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A AGUIA DO IMPERIO / Simon Scarrow
A AGUIA DO IMPERIO / Simon Scarrow

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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ORGANIZAÇÃO DE UMA LEGIÃO ROMANA
A segunda legião, como todas as legiões romanas, era constituída por cerca de cinco mil e quinhentos homens. A unidade básica era a centúria de oitenta homens comandada por um centurião, auxiliado por um optio, o segundo no comando. A centúria dividia-se em secções de oito homens que compartilhavam uma divisão nas casernas, ou uma tenda se estavam em campanha. Seis centúrias formavam uma coorte, e dez coortes, uma legião; a primeira coorte era dupla. Cada legião era acompanhada por uma unidade de cavalaria de cento e vinte homens, distribuída em quatro esquadrões que executavam as funções de batedores ou mensageiros. Em ordem descendente, estas eram as patentes principais:
O legado, de ascendência aristocrática com cerca de trinta anos, dirigia a legião por um máximo de cinco anos. O seu objectivo era o de construir uma boa reputação, a fim de melhorar a sua conseguinte carreira política.
O prefeito do acampamento era, normalmente, um veterano de idade avançada que tinha sido centurião-chefe da legião e se encontrava no auge da carreira militar. Considerado uma pessoa íntegra e de vasta experiência, era o responsável pelo comando da legião quando o legado se ausentava ou tombava em combate.
Seis tribunos serviam como oficiais do estado-maior. Eram homens jovens, nos seus vinte anos, que integravam pela primeira vez o exército, de modo a adquirir experiência no âmbito administrativo, antes de assumirem o cargo de oficial subalterno na administração civil. O tribuno superior, pelo contrário, estava destinado a altos cargos políticos e ao eventual comando de uma legião.
Sessenta centuriões encarregavam-se da disciplina e instrução da legião. Eram zelosamente escolhidos pelas suas capacidades de comando e pela sua prontidão em lutarem até à morte. Não é de estranhar, assim, que o índice de baixas entre estes superasse em muito o índice de baixas nos outros postos. O centurião com mais experiência dirigia a primeira centúria da primeira coorte, sendo uma pessoa respeitada e condecorada.
Os quatro decuriões da legião tinham sob o seu comando os esquadrões de cavalaria, e aspiravam a ascender a comandantes das unidades auxiliares de cavalaria.
Cada centurião era auxiliado por um optio, que desempenhava a função de ordenança com serviços de comando menores. Os optios aspiravam a ocupar uma vaga no posto de centurião.
No escalão inferior ao dos optios encontravam-se os legionários, homens que se tinham alistado por um período de vinte e cinco anos. Em teoria, só se recrutavam cidadãos romanos, mas cada vez mais eram aceites homens de outros povos, e se lhes outorgava a cidadania romana ao juntarem-se às legiões.
Os elementos das coortes auxiliares eram de uma categoria inferior à dos legionários. Originários das províncias romanas, serviam o Império na cavalaria, infantaria ligeira e noutras técnicas especializadas. Uma vez cumpridos vinte e cinco anos de serviço, era-lhes concedida a cidadania romana.

 

 

 

 

 

 

 

 

PRÓLOGO

- É inútil, senhor, este filho da mãe está enterrado bem fundo.
O centurião recostou-se contra o carro e fez uma pausa para recuperar o fôlego. Em seu redor, uma vintena de legionários esgotados estavam enfiados até à cintura
no lodo do pântano, procurando aguentar o cheiro hediondo. Do outro lado do carreiro, o general seguia com uma frustração crescente os esforços dos seus homens.
Ao preparar-se para subir a bordo de um dos barcos de evacuação, tinham-lhe chegado notícias de que o carro saíra do estreito carreiro. De imediato, montara um dos
poucos cavalos que ainda restavam e atravessara o pântano a fim de ver a situação com os seus próprios olhos. O carro, pressionado pelo peso da arca que carregava,
resistia a todos os esforços que os soldados faziam para o libertar. Já não havia ajuda disponível dado que a retaguarda, depois de carregar o navio, se havia feito
ao mar. Entre o carro parado e o exército de Cassivelauno, que pressionava os calcanhares dos invasores romanos derrotados, apenas restavam o general, aqueles homens
e os restos de uma unidade de cavalaria.
O general deixou escapar uma praga e, de repente, perto do arbusto onde tinha sido preso, o seu cavalo ergueu a cabeça, alarmado. Apercebeu-se então de que seria
impossível recuperar o carro, e a arca era demasiado pesada para ser transportada até ao último barco, que esperava ancorado. Por razões de segurança, a chave da
arca ficara a cargo do intendente, que já tinha zarpado. Para além do mais, a arca tinha sido construída de modo a que fosse impossível abri-la sem as ferramentas
apropriadas.
- E agora, que fazemos, senhor? - perguntou o centurião.
O general fitou longa e pesadamente a arca. Não podia fazer nada, absolutamente nada. Nem o carro, nem a arca, nem o seu conteúdo se moveriam. Por um momento nem
se atreveu a colocar essa possibilidade,
já que a perda da arca implicava um retrocesso de pelo menos um ano nos seus planos políticos. Naquele momento desesperante de indecisão, uma trompa de guerra soou
muito perto. Uma expressão de terror apoderou-se dos legionários e começaram a sair do lodo para recolher as armas que haviam deixado no caminho.
- Fiquem onde estão. - gritou o general. - Não ordenei que se mexessem!
Apesar de terem o inimigo cada vez mais perto, os legionários detiveram-se, tal era o respeito e admiração que lhes infundia o seu comandante. Depois de olhar uma
última vez a arca, o general baixou a cabeça ao tomar a decisão.
- Centurião, desfaz-te do carro.
- Senhor?
- Terá que permanecer aqui até que voltemos no próximo Verão. Arrasta-o um pouco mais até que se afunde por completo, desenha um mapa do local e depois volta à praia
o mais rápido que puderes. Farei com que vos tenham preparado uma barcaça.
- Sim, senhor.
Furioso, o general deu uma palmada na perna, subiu para o cavalo e partiu em direcção à praia, através do pântano. Foi então que ouviu novamente a trompa de guerra
e escutou os golpes de espada entre a unidade de cavalaria que combatia já com a vanguarda do exército de Cassivelauno. Desde o momento do desembarque até à actual
situação de fuga para a Gália, os homens de Cassivelauno tinham perseguido o exército romano, dia e noite, num constante desgaste aos soldados da vanguarda e da
retaguarda, sem mostrarem nenhuma piedade pelos invasores.
- Força, rapazes! - gritou o centurião. - Um último empurrão... encostem os ombros ao carro. Prontos? Empurrar!
O carro afundou-se pouco a pouco no lodaçal; das gretas da base surgiram bolhas de água pantanosa que iam cobrindo o lado visível da arca.
- Vamos, empurrem!
Com um último esforço conjunto, os homens largaram o carro e este desapareceu sob a água escura, deixando atrás de si apenas algumas bolhas sobre a superfície viscosa.
Já está, rapazes. De regresso ao barco. Rápido.
Os legionários avançaram pelo lodo até à margem e recolheram os escudos e as lanças, enquanto o centurião esboçava a toda a pressa um mapa do lugar na tábua de cera
que levava pendurada ao ombro. Desenhado o mapa, fechou a tábua e juntou-se aos seus homens. Mas
antes que a coluna se pudesse pôr em marcha, um súbito martelar de cascos no caminho fez com que os homens dessem meia volta, aterrados, encolhidos pelo medo. Instantes
depois, um grupo da unidade de cavalaria surgiu a galope por entre o nevoeiro e passou pela infantaria. Entre eles estava um homem debruçado sobre o pescoço do cavalo,
coberto de sangue devido a uma ferida num dos lados. Momentos depois desapareceram.
Logo de seguida, ouviram chegar mais cavalos, desta vez acompanhados pelos gritos rudes dos bretões que haviam já antes aterrorizado os legionários. Eram gritos
de guerra triunfais que provocavam calafrios ao exército romano.
- Levantar os dardos! - gritou o centurião, e os homens obedeceram, à espera da ordem para os arremessar. Ouviam o estrondo dos seus perseguidores, invisíveis e
aterradores, a aproximarem-se por entre a neblina. De repente surgiram, já muito perto, umas figuras cinzentas e imprecisas.
- Lançar!
Os dardos voaram lado a lado e desapareceram de vista sobre os imprudentes bretões, que gritaram ao ser atingidos.
- Formação! - gritou o centurião. - Marcha rápida...
A pequena coluna estugou o passo pelo caminho que conduzia ao último barco de evacuação que os aguardava e os poria a salvo; o centurião marchava junto à fila sem
deixar de olhar, inquieto, para o nevoeiro que cobria o caminho percorrido. O lançamento de dardos não atrasara muito os bretões e, de novo, voltaram a ouvir cascos,
mas desta vez mais cautelosos e pausados.
O centurião apercebeu-se de um som abafado e um dos seus homens emitiu um grito desesperado de dor. Voltou-se e viu que uma flecha se cravara nas costas do último
legionário. O ferido, a respirar com custo devido ao sangue nos pulmões, caiu de joelhos e tombou lentamente para um lado sobre a lama.
- Corram!
Os cintos e armaduras dos legionários agitaram-se com o acelerar do passo que visava distanciarem-se dos seus perseguidores invisíveis. Da neblina surgiram mais
flechas lançadas às cegas contra os romanos. Ainda assim, algumas atingiam os seus alvos e a coluna de soldados foi-se reduzindo conforme os homens tombavam pelo
caminho e, com as espadas desembainhadas, aguardavam os seus tristes fins. Quando o centurião alcançou a última colina, onde o pântano dava lugar às areias da praia,
apenas restavam quatro homens. O débil som do mar era como uma melodia de esperança aos seus ouvidos e a brisa ligeira
de Setembro dissipava a neblina que tinham pela frente.
De repente, o caminho desapareceu. Duzentos passos à sua frente, uma pequena embarcação esperava-os à beira-mar. Ao largo, um trirreme deslizava sobre a ondulação
suave e, mais longe no horizonte, a mancha escura da frota invasora desvanecia-se na penumbra do ocaso.
- Corram para o barco. - voltou o centurião a gritar, atirando a espada e o escudo para o chão. - Corram!
A areia saltava sobre os seus pés enquanto corriam para a embarcação. Nesse instante, a trompa de guerra soou nas suas costas. Os bretões, ao avistarem o mar, esporearam
os cavalos para alcançar os sobreviventes antes que se pusessem a salvo. O centurião cerrou os dentes e lançou-se pelo pequeno declive, consciente da inexorável
proximidade do inimigo, mas nem ousou olhar para trás com medo que isso lhe reduzisse o passo. Na ré do barco, avistou um homem alto, em pé, trajado com uma capa
vermelha de general que ondulava ao vento e lhe acenava desesperado. Depois de avançar uns cinquenta passos, escutou um grito agudo mesmo atrás de si; um dos bretões
havia cravado uma lança num dos legionários.
Com todas as fibras do seu corpo a gritarem pela vida, o centurião atravessou a areia molhada e lançou-se, por entre as ondas, para a proa da embarcação. Mãos ávidas
agarraram-no pelos ombros e puxaram-no com força. Logo depois, um legionário tombou sobre ele, tentando recuperar a respiração.
Dois dos enormes guarda-costas do general arremessaram as suas lanças na direcção do inimigo. Mas estas nem os alcançaram; o barco já estava em águas mais profundas
e os remadores faziam o seu trabalho, levando-os para a segurança da trirreme.
- Conseguiram esconder o carro? - perguntou o general, num tom preocupado.
- Sim, senhor... - balbuciou o centurião e deu umas palmadinhas na tábua de cera que levava pendurada de lado. - Tenho um mapa, senhor... Fi-lo o melhor que pude,
dado o pouco tempo de que dispúnhamos.
- Bom trabalho, centurião. Bom trabalho. Eu agora fico com
isso.
Quando o centurião entregou a tábua ao general, olhou em redor e viu o único homem que conseguira salvar-se com ele. Apenas um. Na costa, uma vintena de cavaleiros
agrupavam-se à volta de outro dos seus soldados, estúpido o suficiente para se ter deixado capturar com vida, e estremeceu perante a ideia dos horrores que aguardavam
aquele indefeso legionário.
Todos os homens a bordo observavam a cena em silêncio até que, por fim, o general falou.
- Haveremos de voltar, homens. Haveremos de voltar. E quando
assim for, prometo que faremos com que esses bastardos se arrependam amargamente de terem levantado armas contra Roma. Eu, Caio Júlio César, juro-o sobre o túmulo
de meu pai...


FRONTEIRA DO RENO
Noventa e seis anos depois, durante o segundo ano de governo do Imperador Cláudio
Finais de 42 d.C.

I

Uma rajada de vento gelado entrou, juntamente com a sentinela, pela porta da latrina.
- Aproxima-se um carro, senhor!
- Fecha o raio da porta! Mais alguma coisa?
- E também uma coluna de homens.
- Soldados?
- Creio que não. - A sentinela fez uma careta. - A não ser que tenham feito mudanças nas instruções de marcha.
O centurião olhou-o com severidade:
- Não me lembro de ter perguntado a tua opinião sobre as normas, soldado.
- Não, senhor.
A sentinela endireitou-se perante o olhar do seu superior. Alguns meses atrás, Lúcio Cornélio Macro ainda era apenas um optio, mas entretanto fora promovido ao centurionato
e mostrava algumas dificuldades em lidar com isso. Os seus antigos camaradas continuavam a tratá-lo como a um igual. Era difícil mostrar respeito por um homem a
quem ainda recentemente tinham visto a vomitar-se todo devido ao vinho barato.
Mas Macro soubera, alguns meses antes da promoção, que os oficiais superiores consideravam a possibilidade de ele vir a ocupar a primeira vaga na categoria de centurião
e, como tal, havia procurado que as suas indiscrições fossem mínimas. Porque, se se observassem as qualidades de Macro no seu conjunto, era um bom soldado - quando
era preciso um bom soldado - aplicado no seu dever, digno de confiança e obediente; para além do mais, podia contar-se com ele para resistir em combate e motivar
os demais a fazer o mesmo.
De repente, Macro deu-se conta de que já há algum tempo que
olhava fixamente a sentinela, e este, como era natural, sentia-se incomodado por ser escrutinado em silêncio por um superior. E toda a gente sabia que os oficiais
podiam ser uns filhos da mãe imprevisíveis, pensava a sentinela, inquieto. Quando se lhes dava poder, ou não sabiam o que fazer com ele ou limitavam-se a dar ordens
retorcidas e estúpidas.
- Quais são as suas ordens, senhor?
- Ordens? - Macro franziu a testa. - De acordo. Eu vou lá. Volta para o portão.
- Sim, senhor.
A sentinela deu meia volta e saiu rapidamente do quarto das latrinas dos oficiais subalternos, perante o olhar fulminante de meia dezena de centuriões. Uma das normas
não escritas era nunca, mas mesmo nunca, permitir que os soldados viessem interromper os oficiais superiores quando estes se encontravam nas latrinas. Macro limpou-se
com a esponja, puxou as calças e desculpou-se perante os outros centuriões antes de sair a toda a pressa.
Estava uma noite desagradável e soprava um vento frio do norte que trazia chuva das florestas germânicas. Esta caía com força sobre o Reno e sobre a fortaleza, penetrando
nas casernas em rajadas geladas. Macro suspeitava de que ainda não caíra no goto dos seus novos subalternos, mas estava decidido a mostrar-lhes que estavam redondamente
enganados acerca de si. Se bem que os seus propósitos não estavam propriamente a surtir o efeito desejado. Os serviços administrativos relacionados com o comando
de oitenta homens haviam-se revelado um pesadelo: era responsável por toda uma gama de tarefas desde distribuição das rações, turnos de limpeza das latrinas, turnos
de guarda, inspecções às armas, registos dos castigos, recibos da aquisição dos apetrechos, distribuição da forragem para os cavalos da secção, até controlo de pagamentos,
poupanças e funerais.
A única ajuda de que dispunha para desempenhar todas estas obrigações provinha do administrativo das centúrias, um tipo velho e enrugado que dava pelo nome de Piso,
de quem Macro suspeitava um comportamento desonesto ou então de não passar de um mero incompetente. Mas Macro não tinha qualquer forma de o averiguar porque era
quase analfabeto. Tinha conhecimentos básicos de letras e números, era capaz de reconhecer a maioria destes de forma isolada, mas não passava disso. E agora era
centurião, um posto que exigia o saber-se ler. O legado tinha dado como adquirido que Macro sabia ler e escrever ao aprovar a sua nomeação. Se se viesse a saber
que não era mais letrado do que um provinciano da Campânia, seria automaticamente despromovido. Até agora Macro conseguira tornear esse problema delegando em Piso todos
os trâmites burocráticos, alegando que outras tarefas ocupavam demasiado o seu tempo, mas estava certo de que o administrativo começara a suspeitar da verdade. Meneou
a cabeça e ajustou a capa vermelha ao acercar-se do portão da fortaleza.
A noite cerrada e as nuvens baixas obscureciam ainda mais o céu, um claro indício de que em breve nevaria. Da escuridão vinham os sons típicos da vida numa fortaleza
e que faziam parte da existência de Macro há mais de doze anos. Ouviam-se os machos a zurrar nos estábulos, no final de cada secção de casernas, e as vozes dos soldados
a falar e a gritar à luz bruxuleante das velas, que chegavam até ele através das janelas.
Ao passar por uma caserna, ouviu uma gargalhada seguida de uma risada feminina aguda. Macro deteve o passo e escutou. Alguém havia conseguido introduzir uma mulher
no acampamento. Esta voltou a rir-se e começou a falar em latim com um forte sotaque, sendo logo calada pelo seu companheiro. Aquilo era uma flagrante violação do
regulamento e Macro deu a volta bruscamente, preparando-se para entrar. Então deteve-se. A sua obrigação era irromper pelo lugar adentro dando gritos de autoridade,
enviar o soldado para o quartel militar e expulsar a mulher do acampamento. Mas isso significava fazer uma anotação no livro de punições, ou seja, teria que escrever.
Rangendo os dentes, Macro apartou a mão do ferrolho e voltou a percorrer o caminho em silêncio, ao mesmo tempo que a mulher soltava outra risada que lhe ficou a
pesar na consciência. Lançou um olhar em redor para se assegurar de que ninguém testemunhara a sua intenção falhada de actuar e apressou-se em direcção ao portão
sul. Aquele maldito soldado merecia porrada, e se pertencesse à sua centúria não teria escapado. Nada de papelada, apenas um bom pontapé nos tomates para se assegurar
de que o castigo correspondia ao delito. Pela voz da mulher, só podia tratar-se de uma daquelas rameiras alemãs do povoado próximo do acampamento. Macro consolou-se
com a ideia de que aquele legionário talvez contraísse gonorreia.
Apesar da escuridão que envolvia as ruas, Macro deslocava-se por instinto na direcção correcta, pois todas as bases respeitavam a mesma planta, tanto os acampamentos
como as fortalezas. Numa questão de instantes, chegou à rua mais larga, a da Via Pretória, e dirigiu-se até ao portão onde a rua atravessava os muros e se prolongava
até à parte sul do acampamento base. A sentinela que o havia interrompido nas latrinas aguardava-o na base das escadas. Encaminharam-se para a sala da guarda e subiram
a estreita escada de madeira até às muralhas, onde um braseiro projectava uma luminosidade cálida e incandescente. Quatro legionários
jogavam aos dados em bancos junto ao fogo. Logo que avistaram a cabeça do centurião emergir das escadas, endireitaram-se.
- Deixem-se estar, rapazes - disse Macro. - Continuem os vossos afazeres.
Quando Macro levantou a tranca, a porta da muralha abriu-se para dentro impelida pelo vento, o que fez com que o braseiro se inflamasse. Macro saiu e fechou-a com
custo. No passadiço das sentinelas, o vento batia com força e quase lhe levava a capa; de tal forma que lhe arrancou o gancho do ombro esquerdo. Macro apressou-se
a agarrá-lo e segurou-o com força contra o corpo.
- Onde estão?
A sentinela olhou demoradamente a escuridão, por entre as ameias, e apontou com o dardo na direcção sul, para uma luz diminuta que abanava na parte de trás de uma
carroça. Macro forçou a vista e conseguiu ver o contorno indistinto do veículo e, atrás deste, um grupo de homens que caminhavam a custo. No final da coluna, a avançar
mais ordenadamente, encontrava-se a escolta cujo trabalho consistia em não permitir que os mais lentos atrasassem a marcha. No total deviam ser uns duzentos homens.
- Chamo a guarda, senhor?
Macro voltou-se para a sentinela.
- O que é que disseste?
- Chamo a guarda, senhor?
Macro lançou-lhe um olhar condescendente. Siro era um dos homens mais jovens da centúria e, mesmo sabendo o nome de todos os soldados sob o seu comando, Macro ainda
não conhecia bem as suas personalidades nem nada acerca das suas vidas.
- Estás há muito tempo no exército?
- Não, senhor. Em Dezembro fará um ano.
Macro pensou que não fazia muito que terminara a instrução. Era evidente que seguia à letra as normas e aplicava-as a todas as circunstâncias. Com o tempo aprenderia;
saberia encontrar um compromisso entre cumprir as normas de forma rigorosa e fazer o que era preciso para que as coisas andassem para a frente.
- E porque é que deveríamos chamar a guarda?
- O regulamento assim o exige, senhor. Se um grupo de homens não identificado se aproximar do acampamento, deve-se alertar a centúria de guarda para que proteja
o portão e os muros.
Macro olhou-o surpreendido. Estava a citar de memória. Não havia dúvidas de que Siro levava a instrução a sério.
- E depois?
- Senhor?
- O que é que acontece depois?
- O centurião de guarda, depois de analisar a situação, decide se é necessário soar o alerta geral - disse Siro sem mudar o tom da voz, e no final acrescentou rapidamente.
- Senhor.
- Muito bem dito.
Macro sorriu e a sentinela devolveu-lhe o sorriso, aliviado, antes do oficial voltar a olhar novamente a coluna que se aproximava.
- Diz-me, até que ponto crês que são uma ameaça? Assustam-te, soldado? Crês que essas duzentas criaturas vão lançar-se contra os nossos muros, escalá-los e matar
todos os soldados da segunda legião? O que é que achas?
A sentinela fitou Macro, depois olhou atentamente para a distância, e voltou-se envergonhado para o centurião.
- Não o creio.
- Não o creio, senhor! - disse-lhe Macro num tom áspero, pregando-lhe um murro no ombro.
- Desculpe, senhor.
- Diz-me, Siro, prestaste atenção às instruções das sentinelas?
- Sim, senhor.
- Prestaste atenção a cada detalhe?
- Creio que sim, senhor.
- Então deves recordar-te do que foi dito, que esperávamos a chegada de reforços, certo? E não teria sido preciso que me arrancasses da latrina e me interrompesses
a meio de uma particularmente boa cagada.
O jovem mostrou-se consternado e custava-lhe suportar a expressão de resignação do centurião.
- Perdão, senhor. Não voltará a acontecer.
- Faz com que assim seja. Caso contrário, duplico-te as guardas até ao final do ano. Reúne os rapazes no portão. Eu trato de lhes pedir a identificação.
Envergonhado, a sentinela saudou-o e voltou à casa da guarda. Macro ouviu os soldados a levantarem-se e a descer as escadas de madeira em direcção ao portão principal.
Sorriu. O rapaz era aplicado e sentia-se culpado pelo seu erro. O suficiente para que não o repetisse. Isso era óptimo. Era assim que se faziam soldados em quem
se podia confiar, pois ninguém nasce soldado, pensou Macro.
Uma inesperada rajada de vento abanou o centurião, e este refugiou-se na sala da guarda. Colocou-se junto ao braseiro e suspirou aliviado ao sentir o calor invadir-lhe
o corpo. Momentos depois, abriu o
postigo da janela e olhou para a escuridão da noite. A coluna estava mais próxima e já se distinguiam o carro e os homens do segundo grupo. Um lamentável grupo de
recrutas - pensou - sem uma pitada de espírito dentro deles. Apesar de já avistarem o refúgio, continuavam a marchar com penosa apatia.
De repente, começou a chover com mais força, as gotas fustigavam a pele e nem assim a coluna acelerou o passo. Macro sacudiu a cabeça, exasperado, e deu início às
formalidades. Abriu o postigo principal, enfiou a cabeça pela janela e respirou fundo.
- Alto aí! - gritou. - Identifiquem-se!
O carro estacou a uns cinquenta metros do muro e uma figura junto ao arrieiro levantou-se para responder:
- Coluna de reforços proveniente de Avêntico e escolta com Lúcio Batácio Bestia ao comando.
- Contra-senha? - exigiu Macro, apesar de conhecer perfeitamente Bestia, o centurião superior da segunda legião e, portanto, muito acima do seu próprio posto.
- Ouriço-cacheiro. Permissão para entrar?
- Entra, amigo.
Com um estalo do chicote, o arrieiro forçou os bois a subir a encosta que conduzia ao portão, e Macro foi até junto do postigo, do qual era visível o interior da
fortaleza. Em baixo, as sentinelas encolhiam-se num canto para se protegerem da chuva.
- Abram as portas - ordenou Macro.
Um dos soldados apressou-se a correr o ferrolho e os outros levantaram a tranca. As portas de madeira chiaram ao abrirem-se de par em par e o carro, que já havia
subido o final da encosta, entrou com ímpeto no acampamento. Da sala da guarda, Macro observou o carro a chegar-se para um dos lados. Bestia saltou do seu assento
e apontou com a sua vara de videira a procissão lastimosa de novos recrutas que passavam ensopados sob o portal.
- Vamos, seus filhos da mãe! Andem, rápido! Quanto mais depressa entrarem, mais depressa vão ficar quentes e secos.
Os recrutas, que haviam seguido atrás do carro durante mais de trezentos quilómetros, uma vez lá dentro, começaram a agrupar-se ao seu redor. A maioria vestia capas
de viagem e traziam os seus pertences em cobertores atados ao ombro. Os mais pobres não traziam nada; alguns nem traziam capas, e tremiam miseravelmente sob a chuva
e o vento gelado. No final, havia um pequeno grupo de prisioneiros acorrentados que tinham preferido o exército ao cárcere.
Bestia enfiou-se por entre a multidão crescente, afastando os
homens com a vara para arranjar lugar entre eles.
- Não fiquem aqui parados como ovelhas. Dêem espaço aos verdadeiros soldados. Vão para o outro lado da rua e alinhem-se virados para este lado. Depressa!
O último da fila entrou pelo portão aos tropeções e apressou-se a seguir os demais, para ocupar um lugar na linha irregular que se formava à frente do carro. Por
fim, a escolta de vinte homens entrou a marcar passo e deteve-se em sincronia ao grito de comando de Bestia. Fez uma pausa dramática, para dar ênfase à comparação.
Entretanto, Macro ordenou às sentinelas que fechassem as portas e retomassem os seus deveres. Bestia voltou-se para os recrutas, com as pernas afastadas e as mãos
nas ancas.
- Estes homens - Bestia apontou para eles com a cabeça - são membros da Segunda legião, a legião Augusta, a mais forte de todo o exército romano, não se esqueçam
disso. Não existe uma única tribo bárbara, por muito longe que esteja, que não tenha ouvido falar de nós e que não trema perante o nosso nome. A Segunda legião é
a unidade que mais escória germânica matou e que mais território conquistou. E tudo porque preparamos os nossos homens para serem os soldados mais malvados, mais
duros e destemidos do mundo civilizado... Vocês, pelo contrário, são um monte de cagalhões inúteis e insignificantes. Nem sequer são homens. São a forma de vida
menos digna que alguma vez se intitulou de romana. Desprezo-vos a todos e garanto-vos que eliminarei toda a escória para que só os melhores passem a fazer parte
da minha querida Segunda legião e sirvam sob o estandarte da águia. Tenho vindo a observar-vos desde Avêntico e, minhas meninas, estão longe de me impressionar.
Alistaram-se, não foi? Pois agora são todos meus. Pertencem-me. Vou-vos instruir, vou-vos calejar, farei de vocês homens a sério. E então, se eu achar que estão
preparados, permitirei que se tornem legionários. Se algum de vocês não se dedicar até à última gota de suor, desfaço-o com isto - levantou a vara bem alto para
que todos a vissem. - Fui bem claro, seus merdosos?
Os recrutas assentiram com um murmúrio; alguns, de tão cansados, fizeram-no apenas com a cabeça.
- O que é que foi isso? - Bestia gritou enfurecido. - Não ouvi um raio!
Aproximou-se dos recrutas e agarrou um pela gola da capa. Macro reparou que aquele não estava vestido como os outros. O fabrico da sua capa era sem dúvida bem caro,
apesar da lama que a cobria. Era o recruta mais alto, ainda que magro e de aspecto bastante frágil: a vítima perfeita para um castigo exemplar.
- Que merda é esta? O que faz o raio de um soldado com uma capa mais cara do que a minha? Roubaste-a, rapaz?
- Não - respondeu o recruta com tranquilidade. - Deu-ma um amigo.
Bestia golpeou-lhe o estômago com a vara e o recruta dobrou-se e caiu de joelhos na lama do chão. Bestia olhava-o com a vara levantada, ameaçando dar-lhe outro golpe.
- Sempre que te dirigires a mim, dizes senhor. Entendido?
Macro viu como o rapaz respirava com dificuldade, ao tentar
responder. Bestia voltou a golpeá-lo, desta vez nas costas, e o rapaz gritou.
- Fiz-te uma pergunta.
- Sim, senhor. - exclamou o recruta.
- Não te oiço!
- Sim, SENHOR!
- Assim está melhor. Vejamos o que mais tens aqui.
O centurião arrancou-lhe a manta que fazia de bolsa e abriu-a. O conteúdo desta caiu no chão enlameado: algumas mudas, um frasquinho, um pouco de pão, dois pergaminhos
e um estojo de caligrafia em pele.
- Mas que raio...! - O centurião olhou para este último e levantou-o lentamente com a ponta dos dedos. - Que merda é esta?
- Os meus utensílios de escrita, senhor.
- Utensílios de escrita? E para que raio quer um legionário utensílios de escrita?
- Prometi escrever aos meus amigos em Roma, senhor.
- Aos teus amigos? - Bestia sorriu com crueldade. - Não tens uma mamã a quem escrever? Ou um papá, talvez?
- Morreu, senhor.
- E ao menos sabes qual era o nome dele?
- Claro, senhor. Chamava-se...
- Silêncio! - Bestia interrompeu-o. - Estou-me a lixar para o nome dele. Aqui todos vocês são uns filhos da mãe sem pai. Como é que te chamas, bastardo?
- Quinto Licínio Cato... senhor.
- Bem, Cato, existem dois tipos de legionários que sabem escrever: os espiões e os imbecis que acham que um dia vão chegar a oficiais. A que grupo pertences tu?
O recruta olhou-o com receio:
- A nenhum, senhor.
- Então, nesse caso, não precisas destas merdas, certo? - Bestia
deu um pontapé nos instrumentos e nos pergaminhos, que voaram para a lama que estava no meio do caminho.
- Cuidado, senhor!
- O que é que disseste? - O centurião deu a volta bruscamente com a vara no ar. - O que é que foi que me disseste?
- Disse cuidado, senhor. Um desses pergaminhos contém uma mensagem pessoal para o legado.
- Uma mensagem pessoal para o legado! Oh, muito bem, nesse caso...
Macro sorriu ao ver o centurião vacilar por um momento. Havia todo o tipo de desculpas e explicações, mas era a primeira vez que ouvia uma assim. Que raio fazia
um recruta com uma mensagem pessoal para o legado? Um grande mistério, que ainda por cima tinha derrubado Bestia do seu pedestal. Ainda que por pouco tempo: o centurião
apontou com a vara para os pergaminhos.
- Maldito sejas, apanha aquilo e traz-mo aqui. Acabaste de chegar e já puseste o acampamento de pernas para o ar. Miseráveis recrutas
- queixou-se. - Dão-me vontade de vomitar. Ouviste-me? Apanha aquilo!
Enquanto o recruta se agachava para recolher os seus pertences, Bestia gritou uma série de ordens para atribuir a cada membro da escolta um grupo de recrutas e conduziu-os
às suas unidades.
- Movam-se! Tu não! - Bestia falava com o recruta isolado que tinha conseguido guardar os seus pertences na manta e já se encaminhava, sob a chuva, para um grupo
de soldados. - Para aqui! E vocês, para onde é que estão a olhar?
A escolta de legionários começou a cumprir as suas ordens. Enquanto se chamavam e agrupavam os recrutas, Bestia pegou no pergaminho que Cato lhe estendia. Resguardando-o
como podia da chuva, olhou com atenção para a direcção do lacre. Comprovou o selo, voltou a olhar para a direcção do lacre, e fez uma pausa para considerar o seguinte
passo. Ao levantar o olhar em direcção à sala da guarda, deu com Macro a sorrir com a situação. Aquilo fê-lo logo tomar uma decisão.
- Macro, mexe esse cu e vem cá abaixo.
Instantes depois, Macro estava em frente a Bestia, sob a chuva que lhe fazia piscar os olhos a cada gota que lhe pingava do elmo.
- Parece autêntico. - Bestia abanou o pergaminho em frente do nariz do oficial subalterno. - Quero que leves isto e que escoltes este nosso amigo até ao quartel-general.
- Estou de guarda, senhor.
- Eu substituo-te até que voltes. Vá, mexe-te.
Cretino, pensou Macro com os seus botões. Bestia não fazia ideia se a carta era importante, nem sequer se era autêntica. Mas preferia não arriscar. Naqueles tempos,
as comunicações chegavam da maneira mais estranha aos legados, mesmo quando provinham de altas patentes. Melhor seria que outro levasse a culpa, caso a carta viesse
a revelar não ter qualquer valor.
- Sim, senhor - respondeu Macro asperamente, ao pegar no pergaminho.
- E não demores muito. Tenho uma cama quente à minha espera.
Bestia encaminhou-se para a sala da guarda e subiu as escadas em direcção ao abrigo do quarto das sentinelas. Macro fulminou-o com o olhar. A seguir virou-se para
observar melhor o novo recruta, que provocara a sua caminhada sob a chuva até ao edifício do quartel-general. Teve que levantar a cabeça para estudar o rapaz, mais
alto do que ele uma boa cabeça. Sob a capa de viagem, o cabelo negro estava todo empastado e escorria água. Sob uma testa direita, os olhos castanhos e penetrantes
olhavam-no separados por um nariz alto e estreito. O rapaz tinha a boca fechada, mas o lábio inferior tremia ligeiramente. Apesar de ter a roupa ensopada e enlameada,
com a caminhada desde o depósito de Avêntico, dava para ver que era de uma qualidade surpreendente. E quanto aos utensílios de escrita, os livros e a carta para
o legado... Era evidente que se passava qualquer coisa especial com aquele recruta. Não lhe parecia faltar dinheiro, mas, nesse caso, porque se havia alistado no
exército?
- Cato, certo?
- Sim.
- A mim também me chamas senhor - disse-lhe Macro com um sorriso.
Cato endireitou-se no que lhe parecia ser uma posição de sentido, e Macro riu-se.
- À vontade, rapaz. Descansa. Não vais para a parada a não ser amanhã de manhã. Vamos lá entregar esta carta.
Macro deu-lhe um ligeiro empurrão e dirigiram-se em direcção ao centro da base onde se divisava o imponente edifício do quartel-general. Pelo caminho, olhou mais
detalhadamente para a carta e assobiou baixinho.
- Sabes o que significa este selo?
- Sim... senhor. É o selo imperial.
- E por que é que o serviço imperial iria usar um recruta como mensageiro?
- Não faço ideia, senhor.
- De quem é?
- Do imperador, senhor.
Macro conteve uma exclamação. Decididamente aquele rapaz havia suscitado o seu interesse. Porque diabos o imperador enviava uma mensagem através de um miserável
recruta? A não ser que aquele rapaz fosse mais importante do que parecia. Macro decidiu que faria uma aproximação mais diplomática se pretendia saber algo mais.
- Perdoa-me a pergunta, mas por que estás aqui?
- Porque estou aqui, senhor? Alistei-me no exército, senhor.
- Mas porquê? - insistiu Macro.
- Por causa do meu pai, senhor. Antes de morrer, esteve no serviço imperial.
- E o que fazia ele?
Ao ver que o rapaz não respondia, olhou-o e viu que tinha a cabeça baixa e uma expressão perturbada.
- Então?
- Era um escravo, senhor. - A vergonha por o dizer era evidente, mesmo perante um homem como Macro. - Antes de ser libertado por Tibério. Eu nasci pouco antes.
- Que azar. - Macro compadeceu-se; a categoria de liberto não era hereditária. - Presumo que tenhas sido liberto pouco depois. O teu pai comprou-te?
- Não o deixaram, senhor. Não sei porquê, mas Tibério não o permitiu. O meu pai morreu alguns meses atrás. No seu testamento pedia que me libertassem na condição
de que continuasse a servir o império. O imperador Cláudio aceitou, desde que me alistasse no exército, e por isso aqui estou.
- Hum... Não me parece que tenha sido um grande negócio.
- Não estou de acordo consigo, senhor. Agora sou livre. É sempre melhor do que ser escravo.
- Acreditas mesmo nisso? - Macro sorriu.
Não parecia uma boa mudança de categoria: das comodidades do palácio para a vida dura do exército, e a possibilidade ocasional de arriscar a vida em batalha. Macro
ouvira dizer que alguns dos homens mais ricos e poderosos de Roma se encontravam entre os escravos e libertos ao serviço do Império.
- Não importa, senhor - concluiu Cato, num tom amargo. - Não me deram nenhuma possibilidade de escolha.

II

Os guardas à porta do edifício do quartel-general cruzaram as lanças quando viram surgir duas pessoas da escuridão: uma trazia um elmo com a crista própria de um
centurião e a outra era um jovem em desalinho. Entraram pelo pórtico, à luz das tochas presas em braçadeiras de ferro.
- A contra-senha?
- Ouriço-cacheiro.
- De que se trata, senhor?
- Este rapaz traz um despacho para o legado.
- Um momento, senhor.
O guarda desapareceu no pátio interior e deixou-os sob o olhar atento dos outros guardas, três homens corpulentos, especialmente seleccionados para integrarem a
escolta do legado. Macro desapertou a correia do elmo e segurou-o debaixo do braço, pronto para se apresentar perante um superior hierárquico. Cato puxou para trás
o capuz da sua capa e passou as mãos pelos cabelos desalinhados. Durante a espera, Macro deu-se conta de que o jovem se olhava minuciosamente, apesar de tremer de
frio. O centurião compadeceu-se ao recordar-se de si próprio à espera de ser admitido no exército: a emoção mesclada com o medo de um mundo completamente desconhecido,
de normas rígidas, perigos e uma vida dura, muito diferente das comodidades onde passara a infância.
Cato começou a sacudir a água da capa e logo se formou uma poça no chão.
- Pára de fazer isso - disse Macro. - Estás a sujar tudo. Secas-te depois.
Cato olhou-o, com a capa nas mãos. Ia queixar-se quando se deu conta de que os outros soldados o olhavam com ar de reprovação.
- Peço desculpa - murmurou e deixou estar a capa quieta.
- Ouve, rapaz - disse Macro o mais amavelmente que conseguiu.
- Ninguém se importa que um soldado tenha um aspecto miserável se não o pode evitar. O que chateia é um soldado que não pára quieto. Isso é que deixa o exército
louco da vida. Certo, rapazes?
Virou-se para os três guardas que assentiram imediatamente com a cabeça.
- Portanto, a partir de agora, ficas quieto. Habitua-te a aguardar imóvel. Vais ver que é assim que passamos a maior parte do tempo.
Os guardas suspiraram em concordância.
Ouviram-se passos vindos do pátio interior e o guarda reapareceu no pórtico.
- Por favor, senhor, siga-me. O rapaz também.
- O legado vai receber-nos?
- Não sei, senhor. Ordenaram-me que os escoltasse primeiro ao tribuno superior. Por aqui, por favor.
Atravessaram um arco e chegaram a um pátio rodeado por colunas. A água da chuva escorria das telhas e caía a jorros pelos canos que a desviavam para a rua. O guarda
levou-os para um lado do pátio até uma entrada situada no lado oposto do pórtico. Por detrás da porta, o edifício dava lugar a uma grande sala com salas menores
dos dois lados e, ao fundo, uma enorme cortina púrpura cobria o altar da legião. Dois porta-estandartes com as espadas desembainhadas permaneciam em sentido, frente
à cortina. O guarda virou à esquerda, deteve-se perante uma porta e bateu duas vezes.
- Entrem - convidou uma voz, e o guarda empurrou de imediato a porta.
Macro entrou primeiro e fez sinal a Cato para que o seguisse. Era uma sala estreita, mas prolongava-se o suficiente para albergar uma mesa ao longo de uma parede
e uma estante com pergaminhos, ao fundo. Um braseiro brilhava junto à porta enchendo o aposento com uma claridade reconfortante. Sentado à mesa estava um tribuno.
Macro conhecia-o de vista, Aulo Vitélio, um famoso mulherengo de Rojna que havia decidido enveredar por uma carreira política através da administração da legião.
Vitélio era um homem forte, cuja pele cor de azeitona revelava a sua origem do sul de Itália. Quando os visitantes entraram, chegou a sua cadeira para trás e olhou-os.
- Onde está essa tal carta? - Tinha uma voz cavernosa e mostrava uma certa impaciência.
Macro entregou-lha e deu um passo atrás. Cato permaneceu ao seu lado em silêncio, perto do braseiro. Sorriu de satisfação ao sentir o
calor envolver-lhe o corpo e, pouco a pouco, deixou de tremer.
Vitélio deitou uma olhadela rápida à carta e passou os dedos pelo selo imperial, morto de curiosidade.
- Sabes o que é isto?
- O rapaz disse que...
- Não estava a falar contigo, centurião.... E então?
- Creio que se trata de uma carta pessoal do imperador Cláudio, senhor - respondeu Cato.
Ao tribuno não passou despercebida a ênfase que Cato dera ao pessoal na sua resposta e, por isso, olhou-o friamente.
- E o que crês que possa haver de tão pessoal nesta carta que o imperador a fosse dar a ti para que a entregasses?
- Desconheço-o, senhor.
- Exactamente. Portanto podes deixá-la ficar comigo e ires-te embora descansado. Eu encarrego-me de que o legado a receba a seu devido tempo. Podem retirar-se.
Macro dirigiu-se de imediato para a porta, mas o jovem recruta hesitou e estendeu a mão. - Desculpe, senhor, a carta...
Vitélio levantou o olhar atónito, ao mesmo tempo que Macro lhe agarrava no braço.
- Vamos embora, rapaz. O tribuno é um homem ocupado.
- Mas ordenaram-me que entregasse a carta pessoalmente...
- Como te atreves, fedelho? - disse Vitélio em voz baixa, as sobrancelhas aproximando-se numa linha escura sobre os olhos, que reflectiam a luz do braseiro.
Por um momento, Macro observou a troca de olhares; a ira contida do tribuno perante o medo e o desafio do rapaz. Num gesto inesperado, o tribuno virou o seu olhar
para o centurião e forçou um sorriso.
- Muito bem, será como te ordenaram. - Vitélio levantou-se com o pergaminho na mão. -,Acompanhem-me.
Vitélio conduziu-os através de um curto corredor que desembocava numa antecâmara onde o secretário do legado trabalhava numa mesa colocada junto de uma enorme porta
reforçada. Este levantou a cabeça ao ouvi-los e, perante a presença de Vitélio, pôs-se em pé de um salto.
- Posso ver o legado? - perguntou Vitélio num tom firme.
- É urgente, senhor?
- Trata-se de uma mensagem do imperador.
Vitélio estendeu o braço para mostrar o selo. De imediato, o secretário bateu na porta do escritório do legado e entrou sem esperar uma resposta, fechando a porta
atrás de si. Fez-se silêncio, e logo a porta se
voltou a abrir. O secretário convidou Vitélio a entrar e ordenou aos outros, com um gesto da mão, que esperassem. Vindo do interior, Macro ouvia ,perfeitamente uma
voz a levantar-se, pontualmente interrompida por um monossílabo de Vitélio. A conversa entre ambos não durou muito, mas o tribuno fulminou o centurião com o olhar
ao passar junto dele, quando saiu em direcção à sala da administração.
- O legado aguarda-vos. - O secretário apontou um dedo na direcção deles.
Macro estava furioso com Bestia. Aquela maldita carta ainda ia arranjar-lhe problemas. Tinham-lhe ordenado que acompanhasse o rapaz ao quartel-general, e agora iria
enfrentar a ira do legado por o fazer perder o seu tempo precioso. Se o legado podia repreender aos gritos um tribuno, só os deuses sabiam o que poderia fazer a
um humilde centurião. E tudo por culpa daquele maldito rapaz. Instintivamente, Macro lançou ao rapaz o olhar fulminante que acabara de receber de Vitélio e, nervoso,
engoliu a saliva que se acumulara na boca, entrando pela porta sob o olhar orgulhoso do secretário. Naquele momento, teria alegremente preferido enfrentar sozinho
dez guerreiros gauleses.
Como seria de esperar, o escritório do legado era espaçoso. Ao fundo, encontrava-se uma mesa com o tampo em mármore negro, atrás da qual se sentava Tito Flávio Sabino
Vespasiano, de cenho franzido e a acabar de ler a carta.
- Bem, centurião, o que é que fazes aqui?
- Senhor?
- Devias estar de guarda.
- Obedeço a ordens, senhor. Foi-me ordenado que acompanhasse este novo recruta até ao quartel-general e que me certificasse de que o senhor recebia a carta.
- Quem to ordenou?
- Lúcio Batácio Bestia, senhor. Está a substituir-me até que eu regresse, senhor.
- Está a substituir-te? - Vespasiano fez uma careta de desagrado. Depois olhou para o jovem recruta em pé, ao lado de Macro, imóvel tentando destacar-se o menos
possível. O legado olhou-o de cima a baixo, para avaliar o seu potencial. - Tu é que és Quinto Licínio Cato?
- Sim, senhor.
- Do palácio?
- Sim, senhor.
- Não é muito normal, deixa que te diga. - disse Vespasiano num tom pensativo. - O palácio não costuma gerar recrutas para as legiões, com a excepção da minha esposa;
mas até ela está a ter dificuldades em
se adaptar às condições miseráveis da habitação de um legado. Duvido que o nosso estilo de vida vá ser do teu agrado, mas agora és um soldado e não há nada a fazer.
- Sim, senhor.
- Esta carta - Vespasiano agitou o manuscrito - é uma carta de apresentação. Regra geral, o meu secretário encarrega-se deste tipo de assuntos banais porque eu tenho
coisas mais importantes para fazer, como, por exemplo, comandar uma legião. Portanto podes imaginar como me irritou que o tribuno perdesse o seu tempo e, mais importante,
o meu, com este assunto. - Vespasiano fez uma pausa e os dois subordinados encolheram-se sob o seu olhar. Depois prosseguiu num tom mais moderado. - Mas, no entanto,
como esta é uma carta de Cláudio, como tu bem sabes, devo respeitar o seu poder para incomodar um dos seus legados com detalhes insignificantes. Diz-me ele que em
agradecimento pelos serviços prestados pelo teu pai a Roma durante os seus últimos anos de vida, te converte num homem livre e deseja que te nomeie centurião na
minha legião.
- Oh - deixou fugir Cato. - E isso é bom, senhor?
Macro abanou a cabeça, tomado de fúria durante um breve momento, antes de recuperar o controlo e apertar os punhos com força.
- Algum problema, centurião? - perguntou Vespasiano.
- Não, senhor. - Macro conseguiu responder por entre os dentes cerrados.
- Bem, Cato - continuou Vespasiano num tom neutro - apesar dos desejos do imperador, não existe hipótese alguma de te nomear centurião. Tens quantos anos?
- Dezasseis, senhor. Dezassete para o mês que vem.
- Dezasseis... Nem um homem és ainda, quanto mais estares apto para liderares homens feitos.
- Se me permite, senhor, Alexandre tinha apenas dezasseis quando comandou o seu primeiro exército em batalha.
As sobrancelhas de Vespasiano levantaram-se numa reacção de surpresa.
- Comparas-te portanto a Alexandre? Que sabes tu de assuntos militares?
- Estudei o tema, senhor. Conheço a obra de Xenofonte, Heródoto, Tito Lívio e, claro, Júlio César.
- E isso faz de ti um perito no exército romano moderno, certo?
- Vespasiano estava a divertir-se com a desmedida soberba do jovem.
Enfim, devo confessar que gostaria que todos os nossos recrutas fossem tão versados nas artes da guerra como tu. Seria algo novo ver um
exército a combater com livros em vez de espadas. Digno de se ver, não é verdade, centurião?
- Sim, senhor. Passaríamos a ter apenas dores de cabeça.
- Isso era suposto ser uma piada, centurião? Não gosto que os meus oficiais subalternos se armem em engraçados. Isto é o exército e não uma comédia de Plauto.
- Sim, senhor. Quem, senhor?
- Um dramaturgo - elucidou Cato em tom paciente. - Plauto adaptou obras do teatro grego...
- Chega, rapaz. - interrompeu Vespasiano. - Guarda as tuas tertúlias literárias para o dia em que regresses a Roma. Já está decidido, não serás centurião.
- Mas, senhor...
Vespasiano levantou uma mão para fazer calar o jovem e depois voltou-se para Macro.
- Estás a ver este homem? É um centurião. Como achas que se tornou num?
Cato encolheu os ombros.
- Não faço ideia, senhor.
- Não fazes ideia? Então escuta, rapazinho: este homem, Macro, foi legionário durante muitos anos... quantos anos, centurião?
- Catorze, senhor.
- Catorze anos. E durante esse tempo, percorreu metade do mundo conhecido. Este homem lutou em sabe lá Júpiter quantas batalhas e escaramuças menores. Foi treinado
para usar todas as armas do exército. É capaz de percorrer mais de trinta quilómetros num dia, carregado com o equipamento de campanha e todos os apetrechos. Foi
ensinado a nadar, construir estradas, pontes e fortes. É capaz de fazer tudo isso e muito mais. Este homem pôs a salvo os seus soldados quando os germanos os isolaram
do outro lado do Reno. E então, só então, foi considerado digno de ascender a centurião. Diz-me, de tudo isto que te acabei de dizer, o que és capaz de fazer?
Cato deteve-se e pensou.
- Sei nadar, senhor... um pouco.
- E estás a pensar fazer carreira na armada? - perguntou Vespasiano, na expectativa.
- Não, senhor. Enjoo quando entro num barco.
- Pelos deuses! Bem, temo que o facto de saberes nadar não te habilita para o comando de um grupo de homens, mas como necessitamos, para o próximo ano, de todos
os homens a que podemos deitar as mãos, vou permitir que te alistes na Segunda Legião. Podes retirar-te... hum...
esta é a maneira como no exército dizemos "por favor, sê um bom rapaz e espera do lado de fora".
- Sim, senhor.
Logo que o jovem saíu, Vespasiano meneou a cabeça em jeito de desaprovação.
- Em que é que o mundo se está a transformar? Achas que podemos fazer dele um soldado, centurião?
- Não, senhor - respondeu Macro de imediato. - O exército é um lugar demasiado perigoso para críticos de teatro.
- Também Roma o é - suspirou Vespasiano, ao recordar o destino daqueles que haviam ousado dar uma opinião precipitada sobre a produção literária mais tardia de Calígula.
E a situação não tinha melhorado sob o governo de Cláudio, o seu sucessor.
O novo administrativo imperial, o liberto Narciso, tinha espiões por todo o lado, encarregados de recolher informações sobre a duvidosa lealdade de qualquer romano
que julgasse ser uma ínfima ameaça para o novo regime. Depois da tentativa falhada de um golpe de estado por parte de Escriboniano, respirava-se em Roma um clima
pernicioso, e Vespasiano tinha sido informado recentemente da detenção de vários dos amigos mais próximos da sua mulher. Fazia pouco tempo que Flávia, atemorizada,
se lhe havia reunido na base e Vespasiano desejava, se bem que não fosse a primeira vez, que a sua esposa fosse mais prudente a escolher as suas amizades. Não podia
esperar outra coisa, pensava Vespasiano, ao ter-se casado com uma mulher que tinha sido educada na mais alta esfera política da família imperial. O mesmo se passava
com o jovem que aguardava do outro lado da porta. Vespasiano levantou a vista da sua mesa.
- Muito bem, centurião, veremos o que se pode fazer a respeito do jovem Cato. A tua centúria está recuperada? Não perdeste recentemente o teu assistente?
- Sim, senhor. O optio morreu esta manhã.
- Ah, sim? Bem, isso facilita as coisas. Alista o rapaz na tua centúria e nomeia-o optio.
- O quê?! Mas, senhor...
- Mas, nada. É uma ordem. Não vou nomeá-lo centurião, mas também não posso fugir a um mandato imperial. Portanto, a decisão é inevitável. Podes retirar-te.
- Sim, senhor. - Macro saudou, deu meia volta e saiu apressado, amaldiçoando entre dentes.
O posto de optio dependia tradicionalmente da nomeação de um centurião e valia uma boa porção de dinheiro. Tinha que assegurar-se,
fosse como fosse, de que o fedelho não durasse muito tempo. Ao fim e ao cabo, um jovem imberbe da cidade que nem parecia sequer estar muito interessado na vida militar,
podia facilmente ser induzido a pedir licença do exército se sofresse as pressões adequadas.
Cato aguardava-o no exterior. O rapaz esboçou um meio sorriso e Macro conteve-se para não lhe dar uma cabeçada.
- O que foi então decidido, senhor?
- Cala-te e segue-me.
- Sim, senhor.

III

- Rapazes, apresento-vos o novo optio.
No refeitório escuro, as caras voltaram-se para o centurião, iluminado por uma pálida luz laranja proveniente das poucas lâmpadas a que se podiam dar ao luxo. Logo
que os seus olhares passaram do centurião para o jovem alto ao lado dele, poucos foram os que dissimularam o seu assombro.
- Senhor... disse o novo optio? - perguntou alguém.
- Disse sim, Pirax.
- Mas... não é jovem demais?
- Parece que não - respondeu Macro, amargamente. - O imperador decretou um novo procedimento para a selecção dos oficiais subalternos. A partir de agora, têm todos
que ser altos, escanzelados e peritos em história greco-latina. E aqueles que se deram ao trabalho de ler livros esquisitos de literatura recebem um tratamento privilegiado.
Os homens olhavam-no sem perceber nada, mas Macro estava demasiado contrariado para lhes dar uma explicação detalhada.
- Bem, aqui está ele; Pirax, quero que o leves ao administrativo. Inscreve-o e dá-lhe uma placa. Fará parte da tua secção.
- Senhor, pensava que apenas os oficiais podiam inscrever os recrutas.
- Agora estou ocupado demais para isso - bradou Macro. - De qualquer forma, é uma ordem. Deixo-o sob tua responsabilidade. Vá, ponham-se a andar.
Macro saiu a toda a pressa do refeitório e dirigiu-se para o seu quartel. Piso aguardava-o no seu pequeno escritório, com alguns papéis.
- Senhor, se tivesse a amabilidade de assinar...
- Mais tarde - respondeu Macro, agitando uma mão e agarrando com brusquidão uma capa seca. - Tenho que voltar para a guarda.
Ao fechar-se a porta, Piso encolheu os ombros e voltou para a secretária.

Algum tempo depois, Cato estava sentado numa liteira das casernas. Era tão alto que batia com a cabeça na palha colocada sob as telhas do tecto. Estremeceu ao pensar
se não haveria ratazanas entre as vigas, e começou a torcer com nervosismo a placa de chumbo que lhe pendia do pescoço. Nela estavam gravados o seu nome, a sua legião
e o selo imperial. Tê-la-ia junto de si até ao dia em que abandonasse o exército ou morresse em combate. Nesse caso, serviria para identificar o seu cadáver. Com
o queixo apoiado sobre os joelhos, Cato perguntava-se como iria ver-se livre daquela desagradável situação. A caserna da sua secção, com liteiras apinhadas para
oito homens, não era maior do que um dos estábulos reservados para os cavalos do palácio.
E estes homens!
Mais pareciam animais. Pirax tinha dado uma volta com ele pelo refeitório, para o apresentar, e Cato tinha feito um enorme esforço para dissimular o asco que sentia
por aqueles legionários fedorentos, bêbados, sempre a arrotar e a peidar-se com gosto. Por outro lado, eles pareciam nem saber como encará-lo, apesar de Cato ter
pressentido algum ressentimento da parte deles. Ao que parece, eram muitos os que se esforçavam para conseguir o posto de optio. Em nome, Cato era o superior deles,
mas em nada lhe foi dado a entender que iria ser tratado como tal.
As conversas deles limitavam-se a discutir quem tinha tido mais mulheres, quem havia morto mais bárbaros, quem cuspia mais longe, quem dava os peidos mais fortes...
- e outras coisas do mesmo género. Talvez fosse estimulante para os sentidos, mas não para a mente. Depois de esperar o que julgou ser um período apropriado, Cato
havia pedido a Pirax o favor de o levar aos seus aposentos. Ao som da sua voz, todo o refeitório se quedou boquiaberto, sem acreditar no que ouvira. Cato apercebeu-se
então que tinha metido a pata na poça, e pensou que as coisas acalmariam se fosse recolher-se mais cedo.
No dia seguinte, ao entardecer, quando o crepúsculo se abatia sobre a fortaleza e o gélido vento do Inverno começava a fazer-se sentir, Cato entrou na caserna arrastando
pesadamente os pés. A sua secção estava mergulhada em silêncio, mas ao fechar a porta apercebeu-se de que não estava só. Sentiu uma pontinha de irritação por essa
intromissão num momento em que esperava encontrar alguma intimidade. Pirax estava sentado na sua liteira a remendar uma túnica de reserva, à luz débil de um postigo
aberto. Olhou para Cato enquanto este subia para a sua liteira e se deixava cair nela sem se despir.
- Um dia duro, hã, novato?
- Sim - grunhiu Cato, sem vontade de iniciar uma conversação.
- Pois só vai piorar.
- Hum?
- Achas que aguentas?
- Sim - disse Cato, com firmeza. - Aguento.
- Não me parece - Pirax abanou a cabeça distraidamente. - És fraco. Dou-te um mês no máximo.
- Um mês?! - replicou Cato, irritado.
- Sim, um mês se fores esperto... Mais, se fores idiota.
- Do que é que estás a falar?
- Não faz sentido nenhum estares aqui. Não foste feito para isto... não passas de um miúdo que ainda mija nas calças.
- Tenho quase dezassete anos. Já posso ser um soldado.
- És demasiado jovem. E não estás em forma. Bestia vai dar cabo de ti em menos de nada.
- Não vai não. Podes estar certo. - Imprudentemente Cato deixou-se levar por um arrebatamento de fervor adolescente: - Prefiro morrer!
- Sim, pode chegar a esse ponto. - Pirax encolheu os ombros.
- E não acredito que muita gente o vá lamentar.
- O que é que queres dizer com isso?
- Nada... - E, com um encolher de ombros, continuou a coser sob o olhar de Cato, sem fazer caso da vergonha que tinha causado ao jovem. Em vez de lhe prestar atenção,
concentrou-se em costurar os pontos bem rectos. Cato observava-o sem nenhum interesse: tinha visto os escravos do palácio a remendar roupa milhares de vezes. No
entanto, o trabalho de fiar, tecer e coser sempre havia sido levado a cabo por mulheres, e por isso, era uma novidade ver um homem manejar a agulha com tanta habilidade.
Cato estava perfeitamente consciente de que a sua nomeação como optio era a causa de tanta antipatia para com ele. Parecia que até já era alvo da antipatia de Bestia,
o centurião encarregado da instrução. Ainda pior, alguns recrutas não dissimulavam a sua hostilidade para com ele, especialmente um grupo de homens enviados para
a legião, provenientes da prisão de Perúsia, e que haviam feito toda a viagem unidos por uma corrente. O seu autoproclamado líder era um homem que se destacava por
ter um corpo maciço e ser tão feio que já lhe chamavam Pulcher, o belo.
Certo dia, durante a viagem, Cato caminhava precisamente atrás de Pulcher quando este lhe pediu um gole do seu cantil de vinho. Era uma coisa sem importância, mas
o tom empregue fora tão ameaçador que Cato lhe passou o cantil sem pensar duas vezes. Pulcher bebeu à vontade; quando Cato lhe pediu o cantil de volta, já este tinha
sido passado aos seus amigos.
- Quere-lo de volta, rapazinho? - perguntou Pulcher com um sorriso feio e ameaçador. - Então vem buscá-lo.
- Devolve-mo!
- Obriga-me
Cato até estremeceu ao recordar aquela situação e a consciência teimava em perguntar-lhe se aquela fora a atitude própria de um soldado. Um soldado de verdade teria
esmurrado aquele homem e recuperado o maldito cantil. Mas o lado racional da sua mente opunha-se à ideia, pois um homem tinha que ser do tamanho de um touro para
fazer frente a Pulcher, com os seus braços robustos e as mãos enormes como pás. Como se lhe tivesse lido o pensamento, Pulcher grunhiu ameaçadoramente e, instintivamente,
Cato deu um passo atrás, o que fez com que todos desatassem a rir-se às suas custas. Ficara vermelho de vergonha e ainda agora se sentia mal com o facto, apesar
de argumentar consigo próprio que a retirada perante uma força superior era um acto bastante razoável, na verdade era até prova de um espírito virtuoso e brilhante.
Um soldado
mais simpático da escolta recuperou-lhe o cantil e devolveu-o por entre as gargalhadas dos demais. Pulcher ainda cuspira na sua direcção, antes ,que um soldado lhe
desse com a parte romba da lança, obrigando-o a voltar a colocar-se na fila.
- Vemo-nos no acampamento, rapazinho - grunhiu Pulcher, agitando as correntes. - Logo que me veja livre disto.
Desde a sua chegada à fortaleza, os recrutas haviam estado ocupados com os afazeres próprios do exército, e Cato esperava que Pulcher se tivesse esquecido de si.
Tinha feito todos os possíveis para ficar o mais longe possível dele, até evitando o olhar dele a ponto de quase se fazer invisível. Agora, Cato preferira regressar
às casernas depois da instrução. Era imprescindível fazer amigos quanto antes, pensou. Mas como? E quem? Os outros tinham constituído pequenos grupos durante a viagem
desde Avêntico, enquanto ele passara o tempo a ler o maldito Virgílio, recordou com súbita fúria. Dava tudo para voltar a iniciar aquela viagem, sabendo o que sabia
agora.
Estava só e longe dos seus amigos de Roma. Por um momento, sentiu-se imensamente desgraçado e vieram-lhe lágrimas aos olhos. Virou o rosto para a parede e escondeu
a cara no tecido áspero que cobria o seu leito de palha. O peito estremecia-lhe e, de repente, sentiu muita raiva, raiva de si mesmo, raiva da sua cobardia, raiva
de não ser homem o suficiente para não chorar e raiva porque a vida não o tinha preparado minimamente para aquelas circunstâncias. Todos os seus petulantes mestres
de grego e a sua estúpida admiração pela retórica e poesia mais selectas... De que é que lhe serviam agora? Como ia a poesia protegê-lo daquele outro animal, o centurião
Bestia? Nesse momento, trocaria de bom grado todos os seus conhecimentos e toda a sua cultura por um só amigo.
Pirax parou de coser e olhou-o com a agulha sobre a túnica. Ouvira o rapaz a virar-se na liteira e apercebera-se dos soluços abafados. Pirax baixou a cabeça, com
pena. A maioria dos recrutas eram fortes e adultos o suficiente para resistirem. Mas também havia alguns jovens, como aquele, que não deviam estar no exército. Podia
ser que os tornasse homens, mas também podia dar cabo deles de vez.
O rapaz voltou a soluçar, tentando abafar o choro no cobertor.
- Eh... - chamou Pirax, com severidade. - Importas-te? Estou a tentar concentrar-me aqui!
Cato estacou. - Perdão... acho que me constipei.
- Pois claro - disse Pirax, e acenou com a cabeça. - É normal com este tempo.
Cato esfregou a cara na borda do cobertor militar de tecido rude,
tentando secar as lágrimas e fingindo que assoava o nariz. - Já está.
- Estás melhor?
- Sim, obrigado - disse Cato, agradecido por alguém se interessar por ele.
De imediato surgiu-lhe a preocupação de que alguém entrasse e interrompesse aquela ocasião para falar com Pirax.
- Onde estão todos?
- A jogar aos dados no refeitório. Vou ter com eles mal acabe isto. Queres vir comigo e conhecer melhor a rapaziada?
- Não, obrigado. Preciso de dormir um pouco.
- Como queiras.
- Diz-me - pediu Cato, soerguendo-se no colchão - aquele centurião, o Bestia, ele é tão canalha quanto parece?
- Porque é que achas que se chama Bestia? Mas não o leves a peito, ele trata todos os recrutas da mesma maneira.
- Talvez - disse Cato, não muito convencido - mas parece-me que a mim já me tomou de ponta.
- O que é que esperavas? - replicou Pirax entre dentes, ao mesmo tempo que dava um nó e cortava o fio excedente. - Estás no acampamento há uma noite e já te elevaram
a um posto para o qual muitos de nós temos de esperar anos.
Cato olhou-o demoradamente antes de lhe perguntar:
- Ficaste aborrecido?
- Claro. Ainda não provaste o teu valor de nenhuma maneira. És apenas um rapaz. Não está certo!
Cato corou de vergonha e culpa, aliviado por a luz ténue não lhe iluminar o rosto.
- Não fui eu quem pediu o posto.
- Não faz sentido. As nomeações directas são apenas para homens com muita experiência no exército. Mas tu?... Adorava saber a razão.
- Foi uma recompensa para o meu pai.
- Ah! Essa é boa!
Já se tinha feito noite e Pirax levantou-se e colocou a túnica de lado.
- A propósito - disse, ao chegar junto da porta - não adormeças com essa roupa. Tem que estar limpa e direitinha amanhã. Bestia não
suporta soldados desleixados. Se ele já te tomou de ponta, não lhe dês mais desculpas para te cair em cima.
- Obrigado.
- Dorme bem, rapaz.
- O meu nome é... - começou Cato, mas a porta já se tinha fechado e as suas palavras desvaneceram-se na obscuridade da caserna.
Ficou sem se mexer uns instantes e quase que adormeceu, mas a advertência de Pirax fê-lo recuperar a consciência de repente. Levantou-se e procurou às apalpadelas
as fivelas laterais das suas vestes de couro. Os instrutores haviam mantido acordados os novos recrutas desde o nascer do sol. Tinham-no arrancado da cama quando
ainda não havia luz e empurrado para a rua, onde estavam reunidos os demais recrutas. À luz pálida do amanhecer tinham sido conduzidos, ensonados, a tremer de frio
e encolhidos sob a chuva fina, até à intendência onde os tinham feito despojar-se das suas roupas civis para receberem em troca o uniforme de legionário.
- Desculpe! - chamou'Cato. - Desculpe!
O ajudante do intendente voltou a cabeça e olhou-o sobre o ombro.
- O que é?
- Parece-me que esta túnica me fica um pouco grande.
O ajudante soltou uma gargalhada.
- Não, amigo. O tamanho está certo. Tu é que és do tamanho errado. Agora estás no exército. O tamanho é igual para todos.
- Mas veja bem isto. É ridículo! - Cato segurou a túnica à sua frente. Era larga demais para a sua estrutura magra e, com a sua altura, a bainha ficava-lhe pelos
joelhos.
- Vou ficar com as pernas geladas. Não têm outra coisa?
- Não. Vais acabar por te ajeitar a isso.
- O quê? - replicou Cato, incrédulo. - Eu tenho o tamanho que tenho. Não vou encolher ou inchar de repente. Arranje-me uma coisa mais adequada.
- Já te disse. Isso é o que há, tens que te aguentar.
As suas vozes ouviam-se por toda a sala e os outros recrutas calaram-se para os observar. Na pequena sala que havia por detrás do balcão, uma cadeira chiou no chão
de pedra e surgiu pela porta fora um homem corpulento que lhes gritou, furioso:
- Que barulheira é esta?
- O senhor é que é o encarregado? - perguntou Cato, feliz por ver chegar alguém com autoridade a quem pudesse dirigir a sua queixa. O serviço era tão mau como nas
lojas de Roma. Contratavam empregados incompetentes, gentinha que nem se importava nem conhecia os artigos que era suposto venderem. Vira-se obrigado a reclamar
tantas vezes ao fazer compras para o palácio que sabia agora a atitude exacta a adoptar.
- Eu estava a tentar explicar a este homem...
- Quem raio és tu? - rugiu o intendente.
- Quinto Licínio Cato, optio da Segunda Legião, quarta coorte. O intendente franziu o cenho por um instante e logo soltou uma
risada.
- Ah! Já me falaram de ti, optio! Ah! Muito bem, optio - sorriu.
- Que se passa, então?
- Ouça, apenas quero que este homem me dê roupa do meu tamanho.
- Dá-me licença? - O intendente estendeu a mão para pegar na túnica, e Cato entregou-a prontamente.
O intendente examinou aparatosamente a peça; passou a mão pelas costuras grosseiras e depois susteve-a contra a luz que vinha das janelas abertas.
- Sim - disse, finalmente. - Esta é uma túnica normal, em perfeito estado. Não tem nenhum defeito.
- Mas...
- Já disse! - O intendente atirou a túnica para cima do balcão.
- Agora, pega nela, põe-te a andar e não me faças perder mais tempo.
- Mas...
- E chama-me senhor... seu fedelho espertalhão!
Cato abriu a boca para expressar a sua indignação, mas mordeu a língua.
- Sim, senhor.
- Vamos, vai recolher o resto do teu equipamento.
O intendente dirigiu-se para o seu escritório, e só então se deu conta de que toda a gente havia interrompido os seus afazeres para desfrutar do espectáculo.
- Para onde raio estão a olhar?
A sala da intendência recuperou a sua actividade, e os novos recrutas continuaram a recolher o equipamento que lhes estava destinado. Com um encolher de ombros,
Cato pegou na túnica e ficou junto do balcão, à espera que o ajudante terminasse de empilhar a sua roupa. Para além da túnica, havia ainda um par de calções, um
gibão de couro amarelo, uma capa grossa impermeabilizada com gordura animal, umas botas com a sola coberta de pregos de ferro e um prato de campanha. O ajudante
deslizou pelo balcão uma tábua.
- Assina aqui ou faz uma marca.
- O que é isso?
- Um recibo para as tuas roupas civis.
- Como?
- Ninguém pode ficar com roupa. Vais dar-ma depois de vestires
o uniforme. Nós vendemo-la no mercado e damos-te o dinheiro.
- De maneira nenhuma! - exclamou Cato.
O ajudante virou-se para o escritório e abriu a boca para chamar.
- Espera! - adiantou-se Cato. - Eu assino. Mas é mesmo necessário vender as minhas roupas? Gostava de ficar com as botas e a capa de viagem.
- Os recrutas têm que andar sempre de uniforme. Não podes vestir-te de qualquer maneira. De todas as formas, também não temos espaço para guardar a roupa. Só te
posso prometer que vamos tentar vendê-las por um bom preço.
Por algum motivo, Cato duvidava que lhe dessem muito em troca das roupas.
- E como é que posso ter a certeza de que me vão dar toda a soma?
- Estás a acusar-me de desonestidade? - disse por sua vez o ajudante, fingindo indignação.
Cato despiu a roupa lentamente e vestiu-se com a túnica que lhe tinham dado. Caía-lhe tão mal quanto suspeitara e fazia-lhe lembrar as túnicas curtas que as prostitutas
de Roma usavam. Os calções compridos eram incómodos e tinha que os atar bem acima das ancas magras para que não escorregassem. E, ainda por cima, eram de um tecido
tão rude que lhe fazia uma comichão terrível. Igualmente incómodas eram as pesadas botas militares, feitas de couro espesso e cordões duros. Os pregos de ferro na
sola faziam um ruído metálico quando andava sobre pedra. Alguns dos recrutas mais jovens divertiam-se a fazer saltar fagulhas do solo, até que o intendente voltou
a assomar à porta e lhes gritou para que parassem quietos. Depois de calçar e atar as botas, Cato passou o pesado gibão de couro pela cabeça e apertou as fivelas
que havia de ambos os lados. Não era uma tarefa fácil, já que o couro do gibão novo era bem duro. Era difícil inclinar-se para a frente e só conseguia chegar aos
laços das botas com um grande esforço. Deu-se conta de que, por algum motivo, o seu gibão tinha um pedaço de tecido branco cosido sobre o ombro direito. Lançou uma
olhadela aos recrutas em redor e apercebeu-se de que o seu era o único com esse detalhe.
A porta principal que conduzia ao edifício da intendência escureceu de repente, e Cato levantou os olhos para ver entrar o centurião Bestia. Este colocou-se precisamente
no centro da sala e abanou a cabeça em sinal de lástima, ao contemplar os novos recrutas, ao mesmo tempo que dava pequenos golpes nas suas perneiras prateadas com
a ponta da sua vara de videira.
- Estejam quietos! - gritou, e a sala mergulhou num silêncio sepulcral. Conforme ia caminhando a todo o comprimento da sala, os
recrutas foram-se alinhando nervosamente junto à parede. Então Bestia disse com desprezo:
- Nunca, mas mesmo nunca, vi um grupo semelhante de mulheres! Muito bem, minhas meninas... toca a andar lá para fora, agora mesmo!
A chuva tinha-se dissipado com a chegada do sol, que brilhava através de uma ténue neblina. Sentia-se na pele a frescura do ar frio e, a toda a volta, a fortaleza
fervilhava de actividade. Bestia adorava ensinar os novos recrutas. Como bom instrutor, tinha acumulado uma série de repreensões para toda e qualquer situação, assumindo
ao mesmo tempo, sem problema, o papel de homem inflexível com algumas preocupações pelos soldados a seu cargo. Com o tempo, ficariam a admirá-lo como a um pai...
mas talvez não todos.
Ao passar os olhos pelas filas, Bestia deteve-se em Cato, cuja cabeça sobressaía de todas as outras e ainda mais por estar ao lado de Pulcher.
- Tu! Sim, tu, senhor amiguinho pessoal do imperador! - gritou Bestia, ao acercar-se de Cato, dando-lhe um golpe com a vara no pedaço de tecido branco. - Que merda
é esta aqui?
Cato estremeceu.
- Não sei, senhor...
- Não sabes? Há quanto tempo é que estás no exército? Quase há meio dia e ainda não sabes reconhecer as insígnias dos postos?!
De pé, mesmo em frente a Cato, Bestia fulminava-o com o olhar
pouco menos de um palmo de distância. - Maldito sejas! Que merda de soldado és tu?
- Não sei senhor, eu...
- Não baixes os olhos quando te falo! - Bestia salpicou-lhe a cara com saliva, ao gritar. - Mantém o olhar em frente! Constantemente. Fiz-me entender?
Cato endireitou-se e olhou em frente.
- Sim, senhor.
- Porque motivo trazes uma insígnia de optio?
- Porque sou um optio, senhor.
- O caralho é que és! - gritou Bestia. - Não promovemos donzelas assim do dia para a noite.
- Por acaso fui nomeado optio ontem à noite, senhor - explicou
Cato.
- Então optio hoje, centurião amanhã, tribuno depois de amanhã... A este passo, serás imperador antes do final da semana. Achas que tenho cara de idiota, rapaz?
- Desculpe, senhor - disse um dos instrutores, em voz baixa,
atrás de Bestia. - O rapaz é mesmo optio.
- O quê? - Bestia apontou-o com o dedo gordo. - Este aqui?
- Esse mesmo, senhor. Foi nomeado directamente pelo legado. Já foi incluído na nova lista de turnos e tudo, senhor. - O instrutor mostrou-lhe a tábua de cera e indicou-lhe
o nome de Cato.
- Quinto Licínio Cato, optio - leu Bestia em voz alta. De seguida virou-se para Cato com um olhar ameaçador. - Então era isso que dizia a tal carta! Amigos em lugares
importantes, hã? Pois não te vai servir de nada, Pode ser que sejas optio, mas estás na recruta e vais receber o mesmo tratamento que os outros. Fiz-me entender?
- Perfeitamente, senhor.
- Na verdade - Bestia aproximou-se dele e sussurrou-lhe - até te vou tratar pior. Já que te nomearam optio, vais ter que sofrer para merecer o posto.
Então deu meia volta e afastou-se de Cato. Colocou-se a uns dez passos da primeira fila de recrutas.
- Primeira lição, minhas meninas. A posição de sentido. Os vossos instrutores organizaram-vos em três fileiras, a um passo de distância do homem ao vosso lado, e
a dois entre as fileiras. Recordem a vossa posição. Daqui em diante, quando vos ordenar que formem fileiras, irão imediatamente para o lugar onde estão agora. Quando
não têm armas, a postura correcta para a posição de sentido é esta.
Bestia largou a vara, encheu o peito, endireitou ainda mais os ombros, ergueu o queixo e baixou os braços ao longo do corpo, com as mãos abertas junto às coxas.
Fez uma pausa para se dirigir aos recrutas.
- Estão a ver? Muito bem, quero ver como fazem.
Com alguma vergonha, os recrutas fizeram os possíveis para adoptar a postura, enquanto os instrutores passavam por entre as fileiras para corrigi-los sempre que
necessário. Uma vez satisfeito, Bestia continuou.
- Agora, quando estão em sentido, devem olhar em frente aconteça o que acontecer. Aconteça mesmo o que acontecer! Se Vénus em pessoa passar a cavalgar seguida de
cem virgens nuas e eu vir um de vocês nem que seja a pestanejar, desfaço-vos à pancada. Fiz-me entender? Eu
PERGUNTEI SE ME FIZ ENTENDER!
Os recrutas estremeceram antes de assentirem desordenadamente.
- Mais alto, cabrões! Quero ouvir-vos!
- Sim Senhor!
- Bem melhor... - Bestia sorriu, - Agora cada um de vós é uma parte de um mesmo corpo. De agora em diante, vão mover-se, falar e pensar como um só... Muito bem,
agora vamos para a armaria
buscar as vossas armas. E quando eu disser "Preparar para marchar... Marchar!" dão um passo com o pé esquerdo e sem perder a posição. Eu marcarei o passo. Vamos
marchar a passo lento. Bem, minhas meninas. Preparar para marchar! Marchar! Esquerda. Direita. Esquerda. Direita. Esquerda... Esquerda... Esquerda...
Liderados pelo centurião e flanqueados pelos instrutores, os recrutas iniciaram a marcha a passo lento numa coluna desordenada. Cato tratava de seguir o ritmo, mas
o recruta que tinha à frente, Pulcher, tinha um passo curto e forçava-o a fazer esforço para não chocar com ele. Era preciso um grande acto de fé para crer que dois
homens com tamanhos tão díspares pudessem marchar em fila ao mesmo passo. Como se os próprios deuses o tivessem querido comprovar, Cato tropeçou no calcanhar de
Pulcher.
- Merda! Vê onde pisas, anormal - disse-lhe Pulcher, que parou e se virou furioso.
- Vocês aí! Não quero conversas nas fileiras! - gritou-lhes um instrutor. - Vão ser castigados! Toca a marchar!
O recruta baixo e maciço olhou para Cato com cara de poucos amigos e recuperou o passo. Momentos depois, disse para Cato sem olhar para trás:
- Vais pagar-me por esta.
- Desculpa - replicou Cato.
- Isso não chega.
- Foi sem querer.
- Azar o teu.
- Mas eu...
- Fecha a merda da boca antes que me arranjes mais problemas!
Cato prosseguiu a marcha atrás de Pulcher, procurando manter
uma distância segura dos pés dele.
Os recrutas pareciam confusos, pensou Macro divertido, enquanto os observava do lado da secretária do armeiro-chefe. A todos lhes havia sido dado um capacete, uma
cota de malha e uma adaga, e agora deambulavam pelo arsenal, entusiasmados, como Macro já vira centenas de outros recrutas fazer. A emoção de vestir um uniforme
de soldado pela primeira vez era eterna e os recrutas olhavam uns para os outros com admiração. Então, os armeiros começaram a entregar as pesadas espadas de madeira,
os grandes escudos rectangulares e as lanças de instrução. Os recrutas olhavam para as armas, incrédulos, visivelmente desiludidos.
- Sempre a mesma coisa, não é? - disse Macro, com um sorriso.
- A ilusão dura apenas um dia - replicou Cévola. - Nunca aprendem! O que é que se passa com os jovens de hoje?
- O mesmo que se passava connosco. Também já foste assim.
- O caraças! - Cévola cuspiu da sua boca desdentada - Diz-me, jovem Macro, que fazes tu aqui hoje? Há um ano que não te via. Da última vez, quando bebemos umas canecas
e jogámos aos dados, eras apènas um miserável legionário. E agora, olha para ti. Centurião Macro! A maldita legião marcha nos teus calcanhares. - Levantou o olhar
e viu como brilhavam os olhos do centurião. - Se vieste para me sacar o pouco que deixaste da última vez...
- Desta vez não - Macro sorriu e levantou a sua caneca. - Vim apenas partilhar um pouco de vinho com um veterano e comentar os estranhos rumores que andam por aí.
- Estranhos rumores que andam por aí! - exclamou Cévola, com desdém. - Eu sei por que é que vieste.
- Ah sim?
- Não estará relacionado com o maldito inventário ordenado pelo legado?
- Por acaso não. - Macro levantou o jarro e encheu a caneca de Cévola. - Porque haveria eu de me interessar por isso?
- Serias o único na legião a não te interessares. - Cévola deu um gole. - De qualquer maneira, não posso dizer-te nada: são ordens.
- Sim, claro - repetiu Macro. - São ordens. Mas pergunto-me para onde nos enviam. Espero que seja um lugar quente, para variar. Estou farto da Germânia até à ponta
dos cabelos. Congelamos no Inverno e assamos no Verão; e é impossível encontrar um bom vinho... quer dizer, a um bom preço.
Macro enfatizou a última observação. O vinho que estavam a tomar era a última garrafa de vinho de Falerno que Macro guardara e não o habitual vinagre dos gauleses
que os comerciantes vendiam na zona. Esperava que Cévola apreciasse o detalhe e, ao mesmo tempo, que o vinho lhe soltasse a língua. Macro não queria saber apenas
por curiosidade: um centurião tinha que fazer planos de antemão. Era útil saber para onde ia ser enviada a legião, para que pudesse preparar convenientemente a transferência,
e comprar o necessário para a viagem antes que a notícia se tornasse oficial, as provisões voassem e os comerciantes fizessem disparar os preços. Cévola esvaziou
de um trago a caneca, e Macro voltou a enchê-la imediatamente.
- Qualquer que seja o destino que nos aguarda, espero que haja por lá boas bebidas.
- Duvido! - exclamou Cévola, com um suspiro. - Mais vale que aproveites este vinho agora. Não haverá muito que beber lá.
- Nada de nada? - Macro fingiu horror.
- Nada - respondeu Cévola e, de imediato, levantou-se bruscamente, gritando para alguém atrás de Macro. - Não se passa nada com essa maldita espada! Agarra-a como
deve ser!
Macro deu meia volta para ver quem era o alvo da fúria de Cévola. Como seria de esperar, ali estava aquele novo rapaz infernal. Examinava a sua curta espada de madeira,
enquanto a segurava pela ponta.
- Mas, senhor, esta espada não é verdadeira. É de madeira.
- Claro que é de madeira, seu burro.
Bestia, ao abrir caminho por entre a multidão de recrutas para ver quem causava aquele alvoroço, vociferou:
- O quê? Estás a dar problemas outra vez? O que é que se passa? A espada também tem o tamanho errado?
- Não, senhor. É de madeira. Não é uma espada a sério, senhor.
- De madeira? Claro! Não é uma espada a sério porque tu também não és um soldado a sério. Se algum dia fores um soldado a sério, terás uma espada a sério.
Bestia encheu os pulmões para se dirigir, aos gritos, a todos os recrutas.
- Como a maior parte de vocês já deve ter reparado, como aqui este imbecil, as armas que vos foram dadas não são verdadeiras. Porque, na verdade, vocês não as merecem.
E se vos déssemos armas de verdade, as minhas meninas iam magoar-se umas às outras em menos de nada. E o exército não está interessado em poupar ao inimigo esse
trabalho. Assim, antes de poderem pegar numa espada, devem aprender a respeitá-la. Devem aprender a usá-la correctamente. E o mesmo se passa com a lança. Vocês agora
julgam as armas pesadas. É porque pesam o dobro das verdadeiras. Vocês são uma escória fraca e ociosa e o exército quer converter-vos em homens fortes. E isso só
é possível com uma boa instrução e muito exercício, e quando digo muito, é mesmo muito, minhas meninas! Por isso é bom que comecem já a habituar-se ao peso. Agora,
quanto ao cinturão da espada, deve ficar com a espada pendurada à direita e não à esquerda. Isso é para os oficiais. Peguem na lança com a mão direita, o escudo
com a esquerda... e saiam em quatro filas... Imediatamente!
Os recrutas deixaram no chão os escudos e as lanças, e debateram-se com as rijas fivelas dos seus cinturões, antes de voltarem a recolher o equipamento e saírem
a correr pela porta.
- Este vinho é excelente - observou Cévola. - E se bebêssemos mais um pouco?
Restava pouco vinho no frasco, e Macro assegurou-se de que Cévola ficava com a porção de leão; ele ficaria com o que sobrasse.
- De que é que nós estávamos mesmo a falar? - perguntou Cévola.
- De bebidas. Dizias que no local para onde vão enviar a legião, o vinho deixa muito a desejar.
- Eu disse isso? - Cévola levantou as sobrancelhas.
- Presumo que te refiras ao Extremo Oriente - continuou Macro, fingindo indiferença. - Lá não há nada que valha a pena. Só aquela porcaria que fazem com leite de
cabra fermentado, segundo ouvi dizer. Ou pior, até pode ser a Judeia.
Perscrutou o rosto de Cévola à procura de alguma reacção, mas o armeiro-chefe limitou-se a dar outro gole no vinho e assentiu.
- Pode ser a Judeia... ou pode ser que não.
Macro suspirou frustrado. Sacar informação àquele velho astuto era mais difícil do que contrair gonorreia de uma virgem vestal. Decidiu indagar por outra via.
- Diz-me, encomendaste alguma túnica de tecido leve?
- Porque iria eu fazer isso? - estranhou Cévola. - Por que raio iria eu encomendar uma túnica dessas?
Macro respirou fundo para conter a sua crescente irritação pela forma como Cévola evitava dar-lhe a resposta que ele tanto queria.
- Olha, Cévola. Diz-me o que sabes. Uma palavra apenas. E prometo-te que não digo nada a ninguém. Tens a minha palavra.
- Sim, claro - o velho veterano sorriu. - Até que alguém apareça com um jarro de vinho para te soltar a língua. Eu acato ordens. O legado quer manter este assunto
em segredo o máximo de tempo possível.
- Mas porquê?
- Digamos que os homens não vão achar muita piada quando souberem para onde os enviam. - Cévola acabou o resto da sua caneca.
- Bem, agora tenho que voltar ao trabalho. Vespasiano quer o inventário terminado o mais depressa possível.
- Muito bem, obrigado - disse Macro, num tom ressentido, ao levantar-se da mesa. - Obrigado por nada.
- Não tens de quê! - replicou Cévola com um sorriso desdentado.
- Podes aparecer sempre que queiras.
Macro não respondeu, e ia a caminho da porta quando Cévola o chamou:
- Ah, Macro, a propósito!
- Sim?
- Se te apetecer, podes voltar a trazer-me mais deste vinho. Macro rangeu os dentes de raiva e afastou-se da armaria com
grandes passadas.

IV

Ao subir ao pódio do campo do desfile, Vespasiano envergava o uniforme de combate da legião. As perneiras prateadas, o peitoral e
o elmo reflectiam a luz do sol do meio-dia, fazendo-o brilhar intensamente. Uma brisa suave agitava a sua crina e capa vermelhas; atrás dele, os porta-estandartes
seguravam bem alto a águia dourada da Segunda legião e a imagem do imperador Cláudio, mais bonito ali do que no original, pensou Cato. A última vez que vira o imperador
tinha sido num banquete imperial durante o qual ele tentara manter uma conversação com a boca cheia de comida. Sob a águia, estava uma peça quadrada de pele vermelha
com um peso na base, sobre a qual havia sido bordada em letras de ouro "Augusta".
Os recrutas estavam virados para o pódio em quatro filas, com Bestia e os instrutores a cinco passos à frente. Todos estavam de pé, calados, lanças e escudos pousados
no solo, um de cada lado, como lhes havia sido ensinado pouco antes. Os recrutas enchiam o peito, levantavam os queixos e mantinham os ombros direitos, mas, mesmo
assim, Cato não podia deixar de se sentir um pouco ridículo com aqueles objectos a cada lado, pois pareciam uma cesta de vime gigante e um brinquedo de madeira.
Ainda assim, sabia que estava a fazer parte de uma grande ocasião e olhou com solenidade para o pódio onde Vespasiano realizava a oferenda ritual de dois galos aos
deuses; o legado lavou as mãos numa bacia cerimonial, secou-as num pano de seda e deu meia volta para se dirigir aos recrutas reunidos.
- Eu, Tito Flávio Sabino Vespasiano, legado da Segunda legião Augusta, por decreto e pela graça do imperador Cláudio, pressagio um bom augúrio para aqueles hoje
reunidos para se alistarem na Segunda Legião e, como tal, peço e exijo aos presentes que jurem lealdade à legião, ao legado, ao senado e ao povo de Roma, representados
na pessoa
do imperador Cláudio. Legionários, levantem as lanças e façam o vosso juramento comigo...
Duzentos braços levantaram-se e a luz do sol brilhou na ponta das lanças.
- Juro pelos deuses do Capitólio, Júpiter, Juno e Minerva, que acatarei as ordens dos meus superiores por vontade do senado e do povo de Roma, representados na pessoa
do imperador Cláudio. E juro, pelos ditos deuses, que defenderei os princípios da minha legião e da minha centúria até à última gota do meu sangue. Juro-o!
Ao desaparecerem os últimos ecos, fez-se um silêncio mágico por uns instantes e Cato sentiu um nó na garganta. O juramento havia-o transformado num homem diferente.
Já não fazia parte da sociedade; agora tinha uma outra forma de existência. Podia ser sentenciado à morte por um capricho do legado, podiam executá-lo e ele teria
que aceitar. Acabara de votar a sua vida à protecção de um pedaço de ouro inanimado sobre um pau de madeira. Cato tinha as suas dúvidas acerca da sanidade em fazer
um tal juramento. Era uma irresponsabilidade sem sentido prometer obediência incondicional a todo o homem que estivesse acima dele, fosse por destino, nepotismo
ou mérito próprio. E no entanto, havia algo mais: uma emoção arrebatadora e um sentimento de pertença a um grupo imbuído com a mística própria de uma sociedade exclusivamente
masculina.
Vespasiano fez um sinal e Bestia ordenou aos recrutas que poisassem as lanças no solo.
- Novos recrutas da Segunda legião - começou o legado - agora fazem parte de uma unidade com uma orgulhosa tradição, e eu exijo que honreis essa tradição a cada
instante durante os próximos vinte e seis anos. Os meses que se avizinham vão ser duros, como imagino já vos ter sido comunicado pelo centurião Bestia. - Este sorriu.
- Mas serão meses fundamentais para vos converter em soldados de que me sinta orgulhoso. O legionário é o homem mais treinado, o homem mais duro em combate em todo
o mundo civilizado... e isso significa que vos devemos formar para serem um tipo muito especial de homem. Os anos de experiência vão fazer o resto. Ao olhá-los daqui,
vejo homens do campo e homens da cidade. A maioria de vós são voluntários, alguns são conscritos. Mas o vosso passado só a vós pertence, não ao exército. Independentemente
do que tenham sido na vossa vida civil, agora são soldados e é como tal que, a partir de agora, serão julgados. Sois homens afortunados. Abraçais a águia da Segunda
legião num momento que ficará para a História.
Cato apurou o ouvido.
- Nos anos vindouros, sereis aclamados como conquistadores, homens que ousaram enfrentar um dos maiores enigmas dos confins do mundo conhecido: Pensem nisso: que
seja a vossa fonte de inspiração durante a recruta. Estais todos em boas mãos. Ninguém vos poderia instruir melhor do que o centurião Bestia. Desejo-vos sorte e
confio plenamente no vosso êxito.
- Voltámos aos clichés do costume - suspirou Cato para consigo.
- Adiante, centurião. - Com um movimento da cabeça, Vespasiano instou Bestia a dirigir-se aos recrutas e, acto contínuo, desceu do pódio seguido pelos porta-estandartes.
- Sim, senhor! - Bestia virou-se de modo a ficar de frente para os recrutas. - Bem, minhas meninas, terminou a cerimónia de alistamento. Agora são todos meus. E
a instrução começa logo a seguir à refeição do meio-dia. Depois, quero-os aqui. Se chegarem tarde, arranco-vos a pele com a minha vara. Podem retirar-se.
Passaram a tarde inteira a fazer exercícios básicos, sem poderem sentar-se uma única vez. Cato sentia dores terríveis nos braços e nas pernas por suportar o pesado
equipamento de instrução. Tinha uma vontade enorme de dormir, de descansar e esquecer-se do mundo inumano em que o haviam forçado a entrar. Mas o sono não vinha.
A estranheza do que o rodeava, as recordações do dia e a inquietude sobre o futuro combinavam-se numa espiral de actividade mental que o impedia de dormir. Virou-se
várias vezes à procura de uma posição mais cómoda, mas as duras traves de madeira que atravessavam o fundo gasto do colchão de lã magoavam-no terrivelmente. Para
a sua insónia contribuíam as constantes gargalhadas e gritos dos homens que jogavam aos dados na secção contígua. Nem sequer a almofada que lhe cobria a cabeça sufocava
o ruído. Finalmente adormecera com a boca aberta e começara roncar, quando duas mãos o despertaram bruscamente. Os seus olhos pestanejaram para verem uma superfície
de pêlos escuros e gordurentos, uns olhos negros e uma boca desdentada que sorria maldosamente.
- Pulcher...
- Levanta-te, imbecil!
- Sabes que horas...? - começou a dizer Cato, com insegurança.
- Pró Inferno com as horas. Temos um assunto pendente. - Pulcher agarrou Cato pelas golas da túnica e fê-lo cair ao solo desde cima
do beliche. - Teria vindo antes, mas o Bestia pôs-me a limpar latrinas por causa de ti! Fiquei atolado em merda por tua causa!
- Desculpa. Foi um acidente.
- Pois claro, então vamos também considerar um acidente o que vou fazer contigo. Depois ficamos quites.
- A que é que te referes? - perguntou Cato aturdido, enquanto se punha de pé.
- A isto - disse Pulcher, enquanto puxava de um pequeno punhal. - A um cortezinho para que nunca te esqueças que comigo não se brinca.
- Não é preciso! - gritou Cato - Prometo que nunca mais me aproximo de ti!
- As promessas esquecem-se. Mas as cicatrizes não...- Pulcher atirou o punhal ao ar e apanhou-o de novo pelo cabo, com a lâmina virada para o rosto de Cato. - Vai
ser na cara; assim também recordarás aos outros que tenham cuidado comigo.
Cato olhou à volta, mas estava encurralado num canto e sem possibilidade de fugir da ameaça de Pulcher. Uma súbita gargalhada vinda da caserna contígua fê-lo olhar
para a parede.
- Se gritas, estripo-te aqui mesmo! - ameaçou Pulcher entre dentes. Depois inclinou-se sobre o rapaz.
Cato, perante o ataque iminente e numa reacção desesperada, arremeteu contra o seu agressor, agarrando-lhe com as duas mãos o pulso do braço armado. Pulcher não
esperava que o jovem assustado fosse reagir e não conseguiu afastar a mão a tempo. O rapaz tinha uma força surpreendente e Pulcher não conseguia libertar-se por
mais que tentasse.
- Larga! - ordenou Pulcher com brusquidão. - Larga senão mato-te!
Cato não obedeceu e, pelo contrário, fincou-lhe os dentes no antebraço. Pulcher gritou e, num movimento contínuo, golpeou com a outra mão a cabeça de Cato, atirando-o
de costas contra o beliche. Esticado no chão, Cato ficou a ver tudo branco durante uns instantes e, quando finalmente recuperou a visão, ali estava Pulcher a olhar
furioso para um golpe escuro no antebraço onde Cato cravara os dentes.
- Estás morto! - Num movimento rápido, Pulcher abaixou-se e apanhou o punhal. - Estás... morto!
Foi então que a porta se abriu de par em par e o aposento iluminou-se com a luz do exterior.
- Que raio é que se passa aqui? - gritou Macro. - Estão a lutar?
Pulcher endireitou-se.
- Não, senhor. Estou só a... ensinar o rapazola a manejar um punhal. Somos amigos, senhor.
- Amigos? - repetiu Macro não muito convencido. - E então o que é isso no teu braço?
- O rapaz entusiasmou-se, senhor. Não me queria mesmo magoar, não é?
Cato levantou-se do chão. A sua primeira reacção foi dizer a verdade. Mas depois deu-se conta de que um verdadeiro soldado nunca faria isso. Se queria que algum
dos seus companheiros o respeitasse, não podia passar a imagem de quem recorre à autoridade para se proteger. Para além do mais, se agora desse cobertura a Pulcher,
talvez este mostrasse alguma gratidão. Ao ponto a que chegara, convinha aproveitar qualquer vantagem.
- Sim, senhor. Tem razão... somos amigos.
- Hum... - Macro coçou o queixo. - Pois então se são amigos, eu detestaria ser vosso inimigo. Muito bem, optio... quero falar contigo no meu quartel agora mesmo,
por isso temo que o teu amigo vai ter que se pôr a andar.
- Sim, senhor - respondeu Pulcher rapidamente. - Vejo-te amanhã, Cato.
- Sim...
- Depois continuamos com o nosso... exercício.
Cato esboçou um sorriso débil e Pulcher saiu da caserna. Macro mostrava um ar divertido.
- Então aquele ali é teu amigo?
- Sim, senhor.
- Se fosse a ti, tinha mais cuidado a escolher as minhas amizades.
- Sim, senhor.
- Bem, temos que falar. Vem comigo.
Macro conduziu-o pelo caminho que levava à secção de administração das casernas, onde estava situado o seu quartel. Com um aceno amistoso, o centurião convidou-o
a passar a uma sala que tinha duas secretárias, uma de cada lado da parede. A secretária maior estava completamente vazia, enquanto que a pequena estava coberta
de pilhas de papiros e filas de tábuas enceradas.
- Vem. - Macro apontou para um tamborete que estava junto à mesa maior, e Cato sentou-se enquanto o centurião arrastava uma cadeira para junto da mesa.
- Um gole? - ofereceu Macro. - É um excelente vinho.
- Obrigado, senhor.
Macro serviu a ambos um pouco de vinho e deixou-se cair na cadeira. Já tinha bebido bastante naquele dia e estava mais bem disposto do que era costume. Por experiência,
devia saber que o bem-estar de hoje era a ressaca insuportável de amanhã... mas os deuses do vinho e os da memória nunca haviam sido propriamente bons amigos.
- Tenho de te explicar em que consiste o trabalho de optio. De momento, apenas quero que ajudes Piso com os trâmites burocráticos. Não posso colocar-te ao comando
dos outros homens da centúria... iriam morrer de riso. Sei que oficialmente és superior deles, mas tens de compreender que, de momento, não podes agir como um optio.
Percebes?
- Sim, senhor.
- Com o tempo e uma vez recebida a instrução... veremos o que acontece. Mas agora tenho mais falta de um ajudante na administração do que de um assistente na centúria.
- Sim, senhor.
- Calculo que queiras dormir um pouco; bem precisas. Podes retirar-te.
- Obrigado, senhor.
- Vou dizer ao Piso para te ensinar como tudo funciona, amanhã, logo a seguir à instrução.
- Sim, senhor. Com todo o gosto.

V

O tempo passava a voar, para consternação de Cato. Parecia não haver suficiente tempo num dia para fazer tudo o que o exército lhe exigia. Para além da impiedosa
recruta às mãos de Bestia, Cato tinha que desempenhar todas as noites tarefas administrativas e ainda tinha que limpar todos os seus apetrechos a fundo para estarem
prontos na manhã seguinte. Bestia tinha olhos de falcão e a mínima mancha ou uma correia desapertada eram motivo para levar um castigo ou uma valente vergastada
com a vara. Cato havia já descoberto que o uso da cana de videira era todo ele uma arte. O truque consistia em infligir o máximo de dor com o mínimo de dano: os
soldados deviam ser disciplinados e não hospitalizados. Por conseguinte, Bestia limitava os seus golpes às partes sólidas das pernas, aos ombros e às nádegas. Cato
deu ocasião a Bestia para mostrar a sua perícia num dia em que se esqueceu de apertar a correia do elmo. Bestia atirou-se a ele, fazendo-lhe saltar o elmo, quase
lhe arrancando também uma orelha.
- Isto é o que te vai acontecer em pleno combate, imbecil - gritou- lhe junto à cara. - Um maldito germano vai arrancar-te o elmo e enterrar-te a espada nos miolos.
É isso que queres?
- Não, senhor.
- Pessoalmente, estou-me a lixar para o que te possa acontecer. Mas não vou permitir que o investimento dos bons cidadãos no teu treino seja desperdiçado só porque
és uma besta preguiçosa. A ti podemos substituir, mas um soldado morto significa equipamento perdido, e não vou permitir que dês ao intendente qualquer desculpa
para que me dê na cabeça!
Bestia levantou a cana, e antes que Cato pudesse reagir, sentiu um forte golpe no ombro esquerdo e perdeu a sensibilidade do braço. Os seus dedos, insensíveis, soltaram
o escudo de vime e deixaram-no cair ao chão.
- Da próxima vez que te esqueças de apertar o elmo, levas na cabeça.
- Sim, senhor - disse Cato, com um grito abafado.
No início de cada dia, os recrutas tinham que se apresentar vestidos com o uniforme e o equipamento completo, quando soavam as trombetas, de madrugada, pela fortaleza
inteira. Depois de uma inspecção ao equipamento, tomavam um pequeno-almoço de papa de aveia, pão e vinho que o ajudante de cozinha, furioso por ter que se levantar
com os recrutas, racionava pelos pratos de campanha. Depois recebiam a instrução para desfilar: marchar sem perder o passo, alto, meia volta, seguindo sempre os
gritos de ordens. Cada passo impreciso, cada volta mal dada ou cada movimento mal calculado era motivo para chibatadas e impropérios da parte de Bestia e dos instrutores.
No final, os recrutas já eram capazes de reagir automaticamente às ordens e, assim, a instrução passava à fase seguinte: as mudanças de formação. Da formação cerrada
à formação aberta, da formação em linha à formação em coluna e de novo à formação em linha. Aprendiam a marchar em cunha e em formação de tartaruga, sempre com o
pesado equipamento às costas.
Depois da refeição do meio-dia, o pelotão recebia o treino físico, que era bem pior. Durante o primeiro mês, passaram as tardes a marchar à volta da base, vezes
intermináveis, até o reluzente sol de Inverno desaparecer num crepúsculo triste e, só então, Bestia os conduzia de volta ao portão principal, sem nunca lhes permitir
reduzir a marcha. Durante as primeiras semanas, alguns recrutas saíam da fila e, imediatamente, um instrutor caía-lhes em cima, para os levar para o final da coluna
sob valentes bastonadas.
Depois do incidente nas casernas, Cato procurava manter-se afastado de Pulcher, não se importando se este pensasse que o fazia por medo. E assim era, um medo temperado
por uma lógica que lhe dizia que uma confrontação com Pulcher só poderia ter uma consequência: receber uma tremenda sova. Cato não era partidário de satisfazer o
orgulho às custas do seu próprio corpo. Se Pulcher o considerava poucohomem porque Cato lhe negava a oportunidade de lhe dar uma sova, isso só provava a estupidez
daquele brutamontes e de qualquer outro homem que pensasse como ele. E, com efeito, havia outros que pensavam como ele, pois Cato apercebeu-se dos olhares de desdém
que lhe dirigiam alguns recrutas e a forma como se afastavam dele nos poucos momentos livres entre as sessões de treino.
- Vais ter de o enfrentar - disse-lhe Pirax certa noite, quando estavam sentados num banco na messe dos centuriões.
Cato beberricou um pouco do vinho rançoso que havia comprado para partilhar com Pirax. O líquido arranhou-lhe a garganta, e tossiu.
- Estás bem?
Cato assentiu. - É do vinho.
Pirax olhou para a sua caneca e bebeu um bom trago.
- Não tem nada de mal.
- Pode ser que se o enfrentar bem bêbado, não sinta tanta dor
- disse Cato. - Ele vence sem dificuldades, eu recebo uns quantos murros e acabou-se.
- Pode ser. Mas não me parece que ele vá deixar as coisas assim. Conheço os tipos da laia dele: quando descobrem que podem ganhar, não resistem a fazê-lo novamente
uma e outra vez. Se continuas a evitar o Pulcher, as pessoas vão começar a falar. Ouve o que eu te digo, enfrenta-o, aguenta a porrada... mas não lhe faças a vida
fácil. Agarra-te a ele. Dá-lhe alguns golpes com força e ele acaba por te deixar em paz... talvez.
- Talvez? É isso o melhor que posso esperar? Receber uma tareia e rezar para que Pulcher se fique por aí? E se não ficar?
Pirax encolheu os ombros.
- Obrigado, Pirax. Foste uma grande ajuda.
- Só te estou a dizer como as coisas são.
Cato abanou a cabeça.
- Tem de haver alternativa. Um modo de o enfrentar sem lutar.
- Pode ser que haja - disse Pirax, pouco convencido. - Mas faças o que fizeres, fá-lo logo, antes que demasiada gente te tome por um cobarde.
Cato olhou-o por momentos.
- É isso que dizem de mim?
- O que é que esperavas? É a impressão que dás.
- Eu não sou um cobarde.
- Se tu o dizes, acredito, mas era bom que o provasses.
A porta abriu-se com uma rajada forte de ar gelado e entraram vários legionários na messe. Sob a luz do braseiro, Cato pôde ver que eram homens de outra centúria.
Olharam à volta e logo se sentaram, deliberadamente, num banco no outro extremo da sala. Pirax terminou de um trago o vinho que lhe sobrava e pôs-se de pé.
- Tenho que ir.
- Já? Mas ainda falta tanto vinho.
- Pois, mas tenho uma reputação a manter - disse Pirax, com frieza.
- Lembra-te do que te disse: faz o que tens a fazer, e depressa.
Depois de Pirax se ir embora, Cato continuou a beber mais um pouco, sem parar de remoer o assunto e, aos poucos, levantou a vista e cruzou o olhar com um dos soldados
que tinha chegado momentos antes. O homem afastou o olhar e continuou a falar em voz baixa com os seus companheiros. Era difícil não pensar que estavam a falar dele
próprio, e que tinham ido
àquela messe apenas por curiosidade, para ver o jovem cobarde que tinha sido nomeado optio.
Cato levantou-se, pôs a capa e apressou-se a sair dali. O ar estava gelado e, o céu nocturno coberto de nuvens finas rodeadas por um halo de luz prateada emitida
pela lua. Pensou como tudo aquilo era muito bonito e deteve-se para apreciar a tranquilidade do momento. Mas logo de seguida, voltou a pensar na necessidade de confrontar
Pulcher e, praguejando, retomou o caminho que levava à sua caserna.
Pulcher não era o único que o inquietava. Para além da instrução desumana que recebiam durante o dia, Cato tinha que passar a maior parte das noites a aprender as
suas obrigações como optio. O secretário do centurião, Piso, havia sido encarregue de ensinar ao novo recruta a arte da administração militar. E era mesmo uma arte,
como Cato logo aprendeu. Piso era responsável pelos registos da centúria; era responsável por classificar em detalhe cada aspecto da vida de um soldado, na medida
em que isso afectava de alguma forma a legião. Os historiais médicos, as licenças, as condecorações, as infracções de disciplina e os respectivos castigos, as deduções
de dinheiro para a comida e o equipamento...
Uma noite, pouco depois de falar com Pirax, estavam Piso e o seu protegido a trabalhar no cálido escritório da centúria. O braseiro cintilava e a madeira estalava
ao arder. Ambos reviam a última tentativa de Cato em escrever no estilo enfadonho tão apreciado pelo exército. Piso murmurava elogios ao ler aquelas requisições
concisas e de uma lógica irrefutável e movia aprovadoramente a cabeça perante as frases bem expressas, formuladas de uma forma que sugeria urgência, ou que insinuavam
que uma autoridade muito superior à de um humilde administrativo de centúria era indirectamente responsável pela requisição.
Ouviu-se o ferrolho e Macro entrou no quarto, esfregando as mãos e indo directo para o braseiro. Estendeu os braços e sorriu ao sentir o calor. Um vago odor a vinho
deixava adivinhar que vinha da messe dos centuriões.
- Uma noite fria, senhor - disse Piso com um sorriso.
- Terrivelmente fria! - assentiu Macro, acenando com a cabeça.
- Como é que se está a safar aí o rapaz?
- Bem, senhor, muito bem. - Piso cruzou o olhar com o de Cato.
- Um dia será um excelente administrativo.
- Estás a dizer-me que o jovem Cato está pronto para te substituir?
- Não disse isso, senhor. Ainda lhe falta muito que aprender. Mas
tem talento para este trabalho, isso é inquestionável. Estávamos precisamente a rever algumas das requisições. Gostava de dar uma vista de olhos, senhor?
Macro negou com a cabeça.
- Noutra altura. Quando não estiver tão ocupado. De qualquer forma, estou seguro de que o faz tão bem quanto dizes. E assim deve ser, dada a educação que recebeste.
- Sim, senhor - respondeu Cato, desconfiado pela súbita mudança de tom do centurião. - É evidente que me está a ser muito útil, senhor.
- Sim. - Macro olhou-o em silêncio por um instante, com uma expressão pensativa. - De todas as formas, não foi para isso que vim aqui. Já é tempo que adquiras alguma
experiência em trabalho de campo. Amanhã de manhã vai ser enviado um destacamento a um povoado da região. O chefe do povoado expulsou um cobrador de impostos romano,
depois de lhe cortar a língua. Parece que esse chefe conhece um rebelde que anda a dar nas vistas do outro lado do Reno. Vespasiano quer enviar a terceira coorte
para prender o chefe e confiscar todos os metais e pedras preciosas de modo a indemnizar o cobrador. Mas como um dos centuriões da terceira coorte foi escoiceado
por uma mula esta tarde e o optio está no hospital, deram-me ordens para assumir o comando temporário dessa centúria... e quero que venhas comigo.
- Vai ser preciso lutar, senhor?
- Não me parece; porquê?
- Porque na recruta ainda não utilizámos armas a sério!
- Não te preocupes com isso. Pede equipamento emprestado a um dos nossos companheiros. Ainda que não acredite que vás precisar... Logo que esses germanos nos vejam,
farão tudo para nos ver pelas costas. Vamos entrar, fazer a detenção, confiscamos o que encontrarmos e pomo-nos a andar. Estamos de volta ao anoitecer.
- Oh! - Cato não conseguiu dissimular o seu desapontamento. Alimentara esperanças de que a expedição o mantivesse afastado de Pulcher por uns dias.
- Não te preocupes - disse Macro amavelmente, enganando-se na interpretação da expressão de Cato. - O dia virá em que terás oportunidade de participar num combate,
prometo-te. Mas ainda bem que estás ansioso por um. Não serve de nada seres soldado se não gostares de combater.
Cato esboçou um sorriso débil.
- Sim, senhor.
- Está combinado, então. - Macro, num gesto de confiança, deu-lhe uma forte palmada no ombro. - Encontramo-nos ao alvorecer, no portão norte. Leva a capa, o traje
de campanha completo e provisões
para passar todo o dia fora.
- Sim, senhor. Se Piso não se importar, gostaria de ir já dormir.
Macro olhou para o seu administrativo com ar interrogador.
- Claro! - Piso sorriu. - Se o centurião exigir a esses homens o que nos exige a nós, vais precisar de muita energia logo pela manhã.
Logo que Cato saiu da sala e os seus passos se afastaram pelo caminho, Macro virou-se para interrogar Piso.
- O que é que pensas do rapaz?
- Tem uma habilidade inata para os papéis; uma mão firme e excelente memória. - Piso fez uma pausa.
- Mas... - continuou Macro.
- Mas não estou seguro de que tenha sido feito para o exército. Parece-me demasiado franzino.
- Alguma vez conheceste alguém proveniente do palácio que não fosse assim? Só boa vida... esse é o problema. A maior parte não aguentaria cinco dias no exército,
mas este rapaz aguentou-se até agora. A sua determinação compensa a sua inaptidão física. Sabes... acho que antes de isto tudo acabar, ainda vamos conseguir fazer
alguma coisa do jovem Cato.
- Se o senhor o diz...
- Não concordas comigo?
- Para ser sincero, não, senhor. Uma coisa é ser-se uma pessoa determinada, mas fazem falta outras qualidades para ir à luta. E a mim parece-me que ele não tem o
que é preciso. - Piso calou-se por momentos.
- Sabe, os homens dizem que ele é cobarde.
- Sim, também já ouvi isso. Mas sabes como são os rumores... quase nunca estão inteiramente certos. O rapaz merece a sua oportunidade.
Piso teve uma intuição repentina.
- Então, afinal amanhã sempre espera problemas, não é, senhor?
- É possível. Sabes bem como são estes bárbaros: todas as desculpas são boas para provocar um conflito. Sim, acho que não nos vamos limitar apenas a palavras. E
assim terei oportunidade de ver o material de que é feito este meu novo optio.
- Se for verdade o que ouvi, desatará a fugir.
- Hum! Queres apostar alguma coisa? - propôs Macro, com um sorriso. - Cinco sestércios? Sei que tens essa soma.
- Sim, senhor. E o senhor, terá?
- Cinco sestércios - Macro ignorou a chacota e cuspiu na palma da mão. - Aposto cinco sestércios em como Cato não fugirá se houver problemas. Ou serás tu agora com
medo?
Piso vacilou por um instante antes de apertar a mão do centurião.
- Está apostado! Cinco!

VI

Tinha sido uma noite terrivelmente fria e a fortaleza da Segunda legião, envolta pela neblina e coberta por um manto de gelo, começava a iluminar-se com a ténue
luz do amanhecer. Os homens da terceira coorte iam formando as centúrias com eficiência, inundando o ar com o vapor das suas respirações. Quinhentos homens, vestidos
com armadura completa e a pesada capa, reunidos à primeira luz da manhã, esfregavam as mãos e davam golpes com os pés no sôlo, com o intento de gerar algum calor
nos seus corpos expostos ao ar gélido do Inverno. Podiam ouvir-se as piadas e os insultos amistosos dirigidos aos legionários das outras coortes, que tinham a sorte
de ficar na fortaleza naquele dia. Os oficiais superiores estavam algo afastados das filas irregulares de homens, de modo que Cato não teve nenhum problema em localizar
a forma atarracada de Macro.
- Esse é que é o teu protegido, Macro? - perguntou-lhe o homem que estava ao seu lado.
Macro assentiu com a cabeça.
- Um pouco jovem para ser optio, não te parece?
- Logo veremos - resmungou Macro, enquanto olhava de cima a baixo o seu optio, que chegava com uma túnica e uma capa que lhe ficavam bastante mal.
O centurião deu uma volta lenta em redor de Cato para examinar o equipamento do jovem; deu um puxão nas fivelas e abanou o elmo do jovem para se certificar de que
a correia estava bem presa.
- Assim está melhor. Bem, durante o tempo que estivermos fora do acampamento, fica sempre ao meu lado e faz o que eu te disser. Nada de te afastares nem fazeres
nada sem a minha permissão. Entendidos?
- Perfeitamente, senhor.
- Vai e junta-te à frente da última centúria da fila. É a sexta centúria. Espera-me lá.
- Senhor...
- O que é?
- Quanto tempo vamos ficar aqui de pé? - perguntou Cato, que tremia de frio.
- Pelos deuses! Nem sequer és capaz de esperar? - Macro abanou a cabeça num gesto reprovador. - Não por muito tempo, rapaz; apenas até que chegue o tribuno.
Um dos outros centuriões cuspiu para o chão gelado.
- De certeza que essa besta ainda está na cama.
- Não me parece. - disse Macro. - O legado anda em cima dele. Parece que quer pôr Vitélio à prova. Mas esta expedição não é mais do que um exercício de comando.
Até Vitélio terá dificuldade em arranjar problemas.
- Meu caro Macro, nunca subestimes a incompetência dos teus superiores. Nasceram e foram educados para criar todo o tipo de desastres...
A conversação ficou para trás, à medida que Cato se aproximava do estandarte que se levantava sobre a sexta centúria. Ao verem-no aproximar-se, alguns homens olharam-no
com curiosidade.
- Tu é que és o optio de Macro? - perguntou-lhe o porta-estandarte.
- Sim.
- Disse que tinha um optio novo... mas nunca pensei que o dizia num sentido tão literal.
Cato ia abrir a boca para responder, mas conteve-se. Depois corou e reprimiu a sua fúria.
- Não te afastes do centurião nem de mim, rapaz, assim não te irá acontecer nada.
Enquanto Cato esperava à cabeça da centúria, os outros optios já haviam recebido ordens para ordenar os homens das respectivas centúrias em colunas de quatro, e,
pouco a pouco, a coorte formou-se até ficar pronta para marchar. Cato não pôde evitar dar-se conta da crescente impaciência que consumia os homens que aguardavam
em pé. O sol já tinha dissipado a névoa do amanhecer, entre as muralhas, e a luz começava a iluminar a coorte com um ténue resplendor alaranjado.
Esperaram um bom bocado mais, o suficiente para que o frio começasse a penetrar nos seus corpos imóveis.
Finalmente ouviram aproximar-se um som de cascos procedentes do centro da fortaleza, e Cato deu meia volta para ver chegar um oficial
com uma capa vermelha e elmo com um penacho que baloiçava a cada passo do cavalo. O grupo de centuriões desfez-se e cada um voltou para a sua centúria. Vitélio passou
a cavalo ao longo da coluna de homens e colocou-se à sua frente. De seguida, deu uma única ordem e a centúria começou a marchar, atravessou o portão e avançou pelo
caminho que se afastava da fortaleza. As demais centúrias seguiram atrás, e quando a retaguarda da quinta centúria começou a marchar, Macro contou dez passos e gritou
também a ordem de marcha.
A reacção de Cato, graças à severa disciplina de Bestia, foi automática. Iniciou a marcha lenta, dois passos atrás de Macro e do porta-estandarte. Passaram sob o
arco do portão e o eco das botas ecoou pelas muralhas frias e perdeu-se no bosque selvagem que se erguia no exterior. O sol nascente fazia as sombras esticarem-se
sobre a lama acumulada do lado esquerdo do caminho, e no ar gelado formavam-se espirais de vapor com a respiração dos soldados. O mesmo caminho que semanas antes
havia estado sulcado pelas rodas dos carros e que conduzia aos povoados da região, estava agora gelado. Apesar do frio, Cato sentia-se bem por se afastar da legião;
tinha todo um dia para não pensar nem em Bestia nem em Pulcher.
A coluna chegou a uma pequena elevação do terreno, e quando a sexta centúria começou a descer do outro lado, Cato olhou para trás e lançou um último olhar à fortaleza
que se estendia à distância na paisagem; um longo muro de pedra, com o edifício do quartel-general ao fundo, coroado de telhas vermelhas e, no outro extremo, um
assentamento de bares, bordéis e barracas sórdidas espalhadas pela base da muralha. Olhando à sua frente, uma linha de árvores marcava a fronteira do terreno desbravado
pela Segunda legião, dando início a um dos antigos bosques que se estendiam pelas terras da Germânia. Para além dos jovens rebentos que lutavam por recuperar parte
do solo aterrado pelos engenheiros da legião, cresciam pinheiros e carvalhos enormes, lúgubres e imponentes. Cato estremeceu, em parte devido ao frio e em parte
ao recordar o destino trágico das três legiões que o general Varo havia conduzido absurdamente até às profundezas de um bosque como aquele, cerca de trinta anos
antes. Uns quinze mil homens haviam sido massacrados na penumbra de uma teia de ramos seculares; os bárbaros germanos haviam deixado os seus corpos no lodo vermelho,
à mercê da putrefacção.
A medida que a coluna avançava pelo caminho e as árvores começaram a envolvê-los de ambos os lados e à frente, os homens calaram-se; alguns olhavam com inquietude
para as profundezas em que começavam a entrar. Macro sabia perfeitamente como se sentiam, pois
esta remota parte da fronteira do império albergava algo estranho. Não havia bosques tão escuros e impenetráveis como aqueles em todo o mundo conhecido. Até as tribos
locais os temiam e contavam histórias de como os espíritos inquietos dos mortos tinham sido condenados a vagar em forma de espectros pálidos entre as sombras e a
luz esverdeada das árvores. A coorte avançava pelo caminho que os engenheiros da legião haviam aberto; antes da chegada dos romanos, os nativos davam a volta ao
bosque quando se deslocavam. Alguns ainda se negavam a atravessá-lo. Ao que parecia, os próprios engenheiros também haviam sentido medo, pois o trajecto não era
recto, descrevendo constantemente curvas que circulavam as árvores com os troncos mais grossos, o que indicava que eles haviam querido terminar o seu trabalho quanto
antes. A coluna deu entrada no bosque, só se conseguindo ver pouco mais de vinte homens à frente e outros tantos atrás, e Cato sentiu um calafrio a subir-lhe pelas
costas suadas.
- Senhor?
Macro olhou-o sem parar.
- O que é que foi, rapaz?
- Quanto falta para o povoado, senhor?
- Queres é saber quanto falta para saírmos deste bosque, não é?
- Macro sorriu.
- É sim, senhor.
- Alguns quilómetros, antes que o caminho fique livre de árvores; depois, devemos chegar à aldeia lá para o meio-dia. Mas não te preocupes com este lugar: é inofensivo.
- Mas se nos atacassem...
- Se nos atacassem? - perguntou Macro em tom jocoso. - E quem é que nos ia atacar? Não creio que fossem esses desgraçados a quem vamos fazer uma visita. São um grupo
de camponeses simplórios. E o grupo de resistentes mais próximos está do outro lado do Reno. Podes estar tranquilo, rapaz, estás a deixar as mulheres nervosas.
Macro apontou com o polegar para trás, para os legionários da sexta centúria, e os que estavam mais próximo riram-se alto. Cato corou e encolheu os ombros, sem nunca
desviar o olhar das sombras que os rodeavam.
Uma vez superado o feitiço angustiante da floresta, os soldados deixaram de falar em sussurros e a coluna seguiu o seu caminho através das árvores, causando o alvoroço
habitual de soldados em marcha a trocarem piadas e insultos. A espessa ramagem sufocava em grande parte o ruído, que soava vazio e estranho aos seus próprios ouvidos.
Finalmente, a coluna saiu do bosque opressivo para se deparar
com uma manhã de Inverno em que o sol banhava a terra com uma luz quente. Aquele lado do bosque tinha sido derrubado e a coorte atravessava agora uma terra tosca
de cultivo, salpicada por cabanas miseráveis pertencentes a colonos germanos e das quais saíam finas colunas de fumo. A maioria dos camponeses tinha recolhido os
animais de pasto, e dos estábulos de vacas e porcos que mugiam e grunhiam à passagem dos soldados, desprendiam-se colunas de vapor. Havia poucos sinais de vida humana,
para além dos ocasionais rostos que observavam em silêncio o passar da coluna.
- São uma gente amigável, hã? - comentou o porta-estandarte.
- Não parecem muito incomodados connosco - disse Cato.
- Pensava que iam mostrar mais interesse. Não imaginava os germanos assim.
- Então como é que os imaginavas?
- Grandes e agressivos... é o que se diz em Roma.
- E é assim que são, quando se luta com eles - explicou o porta-estandarte com entusiasmo. - Mas estes são apenas camponeses. São como todos os civis quando vêem
passar um exército. Procuram não dar nas vistas para que não nos metamos com eles. Atrás dessa porta, - o porta-estandarte apontou com a cabeça para uma cabana junto
à qual passavam - e atrás de todas as portas, está uma família que reza para que não paremos. Para eles, os soldados são más notícias.
Da frente da coluna gritaram a ordem para a coorte parar, e, logo a seguir, cada centurião repetiu-a aos seus homens. Os soldados detiveram-se e esperaram em silêncio
a ordem seguinte.
- Oficiais à frente!
Macro, o centurião mais distante, dirigiu-se a trote ao longo da coluna, até junto de Vitélio, que se destacava montado no seu cavalo entre a primeira centúria.
Do final da coorte, Cato viu que o caminho passava por uma lomba. Os oficiais reuniram-se em torno de Vitélio, mantendo a distância protocolar da infantaria em relação
aos cavalos, e ele distribuiu as suas ordens com gestos ocasionais de clarificação. Logo que os oficiais se retiraram, voltaram às suas posições, ao comando das
suas respectivas centúrias. Macro sorriu ao ver a expressão inquisitiva do porta-estandarte e do optio.
- A aldeia situa-se logo depois daquela elevação. O tribuno quer avançar com calma. Por agora, só irá levar com ele a primeira centúria. As restantes vão colocar-se
ao longo do cume para vigiar a aldeia e actuar se necessário.
- Porque não vamos todos, senhor? - perguntou Cato. - Para quê dividir a coorte?
- Porque são as nossas ordens - respondeu Macro bruscamente, mas então baixou o tom porque se apercebeu de que o optio havia feito uma pergunta sensata. - Ele não
quer que o povoado fique nervoso por nos ver chegar. Vamos apenas fazer uma detenção, confiscar os objectos de valor e partir de forma pacífica. O tribuno acha que
se entrarmos todos, vamos assustá-los e incitá-los a algum acto de loucura.
- Acto de loucura, senhor?
- Vá-se lá saber! - respondeu Macro, encolhendo os ombros sem dar importância ao que dissera. - Não consigo imaginar uma horda de camponeses a atacarem-nos. Ainda
assim, são ordens. Ah! Lá vamos nós. Volta para a tua posição, optio.
Vitélio liderou a primeira centúria até ao cume da colina, e os homens desapareceram de vista ao descerem do outro lado. As centúrias seguintes deslocaram-se para
a direita e para a esquerda ao longo do cume. Os centuriões da segunda e da terceira centúria mediram, com passos, a fila e assinalaram a posição correspondente
a cada centúria, ordenando que marchassem em ângulos rectos até ao caminho. O espaço deixado para a terceira estendia-se de ambos os lados do caminho, e Cato, sem
se separar do porta-estandarte ou de Macro, como lhe haviam ordenado, encontrou-se frente a uma fila de homens formados em colunas de quatro, em profundidade, e
que se estendia uns cem passos de cada lado. Mais à frente, o solo baixava numa inclinação suave até à aldeia, instalada numa curva do rio que provinha do bosque
à volta da terra de cultivo.
Cato ficou surpreendido com o tamanho do povoado. Esperara encontrar um grupo de choças de barro dispersas, encerradas dentro de uma paliçada rude. No entanto, havia
centenas de cabanas e construções maiores rodeadas por um alto muro de turfa e um fosso cheio de água. O portão principal estava fechado, flanqueado por duas torres
de pedra tosca, de onde se controlava a estreita ponte levadiça. Um pouco mais à frente do portão, o caminho ia dar a uma praça em frente ao maior edifício da aldeia.
Era quase um quilómetro do cume até à ponte levadiça, e a primeira centúria já havia percorrido quase todo o caminho, enquanto o resto da coorte se formava. Algumas
cabeças surgiram nos muros para observar os visitantes, já que a chegada dos soldados não pareceu ter causado nenhuma agitação, dada a espera pacífica dos habitantes.
Quando as cinco centúrias já estavam em posição de descanso, ordens foram distribuídas para que comessem e, assim, os homens começaram a sacar as rações que traziam
nas sacolas. Cato começou a mastigar uma tira seca de carne dura mas saborosa. A marcha da manhã havia-o deixado
mais faminto do que pensara, e comia com afinco enquanto observava os acontecimentos mais lá em baixo.
De repente, reparou num movimento numa parte mais distante da aldeia. Três homens carregados com escudos e lanças corriam na direcção da linha distante de árvores.
Uma espessa coluna de fumo ascendia de uma enorme fogueira onde Cato acabara de ver os homens.
- Senhor! - disse ele para Macro. - Veja ali!
- O que é?
- Ali, senhor. - Cato apontou com o dardo. - Aqueles homens a correrem. Está a vê-los, senhor?
- Sim, rapaz.
- O que fazemos, senhor?
- O que fazemos? - Macro fez uma careta. - Nada! Estão demasiado longe para podermos fazer alguma coisa. De qualquer maneira, são apenas três.
- Talvez devêssemos avisar o tribuno - insistiu Cato.
- Não há razões para isso.
Observaram em silêncio os três homens a desaparecerem por entre as terras cultivadas, em direcção às árvores, enquanto Vitélio conduzia os seus homens pelo caminho
que levava ao portão e lhes dava ordem para pararem diante da ponte levadiça. O tribuno agitou os braços com resolução e, depois de uma pequena pausa, a porta abriu-se
para deixar passar os soldados. A centúria entrou na aldeia e, por uns instantes, desapareceu de vista entre as cabanas, voltando a aparecer de novo já na praça.
Vitélio fez parar a coluna e ordenou a dois homens que se adiantassem até à porta principal do maior edifício que dava para a praça. Antes que eles a alcançassem,
a porta abriu-se, surgindo uma mulher alta, de cabelos louros compridos. Ainda que nenhum dos que observava do cume pudesse ouvir uma só palavra, era óbvio que Vitélio
e a mulher discutiam acaloradamente.
- Pensava que tínhamos sido enviados para prender o chefe deles, senhor - comentou Cato.
- E assim é, rapaz - disse Macro com irritação. - Não devíamos perder tempo. A luz no Inverno dura pouco. - Macro olhou para o céu cor de chumbo e viu que o sol
começava a inclinar-se para o horizonte.
- Não me agrada nada a ideia de regressar na escuridão completa.
Cato não pôde evitar olhar para trás, em direcção ao bosque, lá longe. O lugar já era bastante desagradável durante o dia. Só Júpiter sabia como seria em plena noite.
- Se cair a noite, não seria melhor regressarmos contornando o bosque, senhor?
Macro abanou a cabeça.
- Não. Leva demasiado tempo. Se for preciso, acendemos tochas. Não vais ter medo, pois não, rapaz?
- Não, senhor.
- Então, continua assim - Macro, aliviado pelos seus cinco sestércios não estarem ainda perdidos.
Na aldeia, a discussão terminou abruptamente quando Vitélio fez um gesto com a mão e dois soldados imobilizaram a mulher com os braços atrás das costas. Um pelotão
avançou e entrou à força no grande edifício, para sair pouco depois carregando uma arca enorme. Depositaram-na aos pés de Vitélio e dirigiram-se para o edifício
seguinte, forçando a entrada.
- Parece que o nosso homem fugiu - observou Macro, e bocejou com teatralidade. - O tribuno não devia ter perdido tempo com a mulher.
- A não ser que seja o tipo de mulher de que o tribuno gosta.
- exclamou o porta-estandarte entre dentes. - Já sabemos como é Vitélio com as mulheres: não consegue resistir ao impulso de as galantear.
- Pois devia fazê-lo numa altura mais adequada. E não fazer perder tempo ao exército, muito menos o meu. E logo num dia gelado como hoje!
- Senhor! - Cato interrompeu. - Olhe ali, na entrada!
Por qualquer razão, a porta estava a fechar-se lentamente e, enquanto Macro olhava, a pequena ponte levadiça começou a subir. Invadiu-o uma sensação fria de terror,
mais gelada do que qualquer arrepio numa noite de Inverno. Olhou então para o centro da aldeia, mas Vitélio e os seus homens pareciam completamente alheios ao que
se estava a passar e continuaram a forçar as portas das casas. Lá longe, para lá da aldeia, um leve movimento atraiu o seu olhar. Do bosque saía uma sombra, como
se o sol se tivesse posto mais cedo do que o normal. Mas apercebeu-se de que isso era impossível pois o sol estava nas suas próprias costas.
- Cato! Os teus olhos são mais jovens do que os meus. Diz-me, o que se está a passar ali, no limite do bosque? - perguntou com urgência, o braço esticado para a
frente.
Cato não tinha a certeza do que via. Do solo havia-se levantado uma nuvem que ocultava parte da vista. Mas logo a sombra disforme se decompôs em formas bem definidas.
- Eu creio... tenho a certeza... É um grupo de homens. A sair do bosque e a vir nesta direcção.
Olhou para Macro com os olhos muito abertos.
- Germanos, senhor?
- Não, gauleses! Claro que são germanos, seu idiota!
- Mas e os nossos homens, no povoado? - disse Cato, alarmado.
- Eles não estão a ver o que se passa.
- Eu sei, rapaz, eu sei.
Alguns outros soldados aperceberam-se do perigo iminente e assinalaram-no aos seus companheiros. Ouviu-se um murmúrio de desassossego em toda a fila.
- Silêncio! - gritou Macro. - Calem a boca e estejam quietos!
Os legionários obedeceram imediatamente mal lhes foi imposta a
disciplina. O centurião Quadrato, da Segunda, o oficial superior presente, aproximou-se a correr junto da coluna.
- Macro, estás a vê-los?
- Perfeitamente.
- Será melhor que desçamos e nos juntemos a eles.
- Foi-nos ordenado que permanecêssemos aqui - contestou Macro com firmeza. - A menos que Vitélio faça sinal para descermos.
- Mas ele não sabe o que se passa! - Quadrato apontou para os bárbaros que se aproximavam, que já eram centenas e continuavam a sair do bosque em direcção à aldeia.
- Se descermos, encurralam-nos a todos - disse Macro. - Sugiro que em vez de descermos, tentemos chamar a atenção do tribuno.
Quadrato olhou para Macro um instante e logo assentiu com a cabeça. Deu meia volta para a coluna, levou as mãos à boca e gritou a plenos pulmões:
- Estandartes! Sinal de retirada!
Os cinco porta-estandartes que restavam levantaram ainda mais os estandartes e começaram a fazê-los girar. Macro olhou para a aldeia onde os soldados da primeira
centúria, alheios ao desastre iminente, continuavam a confiscar todos os objectos de valor que podiam trazer consigo.
- Vamos, vamos! - suplicou Quadrato. - Alguém olhe cá para cima...
Finalmente, viram um legionário apontar para eles com o dardo, e Vitélio virou-se sobre o seu cavalo. Ficou imóvel sobre este por um momento, depois deu meia volta
e agitou um braço freneticamente. O soldado que os havia visto saiu a correr da praça e pouco depois reapareceu no alto de uma das torres do portão. Nesse exacto
momento, figuras surgiram dos espaços entre as casas da vila, e começaram a cercar Vitélio e os seus homens. A centúria organizou-se de imediato numa formação cerrada
e começou a retroceder para o portão. Alguns habitantes
começaram a segui-los, lançando pedras e pedaços de madeira sobre os romanos em retirada. Uma inesperada cortina de dardos arremessados da retaguarda da centúria
caiu sòbre os aldeões, causando a morte de meia dúzia de homens, fugindo os restantes para os becos mais próximos. Então a centúria perdeu-se de vista por detrás
dos edifícios.
Do cume da colina via-se perfeitamente os germanos a aproximarem-se, vindos do bosque, podia adivinhar-se quantos eram e a que velocidade vinham.
- Três, talvez quatro mil - calculou Quadrato.
Macro abanou a cabeça.
- Não devem ser tantos.
- Vitélio deve ter tempo para sair da ratoeira antes que eles cheguem lá.
- Facilmente. Estão ainda a mais de um quilómetro da aldeia. Mal Vitélio saia pelo portão, chega cá acima, antes que eles consigam fazer o que quer que seja.
- E depois?
- Não sei. - Macro encolheu os ombros. - Teremos que esperar por novas ordens.
Cato observava os oficiais com incredulidade. Como podiam manter tal sangue frio quando os seus companheiros enfrentavam um massacre iminente, ali mesmo em frente
aos seus narizes? E, depois, havia dez bárbaros para cada romano. Sentiu um desejo ardente de se virar e desatar a fugir, gritando a todos os outros para fazerem
o mesmo. Mas o seu corpo não se moveu, em parte por vergonha e em parte pelo pavor que lhe causava fazer a viagem de regresso sozinho. Imóvel e com o coração aos
saltos no peito, Cato olhava, hipnotizado, para o progresso da primeira centúria, os seus olhos saltando nervosamente da vila para os germanos que se aproximavam.
Então apercebeu-se de um movimento repentino numa das torres da entrada: um grupo de homens acabava de capturar o legionário enviado por Vitélio. O seu corpo foi
atravessado por uma lança e atirado para o fosso.
- Senhor!
- Eu vi, rapaz.
Uma série de centelhas e de sons distantes de golpes assinalou a chegada da primeira centúria ao limite da aldeia e uma pequena escaramuça começou com o objectivo
de tomar controlo do portão de entrada. Ao mesmo tempo, os germanos continuavam a aproximar-se para fechar a armadilha.
- Vai ser por uma unha negra - disse Quadrato. - O melhor é prepararmo-nos para uma retirada em combate. Vou pôr as outras
centúrias a marchar. Macro, quero que fiques aqui e nos cubras até que chegue Vitélio.
- De acordo. - Macro assentiu com a cabeça. - Mas anda depressa.
Quadrato abriu caminho ao longo da fila, gritando as ordens necessárias, e, uma a uma, as centúrias que estavam no topo da lomba desceram para formar colunas e começaram
a marchar ao contrário, em direcção ao caminho. Por seu lado, Macro ordenava à sexta centúria, dez passos mais abaixo, que abrisse caminho para Quadrato. Cato viu
que, na aldeia, a primeira centúria conseguira derrotar os aldeões do portão e os legionários saíam através da espessa porta de madeira, para escapar. Com Vitélio
à frente no seu cavalo, a primeira centúria acelerou para subir a colina e unir-se ao resto da coorte. Um reduzido grupo de aldeões perseguiu-os, mas rapidamente
desistiram após uma chuva de dardos cair sobre eles. Ao certificar-se de que a centúria estava bastante afastada da aldeia e a salvo, Vitélio então esporeou o seu
cavalo e subiu a inclinação que faltava para tomar o comando da coorte. Parou junto a Macro. O seu cavalo resfolegava com força e espumava. Tinha um corte profundo
de um lado, que lançava golfadas de sangue.
- Que diabo se passa aqui, centurião? - gritou furioso. - Onde é que estão os outros?
- Quadrato já os levou de volta para o caminho, senhor.
- Porquê? Têm medo de meia dúzia de aldeões miseráveis? Vou voltar para lá com toda a coorte e vamos deitar aquilo tudo abaixo!
- Senhor - interrompeu Macro. - É melhor olhar para ali.
- O quê? Aonde?
- Para lá da aldeia.
Vitélio ficou paralisado por um momento quando se apercebeu do verdadeiro perigo da situação. Observou a mancha escura de bárbaros que se precipitava sobre o povoado
e deu-se conta do que os outros oficiais já sabiam: não era possível fazer frente a uma tal horda.
- Ainda temos algum tempo. Se conseguirmos chegar ao bosque, podemos empregar uma retaguarda para os aguentar.
- Creio que era isso que Quadrato pretendia, senhor.
- Óptimo. Então vocês fiquem aqui. E quando chegar a primeira, deixem-na passar e digam-lhes que se coloquem no final da coluna. A vossa centúria será a retaguarda.
Só saem daqui quando a coorte se puser em movimento.
Vitélio voltou a olhar para baixo para calcular a posição relativa dos dois lados.
- Eles não vão chegar à vila tão cedo. Com sorte, podemos manter
uma distância segura deles. Bem, centurião, já tens as tuas ordens.
- Sim, senhor.
Macro saudou-o e Vitélio esporeou o seu cavalo para se dirigir para a frente da coluna. Quando Cato estava certo de que o tribuno não o podia ouvir, olhou para Macro.
- O que vai acontecer?
- O que ele acabou de dizer. Uma marcha a correr de regresso à
base.
Cato temia que as coisas não fossem assim tão fáceis. Uma agoirenta intuição fazia-o crer que o pior ainda estava para vir, e amaldiçoou Macro em silêncio por o
ter feito vir na expedição. Em vez do exercício inofensivo que lhe havia prometido e da distância agradável de Bestia e Pulcher, agora tinha que enfrentar uma horda
de germanos enlouquecidos. Estava apenas há quatro semanas no exército, pensou com amargura, e os inimigos já faziam fila para o matar.
Os homens da primeira centúria chegaram ofegantes ao topo da coluna e juntaram-se, no caminho, ao final da linha de legionários, sendo encorajados a continuarem.
Quando o último passou, Macro ordenou aos seus homens que recuassem dez passos da sua posição original. A centúria estava a ponto de se formar quando se ouviu uma
série de rugidos provenientes da cabeça da coluna.
Irrompendo do bosque distante, surgiu uma nova turba de germanos correndo pelo terreno para cortar a retirada da coorte. Cato, ainda que inexperiente, só teve de
lançar um breve olhar para se dar conta de que os bárbaros iam chegar ao caminho muito antes de todos eles. E foi então que viu tudo com uma terrível clareza: os
três homens a correr em direcção ao bosque, os sinais de fumo, a mulher do chefe a atrasar tudo. Tinha que admitir que fora uma armadilha simples e muito engenhosa,
mas face à desesperada situação, o terror eriçou-lhe os pêlos do corpo. Ao olhar para Macro, esperando obter uma solução, surpreendeu-se com a sua momentânea perda
de compostura. O centurião olhou para a nova ameaça e depois voltou-se para a primeira horda de germanos cujos gritos alucinantes já se podiam escutar do outro lado
da aldeia.
- Agora sim, rapaz - exclamou entre dentes. - Agora sim, estamos bem fodidos!

VII

Depois da coorte ter partido de manhã cedo, a Segunda Legião retomou a rotina de um dia normal. Os recrutas de Bestia circulavam pelo campo de manobras, tentando
manter-se quentes entre os exercícios de treino, enquanto o comandante da Quinta coorte levava os seus homens para fora do campo para a marcha mensal que o exército
exigia de todas as tropas. Neste dia, juntou-se à coorte um grupo de administrativos do quartel-general, queixando-se amargamente do fácto de as licenças de serviço
conferidas pelos seus estatutos estarem a ser ignoradas por Vespasiano.
Do alto de uma varanda, observando a coorte e os administrativos posicionados na terceira e quarta centúria a marcharem pela Via Pretória, Vespasiano não conteve
um sorriso. A Segunda Augusta era a primeira Legião que comandava e o seu desejo era torná-la a Legião mais bem sucedida, mesmo que isso significasse arreliar os
administrativos do quartel-general. Todos os homens e animais da Legião estavam a ser submetidos a uma intensa preparação física e militar para a campanha do próximo
ano. Além disso, tendo em conta a natureza especial da operação delineada na mensagem enviada pelo corpo imperial, os homens da Segunda iriam precisar de treino
militar em ambiente anfíbio. E como bem sabia, os soldados possuíam uma suspeição inata por tudo o que fosse aquático, ainda para mais, náutico. A vida na guarnição,
a que a Legião se acostumara nos últimos anos, não iria facilitar as coisas, pensou ao bebericar um copo de vinho quente. Era necessário um rápido período de ajustamento,
e o exercício a que forçara os administrativos fazia parte da primeira fase do programa de Vespasiano para preparar as tropas para o próximo Verão. A partir de agora,
marchas a passo acelerado e treinos de armamento seriam duplicados e a nenhum soldado ou oficial seriam concedidas licenças de serviço.
Após a última coluna de soldados da coorte ter marchado à sua frente, Vespasiano abandonou a varanda e regressou ao seu aposento privado, onde fechou os postigos.
Espalhados por cima de uma longa mesa de madeira encontravam-se os inventários que tinha ordenado, assim como uma série de missivas provenientes de Roma, providenciando
detalhes sobre a transferência da Legião - o percurso que eles iriam tomar através da Gália, os armazéns de abastecimento de onde seria permitido à Segunda obter
provisões ao longo da marcha e a notificação sobre os especialistas militares anfíbios que iriam ser vinculados ao seu comando para o resto da campanha. O documento
que desencadeara todos estes preparativos estava guardado, em segurança com outros papéis confidenciais, na arca debaixo da mesa. Por constantemente a ter relido,
Vespasiano já conhecia os conteúdos da missiva, citando-os de memória. Ainda assim, removeu a chave à volta do seu pescoço e abriu a fechadura. Um pergaminho estava
enrolado à volta do despacho e o que sobrara do selo imperial de cera vermelha, quebrado, ainda estava apegado ao duro pergaminho. Ao lado do rolo encontrava-se
um outro documento, mais pequeno, destinado apenas aos seus olhos e escrito num código personalizado pelo próprio Imperador. Vespasiano observou-o por um momento,
sentindo-se perturbado, mas acabou por escondê-lo no fundo da arca, antes de extrair o despacho.
Depois de o analisar em cima da mesa, voltou a beber o vinho quente, à medida que percorria com o olhar, mais uma vez, a elegante escrita. A Segunda, juntamente
com três outras legiões e trinta coortes de auxiliares, tinha como missão invadir a Britânia no próximo Verão. O administrativo imperial que tinha redigido o despacho
expusera os planos da missão desse modo tão simples e directo. Mas, consciente de ter simplificado demasiado as coisas, lançara-se numa prosa de grande eloquência,
escrevendo um elegante ensaio sobre a importância desta campanha. A Britânia, referia, não tinha sido mais do que reconhecida por Júlio César; uma invasão bem sucedida
reacenderia a glória romana e relembraria, de novo, ao mundo civilizado (e não-civilizado), o poder de Roma e do seu novo Imperador.
Vespasiano sorriu ao ler esta parte. A ascensão de Cláudio apenas fora possível graças ao apoio da Guarda Pretoriana. Não tivessem sido eles, e o actual Imperador
teria sido suprimido na carnificina que se seguira ao assassinato de Calígula. Cláudio reinava como Imperador, mas tratava-se de uma questão controversa entre as
classes de Roma, se era adequado ou não ao cargo. Até mesmo os plebeus não estavam inteiramente convencidos de que era a pessoa indicada. Este plano de campanha
- a conquista da Britânia - tinha claramente como objectivo elevar
Cláudio ao estatuto de herói. Uma rápida vitória, um brilhante triunfo e uma prolongada celebração pública em Roma firmaria as pretensões de Cláudio e conquistaria
o apoio das massas volúveis romanas.
O administrativo prosseguia com o delinear da campanha, afirmando que as forças mobilizadas para a Invasão seriam mais do que suficientes. Relatórios dos serviços
secretos, na Britânia, insinuavam que encontrariam uma resistência armada quase nula e largamente dispersa. A força invasora rapidamente eliminaria qualquer oposição
que se concentrasse, e o resto da campanha não passaria de uma simples questão de subjugar as fortalezas tribais através de diplomacia ou do uso da força.
- Através da diplomacia ou do uso da força. - Vespasiano repetiu alto, abanando a cabeça em sinal de desaprovação.
Só mesmo alguém do corpo imperial para fazer tudo soar tão simples. Qualquer soldado com experiência no terreno sabia o quão improvável era que a diplomacia resultasse.
Vespasiano tinha sérias dúvidas acerca da capacidade dos bretões em pronunciar tal palavra, quanto mais compreender as suas implicações.
Os bretões, de acordo com a livre interpretação dos escritos de César, elaborada pelo administrativo imperial, não passavam de uns arruaceiros indisciplinados com
curiosas tácticas de quadriga. Os seus fortes não eram mais do que fortificações de lama protegidas por frágeis paliçadas. Previa-se um número diminuto de baixas
e os invasores teriam amplas oportunidades de enriquecerem como resultado dos antecipados despojos de guerra - principalmente escravos. Vespasiano era alertado para
o dever de tornar esse ponto bem claro aos soldados rasos da Legião, não se querendo correr o risco de eles serem influenciados pelos rumores supersticiosos que
circulavam acerca das ilhas envoltas em brumas, para além do mundo conhecido. Neste ponto da missiva, o administrativo tomou consciência de que embelezara demasiado
as coisas e, assim, o despacho passou a conter um estilo mais objectivo. O legado recebia instruções no sentido de reprimir duramente aqueles que espalhavam tais
rumores e de manter o mais elevado nível de disciplina ao estilo da melhor tradição do exército romano. O despacho concluía num tom conciso, referindo o calendário
do movimento das tropas para os próximos meses.
Afastando o documento para o lado, Vespasiano engoliu de um trago o vinho que sobrara e pôs-se a observar os papéis que cobriam a mesa. Seria uma tremenda aventura,
para dizer o mínimo. A congregação de uma vasta força, o aprovisionamento e armazenamento de reservas para reabastecimento após o desembarque, a construção de uma
frota, o treino do exército em operações anfíbias - não esquecendo a pequena
questão da campanha em si e do estabelecimento de uma província completamente nova, com tudo o que isso implicava em termos de construção de infra-estruturas. E
tudo isto para quê?
O despacho referia vastos recursos de ouro, prata e estanho encontrados na ilha. Pelas informações que Vespasiano recebera acerca da Britânia através dos mercadores
que circulavam pela fortaleza, eram unânimes em considerá-la uma ilha miserável. Não possuía cidades nem cultura, apenas mulheres feias e penteados ridículos. Dificilmente
o tipo de lugar que Cláudio se poderia orgulhar de apresentar ao resto do Império. Mas tratava-se de uma conquista, e reputações constroem-se com base em sucessos
militares. Vespasiano tinha a perfeita consciência de que as suas qualidades políticas necessitavam de ser trabalhadas, de modo a poder concretizar as ambições que
abrigava no seu coração. Sim, a Britânia serviria bem os propósitos de todas as pessoas envolvidas
- excepto os dos nativos, pensou com um sorriso.
E por falar em nativos, havia um ou dois negócios que precisavam de ser finalizados antes da Legião ceder a fortaleza à coorte vinda da Macedónia, que recebera a
nomeação para substituir a Segunda durante a campanha. Também continuavam por resolver algumas disputas tribais sobre questões de território e aquele desagradável
incidente com o cobrador de impostos que estava presentemente a ser resolvido pela Terceira coorte. O mudo cobrador de impostos elaborara uma petição com o governador
da província a exigir compensação, e a não ser que a soma que clamara fosse paga na totalidade, só se contentaria com a execução do chefe local. Consciente do facto
de o povoado ter tido, este ano, uma pobre colheita e precisar de comprar provisões para o duro Inverno germânico, Vespasiano decidira oferecer como compensação
a língua cortada do chefe. Mas o cobrador de impostos, um homem grosseiro da Gália com uma pavorosa pronúncia e de poucas conversas
- algo que dificilmente melhoraria agora - insistira no maldito dinheiro a que tinha direito ou na morte do líder do povoado.
E, assim, Vitélio recebera ordens para lidar com o problema, uma tarefa bem a condizer com o prazer do tribuno em impor a paz romana.
Vespasiano tinha dificuldades em confiar no seu tribuno sénior, mas não sabia indicar as razões para tal suspeita. O homem podia ser considerado seu igual e era
popular entre os soldados. Bebia bastante, mas nunca atingindo o ponto de intoxicação. Mostrava a sua faceta de mulherengo com frequência e sem discriminações -
como qualquer homem devia agir, considerou Vespasiano mentalmente. Além do mais, Vitélio adorava desportos e era capaz de conduzir uma quadriga como
se tivesse nascido com as rédeas na mão. Se possuía algum vício era o do jogo, mas mesmo nisso era bom o suficiente - sabia instintivamente quando os dados iriam
jogar a favor ou contra ele. Tinha uma certa habilidade para fazer amigos, particularmente, amigos que provavam ser úteis politicamente. Sem dúvida, tinha um futuro
brilhante pela frente. Quem poderia dizer até onde chegaria? E com essa pergunta em mente, Vespasiano atingiu o cerne da questão - o homem representava um forte
rival num futuro próximo.
E não podia esquecer aquela outra questão. A mensagem codificada, entregue em completa ignorância por aquele recruta, há várias semanas, vinda directamente do corpo
imperial e em que fora usado o criptograma que o Imperador aplicava com Vespasiano. Informava em tom lacónico de que alguém na fortaleza estava implicado na tentativa
de golpe de Estado liderada por Escriboniano no ano passado. Mal a identidade do traidor fosse extraída aos sobreviventes da conspiração, Vespasiano seria informado
e poderia proceder ao desaparecimento do indivíduo em questão. Belos eufemismos, pensou o legado, esboçando um sorriso ao imaginar as técnicas usadas pelos carrascos
imperiais para extrair informação e fazer desaparecer pessoas de um modo discreto. Numa tentativa de lhe transmitir alguma segurança, a mensagem garantia-lhe que
pelo menos um - mais uma vez não-identificado - agente imperial estava presente no campo para auxiliar Vespasiano em tudo o que fosse preciso.
Tudo isto não passava de um maldito estorvo, tendo em conta as preparações exaustivas necessárias para o envolvimento da Legião numa campanha militar ofensiva em
grande escala. Um soldado precisava de se concentrar em objectivos militares, de modo a poder operar eficientemente, e não em jogos políticos de alto risco. E a
partir de agora, era forçado a encarar cada um dos seus oficiais com alguma suspeita, pelo menos até que uma infeliz alma na prisão de Mammertine fosse quebrada
por meio de tortura e providenciasse um nome. Vespasiano não podia evitar o desejo de que esse nome fosse o de Vitélio. Seria a perfeita solução para a maioria dos
seus actuais anseios.
Vespasiano pegou na jarra a ser aquecida sobre as brasas incandescentes no braseiro e despejou mais um copo de vinho. Ao beber cuidadosamente do líquido fumegante,
pensou como era uma pena não ter sido possível enviar Vitélio para uma missão bem mais perigosa do que a simples prisão de um chefe local.

VIII

O cavalo do tribuno veio a correr disparado pelo caminho abaixo. Parando perto da última centúria na coluna, Vitélio estendeu o braço e apontou para a aldeia para
lá do declive.
- Macro! Ordena os teus homens que regressem à aldeia em marcha acelerada!
- Senhor?
Macro ficou estupefacto com a ordem. O seu olhar seguiu a direcção que o tribuno apontava e pousou no povoado onde uma multidão de germanos invadia os campos, movimentando-se
em direcção a eles.
- É uma ordem, centurião - gritou-lhe Vitélio. - Em passo de corrida.
- Sim, senhor!
- E quando chegares à aldeia, atravessa-a e monta uma defesa no portão traseiro.
- Sim, senhor!
- Não pares por nada deste mundo! Compreendido?
- Sim, senhor! Macro regressou à sexta centúria, para lhes anunciar as novas ordens, ao passo que Vitélio sacudiu brutalmente as rédeas, deu meia-volta, e escoiceou
com os calcanhares o cavalo antes de partir, abandonando a coluna que por esta altura já dera meia-volta e marchava em passo acelerado em direcção à vila. Macro
agarrou no braço de Cato.
- Mantém-te perto. Aconteça o que acontecer.
Cato acenou com a cabeça.
- Vamos, rapazes, rápido. Sigam-me!
Macro liderou a centúria pelo caminho abaixo, uma pequena coluna de legionários ofegantes que fitavam o lado mais distante do povoado, e mediam a distância entre
eles e as hordas germânicas. Até
mesmo Cato era capaz de ver que o inimigo conseguiria alcançar primeiro o portão traseiro. E o que aconteceria então? Um combate brutal nas estreitas ruas imundas
e uma morte certa. E a morte seria preferível à captura, se fosse verdade o que Possidónio escrevera acerca dos Germanos. As couraças das armaduras e as bainhas
entrechocavam e tiniam alto e Cato, que ainda não dominara a técnica de correr com a armadura completa envergada, esforçava-se por conservar consigo o escudo e o
dardo, tentando, ao mesmo tempo, evitar que a bainha da espada se enfiasse por entre as pernas. Mas o pior de tudo era o elmo de tamanho único, que começou a escorregar
à medida que corria, atrapalhando-lhe a visão e forçando-o a sacudir a cabeça constantemente para trás.
Ao olhar para trás, Macro conseguiu avistar as outras centúrias a alcançarem o cume e desatarem a correr pelo declive abaixo. Acenou com a cabeça, aprovadoramente.
O tribuno tivera o bom senso de não permitir que corressem o caminho todo através da aldeia e enfrentassem os germanos enquanto ainda recuperavam o fôlego. Macro
olhou para o portão principal. Um pequeno grupo de germanos, ostentando uma mistura seleccionada de armas antigas e as mais perigosas ferramentas agrícolas, esperava
hesitantemente por eles - bastante surpreendidos por verem um grupo de legionários a correrem pelo declive abaixo na sua direcção. Como estava ligeiramente adiantado,
pôde ver as expressões aterrorizadas nas faces dos que ainda não tinham fugido. Respirou fundo e desembainhou a espada.
- Graaarrri
Cato deu um salto para o lado, surpreendido.
- Continua a correr, idiota! Foi para assustá-los a eles, não a ti!
E com efeito, os germanos que tinham permanecido preferiram fugir
a enfrentar o centurião aos berros, nem parando para fechar os portões.
Olharam de relance para o corpo destroçado do romano à entrada e irromperam pelo portão atrás dos aldeões, lançando gritos de raiva e procurando causar um efeito
assustador. Apenas Cato permaneceu em silêncio, observando com um olhar crítico os casebres mal construídos e horrorizado pelo cheiro hediondo do local.
- Mantenham-se juntos! - berrou-lhes Macro por cima do ombro. - E continuem a gritar!
A centúria virou uma esquina e foi direita à primeira sólida oposição - uma dúzia de homens cabeludos com escudos e lanças de caça, escarranchados no caminho. Muito
estupidamente, tinham-se posicionado demasiado perto da esquina e, antes que Cato se apercebesse da presença deles, foram logo derrubados. Os que foram afastados
para o lado desapareceram de vista e sobreviveram. Os outros foram espezinhados
e mortos por arremesso de dardos. Cato apenas viu um germano a ser morto, o rosto dele esmagado pela borda do escudo de Macro. O homem , deu um grito estridente,
que se perdeu por entre a força demolidora que impelia Cato para o coração da vila. Todos os medos se desvaneceram face à necessidade de se concentrar em manter
firme o passo e o mais próximo possível de Macro. Ao seu lado, o porta-estandarte gritava ao máximo, sorridente:
- Em frente!
Pelos deuses! pensou Cato, estes homens estavam a divertir-se. Idiotas! Queriam ser mortos?
De súbito, desembocaram na praça em frente à casa do chefe, que Cato avistara do topo da colina. Os aldeões dispersaram perante os legionários em fúria.
- Deixem-nos! - ordenou Macro. - Continuem em frente! Sigam-me!
Liderou a centúria para fora da praça, através do caminho mais largo, certo de que o iria conduzir ao portão em que iria enfrentar a chegada da horda germânica cada
vez mais próxima. O caminho pela frente estava desimpedido e o som de portas a fecharem-se com estrondo era o único sinal de vida da parte dos nativos. Por uma fenda
entre as casas, Cato pôde ver que se aproximavam do outro portão e este já se vislumbrava por cima dos telhados de colmo. Depois apercebeu-se de um novo som, os
berros de uma multidão que se sobrepunham aos gritos dos legionários. Calaram-se e abrandaram o passo, momentaneamente.
- Não parem, seus filhos da mãe preguiçosos! - gritou-lhes Macro. - Em frente!
Os legionários desataram a correr num último esforço, para se apoderarem do portão antes dos germanos. Cato seguiu Macro e o porta-estandarte, numa última e desesperada
arremetida, por uma pequena elevação acima, entre os casebres, depois chocou contra as costas do centurião, que tinha parado. O escudo de Cato escorregou das suas
mãos.
- Merda! - explodiu Macro.
- Desculpe, senhor! Eu não...
- Formar linha! - gritou Macro, ignorando-o. - Preparar os dardos!
Depois de recuperar o escudo, Cato endireitou-se e ficou paralisado. Cem metros à sua frente, erguia-se o portão escancarado e através dele, com um rugido de gelar
o sangue, tinham avistado o inimigo. Deviam ser as criaturas mais hediondas que Cato alguma vez vira; corpulentos, com cabelos selvagens, rostos sedentos de sangue
e um abominável cheiro animalesco.
- Afasta-te para o lado, filho.
Macro empurrou Cato para o fim da primeira linha de legionários, onde o porta-estandarte tinha fixado o estandarte e desembainhado a espada.
- As primeiras duas filas! Lançar dardos!
Uma dúzia de dardos foi lançada, em arco, na direcção dos germanos, desaparecendo momentos depois por entre a multidão em tumulto, que caminhava ombro a ombro. Como
se uma corda os tivesse feito tropeçar, as linhas da frente caíram, alguns empalados pelos dardos romanos, outros tropeçando nos feridos, sendo deitados ao chão
pela pressão dos detrás.
- Próximas duas linhas! Lançar dardos! A voz de Macro repetiu, alta e calma. O segundo lançamento fez com que a frente do ataque germânico se transformasse numa
confusa massa de mortos e feridos, com os sobreviventes a tentarem libertar -se furiosamente do caos. Bastou um segundo para Macro avaliar a situação e, brandindo
a sua espada ao alto, gritou:
- Venham, rapazes! Vamos a eles! Atacar!
Então, correu disparado na direcção dos germanos, com o escudo erguido de modo a cobrir o tronco, e a espada curta apontada à garganta do inimigo mais próximo. A
centúria seguiu-o aos gritos e, mais uma vez, Cato viu-se irremediavelmente levado por uma torrente de loucura. Ao contrário das linhas da frente, Cato ainda transportava
o dardo e, em vez de o levar consigo para a dura refrega, decidiu lançá-lo para o mais longe possível antes de desembainhar a espada. Mas o lançamento de dardos
que praticara no campo de treino em nada se assemelhava a lançar um dardo em pleno combate. Ao recuar o braço direito, quase que empalou o legionário atrás de si.
- Tem cuidado, estúpido! - gritou-lhe o homem, colérico, afastando a ponta para o lado, ao passar por Cato. - Ainda feres alguém!
Cato corou, envergonhado, e acabou por lançar a arma que cometera a ofensa, para a frente, numa infeliz baixa trajectória, provocando um ricochete no elmo de Macro,
o que fez com que a arma voasse horizontalmente sobre a horda germânica, antes de desaparecer de vista. O optio engoliu em seco face ao olhar de fúria que o centurião
lançou por cima do ombro. O centurião praguejou alto e seguiu em frente, para descarregar a raiva no primeiro germano ao seu alcance. Cato rapidamente desembainhou
a espada e atirou-se à luta, tentando ao máximo não parecer o responsável pelo dardo mal lançado.
Os legionários na retaguarda davam gritos de encorajamento aos da frente, parando apenas para pôr fim aos germanos que ainda acusavam
algum sinal de vida por entre os corpos emaranhados, estendidos no chão imundo. Cato ficou chocado ao ver um ou dois corpos romanos entre eles , - homens que não
conhecia. À medida que os legionários empurravam firmemente os germanos em direcção ao portão, surgiram mais corpos romanos, alguns ainda com um ar surpreendido
pelas horríveis feridas. Sangue escorria das feridas, manchando as ruas, sendo espezinhado por botas de ferro. Os romanos iam sendo mortos e a frente de combate
aproximava-se cada vez mais, e então Cato preparou-se para o momento em que teria de tomar o lugar de um romano morto na refrega.
Pressionados contra o portão, um punhado de germanos tentava desesperadamente alargar a frente de combate, de modo a tirarem vantagem dos seus números, escalando
os muros baixos das cabanas circundantes. Às ordens de Macro, os legionários colocados na retaguarda lançaram dardos e os germanos recuaram de novo.
Cato avistou o estandarte a flutuar à cabeça da centúria à medida que os legionários forçavam o caminho em direcção ao portão. Então, Macro liderou uma nova investida,
que deu aos romanos a oportunidade de se colocarem entre as torres do portão.
- Mantenham a posição!
Macro deu-lhes a ordem, e com um último golpe de espada arremetido contra a multidão germânica em fúria, libertou-se e forçou o seu caminho de volta para a coluna
de legionários que defendia a entrada. Encontrou no interior do portão as tropas sobreviventes.
- Vocês, subam para a muralha! Precisamos de desimpedir o espaço em frente ao portão. Usem os vossos dardos, pedras, o que quer que chegue às vossas mãos.
Quando os legionários escalavam as rampas que davam acesso ao passadiço da muralha, Macro avistou Cato e prendeu-lhe o braço.
- Optio! Quero que tu e mais seis homens tenham a tranca preparada. Às minhas ordens, colocam-na o mais rápido possível. Entendido?
- Sim, senhor! - respondeu Cato, olhando para um golpe profundo no braço do centurião, o que segurava a espada.
- Então trata disso.
O centurião partiu, forçando o seu caminho de volta para a vanguarda, e dando gritos de encorajamento aos soldados. Cato reparou que os homens em seu redor o observavam,
à espera.
- Muito bem! - tentou que a sua voz soasse firme. - Vocês ouviram-no. Desembainhem as espadas e baixem os escudos.
Para sua grande surpresa, obedeceram às suas ordens, e já aliviados do peso dos escudos, agarraram firmemente na tranca toscamente
talhada. Cato apoiou o escudo contra a parede de um casebre, depois curvou-se e agarrou na parte da frente da tranca.
- Preparados? Levantar!
Cato endireitou-se lentamente, arfando do esforço de erguer a tranca para o ombro, onde a pousou desconfortavelmente.
- Pronto! - disse, de dentes cerrados. - Em direcção ao portão, cuidado!
Seguiram em frente, caminhando cuidadosamente por entre as formas prostradas dos romanos e germanos, e depois nada mais restava senão aguardarem num local perto
do portão, onde a luta parecia favorecer o lado germânico. O número escasso de legionários estava a ser lentamente forçado a ceder terreno. Devido à sua altura,
Cato conseguia ver os germanos do outro lado a rosnarem de raiva, lançando-se em frente contra os romanos.
Macro gritou:
- Mais fogo dessa muralha! Atirem tudo o que tiverem!
Os legionários da muralha dispararam em desespero os últimos dardos, juntamente com pedras arrancadas das casas mais próximas, para cima das cabeças dos germanos
indefesos. Instintivamente, os que estavam à frente recuaram do portão, afastando-se da carnificina.
- Recuar! - Macro virou-se e empurrou o legionário mais próximo para dentro do portão. Os romanos que restavam, rapidamente se retiraram, defendendo-se do inimigo
através dos escudos. Os últimos homens a darem entrada, numa tentativa frenética, esforçaram-se por deslocar as pesadas madeiras e fechar o portão.
Do exterior, ouviram-se os gritos do inimigo que se apercebera do que se estava a passar. Iniciaram um novo ataque, indiferentes às pedras a ser lançadas do topo
da muralha. Na frente de combate, surgiu um guerreiro alto, o rosto grosseiro marcado por um ódio e uma fúria cega. Quando as portas se fechavam sobre ele, atacou
o romano mais próximo com uma lança.
- Não, cabrão! Nem penses!
Macro atacou com a ponta da espada a ponta da lança, abatendo-a ao chão. Incapaz de travar, o germânico foi de encontro à abertura cada vez mais estreita, o que
permitiu a Macro acertar-lhe em cheio na face e partir-lhe o nariz com um ruído arrepiante. O germano deu um grito e Macro pontapeou-o para o exterior.
- Desanda daqui, besta imunda!
As portas fecharam-se com estrondo e - antes que a ordem pudesse ser dada - Cato e os legionários ergueram a tranca com rapidez e colocaram-na nos suportes onde
foi solidamente encaixada. Um instante
depois, as portas sofreram o primeiro impacto e a tranca rangeu com a pressão. Depois de se certificar de que estava tudo em segurança, e mantendo uma guarda no
portão, Macro ordenou que o resto da centúria fosse para a muralha.
A muralha da aldeia nem merecia tal nome. Fora erigida principalmente para protecção contra bandos selvagens, vindos do outro lado do Reno, que cometiam saques e
pilhagens. O entulho do fosso em redor da aldeia fora empilhado de forma a constituir uma espécie de rampa coberta de turfa, o que prendera o entulho. Um estreito
passadiço com a superfície revestida de toros de madeira estendia-se ao longo da muralha, junto à paliçada de estacas afiadas, à altura do peito. Macro, sendo baixo
e entroncado, tinha que se colocar na ponta dos pés para obter uma melhor visão do cenário frente ao portão.
Uma multidão excitada de germanos espalhava-se a toda a volta da aldeia, como dois braços envolvendo os romanos encurralados. Aos pés de Macro, o inimigo estava
a ser corrido do portão através do lançamento constante de pedras, criando-se assim uma respeitável distância onde se amontoavam os mortos e feridos. Mais atrás,
Macro conseguia ver os feixes de lenha a serem retirados de uma pilha deixada pelos aldeões num local seguro onde não causasse um incêndio. Uma vez preparados os
feixes de lenha, seria uma questão de tempo até conseguirem atulhar o fosso e assaltarem a muralha. Ao menos, a centúria tinha ganho tempo para o resto da coorte.
Macro virou-se para procurar por um sinal das outras centúrias. Ouviam-se gritos remotos e o choque de armas do outro lado do povoado, e da sua posição de vantagem,
Macro pôde observar outros legionários em torno da muralha. O povoado estava protegido então. Óptimo. Era tempo de fazer um relatório.
O centurião olhou para o caminho que conduzia ao portão e viu-o coberto de corpos; calculou que cerca de um quinto dos seus homens estavam mortos ou gravemente feridos.
Desviou o olhar para cima e deu de caras com o jovem Cato, de expressão atenta, a tentar observar por cima da paliçada.
- Cato, meu grande idiota! Mantém essa estúpida cabeça em baixo se não queres que um germano a use como alvo!
- Sim, senhor.
- Vem cá, tenho um trabalho para ti.
Encolhido debaixo da paliçada, Macro retirou o elmo e limpou o suor da testa com o braço que não estava ferido. Quando se preparava para transmitir o relatório a
Cato, passou os dedos pela mossa no topo do elmo.
- Sabes alguma coisa sobre quem fez isto?
Cato corou em silêncio.
- Logo vi que não. Mas se alguém voltar a tentar espetar-me com o dardo daquela maneira, vai sofrer às minhas mãos. Agora quero que vás procurar o tribuno. Encontra-o
o mais rápido possível e diz-lhe que o portão está em nosso poder. Diz-lhe também que restam-nos cerca de setenta efectivos e pergunta-lhe por novas ordens. Entendido?
Cato assentiu com a cabeça.
- Então põe-te a andar! - Macro bateu-lhe no elmo.
O centurião observou Cato a descer do passadiço até à rua e escolher o melhor caminho por entre os mortos e feridos. Macro voltou a pôr o elmo e decidiu que, se
conseguissem sair desta alhada, iria ter uma conversa com Bestia. Aquele rapaz definitivamente estava a precisar de treinar mais o lançamento de dardos. Suspirou
e, cuidadosamente, espreitou sobre a paliçada de modo a assistir ao progresso da acção do inimigo.
As botas de Cato ressoavam pela rua à medida que corria pelo mesmo caminho que a centúria tinha tomado momentos antes. Sozinho, sentia-se vulnerável, olhava nervosamente
para todos os lados enquanto corria por entre os miseráveis casebres germanos. Mas não avistou ninguém até ao momento em que alcançou a praça no coração da aldeia.
Aí, foi de encontro a uma guarda romana em vigilância. Dois legionários, ao verem-no aproximar-se, levantaram ansiosamente os dardos, mas ao aperceberem-se de que
estava sozinho, suspiraram de alívio.
- Onde está o tribuno?
- O que está a acontecer, optio?
- Nada... preciso de encontrar o tribuno... tenho uma mensagem para ele.
Um dos legionários apontou por cima do ombro.
- Ali atrás, ao lado da casa do chefe do povoado. O que se está a passar no outro portão?
- Está em nosso poder. - gritou-lhes Cato, por cima do ombro, voltando de novo a correr.
Ao desembocar na praça vindo de uma rua estreita, Cato deteve-se surpreendido. Centenas de germanos de todas as idades encontravam-se no centro. Depois compreendeu
que estavam a ser conduzidos por uum grupo de legionários que os empurravam com os escudos e os espicaçavam com os dardos, de modo a agrupá-los, tornando a sua vigilância
mais fácil. Das ruas em redor, surgiam ainda mais germanos levados à força para a praça. Cato forçou o caminho por entre eles até alcançar a casa do chefe, onde
Vitélio dava ordens a um centurião.
- ... e se eles oferecerem resistência ou tentarem alguma loucura, matem-nos a todos.
- Matá-los? - O centurião lançou um olhar irresoluto aos aldeões, muitos deles lamentando-se em voz alta. - Matá-los a todos?
- Ou não tens o estômago para isso?
- Nada disso, senhor! - O centurião pareceu surpreendido.
- Apenas pensei que levaria demasiado tempo para matá-los a todos, senhor.
- Então terás que o fazer rapidamente.
- Senhor! - Cato interrompeu-os. - Mensagem para o senhor! Da parte de Macro.
- Mas que merda é esta, soldado? - gritou-lhe Vitélio. - Como te atreves a vir aqui e gritar comigo como se fosse o raio de um mercador! Agora apresenta o teu relatório
mas com respeito pelo teu superior!
- Perdão, senhor. - O centurião tossiu. - Posso retirar-me?
- O quê? Ah sim, já tens as tuas ordens. Põe-te a andar.
Vitélio desviou a sua atenção para Cato:
- Agora tu.
- Senhor. O centurião Macro informa de que o portão está em nosso poder...
- Baixas?
- Cerca de vinte. Ainda restam setenta efectivos, senhor. O centurião aguarda por novas ordens.
- Ordens? - Vitélio repetiu com um ar vago. - Certo. Diz-lhe que tem de manter a defesa do portão. Nós já firmámos a defesa das muralhas e o interior da vila. Agora
temos que resistir até à chegada de reforços. - Vitélio olhou para o céu crepuscular. - Somos esperados na fortaleza antes do anoitecer. O legado partirá mal se
aperceba de que estamos metidos em problemas. Com sorte, partirá de madrugada. Ainda assim, é preferível estarmos aqui do que na floresta.
- Sim, senhor. - Cato concordou com o tribuno de todo o coração.
- Informa Macro da situação e que ele deve aguentar o portão, a qualquer custo, até ser desobrigado. Fiz-me entender, optio?
Cato assentiu com a cabeça.
- Então vai-te daqui.

IX

No povoado germano, o dia escureceu lentamente, dando lugar à penumbra do crepúsculo. Os combates tinham cessado, fazendo com que o calor e o estado mental dos legionários
nas muralhas se esvanecesse, deixando-os à mercê de uma gelada escuridão invernal. Para complicar as coisas, começara a nevar; grandes flocos de neve caíam preguiçosamente,
flutuando pelo ar imóvel.
A emboscada inicial falhara e agora os germanos tinham-se retirado para fora do alcance dos dardos, a maioria lançando pragas à aldeia na sua língua áspera. Outros
mantinham-se ocupados a empilhar lenha ou a desbastar ramos de jovens pinheiros para a construção tosca de escadas de assalto. Do topo da muralha, a defesa romana
observava-os com alguma ansiedade, deitando ocasionalmente alguns olhares com esperança na direcção da fortaleza da Segunda legião, a uma mera distância de treze
quilómetros. Para tornar a situação negra, os legionários da sexta centúria avistaram uma grande árvore a ser abatida nas redondezas, prestes a ser convertida num
grande aríete.
Macro, da sua parte, também não mantivera os braços cruzados. Tinha ordenado a alguns dos seus homens que empilhassem pedras na muralha, servindo estas de suplemento
aos dardos que ainda restavam, e outro grupo fora encarregue de amontoar pedras mais pesadas e entulho contra os portões da aldeia, de modo a absorverem o impacto
do aríete.
Enquanto Cato ligava o braço de Macro, o centurião explicava ao jovem optio como estas eram medidas normais de precaução, mas se os germanos conseguissem coordenar
plenamente o seu ataque, então, a frágil guarnição romana seria aniquilada.
- E depois? - perguntou Cato.
- O que é que achas? - Macro esboçou um leve sorriso e bateu
os pés com força no chão. - Eles não deixarão nenhum de nós vivo. Seremos cortados aos pedaços.
- Por favor, mantenha-se imóvel, senhor. Tomarão prisioneiros?
- É melhor nem pensares nessa possibilidade - disse-lhe Macro com gentileza. - Acredita, a morte é preferível.
- A sério?
- A sério.
- O tribuno disse que Vespasiano mandaria auxílio mal se apercebesse de que algo correu mal. Se conseguirmos resistir até lá...
- Dizes bem. "Se conseguirmos". - respondeu-lhe Macro
- Mas talvez ainda consigamos. Assegura-te apenas de que cumpres a tua parte.
- Cumprirei.
Cato rasgou o excedente da ligadura improvisada e atou as pontas com firmeza.
- Pronto, senhor. Como se sente agora?
- Não está muito mal. - Macro flectiu o braço e estremeceu ao sentir a dor percorrê-lo.
- Terá que servir. Não é nada que já não me tenha acontecido.
- Já foi alguma vez ferido, senhor?
- Faz parte do acordo quando te alistas no exército. Não tarda, irás acostumar-te.
- Se sobrevivermos.
- Talvez ainda haja possibilidades de nos conseguirmos safar.
Macro tentou soar confiante, e ao ver a expressão abatida do
jovem, esmurrou-o no ombro.
- Anima-te, rapaz. Ainda não estamos mortos. Nem por sombras. Mas se acontecer... então não há nada que possamos fazer para alterar as coisas, por isso, não adianta
preocuparmo-nos, hã? Bem, vamos lá ver o que é que aqueles filhos da mãe andam a preparar.
Uma rápida inspecção das linhas germânicas à luz do crepúsculo invernal não revelou nenhuma mudança significativa, e os secos golpes de machado continuavam incessantemente.
Vendo que o povoado estava seguro de momento, Macro voltou-se para Cato.
- Vou só ter uma palavra com os rapazes, tentar animá-los. Quero que tu e mais dois homens procurem alguma coisa para comer e beber. Estou com fome. Não precisamos
de jejuar enquanto esperamos pelo ataque.
Uma rápida busca efectuada nas cabanas mais próximas produziu como resultados uma boa provisão de carne seca, pão quente e vários jarros de cerveja local.
- Não bebam muito dessa cerveja - aconselhou-os Macro, falando por experiência própria. - Certifica-te de que ninguém bebe mais que o devido ou serão punidos mal
regressemos à base.
Cato olhou por cima do ombro do centurião.
- Senhor! O tribuno...
Vitélio e a sua guarda de quatro homens corpulentos surgiram de uma rua sombria e subiram a rampa que conduzia ao portão. Macro endireitou-se, e estava prestes a
ordenar a centúria a colocar-se em sentido, quando Vitélio abanou a cabeça.
- Deixa os homens descansarem, centurião. Eles merecem.
- Sim, senhor. Obrigado.
- Faz-me o ponto da situação.
- Bem, como pode ver - Macro fez um gesto com o braço a abarcar todo o cerco dos germanos em redor da aldeia - não seremos capazes de resistir a todos eles com apenas
setenta homens, senhor. Desde o último ataque que andam a empilhar lenha e a construir escadas de assalto. E além, estão prestes a terminar o aríete. Quando o utilizarem...
- Compreendo. - Vitélio coçou o queixo, com um ar meditativo.
- Terás que manter a defesa o mais que puderes.
- Sim, senhor... E o resto da coorte?
- Não estamos tão mal quanto isso. Temos o controlo da muralha, e todos os aldeões que possam constituir uma ameaça foram postos sob vigilância. A centúria de Quadrato
foi a que sofreu mais baixas. Aquela cabra - a mulher do líder - abriu um escoadouro. Vinte deles emboscaram os homens de Quadrato, antes de ela ser capturada. Mataram-nos
um por um enquanto os homens lutavam com os germanos no exterior da aldeia, tentando afastá-los da muralha. Perdemos quase metade da centúria até os conseguirmos
expulsar.
- Quadrato é um bom soldado, senhor - sorriu Macro.
- Já não é. Foi atingido por uma lança germânica. Teve morte imediata.
- Não!
- Receio que sim, centurião. E os germanos também conseguiram deitar mãos ao optio dele. É essa a razão porque estou aqui. Podes dispensar alguém para tomar o comando
da centúria de Quadrato?
A uma certa distância, encontrava-se Cato, o sangue a gelar-lhe de ansiedade. Teve que fazer um tremendo esforço para não fitar Macro, preferindo fixar resolutamente
os olhos nas faces dos germanos reunidos
à volta dos fogos, para além da muralha. Adoptando o que lhe parecia ser o ar desinteressado de um veterano, Cato continuou a ouvir com o coração aos saltos.
- Hmm... - pensou Macro, olhando à sua volta, e Cato quase conseguia sentir o peso do seu olhar perscrutador a pousar nele por uns instantes.
- E o teu optio? - Perguntou Vitélio. - Não é um bom soldado?
- Ainda nem é um homem, senhor. Apenas um jovem rapaz. Não posso deixá-lo sair da minha alçada. É bem intencionado e eficiente, mas está longe de estar preparado
para o que precisa.
- É pena.
Cato sentiu o peso esmagador da rejeição oprimir-lhe o coração. Rangeu os dentes e lutou para reter lágrimas de humilhação.
- Não tens mais ninguém?
- Sim, senhor. O porta-estandarte vai servi-lo bem. Pode levá-lo.
- Está bem. - Vitélio assentiu com a cabeça. - Já sabes o que tens a fazer, centurião. Defende o portão a qualquer custo. Temos que nos conseguir manter vivos durante
a noite, o auxílio de Vespasiano deverá chegar pela madrugada. Estou a contar contigo.
- Obrigado, senhor. - Macro saudou-o com a mão no peito, e depois ficou a observar o tribuno e os seus guarda-costas a dirigirem-se ao local onde o estandarte flutuava
na muralha.
- Cabrão! - praguejou em voz baixa. - "Estou a contar contigo".
- Como se Macro não soubesse desempenhar os seus deveres.
Olhou à sua volta para se certificar de que ninguém ouvira o insulto. A rígida postura de Cato a olhar para o horizonte pareceu-lhe pouco natural.
- Cato!
- Senhor? - a voz soava triste e magoada.
- Nenhum sinal de movimento?
- Não.
- Bom, então mantém os olhos abertos.
- Sim, senhor.
O tribuno e a sua guarda regressaram ao portão, caminhando pela muralha, seguidos pelo porta-estandarte. Vitélio fez um aceno com a cabeça na direcção de Macro ao
passar por ele.
- Tenha cuidado, senhor. - disse o porta-estandarte.
- Tu também. - Macro sorriu-lhe. - Nós tomamos conta do estandarte na tua ausência, Pórcio.
O porta-estandarte deteve-se por um instante, ficando a olhar para
o estandarte da sexta centúria e, tentando não mostrar a sua relutância, passou a haste de madeira a Macro.
- Tome.
Depois desapareceram na escuridão gelada por entre os esquálidos casebres germânicos, deixando Macro a segurar o pesado estandarte pendente da haste. Nesse momento,
Macro deixou-se levar pela emoção, ao recordar o ano em que servira como porta-estandarte. Acariciou a haste e sorriu perante este novo despertar das emoções do
homem jovem que fora. Até que se apercebeu da presença de Cato.
- Rapaz - chamou suavemente. - Vem cá.
Cato pôs-se em sentido perante o seu superior, a face tensa devido a emoções reprimidas.
- Descontrai, filho. Tens um novo dever. Quero que tomes conta
disto.
- Senhor?
- Ouviste o que o tribuno disse?
- Sim, senhor.
- E espero que só tenhas ouvido isso. Na ausência de Pórcio, preciso de um homem capaz de tomar conta do estandarte por um tempo. És capaz?
Por mais simpática que fosse a maneira como havia sido dita, tratava-se de uma ordem e não de um pedido. Cato sentiu um grande orgulho, que fez desaparecer a amarga
humilhação de momentos antes. Sem lhe responder, depôs o escudo e segurou firmemente o estandarte com a mão direita.
- É uma grande responsabilidade - disse Macro. - Sabes disso.
- Obrigado, senhor. Irei guardá-lo com a minha vida.
- Acho bem. Se Pórcio encontrar nem que seja um arranhão nele, são os teus tomates que vão ser pendurados na ponta, no próximo combate. Entendido?
Cato assentiu com a cabeça, solenemente.
- Mantém-te perto de mim e, aconteça o que acontecer, nunca largues o estandarte e mantém-no alto. Para que os homens possam vê-lo sempre. Compreendeste bem? Agora,
que se passa?
Um súbito movimento entre os homens na muralha tinha chamado a sua atenção. Cato ergueu o estandarte e seguiu Macro até à paliçada. Para além das muralhas, os germanos
haviam abandonado as fogueiras e dirigiam-se, numa enorme massa negra, para o portão. Formas irregulares por entre a multidão indicavam a presença de feixes de lenha
a serem transportados. Alguns carregavam tochas que iluminavam as faces dos homens mais próximos com um brilho laranja.
- Agora lembrem-se, rapazes - gritou-lhes Macro ao desembainhar a espada. - Se eles se apoderarem da muralha, será o fim da coorte inteira. Por isso, dêem o vosso
melhor!
Ouviam os gritos da horda germânica, que se aproximava cada vez mais, a crescerem em intensidade até se tornarem num feroz rugido de violência e arrogância. Alguns
dos legionários lançaram-lhes gritos de desafio.
- Acalmem-se! - Macro tentou fazer-se ouvir por entre os gritos.
- Eles estão a desperdiçar o fôlego! Não temos que lhes provar nada!
Ao lado dele, Cato permanecia imóvel, horrorizado pela ameaça iminente. A horda avançava com uma terrível determinação, conferindo-lhe um ar bem mais ameaçador na
escuridão. A sua imaginação pregava-lhe partidas, amplificando os sons e as formas. Ao contrário da altura em que encetaram a corrida desesperada pelo povoado nessa
tarde, a iminência de um combate mortal deu aos homens tempo para considerar a sua própria coragem e determinação em lutarem, mas não conseguiam deixar de imaginar
as piores consequências. Cato arrepiou-se, e logo se amaldiçoou a si próprio, ao observar os seus companheiros.
- Tens medo, rapaz? - perguntou-lhe Macro, numa voz calma.
- Sim, um pouco.
Macro sorriu.
- Claro que tens. Como todos nós. Mas agora temos de enfrentar a situação e não há nada a fazer quanto a isso.
- Eu sei, senhor. Mas isso não torna as coisas mais fáceis.
- Limita-te a segurar firmemente o estandarte.
Os germanos mantiveram um passo sólido até alcançarem a muralha. Algures, na noite, soou uma trompa de guerra, e de todos os lados à volta do povoado, soaram ainda
mais trompas. Gritos de guerra selvagens atingiram, como uma onda, a defesa romana na paliçada. Defronte do portão, vultos negros amontoavam-se em redor do fosso
e lançavam tochas na escuridão cerrada, enquanto outros atacavam os defensores com flechas, lanças e pedras. Com o escudo erguido sobre a cabeça, Macro conseguiu
observar os feixes de lenha a serem amontoados no fosso, em cada lado do portão. Não tardaria muito até que o fosso estivesse atulhado a um ponto que permitiria
aos germanos deporem as escadas de assalto contra a muralha. Mas o pior era o aríete a forçar caminho por entre a horda - constituía a pior ameaça à posição deles.
Enquanto os legionários conseguissem preservar as suas cabeças no sítio, as escadas podiam ser movidas e empurradas para trás, mas um aríete iria, inevitavelmente,
destruir o frágil portão da aldeia. Macro e os homens perderiam todas as defesas e seriam aniquilados pelo esmagador
número do inimigo. Com grande bravura, os germanos tinham rapidamente atulhado o fosso e, em vez de optarem por um assalto directo, Macro ficou surpreendido ao vê-los
trepar pelos feixes até à muralha. Os germanos que caíam eram simplesmente atirados para o crescente amontoado.
Nesse instante, a horda atacante defronte do portão abriu passagem ao aríete, um sólido toro de pinheiro com ramos decepados a servirem de pegas, carregado por um
grupo de homens robustos. Quando o aríete colidiu contra as madeiras da porta, o impacto foi sentido por todos os homens na muralha. Macro espreitou a parte interior
do portão quando foram atingidos pela segunda vez, e viu a tranca quase a saltar do grampo, sendo mantida no lugar apenas através dos esforços desenfreados dos homens
em guarda. Algumas cavilhas ameaçavam saltar do sítio.
- Isto está mau - murmurou Macro e voltou a observar a situação para lá da muralha. Mesmo com os defensores a lançarem pedras para baixo, cada baixa era de imediato
substituída, em nada retardando o ritmo demolidor. - Isto está péssimo.
- Não há nada que a gente possa fazer, senhor? - perguntou
Cato.
- Sim, claro! Se tivéssemos fogo grego, podíamos fritá-los muito
bem.
Cato lembrou-se vagamente do pouco que tinha lido acerca dessa arma experimental, e era-lhe difícil acreditar que o fogo pudesse arder diferentemente consoante a
sua nacionalidade. Mas pelo brilho ávido no olhar de Macro, percebeu que a variedade grega era bastante especial.
- Fogo germano serve, senhor?
- O quê?
- Fogo germano, senhor.
- Mas de que raio estás tu a falar?
- Bem, senhor, é que reparei em alguns fornos enormes ainda acesos numa daquelas barracas. Deve ser uma padaria. Mas não encontrámos pão, suponho que preparavam
os fornos quando fugiram.
Macro fitou-o por largos momentos.
- E não te ocorreu informares-me sobre isso?
- Não, senhor. Ordenou-me apenas que eu procurasse provisões.
- Pois olha, o que precisamos agora é de fogo, vai tratar disso!
- respondeu-lhe Macro, fazendo um enorme esforço para ocultar a sua exasperação. - Vai procurar os homens que levaste contigo, e ordena-lhes que transportem carvão
sobre os seus escudos até à muralha. Depois regressa para aqui.
Cato partiu e Macro ficou a examinar o interior da vila. As constantes colisões já tinham aberto fendas nas fortes traves de madeira através das quais vislumbrava
os germanos. Cada novo impacto provocava uma nuvem de pó e queda de escombros, fazendo Macro piscar os olhos várias vezes, numa tentativa de aclarar a vista.
Correu para a muralha e mandou os homens pegar em forquilhas e levar palha das casas mais próximas, empilhando-a no passadiço por cima do portão. Foi só quando os
homens regressaram com pilhas de carvões em brasa por cima dos escudos, que Cato se apercebeu das intenções do centurião.
- Coloquem isso junto à palha!
Os legionários, encharcados em suor, inclinaram os escudos e derrubaram o carvão para cima da palha. Apesar de uma ligeira humidade, surgiram as primeiras chamas.
À medida que o fogo crescia e chiava, Macro alimentava-o com mais feno e, assim, o fumo começou a elevar-se, provocando ataques de tosse nos legionários mais próximos.
- Está pronto! Deitem-no para fora da muralha - gritou Macro.
- Usem tudo o que tiverem, mas deitem-no fora!
Os romanos pegaram nas forquilhas, em dardos e até gládios, atiçando os montes de palha em fogo e lançando as chamas para cima dos germanos responsáveis pelo aríete.
Gritos de terror soaram e as pancadas no portão cessaram. Na base da muralha, Macro viu o aríete abandonado, quase coberto de palha em fogo. O calor atingiu-lhe
violentamente a face, fazendo-o recuar. Ninguém voltaria a pegar naquele aríete tão cedo, mesmo que não se incendiasse por completo.
- Ah! Olhem para eles a fugir! - gritou Cato, exultante. - Não voltarão a tentar de novo, esta noite.
- Talvez - concordou Macro com Cato. - Talvez. Mas ambos os lados podem usar as mesmas tácticas no jogo. Olha ali!
Cato virou-se na direcção que o centurião apontava. Os germanos tinham acabado de construir as rampas. Observou as tochas a serem lançadas das linhas inimigas e
abaterem-se, numa explosão de faíscas, nos feixes de lenha. Não tardou muito para que as rampase incendiassem e as chamas rubras alcançassem a muralha, forçando
os legionários a recuar. Um soldado indefeso, iluminado pelo clarão das chamas, foi atingido por várias flechas e acabou por sucumbir no meio das labaredas, lançando
um grito de terror que cessou abruptamente. Cato tremeu horrorizado, mas antes que pudesse dedicar outro pensamento ao pobre homem, viu uma pequena chama penetrar
por uma fenda e atingir o passadiço.
- Oh não! - murmurou, depois chamou por Macro.
- Senhor! Veja, ali!
Macro virou-se a tempo de ver uma outra chama maior alcançar a muralha. O portão estava em fogo. Alguma da palha aterrara demasiado perto do muro.
- Fantástico! Belo serviço que nos prestou o teu fogo germano.
- Fulminou Cato com o olhar.
- Podíamos tentar apagá-lo.
- Cala-te! É demasiado tarde para isso.
A mente do centurião desesperava por uma solução. Todos os três fogos na muralha se tinham propagado e via como ardiam com cada vez mais intensidade. Nada podiam
fazer para apagar o incêndio, agora. E se permanecessem na muralha, morreriam queimados, servindo de alvo iluminado para os arqueiros germanos. Nada havia a fazer.
Teriam que ceder terreno até que o fogo se consumisse e pudessem regressar para a defesa da muralha. Mas com o portão em chamas e outros dois fogos já a alastrarem,
em pouco tempo a defesa da sexta centúria deste lado da aldeia iria cair totalmente. E isso aconteceria muito antes da alvorada e do tão ansiado socorro de Vespasiano.
- Recuar! - gritou de modo a que todos os homens pudessem ouvi-lo sobre o estalar e crepitar das chamas.
- Retirada!
Esperou até que o último homem tivesse descido as rampas do portão, depois deitou um último olhar à paliçada, onde as estacas afiadas de madeira eram tragadas pelo
calor infernal. Além, a vanguarda germana, iluminada pelo brilho das chamas, exibia as suas faces triunfantes, distorcidas pela onda de calor. Macro correu para
junto dos homens e assim formaram um grupo compacto, posicionado no caminho defronte do portão, com duas pequenas esquadras a guardarem toda a extensão da muralha
incendiada pelos germanos.
- O que fazemos agora, senhor? - perguntou Cato.
- Temos que esperar... e rezar para que o fogo não se apague.
O fogo não só não se apagou como continuou a arder com grande violência, lançando para o céu nocturno uma espiral de centelhas que ia derretendo a neve. A luz rubra
das faíscas desvanecia-se lentamente, mas algumas voltavam a cair, aterrando nos telhados de colmo inclinados.
Macro amaldiçoava-se a si próprio pela decisão de pegar fogo ao aríete e, consequentemente, ao portão que pretendera salvar, até Cato lhe chamar a atenção para os
casebres mais próximos. Era visível o fumo a erguer-se dos telhados e, ali e acolá, surgiram cintilações laranja que se converteram em chamas. Macro olhou rapidamente
à sua volta e viu que as casas mais próximas tinham sido apanhadas pelo incêndio. Se não se retirassem imediatamente, muito em breve estariam encurralados no centro
do iminente inferno. O súbito ruído de algo a ruir desviou a sua atenção para a frente, onde a estrutura inteira do portão acabara de desmoronar nas chamas devoradoras.
Do lado de fora, conseguiam escutar os gritos de triunfo dos germanos. Agora moviam-se na direcção deles, desesperando pelo momento em que o fogo se apagasse, permitindo-lhes
o acesso ao povoado e, assim, à chacina da coorte. Mas por agora, as chamas não davam sinais de esmorecer, na realidade o incêndio crescia cada vez mais intenso,
à medida que se alastrava pelos casebres. O calor na rua tornara-se insuportável e Cato, de olhos semicerrados, tentava proteger-se do ar nocivo. O centurião apercebeu-se
de que chegara a altura da retirada, uma verdade difícil de aceitar.
- A mim! A mim! Todas as tropas! Recuar!
Os legionários deram meia volta e encetaram uma rápida corrida até alcançarem os limites do fogo, onde Macro lhes ordenou que parassem e cerrassem formação. Os homens
respiraram de alívio, contentes por se terem afastado do perigo. No local que tinham ocupado momentos
antes, ocorreu uma explosão de faíscas, em consequência do colapso de uma das casas.
- Foi por um triz, senhor! - murmurou um dos homens.
- Ainda não estamos a salvo - respondeu Macro amargamente.
- O fogo está a propagar-se rapidamente. Vamos cedendo terreno e, com alguma sorte, conseguimos manter as chamas entre nós e os selvagens.
- E o povoado será reduzido a cinzas. - disse Cato em voz baixa.
Macro irritou-se e ia repreendê-lo, mas sabia que o rapaz tinha
razão.
- Sim, se isso for preciso para nos salvarmos, o povoado será reduzido a cinzas - concordou. - Mas talvez o auxílio de Vespasiano chegue primeiro.
O fogo, deixado à solta como um animal solto na arena, assolava a aldeia, devorando tudo no seu caminho com as suas garras flamejantes. O céu brilhava em tonalidades
laranja e a neve, ao cair do céu, transformava-se em chuva. A pouco e pouco, os legionários foram cedendo terreno e, nesse momento, Macro apercebeu-se de que o incêndio
no portão estava a atenuar-se mais rápido do que devia. Franziu o sobrolho. Foi então que avistou germanos do outro lado das chamas a atirarem baldes de água sobre
as ruínas do portão, libertando fumo e vapor.
Os homens à sua volta tomaram consciência do que se passava. Vozes de desespero percorreram a sexta centúria. Claramente, os germanos não se contentariam em entregar
os romanos à mercê do fogo, exigiam sangue. O caminho do portão que dava acesso ao interior estava quase desimpedido das chamas, devido à sua considerável largura.
- Silêncio! - gritou Macro - Ainda não estamos acabados. Não enquanto mantivermos o fogo entre nós e eles. As primeiras duas esquadras venham comigo! Castor!
Macro chamou pelo centurião veterano:
- Os teus homens ficam encarregues de destruir as casas ao longo da rua e alimentar o fogo. Entendido?
- Sim, senhor!
- Mas mantém um caminho aberto para nós. Quando terminares, chama-nos e iniciaremos a retirada.
Macro virou-se para as duas esquadras colocadas na vanguarda.
- Muito bem, rapazes, escutem-me. Se ali o Herman ultrapassar as chamas e entrar pelo portão, temos que resistir o tempo suficiente para os outros poderem cumprir
o trabalho. Depois fugimos do inferno. Agora venham.
Com Macro e Cato a encabeçarem a coluna, as duas esquadras
marcharam pela rua abaixo, posicionando-se o mais próximo possível das ruínas do portão que o calor permitia. Aí, Macro ordenou-os numa formação que iria funcionar
como um escudo impenetrável e, assim, esperaram. Mas não muito tempo. O incêndio no portão extinguiu-se rapidamente, deixando para trás um amontoado de madeiras
arruinadas. Os germanos saltaram-lhe por cima, indiferentes ao calor, e continuaram a sua cadeia de baldes de água, desta vez para a casa que ruíra no seu caminho.
Enquanto o inimigo labutava, os romanos aguardavam silenciosamente e Cato, na segunda fila, segurava com firmeza a haste do estandarte numa tentativa de disfarçar
os tremores no corpo. Olhou de relance para os homens à sua volta, silenciosos e imóveis, olhos fixos nos germanos cada vez mais próximos.
De súbito, os germanos depuseram os baldes e escalaram os últimos destroços negros, erguendo as vozes em gritos de guerra histéricos.
- Firme, rapazes. - Rosnou Macro. - Mantenham a linha. Lutamos em formação.
Cato avistou, por cima do ombro de Macro, o primeiro dos germanos, de cabelos longos, a correr direito a eles. Sem abrandar a velocidade, foi de encontro ao muro
de escudos e despachado com um rápido golpe de espada, caindo morto no chão. Mas outros seguiram-se-lhe e impeliram-se contra os escudos, tentando desesperadamente
forçar uma abertura na qual pudessem penetrar as lanças curtas. Com tão forte pressão, os legionários iam cedendo terreno. A primeira baixa deu-se com o arremesso
de uma lança. Esvaindo-se em sangue, o legionário sucumbiu
- e o seu lugar foi de imediato ocupado pelo soldado colocado atrás
- mas os seus companheiros eram incapazes de o auxiliar, deixando-o à mercê dos germanos. Com um grito selvagem, a garganta foi-lhe dilacerada por uma lança, manchando
os escudos de sangue rubro.
Cato baixou-se para se desviar de uma lança apontada à cabeça, o que fez com que inclinasse o estandarte. Os germanos tentaram avidamente agarrá-lo e um deles apanhou
a bandeira.
- Tira a mão, Herman! - gritou Macro, arremetendo a espada contra o peito exposto do germano. Libertado o estandarte, Cato pôde voltar a endireitá-lo, horrorizado
pela humilhação que quase sofrera.
Por meros instantes, Macro foi capaz de olhar para trás e observar o resto da centúria a deitar abaixo as habitações, empilhando o entulho e pegando fogo aos telhados
de colmo. Já estava quase na hora.
- Retaguarda! Retroceder!
Os homens não precisaram de mais nada para dar meia volta e desatar a correr pela rua abaixo em direcção à pequena abertura, onde Castor posicionara alguns homens
com cordas que deitariam abaixo
um muro, obstruindo o caminho. Mal os germanos viram a retaguarda em debandada, deram asas à sua raiva e desprezo e, assim, atacaram a defesa de escudos com redobrada
furia. Até mesmo Cato se apercebeu do grave perigo em que estaria a última coluna de homens, mal tentassem retirar-se. Mas Macro estava preparado para esse momento
e, sem aviso, gritou a ordem:
- Dispersar e atacar!
Com um grito em uníssono, os legionários tiraram os escudos da frente e atacaram os germanos. O ataque surpresa apanhou-os desprevenidos e, por uns momentos, quedaram-se
estupefactos.
- Agora! Corram! - gritou Macro.
Num segundo, a carga deu meia volta e os soldados correram disparados pela rua abaixo, Cato entre eles, a amaldiçoar o estandarte desajeitado. A rua, cada vez mais
exígua, conduziu-os ao local onde o resto da centúria os esperava. Macro decidiu enfrentar mais uma vez os germanos, determinado a salvar a vida dos seus homens.
O inimigo ainda não recuperara da brusca reviravolta da táctica romana e, com um sorriso de satisfação, o centurião correu atrás dos outros.
Mas um germano, mais alerta que os restantes, pegou na lança e lançou-a na direcção dos romanos com todas as suas forças.
Cato, já mais aliviado, corria para a abertura com os seus companheiros, quando ouviu Macro gritar.
- Ahhh! Merda!
Cato virou-se rapidamente. A dez passos de distância, o centurião encontrava-se caído no chão com uma lança espetada na coxa. O seu escudo rolara para a frente e
a espada caíra para um lado. Para além de Macro, os germanos, já recuperados da surpresa, começaram a correr em direcção ao centurião ferido. Macro avistou Cato.
- Foge, idiota!
- Senhor...
- Salva o estandarte! Foge:
Imobilizado pelo choque, Cato viu a expressão furiosa de Macro, os germanos a correrem para ele, o fogo a alastrar-se à sua volta e o céu da cor do sangue a brilhar
na noite. E antes que pudesse ganhar consciência de qualquer decisão tomada, correu para o centurião, lançando gritos impotentes de fúria aos céus.
- Foste ver o Tito hoje?
- Perdão? - Vespasiano desviou o olhar da secretária de viagem.
- O que foi que disseste?
- O teu filho, o Tito. Foste vê-lo hoje? - Flávia batia ritmicamente os dedos no ombro dele. - Ou estás demasiado ocupado para notar que tens um filho?
- Minha querida, não tive mesmo tempo hoje.
- É o que dizes sempre! Toda esta maldita papelada está a devorar a tua vida. - Olhou para a arca de documentos. - Não achas que devias arranjar tempo para o rapaz?
Vespasiano depôs o estilete e fitou-a por um momento, sentindo o coração pesado de culpa. Depois de três abortos e um nado-morto, Tito fora um milagre. O longo parto
quase matara Flávia e a criança. Desde o seu nascimento em Roma, há dois anos, a criança tinha sido cuidada como um vaso precioso envolto em lã e raramente deixado
longe da vista da mãe. Vespasiano devotara grandes esforços para mostrar-lhes o seu apoio paternal, mas sempre consciente de que o tempo que passava com a família,
era tempo desperdiçado para o progredir da sua carreira política que, a longo prazo, asseguraria o futuro de Tito.
Aceitar a nomeação para a Legião não fora uma escolha fácil. Sabia da grande relutância de Flávia em abandonar Roma, mesmo quando ela tentou convencê-lo a aceitar
o posto, como convinha a uma esposa. E como todas as esposas com respeito pela tradição, acompanhara-o quando partira para tomar o comando. Apesar de o ar fresco
ser uma mudança agradável, longe do fedor de Roma, não provara ser benéfico para Tito. Desde a chegada à base, a criança fora vítima de várias doenças. O clima frio
e húmido era prejudicial para uma constituição frágil, e inúmeros meses de vigílias nocturnas ao lado do berço haviam deixado
Flávia exausta. Só o pensamento de perderem Tito apavorava-os, mas ao passo que Vespasiano podia refugiar-se no trabalho, afastando tais pensamentos, Flávia não
tinha esse conforto. Afastada do seu círculo social e isolada numa base militar com outras esposas de oficiais, o mundo de Flávia tinha-se centrado absolutamente
no seu filho.
Tito, como todas as crianças, inventava maneiras de deixar a mãe e as suas escravas domésticas loucas de preocupação. Não existia prateleira, mesa ou porta contra
a qual não tivesse batido com a cabeça, nenhuma cadeira ou arca de onde não tivesse caído e nenhum tapete ou esteira no qual não tivesse tropeçado. Nenhuma revista
cuidadosa aos aposentos passava incólume ao espírito curioso do rapaz; acabava sempre por encontrar algo perigoso para colocar na boca, espetar no olho, ou então,
quando tinha disposição para isso - e tinha-a frequentemente - espetá-la no olho de algum pobre escravo. Agora as suas amas estavam a ter trabalho em lidar com os
dentes afiados que se cravavam, inesperadamente, em qualquer pele exposta ao seu alcance.
Vespasiano sorriu com o pensamento de que ao menos o seu filho tinha espírito.
- O que foi? - perguntou Flávia.
- Hum?
- Estás a sorrir. Em que pensas?
- Penso em como já é tempo de ir ver o meu rapaz.
Vespasiano empurrou a secretária e levantou-se.
- Vem.
Ao abandonarem a divisão e caminharem sobre o pavimento que percorria o pátio interior privado, Vespasiano olhou para o céu. Para além da luz tremeluzente e baça
das tochas, o ar nocturno gelado revelava os primeiros flocos de neve. Lembrou-se de Vitélio. Sabia que ainda não tinha regressado, e o pensamento do tribuno, tão
seguro de si, a marchar debaixo de uma miserável nevasca teria sido gratificante, não fossem os pobres homens sob o seu comando.
A porta do quarto da criança abriu-se e a cabeça de Tito virou-se. Com um grito de puro prazer, as suas pernas curtas deram um salto, empurrando a ama para o lado
e correndo de encontro aos pais.
- Papá! guinchou, ao envolver com os braços as pernas do pai, de olhar maravilhado e a sorrir. - Levanta-me! Levanta-me! Levanta-me!
Vespasiano curvou-se, e agarrando firmemente o rapaz pelo tronco, balouçou-o por cima da cabeça, provocando gritos de excitação.
- Como vai o meu soldado, hã? Como está o meu pequeno rapaz,
hoje?
Vespasiano sorriu e virou-se para a mulher.
- Está a crescer depressa. Não tarda nada, irá usar a sua primeira
toga.
- Ainda é um bebé! - protestou Flávia. - Ainda é o meu pequeno bebé, não és?
Tito fitou a mãe com aversão e tentou livrar-se do seu abraço. Vespasiano riu-se, fazendo uma festa nos cabelos emaranhados do rapaz.
- É assim mesmo, meu pequeno soldado!
- Ele não é um soldado! - disse Flávia firmemente. - E não será um soldado, não mais do que o tempo necessário. Quero que permaneça em Roma, onde possa olhar por
ele.
- Temos que deixá-lo tomar essa decisão por ele próprio, um dia.
- Vespasiano respondeu-lhe gentilmente. - O exército é uma boa vida para um homem.
- Não, não é! O exército é perigoso, desconfortável e composto por homens incultos e grosseiros.
- Suponho que te referes a provincianos como eu...
- Oh, não era isso que queria dizer...
- Estava só a brincar. Mas falando a sério, se Tito está destinado a uma carreira política no Senado, terá que servir primeiro as Legiões.
- Mas poderias fazer com que arranjasse um posto perto de casa.
- Já conversámos sobre isto. As nomeações são feitas pelo corpo imperial. Não detenho aí nenhuma influência, não neste momento. Se queres que seja bem sucedido,
terá que servir o exército. Sabes disso.
- Sim. - Flávia assentiu tristemente, e beijou Tito na testa. A criança sentiu a sua tristeza, e num gesto repentino, abraçou-a com força, escondendo a pequena face
no ombro da mãe. - Só desejava que ele continuasse assim, pequeno para sempre.
- Eu sei. Bem sei. Talvez um dia tenhamos mais filhos. Quando te sentires preparada.
Flávia olhou para o rosto do marido, olhos negros relembrando memórias dolorosas que ameaçavam converter-se em lágrimas. Pestanejou e forçou-se a sorrir, tentando
disfarçar o tremor nos lábios.
- Espero que sim. Queria ter muitos. E quero tê-los contigo. Prometes-me que terás cuidado?
- Cuidado?
- Com esta tua nova campanha na Britânia. Terás cuidado, sim?
- Britânia! Como raio é que...? - Vespasiano franziu o cenho, zangado. - Era suposto ser um segredo. Como soubeste disso?
- Através das mulheres dos oficiais. - Flávia riu-se da expressão do marido. - Vocês, homens, têm muito que aprender sobre como conservar segredos, não achas?
- Típico - murmurou Vespasiano. - Mesmo típico. Os meus oficiais sêniores comprometem-se num juramento de máxima confidencialidade e a primeira coisa que ouço são
boatos e rumores. Já nada é sagrado?
Tito riu-se e abanou a cabeça violentamente de um lado para o
outro.
- Não fiques amuado, querido. - Flávia afagou-lhe o braço. - Tenho a certeza de que o segredo está a salvo de todos. Mas não mudes de assunto. Falava sobre a Britânia.
- Tu e, pelos vistos, todos os outros - respondeu Vespasiano.
- Promete-me que irás ter cuidado. Dá-me a tua palavra. Agora.
- Prometo.
- Chegámos a acordo, então - sorriu satisfeita. - Agora dá-lhe um abraço e deita-o na cama.
Vespasiano levou a criança para o berço no canto do quarto. Curvou-se, puxou as suaves mantas de lã para o lado e removeu o tijolo aquecido. Ao ser deposto no berço,
Tito gemeu e agarrou-se firmemente às pregas da túnica do pai.
- Não tou cansado! Não tou cansado!
- Tens que dormir agora - Vespasiano respondeu gentilmente, tentando desprender os dedos do filho. As mãos pequeninas do rapaz eram surpreendentemente fortes e o
pai esforçou-se para se soltar, provocando lágrimas de frustração à criança. Quando os últimos dedos libertaram o tecido à volta do pescoço de Vespasiano, Tito mordeu
subitamente a mão do pai. Antes que se pudesse conter, Vespasiano praguejou em voz alta.
- Cuidado com a linguagem! - sibilou Flávia. - Queres que aprenda tais palavras na idade dele?
Vespasiano pensou que qualquer criança criada numa guarnição militar iria coleccionar um vocabulário extenso e inapropriado para os sofisticados círculos sociais
de Roma.
- O rapaz dá cá umas mordidelas.
- Mas isso é bom.
-É? - Vespasiano olhou com as sobrancelhas erguidas para a marca dos pequenos dentes na mão.
- Mostra que tem força de carácter. - Flávia obrigou o rapaz ainda em protesto a deitar-se no berço, e cobriu-o com a manta.
- Mostra que tem dentes afiados - murmurou o seu marido.
Com um último queixume, Tito deixou-se levar pelo hábito de
virar-se de barriga para baixo, fechar os olhos e, após alguns murmúrios ininteligíveis, adormecer. Os pais deixaram-se ficar a observá-lo por uns momentos, admirados
pelo ar sereno das suas feições redondas perfeitas e pelo movimento dos seus dedos, à luz tremeluzente das lamparinas de óleo.
Alguém bateu à porta. Tito mexeu-se, os olhos abrindo-se por uns instantes.
- Mas quem raio... ?
- Vai calá-los imediatamente - ordenou Flávia. - Antes que acordem Tito.
Vespasiano abriu a porta que dava para o pátio, e foi confrontado pelo centurião da guarda e um legionário a tremer de frio.
- Senhor! - vociferou o centurião numa voz ao melhor estilo de paradas militares. - Peço licença para comunicar um relatório.
- Shhh! Baixa a voz. O meu rapaz está a dormir.
O centurião suspendeu o que ia a dizer, boquiaberto, antes de prosseguir em sussurros.
- Peço licença para relatar um incêndio.
- Incêndio? De que proporções? Onde?
- Na direcção da floresta, senhor, para os lados do Reno. - Vespasiano fitou-o com impaciência.
- E achas isso digno do meu incómodo?
- A sentinela diz tratar-se de um incêndio de grandes proporções, senhor.
- Grandes proporções? Quão grandes assim?
- Não sei, senhor. - O centurião abanou a cabeça. - E não sei se será. Daqui vê-se apenas um ponto luminoso no horizonte.
Um mau pressentimento apoderou-se do legado.
- A terceira coorte ainda não regressou?
- Não senhor - respondeu o legionário. - Nenhum sinal deles.
- Muito bem, irei ter convosco. Estão dispensados.
Flávia foi ao encontro dele em pequenos passos silenciosos.
- Algum problema?
- Talvez. Vou só verificar, volto em breve. Vai dormir.
Quando Vespasiano alcançou a torre do portão oriental, o passadiço já desaparecera sob uma fina camada de neve. Para além da muralha da fortaleza, avistava-se uma
sombria paisagem branca que se estendia até à distante orla da floresta, pouco visível por entre a neve a cair em espiral.
Ainda assim, o centurião da guarda procedera correctamente ao chamá-lo; era possível ver uma distante luz laranja, depois da floresta. Teria que ser um fogo de enormes
proporções, pensou Vespasiano. Ainda por cima, um incêndio na direcção do povoado germano.
Dirigiu-se ao centurião da guarda.
- Ainda nenhum sinal de Vitélio?
- Nenhum, senhor.
Preocupante, muito preocupante. E, no entanto, em que tipo de problemas poderia Vitélio ter envolvido a terceira coorte? De acordo com os últimos relatórios dos
serviços secretos, não havia quase indicações nenhumas de eventuais rebeliões da parte dos nativos. Mas a coorte já deveria ter regressado à base. E a intensidade
da luz distante indicava um incêndio enorme. Vespasiano considerou os estragos à sua reputação caso soasse um alarme falso, imaginando a chacota de que seria alvo
da parte dos homens. Mas rapidamente abandonou essa linha de pensamento. O seu orgulho nada era perante a responsabilidade que detinha pelos homens da Legião. Encarou
o centurião da guarda.
- Chama a cavalaria. Quero que façam o reconhecimento do caminho percorrido pela Terceira até ao povoado. Assim que encontrarem algo, regressem e comuniquem-me um
relatório pessoalmente. Depois convoca a Legião. Quero que todos os oficiais sêniores se apresentem no quartel-general. Os centuriões que preparem os seus homens
para marchar e combater. Excepto a primeira coorte. Essa fica a guardar a fortaleza. Fiz-me entender?
- Sim, senhor.
- Então vai. E corre!
Após a partida do centurião, Vespasiano voltou-se para o fogo distante. A não ser que Vitélio se tivesse perdido no caminho de regresso, esse fogo só poderia estar
relacionado com a ausência da coorte.
- Senhor?
Vespasiano virou-se e observou o semblante preocupado do jovem sentinela.
- O que se passa, soldado?
- Acha que eles estão em problemas?
Atrás deles, soou por toda a fortaleza a primeira chamada às armas, a que se seguiram outras e assim surgiram, encobertas pela noite, as silhuetas dos soldados da
Segunda Legião. Vespasiano forçou-se a sorrir.
- É melhor que estejam em sarilhos, porque senão acabei de pôr em marcha quatro mil homens para nada. Isso não seria nada bom, pois não?

XII

Cato gritava a plenos pulmões quando atacou os dois germanos mais próximos do seu centurião. No último momento, baixou a ponta do estandarte e atacou. O germano
na dianteira, debruçado sobre Macro e pronto a matar, desviou a atenção para os gritos, virando-se para enfrentar o novo perigo.
Macro não hesitou nem por um segundo, e esmurrou o homem entre as pernas; este acabou por se curvar e cair de joelhos a vomitar. Cato tombou por cima dele, rolando
para um lado. O germano que restara, bastante surpreendido com a cena, desatou subitamente a rir-se. Cato ergueu-se furioso, e brandiu o estandarte na face do inimigo.
- Não te atrevas a rir de mim!
Por momentos, fitaram-se um ao outro. A expressão do germano tornara-se fria e calculista. De súbito, fintou à direita de Cato e, perante a manobra do jovem em circular
o estandarte, o germano desviou-se e apontou a espada à sua axila. O estandarte do exército, como todos os estandartes, fora criado para exibições e não para movimentos
graciosos, o que fez com que o pesado utensílio circulasse tão rapidamente que a base da haste foi embater direito na face do germano, quase o matando. Atordoado,
caiu no chão. Cato, que se encontrava virado para o lado oposto, deu a volta receando receber uma ferida mortal - e ficou em choque ao deparar-se com o inimigo em
colapso no chão.
- O que...?
- Deixa-o! - Macro chamou-o. - Vem cá, rapaz! Tira-me esta
lança!
- Senhor!
- Retira-me a lança!
Cato segurou-a com uma mão firme, e Macro ajeitou a perna numa melhor posição.
- Agora!
Cato puxou com todas as suas forças. A ponta da lança, em formato de folha, saiu da perna estilhaçada, provocando uma hemorragia. Macro gritou apenas uma vez, em
agonia, e depois, forçando-se ao silêncio, levantou-se cheio de dores, com a ajuda de Cato.
A ferida sangrava profusamente, mas felizmente o sangue fluía e não sangrava a jorros, o que significava não se tratar de uma ferida mortal. Mas nunca sentira uma
dor tão atroz, que lhe deixava a mente entorpecida. Foi preciso uma grande força de vontade da parte de Macro para apoiar o braço no ombro de Cato e deixar que este
o ajudasse a caminhar de volta para o espaço entre os casebres, onde a centúria os esperava. Atrás deles, mesmo com o rugido das chamas, Cato conseguia ouvir passos
pesados, e, ao olhar para trás, viu germanos a correrem, bradando por sangue romano. Renovou os seus esforços, quase arrastando o centurião ao lado dele. Acabaram
por tropeçar e Macro caiu de joelhos, gritando pelo abalo sofrido na perna ferida. Os rostos da centúria encheram-se de desespero - aperceberam-se de que os dois
não se poriam a salvo antes de serem alcançados pelos germanos.
- Vai! - ordenou Macro. - É uma ordem!
- Não consigo ouvi-lo, senhor.
- Salva o estandarte!
Nesse momento, Castor abanou a cabeça tristemente e deu a ordem para puxarem as cordas que derrubariam a casa. Os legionários hesitaram, mas o veterano repetiu a
ordem e, assim, as cordas foram esticadas e a parede ruiu para o meio da rua, deitando com ela abaixo o telhado de colmo em chamas.
- Oh, merda!
Cato parou e olhou para trás, rapidamente. Os germanos estavam quase em cima deles. À sua direita, erguia-se um muro de pedra com uma porta resistente de madeira.
Levantou rapidamente o ferrolho, pontapeou a porta e arrastou o centurião e o estandarte para dentro. Baixou-se para passar e fechou-a atrás de si, colocando, de
imediato, a tranca no lugar. Uma violenta pancada ecoou no espaço confinado, resultado da chegada dos germanos e da sua primeira investida contra a porta. Estava
escuro no interior, mas a luz das chamas iluminava os postigos e as fendas no telhado. A única janela do quarto dava para a rua, mas felizmente fora fechada e trancada,
o que não impedia que tremesse sob o impacto dos atacantes, no exterior.
- Vai verificar se existe outra saída - disse Macro, ao examinar a ferida com as mãos.
O sangue ainda fluía livremente e não se atrevia a derramar mais
do que o necessário, se pretendia manter-se consciente. Retirou o cinto da espada e removeu a bainha, aplicando-o como torniquete na perna, acima da ferida. Quando
Cato regressou, instantes depois, a hemorragia abrandara.
- Então?
- Parece ser uma espécie de celeiro, tem algum feno nas traseiras e uma abertura de ventilação, mas nada mais.
As pancadas contra a porta tinham-se tornado rítmicas, e quando ambos olhavam para a janela aferrolhada, uma comprida peça de madeira saltou para a divisão, em consequência
de uma machadada que destruiu o postigo. O machado desapareceu mas, momentos depois, mais estilhaços saltaram, criando aberturas por onde a luz penetrava na escuridão.
- Não podemos ficar aqui.
- Não. - respondeu Cato. - Olhe ali!
Uma luz amarela surgira vinda das vigas do telhado, eclodindo em pequenas chamas que rapidamente cresceram em intensidade. E durante todo este tempo, o postigo estava
a ser desfeito em ruínas.
- Vamos ter que usar a abertura de ventilação. - decidiu Cato.
- Existe uma escada, mas no estado em que está a sua perna, vai ser complicado.
- Não temos escolha.
- Pois não. Mas temos que tentar atrasá-los o mais possível. Pode guardar a janela, senhor?
- Sim, mas...
- Por favor, senhor, não há tempo para explicar.
- Muito bem. - Macro assentiu com a cabeça. - Ajuda-me a levantar e dá-me a tua espada.
Macro encostou se à parede, a um lado da janela, de modo a aliviar o peso na sua perna ferida. Cato desapareceu nas traseiras do celeiro. Abruptamente, uma grande
parte do postigo cedeu e caiu ao chão. De imediato, uma lança penetrou no interior e mãos agarraram-se à borda da janela, preparando-se para entrar. Macro golpeou
a mão mais próxima, e os dedos mutilados saltaram pelo ar, entre os gritos do homem.
- Aqui estou eu, filho da mãe! - gritou Macro. - Quem é o próximo?
O ataque contra a porta tornou-se desenfreado, e, apesar da sua solidez, a madeira começou a ceder. Defender a janela era uma coisa, mas defender a porta seria impossível.
- Cato! O que quer que estejas a fazer, é melhor que o faças de imediato!
- Já vai, senhor! - grunhiu Cato.
Cambaleou para a entrada do celeiro, carregando um monte de feno na ponta de uma forquilha. Depositou-o entre a porta e a janela e apressou-se a espalhá-lo. Depois,
com a ajuda da forquilha, deitou abaixo algum do colmo que ardera, erguendo o braço para proteger o rosto das faíscas que iam caindo também. Um fumo espesso começara
a subir, até que as chamas eclodiram e, mesmo no momento em que a porta finalmente cedeu, o celeiro pegou fogo, coberto por um fumo asfixiante.
- Por aqui! - chamou Cato, tossindo violentamente ao inalar o fumo nocivo.
Com a mão livre, tentou suportar Macro o melhor que pôde, quase arrastando o centurião até às traseiras do celeiro, onde uma escada os conduziria à escuridão, no
exterior.
- O senhor sobe primeiro. Leve o estandarte mas dê-me a espada. Avise-me quando tiver saído.
Macro não discutiu as ordens do rapaz e começou a subir as escadas, amaldiçoando tanto a sua ferida como o estandarte. O fumo originado pelo fogo tornava-se cada
vez mais espesso junto ao solo, perfurando-lhe os pulmões e atingindo-lhe os olhos, ao subir a curta mas agonizante distância até à janela de ventilação. Forçou
a sua abertura, e rapidamente pôs a cabeça de fora, clamando por ar. Da sua posição de vantagem, Macro pôde ver que aquele lado do povoado estava a ser consumido
por chamas brilhantes, devoradoras, espalhando-se à medida que o fogo era atiçado por uma ligeira brisa. Os germanos enveredavam pelas ruas labirínticas, procurando
evitar o fogo, e dirigiam-se à praça da aldeia onde o resto da coorte se preparava para lutar pelas suas vidas.
Lá em baixo, viu um pequeno quintal onde dois porcos, tomados pelo pânico, criavam um enorme barulho. Um monte de forragem para o Inverno encontrava-se directamente
por baixo e assim, Macro ergueu o estandarte e passou-o pela janela antes de o deixar cair. Do interior do celeiro, ouviu-se uma pancada repentina, consequência
da porta que finalmente se abrira, a que se seguiram passos apressados e gritos ásperos.
- Cato!
- Fuja, senhor! - gritou o rapaz. - Fuja agora!
Os germanos vinham na sua direcção tossindo, determinados a caçar a presa romana. Macro não perdeu tempo e escapou pela janela. Com alguma dificuldade, desceu o
muro exterior e depois soltou-se. A aterragem acabou por ser mais suave do que esperava, uma vez que um dos porcos se tinha refugiado, no feno, do caos do mundo
exterior. A última coisa que um porco poderia esperar era que um soldado de armadura completa aterrasse em cima dele. Ouviram-se guinchos
estridentes e pragas, resultado da tentativa de ambos de se soltarem. Macro pontapeou o animal para o lado e sentou-se no feno, a ofegar pesadamente, mas intacto.
O porco não tivera tanta sorte, quebrara uma das patas dianteiras e arrastava-se pateticamente pelo quintal sujo, para longe do perigo. Todo o tempo não parou de
guinchar, e Macro receou que pudesse atrair a atenção.
No interior do celeiro, conseguia ouvir os gritos furiosos dos germanos, procurando por romanos para chacinar. Depois alguém gritou e, de imediato, a escada junto
à parede foi arrastada. Macro puxou o estandarte para junto de si, espalhou punhados de feno por todo o corpo e deixou-se ficar imóvel. Através de porções de feno
que lhe cobriam a face, Macro ficou a observar, ansiosamente, o topo do muro onde surgiu a silhueta escura de uma cabeça, delineada contra o céu laranja. Por um
horrível instante, a cabeça do germano olhou para baixo, mas seguiu-se uma rude troca de palavras e a cabeça retirou-se.
Macro manteve-se imóvel, a escutar com atenção as vozes no celeiro, que se iam afastando, acompanhadas pelos guinchos do porco ferido. Quando julgou estar em segurança,
sentou-se e sacudiu a palha mal cheirosa. Um dos lados do quintal dava para uma rua, e vindos de lá, ouviu os passos dos germanos. Quanto ao outro lado, parecia
relativamente sossegado, e Macro, cuidadoso com a perna, levantou-se e espreitou para o outro lado, onde foi encontrar uma grande área ocupada por chiqueiros de
vime - ouvia os grunhidos dos animais no interior.
Macro voltou a sentar-se e esperou que o tumulto nas ruas acalmasse, até que chamou Cato por debaixo da janela. Nenhuma resposta veio. Chamou de novo e nada ainda.
Maldito rapaz. Devia ter subido a escada no momento em que a porta cedera. Mas sentiu-se culpado por pensar assim, pois os germanos podiam tê-lo capturado, guiados
pelo barulho. Cato sacrificara-se para salvar Macro e o estandarte.
Os guinchos do porco aterrorizado tinham crescido de intensidade, e Macro pontapeou-o violentamente na cabeça.
- Não faças barulho! - bateu-lhe de novo com a bota. - Queres que me apanhem?
Mas o porco limitou-se a guinchar de novo, em pânico. Inevitavelmente, alguns germanos de passagem detiveram-se na rua para investigar o barulho. Macro não hesitou.
Lançou o estandarte para o outro lado do muro e tentou desenfreadamente puxar-se para o topo, acabando por aterrar num monte de esterco dos chiqueiros mais próximos.
Agarrando no estandarte e mantendo-se o mais baixo possível, rastejou por entre os chiqueiros até ao centro da aldeia, tentando não pensar no que encontraria, caso
alguma vez conseguisse alcançar a coorte.
XIII
Quando a porta foi aberta com grande violência, Cato não perdeu tempo a agir. Agora com Macro fora de perigo, moveu-se ao longo da parede e enterrou-se num enorme
monte de feno no canto, escondendo-se bem no fundo, enquanto os germanos invadiam o celeiro.
Vozes aproximaram-se, e, de repente, ouviu-se um grito terrível vindo do exterior. Cato receou pelo seu centurião, mas o senso comum dizia-lhe que nenhum homem era
capaz de produzir tal som. Um dos germanos riu-se e foi logo acometido por um ataque de tosse. O fumo no celeiro começava a asfixiar Cato, mas tentou manter o peito
imóvel.
Algo se moveu através do feno, e ouviu-se um som abafado criado por um objecto que atingiu a parede do celeiro. O barulho repetiu-se, mais próximo desta vez, e Cato,
atemorizado, apercebeu-se de que tenteavam o feno com as lanças. Forçou-se a permanecer imobilizado, sabendo perfeitamente que a rendição seria suicídio. Seguiram-se
mais golpes de lanças germanas à procura da sua presa, e a tosse aumentava com o espesso fumo que se formara no interior do celeiro em fogo. Alguém gritou. A busca
terminou abruptamente com os germanos a retirarem-se do edifício em chamas.
Foi só apenas quando se certificou de que se encontrava sozinho que Cato se atreveu a sair do feno. A divisão estava repleta de fumo, de menor densidade ao nível
do solo. Deitou-se e rastejou em direcção à porta da frente onde a palha a que pegara fogo fora reduzida a cinzas. Defronte do celeiro, uma massa de germanos concentrava-se
na rua. Uma voz gritou uma série de ordens, o que os levou a dirigirem-se para o centro da aldeia. Cato esperou até que os últimos passos ecoassem pela rua abaixo,
antes de sair, tossindo alto e tragando o ar nocturno aquecido pelo fogo. Os seus pulmões e olhos ardiam e foi só depois de limpar as lágrimas que Cato conseguiu
ver claramente em redor. Apesar dos gritos
dos germanos se conseguirem ouvir por cima das labaredas, estava de momento sozinho - não contando com o homem que derrubara com o estandarte.
Aproximando-se cuidadosamente, Cato viu que o germano estava hirto de frio; um grotesco inchaço, negro e azul, surgira na testa dele. Com tantos germanos e poucos
romanos, Cato pensou que uma mudança de aparência seria uma boa táctica. Retirou a capa do germano e rolou o corpo para que a pudesse soltar. Ao envergar a capa
por cima do uniforme, sentiu o insuportável cheiro, uma mistura de suor, sujidade animal e gordura à prova de água, de tal modo atroz que Cato vomitou.
Lutou para se libertar das fivelas do elmo e deixou que o peso do ferro e do bronze tombassem no chão. Não podia fazer nada em relação ao seu cabelo cortado de forma
rente e, com o nariz franzido, puxou o capuz e cobriu a cabeça. Com a espada oculta debaixo da capa, Cato pegou na lança e no escudo germânicos. Ao observar-se a
si próprio, viu que o disfarce, apesar de longe de ser convincente, fazia-o parecer menos romano. Mas e agora? A única direcção que oferecia alguma possibilidade
de segurança era a que conduzia à praça da vila onde encontraria o resto da coorte. Mas que acontecera a Macro e ao estandarte? Depois de um exame ao celeiro em
chamas, viu que a passagem para as traseiras estava bloqueada pelo fogo. O calor atingia a sua face, de modo que recuou da entrada. Envolvendo-se na capa, Cato respirou
fundo e lançou-se à passagem.
O calor e a luminosidade eram intensos, e o cheiro da gordura queimada fez-se logo sentir. Cato curvou-se para baixo e desatou a correr, as chamas queimando-lhe
as pernas nuas, até que, por fim, saiu do fogo e alcançou o outro lado. A capa fumegava e logo se apressou a apagar os pedaços que tinham ardido. O muro alto nas
traseiras do celeiro era difícil de escalar, cansado como estava. Arrastou-se, ofegante, pelo muro de pedra acima, até conseguir espreitar por cima. O quintal nas
traseiras do celeiro parecia estar vazio, exceptuando um monte de forragem de Inverno.
- Senhor! - chamou Cato, o mais alto que se atrevia.
Algo se mexeu por entre a forragem ao som da sua voz, e o coração de Cato respirou de alívio, até que um grito de agonia trespassou o ar.
- Senhor! Está magoado? - gritou Cato ansiosamente.
Uma forma vaga surgiu por entre a forragem e contorceu-se em espasmos de agonia. Um porco. Onde estava o centurião? Cato soltou-se e deixou-se escorregar pelo muro;
era jovem, estava assustado e sozinho. Lágrimas amargas de ódio pelo seu destino vieram à superfície. O telhado do celeiro desabou nas chamas intensas. Cato recuou,
levado por um
instinto de auto-preservação. Muito bem, estava sozinho, cercado pelo inimigo e por um fogo devastador, mas não tencionava render-se nem a um nem a outro sem lutar.
Construindo mentalmente um mapa da aldeia com a posição dos romanos, dos germanos e do fogo, Cato decidiu-se por que direcção tomar e afastou-se rapidamente do celeiro,
enveredando por uma estreita passagem, de olhos e ouvidos em alerta.
Porcos, pensou Macro, até podiam saber bem nas mãos de um cozinheiro, mas no estado cru eram dificilmente suportáveis, e porcos germanos - nunca. Ao rastejar por
entre a imundíce dos chiqueiros, onde a urina e uma forma líquida de merda escoavam para um rústico canal de drenagem, esforçou-se por concentrar a mente na salvação
do estandarte, que conservava afastado o mais possível da sujidade.
Um cheiro atroz e insuportável invadiu o seu olfacto e apoderou-se da sua mente, mas continuou a rastejar, lançando as piores e mais inimagináveis pragas a cada
porco que passava por ele. Macro arrastou-se até à porta de um chiqueiro. Através da madeira toscamente trabalhada, espreitou cuidadosamente para a rua. A uma curta
distância de um dos lados, a rua conduzia à zona do mercado, onde assentavam agora várias bancas vazias e abandonadas no coração do Inverno. O fogo ainda não tinha
atingido aquela parte da aldeia, e os nativos que tinham escapado à inspecção de Vitélio carregavam as suas preciosas posses, deitando olhares ansiosos na direcção
de Macro, onde as chamas se erguiam bem alto na noite. Do que avistara da janela de ventilação, Macro calculou que, a uma curta distância do mercado, iria encontrar
a praça da aldeia. Os poucos aldeões das redondezas eram mulheres, crianças e idosos - nenhum deles aparentando constituir uma grande ameaça. Se conseguisse passar
habilmente por eles, talvez fosse ignorado. E depois só lhe restaria uma curta marcha pela frente, até alcançar o resto da coorte.
Levantando-se do chão cheio de dores, Macro retirou a cavilha que fechava a porta do chiqueiro. Mantendo-se sempre de um lado da rua, não permitiu que a base do
estandarte batesse no chão, procurando manter-se o mais silencioso possível. O progresso tornou-se lento à medida que foi perdendo qualquer sensação na perna ferida,
e para piorar as coisas, a perda de sangue provocava-lhe tonturas. Respirando fundo, forçou-se a continuar, e atravessou o mercado e as bancas abandonadas, sendo
ignorado pelos aldeões que recolhiam os seus bens preciosos e
pertences de vizinhos ausentes. Era no melhor interesse de ambas as partes não atraírem atenções um sobre o outro e, assim, aqueles que o viram deixaram-no simplesmente
passar.
Macro deixou o mercado para trás. Os sons de combate cresciam de intensidade e parou para descansar, no ponto em que a rua virava bruscamente para a praça. A sua
visão começava a desfocar e a cabeça andava à roda. Esfregou os olhos e tentou controlar a náusea; assim, gradualmente, conseguiu atenuar a má disposição. Um rápido
olhar em redor da esquina dir-lhe-ia se o caminho estava livre. O centurião inclinou-se para espreitar.
O germano foi de encontro a ele tão violentamente que Macro levou tempo a aperceber-se de que estava de costas, a olhar para o céu alaranjado, exausto e ofegante.
Ao seu lado, o germano aterrara no chão, e a lança embatera na rua. Macro lutou para se virar e retirar a adaga, mas o germano reagiu mais depressa. Num instante
pôs-se de pé, agarrou na lança e rodopiou, de modo a enfiar a lâmina na garganta do inimigo. Macro defendeu-se com a adaga, sabendo que não era mais do que um gesto
patético de desafio.
- Graças a Júpiter! - disse o germano num latim perfeito.
-Eh?
O germano baixou a lança e estendeu-lhe a mão. Macro limitou-se a olhá-lo, julgando-o um louco.
- Venha, senhor. Não temos tempo a perder. - insistiu Cato, e retirou o capuz, franzindo o nariz ao mesmo tempo. - Mas que raio de cheiro é este?
Macro encostou-se à parede, sorrindo de alívio. A momentânea perda de força e determinação provocou-lhe tonturas de novo. Mas não se importou. Cato estava com ele,
abençoado rapaz. Se agora pudesse descansar só por uns instantes...
- Senhor!
Os seus olhos abriram-se de repente, ao ser violentamente sacudido. Por cima dele encontrava-se Cato, mãos a agarrarem com firmeza a armadura de Macro.
- Aqui vamos nós, senhor! - disse Cato, rangendo os dentes com o esforço de levantar Macro. Apoiou-o com um braço, enquanto o outro se apoiava na lança. O centurião
agarrava teimosamente o estandarte, a arrastar-se atrás de si, e, assim, Cato levou-os para a rua, ao virar da esquina. Um olhar revelou-lhe mais germanos a deambularem,
enquanto as fileiras da frente forçavam um caminho até à praça.
- Isto não está a correr bem - disse Cato. - Estão em todas as ruas. Temos que encontrar uma alternativa.
- Tenho de descansar.
- Não, senhor! Não pode! - Cato abanou-o, até os seus olhos abrirem de novo. - Pronto. Assim está melhor. Agora vamos.
Cato deu um pontapé numa porta e arrastou Macro para o interior de um pequeno casebre. O centurião tinha apenas a mais leve consciência de estar a ser conduzido
por uma série de quartos sujos e quintais, antes do jovem o depositar encostado a uma parede. O rapaz desembainhou a espada, despiu a capa do germano e começou a
atacar a parede com todas as suas forças.
- O que raio estás a fazer, rapaz? - perguntou Macro debilmente.
- Se não estiver enganado, a praça está do outro lado desta casa. Estou a tentar perfurar a parede.
- E depois poderei descansar.
- Sim, depois poderá descansar, senhor.
Cato segurava o punho da espada com ambas as mãos e fendia a parede, deitando abaixo grandes pedaços de barro até conseguir expor parte do vime. Limpou o suor da
testa e atacou os finos ramos entrelaçados com uma energia desesperada. Macro observava indiferente, sem se importar com mais nada, cedendo lentamente ao desejo
de entregar-se a um sono profundo.
O vime provou ser mais resistente do que o estuque, e o coração de Cato batia acelerado à medida que destruía o muro com toda a sua fúria. Por fim, atingiu o barro
e a terra no outro lado. Em pouco tempo, conseguiu abrir uma fenda e uma fraca luz iluminou o interior da casa. Cato renovou as suas tentativas frenéticas e a abertura
foi-se alargando. Quando já se encontrava com tamanho suficiente para poderem atravessar, pegou no centurião com cuidado e arrastou-o pelo buraco.
- Tu primeiro, rapaz. - protestou Macro.
- Não, é mais fácil o senhor atravessar primeiro.
- Muito bem.
Com Cato a ajudá-lo, Macro enfiou a cabeça, braços e ombros pelo muro fora, provocando uma queda de entulho em cima dele. Quando lutava pela respiração e sacudia
a terra da cabeça, alguém o pontapeou.
- Os malditos germanos estão a atravessar a parede! - gritou alguém.
- Calma, rapazes! Sou romano!
- Oh, desculpa, amigo!
Uma mão áspera estendeu-se para Macro. Momentos mais tarde, Cato ajudava-o a manter-se em pé e limpava a poeira da sua cabeça e uniforme. O legionário que o tinha
pontapeado engoliu nervosamente, ao fitar as medalhas na armadura do centurião.
- Senhor, não sabia...
- Não faz mal, rapaz. Agora leva-nos ao tribuno.
- Por aqui, senhor.
O legionário apoiou Macro do outro lado e com os braços do centurião em volta dos ombros dos legionários, o trio foi caminhando por entre as fileiras da retaguarda
que protegiam a entrada, na praça. Encontraram Vitélio parado à porta da casa do chefe, com o trombeteiro e o porta-estandarte da coorte. Do interior da casa, ouviam-se
gritos abafados.
- Esperem aqui um pouco, rapazes - ordenou Macro, antes de retirar o braço do ombro de Cato e saudar Vitélio.
- Ah, ainda estás entre nós, Macro! Disseram-me que os germanos tinham-te apanhado, a ti e ao teu optio.
- Sim, senhor.
- Essa ferida tem mau aspecto. É melhor ires limpá-la e ligá-la.
- Vitélio apontou com o polegar para a porta da casa. - Os oficiais de dia estão um pouco ocupados agora, mas deves conseguir chamar-lhes a atenção. E já agora,
aproveita para limpar alguma dessa merda em ti.
- Onde está a minha centúria, senhor?
- Foram colocados na defesa do portão principal. - Vitélio moveu-se para dar passagem a um ferido levado para o interior da casa.
- Ordenei-lhes que, durante os intervalos de assalto, expulsassem os nativos para o exterior. Não me posso dar ao luxo de dispensar tropas para trabalho de sentinela.
- Qual é o ponto da situação?
Vitélio franziu o cenho antes de responder.
- Bastante mau. Estamos reduzidos a trezentos efectivos. Mais abaixo, os germanos estão a tentar forçar uma entrada na praça. O fogo cortou-lhes todos os outros
acessos, e a muralha e o portão do outro lado da vila ainda estão em nosso poder.
- Conseguiremos resistir até à chegada de Vespasiano?
- Talvez. - Vitélio encolheu os ombros, olhando para o céu nevoso. - Se o fogo continuar a limitá-los só a algumas ruas. Por agora resistimos, mas eles podem dar-se
ao luxo de perder mais homens. Mal vejam o seu número ameaçado, vão tentar encurralar-nos na praça. Faremos uma última resistência neste local, ao lado dos feridos.
- E se o incêndio nos alcançar primeiro que os germanos?
- Seremos forçados a recuar até ao portão principal e depois para o exterior, indo de encontro aos ternos braços da horda germânica.
Morrer pelo fogo ou esventrado por bárbaros, pensou Cato. Qual das hipóteses escolheria quando chegasse a altura?
- Vai tratar da tua ferida, Macro - ordenou Vitélio. Fez um gesto ao trombeteiro e porta-estandarte. - Venham.
- E quanto a mim, senhor? - perguntou Cato.
Vitélio olhou para Macro.
- O "mim, senhor" pode guardar o teu estandarte, centurião.
- Sim, senhor. - Macro esboçou um sorriso triste, depois entregou o estandarte da sexta centúria. - Guarda isto até tratar da ferida. Voltarei para buscá-lo.
Depois foi levado para o interior da casa, onde um oficial de dia se apressou a inspeccionar-lhe a ferida. Abanou a cabeça casualmente e decidiu que no presente
caso não seria necessário nenhuma amputação. Expulsou Cato da casa, com um gesto das mãos. Quando o rapaz se virou à entrada, para dar uma última olhada ao centurião,
o assistente limpava-lhe a ferida com um pano manchado de sangue.
Lá fora, Cato tentou espetar o estandarte no solo com fortes investidas, mas o gelo inutilizava os seus esforços. Acabou por desistir e apoiou o estandarte no ombro.
Apesar de se sentir aliviado por estar de novo entre a coorte, estavam a perder a luta. As lutas corpo-a-corpo tinham-se tornado escaramuças sangrentas, cujo resultado
final dependeria de qual dos lados tivesse maior número. Ainda assim, a espada ou o dardo acertavam por vezes no alvo, causando baixas na horda. Aqueles demasiado
feridos para se retirarem do caos, eram simplesmente espezinhados.
Lentamente, mas sem o poderem evitar, os romanos foram forçados a recuar até à praça. Cato sabia que no momento em que os bárbaros os cercassem na praça, os romanos
seriam aniquilados. Grande parte da noite já passara, mas ainda faltavam algumas horas para o nascer do sol e, pelo menos, mais meio dia até à chegada de Vespasiano.
Mas à medida que os germanos iam exercendo pressão, o fogo começou a subjugá-los, alastrando rapidamente pelas habitações. Soaram trompas distantes que provocaram
gritos de raiva e frustração da parte dos bárbaros. As trompas soaram a retirada com ainda mais insistência e os germanos, relutantemente, após um último ataque
desesperado, fugiram do fogo.
A coorte permaneceu sozinha. Mas o alívio não durou muito tempo. A violência da horda germânica foi substituída pela ira de Vulcano, cujo fogo se propagava por toda
a praça, fazendo arder tudo pelo seu caminho e ameaçando as muralhas do povoado. Os romanos a recuarem das labaredas foram iluminados por uma forte luz vermelha
que lançava longas sombras tremeluzentes. O calor do fogo destruía tudo à sua volta, e os homens encolheram-se por detrás dos escudos.
Um legionário surgiu a correr, a apontar para o caminho que conduzia para fora da praça.
- Retirada! Todos para o portão principal! Agora!
A coorte retirou-se bastante debilitada, uma coluna andrajosa de homens exaustos, alguns dando apoio aos companheiros feridos, outros utilizando escudos como macas
para transportar os feridos graves. Todos sucumbiram ao silêncio e desespero. Demasiados oficiais tinham morrido e a coortç fora completamente quebrada, arrastando-se
penosamente por entre as silhuetas dos casebres germânicos. No portão principal, Vitélio formou um cordão defensivo com os feridos resguardados por detrás da linha
da retaguarda. Depois, restou apenas aos sobreviventes da coorte esperar pelo fim iminente.
Cato tinha regressado para a sexta centúria, depois de se assegurar do conforto do seu centurião. Da torre do portão, tinha uma bela vista sobre a catástrofe. O
vento impelia as chamas e agora consumiam a outra metade da aldeia. Para lá da muralha, Cato observou os aldeões agrupados, assistindo à incineração das suas casas
e vidas. Sem provisões e abrigo, muitos não sobreviveriam ao Inverno; o fogo iluminava a expressão de desespero gravada nos seus rostos. Cato sentiu-se culpado quando
se apercebeu das consequências humanas da guerra, mesmo sabendo que a sua morte estava próxima, de uma maneira ou outra.
E mais adiante, afastados dos aldeões, as linhas dos guerreiros germanos estendiam-se por toda a área, encobertos pela noite, à espera que o fogo repelisse o inimigo
para o exterior.
Com o passar da noite, Cato ficou surpreendido ao constatar que os homens da coorte se tinham entregado a um fatalismo sereno. Os oficiais sobreviventes e os homens
conversavam calmamente, sem quaisquer diferenças de hierarquia. Perante a morte iminente, todos eram iguais. Representava um estranho conforto partilhar com eles
este momento, ali
- antes do derradeiro ataque que os levaria ao alívio. Uma serenidade calorosa apossou-se dele, e Cato sorriu. Por um momento, trocou olhares com um veterano cuja
face sem expressão lhe devolveu o sorriso. Não trocaram nenhumas palavras; não eram necessárias.
Quando a alvorada surgiu no horizonte, o fogo estava quase em cima deles. Vitélio ordenou que os sobreviventes formassem uma coluna por detrás do portão. O tribuno
considerou o destino daqueles demasiado feridos para caminhar. A maioria tinha pedido que espadas fossem deixadas com eles, não querendo render-se sem luta ou, pelo
menos, não dar a satisfação aos germanos de serem feitos prisioneiros. Vitélio interrogava-se sobre se não seria um acto de misericórdia ordená-los todos à morte
antes do ataque da coorte. Enquanto reflectia, uma sentinela na torre chamou-o:
- Estão a movimentar-se!
Parecia que os germanos se tinham deixado levar pela impaciência. Então, tudo terminaria com uma luta na muralha e sem nenhum ataque final, concluiu Vitélio, desapontado.
Cansado, subiu as escadas para a torre e surgiu no passadiço de vigia, onde encontrou Cato ao lado da sentinela. O optio parecia confuso e o tribuno, ao olhar para
o horizonte, percebeu porquê.
Não havia dúvidas de que os germanos se movimentavam, mas em vez de se moverem para a frente, em direcção ao portão, marchavam em torno da aldeia, para longe do
caminho que conduzia à floresta.
- Mas que raio...? - Vitélio franziu o cenho.
- Senhor, que estão eles a fazer?
- Não faço ideia.
Os germanos aceleraram o passo, abandonando os aldeões num patético grupo isolado defronte do portão. Cato mal podia acreditar no que via. Mas depois os seus ouvidos
captaram um novo som, um som que se ergueu acima do crepitar das chamas nas suas costas. O estridente e nítido som de trompas soou na madrugada, e no topo da colina
surgiu uma linha de cavaleiros, liderados por um grupo de oficiais em capas vermelhas e elmos com penachos.
Vespasiano, ao que parecia, não tinha esperado pela alvorada para marchar em auxílio da coorte.
XIV
O oficial de dia praguejou ao ouvir a campainha ecoar pelo corredor central da enfermaria da Legião. O paciente estava a tornar-se insuportável. Exigia constantemente
que mensagens fossem enviadas, ordenava que trouxessem comida e vinho, provocava um alarido por causa da perna, sempre a querer colocá-la numa nova posição para,
momentos depois, pedir que a mudassem de novo. Se não fosse pelo facto de ser um centurião e ultrapassar em hierarquia todos os colocados no hospital, excepto o
cirurgião, o assistente ter-lhe-ia retirado a campainha e tê-lo-ia mandado à fava. Mas porque era um centurião, tinha direito a um quarto privado, campainha e a
atenção exclusiva de qualquer pobre oficial de dia de serviço.
Todas as outras patentes a recuperarem dos ferimentos causados pela luta recente estavam confinadas a divisões de cinco camas, com privilégios de acordo com o seu
baixo estatuto: comida o suficiente para não passar fome e uma visita regular do cirurgião ou um dos seus assistentes para mudança de ligaduras, despejo de detritos
e vigilância do seu estado de convalescença. Os imobilizados eram providenciados com urinóis três vezes ao dia. O centurião tinha direito ao urinol quando bem lhe
apetecesse.
O ferimento na sua perna ficara com mau aspecto e poderia ter sido fatal se Macro não tivesse atado um torniquete acima da ferida. O cirurgião tinha cosido o músculo
destroçado e depois a pele - deixando uma pequena saliência que permitiria drenar o pus da ferida. Ordenara ao centurião que permanecesse deitado até ao ferimento
estar limpo e bem curado. Depois sorrira calmamente perante a rajada de invectivas, e consolou o centurião dizendo-lhe que a Segunda legião podia muito bem passar
sem ele durante umas semanas. O cirurgião nomeou-lhe um oficial de dia, e profissionalmente satisfeito com o seu trabalho manual,
abandonou o centurião furioso e passou para os outros pacientes que fora encarregado de tratar pelo tribuno Vitélio.
A maioria recuperou após alguns dias, outros morreram - para grande pena do cirurgião, que encarava cada morte como uma afronta pessoal aos seus dotes - o resto
recuperou lentamente, limitados pela gravidade dos seus ferimentos. Agradeceu o facto de não ter que cuidar de germanos: àqueles que não tinham cometido suicídio,
ou sido mortos pelo seu próprio lado, foi aplicado o golpe de misericórdia por ordens de Vespasiano. Assim, o hospital estava livre dos bárbaros malcheirosos.
O mesmo não podia ser dito acerca do povoado às portas da fortaleza, invadido pelos sobreviventes da aldeia. Os mais sortudos tinham implorado por refúgio a parentes
afastados e amigos que agora se vingavam do desprezo que tinham sofrido por terem adoptado os hábitos romanos. Os não tão sortudos seriam forçados a passar o Inverno
num triste e esquálido amontoado de casebres rústicos nos limites do povoamento. Muitos deles não sobreviveriam ao rigoroso vento do Norte, mas não iriam contar
com nenhuma simpatia da parte dos romanos ou dos habitantes do povoado, que agora teriam que suportar a desconfiança romana de tudo o que fosse germano.
A campainha tocou novamente, mais alto desta vez, e o oficial de dia abrandou o passo ao caminhar pelo corredor, em direcção aos quartos ventilados destinados a
oficiais.
- Mexe-te, homem! - gritou Macro. - Já estou a tocar a merda da campainha há séculos!
- Peço imensa desculpa por o ter feito esperar, senhor. - O oficial de dia desculpou-se. - Mas receio que um dos pacientes esteja à beira da morte e queria certificar-me
de que os seus pertences iam parar aos seus amigos.
- E vão parar?
- Os rapazes e eu faremos o nosso melhor para que os pertences sejam enviados.
- Depois de surripiarem a vossa parte.
- Claro, senhor.
- Malditos abutres.
- Abutres? - O assistente franziu o cenho. - É uma recompensa pelo trabalho dispendido, senhor. O que deseja, senhor?
- Livra-te disto. - Macro apontou-lhe o urinol. - E atiça o fogo. O quarto está gelado.
- Sim, senhor. - O assistente assentiu ao depositar com cuidado o urinol numa mesa. - Está um dia bonito lá fora, senhor. Céu azul e vento calmo.
- Ah está? Obrigado por me informares. Mas aqui continua a estar gelado.
- Gelado não, senhor. Apenas bem ventilado. Faz-lhe bem.
- Como é que me pode fazer bem? Se não for a ferida a matar-me, será uma pneumonia.
O oficial de dia sorriu perante esse pensamento tão agradável ao despejar mais óleo nas brasas incandescentes do braseiro, e soprou suavemente de modo a encorajar
as chamas.
- Está bom. Agora leva o urinol e desanda daqui.
- Sim, senhor. - O oficial pegou no utensílio e, segurando-o com cuidado, dirigiu-se à porta que dava para o corredor. Sem nenhum aviso, Cato entrou no quarto e
o oficial de dia conseguiu evitar habilmente a colisão sem despejar uma gota. Cato fechou a porta atrás dele, ignorando a sua indignação.
O optio abeirou-se da cama e sorriu.
- É bom vê-lo, senhor.
- Pela primeira vez em três dias.
- Temos estado ocupados, sem o senhor. Tenho tentado manter a centúria em boa ordem enquanto recupera. Como está a perna?
- Rígida, e dói como tudo sempre que a desloco. Mas os curandeiros dizem-me que está a sarar bem.
- O senhor está com melhor aspecto desde a última vez que o
vi.
- Não foi nada, apenas alguma infecção menor. O cirurgião diz que já quase desapareceu.
- Quando volta ao serviço, senhor?
A ansiedade por trás das suas perguntas não passou despercebida ao centurião. Observou o jovem em silêncio, enquanto a madeira no braseiro estalava suavemente.
- Pensava que um jovem optio estava a gostar da sua primeira oportunidade de comando.
- E estou, senhor.
- Mas... - Macro encorajou-o a falar.
- Não fazia ideia de que havia tanto para fazer. Têm que se organizar os treinos de recruta, inspeccionar casernas e equipamento, depois, ainda sobra toda a papelada.
- Devias deixar isso a cargo de Piso. É o que costumo fazer.
- Sim, e tem-me ajudado imenso, senhor. Insistiu em tratar de tudo. Mas acabámos de receber ordens para elaborar um inventário do equipamento e artigos pessoais
dispensáveis. E para piorar as coisas, o quartel-general ordenou que todo o dinheiro superior a dez sestércios
fosse depositado no banco até ao final da semana. Há sempre assim tanta actividade, senhor? - perguntou Cato.
- Não.
Então a Legião iria ser transferida num futuro próximo. A ordem para depositar o dinheiro servia para diminuir o fardo de um legionário em marcha, e todos os bens
dispensáveis seriam inventariados para armazenagem ou venda. Se para venda, significava que a transferência da Legião seria a longo prazo. Interessante. Mas depois
Macro pensou que provavelmente os feridos seriam transportados em carros, e a perspectiva de ter que viajar aos solavancos horrorizava-o. Marchar podia ser cansativo,
mas era um bom exercício e bem mais confortável do que andar aos saltos na cama de um carro de legionários.
- Alguma ideia para onde seremos transferidos?
- Nada oficial, senhor, mas ouvi rumores de que nos iremos juntar a um exército reunido para a invasão da Britânia.
- Britânia?! Que Imperador no seu perfeito juízo iria desejar que essa lixeira fizesse parte do Império? Selvagem e com pântanos por todo o lado - se o que ouvi
é verdade. Britânia! Isso é ridículo.
- Foi o que ouvi - defendeu-se Cato. - E, de qualquer modo, nos últimos tempos, qual é o Imperador que tem estado no seu perfeito juízo?
- Bem dito! - Macro sentiu-se mais animado. - Olha, todo este trabalho de administração de que te queixas. É disso que se trata liderar uma centúria. Vais ter que
aprender a lidar com isso, ou pede ao Piso.
- Não é realmente a papelada que me está a deitar abaixo, senhor
- disse Cato, desconfortavelmente.
- Então é o quê?
- Bem, é o comando em si. Parece que não consigo lidar com o facto de ter de dar ordens aos homens.
- Como assim?
Cato arrastou os pés envergonhado, e tentou explicar o problema.
- Eu sei que sou um optio, e isso quer dizer que os homens têm que me obedecer, mas isso não significa que aceitem incondicionalmente um - bem, terei que ser honesto
- um rapaz a dizer-lhes o que fazer. Não é que não me obedeçam, não têm outro remédio. Já ninguém me chama cobarde, mas não me têm em grande consideração.
- Tenho a certeza disso. O respeito não é uma coisa automática a,
- tem que ser merecido. Os homens obedecem porque estão habituados a isso. O truque está em fazê-los obedecer de boa vontade, e, para isso,
precisas de ganhar a confiança deles. Só então te irão respeitar.
- Mas como faço isso, senhor?
- Para começar, vais parar com os queixumes. E depois podes passar a agir como um optio.
- Não consigo, senhor.
- O que é que queres dizer com "não consigo"? Consegues, sim! Vais ter que conseguir. - Macro apoiou-se no cotovelo, e estremeceu ao deslocar a perna para uma posição
mais confortável.
Sim, senhor.
- Põe mais lenha no fogo, lenha seca, antes que essa porcaria se apague. E fecha a janela.
- Tem a certeza, senhor? Supostamente, o ar fresco acelera a sua recuperação.
- Certamente que não se referiam a ar tão fresco assim. A única coisa que isso acelera é expor-me ao frio, por isso, fecha a janela agora.
- Sim, senhor. - Cato obedeceu prontamente à ordem, e depois seleccionou com cuidado a lenha mais seca para o braseiro.
- Notaste? - perguntou Macro.
- O quê, senhor?
- Em como fizeste logo tudo aquilo que te ordenei.
Cato assentiu.
- É disso que estou a falar, do tom de voz. Tens que praticar o acto de dar ordens até que soe natural. Mas mal o conseguires, torna-se tão fácil como respirar.
- Se assim o diz, senhor.
- Digo sim. E agora conta-me, que há de notícias? - Macro voltou a deitar-se na cama, encostando-se à almofada.
Com a janela fechada, a luz rubra das brasas acrescentava maior luminosidade à luz fraca que se infiltrava pelo postigo.
- Puxa uma cadeira, senta-te e conta-me tudo. Que mais tens
feito?
Cato sentiu-se incomodado.
- Fui chamado ao quartel-general esta manhã, pelo legado.
- Ah sim? - Macro sorriu. - E que te disse Vespasiano?
- Não falou muito... Vai-me investir com uma condecoração, uma coroa de erva. Não sei bem porquê.
- Porque eu o recomendei. - Macro sorriu de novo. - Salvaste-me a vida, lembras-te? Mesmo tendo quase perdido o estandarte. Tu mereces, e mal tiveres a fálera afixada
na armadura, acredito que a atitude dos homens vai mudar em relação a ti. Todo o bom soldado respeita uma condecoração bem merecida. Que tal é sentires-te um herói?
Cato corou, grato pela vermelhidão do rosto não se notar à luz tremeluzente do braseiro.
- Sinceramente, sinto-me uma fraude.
- Mas porquê?
- Não posso ser considerado um herói por causa de uma única batalha.
- Aquilo nem foi batalha, diz antes, uma escaramuça.
- Precisamente, senhor. Uma escaramuça e uma em que só consegui ferir o inimigo por mero acidente. É indigno de um herói.
- Matar homens em batalha não faz de ti necessariamente um herói - tentou consolá-lo Macro. - Claro que ajuda, e quanto mais corpos empilhados melhor. Mas há outras
maneiras de te tornares um herói. Se eu fosse a ti, não deixava de me gabar por aí que tinha partido a cabeça a uns quantos germanos. Olha, tu não precisavas de
ter voltado para trás por minha causa, mas escolheste fazê-lo, contra todas as expectativas. Para mim, isso requer grande coragem. Estou contente por fazeres parte
da Legião.
Cato olhou para ele, procurando qualquer sinal de ironia no rosto do seu superior.
- Está a ser sincero, senhor?
- Claro. Alguma vez te menti?
- Não.
- Então pronto. Valoriza-te mais e vê se não te tornas sentimental comigo. Presumo que haverá uma cerimónia de investidura?
- Sim, senhor. O legado ordenou uma parada para daqui a dois dias. Várias condecorações serão atribuídas, incluindo uma a Vitélio.
- A sério? - Macro interrompeu-o, com um tom azedo. - Tenho a certeza de que isso ficará lindamente no Curriculum Vitae dele, quando regressar a Roma.
- Vai também haver um jantar privado. Convidou todos os oficiais que serviram a Terceira coorte naquele dia, no povoado. Todos os que sobreviveram.
- Então deverá ser um jantar mesmo íntimo e aconchegado. Típico de Vespasiano; sempre o gesto altruísta, desde que não seja dispendioso.
- Insistiu para que também estivesse presente, senhor.
- Eu? - Macro encolheu os ombros e apontou à perna. - E como raio vou aparecer lá?
- Foi o que perguntei ao legado, senhor.
- Perguntaste? E que respondeu ele?
- Vai mandar uma liteira.
- Uma liteira? Que bom. Faço de inválido a noite toda e ainda tenho que entrar em conversações sociais. Vai ser um pesadelo.
- Então não vá, senhor.
- Não vou? - Macro ergueu as sobrancelhas. - Rapaz, um convite formal da parte do comandante da Legião tem mais valor do que um decreto assinado pelo próprio Júpiter.
Cato sorriu e levantou-se.
- É melhor ir andando. Quer que lhe traga alguma coisa da próxima véz? Alguma coisa para ler, talvez?
- Não, obrigado. Quero descansar a vista. Podes trazer-me um jarro de vinho e um conjunto de dados. Preciso de melhorar a minha técnica.
- Dados.
Cato mostrou algum desapontamento. Desaprovava aqueles que se recusavam a acreditar que os dados caíam ao acaso - pelo menos dados não viciados. Assentiu com a cabeça
e preparou-se para partir.
- Mais uma coisa! - Macro chamou por ele, quando saía do quarto.
- Senhor?
- Lembra o Piso de que me está a dever cinco sestércios.
XV
O centurião Bestia olhava para cada rosto, à medida que marchava em passo firme ao longo da coluna. Em muitos aspectos, a inspecção representava o pior momento para
muitos recrutas. Marchar, treinar e praticar armas não requeriam mais do que esforço e um mínimo de atenção. Por outro lado, prepararem-se para a inspecção requeria
um certo génio que quase o elevava ao nível de arte. Todos os artigos do equipamento tinham que estar limpos e polidos - não só onde fosse necessário, mas em todos
os aspectos possíveis - e num perfeito estado de conservação. Havia poucas maneiras de contornar a inspecção e como Bestia as conhecia quase todas, só um recruta
louco ou desesperado iria recorrer a tais manhas.
Cato encontrava-se em sentido, num estado de grande nervosismo, a rezar por todos os deuses de alguma relevância para que Bestia não notasse o verniz que tinha aplicado
no cinto e fivelas. A visita ao hospital não lhe tinha dado tempo para polir o couro, portanto aplicara-lhe simplesmente verniz, a conselho de Pirax. Imóvel e hirto,
com a lança espetada no chão à sua direita e a mão esquerda apoiada na borda do escudo, Cato tinha consciência do leve cheiro a verniz à sua volta. Se Bestia tocasse
no couro pegajoso, seria descoberto e castigado.
Quatro homens mais abaixo nas fileiras, Bestia avistou subitamente a sua presa e passou ao lado desses homens sem lhes lançar um único olhar.
- Ah, optio - saboreou a palavra. - Tão atencioso da tua parte juntares-te a nós esta manhã.
Como sempre, o cumprimento sarcástico era injusto, uma vez que Cato não tivera escolha e fora desculpado da recruta em dias alternados, por ordens do quartel-general
da Legião.
- Com que então, parece que és um herói de guerra, mestre Cato?
Cato manteve-se calado, e continuou a olhar em frente, sem vacilar.
- Penso que te fiz o raio de uma pergunta. - disse Bestia, depois virou-se para o optio que o acompanhava nas inspecções.
- Não lhe fiz o raio de uma pergunta?
- Sim, senhor. - respondeu o optio de recruta. - Fez-lhe o raio de uma pergunta, senhor.
- Sim, senhor, o quê?
- Sim, senhor, sou um herói de guerra. - respondeu Cato em voz baixa.
- Peço perdão, filho, mas devo ser surdo. Não consigo ouvir-te. Repete! Mais alto!
- Sim, sou um herói de guerra, senhor!
- Ena, um jovem rapaz como tu deve ter pregado cá um cagaço aos germanos. Só de olhar para ti já fico nervoso. Não tarda nada metem bebés nas linhas da frente.
Ouviram-se risos por parte dos outros recrutas.
- Calem-se: - bramou Bestia. - Não dei permissão às meninas para se rirem, pois não? Pois não?
- Não, senhor! - responderam os recrutas em coro.
- Pois é, herói de guerra, agora já tens uma razão para viver, e tens que estar à altura disso.
Bestia aproximou-se do rosto de Cato, ao ponto de este poder ver todas as rugas e cicatrizes na face do veterano, assim como as narinas coradas. Cato quase sorriu
de alívio quando o centurião recuou, puxou de uma peça de linho suja e espirrou.
- Porque é que estás a sorrir, rapaz? Nunca viste um homem constipado antes?
- Sim, senhor.
- Vou manter-te debaixo de olho, optio. Comete um erro que seja, e da minha parte não terás misericórdia. - Bestia rosnou e afastou-se abruptamente.
- E qual é a novidade nisso? - murmurou Cato, quando o centurião se afastou.
O optio de recruta riu-se, ao passar por ele, e Cato ficou lívido. Mas o homem limitou-se a piscar-lhe o olho e apressou-se a seguir Bestia.
Nessa manhã, Bestia quebrou a rotina. Em vez do treino de armas programado, os recrutas foram iniciados nos rudimentos de
fortificação de acampamento, e foi-lhes ordenado que marchassem para o exterior, em redor das muralhas da fortaleza, até a uma área onde as linhas de bandeiras coloridas
delimitavam um extenso rectângulo com numerosas subdivisões. Um carro de mantimentos encontrava-se à beira do caminho; uma junta de bois pastava com uma expressão
aborrecida, observando os recrutas a reunirem-se à volta de Bestia.
O centurião foi buscar uma picareta e uma pá ao carro, e segurou-as bem alto para que todos pudessem ver.
- Alguma das meninas importa-se de me dizer o que estou a segurar?
Os recrutas permaneceram em silêncio, não querendo arriscar
o óbvio.
- Tal como pensei, burros como sempre. Bem, podem parecer utensílios de horticultura mas são a arma secreta do exército. Na verdade, são a arma mais importante que
vocês irão manejar. Com isto, podem construir as mais imponentes fortificações do mundo civilizado. Exércitos romanos são derrotados de vez em quando, mas fortificações
romanas
- nunca! Alguns de vocês já devem ter ouvido rumores de que a Legião está prestes a ser transferida.
Um murmúrio de excitação acolheu o anúncio - a primeira confirmação oficial dos rumores que há dez dias circulavam pelas messes da Legião. Bestia deixou-os comentar
antes de continuar.
- Agora, as meninas certamente que irão permanecer na ignorância acerca do nosso destino final, ao contrário de oficiais seniores como eu. Basta que saibam que tempos
interessantes nos aguardam. Mas antes que possam ser deixados à solta fora da base, têm que aprender a construir tudo, de um campo de marcha a bicircunvalações.
A maioria não fazia ideia do que isso significava, excepto os poucos familiarizados com o relato do cerco de Alésia feito por César.
- Meninas, vamos começar por coisas pequenas, já que vocês
- tirando ali o nosso herói de guerra - vão ter dificuldades em compreender o potencial de tácticas defensivas de tudo o que seja maior que uma trincheira. Portanto,
irão começar por um campo de marcha. Quando a Legião realiza manobras em território não hostil, escava uma trincheira defensiva e uma paliçada de turfa. A cada legionário,
e às meninas também, é atribuído uma picareta e uma pá. Ignorem as bandeiras amarelas, essas marcam os limites das tendas de cada centúria. As bandeiras vermelhas
marcam os limites de defesa. Irão cavar no perímetro interior a essa linha, uma trincheira com dois metros de largura e um metro de profundidade - isso equivale
a duas pás de largura e uma de profundidade - o entulho deve ser amontoado no lado
interior da trincheira e depois compactado. Cada homem irá cavar uma trincheira de dois metros, começando ali pelo herói de guerra na primeira bandeira. Entendido,
meninas? Então vão buscar o equipamento e comecem a trabalhar.
Cada um deles pegou numa pá e numa picareta, as quais seriam deduzidas no seu salário como Cato veio a saber, colocou-se numa posição ao longo da linha de bandeiras
vermelhas e, assim, esperaram que Bestia désse a ordem para começarem a cavar. Debaixo da relva, o solo encontrava-se gelado e os recrutas recorreram às picaretas
e martelaram com todas as suas forças, empilhando os pedaços de terra gelados mesmo ao lado da trincheira. A manhã foi passando e os homens esqueceram-se do frio
e do suor a escorrer livremente, colando as túnicas de lã ao corpo.
Endurecidos por meses de exercício físico, ainda assim os recrutas acharam a tarefa exaustiva, mas Bestia não lhes permitiu nenhuma pausa, lembrando-lhes que durante
a marcha, a Legião iria requerer esse tipo de fortificações todos os dias. Mãos calejadas transformaram-se em mãos cobertas de bolhas, e quando as bolhas rebentaram,
as palmas das mãos foram esfoladas pela madeira áspera dos utensílios, que só se tornaria mais suave ao toque após muitos meses de uso. Cato sofreu a agonia em silêncio,
ao passo que aqueles que se tinham juntado à Legião, vindos de quintas, mal deram pelo efeito nas suas mãos calosas. E para seu azar, Cato foi colocado ao lado de
Pulcher, de modo que, sempre que os instrutores se afastavam, Pulcher voltava à carga com a sua campanha de intimidação.
- Herói de guerra? Tu? - rosnou. - Pouco provável. Quem te terá violado para conseguires a condecoração?
Cato não respondeu, nem se dignou a desviar o olhar da trincheira.
- Hei, estou a falar contigo.
Cato ignorou-o.
- Que é esta merda? Não te ensinaram a ter maneiras? E eu que pensava que tinhas sido bem-educado. Suponho qye és demasiado bom para falares com pessoas do nosso
nível. - Riu-se para o recruta ao lado.
- Parece que o herói de guerra está com ideias grandes demais para a posição dele.
- Calem-se! - ordenou um instrutor. - Silêncio enquanto trabalham.
Pulcher voltou ao trabalho, simulando um esforço exagerado, até ter a certeza de que ninguém lhe prestava mais atenção. Depois lançou uma pá cheia de terra para
o rosto de Cato.
- Voltas a ignorar-me, cabrão e...
- E o quê? - Cato virou-se para ele furioso, de pá erguida. - Diz-me o que vais fazer! Anda cá, seu filho da mãe!
As mãos de Pulcher cerraram-se à volta da sua pá, mas um sexto sentido avisou-o para voltar à trincheira, no momento em que Bestia se aproximou deles.
- Que se passa? Estás a fazer uma pausa não-autorizada, herói de guerra?
- Não, senhor.
- Porque estás coberto de entulho, rapaz?
- Senhor, eu...
- Responde à merda da pergunta!
- Escorreguei, senhor. Quando estava a deitar entulho no campo.
- Cansado, rapaz? - Bestia perguntou com uma expressão de falsa preocupação.
- Sim, senhor, mas eu...
- Pois então parece que estás a precisar de mais exercício físico para ficares em forma. Durante as próximas cinco noites, ficas encarregado da limpeza das latrinas.
- Mas, senhor, fui convidado para a festa do legado após a cerimónia de investidura.
- Nesse caso, vais ter que limpar a merda mais rápido ainda, se queres estar lá a tempo. - Bestia sorriu. - E vê se te certificas de que apareces apresentável, senão
Vespasiano põe-te de castigo.
Bestia riu-se ao imaginar a cena. Depois deu uma forte palmada no ombro de Cato e voltou a percorrer a linha.
- E vai à merda, senhor. - Cato praguejou num murmúrio nas costas do homem, mas ficou horrorizado ao ver o centurião dar meia volta e apontá-lo com um dedo acusador.
- Disseste alguma coisa? Hum?
- Apenas "Obrigado, senhor".
- Estás a ser sarcástico comigo, rapaz?
- Não, senhor - respondeu Cato, de rosto inexpressivo. - Estou grato por me oferecer a oportunidade de melhorar, para que me possa tornar um legionário de que se
orgulhe, senhor.
Bestia fitou-o por uns instantes, depois virou-se repentinamente, deixando Cato sozinho com a sua trincheira. Ao lado dele, silencioso, Pulcher tentava conter o
riso.
- Não me vou esquecer desta. - disse-lhe Cato numa voz calma.
- Ohh, estou com tanto medo! Acabei de mijar nas calças. - sussurrou Pulcher.
Cato olhou para ele, já não aterrorizado com o homem como dantes, apenas cansado por ter que ter Pulcher sempre debaixo de olho, à espera do momento em que o filho
da mãe o iria apanhar. Deu um suspiro zangado, voltou a martelar com a picareta com força, depois grunhiu com o esforço de deslocar um pedaço de terra. Algo tinha
que ser feito acerca de Pulcher, e o mais cedo possível.
Ao meio-dia, Bestia mandou-os parar, e os homens permaneceram em sentido enquanto examinava os seus esforços. A súbita pausa de trabalho permitiu que o suor escorresse
frio e pegajoso debaixo das túnicas e, imobilizados, a maioria tremia de frio perante os monitores que reprovavam as suas técnicas grosseiras. A trincheira apresentava-se
irregular, uma vez que alguns recrutas tinham-se esquecido da regra de cavar duas pás de largura. Outros foram incapazes de escavar a quantidade de entulho exigida
do solo gelado e, assim, as secções apresentavam-se desordenadas e desiguais. Muito poucos tinham desempenhado a tarefa ao agrado de Bestia, entre eles, Pulcher
e Cato.
- Sinceramente, meninas, não acho que os bárbaros tenham alguma coisa a temer de Roma, enquanto merda inútil como vocês fizer parte das legiões. Se chamam a isto
uma trincheira defensiva, então eu sou uma prostituta grega barata. A única coisa que isto irá afastar é o frio. Portanto, meninas, voltem a encher os buracos, façam
uma pausa para comer, e comecem de novo esta tarde.
XVI
Quando Cato chegou à casa do legado, após uma rápida corrida pelas casernas, a entrada encontrava-se brilhantemente iluminada. Parou uns instantes para recuperar
o fôlego e colocar a coroa de erva na cabeça. De momento, a fálera estava suspensa por uma fita à volta do pescoço, sobre a parte da frente da túnica. Mais recomposto,
caminhou para a entrada onde um mordomo estava sentado a uma secretária, no alpendre, ladeado por dois guardas. Os guardas cruzaram as lanças, em sinal de aviso
para Cato parar.
- Nome, por favor.
- Quinto Licínio Cato.
- Cato - murmurou o mordomo, ao fazer uma marca na placa de cera com o estilete. - Estás atrasado, Cato, muito atrasado. Deixem-no entrar.
As lanças abriram-lhe passagem, e o rapaz atravessou a entrada em direcção ao pátio interior.
- Sempre em frente. - O mordomo apontou para o salão principal, franzindo o nariz e o cenho à passagem de Cato.
Das janelas por cima da colunata, irradiava uma luz brilhante e ouviam-se os sons de música e risos, juntamente com os murmúrios de conversa. Era vergonhoso chegar
tão tarde a uma festa, mas era impensável ignorar o convite, assim como era impossível desobedecer às ordens de Bestia para lavar e esfregar as latrinas. A faxina
desta noite tinha demorado mais do que o habitual devido a uma bactéria no estômago que estava a afectar a Legião a uma tremenda escala. Só sobrara tempo para Cato
vestir a sua melhor túnica e correr por toda a fortaleza, para chegar mesmo numa hora tardia. Tendo consciência de que seria inevitável um interrogatório sobre o
seu atraso, Cato caminhou para o salão, sentindo-se um condenado à morte. Bateu à porta. No mesmo
momento, o ferrolho correu e a porta abriu-se, revelando o mordomo da casa que mal conseguia disfarçar a sua irritação.
- Finalmente chegaste! É bom que tenhas uma explicação para o legado.
- Pedirei desculpas mal tenha oportunidade para isso - prometeu Cato. - Existe alguma maneira de entrar sem dar nas vistas?
- Dificilmente, rapaz. Segue-me.
O mordomo fechou a porta e guiou Cato a uma pesada cortina que dava acesso ao salão. Apesar de pequeno se comparado com o palácio imperialr-pensou Cato, o salão
fora tornado o mais confortável possível nos confins do Império. Encontrava-se iluminado por lamparinas de óleo suspensas das vigas. Dois bancos compridos adornavam
cada lado da divisão, cobertos por travesseiros, onde se sentavam os convivas que comiam sobre as mesas colocadas à sua frente. Cato ficou surpreendido por ver a
maioria dos tribunos e centuriões presentes, juntamente com as esposas. No espaço aberto entre as duas mesas, dois lutadores grunhiam e retorciam-se num firme abraço,
tentando alcançar a vitória. Ao fundo, um pequeno grupo de tocadores de flauta esforçava-se por se fazer ouvir acima do ruído dos convivas. Cato procurou por um
espaço onde se refugiar, no banco mais próximo, mas o mordomo acenou-lhe e, lentamente, caminhou pelo salão até alcançar o topo da mesa onde se encontravam Vespasiano
e os convidados de honra.
Para seu grande horror, Cato viu um espaço conspícuo entre Macro e Vespasiano. O legado franziu o cenho ao vê-los aproximar, e sorriu de imediato ao reconhecê-los.
Fez uma saudação a Cato.
- Optio! Pensava onde te terias metido.
- Peço perdão, senhor - respondeu Cato, ao sentar-se no banco ao lado de Macro. - Tinha alguns deveres a completar primeiro.
- Que deveres?
- Preferia não falar sobre isso à mesa de refeição, senhor.
- Receio que não tenha sobrado muito. Rúfulo! Arranja algo para o optio comer, devem restar ainda alguns petiscos.
- Sim, senhor. - O mordomo curvou-se, lançando um olhar feroz a Cato.
- Enquanto esperas, experimenta provar alguns desses arganazes recheados. - Vespasiano exibiu-lhe uma bandeja de ouro que continha pequenos ratos assados. - O recheio
é feito de ervas locais e queijo. Suspeito que não é bem aquilo a que estavas habituado no palácio, mas não deixa de ser uma iguaria apetitosa. Prova um.
Cato pegou num e comeu-o. Ainda que os ratos estivessem ligeiramente queimados, era uma agradável mudança da ração de legionário.
Contente, Cato foi comendo pedaços, e o legado ordenou a um escravo que trouxesse ao conviva atrasado a última selecção de acepipes.
- Bebe um pouco de vinho. - Vespasiano apontou-lhe uma fila de garrafas de Samos. - Tens ali um Cébuco decente e um Mássico razoável. Estou a guardar o último do
meu Falerno para um brinde.
Os olhos de Cato brilharam de antecipação.
- O vosso cozinheiro é digno de orgulho. Obrigado pelo convite, senhor.
- O prazer é todo meu, filho. Portaste-te bem naquela rixa local. Agora deixo-te com a tua refeição antes que esfrie. Quero apresentar-te a algumas pessoas mais
tarde. Algumas já deves conhecer. - Vespasiano sorriu. - A minha mulher mostra-se particularmente ansiosa em saber novidades do palácio. Isto se conseguir arrancá-la
ao tribuno Vitélio.
Acenou com a cabeça na direcção de um lado da mesa onde Cato podia ver o tribuno por cima do ombro de uma mulher elegante. O par parecia estar embrenhado numa conversação
profunda. De repente, a mulher do legado soltou uma gargalhada e Vespasiano franziu o cenho. Desviou a sua atenção de novo para o optio.
- Mas como disse, isso pode esperar. Agora tenho que ter uma conversa com o prefeito do acampamento. Dá-me licença e espero que gostes da refeição.
O legado virou-lhe as costas e Cato deu toda a sua atenção ao estômago, deleitando-se com o que estava exibido na mesa perante si, até que se permitiu a provar as
iguarias.
- Mas que raio de cheiro é este? - Macro cheirou com um ar acusador.
- O cheiro é meu, senhor. - respondeu Cato, enchendo a sua taça com um Mássico tinto escuro.
- É o quê? O cheiro lembra uma prostituta barata.
- Isso é porque é um perfume que Pirax comprou para uma prostituta barata.
- Puseste um perfume? - Macro recuou horrorizado.
- Teve que ser, senhor. Estive enterrado em merda até aos joelhos durante toda a noite. Limpei-me o melhor que pude, mas não conseguia tirar o cheiro. Pirax sugeriu
que o disfarçasse com este perfume.
- Sugeriu isso?
- Sim, senhor. Disse que era melhor cheirar como uma prostituta do que a bosta, ou uma coisa assim.
- Isso é discutível.
- Como está a perna, senhor? - perguntou Cato, comendo outro arganaz.
- Está melhor. Mas ainda preciso de algumas semanas até poder andar. Não estou é desejoso de passar a maior parte dessas semanas num
carro de transporte.
- Tem alguma ideia para onde a Legião vai ser transferida?
- Shh! Cala a boca! Não é suposto sabermos nada ainda. Acho que é por isso que fomos todos convidados.
- Acha?
- Por que outra razão haveria tantos convidados se é apenas para celebrar uma investidura? Reservam-nos algumas surpresas.
Flávia riu-se discretamente da piada do tribuno. Era preciso ter cuidado quando se discutia o Imperador Cláudio. Ao mesmo tempo, desejava inquirir Vitélio um pouco
mais, e por isso, manteve a expressão de divertimento na face.
- É uma boa história, Vitélio. Muito boa. Mas diz-me, pensas que Cláudio está à altura do cargo?
- O que penso de Cláudio? - olhou-a atentamente antes de responder. - Ainda é um pouco cedo para julgá-lo, não achas?
- Amigos em Roma dizem-me que muitos não acreditam que Cláudio vá durar muito, dizem que é louco ou, no mínimo, um palerma. E que permite que os libertos governem
o Império em seu nome. Especialmente aquele fulano, Narciso.
- Sim, já chegou também aos meus ouvidos. - Vitélio sorriu, divertido pela maneira como as pessoas discutiam o Imperador, exprimindo sempre as suas opiniões através
das opiniões de terceiros. - Mas ainda é cedo. É natural que encarregue outros de certos deveres enquanto aprende o ofício.
- Suponho que tenhas razão - respondeu Flávia, ao retirar um pedaço de carne dos ossos no seu prato.
- Mas admiro-me de como se espera que um homem só seja capaz de governar o Império - um tão terrível fardo. Sei que sou apenas uma mulher e tenho uma perspectiva
limitada de assuntos de Estado, mas sempre pensei que tal tarefa exigisse as energias de mais do que um homem. Certamente que haverá sábios entre o Senado em quem
se possa confiar para auxiliar o Imperador na sua tarefa de governar?
- Para auxiliar o Imperador na sua tarefa de governar? Ou governar no seu lugar? E assim voltamos aos tempos da carnificina da República em que praticamente todo
o político é um soldado e todo o soldado um político. Mal nos víssemos nessa situação, não haveria mais
eleições, apenas guerras.
- Não que tenhamos agora mais eleições. - Flávia sorriu.
- Não, não temos. Mas quando foi a última vez que romanos chacinaram romanos em nome das ambições políticas de um general?
- Se bem me lembro, a última vez foi quando Augusto eliminou todos os rivais e impôs sobre nós a sua dinastia. E temos que admitir que os Imperadores têm as mãos
manchadas de sangue. Muitos em Roma sofreram às mãos de Augusto, Tibério e Calígula. E quem nos diz que o actual Imperador não irá continuar a tradição?
- Talvez. Mas quantos mais teriam morrido se Augusto não tivesse usurpado o controlo do exército ao Senado e o tivesse tornado no instrumento de um único homem?
- Então não passa tudo de uma questão de taxas de mortalidade?
Vitélio perguntou-lhe em voz baixa:
- Estás mesmo a insinuar que voltemos aos tempos da República?
- Não, penso que não. - Flávia respondeu-lhe na sua voz mais doce. - Mas, considerando que isto não passa de uma discussão amigável à mesa de refeição, não te parece
que um regresso ao poder do Senado seria preferível à actual situação?
- Uma questão interessante, Flávia. Muito interessante. Podemos arranjar argumentos favoráveis a ambos os lados. Tenho a certeza de que imensos benefícios seriam
retirados da restauração do Senado, mas receio que existam mais senadores interessados em aumentar o seu poder, do que aqueles que desejam verdadeiramente servir
Roma. Basta relembrares aquela situação desagradável em Dalmácia, no ano passado. O pobre Cláudio tinha acabado de ser confirmado como Imperador, quando ocorreu
a revolta. Se se tivessem juntado mais legiões a Escriboniano e aos outros conspiradores, quem sabe como tudo poderia ter acabado? Foi uma sorte os agentes de Narciso
terem conseguido cortar o mal pela raiz.
- Cortar o mal pela raiz? - meditou Flávia. - Esse é um bom eufemismo para as dezenas de pessoas que foram mortas. Perdi bons amigos antes de partir de Roma. Tenho
a certeza de que tu também. E ainda andam à caça dos membros sobreviventes da conspiração. Vivemos em tempos sombrios.
- Eles causaram a sua própria queda, Flávia. Antes de te envolveres em tais jogos, deves conhecer os riscos. É tudo ou nada. Eles perderam e Cláudio ganhou. Pensas
que teriam mostrado alguma misericórdia para com ele, caso tivessem ganho?
- Não, suponho que não - concordou, com ar pensativo.
- Não que tivessem grandes hipóteses de sucesso. - continuou - Vitélio. - Os idiotas foram nobres o suficiente para apelar ao patriotismo dos legionários em vez
de às suas bolsas. No momento em que Narciso lhes acenou com o ouro de Cláudio, estava tudo acabado.
- Parece - Flávia encarou-o nos olhos - que a moral da história nos ensina que o exército permanece leal enquanto o tesouro imperial for abuhdante.
- Flávia! - Vitélio riu-se. - Eu próprio não teria dito melhor! Mas receio que tenhas razão. No fim de contas, é uma questão de quem é capaz de oferecer mais dinheiro
às tropas. Antepassados, sabedoria e integridade já nada significam. O dinheiro é a fonte de todo o poder. Se o tiveres, tens o mundo aos teus pés, se não tiveres
então nada tens.
- Pois então - Flávia bebericou da taça de vinho - espero que o nosso Imperador seja capaz de manter o cargo. Senão, como dizes, será uma questão de tempo até que
o exército encontre um patrono mais rico.
- Sim - disse Vitélio. - Apenas uma questão de tempo. Mas chega de política. És uma mulher muito interessante. É uma pena que não tenha tido oportunidade de partilhar
contigo uma boa conversa antes desta noite.
- Sim, teria sido agradável. Mas receio que Vespasiano tenha tendência para me manter fechada à chave, tendo em conta que estamos numa base militar.
- E tenho a certeza - Vitélio aproximou-se mais - de que és inteligente o suficiente para dar a volta a essas restrições, caso desejasses.
- Sim... caso desejasse.
- E foi por isso que te casaste com ele?
Flávia olhou para ele e viu que os olhos de Vitélio a fitavam com desejo e que sorria para ela com um ar sedutor.
- Não. - Flávia abanou a cabeça. - Casei-me com Vespasiano por amor. E há mais nele do que podes imaginar. Farias bem em lembrar-te disso.
O tribuno franziu o cenho e nada disse, mas aceitou a rejeição. Depois encheu o copo, sem se oferecer para fazer o mesmo a Flávia, e ergueu-o.
- Ao teu marido - disse calmamente. - O que dizes acerca dele pode bem ser verdade... por agora.
O olhar de Flávia desviou-se do dele, e um sorriso iluminou-lhe a face ao ver Vespasiano levantar-se do seu lugar. Vitélio olhou por cima do ombro e viu o legado
aproximar-se com o optio recentemente
condecorado. Com um suspiro de relutância, voltou-se para os encarar.
- Estava a pensar quando trarias o pobre rapaz para aqui.
- Flávia riu-se ao estender as mãos para Cato.
O optio fez uma rápida vénia e engoliu em seco.
- Senhora Flávia?
- A própria. E como está o meu pequeno Cato? Já não tão pequeno, pelos vistos. Deixa-me olhar bem para ti!
- Parece que o optio e a minha mulher já se conheciam dos tempos do palácio. - Vespasiano explicou a Vitélio. - Trata-se, portanto, de uma reunião de velhos amigos.
- É um mundo tão pequeno, senhor - o tribuno respondeu educadamente. - Vivemos num tempo de grandes coincidências.
- Sim, preciso de falar contigo. Tenho a certeza de que a minha mulher terá o maior prazer em se juntar ao optio e pôr a conversa em dia. Minha querida?
- Claro. - Flávia concordou graciosamente, e levou Cato para o fundo da mesa.
- Senhora Flávia, não fazia ideia de que se encontrava aqui.
- E porque farias? - Ela sorriu. - As esposas dos oficiais raramente são vistas fora dos seus aposentos. E não se iriam expor à crueldade do Inverno germânico.
- Sabia que eu estava cá?
- Claro. Não pode haver assim tantos Catos a juntarem-se à Legião, vindos do palácio. E mal o meu marido mencionou... qual foi a expressão que utilizou: "um rapaz
alto dado à leitura", soube que eras tu. Estava ansiosa por uma oportunidade de te voltar a ver, mas Vespasiano disse que devia deixar ambientares-te primeiro -
que a última coisa que precisavas era da interferência de uma mulher a dar-te mimos à frente dos outros homens.
- Sim. - Cato estremeceu só de imaginar tal cena. - Minha senhora, não imagina como estou contente por ver um rosto familiar neste sítio.
- Vem, vamo-nos sentar. - Flávia sentou-se no lugar do marido e apontou-lhe o espaço ao lado dela. Cato olhou à volta, mas ninguém parecia prestar atenção. Já estava
no exército há tempo suficiente para se sentir desconfortável com as relações entre diferentes classes sociais.
- Cato, diz-me como estão a correr as coisas. Não consigo imaginar como é que tu, de todas as pessoas, vieste parar aqui. Deve ser uma terrível mudança de vida,
não?
Cato, desconfortavelmente consciente da presença de Macro a seu lado, respondeu com cuidado.
- Sim, minha senhora, uma grande mudança. Mas também me parece ser uma vida suficientemente boa e penso que só me fará bem.
Flávia ergueu as sobrancelhas de espanto:
- Tu realmente mudaste...
- Posso apresentá-la ao meu centurião? - Cato levantou-se e indicou Macro.
- Minha senhora. - Macro cumprimentou-a educadamente, ao limpar a sujidade da boca às costas da mão. - Lúcio Cornélio Macro, comandante da Sexta centúria, Quinta
coorte.
- Prazer em conhecê-lo, centurião. Espero que esteja a cuidar bem do meu amigo.
- Não mais do que os meus outros homens. - Macro respondeu-lhe. - De qualquer modo, o rapaz sabe cuidar de si.
- Sim, já ouvi dizer. Agora, Cato, quero que me contes tudo o que se passou no palácio desde a minha partida.
Enquanto Cato falava, Macro prestou atenção à conversa até se deixar levar pelo aborrecimento. Com um encolher de ombros, voltou para a sua refeição e aproveitou
ao máximo todo o luxo a que não estava acostumado. Da sua parte, Flávia ouvia atentamente e interrompia Cato com questões frequentes acerca da ascensão e queda de
vários oficiais do palácio. Por fim, Cato foi esgotado de toda a informação e encostou-se ao banco.
- Portanto, o mesmo fervilhar de escândalos e intrigas que sempre houve. Nisso não mudou.
- Sem dúvida, é quase impossível evitar os boatos.
- Admito que tenho saudades de Roma.
- Podia lá ter ficado, minha senhora. Não é invulgar às esposas de legados permanecerem em casa enquanto o marido está ao serviço.
- Sim, mas Roma passou a ser desagradável desde a revolta de Escriboniano, na Dalmácia, no ano passado. Demasiadas pessoas passam o tempo a denunciar outros como
conspiradores. Afectou bastante a vida social, não fazes ideia do desafio que representa planear uma festa, enquanto agentes imperiais estão ocupados a examinar
a lista de convidados.
Cato assentiu.
- Antes de partir do palácio, ouvi dizer que Cláudio já tinha assinado mais de cem sentenças de morte. Já não devem sobrar muitos conspiradores.
- Pelos vistos, Narciso é um homem muito ocupado.
- E muito importante, desde que Cláudio o encarregou do Corpo Imperial.
- Narciso mudou muito desde que parti?
- Nada que se notasse - respondeu Cato. - Mas a maioria dos romanos tem cuidado com o que diz perto dele, agora que possui influência sobre o Imperador.
- Ainda parece o mesmo? - perguntou Flávia, olhando distraidamente para os dedos pousados no vestido.
Cato pensou por um momento antes de responder:
- Cabelos mais grisalhos, mas não tão diferente de quando o conheceu.
- Estou a ver... Estou a ver. E confio que o nosso pequeno segredo não foi revelado - perguntou numa voz suave.
Cato há já algum tempo que esperava pela pergunta, e assentiu com a cabeça ao olhá-la firmemente.
- Está seguro comigo, minha senhora. Dei-lhe a minha palavra. Mantenho-a e mantê-la-ei até morrer.
- Obrigada.
Um silêncio embaraçoso instalou-se entre ambos. Relembravam uma noite de terrível tempestade sobre Roma, quando um pequeno rapaz, aterrorizado pelos trovões e relâmpagos,
se escondera no canto de uma pequena sala, onde um homem e uma mulher copulavam à luz dos relâmpagos. Mais tarde, quando o homem partira, Flávia descobrira Cato
a tremer no canto da sala. Por um instante, limitara-se a fitá-lo, com medo das consequências do que vira. Agarrando-o pelos ombros, obrigara-o a jurar segredo.
Mas vendo a expressão de terror da criança, o instinto fizera-a proteger o pequeno rapaz da tempestade o melhor que pôde. Depois disso, e apesar da diferença de
classes entre ambos, Flávia sentiu-se responsável por Cato e certificava-se sempre de que estava a ser bem tratado pelos outros escravos do palácio. Algum tempo
depois, abandonou a casa Imperial e conheceu Vespasiano.
Flávia decidiu mudar a conversa para um terreno mais seguro.
- Cato, de que é que tens mais saudades de Roma?
- Das bibliotecas - respondeu, sem hesitação. - O melhor que consigo arranjar aqui é um velho manual do exército. Quando parti de Roma, estava a ler as Histórias
de Lívio. Passará muito tempo até que volte a lê-las.
- Histórias! - exclamou Flávia. - Mas porque raio andavas a ler histórias? Pensava que os jovens gostavam de poesia, Lucrécio, Catulo, Ovídio, esse tipo de poesia.
- Ovídio é um pouco difícil de arranjar, minha senhora - lembrou-lhe Cato. - De qualquer modo, os meus gostos são bastante mais conservadores. Admiro imenso Virgílio.
- Virgílio é um velho tão chato - queixou-se Flávia. - Nem uma réstia de sentimento ou empatia com o leitor. Apenas uma elegância túrgida.
- Discordo. Por vezes, considero-o sublime, capaz de exprimir conceitos em palavras de um modo intemporal. Quando todos estes poetas românticos não passarem de meras
sombras na memória dos homens, Virgílio permanecerá como uma profunda influência a vibrar pelos séculos fora.
- Muito poeticamente dito, Cato, mas falas do tempo ou de legionários?
- Dificilmente de legionários. - Cato riu-se com a mulher do legado. - Estética literária não é uma prioridade nas mentes destes homens.
- Passa-me os ratos - interrompeu Macro.
- Sim, senhor - respondeu Cato, sentindo-se culpado. - Aqui tem, senhor.
- Lê muito? - perguntou Flávia a Macro. - Pergunto para me certificar de que Cato está errado. Não acredito que os oficiais do meu marido ignorem as musas.
- Senhora...?
- Lê poesia, centurião?
- Não muito frequentemente, senhora. Estou demasiado ocupado a maior parte do tempo.
- Mas lê poesia - insistiu Flávia.
- Claro, minha senhora.
- E qual o seu poeta favorito?
- O meu favorito? Bem, deixe-me pensar. Provavelmente o sujeito que Cato acabou de mencionar.
- A sério? E qual considera ser a melhor obra de Virgílio?
- Uma pergunta difícil, minha senhora. Penso que tudo o que escreveu é bom.
- Cobarde! - Flávia riu-se espontaneamente. - Duvido que tenha lido alguma coisa dele ou de outro poeta. Na verdade, duvido que leia alguma coisa.
Ela riu-se de novo, e Macro limitou-se a fitar a sua comida em silêncio. Cato sentiu o grande desconforto do centurião.
- Shhh! - Flávia levou um dedo aos lábios. - O legado está prestes a fazer um discurso.
De facto, Vespasiano acabou de beber o vinho e levantou-se. Acenou ao mordomo para que desse ordens aos servos para começarem a distribuir as taças de vinho de Falerno
pelas mesas. Depois bateu com o
bastão no chão de mosaico. O salão ficou silencioso e todos os olhares se concentraram no legado. Vespasiano esperou por silêncio total antes de iniciar o discurso.
- Caros convidados, não podem ter deixado de notar nas últimas semanas os preparativos para a transferência da Legião. Esta noite posso confirmar que o Corpo Imperial
nos deu ordens de marcha. A Legião deve prosseguir com a maior celeridade possível para a costa ocidental da Gália...
Se Vespasiano esperava por alguma reacção excitada ou de surpresa, ficou desapontado. Muitos oficiais desviaram o olhar, embaraçados, sentindo-se incomodados. Uma
ou duas almas caridosas ainda tentaram simular alguma surpresa, mas sem conseguirem enganar ninguém. Vespasiano continuou, evidentemente aborrecido.
- À chegada, iremos juntar-nos a elementos de quatro outras legiões, dando início à preparação da conquista da Britânia. Mesmo agora, uma frota está a ser reunida,
e no final do ano uma nova província terá sido conquistada para glória do nome de Tibério Cláudio Druso Nero Germânico. A Legião partirá daqui a dois meses, sendo
a fortaleza guarnecida, na nossa ausência, por uma coorte vinda da Macedónia. Conhecem os procedimentos. A partir de amanhã, passam a tratar disso. Resta-me esta
noite propor um brinde. Ergam as vossas taças e brindem ao Imperador!
Quando Cato e o oficial de dia ajudavam Macro a erguer-se da liteira e a deitar-se na cama, o centurião agarrou na túnica de Cato e aproximou-o de si.
- Fica. Quero ter uma palavra em privado contigo. - A expressão de Macro era bastante soturna.
Sozinho com o seu superior, a mente desperta pelo ar nocturno gelado, Cato interrogava-se sobre o que raio teria feito para provocar esta mudança repentina de disposição.
Por um momento, o centurião Macro limitou-se a fitar Cato antes de lhe falar.
- Cato, posso confiar em ti?
- Senhor?
- Posso confiar-te um segredo? Algo que não me atrevo a dizer a ninguém?
Cato engoliu em seco e, instintivamente, recuou um passo da cama do centurião.
- Bem, isso depende, senhor. Quer dizer, naturalmente, sinto-
-me lisonjeado, mas sabe como é, alguns homens fazem-no, outros não. Acontece que eu não o faço, senhor. Sem ofensa.
- Mas que merda é essa que estás para aí a dizer? - Macro franziu o cenho, ao apoiar-se num cotovelo. - Se voltas a pensar que sou algum panasca, arranco-te a cabeça.
Entendido?
- Sim, senhor. - Cato sentiu-se logo mais relaxado. - Em que posso ajudá-lo, então?
- Podes ajudar-me... Podes ajudar-me, ensinando-me a ler.
-A Ler?
- Sim, ler, porra! Tu sabes, todas essas malditas palavras e o resto. Quero aprender como tudo isso funciona. Está bem, talvez seja demais. Não quero aprender a
ler mais do que outro homem qualquer. O facto é que tenho que ler e escrever se quero continuar a ser centurião. E a cabra daquela mulher quase que me apanhou esta
noite. Mas um dia descobrem, e quando isso acontecer, sou despromovido. A não ser que aprenda a ler.
- Estou a ver. E quer que eu o ensine?
- Sim. E que prometas não dizer a ninguém. Ensinas-me?
Cato pensou no caso por um momento, e a sua natureza levou-o
inevitavelmente à resposta.
- Claro que o ensino, senhor.
XVII
O Inverno deu lugar à Primavera e a neve derreteu-se; durante várias semanas a chuva intensa transformou todas as estradas não pavimentadas em lamaçais. O único
tráfico a circular dentro e fora da fortaleza consistia nos mensageiros imperiais enviados para a Segunda legião, com as últimas instruções sobre a iminente transferência.
Tendo entregado os despachos, regressavam com pedidos de autorização para a compra de animais de carga, rações e escravos para a campanha primaveril.
Antecipando a autorização do Corpo Imperial de Roma, a Legião contratara muleteiros para comprar as provisões necessárias nas cidades e vilas em toda a extensão
a Sul do Reno. Os homens foram escolhidos a dedo, e podia-lhes ser confiada a selecção dos melhores animais para a longa jornada. Também podiam ser confiados quanto
ao regateio pelo preço mais baixo, e conquanto o preço fosse razoável, as autoridades faziam vista grossa às comissões não-oficiais que iam parar às bolsas dos luleteiros.
E foi assim que as mulas e outros animais de carga chegaram para integrar o conjunto que já se encontrava a pastar no terreno à volta da fortaleza.
No interior da guarnição, a maior parte do espaço entre as muralhas e os casebres encontrava-se ocupado pelos carros de transporte da Legião. A cada centúria era
atribuído um carro para ferramentas, bagagem administrativa - nomeadamente, a tenda do centurião e todos os objectos pessoais que desejasse para uma campanha mais
confortável. Seguia-se depois a assistência médica destinada a transporte de doentes e pacientes imobilizados, a companhia de artilharia com os seus carros de catapultas
e balistas, os carros de provisões de trigo e reservas de cevada, a vasta bagagem do quartel-general e, finalmente, o séquito que transportava os pertences pessoais
dos oficiais. Ainda assim, a Legião
viajava leve. Como não podiam desperdiçar tempo em pilhagens, trigo já tinha sido semeado ao longo do caminho.
Era evidente o ambiente de expectativa, mesmo para aqueles soldados que viviam um dia de cada vez. Legionários desesperados tentavam livrar-se dos seus bens supérfluos
nos mercadores que se reuniam como abutres para tirar vantagens de tais ocasiões. A notícia de que a Legião ia ser recolocada espalhara-se, e nas semanas que se
sucederam, o povoamento em redor da fortaleza cresceu de modo a acomodar os mercadores ambulantes do Império, em busca de boas oportunidades de negócio. Legionários
desconsolados arrastavam-se de mercador em mercador com toda a espécie de posses, sentimentais, ornamentais, ou simplesmente bugigangas, e disputavam amargamente
pelas parcas moedas que escapavam das bolsas dos negociantes, não deixando estes de juntar pequenas fortunas, cada vez que uma formação militar era transferida.
Numa fresca tarde primaveril, Cato vadiava pelo mercado provisoriamente estabelecido, à procura de material básico de leitura para Macro.
- Nada de demasiado elaborado - avisara Macro. - Não quero nenhuma da tua literatura pomposa. Apenas algo simples com que me possas ensinar a ler.
- Mas, acabaremos por ter que passar a alguma literatura, senhor.
- Eventualmente, mas por agora limitemo-nos a coisas simples, entendido?
- Sim, senhor.
- Agora tens aí um mês de pagamento, por isso certifica-te de que o gastas bem.
- Claro, senhor.
- E mantém-te calado sobre isto. Se alguém perguntar, diz-lhes que apenas quero alguma coisa para ler no carro. Pôr em dia as histórias militares, ou algo assim.
Mas lembra-te - nem uma única menção a lições de leitura.
- Sim, senhor.
E assim, numa tarde fresca e ventosa, Cato forçava o seu caminho por entre a multidão excitada de soldados e mercadores. Prendendo a capa militar à sua volta, o
jovem caminhava por entre os carros de mercadorias a exibirem uma impressionante diversidade de objectos, louça de Samos, liras e outros instrumentos musicais, cadeiras,
arcas, mesas e bibliotecas ambulantes.
Num dos carros, estava sentada uma esbelta rapariga escrava, numa
fina túnica gasta, tremendo miseravelmente, com um sinal "Para venda" encostado às suas pernas. Devia ter cerca de dezasseis ou dezassete anos, tinha cabelos negros
atados e, encavalitada no banco do condutor, apoiava o queixo nos joelhos, abraçando-os fortemente e tremendo de frio. Ela olhou para cima e Cato foi detido por
um maravilhoso par de olhos verdes. Por uns instantes, limitou-se a fitá-los, depois apercebeu-se da sua figura de idiota, desviou o olhar e caminhou apressado por
entre os carros.
Não tardou muito a encontrar o que queria. Um dos carros continha pilhas de pergaminhos e, enquanto Cato os examinava, um velho e astuto fenício afastou-se do seu
pequeno braseiro para saudar o cliente. Considerando a idade e inexperiência do soldado, o mercador tentou ativar o interesse de Cato com uns manuais pornográficos
ilustrados que, embora anatomicamente incorrectos, conseguiam ser distractivos. O jovem lá conseguiu persuadir o fenício de que os seus interesses limitavam-se a
estudos históricos e, assim, Cato deixou-o carregado de livros, e com a bolsa mais magra.
Mas não eram os livros que ocupavam a mente de Cato no regresso. Sentia-se cativado pela rapariga sentada no banco do condutor, era levado pelo desejo de a voltar
a ver de novo. Era só isso. Nada mais poderia acontecer. E, no entanto, sentiu o coração a bater mais célere ao aproximar-se do local onde a tinha visto.
O carro ainda lá estava, empilhado de bens, mas não havia nenhum sinal da rapariga. Cato fingiu interesse pelas mercadorias do vendedor ao lado, deitando olhares
de soslaio às tendas erigidas por trás dos carros. Casualmente, desviando o olhar, examinou alguma louça de Samos partida, com a mão que tinha livre.
- Procura por alguma coisa em particular, nobre senhor?
Cato olhou para o mercador moreno, trajado com uma leve capa
pouco adequada à estação, que se encontrava ao seu lado.
- Oh, não! Nada. Estava apenas a ver...
- Muito bem. - O mercador continuou a observá-lo atentamente, com a sombra de um sorriso nos seus lábios escuros.
- Apenas a ver?
- Sim. Hmm, estava aqui uma rapariga há pouco.
O mercador assentiu lentamente.
- É tua? Da tua família?
- Não, senhor. Uma escrava. Comprei-a de um tribuno esta manhã.
- A sério?
- Sim. E acabei de vendê-la há instantes.
- Vendeste-a! - O coração de Cato deu um pulo.
- A uma senhora que vai ali.
O mercador apontou, por entre a multidão, para o local onde uma figura alta e elegante estava prestes a atravessar o portão da fortaleza. Ao seu lado, seguindo
a sua nova ama como um cachorro, estava a rapariga que tinha viçto. Sem dirigir mais nenhuma palavra ao mercador, Cato partiu em perseguição, sem certezas acerca
do seu procedimento, dominando-o apenas o forte desejo de voltar a ver a rapariga. E assim lançou-se pelo mercado, não largando de vista o par de mulheres à distância.
No portão, a mulher voltou-se para trás e Cato reconheceu a esposa do legado. Antes que pudesse reagir, os olhos de Flávia encontraram-se com os dele e acenou-lhe
um cumprimento.
- O jovem Cato, por aqui!
Esforçando-se para não corar, Cato foi ao seu encontro, e tentou evitar olhar para a rapariga escrava enquanto cumprimentava.
- Boa tarde, minha senhora.
- Pelo que vejo, andaste a comprar livros, muitos livros.
- Não são para mim, minha senhora, mas para o meu centurião.
- Ah, sim. - Flávia sorriu. - Deve ser um grande prazer ter um oficial que partilha por completo o gosto pela poesia. Encontraste alguma coisa para ti?
- Não, minha senhora. - Cato permitiu que o seu olhar pousasse na rapariga escrava, e corou de embaraço ao vê-la sorrir para ele. - Não me posso dar ao luxo de comprar
livros, minha senhora.
- A sério? É uma pena. Mas olha, Cato. Tenho que deixar alguns dos meus livros para trás, tendo em conta o espaço diminuto disponível nos carros. Podem não te agradar,
mas podes levar os que quiseres.
- Obrigado, minha senhora. É atencioso da sua parte.
- Vem ter à casa do legado mais tarde e veremos. Vocês os dois conhecem-se?
Cato apercebeu-se então de que estava a sorrir em resposta à rapariga enquanto a esposa do legado falava e, prontamente, desviou o olhar.
- Oh, não, minha senhora!
- Pois enganaram-me bem! - Flávia riu-se. - Parecem um par de cachorrinhos apaixonados. Sinceramente, vocês jovens, só pensam numa coisa. São piores que os coelhos.
- Não, minha senhora!
A face corada de Cato tornou-se num vermelho intenso.
- Asseguro-a de que não tinha intenção nenhuma...
- Paz, Cato, paz! - Flávia ergueu as mãos. - Não queria ofender-te. Peço desculpa, embaracei-te. Peço perdão. Perdoas-me?
- Sim, minha senhora.
- Oh, céus! Perturbei-te imenso. Espero conseguir compensar-te quando apareceres lá em casa mais tarde. Não posso permitir que andes por aí na base com essa expressão
desconsolada, iria prejudicar a moral das tropas.
- Eu estou bem, minha senhora.
- Claro que estás. Bem, então vejo-te mais tarde.
- Sim, minha senhora.
- Vem, Lavínia.
Lavínia. Cato saboreou o nome por um instante, e ao observar Flávia a afastar-se com a sua nova posse, a rapariga escrava olhou para trás e piscou-lhe o olho.
XVIII
A casa do legado encontrava-se numa grande desordem, com bagagens espalhadas por todos os aposentos, e os escravos domésticos a labutar na arrumação de objectos
frágeis, enfiando-os por entre camadas de palha. Os escravos, receosos da cólera de Flávia - mostrava um feitio terrível quando provocada e não tinha escrúpulos
em ordenar a punição de um escravo quando as circunstâncias o exigiam - manuseavam a cerâmica e porcelana com o maior cuidado possível. Para além desses objectos,
Flávia também velava pela arrumação do vestuário e mobiliário pessoal - sendo tudo enviado para a casa de Vespasiano em Quirinal, Roma. Flávia e Tito acompanhá-lo-iam
até à costa gaulesa, e regressariam a casa mal a campanha fosse lançada. Por essa altura, a caça pelos membros sobreviventes da conspiração de Escriboniano teria
esmorecido e alguma normalidade teria regressado à vida social romana. E Roma era o melhor local para Tito, uma vez que já tinham começado a planear a sua educação
para o futuro. Vespasiano favorecia uma rigorosa aprendizagem em lei e retórica, e instigou Flávia a procurar por um tutor o mais cedo possível.
Por entre a desarrumação das caixas e montes de palha, veio uma serva, que tentou chamar a atenção de Flávia.
- O que foi?
- Uma pessoa veio vê-la, minha senhora. Vem dos soldados - disse, com evidente repugnância.
- Quem?
- Um optio.
- Cato?
- Sim, minha senhora, foi esse o nome que deu.
- Muito bem. Suponho que uma pausa de toda esta arrumação me fará bem.
Um escravo perto de si revirou os olhos.
- Conduz o optio para a sala. Irei lá ter. Fá-lo sentir-se em casa e oferece-lhe algo para beber.
- Sim, minha senhora.
- Estava mesmo a pensar em ti. - disse Flávia ao entrar na sala, envergando uma leve túnica de seda.
O aposento, como todas as divisões na casa do legado, era aquecido por um sistema de hipocausto. Cato saboreava o calor, momentos antes da entrada de Flávia.
- Tens sorte por aqueles imbecis ainda não terem empacotado a minha sala de estudo. Senta-te.
Cato voltou a sentar-se, enquanto Flávia se dirigia a uma enorme prateleira de um dos armários que continha dúzias de pergaminhos alinhados por secções. Deteve-se
por um instante, e passou a mão gentilmente por alguns deles, antes de retomar a conversa com o optio.
- Podes levar os que quiseres, ou pelo menos, aquilo que puderes transportar. Podes levar as Filípicas - bombástico e com lampejos de génio - e as Geórgicas - uma
leitura mais profunda - e aqui tens alguns volumes de Lívio. Gostavas de levar alguma poesia?
- Sim, minha senhora.
Quase uma hora depois, uma pilha de pergaminhos acumulava-se no assento ao lado de Cato, enquanto este se dedicava à difícil tarefa de decidir quais das ofertas
de Flávia seria capaz de enfiar no saco de viagem. Flávia observava-o pensativamente, a avaliar mentalmente o valor de cada pergaminho, antes de tomar uma decisão.
- Ficaste bastante impressionado com a Lavínia, não foi?
- Minha senhora? - Cato fitou-a com um pergaminho na
mão.
- A rapariga escrava que comprei esta manhã.
- Ah, essa!
- Ah, essa, sem dúvida. Não me enganas, meu jovem, conheço os sinais. A questão agora é o que queres fazer em relação a isso.
Cato olhou-a, envergonhado pela transparência dos seus sentimentos e pelo desejo de voltar a ver Lavínia, de admirar os seus olhos cor de esmeraldas.
- Bem, devo ter cometido um erro. - Flávia tentava arreliá-lo.
- Pensava que querias vê-la de novo, mas afinal enganei-me.
- Minha senhora! Eu... eu...
- Logo vi. - Flávia riu-se. - Sinceramente, consigo ler os homens como um livro aberto quase todas as vezes. Não te preocupes, Cato, não te vou proibir de vê-la
- pelo contrário, mas dá tempo à rapariga para se habituar à nova casa, e depois verei o que posso arranjar.
- Sim, minha senhora... Obrigado!
- Agora é melhor levares esses pergaminhos e partires. Adorava continuar a conversar contigo mas ainda há muito trabalho a fazer. Fica para outra altura, espero
eu. E talvez Lavínia possa juntar-se a nós?
- Claro, minha senhora. O prazer seria meu.
- Tenho a certeza disso!
Ao observar Cato a ir-se embora, caminhando pela Via Pretória, Flávia sorriu para si própria. Um rapaz adorável, pensou, e disposto a confiar demasiado nas pessoas.
Se o manipulasse com cuidado, poderia chegar o dia em que lhe seria bem útil.
- Então de que se tratam todas estas coisas? - perguntou Macro num tom de suspeita, ao receber das mãos de Cato os pergaminhos, cada um devidamente alinhado e classificado.
- A maioria consiste em ensaios e história.
- Nenhuma poesia.
- Nenhuma, senhor, como tinha ordenado - respondeu Cato.
- Aqui tem algumas matérias bastante entusiasmantes.
- Entusiasmantes? Rapaz, apenas quero aprender a ler. Apenas isso. Entendido?
- Sim, senhor. Se é isso que realmente deseja... Agora, diga-me, como se tem dado com as letras que lhe mostrei?
Macro retirou de debaixo da cama uma tábua de cera e entregou-a ao seu subordinado. Cato abriu-a e examinou o conteúdo. No lado esquerdo de cada tábua inscrevera
na superfície de cera as letras do alfabeto. No lado direito, encontravam-se as tentativas de reprodução do centurião - linhas e curvas desordenadas que ocasionalmente
se assemelhavam às originais.
- Não foi fácil escrever no meu colo, sabes - explicou Macro.
- Essa maldita coisa estava sempre a escorregar.
- Estou a ver. Mas é um bom começo. Lembra-se do som que representa cada letra?
- Claro.
- Então não se importa de as rever comigo, senhor? É só para praticar. Depois experimentamos com algumas palavras.
Macro rangeu os dentes:
- Achas que não consigo fazê-lo?
- Tenho a certeza que sim, senhor. Mas a prática leva à perfeição, como o senhor me relembra constantemente. Podemos começar?
Enquanto Macro se atrapalhava com o alfabeto, Cato evitava demasiados comentários, enquanto a todo o momento, visões de Lavínia invadiam a sua mente, e era com considerável
relutância que tentava pôr-lhes fim. Até que Macro se apercebeu de que a atenção do rapaz não estava na tarefa à sua frente. Fechou as tábuas tão abruptamente que
Cato quase caiu do banco.
- Em que pensas, rapaz?
- Senhor?
- Até eu sei que pronunciei mal algumas dessas palavras, e tu passaste o tempo todo sentado, a acenar a cabeça como uma galinha. O que há de tão importante que não
te deixa concentrar nisto?
- Senhor, não é nada, apenas uma questão pessoal. Não voltará a acontecer de novo. Podemos continuar?
- Não se o teu problema estiver a impedir-nos o caminho.
A lição tinha-se tornado aborrecida, e Macro não se mostrava inclinado a continuar. Ainda para mais, a evidente relutância do rapaz em explicar a causa da sua distracção
tinha atiçado a curiosidade de Macro.
- Confessa, rapaz!
- Senhor! - protestou Cato. - Não se trata de nada importante.
- Deixa-me ser eu a julgar isso. Fala. É uma ordem. Não vou tolerar que os meus homens andem por aí a sonhar em pé. Vocês, jovens, passam o tempo a preocupar-se
com brigas e mulheres. Qual deles é que se trata? Alguém anda a meter-se contigo?
- Não, senhor.
- Isso significa então apenas uma coisa, não é verdade? - Macro piscou-lhe o olho lascivamente. - Quem é a mulher? É melhor que não seja a esposa do legado, senão
mais vale escreveres agora uma nota de suicídio.
- Não, senhor! Não é ela! - disse Cato com um ar horrorizado.
- Então quem? - exigiu Macro.
- Uma rapariga escrava.
- Queres levar a melhor sobre ela, é isso?
Cato fitou-o por um momento e acabou por assentir.
- Então qual é o problema? Oferece-lhe algumas coisas e já está. Nunca conheci uma rapariga escrava que não estivesse disposta a abrir as pernas com os presentes
certos. Como é que ela é?
- Muito bonita. - respondeu Cato numa voz sonhadora.
- Não, idiota! O que quero saber é o que ela gosta.
- Oh, estou a ver. - Cato corou. - Não sei muitas coisas sobre
ela.
- Então descobre. Pergunta-lhe o que quer em troca e estás lá.
- Não é bem isso, senhor. Sinto algo mais do que apenas luxúria.
- Luxúria? Quem falou em luxúria? Queres ir para a cama com ela, certo? Esse é o teu objectivo. Tudo o que precisas agora é de empregar tácticas apropriadas que
te conduzam a uma posição de vantagem, e depois só tens que assegurar a tua conquista. É só uma questão de depois limpares quando acabares.
- Senhor! - Cato, que pensava já se ter habituado ao rude sentido de humor do exército, ficou desarmado e sem saber o que dizer. - Não é nada disso.
- De que estás a falar, rapaz?
Cato tentou explicar, mas achou extremamente difícil falar sobre os seus sentimentos por Lavínia. Não é que não existissem palavras
- recordava-se de versos de inúmeros poemas - mas nenhuma era capaz de captar a essência da horrível dor que lhe contraía o estômago e lhe angustiava o coração.
Poetas, decidiu, não eram mais do que espelhos fracos da alma humana. Preciosos escrevinhadores que despejavam as suas vulgaridades, numa tentativa de impressionarem
os seus iguais. Os seus sentimentos por Lavínia transcendiam meros versos. Mas seria realmente assim? Talvez Macro tivesse razão e os seus motivos fossem bem menos
nobres do que pensara?
- O que tem esta mulher de diferente? Conta-me.
- Penso que era preciso vê-la para compreender.
- Já deitou olhares na tua direcção, não foi?
- Sim, senhor. - Cato sorriu.
- Então dá-lhe a entender que estás interessado e que pagas o que for preciso para conseguires o que queres - dentro de certos limites, claro. Não faz sentido inflacionar
o preço para os rapazes que vierem depois
- faz o que queres fazer e segue o teu caminho.
- Tinha esperanças de algo mais significativo e duradouro.
- Não sejas ridículo.
- Sim, senhor! - apressou-se Cato a responder. Apercebeu-se então de que não valia a pena conversar com o homem sobre estes assuntos.
- Continuamos com as letras, senhor? Ainda temos um longo caminho a percorrer.
- E alguns de nós têm esperanças de o percorrer todo, até ao fim
- troçou Macro.
- Sim, senhor. As letras, senhor? - Cato entregou-lhe as tábuas de cera.
- Como quiseres! Já percebi que não estás disposto a conversar sobre a mulher - não tenho nada a ver com isso.
- Continuamos com as letras, senhor?
- É justo - disse Macro, de mau humor. - Que venham as malditas letras.
XIX
Ao anoitecer, na véspera da partida da Legião, todos os carros foram inspeccionados para a jornada e as rodas untadas com sebo. Agora permaneciam alinhados em longas
filas, carregados com o equipamento e a bagagem da Legião. No exterior da fortaleza, os animais mantidos nos currais contentavam-se em remoer a última forragem de
Inverno. A maioria dos administrativos do quartel-general, tendo as suas funções sido suspensas para as próximas semanas, encontravam-se embrenhados numa grande
farra por entre as tendas e casebres obscuros, onde os locais vendiam uma forte bebida fermentada à qual a guarnição se acostumara ao longo dos anos posicionados
na fronteira do Reno. Os veteranos mais experientes e sóbrios ocupavam-se a tornar as suas botas impermeáveis e a certificarem-se de que as solas cravadas com pregos
se encontravam em bom estado para os quatrocentos e oitenta quilómetros que se estendiam entre a Segunda legião e a costa.
No quartel-general, um pequeno corpo de assistentes ainda labutava nos preparativos finais em vastas divisões que ecoavam num perturbante vazio, agora que todos
os registos tinham sido cuidadosamente arquivados, empacotados em arcas e depositados nos carros. Diversas dívidas a mercadores locais ainda estavam a ser saldadas
e livre-trânsitos assinados para as famílias dos oficiais que viajariam de imediato para Sul, para Roma. Um destacamento de cavalaria da Legião fora encarregado
de servir de escolta até Corbumento, antes de virar para Ocidente e se reunir à Legião.
Vespasiano, ao passar por uma fila de secretárias onde uma equipa de cinco administrativos se concentrava no seu trabalho escrevendo à luz tremeluzente das lamparinas
de óleo, olhou para a série de papéis espalhados pelas mesas.
- O que é isto?
- Senhor? - O administrativo sénior levantou-se imediatamente.
- De que tratam estes papéis em que estão a trabalhar?
- Cópias de uma carta escrita a mando da senhora Flávia, senhor. Destinam-se a agentes de escravos em Roma, e requerem detalhes sobre os tutores que possam estar
disponíveis nos seus catálogos.
- Estou a ver.
- A senhora disse que as ordens vieram do senhor.
O ressentimento no seu tom de voz não passou despercebido. Vespasiano sentiu-se algo culpado por estes homens estarem a trabalhar durante a noite, enquanto os seus
companheiros eram livres de cometer excessos.
- Bem, duvido que uma noite de atraso arruine os planos dela. Tu e os teus homens podem acabar noutra altura. Estão dispensados.
- Obrigado, senhor. Rapazes, obedeçam ao legado.
Os papéis foram ansiosamente postos em ordem, tinteiros foram selados e estiletes limpos antes que os administrativos abandonassem a divisão.
- Esperem! - Vespasiano chamou-os e eles esperaram, em expectativa.
Vasculhou na bolsa pendente do cinto e atirou uma moeda de ouro ao administrativo sénior.
- Para ti e para os teus homens - bebam por minha conta. Fizeram um bom trabalho nestes últimos dias.
Os administrativos murmuraram agradecimentos e saíram à pressa, com vozes contagiadas de entusiasmo, deixando Vespasiano sozinho a observá-los com uma certa nostalgia.
Parecia-lhe que já decorrera uma eternidade desde a vez em que passara uma noite a celebrar com os rapazes a sua nomeação a tribuno. Memórias esvaecidas de noites
selvagens e ressacas tremendas e dolorosas no ambiente exótico da Síria invadiram a sua mente, e Vespasiano não pôde deixar de sentir uma certa angústia pelo fim
dos doces tempos da juventude, que pareciam ter terminado ainda antes de realmente terem começado. Agora estava para sempre separado destes homens não só pela idade
mas, fundamentalmente, pela hierarquia.
Vespasiano fez lentamente o percurso até à porta do edifício do quartel-general, detendo-se apenas, ao passar pela porta da sua sala, para acenar a Vitélio que ainda
se debatia com papelada à luz das lamparinas. Ultimamente, Vitélio passava grande parte do seu tempo no quartel
- mais do que era requerido pelos seus deveres, e mais do que o suficiente para despertar a curiosidade de Vespasiano. Mas não podia exigir-lhe as razões para tanta
diligência; era suposto os tribunos serem diligentes, e um interrogatório ao homem iria parecer um ataque de paranóia ou
pior. Se Vitélio andava a preparar alguma, uma atenção exagerada iria alertá-lo para as suspeitas do legado. Mais curioso ainda era o facto de o tribuno ter arranjado
um guarda-costas. Era um privilégio pertencente ao seu estatuto, mas raramente reclamado nestes dias. Todavia, lá estava ele
- actuando como uma sombra do seu amo por toda a base - um homem forte e musculado com ares de assassino profissional. Seria prudente manter o tribuno debaixo de
olho nos próximos tempos.
Desde que Lavínia fora integrada na casa de Vespasiano, Cato não tivera ainda a oportunidade de lhe falar e apenas obtivera visões fugazes dela de tempos em tempos,
ao rondar a casa do legado após ter terminado os seus deveres. Arranjava sempre motivos para visitar Flávia com a esperança de que Lavínia estivesse presente, enquanto
evocavam memórias da vida no palácio. Mas ela mantinha-se fora da sua vista, e Cato mostrava grande relutância em revelar o verdadeiro propósito das suas visitas,
para divertimento mal disfarçado da mulher do legado. Finalmente, um dia, Flávia não foi capaz de conter o riso.
- Realmente, Cato! Podias ser mais original.
- O que quer dizer com isso, minha senhora?
- Falo sobre as desculpas que arranjas para me veres. - Ela sorriu.
- Ou deveria antes dizer, desculpas que arranjas para ver Lavínia.
Cato corou e gaguejou um protesto, provocando ainda mais risos. Franziu o cenho.
- Por favor, não te zangues! Não estou a fazer de ti alvo de troça. Acredita em mim, não estou. Se querias ver a rapariga, bastava teres-me dito e eu teria arranjado
algo entre os dois. Gostarias de vê-la agora?
Cato assentiu.
- Está bem. Mas daqui a momentos. Precisamos de conversar primeiro.
- Sobre o quê, minha senhora?
- Presumo que não saibas quase nada sobre Lavínia?
- Conheci-a no mesmo dia em que a comprou - admitiu Cato.
- Assim me disse ela.
- O mercador que a vendeu disse que pertencera anteriormente a um dos tribunos.
- Sim. - Flávia confirmou. - Plínio. Um bom homem, muito inteligente, uma qualidade que é totalmente desperdiçada no exército.
- Porque é que a vendeu? Porque é que a abandonou como um monte de trapos?
- A reposta a essas perguntas depende do lado a que deres ouvidos.
- Como assim, minha senhora?
- Plínio fez saber que a vendera porque Lavínia era inútil como serva doméstica. Disse que era preguiçosa, desonesta e incapaz de aprender os seus deveres. A última
gota, disse ele, foi quando lhe roubou uma das suas túnicas de seda. - Flávia aproximou-se mais e continuou. - Mas a história que anda a circular entre as esposas
dos oficiais é bem mais interessante. Dizem que Lavínia era bem mais do que uma mera serva. Com a sua beleza, seria um grande desperdício. De qualquer modo, os rumores
dizem que Plínio a comprou a um vendedor de escravos sexuais e estava a educá-la para lhe fazer companhia nas longas noites de Inverno.
- Uma concubina!
- Não exactamente. Plínio queria alguém mais sofisticado do que isso. Alguém com quem pudesse também conversar. Por isso, nos últimos meses, manteve Lavínia escondida
nos seus aposentos, ensinando-a a ler e a escrever, de modo a que pudesse iniciá-la nalguma literatura. Aparentemente, foi uma tarefa bastante difícil.
- Mas não é razão para se livrar dela.
- Pois não.
- Então o que aconteceu, minha senhora?
- O que acontece sempre. Foi distraída dos seus estudos por um outro tribuno, bem mais bonito e charmoso do que Plínio. E definitivamente mais instruído nas artes
de subterfúgio e sedução.
Cato pensou por um momento:
- Vitélio?
- Quem mais? Quis possuir Lavínia desde o momento em que pôs os olhos nela pela primeira vez. Sendo ainda bastante ingénua, Lavínia não aprendera a fazer-se difícil
e entregou-se com uma rapidez indecente
- devia estar completamente caída por Vitélio. De qualquer forma, caiu nas malhas dele, bastantes vezes a acreditar nos rumores. Até que um dia, Vitélio alongou-se
demais num dos encontros e foi apanhado em flagrante por Plínio, acabado de chegar de um dia de trabalho e ansioso por entrar em mais uma lição de gramática. Bem
podes imaginar o escândalo. Já sabes as consequências, Plínio quase que a ofereceu ao mercador.
- Pobre Lavínia.
- Pobre Lavínia? - As sobrancelhas de Flávia ergueram-se de espanto. - Meu querido rapaz, ela foi criada para isto. Deves ter-te cruzado com o tipo dela no palácio
em todos estes anos. Eram praticamente um acessório nos reinados dos dois últimos Imperadores.
- Bem sei. - admitiu Cato. - Mas o meu pai fez o melhor que pôde para me manter afastado delas. Dizia-me para me guardar para
- alguém melhor.
- Disse isso? E achas Lavínia alguém melhor?
- Não sei quem ela é, tudo o que sei são os meus sentimentos por Lavínia. Estou a dizer alguma coisa lógica, minha senhora?
-- Oh, sim. É a tua primeira experiência de amor. E caíste bem nas suas garras. Mas não te preocupes, isso irá passar. Passa sempre.
Cato fitou-a e disse com alguma amargura:
- As pessoas mais velhas pensam sempre dessa maneira?
- Nem todas. Mas os jovens pensam assim. É o seu charme e a sua maldição ao mesmo tempo. - Flávia sorriu. - Compreendo os teus sentimentos, a sério. Vais acreditar
no que te digo dentro de alguns anos. Não me irás agradecer agora, nem então. Mas abordemos uma outra perspectiva. O que achas que Lavínia pensa sobre ti?
- Não sei - admitiu Cato. - Ainda não teve oportunidade de me conhecer.
Flávia esboçou um sorriso gentil e nada disse por uns momentos.
- Sim, minha senhora. Nem eu de a conhecer a ela.
- Muito bem, rapaz, começas a ouvir a voz da razão. É importante que mantenhas a cabeça fria nesta situação. O meu marido acha que és um rapaz promissor, por isso
não faças nada de precipitado que possa perseguir-te depois. É só isso que te estou a tentar dizer. Agora, queres voltar a vê-la de novo?
- Sim.
Flávia voltou a sorrir.
- Mesmo como esperava.
- Está desiludida comigo, minha senhora?
- Pelo contrário. Pode-se confiar num homem que permite que as suas paixões subjuguem a lógica. Apenas um imbecil valoriza a lógica mais do que os sentimentos; os
sofistas convencem-se de que são capazes de conceber todo o tipo de argumentos para validar qualquer princípio, logo, não são de confiança. Tens um coração, assim
como uma razão, Cato. Toma cuidado com ambos. Vou-te dizer o que penso ser verdade. Lavínia acabará por te magoar, tendo em conta o que és e o que ela é. Não direi
mais, por agora. Deixa isso comigo. Não será fácil arranjar um encontro entre vocês, já que não existe muita privacidade no seio de uma Legião. E de qualquer modo,
o meu marido mostra atitudes bastante conservadoras em relação à sua propriedade.
Quando a águia e outros estandartes foram removidos do topo da fortaleza na madrugada do dia seguinte, o legado e os administrativos respiraram de alívio. Soldados,
sendo supersticiosos como eram, teriam interpretado qualquer problema em deslocar a águia em início de campanha como um mau presságio. Mas naquele dia a águia abandonou
pacificamente o quartel-general e marchou pela Via Pretória abaixo para tomar o seu lugar na vanguarda, em frente à primeira coorte.
A importância do momento não passou despercebida a todos os que observavam a águia: a Legião partia para a guerra, pela primeira vez em anos - exceptuando escaramuças
na fronteira. O ambiente na fortaleza vibrava de expectativa e cada soldado, muleteiro e civil aguardava pela ordem. Apenas os animais, insensíveis como sempre aos
acontecimentos da Humanidade, se mostravam agitados na manhã primaveril, com as suas ferraduras a raspar o pavimento, freios a retinir no arnês e caudas a abanar
de um lado para o outro.
O legado baixou o braço e o centurião sénior da Legião virou-se com a cabeça para trás e deu a ordem.
- Primeira centúria! Primeira coorte! Segunda legião! Avançar!
Em perfeita ordem, as filas de soldados com capas vermelhas da Primeira coorte deram início à marcha pela Via Pretória abaixo, passando ao largo dos carros e atravessando
o portão ocidental, onde o sol nascente brilhava sobre eles tão intensamente que as capas vermelhas pareciam arder como fogo. Caminhando atrás da Primeira coorte,
ia a companhia do quartel-general liderada por Vespasiano e os tribunos, montados em cavalos elegantemente aparelhados.
Coortes vinham atrás de coortes, seguidos de carros pesados de bagagem que tomaram o seu lugar na linha de marcha. A última coorte, destacada para a retaguarda,
seguiu os carros de transporte para fora da fortaleza, e assim o fim da coluna foi subindo o declive, afastando-se cada vez mais do portão ocidental. Muitos dos
nativos pertencentes à povoação assistiram à partida da Legião com genuíno pesar. A Segunda legião deixaria saudades, mais ainda sabendo-se que seriam substituídos
por um milhar de tropas auxiliares, duas coortes vindas de Espanha cuja pobre qualidade as tornava aptas apenas para deveres de guarnição. Uma vez que os auxiliares
não eram cidadãos romanos, não lhes pagavam mais que um terço do que era pago a legionários. A economia local iria ser profundamente afectada nos próximos anos.
Quando a última coluna de legionários desapareceu de vista, um grupo errante de civis pôs-se a caminho para Sul, em busca de novas bases militares onde viver.

 

 

 

CONTINUA