidade total entre nós, podemos examinar os nomes... um por um. Ele estudou nossas orientações... os atributos que procuramos e os inconvenientes
que queremos evitar; em suma, os talentos que estamos convencidos que existem. Na minha opinião, ele descobriu uma perspectiva brilhante, embora absolutamente inesperada. Não falarei por nosso amigo...
ele cuida disso muito bem por si mesmo... mas seria relapso se não lembrasse que, em nossas numerosas reuniões, ele demonstrou em relação a nós a mesma dedicação que seu tio, Anton Varak, teria dedicado
aos nossos antecessores há quinze anos.
Winters fez uma pausa, os penetrantes olhos cinza fixando cada pessoa em torno da mesa.
- Talvez seja preciso um europeu privado de suas liberdades para nos compreender, compreender os motivos de nossa existência. Somos os herdeiros de Inver Brass, ressuscitado na morte pelos que nos antecederam.
Nós mesmos seríamos escolhidos por aqueles homens, caso seus advogados determinassem que nossas vidas continuavam da maneira como havia projetado. Quando os envelopes lacrados nos foram entregues, cada
um de nós compreendeu. Não havia benefícios adicionais que procurássemos obter da sociedade em que vivemos, nenhuma vantagem ou posição cobiçada além do que já possuímos. Através dos atributos que tínhamos,
ajudados pela sorte, herança ou infortúnio dos outros, alcançáramos uma liberdade concedida a poucos neste mundo terrivelmente conturbado. Mas com essa liberdade vem uma responsabilidade e a aceitamos,
tal como fizeram nossos antecessores de anos atrás. É a responsabilidade de usar nossos recursos para tornar este país melhor e, através do processo, assim esperamos, tornar o mundo melhor.
Winters recostou-se na cadeira de braços, as palmas voltadas para cima, enquanto sacudia a cabeça, a voz especulativa, até mesmo inquisitiva, ao continuar:
- Deus sabe, ninguém nos elegeu, ninguém nos ungiu em nome da graça divina, não houve relâmpagos descendo do céu para revelar qualquer mensagem olímpica, mas fazemos o que fazemos porque está ao nosso
alcance. E o fazemos porque acreditamos em nosso julgamento coletivo imparcial.
- Não seja defensivo, Sam - disse Margaret Lowell gentilmente. - Podemos ser privilegiados, mas também somos multiformes. Não representamos uma cor única do espectro.
- Não sei bem como interpretar esse comentário, Margaret - interveio Gideon Logan, as sobrancelhas arqueadas numa surpresa zombeteira, enquanto os membros de Inver Brass riam.
- Meu caro Gideon - respondeu Lowell -, eu não tinha reparado. Palm Beach nesta época do ano? Você está positivamente queimado de sol.
- Alguém precisava cuidar do seu jardim, madame.
- Se foi você, não tenho a menor dúvida de que estou sem casa.
- É bem possível, madame. Um consórcio de famílias porto-riquenhas arrendou a propriedade; uma comuna, para ser mais exato. - Risos suaves espalharam-se pela mesa. - Desculpe, Samuel, nossa frivolidade
não é condizente com a reunião.
- Ao contrário - protestou Jacob Mandel. - É um sinal de saúde e perspectiva. Se algum dia esquecermos o riso, especialmente de nossas fraquezas, não teremos mais o que fazer aqui... Perdoem-me, os anciãos
nos pogroms europeus ensinaram essa lição. Disseram que era um dos princípios da sobrevivência.
- E estavam certos, é claro - concordou Sundstrom, ainda rindo. - Põe alguma distância, por menor que seja, entre as pessoas e suas dificuldades. Mas podemos passar ao candidato? Estou absolutamente fascinado.
Sam diz que é uma escolha brilhante, mas totalmente inesperada. Eu pensaria de outra forma, tendo em vista... como Peg disse... o fator tempo. Pensaria em alguém no alto, nas asas políticas de um Pégaso,
se me permitem.
- Preciso ler algum dia um dos seus livros - interveio Mandel outra vez, muito suave. - Ele fala como um rabino, mas não consigo entendê-lo.
- Não tente - disse Winters, sorrindo gentilmente para Sundstrom.
- O candidato - repetiu Sundstrom. - Posso presumir que Varak preparou uma apresentação?
- Com seu cuidado habitual para os detalhes - respondeu Winters, deslocando a cabeça para a esquerda e indicando a luz vermelha no painel por trás. - No processo, ele descobriu algumas informações extraordinárias,
relativas a eventos que ocorreram há um ano.
- Oman? - indagou Sundstrom, contraindo os olhos por cima da luz de seu abajur de latão. - Serviços memoriais foram realizados em mais de um dúzia de cidades na semana passada.
- Vamos deixar o senhor Varak explicar - disse o historiador de cabeça branca, enquanto apertava um botão embutido na superfície da mesa.
O som baixo de uma campainha espalhou-se pela sala; segundos depois a porta da biblioteca foi aberta e um louro corpulento, de trinta e tantos anos, surgiu nas sombras. Vestia um terno bege de verão e
uma gravata vermelho-escura; os ombros largos pareciam esticar o tecido do paletó.
- Estamos prontos, Sr. Varak. Entre, por favor.
- Obrigado, senhor.
Milos Varak fechou a porta, barrando a claridade difusa do corredor, e encaminhou-se para o outro lado da sala. Parando na frente da tela prateada, acenou com a cabeça cortesmente, cumprimentando os membros
de Inver Brass. O clarão dos abajures de latão, refletido na mesa envernizada, iluminava seu rosto, destacando os malares salientes e a testa larga por baixo dos cabelos louros e lisos, impecavelmente
penteados. As pálpebras eram vagamente enviesadas, indicando ancestrais eslavos influenciados por tribos da Europa Oriental; os olhos eram serenos, espertos, um tanto frios.
- Posso dizer que é um prazer tomar a vê-los? - ele falou num inglês preciso, em seu sotaque de Praga.
- É um prazer também para mim voltar a vê-lo, Milos - respondeu Jacob Mandel.
Os outros se manifestaram rapidamente:
- Varak - disse Sundstrom, recostando-se na cadeira.
- Parece muito bem, Milos - comentou Gideon Logan, acenando com a cabeça.
- Lembra um jogador de futebol americano. - Margaret Lowell sorriu. - Não deixe que os Redskins o vejam. Eles estão precisando de atacantes.
- Tal jogo é confuso demais para mim, madame.
- Para eles também.
- Já falei a todos do seu progresso... - disse Winters, para depois acrescentar suavemente: - ... do que considera um progresso. Antes de revelar a identidade do homem que está nos submetendo, poderia
fazer uma recapitulação das orientações?
- Pois não, senhor. - Os olhos de Varak erraram pela mesa, enquanto ordenava os pensamentos. - Para começar, o homem deve ser fisicamente sedutor, mas não "bonitinho" ou feminino. Alguém que atenda às
exigências máximas dos fazedores de imagem... Qualquer coisa menos acarretaria muitos obstáculos para o tempo de que dispomos. Portanto, um homem que os homens possam identificar com as virtudes masculinas
desta sociedade e as mulheres considerem atraente. Além disso, ele deve dar a impressão de ser o que vocês chamam de "o seu próprio homem", não alguém comprado por interesses especiais, com antecedentes
que confirmem esse julgamento. Naturalmente, ele não deve ter segredos prejudiciais a esconder. Finalmente, o exterior é um aspecto dos mais vitais da pesquisa. Nosso homem deve possuir as qualidades pessoais
fascinantes que o ajudem a subir para o primeiro plano político através de uma exposição pública acelerada. Uma figura de simpatia e humor suave, real ou projetada, com atos documentados de coragem no
passado, mas nada que seja capaz de ofuscar o presidente.
- O pessoal dele não aceitaria isso - comentou Eric Sundstrom.
- De qualquer forma, senhor, eles não têm opção - respondeu Varak, a voz suave e convincente. - A manipulação ocorrerá em quatro estágios. Dentro de três meses, nosso homem basicamente anônimo se tornará
visível; em seis meses, será relativamente bem conhecido; ao final do ano, terá um quociente de reconhecimento no nível dos líderes do Senado e Câmara, na mesma escala demográfica. Estes podem ser considerados
os estágios de um a três. O quarto estágio, alguns meses antes das convenções, será coroado com o seu aparecimento nas capas de Time e Newsweek, além de editoriais elogiosos nos principais jornais e redes
de televisão. Com o financiamento adequado nas áreas necessárias, tudo isso pode ser garantido. - Varak fez uma pausa. - Isto é, garantido se tivermos o candidato apropriado, e creio que o encontramos.
Os membros de Inver Brass olhavam fixamente para o coordenador tcheco, um pouco admirados, depois se entreolharam com alguma cautela.
- Se o temos, e ele descer da montanha - propôs Margaret Lowell -, casarei com ele.
- Eu também - disse Gideon Logan. - E que se danem os casamentos inter-raciais.
- Perdoem-me - interveio Varak. - Não tive a intenção de romantizar o alvo em perspectiva. - Ele é uma pessoa bastante normal, as qualidades que lhe atribuí são em grande parte o resultado da confiança
nascida de sua riqueza, que ele ganhou pelo trabalho extremamente árduo, assumindo riscos, nos lugares certos, nas horas certas.
- Quem é ele? - perguntou Mandel.
- Posso mostrá-lo? - disse Varak, respeitoso, sem responder, enquanto tirava uma unidade de controle remoto do bolso e se afastava da tela. - É possível que alguns de vocês possam reconhecê-lo, e terei
de retirar meu comentário sobre o seu anonimato.
Um raio de luz projetou-se do painel e o rosto de Evan Kendrick encheu a tela. A fotografia era colorida, acentuando-lhe o bronzeado intenso, assim como a barba despontando e as mechas de cabelos castanho-claros
que lhe caíam pelas orelhas e a nuca. Contraía os olhos para o sol, fitando através da água, a expressão ao mesmo tempo atenta e apreensiva.
- Parece um hippie - comentou Margaret Lowell.
- As circunstâncias podem explicar sua reação - respondeu Varak. - A fotografia é da semana passada, a quarta semana de uma viagem anual que ele efetua pelas corredeiras das Montanhas Rochosas. Viaja sozinho,
sem qualquer companhia, nem mesmo um guia.
O tcheco passou a projetar outros slides, concedendo vários segundos a cada um. As fotografias mostravam Kendrick em várias cenas, enfrentando as corredeiras, em diversas poses balançando perigosamente
em sua embarcação de PVC, passando entre ameaçadoras projeções de rochas pontiagudas, cercado por borrifos d’água e espuma. As florestas das montanhas, ao fundo, serviam para enfatizar a perigosa fragilidade
do homem e seu transporte contra a presença maciça e imprevisível da natureza.
- Espere um instante! - gritou Samuel Winters, observando atentamente pelos óculos de aros de tartaruga. - Não tire essa foto. Nunca me falou sobre isso. Ele está contornando a curva que leva ao acampamento
por baixo de Lava Falls.
- Exatamente, senhor.
- Então ele deve ter passado por cima, pelas corredeiras da Classe Cinco.
- É verdade, senhor.
- Sem um guia?
- Certo.
- Então é louco! Há várias décadas passei por essas corredeiras com dois guias e fiquei apavorado. Por que ele faria isso?
- Vem fazendo isso há anos... desde que voltou aos Estados Unidos.
- Voltou? - indagou Jacob Mandel, inclinando-se para a frente.
- Até cinco anos atrás ele era engenheiro civil e empreiteiro. Trabalhava no leste do Mediterrâneo e no golfo Pérsico. Aquela parte do mundo é tão distante das montanhas e rios quanto se pode imaginar.
Acho que ele simplesmente encontrou um certo alívio na mudança de paisagem. Quando voltava para cá, passava uma semana tratando de negócios e depois partia para noroeste.
- Sozinho, você disse - murmurou Eric Sundstrom.
- Não naquele tempo, senhor. Em geral levava uma companhia feminina.
- Então, obviamente, não é um homossexual - comentou a única mulher de Inver Brass.
- Nunca me passou pela cabeça insinuar que era.
- Também não fez qualquer alusão a uma esposa ou família, o que eu julgaria uma consideração importante. Disse apenas que ele agora viaja sozinho quando, obviamente, tira férias.
- Ele é solteiro, madame.
- Isso poderia ser um problema - disse Sundstrom.
- Não necessariamente, senhor. Temos dois anos para cuidar do caso, e considerando os fatores de probabilidade, o casamento durante um ano eleitoral poderia ter certo apelo.
- Com a presença do presidente mais popular da história, sem dúvida - comentou Gideon Logan, rindo.
- Não está fora das cogitações senhor.
- Por Deus, Milos, você está mesmo cobrindo as bases.
- Um momento, por favor. - Mandel ajustou os óculos de aros de aço. - Disse que ele trabalhou no Mediterrâneo há cinco anos.
- Foi nessa ocasião que vendeu a companhia e deixou o Oriente Médio.
- Por quê?
- Ocorreu um trágico acidente que matou quase todos os seus empregados e suas famílias. A perda afetou-o profundamente.
- Ele foi o responsável?
- Absolutamente. Outra firma foi acusada de usar material de qualidade inferior.
- Ele lucrou com a tragédia de alguma forma? - indagou Mandel, os olhos gentis agora duros.
- Ao contrário, senhor. Verifiquei isso meticulosamente. Ele vendeu a companhia por menos da metade do valor de mercado. Até mesmo os advogados do conglomerado comprador ficaram surpresos. Estavam autorizados
a pagar três vezes mais.
Os olhos de Inver Brass fixaram-se na tela grande e na fotografia de um homem e sua embarcação deslizando por uma curva das corredeiras.
- Quem tirou as fotografias? - perguntou Logan.
- Fui eu, senhor - respondeu Varak. - Acompanhei-o a distância. Ele nunca me viu.
Os slides continuaram e subitamente houve uma brusca mudança. O possível candidato não era mais visto nos trajes resistentes próprios para descer as corredeiras ou de jeans e T-shirts ao final do dia,
cozinhando sozinho numa fogueira. Aparecia agora com a barba feita, os cabelos aparados e penteados, vestindo um terno escuro, subindo por uma rua familiar com uma pasta de executivo na mão.
- É Washington - comentou Eric Sundstrom.
- E agora é a escada que leva à Rotunda - acrescentou Logan, no slide seguinte.
- Ele está no Capitólio - disse Mandel.
- Eu o conheço! - exclamou Sundstrom, os dedos da mão direita comprimindo a têmpora. - Conheço o rosto e há uma história por trás desse rosto, mas não sei qual é.
- Não é a história que estou prestes a contar, senhor.
- Está certo, Milos. - A voz de Margaret Lowell era firme. - Já chega. Quem é ele?
- Seu nome é Kendrick... Evan Kendrick. É o representante do Nono Distrito do Colorado.
- Um deputado? - disse Jacob Mandel, enquanto a fotografia de Kendrick nos degraus do Capitólio permanecia na tela. - Nunca ouvi falar dele, e sempre pensei que conhecia todo mundo lá em cima. Pelo nome,
é claro, não pessoalmente.
- Ele é relativamente novo, senhor, sua eleição não mereceu uma cobertura ampla. Concorreu pelo partido do presidente, porque naquele distrito a oposição praticamente inexiste... e ganhar as primárias
equivale a ser eleito. Menciono isso porque o deputado não parece estar filosoficamente sintonizado com as numerosas políticas da Casa Branca. Evitou as questões nacionais durante a campanha nas primárias.
- Falando francamente - interveio Gideon Logan -, está sugerindo que ele possui a independência de alguém como Lowell Weicker, por exemplo?
- É isso mesmo, senhor, de uma forma mais reservada.
- Reservada e nova, com um eleitorado bem menos ostensivo - disse Sundstrom. - Por esse aspecto, seu anonimato está seguro. Talvez seguro demais. Não há nada mais descartável na política do que um deputado
recém-eleito e ignorado, de um distrito pouco conhecido. Denver é o Primeiro Distrito, Boulder o Segundo, Springs o Quinto. Onde fica o Nono?
- A sudoeste de Telluride, perto da fronteira de Utah - respondeu Jacob Mandel, dando de ombros, como se pedisse desculpas pelo conhecimento. - Há alguns anos estudamos as ações de várias minas na área,
que pareciam bastante promissoras. Mas esse homem na tela não é o deputado que lá encontramos e que tentou, um tanto desesperado, nos convencer a fechar o negócio, subscrever as ações.
- E subscreveram, senhor? - perguntou Varak.
- Não - respondeu Mandel. - Para ser franco, a especulação ia além dos riscos calculados.
- O que se costuma chamar na América de um possível "golpe"?
- Não tínhamos provas, Milos. Apenas recuamos.
- Mas o representante do distrito no Congresso esforçou-se ao máximo para persuadi-lo?
- Isso mesmo.
- É por isso que Evan Kendrick se tornou o novo deputado, senhor.
- Hem?
- Eric - interveio Gideon Logan, virando a cabeça enorme para fitar o acadêmico inventor da tecnologia espacial -, você disse que o conhecia ou pelo menos conhecia seu rosto.
- Exatamente. E agora que Varak nos contou quem ele é, creio que o encontrei num daqueles intermináveis coquetéis em Washington ou Georgetown e lembro nitidamente de alguém ter dito que havia uma história
e tanto por trás dele... Só isso. Nunca me contaram a história; foi apenas um comentário.
- Mas Milos disse que, fosse qual fosse a história do seu conhecimento, não seria a que vai nos contar - lembrou Margaret Lowell. Ela olhou para Varak e acrescentou: - Não é isso mesmo?
- É, sim, madame. O comentário feito ao professor Sundstrom referia-se sem dúvida à natureza da eleição de Kendrick. Ele a comprou literalmente, numa explosão de raiva, sufocando o adversário com uma avalanche
de publicidade local e uma série de comícios dispendiosos que mais pareciam circos públicos do que reuniões políticas. Dizem que o então deputado protestou que as leis eleitorais estavam sendo violadas
e Kendrick enfrentou-o com seus advogados... Não para discutir a campanha, mas sim o desempenho dele no cargo. Os protestos cessaram no mesmo instante e Kendrick ganhou facilmente.
- Pode-se dizer que ele aplica dinheiro para aplacar sua indignação - comentou Winters. - Contudo, sei que possui uma informação muito mais fascinante para nós, Sr. Varak. Como já a ouvi, repetirei o que
disse antes: é extraordinária. Por favor, continue.
- Pois não, senhor.
O tcheco acionou o controle remoto e a fotografia seguinte apareceu na tela. Kendrick e os degraus da Rotunda desapareceram, substituídos pela vista panorâmica de uma multidão histérica correndo por uma
rua estreita, flanqueada por prédios obviamente islâmicos, passando por lojas com cartazes em árabe.
- Oman - murmurou Eric Sundstrom, olhando para Winters. - Há um ano.
O historiador porta-voz assentiu. Os slides sucederam-se rapidamente, descrevendo cenas de caos e carnificina. Havia cadáveres crivados de balas e paredes destruídas por granadas, os portões da embaixada
caídos por terra, e fileiras de reféns apavorados, de joelhos, por trás da tela de treliça de um telhado; havia closes de jovens gritando e brandindo armas, as bocas escancaradas em triunfo, os olhares
desvairados de fanáticos. Abruptamente, a sucessão de slides foi interrompida e os olhos de Inver Brass fixaram-se numa fotografia que parecia ter pouca relevância. Mostrava um homem alto, de pele escura,
vestindo uma comprida túnica branca, a cabeça coberta por um ghotra, o rosto de perfil, saindo de um hotel; depois, a tela foi dividida e apareceu um segundo slide do mesmo homem correndo por um bazar
árabe, na frente de uma fonte. As fotografias permaneceram na tela; o aturdido silêncio foi rompido por Milos Varak, que disse simplesmente:
- Este homem é Evan Kendrick.
O espanto foi total. À exceção de Samuel Winters, os outros inclinaram-se para a frente, além do clarão dos abajures, a fim de estudarem a imagem ampliada na tela. Varak continuou:
- Estas fotografias foram tiradas pelo agente incumbido pela CIA de acompanhar o caso, com um nível de segurança de Quatro-Zero. Sua missão era manter Kendrick sob vigilância, onde quer que fosse possível.
Ela fez um trabalho extraordinário.
- Ela?
Margaret Lowell alteou as sobrancelhas em aprovação.
- Uma especialista em Oriente Médio. O pai é egípcio, a mãe uma americana da California. Fala o árabe com fluência e tem sido bastante usada pela Agência nas situações de crise por lá.
- Por lá? - murmurou Mandel, aturdido - O que é que ele estava fazendo lá?
- Um momento, por favor - interveio Logan, os olhos escuros fixados em Varak. - Interrompa-me se eu estiver enganado, meu jovem, mas se me lembro corretamente, saiu um artigo no Washington Post no ano
passado insinuando que um americano desconhecido intercedera em Mascate naquela ocasião. Diversas pessoas acreditaram que poderia ter sido o texano Ross Perot, mas nunca mais apareceu qualquer outra notícia
a respeito. O caso foi abandonado.
- Não está enganado, senhor. O americano foi Evan Kendrick e a história foi abafada por pressão da Casa Branca.
- Por quê? Ele poderia obter um tremendo benefício político com isso... se de fato sua contribuição levou ao acordo.
- Sua contribuição foi o acordo.
- Então não compreendo mais nada - comentou Logan, calmamente, enquanto olhava para Samuel Winters.
- Ninguém compreende - disse o historiador. - Não há explicação, apenas uma ficha sepultada nos arquivos que Milos conseguiu obter. Além desse documento, não há nada, em parte alguma, indicando uma relação
entre Kendrick e os acontecimentos em Mascate.
- Existe até um memorando do secretário de Estado negando tal ligação - informou Varak. - Não é nada favorável ao deputado. Em suma, sugere que ele não passava de um interesseiro egoísta, um político que
se desejava promover à custa da crise dos reféns, porque trabalhara nos emirados árabes, especialmente em Oman, tentando insinuar-se para obter publicidade. A recomendação era a de não envolvê-lo, para
segurança dos reféns.
- Mas é óbvio que eles o envolveram! - exclamou Sundstrom. - Envolveram e usaram! Ele não poderia chegar lá sem a participação deles; todos os voos comerciais estavam suspensos. Santo Deus, ele deve ter
voado para Mascate secretamente!
- E é igualmente óbvio que ele não era um interesseiro egoísta - acrescentou Margaret Lowell. - Nós o vemos aqui, diante de nossos olhos, e Milos nos diz que sua atuação foi fundamental para a solução
da crise. Apesar disso, ele nunca falou qualquer coisa a respeito de sua participação. Todos nós saberíamos, se ele tivesse falado.
- E não há explicação? - indagou Gideon Logan, dirigindo-se a Varak.
- Nenhuma aceitável, senhor... e estive até na fonte.
- A Casa Branca? - perguntou Mandel.
- Não. O homem que tinha de saber o seu recrutamento, o homem que dirigia o centro de operações aqui em Washington. Seu nome é Frank Swann.
- Como o descobriu?
- Não fui eu que o descobri, senhor. Foi Kendrick.
- Mas como você descobriu Kendrick? - insistiu Margaret Lowell.
- Como o Sr. Logan, eu também me lembrei da história de um americano em Mascate, tão abruptamente abandonada pelos meios de comunicação. Por motivos que não posso realmente explicar, resolvi investigá-la...
provavelmente pensando que poderia envolver alguém num alto cargo, alguém que deveríamos considerar, se houvesse alguma procedência na história.
Varak fez uma pausa, uma insólita insinuação de sorriso lhe contraindo os lábios.
- Com bastante frequência, as medidas de segurança mais óbvias frustram aqueles que desejam permanecer seguros. Neste caso foram os registros de acesso do Departamento de Estado. Desde os assassinatos
de há algum anos, todos os visitantes, sem exceção, devem registrar sua entrada e saída, passando por detectores de metal. Entre os milhares que lá estiveram, por ocasião da crise dos reféns, figurava
o nome insólito de um deputado pelo Colorado em seu primeiro ano na Câmara, à procura de um certo senhor Swann. Nenhum dos dois significava coisa alguma para mim, é claro, mas nossos computadores estavam
melhor informados. O senhor Swann era o maior especialista do Departamento de Estado em Sudoeste Asiático e o deputado era um homem que fizera sua fortuna nos Emirados, Bahrain e Arábia Saudita. No pânico
da crise, alguém esquecera de remover o nome de Kendrick dos registros.
- Então foi procurar esse Swann - disse Mandel, removendo os óculos de aros de aço.
- Isso mesmo, senhor.
- E o que ele contou?
- Declarou que eu estava completamente enganado. Que haviam rejeitado a oferta de ajuda de Kendrick, porque ele nada tinha para contribuir. Acrescentou que Kendrick fora apenas um entre dezenas de pessoas...
pessoas que haviam trabalhado nos emirados árabes... e que apresentaram ofertas similares.
- Mas você não acreditou nele - interveio Margaret Lowell.
- Tinha um bom motivo para não acreditar. O deputado Kendrick não assinou o registro de saída depois de sua visita ao Departamento de Estado naquela tarde. Foi uma quarta-feira, 11 de agosto, e seu nome
não aparece nos registros de saída. É óbvio que ele saiu em condições especiais, o que normalmente significa o início de uma cobertura, quase sempre profunda.
- Operações Consulares - comentou Sundstrom. - O elo secreto do Departamento de Estado com a CIA.
- Um acordo relutante, mas necessário - acrescentou Winters. - Pés são pisados no escuro. É desnecessário dizer que o Sr. Varak prosseguiu em suas investigações, tanto no Departamento de Estado quanto
em Langley.
- O herói de Oman revelado - murmurou Gideon Logan, olhando para o homem na tela. - Por Deus, que gancho!
- Um político cruzado acima de qualquer censura - disse Mandel. - Um inimigo comprovado da corrupção.
- Um homem de coragem - disse a Sra. Lowell -, que arriscou a própria vida por duzentos americanos que não podia conhecer, e não tentou tirar qualquer proveito...
- Quando poderia conseguir qualquer coisa que desejasse - completou Sundstrom. - Pelo menos qualquer coisa na política.
- Conte-nos tudo o que descobriu a respeito de Evan Kendrick, por gentileza, senhor Varak - pediu Winters, enquanto ele e os outros pegavam os blocos de papel amarelo.
- Antes de fazê-lo - respondeu o tcheco com uma ligeira hesitação na voz -, devo dizer que voei para o Colorado na semana passada e encontrei uma situação que não posso explicar muito bem neste momento.
Acho melhor relatá-la logo de uma vez. Um homem idoso está residindo na casa de Kendrick, nos arredores de Mesa Verde. Descobri que seu nome é Emmanuel Weingrass, um arquiteto com dupla cidadania de Israel
e Estados Unidos, que foi submetido a uma complicada cirurgia há alguns meses. Desde então, ele vem convalescendo como hóspede do congressista.
- Qual é o significado disso? - perguntou Eric Sundstrom.
- Não tenho certeza se existe algum, mas três fatos devem ser ressaltados. Primeiro, até onde posso determinar, esse Weingrass surgiu do nada pouco depois que Kendrick voltou de Oman. Segundo, há um relacionamento
obviamente íntimo entre os dois. E terceiro... um tanto desconcertante... a identidade do velho, assim como sua presença em Oman, é mantida como um segredo rigoroso, embora não muito bem guardado. Na verdade,
o próprio Weingrass é o culpado neste caso; se pela idade ou por natureza, é bastante gregário entre os empregados, especialmente os hispânicos.
- Isso não é necessariamente um fator negativo - comentou Logan, sorrindo.
- Ele pode ter participado da operação em Oman - sugeriu Margaret Lowell. - E isso também não é negativo.
- Tem razão - concordou Jacob Mandel.
Sundstrom tornou a falar:
- Ele deve ter considerável influência com Kendrick. Não acha, Milos?
- Presumo que sim. Só falei porque quero que saibam quando eu não sei de alguma coisa.
- Eu diria que ele é uma vantagem - declarou Samuel Winters. - De qualquer ponto de vista. Continue, senhor Varak.
- Pois não, senhor. Sabendo que nada deve sair desta sala, preparei o dossiê do deputado para projeção em slides.
O tcheco pressionou o controle remoto e as duas fotografias de Kendrick disfarçado, nas ruas violentas de Mascate, foram substituídas por uma folha datilografada, as letras grandes, espaço três entre as
linhas. Varak continuou:
- Cada slide representa aproximadamente um quarto de uma folha normal; todos os negativos, é claro, foram destruídos no laboratório lá embaixo. Fiz o melhor que podia para estudar o candidato tão meticulosamente
quanto possível, mas posso ter omitido detalhes específicos que talvez interessem a alguns de vocês. Portanto, não hesitem em me interrogar a respeito. Ficarei observando-os e esperarei que cada um acene
com a cabeça depois que terminar a leitura e tomar as anotações necessárias; saberei então que devo passar para o slide seguinte... Durante a próxima hora, mais ou menos, verão a vida do deputado Evan
Kendrick, desde o nascimento até a semana passada.
A cada slide, Eric Sundstrom era o primeiro a acenar com a cabeça. Margaret Lowell e Jacob Mandel disputavam a honra de ser o último, mas também fizeram quase tantas anotações quanto Gideon Logan. O porta-voz,
Samuel Winters, não fez quase nenhuma; estava convencido.
Três horas e quatro minutos depois Milos Varak desligou o projetor. Passadas duas horas e sete minutos desse momento, as perguntas foram encerradas e Varak deixou a sala.
- Para parafrasear nosso amigo fora do contexto - disse Winters. - Um sinal de cada um de vocês indicará o consentimento. Sacudam a cabeça se a decisão for negativa. Começaremos por Jacob.
Lentamente, pensativos, um a um, os membros de Inver Brass acenaram com a cabeça em concordância.
- Então está decidido - declarou Winters. - O deputado Evan Kendrick será o próximo vice-presidente dos Estados Unidos. Ele se tornará presidente onze meses depois da reeleição do atual dono do cargo.
O codinome é Icarus, a ser considerado como uma advertência, uma oração fervorosa de que ele não tentará, como tantos de seus antecessores, voar perto demais do sol para cair no mar. E que Deus tenha misericórdia
de nossas almas.
17
O deputado Kendrick, do Nono Distrito do Colorado, estava sentado à sua escrivaninha no gabinete, observando a secretária de rosto austero enquanto ela discorria sobre a correspondência prioritária, agendas
da Câmara, análises de situação pré-plenário e funções sociais a que ele devia comparecer, com ou sem aprovação do chefe da assessoria. Os lábios da secretária se abriam e fechavam com a rapidez de um
fogo de metralhadora, os sons nasais emanando não muito mais baixos na contagem de decibéis.
- Pronto, deputado, aqui está a programação para a semana.
- Ótimo, Annie. Mas não poderia enviar uma carta a cada um deles dizendo que tenho uma doença social e não gostaria de contagiá-los?
- Pare com isso, Evan! - exclamou Ann Mulcahy O’Reilly, uma veterana de meia-idade de Washington, bastante determinada. - Está sendo relegado a um segundo plano por aqui e não posso admitir isso! Sabe
o que estão comentando no Capitólio? Dizem que não se importa com nada, que gastou rios de dinheiro só para conhecer mulheres ricas como você.
- Acredita nisso, Annie?
- Como poderia? Nunca vai a lugar nenhum, nunca faz nada. Eu agradeceria aos santos se fosse encontrado nu no Reflecting Pool com a maior sacana de Washington! Saberia então que você estava fazendo alguma
coisa!
- Talvez eu não queira fazer nada.
- Mas deveria! Datilografei suas posições sobre uma dúzia de problemas e são anos-luz melhores do que as de oitenta por cento dos palhaços por aqui, mas ninguém presta a menor atenção.
- Ficam sepultadas porque não são populares, Annie; eu não sou popular. Não me querem de lado nenhum. Os poucos que me notam, em ambos os lados, fixaram-me tantos rótulos que eles se anulam mutuamente.
Nenhum deles pode me classificar e por isso me excluem - o que não é muito difícil, já que não me queixo.
- Deus sabe que eu não concordo com você na maior parte do tempo, mas sei reconhecer uma cabeça em ação quando a encontro... Afinal, deputado, quais são as suas respostas?
- Vamos deixar para depois. Manny ligou?
- Duas vezes. Mas eu queria primeiro ter minha sessão com você.
Kendrick inclinou-se para a frente, os olhos azul-claros muito frios, beirando a ira.
- Nunca mais faça isso, Annie. Não há nada tão importante para mim quanto aquele homem.
- Sim, senhor. - O’Reilly baixou os olhos.
- Desculpe, eu não deveria falar-lhe assim - Evan apressou-se a acrescentar. - Está tentando fazer seu trabalho e eu não ajudo muito. Peço desculpas outra vez.
- Não precisa se desculpar. Sei o que tem passado com o senhor. Weingrass e o que ele significa para você... Quantas vezes não levei o seu trabalho para o hospital? Eu não tinha o direito de interferir.
Por outro lado, estou tentando fazer meu trabalho e não se pode dizer que seja o chefe mais cooperativo no Capitólio.
- Talvez eu preferisse estar em outros lugares...
- Sei disso e acho melhor riscarmos as funções sociais; de qualquer forma, provavelmente seriam mais prejudiciais do que benéficas. - Ann O’Reilly levantou-se e pôs uma pasta de arquivo na mesa de Kendrick.
- Mas também acho que deve dar uma olhada na proposta do seu colega do Colorado no Senado. Pelo que imagino, ele quer cortar o cume de uma montanha e fazer um reservatório. Nesta cidade, isso geralmente
significa um lago seguido por condomínios de alto luxo.
- O filho da puta transparente... - murmurou Evan, abrindo a pasta.
- E também ligarei para o senhor Weingrass.
- Ainda senhor Weingrass? - indagou Evan, virando as páginas. - Não vai abrandar? Já o ouvi dizer a você dezenas de vezes para chamá-lo de Manny.
- De vez em quando eu chamo, mas não é fácil.
- Por quê? Porque ele grita?
- Santa Mãe de Deus, claro que não! Não é possível ofender-se com isso quando se é casada com um detetive irlandês de dois banheiros.
- Dois banheiros?
Kendrick levantou os olhos.
- Uma antiga expressão de Boston. Não, não são os gritos e palavrões.
- O que é então?
- Um dito de humor que ele vive repetindo. Diz sempre para mim, especialmente quando o chamo pelo primeiro nome: "Garota, acho que temos um ato de vaudeville aqui. Vamos chamá-lo de Annie Irlandesa do
Manny. O que me diz?" E eu respondo: "Não existe a menor possibilidade, Manny." Ele insiste: "Deixe meu amigo, o animal, e fuja comigo. Ele compreenderá minha paixão imorredoura." E eu digo a ele que o
tira T.T. não compreende sequer a sua própria paixão.
- Não conte nada a seu marido - sugeriu Kendrick, rindo.
- Já contei. E tudo o que ele disse foi que compraria as passagens de avião. Claro que ele e Weingrass tomaram alguns porres juntos...
- Tomaram porres juntos? Eu nem mesmo sabia que eles se conheciam.
- Culpa minha... para meu arrependimento eterno. Foi quando você voou para Denver, há cerca de oito meses.
- Lembro da ocasião. A conferência estadual, e Manny ainda se encontrava hospitalizado. Pedi a você que fosse visitá-lo, levando o Tribune de Paris.
- E levei Paddy comigo, nas visitas noturnas. Não sou nenhuma beleza, mas mesmo assim não é bom andar sozinha pelas ruas à noite... e o tira tem de servir para alguma coisa.
- O que aconteceu?
- Eles se deram muito bem, como uma dose de uísque e uma cerveja. Tive de trabalhar até tarde numa noite daquela semana e Paddy insistiu em ir ao hospital sozinho.
Evan sacudiu a cabeça lentamente.
- Sinto muito, Annie. Eu nunca soube disso. Não tinha a intenção de envolvê-la e a seu marido na minha vida particular. E Manny nunca me contou.
- Provavelmente as garrafas de Listerine.
- Como?
- São da mesma cor de um scotch claro. Vou fazer a ligação para ele.
Emmanuel Weingrass encostou-se na formação rochosa do topo de uma colina na propriedade de trinta acres de Kendrick, na base das montanhas. A camisa quadriculada de mangas curtas estava desabotoada até
a cintura, enquanto ele tomava sol, respirando o ar puro do sul das Montanhas Rochosas. Olhou para o peito, para as cicatrizes da operação, especulou por um momento se deveria acreditar em Deus ou em Evan
Kendrick. Os médicos declararam - meses depois da cirurgia e de diversos exames pós-operatórios - que tinham conseguido eliminar as pequenas células nojentas que consumiam sua vida. Estava limpo, proclamaram
os médicos, para um homem que, naquele dia, naquela rocha, afirmava ter oitenta anos de idade. O sol incidiu em seu corpo frágil. Frágil e não tão frágil, pois agora se movimentava melhor, falava melhor
- e praticamente não tossia mais. Mas sentia falta dos cigarros Gauloise e dos charutos Monte Cristo, que tanto apreciava. Afinal, o que eles podiam fazer? Encerrar sua vida umas poucas semanas ou meses
antes do final previsto?
Olhou para a enfermeira, à sombra de uma árvore próxima, ao lado do sempre presente carrinho de golfe. Era uma das mulheres que o acompanhavam por toda parte, 24 horas por dia. Manny especulou com ela
reagiria se lhe passasse uma cantada naquele momento. As reações em potencial sempre o haviam intrigado, mas em geral a realidade apenas o divertia.
- Lindo dia, não é mesmo? - ele gritou.
- Deslumbrante - foi a resposta.
- O que acha de tirarmos todas as nossas roupas e desfrutá-lo para valer?
A expressão da enfermeira não se alterou por um instante sequer. A resposta foi calma, firme, até gentil:
- Sr. Weingrass, estou para cuidá-lo, não para provocar uma parada cardíaca.
- Nada mau... nada mau...
O radiotelefone no carrinho de golfe zumbiu; a mulher adiantou-se e atendeu. Depois de uma breve conversa, concluída com uma risada suave, ela virou-se para Manny.
- O deputado quer lhe falar, senhor Weingrass.
- Você não ri assim com um deputado - disse Manny, afastando-se da rocha. - Aposto vinte contra cinco que era Annie Glocamorra dizendo mentiras a meu respeito.
- Ela perguntou se eu já o tinha estrangulado.
A enfermeira entregou o fone a Weingrass.
- Annie, esta mulher é uma devassa!
- Tentamos prestar algum serviço - disse Evan Kendrick.
- Menino, essa sua garota sabe sair do telefone bem depressa.
- Uma pessoa prevenida vale por duas, Manny. Você me ligou. Está tudo bem?
- Só devo ligar numa crise?
- Você raramente liga, ponto final. Esse privilégio é quase que exclusivamente meu. Qual é o problema?
- Ainda lhe resta algum dinheiro?
- Não consigo gastar os juros. Claro. Por quê?
- Lembra daquele acréscimo que fizemos na varanda de oeste, para que você pudesse ter uma vista?
- Claro.
- Estive fazendo alguns desenhos. Acho que deve ter um terraço por cima. Duas vigas de aço sustentariam a carga; talvez uma terceira também, se quiser uma sauna toda de vidro junto da parede.
- Toda de vidro? Parece sensacional. Vá em frente.
- Ótimo. Os encanadores devem estar aqui pela manhã. Mas quando ficar pronto, eu voltarei a Paris.
- Como quiser, Manny. Mas havia me prometido que faria um projeto para um mirante no ponto em que os córregos se encontram.
- Você disse que não queria andar tanto.
- Mudei de ideia. Seria um ótimo lugar para uma pessoa pensar sossegada.
- Isso exclui o proprietário deste estabelecimento.
- Você é todo coração. Estarei aí na próxima semana para passar alguns dias.
- Mal posso esperar. - Weingrass elevou a voz, olhando para a enfermeira. - Quando chegar aqui, poderá me livrar destas maníacas sexuais!
Passava um pouco de dez horas da noite quando Milos Varak desceu pelo corredor deserto do prédio de escritórios da Câmara dos Deputados. Fora admitido por um acerto prévio, um visitante retardatário de
um certo deputado Arvin Partridge, do Alabama. Varak alcançou a pesada porta de madeira com uma placa de latão no painel central e bateu. A porta foi aberta em poucos segundos por um homem magro, de vinte
e poucos anos, os olhos espiando ansiosos de trás das lentes dos óculos de aros de casco de tartaruga. Quem quer que fosse, não era o rude e compenetrado presidente da "Gang" Partridge, o comitê de inquérito
criado para descobrir por que as forças armadas estavam dando tão pouco em troca de tanto. Não em termos de tampas de latrina de mil e duzentos dólares e chaves de grifo de setecentos dólares; tais coisas
eram clamorosas demais para serem levadas a sério e podiam até ser diversões corrigíveis. O que preocupava os "Pássaros" - outro apelido - eram os excedentes de quinhentos por cento e o grau restrito de
propostas competitivas nos contratos de defesa. O que mal haviam começado a descobrir, é claro, já era um rio de corrupção, com tantos tributários que não havia batedores suficientes para explorá-los nas
canoas disponíveis.
- Estou aqui para falar com o deputado Partridge - disse o homem louro, o sotaque tcheco não perdido mas concebivelmente mal interpretado pelo jovem magro na porta.
- Você... - murmurou o aparente assessor do deputado, um tanto contrafeito. - Bem, quando falou com os guardas lá embaixo, você...
- Se quer saber se fui revistado à procura de armas de fogo, claro que fui e deveria saber disso. Quando lhe ligaram, foi da Segurança. O deputado, por favor. Ele está me esperando.
- Pois não, senhor. Venha ao seu gabinete. Por aqui, por favor. - O nervoso assessor levou Milos para uma segunda porta e bateu. - Deputado...
- Mande-o entrar! - ordenou uma voz com sotaque sulista do outro lado. - E fique aí fora e atenda às ligações. Não me importa se for o presidente da Câmara ou o presidente dos Estados Unidos. Eu não estou!
- Entre - disse o assessor, abrindo a porta.
Varak sentiu-se tentado a dizer ao agitado jovem que era um elemento de ligação amigável da KGB, mas decidiu contra. O assessor estaria ali por um motivo; poucos telefonemas eram dados para lá àquela hora.
Milos entrou na sala ampla e ornamentada, com uma profusão de fotografias na escrivaninha, paredes e mesinhas, todas comprovando de um jeito ou de outro a influência, patriotismo e poder de Partridge.
O homem em si, de pé junto à janela com cortina, não era tão impressivo quanto parecia nas fotografias. Era baixo e gordo, um rosto inchado e nervoso, cabeços pintados começando a escassear.
- Não sei o que está vendendo, Louro - disse o congressista, adiantando-se como um pombo enfurecido -, mas se é o que eu penso, vai cair tão depressa que desejará ter trazido um paraquedas.
- Não vim vender nada, senhor, vim apenas oferecer-lhe algo. Algo de valor considerável, para ser mais exato.
- Porra nenhuma! Está querendo alguma espécie de cobertura e eu não vou me prestar a isso!
- Meus clientes não procuram cobertura, muito menos eu. Mas devo dizer, deputado, que você pode precisar.
- Não me venha com esse papo! Escutei o que disse ao telefone... Ouviu alguma coisa, alguém mencionou drogas e achou que era melhor eu dar atenção... Por isso fiz algumas indagações e descobri o que tinha
que saber, o que já sabia que era a verdade! Estamos limpos aqui, absolutamente limpos! E agora quero descobrir quem o mandou. Que ladrão, em que conselho diretor de larápios, achou que podia me assustar
com esse tipo de besteira?
- Não creio que gostaria que esse tipo de "besteira" se tornasse público, senhor. A informação é arrasadora.
- Informação? Palavras! Insinuações! Rumores! Intrigas! Como aquele garoto preto que tentou acusar toda a porra do Congresso com suas mentiras!
- Não são rumores nem intrigas - declarou Milos Varak, enfiando a mão no bolso interno do paletó. - Apenas fotografias.
O tcheco de Inver Brass jogou o envelope branco em cima da mesa.
- O quê!
Partridge pegou o envelope no mesmo instante; sentou-se e abriu-o, tirando as fotografias, uma a uma, segurando-as sobre o abajur na mesa. Os olhos se arregalaram, enquanto o rosto ficava branco e depois
vermelho de fúria. O que tinha diante dos olhos estava além de qualquer coisa que pudesse ter imaginado. Havia vários casais, trios e quartetos de jovens, parcial ou totalmente nus, usando canudos sobre
um pó branco espalhado sobre algumas mesas; instantâneos tirados às pressas de seringas, pílulas, garrafas de cerveja e uísque; finalmente, fotografias mais nítidas de vários casais fazendo amor.
- As câmeras são fabricadas em muitos tamanhos hoje em dia - comentou Varak. - A microtecnologia produziu-as tão pequenas quanto botões de paletó ou de camisa...
- Oh, Deus! - exclamou Partridge em agonia. - Esta é a minha casa em Arlington! E esta é...
- A casa do deputado Bookbinder em Silver Springs, assim como as casas de três outros membros do seu comitê. Seu trabalho o afasta de Washington com frequência.
- Quem tirou estas fotos? - perguntou Partridge, a voz quase inaudível.
- Não vou responder, exceto para dar minha palavra de que a pessoa se encontra a milhares de quilômetros daqui, sem os negativos e sem a possibilidade de voltar a este país. Pode-se dizer que houve um
intercâmbio de estudantes universitários de ciência política.
- Conseguimos tanta coisa, e agora tudo vai se perder... Oh, Deus!
- Por quê, deputado? - indagou Varak com sinceridade. - Esses jovens não são o comitê. Não são seus advogados, contadores ou mesmo assessores principais. São apenas crianças que cometeram erros terríveis
no ambiente sedutor da capital mais poderosa do mundo. Livre-se deles; diga-lhes que suas vidas e carreiras estão arruinadas, a menos que procurem ajuda e se arrependam, mas não interrompa os trabalhos
do seu comitê.
- Ninguém jamais voltará a acreditar em nós - murmurou Partridge, olhando absorto para a frente, como se falasse com a parede. - Somos tão podres quanto aqueles que acusamos. Somos hipócritas.
- Ninguém precisa saber...
- Merda! - explodiu o congressista do Alabama, agarrando o fone e apertando um botão muito além do necessário para que a chamada fosse atendida. - Venha até aqui!
O jovem assessor passou pela porta, enquanto Partridge se levantava de trás da mesa.
- Seu filho da puta! Eu lhe perguntei a verdade! E você mentiu!
- Não menti, não senhor! - berrou o jovem em resposta, os olhos ficando marejados de lágrimas por trás dos óculos de aros de tartaruga. - Perguntou-me o que estava acontecendo, e eu respondi que nada...
nada estava acontecendo! Alguns de nós promoveram uma farra há três ou quatro semanas e acabamos todos apavorados! Muito bem, fomos tolos, estúpidos, concordamos, mas não fizemos mal a ninguém exceto a
nós mesmos! Fizemos isso e muito mais, mas você e seus figurões por aqui nunca notaram. Sua asquerosa assessoria nos obrigava a trabalhar oitenta horas por semana, depois nos chamava de garotos estúpidos
e aproveitava o material que lhes fornecíamos para brilhar diante das câmeras. O que vocês nunca perceberam é que a esta altura têm aqui uma nova turma de jardim de infância. Todos os outros deixaram o
serviço e vocês nem notaram! Sou o único que restou, porque não podia ir embora!
- Bem, agora está fora.
- Pois estou mesmo, Imperador Jones!
- Quem?
- A alusão o deixaria espantado! - berrou o jovem, correndo para fora da sala e batendo a porta.
- Quem é ele? - perguntou Varak.
- Arvin Partridge, Junior - respondeu o deputado sentando-se, os olhos presos à porta. - Está no terceiro ano da faculdade de direito na Virginia. Todos eram estudantes de direito e os fazíamos trabalhar
24 horas por dia em troca de nada e com poucos agradecimentos. Mas também estávamos lhes dando alguma coisa, e traíram a confiança que depositamos neles.
- O que estavam dando?
- Experiência que nunca teriam em qualquer outro lugar, nem nos tribunais nem nos livros de direito, só aqui. Meu filho arruinou elementos legais e gramaticais e sabe disso. Mentiu para mim sobre algo
que pode destruir a todos nós. Nunca mais confiarei nele.
- Sinto muito.
- Não é problema seu! - disse Partridge bruscamente, o tom pensativo desaparecendo. - Muito bem, seu vagabundo, o que quer de mim para permitir que este comitê continue a funcionar? Falou que não quer
encobrir ninguém, mas suponho que há uma dúzia de maneiras de dizer isso sem dizer expressamente nada. Terei de avaliar os prós e os contras, não é mesmo?
- Não há aspectos negativos para o seu lado, senhor. - Varak tirou da pasta diversas folhas de papel dobradas, abriu-as e as pôs na mesa, diante do deputado. Eram um currículo, com uma pequena fotografia
de identificação no canto superior direito da primeira página. - Meus clientes querem este homem no seu comitê...
- Vocês têm alguma intenção a respeito dele! - interveio Partridge.
- Absolutamente nada comprometedor; ele está acima de qualquer censura. Repetindo, meus clientes não procuram cobertura, não haverá extorsões, não queremos bloqueio das investigações do comitê. Este homem
não conhece meus clientes e eles não o conhecem pessoalmente. Além disso, ignora totalmente nossa reunião desta noite.
- Então por que vocês o querem comigo?
- Porque meus clientes estão convencidos de que ele será um excelente acréscimo ao seu comitê.
- Um homem sozinho não pode fazer nada e você sabe disso, não é mesmo?
- Claro.
- Se ele está sendo plantado para obter informações, somos à prova de vazamentos. - Partridge olhou para as fotografias na mesa; virou-as e bateu com a mão por cima. - Ou pelos menos éramos.
Varak inclinou-se e pegou as fotografias.
- Faça o que estou pedindo, deputado. Inclua-o no seu grupo. Ou, como disse, muita coisa estará perdida. Depois que ele ingressar no comitê, as fotos lhe serão devolvidas, junto com os negativos. Atenda
ao nosso pedido.
Os olhos de Partridge fixavam-se nas fotos.
- Por acaso, existe uma vaga. Bookbinder renunciou ontem... por motivos pessoais.
- Sei disso.
O deputado fitou o visitante nos olhos.
- Quem é você?
- Alguém devotado ao seu país de adoção, mas não sou importante. Este homem é.
Partridge baixou os olhos para o currículo na mesa.
- Evan Kendrick, Nono Distrito do Colorado. Mal ouvi falar dele, e o que soube não desperta qualquer emoção. É um ninguém... um ninguém rico.
- Isso vai mudar, senhor - garantiu Varak, encaminhando-se para a porta.
- Deputado! Deputado! - chamou o dirigente da assessoria de Evan Kendrick, deixando o gabinete e correndo pelo corredor para alcançar seu chefe.
- O que foi? - perguntou Evan, retirando a mão do botão do elevador e olhando surpreso, enquanto o ofegante jovem parava derrapando diante dele. - Você não é de elevar a voz acima de um sussurro muito
confidencial, Phil. O Nono do Colorado foi soterrado por um deslizamento de lama?
- É bem possível que tenha sido recuperado de um longo soterramento. Pelo menos do seu ponto de vista.
- Como assim?
- O deputado Partridge! Partridge do Alabama!
- Ele é rude, mas um homem de bem. Assume riscos. Gosto do que ele faz.
- Ele o quer ao seu lado!
- Para fazer o quê?
- Integrar o comitê!
- O quê?
- É um tremendo passo à frente, senhor!
- É um terrível passo atrás - discordou Kendrick. - Os membros do comitê dele estão nos noticiários noturnos quase todas as semanas e são o "recheio" para as manhãs de domingo, quando nossos mais novos
cometas deputados não estão disponíveis. É a última coisa que eu quero.
- Perdoe-me, deputado, mas é a primeira coisa que deve querer - disse o assessor, acalmando-se, os olhos postos nos de Kendrick.
- Por quê?
O jovem chamado Phil pegou Kendrick pelo braço e afastou-o da multidão que se reunia à espera do elevador.
- Disse-me que vai renunciar depois da eleição, e aceito isso. Mas também disse que quer ter autoridade para indicar seu sucessor.
- É a minha intenção. - Evan balançou a cabeça, agora em concordância. - Lutei contra aquela máquina nojenta e não quero que voltem. Eles venderão a última montanha do sul das Rochosas como uma mina de
urânio se puderem conseguir uma concessão do governo... espalhando a notícia, é claro.
- Não terá qualquer autoridade se recusar a oferta de Partridge.
- Por que não?
- Porque ele realmente quer a sua participação.
- Por quê?
- Não tenho certeza, posso apenas garantir que ele não faz nada sem um motivo. Talvez queira estender sua influência para o oeste, instalar ali uma base para o progresso pessoal... quem sabe? Mas ele controla
uma porção de delegações estaduais; se o insultar, dizendo: "Não, obrigado, companheiro", ele vai considerar uma arrogância de sua parte e vai isolá-lo, tanto aqui como no Colorado. Afinal, é uma presença
forte no Capitólio.
Kendrick suspirou, as sobrancelhas franzidas.
- Acho que sempre poderei ficar de boca fechada.
Era a terceira semana depois da designação do deputado Evan Kendrick para o Comitê Partridge, uma indicação totalmente inesperada, que não emocionou ninguém em Washington, a não ser Ann Mulcahy O’Reilly
e, por extensão, seu marido, Patrick Xavier, um tenente da polícia transplantado de Boston, cuja competência era procurada e paga pelas autoridades da capital infestada de crimes. O raciocínio por trás
da atitude do presidente do comitê foi, de um modo geral, de que o veterano profissional queria que os refletores se focalizassem nele, não nos outros membros. Se essa suposição era correta, Partridge
não poderia ter feito uma escolha melhor. O representante do Nono Distrito do Colorado quase nada falara durante as duas semanas de audiências televisionadas além das palavras "Eu passo, senhor presidente"
quando chegava a sua vez de interrogar as testemunhas. Na verdade, a declaração mais longa que fizera, durante sua permanência com os "Pássaros", fora a resposta de 23 segundos à saudação do presidente
do comitê. Manifestara seu espanto por ter sido honrado com a escolha e esperava corresponder à confiança do presidente. As câmeras de televisão abandonaram seu rosto no meio das declarações - exatamente
em doze segundos -, passando a focalizar a chegada de um servente uniformizado, que circulou pela sala esvaziando cinzeiros.
- Senhoras e senhores - dissera a voz do locutor -, mesmo em audiências como esta, o governo não esquece as precauções básicas... Como?... Ah, sim, o deputado Owen Canbrick concluiu sua declaração.
Contudo, na terça-feira da quarta semana ocorreu uma coisa bastante anormal. Era a manhã da primeira audiência televisionada daquela semana e o interesse seria maior do que o habitual porque a testemunha
principal era o representante do Departamento de Compras do Pentágono - um coronel ainda jovem, calvo, que agressivamente conquistara reputação em logística, um soldado de devoção total e convicções inabaláveis.
Era arguto, de mente ágil, abençoado com um espírito mordaz; constituía a grande arma de Arlington para enfrentar os civis avaros e lamurientos. Muitos esperavam, ansiosos, o choque entre o coronel Robert
Barrish e o igualmente inteligente, igualmente arguto e igualmente mordaz líder do Comitê Partridge.
O anormal naquela manhã, no entanto, foi a ausência do deputado Arvin Partridge, do Alabama. O presidente não apareceu e todos os telefonemas do pelotão de assessores, para toda a capital, não conseguiram
descobri-lo. Ele simplesmente desaparecera.
Mas os comitês do Congresso não giram exclusivamente em torno de seus presidentes, sobretudo quando a televisão está presente; assim, a audiência prosseguiu, sob a fraca liderança proporcionada por um
deputado de Dakota do Norte que estava experimentando a maior ressaca da sua vida, um problema dos mais insólitos, já que o homem era conhecido por abstêmio. Era considerado um brando e antialcoólico ministro
do Evangelho, que levava ao pé da letra a exortação bíblica de converter espadas em arados. Também era carne crua para o leão que habitava o coronel Robert Barrish.
- ... e para concluir meu depoimento diante desta inquisição civil, declaro categoricamente que falo por uma sociedade forte e livre, em combate letal contra as forças do mal, que nos retalhariam em pedaços
ao primeiro sinal de fraqueza de nossa parte. Nossas mãos devem ser acorrentadas por insignificantes procedimentos fiduciários acadêmicos, que só têm uma relação distante com o status quo ante dos nossos
inimigos?
- Se bem compreendi - disse o presidente substituto de olhos injetados -, deixe-me garantir que ninguém aqui está questionando o seu empenho na defesa de nossa nação.
- Espero que não, senhor.
- Não creio...
- Espere aí, soldado - interveio Kendrick, no outro lado da bancada.
- Como disse?
- Pode esperar um minuto, por favor?
- Meu posto é de coronel do Exército dos Estados Unidos e espero ser tratado como tal - declarou o oficial, irritado.
Evan fitou atentamente a testemunha, esquecendo o microfone por um momento.
- Eu o tratarei da maneira que quiser, seu arrogante filho da mãe.
Câmeras voltaram-se abruptamente, bipes encheram os áudios por toda parte, mas era tarde demais para a exclusão. E Kendrick continuou, examinando as suas anotações e rindo placidamente.
- ... a menos que tenha emendado pessoalmente a Constituição, que aliás duvido que jamais tenha lido. E não chame isto de inquisição!
- Eu me ressinto da sua atitude...
- E muitos contribuintes também se ressentem da sua - interrompeu-o Evan, inspecionando a folha de serviços de Barrish e recordando as palavras exatas de Frank Swann, há mais de um ano. - Deixe-me fazer
uma pergunta, coronel: alguma vez já disparou uma arma de fogo?
- Sou um soldado!
- Ambos já definimos esse ponto, não é mesmo? Sei que é um soldado; e nós, civis inquisitoriais, estamos pagando seu salário... a menos que tenha alugado o uniforme. - A audiência ondulou com uma risada
discreta. - O que eu lhe perguntei foi se alguma vez já disparou uma arma.
- Incontáveis vezes. E você?
- Várias, não incontáveis, e nunca de uniforme.
- Então acho que a questão está encerrada.
- Não inteiramente. Alguma vez já usou uma arma com o propósito de matar outro ser humano, cuja intenção era matá-lo?
O silêncio subsequente não foi perdido por ninguém. A suave resposta foi registrada por todos.
- Nunca estive em combate, se é isso o que quer saber.
- Mas acabou de dizer que estava em combate letal, et cetera, et cetera, o que transmite a todos aqui e à audiência lá fora que é uma espécie de moderno Davy Crockett resistindo no forte do Alamo, um sargento
York, ou talvez um Indiana Jones combatendo os bandidos. Mas isso está errado, não é mesmo, coronel? É um contador que tenta justificar o roubo de milhões... talvez bilhões... de dinheiro dos contribuintes,
sob a bandeira vermelha, branca e azul do superpatriotismo.
- Seu filho da...! Como ousa...
Os solavancos das câmeras e os bipes de novo chegaram tarde demais, enquanto o coronel Barrish se levantava e esmurrava a mesa.
- A sessão está suspensa! - gritou o exausto presidente do comitê. - Suspensa, senhores!
Na sombria sala de controle da emissora de uma das redes de televisão em Washington um grisalho diretor de jornalismo estava observando o monitor da audiência no Congresso. Como a maioria dos Estados Unidos
já o vira fazer muitas vezes, ele contraiu os lábios, concentrado, e depois virou-se para o assessor a seu lado.
- Quero esse deputado... seja ele quem for... no meu programa do próximo domingo.
A mulher transtornada em Chevy Chase gritou ao telefone:
- Estou lhe dizendo, mãe, nunca o vi desse jeito antes, em toda a minha vida! Falo sério, ele estava inegavelmente embriagado! Graças a Deus, aquele simpático estrangeiro o trouxe para casa! Disse que
o encontrara diante de um restaurante em Washington, mal conseguindo andar... pode imaginar uma coisa dessas? Mal conseguindo andar! Ele o reconheceu e, sendo um bom cristão, achou que era melhor tirá-lo
das ruas. O mais insano, mãe, é que acho que ele não tocou sequer numa gota de álcool. Mas, obviamente, eu estava enganada. Não posso deixar de especular quantos outros segredos meu devotado ministro tem!
Esta manhã ele alegou que não podia se lembrar de coisa alguma... absolutamente nada, ele disse... Oh, Deus! Mãe, ele acaba de passar pela porta da frente... Mamãe, ele está vomitando no tapete!
- Onde estou? - balbuciou Arvin Partridge, Sr., sacudindo a cabeça e tentando focalizar os olhos nas janelas de cortinas puídas do quarto do motel. - Em algum ninho de ratos?
- Não está muito longe da verdade - comentou o louro, aproximando-se da cama. - Só que os roedores que frequentam este lugar geralmente o fazem apenas por uma ou duas horas.
- Você! - berrou o representante do Alabama, olhando aturdido para o tcheco. - O que fez comigo?
- Não com você, mas por você - respondeu Varak. - Felizmente, pude livrá-lo de uma situação potencialmente embaraçosa.
- O quê? - Partridge sentou-se e estendeu as pernas para o chão; embora ainda não se orientasse direito, percebeu que estava inteiramente vestido. - Onde me encontrou? Como?
- Um dos meus clientes jantava no Carriage House, em Georgetown, onde se encontrou com o deputado de Dakota do Norte. Quando o problema começou, ele me ligou. Felizmente, mais uma vez, moro na área e pude
chegar a tempo. E devo acrescentar que, obviamente, não está registrado aqui.
- Ei, espere um pouco! - berrou Partridge. - Que merda é essa? O encontro entre o evangelista e mim foi uma armação! O gabinete dele recebe um aviso de que eu quero um encontro para tratar de um problema
urgente do comitê, meu gabinete recebe o mesmo comunicado do dele. Aquele imbecil do Pentágono, Barrish, vai depor esta manhã e ambos presumimos que é melhor nos encontrarmos. Pergunto a ele o que está
acontecendo e ele me faz a mesma pergunta!
- Não sei de nada a respeito, senhor.
- Uma porra que não sabe!... Qual foi o problema?
- Bebeu demais.
- Essa não! Tomei apenas um martíni e o pai celestial bebeu limonada!
- Se isso é verdade, os dois têm estranhas tolerâncias. O senhor desabou em cima da mesa e o ministro tentou ingerir o sal.
O presidente do Comitê Partridge olhou furioso para o tcheco.
- Você pôs narcóticos em nossos copos!
- Antes da noite passada, eu nunca havia entrado naquele restaurante.
- É também um mentiroso, e dos mais experientes!... Oh, Deus, que horas são?
Partridge levantou o pulso para consultar o relógio; Varak interrompeu-o.
- A audiência já acabou.
- Merda!
- O ministro não foi muito eficaz, mas o novo membro do comitê causou uma impressão indelével, senhor. Tenho certeza de que verá trechos do seu desempenho nos noticiários da noite... com algumas palavras
suprimidas, é claro.
- Oh, Deus! - balbuciou o deputado para si mesmo. Levantou os olhos para o tcheco de Inver Brass. - O que disseram a meu respeito? Sobre minha ausência?
- Seu gabinete divulgou um comunicado perfeitamente aceitável. Estava pescando num barco ao largo da Eastern Shore, em Maryland. O motor enguiçou e teve de lançar âncora a um quilômetro e meio da marina.
Foi confirmado; não há problemas.
- Meu gabinete divulgou esse comunicado? Com autorização de quem?
- De seu filho. É um jovem extraordinário, que sabe perdoar. Está esperando lá fora, no seu carro.
O ruivo vendedor na Saab estava visivelmente espantado, enquanto assinava os papéis e contava as dez notas de cem dólares.
- O carro estará preparado e pronto para ser levado às três horas da tarde.
- Isso é ótimo - disse o comprador, que indicara sua profissão, no contrato de financiamento, como sendo bartender, atualmente trabalhando no Carriage House, em Georgetown.
18
- Zero hora, senhor Kendrick - disse o coronel Barrish, sorrindo jovialmente para a câmera, a voz a essência da razão. - Devemos estar preparados para isso; e com uma escalada preventiva, nós a afastamos
para mais e mais longe.
- Ou, inversamente, superestocamos os arsenais até o ponto em que um erro de cálculo pode explodir o planeta.
- Ora, por favor! - protestou o oficial do exército, condescendente. - Essa linha de racionalização há muito que já foi considerada modus non operandi. Somos profissionais.
- Está se referindo ao nosso lado?
- Claro que estou me referindo ao nosso lado.
- E o que me diz do inimigo? Eles não são também profissionais?
- Se está tentando lateralizar a posição tecnológica de nossos inimigos com a nossa, acho que vai se descobrir tão desinformado a respeito quanto o é sobre a eficácia do controle de custo de nosso sistema.
- Presumo que isso significa que eles não são tão bons quanto nós.
- Uma sagaz avaliação, deputado. Além da superioridade do nosso empenho moral... um empenho por Deus... o treinamento de tecnologia avançada de nossas forças armadas é o melhor do mundo. Se me dá licença,
devo dizer, como parte de uma grande equipe, que estou imensamente orgulhoso de nossos esplêndidos companheiros.
- Puxa vida, eu também estou - disse Evan, com um vago sorriso nos lábios. - Mas se me dá licença, coronel, eu devo dizer que perdi sua linha de raciocínio, ou falou mesmo em escalada preventiva? Pensei
que seu comentário sobre profissionalismo fosse em resposta ao meu comentário sobre a possibilidade de erro de cálculo, com todos aqueles arsenais tão cheios.
- E era mesmo. O que estou tentando lhe explicar com muita paciência, senhor Kendrick, é que nosso pessoal de armamentos cumpre à risca os manuais, e estes eliminam o erro de cálculo. Somos virtualmente
infalíveis.
- É possível - concordou Evan. - Mas o que me diz do outro lado? Disse... acho que disse... que o outro cara não era tão esperto, que não havia lateralização, o que quer que isso signifique. Vamos supor
que ele cometa um erro de cálculo. O que acontece então?
- Ele nunca teria a oportunidade de cometer outro erro de cálculo. Com uma perda mínima para nós, conseguiríamos...
- Espere um momento, soldado! - interrompeu Kendrick, o tom subitamente ríspido, dando nada menos do que uma ordem. - Volte atrás. "Com uma perda mínima para nós"... o que significa isso?
- Tenho certeza de que sabe muito bem que não posso discutir tais assuntos.
- E eu acho que sabe muito bem que não é assim. "Perda mínima" significa apenas Los Angeles ou Nova York, talvez Albuquerque ou St. Louis? Como todos estamos pagando por esse guarda-chuva de perda mínima,
por que não nos conta como será o tempo?
- Se pensa que vou pôr em risco a segurança nacional numa rede de televisão... ora, deputado, lamento sinceramente dizê-lo, mas não creio que tenha qualquer direito de representar o povo americano.
- O povo inteiro? Nunca pensei que o representasse. Fui informado de que este programa era entre você e eu... que o insultei na televisão e que você tinha o direito de responder na mesma área. É por isso
que estou aqui. Portanto, coronel, responda. Não fique me lançando slogans do Pentágono; tenho muito respeito pelas forças armadas para lhe permitir que escape impune com isso.
- Se por "slogans" está criticando os líderes altruístas do nosso sistema de defesa... homens de lealdade e honra, que acima de tudo querem manter nossa nação forte... então só posso lamentá-lo.
- Ora, pare com isso, não estou aqui há muito tempo, mas entre os poucos amigos que já fiz há algumas figuras importantes em Arlington que provavelmente estremecem quando você fala em seus modus non operandis.
O que estou pacientemente tentando lhe explicar, coronel, é que não tem um cheque em branco, assim como eu ou meu vizinho também não temos. Vivemos com realidades...
- Então deixe-me explicar as realidades! - interrompeu-o Barrish.
- Deixe-me acabar - disse Evan, agora sorrindo.
- Senhores, senhores! - interveio o entrevistador.
- Não estou lançando qualquer dúvida sobre o seu empenho, coronel - insistiu Kendrick. - Está fazendo seu trabalho e protegendo sua seara, sei disso. - Evan pegou um papel. - Mas quando falou na audiência...
anotei isso... em "insignificantes procedimentos fiduciários acadêmicos", especulei sobre o que estava querendo dizer. Está realmente acima da contabilidade? Se acredita nisso, deve dizê-lo na rua, ao
homem comum que está tentando equilibrar as contas da família.
- Esse mesmo homem comum se postará de joelhos diante de nós quando lhe ocorrer que estamos garantindo a sua sobrevivência!
- Tenho a impressão de que acabei de ouvir uma porção de gemidos em Arlington, coronel. O homem comum não precisa ficar de joelhos para ninguém. Não aqui.
- Está projetando meus comentários fora do contexto! Sabe muito bem o que eu estava querendo dizer, deputado Partridge!
- Não, coronel, ele é o outro sujeito. Eu sou o sub que foi enviado na guarda esquerda.
- Esquerda é certamente direita!
- Uma declaração muito interessante. Posso citá-lo?
- Sei de tudo a seu respeito - declarou Barrish, ameaçador. - Não me fale sobre o homem comum, fingindo que é igual a todo mundo. - Barrish fez uma pausa e depois, como se não pudesse mais se controlar,
gritou: - Nem mesmo é casado!
- Essa é a declaração mais acurada que já fez aqui. Não, não sou casado, mas se está me pedindo um encontro, é melhor eu consultar primeiro minha garota.
Não podia haver a menor dúvida. O grande canhão do Pentágono disparara um tiro pela culatra, as queimaduras de pólvora por todo o seu rosto, na rede nacional de televisão.
- Quem é ele? - perguntou o Sr. Joseph Smith, de Cedar Street, 70, em Clinton, Nova Jersey.
- Não sei - respondeu a Sra. Smith, diante da televisão, ao lado do marido. - Mas não acha que ele é bastante esperto?
- Não sei se é esperto, mas acabou de dar uma lição num daqueles desprezíveis oficiais que tanto me aporrinhavam no Vietnam. Ele é dos meus.
- Ele é bom - comentou Eric Sundstrom, de Inver Brass, levantando-se e desligando a televisão no seu apartamento de frente para o Gramercy Park, em Nova York. Esvaziou o copo de Montrachet e olhou para
Margaret Lowell e Gideon Logan, sentados em poltronas no outro lado da sala. - Possui uma mente ágil e permanece frio como gelo. Conheço aquele cobra do Barrish; a coisa de que ele mais gosta é arrancar
sangue à luz dos refletores. Kendrick soterrou-o na sua própria merda.
- Nosso homem também é simpático - acrescentou a Sra. Lowell.
- Como?
- Ele é atraente, Eric. Isso não é uma desvantagem.
- Ele é bem-humorado - disse Logan. - E isso é uma vantagem indiscutível. Possui capacidade e presença de espírito para passar rapidamente do sério ao engraçado, o que não é pouco talento. Fez a mesma
coisa durante a audiência; não é acidental. Kennedy possuía o mesmo talento; percebia ironias divertidas por toda parte. As pessoas gostam disso... Contudo, parece-me que vejo uma nuvem cinza ao longe.
- Que nuvem? - indagou Sundstrom.
- Um homem com percepções tão ágeis não será fácil de controlar.
- Se ele é o homem certo - interveio Margaret Lowell -, e temos todos os motivos para acreditar que assim seja, isso não terá importância, Gideon.
- E se ele não for? E se houver alguma coisa que não sabemos? Nós é que o teremos lançado, não o processo político.
Na parte superior de Manhattan, entre as Fifth e Madison Avenues, num prédio antigo de seis andares, Samuel Winters, de cabeça branca, estava sentado em frente a seu amigo Jacob Mandel, no estúdio de Winters,
no último andar. Várias requintadas tapeçarias Gobelin estavam penduradas nos espaços de parede entre as estantes; os móveis eram igualmente espetaculares. A sala era confortável. Era funcional; era aconchegante;
as obras-primas do passado ali se encontravam para contribuir, não apenas para serem contempladas. Usando o controle remoto, o aristocrático historiador desligou o aparelho de televisão.
- E então? - perguntou Winters.
- Quero pensar um momento, Samuel. - Os olhos de Mandel vaguearam pelo estúdio. - Você teve tudo desde que nasceu. Ainda assim, sempre trabalhou duro.
- Escolhi um campo em que ter dinheiro tornava as coisas muito mais fáceis - respondeu Winters. - Ocasionalmente senti-me um tanto culpado por isso. Sempre pude ir para onde queria, obter acesso a arquivos
que outros não podiam alcançar, estudar por tanto tempo quanto quisesse. Minha esposa costumava dizer isso.
O historiador olhou para o retrato de uma mulher atraente, cabelos escuros, no estilo dos anos 40; estava pendurado por trás da escrivaninha, entre as duas imensas janelas que davam para a Seventy-third
Street. Um homem trabalhando ali podia voltar o rosto e contemplá-lo sem a menor dificuldade.
- Sente saudade dela, não é mesmo?
- E muito. Subo aqui para conversar com ela frequentemente.
- Não creio que eu poderia passar sem Hannah; e por mais estranho que pareça, levando em consideração o que ela sofreu na Alemanha, peço a Deus que ela me deixe primeiro. Creio que a morte de outra pessoa
amada seria um sofrimento grande demais para ela suportar sozinha. Isso parece horrível da minha parte?
- Parece excepcionalmente generoso... como tudo o que você diz e fala, velho amigo. E também porque sei muito bem o que você enfrentaria pessoalmente. Mas haveria de se sair melhor do que eu, Jacob.
- Não diga bobagem.
- Talvez por causa do seu templo...
- Quando esteve na igreja pela última vez Samuel?
- Deixe-me ver... Meu filho casou em Paris quando quebrei a perna e não pude comparecer, minha filha fugiu com aquele encantador cabeça de vento que ganha muito mais dinheiro do que merece escrevendo filmes
que não entendo... então deve ter sido em 1945, quando voltei da guerra. São João Divino, é claro. Ela me obrigou a ir, quando tudo o que eu queria era despi-la.
- Está sendo afrontoso! Não acredito em você por um instante sequer!
- Pois está enganado.
- Ele pode ser perigoso - disse Mandel, subitamente mudando de assunto e voltando a Evan Kendrick.
Winters compreendeu; o velho amigo estivera falando, mas também pensando.
- De que forma? Tudo o que descobrimos a seu respeito... e duvido que haja muito mais para saber... parece refutar qualquer obsessão pelo poder. Sem isso, onde está o perigo?
- Ele é rigidamente independente.
- O que é ótimo. Ele pode até dar um grande presidente. Não tem vínculos com oportunistas, aproveitadores e sicofantas. Nós o vimos demolir gente de primeira categoria; o resto é mais fácil.
- Então não estou sendo claro - disse Mandel. - Porque ainda não está claro para mim.
- Ou eu estou sendo estúpido, Jacob. O que está tentando dizer?
- E se ele descobrisse sobre nós? E se ele soubesse que é o codinome Icarus, produto de Inver Brass?
- Isso é impossível.
- Essa não é a questão. Pule sobre a impossibilidade. Intelectualmente... e o jovem possui uma grande inteligência... qual seria a sua reação? Relembre agora que ele é inflexivelmente independente.
Samuel Winters levou a mão ao queixo e olhou pela janela que dava para a rua. Depois seu olhar se deslocou para o retrato da esposa.
- Entendo - murmurou, imagens indefinidas do passado entrando em foco. - Ficaria furioso. E se consideraria parte de uma corrupção maior, irremediavelmente ligado a ela, porque foi manipulado. Teria um
acesso de raiva.
- E nesse acesso de raiva, o que acha que ele faria? - insistiu Mandel. - De passagem, denunciar-nos é irrelevante a longo prazo. Seria como os rumores da Comissão Trilateral promovendo Jimmy Carter porque
Henry Luce pôs um obscuro governador da Georgia na capa de Time. Havia mais verdade do que se pensa naqueles rumores, mas ninguém deu importância... O que faria Kendrick?
Winters olhou para o velho amigo, os olhos se arregalando.
- Santo Deus! Ele fugiria para mostrar sua repulsa!
- Isso lhe parece familiar, Samuel?
- Foi há tantos anos... as coisas eram diferentes...
- Não creio que fossem tão diferentes assim. Muito melhores do que agora, na verdade, não diferentes.
- Eu não estava no cargo.
- Era praticamente seu. O brilhante e imensamente rico reitor da Universidade de Columbia, cujo conselho era procurado por altas autoridades e cujos aparecimentos em comitês da Câmara e do Senado alteraram
políticas nacionais... Você foi escolhido para o governo de Nova York, literalmente carregado para Albany, quando descobriu, poucas semanas antes da convenção, que uma organização política que desconhecia
havia orquestrado sua indicação e inevitável eleição.
- Foi um choque total. Eu nunca tinha ouvido falar da organização ou deles.
- Mas presumiu... certo ou errado... que aquela máquina silenciosa esperava que você cumprisse suas ordens, e por isso fugiu, denunciando toda a trama.
- Em repulsa. Era contrário a todos os preceitos de um processo político aberto que sempre defendi.
- Com uma independência intransigente - acrescentou o corretor. - E o que se seguiu foi um vazio no poder; houve caos político, o partido caiu em confusão. Os oportunistas agiram, assumindo o poder, houve
seis anos de leis draconianas e administrações corruptas de um extremo a outro do Hudson.
- Está me culpando por tudo isso, Jacob?
- Existe uma relação, Samuel. Por três vezes César recusou a coroa e veio o caos.
- Está querendo dizer que Kendrick pode se recusar a assumir o cargo a ele oferecido?
- Foi o que você fez. Afastou-se com indignação.
- Porque pessoas que eu não conhecia estavam investindo quantias enormes para me levar ao cargo. Por quê? Se tinham um interesse genuíno num governo melhor, e não apenas interesse particular, por que não
se apresentaram?
- Por que nós não nos apresentamos, Samuel?
Winters fitou Mandel nos olhos, com uma expressão triste.
- Porque estamos bancando Deus, Jacob. Devemos fazê-lo, pelo que sabemos e os outros não sabem. Sabemos o que acontecerá se não agirmos. Subitamente, o povo de uma grande república não tem um presidente,
mas um rei, o imperador de todos os estados da união. O que eles não compreendem é o que está por trás do rei. Aqueles chacais nos bastidores só podem ser destruídos se o substituirmos. Não há outro jeito.
- Sei disso. Estou cauteloso porque sinto medo.
- Então devemos ser extraordinariamente cuidadosos e ter certeza de que Evan Kendrick nunca tomará conhecimento de nós. É simples.
- Nada é simples - protestou Mandel. - Ele não é um tolo. Vai especular por que todas as atenções se concentram nele de repente. Varak terá de ser um roteirista magistral... cada sequência levando de maneira
lógica e inalterável à seguinte.
- Também tenho pensado nisso - murmurou Winters, mais uma vez olhando para o retrato da falecida esposa. - Jennie costumava me dizer: "É fácil demais, Sam. Todos os outros se empenham ao máximo para conseguir
umas poucas linhas nos jornais e você recebe editoriais inteiros, elogiando-o por coisas que nem mesmo temos certeza de que fez." Foi por isso que comecei a fazer perguntas, para descobrir como acontecera;
não o quê, mas como.
- E então resolveu se afastar.
- Claro.
- Por quê? Na verdade, por quê?
- Acaba de responder a isso, Jacob. Fiquei indignado.
- Apesar de tudo com que poderia contribuir?
- Obviamente.
- É justo, Samuel, dizer que você não foi dominado pela febre de conquistar o cargo?
- Outra vez, obviamente. Quer isso seja admirável ou não, jamais precisei conquistar coisa alguma. Como Averell disse certa ocasião: "Feliz ou infelizmente, não tive de depender do meu atual emprego para
comer." Creio que isso resume tudo.
- A febre, Samuel. A febre que você nunca sentiu, a fome que nunca teve, deve de alguma forma dominar Kendrick. Em última análise, ele precisa querer vencer, desesperadamente precisar vencer.
- O fogo nas entranhas - comentou o historiador. - Todos devíamos ter pensado nisso primeiro, mas nos limitamos a presumir que ele agarraria ansioso a oportunidade. Oh, Deus, como fomos tolos!
- Eu também não havia pensado nisso até que entrei nesta sala, há uma hora. Subitamente, as lembranças afloraram, as lembranças de você e sua... independência intransigente. De uma esperança brilhante,
um trunfo extraordinário, passou a ser um problema moralmente indignado, que se afastou e abriu caminho para todos os corruptos.
- Está acertando no alvo, Jacob... Eu deveria ter continuado, há anos que sei disso. Minha esposa, num acesso de raiva, chamou-me certa ocasião de "garoto mimado". Alegou, como você, eu creio, que eu poderia
ter evitado muita coisa, mesmo que não realizasse mais nada.
- É verdade, Samuel, poderia mesmo. Harry Truman estava certo, são os líderes que moldam a história. Não haveria Estados Unidos sem Thomas Jefferson ou Terceiro Reich sem Adolf Hitler. Mas nenhum homem
ou mulher se torna líder se não quiser. É preciso que tenha uma necessidade fervorosa de chegar lá.
- E acha que o nosso Kendrick carece disso?
- Desconfio que sim. O que vi na televisão agora e o que assisti há cinco dias, durante a audiência do comitê, foi um homem incauto que não se importava absolutamente em pisar em alguns calos, porque estava
moralmente indignado. Inteligência, sim; coragem, sem dúvida; até mesmo espírito e sedução... tudo o que concordamos que devia ser parte do conjunto que procurávamos. Mas também vi alguma coisa do meu
amigo Samuel Winters, um homem capaz de abandonar o sistema porque não tem a febre de partir no encalço do prêmio.
- É tão ruim assim, Jacob? Não em relação a mim... afinal, nunca fui realmente importante... mas é tão saudável para todos os que procuram cargos públicos ter esse fogo?
- Não se entrega o estabelecimento a uma administração de meio expediente, não se é o seu maior investimento. As pessoas esperam, e com razão, um administrador totalmente empenhado, sentem quando a vocação
não está de fato presente, não está agressivamente exposta. Querem todo o valor do seu dinheiro.
- Tem razão - disse Winters, o tom um pouco defensivo. - Creio que as pessoas não ficaram totalmente indiferentes a mim e eu não estava ardendo em febre. Por outro lado, não cometi muitas gafes.
- Por Deus, você nunca teve a oportunidade. Sua campanha foi uma blitz de televisão, com uma das melhores fotografias que já vi, seu rosto bonito como uma vantagem incontestável, é claro.
- Tive três ou quatro debates, deve estar lembrado... Três, para ser mais exato...
- Com imbecis, Samuel. Foram sufocados por sua classe congênita... as pessoas adoram isso. Nunca param de esquadrinhar os céus, agora a televisão, à procura do rei ou príncipe que lhes indicará o caminho
com palavras alentadoras.
- O que é lamentável. Abraham Lincoln seria considerado um caipira desajeitado e ficaria em Illinois.
- Ou pior ainda - disse Jacob Mandel, rindo. - Abraham o Judeu em conluio com os anticristos, sacrificando bebês gentios.
- E quando ele deixou crescer a barba, a confirmação absoluta - concordou Winters, sorrindo e se levantando. - Um drinque?
Ele fez a pergunta já sabendo da resposta do amigo, e se encaminhou para o bar sob uma tapeçaria francesa na parede da direita.
- Obrigado. O de sempre, por favor.
- Claro.
O historiador serviu dois drinques em silêncio, um burbom, um uísque canadense, ambos com gelo. Voltou às poltronas e entregou o burbom a Mandel.
- Muito bem, Jacob. Acho que já visualizei tudo.
- Eu sabia que você poderia servir os drinques e pensar ao mesmo tempo - disse Mandel, sorrindo e levantando o copo. - À sua saúde, senhor.
- L’chaim - respondeu o historiador.
- E então?
- De alguma forma, essa febre de que você fala, essa necessidade de vencer, deve ser incutida em Evan Kendrick. Sem isso, ele não tem credibilidade e sem ele os vira-latas de Gideon... os oportunistas
e fanáticos... assumem o poder.
- Também acho que sim.
Winters tomou um gole do drinque, contemplando uma tapeçaria Gobelin.
- Philip e os cavaleiros em Crécy não foram derrotados apenas pelos arqueiros ingleses e os lanceiros de Gales. Tiveram de enfrentar também o que Saint-Simon descreveu três séculos depois como uma corte
sangrada pelos "vis corruptores burgueses".
- Sua erudição está além do meu alcance, Samuel.
- Como vamos incutir essa febre em Evan Kendrick? É da maior importância que o façamos. Percebo isso claramente agora.
- Acho que devemos começar com Milos Varak.
Annie Mulcahy O’Reilly estava fora de si. As quatro linhas telefônicas normais do gabinete de um deputado eram geralmente usadas para dar e receber telefonemas; aquele deputado em particular não costumava
receber muitas ligações. Hoje, no entanto, não apenas era diferente, mas uma verdadeira loucura. No período de 24 horas, a menor e a mais folgada equipe do Capitólio se tornara a mais frenética. Annie
tivera de chamar suas duas arquivistas, que nunca trabalhavam na segunda-feira ("Ora, Annie, estraga um bom fim de semana"), para trazerem suas cabeças bem penteadas ao gabinete. E depois entrara em contato
com Philip Tobias, o brilhante embora frustrado chefe da assessoria, dizendo-lhe que esquecesse seu jogo de tênis e viesse correndo para o Capitólio, ou o mataria.
(- O que aconteceu?
- Não assistiu ao programa de Foxley ontem?
- Não, estava velejando. Por que deveria assistir?
- Ele esteve no programa!
- O quê? Isso não pode acontecer sem a minha aprovação!
- Devem ter ligado para a casa dele.
- O filho da puta não me disse nada!
- Também não me falou nada, mas vi seu nome na programação que saiu no Post.
- Essa não! Me arranje uma gravação, Annie! Por favor!
- Só se você vier para cá e nos ajudar com os telefonemas, queridinho.
- Merda!
- Sou uma mulher, seu tolo. Não deve falar assim comigo.
- Desculpe, Annie. Sinto muito. Mas, por favor, me arrume o teipe!)
Finalmente, e apenas porque estava desesperada, e apenas porque o marido, Patrick Xavier O’Reilly, tinha folga nas segundas-feiras porque trabalhava no turno de crimes importantes aos sábados, ela ligou
para o detetive irlandês de dois banheiros e disse-lhe que se não viesse ajudá-la apresentaria uma queixa contra ele por estupro... o que era apenas um desejo ansioso, ele acrescentou. A única pessoa que
não conseguiu encontrar foi o deputado do Nono Distrito do Colorado.
- Lamento muito, senhora O’Reilly - disse o marido árabe do casal que cuidava da casa de Kendrick e que Annie desconfiava ser provavelmente um cirurgião desempregado ou um ex-reitor de universidade -,
mas o deputado disse que se ausentaria por alguns dias. Não tenho a menor ideia do seu paradeiro.
- Isso é uma tremenda merda, senhor Saara...
- Lisonjeia-me com as dimensões, madame.
- Também isso! Descubra esse servidor do povo e diga a ele que estamos ficando loucos! E tudo porque ele apareceu no programa de Foxley!
- Foi extraordinariamente eficaz, não é mesmo?
- Você já sabe disso?
- Vi o nome dele no Washington Post, madame. E também nos Times de Nova York e Los Angeles, além do Chicago Tribune.
- Ele recebe todos esses jornais?
- Não, madame, eu recebo. Mas ele pode lê-los sempre que quiser.
- Louvado seja Deus!
O pandemônio na sala externa se tornara insuportável. Annie bateu o telefone e correu para a porta; abriu-a, atônita ao deparar com Evan Kendrick e seu marido Patrick abrindo caminho por uma multidão de
repórteres, assessores do Congresso e várias outras pessoas que ela não conhecia.
- Entrem aqui! - ela gritou.
Dentro da sala da secretária e com a porta fechada, o Sr. O’Reilly disse, esbaforido:
- Sou o Paddy dela. Prazer em conhecê-lo, deputado.
- Você é o meu protetor, companheiro - respondeu Kendrick, trocando um aperto de mão e estudando rapidamente o ruivo grandalhão de ombros largos, com uma barriga dez centímetros maior do que a considerável
altura deveria permitir, um rosto vagamente corado onde se destacava um par de olhos verdes inteligentes e atentos. - Estou contente por termos chegado aqui ao mesmo tempo.
- Com toda sinceridade, senhor, não chegamos. Minha louca mulher me ligou há mais de uma hora e pude estar aqui há uns vinte ou trinta minutos. Vi todo aquele tumulto no corredor e calculei que o senhor
poderia aparecer. Fiquei à sua espera.
- Poderia ter-me avisado, seu irlandês nojento! Estávamos enlouquecendo aqui dentro!
- E ser acusado de algum crime, querida?
- Ele é mesmo um irlandês de dois banheiros, deputado...
- Esperem um instante, vocês dois - ordenou Evan, olhando para a porta. - O que está havendo por aqui? O que aconteceu?
- Foi você quem esteve no programa de Foxley - respondeu a Sra. O’Reilly. - Não fomos nós.
- Faço questão de nunca assistir a esses programas - murmurou Kendrick. - Se assisto, devo saber de alguma coisa.
- E agora uma porção de pessoas sabem da sua existência.
- Foi danado de bom, deputado - acrescentou o detetive. - Alguns caras do departamento me ligaram e pediram para dizer a Annie que lhe agradecesse... e eu falei com Annie.
- Primeiro, ainda não tive a oportunidade de dizer nada ao deputado - explicou a Sra. O’Reilly -, segundo, com toda essa confusão, provavelmente teria esquecido. Mas acho, Evan, que sua única saída é enfrentar
essa gente toda e fazer alguma declaração.
- Espere um pouco - interrompeu Kendrick, olhando para Patrick O’Reilly. - Pelo que o pessoal da polícia haveria de me agradecer?
- Pela maneira como enfrentou e derrotou Barrish.
- Isso eu já podia adivinhar, mas o que representa Barrish para eles?
- Ele é um safado do Pentágono com amigos em altos cargos. E é um pé no saco a gente passar noites sem dormir, de vigia, e depois ser dispensado sem o menor agradecimento.
- Que vigia? Por quê?
- Senhor Kendrick! - interveio Annie. - Há um verdadeiro zoológico la fora! Tem que aparecer, dizer alguma coisa...
- Agora não. Quero ouvir esta história. Continue, senhor... posso chamá-lo de Patrick ou Pat?
- Paddy fica melhor. - O oficial de polícia apalpou a barriga. - É assim que sou chamado.
- Eu sou Evan. Esqueça o "deputado". Quero esquecer isso por completo. Continue, por favor. Como é que Barrish se envolveu com a polícia?
- Eu não disse isso. Pessoalmente, ele é mais limpo do que uma gaita de foles irlandesa, que na verdade pode não ser bonita por dentro, mas é mais pura do que um lençol quarando à luz do meio-dia.
- Os homens na sua linha de trabalho não agradecem às pessoas por andarem de roupa limpa...
- O caso não foi a coisa mais sensacional que já aconteceu. Verdade seja dita, por si mesmo foi pouco importante, mas alguma coisa poderia acontecer se tivéssemos continuado... A turma estava vigiando
um mozarela conhecido por transportar dinheiro através de Miami e pontos a sudeste como as ilhas Caimãs. Na quarta noite da vigia, no Mayflower Hotel, pensaram que tinham o cara na mão. Um desses tipos
de sapatos de verniz apareceu no seu quarto à uma hora da madrugada, levando uma enorme valise. Uma hora da madrugada... não é exatamente o começo ou o fim do expediente comercial, não é mesmo?
- Não exatamente.
- Acontece que o cara tinha investimentos legítimos com o mozarela e os registros do Pentágono mostravam que ele participara de uma reunião de fornecimento de material até quase onze e meia da noite. Além
disso, tinha de pegar um avião para Los Angeles às oito da manhã. Assim, sua presença no hotel do mozarela à uma da madrugada se explicava.
- E a valise?
- Não pudemos tocá-la. Houve muitos protestos em altos postos e muita conversa sobre segurança nacional. Alguém tinha dado um telefonema.
- Mas não para um advogado - disse Evan. - Em vez disso, para um certo coronel Robert Barrish, do Pentágono.
- Bingo! Nossos narizes foram esfregados na terra por questionarmos os motivos de um americano bom e leal que estava ajudando a tornar mais fortes os Estados Unidos da América. E o nosso pessoal se encolheu.
- Mas você pensa que houve mais alguma coisa. Acha que não eram somente legítimos os negócios naquele quarto.
- O que anda como um pato, fala como um pato e parece um pato, geralmente é um pato. Mas não o cara dos sapatos de verniz; não era um pato, era uma fuinha de casaca, cujo nome foi riscado de nossa lista
de patos.
- Obrigado, Paddy... Muito bem, senhora O’Reilly, o que digo lá fora?
- Qualquer que seja a minha sugestão, vai receber os protestos de Phil Tobias, deve saber disso. Ele está vindo para cá.
- Suspendeu a partida de tênis na manhã de segunda-feira? Isso é coragem além do chamado do dever.
- Ele é doce e esperto, Evan, mas não creio que seu conselho possa ajudá-lo neste momento; está sozinho. Lembre-se de que aqueles abutres lá fora estão convencidos de que você ocupou a tribuna durante
toda a semana passada... fazendo uma acumulada, da audiência do comitê ao programa de Foxley. Se tivesse quebrado a cara, ninguém se importaria. Mas não foi o que aconteceu. Enfrentou um peso-pesado e
deixou-o parecendo um vigarista de fala macia, e isso o transforma em notícia. Querem saber para onde você está indo.
- Então, o que sugere? Sabe para onde estou indo, Annie. O que devo dizer?
Ann Mulcahy O’Reilly fitou Kendrick nos olhos.
- O que quiser, deputado. Basta que seja sincero.
- A queixa do cisne? Meu canto de cisne, Annie?
- Só você saberá, quando chegar lá fora.
O tumulto na sala externa recrudesceu com a súbita erupção de flashes e ofuscantes refletores da televisão, os cinegrafistas balançando suas letais minicâmeras no meio da multidão. Perguntas feitas aos
gritos. Vários dos repórteres mais proeminentes exigiam, arrogantes, o direito de posições mais próximas e destacadas. O deputado do Nono Distrito encaminhou-se para a mesa da recepcionista, afastou o
bloco e o telefone para o lado, e sentou-se no tampo. Sorriu jovialmente, levantou as mãos várias vezes, mas recusou-se a falar. Pouco a pouco, a cacofonia foi se extinguindo interrompida de vez em quando
por uma voz estridente à qual o atônito deputado respondia com um olhar silencioso de surpresa simulada. Todos acabaram compreendendo: o deputado Evan Kendrick não abriria a boca a menos e até que pudesse
ser ouvido por todos. Fez-se silêncio.
- Muito obrigado - disse Evan. - Preciso de toda ajuda para definir o que eu devo dizer... antes que vocês digam o que querem dizer, depois de já terem definido tudo.
- Deputado Kendrick! - gritou um agressivo repórter de televisão, obviamente irritado por sua posição na segunda fila. - É verdade que...
- Pode me fazer um favor? - interrompeu-o Evan, com firmeza. - Dê-me uma chance, amigo. Está acostumado a essa pressa, eu não.
- Pois não foi assim que agiu até agora na televisão, senhor! - protestou o antigo locutor.
- Pelo que vejo, é um contra um. Ou seja, um contra todo o Coliseu querendo um jantar de leão. Permita que diga uma coisa primeiro, está bem?
- Claro, senhor.
- Fico contente que não estivesse aqui na semana passada, Stan... acho que seu nome é Stan.
- É, sim, deputado.
- Teria saboreado minha cabeça junto com o seu conhaque.
- É muito gentil, senhor.
- Sem brincadeira? É um elogio, não é mesmo?
- É, sim, deputado. Esse é o nosso trabalho.
- Respeito isso. E gostaria que assim fizessem com mais frequência.
- Como?
- Uma das pessoas mais respeitadas da minha assessoria explicou-me que eu deveria fazer uma declaração - Kendrick apressou-se em continuar. - É meio assustador, pois nunca me pediram para fazer uma declaração
antes...
- Concorreu a um cargo eletivo, senhor - interrompeu outra repórter de televisão, deslocando obviamente a cabeça loura para o foco de sua câmera. - Certamente teve de fazer declarações nessa ocasião.
- Não se o deputado que tinha o mandato na ocasião representasse a versão do nosso distrito do Planeta dos macacos. Pode conferir, manterei o que disse. E agora posso continuar falando ou devo simplesmente
me retirar? Serei honesto com vocês. Não me importo realmente.
- Continue, senhor - disse o cavalheiro muitas vezes referido como Stan-o-homem, um largo sorriso no rosto telegênico.
- Está bem... Essa estimada pessoa da minha assessoria também mencionou que alguns de vocês, se não todos, podem estar acreditando que fiz questão de ocupar o palanque na semana passada. "Ocupar o palanque"...
Pelo que compreendo da expressão, significa atrair as atenções para si mesmo, através do desempenho de algum ato melodramático, que fixa a atenção das multidões, das tribunas, na pessoa que desempenha
o ato. Se essa definição é certa, então devo recusar o título de ocupante da tribuna, porque não estou procurando a aprovação de ninguém. Repito mais uma vez, realmente não me importo.
O choque momentâneo foi dissipado pelas palmas do deputado sacudindo o ar à sua frente.
- Sou absolutamente sincero nesse ponto, senhoras e senhores. Não espero permanecer aqui por muito tempo...
- Tem algum problema de saúde, senhor? - perguntou um jovem do fundo da sala.
- Quer experimentar uma queda de braço?... Não, não tenho nenhum problema de saúde, que me conste...
- Fui campeão de boxe universitário, senhor - acrescentou o jovem repórter lá no fundo, incapaz de se conter, recebendo vaias da multidão divertida e depois murmurando, embaraçado: - Desculpe, senhor.
- Não precisa se desculpar, meu jovem. Se eu tivesse o seu talento, provavelmente desafiaria o chefe de material bélico do Pentágono e seu equivalente no Kremlin, e resolveríamos tudo à maneira antiga.
Um desafiante de cada lado, poupando os batalhões. Mas não tenho o seu talento e também não tenho problemas de saúde.
- Então, qual é o seu problema? - indagou um respeitado colunista do New York Times.
- Sinto-me lisonjeado por sua presença aqui - disse Evan, reconhecendo o homem. - Não tinha a menor ideia de que eu valia seu tempo.
- Acho que vale, e meu tempo não é tão valioso assim. De onde está vindo, deputado?
- Não tenho muita certeza, mas para responder à sua primeira pergunta devo dizer que também não tenho certeza se pertenço a este lugar. Quanto à segunda pergunta, já que não tenho certeza se devo continuar
aqui, encontro-me na posição invejável de dizer o que quero sem qualquer consideração com as consequências... isto é, as consequências políticas.
- Isso é notícia - comentou o mordaz Stan-o-homem, escrevendo em seu bloco. - Sua declaração, senhor.
- Obrigado. Acho que eu gostaria de acabar logo com isto. Como uma porção de pessoas, não gosto do que vejo. Estive ausente deste país por muitos anos e talvez seja preciso sair daqui para perceber o que
temos... no mínimo para comparar com o que os outros não têm. Não deveria haver uma oligarquia dirigindo este governo e, no entanto, parece que uma se instalou aqui. Não posso identificar essa oligarquia,
mas as pessoas existem, sei disso. E vocês também. Querem subir, promover uma escalada permanente, sempre apontando para um adversário, que também precisa realizar uma escalada ao pico da sua escada econômica
e tecnológica. Onde vamos parar? Onde eles vão parar? Quando deixaremos de dar pesadelos a nossas crianças, porque tudo o que ouvem é a terrível ameaça de aniquilação? Quando os filhos deles vão deixar
de escutar a mesma coisa?... Ou continuaremos simplesmente neste elevador a caminho do inferno, até não podermos mais desembarcar, o que de qualquer forma não faria muita diferença, porque todas as ruas
já estariam em chamas... Perdoem-me, sei que não é justo, mas subitamente não quero mais perguntas. Voltarei às montanhas.
Evan Kendrick saiu da mesa e encaminhou-se apressado para a porta da sala, através da multidão aturdida. Abriu-a, acelerando os passos, e desapareceu no corredor.
- Ele não vai para as montanhas - sussurrou Patrick Xavier O’Reilly para a esposa. - O garoto ficará aqui mesmo, nesta cidade.
- Ora, cale-se! - gritou Annie, com lágrimas nos olhos. - Ele acaba de se isolar de todo o Capitólio!
- Talvez do Capitólio, menina, mas não de nós. Ele pôs seu dedo não muito delicado na ferida. Todos ganham dinheiro e estão se cagando. Vigie-o, Annie, tome conta dele. É uma voz que queremos ouvir.
19
Kendrick andava errante pelas ruas tórpidas e sufocantes de Washington, a camisa aberta, o paletó pendurado no ombro, sem a menor ideia do seu destino, tentando apenas desanuviar a cabeça pelo expediente
de pôr um pé à frente do outro, numa sequência a esmo. Mais amiúde do que gostaria, fora detido por estranhos, cujos comentários eram bastante divididos, mas com uma pequena vantagem para ele, um fato
que não tinha certeza se apreciava.
- Passou uma rasteira sensacional naquele sacana mentiroso, senador!
- Não sou senador, apenas deputado. Agradeço.
- Quem você pensa que é, deputado Sei-lá-o-quê? Tentando destruir um americano valioso, e leal como o coronel Barrish. Seu bicha solteirão de esquerda!
- Posso lhe vender algum perfume? O coronel comprou.
- Nojento!
- Ei, cara, vi você na TV! Foi quente e cantou de galo. Aquele filho da puta mandaria todos os irmãos de volta ao Vietnam como bucha de canhão!
- Não concordo, soldado. Ele não faz discriminação. Todos nós somos bucha de canhão.
- Só porque é esperto, senhor, isso não faz com que esteja certo! E só porque ele tropeçou, reconheço que em suas próprias palavras, isso não faz com que esteja errado. É um homem empenhado em aumentar
a força da nossa nação, o que, obviamente, não é o seu caso!
- Acho que estou empenhado pela razão, senhor. Isso não exclui a força da nossa nação, pelo menos espero que não.
- Não vi prova disso!
- Lamento, mas é a verdade.
- Agradeço, deputado, por dizer o que tantos de nós estão pensando.
- E por que vocês não dizem?
- Não tenho certeza. Por toda parte para onde a gente se vira, alguém está gritando que devemos ser duros. Eu era um garoto em Bastogne, no Bulge. Fui duro... e também estava apavorado. Simplesmente aconteceu;
eu queria viver. Mas as coisas são diferentes agora. Não se trata mais de homens contra homens, nem de canhões e aeronaves. São máquinas voando pelo ar e abrindo buracos gigantescos na terra. Não se pode
fazer mira contra elas, não se pode detê-las. Tudo o que se pode fazer é esperar.
- Eu gostaria que você estivesse na audiência. Falaria melhor do que eu jamais seria capaz, com credenciais muito mais impressivas.
Ele não queria continuar falando, sinceramente; ser abordado por estranhos na rua não o ajudava a encontrar a solidão de que precisava. Tinha de pensar, definir as coisas para si mesmo, decidir o que fazer
e decidir depressa, pelo menos para que houvesse uma decisão. Aceitara o lugar no Comitê Partridge por um motivo específico: queria ter voz no seu distrito ao escolher o homem que o sucederia, e seu assessor
principal, Phil Tobias, o convencera de que aceitar o convite de Partridge lhe garantiria tal influência. Mas o que Evan especulava era outra coisa: realmente não se importaria?
Até certo ponto, tinha de admitir que se importava, mas não devido a qualquer ambição de posto. Entrara numa pequena arena política, um homem irado de olhos abertos. Poderia fechar as portas e sumir, só
porque estava irritado com uma lufada de exposição pública? Não usava um emblema de moralidade na lapela, mas sentia algo intrinsecamente abominável em alguém que assumia um compromisso e depois se afastava,
por inconveniência pessoal. Por outro lado, nas palavras de uma era diferente, expulsara os patifes que estavam entregando o Nono Distrito do Colorado aos sanguessugas. O que mais os eleitores do seu distrito
podiam querer dele? Despertara-os; pelo menos pensava que o fizera, não poupara palavras nem dinheiro na sua tentativa.
Pense. Precisava mesmo pensar. Provavelmente manteria a propriedade no Colorado para um tempo futuro ainda não considerado; estava com quarenta e um anos; mais dezenove, chegaria aos sessenta. Que importância
tinha isso?... Claro que tinha. Voltaria ao Sudoeste Asiático, aos trabalhos e aos amigos que mais lhe agradavam, como Manny, não desperdiçaria seus últimos anos, com alguma sorte mais uma ou duas décadas,
naquele ambiente... Manny. Emmanuel Weingrass, o gênio, o talento em pessoa, autocrata, renegado, um ser humano totalmente insuportável - e, ao mesmo tempo, o único pai que já conhecera. Não chegara a
conhecer realmente o próprio pai; quando aquele homem distante morrera, ao construir uma ponte no Nepal, ele mal completara oito anos. Sua mãe, uma esposa jocosamente cética, dizia que tinha casado com
um capitão absurdamente jovem do Corpo de Engenharia do Exército durante a Segunda Guerra Mundial e que tivera menos episódios de felicidade conjugal do que Catarina de Aragão.
- Ei! - gritou um gordo que acabara de sair da porta sob um toldo de um bar na Sixteenth Street. - Acabei de ver você! Estava na TV, sentado numa mesa! Foi naquele programa de notícias durante o dia inteiro.
Um pé no saco! Não sei o que você disse, mas alguns caras aplaudiram e outros vaiaram. Era você mesmo!
- Deve estar enganado - disse Kendrick, afastando-se apressado.
Santo Deus, pensou ele, o pessoal da Cable News pusera no ar a improvisada entrevista coletiva o mais depressa possível. Deixara seu gabinete há menos de uma hora e meia; alguém estava com pressa. Ele
sabia que a Cable precisava de constantes matérias, mas com tantas notícias em Washington, por que ele? Na verdade, o que o incomodava era um comentário feito pelo jovem Tobias nos seus primeiros dias
no Capitólio.
- A Cable é um processo de incubação, deputado, e devemos capitalizar isso. As grandes redes podem não considerá-lo bastante importante para uma cobertura, mas costumam acompanhar as notícias da Cable
durante todo o tempo à procura de algo que seja original, que seja incomum. Podemos criar situações em que o pessoal da Cable morde a isca e, na minha opinião, senhor Kendrick, sua aparência e seus comentários
um tanto diferentes...
- Então nunca vamos cometer o erro de chamar o pessoal da Cable, está bem, senhor Tobias?
A interrupção desanimara o jovem assessor, que só ficara parcialmente abrandado pela promessa de Evan de que o próximo ocupante da sua cadeira seria muito mais cooperativo. Falara sério; e mantinha a mesma
intenção agora, embora estivesse preocupado com a possibilidade de ser tarde demais.
Voltou ao Madison Hotel, a apenas um quarteirão ou pouco mais, onde passara a noite de domingo... porque tivera a presença de espírito de ligar para sua casa na Virginia a fim de saber se a presença no
programa de Foxley causara alguma reação.
- Apenas quando se deseja dar um telefonema, Evan - respondera o Dr. Sabri Hassan em árabe, a língua que ambos falavam por conveniência, além de outros motivos. - O telefone não para de tocar.
- Então ficarei na cidade. Ainda não sei onde, mas lhe informarei.
- Por que se incomodar? - indagara Sabri. - De qualquer forma, provavelmente não conseguirá fazer a ligação. Estou surpreso que tenha conseguido agora.
- No caso de Manny ligar...
- Por que não liga pessoalmente a ele e avisa onde está? Assim, não terei de mentir. Os jornalistas desta cidade estão ansiosos para surpreender um árabe mentindo; cairiam em cima de nós. Os israelenses
podem dizer que branco é preto ou que doce é amargo e seu lobby convence o Congresso de que é para seu próprio bem. O que já não acontece conosco.
- Pare com isso, Sabri...
- Devemos ir embora, Evan. Não somos bons para você, nossa presença não irá ajudá-lo.
- Mas do que está falando?
- Kashi e eu vimos o programa esta manhã. Foi bastante eficaz, meu amigo.
- Falaremos sobre isso mais tarde.
Kendrick passara a tarde assistindo a uma partida de beisebol e tomando uísque. Às seis e meia sintonizara os noticiários, uma rede depois da outra, apenas para se ver em breves segmentos do programa de
Foxley. Contrariado, passara para um canal de arte, que exibia um filme sobre os hábitos de acasalamento das baleias ao largo da Tierra del Fuego. Estava aturdido e acabara adormecendo.
Hoje, o instinto lhe dizia que devia ficar com a chave do quarto, por isso atravessou o saguão do Madison apressado, a caminho dos elevadores. No quarto tirou as roupas, ficou apenas de cueca e deitou-se
na cama. E fosse por um sintoma de ego reprimido ou por pura curiosidade, ele ligou o controle remoto e sintonizou o canal da Cable News. Sete minutos depois, viu-se saindo do seu gabinete:
- Senhoras e senhores, acabam de assistir a uma das entrevistas coletivas mais incomuns que este repórter já testemunhou. Não apenas excepcional, mas também excepcionalmente unilateral. Este representante
do Colorado em seu primeiro mandato levantou problemas de óbvia importância nacional, mas se recusa a ser questionado quanto às suas conclusões. Ele simplesmente se retira. Em sua defesa, deve-se dizer
que ele nega "ocupar a tribuna", porque aparentemente não tem certeza se tenciona permanecer em Washington... o que presumimos significar que deseja concorrer ao governo do Estado. Mesmo assim, suas declarações
foram provocantes, para dizer o mínimo.
O videoteipe parou subitamente, substituído pelo rosto ao vivo de uma locutora.
- Passamos agora ao Departamento de Defesa, onde um subsecretário, no comando da Deterrência Estratégica, tem uma declaração por escrito. É a sua vez, Steve.
Outro rosto, este de um repórter de cabelos escuros, com muitos dentes exibidos para a câmera, sussurrou:
- O subsecretário Jasper Hefflefinger, que sempre pode ser encontrado quando alguém ataca o Pentágono, aproveitou a oportunidade proporcionada pelo deputado... quem?... Henrik, de Wyoming... o quê?...
Colorado! Aqui está o subsecretário Hefflefinger.
Outro rosto. Um homem de papada, embora bonito, um rosto forte, de cabeleira prateada, que exigia atenção. E com uma voz que seria invejada pelos mais conhecidos locutores de rádio dos anos 30 e 40:
- Quero dizer ao deputado que acolhemos suas declarações com a maior satisfação. Queremos a mesma coisa, senhor! Evitar a catástrofe, conquistar a liberdade...
O idiota continuou a discursar, interminável, falando tudo mas não dizendo nada, não se referindo uma única vez aos problemas de escalada e contenção.
Por que eu?, Kendrick gritou para si mesmo. Por que eu? Ora, que se dane! Que se dane tudo! Desligou a televisão, pegou o telefone e fez uma ligação para o Colorado.
- Oi, Manny - ele disse, ao ouvir o alô brusco de Weingrass.
- Menino, você é sensacional! - berrou o velho ao telefone. - Eu o criei direito, afinal de contas!
- Recolha tudo, Manny. Quero sair desta merda.
- Você o quê? Não se assistiu na televisão?
- É por isso que quero sair. Esqueça o banho a vapor envidraçado e o pavilhão entre os córregos. Cuidaremos disso mais tarde. Nós dois vamos voltar aos emirados... através de Paris, é claro... Talvez uns
dois meses em Paris, se você quiser. Combinado?
- Nada disso, seu palhaço meshugenah! Você tem alguma coisa a dizer, portanto diga! Sempre o ensinei, quer perdêssemos ou não um contrato, a dizer o que acreditava ser certo... Está bem, está bem, podemos
ter mentido algumas vezes, mas sempre cumprimos as nossas promessas! E nunca cobramos pelas prorrogações, mesmo quando tínhamos de pagar!
- Manny, isso nada tem a ver com o que está acontecendo por aqui...
- Tem tudo a ver! Você está construindo alguma coisa... E por falar em construir, adivinhe o que aconteceu, meu garoto goy?
- O que foi?
- Já comecei o banho a vapor no terraço e entreguei as plantas para o pavilhão junto aos córregos. E ninguém interrompe Emmanuel Weingrass até que seus projetos estejam concluídos a seu contento!
- Manny, você é insuportável!
- Acho que já ouvi isso antes.
Milos Varak desceu por um caminho de cascalho no Rock Creek Park, na direção de um banco que dava para uma ravina, as águas do Potomac correndo lá embaixo. Era uma área remota e tranquila, distante dos
caminhos de concreto mais acima, preferida pelos turistas do verão, que desejavam escapar do calor e tumulto das ruas. Como o tcheco esperava, o presidente da Câmara dos Representantes já se encontrava
ali, sentado no banco, os cabelos brancos cobertos por um gorro irlandês, a pala sobre a metade do rosto, o corpo comprido e extremamente magro envolto por uma capa desnecessária na umidade sufocante da
tarde de agosto em Washington. O presidente da Câmara não queria que ninguém o notasse; era a sua tendência normal. Varak aproximou-se e disse:
- Senhor presidente, sinto-me honrado por tornar a encontrá-lo.
- Filho da puta, você é um estrangeiro! - O rosto esquelético, com olhos escuros e sobrancelhas brancas arqueadas, tinha uma expressão irada, mas também defensiva, a última característica lhe sendo obviamente
odiosa. - Se você é alguma espécie de moleque de recados comunista, pode sumir da minha frente agora mesmo, Ivã! Não vou concorrer a outro mandato. Estou fora, acabado, kaput quando chegar janeiro, o que
aconteceu há trinta ou quarenta anos não significa merda nenhuma! Está me entendendo, Bóris?
- Teve uma carreira extraordinária e tem sido uma força positiva para o seu país, senhor... também meu país agora. Quanto a ser um russo ou um agente do bloco oriental, devo dizer que lutei contra ambos
durante os últimos dez anos, como diversas pessoas neste governo sabem.
O político de olhos de granito estudou Varak.
- Não teria a coragem ou a estupidez de me dizer isso se não pudesse comprovar - resmungou em seu acentuado sotaque de nortista da Nova Inglaterra. - Ainda assim, você me ameaçou!
- Apenas para obter sua atenção, convencê-lo a se encontrar comigo. Posso sentar?
- Sente-se - disse o presidente da Câmara, como se falasse a um cachorro esperando que lhe obedecesse. Varak sentou-se, deixando bastante espaço entre os dois. - O que sabe sobre acontecimentos que podem
ou não ter ocorrido em algum momento dos anos 50?
- Foi no dia 17 de março de 1951, para ser exato - respondeu o tcheco. - Nesse dia nasceu um menino no Lady of Mercy Hospital, em Belfast, de uma moça que emigrara para a América vários anos antes. Ela
voltara à Irlanda com uma explicação das mais tristes. O marido morrera, e em seu desconsolo ela desejava ter um filho em sua terra, no seio da família.
O olhar frio e inflexível, o presidente da Câmara indagou:
- E daí?
- Creio que sabe, senhor. Não havia marido por aqui, mas sim um homem que devia amá-la muito. Um jovem político em ascensão, acuado num casamento infeliz do qual não podia escapar por causa das leis da
Igreja e da cega adesão de seus eleitores a essas leis. Durante anos esse homem, que era também advogado, enviou dinheiro à mulher e visitou-a e ao filho na Irlanda com a frequência possível... como um
tio americano, é claro...
- Pode provar quem eram essas pessoas? - interrompeu o idoso presidente da Câmara, bruscamente. - Nada de rumores ou identificações de testemunhas duvidosas, mas provas escritas?
- Posso, sim.
- Com quê? Como?
- Houve troca de cartas.
- Mentiroso! - exclamou o septuagenário. - Ela queimou tudo antes de morrer.
- Todas menos uma - disse Varak, placidamente. - Creio que tinha intenção de destruí-la também, mas a morte veio mais cedo do que ela esperava. O marido encontrou-a escondida sob diversos artigos em sua
mesinha de cabeceira. Claro que ele não sabe quem é E e não está interessado em descobrir. Apenas sente-se grato porque a esposa recusou a oferta de E e permaneceu com ele durante os últimos vinte anos.
O velho desviou o rosto, reprimindo com autodisciplina a insinuação de lágrimas surgindo nos seus olhos.
- Minha esposa me deixara nessa ocasião - ele murmurou, a voz quase inaudível. - Tínhamos uma filha e um filho na universidade e não havia motivo para manter a nojenta farsa por mais tempo. As coisas haviam
mudado, as perspectivas eram diferentes, eu estava tão seguro quanto um Kennedy em Boston. Até mesmo a turma da arquidiocese ficaria de boca fechada... Claro que avisei a alguns daqueles hipócritas filhos
da mãe que se houvesse qualquer interferência da Igreja na eleição, eu encorajaria os radicais negros e os judeus a protestarem na Câmara contra a sua sagrada isenção de impostos. O bispo quase vomitou
em apoplexia, gritando-me todos os tipos de danação por dar um exemplo público do fogo do inferno, mas eu me mantive firme. E lhe disse que minha esposa, após a separação, provavelmente acabaria dormindo
com ele também.
O encanecido presidente da Câmara, de rosto profundamente vincado, ficou em silêncio por algum tempo, depois gritou para si mesmo, as lágrimas agora evidentes:
- Santa Mãe de Deus, como eu queria aquela moça de volta!
- Tenho certeza de que não está se referindo à sua esposa.
- Sabe exatamente a quem estou me referindo, senhor Sem-nome! Mas ela já não podia. Um homem decente dera um lar a ela e um nome ao nosso filho por quase quinze anos. Ela não podia deixá-lo... nem mesmo
por mim. Para dizer a verdade, também guardei sua última carta. Foram as duas últimas que enviamos um ao outro. "Estaremos juntos no outro mundo", ela me escreveu. "Mas não mais neste mundo, querido".
Que absurdo! Poderíamos ter uma vida a dois aqui, uma boa parte de vida!
- Se me permite dizer, senhor, acho que foi a manifestação de uma mulher apaixonada, que tinha tanto respeito pelo senhor quanto por si mesma e seu filho. O senhor tinha seus próprios filhos e justificações
do passado podem destruir o futuro. O senhor tinha um futuro, presidente.
- Eu teria desprezado tudo...
- Ela não poderia fazer isso, assim como não poderia destruir o homem que lhe dera, e ao filho, um lar e um nome.
O velho tirou um lenço do bolso e enxugou os olhos, a voz revertendo subitamente ao tom áspero.
- Como sabe de tudo isso?
- Não foi difícil. É o líder na Câmara dos Representantes, o segundo na substituição eventual do presidente dos Estados Unidos, eu queria saber mais a seu respeito. Perdoe-me, mas as pessoas mais velhas
falam com mais liberdade que os jovens... em grande parte por causa de seu senso de importância relativa no que diz respeito a supostos segredos... e é claro que eu sabia que o senhor e sua esposa, ambos
católicos, haviam se divorciado. Considerando a sua estatura política na ocasião, e o poder de sua Igreja, deve ter sido uma decisão angustiosa.
- Não posso culpá-lo por isso. Portanto, procurou as pessoas mais velhas que conviviam conosco na ocasião.
- Encontrei-as. Soube que sua esposa, filha de um rico especulador imobiliário que queria ter influência política e financiou suas primeiras campanhas, possuía uma reputação não muito invejável.
- Antes e depois, senhor Sem-nome. Só que fui o último a descobrir.
- Mas descobriu - disse Varak, firmemente. - E na sua raiva e embaraço procurou outra companhia. Na ocasião estava convencido de que não poderia fazer coisa alguma em relação a seu casamento, por isso
procurou um conforto substituto.
- É assim que se costuma chamar? Procurei uma mulher que pudesse ser minha.
- E encontrou-a num hospital, onde foi doar sangue durante uma campanha. Era uma enfermeira irlandesa estagiando para obter seu registro nos Estados Unidos.
- Mas como...
- Os velhos falam.
- Pee Wee Mangecavallo - sussurrou o presidente da Câmara, os olhos brilhando subitamente, como se a lembrança lhe trouxesse uma onda de felicidade. - Ele tinha uma pequena casa italiana, um bar com boa
comida siciliana, a cerca de quatro quarteirões do hospital. Ali ninguém me incomodava... acho que não sabiam quem eu era. O carcamano filho da mãe lembrou-se de mim.
- O senhor Mangecavallo está com mais de noventa anos, mas de fato ainda se lembra. Levava sua linda enfermeira para lá, ele fechava o bar à uma hora da madrugada e deixava os dois lá dentro, pedindo apenas
que mantivessem as tarantelas na vitrola automática nos níveis mais baixos.
- Uma pessoa maravilhosa.
- Com uma memória pouco comum para alguém da sua idade, mas infelizmente sem o controle que tinha quando era mais jovem. Ele se lembra de muitas coisas... divaga, seria melhor dizer... fazendo comentários
sobre seu Chianti que talvez não fizesse há alguns anos.
- Naquela idade, ele tem o direito...
- E o senhor lhe fez confidências, presidente - interrompeu Varak.
- Não, não fiz - negou o velho político. - Mas Pee Wee juntou as coisas; não era difícil. Depois que ela partiu para a Irlanda, continuei a frequentar o bar durante uns dois anos. Bebia além da conta,
porque ninguém, como eu disse, ali me conhecia ou se importava comigo. Pee Wee sempre me levava para casa, sem maiores incidentes. Mas talvez eu tenha falado demais.
- Voltou ao estabelecimento do senhor Mangecavallo quando ela se casou...
- É verdade. Lembro como se fosse ontem... lembro de entrar, mas não tenho qualquer recordação de sair.
- O senhor Mangecavallo é bastante lúcido sobre esse dia. Nomes, um país, uma cidade... uma data... de rompimento, como a chamou. Viajei até a Irlanda.
O presidente da Câmara virou a cabeça abruptamente para Varak, os olhos irados e inquisitivos.
- O que quer de mim? Está tudo acabado, tudo agora pertence ao passado, não pode mais me prejudicar. O que é que você quer?
- Nada de que possa se arrepender ou se envergonhar, senhor. Poderia fazer o exame mais rigoroso dos antecedentes e aplaudiria a recomendação dos meus clientes.
- Seus... clientes? Recomendação...? Alguma espécie de serviço na Câmara?
- Isso mesmo, senhor.
- Pondo toda a merda de lado, por que eu deveria concordar com qualquer coisa que venha a me pedir?
- Por causa de um detalhe na Irlanda de que não tem conhecimento.
- Qual?
- Já ouviu falar do assassino conhecido como Tam O’Shanter, o "comandante de esquadrão" do IRA?
- Um porco! Uma desonra para todo o clã irlandês!
- Ele é seu filho.
Uma semana transcorrera, e para Kendrick foi a prova definitiva de como era passageira a fama em Washington. As audiências televisionadas do Comitê Partridge foram suspensas a pedido do Pentágono, que
divulgou um duplo comunicado de que estava revisando "em profundidade" determinados registros financeiros, além do fato de que o coronel Robert Barrish fora promovido a general de brigada e enviado para
a ilha de Guam a fim de supervisionar aquele vital posto avançado da liberdade.
Um certo Joseph Smith, de Cedar Street, 70, em Clinton, Nova Jersey, cujo pai servira no 27º em Guam, caiu na gargalhada, enquanto espetava com um dedo o seio esquerdo da esposa, olhando a tela de televisão.
- Ele levou um chute, meu bem! E foi por causa daquele seu garoto bonito! Ele é dos meus!
Mas como todos os períodos de euforia devem chegar a um fim abrupto, o mesmo aconteceu com o alívio temporário do representante do Nono Distrito do Colorado.
- Santo Deus! - exclamou Phil Tobias, o chefe da assessoria do deputado, pondo a mão sobre o bocal. - É o presidente da Câmara em pessoa! Não um assessor ou uma secretária, mas ele próprio!
- Talvez seja melhor deixar que o outro "ele próprio" tome conhecimento - disse Annie O’Reilly. - Ele ligou por sua linha, não pela minha. Não diga nada, queridinho. Apenas aperte o botão e anuncie. Está
fora da sua seara.
- Mas não está certo! O pessoal dele deveria ligar para mim primeiro...
- Faça o que estou mandando!
Tobias obedeceu.
- Kendrick?
- Pois não, senhor presidente?
- Tem alguns minutos para me dispensar? - perguntou o político da Nova Inglaterra.
- Claro que tenho, senhor presidente, se acha que é importante.
- Não ligaria direto para um deputado de merda em seu primeiro mandato se não achasse que era importante.
- Então só posso esperar que um presidente da Câmara de merda tenha uma questão vital a discutir - respondeu Kendrick. - Se não tiver, cobrarei minha hora de consulta ao seu Estado. Entendido, senhor presidente?
- Gosto do seu estilo, garoto. Estamos em lados diferentes, mas gosto do seu estilo.
- Pode não gostar quando eu estiver na sua sala.
- Gosto disso ainda mais.
Atônito, Kendrick estava parado na frente da mesa, olhando em silêncio para os olhos evasivos do presidente da Câmara com seu rosto encovado e a cabeça branca. O velho irlandês acabara de fazer uma declaração
extraordinária, que deveria no mínimo ser uma proposta, mas era na verdade uma bomba lançada no caminho da retirada de Evan de Washington, D.C.
- O Subcomitê de Fiscalização e Avaliação? - repetiu Kendrick, numa raiva controlada. - De Informações?
- Isso mesmo - respondeu o presidente da Câmara, olhando para seus papéis.
- Como ousa? Não pode fazer isso!
- Está feito. Sua indicação já foi anunciada.
- Sem o meu consentimento?
- Não preciso disso. Não posso dizer que encontrei a área limpa com os líderes do seu próprio partido... não é o sujeito mais popular no seu lado da cerca... mas eles acabaram concordando, com um pouco
de persuasão. Você é uma espécie de símbolo do bipartidarismo independente.
- Símbolo? Que símbolo? Não sou símbolo de coisa alguma!
- Tem uma gravação do programa de Foxley?
- É não história! Já foi esquecido!
- Ou aquele tumulto que promoveu em seu gabinete na manhã seguinte? O tal sujeito do New York Times escreveu uma coluna a seu respeito, lançou-o como uma espécie de... o que foi mesmo? Reli ontem... "uma
voz racional na babel de corvos loucos".
- Tudo isso aconteceu há semanas e ninguém mencionou qualquer coisa importante desde então. Saí de cena.
- Pois acaba de voltar e desabrochando por completo.
- Recuso a indicação! Não quero ser sobrecarregado com segredos envolvendo a segurança nacional. Não vou permanecer no governo e considero uma posição insustentável ser incluído... uma situação perigosa,
para dizer o mínimo.
- Recuse publicamente e seu partido cairá em cima de você... publicamente. Vão chamá-lo de alguns nomes, dirão que é um equívoco rico, um irresponsável, ressuscitarão aquela hiena que você sepultou com
seu dinheiro. Há quem sinta falta dele e da sua pequena máquina por aqui.
O presidente da Câmara fez uma pausa, soltando uma risada.
- Eles agradavam todo mundo com pequenos presentes, como jatos particulares e suítes de luxo, do Havaí ao sul da França, pertencentes à turma da mineração. Não fazia a menor diferença a que partido você
pertencia, queriam apenas fazer uns pequenos adendos à legislação... e não se importavam de onde vinha o apoio. Se recusar, deputado, pode estar prestando um favor a todos nós.
- É realmente um cabeça de merda, senhor presidente.
- Sou apenas pragmático, filho.
- Mas tem feito tantas coisas decentes...
- Só porque fui pragmático - interrompeu o veterano político. - Não se consegue nada com baldes de vinagre, as coisas ficam mais fáceis com cântaros de melaço quente, como o de Vermont... está me entendendo?
- Sabe que acaba de justificar a corrupção política com uma declaração?
- De jeito nenhum! Só justifico a aceitação da ganância menor como parte da condição humana, em troca da legislação maior que ajuda as pessoas que realmente precisam! Consegui essas coisas, seu cabeça
de merda, pelo expediente de fechar os olhos a pequenas indulgências, quando aqueles que as recebiam sabiam que eu não estava realmente de olhos fechados. Você não seria capaz de compreender, seu filho
da puta rico. Claro que temos alguns milionários por aqui, mas a maioria não é assim. Muitos vivem de salários anuais que você joga fora em um mês. Deixam o cargo porque não conseguem sustentar dois ou
três filhos na universidade com o que ganham. Por isso, você tem toda razão, eu finjo que não estou vendo.
- Está bem, está bem! - gritou Kendrick. - Posso entender isso! Mas o que não posso entender é por que está me designando para o subcomitê! Não há nada nos meus antecedentes que me qualifique para esse
posto. Posso indicar trinta ou quarenta outros que sabem muito mais do que eu... o que não é difícil, porque não sei nada. Eles acompanham essas coisas, adoram estar por dentro dessa estupidez... repito,
acho que é tudo uma estupidez! Chame um deles. Todos estão ansiosos pela oportunidade.
- Não é esse tipo de apetite que estamos procurando, filho - disse o presidente da Câmara, agora em seu forte sotaque do Down East, que contradizia décadas de sofisticadas negociações políticas na capital
da nação. - Um ceticismo saudável, como o que você demonstrou com aquele coronel insidioso no programa de Foxley, isso é o mais necessário. Tenho certeza que dará uma extraordinária contribuição.
- Está enganado, senhor presidente, porque nada tenho para contribuir, nem mesmo o menor interesse. Barrish estava usando e abusando de generalidades, recusando-se arrogantemente a falar de maneira objetiva.
Era uma situação diferente. Repito: não tenho o menor interesse no subcomitê.
- Ora, meu jovem amigo, os interesses mudam com as circunstâncias, como ocorre nos bancos. Acontece alguma coisa e as taxas sobem ou descem de acordo. E alguns de nós estão mais familiarizados do que outros
com certas áreas conturbadas do mundo... sob esse aspecto, não resta a menor dúvida de que você se qualifica. E como diz aquele belo livro, os talentos enterrados no solo não valem o esterco de uma vaca
para ninguém, mas podem florescer se forem trazidos à luz. Como o seu novo florescimento.
- Se está se referindo ao tempo que passei nos emirados árabes, lembre-se por favor que eu era apenas um engenheiro e empreiteiro, cujas únicas preocupações eram contratos e lucros.
- Será mesmo?
- O turista médio sabia mais sobre as políticas e culturas daqueles países do que eu. Todos nós, nas empreiteiras, permanecíamos quase isolados; tínhamos nossos próprios círculos e raramente saíamos fora.
- Acho isso difícil de acreditar... quase impossível, para ser franco. Tenho o relatório congressional sobre as suas atividades, meu jovem, e posso lhe garantir que arrepiou meus cabelos da Nova Inglaterra.
Aqui está você em Washington, depois de construir prédios do governo e aeroportos para os árabes, o que certamente significa que teve muitas conversas com os figurões por lá. Isso mesmo, falei em aeroportos;
isso é informação militar, filho! Além disso, soube que fala várias línguas árabes... não apenas uma, mas várias!
- É uma só língua, o resto são apenas dialetos...
- Pois eu lhe digo que é valioso e estará cumprindo seu dever patriótico de servir ao seu país partilhando o que sabe com outros expertos.
- Não sou um experto!
- Além do mais - continuou o presidente da Câmara, recostando-se na cadeira, com uma expressão pensativa -, nas circunstâncias, com seus antecedentes e tudo mais, se recusar a indicação vai parecer que
tem alguma coisa a esconder, algo que talvez devêssemos investigar. Tem alguma coisa a esconder, deputado?
Alguma coisa a esconder? Ele tinha tudo a esconder! Por que o presidente da Câmara o fitava daquele jeito? Ninguém sabia sobre Oman, sobre Mascate e Bahrain, ninguém jamais saberia! Fora esse o acordo.
- Não há absolutamente nada a esconder, mas há tudo a deixar de fora - declarou Kendrick, firmemente. - Está prestando um desserviço ao subcomitê, baseado numa avaliação errônea de minhas credenciais.
Faça um favor a si mesmo. Chame um dos outros.
- O belo livro, o mais sagrado dos livros, tem muitas respostas, não é mesmo? - murmurou o presidente da Câmara, desviando os olhos de Evan. - Muitos podem ser chamados, mas poucos são os eleitos... não
é assim?
- Ora, pelo amor de Deus...
- Pode ser esse o caso, meu jovem - interrompeu o velho irlandês, balançando a cabeça. - Só o tempo dirá, não é mesmo? Enquanto isso, a liderança do seu partido no Congresso decidiu que você é o eleito.
Portanto, você é o eleito... a menos que tenha algo a esconder, alguma coisa que devemos investigar... E agora se mande daqui. Tenho muito trabalho.
- Me mandar?
- Caia fora, Kendrick!
20
As duas casas do Congresso, o Senado e a Câmara, possuem diversos comitês de propósito igual, com nomes similares ou quase similares. Há o Comitê de Apropriações do Senado e o Comitê de Apropriações da
Câmara, o de Relações Exteriores do Senado e o de Assuntos Exteriores da Câmara, o Comitê Especial de Informações do Senado e o Comitê Especial Permanente sobre Informações da Câmara, este último com o
poderoso Subcomitê de Fiscalização e Avaliação. Essa equivalência é mais um exemplo do eficaz sistema de equilíbrio da república. O setor legislativo do governo, refletindo ativamente as posições atuais
de um espectro muito mais amplo do corpo político do que o executivo arraigado ou o judiciário vitalício, deve negociar em seu âmbito e alcançar um consenso sobre cada uma das incontáveis questões apresentadas
às suas casas deliberativas. O processo é patentemente frustrador, patentemente exasperador, e comumente justo. Se a concessão é a arte de governar numa sociedade pluralista, ninguém o faz melhor do que
o poder legislativo do governo dos Estados Unidos, com seus inúmeros comitês, muitas vezes insuportáveis e em geral ridículos. Essa avaliação é profunda; uma sociedade pluralista é, de fato, numerosa,
usualmente insuportável para os tiranos em potencial, quase sempre ridícula aos olhos daqueles que querem impor sua vontade aos cidadãos. A moralidade de um homem nunca se torna, através da ideologia,
a legalidade de outro, como muitos no executivo e judiciário gostariam. Com a maior frequência esses quase-fanáticos batem em retirada diante do clamor provindo desses comitês inferiores e turbulentos
do Capitólio. Apesar das aberrações infrequentes e imperdoáveis, a vox populi quase sempre é acatada e a terra se torna melhor por isso.
Mas há alguns comitês no Capitólio em que as vozes são abafadas pela lógica e a necessidade. São os conselhos pequenos e restritos que se concentram nas estratégias projetadas pelas várias agências de
informações do governo. E talvez porque as vozes são essencialmente discretas e os membros são investigados em profundidade por rigorosos procedimentos de segurança, uma certa aura envolve os eleitos para
esses comitês especiais. Sabem de coisas que os outros não têm o privilégio de conhecer; são diferentes, concebivelmente uma espécie melhor de homens e mulheres. Também existe um acordo tácito entre o
Congresso e os meios de comunicação para que estes se contenham nas áreas envolvendo tais comitês; um senador ou congressista é designado, mas sua indicação não se torna uma cause célèbre. Contudo, também
não há sigilo; a designação é feita e uma razão básica apresentada, tanto o ato como a razão expostos com absoluta simplicidade, sem qualquer enfeite. No caso do representante do Nono Distrito do Colorado,
um certo deputado Evan Kendrick, informou-se que era um engenheiro com ampla experiência no Oriente Médio, especialmente no golfo Pérsico. Como poucos conheciam bem aquela região, ficou aceito que o congressista
fora um executivo, anos antes, em algum lugar do Mediterrâneo, e a indicação foi considerada razoável, não causando estranheza.
Contudo, os editores, comentaristas e políticos vivem atentos às nuances de crescente reconhecimento, pois o reconhecimento acompanha o poder no Distrito de Columbia. Há comitês e também comitês. Uma pessoa
designada para o de Assuntos Indígenas não está na mesma faixa de outra que vai para o de Recursos e Meios - a primeira faz o mínimo possível para cuidar de um povo relegado e basicamente privado de seus
direitos; a outra trata dos métodos e procedimentos de todo o financiamento necessário para o governo permanecer em atividade. Meio Ambiente também não está no mesmo nível de Forças Armadas - os orçamentos
do primeiro são cada vez mais abusivamente reduzidos, enquanto os gastos para armamentos se estendem além de todos os horizontes. A distribuição de verbas é o leite materno de toda influência. Contudo,
em termos objetivos, poucos comitês no Capitólio podem alcançar o nimbo, a mística discreta que paira sobre aqueles ligados ao mundo clandestino das informações. Quando há súbitas indicações para tais
comitês especiais, tais conselhos seletos, olhos vigiam, colegas sussurram nos bastidores, os meios de comunicação entram de prontidão com editoras de textos, microfones e câmeras. Geralmente nada decorre
desses preparativos e os nomes deslizam para um esquecimento confortável ou desconfortável. Mas nem sempre; e se Evan Kendrick estivesse a par dessas sutilezas, poderia correr o risco de dizer ao astuto
presidente da Câmara que fosse para o inferno.
Só que ele não estava a par e também não faria a menor diferença se estivesse; o progresso de Inver Brass não podia ser contestado.
Eram seis e meia da manhã, uma manhã de segunda-feira; o sol estava prestes a romper por cima das colinas de Virginia. Nu, Kendrick mergulhava em sua piscina, esperando que nadar dez ou vinte vezes, de
um lado para o outro, na água fria de outubro, poderia remover as teias de aranha que obscureciam sua visão e faziam as têmporas latejarem dolorosamente. Dez horas antes tomara conhaques demais no Colorado,
em companhia de Emmanuel Weingrass, sentado num mirante absurdamente suntuoso, ambos rindo dos córregos visíveis sob o chão de vidro.
- Daqui a pouco vai ver as baleias! - exclamara Manny.
- Como prometeu aos garotos naquele rio meio seco, onde quer que fosse.
- Tínhamos uma isca horrível. Eu deveria ter usado uma das mães. Aquela preta. Ela era deslumbrante!
- O marido era major no Corpo de Engenharia do Exército. Ele poderia protestar.
- A filha era uma criança linda... E morreu junto com todos os outros.
- Oh, Deus, Manny! Por quê?
- Está na hora de você partir.
- Não quero ir.
- Mas deve! Tem uma reunião pela manhã, já está atrasado.
- Posso faltar. Já faltei a uma ou duas outras.
- Uma, e com grande prejuízo para meu bem-estar. Seu jato espera no aeroporto em Mesa Verde. Estará em Washington dentro de quatro horas.
Enquanto nadava, cada braçada mais rápida do que a anterior, Evan pensava na iminente reunião matutina de Fiscalização, admitindo para si mesmo que estava contente por Manny ter insistido que voltasse
à capital. As reuniões do subcomitê o fascinavam... fascinavam, irritavam, espantavam, consternavam, mas acima de tudo fascinavam. No mundo ocorriam muitas coisas de que ele nada sabia, tanto a favor como
contra os interesses dos Estados Unidos. Mas somente em sua terceira reunião percebera um erro recorrente no tratamento que seus colegas dispensavam às testemunhas das diversas agências de informações.
O equívoco era o fato de procurarem falhas nas estratégias das testemunhas para executar determinadas operações, quando deveriam questionar as próprias operações.
Era compreensível, pois os homens que desfilavam por Fiscalização para defender seus casos - exclusivamente homens, o que deveria constituir uma pista - eram profissionais bem-falantes de um violento mundo
clandestino, que reduziam o melodramático desse mundo. Apresentavam seu jargão esotérico com toda suavidade, povoando as imaginações daqueles que escutavam. Era inebriante ser parte do subterrâneo global,
mesmo na qualidade de consultores; alimentava as fantasias adolescentes de adultos maduros. Não havia coronéis Robert Barrishes entre aquelas testemunhas; em vez disso, era um fluxo de homens simpáticos,
bem vestidos, sistematicamente modestos e moderados, que se apresentavam ao subcomitê para explicarem, em termos friamente profissionais, o que poderiam realizar se os recursos fossem fornecidos e por
que era imperativo para a segurança da nação que assim se fizesse. Com bastante frequência, a questão era apenas uma: Pode ser feito? Não se era certo ou mesmo se fazia algum sentido.
Esses lapsos de julgamento ocorriam bastante vezes para incomodar o deputado do Colorado, que por um breve período fora parte daquele mundo selvagem e violento com que as testemunhas lidavam. Não podia
romantizá-lo; sentia a maior aversão por ele. O medo terrível e insidioso que era parte do jogo assustador de tomar e perder vidas humanas nas sombras pertencia a alguma era sinistra em que a própria vida
era medida exclusivamente pela sobrevivência. Não se podia viver nessa espécie de mundo; suportava-se com suor e com dores no estômago, como acontecera com Evan durante a breve exposição. Contudo, ele
sabia que esse mundo continuava; seus habitantes haviam-no salvado dos tubarões em Qatar. Mesmo assim, durante as sessões ele começara a sondar, fazendo perguntas mais e mais implacáveis. Sabia que seu
nome ricocheteava de maneira discreta, elétrica e enfática pelos corredores do Congresso, da CIA e até mesmo da Casa Branca. Quem era aquele agitador, aquele criador de casos? Ele não se importava; tinha
perguntas legítimas e as faria. Afinal, quem era sagrado? Quem estava acima das leis?
Houve uma comoção por cima dele, gestos frenéticos e gritos que mal percebeu através da água rolando por seu rosto na piscina. Parou no meio de uma braçada e sacudiu a cabeça, respingando gotas. O intruso
era Sabri, mas um Sabri Hassan que ele raramente via. O sempre calmo Ph.D. de meia-idade de Dubai estava fora de si, tentando com o maior esforço controlar as ações e palavras, mas mal conseguindo.
- Deve ir embora! - ele gritou, enquanto Evan removia a água dos ouvidos.
- Como... como?
- Oman! Mascate! A história está em todos os canais, todas as emissoras! Há até fotografias suas vestido como um de nós... em Mascate! Tanto o rádio quanto a televisão interrompem os programas a todo instante
para dar as últimas notícias! O fato se espalhou há poucos minutos; os jornais estão segurando suas edições à espera de mais detalhes...
- Santo Deus! - berrou Kendrick, saindo da piscina, enquanto Sabri lhe estendia uma toalha para se envolver.
- Os repórteres e os outros sem dúvida estarão aqui dentro de poucos minutos - disse o árabe. - Tirei o telefone do gancho e Kashi está aprontando nosso carro... perdoe-me, o carro que generosamente nos
deu...
- Esqueça! - gritou Evan, encaminhando-se para a casa. - O que é que sua esposa está fazendo com o carro?
- Pondo suas roupas nele, o suficiente para vários dias. O seu automóvel pode ser reconhecido; o nosso está sempre na garagem. Presumi que ia querer algum tempo para pensar.
- Algum tempo para planejar uns assassinatos! - concordou Evan, correndo para a porta do pátio e subindo pela escada dos fundos, seguido de perto pelo Dr. Hassan. - Como será que aconteceu?
- Receio que seja apenas o começo, meu amigo.
- O quê? - indagou Kendrick, entrando no seu enorme quarto, dirigindo-se para a cômoda e abrindo as gavetas para tirar meias, uma cueca, uma camisa.
- As emissoras estão entrevistando várias pessoas e pedindo comentários. Quase todos são elogiosos, é claro.
- O que mais poderiam dizer? - murmurou Evan, pondo as meias e a cueca, enquanto Sabri desdobrava a camisa lavada e lha entregava. - Que todos estavam torcendo por seus colegas terroristas na Palestina?
Kendrick pôs a camisa e correu para o armário, pegando uma calça. A esposa de Sabri, Kashi, passou pela porta.
- Anahasfa! - ela exclamou, pedindo para ser perdoada e retirando-se.
- Não há tempo para eltakaled, Kashi - gritou o deputado, dizendo-lhe para esquecer as tradições. - Como está se saindo com as roupas?
- Podem não ser as suas escolhas, meu caro Evan, mas servirão para cobri-lo - respondeu a ansiosa esposa, uma mulher de rosto meigo. - Também me ocorreu que pode nos ligar de onde estiver e eu lhe levarei
as coisas de que precisar. Muitas pessoas nos jornais conhecem meu marido, mas ninguém me conhece. Nunca apareço.
- Uma opção sua, não minha - disse Kendrick, pondo o paletó e voltando à cômoda para pegar a carteira, o clipe com dinheiro e um isqueiro. - Podemos ter de fechar esta casa e seguir para o Colorado. E
lá, Kashi, você pode ser minha anfitriã oficial.
- Ora, caro Evan, que bobagem - comentou a Sra. Hassan, soltando uma risadinha. - Não é apropriado.
- Você é o professor, Sabri - acrescentou Kendrick, passando rapidamente um pente pelos cabelos. - Quando vai ensinar a ela?
- Quando ela vai me escutar? Nossas mulheres devem ter vantagens que os homens ignoram.
- Vamos embora!
- As chaves estão no auto, caro Evan...
- Obrigado, Kashi. - Kendrick saiu e desceu a escada, acompanhado por Sabri. Enquanto atravessavam o pórtico para a garagem em que estavam seu Mercedes conversível e o Cadillac Cimarron de Hassan, ele
perguntou: - Quanto da história eles divulgaram?
- Só posso comparar o que ouvi com o que Emmanuel Weingrass me contou, pois você não me disse quase nada.
- Não é que eu quisesse lhe esconder alguma coisa...
- Por favor, Evan - interrompeu o professor. - Há quanto tempo eu o conheço? Fica constrangido ao elogiar a si mesmo, até indiretamente.
- Não há nenhum elogio a fazer! - exclamou Evan, abrindo a porta da garagem. - Eu estraguei tudo! Era um homem morto, com um porco sangrando nas costas, prestes a ser lançado nos baixios de Qatar! Foram
outros que fizeram tudo, não eu! Eles é que me salvaram!
- Sem você, eles não poderiam fazer nada...
- Esqueça - disse Evan, parando junto à porta do Cadillac. - Quanto eles descobriram?
- Na minha opinião, bem pouco. Nenhuma das coisas que Emmanuel me contou, mesmo descontando seus exageros naturais. Os jornalistas estão escavando em busca de detalhes, mas parece que esses detalhes não
estão aparecendo.
- Isso não me diz muita coisa. Por que falou que era apenas o "começo" quando deixamos a piscina?
- Porque um homem que foi entrevistado... arrancado contra a vontade de sua casa, obviamente... um colega seu no Subcomitê de Informações da Câmara, um homem chamado Mason...
- Mason...? - repetiu Kendrick, franzindo o rosto. - Ele é um cara importante em Tulsa ou Phoenix... não me lembro... mas não vale nada. Há poucas semanas houve um movimento discreto para afastá-lo do
comitê.
- Não foi assim que o apresentaram, Evan.
- Tenho certeza que não. O que ele disse?
- Que você era o membro mais astuto do comitê. O mais brilhante e a quem todos escutavam.
- Mas que merda! Falei algumas vezes e fiz umas poucas perguntas, nada mais que isso. Por outro lado, acho que Mason e eu nunca passamos de um "olá". É demais!
- Está também por todo o país...
O barulho de um carro e depois dois, os pneus rangendo ao pararem na frente da casa, rompeu o silêncio na garagem fechada.
- Oh, Senhor! - balbuciou Evan. - Estou acuado!
- Ainda não - disse o Dr. Hassan. - Kashi sabe o que fazer. Deixará as pessoas entrarem, falando hebraico, diga-se de passagem, e as levará pelo solário. Fingirá que não entende o que dizem e assim ganhará
tempo... apenas alguns minutos, é claro. Vá logo, Evan. Pegue o caminho do pasto para o sul, até chegar à estrada. Dentro de uma hora tornarei a pôr o fone no gancho. Ligue para nós. Kashi levará tudo
o que você precisar.
Kendrick continuou a discar insistentemente, batendo no gancho a cada sinal de ocupado, até que afinal, para seu alívio, ouviu o som da campainha.
- Residência do deputado Kendrick...
- Sou eu, Sabri.
- Agora estou realmente espantado porque conseguiu completar a ligação... e também satisfeito, porque poderei tirar o fone do gancho outra vez.
- Como estão as coisas?
- Calamitosas, meu amigo. Também em seu gabinete e na casa do Colorado. Cercaram tudo.
- Como sabe?
- Ninguém quer sair daqui e, como você, Emmanuel conseguiu finalmente nos ligar... com muitas blasfêmias. Disse que estava tentando há quase meia hora...
- Ganhei por dez minutos. O que disse ele?
- A casa está cercada. Há multidões por toda parte. Ao que parece, os repórteres de jornal e televisão voaram para Mesa Verde, onde a maioria ficou retida, já que os três táxis locais não podiam transportar
tanta gente.
- Tudo isso deve estar explodindo a mente de Manny.
- O que explode a mente dele, como você disse, é a falta de instalações sanitárias.
- Como assim?
- Ele se recusou a franqueá-las e depois observou atos de necessidade fisiológica por todos os lados da casa, o que o levou a correr para a estante de espingardas.
- Oh, Deus, devem estar mijando por todo o jardim... o seu jardim!
- Ouvi muitas vezes os impropérios de Emmanuel no passado, mas nunca qualquer coisa parecida. Durante sua explosão, no entanto, ele conseguiu me dizer para falar com a senhora O’Reilly no seu gabinete,
já que ela não conseguiu ligar para cá.
- E o que disse Annie?
- Para você ficar sumido por algum tempo, mas... nas palavras dela... "pelo amor de Deus", ligar para ela.
- Acho que não devo - murmurou Evan, pensativo. - A esta altura, quanto menos eu souber, melhor será.
- Onde você está?
- Num motel nos arredores de Woodbridge, perto da Rota 95. Chama-se Three Bears e estou na cabana 23. É a última do lado esquerdo, perto do bosque.
- Por essa descrição, presumo que precisa de coisas. Comida, sem dúvida; não pode sair e correr o risco de ser visto, e não deve haver serviço de quarto num motel com cabanas...
- Tem razão, não há comida. Parei numa lanchonete no caminho.
- Ninguém o reconheceu?
- Estavam passando desenhos animados na televisão.
- Do que precisa?
- Espere até saírem as últimas edições dos jornais da manhã e mande Jim, o jardineiro, a Washington, para comprar todos os que puder encontrar. Sobretudo os mais importantes; devem ter lançado seus melhores
repórteres, que devem ter falado com muitas pessoas.
- Darei uma lista a ele. E depois Kashi levará os jornais para você.
Só à uma e meia da tarde a mulher de Sabri chegou ao motel em Woodbridge, Virginia. Evan abriu a porta da cabana 23, grato ao descobrir que ela viera na pickup do jardineiro. Não pensara nisso antes, mas
seus dois amigos de Dubai entenderam que não deviam sair com o Mercedes através da multidão que cercava a casa. Enquanto Kendrick segurava a porta, Kashi fez uma segunda e terceira viagem à pickup, pois
também trouxera comida, além de uma pilha de jornais de todo o país. Havia sanduíches em invólucros de plástico, duas garrafas de leite num balde de gelo, quatro pratos quentes divididos igualmente entre
ocidentais e árabes, uma garrafa de uísque canadense.
- Ora, Kashi, não vou passar uma semana inteira aqui.
- Isto é para hoje a noite, caro Evan. Está sob muita tensão e precisa comer. A caixa na mesa tem talheres e uma armação de metal para colocar o Sterno e esquentar. Há também roupas de cama e banho, mas
se precisar sair daqui de repente eu gostaria que me ligasse, para que eu venha buscar as coisas.
- Por quê? O oficial intendente vai nos expulsar se não levar tudo de volta?
- Eu sou a intendente, caro Evan.
- Obrigado, Kashi.
- Parece cansado, yasahbee. Não descansou?
- Não. Fiquei vendo a maldita televisão... e quanto mais vejo, mais raiva sinto. O descanso é difícil quando se está furioso.
- Como meu marido diz, e concordo com ele, foi bastante eficaz na televisão. Ele também diz que nós devemos deixá-lo.
- Por quê? Ele me disse isso há várias semanas e ainda não entendo o motivo!
- Claro que entende. Somos árabes, e você vive numa cidade que desconfia de nós; está agora numa arena política que não nos tolera. E não queremos prejudicá-lo.
- Kashi, essa não é a minha arena! Estou caindo fora, não aguento mais! Diz que é uma cidade que não confia em vocês? Por que deveriam ser diferentes? Esta cidade não confia em ninguém! É uma cidade de
mentirosos, charlatães e impostores, homens e mulheres que montam nas costas uns dos outros para chegarem mais perto do mel. Estão estragando um bom sistema, sugando o sangue de todas as veias que conseguem
abrir, proclamando a santidade patriótica de suas causas, enquanto o país senta e aplaude o que não sabe que está pagando! Isto não é para mim, Kashi! Caio fora!
- Está transtornado...
- E como poderia deixar de estar?
Kendrick correu para a cama e a pilha de jornais.
- Caro Evan - disse a esposa árabe, com uma firmeza que Kendrick nunca ouvira antes. Ele voltou-se, segurando vários jornais nas mãos, e ela acrescentou, fitando-o nos olhos: - Esses jornais vão ofendê-lo
e, para ser franca, houve trechos que ofenderam a Sabri e a mim.
- Entendo - murmurou Kendrick, estudando-a. - Todos os árabes são terroristas. Tenho certeza de que está escrito aqui, em letras garrafais.
- E de maneira inequívoca.
- Mas não é sobre isso que quer falar.
- Não, não é. Eu disse que você ficaria ofendido, e essa palavra não é bastante forte. Ficará furioso. Mas antes de fazer qualquer coisa que possa ser irremediável, peço-lhe que me escute, por favor.
- Pelo amor de Deus, Kashi, o que quer me dizer?
- Graças a você, meu marido e eu pudemos assistir a diversas sessões do Senado e da Câmara dos Deputados. E também, por sua causa, tivemos o privilégio de testemunhar discussões legais diante dos ministros
de seu Supremo Tribunal.
- Não são exclusivamente meus. E daí?
- O que vimos e ouvimos foi extraordinário. Questões de estado, até mesmo leis, abertamente discutidas, não por simples suplicantes, mas por homens doutos... Você vê o lado mau, o lado diabólico, sem dúvida
o que diz é verdade, mas não existe também outra verdade? Vimos muitos homens e mulheres veementes defenderem as coisas em que acreditam, sem medo de serem escorraçados ou silenciados...
- Podem ser escorraçados, mas não silenciados. Nunca.
- Ainda assim, eles assumem riscos por suas causas, pois muitas vezes existem riscos profundos, não é mesmo?
- É, sim. Eles se tornam públicos.
- Por suas convicções?
- Exatamente...
Kendrick deixou as palavras se desfazerem no ar. O argumento de Kashi Hassan era claro; era também uma advertência a ele, naquele momento de fúria que o consumia.
- Então há pessoas de bem no que você chama de "um bom sistema". Por favor, Evan, lembre-se disso. Por favor, não as diminua.
- Não o quê?
- Eu me expressei mal. Perdoe-me. Tenho de ir agora. - Kashi encaminhou-se rapidamente para a porta, depois virou-se. - Eu lhe peço, yasahbee, se em sua ira sentir que deve fazer alguma coisa drástica,
em nome de Alá, fale primeiro com meu marido ou, se assim desejar, com Emmanuel... Contudo, sem preconceito, pois amo nosso irmão judeu tanto quanto você, meu marido talvez seja um pouco mais controlado.
- Pode contar com isso.
Kashi saiu e Kendrick literalmente saltou sobre os jornais, expondo cada um em cima da cama, as primeiras páginas em fileiras sucessivas, as manchetes visíveis.
Se um grito primal pudesse atenuar a angústia, sua voz teria espatifado o vidro das janelas da sufocante cabana.
The New York Times
Nova York, terça-feira, 12 de outubro
CONGRESSISTA EVAN KENDRICK DO COLORADO TERIA SIDO FUNDAMENTAL NA CRISE DE OMAN
ENGANOU TERRORISTAS ÁRABES, INDICA MEMORANDO SECRETO
The Washington Post
Washington, D.C., terça-feira, 12 de outubro
KENDRICK DO COLORADO REVELADO COMO ARMA SECRETA DOS ESTADOS UNIDOS EM OMAN
DESCOBERTA CONEXÃO COM TERRORISTAS ÁRABES
Los Angeles Times
Los Angeles, terça-feira, 12 de outubro
ARQUIVOS REVELADOS MOSTRAM KENDRICK, DEPUTADO PELO COLORADO, COMO CHAVE DA SOLUÇÃO DE OMAN
TERRORISTAS PALESTINOS TINHAM APOIO ÁRABE - AINDA SECRETO
Chicago Tribune
Chicago, terça-feira, 12 de outubro
CAPITALISTA KENDRICK LIBERTA REFÉNS DETIDOS POR TERRORISTAS COMUNISTAS
ASSASSINOS ÁRABES CONFUSOS POR TODA PARTE COM REVELAÇÕES
New York Post
Nova York, terça-feira, 12 de outubro
EVAN, O MENSCH DE OMAN, DERROTA OS ÁRABES!
MOVIMENTO EM JERUSALÉM PARA FAZÊ-LO CIDADÃO HONORÁRIO DE ISRAEL! NOVA YORK EXIGE UM DESFILE TRIUNFAL!
USA Today
Quarta-feira, 13 de outubro
"COMANDO" KENDRICK CONSEGUIU!
TERRORISTAS ÁRABES QUEREM SUA CABEÇA! NÓS QUEREMOS UMA ESTÁTUA!
Kendrick ficou parado junto da cama, os olhos deslocando-se depressa de uma manchete para outra, a mente esvaziada de todos os pensamentos, exceto de uma única indagação. Por quê? E enquanto a resposta
se esquivava, outra questão foi pouco a pouco entrando em foco. Quem?
21
Se havia uma resposta a qualquer das duas perguntas, não seria encontrada nos jornais. Estavam repletos de fontes "autorizadas", "altamente situadas" e até mesmo "confidenciais", a maioria acompanhada
por "Sem comentários", "Nada a declarar neste momento" e "Os eventos em questão estão sendo analisados", declarações todas carentes de confirmação.
O que desencadeara aquela grande repercussão fora um memorando interno secreto, em papel timbrado do Departamento de Estado. Aparecera, sem assinatura, egresso dos arquivos secretos, presumivelmente subtraído
por um funcionário ou funcionários sentindo que uma grande injustiça fora cometida contra um homem pelos rigores irracionais da segurança nacional, o medo paranoico de represálias terroristas sem dúvida
encabeçando a lista. Cópias do memorando foram enviadas simultaneamente aos jornais, agências noticiosas e emissoras de rádio e televisão, todas chegando entre cinco e seis horas da manhã, horário do leste.
Acompanhando cada memorando havia três fotografias diferentes do deputado em Mascate. Não era possível negar.
Tudo planejado, pensou Evan. O tempo foi escolhido para surpreender a nação ao despertar, as notícias se tornando inevitáveis durante o dia.
Por quê?
Mais surpreendentes eram os fatos revelados - tão extraordinários pelo que omitiam quanto pelo que expunham. Eram espantosamente exatos, chegando a detalhes como a sua ida de avião para Oman sob sigilo
total, a saída do aeroporto em Mascate com a proteção de agentes de informações que lhe haviam fornecido trajes árabes e até mesmo a geleia para escurecer a pele e tornar suas feições compatíveis com a
"área de operações". Oh, Senhor! Área de operações!
Havia detalhes superficiais, muitas vezes hipotéticos, de contatos que ele fizera com homens que conhecera no passado, os nomes censurados - espaços em preto no memorando, por motivos óbvios. Um parágrafo
descrevia seu encarceramento voluntário numa prisão terrorista, onde ele quase perdera a vida mas descobrira os nomes que precisava conhecer para chegar aos homens por trás dos fanáticos palestinos na
embaixada, especificamente um nome - também censurado, um espaço em preto no memorando. Ele encontrara esse homem - censurado, um espaço em preto - e o obrigara a desmontar o esquema terrorista que ocupava
a embaixada em Mascate. Esse personagem fundamental fora fuzilado - detalhes censurados, um parágrafo inteiro em preto - e Evan Kendrick, deputado do Nono Distrito do Colorado, voltara sob a proteção dos
Estados Unidos.
Especialistas haviam sido convocados para examinar as fotografias. Cada uma delas fora submetida a análise espectográfica para determinar a autenticidade em relação à época dos negativos e a possibilidade
de alterações em laboratório. Tudo ficara confirmado, até mesmo o dia e o mês, extraídos de uma ampliação de vinte vezes de um jornal levado por um pedestre nas ruas de Mascate. Os jornais mais responsáveis
ressaltaram a ausência de fontes alternativas que pudessem ou não emprestar credibilidade aos fatos tão superficialmente apresentados, mas nenhum pôde contestar as fotografias ou a identidade do homem
que nelas aparecia. E esse homem, o deputado Evan Kendrick, não era encontrado em parte alguma para confirmar ou negar a incrível história. O New York Times e o Washington Post descobriram os poucos amigos
e vizinhos que conseguiram localizar na capital, assim como em Virginia e Colorado. Nenhum deles tinha visto ou ouvido o deputado durante o período em questão, um ano antes - o que por si mesmo devia significar
que se teriam lembrado, se ele mantivesse contato.
O Los Angeles Times foi mais longe e, sem revelar suas fontes, divulgou um levantamento telefônico do Sr. Kendrick. Exceto por ligações para diversas lojas locais e um certo James Olsen, jardineiro, houvera
apenas cinco telefonemas possivelmente relevantes da residência do congressista em Virginia, durante um período de quatro semanas. Três foram para os departamentos de Estudos Árabes nas universidades de
Georgetown e Princeton; um para o diplomata do emirado árabe de Dubai, que voltara para sua terra sete meses antes; e o quinto para um advogado em Washington, que se recusara a falar à imprensa. A relevância
que se danasse; os cães de caça estavam apontando, embora a presa tivesse desaparecido.
Os jornais menos responsáveis, o que significava a maioria dos que não dispunham de recursos para financiar amplas investigações e todos os tabloides, que não se preocupavam com a confirmação, tiveram
um dia jornalístico cheio. Aproveitaram o memorando secreto revelado como um trampolim para as águas agitadas da especulação heroica, sabendo que suas edições seriam arrebatadas pelos leitores mais crédulos.
As palavras impressas, com mais frequência do que se poderia desejar, são palavras de verdade para os desinformados - um julgamento condescendente, é verdade, mas nem por isso menos verdadeiro.
O que faltava em cada história, no entanto, eram justamente as verdades mais profundas que completariam as revelações espantosamente acuradas. Não havia qualquer menção a um jovem e bravo sultão de Oman,
que arriscara a vida e a linhagem para ajudá-lo. Ou aos omanitas que o protegeram, tanto no aeroporto quanto nas ruas perigosas da cidade. Ou a uma estranha e excepcionalmente profissional mulher que o
resgatara do pátio congestionado de outro aeroporto, em Bahrain, depois de ele ser quase assassinado, que lhe assegurara um santuário e um médico para cuidar de seus ferimentos. Acima de tudo, não havia
qualquer referência à unidade israelense comandada por um agente do Mossad, que o salvara de uma morte que ainda o fazia estremecer de horror. Ou mesmo a outro americano, um idoso arquiteto do Bronx, sem
o qual ele teria sucumbido há um ano, o corpo devorado pelos tubarões de Qatar.
Em vez disso, um tema comum aparecia nas matérias: todo árabe era maculado pela tinta da brutalidade inumana e pelo terrorismo. A própria palavra árabe tornava-se sinônimo de crueldade e barbarismo, sem
que se concedesse qualquer resquício de decência a um povo inteiro. Quanto mais estudava os jornais, mais furioso Evan se tornava. E, subitamente, num acesso de raiva, ele jogou as folhas todas no chão.
Por quê?
Quem?
Logo ele sentiu uma dor terrível no peito. Ahmat! Oh, Cristo, o que fizera ele? O jovem sultão compreenderia, poderia compreender? Por omissão - por silêncio - os meios de comunicação americanos haviam
condenado todo o país de Oman, deixando à especulação insidiosa sua impotência árabe diante dos terroristas ou, pior ainda, sua cumplicidade árabe na matança selvagem e injustificada de cidadãos americanos.
Tinha de ligar para seu jovem amigo e avisar que não possuía o menor controle sobre o que acontecera. Kendrick sentou na beira da cama; pegou o telefone, ao mesmo tempo em que enfiava a mão no bolso da
calça para tirar a carteira. Equilibrando o fone sob o queixo, segurou o cartão de crédito. Não se lembrando da sequência de números da discagem direta para Mascate, chamou a telefonista. Subitamente o
som do disco desapareceu e, por um momento, Kendrick entrou em pânico, os olhos arregalados orientando-se para as janelas.
- O que é, vinte e três? - perguntou uma voz rouca de homem na linha.
- Eu estava tentando ligar para a telefonista.
- Pode discar até um código de área que a ligação cai aqui na mesa.
- Eu... eu preciso fazer uma ligação internacional - murmurou Kendrick, atordoado.
- Por este telefone, não.
- Com um cartão de crédito. Como posso falar com uma telefonista... Vou debitar a ligação ao número do meu cartão de crédito.
- Ficarei escutando até você dar o número e ele ser aceito como real, entendido?
Ele não estava entendendo! Seria uma armadilha? Teria sido descoberto num velho motel em Woodbridge, Virginia?
- Não posso aceitar isso - ele disse, hesitante. - É uma ligação particular.
- Essa é muito boa! - exclamou a voz, desdenhosa. - Pois então procure um telefone público. Há um na lanchonete a uns sete ou oito quilômetros pela estrada. E agora chega, cara, já falou demais...
- Espere um instante! Está bem, fique na linha. Mas assim que a telefonista aceitar a ligação, quero ouvir o seu clique desligando, está certo?
- Claro. Eu pretendia mesmo ligar para Louella Parsons.
- Quem?
- Esqueça, idiota. Estou discando. Pessoas que ficam sozinhas o dia inteiro são maníacas sexuais ou estão com medo.
Em algum lugar nos recessos distantes do golfo Pérsico uma telefonista falando inglês com sotaque árabe disse que não havia estação em Mascate, Oman, com o prefixo 555.
- Disque, por favor! - insistiu Evan, acrescentando em tom mais queixoso: - Por favor!
A campainha tocou oito vezes antes que a voz irritada de Ahmat atendesse:
- Iwah?
- Sou eu, Ahmat, Evan - disse Kendrick em inglês. - Preciso falar com você...
- Falar comigo? - explodiu o jovem sultão. - Ainda tem coragem de me ligar, seu desgraçado?
- Quer dizer que já sabe? Sobre... o que estão dizendo a meu respeito?
- Se eu sei? Uma das coisas boas de ser um garoto rico é ter aqueles pratos no telhado que captam tudo que eu quiser, de onde quiser! Tenho uma vantagem sobre você, ya Shaikh. Já tomou conhecimento das
notícias daqui e do Oriente Médio? De Bahrain e Riad, de Jerusalém e Tel Aviv?
- Claro que não. Só vi o que...
- É tudo o mesmo lixo, uma linda pilha para você sentar! Faça o melhor que puder em Washington, mas não volte para cá.
- Mas quero voltar! Estou voltando!
- Não volte, não para esta parte do mundo. Podemos ler e podemos ouvir, e assistimos à televisão. Você fez tudo sozinho! Liquidou com os árabes! Saia da minha memória, seu filho da puta!
- Ahmat!
- Suma, Evan! Eu nunca poderia acreditar que você fosse capaz de fazer isso. Torna-se um poderoso em Washington nos chamando a todos de animais e terroristas? É essa a única maneira?
- Nunca fiz isso! Nunca disse isso!
- Seu mundo fez! Da maneira como repetem e repetem, fica mais do que óbvio que vocês querem acorrentar todos nós! E quem deu a última mão foi você!
- Não! - protestou Kendrick, gritando. - Não tenho nada com isso!
- Leia a sua imprensa! Assista à sua televisão!
- Isso é obra da imprensa, não de você ou de mim!
- Você é você... mais um filho da puta arrogante, com suas hipocrisias judaico-cristãs... e eu sou eu, um árabe islâmico. E você não vai mais cuspir em mim!
- Eu nunca faria isso, nunca poderia...
- Nem sobre meus irmãos, cujas terras vocês decidiram que deveriam ser roubadas, obrigando aldeias inteiras a abandonarem os lares, os empregos, os negócios humildemente pequenos... mas deles há gerações!
- Pelo amor de Deus, Ahmat, você está falando como se fosse um deles!
- É mesmo? - disse o jovem sultão, a ira e o sarcasmo em sua voz. - Por "eles" presumo que está se referindo a um garoto daqueles milhares e milhares de famílias que foram levadas sob a ponta de armas
a acampamentos adequados para porcos! Para porcos, não famílias! Não para mães, pais e filhos!... É demais, seu americano sabe-tudo, tão eminentemente justo! Se pareço com um deles, lamento muito! E vou
lhe dizer o que lamento ainda mais: ter chegado aqui tão tarde. Compreendo muito mais hoje do que compreendia ontem.
- O que está querendo dizer?
- Repito. Leia sua imprensa, assista à sua televisão, ouça seu rádio. Vocês, povo superior, não estão se preparando para jogar bombas nos nojentos árabes, a fim de não precisarem mais lutar conosco? Ou
preferem deixar isso para seus amigos implacáveis de Israel, que de qualquer modo sempre lhes dizem o que fazer? Vocês se limitarão a lhes entregar as bombas!
- Ei, espere um pouco! - gritou Kendrick. - Aqueles israelenses salvaram minha vida!
- É verdade, mas isso foi apenas acidental! Você não passou de uma ponte para o que eles vieram fazer aqui.
- Mas do que está falando?
- Posso muito bem lhe dizer, já que ninguém mais o fará, ninguém vai publicar esta história. Eles estavam cagando para você, senhor herói. Aquela unidade veio aqui para tirar um homem da embaixada, um
agente do Mossad, um estrategista de alto posto posando como americano naturalizado sob contrato com o Departamento de Estado.
- Oh, não! - murmurou Evan. - Weingrass sabia?
- Se sabia, ficou de boca fechada. Obrigou-os a irem atrás de você em Bahrain. E assim eles lhe salvaram a vida. Não foi planejado. Eles não se importam com qualquer coisa ou com qualquer um além deles
próprios. Os judeus! Iguaizinhos a você, senhor herói!
- Mas que diabo, Ahmat, o que tenho a dizer! Não sou responsável pelo que aconteceu aqui, pelo que foi publicado nos jornais ou mostrado na televisão. Era a última coisa que eu queria...
- Chega! - interrompeu o ex-aluno de Harvard e jovem sultão de Oman. - Nada poderia ser divulgado sem você. E descobri coisas de que não tinha a menor ideia. Quem são os tais agentes secretos que circulam
no meu país? Quem são aqueles contatos que você procurou?
- Mustapha, por exemplo!
- Mustapha está morto! Quem o trouxe secretamente de avião para cá sem me informar? Sou eu quem manda aqui! Quem se arrogou esse direito? Não passo de uma peça num jogo de dominó?
- Nada sei sobre essas coisas, Ahmat. Eu só sabia que precisava chegar aí.
- E eu não tinha a menor importância? Não merecia confiança?... Claro que não, sou um árabe!
- Agora é você quem diz besteira. Estava sendo protegido.
- De quê? De uma conspiração americano-israelense?
- Pelo amor de Deus, Ahmat, pare com isso! Eu nada sabia sobre um agente do Mossad até agora, até você me contar. Se soubesse, teria lhe informado! E já que estamos falando nisso, meu subitamente jovem
fanático, não tive nada a ver com aqueles acampamentos de refugiados ou com as famílias levadas para lá sob a ponta de armas...
- Foram vocês todos! - gritou o sultão de Oman. - Um genocídio por outro, mas nós não tivemos nada a ver com o primeiro! Suma da minha vida!
A linha ficou muda. Um bom homem e um bom amigo, que fora fundamental em salvar sua vida, desaparecia agora. E punha fim a seus planos de voltar a uma parte do mundo que tanto amava.
Antes de se apresentar em público, ele precisava descobrir o que acontecera, quem o fizera acontecer e por quê! Tinha de começar por algum lugar e esse lugar era o Departamento de Estado e um homem chamado
Frank Swann. Claro que seria impossível uma investida frontal contra o Departamento de Estado. Os alarmes soariam no instante em que se identificasse e, como seu rosto fora visto repetidamente na televisão
e metade de Washington o procurava, cada movimento tinha de ser cuidadosamente avaliado. O primeiro passo: como entrar em contato com Swann sem que Swann ou seu gabinete fossem alertados. Seu gabinete?
Evan recordou. Um ano antes entrara no gabinete de Swann e falara com uma secretária dizendo diversas palavras em árabe, a fim de transmitir a urgência de sua visita. Ela desaparecera em outra sala e dez
minutos depois ele falava com Swann no complexo subterrâneo dos computadores. Aquela secretária não era apenas eficiente, mas também bastante protetora, como aparentemente acontecia com a maioria das secretárias
em Washington. E como essa secretária protetora tinha conhecimento de um certo deputado Kendrick, com quem falara um ano antes, talvez fosse receptiva a outra voz também protetora de seu chefe. Valia à
pena tentar; aliás, era a única coisa em que ele podia pensar. Pegou o telefone, discou o código de área 202 para Washington e esperou que o gerente rouco do motel Three Bears entrasse na linha.
- Operações Consulares, gabinete do diretor Swann - disse a secretária.
- Oi - respondeu Kendrick. - Aqui é Ralph, do Intelligence Department. Tenho novidades para Frank.
- Quem é?
- Tudo bem, sou amigo de Frank. Queria apenas avisar a ele que pode haver uma reunião interdivisionária no fim desta tarde...
- Outra? Ele não precisa disso.
- Como está a agenda dele?
- Cheia demais! Está em reunião até as quatro horas.
- Se ele não quiser ser posto na grelha de novo, talvez devesse encurtar o expediente, pegar seu carro e guiar mais cedo para casa.
- Ele, guiar? Não existe a menor possibilidade. Prefere saltar de paraquedas nas selvas da Nicarágua a correr qualquer risco no tráfego de Washington.
- Sabe o que estou querendo dizer. As coisas andam um pouco nervosas por aqui. Ele pode ser metido no espeto.
- Já está no espeto desde as seis horas da manhã.
- Estou apenas tentando ajudar um companheiro.
- Na verdade, ele tem uma consulta marcada com seu médico - disse a secretária subitamente.
- É mesmo?
- Tem agora. Obrigada, Ralph.
- Nunca liguei para você.
- Claro que não, queridinho. Alguém em ID estava apenas conferindo agendas.
Evan estava parado no meio da multidão esperando um ônibus na esquina da Twenty-first Street, observando a entrada do Departamento de Estado. Depois de falar com a secretária de Swann, deixara a cabana
e seguira rapidamente para Washington, parando num centro comercial em Alexandria, onde comprará óculos escuros, um chapéu de pescar de lona com aba larga, e um blusão de brim. Eram 3:48 da tarde; se a
secretária mantivera suas tendências protetoras, Frank Swann, vice-diretor de Operações Consulares, sairia pelas enormes portas de vidro nos próximos quinze a vinte minutos.
E não deu outra. Às 4:03, ele saiu apressado, virando à esquerda na calçada, afastando-se do ponto de ônibus. Kendrick saiu da multidão e foi no encalço do homem do Departamento de Estado, permanecendo
uns dez metros atrás, especulando que meio de transporte seria usado por Swann, o homem que não gostava de guiar em Washington. Se ele tencionava andar, Kendrick o abordaria na frente de algum pequeno
parque ou outro lugar em que pudessem conversar sem serem incomodados.
Swann não continuaria a pé; estava prestes a pegar um ônibus, seguindo para leste, pela Virginia Avenue. Juntou-se a várias outras pessoas que esperavam o mesmo veículo, agora se aproximando devagar pela
rua, até parar. Evan avançou apressado para a esquina; não podia permitir que o diretor de Operações Consulares embarcasse naquele ônibus. Aproximou-se de Swann e tocou em seu ombro.
- Olá, Frank - disse Kendrick jovialmente, tirando os óculos escuros.
- Você! - gritou o atônito Swann, surpreendendo os outros passageiros, enquanto a porta do ônibus se abria.
- Eu mesmo. Acho que é melhor termos uma conversa.
- Santo Deus! Você deve ter perdido o juízo!
- Se perdi, foi você quem me guiou a isso, embora não guie...
Foi o máximo a que chegou a breve conversa, pois subitamente uma voz estranha encheu a rua, ecoando do lado do ônibus!
- É ele! - O homem tinha uma aparência esquisita: desgrenhado, olhos enormes e esbugalhados, cabelos longos, caindo pelas orelhas e testa. - Vejam! Olhem só! É ele! O Comando Kendrick! Eu o vi durante
o dia inteiro na televisão... Tenho sete aparelhos no meu apartamento! Nada acontece que eu não saiba! É ele!
Antes que Kendrick pudesse reagir, o homem arrancou o chapéu de pescaria da sua cabeça.
- Vejam! É ele!
- Vamos sair daqui! - gritou Swann.
Começaram a correr pela rua, o homem estranho atrás, a calça folgada adejando ao vento, o chapéu de Evan na mão, sacudindo os braços.
- Ele está nos seguindo! - gritou o diretor de Operações Consulares, olhando para trás.
- Ficou com o chapéu! - disse Kendrick.
Dois quarteirões adiante, uma velha de cabelos azuis, com uma bengala, descia de um táxi.
- Ali! - gritou Swann. - O táxi.
Esgueirando-se entre os carros, eles atravessaram a larga avenida. Evan embarcou pela porta mais próxima, enquanto o homem do Departamento de Estado dava a volta para entrar pelo outro lado; ajudou a idosa
passageira a saltar e inadvertida mente chutou a bengala, jogando-a no chão, junto com a mulher de cabelos azuis.
- Desculpe, minha cara - murmurou Swann, entrando no banco traseiro.
- Vamos embora! - gritou Kendrick. - Depressa! Saia logo daqui!
- Vocês, seus palhaços, assaltaram um banco ou qualquer coisa parecida - disse o motorista, engrenando o carro.
- E você ficará mais rico se se apressar - acrescentou Evan.
- Estou me apressando, estou me apressando, mas não tenho licença de piloto. Preciso ficar em terra, entende?
Ao mesmo tempo, Kendrick e Swann se voltaram e olharam pela janela traseira. Na esquina, o homem de aparência estranha, com os cabelos desgrenhados e a calça larga estava escrevendo alguma coisa num jornal,
o chapéu de Evan agora na sua cabeça.
- O nome da companhia e o número do táxi - murmurou o diretor de Operações Consulares. - Para onde quer que vamos, teremos de trocar de carro pelo menos um quarteirão depois deste.
- Por que trocar só um quarteirão depois?
- Para que nosso motorista não veja que táxi estamos pegando.
- Parece que você sabe o que está fazendo.
- Espero que sim - respondeu Swann ofegante, tirando um lenço do bolso e enxugando o rosto encharcado de suor.
Vinte e oito minutos e um segundo táxi depois, o deputado e o homem do Departamento de Estado desceram apressados pela rua, num bairro pobre de Washington. Levantaram os olhos para um cartaz vermelho em
neon ao qual faltavam três letras. Era um bar miserável, próprio daquele ambiente. Acenaram com a cabeça um para o outro e entraram, um pouco surpresos com o interior muito escuro, contrastando com o límpido
dia de outubro na rua. A única fonte de luz, ruidosa, era um aparelho de televisão funcionando, embutido na parede por cima do balcão cheio de manchas. Vários fregueses encurvados, negligentes, de olhos
injetados, confirmavam a condição do estabelecimento. Contraindo ambos os olhos na semiescuridão, Kendrick e Swann encaminharam-se para a região mais sombria, à direita da sala; encontraram um reservado
sujo e sentaram de frente um para o outro.
- Insiste mesmo em falar comigo? - indagou o grisalho Swann, respirando fundo, o rosto afogueado e ainda suando.
- Insisto a ponto de promovê-lo a mais novo candidato ao necrotério.
- Tome cuidado. Sou faixa preta.
- Em quê?
Swann franziu o rosto.
- Nunca tive muita certeza, mas sempre dá certo nos filmes, quando nos mostram fazendo o nosso trabalho. Preciso de um drinque.
- Faça sinal para o garçom - disse Kendrick. - Continuarei na sombra.
- Sombra? - Swann levantou a mão, cauteloso, acenando para uma corpulenta garçonete preta com flamejantes cabelos ruivos. - Onde existe alguma claridade por aqui?
- Quando foi a última vez que fez três flexões seguidas, senhor Karatê Kid?
- Em algum momento dos anos 60. No início deles, eu acho.
- Foi a mesma ocasião em que trocaram pela última vez as lâmpadas neste lugar... E agora me diga: como se atreveu a fazer uma coisa dessas, seu mentiroso?
- Como pôde pensar que eu faria isso? - protestou o homem do Departamento de Estado, ficando em silêncio no instante seguinte, quando a grotesca garçonete parou ao lado dos dois com as mãos nos quadris.
Ele perguntou a Evan: - O que vai querer?
- Nada.
- Não é boa ideia aqui. Nem saudável, desconfio. Dois uísques duplos, obrigado. Canadense, se tiver.
- Esqueça - disse a garçonete.
- Esquecido - concordou Swann. A garçonete afastou-se e ele tornou a fitar Kendrick. - É muito engraçado, senhor deputado, é mesmo hilariante. Operações Consulares quer minha cabeça! O secretário de Estado
estabeleceu uma diretriz deixando claro que não sabe quem eu sou, aquele pulguento vacilante e acadêmico! E os israelenses estão gritando porque acham que seu precioso Mossad pode ser comprometido por
uma investigação, enquanto os árabes na nossa folha de pagamento estão furiosos por não receberem o crédito a que têm direito! E às três e meia desta tarde o presidente... o próprio presidente... me censurou
por "negligência no dever". E vou lhe dizer uma coisa: ele entoou isso como se soubesse do que estava falando, o que significava que eu sabia que havia pelo menos mais duas pessoas na linha... Você está
fugindo? Pois eu também estou! Há quase trinta anos vivo neste negócio estúpido...
- Foi assim que o chamei - interrompeu Evan, rapidamente. - Lamento muito.
- E deve lamentar mesmo - disse Swann, sem perder o ritmo. - Porque quem vai cuidar de toda essa merda, exceto nós, miseráveis mais estúpidos do que o sistema? Precisa de nós, Charlie, e não se esqueça
disso. O problema é que não temos muita coisa a mostrar. Não preciso voltar correndo para casa a fim de verificar se a piscina nos fundos foi tratada contra algas por causa do calor... Especialmente porque
não tenho uma piscina e minha mulher ficou com a casa no acordo de divórcio, que aconteceu porque estava cansada de me ver sair para comprar pão e voltar três meses depois com a poeira do Afeganistão ainda
nos ouvidos. Mas pode estar certo, senhor deputado secreto, que não fui eu quem o pôs na berlinda. Ao contrário, fiz tudo o que podia para evitar que acontecesse. Não me restou muita coisa, mas quero permanecer
limpo e sair o mais limpo possível.
- Tentou impedir que me expusessem?
- De maneira suave, circunspecta, muito profissional. Até mostrei a ele uma cópia do memorando que mandei a você, rejeitando-o.
- Mandou a ele?
Swann fitou Kendrick com uma expressão desolada, enquanto a garçonete trazia os drinques e ficava ali parada, batendo com os dedos no tampo da mesa. O homem do Departamento de Estado enfiou a mão no bolso,
consultou a conta e pagou. A garçonete deu de ombros para a gorjeta e afastou-se.
- A ele? - repetiu Evan.
- Vá em frente - disse Swann, tomando um grande gole do uísque. - Crave outro prego, que diferença faz? Não resta mesmo muito sangue.
- Presumo que isso significa que não sabe quem é ele.
- Tenho um nome e uma posição, até mesmo uma recomendação de primeira classe.
- E daí?
- Ele não existe.
- O quê?
- Você me ouviu.
- Ele não existe? - insistiu um frustrado Kendrick.
- Um deles existe, mas não o homem que foi me procurar.
Swann terminou o drinque.
- Não acredito nisso...
- Ivy também não acreditou... É a minha secretária, Ivy a Terrível.
- Mas, afinal, do que está falando?
- Ivy recebeu um telefonema do gabinete do senador Allison, de um cara com quem ela costumava sair, há cerca de dois anos. É agora um dos principais assessores do senador. Pediu a ela que marcasse uma
reunião para um membro da assessoria que estava fazendo um trabalho confidencial para Allison. Ela marcou. E o cara que apareceu era um fantasma louro, com um sotaque que me pareceu ser de algum lugar
da Europa Central. Ele é real, mas pode deixar qualquer um gelado. Se você tem uma cicatriz que só sua mãe conhece, esteja certo de que ele possui um close para mostrar.
- Isso é uma loucura - murmurou Evan. - E me pergunto: por quê?
- Foi o que também especulei. Afinal, as perguntas que ele fez estavam cheias de DA...
- O que é isso?
- Dados anteriores sobre você. Ele sabia quase tanto quanto pôde arrancar de mim. Era tão profissional que me senti disposto a lhe oferecer uma função na Europa.
- Mas por que eu?
- Como já lhe disse, também especulei. Por isso, pedi a Ivy para verificar com o gabinete de Allison. Para começar, por que um senador conservador teria esse tipo SS...
- Como?
- Não é o que está pensando. É "supersinistro". Mas, pensando bem, acho que existe uma relação.
- Quer fazer o favor de não se desviar do assunto?
- Está bem - disse Swann, tomando o segundo uísque. - Ivy liga para o seu antigo namorado e ele não tem a menor ideia do que ela está falando. Nunca lhe fez a ligação e jamais ouviu falar de um assessor
chamado... qualquer que fosse o nome.
- Mas ela devia saber com quem estava falando, pelo amor de Deus! A voz... o papo, o que disseram um ao outro!
- O antigo namorado é da Georgia e estava com laringite quando telefonou, me explicou Ivy. Mas o cara que realmente ligou para ela conhecia os lugares que frequentavam... até mesmo alguns motéis em Maryland
que Ivy não gostaria que o marido soubesse.
- Mas é uma verdadeira operação! - Kendrick inclinou-se e pegou o drinque de Swann. - Por quê?
- Por que tomou meu uísque? Não tenho uma piscina, está lembrado? Nem mesmo uma casa.
Subitamente, o aparelho de TV por cima do balcão lançou no ar o nome "Kendrick!"
Os dois voltaram bruscamente a cabeça para a fonte, os olhos arregalados, incrédulos.
- Sensacional! A história do dia, talvez da década! - gritou um repórter no meio de uma multidão de rostos olhando para a câmera. - Nas últimas doze horas toda Washington vem tentando descobrir o deputado
Evan Kendrick, do Colorado, o herói de Oman, mas em vão. Os piores temores, é claro, concentram-se na possibilidade de retaliação árabe. Fomos informados de que o governo determinou à polícia, hospitais
e necrotérios que permaneçam em alerta. Contudo, há poucos minutos ele foi visto nesta esquina, identificado por um certo Kasimer Bola... Bola... slawski. De onde é o senhor?
- Jersey City - respondeu o homem de olhos desvairados, ainda com o chapéu de Kendrick na cabeça -, mas minhas raízes estão em Varsóvia! A santa Varsóvia de Deus!
- Ou seja, nasceu na Polônia.
- Não exatamente. Em Newark.
- Mas viu o deputado Kendrick?
- Positivamente. Ele estava falando com um homem de cabelos grisalhos, a uns dois quarteirões daqui, ao lado de um ônibus. Quando gritei "Comando Kendrick, é ele!", os dois começaram a correr! Tenho certeza!
Possuo aparelhos de televisão em todos os cômodos, inclusive no banheiro. Nunca perco nada!
- Quando falou a uns dois quarteirões daqui, senhor, estava na verdade se referindo a uma esquina a duas ruas e meia do Departamento de Estado, não é mesmo?
- É isso aí!
- Não temos a menor dúvida... - acrescentou o repórter, em tom confidencial, olhando para a câmera - ... de que as autoridades estão verificando no Departamento de Estado para descobrir se alguma pessoa
como a descrita por nossa testemunha pode ter qualquer participação nesse encontro extraordinário.
- Eu os persegui! - gritou a testemunha de calça larga, tirando da cabeça o chapéu de Evan. - E peguei o chapéu dele! Vejam! É o chapéu do comando!
- Mas o que ouviu, Sr. Bolaslawski, junto do ônibus?
- Posso lhe garantir que as coisas nem sempre são o que parecem! Todo cuidado é pouco. Antes dos dois saírem correndo, o homem de cabelos grisalhos deu uma ordem ao Comando Kendrick. Acho que ele tinha
um sotaque russo, talvez judeu! Os comunas e os judeus... não se pode confiar neles, entende o que quero dizer? Nunca viram o interior de uma igreja! Não sabem o que é a Santa Missa...
O canal de televisão mudou abruptamente para um comercial enaltecendo as virtudes de um desodorante.
- Eu desisto - disse Swann, arrancando à força seu drinque de Evan e tomando tudo o que restara. - Agora sou um toupeira. Um judeu russo da KGB, que não sabe o que é a missa. Quer fazer mais alguma coisa
por mim?
- Não, porque acredito em você. Mas pode fazer uma coisa por mim, e será no interesse de ambos. Preciso descobrir quem está fazendo isso comigo, quem fez as coisas pelas quais você foi culpado, e por quê.
- E se descobrir - interrompeu Swann, inclinando-se para a frente -, vai me contar? Esse é o meu interesse, meu único interesse neste momento. Tenho de sair do espeto e pôr alguém no meu lugar.
- Será o primeiro a saber.
- O que é que você quer?
- Uma lista de todos os que sabiam que fui para Mascate.
- Não é uma lista, mas um pequeno círculo bem apertado. - Swann sacudiu a cabeça, não tanto para ser negativo, mais para explicar. - Não haveria nenhum, se você não dissesse que podia precisar de nós caso
descobrisse alguma coisa que não fosse capaz de manipular. Deixei tudo bem claro. Não podíamos reconhecê-lo, por causa dos reféns.
- Até que ponto o círculo é apertado?
- Deve compreender que tudo foi verbal.
- Entendido. Até que ponto?
- Entre o pessoal não operacional, ficou limitado ao consumado idiota que é o chefe da assessoria da Casa Branca, o insuportável Herbert Dennison, mais os secretários de Estado e da Defesa e o comandante
do Estado-Maior Conjunto. Fui o elemento de ligação de todos os quatro e pode excluí-los. Todos tinham muito a perder e nada a ganhar com essa revelação.
Swann recostou-se no reservado, franzindo o rosto.
- Entre o pessoal operacional, baseei-me rigorosamente no critério de quem-precisa-saber. Houve Lester Crawford, em Langley. Les é o analista da CIA para atividades secretas na área e seu chefe em Bahrain
era um tal Grayson... James Grayson, é isso. Ele esperneou por causa da sua presença e da de Weingrass no setor, achando que a Companhia enlouquecera e estava mergulhando em situações de colhidos-in-ato.
Colhidos-In-Ato... CIA... percebe?
- Prefiro não perceber.
- Havia ainda quatro ou cinco árabes no local, os melhores que nós e a Companhia tínhamos, cada um dos quais estudou sua fotografia, mas não recebeu qualquer indicação sobre a sua identidade. Não podiam
contar o que não sabiam. Os dois últimos sabiam quem você era; um estava no local, o outro aqui em OHIO-Quatro-Zero, operando os computadores.
- Os computadores? - indagou Kendrick. - Impressos?
- Você foi programado apenas no dele; não entrou na unidade central. Seu nome é Gerald Bryce e, se for o culpado, me entregarei ao FBI como o toupeira judeu que trabalha para os soviéticos do Sr. Bolaslawski.
É um cara muito inteligente e esperto, um mago com os equipamentos, não há ninguém melhor. Dirigirá Operações Consulares um dia, se as mulheres o deixarem em paz por tempo suficiente para isso.
- Um playboy?
- Vamos à igreja, reverendo? O garoto tem 26 anos e é mais bonito do que alguém tem o direito de ser. É também solteiro e um tremendo conquistador... Os outros é que falam a respeito; ele mesmo nunca diz
nada. Acho que é por isso que gosto dele. Não restam muitos cavalheiros neste mundo.
- Já gosto dele também. Quem era a última pessoa que me conhecia, a que estava no local?
Frank Swann inclinou-se para a frente, mexendo no copo vazio por um momento, antes de levantar os olhos para Kendrick.
- Pensei que já tivesse calculado.
- Por quê?
- Adrienne Rashad.
- Não significa nada...
- Ela usou uma cobertura...
- Adrienne...? Uma mulher?
Swann acenou com a cabeça. Evan franziu o rosto, depois arregalou os olhos subitamente, as sobrancelhas arqueadas, e sussurrou:
- Khalehla? - O homem do Departamento de Estado tornou a assentir, e ele acrescentou: - Ela era uma de vocês?
- Não uma das minhas, mas uma de nós.
- Foi ela quem me tirou do aeroporto em Bahrain! Aquele filho da puta do MacDonald me jogou na frente dos carros em movimento... quase morri e não sabia onde estava. Ela me tirou de lá... e não sei como
conseguiu!
- Eu sei - disse Swann. - Ela ameaçou estourar os miolos de alguns policiais bahrainianos, a menos que transmitissem seu codinome para a cúpula e obtivessem autorização para tirar você de lá. Não apenas
conseguiu a autorização, mas também um carro da garagem real.
- Diz que ela era uma de nós, mas não uma das suas. O que significa isso?
- Ela é da Agência, mas também especial, uma autêntica intocável. Tem contatos por todo o Golfo e o Mediterrâneo; a CIA não permite que ninguém se meta com ela.
- Sem ela, minha cobertura seria destruída no aeroporto.
- Sem ela, você teria sido um alvo de todos os terroristas circulando por Bahrain, inclusive os soldados do Mahdi.
Kendrick ficou em silêncio por um momento, os olhos perdidos no espaço, lábios entreabertos numa recordação.
- Ela contou onde me escondeu?
- Recusou-se.
- Podia fazer isso?
- Eu disse que ela é especial.
- Entendo... - murmurou Evan.
- Acho que eu também.
- Como assim?
- Nada. Ela tirou você do aeroporto e só estabeleceu contato cerca de seis horas depois.
- Isso é excepcional?
- Nas circunstâncias, pode-se dizer que foi extraordinário. A missão dela era mantê-lo sob vigilância e comunicar no mesmo instante quaisquer movimentos drásticos de sua parte, diretamente a Crawford,
em Langley, que me pediria instruções. Ela não fez isso e em seu relatório oficial omitiu qualquer referência a essas seis horas.
- Ela tinha de proteger o lugar em que estávamos escondidos.
- Claro. Só podia ser real e ninguém se mete com o emir ou sua família.
- Claro. - Kendrick tornou a ficar em silêncio, o olhar perdido nas regiões escuras do decrépito bar. Depois acrescentou devagar, hesitante: - Era uma boa pessoa. Conversamos. Ela compreendeu muitas coisas.
Admirei-a.
- Ora, deputado, deixe disso. - Swann inclinou-se sobre o copo vazio. - Acha que é a primeira vez?
- O quê?
- Duas pessoas numa situação perigosa, um homem e uma mulher, nenhum dos dois sabendo se verá outro dia ou outra semana. Os dois se unem, é natural. E daí?
- Está sendo muito ofensivo, Frank. Ela significou alguma coisa para mim.
- Está certo, serei franco. Não creio que você tenha significado coisa alguma para ela. É uma profissional, já enfrentou algumas guerras terríveis em sua ADO.
- Sua o quê?
- Área de Operações...
- Usaram isso nos jornais.
- Não foi culpa minha. Se dependesse de mim, neutralizaria todos os filhos da puta que escreveram aquelas matérias.
- Por favor, não me explique o que significa "neutralizar".
- Não vou explicar. Só lhe direi que, no campo, todos nós escorregamos às vezes, quando estamos exaustos ou apenas apavorados. Aproveitamos umas poucas horas de prazer seguro e depois descartamos como
uma bonificação há muito atrasada. Acreditaria que até fazemos preleções sobre o assunto às pessoas que enviamos para o campo?
- Acredito agora. Para ser franco... as circunstâncias me passaram pela cabeça na ocasião.
- Ótimo. Esqueça-a. Ela é estritamente mediterrânea e não tem nada a ver com a cena local. Para começar, provavelmente teria de voar para a África do Norte se quisesse encontrá-la.
- Então tudo o que tenho é um homem chamado Crawford em Langley e um chefe de posto em Bahrain.
- Nada disso. Tem um louro com sotaque da Europa Central, operando aqui em Washington. E operando bem fundo. Obteve a informação em algum lugar e não foi comigo, não foi com OHIO-Quatro-Zero. Descubra-o.
Swann forneceu a Evan os números de seus telefones diretos, no gabinete e em seu apartamento, depois saiu correndo do bar escuro e miserável, como se precisasse de ar. Kendrick pediu um uísque à corpulenta
garçonete preta de flamejantes cabelos vermelhos e perguntou onde ficava o telefone público, se é que havia algum. Ela informou e acrescentou:
- Se bater duas vezes no canto inferior esquerdo, terá sua moeda de volta.
- Se eu o fizer, darei a você, está bem?
- Dê a seu amigo - respondeu a mulher. - Vagabundos de terno nunca deixam gorjetas, brancos ou pretos, não faz diferença.
Kendrick levantou-se e avançou cauteloso para a parede escura e o telefone. Estava na hora de ligar para o seu gabinete. Não podia aplicar mais pressão sobre a Sra. Ann Mulcahy O’Reilly. Contraindo os
olhos, ele inseriu a moeda e discou.
- Gabinete do deputado Ken...
- Sou eu, Annie.
- Deus do céu, onde está você? Já passa das cinco horas e isto aqui continua um hospício!
- É por isso que não estou aí.
- Antes que eu me esqueça! - gritou a Sra. O’Reilly, ofegante. - Manny ligou há pouco e foi bastante enfático, mas não clamoroso... o que significa o mais sério que ele consegue ser.
- O que foi que ele disse?
- Que você não deve falar com ele pela linha do Colorado.
- Como?
- Ele me pediu para dizer "allcott massghoul", o que quer que isso signifique.
- É bastante claro, Annie.
Weingrass dissera alkhatt mashghool, o que em árabe significa "a linha está grampeada". Se Manny estava certo, a origem de qualquer telefonema poderia ser determinada numa questão de momentos.
- Não farei nenhuma ligação para o Colorado - acrescentou Evan.
- Ele pediu também para lhe dizer que irá de carro a Mesa Verde, assim que a situação se acalmar, ligará para mim e dará um número onde poderá alcançá-lo.
- Verificarei com você mais tarde.
- E agora, Super-homem, pode me dizer se é verdade o que todos estão falando? Fez mesmo todas aquelas coisas em Oman ou onde quer que tenha sido?
- Apenas umas poucas. Deixaram de fora muitas pessoas que deveriam ser incluídas. Alguém está tentando me transformar em alguma coisa que não sou. Como está enfrentando a situação por aí?
- A mesma coisa de sempre, "Sem comentários" e "Nosso chefe viajou".
- Ótimo. Fico contente em saber disso.
- Não, deputado, não é ótimo porque há algumas coisas que não podemos resolver à maneira comum. Conseguimos controlar os malucos e a imprensa, até mesmo os seus colegas, mas não podemos controlar Mil e
Seiscentos.
- A Casa Branca?
- O antipático chefe da assessoria em pessoa. Não podemos dizer "Sem comentários" para o porta-voz do presidente.
- O que disse ele?
- Deu-me o número de um telefone, para o caso de você ligar. É sua linha particular e ele fez questão que eu soubesse que menos de dez pessoas em Washington conhecem o número...
- Gostaria de saber se o presidente é uma delas - comentou Kendrick, meio jocoso.
- Ele afirmou que é, e disse também que é uma ordem presidencial direta que você ligue imediatamente para o chefe da sua assessoria.
- Uma ordem o quê?
- Ordem presidencial.
- Alguém devia fazer o favor de ler a Constituição para aqueles palhaços. O poder legislativo deste governo não recebe ordens diretas do executivo, presidenciais ou de qualquer outra espécie.
- Reconheço que a escolha das palavras por ele foi uma estupidez - Ann O’Reilly apressou-se em continuar -, mas se souber o que mais ele disse, pode tornar-se mais receptivo.
- Continue.
- Ele disse que compreendiam por que você sumiu e que providenciariam uma pickup sem qualquer identificação para buscá-lo no lugar que indicar... E agora posso lhe falar como uma irmã mais velha nesta
Cidade dos Palhaços, senhor?
- Claro.
- Não pode continuar fugindo, Evan. Mais cedo ou mais tarde terá de aparecer e é melhor saber o que eles estão pensando por lá antes de fazê-lo. Por que não descobre o que eles estão querendo? Talvez evite
um desastre.
- Qual é o número?
22
Herbert Dennison, chefe da assessoria da Casa Branca, fechou a porta do seu banheiro particular e pegou o vidro de Maalox que guardava no canto direito da bancada de mármore. Em sequência precisa, tomou
quatro goles do líquido cor de giz, sabendo por experiência que eliminaria as pontadas ardentes na parte superior do peito. Anos antes, em Nova York, quando as crises tinham começado, ele ficara tão apavorado
que mal conseguia comer ou dormir, convencido de que, depois de sobreviver ao inferno da Coreia, morreria na rua de parada cardíaca. Sua esposa na ocasião - a primeira de três - também ficara fora de si,
incapaz de decidir se o levava primeiro ao hospital ou se procurava o corretor de seguros a fim de aumentar o valor da apólice. Sem que ele soubesse, ela tomara a segunda medida; uma semana depois Herbert
cedera e se internara no Centro Médico Cornell para um exame meticuloso.
O alívio viera quando os médicos proclamaram que seu coração era tão forte quanto o de um jovem touro e que os acidentais ataques de mal-estar eram provocados por espasmos periódicos de excesso de ácido,
produzidos sem dúvida por tensão. Daquele dia em diante, em quartos, escritórios, automóveis e valises, sempre mantinha à disposição vidros do branco líquido apaziguador. A tensão era uma parte de sua
vida.
O diagnóstico dos médicos fora tão acurado que, com o passar dos anos, tornara-se capaz de prever, com uma diferença de uma ou duas horas, quando ocorreriam os acessos ácidos. Durante seus dias em Wall
Street, invariavelmente aconteciam com as flutuações mais violentas no mercado de títulos ou quando entrava em choque com os colegas, que sempre tentavam frustrá-lo em seu ímpeto para conquistar riqueza
e posição. Eram todos uns merdas, pensou Dennison. Não passavam de garotos de luxo, egressos de universidades de luxo e que pertenciam a clubes de luxo, onde não o deixavam entrar, muito menos o admitiam
como sócio. Quem se importava? Esses mesmos clubes aceitavam agora judeus, crioulos e até mesmo carcamanos! Bastava que falassem como atores bichas e comprassem suas roupas de Paul Stuart ou de algum veado
francês. Pois cagara em cima de todos eles! Possuía os instintos viscerais de um brigador de rua em ação no mercado, fizera tanta coisa que a porra da firma tivera de promovê-lo a presidente ou teria saído,
levando milhões. E reformara a firma até convertê-la na mais ágil e agressiva de Wall Street. Para isso, livrara-se dos veteranos inúteis e daquele corpo imbecil dos chamados trainees, que consumiam dinheiro
e desperdiçavam o tempo de todo mundo. Criara duas máximas que se tornaram uma escritura sagrada na firma. A primeira: Supere os números do ano passado ou caia fora. A segunda era igualmente sucinta: Você
não é treinado aqui, já chega aqui treinado.
Herb Dennison nunca se importara se os outros gostavam dele ou não; a teoria de que o fim justificava os meios lhe convinha de maneira esplêndida, obrigado. Aprendera na Coreia que os oficiais complacentes
eram muitas vezes recompensados com caixões de GI por sua falta de disciplina rigorosa e de autoridade mais firme no campo. Sabia que os soldados odiavam a sua firmeza proverbial, a ponto de se manter
sempre atento à possibilidade de ser atingido por uma granada americana; apesar de todas as baixas, acabara convencido de que teriam sido muito maiores se os molengas estivessem no comando.
Como os chorões de Wall Street: "Queremos projetar confiança, Herb, continuidade..." Ou: "O jovem aprendiz de hoje é o diretor de amanhã - sempre leal." Tudo besteira! Não se conseguia lucros com base
na confiança, continuidade ou lealdade. Obtinha-se os lucros ao fazer as outras pessoas ganharem dinheiro, isso era toda a confiança, continuidade e lealdade que queriam! E ele provara o acerto de sua
orientação, aumentando a lista de clientes até que os computadores estavam prestes a explodir, roubando talentos de outras corretoras, fazendo questão de receber a compensação do que pagava, ou os novos
garotos também seriam chutados.
Claro, ele era duro, talvez até implacável, como muitos o chamaram, tanto pessoalmente como pela imprensa, e também perdera umas poucas pessoas boas pelo caminho, mas o principal era que nas porcentagens
estava certo. E o provara, tanto na vida militar quanto na civil... e, no entanto, ao final, nas duas, os merdas haviam cagado em cima dele. Na Coreia, o comandante do regimento quase lhe prometera a promoção
a coronel no momento da baixa; nunca acontecera. Em Nova York - por Deus, fora pior, se é que isso era possível! - seu nome fora aventado como o mais novo membro do Conselho de Administração da Wellington-Midlantic
Industries, a organização mais prestigiosa nas finanças internacionais. Nunca acontecera. Nos dois casos, os vínculos da velha escola prevaleceram e ele fora preterido no momento da escalada. Resolvera
então pegar seus milhões e dizer: Fodam-se todos!
Mais uma vez acertara, pois encontrara um homem que precisava ao mesmo tempo do seu dinheiro e seus consideráveis talentos: um senador de Idaho que começava a erguer sua voz candente e extraordinariamente
sonora, dizendo coisas em que Herb Dennison acreditava com fervor, mas também um político que podia rir e divertir suas crescentes audiências sem deixar de instruí-las.
O homem de Idaho era alto e atraente, com um sorriso que não tinha paralelo desde Eisenhower e Shirley Temple, e muitas anedotas e homilias que defendiam os valores antigos da força, coragem, autoconfiança
e, acima de tudo, para Dennison, liberdade de opção. Herb voara para Washington e fizera um pacto com o senador. Por três anos empenhara todas as suas energias e vários milhões - além de milhões adicionais
de numerosos homens anônimos para os quais ganhara fortunas - até que tinham um tesouro que daria para comprar o papado, obviamente se estivesse no mercado.
Herb Dennison arrotou; o líquido branco fazia efeito, mas não com bastante rapidez; precisava estar pronto para o homem que entraria na sua sala dentro de poucos minutos. Tomou mais dois goles e contemplou-se
no espelho, infeliz com a visão dos cabelos grisalhos cada vez mais ralos, que penteava retos para trás nos dois lados, a parte esquerda mais definida, o topo da cabeça coerente com a imagem de seriedade.
Observando-se agora, desejou que os olhos cinza-esverdeados fossem maiores; abriu-os o mais que podia; ainda eram muito estreitos. E uma insinuação de papada sob o queixo lembrou-o que devia fazer algum
exercício ou comer menos, nenhuma das duas perspectivas o atraindo. E também especulou por que, com todo o dinheiro que pagava por seus ternos, não se parecia mais com os homens dos anúncios que os alfaiates
britânicos lhe enviavam. Ainda assim, havia nele um ar imponente de força, enfatizado pela postura rígida e o queixo projetado para a frente, duas coisas que aperfeiçoara ao longo dos anos.
Arrotou outra vez e tomou mais um gole do seu elixir pessoal. Filho da puta do Kendrick! Aquele ninguém-subitamente-alguém era a causa da sua irritação e mal-estar... Mas se queria ser franco consigo -
e sempre tentava ser honesto para si mesmo, embora nem sempre para os outros - não era o ninguém-alguém por si mesmo, mas sim o efeito do filho da mãe sobre Langford Jennings, o presidente dos Estados
Unidos. Mas que merda! O que é que Langford estava pensando? (Em seus pensamentos, Herb tivera de se controlar, substituindo "o presidente" por "Langford", o que o deixara ainda mais furioso; era parte
da tensão, parte da autoridade que a Casa Branca exigia e que Dennison tanto detestava... Depois da posse e três anos a chamá-lo pelo primeiro nome, Jennings conversara com o chefe de sua assessoria durante
um dos bailes e lhe dissera naquela sua voz suave e jovial, impregnada de autodepreciação e bom humor: "Sabe que não me importo, Herb, mas acho que o cargo... não eu, mas o cargo... exige que você me trate
de ‘Senhor presidente’... não concorda?" E ponto final!)
O que é que Jennings estava pensando? Sobre a aberração do Kendrick, o presidente concordara com tudo o que Herb propusera, mas as reações haviam sido muito casuais, beirando o desinteresse, o que perturbava
o chefe da assessoria. A voz melíflua de Jennings soara despreocupada, mas os olhos não transmitiam qualquer ausência de preocupação. De vez em quando Langford Jennings surpreendia todo mundo na Casa Branca.
Dennison torcia para que aquela não fosse uma dessas ocasiões quase sempre constrangedoras.
O telefone no banheiro tocou, a proximidade fazendo com que o chefe da assessoria derramasse Maalox no paletó do terno de Savile Row. Desajeitado, ele atendeu o telefone com a mão direita, enquanto com
a esquerda abria a torneira de água quente, molhando uma toalha de rosto. Enquanto falava, esfregou freneticamente o pano úmido nas manchas brancas, grato por desaparecerem no tecido escuro.
- O que é?
- O deputado Kendrick acaba de chegar ao Portão Leste, senhor. A revista está sendo efetuada.
- O quê?
- Estão revistando-o à procura de armas e explosivos...
- Essa não! Eu nunca disse que ele era um terrorista! Veio num carro do governo, com dois agentes do Serviço Secreto!
- O senhor manifestou um alto grau de apreensão e desprazer...
- Mande-o subir imediatamente!
- Ele pode se vestir primeiro, senhor?
- Merda!
Seis minutos depois um Evan Kendrick furioso foi introduzido na sala por uma apreensiva secretária. Em vez de agradecer à mulher, a expressão de Evan transmitia outra mensagem: Saia logo daqui, madame,
pois quero este homem só para mim. Ela se retirou apressada, enquanto o chefe da assessoria se adiantava, a mão estendida. Kendrick ignorou-a.
- Já ouvi falar de suas diversões e jogos por aqui, Dennison - disse Evan, a voz baixa e sem qualquer inflexão, fria como gelo -, mas quando se atreve a revistar um membro da Câmara que aqui se encontra
a seu convite... é assim que tem de ser, seu escroto; você não me dá ordens... portanto foi longe demais.
- Uma incompreensão total das instruções, deputado! Por Deus, como pode pensar que seria de outra forma?
- Com você parece que seria muito fácil. Muitos colegas meus já tiveram de confrontá-lo. As histórias de horror são várias, inclusive o soco que deu no nariz do representante do Kansas; segundo me contaram,
deixou-o estatelado no chão.
- Isso é mentira! Ele menosprezou os procedimentos da Casa Branca, pelos quais sou responsável. Posso tê-lo tocado, apenas para que permanecesse no seu lugar, mas isso foi tudo. E aí ele me pegou de surpresa.
- Não é o que me consta. Disseram-me que ele o chamou de "major de merda" e você perdeu a cabeça.
- Distorção! Absoluta distorção! - Dennison estremeceu; o ácido entrava em erupção. - Escute! Peço desculpas pela revista...
- Não peça. Não chegou a ser total. Aceitei tirar o paletó, achando que era o procedimento normal, mas quando o guarda falou em camisa e calça, meus acompanhantes, muito mais inteligentes, interferiram.
- Então por que está tão irritado?
- Por você sequer ter considerado essa possibilidade... e se não o fez, pelo menos criou aqui a mentalidade para torná-la possível.
- Eu poderia me defender dessa acusação, mas não vou perder tempo. E agora vamos para o Gabinete Oval... e pelo amor de Deus, não confunda o homem com toda aquela história árabe. Lembre-se de que ele não
sabe o que aconteceu e não adiantará tentar explicar posições. Esclarecerei tudo para ele mais tarde.
- Como posso saber que é capaz disso?
- O quê?
- Você me entendeu. Como posso saber se é capaz ou confiável?
- Mas do que está falando?
- Acho que esclareceria só o que quisesse esclarecer, diria apenas o que quer que ele ouça.
- Quem é você para me falar assim?
- Provavelmente alguém tão rico quanto você. E também alguém que está saindo desta cidade, como certamente Swann já lhe contou. Portanto, sua bênção política é insignificante para mim... e, de qualquer
forma, eu não a aceitaria. Quer saber de uma coisa, Dennison? Acho que você não passa de um autêntico rato. Não da variedade simpática do Mickey Mouse, mas o animal original. Um roedor repulsivo que come
carniça, de rabo comprido, que espalha uma doença nojenta. Chama-se não responsabilidade.
- Não mede as palavras, não é mesmo, deputado?
- Não preciso. Estou de partida.
- Mas ele não está! E o quero forte, persuasivo. Vai nos levar para uma nova era. Estamos nos tornando altos de novo e já não era sem tempo. Estamos dizendo à ralé deste mundo para cagar ou desocupar o
penico!
- Suas expressões são tão banais quanto você.
- Mas você, o que é? Algum garoto bonito com um diploma de inglês? Entenda uma coisa, deputado. Aqui estamos jogando duro; esse é o ponto! As pessoas nesta administração têm de cagar direito ou caem fora.
Percebe?
- Tentarei me lembrar.
- E já que estamos falando sobre isso, tente se lembrar também que ele não gosta de desacordo. Tudo sob controle, entendido? Nada de ondas; todo mundo feliz, compreendeu?
- Vive se repetindo, não acha?
- Eu faço as coisas acontecerem, Kendrick. Esse é o nome do jogo duro.
- Não passa de uma máquina mesquinha.
- Então não gostamos um do outro. E daí? Não é grande coisa...
- Já entendi isso.
- Vamos embora.
- Não tão depressa. - Kendrick falou com firmeza e foi até uma janela, como se aquele gabinete fosse seu e não do homem do presidente. - Qual é o roteiro? Não é essa a palavra que se costuma usar?
- Como assim?
- O que quer de mim? - indagou Kendrick, olhando para o gramado da Casa Branca. - E já que me faz pensar nisso, por que estou aqui?
- Porque ignorá-lo seria contraproducente.
- É mesmo? - Kendrick virou-se para fitar o chefe da assessoria da Casa Branca. - Contraproducente?
- Você tem de ser reconhecido, não é claro? Ele não pode ficar de braços cruzados e fingir que você não existe, certo?
- Já entendi. Digamos que em uma de suas divertidas mas não muito esclarecedoras entrevistas coletivas alguém mencione meu nome, o que é agora inevitável. Ele não pode responder que não tem certeza se
eu jogo pelos Jets ou pelos Giants, não é mesmo?
- Pegou a coisa. Vamos embora. Eu orientarei a conversa.
- Está querendo dizer que vai controlá-la, não é mesmo?
- Chame como quiser, deputado. Ele é o maior presidente do século XX, não se esqueça disso. Meu trabalho é manter o status quo.
- Não é o meu trabalho.
- Uma ova que não é! É um trabalho para todos nós. Estive em combate, meu jovem, vi homens morrendo na defesa de nossas liberdades, do nosso modo de vida. E era uma coisa sagrada! Pois este homem, este
presidente, restaurou os valores, os sacrifícios que tanto prezamos. Ele lançou o país no rumo certo, pela pura força de sua vontade, de sua personalidade, se preferir assim. Ele é o melhor!
- Mas não necessariamente o mais brilhante - interrompeu Kendrick.
- Isso não significa porra nenhuma. Galileu daria um péssimo papa e um césar ainda pior.
- Acho que tem razão nesse ponto.
- Claro que tenho. E agora o roteiro... A explicação é simples e bastante familiar. Algum filho da puta vazou a história de Oman e você quer que seja esquecida o mais depressa possível.
- Eu quero?
Dennison fez uma pausa, estudando o rosto de Evan como se fosse decididamente desgracioso.
- Essa premissa se baseia no que o idiota do Swann disse ao comandante do Estado-Maior Conjunto...
- Por que Swann é um idiota? Ele não vazou a história. E tentou conter o homem que foi procurá-lo.
- Ele deixou que acontecesse. Estava no comando da operação, deixou que acontecesse, e providenciarei para que seja enforcado.
- Tudo que se passou está errado.
- Como?
- Não importa. Mas só para ter certeza de que ambos estamos usando o mesmo roteiro: por que eu quero que tudo seja esquecido o mais depressa possível?
- Porque pode haver represálias contra os seus nojentos amigos árabes que estão por lá. Foi o que você disse a Swann e o que ele relatou a seus superiores. Quer mudar?
- Claro que não - respondeu Kendrick placidamente. - O roteiro é o mesmo.
- Ótimo. Vamos realizar uma curta cerimônia, em que ele lhe agradecerá em nome de toda a porra do país. Sem perguntas, apenas uma sessão restrita de fotografias, depois você desaparece. - Dennison gesticulou
para a porta. Os dois se encaminharam para lá. Com a mão na maçaneta, o chefe da assessoria acrescentou: - Quer saber de uma coisa, deputado? Seu aparecimento agora vai estragar uma das melhores campanhas
de rumores que qualquer administração podia querer... isto é, em termos de relações públicas.
- Uma campanha de rumores?
- Isso mesmo. Quanto mais ficássemos em silêncio, esquivando-nos às perguntas com base na segurança nacional, mais pessoas pensariam que o presidente forçara pessoalmente o acordo de Oman.
- Foi essa a impressão que ele transmitiu - comentou Evan sorrindo sem maldade, como se admirasse um talento mesmo sem o aprovar.
- Ele pode não ser um Einstein, mas ainda é uma porra de um gênio.
Dennison abriu a porta. Evan não se mexeu.
- Posso lembrá-lo de que onze homens e mulheres foram assassinados em Mascate? Que mais de duzentas outras pessoas terão pesadelos pelo resto de suas vidas?
- Tem toda razão! - exclamou Dennison. - E ele disse isso... com lágrimas nos olhos! Disse que foram autênticos heróis americanos, tão bravos quanto aqueles que lutaram em Verdun, Omaha Beach, Panmunjom
e Danang! O homem disse isso, deputado, e estava falando sério, e todos nós crescemos em estatura!
- Ele disse isso enquanto reduzia as opções, deixando sua mensagem bem clara - concordou Kendrick. - Se alguma pessoa foi responsável por salvar aqueles duzentos e trinta e seis reféns, deve ter sido ele.
- E daí?
- Não importa. Vamos acabar logo com isso.
- É um homem estranho, deputado. E tem toda razão numa coisa: você não pertence a esta cidade.
Evan Kendrick só se encontrara uma vez com o presidente dos Estados Unidos. O encontro durara aproximadamente cinco segundos, talvez seis, durante uma recepção na Casa Branca aos congressistas em primeiro
mandato, oferecida pelo chefe do partido. Sua presença era obrigatória, segundo Ann Mulcahy O’Reilly, que praticamente ameaçara explodir o gabinete se ele não comparecesse. Não era porque não gostasse
do homem, Evan explicara a Annie; apenas não concordava com uma porção de coisas que Langford Jennings defendia - talvez mais do que uma porção, talvez a maior parte. E em resposta à pergunta da Sra. O’Reilly,
sobre o motivo que o levara a concorrer pelo partido, ele só pudera dizer que na eleição o outro partido não tinha a menor chance de eleger seu candidato.
A impressão predominante que Evan tivera, durante o breve aperto de mão com Langford Jennings, na fila de recepção, fora mais abstrata do que real, embora não totalmente assim. O cargo era ao mesmo tempo
intimidativo e sufocante. O fato de um único ser humano dispor de um poder global tão assustador estendia até os limites o pensamento de qualquer mente humana. Um lapso qualquer, um horrível erro de cálculo,
poderia explodir todo o planeta. Mas... mas... apesar da avaliação pessoal de Kendrick, que incluía um homem com intelecto menos do que brilhante e com tendência para a supersimplificação, além da tolerância
com palhaços fanáticos como Herbert Dennison, havia em Langford Jennings uma imagem impressionante, uma imagem que o cidadão comum da república ansiava desesperadamente manter na presidência. Evan tentara
compreender o véu diáfano que protegia o homem do escrutínio mais meticuloso e acabara chegando à conclusão de que o próprio escrutínio era irrelevante, em comparação com seu impacto. O mesmo acontecera
com os impactos de Nero, Calígula, vários papas e imperadores loucos e autoritários, além dos supremos vilões do século XX, Mussolini, Stalin e Hitler. Contudo, aquele homem nada demonstrava do mal inerente
aos outros; em vez disso, transmitia uma forte confiança, que parecia irradiar-se do seu eu mais profundo. Jennings era também abençoado com um físico grande e aprazível, e com uma convicção ainda maior
- e a pureza da sua convicção era tudo para ele. Era ainda um dos homens mais simpáticos e envolventes que Kendrick já observara.
- É um grande prazer conhecê-lo, Evan! Posso chamá-lo de Evan, senhor deputado?
- Claro, senhor presidente.
Jennings contornou a escrivaninha no Gabinete Oval para um aperto de mão, pegando o braço esquerdo de Kendrick enquanto as mãos se encontravam.
- Acabei de ler todo o material secreto sobre as coisas que você fez e devo lhe dizer que estou muito orgulhoso...
- Houve muitas outras pessoas envolvidas, senhor. Sem elas eu teria sido morto.
- Sei disso. Sente-se, Evan, sente-se!
O presidente voltou à sua cadeira; Herbert Dennison permaneceu de pé.
- A sua atitude, Evan, como indivíduo, será uma aula para gerações de jovens americanos. Empunhou o chicote e o fez estalar.
- Nada fiz sozinho, senhor. Há uma longa lista de pessoas que arriscaram suas vidas para me ajudar... e várias a perderam. Como eu disse, estaria morto se não fosse por essas pessoas. Houve pelo menos
uma dúzia de omanitas, do jovem sultão para baixo, e uma unidade de comandos israelenses, que me encontrou quando só me restavam literalmente poucas horas. Minha execução estava marcada...
- Sei de tudo isso, Evan - interrompeu Langford Jennings, balançando a cabeça e franzindo o rosto, compadecido. - E sei também que nossos amigos em Israel exigem que não haja qualquer referência sobre
a sua participação, e que nossa comunidade de informações aqui em Washington se recusa a assumir o risco de expor nosso pessoal no golfo Pérsico.
- Golfo de Oman, senhor presidente.
- Estou do seu lado - disse Jennings, exibindo o famoso sorriso que encantara a nação. - Não tenho certeza se poderei distinguir um do outro, mas aprenderei esta noite. Como meus implacáveis críticos diriam,
minha mulher não vai me dar biscoitos e leite enquanto eu não aprender.
- Isso seria injusto, senhor. É uma parte do mundo geograficamente complexa quando a pessoa não a conhece bem.
- Mas acho que eu poderia aprender com um mapa escolar.
- Não tive a intenção de insinuar...
- Está tudo bem, Evan, a culpa é minha. Escorrego de vez em quando. O principal problema agora é o que faremos com você. O que devemos fazer, levando em consideração as restrições a que estamos sujeitos
para proteger as vidas de agentes e subagentes que trabalham para nós naquela explosiva parte do mundo?
- Eu diria que essas restrições necessárias exigem que tudo seja mantido em sigilo...
- É um pouco tarde para isso, Evan - interrompeu Jennings. - Os álibis da segurança nacional só podem ir até certo ponto. Além desse ponto, passa a despertar muita curiosidade; é quando as coisas se tornam
difíceis... e perigosas.
- Além disso - acrescentou Herbert Dennison, rompendo seu silêncio, rispidamente -, como eu já lhe expliquei, deputado, o presidente não pode simplesmente ignorá-lo. Não seria uma atitude generosa nem
patriótica. Na minha opinião, e o presidente concorda comigo, devemos realizar uma curta sessão fotográfica aqui, no Gabinete Oval, em que receberá as congratulações do presidente. Haverá também uma série
de fotos em que os dois parecerão estar empenhados numa conversa confidencial. Será coerente com o sigilo exigido por nossos serviços de contraterrorismo. O país compreenderá. Não podemos revelar nossas
táticas à ralé árabe.
- Sem muitos árabes, eu nada teria conseguido e sabe disso muito bem! - protestou Kendrick, os olhos furiosos fixados no chefe da assessoria.
- Sabemos disso, Evan - interveio Jennings, os olhos obviamente divertidos pelo que observava. - Pelo menos eu sei. E por falar nisso, Herb, recebi um telefonema esta tarde de Samuel Winters e acho que
ele teve uma boa ideia, que não violaria qualquer uma de nossas preocupações com a segurança; mais do que isso, poderia até explicá-las.
- Samuel Winters não é necessariamente um amigo - reagiu Dennison. - Absteve-se de inúmeros endossos políticos que poderíamos usar no Congresso.
- Muito bem, ele não concordou conosco. Isso o converte num inimigo? Se assim fosse, seria melhor mandar metade dos fuzileiros da guarda para os aposentos das nossas famílias. Deixe disso, Herb. Sam Winters
tem sido um conselheiro de presidentes dos dois partidos por tanto tempo quanto posso me lembrar. Só um idiota não aceitaria as suas opiniões.
- Ele deveria ter falado comigo primeiro.
- Está vendo, Evan? - O presidente inclinou a cabeça para o lado, sorrindo maliciosamente. - Posso brincar na caixa de areia, mas não posso escolher meus amigos.
- Não foi o que eu...
- Claro que não foi o que quis dizer, Herb, e está tudo bem para mim. Você dá um jeito para que as coisas sejam feitas por aqui... e faz questão de me lembrar isso constantemente, o que também está bem
para mim.
- O que o senhor Winters... o professor Winters... sugeriu? - indagou Dennison, o título acadêmico pronunciado com sarcasmo.
- Ele é de fato um "professor", Herb, mas não o seu mestre ordinário, não é mesmo? Afinal, se ele quisesse, poderia comprar algumas boas universidades. Tenho certeza de que aquela que cursei poderia ser
dele, por um cheque que não lhe faria falta.
- Qual foi a ideia? - insistiu o chefe da assessoria, ansioso.
- Que eu conceda a meu amigo Evan a Medalha da Liberdade. - O presidente virou-se para Kendrick. - É o equivalente civil da Medalha de Honra do Congresso, Evan.
- Sei disso, senhor. Mas não a mereço e não a quero.
- Sam deixou algumas coisas bem claras e acho que ele está certo. Para começar, você realmente merece e, quer queira ou não, eu pareceria um miserável se não a concedesse. E isso, meus caros, não vou admitir.
Entendido, Herb?
- Entendido, senhor presidente - respondeu Dennison, a voz sufocada. - Mas deve saber que o deputado Kendrick, embora não tenha oposição à sua reeleição, tenciona renunciar ao cargo em futuro próximo.
Não há sentido, uma vez que o congressista tem objeções pessoais, em focalizar mais atenção nele.
- O sentido, Herb, é que eu não serei um tipo mesquinho. De qualquer forma, ele parece que poderia ser meu irmão mais moço... e deveríamos aproveitar isso. Sam Winters chamou minha atenção para o fato.
A imagem de uma família americana dinâmica, como ele disse. Nada mau, não concorda?
- Não é necessário, senhor presidente - insistiu Dennison, agora frustrado, a voz rouca sugerindo que ele não podia pressionar mais. - Os temores do deputado são válidos. Ele acha que pode haver represálias
contra amigos seus no mundo árabe.
O presidente recostou-se na cadeira, os olhos sem qualquer expressão definida fixados no chefe da assessoria.
- Isso não me convence. Aquele é um mundo perigoso e só o tornaremos ainda mais perigoso se cedermos a esses disparates especulativos. Mas explicarei ao país... de uma posição de força, não de medo...
que não permitirei a revelação total das operações em Oman por motivos de estratégia contraterrorista. Estava certo nessa parte, Herb. Na verdade, Sam Winters me falou primeiro. Mas o importante é que
não vou parecer um miserável medíocre. Não posso ser assim. Entendido, Herb?
- Entendido, senhor.
- Evan - continuou Jennings, o sorriso contagioso outra vez estampado no rosto -, você é o meu tipo de homem. O que fez foi sensacional... o que li a respeito... e este presidente não será mesquinho! Por
falar nisso, Sam Winters sugeriu que eu deveria confirmar que trabalhamos juntos. E, afinal de contas, meu pessoal trabalhou com você, o que é a verdade do evangelho.
- Senhor presidente...
- Pode marcar, Herb. Verifiquei minha agenda e espero que não se sinta ofendido por isso. Na próxima terça-feira, às dez horas da manhã. Assim pegaremos os noticiários noturnos das redes de televisão,
e terça-feira é uma noite de muita audiência.
- Mas, senhor presidente... - começou Dennison, atordoado.
- E também vou querer a Banda dos Fuzileiros, Herb. No Salão Azul. Nunca vou me tornar um tipo mesquinho! Não sou assim!
Um furioso Herbert Dennison voltou ao seu gabinete com Kendrick a reboque, a fim de cumprir a ordem presidencial: acertar os detalhes para a cerimônia de premiação no Salão Azul, na terça-feira seguinte.
Com a Banda dos Fuzileiros. A ira do chefe da assessoria era tão intensa que suas grandes e firmes mandíbulas se contraíam no silêncio.
- Sou realmente um problema para você, não é mesmo, Herbie? - comentou Evan, observando a raiva nas passadas de Dennison.
- É mesmo um problema para mim, e meu nome não é Herbie.
- Não sei, não. Parecia um Herbie lá atrás. O homem o cortou em pedacinhos, não é mesmo?
- Há ocasiões em que o presidente se mostra propenso a escutar as pessoas erradas.
Kendrick observou o chefe da assessoria enquanto desciam pelo largo corredor. Dennison ignorou os cumprimentos hesitantes de numerosos funcionários da Casa Branca que seguiam na direção oposta, vários
dos quais fitaram Evan com os olhos arregalados, obviamente reconhecendo-o.
- Não estou entendendo - disse Kendrick. - Pondo de lado nossa aversão mútua, qual é o seu problema? Eu é que estou sendo obrigado a aceitar uma coisa que não quero, não você. Por que está uivando?
- Porque você fala demais. Eu o vi no programa de Foxley, e aquela pequena demonstração no seu gabinete na manhã seguinte. Você é contraproducente.
- Gosta dessa palavra, não é mesmo?
- Tenho uma porção de outras que posso usar.
- Estou certo que sim. Mas também posso ter uma surpresa para você.
- Outra? O que é?
- Espere até chegarmos à sua sala.
Dennison ordenou que a secretária suspendesse todas as ligações, exceto as de Prioridade Vermelha. Ela acenou com a cabeça, num reconhecimento obediente, mas explicou, em voz intimidada:
- Já existe mais de uma dúzia de mensagens, senhor. E quase todas são urgentes.
- São Prioridade Vermelha? - A mulher sacudiu negativamente a cabeça. - O que acabei de lhe dizer?
Com essas palavras corteses, o chefe da assessoria empurrou o deputado para sua sala e bateu a porta.
- E agora me diga: qual é a sua surpresa?
- Sabe, Herbie, não posso deixar de lhe dar um conselho. - Evan encaminhou-se calmamente para a janela em que estivera postado antes; virou-se e olhou para Dennison. - Pode ser grosseiro com os subalternos
tanto quanto quiser ou eles suportarem, mas nunca mais ponha a mão num membro da Câmara dos Deputados nem o empurre para sua sala como se estivesse prestes a lhe aplicar uma surra.
- Não empurrei você!
- Interpretei assim e isso é tudo o que importa. Tem uma mão muito pesada, Herbie. Tenho certeza de que meu distinto colega do Kansas sentiu a mesma coisa quando o jogou de rabo no chão.
Inesperadamente, Herbert Dennison fez uma pausa, depois riu baixinho. O riso prolongado e profundo era pensativo, não furioso nem antagônico, mais um som de alívio do que qualquer outra coisa. Ele afrouxou
a gravata e foi sentar-se numa poltrona de couro na frente da sua escrivaninha.
- Eu gostaria de ser dez ou doze anos mais jovem, Kendrick, e poderia então dar-lhe uma lição... Era capaz disso nessa idade. Aos 63 anos, no entanto, aprende-se que a cautela é a parte mais importante
da coragem, ou algo parecido. Não gostaria de ser derrubado; está se tornando cada vez mais difícil reerguer-se.
- Então não peça por isso, não provoque. Está sempre provocando.
- Sente-se, deputado... na minha cadeira, à minha mesa. Vamos, pode sentar. - Evan assim fez. - Que tal? Sente um prurido na espinha, um fluxo de sangue para a cabeça?
- Nada disso. Só parece um lugar para o trabalho.
- Bem, acho que somos mesmo diferentes. No outro lado do corredor está o homem mais poderoso do mundo, e ele confia em mim. Para dizer a verdade, também não sou nenhum gênio. Apenas mantenho o hospício
em funcionamento. Lubrifico a máquina para as engrenagens rodarem, e o óleo que uso tem muita acidez, assim como eu. Mas é o único lubrificante de que disponho, e funciona.
- Acho que tem alguma razão nesse ponto - comentou Kendrick.
- Também acho, tenho certeza, que você não se sentirá ofendido. Desde que estou aqui... desde que nós estamos aqui... todo mundo se curva na minha frente e diz as maiores lisonjas com imensos sorrisos...
Mas seus olhos dizem que prefeririam meter uma bala na minha cabeça. Já passei por isso antes; não me incomoda. E de repente você aparece e diz que vá me foder. É uma novidade. Posso lidar com esse fato.
Isto é, gosto que você não goste de mim e de eu não gostar de você... faz sentido?
- Acho que sim, de uma maneira meio invertida. Mas também você é um homem diferente.
- Por quê? Porque prefiro falar com franqueza em vez de ficar com rodeios? Falsos protestos de apreço e bajulação só servem para desperdiçar tempo. Se eu pudesse me livrar das duas coisas, faríamos dez
vezes mais do que agora.
- Alguma vez deixou que alguém soubesse disso?
- Provavelmente não, e talvez, se as pessoas soubessem, o hospício poderia se transformar num sanatório oficial. Pense a respeito, Kendrick. Há mais de um aspecto na minha posição.
- Não estou qualificado a fazer comentários sobre isso, mas esta conversa torna as coisas mais fáceis para mim.
- Mais fáceis? Ah, está se referindo à surpresa que tem para mim?
- Isso mesmo. Até certo ponto, farei o que está querendo que eu faça... por um preço. É o meu pacto com o demônio.
- Você me lisonjeia.
- Não tive essa intenção. Também não sou dado à adulação, porque desperdiça o meu tempo. Pelo que entendi, sou "contraproducente" porque fiz algum barulho a propósito de coisas em que acredito, e o que
você ouviu vai de encontro à sua índole. Estou certo até aqui?
- Certo nas minúcias, garoto. Pode parecer diferente, mas para mim tem muito daqueles protestos idiotas, cabeludos e repulsivos.
- E acha que se eu tiver um palanque pode haver mais, o que o deixa preocupado. Certo de novo?
- Bem na mosca. Não quero que qualquer coisa ou qualquer indivíduo prejudique a voz dele, os compromissos que assumiu. Ele nos tirou da trilha dos fracos; estamos voando num forte vento Chinook, e isso
é ótimo.
- Não tentarei entender isso.
- Provavelmente não poderia...
- Basicamente, quer duas coisas de mim - Evan apressou-se em continuar. - A primeira é que eu fale o mínimo possível e não diga nada capaz de pôr em dúvida a sabedoria que emana deste seu hospício. Estou
perto?
- Não poderia chegar mais perto sem ser preso.
- E a segunda é o que já disse antes. Quer que eu desapareça... e desapareça depressa. Como estou me saindo?
- Possui o dom da adivinhação.
- Muito bem, farei as duas coisas... até certo ponto. Depois da pequena cerimônia na próxima terça-feira, que nenhum de nós quer, mas perdemos para o homem, meu gabinete será inundado pelo clamor dos meios
de comunicação. Jornais, emissoras de rádio e televisão, revistas semanais... toda a bola de cera. Sou notícia e eles querem vender a mercadoria...
- Não está me dizendo nada que eu não saiba ou não goste - interrompeu Dennison.
- Recusarei tudo - declarou Kendrick, incisivo. - Não darei entrevistas. Não falarei em público sobre qualquer assunto e desaparecerei tão depressa quanto puder.
- Eu poderia beijá-lo neste momento se não tivesse mencionado algo contraproducente, como "até certo ponto". O que significa isso?
- Significa que na Câmara votarei de acordo com a minha consciência, e se for questionado no plenário apresentarei meus motivos da forma mais imparcial possível. Mas isso será na Câmara; fora do Capitólio,
não estarei disponível para comentários.
- A maior parte da barragem de relações públicas acontece fora do Capitólio, não lá dentro - comentou o chefe da assessoria da Casa Branca, pensativo. - O Congressional Record e as câmeras da emissora
de cabo C-Span não afetam o Daily News e o Dallas. Nas circunstâncias, graças àquele filho da puta insinuante do Sam Winters, sua oferta é tão irresistível que tenho de me perguntar qual é o preço. Pois
presumo que tem um preço.
- Quero saber quem me denunciou. Quem vazou a história de Oman de maneira tão profissional.
- Pensa que eu também não quero saber? - explodiu Dennison, inclinando-se para a frente. - Eu daria aos filhos da puta um sepultamento no mar, a cem quilômetros ao largo de Newport News, dentro de torpedos!
- Então me ajude a descobrir. Esse é o meu preço. Aceite-o ou me aguente repetindo o programa de Foxley por todo o país, chamando você e sua turma do que sinceramente acho que são. Um bando de Neanderthais
empavonados defrontando-se com um mundo complicado que não conseguem compreender.
- E você é o porra que conhece tudo?
- Claro que não. Apenas sei que vocês não são. Observo e escuto, vejo vocês cortarem muitas pessoas que poderiam ajudá-los, só porque há um desvio qualquer em suas listas que não se conformam com seus
padrões preconcebidos. E aprendi uma coisa esta tarde; vi e ouvi. O presidente dos Estados Unidos conversou com Samuel Winters, um homem que você desaprova; mas quando explicou por que não gostava dele,
que o homem se abstivera de endossos que poderiam ajudá-los no Congresso, Langford Jennings disse algo que me impressionou bastante. Disse a você que se esse tal Sam Winters discordava de uma ou outra
política, isso não o transformava em inimigo.
- O presidente muitas vezes não distingue quem são seus inimigos. Reconhece aliados ideológicos bem depressa e se apega a eles... às vezes por tempo demais, para ser franco... mas em geral é muito generoso
para identificar aqueles que podem destruir tudo o que ele defende.
- Esse é o argumento mais fraco e mais presunçoso que já ouvi, Herbie. De que está protegendo seu homem? De opiniões diferentes?
- Vamos voltar à sua grande surpresa, deputado. Gosto mais desse tópico.
- Não tenho a menor dúvida.
- O que sabe você que nós não sabemos e que pode nos ajudar a descobrir quem vazou a história de Oman?
- Essencialmente o que descobri por intermédio de Frank Swann. Como chefe da unidade OHIO-Quatro-Zero ele era o elemento de ligação com os secretários de Defesa e de Estado, além do comandante do Estado-Maior
Conjunto, todos os quais tinham conhecimento da minha existência. Swann me disse para excluí-los como possíveis fontes do vazamento, mas...
- E pode excluir mesmo - interrompeu Dennison. - Eles não são capazes de responder às perguntas mais simples, parecem idiotas primitivos. De passagem, acrescente-se que não são tão idiotas e circulam por
aqui há tempo bastante para saberem o que é um sigilo absoluto e por que existe. O que mais?
- Neste caso, além de você... e falando francamente, eu só o excluo porque minha revelação é o máximo em matéria de "contraproducente" que suas células cinzentas avariadas podem conceber... só restam três
pessoas.
- Quem são?
- A primeira é um homem chamado Lester Crawford, na CIA; a segunda é o chefe do posto em Bahrain, James Grayson. E a última é uma mulher, Adrienne Rashad, que aparentemente é propriedade especial e opera
do Cairo.
- O que tem eles?
- Segundo Swann, são as únicas pessoas que sabiam da minha identidade quando voei para Mascate.
- Esse é o nosso pessoal - disse Dennison, incisivo. - O que me diz do seu pessoal por lá?
- Não posso afirmar que é impossível, mas acho remoto. Os poucos com que fiz contato, excetuando o jovem sultão, estão muito afastados de qualquer contato com Washington, a tal ponto que deveria considerá-los
por último, se é que deveria. Ahmat, a quem conheço há anos, certamente não o faria por muitos motivos, começando por seu trono e, de igual importância, pelos vínculos com este governo. Dos quatro homens
com quem falei pelo telefone, apenas um respondeu, e foi morto por isso... indubitavelmente com o consentimento dos outros. Estavam apavorados. Não queriam me ver, nem mesmo reconhecer a minha presença
em Oman. Até se afastaram de qualquer pessoa que soubessem ter-se encontrado comigo e que poderia torná-los suspeitos. Você precisaria viver lá para compreender isso. Todos têm a síndrome terrorista, sentem
adagas na garganta... e nas gargantas das pessoas de suas famílias. Já houvera represálias: um filho morto, uma filha estuprada e desfigurada porque primos ou tios exigiram ação contra os palestinos. Não
creio que qualquer um daqueles homens fosse capaz de mencionar meu nome diante de um cachorro surdo.
- Mas em que espécie de mundo esses malditos árabes vivem?
- Num mundo em que a maioria tenta sobreviver e garantir a vida para si e seus filhos. E não ajudamos em nada, seu miserável fanático.
Dennison inclinou a cabeça para o lado, franzindo o rosto.
- Posso ter merecido essa reprimenda, deputado. Devo pensar a respeito. Não faz muito tempo, era moda não gostar dos judeus, não confiar neles. Agora isso mudou e os árabes tomaram o lugar dos judeus na
escala das nossas antipatias. Talvez tudo não passe de um absurdo, quem sabe?... Mas o que quero saber agora é quem tirou você do anonimato. Acredita que foi um dos nossos.
- Só pode ser. Swann foi procurado... e procurado de uma maneira desonesta, diga-se de passagem... por um louro com sotaque europeu que tinha muitas informações a meu respeito. Só poderia tê-las obtido
dos arquivos do governo... provavelmente da minha ficha no Congresso. Ele tentou me ligar à situação em Oman, mas Swann negou com firmeza, dizendo que me rejeitara expressamente. Contudo, Frank ficou com
a impressão de que o homem não saiu convencido.
- Já sabemos do fantasma louro - informou Dennison. - Mas ainda não conseguimos descobrir quem é.
- Bem, ele continuou a escavar e encontrou outra pessoa, alguém lhe confirmou, de forma intencional ou não, o que estava investigando. Se excluirmos você, e também excluirmos os secretários de Estado e
de Defesa e o comandante do Estado-Maior Conjunto, só restam Crawford, Grayson ou a mulher Rashad.
- Pode riscar os dois primeiros - declarou o chefe da assessoria da Casa Branca. - No início da manhã apertei Crawford aqui mesmo, nesta sala e, ele ficou a ponto de me desafiar para uma partida de roleta
de Saigon só porque sugeri a possibilidade. Quanto a Grayson, falei com ele em Bahrain há cinco horas. O homem quase ficou apoplético por pensar que podíamos sequer considerá-lo o agente do vazamento.
Leu-me o código das operações secretas como se eu fosse o garoto mais estúpido do quarteirão, sujeito a ser metido numa solitária por chamá-lo numa linha não confiável, em território estrangeiro. Como
Crawford, Grayson é um profissional da velha guarda. Nenhum dos dois arriscaria o trabalho de suas vidas falando sobre você e nenhum deles poderia ser pressionado a ponto de revelar alguma coisa.
Kendrick inclinou-se para a frente na cadeira de Dennison, os cotovelos em cima da mesa. Olhou para a parede no outro lado da sala, pensamentos conflitantes flutuando em sua mente. Khalehla, nascida Adrienne
Rashad, salvara sua vida... mas só o teria salvo para vendê-lo depois? Ela era também uma amiga íntima de Ahmat, que poderia ser prejudicado pela associação; e Evan já magoara bastante o jovem sultão,
não precisava acrescentar a denúncia de uma agente de informações à lista. Mas Khalehla o compreendera quando ele precisara de compreensão; fora gentil quando ele precisara de gentileza porque estava com
muito medo - tanto por sua vida quanto por sua inaptidão. Se ela fora pressionada a revelar o caso e ele denunciasse a sua inépcia, Khalehla estaria liquidada para um trabalho em que acreditava com tanta
intensidade... Contudo, se ela não tivesse sido enganada para contar o que sabia, se o denunciara por motivos particulares, então ele estaria expondo a sua traição. Qual seria a verdade? Ingênua ou mentirosa?
O que quer que fosse, precisava descobrir pessoalmente, sem o espectro da investigação oficial. Acima de tudo, ingênua ou mentirosa, tinha de saber com quem ela entrara em contato ou quem a procurara.
Pois somente o "quem" poderia responder o "por quê" ele fora revelado como o Evan de Oman. E isso precisava descobrir de qualquer maneira!
- Pois então, dos sete, só resta uma pessoa suspeita.
- A mulher - concordou Dennison, balançando a cabeça. - Vou pô-la num espeto giratório sobre o fogo mais quente que você já viu.
- Não vai, não - protestou Kendrick. - Você e seu pessoal não vão se aproximar dela enquanto eu não autorizar... se autorizar. E vamos dar um passo além: Ninguém pode saber que você a está trazendo de
volta para cá... sob cobertura, creio que é assim que se diz. Absolutamente ninguém. Entendido?
- Quem é você...
- Já passamos por isso, Herbie. Está lembrado da próxima terça-feira, no Salão Azul? Com a Banda dos Fuzileiros, todos aqueles repórteres e câmeras de televisão? Terei um enorme palanque para subir se
quiser expressar algumas opiniões. E pode estar certo de que você será um dos primeiros alvos, com o rabo no chão e tudo mais.
- Merda! O chantageado pode ter o atrevimento de perguntar por que essa mulher recebe um tratamento preferencial?
- Claro - respondeu Evan, fitando nos olhos o chefe da assessoria. - Aquela mulher salvou minha vida e você não vai estragar a vida dela permitindo que seu pessoal saiba que ela se encontra sob a mira
da tão divulgada espingarda da Casa Branca. Já fez isso demais por aqui.
- Está bem, está bem! Mas quero deixar uma coisa bem clara: se foi ela a peneira, você a entregará a mim.
- Isso vai depender - disse Kendrick, recostando-se.
- Do quê, pelo amor de Deus?
- Do como e do porquê.
- Mais enigmas, deputado?
- Não para mim - respondeu Evan, levantando-se de chofre. - Tire-me daqui, Dennison. E como não posso voltar à minha casa na Virginia ou mesmo no Colorado, alguém neste hospício poderia me alugar uma casa
ou cabana no campo sob outro nome? Pagarei um mês adiantado ou qualquer coisa que for necessária. Quero apenas alguns dias para pensar nas coisas, antes de voltar ao meu gabinete.
- Já foi providenciado - anunciou Dennison abruptamente. - Na verdade, a ideia foi de Jennings... deixá-lo no gelo durante o fim de semana, numa das casas esterilizadas em Maryland.
- O que é uma casa esterilizada? Por favor, use uma linguagem que eu possa entender.
- Vamos pôr a situação em outras palavras. Você é um hóspede do presidente dos Estados Unidos, num lugar que ninguém pode descobrir, reservado às pessoas que não queremos que sejam encontradas. Combinava
com minha opinião abalizada de que Langford Jennings deve ser o primeiro a fazer declarações públicas a seu respeito. Foi visto aqui e tão certo quanto as coelhas têm coelhinhos, a notícia vai se espalhar.
- Você é o autor do roteiro. O que vamos dizer... o que você vai dizer, já que permanecerei em isolamento?
- É muito fácil. Sua segurança. É a maior preocupação do presidente, depois de conferenciar com os nossos especialistas em contraterrorismo. Não se preocupe. Nossos autores encontrarão alguma coisa que
fará as mulheres encharcarem seus lenços com lágrimas e deixará os homens com vontade de participar de uma parada. E como Jennings tem a última palavra nessas coisas, provavelmente incluirá uma imagem
eloquente de um poderoso cavaleiro da Távola Redonda cuidando de um bravo irmão mais moço que realizou uma perigosa missão conjunta. Merda!
- E se houver alguma procedência na teoria da represália - acrescentou Kendrick -, isso me converterá num alvo.
- O que seria ótimo - concordou Dennison, tornando a acenar com a cabeça.
- Avise-me quando a mulher Rashad chegar.
Evan estava sentado na espreguiçadeira de couro no estúdio da impressionante casa esterilizada da Eastern Shore, em Maryland, na cidadezinha de Cynwid Hollow. Lá fora, dentro do terreno murado e iluminado,
guardas entravam e saíam das áreas de claridade, patrulhando cada palmo do terreno, rifles em prontidão, olhos alertas.
Kendrick desligou a terceira sessão que assistira na TV da entrevista coletiva subitamente convocada pelo presidente Langford Jennings para falar sobre um certo deputado Evan Kendrick, do Colorado. Fora
mais afrontoso do que Dennison aventara, com muitas pausas dramáticas, acompanhadas por uma sucessão de sorrisos bem ensaiados que obviamente transmitiam orgulho e agonia sob a superfície do homem sorridente.
O presidente, mais uma vez, dissera tudo em termos generalizados, sem nada específico... a não ser numa área: Até que todas as medidas de segurança sejam consumadas, pedi ao deputado Kendrick, um homem
de que todos nos orgulhamos, para permanecer em reclusão protetora. E, com esse pedido, faço aqui uma advertência solene. Se os terroristas, de qualquer lugar, fizerem alguma covarde tentativa contra a
vida do meu bom amigo, meu íntimo colega, alguém que considero tanto quanto consideraria um irmão mais moço, todo o poderio dos Estados Unidos, em terra, mar e ar, será lançado contra determinados enclaves
dos responsáveis. Determinados? Essa não!
Um telefone tocou. Evan olhou ao redor, tentando descobrir onde estava o aparelho. Viu-o em cima de uma mesa, no outro lado da sala; levantou-se e caminhou até o instrumento surpreendentemente intruso.
- Alô?
- Ela está voando num transporte militar, acompanhada por um veterano adido da embaixada no Cairo. Foi citada como sendo uma secretária, o nome não tem importância. Deve chegar às sete da manhã, nosso
horário. Estará em Maryland por volta das dez horas, o mais tardar.
- O que é que ela sabe?
- Nada.
- Você tinha que alegar alguma coisa - insistiu Kendrick.
- Foi informada de que havia instruções novas e urgentes do seu governo, instruções que só podiam ser transmitidas aqui e pessoalmente.
- E ela engoliu esse disparate?
- Não tinha opção. Foi apanhada em seu apartamento no Cairo e mantida sob custódia desde então. Tenha uma péssima noite, seu filho da puta.
- Obrigado, Herbie.
Evan desligou, ao mesmo tempo aliviado e receoso ante a perspectiva da confrontação na manhã seguinte com a mulher que conhecera como Khalehla, com quem fizera amor num frenesi de medo e exaustão. Esse
ato impulsivo e o desespero que o provocara tinham de ser esquecidos. Precisava determinar se estava reencontrando uma inimiga ou uma amiga. Independente de tudo, havia agora uma programação, pelo menos
durante as próximas doze ou quinze horas. Estava na hora de ligar para Ann O’Reilly e, por intermédio dela, fazer contato com Manny. Não importava quem soubesse onde se encontrava; era hóspede oficial do presidente dos Estados Unidos.
23
Emmanuel Weingrass estava no reservado vermelho, em companhia do corpulento e bigodudo proprietário do café de Mesa Verde. As últimas duas horas haviam sido cansativas para Manny, um tanto reminiscentes
daqueles dias loucos em Paris, quando trabalhava com o Mossad. A atual situação não era nem de longe tão melodramática e seus adversários não podiam ser considerados letais, mas ainda assim ele era um
homem idoso que precisava se deslocar de um lugar para outro sem ser visto e interceptado. Em Paris precisara correr por uma rede de agentes terroristas sem ser notado, de Sacré-Coeur ao Boulevard de la
Madeleine. Aqui, no Colorado, tivera de escapar da casa de Evan e chegar a Mesa Verde sem ser detido e trancafiado por sua equipe de enfermeiras, que se haviam tornado mais alertas por causa de toda aquela
atividade.
- Como conseguiu? - perguntou González-González, o proprietário do café, enquanto servia uma dose de uísque e Weingrass.
- A segunda forma de privacidade mais antiga do homem civilizado, Gê-Gê. O banheiro. Fui ao banheiro e saí por uma janela. Depois me misturei à multidão que tirava fotografias, com uma das câmeras de Evan,
parecendo um fotógrafo de verdade, até que encontrei um táxi e vim para cá.
- Puxa, esses caras estão ganhando uma grana alta ultimamente - comentou González-González.
- São todos uns ladrões! Entrei no táxi e a primeira coisa que o goniff[7] me disse foi: "Cem dólares para ir até o aeroporto." E eu disse a ele, tirando o chapéu: "A Comissão Estadual de Táxis ficará
interessada em saber das novas tarifas em Verde." Ao que ele me respondeu: "Ah, é o senhor! Foi apenas uma brincadeira, Sr. Weingrass." E eu lhe disse então: "Cobre duzentos e me leve ao bar do Gê-Gê!"
Os dois desataram a rir alto, enquanto o telefone público na parede, perto do reservado, começava a tocar. González pôs a mão no braço de Manny.
- Deixe Garcia atender - ele disse.
- Por quê? Você disse que meu menino já telefonou duas vezes!
- Garcia sabe o que dizer. Dei instruções a ele.
- Quais?
- Ele dará ao deputado o número do telefone do meu escritório e lhe dirá para ligar de novo dentro de dois minutos.
- Mas por que isso, Gê-Gê?
- Pouco depois da sua chegada, apareceu aqui um gringo que eu não conheço.
- E daí? Tem muita gente por aqui que você não conhece.
- Ele não pertence a este lugar, Manny. Não está de capa, chapéu ou câmera, mas mesmo assim não é o lugar dele. Usa terno... e com colete.
Weingrass começou a virar a cabeça, mas González pôs a mão no seu braço e ordenou:
- Não faça isso! De vez em quando ele olha para cá, da mesa que ocupa. Está vigiando você.
- O que faremos agora?
- Ficamos esperando e levantamos quando eu disser.
O garçom chamado Garcia desligou o telefone público, tossiu uma vez e encaminhou-se para o homem ruivo de terno escuro e colete. Inclinou-se e disse alguma coisa ao elegante freguês. O homem fitou friamente
o inesperado mensageiro; o garçom deu de ombros e voltou para o balcão. Devagar, discretamente, o homem pôs várias notas na mesa, levantou-se e saiu pela porta mais próxima.
- Agora! - sussurrou González-González, levantando-se e fazendo sinal para que Manny o seguisse.
Dez segundos depois estavam no bagunçado escritório do café. Indicando a cadeira por trás de uma escrivaninha que conhecera melhores dias décadas atrás, Gê-Gê disse:
- O deputado deve ligar daqui a um minuto.
- Tem certeza de que era Kendrick? - indagou Weingrass.
- A tosse de Garcia me disse que sim.
- O que disse José ao cara na mesa?
- Que achava que a mensagem pelo telefone devia ser para ele, já que nenhum outro freguês se ajustava à descrição.
- Qual era a mensagem?
- Muito simples, amigo. Que era importante ele fazer contato com seu pessoal lá fora.
- Mais nada?
- Ele não saiu? Isso nos diz alguma coisa, não é mesmo?
- O quê?
- Uno, ele tem gente com quem deve fazer contato, não? Dos, estão do lado de fora deste grande estabelecimento ou ele pode alcançá-los por outros meios de comunicação... por exemplo, um desses telefones
instalados num automóvel. Tres, ele não veio aqui em seu terno de luxo para tomar uma cerveja Tex-Mex, que quase o deixou engasgado... o que acontece com frequência com você, não é mesmo? Cuatro, ele é
sem dúvida dos federales.
- Governo? - perguntou Manny, aturdido.
- Pessoalmente, é claro, nunca me envolvi com travessias ilegais das fronteiras do meu amado país para o sul, mas conhecemos histórias até mesmo de pessoas inocentes como eu... Sabemos o que procurar,
amigo. Comprende, hombre?
- É o que eu sempre disse - murmurou Weingrass, sentando-se por trás da escrivaninha. - Encontre a espelunca de mais classe entre as desclassificadas da cidade e poderá aprender mais sobre a vida do que
em todos os esgotos de Paris.
- Paris, França, significa muito para você, não é mesmo, Manny?
- Está murchando, amigo. Não sei por quê, mas está se desvanecendo. Alguma coisa vem acontecendo por aqui com o meu garoto e não consigo entender. Mas é importante.
- Ele também significa muito para você, não é mesmo?
- Ele é meu filho.
O telefone tocou e Weingrass atendeu, enquanto González-González saía da sala.
- É você, cabeça de vento?
- O que é que há por aí, Manny? - perguntou Kendrick, da casa esterilizada em Eastern Shore, Maryland. - Tem a cobertura de uma unidade do Mossad?
- Muito mais eficaz - respondeu o velho arquiteto do Bronx. - Não há contadores, ninguém fiscalizando os siclos. E agora fale. O que aconteceu?
- Não sei, juro que não sei.
Evan relatou seu dia em detalhes, da surpreendente notícia de Sabri Hassan sobre as revelações de Oman, enquanto ele estava na piscina, ao momento em que se escondera num hotel ordinário na Virginia; da
confrontação com Frank Swann, do Departamento de Estado, à chegada na Casa Branca sob escolta; do encontro hostil com o chefe da assessoria da Casa Branca à apresentação eventual ao presidente dos Estados
Unidos, que conseguira piorar tudo ao marcar uma cerimônia de condecoração no Salão Azul, na terça-feira seguinte... com a Banda dos Fuzileiros. E o fato de que a mulher chamada Khalehla, que salvara sua
vida em Bahrain, era na verdade uma agente da CIA e estava sendo trazida de avião para que ele a interrogasse.
- Pelo que você me contou, ela nada teve a ver com sua divulgação.
- Por que não?
- Porque você acreditou quando ela disse que era uma árabe cheia de vergonha. Sob alguns aspectos, cabeça de vento, eu o conheço melhor do que você mesmo se conhece. Não se deixa enganar facilmente nessas
coisas. É o que o tornou tão competente com o Grupo Kendrick... Para essa mulher, expô-lo só serviria para aumentar sua vergonha e incendiar ainda mais o mundo louco em que ela vive.
- Ela é a única que restou, Manny. Os outros não o fizeram; não poderiam.
- Então existem outros além dos outros.
- Pelo amor de deus, quem? Essas eram as únicas pessoas que sabiam que eu estava lá.
- Acaba de me dizer que esse Swann lhe contou que um louro de sotaque estrangeiro revelou saber da sua presença em Mascate. Onde ele obteve essa informação?
- Ninguém conseguiu encontrá-lo, nem mesmo a Casa Branca.
- Talvez eu conheça pessoas capazes de descobri-lo - sugeriu Weingrass.
- Nada disso, Manny. Não estamos em Paris, e aqueles israelenses estão muito longe. Devo-lhes bastante, mas gostaria que um dia você me explicasse o interesse deles por um certo refém na embaixada.
- Nunca fui informado. Sabia que havia um plano inicial para o qual a unidade fora treinada e presumi que pretendiam fazer contato com alguém lá dentro, mas nunca discutiram o assunto na minha presença.
Aquelas pessoas sabem ficar de boca fechada... Qual é o seu próximo passo?
- Amanhã de manhã, com a mulher Rashad. Já lhe disse isso.
- Depois.
- Tem assistido pouco à televisão.
- Estou no bar do Gê-Gê. Já esqueceu que ele só permite videoteipes? Tem uma gravação dos jogos de 82 e quase todos os fregueses pensam que são partidas atuais. O que está ocorrendo na televisão?
- O presidente. Anunciou que estou em reclusão protetora.
- Para mim parece cadeia.
- De certa forma, é isso mesmo, mas a prisão é tolerável e o carcereiro me concede privilégios.
- Pode me dar um número?
- Não sei qual é. O telefone só tem uma tira preta. Mas eu o manterei informado. Ligarei se decidir alguma coisa. Ninguém pode descobrir esta linha; e mesmo que descubram, não tem a menor importância.
- Está certo. E agora quero perguntar uma coisa. Você me mencionou a alguém?
- Claro que não. Você pode estar no arquivo secreto de Oman e comentei que muitas outras pessoas mereciam crédito, além de mim, mas nunca me referi expressamente ao seu nome. Por que pergunta?
- Estou sendo seguido.
- O quê?
- É uma situação que não me agrada. Gê-Gê diz que o palhaço no meu encalço é federal e que há outros com ele.
- Talvez Dennison tenha encontrado seu nome no arquivo e mandou protegê-lo.
- De quê? Até mesmo em Paris estou a salvo... Se não fosse assim, estaria morto há três anos. O que o leva a pensar que estou em algum arquivo? Fora da unidade, ninguém conhecia meu nome e nenhum dos nossos
nomes foi usado naquela reunião na manhã em que partimos. Além do mais, cabeça de vento, se estou sendo protegido seria uma boa ideia me informarem a respeito. Porque se sou bastante perigoso para justificar
esse tipo de proteção, posso muito bem estourar os miolos de alguém que eu não saiba que está me protegendo.
- Como sempre, você pode ter um grama de lógica no seu quilo normal de implausibilidade. Vou verificar.
- Faça isso. Talvez não me restem muitos anos, mas não gostaria que fossem interrompidos por uma bala na cabeça... de qualquer lado. Ligue de novo amanhã, porque agora tenho de voltar à toca antes que
os habitantes comuniquem minha saída ao chefe de polícia.
- Dê lembranças minhas a Gê-Gê, Manny. E diga a ele que deve permanecer afastado dos negócios de importação quando eu estiver em casa. E também lhe agradeça por mim.
Kendrick desligou, sem tirar a mão do fone. Tornou a levantá-lo um momento depois e discou O.
- Telefonista - disse uma voz hesitante de mulher, depois de mais toques do que seria normal.
- Não sei por quê, mas tenho a impressão de que você não é uma telefonista comum da Bell Telephone Company.
- Como, senhor?
- Não importa, moça. Meu nome é Kendrick e preciso falar com o senhor Herbert Dennison, chefe da assessoria da Casa Branca, o mais depressa possível... é urgente. Estou lhe pedindo para se empenhar ao
máximo para localizá-lo e pedir que me telefone nos próximos cinco minutos. Se for impossível, serei obrigado a ligar para o marido da minha secretária, que é tenente da polícia de Washington, e informá-lo
de que estou preso num lugar que ele poderá encontrar sem muita dificuldade.
- Por favor, senhor!
- Acho que estou sendo bastante razoável e objetivo. O senhor Dennison deve entrar em contato comigo nos próximos cinco minutos, e a contagem regressiva já começou. Obrigado, telefonista. Tenha um bom
dia.
Kendrick tornou a desligar, mas desta vez removeu a mão do fone e foi até o bar embutido na parede, que continha um balde com gelo e diversas garrafas de excelentes uísques. Serviu-se de um drinque, olhou
para o relógio e foi até uma janela grande que dava para o jardim nos fundos, todo iluminado. Divertiu-se com a visão de um campo de críquete margeado por móveis brancos de ferro batido; não achou tanta
graça na visão de um guarda fuzileiro, vestindo o uniforme não militar da equipe da casa. Andava pelo jardim perto do muro de pedra, o rifle automático virado para a frente. Manny tinha razão; ele estava
na cadeia. O telefone tocou momentos depois e o deputado do Nono Distrito voltou para atender.
- Olá, Herbie. Como tem passado?
- Como tenho passado, seu filho da puta? Estou na porra do chuveiro! Todo molhado! O que é que você quer?
- Quero saber por que Weingrass está sendo seguido. Quero saber por que o nome dele apareceu em algum lugar e é melhor você ter uma boa explicação sobre o bem-estar pessoal dele.
- Vamos com calma, ingrato - respondeu bruscamente o chefe da assessoria da Casa Branca. - Afinal, o que é um Weingrass? Algo criado por Manischewitz?
- Emmanuel Weingrass é um arquiteto de renome internacional. É também um grande amigo, hóspede na minha casa do Colorado. Por motivos que não tenho de explicar a você, sua presença ali é extremamente confidencial.
Onde e para quem você revelou o nome dele?
- Não posso revelar o que nunca soube, seu maluco.
- Não está mentindo para mim, não é mesmo, Herbie? Porque se estiver, posso fazer com que as próximas semanas lhe sejam muito embaraçosas.
- Se eu achasse que, mentindo, me livraria de você, pode estar certo de que iria ao fundo do poço, mas não posso mentir em relação a nenhum Weingrass. Não sei quem ele é.
- Não leu os relatórios sobre Oman?
- É um arquivo secreto. Claro que li.
- O nome de Weingrass não aparecia em parte alguma?
- Não, e eu me lembraria se aparecesse. É um nome esquisito, bem engraçado.
- Não para Weingrass. - Kendrick fez uma pausa, sem, contudo, dar tempo suficiente para que Dennison o interrompesse. - Alguém na CIA, ASN ou qualquer outra dessas organizações poderia pôr um hóspede meu
sob vigilância sem informá-lo?
- De jeito nenhum! - berrou o suserano da Casa Branca. - Em relação a você e toda a confusão que criou, ninguém mexe um dedo sem que eu seja informado!
- Uma última pergunta. Havia no arquivo de Oman alguma referência a uma pessoa que me acompanhou no voo de volta de Bahrain?
Foi a vez de Dennison fazer uma pausa.
- Está sendo um pouco óbvio, deputado.
- E você está um pouco mais próximo daquela turma que descreveu. Se acha que agora sou má notícia para você e seu homem, nem mesmo especule sobre a ligação do arquiteto. É melhor deixar de lado.
- Também acho. Com um nome como Weingrass, posso fazer outra ligação e me assusta. Como o Mossad.
- Muito bem. E agora responda à minha pergunta. O que havia no arquivo sobre o voo de Bahrain a Andrews?
- A carga consistia de você e um velho árabe em trajes ocidentais, antigo subagente de Operações Consulares, que estava sendo trazido para tratamento médico. Seu nome era Ali Qualquer-coisa; o Departamento
de Estado autorizou sua entrada e ele desapareceu. Ninguém neste governo tem conhecimento de um certo senhor Weingrass.
- Obrigado, Herb.
- Obrigado pelo Herb. Há mais alguma coisa que eu possa fazer?
Evan olhou para a janela, o jardim iluminado e o fuzileiro lá fora, e refletiu sobre tudo o que a cena representava.
- Vou lhe fazer um favor e responder não - ele murmurou. - Pelo menos por enquanto. Mas pode me esclarecer uma coisa. Este telefone está grampeado, não é mesmo?
- Não da maneira habitual. Há uma pequena caixa preta, como as que existem nos aviões. Só pode ser retirada por pessoal autorizado e as fitas são examinadas com as mais rigorosas medidas de segurança.
- Pode suspender essa operação por uns trinta minutos, enquanto eu falo com alguém? Posso garantir que vai preferir assim.
- Aceito essa garantia... Há um sistema especial na linha; nosso pessoal o usa com frequência quando está nessas casas. Dê-me cinco minutos e pode ligar para Moscou, se quiser.
- Cinco minutos.
- Posso voltar para o chuveiro agora?
- Experimente Clorox desta vez.
Kendrick repôs o fone no gancho e tirou a carteira do bolso; enfiou o indicador por baixo do compartimento em que estava a licença de motorista do Colorado. Removeu o pedaço de papel em que anotara os
dois telefones particulares de Frank Swann e tornou a olhar para o relógio. Esperaria dez minutos, torcendo para que o vice-diretor de Operações Consulares estivesse num lugar ou no outro. E estava. Em
seu apartamento, é claro. Depois de cumprimentos rápidos, Evan explicou onde se encontrava... onde supunha que estava.
- Como é a "reclusão protetora"? - perguntou Swann, parecendo cansado. - Já estive em vários desses lugares quando interrogávamos desertores. Espero que tenha sido instalado numa casa com estábulos ou
pelo menos duas piscinas, uma interna, é claro. Todas são iguais; me parece que o governo as compra como compensações políticas para os ricos que cansaram de suas propriedades e querem comprar novas sem
gastar nada. Espero que alguém esteja ouvindo. Não tenho mais uma piscina.
- Já verifiquei que existe pelo menos um campo de críquete.
- Isso é coisa sem importância. Mas o que tem a me dizer? Estou mais perto de sair do espeto?
- Talvez. Pelo menos tentei aliviar um pouco a pressão sobre você... Frank, preciso lhe fazer uma pergunta e devo dizer que ambos podemos falar qualquer coisa, citar quaisquer nomes. Este telefone não
está grampeado agora.
- Quem lhe disse isso?
- Dennison.
- E acreditou nele? Diga-se de passagem, eu não me importaria se ele recebesse a transcrição.
- Acredito nele porque Dennison tem uma ideia do que vou tratar e quer pôr dois mil quilômetros de distância entre a administração e o tema da nossa conversa. Ele disse que ia acionar um sistema para desligar
o grampo.
- É possível. Ele tem medo de que alguém independente escute as suas palavras. Qual é o problema?
- Manny Weingrass e, através dele, a ligação com o Mossad...
- Isso é tabu - interrompeu o vice-diretor. - A ligação não está mesmo grampeada. Continue.
- Dennison me disse que o arquivo de Oman relaciona a carga no avião de Bahrain para Andrews como composta por Kendrick e um velho árabe em trajes ocidentais, um subagente de Operações Consulares...
- E que estava sendo trazido para tratamento médico aqui - acrescentou Swann. - Depois de anos de valiosa cooperação, nossos serviços clandestinos deviam pelo menos isso a Ali Saada e sua família.
- Tem certeza de que eram essas as palavras?
- Quem poderia saber melhor? Fui eu que escrevi.
- Você? Então sabia que era Weingrass?
- Não foi difícil. Suas instruções, transmitidas por Grayson, eram bastante claras. Você exigia... note bem, exigia... que uma pessoa anônima o acompanhasse naquele avião de volta aos Estados Unidos...
- Era uma cobertura para o Mossad.
- Isso era óbvio e eu também fui. Afinal, trazer alguém assim é contra as regras... esqueça a lei... a menos que ele esteja em nossos registros. Por isso, tratei de incluí-lo nos registros como outra pessoa.
- Mas como soube que era Manny?
- Foi a parte mais fácil. Falei com o comandante da Guarda Real de Bahrain, que foi designado para sua escolta. A descrição física provavelmente seria suficiente, mas quando ele me contou que o velho filho
da mãe chutou um dos seus homens no joelho, porque deixou você tropeçar ao embarcar no carro para o aeroporto, tive certeza de que era Weingrass. Sua reputação, como dizem, sempre o precedeu.
- Agradeço pelo que fez - murmurou Evan. - Tanto por ele quanto por mim.
- Foi a única maneira que me ocorreu de agradecer a você.
- Então posso presumir que ninguém nos círculos de informações em Washington sabe que Weingrass esteve envolvido em Oman?
- Claro que pode. Esqueça Mascate. Weingrass é uma não pessoa. Simplesmente não figura entre os que vivem aqui.
- Dennison nem mesmo sabia quem ele era...
- Não podia saber.
- Ele está sendo seguido, Frank. Lá no Colorado, está sob a vigilância de alguém.
- Não a nossa.
Duzentos e oitenta metros ao norte da casa esterilizada, à margem da baía de Chesapeake, ficava a propriedade do Sr. Samuel Winters, eminente historiador e por mais de quarenta anos amigo e conselheiro
de presidentes dos Estados Unidos. Quando era mais jovem, consideravam o imensamente rico acadêmico um destacado esportista; troféus de polo, tênis, esqui e vela espalhavam-se por prateleiras de seu estúdio
particular, comprovando seus antigos talentos. Restava agora ao idoso educador um jogo mais passivo, que fora uma paixão menor da família há gerações, aparecendo inicialmente no gramado da mansão em Oyster
Bay no começo dos anos 20: o críquete; sempre que uma pessoa da família comprava uma nova propriedade, uma das primeiras considerações era um gramado próprio para o campo oficial, que nunca se afastava
das dimensões de 12 por 22 metros determinadas pela Associação Nacional de críquete em 1882. Assim, uma das primeiras coisas que atraía a atenção de um visitante à propriedade do Dr. Winters era o campo
de críquete, à direita da vasta mansão, por cima das águas de Chesapeake. Seu charme era aumentado pelas muitas peças de móveis brancos de ferro batido à margem do campo, áreas de repouso para os que estudavam
novas jogadas ou tomavam um drinque nos intervalos.
O cenário era idêntico ao campo de críquete na casa esterilizada 280 metros ao sul da propriedade de Winters, algo inevitável, pois todo o terreno em que se encontravam as duas mansões pertencera originalmente
a Samuel Winters. Cinco anos antes - com a silenciosa ressurreição de Inver Brass - o Dr. Winters doara a propriedade do sul ao governo dos Estados Unidos, para uso como casa "segura" ou "esterilizada".
A fim de afastar os curiosos amigáveis e desviar as sondagens hostis de inimigos em potencial dos Estados Unidos, a transação nunca fora revelada. Segundo os registros na prefeitura de Cynwid Hollow, a
casa e o terreno ainda pertenciam a Samuel e Martha Jennifer Winters (falecida). Os contadores da família pagavam todos os anos os impostos excepcionalmente altos de propriedades à beira da baía, secretamente
reembolsados por um governo agradecido. Se algum curioso, amigo ou não, indagava sobre a atividade naquela aristocrática área, era invariavelmente informado de que nunca cessava, que limusines e fornecedores
serviam os grandes e quase-grandes do mundo acadêmico e da indústria que ali compareciam, representando os múltiplos interesses de Samuel Winters. Um pelotão de jovens e musculosos jardineiros mantinha
o jardim impecável e também servia como criadagem, provendo as necessidades do fluxo incessante de visitantes. A imagem transmitida era a da equipe de um multimilionário operando no campo - uma atividade
aberta demais para ser qualquer outra coisa além do que parecia.
A fim de manter a integridade dessa imagem, todas as contas eram enviadas aos contadores de Samuel Winters, que as pagavam prontamente e encaminhavam cópias dos recibos ao advogado pessoal do historiador,
que por sua vez as remetia ao Departamento de Estado, para reembolso secreto. Era um arranjo simples e benéfico para todos os envolvidos, tão simples e benéfico quanto fora para o Dr. Winters sugerir ao
presidente Langford Jennings que o deputado Evan Kendrick poderia beneficiar-se de alguns dias longe do foco dos meios de comunicação, na "casa segura" ao sul de sua propriedade, já que na ocasião não
havia ali qualquer atividade. O presidente concordara, agradecido; mandaria Herb Dennison tomar as providências necessárias.
Milos Varak removeu os grandes fones anti-impedância da cabeça e fechou o painel eletrônico na mesa à sua frente. Virou a cadeira para a esquerda, suspendeu uma alavanca na parede próxima e no mesmo instante
ouviu as engrenagens suaves que baixavam a antena direcional no telhado. Levantou-se e vagueou a esmo entre o sofisticado equipamento de comunicações, no estúdio à prova de som, instalado nos porões da
casa de Samuel Winters. Estava alarmado. O que ouvira na interceptação do telefone da casa esterilizada fugia à sua compreensão.
Como Swann, do Departamento de Estado, confirmara de maneira inequívoca, ninguém na comunidade de informações em Washington tinha conhecimento da existência de Emmanuel Weingrass. Não tinha a menor ideia
de que "o velho árabe" que viera de Bahrain com Evan Kendrick era Weingrass. Nas palavras de Swann, seu agradecimento pelos esforços de Evan Kendrick em Oman fora tirar Weingrass secretamente de lá e trazê-lo
com o mesmo sigilo para os Estados Unidos, usando um disfarce e uma cobertura. O homem e a cobertura haviam desaparecido; Weingrass era virtualmente uma "não pessoa". Além disso, a manobra de Swann era
compulsória, por causa da ligação de Weingrass com o Mossad, uma operação perfeitamente compreendida por Kendrick. Na verdade, o próprio deputado se esforçara ao máximo para esconder a presença e a identidade
de seu idoso amigo. Milos descobrira que o velho fora internado no hospital com o nome de Manfred Weinstein e ficara num quarto particular, com entrada privativa. Ao receber alta, voara para o Colorado
num jato particular, desembarcando em Mesa Verde.
Tudo era privado; o nome de Weingrass não estava registrado em parte alguma. E durante os meses de sua convalescença, o irascível arquiteto apenas raramente deixara a casa e nunca para lugares em que conheciam
o deputado. Mas que diabo!, pensou Varak. Exceto pelo círculo pessoal íntimo de Kendrick, que excluía a todos menos uma secretária de confiança, seu marido, um casal árabe na Virginia e três enfermeiras
muito bem remuneradas, cujos generosos salários incluíam o sigilo total, Emmanuel Weingrass não existia!
Varak voltou à mesa em que estava o painel, desligou o botão de gravar, voltou a fita e encontrou as palavras que queria ouvir.
Então posso presumir que ninguém nos círculos de informações em Washington sabe que Weingrass esteve envolvido em Oman?
Claro que pode. Esqueça Mascate. Weingrass é uma não pessoa. Simplesmente não figura entre os que vivem aqui.
Dennison nem mesmo sabia quem ele era...
Não podia saber.
Ele está sendo seguido, Frank. Lá no Colorado, está sob a vigilância de alguém.
Não a nossa.
"Não a nossa..." De quem então?
Essa indagação alarmava Varak. As únicas pessoas que sabiam da existência de um Emmanuel Weingrass, que haviam sido informadas o quanto o velho significava para Evan Kendrick, eram os cinco membros de
Inver Brass. Será possível que um deles...?
Milos procurou não pensar a respeito. No momento, era angustiante demais para ele.
Adrienne Rashad despertou de chofre com a súbita turbulência encontrada pelo avião militar. Olhou através da cabine mal iluminada, com suas acomodações um pouco inferiores às de uma primeira classe. O
adido da embaixada no Cairo estava obviamente trêmulo... com medo, para ser mais preciso. Contudo, o homem era bastante experiente com tais transportes para levar um companheiro confortador, especificamente
um frasco encapado em couro, bem grande, que ele literalmente arrancou da sua pasta, e do qual bebeu. Ao perceber que sua "carga" o observava, contrafeito, ele levantou o frasco na direção de Adrienne.
Ela sacudiu a cabeça e disse por sobre o barulho dos motores:
- São apenas alguns buracos.
- Ei, pessoal! - gritou a voz do comandante pelo sistema de intercomunicação. - Lamento pelos buracos, mas infelizmente este tempo é inevitável pelos próximos trinta minutos mais ou menos. Temos de nos
manter em nossa faixa, longe das rotas comerciais. Mereceriam voar por céus mais amigáveis, companheiros. Aguentem firme!
O adido tomou um novo gole do frasco, desta vez mais longo que o anterior. Adrienne desviou os olhos, a parte árabe nela dizendo para não observar o medo de um homem, a mulher ocidental dizendo que devia
acalmar o medo do companheiro de viagem, pois era uma experiente aviadora militar. A síntese venceu a discussão; sorriu tranquilizadora para o adido e voltou aos seus pensamentos interrompidos pelo sono.
Por que recebera a ordem tão peremptória de retornar a Washington? Se havia novas instruções, tão delicadas que não podiam ser transmitidas mesmo com a ajuda de scramblers, por que Mitchell Payton não
lhe dera a menor indicação? Não era típico de "tio Mitch" permitir-se qualquer interferência com o trabalho dela sem lhe dar um esclarecimento a respeito. Mesmo com a confusão de Oman um ano antes - e
se jamais houvera uma situação prioritária, fora aquela -, Mitch lhe enviara instruções lacradas pelo correio diplomático, mandando-a sem qualquer explicação cooperar com Operações Consulares do Departamento
de Estado, não importava quão ofendida pudesse ficar. E ela se sentira bastante ofendida. E agora, inesperadamente, recebera a ordem de voltar aos Estados Unidos, quase incomunicável, sem ouvir uma única
palavra de Mitchell Payton.
Deputado Evan Kendrick. Nas últimas dezoito horas o nome dele espalhara-se pelo mundo como o som de uma trovoada se expandindo. Era quase possível ver os rostos assustados daqueles que se haviam envolvido
com o americano, levantando os olhos para o céu e especulando se deveriam correr em busca de proteção para suas vidas sob a ameaça da tempestade iminente. Haveria vendetas contra aqueles que ajudaram o
intrometido homem do Ocidente. Ela especulou quem teria vazado a história - não, "vazado" era uma palavra inócua demais - quem teria explodido a história! Os jornais do Cairo estavam repletos de notícias,
e uma rápida verificação confirmava que por todo o Oriente Médio Evan Kendrick era um santo sagrado ou um hediondo pecador. A canonização ou uma morte dolorosa esperavam por ele, dependendo de quem o julgava,
até num mesmo país. Por quê? Seria aquilo obra do próprio Kendrick? Aquele homem vulnerável, aquele político incrível, que arriscara a vida para vingar um crime hediondo, teria decidido, depois de um ano
de humildade e desprendimento, conquistar um prêmio? Se fosse o caso, não era o homem que conhecera por um instante fugaz, embora intimamente, há um ano. Haviam feito amor - improvável, frenético, talvez
inevitável nas circunstâncias -, mas aqueles momentos transitórios de esplêndido prazer deviam ser esquecidos. E se fora trazida de volta a Washington por causa de um deputado subitamente ambicioso, então
nunca haviam existido.
24
Kendrick estava parado junto às janelas que davam para o caminho circular na frente da casa segura. Dennison lhe telefonara há mais de uma hora com a informação de que o avião do Cairo pousara e que a
mulher Rashad fora recolhida por um carro do governo à espera; estava a caminho de Cynwid Hollow, sob escolta. O chefe da assessoria da Casa Branca queria que Evan soubesse que a agente da CIA protestara
vigorosamente por não lhe darem permissão para um telefonema da base de Andrews da Força Aérea.
- Ela esperneou um bocado e recusou-se a entrar no carro - queixara-se Dennison. - Disse que não recebera uma ordem direta de seus superiores e que a Força Aérea que se danasse. Uma cadela miserável! Eu
estava a caminho do trabalho e entraram em contato comigo pelo telefone da limusine. E sabe o que ela me disse? "Quem pensa você que é?" Foi isso mesmo que ela disse! E depois, para agravar o insulto,
afastou o fone e berrou: "O que é um Dennison?"
- Tudo por causa dessa sua atitude modesta, Herb. Alguém explicou a ela?
- Os filhos da puta riram! Riram quando eu disse que ela estava sob ordens do presidente e tinha de entrar naquele carro ou poderia passar cinco anos em Leavenworth.
- É uma prisão para homens.
- Sei disso. Ela estará aí dentro de uma hora, mais ou menos. Não se esqueça: se for a peneira, eu a quero. Terá que entregá-la.
- Talvez.
- Obterei uma ordem presidencial!
- E eu a lerei no noticiário noturno. Com alguns comentários.
- Merda!
Kendrick já se afastava da janela para tomar outro café quando um sedã cinza sem qualquer identificação apareceu no início do caminho circular. Contornou a curva e parou na frente dos degraus de pedra.
Um major da Força Aérea saltou rapidamente do banco traseiro. Deu a volta apressado por trás do carro e abriu a porta do outro lado.
A mulher que Evan conhecera como Khalehla saiu para o sol da manhã, contraindo os olhos à claridade, perturbada e insegura. Estava sem chapéu, os cabelos escuros caindo pelos ombros sobre um casaco branco.
Usava uma calça comprida verde e sapatos de saltos baixos. Sob o braço direito comprimia uma grande bolsa branca. Observando-a, Kendrick lembrou-se daquele fim de tarde em Bahrain. Recordou o choque quando
ela passara pela porta do bizarro quarto real e correra para se envolver no lençol da cama. E como, apesar de seu pânico, confusão e dor - ou talvez pela soma de tudo isso - ficara impressionado péla beleza
do rosto euro-árabe bem definido e o brilho de inteligência nos seus olhos.
Ele estava certo; era uma mulher admirável, que mesmo agora se mantinha empertigada, quase em desafio, ao se encaminhar para a porta maciça da casa segura, em cujo interior se iria defrontar com o desconhecido.
Kendrick observou-a imparcialmente; não houve um ímpeto do calor lembrado em sua reação - apenas uma curiosidade fria e intensa. Ela lhe mentira naquele final de tarde em Bahrain, mentira pelo que dissera
e pelo que não dissera. Ele especulou se ela tornaria a lhe mentir.
O major da Força Aérea abriu a porta da enorme sala de estar para Adrienne Rashad. Ela entrou e parou, ficou imóvel olhando fixamente para Evan que ainda estava ao lado da janela. Não havia espanto em
seus olhos, apenas o olhar frio do intelecto.
- Vou me retirar - disse o oficial da Força Aérea.
- Obrigado, major. - A porta foi fechada e Kendrick adiantou-se. - Olá, Khalehla. Era Khalehla, não é mesmo?
- Como quiser - ela respondeu calmamente.
- Mas também não é Khalehla, não é mesmo? É Adrienne... Adrienne Rashad.
- Como quiser.
- Não está sendo um pouco redundante?
- E tudo isso é muito estúpido, deputado. Trouxe-me de volta para lhe dar outro testemunho? Porque se é isso, não direi coisa alguma.
- Testemunho? É a última coisa que eu quero!
- Ótimo. Fico contente por você. Tenho certeza de que o representante do Colorado já conta com todos os endossos necessários. Portanto, não precisa que alguém, cuja vida, e as vidas de muitos colegas,
dependem do anonimato, venham contribuir e aumentar as suas aclamações.
- É isso o que você pensa? Que quero endossos, aclamações?
- O que posso pensar? Que me afastou do meu trabalho, me expôs à embaixada e à Força Aérea, provavelmente estourou uma cobertura que levei anos para alcançar, só porque fui para a cama com você? Aconteceu
uma vez, mas posso lhe garantir que nunca mais.
- Ei, espere um pouco, mulher brilhante! Eu não estava procurando qualquer ação rápida. Não sabia onde me encontrava, nem o que acontecera, nem o que aconteceria em seguida. Sentia-me apavorado e sabia
que tinha coisas a fazer que não podia fazer.
- Além disso estava exausto - acrescentou Adrienne Rashad. - E eu também. Acontece.
- Foi o que Swann disse...
- Aquele filho da puta.
- Calma, calma. Frank Swann não é um filho da puta...
- Devo usar outra palavra? Como cafetão? Um cafetão inescrupuloso.
- Está enganada. Não sei qual foi o seu problema com Swann, mas ele tinha um trabalho a realizar.
- Como sacrificar você?
- Talvez... Admito que o pensamento não é dos mais agradáveis, mas na ocasião ele estava acuado.
- Esqueça, deputado. Por que estou aqui?
- Porque preciso descobrir uma coisa e você é a única pessoa que pode me informar.
- O que é?
- Quem divulgou a história a meu respeito? Quem violou o acordo? Fui informado que as pessoas que sabiam da minha viagem a Oman... e eram bem poucas, um pequeno círculo apertado, como eles dizem... nenhuma
delas teria qualquer motivo para me identificar e todos os motivos do mundo para não fazê-lo. Além de Swann e seu chefe dos computadores, por quem ele jura, havia apenas sete outras pessoas em todo o governo
que sabiam. Seis foram conferidas, todas um negativo absoluto. Você é a sétima, a única que restou.
Adrienne Rashad permaneceu imóvel, o rosto passivo, os olhos furiosos.
- Seu amador estúpido e arrogante... - ela murmurou, a voz ácida.
- Pode me chamar de todos os nomes que quiser - começou Evan, com toda raiva -, porque eu vou...
- Podemos sair para dar uma volta, deputado? - interrompeu a mulher do Cairo, encaminhando-se, no outro lado da sala, para uma janela grande de onde se via um cais na margem rochosa da baía de Chesapeake.
- Como?
- O ar aqui está tão opressivo quanto a companhia. Eu gostaria de sair para dar uma volta. Por favor.
Rashad levantou a mão e apontou para fora; depois acenou com a cabeça duas vezes, como se reforçasse uma ordem.
- Está bem - murmurou Kendrick, aturdido. - Há uma porta lateral ali.
- Já vi.
Adrienne-Khalehla encaminhou-se para a porta no fundo da sala. Saíram num pátio de blocos de pedra que se juntava a um bonito gramado e um caminho que levava ao cais. Se comumente havia barcos no atracadouro
ou presos às amarras que balançavam na água, tinham sido removidos por causa dos ventos do outono.
- Continue com sua arenga, deputado - disse a agente secreta da CIA. - Não deve se privar disso.
- Ei, espere aí, senhorita Rashad ou qualquer que seja o seu nome! - Evan parou no caminho branco de concreto, na metade do percurso para a água. - Se pensa que tudo o que digo não passa de uma "arenga",
está redondamente enganada...
- Pelo amor de Deus, continue a andar! Terá toda a conversa que quiser, mais até do que quer, seu idiota!
A praia da baía, à direita do atracadouro, era uma mescla de areia escura e pedras, muito comum em Chesapeake; à esquerda ficava o abrigo de barcos, também comum. O que não parecia comum, no entanto, exceto
nas propriedades maiores, era uma profusão de árvores altas, a cerca de cinquenta metros, tanto para o norte quanto para o sul do atracadouro e da garagem de barcos. Proporcionavam alguma privacidade,
mais na aparência do que na realidade, mas a visão das árvores atraía a agente baseada no Cairo. Ela encaminhou-se para a direita, sobre areia e pedras, perto das ondas suaves. Passaram pela fronteira
de árvores e continuaram, até alcançarem um afloramento rochoso, à beira d’água. Dali já não se podia avistar a enorme casa por cima.
- Aqui está bom - disse Adrienne Rashad.
- Aqui está bom? - repetiu Kendrick. - Por que todo esse exercício? E já que estamos falando em explicações, vamos deixar algumas coisas bem claras. Agradeço o fato de você provavelmente ter salvo minha
vida... provavelmente, não uma coisa que se possa provar... mas não aceito ordens suas, e na minha opinião abalisada não sou um idiota... e apesar da minha posição de amador, é você quem vai me responder,
não o contrário! Entendido, madame?
- Já acabou?
- Nem mesmo comecei!
- Pois então, antes de começar permita-me que fale sobre os temas específicos que acaba de levantar. O pequeno exercício foi para nos tirar de lá. Presumo que sabe o que é uma casa segura.
- Claro que sei.
- E que tudo o que disser em qualquer cômodo, inclusive no banheiro e no chuveiro, é gravado.
- Eu sabia que o telefone estava grampeado...
- Obrigada, senhor amador.
- Não tenho absolutamente nada a esconder...
- Fale baixo. A voz voltada para a água, como eu.
- Como? Por quê?
- Vigilância eletrônica de voz. As árvores vão distorcer o som, porque não há feixes visuais diretos...
- O quê?
- Os raios laser melhoraram a tecnologia...
- O quê?
- Sussurre!
- Repito: nada tenho a esconder. Talvez você tenha, mas eu não!
- É mesmo? - Rashad encostou-se na rocha imensa, falando com o rosto virado para as ondas pequenas e lentas. - Quer envolver Ahmat?
- Já o mencionei. Ao presidente. Ele devia saber o quanto aquele garoto ajudou...
- Tenho certeza de que Ahmat ficará muito agradecido. E seu médico particular? E seus dois primos, que ajudaram e protegeram você? E El-Baz e o piloto que o levou a Bahrain?... Todos podiam ser mortos.
- Além de Ahmat, nunca mencionei ninguém especificamente...
- Nomes são irrelevantes. As funções, não.
- Pelo amor de Deus, era o presidente dos Estados Unidos!
- Ao contrário dos rumores, ele se comunica fora de um microfone?
- Claro.
- E sabe com quem ele fala? Conhece os outros pessoalmente? Sabe até que ponto são confiáveis em termos de segurança máxima? Ele sabe? Você conhece os homens que guarnecem os equipamentos de escuta naquela
casa?
- Claro que não.
- E eu? Sou uma agente de campo, com uma cobertura aceitável no Cairo. Falou a meu respeito?
- Falei, mas apenas com Swann.
- Não estou me referindo ao que conversou com uma autoridade, que sabia de tudo porque estava no controle, mas sim ao que poderia dizer dentro daquela casa. Se começasse a me interrogar lá em cima, iria
falar sobre qualquer uma ou sobre todas as pessoas que acabei de mencionar? E para quebrar o banco, senhor amador, não é possível que poderia até mencionar o Mossad?
Evan fechou os olhos.
- É possível - ele murmurou, acenando com a cabeça. - Se tivéssemos uma discussão.
- Uma discussão era inevitável, e foi por isso que nos tirei da casa e descemos até aqui.
- Todo mundo lá em cima está do nosso lado! - protestou Kendrick.
- Tenho certeza que todos estão - concordou Adrienne -, mas não conhecemos as forças e as fraquezas de pessoas que nunca encontramos e não podemos ver, não é mesmo?
- Você é paranoica.
- São os chamados ossos do ofício, deputado. Além disso, você é mesmo um idiota, como acho que ficou amplamente demonstrado por sua falta de conhecimento sobre casas seguras. Omitirei a questão de quem
dá ordens a quem, porque é irrelevante, e voltarei ao seu primeiro ponto. Com toda a probabilidade, não salvei sua vida em Bahrain; em vez disso, por causa daquele filho da mãe do Swann, deixei-o numa
posição insustentável que nós, pilotos, chamamos de ponto sem retorno. Não deveria sobreviver, senhor Kendrick, e protestei contra isso.
- Por quê?
- Porque me importava.
- Porque nós...
- Isso também é irrelevante. Você era uma homem decente, tentando fazer uma coisa decente, para a qual não estava preparado. Como aconteceu, houve outros que o ajudaram muito mais do que eu jamais poderia.
Eu estava no escritório de Jimmy Grayson e ambos ficamos aliviados ao receber a notícia de que seu avião decolara de Bahrain.
- Grayson? Ele era um dos sete que sabiam que eu estava lá.
- Não, até as últimas horas. Nem mesmo eu lhe contaria. A informação tinha de partir de Washington.
- Na linguagem da Casa Branca, meteram-no num espeto ontem de manhã.
- Por quê?
- Para descobrir se foi ele quem divulgou meu nome.
- Jimmy? Uma estupidez ainda maior do que pensar que fui eu. Grayson quer uma diretoria com tanta ansiedade que pode até sentir o gosto. Além do mais, não lhe agrada ter a garganta cortada e o corpo mutilado,
tanto quanto não me agrada.
- Diz essas palavras com muita facilidade. Emergem depressa, talvez depressa demais.
- Sobre Jimmy?
- Não. Sobre você mesma.
- Entendo... - A mulher que dissera chamar-se Khalehla afastou-se da rocha. - Pensa que eu ensaiei tudo isso... comigo mesma, é claro, porque não pude fazer contato com mais ninguém. E é claro que sou
meio árabe...
- Entrou na sala lá em cima como se esperasse me ver. Minha presença ali não foi uma surpresa para você.
- Esperava, e não foi.
- Por quê e por que não?
- Processo de eliminação, eu suponho... e um arranjo, um homem que sei que me protege de verdadeiras surpresas. Durante o último dia e meio, você foi uma notícia quente por todo o Mediterrâneo, deputado,
e deixou muitas pessoas tremendo, inclusive eu. Não apenas por mim, mas por muitos outros que usei e abusei para mantê-lo à vista. Alguém como eu constrói uma rede baseada na confiança e neste momento
essa confiança, meu artigo mais vital, foi posta em dúvida. Assim, senhor Kendrick, desperdiçou não apenas meu tempo e minha concentração, mas também muito dinheiro dos contribuintes para me trazer de
volta até aqui, por uma questão que qualquer agente de informações experiente poderia responder.
- Poderia ter-me vendido, vendido meu nome por um preço.
- Que preço? Minha vida? As vidas daqueles que usei para acompanhá-lo, homens que são importantes para mim e o trabalho que realizo... um trabalho que considero ter um valor real, como tentei lhe explicar
em Bahrain? Acredita realmente nisso?
- Oh, meu Deus, não sei mais em que acreditar! - confessou Evan, expelindo o ar dos pulmões e sacudindo a cabeça. - Tudo o que eu queria fazer, tudo o que planejara, entrou pelo cano. Ahmat não quer me
ver de novo, não posso voltar... para lá ou qualquer outro lugar dos emirados ou dos golfos. Ele cuidará de me impedir.
- Queria voltar?
- Mais do que qualquer outra coisa. Pretendia recomeçar a vida onde fiz meu melhor trabalho. Mas primeiro tinha de encontrar e me livrar de um filho da puta que arruinara tudo, matara pelo prazer de matar...
tantas pessoas.
- O Mahdi - interrompeu Rashad, acenando com a cabeça. - Ahmat me contou. E você conseguiu. Ahmat é jovem e vai mudar de ideia. Com o tempo, compreenderá o que você fez por todos na região e ficará agradecido...
Mas acaba de me responder a uma pergunta. Pensei que tinha revelado a história pessoalmente, mas não foi o que aconteceu, não é mesmo?
- Eu? Perdeu o juízo? Estarei caindo fora daqui dentro de seis meses!
- Quer dizer que não tem ambição política?
- Mas claro que não! Estou fazendo as malas, de partida! Só que agora não tenho para onde ir. Alguém está tentando me impedir, transformar-me numa coisa que não sou. O que está acontecendo comigo?
- De imediato, eu diria que está sendo exumado.
- Sendo o quê? Por quem?
- Por alguém que pensa que você foi menosprezado. Alguém que acha você merecedor de aclamação pública, de proeminência.
- O que eu não quero! E o presidente não está ajudando. Vai me conceder a Medalha da Liberdade na próxima terça-feira, no Salão Azul, com a presença da Banda dos Fuzileiros! Eu disse a ele que não queria
e o filho da puta declarou que eu tinha de me exibir porque se recusava a parecer um "miserável mesquinho". Que tipo de raciocínio é esse?
- Muito presidencial... - Rashad parou de repente e depois acrescentou, enquanto dois homens da guarnição, em casacos brancos, apareciam na base do atracadouro: - Vamos andar. Não olhe em torno. Pareça
natural. Vamos descer para esse pobre arremedo de praia.
- Posso falar? - indagou Kendrick, começando a acompanhá-la.
- Nada de pertinente. Esperaremos até virarmos naquela curva.
- Por quê? Eles podem nos ouvir?
- Possivelmente. Não tenho certeza.
Seguiram pela curva da praia, até que as árvores encobriram os dois homens no atracadouro.
- Os japoneses desenvolveram relés direcionais, mas nunca vi nenhum. - Rashad fitou Evan, com uma expressão inquisitiva nos olhos inteligentes. - Falou com Ahmat?
- Ontem. Ele me disse que fosse para o inferno, mas não voltasse a Oman. Nunca mais.
- Compreende que verificarei com ele, não é mesmo?
Evan ficou subitamente atônito, depois furioso. Ela o estava questionando, acusando, conferindo suas palavras!
- Não me importo com o que possa fazer, minha única preocupação é com o que fez. É convincente, Khalehla... desculpe... senhorita Rashad, e posso acreditar no que diz, mas os seis homens que sabiam a meu
respeito tinham tudo a perder e nada a ganhar com a revelação de que estive em Mascate no ano passado.
- E eu nada tinha a perder, além da minha vida e das vidas de todos os que cultivei no setor, alguns dos quais, diga-se de passagem, me são muito queridos? Tire os antolhos, deputado, está parecendo ridículo.
Não apenas é um amador, mas também insuportável.
- É possível que você tenha cometido um erro! - exclamou Kendrick, exasperado. - Eu estava quase disposto a lhe conceder o benefício da dúvida... Insinuei isso para Dennison e disse que não o deixaria
enforcá-la.
- É muito generoso, senhor.
- Não, falei sério. Você salvou minha vida, e se deu um escorregão e deixou escapar meu nome...
- Não agrave sua asnice. É muito mais provável que qualquer dos cinco outros tenha escorregado do que Grayson ou eu. Vivemos no campo; não cometemos esse tipo de erro.
- Vamos andar - disse Evan. Não havia guardas à vista, apenas suas dúvidas e sua confusão forçavam-no a se movimentar.
Seu problema era que acreditava nela, acreditava no que Manny Weingrass dissera a seu respeito: "... ela nada teve a ver com sua divulgação... só serviria para aumentar sua vergonha e incendiar ainda mais
o mundo louco em que ela vive." E quando Kendrick protestara que não poderiam ter sido os outros, Manny acrescentara: "Então existem outros além dos outros..." Chegaram a um caminho de terra que subia
entre as árvores, aparentemente até o muro de pedra que margeava a propriedade.
- Vamos explorar? - perguntou Evan.
- Por que não? - disse Adrienne, friamente.
- Escute - ele continuou, enquanto subiam a encosta, lado a lado -, digamos que eu acredite em você...
- Muito obrigada.
- Está bem, eu acredito em você! E porque acredito, vou lhe contar uma coisa que apenas Swann e Dennison sabem; os outros não, pelo menos acho que não sabem.
- Tem certeza de que deve?
- Preciso de ajuda e eles não podem me ajudar. Talvez você possa; estava lá, comigo, e sabe de muitas coisas que ignoro. Como os acontecimentos são abafados, como as informações secretas são transmitidas
aos que devem ter conhecimento delas, procedimentos assim.
- Sei alguma coisa, mas não tudo. Estou baseada no Cairo, não aqui. Mas continue.
- Há algum tempo um homem foi procurar Swann, um louro com sotaque europeu, que tinha muitas informações a meu respeito... Frank chamou de DA.
- Dados anteriores - interrompeu Rashad. - Também chamados de "detalhes admiráveis". Geralmente saem dos cofres.
- Cofres? Que cofres?
- É o vernacular para os arquivos secretos. Continue.
- Depois de impressionar Frank, impressionar de verdade, ele foi direto ao ponto. Disse a Swann ter concluído que eu fora enviado a Mascate pelo Departamento de Estado durante a crise dos reféns.
- O quê? - explodiu Rashad, a mão no braço de Kendrick. - Quem é ele?
- Ninguém sabe. Ninguém consegue encontrá-lo. A identidade que ele usou para chegar a Frank era falsa.
- Santo Deus! - sussurrou Rashad, olhando para o caminho ascendente; lá em cima, a luz forte do sol rompia o paredão de árvores. - Ficaremos aqui por um momento. Vamos sentar.
Os dois se acomodaram no chão, cercados por troncos grossos e folhagem densa.
- E que mais? - indagou a mulher do Cairo.
- Swann tentou enganá-lo; até mostrou um memorando ao secretário de Estado, que ao mesmo tempo me escarnecia e rejeitava. Obviamente, o homem não acreditou em Frank e continuou a escavar, cada vez mais
fundo, até descobrir tudo. O que foi divulgado ontem de manhã era tão exato que só poderia ter saído do arquivo de Oman... dos cofres, como você diz.
- Sei disso - murmurou Rashad, a ira indelevelmente misturada ao medo. - Santo Deus, alguém foi convencido!
- Um dos sete... seis?
- Quem eram eles? Não estou falando de Swann e seu homem do computador de OHIO-Quatro-Zero, mas além de Dennison, Grayson e eu, quem mais?
- Os secretários de Estado e de Defesa, e o comandante do Estado-Maior Conjunto.
- Nenhum deles poderia ser abordado.
- O que me diz do homem do computador? O nome dele é Bryce, Gerald Bryce, e é jovem. Frank jurou por ele, mas é apenas um julgamento.
- Duvido muito. Frank Swann é um filho da puta, mas não creio que pudesse se enganar assim. Alguém como Bryce é a primeira pessoa em que se pensaria e ele sabe disso, já que é bastante esperto para dirigir
aquele tipo de operação. E também sabe que pode enfrentar trinta anos em Leavenworth.
Evan sorriu.
- Soube que Dennison a ameaçou com cinco anos lá.
- Eu disse a ele que era uma prisão de homens - comentou Adrienne, reagindo com um sorriso.
- E eu também - disse Kendrick, rindo.
- E acrescentei que se ele tinha mais alguma coisa boa reservada para mim, eu não entraria na barca de Cleópatra, muito menos no carro do governo.
- Por que entrou?
- Pura curiosidade. É a única resposta que posso lhe oferecer.
- Aceito-a... Onde estamos agora? Os sete estão fora e um europeu louro entra em cena.
- Não sei. - Subitamente, Rashad tornou a tocar no braço de Kendrick. - Tenho de lhe fazer algumas perguntas, Evan...
- Evan? Obrigado.
- Desculpe. Deputado. Foi um escorregão.
- Não se desculpe, por favor. Acho que temos direito ao tratamento pelo primeiro nome.
- Está bem.
- Mas se importa se eu a chamar de Khalehla? Fico mais à vontade.
- Eu também. Minha parte árabe sempre se ressentiu com a negação de Adrienne.
- Faça suas perguntas... Khalehla.
- Está certo. Quando decidiu ir a Mascate? Considerando-se as circunstâncias e o que era capaz de fazer, demorou a chegar lá.
Kendrick respirou fundo.
- Eu estava descendo pela corredeiras do Arizona, cheguei a um acampamento chamado Lava Falls e ouvi um rádio pela primeira vez em várias semanas. E compreendi que tinha de ir para Washington...
Evan relatou os detalhes daquelas dezesseis horas frenéticas, de um acampamento relativamente primitivo nas montanhas às salas do Departamento de Estado e finalmente ao sofisticado complexo subterrâneo
de computador que era OHIO-Quatro-Zero.
- Foi onde Swann e eu fizemos nosso acordo e parti com a missão.
- Vamos voltar um pouco atrás - disse Khalehla, só nesse momento desviando os olhos do rosto de Kendrick. - Contratou um avião que pousava no rio para levá-lo a Flagstaff, onde tentou fretar um jato para
Washington... Foi isso mesmo?
- Foi, sim. Mas o escritório de voo charter disse que era muito tarde.
- Estava ansioso. Provavelmente furioso. Poderia ter pressionado um pouco. Um deputado do grande Colorado, et cetera.
- Mais do que um pouco... e muito mais do que et cetera.
- Chegou a Phoenix e embarcou no primeiro voo comercial. Como pagou a passagem?
- Cartão de crédito.
- Sempre perigoso, mas não tinha motivos para pensar assim - comentou Khalehla. - Como sabia quem procurar no Departamento de Estado?
- Não sabia, mas podia me lembrar. Trabalhei em Oman e nos emirados durante anos, sabia qual era o tipo de pessoa que queria encontrar. E como herdara uma experiente secretária em Washington, com os instintos
de um gato de beco, disse a ela para procurar. Expliquei que sem dúvida era alguém em Operações Consulares do Departamento de Estado, seções do Oriente Médio ou Sudoeste Asiático. A maioria dos americanos
que trabalharam por lá está familiarizada com tais pessoas... às vezes até demais.
- Então essa secretária com os instintos de um gato de beco começou a fazer ligações e perguntas. Algumas pessoas devem ter estranhado. Ela fez uma lista das pessoas que procurou?
- Não sei. Nunca perguntei. Tudo era meio frenético e me mantive em contato com ela por um desses telefones ar-terra durante o voo de Phoenix. Quando desembarquei, ela reduzira as possibilidades a quatro
ou cinco homens, mas apenas um era considerado especialista nos emirados, além de ser vice-diretor de Operações Consulares: Frank Swann.
- Seria interessante verificar se sua secretária fez uma lista - murmurou Khalehla, o pescoço arqueado, pensando.
- Telefonarei para ela.
- Não daqui. Além do mais, ainda não acabei... Então você foi ao Departamento de Estado à procura de Swann, o que significa que passou pela segurança.
- Claro.
- E registrou a saída?
- Não... não na recepção. Em vez disso, levaram-me para a garagem e fui para casa num carro do Departamento de Estado.
- Sua casa?
- Isso mesmo. Estava de partida para Oman e precisava apanhar algumas coisas...
- O que me diz do motorista? - interrompeu Khalehla. - Ele o tratou pelo nome?
- Não. Mas disse algo que me deixou chocado. Perguntei se não queria entrar para comer alguma coisa ou tomar um café enquanto eu fazia as malas, e ele respondeu "Posso ser fuzilado se sair deste carro"
ou algo parecido. E depois acrescentou: "Você é OHIO-Quatro-Zero."
- O que significa que ele não era. Estavam na frente da sua casa?
- Certo. Saltei e vi outro carro, uns trinta metros atrás, encostado no meio-fio. Só podia ter-nos seguido; não há outras casas naquele trecho da estrada.
- Uma escolta armada. - Khalehla acenou com a cabeça. - Swann deu-lhe cobertura desde o primeiro minuto e estava certo. Não dispunha de tempo nem de meios para descobrir tudo o que lhe acontecera antes
de menos-um.
Evan estava admirado.
- Importa-se de me explicar isso?
- Menos-um é antes de você fazer contato com Swann. Um deputado rico e furioso, usando um avião fretado para chegar a Flagstaff, cria o maior alvoroço sobre a necessidade de ir para Washington. Nada consegue,
por isso voa para Phoenix, onde sem dúvida insiste em embarcar no primeiro voo e paga com um cartão de crédito, põe-se a telefonar para sua secretária, que possui os instintos de um gato de beco, dizendo-lhe
para procurar um homem que não conhece, mas tem certeza que existe, no Departamento de Estado. Ela faz as ligações... freneticamente, eu acho que você disse... falando com diversas pessoas que não podem
deixar de especular por quê. Fornece-lhe um quórum reduzido... o que significa que fez contato com muitas pessoas que conhece em condições de lhe dar a informação, as quais também especularam por quê.
Depois você aparece no Departamento de Estado querendo falar com Frank Swann. Exigindo. Estou certa? Naquele estado de espírito, exigiu que ele o recebesse?
- Está, sim. Tentaram me despistar, disseram que ele não estava, mas eu sabia que mentiam, minha secretária confirmara. Acho que me mostrei bastante obstinado. E finalmente deixaram-me subir para sua sala.
- Depois da conversa, ele tomou a decisão de mandá-lo para Mascate.
- E daí?
- O pequeno círculo apertado de que falou, Evan, não era tão pequeno nem tão apertado. Você fez o que qualquer outro faria nas circunstâncias... sob a tensão que sentia. Deixou diversas impressões durante
essa agitada viagem de Lava Falls a Washington. Poderia facilmente ser traçado através de Phoenix até Flagstaff, seu nome e insistência clamorosa por um transporte rápido lembrados por muitas pessoas,
especialmente por causa da hora. E depois aparece no Departamento de Estado, onde faz mais barulho... Incidentalmente, a entrada registrada na segurança, mas não a saída... até receber permissão para subir
à sala de Swann.
- É verdade, mas...
- Deixe-me acabar, por favor. Vai compreender e quero que nós dois tenhamos uma imagem completa... Você e Swann conversam, fecham o acordo de anonimato e em seguida você parte para Mascate. A primeira
etapa da jornada foi a ida à sua casa, com um motorista que não era parte de OHIO-Quatro-Zero, da mesma forma que os guardas no saguão do prédio. O motorista foi designado por um despachante e os guardas
de plantão apenas faziam seu serviço. Não estão nos círculos rarefeitos; ninguém lá em cima os inclui nas agendas ultrassecretas. Mas eles são humanos; vão para casa e conversam com suas mulheres e amigos,
porque alguma coisa diferente aconteceu em seus trabalhos normalmente insípidos. Podem também responder a perguntas casualmente formuladas por pessoas que imaginavam ser burocratas do governo.
- E de uma forma ou outra, todos sabiam quem eu era...
- Como muitas outras pessoas em Phoenix e Flagstaff, e uma coisa era evidente para todas: esse homem importante está transtornado; esse deputado tem a maior pressa; esse figurão está com um problema. Percebe
agora a trilha que deixou?
- Percebo, sim, mas quem se interessaria por ela?
- Não sei, e isso me perturba mais do que posso lhe dizer.
- Perturba você? Quem quer que seja, arruinou a minha vida! Quem faria isso?
- Alguém que descobriu uma abertura, uma brecha que levava ao resto da trilha, de um remoto acampamento chamado Lava Falls aos terroristas em Mascate. Alguém que deparou com alguma coisa que o levou a
querer saber mais. Talvez tenham sido os telefonemas de sua secretária ou a comoção que você causou na segurança do Departamento de Estado, até mesmo algo tão absurdo quanto ouvir o rumor de que um americano
desconhecido interferira em Oman... Não era tão absurdo assim; foi publicado e abafado, mas podia ter levado alguém a pensar. E depois outras coisas se ajustaram em seus lugares, e lá estava você.
Evan pôs a mão sobre a dela.
- Preciso saber quem foi, Khalehla, preciso descobrir de qualquer maneira.
- Mas nós sabemos - ela murmurou, corrigindo-se, a voz incisiva, como se percebesse um vulto que deveria ter visto antes. - Um louro com sotaque europeu.
- Por quê?
Kendrick retirou a mão, a pergunta explodindo da sua garganta. Khalehla fitou-o nos olhos, com uma expressão compadecida, mas por trás da preocupação havia aquele brilho frio de inteligência analítica.
- A resposta deve ser sua preocupação predominante, Evan, mas eu tenho outro problema e é por isso que estou assustada.
- Não consigo entender.
- Quem quer que seja o louro, quem quer que ele represente, entrou fundo em nossos porões e retirou o que nunca lhe seria dado. Estou aturdida, Evan, paralisada de espanto... e essas palavras não são bastante
fortes para descrever o que sinto. Não apenas pelo que foi feito a você, mas também pelo que foi feito a nós. Fomos comprometidos, violentados, quando tal violência deveria ser impossível. Se eles... quem
quer que sejam... podem arrancar coisas de nossos arquivos mais profundos e secretos, também podem descobrir uma porção de outras coisas a que ninguém deveria ter acesso. Onde pessoas como eu trabalham,
isso pode custar muitas vidas... e da maneira mais desagradável.
Kendrick estudou o rosto tenso e impressionado, constatando o medo em seus olhos.
- Fala sério, não é mesmo? Está de fato assustada.
- Você também ficaria se conhecesse os homens e mulheres que nos ajudam, que confiam em nós, que arriscam a vida para nos trazer informações. Todos os dias eles especulam se alguma coisa que fizeram ou
deixaram de fazer vai expô-los. Muitos já cometeram suicídio por não conseguirem aguentar a tensão, outros enlouqueceram e desapareceram em desertos, preferindo morrer em paz com seu Alá do que continuar.
Mas a maioria continua, porque acredita em nós, acredita que somos justos e queremos sinceramente a paz. Lidam com fanáticos empunhando armas a cada passo e, por piores que sejam as coisas, só por causa
deles não ficam ainda piores, com muito mais sangue nas ruas... É verdade, estou apavorada porque muitas dessas pessoas são amigas... minhas, de meu pai e minha mãe. O pensamento de que possam ser traídas,
como você foi traído... e foi isso que lhe aconteceu, Evan, traído... leva-me a ter vontade de sair pelas areias e morrer como os que enlouqueceram. Porque alguém lá no fundo está abrindo os nossos arquivos
mais secretos a pessoas de fora. Tudo o que ele ou ela precisou no seu caso foi de um nome, o seu nome... e as pessoas temem por suas vidas em Mascate e Bahrain. Quantos outros nomes podem ser fornecidos?
Quantos outros segredos descobertos?
Evan inclinou-se, não apenas cobrindo a mão de Khalehla, mas agora segurando-a, apertando.
- Se acredita nisso, por que não me ajuda?
- Ajudá-lo?
- Preciso saber quem está fazendo isso comigo e você precisa saber quem está lá em cima ou lá embaixo tornando tudo possível. Eu diria que nossos objetivos se ajustam, não concorda? Tenho Dennison num
torno de que ele não pode escapar e posso lhe obter uma determinação discreta da Casa Branca para continuar por aqui. Na verdade, ele aproveitaria ansioso a oportunidade de descobrir onde houve um vazamento;
é a sua obsessão.
Khalehla franziu o rosto.
- Não funciona assim. Além do mais, eu estaria fora do meu grupo. Sou muito boa onde estou, mas longe do meu elemento, meu elemento árabe, não sou de primeira classe.
- Um: eu a considero de primeira classe, porque salvou minha vida e considero minha vida relativamente importante. E dois: como mencionei, você tem experiência em áreas sobre as quais nada sei. Procedimentos.
"Avenidas secretas de referência"... aprendi isso como membro do Comitê Especial de Informações, mas não tenho a mais vaga ideia do que significa. Você sabe até mesmo o que são "porões", quando sempre
pensei que não passavam de porões comuns de conjuntos suburbanos, que graças a Deus nunca precisei construir. Por favor. Disse em Bahrain que queria me ajudar. Pois me ajude agora! Ajude a si mesma!
Adrienne Rashad respondeu com os olhos escuros a fitarem friamente os de Kendrick:
- Eu poderia ajudar, mas talvez surjam ocasiões em que você teria de fazer o que eu mandasse. Poderia aceitar isso?
- Não estou muito ansioso em saltar de pontes ou edifícios...
- Você teria que dizer, por exemplo, para determinadas pessoas, o que eu gostaria que dissesse. E pode também haver ocasiões em que eu não serei capaz de lhe explicar as coisas. É capaz de aceitar isso?
- Sim. Porque a observei e escutei, confio em você.
- Obrigada. - Ela apertou brevemente a mão de Kendrick. - Eu teria ainda de trazer alguém para trabalhar comigo.
- Por quê?
- Em primeiro lugar, é necessário. Precisaria de uma transferência temporária, e ele poderia obtê-la sem dar uma explicação... Esqueça a Casa Branca, é muito perigosa, muito instável. Segundo, ele pode
ser útil em áreas além do meu alcance.
- De quem se trata?
- Mitchell Payton. É o diretor de Projetos Especiais... um eufemismo para "Não pergunte".
- Pode confiar nele? Totalmente, sem a menor dúvida?
- Sem a menor dúvida. Ele me encarreirou na Agência.
- Não é exatamente uma razão.
- Há o fato de que o chamei de "tio Mitch" no Cairo desde que tinha seis anos de idade. Era um jovem agente de operações e se apresentava como instrutor na universidade. Tornou-se amigo de meus pais...
meu pai era um professor e minha mãe uma americana da California, como Mitch.
- Ele lhe dará uma transferência?
- Claro.
- Tem certeza?
- Ele não tem alternativa. Como eu lhe disse, alguém está dando uma parte de nossa alma que não se encontra à venda. É você agora. Quem será o próximo?
25
Mitchell Jarvis Payton era um bem-posto acadêmico de 63 anos que fora atraído para a CIA há 34 anos porque se ajustava a uma descrição fornecida por alguém à divisão de recrutamento de pessoal. Esse alguém
desaparecera em outras áreas e nenhuma missão fora designada para Payton - apenas os requisitos, classificados como urgentes. Contudo, quando os empregadores em perspectiva compreenderam que não tinham
um lugar específico para o potencial funcionário, já era tarde demais. Fora convocado pelos agressivos recrutadores da Agência em Los Angeles e enviado para a sede da CIA em Langley, Virginia, para ser
doutrinado. Era uma situação embaraçosa, pois o Dr. Payton, num ímpeto de fervor pessoal e patriótico, apresentara sua renúncia, a entrar em vigor imediatamente, ao Conselho Estadual de Reitores. Foi um
começo inauspicioso para um homem cuja carreira se desenvolveria de maneira tão auspiciosa.
MJ, como era chamado por tanto tempo quanto podia se lembrar, fora um professor-assistente de 29 anos, com um doutorado em Estudos Árabes da Universidade da California, onde posteriormente passara a dar
aulas. Numa linda manhã de sol, procuraram-no dois cavalheiros do governo, que o convenceram de que o país precisava urgentemente dos seus talentos. O que as funções significavam, é claro, eles não estavam
autorizados a revelar, mas presumiam, como representavam a esfera mais excitante do serviço público, que a posição era no exterior, em área do seu conhecimento. O jovem solteirão aproveitara a oportunidade
sem hesitar; ao se confrontar com seus perplexos superiores em Langley, que não sabiam o que fazer com ele, reclamara insistente que cortara seus vínculos em Los Angeles porque presumira que pelo menos
seria enviado para o Egito. Por isso, fora despachado para o Cairo. (Nunca é demais o número de observadores no Egito que entendam aquela maldita língua.) Na faculdade, Payton estudara literatura americana,
porque pensara que não exigia muito. E por esse motivo uma agência de empregos em Roma, na verdade uma subsidiária da CIA, o colocara na Universidade do Cairo, como um professor de literatura americana
que falava árabe.
Ali conhecera os Rashads, um adorável casal que se tornara uma parte importante na sua vida. Em sua primeira reunião do corpo docente, Payton sentara-se ao lado do famoso professor Rashad; no diálogo antes
do início da conferência, descobrira que Rashad não apenas estudara na California, mas também casara com uma colega de turma de MJ. Desabrochara uma amizade profunda, ao mesmo tempo que aumentava a reputação
de MJ na CIA. Através de talentos que não tinha ideia de possuir e que às vezes chegavam a assustá-lo, descobrira que era um mentiroso excepcionalmente convincente. Aqueles eram dias de turbilhão, de alianças
que mudavam rapidamente e tinham de ser controladas, com a penetração americana cada vez mais ampla mantida em sigilo. Ele conseguira, através do seu árabe fluente e da compreensão de que as pessoas podiam
ser motivadas por palavras simpáticas apoiadas por dinheiro, organizar diversos grupos de facções opostas que lhe informavam os movimentos umas das outras. Em retribuição, fornecera recursos para suas
causas - pequenas despesas para a então sacrossanta CIA, mas grandes contribuições para os cofres minguados dos fanáticos. E através de seus esforços no Cairo, Washington evitou diversos embaraços potencialmente
explosivos. Contudo, na típica atitude da velha guarda da comunidade de informações em Washington, se um homem fazia um bom trabalho onde estava, esquecia-se a convergência de fatores específicos que o
tornavam competente naquele lugar e o chamavam de volta à capital americana, para verificar o que podia fazer ali. M. J. Payton fora uma exceção numa longa lista de fracassos. Sucedera a James Jesus Angleton,
o Raposa Cinzenta de operações clandestinas, como diretor de Projetos Especiais. E jamais esqueceu o que o amigo Rashad lhe dissera quando foi promovido.
- Nunca conseguiria isso, MJ, se fosse casado. Você possui a autoconfiança de quem nunca foi manipulado.
Era bem possível.
Apesar disso, enfrentara um teste completo de manipulação quando a filha impetuosa de seus queridos amigos chegara a Washington, tão obstinada como sempre. Uma coisa terrível acontecera em Cambridge, Massachusetts,
e ela estava determinada a dedicar sua vida - pelo menos uma parte da sua vida - a atenuar os fogos de ódio e violência que assolavam seu mundo mediterrâneo. Nunca contara a "tio Mitch" o que lhe acontecera
- não precisava fazê-lo -, mas nunca aceitaria um não como resposta. Ela era qualificada; tão fluente em inglês e francês quanto em árabe, estava aprendendo iídiche e hebraico. Ele sugerira os Voluntários
da Paz e ela jogara a bolsa no chão, diante da sua mesa.
- Não! Não sou uma criança, tio Mitch, e não tenho esse tipo de impulsos benevolentes. Estou preocupada apenas com o lugar de onde venho, onde nasci. Se não tem uso para mim, encontrarei outros que terão!
- Podem ser os outros errados, Adrienne.
- Então me impeça! Contrate-me!
- Terei de conversar com seus pais...
- Não pode fazer isso! Meu pai se aposentou... ambos estão aposentados e vivem no norte, em Baltim-on-the-Sea. Se preocupariam comigo e causariam problemas com sua preocupação. Consiga-me trabalhos de
tradução ou um cargo de consultora independente de exportadores... tenho certeza que pode conseguir! Por Deus, tio Mitch, você era um professor-assistente na universidade e nós nunca dissemos nada!
- Você não sabia, minha cara...
- Uma ova que eu não sabia! Os sussurros na casa quando um amigo de tio Mitch estava para chegar, e eu tinha de ficar no meu quarto, até a noite em que três homens apareceram de repente, todos com revólveres
na cintura, coisa que eu nunca tinha visto...
- Eram emergências. Seu pai compreendeu.
- Então tem de me compreender agora, tio Mitch. Preciso fazer isso!
- Está bem - concordara MJ. Payton. - Mas você também tem de compreender a mim, minha jovem. Fará um curso intensivo em Fairfax, Virginia, num estabelecimento que não está registrado em parte alguma. Se
fracassar, não poderei ajudá-la.
- Combinado - dissera Adrienne Khalehla Rashad, sorrindo. - Quer apostar?
- Não com você, minha jovem tigresa. E agora vamos almoçar. Você não bebe, não é mesmo?
- Não.
- Pois eu bebo e vou beber, mas não apostarei com você.
E fora bom para a carteira de Payton não ter apostado. A candidata n.º 1344 terminara o árduo curso de dez semanas em Fairfax, Virginia, como a primeira de sua turma. Movimento Feminista à parte, ela se
saíra melhor do que 26 homens. Mas também, seu "tio Mitch" pensara, ela possuía uma motivação que faltava aos outros: tinha uma metade árabe.
Tudo isso acontecera há mais de nove anos. E agora, naquela tarde de sexta-feira, quase dez anos depois, Mitchell Jarvis Payton estava consternado. A agente de campo Adrienne Rashad, servindo no Setor
Mediterrâneo Oeste, Posto Cairo, acabara de ligar de um telefone público no Hilton Hotel, em Washington! O que ela estava fazendo ali? Por ordem de quem fora removida do seu posto? Todos os agentes ligados
a Projetos Especiais, especialmente aquela agente, só podiam receber ordens por seu intermédio. Era inacreditável! E o fato de ela não querer ir a Langley, insistindo em vez disso num encontro num restaurante
fora de mão em Arlington, não contribuía para acalmar os nervos de MJ. Sobretudo depois que ela declarara:
- É absolutamente vital que eu não encontre alguém que conheça ou possa me reconhecer, tio Mitch.
Além do tom ominoso da advertência, ela não o chamava de tio Mitch há anos, desde o tempo do colégio. Sua sobrinha "adotiva" era uma mulher com problemas.
Milos Varak desembarcou do avião em Durango, Colorado, e atravessou o terminal até o balcão da agência de aluguel de automóveis. Apresentou uma falsa licença de motorista e um cartão de crédito igualmente
falso, assinou o contrato, apanhou as chaves e foi conduzido ao estacionamento, onde o carro esperava. Levava na pasta um minucioso mapa do sudoeste do Colorado, indicando coisas como as maravilhas do
Parque Nacional de Mesa Verde e descrições de hotéis, motéis e restaurantes, a maioria dentro e em volta de cidades como Cortez, Hesperus, Marvel e, mais ao leste, Durango. A área menos detalhada era um
ponto chamado Mesa Verde; a designação de "cidade" não se adaptava. Era uma locação geográfica mais real nas mentes das pessoas do que nos livros; um armazém geral, uma barbearia, um pequeno aeroporto
particular nos arredores e um café chamado Gee-Gee’s eram os principais estabelecimentos. As pessoas passavam por Mesa Verde, não residiam ali. Existia para a conveniência de fazendeiros, trabalhadores
no campo e viajantes inveterados que invariavelmente se perdiam nas estradas panorâmicas para o Novo Mexico e Arizona. O luxo do aeroporto era para atender a uma dúzia, mais ou menos, de privilegiados
proprietários de terras, que haviam construído mansões na área e queriam facilidade de transporte. Raramente eles passavam pelo trecho de estrada em que ficavam o armazém geral, a barbearia e o café. Tudo
o que precisavam vinha de avião de Denver, Las Vegas e Beverly Hills - daí o aeroporto. A exceção ali era o deputado Evan Kendrick, que surpreendentemente concorrera a um cargo político. Cometera o erro
de pensar que Mesa Verde podia produzir votos, o que seria possível se a eleição fosse realizada ao sul do Rio Grande.
Varak, no entanto, queria muito conhecer aquele trecho da estrada a que os locais chamavam Mesa Verde ou apenas Verde, como Emmanuel Weingrass dizia. Queria saber como os homens se vestiam, como andavam,
o que as pressões do trabalho no campo fizera com seus corpos, seus músculos, sua postura. Durante as próximas 24 horas ou, no máximo, 48 horas, teria de se fundir ao lugar. Milos tinha um trabalho a realizar
que, num certo sentido, o entristecia profundamente, mas era algo que não podia deixar de ser feito. Se havia um traidor em Inver Brass, dentro de Inver Brass, precisava descobrir quem era ele... ou ela.
Depois de uma hora e trinta e cinco minutos ao volante, encontrou o café chamado Gee-Gee’s. Não podia entrar vestido como estava, por isso estacionou o carro, tirou o paletó e encaminhou-se para o armazém
geral, no outro lado da rua.
- Nunca o vi antes - comentou o idoso proprietário, virando a cabeça, enquanto empilhava sacos de arroz numa prateleira. - É sempre um prazer ver um rosto novo. Está a caminho do Novo Mexico? Posso indicar
a estrada certa, não precisa comprar nada. Sempre digo isso a todo mundo, mas as pessoas acham que devem se separar de algum dinheiro, quando tudo o que querem é uma orientação.
- É muito gentil, senhor - disse Milos -, mas receio que terei de me separar de algum dinheiro... não meu, é claro, mas do meu patrão. É muita coincidência, mas vim comprar vários sacos de arroz. Esqueceram
de incluir na remessa de Denver.
- Ah, um dos grandes nas colinas. Leve o que quiser, filho... pagamento à vista, é claro. Na minha idade, não vendo a crédito.
- Eu nem pensaria nisso, senhor.
- Ei, você não é estrangeiro?
- Escandinavo - respondeu Milos. - Sou apenas um empregado temporário, preenchendo uma vaga enquanto o motorista está doente.
Milos pegou três sacos de arroz e os levou para o balcão; o proprietário foi até a caixa registradora.
- Para quem você trabalha?
- A casa Kendrick, mas ele não me conhece...
- Ei, não acha sensacional a história do jovem Evan? Nosso próprio deputado o herói de Oman! Faz mesmo um homem parecer mais alto, como diz o presidente! Já esteve aqui algumas vezes... três, talvez quatro.
Um cara muito simpático, que você gostaria de conhecer; um tipo com os pés no chão, entende?
- Infelizmente, ainda não o conheci.
- Mas se está lá na casa, por certo que conhece o velho Manny. Um sujeito sensacional, não é mesmo? Aquele judeu maluco é incrível!
- Tem toda razão.
- São seis dólares e trinta e um cents, filho. Tire o cent, se não tiver trocado.
- Acho que tenho... - Varak enfiou a mão no bolso. - O senhor... Manny vem aqui com frequência?
- Não muita. Talvez duas ou três vezes por mês. Aparece com uma daquelas suas enfermeiras, mas corre para o Gee-Gee’s assim que ela vira as costas. Aqui está seu troco, filho.
- Obrigado.
Milos pegou os sacos de arroz e virou-se para a porta, mas foi abruptamente detido pelas palavras seguintes do proprietário.
- Imagino que as garotas o delataram, porque Evan parece que está ficando um pouco mais rigoroso nos cuidados com o seu velho amigo. Mas acho que você já sabe disso.
- Claro - respondeu Varak, tornando a olhar para o homem e sorrindo. - Como descobriu?
- Foi ontem. Com toda aquela confusão lá na casa, Manny pegou o táxi do Jake para vir ao Gee-Gee’s. Eu o vi, fui até a porta e gritei para ele que a notícia era sensacional. Ele gritou em resposta "Uma
beleza" ou qualquer coisa parecida e depois entrou. Foi quando avistei o outro carro se aproximando pela rua, bem devagar, com um cara falando ao telefone... sabe como é, um desses telefones de carro.
Estacionou em frente ao Gee-Gee’s e ficou ali, olhando para a porta. Mais tarde falou de novo por aquele telefone e pouco depois saltou e entrou no café do González. Ninguém mais tinha entrado e por isso
calculei que ele estava vigiando o Manny.
- Direi a eles para tomarem mais cuidado - comentou Milos, ainda sorrindo. - Mas apenas para ter certeza de que estamos falando do mesmo homem, ou de um deles, como ele parecia?
- Era um sujeito da cidade grande, escrito e escarrado. Roupa de luxo, cabelos lustrosos.
- Cabelos escuros?
- Não. Meio avermelhados.
- Ah, ele! - disse Varak, convincente. - Mais ou menos do meu tamanho.
- Não. Eu diria que um pouco mais alto... Talvez mais que um pouco.
- Claro, claro - concordou o tcheco. - Imagino que muitas vezes nos julgamos mais altos do que realmente somos. Ele é um pouco mais magro, ou talvez pareça isso por sua altura...
- É esse mesmo - interrompeu o dono do armazém. - Não tem muita carne nos ossos, não é como você.
- Então ele estava guiando o Lincoln marrom.
- Pareceu-me azul e era um carro grande, mas não sei distinguir uma marca de outra hoje em dia. Todos parecem iguais, como besouros sem rumo.
- Obrigado, senhor. Direi ao pessoal para ser mais discreto. Não queremos que Manny fique aborrecido.
- Não se preocupe comigo que não contarei nada a ele. Manny fez uma operação perigosa e se o jovem Evan acha que ele precisa ser mais vigiado, sou a favor. Afinal, o velho Manny precisa se cuidar... Gê-Gê
até põe água no uísque dele sempre que pode.
- Mais uma vez, obrigado. Informarei ao deputado sobre a sua esplêndida cooperação.
- Pensei que não o conhecia.
- Quando eu o encontrar, senhor.
Milos Varak encaminhou-se para o carro alugado e partiu, deixando para trás o trecho de estrada em que se localizavam o armazém, a barbearia e o café. Um homem alto e magro, cabelos avermelhados, bem penteados,
guiando um enorme sedã azul. A caçada começara.
- Não acredito! - murmurou Mitchell Jarvis Payton.
- Pode acreditar, MJ - disse Adrienne Rashad por cima da toalha de mesa vermelha, axadrezada, no fundo do restaurante italiano em Arlington. - O que realmente sabia sobre Oman?
- Era uma operação Quatro-Zero do Departamento de Estado, tendo na ligação Lester Crawford, que queria uma relação do nosso melhor pessoal com mais contatos no sudoeste da área. Isso é tudo que eu sabia.
Podia haver outros mais qualificados do que você, mas não em relação aos contatos.
- Não podia deixar de presumir que a operação envolvia os reféns.
- Claro. Todos sabíamos e, para dizer a verdade, fiquei em dúvida. Sua amizade com Ahmat e a esposa não era segredo para mim e tive de presumir que outros também sabiam. Não queria apresentar seu nome
a Les, mas seu trabalho passado com Projetos assim indicava e suas ligações com a família real assim exigiam. Além disso, concluí que me arrancaria a cabeça se eu a deixasse de fora por motivos pessoais
e você acabasse descobrindo.
- Claro que eu ficaria furiosa.
- Posso confessar um pequeno pecado - disse Payton, com um sorriso triste. - Depois que tudo acabou, entrei na sala de Crawford, deixei claro que compreendia as regras, mas precisava saber se você estava
bem. Ele me fitou com aqueles seus olhos de peixe e informou que você já tinha voltado ao Cairo. Me parece que ele ficou irritado por ter de me contar isso... E agora você vem me dizer que toda a operação
foi revelada por um de nós! Uma estratégia Quatro-Zero não pode ser divulgada por muitos anos, até por décadas! Há registros da Segunda Guerra Mundial que não serão revelados senão na metade do próximo
século, ou mesmo mais tarde!
- Quem controla esses registros, MJ, esses arquivos?
- São despachados para o esquecimento... metidos em depósitos espalhados pelo país sob a custódia do governo, com guardas armados e sistemas de alarme tão sofisticados que alcançam Washington instantaneamente,
alertando a nós e às salas de estratégia nos departamentos de Estado e de Defesa e na Casa Branca. Claro que nos últimos vinte anos, com a proliferação de computadores sofisticados, a maior parte passou
a ser guardada em bancos de dados, com códigos de acesso que precisam ser coordenados no mínimo por três serviços de informações e mais o Gabinete Oval. Quando são considerados vitais, os documentos originais
são lacrados e arquivados. - Payton deu de ombros, as palmas viradas para cima. - O esquecimento, minha cara. É tudo infalível, à prova de roubo.
- Obviamente, não é mais - discordou a agente do Cairo.
- Continua a ser quando os registros alcançam o nível de controles de segurança. Por isso, acho melhor você me contar tudo o que sabe, tudo o que o deputado lhe declarou. Porque se é verdade o que diz,
temos um filho da puta em algum lugar entre a decisão de ir ao nível máximo e os bancos de dados.
Adrienne Khalehla Rashad recostou-se na cadeira e começou a falar. Não escondeu nada do seu antigo e sempre amigo tio Mitch, nem mesmo o acidente sexual que ocorrera em Bahrain.
- Não posso dizer que estou arrependida, em termos profissionais ou quaisquer outros, MJ. Ambos estávamos tensos e apavorados, e sem dúvida ele é um homem decente... fora de seu estado normal, mas mesmo
assim extraordinário. E pude confirmar isso em Maryland esta manhã.
- Na cama?
- Claro que não. Só pelo que ele disse, pelo que está tentando descobrir. Porque fez o que fez, porque se tornou um deputado e agora quer cair fora, como já lhe contei. Tenho certeza que ele está todo
raivoso, mas também é uma raiva que se justifica.
- Acho que percebo em minha "sobrinha" certos sentimentos que há muito desejava encontrar.
- Claro que existem, eu seria uma hipócrita se negasse, mas duvido que haja qualquer coisa permanente. De certa forma, somos parecidos. Estou projetando, mas creio que ambos estamos mais consumidos pelo
que temos de fazer, como duas pessoas separadas, do que naquilo que o outro quer. Mas gosto dele, MJ, gosto de verdade. Ele me faz rir e não apenas dele, mas com ele.
- Isso é muitíssimo importante - comentou Payton ansioso, o sorriso e a expressão ainda mais tristes do que antes. - Jamais encontrei uma mulher que pudesse genuinamente me fazer rir... com ela. Mas é
verdade que se trata de um defeito da minha constituição. Sou muito exigente e levo a pior por isso.
- Você não tem defeitos. É o meu tio Mitch e não vou admitir essa conversa.
- Seu pai sempre fez sua mãe rir. Houve ocasiões em que os invejei, apesar dos problemas que enfrentavam. Ele a fazia rir.
- Era um mecanismo de defesa. A mãe temia que ele pudesse dizer "divórcio" três vezes e ela teria de se separar.
- Isso é bobagem. Ele a adorava. - Depois, tão habilmente como se não tivessem se desviado da crise de Mascate, Payton voltou ao assunto. - Por que, em primeiro lugar, Kendrick insistiu no anonimato? Sei
que já me contou isso, mas poderia repetir, por favor?
- Você parece desconfiado e não deveria estar. É uma explicação perfeitamente lógica. Ele tencionava voltar e retomar sua vida no ponto onde a deixara, cinco ou seis anos antes. Não podia fazer isso com
a bagagem de Oman pendurada no pescoço. E também não pode fazer agora, porque todos querem sua cabeça; dos fanáticos palestinos a Ahmat e todos aqueles que o ajudaram e estão apavorados com a possibilidade
de se exporem. O que lhe aconteceu, durante os dois últimos dias, prova que ele estava certo. Quer voltar, mas agora não pode. Ninguém lhe permitirá.
Payton tornou a franzir o rosto, a tristeza desvanecida substituída por uma curiosidade fria que beirava a dúvida.
- Compreendo isso, minha cara, mas também só tem a palavra dele de que queria voltar... ou quer voltar.
- Acredito nele.
- Ele pode acreditar em si mesmo - sugeriu o diretor de Projetos Especiais. - Agora, depois de ter segundos pensamentos, provocados por uma reflexão sobre as coisas.
- Está sendo enigmático, MJ. O que quer dizer?
- Pode ser um aspecto menor, mas acho que merece ser considerado. Um homem que quer desaparecer de Washington, realmente desaparecer, e não abrir um escritório de advocacia, uma firma de relações públicas
ou qualquer outra bonificação do serviço público, não costuma batalhar com os pesos-pesados do Pentágono em audiências televisionadas de um comitê, comparecer a um programa dominical de TV que tem a maior
audiência no país ou conceder uma provocante entrevista coletiva, com a mais ampla divulgação garantida. Também não continua a ser a bête noire num subcomitê especial de informações, fazendo perguntas
difíceis, que podem não levá-lo à atenção pública, mas põem seu nome a circular pela capital. Encaradas em conjunto, essas atividades não são características de um homem ansioso por deixar a arena política
e renunciar às possíveis recompensas. Não acha que há aí uma certa incoerência?
Adrienne Rashad assentiu.
- Interroguei-o a respeito de tudo isso, a princípio acusando-o de querer apenas um testemunho meu e de ter desenvolvido ambição política. Ele explodiu, negou tais motivos, insistiu com veemência que queria
apenas sair de Washington.
- Esses não poderiam ser seus segundos pensamentos? - sugeriu Payton. - E pergunto gentilmente, porque qualquer pessoa sã os teria. Digamos que esse indivíduo muito bem-sucedido... e ele é de fato um individualista,
não seria nada de outra forma, já verifiquei isso pessoalmente... tenha sido atingido pelo nosso vírus do Potomac e diga a si mesmo para ir em frente, usar todos os recursos de que dispõe, inclusive o
que fez em Oman. De repente ele desperta e pensa: Santo Deus, o que foi que eu fiz? O que estou fazendo aqui? Meu lugar não é entre esta gente!... Não seria a primeira vez, e você sabe disso. Perdemos
muitos homens e mulheres de bem nesta cidade que chegaram à mesma conclusão... de que não pertenciam a este lugar. Quase todos são pessoas de muita independência, que acreditam em seus julgamentos, em
geral derivados do sucesso em um campo ou outro. A menos que queiram o poder apenas para satisfazer um ego impetuoso... O que seus instintos em relação a Kendrick parecem descartar, e acredito em seus
instintos... essas pessoas não têm paciência com os labirintos de debates e concessões intermináveis que constituem os subprodutos do nosso sistema. Nosso deputado poderia ser alguém assim?
- De passagem, eu diria que ele não é desse tipo, mas também aí será apenas um instinto.
- Então não é possível que seu atraente jovem...
- Ora, MJ, pare com isso. Está sendo antediluviano.
- É para substituir um termo que me recuso a usar com minha sobrinha.
- Aceito sua versão de cortesia.
- Decoro, minha cara. Mas não é possível que seu amigo despertasse e dissesse a si mesmo: "Cometi um erro terrível ao me projetar como herói e agora preciso desfazer tudo"?
- Seria, se ele fosse um mentiroso, o que acho que não acontece.
- Mas percebe a incoerência do seu comportamento, não é mesmo? Ele agiu de uma maneira e depois alega ser o oposto.
- Está dizendo que ele protesta demais, e eu digo que não é porque esteja mentindo para si mesmo ou para mim.
- Apenas procuro explorar todos os caminhos antes de procurarmos um filho da mãe que, se você está certa, foi abordado por outro filho da mãe, um louro... Kendrick lhe disse por que atacou publicamente
o Pentágono, assim como toda a indústria da defesa, para não falar de suas críticas menos públicas, mas circulando no meio, aos nossos serviços de informações?
- Porque ele se encontrava em posição para dizer essas coisas e achava que deviam ser ditas.
- Apenas isso? É a explicação dele?
- É, sim.
- Mas ele teve de procurar, em primeiro lugar, as posições que lhe propiciaram a oportunidade de falar. Primeiro o Comitê Partridge, depois o Subcomitê Especial de Informações; são postos politicamente
cobiçados, para dizer o mínimo. Para cada uma das vagas há quatrocentos deputados que venderiam suas mulheres para obtê-la. Não caem de repente no colo de alguém, é preciso trabalhar por isso, e até mesmo
lutar muito. Como é que ele explica isso?
- Não pode. Simplesmente caíram no seu colo. E em vez de lutar pelas posições, ele lutou para evitá-las.
- Como? - murmurou M. J. Payton, atônito.
- Ele disse que se eu não acreditasse nas suas palavras, podia procurar o chefe da sua assessoria, que praticamente teve de obrigá-lo à força a aceitar o lugar no Comitê Partridge, e depois falar com o
próprio presidente da Câmara, perguntando ao velho e astuto duende irlandês onde Evan o mandara enfiar o seu subcomitê. Não queria qualquer das funções, mas lhe explicaram que se não aceitasse não teria
condições de influenciar a escolha de seu sucessor no Nono Distrito do Colorado, o que é importante para ele; foi o motivo pelo qual concorreu ao cargo. Livrara o partido de um vigarista e não queria que
outro tomasse o lugar.
Payton recostou-se lentamente na cadeira, levando a mão ao queixo, os olhos contraídos. Ao longo dos anos, Adrienne Rashad aprendera quando permanecer em silêncio e não interromper o pensamento de seu
mentor. Fez as duas coisas agora, preparando-se para qualquer uma de várias reações, mas não para a que ouviu:
- Este é um jogo diferente, minha cara. Se me lembro corretamente, você disse a Kendrick que na sua opinião ele estava sendo exumado por alguém que o julgava merecedor de aclamação pelo que fez. Receio
que a coisa seja muito mais profunda. Nosso amigo está sendo programado.
- Mas para quê?
- Não sei, mas acho melhor tentarmos descobrir. Discretamente, com a maior cautela. Estamos lidando com alguma coisa extraordinária.
Varak avistou o enorme sedã azul-escuro. Estava estacionado à margem da estrada sinuosa e cercada de árvores, no meio de um bosque algumas centenas de metros a oeste da casa de Kendrick... e vazio. Ele
passara pela impressionante propriedade do deputado, ainda sitiada por uns poucos repórteres esperançosos e uma equipe de TV, e tencionava seguir para o norte, até um motel nos arredores de Cortez. A visão
do veículo azul, no entanto, fê-lo mudar de ideia. O tcheco seguiu em frente pela curva seguinte e depois levou o carro por algumas moitas junto das árvores. A pasta de executivo se encontrava a seu lado,
no banco; ele abriu-a e tirou as coisas que achava que poderia precisar, várias indispensáveis, várias duvidosas. Meteu-as nos bolsos, saiu do carro, fechou a porta sem fazer barulho e contornou a curva,
de volta ao sedã azul. Aproximou-se da porta mais próxima do bosque e estudou o veículo, à procura de armadilhas - gatilhos que acionariam um alarme se alguém interferisse com uma fechadura, pressionasse
as portas ou interceptasse fachos de luz das rodas dianteiras às traseiras.
Encontrou duas das três, uma tão séria que lhe revelou uma coisa: havia segredos naquele automóvel muito mais valiosos do que roupas ou joias e até mesmo documentos de negócios confidenciais. Uma fileira
de pequenos buracos fora perfurada e pintada ao longo das molduras inferiores das janelas; eram jatos que lançavam um vapor não letal mas capaz de imobilizar um intruso por tempo considerável. Haviam sido
concebidos e aperfeiçoados inicialmente para diplomatas em países convulsionados, onde era quase tão importante interrogar os atacantes quanto salvar vidas. Podiam ser acionados por motoristas durante
um ataque ou por alarmes quando o carro se encontrava vazio. O sistema estava agora sendo vendido para os ricos do mundo e dizia-se que os fornecedores não tinham condições de atender prontamente à enorme
demanda.
Varak olhou ao redor e encaminhou-se rapidamente para a traseira do veículo, enfiou a mão no bolso e se arriou para o chão, perto do cano de descarga. Rastejou para baixo do sedã e começou a trabalhar
no mesmo instante; saiu menos de noventa segundos depois, levantou-se e correu para o bosque. A caçada tivera início e a espera começou.
Quarenta e um minutos depois ele avistou um vulto alto e magro descer pela estrada. O homem usava um terno escuro, paletó aberto, um colete aparecendo; os cabelos estavam impecavelmente penteados, mais
vermelhos do que castanhos. Alguém no comando, pensou Milos, deveria ter dado um aula de tática cosmética básica. Nunca se permitia que um empregado saísse para o campo com cabelos ruivos; era um absurdo.
O homem destrancou primeiro a porta dianteira da direita, depois contornou o carro pela frente e abriu a porta do motorista. Antes de puxá-la, no entanto, agachou-se, ficando fora de vista, aparentemente
para soltar uma terceira tranca. Levantou-se e entrou. Ligou o carro.
O potente motor tossiu várias vezes, depois houve subitamente um chocalhar alto por baixo do chassi e uma expulsão de fumaça acompanhada pelo som de metal se rompendo. O silencioso e o cano de descarga
ficaram em pedaços, seguindo-se uma explosão de vapor por todos os lados. Varak abaixou-se, um lenço no rosto, e esperou que as nuvens se dissipassem, abrigado entre as árvores, enquanto os vapores subiam
lentamente para o céu. Ergueu-se devagar.
O motorista, com uma máscara cirúrgica no rosto e uma arma na mão, também observara as nuvens a se elevarem, voltando-se no banco para todas as direções, à espera de um ataque. Não houve nenhum e sua confusão
era patente. Pegou o telefone do carro, mas hesitou. Milos compreendeu o motivo. Se o problema fosse uma falha mecânica e ele fizesse contato com o controle, a trinta, trezentos ou três mil quilômetros
de distância, seria severamente criticado. Largou o aparelho e engrenou o carro; o barulho foi tão grande que o motorista desistiu no mesmo instante. Não podia seguir com um veículo assim para parte alguma;
tinha de escolher uma alternativa, como procurar uma oficina e pedir reboque para um conserto posterior. E, no entanto... Então outro período de espera começou. Durou quase vinte minutos; apesar dos cabelos
ruivos, o homem era profissional. Aparentemente convencido de que não haveria um ataque, ele saiu cauteloso do carro e dirigiu-se para a traseira. Com a arma numa das mãos e uma lanterna na outra, continuou
a olhar ao redor, em todas as direções, enquanto Varak se adiantava silencioso através dos arbustos. O vigilante ruivo agachou-se de repente, projetando a luz da lanterna por baixo do carro. Milos sabia
que tinha poucos segundos para chegar à beira da estrada antes que o homem descobrisse o plástico expandido pelo calor metido no cano de descarga ou notasse as marcas no silencioso, feitas pela pequena
faca-serra com gume de diamante. Nesse momento, Varak entreabriu a folhagem, a dois metros e meio do homem agachado.
- Oh, Deus! - explodiu o ruivo magro e bem vestido, saltando para trás, virando-se primeiro para a direita, depois para a esquerda, a automática levantada, agora de costas para Milos. O tcheco ergueu um
terceiro item que tirara da pasta; era uma pistola CO2 que lançava dardos. Mais uma vez ele entreabriu a folhagem e disparou. O dardo com narcótico atingiu o alvo, cravando-se por trás no pescoço do homem.
O ruivo vigilante virou-se num ímpeto, largando a lanterna, enquanto tentava no maior desespero estender a mão para trás e arrancar a agulha. Quanto mais frenéticos eram seus movimentos, mais depressa
o sangue fluía para a cabeça, acelerando a circulação do soro. Depois de oito segundos o homem caiu no chão, debatendo-se contra os efeitos inevitáveis, até ficar finalmente imóvel na estrada. Varak emergiu
dos arbustos e rapidamente puxou o ruivo para o mato, depois voltou para apanhar a arma e a lanterna. Pôs-se a revistar o homem, em busca de documentos de identificação, que sem dúvida seriam falsos.
Não eram falsos. O vulto inconsciente no chão era um agente especial do FBI. Entre os seus documentos estava a unidade para a qual fora designado, dois meses e dez dias antes - um dia depois da reunião
de Inver Brass em Cynwid Hollow, Maryland.
Milos retirou o dardo, carregou o homem para a estrada e sentou-se ao volante do sedã azul. Escondeu a lanterna e a arma embaixo do banco, fechou a porta e retornou ao seu carro alugado, além da curva.
Precisava encontrar um telefone e falar com um homem do FBI, em Washington.
- Não temos qualquer informação sobre essa unidade - disse o contato de Varak no FBI. - Teria vindo pelos círculos da administração, com origem na California, acho que em San Diego.
- Não há Casa Branca na California - protestou Milos.
- Mas há outra "Casa", se é que não esqueceu.
- O quê?
- Antes de continuar, artilheiro, vamos precisar que você nos dê algumas informações. A respeito de uma operação baseada em Praga que está colhendo frutos por aqui. É coisa pequena, mas irritante. Vai
nos ajudar?
- Claro. Descobrirei o que puder. E agora me diga: o que é a Casa em San Diego, California, que pode levar o FBI a formar uma unidade especial?
- Muito simples, artilheiro. Pertence ao vice-presidente dos Estados Unidos.
Está tudo certo. O deputado Evan Kendrick será o próximo vice-presidente dos Estados Unidos. E se tornará presidente onze meses após a eleição do titular.
Em silêncio, Varak desligou o telefone.
26
Cinco semanas haviam transcorrido desde a cerimônia calamitosa no Salão Azul da Casa Branca, uma catástrofe agravada pelas incessantes tentativas do mestre de cerimônias Dennison para focalizar a atenção
de todos no homem que concedia a Medalha da Liberdade e não no condecorado. O maestro da Banda dos Fuzileiros interpretara mal as instruções. Em vez de tocar um pianíssimo persistente de "America the Beautiful"
durante a peroração do presidente, ele se lançou numa versão fortíssimo da marcha "Stars and Stripes", praticamente abafando a voz do chefe de Estado. Só quando o deputado Kendrick se adiantou para receber
a condecoração e expressar seu agradecimento a banda tocou os acordes da canção num tom suave e crescente, aumentando o impacto emocional das suas palavras modestas. Para fúria do mestre de cerimônias,
Kendrick recusara-se a ler o breve discurso que Dennison lhe entregara dez minutos antes; assim, em vez de enaltecer a "ajuda secreta mas extraordinária" do presidente, ele agradeceu àqueles que não podia
citar pelo nome por salvarem sua vida e promoverem a solução da crise de Mascate. Esse momento, em particular, foi embaraçosamente pontuado por um "Merda!" sussurrado a partir das fileiras dos assessores
de Langford Jennings no palanque.
O insulto final ao mestre de cerimônias fora provocado exclusivamente por ele mesmo. Durante a curta sessão fotográfica, quando não foram permitidas perguntas por causa das estratégias antiterroristas,
Herbert Dennison distraidamente tirou do bolso um vidro pequeno de Maalox e tomou um gole. As câmeras viraram de repente na sua direção, os flashes espocaram, enquanto o presidente dos Estados Unidos olhava
com uma expressão irritada. Foi demais para o chefe de assessoria da Casa Branca, tão propenso à acidez, e ele derramou o líquido branco no paletó do terno escuro.
Ao final, Langford Jennings, com o braço estendido nos ombros de Evan, saíra do salão para o corredor acarpetado.
- Foi tudo lindo, deputado! - exclamara o presidente. - Exceto por um certo idiota que já deveria saber como dirigir essas coisas.
- Ele sofre muitas pressões, senhor. Eu não seria muito rigoroso.
- Com Herb? - murmurara Jennings, em tom confidencial. - E deixá-lo fazer o que ele faz? De jeito nenhum... Aposto que lhe deu alguma coisa para ler, e você recusou.
- É verdade, senhor.
- Ótimo. Ficaria parecendo uma combinação vulgar. Obrigado, Evan.
- Eu é que devo agradecer - dissera Kendrick àquele homem tão carismático, que não parava de surpreendê-lo.
As cinco semanas subsequentes foram como Evan imaginara. A mídia clamava por sua atenção. Mas ele manteve a promessa que fizera a Herbert Dennison e continuaria a mantê-la. Recusou-se às entrevistas, alegando
apenas que se aceitasse uma se sentiria na obrigação de aceitar todas, o que significaria que não poderia atender de maneira adequada a seus eleitores... que continuavam a apoiá-lo, diga-se de passagem.
A eleição de novembro no Nono Distrito do Colorado não passou de um ritual; nas circunstâncias, a oposição não pôde sequer armar um candidato. Em termos de meios de comunicação, no entanto, alguns foram
mais sucintos do que outros.
- Seu tremendo filho da puta! - dissera o irritado Ernest Foxley. - Eu lhe dei a primeira oportunidade, sua primeira divulgação decente!
- Acho que você não compreende - respondeu Kendrick. - Eu não queria nenhuma oportunidade, nenhuma divulgação.
Depois de uma pausa, o comentarista disse:
- Quer saber de uma coisa? Acredito em você. Por que será?
- Porque estou lhe dizendo a verdade e você é um profissional competente.
- Obrigado, meu jovem. Passarei a notícia adiante e tentarei afastar os sabujos, mas não nos faça mais surpresas, está bem?
Não havia surpresas para ninguém, pensou Kendrick, irritado, guiando seu carro pelos campos da Virginia, na tarde de início de dezembro. Sua casa em Fairfax transformara-se numa virtual base de operações
para Khalehla, a propriedade adquirindo uma grande sofisticação com a presença de Mitchell Payton, da CIA. O diretor de Projetos Especiais ordenara primeiro a construção de um muro alto de tijolos na frente
do jardim, tornando o acesso possível apenas por um portão branco de ferro batido, operado eletronicamente. Uma alta cerca Cyclone envolvia todo o terreno, cravada fundo na terra, o metal verde tão grosso
que seria preciso um explosivo, um maçarico ou uma serra de metal manejada com fervor para rompê-la, quando os sons poderiam ser ouvidos com a maior facilidade pelos guardas. Payton instalara em seguida
um telefone de "varredura" constante no estúdio de Evan, com luzes de extensão em vários outros cômodos, indicando a quem as visse que devia atender o mais depressa possível. Um computador de comunicações
fora instalado junto do telefone e ligado a um módulo de contato exclusivo com a sala do diretor. Quando tinha alguma informação que queria que Khalehla ou o deputado avaliassem, era imediatamente transmitida,
todos os impressos devendo em seguida ser rasgados e queimados.
De acordo com as instruções publicamente anunciadas pelo presidente, Projetos Especiais entrara logo em ação e assumira a responsabilidade por todas as medidas de segurança para proteger o herói de Oman
de represálias terroristas. Kendrick ficou impressionado com aquelas rígidas disposições de segurança. Uma hora depois que uma lumusine presidencial o levara da propriedade em Maryland, Mitchell Payton
já tinha o controle total dos seus movimentos - num certo sentido, da sua vida. Os equipamentos de comunicações chegaram depois, muito mais tarde, o atraso decorrendo da obstinação de Khalehla. Ela resistira
à ideia de se transferir para a casa de Kendrick, mas após dezoito dias morando num hotel e numerosas reuniões complicadas com Evan e tio Mitch, este acabara fincando pé.
- Ora, minha cara, não tenho a menor possibilidade de justificar o custo de uma casa segura para uma só agente, eu não saberia como explicar o motivo para isso. Ademais, não posso instalar o equipamento
necessário num hotel. Outra coisa: transmiti um comunicado oficial do Cairo para Washington, de que você se demitiu da Agência. Não podemos mantê-la no setor por mais tempo. Portanto, acho que você não
tem opção.
- Já tentei convencê-la - interrompera Kendrick, no reservado de um restaurante do outro lado da fronteira de Maryland. - Se ela está preocupada com as aparências, porei um aviso no Congressional Record
de que minha tia está na cidade. Que tal uma tia mais velha que fez operação plástica?
- Que tolice! Mas está bem, eu aceito.
- E quanto ao equipamento? - indagava Evan, voltando-se para Payton. - O que é que você precisa?
- Nada que possa comprar - respondera o diretor da CIA. - São coisas que só nós podemos instalar.
Na manhã seguinte chegara um caminhão de consertos telefônicos. Entrara no terreno sob a orientação das patrulhas da Agência, e homens em uniformes da companhia telefônica começaram a trabalhar, enquanto
mais de vinte pedreiros completavam o muro e dez outros operários terminavam a cerca impenetrável. Os homens da telefônica subiram em sucessivos postes, estendendo fios entre eles e ligando um cabo diretamente
ao telhado de Kendrick Outros mais surgiram num segundo caminhão, que contornou o caminho dos fundos e entrou na garagem anexa. Desencaixotaram o painel do computador e o levaram para o estúdio. Três horas
e vinte minutos depois o equipamento de Mitchell Payton estava no lugar e funcionando. Naquela tarde Evan foi esperar Khalehla na frente do seu hotel, na Nebraska Avenue.
- Como vai, tia?
- Quero uma tranca na porta do quarto de hóspedes - ela respondeu, rindo. Jogou a bolsa de náilon no banco traseiro e embarcou.
- Não se preocupe. Nunca me envolvo com parentas mais velhas.
- Já se envolveu, mas não agora. - Virou-se para ele e acrescentou, com uma sinceridade gentil mas firme: - Falo sério, Evan. Isto não é Bahrain; ficamos juntos na operação, mas não na cama.
- Foi por isso que não quis se mudar antes?
- Claro.
- Não me conhece bem - murmurou Kendrick, depois de alguns minutos de silêncio atento ao tráfego.
- Também por isso.
- O que me leva a uma pergunta. Queria fazê-la antes, mas pensei que poderia ser interpretada da maneira errada.
- Pode falar.
- Quando entrou naquela casa em Maryland, no mês passado, uma das primeiras coisas que mencionou foi Bahrain. Contudo, mais tarde me disse que a casa estava toda ligada, que outros ouviam tudo que dizíamos.
Nesse caso, por que tocou no assunto?
- Porque queria que esse assunto fosse descartado o mais depressa possível.
- Isso significa que outros, pessoas autorizadas a lerem a transcrição, poderiam presumir ou desconfiar do que acontecera.
- Exato. Queria deixar bem clara a minha posição, que não era passiva. Minhas declarações posteriores foram coerentes.
- Caso encerrado - disse Evan, entrando na Beltway, a caminho da Virginia.
- Obrigada.
- Por falar nisso, contei aos Hassans tudo a seu respeito... desculpe, nem tudo, é claro. Eles estão ansiosos para conhecê-la.
- É o casal de Dubai, não é mesmo?
- Muito mais do que apenas "um casal". São velhos amigos.
- Não falei num sentido depreciativo. Ele é professor, não é?
- Com um pouco de sorte, terá um posto em Georgetown ou Princeton na próxima primavera. Houve um pequeno problema de documentos, que conseguimos resolver. De passagem, ele tem o maior respeito por seu
pai. Encontrou-o certa vez no Cairo. Portanto, prepare-se para muita reverência.
- Passará depressa - Khalehla riu. - Ele descobrirá logo que não estou no nível dele ou no de papai.
- Mas sabe usar um computador, não é mesmo?
- Sei, sim. Tenho de fazê-lo com frequência.
- Pois eu não sei. A esposa de Sabri, Kashi, também não sabe, e muito menos ele. Ou seja, você é que está além do nosso nível.
- A lisonja não lhe fica bem, Evan. E não se esqueça da tranca na porta.
Chegaram a casa, onde Khalehla foi efusivamente recebida por Kashi Hassan; fez-se uma amizade instantânea, como era tradição entre as mulheres árabes.
- Onde está Sabri? - perguntou Kendrick. - Quero que ele conheça Khalehla.
- Está em seu estúdio, caro Evan. Conversando com um cavalheiro da CIA sobre a maneira de operar o computador, para o caso de uma emergência.
Mais de três semanas haviam passado desde que o eixo Khalehla-Langley entrara em operação e não estavam mais próximos de descobrir qualquer novidade do que se encontravam na casa esterilizada em Maryland.
Dezenas de pessoas que poderiam ter um acesso ao arquivo de Oman, por mais remota que fosse a possibilidade, foram submetidas aos microscópios da investigação de Payton. Cada etapa no procedimento de segurança
máxima foi estudado em busca de falhas no pessoal; nada se encontrou. O arquivo propriamente dito fora escrito por Frank Swann, do Departamento de Estado, em colaboração com Lester Crawford, da Agência,
a mecânica envolvendo uma única editora de textos, a datilografia feita em blocos de mil palavras por digitadores diferentes, com omissão de todos os nomes próprios, incluídos depois exclusivamente por
Swann e Crawford.
A decisão de sigilo máximo fora tomada com base num sumário sem detalhes, mas com as mais altas recomendações dos secretários de Estado e da Defesa e do comandante do Estado-Maior Conjunto, assim como
da CIA. Tudo se realizara sem citar o nome de Kendrick ou as identidades ou nacionalidades de outros indivíduos ou unidades militares; informações básicas foram apresentadas aos comitês especiais do Senado
e da Câmara para aprovação, após a conclusão da crise, quinze meses antes. As aprovações das duas casas do Congresso haviam sido imediatas; também se presumia que o vazamento no Washington Post, sobre
um americano desconhecido em Mascate, partira de um membro indiscreto de um desses comitês.
Quem? Como? Por quê? Estavam de volta ao ponto de partida; por todas as regras de lógica e eliminação, o arquivo de Oman era inacessível, mas mesmo assim fora penetrado.
- Há alguma coisa que não é lógica - concluíra Payton. - Um buraco no sistema que não estamos percebendo.
- Tem toda razão - concordara Kendrick.
A conclusão de Payton sobre a súbita indicação de Kendrick para o Comitê Partridge e o Subcomitê Especial de Informações deixara Evan atordoado. Nem o manipulador Partridge nem o igualmente manipulador
presidente da Câmara deveriam ser abordados diretamente. Por que não?, protestara Evan. Se ele estava sendo programado, tinha todo o direito de confrontar os que haviam sido cúmplices voluntários.
- Não pode fazer isso, deputado - explicara Payton. - Se eles foram chantageados para designá-lo, pode estar certo de que nada vão dizer e ainda emitirão sinais de alarme. Nosso louro europeu e as pessoas
para quem trabalha, quem quer que sejam, se esconderão ainda mais. Não os detemos; simplesmente não conseguimos descobri-los. Lembre-se: o que nos interessa é o "por quê". Por que você, um representante
novo e relativamente apolítico, representando um obscuro distrito do Colorado, está sento empurrado para o centro dos acontecimentos políticos?
- Agora quase não se fala mais...
- Estou vendo que não costuma assistir à televisão - comentara Khalehla. - Duas redes de cabo mostraram retrospectivas sobre você na semana passada.
- O quê?
- Não lhe contei. Não era preciso. Só serviria para deixá-lo ainda mais furioso.
Kendrick baixou a janela do Mercedes e estendeu o braço. A unidade móvel do governo por trás dele era nova, e a saída para a estradinha rural logo à frente ficava no meio de uma curva com muitas árvores.
Estava avisando aos guardas e refletiu que havia uma pequena ironia nisso... Seus pensamentos voltaram ao "enigma nojento", como ele e Khalehla passaram a chamar toda a confusão misteriosa que abalara
sua vida. Mitch Payton - agora era "Mitch" e "Evan" - viera de Langley na outra noite.
- Estamos trabalhando num aspecto novo - informara o diretor de Projetos Especiais, no estúdio. - Na pressuposição de que o europeu de Swann precisava fazer contatos com muitas pessoas, a fim de compilar
as informações que tinha a seu respeito, estamos também colhendo alguns dados. Pode ofendê-lo, mas temos de investigar sua vida.
- Por quantos anos?
- Começamos quando tinha dezoito anos... é muito remota a possibilidade de qualquer coisa relevante antes.
- Dezoito anos? Por Deus, será que nada é sagrado?
- Você quer que seja? Posso suspender as investigações.
- Não, claro que não. É apenas um pequeno choque. Pode obter esse tipo de informações?
- Não é tão difícil quanto as pessoas pensam. Serviços de crédito, arquivos pessoais e investigações rotineiras de antecedentes estão sempre fazendo isso.
- Qual é o sentido?
- Várias possibilidades... Em termos mais realistas, acho que duas. Como já mencionei, a primeira é o nosso europeu excessivamente curioso. Se pudermos reunir uma lista de pessoas que ele teve de procurar
para descobrir informações a seu respeito, estaremos mais próximos de encontrá-lo e creio que todos concordamos que ele é a chave... A segunda possibilidade é uma coisa que ainda não tentamos. No empenho
para descobrir o louro e quem quer que esteja por trás dele, temos nos concentrado nos acontecimentos em Oman e no arquivo propriamente dito. Limitamos nossos microscópios às áreas orientadas para o governo.
- Onde mais poderíamos procurar? - indagara Kendrick.
- Sua vida pessoal, infelizmente. Pode haver alguma coisa ou alguém no seu passado, um acontecimento ou pessoa que você conheceu, talvez um incidente que galvanizou amigos ou mesmo inimigos que queriam
promover sua posição ou, inversamente, convertê-lo num alvo. E não se engane, deputado, é mesmo um alvo em potencial, ninguém está brincando com isso.
- Mas mesmo que encontrássemos pessoas que gostavam dele ou o odiavam, MJ - dissera Khalehla -, teriam de ter ligações com Washington. O senhor Jones de Ann Arbor, Michigan, amigo ou inimigo, não poderia
simplesmente apresentar-se aos bancos de dados ou arquivos de segurança máxima e dizer: "Estou precisando de uma cópia de um certo arquivo, a fim de poder enviar um memorando falso para os jornais." Não
estou entendendo.
- Eu também não, Adrienne... ou devo chamá-la Khalehla, o que precisarei de algum tempo para me acostumar?
- Não há motivo para você me chamar de Khalehla...
- Não interrompa - protestara Evan, sorrindo. - Khalehla está ótimo.
- Como eu dizia, também não entendo - continuara Payton. - Mas há um buraco no sistema, uma falha que não percebemos, por isso devemos tentar tudo.
- Então por que não procurar Partridge e o presidente da Câmara? - insistira Kendrick. - Se eu pude fazer o que fiz em Mascate, não pode ser tão difícil assim dobrá-los.
- Ainda não, meu jovem. O momento não é oportuno e o presidente da Câmara está se aposentando.
- Agora sou eu quem não está entendendo.
- MJ quis dizer que está trabalhando nos dois - explicara Khalehla.
Evan freou o Mercedes na comprida curva do bosque da Virginia e esperou até avistar a unidade móvel pelo espelho retrovisor; depois virou à direita, na estradinha que era o caminho dos fundos para sua
casa. Os guardas o deixariam passar. Agora estava com pressa; por isso pegara o atalho. Khalehla telefonara para o escritório informando que a relação de Mitchell Payton chegara, num impresso de computador.
Seu passado estava prestes a lhe ser apresentado.
Milos Varak desceu pelo caminho de tábuas na direção da enorme praia em frente ao Hotel del Coronado, cinco quilômetros além da ponte de San Diego. Trabalhara com o maior afinco durante semanas, a fim
de encontrar uma brecha pela qual pudesse penetrar nas fileiras do vice-presidente dos Estados Unidos. Passara a maior parte do tempo em Washington; não era fácil invadir a administração do Serviço Secreto.
Até que encontrou um homem, um homem dedicado, com físico forte e mente disciplinada, mas com um passatempo inaceitável que, se denunciado, destruiria seus trunfos, para não falar na carreira e talvez
a própria vida. Era um bem remunerado proxeneta para vários membros dos altos escalões do governo. Fora escolhido para esse trabalho pelos mais velhos da sua "família", que reconheceram seu potencial e
o enviaram às melhores escolas paroquiais e a uma grande universidade - grande mas não rica, pois essa imagem seria incorreta. Os mais velhos queriam um jovem bem vestido, bem-apessoado e atraente, situado
numa posição de dispensar favores em troca de certas concessões. E que melhores favores podia haver do que os prestados abaixo da cintura de um homem fraco, como obter melhores concessões do que as obtidas
a partir desse conhecimento? Os mais velhos estavam satisfeitos, há vários anos. Aquele homem vinha da Máfia; era a Máfia; servia à Máfia.
Varak aproximou-se do vulto solitário de capa, junto às pedras de um quebra-mar, a várias centenas de metros da alta e imponente cerca Cyclone da Estação Aeronaval.
- Obrigado por concordar em se encontrar comigo - disse Milos, amavelmente.
- Ao telefone, pensei que tivesse um sotaque - comentou o jovem bem-falante e bem treinado, de feições morenas. - É um correio vermelho? Porque se for, pousou no galho errado.
- Um comunista? Sou o que há mais longe disso. Sou tão americano que seus consiglieri poderiam me apresentar no Vaticano.
- Isso é insultuoso, para não dizer que carece totalmente de acurácia... Fez várias declarações muito estúpidas, tão estúpidas que despertaram a minha curiosidade. É por isso que estou aqui.
- Qualquer que seja o motivo, fico agradecido por sua presença.
- A última linha foi bastante clara - interrompeu o agente do Serviço Secreto. - Ameaçou-me, senhor.
- Lamento que tenha se ofendido, pois nunca tive a intenção de ameaçá-lo. Apenas disse que estava a par de certos serviços adicionais que costuma prestar...
- Pare de se mostrar tão polido...
- Não há motivo para ser descortês - insistiu Varak, cortesmente. - Apenas queria que compreendesse a minha posição.
- Você não tem uma posição - corrigiu o homem do governo, com toda ênfase. - Nossos registros são imaculados, se entende o que quero dizer.
O tcheco mudou a posição dos pés na areia e esperou que diminuísse no céu o rugido de um jato.
- Está dizendo que não há registros e que não quer discutir nada de concreto, porque acha que posso estar usando um gravador. - Varak desabotoou o casaco e abriu-o. - Fique à vontade, pode me revistar.
Pessoalmente, eu não gostaria de ter minha voz na mesma gravação que a sua... Por favor, vá em frente. Claro que removerei minha arma e a manterei na mão, mas não vou impedi-lo.
O guardião da Casa Branca estava taciturno e hesitante.
- Está sendo muito condescendente - ele murmurou, permanecendo imóvel.
- Por outro lado, podemos dispensar esse constrangimento. Basta ler uma coisa que preparei.
Milos largou o casaco, enfiou a mão no bolso e tirou várias folhas de papel dobradas. Estendeu-as ao agente do Serviço Secreto. Enquanto o homem lia, seus olhos se contraíram e os lábios se entreabriram;
em segundos, um rosto relativamente forte e atraente tornou-se horrível.
- Você é um homem morto - ele murmurou.
- Não acha que isso pode ser miopia? Porque se eu estou morto, você também está. Os capos cairiam em cima de você como uma matilha de cães selvagens, enquanto os dons, tomando vinho tinto como se fosse
seu sangue, aguardariam a notícia de sua morte bastante desagradável. Registros? O que representa isso? Nomes, datas, horas, locais... e ao lado de cada anotação os resultados do seu comércio sexual, isto
é, a chantagem convertida em resultados. Projetos emendados, contratos concedidos, propostas do governo aprovadas ou rejeitadas de acordo com as dotações orçamentárias. Eu diria que se trata de um registro
e tanto. E para onde tudo isso leva? Deixe-me adivinhar. À fonte mais improvável que se pode imaginar... Um número de telefone fora da lista, sob um nome e endereço falsos, mas localizado no apartamento
de um membro do Serviço Secreto do governo.
- Essas garotas estão mortas... os rapazes estão mortos...
- Não os culpe. Não tinham mais opção do que você tem agora. Pode estar certo: é melhor me ajudar do que se opor. Não tenho interesse nas suas atividades extracurriculares; presta um serviço que outros
assumiriam se não o fizesse, mais ou menos com os mesmos resultados. Tudo o que quero de você é informação e em troca queimarei todas as cópias destas páginas. Claro que só tem minha palavra de que farei
isso, mas é provável que eu precise recorrer de novo à sua competência e seria estupidez da minha parte divulgá-las... e posso lhe garantir que não sou estúpido.
- É evidente que não - concordou o soldado da Máfia, a voz quase inaudível. - Por que jogar fora uma arma, quando ainda pode usá-la?
- Fico contente que compreenda minha posição.
- Que espécie de informação está procurando?
- Inócua, nada que possa prejudicá-lo. Vamos começar pela unidade do FBI que foi destacada para o vice-presidente. Não estão realizando seu trabalho? Precisam de uma força-tarefa especial do FBI?
- Não têm nada a ver conosco. Estamos aqui para proteção. Eles investigam.
- Não podem proteger se não investigarem.
- São níveis diferentes. Descobrimos alguma coisa, entregamos ao FBI.
- O que encontraram que exigiu a presença dessa unidade?
- Não encontramos. Há cerca de dois meses houve uma série de ameaças contra Víbora e...
- Víbora?
- O vice-presidente.
- Não é um codinome dos mais lisonjeiros.
- É também não é de uso geral. Apenas no destacamento.
- Entendo. Continue. Essas ameaças... quem as fez?
- É o que a unidade veio investigar. Estão tentando descobrir, porque as ameaças continuam.
- Como?
- Telefonemas, telegramas, cartas com letras recortadas e coladas... vêm de lugares diferentes, o que mantém os federais no ar durante uma boa parte do tempo.
- Sem sucesso?
- Ainda nada.
- Então é uma força-tarefa móvel, um dia aqui, no seguinte em outro lugar. Os movimentos são coordenados de Washington?
- Quando Víbora está lá, claro. Quando está aqui, é aqui; quando viaja, onde quer que esteja. A unidade é controlada por seu próprio pessoal; se não fosse assim, perderia muito tempo em comunicações com
Washington.
- Estiveram fora daqui há umas cinco semanas, não é mesmo?
- Circulando por aí. Voltamos há dez dias. Ele passa muito tempo viajando. Como gosta de dizer, o presidente cobre o leste e ele cobre o oeste... e leva a melhor no negócio, porque se livra da Cidade da
Alegria.
- É uma declaração tola para um vice-presidente.
- Víbora é assim, mas não pense que é um tolo. Muito ao contrário.
- Por que o chamam de Víbora?
- Já que quer respostas francas, acho que não gostamos dele ou da turma que o cerca... especialmente por aqui. Os filhos da puta nos tratam como se fôssemos criados porto-riquenhos. Uma tarde dessas um
deles me disse: "Garoto, vá me buscar outro gim-tônica." Respondi que precisava verificar com meus superiores no Serviço Secreto para saber se estava destacado para servi-lo.
- Não teve medo que o vice... Víbora... pudesse se ofender?
- Ele não se envolve conosco. Como unidade do FBI, só respondemos ao comando da sua assessoria.
- Quem é ele?
- Não ele, ela. Temos outro código para ela; não tão bom quanto Víbora, mas cabe perfeitamente. Nós a chamamos de Dragão Bofe... Dama Bondade oficialmente, o que ela gosta.
- Fale-me sobre ela - pediu Varak, as antenas de toda uma vida adulta captando um sinal.
- Seu nome é Ardis Vanvlanderen e começou há cerca de um ano, substituindo um homem muito bom, que estava realizando um excelente trabalho. Tão bom que recebeu uma oferta irrecusável de um dos amigos de
Víbora. Ela está na casa dos quarenta anos, uma dessas executivas duronas que dá a impressão de querer cortar seus colhões quando você entra em sua sala, só porque é homem.
- Uma mulher feia?
- Eu não diria isso. Ela tem uma cara decente e um corpo razoável, mas é difícil sentir algum tesão, a menos que se goste do tipo. Meu palpite é de que ela trepa com os números.
- É casada?
- Tem um palhaço que aparece por aqui dizendo que é o marido, mas ninguém lhe dá muita atenção.
- O que é que ele faz? Qual é o seu negócio?
- É da sociedade de Palm Springs. Ações e essas coisas, quando não interferem com seu golfe, ao que parece.
- Isso sugere bastante dinheiro.
- Ele contribui forte para as campanhas e nunca perde uma superfesta na Casa Branca. Conhece o tipo... Cabelos brancos ondulados, uma barriga enorme, muitos dentes brilhosos, metido num smoking; sempre
tiram fotos dele dançando. Se fosse capaz de ler um livro inteiro em inglês, provavelmente o fariam embaixador na corte de St. James... Retiro o que disse: com o dinheiro que tem, bastaria meio livro.
Varak estudou o agente do Serviço Secreto. O homem estava obviamente aliviado pelas perguntas tão inócuas. As respostas eram mais completas do que o necessário, beirando a falsa confidência da intriga.
- Eu me pergunto por que alguém assim deixaria a mulher trabalhar fora, mesmo que seja para o vice-presidente.
- Tenho a impressão de que ele nada pode fazer. Não se manda uma mulher como ela para um lugar aonde não queira ir. Além do mais, uma criada nos disse que ela era a esposa número três ou quatro. Talvez
Vanvlanderen tenha aprendido a deixá-las soltas, fazendo o que querem.
- E diz que ela é competente?
- Muito competente, muito profissional. Víbora não faz um movimento sem ela.
- Como é ele?
- Víbora? - Outro jato decolou de repente da Base Aeronaval, com um barulho tremendo. O infiltrador da Máfia acrescentou, enquanto o ruído se desfazia: - Víbora é Víbora. Orson Bollinger é um cara jovial
e efusivo, com percepção de tudo o que acontece, e nada acontece que não atenda aos interesses da turma nas salas dos fundos da California, que cuida dele.
- Você é muito astuto.
- Observo as coisas.
- Faz muito mais do que isso. Apenas sugiro que seja mais cauteloso no futuro. Se eu pude descobri-lo, outros também podem.
- Como conseguiu?
- Diligência. Algumas semanas atento a um erro que alguém pudesse cometer. Poderia ter sido outro no destacamento, por alguma outra razão... somos todos humanos; nenhum de nós vive num freezer... Mas acontece
que foi você. Estava cansado, talvez tivesse tomado um drinque a mais ou simplesmente se sentia muito seguro. Seja como for, deu um telefonema para Brooklyn, Nova York, obviamente não da maneira como deveria,
não de um telefone público que ninguém pudesse identificar.
- Frangie! - sussurrou o capo supremo.
- Seu primo, Joseph "Fingers" Frangiani, o segundo subchefe da família Ricci no Brooklyn, herdeiro dos interesses Genovese. Era tudo o que eu precisava saber, amico.
- Seu estrangeiro filho da puta!
- Não desperdice palavrões comigo... Só uma última pergunta, e por que não ser cortês?
- O quê? - berrou o furioso homem da Máfia, as sobrancelhas pretas se arqueando, a mão direita estendendo-se instintivamente por trás do paletó.
- Pare! - bradou o tcheco. - Mais um centímetro e está morto.
- Onde está sua arma? - murmurou o agente, quase sem respirar.
- Não preciso - respondeu Varak, os olhos fixados no seu assassino eventual. - E tenho certeza que você sabe disso.
Devagar, o homem do Serviço Secreto trouxe a mão direita para a frente.
- Uma pergunta, isso é tudo! - exclamou ele, o ânimo refletido no rosto. - Só tem mais uma pergunta!
- Essa Ardis Vanvlanderen. Como foi explicada a vocês a designação dela para chefe da assessoria do vice-presidente? Deve ter havido palavras, motivos. Afinal, vocês constituem a segurança pessoal de Bollinger
e trabalhavam bem com o antecessor dela.
- Somos a segurança, não os executivos. Não havia necessidade de explicações.
- Nada foi dito? A posição é estranha para uma mulher.
- Muito se disse para que a aceitássemos, mas não foram explicações. Bollinger reuniu todo mundo e nos informou que tinha o maior prazer em anunciar a designação de uma pessoa que figurava entre os mais
talentosos executivos do país, alguém que assumiria o cargo com sacrifício pessoal e por isso devíamos agradecer aos poderes existentes pelo patriotismo dela. Esse "dela" foi a primeira indicação que tivemos
de que se tratava de uma mulher.
- Uma expressão interessante, "poderes existentes".
- Ele fala assim.
- Ele não faz um movimento sem ela.
- Acho que não ousaria. Ela é da pesada e mantém a casa em ordem.
- Ordem de quem?
- Como?
- Esqueça... Isso é tudo por enquanto, amico. Por favor, faça a gentileza de se retirar primeiro. Tornarei a chamá-lo, se precisar de você.
O mafioso, com o quente sangue ancestral do Mediterrâneo subindo à cabeça, espetou o dedo indicador no tcheco e falou em voz rouca:
- Saia da porra da minha vida, se sabe o que é bom para você.
- Espero ficar tão longe quanto possível, Signor Mezzano...
- Não me chame de cafetão!
- Eu o chamarei de qualquer coisa que quiser, mas quanto ao que é bom para mim, serei eu o único juiz. E agora, fila! Capisce?
Milos Varak observou seu rebelde informante afastar-se pela areia numa fúria silenciosa, até que o mezzano desapareceu no labirinto de acessos à praia, na direção do hotel. O tcheco deixou a mente vaguear.
Ela começou há cerca de um ano; ele contribui forte para as campanhas. Víbora não faz um movimento sem ela. Há treze meses Inver Brass iniciara a busca para um novo vice-presidente dos Estados Unidos,
o candidato considerado um peão dos invisíveis feitores do presidente... homens que tencionavam controlar o país.
Passava de quatro horas da madrugada e Khalehla não desistia. Continuava a pressionar Kendrick, trocando cassetes no gravador e repetindo nomes vezes incontáveis, insistindo que onde quer que ele reconhecesse
qualquer coisa, descrevesse em detalhes tudo que pudesse lembrar. O impresso de computador do gabinete de Mitchell Payton na CIA incluía cento e vinte e sete nomes selecionados, com as correspondentes
ocupações, casamentos, divórcios e mortes. Em cada caso, a pessoa relacionada passara um tempo considerável com Kendrick ou estivera presente durante um período de intensa atividade e poderia ter exercido
alguma influência em suas decisões acadêmicas ou profissionais.
- Onde ele foi descobrir essas pessoas? - indagou Evan, andando de um lado para outro do estúdio. - Juro que não me lembro da metade e a maioria do resto não passa de lembranças vagas, exceto uns velhos
amigos que sempre lembrarei, nenhum dos quais poderia estar ligado sequer remotamente ao que está acontecendo. Tive três colegas de quarto no colégio, dois outros no curso de pós-graduação e um sexto partilhou
um apartamento comigo em Detroit, onde trabalhei num emprego horrível. Mais tarde, houve pelo menos duas dúzias de outros que tentei sem sucesso levar para o Oriente Médio, e alguns estão nessa lista...
Não sei por quê, mas posso garantir que todos vivem em comunidades suburbanas, com verdes gramados, e clubes campestres, mandando os filhos para universidades que mal conseguem pagar. Não têm nada a ver
com o que ocorre agora.
- Então vamos voltar ao Grupo Kendrick...
- Não há nenhum Grupo Kendrick - protestou Evan, furioso. - Todos foram mortos, explodidos, soterrados pelo concreto!... Manny e eu somos tudo o que resta e você sabe disso.
- Desculpe - murmurou Khalehla, sentada no sofá, tomando chá, o impresso de computador na mesinha à sua frente. - Estava me referindo aos contatos que teve aqui, nos Estados Unidos, quando existia o Grupo
Kendrick.
- Já falamos sobre isso. Não houve muitas pessoas... e a maioria estava ligada a equipamentos de alta tecnologia.
- Vamos repassar de novo.
- É uma perda de tempo, mas concordo.
- Sonar Electronics, Palo Alto, California - leu Khalehla, a mão no impresso de computador. - O representante era um homem chamado Carew...
- "Foda-se Carew" - disse Kendrick, rindo. - Esse foi o comentário de Manny. Compramos alguns equipamentos de som que não funcionavam e eles ainda queriam o pagamento depois que os devolvemos.
- Drucker Graphics, Boston, o representante sendo um tal G. R. Shulman. Alguma coisa?
- Gerry Shulman, um bom homem, um bom serviço; trabalhamos com eles por anos e nunca tivemos qualquer problema.
- Morseland Oil, Tulsa. O representante era alguém chamado Arnold Stanhope.
- Já falei sobre ele... eles.
- Fale de novo.
- Realizamos pesquisas preliminares para eles nos emirados. Queriam demais pelo que estavam dispostos a pagar, mas nós crescemos e pudemos abandoná-los.
- Houve ressentimento?
- Claro. Sempre há quando trapaceiros descobrem que não podem fazer seus negócios como de hábito. Mas não houve nada que o silêncio não pudesse curar. Além disso, eles descobriram alguns outros vigaristas,
uma organização grega que os pegou de jeito e lhes entregou uma pesquisa falsa que deve ter sido feita no fundo do golfo de Oman.
- Piratas, todos vocês - comentou Khalehla, rindo e baixando a mão sobre o impresso de computador. - Off Shore Investments, Limited, sediada em Nassau, nas Baamas, contato Ardis Montreaux, cidade de Nova
York. Canalizaram muito capital para vocês...
- Que nunca tocamos, porque era uma impostura - interrompeu Evan bruscamente. - É bom deixar isso bem claro.
- Está escrito aqui: "Esqueça."
- Como?
- Eu escrevi. Foi o que você disse antes, "Esqueça". O que é a Off Shore Investments, Limited?
- Era - corrigiu Kendrick. - Era uma operação escusa de alta classe, em escala internacional... De alta classe e internacional, mas ainda assim escusa. Criavam uma companhia com grandes contas na Suíça
e ar quente, depois a vendiam e transferiam o patrimônio, deixando os compradores com um balão cheio de hélio.
- E você se envolveu com uma coisa assim?
- Eu não sabia que era uma coisa assim. Era muito mais jovem e fiquei bastante impressionado por eles quererem nos incluir na sua estrutura... e ainda mais impressionado com o dinheiro que puseram à nossa
disposição em Zurich. Isto é, impressionado até que Manny disse: "Vamos tentar sacar algum, só para ver o que acontece." Ele sabia exatamente o que estava fazendo; não conseguimos sacar dois francos. As
assinaturas da Off Shore controlavam todas as retiradas, todas as operações.
- Uma operação fraudulenta e vocês foram enganados.
- Isso mesmo.
- Como se envolveram?
- Estávamos em Riad, Montreaux chegou de avião e me iludiu. Eu ainda não aprendera que não havia atalhos... não desse tipo.
- Ardis Montreaux. Ardis... um nome estranho para um homem.
- Não é um homem... ela não é um homem. É muito mais dura.
- Uma mulher?
- Por incrível que pareça.
- Com o seu ceticismo nato, deve ter sido muito persuasiva.
- Ela tinha o dom da palavra. E também quis nossas cabeças, quando pulamos fora; alegou que lhes estávamos custando milhões. Weingrass perguntou de quem eram os milhões desta vez.
- Talvez devêssemos...
- Pode esquecer - interrompeu Evan, com firmeza. - Ela casou com um banqueiro inglês e vive em Londres. Saiu de cena.
- Como sabe?
Demonstrando algum constrangimento, Kendrick respondeu depressa:
- Ela me ligou umas poucas vezes... na verdade, para pedir desculpas. Pode esquecer.
- Está certo.
Khalehla passou para a firma seguinte no impresso de computador. Enquanto falava, escreveu uma palavra depois de Off Shore Investments, Limited. Verificar.
Ardis Montreaux Frazier-Pyke Vanvlanderen, nascida Ardisolda Wojak, em Pittsburgh, Pennsylvania, entrou no vestíbulo de mármore da suíte do Westlake Hotel, em San Diego. Largou a estola de zibelina no
encosto de uma cadeira de veludo e elevou a voz, seu discurso um meio-atlântico refinado, um pouco mais anasalado no estilo britânico do que o americano antigo, mas ainda com resquícios dos tons ásperos
do eslavo de Monongahela nos registros superiores.
- Andy-boy, estou em casa! Temos menos de uma hora para chegar a La Jolla, queridinho! Trate de se apressar!
Andrew Vanvlanderen, corpulento, cabelos inteiramente brancos e ondulados, vestindo um smoking, saiu do quarto, com um drinque na mão.
- Estou na sua frente, meu bem.
- Estarei pronta em dez minutos - prometeu Ardis, contemplando-se num espelho do vestíbulo e ajeitando os cachos dos cabelos castanhos arrumados com perfeição.
Ela beirava os cinquenta anos e tinha estatura mediana, mas dava a impressão de ser mais jovem e mais alta, por causa da postura ereta, o corpo esguio embelezado por seios generosos e um rosto harmonioso
no qual se destacavam os penetrantes olhos verdes.
- Por que não chama o carro, queridinho?
- O carro pode esperar. E La Jolla também. Precisamos conversar.
- É mesmo? - A chefe da assessoria do vice-presidente olhou para o marido. - Você parece preocupado.
- E estou. Recebi um telefonema do seu antigo namorado.
- Qual deles, querido?
- O único que conta.
- Santo Deus! Ele ligou para cá?
- Eu disse a ele...
- Foi uma estupidez, Andy-boy, uma total estupidez!
Ardis Vanvlanderen adiantou-se apressada, furiosa, saiu do vestíbulo e desceu para a sala de estar mais baixa. Sentou-se numa bergère forrada com seda vermelha, cruzou as pernas rapidamente, os olhos grandes
fixados no marido.
- Assuma riscos com o seu dinheiro... com commodities ou no mercado futuro, com seus estúpidos cavalos ou qualquer outra coisa que quiser, mas não em coisa alguma que me envolva! Falei bem claro, querido?
- Escute aqui, Dragão Bofe, com o que já paguei, se eu quiser informações diretas vou obtê-las. Falei bem claro?
- Está bem, está bem. Esfrie, Andy.
- Você começa uma confusão e depois me diz para esfriar?
- Desculpe. - Ardis inclinou a cabeça para o encosto, respirando ruidosamente pela boca aberta, os olhos fechados por um instante. Abriu-os em segundos, nivelou a cabeça e acrescentou: - Sinto muito, sinceramente.
Foi um dia bastante difícil com Orson.
- O que é que Víbora fez agora? - perguntou Vanvlanderen, tomando um gole do seu drinque.
- Tome cuidado com esses nomes - disse a esposa, rindo baixinho. - Não gostaríamos que os nossos gorilas americanos soubessem que ouvimos todas as suas conversas.
- Qual é o problema de Bollinger?
- Está se sentindo inseguro outra vez. Quer uma garantia por escrito de que estará na chapa em julho próximo, ou dez milhões numa conta suíça.
Vanvlanderen engasgou com o uísque.
- Dez milhões? - ele balbuciou. - O palhaço, quem pensa que é?
- O vice-presidente dos Estados Unidos, com alguns segredos na cabeça - respondeu Ardis. - Eu disse a ele que não aceitaríamos qualquer outro, mas não adiantou muito. Acho que ele sente que Jennings não
o considera um vencedor e não hesitaria em largá-lo.
- Nosso amado mago telegênico, Langford Jennings, não tem por que se manifestar na questão!... Orson está certo? Jennings realmente não gosta dele?
- A aversão é muito forte. E Jennings procura ignorá-lo, pelo que Dennison me informou.
- Vai ter que sair de cena. Um dia destes Herb vai ficar mais curioso do que nos convém...
- Esqueça-o - interrompeu a Sra. Vanvlanderen. - Esqueça Dennison, esqueça Bollinger e até mesmo os seus estúpidos cavalos. O que meu antigo e desgarrado namorado tinha a dizer de tão importante a ponto
de telefonar para cá?
- Relaxe. Ele telefonou do escritório do meu advogado em Washington; partilhamos a mesma firma ali, está lembrada? Mas, primeiro não vamos esquecer Orson. Dê-lhe a garantia. Uma ou duas frases simples
e eu assinarei. Fará com que se sinta feliz e é melhor assim.
- Está louco? - gritou Ardis, inclinando-se para a frente.
- Absolutamente. Para começar, ele estará na chapa ou apenas desaparecerá... como costuma acontecer com os ex-vice-presidentes.
- Ah! - exclamou Ardis, com admiração. - Você é o meu tipo de homem, Andy-boy. Pensa com clareza, de forma sucinta.
- Muitos anos de aprendizado, meu bem.
- E, agora, me conte: o que o velho e confuso Dimples tinha a dizer? Quem está atrás da sua pele sensível agora?
- Não a dele, mas a nossa...
- Que também é a dele, não se esqueça. É por isso que estou aqui, amor, porque ele nos apresentou e nos reuniu.
- Ele quer que saibamos que o pequeno grupo de superpessoas iludidas está aumentando a pressão. Durante os próximos três meses, o deputado deles começará a aparecer em editoriais de jornais cada vez mais
importantes. O tema será "a avaliação de suas posições", e ele vai ser aprovado. O objetivo, sem dúvida, é criar uma onda crescente. Nosso cupido está preocupado, muito preocupado. E para dizer a verdade,
também estou suando um pouco. Aqueles lunáticos benevolentes sabem o que estão fazendo; toda essa situação pode escapar ao controle. Temos milhões em jogo nos próximos cinco anos, Ardis. E estou preocupado
até demais!
- Sem motivo - respondeu a esposa de penteado impecável, levantando-se. Ficou parada por um momento, fitando Vanvlanderen, os enormes olhos verdes apenas parcialmente divertidos. - Como calcula poupar
dez milhões com Bollinger de um jeito ou de outro... e o meu jeito é melhor, certamente mais seguro, do que qualquer alternativa... acho razoável que ponha uma quantia igual à minha disposição, não concorda,
querido?
- Não consigo perceber a razão irrecusável.
- Poderia ser por seu amor imorredouro por mim... ou talvez por uma das coincidências mais extraordinárias da minha carreira flutuando entre os ricos, belos, poderosos e politicamente ambiciosos, sobretudo
na área da generosidade governamental.
- Pode explicar melhor?
- Não vou recitar a litania do motivo pelo qual estamos fazendo tudo isso ou mesmo por que uni a você meus consideráveis talentos, mas agora vou revelar um pequeno segredo que guardei durante muitas semanas.
- Estou fascinado - murmurou Vanvlanderen, largando o drinque numa mesinha de mármore e observando atentamente a quarta esposa. - O que é?
- Conheço Evan Kendrick.
- Você o quê?
- Nossa breve associação tem alguns anos, mais do que eu gostaria de contar, para ser franca, mas por algumas semanas tivemos algo em comum.
- Fora do óbvio, o quê?
- O sexo foi bastante agradável, mas irrelevante... para ambos. Éramos jovens e com pressa, não havia tempo para afeições. Lembra da Off Shore Investments?
- Se ele era parte dessa organização, podemos pegá-lo por fraude! O suficiente, com toda certeza, para derrubá-lo se subir no trampolim. Ele era?
- Era, sim, mas não pode pegá-lo. Ele pulou fora na maior indignação moral, o que representou o início do colapso do nosso castelo de cartas. E eu não estaria muito ansiosa em liquidar os dirigentes da
Off Shore, a menos que esteja cansado de mim, queridinho.
- Você!
- Eu era a principal missionária, recrutava os componentes.
- Essa não! - Vanvlanderen riu, enquanto tornava a pegar seu copo e o levantava para a esposa. - Aqueles ladrões sabiam muito bem a quem contratar para os serviços certos... Ei, espere um pouco! Conheceu
Kendrick bastante bem para deitar com o filho da puta e nunca me disse nada?
- Tinha meus motivos...
- É melhor que sejam muito bons! - explodiu o grande feitor do presidente. - Porque se não forem, sua sacana, eu posso muito bem acabar com você! Suponhamos que ele a tenha visto e reconhecido, se lembrou
da Off Shore, somou dois e dois e encontrou quatro? Não corro esse tipo de risco!
- É a minha vez de dizer "relaxe", Andy - disse a esposa do grande feitor. - As pessoas em torno de um vice-presidente não são notícia, nem mesmo merecedoras de uma notícia. Quando foi a última vez que
se lembrou de conhecer os nomes de membros do estafe de um vice-presidente? Não passam de um grupo cinzento, amorfo... Os presidentes não admitem que seja de outra forma. Além disso, não creio que meu
nome tenha sequer aparecido nos jornais, exceto como "Sr. e Sra. Vanvlanderen, convidados na Casa Branca". Kendrick ainda pensa que sou Frazier-Pyke, esposa de um banqueiro, vivendo em Londres... e se
está lembrado, nós dois fomos convidados para a cerimônia da Medalha da Liberdade, mas eu pedi que você fosse sozinho.
- Esses motivos não são suficientes! Por que não me contou?
- Porque eu sabia qual seria a sua reação... me tirar de cena... até que compreendi que lhe poderia ser muito mais útil nesse caso.
- Como?
- Porque eu o conheci. E também sabia que tinha de me atualizar em relação a ele, mas não com uma firma particular de investigação, que poderia nos queimar depois. Por isso segui o caminho oficial, recorrendo
ao FBI.
- As ameaças contra Bollinger?
- Cessarão amanhã. Exceto por um homem que continuará aqui, numa base especial, a unidade voltará a Washington. As falsas ameaças eram fantasias paranoicas de um lunático inofensivo que inventei e supostamente
fugiu do país. Afinal, queridinho, descobri o que precisava saber.
- E o que é?
- Existe um velho judeu israelense chamado Weingrass, que Kendrick idolatra. É o pai que Evan nunca teve. Quando havia o Grupo Kendrick, ele era conhecido como a "arma secreta" da companhia.
- Munições!
- Não, querido. - Ardis Vanvlanderen riu. - Era um arquiteto muito bom, fez um trabalho espetacular para os árabes.
- O que tem ele?
- Encontra-se supostamente em Paris, mas não é lá que está. Mora na casa de Kendrick no Colorado, sem passaporte e sem registro de entrada na imigração.
- E daí?
- O deputado a ser ungido em breve trouxe o velho para uma operação que lhe salvou a vida.
- E daí?
- Emmanuel Weingrass vai sofrer uma recaída médica que o matará. Kendrick não sairá do seu lado, e quando tudo acabar será tarde demais. Eu quero os dez milhões, Andy-boy.
27
Varak estudou os membros de Inver Brass, cada rosto em torno da mesa refletido na luz do abajur de latão à sua frente. A concentração do tcheco estava forçada aos limites, porque tinha dê focalizar em
dois níveis.
O primeiro era a informação que transmitia; o segundo estava na reação imediata de cada um a determinados fatos dentro dessa informação. Tinha de descobrir um par de olhos suspeitos e não conseguia encontrá-los.
Ou seja, não havia lampejos momentâneos de espanto ou medo nos rostos dos membros, enquanto abordava de maneira gradativa e lógica o tema do atual vice-presidente dos Estados Unidos e sua assessoria, tocando
de leve nos detalhes "inócuos" que descobrira por intermédio do infiltrador da Máfia no Serviço Secreto. Não havia nada, apenas olhares em branco fixados nele. Assim, enquanto falava com convicção e transmitia
mais ou menos oitenta por cento da verdade, continuava a vigiar seus olhos, o segundo nível da mente recordando os fatos salientes da vida por trás de cada rosto refletido na luz.
E enquanto contemplava os rostos, as feições ressaltadas pelo claro-escuro dos abajures, Varak sentiu, como sempre acontecia, que se encontrava na presença de gigantes. Mas um não o era; um deles revelara
a existência de Emmanuel Weingrass em Mesa Verde, Colorado, um segredo desconhecido dos departamentos mais clandestinos de Washington. Um daqueles rostos ensombreados à sua frente era um traidor de Inver
Brass. Quem?
Samuel Winters? Dinheiro antigo de uma dinastia americana remontando aos barões das ferrovias e petróleo do final do século XIX. Um honrado sábio, satisfeito com sua vida privilegiada; um assessor de presidente,
independente dos partidos. Um grande homem em paz consigo mesmo. Ou será que não?
Jacob Mandel? Um venerado gênio financeiro que projetara e executara reformas que revitalizaram a Comissão de Valores Mobiliários tornando-a um instrumento viável e muito mais honroso para Wall Street.
Da pobreza iídiche do Lower East Side aos salões dos príncipes mercadores, e se dizia que nenhum homem decente que o conhecia podia chamá-lo de inimigo. Como Winters, ele usava bem suas honrarias e havia
poucas que não conquistara. Ou haveria outras pelas quais ansiava secretamente?
Margaret Lowell? Outra vez dinheiro antigo aristocrático da órbita Nova York-Palm Beach, mas com um desvio que era virtualmente inédito naqueles círculos. Era uma extraordinária advogada e renunciara às
recompensas do direito financeiro e empresarial para se dedicar à advocacia pura. Trabalhara febrilmente em defesa dos oprimidos, despojados e desprivilegiados. Ao mesmo tempo teórica e prática, corria
o rumor de que seria a próxima mulher no Supremo Tribunal. Ou aquela advocacia não passava de uma inigualável cobertura para a luta por causas opostas?
Eric Sundstrom? O maravilhoso cientista da tecnologia espacial, detentor de mais de vinte patentes altamente lucrativas, sendo a maior parte dos lucros destinada a instituições de engenharia e medicina,
para o progresso dessas ciências. Era um intelecto extraordinário oculto por um rosto de querubim, com desgrenhados cabelos vermelhos, um sorriso malicioso e um senso de humor espontâneo - como se estivesse
embaraçado por seus talentos, ao ponto mesmo de simular uma suave ofensa se eram destacados. Ou tudo não passaria de uma farsa, a franqueza de um embuste?
Gideon Logan? Talvez o mais complexo do quinteto e, porque era preto, talvez compreensível. Ganhara muitas fortunas no mercado imobiliário, jamais esquecendo de onde vinha, contratando e ajudando firmas
negras em seus projetos. Dizia-se que discretamente fazia mais pelos direitos civis do que qualquer outra corporação do país. A atual administração, assim como a anterior, oferecera-lhe vários cargos no
gabinete, mas ele recusara todos, achando que podia realizar mais como uma respeitada força independente no setor particular do que se ficasse identificado com um partido político e suas práticas. Trabalhador
incansável, aparentemente se permitia apenas uma indulgência: uma luxuosa propriedade à beira-mar nas Baamas, onde passava descontínuos fins de semana, pescando em seu Bertram de 14 metros, com sua esposa
há doze anos. Havia, entretanto, uma lacuna na vida do mito que era Gideon Logan. Vários anos de sua agitada e meteórica existência eram simplesmente desconhecidos; era como se nesse período ele não tivesse
existido.
- Milos? - indagou Margaret Lowell, o cotovelo estendido para a frente na mesa, a cabeça repousando nos dedos estendidos da mão. - Como conseguiu a administração manter em segredo as ameaças contra Bollinger?
Especialmente com uma unidade do FBI destacada exclusivamente para ele?
Riscar Margaret Lowell? Ela estava abrindo a óbvia lata de vermes onde se encontrava o comando da assessoria do vice-presidente.
- Devo presumir que foi por orientação da senhora Vanvlanderen, sua principal executiva.
Observe os olhos. Os músculos de seus rostos - as mandíbulas... Nada. Eles nada revelam! Mas um deles sabe! Quem!
- Soube que ela é esposa de Andrew Vanvlanderen, e Andy-boy, como ele é chamado, é um tremendo levantador de fundos - comentou Gideon Logan. - Mas, em primeiro lugar, por que foi ela designada?
Riscar Gideon Logan? Ele estava remexendo os vermes.
- Talvez eu possa responder a isso - interveio Jacob Mandel. - Antes de casar com Vanvlanderen, ela era o sonho de um especulador. Afastou da falência duas companhias que conheço e converteu-as em fusões
lucrativas. Ouvi dizer que é desagradavelmente agressiva, mas ninguém pode negar seus talentos executivos. Seria competente na função; manteria a distância os sicofantas políticos.
Riscar Jacob Mandel? Ele não tinha qualquer compunção em elogiá-la.
- Tive contato com ela uma vez e, se me perdoam, comportou-se como uma filha da puta - declarou Eric Sundstrom, enfaticamente. - Doei uma patente ao Johns Hopkins Medical e ela queria ser a corretora da
transação.
- O que havia para uma corretora fazer? - perguntou a advogada Lowell.
- Absolutamente nada - respondeu Sundstrom. - Ela tentou me convencer de que doações tão grandes precisavam de um supervisor para cuidar que o dinheiro siga para onde deve, e não para a compra de sungas.
- Provavelmente tinha razão nesse ponto - comentou a advogada, balançando a cabeça, como se falasse por experiência pessoal.
- Não para mim. Não da maneira como ela falou, e o diretor da faculdade é um grande amigo meu. Ela o teria pressionado com tanta frequência que ele acabaria devolvendo a patente. Aquela mulher é demais.
Riscar Eric Sundstrom? Ele não tinha a menor hesitação em condená-la.
- Jamais a encontrei pessoalmente - interveio Samuel Winters -, mas ela foi casada com Emory Frazier-Pyke, um banqueiro bem sintonizado de Londres. Lembra-se de Emory, não é mesmo, Jacob?
- Claro. Ele jogava polo e você me apresentou como um ramo obscuro dos Rothschilds... no que, infelizmente, acho que ele acreditou.
- Alguém me contou que o pobre Frazier-Pyke perdeu muito dinheiro num empreendimento a que ela estava associada - continuou Winters -, mas conservou uma esposa. Foi o caso da turma da Off Shore Investments.
- Ele era mesmo sintonizado - acrescentou Mandel. - Goniffs, todos eles, sem exceção. Ele deveria ter conferido com seus pôneis de polo ou mesmo com o obscuro Rothschild.
- Talvez o tenha feito. Ela não durou muito e o velho Emory sempre foi intransigente com a integridade. Ela podia também ser uma ladra.
Riscar Samuel Winters? O traidor de Inver Brass não levantaria a especulação.
- De um jeito ou de outro - comentou Varak, sem ênfase -, todos têm pelo menos conhecimento da sua existência.
- Eu não tinha - protestou Margaret Lowell, beirando a defensiva. - Mas depois de escutar os outros, posso informar quem mais a conhece. Meu ex-marido, o gato de beco; foi a referência a Frazier-Pyke que
me lembrou.
- Walter!
A voz e a expressão de Sundstrom eram jocosamente inquisitivas.
- Meu garoto fez tantas viagens de negócios a Londres que pensei que estava aconselhando a Coroa. Ele comentou várias vezes que esse Frazier-Pyke era o seu banqueiro por lá. Uma manhã a criada me telefonou
para o escritório, dizendo que havia um telefonema urgente para Casanova de um certo "FP" em Londres, mas não sabia onde encontrá-lo. Ela me deu o número e liguei, dizendo a alguém... presumi que era uma
secretária... que M. Lowell estava na linha para falar com "FP". E logo fui saudada por uma voz exuberante, quase gritando: "Querida, estarei em Nova York amanhã e poderemos passar cinco dias juntos!"
Eu disse "Que ótimo" e desliguei.
- Ela frequenta os círculos certos para seus propósitos - comentou Gideon Logan, rindo. - Andy-boy Vanvlanderen a manterá em zibelinas até ficar entediado.
Varak tinha de mudar de assunto rapidamente! Se estava certo sobre a presença de um traidor à mesa - e não tinha a menor dúvida quanto a isso -, o que se dissesse sobre Ardis Vanvlanderen chegaria ao conhecimento
dela e não convinha permitir mais comentários.
- Pelas reações de todos - ele disse, jovialmente -, podemos presumir que há oportunistas que são imensamente capazes. Contudo, isso não é importante. - Observe-os. Cada rosto. - Ela serve muito bem ao
vice-presidente, mas isso é irrelevante para nós... De volta ao nosso candidato, tudo transcorre de acordo com o previsto. Os jornais do Meio-Oeste, começando por Chicago, serão os primeiros a especular
sobre suas credenciais, tanto em notícias como em artigos de redação. Todos receberão amplo material dos antecedentes de Kendrick, além de gravações do Comitê Partridge, programa Foxley e sua extraordinária
entrevista coletiva. A partir dessa base, a notícia se espalhará para leste e oeste.
- Como é que eles foram abordados, Milos? - perguntou o porta-voz, Samuel Winters. - Estou falando dos jornais e colunistas.
- Um legítimo comitê ad hoc que criamos em Denver. A semente, depois de plantada, cresceu depressa. O diretório do partido no Colorado entusiasmou-se, especialmente com as contribuições em dinheiro de
doadores que insistiam em permanecer anônimos. Os funcionários estaduais consideram que é um candidato potencialmente viável e que terão recursos para lançá-lo, além da atenção que se concentrará no Colorado.
Ganhando ou perdendo, eles não podem perder.
- Esses "recursos" podem tornar-se um problema legal - disse Margaret Lowell.
- Nada significativo, madame. É fornecido em sequências, nenhuma quantia acima dos limites determinados pelas leis eleitorais... que são bastante obscuras, se não mesmo desorientadoras, na minha opinião.
- Se eu precisar de um advogado, Milos, vou chamá-lo - comentou Lowell, sorrindo e recostando-se na cadeira.
- Forneci a cada um dos presentes uma cópia dos nomes dos jornais, editorialistas e colunistas envolvidos neste estágio...
- A ser queimada em nossa estufa de carvão - interveio Winters, suavemente.
"Claro", "Naturalmente", "Sem dúvida", foi o coro de confirmações.
Qual seria o mentiroso?
- Gostaria que me dissesse uma coisa, Varak - falou o brilhante querubim Sundstrom. - Pelo que sabemos, por tudo o que você nos relatou, nosso candidato ainda não demonstrou aquele "fogo nas entranhas"
de que tanto falamos. Não é da maior importância? Em última análise, ele não precisa querer o cargo?
- Ele vai querer, senhor. Pelo que sabemos, é o que se chama um ativista de gabinete, o qual sai correndo do gabinete quando as condições exigem seus talentos.
- Por Deus, Samuel, será ele também um rabino?
- Não chega a isso, senhor Mandel - respondeu o tcheco, com um sorriso tenso. - O que eu quis dizer, sem dúvida muito mal...
- As palavras são lindas, Milos.
- Obrigado, senhor, é muito gentil. Mas o que estou tentando dizer é que em duas ocasiões dramáticas da sua vida, uma extraordinariamente perigosa para ele, em termos pessoais, ele decidiu seguir os mais
difíceis cursos de ação, porque achou que podia realizar uma mudança para melhor. A primeira foi sua decisão de substituir um deputado corrupto; a segunda, é claro, foi Oman. Em poucas palavras, ele deve
mais uma vez ficar convencido de que sua pessoa e seus talentos são necessários... excepcionalmente necessários para o bem do país.
- Isso pode ser muito difícil - comentou Gideon Logan. - Ele é obviamente um homem de sensibilidades realistas, capaz de fazer uma avaliação objetiva das suas qualificações. E sua conclusão final pode
ser: "Não estou qualificado." Como podemos superar isso?
Varak correu os olhos pela mesa, com a expressão de um homem que tenta ser compreendido.
- Sugiro que seja simbolicamente, senhor.
- Como assim? - perguntou Mandel, tirando os óculos de aros de aço.
- Por exemplo, o atual secretário de Estado, embora seja frequentemente denegrido por seus colegas e pelo pessoal da Casa Branca como um acadêmico obstinado, é a voz mais racional na administração. Sei,
particularmente, que ele conseguiu bloquear diversas ações precipitadas recomendadas pelos assessores da Casa Branca, porque o presidente o respeita...
- Ainda bem que ele conseguiu! - exclamou Margaret Lowell.
- Creio que a aliança europeia desmoronaria sem ele - acrescentou Winters.
- Não haveria uma aliança sem ele - concordou Mandel, a ira se estampando em seu rosto normalmente passivo. - É um farol de racionalidade num mar de arrotantes Neanderthals.
- Com licença, senhor? A palavra "farol" poderia ser interpretada como um símbolo?
- Isso é lógico - respondeu Gideon Logan. - Nosso secretário de Estado é sem dúvida um símbolo de moderação inteligente. A nação também o respeita.
- Ele tenciona renunciar ao cargo - informou Varak.
- O quê? - Sundstrom inclinou-se para a frente. - Sua lealdade a Jennings não permitiria.
- Seu senso de integridade não deve permitir que continue - disse Winters.
- Por lealdade, no entanto - explicou Varak -, ele concordou em participar da conferência da OTAN sobre o Oriente Médio, na missão da ONU em Chipre, dentro de três semanas. É ao mesmo tempo uma demonstração
de união e uma maneira de dar tempo aos homens do presidente para encontrar um substituto aceitável pelo Congresso. E depois ele se retira, por "motivos pessoais urgentes", a principal sendo a sua frustração
com o Conselho de Segurança Nacional, que continua a sabotá-lo.
- Ele explicou isso ao presidente? - perguntou Lowell.
- Segundo minha fonte, não - respondeu Varak. - Como o senhor Mandel ressaltou, ele é um homem racional. Compreende que é mais fácil e muito melhor para o país substituir uma pessoa do que todo um conselho
de assessores presidenciais.
- Trágico, mas inevitável, eu imagino - comentou Winters. - Mas como o secretário de Estado se relaciona com Evan Kendrick? Não consigo perceber a ligação.
- Está no próprio símbolo - interveio Eric Sundstrom. - Ele precisa compreender sua importância. Estou certo, Milos?
- Está, sim, senhor. Se Kendrick ficar convencido de que é crucial para o país ter um vice-presidente forte, que seja considerado por nossos aliados e inimigos como uma voz da razão dentro de uma presidência
imperial... em que o imperador benigno frequentemente não tem roupas... e que o mundo vai respirar mais fácil por isso, então, no seu julgamento, fará outra vez a escolha difícil e se tornará disponível.
- Por tudo o que sabemos, acho perfeitamente possível - concordou Gideon Logan. - Mas quem vai convencê-lo?
- O único homem que ele escutaria - declarou Milos Varak, especulando se não estava prestes a assinar uma sentença de morte. - Emmanuel Weingrass.
Ann Mulcahy O’Reilly era uma secretária de Washington que não se perturbava com facilidade. Ao longo dos anos, desde que ela e Paddy haviam chegado de Boston, trabalhara para os inteligentes e os não inteligentes,
para homens de bem em potencial e para ladrões em potencial; nada mais a surpreendia. Mas nunca trabalhara para alguém como o deputado Evan Kendrick. Ele era o residente de Washington mais contrariado,
seu político de maior má vontade, um herói discreto. Tinha mais meios de se esquivar ao inevitável do que um gato de sete vidas e podia desaparecer com a agilidade do Homem Invisível. Contudo, apesar da
tendência para desaparecer, o deputado sempre deixava abertas linhas de comunicação; ou telefonava regularmente ou deixava um número em que poderia ser encontrado. Nos últimos dois dias, porém, não houvera
qualquer notícia de Kendrick e nenhum telefone em que pudesse ser encontrado. Por si mesmos, estes dois fatos não teriam alarmado a Sra. O’Reilly, mas outros a assustavam: ao longo do dia - desde as 9:20
da manhã - não conseguia fazer contato telefônico com sua casa na Virginia nem com a casa no Colorado. Nos dois casos, as telefonistas de Virginia e Colorado informavam haver defeitos na linha, uma situação
que permaneceu inalterável até às sete horas da noite. E isso perturbava Annie O’Reilly. Assim, logicamente, ela apanhou o telefone e ligou para o marido na chefatura de polícia.
- O’Reilly - disse a voz ríspida. - Esquadrão de detetives.
- Sou eu, Paddy.
- Oi, tigre. Vou ter bife de panela?
- Ainda estou no escritório.
- Ótimo. Preciso falar com Evan. Manny me ligou há dois dias para falar de uma placa de automóvel...
- Esse é o problema - interrompeu a Sra. O’Reilly. - Também quero falar com ele, mas parece que é impossível.
Annie contou ao marido sobre a estranha coincidência dos telefones do deputado na Virginia e Colorado estarem com defeito simultaneamente e que ele não a procurara nos dois últimos dias nem deixara um
telefone alternativo em que pudesse encontrá-lo.
- Ligue para a Segurança do Congresso - recomendou o detetive.
- Não tem a menor possibilidade. Você sussurra o nome dele para a Segurança e todas as campainhas começam a soar... e sabe muito bem o que ele pensa a respeito. Exigiria minha cabeça numa bandeja mesmo
que houvesse uma explicação razoável.
- O que quer que eu faça?
- Pode dar uma olhada discreta lá em Fairfax, querido?
- Claro. Falarei com Kearns em Arlington e pedirei que mande um carro até lá. Qual é mesmo o endereço?
- Não, Paddy - protestou a Sra. O’Reilly. - Já posso ouvir as campainhas. É a polícia.
- O que pensa você que eu faço para ganhar a vida? Danço balé?
- Não quero a polícia envolvida, com relatórios e tudo mais. A Agência tem guardas por lá e eu ficaria num espeto. Estava pensando em você, amor. É um amigo que por acaso é um tira, fazendo um favor para
sua mulher, que por acaso é secretária de Kendrick.
- É muito acaso, tigre... Mas o que fazer? Gosto de bife de panela.
- Com batatas extras, Paddy?
- E cebola. Muita cebola.
- As maiores que eu puder encontrar...
- Já estou a caminho.
- E se aquele violeta-murcha tirou os dois fones do gancho, Paddy, diga a ele que sei de tudo a respeito da sua namorada do Egito e posso muito bem vazar, se não ligar para cá.
- Que namorada do...
- Esqueça, Paddy. Manny deixou escapar ontem, quando estava um tanto bêbado e também não conseguia encontrar seu menino. E agora trate de se apressar. Ficarei esperando aqui.
- E meu bife de panela?
- Tenho um congelado - mentiu a mulher nascida Ann Mary Mulcahy.
Trinta e oito minutos mais tarde, depois de entrar em duas estradas erradas nos escuros campos da Virginia, o detetive O’Reilly encontrou o caminho para a casa de Kendrick. Era uma estrada que já percorrera
quatro vezes, mas nunca à noite. Cada viagem fora para visitar o velho Weingrass, depois que ele tivera alta do hospital, levando um vidro de Listerine refabricado, já que as enfermeiras mantinham o scotch
fora do seu alcance. Paddy achava, com razão, que se Manny, em torno dos oitenta anos, e que deveria ter apagado na mesa de operações, queria beber alguma coisa, quem podia classificar isso de pecado?
Cristo, em toda a sua glória, transformara água em vinho; então por que um miserável pecador chamado O’Reilly não deveria transformar um pouco de desinfetante bucal em scotch? As duas coisas haviam sido
para boas causas cristãs e ele estava apenas seguindo o exemplo.
Não havia lampiões na estrada secundária, e se não fosse pelo clarão dos faróis Paddy não perceberia o muro de tijolos e o portão branco de ferro batido. E levou um momento para compreender o motivo: não
havia luzes na casa. Para todos os efeitos e propósitos, estava fechada, deserta, os donos viajando. Contudo, o dono não estava viajando e; mesmo que estivesse, havia o casal árabe de um lugar chamado
Dubai, que mantinha a casa aberta e pronta para o retorno do proprietário. Qualquer alteração nessa rotina ou a dispensa dos guardas da Agência certamente seriam comunicadas a Annie O’Reilly, a garota
principal no gabinete do deputado. Paddy parou o carro à beira da estrada; abriu o porta-luvas, tirou uma lanterna e saltou. Instintivamente, enfiou a mão por baixo do paletó e sentiu o cabo do revólver
no coldre à altura do ombro. Aproximou-se do portão, esperando a qualquer momento que refletores acendessem ou sons estridentes de múltiplas sirenes rompessem o silêncio da noite. Esses eram os meios de
controle da Agência, métodos de proteção total.
Nada.
O’Reilly estendeu o braço lentamente entre as barras de ferro... Nada. Pôs a mão na placa do centro, entre as duas metades do portão, e empurrou. O portão abriu-se e ainda nada.
Entrou, empurrando o botão da lanterna com o polegar da mão esquerda, enquanto a direita se estendia por dentro do paletó. E o que viu em segundos, à luz do facho da lanterna se deslocando ao redor, fê-lo
dar meia-volta, agachando-se junto do muro e sacando a arma do coldre.
- Santa Maria, mãe de Deus, perdoe-me por meus pecados! - ele sussurrou.
A três metros de distância estava o cadáver de um jovem guarda da CIA trajando um terno, a cabeça quase separada do resto do corpo. O’Reilly comprimiu as costas contra o muro, apagando a lanterna no mesmo
instante, tentando acalmar seus nervos tão experientes. Estava familiarizado com a morte violenta e por isso sabia que havia mais a ser encontrado. Empertigou-se lentamente e começou a busca da morte,
sabendo também que os assassinos já haviam desaparecido.
Encontrou mais três cadáveres, todos mutilados. Todos haviam perdido a vida em choque, cada um postado a noventa graus da barreira de proteção. Santo Deus! Como teria acontecido? Abaixou-se e examinou
o corpo do quarto homem; o que descobriu era extraordinário. Havia uma agulha quebrada no pescoço do guarda; era o remanescente de um dardo. A patrulha fora imobilizada por um narcótico e depois, indefesa,
barbaramente assassinada. Não chegara a saber o que acontecera. Nenhum deles.
Patrick O’Reilly foi andando devagar, cauteloso, até a porta na frente da casa, mais uma vez sabendo que a cautela era dispensável. Os crimes terríveis já haviam sido consumados; nada restava, a não ser
o total de baixas.
Eram seis. Cada garganta fora cortada, cada cadáver estava coberto de sangue ressequido, cada rosto mostrava tormento. Contudo, o mais terrível foi a cena dos corpos nus do casal de Dubai. O marido se
encontrava por cima da esposa em posição coital, os rostos comprimidos, inteiramente vermelhos. E na parede, rabiscadas com sangue humano, estavam as palavras:
Morte aos traidores de Deus! Morte aos fornicadores do Grande Satã!
Onde estaria Kendrick? Santa Mãe de Deus! Onde estaria ele? O’Reilly andou pela casa, indo do porão ao sótão, de cômodo em cômodo, acendendo toda lâmpada que podia encontrar, até que toda a propriedade
se tornou um braseiro de luzes. Não havia qualquer sinal do deputado! Paddy saiu correndo da casa, através da garagem anexa, notando que o Mercedes de Evan não estava ali e o Cadillac se encontrava vazio.
Recomeçou a revistar o terreno, cruzando cada palmo dos bosques e folhagens. Nada. Não havia sinais de luta, arbustos quebrados, buracos na cerca Cyclone ou marcas no muro de tijolos recém-construído.
A divisão de laboratório do departamento poderia encontrar pistas... não! Estava pensando em termos de processos policiais, mas aquilo parecia fora do campo da polícia... muito além! O’Reilly voltou correndo
ao portão de ferro, agora todo iluminado, e foi até seu carro. Entrou e, ignorando o rádio, tirou o telefone do seu recesso por baixo do painel. Discou, só agora percebendo que tinha o rosto e a camisa
encharcados de suor, apesar do ar frio da noite.
- Gabinete do deputado Kendrick.
- Annie, deixe-me explicar tudo - murmurou o detetive. - E não faça perguntas...
- Conheço esse tom de voz, Paddy, por isso tenho de fazer uma pergunta. Ele está bem?
- Não há sinal dele. Seu carro desapareceu; ele não está aqui.
- Mas os outros estão...
- Chega de perguntas. Mas tenho uma para você e, por todos os santos, é melhor ser capaz de respondê-la.
- O que é?
- Quem é o contato de Evan na Agência?
- Ele trata diretamente com a unidade.
- Não é possível. Mais alguém. Superior. Tem de haver alguém!
- Espere um instante! - gritou Annie, alteando a voz. - Claro que há. Ele apenas não fala a respeito... um homem chamado Payton. Há cerca de um mês Evan me disse que se esse Payton ligasse alguma vez,
eu deveria pô-lo em contato imediatamente... e se ele não estivesse aqui, eu deveria localizá-lo.
- Tem certeza de que ele está com a CIA?
- Tenho, sim - respondeu a Sra. O’Reilly, pensativa. - Uma manhã ele me telefonou do Colorado, dizendo que precisava do número desse Payton e que eu poderia encontrá-lo em sua mesa... na gaveta do fundo,
sob um talão de cheques. Era um telefone de Langley.
- Ainda está lá?
- Vou procurar. Espere um instante.
A espera, de não mais que vinte segundos, foi quase insuportável para o detetive, agravada pela visão da casa grande e toda iluminada, além do portão aberto. Era ao mesmo tempo um convite e um alvo.
- Paddy?
- Pode falar.
- Encontrei.
- Pois então me diga! Depressa! - Ela disse o número e O’Reilly acrescentou uma ordem que não admitia desobediência: - Fique no escritório até eu ligar ou ir buscá-la pessoalmente. Entendido?
- Há um motivo?
- Digamos que eu não sei até onde, para cima e para baixo e para os lados, esta coisa se estende, e acontece que gosto de bife de panela.
- Oh, Deus! - balbuciou Annie.
O’Reilly não chegou a ouvir; desligara, e segundos depois discava o número que Annie lhe fornecera. Após oito angustiantes toques da campainha, uma voz de mulher atendeu:
- Agência Central de Informações, gabinete do senhor Payton.
- É a secretária dele?
- Não, senhor. Aqui é a recepção. O senhor Payton já foi embora.
- Pois preste atenção, por favor - disse o detetive de Washington, com absoluto controle. - É urgente que eu entre em contato com o senhor Payton imediatamente. Quaisquer que sejam os regulamentos, podem
ser violados, está me entendendo, garota? É uma emergência.
- Identifique-se, por favor, senhor.
- Pelo fogo do inferno, não quero fazê-lo, mas está bem. Sou o tenente Patrick O’Reilly, detetive de primeira classe, Departamento de Polícia do Distrito de Columbia. Precisa encontrá-lo para mim!
Súbito, para sua surpresa, uma voz de homem entrou na linha:
- O’Reilly? Como em O’Reilly, a secretária de um certo deputado?
- O próprio, senhor. Não atende a porra do seu telefone... perdoa a minha linguagem?
- Esta é uma linha-tronco para meu apartamento, senhor O’Reilly... Telefonista, pode trocar o sistema.
- Obrigada, senhor.
Houve um estalido na linha.
- O que é, senhor O’Reilly? Estamos a sós agora.
- Eu não estou. Tenho a companhia de seis cadáveres, a trinta metros do meu carro.
- O quê?
- Venha até aqui, senhor Payton. A casa de Kendrick. E se não quer manchetes nos jornais, é melhor suspender qualquer unidade substituta que esteja vindo para cá.
- É seguro - disse o atordoado diretor de Projetos Especiais. - Os substitutos chegam por volta da meia-noite e são cobertos pelos homens que ficam lá dentro.
- Também estão mortos. Todos estão mortos.
Mitchell Payton agachou-se ao lado do cadáver do guarda mais próximo do portão, estremecendo sob o facho da lanterna de O’Reilly.
- Santo Deus, era tão jovem! Todos eles são tão jovens!
- Eram, senhor. Não há ninguém vivo, fora ou dentro. Acendi a maioria das luzes, mas o escoltarei por toda parte, é claro.
- Eu devo... sim, é claro.
- Mas não o farei se não me disser onde o deputado Kendrick se encontra... se ele está ou deveria estar aqui, embora aparentemente não esteja. Posso, e obviamente deveria, ligar para a delegacia em Fairfax.
Estou sendo claro, senhor?
- Gaelicamente claro, tenente. Por enquanto, isto deve permanecer um problema da Agência... esta catástrofe, se assim quiser. Eu estou sendo claro?
- Responda à minha pergunta ou cumprirei meu dever e chamarei a delegacia em Fairfax. Onde está o deputado Kendrick? O carro dele não se encontra aqui e quero saber se devo ou não me sentir aliviado por
isso.
- Se pode sentir algum alívio nesta situação, é um homem muito estranho...
- Lamento estas pessoas, estes estranhos para mim, como já lamentei centenas em iguais condições durante o meu tempo de serviço, mas conheço Evan Kendrick pessoalmente! Se você tem essa informação, eu
a quero agora ou vou até o meu carro e entro em contato pelo rádio com a polícia em Fairfax.
- Pelo amor de Deus, tenente, não me ameace! Se quer saber onde está Kendrick, pergunte à sua esposa!
- Minha esposa?
- A secretária do deputado, se acaso esqueceu.
- Seu idiota maluco! - explodiu Paddy. - Por que acha que estou aqui? Para fazer uma vista social ao meu velho companheiro, o milionário do Colorado? Estou aqui porque Annie não recebe notícias de Evan
há dois dias e desde as nove horas desta manhã que seu telefone aqui e em Mesa Verde não funcionam! É o que se pode chamar de coincidência, não é mesmo?
- Os telefones...
Payton levantou a cabeça bruscamente, espiando para cima.
- Não se dê ao trabalho - disse O’Reilly, acompanhando o olhar do diretor. - Uma linha foi cortada e habilmente unida a outra; o cabo para o telhado está intacto.
- Santo Deus!
- Na minha opinião, vai precisar da ajuda imediata d’Ele... Kendrick! Onde ele está?
- Nas Baamas. Em Nassau.
- Por que pensou que minha mulher, a secretária, sabia disso? E é melhor ter um bom motivo para ter pensado assim, porque se for alguma merda para envolver Annie Mulcahy numa das suas sacanagens vai ter
mais tiras enxameando por aqui do que jamais imaginou que existissem!
- Pensei assim porque ele me contou, tenente O’Reilly - respondeu Payton, a voz fria, os olhos se desviando, os pensamentos aparentemente em turbilhão.
- Ele nunca disse nada a Annie!
- Isso é óbvio - concordou o diretor da CIA, olhando agora para a casa. - Mas ele foi bastante explícito. Anteontem disse que no caminho para o aeroporto passaria pelo escritório e deixaria a informação
com sua secretária, Ann O’Reilly. Passou por lá; subiu ao gabinete; a unidade móvel confirmou.
- A que horas aconteceu isso?
- Por volta das quatro e meia, se bem me lembro dos registros.
- Quarta-feira?
- Certo.
- Annie não estava lá. Toda quarta-feira ela sai às quatro da tarde e Kendrick sabe disso. Ela não perde uma aula de aeróbica.
- É evidente que ele esqueceu.
- Não é provável. Venha comigo, senhor.
- Como?
- Até o meu carro.
- Temos trabalho a fazer aqui, tenente, preciso dar vários telefonemas... do meu carro. E sozinho.
- Não vai fazer porra nenhuma enquanto eu não falar com a secretária do deputado Kendrick.
Sessenta e cinco segundos depois, Payton parado ao lado da porta aberta, a voz da mulher de Patrick O’Reilly soou pelo telefone.
- Gabinete do deputado...
- Sou eu, Annie. Depois que deixou o escritório na quarta-feira, quem ficou aí?
- Phil Tobias. Tem havido pouco movimento e as garotas foram embora mais cedo.
- Phil o quê?
- Tobias. Ele é o chefe da assessoria de Evan.
- Ele não falou nada para você ontem ou hoje sobre um encontro com Kendrick?
- Ele não apareceu aqui, Paddy. Nem ontem nem hoje. Deixei vários recados na sua secretária eletrônica, mas não recebi qualquer resposta.
- Falarei com você mais tarde. Não saia daí. Entendido?
O’Reilly desligou e virou-se no banco, olhando para o homem da CIA.
- Ouviu tudo, senhor. Creio que um pedido de desculpas seria conveniente.
- Não o procuro nem quero, tenente. Fazemos tanta besteira em Langley que não devo culpar ninguém por pensar que podemos envolver sua mulher numa de nossas confusões.
- Acho que foi isso mesmo... Quem vai atrás de Tobias? Você ou eu?
- Não posso autorizá-lo como nosso representante, O’Reilly. Não há dispositivos para isso na lei; e, para ser franco, os regulamentos são contra. Mas posso pedir sua ajuda e estou precisando dela desesperadamente.
Posso lhe dar cobertura por esta noite, com base na segurança nacional, não terá qualquer problema por não informar o que aconteceu aqui. Quanto a Tobias, porém, só posso pedir.
- Pedir o quê? - indagou a detetive, saindo do carro e fechando a porta.
- Que me mantenha informado.
- Não precisa pedir isso...
- Antes que seja divulgado qualquer relatório oficial - acrescentou Payton.
- Isso sim, precisa pedir - murmurou Paddy, estudando o diretor. - Para começar, eu não poderia garantir. Se ele estiver na Suíça ou flutuando no Potomac, eu mesmo não saberia.
- Estamos obviamente pensando nas mesmas linhas. Contudo, você tem alguma influência, tenente. Perdoe-me, mas eu tinha de descobrir tudo sobre as pessoas em torno de Evan Kendrick. O Departamento de Polícia
de Washington virtualmente o subornou para sair de Boston e vir para cá há doze anos...
- Um bom salário, nada de escuso.
- Um salário quase equivalente ao de chefe dos detetives, posto que recusou há quatro anos, porque não queria um cargo burocrático.
- Isso é demais!
- Tive de ser meticuloso... E como sua mulher trabalha para o deputado, creio que um homem na sua posição pode exigir que o mantenha informado, se e quando surgir qualquer notícia relevante em relação
a Phil Tobias, já que ele também trabalha... ou trabalhava... no gabinete de Kendrick.
- Acho que é possível. Mas isso me leva a uma ou duas perguntas.
- Pode falar. Suas perguntas talvez me ajudem.
- Por que Evan está nas Baamas?
- Mandei os dois para lá.
- Os dois! A mulher egípcia?... O velho Weingrass contou à minha esposa.
- Ela trabalha para nós; participou em Oman. Há um homem em Nassau que foi testa de ferro de uma companhia com a qual Kendrick esteve associado por pouco tempo, há alguns anos. Não é dos mais respeitáveis
e a companhia também não era, mas achamos que valia a pena investigar.
- Com que objetivo?
O diretor de Projetos Especiais olhou por cima do carro para a casa de Evan Kendrick, com as muitas janelas iluminadas, pensando no que havia além dos vidros.
- Saberá de tudo isso mais tarde, O’Reilly. Prometo que não esconderei nada. Mas pelo que me descreveu, terei muito trabalho aqui. Preciso chamar o esquadrão médico-legal e só poderei fazer isso do meu
carro.
- Esquadrão médico-legal? O que é isso?
- Um grupo de homens que nenhum de nós dois gostaria de integrar. Recolhem cadáveres sobre os quais nunca podem testemunhar, procuram provas que juraram nunca revelar. São necessários e respeito todos,
mas não seria um deles.
De repente a campainha do telefone no carro do detetive começou a tocar. Estava ligado em Emergência, o som ressoando pela noite fria e silenciosa, ricocheteando no muro de tijolos, cada eco se perdendo
no bosque além. O’Reilly abriu a porta bruscamente e atendeu.
- Alô?
- Oh, Deus, Paddy! - gritou Ann Mulcahy O’Reilly, a voz ampliada. - Eles o encontraram! Descobriram Phil! Estava debaixo das caldeiras, no porão! Dizem que tem a garganta cortada! Jesus, Maria e José,
ele está morto, Paddy!
- Quando disse "eles", a quem exatamente estava se referindo?
- Harry e Sam, da manutenção noturna... Acabaram de me avisar, pedindo para chamar a polícia!
- Você acabou de chamar, Annie. Diga a eles para ficarem onde estão. Não devem tocar em nada nem divulgar qualquer coisa até eu chegar aí. Entendido?
- Não dizer nada...?
- É uma quarentena. Explicarei depois. Agora ligue para Segurança e peça cinco homens com espingardas para ficarem na porta da sua sala. Diga que seu marido é da polícia e que faz o pedido por causa de
ameaças pessoais contra ele. Entendido?
- Entendido, Paddy - respondeu a Sra. O’Reilly, soluçando. - Oh, Deus, ele está morto!
O detetive virou-se no banco. O diretor da CIA corria em direção ao carro dele.
28
Eram 4:17 da tarde, horário do Colorado, e a paciência de Emmanuel Weingrass se esgotara. Por volta das onze horas da manhã ele descobrira que o telefone não funcionava, sendo depois informado que duas
enfermeiras já sabiam disso há horas, ao tentarem fazer ligações locais. Uma delas fora de carro a Mesa Verde para usar o telefone do armazém e comunicara o defeito à companhia telefônica; voltara com
a garantia de que o problema seria reparado o mais depressa possível. O "possível" já se arrastava há mais de cinco horas e isso era inaceitável para Manny. Um famoso deputado - para não mencionar o herói
nacional que ele era - merecia um tratamento muito melhor; era uma afronta que Weingrass não tinha a intenção de tolerar. E embora nada comentasse para seu conselho de bruxas, estava cheio de maus pensamentos
- pensamentos perturbadores.
- Ouvi, ó feiticeiros do clã de Cawdor! - ele gritou a plenos pulmões na varanda envidraçada para as duas enfermeiras que jogavam gin rummy.
- Do que está falando, Manny? - perguntou a terceira, de uma poltrona na arcada que dava para a sala de estar, baixando o jornal.
- Macbeth, sua ignorante! Estou impondo a lei!
- A lei é a única coisa que pode controlar nesse departamento, Matusalém... Gin!
- Sabe muito pouco sobre a Bíblia, miss Erudita... Não permanecerei por mais tempo longe do alcance do mundo exterior. Uma de vocês vai me levar de carro à cidade, onde poderei ligar para o presidente
dessa meshugenah[8] companhia telefônica, ou vou urinar toda a cozinha!
- Será metido antes numa camisa de força - comentou uma das enfermeiras que jogava cartas.
- Espere um pouco - interveio sua parceira. - Manny pode ligar para o deputado e ele seria capaz de fazer alguma pressão. Preciso muito falar com Frank. Ele estará voando amanhã... já lhe contei isso...
e não consegui fazer uma reserva no motel em Cortez.
- Sou a favor - disse a enfermeira na sala de estar. - Ele pode ligar do armazém de Abe Hawkins.
- Conhecendo vocês, minhas caras, sei que o sexo está excluído - disse Manny. - Mas vamos ligar do escritório do Gê-Gê. Não confio em ninguém que se chame Abraham. Ele provavelmente vendeu armas para o
Aiatolá e esqueceu de tirar um lucro... Vou vestir o suéter e um paletó.
- Eu o levarei - propôs a enfermeira no living, largando o jornal ao lado da cadeira e levantando-se. - Ponha o sobretudo, Manny. Está frio e sopra um vento forte das montanhas.
Weingrass murmurou um pequeno epíteto enquanto passava pela mulher encaminhando-se para seu quarto, na ala sul do primeiro andar. Fora do alcance visual das enfermeiras, no corredor de pedra, ele acelerou
os passos; tinha mais a pegar do que um suéter. Dentro do seu grande quarto, que reformara para incluir portas de vidro corrediças na parede sul, abrindo para um terraço de blocos de pedra, ele avançou
apressado até a cômoda alta, agarrou uma cadeira e arrastou-a para o armário. Com todo cuidado, segurando-se nas maçanetas, subiu na cadeira, estendeu a mão por sobre o armário imponente e tirou uma caixa
de sapatos. Desceu da cadeira, levou a caixa para a cama e abriu-a, tirando uma automática calibre 38 e três pentes de balas.
O segredo era necessário. Evan dera ordens para que sua estante de espingardas fosse trancada, junto com toda a munição, não permitindo qualquer revólver na casa. O motivo fora doloroso demais para que
qualquer dos dois o abordasse: Kendrick acreditava, com mais lógica do que menos, que o velho amigo podia, se pensasse que estava com câncer, acabar com a própria vida. Mas para Emmanuel Weingrass, depois
da vida que levara, ficar sem uma arma era um anátema. Gê-Gê González remediara a situação e Manny só arrombara a estante de espingardas uma vez, quando os repórteres haviam aparecido ali, mijando todo
o jardim.
Pôs um pente na arma, meteu os outros dois no bolso e devolveu a cadeira ao seu lugar. Na prateleira do closet pegou um suéter grosso e vestiu-o; cobria de maneira eficaz as protuberâncias. Depois, fez
algo que não fizera desde que o quarto fora reformado, nem mesmo quando sofrera a investida dos repórteres e equipes de televisão. Inspecionou as trancas nas portas corrediças, foi até um interruptor vermelho
oculto por trás da cortina e ligou o alarme. Saiu do quarto, fechando a porta, e juntou-se à enfermeira no vestíbulo; ela segurava o seu sobretudo.
- É um lindo suéter, Manny.
- Comprei numa liquidação em Monte Carlo, numa loja après-ski.
- Precisa ter sempre uma resposta irreverente?
- Não estou brincando. É verdade.
- Ponha o seu sobretudo.
- Pareço um Hasid[9] nesta coisa.
- Um o quê?
- Heidi no edelweiss.
- Ora, eu acho muito masculino...
- Vamos embora logo. - Weingrass encaminhou-se para a porta, parou de repente e gritou, sua voz chegando à varanda: - Garotas!
- O que é, Manny?
- Por favor, minhas damas, peço que me escutem, estou falando sério. Eu me sentiria muito mais tranquilo, com o telefone sem funcionar, se fizessem a gentileza de ligar o alarme principal. Atendam-me,
minhas adoradas. Sou um velho tolo para vocês, eu sei, mas sinceramente me sentiria muito melhor se fizessem isso por mim.
- Como ele é gentil...
- Claro que faremos isso, Manny.
Esse negócio de humildade sempre dá certo, pensou Weingrass, recomeçando a se encaminhar para a porta.
- Depressa! - ele disse à enfermeira por trás, que vestia seu casaco. - Quero chegar ao Gee-Gee’s antes que a companhia telefônica feche pelo resto do mês.
Os ventos das montanhas estavam mesmo fortes; o percurso da maciça porta da frente ao Saab Turbo de Kendrick, na metade do caminho circular, foi coberto com os dois se inclinando contra as rajadas. Manny
protegeu o rosto com a mão esquerda, e voltou a cabeça para a direita, quando subitamente o vento e seu desconforto se tornaram irrelevantes. A princípio ele pensou que as folhas turbilhonando e os bolsões
irregulares de poeira estavam distorcendo sua visão ainda viável - e depois teve certeza de que não era isso. Havia um movimento, um movimento humano, além das altas sebes que margeavam a estrada. Um vulto
correra à direita, inclinando-se para o chão por trás de uma área de folhagem bastante densa... E depois outro! Este seguindo o primeiro e avançando para mais longe.
- Você está bem, Manny? - gritou a enfermeira, ao se aproximarem do carro.
- Este negócio é jardim de infância em comparação com os desfiladeiros nos Alpes Marítimos! - berrou Weingrass em resposta. - Entre logo! Depressa!
- Ah, eu adoraria ver os Alpes um dia!
- Eu também - murmurou Weingrass, entrando no Saab, a mão direita tateando discretamente por baixo do sobretudo e do suéter para alcançar a automática. Tirou-a e a depositou entre o assento e a porta,
enquanto a enfermeira inseria a chave e ligava o carro. Quando chegar à estrada, vire à esquerda.
- Não, Manny, você está enganado. O caminho mais rápido para Mesa Verde é pela direita.
- Sei disso, coisinha linda, mas ainda assim quero que vire à esquerda.
- Se está tentando fazer alguma coisa na sua idade, Manny, eu vou ficar furiosa!
- Apenas vire à esquerda, contorne a curva e pare.
- Mister Weingrass, se pensa por um só instante...
- Vou sair - interrompeu o velho arquiteto, suavemente. - Não quero alarmá-la e explicarei tudo mais tarde, mas neste momento tem de fazer tudo o que eu mandar... Por favor. Continue em frente.
A atônita enfermeira não entendia as palavras suaves de Manny, mas compreendia a expressão em seus olhos. Não havia nada de teatral, nada de bombástico; ele estava simplesmente dando uma ordem.
- Obrigado - ele acrescentou, enquanto a enfermeira seguia entre as sebes altas e virava à esquerda. - Quero que pegue a estrada de Mancos para chegar a Verde...
- Isso aumentará o percurso em dez minutos pelo menos...
- Sei disso, mas é o que quero que faça. Vá para o Gee-Gee’s o mais depressa que puder e diga a ele para chamar a polícia...
- Manny! - exclamou a enfermeira, apertando o volante com toda força.
- Tenho certeza que não é nada demais - Manny apressou-se em dizer, tranquilizador. - Provavelmente apenas alguém com o carro enguiçado ou um carona que se perdeu. Mesmo assim, é melhor verificar essas
coisas, não acha?
- Não sei o que pensar, mas tenho certeza de que não posso deixá-lo sair deste carro!
- Vai deixar, sim - discordou Manny, levantando a automática, como se estudasse o gatilho, sem qualquer ameaça no gesto.
- Santo Deus! - exclamou a enfermeira.
- Estou absolutamente seguro, minha cara, porque sou um homem cauteloso, ao ponto da covardia... Pare aqui, por favor.
A mulher, quase em pânico, obedeceu, os olhos assustados deslocando-se rapidamente entre a arma e o rosto do velho.
- Obrigado - disse Weingrass abrindo a porta, o som do vento entrando súbito e forte. - Provavelmente encontrarei nosso inofensivo intruso lá dentro, tomando café com as garotas.
Saiu e fechou a porta sem fazer barulho. As rodas rangendo, o Saab partiu em disparada. Não tinha importância, pensou Manny, as rajadas de vento abafavam o barulho.
Como também encobriam quaisquer sons que ele fizesse ao voltar para casa, sons inevitáveis, já que tinha de permanecer fora de vista, à beira da estrada, os pés partindo galhos quebrados. Sentiu-se grato
pelas nuvens escuras em disparada lá em cima, tanto quanto pelo escuro sobretudo; reduziam sua visibilidade ao mínimo. Cinco minutos depois e vários metros pelo bosque adentro, ele parou junto de uma árvore
grande, em frente à muralha de sebes. Tornou a proteger o rosto do vento e, contraindo os olhos, esquadrinhou a estrada.
Ali estavam eles! E não pareciam perdidos. Seus pensamentos perturbadores tinham razão de ser. Em vez de perdidos, os intrusos esperavam - por alguma coisa ou alguém. Os dois homens usavam blusões de couro
e se mantinham agachados na frente da sebe, falando depressa um para o outro, o homem à direita olhando a todo instante, impaciente, para seu relógio de pulso. Weingrass não precisava ser informado sobre
o que isso significava; aguardavam alguém ou mais do que alguém. Meio desajeitado, sentindo a idade no físico, mas não na mente, Manny arriou para o chão e começou a se movimentar de quatro, sem saber
o que procurava, mas convencido de que tinha de encontrar, fosse lá o que fosse.
Era um galho grosso e pesado, que o vento acabara de derrubar, a seiva ainda correndo das partes em que fora partido do tronco. Tinha cerca de um metro de comprimento e era flexível. Devagar, desajeitada
e penosamente, o velho levantou-se e voltou para a árvore em que se havia postado antes, no outro lado da estrada, em posição diagonal à dos dois intrusos, a uma distância não superior a quinze metros.
Era um jogo, mas também o era o que restava da sua vida, as chances muito maiores do que na roleta ou no chemin de fer. Os resultados também seriam conhecidos mais depressa e o jogador em Emmanuel Weingrass
estava disposto a apostar que um dos intrusos ficaria onde se encontrava, por pura questão de bom senso. O idoso arquiteto voltou para dentro do bosque, escolhendo a sua posição com extremo cuidado, como
se requintasse uma planta final para o mais importante cliente da sua vida. De fato: esse cliente era ele próprio. Aproveite ao máximo o ambiente natural fora um axioma de toda a sua vida profissional;
não se desviou desse princípio agora.
Havia dois choupos, ambos largos, separados por pouco mais de dois metros, formando um portão abstrato na floresta. Ele escondeu-se por trás do tronco da direita, ergueu o pesado galho até encostar na
casca da árvore por cima da sua cabeça. O vento uivava na floresta, e através dos sons múltiplos do bosque Manny abriu a boca e emitiu um som curto e monótono, um terço humano, dois terços animal. Esticou
a cabeça e observou.
Entre os troncos e a folhagem inferior, podia avistar os vultos surpresos, no outro lado da estrada. Os dois se voltaram nas posições agachadas, o homem da direita pondo a mão no ombro do companheiro,
aparentemente - que assim seja, orou Manny - dando ordens. E fora isso mesmo. O homem da esquerda levantou-se, sacou uma arma de baixo do paletó e encaminhou-se para o bosque, atravessando a estrada que
levava a Mesa Verde.
Agora tudo era uma questão de tempo certo. E também de direção, os sons breves e sedutores levando a presa para o fatal mar de verde, tão certamente quanto as sereias atraíram Ulisses. Por mais duas vezes
Weingrass emitiu os estranhos sons e depois um terceiro, tão forte que o intruso correu em frente, esbarrando nos galhos baixos, a arma levantada, os pés afundando no solo macio... a caminho do portão
da floresta.
Manny golpeou com toda a força, acertando com o galho grosso e pesado na cabeça do homem que corria. O rosto ficou espatifado, o sangue esguichando de cada ferida, o crânio uma massa de cartilagem e ossos
quebrados. O homem tombou morto. Ofegante, Weingrass saiu de trás do tronco e ajoelhou-se.
Era um árabe.
Os ventos das montanhas continuavam a investir. Manny tirou a arma da mão do cadáver morno, e, ainda mais desajeitado que antes, ainda mais penosamente, começou a voltar na direção da estrada. O companheiro
do intruso morto era um vulcão de energia desorientada: não parava de virar a cabeça para o bosque, para a estrada de Mesa Verde e para o relógio. A única coisa que não fizera fora exibir uma arma, o que
revelava alguma coisa mais a Weingrass. O terrorista - ele era mesmo um terrorista; os dois eram terroristas - era um rematado amador ou um profissional meticuloso, jamais um meio-termo.
Sentindo o forte eco no peito frágil, Manny permitiu-se uns poucos momentos para respirar, mas só isso. Talvez não houvesse outra oportunidade. Ele se deslocou para o norte, de um tronco para outro, até
ficar uns vinte metros acima do homem que continuava olhando para o sul. Outra vez o momento certo; Weingrass avançou tão depressa quanto podia pela estrada e quedou-se imóvel, observando. O potencial
assassino estava agora quase apoplético; por duas vezes começara a atravessar a estrada na direção do bosque, mas em ambas voltara à sebe e se agachara, com os olhos no relógio. Manny adiantou-se, a automática
na mão direita de veias saltadas. Gritou ao chegar a cerca de três metros do terrorista, chamando o homem de carniceiro, em árabe:
- Jezzar! Se se mexer, é um homem morto! Fahem?
O homem de pele escura voltou-se, jogando terra ao rolar para a sebe, os grãos soltos voando contra o rosto do velho arquiteto. Através dos detritos, Manny percebeu por que o terrorista não exibira uma
arma; estava no chão, a seu lado, a poucos centímetros da mão. Weingrass caiu para a esquerda na estrada, enquanto o homem pegava sua arma, agora se jogando para trás e se emaranhando na sebe verde, ao
mesmo tempo que disparava duas vezes; os estampidos foram quase inaudíveis! Como dois estalidos abafados pelo vento; um silenciador estava fixado na pistola do terrorista. As balas, no entanto, não foram
silenciosas: uma zuniu estridente pelo ar por cima da cabeça de Weingrass, outra ricocheteou no cimento, perto da sua cabeça. Manny levantou sua automática e puxou o gatilho com a calma da experiência,
apesar da idade, firmando a mão. O terrorista gritou meio ao vento uivante e caiu em cima da sebe, os olhos arregalados, um filete de sangue escorrendo da base da garganta.
Depressa, seu filho da puta decrépito!, gritou Weingrass para si mesmo, fazendo um grande esforço ao se levantar. Eles esperavam alguém! Quer ser um feio patinho senil numa galeria de tiro ao alvo? Os
miolos estourados seriam uma boa lição! Controle-se! Cada osso protesta em dor! Manny avançou para o corpo caído na sebe. Abaixou-se, puxou o cadáver para a frente, depois agarrou-o pelos pés e, fazendo
uma careta, recorrendo a todas as forças que lhe restavam, arrastou-o pela estrada para o bosque.
Agora só queria deitar no chão e descansar, deixar que o martelar no peito se atenuasse e engolir bastante ar, mas sabia que não podia fazer isso. Tinha de continuar; precisava estar pronto; acima de tudo,
devia pegar alguém vivo. Aquelas, pessoas estavam atrás do seu filho! Era preciso obter informações... só depois admitindo a morte.
Manny ouviu o ruído de um motor ao longe... e depois o som desapareceu. Meio tonto, ele deu um passo para o lado, devagar, cauteloso, entre as árvores à beira do bosque, e espiou. Um carro se aproximava
pela estrada de Mesa Verde, mas descia em ponto morto ou com o motor desligado... ou então o vento era muito forte. De fato, tinha o motor desligado, pois agora só se ouviam os pneus rodando. Ao chegar
perto das sebes altas, bem devagar, diminuiu a velocidade e acabou parando antes da entrada do caminho circular. Havia duas pessoas no veículo; o motorista, um homem corpulento que não era jovem mas também
não passava muito dos quarenta, saltou primeiro e olhou ao redor, obviamente esperando encontrar alguém ou deparar com um sinal. Cerrou os olhos na tarde escura e, não vendo ninguém, atravessou a estrada
para o lado do bosque e começou a se adiantar. Weingrass pôs a automática na cintura e abaixou-se para pegar a pistola do segundo assassino, com o silenciador perfurado preso ao cano. Era muito grande
para um bolso, e por isso, como o árabe, ele deixou-a junto dos pés. Empertigou-se e recuou ainda mais entre os arbustos. Verificou o cilindro da arma; restavam quatro balas. O homem aproximou-se, estava
agora bem na frente de Manny.
- Yosef.
O nome foi subitamente trazido pelo vento, meio gritado pelo companheiro do motorista, que deixara o carro e descia pela estrada, os passos rápidos um tanto prejudicados por um claudicar acentuado. Manny
ficou perplexo; Yosef era um nome hebraico, mas aqueles assassinos não eram israelenses.
- Fique quieto, garoto! - ordenou o homem mais velho, rispidamente, em árabe, enquanto o parceiro parava à sua frente, ofegando. - Levante a voz desse jeito outra vez... em qualquer lugar... e o mandarei
de volta a Baaka num caixão!
Weingrass observava e ouvia os dois homens, a seis ou sete metros de distância, à beira da estrada. Estava um pouco espantado, mas agora compreendia o uso da palavra árabe walad, "garoto". O companheiro
do motorista era mesmo um garoto, um adolescente que não devia ter mais do que dezesseis ou dezessete anos.
- Não vai me mandar para lugar nenhum! - respondeu o enfurecido jovem com um evidente problema de fala, sem dúvida um lábio leporino. - Nunca mais andarei direito por causa daquele porco! Poderia ter me
tornado um mártir da nossa grande causa se não fosse ele!
- Está bem, está bem - disse o árabe mais velho com um nome hebraico, não sem alguma compaixão. - Jogue água fria no pescoço ou sua cabeça vai explodir. E agora me diga: o que aconteceu?
- O rádio americano! Acabei de ouvir e entendi o suficiente para... compreender!
- Nosso pessoal na outra casa?
- Não, nada disso. Os judeus! Eles executaram o velho Khouri! Enforcaram-no!
- O que esperava, Aman? Há quarenta anos ele já trabalhava com os nazistas alemães que ficaram na África do Norte. Matou judeus, explodiu kibbutzim, até mesmo um hotel em Haifa.
- Então devemos matar o assassino, Begin, e todos os velhos do Irgun e da Stern! Khouri era um símbolo de grandeza para nós...
- Ora, garoto, fique quieto. Aqueles velhos lutaram contra os britânicos mais do que contra nós. Eles ou o velho Khouri nada têm a ver com o que devemos fazer hoje. Precisamos dar uma lição num político
nojento que fingiu ser um de nós. Escondeu-se em roupas nossas, usou nossa língua e traiu a amizade que lhe oferecemos. Agora, garoto! Concentre-se no agora!
- Onde estão os outros? Eles deviam vir para a estrada.
- Não sei. Podem ter descoberto ou visto alguma coisa e foram direto para a casa. Estão acendendo as luzes agora; dá para ver através daquelas moitas altas. Cada um de nós vai subir por um lado do caminho
semicircular até a entrada. Chegue até as janelas. Provavelmente descobriremos nossos camaradas tomando café com as pessoas lá dentro, antes de lhes cortarem as gargantas.
Emmanuel Weingrass levantou a pistola com silenciador, firmando-a contra o tronco de uma árvore e deslocando-a entre os dois terroristas. Queria ambos vivos! As palavras em árabe de referência à "outra
casa" puseram-no tão chocado que podia muito bem explodir as cabeças dos dois. Queriam matar seu filho! Se tivessem feito isso, pagariam caro, em agonia - irrelevantes a juventude desorientada ou a idade.
A dor terrível seria a única consequência. Ele apontou a arma para a região pélvica dos dois terroristas, de um para outro, de um para outro...
Disparou no instante em que uma rajada de vento turbilhonou pela estrada, duas balas no homem mais velho, uma no garoto. Foi como se nenhum dos dois pudesse compreender. O garoto caiu gritando, contorcendo-se
no chão; o companheiro mais velho era de um estofo mais forte - muito mais forte. Cambaleou, virando-se para a fonte dos disparos, avançou, a massa enorme um furioso monstro de dor.
- Não chegue mais perto, Yosef! - gritou Manny, exausto quase além da resistência e apoiando-se na árvore. - Não quero matar você, mas posso matar! Você de nome hebraico que mata judeus!
- Minha mãe! - berrou o gigante se aproximando. - Ela renunciou a todos vocês! São assassinos do meu povo! Tiram tudo o que nos pertence e ainda cospem na gente! Sou meio judeu, mas quem são os judeus
para matar meu pai e raspar a cabeça de minha mãe porque ela amou um árabe? Levarei você para o inferno!
Weingrass segurou-se no tronco da árvore, as unhas sangrando ao cravá-las no córtex, o longo sobretudo preto enfunado pelo vento. O vulto largo e escuro emergiu da escuridão do bosque, as mãos enormes
em direção à garganta do velho.
- Não! - berrou Manny, sabendo no mesmo instante que não tinha opção.
Disparou o último tiro, a bala penetrou na testa enrugada por cima dele. Yosef tombou, num gesto final de desafio. Tremendo e ofegando para respirar, Weingrass encostou o corpo todo na árvore, olhando
no chão o cadáver de um homem que vivera em tormento por causa de um miserável arranjo territorial que forçara seres humanos a se matarem uns aos outros. Naquele momento, Emmanuel Weingrass chegou a uma
conclusão que lhe fugia desde o momento em que adquirira a capacidade de pensar; agora conhecia a resposta. A arrogância da fé cega levava a todas as falsidades do pensamento humano. Lançava homem contra
homem na busca do desconhecível. Quem tinha o direito?
- Yosef... Yosef. - gritou o garoto, rolando pelo mato à beira da estrada. - Onde está você? Fui atingido!
O garoto não sabia, pensou Weingrass. Do lugar em que estava caído, contorcendo-se, não podia ver, e o vento das montanhas sufocara o estampido já abafado pelo silenciador. O jovem terrorista fanático
não sabia que seu camarada Yosef estava morto, que era ele o único sobrevivente. E sua sobrevivência era a preocupação maior de Manny; não devia haver mais nenhum mártir de uma causa santa, por haver-se
imolado. Não aqui, não agora. Havia fatos a descobrir, fatos que podiam salvar a vida de Evan Kendrick. Especialmente agora!
Weingrass enfiou os dedos que sangravam no bolso do sobretudo e largou no chão a pistola com silenciador. Recorrendo a todas as forças que lhe restavam, afastou-se da árvore e seguiu tão depressa quanto
podia para o sul, através do bosque, tropeçando várias vezes, os braços frágeis afastando os galhos do rosto e do corpo. Desviou-se para a estrada; alcançou e avistou o carro dos assassinos a distância,
na tarde cada vez mais escura. Já era suficiente. Manny deu meia-volta e começou a retornar pela superfície misericordiosamente plana - mais depressa... mais depressa! Mexa essas pernas magras! Aquele
garoto não deve sair do lugar, não pode rastejar, não deve ver! Manny sentiu o sangue fluir para a cabeça, o martelar ensurdecedor no peito. Lá estava o jovem árabe! Ele se mexera - estava rastejando para
o bosque. Mais um pouco e veria seu companheiro morto! Não podia acontecer!
- Aman! - gritou Weingrass ofegante, lembrando o nome usado pelo meio-judeu Yosef. - Ayn ent? Kaif el-ahwal? - ele acrescentou em árabe, perguntando ao garoto onde se encontrava e como estava, para depois
lhe ordenar que respondesse: - Itkallem!
- Aqui! Estou aqui! - berrou o adolescente árabe na sua língua. - Fui ferido! No quadril! E não consigo encontrar Yosef!
O jovem rolou de costas, esperando ver um dos seus camaradas.
- Quem é você? - ele gritou, esforçando-se para enfiar a mão sob o casaco e tirar uma arma, enquanto Manny se aproximava. - Não o conheço!
Weingrass pisou no cotovelo do garoto; quando a mão vazia saiu de baixo do casaco, ele pôs o pé em cima, imobilizando-a contra o peito do jovem árabe.
- Chega, seu garoto idiota! - disse Manny, o árabe de um oficial saudita censurando um recruta. - Nós o cobrimos para que não cause mais problemas. Claro que foi atingido e espero que saiba que está apenas
ferido, não morto, o que poderia ter acontecido com a maior facilidade.
- O que é que está dizendo?
- O que pensa você que estava fazendo? - gritou Manny em resposta. - Correndo pela estrada, levantando a voz, rastejando em torno do nosso objetivo como um ladrão à noite! Yosef tinha razão, você devia
ser mandado de volta a Baaka.
- Yosef?... Onde está Yosef?
- Lá em cima, na casa, com os outros. Vou ajudá-lo. Vamos para junto dos outros. - Com medo de cair, Weingrass segurou-se no galho de uma árvore nova, enquanto o terrorista se levantava, agarrando-lhe
a mão. - Primeiro, dê-me sua arma.
- O quê?
- Eles acham que você é estúpido demais. Não querem que continue armado.
- Não entendo...
- Não precisa entender.
Weingrass deu um tapa no rosto do jovem fanático e ao mesmo tempo enfiou a outra mão pela dobra do seu casaco abotoado, tirando-lhe a arma. Era apropriada: uma pistola calibre 22.
- Pode atirar em mosquitos com isto. - Manny pegou o braço do adolescente. - Vamos embora. Pule numa perna só, se for mais fácil. Remendaremos você.
O que restava do sol de fim de tarde foi obscurecido por negras nuvens turbilhonantes de uma tempestade que vinha das montanhas. O velho exausto e o jovem ferido estavam no meio do caminho pela estrada
quando ouviram subitamente o motor de um carro e foram iluminados pelos faróis. O carro aproximava-se rapidamente dos dois, subindo do sul, da direção de Mesa Verde. Os pneus rangendo, o potente veículo
parou derrapando a poucos metros de Weingrass e seu prisioneiro, que se encaminhavam para a sebe, Manny apertando ainda mais o casaco do árabe. Um homem saltou do enorme sedã preto, enquanto Weingrass
- cambaleando, tropeçando - enfiava a mão no bolso do sobretudo para sacar sua automática 38. O vulto que corria na sua direção era indistinto aos olhos do velho arquiteto; ele levantou a arma para disparar.
- Manny! - gritou González.
Weingrass tombou no chão, a mão ainda agarrando o terrorista ferido.
- Segure-o! - ordenou a Gê-Gê, com o que parecia ser o derradeiro ar em seus pulmões. - Não o largue... Imobilize seus braços! Às vezes eles levam cianureto!
O jovem árabe recebeu uma injeção, aplicada por uma das duas enfermeiras; ficaria inconsciente até a manhã seguinte. O ferimento sangrava, mas não era grave, a bala tendo atravessado a carne; limparam-no,
as aberturas foram fechadas com esparadrapo, a hemorragia cessou. Foi então carregado por González para um quarto de hóspedes, os braços e pernas amarrados nos quatro cantos ria cama, onde as enfermeiras
cobriram seu corpo nu com dois cobertores, a fim de evitar um possível trauma.
- Ele é muito jovem - comentou uma delas, ajeitando um travesseiro sob a cabeça do adolescente árabe.
- É um assassino - respondeu Weingrass friamente, examinando o rosto do terrorista. - Mataria você sem pensar um instante sequer que estava tirando uma vida... tal como quer matar os judeus. E matará a
todos nós, se o deixarmos vivo.
- Isso é revoltante, senhor Weingrass - disse a outra enfermeira. - Ele não passa de uma criança.
- Diga isso aos pais de só Deus sabe quantas crianças judias que nunca sequer puderam chegar à idade dele.
Manny deixou o quarto e foi se juntar a González, que saíra apressado e trouxera seu inconfundível carro para a garagem; depois voltara e servira-se de uma dose grande de uísque, no bar da varanda.
- Sirva-se à vontade - disse o arquiteto, entrando na varanda envidraçada e se encaminhando para sua poltrona de couro. - Eu lhe mandarei a conta, como você faz comigo.
- Seu velho maluco! - exclamou González. - Loco! É completamente loco e sabe disso, não é mesmo? Poderia ter sido morto! Muerto! Pode compreender? Muerto, muerto... seu velho tolo! Talvez eu pudesse suportar
isso, mas não quando você me causa um enfarte! Eu não saberia viver muito bem com um enfarte que fosse fatal, entende?
- Está bem, está bem. Então você pode tomar esse drinque por conta da casa...
- Loco! - gritou González de novo, entornando o uísque no que pareceu ser um gole só.
- Já disse o que queria - concordou Manny. - Tome mais um uísque. Não começarei a cobrar antes do terceiro.
- Não sei se vou ou se fico! - exclamou González, servindo-se de outra dose.
- E a polícia?
- Como já lhe disse, quem tinha tempo para a polícia? E se eu os chamasse, levariam um mês para chegar!... Sua garota, a ama de cria... a enfermeira... está chamando a polícia. Só espero que ela encontre
um daqueles payasos. Às vezes você tem de ligar para Durango se quer que alguém venha até aqui.
O telefone no bar tocou... mas não era o som de uma campainha de telefone; era, antes, um zumbido firme. Weingrass ficou tão surpreso que quase caiu ao se levantar.
- Quer que eu atenda? - perguntou González.
- Não! - berrou Manny, encaminhando-se apressado e trôpego para o bar.
- Não precisa gritar comigo.
- Alô? - disse o velho ao telefone, fazendo um esforço para se controlar.
- Senhor Weingrass?
- Talvez sim, talvez não. Quem é você?
- Estamos fazendo uma interceptação a laser na sua linha telefônica. Meu nome é Mitchell Payton...
- Sei de tudo a seu respeito - interrompeu Manny. - Meu menino está bem?
- Está, sim. Acabei de falar com ele nas Baamas. Um avião militar foi buscá-lo. Ele estará em Washington dentro de poucas horas.
- Mantenha-o cercado de guardas! Não deixe ninguém chegar perto dele!
- Então já aconteceu aí?... Eu me sinto tão inútil, tão incompetente... Deveria ter postado guardas... Quantos foram mortos?
- Três.
- Oh, Deus... A polícia já sabe?
- Não. Eles ainda não chegaram aqui.
- Não chegaram?... Peço que me escute, senhor Weingrass. O que vou lhe dizer pode parecer estranho, ou mesmo insano, mas sei do que estou falando. Por enquanto, esse acontecimento trágico deve ser abafado.
Teremos uma chance muito maior de pegar os miseráveis se evitarmos o pânico e deixarmos os nossos especialistas trabalharem. Pode compreender isso, senhor Weingrass?
- Compreendido e providenciado - respondeu um velho que trabalhara para o Mossad, certa condescendência impaciente se insinuando em sua voz. - A polícia será recebida lá fora e informada de que foi um
alarme falso... um vizinho com o carro enguiçado e que não pôde nos falar pelo telefone, só isso.
- Tinha me esquecido - comentou o diretor de Projetos Especiais. - Já esteve aqui antes.
- Correto.
- Ei, espere um pouco! - exclamou Payton. - Disse que havia três mortos, mas você está falando comigo, está bem!
- Os três eram deles, não nossos, Mister Incompetente da CIA.
- O quê!... Jesus Cristo!
- Ele não será de muita ajuda. Experimente Abraão.
- Por favor, senhor Weingrass, seja mais claro.
- Tive de matá-los. Mas o quarto está vivo, sob o efeito de sedativos. Traga seus especialistas para cá antes que o mate também.
29
O chefe do posto da CIA nas Baamas, um homem baixo e bronzeado, de feições largas, manobrou rapidamente do seu escritório na embaixada, na Queen Street. A polícia de Nassau mandou uma escolta armada ao
Cable Beach Hotel, nas praias da Bay Road, onde quatro agentes uniformizados acompanharam um homem alto de cabelos castanho-claros e uma atraente mulher de pele azeitonada, de sua suíte no sétimo andar
para um carro à espera, no caminho eficientemente liberado, logo à saída do imponente saguão de mármore. O diretor de operações do hotel, um escocês alerta chamado McLeod, marcara um percurso por corredores
de serviço, em que seus seguranças mais confiáveis montavam guarda, até a passagem muito iluminada, diante de dois enormes chafarizes que projetavam uma chuva de borrifos cintilantes para o céu escuro.
Dois assistentes de McLeod - um homem imenso e jovial, com uma risada trovejante e o nome incrível de Vernal, acompanhado por uma atraente e jovem recepcionista - explicavam cortesmente aos hóspedes que
chegavam e partiam que a demora seria breve. Mostravam-se bastante persuasivos, enquanto a unidade de cinco motociclistas passava dramaticamente pelos jardins ensombreados. O chefe do posto personalizara
tudo; favores lhe eram prestados. Conhecia pelo nome todos os que deviam ser conhecidos nas Baamas. E eles o conheciam. Em silêncio.
Evan e Khalehla, protegidos pelo paredão policial, embarcaram no veículo do governo, com o homem da CIA no banco da frente. Evan não se encontrava em condições de falar; Khalehla se limitava a segurar
sua mão, sabendo muito bem o que ele estava sentindo. Não havia lucidez de pensamentos em Evan, apenas um pesar ardente e um ódio furioso. Lágrimas afloraram a seus olhos pelas mortes de Kashi e Sabri
Hassan; não precisava ser informado das mutilações, podia imaginar sem dificuldade como eram horríveis. Mas as lágrimas haviam sido estancadas no mesmo instante, impulsivamente, por um punho cerrado. Uma
conclusão surgia... o que também se podia perceber nos olhos, no fundo das suas pupilas. Fúria.
- Como pode compreender, deputado - disse o chefe do posto, virando-se parcialmente no banco, ao lado do motorista -, não sei o que está acontecendo, mas posso informá-lo de que um avião da base da Força
Aérea em Holmstead, na Florida, já se encontra a caminho para levá-lo de volta a Washington. Deve pousar cerca de cinco ou dez minutos depois de chegarmos ao aeroporto.
- Sabemos disso - comentou Khalehla, amavelmente.
- Já deveria estar aqui, mas disseram que o tempo em Miami está horrível e que há vários voos comerciais na mesma rota. Isso provavelmente significa que resolveram preparar o avião para transportá-lo,
senhor... isto é, os dois, é claro.
- É muita gentileza - murmurou a agente do Cairo, apertando a mão de Evan para transmitir a mensagem de que ele não precisava dizer nada.
- Se lembra de alguma coisa que possa ter deixado no hotel, teremos o maior prazer em providenciar...
- Não deixei nada! - exclamou Kendrick, num sussurro rouco.
- Ele está querendo dizer que já providenciamos tudo, obrigada - interveio Khalehla, puxando a mão de Evan para sua perna e apertando-a com mais força ainda. - Trata-se obviamente de uma emergência e o
deputado tem muitos problemas com que se preocupar. Posso presumir que nossa passagem pela alfândega já foi liberada?
- Vamos passar direto pelos portões de carga - respondeu o homem da CIA, olhando atentamente para Kendrick por um instante, depois virando o rosto, como se tivesse invadido sem querer a privacidade alheia.
O resto da viagem decorreu em silêncio, até que os altos portões de aço do terminal de carga se abriram e os carros seguiram até a extremidade da primeira pista.
- O F-106 de Holmstead deverá aterrissar a qualquer momento - informou o chefe do posto.
- Vou saltar.
Evan estendeu a mão para a maçaneta e puxou-a. A porta estava trancada.
- Eu preferia que não saísse, deputado Kendrick.
- Deixe-me sair deste carro!
- É o trabalho dele, Evan. - Khalehla segurou o braço de Kendrick, gentilmente mas com firmeza. - Ele tem de seguir os regulamentos.
- E incluem me sufocar?
- Estou respirando direito...
- Eu não sou você!
- Sei disso, querido. Ninguém pode ser você neste momento. - Rashad voltou a cabeça e olhou pela janela traseira, esquadrinhando os prédios do terminal e o terreno ao redor. E depois acrescentou, tornando
a olhar para o homem da CIA: - Nossa posição é tão limpa quanto poderia ser. Deixe-o sair. Ficarei com ele e os homens podem também acompanhá-lo.
- Uma "posição limpa"? Você é dos nossos?
- Sou, sim, mas já me esqueceu, por favor... Por si só, o voo para Washington já será bastante difícil.
- Está bem. Não há problema. O cara que inventou esse regulamento não está aqui. Ele apenas disse, em voz muito alta: "Não o deixem sair do carro."
- MJ pode ser bastante radical.
- MJ...? Está bem, vamos respirar um pouco de ar fresco. Solte as portas, por favor, motorista.
- Obrigado - murmurou Evan para Khalehla. - E desculpe...
- Não tem do que se desculpar. Apenas não me faça uma mentirosa e leve um tiro. Estragaria meu dia... Agora sou eu que peço desculpa. Este não é o momento para piadinhas estúpidas.
- Espere um instante. - Kendrick começou a abrir a porta e parou, o rosto a poucos centímetros de Khalehla, nas sombras. - Um momento atrás você disse que ninguém poderia ser como eu neste momento e concordo.
Mas isso dito, quero que saiba que me sinto muito contente por você ser você. Neste momento.
Eles se puseram a andar sob uma chuva miúda e breve, típica das Baamas, o agente da CIA atrás a uma polida distância os guardas flanqueando-os, empunhando suas armas, num clima sinistro. Subitamente, um
pequeno sedã escuro saiu da área de carga e avançou pela pista, o motor estridente. Os guardas convergiram para Evan e Khalehla, empurrando-os para o chão; o homem da CIA jogou-se em cima de Kendrick e
puxou Khalehla para o seu lado. O pânico cessou tão depressa quanto começara. Houve explosões rápidas de uma sirene de duas notas; o sedã era um veículo do aeroporto. O líder do pelotão de motociclistas
guardou sua arma no coldre e aproximou-se do homem uniformizado que saltou do pequeno carro. Conversaram em voz baixa e depois o policial foi ao encontro dos atordoados americanos, que estavam se levantando.
- Há um telefonema de emergência para seu amigo, senhor - ele disse ao chefe do posto.
- Transfira a ligação para cá.
- Não temos o equipamento necessário.
- Quero algo melhor do que isso.
- Fui instruído a repetir as letras "MJ".
- É mais do que suficiente - declarou Khalehla. - Irei com ele.
- Espere um pouco! - protestou o homem da CIA. - Há outros regulamentos e você os conhece tão bem quanto eu. É muito mais fácil proteger uma única pessoa do que duas. Eu irei e levarei quatro homens. Fique
aqui com os outros e me dê cobertura, está bem? Este é um ponto de encontro e você pode ter um piloto nervoso nas mãos, procurando por uma bagagem especial... você mesma.
O telefone ficava na parede de um armazém deserto. A ligação foi transferida e as primeiras palavras que Kendrick ouviu de Mitchell Payton fizeram com que todos os músculos do seu corpo se contraíssem,
deixando seu rosto em fogo.
- Convém que saiba logo o pior. Houve um ataque em Mesa Verde...
- Oh, Deus, não!
- Emmanuel Weingrass está bem! Ele está bem, Evan!
- Ficou machucado? Ferido?
- Não. Na verdade, foi ele quem feriu... e matou. Um dos terroristas ainda está vivo...
- Eu o quero! - berrou Kendrick.
- Nós também. Nosso pessoal já partiu para lá.
- Mesa Verde era o alvo dos terroristas paralelo a Fairfax, não é mesmo?
- Sem a menor dúvida. Mas neste momento é também a nossa única esperança de descobrir os outros. O que quer que o sobrevivente saiba, ele nos contará.
- Mantenha-o vivo.
- Seu amigo Weingrass já cuidou disso.
- Tire todas as suas roupas e procure cianureto.
- Já foi feito.
- Ele não pode ficar sozinho por um único minuto!
- Sabemos disso.
- Claro que sabem - murmurou Evan, fechando os olhos, o rosto encharcado de suor e chuva. - Não estou pensando, não posso pensar. Como está reagindo Manny?
- Como uma considerável arrogância, para dizer a verdade.
- É a primeira boa notícia que ouvi.
- Tem direito a isso. Ele foi realmente extraordinário para um homem da sua idade.
- Ele sempre foi extraordinário... em qualquer idade. Tenho de ir para lá. Esqueça Washington. Leve-me direto para o Colorado.
- Presumi que faria esse pedido...
- Não é um pedido, Mitch, é uma exigência!
- Claro. É também por isso que seu avião atrasou. A Força Aérea teve de reforçar o combustível para o voo até Denver e está traçando um plano de voo por cima das rotas comerciais. O aparelho tem uma velocidade
máxima de Mach dois ponto três. Você estará em casa em menos de três horas... e não se esqueça de uma coisa: não diga nada a ninguém sobre Fairfax. Weingrass já controlou a situação em Mesa Verde.
- Como?
- Deixe que ele mesmo lhe conte.
- Acredita que pode continuar abafando tudo?
- Darei um jeito, nem que tenha de ir ao presidente... e, a esta altura, acho que não há alternativa.
- Como passará pela guarda do palácio?
- Estou providenciando. Há um homem com quem estudei há muitos anos, no início da minha vida, como um candidato a historiador. Temos mantido um contato irregular e ele possui muita influência. Creio que
você conhece o nome. É Winters, Samuel Winters...
- Winters? Foi ele quem sugeriu a Jennings que me concedesse a Medalha da Liberdade, naquela cerimônia absurda.
- Estou lembrado. Foi por isso que pensei nele. Tenha um bom voo e transmita todo o meu amor à minha sobrinha.
Kendrick encaminhou-se para a porta do armazém, onde a escolta policial aguardava, dois homens dentro, dois fora, as armas apontadas para a frente. Até mesmo o chefe do posto da CIA, que na semiescuridão
podia passar por um baamenho, empunhava uma pequena pistola.
- Vocês sempre andam com essas coisas? - perguntou Kendrick, sem muito interesse.
- Pergunte à sua amiga, que sabia que a "posição estava limpa" - respondeu o homem, acenando para que Kendrick passasse pela porta.
- Está brincando. Ela tem uma assim?
- Pergunte a ela.
- Como ela conseguiu embarcar no avião nos Estados Unidos, passando pelos detetores de metal? E a passagem pela alfândega aqui?
- Um dos nossos pequenos segredos, que não é tão secreto assim. Um supervisor de bagagem ou da alfândega aparece por acaso quando estamos passando, e o detetor é desligado por poucos segundos. E o inspetor
da imigração é alertado para o que não deve encontrar.
- É um sistema bastante impreciso - comentou Kendrick, embarcando no sedã do aeroporto.
- Não em lugares próximos como este. Os supervisores não apenas trabalham para nós, mas também são controlados. E todo o nosso equipamento está esperando lá dentro, depois que passamos.
O chefe do posto da CIA sentou ao lado de Evan no banco traseiro do carro e o motorista partiu a toda velocidade pela pista.
O enorme jato militar conhecido como F-106 Delta Dart chegara, os motores em ponto morto, num rugido baixo, Khalehla parada ao lado da escada de metal, conversando com um oficial da Força Aérea. Foi só
quando se aproximou dos dois que Kendrick reconheceu o tipo de avião em que estava prestes a viajar; não foi um reconhecimento dos mais tranquilizadores. O jato era similar ao que o levara à Sardenha mais
de um ano antes, na primeira etapa da viagem para Mascate. Ele virou-se para o homem da CIA andando a seu lado e estendeu a mão.
- Obrigado por tudo. E lamento não ter sido uma companhia mais agradável.
- Poderia ter cuspido na minha cara e ainda assim eu me sentiria orgulhoso por conhecê-lo, deputado.
- Eu gostaria de poder dizer que me sinto grato por isso... Qual é o seu nome?
- Pode me chamar de Joe, senhor.
"Pode me chamar de Joe." Um jovem, no mesmo tipo de avião, um ano antes, fora chamado de Joe. Havia outro Oman em seu futuro, outro Bahrain?
- Obrigado, Joe.
- Ainda não acabamos, senhor Kendrick. Um dos homens da Força Aérea, com o posto de coronel ou acima, tem de assinar um papel.
O oficial em questão não era um coronel, mas um brigadeiro, e era preto.
- Olá mais uma vez, doutor Axelrod - disse o comandante do F-106. - Parece que sou seu motorista pessoal. - Estendeu a mão. - É assim que os poderes querem que seja.
- Olá, brigadeiro.
- Vamos deixar uma coisa bem clara, deputado. Eu saí da linha na última vez e me deu uma lição merecida. Mas vou lhe dizer uma coisa agora: se me transferirem para o Colorado, votarei em você até para
o inferno... e não encare isso como uma expressão idiomática.
- Obrigado, brigadeiro - disse Evan, tentando sorrir. - Mas não vou precisar mais de votos.
- O que será uma pena. Andei a observá-lo, escutando o que diz. Gosto da envergadura de sua asa, e isso é uma coisa de que entendo.
- Acho que tem de assinar um papel.
- Não havia nenhum na Sardenha - disse o brigadeiro, pegando o documento de transferência estendido pelo chefe do posto da CIA. - Tem certeza de que quer aceitar a assinatura de um crioulo metido a besta
numa fatiota de brigadeiro, Mister Bacana?
- Cale a boca, garoto. Sou meio índio paiute. Acha mesmo que tem problema?
- Desculpe, filho.
O oficial da Força Aérea assinou o documento e sua carga embarcou. Depois que estavam sentados, Khalehla perguntou:
- O que houve? Por que MJ telefonou?
As mãos tremendo, a voz indecisa pela súbita enormidade de tudo, pela violência e a quase morte de Emmanuel Weingrass, Evan relatou a conversa ao telefone. Havia um desamparo angustiado em seus olhos e
nos acessos da explicação, hesitantes, assustados.
- Por Deus, isso tem de parar! Se não parar, acabarei matando todas as pessoas que me são queridas!
Khalehla só pôde segurar sua mão outra vez e apertá-la, fazendo-o saber que estava ali. Não podia lutar contra o relâmpago na mente de Evan; era pessoal demais, sacudindo sua alma.
Trinta minutos depois da decolagem, Evan teve uma convulsão, levantou-se de chofre e correu para o banheiro. Vomitou, despejando tudo o que comera nas últimas doze horas. Khalehla foi atrás dele, abrindo
à força a porta estreita, segurando sua testa, amparando-o, dizendo para que soltasse tudo.
- Por favor! - balbuciou Kendrick. - Saia daqui, por favor!
- Por quê? Porque você é diferente de todos nós? Sofre, mas não chora? Reprime tudo enquanto tem forças para não ceder?
- Não gosto de compaixão...
- E não a está recebendo. É um homem adulto que enfrentou uma perda terrível e quase sofreu outra ainda maior... para você, a maior de todas. Espero ser sua amiga, Evan, e como amiga não tenho compaixão
por você... eu o respeito demais para isso... Mas me sinto solidária com você.
Kendrick empertigou-se ao pegar toalhas de papel, pálido e visivelmente abalado.
- Sabe como fazer alguém se sentir formidável - ele murmurou, com um sentimento de culpa.
- Lave o rosto e penteie os cabelos. Está com uma aparência horrível.
Khalehla saiu do pequeno banheiro e passou por dois tripulantes uniformizados. Sem olhar para qualquer dos dois homens curiosos, ela explicou:
- O idiota comeu peixe estragado. Um de vocês pode fechar a porta, por favor?
Uma hora passou; drinques foram servidos pelos atendentes da Força Aérea, acompanhados por um jantar cozinhado em micro-ondas, vorazmente comido pela agente baseada no Cairo, mas que o deputado mal tocou.
- Precisa comer, amigo - disse Khalehla. - E esta refeição é melhor do que qualquer cardápio comercial.
- Pois trate de aproveitar.
- E você? Fica se mexendo de um lado e de outro, mas não come.
- Tomarei outro drinque.
Os dois levantaram a cabeça subitamente quando o som alto de uma campainha prevaleceu sobre o ruído dos motores. Para Evan, era um déjà vu; uma campainha soara um ano antes e ele fora chamado à cabine
de comando. Agora, porém, o cabo que atendeu ao interfone no anteparo foi falar com Khalehla.
- Está sendo chamada numa transmissão pelo rádio, madame.
- Obrigada.
Percebendo um alarme na expressão de Kendrick, Khalehla acrescentou para ele:
- Se fosse alguma coisa importante, eles pediriam para falar com você. Relaxe.
Ela subiu pelo corredor apoiando-se nas poucas poltronas para manter o equilíbrio na turbulência branda e sentou-se na que ficava junto do anteparo. O cabo entregou-lhe o fone; o fio espiralado era mais
do que suficiente para alcançá-la. Khalehla cruzou as pernas e disse:
- Aqui é Lápis Dois, Baamas. Quem é você?
- Um dia destes vamos ter de nos livrar de todo esse lixo - comentou Mitchell Payton.
- Funciona, MJ. Se eu usasse "Banana Dois", como você teria reagido?
- Ligaria para seu pai e contaria a ele que você é uma garota levada.
- Nós não nos importamos. Conhecemos um ao outro muito bem... O que aconteceu?
- Não quero falar com Evan, pois ele está transtornado demais para pensar claramente. Tem de ser você.
- Tentarei. Qual é o problema?
- Quero sua avaliação. Sobre a informação que obtiveram do sujeito da Off Shore Investment que foram procurar em Nassau... está convencida de que ele merece confiança?
- Ele não, mas a informação merece; não poderia esconder, se mentiu por dinheiro. O homem é um bêbado viciado, vive do que restou da sua inteligência, que deve ter sido um pouco maior quando o cérebro
não flutuava em gim. Evan mostrou-lhe dois mil em dinheiro e pode estar certo de que ele teria denunciado os segredos do tráfico de tóxicos por isso.
- Lembra exatamente o que disse a respeito da mulher Ardis Montreaux?
- Claro. Ele disse que continuou em cima da puta do dinheiro, como a chamou, porque ela lhe devia e um dia ia cobrar.
- Estou falando do estado conjugal.
- Lembro, sim, mas Evan já disse isso pelo telefone. Ouvi a conversa.
- Diga de novo. Não pode haver erros.
- Está bem. Ela se divorciou do banqueiro Frazier-Pyke e casou com um rico californiano de San Francisco, chamado Von Lindemann.
- Ele foi específico sobre San Francisco?
- Na verdade, não. Disse "San Francisco ou Los Angeles", eu acho. Mas foi bastante específico sobre a California. O novo marido era um californiano e muito rico.
- E o nome... procure se lembrar com precisão. Tem certeza de que era Von Lindemann!
- Ahn... tenho, sim. Nós nos encontramos num reservado no Junkanoo e havia uma banda de metais tocando, mas era esse o nome. Ou se não exatamente esse, pelo menos muito parecido.
- Bingo! - exclamou Payton. - Muito parecido, minha cara. Ela casou com um homem chamado Vanvlanderen... Andrew Vanvlanderen, de Palm Springs.
- Então culpe uma boca cheia de gim.
- Estamos além do gim, agente Rashad. Andrew Vanvlanderen é um dos principais contribuintes da campanha de Langford Jennings... Interprete isso como um excelente veio de ouro para os cofres presidenciais.
- Muito interessante.
- Até mais do que interessante. Ardisolda Wojak Montreaux Frazier-Pyke Vanvlanderen, uma administradora reconhecidamente talentosa, é no momento a chefe da assessoria do vice-presidente Orson Bollinger.
- Isso é fascinante.
- Acho que a situação exige uma visita informal, mas mesmo assim em caráter oficial, de um dos nossos especialistas em Oriente Médio... Você estará no sudoeste do Colorado, a menos de uma hora de distância.
Escolho você.
- Em que base, MJ?
- Com base em supostas ameaças contra Bollinger. Uma unidade do FBI foi designada para investigar. Mantiveram tudo na maior discrição... até exagerada, na minha opinião... e agora a unidade foi subitamente
chamada de volta, a emergência foi encerrada.
- Coincidindo com os ataques a Fairfax e Mesa Verde? - sugeriu Khalehla, interrompendo bruscamente.
- Sei que parece absurdo, mas é isso aí. Chame de capricho de um velho profissional, mas sinto um cheiro de lixo vindo de San Diego.
- Implicando o FBI? - indagou Rashad, atônita.
- Não... Usando-o. Estou trabalhando num interrogatório interagências. Tenciono entrevistar cada membro daquela unidade.
- Ainda não me respondeu. Qual será o motivo para minha ida a San Diego? Não somos internos.
- O mesmo se aplica ao meu interrogatório da unidade. Tendo em vista as ameaças contra Bollinger, estamos investigando a possibilidade de envolvimento estrangeiro. O bom Deus sabe que, se formos pressionados
a revelar os acontecimentos desta noite, temos todas as justificativas... Não sei em que ponto, minha cara, mas em algum lugar desta loucura há uma ligação... e um louro com sotaque europeu.
Khalehla correu os olhos pela cabine enquanto falava. Os dois atendentes conversavam em voz baixa nas suas poltronas e Evan olhava distraído pela janela.
- Farei isso, é claro, mas não está tornando minha vida mais fácil. É evidente que meu garoto teve uma ligação com essa mulher Vanvlanderen... não que isso me incomode, mas incomoda a ele.
- Por quê? Parece-me uma estranha espécie de moralidade. Ocorreu há muito tempo.
- Não está percebendo o sentido, MJ. Sexo não é a moralidade. Ele foi enganado, seduzido, e quase se torna um escroque internacional. Não pode esquecer isso, talvez não seja capaz de perdoar a si mesmo.
- Pois então vou aliviá-la de suas preocupações por enquanto, Khalehla. Kendrick não deve ser informado, a esta altura, sobre qualquer coisa relacionada com San Diego. No seu estado de espírito, só Deus
sabe o que ele faria se tivesse o mais leve conhecimento dessa ligação, e não precisamos de canhões à solta. Invente alguma coisa sobre uma viagem de emergência e seja convincente. Quero que interrogue
essa mulher tão estranha. Terei um roteiro pronto para você pela manhã.
- Pode deixar que darei um jeito.
- Espero que tenha trazido seus documentos do Cairo.
- Claro.
- Pode querer usá-los. Estamos em gelo muito fino. De passagem, ninguém do nosso pessoal a conhece e você também não conhece nenhum deles. Se eu descobrir alguma coisa, transmitirei por intermédio de Weingrass,
no Colorado... O gelo é fino demais.
- Até Evan percebe isso.
- Posso perguntar como estão as coisas entre vocês dois? Quero que saiba que gosto muito dele.
- Vamos ser francos. Ocupamos uma linda suíte de dois quartos no Cable Beach e ontem à noite pude ouvi-lo andando de um lado para outro da sala, diante da minha porta, até de madrugada. Quase saí para
fazê-lo entrar.
- Por que não o fez?
- Porque tudo está confuso demais para nós, até corrosivo para ele... E agora, esta noite, uma coisa tão terrível. Acho que nenhum de nós poderia arcar com complicações pessoais neste momento.
- Graças a Deus que ninguém nos pode ouvir. Siga os seus instintos, agente Rashad. Têm nos servido muito bem em Projetos Especiais... Ligarei pela manhã para dar instruções. Boa caçada, querida sobrinha.
Khalehla voltou ao seu lugar e ao olhar ansioso de Evan.
- Outros mundos continuam e são igualmente letais, infelizmente - ela disse, enquanto prendia o cinto de segurança. - Era o chefe do posto no Cairo. Dois contatos nossos desapareceram no distrito de Sidi
Barrani... é uma ligação líbia. Eu lhe disse o que procurar e com quem falar... Como está se sentindo?
- Muito bem - respondeu ele, observando o rosto de Khalehla.
- Nossos distintos passageiros e nossa tripulação não muito maltrapilha - disse a voz alta e profunda do brigadeiro, ampliada pelos alto-falantes. - Parece que estamos fadados a nos repetir, doutor Axelrod.
Lembra-se daquela "ilha meridional"?
O comandante explicou que para evitar o excitamento - e publicidade - de um "pássaro FA" pousando nos aeroportos de Durango ou Cortez, tinham instruções de seguir diretamente para o de Mesa Verde. A pista
era considerada oficialmente adequada, "mas o contato pode ser um tanto violento".
- Assim, quando eu der o sinal, segurem-se com toda força. Vamos iniciar a descida dos satélites; previsão de chegada em 45 minutos... se eu conseguir encontrar o tal lugar. Está lembrado, doutor?
Como o brigadeiro previra, embora muito aquém do anunciado, o pouso sacudiu o aparelho com uma sucessão de vibrações maciças, as erupções dos freios enchendo a fuselagem. Depois, na pista, houve agradecimentos,
despedidas, e o brigadeiro entregou sua carga especial a um agente de campo da CIA. Khalehla e Evan foram embarcados às pressas num sedã blindado que chegara embarcado num avião de Denver, com uma escolta
de motociclistas e um contingente de seis homens armados da polícia estadual obviamente indiferentes ao motivo pelo qual o gabinete do governador ordenara que fossem para o "aeroporto dos milionários",
perto do Parque Nacional de Mesa Verde.
- Deixe-me pô-lo a par da situação, deputado - disse o homem da CIA, que se sentara, como seu colega nas Baamas, no banco da frente, ao lado do motorista. - Somos cinco aqui, mais dois voarão para a Virginia
com o prisioneiro e os três cadáveres... Estou falando às claras porque fui avisado de que posso relatar tudo na sua presença, madame, pois é uma autoridade.
- Obrigada por sua confiança - disse a agente irreconhecida de Projetos Especiais.
- Não há de quê, madame... Recrutamos meia dúzia de guardas-florestais do parque para a noite, todos eles veteranos em combate, para guardar sua casa e o terreno em volta. Amanhã chegará uma unidade de
Langley para a vigilância.
- E se houver outro Fairfax? - sussurrou Evan.
Khalehla comprimiu o cotovelo contra o flanco de Kendrick, tossindo enquanto o fazia.
- O que disse?
- Nada. Desculpe. Pode continuar.
- Duas coisas... e não me importo de dizer que o velho judeu deve ser posto na galeria da fama de alguém, se não for parar antes numa cela acolchoada... Mas vocês dois precisam conhecer os fatos, a cobertura.
Weingrass preparou tudo antes de chegarmos lá... Puxa, ele é sensacional!
- Registrado e aceito - disse Kendrick. - Quais são os fatos?
- As enfermeiras sabem muito pouco; pensam que havia apenas um terrorista, um fanático alucinado. Os três corpos ficaram escondidos no bosque até que a polícia se afastou, e depois seu amigo mexicano González
carregou-os para a garagem sem que as enfermeiras vissem. Estavam no outro lado da casa, na varanda com Manny... Ei, como conseguiu ele me persuadir a chamá-lo de "Manny"? Seja como for, González trancou
as portas da garagem e voltou ao seu restaurante. O senhor Weingrass nos garante que ele ficará calado.
- O senhor Weingrass está certo - confirmou Evan.
- Não gostamos do arranjo, mas acho que vocês três se conhecem há muito tempo.
- E tem razão - disse Kendrick.
- Portanto, o deputado não deve fazer qualquer referência às dimensões do ataque - interveio Khalehla. - É isso o que está querendo dizer?
- É exatamente o que estou dizendo. Tudo deve ser abafado, senhor Kendrick, essa é a ordem superior de Langley. Para os envolvidos por aqui, somos apenas gente do governo, nada de CIA, nada de FBI, sem
identificações apresentadas e nenhuma pedida. Estão todos assustados demais para procurarem problemas, o que geralmente acontece em tais situações. Um avião partirá por volta das três horas desta madrugada.
O prisioneiro e seus amigos mortos serão levados para a Virginia. O rapaz será enviado a uma clínica de interrogatórios e os outros irão para o laboratório de autópsias. Manny disse... desculpe, o senhor
Weingrass disse que eu deveria lhe deixar tudo isso bem claro.
- Já está tudo claro.
- Obrigado, senhor. Puxa, aquele Manny! Sabia que ele me deu um soco na barriga quando eu anunciei que estava assumindo o comando? É a pura verdade, ele me bateu na barriga!
- É um procedimento normal - murmurou Kendrick, olhando para a estrada.
Estavam a apenas dez minutos da casa. De Manny.
Abraçaram-se na porta, Evan apertando o velho com muito mais força. Depois, gentilmente, Weingrass bateu nas orelhas de Kendrick e disse:
- Nunca aprendeu boas maneiras com seus pais? Por trás de você está uma dama que quero muito conhecer.
- Ah, desculpe - murmurou Evan, recuando. - Manny, esta é Khalehla... Khalehla Rashad.
O velho Weingrass adiantou-se, pegou a mão de Khalehla.
- Viemos de uma terra conturbada, você e eu. Você é uma árabe e eu sou um judeu, mas não há tais distinções nesta casa, não há preconceitos e devo dizer que a amo muito por proporcionar tanta alegria a
meu filho.
- Por Deus, você é uma maravilha!
- Tem razão - concordou Manny, acenando com a cabeça duas vezes.
- Também amo você, por tudo o que representa para Evan. - Khalehla enlaçou o frágil arquiteto, comprimindo o rosto contra o dele. - Tenho a sensação de que o conheci toda a minha vida.
- Às vezes tenho esse efeito nas pessoas. E às vezes também acontece o oposto, como se suas vidas fizessem um súbito desvio para pior.
- Não foi o que aconteceu comigo - disse Khalehla, rompendo o abraço mas continuando com as mãos nos ombros de Manny. E acrescentou, com um sorriso afetuoso: - Conheci o mito, e é uma pessoa sensacional.
- Não espalhe essa desinformação, Miss Agente Secreta. Arruinaria minha reputação... E agora vamos tratar de negócios, antes de nos encontrarmos com os outros. - Weingrass lançou um olhar pela arcada de
pedra. - Ótimo. As garotas estão na varanda e nos darão uns poucos minutos de sossego.
- Aquele sujeito da CIA já nos pôs a par de tudo - disse Kendrick. - O que foi nos receber no aeroporto.
- Ah, está falando de Joe.
- Joe?
- Todos são Joe, John ou Jim... não há Irvings nem Miltons... mas esqueça. Payton me contou que já sabe sobre os Hassans.
- Ele sabe, sim - interveio Khalehla, pegando instintivamente a mão de Evan e apertando-a; o gesto não passou despercebido a Manny e deixou-o comovido. - Foi horrível...
- É tudo horrível, minha linda criança. Animais que matam os seus! Kashi e Sabri falavam com muito carinho de você, Adrienne Khalehla Rashad, e não preciso lhe dizer o que eles pensavam do meu filho...
Assim, vamos lamentar em particular, cada um por si, lembrando o que os dois significavam para nós. Mas isso deve ser feito mais tarde, não agora.
- Preciso tomar as providências necessárias, Manny - interveio Kendrick.
- Já cuidei de tudo. Haverá um serviço islâmico particular e os corpos serão levados de avião para Dubai, a fim de serem sepultados em Ash Sharigah. Os caixões seguirão lacrados, é claro.
- Senhor Weingrass...
- Se me chamar de "senhor", não vou amá-la tanto.
- Está bem... Manny. MJ não foi muito claro. MJ... é Payton.
- Eu sei, eu sei - interrompeu Weingrass. - Eu disse a ele que poderíamos ser mais cordiais se mandasse consertar o telefone; acho que ele teve de matar alguém, mas agora está funcionando. E viramos Emmanuel
e Mitchell, ele está sempre me ligando. Desculpe, mas o que ia perguntar?
- Qual é a minha cobertura aqui? Sinto-me como uma idiota, mas não tenho a menor ideia. O agente no carro disse que eu era uma autoridade, mas de que tipo? Quem sou eu para essas pessoas?
- Mitchell sugeriu que dissesse que é uma representante do Departamento de Estado, acompanhando o deputado Kendrick.
- Do Departamento de Estado?
- Talvez ele queira culpar alguém se as coisas não derem certo. Ouvi dizer que é um passatempo popular em Washington.
- Ele não é desse tipo... Ah, já entendi. Se eu precisar dar instruções, estarei em posição de fazê-lo.
- Não teria de mostrar uma identificação do Departamento de Estado se alguém pedisse? - indagou Evan.
- Bom... teria, sim.
- Quer dizer que tem uma?
- Mais ou menos.
- Isso é ilegal...
- Usamos chapéus diferentes em ocasiões diferentes, Evan.
- E também tem uma arma. Aquele índio paiute que era o chefe do posto nas Baamas me contou.
- Ele não deveria ter falado.
- Por acaso não trabalho também para o Mossad? - perguntou Weingrass, sorrindo.
- Não, mas você trabalha... já trabalhou. E alguns dos meus maiores amigos também.
- Estamos em boas mãos, bubbelah... Mais negócios. Mitchell quer que Evan dê uma olhada na mercadoria aqui... o que está no quarto e os cadáveres; estão sob lençóis na garagem e partirão de avião durante
a noite.
- E as enfermeiras não têm a menor ideia de que se encontram lá? - perguntou Kendrick, incrédulo.
- Seu amigo Payton foi insistente... "fanático" seria mais apropriado. "Temos de encobrir tudo", ele me disse várias vezes.
- Como passarão pelos guardas florestais lá fora?
- Eles alugaram um furgão em Durango. Será deixado no aeroporto, alguém o pegará e guiará até aqui. Entrará na garagem de ré, fora de vista, toda a operação supervisionada pelos homens de Payton. Eles
parecem saber o que estão fazendo.
- E sabem mesmo - comentou Khalehla. - Alguém falou com as garotas sobre o que devem dizer... ou melhor, sobre o que não devem dizer?
- Eu falei e por uma vez elas me levaram a sério, mas não sei quanto tempo vai durar. Ainda estão abaladas e não sabem um quarto do que aconteceu.
- Vou reuni-las enquanto você e Evan fazem sua ronda macabra e insistirei no sigilo... oficialmente. MJ está certo. Bancarei a emissária do Departamento de Estado.
- Por quê? - perguntou Evan. - Estou apenas curioso.
- Para manter a Agência fora do caso. Não temos jurisdição interna, alguém pode se lembrar disso e deixar a imaginação disparar. Quanto mais simples, melhor.
- Muito profissional - comentou Weingrass, aprovador. - Como devo apresentá-la?
- Sou apenas a senhorita Adrienne, do Departamento de Estado. Importa-se de mentir?
- Deixe-me pensar... - murmurou Manny, franzindo o rosto. - Já disse uma mentira... creio que foi em julho de 1937... Vamos embora.
Pegando o braço de Evan e a mão de Khalehla, Weingrass levou-os pela arcada de pedra para a sala de estar, gritando para as três enfermeiras na varanda envidraçada:
- Aqui está, minha assembleia de feiuras, este é o real feiticeiro! Prestem homenagem ao homem que paga por suas indulgências sexuais e as excessivas caixas de moscatel!
- Manny!
- Elas me amam - disse Weingrass, avançando pela sala. - Disputam nos dados o privilégio da minha cama.
- Pelo amor de Deus...
- Fique quieta, querida. Ele é uma maravilha.
- Ele quebrou a perna saltando do caminhão com a gente, acima do Jabal Sham - disse Kendrick, olhando para o jovem inconsciente, amarrado à cama. - É apenas um garoto.
- Mas sua identificação é positiva? - perguntou o agente da CIA, parado ao lado de Emmanuel Weingrass. - Ele estava com você em Oman, não há qualquer dúvida a respeito?
- Absolutamente nenhuma. Nunca o esquecerei. Havia um fogo nele que não se encontra em muitos adolescentes por aqui... exceto na podridão urbana.
- Vamos até a garagem pela porta dos fundos.
- Este é Yosef - disse Evan, fechando os olhos. - Sua mãe era uma judia... e por algumas horas ele foi meu amigo. Protegeu-me... Oh, Cristo!
- Pare com isso! - gritou Manny. - Ele veio aqui para matá-lo!
- Claro que sim. E por que não? Fingi ser um deles, na sua maldita causa santa... Rasparam a cabeça da mãe dele... pode imaginar uma coisa dessas?
- Ele gritou isso quando tentou me matar - comentou Manny. - Se isso o faz sentir-se melhor, eu não queria matá-lo. Queria pegar um deles vivo.
- Conheço Yosef, você não tinha alternativa.
- Não tive mesmo.
- Estes outros dois - interrompeu o impaciente membro da CIA. - Reconhece-os?
- Reconheço. Ambos estavam na prisão, mas não soube de seus nomes. O da direita estava com a calça suja; o outro tinha cabelos compridos e desgrenhados, parecia ter um complexo messiânico... imaginei que
fosse psicótico. Isso é tudo o que posso dizer.
- Já nos contou o que temos de saber. Todos esses homens que identificou estiveram com você em Oman.
- É verdade, conheci todos eles... clamavam por vingança e não tenho certeza se me sentiria diferente se fosse um deles.
- Não é um terrorista, deputado.
- O que separa um terrorista de um "guerrilheiro da liberdade"?
- Para começar, senhor, os terroristas fazem questão de matar pessoas inocentes. Homens e mulheres comuns que por acaso estejam presentes, garotos com mochilas, empregados... tanto jovens como velhos...
apenas fazendo o seu trabalho. Qual é o seu caso, senhor?
Kendrick estudou o agente, subitamente abalado, lembrando Fairfax e os Hassans.
- Peço desculpas por um comentário estúpido e sem sentido. Lamento profundamente.
- Não foi nada - disse o homem da CIA, descartando a ira momentânea. - Estamos todos tensos e muitos rótulos são lançados ao acaso.
Voltaram para casa, onde Khalehla falava com as enfermeiras na varanda. O que quer que estivesse dizendo, tinha a atenção extasiada das três mulheres; elas sentavam-se imóveis, os olhos fixados na "representante
do Departamento de Estado". Evan e Manny entraram e se encaminharam em silêncio para o bar, enquanto o agente da CIA ia para o quarto de hóspedes a fim de falar com um colega e observar o prisioneiro.
- Já expliquei tudo, deputado Kendrick - disse Khalehla, num tom oficial. - Até onde podia, é claro. Elas concordaram em cooperar. Uma delas esperava receber uma visita amanhã, mas vai telefonar e dizer-lhe
que não venha, pois houve uma emergência médica.
- Muito obrigado - murmurou Weingrass, servindo-se de um drinque, sob o olhar vigilante de Kendrick. - Agora sou um cadáver.
- Quero agradecer a vocês - Evan apressou-se em dizer. - Washington está convencida de que é um incidente isolado, um jovem lunático à solta...
- O mesmo acontecia com Sirhan-Sirhan - interveio a enfermeira que guiara o carro até Mesa Verde e chamara González. - A descrição não alterou os resultados.
- Eu disse a elas que o prisioneiro está sendo transferido para o leste em segredo esta noite e que não devem se preocupar se ouvirem ruídos no terreno ou na garagem.
- Muito profissional - murmurou Weingrass.
- Só tenho uma pergunta - disse a terceira enfermeira, olhando para Khalehla. - Mencionou que a quarentena era temporária... Não que eu esteja prestes a ser convidada para o Grand Prix em Monte Carlo,
mas temporária por quanto tempo?
- Há gente demais durante o Grand Prix - interveio Manny, bebendo. - Não se pode atravessar as ruas e os bains de mer viram uma loucura.
- Não mais que uns poucos dias - respondeu Kendrick. - Eles querem apenas efetuar as investigações normais... E se receber aquele convite, Manny a acompanhará pessoalmente.
- Não pode me arrumar outro, deputado?
- Esta mulher está doida.
Houve uma súbita e surpreendente comoção lá fora. Ouviram-se gritos, uma buzina soou.
- Saiam das janelas! - gritou o agente da CIA, correndo pela sala de estar. - No chão! Todos no chão!
Evan jogou-se na direção de Khalehla e ficou espantado ao perceber que ela se lançara ao chão antes, rolando para as portas corrediças, já com uma automática na mão.
- Está tudo bem! Está tudo bem! - gritou uma voz no gramado da frente.
- É um dos nossos! - anunciou o homem da CIA, de joelhos, também empunhando uma arma. - Mas o que...?
Ele se levantou e correu para o living, com Kendrick no seu encalço. A maciça porta da frente foi aberta e um homem com ar admirado e bem vestido entrou, hesitante, escoltado por um guarda florestal. Carregava
uma valise preta de médico. Estava aberta; fora revistada.
- Nunca esperei tal recepção - disse o médico. - Sei que nem sempre somos bem-vindos, mas isto é um pouco exagerado... Deputado, é uma honra!
Trocaram um aperto de mão, o agente da CIA observando, espantado.
- Lamento, porém não nos conhecemos, não é mesmo? - perguntou Evan, igualmente confuso.
- Ainda não, mas somos vizinhos, se é que uns doze quilômetros pelas colinas nos tornam vizinhos. Meu nome é Lyons.
- Lamento a recepção, terá de atribuí-la a um presidente superprotetor. Qual é o problema, doutor Lyons? Por que está aqui?
- É que ele apareceu lá - respondeu o intruso, sorrindo. - Sou o novo médico do senhor Weingrass. Se verificar em sua agenda, vai descobrir que ele deveria comparecer ao meu consultório em Cortez às quatro
horas da tarde. Não compareceu e não consegui falar pelo telefone; como esta casa fica no caminho da minha, resolvi dar uma passada para ver se havia algum problema.
O médico fez uma pausa, enfiou a mão no bolso e tirou um envelope.
- Já que estamos tendo medidas superprotetoras, aqui está minha credencial do Walter Reed Hospital, com as devidas assinaturas da administração. Deveria mostrar isso ao senhor Weingrass e suas enfermeiras
ou pelo menos à enfermeira que o acompanhasse ao meu consultório. Ele está bem, não é mesmo?
- Manny! - berrou Kendrick, irritado.
Weingrass apareceu na arcada que dava para a varanda, com um copo na mão.
- Por que está gritando comigo?
- Não deveria ir ao consultório de um médico esta tarde?
- Ah, sim, alguém me telefonou na semana passada...
- Foi minha recepcionista, senhor Weingrass - explicou o Dr. Lyons. - Ela disse que o senhor anotara e prometera comparecer.
- Vou ao médico de vez em quando, mas estou me sentindo muito bem neste momento. Não havia motivo para incomodá-lo. Além disso, não é meu médico.
- Senhor Weingrass, seu antigo médico faleceu há algumas semanas, de parada cardíaca. A notícia saiu nos jornais e sei que recebeu um aviso do funeral.
- Também não vou a funerais. O meu mesmo já está atrasado.
- Seja como for, já que estou aqui, por que não dar uma olhada?
- O que é que está pretendendo?
- Uns pequenos apertões e uma amostra de sangue para o laboratório.
- Estou me sentindo muito bem.
- Tenho certeza de que está bem - concordou Lyons, acenando com a cabeça. - É apenas rotina e não levarei mais que uns poucos minutos... É uma grande honra conhecê-lo, deputado.
- Muito obrigado... Vá logo, Manny. Quer que uma das enfermeiras o ajude, doutor?
- Não há realmente necessidade...
- Para ela ficar olhando lasciva o meu peito nu? - protestou Weingrass. - Vamos embora, Doc. O senhor aperta as minhas costelas, depois sai e compra um Cadillac.
- Pelo menos uma Ferrari - comentou Lyons, sorrindo para Kendrick.
Emmanuel Weingrass e seu novo médico encaminharam-se pelo corredor de pedra para o quarto.