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AQUELA manhã de outono estava tão radiosa, que Moray, prudentemente consultando o termómetro afixado fora da janela, resolveu fazer o desjejum no balcão de seu quarto. Dormira bem; para quem sofria de insónia, seis horas eram uma proeza animadora. O sol brilhava tépido em seu roupão de seda, criação de Grieder, e Arturo, como de costume, preparara a bandeja com perfeição. Moray serviu-se do café Toscanini, cujo calor fora conservado num termo de prata; untou um croissant fresco com mel de montanha, e deixou o olhar pervagar pela paisagem, com todo o delicioso, possessivo prazer de um descobridor. Deus do Céu, que beleza! A um lado, com uma simetria que o céu fazia realçar, o Reisberg apontava para a altura azul sobre verdes prados relvosos, levemente salpicados de antigos chalezinhos campestres, de telhados vermelhos; do outro lado, as suaves encostas de Eschenbrúck, com pomares de pêras, cerejas e abricôs; em frente, na direção do sul, uma crista longínqua dos nevosos Alpes; e abaixo... oh, sim, abaixo do platô de sua propriedade, estendia-se o Schwansee, o amado lago de tantas caprichosas disposições - imprevisto, selvagem, maravilhoso - mas agora luzindo em paz sob um ténue véu de neblina, onde deslizava sem rumor um pequeno bote branco... que semelhava um cisne, rematou Moray, poeticamente.
Que felicidade, depois de tanta busca, ter enfim descoberto esse belo sítio tranquilo, incontaminado por turistas, e entretanto bastante próximo de Melsburg, cidade dotada de todas as vantagens de uma comunidade eficiente e civilizada. Também a casa, construída a capricho por um famoso arquiteto suíço, era tudo quanto de melhor se poderia desejar. Talvez mais sólida do que admirável era no entanto repleta de conforto. Imagine-se: aquecimento a óleo mazut, armários embutidos, cozinha de azulejos, um belo e comprido salão para seus quadros, até as modernas salas de banho que sua longa permanência nos Estados Unidos aprendera a exigir! Ao beber o suco de laranja, que sempre reservava para a derradeira bonne bouche, um suspiro de satisfação exalou-se-lhe do peito - tão suavemente eufórica era a sua disposição, tão sublimemente alheio estava ele a um desastre iminente.
Como passar o dia? Levantando-se e começando a se vestir, repassou as possibilidades. Telefonar para Madame Von Altishofer e ir a pé para Teufenthal? Numa manhã daquelas, decerto ela quereria exercitar a sua estranha, maravilhosa matilha de Weimaraners. Mas não: ia ter o prazer de levá-la ao festival das cinco horas; não era bom insistir. E então? Ir jogar golfe em Melsburg? Ou sair de bote e ir reunir-se aos pescadores que já se movimentavam para uma batida aos felchen do lago? Mas, de certo modo, sua inclinação pendia para diversões mais tranquilas, e ele finalmente decidiu examinar o caso de suas rosas, que, mercê de uma geada recente, não tinham florescido plenamente naquele verão.
Desceu para o terraço coberto. Junto à chaise-longue encontrou a correspondência e os jornais locais; os jornais ingleses e o Herald Tribune, de Paris, não chegariam senão à tarde. Nada havia que o perturbasse naquelas cartas, cada uma das quais ele abriu com uma curiosa hesitação, com um movimento indeciso do polegar... Coisa estranha, a persistência dessa folia! Na cozinha, Arturo cantarolava:
- La donna è mobile... Sempre im amabile... La donna è mobile... È sempre mísero.
Moray sorriu. Seu mordomo tinha irresistíveis pendores operísticos (fora ele que escolhera a mistura de café outrora preferida pelo maestro numa de suas visitas a Melsburg), mas era um sujeito alegre, serviçal,1 dedicado, e Elena, sua mulher, embora estupendamente gorda, provara-se uma cozinheira maravilhosa, ainda que irascível. Até com os criados tivera sorte... ou seria uma sorte total, a dele? - perguntou-se, caminhando orgulhoso pelo relvado. Em Connecticut, com seu solo pedregoso e invencível grama agreste, jamais conseguira um relvado decente, pelo menos nada que se comparasse àquela área de veludo cortado cerce. Mas conseguira-o, em Schwansee, teimosamente, arrancando uma vintena de velhos tocos de salgueiro da propriedade.
Cercando esse relvado luxuriante, corria uma bordadura herbácea, paralela a uma aréia pavimentada, que levava ao tanque dos lírios-d'água, onde douradas carpas jaziam imóveis sob os seivosos coxins das folhas. Uma grande faia acobreada sombreava o tanque e, para além do jardim japonês, havia um monte pedregoso, bulindo de marmeleiros, bordos anões e dúzias de pequenas plantas e arbustos com nomes latinos que desafiavam a memória.
A orla mais distante do relvado era marcada por uma linha de floridos arbustos-lilases, forsítias, viburnos e o resto - que separavam a horta da residência. Depois vinha o pomar, carregado de frutas maduras - maçãs, pêras, nêsperas, ameixas, rainhas-cláudias. Num momento de lazer contara dezessete variedades diferentes, mas confessava ter trapaceado um pouco, aí incluindo as nespereiras, nogueiras e copadas aveleiras que cresciam em grande abundância no alto da encosta e rodeavam uma dependência - um lindo chalezinho - convertido em casa de hóspedes.
Nem devia esquecer o seu grande tesouro botânico: a grande, a esplendorosa árvore-de-judas, que se erguia muito alta no pano de fundo de montanha, lago e nuvem. Era, efetivamente, um belo espécime de nobre copa esparzida, coberta na primavera de pesadas flores róseo-escuras desabrochadas antes da folhagem. Todas as visitas a admiravam; e quando ele dava um garden-party, tinha orgulho de exibir o seu conhecimento às senhoras, todavia, omitindo que o obtivera na Enciclopédia Britânica... "Sim - dizia ele- trata-se do C éreis siliquastrum... família das Leguminosas... As folhas têm um agradável paladar, e no Oriente costumam misturá-las à salada. Naturalmente, vocês conhecem a ridícula tradição popular. Arturo, o meu bom italiano, que é impagavelmente supersticioso, jura que ela é nefasta; chama-a de 1'albero dei dannati..." Nesta altura sorria, traduzindo prazerosamente: "a árvore das almas perdidas".
Agora porém descobriu Wilhelm, o jardineiro (que confessava ter setenta anos, que eram, pelo menos, setenta e nove), tirando brotos dos pepinos. O velho tinha a cara de um S. Pedro idoso e a obstinação de um sargento de cavalaria. Era preciso tato até para concordar com ele, que no entanto provara o seu valor no conhecimento e no trabalho, sendo a sua única desvantagem uma embaraçosa, ainda que útil, propensão para fazer água no monte de adubo. Endireitando o avental de baeta verde, tirou o chapéu e cumprimentou Moray com um medonhamente impassível:
- Grilss Gott.
- Die Rosen, Herr Wilhelm - disse Moray, diplomaticamente. - Wollen toir diese ansehen?
Seguiram juntos para o roseiral, onde, depois que o velho lançou censuras em todas as direções, o número das novas variedades requeridas foi discutido e determinado. Quando Wilhelm partiu, ocorreu uma agradável diversão: dois toquinhos de gente, filhos do mestre-trapicheiro da aldeia, de sete e cinco anos de idade, vinham enfrentando a íngreme vereda com aquela pressa ofegante e aquela importância que denotavam a chegada de uma fatura. Susy, a mais velha, agarrava o envelope amarelo, enquanto Hans, seu irmãozinho, levava livro e lápis para o recibo. Eram umas lindas crianças de olhos brilhantes, e já sorriam, em verdade resplandeciam na antecipação do ritual que Moray estabelecera. Depois de dar uma vista de olhos na fatura - era, como esperava, de Frankfurt, confirmando a chegada de duas caixas de um Johannisberg especial, de
1955 - Moray sacudiu a cabeça com ar ameaçador:
- Vão apanhar! São bonzinhos demais!
As crianças riam abafado, e ele as conduziu para sua árvore predileta, uma nobre rainha-cláudia carregada de ameixas amarelas. Sacudiu um galho, e quando uma chuva de suculentas frutas caiu, elas romperam em risadas estridentes, e escorregaram encosta abaixo, para agarrar as maduras ameixas que rolavam.
- Darike, danke viemals, Herr Moray.
Só depois que encheram os bolsos ele os deixou partir; depois, consultando o relógio, resolveu sair para dar uma volta.
Na garagem, anexa ao chalé, escolheu o Jaguar esporte. Para quem já fizera cinquenta e cinco anos, e se havia, de espontânea vontade, retirado para uma vida de ócio e de repouso, um tal veículo poderia provavelmente ser julgado demasiado violento, tanto mais que seus outros dois carros, o Humber da propriedade e um novo Rolls Silver Cloud - obviamente, preferia a marca britânica - eram notavelmente conservadores. Entretanto se sentia, e parecia (e muitas vezes lho disseram) que era muito mais jovem do que a idade que tinha: a figura delgada, os dentes sadios e iguais; conservara os cabelos sem um fio branco sequer, e seu sorriso, que era encantador, possuía uma qualidade extraordinariamente atraente, espontânea, quase de menino.
No começo, a estrada corria através de uma terra de pastagem, onde vacas amarelas, de olhos mansos, caminhavam pesadamente, fazendo tilintar os grandes cincerros que traziam amarrados ao pescoço e que provinham de várias gerações. Nos campos mais baixos, homens, e também mulheres, labutavam no eterno ciclo das gramíneas. Alguns paravam de ceifar para saudá-lo com um aceno da mão, pois ele era conhecido, e estimado, sem dúvida devido à sua bondade para com as crianças, ou talvez porque se dera o trabalho de
interessar-se por todas as festanças locais. Em verdade, os casamentos rústicos, entristecidos pelo derradeiro toque da trompa montanhesa; as procissões tradicionais, tanto as religiosas como as civis; mesmo as metálicas discordâncias da banda da aldeia que no seu aniversário o homenageara com uma serenata - tudo isso o divertia e entretinha.
Daí a pouco chegava aos subúrbios; ruas que se diriam escovadas, casas brancas, de venezianas verdes, com seus canteirinhos fronteiros cheios de astérias e begônias, e as jardineiras das janelas abrindo-se em gerânios e petúnias. Que flores! Jamais as vira iguais! E a pairar sobre tudo, um ar tranquilo e asseado, de nitidez e eficiência, como se tudo estivesse numa ordem impossível de romper-se, como se a honestidade, a civilidade e a polidez fossem o santo-esenha daquela gente.
Como fora sensato, nas circunstâncias especiais em que se achava, estabelecer-se ali, afastado da vulgaridade da época presente: dos hipsters e os beatntks, do strip tease, do rock-arid-roll, das afetadas declamações dos "jovens irados", das abstraçÕes lunáticas da arte moderna e de todos os demais horrores e obscenidades de um mundo enlouquecido!
Em resposta a seus amigos da América, que protestaram contra a sua decisão, especialmente a Holbrook, seu sócio na companhia Stamford, que chegara ao ponto de ridicularizar o país e seus habitantes, argumentara ele calmamente, logicamente. Wagner não passara sete anos felizes e fecundos nesse mesmo cantão, compondo Os Mestres Cantores, e até (dizia isto com um sorriso) uma brilhante marcha para o Corpo de Bombeiros local? A casa onde residira, ainda intacta, bastava para comprová-lo. E Shelley, e Keats, e Byron, acaso não passaram largos períodos de seus românticos lazeres naquelas cercanias? Quando ao lago, Turner pintara-o, Rousseau remara em suas águas, Ruskin delirara ante a sua beleza.
Nem tampouco estava ele se enterrando num vácuo sem alma. Tinha livros, uma coleção de coisas belas... Além disso, se os suíços nativos não eram... (como dizê-lo sem ofender?) intelectualmente estimulantes, em Melsburg existia uma brilhante sociedade expatriada, composta de pessoas verdadeiramente encantadoras, dentre as quais Madame Von Altishofer era uma que o aceitara como membro da coterie. E se tanto não bastasse, o aeroporto de Zurique ficava a quarenta minutos de automóvel, e depois, em duas
horas, talvez menos, estava-se em Paris... Milão... Viena... contemplando os ricos detalhes de La Mise au Tombeau de Ticiano, ouvindo a Callas na ária da Tosca, saboreando o maravilhoso Shafsragout mit Weiskraut no Sacher's Bar...
Nessa altura, viu que chegara ao viveiro de Leuerbach. Fez uma seleção de mudas de roseira, acrescentando resolutamente algumas variedades de sua própria escolha à lista que Wilhelm lhe dera, conquanto sombriamente pressagiasse que o destino destas seria um falecimento misterioso, ao passo que o das outras seria sobreviver e florescer gloriosamente... Era ainda muito cedo quando saiu do viveiro: apenas onze horas; por conseguinte resolveu regressar por Melsburg, onde faria algumas compras.
Tendo já partido a maioria de seus visitantes, a cidade estava deliciosamente vazia, e o passeio junto ao lago, onde as folhas secas dos castanheiros já crepitavam, via-se meio deserto. Moray gozava esta estação, encarava-a como um ato de retomada de posse. As espiras gémeas da catedral pareciam furar mais agudamente o céu; o anel de antigos fortes, não mais cobertos pela enchente, voltara a ser velho e cinzento; e a antiga Méis Brúcke, liberta de turistas boquiabertos, calmamente reassumira sua verdadeira identidade.
Moray estacionou na praça junto à fonte, e sem mesmo pensar em fechar o carro, entrou na cidade. Primeiro visitou as tabacarias, comprou uma caixa de duzentos de seus cigarros Sobranie especiais, depois foi à drogaria para adquirir um grande frasco de Eau de Çuinine Pineau, o tónico de cabelo de sua preferência. Numa rua próxima ficava Mayer, o famoso confeiteiro. Aí, após dois dedos de prosa com Herr Mayer, mandou remeter um grande pacote de chocolate de leite para as crianças Holbrook, de Connecticut - em Stamford nunca se viu chocolate daquela qualidade e Mediante uma reflexão ulterior - pois gostava de doces - levou consigo meio quilo de marrons glacés da estação. Comprar ali era um prazer, dizia com seus botões: de todo lado via apenas sorrisos e polidez.
Estava agora na Stadplatz, onde, respondendo a um impulso subconsciente, suas pernas o haviam conduzido. Não pôde deixar de sorrir, embora com um ligeiro sentimento de culpa. Logo em frente se achava a Galerie Leuschner. Hesitou, bem-humorado, cônscio de que estava cedendo à tentação. Mas a lembrança do pastel de Vuillard o impelia a avançar. Atravessou a rua, empurrou a porta da galeria e entrou.
Leuschner estava no escritório examinando um caderno de esboços a pena. O negociante, homenzinho macio, gorducho e sorridente,
cujo paletó matinal, calças listadas e alfinete de pérola eram inequivocamente de rigueur, cumprimentou Moray com uma cordial deferência, todavia com um ar não comercial, subentendendo ser puramente casual sua presença na galeria. Falaram sobre o tempo.
- São muito bons - disse Leuschner, indicando o caderno de desenhos, depois que acabaram de falar do tempo. - E razoáveis. Kandinsky é avaliado muito por baixo.
Moray não tinha interesse pelas figuras descarnadas e os rostos simiescos de Kandinsky, e suspeitava que o negociante bem o sabia; entretanto, passaram os quinze minutos subsequentes examinando os desenhos e elogiando-os. Depois, Moray apanhou o chapéu.
- A propósito - disse de repente - você ainda tem aquele Vuillard que estivemos olhando na semana passada...
- Mas por pouco tempo. - E o negociante assumiu uma súbita expressão de seriedade. - Há um colecionador americano muito interessado...
- Conversa... - disse Moray voluvelmente. - Já não há americanos em Melsburg.
- Esse, está em Filadélfia... É curador do Museu de Arte. Quer ver o telegrama que me mandou?
Moray, interiormente alarmado, balançou a cabeça de um jeito que implicava uma divertida dúvida.
- Ainda está pedindo aquele preço ridículo? No fim de contas, não passa de um pastel...
- O pastel é o veículo de expressão de Vuillard - respondeu Leuschner com tranquila autoridade. - Garanto que este vale cada cêntimo do custo. Se souber que outro dia, em Londres, uma grosseira pincelada de Renoir, um punhado de morangos de triste aspecto, com efeito, uma coisa lamentável, da qual o mestre devia sinceramente envergonhar-se - alcançou vinte mil libras... Mas isto é uma jóia, digna da sua bela coleção, e o senhor sabe como são raros os bons pós-impressionistas... Entretanto, só peço dezenove mil dólares. Se o comprar (e eu não insisto, pois, praticamente, já está quase vendido) nunca se arrependerá.
- Fez-se um instante de silêncio. Pela primeira vez, ambos olhavam juntos o pastel, pendurado, sem mais nada em torno, contra o neutro papel corrugado da parede. Moray conhecia-o bem, estava registrado no catálogo e era em verdade um belo quadro, um interior cheio de luz e cor-misto de róseos, verdes e cinzentos. O assunto,
também, combinava exatamente com o seu gosto: era uma cena, de
tête-à-tête - Madame Melo e sua filha pequena, no salão da casa da atriz.
Uma onda de ânsia possessiva apertou-lhe a garganta. Precisava tê-lo, precisava tê-lo, para o pendurar em frente do seu Sisley. O preço era impressionante, mas bem que sua bolsa podia permiti-lo; era rico, muito mais rico do que o bom Leuschner havia calculado, pois este não tinha acesso àquele livrinho preto, trancado no cofre, com suas fascinantes fileiras de cifras. E por que - após tantos anos de trabalho estéril e lutas conjugais - não deveria ele possuir tudo quanto desejasse? O confortável lucro que tivera ultimamente na Royal Dutch não podera ser melhor empregado. Encheu o cheque, apertou a mão de Leuschner e saiu em triunfo, com a tela cuidadosamente enfiada debaixo do braço. De regresso à sua villa, antes que Arturo chamasse para o lanche, teria tempo de pendurar o quadro na parede. - Perfeito... perfeito... - exultava ele, recuando. Esperava que Frida Von Altishofer o aprovasse.
CAPÍTULO DOIS
Esperava-a para as cinco horas, e como a pontualidade constituía para ela uma forma de boa educação, precisamente naquela hora ela chegou. Não, como de costume, no seu maltratado Dauphine cor de creme, mas a pé. Em verdade, a espécie de quartel que era sua casa, o Schloss Seeburg, ficava na outra margem do lago, numa distância de dois quilómetros, e quando ela entrou na sala de visitas, ele tomou-lhe as mãos e censurou-a por ter vindo de lancha: a tarde estava quente, o caminho para a villa no monte era íngreme, ele podia ter mandado Arturo a seu encontro...
- Não me desagrada andar de lancha - disse ela sorrindo. - Como sempre tem a bondade de me levar, não quis vir de carro.
Seu inglês, embora estilizado, era excelente, apenas com um ligeiro, ainda que bonito, excesso de acentuação em certas sílabas.
- Bem: agora vamos tomar chá. Já encomendei. - E ele tocou a campainha. - Na festa só nos darão vermute aguado...
- Você é muito atencioso. - E Frida sentou-se graciosamente, tirando as luvas. Tinha dedos vigorosos e elásticos, unhas polidas, mas sem verniz. - Espero que não se aborreça muito na Kunsthaus.
Enquanto Arturo fazia avançar o carrinho de chá, e, com mesuras que eram quase genuflexões, servia aos dois, Moray
observava-a. Devia ter sido muito bela, quando jovem. A estrutura de seus ossos faciais era perfeita. Mesmo agora, com quarenta e cinco, ou quarenta e seis anos... bem, talvez até quarenta e sete, e embora seus cabelos começassem a encanecer e sua pele a revelar-se ligeiramente crenulada com os estigmas da idade, era ainda uma mulher atraente, com a figura ereta e elástica de quem acreditava em ar puro e exercício. Os olhos eram o seu traço mais notável, de um verde amarelado escuro e fulvo, chumbado de manchinhas pretas. "Olhos de gato." Frida sorriu quando certa vez ele arriscara um cumprimento, "Mas não arranho... só raramente."
Sim, refletiu ele com simpatia, ela passara seus maus bocados, e contudo nunca falava disso. A vida era-lhe difícil, ela não tinha muita roupa, mas a que tinha era boa e vestida com elegância. Quando saíam juntos a passeio, habitualmente aparecia com um esmaecido costume castanho-ferrugem, um chapéu bersaglieri posto de banda, meias brancas de tricô e sólidos sapatões de um pardo desbotado, feitos à mão. Naquele dia estava com um tailleur cor de gazela, simples, mas bem talhado, sapatos do mesmo tom, umas luvas e trazia a cabeça descoberta. bom gosto, distinção e educação perfeita eram evidentes em todos os seus gestos; inútil a si próprio repetir que ela era uma mulher culta e da mais alta classe.
- Sempre me faz servir um chá delicioso.
- É Twining quem mo fornece - explicou ele. - Trata-se de uma mistura preparada especialmente para a água dura do Schwansee.
Ela abanou a cabeça, como que censurando-o.
- com efeito.., você pensa em tudo. - E depois de uma pausa: - No entanto deve ser maravilhoso a gente poder realizar tudo quanto deseja.
Seguiu-se um longo silêncio enquanto ambos saboreavam o chá de água do lago; mas, de repente, erguendo o olhar e fixando-o na parede, ela exclamou:
- Meu caro amigo... comprou o quadro!
Finalmente vira o Vuillard, e levantando-se, excitadíssima, mas ainda com a xícara e o pires na mão, atravessou a sala para examiná-lo.
- É lindo... lindo! E está muito melhor aqui do que na galeria. Oh, a encantadora criança no tamborete baixo! Espero que Leuschner não o tenha roubado muito.
Moray foi para junto dela, e em silêncio admiravam o pastel. Frida teve o bom gosto de não se derramar em elogios; mas quando se voltaram, olhando em torno para as suaves linhas da mobília
do século dezoito, o macio tapete cor de cinza e as cadeiras Luís XVI forradas de tapeçaria; olhando para os demais quadros - o Pont Aven, de Gauguin, assinado e datado, acima das estatuetas T'ang do consolo da chaminé georgiana; o maravilhoso nu de Degas na parede oposta; um Utrillo dos primeiros tempos e a paisagem de Sisley; a rica suavidade de um Bonnard, a deliciosamente maternal Mary Cassat, e agora o Vuillard - Frida murmurou:
- Adoro sua sala. Aqui você pode passar a vida na celebração das coisas belas. Melhor ainda: - porque as obteve com seu próprio esforço.
- Creio-me autorizado a possuí-las - tornou ele com modéstia. - Quando era moço... na Escócia... não tinha grande coisa. com efeito, era até miseravelmente pobre.
Aquilo fora um erro. Depois de falar, arrependeu-se. Não fora acaso advertido a nunca olhar para trás, mas só para a frente, sempre para a frente? Acrescentou à pressa:
- Mas você... até à guerra... você sempre viveu... - e hesitou ligeiramente procurando as palavras - com grande pompa.
- Sim, tínhamos lindas coisas - respondeu ela com doçura.
O silêncio voltou a reinar. A reserva meio sorridente com que ela respondera à observação de Moray foi verdadeiramente heróica. Era viúva do Barão Von Altishofer, oriundo de uma antiga família judia que, no século anterior, amassara uma imensa fortuna mediante concessões estaduais no comércio do fumo, e cujas posses iam desde uma vasta propriedade na Bavária até uma reserva de caça na Eslováquia. Fora fuzilado nos primeiros seis meses da guerra, e embora ela não pertencesse à sua religião, passara os três anos subsequentes num campo de concentração de Lensbach. Quando foi eventualmente liberada, atravessou a fronteira suíça. Só lhe restava a casa junto ao lago, o Schloss Seeburg, e ali, ainda que praticamente sem vintém, lutara corajosamente para reconstruir a vida. Começou pela criação dos Weimaraners, cães muito raros; e como a ignomínia de uma pensão como as outras era naturalmente inimaginável para ela, seus amigos - e os tinha bastante, ali iam para desfrutar, como hóspedes pagantes, a vastidão do grande Schloss germânico e o espaçoso jardim afogado em mato. Em verdade, uma pequena sociedade exclusiva se desenvolvera em torno do Seeburg-sociedade da qual ela própria era o centro. Como seria divertido restaurar a bela e antiga propriedade, enchê-la com mobília da época, replantar o jardim, recondicionar a estatuária... Fora ela que insinuara? Nunca, nunca... O pensamento era dele,
um revoo da fantasia... Autoconsciente, com certa brusquidão, ele olhou o relógio.
- Ponhamo-nos a caminho, se você já está pronta.
Resolvera levá-la à festa com todo o aparato: Arturo, trajava o seu melhor uniforme azul - um tom mais claro do que o azul-marinheiro. Eles partiram no carro grande. Como aquele era o único Rolls Royce em Melsburg, seu aparecimento sempre constituía um espetáculo.
Sentado junto dela enquanto rodavam, sua manga tocando a dela no braço estofado do assento, Moray estava expansivo. Embora o seu casamento tivesse redundado num catastrófico malogro, vinha ele, desde que se retirara para a Suíça, considerando seriamente a perspectiva de - na frase vulgar de Wilenski - tornar a experimentar a mão. Vizinhos há dezoito meses, durante esse tempo a amizade de ambos desenvolvera-se a ponto de gerar, gradualmente, a ideia de uma camaradagem mais estreita. Todavia, o pensamento dele tinha até ali pairado em imagens mais jovens e mais tenras. Frida Von Altishofer já não era jovem, e na cama talvez não se revelasse tão apetitosa quanto seria de desejar, e ele, como homem no qual as intensas exigências da falecida mulher tinham provocado uma hipertrofia da próstata, sentia agora necessidades que, por motivos de saúde, se mais não fosse, reclamavam satisfação. Apesar disso, Frida era uma mulher forte e cheia de vida, com profundos, ainda que escondidos, sentimentos que poderiam redundar numa paixão insuspeitada. Era esse - sabia-o pela sua prática em medicina - um caso frequente com mulheres que já haviam passado a menopausa. Decerto que, em todos os demais aspectos, ela perfazia o ideal de uma esposa admirável e aristocrática.
Nessa altura chegaram à cidade e contornaram o jardim público com seu alto chafariz central. Arturo encostou, desceu como um relâmpago para tirar o boné e abrir a porta do carro, e ambos subiram a escada que conduzia para a Kunsthaus.
- Alguns de meus amigos do corpo diplomático deverão vir de Berna para o festival. Se não for caceteação, talvez você goste que eu lhe apresente alguns.
Sentia-se profundamente satisfeito. Não sendo um esnobe - Deus do Céu, isso não! - entretanto gostava de conhecer a "gente bem".
- Você está encantadora, Frida - murmurou ele com um súbito e rápido lampejo mais íntimo no olhar.
CAPÍTULO TRÊS
A festa começara havia algum tempo. O comprido salão estava cheio de ruído e de formas humanas que se comprimiam. A maioria dos notáveis do cantão se achava presente, em companhia de muitos dignos burgueses de Melsburg e dos artistas que, na última semana, haviam tomado parte no festival. Estes, coitados! pertenciam principalmente à velha brigada, pois ao contrário das outras estações de veraneio mais importantes, por exemplo, Montreaux e Lucerna, Melsburg não era rica, e entre simpatia e falta de fundos, a comissão voltava, ano após ano, aos nomes e aos rostos de há muito conhecidos. Através da névoa do cigarro, distinguiu Moray a figura idosa e decrépita de Flackmeister, que mal podia subir para a plataforma, preso como estava em sua apertada casaca esverdeada nas axilas pelo suor dos anos. E lá estava Tuberose, o violoncelista - magro, alto como uma estaca, e que, por muito roçar seu instrumento, tinha os joelhos puídos. Conversava com o contralto inglês, de soberbo colo, Amy Rivers Fox-Finden. Bem, não fazia diferença, refletiu Moray enfiando-se alegremente no aperto com sua companheira; o aplauso nos concertos era sempre muito entusiasta e prolongado; lembrava filas e mais filas de carneiros satisfeitos, batendo palmas com as pernas dianteiras.
Serviram-lhes uma bebida de espécie desconhecida, tépida e nadando em fragmentos de gelo a derreter-se. Frida não bebeu; mas lançou-lhe de soslaio um olhar bem-humorado e comunicativo, que dizia sem rebuços: "Como foi previsor... e como estou contente com o gostoso chá que me serviu!" quase... quase acrescentando, "e com você!" Depois, com uma leve pressão do cotovelo, guiou-o através da sala, apresentando-o primeiro ao ministro alemão, depois ao austríaco. Ele não deixou de observar o afetuoso respeito com que cada um a saudou, nem o à-vontade com que ela retribuía os cumprimentos. Ao se afastarem, o nome de Moray foi chamado aos berros através do aperto, por um esportivo tipo britânico, todo amável em suas dentaduras plásticas e globos oculares de alcoólico, trajado com uma jaqueta cruzada azul e de botões dourados, largas calças cor de gazela e sapatos cambados, de camurça.
- Quanta satisfação em vê-lo, velhinho! - estrondejou Archie Stench, agitando na mão um copo de legítimo uísque. - Não posso mexer-me daqui. Mantenha a bandeira içada, e logo o chamarei!
O rosto de Moray se anuviou ligeiramente, e ele fez a Stench um gesto pouco amigável. Não queria prosa com aquele tipo, correspondente do Daily Echo, de Londres, nas horas vagas cronista social da Tageblatt local, onde mantinha uma colunazinha de notícias fúteis, não raro com ferrão na cauda. Muitas vezes Moray fora ferreteado...
Felizmente, se achavam na outra extremidade do grande salão, onde, junto de uma janela saliente, havia-se reunido um grupo de seus amigos particulares. Via-se ali a reservada Madame Ludin, do Europa Hof, com seu delicado marido, em companhia do Doutor Alpenstuck, amante das grandes altitudes. Alto, ereto, notável falsete na juventude, o digno doutor nunca faltava a um festival. Mais adiante, junto das feiosas irmãs Courtet, a uma mesa redonda da qual, com seu ar de míope, havia limpado todas as bolachinhas de coquetel a seu alcance, estava Gallie, a velha e miúda Galliatine, princesa russa, surda como uma porta e parca de palavras, mas que ia a toda a parte para se encher de sanduíches, até mesmo para os enfiar agilmente na enorme bolsa de couro rachado que carregava sempre consigo - uma bolsa bojuda pelo excesso de uso, sempre recheada de papéis que provavam o seu parentesco com o famoso Príncipe Yussupov, marido da sobrinha do czar. Criaturinha pálida e fraca, trazendo no pescoço uma desgarrada marca puída, dera-lhe o passado, quando mais não fosse, um sorriso de infinita doçura. Não de todo apresentável, talvez, mas, ainda assim, uma princesa autêntica. Bem diferente era a figura que ocupava o centro do grupo, Leonora Schutz-Spengler; à medida que dela se aproximavam, Madame Altishofer cochichou bem-humorada ao ouvido de Moray:
- Está contando a história de suas caçadas... Não escaparemos.
Fazendo uma interrupção na narrativa, Leonora já os reconhecera com um radiante sorriso. Era ela uma vivaz morena do Tessin, de risonha boca vermelha, olhos atrevidos e lindos dentes, que alguns anos atrás roubara o coração de Herman Schutz, o mais rico exportador de queijos da Suíça, homem grandalhão, pálido e pesado, que se diria feito do próprio produto que vendia. Todavia era Leonora digna de afeição, quando mais não fosse, pelas esplêndidas e divertidas festas que realizava em sua villa, no topo da colina sobranceira à cidade, num anexo de madeira de sequóia iluminado a vela, cujas paredes de eriçavam com torcidos chifres de mamíferos, entre os quais esvoaçavam, pousavam e chalravam vintenas de periquitos, enquanto Leonora, de chapéu de papel na cabeça, prodigamente oferecia sopa de melão, bortsch, goulash, caviar,
panquecas de queijo, pato de Pequim, trufas em vinho-do-porto e outras iguarias exóticas, antes de dar início a jogos desordenados e impossíveis, todos saídos de sua própria cabeça.
Moray raramente dava muita atenção às excitadas divagações de Leonora, e seus pensamentos dispersavam-se enquanto ela ia descrevendo, em francês, a excursão da qual ela e o marido acabavam de regressar. Moray ouviu vagamente que Schutz, que já tarde na vida desenvolvera ambições de jãger, alugara uma reserva de caça, em algum lugar da Hungria, segundo parecia.
Mas à medida que Leonora continuava irreprimivelmente a falar, seu ouvido captou certas frases, e, com uma aguda tensão nervosa, começou ele a prestar atenção ao que ela dizia. Não estava absolutamente falando da Hungria, mas descrevendo um trecho do interior da Escócia, em termos que repentinamente lhe soaram familiares. Impossível; devia estar equivocado. Entretanto, à medida que ela prosseguia, cresceu nele tal suspeita. Ela agora falava da estrada, monte acima, a partir do estuário, da vista sobre o pântano que se descortinava do píncaro, do rio precipitando-se dentre os altos muros do caldeirão de pedra em direção ao lago, e da montanha que tudo dominava. Súbito, Moray sentiu que tremia, o coração se lhe apertou, pôs-se a bater rapidamente. Deus, nunca pudera imaginar que tudo aquilo retornasse, e de que maneira inesperada! Ela citara o nome da montanha, e do rio, e do lago; por último citou o nome do alagadiço que o marido arrendara, e essas palavras completamente imprevistas vibraram-lhe em todo corpo um doloroso golpe de dor e apreensão.
Eis que alguém perguntava a Leonora:
- Mas como se vai a esse lugar perdido?
- Viajamos por uma estrada de ferro fantástica... de bitola estreita, três trens por dia... até uma adorável estaçãozinha de nome tão bonito... chama-se...
Moray não aguentaria ouvir aquele nome, no entanto ouviu-o, e ele lhe trouxe de volta, embora não articulado, o nome mais inevitável entre todos quantos conhecia. Voltou-se murmurando uma desculpa e se afastou, apenas para descobrir Stench, todo ancho a seu lado.
- Já vai indo, velhinho? Cansado de suportar as feiticeiras?
De qualquer modo, Moray conseguiu afastá-lo. No saguão, uma lufada de ar frio reanimou-o, pondo alguma ordem em sua mente confusa. Não devia sair precipitado assim, deixando Madame Von Altishofer regressar sozinha. Precisava de esperar, descobrir um lugar
com menos gente - acolá, atrás daquela coluna, perto da porta; - esperava que ela não se demorasse muito. com efeito, enquanto caminhava para a nova posição, já ela estava junto dele.
- Querido amigo, está doente? - falou ela, cheia de preocupação. - Vi que empalidecia.
- Sinto-me um tanto esquisito. - E fez um esforço para sorrir. - Faz um calor horrível aqui dentro.
- Então vamo-nos embora já, já - disse ela, decidida.
Ele fez menção de protestar; em seguida aquiesceu. Lá fora, Arturo conversava com um grupo de motoristas. Partiram. Ela quis levá-lo diretamente para sua villa; entretanto, menos por urbanidade do que por uma desesperada necessidade de estar só, ele insistiu em deixá-la no Seeburg.
- Entre para tomar um drinque - sugeriu ela, quando chegaram. - Um drinque de verdade. - E quando ele recusou, dizendo que devia descansar, ela acrescentou, solícita: - Cuide-se, meu amigo. Se permitir,
telefono-lhe amanhã.
Chegando à villa, ficou uma hora deitado, .tentando raciocinar. Não devia consentir que uma palavra ao acaso, que uma simples coincidência, viesse a arruinar a serenidade com que ele tão penosamente reconstruíra sua vida. Todavia não se tratava de uma palavra dita ao acaso, mas de uma palavra que, havia muitos anos, o assombrava e atormentava nas mais fundas regiões da memória. Devia combatê-la, tornar a arremessá-la para as trevas do subconsciente. Não podia entretanto fazê-lo; como selar a mente contra as bofetadas das ideias? Ao jantar, apenas fingiu comer; sua depressão enchia a casa, afetando até mesmo os criados, que viam nessa inesperada disposição de ânimo qualquer coisa que lhes dizia respeito.
Depois da refeição, dirigiu-se para a sala de visitas, ficou junto à janela que abria para o terraço. Viu que a tempestade ameaçava um daqueles espetáculos repentinos e deslumbrantes, à vista dos quais, gritando a Arturo que pusesse na vitrola um disco de Berlioz, ficava a ver e a ouvir, na mais pura exultação. Agora, todavia, olhava taciturno a grande massa de sombrias nuvens que se foram imperceptivelmente juntando e já deslizavam acima do Reisberg. Havia no ar um silêncio mortal, um silêncio abafado, e uma luz sobrenatural, de um ocre ameaçador. Então Fez-se ouvir um suspiro débil, como que na distância. As folhas tremeram, e um arrepio perpassou na superfície do lago. Lentamente, o céu ficou de um plúmbeo cinza impenetrável e escondeu a montanha, e de repente, uma forquilha azul lançou-se do invisível, seguida por uma primeira
detonação estrondejante. Depois soprou o vento-veloz, cauterizante, - um vento circular que cortava como pontas de azorrague. Sob o flagelo, as árvores curvavam-se rojando o chão num estremecimento, espalhando folhas como palha. Na extremidade do jardim, os altos choupos gémeos açoitavam o chão. O lago, batido até espumar, estorcia-se insano, as ondas fustigavam o pequeno dique, a bandeira amarela do perigo foi içada. O raio caía sem cessar, o trovão ribombava e tornava a ribombar entre os píncaros ocultos. Depois a chuva - enormes gotas esparsas - não a chuva acaríciante, mas a chuva precursora e pressaga daquela que afinal caiu da altura em lisos lençóis de água sibilante, enchente caída do céu - um eventual dilúvio.
Ele voltou-se abruptamente da janela e subiu para seu quarto, mais agitado do que nunca. Apanhou no armário de remédios do banheiro o vidro de fenobarbitona. Pensou que nunca mais precisaria disso. Engoliu quatro tablettes, sabendo, mesmo assim, que não ia adormecer. Depois de se despir atirou-se no leito e cerrou os olhos. A chuva lá fora açoitava o terraço, as ondas rebentavam na praia, mas era o nome dela que continuava soando implacavelmente em seus ouvidos... Mary... Mary Douglas... Mary... Douglas... empurrando-o para o passado, para Craigdoran e os dias de sua juventude.
SEGUNDA PARTE
CAPÍTULO UM
SE a velha motocicleta de seu colega Bryce não se tivesse quebrado, eles nunca se teriam conhecido. Mas, como se assim fosse destinado na poeirenta tarde daquele sábado de abril, ao regressar de um giro nos Montes Doran, a correia da máquina quase aposentada se partiu e um fragmento solto lhe golpeou violentamente o joelho direito. Ele freou, desceu da motocicleta com alguma dificuldade e examinou o estrago feito no seu joelho, aliás, uma contusão menor do que receara. Depois olhou em torno. Nenhuma esperança de assistência nos montes em redor, despovoados e cobertos de mato, nem tampouco na torrente impetuosa do rio Doran, ou na vasta extensão de terra alagadiça sobre a qual se estendia aquela estrada solitária, ou nos trilhos ferroviários, de bitola estreita. Até mesmo a estaçãozinha, conhecida como Parada Craigdoran, que ele acabava de passar, parecia-lhe deserta.
- Que azar! - exclamou ele.
A situação não podia ser mais crítica. Ardfillan, a cidade mais próxima, devia ficar a uma distância aproximada de sete milhas. Teria de experimentar a Parada Craigdoran.
Voltando-se, saiu mancando na direção da solitária plataforma, onde fixou a bicicleta em seus suportes. A estaçãozinha era guarnecida por uma cercadura de pedras caiadas, sua orgulhosa tabuleta Portal para a Escócia Ocidental esgalhada em madressilvas, uma cerca de espinheiro chovendo flôrezinhas sobre os trilhos; ele porém não tinha vontade alguma de admirar a paisagem. Não se via vivalma, a sala de espera estava trancada, a bilheteria como que fechada por toda a eternidade. Estava quase desistindo, quando, na janela ornamental de vidro esmerilhado, onde se lia Restaurante, captou sinais de vida. No peitoril interno, um gato lavava a cara satisfeito. Ele empurrou a porta e esta se abriu: ele entrou.
Ao contrário do costumeiro restaurante de estação, este era imprevistamente ordenado e bem disposto. Quatro mesas redondas, de tampa de mármore, ocupavam o assoalho de tábuas, bem esfregado; viam-se nas paredes algumas vistas coloridas das Terras Altas, e, nos
fundos, um balcão envernizado, de mogno, atrás do qual pendia um espelho oval, com o anúncio da farinha Brown e Pilson, feita em casa. Na frente do espelho estava uma mulher com as costas voltadas para ele, surpreendida no gesto de pôr o chapéu. Mutuamente paralisados, imóveis como figuras de cera, ambos se olhavam através do espelho.
- Quando sai o trem seguinte para Winton? - perguntou ele, rompendo o silêncio e dirigindo-se ao reflexo dela, num tom que não escondia o aborrecimento que o roía.
- O último trem já saiu. Não há outro, a não ser o cargueiro de domingo. - Nisto voltou-se e encarou-o, acrescentando brandamente: - Amanhã, às duas da tarde.
- E onde está o carregador?
- Oh, Dougal já faz uma boa meia hora que está em casa. Não o encontrou na estrada?
- Não... não encontrei... - E de repente sentindo uma fraqueza idiota, inclinou-se de lado para buscar apoio a uma mesa, e com o movimento expôs à vista sua perna machucada.
- Machucou-se - exclamou ela, adiantando-se, solícita. - Vamos...
sente-se; deixe ver.
- Não é nada - disse ele um tanto aturdido, procurando sentar-se. - É uma laceração superficial da região poplítica. A motocicleta...
- Acho mesmo que ouvi uma queda. E o corte é feio. Por que não falou logo?
Precipitou-se em busca de água quente, e, ajoelhando-se, banhou e limpou a ferida, depois enfaixou-a destramente, com tiras rasgadas de um guardanapo.
- Pronto! - A uma observação elogiosa, levantou-se. - Se eu tivesse agulha e linha, podia costurar a perna de sua calça. Não importa: você a terá concertada quando chegarmos em casa. Resta agora você beber uma boa xícara de chá.
- Não... absolutamente... - protestou ele. - Já a incomodei bastante ... Você fez mais do que o suficiente...
Ela porém já mexia nas torneiras de metal sobre o balcão. Era indubitável que ele sofrera um abalo, e o chá forte e quente o animaria. Observando-o com uma curiosidade interessada, a moça sentou-se. O gato pulou imediatamente para o seu regaço e começou a ronronar. Ela alisou-lhe suavemente o pêlo.
- Negrinho e eu ficamos. Há pouca gente em Craigdoran nesta época do ano.
- E nas outras? - disse ele com um meio sorriso.
- Não há nenhum - corrigiu-o com ar sério. - Quando a pesca e a caça estão no auge, temos uma porção de étimos fregueses. É por isso que meu pai continua com este restaurante. A padaria fica em Ardfillan. Se quiser, terá condução para lá. Ele vem sempre me buscar no fim da semana. - Fez uma pausa pensativa. - Mas há a motocicleta. Ficou muito avariada?
- Não muito. Mas terei de deixá-la aqui. Se pudesse remetê-la no trem de Winton, seria uma grande ajuda. Como vê, não é minha. Pertence a um colega que ficou no hospital.
- Não vejo por que Dougal não possa colocá-la no vagão do guarda-trem. Será a primeira coisa a lhe pedir na segunda-feira. Se o seu colega ficou no hospital, não poderá mesmo usá-la por algum tempo.
Divertido com o equívoco da moça, ele explicou:
- Bryce não está doente. Está no último ano de Medicina, como eu.
- Então é isso? - e riu-se sem rebuços. - Se eu soubesse, não teria me apressado tanto em tratar do seu ferimento.
Tinha o riso contagioso, natural, uma verdadeira delícia. Irradiava um calor em torno, devido não apenas à sua cor - tinha cabelos
castanho-avermelhados de áureos lampejos, e doces olhos pardos, escuros como turfa, engastados numa pele fresca, ligeiramente sardenta, - mas a qualquer coisa de simpático e rendido em sua natureza. Era talvez quatro anos mais moça do que ele, não teria mais de dezenove anos, e ainda que não fosse alta, sua figurinha robusta era garbosa e bem proporcionada. Trazia uma saia de lã xadrez com cinto de couro, jaqueta de tricô feita em casa, sapatos castanhos já gastos, e um chapeuzinho cor de cinza, com uma pena de maçarico na aba.
Uma súbita consciência de bondade da moça invadiu Moray - emoção rara para ele. Sim, ela fora decente - a palavra era essa, terrivelmente decente para com ele. E, esquecendo o importuno desconforto de seu joelho e da calamidade ainda maior do estrago que sofrera seu único terno, Moray sorriu-lhe, desta vez à sua moda: com um sorriso franco e sedutor, sorriso que com frequência lhe foi útil em épocas de transtornos e dificuldades. Embora tivesse "boa cara", traços regulares e pele fresca, e lindos cabelos castanho claros, naturalmente ondulados, ele não era especialmente bonito no sentido corrente do termo: a parte inferior do rosto carecia de força. Mas o sorriso redimia-lhe todos os defeitos, iluminava-o, convidava à camaradagem, abria-se em promessas, exprimia interesse, compreensão, preocupação e o que mais queria, e, acima de tudo, irradiava sinceridade.
- Suponho que você compreende - exclamou ele - como lhe sou grato por tanta bondade. E porque, praticamente, salvou-me a vida, posso esperar que nos tornemos amigos? Meu nome é Moray. David Moray.
- E o meu é Mary Douglas.
Um toque de rubor subiu-lhe às faces; não que lhe desagradasse a franqueza da apresentação; e ela apertou firmemente a mão que ele lhe estendia.
- E agora - disse vivamente - se quiser puxar a motocicleta até aqui, vou apanhar Negrinho e fechar a porta. Papai não tarda em chegar.
com efeito, mal haviam saído para a estrada, um pónei e certa espécie de veículo apontaram no topo da colina. O pai de Mary, a quem Moray foi apresentado junto com o relato completo do revés, era um homenzinho insignificante, de pálido rosto animado, mãos e unhas permanentemente impressas de farinha, e os maus dentes da sua profissão. Um topete de cabelo sobre a testa e pequeninos olhos muito brilhantes davam-lhe um singular aspecto de pássaro.
Depois de fazer o pónei dar a volta com hábeis estalidos de língua e examinar Moray com astutos olhares esguelhados, assim resumiu o relato de Mary:
- Como vê, não preciso de uma máquina dessas. Tenho Sammy, o pónei, para tarefas incidentais, e um bom e forte Clydesdale para puxar a carroça de pão. Quanto a você, podia ter sido pior. Vamos pô-lo a salvo no trem das oito, proveniente de Ardfillan. Nesse intervalo, venha comer alguma coisa conosco.
- Não é possível; não quero continuar a incomodá-los...
- Não seja ridículo - disse Mary. - Precisa conhecer o resto dos Douglas e Walter, meu noivo. Ele vai ficar encantado em conhecê-lo. Isto é - rematou ela, ao ocorrer-lhe uma nova ideia - se o seu pessoal não se afligir com a sua ausência...
Moray sorriu e balançou a cabeça.
- Não se preocupe. Sou sozinho.
- Sozinho? - inquiriu Douglas.
- Perdi meus pais quando era muito novo.
- Mas deve ter parentes, naturalmente...
- Nenhum de quem preciso... ou que algum dia me quisesse.
O olhar de pura incredulidade do padeiro fez acentuar-se o sorriso de Moray, levando-o a se explicar com toda a sinceridade.
- Estou sozinho desde os dezesseis anos. Mas, de um modo ou de outro, me arranjei para acabar o curso no colégio... e para ter a sorte de ganhar uma bolsa de estudo.
- Nossa! - refletiu o padeiro tranquilamente, mas com verdadeira admiração. - Ação muito recomendável!
Parecia meditar no assunto enquanto iam os três sacolejando estrada fora; mas em dado momento, endireitando-se, começou, com uma cordialidade crescente, a apontar e descrever os acidentes da região rural, muitos dos quais estavam associados aos acontecimentos de 1314, anteriores à batalha de Bannockburn.
- Papai é um grande leitor da história da Escócia - confiou Mary a Moray, à guisa de desculpa. - Há pouca coisa escondida que ele não lhe possa dizer sobre Bruce, ou Wallace, eu quem mais houver.
Aproximavam-se de Ardfillan, e Douglas apertou o breque de pedal para facilitar ao pónei descer o outeiro em direção da velha cidade que se estendia na praia do Estuário, cintilando à luz do ocaso. Desviando-se da Esplanada, penetraram numa teia de tranquilas ruas travessas e fizeram alto diante de um armazém em cuja fachada estava inscrito James Douglas, Padeiro e Doceiro, e, mais abaixo, em letras menores, Agenciam-se Casamentos, e em letras ainda menores, Estabelecido em 1880. Em verdade, o lugar apresentava um aspecto antiquado e pouco próspero, pois a vitrina exibia um único bolo de bodas de várias camadas, flanqueado por dois boiões de vidro, repletos de bolachas.
Nesse ínterim, o padeiro pôs o chicote na bainha. Depois gritou:
- Willie!
Um rapazinho esperto, vestido num avental que lhe ia desde os pés até ao queixo, saiu correndo para fora do armazém.
- Diga à sua tia que estamos de volta, filho. Depois apresse-se; venha me ajudar com Sammy.
com grande destreza, Douglas fez o pónei recuar por um estreito corredor até ao pátio empedrado da cocheira.
- Aqui estamos - disse alegremente. - Leve o seu doente para cima, Mary. Logo irei para lá.
Subiram os degraus rasos de uma escada de pedra externa e em curva, até atingirem a casa em cima do armazém, onde um estreito saguão abria para a sala da frente, mobiliada com cadeiras estofadas de pelúcia vermelha já puída, e cortinas de borla do mesmo material. No centro da sala já estava posta uma pesada mesa de mogno para um chá de qualidade, e um fogo de carvão brilhava confortavelmente na lareira, diante da qual um tapete de negra
pele de carneiro desenrolava a sua lã emaranhada e aconchegante. Soltando-se dos braços de Mary, Negrinho logo se apossou do tapete. A moça despira a jaqueta e agora parecia mais à vontade em sua imaculada blusa branca.
- Sente-se e descanse a perna. vou correndo lá embaixo ver como andam as coisas. Fechamos às seis. - E acrescentou com uma pontinha de orgulho: - Papai não trabalha aos sábados de noite.
Depois que ela saiu, Moray acomodou-se numa cadeira, sentindo, de modo pungente, a estranheza daquela sala escura, quente e alheia. Uma brasa caiu sem rumor na lareira. De um recanto obscuro vinha o tique-taque compassado de um relógio-armário, só visível mercê da luz do fogo que batia no seu velho mostrador de latão. A mesma luz era captada pelas xícaras azuis, do padrão denominado "de pombinha". Por que, Deus, estava ele ali, e não debruçado sobre Osler e Cunningham na atravancada mansarda onde morava? Fora apenas dar um giro para clarear as ideias - sua única concessão ao ócio - antes de entregar-se a todo um longo fim-de-semana de estudos afincados. Mas a cinco semanas dos exames finais, era uma loucura desperdiçar o tempo ali, e de que maneira mais inútil! Todavia, aquela gente era tão hospitaleira, e a comida sobre a mesa tinha um aspecto tão convidativo... e ele, tão escasso de dinheiro andava, que fazia já semanas desde que tomara uma refeição razoavelmente completa...
A porta abriu-se de repente e Mary entrou com a bandeja de chá. Acompanhavam-na uma mulher gorducha, de aspecto hidrópico, e um rapaz alto e magro, de cerca de vinte e sete ou vinte e oito anos, muito correto no seu terno azul-escuro e alto colarinho engomado.
- Mais alguns dos nossos - disse ela sorrindo. - Tia Minnie - e (aqui corou ligeiramente) - meu pretendente, Sr. Walter Stoddart.
Enquanto ela falava, o pai apareceu com o rapazola Willie, e, depois de dar graças, todos se sentaram.
- Induziram-me a crer - disse Stoddart dirigindo-se a Moray com um sorriso amável, não sem primeiro se deixar servir com grande deferência por tia Minnie, enquanto Mary servia o chá, com fatias de presunto frio - que o senhor passou por uma experiência bastante penosa. Eu também já passei por uma experiência um tanto parecida na estrada de Luss, em meu tempo de menino. Quando foi mesmo? Deixem-me ver. Ah, sim, foi em mil novecentos e nove, num verão quentíssimo que tivemos. Tinha então treze anos e crescia depressa. Naquele tempo, tratava-se de uma bicicleta, naturalmente,
e de um pneumático furado. Felizmente, não sofri nada mais sério do que uma esfoladura no cotovelo esquerdo, mas podia ter sido uma tragédia. Desculpe o incómodo, Mary: posso pedir-lhe mais uma tablette de açúcar? Creio que você já sabe que sempre prefiro três...
- Oh, desculpe-me, querido!
Evidentemente, Stoddart era ali considerado, não apenas por ele próprio, mas por toda a família, como uma pessoa de importância indiscutível. E agora tia Minnie, que se diria admirá-lo mais do que os outros, transmitiu a Moray, num aparte cochichado e ofegante, que Walter era filho do escrivão da cidade e ocupava uma esplêndida posição na contadoria do Departamento de Gás - um verdadeiro achado para Mary, acrescentou ela com uma eloquente e satisfeita sacudidela de cabeça.
A situação intrigou Moray, provocando o seu senso de humor. Os fastidiosos maneirismos de Stoddart, sua condescendência para com os Douglas, exercida com todo o rígido dogmatismo do burocrata provinciano, até mesmo as convulsões de seu pescoço de avestruz, quando engolia o chá - tudo era promessa de entretenimento para Moray. Ao mesmo tempo que fazia jus às boas coisas da mesa, divertia-se cultivando Stoddart, brincando com a sua vaidade e, para alçá-lo à posição de colega, relatando-lhe, num estilo muito picante, alguns dos aspectos mais interessantes de seu trabalho no departamento dos externos da Enfermaria. Não tardou muito, foi recompensado com indícios de uma crescente estima por parte de Walter. com efeito, enquanto a refeição chegava ao fim, Stoddart sacou do bolso seu relógio de ouro e abriu-o com um estalido - este era outro de seus frequentes maneirismos - enquanto prodigalizava a Moray um sorriso de dentes à mostra.
- Grande pena ter de deixá-los tão cedo. vou acompanhar Mary à festa da Banda da Esperança. Não fosse isso, teria imenso prazer em continuar gozando da sua companhia. Tenho entretanto uma sugestão a fazer. Minha opinião é de que seria extremamente irregular o senhor conduzir sua motocicleta a Winton sem bilhete, sub rosa, como se diz, e da maneira que Mary me indicou. Isso poderia expô-lo a toda a espécie de incómodos e penalidades. No fim de contas, não é por troça que a Estrada de Ferro Norte-Britânica inventou regulamentos! O que proponho - e sorriu amavelmente a todos em redor da mesa - é que o nosso amigo Moray vá a Winton buscar a peça que lhe falta; que, no fim da semana, vá ajustar a
peça na motocicleta e venha de volta montado nela. Isto, naturalmente, nos dará a oportunidade de tornar a vê-lo.
- Que boa ideia - disse Mary radiante. - Por que não nos ocorreu antes?
- Nos ocorreu, Mary? - repetiu Walter, solenemente enfiando o relógio no bolso. - Pensei que eu...
- Obal Você é um tipo sabido, Walter. Não sei o que faríamos sem você - atalhou o bom padeiro olhando para Moray com um irónico piscar de olhos, o que serviu para mostrar que ele não endossava absolutamente a opinião prevalecente no que dizia respeito às qualidades de Stoddart. - Volte mesmo, rapaz. Será muito benvindo.
Ficou combinado; e quando se levantou para pôr o chapéu e o manto, e, aceitando o braço de Walter, ser por ele conduzida à reunião da igreja, Mary sorriu para Moray por sobre o ombro.
- Vê-lo-emos no próximo sábado... por isso não lhe digo adeus.
- Eu também não direi - disse Walter com uma mesura. - Espero ter o prazer de conhecê-lo melhor.
Meia hora depois Moray saiu. Willie, que atentara de olhos brilhantes para as suas histórias de hospital, fez questão de acompanhá-lo até à estação.
CAPÍTULO DOIS
O alojamento de Moray era um pequeno quarto no alto de uma casa de cómodos, paredes-meias com uma outra, nas proximidades das 'docas de Blairlaw. O bairro, interceptado por um depósito de lixo abandonado, era indubitavelmente um dos mais pobres de Winton. Crianças raquíticas e maltrapilhas brincavam nas calçadas marcadas a giz, enquanto mulheres tagarelavam, de xale e touca, junto às bocas de esgoto interditadas. Havia em cada rua um botequim e uma casa de peixe frito, enquanto, através do nevoeiro de Clydenside, as três bolas de latão das casas de penhor acenavam a todos irresistivelmente. Rebocadores apitavam no rio e um incessante martelar se elevava dos estaleiros de conserto. O bairro não era certamente uma estância de prazer; mas, cortando por Blairhill na direção de Eldongrove, ficava a uma razoável distância a pé da Universidade e da Enfermaria Ocidental. Acima de tudo, a vida ali era barata.
O resumido porém impressionante relato, que Moray fizera de si próprio ao padeiro Douglas, era verdadeiro a alguns respeitos, embora não o fosse em sua totalidade... Os primeiros doze anos de sua vida, filho único que era de pais indulgentes, da classe média, foram normais, nunca opulentos, mas fáceis e confortáveis. Certa vez seu pai, agente local da Companhia de Seguros Calcedônia, caiu de cama com influenza contraída, dizia-se, em suas cobranças de porta em porta. A mulher cuidara-o durante uma semana, mas ele piorou. Foi chamado um especialista, e, abruptamente, o diagnóstico mudou para febre tifóide, mas não antes que também ela contraísse a moléstia. Dentro de um mês David viu-se atirado em casa de uma parenta longe, viúva, meia-irmã de sua mãe - tal um fardo aceito de má vontade, pobre criança que ninguém queria. Por quatro anos o jovem Moray sofreu duramente de abandono, e comeu o amargo pão da dependência; mas ao completar dezesseis anos, uma apólice de educação, prudentemente adquirida por seu pai, entrou em vigor. Não era grande coisa, apenas o suficiente para as mensalidades e uma magra subsistência. Mas valeu: ajudado por um mestre compassivo que reconheceu em seu aluno possibilidades fora do comum, ele ingressara no curso médico da Universidade de Winton.
Mas essa apólice providencial era qualquer coisa que Moray, por motivos de expediência, ou por uma natural inclinação para dramatizar sua própria luta, achava às vezes conveniente esquecer. com a sua sedutora timidez, que conquistava à primeira vista a maioria das pessoas, era agradável, não raro útil, aludir aos apertes por que passara, às mudanças e evasões a que fora forçado, às indignidades que tivera de suportar - por exemplo, ter de sacudir as pulgas da barra das calças, utilizar-se da retreta pública sob o patamar da escada, lavar sua própria camisa, comer fritas num jornal manchado de gordura - tudo isso apenas sustentado por uma heróica determinação de arrancar-se do sulco e atingir as alturas.
Confessava, entretanto, ter tido bons momentos: refeições ocasionais em casa de seu amigo Bryce, ou, graças à bondade do pessoal da Enfermaria, um teatro grátis ou uma entrada de concerto; certa vez, nas férias de verão, passara uma semana excepcional na casa praiana de seu professor de Biologia. Decerto que aproveitava ao máximo tais oportunidades, não apenas sendo profusamente grato quando alguém fazia algo por ele, mas por uma particular sofreguidão de maneiras, de todo comovente, que aos outros inspirava confiança e afeição. "Grande bondade a sua em ter-me dado ajuda,
senhor", ou "Você foi extremamente decente, meu velho". Mediante essas expressões modestas e autodepreciativas, e aquele olhar claro e franco, quem podia deixar de gostar dele? Era tão perfeitamente sincero! Em verdade, quando estava de veia, ele próprio acreditava nas mentiras que dizia.
Mas os "bons momentos" nunca foram uma feição muito marcante das universidades escocesas: já havia meses que escasseavam. Só por essa razão, o seu encontro com a família Douglas tinha a sedução do inesperado. Durante a semana, ao atender a Enfermaria diurna, e, depois, nos estudos noturnos afincados, ela permanecia agradavelmente presente no fundo de sua memória. Logo ele descobriu que esperava ansioso pela visita que lhes prometera fazer no sábado seguinte.
A manhã chegou meio anuviada, porém bela. À uma hora, após atender os pacientes externos, tomou o "expresso-operário" da estação de Winton. A passagem desse trem era muito barata, o preço do bilhete - era incrível - custava apenas quatro pence. Seu itinerário percorria o estuário do Clyde, servia os operários dos estaleiros. Moray levava consigo a correia nova, pois Bryce, prevendo dificuldades, realmente comprara uma de sobressalente, e de boa vontade lha entregara à sua moda pachorrenta. Na baldeação de Levenford, mudou para a bitola estreita, e exatamente às duas e meia, com o sol apontando dentre as nuvens, chegou a Craigdoran.
A estaçãozinha branca, com seu espinheiro em flor e seu enredamento de madressilvas, apresentava agora um aspecto familiar. O perfume da madressilva enchia a atmosfera e uma abelha zumbia, madrugadora. Dois jovens, vestidos de alpinistas, mochila às costas, precederam-no na saída do trem. Entraram no restaurante, onde ele percebeu, através do vidro fosco da janela, Mary embrulhando em papel impermeável os sanduíches que os dois tinham comprado. Depois os rapazes saíram, e Mary,
acompanhando-os até à porta, esquadrinhou a plataforma com o olhar.
- É você - e ela sorriu. - Começava a recear que não viesse. O joelho melhorou? - E acenando-lhe, fê-lo entrar e sentar-se. O gato se lhe aproximou e esfregou-se em suas pernas.
- Garanto que não almoçou. vou arranjar-lhe uns sanduíches e um copo de leite.
- Não faça isso, por favor - disse ele. - Comi alguma coisa no bar da estação de Levenford...
- Ora, ora! - disse ela jocosamente, quase como o pai, e levantando as sobrancelhas. - É extraordinário! Levenford nunca teve
bar! - Da campânula de vidro em cima do balcão, tirou um prato de sanduíches, em seguida encheu um copo de leite espumejante. - Neste
fim-de-semana é difícil aparecer mais alguém por aqui e eu não posso ver comida boa atirada no lixo. Desta vez terá de concordar comigo.
Um instante depois sentava-se em frente dele, e dir-se-ia que lutava contra uma efervescência interior que de súbito aumentou, sem possibilidade de controle.
- Tenho uma notícia para dar-lhe. Você fez um tremendo sucesso...
- O quê? - disse ele recuando, compreendendo-a mal.
- Walter... - e seus lábios tremiam - faz uma grande ideia de você. Desde que você partiu, não faz outra coisa senão entoar seus louvores. Você é tão simpático! - E procurando conter uma risada: - Está sentido por não poder vê-lo hoje de noite. Foi a uma assembleia da Guilda de Funcionários Municipais, em Winton. . . e me encarregou de apresentar-lhe desculpas. - E prosseguiu, antes que ele pudesse abrir a boca: - Mas, para amanhã, arranjou para nós uma ótima excursão. Vamos sair de barco e rodear as ilhas de Bute; parada para o almoço em Gairsay e regresso a casa.
Ele olhava-a interdito, franzindo a testa:
- Mas amanhã não poderei voltar outra vez...
- Nem é preciso - disse ela calmamente. - Papai diz que pode ficar conosco. Dormirá com meu irmão Willie.
Ele continuava de cenho franzido; depois, gradualmente, o rosto se lhe desanuviou. Nunca antes conhecera gente tão simples, de coração tão aberto. No dia seguinte não haveria doentes externos na Enfermaria e decerto não perderia muito se faltasse um dia ao trabalho. Além disso, o domingo em Winton era um dia incrível, que sempre detestara.
- Irá conosco?
- com muito prazer. E agora vou consertar a motocicleta.
Trabalhou durante toda a meia hora seguinte, ajustando a correia nova, que precisou de ser cortada e rebitada. Mary ia de vez em quando
observá-lo, mas não dizia nada, apenas olhava-o com simpatia. Depois que acabou, ele empurrou a máquina para fora e deu a partida.
- Que tal uma voltinha?
Ela olhou-o indecisa, tapando o ouvido com a mão para não ouvir o frenético estouro do escapamento.
- Não tem perigo - assegurou ele. - É só sentar-se e segurar firme.
- Não posso sair antes da chegada do trem das quatro e meia. Mas depois, quem sabe você poderá levar-me para casa? Posso falar com papai pelo telefone da bilheteria e poupar-lhe a viagem.
- Então está combinado - disse ele alegremente.
Invadia-o uma inusitada euforia. Ou fosse pela escapada ao trabalho, ou pela verde frescura campestre, sentia-se mais leve, como se respirasse uma atmosfera mais leve e luminosa. Até que ela ficasse livre, e para experimentar a motocicleta, subiu em disparada a colina de Tulliehewan. Quando voltou, Mary estava pronta para sair. Como Negrinho ficava, arranjara para ele um pires de leite.
- Então, é aqui que me sento - disse ela, empoleirando-se no assento de trás.
- Assim, não. Você poderá cair. Tem de sentar-se escarranchada.
Ela hesitou; depois lançou uma perna para o outro lado - modestamente, porém de modo tão canhestro que antes que ele desviasse o olhar umas lindas formas lhe foram momentaneamente reveladas. Ela disse, corando:
- Ainda não estou habituada...
- Mas fê-lo como se estivesse - de maneira estupenda!
Ele acomodou-se rapidamente no assento e partiu. Primeiro rodou devagar, evitando os solavancos; depois, vendo a confiança dela, abriu o escapamento. Entraram em disparada na estrada entre os alagadiços, com o vento sibilando nos ouvidos. Os braços dela abraçavam-lhe a cintura, e sua cabeça, voltada para o lado, encostava-se-lhe no ombro.
- Sente-se bem? - ele gritou.
- Ótima! - gritou ela de volta.
- Está gostando?
- É... é formidável. Nunca andei tão depressa em toda a minha vida!
Faziam pelo menos trinta milhas por hora.
Quando ele parou em frente do armazém de Ardfillan, as faces dela estavam radiantes, os cabelos desgrenhados, polidos pelo vento.
- Que gostosura! - E ela riu-se nos olhos dele, cambaleando um pouquinho por falta de firmeza, ainda embriagada de velocidade. - Venha. Tenho de apressar-me e me arrumar. Estou um espetáculo!
O padeiro acolheu Moray com cordialidade, e Willie parecia ainda mais entusiasmado do que antes. Mas a tia pareceu recebê-lo com novas reservas e olhar perscrutador, às vezes claramente propenso à suspeita - embora mais tarde ele a amaciasse dando atenção ao
relato de sua doença e recomendando-lhe um cordial para curar fôlego curto. A refeição que ela lhes serviu foi macarrão com queijo, sem dúvida saudável, embora inequivocamente carecesse daqueles requintes destinados a Walter. A noite decorreu tranquilamente. Moray jogou damas com o padeiro, e perdeu com elegância três vezes seguidas, enquanto Mary, num tamborete baixo junto ao fogo, fazia um bico de croché, com certeza destinado ao enxoval. Vendo a renda crescer, não pôde Moray deixar de pensar que a mesma se destinava à barra de uma camisola - ideia indulgente e afetuosa, não lasciva. De vez em quando ela olhava o relógio e observava com um sereno interesse, muito diferente do interesse da garota cheia de vida e de alegria que, fazia apenas uma hora, rodara alegremente com ele através dos campos:
- Walter deve estar na reunião.. .- E continuando: - Decerto lhe vão dar uma oportunidade de falar... Escreveu o discurso com tanto cuidado... e estava tão resolvido a pronunciá-lo. - E rematando: - A estas horas deve estar a caminho da estação. Tomara que não tivesse esquecido as galochas... sofre o martírio dos pés frios...
Recolheram-se cedo. No quarto de Willie, que ficava nos fundos e abria para o pátio, Moray teve sua primeira conversa verdadeira com o rapaz, cuja timidez o mantivera calado até ali. Havia pouco recebera, como prémio escolar, um livro fascinante sobre a vida de David Livingstone, e dentro em pouco ambos mergulhavam nas selvas africanas, descobriam o lago Niassa e deploravam os estragos do beribéri e da mosca tsé-tsé... Moray viu-se obrigado a responder a uma porção de perguntas ansiosas, até que afinal apagaram a luz e adormeceram.
CAPÍTULO TRÊS
NA manhã seguinte, Walter chegou pontualmente às nove e meia e, cumprimentando Moray como a um velho amigo, deu vazão ao seu bom êxito da noite anterior. Embora um bando de indivíduos pretensiosos saísse da sala antes da conclusão de seu discurso, ele falara extremamente bem, durante uns bons três quartos de hora. Tendo ganho com justiça aquele dia de folga, estava disposto a desfrutá-lo ao máximo. Nada lhe dera maior prazer, acrescentou, do que organizar a excursão.
Essa efusão de vaidade intrigou Moray. Haveria em Walter uma pinta de mulher, ou talvez, como homem consistentemente repelido por seus colegas, carecia tanto de uma companhia máscula que se apegava à primeira que se lhe atravessasse no caminho? Talvez que o prestígio de um futuro médico o seduzisse, pois sem sombra de dúvida era um esnobe. Ou talvez que, mercê de sua vaidade, ele estivesse apenas desejoso de demonstrar sua própria importância a uma pessoa novata na cidade. com um encolher de ombros, Moray desistiu de pensar no assunto.
Mary e seu irmão já estavam prontos, e afinal todos saíram, Walter à testa, conduzindo o bando ao longo da Esplanada, obviamente resolvido a fazer as coisas em grande estilo. Na bilheteria do barco, pediu bilhetes de volta de primeira classe, acrescentando casualmente:
- Três passagens e meia... o menino é menor de idade...
O bilheteiro voltou para Willie um olhar experimentado.
- Quatro passagens inteiras - disse.
- Creio que pedi três e meia.
- Quatro - disse o bilheteiro numa voz cansada.
Seguiu-se uma discussão, breve mas feroz de parte de Walter, só terminando quando Willie, interrogado pelo bilheteiro, disse-lhe sinceramente a sua idade, assim se desqualificando para a redução do preço. Ruim começo, pensou Moray, observando ironicamente Walter desembolsar as moedas extras com um ar ofendido.
A pequena barca de chaminé vermelha e roda de paletas chegava batendo o rio e aproximando-se do dique. Era a Lucy Ashton. Walter, mais ou menos recuperado, explicava a Moray que todos os barcos do Norte da
Grã-Bretanha tinham nomes de personagens de Walter Scott, mas parecia desapontado por não ir no Çueen Alexandria, com turbina escocesa de duas chaminés, e cuja ausência se diria um leve arranhão no seu prestígio.
Arriou-se destramente o passadiço, todos entraram a bordo, e, olhando em torno, Walter escolheu lugares na popa. As paletas puseram-se a girar, e lá foram eles através do cintilante estuário, em direção ao braço de mar.
- Delicioso, não acha? - murmurou Walter, acomodando-se. As coisas tinham melhorado bastante.
Mas fazia frio em cima da água, e dentro em pouco ficou claro que os lugares que ele escolhera estavam muito expostos.
- Não acha que venta muito aqui? - arriscou Mary, depois de vários minutos. A cabeça baixada contra o vento, segurava o chapéu com ambas as mãos.
- Absolutamente - respondeu Walter lacónico. - Quero mostrar ao Dr. Moray todos os pontos de interesse. Este lugar nos faculta uma visão ininterrupta.
O panorama - indubitavelmente contínuo - de vez que a maior parte dos passageiros estava a sotavento da cabina - era muito bonito, talvez o mais bonito das Terras Altas Ocidentais. Mas Walter, embora complacentemente confessasse os seus encantos com o senso de propriedade peculiar a um cicerone, parecia mais preocupado com a importância comercial das cidades que franjavam a praia.
- Acolá é Scourie - indicou ele. - Comunidade próspera. Instalaram um gasómetro no ano passado. Vinte mil pés cúbicos de capacidade. Um grande progresso. E o conselho municipal tem pela frente um novo plano de águas e esgotos. Meu pai conhece o alcaide de lá. E do outro lado fica Porto Doran. Vê daí o edifício da câmara, atrás da torre da igreja?
O frio era cada vez maior. Até mesmo Willie ficara arroxeado e se afastara, resmungando que ia olhar as máquinas. Mas Walter continuava inexorável. Que sujeito mais cacete, pensou Moray, as pernas espichadas e as mãos nos bolsos. Agora mal o ouvia; observava Mary que, embora calada, de vez em quando aduzia uma respeitosa palavra de assentimento. Via Moray que toda a natureza da moça se alterava em presença do noivo.
Murchava-lhe o brilho, toda a alegria a abandonava; fazia-se reservada, fechada, conscienciosamente submissa, tal uma boa aluna em presença do mestre. Vai levar uma vida de inferno com esse sujeito, refletiu Moray, distraído: o vento, o monólogo de Walter, davam-lhe sono.
Finalmente, passaram as ilhas Kiles, entraram na baía de Gairsay e manobraram em direção ao dique. Willie, após alguma busca, foi arrancado ao calor da casa das máquinas, e todos desceram à praia.
- Isto é lindo - ofegou Mary, aliviada.
A cidade, que era uma estância popular, tinha um aspecto atraente e próspero: um círculo de boas lojas na frente, hotéis galgando o morro arborizado atrás, o alagadiço e a montanha mais além.
- Agora... o almoço - exclamou Walter, a modo de alguém que tivesse uma surpresa a fazer.
- Oh, sim - disse Mary alegremente. - Vamos ao Lang. Lá está ele .. bem pertinho. - E apontou para um restaurante modesto, mas de aspecto promissor, do outro lado da estrada.
- Querida! Nem sonho levar Dr. Moray para o boteco do Lang! Nem você o faria!
- É para lá que vamos sempre que papai vem junto - observou Willie, com certa teimosia. - Servem tortas quentes de carneiro, únicas no género. E limonada de Comrie...
- Sim, vamos para lá, Walter querido!
Ele a fez calar-se com um aceno da mão levantada e enluvada, e calmamente expôs a pièce de résistance da excursão que organizara.
- Vamos é almoçar no restaurante Grand.
- Oh, não, Walter. Não no Grand. Ê tão... tão esnobe... e tão disp...
Walter lançou a Moray um olhar íntimo e confidencial, como a dizer: "Estas mulheres!»
- Grand é o melhor - murmurou. - Telefonei do escritório de meu pai, pedindo com antecedência que nos reservassem uma mesa.
E começaram a galgar o morro em direção ao Grand, que avultava majestosamente na altura. O atalho era comprido, varava matos atapetados de campainhas-azuis, e era íngreme, em alguns trechos excessivamente. De vez em quando entreviam-se, através do arvoredo, luxuosos carros cintilando na subida da estrada principal. Moray percebeu que a ascensão, que Stoddart liderava a largas passadas de mateiro, fatigava Mary. Para lhe permitir que descansasse, parou para colher um pequeno buque de campainhas-azuis, que amarrou com um fiapo de capim seco e lhe estendeu.
- Exatamente da cor de seu vestido - disse sorrindo.
Afinal chegaram ao topo, e Walter, alagado em suor e ofegando pesadamente, conduziu-os ao amplo terraço do hotel, onde uma porção de hóspedes estava sentada ao sol. O silêncio se fez no mesmo instante em que a turma apareceu, alguns olhares se voltaram para ela, e alguns riram. A entrada principal ficava no lado oposto do hotel, e Walter teve alguma dificuldade em encontrar a porta que abria para o terraço. Finalmente, depois de pervagarem um pouco, todos se encontraram no rico saguão de colunas de mármore, e Stoddart, tendo pedido instruções a uma imponente figura de uniforme coberto de alamares dourados, conduziu-os na direção do restaurante - um salão enorme e assustador, decorado de ouro e brancura, grandes candelabros de cristal e um rico tapete de lã vermelha.
Era cedo demais; soara o meio-dia, e embora os garçons estivessem apostos, aglomerados em torno da escrivaninha do maítre d'hôtel, não havia mais ninguém na sala.
- Pois não, cavalheiro...
O maítre, homem robusto e cara vermelhuça, metido numas calças listadas, de colete branco e casaca, desprendeu-se do grupo e avançou com alguma hesitação.
- Almoço para três, e para mais este menino - disse Stoddart.
- Por aqui, se faz favor.
Sob a pálpebra descida, o olho experimentado do maítre mediu-os num relance; preparava-se para conduzi-los a uma escura alcova dos fundos, quando Walter observou com imponência:
- Quero uma mesa perto da janela. Mandei reservar uma, em nome do escrivão de Ardfillan.
O mordomo hesitou. Fareja uma gorjeta, pensou Moray, cinicamente; mas como se equivocava!
- O senhor disse perto da janela, pois não?
- Sim, naquela mesa ali.
- Sinto muito, cavalheiro. Aquela mesa está especialmente reservada para o Major Lindsay, de Lochshiel, e sua comitiva de jovens gentlemen ingleses.
- Então, a que lhe fica próxima.
- Aquela é de Mr. Menzies, cavalheiro. Residente do hotel. Entretanto... como é raro ele chegar antes de uma e quinze, e nessa altura os senhores terão sem dúvida acabado de almoçar... Se faz questão de a ter...
Sentaram-se à mesa de Mr. Menzies. O cardápio foi apresentado a Walter. Estava escrito em francês anglicizado.
- Potage à la Reine Alexandra - começou ele, e o leu todinho, devagar, dizendo em conclusão: - Nada como a cozinha francesa! De cinco serviços!
Serviu-se-lhes a refeição rapidamente e com uma insolência disfarçada, e eles a comeram, cerimoniosamente solitários. Os pratos eram atrozes; um verdadeiro lanche à le Grand Hotel, mas abaixo do nível usual. Primeiro, veio uma sopa gordurosa e amarelada, que aparentemente se compunha de farinha e água morna; depois, um fragmento de peixe, que decerto viajara de Aberdeen para Gairsay pelo caminho mais comprido de Billinsgate, fato esse apenas em parte disfarçado por uma camada de molho côr-de-rosa e gelatinoso.
- Não é fresco, Mary - cochichou Willie, inclinando-se para a irmã.
- Cale a boca, querido - murmurou ela em luta com os espinhos, sentada muito ereta, os olhos postos no prato. Moray percebia que, sob a calma aparente, ela sofria muito. Quanto a ele, segundo seus próprios termos, nada lhe importava um caracol; mas doía-lhe estranhamente vê-la magoada. Quis lembrar-se de algo leve e engraçado para animá-la, mas não conseguiu. Do outro lado da mesa, Walter abria sulcos no serviço número dois - uma prancha fibrosa de costeleta de carneiro servida com ervilhas enlatadas e batatas que não apenas tinham o gosto mas também a consistência de sabão.
A sobremesa era um manjar-branco que sabia a giz e veio acompanhado de ameixas duras. O pospasto, servido logo em seguida (pois agora era claro que estavam sendo atropelados), tomou a forma de uma sardinha rija e espectral, que emitia uma espécie de luz azulada, e vinha espetada numa tira de torrada seca. Depois, embora ainda não fosse uma hora e não houvesse mais hóspedes no salão, trouxeram a conta.
Se Stoddart a tivesse pago sem protesto, e eles tivessem saído logo após, a coisa não teria ficado tão ridícula. Mas, nessa altura, Walter começou a sentir em seu couro insensível uma sensação de menosprezo, difícil de ser tolerada pelo filho do primeiro escrivão da cidade de Ardfillan. Não apenas isso, mas o rapaz tinha também um tanto a mentalidade de leguleio. Sacou um dos lápis com que o bolso de seu paletó andava sempre armado e começou a conferir a conta. Enquanto o fazia, um homem alto, de aspecto libertino, cabelos grisalhos, pele tisnada e bigodes aparados, vestido num saiote escocês da Guarda Negra, entrou no bar. Vinha acompanhado de três rapazes trajados de grosseira lã mesclada, e que, Moray logo percebeu, haviam ingerido alguns goles a mais. Enquanto se apossavam da mesa contígua, discutiam ruidosamente sobre a pescaria que fizeram num trecho do rio Gair - pelos modos, propriedade do homem de saiote escocês. Um dos três, sujeito espalhafatoso, de cabelos louros e boca derreada, achava-se num estado muito menos do que sóbrio, e, quando se sentou, o seu olhar caiu sobre Mary Douglas. Refestelado no espaldar da cadeira, olhava-a de soslaio enquanto o garçom servia a "entrada"; depois, com um toque de cotovelo e uma piscadela, chamou a atenção dos companheiros.
- Olhe ali, que linda truta escocesa, Lindsay! Melhor do que tudo quanto você pescou hoje.
A risada foi geral, e os outros dois voltaram a cabeça e olharam para Mary.
- Vamos, acabe com essa sopa - disse Lindsay.
- Ora, leve o diacho a sopa! Convidemos a mocinha para vir sentar-se à nossa mesa. Não parece muito contente com o tio escocês. Que acham? Devo bancar o indispensável?
E fitou os outros, esperando confirmação e incentivo.
- Veja lá se se atreve, Harris - disse um de seus amigos, num arreganho de riso.
- Quanto quer apostar? - E o rapaz fez recuar a cadeira e levantou-se.
Walter, perturbado na sua matemática, percebera nervosamente a presença dos rapazes, nem bem estes entraram no salão. Naquele instante, ficou extremamente pálido nas bochechas e desviou o rosto...
- Não dêem confiança... . - murmurou. - Os outros não deixarão que se aproxime.
Mas Harris já avançava e, com uma mesura exagerada, inclinou-se diante de Mary e tomou-lhe a mão.
- com licença, queridinha. Quer dar-nos o prazer de sua companhia?
Moray viu-a encolher-se e recuar. Primeiro corara profundamente; agora, porém, todo o sangue fugira-lhe do rosto. Tinha os lábios pálidos e trémulos. Olhou suplicante para Walter. Willie fitava Stoddart com olhos arregalados e cheios de susto, onde também se lia indignação.
- Cavalheiro - gaguejou Walter, engolindo com dificuldade. - Não sabe que se está dirigindo à minha noiva? Isto é um atrevimento. Sou obrigado a chamar o gerente.
- Calma, tiozinho. Você não interessa. Venha comigo, queridinha. - E quis pô-la de pé. - Vai divertir-se à beça!
- Por favor, vá-se embora - disse Mary em voz baixa e magoada.
Algo impressionou o atrevido, pois se conteve. Hesitante, fez uma careta e largou-lhe a mão.
- Gostos não se discutem... - E, encolhendo os ombros: - bom... como não quer vir, levarei uma lembrança... - E apanhando as flores de Mary, apertou-as afetuosamente de encontro aos lábios e voltou cambaleante para seu lugar.
Fez-se um silêncio cavernoso. Dir-se-ia que todos olhavam para Walter. Especialmente o homem de saiote desbotado, observava-o com um franzir de lábio cruelmente sarcástico. Walter estava deploravelmente nervoso. Esquecendo sua intenção de conferir a
conta, apalpou a carteira, atirou precipitadamente algumas notas na mesa, e levantou-se como uma galinha arrepiada.
- Saiamos, Mary.
Moray levantou-se. Nada havia de heróico em sua natureza, não tinha fortes pendores para a luta moral, mas estava indignado... talvez ainda mais indignado porque desperdiçara o dia. Um súbito impulso nervoso, como que predeterminado, fê-lo avançar até à outra mesa. Baixando o olhar sobre Harris, que parecia não apreciar devidamente aquela aproximação, disse:
- Não lhe disseram que tratasse de tomar a sua sopa? Embora já seja um pouco tarde para isso, permita-me que o ajude.
E, agarrando-o pela nuca, Moray empurrou-o para a frente, e esfregou-lhe a cara uma, duas, três vezes, dentro do prato de sopa. Tratava-se da mesma sopa grossa, o potage à la Reine Alexandra, que, nesse intervalo, se sedimentara, de modo que Harris, quando levantou a cabeça para respirar, vinha pingando uma goma amarelada. Silêncio mortal dos outros, enquanto ele, com um gesto de quem nada, tateava o ar em busca do guardanapo. Moray apanhou o buque de campainhas-azuis, devolveu-o a Mary e ficou um minuto à espera, o coração batendo destabocado... Depois, como não acontecesse mais nada-a não ser quanto ao homem de saiote, que se pusera a rir - Moray acompanhou os outros para fora do salão. Willie aguardava-o, na escada. Apertou-lhe a mão fervorosamente, uma e muitas vezes.
- Muito bem-feito, David. Gosto muito de você.
- Sua interferência não era necessária - disse Walter, quando começaram a descer pela mata. - Estávamos completamente dentro de nossos direitos. Como se as pessoas decentes não pudessem tomar uma refeição em paz... Conheço esse Lindsay... é um lorde lavrador... Em sua propriedade não tem peixe ou pássaro que ele não alugue aos mais baixos peralvilhos de Londres... Mas darei parte às autoridades. Isto não vai ficar assim: é um escândalo público.
E nesse estilo continuou até que chegaram ao dique, ele repisando insistentemente os direitos do indivíduo e a dignidade do homem, e concluindo com uma derradeira explosão vindicativa:
- vou levar tudo isso ao conhecimento de meu pai!
- E que fará ele? - perguntou Willie. - Manda-o calar a boca?
A viagem de volta foi triste e silenciosa. Começara a chuviscar, e eles foram sentar-se no salão. Remoendo as ofensas recebidas, Walter finalmente deixara de monologar, enquanto Mary, que olhava
fixo para a frente, mal dizia uma palavra. Willie levara Moray a ver as máquinas.
Em Ardfillan, Walter, com um ar perdoador, ofereceu o braço a Mary. Caminharam para a padaria, em cujo pátio Moray pôs a motocicleta a funcionar.
- Bem... - e Walter estendeu-lhe a mão com displicência - acho que não voltaremos a ver-nos...
- Volte logo outra vez - atalhou Willie, rapidamente. - Não deixe de voltar.
- Até logo, Mary - disse Moray.
Pela primeira vez, desde a saída do hotel, ela o fitou; ofegava e tinha os olhos húmidos. Permaneceu muda, absolutamente muda. Mas no seu olhar firme pairava algo intenso. Ele reparou que ela já não segurava na mão o pequeno buque de campainhas-azuis: prendera-as na blusa, junto ao coração.
CAPÍTULO QUATRO
NO fim da semana subsequente, Moray foi bafejado pela sorte. Por especial deferência do registrador do protocolo, foi removido do departamento de externos da Enfermaria, e nomeado, por um mês, assistente interno das enfermarias do Professor Drummond, o que naturalmente significava sua mudança do miserável alojamento onde vivia para a residência no próprio hospital até os exames finais. Foi o Professor Drummond que, após ouvir Moray interrogar um paciente, certa vez observara, embora um tanto secamente:
- Você irá longe, rapaz. Tem um jeito especial para lidar com o doente; o melhor que ainda vi num estudante.
Além disso, Drummond era um dos examinadores de Medicina Clínica - fato esse significativo, que não escapou a Moray, e do qual ele pretendia tirar o máximo proveito durante as quatro semanas subsequentes. Estava sempre apostos e era assíduo, achava-se disponível a qualquer momento, era um demónio no trabalho, uma "peça" indefectível na enfermaria. Para um rapaz sempre pronto e sôfrego por trabalhar, um futuro como esse não oferecia dificuldades. Mas, em certo sentido, causava a Moray um indizível aborrecimento: a ausência de saídas com tempo suficiente para fazer a viagem de Ardfillan.
Desde o instante da partida, levada a efeito, após o regresso de Gairsay, forças estranhas vinham operando em sua alma absorta e ambiciosa. O último olhar de Mary, tão intensamente eloquente, golpeara-o como uma seta pontiaguda. Não podia fugir à visão de seu rostinho tenso, nem tampouco - e isto era ainda mais pressago - pretendia fugir. A despeito de todas as precauções, em momentos fragmentários do seu dia, fosse na enfermaria ou na sala de exames, pilhava-se a olhar distraidamente no espaço. Era a ela que via, em toda a sua doçura e simplicidade; e então subjugava-o um desejo de vê-la - o desejo de receber um sorriso dela, de ser reconhecido como seu amigo, pois até ali não se permitira recorrer a uma palavra mais forte ou comprometedora.
Alimentara a esperança de receber notícias dela ou do pai, talvez outro convite que, embora não pudesse aceitar, lhe apresentasse todavia uma oportunidade de tornar a entrar em contacto com a família Douglas. Por que não lhe escreviam? Como todas as atenções tinham partido deles, não queria impor-lhes sua presença sem ter antes a certeza de que seria bem-vindo. Devia certamente fazer algo... algo que aclarasse isso... que aclarasse essa incerteza. Finalmente, dez dias decorridos, e quando atingira um estado de considerável tensão, um cartão-postal, com vista de Ardfillan, foi-lhe entregue no hospital. O recado era breve:
Caro David,
Desejo-lhe saúde. Li mais coisas sobre a África. Por aqui tem havido algumas tropelias. Quando vem visitar nos? Tenho sentido falta de você.
Seu sempre, Willie
No mesmo dia, ao encerrar o plantão noturno, Moray foi à sala anexa e telefonou para Ardfillan. Após alguma demora, ligaram-no para o armazém de Douglas. Pelo fio que zumbia chegou-lhe a voz de tia Minnie.
- Fala David Moray - disse ele. - Recebi um lindo cartão de Willie, e pensei em telefonar para saber como vão passando.
Houve uma ligeira pausa, porém bem acentuada.
- Vamos muito bem, obrigada.
A frialdade do tom sobressaltou-o. Depois de alguma hesitação, prosseguiu:
- Tenho aqui outro encargo que me traz bastante ocupado: do contrário, teria telefonado antes.
Não veio resposta. Ele insistiu:
- Willie está aí? Eu gostaria de agradecer-lhe o cartão.
- Willie está estudando. Acho que não devo interrompê-lo.
- E Mary? - atirou Moray, quase em desespero de causa. - Gostaria de falar um pouco com ela.
- Mary saiu. com o noivo. Ultimamente esteve um pouco adoentada, mas agora já está quase boa. Deverá voltar muito tarde.
Agora foi ele que ficou calado. Depois disse, muito constrangido:
- Bem... Quero que lhe diga que telefonei... e que lhe mando muitas lembranças.
Podia ouvi-la resfolegando no aparelho. As palavras de tia Minnie
saíram-lhe precipitadas, como se ela as achasse difíceis de dizer, e entretanto precisasse botá-las para fora.
- Não posso encarregar-me de transmitir esse recado, e espero que o senhor não o repita. Além disso, Mr. Moray, embora eu não tenha o menor desejo de ofendê-lo, será melhor para todos, inclusive para o senhor mesmo, se, daqui por diante, evitar impor-nos sua presença nesta casa.
O fone do outro lado da linha desceu com um estalido. Moray pendurou lentamente o seu e saiu; piscava os olhos, como se tivesse recebido uma bofetada. No que foi que errara? Teria acaso imposto sua presença à família Douglas? Que fizera para merecer uma repulsa tão inesperada e dolorosa? De volta à sala, reservada ao assistente interno, no fim do corredor, sentou-se à escrivaninha e tentou encontrar uma explicação.
A tia nunca o acolhera favoravelmente, e devido às suas frequentes dores de cabeça, causadas, segundo ele suspeitava, por uma nefrite crónica, tinha génio irascível. Todavia, a causa devia ser mais profunda - sua dedicação a Stoddart, combinada com a súbita aversão que este aparentemente desenvolvera para com ele. Assim raciocinando, embora desanimadamente, não podia entretanto acreditar que Mary partilhasse daquela abrupta rejeição. Levado pelo impulso, apanhou na gaveta uma folha do receituário e escreveu-lhe uma breve carta, perguntando se não haveria uma oportunidade de se encontrarem. Nessa noite, como estivesse no plantão de pronto-socorro, não podia sair do hospital nem por um instante, mas conseguiu que um dos enfermeiros-aspirantes saísse a fim de postá-la.
Nos dias subsequentes, esperou resposta com crescente impaciência e ansiedade. Estava quase desistindo, quando, pelo fim da semana, a mesma chegou.
Caro David,
Quinta-feira, dia 9, irei a Winton com titia fazer umas compras. Se você puder me esperar perto do relógio da estação de Calcedônia, mais ou menos às seis horas, creio poder ir encontrá-lo ali, mas apenas por meia hora, pois devo tomar o trem das seis e meia para voltar. Espero que esteja passando bem e que não trabalhe demais.
Mary
P. S. - Willie espera que você tenha recebido o cartão-postal que lhe mandou.
A carta era fria como um horário de estrada de ferro; entretanto, debaixo da frieza, fluía uma corrente subterrânea que o agitou profundamente. A ausência daquela vivacidade que ela em pessoa demonstrara, que em verdade acentuara tudo quanto ela fizera quando em sua companhia, foi-lhe uma evidência dolorosa. Mas ia vê-la na próxima quinta-feira. Isto, pelo menos, já era uma vantagem.
Quando a quinta-feira chegou, seus planos já estavam preparados : combinara com Kerr, outro assistente interno, para que este fizesse duas horas de plantão, à tardinha. O Professor Drummond nunca chegava antes das oito, e a sorte ajudando, tudo correria bem. A tarde esfriou, e um nevoeiro caiu sobre a cidade, quando, saindo do hospital, ele tomou o bonde amarelo de Eldongrove. Receando chegar tarde, muito antes da hora indicada ele se achava na estação de Calcedônia, debaixo do grande relógio central. A hora era de atropelo, e sob a alta abóbada de vidro, impenetravelmente revestida do pó dos anos, multidões precipitavam-se para os trens locais. O lugar tresandava a vapor, nevoeiro e fumaça sulfúrea, reboava com os apitos estridentes das locomotivas que partiam. Das plataformas subterrâneas do "nível inferior", uma fumaça envenada subia em rolos serpentinos, como se proviesse do próprio inferno.
O relógio bateu seis horas. Depois de esquadrinhar centenas de rostos estranhos, Moray finalmente a viu. O coração batia-lhe ao vê-la aproximar-se carregada de embrulhos, seu aspecto inesperadamente reduzido e desprotegido entre a multidão que arremetia. Vinha vestida num costume castanho-escuro, de jaqueta curta com uma pequena gola de pele, e um chapeuzinho, também castanho.
Coisa alguma lhe assentaria melhor. Nunca a vira vestida com tal aprumo. Estava de uma distinção nunca antes suspeitada, e de repente ele começou a cobiçá-la.
- Mary!
E já a aliviava dos embrulhos, desenrolando os barbantes de seus pequenos dedos enluvados. Ela sorriu-lhe um tanto languidamente, pois parecia fatigada. O nevoeiro fuliginoso manchara-lhe as faces, pondo-lhe uma leve sombra sob os olhos.
- Então, conseguiu escapulir?
- Sim - disse ele, fitando-a. Houve entre eles uma pausa, depois ele acrescentou: - Esteve fazendo compras?
- Precisava comprar algumas coisas. Para a tia Minnie foi um verdadeiro cavalo de batalha. - Esforçava-se para falar com ligeireza. - Agora foi visitar uma amiga... Não fosse isso, e eu não poderia ter vindo.
- Não pode ficar mais tempo?
Ela sacudiu a cabeça, baixando os olhos.
- Estão à minha espera... em Ardfillan.
Haveria em sua resposta uma sugestão de que era vigiada? Pelo sim, pelo não, o seu ar fatigado perturbou-o, bem como o seu tom desatento, o modo pelo qual hesitava olhá-lo nos olhos.
- Parece que está precisando de uma xícara de chá. Vamos entrar ali?
E ele apontou com algum receio para o restaurante que, inundado de luz e atopetado até à entrada, tinha bem pouca semelhança com uma tranquila sala de lanche de Craigdoran. Ela, porém, já sacudia negativamente a cabeça.
- Tomei chá com titia no Fraser.
Ele sabia que aquele era o maior empório de móveis da região. O sangue afluiu-lhe à cabeça.
- Então saiamos daqui. Saiamos para fora deste horrível atropelo. Vamos dar um passeio lá fora.
Saíram pela porta principal e seguiram pela rua dos fundos, que conduzia à Praça Argyle e à ponta extrema da estação. O nevoeiro adensava-se, girando em torno deles, borrando as lâmpadas da rua e amortecendo o rumor do tráfego. Parecia que ambos caminhavam num mundo só deles; ele porém não a tocava, sequer ousava tomar-lhe o braço. Até mesmo as palavras que dizia eram guindadas, formais, sem a menor significação.
- Como vão os estudos? - perguntou ela.
- Vão bem... creio. E você? Em casa vai tudo bem?
- Muito bem, obrigada.
- E Walter?
Ela não respondeu imediatamente. Depois, como resolvida a revelar e explicar, de modo a não deixar a menor dúvida:
- Ficou transtornado, mas agora está melhor... Veja você, quis marcar a data do nosso casamento... Achei que era cedo demais... Preferi esperar um pouco... Mas agora está tudo assentado; será a primeiro de julho...
Seguiu-se uma longa pausa. "Primeiro de julho", repetiu ele surdamente; faltavam apenas três semanas!
- E sente-se feliz com isso?
- Sim - opinou ela com toda a naturalidade, com palavras que se diria terem sido inoculadas nela por alguém. - O certo é as pessoas jovens assentarem logo a vida e acostumarem-se uma com a outra. Walter é muito bom, e dará um bom marido. Além disso... - aqui hesitou ligeiramente, mas logo prosseguiu: - As relações com que conta na cidade ajudarão nos negócios. Meu pai é que não vai muito bem nestes últimos tempos.
Nisto, umas gotas enormes caíram sobre eles, e dentro em pouco desatava uma chuva torrencial. Procuraram abrigo no pórtico de uma loja fechada.
- Acredite que lhe desejo a maior felicidade, Mary.
- Também eu a você, David.
O pórtico estava completamente às escuras. Ele não podia vê-la, mas sentia-a com todos os sentidos, junto de si. Ouvia-lhe a respiração tranquila mas rápida, o cheiro de sua pele molhada chegava-lhe às narinas. Uma horrível fraqueza o invadiu, sua boca ficou seca, e as juntas se lhe afrouxaram tanto, que mal podia ter-se em pé.
- Não posso perder o trem - disse ela, quase num sopro.
Regressaram à estação. Faltava apenas um minuto para a partida. O trem de Craigdoran já estava encostado na plataforma. Ele ajudou-a a encontrar um assento no canto de um compartimento de terceira classe. Quando desceu para a plataforma, ela abriu a vidraça. Um apito estridulou, e a locomotiva soltou uma golfada sibilante de fumaça. Ela inclinou-se para fora. Estava medonhamente pálida. A chuva fizera-lhe escorrer a mancha do rosto, aglutinara sua golinha de pele... As pupilas se lhe dilataram, mais escuras... Uma veiazinha do pescoço latejava-lhe freneticamente.
- Então, adeus, David. - Sua voz tremia.
- Adeus... Mary. - A dor no peito era-lhe intolerável. Ela o deixava para sempre; nunca mais voltaria a vê-la.
Mas quando o trem começou a rodar, os dois juntos, num movimento instintivo, irresponsável, predestinado, estenderam os braços um para o outro. Abraçaram-se estreitamente, cegamente, apaixonadamente, e seus lábios se encontraram num beijo alucinado, delirante, incomparável. Como um ébrio, quando o trem, no fim da plataforma, acelerou a marcha, ele saltou do estribo, cambaleou, quase caiu. Ainda debruçada na janela, Mary foi carregada para a escuridão do túnel. Cheio de alegria, o coração de Moray palpitava loucamente. Lágrimas se lhe formavam sob as pálpebras, e, para sua maior consternação, agora lhe escorriam pelas faces abaixo.
CAPÍTULO CINCO
Subitamente, como de uma grande distância, veio-lhe a lembrança de que seu chefe devia vir às oito horas para realizar uma punção lombar num paciente que chegara naquela tarde à enfermaria. Precisava ir correndo para o hospital a fim de render o assistente Kerr. Precipitando-se da estação para dentro do nevoeiro, teve a sorte de saltar para um dos bondes de Eldongrove, o qual, embora de marcha bastante dificultosa, conduziu-o de volta em tempo hábil. Mas de que maneira passou as duas horas seguintes - isso é coisa que jamais pôde saber. Sua fala e movimentos eram automáticos, mal tinha consciência de sua própria presença na enfermaria. Uma ou duas vezes percebeu que Drummond o olhava intrigado sem contudo fazer nenhum comentário, até que afinal, nas proximidades das dez horas, pôde enfim voltar para seu quarto e dar vazão aos sentimentos.
Estava apaixonado, e com o êxtase do beijo dela que ainda perdurava em seus lábios, sabia que ela também o amava. Era, aquela, uma eventualidade que jamais, nem sequer remotamente, entrara em sua cabeça. Todos os pensamentos, todas as energias e todos os esforços, se lhe haviam concentrado exclusivamente em um único objetivo: sua carreira. O que queria era elevar-se do charco da pobreza e conquistar na vida um êxito deslumbrante. Bem, pensava ele, cheio de emoção, se podia fazer isso sozinho, por que não poderia fazê-lo com ela, estimulado e envigorado por alguém que, a despeito de sua modesta condição social, possuía todas as qualidades
da companheira perfeita? Não podia perdê-la; a só ideia de que isso pudesse acontecer fazia-o encolher-se como diante da ameaça de morte repentina.
Franziu o cenho; que devia fazer? A situação em que ela estava, com data marcada para o casamento dali a três semanas, exigia ação imediata. Suponha-se que, por algum equívoco, ele não pudesse impedi-lo. A ideia de Walter, esforçadamente exato, a exigir os plenos recursos de seus direitos conjugais até ao máximo limite, enchiam-no de horror. Isso bastava para enfernizá-lo. Devia escrever a Mary, escrever imediatamente, mandar a carta por via expressa...
De repente, ao estender a mão para a escrivaninha em busca de papel, o telefone do Pronto-Socorro tilintou. com uma exclamação de impaciência apanhou o receptor. Macdonald, telefonista noturno do quadro de distribuição, estava no aparelho:
- Mr. Moray...
- Ao diabo, Mac... que é? Outro alarme falso?
- Chamado pessoal para o senhor... vou ligar.
Fez-se um zumbido na linha. E logo a seguir:
- David...
Moray susteve o fôlego.
- Mary, é realmente você?
A voz chegava-lhe contida, mas intensa.
- Vim ao armazém... os outros estão dormindo, estou às escuras ... mas precisava falar com você... Querido David, estou tão feliz...
Num relance, uma doce visão lhe apareceu: Mary, vestida de camisola e de chinelos, na escuridão do armazém...
- Também eu, minha querida.
- Desde o primeiro minuto em Craigdoran... quando o vi no espelho... eu sabia, David. E ao pensar que você não me ligava, meu coração quase se partiu.
- Mas você sabe que ligo. Que sou louco por você.
Podia ouvir-lhe a suave e lenta respiração, mais excitante do que qualquer palavra que ela pudesse proferir.
- Não posso demorar-me, querido David. Apenas queria que você soubesse que jamais me casarei com Walter. Nunca, nunca... Nunca o quis. Deixei-me levar por conselhos alheios. Depois, quando julguei que você não se importava comigo... Mas agora direi a ele... Farei isso logo de manhã cedo...
Ele porém não podia consentir que ela enfrentasse sozinha a situação.
- Irei com você, Mary. vou pedir licença a Drummond.
- Não, David - disse ela, peremptória. - Há os exames. Isso é o que importa... para você terminar. Depois dos exames, venha diretamente para cá. Estarei à sua espera... - E hesitou: - Mas... mas se tiver um minutinho disponível, poderá me escrever nesse intervalo.
- Sim, Mary: escreverei. Até já comecei uma carta...
- Não posso esperar até recebê-la. Agora tenho de ir. Boa noite, querido David.
O fone foi recolocado no gancho. Agora, ela estaria galgando a escada da casa adormecida, rumo a seu quarto, pegado ao de Willie. Apanhando pena e papel, ele escreveu-lhe apressadamente uma longa e fervorosa carta; depois, despindo-se como em transe, atirou-se no leito.
Na manhã seguinte, como que inspirado, redobrou de esforços para o exame final. Sob o acicate desse supremo esforço, o tempo voava. Quando chegou o dia da prova, entrou na Sala Eldon, tenso mas confiante, e tomou seu lugar numa das carteiras. Distribuíram-se os primeiros papéis, e ele viu, num relance, que as perguntas iam-lhe a calhar. Começou a escrever sem levantar o olhar uma só vez, cobriu páginas e páginas com sua escrita legível e fluente.
Nos três dias subsequentes, nas idas e vindas entre o hospital e a Universidade, ocupava sempre a mesma carteira, decidido a desenvolver o máximo esforço, não só por ele, mas também por ela.
Depois, tiveram início os exames clínicos. Em medicina, diagnosticou o caso no mesmo instante: tratava-se de bronquectasia com abscesso cerebral secundário. Saíra-se bem, pensava. No último dia dos exames, realizou-se a prova oral. Drummond, sentado com o velho Murdo Macleish, mestre-régio de Ginecologia, conhecido como "Touro Escocês", e com Purvis, o examinador externo, fez-lhe um gesto amistoso, observando para os colegas:
- Esse é o sujeito que tem jeito para lidar com os pacientes...
- É mais que isso - disse Purvis, dando uma olhadela no diagnóstico de Moray.
Começaram as perguntas, e Moray - fluente, pronto a concordar, a sorrir com respeito, e, sempre, sempre, com deferência - sabia que estava dando o máximo de si. Mas o "Touro" atormentava-o. Essa personagem formidanda, a um tempo terror e amparo de gerações de estudantes escoceses, era quase lendária graças à sua brutal franqueza e humor obsceno. Na aula inaugural do ano letivo, costumava chamar para a plataforma algum rapaz mais acanhado, e, perante
toda a classe, atirando-lhe um toco de giz e apontando para o quadro-negro com um sorriso escarninho, ordenar-lhe, nos termos mais grosseiros, que fizesse uma representação pictórica das partes íntimas da mulher. Agora, porém, não falava muito, mas observava atentamente o examinando, com um olhar desconfiado nos olhinhos vermelhos. Terminado o exame oral, disse Purvis com um sorriso:
- Creio que não é preciso prendê-lo por mais tempo. - E quando Moray saiu, fechando a porta atrás de si, acrescentou: - Um ótimo rapaz.
O "Touro" sacudiu-se com irritação.
- Ótimo, com efeito - resmungou. - Mas embusteiro!
Os dois outros riram-se. Porque era idoso, ninguém levava muito a sério o velho Murdo.
Os resultados seriam afixados no sábado de manhã. Nesse dia, ao subir a comprida encosta em direção à Universidade, toda a sensação de segurança o abandonou. Enganara-se; não se saíra bem; havia malogrado. Quase não se atrevia a aproximar-se do quadro de avisos, junto à arcada principal. Mas o seu nome, junto com dois outros, encabeçava a lista. Passara com menção honrosa.
Sentiu-se desmaiar. Depois de tantos anos de luta abnegada, o triunfo daquele instante era inacreditável. Ainda mais o era, porque sabia que iria em breve reparti-lo com ela. Sem esperar pelas congratulações dos que se aglomeravam junto ao quadro, foi correndo para a filial do correio no sopé do monte Gilmore e passou-lhe um telegrama: Chegarei Ardfillan 5 e 30 tarde de hoje.
Esperava que, àquela hora, já ela tivesse regressado de Craigdoran. Efetivamente, quando ele chegou, ela estava na estação, à sua espera. Rápido, rápido, os olhos cintilantes, um tanto pálida, porém mais linda do que antes, avançou e, ofegante, alheia às outras pessoas que se achavam na plataforma, estendeu-lhe os lábios. Se naqueles últimos dias atropelados ele houvesse esquecido a frescura tépida de seu beijo, agora a renovava. Ao saírem da estação em caminho de casa, ele ainda lhe segurava a mão. Subjugados, nenhum deles pronunciara até ali uma única palavra inteligível. Moray entretanto percebeu que ela não ousava fazer a pergunta que mais a interessava; e embora tivesse planejado um longo e sensacional relato de seu bom êxito, disse simplesmente, humildemente, com o olhar posto nela:
- Passei, Mary... um dos primeiros da lista, com menção honrosa.
Súbito ela apertou-lhe nervosamente o braço com os dedos, e disse numa voz estrangulada de emoção:
- Eu já sabia que venceria, David querido... E estou contente, tão contente porque você passou... Agora podemos enfrentar juntos o que vier.
Ele inclinou-se para ela, preocupado.
- Houve alguma dificuldade para você aqui?
- Bem, não foi muito fácil. - E adoçou as palavras, erguendo para ele um olhar repleto de ternura. - Quando fui conversar com Walter no princípio ele pensou que eu estava brincando. Não podia crer no que ouvia, isto é, que alguma mulher o rejeitasse. Quando descobriu que eu era sincera, não foi... nada amável. Depois seus pais foram conversar com papai... e aí também foi ruim... - E sorrindo, constrangida: - Disseram-me uma porção de coisas feias...
- Oh Deus - gemeu ele. - Pensar que você teve de sofrer tudo isso e eu não estar aqui! Gostaria de quebrar o pescoço daquele sujeito!
- Não - disse ela, gravemente. - Creio que a culpada fui eu. Mas só posso agradecer a Deus que me poupou o horror de entrar para aquela família... - e, encostando-se a ele - e de ter conhecido você.
- E eu a você, Mary.
- Isso basta - disse ela suspirando. - Nada mais importa.
- Mas sua família não a apoiou?
- Sim, de certo modo - disse ela. - Mas, com exceção de Willie, não ficou muito satisfeita com o sucedido... Seja como for, aqui estamos; e acho melhor falarmos primeiro com papai.
Entrando por uma porta que abria para o pátio, Mary o conduziu para o interior da padaria. O lugar era baixo e escuro, muito quente, graças a dois fornos chapeados de ferro; e a massa fresca, de farinha levedada, tinha um cheiro adocicado de mel. Douglas e seu ajudante, John Donaldson, desenfornavam a pesada prancha coberta de duplas formas de pães escoceses, e, virando-os com a crosta escura para cima, enfileiravam-nos na prateleira. O padeiro estava em mangas de camisa, seu avental enfarinhado caía-lhe até aos pés calçados nuns velhos sapatos brancos de lona. Por cima do ombro viu Moray que entrava, mas continuou a pôr os pães em fila; depois, despindo lentamente o avental, aproximou-se.
- Então é você mesmo... - disse ele estendendo a mão sem sorrir.
- Pai - explodiu Mary - David passou no exame com menção honrosa; foi dos primeiros classificados.
- Então agora é doutor... Bem, já é alguma vantagem.
E, precedendo-os para fora da padaria, conduziu-os para a sala da frente do andar de cima, onde Willie fazia suas lições na mesa
vazia e tia Minnie tricotava perto da janela. O rapazinho deu a Moray um breve sorriso de boas-vindas, mas a tia, de carranca fechada sobre as agulhas lampejantes, nem ao menos levantou os olhos.
- Sente-se, homem, sente-se - disse o padeiro. - Tomamos chá mais cedo do que costumamos... mas... talvez depois, se você tiver fome, Mary lhe dê algo de comer.
David sentou-se numa rija cadeira junto à mesa; Mary puxou outra e sentou-se a seu lado.
- Saia da sala, Willie - disse a tia, espetando as agulhas no tricô e brindando Moray com um frio olhar perscrutador. - Está ouvindo, Willie?
Willie saiu.
- David, é preciso que você compreenda - começou o padeiro - que isto foi um choque para nós...
- E para todo mundo - atalhou tia Minnie, sacudindo a cabeça com indignação. - A cidade inteira não fala de outra coisa. Foi um verdadeiro escândalo, uma desgraça!
- E colocou-nos numa situação muito difícil - prosseguiu Douglas. - Minha filha deu sua palavra a um homem digno, bem relacionado e muito respeitado na cidade. Não estava apenas noiva, mas já de casamento marcado... quando, de repente, sem dizer água vai, rompe com tudo, graças a um perfeito desconhecido...
- Mas havia uma boa razão para isso, senhor: Mary e eu nos amamos.
- Amam-se! - exclamou a tia num tom significativo. - Antes de você aparecer aqui naquela abençoada motocicleta, feito um Lochinvari.1 mal acabado, ela amava Walter...
- Absolutamente. - E Moray sentiu a mão de Mary procurar a dele por debaixo da mesa. - Nunca o amou. E estou convencido de que nunca seria feliz com esse casamento. Disse o senhor que Stoddart é um homem digno. Acho-o um burro convencido, sem sensibilidade e dado à ostentação.
- Basta! - atalhou Douglas com severidade. - Pode lá ter as suas esquisitices... mas todos sabemos que é bastante sólido por dentro.
- E isto não sabemos se você é - lançou tia Minnie.
- Sinto muito a má opinião que fazem de mim - e Moray olhou suplicante para a velha. - Espero que mais tarde venham a pensar
1. Herói do poema Mormion, de Walter Scott. - N. T.
de outra maneira. Esta não é a primeira vez que se rompe um noivado. Antes tarde do que nunca.
- Certo - murmurou Mary. - Jamais quis casar-me com Walter.
- Então por que disse que queria, sua idiota? Perversa! Agora todos os Stoddarts estão contra nós! Vão odiar-nos! E você sabe o que isso significa para seu pai. --
- Sim, a perspectiva não é nada bonita... e quanto menos se falar nela, tanto melhor.
- Mas eu falo, James. - E tia Minnie voltou-se para Moray. - Você pode pensar que aqui conosco tudo é muito fácil, Mas não é. Longe disso. com todas essas sociedades de pão feito a máquina e de caminhões de entrega alvoroçando o interior (isso, para não falar das alterações que teremos de fazer para cumprir nova lei, relativa às padarias), meu irmão vem tendo um ano muito difícil, e sua saúde não está para que se diga. E Walter, por intermédio do pai, prometeu solenemente...
- Basta, Minnie, basta - disse Douglas levantando a mão. - Quanto menos disser, tanto mais fácil de concertar. Sempre vivi de pé nas minhas duas pernas, e, com a ajuda da Providência, espero assim continuar.
Fez-se um silêncio, e Moray, apertando a mão de Mary, dirigiu-se ao padeiro. Nunca se mostrara a uma luz tão favorável: seu rosto moço e inteligente irradiava sentimento e sinceridade.
- Compreendo que lhe causei bastante incómodo, senhor... e grande mágoa. Sinto muito, acredite. Mas há coisas que não se podem evitar... como o raio, por exemplo... quando ele fere a gente. Foi isso o que aconteceu entre mim e Mary. - E voltando-se a meio para tia Minnie: - Agora não me tem em grande conta, mas hei de lhe mostrar... que não se arrependerá se me aceitar como genro. Tenho um diploma, e um bom diploma. Arranjo emprego num abrir e fechar de olhos, e dentro em pouco terei uma clínica de primeira ordem. Tudo quanto desejo é ter Mary em minha companhia, e acho que ela também deseja isso. - E sorriu a cada um com aquele seu sorriso tímido, sedutor e convincente.
Fez-se uma pausa. A despeito de sua resolução de ficar firme, o padeiro não pôde deixar de sacudir a cabeça em sinal de aprovação.
- Muito bem falado, David. E agora que fez o pedido, confesso que desde o princípio... a exemplo de minha filha... - e sorriu para Mary - tive muita simpatia por você e por tudo quanto você fez. E, como o que tem de ser tem força, concordo em que fique noivo dela. Quanto ao casamento, deve haver um pequeno intervalo
um intervalo decente, para evitar escândalo na cidade. Arranje um emprego por três ou quatro meses, depois veremos. Que diz a isso, Minnie?
- Bem... - disse a tia contemporizando. - Não adianta chorar porque o leite se entornou... - Mas até ela amansara, impressionada com a fala comovente de Moray. - Talvez você tenha razão ... não se deve ser muito severo com eles.
- Oh, obrigada, pai... obrigada, tia Minnie - e Mary ficou em pé de um salto e foi beijar os dois. Tinha as faces coradas, uma madeixa de cabelo solta na testa. Atirou-a para trás, triunfalmente: - Eu sabia que tudo se arranjaria. E agora, tiazinha, posso servir alguma coisa a David?
- Traga as bolachas e o queijo. E um pouco daquele bolo de cereja da última fornada. Sei que ele gosta. - E lançou a Moray um olhar de esguelha. - Comeu seis pedaços na última vez que esteve aqui...
- Só mais uma coisa, pai - rogou Mary com uma expressão angelical. - David pode passar a noite aqui? Consinta, sim? Tenho-o visto tão pouco ultimamente!
- Sim, mas só esta noite. Amanhã que ele vá procurar emprego. - E uma ideia golpeou o bom padeiro, que acrescentou severamente. - E se está pensando em sair a passeio hoje de noite, Willie terá de acompanhá-la.
Andando rápido entre a cozinha e a sala, Mary colocou à frente de Moray uma pequena refeição escolhida; mas em face da magia daquele dia esplêndido, a comida era uma coisa sórdida e faltava-lhe apetite. Depois do chá, Mary pôs o chapéu e o manto. Qualquer movimento que ela fizesse, a Moray se lhe afigurava especial e significativo, precioso e único, adoravelmente feminino. Afinal saíram e, de braços dados no escuro, foram caminhando ao longo da Esplanada, acompanhados por Willie. O rapazinho, excitado pela reviravolta dos acontecimentos, estava com disposição para tagarelar, e fazia toda a espécie de perguntas a Moray, que não tinha a coragem de dizer que ele estava atrapalhando. Mary, inflamada por igual opinião, foi mais expedita.
- Willie, meu bem - disse com doçura ao chegarem ao fim da Esplanada - agora me lembro que esqueci de comprar os novelos listados de preto, que tia Minnie quer para amanhã. Aqui estão três pence. Vá correndo à loja de McKellar, compre dois pence de lã, e um pence de chocolate para você. Seja bonzinho, Willie. David e eu vamo-nos sentar ali até você voltar.
Quando Willie saiu, os dois entraram no abrigo de madeira, deserto àquela hora. Sentados num dos cantos, protegidos contra o vento, abraçaram-se estreitamente, o pulso da maré se confundindo com o pulsar de seus corações. As ondas rolavam na praia, uma estrela cintilou invisível no alto do céu. Os lábios de Mary estavam secos e tépidos, e a inocência de seu beijo, todo ardor de paixão, comoveu-o como nunca.
- David, meu bem - murmurou ela, o rosto encostado no dele - sou tão feliz que até podia morrer. Amo-o tanto! É como se meu peito estivesse prestes a romper-se.
CAPÍTULO SEIS
A cerimónia de formatura realizou-se alguns dias depois. Logo que restituiu o capelo e a beca alugados, Moray pôs-se a procurar emprego. Pelo menos dois lugares de interno estavam à sua disposição na Enfermaria: bastava-lhe pedir. Mas ali o salário era apenas uma magra pitança, e ele tinha há muito resolvido não seguir .a estrada laboriosa das promoções académicas. Havia ainda outros cargos de assistente à disposição, especialmente em clínicas do interior, mas que ele recusou logo de início. Bem sabia que as clínicas rurais não olhavam para honrarias académicas: queriam jovens enérgicos que comessem qualquer coisa e que, sem o entrave de uma esposa, saíssem da cama a qualquer hora da noite para atender a uma parturiente. Não: estaria perdido numa situação dessas; mas tampouco aceitaria qualquer cargo de assistente-substituto, fosse em obra de dispensário ou num emprego fortuito de alguma companhia de navegação. Tudo rejeitou. No seu próprio interesse e no de Mary, precisava encontrar algo melhor. Esquadrinhou atentamente as colunas do Lancei e do Medicai Journal, investigou os anúncios dos jornais locais na sala de leitura da Biblioteca Pública Carnegie. Já quase morto de cansaço, afinal descobriu, numa modesta lista conjunta da coluna de "procura-se" do Winton Herald, o seguinte anúncio:
Procura-se para o Hospital Glenburn, Cranstoun, médico-residente. Salário anual £ 500 e residência sem mobília. Contrato a iniciar-se a 1." de janeiro. Dirigir-se ao Departamento da Ditretoria da Saúde Pública de Wintonshire.
Moray respirou prolongada e fundamente. Convinha-lhe, exatamente lhe convinha, menos a data para se iniciar no emprego; isso, porém, comparado a outras vantagens, era um pormenor sem importância. Conhecia o hospital, frequentemente o admirara em suas excursões de fim-de-semana. Situado numa agradável região ondulante, à distância de uma longa viagem de trem de Winton, era conhecido no lugar como "Hospital da Febre", pois em certa ocasião se dedicara exclusivamente a doenças infecciosas. Agora, entretanto, ocupava-se principalmente com o tratamento de crianças tuberculosas. Era pequeno, naturalmente: não mais do que quatro pavilhões isolados com mais ou menos sessenta leitos, um escritório central e laboratório, dependência de enfermeiras e uma bela portaria de tijolos vermelhos. Não podia haver nada de melhor: o salário era generoso, tinha casa à disposição; claro, desejavam um homem casado, e o laboratório lhe facultaria facilidades de pesquisa. Uma jóia de lugar, dizia e redizia com seus botões. Entretanto, sabia que a concorrência ia ser acirrada, em verdade assassina, e ao levantar-se do banco da sala de leitura, tinha o aspecto de alguém a caminho da batalha.
A campanha que daí em diante desenvolveu foi com efeito, pela sua expediência, sutileza e perícia consumadas, digna de ser registrada e honrada como o exemplo clássico da luta por um emprego. De seus professores universitários conseguiu testemunhos e cartas de recomendação; de Drummond, uma apresentação pessoal ao médico-chefe de Saúde Pública de Wintonshire, e, por intermédio do pai de Bryce, que era magistrado na cidade, uma lista completa dos membros da diretoria. Em primeiro lugar visitou o médico-chefe e, cuja atitude, embora isenta de compromisso, foi deveras agradável; depois, o secretário, que, como amigo e irmão maçónico do velho Bryce, foi indubitavelmente cordial. E à noite, começou discretamente a solicitar os votos de todos os membros da diretoria, em suas próprias casas. Aí, tudo correu bem; ele até foi apresentado às robustas mulheres desses abastados cidadãos, nas quais, mercê de uma prudente timidez, abriu tépidas fontes de simpatia maternal. Finalmente, filou condução numa carroça de entrega a caminho das cercanias do hospital, fez amizade com um médico, candidato à aposentadoria numa clínica particular, apertou a mão da religiosa e enfermeira-principal, e, depois de uma tentativa realmente difícil, conquistou completamente a atarracada e austera enfermeira-chefe, que o convidou para o chá. As dificuldades de seus tempos de estudante, o amor romântico por Mary Douglas, seu
diploma com menção honrosa - tudo nessa altura compunha uma narrativa modesta, todavia fluente. Na confortável salinha da matrona, em face das xícaras de chá - era um chá de primeira, observou ele, e o pão-de-ló delicioso, feito em casa - ela o escutava com crescente simpatia.
- Veremos o que se pode fazer - declarou afinal, avançando o busto que a goma endurecia ao ponto de estalar. - Pois se alguém tem influência sobre aquele comité de cabeça virada... o lugar verdadeiramente lhe pertence.
Moray murmurou seus agradecimentos.
- Agora vou-me, senhora. Já tomei grande parte de seu precioso tempo.
- Absolutamente. Como vai regressar para a cidade?
- Da mesma forma por que vim - disse ele, jogando de improviso uma cartada sugestiva. - A pé.
- Quer dizer que veio a pé desde Winton? Até aqui?
- Bem, para ser perfeitamente honesto, senhora - e sorriu confusamente, sedutoramente, olhando-a nos olhos - aconteceu que eu não tinha a passagem de trem... por isso também voltarei a pé.
- Nada disso, doutor. Nosso chofer o levará de volta. - E tocou a campainha. - Irmã, vá à portaria e chame Leckie.
E ele entrou na cidade no assento da frente da velha ambulância Argyle. Ao regressar, Leckie apresentou-se à enfermeira-chefe e observou:
- Espero que o Dr. Moray venha trabalhar conosco. Ê um rapaz muito simpático... e muito inteligente, palavra! Disse que, se o aceitarem, vai trabalhar até gastar os dedos.
Como resistir a um tal virtuose, mestre em acionar todas as alavancas da emoção? Uma semana depois seu nome aparecia na "lista breve" de dez candidatos, e na reunião de vinte e um de agosto da diretoria, era ele indicado por unanimidade.
Além de sugerir discretamente que tinha emprego à vista, Moray nada mais dissera em Ardfillan sobre as maravilhosas perspectivas que Glenburn lhe oferecia. E porque vivera muito tempo sozinho, era de sua natureza uma certa reserva; não só isso, mas tinha um medo horrível de não conseguir o emprego. Agora, entretanto, cheio de ânsia, preparava-se para as alegrias de uma revelação triunfal.
Preparou o plano com sua característica minuciosidade. Primeiro foi ter com Gilhouse - o vendedor de livros da Universidade, localizado no sopé de Fenner Hill - e vendeu todos os seus compêndios, e também o microscópio. Tendo entrevisto no laboratório de Glenburn
um excelente microscópio Zeiss de imersão em óleo, já não mais precisaria do seu velho Wright and Dobson de segunda mão. com uma boa soma no bolso, dirigiu-se pelo Parque Eldongrove para um bairro menos insalubre, e entrou na casa de penhores da esquina da Rua Blairhill, onde, nos últimos cinco anos, fora a contragosto um cliente ocasional. Agora, porém, a situação se invertera. com tempo de sobejo, e prudentemente rejeitando o brilhante suspeito que lhe queriam impingir, escolheu, entre os penhores não resgatados, um fino anel de ouro, onde se engastava uma bonita
água-marinha. Posto num estojo de couro vermelho, forrado de veludo, era extremamente belo, e, ainda melhor, legítimo. com a jóia no bolso, tomou emprestada a motocicleta de Bryce e saiu para Craigdoran. Chegou às onze da manhã.
- Mary - exclamou ele caminhando diretamente para a sala do restaurante e passando o braço em torno da cintura dela. - Feche o armazém. Agora mesmo. Já, já!
- Mas David... preciso esperar mais dois trens...
- Levem o diacho os trens... com os passageiros dentro... e toda a Companhia de Estrada de Ferro Norte-Britânica. Vai sair comigo já e já. E como está com a mão na massa, ponha uns doces e uns sanduíches numa sacola.
Ela o fitou meio risonha, meio em dúvida, todavia cônscia de algo que a obrigava sob a alegria da voz de Moray.
- Está bem - aquiesceu finalmente. - Acho que por esta vez não vou arruinar o pai, nem a companhia...
Dez minutos depois saíam de motocicleta. Ele tomou a estrada de Stirling, virou a leste para Reston, e, cerca de uma hora depois de rodear os limites de Cranstoun, foi parar a um quarto de milha de distância da várzea de Glenburn.
- É por aqui que eu costumava passear, Mary.
Confusa, vagamente perturbada, Mary não compreendia por que estavam ali; entretanto acompanhava-o obedientemente através da várzea. Alcançaram enfim a curva de grades ornamentais que cercavam o hospital. Aí ele parou, cônscio de que já não era mais possível avançar. Ambos espiaram através do bonito gradil pintado. O sol brilhava no recinto, algumas crianças de paletó vermelho estavam sentadas com uma enfermeira num banco próximo a um trecho de relvado, um passarinho preto chilreava num jasmineiro um pouco mais além...
- Que lugar encantador - exclamou Mary.
- Acha?
- E você não, David? Parece uma pintura.
- Então escute, Mary - disse ele puxando um fôlego profundo. - Isso aí é o Hospital Glenburn. Esses quatro edifícios entre as árvores são as enfermarias. Em frente, o edifício da administração. E mais adiante, com o jardim nos fundos, é a residência do médico superintendente. Nada mau, hein?
- A casa é linda - respondeu ela cismadoramente. - E que lindo jardim! Conhece o morador?
Sem responder, ele prosseguiu, já agora pálido e respirando mais depressa.
- O médico-superintendente é o único encarregado do hospital. Tem todas as facilidades de pesquisa no laboratório. Ganha quinhentas libras por ano, mais os legumes da horta e casa grátis - aquela casa ali, Mary, na qual é legitimamente autorizado a morar com sua legítima mulher... - A voz lhe saía alterada de emoção. - Mary... a partir de primeiro de janeiro, haverá ali um novo médico-superintendente. .. e esse médico se acha em frente de você!
CAPÍTULO SETE
A viagem de regresso foi bastante lenta, com uma larga volta por Overton, que os levaria, através de Carse of Lounden, ao longo da praia sul do lago Lomond, para os alagadiços de Glen Fruin. A estrada era notável, uma das mais belas da Escócia ocidental, mas Mary nada via... nada... nada... nem mesmo a majestosa crista de Ben Lomond, alteando-se sobre o lago cintilante. Muda de felicidade, ainda aturdida pelo maravilhoso milagre que ele operara por sua causa, fechava os olhos e abraçava-o com todo o amor e gratidão de seu coraçãozinho transbordante.
Ele também era feliz - como podia ser diferente? Estava excitado com o efeito do plano que tão cuidadosamente ideara e tão acertadamente realizara. Mas, justiça seja feita, recuperou a calma, não provocou elogios, seu ar de natural modéstia conservou-se imutável. Amava e quisera impressioná-la, menos para satisfazer o sentimento de sua própria importância do que para desejar proporcionar-lhe uma explosão de súbita alegria. Ao contrário de Walter, que, exigindo o máximo de adulação, espremia até à última gota de caldo de qualquer situação provável, ele detestava manifestações em causa própria. Isso era algo que ofendia seus sentimentos requintados,
causando-lhe um grande desconforto. E não tinha acaso outra surpresa reservada para ela?
Ao se abeirarem do cimo da colina que levava do lago a Glen Fruin, ele fez uma volta e saiu da estrada, dirigindo-se a um dos relvosos trilhos de carneiros que ziguezagueavam pelos alagadiços. Seguindo a vereda por um quarto de milha, afinal foi encostar junto a um barranco do rio, fundamente mergulhado em urzes e avencas, abrigado por um maciço de prateados vidoeiros. Lá embaixo o alagadiço se estendia a perder de vista; todo ouro e púrpura. Dali podia Mary avistar a montanha e o lago, e toda a cintilante paisagem que lhe parecia celestial e que ela interpretava à sua moda.
- Que lugar bonito, David.
- Bonito para comermos nosso lanche - disse ele, brincando. - Essas voltas todas devem ter-lhe despertado o apetite.
- Estou muito transtornada para poder comer.
Mas quando se sentaram e espalharam o lanche sobre uma toalha axadrezada, ele a fez comer o seu quinhão, tanto mais que, ampliando as instruções que ele lhe dera, Mary tinha trazido uma refeição deveras substancial. Além de pãezinhos e sanduíches, havia ovos cozidos, tomates de Clydeside e um rolo de salame, tudo acompanhado de uma garrafa grande da famosa água "mineral" local, a Cerveja Ferrosa Barr, para matar-lhes a sede. Ela lembrara-se até mesmo de trazer o batoque de madeira com o qual empurrou para dentro a bola de vidro do gargalo.
- Oh, David... - murmurava ela entre os bocados. - Aquela casa lindinha... Não me sai da cabeça... Espere só e há de ver como cuidarei de você naquela casinha...
- Precisamos de mobiliá-la - advertiu ele. - Mas há tempo até janeiro. Agora que estou colocado, arranjarei alguma clínica, ou coisa parecida, para os quatro meses que faltam; isso nos dará dinheiro suficiente para começar...
- David, meu bem... você pensa em tudo.
- Mas quase me esquecia de uma coisa. - E mergulhando a mão no bolso do paletó: - Aqui está, mocinha. Antes tarde do que nunca.
Observando-a enquanto ela abria o estojinho vermelho, nunca ele se sentira mais profundamente comovido. Completamente muda, Mary olhou o anel que, à sua própria semelhança, era simples, porém belo. Não o elogiou, não agradeceu... mas, voltando-se, olhou David nos olhos, exatamente como fizera depois daquele dia em Garsay, e, com uma voz trémula, que ele nunca mais haveria de esquecer, murmurou:
- Ponha-o no meu dedo, querido. - Depois, com um leve Suspiro,
estendeu-lhe os braços.
Deitaram-se nas macias avencas sob o cálido sol da tarde. Abelhas zumbiam debilmente entre os cardos floridos, uma cotovia cantou subindo para o azul, o perfume da orquídea e do tomilho agrestes enchia o ar. Vinha na distância o rumor de um galo silvestre levantando voo, depois o silêncio caiu, apenas perturbado pelo suave ondular do rio. A saia dela estava ligeiramente levantada e ele pôs-lhe a mão no joelho, que acariciou amorosamente. Mary tinha os lábios entreabertos, levemente inchados pelo sol e quase purpurinos na suave palidez do rosto. As pálpebras descidas, ocultando seus negros olhos de gazela, tinham um matiz azulado, e na tepidez dos braços dele, ela tremia toda sob dedos que se moviam para cima, indo pousar na lisa pele nua de suas coxas.
O coração batia-lhe tão forte na caixa do peito, que seu latejar lhe subia precipitadamente até aos ouvidos. Só mais um movimento caricioso, e Moray encontraria o que buscava. Desejava-a, entretanto temia. Então, encostada a ele, ela murmurou:
- Se você quiser... serei sua, meu bem.
O sol escondeu-se por detrás de uma nuvem, as abelhas cessaram de zumbir, um maçarico, girando em círculo, lançou na altura seu grito doloroso. Deitados, ambos se calaram, até que afinal ele disse humildemente.
- Magoei-a muito, Mary?
- David, meu bem... - e ela afundou a cabeça no seu peito. - Foi a dor mais deliciosa que senti na vida.
Quando afinal se levantaram e apanharam as coisas do piquenique, ele rodou devagar, um tanto tristonho e penalizado, tocado por um melancólico sentimento de remorso. Não teria ele sido precipitado, comprimindo tanta alegria em tempo tão breve, arrancando tão cedo os primeiros frutos da felicidade? Ela era tão jovem, tão inocente - uma nova onda de ternura o invadiu - não devia ele ter-se contido, ter esperado? Em verdade, não se precipitara, desde o início, apressado e desatento? Não... mil vezes não... e afastando a ideia de si, tirou a mão do volante para mais uma vez premir a macia coxa da amada.
- Agora sou toda sua, David.
E encostou-se a ele, rindo com brandura em seu ouvido. De sua parte, nada de tristeza ou lamentação! Estava renovada, confiante, mais viva do que nunca. Meio voltado, ele viu-lhe os olhos húmidos e brilhantes - nunca antes a vira tão feliz. Talvez ela sentisse a vaga
depressão que o acometia, e alegremente, ternamente, possessiva como uma mãe, deu-lhe novo ânimo.
Tinham chegado ao pico que sobranceava Ardfillan quando, repentinamente, a pesada nuvem que escurecia o sol abriu-se sobre eles numa chuva torrencial. Ele depressa manejou o freio e deslizou rapidamente colina abaixo. Num ápice, chegou ao armazém, não sem antes ficar completamente encharcado. Mary, que viera atrás, escapara à maior violência da chuva.
No primeiro andar insistiu para que Moray vestisse um terno do pai; ele porém se recusou. Disse que verdadeiramente não estava molhado, que havia um bom fogo na lareira e que logo ficaria enxuto. No fim, transigiram: ele calçou os chinelos de tapete do pai dela, e vestiu um velho paletó de mescla que Mary descobrira numa prateleira.
O armazém estava fechado e tia Minnie apareceu, seguida logo depois por Douglas. Sentaram-se os quatro para a refeição da noite - Willie estava ausente, passando o fim-de-semana no Acampamento da Brigada
Infanto-Juvenil, em Whistlefield. No início, à medida que se serviam as xícaras em silêncio, Moray sentia-se dolorosamente embaraçado, a si mesmo perguntando se alguma intangível prova de pecado, se alguma aura remanescente daqueles delirantes momentos de satisfação nos alagadiços, não seriam perceptíveis em Mary e nele próprio. Mary tinha as faces coradas, e as dele, sabia-o, estavam pálidas, e tia Minnie lançava alternados olhares suspeitosos ora para um, ora para outro. O padeiro também parecia singularmente reservado e mais observador que de costume.
Mas quando Mary pôs fim ao silêncio, a tensão geral afrouxou-se. Moray prometera deixá-la dar a notícia da sua nomeação como melhor lhe parecesse, e ela o fez com um brio e um senso dramático que de longe superou o seu relato da manhã.
Primeiro, exibiu o anel, que foi muito admirado, embora a tia, cheia de má vontade, resmungasse um aparte:
- Espero que esteja pago.
- Creio que não devemos nos apoquentar com isso, tiazinha querida - respondeu Mary bondosamente, com uma pontinha de superioridade.
Começou em seguida a descrever o hospital, pintando-o em cores ainda mais brilhantes do que a realidade e passando sem pressa para o clímax, que foi tremendo.
Seguiu-se uma longa pausa; depois Douglas disse, profundamente satisfeito:
- Quinhentas libras e casa para morar... e a horta de legumes... é ótimo, rapaz... é uma beleza, não há dúvida.
- Sem falar no laboratório e na oportunidade de pesquisa - atalhou Mary, rapidamente.
- Isso vai ser - e a tia franziu os lábios, sibilando de satisfação - vai ser fel e vinagre para os Stoddarts.
- Cale-se, Minnie. - E o padeiro estendeu a mão para Moray. - Meus parabéns, David. Se algum dia alimentei alguma dúvida a respeito de você e de tudo quanto se passou, agora ela já se foi, e só me resta pedir-lhe perdão. Você é um ótimo rapaz. Estou muito contente porque minha filha vai casar-se com você, e muito orgulhoso por tê-lo como genro. Agora, Minnie, não acha que isto pede uma comemoração?
- Que dúvida! - exclamou Minnie, afinal conquistada.
- Então desça depressa, Mary, vá ao armarinho dos fundos... a chave está na gaveta de cima... e traga uma garrafa do meu velho Glenlivet.
Trouxeram a garrafa, e o padeiro, utilizando-se de açúcar e limão, e com a devida atenção quanto às várias diluições do velho conhaque, fez para cada um dos presentes um excelente ponche. A bebida era cordial, mas chegou muito atrasada no que tangia a Moray. Antes de se recolher, sentiu durante todo o tempo a camisa que se lhe grudava à pele húmida. O ponche aquecera-lhe a cabeça, mas seus pés estavam enregelados. Ficou mais aliviado quando o convenceram a passar a noite ali, mas tremia quando se deitou; tirou a temperatura - mais de 38 graus de febre; sabia que apanhara um forte resfriado.
CAPÍTULO OITO
Moray passou uma noite agitada e febril, e quando despertou do breve sono no qual caíra pela madrugada, não teve a menor dificuldade em diagnosticar seu próprio caso: fora acometido de bronquite aguda. Tinha a respiração difícil e dolorosa; mesmo sem o estetoscópio, podia ouvir os roncos do próprio peito, e sua temperatura subira para quase 40 graus. Esperou com um elogiável autodomínio até quase sete horas, depois bateu na parede que o separava do quarto de Mary. Ouviu-a mexer-se, e ela em breve aparecia.
- Querido, você está doente... - exclamou consternada. - Passei metade da noite com medo de que tivesse apanhado um resfriado.
- Não é nada grave. Mas terei de ficar na cama alguns dias e não posso incomodá-los tanto tempo aqui. Melhor telefonar para o hospital.
- Isso não farei. - Ela tomou-lhe a mão. Estava tão quente que seu coração se apertou. - Ficará conosco neste mesmo quarto. Tratarei de você. Quem mais o faria? com efeito!
- Tem certeza, Mary? - Subitamente veio-lhe o desejo de que ela tratasse dele. Depois, que amolação para conseguir uma ambulância e voltar para a enfermaria na qualidade de paciente! - Será por poucos dias. Se não for grande incómodo, ficarei...
- Ficará, sim - disse ela com firmeza. - E agora... devo mandar chamar o médico?
- Não, não, claro que não... Eu mesmo receito... - E, apoiando-se sobre o cotovelo, escreveu duas prescrições. O esforço levou-o a tossir.
- É tudo quanto necessito, Mary. E de algumas eventuais bebidas quentes... E... de você - rematou, forçando um sorriso.
Estava pior do que imaginava. Ficou dez dias de cama, com febre alta e uma tosse dolorosa. Ela o tratava com dedicação inexcedível. Embora como enfermeira não adestrada, tinha um talento surpreendente. com tia Minnie, aplicava-lhe cataplasmas, fazia-lhe nutritivos - caldos de carne,
dava-lhe geléia de mocotó às colherinhas, arranjava-lhe a cama, exercia ao máximo a sua inteligência prática e sua perícia de dona de casa para aliviar-lhe o sofrimento. No auge da crise, quando foram necessários banhos de vapor, ficou toda a noite acordada, tratando dele. O deslocamento operado na casa foi naturalmente muito grande. Refeições fora de hora; sono perdido; os negócios da padaria perturbados; e Willie, de volta do acampamento, teve de ir lavrar a terra em companhia de Donaldson, o capataz. No fim da segunda semana, quando enfim ele se pôde levantar e sentar-se numa preguiçosa perto da janela, pediu, envergonhado, desculpas a Douglas, pelo incómodo que a todos dera.
- Nem mais uma palavra, David... - atalhou o padeiro. - Agora somos uma só família. - E sorrindo: - Ou é como se fosse...
Depois que o pai saiu, Mary aproximou-se dele e ajoelhou-se junto da cadeira, agarrando-lhe firmemente os joelhos.
- Nunca diga que foi um incómodo para nós, David. Que teria acontecido a mim se você não sarasse?
Os olhos dele encheram-se de lágrimas: estava ainda muito fraco.
- Que esposa perfeita você vai ser, Mary! Não pense que não sei o que fez por mim.
Dentro em pouco já podia sair, caminhar com ela pela Esplanada, primeiro devagar, depois com um passo mais ligeiro. Afinal declarou-se curado, pronto para procurar um lugar de substituto que o sustentasse nos quatro meses subsequentes. Sentia ainda uma pontada de lado que o preocupava, mas nada disse a Mary. Queixar-se agora seria uma pobre recompensa aos esforços conjuntos, visando o seu bem-estar. Entretanto, na segunda-feira seguinte, quando viajou para Winton a fim de deixar seu nome na Agência de Empregos para Médicos, sentiu no flanco uma dor aguda, e achou que seria prudente passar pela enfermaria e pedir a Drummond que auscultasse o peito.
Era surpreendentemente tarde quando chegou de volta a Ardfillan, e Mary, que servia a uma freguesa no balcão, imediatamente percebeu o desânimo que o invadia. Assim que se viu livre, aproximou-se dele e fitou-o.
- Não teve sorte, David?
Ele tentou sorrir, mas pouco adiantou.
- A verdade é que não pude ir à agência.
- Que é que não deu certo, meu bem? - ela perguntou depressa, pois viu que ele tinha algo a dizer.
Naquele instante a porta da padaria rangeu e uma criança entrou para comprar bolachas. Moray sentiu-se aliviado pela interrupção. Maldito incómodo tudo aquilo, e que maldito espeto estariam todos pensando que ele era!
- Então, David? - voltou ela a falar.
- É difícil de explicar, Mary... - disse com voz fraca. - Explicarei lá em cima...
Era hora de fechar. Ela correu as venezianas e apagou as luzes, depois subiu a seu encontro na sala do primeiro andar. Seu pai e tia Minnie já estavam lá. Moray não sabia como começar, como dizer o motivo de sua visita ao hospital. Curvado para a frente, os cotovelos fincados nos joelhos, olhava para o chão...
- Por isso, quando cheguei lá, o Professor Drummond me examinou ... me fez passar pelos raios X e parece que tenho indícios de pleurisia no pulmão esquerdo...
- Pleurisia!
- Está bem localizada - disse ele, evitando mencionar a insistência de Drummond de que a falta de tratamento causaria uma tuberculose.
Esforçando-se para disfarçar o desânimo da voz, acrescentou: - Parece que isso invalida qualquer possibilidade de um emprego de emergência.
- Que se deve fazer então? - perguntou Douglas, com um aspecto tristonho, enquanto Mary permanecia calada, as mãos entrelaçadas.
- Bem... eu podia ir para o campo... para algum lugar não muito longe...
- Não, David - interveio Mary nervosamente. - Não nos deixará. Será tratado aqui.
Ele a fitou, desanimado.
- Impor minha presença a vocês por mais dois meses? Impossível, Mary. Como ficar rondando por aqui sem fazer nada! Que amolação para vocês... e com todo esse horrível incómodo que já dei? vou arranjar emprego numa fazenda...
- Nenhum fazendeiro de juízo dará emprego a um homem doente - disse Douglas. - O doutor... o professor não receitou alguma coisa definida?
Fez-se uma pausa. Moray levantou a cabeça.
- Se querem saber... Drummond disse que preciso de uma viagem por mar... na qualidade de médico de bordo, naturalmente... Até insistiu em telefonar para a Kinnaird Line... tem conhecidos na diretoria...
Fez-se um silêncio mais prolongado. Finalmente o padeiro disse:
- Arre, que isso afinal tem algum sentido! E se trata de saúde, meu rapaz... Isso tem grande importância. Gostaríamos que ficasse conosco. Mas você melhoraria com o inverno que está chegando? Não, não. O conselho do professor é sadio. Conseguiu arranjar-lhe alguma coisa?
Moray sacudiu a cabeça a contragosto, dizendo que sim.
- Há um navio... o Pindari, que sai na próxima semana de Tail of the Bank... para Calcutá... Uma viagem redonda - ida e voltado sete semanas...
Seguiu-se outra pausa, depois Douglas refletiu:
- Uma viagem à índia. Lá tomará bastante sol!
- Tem vontade de ir? - perguntou-lhe a tia.
- Santo Deus, não! Desculpe, tia Minnie. Ê a última coisa que desejaria fazer. Mas a paga é boa, noventa libras ao todo! com isso poderíamos mobiliar nossa casa, Mary.
Naquela noite o assunto foi repisado e definitivamente assentado. Apesar da diferença de opiniões, até Mary finalmente cedeu ao
simples argumento do padeiro: a saúde antes de tudo; antes de qualquer outra consideração.
- De que serve você para qualquer pessoa - para Mary, para você mesmo ou para Glenburn - se não sarar? Deve ir, rapaz; e não se fala mais nisso.
Na terça-feira seguinte ele saiu com Mary para Greenoch. Era uma tarde húmida e ameaçadora. Ele não apenas parecia, mas em verdade estava doente, e atormentado pela mágoa da separação próxima. Ela também, que era no entanto corajosa e estava resolvida a não voltar atrás. Sob o chapéu de mescla felpuda que o vento revirava, o impermeável abotoado até ao queixo, seu rosto se plasmava numa decidida aceitação. O Pindari, chegado na véspera de Liverpool para receber uma carga de lãs e de máquinas para fábricas de tecidos, atracara no estuário, onde jazia encoberto por um denso nevoeiro. O vento varria as docas com lufadas de fazer cambalear um cristão, mas ela insistia em ir ao cais para despedir-se, a mão sobre a dele na alça da velha mala de couro, cujo peso ambos partilhavam. Enquanto a barcaça baixava e levantava aos trancos da forte maré, eles se abraçaram estreitamente, apaixonadamente, sob um céu cinzento e melancólico. A chuva, como lágrimas, corria pelas faces geladas de Mary, mas seus lábios e respiração aqueciam. O coração cheio de dor, ele, por sua vez, não podia suportar a separação.
- vou correr o risco e ficar, Mary. Deus sabe que não quero partir.
- Mas deve fazê-lo no seu próprio interesse. Escreverei... Fico contando os minutos, até que você volte...
Um pouco antes de largá-lo e sair correndo pelo embarcadouro, tirou do bolso do impermeável um pequeno embrulho que premiu na mão dele.
- Para que se lembre de mim, David.
Na cabina da pesada barcaça, a caminho do Pindari, ele desembrulhou o pacote e olhou o que ela lhe ofertara. Era um velho e delgado medalhão de ouro, menor que um florim, jóia que pertencera à sua falecida mãe. Colocara no interior um instantâneo dela, e, no reverso, cuidadosamente comprimida, uma única flor dentre as campainhas-azuis que ele colhera para ela em Gairsay.
CAPÍTULO NOVE
MORAY galgou o passadiço balouçante e entrou a bordo. As mercadorias de Winton já tinham sido carregadas, e ele mal teve tempo de se apresentar ao capitão, antes que os reboques começassem a puxar cautelosamente o navio na descida do estuário. Ficou no tombadilho, esforçando-se para penetrar o nevoeiro que amortalhava a confusa linha da praia onde Mary devia estar contemplando a partida desse navio espectral. O coração lhe transbordava de tristeza e de amor. Havia poucas pessoas no convés. Sabia que regressava a Tilbury para apanhar a maioria dos passageiros, e o navio húmido e deserto, com seus gotejantes pontaletes, aumentava-lhe mais a melancolia. O profundo e opressivo toque da sereia dava-lhe uma estranha sensação pressaga. Quando enfim o nevoeiro se fechou de todo, obliterando a praia, afastou-se da amurada e desceu à procura do seu alojamento.
Sua cabina ficava na popa, do lado de estibordo, contígua à do engenheiro-chefe. Era mobiliada em madeira de teca polida, tinha cortinas vermelhas nas vigias, um armário de acessórios e prateleira para livros, um abajur vermelho junto à cama-beliche. compunha um conjunto deveras confortável. Uma pia com bacia de metal, que se podia levantar para esvaziar-lhe a água, estava posta num canto, e acima, numa grade protetora, via-se um ventilador elétrico. A sala de consulta e o dispensário, convenientemente situados do outro lado do corredor, eram igualmente bem providos. Embora o Pindari fosse um navio antigo (originariamente, o Isolas, da Linha Atlântica de Navegação de Hamburgo, confiscado depois da guerra), fora ele recondicionado da proa à popa, e era agora espaçoso, confortável e notavelmente apto para a navegação, capaz de fazer uns modestos dezessete nós na carreira lenta mas segura para a índia, levando carga e passageiros e tocando em vários portos.
Quando Moray abriu a mala, que continha alguns de seus poucos pertences - roupa interior lavada e passada por Mary, mais os dois uniformes de praxe, fornecidos pelos escritórios da companhia em Winton, - sentiu-se completamente exausto e com dor de lado. Um agitado Mar da Irlanda e uma péssima travessia do Canal não contribuíram para suas melhoras. Sentiu dificuldade em levar a bom termo seu primeiro dever - o de examinar a tripulação nativa, e havia noites em que a tosse incomodava tanto, que ele mal podia
dormir. Preocupado não apenas consigo, mas também com o engenheiro seu vizinho, um velho escocês chamado Macrae, ao qual certamente devia ter incomodado, tratou-se com codeína. Em Tilbury, no entanto, onde ficaram dois dias ancorados, uma carta de Mary lhe infundiu novo ânimo, e ao passar o Nore, já realmente a caminho da índia, começou a sentir-se o mesmo de outrora. O navio tinha agora vida própria, as hélices avançavam com uma palpitação mais vigorosa, vozes e risos ecoavam nas cobertas...
No salão de jantar, cada oficial ocupava seu lugar à cabeceira da mesa. Moray, na mesa dele, tinha por comensais apenas cinco passageiros, todos um tanto idosos, e - por que não confessá-lo? - monótonos: dois plantadores de chá, escoceses, bem avançados em idade - Henderson e Macrimmon - que regressavam a Assam; um tal Mr. S. A. G. Mahratta, diretor hindu de uma fábrica de tecidos de Cawnpore, e um oficial do Serviço Colonial Inglês com sua mulher ictérica e de ar severo - Mr. e Mrs. Hunthunter. com exceção dos plantadores, os quais, especialmente depois de uma sessão no bar, se inclinavam para a jocosidade, e de Mahratta, homenzinho intrometido e hipocondríaco, doente do estômago, que às vezes fazia graça sem querer, o tom geral das conversas era reservado e prometia ser difícil.
Agora, porém, vencida a escura turbulência da baía, o sol saiu de repente, e o céu e o mar ficaram muito azuis nos estreitos da costa a sudeste da Espanha e no rumo de Marselha, porto onde mais carga devia ser recolhida a bordo. Organizavam-se jogos de convés, e Moray foi advertido pelo primeiro-oficial - um irlandês alto e magro, de bom génio, chamado O'Neil - de que cabia ao médico organizá-los. Assim, munindo-se de papel e lápis, Moray começou a abordar os passageiros, primeiro com o sentimento da sua incapacidade para relações em grande escala, mas obtendo bom êxito, após algum acanhamento preliminar. Sua posição oficial tornava tudo mais fácil do que imaginava; não precisava procurar, era procurado; parecia que ser médico de bordo era uma posição de certa importância... Ao chegarem a Marselha, já havia feito várias listas de concorrentes aos jogos de convés - lançamento de disco,
amarelinha-de-bordo e tênis-de-mesa, - e começou a ouvir, não sem uma careta, que era frequente os passageiros referirem-se a ele como ao "nosso amável doutorzinho".
Em Marselha esperava-o uma carta de Mary, comprida de cinco páginas.
Leu-a avidamente na cabina, sorrindo aos retalhinhos de notícias, comovido pelo simples relato do que ela vinha fazendo,
sentindo em tudo uma constante solicitude pela sua saúde. Esperava que suas dores já tivessem passado, que tossisse menos, que estivesse tomando muito cuidado consigo... Enviava-lhe todo o seu amor. Querida Mary, como ele sentia sua falta. Na sala de cirurgia, acomodando-se à escrivaninha, respondeu falando-lhe de suas atividades, e ainda pôde alcançar o correio antes da saída da mala postal. O Pindari não demorou mais de doze horas no porto. Repleto de carga, trancaram-se as escotilhas quase no instante derradeiro (o trem de Paris chegara com atraso), e três novos passageiros entraram a bordo. Como quase todas as mesas do salão já estivessem tomadas, foram sentar-se na do médico, sendo os seus nomes acrescentados à lista dos viajantes: Mr. e Mrs. Arnold Holbrook, e Miss Dóris Holbrook. Moray examinou-os sub-repticiamente quando os três se sentaram à mesa do almoço.
Holbrook era um homem de cerca de sessenta anos, baixo, pesado e ofegante. Tinha uma cara vermelha cheia de manchas e poros dilatados, parcialmente coberta por uma barba curta e grisalha, e olhos congestionados, divertidamente perspícuos. Estava muito mal vestido, em verdade com um paletó esverdeado comprado feito, camisa de flanela cor de cinza e uma retorcida gravata castanha. Sua esposa, uma mulherzinha doméstica, de feições miúdas e expressão dócil, trazia, em agudo contraste, um pesado vestido de grande elegância e um complicado toque de sequins pretos. Envergava o vestido com uma visível sensação de incómodo; era como se a embaraçasse, e ela tivesse preferido um traje mais simples. Instintivamente, Moray visualizou-a num frouxo roupão estampado, a cumprir seus deveres domésticos numa cozinha bem sortida. Mas a dama ostentava tantas jóias, que a princípio ele supôs que fossem falsas. A filha parecia não ter mais de vinte anos. Era alta, de epiderme pálida e sem vida, bom corpo, cabelos escuros e olhos cor de ardósia, que ela, sentada ereta e muda, manteve taciturnamente abaixados durante a maior parte da refeição.
Não assim Holbrook. com sotaque de Manchester - cordialmente, expansivamente, e com um ar experimentado, quebrou o gelo da apresentação. com grande tato deu início à conversa, gracejou com Tamil, o garçom, até que este sorriu, provocou Mahratta a fazer um divertido relato de suas últimas dificuldades gastronómicas em Londres, o que fez que até mesmo os rígidos lábios de Mrs. Hunthunter sorrissem. Depois que despertou a mesa para a vida, casualmente revelou que seu filho se achava em Calcutá inaugurando uma nova filial da firma; que Dorrie - e olhou para a filha, que não
deu fé do seu olhar afetuoso - acabava de sair da Escola de Aperfeiçoamento de Miss Wainright, em Blackpool, e que essa viagem à índia era a um tempo de prazer e negócios. Só quando propôs encomendar champanha para todos foi que um olhar de censura da mulher lhe chamou a atenção.
- Está bem, mamãe - assentiu ele bem-humorado. - Bebê-la-emos no jantar. Concorda, Dorrie?
Dóris lançou-lhe um olhar de tédio.
- Pare com isso, papai. Já contou toda a sua vida.
- Minha filha é assim! - e riu-se com indulgência, com uma pontinha de orgulho. - Gosto que ela me repreenda para bem...
- E já era tempo.
- Ora, Dóris... - advertiu a mãe com brandura; depois, olhando em redor da mesa, acrescentou, à guisa de atenuante: - Nossa filha não anda muito boa ultimamente. E a viagem noturna foi verdadeiramente cansativa.
Naquela mesma tarde, cruzando o tombadilho rumo à sala de cirurgia, Moray deu com Holbrook parado diante do quadro de avisos, as mãos nos bolsos, olhos grudados na lista de esportes.
- Parece que alistou todo mundo a bordo, doutor.
- Percorri atentamente a lista de passageiros, senhor.
- A nossa Dorrie também gosta de esportes - disse. o outro, com um ar meditativo. - Parece que é taco em quase todos. Decerto arranjará um parceiro para ela, doutor. - Fez uma pausa. - E se fosse o senhor? Parece rapaz ativo.
Moray hesitou.
- Gostaria muito - disse, acrescentando rapidamente: - Se o regulamento o permitir... Falarei... falarei com o primeiro-oficial.
- Faça isso, rapaz. Dar-me-á muito prazer.
A impressão de Moray sobre a filha de Holbrook não tinha sido favorável e ele não queria ser arrastado ao papel de parceiro dela. Além disso, duvidava que, como tripulante, pudesse participar das competições. Entretanto, depois da última consulta, encontrou-se na ponte de comando com O'Neil e expôs-lhe a situação. O irlandês já se lhe mostrara amigável e prestativo, tendo-o ajudado eventualmente no cumprimento de seus deveres mais importantes.
- Claro que pode participar dos jogos, doutor - disse O'Neil num sotaque de Belfast, que se podia cortar à faca. - Espera-se que seja amável com as senhoras. Vi quando essa garota entrou a bordo. Parece que tem alguma coisa... - E O'Neil piscou o olho azul. - com um pouco de sorte, você até pode arriscar uma aventura.
- Não me interessa - respondeu Moray secamente.
Seu puro amor por Mary fazia dessa sugestão uma coisa revoltante, malgrado o bom humor com que lhe fora apresentada.
- Está bem. Em qualquer caso, seja amável com ela. Isso não lhe fará mal e poderá trazer-lhe algum bem. O velho está nadando em dinheiro. Laboratórios Farmacêuticos Holbrook. Começou com uma farmaciazinha de arrabalde, em Bootle. Arranjou uma fortuna cem pílulas. - E arreganhou um sorriso. - Fez funcionar os intestinos da humanidade. O remédio era o purgante. Isso me faz lembrar: já ouviu essa? - O'Neil, coração intrépido e galante, que fora torpedeado durante a guerra e nadara cinco horas no Oceano Atlântico antes que o salvassem, tinha verdadeira mania por anedotas picantes. Submetendo-se a ouvi-lo, Moray preparou a risada enquanto o outro relatava: - Um ianque vinha vindo por uma rua de Chicago, quando outro ianque, parado na calçada, o abordou. "Pode me dar o endereço de um bom farmacêutico?" - pediu ele. "Mano - disse o outro com uma pressa furiosa - se quiser o próprio farmacêutico de Deus, só tem de..."
E à expressão impublicável, O'Neil deu ao boné um ângulo mais empinado e debruçou-se na bitácula, rindo a bandeiras despregadas.
Moray ficou mais meia hora no tombadilho, andando de cima para baixo com o primeiro-oficial, vendo o litoral da França diluir-se na distância. Batia-lhe as faces um vento tonificante, sempre mais forte na proa. Drummond tinha razão: havia saúde no travo salgado do mar largo. Como melhorara, e como a vida a bordo era agradável! Esquecera-se da promessa que fizera a Holbrook; mas quando desceu, lembrou-se da filha, e, com um encolher de ombros, inscreveu seu nome e o dele num jogo de duplas.
CAPÍTULO DEZ
O tempo continuava bonito, o mar calmo, o sol brilhante; o dia
matizava-se de ocasos cor de violeta, diluindo-se em límpidas noites veludosas, onde o Pindari ia traçando a sua esteira fosforescente. Aquele era o mar de Jasão e Ulisses. De madrugada, dir-se-ia que o navio estava suspenso entre o céu e a água, intemporal e fantástico, não fosse a Sardenha aflorar a estibordo, sua saudável fragrância trazida para bordo por uma brisa suave e propícia.
Respirando fundo esse ar aromático, sem dor ou obstáculo, percebeu
Moray que sua pleurisia se acabara. Já não mais lhe era preciso aplicar no peito o estetoscópio. Tinha a pele curtida, nunca na vida sentira-se melhor. Depois de todos aqueles anos de incessante labutar, suas presentes condições de existência eram demasiado boas para serem verdadeiras. Acordado às sete pelo cabineiro, que vinha da cozinha na ponta dos pés, trazendo-lhe o chota hazri de chá e frutas frescas, levantava-se meia hora depois, dava um mergulho na piscina da coberta de esporte, depois vestia-se. O desjejum era às nove, depois do que ele fazia o seu giro de visitas, ou; uma vez por semana, acompanhado pelo Capitão Torrance, a inspeção oficial do barco. Das dez e meia ao meio-dia ficava em seu gabinete médico. O almoço era à uma, e, com exceção de uma ou outra consulta às cinco, ficava livre o resto do dia, só lhe incumbindo nesse ínterim o exercício da amabilidade e da atenção para com os passageiros. Às sete e trinta o melodioso gongo ribombava acima e abaixo dos corredores - e era um som sempre bem-vindo, uma vez que as refeições primavam pela sua excelência, bom tempero e abundância, sendo especialmente delicioso o caril nativo.
Na segunda-feira seguinte começaram as competições, e antes das oito, lembrando o compromisso, Moray fechou a sala de cirurgia e subiu à coberta de esportes para a primeira fase da dupla de ténis. Dóris já estava lá, de saia curta e colete forrado, postada junto dos pais, que, para constrangimento de Moray, ocupavam duas cadeiras vizinhas à quadra, para nada perderem do jogo. Enquanto ele pedia desculpas pelo atraso (em verdade, não se atrasara), ela permanecia muda e mal o olhava. Como saber se era nervosa, ou, segundo desconfiara à mesa do jantar, simplesmente perversa?
Seus oponentes, chegaram - um casal holandês recém-casado, os Hendricks, que ia a caminho de Chitagong - e o jogo começou. Ao princípio, Dóris se mostrou desatenta e errática, e embora ele nunca antes tivesse jogado ténis, tinha o olhar rápido e conseguiu anular os erros dela, que não levou em conta e corrigiu com seu costumeiro bom humor. Diante disso, a moça deu de si e começou a jogar brilhantemente. Tinha o corpo esguio porém bem desenvolvido - seios e quadris bonitos e arredondados, longas pernas bem feitas que a saia curta entremostrava. Os Hendricks, par gorducho e de pés pesados, não eram adversários para eles, que venceram belamente seis partidas contra duas.
Ao dar-lhe os parabéns, dizendo, "Seu pai me disse que a senhorita era boa no esporte, e é mesmo", ela lhe atirou um de seus raros olhares diretos, transitório e grave.
- Sim - observou - ensinaram-me alguns golpes... e outros eu mesma os aprendi. Mas não vai oferecer-me um drinque? Vamos Tomá-lo aqui em cima.
Quando o garçom surgiu com dois altos copos de limonada e gelo picado, ela se estendeu na espreguiçadeira de bordo, entrecerrou os olhos, e
pôs-se a bebericar o drinque com um canudo de palha. Ele olhou-a meio sem jeito, sem saber o que dizer - situação deveras estranha para quem, como ele, invariavelmente encontrava a palavra exata para cada ocasião. O calor do jogo trouxera alguma cor à pálida epiderme da moça, e levou o colete a aderir-lhe estreitamente aos seios, de modo a entremostrar os seus róseos mamilos apontando através do ralo algodão humedecido. É bonita, pensou Moray quase irado; mas que diacho acontece com ela? Perdeu a língua? Decerto que não, pois de repente ela pôs-se a falar:
- Estou contente porque ganhamos. Queria derrubar esse nojento casal de pombinhos holandeses. Já imaginou como serão na cama? Desculpe-me a estultícia, meu caro, mas gostaria de ganhar todas as partidas, ainda que fosse apenas para irritar os nossos deliciosos companheiros de viagem. Que gentalha! Detesto-a; e você?
- Não, não posso dizer isso.
- Mas não é possível! São uma gente pavorosa, principalmente a que se senta à nossa mesa, a tal de Mrs. Hunt-hunter - uma bruxa com cara de cavalo. Põe-me doente. É vulgar como a lama, palavra que é. E o navio, uma droga. Eu não queria fazer esta maldita viagem. Foram meus carinhosos pais que me arrastaram pelos cabelos para bordo. Minha cabina é considerada uma das melhores da coberta. Papai pagou um dinheirão por ela. Você verá. Um canil, com uma banheira que mais parece uma pia de cozinha. Isso é o pior; pois se há algo de que gosto, é de um bom banho. E você pode imaginar? Os nativos a servirem à mesa! Por que não nos arranjam garçons brancos?
- O garçom da nossa mesa me parece muito decente e amável.
- Ainda não reparou como cheira mal? É de morte! Tenho o nariz muito sensível. Isso tem algo a ver com os nervos olfativos, disse o médico a mamãe. Lero-lero desse saco de vento! A coisa é a seguinte: gosto das pessoas que cheiram bem.
- Será que eu cheiro assim? - perguntou ele, ironicamente.
Ela riu, espichando as pernas escancaradas.
- Quer saber? Francamente, você é a única luzinha no horizonte. - Não percebeu, naquele primeiro almoço, que simpatizei com você? Para ser franca, pedi a papai que o arranjasse para meu parceiro.
Ele não é mau: apenas bebe um pouco demais. Mamãe seria passável, se não cacarejasse tanto no que me diz respeito. Mas tenho de os pôr em ordem; frequentemente os congelo para que façam o que eu quero. Estou falando muito. Às vezes falo todo o tempo, outras vezes não falo nada, absolutamente nada. É assim que gosto de tratar as pessoas. Sou orgulhosa. Costumava deixar maluca a velha Wainright. Quando ela começava a pregar sermão, era só eu olhar e entrar em estado de coma.
- Refere-se à diretora?
- Sim - disse a moça com displicência. - Expulsou-me.
- Por que diacho fez isso?
Ela abriu um sorriso lento:
- Isso lhe será revelado no próximo número.
Na tarde seguinte, Dóris e o médico jogaram com bom êxito duas partidas de amarelinha-de-bordo e de lançamento de discos, com os pais da moça tornando a servir de espectadores. Moray gostou dos jogos. Nunca antes conhecera alguém como ela, tão divertidamente preconceituosa e intolerante, tão segura de suas próprias prerrogativas, e, no entanto, trazendo bem no fundo uma veia de lugar comum, quase de vulgaridade, que redimia suas intenções. Saber que ela gostava dele, lisonjeava-o. Agora via que os Holbrooks caducavam com a filha, apesar da irresponsável que ela era, e ficou menos surpreso do que devia quando os viu levantarem-se e avançarem para ele, surpreendidos e felizes com a tríplice vitória, Mrs. Holbrook, principalmente, teve para com ele um sorriso notavelmente cordial.
- Conseguiu que a nossa Dóris saísse da casca - observou ela. - E o senhor também saiu: sua atuação foi muito boa.
Dóris, que estava prestes a sair, não disse nada; mas pondo os olhos nos dele, sorriu-lhe de um modo peculiar. Moray conversou um pouco com os pais dela; depois, ao descer para a sala de cirurgia, observou que eles cochichavam, Mrs. Holbrook aparentemente instando para que o marido entrasse em ação. com efeito, alguns minutos depois, Holbrook rolou dispensário adentro - viçoso, jubiloso e gárrulo.
- Não estou doente, doutor. Não tenho nada. Só quero uma dose de bismuto. Nada como bismuto para o estômago. Onde o guarda? Deixe que eu mesmo me sirvo.
Moray apontou-lhe o frasco de bismuto, pensando, ao vê-lo derramar uma generosa dose na palma da mão, se não devia alertá-lo sobre o estado de seu .fígado, palpavelmente cirrótico. A maior parte
do tempo, em companhia de Henderson e Macrimmon, os dois plantadores de chá, o velho, com exceção de suas visitas à coberta de esportes, era praticamente uma peça da mobília do bar.
- Isso é o que serve - exclamou Holbrook lambendo o montículo de pó branco com preênseis lambidas de sua língua saburrosa. - E aqui está o pagamento, doutor.
- Santo Deus, sir... Não posso aceitar tanto... é... é demais!
- Doutor - disse Holbrook fitando devagar Moray com seus olhinhos astutos e congestionados - se quer conselho de um homem que viu muita coisa neste mundo desgraçado... quando lhe aparecer uma boa oportunidade, agarre-a!
E com uma cálida generosidade, apertou na mão do médico uma nota de cinco libras.
Pensativamente recolocando o frasco na prateleira depois que Holbrook saiu, Moray, que se deixara contagiar pelo vocabulário de O'Neil,
pilhou-se a rir: "De agora em diante, o melhor será ganharmos todas as competições."
Mas isso não era mais que uma atitude. A moça começara a interessar-lhe, como tema de estudo. Às vezes parecia-lhe muito madura para a idade que tinha, outras vezes, muito retardada. Um dia estava taciturna, no dia seguinte divertida e provocantemente palradora. O que ele mais admirava nela era a sua completa indiferença ao que as pessoas pudessem pensar a seu respeito. Não procurava a popularidade, e, ao contrário dos que já se chamavam pelos primeiros nomes em grupinhos exclusivos, ela antes parecia gostar de ficar de fora. Tinha especial talento para arremedar as pessoas e podia ser terrivelmente grosseira com quem pretendesse adulá-la ou mostrar-lhe afeição. Sua atitude descurada se estendia até aos objetos pessoais, dos quais possuía uma grande variedade. Estava sempre esquecendo uma bolsa, uma écharpe ou um suéter na coberta, deixando que se extraviassem coisas valiosas sem que isso lhe importasse um caracol. Essa complexidade de caráter despertava curiosidade no rapaz. Quando, ao almoço ou ao jantar, ela o fitava com seu sorriso disfarçado ou enigmático, ele ficava mais perplexo do que nunca. Por mais singular que isso parecesse, inclinava-se a ter pena dela.
Tudo isso emprestava sabor de interesse àquilo que, durante as competições, a mãe expressara tão ineptamente pela frase "tirar Dóris para fora da casca". Em verdade, a competição nos jogos não era muito acirrada, uma vez que quase todos os passageiros eram idosos. Apenas um par parecia oferecer uma forte oposição, os Kinderleys,
- casal com dois filhos que regressava a Kadur, no Misore, após três meses de licença. O marido tinha cerca de trinta e cinco anos, era excessivamente cordial e franco, gerente de uma pequena propriedade de café a quem prejudicara grandemente a crise causada pelo excesso de produção do Brasil. Sua mulher, que tinha fama de ótima tenista, era uma mulherzinha agradável, de expressão menos grave do que franca.
Sentavam-se à mesa do primeiro-oficial. Enquanto o Pindari se aproximava do Canal de Suez, Moray e sua parceira, que tinham jogado bem, ficaram para as três semifinais. Assim também os Kinderleys.
Na véspera da chegada a Porto Said, Mrs. Holbrook, sentada na coberta de passeio, acenou para Moray, indicando-lhe a cadeira ao lado. Em várias ocasiões tinha ele sido honrado com esse convite, e, em resposta às ternas perguntas que ela lhe fazia, revelara-lhe o suficiente de suas primeiras lutas - de algum modo, comparáveis às dela - a fim de conquistar-lhe a simpatia. Agora, após um comentário sobre o tempo admirável que fazia e uma pergunta sobre a hora de atracação do navio, ela inclinou-se para ele.
- Amanhã desceremos à praia para ver a cidade e fazer algumas compras. Esperamos que nos acompanhe.
Ele sacudiu a cabeça.
- Sinto muito, Mrs. Holbrook. Preciso ficar a bordo. Tenho as guias de saúde para preencher. E há um marinheiro doente que precisa ser internado.
- Que pena - disse ela, consternada. - Mr. Holbrook não podia falar com o Capitão Torrance?
- Oh, não! - atalhou ele depressa. - Isso está fora de cogitação. A guia sanitária é mais importante... O navio não poderá zarpar sem ela.
- Bem - disse Mrs. Holbrook. - Contávamos com você. Dóris é que vai ficar desapontada.
Seguiu-se uma breve pausa; depois, num tom confidencial, ela começou a falar sobre a filha. Dóris era um amor de garota, a menina dos olhos de seu pai, mas tinha sido... bem, tinha sido uma pequena preocupação para ambos. Era como se eles não lhe tivessem proporcionado o melhor de tudo quanto havia, sim, por exemplo, a melhor educação que o dinheiro podia dar... A escola de Miss Wainright era uma das escolas mais seletas do Norte da Inglaterra. Dóris falava francês e tocava piano deliciosamente, mesmo em se tratando de peças clássicas. Recebeu toda a espécie de lições particulares de ténis e coisas assim, lições de elocução e de
etiqueta; o pai queria assegurar-lhe todas as vantagens da existência. Mas Dóris era uma garota tão sensível! Não era difícil, isso não, mas... bem... era temperamental, talvez, e embora fosse às vezes muito viva e muito franca, dava ocasionalmente para ficar deprimida - exatamente o contrário de seu irmão Bert, que era invariavelmente o sujeito mais alegre do mundo. Mrs. Holbrook fez uma pausa, e seus olhos cintilaram à lembrança do filho. Pois bem, concluiu ela, não diria mais nada, a não ser que estava muito grata, e também Mr. Holbrook, pela maneira por que ele se interessara por Dóris. Fizera-lhe um bem enorme, tirando-a, como se diria para fora da casca.
Moray emocionou-se. Gostava daquela mulherzinha chã, ajoujada de dispendiosas tetéias e vestidos impróprios, que o marido amontoava em cima dela; mulherzinha que pouco se importava com a sua origem; que, a despeito da fortuna de Holbrook era inteiramente isenta de pretensões sociais, e que entretanto se 'mostrava tão preocupada, e até mesmo angustiosamente solícita com a filha. Todavia ele mal sabia o que responder, e viu-se obrigado a recorrer à simples polidez.
- Dóris é uma excelente garota. Estou certo de que superará suas pequenas dificuldades. Repare como se vem saindo nas competições. Mas, naturalmente, se houver alguma coisa em que eu possa ajudar...
- O senhor é muito bom, doutor. - E Mrs. Holbrook apertou-lhe a mão, maternalmente. - Não preciso dizer que todos nós simpatizamos muitíssimo com o senhor.
CAPÍTULO ONZE
Às dez horas do dia seguinte estavam à vista de Porto Said. Passavam a rebentação com sua grande estátua de Lesseps, e após uma hora à espera de que fosse içada a bandeira amarela da quarentena, o Pindari atracou no cais e começou a carregar óleo e água. À altura do meio-dia, todos os passageiros que pretendiam ir a terra tinham abandonado o navio. Os Holbrooks acenaram a Moray enquanto desciam o passadiço, e ele sentiu pena de não estar junto deles. Vista do tombadilho, a cidade apresentava um ar misterioso e sedutor. Para lá do amontoado de galpões das docas, ela se estendia amarela e branca, sobre um horizonte enevoado pelo calor. Brilhantes
tetos e balcões de azulejo cintilavam ao sol. Dois minaretes gémeos, em forma de lápis, erguiam-se delicados acima das estreitas ruas apinhadas, cheias de cor, de som e movimento. Que pena ele não ter podido aceitar o convite de Mrs. Holbrook!
Tinha, entretanto, muito que fazer. O lascar, na enfermaria de bordo, era um caso suspeito de osteomielite, e quando o médico portuário confirmou o diagnóstico, houve papéis a assinar e irritantes delongas a serem vencidas, antes que o doente pudesse ser removido de ambulância para o hospital. Era ainda preciso examinar as caixas-d'água, depois do que o capitão mandou chamá-lo, e assim o tempo correu. O navio estava cheio de mascates, polícias, estivadores, visitantes egípcios e agentes de companhias. Bateram quatro badaladas antes que ele se visse temporariamente livre, e, como a mala postal se fechasse dentro de meia hora, ele mal teve tempo de acabar e datar a carta para Mary, que ele fora escrevendo nos momentos de folga dos últimos cinco dias. Sentia-se culpado pela delonga, tanto mais que, quando o carteiro entrou a bordo às seis horas, havia na sacola, para ele, três cartas de Mary e mais uma que, pela letra, julgou ser de Willie. Não querendo lê-las à pressa naquela hora de atropelo, resolveu guardá-las no armário e saboreá-las à vontade quando voltasse à noite para a cabina. Ainda tinha de preencher em duplicata uma guia de pedido de suprimento extra de emetina - grassava na cidade uma epidemia de disenteria amebiana, dizia-se - que ele conseguira do médico portuário como medida de precaução. Depois de preencher os formulários da companhia, levou-os ao escritório do comissário. Só então se lembrou de que era esperado na sala de fumar, onde deveria encontrar-se com os Holbrooks, que o tinham convidado para um drinque antes do jantar. Sabendo-se atrasado, precipitou-se pelo tombadilho de passeio, dando encontrões nos passageiros, dentre os quais, muitos em estado de grande hilaridade, com fezes na cabeça e carregados de compras de bazar: caixas de doces cristalizados e cigarros egípcios, feitos, segundo O'Neil, de estrume de camelo; modelos da Esfinge em terracota; artigos de latão, cobertos de hieróglifos - em sua maior parte, puro ferro-velho, Macrimmon, muito bêbado, envolvido num albornoz branco, comprara um feto metido numa garrafa.
Os Holbrooks tinham regressado mais cedo e já esperavam, os três, quando ele empurrou as portas de vidro da sala de fumar: o pai, a mãe e Dóris, rodeados de uma porção de embrulhos. Holbrook, de excelente bom humor, encomendou os drinques: uísque
2. Marinheiro da índia. - N. T.
duplo para ele, coquetéis de champanha Para os outros. Mrs. Holbrook, que raramente "se entregava" e em geral tentava reprimir o marido, deixou-se convencer à alegação de que ia fazer-se uma comemoração especial. Depois a conversa recaiu sobre a expedição. Fora um grande sucesso. Haviam tomado um carro e rodado pela praia do lago Menzala, visitaram a grande mesquita maometana, presenciaram as proezas de um encantador de serpentes, examinaram uma coleção de escaravelhos no museu, lancharam no jardim do Palácio-Hotel Pêra, onde foram brindados com um maravilhoso caril de peixe, servido com sementes de girassol e pimentões verdes, e finalmente, quando já voltavam para o navio, haviam descoberto uma loja maravilhosa.
- Não é um lugar barato, como os bazares - disse Mrs. Holbrook. - O dono chama-se Simon Artz. Foi um prazer comprar na loja dele.
- Artz é homem bem dotado - disse Dóris, rindo-se. - Tem tudo de toda a parte.
Mirando-se no espelhinho da bolsa, renovava o batom dos lábios. E, ou fosse por causa do sol ou da animação do passeio, suas faces estavam levemente coradas, e lhe emprestavam maior brilho aos olhos. Nunca parecera tão cheia de vida.
- E compramos uma porção de coisas para dar aos amigos - continuou Mrs. Holbrook. - Não o esquecemos, doutor. Ficou aqui trabalhando como um mouro por todos nós, enquanto nos divertíamos. - E com um sorriso afetuoso, estendeu-lhe um pequenino embrulho oblongo.
As faces vermelhas, ele o apanhou canhestramente, sem saber se devia abri-lo ou não.
- Vamos, dê uma espiada - instou Holbrook, com um olhar malicioso. - Não morde.
Moray abriu o embrulho esperando encontrar alguma lembrança banal. Mas o que viu foi um relógio de pulso de ouro vermelho, de pulseira também de ouro, delicadamente trançada, fabricação Patek Phillippe, o melhor e o mais caro cronometro feito à mão pela relojoaria suíça. Devia ter custado uma fortuna. Moray ficou sem fala.
- O senhor e a senhora são muito bondosos, muito generosos... - gaguejou. - Era isso mesmo o que eu queria e precisava...
- Não diga mais nada, rapaz - atalhou Holbrook. - Nossa Dorrie percebeu que o senhor não tinha relógio. Foi ela que escolheu.
Moray voltou-se e viu que ela o olhava fixamente com um olhar de desafio e intimidade que de certo modo, os encerrava a ambos numa espécie de conspiração.
- Mude de assunto, papai; deixe-o passar. Ou conto da sua insistência em perguntar coisas sobre a dança do ventre...
Holbrook riu-se, enxugou o copo e ficou de pé.
- Estou esfomeado. Mandemos o camareiro levar estas coisas para a cabina e vamos jantar.
Enquanto o navio continuava atracado, o jantar se transformara numa refeição elástica, servida a qualquer hora, e eles foram os primeiros a chegar ao salão. A sensação de intimidade, iniciada na sala de fumar, não se alterou, e eles formaram um grupo alegre, do qual Dóris era a figura mais divertida. Sua atitude para com os pais - atitude de criança mimada, sempre superior, e que variava entre um desprezo trombudo ou tolerante - foi substituída por uma espécie de zombeteira ironia, dirigida especialmente ao pai, que respondia no mesmo estilo. A princípio Moray deduziu, pouco amavelmente, que Holbrook comprara para ela, no porto, alguma coisa muito bonita. Mas não: agora ele a arreliava porque recusara todas as ofertas. Algumas das observações que ela fazia, embora talvez demasiado agudas, eram muito divertidas, especialmente quando começou a arremedar maliciosamente os companheiros de mesa ausentes, o que provocou restrições por parte de sua mãe: - Vamos, Dóris... lembre-se, querida... não se exceda.
A isso Dóris se aquietou com um olhar de esguelha a Moray, o que fez dele um cúmplice da brincadeira. Nesse intervalo, as máquinas começaram a trepidar, e o navio afastou-se das docas. No início da passagem pelo canal, Mrs. Holbrook, visivelmente satisfeita pelo restabelecimento da harmonia na família, sugeriu tomarem o café na coberta superior, para verem o sol se pôr sobre o deserto. Uma palavra de Holbrook ao
camareiro-chefe foi suficiente para eliminar qualquer dificuldade, e logo após, abrigados sob um toldo a estibordo, bebericavam café quente a uma mesa redonda, sortida de frutas frescas, picadinho à moda chinesa e gengibre em conserva. À medida que o grande disco se fundia com o vasto deserto de areia, o perfil das palmeiras salientou-se na luz ofuscadora, e uma fila de camelos, entre tendas de beduínos - tribo nómada - desfilou lentamente no horizonte. Depois surgiu a lua no céu de anil, cada vez mais brilhante à medida que a noite ia avançando. No salão principal, a orquestra de bordo começou a tocar uma miscelânea de árias populares da época. Moray, sentado junto de Dóris, ouvia-lhe o respirar inquieto. Reclinada na preguiçosa, braços cruzados sob a nuca, ela não parava um minuto; era como se lhe fosse impossível encontrar uma posição mais cómoda.
- Não está bem? - perguntou ele. - vou buscar uma almofada.
- Uma almofada! Desculpe-me se rio... Logo melhoro... Esta noite sinto-me esgotada...
- E quem não se sentiria? Impossível duvidar de que se está no Oriente. Que céu!
- E ainda com música! - E ela sussurrou uns compassos de Meu Coração. Emudeceu, parou, tornou a sussurrar, depois exclamou: - Se isto continuar, enlouqueço!
Ele riu-se.
- Antes que enlouqueça, quero agradecer-lhe pelo belo relógio.
- Sei o que quero. Gostei do relógio, e, para ser franca, também gosto de você. Opõe-se a isso?
- Não, absolutamente. Fico muito satisfeito e sou-lhe grato.
Silenciaram por um ou dois minutos, depois ela falou:
- Este ambiente não o afeta? É como se a gente estivesse mergulhada num banho de leite morno. Não que eu já tivesse tido essa experiência: é uma simples comparação. A via-láctea... e a gente a perder o sabão! Gostaria de ir nadar. Não naquela piscina, miserável, mas numa praia deserta, onde ficássemos sozinhos... Nada de maios. - Tornou a rir. - Não fique tão chocado, seu idiota. Você nunca se sentiu tenso e excitado, de pé no topo do mundo? - E batendo o pé no convés, cantarolou: "Estou sentada no topo ao mundo, cantando uma canção, rolando por aí afora..." - Que sensação maravilhosa! Quando a sinto, estou pronta a fazer qualquer coisa. Sinto-a agora... se é que isso lhe interessa. - E espreguiçou-se em todo o comprimento, tornou a cantarolar, depois sentou-se: - Não posso afastar da cabeça essa maldita canção. Mas como você é acanhado! Decerto está querendo dançar. Venha: vamos dar uma volta.
Fez-se uma pausa constrangida, depois ele disse:
- Receio não ser par para você.
- Por que não?
- Vai ficar surpresa: não danço.
- O quê? Diga isso a outra. Está me tapeando.
- Não estou - e teve de sorrir ao ver a expressão no rosto dela. - Vivi sempre muito ocupado com meus estudos; não tive tempo de aprender jogos e prendas de salão...
- Mas chegou a hora de aprender. É muito fácil, se a professora é boa. E eu sou.
- Não, palavra... vou pisar-lhe nos pés, fazer de mim um asno perfeito...
- - Mas ninguém está vendo! O velho foi para o bar, mamãe está cochilando. Temos música e lua. Tudo livre, tudo grátis, em troca de nada. - Levantou-se e estendeu-lhe a mão. - Venha: dar-lhe-ei disposição para dançar.
Ele ergueu-se e, um tanto cerimonioso, pôs o braço na cintura dela.
- É um foxtrot - ela explicou-lhe. - Acompanhe o compasso. Passos curtos. Agora vire. Dê uma volta. Segure firme; mais perto... Não vou quebrar. Eu disse mais perto. Está melhor. Por estranho que pareça, temos de fazer isso juntos!
Era surpreendentemente fácil. A música, envolvente, e ela, tão boa dançarina, tão sensível e de postura tão lassa, que ele descobriu-se a seguir instintivamente a batida do ritmo, improvisando passos,
deixando-se conduzir pelo par. Quando a orquestra no andar de baixo acabou de tocar o número, ela fez-lhe um aceno de cabeça condescendente e significativo.
- Eu não dizia?
- Estupendo! - confessou ele. - Não imaginava que fosse assim tão fácil. É um bom exercício.
Ela soltou uma risada curta e singular.
- E uma maneira de ver...
- Naturalmente, você é especialista... maravilhosa de fato.
- É uma das coisas que me apaixonam. No último ano de colégio, fugia nos sábados à noite com outra menina e íamos para o Palais local. Bancávamos as profissionais... sabe? seis pence por vez... Divertíamo-nos à beça, tapeávamos sem parar, mas uma noite houve um rebuliço...
- Por que foi que saiu do colégio?
com um ar ofendido ela atirou inesperadamente a cabeça para trás.
- É uma questão muito pessoal. Não gosto que a suscitem desse jeito. A culpa não foi minha. Na realidade, se quer mesmo saber, a maior parte do tempo eu dançava com Bert, meu irmão. E ele é bastante respeitável. - Riu-se então, subitamente. - Será mesmo? Não ligue: perdoe-me. Quer me dar um cigarro e ir buscar o isqueiro? Estão na minha bolsa, ao lado da cadeira.
Inclinou-se para ele, que acendia o isqueiro de ouro.
- Não fuma? - Ele sacudiu a cabeça quando ela lhe ofereceu um cigarro, - De quantas coisas você viveu privado!
- Tê-las-ei um dia.
- Não adie muito. Eu sempre vou direito ao que quero.
Ficaram de pé, dando as costas para o corrimão de popa, até que a orquestra voltou a tocar. Ela jogou fora o cigarro fumado pela metade e virou-se para ele.
- Vamos começar. Faça-o com sentimento. Imagine que me apanhou na calçada de Blackpool e que nos juntamos...
- Santo Deus! - e ele arreganhou um sorriso. - Não é minha linha.
- Por isso que você é tão bom - murmurou ela, apertando-se a ele.
- Seja como for, experimente.
Dançaram as três contradanças seguintes, e a cada uma ele podia ver que progredia. A experiência era nova, e ele se excitava, mercê do rápido aprendizado. Entretanto, estava de olho nas conveniências, a fim de não se exceder. Ao se aproximarem de Mrs. Holbrook, perfilou-se:
- Muitíssimo obrigado, Dóris. Foi simplesmente estupendo; e agora... - disse olhando o relógio de pulso - devo dizer boa noite.
- Boa noite nada, é muito cedo e nós apenas começamos a nos divertir!
- Não, Dóris: preciso realmente descer.
Ela fitou-o fixamente, seus olhos cor de ardósia sombreados de raiva e desapontamento.
- Até onde chega a sua estupidez? Desperdiça tudo! E com esta lua, e logo quando estamos nos animando! Se está cansado, sentemo-nos um pouco.
- Não, não estou cansado. Mas acho que já é hora de nos recolhermos.
Mrs. Holbrook, que, despertada do cochilo, observava-os com indulgência, também parecia pensar assim. Levantou-se e encaminhou-se para eles.
- Hora de ir para a cama - observou. - Tivemos um dia muito agitado.
- O meu foi muito agradável, graças à senhora - disse Moray amavelmente.
- Vai se arrepender por haver-me abandonado desse jeito - Dóris disse-lhe no ouvido sem mover os lábios, no instante em que roçou por ele. - Espere só!
"Está brincando - pensou ele. - Não pode estar falando sério."
Deram-se boas noites - o de Dóris, violentamente mal-humorado; dir-se-ia que estava realmente furiosa.
Depois, com os últimos compassos de Desirée ainda vibrando em seus ouvidos, Moray desceu para a cabina, acendeu a luz, e
ali, no armário de acessórios, como uma censura, a encará-lo, estavam as cartas de Mary e Willie.
Imediatamente mudou de disposição. Chocado com o seu próprio esquecimento, despiu-se rápido, subiu para a cama-beliche e, cheio de contrição, começou a ler. Havia ao todo meia dúzia de folhas preenchidas com a letra grande e redonda de Mary. Ela começava por acusar o recebimento de sua carta de Marselha, dizendo quão alegre se achava por suas melhoras. Entretanto pedia-lhe que continuasse a se tratar, principalmente evitando o ar noturno; esperava, igualmente, que seus deveres não fossem demasiado exigentes. Quanto a ela, ia bem de saúde, embora achasse muita falta dele; marcava na folhinha os dias que faltavam para ele regressar. Mas levava vida ativa, com muito trabalho de costura e de croché. Comprara fazenda para as cortinas de sua futura casa, e também alguns restos de tecido para fazer com eles uma colcha de retalhos. Na loja de Grant, logo no fim da Esplanada, descobrira uma pechincha: uma linda mobília de sala de visitas, de segunda mão. Seria uma ótima compra. Só queria que ele a visse, o que logo havia de ocorrer; pedira a Grant que a reservasse. Grande pena que seu pai não andava muito bem ultimamente; mas pudera ajudá-lo um pouco na padaria, com Donaldson, o gerente. Assinava simplesmente: de sua Mary.
Ele acabou de ler com uma expressão singular e um esquisito aperto no coração. Captara porventura uma nota de ansiedade, uma corrente subterrânea de desânimo, quem sabe, nas palavras dela? Mary escrevia com a maior candura, sempre de coração aberto; entretanto, bem podia ser que não tivesse dito tudo. Voltou-se precipitadamente para a carta de Willie:
Caro David,
Espero que esteja bom e fazendo boa viagem. Gostaria de estar aí com você. Gostaria de visitar todos esses países estrangeiros, especialmente a África. Aqui as coisas não correm muito bem desde que você partiu. O tempo ficou frio e húmido, e papai passou um mau bocado com o coração, depois que um homem veio um dia destes conversar com ele. Ouvi tia Minnie dizer que os Stoddarts nos puseram a faca no peito. Mary está na padaria, fritando bolinhos. Tenho a certeza de que acha uma terrível falta de você. Eu também. Por isso diga ao capitão que se mexa e volte logo.
Afetuosamente seu, Willie
Preocupado, depôs a carta, reconhecendo, naquelas frases breves e inocentes, que Mary estava sofrendo dificuldades domésticas. . . também achando falta dele - uma falta terrível. O coração se lhe tornou a derreter de amor e de saudade, e também de remorso, ao pensar no conforto, ainda mais, no luxo, da vida amena que levava a bordo do Pindari. Subitamente desejou nunca ter feito aquela viagem. Se agora pudesse ao menos estar junto dela para a consolar e acariciar... Precisava fazer alguma coisa... alguma coisa. Dominou-o a necessidade de uma resposta pronta, de uma ação imediata. Pensou alguns instantes de testa franzida, depois apanhou o fone de intercomunicação oficial e pediu que ligassem para a sala de telegrafia. Era poupado e tinha o olho no futuro, mas precisava hipotecar ao menos uma pequena parte do seu ordenado para se comunicar imediatamente com Mary.
- Sparks, quero enviar um radiograma. - E deu o endereço. "Acabo receber cartas Porto Said. Não se preocupe. Tudo se afranjará quando eu voltar. com todo o amor, David."
Depois que, palavra por palavra, Sparks repetiu a mensagem, Moray agradeceu-lhe e esboçou um sorriso. Mary ficaria animada e satisfeita ao receber a mensagem que iria ter às suas mãos através dos oceanos! Como se sentiria confortada! com a cabeça mais leve, e já agora repleta de pensamentos carinhosos, apagou a luz e dispôs-se a adormecer.
CAPÍTULO DOZE
A CHAVAM-SE nos estreites do golfo de Suez, com os picos do Sinai tremeluzindo nas alturas, por entre a húmida neblina. Durante três dias a canícula fora insuportável. No Mar Vermelho, o sol ardia sobre o Pindari, e as rochas de Aden, queimadas até adquirirem uma cor de ocre calcinado, rachadas e fendidas, estavam de todo escalvadas, e o próprio porto parecia tão inóspito que poucos passageiros desceram à terra. Os Holbrooks faziam parte dos que permaneceram a bordo. Dóris, desde aquela noite da expedição a Suez, não mais aparecera na coberta, "presa na cabina com uma ligeira indisposição", explicou Mrs. Holbrook a Moray. Ele estava quase a oferecer-lhe os préstimos, quando uma certa reserva na maneira de Mrs. Holbrook, talvez uma insinuação de que se tratava de algo delicado, o reprimiu. Pensou que talvez se tratasse de algum
benigno transtorno mensal, conclusão que se acentuou quando Mrs. Holbrook murmurou confidencialmente:
- Às vezes Dóris tem desses transtornos, doutor.
Mandou-lhe, por conseguinte, suas recomendações, acrescentando que aquele calor terrível era suficiente para derrubar qualquer pessoa.
A temperatura elevada fizera com que ele ficasse de repente bastante ocupado. Além de uma corrida de pacientes ao gabinete médico, em virtude do surto normal de comichões e brotoejas, ou por causa do excessivo empenho para bronzear a pele, apareceram-lhe alguns casos mais sérios. Ficou particularmente preocupado com as duas crianças Kindersley, atacadas de colite aguda. Como o fato se seguisse logo após o susto provocado em Suez pela disenteria amebiana, Mrs. Kindersley ficou presa de um terror quase pânico; e como o estado dos gémeos chegasse a um ponto crítico, ele próprio começou a recear o pior. Mas depois de os atender durante quase quarenta e oito horas a fio, houve uma súbita melhora na madrugada do terceiro dia, e com um íntimo suspiro de alívio, ele pôde enfim render a mãe desesperada. Olhos vermelhos de fadiga, o colarinho desfeito, os cabelos desgrenhados, endireitou-se rígido, e leu o termómetro clínico à luz da lâmpada:
- Logo se levantam para correr por aí... incomodando a Deus e todo mundo - disse, sorrindo e passando o braço nos ombros da mulher - no começo da semana entrante...
Ela rompeu em pranto. Era uma mulher reservada e contida, mas, a exemplo de Moray, havia duas noites que quase não dormia.
- O senhor foi maravilhoso, doutor. Como lhe poderei agradecer?
- Deitando-se e descansando um pouco. Tem de preparar-se para as finais.
- Sim - disse ela enxugando os olhos e tentando sorrir, - Bem que eu gostaria de ganhar para o nosso bangalô aquele bonito serviço de chá. Mas seu par não está doente?
- Acho que não muito, Mrs. Kindersley.
Ela o acompanhou até à porta da cabina, e aí hesitou, olhando-o atentamente. Em seguida decidiu:
- Bill e eu temos o senhor em alta conta, doutor... especialmente depois disto... Temos pensado muitas vezes se o senhor não estará ... bem... começando a ficar comprometido... com Miss Holbrook.
- Comprometido? - repetiu ele desinteressado. Depois, com um súbito rubor, percebendo o que ela queria dizer: - Naturalmente que não.
- Fico satisfeita - e apertou-lhe a mão. - Ela é bonita, vê-se que está "caidinha" pelo senhor. Mas existe qualquer coisa esquisita nessa moça, qualquer coisa que eu não suporto... Diz Bill que ela é esquizofrénica. Quando a vê, sente arrepios. Agora: vai me perdoar porque falei?
- Não há de quê - respondeu ele, tentando falar com naturalidade, embora se sentisse não apenas constrangido como também melindrado. - Agora tome esse bromureto que lhe dei e vá deitar-se.
Desconsolado, Moray voltou para a cabina, barbeou-se e tomou um banho de chuveiro; a seguir bebeu duas xícaras de café e deu início ao seu giro de visitas. Começara a perceber que Dóris não era apreciada a bordo. Frequentemente grosseira, pouco se expandia com os outros, e, como quase sempre aparecesse de vestido novo e caro, com isso provocava a inveja das demais mulheres. Parecia-lhe igualmente que o seu contínuo sucesso nas competições estava suscitando comentários desfavoráveis. Seria essa a razão da repugnância de Mrs. Kindersley? Custava-lhe acreditar nisso. A interferência dessa mulher era bem intencionada. Mas, mesmo assim, ressentiu-se com ela. Que direito lhe assistia de intrometer-se em seus assuntos, especialmente se ele vinha procedendo de maneira impecável? E que diacho queria Kindersley dizer... com o seu vulgar menosprezo? Kindersley não era nenhum modelo. Era o tipo social do bebedor de cerveja, e provavelmente passava o dia inteiro no clube, em Kadur; não admirava que sua mulher fosse uma recalcada... Moray refletiu toda a manhã, e a direção de seus pensamentos, em vez de o levar a insurgir-se contra Dóris, lançou-o a favor dela. Confessava que a moça não pertencia ao tipo comum, mas seria pior por isso? Havia nela alguma coisa. Instintivamente levantava-se para defendê-la. Mas, ainda assim, talvez fosse mais prudente reduzir o esforço dela nas competições.
Para o fim da semana o tempo esfriou subitamente, e o trabalho lhe proporcionou alguma folga. Escreveu a Mary uma longa e carinhosa carta, com uma nota inclusa para Willie. Já naquela tarde criava novo ânimo, quando O'Neil, puxando-o para o lado, lhe disse:
- Acho que gostará de saber isto, doutor. Hoje de manhã, na ponte de comando, o capitão fez-lhe um elogio. Quando soube do caso das crianças Kindersley, disse que o seu trabalho aqui tem
sido formidável... e que você foi o único médico, neste navio, que ainda não criou calo no traseiro. - O irlandês fez uma pausa, fitou longamente o novo relógio de pulso de Moray e arreganhou um sorriso: - Presente de algum paciente agradecido? Continue, rapaz. Não me chamarei mais O'Neil se você não ficar logo rico.
- Já não lhe disse que não me interessa isso? - disse Moray com irritação. - Só tenho pena da moça, que é sempre deixada de fora.
- Então, por que você não fica de dentro? - disse O'Neil, rindo-se às gargalhadas. - Ora, não seja tímido: avance, rapaz. Todos nós estamos procurando um rabo de saia nesta maldita banheira; não fosse isso, e já estaríamos fritos. Mas olhe aqui: já ouviu a última...
Moray teve de rir. Que sujeito mais decente era O'Neil! Maldade alguma em suas observações: pura troça - a mesma que havia em seus versos profanos, de pé quebrado. Por que os Kindersley não seriam assim?
No dia seguinte, quando o frio aumentou, Dóris apareceu na coberta. Moray deu cem ela reclinada num lugar abrigado, o cabelo atado numa écharpe de seda, uma leve manta de caxemira sobre os joelhos. Tinha o aspecto melancólico, e sombras roxas sob os olhos. Não se mexeu: seus cílios simplesmente palpitaram, quando olhou para Moray.
- Olá, sua estrangeira, onde andou escondida? - E sentou-se ao lado dela. - Está melhor?
Ofendida com a vivacidade dele, Dóris não respondeu:
- Não foram poucos os que o calor abateu - prosseguiu ele. - Mas agora faz um tempo belíssimo!
Estavam no Oceano Indico, onde as suaves monções cantavam nas enxárcias, e um cardume de baleias novas, saltando alegremente, fazia jorrar fontes mornas em torno do navio.
- Já viu nossa escolta? - continuou ele. - Pensei que só no Ártico havia baleias; mas disse-me O'Neil que elas são encontradiças nestas regiões.
Ela não deu ouvidos à observação, que soou estulta e vazia. com a cabeça na almofada do espaldar e voltada para ele, olhava-o fixamente, como se estivesse sob a ação de um estupefaciente.
- Você é bem bom... - disse.
- Ora, Dóris... Que acontece?
- Não finja, depois do que fez. Foi um insulto. Ainda não lhe perdoei. com quem dançou enquanto estive ausente?
- com ninguém. Fiquei à espera da minha professora particular.
Seu rosto iluminou-se debilmente, e ela esboçou um lânguido sorriso.
- Por que não me visitou? Oh, não era preciso! Não suporto ninguém, quando tenho esses transtornos. Não são frequentes; não mais do que um em seis meses.
Ele a fitou curiosamente: então não era o que estava imaginando. Dóris prosseguiu:
- Mas não foi brincadeira. Mesmo depois que passa a dor de cabeça, fico tão arrasada...
- Isso não é de seu natural, Dorrie.
- Não me chame assim... parece mamãe. Quando adoeço, fico pensando no que vale a vida... Por que continuar? De que adianta? Sinto-me horrível, diferente de todas as outras moças... Elas, sim, são tão cheias de sentimentos delicados! Está me entendendo? Papagaio! - E riu de repente. - Como foi que me veio essa palavra? Papagaio!
- Ora, é bom a gente ser diferente...
- Folgo em que pense assim. Quis compreender isso quando saí do colégio. Queria que me respeitassem, queria tudo às direitas. Mas não adiantou. Por isso agora faço o que sinto, sabe? - o que sinto que desejo fazer. Não posso evitá-lo. Não está de acordo? Mata-se tudo quanto há dentro da gente, quando não se dá vazão aos sentimentos.
- Bem... - e ele a fitou perplexo. Por que estava ela a falar daquilo? Não podia absolutamente compreendê-la.
- Conhece o lema, "seja você mesmo"? É um desafio. Alegro-me porque sou feminina, feita para o amor; por conseguinte, quero ser eu mesma. Sentiu falta de mim? Não, não sentiu, seu bestalhão; faz amizade facilmente, vai com qualquer uma. Eu nunca tive amigos de verdade. Parece que não me entendo com ninguém, à exceção de você. - Fez uma pausa, depois disse em voz baixa: - Não vê que estou caída por você?
A confissão comoveu-o. A voz apática da moça e seu desânimo fora do comum tocaram-lhe o coração. Ao mesmo tempo, sentiu-se lisonjeado.
- Ora, vamos, Dorrie: não deve deixar que o desânimo tome conta de você. - Estendeu a mão e apertou a dela. - Se quer mesmo saber, senti realmente falta de você.
Inclinando a cabeça um pouco mais para o lado, ela fitou-o atentamente; depois, segurando a mão que ele fez menção de retirar, enfiou-a embaixo da manta de caxemira.
- É confortável assim. Senti tanta falta de você!
Moray ficou tremendamente embaraçado, não apenas pelo inesperado do gesto, mas porque ela, indubitavelmente sem o saber, comprimira-lhe os dedos contra a maciez quente da coxa.
- Vamos, Dóris - tentou ele falar com naturalidade. - Não deve fazer isso aqui; especialmente com o médico de bordo.
- Preciso que me acariciem, ainda que seja um pouco só. E olhe, não consinto qualquer um em minha vida. Oh, tenho andado com muitos rapazes: alguns, altos, largos de ombros, bonitos - mas você é diferente. O que sinto por você, não tem um pingo de egoísmo!
- Por favor... pode vir alguém...
- Diga que está me tomando o pulso - e lançou-lhe um olhar brejeiro e carinhoso. - Ou direi que é receita médica. Oh, não sabe o bem que me faz! Já me sinto menos lixo...
Afinal soltou-o com uma risada, mas não antes que uma onda de calor fizesse o sangue afluir às faces do rapaz. Calor que ele reprimiu no mesmo instante, forçando um sorriso de censura.
- Não deve se entregar a essa espécie de engodo, minha filha, ou vai acabar mal. Em primeiro lugar, você é bonita como o diabo; e, em segundo, pode topar com o homem errado.
- Já escolhi você...
- Agora escute, com toda a seriedade, - E decidido, mudou de assunto, - Estou pensando uma coisa. É a seguinte: como você ainda não está muito boa, acho que não devemos continuar participando das competições.
- O quê! - exclamou ela, perdendo o ar lânguido. - Dar o fora... agora? Depois que chegamos às finais e estamos quase certos de ganhar?
- Mas é que, se não dermos o fora e ganharmos os prémios, todos dirão que somos gananciosos.
- Que me importam os prémios? Um serviço de chá niquelado e uma louça barata, das Lojas Americanas! Claro que eu não as tocaria nem com ponta de um varejão! Mas, quando começo uma partida, tenho de acabá-la. Preciso convencer os outros de que valho alguma coisa. .. especialmente aquela cadela emproada, a Kindersley. Tenho respeito próprio. Quero mostrar que somos os melhores a bordo.
- Bem, talvez sejamos; mas por que esfregar-lhes isso na cara?
- Porque quero esfregar. E, quando quero uma coisa, habitualmente a obtenho. Agora posso estar um pouco por baixo, mas logo recupero a forma. E em três tempos!
- Então está bem. - E, com certa relutância, tratou de apaziguá-la. - Faça como quiser. Mas tem de jogar no sábado, o mais tardar. É a noite do jantar do capitão, e a apresentação será feita antes do concerto. - Dizendo isso, levantou-se. - Agora vou continuar no meu giro. Vê-la-ei mais tarde.
O sábado chegou, eles jogaram. Era de tarde e, segundo Moray previra, ganharam as três finais. Mrs. Kindersley e o marido esforçaram-se ao máximo no jogo de ténis, mas, como Dóris, inteiramente recuperada, fazia um jogo rápido e agressivo, eles mal puderam revidar à altura. O clímax foi atingido na última partida, quando Kindersley, num esforço para rebater, escorregou e, com um horrível baque, foi estatelar-se no tombadilho.
- Cuidado... - disse-lhe Dóris, debruçando-se por cima da rede com uma solicitude zombeteira. - Não faça o navio jogar...
Eram poucos os espectadores do jogo, de modo que a observação irónica tombou no vazio; e quando a partida terminou, os aplausos que saudaram os vencedores, mais do que frieza, foram de formalidade. Moray não gostou; mas Dóris, que voltara a animar-se, pareceu não reparar naquela ausência de entusiasmo. Seus pais, inevitavelmente presentes, também não repararam. Quando Moray saiu da quadra, Holbrook tomou-lhe o braço e arrastou-o para a sala de fumar.
- Acho que devemos ter uma conversa particular, doutor - observou ele com um sorriso de aprovação depois que se sentaram num canto tranquilo. - E quanto melhor a oportunidade, tanto melhor o negócio. Bebe alguma coisa? Não? Mas não recusa um suco de lima. Para mim, um aperitivo de uísque e soda.
Servidos os drinques, ele ergueu o copo.
- Saúde! Você me faz lembrar a mocidade, rapaz. Eu também era ambicioso - assistente de Química em Bootle, aviava receitas para uns farmacêuticos ignorantes, que não sabiam distinguir entre um ácido e um álcali. Muitas vezes tive de reclamar: "Doutor, o senhor prescreveu bicarbonato de sódio e ácido clorídrico na mesma receita! Se misturo os dois, o frasco explode!" Foi talvez por isso que me ocorreu a ideia de que havia muito dinheiro a ganhar com produtos patenteados. Quando consegui algumas economias, casei-me, abri uma farmaciazinha em Parkin Street, e comecei a vender remédios de minha própria fabricação. Pós Holbrook para Dores de Cabeça, Pasta de Sena Holbrook, Linimento Holbrook contra Torceduras... Lembro-me que me custava três quartas partes de pêni um frasco de linimento que eu vendia por um pêni e seis
pences, Excelente remédio! A Liga de Rugby gastava-o às carradas, e ainda hoje constitui um de nossos principais produtos. Foi assim que comecei rapaz...
Tomou um demorado gole de uísque, depois prosseguiu, relatando o desenvolvimento e a ampliação de seus negócios; fazia-o, não em tom de vanglória, mas com a tranquila segurança do homem do Norte que edificara uma empresa imensamente bem sucedida, e graças à qual amassara uma fortuna. A firma de Holbrook era uma das maiores fábricas de produtos químicos do Reino Unido, mas o grosso de seus proventos originava-se de uma grande quantidade de preparados altamente lucrativos, desde remédios para tosse até pílulas antibiliosas.
- E não os menospreze, doutor: são remédios de primeira classe; posso lhe mostrar milhares de testemunhos. Tenho um arquivo pessoal de cartas de agradecimento, de aquecer o coração da gente! - E num gesto de confiança, Holbrook aqueceu o seu próprio com mais um gole de uísque. - Agora somos proprietários de uma fábrica matriz em Bootle, uma filial em Cardiff e grandes armazéns distribuidores em Londres, Liverpool, Glasgow e Belfast. Mas não é tudo, rapaz - continuou Holbrook, espetando o indicador no peito de Moray. - Exportamos às carradas para o Oriente, e é por isso que meu filho Bert acaba de abrir novos escritórios e maiores depósitos em Calcutá. Temos planos... grandes planos... extensivos aos Estados Unidos. Depois que instalar a nossa filial de Calcutá, Bert irá a Nova Iorque. Já descobriu ali um ótimo lugar para localização de uma fábrica. E lembre-se de que o negócio vai ser diferente nos Estados Unidos. Os tempos estão mudando e nós caminhamos para produtos de alta classe: vitaminas e coisas assim. Até podemos tentar a fabricação de alguns barbitúricos. Mas acredite: seja o que for que empreendermos, o nosso sucesso será brutal.
Encostou-se no espaldar da poltrona, tirou um cigarro, acendeu-o, ofegou um pouco; depois, com os olhos cintilantes ainda presos a Moray, esboçou um sorriso:
- São essas as minhas perspectivas de futuro, rapaz... e agora pergunto: quais são as suas?
- Bem... eu... - e Moray corou um pouco ante essa pergunta sem rebuços. - Quando eu regressar desta viagem, tenho um lugar à minha espera: é num hospital. Um bom lugar, com oportunidades para pesquisa... e um ordenado de quinhentas libras.
- Bem- esse é um emprego bastante razoável, mas, com sua licença, bastante ordinário. A pergunta que fiz era sobre as suas perspectivas de futuro...
- Naturalmente... espero progredir.. .
- Progredir como? Mudando-se para um hospital maior? Estou muito familiarizado com esse setor interiorano. Levará anos. Quando a gente entra para o serviço de um hospital, fica atolado nele pelo resto da vida. E para um sujeito inteligente como você, que tem miolo e personalidade, isso seria um crime.
- Não creio - respondeu Moray, com certa rispidez.
- Pois eu creio. E nada lhe diria, se a patroa e eu não o tivéssemos na mais alta conta. Agora escute aqui - e com um piparote fez cair no cinzeiro a cinza do charuto, - não sou homem para perder tempo. Temos, em nossa firma, um lugar para um médico moço como você, especialmente em nossa fábrica dos Estados Unidos. Você podia dar-nos conselhos técnicos, inventar preparados, encarregar-se da nossa propaganda, e, desde que falou em pesquisa, também podia trabalhar no laboratório. Em nossa opinião, seria bom ter um profissional na diretoria. Quanto a ordenado - e fez uma pausa, trazendo Moray suspenso de seu olho cordial e congestionado - começaria com mil e quinhentas libras por ano, com uma possível gratificação e aumentos anuais. Além disso, chego mesmo a prever que, em tempo oportuno, e se as coisas correrem bem entre nós dois, até pode entrar como sócio da empresa.
Inteiramente surpreso, em verdade aturdido, Moray desviou seu olhar do dele. A natureza dessa oferta espantosa, conquanto tivesse sólidas bases na lógica comercial, era, em realidade, tão transparente como a vigia pela qual ele fitava, com certo embaraço, a lenta elevação do céu. A intenção de Holbrook era essa mesma: que ela fosse transparente. Mas como recusar de modo cortês, sem ferir os sentimentos daquele camarada, sem provocar um esfriamento de suas relações com toda a família? Aí é que batia o ponto. Afinal, Moray disse:
- É extremamente generoso de sua parte, Mr. Holbrook, e sinto-me profundamente honrado com a boa opinião que tem a meu respeito. Mas já aceitei a nomeação para o hospital... já dei a minha palavra, à qual não posso faltar.
- Então arranjaremos outro - respondeu Holbrook sem hesitar. - E sem a menor dificuldade. Vai haver afluência de candidatos.
Moray calou-se. Sabia que bastava mencionar o seu compromisso matrimonial para que o oferecimento fosse retirado. Mas, por
alguma razão obscura, talvez por um excesso de sensibilidade, ou uma exagerada delicadeza de sentimento, ele hesitou. Era tão bem visto por essa digna família, que não o seduzia a ideia de estragar o que sem dúvida aconteceria - relações tão agradáveis e satisfatórias. Além disso, o assunto de seu noivado nunca viera à tona durante a viagem. Não era culpa dele se o tomaram por um rapaz disponível: simplesmente não houvera oportunidade de aludir ao tema. Seria singularmente doloroso se o tivesse de fazer agora. Daria a todos a impressão de que era um idiota consumado, ou talvez pior, como se tivesse vergonha de aludir a Mary. Não: com o fim da viagem à vista, não queria colocar-se em posição tão odiosa. Não valia a pena. Mais alguns dias e os Holbrooks partiriam; nunca mais voltaria a vê-los. E, na viagem de regresso para seu país, tomaria cuidado para desde logo declarar a sua posição, a fim de que não mais voltasse a acontecer essa espécie de... contrariedade. Mas por enquanto era melhor contemporizar.
- Não preciso dizer o quanto aprecio o interesse que tem por mim. Mas, naturalmente, com tão importante decisão a tomar, preciso refletir.
- Reflita, rapaz - disse Holbrook com um aceno animador. - Quanto mais refletir no assunto, tanto melhor o achará. E não se esqueça do conselho que lhe dei. Quando uma oportunidade se atravessar no seu caminho, agarre-a!
Moray desceu à cabina e se trancou lá dentro. Queria ficar só, não para examinar aquela oferta extraordinária (não tinha a menor intenção de aceitá-la), mas simplesmente para se explicar, para refletir sobre o acontecimento em todos os seus pormenores. Em primeiro lugar, não havia dúvida de que os pais de Dóris haviam simpatizado com ele desde o princípio. Mrs. Holbrook, principalmente, demonstrara grande predileção por ele, tendo-se tornado depois quase maternal em suas atitudes. O velho Holbrook, embora mais difícil, também fora conquistado, ou fosse mediante persuasão de parte da mulher, ou em virtude de uma real estima por Moray. Em segundo lugar, até onde chegava o seu entendimento, havia uma vantagem positiva para Holbrook e seu filho Bert na aquisição de um jovem médico, ativo e inteligente, para a nova especulação comercial nos Estados Unidos. Até aí, muito bem, pensou Moray; mas a resposta ainda não bastava. Devia haver uma terceira razão, e esta decisiva, para ligar os outros dois fatores.
Sacudiu a cabeça inconscientemente, numa renúncia imediata a qualquer convencimento ou vaidade; entretanto, não havia fugir
ao fato de que a própria Dóris devia desempenhar um importante papel no desenvolvimento dessa situação imprevista. Mesmo sem a evidência das recentes observações de Mrs. Kindersley, havia provas suficientes da conduta de Dóris. Não pertencia ela ao tipo das "apaixonadas", não era dessas que suspiram olhando a lua; mas o seu olhar tinha um significado tão específico, que só um idiota poderia equivocar-se. Acrescente-se a isso a influência que, como filha mimada, exercia sobre os pais, acostumados a ceder às suas vontades, e, no caso presente, desejosos de a verem assentada num casamento aceitável, e a resposta estava completa.
Mercê dessas reflexões, Moray franzira o cenho. Agora, porém, olhando-se no espelho, esboçou um sorriso aborrecido. com efeito, Dóris fora às do cabo... e de ponta cabeça. Não, não, não havia graça nisso, nem um pouco de graça... Ao contrário - e seu rosto voltou à expressão de sempre - sentia-se desconcertado e constrangido, embora indubitavelmente fosse lisonjeiro sentir-se desejado e estar uma garota rica e bonita tão "caidinha por ele" (aqui lhe ocorreu a frase absurda de Mrs. Kindersley e ele sorriu), especialmente quando aqueles momentos na coberta superior, e outros ainda, lhe vinham à lembrança, como agora faziam, num súbito e perturbador atropelo...
Conteve-se, entretanto, e olhou o relógio - o belo Patek Phillippe, cujo mostrador assinalava cinco minutos para as seis. Santo Deus, esquecera-se da hora da consulta! Tinha de correr. Sua vida tornara-se, em verdade, muito excitante ultimamente. Mas, antes de sair da cabina, dirigiu-se ao cofre de cabeceira e daí tirou o medalhão que Mary lhe dera. Fitando o meigo e querido rostinho do instantâneo, invadiu-o uma onda de ternura. Murmurou comovido: "Como se eu pudesse abandoná-la... Meu benzinho!"
Sim, a imagem dela seria a sua proteção. Daí por diante se mostraria calmo e composto, delicado e amável, naturalmente, mas inflexível a qualquer tolice de Dóris. Faltavam apenas dez dias para chegarem a Calcutá. E ele jurou, por tudo quanto tinha de mais caro no mundo, que manteria essa atitude de discrição até que o perigo passasse e a viagem chegasse ao fim.
CAPÍTULO TREZE
Passaram-se os dez dias, chegaram ao delta do Hooghly, e Moray, sozinho na sala de consulta, fazendo um retrospecto daquela temporada, só descobria razões para estar satisfeito consigo mesmo. Sim: cumprira a sua palavra. No jantar do capitão - hilariante brincadeira realçada por bandeirolas de papel, cornetas de brinquedo e narizes postiços - fora um modelo de discrição. Em verdade, até fora melhor do que isso. Resolvido a não permitir que Dóris fizesse uma exibição de si mesma, e dele, perante todo o navio, quando O'Neil fez a leitura dos vencedores das provas esportivas, ele levantou-se, tímida porém tranquilamente, numa atitude inesperada, que a todos surpreendeu.
- Capitão Torrance, Mr. O'Neil, senhoras e senhores: posso, com a vossa permissão, dizer que Miss Holbrook e eu compreendemos perfeitamente, e desde o início, que, na qualidade de tripulante deste navio, não me era realmente lícito concorrer a estes jogos. Só competimos por brincadeira, e, embora tivéssemos a sorte de vencer, mutuamente concordamos em não aceitar os prémios que, em todos os páreos, desejamos ver atribuídos aos outros concorrentes.
Quando ele se sentou, em vez dos poucos e vagos aplausos que teriam irrompido, houve uma súbita e prolongada explosão de palmas. Os Holbrooks estavam encantados, pois até eles tinham enfim começado a participar do sentimento geral; Mrs. Kindersley levantou-se e, toda sorridente, foi buscar seu serviço de chá; em seguida, o capitão dirigiu a Moray uma palavra de aprovação. Só Dóris reagiu desfavoravelmente, com um olhar repleto de malignidade:
- Por que diacho você fez isso?
- Pensei que, para variar, você gostasse de ser apreciada...
- Apreciada! Bolas! Preferia que me vaiassem!
Dançou com ela apenas duas contradanças, bebeu um único copo de champanha, e, em seguida, alegando que tinha cartas a escrever, pediu licença e retirou-se para a cabina.
Nos dias subsequentes, embora não fosse fácil, a coisa foi entretanto menos difícil. Ele evitava a coberta de passeio que ela habitualmente frequentava, e quando acaso se encontravam falava-lhe num tom superficial e jocoso. Não só isso, mas desenvolvia grande atividade, pois a aproximação do porto de chegada tornava plausível a sua alegação de excesso de trabalho. O que Dóris pensava,
não sabia; em seguida ao jantar do capitão, dera para fitá-lo com os olhos apertados, quase zombeteiros. Em certas ocasiões sorria, e uma ou duas vezes, a uma simples observação de parte dele, rompeu a rir. Decerto que os pais dela de nada suspeitavam, pois eram cada vez mais pródigos em atenções para com ele.
De repente Moray suspirou - o esforço fora realmente grande; depois, levantando-se, fechou a sala de consulta e subiu para a coberta.
Reunira-se a estibordo um grupo de passageiros que contemplava a margem do rio com um interesse acrescido pelos longos dias de permanência no mar. Altos coqueiros se elevavam na praia lamacenta, iluminada por lampejos de pássaros tropicais; nativos afundados até aos joelhos na água amarelada, lançavam e puxavam duas redes circulares; catamarãs passavam ondulando, e o navio mal se movia, quase estacionário, à espera do prático. Os Holbrooks faziam parte do grupo, e Moray, sentindo-se seguro no meio de tanta gente, se lhes foi reunir. Mrs. Holbrook, excitada, segurou-lhe imediatamente o braço.
- Temos esperança de que Bert venha a bordo na companhia do prático... Não que isso seja fácil de conseguir...
Enquanto falava, uma lancha a motor precipitou-se para fora da praia arenosa e orlada de palmeiras e veio flutuar ao longo do navio. Logo, outra figura se avistou, que olhava para cima e acenava, junto do prático de uniforme.
- É o nosso Bert - exclamou alegremente Mrs. Holbrook que, orgulhosa, acrescentou para o marido: - Viu como ele conseguiu vir junto?
Dentro de alguns minutos, Bert estava a bordo e abraçava todos os três. Era um rapaz louro, gorducho, de rosto corado e índole expansiva, de cerca de trinta e um ou trinta e dois anos, com um terno de tussor de seda acinturado e de talho esportivo, o capacete de sol posto de banda, belos sapatos de camurça em dois tons e uma espantosa gravata de laço. Embora com propensão para engordar, Bert, que retirara o capacete, mostrava cabelos que rareavam no alto da cabeça; tinha entretanto qualquer coisa do dândi, dentes obturados a ouro, e exibia em sua pessoa certos artigos, bastante dispensáveis, de joalheria. Seus olhos, um tanto salientes, irradiavam cordialidade, eram agradavelmente azuis e tinham um brilho levemente vidrado. Seu riso pronto, cheio de bonomia e esportividade - riso que valia como pancadinhas nas costas, - vibrava pelo tombadilho afora. Tiróide demasiado ativa, mas boa praça, pensou Moray,
que estava a alguns passos de distância, vendo Bert que se dirigia para ele a fim de ser apresentado.
O encontro foi cordial. Basta um par de horas, pensou Moray, para qualquer um ficar amigo velho de Bert! Mas como percebeu que o irmão de Dóris ainda não sabia da sua estreita amizade com a família, logo retirou-se, cheio de tato, para a sua cabina. Mas na hora do almoço, quando Bert e o pai chegaram do bar, Moray já estava à mesa, e sentiu um braço fraternal enlaçar-lhe os ombros, enquanto uma voz bem-educada lhe dizia:
- Não sabia que o senhor viajava conosco, doutor. Não ficaria mais contente se tivesse ganho o sweepstake de Calcutá. Logo teremos um verdadeiro bate-papo.
A lenta subida do rio facultou-lhes, segundo Bert, bastante tempo para se conhecerem, e não tardou muito para Moray perceber que, embora Bert pudesse ser um rapaz folgazão, atirado e brincalhão, um tanto vaidoso, talvez, e com acentuada tendência para tomar gim a qualquer hora do dia, ele tinha ao mesmo tempo, a exemplo do pai, bom coração, e forte sentimento de família. Além disso, apesar de toda a sua expansividade e alegria de viver - segundo dizia sua mãe - Bert tinha a cabeça no lugar. com efeito, logo se revelou um sujeito bem informado, e, ao tratar de negócios, seria por certo um camarada de cabeça fria, capaz de conseguir o que desejava. Viajara muito para a firma, passara ultimamente três meses nos Estados Unidos, e vinha transbordante das oportunidades e excitações de Nova Iorque. Falava bem, com um ar de homem do mundo - uma espécie de verve íntima, que transpirava alegria e cordialidade.
Na companhia dele, Moray achou a passagem do rio demasiado breve, e sentiu um real desapontamento quando chegaram a Calcutá e o Pindari, batendo a água amarelada, começou a manobrar para atracar na doca Vitória, enquanto o habitual pandemônio de desembarque tomava conta do navio. No meio do tumulto, Bert permanecia frio e sossegado; havia tudo providenciado e controlado; com ele, rapidez e eficiência eram a ordem do dia. Ao descerem à doca, seu longo Chrisler aberto e um caminhão surgiram e encostaram. com seus pais e Dóris, ele desceu o passadiço da bagagem: foi o primeiro a deixar o navio. Três carregadores de bordo o seguiam com a bagagem miúda. No galpão da alfândega, onde os outros passageiros aguardavam interminavelmente, um aceno de Bert para o babu-chefe deu saída aos Holbrooks, sem mais formalidades. Depois, tomando lugar no enorme carro, os três rodaram para os apartamentos que haviam reservado no Hotel Norte-Oriental.
Tudo isso aconteceu tão depressa que Moray ficou um tanto aturdido. Disseram-lhe adeus, naturalmente, mas com grande precipitação e preocupação, deixando-lhe a impressão pouco satisfatória e ligeiramente dolorosa de que fora sumariamente abandonado. Verdade que não tinha liberdade para acompanhá-los; entretanto acreditava que eles deviam pelo menos ter feito menção de um encontro futuro. Todavia, como o Pindari ia ficar fundeado durante duas semanas, carregando teca, chá, borracha e artigos de algodão, refletiu que haveria uma oportunidade de os encontrar mais tarde. Em qualquer caso, não era melhor que tivessem ido, deixando-o livre de conflitos, a mente tranquila e em paz? Entregou-se, por conseguinte, aos seus deveres oficiais. Esteve ativo a maior parte da tarde, e, quando o último passageiro deixou o navio, sua primeira reação foi a de um doce alívio. As pressões que suportara foram rigorosas - e agora era bom distender os nervos.
Mas naquela noite acometeu-o uma inexplicável depressão, que o não deixou nem mesmo no dia seguinte. O capitão se fora para o seu costumeiro alojamento em terra, O'Neil, saindo alegremente para uma excursão ao longo do litoral de Kendrapara, deixou Jones, o segundo-piloto, galês idoso e pouco comunicativo, atendendo às operações de rotina. Jones, homem frustrado, e enterrado, com licença de arrais, numa posição subalterna, nunca dera muita atenção a Moray, e agora o ignorou quase de todo. Passava a maior parte do dia na cantina da doca, lendo curvado sobre brochuras de mistério, enfiando o dedo no nariz, e deixando a maior parte da sua tarefa relegada ao timoneiro. Quando a noite descia, fechava-se no beliche e tocava sanfona com uma comovente doçura. Nunca descia em terra, a não ser para comprar elefantes de marfim para a esposa ausente. Garantiu a Moray que já contava com um armário repleto deles em sua casa de Porthcawl.
O navio deserto, atracado na doca imunda e infestada de mosquitos, exposto ao tumulto da descarga, ao pairar ruidoso e interminável dos estivadores nativos, ao apito das sereias e ao ranger das gruas, era muito diferente do nobre navio que tão galhardamente desafiara as ondas azuis. Era, em verdade, um alojamento pavoroso. O calor sufocava, na cabina enxameavam os mosquitos que o mantinham acordado durante a noite com seu zumbido estrídulo e ameaçador, obrigando-o a tomar medidas de precaução contra a malária. Os quinze grãos diários de quinino ainda mais o deprimiam; e, para agravar a situação, o agente dera aviso de que o navio-correio se atrasara devido a uma greve em Tilbury e só chegaria na semana
seguinte. Sentindo-se ainda mais abandonado com a falta de correspondência, seus pensamentos melancólicos mais e mais se voltavam para os amigos que tinham descido em terra.
Por que diacho não recebia notícias dos Holbrooks? Por quê... por quê... por quê? Primeiro com irritação, depois com ansiedade, e afinal com o aperto de coração de uma esperança sempre adiada, fazia e tornava a fazer essa pergunta a si mesmo. Inconcebível que o tivessem esquecido e jogado fora como rebotalho; como alguém que tivessem usado durante a viagem e que agora não queriam mais. A ideia mortificante crescia dentro dele. Imaginava-os num hotel de luxo, cada minuto de seu dia repleto de divertimentos e visões de lugares novos, com novos rostos e novos amigos a rodeá-los. Era fácil esquecer entre tantas distrações. E Dóris... sem dúvida teria encontrado um novo objeto de interesse, ela que andava louca por ele... Entre apreensão e raiva, contraía-se de ciúme. Acima de tudo, era isso o que mais o atormentava. Somente seu orgulho e o receio de uma repulsa o impediam de telefonar-lhe para o hotel.
Esforçando-se para continuar ativo, ensaiou uma descida experimental no porto. Mas as docas ficavam a milhas de distância da cidade propriamente dita, ele não conseguiu condução, e, após perder-se num amontoado de choças arruinadas, onde nativos acocorados esguichavam suco de bétel na poeira sufocante, confessou-se afinal derrotado e devagar se arrastou de volta para o navio, com a infeliz sensação de ter revertido aos dias monótonos e sombrios de sua mocidade.
Foi então que começou, com verdadeiro desespero, a achar falta nos Holbrooks e em tudo quanto desfrutara em sua companhia. Que admirável família aquela, como era hospitaleira, generosa e... - agora já não o escondia - rica! Nunca mais se lhe apresentaria uma ocasião de conhecer gente igual àquela! Mrs. Holbrook, tão terna, bondosa, maternal... E Bert, que ótimo sujeito! Tinham simpatizado um com o outro à primeira vista... E o oferecimento que o velho lhe fizera, mesmo admitindo que não poderia aceitá-lo, era fantasticamente vantajoso, só acontecia uma vez na vida... Nunca mais lhe surgiria uma oportunidade áurea, igual a essa. Nunca. Comparado a ela, o seu futuro no insignificante Hospital Glenburn se obscurecia numa exasperadora insignificância. E ele, que se acreditava ambicioso...
E Dorrie, não deplorava ele a sua perda mais do que a dos outros? Como era linda! Suas caprichosas disposições de ânimo eram até mesmo fascinantes. A gente nunca se cansava dela. Ao contrário, só
estar em sua companhia já era suficiente excitação. De noite, na cabina sufocante, contígua à alta amurada das docas, virava e revirava na
cama-beliche, pensando nas várias vezes que dançaram juntos, e em como, fitando-o nos olhos com aquela expressão atenta e silenciosa de convite, apertara-o contra si; depois, naquela noite no tombadilho, em que todas as possibilidades lhe foram franqueadas... Invadiu-o uma onda inflamada de desejo... Que idiota fora em rejeitar oferta tão sedutora! Como O'Neil zombaria dele se soubesse... E que grande idiota ela pensava que ele era! Poderia censurá-la por havê-lo riscado de uma vez? E, num acesso de aflição e de autodesprêzo, Moray afundou o rosto no travesseiro.
CAPÍTULO QUATORZE
No fim da semana, numa tarde de calor exasperante, enquanto - - Moray, ociosamente debruçado na amurada, estava mais deprimido do que nunca, eis que viu, como numa miragem, o cintilante Chrisler entrar na doca e encostar paralelamente ao navio. Estupefato, levou a mão aos olhos. Aquilo não podia ser verdade: o sol e sua imaginação é que produziam essa alucinação visual. Mas não era assim. Graciosamente reclinado no assento traseiro, um braço negligentemente pousado no espaldar, as pernas gorduchas descuidosamente cruzadas, um charuto Burma levemente seguro entre os dedos cheios de anéis, o capacete de banda - eis Bert que chegava!
- Enganar-me-ão os meus olhos cansados, ou o que estou vendo é o médico de bordo do bom navio Pindari - disse Bert arreganhando um sorriso. Depois, com uma voz diferente: - Traga os troços, velhinho. Vai ficar conosco.
O coração de Moray deu um salto. Não fora esquecido por eles. Pálido de emoção e alívio, precipitou-se para a cabina. Que idiota fora! Naturalmente que o queriam, não podia ser de outra forma. Em menos de cinco minutos vestiu-se à paisana e entrou no carro com a sua valise, que o chofer colocou no porta-malas. Enquanto o carro rodava em direção à cidade, Bert explicou por que demorara em ir buscá-lo: uma pequena dificuldade na locação do depósito, que levou alguns dias para ser aplainada. Agora, porém, assinara-se o acordo e estavam livres para se entregarem aos divertimentos que a cidade oferecia.
- Isto é um burgo muito animado, quando a gente o conhece - confidenciou Bert. - Houve um idiota que lhe deu a alcunha de "Cidade da Noite de Horrores", mas descobri em suas noites coisa muito melhor do que o horror: um par de enfermeirinhas euroasiáticas... o que há de mais lindo e cheio de fogo... - E atirou para o ar um beijo elucidativo. - Falo com a voz da experiência, velhinho. Sei que você só se interessa pela nossa Dorrie. E acredite: embora ela seja minha irmã, Dorrie é também muito boa...
Emergindo do amontoado suburbano de barracos em ruínas, entraram na cidade propriamente dita pelo trecho largo e povoado da estrada de Chowringhe, passaram pela grande praça cheia de ficus e lamentáveis estátuas equestres, parando em seguida sob o alto pórtico do Hotel Norte-Oriental. Fizeram-nos entrar entre mesuras para o alto saguão de colunas de mármore e ventiladores zumbindo no teto, e Bert o conduziu escada acima para o quarto que lhe mandara reservar, e que era contíguo ao seu próprio apartamento no primeiro andar.
- vou levar meia hora para me vestir - disse ele, olhando o relógio. - Mamãe e papai saíram, mas nós nos encontraremos todos para o tiffin, Dave, quer dizer, para o almoço.
Depois que Bert saiu, Moray olhou em torno. O quarto era luxuosíssimo - espaçoso e fresco, o piso azulejado com bom gosto, as persianas rendilhadas e refrigerantes, o leito largo e alto sombreado por um cortinado já corrido a fim de entremostrar a brancura imaculada de seus linhos. A mobília era pintada num suave tom de verde, e havia na penteadeira um vaso de rosas. Ao lado ficava o banheiro, branco e reluzente, com uma opulência de toalhas, sabonete, sais para banho e um macio roupão felpudo. Moray sorriu, deliciado. Que diferença de sua exígua e abafada cabina, enxameada de mosquitos! Isto sim era um quarto de verdade! Tirou da valise suas magras coisas, tomou um banho, e estava escovando o cabelo quando a porta se abriu e Dóris entrou.
- Alo - disse ela laconicamente.
Ele voltou-se.
- Dorrie... como vai você?
- Ainda respiro... se é que isso lhe interessa...
Olharam-se em silêncio - ele, com uma admiração fervorosa; ela, com um rosto quase vazio de expressão. Estava trajada com um elegante vestido novo, muito justo, e de uma suave tonalidade de petúnia, finas meias de seda bege, e sapatos de camurça, de salto alto. Pusera nos lábios um batom que combinava admiravelmente
com a rósea, cor predominante no vestido, e, pelo visto, acabara de pentear-se naquele mesmo instante. Parecia diferente, mais elegante do que no navio, mais madura, mas sedutoramente sofisticada e - ai dele! - mais inatingível. Seu perfume penetrava-lhe as narinas.
- Você está... maravilhosa - disse ele com voz rouca.
- Sim - observou ela com frieza, lendo-lhe nos olhos. - Acho que você está um tanto alegrinho em ver-me...
- Mais do que um tanto! Mas pergunto: que me diz de você?
Ela lançou-lhe um longo olhar direto, depois mal sorriu.
- Você está aqui, não está? Me parece que a resposta é essa...
- Bondade de vocês em quererem que eu viesse; lá nas docas levava-se uma vida desgraçada...
- Pensei isso mesmo - disse ela, concordando glacialmente. - Quis castigá-lo.
Ele fitou-a, perplexo.
- Castigar-me... por quê?
- Queria, eis tudo! - respondeu ela sem se explicar. - Às vezes gosto de ser cruel.
- Garota sadista... - comentou ele, tentando dar à voz a pontinha de mofa que anteriormente usara para com ela. Todavia, enquanto falava, tinha a esquisita sensação de que o equilíbrio de suas relações havia-se alterado, passara todo para o domínio dela, e sentiu de repente e com espanto, o desejo da moça em tornar claro que, em terra firme, ele deixava de ser o arrojado e desejado jovem médico de bordo, de uniforme azul-marinho da Companhia, para não ser mais do que um rapaz ordinário de um só terno que não lhe assentava e que era absolutamente impróprio para o clima. Entretanto, embora ciente do efeito que produzira, ela mudou de assunto como se este já não mais lhe interessasse:
- Gosta de meu vestido novo?
- É um sonho - disse ele, esforçando-se para falar aereamente. -
Comprou-o aqui?
- Compramos a seda ontem, num bazar. Há ali maravilhosos tecidos da terra. E o vestido foi feito em vinte e quatro horas.
- Trabalho rápido - comentou ele.
- E a tempo - disse ela friamente. - Não sei esperar; não suporto que me deixem para trás. Para ser franca, fartei-me disso nestas duas últimas semanas, com você me deixando a tomar ar. E incidentalmente, porque o escolhi, não pense que estamos às boas. Ainda não lhe perdoei; falta muito para isso. Preciso ter uma conversa com você. - E ao voltar-se para sair, como que a permitir-se um
certo abrandamento, sua expressão desanuviou-se. - Espero que goste do quarto. Fui eu que trouxe as rosas. Meu quarto é em frente... - disse, lançando-lhe um olhar significativo. - Caso precise de alguma coisa...
Depois que ela saiu, Moray ficou pasmado, a olhar as almofadas da porta. Dóris parecia ofendida, e não era para menos, depois da frieza com que ele a tratara. Que estupidez, que grosseria, haver-lhe ofendido os sentimentos! Esperava que ela lhe perdoasse.
No andar térreo, no grande saguão de mármore, a acolhida dos velhos Holbrooks foi de todo diferente, quase a que se faz a um filho que regressa; Mrs. Holbrook chegou a dar-lhe um beijo na face. O almoço não foi somente uma reunião, mas uma festa. A mesa ficava perto da janela sobranceira ao jardim. Quatro nativos de túnicas brancas, faixas vermelhas e turbantes da mesma cor permaneciam postados atrás das cadeiras, e a refeição, escolhida por Bert, era suculenta, apimentada e exótica. Depois daquele dia memorável no Grand Gairsay, era a primeira vez que Moray se hospedava num hotel; mas se alguma lembrança do outro almoço, tão diferente, lhe cruzou pela mente, logo se dissipou, varrida pela risada explosiva de Bert. Exuberantemente disposto a mostrar-lhes a cidade, ia ele, enquanto chupava uma suculenta manga, delineando o programa para a semana entrante. Naquela tarde lhes propunha uma visita ao templo Jain e aos Jardins de ManicHola, a fim de verem os famosos peixes no lago ornamental.
- São notáveis - concluiu ele. - Sobem à superfície e vão para perto de quem os chama.
- Ora, ora, Bert... - disse Mrs. Holbrook, sorrindo num carinhoso protesto.
- Falo sério, mamãe; não estou brincando. Chegam a comer na sua mão, se a senhora o quiser!
- Imaginem só! De que é que os peixes mais gostam?
- Batatas fritas - disse Dóris com voz aborrecida; depois rompeu num acesso de riso.
Depois de uma sesta, e quando o sol começou a declinar, saíram rumo aos bazares onde o gado sagrado, engrinaldado de cravos-daíndia, vagueava entre as tendas, dando marradas no meio do povo e comendo à vontade as frutas em exposição. Sons estranhos, estridentes e longínquos, feriam o ouvido, elevando-se acima da violenta algaravia nativa: o sino distante de uma igreja, o ribombar de um gongo, um súbito grito estrídulo que perdurava, fazendo vibrar os nervos... O ar estava carregado de essências aromáticas, capitosas
e provocantes, que pungiam as narinas e embriagavam os sentidos. Moray sentia-se como que no ar, absorvido por uma extrema excitação e beatitude. A individualidade se lhe anulara, ele já não era ele mesmo, mas outro homem totalmente diverso, no limiar de uma nova e emocionante aventura.
Chegando ao templo, tiraram os sapatos e entraram na penumbra pesada de incenso, onde um grande Buda idoso exibia eternamente o seu sorriso irónico e impassível. Vaguearam nos jardins do joalheiro da corte - teia de filigrana decorativa - e deram de comer a enormes carpas obedientes. A embriaguez de Moray crescia. Dóris, em seu vestido cor de petúnia e chapeuzinho de palha trançada, com uma fita a lhe cair da aba em duas pontas tantalizantes, tomara emprestado o encanto especial da própria tarde. Sentado junto dela, no regresso para o hotel, Moray virou-se e disse-lhe, transbordante de gratidão:
- Foi tudo tão maravilhoso, Dorrie... graças, especialmente, à sua companhia...
Ela percebeu-lhe a mudança, e como, desde o almoço, os modos dele iam num crescendo possessivo, quando quer que ele avançasse, ela recuava. Agora, porém, sacudiu discretamente a cabeça num gesto afirmativo, como se se preparasse para um novo abrandamento.
- Ah, afinal acredita que faço alguma diferença!
- Faz toda a diferença - murmurou ele fervorosamente, acrescentando desconsolado: - Mas você está tão fria... Parece que eu é que não faço grande diferença para você.
- Não faz?
Seus olhos se anuviaram; depois, sem que a observassem, ergueu de súbito a mão dele e ferrou-lhe os dentes no dedo indicador. A mordida, penetrante e dolorosa, varou-lhe a pele.
- É para mostrar-lhe se sou fria - disse ela; e fitando-lhe o rosto, enquanto ele instintivamente cuidava da mordida, rompeu a rir. - Bem feito, pelos insultos que me fez nestas duas últimas semanas.
No dia seguinte, Bert levou-os às corridas. Tinha bilhetes para o prado e arquibancadas reservadas ao clube, bem como um palpite das cocheiras, concernente ao páreo principal. Não era possível nenhum erro - nenhum, nenhum. O cavalo Maiden Palm, que Moray apoiara a conselho de Bert, chegou com um avanço de três corpos. Isso, sim, era viver! Isso, sim, era a vida! E Dóris já o tratava melhor, muito melhor. Era como se, tendo-lhe corrigido os defeitos antigos, agora tivesse finalmente resolvido olvidá-los.
No dia seguinte ao das corridas, visitaram o famoso Jardim Zoológico, cruzaram o Howrah, e contemplaram, a uma discreta distância, as plataformas de cremação à margem do Hooghly; foram tomar chá no Real Clube de Golfe de Calcutá, e encerraram o dia com uma excursão rio abaixo até Sutanati. O dinheiro abria todas as portas. Bert em férias era gastador, dava propinas com extraordinária prodigalidade. Moray viu centenas de notas de uma rupia, inexaustivamente materializadas na palma da mão de Bert, passarem destramente para mãos estendidas. Que maravilha não ser preciso poupar e catar, contando cada miserável moeda na penúria que toda a vida ele conhecera, mas, em vez disso, ter dinheiro, dinheiro de verdade, mais do que o suficiente para desfrutar as boas coisas da vida.
O tempo voava à medida que um divertimento se seguia a outro em rápida sucessão. Moray simplesmente deixava-se levar, recalcando todo o pensamento de advertência, bloqueando o passado e o futuro, vivendo apenas no presente. Mas a data da partida do Pindari aproximava-se. Quando soube que partiria na terça-feira seguinte, a febre de seu sangue atingiu o auge. Tudo quanto desejara na vida estava ali, ao alcance de sua mão; bastava-lhe estendê-la e agarrar. Holbrook, suave e amável, não insistira na oferta: esta fora feita e ainda era válida - sólida oferta de um homem abastado, esperando a resposta de Moray. Mrs. Holbrook, mediante insinuações e instâncias, desejava ardentemente que ele a aceitasse. Bert, entretanto, não tinha nenhuma dúvida sobre o assunto. Na sexta-feira à tarde, ao chegar do Clube de Bengala, do qual era sócio - em trânsito, encontrou Moray no salão do hotel e arrastou uma cadeira para junto dele.
- - Tenho boas notícias para você, Dave. - Desde o começo estavam em termos tais de intimidade que se chamavam pelos apelidos. - Tratei de procurar-lhe um substituto... para a viagem de regresso. Agorinha mesmo, no clube, topei com um médico do I.M.S., que vai à Inglaterra de licença. Chama-se Collins. Pulou de contente ante a oportunidade de uma viagem grátis, e ainda por cima o salário. É o nosso homem.
Como que ferrado por UMA vespa, Moray pôs-se ereto na cadeira. A inesperada declaração de Bert e a presunção de fato consumado, levaram o assunto a uma conclusão. Uma repentina onda de fraqueza invadiu-o e, cedendo à debilidade, sentiu que
3. Indian Medicai Service (Serviço Médico Hindu) - N. da T.
devia finalmente desabafar. No fim de contas, a quem melhor podia revelar e explicar a situação do que a um sujeito bom como Bert?
- Olhe aqui, Bert... - disse com certa hesitação. - Você sabe, naturalmente... que eu gostaria de aceitar o oferecimento de seu pai... especialmente para trabalhar com você. Mas... será que devo...
- Santo Deus, por que não? Sem falar em Dorrie, precisamos de um médico na empresa. Gostamos de você. Você gosta de nós. Detesto acentuá-lo, meu velho, mas, para você, a ocasião é um pão e um pedaço. Não sei se se lembra da expressão de Wagglespear: "os negócios humanos também têm maré"...
- Mas, Bert... - prosseguiu Moray abjetamente, depois calou-se. Entretanto precisava dizê-lo, embora tivesse de arrancar cada palavra da boca do próprio estômago: - Há alguém... uma garota... que está à minha espera...
Bert fitou-o um longo instante, depois rompeu num acesso de riso.
- Não me mate de riso, Dave. Ora essa, eu tenho uma porção de garotas que me esperam em toda a Europa... e em breve a minha pequena eurásia estará esperando por mim em Calcutá!
- Mas você não compreende... Eu prometi... prometi casar-me com ela.
Bert tornou a rir, um tanto compadecido e compreensivo; depois sacudiu a cabeça.
- Você é mais jovem do que a idade que tem, Dave, e um pouco ingénuo ainda. Acho que essa é, em parte, a razão por que simpatizamos com você. Se você conhecesse as garotas como eu as conheço ... Acredita então que elas definham até morrer quando se lhes acena um adeus de soldado? Eu não; juro-o por esta porca de vida - perdoe-me o hindustani. Aposto cinco libras que sua amiguinha logo se recuperará do desapontamento e o esquecerá em seis meses. Quanto a seus próprios sentimentos nesse particular, que não me impressionaram como demasiado ardentes, lembre-se do que disse Platão, ou não sei que outro velho romano: "Todas as mulheres são iguais no escuro." Entretanto, falei seriamente sobre o assunto com mamãe e o velho. Todos achamos que você é o tipo ideal para Dorrie pois lhe dará estabilidade... Ela precisa de um pouco de lastro, porque às vezes tem... - Bert hesitou - tem certa complicação com os nervos. Por sua vez, Dorrie lhe dará uma alisadela que, na minha modesta opinião, lhe deixará o pêlo mais macio, e lhe fará um bem enorme. Ela já teve alguma experiência com rapazes, não é nenhum anjo, mas você é aquele por quem se apaixonou, e
com quem está louca para se casar. Encaremos de frente a coisa, meu velho: você foi tão longe, com a família, que agora seria um crime recuar. Por que não concorda, então, e nós começaremos a tocar os sinos da boda? Vamos tomar uns drinques e brindar o futuro. - E, recostando-se na cadeira, chamou o khidmuthar: - Garçom. .. garçom!
CAPÍTULO QUINZE
Embora temporariamente embalado por aquele jovial abrandamento de seus escrúpulos, Moray não achava convincentes, ou concludentes, os argumentos de Bert. Passou uma noite agitada, e na manhã seguinte, acordando ainda tenso pela indecisão, resolveu pelo menos regressar ao navio e ter uma conversa com o Capitão Torrance. Quanto mais não fosse, era correto indagar se o Dr. Collins, convinha como substituto, caso ele... bem, caso ele não pudesse fazer a viagem de regresso. O capitão era um homem sensato, cujo conselho valeria a pena pedir; além disso, ninguém precisava saber da sua intenção, e o momento era propício. Desde que a mãe de Dorrie alegara cansaço, nada se combinara em definitivo sobre novos passeios, e ele não tinha compromisso com os Holbrooks até à noite, quando se lhes deveria reunir para o jantar de gala e o baile que regularmente se realizava no Hotel Norte-Oriental nas noites de sábado. Levantou-se, barbeou-se, vestiu-se e tomou um táxi para a doca Vitória.
A vista do Pindari, agora quase sem lastro, sólido e familiar, feriu uma nota tranquilizadora, mesmo confortável, sugerindo-lhe que, uma vez a bordo, estaria salvo até de si próprio. Subiu depressa o passadiço; mas ao chegar à coberta do comando, encontrou ambas as cabinas trancadas; disse-lhe o contramestre encarregado que nem o capitão nem o Sr. O'Neil se encontravam a bordo. Ao descer, encontrou apenas o
comissário-assistente, que lhe explicou que nenhum dos oficiais superiores estaria de volta até sábado à noite.
- O segundo-piloto está no convés, se é que o senhor deseja vê-lo.
Moray fez com a cabeça um aceno negativo e afastou-se lentamente.
- A propósito - disse o outro, - chegaram algumas cartas para o senhor.
Moray desceu à cabina e folheou um maço de cartas, do qual escolheu duas. com um repentino aperto no coração, reconheceu que a menos volumosa era de Willie, e a outra, grossa e pesada, era de Mary. Não teve coragem de as abrir. Mais tarde o faria, pensou. Ao descer do navio para a doca, onde o táxi ainda esperava, enfiou-as no bolso interior do paletó.
Naquele dia tentou reunir vontade suficiente; entretanto não pôde decidir-se a ler as cartas: a censura do seu puro e carinhoso conteúdo era superior às suas forças. E porque não as abriu, porque as temia, não ficou nem contrito nem comovido. Em vez disso, cristalizou-se em sua mente uma exasperação, quase um ressentimento por terem elas chegado nessa grande crise de sua vida. As cartas, ainda fechadas, subconscientemente o atiraram na direção de Dóris e de tudo quanto os Holbrooks representavam para ele. À guisa de defesa, e aguilhoado pelas solicitações gémeas de dinheiro e sexo, pôs-se a estruturar, desde os seus começos, um argumento lógico a seu favor: a perda dos pais, a criança não desejada que ele fora, a desgraça da sua pobreza dependente, os esforços sôbre-humanos que desenvolvera para obter seu diploma. Certamente que se lhe devia uma rica recompensa, e esta agora se achava a seu alcance. Poder-se-ia esperar que a jogasse fora como uma coisa sem valia?
Na verdade, restava Mary - pelo menos era forçado a evocar-lhe o nome. Mas não fora ele levado de tropel para aquela situação, impelido a ela pela sua natureza impulsiva, sua inexperiência, e o romântico pano de fundo em que ela lhe surgiu? Ela também, não havia dúvida, fora impelida por essas mesmas influências transitórias, pouco dignas de confiança. Não queria magoá-la ou abandoná-la ao desamparo, mas tinha uma dívida para consigo mesmo, e quem sabe? - talvez mais tarde ele estivesse em condições... bem, em condições de fazer algo por ela, a fim de reparar essa deserção. Não sabia de que modo, mas a ideia era uma reconfortante possibilidade. Rapazes jovens erravam, arrependiam-se, reparavam o mal - eram perdoados. Seria ele uma exceção?
Era esse o seu estado de espírito quando, ainda incerto e indeciso, dirigiu-se um tanto apreensivo para se reunir, às oito horas, com os Holbrooks, no restaurante do hotel. Claro que a sua disposição de ânimo não afinava com a alegria geral, mas foi espantoso e, nessa situação, elogiável que ele, para não arrefecer o espírito da reunião, pusesse de lado os seus problemas pessoais e reagisse com alegria à cordial acolhida de seus amigos. Bert, principalmente, estava com excelente disposição. Todavia Moray percebeu, ao pousar
os olhos em Dóris, que ela se encontrava num dos seus estados mais opressivos e sombrios. Preparara-se com grande apuro, e trazia um vestido branco, curto, sem mangas, de decote baixo e bordado com miçangas de cristal. O vestido parecia o que na realidade era: um dispendioso trapo, todo feito de fragilidade. Entretanto assentava-lhe maravilhosamente, e ela o sabia.
O jantar, suculento e demorado, foi revigorante para Moray, e quando, depois da sobremesa - uma deliciosa compota de abacaxi e ameixas servida com chapattis, - trouxeram o café e o conhaque, ele compreendeu quanto fora estúpido por haver-se apoquentado e atormentado durante todo o dia. Agora, adeus cuidados! Depois do jantar dirigiram-se para o salão de baile, onde, segundo o costume, o velho tudo fizera a preceito. O champanha estava posto num balde de gelo junto à mesa semeada de orquídeas e situada na fímbria da pista de dança, de frente para o palco cercado de palmeirinhas, onde se via a orquestra, de uniforme vermelho.
- Gostamos que os moços se divirtam, não é verdade? - disse Holbrook, ao tomarem seus lugares. (A observação foi feita no tom sentimental de vários conhaques duplos.) - E você, Bert, ainda não arranjou um par que sirva?
- Já teria arranjado, papai, mas sinto não poder ficar muito tempo - disse Bert, piscando para Moray. - vou sair para comprar um cachorro...
- Tome um gole de champanha antes de ir.
A rolha estourou, todos beberam. Depois as luzes se obscureceram, e a orquestra rompeu uma valsa. Bert levantou-se e fez a Dóris uma cerimoniosa reverência que lhe expôs o gordo traseiro apertado em calças justas e dividido em duas luas cheias.
- Posso reivindicar meu privilégio de família e ter a honra, Miss Holbrook?
Dançaram a primeira contradança a modo de irmão e irmã; em seguida, depois de empinar outra taça de champanha, Bert consultou aereamente o relógio.
- Santo Deus, tenho de correr, senão o cachorrinho é capaz de ir ladrar ao pé da árvore errada... Divirtam-se! Chin-chin!
- Não volte muito tarde, querido - admoestou Mrs. Holbrook. - Ontem de noite voltou...
4. Forma de saudação e despedida, na China, - N. T.
- Claro que não, mamãe. - Inclinou-se e deu-lhe um beijo. - Mas agora Bert é um rapaz taludo, mamãe querida! Amanhã irei vê-la são e salvo!
Vai ver a garota eurásia, pensou Moray. A orquestra rompeu num animado one-step. Mrs. Holbrook olhou para Moray, depois para Dóris, desta vez sem sorrir, mas com uma expressão que parecia dizer: "Agora vocês dois; e, enquanto dançam, decidam." Moray podia sair confiadamente para a pista de dança. Além disso, provara vários conhaques após o jantar, e estes pareciam dar-se bem com o champanha.
- Se me dão licença de o dizer - observou Mrs. Holbrook quando os dois voltaram, - vocês formam um par muito bonito.
Holbrook, rindo com indulgência, e um pouquinho tocado, serviu-lhes outra taça de champanha. O par voltou a dançar. Dançaram juntos todas as contradanças, e, cada vez que o braço dele a cingia, Dóris mais se lhe colava ao corpo, de modo que cada movimento dela provocava em Moray um movimento igual, até que ambos começaram a mover-se em um ritmo único que fazia palpitar os nervos dele. Moray podia sentir que ela estava com muito pouca roupa interior. No princípio, simulou fazer algumas observações sobre os outros pares e sobre a orquestra, que era de primeira; ela, porém, fê-lo calar-se com uma pressão do braço.
- Não estrague; está tão bom.
Entretanto, se ela se mantinha calada, boiava em seus olhos grandes, brilhantes e cobiçosos, irremissivelmente grudados nos dele, qualquer coisa de comunicativo: não uma indagação, mas uma mensagem, que era impossível deixar de entender, uma mensagem a um tempo possessiva e intensa. Só uma vez voltou ela a falar: lançando um olhar impaciente na direção dos pais, murmurou:
- Gostaria que eles fossem embora.
Em verdade, não ficaram ali até muito tarde. Às dez e meia, Mrs. Holbrook tocou no ombro do marido, que estava meio adormecido, e disse:
- Já é hora de os velhos irem para a cama. - Depois, com um sorriso reticente: - Vocês dois podem ficar mais um pouco. Mas não demais.
- Logo iremos - disse Dóris laconicamente.
Durante o número seguinte as luzes foram baixadas, e, enquanto eles dançavam atrás da orquestra, ela disse, um tanto indecisa:
- Vamos dar um giro lá fora.
O jardim estava tépido e quieto, e havia sombras sob o alto dossel da folhagem. Ela recostou-se no macio tronco de uma grande catalpa, os olhos fixos nele. Tremendo todo, Moray passou-lhe o braço por trás do pescoço e beijou-a. Como resposta, ela introduziu a língua entre os lábios dele. Em seguida, como ele a estreitasse mais, o botão de seu punho prendeu-se no colar de aljôfar que ela trazia ao pescoço. O fecho abriu-se e as pérolas rolaram pelo decote abaixo.
- Agora, sim - disse ela, com um riso singular e estrangulado, passando a mão pelo pescoço. - Vai apanhá-las para mim.
A cabeça de Moray rodopiava, o coração lhe batia como louco. Começou a procurar as pérolas, primeiro no decote, depois entre os seios firmes, de mamilos espetados, de onde desceu para a doce maciez contígua...
- vou rasgar-lhe o vestido.
- Não ligue ao vestido - respondeu ela na mesma voz estrangulada de antes.
Foi quando Moray descobriu que ela não trazia roupa alguma embaixo do vestido; e de vez que, durante todo o tempo, ela tinha na mão o colar partido, o que ele achou não foram as pérolas. Nesse momento, de tudo se esqueceu. Todos os seus desejos, reprimidos nas últimas semanas, o subjugaram num tropel que o cegou.
- Aqui não, seu bobo. - E ela afastou-se depressa. - No seu quarto... em cinco minutos.
Ele subiu diretamente para o andar de cima, arrancou a roupa, apagou a luz e atirou-se no leito. Um raio de luar varou a escuridão quando ela entrou, fechando a porta atrás de si. Tirou o peignoir, e surgiu-lhe toda nua; em seguida, abriu o cortinado. Seu corpo tinha um calor quase sufocante. Enlaçando-lhe o pescoço com os braços, puxava-o para si, e com tanta violência premiu sua boca na dele que seus dentes lhe marcaram o lábio inferior. A respiração se lhe tornou ofegante, e, sob seus seios esmagados, ele podia ouvir o cálido latejar de seu coração.
- Depressa - disse ela num sopro. - Não vê que morro de desejo?
Se ele não soubesse que ela já não era virgem, agora o saberia pela natureza da sua reação. Quando afinal ela se deitou, sem todavia
largá-lo, soltou um suspiro fundo, depois puxou a cabeça dele para junto da dela no travesseiro.
- Você estava muito bom, meu bem. E eu?
- Você também - respondeu ele em voz baixa e com sinceridade.
- Quanto tempo perdemos! Você não percebia que eu o desejava, que o desejava loucamente, desde o começo? Mas daqui em diante vai ser perfeito. Faremos a participação amanhã cedo; depois iremos para Nova Iorque com Bert. .. Meu Deus! Como é que não percebeu antes que eu estava caída por você? Nunca me fartarei. .. vai ver. - Roçava-lhe os lábios com a língua e com eles brincava, acariciando-o com as pontas dos dedos. Súbito, um tremor passou-lhe pelo corpo. - Novamente... - murmurou ela - mas mais humorado, desta vez... e na próxima. - É tão bom... faça devagar... Dóris ficou com ele até à primeira luz cinzenta da madrugada. Naquela manhã, após receber esfuziantes parabéns na hora do desjejum, Moray saiu para dar uma volta e clarear as ideias. Sentia-se um tanto lânguido mas Dóris era com efeito ótima, e ele já ansiava pela chegada da noite; além do mais, havia, é claro, o emprego, o dinheiro e um futuro tranquilo. Que o resto fosse para o diabo; um sujeito devia cuidar de si. Em sua mente embotada, era menos difícil encerrar o passado e pensar apenas no futuro. Ao cruzar a ponte Howrah, súbito se debruçou no parapeito e, sem olhar, tirando a mão do bolso interno do paletó, deixou cair as duas cartas, ainda fechadas, nas águas imundas e poluídas de cadáveres do sagrado Ganges.
TERCEIRA PARTE
CAPÍTULO UM
A madrugada nasce muito cedo no Oberland suíço. Seu brilho ofuscador e o cincerro das vacas despertaram-no. Como receara, o fenobarbitol não produzira efeito, e naquelas horas de insónia tornara a viver aqueles meses fatais da sua mocidade, até que, torturado, às três da madrugada, tomou um amital, que lhe proporcionara uma breve trégua à insónia total. Agora, as têmporas latejantes, o cérebro embotado pela droga, encarava a situação de um modo obtuso, todavia com uma resolução quase desesperada, ciente de que, ao fim e ao cabo, teria de dar o passo decisivo.
Assim lhe dissera Wilenski na última consulta em Nova Iorque,
sorrindo-lhe animadoramente como sempre fazia, um braço descansando no espaldar do canapé e o sotaque resvalando para o acariciador acento sulino que ele empregava para desfazer os emaranhados interiores de seus pacientes.
- Um dia você terá de voltar... só para acabar para sempre com esse velho complexo de culpa. Na realidade, você quer voltar, em parte porque sofre uma nostalgia recalcada - a nostalgia da pátria, - mas principalmente para ver a sua... a sua amiguinha, e pôr suas relações em ordem. E por que não? Antes tarde do que nunca. Se as coisas não lhe tiverem corrido muito bem, você está em situação de ajudá-la. Agora... - e seu sorriso era de uma amável malícia - você é um viúvo alegre; se ela ainda for bonita, poderá reparar o mal, casando-se com ela... se é que ela continua solteira...
- Nunca se casaria.
Moray não tinha a menor dúvida quanto a isso, mas esperava que, pelo menos, ela tivesse sido feliz.
- Lembre-se do que lhe estou dizendo. E se sentir que está de novo em dificuldades, siga meu conselho: volte para sua terra.
Sim, ele voltaria; e, ao reafirmar essa decisão, sentiu um grande alívio. Tocou a campainha, e, consultando o horário da Swissair, disse a Arturo que chamasse Zurique e mandasse reservar uma passagem no avião das duas horas para Prestwick. Levantou-se, barbeou-se, vestiu-se, tomou o café no andar térreo. Em seguida, enquanto
Arturo arranjava sua valise, fumou um cigarro, pensativo. Levava pouca coisa: seu regresso seria calmo, humilde, sem a menor ostentação - nem Rolls-Royce, nem indícios de riqueza, nada... E essa ideia,
suscitando-lhe uma sombria antecipação, injetou em sua melancolia um clarão transitório. Quanto à villa em sua ausência, com servidores tão bem organizados e dignos de confiança - falara-lhes em negócio urgente a tratar, - não constituía problema: podia partir quando bem quisesse, mesmo avisando em cima da hora.
O telefone chamou; ele levantou-se e dirigiu-se para o aparelho. Conforme esperava, era Frida von Altishofer.
- bom dia. Incomodo-o?
- Absolutamente.
- Então conte-me depressa: está bem... está melhor?
A horrível noite que acabava de passar fazia-o ansiar por uma palavra de simpatia; entretanto sabia que isso não era prudente.
- Positivamente, estou melhor.
- Muito me alegro... sinto-me aliviada, meu amigo. Sairemos a passeio esta manhã?
- Gostaria muito. Mas...
Puxou o pigarro e enunciou a polida ficção que tinha preparado: recebera na véspera um telegrama - puro assunto de negócios que, entretanto, o transtornou, segundo ela mesma percebia - e que ele tinha de pôr em ordem mediante uma visita a seu advogado londrino. Partia naquela mesma manhã.
Fez-se um silêncio penetrante, onde ele percebeu surpresa, desapontamento, talvez uma pontinha de consternação. Ela, porém, rapidamente disfarçou.
- Claro que precisa ir... é homem de negócios. Mas não se vá cansar. E volte logo... antes da minha partida para Baden. Bem sabe a falta que vai fazer.
Arturo levou-o para o aeroporto na perua Humber, assim emprestando um tom de moderação ao resto da viagem. Era seu costume almoçar, em Zurique, no Baur-au-Lac, mas naquele dia não parou no hotel admirável, dizendo a Arturo, que exprimiu a sua preocupação, que provavelmente comeria alguma coisa no avião. Chegaram cedo ao aeroporto, mas felizmente o avião estava no horário e partiu precisamente às duas horas. Enquanto o DC-7 varava as nuvens baixas em demanda do azul, a expressão fixa de seu rosto não se desfez; todavia, apossava-se dele uma estranha exultação. Estava de regresso, finalmente - de regresso, após trinta anos de ausência, para o país de seu nascimento. Por que - Deus do Céu - demorara tanto
tempo? Pois somente lá poderia encontrar a paz de espírito, a final libertação daquele remorso que de tempos a tempos caía sobre ele como uma escura nuvem opressiva. Uma palavra lhe ocorreu - edificante e promissora. Não era religioso, mas lá estava ela: Redenção! Repetiu-a a si mesmo - lentamente, fervorosamente.
Súbito, apesar de sublimes, seus pensamentos foram interrompidos pela linda aeromoça que lhe sorria no seu elegante uniforme azul, apresentando-lhe a refeição que ele menosprezara em terra e que lhe parecia excelente e apetitosa: salmão defumado, uma asinha de frango com aipo refogado, pêssego Melba e um copo de ótimo champanha. Depois, apesar da noite horrível da véspera, sentiu-se mais ele mesmo e cochilou um pouco sobre o Mar da Irlanda, mas sempre atento à descida na costa escocesa. Às seis e meia avistou-se Preswick no nevoeiro azul de um crepúsculo prematuro, onde luzes começavam a brilhar como cabeças de alfinete. A descida foi perfeitamente suave, e dentro de mais alguns instantes estava ele ouvindo, com pulso acelerado, o quase esquecido e áspero sotaque de sua língua nativa. De cabeça descoberta, enquanto caminhava, ele ia respirando fundo o ar macio das Terras Baixas.
Estava finalmente em sua terra. E inconscientemente murmurou as famosas palavras de Rob Roy Macgregor: "Meu pé calca a charneca pátria...", enquanto a emoção o inundava.
O carro esperava fora do galpão da alfândega, e ele partiu, rodando suavemente pelas terras de plantio de Ayrshire. Limpava sofregamente a humidade da janela no esforço de captar retalhos da paisagem obscurecida, mal notando a passagem do tempo, até que o ruído do tráfego o alertou: achava-se na terminal aérea de Winton.
Tomou um táxi para o Hotel Central, onde arranjou um quarto no lado tranquilo, longe das plataformas da estação e do barulho dos trens. Já era tarde e ele estava cansado. Pediu que lhe servissem leite e sanduíches, e depois, após um banho quente onde ficou mergulhado durante quinze minutos a distender os nervos retesados, foi para a cama. Imediatamente adormeceu.
CAPÍTULO DOIS
Na manhã seguinte, despertando cedo para a vibrante consciência de que estava na realidade em Winton - fisicamente presente na cidade de sua juventude, cenário de suas lutas homéricas de estudante, - foi-lhe mister deitar água na fervura de suas emoções. Precisava
de calma e prudência para abordar essa grande encruzilhada de sua vida. Todavia, enquanto rápido se levantava, se vestia e descia para o almoço no tépido salão atapetado de vermelho, onde, pela primeira vez em trinta anos, provava com delícia a verdadeira papa de aveia com creme acompanhada de chá e torradas e seguida por um autêntico bacalhau de Findon, foi ele ficando alerta, de maneira crescente, às momentosas perspectivas do dia.
Assim que bebeu o último gole da terceira xícara de excelente chá, dirigiu-se para o saguão, apanhou o Herald de Winton e, percorrendo os anúncios, descobriu o endereço de uma agência de carros de aluguel. Um carro pequeno, por mais modesto que fosse, lhe facilitaria a viagem até Ardfillan e qualquer outro deslocamento subsequente que fosse necessário. Uma estranha inibição lhe impediu o procedimento mais óbvio de pedir ao porteiro-chefe que tratasse do aluguel; em vez disso, telefonou ele próprio para a agência. Podia acaso explicar esse ato vagamente irracional? Não era conhecido no hotel, parecia-lhe igualmente improvável que o reconhecessem; entretanto, todos os seus instintos o impeliam para a dissimulação. De qualquer forma, após pedir que o carro, um pequeno modêlo-padrão, fosse entregue no hotel o mais breve possível, prometeram, depois de alguma insistência, entregá-lo à uma hora da tarde.
Nervoso, olhou o relógio: passava um pouco das onze. com duas horas de folga, saiu do hotel, cedendo ao impulso de fazer uma curta peregrinação aos lugares conhecidos de sua juventude. A cidade cinzenta, fria, encrostada de fuligem e ainda escura de fumaça, mostrava poucas alterações desde os dias em que ele palmilhara suas calçadas encardidas e ruidosas. Na esquina das Ruas Grant e Alexandra, tomou o bonde amarelo que o levaria para o Parque Eldongrove. Desceu junto aos portões, caminhou devagar pelos jardins, e, com crescente melancolia, subiu a colina em direção à Universidade. Ali porém, deambulando à sombra dos velhos claustros, as recordações de seu tempo de estudante foram tão dolorosas e cortantes que, após uma rápida vista de olhos, saiu apressado do recinto, daí passando, na outra extremidade, pela loja Gilhouse, onde vendera seu microscópio para comprar o anelzinho de pedra azul que dera a Mary. Os olhos se lhe humedeceram. Que presente pobre, em comparação com tudo quanto podia agora fazer chover sobre ela! Entretanto, aquilo lhe consumira até ao derradeiro níquel, e ninguém poderia acusá-lo de mesquinhez ou de qualquer conhecimento prévio do que estava para acontecer.
Eldongrove não ficava longe da casa de cómodos de Blairhill, e, impelido por sua disposição de ânimo, tomou a estrada que subia a colina e daí descia para as docas. Sim, sua velha morada ainda estava ali, barraco mal afamado, ainda mais encardido e mais sórdido do que antes. Levantando o olhar, viu-se ainda jovem, curvado sobre os livros, por trás da estreita janela da mansarda. Como pelejara e como padecera, preparando-se para uma grande e maravilhosa carreira!
Mas, louvado Deus, que fizera de sua vida? Após nobres começos, qual fora o resultado? E enquanto ali estava, olhando para cima com um ar abstraio, um raio de sincera compunção feriu-o, levando-o a experimentar não apenas um remorso genuíno e amargo, mas também uma sensação arrasadora da futilidade de tudo quanto fizera desde que saíra daquela mansarda para o mundo.
Amassara uma fortuna, uma fortuna enorme - mas como? Não como um cirurgião brilhante, um especialista de primeira ordem, estimado e reverenciado em sua profissão, mas como um infeliz fabricante de pílulas, um fornecedor oportunista de medicamentos populares, de escassa significação clínica, cujos anúncios degradavam a paisagem, todos vendidos com um tal lucro sobre o custo, ao ponto de constituírem uma verdadeira imposição ao público. Não, não devia ser tão rigoroso consigo mesmo; uma parte de seu trabalho - o grupo dos analgésicos, que desenvolvera com base nos fenotiazóis, por exemplo - tinha um certo valor. Entretanto, em conjunto, que imitação burlesca da carreira que planejara! E por que Deus misericordioso, - por que o fizera? Por que, acima de tudo, fora tão idiota, a ponto de se casar com Dóris Holbrook?
Decerto que, naquela viagem fatal, ele poderia ter previsto as suas predisposições psicopáticas, e que os seus divertidos caprichos lhe seriam mais tarde insuportáveis, e que a excitação física que ela lhe provocava rapidamente amorteceria. Lembrou-se da linda casinha de Cos Cob onde o pai dela os alojara, apropriada aos novos escritórios de Connecticut em Stamford. Ela adorou-a por seis meses; depois, repentinamente, começou a detestá-la. A mudança para a vizinha Darien, ao princípio um enorme êxito, logo se transformou em igual malogro.
Dir-se-ia que ela era incapaz de se estabelecer ou adaptar a um novo ambiente, e a recusa dele, em face de uma nova mudança, foi pretexto para ela viajar diariamente até Nova Iorque, quase como uma suburbana, passageira de trens diurnos e noturnos. Vieram então as aulas de Arte e Escultura, o crescente exagero no seu modo de vestir, seus novos, suspeitos e sempre renovados
conhecidos, com os quais Moray logo desconfiou que ela o traía. Sempre que ele a admoestava, havia recriminações, indiferença, berros por detrás de portas trancadas, reconciliações histéricas. Ela queria voltar a Blackpool - o que era incrível. Mais incrível, porém, era o fato de que na realidade ela parecia detestá-lo. Quando, após longo intervalo, ele tentara delicadamente reencetar suas relações conjugais, ela apanhara uma escova de marfim e, praticamente, quase lhe rebentara a cabeça.
Mas ele prosperava, um divórcio podia significar um rompimento com os Holbrooks, e ele conseguiu ir aguentando. Após cinco anos em Darien, uma doação do velho Holbrook outorgou-lhes Fourways, bela propriedade no distrito de Quaker Ridge, em Greenwich. Lugar tranquilo, habitantes conservadores, um Garden Club - ele convenceu-a a frequentá-lo, - suas modestas diversões; alimentava esperanças de que Dóris tomaria juízo. Baldadas ilusões. Gradualmente, através de estados de espírito instáveis e crescentemente intratáveis, acessos de violência e períodos de amnésia, foi ela passando para as alucinações depressivas, até que Wilenski, chamado para consulta, pôs no ombro dele uma mão consoladora.
- Paranóia esquizofrénica. Tem de ser registrada.
Depois, durante quinze anos, ele foi o homem que tinha a mulher numa clínica de neuropatas, sempre à espera dos resultados da insulina e dos tratamentos de eletrochoque, das ligeiras melhoras e graves recaídas, suportando essa desesperadora situação até o indizível alívio de uma pneumonia hipostática final.
Nessas circunstâncias trágicas, era de surpreender que - andando ele na corda bamba da tensão nervosa - tivesse precisado atirar-se ao trabalho com Bert? Nada tinha contra Bert - o bom, o decente, o cordial Bert, que sempre estivera, leal e franco, de seu lado; que repetidamente o ajudara a lidar com Dóris, e que até se lhe confessara culpado porque o iludira sobre as esquisitices da adolescente, e que, depois da morte do velho Holbrook, lhe dera sociedade, em partes iguais, na rica e próspera firma americana.
E, pondo de parte o trabalho, não estava ele justificado, como vítima sofredora, por dedicar-se a si próprio, cultivando a sua personalidade, estudando as artes, aprendendo línguas - francês, alemão e italiano, por exemplo, - vestindo-se com bom gosto, em suma, tornando-se um homem finamente educado, adotando conscientemente o estilo de vida antigo (em suas leituras, dava preferência aos Eduardianos), verdadeiro "homem distinto" que, mercê da sua sedução e dom de agradar, podia exigir, mesmo nesta época pavorosa
em que todo o sentido de valor fora por água abaixo, interesse instantâneo, atenção e respeito? Naturalmente, em sua posição, tinha obrigações físicas a cumprir para consigo mesmo, e que, homem lido que era, podia sancionar-se isso fosse necessário - citando a picante carta de Balzac a Madame Hanska sobre o assunto. Não tinha também a intenção de degenerar na impotência e na imbecilidade, mas recuava diante do adultério indiscriminado, diante desses breves e incertos encontros que se realizavam após os coquetéis em carros estacionados sob o arvoredo de clubes de campo. Foi quando o acaso pôs em seu caminho uma mulherzinha tranquila, (ele sempre dera preferência a mulheres pequenas), uma viúva no começo dos trinta, loura e de origem polonesa, chamada Rena, que trabalhava humildemente como encadernadora em uma editora de Stamford. Sua abordagem cheia de tato produziu resultados surpreendentemente agradáveis. Descobriu que ela era não apenas dócil como satisfatória, ordeira, cheia de apuro pessoal, nada exigente e absurdamente grata pela ajuda dele. Logo se estabeleceu entre ambos um arranjo regular e discreto. Ele até chegou a querer-lhe muito (a seu próprio modo); e embora ela ficasse desorientada quando ele partiu dos Estados Unidos, Moray fez antes o que devia, dotando-a generosamente de um meio de vida.
Sim, houve boas razões para ele viver naquele estilo; todavia, se a escusa própria lhe trazia algum alívio, o coração ainda lhe doía quando se virou e, descendo Blairhill, tomou o caminho de regresso para o hotel. Lá chegando, não pôde sequer pensar em almoçar; mas, sentindo a necessidade de preparar-se para a viagem, tomou um copo de xerez seco e comeu uma bolacha Abernethy no bar, e logo depois se sentiu melhor.
O carro chegou na hora aprazada, e ele, depois de assinar os papéis necessários e pagar o depósito, iniciou a viagem. Não precisava de indagar acerca do caminho. Deixando as ruas para trás, tomou pela estrada principal a oeste, deixou para trás os Jardins Botânicos e os campos de jogo, em seguida entrou na estrada real que conduzia dos arredores da cidade às terras baixas do estuário. Este ampliara-se e melhorara; mas, conquanto agora passasse pelos estaleiros e as fundições de aço das cidades industriais ribeirinhas, aquela ainda era a mesma estrada que o levara a Mary. Moray rodava devagar, prolongando as sensações, embora fosse sucumbindo à medida que, um após outro, os sons e os cenários conhecidos iam surgindo diante de seus olhos. O contínuo taque-taque dos estaleiros, o apito da balsa do Erskine, o fundo e rouco lamento
de um navio cargueiro - tudo se fundia numa fantástica dissonância que o arrasava, assim como o arrasavam as vistas fugidias de verdes matas e águas'cintilantes, de longínquas cristas purpúreas de montanhas que precipites curvas do caminho lhe revelavam. Tudo, tudo lhe trazia, com uma doce pungência, a imagem da única mulher que verdadeiramente amara.
A umas trinta milhas de Winton alcançou a aldeia de Reston, e, deixando para trás a estrada principal, tomou o estreito caminho espiralado que, paralelamente ao estuário cada vez mais largo, conduzia a Ardfillan. Como aqueles martelos dos estaleiros, o coração lhe batia à entrada da cidadezinha, toda ela igual ao que fora outrora, como se ele a tivesse deixado na véspera. A mesma estreita faixa de esplanada, lambida pelas ondas mansas; o coreto de ferro; o pequeno dique; a curva das casas baixas e encardidas, a torre quadrada da igreja... Sua visão estava tão perturbada que lhe foi preciso parar um instante, - ó Deus, - e parou logo em frente do mesmo abrigo de madeira de onde Mary mandara Willie fazer uma compra e onde ele a tomara nos braços! Estava agitado, pensamentos confusos perpassavam-lhe pela mente; ela o acharia muito mudado, reconhecê-lo-ia, perdoar-lhe-ia, ou se recusaria a vê-lo?
Afinal voltou à calma, rodou ao longo da fachada e enfim estacionou. Depois, cabeça baixa, subiu a ladeira que levava à loja Douglas. Já na rua traseira levantou a cabeça, e súbito percebeu que a loja já não estava ali. Havia em seu lugar uma alta fachada de tijolos, de cujo interior provinha um rumor de máquinas rodando. Esperara, com uma confiança tão irracional, encontrar tudo como dantes, que ficou mais desapontado do que admirado. Permaneceu confuso alguns instantes, depois avançou pela estreita rua empedrada, viu que se abrira uma rua nova e larga em ângulo reto com a antiga, e que dava acesso a um imponente e esplêndido estabelecimento, com um anúncio luminoso: Padarias da cidade e do Campo Lt.da
Imóvel, ficou olhando as bandejas de bolos berrantemente coloridos que enchiam as vitrinas; depois cruzou a rua e entrou na padaria. Duas mocinhas de ar esperto, de vestido lilás com gola e punhos brancos, estavam de pé por trás do balcão.
- com licença - disse ele. - Procuro uma família que outrora tinha uma loja nas vizinhanças. Chamava-se Douglas.
As moças estavam na idade em que se confunde o inesperado com o absurdo, e pareciam propensas a rir. Mas qualquer coisa, talvez a elegância dele-as conteve, e uma olhou para a outra.
- Nunca ouvi falar; e você, Jenny?
- Eu também não - disse Jenny, sacudindo a cabeça.
Fez-se uma pausa, depois a primeira disse:
- Talvez o velho Sr. Donaldson saiba alguma coisa. Mora aqui faz muito tempo. - E teve um frouxo de riso. - Muito mais tempo do que nós.
- Donaldson? - O nome fez-lhe vibrar uma corda na memória.
- É o nosso caseiro. Se o senhor entrar pelo portão de veículos, à esquerda, verá a casinha dele, fronteira à padaria.
Moray agradeceu e, seguindo as instruções, achou-se no que fora outrora o pátio dos Douglas, agora muito ampliado, com a grande padaria mecânica à esquerda, uma garagem para caminhões à sua frente, e, à direita, a velha cocheira transformada num pequeno apartamento de andar único. Tocou a campainha, e, após um intervalo, ouviu uns passos vagarosos no interior; a porta abriu-se em seguida, revelando a figura corcovada, com óculos de aro de níquel, de um homem de setenta anos, com um boné posto ao revés, avental de alpaca preta e chinelas. Às perguntas de Moray, permaneceu algum tempo calado, sombriamente refletindo.
- Se conheço James Douglas? - respondeu afinal. - Acho que sim. Fui seu ajudante por mais de vinte anos.
- Então quem sabe me poderá dar notícias dele e da família...
- Entre um pouco - disse Donaldson. - Perto da porta faz um frio cortante nesta época do ano.
Moray seguiu-o para uma cozinha escura onde lampejava um débil fogo no fogão - aposento desarranjado de homem velho e só. Donaldson indicou uma cadeira, depois, sem tirar o boné, arrastou-se para um canto e foi sentar-se embaixo da prateleira de tonéis.
- É amigo dos Douglas? - perguntou, desconfiado.
- Fui, no passado - disse rápido Moray. - Agora sou inteiramente desconhecido na região.
- Bem - disse o outro devagar. - A história dos Douglas não é muito alegre. James, coitado, morreu, e há muito tempo está enterrado; sua cunhada Minnie também. É bom saber isso para começar. Como vê, James fracassou nos negócios e abriu falência; houve atrás de tudo isso um trabalhinho de sapa condenando a propriedade, a fim de abrir-se em seu lugar a rua nova - tudo por ordem do conselho municipal. Seja como for, a desgraça levou James para o cemitério, pois ele era um homem às direitas, honesto como a luz do sol. Minnie, que andava sempre doente, logo o seguiu a caminho do
túmulo. A história foi assim, e, em lugar do armazém de James,
levantou-se esse grande edifício das padarias, cujos produtos corroem as entranhas de quem os come. Não que eu tenha alguma queixa contra a companhia: eles até me deram este empreguinho, do qual vou vivendo.
Fez uma pausa, momentaneamente perdido no passado. De caso pensado, Moray insistiu:
- Ele tinha uma filha, não tinha?
- Sim - disse o velho, sacudindo afirmativamente a cabeça - Mary... que também passou por dificuldades. Quando era mocinha, ficou noiva de um malandro que a enganou e a abandonou. Sofreu muito, muitíssimo, e por muito tempo. Quando eu saía da padaria, costumava vê-la me acenando da janela. Mas, com o tempo, ficou muito religiosa, e, anos mais tarde, quando o novo ministro, de nome Urquhart, veio para a igreja de Longend - e era um bom homem, - ela teve a sorte de se casar com ele. Um ou dois anos depois, deu-lhe uma linda menina...
Atónito, Moray permanecia teso na cadeira. Ela casara-se, esquecera-o, ou pelo menos traíra-o. O que ele acreditava ser o único amor de toda a sua vida! Mais doloroso ainda, dera uma filha ao outro... Em seu atual estado de espírito, isso lhe parecia uma profanação. Entretanto, malgrado a sua grande consternação, o raciocínio não o abandonara inteiramente. Quem era ele para recusar-lhe o direito à felicidade, desde que verdadeiramente ela a houvesse encontrado?
Afinal disse, com a voz embargada:
- Está morando aqui com o marido?
- Não. Foi para Ardfillan com a filha, logo depois que enviuvou.
- Que enviuvou? - exclamou ele.
O velho sacudiu a cabeça num aceno afirmativo.
- Ele não era muito forte, sabe, e, quando veio aquela epidemia de gripe espanhola em trinta e quatro, foi levado para o eterno descanso.
Sem dar por isso, Moray se acalmou ligeiramente, e respirou fundo. A situação de algum modo melhorara repentinamente. Era triste, naturalmente, ela ter perdido um marido jovem, ao qual, de sua parte, ele nunca teria desejado o menor mal... Todavia, o infeliz já era fraco desde o início, e o motivo do casamento de Mary bem podia ter sido compaixão e não amor. Parcialmente recuperado do choque, e com sentimento renovado, Moray fez uma última pergunta:
- Para onde fora... Mary e a filha?
- Para uma aldeia, nos Lothians. Chama-se Markinch. A filha queria estudar para enfermeira, por isso procuraram um lugar mais perto de Edimburgo. Mas que fim levaram desde aquele tempo não poderei dizer... Sua situação económica não era das melhores... e nunca mais foram avistadas nas vizinhanças de Ardfillan...
Seguiu-se um longo silêncio, enquanto Moray, de cabeça baixa, tentava ordenar seus pensamentos; depois, ainda visivelmente transtornado, levantou-se e, com uma palavra de agradecimento, pôs uma nota na mão de Donaldson. O velho, após alguma fingida relutância em aceitá-la, fitava o visitante através dos óculos com uma curiosidade crescente.
- Minha vista já não é o que era - observou ele, acompanhando Moray até à porta. - Mas tenho a ideia singular de que já o vi antes. Gostaria muito de saber quem é o senhor.
- Pense em mim como em alguém que deseja dar ajuda a Mary Douglas e sua filha.
Fez essa declaração com toda a firmeza, com a consciência de uma nova sinceridade de propósitos; e, virando-se, caminhou de volta para o carro. Agora percebia que suas esperanças foram ilusórias, e que tudo quanto imaginara falsamente se baseava numa romântica recriação do passado. Havia ele realmente esperado, após trinta anos, encontrar Mary como no dia em que a abandonara, ternamente apaixonada, ainda virginal, e com toda a frescura da sua mocidade? Deus sabe que desejava que assim fosse. Mas o milagre não acontecera, e agora - ouvindo a história da mulher que muito chorara esperando por ele, e que se casara, não por amor, para depois perder o marido inválido; a mulher que sofrera dificuldades, má fortuna, talvez pobreza, e que entretanto se sacrificara para educar a filha e dar-lhe uma profissão digna - ele voltou à realidade, à calma consciência de que a Mary que ia encontrar em Markinch devia ser uma mulher de meia-idade, de mãos gastas pelo trabalho e olhos ternos cansados, ferida e maltratada pela luta da vida, mas, por isso mesmo, talvez mais propensa a perdoar e a aceitar as suas generosas atenções.
O coração se lhe aqueceu a esses pensamentos, enquanto, de regresso a Winton, ele ia rodando através da sedução do nevoeiro que se adensava sobre o rio. Depois, de repente, lhe ocorreu que se esquecera de pedir a Donaldson notícias de Willie. Omissão indesculpável! Que teria acontecido ao inteligente rapazinho, ao perguntador insaciável de suas horas noturnas? Bem, logo haveria de saber, e da boca da própria Mary.
Eram sete horas quando chegou; e, como comera pouco durante o dia estava esfomeado. Depois de um banho rápido e alguns retoques, desceu para o salão do hotel e encomendou um filé duplo, cebolas, batatas assadas Anan Chief e uma pinta de Macfarlane, a cerveja local - tudo com tanta desenvoltura, que era como se ele nunca se tivesse ausentado da região. Depois cedeu às seduções de uma torta de melado cor de ouro, verdadeira delícia da cozinha nativa. Atacou-a valentemente, contando partir para Edimburgo e Markinch na manhã seguinte.
CAPÍTULO TRÊS
Embora o carro não estivesse rodando muito bem, com um dos cilindros por vezes falhando, ele preferiu conservá-lo a enfrentar uma torturante delonga na agência; e na manhã seguinte, às onze horas, tendo saldado sua conta no Hotel Central, partiu para Edimburgo. Segundo o mapa rodoviário, Markinch ficava a cinco milhas de Dalhaven, no litoral leste. Devia ser uma pequena aldeia - pelo menos nunca lhe ouvira o nome - e a pouca densidade da sua população sem dúvida lhe facilitaria a procura.
O dia estava escuro e ventoso, com grandes novelos de nuvem se atropelando no céu; mas, no começo da tarde, quando ele chegou a Edimburgo, um sol baixo varou as nuvens, emitindo raios refulgentes desde os muros do Castelo até aos jardins da Rua dos Príncipes. bom presságio, pensou ele, conduzindo o carro pela estrada a leste, em direção de Portobelo. Aí, o trânsito se deteve um instante no Cruzamento para dar passagem à Banda Feminina de Gaitas de Portobelo, que se dirigia, pensou ele, para alguma reunião local. Fez-lhe bem ver as belas moças escocesas marchando ao compasso do Cock of the North, balançando-se os saiotes, e as fitas de Glengarry esvoaçando ao sopro dos instrumentos. Os recursos naturais da Escócia, disse ele com seus botões esboçando um sorriso, o olho esperto discriminando algumas das moças mais promissoras. Mas o buzinar dos carros que vinham atrás despertou-o e ele avançou, passando por Musselburg e Newbigging. Enfim atingiu a costa, além da baía de Gosford, e, estacionando numa praia deserta, comeu os sanduíches que lhe haviam arranjado no Hotel Central. Depois partiu de novo. O mar tinha cintilações, e um vento penetrante varria as charnecas arenosas e as dunas amarelas franjadas
de capim cortante e descorado e de algas aromáticas. Praia adentro, à esquerda, avistou Bass Rock, e muito além, do lado de terra, a coroa verde de Berwick Law. Gaivotas circulavam e gritavam na altura, acima do areal açoitado pelo vento, e ele podia sentir nos lábios o gosto de sal húmido e areento, o que lhe proporcionava a iniludível sensação de estar de fato no torrão natal.
Decidira-se com antecedência por Dalhaven como um pouso conveniente, mas, quando ali chegou e bateu a cidade em busca de uma hospedaria, nada achou que lhe parecesse aceitável. As casas, baixas, varridas pelo vento, feitas de grés vermelho, encolhiam-se junto ao porto pesqueiro com um ar inóspito, e os moradores, vendo o forasteiro, se mostraram azedamente incomunicáveis. Finalmente encontrou um nativo mais acolhedor, que o mandou para o Hotel Marinho, entusiasticamente recomendado. Esse hotel ficava acima do campo de golfe, duas milhas distante da cidade, e se lhe revelou excelente; em verdade, um estabelecimento de primeira categoria, onde foi tranquilamente acolhido pela gerente e conduzido a um ótimo quarto de frente.
Depois do banho, pediu informações sobre o caminho exato, e, após um breve percurso terra adentro através de sinuosas estradas rurais margeadas de espinheiros, chegou à aldeia de Markinch. Como que advertido por uma voz interior, percebeu, de repente, ser aquele lugar o seu objetivo real e derradeiro.
Essa certeza acalmou-lhe os nervos à medida que ele ia descendo devagar a única e deserta rua da aldeia. De cada lado se erigiam casinhas caiadas, com capuchinhas ainda florescendo pelas paredes. Nem um ser vivo se via, a não ser um cão-pastor meio adormecido, com um olho aberto, junto da calçada. Havia ali um bazar, que funcionava também como agência postal; mais adiante, uma ferraria e uma loja antiquada de vidraças opacas, encimada por uma tabuleta onde se lia Chapelaria, e, do outro lado da rua, o que lhe pareceu ser um pequeno dispensário, e em cujo exterior havia uma inscrição: Centro de Saúde. Em qual desses lugares devia pedir informações? Talvez no bazar-correio, embora desgraçadamente isso pudesse tornar pública a notícia de sua chegada. Na extremidade da rua, estava a ponto de voltar quando viu, a alguma distância, a igreja da aldeia e o presbitério anexo. Uma ideia ocorreu-lhe, provocada pela lembrança de uma observação de Donaldson, e também pelo desejo de reserva e discrição. Encaminhou-se para a igreja, que era de estilo baronial escocês com sua torre quadrada em vez de campanário, estacionou o carro na calçada fronteira, dirigindo-se
em seguida para o presbitério, pequena mas decente residência de pedra cinzenta, e puxou a alça da sineta.
Depois de um longo intervalo a porta foi aberta pelo próprio ministro - homem miúdo e descorado, de pernas extremamente curtas e uma cabeça exageradamente grande, encimada por uma gaíbrinha de cabelos grisalhos. Sua roupa velha e preta e o colarinho clerical desfiado nas beiradas emprestavam-lhe um ar desanimado, que suas feições só faziam confirmar. Uma caneta numa das mãos e, na outra, um manuscrito consideravelmente corrigido davam a entender que fora interrompido no preparo de seu sermão; entretanto, suas maneiras foram bastante afáveis.
- Às suas ordens, senhor.
- Perdoe-me o incómodo, mas estou procurando uma senhora de sobrenome Urquhart. - Desta vez, o novo nome veio-lhe mais facilmente aos lábios... A princípio, magoara-o o fato de ter de pensar nela como outra pessoa que não Mary Douglas. - Ouvi dizer que ela reside nesta paróquia.
- Ah, decerto se refere à nossa excelente enfermeira distrital! - E a expressão do homenzinho iluminou-se, revelando sua disposição em
- ajudá-lo. - Ela mora em cima do Centro de Saúde, que o senhor acaba de passar. É uma moça muito ocupada, e, se não estiver em casa, o senhor a encontrará no dispensário, das cinco às seis.
- Fico-lhe muito obrigado - disse Moray, satisfeito pela informação. - É claro que o senhor se refere à filha de minha amiga. Presumo que a mãe mora com ela...
- A mãe? - O ministro fez uma pausa, examinando o interlocutor. - O senhor é estranho por estas bandas?
- Estive muitos anos ausente daqui.
- Então não sabe da grave doença que a acometeu.
- Doença?
O ministro fez um gesto de afirmação.
- Receio ter de prepará-lo para tristes notícias. Faz nove meses que enterrei a mãe de Kathy no cemitério local.
Estas palavras, emitidas num tom de condolência profissional, foram reforçadas pelo sino da igreja que, no mesmo instante, como a dobrar finados, batia as horas com o áspero som de seu bronze rachado. Não podia haver equívoco, com efeito não havia equívoco - aquilo devia ser o fim. Não apenas o desapontamento, mas um verdadeiro choque, devia ter transparecido no rosto de Moray, um choque doloroso que lhe sugou todo o sangue do coração e o forçou a encostar-se no batente da entrada.
- Meu caro senhor, entre e sente-se um minuto. Venha... aqui no saguão... - E, tomando o braço de Moray, o ministro conduziu-o para uma cadeira no vestíbulo. - Vejo que a notícia o afetou profundamente.
- Tinha tanta esperança de revê-la - murmurou Moray. - Era uma amiga muito querida.
- E uma mulher muito digna, meu caro senhor; estava entre as eleitas do meu rebanho. Mas não se aflija: no além a encontrará.
Mas o homem aflito não tinha no momento grande confiança na promessa do além. Ela partira, carregando consigo para o túmulo a lembrança da sua traição. Ele fora, até ao fim, desprezível a seus olhos, uma chaga ulcerada em sua memória. E agora nunca mais poderia redimir-se, desfazer o odioso complexo que perpetuamente lhe ameaçava a paz de espírito: tinha de continuar suportando o peso de sua culpa. Arrasado de dor e de desapontamento, afogado em - uma maré de autopiedade, ouvia o pároco falando, exaltando as virtudes da morta.
- A filha dela também; possui os mesmos altos padrões de conduta. .. É muito dedicada. E agora... se o senhor está mais calmo, minha mulher lhe pode oferecer uma xícara de chá.
Moray endireitou o corpo, e, embora ainda não fosse dono de si, teve a prudência de declinar.
- Não, muito obrigado.
- Acho que o senhor gostaria que eu lhe mostrasse o lugar onde ela está enterrada...
E dirigiram-se para o cemitério, nos fundos da igreja. A sepultura, assinalada por uma simples cruz céltica, foi-lhe indicada pelo ministro que, absorto um instante entre a compaixão e a curiosidade, perguntou:
- Segundo creio, o senhor é da nossa religião. Se isso for verdade, espero vê-lo domingo, na igreja. A Palavra Divina tudo cura. Mora nas vizinhanças?
- No Hotel Marinho - murmurou Moray.
- Ah... um excelente hotel. Miss Carmichael, a gerente, é nossa grande amiga. - Estabelecidas assim as credenciais do estranho, o ministro fez sua própria apresentação, com uma ânsia quase patética de ser útil. - Meu nome é Fotheringay... Matthew Knox Fotheringay... Bacharel em Artes de Edimburgo, às suas ordens, para o que precisar de mim.
E, com uma mesura, afastou-se discretamente.
Sozinho, Moray ainda fitava a verde relva, na qual um comprido retângulo de terra ainda levemente elevado apresentava um triste e significativo contorno. Ali jazia o lindo corpo que ele acariciara em sua juventude. Visualizava-a em sua forma jovem, como naquela tarde no alagadiço, com a cotovia cantando sobre a charneca e o riacho saltitando em seu leito de pedra polida. Viu-a nitidamente, radiosa e fresca em sua figura esbelta, o cabelo de um vermelho acastanhado, os olhos negros como carvão, e o sangue da juventude a latejar-lhe por todo o corpo... Subjugado,
apoiou-se no monumento de granito e cerrou os olhos ardentes.
Quanto tempo ali ficou, debruçado e imóvel não o poderia dizer; mas um leve ruído de passos na vereda pedregulhada logo o perturbou. Voltou-se, levantou a cabeça e quase desmaiou: ali, diante dele, ressurgida da cova, estava Mary! Mary, exatamente como ele a conhecera, tal como a sonhara um pouco antes, a ilusão temerosa e fantasmal acentuada pelo ramalhete de alvas flores que ela apertava junto ao peito! Quis gritar, mas a voz não lhe saiu. Aturdido, a cabeça à roda, percebeu que se tratava da filha de Mary, imagem viva de sua mãe.
- Devo ter-lhe pregado um susto. - E ela avançou para ele, preocupada. - Sente-se bem?
- Sim - tornou ele confuso. - Mas estou muito envergonhado de mim mesmo... com este meu procedimento tão idiota. - E, procurando uma desculpa, acrescentou: - Eu... como vê... não estava nada preparado...
Ela o fitou com olhos compreensivos.
- Encontrei-me com o ministro no caminho. O senhor era um grande amigo de minha querida mãe...
Ele baixou a cabeça em sinal de mágoa respeitosa.
- E de toda a sua família - respondeu. - Foram muito bondosos para comigo quando eu era pobre... e um estudante desamparado.
O rosto da moça exprimia simpatia e bondade; era evidente que a tristeza de Moray junto ao túmulo pesara fortemente nela a favor dele.
- Então, conheceu James, meu avô?
- Homem maravilhoso... Pude perceber isso... embora naquele tempo eu fosse um rapaz bastante desmiolado...
- E Tio Willie? - perguntou ela, com crescente simpatia.
- Willie e eu éramos grandes amigos - tornou ele, quase soltando um suspiro a essa recordação. E, numa súbita inspiração, tentando
valorizar a amizade entre os dois: - Muitas vezes dormimos juntos. Tínhamos longas conversas durante a noite. Era um excelente rapaz.
- Sim - respondeu ela, - posso imaginar.
Fez-se uma pausa, durante a qual ele não conseguiu fitá-la. Suas ideias ainda não estavam muito claras, nem inteiramente ajustadas a essa extraordinária inversão dos acontecimentos. Ele ainda lamentava a mãe e tudo quanto sua perda acarretava; entretanto, começava a pressentir que bem poderia descobrir na filha a oportunidade que buscava. Decerto que aquele não era o fim de sua jornada; pelo menos desejou-o fervorosamente, numa súbita ansiedade. Era com esforço que tentava parecer tranquilo.
- Devo apresentar-me. Chamo-me Moray... David Moray.
A expressão da moça não mudou. Ao tomar a mão que ela lhe estendia, ele mal pôde reprimir um fundo suspiro de alívio. Ela não o conhecia, nem sabia de sua história pouco edificante... Por que duvidara? Mary nunca falaria à filha sobre o passado, o segredo continuava intato em seu pobre coração partido, agora mudo para todo o sempre a seis pés de profundidade sob suas dispendiosas botas feitas à mão...
- Meu nome é... - dizia ela, enquanto ele ainda lhe segurava a mão - Kathy Urquhart.
Ele esboçou em sua intenção, embora com uma tranquila mágoa, o seu sorriso mais sedutor.
- Então, se me permite, na qualidade de um velho amigo de sua mãe... e de toda a família... chamar-lhe-ei simplesmente Kathy.
Disse isso com bondade, quase humildemente, aflito para deixá-la à vontade, para anular qualquer cerimónia que porventura ela pudesse ter para com ele. Depois, postando-se a um lado com um ar submisso com um senso de compunção e responsabilidade, muito consciente de seus defeitos e deficiências, de todos os seus erros do passado, viu-a colocar alguns crisântemos num vaso de esmalte verde junto à cruz céltica e remover, com alguns toques, as folhas de faia caídas sobre a relva.
Ela viera sem chapéu. Vestia um manto azul escuro, indisfarçavelmente puído, sobre o zuarte do uniforme de enfermeira, de um azul mais claro, e um de seus sapatos, que ele observou com um aperto de coração, estava remendado - belo conserto, sem dúvida, mas conserto inequívoco de remendão! Essas pequenas poupanças, tão visíveis a seu olho experimentado, comoveram-no. Alteraremos tudo isso, pensou consigo mesmo, com uma repentina explosão de sentimento. Sim, a sua oportunidade estava ali, indubitável
e predestinada; no mais fundo de si mesmo, sentia que era
assim.
- Pronto - exclamou a moça, erguendo-se com um riso confiante. - Estaremos em ordem para domingo. E agora... - disse com certa hesitação, mal se atrevendo a enunciá-lo - quer ir comigo para casa e tomar uma boa xícara de chá?
E saíram juntos, caminhando pela aléia do cemitério.
CAPÍTULO QUATRO
CENTADO à janela da sala, na parte superior do dispensário, enquanto ela ia à kitchenette preparar o chá, Moray olhou em torno, surpreso ante a carência de conforto, ante a pobreza de tudo quanto via. Nem sequer um tapete no soalho esfregado e polido, de largas tábuas; o mobiliário era escasso, pouco mais do que uma mesa tosca e um par de cadeiras de crina e encapadas, a lareira manchada de fuligem mas sem carvão, as paredes de um branco sem têmpera, realçadas apenas por um quadro de assunto religioso, reprodução, do Christian Herald, de uma péssima cópia da Transfiguração, de Valdez Leal. Na prateleira, alguns livros, principalmente compêndios de enfermagem, e uma Bíblia. Uma avenca língua-de-veado num vaso de barro sobre um pires azul estava na janela junto a uma cestinha de costura com um pedaço de tricô, pronto a ser retomado. Mas, conquanto reconhecesse seu asseio espartano, e o toque de branco que lhe emprestava um vaso de astérias silvestres - colocado sobre o poial da lareira e alvo da luz amarela do ocaso, - percebeu na sala, bem como na alcova anexa, cuja porta ela fechara apressadamente, a prova dolorosa de grandes aperturas. Também na bandeja, que ela hospitaleiramente lhe apresentou, a louça era pobre, e o único prato continha apenas umas fatias de pão caseiro com manteiga. Moray não chegou bem a compreender aquilo, mas, subitamente animado, raciocinou que, quanto maiores fossem as necessidades dela, tanto maior seria o auxílio que lhe podia dar.
- Se eu ao menos soubesse que o senhor vinha... - disse ela nervosa, como que se censurando, enquanto servia o chá - teria arranjado algo melhor... Quando trabalho, só faço compras aos sábados. Mas não se importe comigo; fale de sua pessoa... Esteve viajando no exterior?
- Sim, por muitos anos. Pode imaginar o que significa para mim este regresso ao torrão natal. - Sorriu, e em seguida suspirou. - Agora, que aqui estou, pretendo prolongar minha estada...
- Onde esteve?
- A maior parte do tempo, nos Estados Unidos.
- Tinha a esperança de que dissesse "África"... - Ela esboçou um sorriso, embora o seu olhar, passando mais além, tivesse um ar remoto. - Tio Willie está lá... em Kwibu, na fronteira norte de Angola.
Embora não o demonstrasse, ele experimentou, contudo, uma forte sensação de alívio: Willie certamente tê-lo-ia reconhecido, e qualquer encontro prematuro com ele teria provocado uma crise absolutamente indesejável...
- Isso não me surpreende nem um pouco - disse ele amavelmente, com uma leve ponta de interesse. - Mesmo em menino, Willie tinha loucura pela África. Ele e eu praticamente palmilhamos, com Livingstone, milha por milha do caminho rumo ao Lago Vitória. E quando Stanley o encontrou... você precisava ver como aplaudimos! Mas Angola... não se trata daquela região primitiva?
- Ela mesma. Desde que o tio partiu para lá, só tem tido horríveis dificuldades. Mas agora as coisas estão melhorando. Tenho uma porção de instantâneos que lhe posso mostrar. Dão uma boa ideia das condições lá existentes.
Neste ponto, Moray pensou que não seria prudente aprofundar a questão das atividades pioneiras de Willie - quer se tratasse de mineração quer de engenharia, não podia saber, - por isso não insistiu no assunto.
- Quando você tiver tempo, terei muito prazer em ver essas fotografias. Mas o que realmente desejo saber, neste momento, são as atividades que você exerce no dispensário.
Involuntariamente, ela teve um tímido gesto de modéstia.
- Oh, não é grande coisa! Apenas a atividade usual de uma enfermeira distrital; visitas domiciliares e coisas semelhantes. Percorro o meu circuito rural em bicicleta; às vezes, a pé. Há ainda o Centro de Saúde, para tratamento pré e pós-natal, com sua clínica... que alcunhamos "bar de leite"... Destina-se aos recém-nascidos. Vez por outra, faço plantão no Hospital de Dalhaven.
- Tudo isso soa como se todos aqui trabalhassem demais...
Ele já notara que as mãos dela eram ásperas e gretadas.
- Trabalhar é bom - disse ela animadamente. - E todos aqui são muito decentes. Tenho folga nas tardes de quinta-feira, e três semanas
de férias por ano... Na realidade, tenho duas semanas a mais, para a viagem. ..
- Gosta, então, do seu trabalho?
Ela sacudiu afirmativamente a cabeça, com uma reserva mais convincente do que o seria uma explosão de entusiasmo.
- Ao mesmo tempo, aqui não há perspectivas muito vastas. Mas... como tenho em vista coisa muito melhor...
A essa observação, e à reserva com que ela a fizera, uma ideia desconcertante passou pelo cérebro de Moray. Embora a achasse de mau gosto, teve de dizê-la.
- Quer dizer que vai casar-se?
Ela soltou uma súbita risada, mostrando dentes brancos e iguais, em sadias gengivas côr-de-rosa; uma risada que penetrou docemente, tranquilizadoramente nos ouvidos de Moray.
- Oh, não! - exclamou ela, pondo-se séria. - Aqui não há mais do que uns poucos rapazelhos da lavoura, que só pensam nos bailes de sábado e no cinema de Dalhaven. Além disso... - prosseguiu - estou tão firme no meu trabalho, que nem penso em trocá-lo por qualquer outra coisa... ou por alguém.
Tudo como ele teria desejado. Sozinha e sem impedimentos, ligada de modo sensato embora não permanente a uma profissão digna, decerto, mas monótona e pouco compensadora, não poderia haver objeto mais perfeito para a sua filantrópica e afetuosa atenção. Seus pensamentos já se precipitavam para o futuro. Pouco familiarizado com a lei, pensava que podia fazer dela sua pupila. A adoção parecia inviável, lembrava orfanatos e partilha de filhos de pais frustrados. Fosse lá o que fosse, o coração lhe transbordava de genuíno sentimento. Era, sempre fora, homem generoso; ninguém lhe poderia negar essa pequena virtude. O que não poderia fazer por ela! Não devia precipitar indevidamente os acontecimentos, a fim de não alarmá-la, de vez que, pelo visto, ela o tomara por um homem de posses moderadas. Entretanto um aspecto havia em sua situação que muito o impressionou: o de ser rico no duplo sentido da palavra, rico não apenas de dinheiro, mas das mais deleitosas possibilidades de surpresa e realização.
No silêncio que se fez entre ambos, Moray observava-a de olhos baixos enquanto a moça punha na bandeja a louça em que servira o chá. No final das contas, ela não era a exata réplica materna que ele imaginara no primeiro choque emocional. Tinha a mesma pele fresca, olhos castanhos e nariz breve, ligeiramente grosso, os mesmos cabelos castanhos naturalmente arrepanhados na nuca. Mas a
expressão era diferente - refletida, quase reservada, a boca mais larga, mais cheia, mais sensivelmente curvada, e em cujos lábios firmes ele via a evidência de uma natureza menos dada à alegria. Havia nela uma certa altivez que lhe agradava, um certo sentido de desprendimento. Ria-se pouco, mas, quando o fazia, era a coisa mais bonita que ele já vira. Mais que tudo, porém, impressionava-o o seu comovente aspecto de juvenilidade. Mary fora uma garota robusta, de redondos seios e quadris bem acentuados. Esta, porém, era esguia, pouco desenvolvida, dir-se-ia de uma imaturidade que contrastava com o seu ar sério e que irresistivelmente provocava os seus instintos protetores. Sem querer ofender a morta, concluiu que esta garota, de igual beleza, era entretanto mais profunda, possuidora talvez de uma maior capacidade para amar... Voltou a si. Uma pontinha de embaraço, algo que a ela, em seu modo de ser, repugnava expressar.
Levou-o repentinamente a lembrar-se de que Fotheringay, o ministro, lhe dissera que o dispensário abria às cinco. Olhando o relógio, viu que passavam dez minutos da hora. Levantou-se precipitadamente.
- Minha cara Kathy... Demorei-me demais... - desculpou-se ele. - Estou a impedi-la de ir para junto de seus pacientes.
- Eles não se importam de esperar mais alguns minutos. Não é todos os dias que recebo visitas.
- Então deixe-me dizer depressa da alegria que tive em descobri-la. Espero que este feliz encontro seja o primeiro dentre muitos... pois você precisa compreender que tenho uma dívida para com a sua família.
Depois que ela o acompanhou até à porta, ele se dirigiu para o carro e rodou para o hotel, refletindo com emoção nos extraordinários, nos memoráveis acontecimentos daquela tarde. À sua tristeza se mesclava uma espécie de exultação. Fora até ali levado pelos motivos mais sublimes, e em vez de uma mulher já com alguma idade - que certamente o teria acolhido com censuras, até mesmo com rancor, e que seria inflexível aos seus oferecimentos de reparação e assistência - encontrara uma moça pobre, trabalhadora, necessitada de sua ajuda e talvez mais apta a extrair dele um benefício maior. Deplorava a perda da mãe, um golpe, sem dúvida; despedaçara-lhe o coração. Mas a compensação residia naquela meiga criança que, não fossem circunstâncias inevitáveis, até poderia ser sua filha. Sobre ela, pois, e para reparar o passado, iria ele exercer, imediata e gratuitamente, uma benigna influência - prudente, proveitosa,
paternal. Os caminhos da Providência eram na verdade sábios e inescrutáveis; e transcendiam de longe a inteligência humana...
CAPÍTULO CINCO
NAQUELA noite, após o jantar, arranjou com a gerente do hotel que lhe desse uma sala. Felizmente, havia uma, anexa ao quarto. Era espaçosa e confortável, tinha uma boa lareira que, garantiu-lhe confidencialmente Miss Carmichael, "puxava bem". Conseguido isso, pediu uma ligação interurbana para a sua villa na Suíça.
Quando Arturo atendeu, quase comicamente encantado por ouvir a voz do patrão, Moray ordenou que ele lhe despachasse de Zurique, por via aérea, seus tacos de golfe e alguma roupa adicional. Quanto à correspondência, deixava à sua discrição a remessa das cartas que lhe parecessem mais importantes. Alguma notícia? Tudo ia bem, respondeu Arturo, o tempo estava bonito, fizera-se a colheita das ameixas e das rainhas-cláudias, Elena aprontara dez quilos de marmelada, um dos filhos do encarregado do embarcadouro estivera doente mas sarara, e Madame Von Altishofer telefonara duas vezes, pedindo seu endereço - devia dar-lhe? Embora grato pela solicitude, Moray, depois de refletir um momento, disse que ele mesmo escreveria a Madame. Pendurou o fone, absurdamente satisfeito com essa coleção de notícias domésticas.
Mais tarde, porém, enquanto se preparava para dormir, seu estado de espírito mudou inesperadamente. Ao fazer a revisão desse dia tão cheio, viu-se de repente acometido por um frio tremor de autocondenação. Quão apressado fora em consolar-se com a perspectiva de exercer a sua caridade para com Kathy! Como estava errado em esquecer-se de sua querida Mary, em aceitar a filha e olvidar a mãe, sem sentir coisa alguma além de uma tristeza momentânea. Uma mulher, já com alguma idade, que poderia tê-lo recebido com rancor - fora realmente nesses termos que pensara nela, depois que, mal decorrida uma hora, estivera de pé junto de sua tumba? Nunca, nunca teria ela ido a seu encontro com outros sentimentos que não fossem o amor e o perdão. Vestido com a sua comprida jaqueta de seda de dormir, com monograma - um dos casacos especiais expressamente feitos para si por Gruenmann, de Viena, ele ergueu o olhar e jurou fazer abertamente uma reparação no dia seguinte. A ideia trouxe-lhe conforto.
No dia seguinte, fiel ao juramento da véspera, Moray obteve, de Miss Carmichael, o nome do primeiro florista de Edimburgo, ao qual fez uma encomenda por telefone. Não tardou muito e foi-lhe entregue uma enorme e vistosa coroa de lírios, que ele próprio levou ao cemitério e colocou reverentemente junto à cruz céltica. Depois, com passo ligeiro e fazendo girar a bengala, dirigiu-se para o mar e caminhou pelo areal, respirando fundo o ar revigorante. Resistindo a toda e qualquer inclinação, não se aproximou de Markinch, prudentemente considerando que, fosse qual fosse, para si, a significação de Kathy, a verdade era que, para ela, ele não passava de um estranho. Mas no dia seguinte - um domingo - pôs um terno escuro e uma gravata carregada, indagou da inestimável Miss Carmichael a hora do culto matinal e saiu em direção da igreja.
Não podia de pronto recordar há quantos anos não frequentava a igreja. Nos Estados Unidos, aos domingos, saía a jogar golfe com Bert Holbrook, cumprindo a rotina do costumeiro fim-de-semana suburbano no clube de campo local, onde o grupo de golfistas ostentava o nome surpreendente de Bannock Burn. Seus membros, na maior parte diretores de empresas
nova-iorquinas, exibiam-se numa extraordinária indumentária esportiva, que ia desde os shorts de um amarelo-esverdeado até às boinas vermelhas. Formavam, entretanto, um grupo cordial e bem combinado. Apesar disso, ele nunca se sentira perfeitamente à vontade ali. Não pertencia ao tipo que facilmente se adapta à exuberante bonomia da sociedade masculina de massa, e sabia, ao mesmo tempo, que todos estavam a par da sua infeliz situação doméstica, e que, por conseguinte, deviam lamentá-lo. Todavia, gostava do clube e divertia-se no golfe, do qual era excelente jogador. Quando o domingo estava muito chuvoso para o jogo, habitualmente fugia para o laboratório, e foi num feliz e húmido domingo que descobriu a fórmula - imagine-se do que - de um novo perfume, que Bert, com o seu faro pelos nomes comerciais, imediatamente batizara Procissão, e que, vendido como artigo subsidiário, arrecadou uma pequena fortuna para a empresa. Calculava que devia fazer cerca de quinze anos desde que - naquela sexta-feira em que Dóris fora afinal dada oficialmente como doente mental e conduzida para a clínica de Wilenski, em Appletree Farm - ele, disfarçadamente se esgueirara para um banco dos fundos da igreja de Santo Tomás, na Quinta Avenida. A caminho do Clube Universitário, quase pegado, seu olhar caiu na tabuleta: Aberto o dia inteiro para oração e meditação. Sentia-se tão abjeto, ele próprio quase louco, que pensou melhorar se entrasse na igreja. Mas não
melhorou, muito embora se ajoelhasse num dos bancos derradeiros, onde ficou olhando furtivamente para o altar sombrio, e até tivesse derramado algumas pobres lágrimas - pois ele podia chorar em tais ocasiões. Saiu, entretanto, sem o menor sintoma de benefício ou melhora, e foi forçado a recorrer à sua intenção original: um banho turco no clube.
Agora, porém, sua disposição de ânimo era de todo mais propícia, e num estado de ansiosa expectativa, ele aproximou-se da igrejinha campestre para a qual era chamada uma congregação esparsa, mediante o toque dissonante de um sino rachado. Teve, ao entrar, a imediata satisfação de receber de Kathy um olhar de reconhecimento, logo abaixado. Ao começar o culto com um hino, cantado com certa vacilação, e em seguida, durante o sermão de Fotheringay, que foi longo e monótono - uma peça verdadeiramente trabalhada, - teve ele o privilégio de observá-la, embora sempre discretamente, sentada entre a criançada da aldeia. Ficou impressionado ante a competência com que ela disciplinava o bandinho intranqúilo, e a paciência, que demonstrava, ouvindo muito ereta o tedioso discurso. Seu perfil possuía uma pureza de contorno que evocava um primitivo italiano.. . Uccello, talvez... não, não... a doçura da expressão sugeria uma tela muito mais recente... A Jovem Mestra, de Chardin, concluiu afinal, muito satisfeito por ter achado a comparação exata, mas todo arrepiado com a crescente desafinação do coro.
Mas a sua recompensa chegou depois, quando, fora da igreja, ficou à espera de Kathy. Esta saiu, em companhia da Sra. Fotheringay. A esposa do ministro era uma mulher baixa e robusta, de modos francos e um rosto largo, feio e honesto, olhos perspicazes e muito azuis encravados entre rugas, acima de maçãs extremamente vermelhas - verdadeiro rosto de Raeburn, 1. pensou Moray instintivamente. Estava em trajes domingueiros: um velho chapéu preto de plumas e um costume cinza-escuro que já lhe prestara bom serviço e que agora a apertava. Moray foi apresentado e pouco depois, após terem conversado alguns momentos, o ministro Fotheringay veio reunir-se-lhes. Imediatamente Moray cumprimentou-o pelo sermão.
- Muito edificante - disse. - Ouvindo-o, evoquei uma experiência espiritual que me ocorreu na igreja de Santo Tomás, em Nova Iorque...
1. Henry Raeburn, pintor escocês (1756-1823). - N. da T.
A essa comparação implícita com a cidade grande, Fotheringay corou de prazer.
- Muita bondade de sua parte assistir ao nosso culto provinciano. Somos uma congregação humilde, e o nosso pobre sino não atrai muita gente do mundo exterior...
- Reparei mesmo - e Moray ergueu as sobrancelhas com ar súplice - que o som não era muito claro.
- Nem alto - disse o outro, lançando para a torre da igreja um olhar repentinamente irritado. - No ano passado, havia um caibro podre, e o sino veio abaixo. O trabalho de refundição custará aproximadamente oitenta libras. E de que jeito se vai arranjar todo esse dinheiro numa paróquia pobre como esta?
- Mas pelo menos a sua voz não tem nenhum defeito - disse Moray, diplomaticamente. - Achei-o eloquentíssimo. E agora - continuou ele amavelmente - tomo a liberdade de convidar a todos os três para um jantar domingueiro. Deixei-o encomendado no hotel. Espero que estejam livres para aceitar.
Seguiu-se uma pausa breve e vazia - convites dessa espécie não eram frequentes na paróquia. Mas quase imediatamente a expressão de Fotheringay se iluminou.
- Muita bondade de sua parte, senhor. Confesso que, ao descer do púlpito, estou sempre com o apetite aguçado. - Olhou quase jocoso para a mulher. - Que diz, querida? Nossa carne assada servirá para amanhã, e hoje você não terá de lavar pratos.
Desde o começo, com o ar rude de uma mulher a quem se deve mais convencer do que persuadir, ela, desconfiada e abertamente, estivera examinando aquele recém-chegado que tão dramaticamente ali chegara do desconhecido. Mas as suas primeiras impressões não pareciam desfavoráveis, e a perspectiva de emancipação dos deveres subalternos, que a parcimônia do estipêndio marital lhe impunha, era com efeito de abrandar um cristão. Volveu então para Moray uma espécie de sorriso seco.
- Para mim será um regalo; pois se Mateus fica com apetite ao descer do púlpito, o meu se acaba quando me aproximo do fogão.
Kathy estava satisfeita, menos talvez pela perspectiva de visitar o Hotel Marinho do que pelo tratamento acolhedor dispensado por Moray a seus velhos amigos. Depois que os instalou no carro - o ministro e Kathy atrás, a Srª. Fotheringay ao lado dele na frente, Moray deu a partida. Desde o início percebera que lhe era preciso conquistar os Fotheringays, e, segundo parecia, tudo correria bem.
No hotel foram saudados por Miss Carmichael. Como a temporada estava virtualmente no fim - restavam apenas alguns hóspedes, a metade do restaurante principal estava fechada e ela indicou-lhes uma mesa junto à lareira do confortável refeitório, numa intimidade especialmente agradável. A comida, simples e despretensiosa, era de primeira qualidade - sopa escocesa, lombo de carneiro com batatas assadas e vagens, bolo feito de biscoitos embebidos em xerez e coberto por uma camada de grosso creme caseiro, e, depois, queijo de Dunlop e pãezinhos quentes de aveia. Moray esperava que o pároco e a mulher gostassem da refeição, o que de fato veio a acontecer. Mormente a Sra. Fotheringay, que comeu todas as iguarias com cordial e franco reconhecimento. Quanto mais ele conhecia aquela mulher simples e sincera, tanto mais gostava dela. Mas o que lhe deu satisfação maior foi o belo sangue que a boa refeição, tão diferente do magro passadio que, estava convencido, a esperava em casa - fez subir gradualmente às faces de Kathy, dando-lhe maior brilho aos olhos e mais calor ao sorriso. Deus louvado, pensou ele, ela não é apenas espírito! E serviu-lhe uma nova porção de bolo, quis certificar-se de que a carne não estava sendo negligenciada ... Em verdade, com aquela flexibilidade que o habilitava a adaptar-se a qualquer companhia, Moray foi o perfeito anfitrião, mais bondoso e previdente do que divertido, e a todos encantando. Discretamente conversando, aludiu de passagem a seus negócios nos Estados Unidos, à sua prematura aposentadoria e regresso à Europa, à casa que construíra a montante do Schwansee. E, como percebesse que Kathy o escutava com um interesse atento, esmerou-se em descrever com sentimento - o lago, a aldeia e a paisagem circundante.
- Deve-se ver tudo isso coberto de neve... o que logo ocorrerá. - E concluiu com uma nota mais alta: - Um manto da mais imaculada brancura.
- Deve ser um lugar bonito - disse a Sra. Fotheringay. Certa de que suas primeiras dúvidas eram infundadas, mostrava-se agora mais amável para com ele, revelando uma brejeirice surpreendente. - Sujeito feliz por viver no meio de tanta beleza!
- Feliz, sim - disse Moray com um sorriso. - Mas muito só.
- Não é casado?
- Já faz alguns anos que enviuvei.
- Oh, que pena! - exclamou ela, consternada. - Mas tem filhos?
- Não tenho nenhum - tornou ele, erguendo para ela um olhar repassado de gravidade. - Meu casamento... não foi precisamente um matrimónio feliz.
As palavras dolorosas, que indicavam com clareza o subentendido do perfeito cavalheiro, provocaram um silêncio repentino. Antes porém que o mesmo se ampliasse, ele os reanimou.
- Tudo isso é do passado. Agora sinto-me feliz por estar de volta a meu país e numa companhia como a de vocês. - E sorrindo: - Vamos tomar o café na saleta?
Desolado, o ministro fitou o relógio.
- Infelizmente teremos de recusar. Kathy tem aula de Catecismo às três; e já passa de duas e meia.
- Misericórdia! - exclamou a Sra. Fotheringay. - Como o tempo correu! E de modo tão agradável! Estamos muito penhorados com o seu novo amigo, Kathy. Mas agora vamos: deixemos os homens um instante a sós. - E, levantando-se, tomou Kathy pelo braço, acrescentando com a sua rude franqueza de sempre: - Miss Carmichael nos indicará onde faremos nossa toalete.
Deixado a sós com o pároco, que também se levantara e, junto da janela, olhava o mar, Moray aproveitou a oportunidade para tirar do bolso seu livro de cheques. Uns rabiscos da sua esferográfica, e ele ergueu-se.
- Em sinal de amizade e boa vontade... permite-me oferecer-lhe isto... a fim de que a sua congregação possa ser devidamente convocada.
Fotheringay voltou-se rápido. Homenzinho raquítico que era, com mais bílis do que sangue nas veias, estava agora completamente vencido. Tomado de surpresa, olhava o cheque com os olhos arregalados, murmurando:
- Caro senhor... isto é mais do que generoso... é... é munificente.
- Nada disso. É um prazer. Um prazer que posso perfeitamente permitir-me. - Moray pôs um dedo nos lábios. - Mas por favor... não diga nada aos outros.
As duas mulheres retornaram no momento em que ele falava, e a Sra. Fotheringay, assustada com a atitude do marido, exclamou:
- Mateus! Que é que você tem?
O pároco respirou fundo e engoliu em seco:
- Não posso evitá-lo. Tenho de falar. O Sr. Moray acaba de me dar as oitenta libras para o conserto do sino!
Fez-se um profundo silêncio. Um rubor mais acentuado afluíra às faces da mulher, já avermelhadas pela refeição abundante.
- Nunca vi coisa semelhante - disse ela em voz baixa. - Isto é extraordinariamente belo! - E dirigindo-se devagar para Moray, estreitou
entre as suas a mão dele. - Aquele desastrado sino quase deixou louco o meu pobre velho. Decididamente, nem sei bem como agradecer-lhe. Mas não me foi preciso estar mais do que cinco minutos em sua companhia para ficar sabendo que o senhor é um eleito entre os eleitos.
Moray nem sempre perdia a tramontana; agora, porém, o genuíno sentimento da voz dela embaraçava-o inesperadamente.
- Nada... qual nada... - dizia ele desajeitadamente. - Se querem chegar a tempo, vamos indo.
Sem fazer caso dos protestos deles, Moray insistiu em levá-los de volta no carro; mas desta vez os Fotheringays ficaram no assento traseiro e Kathy ao lado dele. Durante o curto trajeto, Kathy não disse palavra, mas, quando ele se despedia, ela se deixou ficar para trás a fim de agradecer-lhe - rápida e timidamente, mas com inequívoca sinceridade.
CAPÍTULO SEIS
Durante A tarde de segunda-feira seus tacos de golfe e duas valises chegaram, por via expressa, do aeroporto de Prestwidk. Moray tinha certeza de que o bom Arturo não falharia. A vista de sua linda valise de couro e lustrosos tacos de genuína têmpera estimulou-o e, embora a hora já fosse avançada, ele se dirigiu para o clube de campo, apresentou-se ao secretário e conseguiu um cartão de sócio temporário. Procurou então o jogador profissional e jogou com ele uma partida de doze buracos. O campo aberto e ondulante era excelente, Moray achava-se em boa forma, e, quando o crepúsculo os forçou a parar, ele levava um ponto de avanço sobre o seu contendor, um escocês azedo e atarracado, que, revelando a princípio todo o desdém do especialista pelo amador, rapidamente, e um tanto comicamente, mudara de opinião.
- Suas tacadas são muito suaves, senhor - admitiu ele no caminho de volta para a sede, onde iam tomar um drinque. - Muito poucas vezes me acontece topar com um visitante que me vença. Gostaria de voltar amanhã?
Moray aceitou.
- Às dez em ponto - disse, passando ao outro uma nota de uma libra. - E talvez voltemos a jogar durante a tarde.
Continha firmemente o desejo de ir a Markinch. A discrição era absolutamente necessária para que não interpretassem mal as suas intenções. Não só isso, mas também conhecia a prudência das delongas, a vantagem de um interlúdio no qual pudesse florescer a expectativa, e desenvolverem-se as recordações de um passado imediato.
Por conseguinte nada fez até à tarde de sexta-feira, quando escreveu um bilhete e o remeteu por intermédio do mensageiro de hotel, um rapaz de dezessete anos.
Cara Kathy,
Preciso de ir a Edimburgo amanhã, para algumas compras. Como, segundo penso, você não trabalhará à tarde, gostaria de ir comigo, caso não tenha algo melhor a fazer? Salvo informação em contrário, irei buscá-la às duas da tarde.
Sinceramente seu, David Moray
O seu receio de que ela não estivesse de folga foi logo eliminado pelo recado verbal, de aquiescência, trazido pelo mensageiro; e na tarde seguinte, quando ele chegou ao dispensário, já ela o esperava na calçada, vestida com uma blusa de brancura imaculada; uma saia de mescla Harris, cor de cinza - que num relance ele percebeu que ela mesma fizera - e, como o vento era cortante, o mesmo manto bastante puído que ela usava quando ele a vira pela primeira vez. Embora o seu rosto cheio de frescor e juventude tudo redimisse, e ela exalasse um cheiro inocente de sabão resinoso, tratava-se de um traje muito deselegante, pouco melhor que o de uma criada campesina em seu dia de folga. Todavia, o vestuário agradava a Moray, especialmente o manto puído, visto que lhe poderia proporcionar a oportunidade que ele procurava. Seria difícil convencê-la; mas ele tinha a intenção de experimentar.
Que delícia senti-la junto de si após aqueles três dias de abstinência que se impusera! Ela não apenas ficara contente em vê-lo, mas a sua disposição de ânimo era mais leve do que antes, mais cheia de expectativa ante a excursão. Sentiu que ela se tornara menos arredia, e, após terem rodado um bom pedaço, Kathy observou:
- Isto é muito melhor do que o ônibus. O senhor foi muito bondoso em convidar-me; e também oportuno. Acontece que também preciso de fazer umas compras em Edimburgo...
- Nesse caso, nós as faremos assim que chegarmos - disse ele em tom cordial. - Diga-me aonde deseja ir.
- Na Rua George, número 10 - A - disse ela. - Escritório da Sociedade Missionária da África Central.
Ele olhou-a de relance. Os olhos de ambos encontraram-se por um breve instante, antes que os dele se voltassem para a estrada à sua frente. Ela, todavia, não deixara de captar-lhe a perplexidade da expressão, e, com um sorriso, tornou:
- Não sabia que... tio Willie está lá, trabalhando para a Sociedade? Sou culpada de não lhe haver mostrado as fotografias, mas pensei que entendesse. Já faz alguns anos que ele trabalha na campanha missionária do exterior.
Moray levou alguns minutos para refazer-se da surpresa.
- Não... não cheguei a entender...
- Pois bem, é lá que ele trabalha. Realiza verdadeiras proezas, nas circunstâncias mais difíceis... O senhor não faz ideia do que ele tem passado.
A despeito de si mesmo e da falta de simpatia pelos objetivos espirituais de Willie, Moray ficou impressionado pelo tom radioso e ingénuo com que a moça falava. Veio-lhe a lembrança comovente do rapazinho de olhos brilhantes que, fazia trinta anos, conhecera em Ardfillan.
- Bem, bem... imagine só! Mas era isso mesmo que se podia esperar de Willie. Respeito-o pela proeza.
- Eu sabia que o senhor o faria... - disse ela em voz baixa.
- Devo confessar... - estavam agora nos arrabaldes de Edimburgo, e uma dificuldade momentânea no tráfego o fez parar antes de prosseguir - sim, confesso que fiquei intrigado quando você me pediu que a levasse à Sociedade Missionária. Mas agora vejo. Suponho que é ali que você se põe em contacto com os movimentos de Willie.
- com efeito, é isso mesmo. O menos que posso fazer por ele é remeter-lhe regularmente alguns pacotes. A Sociedade faz isso por mim. Sabe o de que ele precisa, e está em condições de comprar as coisas certas por preços razoáveis.
- Você lhes paga?
- Por que não? - tornou ela alegremente. - É muito pouco. Tio Willie vale mais que isso. Depois, é o único parente que me resta.
Foi então que ele viu a razão de seu vestuário barato, do pobre alojamento onde morava e da comida sofrível; viu, com efeito, a finalidade do seu poupado estilo de vida. Esta dedicação comoveu-o, mas a sua sensação principal era de indignação por ver que a ela
era recusada a parte que se lhe devia. Veio-lhe o súbito impulso de lhe contar os recursos que tinha à sua disposição, de falar-lhe sobre tudo quanto queria e podia fazer por ela. Mas seu instinto advertiu-o. Não, não, pensou; devia evitar qualquer avanço demasiado repentino, ou demasiado assustador.
Aproximavam-se do centro da cidade, e, seguindo a direção que ela lhe dava, entrou na Princes Street junto ao Scott Monument, contornou um trecho de Craig Terrace, e depois, após cruzar uma larga praça, chegou a um edifício de pedra cor de cinza, onde se via uma placa de cobre bem polido, com o nome da Sociedade. Seu aspecto era o de uma velha residência de características vitorianas, a qual, inferiu ele, fora doada à Sociedade por algum falecido benfeitor - possivelmente a viúva crente de algum negociante da cidade. Nas janelas exibiam-se vários cartazes, representando algo que, daquela distância, se afigurava como desgraçados grupos de descarnadas crianças nativas.
- Miss Arbuthnot deve estar à minha espera - disse ela, agilmente saltando para fora do carro. - Não demoro mais que alguns minutos.
E cumpriu a palavra. Só houve tempo para que ele fumasse um cigarro Sobranie (tivera o cuidado de trazer da Suíça um farto suprimento de sua marca preferida), antes que ela reaparecesse. O relógio do painel, que na realidade funcionava, marcava apenas três e meia. Olhando-o, ela desculpou-se um tanto ofegante.
- Ui, deixei-o muito tempo à espera!
- Absolutamente. Foi tudo bem?
- Otimamente, obrigada.
- Então, Kathy - disse ele, resolutamente dando a partida, - você já praticou uma boa ação no dia de hoje e está em minhas mãos para o resto da tarde. Esqueçamo-nos um pouco da África Central e pensemos em nós. Primeiro vamos estacionar o carro; depois faremos as compras juntos.
Achou uma garagem nas vizinhanças, e, tomando a moça pelo braço, guiou-a de volta a Princes Street. O sol brilhava sobre eles, e, nos jardins fronteiros, viçavam rosas; uma brisa fresca fazia esvoaçar as folhas das tamareiras. Acima, as ameias do Castelo surgiam como que recortadas a estilete numa larga faixa de céu luminoso. Numa atitude protetora, ele continuava a segurar-lhe o braço, guiando-a através das calçadas cheias de transeuntes.
- Não acha bonita a Princes Street? - perguntou ela. - Dizem que é a rua mais bonita da Europa!
- Sim, é uma bonita rua, Kathy - respondeu ele amavelmente, - e cheia de bonitas lojas, com bonitas coisas dentro.
- Não há dúvida - disse ela com gravidade, concordando com um aceno de cabeça. - Mas terrivelmente caras.
Ele soltou uma risada. Invadia-o uma deliciosa disposição de espírito. A cena, o sol, o vivo ar tonificante faziam-no exultar.
- Kathy, Kathy - disse ele, premindo-lhe o cotovelo. - Você ainda me mata. Quando me conhecer melhor, saberá que a única coisa que realmente me dá prazer é gastar dinheiro.
Ela teve de sorrir com simpatia, ainda que um tanto suspeitosa.
- Está bem - disse ela com decisão, - contanto que não o desperdice.
- Ora, minha cara, mais do que ninguém você deve saber que nunca é desperdiçado o dinheiro que se gasta com os outros.
- Oh, o senhor tem toda a razão! - concordou ela, enquanto seu semblante se iluminava. - Foi a coisa mais maravilhosa, mais generosa que fez... dando o dinheiro do sino ao Sr. Fotheringay...
- Sim, o velho afinal conseguiu mandar refundir o sino... mas não nos devemos esquecer da Sra. Fotheringay, que não ganhou nada... Até acho que a vida dela se resume em jamais ganhar coisa alguma. Vamos procurar algo bonito para lhe dar. Mas, antes de tudo - (estavam parados em frente de Ferguson, o confeiteiro), - quero mandar uns confeitos de Edimburgo para dois amiguinhos que tenho na Suíça.
Entrou com ela e encomendou uma caixa grande da famosa guloseima a ser enviada aos filhos do encarregado do cais de Schwansee. Depois, pediu a opinião dela e, numa loja próxima, comprou para a mulher do ministro uma espaçosa bolsa preta, de couro de lagarto.
- É uma beleza! - exclamou Kathy alisando com admiração o brilhante couro. - Era isso mesmo que ela queria.
- Então você terá o prazer de entregar-lha.
Saindo da loja, dirigiu-a para um estabelecimento da mesma rua, cuja excelência ele havia observado ao dirigir o carro pela cidade.
- Agora sim - anunciou ele com grande bom humor e uma expressão um tanto maliciosa. - Agora, sim, vou fazer compras de verdade!
Deu um passo à frente, mas, quando se preparava para ganhar a entrada, ela depressa o interrompeu.
- Não está vendo... não é uma loja de artigos para homens...
- Não - replicou ele, olhando-a com um ar sério. - Não é. Mas vou entrar... para lhe comprar um manto novo... e outras coisas de que, tenho a certeza, você está precisando. Agora, nem uma
palavra! Sou um velho amigo da família, você tem de aprender a
aceitar-me... é como se eu fosse o seu tio Willie. Melhor ainda: como se eu fosse um irmão mais velho. E, nessa qualidade, não posso ver você mandando todo o seu dinheiro para Angola e deixando de satisfazer as suas necessidades mais absolutas - uma garota bonita como você.
Uma onda de rubor subiu ao rosto de Kathy. Ela quis falar, mas não pôde. Baixou os olhos.
- Nunca dou importância ao que estou vestindo... de qualquer forma, não ligo muito. - Em seguida, para alívio dele, tornou a fitá-lo, e, incapaz de resistir, com um leve tremor nos lábios, sorriu. - Não devo fingir. Acho que gostaria de ser tão elegante como as outras.
- E será, só que muito mais elegante.
Entraram na loja que, como ele supusera, era de primeira ordem. Auxiliado por uma vendedora discreta e já madura, que se precipitou ao seu encontro, e pondo de lado todos os protestos sussurrados por Kathy, ele escolheu um belo manto de lã de Shetland, quente e no entanto leve, luvas e sapatos novos, uma écharpe de seda feita à mão, e finalmente um discreto e elegante costume Lovat verde-escuro. Quisera fazer mais, infinitamente mais; nada lhe daria maior prazer do que envolvê-la nas ricas pelicas para junto das quais, com um olhar interrogativo, a vendedora esperançada o conduzira. Ele porém não se atreveu... ainda não. Enquanto Kathy se encerrou na sala de provas do primeiro andar, ele sentou-se numa poltrona da elegante sala atapetada de vermelho, espichou as pernas e acendeu um cigarro, perfeitamente à vontade. Dentro em pouco ela desceu, com o olhar abaixado, postou-se à sua frente. Ele não pôde acreditar no que via, tão espantosa fora a mudança. Kathy estava encantadora.
- Madame fica um pouco diferente no costume Lovat, senhor - disse a vendedora com um ar de quem remata uma tarefa e observando-o disfarçadamente.
Sob aquele olhar experimentado, ele se conteve.
- Um grande sucesso - disse calmamente. - Parece que serve.
- Naturalmente, senhor. Madame é um trinta-e-quatro perfeito.
Ele insistiu para que ela permanecesse vestida com o costume verde e o chapeuzinho novo. Os demais artigos, elegantemente embrulhados, eram fáceis de levar, e o manto velho com a saia Harris podiam ser remetidos para Markinch. Ao ser apresentada a conta, embora ele tomasse cuidado para não deixar ver o total, Kathy
pôs-se a resmungar, cheia de remorsos, a seu ouvido. Todavia, quando ela saiu da loja com suas novas aquisições, Moray não deixou de notar o brilho de prazer que cintilava nos olhos da moça. Foi um bem ele ter feito o que fez, refletiu com uma viva emoção; mas aquilo era apenas o começo.
Ela permaneceu calada enquanto caminhavam juntos pela rua. O sol poente lançava um clarão dourado por trás de uma massa de nuvens; então, olhando firme para a frente, ela disse:
- O senhor é bondosíssimo, Mr. Moray. Espero apenas que não se tenha arruinado.
Ele balançou a cabeça.
- Eu lhe havia dito que tinha uma dívida a pagar, Mas é você quem a está pagando.
Ela voltou-se a meio e olhou-o fixamente.
- É a coisa mais bonita que até hoje me disseram.
- Então quer fazer-me um favor? Sr. Moray é tão cerimonioso! Preferia que me chamasse, simplesmente, David...
- Oh, pois não - tornou ela, timidamente.
E antes que o silêncio se tornasse incómodo, ele exclamou alegremente:
- Misericórdia! Já passa das cinco! É hora do chá... Até aqui comandei o espetáculo, mas agora passo-lhe a batuta. Que lugar recomenda?
Sem hesitar ela citou um café, o melhor na sua opinião e de preço moderado. Não ficava longe, e daí a pouco ambos estavam sentados na sala clara e tépida de um primeiro andar, em meio a um alegre burburinho de vozes e contemplando os jardins da calçada fronteira. A mesa, segundo o estilo escocês, estava abarrotada de tentadores pãezinhos e bolinhos, tendo ao centro um suporte de várias prateleiras com todas as variedades do bolo típico feito de pão-de-ló, camadas de açúcar e maçapão, e conhecido como bolo "francês". Ele passou-lhe o cardápio, firmemente seguro por uma pequena bola de metal.
- O que sugere?
- Está com fome? - perguntou ela.
- Simplesmente esfomeado.
- Eu também. - E esboçou um sorriso discreto e brincalhão. - Já se esqueceu de como é bom um verdadeiro chá escocês?
- Ainda não. E o melhor que até hoje bebi foi em sua velha casa de Ardfillan.
- Aqui há um prato... filé de peixe com molho de salsa... Não parece grande coisa, mas positivamente é de se derreter na boca de quem o come.
Ele fitou-a com um ar zombeteiro.
- É muito caro?
Ela soltou uma risada livre e espontânea - uma risada tão feliz, que provocou sorrisos correspondentes em severos cidadãos de Edimburgo sentados nas mesas próximas.
- Custa uma boa meia coroa. E, depois do que você gastou hoje, e que daria para o resgate de um rei, acho melhor consentir que eu pague.
Quando a garçonete se aproximou, ele deixou que Kathy fizesse o pedido. O peixe, como ela dissera, estava delicioso, recém-trazido do mar, as torradas com manteiga, quentes, o chá forte e escaldante. A animação do passeio e a certeza de que estava bem vestida afrouxaram a timidez de Kathy, emprestando-lhe um entusiasmo que tornava a sua companhia mais deliciosa, se bem que ele já tivesse percebido em sua natureza, um veio introspectivo, até mesmo uma tendência para a melancolia, e agora era bom ele poder erguê-la para uma disposição de espírito mais leve. E como estava bonita naquele vestido novo e elegante, e tão transformada a ponto de atrair para si muitos olhares admirativos, que ele claramente percebia e ela continuava a ignorar! Sim, pensou ele observando-a com indulgência, ela bem merece tudo quanto pretendo fazer em seu favor, pois corresponderá ao meu esforço.
Depois de comer, ficaram algum tempo sentados num silêncio comunicativo, e ela enfim soltou um suspiro de satisfação.
- É uma pena que um dia tão maravilhoso tenha de se acabar. Mas preciso voltar para substituir a enfermeira Ingram às sete horas.
- Precisa mesmo? - perguntou ele, com um timbre de desapontamento.
- Infelizmente preciso.
- E eu que pensava que você podia ficar para irmos a um teatro! Não gostaria?
Ela baixou os olhos, mas dentro em pouco levantou-os e fitou-o com franqueza.
- Decerto vai ficar admirado, Mr. Moray... isto é, David... mas nunca fui a um teatro. Quando mamãe era viva, íamos todos os anos assistir à exibição do Messias, pelo Coro Orfeu. Também fui a alguns concertos no Usher Hall.
- Mas o teatro regular... bons dramas, a ópera, e coisas assim?
Ela balançou a cabeça com uma tal expressão no rosto, que ele ficou profundamente comovido.
- Mas Kathy, querida, aflijo-me só em pensar no quanto você perdeu. Nunca desejou ir a esses lugares?
- Não... Na realidade, não.
- Mas por quê?
Ela fez uma pausa, como para estudar a pergunta, e enfim disse simplesmente:
- Mamãe não dava atenção a isso... Acho também que sempre vivi muito ocupada... e tinha outras coisas na cabeça.
- Que menina mais séria você é!
- Não acha que é também muito séria a época em que vivemos?
- Sim - foi obrigado a confessar. - Acho que sim.
Sua capacidade para deixá-lo atónito parecia ilimitada. E como podia ser reservada quando aquela expressão contida lhe transparecia nos olhos! No entanto, que maravilha, nessa época de Moray envelhecida, descobrir uma inocência tão pura e intacta!
- Então vamos, querida - disse ele com ternura. - vou levá-la para casa.
Guiou o carro lentamente através do crepúsculo que se adensava, passando por cidadezinhas do estuário onde as luzes já surgiam sobre um fundo de treva invasora. Mas, ao macio ronronar do carro, ia ele pensando no futuro. Solo virgem - pensava Moray, - digno de todos os esforços de sua parte. O tempo estava a seu favor, naturalmente, mas havia muito que fazer. A despeito da natural doçura e inteligência dela, foi obrigado a reconhecer, como homem do mundo, que ela era uma moça simplória e sem instrução, que nada conhecia de música, de arte ou de literatura. Aquele quadro em sua sala de visitas... horrível... alguns compêndios, e a Bíblia, edificante, sem dúvida, mas insuficiente... Pobre criança! Provavelmente trabalhava demais, e ficava muito cansada para ler à noite. Isso teria que mudar, ela precisava receber educação, aprender línguas, frequentar uma boa universidade - Genebra ou Losana seriam apropriadas, - fazer um curso, digamos, de Ciências Sociais. Tudo isso e mais a convivência de pessoas cultas e civilizadas lhe dariam segurança,
aparar-lhe-iam as pequenas arestas, contribuiriam para aprimorá-la. Sua criação era de certo modo a responsável - por mais pura e espartana que tivesse sido, fora, sem dúvida, muito estreita. E a sua obsessão a respeito de Willie, embora esplendidamente altruísta, era um entrave, devia ser atenuada. Mas a necessidade mais
premente era retirá-la do seu emprego atual; com efeito, ela já insinuara que pretendia deixá-lo... E ele, pensando em incentivar isso, disse-lhe:
- Gostaria de acompanhá-la, num de seus giros domiciliares. Estou muito interessado. Pode ser esta semana?
- Naturalmente - respondeu ela prontamente. - Amanhã não, pois tenho de visitar o médico da Saúde Pública do distrito, em Dalhaven; mas depois de amanhã, se você quiser.
- Está bem. Virei buscá-la às nove.
Ao chegarem a Markinch, ele reuniu os embrulhos, acompanhou-a até a porta, silenciou-lhe os agradecimentos renovados, e deu-lhe um boa noite amável, conquanto breve. O dia que ele tão cuidadosamente planejara falaria por si. Um liame se criara entre os dois, e ele não se arriscaria a rompê-lo com blandícias no vão da porta da rua...
CONTINUA
AQUELA manhã de outono estava tão radiosa, que Moray, prudentemente consultando o termómetro afixado fora da janela, resolveu fazer o desjejum no balcão de seu quarto. Dormira bem; para quem sofria de insónia, seis horas eram uma proeza animadora. O sol brilhava tépido em seu roupão de seda, criação de Grieder, e Arturo, como de costume, preparara a bandeja com perfeição. Moray serviu-se do café Toscanini, cujo calor fora conservado num termo de prata; untou um croissant fresco com mel de montanha, e deixou o olhar pervagar pela paisagem, com todo o delicioso, possessivo prazer de um descobridor. Deus do Céu, que beleza! A um lado, com uma simetria que o céu fazia realçar, o Reisberg apontava para a altura azul sobre verdes prados relvosos, levemente salpicados de antigos chalezinhos campestres, de telhados vermelhos; do outro lado, as suaves encostas de Eschenbrúck, com pomares de pêras, cerejas e abricôs; em frente, na direção do sul, uma crista longínqua dos nevosos Alpes; e abaixo... oh, sim, abaixo do platô de sua propriedade, estendia-se o Schwansee, o amado lago de tantas caprichosas disposições - imprevisto, selvagem, maravilhoso - mas agora luzindo em paz sob um ténue véu de neblina, onde deslizava sem rumor um pequeno bote branco... que semelhava um cisne, rematou Moray, poeticamente.
Que felicidade, depois de tanta busca, ter enfim descoberto esse belo sítio tranquilo, incontaminado por turistas, e entretanto bastante próximo de Melsburg, cidade dotada de todas as vantagens de uma comunidade eficiente e civilizada. Também a casa, construída a capricho por um famoso arquiteto suíço, era tudo quanto de melhor se poderia desejar. Talvez mais sólida do que admirável era no entanto repleta de conforto. Imagine-se: aquecimento a óleo mazut, armários embutidos, cozinha de azulejos, um belo e comprido salão para seus quadros, até as modernas salas de banho que sua longa permanência nos Estados Unidos aprendera a exigir! Ao beber o suco de laranja, que sempre reservava para a derradeira bonne bouche, um suspiro de satisfação exalou-se-lhe do peito - tão suavemente eufórica era a sua disposição, tão sublimemente alheio estava ele a um desastre iminente.
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Como passar o dia? Levantando-se e começando a se vestir, repassou as possibilidades. Telefonar para Madame Von Altishofer e ir a pé para Teufenthal? Numa manhã daquelas, decerto ela quereria exercitar a sua estranha, maravilhosa matilha de Weimaraners. Mas não: ia ter o prazer de levá-la ao festival das cinco horas; não era bom insistir. E então? Ir jogar golfe em Melsburg? Ou sair de bote e ir reunir-se aos pescadores que já se movimentavam para uma batida aos felchen do lago? Mas, de certo modo, sua inclinação pendia para diversões mais tranquilas, e ele finalmente decidiu examinar o caso de suas rosas, que, mercê de uma geada recente, não tinham florescido plenamente naquele verão.
Desceu para o terraço coberto. Junto à chaise-longue encontrou a correspondência e os jornais locais; os jornais ingleses e o Herald Tribune, de Paris, não chegariam senão à tarde. Nada havia que o perturbasse naquelas cartas, cada uma das quais ele abriu com uma curiosa hesitação, com um movimento indeciso do polegar... Coisa estranha, a persistência dessa folia! Na cozinha, Arturo cantarolava:
- La donna è mobile... Sempre im amabile... La donna è mobile... È sempre mísero.
Moray sorriu. Seu mordomo tinha irresistíveis pendores operísticos (fora ele que escolhera a mistura de café outrora preferida pelo maestro numa de suas visitas a Melsburg), mas era um sujeito alegre, serviçal,1 dedicado, e Elena, sua mulher, embora estupendamente gorda, provara-se uma cozinheira maravilhosa, ainda que irascível. Até com os criados tivera sorte... ou seria uma sorte total, a dele? - perguntou-se, caminhando orgulhoso pelo relvado. Em Connecticut, com seu solo pedregoso e invencível grama agreste, jamais conseguira um relvado decente, pelo menos nada que se comparasse àquela área de veludo cortado cerce. Mas conseguira-o, em Schwansee, teimosamente, arrancando uma vintena de velhos tocos de salgueiro da propriedade.
Cercando esse relvado luxuriante, corria uma bordadura herbácea, paralela a uma aréia pavimentada, que levava ao tanque dos lírios-d'água, onde douradas carpas jaziam imóveis sob os seivosos coxins das folhas. Uma grande faia acobreada sombreava o tanque e, para além do jardim japonês, havia um monte pedregoso, bulindo de marmeleiros, bordos anões e dúzias de pequenas plantas e arbustos com nomes latinos que desafiavam a memória.
A orla mais distante do relvado era marcada por uma linha de floridos arbustos-lilases, forsítias, viburnos e o resto - que separavam a horta da residência. Depois vinha o pomar, carregado de frutas maduras - maçãs, pêras, nêsperas, ameixas, rainhas-cláudias. Num momento de lazer contara dezessete variedades diferentes, mas confessava ter trapaceado um pouco, aí incluindo as nespereiras, nogueiras e copadas aveleiras que cresciam em grande abundância no alto da encosta e rodeavam uma dependência - um lindo chalezinho - convertido em casa de hóspedes.
Nem devia esquecer o seu grande tesouro botânico: a grande, a esplendorosa árvore-de-judas, que se erguia muito alta no pano de fundo de montanha, lago e nuvem. Era, efetivamente, um belo espécime de nobre copa esparzida, coberta na primavera de pesadas flores róseo-escuras desabrochadas antes da folhagem. Todas as visitas a admiravam; e quando ele dava um garden-party, tinha orgulho de exibir o seu conhecimento às senhoras, todavia, omitindo que o obtivera na Enciclopédia Britânica... "Sim - dizia ele- trata-se do C éreis siliquastrum... família das Leguminosas... As folhas têm um agradável paladar, e no Oriente costumam misturá-las à salada. Naturalmente, vocês conhecem a ridícula tradição popular. Arturo, o meu bom italiano, que é impagavelmente supersticioso, jura que ela é nefasta; chama-a de 1'albero dei dannati..." Nesta altura sorria, traduzindo prazerosamente: "a árvore das almas perdidas".
Agora porém descobriu Wilhelm, o jardineiro (que confessava ter setenta anos, que eram, pelo menos, setenta e nove), tirando brotos dos pepinos. O velho tinha a cara de um S. Pedro idoso e a obstinação de um sargento de cavalaria. Era preciso tato até para concordar com ele, que no entanto provara o seu valor no conhecimento e no trabalho, sendo a sua única desvantagem uma embaraçosa, ainda que útil, propensão para fazer água no monte de adubo. Endireitando o avental de baeta verde, tirou o chapéu e cumprimentou Moray com um medonhamente impassível:
- Grilss Gott.
- Die Rosen, Herr Wilhelm - disse Moray, diplomaticamente. - Wollen toir diese ansehen?
Seguiram juntos para o roseiral, onde, depois que o velho lançou censuras em todas as direções, o número das novas variedades requeridas foi discutido e determinado. Quando Wilhelm partiu, ocorreu uma agradável diversão: dois toquinhos de gente, filhos do mestre-trapicheiro da aldeia, de sete e cinco anos de idade, vinham enfrentando a íngreme vereda com aquela pressa ofegante e aquela importância que denotavam a chegada de uma fatura. Susy, a mais velha, agarrava o envelope amarelo, enquanto Hans, seu irmãozinho, levava livro e lápis para o recibo. Eram umas lindas crianças de olhos brilhantes, e já sorriam, em verdade resplandeciam na antecipação do ritual que Moray estabelecera. Depois de dar uma vista de olhos na fatura - era, como esperava, de Frankfurt, confirmando a chegada de duas caixas de um Johannisberg especial, de
1955 - Moray sacudiu a cabeça com ar ameaçador:
- Vão apanhar! São bonzinhos demais!
As crianças riam abafado, e ele as conduziu para sua árvore predileta, uma nobre rainha-cláudia carregada de ameixas amarelas. Sacudiu um galho, e quando uma chuva de suculentas frutas caiu, elas romperam em risadas estridentes, e escorregaram encosta abaixo, para agarrar as maduras ameixas que rolavam.
- Darike, danke viemals, Herr Moray.
Só depois que encheram os bolsos ele os deixou partir; depois, consultando o relógio, resolveu sair para dar uma volta.
Na garagem, anexa ao chalé, escolheu o Jaguar esporte. Para quem já fizera cinquenta e cinco anos, e se havia, de espontânea vontade, retirado para uma vida de ócio e de repouso, um tal veículo poderia provavelmente ser julgado demasiado violento, tanto mais que seus outros dois carros, o Humber da propriedade e um novo Rolls Silver Cloud - obviamente, preferia a marca britânica - eram notavelmente conservadores. Entretanto se sentia, e parecia (e muitas vezes lho disseram) que era muito mais jovem do que a idade que tinha: a figura delgada, os dentes sadios e iguais; conservara os cabelos sem um fio branco sequer, e seu sorriso, que era encantador, possuía uma qualidade extraordinariamente atraente, espontânea, quase de menino.
No começo, a estrada corria através de uma terra de pastagem, onde vacas amarelas, de olhos mansos, caminhavam pesadamente, fazendo tilintar os grandes cincerros que traziam amarrados ao pescoço e que provinham de várias gerações. Nos campos mais baixos, homens, e também mulheres, labutavam no eterno ciclo das gramíneas. Alguns paravam de ceifar para saudá-lo com um aceno da mão, pois ele era conhecido, e estimado, sem dúvida devido à sua bondade para com as crianças, ou talvez porque se dera o trabalho de
interessar-se por todas as festanças locais. Em verdade, os casamentos rústicos, entristecidos pelo derradeiro toque da trompa montanhesa; as procissões tradicionais, tanto as religiosas como as civis; mesmo as metálicas discordâncias da banda da aldeia que no seu aniversário o homenageara com uma serenata - tudo isso o divertia e entretinha.
Daí a pouco chegava aos subúrbios; ruas que se diriam escovadas, casas brancas, de venezianas verdes, com seus canteirinhos fronteiros cheios de astérias e begônias, e as jardineiras das janelas abrindo-se em gerânios e petúnias. Que flores! Jamais as vira iguais! E a pairar sobre tudo, um ar tranquilo e asseado, de nitidez e eficiência, como se tudo estivesse numa ordem impossível de romper-se, como se a honestidade, a civilidade e a polidez fossem o santo-esenha daquela gente.
Como fora sensato, nas circunstâncias especiais em que se achava, estabelecer-se ali, afastado da vulgaridade da época presente: dos hipsters e os beatntks, do strip tease, do rock-arid-roll, das afetadas declamações dos "jovens irados", das abstraçÕes lunáticas da arte moderna e de todos os demais horrores e obscenidades de um mundo enlouquecido!
Em resposta a seus amigos da América, que protestaram contra a sua decisão, especialmente a Holbrook, seu sócio na companhia Stamford, que chegara ao ponto de ridicularizar o país e seus habitantes, argumentara ele calmamente, logicamente. Wagner não passara sete anos felizes e fecundos nesse mesmo cantão, compondo Os Mestres Cantores, e até (dizia isto com um sorriso) uma brilhante marcha para o Corpo de Bombeiros local? A casa onde residira, ainda intacta, bastava para comprová-lo. E Shelley, e Keats, e Byron, acaso não passaram largos períodos de seus românticos lazeres naquelas cercanias? Quando ao lago, Turner pintara-o, Rousseau remara em suas águas, Ruskin delirara ante a sua beleza.
Nem tampouco estava ele se enterrando num vácuo sem alma. Tinha livros, uma coleção de coisas belas... Além disso, se os suíços nativos não eram... (como dizê-lo sem ofender?) intelectualmente estimulantes, em Melsburg existia uma brilhante sociedade expatriada, composta de pessoas verdadeiramente encantadoras, dentre as quais Madame Von Altishofer era uma que o aceitara como membro da coterie. E se tanto não bastasse, o aeroporto de Zurique ficava a quarenta minutos de automóvel, e depois, em duas
horas, talvez menos, estava-se em Paris... Milão... Viena... contemplando os ricos detalhes de La Mise au Tombeau de Ticiano, ouvindo a Callas na ária da Tosca, saboreando o maravilhoso Shafsragout mit Weiskraut no Sacher's Bar...
Nessa altura, viu que chegara ao viveiro de Leuerbach. Fez uma seleção de mudas de roseira, acrescentando resolutamente algumas variedades de sua própria escolha à lista que Wilhelm lhe dera, conquanto sombriamente pressagiasse que o destino destas seria um falecimento misterioso, ao passo que o das outras seria sobreviver e florescer gloriosamente... Era ainda muito cedo quando saiu do viveiro: apenas onze horas; por conseguinte resolveu regressar por Melsburg, onde faria algumas compras.
Tendo já partido a maioria de seus visitantes, a cidade estava deliciosamente vazia, e o passeio junto ao lago, onde as folhas secas dos castanheiros já crepitavam, via-se meio deserto. Moray gozava esta estação, encarava-a como um ato de retomada de posse. As espiras gémeas da catedral pareciam furar mais agudamente o céu; o anel de antigos fortes, não mais cobertos pela enchente, voltara a ser velho e cinzento; e a antiga Méis Brúcke, liberta de turistas boquiabertos, calmamente reassumira sua verdadeira identidade.
Moray estacionou na praça junto à fonte, e sem mesmo pensar em fechar o carro, entrou na cidade. Primeiro visitou as tabacarias, comprou uma caixa de duzentos de seus cigarros Sobranie especiais, depois foi à drogaria para adquirir um grande frasco de Eau de Çuinine Pineau, o tónico de cabelo de sua preferência. Numa rua próxima ficava Mayer, o famoso confeiteiro. Aí, após dois dedos de prosa com Herr Mayer, mandou remeter um grande pacote de chocolate de leite para as crianças Holbrook, de Connecticut - em Stamford nunca se viu chocolate daquela qualidade e Mediante uma reflexão ulterior - pois gostava de doces - levou consigo meio quilo de marrons glacés da estação. Comprar ali era um prazer, dizia com seus botões: de todo lado via apenas sorrisos e polidez.
Estava agora na Stadplatz, onde, respondendo a um impulso subconsciente, suas pernas o haviam conduzido. Não pôde deixar de sorrir, embora com um ligeiro sentimento de culpa. Logo em frente se achava a Galerie Leuschner. Hesitou, bem-humorado, cônscio de que estava cedendo à tentação. Mas a lembrança do pastel de Vuillard o impelia a avançar. Atravessou a rua, empurrou a porta da galeria e entrou.
Leuschner estava no escritório examinando um caderno de esboços a pena. O negociante, homenzinho macio, gorducho e sorridente,
cujo paletó matinal, calças listadas e alfinete de pérola eram inequivocamente de rigueur, cumprimentou Moray com uma cordial deferência, todavia com um ar não comercial, subentendendo ser puramente casual sua presença na galeria. Falaram sobre o tempo.
- São muito bons - disse Leuschner, indicando o caderno de desenhos, depois que acabaram de falar do tempo. - E razoáveis. Kandinsky é avaliado muito por baixo.
Moray não tinha interesse pelas figuras descarnadas e os rostos simiescos de Kandinsky, e suspeitava que o negociante bem o sabia; entretanto, passaram os quinze minutos subsequentes examinando os desenhos e elogiando-os. Depois, Moray apanhou o chapéu.
- A propósito - disse de repente - você ainda tem aquele Vuillard que estivemos olhando na semana passada...
- Mas por pouco tempo. - E o negociante assumiu uma súbita expressão de seriedade. - Há um colecionador americano muito interessado...
- Conversa... - disse Moray voluvelmente. - Já não há americanos em Melsburg.
- Esse, está em Filadélfia... É curador do Museu de Arte. Quer ver o telegrama que me mandou?
Moray, interiormente alarmado, balançou a cabeça de um jeito que implicava uma divertida dúvida.
- Ainda está pedindo aquele preço ridículo? No fim de contas, não passa de um pastel...
- O pastel é o veículo de expressão de Vuillard - respondeu Leuschner com tranquila autoridade. - Garanto que este vale cada cêntimo do custo. Se souber que outro dia, em Londres, uma grosseira pincelada de Renoir, um punhado de morangos de triste aspecto, com efeito, uma coisa lamentável, da qual o mestre devia sinceramente envergonhar-se - alcançou vinte mil libras... Mas isto é uma jóia, digna da sua bela coleção, e o senhor sabe como são raros os bons pós-impressionistas... Entretanto, só peço dezenove mil dólares. Se o comprar (e eu não insisto, pois, praticamente, já está quase vendido) nunca se arrependerá.
- Fez-se um instante de silêncio. Pela primeira vez, ambos olhavam juntos o pastel, pendurado, sem mais nada em torno, contra o neutro papel corrugado da parede. Moray conhecia-o bem, estava registrado no catálogo e era em verdade um belo quadro, um interior cheio de luz e cor-misto de róseos, verdes e cinzentos. O assunto,
também, combinava exatamente com o seu gosto: era uma cena, de
tête-à-tête - Madame Melo e sua filha pequena, no salão da casa da atriz.
Uma onda de ânsia possessiva apertou-lhe a garganta. Precisava tê-lo, precisava tê-lo, para o pendurar em frente do seu Sisley. O preço era impressionante, mas bem que sua bolsa podia permiti-lo; era rico, muito mais rico do que o bom Leuschner havia calculado, pois este não tinha acesso àquele livrinho preto, trancado no cofre, com suas fascinantes fileiras de cifras. E por que - após tantos anos de trabalho estéril e lutas conjugais - não deveria ele possuir tudo quanto desejasse? O confortável lucro que tivera ultimamente na Royal Dutch não podera ser melhor empregado. Encheu o cheque, apertou a mão de Leuschner e saiu em triunfo, com a tela cuidadosamente enfiada debaixo do braço. De regresso à sua villa, antes que Arturo chamasse para o lanche, teria tempo de pendurar o quadro na parede. - Perfeito... perfeito... - exultava ele, recuando. Esperava que Frida Von Altishofer o aprovasse.
CAPÍTULO DOIS
Esperava-a para as cinco horas, e como a pontualidade constituía para ela uma forma de boa educação, precisamente naquela hora ela chegou. Não, como de costume, no seu maltratado Dauphine cor de creme, mas a pé. Em verdade, a espécie de quartel que era sua casa, o Schloss Seeburg, ficava na outra margem do lago, numa distância de dois quilómetros, e quando ela entrou na sala de visitas, ele tomou-lhe as mãos e censurou-a por ter vindo de lancha: a tarde estava quente, o caminho para a villa no monte era íngreme, ele podia ter mandado Arturo a seu encontro...
- Não me desagrada andar de lancha - disse ela sorrindo. - Como sempre tem a bondade de me levar, não quis vir de carro.
Seu inglês, embora estilizado, era excelente, apenas com um ligeiro, ainda que bonito, excesso de acentuação em certas sílabas.
- Bem: agora vamos tomar chá. Já encomendei. - E ele tocou a campainha. - Na festa só nos darão vermute aguado...
- Você é muito atencioso. - E Frida sentou-se graciosamente, tirando as luvas. Tinha dedos vigorosos e elásticos, unhas polidas, mas sem verniz. - Espero que não se aborreça muito na Kunsthaus.
Enquanto Arturo fazia avançar o carrinho de chá, e, com mesuras que eram quase genuflexões, servia aos dois, Moray
observava-a. Devia ter sido muito bela, quando jovem. A estrutura de seus ossos faciais era perfeita. Mesmo agora, com quarenta e cinco, ou quarenta e seis anos... bem, talvez até quarenta e sete, e embora seus cabelos começassem a encanecer e sua pele a revelar-se ligeiramente crenulada com os estigmas da idade, era ainda uma mulher atraente, com a figura ereta e elástica de quem acreditava em ar puro e exercício. Os olhos eram o seu traço mais notável, de um verde amarelado escuro e fulvo, chumbado de manchinhas pretas. "Olhos de gato." Frida sorriu quando certa vez ele arriscara um cumprimento, "Mas não arranho... só raramente."
Sim, refletiu ele com simpatia, ela passara seus maus bocados, e contudo nunca falava disso. A vida era-lhe difícil, ela não tinha muita roupa, mas a que tinha era boa e vestida com elegância. Quando saíam juntos a passeio, habitualmente aparecia com um esmaecido costume castanho-ferrugem, um chapéu bersaglieri posto de banda, meias brancas de tricô e sólidos sapatões de um pardo desbotado, feitos à mão. Naquele dia estava com um tailleur cor de gazela, simples, mas bem talhado, sapatos do mesmo tom, umas luvas e trazia a cabeça descoberta. bom gosto, distinção e educação perfeita eram evidentes em todos os seus gestos; inútil a si próprio repetir que ela era uma mulher culta e da mais alta classe.
- Sempre me faz servir um chá delicioso.
- É Twining quem mo fornece - explicou ele. - Trata-se de uma mistura preparada especialmente para a água dura do Schwansee.
Ela abanou a cabeça, como que censurando-o.
- com efeito.., você pensa em tudo. - E depois de uma pausa: - No entanto deve ser maravilhoso a gente poder realizar tudo quanto deseja.
Seguiu-se um longo silêncio enquanto ambos saboreavam o chá de água do lago; mas, de repente, erguendo o olhar e fixando-o na parede, ela exclamou:
- Meu caro amigo... comprou o quadro!
Finalmente vira o Vuillard, e levantando-se, excitadíssima, mas ainda com a xícara e o pires na mão, atravessou a sala para examiná-lo.
- É lindo... lindo! E está muito melhor aqui do que na galeria. Oh, a encantadora criança no tamborete baixo! Espero que Leuschner não o tenha roubado muito.
Moray foi para junto dela, e em silêncio admiravam o pastel. Frida teve o bom gosto de não se derramar em elogios; mas quando se voltaram, olhando em torno para as suaves linhas da mobília
do século dezoito, o macio tapete cor de cinza e as cadeiras Luís XVI forradas de tapeçaria; olhando para os demais quadros - o Pont Aven, de Gauguin, assinado e datado, acima das estatuetas T'ang do consolo da chaminé georgiana; o maravilhoso nu de Degas na parede oposta; um Utrillo dos primeiros tempos e a paisagem de Sisley; a rica suavidade de um Bonnard, a deliciosamente maternal Mary Cassat, e agora o Vuillard - Frida murmurou:
- Adoro sua sala. Aqui você pode passar a vida na celebração das coisas belas. Melhor ainda: - porque as obteve com seu próprio esforço.
- Creio-me autorizado a possuí-las - tornou ele com modéstia. - Quando era moço... na Escócia... não tinha grande coisa. com efeito, era até miseravelmente pobre.
Aquilo fora um erro. Depois de falar, arrependeu-se. Não fora acaso advertido a nunca olhar para trás, mas só para a frente, sempre para a frente? Acrescentou à pressa:
- Mas você... até à guerra... você sempre viveu... - e hesitou ligeiramente procurando as palavras - com grande pompa.
- Sim, tínhamos lindas coisas - respondeu ela com doçura.
O silêncio voltou a reinar. A reserva meio sorridente com que ela respondera à observação de Moray foi verdadeiramente heróica. Era viúva do Barão Von Altishofer, oriundo de uma antiga família judia que, no século anterior, amassara uma imensa fortuna mediante concessões estaduais no comércio do fumo, e cujas posses iam desde uma vasta propriedade na Bavária até uma reserva de caça na Eslováquia. Fora fuzilado nos primeiros seis meses da guerra, e embora ela não pertencesse à sua religião, passara os três anos subsequentes num campo de concentração de Lensbach. Quando foi eventualmente liberada, atravessou a fronteira suíça. Só lhe restava a casa junto ao lago, o Schloss Seeburg, e ali, ainda que praticamente sem vintém, lutara corajosamente para reconstruir a vida. Começou pela criação dos Weimaraners, cães muito raros; e como a ignomínia de uma pensão como as outras era naturalmente inimaginável para ela, seus amigos - e os tinha bastante, ali iam para desfrutar, como hóspedes pagantes, a vastidão do grande Schloss germânico e o espaçoso jardim afogado em mato. Em verdade, uma pequena sociedade exclusiva se desenvolvera em torno do Seeburg-sociedade da qual ela própria era o centro. Como seria divertido restaurar a bela e antiga propriedade, enchê-la com mobília da época, replantar o jardim, recondicionar a estatuária... Fora ela que insinuara? Nunca, nunca... O pensamento era dele,
um revoo da fantasia... Autoconsciente, com certa brusquidão, ele olhou o relógio.
- Ponhamo-nos a caminho, se você já está pronta.
Resolvera levá-la à festa com todo o aparato: Arturo, trajava o seu melhor uniforme azul - um tom mais claro do que o azul-marinheiro. Eles partiram no carro grande. Como aquele era o único Rolls Royce em Melsburg, seu aparecimento sempre constituía um espetáculo.
Sentado junto dela enquanto rodavam, sua manga tocando a dela no braço estofado do assento, Moray estava expansivo. Embora o seu casamento tivesse redundado num catastrófico malogro, vinha ele, desde que se retirara para a Suíça, considerando seriamente a perspectiva de - na frase vulgar de Wilenski - tornar a experimentar a mão. Vizinhos há dezoito meses, durante esse tempo a amizade de ambos desenvolvera-se a ponto de gerar, gradualmente, a ideia de uma camaradagem mais estreita. Todavia, o pensamento dele tinha até ali pairado em imagens mais jovens e mais tenras. Frida Von Altishofer já não era jovem, e na cama talvez não se revelasse tão apetitosa quanto seria de desejar, e ele, como homem no qual as intensas exigências da falecida mulher tinham provocado uma hipertrofia da próstata, sentia agora necessidades que, por motivos de saúde, se mais não fosse, reclamavam satisfação. Apesar disso, Frida era uma mulher forte e cheia de vida, com profundos, ainda que escondidos, sentimentos que poderiam redundar numa paixão insuspeitada. Era esse - sabia-o pela sua prática em medicina - um caso frequente com mulheres que já haviam passado a menopausa. Decerto que, em todos os demais aspectos, ela perfazia o ideal de uma esposa admirável e aristocrática.
Nessa altura chegaram à cidade e contornaram o jardim público com seu alto chafariz central. Arturo encostou, desceu como um relâmpago para tirar o boné e abrir a porta do carro, e ambos subiram a escada que conduzia para a Kunsthaus.
- Alguns de meus amigos do corpo diplomático deverão vir de Berna para o festival. Se não for caceteação, talvez você goste que eu lhe apresente alguns.
Sentia-se profundamente satisfeito. Não sendo um esnobe - Deus do Céu, isso não! - entretanto gostava de conhecer a "gente bem".
- Você está encantadora, Frida - murmurou ele com um súbito e rápido lampejo mais íntimo no olhar.
CAPÍTULO TRÊS
A festa começara havia algum tempo. O comprido salão estava cheio de ruído e de formas humanas que se comprimiam. A maioria dos notáveis do cantão se achava presente, em companhia de muitos dignos burgueses de Melsburg e dos artistas que, na última semana, haviam tomado parte no festival. Estes, coitados! pertenciam principalmente à velha brigada, pois ao contrário das outras estações de veraneio mais importantes, por exemplo, Montreaux e Lucerna, Melsburg não era rica, e entre simpatia e falta de fundos, a comissão voltava, ano após ano, aos nomes e aos rostos de há muito conhecidos. Através da névoa do cigarro, distinguiu Moray a figura idosa e decrépita de Flackmeister, que mal podia subir para a plataforma, preso como estava em sua apertada casaca esverdeada nas axilas pelo suor dos anos. E lá estava Tuberose, o violoncelista - magro, alto como uma estaca, e que, por muito roçar seu instrumento, tinha os joelhos puídos. Conversava com o contralto inglês, de soberbo colo, Amy Rivers Fox-Finden. Bem, não fazia diferença, refletiu Moray enfiando-se alegremente no aperto com sua companheira; o aplauso nos concertos era sempre muito entusiasta e prolongado; lembrava filas e mais filas de carneiros satisfeitos, batendo palmas com as pernas dianteiras.
Serviram-lhes uma bebida de espécie desconhecida, tépida e nadando em fragmentos de gelo a derreter-se. Frida não bebeu; mas lançou-lhe de soslaio um olhar bem-humorado e comunicativo, que dizia sem rebuços: "Como foi previsor... e como estou contente com o gostoso chá que me serviu!" quase... quase acrescentando, "e com você!" Depois, com uma leve pressão do cotovelo, guiou-o através da sala, apresentando-o primeiro ao ministro alemão, depois ao austríaco. Ele não deixou de observar o afetuoso respeito com que cada um a saudou, nem o à-vontade com que ela retribuía os cumprimentos. Ao se afastarem, o nome de Moray foi chamado aos berros através do aperto, por um esportivo tipo britânico, todo amável em suas dentaduras plásticas e globos oculares de alcoólico, trajado com uma jaqueta cruzada azul e de botões dourados, largas calças cor de gazela e sapatos cambados, de camurça.
- Quanta satisfação em vê-lo, velhinho! - estrondejou Archie Stench, agitando na mão um copo de legítimo uísque. - Não posso mexer-me daqui. Mantenha a bandeira içada, e logo o chamarei!
O rosto de Moray se anuviou ligeiramente, e ele fez a Stench um gesto pouco amigável. Não queria prosa com aquele tipo, correspondente do Daily Echo, de Londres, nas horas vagas cronista social da Tageblatt local, onde mantinha uma colunazinha de notícias fúteis, não raro com ferrão na cauda. Muitas vezes Moray fora ferreteado...
Felizmente, se achavam na outra extremidade do grande salão, onde, junto de uma janela saliente, havia-se reunido um grupo de seus amigos particulares. Via-se ali a reservada Madame Ludin, do Europa Hof, com seu delicado marido, em companhia do Doutor Alpenstuck, amante das grandes altitudes. Alto, ereto, notável falsete na juventude, o digno doutor nunca faltava a um festival. Mais adiante, junto das feiosas irmãs Courtet, a uma mesa redonda da qual, com seu ar de míope, havia limpado todas as bolachinhas de coquetel a seu alcance, estava Gallie, a velha e miúda Galliatine, princesa russa, surda como uma porta e parca de palavras, mas que ia a toda a parte para se encher de sanduíches, até mesmo para os enfiar agilmente na enorme bolsa de couro rachado que carregava sempre consigo - uma bolsa bojuda pelo excesso de uso, sempre recheada de papéis que provavam o seu parentesco com o famoso Príncipe Yussupov, marido da sobrinha do czar. Criaturinha pálida e fraca, trazendo no pescoço uma desgarrada marca puída, dera-lhe o passado, quando mais não fosse, um sorriso de infinita doçura. Não de todo apresentável, talvez, mas, ainda assim, uma princesa autêntica. Bem diferente era a figura que ocupava o centro do grupo, Leonora Schutz-Spengler; à medida que dela se aproximavam, Madame Altishofer cochichou bem-humorada ao ouvido de Moray:
- Está contando a história de suas caçadas... Não escaparemos.
Fazendo uma interrupção na narrativa, Leonora já os reconhecera com um radiante sorriso. Era ela uma vivaz morena do Tessin, de risonha boca vermelha, olhos atrevidos e lindos dentes, que alguns anos atrás roubara o coração de Herman Schutz, o mais rico exportador de queijos da Suíça, homem grandalhão, pálido e pesado, que se diria feito do próprio produto que vendia. Todavia era Leonora digna de afeição, quando mais não fosse, pelas esplêndidas e divertidas festas que realizava em sua villa, no topo da colina sobranceira à cidade, num anexo de madeira de sequóia iluminado a vela, cujas paredes de eriçavam com torcidos chifres de mamíferos, entre os quais esvoaçavam, pousavam e chalravam vintenas de periquitos, enquanto Leonora, de chapéu de papel na cabeça, prodigamente oferecia sopa de melão, bortsch, goulash, caviar,
panquecas de queijo, pato de Pequim, trufas em vinho-do-porto e outras iguarias exóticas, antes de dar início a jogos desordenados e impossíveis, todos saídos de sua própria cabeça.
Moray raramente dava muita atenção às excitadas divagações de Leonora, e seus pensamentos dispersavam-se enquanto ela ia descrevendo, em francês, a excursão da qual ela e o marido acabavam de regressar. Moray ouviu vagamente que Schutz, que já tarde na vida desenvolvera ambições de jãger, alugara uma reserva de caça, em algum lugar da Hungria, segundo parecia.
Mas à medida que Leonora continuava irreprimivelmente a falar, seu ouvido captou certas frases, e, com uma aguda tensão nervosa, começou ele a prestar atenção ao que ela dizia. Não estava absolutamente falando da Hungria, mas descrevendo um trecho do interior da Escócia, em termos que repentinamente lhe soaram familiares. Impossível; devia estar equivocado. Entretanto, à medida que ela prosseguia, cresceu nele tal suspeita. Ela agora falava da estrada, monte acima, a partir do estuário, da vista sobre o pântano que se descortinava do píncaro, do rio precipitando-se dentre os altos muros do caldeirão de pedra em direção ao lago, e da montanha que tudo dominava. Súbito, Moray sentiu que tremia, o coração se lhe apertou, pôs-se a bater rapidamente. Deus, nunca pudera imaginar que tudo aquilo retornasse, e de que maneira inesperada! Ela citara o nome da montanha, e do rio, e do lago; por último citou o nome do alagadiço que o marido arrendara, e essas palavras completamente imprevistas vibraram-lhe em todo corpo um doloroso golpe de dor e apreensão.
Eis que alguém perguntava a Leonora:
- Mas como se vai a esse lugar perdido?
- Viajamos por uma estrada de ferro fantástica... de bitola estreita, três trens por dia... até uma adorável estaçãozinha de nome tão bonito... chama-se...
Moray não aguentaria ouvir aquele nome, no entanto ouviu-o, e ele lhe trouxe de volta, embora não articulado, o nome mais inevitável entre todos quantos conhecia. Voltou-se murmurando uma desculpa e se afastou, apenas para descobrir Stench, todo ancho a seu lado.
- Já vai indo, velhinho? Cansado de suportar as feiticeiras?
De qualquer modo, Moray conseguiu afastá-lo. No saguão, uma lufada de ar frio reanimou-o, pondo alguma ordem em sua mente confusa. Não devia sair precipitado assim, deixando Madame Von Altishofer regressar sozinha. Precisava de esperar, descobrir um lugar
com menos gente - acolá, atrás daquela coluna, perto da porta; - esperava que ela não se demorasse muito. com efeito, enquanto caminhava para a nova posição, já ela estava junto dele.
- Querido amigo, está doente? - falou ela, cheia de preocupação. - Vi que empalidecia.
- Sinto-me um tanto esquisito. - E fez um esforço para sorrir. - Faz um calor horrível aqui dentro.
- Então vamo-nos embora já, já - disse ela, decidida.
Ele fez menção de protestar; em seguida aquiesceu. Lá fora, Arturo conversava com um grupo de motoristas. Partiram. Ela quis levá-lo diretamente para sua villa; entretanto, menos por urbanidade do que por uma desesperada necessidade de estar só, ele insistiu em deixá-la no Seeburg.
- Entre para tomar um drinque - sugeriu ela, quando chegaram. - Um drinque de verdade. - E quando ele recusou, dizendo que devia descansar, ela acrescentou, solícita: - Cuide-se, meu amigo. Se permitir,
telefono-lhe amanhã.
Chegando à villa, ficou uma hora deitado, .tentando raciocinar. Não devia consentir que uma palavra ao acaso, que uma simples coincidência, viesse a arruinar a serenidade com que ele tão penosamente reconstruíra sua vida. Todavia não se tratava de uma palavra dita ao acaso, mas de uma palavra que, havia muitos anos, o assombrava e atormentava nas mais fundas regiões da memória. Devia combatê-la, tornar a arremessá-la para as trevas do subconsciente. Não podia entretanto fazê-lo; como selar a mente contra as bofetadas das ideias? Ao jantar, apenas fingiu comer; sua depressão enchia a casa, afetando até mesmo os criados, que viam nessa inesperada disposição de ânimo qualquer coisa que lhes dizia respeito.
Depois da refeição, dirigiu-se para a sala de visitas, ficou junto à janela que abria para o terraço. Viu que a tempestade ameaçava um daqueles espetáculos repentinos e deslumbrantes, à vista dos quais, gritando a Arturo que pusesse na vitrola um disco de Berlioz, ficava a ver e a ouvir, na mais pura exultação. Agora, todavia, olhava taciturno a grande massa de sombrias nuvens que se foram imperceptivelmente juntando e já deslizavam acima do Reisberg. Havia no ar um silêncio mortal, um silêncio abafado, e uma luz sobrenatural, de um ocre ameaçador. Então Fez-se ouvir um suspiro débil, como que na distância. As folhas tremeram, e um arrepio perpassou na superfície do lago. Lentamente, o céu ficou de um plúmbeo cinza impenetrável e escondeu a montanha, e de repente, uma forquilha azul lançou-se do invisível, seguida por uma primeira
detonação estrondejante. Depois soprou o vento-veloz, cauterizante, - um vento circular que cortava como pontas de azorrague. Sob o flagelo, as árvores curvavam-se rojando o chão num estremecimento, espalhando folhas como palha. Na extremidade do jardim, os altos choupos gémeos açoitavam o chão. O lago, batido até espumar, estorcia-se insano, as ondas fustigavam o pequeno dique, a bandeira amarela do perigo foi içada. O raio caía sem cessar, o trovão ribombava e tornava a ribombar entre os píncaros ocultos. Depois a chuva - enormes gotas esparsas - não a chuva acaríciante, mas a chuva precursora e pressaga daquela que afinal caiu da altura em lisos lençóis de água sibilante, enchente caída do céu - um eventual dilúvio.
Ele voltou-se abruptamente da janela e subiu para seu quarto, mais agitado do que nunca. Apanhou no armário de remédios do banheiro o vidro de fenobarbitona. Pensou que nunca mais precisaria disso. Engoliu quatro tablettes, sabendo, mesmo assim, que não ia adormecer. Depois de se despir atirou-se no leito e cerrou os olhos. A chuva lá fora açoitava o terraço, as ondas rebentavam na praia, mas era o nome dela que continuava soando implacavelmente em seus ouvidos... Mary... Mary Douglas... Mary... Douglas... empurrando-o para o passado, para Craigdoran e os dias de sua juventude.
SEGUNDA PARTE
CAPÍTULO UM
SE a velha motocicleta de seu colega Bryce não se tivesse quebrado, eles nunca se teriam conhecido. Mas, como se assim fosse destinado na poeirenta tarde daquele sábado de abril, ao regressar de um giro nos Montes Doran, a correia da máquina quase aposentada se partiu e um fragmento solto lhe golpeou violentamente o joelho direito. Ele freou, desceu da motocicleta com alguma dificuldade e examinou o estrago feito no seu joelho, aliás, uma contusão menor do que receara. Depois olhou em torno. Nenhuma esperança de assistência nos montes em redor, despovoados e cobertos de mato, nem tampouco na torrente impetuosa do rio Doran, ou na vasta extensão de terra alagadiça sobre a qual se estendia aquela estrada solitária, ou nos trilhos ferroviários, de bitola estreita. Até mesmo a estaçãozinha, conhecida como Parada Craigdoran, que ele acabava de passar, parecia-lhe deserta.
- Que azar! - exclamou ele.
A situação não podia ser mais crítica. Ardfillan, a cidade mais próxima, devia ficar a uma distância aproximada de sete milhas. Teria de experimentar a Parada Craigdoran.
Voltando-se, saiu mancando na direção da solitária plataforma, onde fixou a bicicleta em seus suportes. A estaçãozinha era guarnecida por uma cercadura de pedras caiadas, sua orgulhosa tabuleta Portal para a Escócia Ocidental esgalhada em madressilvas, uma cerca de espinheiro chovendo flôrezinhas sobre os trilhos; ele porém não tinha vontade alguma de admirar a paisagem. Não se via vivalma, a sala de espera estava trancada, a bilheteria como que fechada por toda a eternidade. Estava quase desistindo, quando, na janela ornamental de vidro esmerilhado, onde se lia Restaurante, captou sinais de vida. No peitoril interno, um gato lavava a cara satisfeito. Ele empurrou a porta e esta se abriu: ele entrou.
Ao contrário do costumeiro restaurante de estação, este era imprevistamente ordenado e bem disposto. Quatro mesas redondas, de tampa de mármore, ocupavam o assoalho de tábuas, bem esfregado; viam-se nas paredes algumas vistas coloridas das Terras Altas, e, nos
fundos, um balcão envernizado, de mogno, atrás do qual pendia um espelho oval, com o anúncio da farinha Brown e Pilson, feita em casa. Na frente do espelho estava uma mulher com as costas voltadas para ele, surpreendida no gesto de pôr o chapéu. Mutuamente paralisados, imóveis como figuras de cera, ambos se olhavam através do espelho.
- Quando sai o trem seguinte para Winton? - perguntou ele, rompendo o silêncio e dirigindo-se ao reflexo dela, num tom que não escondia o aborrecimento que o roía.
- O último trem já saiu. Não há outro, a não ser o cargueiro de domingo. - Nisto voltou-se e encarou-o, acrescentando brandamente: - Amanhã, às duas da tarde.
- E onde está o carregador?
- Oh, Dougal já faz uma boa meia hora que está em casa. Não o encontrou na estrada?
- Não... não encontrei... - E de repente sentindo uma fraqueza idiota, inclinou-se de lado para buscar apoio a uma mesa, e com o movimento expôs à vista sua perna machucada.
- Machucou-se - exclamou ela, adiantando-se, solícita. - Vamos...
sente-se; deixe ver.
- Não é nada - disse ele um tanto aturdido, procurando sentar-se. - É uma laceração superficial da região poplítica. A motocicleta...
- Acho mesmo que ouvi uma queda. E o corte é feio. Por que não falou logo?
Precipitou-se em busca de água quente, e, ajoelhando-se, banhou e limpou a ferida, depois enfaixou-a destramente, com tiras rasgadas de um guardanapo.
- Pronto! - A uma observação elogiosa, levantou-se. - Se eu tivesse agulha e linha, podia costurar a perna de sua calça. Não importa: você a terá concertada quando chegarmos em casa. Resta agora você beber uma boa xícara de chá.
- Não... absolutamente... - protestou ele. - Já a incomodei bastante ... Você fez mais do que o suficiente...
Ela porém já mexia nas torneiras de metal sobre o balcão. Era indubitável que ele sofrera um abalo, e o chá forte e quente o animaria. Observando-o com uma curiosidade interessada, a moça sentou-se. O gato pulou imediatamente para o seu regaço e começou a ronronar. Ela alisou-lhe suavemente o pêlo.
- Negrinho e eu ficamos. Há pouca gente em Craigdoran nesta época do ano.
- E nas outras? - disse ele com um meio sorriso.
- Não há nenhum - corrigiu-o com ar sério. - Quando a pesca e a caça estão no auge, temos uma porção de étimos fregueses. É por isso que meu pai continua com este restaurante. A padaria fica em Ardfillan. Se quiser, terá condução para lá. Ele vem sempre me buscar no fim da semana. - Fez uma pausa pensativa. - Mas há a motocicleta. Ficou muito avariada?
- Não muito. Mas terei de deixá-la aqui. Se pudesse remetê-la no trem de Winton, seria uma grande ajuda. Como vê, não é minha. Pertence a um colega que ficou no hospital.
- Não vejo por que Dougal não possa colocá-la no vagão do guarda-trem. Será a primeira coisa a lhe pedir na segunda-feira. Se o seu colega ficou no hospital, não poderá mesmo usá-la por algum tempo.
Divertido com o equívoco da moça, ele explicou:
- Bryce não está doente. Está no último ano de Medicina, como eu.
- Então é isso? - e riu-se sem rebuços. - Se eu soubesse, não teria me apressado tanto em tratar do seu ferimento.
Tinha o riso contagioso, natural, uma verdadeira delícia. Irradiava um calor em torno, devido não apenas à sua cor - tinha cabelos
castanho-avermelhados de áureos lampejos, e doces olhos pardos, escuros como turfa, engastados numa pele fresca, ligeiramente sardenta, - mas a qualquer coisa de simpático e rendido em sua natureza. Era talvez quatro anos mais moça do que ele, não teria mais de dezenove anos, e ainda que não fosse alta, sua figurinha robusta era garbosa e bem proporcionada. Trazia uma saia de lã xadrez com cinto de couro, jaqueta de tricô feita em casa, sapatos castanhos já gastos, e um chapeuzinho cor de cinza, com uma pena de maçarico na aba.
Uma súbita consciência de bondade da moça invadiu Moray - emoção rara para ele. Sim, ela fora decente - a palavra era essa, terrivelmente decente para com ele. E, esquecendo o importuno desconforto de seu joelho e da calamidade ainda maior do estrago que sofrera seu único terno, Moray sorriu-lhe, desta vez à sua moda: com um sorriso franco e sedutor, sorriso que com frequência lhe foi útil em épocas de transtornos e dificuldades. Embora tivesse "boa cara", traços regulares e pele fresca, e lindos cabelos castanho claros, naturalmente ondulados, ele não era especialmente bonito no sentido corrente do termo: a parte inferior do rosto carecia de força. Mas o sorriso redimia-lhe todos os defeitos, iluminava-o, convidava à camaradagem, abria-se em promessas, exprimia interesse, compreensão, preocupação e o que mais queria, e, acima de tudo, irradiava sinceridade.
- Suponho que você compreende - exclamou ele - como lhe sou grato por tanta bondade. E porque, praticamente, salvou-me a vida, posso esperar que nos tornemos amigos? Meu nome é Moray. David Moray.
- E o meu é Mary Douglas.
Um toque de rubor subiu-lhe às faces; não que lhe desagradasse a franqueza da apresentação; e ela apertou firmemente a mão que ele lhe estendia.
- E agora - disse vivamente - se quiser puxar a motocicleta até aqui, vou apanhar Negrinho e fechar a porta. Papai não tarda em chegar.
com efeito, mal haviam saído para a estrada, um pónei e certa espécie de veículo apontaram no topo da colina. O pai de Mary, a quem Moray foi apresentado junto com o relato completo do revés, era um homenzinho insignificante, de pálido rosto animado, mãos e unhas permanentemente impressas de farinha, e os maus dentes da sua profissão. Um topete de cabelo sobre a testa e pequeninos olhos muito brilhantes davam-lhe um singular aspecto de pássaro.
Depois de fazer o pónei dar a volta com hábeis estalidos de língua e examinar Moray com astutos olhares esguelhados, assim resumiu o relato de Mary:
- Como vê, não preciso de uma máquina dessas. Tenho Sammy, o pónei, para tarefas incidentais, e um bom e forte Clydesdale para puxar a carroça de pão. Quanto a você, podia ter sido pior. Vamos pô-lo a salvo no trem das oito, proveniente de Ardfillan. Nesse intervalo, venha comer alguma coisa conosco.
- Não é possível; não quero continuar a incomodá-los...
- Não seja ridículo - disse Mary. - Precisa conhecer o resto dos Douglas e Walter, meu noivo. Ele vai ficar encantado em conhecê-lo. Isto é - rematou ela, ao ocorrer-lhe uma nova ideia - se o seu pessoal não se afligir com a sua ausência...
Moray sorriu e balançou a cabeça.
- Não se preocupe. Sou sozinho.
- Sozinho? - inquiriu Douglas.
- Perdi meus pais quando era muito novo.
- Mas deve ter parentes, naturalmente...
- Nenhum de quem preciso... ou que algum dia me quisesse.
O olhar de pura incredulidade do padeiro fez acentuar-se o sorriso de Moray, levando-o a se explicar com toda a sinceridade.
- Estou sozinho desde os dezesseis anos. Mas, de um modo ou de outro, me arranjei para acabar o curso no colégio... e para ter a sorte de ganhar uma bolsa de estudo.
- Nossa! - refletiu o padeiro tranquilamente, mas com verdadeira admiração. - Ação muito recomendável!
Parecia meditar no assunto enquanto iam os três sacolejando estrada fora; mas em dado momento, endireitando-se, começou, com uma cordialidade crescente, a apontar e descrever os acidentes da região rural, muitos dos quais estavam associados aos acontecimentos de 1314, anteriores à batalha de Bannockburn.
- Papai é um grande leitor da história da Escócia - confiou Mary a Moray, à guisa de desculpa. - Há pouca coisa escondida que ele não lhe possa dizer sobre Bruce, ou Wallace, eu quem mais houver.
Aproximavam-se de Ardfillan, e Douglas apertou o breque de pedal para facilitar ao pónei descer o outeiro em direção da velha cidade que se estendia na praia do Estuário, cintilando à luz do ocaso. Desviando-se da Esplanada, penetraram numa teia de tranquilas ruas travessas e fizeram alto diante de um armazém em cuja fachada estava inscrito James Douglas, Padeiro e Doceiro, e, mais abaixo, em letras menores, Agenciam-se Casamentos, e em letras ainda menores, Estabelecido em 1880. Em verdade, o lugar apresentava um aspecto antiquado e pouco próspero, pois a vitrina exibia um único bolo de bodas de várias camadas, flanqueado por dois boiões de vidro, repletos de bolachas.
Nesse ínterim, o padeiro pôs o chicote na bainha. Depois gritou:
- Willie!
Um rapazinho esperto, vestido num avental que lhe ia desde os pés até ao queixo, saiu correndo para fora do armazém.
- Diga à sua tia que estamos de volta, filho. Depois apresse-se; venha me ajudar com Sammy.
com grande destreza, Douglas fez o pónei recuar por um estreito corredor até ao pátio empedrado da cocheira.
- Aqui estamos - disse alegremente. - Leve o seu doente para cima, Mary. Logo irei para lá.
Subiram os degraus rasos de uma escada de pedra externa e em curva, até atingirem a casa em cima do armazém, onde um estreito saguão abria para a sala da frente, mobiliada com cadeiras estofadas de pelúcia vermelha já puída, e cortinas de borla do mesmo material. No centro da sala já estava posta uma pesada mesa de mogno para um chá de qualidade, e um fogo de carvão brilhava confortavelmente na lareira, diante da qual um tapete de negra
pele de carneiro desenrolava a sua lã emaranhada e aconchegante. Soltando-se dos braços de Mary, Negrinho logo se apossou do tapete. A moça despira a jaqueta e agora parecia mais à vontade em sua imaculada blusa branca.
- Sente-se e descanse a perna. vou correndo lá embaixo ver como andam as coisas. Fechamos às seis. - E acrescentou com uma pontinha de orgulho: - Papai não trabalha aos sábados de noite.
Depois que ela saiu, Moray acomodou-se numa cadeira, sentindo, de modo pungente, a estranheza daquela sala escura, quente e alheia. Uma brasa caiu sem rumor na lareira. De um recanto obscuro vinha o tique-taque compassado de um relógio-armário, só visível mercê da luz do fogo que batia no seu velho mostrador de latão. A mesma luz era captada pelas xícaras azuis, do padrão denominado "de pombinha". Por que, Deus, estava ele ali, e não debruçado sobre Osler e Cunningham na atravancada mansarda onde morava? Fora apenas dar um giro para clarear as ideias - sua única concessão ao ócio - antes de entregar-se a todo um longo fim-de-semana de estudos afincados. Mas a cinco semanas dos exames finais, era uma loucura desperdiçar o tempo ali, e de que maneira mais inútil! Todavia, aquela gente era tão hospitaleira, e a comida sobre a mesa tinha um aspecto tão convidativo... e ele, tão escasso de dinheiro andava, que fazia já semanas desde que tomara uma refeição razoavelmente completa...
A porta abriu-se de repente e Mary entrou com a bandeja de chá. Acompanhavam-na uma mulher gorducha, de aspecto hidrópico, e um rapaz alto e magro, de cerca de vinte e sete ou vinte e oito anos, muito correto no seu terno azul-escuro e alto colarinho engomado.
- Mais alguns dos nossos - disse ela sorrindo. - Tia Minnie - e (aqui corou ligeiramente) - meu pretendente, Sr. Walter Stoddart.
Enquanto ela falava, o pai apareceu com o rapazola Willie, e, depois de dar graças, todos se sentaram.
- Induziram-me a crer - disse Stoddart dirigindo-se a Moray com um sorriso amável, não sem primeiro se deixar servir com grande deferência por tia Minnie, enquanto Mary servia o chá, com fatias de presunto frio - que o senhor passou por uma experiência bastante penosa. Eu também já passei por uma experiência um tanto parecida na estrada de Luss, em meu tempo de menino. Quando foi mesmo? Deixem-me ver. Ah, sim, foi em mil novecentos e nove, num verão quentíssimo que tivemos. Tinha então treze anos e crescia depressa. Naquele tempo, tratava-se de uma bicicleta, naturalmente,
e de um pneumático furado. Felizmente, não sofri nada mais sério do que uma esfoladura no cotovelo esquerdo, mas podia ter sido uma tragédia. Desculpe o incómodo, Mary: posso pedir-lhe mais uma tablette de açúcar? Creio que você já sabe que sempre prefiro três...
- Oh, desculpe-me, querido!
Evidentemente, Stoddart era ali considerado, não apenas por ele próprio, mas por toda a família, como uma pessoa de importância indiscutível. E agora tia Minnie, que se diria admirá-lo mais do que os outros, transmitiu a Moray, num aparte cochichado e ofegante, que Walter era filho do escrivão da cidade e ocupava uma esplêndida posição na contadoria do Departamento de Gás - um verdadeiro achado para Mary, acrescentou ela com uma eloquente e satisfeita sacudidela de cabeça.
A situação intrigou Moray, provocando o seu senso de humor. Os fastidiosos maneirismos de Stoddart, sua condescendência para com os Douglas, exercida com todo o rígido dogmatismo do burocrata provinciano, até mesmo as convulsões de seu pescoço de avestruz, quando engolia o chá - tudo era promessa de entretenimento para Moray. Ao mesmo tempo que fazia jus às boas coisas da mesa, divertia-se cultivando Stoddart, brincando com a sua vaidade e, para alçá-lo à posição de colega, relatando-lhe, num estilo muito picante, alguns dos aspectos mais interessantes de seu trabalho no departamento dos externos da Enfermaria. Não tardou muito, foi recompensado com indícios de uma crescente estima por parte de Walter. com efeito, enquanto a refeição chegava ao fim, Stoddart sacou do bolso seu relógio de ouro e abriu-o com um estalido - este era outro de seus frequentes maneirismos - enquanto prodigalizava a Moray um sorriso de dentes à mostra.
- Grande pena ter de deixá-los tão cedo. vou acompanhar Mary à festa da Banda da Esperança. Não fosse isso, teria imenso prazer em continuar gozando da sua companhia. Tenho entretanto uma sugestão a fazer. Minha opinião é de que seria extremamente irregular o senhor conduzir sua motocicleta a Winton sem bilhete, sub rosa, como se diz, e da maneira que Mary me indicou. Isso poderia expô-lo a toda a espécie de incómodos e penalidades. No fim de contas, não é por troça que a Estrada de Ferro Norte-Britânica inventou regulamentos! O que proponho - e sorriu amavelmente a todos em redor da mesa - é que o nosso amigo Moray vá a Winton buscar a peça que lhe falta; que, no fim da semana, vá ajustar a
peça na motocicleta e venha de volta montado nela. Isto, naturalmente, nos dará a oportunidade de tornar a vê-lo.
- Que boa ideia - disse Mary radiante. - Por que não nos ocorreu antes?
- Nos ocorreu, Mary? - repetiu Walter, solenemente enfiando o relógio no bolso. - Pensei que eu...
- Obal Você é um tipo sabido, Walter. Não sei o que faríamos sem você - atalhou o bom padeiro olhando para Moray com um irónico piscar de olhos, o que serviu para mostrar que ele não endossava absolutamente a opinião prevalecente no que dizia respeito às qualidades de Stoddart. - Volte mesmo, rapaz. Será muito benvindo.
Ficou combinado; e quando se levantou para pôr o chapéu e o manto, e, aceitando o braço de Walter, ser por ele conduzida à reunião da igreja, Mary sorriu para Moray por sobre o ombro.
- Vê-lo-emos no próximo sábado... por isso não lhe digo adeus.
- Eu também não direi - disse Walter com uma mesura. - Espero ter o prazer de conhecê-lo melhor.
Meia hora depois Moray saiu. Willie, que atentara de olhos brilhantes para as suas histórias de hospital, fez questão de acompanhá-lo até à estação.
CAPÍTULO DOIS
O alojamento de Moray era um pequeno quarto no alto de uma casa de cómodos, paredes-meias com uma outra, nas proximidades das 'docas de Blairlaw. O bairro, interceptado por um depósito de lixo abandonado, era indubitavelmente um dos mais pobres de Winton. Crianças raquíticas e maltrapilhas brincavam nas calçadas marcadas a giz, enquanto mulheres tagarelavam, de xale e touca, junto às bocas de esgoto interditadas. Havia em cada rua um botequim e uma casa de peixe frito, enquanto, através do nevoeiro de Clydenside, as três bolas de latão das casas de penhor acenavam a todos irresistivelmente. Rebocadores apitavam no rio e um incessante martelar se elevava dos estaleiros de conserto. O bairro não era certamente uma estância de prazer; mas, cortando por Blairhill na direção de Eldongrove, ficava a uma razoável distância a pé da Universidade e da Enfermaria Ocidental. Acima de tudo, a vida ali era barata.
O resumido porém impressionante relato, que Moray fizera de si próprio ao padeiro Douglas, era verdadeiro a alguns respeitos, embora não o fosse em sua totalidade... Os primeiros doze anos de sua vida, filho único que era de pais indulgentes, da classe média, foram normais, nunca opulentos, mas fáceis e confortáveis. Certa vez seu pai, agente local da Companhia de Seguros Calcedônia, caiu de cama com influenza contraída, dizia-se, em suas cobranças de porta em porta. A mulher cuidara-o durante uma semana, mas ele piorou. Foi chamado um especialista, e, abruptamente, o diagnóstico mudou para febre tifóide, mas não antes que também ela contraísse a moléstia. Dentro de um mês David viu-se atirado em casa de uma parenta longe, viúva, meia-irmã de sua mãe - tal um fardo aceito de má vontade, pobre criança que ninguém queria. Por quatro anos o jovem Moray sofreu duramente de abandono, e comeu o amargo pão da dependência; mas ao completar dezesseis anos, uma apólice de educação, prudentemente adquirida por seu pai, entrou em vigor. Não era grande coisa, apenas o suficiente para as mensalidades e uma magra subsistência. Mas valeu: ajudado por um mestre compassivo que reconheceu em seu aluno possibilidades fora do comum, ele ingressara no curso médico da Universidade de Winton.
Mas essa apólice providencial era qualquer coisa que Moray, por motivos de expediência, ou por uma natural inclinação para dramatizar sua própria luta, achava às vezes conveniente esquecer. com a sua sedutora timidez, que conquistava à primeira vista a maioria das pessoas, era agradável, não raro útil, aludir aos apertes por que passara, às mudanças e evasões a que fora forçado, às indignidades que tivera de suportar - por exemplo, ter de sacudir as pulgas da barra das calças, utilizar-se da retreta pública sob o patamar da escada, lavar sua própria camisa, comer fritas num jornal manchado de gordura - tudo isso apenas sustentado por uma heróica determinação de arrancar-se do sulco e atingir as alturas.
Confessava, entretanto, ter tido bons momentos: refeições ocasionais em casa de seu amigo Bryce, ou, graças à bondade do pessoal da Enfermaria, um teatro grátis ou uma entrada de concerto; certa vez, nas férias de verão, passara uma semana excepcional na casa praiana de seu professor de Biologia. Decerto que aproveitava ao máximo tais oportunidades, não apenas sendo profusamente grato quando alguém fazia algo por ele, mas por uma particular sofreguidão de maneiras, de todo comovente, que aos outros inspirava confiança e afeição. "Grande bondade a sua em ter-me dado ajuda,
senhor", ou "Você foi extremamente decente, meu velho". Mediante essas expressões modestas e autodepreciativas, e aquele olhar claro e franco, quem podia deixar de gostar dele? Era tão perfeitamente sincero! Em verdade, quando estava de veia, ele próprio acreditava nas mentiras que dizia.
Mas os "bons momentos" nunca foram uma feição muito marcante das universidades escocesas: já havia meses que escasseavam. Só por essa razão, o seu encontro com a família Douglas tinha a sedução do inesperado. Durante a semana, ao atender a Enfermaria diurna, e, depois, nos estudos noturnos afincados, ela permanecia agradavelmente presente no fundo de sua memória. Logo ele descobriu que esperava ansioso pela visita que lhes prometera fazer no sábado seguinte.
A manhã chegou meio anuviada, porém bela. À uma hora, após atender os pacientes externos, tomou o "expresso-operário" da estação de Winton. A passagem desse trem era muito barata, o preço do bilhete - era incrível - custava apenas quatro pence. Seu itinerário percorria o estuário do Clyde, servia os operários dos estaleiros. Moray levava consigo a correia nova, pois Bryce, prevendo dificuldades, realmente comprara uma de sobressalente, e de boa vontade lha entregara à sua moda pachorrenta. Na baldeação de Levenford, mudou para a bitola estreita, e exatamente às duas e meia, com o sol apontando dentre as nuvens, chegou a Craigdoran.
A estaçãozinha branca, com seu espinheiro em flor e seu enredamento de madressilvas, apresentava agora um aspecto familiar. O perfume da madressilva enchia a atmosfera e uma abelha zumbia, madrugadora. Dois jovens, vestidos de alpinistas, mochila às costas, precederam-no na saída do trem. Entraram no restaurante, onde ele percebeu, através do vidro fosco da janela, Mary embrulhando em papel impermeável os sanduíches que os dois tinham comprado. Depois os rapazes saíram, e Mary,
acompanhando-os até à porta, esquadrinhou a plataforma com o olhar.
- É você - e ela sorriu. - Começava a recear que não viesse. O joelho melhorou? - E acenando-lhe, fê-lo entrar e sentar-se. O gato se lhe aproximou e esfregou-se em suas pernas.
- Garanto que não almoçou. vou arranjar-lhe uns sanduíches e um copo de leite.
- Não faça isso, por favor - disse ele. - Comi alguma coisa no bar da estação de Levenford...
- Ora, ora! - disse ela jocosamente, quase como o pai, e levantando as sobrancelhas. - É extraordinário! Levenford nunca teve
bar! - Da campânula de vidro em cima do balcão, tirou um prato de sanduíches, em seguida encheu um copo de leite espumejante. - Neste
fim-de-semana é difícil aparecer mais alguém por aqui e eu não posso ver comida boa atirada no lixo. Desta vez terá de concordar comigo.
Um instante depois sentava-se em frente dele, e dir-se-ia que lutava contra uma efervescência interior que de súbito aumentou, sem possibilidade de controle.
- Tenho uma notícia para dar-lhe. Você fez um tremendo sucesso...
- O quê? - disse ele recuando, compreendendo-a mal.
- Walter... - e seus lábios tremiam - faz uma grande ideia de você. Desde que você partiu, não faz outra coisa senão entoar seus louvores. Você é tão simpático! - E procurando conter uma risada: - Está sentido por não poder vê-lo hoje de noite. Foi a uma assembleia da Guilda de Funcionários Municipais, em Winton. . . e me encarregou de apresentar-lhe desculpas. - E prosseguiu, antes que ele pudesse abrir a boca: - Mas, para amanhã, arranjou para nós uma ótima excursão. Vamos sair de barco e rodear as ilhas de Bute; parada para o almoço em Gairsay e regresso a casa.
Ele olhava-a interdito, franzindo a testa:
- Mas amanhã não poderei voltar outra vez...
- Nem é preciso - disse ela calmamente. - Papai diz que pode ficar conosco. Dormirá com meu irmão Willie.
Ele continuava de cenho franzido; depois, gradualmente, o rosto se lhe desanuviou. Nunca antes conhecera gente tão simples, de coração tão aberto. No dia seguinte não haveria doentes externos na Enfermaria e decerto não perderia muito se faltasse um dia ao trabalho. Além disso, o domingo em Winton era um dia incrível, que sempre detestara.
- Irá conosco?
- com muito prazer. E agora vou consertar a motocicleta.
Trabalhou durante toda a meia hora seguinte, ajustando a correia nova, que precisou de ser cortada e rebitada. Mary ia de vez em quando
observá-lo, mas não dizia nada, apenas olhava-o com simpatia. Depois que acabou, ele empurrou a máquina para fora e deu a partida.
- Que tal uma voltinha?
Ela olhou-o indecisa, tapando o ouvido com a mão para não ouvir o frenético estouro do escapamento.
- Não tem perigo - assegurou ele. - É só sentar-se e segurar firme.
- Não posso sair antes da chegada do trem das quatro e meia. Mas depois, quem sabe você poderá levar-me para casa? Posso falar com papai pelo telefone da bilheteria e poupar-lhe a viagem.
- Então está combinado - disse ele alegremente.
Invadia-o uma inusitada euforia. Ou fosse pela escapada ao trabalho, ou pela verde frescura campestre, sentia-se mais leve, como se respirasse uma atmosfera mais leve e luminosa. Até que ela ficasse livre, e para experimentar a motocicleta, subiu em disparada a colina de Tulliehewan. Quando voltou, Mary estava pronta para sair. Como Negrinho ficava, arranjara para ele um pires de leite.
- Então, é aqui que me sento - disse ela, empoleirando-se no assento de trás.
- Assim, não. Você poderá cair. Tem de sentar-se escarranchada.
Ela hesitou; depois lançou uma perna para o outro lado - modestamente, porém de modo tão canhestro que antes que ele desviasse o olhar umas lindas formas lhe foram momentaneamente reveladas. Ela disse, corando:
- Ainda não estou habituada...
- Mas fê-lo como se estivesse - de maneira estupenda!
Ele acomodou-se rapidamente no assento e partiu. Primeiro rodou devagar, evitando os solavancos; depois, vendo a confiança dela, abriu o escapamento. Entraram em disparada na estrada entre os alagadiços, com o vento sibilando nos ouvidos. Os braços dela abraçavam-lhe a cintura, e sua cabeça, voltada para o lado, encostava-se-lhe no ombro.
- Sente-se bem? - ele gritou.
- Ótima! - gritou ela de volta.
- Está gostando?
- É... é formidável. Nunca andei tão depressa em toda a minha vida!
Faziam pelo menos trinta milhas por hora.
Quando ele parou em frente do armazém de Ardfillan, as faces dela estavam radiantes, os cabelos desgrenhados, polidos pelo vento.
- Que gostosura! - E ela riu-se nos olhos dele, cambaleando um pouquinho por falta de firmeza, ainda embriagada de velocidade. - Venha. Tenho de apressar-me e me arrumar. Estou um espetáculo!
O padeiro acolheu Moray com cordialidade, e Willie parecia ainda mais entusiasmado do que antes. Mas a tia pareceu recebê-lo com novas reservas e olhar perscrutador, às vezes claramente propenso à suspeita - embora mais tarde ele a amaciasse dando atenção ao
relato de sua doença e recomendando-lhe um cordial para curar fôlego curto. A refeição que ela lhes serviu foi macarrão com queijo, sem dúvida saudável, embora inequivocamente carecesse daqueles requintes destinados a Walter. A noite decorreu tranquilamente. Moray jogou damas com o padeiro, e perdeu com elegância três vezes seguidas, enquanto Mary, num tamborete baixo junto ao fogo, fazia um bico de croché, com certeza destinado ao enxoval. Vendo a renda crescer, não pôde Moray deixar de pensar que a mesma se destinava à barra de uma camisola - ideia indulgente e afetuosa, não lasciva. De vez em quando ela olhava o relógio e observava com um sereno interesse, muito diferente do interesse da garota cheia de vida e de alegria que, fazia apenas uma hora, rodara alegremente com ele através dos campos:
- Walter deve estar na reunião.. .- E continuando: - Decerto lhe vão dar uma oportunidade de falar... Escreveu o discurso com tanto cuidado... e estava tão resolvido a pronunciá-lo. - E rematando: - A estas horas deve estar a caminho da estação. Tomara que não tivesse esquecido as galochas... sofre o martírio dos pés frios...
Recolheram-se cedo. No quarto de Willie, que ficava nos fundos e abria para o pátio, Moray teve sua primeira conversa verdadeira com o rapaz, cuja timidez o mantivera calado até ali. Havia pouco recebera, como prémio escolar, um livro fascinante sobre a vida de David Livingstone, e dentro em pouco ambos mergulhavam nas selvas africanas, descobriam o lago Niassa e deploravam os estragos do beribéri e da mosca tsé-tsé... Moray viu-se obrigado a responder a uma porção de perguntas ansiosas, até que afinal apagaram a luz e adormeceram.
CAPÍTULO TRÊS
NA manhã seguinte, Walter chegou pontualmente às nove e meia e, cumprimentando Moray como a um velho amigo, deu vazão ao seu bom êxito da noite anterior. Embora um bando de indivíduos pretensiosos saísse da sala antes da conclusão de seu discurso, ele falara extremamente bem, durante uns bons três quartos de hora. Tendo ganho com justiça aquele dia de folga, estava disposto a desfrutá-lo ao máximo. Nada lhe dera maior prazer, acrescentou, do que organizar a excursão.
Essa efusão de vaidade intrigou Moray. Haveria em Walter uma pinta de mulher, ou talvez, como homem consistentemente repelido por seus colegas, carecia tanto de uma companhia máscula que se apegava à primeira que se lhe atravessasse no caminho? Talvez que o prestígio de um futuro médico o seduzisse, pois sem sombra de dúvida era um esnobe. Ou talvez que, mercê de sua vaidade, ele estivesse apenas desejoso de demonstrar sua própria importância a uma pessoa novata na cidade. com um encolher de ombros, Moray desistiu de pensar no assunto.
Mary e seu irmão já estavam prontos, e afinal todos saíram, Walter à testa, conduzindo o bando ao longo da Esplanada, obviamente resolvido a fazer as coisas em grande estilo. Na bilheteria do barco, pediu bilhetes de volta de primeira classe, acrescentando casualmente:
- Três passagens e meia... o menino é menor de idade...
O bilheteiro voltou para Willie um olhar experimentado.
- Quatro passagens inteiras - disse.
- Creio que pedi três e meia.
- Quatro - disse o bilheteiro numa voz cansada.
Seguiu-se uma discussão, breve mas feroz de parte de Walter, só terminando quando Willie, interrogado pelo bilheteiro, disse-lhe sinceramente a sua idade, assim se desqualificando para a redução do preço. Ruim começo, pensou Moray, observando ironicamente Walter desembolsar as moedas extras com um ar ofendido.
A pequena barca de chaminé vermelha e roda de paletas chegava batendo o rio e aproximando-se do dique. Era a Lucy Ashton. Walter, mais ou menos recuperado, explicava a Moray que todos os barcos do Norte da
Grã-Bretanha tinham nomes de personagens de Walter Scott, mas parecia desapontado por não ir no Çueen Alexandria, com turbina escocesa de duas chaminés, e cuja ausência se diria um leve arranhão no seu prestígio.
Arriou-se destramente o passadiço, todos entraram a bordo, e, olhando em torno, Walter escolheu lugares na popa. As paletas puseram-se a girar, e lá foram eles através do cintilante estuário, em direção ao braço de mar.
- Delicioso, não acha? - murmurou Walter, acomodando-se. As coisas tinham melhorado bastante.
Mas fazia frio em cima da água, e dentro em pouco ficou claro que os lugares que ele escolhera estavam muito expostos.
- Não acha que venta muito aqui? - arriscou Mary, depois de vários minutos. A cabeça baixada contra o vento, segurava o chapéu com ambas as mãos.
- Absolutamente - respondeu Walter lacónico. - Quero mostrar ao Dr. Moray todos os pontos de interesse. Este lugar nos faculta uma visão ininterrupta.
O panorama - indubitavelmente contínuo - de vez que a maior parte dos passageiros estava a sotavento da cabina - era muito bonito, talvez o mais bonito das Terras Altas Ocidentais. Mas Walter, embora complacentemente confessasse os seus encantos com o senso de propriedade peculiar a um cicerone, parecia mais preocupado com a importância comercial das cidades que franjavam a praia.
- Acolá é Scourie - indicou ele. - Comunidade próspera. Instalaram um gasómetro no ano passado. Vinte mil pés cúbicos de capacidade. Um grande progresso. E o conselho municipal tem pela frente um novo plano de águas e esgotos. Meu pai conhece o alcaide de lá. E do outro lado fica Porto Doran. Vê daí o edifício da câmara, atrás da torre da igreja?
O frio era cada vez maior. Até mesmo Willie ficara arroxeado e se afastara, resmungando que ia olhar as máquinas. Mas Walter continuava inexorável. Que sujeito mais cacete, pensou Moray, as pernas espichadas e as mãos nos bolsos. Agora mal o ouvia; observava Mary que, embora calada, de vez em quando aduzia uma respeitosa palavra de assentimento. Via Moray que toda a natureza da moça se alterava em presença do noivo.
Murchava-lhe o brilho, toda a alegria a abandonava; fazia-se reservada, fechada, conscienciosamente submissa, tal uma boa aluna em presença do mestre. Vai levar uma vida de inferno com esse sujeito, refletiu Moray, distraído: o vento, o monólogo de Walter, davam-lhe sono.
Finalmente, passaram as ilhas Kiles, entraram na baía de Gairsay e manobraram em direção ao dique. Willie, após alguma busca, foi arrancado ao calor da casa das máquinas, e todos desceram à praia.
- Isto é lindo - ofegou Mary, aliviada.
A cidade, que era uma estância popular, tinha um aspecto atraente e próspero: um círculo de boas lojas na frente, hotéis galgando o morro arborizado atrás, o alagadiço e a montanha mais além.
- Agora... o almoço - exclamou Walter, a modo de alguém que tivesse uma surpresa a fazer.
- Oh, sim - disse Mary alegremente. - Vamos ao Lang. Lá está ele .. bem pertinho. - E apontou para um restaurante modesto, mas de aspecto promissor, do outro lado da estrada.
- Querida! Nem sonho levar Dr. Moray para o boteco do Lang! Nem você o faria!
- É para lá que vamos sempre que papai vem junto - observou Willie, com certa teimosia. - Servem tortas quentes de carneiro, únicas no género. E limonada de Comrie...
- Sim, vamos para lá, Walter querido!
Ele a fez calar-se com um aceno da mão levantada e enluvada, e calmamente expôs a pièce de résistance da excursão que organizara.
- Vamos é almoçar no restaurante Grand.
- Oh, não, Walter. Não no Grand. Ê tão... tão esnobe... e tão disp...
Walter lançou a Moray um olhar íntimo e confidencial, como a dizer: "Estas mulheres!»
- Grand é o melhor - murmurou. - Telefonei do escritório de meu pai, pedindo com antecedência que nos reservassem uma mesa.
E começaram a galgar o morro em direção ao Grand, que avultava majestosamente na altura. O atalho era comprido, varava matos atapetados de campainhas-azuis, e era íngreme, em alguns trechos excessivamente. De vez em quando entreviam-se, através do arvoredo, luxuosos carros cintilando na subida da estrada principal. Moray percebeu que a ascensão, que Stoddart liderava a largas passadas de mateiro, fatigava Mary. Para lhe permitir que descansasse, parou para colher um pequeno buque de campainhas-azuis, que amarrou com um fiapo de capim seco e lhe estendeu.
- Exatamente da cor de seu vestido - disse sorrindo.
Afinal chegaram ao topo, e Walter, alagado em suor e ofegando pesadamente, conduziu-os ao amplo terraço do hotel, onde uma porção de hóspedes estava sentada ao sol. O silêncio se fez no mesmo instante em que a turma apareceu, alguns olhares se voltaram para ela, e alguns riram. A entrada principal ficava no lado oposto do hotel, e Walter teve alguma dificuldade em encontrar a porta que abria para o terraço. Finalmente, depois de pervagarem um pouco, todos se encontraram no rico saguão de colunas de mármore, e Stoddart, tendo pedido instruções a uma imponente figura de uniforme coberto de alamares dourados, conduziu-os na direção do restaurante - um salão enorme e assustador, decorado de ouro e brancura, grandes candelabros de cristal e um rico tapete de lã vermelha.
Era cedo demais; soara o meio-dia, e embora os garçons estivessem apostos, aglomerados em torno da escrivaninha do maítre d'hôtel, não havia mais ninguém na sala.
- Pois não, cavalheiro...
O maítre, homem robusto e cara vermelhuça, metido numas calças listadas, de colete branco e casaca, desprendeu-se do grupo e avançou com alguma hesitação.
- Almoço para três, e para mais este menino - disse Stoddart.
- Por aqui, se faz favor.
Sob a pálpebra descida, o olho experimentado do maítre mediu-os num relance; preparava-se para conduzi-los a uma escura alcova dos fundos, quando Walter observou com imponência:
- Quero uma mesa perto da janela. Mandei reservar uma, em nome do escrivão de Ardfillan.
O mordomo hesitou. Fareja uma gorjeta, pensou Moray, cinicamente; mas como se equivocava!
- O senhor disse perto da janela, pois não?
- Sim, naquela mesa ali.
- Sinto muito, cavalheiro. Aquela mesa está especialmente reservada para o Major Lindsay, de Lochshiel, e sua comitiva de jovens gentlemen ingleses.
- Então, a que lhe fica próxima.
- Aquela é de Mr. Menzies, cavalheiro. Residente do hotel. Entretanto... como é raro ele chegar antes de uma e quinze, e nessa altura os senhores terão sem dúvida acabado de almoçar... Se faz questão de a ter...
Sentaram-se à mesa de Mr. Menzies. O cardápio foi apresentado a Walter. Estava escrito em francês anglicizado.
- Potage à la Reine Alexandra - começou ele, e o leu todinho, devagar, dizendo em conclusão: - Nada como a cozinha francesa! De cinco serviços!
Serviu-se-lhes a refeição rapidamente e com uma insolência disfarçada, e eles a comeram, cerimoniosamente solitários. Os pratos eram atrozes; um verdadeiro lanche à le Grand Hotel, mas abaixo do nível usual. Primeiro, veio uma sopa gordurosa e amarelada, que aparentemente se compunha de farinha e água morna; depois, um fragmento de peixe, que decerto viajara de Aberdeen para Gairsay pelo caminho mais comprido de Billinsgate, fato esse apenas em parte disfarçado por uma camada de molho côr-de-rosa e gelatinoso.
- Não é fresco, Mary - cochichou Willie, inclinando-se para a irmã.
- Cale a boca, querido - murmurou ela em luta com os espinhos, sentada muito ereta, os olhos postos no prato. Moray percebia que, sob a calma aparente, ela sofria muito. Quanto a ele, segundo seus próprios termos, nada lhe importava um caracol; mas doía-lhe estranhamente vê-la magoada. Quis lembrar-se de algo leve e engraçado para animá-la, mas não conseguiu. Do outro lado da mesa, Walter abria sulcos no serviço número dois - uma prancha fibrosa de costeleta de carneiro servida com ervilhas enlatadas e batatas que não apenas tinham o gosto mas também a consistência de sabão.
A sobremesa era um manjar-branco que sabia a giz e veio acompanhado de ameixas duras. O pospasto, servido logo em seguida (pois agora era claro que estavam sendo atropelados), tomou a forma de uma sardinha rija e espectral, que emitia uma espécie de luz azulada, e vinha espetada numa tira de torrada seca. Depois, embora ainda não fosse uma hora e não houvesse mais hóspedes no salão, trouxeram a conta.
Se Stoddart a tivesse pago sem protesto, e eles tivessem saído logo após, a coisa não teria ficado tão ridícula. Mas, nessa altura, Walter começou a sentir em seu couro insensível uma sensação de menosprezo, difícil de ser tolerada pelo filho do primeiro escrivão da cidade de Ardfillan. Não apenas isso, mas o rapaz tinha também um tanto a mentalidade de leguleio. Sacou um dos lápis com que o bolso de seu paletó andava sempre armado e começou a conferir a conta. Enquanto o fazia, um homem alto, de aspecto libertino, cabelos grisalhos, pele tisnada e bigodes aparados, vestido num saiote escocês da Guarda Negra, entrou no bar. Vinha acompanhado de três rapazes trajados de grosseira lã mesclada, e que, Moray logo percebeu, haviam ingerido alguns goles a mais. Enquanto se apossavam da mesa contígua, discutiam ruidosamente sobre a pescaria que fizeram num trecho do rio Gair - pelos modos, propriedade do homem de saiote escocês. Um dos três, sujeito espalhafatoso, de cabelos louros e boca derreada, achava-se num estado muito menos do que sóbrio, e, quando se sentou, o seu olhar caiu sobre Mary Douglas. Refestelado no espaldar da cadeira, olhava-a de soslaio enquanto o garçom servia a "entrada"; depois, com um toque de cotovelo e uma piscadela, chamou a atenção dos companheiros.
- Olhe ali, que linda truta escocesa, Lindsay! Melhor do que tudo quanto você pescou hoje.
A risada foi geral, e os outros dois voltaram a cabeça e olharam para Mary.
- Vamos, acabe com essa sopa - disse Lindsay.
- Ora, leve o diacho a sopa! Convidemos a mocinha para vir sentar-se à nossa mesa. Não parece muito contente com o tio escocês. Que acham? Devo bancar o indispensável?
E fitou os outros, esperando confirmação e incentivo.
- Veja lá se se atreve, Harris - disse um de seus amigos, num arreganho de riso.
- Quanto quer apostar? - E o rapaz fez recuar a cadeira e levantou-se.
Walter, perturbado na sua matemática, percebera nervosamente a presença dos rapazes, nem bem estes entraram no salão. Naquele instante, ficou extremamente pálido nas bochechas e desviou o rosto...
- Não dêem confiança... . - murmurou. - Os outros não deixarão que se aproxime.
Mas Harris já avançava e, com uma mesura exagerada, inclinou-se diante de Mary e tomou-lhe a mão.
- com licença, queridinha. Quer dar-nos o prazer de sua companhia?
Moray viu-a encolher-se e recuar. Primeiro corara profundamente; agora, porém, todo o sangue fugira-lhe do rosto. Tinha os lábios pálidos e trémulos. Olhou suplicante para Walter. Willie fitava Stoddart com olhos arregalados e cheios de susto, onde também se lia indignação.
- Cavalheiro - gaguejou Walter, engolindo com dificuldade. - Não sabe que se está dirigindo à minha noiva? Isto é um atrevimento. Sou obrigado a chamar o gerente.
- Calma, tiozinho. Você não interessa. Venha comigo, queridinha. - E quis pô-la de pé. - Vai divertir-se à beça!
- Por favor, vá-se embora - disse Mary em voz baixa e magoada.
Algo impressionou o atrevido, pois se conteve. Hesitante, fez uma careta e largou-lhe a mão.
- Gostos não se discutem... - E, encolhendo os ombros: - bom... como não quer vir, levarei uma lembrança... - E apanhando as flores de Mary, apertou-as afetuosamente de encontro aos lábios e voltou cambaleante para seu lugar.
Fez-se um silêncio cavernoso. Dir-se-ia que todos olhavam para Walter. Especialmente o homem de saiote desbotado, observava-o com um franzir de lábio cruelmente sarcástico. Walter estava deploravelmente nervoso. Esquecendo sua intenção de conferir a
conta, apalpou a carteira, atirou precipitadamente algumas notas na mesa, e levantou-se como uma galinha arrepiada.
- Saiamos, Mary.
Moray levantou-se. Nada havia de heróico em sua natureza, não tinha fortes pendores para a luta moral, mas estava indignado... talvez ainda mais indignado porque desperdiçara o dia. Um súbito impulso nervoso, como que predeterminado, fê-lo avançar até à outra mesa. Baixando o olhar sobre Harris, que parecia não apreciar devidamente aquela aproximação, disse:
- Não lhe disseram que tratasse de tomar a sua sopa? Embora já seja um pouco tarde para isso, permita-me que o ajude.
E, agarrando-o pela nuca, Moray empurrou-o para a frente, e esfregou-lhe a cara uma, duas, três vezes, dentro do prato de sopa. Tratava-se da mesma sopa grossa, o potage à la Reine Alexandra, que, nesse intervalo, se sedimentara, de modo que Harris, quando levantou a cabeça para respirar, vinha pingando uma goma amarelada. Silêncio mortal dos outros, enquanto ele, com um gesto de quem nada, tateava o ar em busca do guardanapo. Moray apanhou o buque de campainhas-azuis, devolveu-o a Mary e ficou um minuto à espera, o coração batendo destabocado... Depois, como não acontecesse mais nada-a não ser quanto ao homem de saiote, que se pusera a rir - Moray acompanhou os outros para fora do salão. Willie aguardava-o, na escada. Apertou-lhe a mão fervorosamente, uma e muitas vezes.
- Muito bem-feito, David. Gosto muito de você.
- Sua interferência não era necessária - disse Walter, quando começaram a descer pela mata. - Estávamos completamente dentro de nossos direitos. Como se as pessoas decentes não pudessem tomar uma refeição em paz... Conheço esse Lindsay... é um lorde lavrador... Em sua propriedade não tem peixe ou pássaro que ele não alugue aos mais baixos peralvilhos de Londres... Mas darei parte às autoridades. Isto não vai ficar assim: é um escândalo público.
E nesse estilo continuou até que chegaram ao dique, ele repisando insistentemente os direitos do indivíduo e a dignidade do homem, e concluindo com uma derradeira explosão vindicativa:
- vou levar tudo isso ao conhecimento de meu pai!
- E que fará ele? - perguntou Willie. - Manda-o calar a boca?
A viagem de volta foi triste e silenciosa. Começara a chuviscar, e eles foram sentar-se no salão. Remoendo as ofensas recebidas, Walter finalmente deixara de monologar, enquanto Mary, que olhava
fixo para a frente, mal dizia uma palavra. Willie levara Moray a ver as máquinas.
Em Ardfillan, Walter, com um ar perdoador, ofereceu o braço a Mary. Caminharam para a padaria, em cujo pátio Moray pôs a motocicleta a funcionar.
- Bem... - e Walter estendeu-lhe a mão com displicência - acho que não voltaremos a ver-nos...
- Volte logo outra vez - atalhou Willie, rapidamente. - Não deixe de voltar.
- Até logo, Mary - disse Moray.
Pela primeira vez, desde a saída do hotel, ela o fitou; ofegava e tinha os olhos húmidos. Permaneceu muda, absolutamente muda. Mas no seu olhar firme pairava algo intenso. Ele reparou que ela já não segurava na mão o pequeno buque de campainhas-azuis: prendera-as na blusa, junto ao coração.
CAPÍTULO QUATRO
NO fim da semana subsequente, Moray foi bafejado pela sorte. Por especial deferência do registrador do protocolo, foi removido do departamento de externos da Enfermaria, e nomeado, por um mês, assistente interno das enfermarias do Professor Drummond, o que naturalmente significava sua mudança do miserável alojamento onde vivia para a residência no próprio hospital até os exames finais. Foi o Professor Drummond que, após ouvir Moray interrogar um paciente, certa vez observara, embora um tanto secamente:
- Você irá longe, rapaz. Tem um jeito especial para lidar com o doente; o melhor que ainda vi num estudante.
Além disso, Drummond era um dos examinadores de Medicina Clínica - fato esse significativo, que não escapou a Moray, e do qual ele pretendia tirar o máximo proveito durante as quatro semanas subsequentes. Estava sempre apostos e era assíduo, achava-se disponível a qualquer momento, era um demónio no trabalho, uma "peça" indefectível na enfermaria. Para um rapaz sempre pronto e sôfrego por trabalhar, um futuro como esse não oferecia dificuldades. Mas, em certo sentido, causava a Moray um indizível aborrecimento: a ausência de saídas com tempo suficiente para fazer a viagem de Ardfillan.
Desde o instante da partida, levada a efeito, após o regresso de Gairsay, forças estranhas vinham operando em sua alma absorta e ambiciosa. O último olhar de Mary, tão intensamente eloquente, golpeara-o como uma seta pontiaguda. Não podia fugir à visão de seu rostinho tenso, nem tampouco - e isto era ainda mais pressago - pretendia fugir. A despeito de todas as precauções, em momentos fragmentários do seu dia, fosse na enfermaria ou na sala de exames, pilhava-se a olhar distraidamente no espaço. Era a ela que via, em toda a sua doçura e simplicidade; e então subjugava-o um desejo de vê-la - o desejo de receber um sorriso dela, de ser reconhecido como seu amigo, pois até ali não se permitira recorrer a uma palavra mais forte ou comprometedora.
Alimentara a esperança de receber notícias dela ou do pai, talvez outro convite que, embora não pudesse aceitar, lhe apresentasse todavia uma oportunidade de tornar a entrar em contacto com a família Douglas. Por que não lhe escreviam? Como todas as atenções tinham partido deles, não queria impor-lhes sua presença sem ter antes a certeza de que seria bem-vindo. Devia certamente fazer algo... algo que aclarasse isso... que aclarasse essa incerteza. Finalmente, dez dias decorridos, e quando atingira um estado de considerável tensão, um cartão-postal, com vista de Ardfillan, foi-lhe entregue no hospital. O recado era breve:
Caro David,
Desejo-lhe saúde. Li mais coisas sobre a África. Por aqui tem havido algumas tropelias. Quando vem visitar nos? Tenho sentido falta de você.
Seu sempre, Willie
No mesmo dia, ao encerrar o plantão noturno, Moray foi à sala anexa e telefonou para Ardfillan. Após alguma demora, ligaram-no para o armazém de Douglas. Pelo fio que zumbia chegou-lhe a voz de tia Minnie.
- Fala David Moray - disse ele. - Recebi um lindo cartão de Willie, e pensei em telefonar para saber como vão passando.
Houve uma ligeira pausa, porém bem acentuada.
- Vamos muito bem, obrigada.
A frialdade do tom sobressaltou-o. Depois de alguma hesitação, prosseguiu:
- Tenho aqui outro encargo que me traz bastante ocupado: do contrário, teria telefonado antes.
Não veio resposta. Ele insistiu:
- Willie está aí? Eu gostaria de agradecer-lhe o cartão.
- Willie está estudando. Acho que não devo interrompê-lo.
- E Mary? - atirou Moray, quase em desespero de causa. - Gostaria de falar um pouco com ela.
- Mary saiu. com o noivo. Ultimamente esteve um pouco adoentada, mas agora já está quase boa. Deverá voltar muito tarde.
Agora foi ele que ficou calado. Depois disse, muito constrangido:
- Bem... Quero que lhe diga que telefonei... e que lhe mando muitas lembranças.
Podia ouvi-la resfolegando no aparelho. As palavras de tia Minnie
saíram-lhe precipitadas, como se ela as achasse difíceis de dizer, e entretanto precisasse botá-las para fora.
- Não posso encarregar-me de transmitir esse recado, e espero que o senhor não o repita. Além disso, Mr. Moray, embora eu não tenha o menor desejo de ofendê-lo, será melhor para todos, inclusive para o senhor mesmo, se, daqui por diante, evitar impor-nos sua presença nesta casa.
O fone do outro lado da linha desceu com um estalido. Moray pendurou lentamente o seu e saiu; piscava os olhos, como se tivesse recebido uma bofetada. No que foi que errara? Teria acaso imposto sua presença à família Douglas? Que fizera para merecer uma repulsa tão inesperada e dolorosa? De volta à sala, reservada ao assistente interno, no fim do corredor, sentou-se à escrivaninha e tentou encontrar uma explicação.
A tia nunca o acolhera favoravelmente, e devido às suas frequentes dores de cabeça, causadas, segundo ele suspeitava, por uma nefrite crónica, tinha génio irascível. Todavia, a causa devia ser mais profunda - sua dedicação a Stoddart, combinada com a súbita aversão que este aparentemente desenvolvera para com ele. Assim raciocinando, embora desanimadamente, não podia entretanto acreditar que Mary partilhasse daquela abrupta rejeição. Levado pelo impulso, apanhou na gaveta uma folha do receituário e escreveu-lhe uma breve carta, perguntando se não haveria uma oportunidade de se encontrarem. Nessa noite, como estivesse no plantão de pronto-socorro, não podia sair do hospital nem por um instante, mas conseguiu que um dos enfermeiros-aspirantes saísse a fim de postá-la.
Nos dias subsequentes, esperou resposta com crescente impaciência e ansiedade. Estava quase desistindo, quando, pelo fim da semana, a mesma chegou.
Caro David,
Quinta-feira, dia 9, irei a Winton com titia fazer umas compras. Se você puder me esperar perto do relógio da estação de Calcedônia, mais ou menos às seis horas, creio poder ir encontrá-lo ali, mas apenas por meia hora, pois devo tomar o trem das seis e meia para voltar. Espero que esteja passando bem e que não trabalhe demais.
Mary
P. S. - Willie espera que você tenha recebido o cartão-postal que lhe mandou.
A carta era fria como um horário de estrada de ferro; entretanto, debaixo da frieza, fluía uma corrente subterrânea que o agitou profundamente. A ausência daquela vivacidade que ela em pessoa demonstrara, que em verdade acentuara tudo quanto ela fizera quando em sua companhia, foi-lhe uma evidência dolorosa. Mas ia vê-la na próxima quinta-feira. Isto, pelo menos, já era uma vantagem.
Quando a quinta-feira chegou, seus planos já estavam preparados : combinara com Kerr, outro assistente interno, para que este fizesse duas horas de plantão, à tardinha. O Professor Drummond nunca chegava antes das oito, e a sorte ajudando, tudo correria bem. A tarde esfriou, e um nevoeiro caiu sobre a cidade, quando, saindo do hospital, ele tomou o bonde amarelo de Eldongrove. Receando chegar tarde, muito antes da hora indicada ele se achava na estação de Calcedônia, debaixo do grande relógio central. A hora era de atropelo, e sob a alta abóbada de vidro, impenetravelmente revestida do pó dos anos, multidões precipitavam-se para os trens locais. O lugar tresandava a vapor, nevoeiro e fumaça sulfúrea, reboava com os apitos estridentes das locomotivas que partiam. Das plataformas subterrâneas do "nível inferior", uma fumaça envenada subia em rolos serpentinos, como se proviesse do próprio inferno.
O relógio bateu seis horas. Depois de esquadrinhar centenas de rostos estranhos, Moray finalmente a viu. O coração batia-lhe ao vê-la aproximar-se carregada de embrulhos, seu aspecto inesperadamente reduzido e desprotegido entre a multidão que arremetia. Vinha vestida num costume castanho-escuro, de jaqueta curta com uma pequena gola de pele, e um chapeuzinho, também castanho.
Coisa alguma lhe assentaria melhor. Nunca a vira vestida com tal aprumo. Estava de uma distinção nunca antes suspeitada, e de repente ele começou a cobiçá-la.
- Mary!
E já a aliviava dos embrulhos, desenrolando os barbantes de seus pequenos dedos enluvados. Ela sorriu-lhe um tanto languidamente, pois parecia fatigada. O nevoeiro fuliginoso manchara-lhe as faces, pondo-lhe uma leve sombra sob os olhos.
- Então, conseguiu escapulir?
- Sim - disse ele, fitando-a. Houve entre eles uma pausa, depois ele acrescentou: - Esteve fazendo compras?
- Precisava comprar algumas coisas. Para a tia Minnie foi um verdadeiro cavalo de batalha. - Esforçava-se para falar com ligeireza. - Agora foi visitar uma amiga... Não fosse isso, e eu não poderia ter vindo.
- Não pode ficar mais tempo?
Ela sacudiu a cabeça, baixando os olhos.
- Estão à minha espera... em Ardfillan.
Haveria em sua resposta uma sugestão de que era vigiada? Pelo sim, pelo não, o seu ar fatigado perturbou-o, bem como o seu tom desatento, o modo pelo qual hesitava olhá-lo nos olhos.
- Parece que está precisando de uma xícara de chá. Vamos entrar ali?
E ele apontou com algum receio para o restaurante que, inundado de luz e atopetado até à entrada, tinha bem pouca semelhança com uma tranquila sala de lanche de Craigdoran. Ela, porém, já sacudia negativamente a cabeça.
- Tomei chá com titia no Fraser.
Ele sabia que aquele era o maior empório de móveis da região. O sangue afluiu-lhe à cabeça.
- Então saiamos daqui. Saiamos para fora deste horrível atropelo. Vamos dar um passeio lá fora.
Saíram pela porta principal e seguiram pela rua dos fundos, que conduzia à Praça Argyle e à ponta extrema da estação. O nevoeiro adensava-se, girando em torno deles, borrando as lâmpadas da rua e amortecendo o rumor do tráfego. Parecia que ambos caminhavam num mundo só deles; ele porém não a tocava, sequer ousava tomar-lhe o braço. Até mesmo as palavras que dizia eram guindadas, formais, sem a menor significação.
- Como vão os estudos? - perguntou ela.
- Vão bem... creio. E você? Em casa vai tudo bem?
- Muito bem, obrigada.
- E Walter?
Ela não respondeu imediatamente. Depois, como resolvida a revelar e explicar, de modo a não deixar a menor dúvida:
- Ficou transtornado, mas agora está melhor... Veja você, quis marcar a data do nosso casamento... Achei que era cedo demais... Preferi esperar um pouco... Mas agora está tudo assentado; será a primeiro de julho...
Seguiu-se uma longa pausa. "Primeiro de julho", repetiu ele surdamente; faltavam apenas três semanas!
- E sente-se feliz com isso?
- Sim - opinou ela com toda a naturalidade, com palavras que se diria terem sido inoculadas nela por alguém. - O certo é as pessoas jovens assentarem logo a vida e acostumarem-se uma com a outra. Walter é muito bom, e dará um bom marido. Além disso... - aqui hesitou ligeiramente, mas logo prosseguiu: - As relações com que conta na cidade ajudarão nos negócios. Meu pai é que não vai muito bem nestes últimos tempos.
Nisto, umas gotas enormes caíram sobre eles, e dentro em pouco desatava uma chuva torrencial. Procuraram abrigo no pórtico de uma loja fechada.
- Acredite que lhe desejo a maior felicidade, Mary.
- Também eu a você, David.
O pórtico estava completamente às escuras. Ele não podia vê-la, mas sentia-a com todos os sentidos, junto de si. Ouvia-lhe a respiração tranquila mas rápida, o cheiro de sua pele molhada chegava-lhe às narinas. Uma horrível fraqueza o invadiu, sua boca ficou seca, e as juntas se lhe afrouxaram tanto, que mal podia ter-se em pé.
- Não posso perder o trem - disse ela, quase num sopro.
Regressaram à estação. Faltava apenas um minuto para a partida. O trem de Craigdoran já estava encostado na plataforma. Ele ajudou-a a encontrar um assento no canto de um compartimento de terceira classe. Quando desceu para a plataforma, ela abriu a vidraça. Um apito estridulou, e a locomotiva soltou uma golfada sibilante de fumaça. Ela inclinou-se para fora. Estava medonhamente pálida. A chuva fizera-lhe escorrer a mancha do rosto, aglutinara sua golinha de pele... As pupilas se lhe dilataram, mais escuras... Uma veiazinha do pescoço latejava-lhe freneticamente.
- Então, adeus, David. - Sua voz tremia.
- Adeus... Mary. - A dor no peito era-lhe intolerável. Ela o deixava para sempre; nunca mais voltaria a vê-la.
Mas quando o trem começou a rodar, os dois juntos, num movimento instintivo, irresponsável, predestinado, estenderam os braços um para o outro. Abraçaram-se estreitamente, cegamente, apaixonadamente, e seus lábios se encontraram num beijo alucinado, delirante, incomparável. Como um ébrio, quando o trem, no fim da plataforma, acelerou a marcha, ele saltou do estribo, cambaleou, quase caiu. Ainda debruçada na janela, Mary foi carregada para a escuridão do túnel. Cheio de alegria, o coração de Moray palpitava loucamente. Lágrimas se lhe formavam sob as pálpebras, e, para sua maior consternação, agora lhe escorriam pelas faces abaixo.
CAPÍTULO CINCO
Subitamente, como de uma grande distância, veio-lhe a lembrança de que seu chefe devia vir às oito horas para realizar uma punção lombar num paciente que chegara naquela tarde à enfermaria. Precisava ir correndo para o hospital a fim de render o assistente Kerr. Precipitando-se da estação para dentro do nevoeiro, teve a sorte de saltar para um dos bondes de Eldongrove, o qual, embora de marcha bastante dificultosa, conduziu-o de volta em tempo hábil. Mas de que maneira passou as duas horas seguintes - isso é coisa que jamais pôde saber. Sua fala e movimentos eram automáticos, mal tinha consciência de sua própria presença na enfermaria. Uma ou duas vezes percebeu que Drummond o olhava intrigado sem contudo fazer nenhum comentário, até que afinal, nas proximidades das dez horas, pôde enfim voltar para seu quarto e dar vazão aos sentimentos.
Estava apaixonado, e com o êxtase do beijo dela que ainda perdurava em seus lábios, sabia que ela também o amava. Era, aquela, uma eventualidade que jamais, nem sequer remotamente, entrara em sua cabeça. Todos os pensamentos, todas as energias e todos os esforços, se lhe haviam concentrado exclusivamente em um único objetivo: sua carreira. O que queria era elevar-se do charco da pobreza e conquistar na vida um êxito deslumbrante. Bem, pensava ele, cheio de emoção, se podia fazer isso sozinho, por que não poderia fazê-lo com ela, estimulado e envigorado por alguém que, a despeito de sua modesta condição social, possuía todas as qualidades
da companheira perfeita? Não podia perdê-la; a só ideia de que isso pudesse acontecer fazia-o encolher-se como diante da ameaça de morte repentina.
Franziu o cenho; que devia fazer? A situação em que ela estava, com data marcada para o casamento dali a três semanas, exigia ação imediata. Suponha-se que, por algum equívoco, ele não pudesse impedi-lo. A ideia de Walter, esforçadamente exato, a exigir os plenos recursos de seus direitos conjugais até ao máximo limite, enchiam-no de horror. Isso bastava para enfernizá-lo. Devia escrever a Mary, escrever imediatamente, mandar a carta por via expressa...
De repente, ao estender a mão para a escrivaninha em busca de papel, o telefone do Pronto-Socorro tilintou. com uma exclamação de impaciência apanhou o receptor. Macdonald, telefonista noturno do quadro de distribuição, estava no aparelho:
- Mr. Moray...
- Ao diabo, Mac... que é? Outro alarme falso?
- Chamado pessoal para o senhor... vou ligar.
Fez-se um zumbido na linha. E logo a seguir:
- David...
Moray susteve o fôlego.
- Mary, é realmente você?
A voz chegava-lhe contida, mas intensa.
- Vim ao armazém... os outros estão dormindo, estou às escuras ... mas precisava falar com você... Querido David, estou tão feliz...
Num relance, uma doce visão lhe apareceu: Mary, vestida de camisola e de chinelos, na escuridão do armazém...
- Também eu, minha querida.
- Desde o primeiro minuto em Craigdoran... quando o vi no espelho... eu sabia, David. E ao pensar que você não me ligava, meu coração quase se partiu.
- Mas você sabe que ligo. Que sou louco por você.
Podia ouvir-lhe a suave e lenta respiração, mais excitante do que qualquer palavra que ela pudesse proferir.
- Não posso demorar-me, querido David. Apenas queria que você soubesse que jamais me casarei com Walter. Nunca, nunca... Nunca o quis. Deixei-me levar por conselhos alheios. Depois, quando julguei que você não se importava comigo... Mas agora direi a ele... Farei isso logo de manhã cedo...
Ele porém não podia consentir que ela enfrentasse sozinha a situação.
- Irei com você, Mary. vou pedir licença a Drummond.
- Não, David - disse ela, peremptória. - Há os exames. Isso é o que importa... para você terminar. Depois dos exames, venha diretamente para cá. Estarei à sua espera... - E hesitou: - Mas... mas se tiver um minutinho disponível, poderá me escrever nesse intervalo.
- Sim, Mary: escreverei. Até já comecei uma carta...
- Não posso esperar até recebê-la. Agora tenho de ir. Boa noite, querido David.
O fone foi recolocado no gancho. Agora, ela estaria galgando a escada da casa adormecida, rumo a seu quarto, pegado ao de Willie. Apanhando pena e papel, ele escreveu-lhe apressadamente uma longa e fervorosa carta; depois, despindo-se como em transe, atirou-se no leito.
Na manhã seguinte, como que inspirado, redobrou de esforços para o exame final. Sob o acicate desse supremo esforço, o tempo voava. Quando chegou o dia da prova, entrou na Sala Eldon, tenso mas confiante, e tomou seu lugar numa das carteiras. Distribuíram-se os primeiros papéis, e ele viu, num relance, que as perguntas iam-lhe a calhar. Começou a escrever sem levantar o olhar uma só vez, cobriu páginas e páginas com sua escrita legível e fluente.
Nos três dias subsequentes, nas idas e vindas entre o hospital e a Universidade, ocupava sempre a mesma carteira, decidido a desenvolver o máximo esforço, não só por ele, mas também por ela.
Depois, tiveram início os exames clínicos. Em medicina, diagnosticou o caso no mesmo instante: tratava-se de bronquectasia com abscesso cerebral secundário. Saíra-se bem, pensava. No último dia dos exames, realizou-se a prova oral. Drummond, sentado com o velho Murdo Macleish, mestre-régio de Ginecologia, conhecido como "Touro Escocês", e com Purvis, o examinador externo, fez-lhe um gesto amistoso, observando para os colegas:
- Esse é o sujeito que tem jeito para lidar com os pacientes...
- É mais que isso - disse Purvis, dando uma olhadela no diagnóstico de Moray.
Começaram as perguntas, e Moray - fluente, pronto a concordar, a sorrir com respeito, e, sempre, sempre, com deferência - sabia que estava dando o máximo de si. Mas o "Touro" atormentava-o. Essa personagem formidanda, a um tempo terror e amparo de gerações de estudantes escoceses, era quase lendária graças à sua brutal franqueza e humor obsceno. Na aula inaugural do ano letivo, costumava chamar para a plataforma algum rapaz mais acanhado, e, perante
toda a classe, atirando-lhe um toco de giz e apontando para o quadro-negro com um sorriso escarninho, ordenar-lhe, nos termos mais grosseiros, que fizesse uma representação pictórica das partes íntimas da mulher. Agora, porém, não falava muito, mas observava atentamente o examinando, com um olhar desconfiado nos olhinhos vermelhos. Terminado o exame oral, disse Purvis com um sorriso:
- Creio que não é preciso prendê-lo por mais tempo. - E quando Moray saiu, fechando a porta atrás de si, acrescentou: - Um ótimo rapaz.
O "Touro" sacudiu-se com irritação.
- Ótimo, com efeito - resmungou. - Mas embusteiro!
Os dois outros riram-se. Porque era idoso, ninguém levava muito a sério o velho Murdo.
Os resultados seriam afixados no sábado de manhã. Nesse dia, ao subir a comprida encosta em direção à Universidade, toda a sensação de segurança o abandonou. Enganara-se; não se saíra bem; havia malogrado. Quase não se atrevia a aproximar-se do quadro de avisos, junto à arcada principal. Mas o seu nome, junto com dois outros, encabeçava a lista. Passara com menção honrosa.
Sentiu-se desmaiar. Depois de tantos anos de luta abnegada, o triunfo daquele instante era inacreditável. Ainda mais o era, porque sabia que iria em breve reparti-lo com ela. Sem esperar pelas congratulações dos que se aglomeravam junto ao quadro, foi correndo para a filial do correio no sopé do monte Gilmore e passou-lhe um telegrama: Chegarei Ardfillan 5 e 30 tarde de hoje.
Esperava que, àquela hora, já ela tivesse regressado de Craigdoran. Efetivamente, quando ele chegou, ela estava na estação, à sua espera. Rápido, rápido, os olhos cintilantes, um tanto pálida, porém mais linda do que antes, avançou e, ofegante, alheia às outras pessoas que se achavam na plataforma, estendeu-lhe os lábios. Se naqueles últimos dias atropelados ele houvesse esquecido a frescura tépida de seu beijo, agora a renovava. Ao saírem da estação em caminho de casa, ele ainda lhe segurava a mão. Subjugados, nenhum deles pronunciara até ali uma única palavra inteligível. Moray entretanto percebeu que ela não ousava fazer a pergunta que mais a interessava; e embora tivesse planejado um longo e sensacional relato de seu bom êxito, disse simplesmente, humildemente, com o olhar posto nela:
- Passei, Mary... um dos primeiros da lista, com menção honrosa.
Súbito ela apertou-lhe nervosamente o braço com os dedos, e disse numa voz estrangulada de emoção:
- Eu já sabia que venceria, David querido... E estou contente, tão contente porque você passou... Agora podemos enfrentar juntos o que vier.
Ele inclinou-se para ela, preocupado.
- Houve alguma dificuldade para você aqui?
- Bem, não foi muito fácil. - E adoçou as palavras, erguendo para ele um olhar repleto de ternura. - Quando fui conversar com Walter no princípio ele pensou que eu estava brincando. Não podia crer no que ouvia, isto é, que alguma mulher o rejeitasse. Quando descobriu que eu era sincera, não foi... nada amável. Depois seus pais foram conversar com papai... e aí também foi ruim... - E sorrindo, constrangida: - Disseram-me uma porção de coisas feias...
- Oh Deus - gemeu ele. - Pensar que você teve de sofrer tudo isso e eu não estar aqui! Gostaria de quebrar o pescoço daquele sujeito!
- Não - disse ela, gravemente. - Creio que a culpada fui eu. Mas só posso agradecer a Deus que me poupou o horror de entrar para aquela família... - e, encostando-se a ele - e de ter conhecido você.
- E eu a você, Mary.
- Isso basta - disse ela suspirando. - Nada mais importa.
- Mas sua família não a apoiou?
- Sim, de certo modo - disse ela. - Mas, com exceção de Willie, não ficou muito satisfeita com o sucedido... Seja como for, aqui estamos; e acho melhor falarmos primeiro com papai.
Entrando por uma porta que abria para o pátio, Mary o conduziu para o interior da padaria. O lugar era baixo e escuro, muito quente, graças a dois fornos chapeados de ferro; e a massa fresca, de farinha levedada, tinha um cheiro adocicado de mel. Douglas e seu ajudante, John Donaldson, desenfornavam a pesada prancha coberta de duplas formas de pães escoceses, e, virando-os com a crosta escura para cima, enfileiravam-nos na prateleira. O padeiro estava em mangas de camisa, seu avental enfarinhado caía-lhe até aos pés calçados nuns velhos sapatos brancos de lona. Por cima do ombro viu Moray que entrava, mas continuou a pôr os pães em fila; depois, despindo lentamente o avental, aproximou-se.
- Então é você mesmo... - disse ele estendendo a mão sem sorrir.
- Pai - explodiu Mary - David passou no exame com menção honrosa; foi dos primeiros classificados.
- Então agora é doutor... Bem, já é alguma vantagem.
E, precedendo-os para fora da padaria, conduziu-os para a sala da frente do andar de cima, onde Willie fazia suas lições na mesa
vazia e tia Minnie tricotava perto da janela. O rapazinho deu a Moray um breve sorriso de boas-vindas, mas a tia, de carranca fechada sobre as agulhas lampejantes, nem ao menos levantou os olhos.
- Sente-se, homem, sente-se - disse o padeiro. - Tomamos chá mais cedo do que costumamos... mas... talvez depois, se você tiver fome, Mary lhe dê algo de comer.
David sentou-se numa rija cadeira junto à mesa; Mary puxou outra e sentou-se a seu lado.
- Saia da sala, Willie - disse a tia, espetando as agulhas no tricô e brindando Moray com um frio olhar perscrutador. - Está ouvindo, Willie?
Willie saiu.
- David, é preciso que você compreenda - começou o padeiro - que isto foi um choque para nós...
- E para todo mundo - atalhou tia Minnie, sacudindo a cabeça com indignação. - A cidade inteira não fala de outra coisa. Foi um verdadeiro escândalo, uma desgraça!
- E colocou-nos numa situação muito difícil - prosseguiu Douglas. - Minha filha deu sua palavra a um homem digno, bem relacionado e muito respeitado na cidade. Não estava apenas noiva, mas já de casamento marcado... quando, de repente, sem dizer água vai, rompe com tudo, graças a um perfeito desconhecido...
- Mas havia uma boa razão para isso, senhor: Mary e eu nos amamos.
- Amam-se! - exclamou a tia num tom significativo. - Antes de você aparecer aqui naquela abençoada motocicleta, feito um Lochinvari.1 mal acabado, ela amava Walter...
- Absolutamente. - E Moray sentiu a mão de Mary procurar a dele por debaixo da mesa. - Nunca o amou. E estou convencido de que nunca seria feliz com esse casamento. Disse o senhor que Stoddart é um homem digno. Acho-o um burro convencido, sem sensibilidade e dado à ostentação.
- Basta! - atalhou Douglas com severidade. - Pode lá ter as suas esquisitices... mas todos sabemos que é bastante sólido por dentro.
- E isto não sabemos se você é - lançou tia Minnie.
- Sinto muito a má opinião que fazem de mim - e Moray olhou suplicante para a velha. - Espero que mais tarde venham a pensar
1. Herói do poema Mormion, de Walter Scott. - N. T.
de outra maneira. Esta não é a primeira vez que se rompe um noivado. Antes tarde do que nunca.
- Certo - murmurou Mary. - Jamais quis casar-me com Walter.
- Então por que disse que queria, sua idiota? Perversa! Agora todos os Stoddarts estão contra nós! Vão odiar-nos! E você sabe o que isso significa para seu pai. --
- Sim, a perspectiva não é nada bonita... e quanto menos se falar nela, tanto melhor.
- Mas eu falo, James. - E tia Minnie voltou-se para Moray. - Você pode pensar que aqui conosco tudo é muito fácil, Mas não é. Longe disso. com todas essas sociedades de pão feito a máquina e de caminhões de entrega alvoroçando o interior (isso, para não falar das alterações que teremos de fazer para cumprir nova lei, relativa às padarias), meu irmão vem tendo um ano muito difícil, e sua saúde não está para que se diga. E Walter, por intermédio do pai, prometeu solenemente...
- Basta, Minnie, basta - disse Douglas levantando a mão. - Quanto menos disser, tanto mais fácil de concertar. Sempre vivi de pé nas minhas duas pernas, e, com a ajuda da Providência, espero assim continuar.
Fez-se um silêncio, e Moray, apertando a mão de Mary, dirigiu-se ao padeiro. Nunca se mostrara a uma luz tão favorável: seu rosto moço e inteligente irradiava sentimento e sinceridade.
- Compreendo que lhe causei bastante incómodo, senhor... e grande mágoa. Sinto muito, acredite. Mas há coisas que não se podem evitar... como o raio, por exemplo... quando ele fere a gente. Foi isso o que aconteceu entre mim e Mary. - E voltando-se a meio para tia Minnie: - Agora não me tem em grande conta, mas hei de lhe mostrar... que não se arrependerá se me aceitar como genro. Tenho um diploma, e um bom diploma. Arranjo emprego num abrir e fechar de olhos, e dentro em pouco terei uma clínica de primeira ordem. Tudo quanto desejo é ter Mary em minha companhia, e acho que ela também deseja isso. - E sorriu a cada um com aquele seu sorriso tímido, sedutor e convincente.
Fez-se uma pausa. A despeito de sua resolução de ficar firme, o padeiro não pôde deixar de sacudir a cabeça em sinal de aprovação.
- Muito bem falado, David. E agora que fez o pedido, confesso que desde o princípio... a exemplo de minha filha... - e sorriu para Mary - tive muita simpatia por você e por tudo quanto você fez. E, como o que tem de ser tem força, concordo em que fique noivo dela. Quanto ao casamento, deve haver um pequeno intervalo
um intervalo decente, para evitar escândalo na cidade. Arranje um emprego por três ou quatro meses, depois veremos. Que diz a isso, Minnie?
- Bem... - disse a tia contemporizando. - Não adianta chorar porque o leite se entornou... - Mas até ela amansara, impressionada com a fala comovente de Moray. - Talvez você tenha razão ... não se deve ser muito severo com eles.
- Oh, obrigada, pai... obrigada, tia Minnie - e Mary ficou em pé de um salto e foi beijar os dois. Tinha as faces coradas, uma madeixa de cabelo solta na testa. Atirou-a para trás, triunfalmente: - Eu sabia que tudo se arranjaria. E agora, tiazinha, posso servir alguma coisa a David?
- Traga as bolachas e o queijo. E um pouco daquele bolo de cereja da última fornada. Sei que ele gosta. - E lançou a Moray um olhar de esguelha. - Comeu seis pedaços na última vez que esteve aqui...
- Só mais uma coisa, pai - rogou Mary com uma expressão angelical. - David pode passar a noite aqui? Consinta, sim? Tenho-o visto tão pouco ultimamente!
- Sim, mas só esta noite. Amanhã que ele vá procurar emprego. - E uma ideia golpeou o bom padeiro, que acrescentou severamente. - E se está pensando em sair a passeio hoje de noite, Willie terá de acompanhá-la.
Andando rápido entre a cozinha e a sala, Mary colocou à frente de Moray uma pequena refeição escolhida; mas em face da magia daquele dia esplêndido, a comida era uma coisa sórdida e faltava-lhe apetite. Depois do chá, Mary pôs o chapéu e o manto. Qualquer movimento que ela fizesse, a Moray se lhe afigurava especial e significativo, precioso e único, adoravelmente feminino. Afinal saíram e, de braços dados no escuro, foram caminhando ao longo da Esplanada, acompanhados por Willie. O rapazinho, excitado pela reviravolta dos acontecimentos, estava com disposição para tagarelar, e fazia toda a espécie de perguntas a Moray, que não tinha a coragem de dizer que ele estava atrapalhando. Mary, inflamada por igual opinião, foi mais expedita.
- Willie, meu bem - disse com doçura ao chegarem ao fim da Esplanada - agora me lembro que esqueci de comprar os novelos listados de preto, que tia Minnie quer para amanhã. Aqui estão três pence. Vá correndo à loja de McKellar, compre dois pence de lã, e um pence de chocolate para você. Seja bonzinho, Willie. David e eu vamo-nos sentar ali até você voltar.
Quando Willie saiu, os dois entraram no abrigo de madeira, deserto àquela hora. Sentados num dos cantos, protegidos contra o vento, abraçaram-se estreitamente, o pulso da maré se confundindo com o pulsar de seus corações. As ondas rolavam na praia, uma estrela cintilou invisível no alto do céu. Os lábios de Mary estavam secos e tépidos, e a inocência de seu beijo, todo ardor de paixão, comoveu-o como nunca.
- David, meu bem - murmurou ela, o rosto encostado no dele - sou tão feliz que até podia morrer. Amo-o tanto! É como se meu peito estivesse prestes a romper-se.
CAPÍTULO SEIS
A cerimónia de formatura realizou-se alguns dias depois. Logo que restituiu o capelo e a beca alugados, Moray pôs-se a procurar emprego. Pelo menos dois lugares de interno estavam à sua disposição na Enfermaria: bastava-lhe pedir. Mas ali o salário era apenas uma magra pitança, e ele tinha há muito resolvido não seguir .a estrada laboriosa das promoções académicas. Havia ainda outros cargos de assistente à disposição, especialmente em clínicas do interior, mas que ele recusou logo de início. Bem sabia que as clínicas rurais não olhavam para honrarias académicas: queriam jovens enérgicos que comessem qualquer coisa e que, sem o entrave de uma esposa, saíssem da cama a qualquer hora da noite para atender a uma parturiente. Não: estaria perdido numa situação dessas; mas tampouco aceitaria qualquer cargo de assistente-substituto, fosse em obra de dispensário ou num emprego fortuito de alguma companhia de navegação. Tudo rejeitou. No seu próprio interesse e no de Mary, precisava encontrar algo melhor. Esquadrinhou atentamente as colunas do Lancei e do Medicai Journal, investigou os anúncios dos jornais locais na sala de leitura da Biblioteca Pública Carnegie. Já quase morto de cansaço, afinal descobriu, numa modesta lista conjunta da coluna de "procura-se" do Winton Herald, o seguinte anúncio:
Procura-se para o Hospital Glenburn, Cranstoun, médico-residente. Salário anual £ 500 e residência sem mobília. Contrato a iniciar-se a 1." de janeiro. Dirigir-se ao Departamento da Ditretoria da Saúde Pública de Wintonshire.
Moray respirou prolongada e fundamente. Convinha-lhe, exatamente lhe convinha, menos a data para se iniciar no emprego; isso, porém, comparado a outras vantagens, era um pormenor sem importância. Conhecia o hospital, frequentemente o admirara em suas excursões de fim-de-semana. Situado numa agradável região ondulante, à distância de uma longa viagem de trem de Winton, era conhecido no lugar como "Hospital da Febre", pois em certa ocasião se dedicara exclusivamente a doenças infecciosas. Agora, entretanto, ocupava-se principalmente com o tratamento de crianças tuberculosas. Era pequeno, naturalmente: não mais do que quatro pavilhões isolados com mais ou menos sessenta leitos, um escritório central e laboratório, dependência de enfermeiras e uma bela portaria de tijolos vermelhos. Não podia haver nada de melhor: o salário era generoso, tinha casa à disposição; claro, desejavam um homem casado, e o laboratório lhe facultaria facilidades de pesquisa. Uma jóia de lugar, dizia e redizia com seus botões. Entretanto, sabia que a concorrência ia ser acirrada, em verdade assassina, e ao levantar-se do banco da sala de leitura, tinha o aspecto de alguém a caminho da batalha.
A campanha que daí em diante desenvolveu foi com efeito, pela sua expediência, sutileza e perícia consumadas, digna de ser registrada e honrada como o exemplo clássico da luta por um emprego. De seus professores universitários conseguiu testemunhos e cartas de recomendação; de Drummond, uma apresentação pessoal ao médico-chefe de Saúde Pública de Wintonshire, e, por intermédio do pai de Bryce, que era magistrado na cidade, uma lista completa dos membros da diretoria. Em primeiro lugar visitou o médico-chefe e, cuja atitude, embora isenta de compromisso, foi deveras agradável; depois, o secretário, que, como amigo e irmão maçónico do velho Bryce, foi indubitavelmente cordial. E à noite, começou discretamente a solicitar os votos de todos os membros da diretoria, em suas próprias casas. Aí, tudo correu bem; ele até foi apresentado às robustas mulheres desses abastados cidadãos, nas quais, mercê de uma prudente timidez, abriu tépidas fontes de simpatia maternal. Finalmente, filou condução numa carroça de entrega a caminho das cercanias do hospital, fez amizade com um médico, candidato à aposentadoria numa clínica particular, apertou a mão da religiosa e enfermeira-principal, e, depois de uma tentativa realmente difícil, conquistou completamente a atarracada e austera enfermeira-chefe, que o convidou para o chá. As dificuldades de seus tempos de estudante, o amor romântico por Mary Douglas, seu
diploma com menção honrosa - tudo nessa altura compunha uma narrativa modesta, todavia fluente. Na confortável salinha da matrona, em face das xícaras de chá - era um chá de primeira, observou ele, e o pão-de-ló delicioso, feito em casa - ela o escutava com crescente simpatia.
- Veremos o que se pode fazer - declarou afinal, avançando o busto que a goma endurecia ao ponto de estalar. - Pois se alguém tem influência sobre aquele comité de cabeça virada... o lugar verdadeiramente lhe pertence.
Moray murmurou seus agradecimentos.
- Agora vou-me, senhora. Já tomei grande parte de seu precioso tempo.
- Absolutamente. Como vai regressar para a cidade?
- Da mesma forma por que vim - disse ele, jogando de improviso uma cartada sugestiva. - A pé.
- Quer dizer que veio a pé desde Winton? Até aqui?
- Bem, para ser perfeitamente honesto, senhora - e sorriu confusamente, sedutoramente, olhando-a nos olhos - aconteceu que eu não tinha a passagem de trem... por isso também voltarei a pé.
- Nada disso, doutor. Nosso chofer o levará de volta. - E tocou a campainha. - Irmã, vá à portaria e chame Leckie.
E ele entrou na cidade no assento da frente da velha ambulância Argyle. Ao regressar, Leckie apresentou-se à enfermeira-chefe e observou:
- Espero que o Dr. Moray venha trabalhar conosco. Ê um rapaz muito simpático... e muito inteligente, palavra! Disse que, se o aceitarem, vai trabalhar até gastar os dedos.
Como resistir a um tal virtuose, mestre em acionar todas as alavancas da emoção? Uma semana depois seu nome aparecia na "lista breve" de dez candidatos, e na reunião de vinte e um de agosto da diretoria, era ele indicado por unanimidade.
Além de sugerir discretamente que tinha emprego à vista, Moray nada mais dissera em Ardfillan sobre as maravilhosas perspectivas que Glenburn lhe oferecia. E porque vivera muito tempo sozinho, era de sua natureza uma certa reserva; não só isso, mas tinha um medo horrível de não conseguir o emprego. Agora, entretanto, cheio de ânsia, preparava-se para as alegrias de uma revelação triunfal.
Preparou o plano com sua característica minuciosidade. Primeiro foi ter com Gilhouse - o vendedor de livros da Universidade, localizado no sopé de Fenner Hill - e vendeu todos os seus compêndios, e também o microscópio. Tendo entrevisto no laboratório de Glenburn
um excelente microscópio Zeiss de imersão em óleo, já não mais precisaria do seu velho Wright and Dobson de segunda mão. com uma boa soma no bolso, dirigiu-se pelo Parque Eldongrove para um bairro menos insalubre, e entrou na casa de penhores da esquina da Rua Blairhill, onde, nos últimos cinco anos, fora a contragosto um cliente ocasional. Agora, porém, a situação se invertera. com tempo de sobejo, e prudentemente rejeitando o brilhante suspeito que lhe queriam impingir, escolheu, entre os penhores não resgatados, um fino anel de ouro, onde se engastava uma bonita
água-marinha. Posto num estojo de couro vermelho, forrado de veludo, era extremamente belo, e, ainda melhor, legítimo. com a jóia no bolso, tomou emprestada a motocicleta de Bryce e saiu para Craigdoran. Chegou às onze da manhã.
- Mary - exclamou ele caminhando diretamente para a sala do restaurante e passando o braço em torno da cintura dela. - Feche o armazém. Agora mesmo. Já, já!
- Mas David... preciso esperar mais dois trens...
- Levem o diacho os trens... com os passageiros dentro... e toda a Companhia de Estrada de Ferro Norte-Britânica. Vai sair comigo já e já. E como está com a mão na massa, ponha uns doces e uns sanduíches numa sacola.
Ela o fitou meio risonha, meio em dúvida, todavia cônscia de algo que a obrigava sob a alegria da voz de Moray.
- Está bem - aquiesceu finalmente. - Acho que por esta vez não vou arruinar o pai, nem a companhia...
Dez minutos depois saíam de motocicleta. Ele tomou a estrada de Stirling, virou a leste para Reston, e, cerca de uma hora depois de rodear os limites de Cranstoun, foi parar a um quarto de milha de distância da várzea de Glenburn.
- É por aqui que eu costumava passear, Mary.
Confusa, vagamente perturbada, Mary não compreendia por que estavam ali; entretanto acompanhava-o obedientemente através da várzea. Alcançaram enfim a curva de grades ornamentais que cercavam o hospital. Aí ele parou, cônscio de que já não era mais possível avançar. Ambos espiaram através do bonito gradil pintado. O sol brilhava no recinto, algumas crianças de paletó vermelho estavam sentadas com uma enfermeira num banco próximo a um trecho de relvado, um passarinho preto chilreava num jasmineiro um pouco mais além...
- Que lugar encantador - exclamou Mary.
- Acha?
- E você não, David? Parece uma pintura.
- Então escute, Mary - disse ele puxando um fôlego profundo. - Isso aí é o Hospital Glenburn. Esses quatro edifícios entre as árvores são as enfermarias. Em frente, o edifício da administração. E mais adiante, com o jardim nos fundos, é a residência do médico superintendente. Nada mau, hein?
- A casa é linda - respondeu ela cismadoramente. - E que lindo jardim! Conhece o morador?
Sem responder, ele prosseguiu, já agora pálido e respirando mais depressa.
- O médico-superintendente é o único encarregado do hospital. Tem todas as facilidades de pesquisa no laboratório. Ganha quinhentas libras por ano, mais os legumes da horta e casa grátis - aquela casa ali, Mary, na qual é legitimamente autorizado a morar com sua legítima mulher... - A voz lhe saía alterada de emoção. - Mary... a partir de primeiro de janeiro, haverá ali um novo médico-superintendente. .. e esse médico se acha em frente de você!
CAPÍTULO SETE
A viagem de regresso foi bastante lenta, com uma larga volta por Overton, que os levaria, através de Carse of Lounden, ao longo da praia sul do lago Lomond, para os alagadiços de Glen Fruin. A estrada era notável, uma das mais belas da Escócia ocidental, mas Mary nada via... nada... nada... nem mesmo a majestosa crista de Ben Lomond, alteando-se sobre o lago cintilante. Muda de felicidade, ainda aturdida pelo maravilhoso milagre que ele operara por sua causa, fechava os olhos e abraçava-o com todo o amor e gratidão de seu coraçãozinho transbordante.
Ele também era feliz - como podia ser diferente? Estava excitado com o efeito do plano que tão cuidadosamente ideara e tão acertadamente realizara. Mas, justiça seja feita, recuperou a calma, não provocou elogios, seu ar de natural modéstia conservou-se imutável. Amava e quisera impressioná-la, menos para satisfazer o sentimento de sua própria importância do que para desejar proporcionar-lhe uma explosão de súbita alegria. Ao contrário de Walter, que, exigindo o máximo de adulação, espremia até à última gota de caldo de qualquer situação provável, ele detestava manifestações em causa própria. Isso era algo que ofendia seus sentimentos requintados,
causando-lhe um grande desconforto. E não tinha acaso outra surpresa reservada para ela?
Ao se abeirarem do cimo da colina que levava do lago a Glen Fruin, ele fez uma volta e saiu da estrada, dirigindo-se a um dos relvosos trilhos de carneiros que ziguezagueavam pelos alagadiços. Seguindo a vereda por um quarto de milha, afinal foi encostar junto a um barranco do rio, fundamente mergulhado em urzes e avencas, abrigado por um maciço de prateados vidoeiros. Lá embaixo o alagadiço se estendia a perder de vista; todo ouro e púrpura. Dali podia Mary avistar a montanha e o lago, e toda a cintilante paisagem que lhe parecia celestial e que ela interpretava à sua moda.
- Que lugar bonito, David.
- Bonito para comermos nosso lanche - disse ele, brincando. - Essas voltas todas devem ter-lhe despertado o apetite.
- Estou muito transtornada para poder comer.
Mas quando se sentaram e espalharam o lanche sobre uma toalha axadrezada, ele a fez comer o seu quinhão, tanto mais que, ampliando as instruções que ele lhe dera, Mary tinha trazido uma refeição deveras substancial. Além de pãezinhos e sanduíches, havia ovos cozidos, tomates de Clydeside e um rolo de salame, tudo acompanhado de uma garrafa grande da famosa água "mineral" local, a Cerveja Ferrosa Barr, para matar-lhes a sede. Ela lembrara-se até mesmo de trazer o batoque de madeira com o qual empurrou para dentro a bola de vidro do gargalo.
- Oh, David... - murmurava ela entre os bocados. - Aquela casa lindinha... Não me sai da cabeça... Espere só e há de ver como cuidarei de você naquela casinha...
- Precisamos de mobiliá-la - advertiu ele. - Mas há tempo até janeiro. Agora que estou colocado, arranjarei alguma clínica, ou coisa parecida, para os quatro meses que faltam; isso nos dará dinheiro suficiente para começar...
- David, meu bem... você pensa em tudo.
- Mas quase me esquecia de uma coisa. - E mergulhando a mão no bolso do paletó: - Aqui está, mocinha. Antes tarde do que nunca.
Observando-a enquanto ela abria o estojinho vermelho, nunca ele se sentira mais profundamente comovido. Completamente muda, Mary olhou o anel que, à sua própria semelhança, era simples, porém belo. Não o elogiou, não agradeceu... mas, voltando-se, olhou David nos olhos, exatamente como fizera depois daquele dia em Garsay, e, com uma voz trémula, que ele nunca mais haveria de esquecer, murmurou:
- Ponha-o no meu dedo, querido. - Depois, com um leve Suspiro,
estendeu-lhe os braços.
Deitaram-se nas macias avencas sob o cálido sol da tarde. Abelhas zumbiam debilmente entre os cardos floridos, uma cotovia cantou subindo para o azul, o perfume da orquídea e do tomilho agrestes enchia o ar. Vinha na distância o rumor de um galo silvestre levantando voo, depois o silêncio caiu, apenas perturbado pelo suave ondular do rio. A saia dela estava ligeiramente levantada e ele pôs-lhe a mão no joelho, que acariciou amorosamente. Mary tinha os lábios entreabertos, levemente inchados pelo sol e quase purpurinos na suave palidez do rosto. As pálpebras descidas, ocultando seus negros olhos de gazela, tinham um matiz azulado, e na tepidez dos braços dele, ela tremia toda sob dedos que se moviam para cima, indo pousar na lisa pele nua de suas coxas.
O coração batia-lhe tão forte na caixa do peito, que seu latejar lhe subia precipitadamente até aos ouvidos. Só mais um movimento caricioso, e Moray encontraria o que buscava. Desejava-a, entretanto temia. Então, encostada a ele, ela murmurou:
- Se você quiser... serei sua, meu bem.
O sol escondeu-se por detrás de uma nuvem, as abelhas cessaram de zumbir, um maçarico, girando em círculo, lançou na altura seu grito doloroso. Deitados, ambos se calaram, até que afinal ele disse humildemente.
- Magoei-a muito, Mary?
- David, meu bem... - e ela afundou a cabeça no seu peito. - Foi a dor mais deliciosa que senti na vida.
Quando afinal se levantaram e apanharam as coisas do piquenique, ele rodou devagar, um tanto tristonho e penalizado, tocado por um melancólico sentimento de remorso. Não teria ele sido precipitado, comprimindo tanta alegria em tempo tão breve, arrancando tão cedo os primeiros frutos da felicidade? Ela era tão jovem, tão inocente - uma nova onda de ternura o invadiu - não devia ele ter-se contido, ter esperado? Em verdade, não se precipitara, desde o início, apressado e desatento? Não... mil vezes não... e afastando a ideia de si, tirou a mão do volante para mais uma vez premir a macia coxa da amada.
- Agora sou toda sua, David.
E encostou-se a ele, rindo com brandura em seu ouvido. De sua parte, nada de tristeza ou lamentação! Estava renovada, confiante, mais viva do que nunca. Meio voltado, ele viu-lhe os olhos húmidos e brilhantes - nunca antes a vira tão feliz. Talvez ela sentisse a vaga
depressão que o acometia, e alegremente, ternamente, possessiva como uma mãe, deu-lhe novo ânimo.
Tinham chegado ao pico que sobranceava Ardfillan quando, repentinamente, a pesada nuvem que escurecia o sol abriu-se sobre eles numa chuva torrencial. Ele depressa manejou o freio e deslizou rapidamente colina abaixo. Num ápice, chegou ao armazém, não sem antes ficar completamente encharcado. Mary, que viera atrás, escapara à maior violência da chuva.
No primeiro andar insistiu para que Moray vestisse um terno do pai; ele porém se recusou. Disse que verdadeiramente não estava molhado, que havia um bom fogo na lareira e que logo ficaria enxuto. No fim, transigiram: ele calçou os chinelos de tapete do pai dela, e vestiu um velho paletó de mescla que Mary descobrira numa prateleira.
O armazém estava fechado e tia Minnie apareceu, seguida logo depois por Douglas. Sentaram-se os quatro para a refeição da noite - Willie estava ausente, passando o fim-de-semana no Acampamento da Brigada
Infanto-Juvenil, em Whistlefield. No início, à medida que se serviam as xícaras em silêncio, Moray sentia-se dolorosamente embaraçado, a si mesmo perguntando se alguma intangível prova de pecado, se alguma aura remanescente daqueles delirantes momentos de satisfação nos alagadiços, não seriam perceptíveis em Mary e nele próprio. Mary tinha as faces coradas, e as dele, sabia-o, estavam pálidas, e tia Minnie lançava alternados olhares suspeitosos ora para um, ora para outro. O padeiro também parecia singularmente reservado e mais observador que de costume.
Mas quando Mary pôs fim ao silêncio, a tensão geral afrouxou-se. Moray prometera deixá-la dar a notícia da sua nomeação como melhor lhe parecesse, e ela o fez com um brio e um senso dramático que de longe superou o seu relato da manhã.
Primeiro, exibiu o anel, que foi muito admirado, embora a tia, cheia de má vontade, resmungasse um aparte:
- Espero que esteja pago.
- Creio que não devemos nos apoquentar com isso, tiazinha querida - respondeu Mary bondosamente, com uma pontinha de superioridade.
Começou em seguida a descrever o hospital, pintando-o em cores ainda mais brilhantes do que a realidade e passando sem pressa para o clímax, que foi tremendo.
Seguiu-se uma longa pausa; depois Douglas disse, profundamente satisfeito:
- Quinhentas libras e casa para morar... e a horta de legumes... é ótimo, rapaz... é uma beleza, não há dúvida.
- Sem falar no laboratório e na oportunidade de pesquisa - atalhou Mary, rapidamente.
- Isso vai ser - e a tia franziu os lábios, sibilando de satisfação - vai ser fel e vinagre para os Stoddarts.
- Cale-se, Minnie. - E o padeiro estendeu a mão para Moray. - Meus parabéns, David. Se algum dia alimentei alguma dúvida a respeito de você e de tudo quanto se passou, agora ela já se foi, e só me resta pedir-lhe perdão. Você é um ótimo rapaz. Estou muito contente porque minha filha vai casar-se com você, e muito orgulhoso por tê-lo como genro. Agora, Minnie, não acha que isto pede uma comemoração?
- Que dúvida! - exclamou Minnie, afinal conquistada.
- Então desça depressa, Mary, vá ao armarinho dos fundos... a chave está na gaveta de cima... e traga uma garrafa do meu velho Glenlivet.
Trouxeram a garrafa, e o padeiro, utilizando-se de açúcar e limão, e com a devida atenção quanto às várias diluições do velho conhaque, fez para cada um dos presentes um excelente ponche. A bebida era cordial, mas chegou muito atrasada no que tangia a Moray. Antes de se recolher, sentiu durante todo o tempo a camisa que se lhe grudava à pele húmida. O ponche aquecera-lhe a cabeça, mas seus pés estavam enregelados. Ficou mais aliviado quando o convenceram a passar a noite ali, mas tremia quando se deitou; tirou a temperatura - mais de 38 graus de febre; sabia que apanhara um forte resfriado.
CAPÍTULO OITO
Moray passou uma noite agitada e febril, e quando despertou do breve sono no qual caíra pela madrugada, não teve a menor dificuldade em diagnosticar seu próprio caso: fora acometido de bronquite aguda. Tinha a respiração difícil e dolorosa; mesmo sem o estetoscópio, podia ouvir os roncos do próprio peito, e sua temperatura subira para quase 40 graus. Esperou com um elogiável autodomínio até quase sete horas, depois bateu na parede que o separava do quarto de Mary. Ouviu-a mexer-se, e ela em breve aparecia.
- Querido, você está doente... - exclamou consternada. - Passei metade da noite com medo de que tivesse apanhado um resfriado.
- Não é nada grave. Mas terei de ficar na cama alguns dias e não posso incomodá-los tanto tempo aqui. Melhor telefonar para o hospital.
- Isso não farei. - Ela tomou-lhe a mão. Estava tão quente que seu coração se apertou. - Ficará conosco neste mesmo quarto. Tratarei de você. Quem mais o faria? com efeito!
- Tem certeza, Mary? - Subitamente veio-lhe o desejo de que ela tratasse dele. Depois, que amolação para conseguir uma ambulância e voltar para a enfermaria na qualidade de paciente! - Será por poucos dias. Se não for grande incómodo, ficarei...
- Ficará, sim - disse ela com firmeza. - E agora... devo mandar chamar o médico?
- Não, não, claro que não... Eu mesmo receito... - E, apoiando-se sobre o cotovelo, escreveu duas prescrições. O esforço levou-o a tossir.
- É tudo quanto necessito, Mary. E de algumas eventuais bebidas quentes... E... de você - rematou, forçando um sorriso.
Estava pior do que imaginava. Ficou dez dias de cama, com febre alta e uma tosse dolorosa. Ela o tratava com dedicação inexcedível. Embora como enfermeira não adestrada, tinha um talento surpreendente. com tia Minnie, aplicava-lhe cataplasmas, fazia-lhe nutritivos - caldos de carne,
dava-lhe geléia de mocotó às colherinhas, arranjava-lhe a cama, exercia ao máximo a sua inteligência prática e sua perícia de dona de casa para aliviar-lhe o sofrimento. No auge da crise, quando foram necessários banhos de vapor, ficou toda a noite acordada, tratando dele. O deslocamento operado na casa foi naturalmente muito grande. Refeições fora de hora; sono perdido; os negócios da padaria perturbados; e Willie, de volta do acampamento, teve de ir lavrar a terra em companhia de Donaldson, o capataz. No fim da segunda semana, quando enfim ele se pôde levantar e sentar-se numa preguiçosa perto da janela, pediu, envergonhado, desculpas a Douglas, pelo incómodo que a todos dera.
- Nem mais uma palavra, David... - atalhou o padeiro. - Agora somos uma só família. - E sorrindo: - Ou é como se fosse...
Depois que o pai saiu, Mary aproximou-se dele e ajoelhou-se junto da cadeira, agarrando-lhe firmemente os joelhos.
- Nunca diga que foi um incómodo para nós, David. Que teria acontecido a mim se você não sarasse?
Os olhos dele encheram-se de lágrimas: estava ainda muito fraco.
- Que esposa perfeita você vai ser, Mary! Não pense que não sei o que fez por mim.
Dentro em pouco já podia sair, caminhar com ela pela Esplanada, primeiro devagar, depois com um passo mais ligeiro. Afinal declarou-se curado, pronto para procurar um lugar de substituto que o sustentasse nos quatro meses subsequentes. Sentia ainda uma pontada de lado que o preocupava, mas nada disse a Mary. Queixar-se agora seria uma pobre recompensa aos esforços conjuntos, visando o seu bem-estar. Entretanto, na segunda-feira seguinte, quando viajou para Winton a fim de deixar seu nome na Agência de Empregos para Médicos, sentiu no flanco uma dor aguda, e achou que seria prudente passar pela enfermaria e pedir a Drummond que auscultasse o peito.
Era surpreendentemente tarde quando chegou de volta a Ardfillan, e Mary, que servia a uma freguesa no balcão, imediatamente percebeu o desânimo que o invadia. Assim que se viu livre, aproximou-se dele e fitou-o.
- Não teve sorte, David?
Ele tentou sorrir, mas pouco adiantou.
- A verdade é que não pude ir à agência.
- Que é que não deu certo, meu bem? - ela perguntou depressa, pois viu que ele tinha algo a dizer.
Naquele instante a porta da padaria rangeu e uma criança entrou para comprar bolachas. Moray sentiu-se aliviado pela interrupção. Maldito incómodo tudo aquilo, e que maldito espeto estariam todos pensando que ele era!
- Então, David? - voltou ela a falar.
- É difícil de explicar, Mary... - disse com voz fraca. - Explicarei lá em cima...
Era hora de fechar. Ela correu as venezianas e apagou as luzes, depois subiu a seu encontro na sala do primeiro andar. Seu pai e tia Minnie já estavam lá. Moray não sabia como começar, como dizer o motivo de sua visita ao hospital. Curvado para a frente, os cotovelos fincados nos joelhos, olhava para o chão...
- Por isso, quando cheguei lá, o Professor Drummond me examinou ... me fez passar pelos raios X e parece que tenho indícios de pleurisia no pulmão esquerdo...
- Pleurisia!
- Está bem localizada - disse ele, evitando mencionar a insistência de Drummond de que a falta de tratamento causaria uma tuberculose.
Esforçando-se para disfarçar o desânimo da voz, acrescentou: - Parece que isso invalida qualquer possibilidade de um emprego de emergência.
- Que se deve fazer então? - perguntou Douglas, com um aspecto tristonho, enquanto Mary permanecia calada, as mãos entrelaçadas.
- Bem... eu podia ir para o campo... para algum lugar não muito longe...
- Não, David - interveio Mary nervosamente. - Não nos deixará. Será tratado aqui.
Ele a fitou, desanimado.
- Impor minha presença a vocês por mais dois meses? Impossível, Mary. Como ficar rondando por aqui sem fazer nada! Que amolação para vocês... e com todo esse horrível incómodo que já dei? vou arranjar emprego numa fazenda...
- Nenhum fazendeiro de juízo dará emprego a um homem doente - disse Douglas. - O doutor... o professor não receitou alguma coisa definida?
Fez-se uma pausa. Moray levantou a cabeça.
- Se querem saber... Drummond disse que preciso de uma viagem por mar... na qualidade de médico de bordo, naturalmente... Até insistiu em telefonar para a Kinnaird Line... tem conhecidos na diretoria...
Fez-se um silêncio mais prolongado. Finalmente o padeiro disse:
- Arre, que isso afinal tem algum sentido! E se trata de saúde, meu rapaz... Isso tem grande importância. Gostaríamos que ficasse conosco. Mas você melhoraria com o inverno que está chegando? Não, não. O conselho do professor é sadio. Conseguiu arranjar-lhe alguma coisa?
Moray sacudiu a cabeça a contragosto, dizendo que sim.
- Há um navio... o Pindari, que sai na próxima semana de Tail of the Bank... para Calcutá... Uma viagem redonda - ida e voltado sete semanas...
Seguiu-se outra pausa, depois Douglas refletiu:
- Uma viagem à índia. Lá tomará bastante sol!
- Tem vontade de ir? - perguntou-lhe a tia.
- Santo Deus, não! Desculpe, tia Minnie. Ê a última coisa que desejaria fazer. Mas a paga é boa, noventa libras ao todo! com isso poderíamos mobiliar nossa casa, Mary.
Naquela noite o assunto foi repisado e definitivamente assentado. Apesar da diferença de opiniões, até Mary finalmente cedeu ao
simples argumento do padeiro: a saúde antes de tudo; antes de qualquer outra consideração.
- De que serve você para qualquer pessoa - para Mary, para você mesmo ou para Glenburn - se não sarar? Deve ir, rapaz; e não se fala mais nisso.
Na terça-feira seguinte ele saiu com Mary para Greenoch. Era uma tarde húmida e ameaçadora. Ele não apenas parecia, mas em verdade estava doente, e atormentado pela mágoa da separação próxima. Ela também, que era no entanto corajosa e estava resolvida a não voltar atrás. Sob o chapéu de mescla felpuda que o vento revirava, o impermeável abotoado até ao queixo, seu rosto se plasmava numa decidida aceitação. O Pindari, chegado na véspera de Liverpool para receber uma carga de lãs e de máquinas para fábricas de tecidos, atracara no estuário, onde jazia encoberto por um denso nevoeiro. O vento varria as docas com lufadas de fazer cambalear um cristão, mas ela insistia em ir ao cais para despedir-se, a mão sobre a dele na alça da velha mala de couro, cujo peso ambos partilhavam. Enquanto a barcaça baixava e levantava aos trancos da forte maré, eles se abraçaram estreitamente, apaixonadamente, sob um céu cinzento e melancólico. A chuva, como lágrimas, corria pelas faces geladas de Mary, mas seus lábios e respiração aqueciam. O coração cheio de dor, ele, por sua vez, não podia suportar a separação.
- vou correr o risco e ficar, Mary. Deus sabe que não quero partir.
- Mas deve fazê-lo no seu próprio interesse. Escreverei... Fico contando os minutos, até que você volte...
Um pouco antes de largá-lo e sair correndo pelo embarcadouro, tirou do bolso do impermeável um pequeno embrulho que premiu na mão dele.
- Para que se lembre de mim, David.
Na cabina da pesada barcaça, a caminho do Pindari, ele desembrulhou o pacote e olhou o que ela lhe ofertara. Era um velho e delgado medalhão de ouro, menor que um florim, jóia que pertencera à sua falecida mãe. Colocara no interior um instantâneo dela, e, no reverso, cuidadosamente comprimida, uma única flor dentre as campainhas-azuis que ele colhera para ela em Gairsay.
CAPÍTULO NOVE
MORAY galgou o passadiço balouçante e entrou a bordo. As mercadorias de Winton já tinham sido carregadas, e ele mal teve tempo de se apresentar ao capitão, antes que os reboques começassem a puxar cautelosamente o navio na descida do estuário. Ficou no tombadilho, esforçando-se para penetrar o nevoeiro que amortalhava a confusa linha da praia onde Mary devia estar contemplando a partida desse navio espectral. O coração lhe transbordava de tristeza e de amor. Havia poucas pessoas no convés. Sabia que regressava a Tilbury para apanhar a maioria dos passageiros, e o navio húmido e deserto, com seus gotejantes pontaletes, aumentava-lhe mais a melancolia. O profundo e opressivo toque da sereia dava-lhe uma estranha sensação pressaga. Quando enfim o nevoeiro se fechou de todo, obliterando a praia, afastou-se da amurada e desceu à procura do seu alojamento.
Sua cabina ficava na popa, do lado de estibordo, contígua à do engenheiro-chefe. Era mobiliada em madeira de teca polida, tinha cortinas vermelhas nas vigias, um armário de acessórios e prateleira para livros, um abajur vermelho junto à cama-beliche. compunha um conjunto deveras confortável. Uma pia com bacia de metal, que se podia levantar para esvaziar-lhe a água, estava posta num canto, e acima, numa grade protetora, via-se um ventilador elétrico. A sala de consulta e o dispensário, convenientemente situados do outro lado do corredor, eram igualmente bem providos. Embora o Pindari fosse um navio antigo (originariamente, o Isolas, da Linha Atlântica de Navegação de Hamburgo, confiscado depois da guerra), fora ele recondicionado da proa à popa, e era agora espaçoso, confortável e notavelmente apto para a navegação, capaz de fazer uns modestos dezessete nós na carreira lenta mas segura para a índia, levando carga e passageiros e tocando em vários portos.
Quando Moray abriu a mala, que continha alguns de seus poucos pertences - roupa interior lavada e passada por Mary, mais os dois uniformes de praxe, fornecidos pelos escritórios da companhia em Winton, - sentiu-se completamente exausto e com dor de lado. Um agitado Mar da Irlanda e uma péssima travessia do Canal não contribuíram para suas melhoras. Sentiu dificuldade em levar a bom termo seu primeiro dever - o de examinar a tripulação nativa, e havia noites em que a tosse incomodava tanto, que ele mal podia
dormir. Preocupado não apenas consigo, mas também com o engenheiro seu vizinho, um velho escocês chamado Macrae, ao qual certamente devia ter incomodado, tratou-se com codeína. Em Tilbury, no entanto, onde ficaram dois dias ancorados, uma carta de Mary lhe infundiu novo ânimo, e ao passar o Nore, já realmente a caminho da índia, começou a sentir-se o mesmo de outrora. O navio tinha agora vida própria, as hélices avançavam com uma palpitação mais vigorosa, vozes e risos ecoavam nas cobertas...
No salão de jantar, cada oficial ocupava seu lugar à cabeceira da mesa. Moray, na mesa dele, tinha por comensais apenas cinco passageiros, todos um tanto idosos, e - por que não confessá-lo? - monótonos: dois plantadores de chá, escoceses, bem avançados em idade - Henderson e Macrimmon - que regressavam a Assam; um tal Mr. S. A. G. Mahratta, diretor hindu de uma fábrica de tecidos de Cawnpore, e um oficial do Serviço Colonial Inglês com sua mulher ictérica e de ar severo - Mr. e Mrs. Hunthunter. com exceção dos plantadores, os quais, especialmente depois de uma sessão no bar, se inclinavam para a jocosidade, e de Mahratta, homenzinho intrometido e hipocondríaco, doente do estômago, que às vezes fazia graça sem querer, o tom geral das conversas era reservado e prometia ser difícil.
Agora, porém, vencida a escura turbulência da baía, o sol saiu de repente, e o céu e o mar ficaram muito azuis nos estreitos da costa a sudeste da Espanha e no rumo de Marselha, porto onde mais carga devia ser recolhida a bordo. Organizavam-se jogos de convés, e Moray foi advertido pelo primeiro-oficial - um irlandês alto e magro, de bom génio, chamado O'Neil - de que cabia ao médico organizá-los. Assim, munindo-se de papel e lápis, Moray começou a abordar os passageiros, primeiro com o sentimento da sua incapacidade para relações em grande escala, mas obtendo bom êxito, após algum acanhamento preliminar. Sua posição oficial tornava tudo mais fácil do que imaginava; não precisava procurar, era procurado; parecia que ser médico de bordo era uma posição de certa importância... Ao chegarem a Marselha, já havia feito várias listas de concorrentes aos jogos de convés - lançamento de disco,
amarelinha-de-bordo e tênis-de-mesa, - e começou a ouvir, não sem uma careta, que era frequente os passageiros referirem-se a ele como ao "nosso amável doutorzinho".
Em Marselha esperava-o uma carta de Mary, comprida de cinco páginas.
Leu-a avidamente na cabina, sorrindo aos retalhinhos de notícias, comovido pelo simples relato do que ela vinha fazendo,
sentindo em tudo uma constante solicitude pela sua saúde. Esperava que suas dores já tivessem passado, que tossisse menos, que estivesse tomando muito cuidado consigo... Enviava-lhe todo o seu amor. Querida Mary, como ele sentia sua falta. Na sala de cirurgia, acomodando-se à escrivaninha, respondeu falando-lhe de suas atividades, e ainda pôde alcançar o correio antes da saída da mala postal. O Pindari não demorou mais de doze horas no porto. Repleto de carga, trancaram-se as escotilhas quase no instante derradeiro (o trem de Paris chegara com atraso), e três novos passageiros entraram a bordo. Como quase todas as mesas do salão já estivessem tomadas, foram sentar-se na do médico, sendo os seus nomes acrescentados à lista dos viajantes: Mr. e Mrs. Arnold Holbrook, e Miss Dóris Holbrook. Moray examinou-os sub-repticiamente quando os três se sentaram à mesa do almoço.
Holbrook era um homem de cerca de sessenta anos, baixo, pesado e ofegante. Tinha uma cara vermelha cheia de manchas e poros dilatados, parcialmente coberta por uma barba curta e grisalha, e olhos congestionados, divertidamente perspícuos. Estava muito mal vestido, em verdade com um paletó esverdeado comprado feito, camisa de flanela cor de cinza e uma retorcida gravata castanha. Sua esposa, uma mulherzinha doméstica, de feições miúdas e expressão dócil, trazia, em agudo contraste, um pesado vestido de grande elegância e um complicado toque de sequins pretos. Envergava o vestido com uma visível sensação de incómodo; era como se a embaraçasse, e ela tivesse preferido um traje mais simples. Instintivamente, Moray visualizou-a num frouxo roupão estampado, a cumprir seus deveres domésticos numa cozinha bem sortida. Mas a dama ostentava tantas jóias, que a princípio ele supôs que fossem falsas. A filha parecia não ter mais de vinte anos. Era alta, de epiderme pálida e sem vida, bom corpo, cabelos escuros e olhos cor de ardósia, que ela, sentada ereta e muda, manteve taciturnamente abaixados durante a maior parte da refeição.
Não assim Holbrook. com sotaque de Manchester - cordialmente, expansivamente, e com um ar experimentado, quebrou o gelo da apresentação. com grande tato deu início à conversa, gracejou com Tamil, o garçom, até que este sorriu, provocou Mahratta a fazer um divertido relato de suas últimas dificuldades gastronómicas em Londres, o que fez que até mesmo os rígidos lábios de Mrs. Hunthunter sorrissem. Depois que despertou a mesa para a vida, casualmente revelou que seu filho se achava em Calcutá inaugurando uma nova filial da firma; que Dorrie - e olhou para a filha, que não
deu fé do seu olhar afetuoso - acabava de sair da Escola de Aperfeiçoamento de Miss Wainright, em Blackpool, e que essa viagem à índia era a um tempo de prazer e negócios. Só quando propôs encomendar champanha para todos foi que um olhar de censura da mulher lhe chamou a atenção.
- Está bem, mamãe - assentiu ele bem-humorado. - Bebê-la-emos no jantar. Concorda, Dorrie?
Dóris lançou-lhe um olhar de tédio.
- Pare com isso, papai. Já contou toda a sua vida.
- Minha filha é assim! - e riu-se com indulgência, com uma pontinha de orgulho. - Gosto que ela me repreenda para bem...
- E já era tempo.
- Ora, Dóris... - advertiu a mãe com brandura; depois, olhando em redor da mesa, acrescentou, à guisa de atenuante: - Nossa filha não anda muito boa ultimamente. E a viagem noturna foi verdadeiramente cansativa.
Naquela mesma tarde, cruzando o tombadilho rumo à sala de cirurgia, Moray deu com Holbrook parado diante do quadro de avisos, as mãos nos bolsos, olhos grudados na lista de esportes.
- Parece que alistou todo mundo a bordo, doutor.
- Percorri atentamente a lista de passageiros, senhor.
- A nossa Dorrie também gosta de esportes - disse. o outro, com um ar meditativo. - Parece que é taco em quase todos. Decerto arranjará um parceiro para ela, doutor. - Fez uma pausa. - E se fosse o senhor? Parece rapaz ativo.
Moray hesitou.
- Gostaria muito - disse, acrescentando rapidamente: - Se o regulamento o permitir... Falarei... falarei com o primeiro-oficial.
- Faça isso, rapaz. Dar-me-á muito prazer.
A impressão de Moray sobre a filha de Holbrook não tinha sido favorável e ele não queria ser arrastado ao papel de parceiro dela. Além disso, duvidava que, como tripulante, pudesse participar das competições. Entretanto, depois da última consulta, encontrou-se na ponte de comando com O'Neil e expôs-lhe a situação. O irlandês já se lhe mostrara amigável e prestativo, tendo-o ajudado eventualmente no cumprimento de seus deveres mais importantes.
- Claro que pode participar dos jogos, doutor - disse O'Neil num sotaque de Belfast, que se podia cortar à faca. - Espera-se que seja amável com as senhoras. Vi quando essa garota entrou a bordo. Parece que tem alguma coisa... - E O'Neil piscou o olho azul. - com um pouco de sorte, você até pode arriscar uma aventura.
- Não me interessa - respondeu Moray secamente.
Seu puro amor por Mary fazia dessa sugestão uma coisa revoltante, malgrado o bom humor com que lhe fora apresentada.
- Está bem. Em qualquer caso, seja amável com ela. Isso não lhe fará mal e poderá trazer-lhe algum bem. O velho está nadando em dinheiro. Laboratórios Farmacêuticos Holbrook. Começou com uma farmaciazinha de arrabalde, em Bootle. Arranjou uma fortuna cem pílulas. - E arreganhou um sorriso. - Fez funcionar os intestinos da humanidade. O remédio era o purgante. Isso me faz lembrar: já ouviu essa? - O'Neil, coração intrépido e galante, que fora torpedeado durante a guerra e nadara cinco horas no Oceano Atlântico antes que o salvassem, tinha verdadeira mania por anedotas picantes. Submetendo-se a ouvi-lo, Moray preparou a risada enquanto o outro relatava: - Um ianque vinha vindo por uma rua de Chicago, quando outro ianque, parado na calçada, o abordou. "Pode me dar o endereço de um bom farmacêutico?" - pediu ele. "Mano - disse o outro com uma pressa furiosa - se quiser o próprio farmacêutico de Deus, só tem de..."
E à expressão impublicável, O'Neil deu ao boné um ângulo mais empinado e debruçou-se na bitácula, rindo a bandeiras despregadas.
Moray ficou mais meia hora no tombadilho, andando de cima para baixo com o primeiro-oficial, vendo o litoral da França diluir-se na distância. Batia-lhe as faces um vento tonificante, sempre mais forte na proa. Drummond tinha razão: havia saúde no travo salgado do mar largo. Como melhorara, e como a vida a bordo era agradável! Esquecera-se da promessa que fizera a Holbrook; mas quando desceu, lembrou-se da filha, e, com um encolher de ombros, inscreveu seu nome e o dele num jogo de duplas.
CAPÍTULO DEZ
O tempo continuava bonito, o mar calmo, o sol brilhante; o dia
matizava-se de ocasos cor de violeta, diluindo-se em límpidas noites veludosas, onde o Pindari ia traçando a sua esteira fosforescente. Aquele era o mar de Jasão e Ulisses. De madrugada, dir-se-ia que o navio estava suspenso entre o céu e a água, intemporal e fantástico, não fosse a Sardenha aflorar a estibordo, sua saudável fragrância trazida para bordo por uma brisa suave e propícia.
Respirando fundo esse ar aromático, sem dor ou obstáculo, percebeu
Moray que sua pleurisia se acabara. Já não mais lhe era preciso aplicar no peito o estetoscópio. Tinha a pele curtida, nunca na vida sentira-se melhor. Depois de todos aqueles anos de incessante labutar, suas presentes condições de existência eram demasiado boas para serem verdadeiras. Acordado às sete pelo cabineiro, que vinha da cozinha na ponta dos pés, trazendo-lhe o chota hazri de chá e frutas frescas, levantava-se meia hora depois, dava um mergulho na piscina da coberta de esporte, depois vestia-se. O desjejum era às nove, depois do que ele fazia o seu giro de visitas, ou; uma vez por semana, acompanhado pelo Capitão Torrance, a inspeção oficial do barco. Das dez e meia ao meio-dia ficava em seu gabinete médico. O almoço era à uma, e, com exceção de uma ou outra consulta às cinco, ficava livre o resto do dia, só lhe incumbindo nesse ínterim o exercício da amabilidade e da atenção para com os passageiros. Às sete e trinta o melodioso gongo ribombava acima e abaixo dos corredores - e era um som sempre bem-vindo, uma vez que as refeições primavam pela sua excelência, bom tempero e abundância, sendo especialmente delicioso o caril nativo.
Na segunda-feira seguinte começaram as competições, e antes das oito, lembrando o compromisso, Moray fechou a sala de cirurgia e subiu à coberta de esportes para a primeira fase da dupla de ténis. Dóris já estava lá, de saia curta e colete forrado, postada junto dos pais, que, para constrangimento de Moray, ocupavam duas cadeiras vizinhas à quadra, para nada perderem do jogo. Enquanto ele pedia desculpas pelo atraso (em verdade, não se atrasara), ela permanecia muda e mal o olhava. Como saber se era nervosa, ou, segundo desconfiara à mesa do jantar, simplesmente perversa?
Seus oponentes, chegaram - um casal holandês recém-casado, os Hendricks, que ia a caminho de Chitagong - e o jogo começou. Ao princípio, Dóris se mostrou desatenta e errática, e embora ele nunca antes tivesse jogado ténis, tinha o olhar rápido e conseguiu anular os erros dela, que não levou em conta e corrigiu com seu costumeiro bom humor. Diante disso, a moça deu de si e começou a jogar brilhantemente. Tinha o corpo esguio porém bem desenvolvido - seios e quadris bonitos e arredondados, longas pernas bem feitas que a saia curta entremostrava. Os Hendricks, par gorducho e de pés pesados, não eram adversários para eles, que venceram belamente seis partidas contra duas.
Ao dar-lhe os parabéns, dizendo, "Seu pai me disse que a senhorita era boa no esporte, e é mesmo", ela lhe atirou um de seus raros olhares diretos, transitório e grave.
- Sim - observou - ensinaram-me alguns golpes... e outros eu mesma os aprendi. Mas não vai oferecer-me um drinque? Vamos Tomá-lo aqui em cima.
Quando o garçom surgiu com dois altos copos de limonada e gelo picado, ela se estendeu na espreguiçadeira de bordo, entrecerrou os olhos, e
pôs-se a bebericar o drinque com um canudo de palha. Ele olhou-a meio sem jeito, sem saber o que dizer - situação deveras estranha para quem, como ele, invariavelmente encontrava a palavra exata para cada ocasião. O calor do jogo trouxera alguma cor à pálida epiderme da moça, e levou o colete a aderir-lhe estreitamente aos seios, de modo a entremostrar os seus róseos mamilos apontando através do ralo algodão humedecido. É bonita, pensou Moray quase irado; mas que diacho acontece com ela? Perdeu a língua? Decerto que não, pois de repente ela pôs-se a falar:
- Estou contente porque ganhamos. Queria derrubar esse nojento casal de pombinhos holandeses. Já imaginou como serão na cama? Desculpe-me a estultícia, meu caro, mas gostaria de ganhar todas as partidas, ainda que fosse apenas para irritar os nossos deliciosos companheiros de viagem. Que gentalha! Detesto-a; e você?
- Não, não posso dizer isso.
- Mas não é possível! São uma gente pavorosa, principalmente a que se senta à nossa mesa, a tal de Mrs. Hunt-hunter - uma bruxa com cara de cavalo. Põe-me doente. É vulgar como a lama, palavra que é. E o navio, uma droga. Eu não queria fazer esta maldita viagem. Foram meus carinhosos pais que me arrastaram pelos cabelos para bordo. Minha cabina é considerada uma das melhores da coberta. Papai pagou um dinheirão por ela. Você verá. Um canil, com uma banheira que mais parece uma pia de cozinha. Isso é o pior; pois se há algo de que gosto, é de um bom banho. E você pode imaginar? Os nativos a servirem à mesa! Por que não nos arranjam garçons brancos?
- O garçom da nossa mesa me parece muito decente e amável.
- Ainda não reparou como cheira mal? É de morte! Tenho o nariz muito sensível. Isso tem algo a ver com os nervos olfativos, disse o médico a mamãe. Lero-lero desse saco de vento! A coisa é a seguinte: gosto das pessoas que cheiram bem.
- Será que eu cheiro assim? - perguntou ele, ironicamente.
Ela riu, espichando as pernas escancaradas.
- Quer saber? Francamente, você é a única luzinha no horizonte. - Não percebeu, naquele primeiro almoço, que simpatizei com você? Para ser franca, pedi a papai que o arranjasse para meu parceiro.
Ele não é mau: apenas bebe um pouco demais. Mamãe seria passável, se não cacarejasse tanto no que me diz respeito. Mas tenho de os pôr em ordem; frequentemente os congelo para que façam o que eu quero. Estou falando muito. Às vezes falo todo o tempo, outras vezes não falo nada, absolutamente nada. É assim que gosto de tratar as pessoas. Sou orgulhosa. Costumava deixar maluca a velha Wainright. Quando ela começava a pregar sermão, era só eu olhar e entrar em estado de coma.
- Refere-se à diretora?
- Sim - disse a moça com displicência. - Expulsou-me.
- Por que diacho fez isso?
Ela abriu um sorriso lento:
- Isso lhe será revelado no próximo número.
Na tarde seguinte, Dóris e o médico jogaram com bom êxito duas partidas de amarelinha-de-bordo e de lançamento de discos, com os pais da moça tornando a servir de espectadores. Moray gostou dos jogos. Nunca antes conhecera alguém como ela, tão divertidamente preconceituosa e intolerante, tão segura de suas próprias prerrogativas, e, no entanto, trazendo bem no fundo uma veia de lugar comum, quase de vulgaridade, que redimia suas intenções. Saber que ela gostava dele, lisonjeava-o. Agora via que os Holbrooks caducavam com a filha, apesar da irresponsável que ela era, e ficou menos surpreso do que devia quando os viu levantarem-se e avançarem para ele, surpreendidos e felizes com a tríplice vitória, Mrs. Holbrook, principalmente, teve para com ele um sorriso notavelmente cordial.
- Conseguiu que a nossa Dóris saísse da casca - observou ela. - E o senhor também saiu: sua atuação foi muito boa.
Dóris, que estava prestes a sair, não disse nada; mas pondo os olhos nos dele, sorriu-lhe de um modo peculiar. Moray conversou um pouco com os pais dela; depois, ao descer para a sala de cirurgia, observou que eles cochichavam, Mrs. Holbrook aparentemente instando para que o marido entrasse em ação. com efeito, alguns minutos depois, Holbrook rolou dispensário adentro - viçoso, jubiloso e gárrulo.
- Não estou doente, doutor. Não tenho nada. Só quero uma dose de bismuto. Nada como bismuto para o estômago. Onde o guarda? Deixe que eu mesmo me sirvo.
Moray apontou-lhe o frasco de bismuto, pensando, ao vê-lo derramar uma generosa dose na palma da mão, se não devia alertá-lo sobre o estado de seu .fígado, palpavelmente cirrótico. A maior parte
do tempo, em companhia de Henderson e Macrimmon, os dois plantadores de chá, o velho, com exceção de suas visitas à coberta de esportes, era praticamente uma peça da mobília do bar.
- Isso é o que serve - exclamou Holbrook lambendo o montículo de pó branco com preênseis lambidas de sua língua saburrosa. - E aqui está o pagamento, doutor.
- Santo Deus, sir... Não posso aceitar tanto... é... é demais!
- Doutor - disse Holbrook fitando devagar Moray com seus olhinhos astutos e congestionados - se quer conselho de um homem que viu muita coisa neste mundo desgraçado... quando lhe aparecer uma boa oportunidade, agarre-a!
E com uma cálida generosidade, apertou na mão do médico uma nota de cinco libras.
Pensativamente recolocando o frasco na prateleira depois que Holbrook saiu, Moray, que se deixara contagiar pelo vocabulário de O'Neil,
pilhou-se a rir: "De agora em diante, o melhor será ganharmos todas as competições."
Mas isso não era mais que uma atitude. A moça começara a interessar-lhe, como tema de estudo. Às vezes parecia-lhe muito madura para a idade que tinha, outras vezes, muito retardada. Um dia estava taciturna, no dia seguinte divertida e provocantemente palradora. O que ele mais admirava nela era a sua completa indiferença ao que as pessoas pudessem pensar a seu respeito. Não procurava a popularidade, e, ao contrário dos que já se chamavam pelos primeiros nomes em grupinhos exclusivos, ela antes parecia gostar de ficar de fora. Tinha especial talento para arremedar as pessoas e podia ser terrivelmente grosseira com quem pretendesse adulá-la ou mostrar-lhe afeição. Sua atitude descurada se estendia até aos objetos pessoais, dos quais possuía uma grande variedade. Estava sempre esquecendo uma bolsa, uma écharpe ou um suéter na coberta, deixando que se extraviassem coisas valiosas sem que isso lhe importasse um caracol. Essa complexidade de caráter despertava curiosidade no rapaz. Quando, ao almoço ou ao jantar, ela o fitava com seu sorriso disfarçado ou enigmático, ele ficava mais perplexo do que nunca. Por mais singular que isso parecesse, inclinava-se a ter pena dela.
Tudo isso emprestava sabor de interesse àquilo que, durante as competições, a mãe expressara tão ineptamente pela frase "tirar Dóris para fora da casca". Em verdade, a competição nos jogos não era muito acirrada, uma vez que quase todos os passageiros eram idosos. Apenas um par parecia oferecer uma forte oposição, os Kinderleys,
- casal com dois filhos que regressava a Kadur, no Misore, após três meses de licença. O marido tinha cerca de trinta e cinco anos, era excessivamente cordial e franco, gerente de uma pequena propriedade de café a quem prejudicara grandemente a crise causada pelo excesso de produção do Brasil. Sua mulher, que tinha fama de ótima tenista, era uma mulherzinha agradável, de expressão menos grave do que franca.
Sentavam-se à mesa do primeiro-oficial. Enquanto o Pindari se aproximava do Canal de Suez, Moray e sua parceira, que tinham jogado bem, ficaram para as três semifinais. Assim também os Kinderleys.
Na véspera da chegada a Porto Said, Mrs. Holbrook, sentada na coberta de passeio, acenou para Moray, indicando-lhe a cadeira ao lado. Em várias ocasiões tinha ele sido honrado com esse convite, e, em resposta às ternas perguntas que ela lhe fazia, revelara-lhe o suficiente de suas primeiras lutas - de algum modo, comparáveis às dela - a fim de conquistar-lhe a simpatia. Agora, após um comentário sobre o tempo admirável que fazia e uma pergunta sobre a hora de atracação do navio, ela inclinou-se para ele.
- Amanhã desceremos à praia para ver a cidade e fazer algumas compras. Esperamos que nos acompanhe.
Ele sacudiu a cabeça.
- Sinto muito, Mrs. Holbrook. Preciso ficar a bordo. Tenho as guias de saúde para preencher. E há um marinheiro doente que precisa ser internado.
- Que pena - disse ela, consternada. - Mr. Holbrook não podia falar com o Capitão Torrance?
- Oh, não! - atalhou ele depressa. - Isso está fora de cogitação. A guia sanitária é mais importante... O navio não poderá zarpar sem ela.
- Bem - disse Mrs. Holbrook. - Contávamos com você. Dóris é que vai ficar desapontada.
Seguiu-se uma breve pausa; depois, num tom confidencial, ela começou a falar sobre a filha. Dóris era um amor de garota, a menina dos olhos de seu pai, mas tinha sido... bem, tinha sido uma pequena preocupação para ambos. Era como se eles não lhe tivessem proporcionado o melhor de tudo quanto havia, sim, por exemplo, a melhor educação que o dinheiro podia dar... A escola de Miss Wainright era uma das escolas mais seletas do Norte da Inglaterra. Dóris falava francês e tocava piano deliciosamente, mesmo em se tratando de peças clássicas. Recebeu toda a espécie de lições particulares de ténis e coisas assim, lições de elocução e de
etiqueta; o pai queria assegurar-lhe todas as vantagens da existência. Mas Dóris era uma garota tão sensível! Não era difícil, isso não, mas... bem... era temperamental, talvez, e embora fosse às vezes muito viva e muito franca, dava ocasionalmente para ficar deprimida - exatamente o contrário de seu irmão Bert, que era invariavelmente o sujeito mais alegre do mundo. Mrs. Holbrook fez uma pausa, e seus olhos cintilaram à lembrança do filho. Pois bem, concluiu ela, não diria mais nada, a não ser que estava muito grata, e também Mr. Holbrook, pela maneira por que ele se interessara por Dóris. Fizera-lhe um bem enorme, tirando-a, como se diria para fora da casca.
Moray emocionou-se. Gostava daquela mulherzinha chã, ajoujada de dispendiosas tetéias e vestidos impróprios, que o marido amontoava em cima dela; mulherzinha que pouco se importava com a sua origem; que, a despeito da fortuna de Holbrook era inteiramente isenta de pretensões sociais, e que entretanto se 'mostrava tão preocupada, e até mesmo angustiosamente solícita com a filha. Todavia ele mal sabia o que responder, e viu-se obrigado a recorrer à simples polidez.
- Dóris é uma excelente garota. Estou certo de que superará suas pequenas dificuldades. Repare como se vem saindo nas competições. Mas, naturalmente, se houver alguma coisa em que eu possa ajudar...
- O senhor é muito bom, doutor. - E Mrs. Holbrook apertou-lhe a mão, maternalmente. - Não preciso dizer que todos nós simpatizamos muitíssimo com o senhor.
CAPÍTULO ONZE
Às dez horas do dia seguinte estavam à vista de Porto Said. Passavam a rebentação com sua grande estátua de Lesseps, e após uma hora à espera de que fosse içada a bandeira amarela da quarentena, o Pindari atracou no cais e começou a carregar óleo e água. À altura do meio-dia, todos os passageiros que pretendiam ir a terra tinham abandonado o navio. Os Holbrooks acenaram a Moray enquanto desciam o passadiço, e ele sentiu pena de não estar junto deles. Vista do tombadilho, a cidade apresentava um ar misterioso e sedutor. Para lá do amontoado de galpões das docas, ela se estendia amarela e branca, sobre um horizonte enevoado pelo calor. Brilhantes
tetos e balcões de azulejo cintilavam ao sol. Dois minaretes gémeos, em forma de lápis, erguiam-se delicados acima das estreitas ruas apinhadas, cheias de cor, de som e movimento. Que pena ele não ter podido aceitar o convite de Mrs. Holbrook!
Tinha, entretanto, muito que fazer. O lascar, na enfermaria de bordo, era um caso suspeito de osteomielite, e quando o médico portuário confirmou o diagnóstico, houve papéis a assinar e irritantes delongas a serem vencidas, antes que o doente pudesse ser removido de ambulância para o hospital. Era ainda preciso examinar as caixas-d'água, depois do que o capitão mandou chamá-lo, e assim o tempo correu. O navio estava cheio de mascates, polícias, estivadores, visitantes egípcios e agentes de companhias. Bateram quatro badaladas antes que ele se visse temporariamente livre, e, como a mala postal se fechasse dentro de meia hora, ele mal teve tempo de acabar e datar a carta para Mary, que ele fora escrevendo nos momentos de folga dos últimos cinco dias. Sentia-se culpado pela delonga, tanto mais que, quando o carteiro entrou a bordo às seis horas, havia na sacola, para ele, três cartas de Mary e mais uma que, pela letra, julgou ser de Willie. Não querendo lê-las à pressa naquela hora de atropelo, resolveu guardá-las no armário e saboreá-las à vontade quando voltasse à noite para a cabina. Ainda tinha de preencher em duplicata uma guia de pedido de suprimento extra de emetina - grassava na cidade uma epidemia de disenteria amebiana, dizia-se - que ele conseguira do médico portuário como medida de precaução. Depois de preencher os formulários da companhia, levou-os ao escritório do comissário. Só então se lembrou de que era esperado na sala de fumar, onde deveria encontrar-se com os Holbrooks, que o tinham convidado para um drinque antes do jantar. Sabendo-se atrasado, precipitou-se pelo tombadilho de passeio, dando encontrões nos passageiros, dentre os quais, muitos em estado de grande hilaridade, com fezes na cabeça e carregados de compras de bazar: caixas de doces cristalizados e cigarros egípcios, feitos, segundo O'Neil, de estrume de camelo; modelos da Esfinge em terracota; artigos de latão, cobertos de hieróglifos - em sua maior parte, puro ferro-velho, Macrimmon, muito bêbado, envolvido num albornoz branco, comprara um feto metido numa garrafa.
Os Holbrooks tinham regressado mais cedo e já esperavam, os três, quando ele empurrou as portas de vidro da sala de fumar: o pai, a mãe e Dóris, rodeados de uma porção de embrulhos. Holbrook, de excelente bom humor, encomendou os drinques: uísque
2. Marinheiro da índia. - N. T.
duplo para ele, coquetéis de champanha Para os outros. Mrs. Holbrook, que raramente "se entregava" e em geral tentava reprimir o marido, deixou-se convencer à alegação de que ia fazer-se uma comemoração especial. Depois a conversa recaiu sobre a expedição. Fora um grande sucesso. Haviam tomado um carro e rodado pela praia do lago Menzala, visitaram a grande mesquita maometana, presenciaram as proezas de um encantador de serpentes, examinaram uma coleção de escaravelhos no museu, lancharam no jardim do Palácio-Hotel Pêra, onde foram brindados com um maravilhoso caril de peixe, servido com sementes de girassol e pimentões verdes, e finalmente, quando já voltavam para o navio, haviam descoberto uma loja maravilhosa.
- Não é um lugar barato, como os bazares - disse Mrs. Holbrook. - O dono chama-se Simon Artz. Foi um prazer comprar na loja dele.
- Artz é homem bem dotado - disse Dóris, rindo-se. - Tem tudo de toda a parte.
Mirando-se no espelhinho da bolsa, renovava o batom dos lábios. E, ou fosse por causa do sol ou da animação do passeio, suas faces estavam levemente coradas, e lhe emprestavam maior brilho aos olhos. Nunca parecera tão cheia de vida.
- E compramos uma porção de coisas para dar aos amigos - continuou Mrs. Holbrook. - Não o esquecemos, doutor. Ficou aqui trabalhando como um mouro por todos nós, enquanto nos divertíamos. - E com um sorriso afetuoso, estendeu-lhe um pequenino embrulho oblongo.
As faces vermelhas, ele o apanhou canhestramente, sem saber se devia abri-lo ou não.
- Vamos, dê uma espiada - instou Holbrook, com um olhar malicioso. - Não morde.
Moray abriu o embrulho esperando encontrar alguma lembrança banal. Mas o que viu foi um relógio de pulso de ouro vermelho, de pulseira também de ouro, delicadamente trançada, fabricação Patek Phillippe, o melhor e o mais caro cronometro feito à mão pela relojoaria suíça. Devia ter custado uma fortuna. Moray ficou sem fala.
- O senhor e a senhora são muito bondosos, muito generosos... - gaguejou. - Era isso mesmo o que eu queria e precisava...
- Não diga mais nada, rapaz - atalhou Holbrook. - Nossa Dorrie percebeu que o senhor não tinha relógio. Foi ela que escolheu.
Moray voltou-se e viu que ela o olhava fixamente com um olhar de desafio e intimidade que de certo modo, os encerrava a ambos numa espécie de conspiração.
- Mude de assunto, papai; deixe-o passar. Ou conto da sua insistência em perguntar coisas sobre a dança do ventre...
Holbrook riu-se, enxugou o copo e ficou de pé.
- Estou esfomeado. Mandemos o camareiro levar estas coisas para a cabina e vamos jantar.
Enquanto o navio continuava atracado, o jantar se transformara numa refeição elástica, servida a qualquer hora, e eles foram os primeiros a chegar ao salão. A sensação de intimidade, iniciada na sala de fumar, não se alterou, e eles formaram um grupo alegre, do qual Dóris era a figura mais divertida. Sua atitude para com os pais - atitude de criança mimada, sempre superior, e que variava entre um desprezo trombudo ou tolerante - foi substituída por uma espécie de zombeteira ironia, dirigida especialmente ao pai, que respondia no mesmo estilo. A princípio Moray deduziu, pouco amavelmente, que Holbrook comprara para ela, no porto, alguma coisa muito bonita. Mas não: agora ele a arreliava porque recusara todas as ofertas. Algumas das observações que ela fazia, embora talvez demasiado agudas, eram muito divertidas, especialmente quando começou a arremedar maliciosamente os companheiros de mesa ausentes, o que provocou restrições por parte de sua mãe: - Vamos, Dóris... lembre-se, querida... não se exceda.
A isso Dóris se aquietou com um olhar de esguelha a Moray, o que fez dele um cúmplice da brincadeira. Nesse intervalo, as máquinas começaram a trepidar, e o navio afastou-se das docas. No início da passagem pelo canal, Mrs. Holbrook, visivelmente satisfeita pelo restabelecimento da harmonia na família, sugeriu tomarem o café na coberta superior, para verem o sol se pôr sobre o deserto. Uma palavra de Holbrook ao
camareiro-chefe foi suficiente para eliminar qualquer dificuldade, e logo após, abrigados sob um toldo a estibordo, bebericavam café quente a uma mesa redonda, sortida de frutas frescas, picadinho à moda chinesa e gengibre em conserva. À medida que o grande disco se fundia com o vasto deserto de areia, o perfil das palmeiras salientou-se na luz ofuscadora, e uma fila de camelos, entre tendas de beduínos - tribo nómada - desfilou lentamente no horizonte. Depois surgiu a lua no céu de anil, cada vez mais brilhante à medida que a noite ia avançando. No salão principal, a orquestra de bordo começou a tocar uma miscelânea de árias populares da época. Moray, sentado junto de Dóris, ouvia-lhe o respirar inquieto. Reclinada na preguiçosa, braços cruzados sob a nuca, ela não parava um minuto; era como se lhe fosse impossível encontrar uma posição mais cómoda.
- Não está bem? - perguntou ele. - vou buscar uma almofada.
- Uma almofada! Desculpe-me se rio... Logo melhoro... Esta noite sinto-me esgotada...
- E quem não se sentiria? Impossível duvidar de que se está no Oriente. Que céu!
- E ainda com música! - E ela sussurrou uns compassos de Meu Coração. Emudeceu, parou, tornou a sussurrar, depois exclamou: - Se isto continuar, enlouqueço!
Ele riu-se.
- Antes que enlouqueça, quero agradecer-lhe pelo belo relógio.
- Sei o que quero. Gostei do relógio, e, para ser franca, também gosto de você. Opõe-se a isso?
- Não, absolutamente. Fico muito satisfeito e sou-lhe grato.
Silenciaram por um ou dois minutos, depois ela falou:
- Este ambiente não o afeta? É como se a gente estivesse mergulhada num banho de leite morno. Não que eu já tivesse tido essa experiência: é uma simples comparação. A via-láctea... e a gente a perder o sabão! Gostaria de ir nadar. Não naquela piscina, miserável, mas numa praia deserta, onde ficássemos sozinhos... Nada de maios. - Tornou a rir. - Não fique tão chocado, seu idiota. Você nunca se sentiu tenso e excitado, de pé no topo do mundo? - E batendo o pé no convés, cantarolou: "Estou sentada no topo ao mundo, cantando uma canção, rolando por aí afora..." - Que sensação maravilhosa! Quando a sinto, estou pronta a fazer qualquer coisa. Sinto-a agora... se é que isso lhe interessa. - E espreguiçou-se em todo o comprimento, tornou a cantarolar, depois sentou-se: - Não posso afastar da cabeça essa maldita canção. Mas como você é acanhado! Decerto está querendo dançar. Venha: vamos dar uma volta.
Fez-se uma pausa constrangida, depois ele disse:
- Receio não ser par para você.
- Por que não?
- Vai ficar surpresa: não danço.
- O quê? Diga isso a outra. Está me tapeando.
- Não estou - e teve de sorrir ao ver a expressão no rosto dela. - Vivi sempre muito ocupado com meus estudos; não tive tempo de aprender jogos e prendas de salão...
- Mas chegou a hora de aprender. É muito fácil, se a professora é boa. E eu sou.
- Não, palavra... vou pisar-lhe nos pés, fazer de mim um asno perfeito...
- - Mas ninguém está vendo! O velho foi para o bar, mamãe está cochilando. Temos música e lua. Tudo livre, tudo grátis, em troca de nada. - Levantou-se e estendeu-lhe a mão. - Venha: dar-lhe-ei disposição para dançar.
Ele ergueu-se e, um tanto cerimonioso, pôs o braço na cintura dela.
- É um foxtrot - ela explicou-lhe. - Acompanhe o compasso. Passos curtos. Agora vire. Dê uma volta. Segure firme; mais perto... Não vou quebrar. Eu disse mais perto. Está melhor. Por estranho que pareça, temos de fazer isso juntos!
Era surpreendentemente fácil. A música, envolvente, e ela, tão boa dançarina, tão sensível e de postura tão lassa, que ele descobriu-se a seguir instintivamente a batida do ritmo, improvisando passos,
deixando-se conduzir pelo par. Quando a orquestra no andar de baixo acabou de tocar o número, ela fez-lhe um aceno de cabeça condescendente e significativo.
- Eu não dizia?
- Estupendo! - confessou ele. - Não imaginava que fosse assim tão fácil. É um bom exercício.
Ela soltou uma risada curta e singular.
- E uma maneira de ver...
- Naturalmente, você é especialista... maravilhosa de fato.
- É uma das coisas que me apaixonam. No último ano de colégio, fugia nos sábados à noite com outra menina e íamos para o Palais local. Bancávamos as profissionais... sabe? seis pence por vez... Divertíamo-nos à beça, tapeávamos sem parar, mas uma noite houve um rebuliço...
- Por que foi que saiu do colégio?
com um ar ofendido ela atirou inesperadamente a cabeça para trás.
- É uma questão muito pessoal. Não gosto que a suscitem desse jeito. A culpa não foi minha. Na realidade, se quer mesmo saber, a maior parte do tempo eu dançava com Bert, meu irmão. E ele é bastante respeitável. - Riu-se então, subitamente. - Será mesmo? Não ligue: perdoe-me. Quer me dar um cigarro e ir buscar o isqueiro? Estão na minha bolsa, ao lado da cadeira.
Inclinou-se para ele, que acendia o isqueiro de ouro.
- Não fuma? - Ele sacudiu a cabeça quando ela lhe ofereceu um cigarro, - De quantas coisas você viveu privado!
- Tê-las-ei um dia.
- Não adie muito. Eu sempre vou direito ao que quero.
Ficaram de pé, dando as costas para o corrimão de popa, até que a orquestra voltou a tocar. Ela jogou fora o cigarro fumado pela metade e virou-se para ele.
- Vamos começar. Faça-o com sentimento. Imagine que me apanhou na calçada de Blackpool e que nos juntamos...
- Santo Deus! - e ele arreganhou um sorriso. - Não é minha linha.
- Por isso que você é tão bom - murmurou ela, apertando-se a ele.
- Seja como for, experimente.
Dançaram as três contradanças seguintes, e a cada uma ele podia ver que progredia. A experiência era nova, e ele se excitava, mercê do rápido aprendizado. Entretanto, estava de olho nas conveniências, a fim de não se exceder. Ao se aproximarem de Mrs. Holbrook, perfilou-se:
- Muitíssimo obrigado, Dóris. Foi simplesmente estupendo; e agora... - disse olhando o relógio de pulso - devo dizer boa noite.
- Boa noite nada, é muito cedo e nós apenas começamos a nos divertir!
- Não, Dóris: preciso realmente descer.
Ela fitou-o fixamente, seus olhos cor de ardósia sombreados de raiva e desapontamento.
- Até onde chega a sua estupidez? Desperdiça tudo! E com esta lua, e logo quando estamos nos animando! Se está cansado, sentemo-nos um pouco.
- Não, não estou cansado. Mas acho que já é hora de nos recolhermos.
Mrs. Holbrook, que, despertada do cochilo, observava-os com indulgência, também parecia pensar assim. Levantou-se e encaminhou-se para eles.
- Hora de ir para a cama - observou. - Tivemos um dia muito agitado.
- O meu foi muito agradável, graças à senhora - disse Moray amavelmente.
- Vai se arrepender por haver-me abandonado desse jeito - Dóris disse-lhe no ouvido sem mover os lábios, no instante em que roçou por ele. - Espere só!
"Está brincando - pensou ele. - Não pode estar falando sério."
Deram-se boas noites - o de Dóris, violentamente mal-humorado; dir-se-ia que estava realmente furiosa.
Depois, com os últimos compassos de Desirée ainda vibrando em seus ouvidos, Moray desceu para a cabina, acendeu a luz, e
ali, no armário de acessórios, como uma censura, a encará-lo, estavam as cartas de Mary e Willie.
Imediatamente mudou de disposição. Chocado com o seu próprio esquecimento, despiu-se rápido, subiu para a cama-beliche e, cheio de contrição, começou a ler. Havia ao todo meia dúzia de folhas preenchidas com a letra grande e redonda de Mary. Ela começava por acusar o recebimento de sua carta de Marselha, dizendo quão alegre se achava por suas melhoras. Entretanto pedia-lhe que continuasse a se tratar, principalmente evitando o ar noturno; esperava, igualmente, que seus deveres não fossem demasiado exigentes. Quanto a ela, ia bem de saúde, embora achasse muita falta dele; marcava na folhinha os dias que faltavam para ele regressar. Mas levava vida ativa, com muito trabalho de costura e de croché. Comprara fazenda para as cortinas de sua futura casa, e também alguns restos de tecido para fazer com eles uma colcha de retalhos. Na loja de Grant, logo no fim da Esplanada, descobrira uma pechincha: uma linda mobília de sala de visitas, de segunda mão. Seria uma ótima compra. Só queria que ele a visse, o que logo havia de ocorrer; pedira a Grant que a reservasse. Grande pena que seu pai não andava muito bem ultimamente; mas pudera ajudá-lo um pouco na padaria, com Donaldson, o gerente. Assinava simplesmente: de sua Mary.
Ele acabou de ler com uma expressão singular e um esquisito aperto no coração. Captara porventura uma nota de ansiedade, uma corrente subterrânea de desânimo, quem sabe, nas palavras dela? Mary escrevia com a maior candura, sempre de coração aberto; entretanto, bem podia ser que não tivesse dito tudo. Voltou-se precipitadamente para a carta de Willie:
Caro David,
Espero que esteja bom e fazendo boa viagem. Gostaria de estar aí com você. Gostaria de visitar todos esses países estrangeiros, especialmente a África. Aqui as coisas não correm muito bem desde que você partiu. O tempo ficou frio e húmido, e papai passou um mau bocado com o coração, depois que um homem veio um dia destes conversar com ele. Ouvi tia Minnie dizer que os Stoddarts nos puseram a faca no peito. Mary está na padaria, fritando bolinhos. Tenho a certeza de que acha uma terrível falta de você. Eu também. Por isso diga ao capitão que se mexa e volte logo.
Afetuosamente seu, Willie
Preocupado, depôs a carta, reconhecendo, naquelas frases breves e inocentes, que Mary estava sofrendo dificuldades domésticas. . . também achando falta dele - uma falta terrível. O coração se lhe tornou a derreter de amor e de saudade, e também de remorso, ao pensar no conforto, ainda mais, no luxo, da vida amena que levava a bordo do Pindari. Subitamente desejou nunca ter feito aquela viagem. Se agora pudesse ao menos estar junto dela para a consolar e acariciar... Precisava fazer alguma coisa... alguma coisa. Dominou-o a necessidade de uma resposta pronta, de uma ação imediata. Pensou alguns instantes de testa franzida, depois apanhou o fone de intercomunicação oficial e pediu que ligassem para a sala de telegrafia. Era poupado e tinha o olho no futuro, mas precisava hipotecar ao menos uma pequena parte do seu ordenado para se comunicar imediatamente com Mary.
- Sparks, quero enviar um radiograma. - E deu o endereço. "Acabo receber cartas Porto Said. Não se preocupe. Tudo se afranjará quando eu voltar. com todo o amor, David."
Depois que, palavra por palavra, Sparks repetiu a mensagem, Moray agradeceu-lhe e esboçou um sorriso. Mary ficaria animada e satisfeita ao receber a mensagem que iria ter às suas mãos através dos oceanos! Como se sentiria confortada! com a cabeça mais leve, e já agora repleta de pensamentos carinhosos, apagou a luz e dispôs-se a adormecer.
CAPÍTULO DOZE
A CHAVAM-SE nos estreites do golfo de Suez, com os picos do Sinai tremeluzindo nas alturas, por entre a húmida neblina. Durante três dias a canícula fora insuportável. No Mar Vermelho, o sol ardia sobre o Pindari, e as rochas de Aden, queimadas até adquirirem uma cor de ocre calcinado, rachadas e fendidas, estavam de todo escalvadas, e o próprio porto parecia tão inóspito que poucos passageiros desceram à terra. Os Holbrooks faziam parte dos que permaneceram a bordo. Dóris, desde aquela noite da expedição a Suez, não mais aparecera na coberta, "presa na cabina com uma ligeira indisposição", explicou Mrs. Holbrook a Moray. Ele estava quase a oferecer-lhe os préstimos, quando uma certa reserva na maneira de Mrs. Holbrook, talvez uma insinuação de que se tratava de algo delicado, o reprimiu. Pensou que talvez se tratasse de algum
benigno transtorno mensal, conclusão que se acentuou quando Mrs. Holbrook murmurou confidencialmente:
- Às vezes Dóris tem desses transtornos, doutor.
Mandou-lhe, por conseguinte, suas recomendações, acrescentando que aquele calor terrível era suficiente para derrubar qualquer pessoa.
A temperatura elevada fizera com que ele ficasse de repente bastante ocupado. Além de uma corrida de pacientes ao gabinete médico, em virtude do surto normal de comichões e brotoejas, ou por causa do excessivo empenho para bronzear a pele, apareceram-lhe alguns casos mais sérios. Ficou particularmente preocupado com as duas crianças Kindersley, atacadas de colite aguda. Como o fato se seguisse logo após o susto provocado em Suez pela disenteria amebiana, Mrs. Kindersley ficou presa de um terror quase pânico; e como o estado dos gémeos chegasse a um ponto crítico, ele próprio começou a recear o pior. Mas depois de os atender durante quase quarenta e oito horas a fio, houve uma súbita melhora na madrugada do terceiro dia, e com um íntimo suspiro de alívio, ele pôde enfim render a mãe desesperada. Olhos vermelhos de fadiga, o colarinho desfeito, os cabelos desgrenhados, endireitou-se rígido, e leu o termómetro clínico à luz da lâmpada:
- Logo se levantam para correr por aí... incomodando a Deus e todo mundo - disse, sorrindo e passando o braço nos ombros da mulher - no começo da semana entrante...
Ela rompeu em pranto. Era uma mulher reservada e contida, mas, a exemplo de Moray, havia duas noites que quase não dormia.
- O senhor foi maravilhoso, doutor. Como lhe poderei agradecer?
- Deitando-se e descansando um pouco. Tem de preparar-se para as finais.
- Sim - disse ela enxugando os olhos e tentando sorrir, - Bem que eu gostaria de ganhar para o nosso bangalô aquele bonito serviço de chá. Mas seu par não está doente?
- Acho que não muito, Mrs. Kindersley.
Ela o acompanhou até à porta da cabina, e aí hesitou, olhando-o atentamente. Em seguida decidiu:
- Bill e eu temos o senhor em alta conta, doutor... especialmente depois disto... Temos pensado muitas vezes se o senhor não estará ... bem... começando a ficar comprometido... com Miss Holbrook.
- Comprometido? - repetiu ele desinteressado. Depois, com um súbito rubor, percebendo o que ela queria dizer: - Naturalmente que não.
- Fico satisfeita - e apertou-lhe a mão. - Ela é bonita, vê-se que está "caidinha" pelo senhor. Mas existe qualquer coisa esquisita nessa moça, qualquer coisa que eu não suporto... Diz Bill que ela é esquizofrénica. Quando a vê, sente arrepios. Agora: vai me perdoar porque falei?
- Não há de quê - respondeu ele, tentando falar com naturalidade, embora se sentisse não apenas constrangido como também melindrado. - Agora tome esse bromureto que lhe dei e vá deitar-se.
Desconsolado, Moray voltou para a cabina, barbeou-se e tomou um banho de chuveiro; a seguir bebeu duas xícaras de café e deu início ao seu giro de visitas. Começara a perceber que Dóris não era apreciada a bordo. Frequentemente grosseira, pouco se expandia com os outros, e, como quase sempre aparecesse de vestido novo e caro, com isso provocava a inveja das demais mulheres. Parecia-lhe igualmente que o seu contínuo sucesso nas competições estava suscitando comentários desfavoráveis. Seria essa a razão da repugnância de Mrs. Kindersley? Custava-lhe acreditar nisso. A interferência dessa mulher era bem intencionada. Mas, mesmo assim, ressentiu-se com ela. Que direito lhe assistia de intrometer-se em seus assuntos, especialmente se ele vinha procedendo de maneira impecável? E que diacho queria Kindersley dizer... com o seu vulgar menosprezo? Kindersley não era nenhum modelo. Era o tipo social do bebedor de cerveja, e provavelmente passava o dia inteiro no clube, em Kadur; não admirava que sua mulher fosse uma recalcada... Moray refletiu toda a manhã, e a direção de seus pensamentos, em vez de o levar a insurgir-se contra Dóris, lançou-o a favor dela. Confessava que a moça não pertencia ao tipo comum, mas seria pior por isso? Havia nela alguma coisa. Instintivamente levantava-se para defendê-la. Mas, ainda assim, talvez fosse mais prudente reduzir o esforço dela nas competições.
Para o fim da semana o tempo esfriou subitamente, e o trabalho lhe proporcionou alguma folga. Escreveu a Mary uma longa e carinhosa carta, com uma nota inclusa para Willie. Já naquela tarde criava novo ânimo, quando O'Neil, puxando-o para o lado, lhe disse:
- Acho que gostará de saber isto, doutor. Hoje de manhã, na ponte de comando, o capitão fez-lhe um elogio. Quando soube do caso das crianças Kindersley, disse que o seu trabalho aqui tem
sido formidável... e que você foi o único médico, neste navio, que ainda não criou calo no traseiro. - O irlandês fez uma pausa, fitou longamente o novo relógio de pulso de Moray e arreganhou um sorriso: - Presente de algum paciente agradecido? Continue, rapaz. Não me chamarei mais O'Neil se você não ficar logo rico.
- Já não lhe disse que não me interessa isso? - disse Moray com irritação. - Só tenho pena da moça, que é sempre deixada de fora.
- Então, por que você não fica de dentro? - disse O'Neil, rindo-se às gargalhadas. - Ora, não seja tímido: avance, rapaz. Todos nós estamos procurando um rabo de saia nesta maldita banheira; não fosse isso, e já estaríamos fritos. Mas olhe aqui: já ouviu a última...
Moray teve de rir. Que sujeito mais decente era O'Neil! Maldade alguma em suas observações: pura troça - a mesma que havia em seus versos profanos, de pé quebrado. Por que os Kindersley não seriam assim?
No dia seguinte, quando o frio aumentou, Dóris apareceu na coberta. Moray deu cem ela reclinada num lugar abrigado, o cabelo atado numa écharpe de seda, uma leve manta de caxemira sobre os joelhos. Tinha o aspecto melancólico, e sombras roxas sob os olhos. Não se mexeu: seus cílios simplesmente palpitaram, quando olhou para Moray.
- Olá, sua estrangeira, onde andou escondida? - E sentou-se ao lado dela. - Está melhor?
Ofendida com a vivacidade dele, Dóris não respondeu:
- Não foram poucos os que o calor abateu - prosseguiu ele. - Mas agora faz um tempo belíssimo!
Estavam no Oceano Indico, onde as suaves monções cantavam nas enxárcias, e um cardume de baleias novas, saltando alegremente, fazia jorrar fontes mornas em torno do navio.
- Já viu nossa escolta? - continuou ele. - Pensei que só no Ártico havia baleias; mas disse-me O'Neil que elas são encontradiças nestas regiões.
Ela não deu ouvidos à observação, que soou estulta e vazia. com a cabeça na almofada do espaldar e voltada para ele, olhava-o fixamente, como se estivesse sob a ação de um estupefaciente.
- Você é bem bom... - disse.
- Ora, Dóris... Que acontece?
- Não finja, depois do que fez. Foi um insulto. Ainda não lhe perdoei. com quem dançou enquanto estive ausente?
- com ninguém. Fiquei à espera da minha professora particular.
Seu rosto iluminou-se debilmente, e ela esboçou um lânguido sorriso.
- Por que não me visitou? Oh, não era preciso! Não suporto ninguém, quando tenho esses transtornos. Não são frequentes; não mais do que um em seis meses.
Ele a fitou curiosamente: então não era o que estava imaginando. Dóris prosseguiu:
- Mas não foi brincadeira. Mesmo depois que passa a dor de cabeça, fico tão arrasada...
- Isso não é de seu natural, Dorrie.
- Não me chame assim... parece mamãe. Quando adoeço, fico pensando no que vale a vida... Por que continuar? De que adianta? Sinto-me horrível, diferente de todas as outras moças... Elas, sim, são tão cheias de sentimentos delicados! Está me entendendo? Papagaio! - E riu de repente. - Como foi que me veio essa palavra? Papagaio!
- Ora, é bom a gente ser diferente...
- Folgo em que pense assim. Quis compreender isso quando saí do colégio. Queria que me respeitassem, queria tudo às direitas. Mas não adiantou. Por isso agora faço o que sinto, sabe? - o que sinto que desejo fazer. Não posso evitá-lo. Não está de acordo? Mata-se tudo quanto há dentro da gente, quando não se dá vazão aos sentimentos.
- Bem... - e ele a fitou perplexo. Por que estava ela a falar daquilo? Não podia absolutamente compreendê-la.
- Conhece o lema, "seja você mesmo"? É um desafio. Alegro-me porque sou feminina, feita para o amor; por conseguinte, quero ser eu mesma. Sentiu falta de mim? Não, não sentiu, seu bestalhão; faz amizade facilmente, vai com qualquer uma. Eu nunca tive amigos de verdade. Parece que não me entendo com ninguém, à exceção de você. - Fez uma pausa, depois disse em voz baixa: - Não vê que estou caída por você?
A confissão comoveu-o. A voz apática da moça e seu desânimo fora do comum tocaram-lhe o coração. Ao mesmo tempo, sentiu-se lisonjeado.
- Ora, vamos, Dorrie: não deve deixar que o desânimo tome conta de você. - Estendeu a mão e apertou a dela. - Se quer mesmo saber, senti realmente falta de você.
Inclinando a cabeça um pouco mais para o lado, ela fitou-o atentamente; depois, segurando a mão que ele fez menção de retirar, enfiou-a embaixo da manta de caxemira.
- É confortável assim. Senti tanta falta de você!
Moray ficou tremendamente embaraçado, não apenas pelo inesperado do gesto, mas porque ela, indubitavelmente sem o saber, comprimira-lhe os dedos contra a maciez quente da coxa.
- Vamos, Dóris - tentou ele falar com naturalidade. - Não deve fazer isso aqui; especialmente com o médico de bordo.
- Preciso que me acariciem, ainda que seja um pouco só. E olhe, não consinto qualquer um em minha vida. Oh, tenho andado com muitos rapazes: alguns, altos, largos de ombros, bonitos - mas você é diferente. O que sinto por você, não tem um pingo de egoísmo!
- Por favor... pode vir alguém...
- Diga que está me tomando o pulso - e lançou-lhe um olhar brejeiro e carinhoso. - Ou direi que é receita médica. Oh, não sabe o bem que me faz! Já me sinto menos lixo...
Afinal soltou-o com uma risada, mas não antes que uma onda de calor fizesse o sangue afluir às faces do rapaz. Calor que ele reprimiu no mesmo instante, forçando um sorriso de censura.
- Não deve se entregar a essa espécie de engodo, minha filha, ou vai acabar mal. Em primeiro lugar, você é bonita como o diabo; e, em segundo, pode topar com o homem errado.
- Já escolhi você...
- Agora escute, com toda a seriedade, - E decidido, mudou de assunto, - Estou pensando uma coisa. É a seguinte: como você ainda não está muito boa, acho que não devemos continuar participando das competições.
- O quê! - exclamou ela, perdendo o ar lânguido. - Dar o fora... agora? Depois que chegamos às finais e estamos quase certos de ganhar?
- Mas é que, se não dermos o fora e ganharmos os prémios, todos dirão que somos gananciosos.
- Que me importam os prémios? Um serviço de chá niquelado e uma louça barata, das Lojas Americanas! Claro que eu não as tocaria nem com ponta de um varejão! Mas, quando começo uma partida, tenho de acabá-la. Preciso convencer os outros de que valho alguma coisa. .. especialmente aquela cadela emproada, a Kindersley. Tenho respeito próprio. Quero mostrar que somos os melhores a bordo.
- Bem, talvez sejamos; mas por que esfregar-lhes isso na cara?
- Porque quero esfregar. E, quando quero uma coisa, habitualmente a obtenho. Agora posso estar um pouco por baixo, mas logo recupero a forma. E em três tempos!
- Então está bem. - E, com certa relutância, tratou de apaziguá-la. - Faça como quiser. Mas tem de jogar no sábado, o mais tardar. É a noite do jantar do capitão, e a apresentação será feita antes do concerto. - Dizendo isso, levantou-se. - Agora vou continuar no meu giro. Vê-la-ei mais tarde.
O sábado chegou, eles jogaram. Era de tarde e, segundo Moray previra, ganharam as três finais. Mrs. Kindersley e o marido esforçaram-se ao máximo no jogo de ténis, mas, como Dóris, inteiramente recuperada, fazia um jogo rápido e agressivo, eles mal puderam revidar à altura. O clímax foi atingido na última partida, quando Kindersley, num esforço para rebater, escorregou e, com um horrível baque, foi estatelar-se no tombadilho.
- Cuidado... - disse-lhe Dóris, debruçando-se por cima da rede com uma solicitude zombeteira. - Não faça o navio jogar...
Eram poucos os espectadores do jogo, de modo que a observação irónica tombou no vazio; e quando a partida terminou, os aplausos que saudaram os vencedores, mais do que frieza, foram de formalidade. Moray não gostou; mas Dóris, que voltara a animar-se, pareceu não reparar naquela ausência de entusiasmo. Seus pais, inevitavelmente presentes, também não repararam. Quando Moray saiu da quadra, Holbrook tomou-lhe o braço e arrastou-o para a sala de fumar.
- Acho que devemos ter uma conversa particular, doutor - observou ele com um sorriso de aprovação depois que se sentaram num canto tranquilo. - E quanto melhor a oportunidade, tanto melhor o negócio. Bebe alguma coisa? Não? Mas não recusa um suco de lima. Para mim, um aperitivo de uísque e soda.
Servidos os drinques, ele ergueu o copo.
- Saúde! Você me faz lembrar a mocidade, rapaz. Eu também era ambicioso - assistente de Química em Bootle, aviava receitas para uns farmacêuticos ignorantes, que não sabiam distinguir entre um ácido e um álcali. Muitas vezes tive de reclamar: "Doutor, o senhor prescreveu bicarbonato de sódio e ácido clorídrico na mesma receita! Se misturo os dois, o frasco explode!" Foi talvez por isso que me ocorreu a ideia de que havia muito dinheiro a ganhar com produtos patenteados. Quando consegui algumas economias, casei-me, abri uma farmaciazinha em Parkin Street, e comecei a vender remédios de minha própria fabricação. Pós Holbrook para Dores de Cabeça, Pasta de Sena Holbrook, Linimento Holbrook contra Torceduras... Lembro-me que me custava três quartas partes de pêni um frasco de linimento que eu vendia por um pêni e seis
pences, Excelente remédio! A Liga de Rugby gastava-o às carradas, e ainda hoje constitui um de nossos principais produtos. Foi assim que comecei rapaz...
Tomou um demorado gole de uísque, depois prosseguiu, relatando o desenvolvimento e a ampliação de seus negócios; fazia-o, não em tom de vanglória, mas com a tranquila segurança do homem do Norte que edificara uma empresa imensamente bem sucedida, e graças à qual amassara uma fortuna. A firma de Holbrook era uma das maiores fábricas de produtos químicos do Reino Unido, mas o grosso de seus proventos originava-se de uma grande quantidade de preparados altamente lucrativos, desde remédios para tosse até pílulas antibiliosas.
- E não os menospreze, doutor: são remédios de primeira classe; posso lhe mostrar milhares de testemunhos. Tenho um arquivo pessoal de cartas de agradecimento, de aquecer o coração da gente! - E num gesto de confiança, Holbrook aqueceu o seu próprio com mais um gole de uísque. - Agora somos proprietários de uma fábrica matriz em Bootle, uma filial em Cardiff e grandes armazéns distribuidores em Londres, Liverpool, Glasgow e Belfast. Mas não é tudo, rapaz - continuou Holbrook, espetando o indicador no peito de Moray. - Exportamos às carradas para o Oriente, e é por isso que meu filho Bert acaba de abrir novos escritórios e maiores depósitos em Calcutá. Temos planos... grandes planos... extensivos aos Estados Unidos. Depois que instalar a nossa filial de Calcutá, Bert irá a Nova Iorque. Já descobriu ali um ótimo lugar para localização de uma fábrica. E lembre-se de que o negócio vai ser diferente nos Estados Unidos. Os tempos estão mudando e nós caminhamos para produtos de alta classe: vitaminas e coisas assim. Até podemos tentar a fabricação de alguns barbitúricos. Mas acredite: seja o que for que empreendermos, o nosso sucesso será brutal.
Encostou-se no espaldar da poltrona, tirou um cigarro, acendeu-o, ofegou um pouco; depois, com os olhos cintilantes ainda presos a Moray, esboçou um sorriso:
- São essas as minhas perspectivas de futuro, rapaz... e agora pergunto: quais são as suas?
- Bem... eu... - e Moray corou um pouco ante essa pergunta sem rebuços. - Quando eu regressar desta viagem, tenho um lugar à minha espera: é num hospital. Um bom lugar, com oportunidades para pesquisa... e um ordenado de quinhentas libras.
- Bem- esse é um emprego bastante razoável, mas, com sua licença, bastante ordinário. A pergunta que fiz era sobre as suas perspectivas de futuro...
- Naturalmente... espero progredir.. .
- Progredir como? Mudando-se para um hospital maior? Estou muito familiarizado com esse setor interiorano. Levará anos. Quando a gente entra para o serviço de um hospital, fica atolado nele pelo resto da vida. E para um sujeito inteligente como você, que tem miolo e personalidade, isso seria um crime.
- Não creio - respondeu Moray, com certa rispidez.
- Pois eu creio. E nada lhe diria, se a patroa e eu não o tivéssemos na mais alta conta. Agora escute aqui - e com um piparote fez cair no cinzeiro a cinza do charuto, - não sou homem para perder tempo. Temos, em nossa firma, um lugar para um médico moço como você, especialmente em nossa fábrica dos Estados Unidos. Você podia dar-nos conselhos técnicos, inventar preparados, encarregar-se da nossa propaganda, e, desde que falou em pesquisa, também podia trabalhar no laboratório. Em nossa opinião, seria bom ter um profissional na diretoria. Quanto a ordenado - e fez uma pausa, trazendo Moray suspenso de seu olho cordial e congestionado - começaria com mil e quinhentas libras por ano, com uma possível gratificação e aumentos anuais. Além disso, chego mesmo a prever que, em tempo oportuno, e se as coisas correrem bem entre nós dois, até pode entrar como sócio da empresa.
Inteiramente surpreso, em verdade aturdido, Moray desviou seu olhar do dele. A natureza dessa oferta espantosa, conquanto tivesse sólidas bases na lógica comercial, era, em realidade, tão transparente como a vigia pela qual ele fitava, com certo embaraço, a lenta elevação do céu. A intenção de Holbrook era essa mesma: que ela fosse transparente. Mas como recusar de modo cortês, sem ferir os sentimentos daquele camarada, sem provocar um esfriamento de suas relações com toda a família? Aí é que batia o ponto. Afinal, Moray disse:
- É extremamente generoso de sua parte, Mr. Holbrook, e sinto-me profundamente honrado com a boa opinião que tem a meu respeito. Mas já aceitei a nomeação para o hospital... já dei a minha palavra, à qual não posso faltar.
- Então arranjaremos outro - respondeu Holbrook sem hesitar. - E sem a menor dificuldade. Vai haver afluência de candidatos.
Moray calou-se. Sabia que bastava mencionar o seu compromisso matrimonial para que o oferecimento fosse retirado. Mas, por
alguma razão obscura, talvez por um excesso de sensibilidade, ou uma exagerada delicadeza de sentimento, ele hesitou. Era tão bem visto por essa digna família, que não o seduzia a ideia de estragar o que sem dúvida aconteceria - relações tão agradáveis e satisfatórias. Além disso, o assunto de seu noivado nunca viera à tona durante a viagem. Não era culpa dele se o tomaram por um rapaz disponível: simplesmente não houvera oportunidade de aludir ao tema. Seria singularmente doloroso se o tivesse de fazer agora. Daria a todos a impressão de que era um idiota consumado, ou talvez pior, como se tivesse vergonha de aludir a Mary. Não: com o fim da viagem à vista, não queria colocar-se em posição tão odiosa. Não valia a pena. Mais alguns dias e os Holbrooks partiriam; nunca mais voltaria a vê-los. E, na viagem de regresso para seu país, tomaria cuidado para desde logo declarar a sua posição, a fim de que não mais voltasse a acontecer essa espécie de... contrariedade. Mas por enquanto era melhor contemporizar.
- Não preciso dizer o quanto aprecio o interesse que tem por mim. Mas, naturalmente, com tão importante decisão a tomar, preciso refletir.
- Reflita, rapaz - disse Holbrook com um aceno animador. - Quanto mais refletir no assunto, tanto melhor o achará. E não se esqueça do conselho que lhe dei. Quando uma oportunidade se atravessar no seu caminho, agarre-a!
Moray desceu à cabina e se trancou lá dentro. Queria ficar só, não para examinar aquela oferta extraordinária (não tinha a menor intenção de aceitá-la), mas simplesmente para se explicar, para refletir sobre o acontecimento em todos os seus pormenores. Em primeiro lugar, não havia dúvida de que os pais de Dóris haviam simpatizado com ele desde o princípio. Mrs. Holbrook, principalmente, demonstrara grande predileção por ele, tendo-se tornado depois quase maternal em suas atitudes. O velho Holbrook, embora mais difícil, também fora conquistado, ou fosse mediante persuasão de parte da mulher, ou em virtude de uma real estima por Moray. Em segundo lugar, até onde chegava o seu entendimento, havia uma vantagem positiva para Holbrook e seu filho Bert na aquisição de um jovem médico, ativo e inteligente, para a nova especulação comercial nos Estados Unidos. Até aí, muito bem, pensou Moray; mas a resposta ainda não bastava. Devia haver uma terceira razão, e esta decisiva, para ligar os outros dois fatores.
Sacudiu a cabeça inconscientemente, numa renúncia imediata a qualquer convencimento ou vaidade; entretanto, não havia fugir
ao fato de que a própria Dóris devia desempenhar um importante papel no desenvolvimento dessa situação imprevista. Mesmo sem a evidência das recentes observações de Mrs. Kindersley, havia provas suficientes da conduta de Dóris. Não pertencia ela ao tipo das "apaixonadas", não era dessas que suspiram olhando a lua; mas o seu olhar tinha um significado tão específico, que só um idiota poderia equivocar-se. Acrescente-se a isso a influência que, como filha mimada, exercia sobre os pais, acostumados a ceder às suas vontades, e, no caso presente, desejosos de a verem assentada num casamento aceitável, e a resposta estava completa.
Mercê dessas reflexões, Moray franzira o cenho. Agora, porém, olhando-se no espelho, esboçou um sorriso aborrecido. com efeito, Dóris fora às do cabo... e de ponta cabeça. Não, não, não havia graça nisso, nem um pouco de graça... Ao contrário - e seu rosto voltou à expressão de sempre - sentia-se desconcertado e constrangido, embora indubitavelmente fosse lisonjeiro sentir-se desejado e estar uma garota rica e bonita tão "caidinha por ele" (aqui lhe ocorreu a frase absurda de Mrs. Kindersley e ele sorriu), especialmente quando aqueles momentos na coberta superior, e outros ainda, lhe vinham à lembrança, como agora faziam, num súbito e perturbador atropelo...
Conteve-se, entretanto, e olhou o relógio - o belo Patek Phillippe, cujo mostrador assinalava cinco minutos para as seis. Santo Deus, esquecera-se da hora da consulta! Tinha de correr. Sua vida tornara-se, em verdade, muito excitante ultimamente. Mas, antes de sair da cabina, dirigiu-se ao cofre de cabeceira e daí tirou o medalhão que Mary lhe dera. Fitando o meigo e querido rostinho do instantâneo, invadiu-o uma onda de ternura. Murmurou comovido: "Como se eu pudesse abandoná-la... Meu benzinho!"
Sim, a imagem dela seria a sua proteção. Daí por diante se mostraria calmo e composto, delicado e amável, naturalmente, mas inflexível a qualquer tolice de Dóris. Faltavam apenas dez dias para chegarem a Calcutá. E ele jurou, por tudo quanto tinha de mais caro no mundo, que manteria essa atitude de discrição até que o perigo passasse e a viagem chegasse ao fim.
CAPÍTULO TREZE
Passaram-se os dez dias, chegaram ao delta do Hooghly, e Moray, sozinho na sala de consulta, fazendo um retrospecto daquela temporada, só descobria razões para estar satisfeito consigo mesmo. Sim: cumprira a sua palavra. No jantar do capitão - hilariante brincadeira realçada por bandeirolas de papel, cornetas de brinquedo e narizes postiços - fora um modelo de discrição. Em verdade, até fora melhor do que isso. Resolvido a não permitir que Dóris fizesse uma exibição de si mesma, e dele, perante todo o navio, quando O'Neil fez a leitura dos vencedores das provas esportivas, ele levantou-se, tímida porém tranquilamente, numa atitude inesperada, que a todos surpreendeu.
- Capitão Torrance, Mr. O'Neil, senhoras e senhores: posso, com a vossa permissão, dizer que Miss Holbrook e eu compreendemos perfeitamente, e desde o início, que, na qualidade de tripulante deste navio, não me era realmente lícito concorrer a estes jogos. Só competimos por brincadeira, e, embora tivéssemos a sorte de vencer, mutuamente concordamos em não aceitar os prémios que, em todos os páreos, desejamos ver atribuídos aos outros concorrentes.
Quando ele se sentou, em vez dos poucos e vagos aplausos que teriam irrompido, houve uma súbita e prolongada explosão de palmas. Os Holbrooks estavam encantados, pois até eles tinham enfim começado a participar do sentimento geral; Mrs. Kindersley levantou-se e, toda sorridente, foi buscar seu serviço de chá; em seguida, o capitão dirigiu a Moray uma palavra de aprovação. Só Dóris reagiu desfavoravelmente, com um olhar repleto de malignidade:
- Por que diacho você fez isso?
- Pensei que, para variar, você gostasse de ser apreciada...
- Apreciada! Bolas! Preferia que me vaiassem!
Dançou com ela apenas duas contradanças, bebeu um único copo de champanha, e, em seguida, alegando que tinha cartas a escrever, pediu licença e retirou-se para a cabina.
Nos dias subsequentes, embora não fosse fácil, a coisa foi entretanto menos difícil. Ele evitava a coberta de passeio que ela habitualmente frequentava, e quando acaso se encontravam falava-lhe num tom superficial e jocoso. Não só isso, mas desenvolvia grande atividade, pois a aproximação do porto de chegada tornava plausível a sua alegação de excesso de trabalho. O que Dóris pensava,
não sabia; em seguida ao jantar do capitão, dera para fitá-lo com os olhos apertados, quase zombeteiros. Em certas ocasiões sorria, e uma ou duas vezes, a uma simples observação de parte dele, rompeu a rir. Decerto que os pais dela de nada suspeitavam, pois eram cada vez mais pródigos em atenções para com ele.
De repente Moray suspirou - o esforço fora realmente grande; depois, levantando-se, fechou a sala de consulta e subiu para a coberta.
Reunira-se a estibordo um grupo de passageiros que contemplava a margem do rio com um interesse acrescido pelos longos dias de permanência no mar. Altos coqueiros se elevavam na praia lamacenta, iluminada por lampejos de pássaros tropicais; nativos afundados até aos joelhos na água amarelada, lançavam e puxavam duas redes circulares; catamarãs passavam ondulando, e o navio mal se movia, quase estacionário, à espera do prático. Os Holbrooks faziam parte do grupo, e Moray, sentindo-se seguro no meio de tanta gente, se lhes foi reunir. Mrs. Holbrook, excitada, segurou-lhe imediatamente o braço.
- Temos esperança de que Bert venha a bordo na companhia do prático... Não que isso seja fácil de conseguir...
Enquanto falava, uma lancha a motor precipitou-se para fora da praia arenosa e orlada de palmeiras e veio flutuar ao longo do navio. Logo, outra figura se avistou, que olhava para cima e acenava, junto do prático de uniforme.
- É o nosso Bert - exclamou alegremente Mrs. Holbrook que, orgulhosa, acrescentou para o marido: - Viu como ele conseguiu vir junto?
Dentro de alguns minutos, Bert estava a bordo e abraçava todos os três. Era um rapaz louro, gorducho, de rosto corado e índole expansiva, de cerca de trinta e um ou trinta e dois anos, com um terno de tussor de seda acinturado e de talho esportivo, o capacete de sol posto de banda, belos sapatos de camurça em dois tons e uma espantosa gravata de laço. Embora com propensão para engordar, Bert, que retirara o capacete, mostrava cabelos que rareavam no alto da cabeça; tinha entretanto qualquer coisa do dândi, dentes obturados a ouro, e exibia em sua pessoa certos artigos, bastante dispensáveis, de joalheria. Seus olhos, um tanto salientes, irradiavam cordialidade, eram agradavelmente azuis e tinham um brilho levemente vidrado. Seu riso pronto, cheio de bonomia e esportividade - riso que valia como pancadinhas nas costas, - vibrava pelo tombadilho afora. Tiróide demasiado ativa, mas boa praça, pensou Moray,
que estava a alguns passos de distância, vendo Bert que se dirigia para ele a fim de ser apresentado.
O encontro foi cordial. Basta um par de horas, pensou Moray, para qualquer um ficar amigo velho de Bert! Mas como percebeu que o irmão de Dóris ainda não sabia da sua estreita amizade com a família, logo retirou-se, cheio de tato, para a sua cabina. Mas na hora do almoço, quando Bert e o pai chegaram do bar, Moray já estava à mesa, e sentiu um braço fraternal enlaçar-lhe os ombros, enquanto uma voz bem-educada lhe dizia:
- Não sabia que o senhor viajava conosco, doutor. Não ficaria mais contente se tivesse ganho o sweepstake de Calcutá. Logo teremos um verdadeiro bate-papo.
A lenta subida do rio facultou-lhes, segundo Bert, bastante tempo para se conhecerem, e não tardou muito para Moray perceber que, embora Bert pudesse ser um rapaz folgazão, atirado e brincalhão, um tanto vaidoso, talvez, e com acentuada tendência para tomar gim a qualquer hora do dia, ele tinha ao mesmo tempo, a exemplo do pai, bom coração, e forte sentimento de família. Além disso, apesar de toda a sua expansividade e alegria de viver - segundo dizia sua mãe - Bert tinha a cabeça no lugar. com efeito, logo se revelou um sujeito bem informado, e, ao tratar de negócios, seria por certo um camarada de cabeça fria, capaz de conseguir o que desejava. Viajara muito para a firma, passara ultimamente três meses nos Estados Unidos, e vinha transbordante das oportunidades e excitações de Nova Iorque. Falava bem, com um ar de homem do mundo - uma espécie de verve íntima, que transpirava alegria e cordialidade.
Na companhia dele, Moray achou a passagem do rio demasiado breve, e sentiu um real desapontamento quando chegaram a Calcutá e o Pindari, batendo a água amarelada, começou a manobrar para atracar na doca Vitória, enquanto o habitual pandemônio de desembarque tomava conta do navio. No meio do tumulto, Bert permanecia frio e sossegado; havia tudo providenciado e controlado; com ele, rapidez e eficiência eram a ordem do dia. Ao descerem à doca, seu longo Chrisler aberto e um caminhão surgiram e encostaram. com seus pais e Dóris, ele desceu o passadiço da bagagem: foi o primeiro a deixar o navio. Três carregadores de bordo o seguiam com a bagagem miúda. No galpão da alfândega, onde os outros passageiros aguardavam interminavelmente, um aceno de Bert para o babu-chefe deu saída aos Holbrooks, sem mais formalidades. Depois, tomando lugar no enorme carro, os três rodaram para os apartamentos que haviam reservado no Hotel Norte-Oriental.
Tudo isso aconteceu tão depressa que Moray ficou um tanto aturdido. Disseram-lhe adeus, naturalmente, mas com grande precipitação e preocupação, deixando-lhe a impressão pouco satisfatória e ligeiramente dolorosa de que fora sumariamente abandonado. Verdade que não tinha liberdade para acompanhá-los; entretanto acreditava que eles deviam pelo menos ter feito menção de um encontro futuro. Todavia, como o Pindari ia ficar fundeado durante duas semanas, carregando teca, chá, borracha e artigos de algodão, refletiu que haveria uma oportunidade de os encontrar mais tarde. Em qualquer caso, não era melhor que tivessem ido, deixando-o livre de conflitos, a mente tranquila e em paz? Entregou-se, por conseguinte, aos seus deveres oficiais. Esteve ativo a maior parte da tarde, e, quando o último passageiro deixou o navio, sua primeira reação foi a de um doce alívio. As pressões que suportara foram rigorosas - e agora era bom distender os nervos.
Mas naquela noite acometeu-o uma inexplicável depressão, que o não deixou nem mesmo no dia seguinte. O capitão se fora para o seu costumeiro alojamento em terra, O'Neil, saindo alegremente para uma excursão ao longo do litoral de Kendrapara, deixou Jones, o segundo-piloto, galês idoso e pouco comunicativo, atendendo às operações de rotina. Jones, homem frustrado, e enterrado, com licença de arrais, numa posição subalterna, nunca dera muita atenção a Moray, e agora o ignorou quase de todo. Passava a maior parte do dia na cantina da doca, lendo curvado sobre brochuras de mistério, enfiando o dedo no nariz, e deixando a maior parte da sua tarefa relegada ao timoneiro. Quando a noite descia, fechava-se no beliche e tocava sanfona com uma comovente doçura. Nunca descia em terra, a não ser para comprar elefantes de marfim para a esposa ausente. Garantiu a Moray que já contava com um armário repleto deles em sua casa de Porthcawl.
O navio deserto, atracado na doca imunda e infestada de mosquitos, exposto ao tumulto da descarga, ao pairar ruidoso e interminável dos estivadores nativos, ao apito das sereias e ao ranger das gruas, era muito diferente do nobre navio que tão galhardamente desafiara as ondas azuis. Era, em verdade, um alojamento pavoroso. O calor sufocava, na cabina enxameavam os mosquitos que o mantinham acordado durante a noite com seu zumbido estrídulo e ameaçador, obrigando-o a tomar medidas de precaução contra a malária. Os quinze grãos diários de quinino ainda mais o deprimiam; e, para agravar a situação, o agente dera aviso de que o navio-correio se atrasara devido a uma greve em Tilbury e só chegaria na semana
seguinte. Sentindo-se ainda mais abandonado com a falta de correspondência, seus pensamentos melancólicos mais e mais se voltavam para os amigos que tinham descido em terra.
Por que diacho não recebia notícias dos Holbrooks? Por quê... por quê... por quê? Primeiro com irritação, depois com ansiedade, e afinal com o aperto de coração de uma esperança sempre adiada, fazia e tornava a fazer essa pergunta a si mesmo. Inconcebível que o tivessem esquecido e jogado fora como rebotalho; como alguém que tivessem usado durante a viagem e que agora não queriam mais. A ideia mortificante crescia dentro dele. Imaginava-os num hotel de luxo, cada minuto de seu dia repleto de divertimentos e visões de lugares novos, com novos rostos e novos amigos a rodeá-los. Era fácil esquecer entre tantas distrações. E Dóris... sem dúvida teria encontrado um novo objeto de interesse, ela que andava louca por ele... Entre apreensão e raiva, contraía-se de ciúme. Acima de tudo, era isso o que mais o atormentava. Somente seu orgulho e o receio de uma repulsa o impediam de telefonar-lhe para o hotel.
Esforçando-se para continuar ativo, ensaiou uma descida experimental no porto. Mas as docas ficavam a milhas de distância da cidade propriamente dita, ele não conseguiu condução, e, após perder-se num amontoado de choças arruinadas, onde nativos acocorados esguichavam suco de bétel na poeira sufocante, confessou-se afinal derrotado e devagar se arrastou de volta para o navio, com a infeliz sensação de ter revertido aos dias monótonos e sombrios de sua mocidade.
Foi então que começou, com verdadeiro desespero, a achar falta nos Holbrooks e em tudo quanto desfrutara em sua companhia. Que admirável família aquela, como era hospitaleira, generosa e... - agora já não o escondia - rica! Nunca mais se lhe apresentaria uma ocasião de conhecer gente igual àquela! Mrs. Holbrook, tão terna, bondosa, maternal... E Bert, que ótimo sujeito! Tinham simpatizado um com o outro à primeira vista... E o oferecimento que o velho lhe fizera, mesmo admitindo que não poderia aceitá-lo, era fantasticamente vantajoso, só acontecia uma vez na vida... Nunca mais lhe surgiria uma oportunidade áurea, igual a essa. Nunca. Comparado a ela, o seu futuro no insignificante Hospital Glenburn se obscurecia numa exasperadora insignificância. E ele, que se acreditava ambicioso...
E Dorrie, não deplorava ele a sua perda mais do que a dos outros? Como era linda! Suas caprichosas disposições de ânimo eram até mesmo fascinantes. A gente nunca se cansava dela. Ao contrário, só
estar em sua companhia já era suficiente excitação. De noite, na cabina sufocante, contígua à alta amurada das docas, virava e revirava na
cama-beliche, pensando nas várias vezes que dançaram juntos, e em como, fitando-o nos olhos com aquela expressão atenta e silenciosa de convite, apertara-o contra si; depois, naquela noite no tombadilho, em que todas as possibilidades lhe foram franqueadas... Invadiu-o uma onda inflamada de desejo... Que idiota fora em rejeitar oferta tão sedutora! Como O'Neil zombaria dele se soubesse... E que grande idiota ela pensava que ele era! Poderia censurá-la por havê-lo riscado de uma vez? E, num acesso de aflição e de autodesprêzo, Moray afundou o rosto no travesseiro.
CAPÍTULO QUATORZE
No fim da semana, numa tarde de calor exasperante, enquanto - - Moray, ociosamente debruçado na amurada, estava mais deprimido do que nunca, eis que viu, como numa miragem, o cintilante Chrisler entrar na doca e encostar paralelamente ao navio. Estupefato, levou a mão aos olhos. Aquilo não podia ser verdade: o sol e sua imaginação é que produziam essa alucinação visual. Mas não era assim. Graciosamente reclinado no assento traseiro, um braço negligentemente pousado no espaldar, as pernas gorduchas descuidosamente cruzadas, um charuto Burma levemente seguro entre os dedos cheios de anéis, o capacete de banda - eis Bert que chegava!
- Enganar-me-ão os meus olhos cansados, ou o que estou vendo é o médico de bordo do bom navio Pindari - disse Bert arreganhando um sorriso. Depois, com uma voz diferente: - Traga os troços, velhinho. Vai ficar conosco.
O coração de Moray deu um salto. Não fora esquecido por eles. Pálido de emoção e alívio, precipitou-se para a cabina. Que idiota fora! Naturalmente que o queriam, não podia ser de outra forma. Em menos de cinco minutos vestiu-se à paisana e entrou no carro com a sua valise, que o chofer colocou no porta-malas. Enquanto o carro rodava em direção à cidade, Bert explicou por que demorara em ir buscá-lo: uma pequena dificuldade na locação do depósito, que levou alguns dias para ser aplainada. Agora, porém, assinara-se o acordo e estavam livres para se entregarem aos divertimentos que a cidade oferecia.
- Isto é um burgo muito animado, quando a gente o conhece - confidenciou Bert. - Houve um idiota que lhe deu a alcunha de "Cidade da Noite de Horrores", mas descobri em suas noites coisa muito melhor do que o horror: um par de enfermeirinhas euroasiáticas... o que há de mais lindo e cheio de fogo... - E atirou para o ar um beijo elucidativo. - Falo com a voz da experiência, velhinho. Sei que você só se interessa pela nossa Dorrie. E acredite: embora ela seja minha irmã, Dorrie é também muito boa...
Emergindo do amontoado suburbano de barracos em ruínas, entraram na cidade propriamente dita pelo trecho largo e povoado da estrada de Chowringhe, passaram pela grande praça cheia de ficus e lamentáveis estátuas equestres, parando em seguida sob o alto pórtico do Hotel Norte-Oriental. Fizeram-nos entrar entre mesuras para o alto saguão de colunas de mármore e ventiladores zumbindo no teto, e Bert o conduziu escada acima para o quarto que lhe mandara reservar, e que era contíguo ao seu próprio apartamento no primeiro andar.
- vou levar meia hora para me vestir - disse ele, olhando o relógio. - Mamãe e papai saíram, mas nós nos encontraremos todos para o tiffin, Dave, quer dizer, para o almoço.
Depois que Bert saiu, Moray olhou em torno. O quarto era luxuosíssimo - espaçoso e fresco, o piso azulejado com bom gosto, as persianas rendilhadas e refrigerantes, o leito largo e alto sombreado por um cortinado já corrido a fim de entremostrar a brancura imaculada de seus linhos. A mobília era pintada num suave tom de verde, e havia na penteadeira um vaso de rosas. Ao lado ficava o banheiro, branco e reluzente, com uma opulência de toalhas, sabonete, sais para banho e um macio roupão felpudo. Moray sorriu, deliciado. Que diferença de sua exígua e abafada cabina, enxameada de mosquitos! Isto sim era um quarto de verdade! Tirou da valise suas magras coisas, tomou um banho, e estava escovando o cabelo quando a porta se abriu e Dóris entrou.
- Alo - disse ela laconicamente.
Ele voltou-se.
- Dorrie... como vai você?
- Ainda respiro... se é que isso lhe interessa...
Olharam-se em silêncio - ele, com uma admiração fervorosa; ela, com um rosto quase vazio de expressão. Estava trajada com um elegante vestido novo, muito justo, e de uma suave tonalidade de petúnia, finas meias de seda bege, e sapatos de camurça, de salto alto. Pusera nos lábios um batom que combinava admiravelmente
com a rósea, cor predominante no vestido, e, pelo visto, acabara de pentear-se naquele mesmo instante. Parecia diferente, mais elegante do que no navio, mais madura, mas sedutoramente sofisticada e - ai dele! - mais inatingível. Seu perfume penetrava-lhe as narinas.
- Você está... maravilhosa - disse ele com voz rouca.
- Sim - observou ela com frieza, lendo-lhe nos olhos. - Acho que você está um tanto alegrinho em ver-me...
- Mais do que um tanto! Mas pergunto: que me diz de você?
Ela lançou-lhe um longo olhar direto, depois mal sorriu.
- Você está aqui, não está? Me parece que a resposta é essa...
- Bondade de vocês em quererem que eu viesse; lá nas docas levava-se uma vida desgraçada...
- Pensei isso mesmo - disse ela, concordando glacialmente. - Quis castigá-lo.
Ele fitou-a, perplexo.
- Castigar-me... por quê?
- Queria, eis tudo! - respondeu ela sem se explicar. - Às vezes gosto de ser cruel.
- Garota sadista... - comentou ele, tentando dar à voz a pontinha de mofa que anteriormente usara para com ela. Todavia, enquanto falava, tinha a esquisita sensação de que o equilíbrio de suas relações havia-se alterado, passara todo para o domínio dela, e sentiu de repente e com espanto, o desejo da moça em tornar claro que, em terra firme, ele deixava de ser o arrojado e desejado jovem médico de bordo, de uniforme azul-marinho da Companhia, para não ser mais do que um rapaz ordinário de um só terno que não lhe assentava e que era absolutamente impróprio para o clima. Entretanto, embora ciente do efeito que produzira, ela mudou de assunto como se este já não mais lhe interessasse:
- Gosta de meu vestido novo?
- É um sonho - disse ele, esforçando-se para falar aereamente. -
Comprou-o aqui?
- Compramos a seda ontem, num bazar. Há ali maravilhosos tecidos da terra. E o vestido foi feito em vinte e quatro horas.
- Trabalho rápido - comentou ele.
- E a tempo - disse ela friamente. - Não sei esperar; não suporto que me deixem para trás. Para ser franca, fartei-me disso nestas duas últimas semanas, com você me deixando a tomar ar. E incidentalmente, porque o escolhi, não pense que estamos às boas. Ainda não lhe perdoei; falta muito para isso. Preciso ter uma conversa com você. - E ao voltar-se para sair, como que a permitir-se um
certo abrandamento, sua expressão desanuviou-se. - Espero que goste do quarto. Fui eu que trouxe as rosas. Meu quarto é em frente... - disse, lançando-lhe um olhar significativo. - Caso precise de alguma coisa...
Depois que ela saiu, Moray ficou pasmado, a olhar as almofadas da porta. Dóris parecia ofendida, e não era para menos, depois da frieza com que ele a tratara. Que estupidez, que grosseria, haver-lhe ofendido os sentimentos! Esperava que ela lhe perdoasse.
No andar térreo, no grande saguão de mármore, a acolhida dos velhos Holbrooks foi de todo diferente, quase a que se faz a um filho que regressa; Mrs. Holbrook chegou a dar-lhe um beijo na face. O almoço não foi somente uma reunião, mas uma festa. A mesa ficava perto da janela sobranceira ao jardim. Quatro nativos de túnicas brancas, faixas vermelhas e turbantes da mesma cor permaneciam postados atrás das cadeiras, e a refeição, escolhida por Bert, era suculenta, apimentada e exótica. Depois daquele dia memorável no Grand Gairsay, era a primeira vez que Moray se hospedava num hotel; mas se alguma lembrança do outro almoço, tão diferente, lhe cruzou pela mente, logo se dissipou, varrida pela risada explosiva de Bert. Exuberantemente disposto a mostrar-lhes a cidade, ia ele, enquanto chupava uma suculenta manga, delineando o programa para a semana entrante. Naquela tarde lhes propunha uma visita ao templo Jain e aos Jardins de ManicHola, a fim de verem os famosos peixes no lago ornamental.
- São notáveis - concluiu ele. - Sobem à superfície e vão para perto de quem os chama.
- Ora, ora, Bert... - disse Mrs. Holbrook, sorrindo num carinhoso protesto.
- Falo sério, mamãe; não estou brincando. Chegam a comer na sua mão, se a senhora o quiser!
- Imaginem só! De que é que os peixes mais gostam?
- Batatas fritas - disse Dóris com voz aborrecida; depois rompeu num acesso de riso.
Depois de uma sesta, e quando o sol começou a declinar, saíram rumo aos bazares onde o gado sagrado, engrinaldado de cravos-daíndia, vagueava entre as tendas, dando marradas no meio do povo e comendo à vontade as frutas em exposição. Sons estranhos, estridentes e longínquos, feriam o ouvido, elevando-se acima da violenta algaravia nativa: o sino distante de uma igreja, o ribombar de um gongo, um súbito grito estrídulo que perdurava, fazendo vibrar os nervos... O ar estava carregado de essências aromáticas, capitosas
e provocantes, que pungiam as narinas e embriagavam os sentidos. Moray sentia-se como que no ar, absorvido por uma extrema excitação e beatitude. A individualidade se lhe anulara, ele já não era ele mesmo, mas outro homem totalmente diverso, no limiar de uma nova e emocionante aventura.
Chegando ao templo, tiraram os sapatos e entraram na penumbra pesada de incenso, onde um grande Buda idoso exibia eternamente o seu sorriso irónico e impassível. Vaguearam nos jardins do joalheiro da corte - teia de filigrana decorativa - e deram de comer a enormes carpas obedientes. A embriaguez de Moray crescia. Dóris, em seu vestido cor de petúnia e chapeuzinho de palha trançada, com uma fita a lhe cair da aba em duas pontas tantalizantes, tomara emprestado o encanto especial da própria tarde. Sentado junto dela, no regresso para o hotel, Moray virou-se e disse-lhe, transbordante de gratidão:
- Foi tudo tão maravilhoso, Dorrie... graças, especialmente, à sua companhia...
Ela percebeu-lhe a mudança, e como, desde o almoço, os modos dele iam num crescendo possessivo, quando quer que ele avançasse, ela recuava. Agora, porém, sacudiu discretamente a cabeça num gesto afirmativo, como se se preparasse para um novo abrandamento.
- Ah, afinal acredita que faço alguma diferença!
- Faz toda a diferença - murmurou ele fervorosamente, acrescentando desconsolado: - Mas você está tão fria... Parece que eu é que não faço grande diferença para você.
- Não faz?
Seus olhos se anuviaram; depois, sem que a observassem, ergueu de súbito a mão dele e ferrou-lhe os dentes no dedo indicador. A mordida, penetrante e dolorosa, varou-lhe a pele.
- É para mostrar-lhe se sou fria - disse ela; e fitando-lhe o rosto, enquanto ele instintivamente cuidava da mordida, rompeu a rir. - Bem feito, pelos insultos que me fez nestas duas últimas semanas.
No dia seguinte, Bert levou-os às corridas. Tinha bilhetes para o prado e arquibancadas reservadas ao clube, bem como um palpite das cocheiras, concernente ao páreo principal. Não era possível nenhum erro - nenhum, nenhum. O cavalo Maiden Palm, que Moray apoiara a conselho de Bert, chegou com um avanço de três corpos. Isso, sim, era viver! Isso, sim, era a vida! E Dóris já o tratava melhor, muito melhor. Era como se, tendo-lhe corrigido os defeitos antigos, agora tivesse finalmente resolvido olvidá-los.
No dia seguinte ao das corridas, visitaram o famoso Jardim Zoológico, cruzaram o Howrah, e contemplaram, a uma discreta distância, as plataformas de cremação à margem do Hooghly; foram tomar chá no Real Clube de Golfe de Calcutá, e encerraram o dia com uma excursão rio abaixo até Sutanati. O dinheiro abria todas as portas. Bert em férias era gastador, dava propinas com extraordinária prodigalidade. Moray viu centenas de notas de uma rupia, inexaustivamente materializadas na palma da mão de Bert, passarem destramente para mãos estendidas. Que maravilha não ser preciso poupar e catar, contando cada miserável moeda na penúria que toda a vida ele conhecera, mas, em vez disso, ter dinheiro, dinheiro de verdade, mais do que o suficiente para desfrutar as boas coisas da vida.
O tempo voava à medida que um divertimento se seguia a outro em rápida sucessão. Moray simplesmente deixava-se levar, recalcando todo o pensamento de advertência, bloqueando o passado e o futuro, vivendo apenas no presente. Mas a data da partida do Pindari aproximava-se. Quando soube que partiria na terça-feira seguinte, a febre de seu sangue atingiu o auge. Tudo quanto desejara na vida estava ali, ao alcance de sua mão; bastava-lhe estendê-la e agarrar. Holbrook, suave e amável, não insistira na oferta: esta fora feita e ainda era válida - sólida oferta de um homem abastado, esperando a resposta de Moray. Mrs. Holbrook, mediante insinuações e instâncias, desejava ardentemente que ele a aceitasse. Bert, entretanto, não tinha nenhuma dúvida sobre o assunto. Na sexta-feira à tarde, ao chegar do Clube de Bengala, do qual era sócio - em trânsito, encontrou Moray no salão do hotel e arrastou uma cadeira para junto dele.
- - Tenho boas notícias para você, Dave. - Desde o começo estavam em termos tais de intimidade que se chamavam pelos apelidos. - Tratei de procurar-lhe um substituto... para a viagem de regresso. Agorinha mesmo, no clube, topei com um médico do I.M.S., que vai à Inglaterra de licença. Chama-se Collins. Pulou de contente ante a oportunidade de uma viagem grátis, e ainda por cima o salário. É o nosso homem.
Como que ferrado por UMA vespa, Moray pôs-se ereto na cadeira. A inesperada declaração de Bert e a presunção de fato consumado, levaram o assunto a uma conclusão. Uma repentina onda de fraqueza invadiu-o e, cedendo à debilidade, sentiu que
3. Indian Medicai Service (Serviço Médico Hindu) - N. da T.
devia finalmente desabafar. No fim de contas, a quem melhor podia revelar e explicar a situação do que a um sujeito bom como Bert?
- Olhe aqui, Bert... - disse com certa hesitação. - Você sabe, naturalmente... que eu gostaria de aceitar o oferecimento de seu pai... especialmente para trabalhar com você. Mas... será que devo...
- Santo Deus, por que não? Sem falar em Dorrie, precisamos de um médico na empresa. Gostamos de você. Você gosta de nós. Detesto acentuá-lo, meu velho, mas, para você, a ocasião é um pão e um pedaço. Não sei se se lembra da expressão de Wagglespear: "os negócios humanos também têm maré"...
- Mas, Bert... - prosseguiu Moray abjetamente, depois calou-se. Entretanto precisava dizê-lo, embora tivesse de arrancar cada palavra da boca do próprio estômago: - Há alguém... uma garota... que está à minha espera...
Bert fitou-o um longo instante, depois rompeu num acesso de riso.
- Não me mate de riso, Dave. Ora essa, eu tenho uma porção de garotas que me esperam em toda a Europa... e em breve a minha pequena eurásia estará esperando por mim em Calcutá!
- Mas você não compreende... Eu prometi... prometi casar-me com ela.
Bert tornou a rir, um tanto compadecido e compreensivo; depois sacudiu a cabeça.
- Você é mais jovem do que a idade que tem, Dave, e um pouco ingénuo ainda. Acho que essa é, em parte, a razão por que simpatizamos com você. Se você conhecesse as garotas como eu as conheço ... Acredita então que elas definham até morrer quando se lhes acena um adeus de soldado? Eu não; juro-o por esta porca de vida - perdoe-me o hindustani. Aposto cinco libras que sua amiguinha logo se recuperará do desapontamento e o esquecerá em seis meses. Quanto a seus próprios sentimentos nesse particular, que não me impressionaram como demasiado ardentes, lembre-se do que disse Platão, ou não sei que outro velho romano: "Todas as mulheres são iguais no escuro." Entretanto, falei seriamente sobre o assunto com mamãe e o velho. Todos achamos que você é o tipo ideal para Dorrie pois lhe dará estabilidade... Ela precisa de um pouco de lastro, porque às vezes tem... - Bert hesitou - tem certa complicação com os nervos. Por sua vez, Dorrie lhe dará uma alisadela que, na minha modesta opinião, lhe deixará o pêlo mais macio, e lhe fará um bem enorme. Ela já teve alguma experiência com rapazes, não é nenhum anjo, mas você é aquele por quem se apaixonou, e
com quem está louca para se casar. Encaremos de frente a coisa, meu velho: você foi tão longe, com a família, que agora seria um crime recuar. Por que não concorda, então, e nós começaremos a tocar os sinos da boda? Vamos tomar uns drinques e brindar o futuro. - E, recostando-se na cadeira, chamou o khidmuthar: - Garçom. .. garçom!
CAPÍTULO QUINZE
Embora temporariamente embalado por aquele jovial abrandamento de seus escrúpulos, Moray não achava convincentes, ou concludentes, os argumentos de Bert. Passou uma noite agitada, e na manhã seguinte, acordando ainda tenso pela indecisão, resolveu pelo menos regressar ao navio e ter uma conversa com o Capitão Torrance. Quanto mais não fosse, era correto indagar se o Dr. Collins, convinha como substituto, caso ele... bem, caso ele não pudesse fazer a viagem de regresso. O capitão era um homem sensato, cujo conselho valeria a pena pedir; além disso, ninguém precisava saber da sua intenção, e o momento era propício. Desde que a mãe de Dorrie alegara cansaço, nada se combinara em definitivo sobre novos passeios, e ele não tinha compromisso com os Holbrooks até à noite, quando se lhes deveria reunir para o jantar de gala e o baile que regularmente se realizava no Hotel Norte-Oriental nas noites de sábado. Levantou-se, barbeou-se, vestiu-se e tomou um táxi para a doca Vitória.
A vista do Pindari, agora quase sem lastro, sólido e familiar, feriu uma nota tranquilizadora, mesmo confortável, sugerindo-lhe que, uma vez a bordo, estaria salvo até de si próprio. Subiu depressa o passadiço; mas ao chegar à coberta do comando, encontrou ambas as cabinas trancadas; disse-lhe o contramestre encarregado que nem o capitão nem o Sr. O'Neil se encontravam a bordo. Ao descer, encontrou apenas o
comissário-assistente, que lhe explicou que nenhum dos oficiais superiores estaria de volta até sábado à noite.
- O segundo-piloto está no convés, se é que o senhor deseja vê-lo.
Moray fez com a cabeça um aceno negativo e afastou-se lentamente.
- A propósito - disse o outro, - chegaram algumas cartas para o senhor.
Moray desceu à cabina e folheou um maço de cartas, do qual escolheu duas. com um repentino aperto no coração, reconheceu que a menos volumosa era de Willie, e a outra, grossa e pesada, era de Mary. Não teve coragem de as abrir. Mais tarde o faria, pensou. Ao descer do navio para a doca, onde o táxi ainda esperava, enfiou-as no bolso interior do paletó.
Naquele dia tentou reunir vontade suficiente; entretanto não pôde decidir-se a ler as cartas: a censura do seu puro e carinhoso conteúdo era superior às suas forças. E porque não as abriu, porque as temia, não ficou nem contrito nem comovido. Em vez disso, cristalizou-se em sua mente uma exasperação, quase um ressentimento por terem elas chegado nessa grande crise de sua vida. As cartas, ainda fechadas, subconscientemente o atiraram na direção de Dóris e de tudo quanto os Holbrooks representavam para ele. À guisa de defesa, e aguilhoado pelas solicitações gémeas de dinheiro e sexo, pôs-se a estruturar, desde os seus começos, um argumento lógico a seu favor: a perda dos pais, a criança não desejada que ele fora, a desgraça da sua pobreza dependente, os esforços sôbre-humanos que desenvolvera para obter seu diploma. Certamente que se lhe devia uma rica recompensa, e esta agora se achava a seu alcance. Poder-se-ia esperar que a jogasse fora como uma coisa sem valia?
Na verdade, restava Mary - pelo menos era forçado a evocar-lhe o nome. Mas não fora ele levado de tropel para aquela situação, impelido a ela pela sua natureza impulsiva, sua inexperiência, e o romântico pano de fundo em que ela lhe surgiu? Ela também, não havia dúvida, fora impelida por essas mesmas influências transitórias, pouco dignas de confiança. Não queria magoá-la ou abandoná-la ao desamparo, mas tinha uma dívida para consigo mesmo, e quem sabe? - talvez mais tarde ele estivesse em condições... bem, em condições de fazer algo por ela, a fim de reparar essa deserção. Não sabia de que modo, mas a ideia era uma reconfortante possibilidade. Rapazes jovens erravam, arrependiam-se, reparavam o mal - eram perdoados. Seria ele uma exceção?
Era esse o seu estado de espírito quando, ainda incerto e indeciso, dirigiu-se um tanto apreensivo para se reunir, às oito horas, com os Holbrooks, no restaurante do hotel. Claro que a sua disposição de ânimo não afinava com a alegria geral, mas foi espantoso e, nessa situação, elogiável que ele, para não arrefecer o espírito da reunião, pusesse de lado os seus problemas pessoais e reagisse com alegria à cordial acolhida de seus amigos. Bert, principalmente, estava com excelente disposição. Todavia Moray percebeu, ao pousar
os olhos em Dóris, que ela se encontrava num dos seus estados mais opressivos e sombrios. Preparara-se com grande apuro, e trazia um vestido branco, curto, sem mangas, de decote baixo e bordado com miçangas de cristal. O vestido parecia o que na realidade era: um dispendioso trapo, todo feito de fragilidade. Entretanto assentava-lhe maravilhosamente, e ela o sabia.
O jantar, suculento e demorado, foi revigorante para Moray, e quando, depois da sobremesa - uma deliciosa compota de abacaxi e ameixas servida com chapattis, - trouxeram o café e o conhaque, ele compreendeu quanto fora estúpido por haver-se apoquentado e atormentado durante todo o dia. Agora, adeus cuidados! Depois do jantar dirigiram-se para o salão de baile, onde, segundo o costume, o velho tudo fizera a preceito. O champanha estava posto num balde de gelo junto à mesa semeada de orquídeas e situada na fímbria da pista de dança, de frente para o palco cercado de palmeirinhas, onde se via a orquestra, de uniforme vermelho.
- Gostamos que os moços se divirtam, não é verdade? - disse Holbrook, ao tomarem seus lugares. (A observação foi feita no tom sentimental de vários conhaques duplos.) - E você, Bert, ainda não arranjou um par que sirva?
- Já teria arranjado, papai, mas sinto não poder ficar muito tempo - disse Bert, piscando para Moray. - vou sair para comprar um cachorro...
- Tome um gole de champanha antes de ir.
A rolha estourou, todos beberam. Depois as luzes se obscureceram, e a orquestra rompeu uma valsa. Bert levantou-se e fez a Dóris uma cerimoniosa reverência que lhe expôs o gordo traseiro apertado em calças justas e dividido em duas luas cheias.
- Posso reivindicar meu privilégio de família e ter a honra, Miss Holbrook?
Dançaram a primeira contradança a modo de irmão e irmã; em seguida, depois de empinar outra taça de champanha, Bert consultou aereamente o relógio.
- Santo Deus, tenho de correr, senão o cachorrinho é capaz de ir ladrar ao pé da árvore errada... Divirtam-se! Chin-chin!
- Não volte muito tarde, querido - admoestou Mrs. Holbrook. - Ontem de noite voltou...
4. Forma de saudação e despedida, na China, - N. T.
- Claro que não, mamãe. - Inclinou-se e deu-lhe um beijo. - Mas agora Bert é um rapaz taludo, mamãe querida! Amanhã irei vê-la são e salvo!
Vai ver a garota eurásia, pensou Moray. A orquestra rompeu num animado one-step. Mrs. Holbrook olhou para Moray, depois para Dóris, desta vez sem sorrir, mas com uma expressão que parecia dizer: "Agora vocês dois; e, enquanto dançam, decidam." Moray podia sair confiadamente para a pista de dança. Além disso, provara vários conhaques após o jantar, e estes pareciam dar-se bem com o champanha.
- Se me dão licença de o dizer - observou Mrs. Holbrook quando os dois voltaram, - vocês formam um par muito bonito.
Holbrook, rindo com indulgência, e um pouquinho tocado, serviu-lhes outra taça de champanha. O par voltou a dançar. Dançaram juntos todas as contradanças, e, cada vez que o braço dele a cingia, Dóris mais se lhe colava ao corpo, de modo que cada movimento dela provocava em Moray um movimento igual, até que ambos começaram a mover-se em um ritmo único que fazia palpitar os nervos dele. Moray podia sentir que ela estava com muito pouca roupa interior. No princípio, simulou fazer algumas observações sobre os outros pares e sobre a orquestra, que era de primeira; ela, porém, fê-lo calar-se com uma pressão do braço.
- Não estrague; está tão bom.
Entretanto, se ela se mantinha calada, boiava em seus olhos grandes, brilhantes e cobiçosos, irremissivelmente grudados nos dele, qualquer coisa de comunicativo: não uma indagação, mas uma mensagem, que era impossível deixar de entender, uma mensagem a um tempo possessiva e intensa. Só uma vez voltou ela a falar: lançando um olhar impaciente na direção dos pais, murmurou:
- Gostaria que eles fossem embora.
Em verdade, não ficaram ali até muito tarde. Às dez e meia, Mrs. Holbrook tocou no ombro do marido, que estava meio adormecido, e disse:
- Já é hora de os velhos irem para a cama. - Depois, com um sorriso reticente: - Vocês dois podem ficar mais um pouco. Mas não demais.
- Logo iremos - disse Dóris laconicamente.
Durante o número seguinte as luzes foram baixadas, e, enquanto eles dançavam atrás da orquestra, ela disse, um tanto indecisa:
- Vamos dar um giro lá fora.
O jardim estava tépido e quieto, e havia sombras sob o alto dossel da folhagem. Ela recostou-se no macio tronco de uma grande catalpa, os olhos fixos nele. Tremendo todo, Moray passou-lhe o braço por trás do pescoço e beijou-a. Como resposta, ela introduziu a língua entre os lábios dele. Em seguida, como ele a estreitasse mais, o botão de seu punho prendeu-se no colar de aljôfar que ela trazia ao pescoço. O fecho abriu-se e as pérolas rolaram pelo decote abaixo.
- Agora, sim - disse ela, com um riso singular e estrangulado, passando a mão pelo pescoço. - Vai apanhá-las para mim.
A cabeça de Moray rodopiava, o coração lhe batia como louco. Começou a procurar as pérolas, primeiro no decote, depois entre os seios firmes, de mamilos espetados, de onde desceu para a doce maciez contígua...
- vou rasgar-lhe o vestido.
- Não ligue ao vestido - respondeu ela na mesma voz estrangulada de antes.
Foi quando Moray descobriu que ela não trazia roupa alguma embaixo do vestido; e de vez que, durante todo o tempo, ela tinha na mão o colar partido, o que ele achou não foram as pérolas. Nesse momento, de tudo se esqueceu. Todos os seus desejos, reprimidos nas últimas semanas, o subjugaram num tropel que o cegou.
- Aqui não, seu bobo. - E ela afastou-se depressa. - No seu quarto... em cinco minutos.
Ele subiu diretamente para o andar de cima, arrancou a roupa, apagou a luz e atirou-se no leito. Um raio de luar varou a escuridão quando ela entrou, fechando a porta atrás de si. Tirou o peignoir, e surgiu-lhe toda nua; em seguida, abriu o cortinado. Seu corpo tinha um calor quase sufocante. Enlaçando-lhe o pescoço com os braços, puxava-o para si, e com tanta violência premiu sua boca na dele que seus dentes lhe marcaram o lábio inferior. A respiração se lhe tornou ofegante, e, sob seus seios esmagados, ele podia ouvir o cálido latejar de seu coração.
- Depressa - disse ela num sopro. - Não vê que morro de desejo?
Se ele não soubesse que ela já não era virgem, agora o saberia pela natureza da sua reação. Quando afinal ela se deitou, sem todavia
largá-lo, soltou um suspiro fundo, depois puxou a cabeça dele para junto da dela no travesseiro.
- Você estava muito bom, meu bem. E eu?
- Você também - respondeu ele em voz baixa e com sinceridade.
- Quanto tempo perdemos! Você não percebia que eu o desejava, que o desejava loucamente, desde o começo? Mas daqui em diante vai ser perfeito. Faremos a participação amanhã cedo; depois iremos para Nova Iorque com Bert. .. Meu Deus! Como é que não percebeu antes que eu estava caída por você? Nunca me fartarei. .. vai ver. - Roçava-lhe os lábios com a língua e com eles brincava, acariciando-o com as pontas dos dedos. Súbito, um tremor passou-lhe pelo corpo. - Novamente... - murmurou ela - mas mais humorado, desta vez... e na próxima. - É tão bom... faça devagar... Dóris ficou com ele até à primeira luz cinzenta da madrugada. Naquela manhã, após receber esfuziantes parabéns na hora do desjejum, Moray saiu para dar uma volta e clarear as ideias. Sentia-se um tanto lânguido mas Dóris era com efeito ótima, e ele já ansiava pela chegada da noite; além do mais, havia, é claro, o emprego, o dinheiro e um futuro tranquilo. Que o resto fosse para o diabo; um sujeito devia cuidar de si. Em sua mente embotada, era menos difícil encerrar o passado e pensar apenas no futuro. Ao cruzar a ponte Howrah, súbito se debruçou no parapeito e, sem olhar, tirando a mão do bolso interno do paletó, deixou cair as duas cartas, ainda fechadas, nas águas imundas e poluídas de cadáveres do sagrado Ganges.
TERCEIRA PARTE
CAPÍTULO UM
A madrugada nasce muito cedo no Oberland suíço. Seu brilho ofuscador e o cincerro das vacas despertaram-no. Como receara, o fenobarbitol não produzira efeito, e naquelas horas de insónia tornara a viver aqueles meses fatais da sua mocidade, até que, torturado, às três da madrugada, tomou um amital, que lhe proporcionara uma breve trégua à insónia total. Agora, as têmporas latejantes, o cérebro embotado pela droga, encarava a situação de um modo obtuso, todavia com uma resolução quase desesperada, ciente de que, ao fim e ao cabo, teria de dar o passo decisivo.
Assim lhe dissera Wilenski na última consulta em Nova Iorque,
sorrindo-lhe animadoramente como sempre fazia, um braço descansando no espaldar do canapé e o sotaque resvalando para o acariciador acento sulino que ele empregava para desfazer os emaranhados interiores de seus pacientes.
- Um dia você terá de voltar... só para acabar para sempre com esse velho complexo de culpa. Na realidade, você quer voltar, em parte porque sofre uma nostalgia recalcada - a nostalgia da pátria, - mas principalmente para ver a sua... a sua amiguinha, e pôr suas relações em ordem. E por que não? Antes tarde do que nunca. Se as coisas não lhe tiverem corrido muito bem, você está em situação de ajudá-la. Agora... - e seu sorriso era de uma amável malícia - você é um viúvo alegre; se ela ainda for bonita, poderá reparar o mal, casando-se com ela... se é que ela continua solteira...
- Nunca se casaria.
Moray não tinha a menor dúvida quanto a isso, mas esperava que, pelo menos, ela tivesse sido feliz.
- Lembre-se do que lhe estou dizendo. E se sentir que está de novo em dificuldades, siga meu conselho: volte para sua terra.
Sim, ele voltaria; e, ao reafirmar essa decisão, sentiu um grande alívio. Tocou a campainha, e, consultando o horário da Swissair, disse a Arturo que chamasse Zurique e mandasse reservar uma passagem no avião das duas horas para Prestwick. Levantou-se, barbeou-se, vestiu-se, tomou o café no andar térreo. Em seguida, enquanto
Arturo arranjava sua valise, fumou um cigarro, pensativo. Levava pouca coisa: seu regresso seria calmo, humilde, sem a menor ostentação - nem Rolls-Royce, nem indícios de riqueza, nada... E essa ideia,
suscitando-lhe uma sombria antecipação, injetou em sua melancolia um clarão transitório. Quanto à villa em sua ausência, com servidores tão bem organizados e dignos de confiança - falara-lhes em negócio urgente a tratar, - não constituía problema: podia partir quando bem quisesse, mesmo avisando em cima da hora.
O telefone chamou; ele levantou-se e dirigiu-se para o aparelho. Conforme esperava, era Frida von Altishofer.
- bom dia. Incomodo-o?
- Absolutamente.
- Então conte-me depressa: está bem... está melhor?
A horrível noite que acabava de passar fazia-o ansiar por uma palavra de simpatia; entretanto sabia que isso não era prudente.
- Positivamente, estou melhor.
- Muito me alegro... sinto-me aliviada, meu amigo. Sairemos a passeio esta manhã?
- Gostaria muito. Mas...
Puxou o pigarro e enunciou a polida ficção que tinha preparado: recebera na véspera um telegrama - puro assunto de negócios que, entretanto, o transtornou, segundo ela mesma percebia - e que ele tinha de pôr em ordem mediante uma visita a seu advogado londrino. Partia naquela mesma manhã.
Fez-se um silêncio penetrante, onde ele percebeu surpresa, desapontamento, talvez uma pontinha de consternação. Ela, porém, rapidamente disfarçou.
- Claro que precisa ir... é homem de negócios. Mas não se vá cansar. E volte logo... antes da minha partida para Baden. Bem sabe a falta que vai fazer.
Arturo levou-o para o aeroporto na perua Humber, assim emprestando um tom de moderação ao resto da viagem. Era seu costume almoçar, em Zurique, no Baur-au-Lac, mas naquele dia não parou no hotel admirável, dizendo a Arturo, que exprimiu a sua preocupação, que provavelmente comeria alguma coisa no avião. Chegaram cedo ao aeroporto, mas felizmente o avião estava no horário e partiu precisamente às duas horas. Enquanto o DC-7 varava as nuvens baixas em demanda do azul, a expressão fixa de seu rosto não se desfez; todavia, apossava-se dele uma estranha exultação. Estava de regresso, finalmente - de regresso, após trinta anos de ausência, para o país de seu nascimento. Por que - Deus do Céu - demorara tanto
tempo? Pois somente lá poderia encontrar a paz de espírito, a final libertação daquele remorso que de tempos a tempos caía sobre ele como uma escura nuvem opressiva. Uma palavra lhe ocorreu - edificante e promissora. Não era religioso, mas lá estava ela: Redenção! Repetiu-a a si mesmo - lentamente, fervorosamente.
Súbito, apesar de sublimes, seus pensamentos foram interrompidos pela linda aeromoça que lhe sorria no seu elegante uniforme azul, apresentando-lhe a refeição que ele menosprezara em terra e que lhe parecia excelente e apetitosa: salmão defumado, uma asinha de frango com aipo refogado, pêssego Melba e um copo de ótimo champanha. Depois, apesar da noite horrível da véspera, sentiu-se mais ele mesmo e cochilou um pouco sobre o Mar da Irlanda, mas sempre atento à descida na costa escocesa. Às seis e meia avistou-se Preswick no nevoeiro azul de um crepúsculo prematuro, onde luzes começavam a brilhar como cabeças de alfinete. A descida foi perfeitamente suave, e dentro de mais alguns instantes estava ele ouvindo, com pulso acelerado, o quase esquecido e áspero sotaque de sua língua nativa. De cabeça descoberta, enquanto caminhava, ele ia respirando fundo o ar macio das Terras Baixas.
Estava finalmente em sua terra. E inconscientemente murmurou as famosas palavras de Rob Roy Macgregor: "Meu pé calca a charneca pátria...", enquanto a emoção o inundava.
O carro esperava fora do galpão da alfândega, e ele partiu, rodando suavemente pelas terras de plantio de Ayrshire. Limpava sofregamente a humidade da janela no esforço de captar retalhos da paisagem obscurecida, mal notando a passagem do tempo, até que o ruído do tráfego o alertou: achava-se na terminal aérea de Winton.
Tomou um táxi para o Hotel Central, onde arranjou um quarto no lado tranquilo, longe das plataformas da estação e do barulho dos trens. Já era tarde e ele estava cansado. Pediu que lhe servissem leite e sanduíches, e depois, após um banho quente onde ficou mergulhado durante quinze minutos a distender os nervos retesados, foi para a cama. Imediatamente adormeceu.
CAPÍTULO DOIS
Na manhã seguinte, despertando cedo para a vibrante consciência de que estava na realidade em Winton - fisicamente presente na cidade de sua juventude, cenário de suas lutas homéricas de estudante, - foi-lhe mister deitar água na fervura de suas emoções. Precisava
de calma e prudência para abordar essa grande encruzilhada de sua vida. Todavia, enquanto rápido se levantava, se vestia e descia para o almoço no tépido salão atapetado de vermelho, onde, pela primeira vez em trinta anos, provava com delícia a verdadeira papa de aveia com creme acompanhada de chá e torradas e seguida por um autêntico bacalhau de Findon, foi ele ficando alerta, de maneira crescente, às momentosas perspectivas do dia.
Assim que bebeu o último gole da terceira xícara de excelente chá, dirigiu-se para o saguão, apanhou o Herald de Winton e, percorrendo os anúncios, descobriu o endereço de uma agência de carros de aluguel. Um carro pequeno, por mais modesto que fosse, lhe facilitaria a viagem até Ardfillan e qualquer outro deslocamento subsequente que fosse necessário. Uma estranha inibição lhe impediu o procedimento mais óbvio de pedir ao porteiro-chefe que tratasse do aluguel; em vez disso, telefonou ele próprio para a agência. Podia acaso explicar esse ato vagamente irracional? Não era conhecido no hotel, parecia-lhe igualmente improvável que o reconhecessem; entretanto, todos os seus instintos o impeliam para a dissimulação. De qualquer forma, após pedir que o carro, um pequeno modêlo-padrão, fosse entregue no hotel o mais breve possível, prometeram, depois de alguma insistência, entregá-lo à uma hora da tarde.
Nervoso, olhou o relógio: passava um pouco das onze. com duas horas de folga, saiu do hotel, cedendo ao impulso de fazer uma curta peregrinação aos lugares conhecidos de sua juventude. A cidade cinzenta, fria, encrostada de fuligem e ainda escura de fumaça, mostrava poucas alterações desde os dias em que ele palmilhara suas calçadas encardidas e ruidosas. Na esquina das Ruas Grant e Alexandra, tomou o bonde amarelo que o levaria para o Parque Eldongrove. Desceu junto aos portões, caminhou devagar pelos jardins, e, com crescente melancolia, subiu a colina em direção à Universidade. Ali porém, deambulando à sombra dos velhos claustros, as recordações de seu tempo de estudante foram tão dolorosas e cortantes que, após uma rápida vista de olhos, saiu apressado do recinto, daí passando, na outra extremidade, pela loja Gilhouse, onde vendera seu microscópio para comprar o anelzinho de pedra azul que dera a Mary. Os olhos se lhe humedeceram. Que presente pobre, em comparação com tudo quanto podia agora fazer chover sobre ela! Entretanto, aquilo lhe consumira até ao derradeiro níquel, e ninguém poderia acusá-lo de mesquinhez ou de qualquer conhecimento prévio do que estava para acontecer.
Eldongrove não ficava longe da casa de cómodos de Blairhill, e, impelido por sua disposição de ânimo, tomou a estrada que subia a colina e daí descia para as docas. Sim, sua velha morada ainda estava ali, barraco mal afamado, ainda mais encardido e mais sórdido do que antes. Levantando o olhar, viu-se ainda jovem, curvado sobre os livros, por trás da estreita janela da mansarda. Como pelejara e como padecera, preparando-se para uma grande e maravilhosa carreira!
Mas, louvado Deus, que fizera de sua vida? Após nobres começos, qual fora o resultado? E enquanto ali estava, olhando para cima com um ar abstraio, um raio de sincera compunção feriu-o, levando-o a experimentar não apenas um remorso genuíno e amargo, mas também uma sensação arrasadora da futilidade de tudo quanto fizera desde que saíra daquela mansarda para o mundo.
Amassara uma fortuna, uma fortuna enorme - mas como? Não como um cirurgião brilhante, um especialista de primeira ordem, estimado e reverenciado em sua profissão, mas como um infeliz fabricante de pílulas, um fornecedor oportunista de medicamentos populares, de escassa significação clínica, cujos anúncios degradavam a paisagem, todos vendidos com um tal lucro sobre o custo, ao ponto de constituírem uma verdadeira imposição ao público. Não, não devia ser tão rigoroso consigo mesmo; uma parte de seu trabalho - o grupo dos analgésicos, que desenvolvera com base nos fenotiazóis, por exemplo - tinha um certo valor. Entretanto, em conjunto, que imitação burlesca da carreira que planejara! E por que Deus misericordioso, - por que o fizera? Por que, acima de tudo, fora tão idiota, a ponto de se casar com Dóris Holbrook?
Decerto que, naquela viagem fatal, ele poderia ter previsto as suas predisposições psicopáticas, e que os seus divertidos caprichos lhe seriam mais tarde insuportáveis, e que a excitação física que ela lhe provocava rapidamente amorteceria. Lembrou-se da linda casinha de Cos Cob onde o pai dela os alojara, apropriada aos novos escritórios de Connecticut em Stamford. Ela adorou-a por seis meses; depois, repentinamente, começou a detestá-la. A mudança para a vizinha Darien, ao princípio um enorme êxito, logo se transformou em igual malogro.
Dir-se-ia que ela era incapaz de se estabelecer ou adaptar a um novo ambiente, e a recusa dele, em face de uma nova mudança, foi pretexto para ela viajar diariamente até Nova Iorque, quase como uma suburbana, passageira de trens diurnos e noturnos. Vieram então as aulas de Arte e Escultura, o crescente exagero no seu modo de vestir, seus novos, suspeitos e sempre renovados
conhecidos, com os quais Moray logo desconfiou que ela o traía. Sempre que ele a admoestava, havia recriminações, indiferença, berros por detrás de portas trancadas, reconciliações histéricas. Ela queria voltar a Blackpool - o que era incrível. Mais incrível, porém, era o fato de que na realidade ela parecia detestá-lo. Quando, após longo intervalo, ele tentara delicadamente reencetar suas relações conjugais, ela apanhara uma escova de marfim e, praticamente, quase lhe rebentara a cabeça.
Mas ele prosperava, um divórcio podia significar um rompimento com os Holbrooks, e ele conseguiu ir aguentando. Após cinco anos em Darien, uma doação do velho Holbrook outorgou-lhes Fourways, bela propriedade no distrito de Quaker Ridge, em Greenwich. Lugar tranquilo, habitantes conservadores, um Garden Club - ele convenceu-a a frequentá-lo, - suas modestas diversões; alimentava esperanças de que Dóris tomaria juízo. Baldadas ilusões. Gradualmente, através de estados de espírito instáveis e crescentemente intratáveis, acessos de violência e períodos de amnésia, foi ela passando para as alucinações depressivas, até que Wilenski, chamado para consulta, pôs no ombro dele uma mão consoladora.
- Paranóia esquizofrénica. Tem de ser registrada.
Depois, durante quinze anos, ele foi o homem que tinha a mulher numa clínica de neuropatas, sempre à espera dos resultados da insulina e dos tratamentos de eletrochoque, das ligeiras melhoras e graves recaídas, suportando essa desesperadora situação até o indizível alívio de uma pneumonia hipostática final.
Nessas circunstâncias trágicas, era de surpreender que - andando ele na corda bamba da tensão nervosa - tivesse precisado atirar-se ao trabalho com Bert? Nada tinha contra Bert - o bom, o decente, o cordial Bert, que sempre estivera, leal e franco, de seu lado; que repetidamente o ajudara a lidar com Dóris, e que até se lhe confessara culpado porque o iludira sobre as esquisitices da adolescente, e que, depois da morte do velho Holbrook, lhe dera sociedade, em partes iguais, na rica e próspera firma americana.
E, pondo de parte o trabalho, não estava ele justificado, como vítima sofredora, por dedicar-se a si próprio, cultivando a sua personalidade, estudando as artes, aprendendo línguas - francês, alemão e italiano, por exemplo, - vestindo-se com bom gosto, em suma, tornando-se um homem finamente educado, adotando conscientemente o estilo de vida antigo (em suas leituras, dava preferência aos Eduardianos), verdadeiro "homem distinto" que, mercê da sua sedução e dom de agradar, podia exigir, mesmo nesta época pavorosa
em que todo o sentido de valor fora por água abaixo, interesse instantâneo, atenção e respeito? Naturalmente, em sua posição, tinha obrigações físicas a cumprir para consigo mesmo, e que, homem lido que era, podia sancionar-se isso fosse necessário - citando a picante carta de Balzac a Madame Hanska sobre o assunto. Não tinha também a intenção de degenerar na impotência e na imbecilidade, mas recuava diante do adultério indiscriminado, diante desses breves e incertos encontros que se realizavam após os coquetéis em carros estacionados sob o arvoredo de clubes de campo. Foi quando o acaso pôs em seu caminho uma mulherzinha tranquila, (ele sempre dera preferência a mulheres pequenas), uma viúva no começo dos trinta, loura e de origem polonesa, chamada Rena, que trabalhava humildemente como encadernadora em uma editora de Stamford. Sua abordagem cheia de tato produziu resultados surpreendentemente agradáveis. Descobriu que ela era não apenas dócil como satisfatória, ordeira, cheia de apuro pessoal, nada exigente e absurdamente grata pela ajuda dele. Logo se estabeleceu entre ambos um arranjo regular e discreto. Ele até chegou a querer-lhe muito (a seu próprio modo); e embora ela ficasse desorientada quando ele partiu dos Estados Unidos, Moray fez antes o que devia, dotando-a generosamente de um meio de vida.
Sim, houve boas razões para ele viver naquele estilo; todavia, se a escusa própria lhe trazia algum alívio, o coração ainda lhe doía quando se virou e, descendo Blairhill, tomou o caminho de regresso para o hotel. Lá chegando, não pôde sequer pensar em almoçar; mas, sentindo a necessidade de preparar-se para a viagem, tomou um copo de xerez seco e comeu uma bolacha Abernethy no bar, e logo depois se sentiu melhor.
O carro chegou na hora aprazada, e ele, depois de assinar os papéis necessários e pagar o depósito, iniciou a viagem. Não precisava de indagar acerca do caminho. Deixando as ruas para trás, tomou pela estrada principal a oeste, deixou para trás os Jardins Botânicos e os campos de jogo, em seguida entrou na estrada real que conduzia dos arredores da cidade às terras baixas do estuário. Este ampliara-se e melhorara; mas, conquanto agora passasse pelos estaleiros e as fundições de aço das cidades industriais ribeirinhas, aquela ainda era a mesma estrada que o levara a Mary. Moray rodava devagar, prolongando as sensações, embora fosse sucumbindo à medida que, um após outro, os sons e os cenários conhecidos iam surgindo diante de seus olhos. O contínuo taque-taque dos estaleiros, o apito da balsa do Erskine, o fundo e rouco lamento
de um navio cargueiro - tudo se fundia numa fantástica dissonância que o arrasava, assim como o arrasavam as vistas fugidias de verdes matas e águas'cintilantes, de longínquas cristas purpúreas de montanhas que precipites curvas do caminho lhe revelavam. Tudo, tudo lhe trazia, com uma doce pungência, a imagem da única mulher que verdadeiramente amara.
A umas trinta milhas de Winton alcançou a aldeia de Reston, e, deixando para trás a estrada principal, tomou o estreito caminho espiralado que, paralelamente ao estuário cada vez mais largo, conduzia a Ardfillan. Como aqueles martelos dos estaleiros, o coração lhe batia à entrada da cidadezinha, toda ela igual ao que fora outrora, como se ele a tivesse deixado na véspera. A mesma estreita faixa de esplanada, lambida pelas ondas mansas; o coreto de ferro; o pequeno dique; a curva das casas baixas e encardidas, a torre quadrada da igreja... Sua visão estava tão perturbada que lhe foi preciso parar um instante, - ó Deus, - e parou logo em frente do mesmo abrigo de madeira de onde Mary mandara Willie fazer uma compra e onde ele a tomara nos braços! Estava agitado, pensamentos confusos perpassavam-lhe pela mente; ela o acharia muito mudado, reconhecê-lo-ia, perdoar-lhe-ia, ou se recusaria a vê-lo?
Afinal voltou à calma, rodou ao longo da fachada e enfim estacionou. Depois, cabeça baixa, subiu a ladeira que levava à loja Douglas. Já na rua traseira levantou a cabeça, e súbito percebeu que a loja já não estava ali. Havia em seu lugar uma alta fachada de tijolos, de cujo interior provinha um rumor de máquinas rodando. Esperara, com uma confiança tão irracional, encontrar tudo como dantes, que ficou mais desapontado do que admirado. Permaneceu confuso alguns instantes, depois avançou pela estreita rua empedrada, viu que se abrira uma rua nova e larga em ângulo reto com a antiga, e que dava acesso a um imponente e esplêndido estabelecimento, com um anúncio luminoso: Padarias da cidade e do Campo Lt.da
Imóvel, ficou olhando as bandejas de bolos berrantemente coloridos que enchiam as vitrinas; depois cruzou a rua e entrou na padaria. Duas mocinhas de ar esperto, de vestido lilás com gola e punhos brancos, estavam de pé por trás do balcão.
- com licença - disse ele. - Procuro uma família que outrora tinha uma loja nas vizinhanças. Chamava-se Douglas.
As moças estavam na idade em que se confunde o inesperado com o absurdo, e pareciam propensas a rir. Mas qualquer coisa, talvez a elegância dele-as conteve, e uma olhou para a outra.
- Nunca ouvi falar; e você, Jenny?
- Eu também não - disse Jenny, sacudindo a cabeça.
Fez-se uma pausa, depois a primeira disse:
- Talvez o velho Sr. Donaldson saiba alguma coisa. Mora aqui faz muito tempo. - E teve um frouxo de riso. - Muito mais tempo do que nós.
- Donaldson? - O nome fez-lhe vibrar uma corda na memória.
- É o nosso caseiro. Se o senhor entrar pelo portão de veículos, à esquerda, verá a casinha dele, fronteira à padaria.
Moray agradeceu e, seguindo as instruções, achou-se no que fora outrora o pátio dos Douglas, agora muito ampliado, com a grande padaria mecânica à esquerda, uma garagem para caminhões à sua frente, e, à direita, a velha cocheira transformada num pequeno apartamento de andar único. Tocou a campainha, e, após um intervalo, ouviu uns passos vagarosos no interior; a porta abriu-se em seguida, revelando a figura corcovada, com óculos de aro de níquel, de um homem de setenta anos, com um boné posto ao revés, avental de alpaca preta e chinelas. Às perguntas de Moray, permaneceu algum tempo calado, sombriamente refletindo.
- Se conheço James Douglas? - respondeu afinal. - Acho que sim. Fui seu ajudante por mais de vinte anos.
- Então quem sabe me poderá dar notícias dele e da família...
- Entre um pouco - disse Donaldson. - Perto da porta faz um frio cortante nesta época do ano.
Moray seguiu-o para uma cozinha escura onde lampejava um débil fogo no fogão - aposento desarranjado de homem velho e só. Donaldson indicou uma cadeira, depois, sem tirar o boné, arrastou-se para um canto e foi sentar-se embaixo da prateleira de tonéis.
- É amigo dos Douglas? - perguntou, desconfiado.
- Fui, no passado - disse rápido Moray. - Agora sou inteiramente desconhecido na região.
- Bem - disse o outro devagar. - A história dos Douglas não é muito alegre. James, coitado, morreu, e há muito tempo está enterrado; sua cunhada Minnie também. É bom saber isso para começar. Como vê, James fracassou nos negócios e abriu falência; houve atrás de tudo isso um trabalhinho de sapa condenando a propriedade, a fim de abrir-se em seu lugar a rua nova - tudo por ordem do conselho municipal. Seja como for, a desgraça levou James para o cemitério, pois ele era um homem às direitas, honesto como a luz do sol. Minnie, que andava sempre doente, logo o seguiu a caminho do
túmulo. A história foi assim, e, em lugar do armazém de James,
levantou-se esse grande edifício das padarias, cujos produtos corroem as entranhas de quem os come. Não que eu tenha alguma queixa contra a companhia: eles até me deram este empreguinho, do qual vou vivendo.
Fez uma pausa, momentaneamente perdido no passado. De caso pensado, Moray insistiu:
- Ele tinha uma filha, não tinha?
- Sim - disse o velho, sacudindo afirmativamente a cabeça - Mary... que também passou por dificuldades. Quando era mocinha, ficou noiva de um malandro que a enganou e a abandonou. Sofreu muito, muitíssimo, e por muito tempo. Quando eu saía da padaria, costumava vê-la me acenando da janela. Mas, com o tempo, ficou muito religiosa, e, anos mais tarde, quando o novo ministro, de nome Urquhart, veio para a igreja de Longend - e era um bom homem, - ela teve a sorte de se casar com ele. Um ou dois anos depois, deu-lhe uma linda menina...
Atónito, Moray permanecia teso na cadeira. Ela casara-se, esquecera-o, ou pelo menos traíra-o. O que ele acreditava ser o único amor de toda a sua vida! Mais doloroso ainda, dera uma filha ao outro... Em seu atual estado de espírito, isso lhe parecia uma profanação. Entretanto, malgrado a sua grande consternação, o raciocínio não o abandonara inteiramente. Quem era ele para recusar-lhe o direito à felicidade, desde que verdadeiramente ela a houvesse encontrado?
Afinal disse, com a voz embargada:
- Está morando aqui com o marido?
- Não. Foi para Ardfillan com a filha, logo depois que enviuvou.
- Que enviuvou? - exclamou ele.
O velho sacudiu a cabeça num aceno afirmativo.
- Ele não era muito forte, sabe, e, quando veio aquela epidemia de gripe espanhola em trinta e quatro, foi levado para o eterno descanso.
Sem dar por isso, Moray se acalmou ligeiramente, e respirou fundo. A situação de algum modo melhorara repentinamente. Era triste, naturalmente, ela ter perdido um marido jovem, ao qual, de sua parte, ele nunca teria desejado o menor mal... Todavia, o infeliz já era fraco desde o início, e o motivo do casamento de Mary bem podia ter sido compaixão e não amor. Parcialmente recuperado do choque, e com sentimento renovado, Moray fez uma última pergunta:
- Para onde fora... Mary e a filha?
- Para uma aldeia, nos Lothians. Chama-se Markinch. A filha queria estudar para enfermeira, por isso procuraram um lugar mais perto de Edimburgo. Mas que fim levaram desde aquele tempo não poderei dizer... Sua situação económica não era das melhores... e nunca mais foram avistadas nas vizinhanças de Ardfillan...
Seguiu-se um longo silêncio, enquanto Moray, de cabeça baixa, tentava ordenar seus pensamentos; depois, ainda visivelmente transtornado, levantou-se e, com uma palavra de agradecimento, pôs uma nota na mão de Donaldson. O velho, após alguma fingida relutância em aceitá-la, fitava o visitante através dos óculos com uma curiosidade crescente.
- Minha vista já não é o que era - observou ele, acompanhando Moray até à porta. - Mas tenho a ideia singular de que já o vi antes. Gostaria muito de saber quem é o senhor.
- Pense em mim como em alguém que deseja dar ajuda a Mary Douglas e sua filha.
Fez essa declaração com toda a firmeza, com a consciência de uma nova sinceridade de propósitos; e, virando-se, caminhou de volta para o carro. Agora percebia que suas esperanças foram ilusórias, e que tudo quanto imaginara falsamente se baseava numa romântica recriação do passado. Havia ele realmente esperado, após trinta anos, encontrar Mary como no dia em que a abandonara, ternamente apaixonada, ainda virginal, e com toda a frescura da sua mocidade? Deus sabe que desejava que assim fosse. Mas o milagre não acontecera, e agora - ouvindo a história da mulher que muito chorara esperando por ele, e que se casara, não por amor, para depois perder o marido inválido; a mulher que sofrera dificuldades, má fortuna, talvez pobreza, e que entretanto se sacrificara para educar a filha e dar-lhe uma profissão digna - ele voltou à realidade, à calma consciência de que a Mary que ia encontrar em Markinch devia ser uma mulher de meia-idade, de mãos gastas pelo trabalho e olhos ternos cansados, ferida e maltratada pela luta da vida, mas, por isso mesmo, talvez mais propensa a perdoar e a aceitar as suas generosas atenções.
O coração se lhe aqueceu a esses pensamentos, enquanto, de regresso a Winton, ele ia rodando através da sedução do nevoeiro que se adensava sobre o rio. Depois, de repente, lhe ocorreu que se esquecera de pedir a Donaldson notícias de Willie. Omissão indesculpável! Que teria acontecido ao inteligente rapazinho, ao perguntador insaciável de suas horas noturnas? Bem, logo haveria de saber, e da boca da própria Mary.
Eram sete horas quando chegou; e, como comera pouco durante o dia estava esfomeado. Depois de um banho rápido e alguns retoques, desceu para o salão do hotel e encomendou um filé duplo, cebolas, batatas assadas Anan Chief e uma pinta de Macfarlane, a cerveja local - tudo com tanta desenvoltura, que era como se ele nunca se tivesse ausentado da região. Depois cedeu às seduções de uma torta de melado cor de ouro, verdadeira delícia da cozinha nativa. Atacou-a valentemente, contando partir para Edimburgo e Markinch na manhã seguinte.
CAPÍTULO TRÊS
Embora o carro não estivesse rodando muito bem, com um dos cilindros por vezes falhando, ele preferiu conservá-lo a enfrentar uma torturante delonga na agência; e na manhã seguinte, às onze horas, tendo saldado sua conta no Hotel Central, partiu para Edimburgo. Segundo o mapa rodoviário, Markinch ficava a cinco milhas de Dalhaven, no litoral leste. Devia ser uma pequena aldeia - pelo menos nunca lhe ouvira o nome - e a pouca densidade da sua população sem dúvida lhe facilitaria a procura.
O dia estava escuro e ventoso, com grandes novelos de nuvem se atropelando no céu; mas, no começo da tarde, quando ele chegou a Edimburgo, um sol baixo varou as nuvens, emitindo raios refulgentes desde os muros do Castelo até aos jardins da Rua dos Príncipes. bom presságio, pensou ele, conduzindo o carro pela estrada a leste, em direção de Portobelo. Aí, o trânsito se deteve um instante no Cruzamento para dar passagem à Banda Feminina de Gaitas de Portobelo, que se dirigia, pensou ele, para alguma reunião local. Fez-lhe bem ver as belas moças escocesas marchando ao compasso do Cock of the North, balançando-se os saiotes, e as fitas de Glengarry esvoaçando ao sopro dos instrumentos. Os recursos naturais da Escócia, disse ele com seus botões esboçando um sorriso, o olho esperto discriminando algumas das moças mais promissoras. Mas o buzinar dos carros que vinham atrás despertou-o e ele avançou, passando por Musselburg e Newbigging. Enfim atingiu a costa, além da baía de Gosford, e, estacionando numa praia deserta, comeu os sanduíches que lhe haviam arranjado no Hotel Central. Depois partiu de novo. O mar tinha cintilações, e um vento penetrante varria as charnecas arenosas e as dunas amarelas franjadas
de capim cortante e descorado e de algas aromáticas. Praia adentro, à esquerda, avistou Bass Rock, e muito além, do lado de terra, a coroa verde de Berwick Law. Gaivotas circulavam e gritavam na altura, acima do areal açoitado pelo vento, e ele podia sentir nos lábios o gosto de sal húmido e areento, o que lhe proporcionava a iniludível sensação de estar de fato no torrão natal.
Decidira-se com antecedência por Dalhaven como um pouso conveniente, mas, quando ali chegou e bateu a cidade em busca de uma hospedaria, nada achou que lhe parecesse aceitável. As casas, baixas, varridas pelo vento, feitas de grés vermelho, encolhiam-se junto ao porto pesqueiro com um ar inóspito, e os moradores, vendo o forasteiro, se mostraram azedamente incomunicáveis. Finalmente encontrou um nativo mais acolhedor, que o mandou para o Hotel Marinho, entusiasticamente recomendado. Esse hotel ficava acima do campo de golfe, duas milhas distante da cidade, e se lhe revelou excelente; em verdade, um estabelecimento de primeira categoria, onde foi tranquilamente acolhido pela gerente e conduzido a um ótimo quarto de frente.
Depois do banho, pediu informações sobre o caminho exato, e, após um breve percurso terra adentro através de sinuosas estradas rurais margeadas de espinheiros, chegou à aldeia de Markinch. Como que advertido por uma voz interior, percebeu, de repente, ser aquele lugar o seu objetivo real e derradeiro.
Essa certeza acalmou-lhe os nervos à medida que ele ia descendo devagar a única e deserta rua da aldeia. De cada lado se erigiam casinhas caiadas, com capuchinhas ainda florescendo pelas paredes. Nem um ser vivo se via, a não ser um cão-pastor meio adormecido, com um olho aberto, junto da calçada. Havia ali um bazar, que funcionava também como agência postal; mais adiante, uma ferraria e uma loja antiquada de vidraças opacas, encimada por uma tabuleta onde se lia Chapelaria, e, do outro lado da rua, o que lhe pareceu ser um pequeno dispensário, e em cujo exterior havia uma inscrição: Centro de Saúde. Em qual desses lugares devia pedir informações? Talvez no bazar-correio, embora desgraçadamente isso pudesse tornar pública a notícia de sua chegada. Na extremidade da rua, estava a ponto de voltar quando viu, a alguma distância, a igreja da aldeia e o presbitério anexo. Uma ideia ocorreu-lhe, provocada pela lembrança de uma observação de Donaldson, e também pelo desejo de reserva e discrição. Encaminhou-se para a igreja, que era de estilo baronial escocês com sua torre quadrada em vez de campanário, estacionou o carro na calçada fronteira, dirigindo-se
em seguida para o presbitério, pequena mas decente residência de pedra cinzenta, e puxou a alça da sineta.
Depois de um longo intervalo a porta foi aberta pelo próprio ministro - homem miúdo e descorado, de pernas extremamente curtas e uma cabeça exageradamente grande, encimada por uma gaíbrinha de cabelos grisalhos. Sua roupa velha e preta e o colarinho clerical desfiado nas beiradas emprestavam-lhe um ar desanimado, que suas feições só faziam confirmar. Uma caneta numa das mãos e, na outra, um manuscrito consideravelmente corrigido davam a entender que fora interrompido no preparo de seu sermão; entretanto, suas maneiras foram bastante afáveis.
- Às suas ordens, senhor.
- Perdoe-me o incómodo, mas estou procurando uma senhora de sobrenome Urquhart. - Desta vez, o novo nome veio-lhe mais facilmente aos lábios... A princípio, magoara-o o fato de ter de pensar nela como outra pessoa que não Mary Douglas. - Ouvi dizer que ela reside nesta paróquia.
- Ah, decerto se refere à nossa excelente enfermeira distrital! - E a expressão do homenzinho iluminou-se, revelando sua disposição em
- ajudá-lo. - Ela mora em cima do Centro de Saúde, que o senhor acaba de passar. É uma moça muito ocupada, e, se não estiver em casa, o senhor a encontrará no dispensário, das cinco às seis.
- Fico-lhe muito obrigado - disse Moray, satisfeito pela informação. - É claro que o senhor se refere à filha de minha amiga. Presumo que a mãe mora com ela...
- A mãe? - O ministro fez uma pausa, examinando o interlocutor. - O senhor é estranho por estas bandas?
- Estive muitos anos ausente daqui.
- Então não sabe da grave doença que a acometeu.
- Doença?
O ministro fez um gesto de afirmação.
- Receio ter de prepará-lo para tristes notícias. Faz nove meses que enterrei a mãe de Kathy no cemitério local.
Estas palavras, emitidas num tom de condolência profissional, foram reforçadas pelo sino da igreja que, no mesmo instante, como a dobrar finados, batia as horas com o áspero som de seu bronze rachado. Não podia haver equívoco, com efeito não havia equívoco - aquilo devia ser o fim. Não apenas o desapontamento, mas um verdadeiro choque, devia ter transparecido no rosto de Moray, um choque doloroso que lhe sugou todo o sangue do coração e o forçou a encostar-se no batente da entrada.
- Meu caro senhor, entre e sente-se um minuto. Venha... aqui no saguão... - E, tomando o braço de Moray, o ministro conduziu-o para uma cadeira no vestíbulo. - Vejo que a notícia o afetou profundamente.
- Tinha tanta esperança de revê-la - murmurou Moray. - Era uma amiga muito querida.
- E uma mulher muito digna, meu caro senhor; estava entre as eleitas do meu rebanho. Mas não se aflija: no além a encontrará.
Mas o homem aflito não tinha no momento grande confiança na promessa do além. Ela partira, carregando consigo para o túmulo a lembrança da sua traição. Ele fora, até ao fim, desprezível a seus olhos, uma chaga ulcerada em sua memória. E agora nunca mais poderia redimir-se, desfazer o odioso complexo que perpetuamente lhe ameaçava a paz de espírito: tinha de continuar suportando o peso de sua culpa. Arrasado de dor e de desapontamento, afogado em - uma maré de autopiedade, ouvia o pároco falando, exaltando as virtudes da morta.
- A filha dela também; possui os mesmos altos padrões de conduta. .. É muito dedicada. E agora... se o senhor está mais calmo, minha mulher lhe pode oferecer uma xícara de chá.
Moray endireitou o corpo, e, embora ainda não fosse dono de si, teve a prudência de declinar.
- Não, muito obrigado.
- Acho que o senhor gostaria que eu lhe mostrasse o lugar onde ela está enterrada...
E dirigiram-se para o cemitério, nos fundos da igreja. A sepultura, assinalada por uma simples cruz céltica, foi-lhe indicada pelo ministro que, absorto um instante entre a compaixão e a curiosidade, perguntou:
- Segundo creio, o senhor é da nossa religião. Se isso for verdade, espero vê-lo domingo, na igreja. A Palavra Divina tudo cura. Mora nas vizinhanças?
- No Hotel Marinho - murmurou Moray.
- Ah... um excelente hotel. Miss Carmichael, a gerente, é nossa grande amiga. - Estabelecidas assim as credenciais do estranho, o ministro fez sua própria apresentação, com uma ânsia quase patética de ser útil. - Meu nome é Fotheringay... Matthew Knox Fotheringay... Bacharel em Artes de Edimburgo, às suas ordens, para o que precisar de mim.
E, com uma mesura, afastou-se discretamente.
Sozinho, Moray ainda fitava a verde relva, na qual um comprido retângulo de terra ainda levemente elevado apresentava um triste e significativo contorno. Ali jazia o lindo corpo que ele acariciara em sua juventude. Visualizava-a em sua forma jovem, como naquela tarde no alagadiço, com a cotovia cantando sobre a charneca e o riacho saltitando em seu leito de pedra polida. Viu-a nitidamente, radiosa e fresca em sua figura esbelta, o cabelo de um vermelho acastanhado, os olhos negros como carvão, e o sangue da juventude a latejar-lhe por todo o corpo... Subjugado,
apoiou-se no monumento de granito e cerrou os olhos ardentes.
Quanto tempo ali ficou, debruçado e imóvel não o poderia dizer; mas um leve ruído de passos na vereda pedregulhada logo o perturbou. Voltou-se, levantou a cabeça e quase desmaiou: ali, diante dele, ressurgida da cova, estava Mary! Mary, exatamente como ele a conhecera, tal como a sonhara um pouco antes, a ilusão temerosa e fantasmal acentuada pelo ramalhete de alvas flores que ela apertava junto ao peito! Quis gritar, mas a voz não lhe saiu. Aturdido, a cabeça à roda, percebeu que se tratava da filha de Mary, imagem viva de sua mãe.
- Devo ter-lhe pregado um susto. - E ela avançou para ele, preocupada. - Sente-se bem?
- Sim - tornou ele confuso. - Mas estou muito envergonhado de mim mesmo... com este meu procedimento tão idiota. - E, procurando uma desculpa, acrescentou: - Eu... como vê... não estava nada preparado...
Ela o fitou com olhos compreensivos.
- Encontrei-me com o ministro no caminho. O senhor era um grande amigo de minha querida mãe...
Ele baixou a cabeça em sinal de mágoa respeitosa.
- E de toda a sua família - respondeu. - Foram muito bondosos para comigo quando eu era pobre... e um estudante desamparado.
O rosto da moça exprimia simpatia e bondade; era evidente que a tristeza de Moray junto ao túmulo pesara fortemente nela a favor dele.
- Então, conheceu James, meu avô?
- Homem maravilhoso... Pude perceber isso... embora naquele tempo eu fosse um rapaz bastante desmiolado...
- E Tio Willie? - perguntou ela, com crescente simpatia.
- Willie e eu éramos grandes amigos - tornou ele, quase soltando um suspiro a essa recordação. E, numa súbita inspiração, tentando
valorizar a amizade entre os dois: - Muitas vezes dormimos juntos. Tínhamos longas conversas durante a noite. Era um excelente rapaz.
- Sim - respondeu ela, - posso imaginar.
Fez-se uma pausa, durante a qual ele não conseguiu fitá-la. Suas ideias ainda não estavam muito claras, nem inteiramente ajustadas a essa extraordinária inversão dos acontecimentos. Ele ainda lamentava a mãe e tudo quanto sua perda acarretava; entretanto, começava a pressentir que bem poderia descobrir na filha a oportunidade que buscava. Decerto que aquele não era o fim de sua jornada; pelo menos desejou-o fervorosamente, numa súbita ansiedade. Era com esforço que tentava parecer tranquilo.
- Devo apresentar-me. Chamo-me Moray... David Moray.
A expressão da moça não mudou. Ao tomar a mão que ela lhe estendia, ele mal pôde reprimir um fundo suspiro de alívio. Ela não o conhecia, nem sabia de sua história pouco edificante... Por que duvidara? Mary nunca falaria à filha sobre o passado, o segredo continuava intato em seu pobre coração partido, agora mudo para todo o sempre a seis pés de profundidade sob suas dispendiosas botas feitas à mão...
- Meu nome é... - dizia ela, enquanto ele ainda lhe segurava a mão - Kathy Urquhart.
Ele esboçou em sua intenção, embora com uma tranquila mágoa, o seu sorriso mais sedutor.
- Então, se me permite, na qualidade de um velho amigo de sua mãe... e de toda a família... chamar-lhe-ei simplesmente Kathy.
Disse isso com bondade, quase humildemente, aflito para deixá-la à vontade, para anular qualquer cerimónia que porventura ela pudesse ter para com ele. Depois, postando-se a um lado com um ar submisso com um senso de compunção e responsabilidade, muito consciente de seus defeitos e deficiências, de todos os seus erros do passado, viu-a colocar alguns crisântemos num vaso de esmalte verde junto à cruz céltica e remover, com alguns toques, as folhas de faia caídas sobre a relva.
Ela viera sem chapéu. Vestia um manto azul escuro, indisfarçavelmente puído, sobre o zuarte do uniforme de enfermeira, de um azul mais claro, e um de seus sapatos, que ele observou com um aperto de coração, estava remendado - belo conserto, sem dúvida, mas conserto inequívoco de remendão! Essas pequenas poupanças, tão visíveis a seu olho experimentado, comoveram-no. Alteraremos tudo isso, pensou consigo mesmo, com uma repentina explosão de sentimento. Sim, a sua oportunidade estava ali, indubitável
e predestinada; no mais fundo de si mesmo, sentia que era
assim.
- Pronto - exclamou a moça, erguendo-se com um riso confiante. - Estaremos em ordem para domingo. E agora... - disse com certa hesitação, mal se atrevendo a enunciá-lo - quer ir comigo para casa e tomar uma boa xícara de chá?
E saíram juntos, caminhando pela aléia do cemitério.
CAPÍTULO QUATRO
CENTADO à janela da sala, na parte superior do dispensário, enquanto ela ia à kitchenette preparar o chá, Moray olhou em torno, surpreso ante a carência de conforto, ante a pobreza de tudo quanto via. Nem sequer um tapete no soalho esfregado e polido, de largas tábuas; o mobiliário era escasso, pouco mais do que uma mesa tosca e um par de cadeiras de crina e encapadas, a lareira manchada de fuligem mas sem carvão, as paredes de um branco sem têmpera, realçadas apenas por um quadro de assunto religioso, reprodução, do Christian Herald, de uma péssima cópia da Transfiguração, de Valdez Leal. Na prateleira, alguns livros, principalmente compêndios de enfermagem, e uma Bíblia. Uma avenca língua-de-veado num vaso de barro sobre um pires azul estava na janela junto a uma cestinha de costura com um pedaço de tricô, pronto a ser retomado. Mas, conquanto reconhecesse seu asseio espartano, e o toque de branco que lhe emprestava um vaso de astérias silvestres - colocado sobre o poial da lareira e alvo da luz amarela do ocaso, - percebeu na sala, bem como na alcova anexa, cuja porta ela fechara apressadamente, a prova dolorosa de grandes aperturas. Também na bandeja, que ela hospitaleiramente lhe apresentou, a louça era pobre, e o único prato continha apenas umas fatias de pão caseiro com manteiga. Moray não chegou bem a compreender aquilo, mas, subitamente animado, raciocinou que, quanto maiores fossem as necessidades dela, tanto maior seria o auxílio que lhe podia dar.
- Se eu ao menos soubesse que o senhor vinha... - disse ela nervosa, como que se censurando, enquanto servia o chá - teria arranjado algo melhor... Quando trabalho, só faço compras aos sábados. Mas não se importe comigo; fale de sua pessoa... Esteve viajando no exterior?
- Sim, por muitos anos. Pode imaginar o que significa para mim este regresso ao torrão natal. - Sorriu, e em seguida suspirou. - Agora, que aqui estou, pretendo prolongar minha estada...
- Onde esteve?
- A maior parte do tempo, nos Estados Unidos.
- Tinha a esperança de que dissesse "África"... - Ela esboçou um sorriso, embora o seu olhar, passando mais além, tivesse um ar remoto. - Tio Willie está lá... em Kwibu, na fronteira norte de Angola.
Embora não o demonstrasse, ele experimentou, contudo, uma forte sensação de alívio: Willie certamente tê-lo-ia reconhecido, e qualquer encontro prematuro com ele teria provocado uma crise absolutamente indesejável...
- Isso não me surpreende nem um pouco - disse ele amavelmente, com uma leve ponta de interesse. - Mesmo em menino, Willie tinha loucura pela África. Ele e eu praticamente palmilhamos, com Livingstone, milha por milha do caminho rumo ao Lago Vitória. E quando Stanley o encontrou... você precisava ver como aplaudimos! Mas Angola... não se trata daquela região primitiva?
- Ela mesma. Desde que o tio partiu para lá, só tem tido horríveis dificuldades. Mas agora as coisas estão melhorando. Tenho uma porção de instantâneos que lhe posso mostrar. Dão uma boa ideia das condições lá existentes.
Neste ponto, Moray pensou que não seria prudente aprofundar a questão das atividades pioneiras de Willie - quer se tratasse de mineração quer de engenharia, não podia saber, - por isso não insistiu no assunto.
- Quando você tiver tempo, terei muito prazer em ver essas fotografias. Mas o que realmente desejo saber, neste momento, são as atividades que você exerce no dispensário.
Involuntariamente, ela teve um tímido gesto de modéstia.
- Oh, não é grande coisa! Apenas a atividade usual de uma enfermeira distrital; visitas domiciliares e coisas semelhantes. Percorro o meu circuito rural em bicicleta; às vezes, a pé. Há ainda o Centro de Saúde, para tratamento pré e pós-natal, com sua clínica... que alcunhamos "bar de leite"... Destina-se aos recém-nascidos. Vez por outra, faço plantão no Hospital de Dalhaven.
- Tudo isso soa como se todos aqui trabalhassem demais...
Ele já notara que as mãos dela eram ásperas e gretadas.
- Trabalhar é bom - disse ela animadamente. - E todos aqui são muito decentes. Tenho folga nas tardes de quinta-feira, e três semanas
de férias por ano... Na realidade, tenho duas semanas a mais, para a viagem. ..
- Gosta, então, do seu trabalho?
Ela sacudiu afirmativamente a cabeça, com uma reserva mais convincente do que o seria uma explosão de entusiasmo.
- Ao mesmo tempo, aqui não há perspectivas muito vastas. Mas... como tenho em vista coisa muito melhor...
A essa observação, e à reserva com que ela a fizera, uma ideia desconcertante passou pelo cérebro de Moray. Embora a achasse de mau gosto, teve de dizê-la.
- Quer dizer que vai casar-se?
Ela soltou uma súbita risada, mostrando dentes brancos e iguais, em sadias gengivas côr-de-rosa; uma risada que penetrou docemente, tranquilizadoramente nos ouvidos de Moray.
- Oh, não! - exclamou ela, pondo-se séria. - Aqui não há mais do que uns poucos rapazelhos da lavoura, que só pensam nos bailes de sábado e no cinema de Dalhaven. Além disso... - prosseguiu - estou tão firme no meu trabalho, que nem penso em trocá-lo por qualquer outra coisa... ou por alguém.
Tudo como ele teria desejado. Sozinha e sem impedimentos, ligada de modo sensato embora não permanente a uma profissão digna, decerto, mas monótona e pouco compensadora, não poderia haver objeto mais perfeito para a sua filantrópica e afetuosa atenção. Seus pensamentos já se precipitavam para o futuro. Pouco familiarizado com a lei, pensava que podia fazer dela sua pupila. A adoção parecia inviável, lembrava orfanatos e partilha de filhos de pais frustrados. Fosse lá o que fosse, o coração lhe transbordava de genuíno sentimento. Era, sempre fora, homem generoso; ninguém lhe poderia negar essa pequena virtude. O que não poderia fazer por ela! Não devia precipitar indevidamente os acontecimentos, a fim de não alarmá-la, de vez que, pelo visto, ela o tomara por um homem de posses moderadas. Entretanto um aspecto havia em sua situação que muito o impressionou: o de ser rico no duplo sentido da palavra, rico não apenas de dinheiro, mas das mais deleitosas possibilidades de surpresa e realização.
No silêncio que se fez entre ambos, Moray observava-a de olhos baixos enquanto a moça punha na bandeja a louça em que servira o chá. No final das contas, ela não era a exata réplica materna que ele imaginara no primeiro choque emocional. Tinha a mesma pele fresca, olhos castanhos e nariz breve, ligeiramente grosso, os mesmos cabelos castanhos naturalmente arrepanhados na nuca. Mas a
expressão era diferente - refletida, quase reservada, a boca mais larga, mais cheia, mais sensivelmente curvada, e em cujos lábios firmes ele via a evidência de uma natureza menos dada à alegria. Havia nela uma certa altivez que lhe agradava, um certo sentido de desprendimento. Ria-se pouco, mas, quando o fazia, era a coisa mais bonita que ele já vira. Mais que tudo, porém, impressionava-o o seu comovente aspecto de juvenilidade. Mary fora uma garota robusta, de redondos seios e quadris bem acentuados. Esta, porém, era esguia, pouco desenvolvida, dir-se-ia de uma imaturidade que contrastava com o seu ar sério e que irresistivelmente provocava os seus instintos protetores. Sem querer ofender a morta, concluiu que esta garota, de igual beleza, era entretanto mais profunda, possuidora talvez de uma maior capacidade para amar... Voltou a si. Uma pontinha de embaraço, algo que a ela, em seu modo de ser, repugnava expressar.
Levou-o repentinamente a lembrar-se de que Fotheringay, o ministro, lhe dissera que o dispensário abria às cinco. Olhando o relógio, viu que passavam dez minutos da hora. Levantou-se precipitadamente.
- Minha cara Kathy... Demorei-me demais... - desculpou-se ele. - Estou a impedi-la de ir para junto de seus pacientes.
- Eles não se importam de esperar mais alguns minutos. Não é todos os dias que recebo visitas.
- Então deixe-me dizer depressa da alegria que tive em descobri-la. Espero que este feliz encontro seja o primeiro dentre muitos... pois você precisa compreender que tenho uma dívida para com a sua família.
Depois que ela o acompanhou até à porta, ele se dirigiu para o carro e rodou para o hotel, refletindo com emoção nos extraordinários, nos memoráveis acontecimentos daquela tarde. À sua tristeza se mesclava uma espécie de exultação. Fora até ali levado pelos motivos mais sublimes, e em vez de uma mulher já com alguma idade - que certamente o teria acolhido com censuras, até mesmo com rancor, e que seria inflexível aos seus oferecimentos de reparação e assistência - encontrara uma moça pobre, trabalhadora, necessitada de sua ajuda e talvez mais apta a extrair dele um benefício maior. Deplorava a perda da mãe, um golpe, sem dúvida; despedaçara-lhe o coração. Mas a compensação residia naquela meiga criança que, não fossem circunstâncias inevitáveis, até poderia ser sua filha. Sobre ela, pois, e para reparar o passado, iria ele exercer, imediata e gratuitamente, uma benigna influência - prudente, proveitosa,
paternal. Os caminhos da Providência eram na verdade sábios e inescrutáveis; e transcendiam de longe a inteligência humana...
CAPÍTULO CINCO
NAQUELA noite, após o jantar, arranjou com a gerente do hotel que lhe desse uma sala. Felizmente, havia uma, anexa ao quarto. Era espaçosa e confortável, tinha uma boa lareira que, garantiu-lhe confidencialmente Miss Carmichael, "puxava bem". Conseguido isso, pediu uma ligação interurbana para a sua villa na Suíça.
Quando Arturo atendeu, quase comicamente encantado por ouvir a voz do patrão, Moray ordenou que ele lhe despachasse de Zurique, por via aérea, seus tacos de golfe e alguma roupa adicional. Quanto à correspondência, deixava à sua discrição a remessa das cartas que lhe parecessem mais importantes. Alguma notícia? Tudo ia bem, respondeu Arturo, o tempo estava bonito, fizera-se a colheita das ameixas e das rainhas-cláudias, Elena aprontara dez quilos de marmelada, um dos filhos do encarregado do embarcadouro estivera doente mas sarara, e Madame Von Altishofer telefonara duas vezes, pedindo seu endereço - devia dar-lhe? Embora grato pela solicitude, Moray, depois de refletir um momento, disse que ele mesmo escreveria a Madame. Pendurou o fone, absurdamente satisfeito com essa coleção de notícias domésticas.
Mais tarde, porém, enquanto se preparava para dormir, seu estado de espírito mudou inesperadamente. Ao fazer a revisão desse dia tão cheio, viu-se de repente acometido por um frio tremor de autocondenação. Quão apressado fora em consolar-se com a perspectiva de exercer a sua caridade para com Kathy! Como estava errado em esquecer-se de sua querida Mary, em aceitar a filha e olvidar a mãe, sem sentir coisa alguma além de uma tristeza momentânea. Uma mulher, já com alguma idade, que poderia tê-lo recebido com rancor - fora realmente nesses termos que pensara nela, depois que, mal decorrida uma hora, estivera de pé junto de sua tumba? Nunca, nunca teria ela ido a seu encontro com outros sentimentos que não fossem o amor e o perdão. Vestido com a sua comprida jaqueta de seda de dormir, com monograma - um dos casacos especiais expressamente feitos para si por Gruenmann, de Viena, ele ergueu o olhar e jurou fazer abertamente uma reparação no dia seguinte. A ideia trouxe-lhe conforto.
No dia seguinte, fiel ao juramento da véspera, Moray obteve, de Miss Carmichael, o nome do primeiro florista de Edimburgo, ao qual fez uma encomenda por telefone. Não tardou muito e foi-lhe entregue uma enorme e vistosa coroa de lírios, que ele próprio levou ao cemitério e colocou reverentemente junto à cruz céltica. Depois, com passo ligeiro e fazendo girar a bengala, dirigiu-se para o mar e caminhou pelo areal, respirando fundo o ar revigorante. Resistindo a toda e qualquer inclinação, não se aproximou de Markinch, prudentemente considerando que, fosse qual fosse, para si, a significação de Kathy, a verdade era que, para ela, ele não passava de um estranho. Mas no dia seguinte - um domingo - pôs um terno escuro e uma gravata carregada, indagou da inestimável Miss Carmichael a hora do culto matinal e saiu em direção da igreja.
Não podia de pronto recordar há quantos anos não frequentava a igreja. Nos Estados Unidos, aos domingos, saía a jogar golfe com Bert Holbrook, cumprindo a rotina do costumeiro fim-de-semana suburbano no clube de campo local, onde o grupo de golfistas ostentava o nome surpreendente de Bannock Burn. Seus membros, na maior parte diretores de empresas
nova-iorquinas, exibiam-se numa extraordinária indumentária esportiva, que ia desde os shorts de um amarelo-esverdeado até às boinas vermelhas. Formavam, entretanto, um grupo cordial e bem combinado. Apesar disso, ele nunca se sentira perfeitamente à vontade ali. Não pertencia ao tipo que facilmente se adapta à exuberante bonomia da sociedade masculina de massa, e sabia, ao mesmo tempo, que todos estavam a par da sua infeliz situação doméstica, e que, por conseguinte, deviam lamentá-lo. Todavia, gostava do clube e divertia-se no golfe, do qual era excelente jogador. Quando o domingo estava muito chuvoso para o jogo, habitualmente fugia para o laboratório, e foi num feliz e húmido domingo que descobriu a fórmula - imagine-se do que - de um novo perfume, que Bert, com o seu faro pelos nomes comerciais, imediatamente batizara Procissão, e que, vendido como artigo subsidiário, arrecadou uma pequena fortuna para a empresa. Calculava que devia fazer cerca de quinze anos desde que - naquela sexta-feira em que Dóris fora afinal dada oficialmente como doente mental e conduzida para a clínica de Wilenski, em Appletree Farm - ele, disfarçadamente se esgueirara para um banco dos fundos da igreja de Santo Tomás, na Quinta Avenida. A caminho do Clube Universitário, quase pegado, seu olhar caiu na tabuleta: Aberto o dia inteiro para oração e meditação. Sentia-se tão abjeto, ele próprio quase louco, que pensou melhorar se entrasse na igreja. Mas não
melhorou, muito embora se ajoelhasse num dos bancos derradeiros, onde ficou olhando furtivamente para o altar sombrio, e até tivesse derramado algumas pobres lágrimas - pois ele podia chorar em tais ocasiões. Saiu, entretanto, sem o menor sintoma de benefício ou melhora, e foi forçado a recorrer à sua intenção original: um banho turco no clube.
Agora, porém, sua disposição de ânimo era de todo mais propícia, e num estado de ansiosa expectativa, ele aproximou-se da igrejinha campestre para a qual era chamada uma congregação esparsa, mediante o toque dissonante de um sino rachado. Teve, ao entrar, a imediata satisfação de receber de Kathy um olhar de reconhecimento, logo abaixado. Ao começar o culto com um hino, cantado com certa vacilação, e em seguida, durante o sermão de Fotheringay, que foi longo e monótono - uma peça verdadeiramente trabalhada, - teve ele o privilégio de observá-la, embora sempre discretamente, sentada entre a criançada da aldeia. Ficou impressionado ante a competência com que ela disciplinava o bandinho intranqúilo, e a paciência, que demonstrava, ouvindo muito ereta o tedioso discurso. Seu perfil possuía uma pureza de contorno que evocava um primitivo italiano.. . Uccello, talvez... não, não... a doçura da expressão sugeria uma tela muito mais recente... A Jovem Mestra, de Chardin, concluiu afinal, muito satisfeito por ter achado a comparação exata, mas todo arrepiado com a crescente desafinação do coro.
Mas a sua recompensa chegou depois, quando, fora da igreja, ficou à espera de Kathy. Esta saiu, em companhia da Sra. Fotheringay. A esposa do ministro era uma mulher baixa e robusta, de modos francos e um rosto largo, feio e honesto, olhos perspicazes e muito azuis encravados entre rugas, acima de maçãs extremamente vermelhas - verdadeiro rosto de Raeburn, 1. pensou Moray instintivamente. Estava em trajes domingueiros: um velho chapéu preto de plumas e um costume cinza-escuro que já lhe prestara bom serviço e que agora a apertava. Moray foi apresentado e pouco depois, após terem conversado alguns momentos, o ministro Fotheringay veio reunir-se-lhes. Imediatamente Moray cumprimentou-o pelo sermão.
- Muito edificante - disse. - Ouvindo-o, evoquei uma experiência espiritual que me ocorreu na igreja de Santo Tomás, em Nova Iorque...
1. Henry Raeburn, pintor escocês (1756-1823). - N. da T.
A essa comparação implícita com a cidade grande, Fotheringay corou de prazer.
- Muita bondade de sua parte assistir ao nosso culto provinciano. Somos uma congregação humilde, e o nosso pobre sino não atrai muita gente do mundo exterior...
- Reparei mesmo - e Moray ergueu as sobrancelhas com ar súplice - que o som não era muito claro.
- Nem alto - disse o outro, lançando para a torre da igreja um olhar repentinamente irritado. - No ano passado, havia um caibro podre, e o sino veio abaixo. O trabalho de refundição custará aproximadamente oitenta libras. E de que jeito se vai arranjar todo esse dinheiro numa paróquia pobre como esta?
- Mas pelo menos a sua voz não tem nenhum defeito - disse Moray, diplomaticamente. - Achei-o eloquentíssimo. E agora - continuou ele amavelmente - tomo a liberdade de convidar a todos os três para um jantar domingueiro. Deixei-o encomendado no hotel. Espero que estejam livres para aceitar.
Seguiu-se uma pausa breve e vazia - convites dessa espécie não eram frequentes na paróquia. Mas quase imediatamente a expressão de Fotheringay se iluminou.
- Muita bondade de sua parte, senhor. Confesso que, ao descer do púlpito, estou sempre com o apetite aguçado. - Olhou quase jocoso para a mulher. - Que diz, querida? Nossa carne assada servirá para amanhã, e hoje você não terá de lavar pratos.
Desde o começo, com o ar rude de uma mulher a quem se deve mais convencer do que persuadir, ela, desconfiada e abertamente, estivera examinando aquele recém-chegado que tão dramaticamente ali chegara do desconhecido. Mas as suas primeiras impressões não pareciam desfavoráveis, e a perspectiva de emancipação dos deveres subalternos, que a parcimônia do estipêndio marital lhe impunha, era com efeito de abrandar um cristão. Volveu então para Moray uma espécie de sorriso seco.
- Para mim será um regalo; pois se Mateus fica com apetite ao descer do púlpito, o meu se acaba quando me aproximo do fogão.
Kathy estava satisfeita, menos talvez pela perspectiva de visitar o Hotel Marinho do que pelo tratamento acolhedor dispensado por Moray a seus velhos amigos. Depois que os instalou no carro - o ministro e Kathy atrás, a Srª. Fotheringay ao lado dele na frente, Moray deu a partida. Desde o início percebera que lhe era preciso conquistar os Fotheringays, e, segundo parecia, tudo correria bem.
No hotel foram saudados por Miss Carmichael. Como a temporada estava virtualmente no fim - restavam apenas alguns hóspedes, a metade do restaurante principal estava fechada e ela indicou-lhes uma mesa junto à lareira do confortável refeitório, numa intimidade especialmente agradável. A comida, simples e despretensiosa, era de primeira qualidade - sopa escocesa, lombo de carneiro com batatas assadas e vagens, bolo feito de biscoitos embebidos em xerez e coberto por uma camada de grosso creme caseiro, e, depois, queijo de Dunlop e pãezinhos quentes de aveia. Moray esperava que o pároco e a mulher gostassem da refeição, o que de fato veio a acontecer. Mormente a Sra. Fotheringay, que comeu todas as iguarias com cordial e franco reconhecimento. Quanto mais ele conhecia aquela mulher simples e sincera, tanto mais gostava dela. Mas o que lhe deu satisfação maior foi o belo sangue que a boa refeição, tão diferente do magro passadio que, estava convencido, a esperava em casa - fez subir gradualmente às faces de Kathy, dando-lhe maior brilho aos olhos e mais calor ao sorriso. Deus louvado, pensou ele, ela não é apenas espírito! E serviu-lhe uma nova porção de bolo, quis certificar-se de que a carne não estava sendo negligenciada ... Em verdade, com aquela flexibilidade que o habilitava a adaptar-se a qualquer companhia, Moray foi o perfeito anfitrião, mais bondoso e previdente do que divertido, e a todos encantando. Discretamente conversando, aludiu de passagem a seus negócios nos Estados Unidos, à sua prematura aposentadoria e regresso à Europa, à casa que construíra a montante do Schwansee. E, como percebesse que Kathy o escutava com um interesse atento, esmerou-se em descrever com sentimento - o lago, a aldeia e a paisagem circundante.
- Deve-se ver tudo isso coberto de neve... o que logo ocorrerá. - E concluiu com uma nota mais alta: - Um manto da mais imaculada brancura.
- Deve ser um lugar bonito - disse a Sra. Fotheringay. Certa de que suas primeiras dúvidas eram infundadas, mostrava-se agora mais amável para com ele, revelando uma brejeirice surpreendente. - Sujeito feliz por viver no meio de tanta beleza!
- Feliz, sim - disse Moray com um sorriso. - Mas muito só.
- Não é casado?
- Já faz alguns anos que enviuvei.
- Oh, que pena! - exclamou ela, consternada. - Mas tem filhos?
- Não tenho nenhum - tornou ele, erguendo para ela um olhar repassado de gravidade. - Meu casamento... não foi precisamente um matrimónio feliz.
As palavras dolorosas, que indicavam com clareza o subentendido do perfeito cavalheiro, provocaram um silêncio repentino. Antes porém que o mesmo se ampliasse, ele os reanimou.
- Tudo isso é do passado. Agora sinto-me feliz por estar de volta a meu país e numa companhia como a de vocês. - E sorrindo: - Vamos tomar o café na saleta?
Desolado, o ministro fitou o relógio.
- Infelizmente teremos de recusar. Kathy tem aula de Catecismo às três; e já passa de duas e meia.
- Misericórdia! - exclamou a Sra. Fotheringay. - Como o tempo correu! E de modo tão agradável! Estamos muito penhorados com o seu novo amigo, Kathy. Mas agora vamos: deixemos os homens um instante a sós. - E, levantando-se, tomou Kathy pelo braço, acrescentando com a sua rude franqueza de sempre: - Miss Carmichael nos indicará onde faremos nossa toalete.
Deixado a sós com o pároco, que também se levantara e, junto da janela, olhava o mar, Moray aproveitou a oportunidade para tirar do bolso seu livro de cheques. Uns rabiscos da sua esferográfica, e ele ergueu-se.
- Em sinal de amizade e boa vontade... permite-me oferecer-lhe isto... a fim de que a sua congregação possa ser devidamente convocada.
Fotheringay voltou-se rápido. Homenzinho raquítico que era, com mais bílis do que sangue nas veias, estava agora completamente vencido. Tomado de surpresa, olhava o cheque com os olhos arregalados, murmurando:
- Caro senhor... isto é mais do que generoso... é... é munificente.
- Nada disso. É um prazer. Um prazer que posso perfeitamente permitir-me. - Moray pôs um dedo nos lábios. - Mas por favor... não diga nada aos outros.
As duas mulheres retornaram no momento em que ele falava, e a Sra. Fotheringay, assustada com a atitude do marido, exclamou:
- Mateus! Que é que você tem?
O pároco respirou fundo e engoliu em seco:
- Não posso evitá-lo. Tenho de falar. O Sr. Moray acaba de me dar as oitenta libras para o conserto do sino!
Fez-se um profundo silêncio. Um rubor mais acentuado afluíra às faces da mulher, já avermelhadas pela refeição abundante.
- Nunca vi coisa semelhante - disse ela em voz baixa. - Isto é extraordinariamente belo! - E dirigindo-se devagar para Moray, estreitou
entre as suas a mão dele. - Aquele desastrado sino quase deixou louco o meu pobre velho. Decididamente, nem sei bem como agradecer-lhe. Mas não me foi preciso estar mais do que cinco minutos em sua companhia para ficar sabendo que o senhor é um eleito entre os eleitos.
Moray nem sempre perdia a tramontana; agora, porém, o genuíno sentimento da voz dela embaraçava-o inesperadamente.
- Nada... qual nada... - dizia ele desajeitadamente. - Se querem chegar a tempo, vamos indo.
Sem fazer caso dos protestos deles, Moray insistiu em levá-los de volta no carro; mas desta vez os Fotheringays ficaram no assento traseiro e Kathy ao lado dele. Durante o curto trajeto, Kathy não disse palavra, mas, quando ele se despedia, ela se deixou ficar para trás a fim de agradecer-lhe - rápida e timidamente, mas com inequívoca sinceridade.
CAPÍTULO SEIS
Durante A tarde de segunda-feira seus tacos de golfe e duas valises chegaram, por via expressa, do aeroporto de Prestwidk. Moray tinha certeza de que o bom Arturo não falharia. A vista de sua linda valise de couro e lustrosos tacos de genuína têmpera estimulou-o e, embora a hora já fosse avançada, ele se dirigiu para o clube de campo, apresentou-se ao secretário e conseguiu um cartão de sócio temporário. Procurou então o jogador profissional e jogou com ele uma partida de doze buracos. O campo aberto e ondulante era excelente, Moray achava-se em boa forma, e, quando o crepúsculo os forçou a parar, ele levava um ponto de avanço sobre o seu contendor, um escocês azedo e atarracado, que, revelando a princípio todo o desdém do especialista pelo amador, rapidamente, e um tanto comicamente, mudara de opinião.
- Suas tacadas são muito suaves, senhor - admitiu ele no caminho de volta para a sede, onde iam tomar um drinque. - Muito poucas vezes me acontece topar com um visitante que me vença. Gostaria de voltar amanhã?
Moray aceitou.
- Às dez em ponto - disse, passando ao outro uma nota de uma libra. - E talvez voltemos a jogar durante a tarde.
Continha firmemente o desejo de ir a Markinch. A discrição era absolutamente necessária para que não interpretassem mal as suas intenções. Não só isso, mas também conhecia a prudência das delongas, a vantagem de um interlúdio no qual pudesse florescer a expectativa, e desenvolverem-se as recordações de um passado imediato.
Por conseguinte nada fez até à tarde de sexta-feira, quando escreveu um bilhete e o remeteu por intermédio do mensageiro de hotel, um rapaz de dezessete anos.
Cara Kathy,
Preciso de ir a Edimburgo amanhã, para algumas compras. Como, segundo penso, você não trabalhará à tarde, gostaria de ir comigo, caso não tenha algo melhor a fazer? Salvo informação em contrário, irei buscá-la às duas da tarde.
Sinceramente seu, David Moray
O seu receio de que ela não estivesse de folga foi logo eliminado pelo recado verbal, de aquiescência, trazido pelo mensageiro; e na tarde seguinte, quando ele chegou ao dispensário, já ela o esperava na calçada, vestida com uma blusa de brancura imaculada; uma saia de mescla Harris, cor de cinza - que num relance ele percebeu que ela mesma fizera - e, como o vento era cortante, o mesmo manto bastante puído que ela usava quando ele a vira pela primeira vez. Embora o seu rosto cheio de frescor e juventude tudo redimisse, e ela exalasse um cheiro inocente de sabão resinoso, tratava-se de um traje muito deselegante, pouco melhor que o de uma criada campesina em seu dia de folga. Todavia, o vestuário agradava a Moray, especialmente o manto puído, visto que lhe poderia proporcionar a oportunidade que ele procurava. Seria difícil convencê-la; mas ele tinha a intenção de experimentar.
Que delícia senti-la junto de si após aqueles três dias de abstinência que se impusera! Ela não apenas ficara contente em vê-lo, mas a sua disposição de ânimo era mais leve do que antes, mais cheia de expectativa ante a excursão. Sentiu que ela se tornara menos arredia, e, após terem rodado um bom pedaço, Kathy observou:
- Isto é muito melhor do que o ônibus. O senhor foi muito bondoso em convidar-me; e também oportuno. Acontece que também preciso de fazer umas compras em Edimburgo...
- Nesse caso, nós as faremos assim que chegarmos - disse ele em tom cordial. - Diga-me aonde deseja ir.
- Na Rua George, número 10 - A - disse ela. - Escritório da Sociedade Missionária da África Central.
Ele olhou-a de relance. Os olhos de ambos encontraram-se por um breve instante, antes que os dele se voltassem para a estrada à sua frente. Ela, todavia, não deixara de captar-lhe a perplexidade da expressão, e, com um sorriso, tornou:
- Não sabia que... tio Willie está lá, trabalhando para a Sociedade? Sou culpada de não lhe haver mostrado as fotografias, mas pensei que entendesse. Já faz alguns anos que ele trabalha na campanha missionária do exterior.
Moray levou alguns minutos para refazer-se da surpresa.
- Não... não cheguei a entender...
- Pois bem, é lá que ele trabalha. Realiza verdadeiras proezas, nas circunstâncias mais difíceis... O senhor não faz ideia do que ele tem passado.
A despeito de si mesmo e da falta de simpatia pelos objetivos espirituais de Willie, Moray ficou impressionado pelo tom radioso e ingénuo com que a moça falava. Veio-lhe a lembrança comovente do rapazinho de olhos brilhantes que, fazia trinta anos, conhecera em Ardfillan.
- Bem, bem... imagine só! Mas era isso mesmo que se podia esperar de Willie. Respeito-o pela proeza.
- Eu sabia que o senhor o faria... - disse ela em voz baixa.
- Devo confessar... - estavam agora nos arrabaldes de Edimburgo, e uma dificuldade momentânea no tráfego o fez parar antes de prosseguir - sim, confesso que fiquei intrigado quando você me pediu que a levasse à Sociedade Missionária. Mas agora vejo. Suponho que é ali que você se põe em contacto com os movimentos de Willie.
- com efeito, é isso mesmo. O menos que posso fazer por ele é remeter-lhe regularmente alguns pacotes. A Sociedade faz isso por mim. Sabe o de que ele precisa, e está em condições de comprar as coisas certas por preços razoáveis.
- Você lhes paga?
- Por que não? - tornou ela alegremente. - É muito pouco. Tio Willie vale mais que isso. Depois, é o único parente que me resta.
Foi então que ele viu a razão de seu vestuário barato, do pobre alojamento onde morava e da comida sofrível; viu, com efeito, a finalidade do seu poupado estilo de vida. Esta dedicação comoveu-o, mas a sua sensação principal era de indignação por ver que a ela
era recusada a parte que se lhe devia. Veio-lhe o súbito impulso de lhe contar os recursos que tinha à sua disposição, de falar-lhe sobre tudo quanto queria e podia fazer por ela. Mas seu instinto advertiu-o. Não, não, pensou; devia evitar qualquer avanço demasiado repentino, ou demasiado assustador.
Aproximavam-se do centro da cidade, e, seguindo a direção que ela lhe dava, entrou na Princes Street junto ao Scott Monument, contornou um trecho de Craig Terrace, e depois, após cruzar uma larga praça, chegou a um edifício de pedra cor de cinza, onde se via uma placa de cobre bem polido, com o nome da Sociedade. Seu aspecto era o de uma velha residência de características vitorianas, a qual, inferiu ele, fora doada à Sociedade por algum falecido benfeitor - possivelmente a viúva crente de algum negociante da cidade. Nas janelas exibiam-se vários cartazes, representando algo que, daquela distância, se afigurava como desgraçados grupos de descarnadas crianças nativas.
- Miss Arbuthnot deve estar à minha espera - disse ela, agilmente saltando para fora do carro. - Não demoro mais que alguns minutos.
E cumpriu a palavra. Só houve tempo para que ele fumasse um cigarro Sobranie (tivera o cuidado de trazer da Suíça um farto suprimento de sua marca preferida), antes que ela reaparecesse. O relógio do painel, que na realidade funcionava, marcava apenas três e meia. Olhando-o, ela desculpou-se um tanto ofegante.
- Ui, deixei-o muito tempo à espera!
- Absolutamente. Foi tudo bem?
- Otimamente, obrigada.
- Então, Kathy - disse ele, resolutamente dando a partida, - você já praticou uma boa ação no dia de hoje e está em minhas mãos para o resto da tarde. Esqueçamo-nos um pouco da África Central e pensemos em nós. Primeiro vamos estacionar o carro; depois faremos as compras juntos.
Achou uma garagem nas vizinhanças, e, tomando a moça pelo braço, guiou-a de volta a Princes Street. O sol brilhava sobre eles, e, nos jardins fronteiros, viçavam rosas; uma brisa fresca fazia esvoaçar as folhas das tamareiras. Acima, as ameias do Castelo surgiam como que recortadas a estilete numa larga faixa de céu luminoso. Numa atitude protetora, ele continuava a segurar-lhe o braço, guiando-a através das calçadas cheias de transeuntes.
- Não acha bonita a Princes Street? - perguntou ela. - Dizem que é a rua mais bonita da Europa!
- Sim, é uma bonita rua, Kathy - respondeu ele amavelmente, - e cheia de bonitas lojas, com bonitas coisas dentro.
- Não há dúvida - disse ela com gravidade, concordando com um aceno de cabeça. - Mas terrivelmente caras.
Ele soltou uma risada. Invadia-o uma deliciosa disposição de espírito. A cena, o sol, o vivo ar tonificante faziam-no exultar.
- Kathy, Kathy - disse ele, premindo-lhe o cotovelo. - Você ainda me mata. Quando me conhecer melhor, saberá que a única coisa que realmente me dá prazer é gastar dinheiro.
Ela teve de sorrir com simpatia, ainda que um tanto suspeitosa.
- Está bem - disse ela com decisão, - contanto que não o desperdice.
- Ora, minha cara, mais do que ninguém você deve saber que nunca é desperdiçado o dinheiro que se gasta com os outros.
- Oh, o senhor tem toda a razão! - concordou ela, enquanto seu semblante se iluminava. - Foi a coisa mais maravilhosa, mais generosa que fez... dando o dinheiro do sino ao Sr. Fotheringay...
- Sim, o velho afinal conseguiu mandar refundir o sino... mas não nos devemos esquecer da Sra. Fotheringay, que não ganhou nada... Até acho que a vida dela se resume em jamais ganhar coisa alguma. Vamos procurar algo bonito para lhe dar. Mas, antes de tudo - (estavam parados em frente de Ferguson, o confeiteiro), - quero mandar uns confeitos de Edimburgo para dois amiguinhos que tenho na Suíça.
Entrou com ela e encomendou uma caixa grande da famosa guloseima a ser enviada aos filhos do encarregado do cais de Schwansee. Depois, pediu a opinião dela e, numa loja próxima, comprou para a mulher do ministro uma espaçosa bolsa preta, de couro de lagarto.
- É uma beleza! - exclamou Kathy alisando com admiração o brilhante couro. - Era isso mesmo que ela queria.
- Então você terá o prazer de entregar-lha.
Saindo da loja, dirigiu-a para um estabelecimento da mesma rua, cuja excelência ele havia observado ao dirigir o carro pela cidade.
- Agora sim - anunciou ele com grande bom humor e uma expressão um tanto maliciosa. - Agora, sim, vou fazer compras de verdade!
Deu um passo à frente, mas, quando se preparava para ganhar a entrada, ela depressa o interrompeu.
- Não está vendo... não é uma loja de artigos para homens...
- Não - replicou ele, olhando-a com um ar sério. - Não é. Mas vou entrar... para lhe comprar um manto novo... e outras coisas de que, tenho a certeza, você está precisando. Agora, nem uma
palavra! Sou um velho amigo da família, você tem de aprender a
aceitar-me... é como se eu fosse o seu tio Willie. Melhor ainda: como se eu fosse um irmão mais velho. E, nessa qualidade, não posso ver você mandando todo o seu dinheiro para Angola e deixando de satisfazer as suas necessidades mais absolutas - uma garota bonita como você.
Uma onda de rubor subiu ao rosto de Kathy. Ela quis falar, mas não pôde. Baixou os olhos.
- Nunca dou importância ao que estou vestindo... de qualquer forma, não ligo muito. - Em seguida, para alívio dele, tornou a fitá-lo, e, incapaz de resistir, com um leve tremor nos lábios, sorriu. - Não devo fingir. Acho que gostaria de ser tão elegante como as outras.
- E será, só que muito mais elegante.
Entraram na loja que, como ele supusera, era de primeira ordem. Auxiliado por uma vendedora discreta e já madura, que se precipitou ao seu encontro, e pondo de lado todos os protestos sussurrados por Kathy, ele escolheu um belo manto de lã de Shetland, quente e no entanto leve, luvas e sapatos novos, uma écharpe de seda feita à mão, e finalmente um discreto e elegante costume Lovat verde-escuro. Quisera fazer mais, infinitamente mais; nada lhe daria maior prazer do que envolvê-la nas ricas pelicas para junto das quais, com um olhar interrogativo, a vendedora esperançada o conduzira. Ele porém não se atreveu... ainda não. Enquanto Kathy se encerrou na sala de provas do primeiro andar, ele sentou-se numa poltrona da elegante sala atapetada de vermelho, espichou as pernas e acendeu um cigarro, perfeitamente à vontade. Dentro em pouco ela desceu, com o olhar abaixado, postou-se à sua frente. Ele não pôde acreditar no que via, tão espantosa fora a mudança. Kathy estava encantadora.
- Madame fica um pouco diferente no costume Lovat, senhor - disse a vendedora com um ar de quem remata uma tarefa e observando-o disfarçadamente.
Sob aquele olhar experimentado, ele se conteve.
- Um grande sucesso - disse calmamente. - Parece que serve.
- Naturalmente, senhor. Madame é um trinta-e-quatro perfeito.
Ele insistiu para que ela permanecesse vestida com o costume verde e o chapeuzinho novo. Os demais artigos, elegantemente embrulhados, eram fáceis de levar, e o manto velho com a saia Harris podiam ser remetidos para Markinch. Ao ser apresentada a conta, embora ele tomasse cuidado para não deixar ver o total, Kathy
pôs-se a resmungar, cheia de remorsos, a seu ouvido. Todavia, quando ela saiu da loja com suas novas aquisições, Moray não deixou de notar o brilho de prazer que cintilava nos olhos da moça. Foi um bem ele ter feito o que fez, refletiu com uma viva emoção; mas aquilo era apenas o começo.
Ela permaneceu calada enquanto caminhavam juntos pela rua. O sol poente lançava um clarão dourado por trás de uma massa de nuvens; então, olhando firme para a frente, ela disse:
- O senhor é bondosíssimo, Mr. Moray. Espero apenas que não se tenha arruinado.
Ele balançou a cabeça.
- Eu lhe havia dito que tinha uma dívida a pagar, Mas é você quem a está pagando.
Ela voltou-se a meio e olhou-o fixamente.
- É a coisa mais bonita que até hoje me disseram.
- Então quer fazer-me um favor? Sr. Moray é tão cerimonioso! Preferia que me chamasse, simplesmente, David...
- Oh, pois não - tornou ela, timidamente.
E antes que o silêncio se tornasse incómodo, ele exclamou alegremente:
- Misericórdia! Já passa das cinco! É hora do chá... Até aqui comandei o espetáculo, mas agora passo-lhe a batuta. Que lugar recomenda?
Sem hesitar ela citou um café, o melhor na sua opinião e de preço moderado. Não ficava longe, e daí a pouco ambos estavam sentados na sala clara e tépida de um primeiro andar, em meio a um alegre burburinho de vozes e contemplando os jardins da calçada fronteira. A mesa, segundo o estilo escocês, estava abarrotada de tentadores pãezinhos e bolinhos, tendo ao centro um suporte de várias prateleiras com todas as variedades do bolo típico feito de pão-de-ló, camadas de açúcar e maçapão, e conhecido como bolo "francês". Ele passou-lhe o cardápio, firmemente seguro por uma pequena bola de metal.
- O que sugere?
- Está com fome? - perguntou ela.
- Simplesmente esfomeado.
- Eu também. - E esboçou um sorriso discreto e brincalhão. - Já se esqueceu de como é bom um verdadeiro chá escocês?
- Ainda não. E o melhor que até hoje bebi foi em sua velha casa de Ardfillan.
- Aqui há um prato... filé de peixe com molho de salsa... Não parece grande coisa, mas positivamente é de se derreter na boca de quem o come.
Ele fitou-a com um ar zombeteiro.
- É muito caro?
Ela soltou uma risada livre e espontânea - uma risada tão feliz, que provocou sorrisos correspondentes em severos cidadãos de Edimburgo sentados nas mesas próximas.
- Custa uma boa meia coroa. E, depois do que você gastou hoje, e que daria para o resgate de um rei, acho melhor consentir que eu pague.
Quando a garçonete se aproximou, ele deixou que Kathy fizesse o pedido. O peixe, como ela dissera, estava delicioso, recém-trazido do mar, as torradas com manteiga, quentes, o chá forte e escaldante. A animação do passeio e a certeza de que estava bem vestida afrouxaram a timidez de Kathy, emprestando-lhe um entusiasmo que tornava a sua companhia mais deliciosa, se bem que ele já tivesse percebido em sua natureza, um veio introspectivo, até mesmo uma tendência para a melancolia, e agora era bom ele poder erguê-la para uma disposição de espírito mais leve. E como estava bonita naquele vestido novo e elegante, e tão transformada a ponto de atrair para si muitos olhares admirativos, que ele claramente percebia e ela continuava a ignorar! Sim, pensou ele observando-a com indulgência, ela bem merece tudo quanto pretendo fazer em seu favor, pois corresponderá ao meu esforço.
Depois de comer, ficaram algum tempo sentados num silêncio comunicativo, e ela enfim soltou um suspiro de satisfação.
- É uma pena que um dia tão maravilhoso tenha de se acabar. Mas preciso voltar para substituir a enfermeira Ingram às sete horas.
- Precisa mesmo? - perguntou ele, com um timbre de desapontamento.
- Infelizmente preciso.
- E eu que pensava que você podia ficar para irmos a um teatro! Não gostaria?
Ela baixou os olhos, mas dentro em pouco levantou-os e fitou-o com franqueza.
- Decerto vai ficar admirado, Mr. Moray... isto é, David... mas nunca fui a um teatro. Quando mamãe era viva, íamos todos os anos assistir à exibição do Messias, pelo Coro Orfeu. Também fui a alguns concertos no Usher Hall.
- Mas o teatro regular... bons dramas, a ópera, e coisas assim?
Ela balançou a cabeça com uma tal expressão no rosto, que ele ficou profundamente comovido.
- Mas Kathy, querida, aflijo-me só em pensar no quanto você perdeu. Nunca desejou ir a esses lugares?
- Não... Na realidade, não.
- Mas por quê?
Ela fez uma pausa, como para estudar a pergunta, e enfim disse simplesmente:
- Mamãe não dava atenção a isso... Acho também que sempre vivi muito ocupada... e tinha outras coisas na cabeça.
- Que menina mais séria você é!
- Não acha que é também muito séria a época em que vivemos?
- Sim - foi obrigado a confessar. - Acho que sim.
Sua capacidade para deixá-lo atónito parecia ilimitada. E como podia ser reservada quando aquela expressão contida lhe transparecia nos olhos! No entanto, que maravilha, nessa época de Moray envelhecida, descobrir uma inocência tão pura e intacta!
- Então vamos, querida - disse ele com ternura. - vou levá-la para casa.
Guiou o carro lentamente através do crepúsculo que se adensava, passando por cidadezinhas do estuário onde as luzes já surgiam sobre um fundo de treva invasora. Mas, ao macio ronronar do carro, ia ele pensando no futuro. Solo virgem - pensava Moray, - digno de todos os esforços de sua parte. O tempo estava a seu favor, naturalmente, mas havia muito que fazer. A despeito da natural doçura e inteligência dela, foi obrigado a reconhecer, como homem do mundo, que ela era uma moça simplória e sem instrução, que nada conhecia de música, de arte ou de literatura. Aquele quadro em sua sala de visitas... horrível... alguns compêndios, e a Bíblia, edificante, sem dúvida, mas insuficiente... Pobre criança! Provavelmente trabalhava demais, e ficava muito cansada para ler à noite. Isso teria que mudar, ela precisava receber educação, aprender línguas, frequentar uma boa universidade - Genebra ou Losana seriam apropriadas, - fazer um curso, digamos, de Ciências Sociais. Tudo isso e mais a convivência de pessoas cultas e civilizadas lhe dariam segurança,
aparar-lhe-iam as pequenas arestas, contribuiriam para aprimorá-la. Sua criação era de certo modo a responsável - por mais pura e espartana que tivesse sido, fora, sem dúvida, muito estreita. E a sua obsessão a respeito de Willie, embora esplendidamente altruísta, era um entrave, devia ser atenuada. Mas a necessidade mais
premente era retirá-la do seu emprego atual; com efeito, ela já insinuara que pretendia deixá-lo... E ele, pensando em incentivar isso, disse-lhe:
- Gostaria de acompanhá-la, num de seus giros domiciliares. Estou muito interessado. Pode ser esta semana?
- Naturalmente - respondeu ela prontamente. - Amanhã não, pois tenho de visitar o médico da Saúde Pública do distrito, em Dalhaven; mas depois de amanhã, se você quiser.
- Está bem. Virei buscá-la às nove.
Ao chegarem a Markinch, ele reuniu os embrulhos, acompanhou-a até a porta, silenciou-lhe os agradecimentos renovados, e deu-lhe um boa noite amável, conquanto breve. O dia que ele tão cuidadosamente planejara falaria por si. Um liame se criara entre os dois, e ele não se arriscaria a rompê-lo com blandícias no vão da porta da rua...
CONTINUA
AQUELA manhã de outono estava tão radiosa, que Moray, prudentemente consultando o termómetro afixado fora da janela, resolveu fazer o desjejum no balcão de seu quarto. Dormira bem; para quem sofria de insónia, seis horas eram uma proeza animadora. O sol brilhava tépido em seu roupão de seda, criação de Grieder, e Arturo, como de costume, preparara a bandeja com perfeição. Moray serviu-se do café Toscanini, cujo calor fora conservado num termo de prata; untou um croissant fresco com mel de montanha, e deixou o olhar pervagar pela paisagem, com todo o delicioso, possessivo prazer de um descobridor. Deus do Céu, que beleza! A um lado, com uma simetria que o céu fazia realçar, o Reisberg apontava para a altura azul sobre verdes prados relvosos, levemente salpicados de antigos chalezinhos campestres, de telhados vermelhos; do outro lado, as suaves encostas de Eschenbrúck, com pomares de pêras, cerejas e abricôs; em frente, na direção do sul, uma crista longínqua dos nevosos Alpes; e abaixo... oh, sim, abaixo do platô de sua propriedade, estendia-se o Schwansee, o amado lago de tantas caprichosas disposições - imprevisto, selvagem, maravilhoso - mas agora luzindo em paz sob um ténue véu de neblina, onde deslizava sem rumor um pequeno bote branco... que semelhava um cisne, rematou Moray, poeticamente.
Que felicidade, depois de tanta busca, ter enfim descoberto esse belo sítio tranquilo, incontaminado por turistas, e entretanto bastante próximo de Melsburg, cidade dotada de todas as vantagens de uma comunidade eficiente e civilizada. Também a casa, construída a capricho por um famoso arquiteto suíço, era tudo quanto de melhor se poderia desejar. Talvez mais sólida do que admirável era no entanto repleta de conforto. Imagine-se: aquecimento a óleo mazut, armários embutidos, cozinha de azulejos, um belo e comprido salão para seus quadros, até as modernas salas de banho que sua longa permanência nos Estados Unidos aprendera a exigir! Ao beber o suco de laranja, que sempre reservava para a derradeira bonne bouche, um suspiro de satisfação exalou-se-lhe do peito - tão suavemente eufórica era a sua disposição, tão sublimemente alheio estava ele a um desastre iminente.
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Como passar o dia? Levantando-se e começando a se vestir, repassou as possibilidades. Telefonar para Madame Von Altishofer e ir a pé para Teufenthal? Numa manhã daquelas, decerto ela quereria exercitar a sua estranha, maravilhosa matilha de Weimaraners. Mas não: ia ter o prazer de levá-la ao festival das cinco horas; não era bom insistir. E então? Ir jogar golfe em Melsburg? Ou sair de bote e ir reunir-se aos pescadores que já se movimentavam para uma batida aos felchen do lago? Mas, de certo modo, sua inclinação pendia para diversões mais tranquilas, e ele finalmente decidiu examinar o caso de suas rosas, que, mercê de uma geada recente, não tinham florescido plenamente naquele verão.
Desceu para o terraço coberto. Junto à chaise-longue encontrou a correspondência e os jornais locais; os jornais ingleses e o Herald Tribune, de Paris, não chegariam senão à tarde. Nada havia que o perturbasse naquelas cartas, cada uma das quais ele abriu com uma curiosa hesitação, com um movimento indeciso do polegar... Coisa estranha, a persistência dessa folia! Na cozinha, Arturo cantarolava:
- La donna è mobile... Sempre im amabile... La donna è mobile... È sempre mísero.
Moray sorriu. Seu mordomo tinha irresistíveis pendores operísticos (fora ele que escolhera a mistura de café outrora preferida pelo maestro numa de suas visitas a Melsburg), mas era um sujeito alegre, serviçal,1 dedicado, e Elena, sua mulher, embora estupendamente gorda, provara-se uma cozinheira maravilhosa, ainda que irascível. Até com os criados tivera sorte... ou seria uma sorte total, a dele? - perguntou-se, caminhando orgulhoso pelo relvado. Em Connecticut, com seu solo pedregoso e invencível grama agreste, jamais conseguira um relvado decente, pelo menos nada que se comparasse àquela área de veludo cortado cerce. Mas conseguira-o, em Schwansee, teimosamente, arrancando uma vintena de velhos tocos de salgueiro da propriedade.
Cercando esse relvado luxuriante, corria uma bordadura herbácea, paralela a uma aréia pavimentada, que levava ao tanque dos lírios-d'água, onde douradas carpas jaziam imóveis sob os seivosos coxins das folhas. Uma grande faia acobreada sombreava o tanque e, para além do jardim japonês, havia um monte pedregoso, bulindo de marmeleiros, bordos anões e dúzias de pequenas plantas e arbustos com nomes latinos que desafiavam a memória.
A orla mais distante do relvado era marcada por uma linha de floridos arbustos-lilases, forsítias, viburnos e o resto - que separavam a horta da residência. Depois vinha o pomar, carregado de frutas maduras - maçãs, pêras, nêsperas, ameixas, rainhas-cláudias. Num momento de lazer contara dezessete variedades diferentes, mas confessava ter trapaceado um pouco, aí incluindo as nespereiras, nogueiras e copadas aveleiras que cresciam em grande abundância no alto da encosta e rodeavam uma dependência - um lindo chalezinho - convertido em casa de hóspedes.
Nem devia esquecer o seu grande tesouro botânico: a grande, a esplendorosa árvore-de-judas, que se erguia muito alta no pano de fundo de montanha, lago e nuvem. Era, efetivamente, um belo espécime de nobre copa esparzida, coberta na primavera de pesadas flores róseo-escuras desabrochadas antes da folhagem. Todas as visitas a admiravam; e quando ele dava um garden-party, tinha orgulho de exibir o seu conhecimento às senhoras, todavia, omitindo que o obtivera na Enciclopédia Britânica... "Sim - dizia ele- trata-se do C éreis siliquastrum... família das Leguminosas... As folhas têm um agradável paladar, e no Oriente costumam misturá-las à salada. Naturalmente, vocês conhecem a ridícula tradição popular. Arturo, o meu bom italiano, que é impagavelmente supersticioso, jura que ela é nefasta; chama-a de 1'albero dei dannati..." Nesta altura sorria, traduzindo prazerosamente: "a árvore das almas perdidas".
Agora porém descobriu Wilhelm, o jardineiro (que confessava ter setenta anos, que eram, pelo menos, setenta e nove), tirando brotos dos pepinos. O velho tinha a cara de um S. Pedro idoso e a obstinação de um sargento de cavalaria. Era preciso tato até para concordar com ele, que no entanto provara o seu valor no conhecimento e no trabalho, sendo a sua única desvantagem uma embaraçosa, ainda que útil, propensão para fazer água no monte de adubo. Endireitando o avental de baeta verde, tirou o chapéu e cumprimentou Moray com um medonhamente impassível:
- Grilss Gott.
- Die Rosen, Herr Wilhelm - disse Moray, diplomaticamente. - Wollen toir diese ansehen?
Seguiram juntos para o roseiral, onde, depois que o velho lançou censuras em todas as direções, o número das novas variedades requeridas foi discutido e determinado. Quando Wilhelm partiu, ocorreu uma agradável diversão: dois toquinhos de gente, filhos do mestre-trapicheiro da aldeia, de sete e cinco anos de idade, vinham enfrentando a íngreme vereda com aquela pressa ofegante e aquela importância que denotavam a chegada de uma fatura. Susy, a mais velha, agarrava o envelope amarelo, enquanto Hans, seu irmãozinho, levava livro e lápis para o recibo. Eram umas lindas crianças de olhos brilhantes, e já sorriam, em verdade resplandeciam na antecipação do ritual que Moray estabelecera. Depois de dar uma vista de olhos na fatura - era, como esperava, de Frankfurt, confirmando a chegada de duas caixas de um Johannisberg especial, de
1955 - Moray sacudiu a cabeça com ar ameaçador:
- Vão apanhar! São bonzinhos demais!
As crianças riam abafado, e ele as conduziu para sua árvore predileta, uma nobre rainha-cláudia carregada de ameixas amarelas. Sacudiu um galho, e quando uma chuva de suculentas frutas caiu, elas romperam em risadas estridentes, e escorregaram encosta abaixo, para agarrar as maduras ameixas que rolavam.
- Darike, danke viemals, Herr Moray.
Só depois que encheram os bolsos ele os deixou partir; depois, consultando o relógio, resolveu sair para dar uma volta.
Na garagem, anexa ao chalé, escolheu o Jaguar esporte. Para quem já fizera cinquenta e cinco anos, e se havia, de espontânea vontade, retirado para uma vida de ócio e de repouso, um tal veículo poderia provavelmente ser julgado demasiado violento, tanto mais que seus outros dois carros, o Humber da propriedade e um novo Rolls Silver Cloud - obviamente, preferia a marca britânica - eram notavelmente conservadores. Entretanto se sentia, e parecia (e muitas vezes lho disseram) que era muito mais jovem do que a idade que tinha: a figura delgada, os dentes sadios e iguais; conservara os cabelos sem um fio branco sequer, e seu sorriso, que era encantador, possuía uma qualidade extraordinariamente atraente, espontânea, quase de menino.
No começo, a estrada corria através de uma terra de pastagem, onde vacas amarelas, de olhos mansos, caminhavam pesadamente, fazendo tilintar os grandes cincerros que traziam amarrados ao pescoço e que provinham de várias gerações. Nos campos mais baixos, homens, e também mulheres, labutavam no eterno ciclo das gramíneas. Alguns paravam de ceifar para saudá-lo com um aceno da mão, pois ele era conhecido, e estimado, sem dúvida devido à sua bondade para com as crianças, ou talvez porque se dera o trabalho de
interessar-se por todas as festanças locais. Em verdade, os casamentos rústicos, entristecidos pelo derradeiro toque da trompa montanhesa; as procissões tradicionais, tanto as religiosas como as civis; mesmo as metálicas discordâncias da banda da aldeia que no seu aniversário o homenageara com uma serenata - tudo isso o divertia e entretinha.
Daí a pouco chegava aos subúrbios; ruas que se diriam escovadas, casas brancas, de venezianas verdes, com seus canteirinhos fronteiros cheios de astérias e begônias, e as jardineiras das janelas abrindo-se em gerânios e petúnias. Que flores! Jamais as vira iguais! E a pairar sobre tudo, um ar tranquilo e asseado, de nitidez e eficiência, como se tudo estivesse numa ordem impossível de romper-se, como se a honestidade, a civilidade e a polidez fossem o santo-esenha daquela gente.
Como fora sensato, nas circunstâncias especiais em que se achava, estabelecer-se ali, afastado da vulgaridade da época presente: dos hipsters e os beatntks, do strip tease, do rock-arid-roll, das afetadas declamações dos "jovens irados", das abstraçÕes lunáticas da arte moderna e de todos os demais horrores e obscenidades de um mundo enlouquecido!
Em resposta a seus amigos da América, que protestaram contra a sua decisão, especialmente a Holbrook, seu sócio na companhia Stamford, que chegara ao ponto de ridicularizar o país e seus habitantes, argumentara ele calmamente, logicamente. Wagner não passara sete anos felizes e fecundos nesse mesmo cantão, compondo Os Mestres Cantores, e até (dizia isto com um sorriso) uma brilhante marcha para o Corpo de Bombeiros local? A casa onde residira, ainda intacta, bastava para comprová-lo. E Shelley, e Keats, e Byron, acaso não passaram largos períodos de seus românticos lazeres naquelas cercanias? Quando ao lago, Turner pintara-o, Rousseau remara em suas águas, Ruskin delirara ante a sua beleza.
Nem tampouco estava ele se enterrando num vácuo sem alma. Tinha livros, uma coleção de coisas belas... Além disso, se os suíços nativos não eram... (como dizê-lo sem ofender?) intelectualmente estimulantes, em Melsburg existia uma brilhante sociedade expatriada, composta de pessoas verdadeiramente encantadoras, dentre as quais Madame Von Altishofer era uma que o aceitara como membro da coterie. E se tanto não bastasse, o aeroporto de Zurique ficava a quarenta minutos de automóvel, e depois, em duas
horas, talvez menos, estava-se em Paris... Milão... Viena... contemplando os ricos detalhes de La Mise au Tombeau de Ticiano, ouvindo a Callas na ária da Tosca, saboreando o maravilhoso Shafsragout mit Weiskraut no Sacher's Bar...
Nessa altura, viu que chegara ao viveiro de Leuerbach. Fez uma seleção de mudas de roseira, acrescentando resolutamente algumas variedades de sua própria escolha à lista que Wilhelm lhe dera, conquanto sombriamente pressagiasse que o destino destas seria um falecimento misterioso, ao passo que o das outras seria sobreviver e florescer gloriosamente... Era ainda muito cedo quando saiu do viveiro: apenas onze horas; por conseguinte resolveu regressar por Melsburg, onde faria algumas compras.
Tendo já partido a maioria de seus visitantes, a cidade estava deliciosamente vazia, e o passeio junto ao lago, onde as folhas secas dos castanheiros já crepitavam, via-se meio deserto. Moray gozava esta estação, encarava-a como um ato de retomada de posse. As espiras gémeas da catedral pareciam furar mais agudamente o céu; o anel de antigos fortes, não mais cobertos pela enchente, voltara a ser velho e cinzento; e a antiga Méis Brúcke, liberta de turistas boquiabertos, calmamente reassumira sua verdadeira identidade.
Moray estacionou na praça junto à fonte, e sem mesmo pensar em fechar o carro, entrou na cidade. Primeiro visitou as tabacarias, comprou uma caixa de duzentos de seus cigarros Sobranie especiais, depois foi à drogaria para adquirir um grande frasco de Eau de Çuinine Pineau, o tónico de cabelo de sua preferência. Numa rua próxima ficava Mayer, o famoso confeiteiro. Aí, após dois dedos de prosa com Herr Mayer, mandou remeter um grande pacote de chocolate de leite para as crianças Holbrook, de Connecticut - em Stamford nunca se viu chocolate daquela qualidade e Mediante uma reflexão ulterior - pois gostava de doces - levou consigo meio quilo de marrons glacés da estação. Comprar ali era um prazer, dizia com seus botões: de todo lado via apenas sorrisos e polidez.
Estava agora na Stadplatz, onde, respondendo a um impulso subconsciente, suas pernas o haviam conduzido. Não pôde deixar de sorrir, embora com um ligeiro sentimento de culpa. Logo em frente se achava a Galerie Leuschner. Hesitou, bem-humorado, cônscio de que estava cedendo à tentação. Mas a lembrança do pastel de Vuillard o impelia a avançar. Atravessou a rua, empurrou a porta da galeria e entrou.
Leuschner estava no escritório examinando um caderno de esboços a pena. O negociante, homenzinho macio, gorducho e sorridente,
cujo paletó matinal, calças listadas e alfinete de pérola eram inequivocamente de rigueur, cumprimentou Moray com uma cordial deferência, todavia com um ar não comercial, subentendendo ser puramente casual sua presença na galeria. Falaram sobre o tempo.
- São muito bons - disse Leuschner, indicando o caderno de desenhos, depois que acabaram de falar do tempo. - E razoáveis. Kandinsky é avaliado muito por baixo.
Moray não tinha interesse pelas figuras descarnadas e os rostos simiescos de Kandinsky, e suspeitava que o negociante bem o sabia; entretanto, passaram os quinze minutos subsequentes examinando os desenhos e elogiando-os. Depois, Moray apanhou o chapéu.
- A propósito - disse de repente - você ainda tem aquele Vuillard que estivemos olhando na semana passada...
- Mas por pouco tempo. - E o negociante assumiu uma súbita expressão de seriedade. - Há um colecionador americano muito interessado...
- Conversa... - disse Moray voluvelmente. - Já não há americanos em Melsburg.
- Esse, está em Filadélfia... É curador do Museu de Arte. Quer ver o telegrama que me mandou?
Moray, interiormente alarmado, balançou a cabeça de um jeito que implicava uma divertida dúvida.
- Ainda está pedindo aquele preço ridículo? No fim de contas, não passa de um pastel...
- O pastel é o veículo de expressão de Vuillard - respondeu Leuschner com tranquila autoridade. - Garanto que este vale cada cêntimo do custo. Se souber que outro dia, em Londres, uma grosseira pincelada de Renoir, um punhado de morangos de triste aspecto, com efeito, uma coisa lamentável, da qual o mestre devia sinceramente envergonhar-se - alcançou vinte mil libras... Mas isto é uma jóia, digna da sua bela coleção, e o senhor sabe como são raros os bons pós-impressionistas... Entretanto, só peço dezenove mil dólares. Se o comprar (e eu não insisto, pois, praticamente, já está quase vendido) nunca se arrependerá.
- Fez-se um instante de silêncio. Pela primeira vez, ambos olhavam juntos o pastel, pendurado, sem mais nada em torno, contra o neutro papel corrugado da parede. Moray conhecia-o bem, estava registrado no catálogo e era em verdade um belo quadro, um interior cheio de luz e cor-misto de róseos, verdes e cinzentos. O assunto,
também, combinava exatamente com o seu gosto: era uma cena, de
tête-à-tête - Madame Melo e sua filha pequena, no salão da casa da atriz.
Uma onda de ânsia possessiva apertou-lhe a garganta. Precisava tê-lo, precisava tê-lo, para o pendurar em frente do seu Sisley. O preço era impressionante, mas bem que sua bolsa podia permiti-lo; era rico, muito mais rico do que o bom Leuschner havia calculado, pois este não tinha acesso àquele livrinho preto, trancado no cofre, com suas fascinantes fileiras de cifras. E por que - após tantos anos de trabalho estéril e lutas conjugais - não deveria ele possuir tudo quanto desejasse? O confortável lucro que tivera ultimamente na Royal Dutch não podera ser melhor empregado. Encheu o cheque, apertou a mão de Leuschner e saiu em triunfo, com a tela cuidadosamente enfiada debaixo do braço. De regresso à sua villa, antes que Arturo chamasse para o lanche, teria tempo de pendurar o quadro na parede. - Perfeito... perfeito... - exultava ele, recuando. Esperava que Frida Von Altishofer o aprovasse.
CAPÍTULO DOIS
Esperava-a para as cinco horas, e como a pontualidade constituía para ela uma forma de boa educação, precisamente naquela hora ela chegou. Não, como de costume, no seu maltratado Dauphine cor de creme, mas a pé. Em verdade, a espécie de quartel que era sua casa, o Schloss Seeburg, ficava na outra margem do lago, numa distância de dois quilómetros, e quando ela entrou na sala de visitas, ele tomou-lhe as mãos e censurou-a por ter vindo de lancha: a tarde estava quente, o caminho para a villa no monte era íngreme, ele podia ter mandado Arturo a seu encontro...
- Não me desagrada andar de lancha - disse ela sorrindo. - Como sempre tem a bondade de me levar, não quis vir de carro.
Seu inglês, embora estilizado, era excelente, apenas com um ligeiro, ainda que bonito, excesso de acentuação em certas sílabas.
- Bem: agora vamos tomar chá. Já encomendei. - E ele tocou a campainha. - Na festa só nos darão vermute aguado...
- Você é muito atencioso. - E Frida sentou-se graciosamente, tirando as luvas. Tinha dedos vigorosos e elásticos, unhas polidas, mas sem verniz. - Espero que não se aborreça muito na Kunsthaus.
Enquanto Arturo fazia avançar o carrinho de chá, e, com mesuras que eram quase genuflexões, servia aos dois, Moray
observava-a. Devia ter sido muito bela, quando jovem. A estrutura de seus ossos faciais era perfeita. Mesmo agora, com quarenta e cinco, ou quarenta e seis anos... bem, talvez até quarenta e sete, e embora seus cabelos começassem a encanecer e sua pele a revelar-se ligeiramente crenulada com os estigmas da idade, era ainda uma mulher atraente, com a figura ereta e elástica de quem acreditava em ar puro e exercício. Os olhos eram o seu traço mais notável, de um verde amarelado escuro e fulvo, chumbado de manchinhas pretas. "Olhos de gato." Frida sorriu quando certa vez ele arriscara um cumprimento, "Mas não arranho... só raramente."
Sim, refletiu ele com simpatia, ela passara seus maus bocados, e contudo nunca falava disso. A vida era-lhe difícil, ela não tinha muita roupa, mas a que tinha era boa e vestida com elegância. Quando saíam juntos a passeio, habitualmente aparecia com um esmaecido costume castanho-ferrugem, um chapéu bersaglieri posto de banda, meias brancas de tricô e sólidos sapatões de um pardo desbotado, feitos à mão. Naquele dia estava com um tailleur cor de gazela, simples, mas bem talhado, sapatos do mesmo tom, umas luvas e trazia a cabeça descoberta. bom gosto, distinção e educação perfeita eram evidentes em todos os seus gestos; inútil a si próprio repetir que ela era uma mulher culta e da mais alta classe.
- Sempre me faz servir um chá delicioso.
- É Twining quem mo fornece - explicou ele. - Trata-se de uma mistura preparada especialmente para a água dura do Schwansee.
Ela abanou a cabeça, como que censurando-o.
- com efeito.., você pensa em tudo. - E depois de uma pausa: - No entanto deve ser maravilhoso a gente poder realizar tudo quanto deseja.
Seguiu-se um longo silêncio enquanto ambos saboreavam o chá de água do lago; mas, de repente, erguendo o olhar e fixando-o na parede, ela exclamou:
- Meu caro amigo... comprou o quadro!
Finalmente vira o Vuillard, e levantando-se, excitadíssima, mas ainda com a xícara e o pires na mão, atravessou a sala para examiná-lo.
- É lindo... lindo! E está muito melhor aqui do que na galeria. Oh, a encantadora criança no tamborete baixo! Espero que Leuschner não o tenha roubado muito.
Moray foi para junto dela, e em silêncio admiravam o pastel. Frida teve o bom gosto de não se derramar em elogios; mas quando se voltaram, olhando em torno para as suaves linhas da mobília
do século dezoito, o macio tapete cor de cinza e as cadeiras Luís XVI forradas de tapeçaria; olhando para os demais quadros - o Pont Aven, de Gauguin, assinado e datado, acima das estatuetas T'ang do consolo da chaminé georgiana; o maravilhoso nu de Degas na parede oposta; um Utrillo dos primeiros tempos e a paisagem de Sisley; a rica suavidade de um Bonnard, a deliciosamente maternal Mary Cassat, e agora o Vuillard - Frida murmurou:
- Adoro sua sala. Aqui você pode passar a vida na celebração das coisas belas. Melhor ainda: - porque as obteve com seu próprio esforço.
- Creio-me autorizado a possuí-las - tornou ele com modéstia. - Quando era moço... na Escócia... não tinha grande coisa. com efeito, era até miseravelmente pobre.
Aquilo fora um erro. Depois de falar, arrependeu-se. Não fora acaso advertido a nunca olhar para trás, mas só para a frente, sempre para a frente? Acrescentou à pressa:
- Mas você... até à guerra... você sempre viveu... - e hesitou ligeiramente procurando as palavras - com grande pompa.
- Sim, tínhamos lindas coisas - respondeu ela com doçura.
O silêncio voltou a reinar. A reserva meio sorridente com que ela respondera à observação de Moray foi verdadeiramente heróica. Era viúva do Barão Von Altishofer, oriundo de uma antiga família judia que, no século anterior, amassara uma imensa fortuna mediante concessões estaduais no comércio do fumo, e cujas posses iam desde uma vasta propriedade na Bavária até uma reserva de caça na Eslováquia. Fora fuzilado nos primeiros seis meses da guerra, e embora ela não pertencesse à sua religião, passara os três anos subsequentes num campo de concentração de Lensbach. Quando foi eventualmente liberada, atravessou a fronteira suíça. Só lhe restava a casa junto ao lago, o Schloss Seeburg, e ali, ainda que praticamente sem vintém, lutara corajosamente para reconstruir a vida. Começou pela criação dos Weimaraners, cães muito raros; e como a ignomínia de uma pensão como as outras era naturalmente inimaginável para ela, seus amigos - e os tinha bastante, ali iam para desfrutar, como hóspedes pagantes, a vastidão do grande Schloss germânico e o espaçoso jardim afogado em mato. Em verdade, uma pequena sociedade exclusiva se desenvolvera em torno do Seeburg-sociedade da qual ela própria era o centro. Como seria divertido restaurar a bela e antiga propriedade, enchê-la com mobília da época, replantar o jardim, recondicionar a estatuária... Fora ela que insinuara? Nunca, nunca... O pensamento era dele,
um revoo da fantasia... Autoconsciente, com certa brusquidão, ele olhou o relógio.
- Ponhamo-nos a caminho, se você já está pronta.
Resolvera levá-la à festa com todo o aparato: Arturo, trajava o seu melhor uniforme azul - um tom mais claro do que o azul-marinheiro. Eles partiram no carro grande. Como aquele era o único Rolls Royce em Melsburg, seu aparecimento sempre constituía um espetáculo.
Sentado junto dela enquanto rodavam, sua manga tocando a dela no braço estofado do assento, Moray estava expansivo. Embora o seu casamento tivesse redundado num catastrófico malogro, vinha ele, desde que se retirara para a Suíça, considerando seriamente a perspectiva de - na frase vulgar de Wilenski - tornar a experimentar a mão. Vizinhos há dezoito meses, durante esse tempo a amizade de ambos desenvolvera-se a ponto de gerar, gradualmente, a ideia de uma camaradagem mais estreita. Todavia, o pensamento dele tinha até ali pairado em imagens mais jovens e mais tenras. Frida Von Altishofer já não era jovem, e na cama talvez não se revelasse tão apetitosa quanto seria de desejar, e ele, como homem no qual as intensas exigências da falecida mulher tinham provocado uma hipertrofia da próstata, sentia agora necessidades que, por motivos de saúde, se mais não fosse, reclamavam satisfação. Apesar disso, Frida era uma mulher forte e cheia de vida, com profundos, ainda que escondidos, sentimentos que poderiam redundar numa paixão insuspeitada. Era esse - sabia-o pela sua prática em medicina - um caso frequente com mulheres que já haviam passado a menopausa. Decerto que, em todos os demais aspectos, ela perfazia o ideal de uma esposa admirável e aristocrática.
Nessa altura chegaram à cidade e contornaram o jardim público com seu alto chafariz central. Arturo encostou, desceu como um relâmpago para tirar o boné e abrir a porta do carro, e ambos subiram a escada que conduzia para a Kunsthaus.
- Alguns de meus amigos do corpo diplomático deverão vir de Berna para o festival. Se não for caceteação, talvez você goste que eu lhe apresente alguns.
Sentia-se profundamente satisfeito. Não sendo um esnobe - Deus do Céu, isso não! - entretanto gostava de conhecer a "gente bem".
- Você está encantadora, Frida - murmurou ele com um súbito e rápido lampejo mais íntimo no olhar.
CAPÍTULO TRÊS
A festa começara havia algum tempo. O comprido salão estava cheio de ruído e de formas humanas que se comprimiam. A maioria dos notáveis do cantão se achava presente, em companhia de muitos dignos burgueses de Melsburg e dos artistas que, na última semana, haviam tomado parte no festival. Estes, coitados! pertenciam principalmente à velha brigada, pois ao contrário das outras estações de veraneio mais importantes, por exemplo, Montreaux e Lucerna, Melsburg não era rica, e entre simpatia e falta de fundos, a comissão voltava, ano após ano, aos nomes e aos rostos de há muito conhecidos. Através da névoa do cigarro, distinguiu Moray a figura idosa e decrépita de Flackmeister, que mal podia subir para a plataforma, preso como estava em sua apertada casaca esverdeada nas axilas pelo suor dos anos. E lá estava Tuberose, o violoncelista - magro, alto como uma estaca, e que, por muito roçar seu instrumento, tinha os joelhos puídos. Conversava com o contralto inglês, de soberbo colo, Amy Rivers Fox-Finden. Bem, não fazia diferença, refletiu Moray enfiando-se alegremente no aperto com sua companheira; o aplauso nos concertos era sempre muito entusiasta e prolongado; lembrava filas e mais filas de carneiros satisfeitos, batendo palmas com as pernas dianteiras.
Serviram-lhes uma bebida de espécie desconhecida, tépida e nadando em fragmentos de gelo a derreter-se. Frida não bebeu; mas lançou-lhe de soslaio um olhar bem-humorado e comunicativo, que dizia sem rebuços: "Como foi previsor... e como estou contente com o gostoso chá que me serviu!" quase... quase acrescentando, "e com você!" Depois, com uma leve pressão do cotovelo, guiou-o através da sala, apresentando-o primeiro ao ministro alemão, depois ao austríaco. Ele não deixou de observar o afetuoso respeito com que cada um a saudou, nem o à-vontade com que ela retribuía os cumprimentos. Ao se afastarem, o nome de Moray foi chamado aos berros através do aperto, por um esportivo tipo britânico, todo amável em suas dentaduras plásticas e globos oculares de alcoólico, trajado com uma jaqueta cruzada azul e de botões dourados, largas calças cor de gazela e sapatos cambados, de camurça.
- Quanta satisfação em vê-lo, velhinho! - estrondejou Archie Stench, agitando na mão um copo de legítimo uísque. - Não posso mexer-me daqui. Mantenha a bandeira içada, e logo o chamarei!
O rosto de Moray se anuviou ligeiramente, e ele fez a Stench um gesto pouco amigável. Não queria prosa com aquele tipo, correspondente do Daily Echo, de Londres, nas horas vagas cronista social da Tageblatt local, onde mantinha uma colunazinha de notícias fúteis, não raro com ferrão na cauda. Muitas vezes Moray fora ferreteado...
Felizmente, se achavam na outra extremidade do grande salão, onde, junto de uma janela saliente, havia-se reunido um grupo de seus amigos particulares. Via-se ali a reservada Madame Ludin, do Europa Hof, com seu delicado marido, em companhia do Doutor Alpenstuck, amante das grandes altitudes. Alto, ereto, notável falsete na juventude, o digno doutor nunca faltava a um festival. Mais adiante, junto das feiosas irmãs Courtet, a uma mesa redonda da qual, com seu ar de míope, havia limpado todas as bolachinhas de coquetel a seu alcance, estava Gallie, a velha e miúda Galliatine, princesa russa, surda como uma porta e parca de palavras, mas que ia a toda a parte para se encher de sanduíches, até mesmo para os enfiar agilmente na enorme bolsa de couro rachado que carregava sempre consigo - uma bolsa bojuda pelo excesso de uso, sempre recheada de papéis que provavam o seu parentesco com o famoso Príncipe Yussupov, marido da sobrinha do czar. Criaturinha pálida e fraca, trazendo no pescoço uma desgarrada marca puída, dera-lhe o passado, quando mais não fosse, um sorriso de infinita doçura. Não de todo apresentável, talvez, mas, ainda assim, uma princesa autêntica. Bem diferente era a figura que ocupava o centro do grupo, Leonora Schutz-Spengler; à medida que dela se aproximavam, Madame Altishofer cochichou bem-humorada ao ouvido de Moray:
- Está contando a história de suas caçadas... Não escaparemos.
Fazendo uma interrupção na narrativa, Leonora já os reconhecera com um radiante sorriso. Era ela uma vivaz morena do Tessin, de risonha boca vermelha, olhos atrevidos e lindos dentes, que alguns anos atrás roubara o coração de Herman Schutz, o mais rico exportador de queijos da Suíça, homem grandalhão, pálido e pesado, que se diria feito do próprio produto que vendia. Todavia era Leonora digna de afeição, quando mais não fosse, pelas esplêndidas e divertidas festas que realizava em sua villa, no topo da colina sobranceira à cidade, num anexo de madeira de sequóia iluminado a vela, cujas paredes de eriçavam com torcidos chifres de mamíferos, entre os quais esvoaçavam, pousavam e chalravam vintenas de periquitos, enquanto Leonora, de chapéu de papel na cabeça, prodigamente oferecia sopa de melão, bortsch, goulash, caviar,
panquecas de queijo, pato de Pequim, trufas em vinho-do-porto e outras iguarias exóticas, antes de dar início a jogos desordenados e impossíveis, todos saídos de sua própria cabeça.
Moray raramente dava muita atenção às excitadas divagações de Leonora, e seus pensamentos dispersavam-se enquanto ela ia descrevendo, em francês, a excursão da qual ela e o marido acabavam de regressar. Moray ouviu vagamente que Schutz, que já tarde na vida desenvolvera ambições de jãger, alugara uma reserva de caça, em algum lugar da Hungria, segundo parecia.
Mas à medida que Leonora continuava irreprimivelmente a falar, seu ouvido captou certas frases, e, com uma aguda tensão nervosa, começou ele a prestar atenção ao que ela dizia. Não estava absolutamente falando da Hungria, mas descrevendo um trecho do interior da Escócia, em termos que repentinamente lhe soaram familiares. Impossível; devia estar equivocado. Entretanto, à medida que ela prosseguia, cresceu nele tal suspeita. Ela agora falava da estrada, monte acima, a partir do estuário, da vista sobre o pântano que se descortinava do píncaro, do rio precipitando-se dentre os altos muros do caldeirão de pedra em direção ao lago, e da montanha que tudo dominava. Súbito, Moray sentiu que tremia, o coração se lhe apertou, pôs-se a bater rapidamente. Deus, nunca pudera imaginar que tudo aquilo retornasse, e de que maneira inesperada! Ela citara o nome da montanha, e do rio, e do lago; por último citou o nome do alagadiço que o marido arrendara, e essas palavras completamente imprevistas vibraram-lhe em todo corpo um doloroso golpe de dor e apreensão.
Eis que alguém perguntava a Leonora:
- Mas como se vai a esse lugar perdido?
- Viajamos por uma estrada de ferro fantástica... de bitola estreita, três trens por dia... até uma adorável estaçãozinha de nome tão bonito... chama-se...
Moray não aguentaria ouvir aquele nome, no entanto ouviu-o, e ele lhe trouxe de volta, embora não articulado, o nome mais inevitável entre todos quantos conhecia. Voltou-se murmurando uma desculpa e se afastou, apenas para descobrir Stench, todo ancho a seu lado.
- Já vai indo, velhinho? Cansado de suportar as feiticeiras?
De qualquer modo, Moray conseguiu afastá-lo. No saguão, uma lufada de ar frio reanimou-o, pondo alguma ordem em sua mente confusa. Não devia sair precipitado assim, deixando Madame Von Altishofer regressar sozinha. Precisava de esperar, descobrir um lugar
com menos gente - acolá, atrás daquela coluna, perto da porta; - esperava que ela não se demorasse muito. com efeito, enquanto caminhava para a nova posição, já ela estava junto dele.
- Querido amigo, está doente? - falou ela, cheia de preocupação. - Vi que empalidecia.
- Sinto-me um tanto esquisito. - E fez um esforço para sorrir. - Faz um calor horrível aqui dentro.
- Então vamo-nos embora já, já - disse ela, decidida.
Ele fez menção de protestar; em seguida aquiesceu. Lá fora, Arturo conversava com um grupo de motoristas. Partiram. Ela quis levá-lo diretamente para sua villa; entretanto, menos por urbanidade do que por uma desesperada necessidade de estar só, ele insistiu em deixá-la no Seeburg.
- Entre para tomar um drinque - sugeriu ela, quando chegaram. - Um drinque de verdade. - E quando ele recusou, dizendo que devia descansar, ela acrescentou, solícita: - Cuide-se, meu amigo. Se permitir,
telefono-lhe amanhã.
Chegando à villa, ficou uma hora deitado, .tentando raciocinar. Não devia consentir que uma palavra ao acaso, que uma simples coincidência, viesse a arruinar a serenidade com que ele tão penosamente reconstruíra sua vida. Todavia não se tratava de uma palavra dita ao acaso, mas de uma palavra que, havia muitos anos, o assombrava e atormentava nas mais fundas regiões da memória. Devia combatê-la, tornar a arremessá-la para as trevas do subconsciente. Não podia entretanto fazê-lo; como selar a mente contra as bofetadas das ideias? Ao jantar, apenas fingiu comer; sua depressão enchia a casa, afetando até mesmo os criados, que viam nessa inesperada disposição de ânimo qualquer coisa que lhes dizia respeito.
Depois da refeição, dirigiu-se para a sala de visitas, ficou junto à janela que abria para o terraço. Viu que a tempestade ameaçava um daqueles espetáculos repentinos e deslumbrantes, à vista dos quais, gritando a Arturo que pusesse na vitrola um disco de Berlioz, ficava a ver e a ouvir, na mais pura exultação. Agora, todavia, olhava taciturno a grande massa de sombrias nuvens que se foram imperceptivelmente juntando e já deslizavam acima do Reisberg. Havia no ar um silêncio mortal, um silêncio abafado, e uma luz sobrenatural, de um ocre ameaçador. Então Fez-se ouvir um suspiro débil, como que na distância. As folhas tremeram, e um arrepio perpassou na superfície do lago. Lentamente, o céu ficou de um plúmbeo cinza impenetrável e escondeu a montanha, e de repente, uma forquilha azul lançou-se do invisível, seguida por uma primeira
detonação estrondejante. Depois soprou o vento-veloz, cauterizante, - um vento circular que cortava como pontas de azorrague. Sob o flagelo, as árvores curvavam-se rojando o chão num estremecimento, espalhando folhas como palha. Na extremidade do jardim, os altos choupos gémeos açoitavam o chão. O lago, batido até espumar, estorcia-se insano, as ondas fustigavam o pequeno dique, a bandeira amarela do perigo foi içada. O raio caía sem cessar, o trovão ribombava e tornava a ribombar entre os píncaros ocultos. Depois a chuva - enormes gotas esparsas - não a chuva acaríciante, mas a chuva precursora e pressaga daquela que afinal caiu da altura em lisos lençóis de água sibilante, enchente caída do céu - um eventual dilúvio.
Ele voltou-se abruptamente da janela e subiu para seu quarto, mais agitado do que nunca. Apanhou no armário de remédios do banheiro o vidro de fenobarbitona. Pensou que nunca mais precisaria disso. Engoliu quatro tablettes, sabendo, mesmo assim, que não ia adormecer. Depois de se despir atirou-se no leito e cerrou os olhos. A chuva lá fora açoitava o terraço, as ondas rebentavam na praia, mas era o nome dela que continuava soando implacavelmente em seus ouvidos... Mary... Mary Douglas... Mary... Douglas... empurrando-o para o passado, para Craigdoran e os dias de sua juventude.
SEGUNDA PARTE
CAPÍTULO UM
SE a velha motocicleta de seu colega Bryce não se tivesse quebrado, eles nunca se teriam conhecido. Mas, como se assim fosse destinado na poeirenta tarde daquele sábado de abril, ao regressar de um giro nos Montes Doran, a correia da máquina quase aposentada se partiu e um fragmento solto lhe golpeou violentamente o joelho direito. Ele freou, desceu da motocicleta com alguma dificuldade e examinou o estrago feito no seu joelho, aliás, uma contusão menor do que receara. Depois olhou em torno. Nenhuma esperança de assistência nos montes em redor, despovoados e cobertos de mato, nem tampouco na torrente impetuosa do rio Doran, ou na vasta extensão de terra alagadiça sobre a qual se estendia aquela estrada solitária, ou nos trilhos ferroviários, de bitola estreita. Até mesmo a estaçãozinha, conhecida como Parada Craigdoran, que ele acabava de passar, parecia-lhe deserta.
- Que azar! - exclamou ele.
A situação não podia ser mais crítica. Ardfillan, a cidade mais próxima, devia ficar a uma distância aproximada de sete milhas. Teria de experimentar a Parada Craigdoran.
Voltando-se, saiu mancando na direção da solitária plataforma, onde fixou a bicicleta em seus suportes. A estaçãozinha era guarnecida por uma cercadura de pedras caiadas, sua orgulhosa tabuleta Portal para a Escócia Ocidental esgalhada em madressilvas, uma cerca de espinheiro chovendo flôrezinhas sobre os trilhos; ele porém não tinha vontade alguma de admirar a paisagem. Não se via vivalma, a sala de espera estava trancada, a bilheteria como que fechada por toda a eternidade. Estava quase desistindo, quando, na janela ornamental de vidro esmerilhado, onde se lia Restaurante, captou sinais de vida. No peitoril interno, um gato lavava a cara satisfeito. Ele empurrou a porta e esta se abriu: ele entrou.
Ao contrário do costumeiro restaurante de estação, este era imprevistamente ordenado e bem disposto. Quatro mesas redondas, de tampa de mármore, ocupavam o assoalho de tábuas, bem esfregado; viam-se nas paredes algumas vistas coloridas das Terras Altas, e, nos
fundos, um balcão envernizado, de mogno, atrás do qual pendia um espelho oval, com o anúncio da farinha Brown e Pilson, feita em casa. Na frente do espelho estava uma mulher com as costas voltadas para ele, surpreendida no gesto de pôr o chapéu. Mutuamente paralisados, imóveis como figuras de cera, ambos se olhavam através do espelho.
- Quando sai o trem seguinte para Winton? - perguntou ele, rompendo o silêncio e dirigindo-se ao reflexo dela, num tom que não escondia o aborrecimento que o roía.
- O último trem já saiu. Não há outro, a não ser o cargueiro de domingo. - Nisto voltou-se e encarou-o, acrescentando brandamente: - Amanhã, às duas da tarde.
- E onde está o carregador?
- Oh, Dougal já faz uma boa meia hora que está em casa. Não o encontrou na estrada?
- Não... não encontrei... - E de repente sentindo uma fraqueza idiota, inclinou-se de lado para buscar apoio a uma mesa, e com o movimento expôs à vista sua perna machucada.
- Machucou-se - exclamou ela, adiantando-se, solícita. - Vamos...
sente-se; deixe ver.
- Não é nada - disse ele um tanto aturdido, procurando sentar-se. - É uma laceração superficial da região poplítica. A motocicleta...
- Acho mesmo que ouvi uma queda. E o corte é feio. Por que não falou logo?
Precipitou-se em busca de água quente, e, ajoelhando-se, banhou e limpou a ferida, depois enfaixou-a destramente, com tiras rasgadas de um guardanapo.
- Pronto! - A uma observação elogiosa, levantou-se. - Se eu tivesse agulha e linha, podia costurar a perna de sua calça. Não importa: você a terá concertada quando chegarmos em casa. Resta agora você beber uma boa xícara de chá.
- Não... absolutamente... - protestou ele. - Já a incomodei bastante ... Você fez mais do que o suficiente...
Ela porém já mexia nas torneiras de metal sobre o balcão. Era indubitável que ele sofrera um abalo, e o chá forte e quente o animaria. Observando-o com uma curiosidade interessada, a moça sentou-se. O gato pulou imediatamente para o seu regaço e começou a ronronar. Ela alisou-lhe suavemente o pêlo.
- Negrinho e eu ficamos. Há pouca gente em Craigdoran nesta época do ano.
- E nas outras? - disse ele com um meio sorriso.
- Não há nenhum - corrigiu-o com ar sério. - Quando a pesca e a caça estão no auge, temos uma porção de étimos fregueses. É por isso que meu pai continua com este restaurante. A padaria fica em Ardfillan. Se quiser, terá condução para lá. Ele vem sempre me buscar no fim da semana. - Fez uma pausa pensativa. - Mas há a motocicleta. Ficou muito avariada?
- Não muito. Mas terei de deixá-la aqui. Se pudesse remetê-la no trem de Winton, seria uma grande ajuda. Como vê, não é minha. Pertence a um colega que ficou no hospital.
- Não vejo por que Dougal não possa colocá-la no vagão do guarda-trem. Será a primeira coisa a lhe pedir na segunda-feira. Se o seu colega ficou no hospital, não poderá mesmo usá-la por algum tempo.
Divertido com o equívoco da moça, ele explicou:
- Bryce não está doente. Está no último ano de Medicina, como eu.
- Então é isso? - e riu-se sem rebuços. - Se eu soubesse, não teria me apressado tanto em tratar do seu ferimento.
Tinha o riso contagioso, natural, uma verdadeira delícia. Irradiava um calor em torno, devido não apenas à sua cor - tinha cabelos
castanho-avermelhados de áureos lampejos, e doces olhos pardos, escuros como turfa, engastados numa pele fresca, ligeiramente sardenta, - mas a qualquer coisa de simpático e rendido em sua natureza. Era talvez quatro anos mais moça do que ele, não teria mais de dezenove anos, e ainda que não fosse alta, sua figurinha robusta era garbosa e bem proporcionada. Trazia uma saia de lã xadrez com cinto de couro, jaqueta de tricô feita em casa, sapatos castanhos já gastos, e um chapeuzinho cor de cinza, com uma pena de maçarico na aba.
Uma súbita consciência de bondade da moça invadiu Moray - emoção rara para ele. Sim, ela fora decente - a palavra era essa, terrivelmente decente para com ele. E, esquecendo o importuno desconforto de seu joelho e da calamidade ainda maior do estrago que sofrera seu único terno, Moray sorriu-lhe, desta vez à sua moda: com um sorriso franco e sedutor, sorriso que com frequência lhe foi útil em épocas de transtornos e dificuldades. Embora tivesse "boa cara", traços regulares e pele fresca, e lindos cabelos castanho claros, naturalmente ondulados, ele não era especialmente bonito no sentido corrente do termo: a parte inferior do rosto carecia de força. Mas o sorriso redimia-lhe todos os defeitos, iluminava-o, convidava à camaradagem, abria-se em promessas, exprimia interesse, compreensão, preocupação e o que mais queria, e, acima de tudo, irradiava sinceridade.
- Suponho que você compreende - exclamou ele - como lhe sou grato por tanta bondade. E porque, praticamente, salvou-me a vida, posso esperar que nos tornemos amigos? Meu nome é Moray. David Moray.
- E o meu é Mary Douglas.
Um toque de rubor subiu-lhe às faces; não que lhe desagradasse a franqueza da apresentação; e ela apertou firmemente a mão que ele lhe estendia.
- E agora - disse vivamente - se quiser puxar a motocicleta até aqui, vou apanhar Negrinho e fechar a porta. Papai não tarda em chegar.
com efeito, mal haviam saído para a estrada, um pónei e certa espécie de veículo apontaram no topo da colina. O pai de Mary, a quem Moray foi apresentado junto com o relato completo do revés, era um homenzinho insignificante, de pálido rosto animado, mãos e unhas permanentemente impressas de farinha, e os maus dentes da sua profissão. Um topete de cabelo sobre a testa e pequeninos olhos muito brilhantes davam-lhe um singular aspecto de pássaro.
Depois de fazer o pónei dar a volta com hábeis estalidos de língua e examinar Moray com astutos olhares esguelhados, assim resumiu o relato de Mary:
- Como vê, não preciso de uma máquina dessas. Tenho Sammy, o pónei, para tarefas incidentais, e um bom e forte Clydesdale para puxar a carroça de pão. Quanto a você, podia ter sido pior. Vamos pô-lo a salvo no trem das oito, proveniente de Ardfillan. Nesse intervalo, venha comer alguma coisa conosco.
- Não é possível; não quero continuar a incomodá-los...
- Não seja ridículo - disse Mary. - Precisa conhecer o resto dos Douglas e Walter, meu noivo. Ele vai ficar encantado em conhecê-lo. Isto é - rematou ela, ao ocorrer-lhe uma nova ideia - se o seu pessoal não se afligir com a sua ausência...
Moray sorriu e balançou a cabeça.
- Não se preocupe. Sou sozinho.
- Sozinho? - inquiriu Douglas.
- Perdi meus pais quando era muito novo.
- Mas deve ter parentes, naturalmente...
- Nenhum de quem preciso... ou que algum dia me quisesse.
O olhar de pura incredulidade do padeiro fez acentuar-se o sorriso de Moray, levando-o a se explicar com toda a sinceridade.
- Estou sozinho desde os dezesseis anos. Mas, de um modo ou de outro, me arranjei para acabar o curso no colégio... e para ter a sorte de ganhar uma bolsa de estudo.
- Nossa! - refletiu o padeiro tranquilamente, mas com verdadeira admiração. - Ação muito recomendável!
Parecia meditar no assunto enquanto iam os três sacolejando estrada fora; mas em dado momento, endireitando-se, começou, com uma cordialidade crescente, a apontar e descrever os acidentes da região rural, muitos dos quais estavam associados aos acontecimentos de 1314, anteriores à batalha de Bannockburn.
- Papai é um grande leitor da história da Escócia - confiou Mary a Moray, à guisa de desculpa. - Há pouca coisa escondida que ele não lhe possa dizer sobre Bruce, ou Wallace, eu quem mais houver.
Aproximavam-se de Ardfillan, e Douglas apertou o breque de pedal para facilitar ao pónei descer o outeiro em direção da velha cidade que se estendia na praia do Estuário, cintilando à luz do ocaso. Desviando-se da Esplanada, penetraram numa teia de tranquilas ruas travessas e fizeram alto diante de um armazém em cuja fachada estava inscrito James Douglas, Padeiro e Doceiro, e, mais abaixo, em letras menores, Agenciam-se Casamentos, e em letras ainda menores, Estabelecido em 1880. Em verdade, o lugar apresentava um aspecto antiquado e pouco próspero, pois a vitrina exibia um único bolo de bodas de várias camadas, flanqueado por dois boiões de vidro, repletos de bolachas.
Nesse ínterim, o padeiro pôs o chicote na bainha. Depois gritou:
- Willie!
Um rapazinho esperto, vestido num avental que lhe ia desde os pés até ao queixo, saiu correndo para fora do armazém.
- Diga à sua tia que estamos de volta, filho. Depois apresse-se; venha me ajudar com Sammy.
com grande destreza, Douglas fez o pónei recuar por um estreito corredor até ao pátio empedrado da cocheira.
- Aqui estamos - disse alegremente. - Leve o seu doente para cima, Mary. Logo irei para lá.
Subiram os degraus rasos de uma escada de pedra externa e em curva, até atingirem a casa em cima do armazém, onde um estreito saguão abria para a sala da frente, mobiliada com cadeiras estofadas de pelúcia vermelha já puída, e cortinas de borla do mesmo material. No centro da sala já estava posta uma pesada mesa de mogno para um chá de qualidade, e um fogo de carvão brilhava confortavelmente na lareira, diante da qual um tapete de negra
pele de carneiro desenrolava a sua lã emaranhada e aconchegante. Soltando-se dos braços de Mary, Negrinho logo se apossou do tapete. A moça despira a jaqueta e agora parecia mais à vontade em sua imaculada blusa branca.
- Sente-se e descanse a perna. vou correndo lá embaixo ver como andam as coisas. Fechamos às seis. - E acrescentou com uma pontinha de orgulho: - Papai não trabalha aos sábados de noite.
Depois que ela saiu, Moray acomodou-se numa cadeira, sentindo, de modo pungente, a estranheza daquela sala escura, quente e alheia. Uma brasa caiu sem rumor na lareira. De um recanto obscuro vinha o tique-taque compassado de um relógio-armário, só visível mercê da luz do fogo que batia no seu velho mostrador de latão. A mesma luz era captada pelas xícaras azuis, do padrão denominado "de pombinha". Por que, Deus, estava ele ali, e não debruçado sobre Osler e Cunningham na atravancada mansarda onde morava? Fora apenas dar um giro para clarear as ideias - sua única concessão ao ócio - antes de entregar-se a todo um longo fim-de-semana de estudos afincados. Mas a cinco semanas dos exames finais, era uma loucura desperdiçar o tempo ali, e de que maneira mais inútil! Todavia, aquela gente era tão hospitaleira, e a comida sobre a mesa tinha um aspecto tão convidativo... e ele, tão escasso de dinheiro andava, que fazia já semanas desde que tomara uma refeição razoavelmente completa...
A porta abriu-se de repente e Mary entrou com a bandeja de chá. Acompanhavam-na uma mulher gorducha, de aspecto hidrópico, e um rapaz alto e magro, de cerca de vinte e sete ou vinte e oito anos, muito correto no seu terno azul-escuro e alto colarinho engomado.
- Mais alguns dos nossos - disse ela sorrindo. - Tia Minnie - e (aqui corou ligeiramente) - meu pretendente, Sr. Walter Stoddart.
Enquanto ela falava, o pai apareceu com o rapazola Willie, e, depois de dar graças, todos se sentaram.
- Induziram-me a crer - disse Stoddart dirigindo-se a Moray com um sorriso amável, não sem primeiro se deixar servir com grande deferência por tia Minnie, enquanto Mary servia o chá, com fatias de presunto frio - que o senhor passou por uma experiência bastante penosa. Eu também já passei por uma experiência um tanto parecida na estrada de Luss, em meu tempo de menino. Quando foi mesmo? Deixem-me ver. Ah, sim, foi em mil novecentos e nove, num verão quentíssimo que tivemos. Tinha então treze anos e crescia depressa. Naquele tempo, tratava-se de uma bicicleta, naturalmente,
e de um pneumático furado. Felizmente, não sofri nada mais sério do que uma esfoladura no cotovelo esquerdo, mas podia ter sido uma tragédia. Desculpe o incómodo, Mary: posso pedir-lhe mais uma tablette de açúcar? Creio que você já sabe que sempre prefiro três...
- Oh, desculpe-me, querido!
Evidentemente, Stoddart era ali considerado, não apenas por ele próprio, mas por toda a família, como uma pessoa de importância indiscutível. E agora tia Minnie, que se diria admirá-lo mais do que os outros, transmitiu a Moray, num aparte cochichado e ofegante, que Walter era filho do escrivão da cidade e ocupava uma esplêndida posição na contadoria do Departamento de Gás - um verdadeiro achado para Mary, acrescentou ela com uma eloquente e satisfeita sacudidela de cabeça.
A situação intrigou Moray, provocando o seu senso de humor. Os fastidiosos maneirismos de Stoddart, sua condescendência para com os Douglas, exercida com todo o rígido dogmatismo do burocrata provinciano, até mesmo as convulsões de seu pescoço de avestruz, quando engolia o chá - tudo era promessa de entretenimento para Moray. Ao mesmo tempo que fazia jus às boas coisas da mesa, divertia-se cultivando Stoddart, brincando com a sua vaidade e, para alçá-lo à posição de colega, relatando-lhe, num estilo muito picante, alguns dos aspectos mais interessantes de seu trabalho no departamento dos externos da Enfermaria. Não tardou muito, foi recompensado com indícios de uma crescente estima por parte de Walter. com efeito, enquanto a refeição chegava ao fim, Stoddart sacou do bolso seu relógio de ouro e abriu-o com um estalido - este era outro de seus frequentes maneirismos - enquanto prodigalizava a Moray um sorriso de dentes à mostra.
- Grande pena ter de deixá-los tão cedo. vou acompanhar Mary à festa da Banda da Esperança. Não fosse isso, teria imenso prazer em continuar gozando da sua companhia. Tenho entretanto uma sugestão a fazer. Minha opinião é de que seria extremamente irregular o senhor conduzir sua motocicleta a Winton sem bilhete, sub rosa, como se diz, e da maneira que Mary me indicou. Isso poderia expô-lo a toda a espécie de incómodos e penalidades. No fim de contas, não é por troça que a Estrada de Ferro Norte-Britânica inventou regulamentos! O que proponho - e sorriu amavelmente a todos em redor da mesa - é que o nosso amigo Moray vá a Winton buscar a peça que lhe falta; que, no fim da semana, vá ajustar a
peça na motocicleta e venha de volta montado nela. Isto, naturalmente, nos dará a oportunidade de tornar a vê-lo.
- Que boa ideia - disse Mary radiante. - Por que não nos ocorreu antes?
- Nos ocorreu, Mary? - repetiu Walter, solenemente enfiando o relógio no bolso. - Pensei que eu...
- Obal Você é um tipo sabido, Walter. Não sei o que faríamos sem você - atalhou o bom padeiro olhando para Moray com um irónico piscar de olhos, o que serviu para mostrar que ele não endossava absolutamente a opinião prevalecente no que dizia respeito às qualidades de Stoddart. - Volte mesmo, rapaz. Será muito benvindo.
Ficou combinado; e quando se levantou para pôr o chapéu e o manto, e, aceitando o braço de Walter, ser por ele conduzida à reunião da igreja, Mary sorriu para Moray por sobre o ombro.
- Vê-lo-emos no próximo sábado... por isso não lhe digo adeus.
- Eu também não direi - disse Walter com uma mesura. - Espero ter o prazer de conhecê-lo melhor.
Meia hora depois Moray saiu. Willie, que atentara de olhos brilhantes para as suas histórias de hospital, fez questão de acompanhá-lo até à estação.
CAPÍTULO DOIS
O alojamento de Moray era um pequeno quarto no alto de uma casa de cómodos, paredes-meias com uma outra, nas proximidades das 'docas de Blairlaw. O bairro, interceptado por um depósito de lixo abandonado, era indubitavelmente um dos mais pobres de Winton. Crianças raquíticas e maltrapilhas brincavam nas calçadas marcadas a giz, enquanto mulheres tagarelavam, de xale e touca, junto às bocas de esgoto interditadas. Havia em cada rua um botequim e uma casa de peixe frito, enquanto, através do nevoeiro de Clydenside, as três bolas de latão das casas de penhor acenavam a todos irresistivelmente. Rebocadores apitavam no rio e um incessante martelar se elevava dos estaleiros de conserto. O bairro não era certamente uma estância de prazer; mas, cortando por Blairhill na direção de Eldongrove, ficava a uma razoável distância a pé da Universidade e da Enfermaria Ocidental. Acima de tudo, a vida ali era barata.
O resumido porém impressionante relato, que Moray fizera de si próprio ao padeiro Douglas, era verdadeiro a alguns respeitos, embora não o fosse em sua totalidade... Os primeiros doze anos de sua vida, filho único que era de pais indulgentes, da classe média, foram normais, nunca opulentos, mas fáceis e confortáveis. Certa vez seu pai, agente local da Companhia de Seguros Calcedônia, caiu de cama com influenza contraída, dizia-se, em suas cobranças de porta em porta. A mulher cuidara-o durante uma semana, mas ele piorou. Foi chamado um especialista, e, abruptamente, o diagnóstico mudou para febre tifóide, mas não antes que também ela contraísse a moléstia. Dentro de um mês David viu-se atirado em casa de uma parenta longe, viúva, meia-irmã de sua mãe - tal um fardo aceito de má vontade, pobre criança que ninguém queria. Por quatro anos o jovem Moray sofreu duramente de abandono, e comeu o amargo pão da dependência; mas ao completar dezesseis anos, uma apólice de educação, prudentemente adquirida por seu pai, entrou em vigor. Não era grande coisa, apenas o suficiente para as mensalidades e uma magra subsistência. Mas valeu: ajudado por um mestre compassivo que reconheceu em seu aluno possibilidades fora do comum, ele ingressara no curso médico da Universidade de Winton.
Mas essa apólice providencial era qualquer coisa que Moray, por motivos de expediência, ou por uma natural inclinação para dramatizar sua própria luta, achava às vezes conveniente esquecer. com a sua sedutora timidez, que conquistava à primeira vista a maioria das pessoas, era agradável, não raro útil, aludir aos apertes por que passara, às mudanças e evasões a que fora forçado, às indignidades que tivera de suportar - por exemplo, ter de sacudir as pulgas da barra das calças, utilizar-se da retreta pública sob o patamar da escada, lavar sua própria camisa, comer fritas num jornal manchado de gordura - tudo isso apenas sustentado por uma heróica determinação de arrancar-se do sulco e atingir as alturas.
Confessava, entretanto, ter tido bons momentos: refeições ocasionais em casa de seu amigo Bryce, ou, graças à bondade do pessoal da Enfermaria, um teatro grátis ou uma entrada de concerto; certa vez, nas férias de verão, passara uma semana excepcional na casa praiana de seu professor de Biologia. Decerto que aproveitava ao máximo tais oportunidades, não apenas sendo profusamente grato quando alguém fazia algo por ele, mas por uma particular sofreguidão de maneiras, de todo comovente, que aos outros inspirava confiança e afeição. "Grande bondade a sua em ter-me dado ajuda,
senhor", ou "Você foi extremamente decente, meu velho". Mediante essas expressões modestas e autodepreciativas, e aquele olhar claro e franco, quem podia deixar de gostar dele? Era tão perfeitamente sincero! Em verdade, quando estava de veia, ele próprio acreditava nas mentiras que dizia.
Mas os "bons momentos" nunca foram uma feição muito marcante das universidades escocesas: já havia meses que escasseavam. Só por essa razão, o seu encontro com a família Douglas tinha a sedução do inesperado. Durante a semana, ao atender a Enfermaria diurna, e, depois, nos estudos noturnos afincados, ela permanecia agradavelmente presente no fundo de sua memória. Logo ele descobriu que esperava ansioso pela visita que lhes prometera fazer no sábado seguinte.
A manhã chegou meio anuviada, porém bela. À uma hora, após atender os pacientes externos, tomou o "expresso-operário" da estação de Winton. A passagem desse trem era muito barata, o preço do bilhete - era incrível - custava apenas quatro pence. Seu itinerário percorria o estuário do Clyde, servia os operários dos estaleiros. Moray levava consigo a correia nova, pois Bryce, prevendo dificuldades, realmente comprara uma de sobressalente, e de boa vontade lha entregara à sua moda pachorrenta. Na baldeação de Levenford, mudou para a bitola estreita, e exatamente às duas e meia, com o sol apontando dentre as nuvens, chegou a Craigdoran.
A estaçãozinha branca, com seu espinheiro em flor e seu enredamento de madressilvas, apresentava agora um aspecto familiar. O perfume da madressilva enchia a atmosfera e uma abelha zumbia, madrugadora. Dois jovens, vestidos de alpinistas, mochila às costas, precederam-no na saída do trem. Entraram no restaurante, onde ele percebeu, através do vidro fosco da janela, Mary embrulhando em papel impermeável os sanduíches que os dois tinham comprado. Depois os rapazes saíram, e Mary,
acompanhando-os até à porta, esquadrinhou a plataforma com o olhar.
- É você - e ela sorriu. - Começava a recear que não viesse. O joelho melhorou? - E acenando-lhe, fê-lo entrar e sentar-se. O gato se lhe aproximou e esfregou-se em suas pernas.
- Garanto que não almoçou. vou arranjar-lhe uns sanduíches e um copo de leite.
- Não faça isso, por favor - disse ele. - Comi alguma coisa no bar da estação de Levenford...
- Ora, ora! - disse ela jocosamente, quase como o pai, e levantando as sobrancelhas. - É extraordinário! Levenford nunca teve
bar! - Da campânula de vidro em cima do balcão, tirou um prato de sanduíches, em seguida encheu um copo de leite espumejante. - Neste
fim-de-semana é difícil aparecer mais alguém por aqui e eu não posso ver comida boa atirada no lixo. Desta vez terá de concordar comigo.
Um instante depois sentava-se em frente dele, e dir-se-ia que lutava contra uma efervescência interior que de súbito aumentou, sem possibilidade de controle.
- Tenho uma notícia para dar-lhe. Você fez um tremendo sucesso...
- O quê? - disse ele recuando, compreendendo-a mal.
- Walter... - e seus lábios tremiam - faz uma grande ideia de você. Desde que você partiu, não faz outra coisa senão entoar seus louvores. Você é tão simpático! - E procurando conter uma risada: - Está sentido por não poder vê-lo hoje de noite. Foi a uma assembleia da Guilda de Funcionários Municipais, em Winton. . . e me encarregou de apresentar-lhe desculpas. - E prosseguiu, antes que ele pudesse abrir a boca: - Mas, para amanhã, arranjou para nós uma ótima excursão. Vamos sair de barco e rodear as ilhas de Bute; parada para o almoço em Gairsay e regresso a casa.
Ele olhava-a interdito, franzindo a testa:
- Mas amanhã não poderei voltar outra vez...
- Nem é preciso - disse ela calmamente. - Papai diz que pode ficar conosco. Dormirá com meu irmão Willie.
Ele continuava de cenho franzido; depois, gradualmente, o rosto se lhe desanuviou. Nunca antes conhecera gente tão simples, de coração tão aberto. No dia seguinte não haveria doentes externos na Enfermaria e decerto não perderia muito se faltasse um dia ao trabalho. Além disso, o domingo em Winton era um dia incrível, que sempre detestara.
- Irá conosco?
- com muito prazer. E agora vou consertar a motocicleta.
Trabalhou durante toda a meia hora seguinte, ajustando a correia nova, que precisou de ser cortada e rebitada. Mary ia de vez em quando
observá-lo, mas não dizia nada, apenas olhava-o com simpatia. Depois que acabou, ele empurrou a máquina para fora e deu a partida.
- Que tal uma voltinha?
Ela olhou-o indecisa, tapando o ouvido com a mão para não ouvir o frenético estouro do escapamento.
- Não tem perigo - assegurou ele. - É só sentar-se e segurar firme.
- Não posso sair antes da chegada do trem das quatro e meia. Mas depois, quem sabe você poderá levar-me para casa? Posso falar com papai pelo telefone da bilheteria e poupar-lhe a viagem.
- Então está combinado - disse ele alegremente.
Invadia-o uma inusitada euforia. Ou fosse pela escapada ao trabalho, ou pela verde frescura campestre, sentia-se mais leve, como se respirasse uma atmosfera mais leve e luminosa. Até que ela ficasse livre, e para experimentar a motocicleta, subiu em disparada a colina de Tulliehewan. Quando voltou, Mary estava pronta para sair. Como Negrinho ficava, arranjara para ele um pires de leite.
- Então, é aqui que me sento - disse ela, empoleirando-se no assento de trás.
- Assim, não. Você poderá cair. Tem de sentar-se escarranchada.
Ela hesitou; depois lançou uma perna para o outro lado - modestamente, porém de modo tão canhestro que antes que ele desviasse o olhar umas lindas formas lhe foram momentaneamente reveladas. Ela disse, corando:
- Ainda não estou habituada...
- Mas fê-lo como se estivesse - de maneira estupenda!
Ele acomodou-se rapidamente no assento e partiu. Primeiro rodou devagar, evitando os solavancos; depois, vendo a confiança dela, abriu o escapamento. Entraram em disparada na estrada entre os alagadiços, com o vento sibilando nos ouvidos. Os braços dela abraçavam-lhe a cintura, e sua cabeça, voltada para o lado, encostava-se-lhe no ombro.
- Sente-se bem? - ele gritou.
- Ótima! - gritou ela de volta.
- Está gostando?
- É... é formidável. Nunca andei tão depressa em toda a minha vida!
Faziam pelo menos trinta milhas por hora.
Quando ele parou em frente do armazém de Ardfillan, as faces dela estavam radiantes, os cabelos desgrenhados, polidos pelo vento.
- Que gostosura! - E ela riu-se nos olhos dele, cambaleando um pouquinho por falta de firmeza, ainda embriagada de velocidade. - Venha. Tenho de apressar-me e me arrumar. Estou um espetáculo!
O padeiro acolheu Moray com cordialidade, e Willie parecia ainda mais entusiasmado do que antes. Mas a tia pareceu recebê-lo com novas reservas e olhar perscrutador, às vezes claramente propenso à suspeita - embora mais tarde ele a amaciasse dando atenção ao
relato de sua doença e recomendando-lhe um cordial para curar fôlego curto. A refeição que ela lhes serviu foi macarrão com queijo, sem dúvida saudável, embora inequivocamente carecesse daqueles requintes destinados a Walter. A noite decorreu tranquilamente. Moray jogou damas com o padeiro, e perdeu com elegância três vezes seguidas, enquanto Mary, num tamborete baixo junto ao fogo, fazia um bico de croché, com certeza destinado ao enxoval. Vendo a renda crescer, não pôde Moray deixar de pensar que a mesma se destinava à barra de uma camisola - ideia indulgente e afetuosa, não lasciva. De vez em quando ela olhava o relógio e observava com um sereno interesse, muito diferente do interesse da garota cheia de vida e de alegria que, fazia apenas uma hora, rodara alegremente com ele através dos campos:
- Walter deve estar na reunião.. .- E continuando: - Decerto lhe vão dar uma oportunidade de falar... Escreveu o discurso com tanto cuidado... e estava tão resolvido a pronunciá-lo. - E rematando: - A estas horas deve estar a caminho da estação. Tomara que não tivesse esquecido as galochas... sofre o martírio dos pés frios...
Recolheram-se cedo. No quarto de Willie, que ficava nos fundos e abria para o pátio, Moray teve sua primeira conversa verdadeira com o rapaz, cuja timidez o mantivera calado até ali. Havia pouco recebera, como prémio escolar, um livro fascinante sobre a vida de David Livingstone, e dentro em pouco ambos mergulhavam nas selvas africanas, descobriam o lago Niassa e deploravam os estragos do beribéri e da mosca tsé-tsé... Moray viu-se obrigado a responder a uma porção de perguntas ansiosas, até que afinal apagaram a luz e adormeceram.
CAPÍTULO TRÊS
NA manhã seguinte, Walter chegou pontualmente às nove e meia e, cumprimentando Moray como a um velho amigo, deu vazão ao seu bom êxito da noite anterior. Embora um bando de indivíduos pretensiosos saísse da sala antes da conclusão de seu discurso, ele falara extremamente bem, durante uns bons três quartos de hora. Tendo ganho com justiça aquele dia de folga, estava disposto a desfrutá-lo ao máximo. Nada lhe dera maior prazer, acrescentou, do que organizar a excursão.
Essa efusão de vaidade intrigou Moray. Haveria em Walter uma pinta de mulher, ou talvez, como homem consistentemente repelido por seus colegas, carecia tanto de uma companhia máscula que se apegava à primeira que se lhe atravessasse no caminho? Talvez que o prestígio de um futuro médico o seduzisse, pois sem sombra de dúvida era um esnobe. Ou talvez que, mercê de sua vaidade, ele estivesse apenas desejoso de demonstrar sua própria importância a uma pessoa novata na cidade. com um encolher de ombros, Moray desistiu de pensar no assunto.
Mary e seu irmão já estavam prontos, e afinal todos saíram, Walter à testa, conduzindo o bando ao longo da Esplanada, obviamente resolvido a fazer as coisas em grande estilo. Na bilheteria do barco, pediu bilhetes de volta de primeira classe, acrescentando casualmente:
- Três passagens e meia... o menino é menor de idade...
O bilheteiro voltou para Willie um olhar experimentado.
- Quatro passagens inteiras - disse.
- Creio que pedi três e meia.
- Quatro - disse o bilheteiro numa voz cansada.
Seguiu-se uma discussão, breve mas feroz de parte de Walter, só terminando quando Willie, interrogado pelo bilheteiro, disse-lhe sinceramente a sua idade, assim se desqualificando para a redução do preço. Ruim começo, pensou Moray, observando ironicamente Walter desembolsar as moedas extras com um ar ofendido.
A pequena barca de chaminé vermelha e roda de paletas chegava batendo o rio e aproximando-se do dique. Era a Lucy Ashton. Walter, mais ou menos recuperado, explicava a Moray que todos os barcos do Norte da
Grã-Bretanha tinham nomes de personagens de Walter Scott, mas parecia desapontado por não ir no Çueen Alexandria, com turbina escocesa de duas chaminés, e cuja ausência se diria um leve arranhão no seu prestígio.
Arriou-se destramente o passadiço, todos entraram a bordo, e, olhando em torno, Walter escolheu lugares na popa. As paletas puseram-se a girar, e lá foram eles através do cintilante estuário, em direção ao braço de mar.
- Delicioso, não acha? - murmurou Walter, acomodando-se. As coisas tinham melhorado bastante.
Mas fazia frio em cima da água, e dentro em pouco ficou claro que os lugares que ele escolhera estavam muito expostos.
- Não acha que venta muito aqui? - arriscou Mary, depois de vários minutos. A cabeça baixada contra o vento, segurava o chapéu com ambas as mãos.
- Absolutamente - respondeu Walter lacónico. - Quero mostrar ao Dr. Moray todos os pontos de interesse. Este lugar nos faculta uma visão ininterrupta.
O panorama - indubitavelmente contínuo - de vez que a maior parte dos passageiros estava a sotavento da cabina - era muito bonito, talvez o mais bonito das Terras Altas Ocidentais. Mas Walter, embora complacentemente confessasse os seus encantos com o senso de propriedade peculiar a um cicerone, parecia mais preocupado com a importância comercial das cidades que franjavam a praia.
- Acolá é Scourie - indicou ele. - Comunidade próspera. Instalaram um gasómetro no ano passado. Vinte mil pés cúbicos de capacidade. Um grande progresso. E o conselho municipal tem pela frente um novo plano de águas e esgotos. Meu pai conhece o alcaide de lá. E do outro lado fica Porto Doran. Vê daí o edifício da câmara, atrás da torre da igreja?
O frio era cada vez maior. Até mesmo Willie ficara arroxeado e se afastara, resmungando que ia olhar as máquinas. Mas Walter continuava inexorável. Que sujeito mais cacete, pensou Moray, as pernas espichadas e as mãos nos bolsos. Agora mal o ouvia; observava Mary que, embora calada, de vez em quando aduzia uma respeitosa palavra de assentimento. Via Moray que toda a natureza da moça se alterava em presença do noivo.
Murchava-lhe o brilho, toda a alegria a abandonava; fazia-se reservada, fechada, conscienciosamente submissa, tal uma boa aluna em presença do mestre. Vai levar uma vida de inferno com esse sujeito, refletiu Moray, distraído: o vento, o monólogo de Walter, davam-lhe sono.
Finalmente, passaram as ilhas Kiles, entraram na baía de Gairsay e manobraram em direção ao dique. Willie, após alguma busca, foi arrancado ao calor da casa das máquinas, e todos desceram à praia.
- Isto é lindo - ofegou Mary, aliviada.
A cidade, que era uma estância popular, tinha um aspecto atraente e próspero: um círculo de boas lojas na frente, hotéis galgando o morro arborizado atrás, o alagadiço e a montanha mais além.
- Agora... o almoço - exclamou Walter, a modo de alguém que tivesse uma surpresa a fazer.
- Oh, sim - disse Mary alegremente. - Vamos ao Lang. Lá está ele .. bem pertinho. - E apontou para um restaurante modesto, mas de aspecto promissor, do outro lado da estrada.
- Querida! Nem sonho levar Dr. Moray para o boteco do Lang! Nem você o faria!
- É para lá que vamos sempre que papai vem junto - observou Willie, com certa teimosia. - Servem tortas quentes de carneiro, únicas no género. E limonada de Comrie...
- Sim, vamos para lá, Walter querido!
Ele a fez calar-se com um aceno da mão levantada e enluvada, e calmamente expôs a pièce de résistance da excursão que organizara.
- Vamos é almoçar no restaurante Grand.
- Oh, não, Walter. Não no Grand. Ê tão... tão esnobe... e tão disp...
Walter lançou a Moray um olhar íntimo e confidencial, como a dizer: "Estas mulheres!»
- Grand é o melhor - murmurou. - Telefonei do escritório de meu pai, pedindo com antecedência que nos reservassem uma mesa.
E começaram a galgar o morro em direção ao Grand, que avultava majestosamente na altura. O atalho era comprido, varava matos atapetados de campainhas-azuis, e era íngreme, em alguns trechos excessivamente. De vez em quando entreviam-se, através do arvoredo, luxuosos carros cintilando na subida da estrada principal. Moray percebeu que a ascensão, que Stoddart liderava a largas passadas de mateiro, fatigava Mary. Para lhe permitir que descansasse, parou para colher um pequeno buque de campainhas-azuis, que amarrou com um fiapo de capim seco e lhe estendeu.
- Exatamente da cor de seu vestido - disse sorrindo.
Afinal chegaram ao topo, e Walter, alagado em suor e ofegando pesadamente, conduziu-os ao amplo terraço do hotel, onde uma porção de hóspedes estava sentada ao sol. O silêncio se fez no mesmo instante em que a turma apareceu, alguns olhares se voltaram para ela, e alguns riram. A entrada principal ficava no lado oposto do hotel, e Walter teve alguma dificuldade em encontrar a porta que abria para o terraço. Finalmente, depois de pervagarem um pouco, todos se encontraram no rico saguão de colunas de mármore, e Stoddart, tendo pedido instruções a uma imponente figura de uniforme coberto de alamares dourados, conduziu-os na direção do restaurante - um salão enorme e assustador, decorado de ouro e brancura, grandes candelabros de cristal e um rico tapete de lã vermelha.
Era cedo demais; soara o meio-dia, e embora os garçons estivessem apostos, aglomerados em torno da escrivaninha do maítre d'hôtel, não havia mais ninguém na sala.
- Pois não, cavalheiro...
O maítre, homem robusto e cara vermelhuça, metido numas calças listadas, de colete branco e casaca, desprendeu-se do grupo e avançou com alguma hesitação.
- Almoço para três, e para mais este menino - disse Stoddart.
- Por aqui, se faz favor.
Sob a pálpebra descida, o olho experimentado do maítre mediu-os num relance; preparava-se para conduzi-los a uma escura alcova dos fundos, quando Walter observou com imponência:
- Quero uma mesa perto da janela. Mandei reservar uma, em nome do escrivão de Ardfillan.
O mordomo hesitou. Fareja uma gorjeta, pensou Moray, cinicamente; mas como se equivocava!
- O senhor disse perto da janela, pois não?
- Sim, naquela mesa ali.
- Sinto muito, cavalheiro. Aquela mesa está especialmente reservada para o Major Lindsay, de Lochshiel, e sua comitiva de jovens gentlemen ingleses.
- Então, a que lhe fica próxima.
- Aquela é de Mr. Menzies, cavalheiro. Residente do hotel. Entretanto... como é raro ele chegar antes de uma e quinze, e nessa altura os senhores terão sem dúvida acabado de almoçar... Se faz questão de a ter...
Sentaram-se à mesa de Mr. Menzies. O cardápio foi apresentado a Walter. Estava escrito em francês anglicizado.
- Potage à la Reine Alexandra - começou ele, e o leu todinho, devagar, dizendo em conclusão: - Nada como a cozinha francesa! De cinco serviços!
Serviu-se-lhes a refeição rapidamente e com uma insolência disfarçada, e eles a comeram, cerimoniosamente solitários. Os pratos eram atrozes; um verdadeiro lanche à le Grand Hotel, mas abaixo do nível usual. Primeiro, veio uma sopa gordurosa e amarelada, que aparentemente se compunha de farinha e água morna; depois, um fragmento de peixe, que decerto viajara de Aberdeen para Gairsay pelo caminho mais comprido de Billinsgate, fato esse apenas em parte disfarçado por uma camada de molho côr-de-rosa e gelatinoso.
- Não é fresco, Mary - cochichou Willie, inclinando-se para a irmã.
- Cale a boca, querido - murmurou ela em luta com os espinhos, sentada muito ereta, os olhos postos no prato. Moray percebia que, sob a calma aparente, ela sofria muito. Quanto a ele, segundo seus próprios termos, nada lhe importava um caracol; mas doía-lhe estranhamente vê-la magoada. Quis lembrar-se de algo leve e engraçado para animá-la, mas não conseguiu. Do outro lado da mesa, Walter abria sulcos no serviço número dois - uma prancha fibrosa de costeleta de carneiro servida com ervilhas enlatadas e batatas que não apenas tinham o gosto mas também a consistência de sabão.
A sobremesa era um manjar-branco que sabia a giz e veio acompanhado de ameixas duras. O pospasto, servido logo em seguida (pois agora era claro que estavam sendo atropelados), tomou a forma de uma sardinha rija e espectral, que emitia uma espécie de luz azulada, e vinha espetada numa tira de torrada seca. Depois, embora ainda não fosse uma hora e não houvesse mais hóspedes no salão, trouxeram a conta.
Se Stoddart a tivesse pago sem protesto, e eles tivessem saído logo após, a coisa não teria ficado tão ridícula. Mas, nessa altura, Walter começou a sentir em seu couro insensível uma sensação de menosprezo, difícil de ser tolerada pelo filho do primeiro escrivão da cidade de Ardfillan. Não apenas isso, mas o rapaz tinha também um tanto a mentalidade de leguleio. Sacou um dos lápis com que o bolso de seu paletó andava sempre armado e começou a conferir a conta. Enquanto o fazia, um homem alto, de aspecto libertino, cabelos grisalhos, pele tisnada e bigodes aparados, vestido num saiote escocês da Guarda Negra, entrou no bar. Vinha acompanhado de três rapazes trajados de grosseira lã mesclada, e que, Moray logo percebeu, haviam ingerido alguns goles a mais. Enquanto se apossavam da mesa contígua, discutiam ruidosamente sobre a pescaria que fizeram num trecho do rio Gair - pelos modos, propriedade do homem de saiote escocês. Um dos três, sujeito espalhafatoso, de cabelos louros e boca derreada, achava-se num estado muito menos do que sóbrio, e, quando se sentou, o seu olhar caiu sobre Mary Douglas. Refestelado no espaldar da cadeira, olhava-a de soslaio enquanto o garçom servia a "entrada"; depois, com um toque de cotovelo e uma piscadela, chamou a atenção dos companheiros.
- Olhe ali, que linda truta escocesa, Lindsay! Melhor do que tudo quanto você pescou hoje.
A risada foi geral, e os outros dois voltaram a cabeça e olharam para Mary.
- Vamos, acabe com essa sopa - disse Lindsay.
- Ora, leve o diacho a sopa! Convidemos a mocinha para vir sentar-se à nossa mesa. Não parece muito contente com o tio escocês. Que acham? Devo bancar o indispensável?
E fitou os outros, esperando confirmação e incentivo.
- Veja lá se se atreve, Harris - disse um de seus amigos, num arreganho de riso.
- Quanto quer apostar? - E o rapaz fez recuar a cadeira e levantou-se.
Walter, perturbado na sua matemática, percebera nervosamente a presença dos rapazes, nem bem estes entraram no salão. Naquele instante, ficou extremamente pálido nas bochechas e desviou o rosto...
- Não dêem confiança... . - murmurou. - Os outros não deixarão que se aproxime.
Mas Harris já avançava e, com uma mesura exagerada, inclinou-se diante de Mary e tomou-lhe a mão.
- com licença, queridinha. Quer dar-nos o prazer de sua companhia?
Moray viu-a encolher-se e recuar. Primeiro corara profundamente; agora, porém, todo o sangue fugira-lhe do rosto. Tinha os lábios pálidos e trémulos. Olhou suplicante para Walter. Willie fitava Stoddart com olhos arregalados e cheios de susto, onde também se lia indignação.
- Cavalheiro - gaguejou Walter, engolindo com dificuldade. - Não sabe que se está dirigindo à minha noiva? Isto é um atrevimento. Sou obrigado a chamar o gerente.
- Calma, tiozinho. Você não interessa. Venha comigo, queridinha. - E quis pô-la de pé. - Vai divertir-se à beça!
- Por favor, vá-se embora - disse Mary em voz baixa e magoada.
Algo impressionou o atrevido, pois se conteve. Hesitante, fez uma careta e largou-lhe a mão.
- Gostos não se discutem... - E, encolhendo os ombros: - bom... como não quer vir, levarei uma lembrança... - E apanhando as flores de Mary, apertou-as afetuosamente de encontro aos lábios e voltou cambaleante para seu lugar.
Fez-se um silêncio cavernoso. Dir-se-ia que todos olhavam para Walter. Especialmente o homem de saiote desbotado, observava-o com um franzir de lábio cruelmente sarcástico. Walter estava deploravelmente nervoso. Esquecendo sua intenção de conferir a
conta, apalpou a carteira, atirou precipitadamente algumas notas na mesa, e levantou-se como uma galinha arrepiada.
- Saiamos, Mary.
Moray levantou-se. Nada havia de heróico em sua natureza, não tinha fortes pendores para a luta moral, mas estava indignado... talvez ainda mais indignado porque desperdiçara o dia. Um súbito impulso nervoso, como que predeterminado, fê-lo avançar até à outra mesa. Baixando o olhar sobre Harris, que parecia não apreciar devidamente aquela aproximação, disse:
- Não lhe disseram que tratasse de tomar a sua sopa? Embora já seja um pouco tarde para isso, permita-me que o ajude.
E, agarrando-o pela nuca, Moray empurrou-o para a frente, e esfregou-lhe a cara uma, duas, três vezes, dentro do prato de sopa. Tratava-se da mesma sopa grossa, o potage à la Reine Alexandra, que, nesse intervalo, se sedimentara, de modo que Harris, quando levantou a cabeça para respirar, vinha pingando uma goma amarelada. Silêncio mortal dos outros, enquanto ele, com um gesto de quem nada, tateava o ar em busca do guardanapo. Moray apanhou o buque de campainhas-azuis, devolveu-o a Mary e ficou um minuto à espera, o coração batendo destabocado... Depois, como não acontecesse mais nada-a não ser quanto ao homem de saiote, que se pusera a rir - Moray acompanhou os outros para fora do salão. Willie aguardava-o, na escada. Apertou-lhe a mão fervorosamente, uma e muitas vezes.
- Muito bem-feito, David. Gosto muito de você.
- Sua interferência não era necessária - disse Walter, quando começaram a descer pela mata. - Estávamos completamente dentro de nossos direitos. Como se as pessoas decentes não pudessem tomar uma refeição em paz... Conheço esse Lindsay... é um lorde lavrador... Em sua propriedade não tem peixe ou pássaro que ele não alugue aos mais baixos peralvilhos de Londres... Mas darei parte às autoridades. Isto não vai ficar assim: é um escândalo público.
E nesse estilo continuou até que chegaram ao dique, ele repisando insistentemente os direitos do indivíduo e a dignidade do homem, e concluindo com uma derradeira explosão vindicativa:
- vou levar tudo isso ao conhecimento de meu pai!
- E que fará ele? - perguntou Willie. - Manda-o calar a boca?
A viagem de volta foi triste e silenciosa. Começara a chuviscar, e eles foram sentar-se no salão. Remoendo as ofensas recebidas, Walter finalmente deixara de monologar, enquanto Mary, que olhava
fixo para a frente, mal dizia uma palavra. Willie levara Moray a ver as máquinas.
Em Ardfillan, Walter, com um ar perdoador, ofereceu o braço a Mary. Caminharam para a padaria, em cujo pátio Moray pôs a motocicleta a funcionar.
- Bem... - e Walter estendeu-lhe a mão com displicência - acho que não voltaremos a ver-nos...
- Volte logo outra vez - atalhou Willie, rapidamente. - Não deixe de voltar.
- Até logo, Mary - disse Moray.
Pela primeira vez, desde a saída do hotel, ela o fitou; ofegava e tinha os olhos húmidos. Permaneceu muda, absolutamente muda. Mas no seu olhar firme pairava algo intenso. Ele reparou que ela já não segurava na mão o pequeno buque de campainhas-azuis: prendera-as na blusa, junto ao coração.
CAPÍTULO QUATRO
NO fim da semana subsequente, Moray foi bafejado pela sorte. Por especial deferência do registrador do protocolo, foi removido do departamento de externos da Enfermaria, e nomeado, por um mês, assistente interno das enfermarias do Professor Drummond, o que naturalmente significava sua mudança do miserável alojamento onde vivia para a residência no próprio hospital até os exames finais. Foi o Professor Drummond que, após ouvir Moray interrogar um paciente, certa vez observara, embora um tanto secamente:
- Você irá longe, rapaz. Tem um jeito especial para lidar com o doente; o melhor que ainda vi num estudante.
Além disso, Drummond era um dos examinadores de Medicina Clínica - fato esse significativo, que não escapou a Moray, e do qual ele pretendia tirar o máximo proveito durante as quatro semanas subsequentes. Estava sempre apostos e era assíduo, achava-se disponível a qualquer momento, era um demónio no trabalho, uma "peça" indefectível na enfermaria. Para um rapaz sempre pronto e sôfrego por trabalhar, um futuro como esse não oferecia dificuldades. Mas, em certo sentido, causava a Moray um indizível aborrecimento: a ausência de saídas com tempo suficiente para fazer a viagem de Ardfillan.
Desde o instante da partida, levada a efeito, após o regresso de Gairsay, forças estranhas vinham operando em sua alma absorta e ambiciosa. O último olhar de Mary, tão intensamente eloquente, golpeara-o como uma seta pontiaguda. Não podia fugir à visão de seu rostinho tenso, nem tampouco - e isto era ainda mais pressago - pretendia fugir. A despeito de todas as precauções, em momentos fragmentários do seu dia, fosse na enfermaria ou na sala de exames, pilhava-se a olhar distraidamente no espaço. Era a ela que via, em toda a sua doçura e simplicidade; e então subjugava-o um desejo de vê-la - o desejo de receber um sorriso dela, de ser reconhecido como seu amigo, pois até ali não se permitira recorrer a uma palavra mais forte ou comprometedora.
Alimentara a esperança de receber notícias dela ou do pai, talvez outro convite que, embora não pudesse aceitar, lhe apresentasse todavia uma oportunidade de tornar a entrar em contacto com a família Douglas. Por que não lhe escreviam? Como todas as atenções tinham partido deles, não queria impor-lhes sua presença sem ter antes a certeza de que seria bem-vindo. Devia certamente fazer algo... algo que aclarasse isso... que aclarasse essa incerteza. Finalmente, dez dias decorridos, e quando atingira um estado de considerável tensão, um cartão-postal, com vista de Ardfillan, foi-lhe entregue no hospital. O recado era breve:
Caro David,
Desejo-lhe saúde. Li mais coisas sobre a África. Por aqui tem havido algumas tropelias. Quando vem visitar nos? Tenho sentido falta de você.
Seu sempre, Willie
No mesmo dia, ao encerrar o plantão noturno, Moray foi à sala anexa e telefonou para Ardfillan. Após alguma demora, ligaram-no para o armazém de Douglas. Pelo fio que zumbia chegou-lhe a voz de tia Minnie.
- Fala David Moray - disse ele. - Recebi um lindo cartão de Willie, e pensei em telefonar para saber como vão passando.
Houve uma ligeira pausa, porém bem acentuada.
- Vamos muito bem, obrigada.
A frialdade do tom sobressaltou-o. Depois de alguma hesitação, prosseguiu:
- Tenho aqui outro encargo que me traz bastante ocupado: do contrário, teria telefonado antes.
Não veio resposta. Ele insistiu:
- Willie está aí? Eu gostaria de agradecer-lhe o cartão.
- Willie está estudando. Acho que não devo interrompê-lo.
- E Mary? - atirou Moray, quase em desespero de causa. - Gostaria de falar um pouco com ela.
- Mary saiu. com o noivo. Ultimamente esteve um pouco adoentada, mas agora já está quase boa. Deverá voltar muito tarde.
Agora foi ele que ficou calado. Depois disse, muito constrangido:
- Bem... Quero que lhe diga que telefonei... e que lhe mando muitas lembranças.
Podia ouvi-la resfolegando no aparelho. As palavras de tia Minnie
saíram-lhe precipitadas, como se ela as achasse difíceis de dizer, e entretanto precisasse botá-las para fora.
- Não posso encarregar-me de transmitir esse recado, e espero que o senhor não o repita. Além disso, Mr. Moray, embora eu não tenha o menor desejo de ofendê-lo, será melhor para todos, inclusive para o senhor mesmo, se, daqui por diante, evitar impor-nos sua presença nesta casa.
O fone do outro lado da linha desceu com um estalido. Moray pendurou lentamente o seu e saiu; piscava os olhos, como se tivesse recebido uma bofetada. No que foi que errara? Teria acaso imposto sua presença à família Douglas? Que fizera para merecer uma repulsa tão inesperada e dolorosa? De volta à sala, reservada ao assistente interno, no fim do corredor, sentou-se à escrivaninha e tentou encontrar uma explicação.
A tia nunca o acolhera favoravelmente, e devido às suas frequentes dores de cabeça, causadas, segundo ele suspeitava, por uma nefrite crónica, tinha génio irascível. Todavia, a causa devia ser mais profunda - sua dedicação a Stoddart, combinada com a súbita aversão que este aparentemente desenvolvera para com ele. Assim raciocinando, embora desanimadamente, não podia entretanto acreditar que Mary partilhasse daquela abrupta rejeição. Levado pelo impulso, apanhou na gaveta uma folha do receituário e escreveu-lhe uma breve carta, perguntando se não haveria uma oportunidade de se encontrarem. Nessa noite, como estivesse no plantão de pronto-socorro, não podia sair do hospital nem por um instante, mas conseguiu que um dos enfermeiros-aspirantes saísse a fim de postá-la.
Nos dias subsequentes, esperou resposta com crescente impaciência e ansiedade. Estava quase desistindo, quando, pelo fim da semana, a mesma chegou.
Caro David,
Quinta-feira, dia 9, irei a Winton com titia fazer umas compras. Se você puder me esperar perto do relógio da estação de Calcedônia, mais ou menos às seis horas, creio poder ir encontrá-lo ali, mas apenas por meia hora, pois devo tomar o trem das seis e meia para voltar. Espero que esteja passando bem e que não trabalhe demais.
Mary
P. S. - Willie espera que você tenha recebido o cartão-postal que lhe mandou.
A carta era fria como um horário de estrada de ferro; entretanto, debaixo da frieza, fluía uma corrente subterrânea que o agitou profundamente. A ausência daquela vivacidade que ela em pessoa demonstrara, que em verdade acentuara tudo quanto ela fizera quando em sua companhia, foi-lhe uma evidência dolorosa. Mas ia vê-la na próxima quinta-feira. Isto, pelo menos, já era uma vantagem.
Quando a quinta-feira chegou, seus planos já estavam preparados : combinara com Kerr, outro assistente interno, para que este fizesse duas horas de plantão, à tardinha. O Professor Drummond nunca chegava antes das oito, e a sorte ajudando, tudo correria bem. A tarde esfriou, e um nevoeiro caiu sobre a cidade, quando, saindo do hospital, ele tomou o bonde amarelo de Eldongrove. Receando chegar tarde, muito antes da hora indicada ele se achava na estação de Calcedônia, debaixo do grande relógio central. A hora era de atropelo, e sob a alta abóbada de vidro, impenetravelmente revestida do pó dos anos, multidões precipitavam-se para os trens locais. O lugar tresandava a vapor, nevoeiro e fumaça sulfúrea, reboava com os apitos estridentes das locomotivas que partiam. Das plataformas subterrâneas do "nível inferior", uma fumaça envenada subia em rolos serpentinos, como se proviesse do próprio inferno.
O relógio bateu seis horas. Depois de esquadrinhar centenas de rostos estranhos, Moray finalmente a viu. O coração batia-lhe ao vê-la aproximar-se carregada de embrulhos, seu aspecto inesperadamente reduzido e desprotegido entre a multidão que arremetia. Vinha vestida num costume castanho-escuro, de jaqueta curta com uma pequena gola de pele, e um chapeuzinho, também castanho.
Coisa alguma lhe assentaria melhor. Nunca a vira vestida com tal aprumo. Estava de uma distinção nunca antes suspeitada, e de repente ele começou a cobiçá-la.
- Mary!
E já a aliviava dos embrulhos, desenrolando os barbantes de seus pequenos dedos enluvados. Ela sorriu-lhe um tanto languidamente, pois parecia fatigada. O nevoeiro fuliginoso manchara-lhe as faces, pondo-lhe uma leve sombra sob os olhos.
- Então, conseguiu escapulir?
- Sim - disse ele, fitando-a. Houve entre eles uma pausa, depois ele acrescentou: - Esteve fazendo compras?
- Precisava comprar algumas coisas. Para a tia Minnie foi um verdadeiro cavalo de batalha. - Esforçava-se para falar com ligeireza. - Agora foi visitar uma amiga... Não fosse isso, e eu não poderia ter vindo.
- Não pode ficar mais tempo?
Ela sacudiu a cabeça, baixando os olhos.
- Estão à minha espera... em Ardfillan.
Haveria em sua resposta uma sugestão de que era vigiada? Pelo sim, pelo não, o seu ar fatigado perturbou-o, bem como o seu tom desatento, o modo pelo qual hesitava olhá-lo nos olhos.
- Parece que está precisando de uma xícara de chá. Vamos entrar ali?
E ele apontou com algum receio para o restaurante que, inundado de luz e atopetado até à entrada, tinha bem pouca semelhança com uma tranquila sala de lanche de Craigdoran. Ela, porém, já sacudia negativamente a cabeça.
- Tomei chá com titia no Fraser.
Ele sabia que aquele era o maior empório de móveis da região. O sangue afluiu-lhe à cabeça.
- Então saiamos daqui. Saiamos para fora deste horrível atropelo. Vamos dar um passeio lá fora.
Saíram pela porta principal e seguiram pela rua dos fundos, que conduzia à Praça Argyle e à ponta extrema da estação. O nevoeiro adensava-se, girando em torno deles, borrando as lâmpadas da rua e amortecendo o rumor do tráfego. Parecia que ambos caminhavam num mundo só deles; ele porém não a tocava, sequer ousava tomar-lhe o braço. Até mesmo as palavras que dizia eram guindadas, formais, sem a menor significação.
- Como vão os estudos? - perguntou ela.
- Vão bem... creio. E você? Em casa vai tudo bem?
- Muito bem, obrigada.
- E Walter?
Ela não respondeu imediatamente. Depois, como resolvida a revelar e explicar, de modo a não deixar a menor dúvida:
- Ficou transtornado, mas agora está melhor... Veja você, quis marcar a data do nosso casamento... Achei que era cedo demais... Preferi esperar um pouco... Mas agora está tudo assentado; será a primeiro de julho...
Seguiu-se uma longa pausa. "Primeiro de julho", repetiu ele surdamente; faltavam apenas três semanas!
- E sente-se feliz com isso?
- Sim - opinou ela com toda a naturalidade, com palavras que se diria terem sido inoculadas nela por alguém. - O certo é as pessoas jovens assentarem logo a vida e acostumarem-se uma com a outra. Walter é muito bom, e dará um bom marido. Além disso... - aqui hesitou ligeiramente, mas logo prosseguiu: - As relações com que conta na cidade ajudarão nos negócios. Meu pai é que não vai muito bem nestes últimos tempos.
Nisto, umas gotas enormes caíram sobre eles, e dentro em pouco desatava uma chuva torrencial. Procuraram abrigo no pórtico de uma loja fechada.
- Acredite que lhe desejo a maior felicidade, Mary.
- Também eu a você, David.
O pórtico estava completamente às escuras. Ele não podia vê-la, mas sentia-a com todos os sentidos, junto de si. Ouvia-lhe a respiração tranquila mas rápida, o cheiro de sua pele molhada chegava-lhe às narinas. Uma horrível fraqueza o invadiu, sua boca ficou seca, e as juntas se lhe afrouxaram tanto, que mal podia ter-se em pé.
- Não posso perder o trem - disse ela, quase num sopro.
Regressaram à estação. Faltava apenas um minuto para a partida. O trem de Craigdoran já estava encostado na plataforma. Ele ajudou-a a encontrar um assento no canto de um compartimento de terceira classe. Quando desceu para a plataforma, ela abriu a vidraça. Um apito estridulou, e a locomotiva soltou uma golfada sibilante de fumaça. Ela inclinou-se para fora. Estava medonhamente pálida. A chuva fizera-lhe escorrer a mancha do rosto, aglutinara sua golinha de pele... As pupilas se lhe dilataram, mais escuras... Uma veiazinha do pescoço latejava-lhe freneticamente.
- Então, adeus, David. - Sua voz tremia.
- Adeus... Mary. - A dor no peito era-lhe intolerável. Ela o deixava para sempre; nunca mais voltaria a vê-la.
Mas quando o trem começou a rodar, os dois juntos, num movimento instintivo, irresponsável, predestinado, estenderam os braços um para o outro. Abraçaram-se estreitamente, cegamente, apaixonadamente, e seus lábios se encontraram num beijo alucinado, delirante, incomparável. Como um ébrio, quando o trem, no fim da plataforma, acelerou a marcha, ele saltou do estribo, cambaleou, quase caiu. Ainda debruçada na janela, Mary foi carregada para a escuridão do túnel. Cheio de alegria, o coração de Moray palpitava loucamente. Lágrimas se lhe formavam sob as pálpebras, e, para sua maior consternação, agora lhe escorriam pelas faces abaixo.
CAPÍTULO CINCO
Subitamente, como de uma grande distância, veio-lhe a lembrança de que seu chefe devia vir às oito horas para realizar uma punção lombar num paciente que chegara naquela tarde à enfermaria. Precisava ir correndo para o hospital a fim de render o assistente Kerr. Precipitando-se da estação para dentro do nevoeiro, teve a sorte de saltar para um dos bondes de Eldongrove, o qual, embora de marcha bastante dificultosa, conduziu-o de volta em tempo hábil. Mas de que maneira passou as duas horas seguintes - isso é coisa que jamais pôde saber. Sua fala e movimentos eram automáticos, mal tinha consciência de sua própria presença na enfermaria. Uma ou duas vezes percebeu que Drummond o olhava intrigado sem contudo fazer nenhum comentário, até que afinal, nas proximidades das dez horas, pôde enfim voltar para seu quarto e dar vazão aos sentimentos.
Estava apaixonado, e com o êxtase do beijo dela que ainda perdurava em seus lábios, sabia que ela também o amava. Era, aquela, uma eventualidade que jamais, nem sequer remotamente, entrara em sua cabeça. Todos os pensamentos, todas as energias e todos os esforços, se lhe haviam concentrado exclusivamente em um único objetivo: sua carreira. O que queria era elevar-se do charco da pobreza e conquistar na vida um êxito deslumbrante. Bem, pensava ele, cheio de emoção, se podia fazer isso sozinho, por que não poderia fazê-lo com ela, estimulado e envigorado por alguém que, a despeito de sua modesta condição social, possuía todas as qualidades
da companheira perfeita? Não podia perdê-la; a só ideia de que isso pudesse acontecer fazia-o encolher-se como diante da ameaça de morte repentina.
Franziu o cenho; que devia fazer? A situação em que ela estava, com data marcada para o casamento dali a três semanas, exigia ação imediata. Suponha-se que, por algum equívoco, ele não pudesse impedi-lo. A ideia de Walter, esforçadamente exato, a exigir os plenos recursos de seus direitos conjugais até ao máximo limite, enchiam-no de horror. Isso bastava para enfernizá-lo. Devia escrever a Mary, escrever imediatamente, mandar a carta por via expressa...
De repente, ao estender a mão para a escrivaninha em busca de papel, o telefone do Pronto-Socorro tilintou. com uma exclamação de impaciência apanhou o receptor. Macdonald, telefonista noturno do quadro de distribuição, estava no aparelho:
- Mr. Moray...
- Ao diabo, Mac... que é? Outro alarme falso?
- Chamado pessoal para o senhor... vou ligar.
Fez-se um zumbido na linha. E logo a seguir:
- David...
Moray susteve o fôlego.
- Mary, é realmente você?
A voz chegava-lhe contida, mas intensa.
- Vim ao armazém... os outros estão dormindo, estou às escuras ... mas precisava falar com você... Querido David, estou tão feliz...
Num relance, uma doce visão lhe apareceu: Mary, vestida de camisola e de chinelos, na escuridão do armazém...
- Também eu, minha querida.
- Desde o primeiro minuto em Craigdoran... quando o vi no espelho... eu sabia, David. E ao pensar que você não me ligava, meu coração quase se partiu.
- Mas você sabe que ligo. Que sou louco por você.
Podia ouvir-lhe a suave e lenta respiração, mais excitante do que qualquer palavra que ela pudesse proferir.
- Não posso demorar-me, querido David. Apenas queria que você soubesse que jamais me casarei com Walter. Nunca, nunca... Nunca o quis. Deixei-me levar por conselhos alheios. Depois, quando julguei que você não se importava comigo... Mas agora direi a ele... Farei isso logo de manhã cedo...
Ele porém não podia consentir que ela enfrentasse sozinha a situação.
- Irei com você, Mary. vou pedir licença a Drummond.
- Não, David - disse ela, peremptória. - Há os exames. Isso é o que importa... para você terminar. Depois dos exames, venha diretamente para cá. Estarei à sua espera... - E hesitou: - Mas... mas se tiver um minutinho disponível, poderá me escrever nesse intervalo.
- Sim, Mary: escreverei. Até já comecei uma carta...
- Não posso esperar até recebê-la. Agora tenho de ir. Boa noite, querido David.
O fone foi recolocado no gancho. Agora, ela estaria galgando a escada da casa adormecida, rumo a seu quarto, pegado ao de Willie. Apanhando pena e papel, ele escreveu-lhe apressadamente uma longa e fervorosa carta; depois, despindo-se como em transe, atirou-se no leito.
Na manhã seguinte, como que inspirado, redobrou de esforços para o exame final. Sob o acicate desse supremo esforço, o tempo voava. Quando chegou o dia da prova, entrou na Sala Eldon, tenso mas confiante, e tomou seu lugar numa das carteiras. Distribuíram-se os primeiros papéis, e ele viu, num relance, que as perguntas iam-lhe a calhar. Começou a escrever sem levantar o olhar uma só vez, cobriu páginas e páginas com sua escrita legível e fluente.
Nos três dias subsequentes, nas idas e vindas entre o hospital e a Universidade, ocupava sempre a mesma carteira, decidido a desenvolver o máximo esforço, não só por ele, mas também por ela.
Depois, tiveram início os exames clínicos. Em medicina, diagnosticou o caso no mesmo instante: tratava-se de bronquectasia com abscesso cerebral secundário. Saíra-se bem, pensava. No último dia dos exames, realizou-se a prova oral. Drummond, sentado com o velho Murdo Macleish, mestre-régio de Ginecologia, conhecido como "Touro Escocês", e com Purvis, o examinador externo, fez-lhe um gesto amistoso, observando para os colegas:
- Esse é o sujeito que tem jeito para lidar com os pacientes...
- É mais que isso - disse Purvis, dando uma olhadela no diagnóstico de Moray.
Começaram as perguntas, e Moray - fluente, pronto a concordar, a sorrir com respeito, e, sempre, sempre, com deferência - sabia que estava dando o máximo de si. Mas o "Touro" atormentava-o. Essa personagem formidanda, a um tempo terror e amparo de gerações de estudantes escoceses, era quase lendária graças à sua brutal franqueza e humor obsceno. Na aula inaugural do ano letivo, costumava chamar para a plataforma algum rapaz mais acanhado, e, perante
toda a classe, atirando-lhe um toco de giz e apontando para o quadro-negro com um sorriso escarninho, ordenar-lhe, nos termos mais grosseiros, que fizesse uma representação pictórica das partes íntimas da mulher. Agora, porém, não falava muito, mas observava atentamente o examinando, com um olhar desconfiado nos olhinhos vermelhos. Terminado o exame oral, disse Purvis com um sorriso:
- Creio que não é preciso prendê-lo por mais tempo. - E quando Moray saiu, fechando a porta atrás de si, acrescentou: - Um ótimo rapaz.
O "Touro" sacudiu-se com irritação.
- Ótimo, com efeito - resmungou. - Mas embusteiro!
Os dois outros riram-se. Porque era idoso, ninguém levava muito a sério o velho Murdo.
Os resultados seriam afixados no sábado de manhã. Nesse dia, ao subir a comprida encosta em direção à Universidade, toda a sensação de segurança o abandonou. Enganara-se; não se saíra bem; havia malogrado. Quase não se atrevia a aproximar-se do quadro de avisos, junto à arcada principal. Mas o seu nome, junto com dois outros, encabeçava a lista. Passara com menção honrosa.
Sentiu-se desmaiar. Depois de tantos anos de luta abnegada, o triunfo daquele instante era inacreditável. Ainda mais o era, porque sabia que iria em breve reparti-lo com ela. Sem esperar pelas congratulações dos que se aglomeravam junto ao quadro, foi correndo para a filial do correio no sopé do monte Gilmore e passou-lhe um telegrama: Chegarei Ardfillan 5 e 30 tarde de hoje.
Esperava que, àquela hora, já ela tivesse regressado de Craigdoran. Efetivamente, quando ele chegou, ela estava na estação, à sua espera. Rápido, rápido, os olhos cintilantes, um tanto pálida, porém mais linda do que antes, avançou e, ofegante, alheia às outras pessoas que se achavam na plataforma, estendeu-lhe os lábios. Se naqueles últimos dias atropelados ele houvesse esquecido a frescura tépida de seu beijo, agora a renovava. Ao saírem da estação em caminho de casa, ele ainda lhe segurava a mão. Subjugados, nenhum deles pronunciara até ali uma única palavra inteligível. Moray entretanto percebeu que ela não ousava fazer a pergunta que mais a interessava; e embora tivesse planejado um longo e sensacional relato de seu bom êxito, disse simplesmente, humildemente, com o olhar posto nela:
- Passei, Mary... um dos primeiros da lista, com menção honrosa.
Súbito ela apertou-lhe nervosamente o braço com os dedos, e disse numa voz estrangulada de emoção:
- Eu já sabia que venceria, David querido... E estou contente, tão contente porque você passou... Agora podemos enfrentar juntos o que vier.
Ele inclinou-se para ela, preocupado.
- Houve alguma dificuldade para você aqui?
- Bem, não foi muito fácil. - E adoçou as palavras, erguendo para ele um olhar repleto de ternura. - Quando fui conversar com Walter no princípio ele pensou que eu estava brincando. Não podia crer no que ouvia, isto é, que alguma mulher o rejeitasse. Quando descobriu que eu era sincera, não foi... nada amável. Depois seus pais foram conversar com papai... e aí também foi ruim... - E sorrindo, constrangida: - Disseram-me uma porção de coisas feias...
- Oh Deus - gemeu ele. - Pensar que você teve de sofrer tudo isso e eu não estar aqui! Gostaria de quebrar o pescoço daquele sujeito!
- Não - disse ela, gravemente. - Creio que a culpada fui eu. Mas só posso agradecer a Deus que me poupou o horror de entrar para aquela família... - e, encostando-se a ele - e de ter conhecido você.
- E eu a você, Mary.
- Isso basta - disse ela suspirando. - Nada mais importa.
- Mas sua família não a apoiou?
- Sim, de certo modo - disse ela. - Mas, com exceção de Willie, não ficou muito satisfeita com o sucedido... Seja como for, aqui estamos; e acho melhor falarmos primeiro com papai.
Entrando por uma porta que abria para o pátio, Mary o conduziu para o interior da padaria. O lugar era baixo e escuro, muito quente, graças a dois fornos chapeados de ferro; e a massa fresca, de farinha levedada, tinha um cheiro adocicado de mel. Douglas e seu ajudante, John Donaldson, desenfornavam a pesada prancha coberta de duplas formas de pães escoceses, e, virando-os com a crosta escura para cima, enfileiravam-nos na prateleira. O padeiro estava em mangas de camisa, seu avental enfarinhado caía-lhe até aos pés calçados nuns velhos sapatos brancos de lona. Por cima do ombro viu Moray que entrava, mas continuou a pôr os pães em fila; depois, despindo lentamente o avental, aproximou-se.
- Então é você mesmo... - disse ele estendendo a mão sem sorrir.
- Pai - explodiu Mary - David passou no exame com menção honrosa; foi dos primeiros classificados.
- Então agora é doutor... Bem, já é alguma vantagem.
E, precedendo-os para fora da padaria, conduziu-os para a sala da frente do andar de cima, onde Willie fazia suas lições na mesa
vazia e tia Minnie tricotava perto da janela. O rapazinho deu a Moray um breve sorriso de boas-vindas, mas a tia, de carranca fechada sobre as agulhas lampejantes, nem ao menos levantou os olhos.
- Sente-se, homem, sente-se - disse o padeiro. - Tomamos chá mais cedo do que costumamos... mas... talvez depois, se você tiver fome, Mary lhe dê algo de comer.
David sentou-se numa rija cadeira junto à mesa; Mary puxou outra e sentou-se a seu lado.
- Saia da sala, Willie - disse a tia, espetando as agulhas no tricô e brindando Moray com um frio olhar perscrutador. - Está ouvindo, Willie?
Willie saiu.
- David, é preciso que você compreenda - começou o padeiro - que isto foi um choque para nós...
- E para todo mundo - atalhou tia Minnie, sacudindo a cabeça com indignação. - A cidade inteira não fala de outra coisa. Foi um verdadeiro escândalo, uma desgraça!
- E colocou-nos numa situação muito difícil - prosseguiu Douglas. - Minha filha deu sua palavra a um homem digno, bem relacionado e muito respeitado na cidade. Não estava apenas noiva, mas já de casamento marcado... quando, de repente, sem dizer água vai, rompe com tudo, graças a um perfeito desconhecido...
- Mas havia uma boa razão para isso, senhor: Mary e eu nos amamos.
- Amam-se! - exclamou a tia num tom significativo. - Antes de você aparecer aqui naquela abençoada motocicleta, feito um Lochinvari.1 mal acabado, ela amava Walter...
- Absolutamente. - E Moray sentiu a mão de Mary procurar a dele por debaixo da mesa. - Nunca o amou. E estou convencido de que nunca seria feliz com esse casamento. Disse o senhor que Stoddart é um homem digno. Acho-o um burro convencido, sem sensibilidade e dado à ostentação.
- Basta! - atalhou Douglas com severidade. - Pode lá ter as suas esquisitices... mas todos sabemos que é bastante sólido por dentro.
- E isto não sabemos se você é - lançou tia Minnie.
- Sinto muito a má opinião que fazem de mim - e Moray olhou suplicante para a velha. - Espero que mais tarde venham a pensar
1. Herói do poema Mormion, de Walter Scott. - N. T.
de outra maneira. Esta não é a primeira vez que se rompe um noivado. Antes tarde do que nunca.
- Certo - murmurou Mary. - Jamais quis casar-me com Walter.
- Então por que disse que queria, sua idiota? Perversa! Agora todos os Stoddarts estão contra nós! Vão odiar-nos! E você sabe o que isso significa para seu pai. --
- Sim, a perspectiva não é nada bonita... e quanto menos se falar nela, tanto melhor.
- Mas eu falo, James. - E tia Minnie voltou-se para Moray. - Você pode pensar que aqui conosco tudo é muito fácil, Mas não é. Longe disso. com todas essas sociedades de pão feito a máquina e de caminhões de entrega alvoroçando o interior (isso, para não falar das alterações que teremos de fazer para cumprir nova lei, relativa às padarias), meu irmão vem tendo um ano muito difícil, e sua saúde não está para que se diga. E Walter, por intermédio do pai, prometeu solenemente...
- Basta, Minnie, basta - disse Douglas levantando a mão. - Quanto menos disser, tanto mais fácil de concertar. Sempre vivi de pé nas minhas duas pernas, e, com a ajuda da Providência, espero assim continuar.
Fez-se um silêncio, e Moray, apertando a mão de Mary, dirigiu-se ao padeiro. Nunca se mostrara a uma luz tão favorável: seu rosto moço e inteligente irradiava sentimento e sinceridade.
- Compreendo que lhe causei bastante incómodo, senhor... e grande mágoa. Sinto muito, acredite. Mas há coisas que não se podem evitar... como o raio, por exemplo... quando ele fere a gente. Foi isso o que aconteceu entre mim e Mary. - E voltando-se a meio para tia Minnie: - Agora não me tem em grande conta, mas hei de lhe mostrar... que não se arrependerá se me aceitar como genro. Tenho um diploma, e um bom diploma. Arranjo emprego num abrir e fechar de olhos, e dentro em pouco terei uma clínica de primeira ordem. Tudo quanto desejo é ter Mary em minha companhia, e acho que ela também deseja isso. - E sorriu a cada um com aquele seu sorriso tímido, sedutor e convincente.
Fez-se uma pausa. A despeito de sua resolução de ficar firme, o padeiro não pôde deixar de sacudir a cabeça em sinal de aprovação.
- Muito bem falado, David. E agora que fez o pedido, confesso que desde o princípio... a exemplo de minha filha... - e sorriu para Mary - tive muita simpatia por você e por tudo quanto você fez. E, como o que tem de ser tem força, concordo em que fique noivo dela. Quanto ao casamento, deve haver um pequeno intervalo
um intervalo decente, para evitar escândalo na cidade. Arranje um emprego por três ou quatro meses, depois veremos. Que diz a isso, Minnie?
- Bem... - disse a tia contemporizando. - Não adianta chorar porque o leite se entornou... - Mas até ela amansara, impressionada com a fala comovente de Moray. - Talvez você tenha razão ... não se deve ser muito severo com eles.
- Oh, obrigada, pai... obrigada, tia Minnie - e Mary ficou em pé de um salto e foi beijar os dois. Tinha as faces coradas, uma madeixa de cabelo solta na testa. Atirou-a para trás, triunfalmente: - Eu sabia que tudo se arranjaria. E agora, tiazinha, posso servir alguma coisa a David?
- Traga as bolachas e o queijo. E um pouco daquele bolo de cereja da última fornada. Sei que ele gosta. - E lançou a Moray um olhar de esguelha. - Comeu seis pedaços na última vez que esteve aqui...
- Só mais uma coisa, pai - rogou Mary com uma expressão angelical. - David pode passar a noite aqui? Consinta, sim? Tenho-o visto tão pouco ultimamente!
- Sim, mas só esta noite. Amanhã que ele vá procurar emprego. - E uma ideia golpeou o bom padeiro, que acrescentou severamente. - E se está pensando em sair a passeio hoje de noite, Willie terá de acompanhá-la.
Andando rápido entre a cozinha e a sala, Mary colocou à frente de Moray uma pequena refeição escolhida; mas em face da magia daquele dia esplêndido, a comida era uma coisa sórdida e faltava-lhe apetite. Depois do chá, Mary pôs o chapéu e o manto. Qualquer movimento que ela fizesse, a Moray se lhe afigurava especial e significativo, precioso e único, adoravelmente feminino. Afinal saíram e, de braços dados no escuro, foram caminhando ao longo da Esplanada, acompanhados por Willie. O rapazinho, excitado pela reviravolta dos acontecimentos, estava com disposição para tagarelar, e fazia toda a espécie de perguntas a Moray, que não tinha a coragem de dizer que ele estava atrapalhando. Mary, inflamada por igual opinião, foi mais expedita.
- Willie, meu bem - disse com doçura ao chegarem ao fim da Esplanada - agora me lembro que esqueci de comprar os novelos listados de preto, que tia Minnie quer para amanhã. Aqui estão três pence. Vá correndo à loja de McKellar, compre dois pence de lã, e um pence de chocolate para você. Seja bonzinho, Willie. David e eu vamo-nos sentar ali até você voltar.
Quando Willie saiu, os dois entraram no abrigo de madeira, deserto àquela hora. Sentados num dos cantos, protegidos contra o vento, abraçaram-se estreitamente, o pulso da maré se confundindo com o pulsar de seus corações. As ondas rolavam na praia, uma estrela cintilou invisível no alto do céu. Os lábios de Mary estavam secos e tépidos, e a inocência de seu beijo, todo ardor de paixão, comoveu-o como nunca.
- David, meu bem - murmurou ela, o rosto encostado no dele - sou tão feliz que até podia morrer. Amo-o tanto! É como se meu peito estivesse prestes a romper-se.
CAPÍTULO SEIS
A cerimónia de formatura realizou-se alguns dias depois. Logo que restituiu o capelo e a beca alugados, Moray pôs-se a procurar emprego. Pelo menos dois lugares de interno estavam à sua disposição na Enfermaria: bastava-lhe pedir. Mas ali o salário era apenas uma magra pitança, e ele tinha há muito resolvido não seguir .a estrada laboriosa das promoções académicas. Havia ainda outros cargos de assistente à disposição, especialmente em clínicas do interior, mas que ele recusou logo de início. Bem sabia que as clínicas rurais não olhavam para honrarias académicas: queriam jovens enérgicos que comessem qualquer coisa e que, sem o entrave de uma esposa, saíssem da cama a qualquer hora da noite para atender a uma parturiente. Não: estaria perdido numa situação dessas; mas tampouco aceitaria qualquer cargo de assistente-substituto, fosse em obra de dispensário ou num emprego fortuito de alguma companhia de navegação. Tudo rejeitou. No seu próprio interesse e no de Mary, precisava encontrar algo melhor. Esquadrinhou atentamente as colunas do Lancei e do Medicai Journal, investigou os anúncios dos jornais locais na sala de leitura da Biblioteca Pública Carnegie. Já quase morto de cansaço, afinal descobriu, numa modesta lista conjunta da coluna de "procura-se" do Winton Herald, o seguinte anúncio:
Procura-se para o Hospital Glenburn, Cranstoun, médico-residente. Salário anual £ 500 e residência sem mobília. Contrato a iniciar-se a 1." de janeiro. Dirigir-se ao Departamento da Ditretoria da Saúde Pública de Wintonshire.
Moray respirou prolongada e fundamente. Convinha-lhe, exatamente lhe convinha, menos a data para se iniciar no emprego; isso, porém, comparado a outras vantagens, era um pormenor sem importância. Conhecia o hospital, frequentemente o admirara em suas excursões de fim-de-semana. Situado numa agradável região ondulante, à distância de uma longa viagem de trem de Winton, era conhecido no lugar como "Hospital da Febre", pois em certa ocasião se dedicara exclusivamente a doenças infecciosas. Agora, entretanto, ocupava-se principalmente com o tratamento de crianças tuberculosas. Era pequeno, naturalmente: não mais do que quatro pavilhões isolados com mais ou menos sessenta leitos, um escritório central e laboratório, dependência de enfermeiras e uma bela portaria de tijolos vermelhos. Não podia haver nada de melhor: o salário era generoso, tinha casa à disposição; claro, desejavam um homem casado, e o laboratório lhe facultaria facilidades de pesquisa. Uma jóia de lugar, dizia e redizia com seus botões. Entretanto, sabia que a concorrência ia ser acirrada, em verdade assassina, e ao levantar-se do banco da sala de leitura, tinha o aspecto de alguém a caminho da batalha.
A campanha que daí em diante desenvolveu foi com efeito, pela sua expediência, sutileza e perícia consumadas, digna de ser registrada e honrada como o exemplo clássico da luta por um emprego. De seus professores universitários conseguiu testemunhos e cartas de recomendação; de Drummond, uma apresentação pessoal ao médico-chefe de Saúde Pública de Wintonshire, e, por intermédio do pai de Bryce, que era magistrado na cidade, uma lista completa dos membros da diretoria. Em primeiro lugar visitou o médico-chefe e, cuja atitude, embora isenta de compromisso, foi deveras agradável; depois, o secretário, que, como amigo e irmão maçónico do velho Bryce, foi indubitavelmente cordial. E à noite, começou discretamente a solicitar os votos de todos os membros da diretoria, em suas próprias casas. Aí, tudo correu bem; ele até foi apresentado às robustas mulheres desses abastados cidadãos, nas quais, mercê de uma prudente timidez, abriu tépidas fontes de simpatia maternal. Finalmente, filou condução numa carroça de entrega a caminho das cercanias do hospital, fez amizade com um médico, candidato à aposentadoria numa clínica particular, apertou a mão da religiosa e enfermeira-principal, e, depois de uma tentativa realmente difícil, conquistou completamente a atarracada e austera enfermeira-chefe, que o convidou para o chá. As dificuldades de seus tempos de estudante, o amor romântico por Mary Douglas, seu
diploma com menção honrosa - tudo nessa altura compunha uma narrativa modesta, todavia fluente. Na confortável salinha da matrona, em face das xícaras de chá - era um chá de primeira, observou ele, e o pão-de-ló delicioso, feito em casa - ela o escutava com crescente simpatia.
- Veremos o que se pode fazer - declarou afinal, avançando o busto que a goma endurecia ao ponto de estalar. - Pois se alguém tem influência sobre aquele comité de cabeça virada... o lugar verdadeiramente lhe pertence.
Moray murmurou seus agradecimentos.
- Agora vou-me, senhora. Já tomei grande parte de seu precioso tempo.
- Absolutamente. Como vai regressar para a cidade?
- Da mesma forma por que vim - disse ele, jogando de improviso uma cartada sugestiva. - A pé.
- Quer dizer que veio a pé desde Winton? Até aqui?
- Bem, para ser perfeitamente honesto, senhora - e sorriu confusamente, sedutoramente, olhando-a nos olhos - aconteceu que eu não tinha a passagem de trem... por isso também voltarei a pé.
- Nada disso, doutor. Nosso chofer o levará de volta. - E tocou a campainha. - Irmã, vá à portaria e chame Leckie.
E ele entrou na cidade no assento da frente da velha ambulância Argyle. Ao regressar, Leckie apresentou-se à enfermeira-chefe e observou:
- Espero que o Dr. Moray venha trabalhar conosco. Ê um rapaz muito simpático... e muito inteligente, palavra! Disse que, se o aceitarem, vai trabalhar até gastar os dedos.
Como resistir a um tal virtuose, mestre em acionar todas as alavancas da emoção? Uma semana depois seu nome aparecia na "lista breve" de dez candidatos, e na reunião de vinte e um de agosto da diretoria, era ele indicado por unanimidade.
Além de sugerir discretamente que tinha emprego à vista, Moray nada mais dissera em Ardfillan sobre as maravilhosas perspectivas que Glenburn lhe oferecia. E porque vivera muito tempo sozinho, era de sua natureza uma certa reserva; não só isso, mas tinha um medo horrível de não conseguir o emprego. Agora, entretanto, cheio de ânsia, preparava-se para as alegrias de uma revelação triunfal.
Preparou o plano com sua característica minuciosidade. Primeiro foi ter com Gilhouse - o vendedor de livros da Universidade, localizado no sopé de Fenner Hill - e vendeu todos os seus compêndios, e também o microscópio. Tendo entrevisto no laboratório de Glenburn
um excelente microscópio Zeiss de imersão em óleo, já não mais precisaria do seu velho Wright and Dobson de segunda mão. com uma boa soma no bolso, dirigiu-se pelo Parque Eldongrove para um bairro menos insalubre, e entrou na casa de penhores da esquina da Rua Blairhill, onde, nos últimos cinco anos, fora a contragosto um cliente ocasional. Agora, porém, a situação se invertera. com tempo de sobejo, e prudentemente rejeitando o brilhante suspeito que lhe queriam impingir, escolheu, entre os penhores não resgatados, um fino anel de ouro, onde se engastava uma bonita
água-marinha. Posto num estojo de couro vermelho, forrado de veludo, era extremamente belo, e, ainda melhor, legítimo. com a jóia no bolso, tomou emprestada a motocicleta de Bryce e saiu para Craigdoran. Chegou às onze da manhã.
- Mary - exclamou ele caminhando diretamente para a sala do restaurante e passando o braço em torno da cintura dela. - Feche o armazém. Agora mesmo. Já, já!
- Mas David... preciso esperar mais dois trens...
- Levem o diacho os trens... com os passageiros dentro... e toda a Companhia de Estrada de Ferro Norte-Britânica. Vai sair comigo já e já. E como está com a mão na massa, ponha uns doces e uns sanduíches numa sacola.
Ela o fitou meio risonha, meio em dúvida, todavia cônscia de algo que a obrigava sob a alegria da voz de Moray.
- Está bem - aquiesceu finalmente. - Acho que por esta vez não vou arruinar o pai, nem a companhia...
Dez minutos depois saíam de motocicleta. Ele tomou a estrada de Stirling, virou a leste para Reston, e, cerca de uma hora depois de rodear os limites de Cranstoun, foi parar a um quarto de milha de distância da várzea de Glenburn.
- É por aqui que eu costumava passear, Mary.
Confusa, vagamente perturbada, Mary não compreendia por que estavam ali; entretanto acompanhava-o obedientemente através da várzea. Alcançaram enfim a curva de grades ornamentais que cercavam o hospital. Aí ele parou, cônscio de que já não era mais possível avançar. Ambos espiaram através do bonito gradil pintado. O sol brilhava no recinto, algumas crianças de paletó vermelho estavam sentadas com uma enfermeira num banco próximo a um trecho de relvado, um passarinho preto chilreava num jasmineiro um pouco mais além...
- Que lugar encantador - exclamou Mary.
- Acha?
- E você não, David? Parece uma pintura.
- Então escute, Mary - disse ele puxando um fôlego profundo. - Isso aí é o Hospital Glenburn. Esses quatro edifícios entre as árvores são as enfermarias. Em frente, o edifício da administração. E mais adiante, com o jardim nos fundos, é a residência do médico superintendente. Nada mau, hein?
- A casa é linda - respondeu ela cismadoramente. - E que lindo jardim! Conhece o morador?
Sem responder, ele prosseguiu, já agora pálido e respirando mais depressa.
- O médico-superintendente é o único encarregado do hospital. Tem todas as facilidades de pesquisa no laboratório. Ganha quinhentas libras por ano, mais os legumes da horta e casa grátis - aquela casa ali, Mary, na qual é legitimamente autorizado a morar com sua legítima mulher... - A voz lhe saía alterada de emoção. - Mary... a partir de primeiro de janeiro, haverá ali um novo médico-superintendente. .. e esse médico se acha em frente de você!
CAPÍTULO SETE
A viagem de regresso foi bastante lenta, com uma larga volta por Overton, que os levaria, através de Carse of Lounden, ao longo da praia sul do lago Lomond, para os alagadiços de Glen Fruin. A estrada era notável, uma das mais belas da Escócia ocidental, mas Mary nada via... nada... nada... nem mesmo a majestosa crista de Ben Lomond, alteando-se sobre o lago cintilante. Muda de felicidade, ainda aturdida pelo maravilhoso milagre que ele operara por sua causa, fechava os olhos e abraçava-o com todo o amor e gratidão de seu coraçãozinho transbordante.
Ele também era feliz - como podia ser diferente? Estava excitado com o efeito do plano que tão cuidadosamente ideara e tão acertadamente realizara. Mas, justiça seja feita, recuperou a calma, não provocou elogios, seu ar de natural modéstia conservou-se imutável. Amava e quisera impressioná-la, menos para satisfazer o sentimento de sua própria importância do que para desejar proporcionar-lhe uma explosão de súbita alegria. Ao contrário de Walter, que, exigindo o máximo de adulação, espremia até à última gota de caldo de qualquer situação provável, ele detestava manifestações em causa própria. Isso era algo que ofendia seus sentimentos requintados,
causando-lhe um grande desconforto. E não tinha acaso outra surpresa reservada para ela?
Ao se abeirarem do cimo da colina que levava do lago a Glen Fruin, ele fez uma volta e saiu da estrada, dirigindo-se a um dos relvosos trilhos de carneiros que ziguezagueavam pelos alagadiços. Seguindo a vereda por um quarto de milha, afinal foi encostar junto a um barranco do rio, fundamente mergulhado em urzes e avencas, abrigado por um maciço de prateados vidoeiros. Lá embaixo o alagadiço se estendia a perder de vista; todo ouro e púrpura. Dali podia Mary avistar a montanha e o lago, e toda a cintilante paisagem que lhe parecia celestial e que ela interpretava à sua moda.
- Que lugar bonito, David.
- Bonito para comermos nosso lanche - disse ele, brincando. - Essas voltas todas devem ter-lhe despertado o apetite.
- Estou muito transtornada para poder comer.
Mas quando se sentaram e espalharam o lanche sobre uma toalha axadrezada, ele a fez comer o seu quinhão, tanto mais que, ampliando as instruções que ele lhe dera, Mary tinha trazido uma refeição deveras substancial. Além de pãezinhos e sanduíches, havia ovos cozidos, tomates de Clydeside e um rolo de salame, tudo acompanhado de uma garrafa grande da famosa água "mineral" local, a Cerveja Ferrosa Barr, para matar-lhes a sede. Ela lembrara-se até mesmo de trazer o batoque de madeira com o qual empurrou para dentro a bola de vidro do gargalo.
- Oh, David... - murmurava ela entre os bocados. - Aquela casa lindinha... Não me sai da cabeça... Espere só e há de ver como cuidarei de você naquela casinha...
- Precisamos de mobiliá-la - advertiu ele. - Mas há tempo até janeiro. Agora que estou colocado, arranjarei alguma clínica, ou coisa parecida, para os quatro meses que faltam; isso nos dará dinheiro suficiente para começar...
- David, meu bem... você pensa em tudo.
- Mas quase me esquecia de uma coisa. - E mergulhando a mão no bolso do paletó: - Aqui está, mocinha. Antes tarde do que nunca.
Observando-a enquanto ela abria o estojinho vermelho, nunca ele se sentira mais profundamente comovido. Completamente muda, Mary olhou o anel que, à sua própria semelhança, era simples, porém belo. Não o elogiou, não agradeceu... mas, voltando-se, olhou David nos olhos, exatamente como fizera depois daquele dia em Garsay, e, com uma voz trémula, que ele nunca mais haveria de esquecer, murmurou:
- Ponha-o no meu dedo, querido. - Depois, com um leve Suspiro,
estendeu-lhe os braços.
Deitaram-se nas macias avencas sob o cálido sol da tarde. Abelhas zumbiam debilmente entre os cardos floridos, uma cotovia cantou subindo para o azul, o perfume da orquídea e do tomilho agrestes enchia o ar. Vinha na distância o rumor de um galo silvestre levantando voo, depois o silêncio caiu, apenas perturbado pelo suave ondular do rio. A saia dela estava ligeiramente levantada e ele pôs-lhe a mão no joelho, que acariciou amorosamente. Mary tinha os lábios entreabertos, levemente inchados pelo sol e quase purpurinos na suave palidez do rosto. As pálpebras descidas, ocultando seus negros olhos de gazela, tinham um matiz azulado, e na tepidez dos braços dele, ela tremia toda sob dedos que se moviam para cima, indo pousar na lisa pele nua de suas coxas.
O coração batia-lhe tão forte na caixa do peito, que seu latejar lhe subia precipitadamente até aos ouvidos. Só mais um movimento caricioso, e Moray encontraria o que buscava. Desejava-a, entretanto temia. Então, encostada a ele, ela murmurou:
- Se você quiser... serei sua, meu bem.
O sol escondeu-se por detrás de uma nuvem, as abelhas cessaram de zumbir, um maçarico, girando em círculo, lançou na altura seu grito doloroso. Deitados, ambos se calaram, até que afinal ele disse humildemente.
- Magoei-a muito, Mary?
- David, meu bem... - e ela afundou a cabeça no seu peito. - Foi a dor mais deliciosa que senti na vida.
Quando afinal se levantaram e apanharam as coisas do piquenique, ele rodou devagar, um tanto tristonho e penalizado, tocado por um melancólico sentimento de remorso. Não teria ele sido precipitado, comprimindo tanta alegria em tempo tão breve, arrancando tão cedo os primeiros frutos da felicidade? Ela era tão jovem, tão inocente - uma nova onda de ternura o invadiu - não devia ele ter-se contido, ter esperado? Em verdade, não se precipitara, desde o início, apressado e desatento? Não... mil vezes não... e afastando a ideia de si, tirou a mão do volante para mais uma vez premir a macia coxa da amada.
- Agora sou toda sua, David.
E encostou-se a ele, rindo com brandura em seu ouvido. De sua parte, nada de tristeza ou lamentação! Estava renovada, confiante, mais viva do que nunca. Meio voltado, ele viu-lhe os olhos húmidos e brilhantes - nunca antes a vira tão feliz. Talvez ela sentisse a vaga
depressão que o acometia, e alegremente, ternamente, possessiva como uma mãe, deu-lhe novo ânimo.
Tinham chegado ao pico que sobranceava Ardfillan quando, repentinamente, a pesada nuvem que escurecia o sol abriu-se sobre eles numa chuva torrencial. Ele depressa manejou o freio e deslizou rapidamente colina abaixo. Num ápice, chegou ao armazém, não sem antes ficar completamente encharcado. Mary, que viera atrás, escapara à maior violência da chuva.
No primeiro andar insistiu para que Moray vestisse um terno do pai; ele porém se recusou. Disse que verdadeiramente não estava molhado, que havia um bom fogo na lareira e que logo ficaria enxuto. No fim, transigiram: ele calçou os chinelos de tapete do pai dela, e vestiu um velho paletó de mescla que Mary descobrira numa prateleira.
O armazém estava fechado e tia Minnie apareceu, seguida logo depois por Douglas. Sentaram-se os quatro para a refeição da noite - Willie estava ausente, passando o fim-de-semana no Acampamento da Brigada
Infanto-Juvenil, em Whistlefield. No início, à medida que se serviam as xícaras em silêncio, Moray sentia-se dolorosamente embaraçado, a si mesmo perguntando se alguma intangível prova de pecado, se alguma aura remanescente daqueles delirantes momentos de satisfação nos alagadiços, não seriam perceptíveis em Mary e nele próprio. Mary tinha as faces coradas, e as dele, sabia-o, estavam pálidas, e tia Minnie lançava alternados olhares suspeitosos ora para um, ora para outro. O padeiro também parecia singularmente reservado e mais observador que de costume.
Mas quando Mary pôs fim ao silêncio, a tensão geral afrouxou-se. Moray prometera deixá-la dar a notícia da sua nomeação como melhor lhe parecesse, e ela o fez com um brio e um senso dramático que de longe superou o seu relato da manhã.
Primeiro, exibiu o anel, que foi muito admirado, embora a tia, cheia de má vontade, resmungasse um aparte:
- Espero que esteja pago.
- Creio que não devemos nos apoquentar com isso, tiazinha querida - respondeu Mary bondosamente, com uma pontinha de superioridade.
Começou em seguida a descrever o hospital, pintando-o em cores ainda mais brilhantes do que a realidade e passando sem pressa para o clímax, que foi tremendo.
Seguiu-se uma longa pausa; depois Douglas disse, profundamente satisfeito:
- Quinhentas libras e casa para morar... e a horta de legumes... é ótimo, rapaz... é uma beleza, não há dúvida.
- Sem falar no laboratório e na oportunidade de pesquisa - atalhou Mary, rapidamente.
- Isso vai ser - e a tia franziu os lábios, sibilando de satisfação - vai ser fel e vinagre para os Stoddarts.
- Cale-se, Minnie. - E o padeiro estendeu a mão para Moray. - Meus parabéns, David. Se algum dia alimentei alguma dúvida a respeito de você e de tudo quanto se passou, agora ela já se foi, e só me resta pedir-lhe perdão. Você é um ótimo rapaz. Estou muito contente porque minha filha vai casar-se com você, e muito orgulhoso por tê-lo como genro. Agora, Minnie, não acha que isto pede uma comemoração?
- Que dúvida! - exclamou Minnie, afinal conquistada.
- Então desça depressa, Mary, vá ao armarinho dos fundos... a chave está na gaveta de cima... e traga uma garrafa do meu velho Glenlivet.
Trouxeram a garrafa, e o padeiro, utilizando-se de açúcar e limão, e com a devida atenção quanto às várias diluições do velho conhaque, fez para cada um dos presentes um excelente ponche. A bebida era cordial, mas chegou muito atrasada no que tangia a Moray. Antes de se recolher, sentiu durante todo o tempo a camisa que se lhe grudava à pele húmida. O ponche aquecera-lhe a cabeça, mas seus pés estavam enregelados. Ficou mais aliviado quando o convenceram a passar a noite ali, mas tremia quando se deitou; tirou a temperatura - mais de 38 graus de febre; sabia que apanhara um forte resfriado.
CAPÍTULO OITO
Moray passou uma noite agitada e febril, e quando despertou do breve sono no qual caíra pela madrugada, não teve a menor dificuldade em diagnosticar seu próprio caso: fora acometido de bronquite aguda. Tinha a respiração difícil e dolorosa; mesmo sem o estetoscópio, podia ouvir os roncos do próprio peito, e sua temperatura subira para quase 40 graus. Esperou com um elogiável autodomínio até quase sete horas, depois bateu na parede que o separava do quarto de Mary. Ouviu-a mexer-se, e ela em breve aparecia.
- Querido, você está doente... - exclamou consternada. - Passei metade da noite com medo de que tivesse apanhado um resfriado.
- Não é nada grave. Mas terei de ficar na cama alguns dias e não posso incomodá-los tanto tempo aqui. Melhor telefonar para o hospital.
- Isso não farei. - Ela tomou-lhe a mão. Estava tão quente que seu coração se apertou. - Ficará conosco neste mesmo quarto. Tratarei de você. Quem mais o faria? com efeito!
- Tem certeza, Mary? - Subitamente veio-lhe o desejo de que ela tratasse dele. Depois, que amolação para conseguir uma ambulância e voltar para a enfermaria na qualidade de paciente! - Será por poucos dias. Se não for grande incómodo, ficarei...
- Ficará, sim - disse ela com firmeza. - E agora... devo mandar chamar o médico?
- Não, não, claro que não... Eu mesmo receito... - E, apoiando-se sobre o cotovelo, escreveu duas prescrições. O esforço levou-o a tossir.
- É tudo quanto necessito, Mary. E de algumas eventuais bebidas quentes... E... de você - rematou, forçando um sorriso.
Estava pior do que imaginava. Ficou dez dias de cama, com febre alta e uma tosse dolorosa. Ela o tratava com dedicação inexcedível. Embora como enfermeira não adestrada, tinha um talento surpreendente. com tia Minnie, aplicava-lhe cataplasmas, fazia-lhe nutritivos - caldos de carne,
dava-lhe geléia de mocotó às colherinhas, arranjava-lhe a cama, exercia ao máximo a sua inteligência prática e sua perícia de dona de casa para aliviar-lhe o sofrimento. No auge da crise, quando foram necessários banhos de vapor, ficou toda a noite acordada, tratando dele. O deslocamento operado na casa foi naturalmente muito grande. Refeições fora de hora; sono perdido; os negócios da padaria perturbados; e Willie, de volta do acampamento, teve de ir lavrar a terra em companhia de Donaldson, o capataz. No fim da segunda semana, quando enfim ele se pôde levantar e sentar-se numa preguiçosa perto da janela, pediu, envergonhado, desculpas a Douglas, pelo incómodo que a todos dera.
- Nem mais uma palavra, David... - atalhou o padeiro. - Agora somos uma só família. - E sorrindo: - Ou é como se fosse...
Depois que o pai saiu, Mary aproximou-se dele e ajoelhou-se junto da cadeira, agarrando-lhe firmemente os joelhos.
- Nunca diga que foi um incómodo para nós, David. Que teria acontecido a mim se você não sarasse?
Os olhos dele encheram-se de lágrimas: estava ainda muito fraco.
- Que esposa perfeita você vai ser, Mary! Não pense que não sei o que fez por mim.
Dentro em pouco já podia sair, caminhar com ela pela Esplanada, primeiro devagar, depois com um passo mais ligeiro. Afinal declarou-se curado, pronto para procurar um lugar de substituto que o sustentasse nos quatro meses subsequentes. Sentia ainda uma pontada de lado que o preocupava, mas nada disse a Mary. Queixar-se agora seria uma pobre recompensa aos esforços conjuntos, visando o seu bem-estar. Entretanto, na segunda-feira seguinte, quando viajou para Winton a fim de deixar seu nome na Agência de Empregos para Médicos, sentiu no flanco uma dor aguda, e achou que seria prudente passar pela enfermaria e pedir a Drummond que auscultasse o peito.
Era surpreendentemente tarde quando chegou de volta a Ardfillan, e Mary, que servia a uma freguesa no balcão, imediatamente percebeu o desânimo que o invadia. Assim que se viu livre, aproximou-se dele e fitou-o.
- Não teve sorte, David?
Ele tentou sorrir, mas pouco adiantou.
- A verdade é que não pude ir à agência.
- Que é que não deu certo, meu bem? - ela perguntou depressa, pois viu que ele tinha algo a dizer.
Naquele instante a porta da padaria rangeu e uma criança entrou para comprar bolachas. Moray sentiu-se aliviado pela interrupção. Maldito incómodo tudo aquilo, e que maldito espeto estariam todos pensando que ele era!
- Então, David? - voltou ela a falar.
- É difícil de explicar, Mary... - disse com voz fraca. - Explicarei lá em cima...
Era hora de fechar. Ela correu as venezianas e apagou as luzes, depois subiu a seu encontro na sala do primeiro andar. Seu pai e tia Minnie já estavam lá. Moray não sabia como começar, como dizer o motivo de sua visita ao hospital. Curvado para a frente, os cotovelos fincados nos joelhos, olhava para o chão...
- Por isso, quando cheguei lá, o Professor Drummond me examinou ... me fez passar pelos raios X e parece que tenho indícios de pleurisia no pulmão esquerdo...
- Pleurisia!
- Está bem localizada - disse ele, evitando mencionar a insistência de Drummond de que a falta de tratamento causaria uma tuberculose.
Esforçando-se para disfarçar o desânimo da voz, acrescentou: - Parece que isso invalida qualquer possibilidade de um emprego de emergência.
- Que se deve fazer então? - perguntou Douglas, com um aspecto tristonho, enquanto Mary permanecia calada, as mãos entrelaçadas.
- Bem... eu podia ir para o campo... para algum lugar não muito longe...
- Não, David - interveio Mary nervosamente. - Não nos deixará. Será tratado aqui.
Ele a fitou, desanimado.
- Impor minha presença a vocês por mais dois meses? Impossível, Mary. Como ficar rondando por aqui sem fazer nada! Que amolação para vocês... e com todo esse horrível incómodo que já dei? vou arranjar emprego numa fazenda...
- Nenhum fazendeiro de juízo dará emprego a um homem doente - disse Douglas. - O doutor... o professor não receitou alguma coisa definida?
Fez-se uma pausa. Moray levantou a cabeça.
- Se querem saber... Drummond disse que preciso de uma viagem por mar... na qualidade de médico de bordo, naturalmente... Até insistiu em telefonar para a Kinnaird Line... tem conhecidos na diretoria...
Fez-se um silêncio mais prolongado. Finalmente o padeiro disse:
- Arre, que isso afinal tem algum sentido! E se trata de saúde, meu rapaz... Isso tem grande importância. Gostaríamos que ficasse conosco. Mas você melhoraria com o inverno que está chegando? Não, não. O conselho do professor é sadio. Conseguiu arranjar-lhe alguma coisa?
Moray sacudiu a cabeça a contragosto, dizendo que sim.
- Há um navio... o Pindari, que sai na próxima semana de Tail of the Bank... para Calcutá... Uma viagem redonda - ida e voltado sete semanas...
Seguiu-se outra pausa, depois Douglas refletiu:
- Uma viagem à índia. Lá tomará bastante sol!
- Tem vontade de ir? - perguntou-lhe a tia.
- Santo Deus, não! Desculpe, tia Minnie. Ê a última coisa que desejaria fazer. Mas a paga é boa, noventa libras ao todo! com isso poderíamos mobiliar nossa casa, Mary.
Naquela noite o assunto foi repisado e definitivamente assentado. Apesar da diferença de opiniões, até Mary finalmente cedeu ao
simples argumento do padeiro: a saúde antes de tudo; antes de qualquer outra consideração.
- De que serve você para qualquer pessoa - para Mary, para você mesmo ou para Glenburn - se não sarar? Deve ir, rapaz; e não se fala mais nisso.
Na terça-feira seguinte ele saiu com Mary para Greenoch. Era uma tarde húmida e ameaçadora. Ele não apenas parecia, mas em verdade estava doente, e atormentado pela mágoa da separação próxima. Ela também, que era no entanto corajosa e estava resolvida a não voltar atrás. Sob o chapéu de mescla felpuda que o vento revirava, o impermeável abotoado até ao queixo, seu rosto se plasmava numa decidida aceitação. O Pindari, chegado na véspera de Liverpool para receber uma carga de lãs e de máquinas para fábricas de tecidos, atracara no estuário, onde jazia encoberto por um denso nevoeiro. O vento varria as docas com lufadas de fazer cambalear um cristão, mas ela insistia em ir ao cais para despedir-se, a mão sobre a dele na alça da velha mala de couro, cujo peso ambos partilhavam. Enquanto a barcaça baixava e levantava aos trancos da forte maré, eles se abraçaram estreitamente, apaixonadamente, sob um céu cinzento e melancólico. A chuva, como lágrimas, corria pelas faces geladas de Mary, mas seus lábios e respiração aqueciam. O coração cheio de dor, ele, por sua vez, não podia suportar a separação.
- vou correr o risco e ficar, Mary. Deus sabe que não quero partir.
- Mas deve fazê-lo no seu próprio interesse. Escreverei... Fico contando os minutos, até que você volte...
Um pouco antes de largá-lo e sair correndo pelo embarcadouro, tirou do bolso do impermeável um pequeno embrulho que premiu na mão dele.
- Para que se lembre de mim, David.
Na cabina da pesada barcaça, a caminho do Pindari, ele desembrulhou o pacote e olhou o que ela lhe ofertara. Era um velho e delgado medalhão de ouro, menor que um florim, jóia que pertencera à sua falecida mãe. Colocara no interior um instantâneo dela, e, no reverso, cuidadosamente comprimida, uma única flor dentre as campainhas-azuis que ele colhera para ela em Gairsay.
CAPÍTULO NOVE
MORAY galgou o passadiço balouçante e entrou a bordo. As mercadorias de Winton já tinham sido carregadas, e ele mal teve tempo de se apresentar ao capitão, antes que os reboques começassem a puxar cautelosamente o navio na descida do estuário. Ficou no tombadilho, esforçando-se para penetrar o nevoeiro que amortalhava a confusa linha da praia onde Mary devia estar contemplando a partida desse navio espectral. O coração lhe transbordava de tristeza e de amor. Havia poucas pessoas no convés. Sabia que regressava a Tilbury para apanhar a maioria dos passageiros, e o navio húmido e deserto, com seus gotejantes pontaletes, aumentava-lhe mais a melancolia. O profundo e opressivo toque da sereia dava-lhe uma estranha sensação pressaga. Quando enfim o nevoeiro se fechou de todo, obliterando a praia, afastou-se da amurada e desceu à procura do seu alojamento.
Sua cabina ficava na popa, do lado de estibordo, contígua à do engenheiro-chefe. Era mobiliada em madeira de teca polida, tinha cortinas vermelhas nas vigias, um armário de acessórios e prateleira para livros, um abajur vermelho junto à cama-beliche. compunha um conjunto deveras confortável. Uma pia com bacia de metal, que se podia levantar para esvaziar-lhe a água, estava posta num canto, e acima, numa grade protetora, via-se um ventilador elétrico. A sala de consulta e o dispensário, convenientemente situados do outro lado do corredor, eram igualmente bem providos. Embora o Pindari fosse um navio antigo (originariamente, o Isolas, da Linha Atlântica de Navegação de Hamburgo, confiscado depois da guerra), fora ele recondicionado da proa à popa, e era agora espaçoso, confortável e notavelmente apto para a navegação, capaz de fazer uns modestos dezessete nós na carreira lenta mas segura para a índia, levando carga e passageiros e tocando em vários portos.
Quando Moray abriu a mala, que continha alguns de seus poucos pertences - roupa interior lavada e passada por Mary, mais os dois uniformes de praxe, fornecidos pelos escritórios da companhia em Winton, - sentiu-se completamente exausto e com dor de lado. Um agitado Mar da Irlanda e uma péssima travessia do Canal não contribuíram para suas melhoras. Sentiu dificuldade em levar a bom termo seu primeiro dever - o de examinar a tripulação nativa, e havia noites em que a tosse incomodava tanto, que ele mal podia
dormir. Preocupado não apenas consigo, mas também com o engenheiro seu vizinho, um velho escocês chamado Macrae, ao qual certamente devia ter incomodado, tratou-se com codeína. Em Tilbury, no entanto, onde ficaram dois dias ancorados, uma carta de Mary lhe infundiu novo ânimo, e ao passar o Nore, já realmente a caminho da índia, começou a sentir-se o mesmo de outrora. O navio tinha agora vida própria, as hélices avançavam com uma palpitação mais vigorosa, vozes e risos ecoavam nas cobertas...
No salão de jantar, cada oficial ocupava seu lugar à cabeceira da mesa. Moray, na mesa dele, tinha por comensais apenas cinco passageiros, todos um tanto idosos, e - por que não confessá-lo? - monótonos: dois plantadores de chá, escoceses, bem avançados em idade - Henderson e Macrimmon - que regressavam a Assam; um tal Mr. S. A. G. Mahratta, diretor hindu de uma fábrica de tecidos de Cawnpore, e um oficial do Serviço Colonial Inglês com sua mulher ictérica e de ar severo - Mr. e Mrs. Hunthunter. com exceção dos plantadores, os quais, especialmente depois de uma sessão no bar, se inclinavam para a jocosidade, e de Mahratta, homenzinho intrometido e hipocondríaco, doente do estômago, que às vezes fazia graça sem querer, o tom geral das conversas era reservado e prometia ser difícil.
Agora, porém, vencida a escura turbulência da baía, o sol saiu de repente, e o céu e o mar ficaram muito azuis nos estreitos da costa a sudeste da Espanha e no rumo de Marselha, porto onde mais carga devia ser recolhida a bordo. Organizavam-se jogos de convés, e Moray foi advertido pelo primeiro-oficial - um irlandês alto e magro, de bom génio, chamado O'Neil - de que cabia ao médico organizá-los. Assim, munindo-se de papel e lápis, Moray começou a abordar os passageiros, primeiro com o sentimento da sua incapacidade para relações em grande escala, mas obtendo bom êxito, após algum acanhamento preliminar. Sua posição oficial tornava tudo mais fácil do que imaginava; não precisava procurar, era procurado; parecia que ser médico de bordo era uma posição de certa importância... Ao chegarem a Marselha, já havia feito várias listas de concorrentes aos jogos de convés - lançamento de disco,
amarelinha-de-bordo e tênis-de-mesa, - e começou a ouvir, não sem uma careta, que era frequente os passageiros referirem-se a ele como ao "nosso amável doutorzinho".
Em Marselha esperava-o uma carta de Mary, comprida de cinco páginas.
Leu-a avidamente na cabina, sorrindo aos retalhinhos de notícias, comovido pelo simples relato do que ela vinha fazendo,
sentindo em tudo uma constante solicitude pela sua saúde. Esperava que suas dores já tivessem passado, que tossisse menos, que estivesse tomando muito cuidado consigo... Enviava-lhe todo o seu amor. Querida Mary, como ele sentia sua falta. Na sala de cirurgia, acomodando-se à escrivaninha, respondeu falando-lhe de suas atividades, e ainda pôde alcançar o correio antes da saída da mala postal. O Pindari não demorou mais de doze horas no porto. Repleto de carga, trancaram-se as escotilhas quase no instante derradeiro (o trem de Paris chegara com atraso), e três novos passageiros entraram a bordo. Como quase todas as mesas do salão já estivessem tomadas, foram sentar-se na do médico, sendo os seus nomes acrescentados à lista dos viajantes: Mr. e Mrs. Arnold Holbrook, e Miss Dóris Holbrook. Moray examinou-os sub-repticiamente quando os três se sentaram à mesa do almoço.
Holbrook era um homem de cerca de sessenta anos, baixo, pesado e ofegante. Tinha uma cara vermelha cheia de manchas e poros dilatados, parcialmente coberta por uma barba curta e grisalha, e olhos congestionados, divertidamente perspícuos. Estava muito mal vestido, em verdade com um paletó esverdeado comprado feito, camisa de flanela cor de cinza e uma retorcida gravata castanha. Sua esposa, uma mulherzinha doméstica, de feições miúdas e expressão dócil, trazia, em agudo contraste, um pesado vestido de grande elegância e um complicado toque de sequins pretos. Envergava o vestido com uma visível sensação de incómodo; era como se a embaraçasse, e ela tivesse preferido um traje mais simples. Instintivamente, Moray visualizou-a num frouxo roupão estampado, a cumprir seus deveres domésticos numa cozinha bem sortida. Mas a dama ostentava tantas jóias, que a princípio ele supôs que fossem falsas. A filha parecia não ter mais de vinte anos. Era alta, de epiderme pálida e sem vida, bom corpo, cabelos escuros e olhos cor de ardósia, que ela, sentada ereta e muda, manteve taciturnamente abaixados durante a maior parte da refeição.
Não assim Holbrook. com sotaque de Manchester - cordialmente, expansivamente, e com um ar experimentado, quebrou o gelo da apresentação. com grande tato deu início à conversa, gracejou com Tamil, o garçom, até que este sorriu, provocou Mahratta a fazer um divertido relato de suas últimas dificuldades gastronómicas em Londres, o que fez que até mesmo os rígidos lábios de Mrs. Hunthunter sorrissem. Depois que despertou a mesa para a vida, casualmente revelou que seu filho se achava em Calcutá inaugurando uma nova filial da firma; que Dorrie - e olhou para a filha, que não
deu fé do seu olhar afetuoso - acabava de sair da Escola de Aperfeiçoamento de Miss Wainright, em Blackpool, e que essa viagem à índia era a um tempo de prazer e negócios. Só quando propôs encomendar champanha para todos foi que um olhar de censura da mulher lhe chamou a atenção.
- Está bem, mamãe - assentiu ele bem-humorado. - Bebê-la-emos no jantar. Concorda, Dorrie?
Dóris lançou-lhe um olhar de tédio.
- Pare com isso, papai. Já contou toda a sua vida.
- Minha filha é assim! - e riu-se com indulgência, com uma pontinha de orgulho. - Gosto que ela me repreenda para bem...
- E já era tempo.
- Ora, Dóris... - advertiu a mãe com brandura; depois, olhando em redor da mesa, acrescentou, à guisa de atenuante: - Nossa filha não anda muito boa ultimamente. E a viagem noturna foi verdadeiramente cansativa.
Naquela mesma tarde, cruzando o tombadilho rumo à sala de cirurgia, Moray deu com Holbrook parado diante do quadro de avisos, as mãos nos bolsos, olhos grudados na lista de esportes.
- Parece que alistou todo mundo a bordo, doutor.
- Percorri atentamente a lista de passageiros, senhor.
- A nossa Dorrie também gosta de esportes - disse. o outro, com um ar meditativo. - Parece que é taco em quase todos. Decerto arranjará um parceiro para ela, doutor. - Fez uma pausa. - E se fosse o senhor? Parece rapaz ativo.
Moray hesitou.
- Gostaria muito - disse, acrescentando rapidamente: - Se o regulamento o permitir... Falarei... falarei com o primeiro-oficial.
- Faça isso, rapaz. Dar-me-á muito prazer.
A impressão de Moray sobre a filha de Holbrook não tinha sido favorável e ele não queria ser arrastado ao papel de parceiro dela. Além disso, duvidava que, como tripulante, pudesse participar das competições. Entretanto, depois da última consulta, encontrou-se na ponte de comando com O'Neil e expôs-lhe a situação. O irlandês já se lhe mostrara amigável e prestativo, tendo-o ajudado eventualmente no cumprimento de seus deveres mais importantes.
- Claro que pode participar dos jogos, doutor - disse O'Neil num sotaque de Belfast, que se podia cortar à faca. - Espera-se que seja amável com as senhoras. Vi quando essa garota entrou a bordo. Parece que tem alguma coisa... - E O'Neil piscou o olho azul. - com um pouco de sorte, você até pode arriscar uma aventura.
- Não me interessa - respondeu Moray secamente.
Seu puro amor por Mary fazia dessa sugestão uma coisa revoltante, malgrado o bom humor com que lhe fora apresentada.
- Está bem. Em qualquer caso, seja amável com ela. Isso não lhe fará mal e poderá trazer-lhe algum bem. O velho está nadando em dinheiro. Laboratórios Farmacêuticos Holbrook. Começou com uma farmaciazinha de arrabalde, em Bootle. Arranjou uma fortuna cem pílulas. - E arreganhou um sorriso. - Fez funcionar os intestinos da humanidade. O remédio era o purgante. Isso me faz lembrar: já ouviu essa? - O'Neil, coração intrépido e galante, que fora torpedeado durante a guerra e nadara cinco horas no Oceano Atlântico antes que o salvassem, tinha verdadeira mania por anedotas picantes. Submetendo-se a ouvi-lo, Moray preparou a risada enquanto o outro relatava: - Um ianque vinha vindo por uma rua de Chicago, quando outro ianque, parado na calçada, o abordou. "Pode me dar o endereço de um bom farmacêutico?" - pediu ele. "Mano - disse o outro com uma pressa furiosa - se quiser o próprio farmacêutico de Deus, só tem de..."
E à expressão impublicável, O'Neil deu ao boné um ângulo mais empinado e debruçou-se na bitácula, rindo a bandeiras despregadas.
Moray ficou mais meia hora no tombadilho, andando de cima para baixo com o primeiro-oficial, vendo o litoral da França diluir-se na distância. Batia-lhe as faces um vento tonificante, sempre mais forte na proa. Drummond tinha razão: havia saúde no travo salgado do mar largo. Como melhorara, e como a vida a bordo era agradável! Esquecera-se da promessa que fizera a Holbrook; mas quando desceu, lembrou-se da filha, e, com um encolher de ombros, inscreveu seu nome e o dele num jogo de duplas.
CAPÍTULO DEZ
O tempo continuava bonito, o mar calmo, o sol brilhante; o dia
matizava-se de ocasos cor de violeta, diluindo-se em límpidas noites veludosas, onde o Pindari ia traçando a sua esteira fosforescente. Aquele era o mar de Jasão e Ulisses. De madrugada, dir-se-ia que o navio estava suspenso entre o céu e a água, intemporal e fantástico, não fosse a Sardenha aflorar a estibordo, sua saudável fragrância trazida para bordo por uma brisa suave e propícia.
Respirando fundo esse ar aromático, sem dor ou obstáculo, percebeu
Moray que sua pleurisia se acabara. Já não mais lhe era preciso aplicar no peito o estetoscópio. Tinha a pele curtida, nunca na vida sentira-se melhor. Depois de todos aqueles anos de incessante labutar, suas presentes condições de existência eram demasiado boas para serem verdadeiras. Acordado às sete pelo cabineiro, que vinha da cozinha na ponta dos pés, trazendo-lhe o chota hazri de chá e frutas frescas, levantava-se meia hora depois, dava um mergulho na piscina da coberta de esporte, depois vestia-se. O desjejum era às nove, depois do que ele fazia o seu giro de visitas, ou; uma vez por semana, acompanhado pelo Capitão Torrance, a inspeção oficial do barco. Das dez e meia ao meio-dia ficava em seu gabinete médico. O almoço era à uma, e, com exceção de uma ou outra consulta às cinco, ficava livre o resto do dia, só lhe incumbindo nesse ínterim o exercício da amabilidade e da atenção para com os passageiros. Às sete e trinta o melodioso gongo ribombava acima e abaixo dos corredores - e era um som sempre bem-vindo, uma vez que as refeições primavam pela sua excelência, bom tempero e abundância, sendo especialmente delicioso o caril nativo.
Na segunda-feira seguinte começaram as competições, e antes das oito, lembrando o compromisso, Moray fechou a sala de cirurgia e subiu à coberta de esportes para a primeira fase da dupla de ténis. Dóris já estava lá, de saia curta e colete forrado, postada junto dos pais, que, para constrangimento de Moray, ocupavam duas cadeiras vizinhas à quadra, para nada perderem do jogo. Enquanto ele pedia desculpas pelo atraso (em verdade, não se atrasara), ela permanecia muda e mal o olhava. Como saber se era nervosa, ou, segundo desconfiara à mesa do jantar, simplesmente perversa?
Seus oponentes, chegaram - um casal holandês recém-casado, os Hendricks, que ia a caminho de Chitagong - e o jogo começou. Ao princípio, Dóris se mostrou desatenta e errática, e embora ele nunca antes tivesse jogado ténis, tinha o olhar rápido e conseguiu anular os erros dela, que não levou em conta e corrigiu com seu costumeiro bom humor. Diante disso, a moça deu de si e começou a jogar brilhantemente. Tinha o corpo esguio porém bem desenvolvido - seios e quadris bonitos e arredondados, longas pernas bem feitas que a saia curta entremostrava. Os Hendricks, par gorducho e de pés pesados, não eram adversários para eles, que venceram belamente seis partidas contra duas.
Ao dar-lhe os parabéns, dizendo, "Seu pai me disse que a senhorita era boa no esporte, e é mesmo", ela lhe atirou um de seus raros olhares diretos, transitório e grave.
- Sim - observou - ensinaram-me alguns golpes... e outros eu mesma os aprendi. Mas não vai oferecer-me um drinque? Vamos Tomá-lo aqui em cima.
Quando o garçom surgiu com dois altos copos de limonada e gelo picado, ela se estendeu na espreguiçadeira de bordo, entrecerrou os olhos, e
pôs-se a bebericar o drinque com um canudo de palha. Ele olhou-a meio sem jeito, sem saber o que dizer - situação deveras estranha para quem, como ele, invariavelmente encontrava a palavra exata para cada ocasião. O calor do jogo trouxera alguma cor à pálida epiderme da moça, e levou o colete a aderir-lhe estreitamente aos seios, de modo a entremostrar os seus róseos mamilos apontando através do ralo algodão humedecido. É bonita, pensou Moray quase irado; mas que diacho acontece com ela? Perdeu a língua? Decerto que não, pois de repente ela pôs-se a falar:
- Estou contente porque ganhamos. Queria derrubar esse nojento casal de pombinhos holandeses. Já imaginou como serão na cama? Desculpe-me a estultícia, meu caro, mas gostaria de ganhar todas as partidas, ainda que fosse apenas para irritar os nossos deliciosos companheiros de viagem. Que gentalha! Detesto-a; e você?
- Não, não posso dizer isso.
- Mas não é possível! São uma gente pavorosa, principalmente a que se senta à nossa mesa, a tal de Mrs. Hunt-hunter - uma bruxa com cara de cavalo. Põe-me doente. É vulgar como a lama, palavra que é. E o navio, uma droga. Eu não queria fazer esta maldita viagem. Foram meus carinhosos pais que me arrastaram pelos cabelos para bordo. Minha cabina é considerada uma das melhores da coberta. Papai pagou um dinheirão por ela. Você verá. Um canil, com uma banheira que mais parece uma pia de cozinha. Isso é o pior; pois se há algo de que gosto, é de um bom banho. E você pode imaginar? Os nativos a servirem à mesa! Por que não nos arranjam garçons brancos?
- O garçom da nossa mesa me parece muito decente e amável.
- Ainda não reparou como cheira mal? É de morte! Tenho o nariz muito sensível. Isso tem algo a ver com os nervos olfativos, disse o médico a mamãe. Lero-lero desse saco de vento! A coisa é a seguinte: gosto das pessoas que cheiram bem.
- Será que eu cheiro assim? - perguntou ele, ironicamente.
Ela riu, espichando as pernas escancaradas.
- Quer saber? Francamente, você é a única luzinha no horizonte. - Não percebeu, naquele primeiro almoço, que simpatizei com você? Para ser franca, pedi a papai que o arranjasse para meu parceiro.
Ele não é mau: apenas bebe um pouco demais. Mamãe seria passável, se não cacarejasse tanto no que me diz respeito. Mas tenho de os pôr em ordem; frequentemente os congelo para que façam o que eu quero. Estou falando muito. Às vezes falo todo o tempo, outras vezes não falo nada, absolutamente nada. É assim que gosto de tratar as pessoas. Sou orgulhosa. Costumava deixar maluca a velha Wainright. Quando ela começava a pregar sermão, era só eu olhar e entrar em estado de coma.
- Refere-se à diretora?
- Sim - disse a moça com displicência. - Expulsou-me.
- Por que diacho fez isso?
Ela abriu um sorriso lento:
- Isso lhe será revelado no próximo número.
Na tarde seguinte, Dóris e o médico jogaram com bom êxito duas partidas de amarelinha-de-bordo e de lançamento de discos, com os pais da moça tornando a servir de espectadores. Moray gostou dos jogos. Nunca antes conhecera alguém como ela, tão divertidamente preconceituosa e intolerante, tão segura de suas próprias prerrogativas, e, no entanto, trazendo bem no fundo uma veia de lugar comum, quase de vulgaridade, que redimia suas intenções. Saber que ela gostava dele, lisonjeava-o. Agora via que os Holbrooks caducavam com a filha, apesar da irresponsável que ela era, e ficou menos surpreso do que devia quando os viu levantarem-se e avançarem para ele, surpreendidos e felizes com a tríplice vitória, Mrs. Holbrook, principalmente, teve para com ele um sorriso notavelmente cordial.
- Conseguiu que a nossa Dóris saísse da casca - observou ela. - E o senhor também saiu: sua atuação foi muito boa.
Dóris, que estava prestes a sair, não disse nada; mas pondo os olhos nos dele, sorriu-lhe de um modo peculiar. Moray conversou um pouco com os pais dela; depois, ao descer para a sala de cirurgia, observou que eles cochichavam, Mrs. Holbrook aparentemente instando para que o marido entrasse em ação. com efeito, alguns minutos depois, Holbrook rolou dispensário adentro - viçoso, jubiloso e gárrulo.
- Não estou doente, doutor. Não tenho nada. Só quero uma dose de bismuto. Nada como bismuto para o estômago. Onde o guarda? Deixe que eu mesmo me sirvo.
Moray apontou-lhe o frasco de bismuto, pensando, ao vê-lo derramar uma generosa dose na palma da mão, se não devia alertá-lo sobre o estado de seu .fígado, palpavelmente cirrótico. A maior parte
do tempo, em companhia de Henderson e Macrimmon, os dois plantadores de chá, o velho, com exceção de suas visitas à coberta de esportes, era praticamente uma peça da mobília do bar.
- Isso é o que serve - exclamou Holbrook lambendo o montículo de pó branco com preênseis lambidas de sua língua saburrosa. - E aqui está o pagamento, doutor.
- Santo Deus, sir... Não posso aceitar tanto... é... é demais!
- Doutor - disse Holbrook fitando devagar Moray com seus olhinhos astutos e congestionados - se quer conselho de um homem que viu muita coisa neste mundo desgraçado... quando lhe aparecer uma boa oportunidade, agarre-a!
E com uma cálida generosidade, apertou na mão do médico uma nota de cinco libras.
Pensativamente recolocando o frasco na prateleira depois que Holbrook saiu, Moray, que se deixara contagiar pelo vocabulário de O'Neil,
pilhou-se a rir: "De agora em diante, o melhor será ganharmos todas as competições."
Mas isso não era mais que uma atitude. A moça começara a interessar-lhe, como tema de estudo. Às vezes parecia-lhe muito madura para a idade que tinha, outras vezes, muito retardada. Um dia estava taciturna, no dia seguinte divertida e provocantemente palradora. O que ele mais admirava nela era a sua completa indiferença ao que as pessoas pudessem pensar a seu respeito. Não procurava a popularidade, e, ao contrário dos que já se chamavam pelos primeiros nomes em grupinhos exclusivos, ela antes parecia gostar de ficar de fora. Tinha especial talento para arremedar as pessoas e podia ser terrivelmente grosseira com quem pretendesse adulá-la ou mostrar-lhe afeição. Sua atitude descurada se estendia até aos objetos pessoais, dos quais possuía uma grande variedade. Estava sempre esquecendo uma bolsa, uma écharpe ou um suéter na coberta, deixando que se extraviassem coisas valiosas sem que isso lhe importasse um caracol. Essa complexidade de caráter despertava curiosidade no rapaz. Quando, ao almoço ou ao jantar, ela o fitava com seu sorriso disfarçado ou enigmático, ele ficava mais perplexo do que nunca. Por mais singular que isso parecesse, inclinava-se a ter pena dela.
Tudo isso emprestava sabor de interesse àquilo que, durante as competições, a mãe expressara tão ineptamente pela frase "tirar Dóris para fora da casca". Em verdade, a competição nos jogos não era muito acirrada, uma vez que quase todos os passageiros eram idosos. Apenas um par parecia oferecer uma forte oposição, os Kinderleys,
- casal com dois filhos que regressava a Kadur, no Misore, após três meses de licença. O marido tinha cerca de trinta e cinco anos, era excessivamente cordial e franco, gerente de uma pequena propriedade de café a quem prejudicara grandemente a crise causada pelo excesso de produção do Brasil. Sua mulher, que tinha fama de ótima tenista, era uma mulherzinha agradável, de expressão menos grave do que franca.
Sentavam-se à mesa do primeiro-oficial. Enquanto o Pindari se aproximava do Canal de Suez, Moray e sua parceira, que tinham jogado bem, ficaram para as três semifinais. Assim também os Kinderleys.
Na véspera da chegada a Porto Said, Mrs. Holbrook, sentada na coberta de passeio, acenou para Moray, indicando-lhe a cadeira ao lado. Em várias ocasiões tinha ele sido honrado com esse convite, e, em resposta às ternas perguntas que ela lhe fazia, revelara-lhe o suficiente de suas primeiras lutas - de algum modo, comparáveis às dela - a fim de conquistar-lhe a simpatia. Agora, após um comentário sobre o tempo admirável que fazia e uma pergunta sobre a hora de atracação do navio, ela inclinou-se para ele.
- Amanhã desceremos à praia para ver a cidade e fazer algumas compras. Esperamos que nos acompanhe.
Ele sacudiu a cabeça.
- Sinto muito, Mrs. Holbrook. Preciso ficar a bordo. Tenho as guias de saúde para preencher. E há um marinheiro doente que precisa ser internado.
- Que pena - disse ela, consternada. - Mr. Holbrook não podia falar com o Capitão Torrance?
- Oh, não! - atalhou ele depressa. - Isso está fora de cogitação. A guia sanitária é mais importante... O navio não poderá zarpar sem ela.
- Bem - disse Mrs. Holbrook. - Contávamos com você. Dóris é que vai ficar desapontada.
Seguiu-se uma breve pausa; depois, num tom confidencial, ela começou a falar sobre a filha. Dóris era um amor de garota, a menina dos olhos de seu pai, mas tinha sido... bem, tinha sido uma pequena preocupação para ambos. Era como se eles não lhe tivessem proporcionado o melhor de tudo quanto havia, sim, por exemplo, a melhor educação que o dinheiro podia dar... A escola de Miss Wainright era uma das escolas mais seletas do Norte da Inglaterra. Dóris falava francês e tocava piano deliciosamente, mesmo em se tratando de peças clássicas. Recebeu toda a espécie de lições particulares de ténis e coisas assim, lições de elocução e de
etiqueta; o pai queria assegurar-lhe todas as vantagens da existência. Mas Dóris era uma garota tão sensível! Não era difícil, isso não, mas... bem... era temperamental, talvez, e embora fosse às vezes muito viva e muito franca, dava ocasionalmente para ficar deprimida - exatamente o contrário de seu irmão Bert, que era invariavelmente o sujeito mais alegre do mundo. Mrs. Holbrook fez uma pausa, e seus olhos cintilaram à lembrança do filho. Pois bem, concluiu ela, não diria mais nada, a não ser que estava muito grata, e também Mr. Holbrook, pela maneira por que ele se interessara por Dóris. Fizera-lhe um bem enorme, tirando-a, como se diria para fora da casca.
Moray emocionou-se. Gostava daquela mulherzinha chã, ajoujada de dispendiosas tetéias e vestidos impróprios, que o marido amontoava em cima dela; mulherzinha que pouco se importava com a sua origem; que, a despeito da fortuna de Holbrook era inteiramente isenta de pretensões sociais, e que entretanto se 'mostrava tão preocupada, e até mesmo angustiosamente solícita com a filha. Todavia ele mal sabia o que responder, e viu-se obrigado a recorrer à simples polidez.
- Dóris é uma excelente garota. Estou certo de que superará suas pequenas dificuldades. Repare como se vem saindo nas competições. Mas, naturalmente, se houver alguma coisa em que eu possa ajudar...
- O senhor é muito bom, doutor. - E Mrs. Holbrook apertou-lhe a mão, maternalmente. - Não preciso dizer que todos nós simpatizamos muitíssimo com o senhor.
CAPÍTULO ONZE
Às dez horas do dia seguinte estavam à vista de Porto Said. Passavam a rebentação com sua grande estátua de Lesseps, e após uma hora à espera de que fosse içada a bandeira amarela da quarentena, o Pindari atracou no cais e começou a carregar óleo e água. À altura do meio-dia, todos os passageiros que pretendiam ir a terra tinham abandonado o navio. Os Holbrooks acenaram a Moray enquanto desciam o passadiço, e ele sentiu pena de não estar junto deles. Vista do tombadilho, a cidade apresentava um ar misterioso e sedutor. Para lá do amontoado de galpões das docas, ela se estendia amarela e branca, sobre um horizonte enevoado pelo calor. Brilhantes
tetos e balcões de azulejo cintilavam ao sol. Dois minaretes gémeos, em forma de lápis, erguiam-se delicados acima das estreitas ruas apinhadas, cheias de cor, de som e movimento. Que pena ele não ter podido aceitar o convite de Mrs. Holbrook!
Tinha, entretanto, muito que fazer. O lascar, na enfermaria de bordo, era um caso suspeito de osteomielite, e quando o médico portuário confirmou o diagnóstico, houve papéis a assinar e irritantes delongas a serem vencidas, antes que o doente pudesse ser removido de ambulância para o hospital. Era ainda preciso examinar as caixas-d'água, depois do que o capitão mandou chamá-lo, e assim o tempo correu. O navio estava cheio de mascates, polícias, estivadores, visitantes egípcios e agentes de companhias. Bateram quatro badaladas antes que ele se visse temporariamente livre, e, como a mala postal se fechasse dentro de meia hora, ele mal teve tempo de acabar e datar a carta para Mary, que ele fora escrevendo nos momentos de folga dos últimos cinco dias. Sentia-se culpado pela delonga, tanto mais que, quando o carteiro entrou a bordo às seis horas, havia na sacola, para ele, três cartas de Mary e mais uma que, pela letra, julgou ser de Willie. Não querendo lê-las à pressa naquela hora de atropelo, resolveu guardá-las no armário e saboreá-las à vontade quando voltasse à noite para a cabina. Ainda tinha de preencher em duplicata uma guia de pedido de suprimento extra de emetina - grassava na cidade uma epidemia de disenteria amebiana, dizia-se - que ele conseguira do médico portuário como medida de precaução. Depois de preencher os formulários da companhia, levou-os ao escritório do comissário. Só então se lembrou de que era esperado na sala de fumar, onde deveria encontrar-se com os Holbrooks, que o tinham convidado para um drinque antes do jantar. Sabendo-se atrasado, precipitou-se pelo tombadilho de passeio, dando encontrões nos passageiros, dentre os quais, muitos em estado de grande hilaridade, com fezes na cabeça e carregados de compras de bazar: caixas de doces cristalizados e cigarros egípcios, feitos, segundo O'Neil, de estrume de camelo; modelos da Esfinge em terracota; artigos de latão, cobertos de hieróglifos - em sua maior parte, puro ferro-velho, Macrimmon, muito bêbado, envolvido num albornoz branco, comprara um feto metido numa garrafa.
Os Holbrooks tinham regressado mais cedo e já esperavam, os três, quando ele empurrou as portas de vidro da sala de fumar: o pai, a mãe e Dóris, rodeados de uma porção de embrulhos. Holbrook, de excelente bom humor, encomendou os drinques: uísque
2. Marinheiro da índia. - N. T.
duplo para ele, coquetéis de champanha Para os outros. Mrs. Holbrook, que raramente "se entregava" e em geral tentava reprimir o marido, deixou-se convencer à alegação de que ia fazer-se uma comemoração especial. Depois a conversa recaiu sobre a expedição. Fora um grande sucesso. Haviam tomado um carro e rodado pela praia do lago Menzala, visitaram a grande mesquita maometana, presenciaram as proezas de um encantador de serpentes, examinaram uma coleção de escaravelhos no museu, lancharam no jardim do Palácio-Hotel Pêra, onde foram brindados com um maravilhoso caril de peixe, servido com sementes de girassol e pimentões verdes, e finalmente, quando já voltavam para o navio, haviam descoberto uma loja maravilhosa.
- Não é um lugar barato, como os bazares - disse Mrs. Holbrook. - O dono chama-se Simon Artz. Foi um prazer comprar na loja dele.
- Artz é homem bem dotado - disse Dóris, rindo-se. - Tem tudo de toda a parte.
Mirando-se no espelhinho da bolsa, renovava o batom dos lábios. E, ou fosse por causa do sol ou da animação do passeio, suas faces estavam levemente coradas, e lhe emprestavam maior brilho aos olhos. Nunca parecera tão cheia de vida.
- E compramos uma porção de coisas para dar aos amigos - continuou Mrs. Holbrook. - Não o esquecemos, doutor. Ficou aqui trabalhando como um mouro por todos nós, enquanto nos divertíamos. - E com um sorriso afetuoso, estendeu-lhe um pequenino embrulho oblongo.
As faces vermelhas, ele o apanhou canhestramente, sem saber se devia abri-lo ou não.
- Vamos, dê uma espiada - instou Holbrook, com um olhar malicioso. - Não morde.
Moray abriu o embrulho esperando encontrar alguma lembrança banal. Mas o que viu foi um relógio de pulso de ouro vermelho, de pulseira também de ouro, delicadamente trançada, fabricação Patek Phillippe, o melhor e o mais caro cronometro feito à mão pela relojoaria suíça. Devia ter custado uma fortuna. Moray ficou sem fala.
- O senhor e a senhora são muito bondosos, muito generosos... - gaguejou. - Era isso mesmo o que eu queria e precisava...
- Não diga mais nada, rapaz - atalhou Holbrook. - Nossa Dorrie percebeu que o senhor não tinha relógio. Foi ela que escolheu.
Moray voltou-se e viu que ela o olhava fixamente com um olhar de desafio e intimidade que de certo modo, os encerrava a ambos numa espécie de conspiração.
- Mude de assunto, papai; deixe-o passar. Ou conto da sua insistência em perguntar coisas sobre a dança do ventre...
Holbrook riu-se, enxugou o copo e ficou de pé.
- Estou esfomeado. Mandemos o camareiro levar estas coisas para a cabina e vamos jantar.
Enquanto o navio continuava atracado, o jantar se transformara numa refeição elástica, servida a qualquer hora, e eles foram os primeiros a chegar ao salão. A sensação de intimidade, iniciada na sala de fumar, não se alterou, e eles formaram um grupo alegre, do qual Dóris era a figura mais divertida. Sua atitude para com os pais - atitude de criança mimada, sempre superior, e que variava entre um desprezo trombudo ou tolerante - foi substituída por uma espécie de zombeteira ironia, dirigida especialmente ao pai, que respondia no mesmo estilo. A princípio Moray deduziu, pouco amavelmente, que Holbrook comprara para ela, no porto, alguma coisa muito bonita. Mas não: agora ele a arreliava porque recusara todas as ofertas. Algumas das observações que ela fazia, embora talvez demasiado agudas, eram muito divertidas, especialmente quando começou a arremedar maliciosamente os companheiros de mesa ausentes, o que provocou restrições por parte de sua mãe: - Vamos, Dóris... lembre-se, querida... não se exceda.
A isso Dóris se aquietou com um olhar de esguelha a Moray, o que fez dele um cúmplice da brincadeira. Nesse intervalo, as máquinas começaram a trepidar, e o navio afastou-se das docas. No início da passagem pelo canal, Mrs. Holbrook, visivelmente satisfeita pelo restabelecimento da harmonia na família, sugeriu tomarem o café na coberta superior, para verem o sol se pôr sobre o deserto. Uma palavra de Holbrook ao
camareiro-chefe foi suficiente para eliminar qualquer dificuldade, e logo após, abrigados sob um toldo a estibordo, bebericavam café quente a uma mesa redonda, sortida de frutas frescas, picadinho à moda chinesa e gengibre em conserva. À medida que o grande disco se fundia com o vasto deserto de areia, o perfil das palmeiras salientou-se na luz ofuscadora, e uma fila de camelos, entre tendas de beduínos - tribo nómada - desfilou lentamente no horizonte. Depois surgiu a lua no céu de anil, cada vez mais brilhante à medida que a noite ia avançando. No salão principal, a orquestra de bordo começou a tocar uma miscelânea de árias populares da época. Moray, sentado junto de Dóris, ouvia-lhe o respirar inquieto. Reclinada na preguiçosa, braços cruzados sob a nuca, ela não parava um minuto; era como se lhe fosse impossível encontrar uma posição mais cómoda.
- Não está bem? - perguntou ele. - vou buscar uma almofada.
- Uma almofada! Desculpe-me se rio... Logo melhoro... Esta noite sinto-me esgotada...
- E quem não se sentiria? Impossível duvidar de que se está no Oriente. Que céu!
- E ainda com música! - E ela sussurrou uns compassos de Meu Coração. Emudeceu, parou, tornou a sussurrar, depois exclamou: - Se isto continuar, enlouqueço!
Ele riu-se.
- Antes que enlouqueça, quero agradecer-lhe pelo belo relógio.
- Sei o que quero. Gostei do relógio, e, para ser franca, também gosto de você. Opõe-se a isso?
- Não, absolutamente. Fico muito satisfeito e sou-lhe grato.
Silenciaram por um ou dois minutos, depois ela falou:
- Este ambiente não o afeta? É como se a gente estivesse mergulhada num banho de leite morno. Não que eu já tivesse tido essa experiência: é uma simples comparação. A via-láctea... e a gente a perder o sabão! Gostaria de ir nadar. Não naquela piscina, miserável, mas numa praia deserta, onde ficássemos sozinhos... Nada de maios. - Tornou a rir. - Não fique tão chocado, seu idiota. Você nunca se sentiu tenso e excitado, de pé no topo do mundo? - E batendo o pé no convés, cantarolou: "Estou sentada no topo ao mundo, cantando uma canção, rolando por aí afora..." - Que sensação maravilhosa! Quando a sinto, estou pronta a fazer qualquer coisa. Sinto-a agora... se é que isso lhe interessa. - E espreguiçou-se em todo o comprimento, tornou a cantarolar, depois sentou-se: - Não posso afastar da cabeça essa maldita canção. Mas como você é acanhado! Decerto está querendo dançar. Venha: vamos dar uma volta.
Fez-se uma pausa constrangida, depois ele disse:
- Receio não ser par para você.
- Por que não?
- Vai ficar surpresa: não danço.
- O quê? Diga isso a outra. Está me tapeando.
- Não estou - e teve de sorrir ao ver a expressão no rosto dela. - Vivi sempre muito ocupado com meus estudos; não tive tempo de aprender jogos e prendas de salão...
- Mas chegou a hora de aprender. É muito fácil, se a professora é boa. E eu sou.
- Não, palavra... vou pisar-lhe nos pés, fazer de mim um asno perfeito...
- - Mas ninguém está vendo! O velho foi para o bar, mamãe está cochilando. Temos música e lua. Tudo livre, tudo grátis, em troca de nada. - Levantou-se e estendeu-lhe a mão. - Venha: dar-lhe-ei disposição para dançar.
Ele ergueu-se e, um tanto cerimonioso, pôs o braço na cintura dela.
- É um foxtrot - ela explicou-lhe. - Acompanhe o compasso. Passos curtos. Agora vire. Dê uma volta. Segure firme; mais perto... Não vou quebrar. Eu disse mais perto. Está melhor. Por estranho que pareça, temos de fazer isso juntos!
Era surpreendentemente fácil. A música, envolvente, e ela, tão boa dançarina, tão sensível e de postura tão lassa, que ele descobriu-se a seguir instintivamente a batida do ritmo, improvisando passos,
deixando-se conduzir pelo par. Quando a orquestra no andar de baixo acabou de tocar o número, ela fez-lhe um aceno de cabeça condescendente e significativo.
- Eu não dizia?
- Estupendo! - confessou ele. - Não imaginava que fosse assim tão fácil. É um bom exercício.
Ela soltou uma risada curta e singular.
- E uma maneira de ver...
- Naturalmente, você é especialista... maravilhosa de fato.
- É uma das coisas que me apaixonam. No último ano de colégio, fugia nos sábados à noite com outra menina e íamos para o Palais local. Bancávamos as profissionais... sabe? seis pence por vez... Divertíamo-nos à beça, tapeávamos sem parar, mas uma noite houve um rebuliço...
- Por que foi que saiu do colégio?
com um ar ofendido ela atirou inesperadamente a cabeça para trás.
- É uma questão muito pessoal. Não gosto que a suscitem desse jeito. A culpa não foi minha. Na realidade, se quer mesmo saber, a maior parte do tempo eu dançava com Bert, meu irmão. E ele é bastante respeitável. - Riu-se então, subitamente. - Será mesmo? Não ligue: perdoe-me. Quer me dar um cigarro e ir buscar o isqueiro? Estão na minha bolsa, ao lado da cadeira.
Inclinou-se para ele, que acendia o isqueiro de ouro.
- Não fuma? - Ele sacudiu a cabeça quando ela lhe ofereceu um cigarro, - De quantas coisas você viveu privado!
- Tê-las-ei um dia.
- Não adie muito. Eu sempre vou direito ao que quero.
Ficaram de pé, dando as costas para o corrimão de popa, até que a orquestra voltou a tocar. Ela jogou fora o cigarro fumado pela metade e virou-se para ele.
- Vamos começar. Faça-o com sentimento. Imagine que me apanhou na calçada de Blackpool e que nos juntamos...
- Santo Deus! - e ele arreganhou um sorriso. - Não é minha linha.
- Por isso que você é tão bom - murmurou ela, apertando-se a ele.
- Seja como for, experimente.
Dançaram as três contradanças seguintes, e a cada uma ele podia ver que progredia. A experiência era nova, e ele se excitava, mercê do rápido aprendizado. Entretanto, estava de olho nas conveniências, a fim de não se exceder. Ao se aproximarem de Mrs. Holbrook, perfilou-se:
- Muitíssimo obrigado, Dóris. Foi simplesmente estupendo; e agora... - disse olhando o relógio de pulso - devo dizer boa noite.
- Boa noite nada, é muito cedo e nós apenas começamos a nos divertir!
- Não, Dóris: preciso realmente descer.
Ela fitou-o fixamente, seus olhos cor de ardósia sombreados de raiva e desapontamento.
- Até onde chega a sua estupidez? Desperdiça tudo! E com esta lua, e logo quando estamos nos animando! Se está cansado, sentemo-nos um pouco.
- Não, não estou cansado. Mas acho que já é hora de nos recolhermos.
Mrs. Holbrook, que, despertada do cochilo, observava-os com indulgência, também parecia pensar assim. Levantou-se e encaminhou-se para eles.
- Hora de ir para a cama - observou. - Tivemos um dia muito agitado.
- O meu foi muito agradável, graças à senhora - disse Moray amavelmente.
- Vai se arrepender por haver-me abandonado desse jeito - Dóris disse-lhe no ouvido sem mover os lábios, no instante em que roçou por ele. - Espere só!
"Está brincando - pensou ele. - Não pode estar falando sério."
Deram-se boas noites - o de Dóris, violentamente mal-humorado; dir-se-ia que estava realmente furiosa.
Depois, com os últimos compassos de Desirée ainda vibrando em seus ouvidos, Moray desceu para a cabina, acendeu a luz, e
ali, no armário de acessórios, como uma censura, a encará-lo, estavam as cartas de Mary e Willie.
Imediatamente mudou de disposição. Chocado com o seu próprio esquecimento, despiu-se rápido, subiu para a cama-beliche e, cheio de contrição, começou a ler. Havia ao todo meia dúzia de folhas preenchidas com a letra grande e redonda de Mary. Ela começava por acusar o recebimento de sua carta de Marselha, dizendo quão alegre se achava por suas melhoras. Entretanto pedia-lhe que continuasse a se tratar, principalmente evitando o ar noturno; esperava, igualmente, que seus deveres não fossem demasiado exigentes. Quanto a ela, ia bem de saúde, embora achasse muita falta dele; marcava na folhinha os dias que faltavam para ele regressar. Mas levava vida ativa, com muito trabalho de costura e de croché. Comprara fazenda para as cortinas de sua futura casa, e também alguns restos de tecido para fazer com eles uma colcha de retalhos. Na loja de Grant, logo no fim da Esplanada, descobrira uma pechincha: uma linda mobília de sala de visitas, de segunda mão. Seria uma ótima compra. Só queria que ele a visse, o que logo havia de ocorrer; pedira a Grant que a reservasse. Grande pena que seu pai não andava muito bem ultimamente; mas pudera ajudá-lo um pouco na padaria, com Donaldson, o gerente. Assinava simplesmente: de sua Mary.
Ele acabou de ler com uma expressão singular e um esquisito aperto no coração. Captara porventura uma nota de ansiedade, uma corrente subterrânea de desânimo, quem sabe, nas palavras dela? Mary escrevia com a maior candura, sempre de coração aberto; entretanto, bem podia ser que não tivesse dito tudo. Voltou-se precipitadamente para a carta de Willie:
Caro David,
Espero que esteja bom e fazendo boa viagem. Gostaria de estar aí com você. Gostaria de visitar todos esses países estrangeiros, especialmente a África. Aqui as coisas não correm muito bem desde que você partiu. O tempo ficou frio e húmido, e papai passou um mau bocado com o coração, depois que um homem veio um dia destes conversar com ele. Ouvi tia Minnie dizer que os Stoddarts nos puseram a faca no peito. Mary está na padaria, fritando bolinhos. Tenho a certeza de que acha uma terrível falta de você. Eu também. Por isso diga ao capitão que se mexa e volte logo.
Afetuosamente seu, Willie
Preocupado, depôs a carta, reconhecendo, naquelas frases breves e inocentes, que Mary estava sofrendo dificuldades domésticas. . . também achando falta dele - uma falta terrível. O coração se lhe tornou a derreter de amor e de saudade, e também de remorso, ao pensar no conforto, ainda mais, no luxo, da vida amena que levava a bordo do Pindari. Subitamente desejou nunca ter feito aquela viagem. Se agora pudesse ao menos estar junto dela para a consolar e acariciar... Precisava fazer alguma coisa... alguma coisa. Dominou-o a necessidade de uma resposta pronta, de uma ação imediata. Pensou alguns instantes de testa franzida, depois apanhou o fone de intercomunicação oficial e pediu que ligassem para a sala de telegrafia. Era poupado e tinha o olho no futuro, mas precisava hipotecar ao menos uma pequena parte do seu ordenado para se comunicar imediatamente com Mary.
- Sparks, quero enviar um radiograma. - E deu o endereço. "Acabo receber cartas Porto Said. Não se preocupe. Tudo se afranjará quando eu voltar. com todo o amor, David."
Depois que, palavra por palavra, Sparks repetiu a mensagem, Moray agradeceu-lhe e esboçou um sorriso. Mary ficaria animada e satisfeita ao receber a mensagem que iria ter às suas mãos através dos oceanos! Como se sentiria confortada! com a cabeça mais leve, e já agora repleta de pensamentos carinhosos, apagou a luz e dispôs-se a adormecer.
CAPÍTULO DOZE
A CHAVAM-SE nos estreites do golfo de Suez, com os picos do Sinai tremeluzindo nas alturas, por entre a húmida neblina. Durante três dias a canícula fora insuportável. No Mar Vermelho, o sol ardia sobre o Pindari, e as rochas de Aden, queimadas até adquirirem uma cor de ocre calcinado, rachadas e fendidas, estavam de todo escalvadas, e o próprio porto parecia tão inóspito que poucos passageiros desceram à terra. Os Holbrooks faziam parte dos que permaneceram a bordo. Dóris, desde aquela noite da expedição a Suez, não mais aparecera na coberta, "presa na cabina com uma ligeira indisposição", explicou Mrs. Holbrook a Moray. Ele estava quase a oferecer-lhe os préstimos, quando uma certa reserva na maneira de Mrs. Holbrook, talvez uma insinuação de que se tratava de algo delicado, o reprimiu. Pensou que talvez se tratasse de algum
benigno transtorno mensal, conclusão que se acentuou quando Mrs. Holbrook murmurou confidencialmente:
- Às vezes Dóris tem desses transtornos, doutor.
Mandou-lhe, por conseguinte, suas recomendações, acrescentando que aquele calor terrível era suficiente para derrubar qualquer pessoa.
A temperatura elevada fizera com que ele ficasse de repente bastante ocupado. Além de uma corrida de pacientes ao gabinete médico, em virtude do surto normal de comichões e brotoejas, ou por causa do excessivo empenho para bronzear a pele, apareceram-lhe alguns casos mais sérios. Ficou particularmente preocupado com as duas crianças Kindersley, atacadas de colite aguda. Como o fato se seguisse logo após o susto provocado em Suez pela disenteria amebiana, Mrs. Kindersley ficou presa de um terror quase pânico; e como o estado dos gémeos chegasse a um ponto crítico, ele próprio começou a recear o pior. Mas depois de os atender durante quase quarenta e oito horas a fio, houve uma súbita melhora na madrugada do terceiro dia, e com um íntimo suspiro de alívio, ele pôde enfim render a mãe desesperada. Olhos vermelhos de fadiga, o colarinho desfeito, os cabelos desgrenhados, endireitou-se rígido, e leu o termómetro clínico à luz da lâmpada:
- Logo se levantam para correr por aí... incomodando a Deus e todo mundo - disse, sorrindo e passando o braço nos ombros da mulher - no começo da semana entrante...
Ela rompeu em pranto. Era uma mulher reservada e contida, mas, a exemplo de Moray, havia duas noites que quase não dormia.
- O senhor foi maravilhoso, doutor. Como lhe poderei agradecer?
- Deitando-se e descansando um pouco. Tem de preparar-se para as finais.
- Sim - disse ela enxugando os olhos e tentando sorrir, - Bem que eu gostaria de ganhar para o nosso bangalô aquele bonito serviço de chá. Mas seu par não está doente?
- Acho que não muito, Mrs. Kindersley.
Ela o acompanhou até à porta da cabina, e aí hesitou, olhando-o atentamente. Em seguida decidiu:
- Bill e eu temos o senhor em alta conta, doutor... especialmente depois disto... Temos pensado muitas vezes se o senhor não estará ... bem... começando a ficar comprometido... com Miss Holbrook.
- Comprometido? - repetiu ele desinteressado. Depois, com um súbito rubor, percebendo o que ela queria dizer: - Naturalmente que não.
- Fico satisfeita - e apertou-lhe a mão. - Ela é bonita, vê-se que está "caidinha" pelo senhor. Mas existe qualquer coisa esquisita nessa moça, qualquer coisa que eu não suporto... Diz Bill que ela é esquizofrénica. Quando a vê, sente arrepios. Agora: vai me perdoar porque falei?
- Não há de quê - respondeu ele, tentando falar com naturalidade, embora se sentisse não apenas constrangido como também melindrado. - Agora tome esse bromureto que lhe dei e vá deitar-se.
Desconsolado, Moray voltou para a cabina, barbeou-se e tomou um banho de chuveiro; a seguir bebeu duas xícaras de café e deu início ao seu giro de visitas. Começara a perceber que Dóris não era apreciada a bordo. Frequentemente grosseira, pouco se expandia com os outros, e, como quase sempre aparecesse de vestido novo e caro, com isso provocava a inveja das demais mulheres. Parecia-lhe igualmente que o seu contínuo sucesso nas competições estava suscitando comentários desfavoráveis. Seria essa a razão da repugnância de Mrs. Kindersley? Custava-lhe acreditar nisso. A interferência dessa mulher era bem intencionada. Mas, mesmo assim, ressentiu-se com ela. Que direito lhe assistia de intrometer-se em seus assuntos, especialmente se ele vinha procedendo de maneira impecável? E que diacho queria Kindersley dizer... com o seu vulgar menosprezo? Kindersley não era nenhum modelo. Era o tipo social do bebedor de cerveja, e provavelmente passava o dia inteiro no clube, em Kadur; não admirava que sua mulher fosse uma recalcada... Moray refletiu toda a manhã, e a direção de seus pensamentos, em vez de o levar a insurgir-se contra Dóris, lançou-o a favor dela. Confessava que a moça não pertencia ao tipo comum, mas seria pior por isso? Havia nela alguma coisa. Instintivamente levantava-se para defendê-la. Mas, ainda assim, talvez fosse mais prudente reduzir o esforço dela nas competições.
Para o fim da semana o tempo esfriou subitamente, e o trabalho lhe proporcionou alguma folga. Escreveu a Mary uma longa e carinhosa carta, com uma nota inclusa para Willie. Já naquela tarde criava novo ânimo, quando O'Neil, puxando-o para o lado, lhe disse:
- Acho que gostará de saber isto, doutor. Hoje de manhã, na ponte de comando, o capitão fez-lhe um elogio. Quando soube do caso das crianças Kindersley, disse que o seu trabalho aqui tem
sido formidável... e que você foi o único médico, neste navio, que ainda não criou calo no traseiro. - O irlandês fez uma pausa, fitou longamente o novo relógio de pulso de Moray e arreganhou um sorriso: - Presente de algum paciente agradecido? Continue, rapaz. Não me chamarei mais O'Neil se você não ficar logo rico.
- Já não lhe disse que não me interessa isso? - disse Moray com irritação. - Só tenho pena da moça, que é sempre deixada de fora.
- Então, por que você não fica de dentro? - disse O'Neil, rindo-se às gargalhadas. - Ora, não seja tímido: avance, rapaz. Todos nós estamos procurando um rabo de saia nesta maldita banheira; não fosse isso, e já estaríamos fritos. Mas olhe aqui: já ouviu a última...
Moray teve de rir. Que sujeito mais decente era O'Neil! Maldade alguma em suas observações: pura troça - a mesma que havia em seus versos profanos, de pé quebrado. Por que os Kindersley não seriam assim?
No dia seguinte, quando o frio aumentou, Dóris apareceu na coberta. Moray deu cem ela reclinada num lugar abrigado, o cabelo atado numa écharpe de seda, uma leve manta de caxemira sobre os joelhos. Tinha o aspecto melancólico, e sombras roxas sob os olhos. Não se mexeu: seus cílios simplesmente palpitaram, quando olhou para Moray.
- Olá, sua estrangeira, onde andou escondida? - E sentou-se ao lado dela. - Está melhor?
Ofendida com a vivacidade dele, Dóris não respondeu:
- Não foram poucos os que o calor abateu - prosseguiu ele. - Mas agora faz um tempo belíssimo!
Estavam no Oceano Indico, onde as suaves monções cantavam nas enxárcias, e um cardume de baleias novas, saltando alegremente, fazia jorrar fontes mornas em torno do navio.
- Já viu nossa escolta? - continuou ele. - Pensei que só no Ártico havia baleias; mas disse-me O'Neil que elas são encontradiças nestas regiões.
Ela não deu ouvidos à observação, que soou estulta e vazia. com a cabeça na almofada do espaldar e voltada para ele, olhava-o fixamente, como se estivesse sob a ação de um estupefaciente.
- Você é bem bom... - disse.
- Ora, Dóris... Que acontece?
- Não finja, depois do que fez. Foi um insulto. Ainda não lhe perdoei. com quem dançou enquanto estive ausente?
- com ninguém. Fiquei à espera da minha professora particular.
Seu rosto iluminou-se debilmente, e ela esboçou um lânguido sorriso.
- Por que não me visitou? Oh, não era preciso! Não suporto ninguém, quando tenho esses transtornos. Não são frequentes; não mais do que um em seis meses.
Ele a fitou curiosamente: então não era o que estava imaginando. Dóris prosseguiu:
- Mas não foi brincadeira. Mesmo depois que passa a dor de cabeça, fico tão arrasada...
- Isso não é de seu natural, Dorrie.
- Não me chame assim... parece mamãe. Quando adoeço, fico pensando no que vale a vida... Por que continuar? De que adianta? Sinto-me horrível, diferente de todas as outras moças... Elas, sim, são tão cheias de sentimentos delicados! Está me entendendo? Papagaio! - E riu de repente. - Como foi que me veio essa palavra? Papagaio!
- Ora, é bom a gente ser diferente...
- Folgo em que pense assim. Quis compreender isso quando saí do colégio. Queria que me respeitassem, queria tudo às direitas. Mas não adiantou. Por isso agora faço o que sinto, sabe? - o que sinto que desejo fazer. Não posso evitá-lo. Não está de acordo? Mata-se tudo quanto há dentro da gente, quando não se dá vazão aos sentimentos.
- Bem... - e ele a fitou perplexo. Por que estava ela a falar daquilo? Não podia absolutamente compreendê-la.
- Conhece o lema, "seja você mesmo"? É um desafio. Alegro-me porque sou feminina, feita para o amor; por conseguinte, quero ser eu mesma. Sentiu falta de mim? Não, não sentiu, seu bestalhão; faz amizade facilmente, vai com qualquer uma. Eu nunca tive amigos de verdade. Parece que não me entendo com ninguém, à exceção de você. - Fez uma pausa, depois disse em voz baixa: - Não vê que estou caída por você?
A confissão comoveu-o. A voz apática da moça e seu desânimo fora do comum tocaram-lhe o coração. Ao mesmo tempo, sentiu-se lisonjeado.
- Ora, vamos, Dorrie: não deve deixar que o desânimo tome conta de você. - Estendeu a mão e apertou a dela. - Se quer mesmo saber, senti realmente falta de você.
Inclinando a cabeça um pouco mais para o lado, ela fitou-o atentamente; depois, segurando a mão que ele fez menção de retirar, enfiou-a embaixo da manta de caxemira.
- É confortável assim. Senti tanta falta de você!
Moray ficou tremendamente embaraçado, não apenas pelo inesperado do gesto, mas porque ela, indubitavelmente sem o saber, comprimira-lhe os dedos contra a maciez quente da coxa.
- Vamos, Dóris - tentou ele falar com naturalidade. - Não deve fazer isso aqui; especialmente com o médico de bordo.
- Preciso que me acariciem, ainda que seja um pouco só. E olhe, não consinto qualquer um em minha vida. Oh, tenho andado com muitos rapazes: alguns, altos, largos de ombros, bonitos - mas você é diferente. O que sinto por você, não tem um pingo de egoísmo!
- Por favor... pode vir alguém...
- Diga que está me tomando o pulso - e lançou-lhe um olhar brejeiro e carinhoso. - Ou direi que é receita médica. Oh, não sabe o bem que me faz! Já me sinto menos lixo...
Afinal soltou-o com uma risada, mas não antes que uma onda de calor fizesse o sangue afluir às faces do rapaz. Calor que ele reprimiu no mesmo instante, forçando um sorriso de censura.
- Não deve se entregar a essa espécie de engodo, minha filha, ou vai acabar mal. Em primeiro lugar, você é bonita como o diabo; e, em segundo, pode topar com o homem errado.
- Já escolhi você...
- Agora escute, com toda a seriedade, - E decidido, mudou de assunto, - Estou pensando uma coisa. É a seguinte: como você ainda não está muito boa, acho que não devemos continuar participando das competições.
- O quê! - exclamou ela, perdendo o ar lânguido. - Dar o fora... agora? Depois que chegamos às finais e estamos quase certos de ganhar?
- Mas é que, se não dermos o fora e ganharmos os prémios, todos dirão que somos gananciosos.
- Que me importam os prémios? Um serviço de chá niquelado e uma louça barata, das Lojas Americanas! Claro que eu não as tocaria nem com ponta de um varejão! Mas, quando começo uma partida, tenho de acabá-la. Preciso convencer os outros de que valho alguma coisa. .. especialmente aquela cadela emproada, a Kindersley. Tenho respeito próprio. Quero mostrar que somos os melhores a bordo.
- Bem, talvez sejamos; mas por que esfregar-lhes isso na cara?
- Porque quero esfregar. E, quando quero uma coisa, habitualmente a obtenho. Agora posso estar um pouco por baixo, mas logo recupero a forma. E em três tempos!
- Então está bem. - E, com certa relutância, tratou de apaziguá-la. - Faça como quiser. Mas tem de jogar no sábado, o mais tardar. É a noite do jantar do capitão, e a apresentação será feita antes do concerto. - Dizendo isso, levantou-se. - Agora vou continuar no meu giro. Vê-la-ei mais tarde.
O sábado chegou, eles jogaram. Era de tarde e, segundo Moray previra, ganharam as três finais. Mrs. Kindersley e o marido esforçaram-se ao máximo no jogo de ténis, mas, como Dóris, inteiramente recuperada, fazia um jogo rápido e agressivo, eles mal puderam revidar à altura. O clímax foi atingido na última partida, quando Kindersley, num esforço para rebater, escorregou e, com um horrível baque, foi estatelar-se no tombadilho.
- Cuidado... - disse-lhe Dóris, debruçando-se por cima da rede com uma solicitude zombeteira. - Não faça o navio jogar...
Eram poucos os espectadores do jogo, de modo que a observação irónica tombou no vazio; e quando a partida terminou, os aplausos que saudaram os vencedores, mais do que frieza, foram de formalidade. Moray não gostou; mas Dóris, que voltara a animar-se, pareceu não reparar naquela ausência de entusiasmo. Seus pais, inevitavelmente presentes, também não repararam. Quando Moray saiu da quadra, Holbrook tomou-lhe o braço e arrastou-o para a sala de fumar.
- Acho que devemos ter uma conversa particular, doutor - observou ele com um sorriso de aprovação depois que se sentaram num canto tranquilo. - E quanto melhor a oportunidade, tanto melhor o negócio. Bebe alguma coisa? Não? Mas não recusa um suco de lima. Para mim, um aperitivo de uísque e soda.
Servidos os drinques, ele ergueu o copo.
- Saúde! Você me faz lembrar a mocidade, rapaz. Eu também era ambicioso - assistente de Química em Bootle, aviava receitas para uns farmacêuticos ignorantes, que não sabiam distinguir entre um ácido e um álcali. Muitas vezes tive de reclamar: "Doutor, o senhor prescreveu bicarbonato de sódio e ácido clorídrico na mesma receita! Se misturo os dois, o frasco explode!" Foi talvez por isso que me ocorreu a ideia de que havia muito dinheiro a ganhar com produtos patenteados. Quando consegui algumas economias, casei-me, abri uma farmaciazinha em Parkin Street, e comecei a vender remédios de minha própria fabricação. Pós Holbrook para Dores de Cabeça, Pasta de Sena Holbrook, Linimento Holbrook contra Torceduras... Lembro-me que me custava três quartas partes de pêni um frasco de linimento que eu vendia por um pêni e seis
pences, Excelente remédio! A Liga de Rugby gastava-o às carradas, e ainda hoje constitui um de nossos principais produtos. Foi assim que comecei rapaz...
Tomou um demorado gole de uísque, depois prosseguiu, relatando o desenvolvimento e a ampliação de seus negócios; fazia-o, não em tom de vanglória, mas com a tranquila segurança do homem do Norte que edificara uma empresa imensamente bem sucedida, e graças à qual amassara uma fortuna. A firma de Holbrook era uma das maiores fábricas de produtos químicos do Reino Unido, mas o grosso de seus proventos originava-se de uma grande quantidade de preparados altamente lucrativos, desde remédios para tosse até pílulas antibiliosas.
- E não os menospreze, doutor: são remédios de primeira classe; posso lhe mostrar milhares de testemunhos. Tenho um arquivo pessoal de cartas de agradecimento, de aquecer o coração da gente! - E num gesto de confiança, Holbrook aqueceu o seu próprio com mais um gole de uísque. - Agora somos proprietários de uma fábrica matriz em Bootle, uma filial em Cardiff e grandes armazéns distribuidores em Londres, Liverpool, Glasgow e Belfast. Mas não é tudo, rapaz - continuou Holbrook, espetando o indicador no peito de Moray. - Exportamos às carradas para o Oriente, e é por isso que meu filho Bert acaba de abrir novos escritórios e maiores depósitos em Calcutá. Temos planos... grandes planos... extensivos aos Estados Unidos. Depois que instalar a nossa filial de Calcutá, Bert irá a Nova Iorque. Já descobriu ali um ótimo lugar para localização de uma fábrica. E lembre-se de que o negócio vai ser diferente nos Estados Unidos. Os tempos estão mudando e nós caminhamos para produtos de alta classe: vitaminas e coisas assim. Até podemos tentar a fabricação de alguns barbitúricos. Mas acredite: seja o que for que empreendermos, o nosso sucesso será brutal.
Encostou-se no espaldar da poltrona, tirou um cigarro, acendeu-o, ofegou um pouco; depois, com os olhos cintilantes ainda presos a Moray, esboçou um sorriso:
- São essas as minhas perspectivas de futuro, rapaz... e agora pergunto: quais são as suas?
- Bem... eu... - e Moray corou um pouco ante essa pergunta sem rebuços. - Quando eu regressar desta viagem, tenho um lugar à minha espera: é num hospital. Um bom lugar, com oportunidades para pesquisa... e um ordenado de quinhentas libras.
- Bem- esse é um emprego bastante razoável, mas, com sua licença, bastante ordinário. A pergunta que fiz era sobre as suas perspectivas de futuro...
- Naturalmente... espero progredir.. .
- Progredir como? Mudando-se para um hospital maior? Estou muito familiarizado com esse setor interiorano. Levará anos. Quando a gente entra para o serviço de um hospital, fica atolado nele pelo resto da vida. E para um sujeito inteligente como você, que tem miolo e personalidade, isso seria um crime.
- Não creio - respondeu Moray, com certa rispidez.
- Pois eu creio. E nada lhe diria, se a patroa e eu não o tivéssemos na mais alta conta. Agora escute aqui - e com um piparote fez cair no cinzeiro a cinza do charuto, - não sou homem para perder tempo. Temos, em nossa firma, um lugar para um médico moço como você, especialmente em nossa fábrica dos Estados Unidos. Você podia dar-nos conselhos técnicos, inventar preparados, encarregar-se da nossa propaganda, e, desde que falou em pesquisa, também podia trabalhar no laboratório. Em nossa opinião, seria bom ter um profissional na diretoria. Quanto a ordenado - e fez uma pausa, trazendo Moray suspenso de seu olho cordial e congestionado - começaria com mil e quinhentas libras por ano, com uma possível gratificação e aumentos anuais. Além disso, chego mesmo a prever que, em tempo oportuno, e se as coisas correrem bem entre nós dois, até pode entrar como sócio da empresa.
Inteiramente surpreso, em verdade aturdido, Moray desviou seu olhar do dele. A natureza dessa oferta espantosa, conquanto tivesse sólidas bases na lógica comercial, era, em realidade, tão transparente como a vigia pela qual ele fitava, com certo embaraço, a lenta elevação do céu. A intenção de Holbrook era essa mesma: que ela fosse transparente. Mas como recusar de modo cortês, sem ferir os sentimentos daquele camarada, sem provocar um esfriamento de suas relações com toda a família? Aí é que batia o ponto. Afinal, Moray disse:
- É extremamente generoso de sua parte, Mr. Holbrook, e sinto-me profundamente honrado com a boa opinião que tem a meu respeito. Mas já aceitei a nomeação para o hospital... já dei a minha palavra, à qual não posso faltar.
- Então arranjaremos outro - respondeu Holbrook sem hesitar. - E sem a menor dificuldade. Vai haver afluência de candidatos.
Moray calou-se. Sabia que bastava mencionar o seu compromisso matrimonial para que o oferecimento fosse retirado. Mas, por
alguma razão obscura, talvez por um excesso de sensibilidade, ou uma exagerada delicadeza de sentimento, ele hesitou. Era tão bem visto por essa digna família, que não o seduzia a ideia de estragar o que sem dúvida aconteceria - relações tão agradáveis e satisfatórias. Além disso, o assunto de seu noivado nunca viera à tona durante a viagem. Não era culpa dele se o tomaram por um rapaz disponível: simplesmente não houvera oportunidade de aludir ao tema. Seria singularmente doloroso se o tivesse de fazer agora. Daria a todos a impressão de que era um idiota consumado, ou talvez pior, como se tivesse vergonha de aludir a Mary. Não: com o fim da viagem à vista, não queria colocar-se em posição tão odiosa. Não valia a pena. Mais alguns dias e os Holbrooks partiriam; nunca mais voltaria a vê-los. E, na viagem de regresso para seu país, tomaria cuidado para desde logo declarar a sua posição, a fim de que não mais voltasse a acontecer essa espécie de... contrariedade. Mas por enquanto era melhor contemporizar.
- Não preciso dizer o quanto aprecio o interesse que tem por mim. Mas, naturalmente, com tão importante decisão a tomar, preciso refletir.
- Reflita, rapaz - disse Holbrook com um aceno animador. - Quanto mais refletir no assunto, tanto melhor o achará. E não se esqueça do conselho que lhe dei. Quando uma oportunidade se atravessar no seu caminho, agarre-a!
Moray desceu à cabina e se trancou lá dentro. Queria ficar só, não para examinar aquela oferta extraordinária (não tinha a menor intenção de aceitá-la), mas simplesmente para se explicar, para refletir sobre o acontecimento em todos os seus pormenores. Em primeiro lugar, não havia dúvida de que os pais de Dóris haviam simpatizado com ele desde o princípio. Mrs. Holbrook, principalmente, demonstrara grande predileção por ele, tendo-se tornado depois quase maternal em suas atitudes. O velho Holbrook, embora mais difícil, também fora conquistado, ou fosse mediante persuasão de parte da mulher, ou em virtude de uma real estima por Moray. Em segundo lugar, até onde chegava o seu entendimento, havia uma vantagem positiva para Holbrook e seu filho Bert na aquisição de um jovem médico, ativo e inteligente, para a nova especulação comercial nos Estados Unidos. Até aí, muito bem, pensou Moray; mas a resposta ainda não bastava. Devia haver uma terceira razão, e esta decisiva, para ligar os outros dois fatores.
Sacudiu a cabeça inconscientemente, numa renúncia imediata a qualquer convencimento ou vaidade; entretanto, não havia fugir
ao fato de que a própria Dóris devia desempenhar um importante papel no desenvolvimento dessa situação imprevista. Mesmo sem a evidência das recentes observações de Mrs. Kindersley, havia provas suficientes da conduta de Dóris. Não pertencia ela ao tipo das "apaixonadas", não era dessas que suspiram olhando a lua; mas o seu olhar tinha um significado tão específico, que só um idiota poderia equivocar-se. Acrescente-se a isso a influência que, como filha mimada, exercia sobre os pais, acostumados a ceder às suas vontades, e, no caso presente, desejosos de a verem assentada num casamento aceitável, e a resposta estava completa.
Mercê dessas reflexões, Moray franzira o cenho. Agora, porém, olhando-se no espelho, esboçou um sorriso aborrecido. com efeito, Dóris fora às do cabo... e de ponta cabeça. Não, não, não havia graça nisso, nem um pouco de graça... Ao contrário - e seu rosto voltou à expressão de sempre - sentia-se desconcertado e constrangido, embora indubitavelmente fosse lisonjeiro sentir-se desejado e estar uma garota rica e bonita tão "caidinha por ele" (aqui lhe ocorreu a frase absurda de Mrs. Kindersley e ele sorriu), especialmente quando aqueles momentos na coberta superior, e outros ainda, lhe vinham à lembrança, como agora faziam, num súbito e perturbador atropelo...
Conteve-se, entretanto, e olhou o relógio - o belo Patek Phillippe, cujo mostrador assinalava cinco minutos para as seis. Santo Deus, esquecera-se da hora da consulta! Tinha de correr. Sua vida tornara-se, em verdade, muito excitante ultimamente. Mas, antes de sair da cabina, dirigiu-se ao cofre de cabeceira e daí tirou o medalhão que Mary lhe dera. Fitando o meigo e querido rostinho do instantâneo, invadiu-o uma onda de ternura. Murmurou comovido: "Como se eu pudesse abandoná-la... Meu benzinho!"
Sim, a imagem dela seria a sua proteção. Daí por diante se mostraria calmo e composto, delicado e amável, naturalmente, mas inflexível a qualquer tolice de Dóris. Faltavam apenas dez dias para chegarem a Calcutá. E ele jurou, por tudo quanto tinha de mais caro no mundo, que manteria essa atitude de discrição até que o perigo passasse e a viagem chegasse ao fim.
CAPÍTULO TREZE
Passaram-se os dez dias, chegaram ao delta do Hooghly, e Moray, sozinho na sala de consulta, fazendo um retrospecto daquela temporada, só descobria razões para estar satisfeito consigo mesmo. Sim: cumprira a sua palavra. No jantar do capitão - hilariante brincadeira realçada por bandeirolas de papel, cornetas de brinquedo e narizes postiços - fora um modelo de discrição. Em verdade, até fora melhor do que isso. Resolvido a não permitir que Dóris fizesse uma exibição de si mesma, e dele, perante todo o navio, quando O'Neil fez a leitura dos vencedores das provas esportivas, ele levantou-se, tímida porém tranquilamente, numa atitude inesperada, que a todos surpreendeu.
- Capitão Torrance, Mr. O'Neil, senhoras e senhores: posso, com a vossa permissão, dizer que Miss Holbrook e eu compreendemos perfeitamente, e desde o início, que, na qualidade de tripulante deste navio, não me era realmente lícito concorrer a estes jogos. Só competimos por brincadeira, e, embora tivéssemos a sorte de vencer, mutuamente concordamos em não aceitar os prémios que, em todos os páreos, desejamos ver atribuídos aos outros concorrentes.
Quando ele se sentou, em vez dos poucos e vagos aplausos que teriam irrompido, houve uma súbita e prolongada explosão de palmas. Os Holbrooks estavam encantados, pois até eles tinham enfim começado a participar do sentimento geral; Mrs. Kindersley levantou-se e, toda sorridente, foi buscar seu serviço de chá; em seguida, o capitão dirigiu a Moray uma palavra de aprovação. Só Dóris reagiu desfavoravelmente, com um olhar repleto de malignidade:
- Por que diacho você fez isso?
- Pensei que, para variar, você gostasse de ser apreciada...
- Apreciada! Bolas! Preferia que me vaiassem!
Dançou com ela apenas duas contradanças, bebeu um único copo de champanha, e, em seguida, alegando que tinha cartas a escrever, pediu licença e retirou-se para a cabina.
Nos dias subsequentes, embora não fosse fácil, a coisa foi entretanto menos difícil. Ele evitava a coberta de passeio que ela habitualmente frequentava, e quando acaso se encontravam falava-lhe num tom superficial e jocoso. Não só isso, mas desenvolvia grande atividade, pois a aproximação do porto de chegada tornava plausível a sua alegação de excesso de trabalho. O que Dóris pensava,
não sabia; em seguida ao jantar do capitão, dera para fitá-lo com os olhos apertados, quase zombeteiros. Em certas ocasiões sorria, e uma ou duas vezes, a uma simples observação de parte dele, rompeu a rir. Decerto que os pais dela de nada suspeitavam, pois eram cada vez mais pródigos em atenções para com ele.
De repente Moray suspirou - o esforço fora realmente grande; depois, levantando-se, fechou a sala de consulta e subiu para a coberta.
Reunira-se a estibordo um grupo de passageiros que contemplava a margem do rio com um interesse acrescido pelos longos dias de permanência no mar. Altos coqueiros se elevavam na praia lamacenta, iluminada por lampejos de pássaros tropicais; nativos afundados até aos joelhos na água amarelada, lançavam e puxavam duas redes circulares; catamarãs passavam ondulando, e o navio mal se movia, quase estacionário, à espera do prático. Os Holbrooks faziam parte do grupo, e Moray, sentindo-se seguro no meio de tanta gente, se lhes foi reunir. Mrs. Holbrook, excitada, segurou-lhe imediatamente o braço.
- Temos esperança de que Bert venha a bordo na companhia do prático... Não que isso seja fácil de conseguir...
Enquanto falava, uma lancha a motor precipitou-se para fora da praia arenosa e orlada de palmeiras e veio flutuar ao longo do navio. Logo, outra figura se avistou, que olhava para cima e acenava, junto do prático de uniforme.
- É o nosso Bert - exclamou alegremente Mrs. Holbrook que, orgulhosa, acrescentou para o marido: - Viu como ele conseguiu vir junto?
Dentro de alguns minutos, Bert estava a bordo e abraçava todos os três. Era um rapaz louro, gorducho, de rosto corado e índole expansiva, de cerca de trinta e um ou trinta e dois anos, com um terno de tussor de seda acinturado e de talho esportivo, o capacete de sol posto de banda, belos sapatos de camurça em dois tons e uma espantosa gravata de laço. Embora com propensão para engordar, Bert, que retirara o capacete, mostrava cabelos que rareavam no alto da cabeça; tinha entretanto qualquer coisa do dândi, dentes obturados a ouro, e exibia em sua pessoa certos artigos, bastante dispensáveis, de joalheria. Seus olhos, um tanto salientes, irradiavam cordialidade, eram agradavelmente azuis e tinham um brilho levemente vidrado. Seu riso pronto, cheio de bonomia e esportividade - riso que valia como pancadinhas nas costas, - vibrava pelo tombadilho afora. Tiróide demasiado ativa, mas boa praça, pensou Moray,
que estava a alguns passos de distância, vendo Bert que se dirigia para ele a fim de ser apresentado.
O encontro foi cordial. Basta um par de horas, pensou Moray, para qualquer um ficar amigo velho de Bert! Mas como percebeu que o irmão de Dóris ainda não sabia da sua estreita amizade com a família, logo retirou-se, cheio de tato, para a sua cabina. Mas na hora do almoço, quando Bert e o pai chegaram do bar, Moray já estava à mesa, e sentiu um braço fraternal enlaçar-lhe os ombros, enquanto uma voz bem-educada lhe dizia:
- Não sabia que o senhor viajava conosco, doutor. Não ficaria mais contente se tivesse ganho o sweepstake de Calcutá. Logo teremos um verdadeiro bate-papo.
A lenta subida do rio facultou-lhes, segundo Bert, bastante tempo para se conhecerem, e não tardou muito para Moray perceber que, embora Bert pudesse ser um rapaz folgazão, atirado e brincalhão, um tanto vaidoso, talvez, e com acentuada tendência para tomar gim a qualquer hora do dia, ele tinha ao mesmo tempo, a exemplo do pai, bom coração, e forte sentimento de família. Além disso, apesar de toda a sua expansividade e alegria de viver - segundo dizia sua mãe - Bert tinha a cabeça no lugar. com efeito, logo se revelou um sujeito bem informado, e, ao tratar de negócios, seria por certo um camarada de cabeça fria, capaz de conseguir o que desejava. Viajara muito para a firma, passara ultimamente três meses nos Estados Unidos, e vinha transbordante das oportunidades e excitações de Nova Iorque. Falava bem, com um ar de homem do mundo - uma espécie de verve íntima, que transpirava alegria e cordialidade.
Na companhia dele, Moray achou a passagem do rio demasiado breve, e sentiu um real desapontamento quando chegaram a Calcutá e o Pindari, batendo a água amarelada, começou a manobrar para atracar na doca Vitória, enquanto o habitual pandemônio de desembarque tomava conta do navio. No meio do tumulto, Bert permanecia frio e sossegado; havia tudo providenciado e controlado; com ele, rapidez e eficiência eram a ordem do dia. Ao descerem à doca, seu longo Chrisler aberto e um caminhão surgiram e encostaram. com seus pais e Dóris, ele desceu o passadiço da bagagem: foi o primeiro a deixar o navio. Três carregadores de bordo o seguiam com a bagagem miúda. No galpão da alfândega, onde os outros passageiros aguardavam interminavelmente, um aceno de Bert para o babu-chefe deu saída aos Holbrooks, sem mais formalidades. Depois, tomando lugar no enorme carro, os três rodaram para os apartamentos que haviam reservado no Hotel Norte-Oriental.
Tudo isso aconteceu tão depressa que Moray ficou um tanto aturdido. Disseram-lhe adeus, naturalmente, mas com grande precipitação e preocupação, deixando-lhe a impressão pouco satisfatória e ligeiramente dolorosa de que fora sumariamente abandonado. Verdade que não tinha liberdade para acompanhá-los; entretanto acreditava que eles deviam pelo menos ter feito menção de um encontro futuro. Todavia, como o Pindari ia ficar fundeado durante duas semanas, carregando teca, chá, borracha e artigos de algodão, refletiu que haveria uma oportunidade de os encontrar mais tarde. Em qualquer caso, não era melhor que tivessem ido, deixando-o livre de conflitos, a mente tranquila e em paz? Entregou-se, por conseguinte, aos seus deveres oficiais. Esteve ativo a maior parte da tarde, e, quando o último passageiro deixou o navio, sua primeira reação foi a de um doce alívio. As pressões que suportara foram rigorosas - e agora era bom distender os nervos.
Mas naquela noite acometeu-o uma inexplicável depressão, que o não deixou nem mesmo no dia seguinte. O capitão se fora para o seu costumeiro alojamento em terra, O'Neil, saindo alegremente para uma excursão ao longo do litoral de Kendrapara, deixou Jones, o segundo-piloto, galês idoso e pouco comunicativo, atendendo às operações de rotina. Jones, homem frustrado, e enterrado, com licença de arrais, numa posição subalterna, nunca dera muita atenção a Moray, e agora o ignorou quase de todo. Passava a maior parte do dia na cantina da doca, lendo curvado sobre brochuras de mistério, enfiando o dedo no nariz, e deixando a maior parte da sua tarefa relegada ao timoneiro. Quando a noite descia, fechava-se no beliche e tocava sanfona com uma comovente doçura. Nunca descia em terra, a não ser para comprar elefantes de marfim para a esposa ausente. Garantiu a Moray que já contava com um armário repleto deles em sua casa de Porthcawl.
O navio deserto, atracado na doca imunda e infestada de mosquitos, exposto ao tumulto da descarga, ao pairar ruidoso e interminável dos estivadores nativos, ao apito das sereias e ao ranger das gruas, era muito diferente do nobre navio que tão galhardamente desafiara as ondas azuis. Era, em verdade, um alojamento pavoroso. O calor sufocava, na cabina enxameavam os mosquitos que o mantinham acordado durante a noite com seu zumbido estrídulo e ameaçador, obrigando-o a tomar medidas de precaução contra a malária. Os quinze grãos diários de quinino ainda mais o deprimiam; e, para agravar a situação, o agente dera aviso de que o navio-correio se atrasara devido a uma greve em Tilbury e só chegaria na semana
seguinte. Sentindo-se ainda mais abandonado com a falta de correspondência, seus pensamentos melancólicos mais e mais se voltavam para os amigos que tinham descido em terra.
Por que diacho não recebia notícias dos Holbrooks? Por quê... por quê... por quê? Primeiro com irritação, depois com ansiedade, e afinal com o aperto de coração de uma esperança sempre adiada, fazia e tornava a fazer essa pergunta a si mesmo. Inconcebível que o tivessem esquecido e jogado fora como rebotalho; como alguém que tivessem usado durante a viagem e que agora não queriam mais. A ideia mortificante crescia dentro dele. Imaginava-os num hotel de luxo, cada minuto de seu dia repleto de divertimentos e visões de lugares novos, com novos rostos e novos amigos a rodeá-los. Era fácil esquecer entre tantas distrações. E Dóris... sem dúvida teria encontrado um novo objeto de interesse, ela que andava louca por ele... Entre apreensão e raiva, contraía-se de ciúme. Acima de tudo, era isso o que mais o atormentava. Somente seu orgulho e o receio de uma repulsa o impediam de telefonar-lhe para o hotel.
Esforçando-se para continuar ativo, ensaiou uma descida experimental no porto. Mas as docas ficavam a milhas de distância da cidade propriamente dita, ele não conseguiu condução, e, após perder-se num amontoado de choças arruinadas, onde nativos acocorados esguichavam suco de bétel na poeira sufocante, confessou-se afinal derrotado e devagar se arrastou de volta para o navio, com a infeliz sensação de ter revertido aos dias monótonos e sombrios de sua mocidade.
Foi então que começou, com verdadeiro desespero, a achar falta nos Holbrooks e em tudo quanto desfrutara em sua companhia. Que admirável família aquela, como era hospitaleira, generosa e... - agora já não o escondia - rica! Nunca mais se lhe apresentaria uma ocasião de conhecer gente igual àquela! Mrs. Holbrook, tão terna, bondosa, maternal... E Bert, que ótimo sujeito! Tinham simpatizado um com o outro à primeira vista... E o oferecimento que o velho lhe fizera, mesmo admitindo que não poderia aceitá-lo, era fantasticamente vantajoso, só acontecia uma vez na vida... Nunca mais lhe surgiria uma oportunidade áurea, igual a essa. Nunca. Comparado a ela, o seu futuro no insignificante Hospital Glenburn se obscurecia numa exasperadora insignificância. E ele, que se acreditava ambicioso...
E Dorrie, não deplorava ele a sua perda mais do que a dos outros? Como era linda! Suas caprichosas disposições de ânimo eram até mesmo fascinantes. A gente nunca se cansava dela. Ao contrário, só
estar em sua companhia já era suficiente excitação. De noite, na cabina sufocante, contígua à alta amurada das docas, virava e revirava na
cama-beliche, pensando nas várias vezes que dançaram juntos, e em como, fitando-o nos olhos com aquela expressão atenta e silenciosa de convite, apertara-o contra si; depois, naquela noite no tombadilho, em que todas as possibilidades lhe foram franqueadas... Invadiu-o uma onda inflamada de desejo... Que idiota fora em rejeitar oferta tão sedutora! Como O'Neil zombaria dele se soubesse... E que grande idiota ela pensava que ele era! Poderia censurá-la por havê-lo riscado de uma vez? E, num acesso de aflição e de autodesprêzo, Moray afundou o rosto no travesseiro.
CAPÍTULO QUATORZE
No fim da semana, numa tarde de calor exasperante, enquanto - - Moray, ociosamente debruçado na amurada, estava mais deprimido do que nunca, eis que viu, como numa miragem, o cintilante Chrisler entrar na doca e encostar paralelamente ao navio. Estupefato, levou a mão aos olhos. Aquilo não podia ser verdade: o sol e sua imaginação é que produziam essa alucinação visual. Mas não era assim. Graciosamente reclinado no assento traseiro, um braço negligentemente pousado no espaldar, as pernas gorduchas descuidosamente cruzadas, um charuto Burma levemente seguro entre os dedos cheios de anéis, o capacete de banda - eis Bert que chegava!
- Enganar-me-ão os meus olhos cansados, ou o que estou vendo é o médico de bordo do bom navio Pindari - disse Bert arreganhando um sorriso. Depois, com uma voz diferente: - Traga os troços, velhinho. Vai ficar conosco.
O coração de Moray deu um salto. Não fora esquecido por eles. Pálido de emoção e alívio, precipitou-se para a cabina. Que idiota fora! Naturalmente que o queriam, não podia ser de outra forma. Em menos de cinco minutos vestiu-se à paisana e entrou no carro com a sua valise, que o chofer colocou no porta-malas. Enquanto o carro rodava em direção à cidade, Bert explicou por que demorara em ir buscá-lo: uma pequena dificuldade na locação do depósito, que levou alguns dias para ser aplainada. Agora, porém, assinara-se o acordo e estavam livres para se entregarem aos divertimentos que a cidade oferecia.
- Isto é um burgo muito animado, quando a gente o conhece - confidenciou Bert. - Houve um idiota que lhe deu a alcunha de "Cidade da Noite de Horrores", mas descobri em suas noites coisa muito melhor do que o horror: um par de enfermeirinhas euroasiáticas... o que há de mais lindo e cheio de fogo... - E atirou para o ar um beijo elucidativo. - Falo com a voz da experiência, velhinho. Sei que você só se interessa pela nossa Dorrie. E acredite: embora ela seja minha irmã, Dorrie é também muito boa...
Emergindo do amontoado suburbano de barracos em ruínas, entraram na cidade propriamente dita pelo trecho largo e povoado da estrada de Chowringhe, passaram pela grande praça cheia de ficus e lamentáveis estátuas equestres, parando em seguida sob o alto pórtico do Hotel Norte-Oriental. Fizeram-nos entrar entre mesuras para o alto saguão de colunas de mármore e ventiladores zumbindo no teto, e Bert o conduziu escada acima para o quarto que lhe mandara reservar, e que era contíguo ao seu próprio apartamento no primeiro andar.
- vou levar meia hora para me vestir - disse ele, olhando o relógio. - Mamãe e papai saíram, mas nós nos encontraremos todos para o tiffin, Dave, quer dizer, para o almoço.
Depois que Bert saiu, Moray olhou em torno. O quarto era luxuosíssimo - espaçoso e fresco, o piso azulejado com bom gosto, as persianas rendilhadas e refrigerantes, o leito largo e alto sombreado por um cortinado já corrido a fim de entremostrar a brancura imaculada de seus linhos. A mobília era pintada num suave tom de verde, e havia na penteadeira um vaso de rosas. Ao lado ficava o banheiro, branco e reluzente, com uma opulência de toalhas, sabonete, sais para banho e um macio roupão felpudo. Moray sorriu, deliciado. Que diferença de sua exígua e abafada cabina, enxameada de mosquitos! Isto sim era um quarto de verdade! Tirou da valise suas magras coisas, tomou um banho, e estava escovando o cabelo quando a porta se abriu e Dóris entrou.
- Alo - disse ela laconicamente.
Ele voltou-se.
- Dorrie... como vai você?
- Ainda respiro... se é que isso lhe interessa...
Olharam-se em silêncio - ele, com uma admiração fervorosa; ela, com um rosto quase vazio de expressão. Estava trajada com um elegante vestido novo, muito justo, e de uma suave tonalidade de petúnia, finas meias de seda bege, e sapatos de camurça, de salto alto. Pusera nos lábios um batom que combinava admiravelmente
com a rósea, cor predominante no vestido, e, pelo visto, acabara de pentear-se naquele mesmo instante. Parecia diferente, mais elegante do que no navio, mais madura, mas sedutoramente sofisticada e - ai dele! - mais inatingível. Seu perfume penetrava-lhe as narinas.
- Você está... maravilhosa - disse ele com voz rouca.
- Sim - observou ela com frieza, lendo-lhe nos olhos. - Acho que você está um tanto alegrinho em ver-me...
- Mais do que um tanto! Mas pergunto: que me diz de você?
Ela lançou-lhe um longo olhar direto, depois mal sorriu.
- Você está aqui, não está? Me parece que a resposta é essa...
- Bondade de vocês em quererem que eu viesse; lá nas docas levava-se uma vida desgraçada...
- Pensei isso mesmo - disse ela, concordando glacialmente. - Quis castigá-lo.
Ele fitou-a, perplexo.
- Castigar-me... por quê?
- Queria, eis tudo! - respondeu ela sem se explicar. - Às vezes gosto de ser cruel.
- Garota sadista... - comentou ele, tentando dar à voz a pontinha de mofa que anteriormente usara para com ela. Todavia, enquanto falava, tinha a esquisita sensação de que o equilíbrio de suas relações havia-se alterado, passara todo para o domínio dela, e sentiu de repente e com espanto, o desejo da moça em tornar claro que, em terra firme, ele deixava de ser o arrojado e desejado jovem médico de bordo, de uniforme azul-marinho da Companhia, para não ser mais do que um rapaz ordinário de um só terno que não lhe assentava e que era absolutamente impróprio para o clima. Entretanto, embora ciente do efeito que produzira, ela mudou de assunto como se este já não mais lhe interessasse:
- Gosta de meu vestido novo?
- É um sonho - disse ele, esforçando-se para falar aereamente. -
Comprou-o aqui?
- Compramos a seda ontem, num bazar. Há ali maravilhosos tecidos da terra. E o vestido foi feito em vinte e quatro horas.
- Trabalho rápido - comentou ele.
- E a tempo - disse ela friamente. - Não sei esperar; não suporto que me deixem para trás. Para ser franca, fartei-me disso nestas duas últimas semanas, com você me deixando a tomar ar. E incidentalmente, porque o escolhi, não pense que estamos às boas. Ainda não lhe perdoei; falta muito para isso. Preciso ter uma conversa com você. - E ao voltar-se para sair, como que a permitir-se um
certo abrandamento, sua expressão desanuviou-se. - Espero que goste do quarto. Fui eu que trouxe as rosas. Meu quarto é em frente... - disse, lançando-lhe um olhar significativo. - Caso precise de alguma coisa...
Depois que ela saiu, Moray ficou pasmado, a olhar as almofadas da porta. Dóris parecia ofendida, e não era para menos, depois da frieza com que ele a tratara. Que estupidez, que grosseria, haver-lhe ofendido os sentimentos! Esperava que ela lhe perdoasse.
No andar térreo, no grande saguão de mármore, a acolhida dos velhos Holbrooks foi de todo diferente, quase a que se faz a um filho que regressa; Mrs. Holbrook chegou a dar-lhe um beijo na face. O almoço não foi somente uma reunião, mas uma festa. A mesa ficava perto da janela sobranceira ao jardim. Quatro nativos de túnicas brancas, faixas vermelhas e turbantes da mesma cor permaneciam postados atrás das cadeiras, e a refeição, escolhida por Bert, era suculenta, apimentada e exótica. Depois daquele dia memorável no Grand Gairsay, era a primeira vez que Moray se hospedava num hotel; mas se alguma lembrança do outro almoço, tão diferente, lhe cruzou pela mente, logo se dissipou, varrida pela risada explosiva de Bert. Exuberantemente disposto a mostrar-lhes a cidade, ia ele, enquanto chupava uma suculenta manga, delineando o programa para a semana entrante. Naquela tarde lhes propunha uma visita ao templo Jain e aos Jardins de ManicHola, a fim de verem os famosos peixes no lago ornamental.
- São notáveis - concluiu ele. - Sobem à superfície e vão para perto de quem os chama.
- Ora, ora, Bert... - disse Mrs. Holbrook, sorrindo num carinhoso protesto.
- Falo sério, mamãe; não estou brincando. Chegam a comer na sua mão, se a senhora o quiser!
- Imaginem só! De que é que os peixes mais gostam?
- Batatas fritas - disse Dóris com voz aborrecida; depois rompeu num acesso de riso.
Depois de uma sesta, e quando o sol começou a declinar, saíram rumo aos bazares onde o gado sagrado, engrinaldado de cravos-daíndia, vagueava entre as tendas, dando marradas no meio do povo e comendo à vontade as frutas em exposição. Sons estranhos, estridentes e longínquos, feriam o ouvido, elevando-se acima da violenta algaravia nativa: o sino distante de uma igreja, o ribombar de um gongo, um súbito grito estrídulo que perdurava, fazendo vibrar os nervos... O ar estava carregado de essências aromáticas, capitosas
e provocantes, que pungiam as narinas e embriagavam os sentidos. Moray sentia-se como que no ar, absorvido por uma extrema excitação e beatitude. A individualidade se lhe anulara, ele já não era ele mesmo, mas outro homem totalmente diverso, no limiar de uma nova e emocionante aventura.
Chegando ao templo, tiraram os sapatos e entraram na penumbra pesada de incenso, onde um grande Buda idoso exibia eternamente o seu sorriso irónico e impassível. Vaguearam nos jardins do joalheiro da corte - teia de filigrana decorativa - e deram de comer a enormes carpas obedientes. A embriaguez de Moray crescia. Dóris, em seu vestido cor de petúnia e chapeuzinho de palha trançada, com uma fita a lhe cair da aba em duas pontas tantalizantes, tomara emprestado o encanto especial da própria tarde. Sentado junto dela, no regresso para o hotel, Moray virou-se e disse-lhe, transbordante de gratidão:
- Foi tudo tão maravilhoso, Dorrie... graças, especialmente, à sua companhia...
Ela percebeu-lhe a mudança, e como, desde o almoço, os modos dele iam num crescendo possessivo, quando quer que ele avançasse, ela recuava. Agora, porém, sacudiu discretamente a cabeça num gesto afirmativo, como se se preparasse para um novo abrandamento.
- Ah, afinal acredita que faço alguma diferença!
- Faz toda a diferença - murmurou ele fervorosamente, acrescentando desconsolado: - Mas você está tão fria... Parece que eu é que não faço grande diferença para você.
- Não faz?
Seus olhos se anuviaram; depois, sem que a observassem, ergueu de súbito a mão dele e ferrou-lhe os dentes no dedo indicador. A mordida, penetrante e dolorosa, varou-lhe a pele.
- É para mostrar-lhe se sou fria - disse ela; e fitando-lhe o rosto, enquanto ele instintivamente cuidava da mordida, rompeu a rir. - Bem feito, pelos insultos que me fez nestas duas últimas semanas.
No dia seguinte, Bert levou-os às corridas. Tinha bilhetes para o prado e arquibancadas reservadas ao clube, bem como um palpite das cocheiras, concernente ao páreo principal. Não era possível nenhum erro - nenhum, nenhum. O cavalo Maiden Palm, que Moray apoiara a conselho de Bert, chegou com um avanço de três corpos. Isso, sim, era viver! Isso, sim, era a vida! E Dóris já o tratava melhor, muito melhor. Era como se, tendo-lhe corrigido os defeitos antigos, agora tivesse finalmente resolvido olvidá-los.
No dia seguinte ao das corridas, visitaram o famoso Jardim Zoológico, cruzaram o Howrah, e contemplaram, a uma discreta distância, as plataformas de cremação à margem do Hooghly; foram tomar chá no Real Clube de Golfe de Calcutá, e encerraram o dia com uma excursão rio abaixo até Sutanati. O dinheiro abria todas as portas. Bert em férias era gastador, dava propinas com extraordinária prodigalidade. Moray viu centenas de notas de uma rupia, inexaustivamente materializadas na palma da mão de Bert, passarem destramente para mãos estendidas. Que maravilha não ser preciso poupar e catar, contando cada miserável moeda na penúria que toda a vida ele conhecera, mas, em vez disso, ter dinheiro, dinheiro de verdade, mais do que o suficiente para desfrutar as boas coisas da vida.
O tempo voava à medida que um divertimento se seguia a outro em rápida sucessão. Moray simplesmente deixava-se levar, recalcando todo o pensamento de advertência, bloqueando o passado e o futuro, vivendo apenas no presente. Mas a data da partida do Pindari aproximava-se. Quando soube que partiria na terça-feira seguinte, a febre de seu sangue atingiu o auge. Tudo quanto desejara na vida estava ali, ao alcance de sua mão; bastava-lhe estendê-la e agarrar. Holbrook, suave e amável, não insistira na oferta: esta fora feita e ainda era válida - sólida oferta de um homem abastado, esperando a resposta de Moray. Mrs. Holbrook, mediante insinuações e instâncias, desejava ardentemente que ele a aceitasse. Bert, entretanto, não tinha nenhuma dúvida sobre o assunto. Na sexta-feira à tarde, ao chegar do Clube de Bengala, do qual era sócio - em trânsito, encontrou Moray no salão do hotel e arrastou uma cadeira para junto dele.
- - Tenho boas notícias para você, Dave. - Desde o começo estavam em termos tais de intimidade que se chamavam pelos apelidos. - Tratei de procurar-lhe um substituto... para a viagem de regresso. Agorinha mesmo, no clube, topei com um médico do I.M.S., que vai à Inglaterra de licença. Chama-se Collins. Pulou de contente ante a oportunidade de uma viagem grátis, e ainda por cima o salário. É o nosso homem.
Como que ferrado por UMA vespa, Moray pôs-se ereto na cadeira. A inesperada declaração de Bert e a presunção de fato consumado, levaram o assunto a uma conclusão. Uma repentina onda de fraqueza invadiu-o e, cedendo à debilidade, sentiu que
3. Indian Medicai Service (Serviço Médico Hindu) - N. da T.
devia finalmente desabafar. No fim de contas, a quem melhor podia revelar e explicar a situação do que a um sujeito bom como Bert?
- Olhe aqui, Bert... - disse com certa hesitação. - Você sabe, naturalmente... que eu gostaria de aceitar o oferecimento de seu pai... especialmente para trabalhar com você. Mas... será que devo...
- Santo Deus, por que não? Sem falar em Dorrie, precisamos de um médico na empresa. Gostamos de você. Você gosta de nós. Detesto acentuá-lo, meu velho, mas, para você, a ocasião é um pão e um pedaço. Não sei se se lembra da expressão de Wagglespear: "os negócios humanos também têm maré"...
- Mas, Bert... - prosseguiu Moray abjetamente, depois calou-se. Entretanto precisava dizê-lo, embora tivesse de arrancar cada palavra da boca do próprio estômago: - Há alguém... uma garota... que está à minha espera...
Bert fitou-o um longo instante, depois rompeu num acesso de riso.
- Não me mate de riso, Dave. Ora essa, eu tenho uma porção de garotas que me esperam em toda a Europa... e em breve a minha pequena eurásia estará esperando por mim em Calcutá!
- Mas você não compreende... Eu prometi... prometi casar-me com ela.
Bert tornou a rir, um tanto compadecido e compreensivo; depois sacudiu a cabeça.
- Você é mais jovem do que a idade que tem, Dave, e um pouco ingénuo ainda. Acho que essa é, em parte, a razão por que simpatizamos com você. Se você conhecesse as garotas como eu as conheço ... Acredita então que elas definham até morrer quando se lhes acena um adeus de soldado? Eu não; juro-o por esta porca de vida - perdoe-me o hindustani. Aposto cinco libras que sua amiguinha logo se recuperará do desapontamento e o esquecerá em seis meses. Quanto a seus próprios sentimentos nesse particular, que não me impressionaram como demasiado ardentes, lembre-se do que disse Platão, ou não sei que outro velho romano: "Todas as mulheres são iguais no escuro." Entretanto, falei seriamente sobre o assunto com mamãe e o velho. Todos achamos que você é o tipo ideal para Dorrie pois lhe dará estabilidade... Ela precisa de um pouco de lastro, porque às vezes tem... - Bert hesitou - tem certa complicação com os nervos. Por sua vez, Dorrie lhe dará uma alisadela que, na minha modesta opinião, lhe deixará o pêlo mais macio, e lhe fará um bem enorme. Ela já teve alguma experiência com rapazes, não é nenhum anjo, mas você é aquele por quem se apaixonou, e
com quem está louca para se casar. Encaremos de frente a coisa, meu velho: você foi tão longe, com a família, que agora seria um crime recuar. Por que não concorda, então, e nós começaremos a tocar os sinos da boda? Vamos tomar uns drinques e brindar o futuro. - E, recostando-se na cadeira, chamou o khidmuthar: - Garçom. .. garçom!
CAPÍTULO QUINZE
Embora temporariamente embalado por aquele jovial abrandamento de seus escrúpulos, Moray não achava convincentes, ou concludentes, os argumentos de Bert. Passou uma noite agitada, e na manhã seguinte, acordando ainda tenso pela indecisão, resolveu pelo menos regressar ao navio e ter uma conversa com o Capitão Torrance. Quanto mais não fosse, era correto indagar se o Dr. Collins, convinha como substituto, caso ele... bem, caso ele não pudesse fazer a viagem de regresso. O capitão era um homem sensato, cujo conselho valeria a pena pedir; além disso, ninguém precisava saber da sua intenção, e o momento era propício. Desde que a mãe de Dorrie alegara cansaço, nada se combinara em definitivo sobre novos passeios, e ele não tinha compromisso com os Holbrooks até à noite, quando se lhes deveria reunir para o jantar de gala e o baile que regularmente se realizava no Hotel Norte-Oriental nas noites de sábado. Levantou-se, barbeou-se, vestiu-se e tomou um táxi para a doca Vitória.
A vista do Pindari, agora quase sem lastro, sólido e familiar, feriu uma nota tranquilizadora, mesmo confortável, sugerindo-lhe que, uma vez a bordo, estaria salvo até de si próprio. Subiu depressa o passadiço; mas ao chegar à coberta do comando, encontrou ambas as cabinas trancadas; disse-lhe o contramestre encarregado que nem o capitão nem o Sr. O'Neil se encontravam a bordo. Ao descer, encontrou apenas o
comissário-assistente, que lhe explicou que nenhum dos oficiais superiores estaria de volta até sábado à noite.
- O segundo-piloto está no convés, se é que o senhor deseja vê-lo.
Moray fez com a cabeça um aceno negativo e afastou-se lentamente.
- A propósito - disse o outro, - chegaram algumas cartas para o senhor.
Moray desceu à cabina e folheou um maço de cartas, do qual escolheu duas. com um repentino aperto no coração, reconheceu que a menos volumosa era de Willie, e a outra, grossa e pesada, era de Mary. Não teve coragem de as abrir. Mais tarde o faria, pensou. Ao descer do navio para a doca, onde o táxi ainda esperava, enfiou-as no bolso interior do paletó.
Naquele dia tentou reunir vontade suficiente; entretanto não pôde decidir-se a ler as cartas: a censura do seu puro e carinhoso conteúdo era superior às suas forças. E porque não as abriu, porque as temia, não ficou nem contrito nem comovido. Em vez disso, cristalizou-se em sua mente uma exasperação, quase um ressentimento por terem elas chegado nessa grande crise de sua vida. As cartas, ainda fechadas, subconscientemente o atiraram na direção de Dóris e de tudo quanto os Holbrooks representavam para ele. À guisa de defesa, e aguilhoado pelas solicitações gémeas de dinheiro e sexo, pôs-se a estruturar, desde os seus começos, um argumento lógico a seu favor: a perda dos pais, a criança não desejada que ele fora, a desgraça da sua pobreza dependente, os esforços sôbre-humanos que desenvolvera para obter seu diploma. Certamente que se lhe devia uma rica recompensa, e esta agora se achava a seu alcance. Poder-se-ia esperar que a jogasse fora como uma coisa sem valia?
Na verdade, restava Mary - pelo menos era forçado a evocar-lhe o nome. Mas não fora ele levado de tropel para aquela situação, impelido a ela pela sua natureza impulsiva, sua inexperiência, e o romântico pano de fundo em que ela lhe surgiu? Ela também, não havia dúvida, fora impelida por essas mesmas influências transitórias, pouco dignas de confiança. Não queria magoá-la ou abandoná-la ao desamparo, mas tinha uma dívida para consigo mesmo, e quem sabe? - talvez mais tarde ele estivesse em condições... bem, em condições de fazer algo por ela, a fim de reparar essa deserção. Não sabia de que modo, mas a ideia era uma reconfortante possibilidade. Rapazes jovens erravam, arrependiam-se, reparavam o mal - eram perdoados. Seria ele uma exceção?
Era esse o seu estado de espírito quando, ainda incerto e indeciso, dirigiu-se um tanto apreensivo para se reunir, às oito horas, com os Holbrooks, no restaurante do hotel. Claro que a sua disposição de ânimo não afinava com a alegria geral, mas foi espantoso e, nessa situação, elogiável que ele, para não arrefecer o espírito da reunião, pusesse de lado os seus problemas pessoais e reagisse com alegria à cordial acolhida de seus amigos. Bert, principalmente, estava com excelente disposição. Todavia Moray percebeu, ao pousar
os olhos em Dóris, que ela se encontrava num dos seus estados mais opressivos e sombrios. Preparara-se com grande apuro, e trazia um vestido branco, curto, sem mangas, de decote baixo e bordado com miçangas de cristal. O vestido parecia o que na realidade era: um dispendioso trapo, todo feito de fragilidade. Entretanto assentava-lhe maravilhosamente, e ela o sabia.
O jantar, suculento e demorado, foi revigorante para Moray, e quando, depois da sobremesa - uma deliciosa compota de abacaxi e ameixas servida com chapattis, - trouxeram o café e o conhaque, ele compreendeu quanto fora estúpido por haver-se apoquentado e atormentado durante todo o dia. Agora, adeus cuidados! Depois do jantar dirigiram-se para o salão de baile, onde, segundo o costume, o velho tudo fizera a preceito. O champanha estava posto num balde de gelo junto à mesa semeada de orquídeas e situada na fímbria da pista de dança, de frente para o palco cercado de palmeirinhas, onde se via a orquestra, de uniforme vermelho.
- Gostamos que os moços se divirtam, não é verdade? - disse Holbrook, ao tomarem seus lugares. (A observação foi feita no tom sentimental de vários conhaques duplos.) - E você, Bert, ainda não arranjou um par que sirva?
- Já teria arranjado, papai, mas sinto não poder ficar muito tempo - disse Bert, piscando para Moray. - vou sair para comprar um cachorro...
- Tome um gole de champanha antes de ir.
A rolha estourou, todos beberam. Depois as luzes se obscureceram, e a orquestra rompeu uma valsa. Bert levantou-se e fez a Dóris uma cerimoniosa reverência que lhe expôs o gordo traseiro apertado em calças justas e dividido em duas luas cheias.
- Posso reivindicar meu privilégio de família e ter a honra, Miss Holbrook?
Dançaram a primeira contradança a modo de irmão e irmã; em seguida, depois de empinar outra taça de champanha, Bert consultou aereamente o relógio.
- Santo Deus, tenho de correr, senão o cachorrinho é capaz de ir ladrar ao pé da árvore errada... Divirtam-se! Chin-chin!
- Não volte muito tarde, querido - admoestou Mrs. Holbrook. - Ontem de noite voltou...
4. Forma de saudação e despedida, na China, - N. T.
- Claro que não, mamãe. - Inclinou-se e deu-lhe um beijo. - Mas agora Bert é um rapaz taludo, mamãe querida! Amanhã irei vê-la são e salvo!
Vai ver a garota eurásia, pensou Moray. A orquestra rompeu num animado one-step. Mrs. Holbrook olhou para Moray, depois para Dóris, desta vez sem sorrir, mas com uma expressão que parecia dizer: "Agora vocês dois; e, enquanto dançam, decidam." Moray podia sair confiadamente para a pista de dança. Além disso, provara vários conhaques após o jantar, e estes pareciam dar-se bem com o champanha.
- Se me dão licença de o dizer - observou Mrs. Holbrook quando os dois voltaram, - vocês formam um par muito bonito.
Holbrook, rindo com indulgência, e um pouquinho tocado, serviu-lhes outra taça de champanha. O par voltou a dançar. Dançaram juntos todas as contradanças, e, cada vez que o braço dele a cingia, Dóris mais se lhe colava ao corpo, de modo que cada movimento dela provocava em Moray um movimento igual, até que ambos começaram a mover-se em um ritmo único que fazia palpitar os nervos dele. Moray podia sentir que ela estava com muito pouca roupa interior. No princípio, simulou fazer algumas observações sobre os outros pares e sobre a orquestra, que era de primeira; ela, porém, fê-lo calar-se com uma pressão do braço.
- Não estrague; está tão bom.
Entretanto, se ela se mantinha calada, boiava em seus olhos grandes, brilhantes e cobiçosos, irremissivelmente grudados nos dele, qualquer coisa de comunicativo: não uma indagação, mas uma mensagem, que era impossível deixar de entender, uma mensagem a um tempo possessiva e intensa. Só uma vez voltou ela a falar: lançando um olhar impaciente na direção dos pais, murmurou:
- Gostaria que eles fossem embora.
Em verdade, não ficaram ali até muito tarde. Às dez e meia, Mrs. Holbrook tocou no ombro do marido, que estava meio adormecido, e disse:
- Já é hora de os velhos irem para a cama. - Depois, com um sorriso reticente: - Vocês dois podem ficar mais um pouco. Mas não demais.
- Logo iremos - disse Dóris laconicamente.
Durante o número seguinte as luzes foram baixadas, e, enquanto eles dançavam atrás da orquestra, ela disse, um tanto indecisa:
- Vamos dar um giro lá fora.
O jardim estava tépido e quieto, e havia sombras sob o alto dossel da folhagem. Ela recostou-se no macio tronco de uma grande catalpa, os olhos fixos nele. Tremendo todo, Moray passou-lhe o braço por trás do pescoço e beijou-a. Como resposta, ela introduziu a língua entre os lábios dele. Em seguida, como ele a estreitasse mais, o botão de seu punho prendeu-se no colar de aljôfar que ela trazia ao pescoço. O fecho abriu-se e as pérolas rolaram pelo decote abaixo.
- Agora, sim - disse ela, com um riso singular e estrangulado, passando a mão pelo pescoço. - Vai apanhá-las para mim.
A cabeça de Moray rodopiava, o coração lhe batia como louco. Começou a procurar as pérolas, primeiro no decote, depois entre os seios firmes, de mamilos espetados, de onde desceu para a doce maciez contígua...
- vou rasgar-lhe o vestido.
- Não ligue ao vestido - respondeu ela na mesma voz estrangulada de antes.
Foi quando Moray descobriu que ela não trazia roupa alguma embaixo do vestido; e de vez que, durante todo o tempo, ela tinha na mão o colar partido, o que ele achou não foram as pérolas. Nesse momento, de tudo se esqueceu. Todos os seus desejos, reprimidos nas últimas semanas, o subjugaram num tropel que o cegou.
- Aqui não, seu bobo. - E ela afastou-se depressa. - No seu quarto... em cinco minutos.
Ele subiu diretamente para o andar de cima, arrancou a roupa, apagou a luz e atirou-se no leito. Um raio de luar varou a escuridão quando ela entrou, fechando a porta atrás de si. Tirou o peignoir, e surgiu-lhe toda nua; em seguida, abriu o cortinado. Seu corpo tinha um calor quase sufocante. Enlaçando-lhe o pescoço com os braços, puxava-o para si, e com tanta violência premiu sua boca na dele que seus dentes lhe marcaram o lábio inferior. A respiração se lhe tornou ofegante, e, sob seus seios esmagados, ele podia ouvir o cálido latejar de seu coração.
- Depressa - disse ela num sopro. - Não vê que morro de desejo?
Se ele não soubesse que ela já não era virgem, agora o saberia pela natureza da sua reação. Quando afinal ela se deitou, sem todavia
largá-lo, soltou um suspiro fundo, depois puxou a cabeça dele para junto da dela no travesseiro.
- Você estava muito bom, meu bem. E eu?
- Você também - respondeu ele em voz baixa e com sinceridade.
- Quanto tempo perdemos! Você não percebia que eu o desejava, que o desejava loucamente, desde o começo? Mas daqui em diante vai ser perfeito. Faremos a participação amanhã cedo; depois iremos para Nova Iorque com Bert. .. Meu Deus! Como é que não percebeu antes que eu estava caída por você? Nunca me fartarei. .. vai ver. - Roçava-lhe os lábios com a língua e com eles brincava, acariciando-o com as pontas dos dedos. Súbito, um tremor passou-lhe pelo corpo. - Novamente... - murmurou ela - mas mais humorado, desta vez... e na próxima. - É tão bom... faça devagar... Dóris ficou com ele até à primeira luz cinzenta da madrugada. Naquela manhã, após receber esfuziantes parabéns na hora do desjejum, Moray saiu para dar uma volta e clarear as ideias. Sentia-se um tanto lânguido mas Dóris era com efeito ótima, e ele já ansiava pela chegada da noite; além do mais, havia, é claro, o emprego, o dinheiro e um futuro tranquilo. Que o resto fosse para o diabo; um sujeito devia cuidar de si. Em sua mente embotada, era menos difícil encerrar o passado e pensar apenas no futuro. Ao cruzar a ponte Howrah, súbito se debruçou no parapeito e, sem olhar, tirando a mão do bolso interno do paletó, deixou cair as duas cartas, ainda fechadas, nas águas imundas e poluídas de cadáveres do sagrado Ganges.
TERCEIRA PARTE
CAPÍTULO UM
A madrugada nasce muito cedo no Oberland suíço. Seu brilho ofuscador e o cincerro das vacas despertaram-no. Como receara, o fenobarbitol não produzira efeito, e naquelas horas de insónia tornara a viver aqueles meses fatais da sua mocidade, até que, torturado, às três da madrugada, tomou um amital, que lhe proporcionara uma breve trégua à insónia total. Agora, as têmporas latejantes, o cérebro embotado pela droga, encarava a situação de um modo obtuso, todavia com uma resolução quase desesperada, ciente de que, ao fim e ao cabo, teria de dar o passo decisivo.
Assim lhe dissera Wilenski na última consulta em Nova Iorque,
sorrindo-lhe animadoramente como sempre fazia, um braço descansando no espaldar do canapé e o sotaque resvalando para o acariciador acento sulino que ele empregava para desfazer os emaranhados interiores de seus pacientes.
- Um dia você terá de voltar... só para acabar para sempre com esse velho complexo de culpa. Na realidade, você quer voltar, em parte porque sofre uma nostalgia recalcada - a nostalgia da pátria, - mas principalmente para ver a sua... a sua amiguinha, e pôr suas relações em ordem. E por que não? Antes tarde do que nunca. Se as coisas não lhe tiverem corrido muito bem, você está em situação de ajudá-la. Agora... - e seu sorriso era de uma amável malícia - você é um viúvo alegre; se ela ainda for bonita, poderá reparar o mal, casando-se com ela... se é que ela continua solteira...
- Nunca se casaria.
Moray não tinha a menor dúvida quanto a isso, mas esperava que, pelo menos, ela tivesse sido feliz.
- Lembre-se do que lhe estou dizendo. E se sentir que está de novo em dificuldades, siga meu conselho: volte para sua terra.
Sim, ele voltaria; e, ao reafirmar essa decisão, sentiu um grande alívio. Tocou a campainha, e, consultando o horário da Swissair, disse a Arturo que chamasse Zurique e mandasse reservar uma passagem no avião das duas horas para Prestwick. Levantou-se, barbeou-se, vestiu-se, tomou o café no andar térreo. Em seguida, enquanto
Arturo arranjava sua valise, fumou um cigarro, pensativo. Levava pouca coisa: seu regresso seria calmo, humilde, sem a menor ostentação - nem Rolls-Royce, nem indícios de riqueza, nada... E essa ideia,
suscitando-lhe uma sombria antecipação, injetou em sua melancolia um clarão transitório. Quanto à villa em sua ausência, com servidores tão bem organizados e dignos de confiança - falara-lhes em negócio urgente a tratar, - não constituía problema: podia partir quando bem quisesse, mesmo avisando em cima da hora.
O telefone chamou; ele levantou-se e dirigiu-se para o aparelho. Conforme esperava, era Frida von Altishofer.
- bom dia. Incomodo-o?
- Absolutamente.
- Então conte-me depressa: está bem... está melhor?
A horrível noite que acabava de passar fazia-o ansiar por uma palavra de simpatia; entretanto sabia que isso não era prudente.
- Positivamente, estou melhor.
- Muito me alegro... sinto-me aliviada, meu amigo. Sairemos a passeio esta manhã?
- Gostaria muito. Mas...
Puxou o pigarro e enunciou a polida ficção que tinha preparado: recebera na véspera um telegrama - puro assunto de negócios que, entretanto, o transtornou, segundo ela mesma percebia - e que ele tinha de pôr em ordem mediante uma visita a seu advogado londrino. Partia naquela mesma manhã.
Fez-se um silêncio penetrante, onde ele percebeu surpresa, desapontamento, talvez uma pontinha de consternação. Ela, porém, rapidamente disfarçou.
- Claro que precisa ir... é homem de negócios. Mas não se vá cansar. E volte logo... antes da minha partida para Baden. Bem sabe a falta que vai fazer.
Arturo levou-o para o aeroporto na perua Humber, assim emprestando um tom de moderação ao resto da viagem. Era seu costume almoçar, em Zurique, no Baur-au-Lac, mas naquele dia não parou no hotel admirável, dizendo a Arturo, que exprimiu a sua preocupação, que provavelmente comeria alguma coisa no avião. Chegaram cedo ao aeroporto, mas felizmente o avião estava no horário e partiu precisamente às duas horas. Enquanto o DC-7 varava as nuvens baixas em demanda do azul, a expressão fixa de seu rosto não se desfez; todavia, apossava-se dele uma estranha exultação. Estava de regresso, finalmente - de regresso, após trinta anos de ausência, para o país de seu nascimento. Por que - Deus do Céu - demorara tanto
tempo? Pois somente lá poderia encontrar a paz de espírito, a final libertação daquele remorso que de tempos a tempos caía sobre ele como uma escura nuvem opressiva. Uma palavra lhe ocorreu - edificante e promissora. Não era religioso, mas lá estava ela: Redenção! Repetiu-a a si mesmo - lentamente, fervorosamente.
Súbito, apesar de sublimes, seus pensamentos foram interrompidos pela linda aeromoça que lhe sorria no seu elegante uniforme azul, apresentando-lhe a refeição que ele menosprezara em terra e que lhe parecia excelente e apetitosa: salmão defumado, uma asinha de frango com aipo refogado, pêssego Melba e um copo de ótimo champanha. Depois, apesar da noite horrível da véspera, sentiu-se mais ele mesmo e cochilou um pouco sobre o Mar da Irlanda, mas sempre atento à descida na costa escocesa. Às seis e meia avistou-se Preswick no nevoeiro azul de um crepúsculo prematuro, onde luzes começavam a brilhar como cabeças de alfinete. A descida foi perfeitamente suave, e dentro de mais alguns instantes estava ele ouvindo, com pulso acelerado, o quase esquecido e áspero sotaque de sua língua nativa. De cabeça descoberta, enquanto caminhava, ele ia respirando fundo o ar macio das Terras Baixas.
Estava finalmente em sua terra. E inconscientemente murmurou as famosas palavras de Rob Roy Macgregor: "Meu pé calca a charneca pátria...", enquanto a emoção o inundava.
O carro esperava fora do galpão da alfândega, e ele partiu, rodando suavemente pelas terras de plantio de Ayrshire. Limpava sofregamente a humidade da janela no esforço de captar retalhos da paisagem obscurecida, mal notando a passagem do tempo, até que o ruído do tráfego o alertou: achava-se na terminal aérea de Winton.
Tomou um táxi para o Hotel Central, onde arranjou um quarto no lado tranquilo, longe das plataformas da estação e do barulho dos trens. Já era tarde e ele estava cansado. Pediu que lhe servissem leite e sanduíches, e depois, após um banho quente onde ficou mergulhado durante quinze minutos a distender os nervos retesados, foi para a cama. Imediatamente adormeceu.
CAPÍTULO DOIS
Na manhã seguinte, despertando cedo para a vibrante consciência de que estava na realidade em Winton - fisicamente presente na cidade de sua juventude, cenário de suas lutas homéricas de estudante, - foi-lhe mister deitar água na fervura de suas emoções. Precisava
de calma e prudência para abordar essa grande encruzilhada de sua vida. Todavia, enquanto rápido se levantava, se vestia e descia para o almoço no tépido salão atapetado de vermelho, onde, pela primeira vez em trinta anos, provava com delícia a verdadeira papa de aveia com creme acompanhada de chá e torradas e seguida por um autêntico bacalhau de Findon, foi ele ficando alerta, de maneira crescente, às momentosas perspectivas do dia.
Assim que bebeu o último gole da terceira xícara de excelente chá, dirigiu-se para o saguão, apanhou o Herald de Winton e, percorrendo os anúncios, descobriu o endereço de uma agência de carros de aluguel. Um carro pequeno, por mais modesto que fosse, lhe facilitaria a viagem até Ardfillan e qualquer outro deslocamento subsequente que fosse necessário. Uma estranha inibição lhe impediu o procedimento mais óbvio de pedir ao porteiro-chefe que tratasse do aluguel; em vez disso, telefonou ele próprio para a agência. Podia acaso explicar esse ato vagamente irracional? Não era conhecido no hotel, parecia-lhe igualmente improvável que o reconhecessem; entretanto, todos os seus instintos o impeliam para a dissimulação. De qualquer forma, após pedir que o carro, um pequeno modêlo-padrão, fosse entregue no hotel o mais breve possível, prometeram, depois de alguma insistência, entregá-lo à uma hora da tarde.
Nervoso, olhou o relógio: passava um pouco das onze. com duas horas de folga, saiu do hotel, cedendo ao impulso de fazer uma curta peregrinação aos lugares conhecidos de sua juventude. A cidade cinzenta, fria, encrostada de fuligem e ainda escura de fumaça, mostrava poucas alterações desde os dias em que ele palmilhara suas calçadas encardidas e ruidosas. Na esquina das Ruas Grant e Alexandra, tomou o bonde amarelo que o levaria para o Parque Eldongrove. Desceu junto aos portões, caminhou devagar pelos jardins, e, com crescente melancolia, subiu a colina em direção à Universidade. Ali porém, deambulando à sombra dos velhos claustros, as recordações de seu tempo de estudante foram tão dolorosas e cortantes que, após uma rápida vista de olhos, saiu apressado do recinto, daí passando, na outra extremidade, pela loja Gilhouse, onde vendera seu microscópio para comprar o anelzinho de pedra azul que dera a Mary. Os olhos se lhe humedeceram. Que presente pobre, em comparação com tudo quanto podia agora fazer chover sobre ela! Entretanto, aquilo lhe consumira até ao derradeiro níquel, e ninguém poderia acusá-lo de mesquinhez ou de qualquer conhecimento prévio do que estava para acontecer.
Eldongrove não ficava longe da casa de cómodos de Blairhill, e, impelido por sua disposição de ânimo, tomou a estrada que subia a colina e daí descia para as docas. Sim, sua velha morada ainda estava ali, barraco mal afamado, ainda mais encardido e mais sórdido do que antes. Levantando o olhar, viu-se ainda jovem, curvado sobre os livros, por trás da estreita janela da mansarda. Como pelejara e como padecera, preparando-se para uma grande e maravilhosa carreira!
Mas, louvado Deus, que fizera de sua vida? Após nobres começos, qual fora o resultado? E enquanto ali estava, olhando para cima com um ar abstraio, um raio de sincera compunção feriu-o, levando-o a experimentar não apenas um remorso genuíno e amargo, mas também uma sensação arrasadora da futilidade de tudo quanto fizera desde que saíra daquela mansarda para o mundo.
Amassara uma fortuna, uma fortuna enorme - mas como? Não como um cirurgião brilhante, um especialista de primeira ordem, estimado e reverenciado em sua profissão, mas como um infeliz fabricante de pílulas, um fornecedor oportunista de medicamentos populares, de escassa significação clínica, cujos anúncios degradavam a paisagem, todos vendidos com um tal lucro sobre o custo, ao ponto de constituírem uma verdadeira imposição ao público. Não, não devia ser tão rigoroso consigo mesmo; uma parte de seu trabalho - o grupo dos analgésicos, que desenvolvera com base nos fenotiazóis, por exemplo - tinha um certo valor. Entretanto, em conjunto, que imitação burlesca da carreira que planejara! E por que Deus misericordioso, - por que o fizera? Por que, acima de tudo, fora tão idiota, a ponto de se casar com Dóris Holbrook?
Decerto que, naquela viagem fatal, ele poderia ter previsto as suas predisposições psicopáticas, e que os seus divertidos caprichos lhe seriam mais tarde insuportáveis, e que a excitação física que ela lhe provocava rapidamente amorteceria. Lembrou-se da linda casinha de Cos Cob onde o pai dela os alojara, apropriada aos novos escritórios de Connecticut em Stamford. Ela adorou-a por seis meses; depois, repentinamente, começou a detestá-la. A mudança para a vizinha Darien, ao princípio um enorme êxito, logo se transformou em igual malogro.
Dir-se-ia que ela era incapaz de se estabelecer ou adaptar a um novo ambiente, e a recusa dele, em face de uma nova mudança, foi pretexto para ela viajar diariamente até Nova Iorque, quase como uma suburbana, passageira de trens diurnos e noturnos. Vieram então as aulas de Arte e Escultura, o crescente exagero no seu modo de vestir, seus novos, suspeitos e sempre renovados
conhecidos, com os quais Moray logo desconfiou que ela o traía. Sempre que ele a admoestava, havia recriminações, indiferença, berros por detrás de portas trancadas, reconciliações histéricas. Ela queria voltar a Blackpool - o que era incrível. Mais incrível, porém, era o fato de que na realidade ela parecia detestá-lo. Quando, após longo intervalo, ele tentara delicadamente reencetar suas relações conjugais, ela apanhara uma escova de marfim e, praticamente, quase lhe rebentara a cabeça.
Mas ele prosperava, um divórcio podia significar um rompimento com os Holbrooks, e ele conseguiu ir aguentando. Após cinco anos em Darien, uma doação do velho Holbrook outorgou-lhes Fourways, bela propriedade no distrito de Quaker Ridge, em Greenwich. Lugar tranquilo, habitantes conservadores, um Garden Club - ele convenceu-a a frequentá-lo, - suas modestas diversões; alimentava esperanças de que Dóris tomaria juízo. Baldadas ilusões. Gradualmente, através de estados de espírito instáveis e crescentemente intratáveis, acessos de violência e períodos de amnésia, foi ela passando para as alucinações depressivas, até que Wilenski, chamado para consulta, pôs no ombro dele uma mão consoladora.
- Paranóia esquizofrénica. Tem de ser registrada.
Depois, durante quinze anos, ele foi o homem que tinha a mulher numa clínica de neuropatas, sempre à espera dos resultados da insulina e dos tratamentos de eletrochoque, das ligeiras melhoras e graves recaídas, suportando essa desesperadora situação até o indizível alívio de uma pneumonia hipostática final.
Nessas circunstâncias trágicas, era de surpreender que - andando ele na corda bamba da tensão nervosa - tivesse precisado atirar-se ao trabalho com Bert? Nada tinha contra Bert - o bom, o decente, o cordial Bert, que sempre estivera, leal e franco, de seu lado; que repetidamente o ajudara a lidar com Dóris, e que até se lhe confessara culpado porque o iludira sobre as esquisitices da adolescente, e que, depois da morte do velho Holbrook, lhe dera sociedade, em partes iguais, na rica e próspera firma americana.
E, pondo de parte o trabalho, não estava ele justificado, como vítima sofredora, por dedicar-se a si próprio, cultivando a sua personalidade, estudando as artes, aprendendo línguas - francês, alemão e italiano, por exemplo, - vestindo-se com bom gosto, em suma, tornando-se um homem finamente educado, adotando conscientemente o estilo de vida antigo (em suas leituras, dava preferência aos Eduardianos), verdadeiro "homem distinto" que, mercê da sua sedução e dom de agradar, podia exigir, mesmo nesta época pavorosa
em que todo o sentido de valor fora por água abaixo, interesse instantâneo, atenção e respeito? Naturalmente, em sua posição, tinha obrigações físicas a cumprir para consigo mesmo, e que, homem lido que era, podia sancionar-se isso fosse necessário - citando a picante carta de Balzac a Madame Hanska sobre o assunto. Não tinha também a intenção de degenerar na impotência e na imbecilidade, mas recuava diante do adultério indiscriminado, diante desses breves e incertos encontros que se realizavam após os coquetéis em carros estacionados sob o arvoredo de clubes de campo. Foi quando o acaso pôs em seu caminho uma mulherzinha tranquila, (ele sempre dera preferência a mulheres pequenas), uma viúva no começo dos trinta, loura e de origem polonesa, chamada Rena, que trabalhava humildemente como encadernadora em uma editora de Stamford. Sua abordagem cheia de tato produziu resultados surpreendentemente agradáveis. Descobriu que ela era não apenas dócil como satisfatória, ordeira, cheia de apuro pessoal, nada exigente e absurdamente grata pela ajuda dele. Logo se estabeleceu entre ambos um arranjo regular e discreto. Ele até chegou a querer-lhe muito (a seu próprio modo); e embora ela ficasse desorientada quando ele partiu dos Estados Unidos, Moray fez antes o que devia, dotando-a generosamente de um meio de vida.
Sim, houve boas razões para ele viver naquele estilo; todavia, se a escusa própria lhe trazia algum alívio, o coração ainda lhe doía quando se virou e, descendo Blairhill, tomou o caminho de regresso para o hotel. Lá chegando, não pôde sequer pensar em almoçar; mas, sentindo a necessidade de preparar-se para a viagem, tomou um copo de xerez seco e comeu uma bolacha Abernethy no bar, e logo depois se sentiu melhor.
O carro chegou na hora aprazada, e ele, depois de assinar os papéis necessários e pagar o depósito, iniciou a viagem. Não precisava de indagar acerca do caminho. Deixando as ruas para trás, tomou pela estrada principal a oeste, deixou para trás os Jardins Botânicos e os campos de jogo, em seguida entrou na estrada real que conduzia dos arredores da cidade às terras baixas do estuário. Este ampliara-se e melhorara; mas, conquanto agora passasse pelos estaleiros e as fundições de aço das cidades industriais ribeirinhas, aquela ainda era a mesma estrada que o levara a Mary. Moray rodava devagar, prolongando as sensações, embora fosse sucumbindo à medida que, um após outro, os sons e os cenários conhecidos iam surgindo diante de seus olhos. O contínuo taque-taque dos estaleiros, o apito da balsa do Erskine, o fundo e rouco lamento
de um navio cargueiro - tudo se fundia numa fantástica dissonância que o arrasava, assim como o arrasavam as vistas fugidias de verdes matas e águas'cintilantes, de longínquas cristas purpúreas de montanhas que precipites curvas do caminho lhe revelavam. Tudo, tudo lhe trazia, com uma doce pungência, a imagem da única mulher que verdadeiramente amara.
A umas trinta milhas de Winton alcançou a aldeia de Reston, e, deixando para trás a estrada principal, tomou o estreito caminho espiralado que, paralelamente ao estuário cada vez mais largo, conduzia a Ardfillan. Como aqueles martelos dos estaleiros, o coração lhe batia à entrada da cidadezinha, toda ela igual ao que fora outrora, como se ele a tivesse deixado na véspera. A mesma estreita faixa de esplanada, lambida pelas ondas mansas; o coreto de ferro; o pequeno dique; a curva das casas baixas e encardidas, a torre quadrada da igreja... Sua visão estava tão perturbada que lhe foi preciso parar um instante, - ó Deus, - e parou logo em frente do mesmo abrigo de madeira de onde Mary mandara Willie fazer uma compra e onde ele a tomara nos braços! Estava agitado, pensamentos confusos perpassavam-lhe pela mente; ela o acharia muito mudado, reconhecê-lo-ia, perdoar-lhe-ia, ou se recusaria a vê-lo?
Afinal voltou à calma, rodou ao longo da fachada e enfim estacionou. Depois, cabeça baixa, subiu a ladeira que levava à loja Douglas. Já na rua traseira levantou a cabeça, e súbito percebeu que a loja já não estava ali. Havia em seu lugar uma alta fachada de tijolos, de cujo interior provinha um rumor de máquinas rodando. Esperara, com uma confiança tão irracional, encontrar tudo como dantes, que ficou mais desapontado do que admirado. Permaneceu confuso alguns instantes, depois avançou pela estreita rua empedrada, viu que se abrira uma rua nova e larga em ângulo reto com a antiga, e que dava acesso a um imponente e esplêndido estabelecimento, com um anúncio luminoso: Padarias da cidade e do Campo Lt.da
Imóvel, ficou olhando as bandejas de bolos berrantemente coloridos que enchiam as vitrinas; depois cruzou a rua e entrou na padaria. Duas mocinhas de ar esperto, de vestido lilás com gola e punhos brancos, estavam de pé por trás do balcão.
- com licença - disse ele. - Procuro uma família que outrora tinha uma loja nas vizinhanças. Chamava-se Douglas.
As moças estavam na idade em que se confunde o inesperado com o absurdo, e pareciam propensas a rir. Mas qualquer coisa, talvez a elegância dele-as conteve, e uma olhou para a outra.
- Nunca ouvi falar; e você, Jenny?
- Eu também não - disse Jenny, sacudindo a cabeça.
Fez-se uma pausa, depois a primeira disse:
- Talvez o velho Sr. Donaldson saiba alguma coisa. Mora aqui faz muito tempo. - E teve um frouxo de riso. - Muito mais tempo do que nós.
- Donaldson? - O nome fez-lhe vibrar uma corda na memória.
- É o nosso caseiro. Se o senhor entrar pelo portão de veículos, à esquerda, verá a casinha dele, fronteira à padaria.
Moray agradeceu e, seguindo as instruções, achou-se no que fora outrora o pátio dos Douglas, agora muito ampliado, com a grande padaria mecânica à esquerda, uma garagem para caminhões à sua frente, e, à direita, a velha cocheira transformada num pequeno apartamento de andar único. Tocou a campainha, e, após um intervalo, ouviu uns passos vagarosos no interior; a porta abriu-se em seguida, revelando a figura corcovada, com óculos de aro de níquel, de um homem de setenta anos, com um boné posto ao revés, avental de alpaca preta e chinelas. Às perguntas de Moray, permaneceu algum tempo calado, sombriamente refletindo.
- Se conheço James Douglas? - respondeu afinal. - Acho que sim. Fui seu ajudante por mais de vinte anos.
- Então quem sabe me poderá dar notícias dele e da família...
- Entre um pouco - disse Donaldson. - Perto da porta faz um frio cortante nesta época do ano.
Moray seguiu-o para uma cozinha escura onde lampejava um débil fogo no fogão - aposento desarranjado de homem velho e só. Donaldson indicou uma cadeira, depois, sem tirar o boné, arrastou-se para um canto e foi sentar-se embaixo da prateleira de tonéis.
- É amigo dos Douglas? - perguntou, desconfiado.
- Fui, no passado - disse rápido Moray. - Agora sou inteiramente desconhecido na região.
- Bem - disse o outro devagar. - A história dos Douglas não é muito alegre. James, coitado, morreu, e há muito tempo está enterrado; sua cunhada Minnie também. É bom saber isso para começar. Como vê, James fracassou nos negócios e abriu falência; houve atrás de tudo isso um trabalhinho de sapa condenando a propriedade, a fim de abrir-se em seu lugar a rua nova - tudo por ordem do conselho municipal. Seja como for, a desgraça levou James para o cemitério, pois ele era um homem às direitas, honesto como a luz do sol. Minnie, que andava sempre doente, logo o seguiu a caminho do
túmulo. A história foi assim, e, em lugar do armazém de James,
levantou-se esse grande edifício das padarias, cujos produtos corroem as entranhas de quem os come. Não que eu tenha alguma queixa contra a companhia: eles até me deram este empreguinho, do qual vou vivendo.
Fez uma pausa, momentaneamente perdido no passado. De caso pensado, Moray insistiu:
- Ele tinha uma filha, não tinha?
- Sim - disse o velho, sacudindo afirmativamente a cabeça - Mary... que também passou por dificuldades. Quando era mocinha, ficou noiva de um malandro que a enganou e a abandonou. Sofreu muito, muitíssimo, e por muito tempo. Quando eu saía da padaria, costumava vê-la me acenando da janela. Mas, com o tempo, ficou muito religiosa, e, anos mais tarde, quando o novo ministro, de nome Urquhart, veio para a igreja de Longend - e era um bom homem, - ela teve a sorte de se casar com ele. Um ou dois anos depois, deu-lhe uma linda menina...
Atónito, Moray permanecia teso na cadeira. Ela casara-se, esquecera-o, ou pelo menos traíra-o. O que ele acreditava ser o único amor de toda a sua vida! Mais doloroso ainda, dera uma filha ao outro... Em seu atual estado de espírito, isso lhe parecia uma profanação. Entretanto, malgrado a sua grande consternação, o raciocínio não o abandonara inteiramente. Quem era ele para recusar-lhe o direito à felicidade, desde que verdadeiramente ela a houvesse encontrado?
Afinal disse, com a voz embargada:
- Está morando aqui com o marido?
- Não. Foi para Ardfillan com a filha, logo depois que enviuvou.
- Que enviuvou? - exclamou ele.
O velho sacudiu a cabeça num aceno afirmativo.
- Ele não era muito forte, sabe, e, quando veio aquela epidemia de gripe espanhola em trinta e quatro, foi levado para o eterno descanso.
Sem dar por isso, Moray se acalmou ligeiramente, e respirou fundo. A situação de algum modo melhorara repentinamente. Era triste, naturalmente, ela ter perdido um marido jovem, ao qual, de sua parte, ele nunca teria desejado o menor mal... Todavia, o infeliz já era fraco desde o início, e o motivo do casamento de Mary bem podia ter sido compaixão e não amor. Parcialmente recuperado do choque, e com sentimento renovado, Moray fez uma última pergunta:
- Para onde fora... Mary e a filha?
- Para uma aldeia, nos Lothians. Chama-se Markinch. A filha queria estudar para enfermeira, por isso procuraram um lugar mais perto de Edimburgo. Mas que fim levaram desde aquele tempo não poderei dizer... Sua situação económica não era das melhores... e nunca mais foram avistadas nas vizinhanças de Ardfillan...
Seguiu-se um longo silêncio, enquanto Moray, de cabeça baixa, tentava ordenar seus pensamentos; depois, ainda visivelmente transtornado, levantou-se e, com uma palavra de agradecimento, pôs uma nota na mão de Donaldson. O velho, após alguma fingida relutância em aceitá-la, fitava o visitante através dos óculos com uma curiosidade crescente.
- Minha vista já não é o que era - observou ele, acompanhando Moray até à porta. - Mas tenho a ideia singular de que já o vi antes. Gostaria muito de saber quem é o senhor.
- Pense em mim como em alguém que deseja dar ajuda a Mary Douglas e sua filha.
Fez essa declaração com toda a firmeza, com a consciência de uma nova sinceridade de propósitos; e, virando-se, caminhou de volta para o carro. Agora percebia que suas esperanças foram ilusórias, e que tudo quanto imaginara falsamente se baseava numa romântica recriação do passado. Havia ele realmente esperado, após trinta anos, encontrar Mary como no dia em que a abandonara, ternamente apaixonada, ainda virginal, e com toda a frescura da sua mocidade? Deus sabe que desejava que assim fosse. Mas o milagre não acontecera, e agora - ouvindo a história da mulher que muito chorara esperando por ele, e que se casara, não por amor, para depois perder o marido inválido; a mulher que sofrera dificuldades, má fortuna, talvez pobreza, e que entretanto se sacrificara para educar a filha e dar-lhe uma profissão digna - ele voltou à realidade, à calma consciência de que a Mary que ia encontrar em Markinch devia ser uma mulher de meia-idade, de mãos gastas pelo trabalho e olhos ternos cansados, ferida e maltratada pela luta da vida, mas, por isso mesmo, talvez mais propensa a perdoar e a aceitar as suas generosas atenções.
O coração se lhe aqueceu a esses pensamentos, enquanto, de regresso a Winton, ele ia rodando através da sedução do nevoeiro que se adensava sobre o rio. Depois, de repente, lhe ocorreu que se esquecera de pedir a Donaldson notícias de Willie. Omissão indesculpável! Que teria acontecido ao inteligente rapazinho, ao perguntador insaciável de suas horas noturnas? Bem, logo haveria de saber, e da boca da própria Mary.
Eram sete horas quando chegou; e, como comera pouco durante o dia estava esfomeado. Depois de um banho rápido e alguns retoques, desceu para o salão do hotel e encomendou um filé duplo, cebolas, batatas assadas Anan Chief e uma pinta de Macfarlane, a cerveja local - tudo com tanta desenvoltura, que era como se ele nunca se tivesse ausentado da região. Depois cedeu às seduções de uma torta de melado cor de ouro, verdadeira delícia da cozinha nativa. Atacou-a valentemente, contando partir para Edimburgo e Markinch na manhã seguinte.
CAPÍTULO TRÊS
Embora o carro não estivesse rodando muito bem, com um dos cilindros por vezes falhando, ele preferiu conservá-lo a enfrentar uma torturante delonga na agência; e na manhã seguinte, às onze horas, tendo saldado sua conta no Hotel Central, partiu para Edimburgo. Segundo o mapa rodoviário, Markinch ficava a cinco milhas de Dalhaven, no litoral leste. Devia ser uma pequena aldeia - pelo menos nunca lhe ouvira o nome - e a pouca densidade da sua população sem dúvida lhe facilitaria a procura.
O dia estava escuro e ventoso, com grandes novelos de nuvem se atropelando no céu; mas, no começo da tarde, quando ele chegou a Edimburgo, um sol baixo varou as nuvens, emitindo raios refulgentes desde os muros do Castelo até aos jardins da Rua dos Príncipes. bom presságio, pensou ele, conduzindo o carro pela estrada a leste, em direção de Portobelo. Aí, o trânsito se deteve um instante no Cruzamento para dar passagem à Banda Feminina de Gaitas de Portobelo, que se dirigia, pensou ele, para alguma reunião local. Fez-lhe bem ver as belas moças escocesas marchando ao compasso do Cock of the North, balançando-se os saiotes, e as fitas de Glengarry esvoaçando ao sopro dos instrumentos. Os recursos naturais da Escócia, disse ele com seus botões esboçando um sorriso, o olho esperto discriminando algumas das moças mais promissoras. Mas o buzinar dos carros que vinham atrás despertou-o e ele avançou, passando por Musselburg e Newbigging. Enfim atingiu a costa, além da baía de Gosford, e, estacionando numa praia deserta, comeu os sanduíches que lhe haviam arranjado no Hotel Central. Depois partiu de novo. O mar tinha cintilações, e um vento penetrante varria as charnecas arenosas e as dunas amarelas franjadas
de capim cortante e descorado e de algas aromáticas. Praia adentro, à esquerda, avistou Bass Rock, e muito além, do lado de terra, a coroa verde de Berwick Law. Gaivotas circulavam e gritavam na altura, acima do areal açoitado pelo vento, e ele podia sentir nos lábios o gosto de sal húmido e areento, o que lhe proporcionava a iniludível sensação de estar de fato no torrão natal.
Decidira-se com antecedência por Dalhaven como um pouso conveniente, mas, quando ali chegou e bateu a cidade em busca de uma hospedaria, nada achou que lhe parecesse aceitável. As casas, baixas, varridas pelo vento, feitas de grés vermelho, encolhiam-se junto ao porto pesqueiro com um ar inóspito, e os moradores, vendo o forasteiro, se mostraram azedamente incomunicáveis. Finalmente encontrou um nativo mais acolhedor, que o mandou para o Hotel Marinho, entusiasticamente recomendado. Esse hotel ficava acima do campo de golfe, duas milhas distante da cidade, e se lhe revelou excelente; em verdade, um estabelecimento de primeira categoria, onde foi tranquilamente acolhido pela gerente e conduzido a um ótimo quarto de frente.
Depois do banho, pediu informações sobre o caminho exato, e, após um breve percurso terra adentro através de sinuosas estradas rurais margeadas de espinheiros, chegou à aldeia de Markinch. Como que advertido por uma voz interior, percebeu, de repente, ser aquele lugar o seu objetivo real e derradeiro.
Essa certeza acalmou-lhe os nervos à medida que ele ia descendo devagar a única e deserta rua da aldeia. De cada lado se erigiam casinhas caiadas, com capuchinhas ainda florescendo pelas paredes. Nem um ser vivo se via, a não ser um cão-pastor meio adormecido, com um olho aberto, junto da calçada. Havia ali um bazar, que funcionava também como agência postal; mais adiante, uma ferraria e uma loja antiquada de vidraças opacas, encimada por uma tabuleta onde se lia Chapelaria, e, do outro lado da rua, o que lhe pareceu ser um pequeno dispensário, e em cujo exterior havia uma inscrição: Centro de Saúde. Em qual desses lugares devia pedir informações? Talvez no bazar-correio, embora desgraçadamente isso pudesse tornar pública a notícia de sua chegada. Na extremidade da rua, estava a ponto de voltar quando viu, a alguma distância, a igreja da aldeia e o presbitério anexo. Uma ideia ocorreu-lhe, provocada pela lembrança de uma observação de Donaldson, e também pelo desejo de reserva e discrição. Encaminhou-se para a igreja, que era de estilo baronial escocês com sua torre quadrada em vez de campanário, estacionou o carro na calçada fronteira, dirigindo-se
em seguida para o presbitério, pequena mas decente residência de pedra cinzenta, e puxou a alça da sineta.
Depois de um longo intervalo a porta foi aberta pelo próprio ministro - homem miúdo e descorado, de pernas extremamente curtas e uma cabeça exageradamente grande, encimada por uma gaíbrinha de cabelos grisalhos. Sua roupa velha e preta e o colarinho clerical desfiado nas beiradas emprestavam-lhe um ar desanimado, que suas feições só faziam confirmar. Uma caneta numa das mãos e, na outra, um manuscrito consideravelmente corrigido davam a entender que fora interrompido no preparo de seu sermão; entretanto, suas maneiras foram bastante afáveis.
- Às suas ordens, senhor.
- Perdoe-me o incómodo, mas estou procurando uma senhora de sobrenome Urquhart. - Desta vez, o novo nome veio-lhe mais facilmente aos lábios... A princípio, magoara-o o fato de ter de pensar nela como outra pessoa que não Mary Douglas. - Ouvi dizer que ela reside nesta paróquia.
- Ah, decerto se refere à nossa excelente enfermeira distrital! - E a expressão do homenzinho iluminou-se, revelando sua disposição em
- ajudá-lo. - Ela mora em cima do Centro de Saúde, que o senhor acaba de passar. É uma moça muito ocupada, e, se não estiver em casa, o senhor a encontrará no dispensário, das cinco às seis.
- Fico-lhe muito obrigado - disse Moray, satisfeito pela informação. - É claro que o senhor se refere à filha de minha amiga. Presumo que a mãe mora com ela...
- A mãe? - O ministro fez uma pausa, examinando o interlocutor. - O senhor é estranho por estas bandas?
- Estive muitos anos ausente daqui.
- Então não sabe da grave doença que a acometeu.
- Doença?
O ministro fez um gesto de afirmação.
- Receio ter de prepará-lo para tristes notícias. Faz nove meses que enterrei a mãe de Kathy no cemitério local.
Estas palavras, emitidas num tom de condolência profissional, foram reforçadas pelo sino da igreja que, no mesmo instante, como a dobrar finados, batia as horas com o áspero som de seu bronze rachado. Não podia haver equívoco, com efeito não havia equívoco - aquilo devia ser o fim. Não apenas o desapontamento, mas um verdadeiro choque, devia ter transparecido no rosto de Moray, um choque doloroso que lhe sugou todo o sangue do coração e o forçou a encostar-se no batente da entrada.
- Meu caro senhor, entre e sente-se um minuto. Venha... aqui no saguão... - E, tomando o braço de Moray, o ministro conduziu-o para uma cadeira no vestíbulo. - Vejo que a notícia o afetou profundamente.
- Tinha tanta esperança de revê-la - murmurou Moray. - Era uma amiga muito querida.
- E uma mulher muito digna, meu caro senhor; estava entre as eleitas do meu rebanho. Mas não se aflija: no além a encontrará.
Mas o homem aflito não tinha no momento grande confiança na promessa do além. Ela partira, carregando consigo para o túmulo a lembrança da sua traição. Ele fora, até ao fim, desprezível a seus olhos, uma chaga ulcerada em sua memória. E agora nunca mais poderia redimir-se, desfazer o odioso complexo que perpetuamente lhe ameaçava a paz de espírito: tinha de continuar suportando o peso de sua culpa. Arrasado de dor e de desapontamento, afogado em - uma maré de autopiedade, ouvia o pároco falando, exaltando as virtudes da morta.
- A filha dela também; possui os mesmos altos padrões de conduta. .. É muito dedicada. E agora... se o senhor está mais calmo, minha mulher lhe pode oferecer uma xícara de chá.
Moray endireitou o corpo, e, embora ainda não fosse dono de si, teve a prudência de declinar.
- Não, muito obrigado.
- Acho que o senhor gostaria que eu lhe mostrasse o lugar onde ela está enterrada...
E dirigiram-se para o cemitério, nos fundos da igreja. A sepultura, assinalada por uma simples cruz céltica, foi-lhe indicada pelo ministro que, absorto um instante entre a compaixão e a curiosidade, perguntou:
- Segundo creio, o senhor é da nossa religião. Se isso for verdade, espero vê-lo domingo, na igreja. A Palavra Divina tudo cura. Mora nas vizinhanças?
- No Hotel Marinho - murmurou Moray.
- Ah... um excelente hotel. Miss Carmichael, a gerente, é nossa grande amiga. - Estabelecidas assim as credenciais do estranho, o ministro fez sua própria apresentação, com uma ânsia quase patética de ser útil. - Meu nome é Fotheringay... Matthew Knox Fotheringay... Bacharel em Artes de Edimburgo, às suas ordens, para o que precisar de mim.
E, com uma mesura, afastou-se discretamente.
Sozinho, Moray ainda fitava a verde relva, na qual um comprido retângulo de terra ainda levemente elevado apresentava um triste e significativo contorno. Ali jazia o lindo corpo que ele acariciara em sua juventude. Visualizava-a em sua forma jovem, como naquela tarde no alagadiço, com a cotovia cantando sobre a charneca e o riacho saltitando em seu leito de pedra polida. Viu-a nitidamente, radiosa e fresca em sua figura esbelta, o cabelo de um vermelho acastanhado, os olhos negros como carvão, e o sangue da juventude a latejar-lhe por todo o corpo... Subjugado,
apoiou-se no monumento de granito e cerrou os olhos ardentes.
Quanto tempo ali ficou, debruçado e imóvel não o poderia dizer; mas um leve ruído de passos na vereda pedregulhada logo o perturbou. Voltou-se, levantou a cabeça e quase desmaiou: ali, diante dele, ressurgida da cova, estava Mary! Mary, exatamente como ele a conhecera, tal como a sonhara um pouco antes, a ilusão temerosa e fantasmal acentuada pelo ramalhete de alvas flores que ela apertava junto ao peito! Quis gritar, mas a voz não lhe saiu. Aturdido, a cabeça à roda, percebeu que se tratava da filha de Mary, imagem viva de sua mãe.
- Devo ter-lhe pregado um susto. - E ela avançou para ele, preocupada. - Sente-se bem?
- Sim - tornou ele confuso. - Mas estou muito envergonhado de mim mesmo... com este meu procedimento tão idiota. - E, procurando uma desculpa, acrescentou: - Eu... como vê... não estava nada preparado...
Ela o fitou com olhos compreensivos.
- Encontrei-me com o ministro no caminho. O senhor era um grande amigo de minha querida mãe...
Ele baixou a cabeça em sinal de mágoa respeitosa.
- E de toda a sua família - respondeu. - Foram muito bondosos para comigo quando eu era pobre... e um estudante desamparado.
O rosto da moça exprimia simpatia e bondade; era evidente que a tristeza de Moray junto ao túmulo pesara fortemente nela a favor dele.
- Então, conheceu James, meu avô?
- Homem maravilhoso... Pude perceber isso... embora naquele tempo eu fosse um rapaz bastante desmiolado...
- E Tio Willie? - perguntou ela, com crescente simpatia.
- Willie e eu éramos grandes amigos - tornou ele, quase soltando um suspiro a essa recordação. E, numa súbita inspiração, tentando
valorizar a amizade entre os dois: - Muitas vezes dormimos juntos. Tínhamos longas conversas durante a noite. Era um excelente rapaz.
- Sim - respondeu ela, - posso imaginar.
Fez-se uma pausa, durante a qual ele não conseguiu fitá-la. Suas ideias ainda não estavam muito claras, nem inteiramente ajustadas a essa extraordinária inversão dos acontecimentos. Ele ainda lamentava a mãe e tudo quanto sua perda acarretava; entretanto, começava a pressentir que bem poderia descobrir na filha a oportunidade que buscava. Decerto que aquele não era o fim de sua jornada; pelo menos desejou-o fervorosamente, numa súbita ansiedade. Era com esforço que tentava parecer tranquilo.
- Devo apresentar-me. Chamo-me Moray... David Moray.
A expressão da moça não mudou. Ao tomar a mão que ela lhe estendia, ele mal pôde reprimir um fundo suspiro de alívio. Ela não o conhecia, nem sabia de sua história pouco edificante... Por que duvidara? Mary nunca falaria à filha sobre o passado, o segredo continuava intato em seu pobre coração partido, agora mudo para todo o sempre a seis pés de profundidade sob suas dispendiosas botas feitas à mão...
- Meu nome é... - dizia ela, enquanto ele ainda lhe segurava a mão - Kathy Urquhart.
Ele esboçou em sua intenção, embora com uma tranquila mágoa, o seu sorriso mais sedutor.
- Então, se me permite, na qualidade de um velho amigo de sua mãe... e de toda a família... chamar-lhe-ei simplesmente Kathy.
Disse isso com bondade, quase humildemente, aflito para deixá-la à vontade, para anular qualquer cerimónia que porventura ela pudesse ter para com ele. Depois, postando-se a um lado com um ar submisso com um senso de compunção e responsabilidade, muito consciente de seus defeitos e deficiências, de todos os seus erros do passado, viu-a colocar alguns crisântemos num vaso de esmalte verde junto à cruz céltica e remover, com alguns toques, as folhas de faia caídas sobre a relva.
Ela viera sem chapéu. Vestia um manto azul escuro, indisfarçavelmente puído, sobre o zuarte do uniforme de enfermeira, de um azul mais claro, e um de seus sapatos, que ele observou com um aperto de coração, estava remendado - belo conserto, sem dúvida, mas conserto inequívoco de remendão! Essas pequenas poupanças, tão visíveis a seu olho experimentado, comoveram-no. Alteraremos tudo isso, pensou consigo mesmo, com uma repentina explosão de sentimento. Sim, a sua oportunidade estava ali, indubitável
e predestinada; no mais fundo de si mesmo, sentia que era
assim.
- Pronto - exclamou a moça, erguendo-se com um riso confiante. - Estaremos em ordem para domingo. E agora... - disse com certa hesitação, mal se atrevendo a enunciá-lo - quer ir comigo para casa e tomar uma boa xícara de chá?
E saíram juntos, caminhando pela aléia do cemitério.
CAPÍTULO QUATRO
CENTADO à janela da sala, na parte superior do dispensário, enquanto ela ia à kitchenette preparar o chá, Moray olhou em torno, surpreso ante a carência de conforto, ante a pobreza de tudo quanto via. Nem sequer um tapete no soalho esfregado e polido, de largas tábuas; o mobiliário era escasso, pouco mais do que uma mesa tosca e um par de cadeiras de crina e encapadas, a lareira manchada de fuligem mas sem carvão, as paredes de um branco sem têmpera, realçadas apenas por um quadro de assunto religioso, reprodução, do Christian Herald, de uma péssima cópia da Transfiguração, de Valdez Leal. Na prateleira, alguns livros, principalmente compêndios de enfermagem, e uma Bíblia. Uma avenca língua-de-veado num vaso de barro sobre um pires azul estava na janela junto a uma cestinha de costura com um pedaço de tricô, pronto a ser retomado. Mas, conquanto reconhecesse seu asseio espartano, e o toque de branco que lhe emprestava um vaso de astérias silvestres - colocado sobre o poial da lareira e alvo da luz amarela do ocaso, - percebeu na sala, bem como na alcova anexa, cuja porta ela fechara apressadamente, a prova dolorosa de grandes aperturas. Também na bandeja, que ela hospitaleiramente lhe apresentou, a louça era pobre, e o único prato continha apenas umas fatias de pão caseiro com manteiga. Moray não chegou bem a compreender aquilo, mas, subitamente animado, raciocinou que, quanto maiores fossem as necessidades dela, tanto maior seria o auxílio que lhe podia dar.
- Se eu ao menos soubesse que o senhor vinha... - disse ela nervosa, como que se censurando, enquanto servia o chá - teria arranjado algo melhor... Quando trabalho, só faço compras aos sábados. Mas não se importe comigo; fale de sua pessoa... Esteve viajando no exterior?
- Sim, por muitos anos. Pode imaginar o que significa para mim este regresso ao torrão natal. - Sorriu, e em seguida suspirou. - Agora, que aqui estou, pretendo prolongar minha estada...
- Onde esteve?
- A maior parte do tempo, nos Estados Unidos.
- Tinha a esperança de que dissesse "África"... - Ela esboçou um sorriso, embora o seu olhar, passando mais além, tivesse um ar remoto. - Tio Willie está lá... em Kwibu, na fronteira norte de Angola.
Embora não o demonstrasse, ele experimentou, contudo, uma forte sensação de alívio: Willie certamente tê-lo-ia reconhecido, e qualquer encontro prematuro com ele teria provocado uma crise absolutamente indesejável...
- Isso não me surpreende nem um pouco - disse ele amavelmente, com uma leve ponta de interesse. - Mesmo em menino, Willie tinha loucura pela África. Ele e eu praticamente palmilhamos, com Livingstone, milha por milha do caminho rumo ao Lago Vitória. E quando Stanley o encontrou... você precisava ver como aplaudimos! Mas Angola... não se trata daquela região primitiva?
- Ela mesma. Desde que o tio partiu para lá, só tem tido horríveis dificuldades. Mas agora as coisas estão melhorando. Tenho uma porção de instantâneos que lhe posso mostrar. Dão uma boa ideia das condições lá existentes.
Neste ponto, Moray pensou que não seria prudente aprofundar a questão das atividades pioneiras de Willie - quer se tratasse de mineração quer de engenharia, não podia saber, - por isso não insistiu no assunto.
- Quando você tiver tempo, terei muito prazer em ver essas fotografias. Mas o que realmente desejo saber, neste momento, são as atividades que você exerce no dispensário.
Involuntariamente, ela teve um tímido gesto de modéstia.
- Oh, não é grande coisa! Apenas a atividade usual de uma enfermeira distrital; visitas domiciliares e coisas semelhantes. Percorro o meu circuito rural em bicicleta; às vezes, a pé. Há ainda o Centro de Saúde, para tratamento pré e pós-natal, com sua clínica... que alcunhamos "bar de leite"... Destina-se aos recém-nascidos. Vez por outra, faço plantão no Hospital de Dalhaven.
- Tudo isso soa como se todos aqui trabalhassem demais...
Ele já notara que as mãos dela eram ásperas e gretadas.
- Trabalhar é bom - disse ela animadamente. - E todos aqui são muito decentes. Tenho folga nas tardes de quinta-feira, e três semanas
de férias por ano... Na realidade, tenho duas semanas a mais, para a viagem. ..
- Gosta, então, do seu trabalho?
Ela sacudiu afirmativamente a cabeça, com uma reserva mais convincente do que o seria uma explosão de entusiasmo.
- Ao mesmo tempo, aqui não há perspectivas muito vastas. Mas... como tenho em vista coisa muito melhor...
A essa observação, e à reserva com que ela a fizera, uma ideia desconcertante passou pelo cérebro de Moray. Embora a achasse de mau gosto, teve de dizê-la.
- Quer dizer que vai casar-se?
Ela soltou uma súbita risada, mostrando dentes brancos e iguais, em sadias gengivas côr-de-rosa; uma risada que penetrou docemente, tranquilizadoramente nos ouvidos de Moray.
- Oh, não! - exclamou ela, pondo-se séria. - Aqui não há mais do que uns poucos rapazelhos da lavoura, que só pensam nos bailes de sábado e no cinema de Dalhaven. Além disso... - prosseguiu - estou tão firme no meu trabalho, que nem penso em trocá-lo por qualquer outra coisa... ou por alguém.
Tudo como ele teria desejado. Sozinha e sem impedimentos, ligada de modo sensato embora não permanente a uma profissão digna, decerto, mas monótona e pouco compensadora, não poderia haver objeto mais perfeito para a sua filantrópica e afetuosa atenção. Seus pensamentos já se precipitavam para o futuro. Pouco familiarizado com a lei, pensava que podia fazer dela sua pupila. A adoção parecia inviável, lembrava orfanatos e partilha de filhos de pais frustrados. Fosse lá o que fosse, o coração lhe transbordava de genuíno sentimento. Era, sempre fora, homem generoso; ninguém lhe poderia negar essa pequena virtude. O que não poderia fazer por ela! Não devia precipitar indevidamente os acontecimentos, a fim de não alarmá-la, de vez que, pelo visto, ela o tomara por um homem de posses moderadas. Entretanto um aspecto havia em sua situação que muito o impressionou: o de ser rico no duplo sentido da palavra, rico não apenas de dinheiro, mas das mais deleitosas possibilidades de surpresa e realização.
No silêncio que se fez entre ambos, Moray observava-a de olhos baixos enquanto a moça punha na bandeja a louça em que servira o chá. No final das contas, ela não era a exata réplica materna que ele imaginara no primeiro choque emocional. Tinha a mesma pele fresca, olhos castanhos e nariz breve, ligeiramente grosso, os mesmos cabelos castanhos naturalmente arrepanhados na nuca. Mas a
expressão era diferente - refletida, quase reservada, a boca mais larga, mais cheia, mais sensivelmente curvada, e em cujos lábios firmes ele via a evidência de uma natureza menos dada à alegria. Havia nela uma certa altivez que lhe agradava, um certo sentido de desprendimento. Ria-se pouco, mas, quando o fazia, era a coisa mais bonita que ele já vira. Mais que tudo, porém, impressionava-o o seu comovente aspecto de juvenilidade. Mary fora uma garota robusta, de redondos seios e quadris bem acentuados. Esta, porém, era esguia, pouco desenvolvida, dir-se-ia de uma imaturidade que contrastava com o seu ar sério e que irresistivelmente provocava os seus instintos protetores. Sem querer ofender a morta, concluiu que esta garota, de igual beleza, era entretanto mais profunda, possuidora talvez de uma maior capacidade para amar... Voltou a si. Uma pontinha de embaraço, algo que a ela, em seu modo de ser, repugnava expressar.
Levou-o repentinamente a lembrar-se de que Fotheringay, o ministro, lhe dissera que o dispensário abria às cinco. Olhando o relógio, viu que passavam dez minutos da hora. Levantou-se precipitadamente.
- Minha cara Kathy... Demorei-me demais... - desculpou-se ele. - Estou a impedi-la de ir para junto de seus pacientes.
- Eles não se importam de esperar mais alguns minutos. Não é todos os dias que recebo visitas.
- Então deixe-me dizer depressa da alegria que tive em descobri-la. Espero que este feliz encontro seja o primeiro dentre muitos... pois você precisa compreender que tenho uma dívida para com a sua família.
Depois que ela o acompanhou até à porta, ele se dirigiu para o carro e rodou para o hotel, refletindo com emoção nos extraordinários, nos memoráveis acontecimentos daquela tarde. À sua tristeza se mesclava uma espécie de exultação. Fora até ali levado pelos motivos mais sublimes, e em vez de uma mulher já com alguma idade - que certamente o teria acolhido com censuras, até mesmo com rancor, e que seria inflexível aos seus oferecimentos de reparação e assistência - encontrara uma moça pobre, trabalhadora, necessitada de sua ajuda e talvez mais apta a extrair dele um benefício maior. Deplorava a perda da mãe, um golpe, sem dúvida; despedaçara-lhe o coração. Mas a compensação residia naquela meiga criança que, não fossem circunstâncias inevitáveis, até poderia ser sua filha. Sobre ela, pois, e para reparar o passado, iria ele exercer, imediata e gratuitamente, uma benigna influência - prudente, proveitosa,
paternal. Os caminhos da Providência eram na verdade sábios e inescrutáveis; e transcendiam de longe a inteligência humana...
CAPÍTULO CINCO
NAQUELA noite, após o jantar, arranjou com a gerente do hotel que lhe desse uma sala. Felizmente, havia uma, anexa ao quarto. Era espaçosa e confortável, tinha uma boa lareira que, garantiu-lhe confidencialmente Miss Carmichael, "puxava bem". Conseguido isso, pediu uma ligação interurbana para a sua villa na Suíça.
Quando Arturo atendeu, quase comicamente encantado por ouvir a voz do patrão, Moray ordenou que ele lhe despachasse de Zurique, por via aérea, seus tacos de golfe e alguma roupa adicional. Quanto à correspondência, deixava à sua discrição a remessa das cartas que lhe parecessem mais importantes. Alguma notícia? Tudo ia bem, respondeu Arturo, o tempo estava bonito, fizera-se a colheita das ameixas e das rainhas-cláudias, Elena aprontara dez quilos de marmelada, um dos filhos do encarregado do embarcadouro estivera doente mas sarara, e Madame Von Altishofer telefonara duas vezes, pedindo seu endereço - devia dar-lhe? Embora grato pela solicitude, Moray, depois de refletir um momento, disse que ele mesmo escreveria a Madame. Pendurou o fone, absurdamente satisfeito com essa coleção de notícias domésticas.
Mais tarde, porém, enquanto se preparava para dormir, seu estado de espírito mudou inesperadamente. Ao fazer a revisão desse dia tão cheio, viu-se de repente acometido por um frio tremor de autocondenação. Quão apressado fora em consolar-se com a perspectiva de exercer a sua caridade para com Kathy! Como estava errado em esquecer-se de sua querida Mary, em aceitar a filha e olvidar a mãe, sem sentir coisa alguma além de uma tristeza momentânea. Uma mulher, já com alguma idade, que poderia tê-lo recebido com rancor - fora realmente nesses termos que pensara nela, depois que, mal decorrida uma hora, estivera de pé junto de sua tumba? Nunca, nunca teria ela ido a seu encontro com outros sentimentos que não fossem o amor e o perdão. Vestido com a sua comprida jaqueta de seda de dormir, com monograma - um dos casacos especiais expressamente feitos para si por Gruenmann, de Viena, ele ergueu o olhar e jurou fazer abertamente uma reparação no dia seguinte. A ideia trouxe-lhe conforto.
No dia seguinte, fiel ao juramento da véspera, Moray obteve, de Miss Carmichael, o nome do primeiro florista de Edimburgo, ao qual fez uma encomenda por telefone. Não tardou muito e foi-lhe entregue uma enorme e vistosa coroa de lírios, que ele próprio levou ao cemitério e colocou reverentemente junto à cruz céltica. Depois, com passo ligeiro e fazendo girar a bengala, dirigiu-se para o mar e caminhou pelo areal, respirando fundo o ar revigorante. Resistindo a toda e qualquer inclinação, não se aproximou de Markinch, prudentemente considerando que, fosse qual fosse, para si, a significação de Kathy, a verdade era que, para ela, ele não passava de um estranho. Mas no dia seguinte - um domingo - pôs um terno escuro e uma gravata carregada, indagou da inestimável Miss Carmichael a hora do culto matinal e saiu em direção da igreja.
Não podia de pronto recordar há quantos anos não frequentava a igreja. Nos Estados Unidos, aos domingos, saía a jogar golfe com Bert Holbrook, cumprindo a rotina do costumeiro fim-de-semana suburbano no clube de campo local, onde o grupo de golfistas ostentava o nome surpreendente de Bannock Burn. Seus membros, na maior parte diretores de empresas
nova-iorquinas, exibiam-se numa extraordinária indumentária esportiva, que ia desde os shorts de um amarelo-esverdeado até às boinas vermelhas. Formavam, entretanto, um grupo cordial e bem combinado. Apesar disso, ele nunca se sentira perfeitamente à vontade ali. Não pertencia ao tipo que facilmente se adapta à exuberante bonomia da sociedade masculina de massa, e sabia, ao mesmo tempo, que todos estavam a par da sua infeliz situação doméstica, e que, por conseguinte, deviam lamentá-lo. Todavia, gostava do clube e divertia-se no golfe, do qual era excelente jogador. Quando o domingo estava muito chuvoso para o jogo, habitualmente fugia para o laboratório, e foi num feliz e húmido domingo que descobriu a fórmula - imagine-se do que - de um novo perfume, que Bert, com o seu faro pelos nomes comerciais, imediatamente batizara Procissão, e que, vendido como artigo subsidiário, arrecadou uma pequena fortuna para a empresa. Calculava que devia fazer cerca de quinze anos desde que - naquela sexta-feira em que Dóris fora afinal dada oficialmente como doente mental e conduzida para a clínica de Wilenski, em Appletree Farm - ele, disfarçadamente se esgueirara para um banco dos fundos da igreja de Santo Tomás, na Quinta Avenida. A caminho do Clube Universitário, quase pegado, seu olhar caiu na tabuleta: Aberto o dia inteiro para oração e meditação. Sentia-se tão abjeto, ele próprio quase louco, que pensou melhorar se entrasse na igreja. Mas não
melhorou, muito embora se ajoelhasse num dos bancos derradeiros, onde ficou olhando furtivamente para o altar sombrio, e até tivesse derramado algumas pobres lágrimas - pois ele podia chorar em tais ocasiões. Saiu, entretanto, sem o menor sintoma de benefício ou melhora, e foi forçado a recorrer à sua intenção original: um banho turco no clube.
Agora, porém, sua disposição de ânimo era de todo mais propícia, e num estado de ansiosa expectativa, ele aproximou-se da igrejinha campestre para a qual era chamada uma congregação esparsa, mediante o toque dissonante de um sino rachado. Teve, ao entrar, a imediata satisfação de receber de Kathy um olhar de reconhecimento, logo abaixado. Ao começar o culto com um hino, cantado com certa vacilação, e em seguida, durante o sermão de Fotheringay, que foi longo e monótono - uma peça verdadeiramente trabalhada, - teve ele o privilégio de observá-la, embora sempre discretamente, sentada entre a criançada da aldeia. Ficou impressionado ante a competência com que ela disciplinava o bandinho intranqúilo, e a paciência, que demonstrava, ouvindo muito ereta o tedioso discurso. Seu perfil possuía uma pureza de contorno que evocava um primitivo italiano.. . Uccello, talvez... não, não... a doçura da expressão sugeria uma tela muito mais recente... A Jovem Mestra, de Chardin, concluiu afinal, muito satisfeito por ter achado a comparação exata, mas todo arrepiado com a crescente desafinação do coro.
Mas a sua recompensa chegou depois, quando, fora da igreja, ficou à espera de Kathy. Esta saiu, em companhia da Sra. Fotheringay. A esposa do ministro era uma mulher baixa e robusta, de modos francos e um rosto largo, feio e honesto, olhos perspicazes e muito azuis encravados entre rugas, acima de maçãs extremamente vermelhas - verdadeiro rosto de Raeburn, 1. pensou Moray instintivamente. Estava em trajes domingueiros: um velho chapéu preto de plumas e um costume cinza-escuro que já lhe prestara bom serviço e que agora a apertava. Moray foi apresentado e pouco depois, após terem conversado alguns momentos, o ministro Fotheringay veio reunir-se-lhes. Imediatamente Moray cumprimentou-o pelo sermão.
- Muito edificante - disse. - Ouvindo-o, evoquei uma experiência espiritual que me ocorreu na igreja de Santo Tomás, em Nova Iorque...
1. Henry Raeburn, pintor escocês (1756-1823). - N. da T.
A essa comparação implícita com a cidade grande, Fotheringay corou de prazer.
- Muita bondade de sua parte assistir ao nosso culto provinciano. Somos uma congregação humilde, e o nosso pobre sino não atrai muita gente do mundo exterior...
- Reparei mesmo - e Moray ergueu as sobrancelhas com ar súplice - que o som não era muito claro.
- Nem alto - disse o outro, lançando para a torre da igreja um olhar repentinamente irritado. - No ano passado, havia um caibro podre, e o sino veio abaixo. O trabalho de refundição custará aproximadamente oitenta libras. E de que jeito se vai arranjar todo esse dinheiro numa paróquia pobre como esta?
- Mas pelo menos a sua voz não tem nenhum defeito - disse Moray, diplomaticamente. - Achei-o eloquentíssimo. E agora - continuou ele amavelmente - tomo a liberdade de convidar a todos os três para um jantar domingueiro. Deixei-o encomendado no hotel. Espero que estejam livres para aceitar.
Seguiu-se uma pausa breve e vazia - convites dessa espécie não eram frequentes na paróquia. Mas quase imediatamente a expressão de Fotheringay se iluminou.
- Muita bondade de sua parte, senhor. Confesso que, ao descer do púlpito, estou sempre com o apetite aguçado. - Olhou quase jocoso para a mulher. - Que diz, querida? Nossa carne assada servirá para amanhã, e hoje você não terá de lavar pratos.
Desde o começo, com o ar rude de uma mulher a quem se deve mais convencer do que persuadir, ela, desconfiada e abertamente, estivera examinando aquele recém-chegado que tão dramaticamente ali chegara do desconhecido. Mas as suas primeiras impressões não pareciam desfavoráveis, e a perspectiva de emancipação dos deveres subalternos, que a parcimônia do estipêndio marital lhe impunha, era com efeito de abrandar um cristão. Volveu então para Moray uma espécie de sorriso seco.
- Para mim será um regalo; pois se Mateus fica com apetite ao descer do púlpito, o meu se acaba quando me aproximo do fogão.
Kathy estava satisfeita, menos talvez pela perspectiva de visitar o Hotel Marinho do que pelo tratamento acolhedor dispensado por Moray a seus velhos amigos. Depois que os instalou no carro - o ministro e Kathy atrás, a Srª. Fotheringay ao lado dele na frente, Moray deu a partida. Desde o início percebera que lhe era preciso conquistar os Fotheringays, e, segundo parecia, tudo correria bem.
No hotel foram saudados por Miss Carmichael. Como a temporada estava virtualmente no fim - restavam apenas alguns hóspedes, a metade do restaurante principal estava fechada e ela indicou-lhes uma mesa junto à lareira do confortável refeitório, numa intimidade especialmente agradável. A comida, simples e despretensiosa, era de primeira qualidade - sopa escocesa, lombo de carneiro com batatas assadas e vagens, bolo feito de biscoitos embebidos em xerez e coberto por uma camada de grosso creme caseiro, e, depois, queijo de Dunlop e pãezinhos quentes de aveia. Moray esperava que o pároco e a mulher gostassem da refeição, o que de fato veio a acontecer. Mormente a Sra. Fotheringay, que comeu todas as iguarias com cordial e franco reconhecimento. Quanto mais ele conhecia aquela mulher simples e sincera, tanto mais gostava dela. Mas o que lhe deu satisfação maior foi o belo sangue que a boa refeição, tão diferente do magro passadio que, estava convencido, a esperava em casa - fez subir gradualmente às faces de Kathy, dando-lhe maior brilho aos olhos e mais calor ao sorriso. Deus louvado, pensou ele, ela não é apenas espírito! E serviu-lhe uma nova porção de bolo, quis certificar-se de que a carne não estava sendo negligenciada ... Em verdade, com aquela flexibilidade que o habilitava a adaptar-se a qualquer companhia, Moray foi o perfeito anfitrião, mais bondoso e previdente do que divertido, e a todos encantando. Discretamente conversando, aludiu de passagem a seus negócios nos Estados Unidos, à sua prematura aposentadoria e regresso à Europa, à casa que construíra a montante do Schwansee. E, como percebesse que Kathy o escutava com um interesse atento, esmerou-se em descrever com sentimento - o lago, a aldeia e a paisagem circundante.
- Deve-se ver tudo isso coberto de neve... o que logo ocorrerá. - E concluiu com uma nota mais alta: - Um manto da mais imaculada brancura.
- Deve ser um lugar bonito - disse a Sra. Fotheringay. Certa de que suas primeiras dúvidas eram infundadas, mostrava-se agora mais amável para com ele, revelando uma brejeirice surpreendente. - Sujeito feliz por viver no meio de tanta beleza!
- Feliz, sim - disse Moray com um sorriso. - Mas muito só.
- Não é casado?
- Já faz alguns anos que enviuvei.
- Oh, que pena! - exclamou ela, consternada. - Mas tem filhos?
- Não tenho nenhum - tornou ele, erguendo para ela um olhar repassado de gravidade. - Meu casamento... não foi precisamente um matrimónio feliz.
As palavras dolorosas, que indicavam com clareza o subentendido do perfeito cavalheiro, provocaram um silêncio repentino. Antes porém que o mesmo se ampliasse, ele os reanimou.
- Tudo isso é do passado. Agora sinto-me feliz por estar de volta a meu país e numa companhia como a de vocês. - E sorrindo: - Vamos tomar o café na saleta?
Desolado, o ministro fitou o relógio.
- Infelizmente teremos de recusar. Kathy tem aula de Catecismo às três; e já passa de duas e meia.
- Misericórdia! - exclamou a Sra. Fotheringay. - Como o tempo correu! E de modo tão agradável! Estamos muito penhorados com o seu novo amigo, Kathy. Mas agora vamos: deixemos os homens um instante a sós. - E, levantando-se, tomou Kathy pelo braço, acrescentando com a sua rude franqueza de sempre: - Miss Carmichael nos indicará onde faremos nossa toalete.
Deixado a sós com o pároco, que também se levantara e, junto da janela, olhava o mar, Moray aproveitou a oportunidade para tirar do bolso seu livro de cheques. Uns rabiscos da sua esferográfica, e ele ergueu-se.
- Em sinal de amizade e boa vontade... permite-me oferecer-lhe isto... a fim de que a sua congregação possa ser devidamente convocada.
Fotheringay voltou-se rápido. Homenzinho raquítico que era, com mais bílis do que sangue nas veias, estava agora completamente vencido. Tomado de surpresa, olhava o cheque com os olhos arregalados, murmurando:
- Caro senhor... isto é mais do que generoso... é... é munificente.
- Nada disso. É um prazer. Um prazer que posso perfeitamente permitir-me. - Moray pôs um dedo nos lábios. - Mas por favor... não diga nada aos outros.
As duas mulheres retornaram no momento em que ele falava, e a Sra. Fotheringay, assustada com a atitude do marido, exclamou:
- Mateus! Que é que você tem?
O pároco respirou fundo e engoliu em seco:
- Não posso evitá-lo. Tenho de falar. O Sr. Moray acaba de me dar as oitenta libras para o conserto do sino!
Fez-se um profundo silêncio. Um rubor mais acentuado afluíra às faces da mulher, já avermelhadas pela refeição abundante.
- Nunca vi coisa semelhante - disse ela em voz baixa. - Isto é extraordinariamente belo! - E dirigindo-se devagar para Moray, estreitou
entre as suas a mão dele. - Aquele desastrado sino quase deixou louco o meu pobre velho. Decididamente, nem sei bem como agradecer-lhe. Mas não me foi preciso estar mais do que cinco minutos em sua companhia para ficar sabendo que o senhor é um eleito entre os eleitos.
Moray nem sempre perdia a tramontana; agora, porém, o genuíno sentimento da voz dela embaraçava-o inesperadamente.
- Nada... qual nada... - dizia ele desajeitadamente. - Se querem chegar a tempo, vamos indo.
Sem fazer caso dos protestos deles, Moray insistiu em levá-los de volta no carro; mas desta vez os Fotheringays ficaram no assento traseiro e Kathy ao lado dele. Durante o curto trajeto, Kathy não disse palavra, mas, quando ele se despedia, ela se deixou ficar para trás a fim de agradecer-lhe - rápida e timidamente, mas com inequívoca sinceridade.
CAPÍTULO SEIS
Durante A tarde de segunda-feira seus tacos de golfe e duas valises chegaram, por via expressa, do aeroporto de Prestwidk. Moray tinha certeza de que o bom Arturo não falharia. A vista de sua linda valise de couro e lustrosos tacos de genuína têmpera estimulou-o e, embora a hora já fosse avançada, ele se dirigiu para o clube de campo, apresentou-se ao secretário e conseguiu um cartão de sócio temporário. Procurou então o jogador profissional e jogou com ele uma partida de doze buracos. O campo aberto e ondulante era excelente, Moray achava-se em boa forma, e, quando o crepúsculo os forçou a parar, ele levava um ponto de avanço sobre o seu contendor, um escocês azedo e atarracado, que, revelando a princípio todo o desdém do especialista pelo amador, rapidamente, e um tanto comicamente, mudara de opinião.
- Suas tacadas são muito suaves, senhor - admitiu ele no caminho de volta para a sede, onde iam tomar um drinque. - Muito poucas vezes me acontece topar com um visitante que me vença. Gostaria de voltar amanhã?
Moray aceitou.
- Às dez em ponto - disse, passando ao outro uma nota de uma libra. - E talvez voltemos a jogar durante a tarde.
Continha firmemente o desejo de ir a Markinch. A discrição era absolutamente necessária para que não interpretassem mal as suas intenções. Não só isso, mas também conhecia a prudência das delongas, a vantagem de um interlúdio no qual pudesse florescer a expectativa, e desenvolverem-se as recordações de um passado imediato.
Por conseguinte nada fez até à tarde de sexta-feira, quando escreveu um bilhete e o remeteu por intermédio do mensageiro de hotel, um rapaz de dezessete anos.
Cara Kathy,
Preciso de ir a Edimburgo amanhã, para algumas compras. Como, segundo penso, você não trabalhará à tarde, gostaria de ir comigo, caso não tenha algo melhor a fazer? Salvo informação em contrário, irei buscá-la às duas da tarde.
Sinceramente seu, David Moray
O seu receio de que ela não estivesse de folga foi logo eliminado pelo recado verbal, de aquiescência, trazido pelo mensageiro; e na tarde seguinte, quando ele chegou ao dispensário, já ela o esperava na calçada, vestida com uma blusa de brancura imaculada; uma saia de mescla Harris, cor de cinza - que num relance ele percebeu que ela mesma fizera - e, como o vento era cortante, o mesmo manto bastante puído que ela usava quando ele a vira pela primeira vez. Embora o seu rosto cheio de frescor e juventude tudo redimisse, e ela exalasse um cheiro inocente de sabão resinoso, tratava-se de um traje muito deselegante, pouco melhor que o de uma criada campesina em seu dia de folga. Todavia, o vestuário agradava a Moray, especialmente o manto puído, visto que lhe poderia proporcionar a oportunidade que ele procurava. Seria difícil convencê-la; mas ele tinha a intenção de experimentar.
Que delícia senti-la junto de si após aqueles três dias de abstinência que se impusera! Ela não apenas ficara contente em vê-lo, mas a sua disposição de ânimo era mais leve do que antes, mais cheia de expectativa ante a excursão. Sentiu que ela se tornara menos arredia, e, após terem rodado um bom pedaço, Kathy observou:
- Isto é muito melhor do que o ônibus. O senhor foi muito bondoso em convidar-me; e também oportuno. Acontece que também preciso de fazer umas compras em Edimburgo...
- Nesse caso, nós as faremos assim que chegarmos - disse ele em tom cordial. - Diga-me aonde deseja ir.
- Na Rua George, número 10 - A - disse ela. - Escritório da Sociedade Missionária da África Central.
Ele olhou-a de relance. Os olhos de ambos encontraram-se por um breve instante, antes que os dele se voltassem para a estrada à sua frente. Ela, todavia, não deixara de captar-lhe a perplexidade da expressão, e, com um sorriso, tornou:
- Não sabia que... tio Willie está lá, trabalhando para a Sociedade? Sou culpada de não lhe haver mostrado as fotografias, mas pensei que entendesse. Já faz alguns anos que ele trabalha na campanha missionária do exterior.
Moray levou alguns minutos para refazer-se da surpresa.
- Não... não cheguei a entender...
- Pois bem, é lá que ele trabalha. Realiza verdadeiras proezas, nas circunstâncias mais difíceis... O senhor não faz ideia do que ele tem passado.
A despeito de si mesmo e da falta de simpatia pelos objetivos espirituais de Willie, Moray ficou impressionado pelo tom radioso e ingénuo com que a moça falava. Veio-lhe a lembrança comovente do rapazinho de olhos brilhantes que, fazia trinta anos, conhecera em Ardfillan.
- Bem, bem... imagine só! Mas era isso mesmo que se podia esperar de Willie. Respeito-o pela proeza.
- Eu sabia que o senhor o faria... - disse ela em voz baixa.
- Devo confessar... - estavam agora nos arrabaldes de Edimburgo, e uma dificuldade momentânea no tráfego o fez parar antes de prosseguir - sim, confesso que fiquei intrigado quando você me pediu que a levasse à Sociedade Missionária. Mas agora vejo. Suponho que é ali que você se põe em contacto com os movimentos de Willie.
- com efeito, é isso mesmo. O menos que posso fazer por ele é remeter-lhe regularmente alguns pacotes. A Sociedade faz isso por mim. Sabe o de que ele precisa, e está em condições de comprar as coisas certas por preços razoáveis.
- Você lhes paga?
- Por que não? - tornou ela alegremente. - É muito pouco. Tio Willie vale mais que isso. Depois, é o único parente que me resta.
Foi então que ele viu a razão de seu vestuário barato, do pobre alojamento onde morava e da comida sofrível; viu, com efeito, a finalidade do seu poupado estilo de vida. Esta dedicação comoveu-o, mas a sua sensação principal era de indignação por ver que a ela
era recusada a parte que se lhe devia. Veio-lhe o súbito impulso de lhe contar os recursos que tinha à sua disposição, de falar-lhe sobre tudo quanto queria e podia fazer por ela. Mas seu instinto advertiu-o. Não, não, pensou; devia evitar qualquer avanço demasiado repentino, ou demasiado assustador.
Aproximavam-se do centro da cidade, e, seguindo a direção que ela lhe dava, entrou na Princes Street junto ao Scott Monument, contornou um trecho de Craig Terrace, e depois, após cruzar uma larga praça, chegou a um edifício de pedra cor de cinza, onde se via uma placa de cobre bem polido, com o nome da Sociedade. Seu aspecto era o de uma velha residência de características vitorianas, a qual, inferiu ele, fora doada à Sociedade por algum falecido benfeitor - possivelmente a viúva crente de algum negociante da cidade. Nas janelas exibiam-se vários cartazes, representando algo que, daquela distância, se afigurava como desgraçados grupos de descarnadas crianças nativas.
- Miss Arbuthnot deve estar à minha espera - disse ela, agilmente saltando para fora do carro. - Não demoro mais que alguns minutos.
E cumpriu a palavra. Só houve tempo para que ele fumasse um cigarro Sobranie (tivera o cuidado de trazer da Suíça um farto suprimento de sua marca preferida), antes que ela reaparecesse. O relógio do painel, que na realidade funcionava, marcava apenas três e meia. Olhando-o, ela desculpou-se um tanto ofegante.
- Ui, deixei-o muito tempo à espera!
- Absolutamente. Foi tudo bem?
- Otimamente, obrigada.
- Então, Kathy - disse ele, resolutamente dando a partida, - você já praticou uma boa ação no dia de hoje e está em minhas mãos para o resto da tarde. Esqueçamo-nos um pouco da África Central e pensemos em nós. Primeiro vamos estacionar o carro; depois faremos as compras juntos.
Achou uma garagem nas vizinhanças, e, tomando a moça pelo braço, guiou-a de volta a Princes Street. O sol brilhava sobre eles, e, nos jardins fronteiros, viçavam rosas; uma brisa fresca fazia esvoaçar as folhas das tamareiras. Acima, as ameias do Castelo surgiam como que recortadas a estilete numa larga faixa de céu luminoso. Numa atitude protetora, ele continuava a segurar-lhe o braço, guiando-a através das calçadas cheias de transeuntes.
- Não acha bonita a Princes Street? - perguntou ela. - Dizem que é a rua mais bonita da Europa!
- Sim, é uma bonita rua, Kathy - respondeu ele amavelmente, - e cheia de bonitas lojas, com bonitas coisas dentro.
- Não há dúvida - disse ela com gravidade, concordando com um aceno de cabeça. - Mas terrivelmente caras.
Ele soltou uma risada. Invadia-o uma deliciosa disposição de espírito. A cena, o sol, o vivo ar tonificante faziam-no exultar.
- Kathy, Kathy - disse ele, premindo-lhe o cotovelo. - Você ainda me mata. Quando me conhecer melhor, saberá que a única coisa que realmente me dá prazer é gastar dinheiro.
Ela teve de sorrir com simpatia, ainda que um tanto suspeitosa.
- Está bem - disse ela com decisão, - contanto que não o desperdice.
- Ora, minha cara, mais do que ninguém você deve saber que nunca é desperdiçado o dinheiro que se gasta com os outros.
- Oh, o senhor tem toda a razão! - concordou ela, enquanto seu semblante se iluminava. - Foi a coisa mais maravilhosa, mais generosa que fez... dando o dinheiro do sino ao Sr. Fotheringay...
- Sim, o velho afinal conseguiu mandar refundir o sino... mas não nos devemos esquecer da Sra. Fotheringay, que não ganhou nada... Até acho que a vida dela se resume em jamais ganhar coisa alguma. Vamos procurar algo bonito para lhe dar. Mas, antes de tudo - (estavam parados em frente de Ferguson, o confeiteiro), - quero mandar uns confeitos de Edimburgo para dois amiguinhos que tenho na Suíça.
Entrou com ela e encomendou uma caixa grande da famosa guloseima a ser enviada aos filhos do encarregado do cais de Schwansee. Depois, pediu a opinião dela e, numa loja próxima, comprou para a mulher do ministro uma espaçosa bolsa preta, de couro de lagarto.
- É uma beleza! - exclamou Kathy alisando com admiração o brilhante couro. - Era isso mesmo que ela queria.
- Então você terá o prazer de entregar-lha.
Saindo da loja, dirigiu-a para um estabelecimento da mesma rua, cuja excelência ele havia observado ao dirigir o carro pela cidade.
- Agora sim - anunciou ele com grande bom humor e uma expressão um tanto maliciosa. - Agora, sim, vou fazer compras de verdade!
Deu um passo à frente, mas, quando se preparava para ganhar a entrada, ela depressa o interrompeu.
- Não está vendo... não é uma loja de artigos para homens...
- Não - replicou ele, olhando-a com um ar sério. - Não é. Mas vou entrar... para lhe comprar um manto novo... e outras coisas de que, tenho a certeza, você está precisando. Agora, nem uma
palavra! Sou um velho amigo da família, você tem de aprender a
aceitar-me... é como se eu fosse o seu tio Willie. Melhor ainda: como se eu fosse um irmão mais velho. E, nessa qualidade, não posso ver você mandando todo o seu dinheiro para Angola e deixando de satisfazer as suas necessidades mais absolutas - uma garota bonita como você.
Uma onda de rubor subiu ao rosto de Kathy. Ela quis falar, mas não pôde. Baixou os olhos.
- Nunca dou importância ao que estou vestindo... de qualquer forma, não ligo muito. - Em seguida, para alívio dele, tornou a fitá-lo, e, incapaz de resistir, com um leve tremor nos lábios, sorriu. - Não devo fingir. Acho que gostaria de ser tão elegante como as outras.
- E será, só que muito mais elegante.
Entraram na loja que, como ele supusera, era de primeira ordem. Auxiliado por uma vendedora discreta e já madura, que se precipitou ao seu encontro, e pondo de lado todos os protestos sussurrados por Kathy, ele escolheu um belo manto de lã de Shetland, quente e no entanto leve, luvas e sapatos novos, uma écharpe de seda feita à mão, e finalmente um discreto e elegante costume Lovat verde-escuro. Quisera fazer mais, infinitamente mais; nada lhe daria maior prazer do que envolvê-la nas ricas pelicas para junto das quais, com um olhar interrogativo, a vendedora esperançada o conduzira. Ele porém não se atreveu... ainda não. Enquanto Kathy se encerrou na sala de provas do primeiro andar, ele sentou-se numa poltrona da elegante sala atapetada de vermelho, espichou as pernas e acendeu um cigarro, perfeitamente à vontade. Dentro em pouco ela desceu, com o olhar abaixado, postou-se à sua frente. Ele não pôde acreditar no que via, tão espantosa fora a mudança. Kathy estava encantadora.
- Madame fica um pouco diferente no costume Lovat, senhor - disse a vendedora com um ar de quem remata uma tarefa e observando-o disfarçadamente.
Sob aquele olhar experimentado, ele se conteve.
- Um grande sucesso - disse calmamente. - Parece que serve.
- Naturalmente, senhor. Madame é um trinta-e-quatro perfeito.
Ele insistiu para que ela permanecesse vestida com o costume verde e o chapeuzinho novo. Os demais artigos, elegantemente embrulhados, eram fáceis de levar, e o manto velho com a saia Harris podiam ser remetidos para Markinch. Ao ser apresentada a conta, embora ele tomasse cuidado para não deixar ver o total, Kathy
pôs-se a resmungar, cheia de remorsos, a seu ouvido. Todavia, quando ela saiu da loja com suas novas aquisições, Moray não deixou de notar o brilho de prazer que cintilava nos olhos da moça. Foi um bem ele ter feito o que fez, refletiu com uma viva emoção; mas aquilo era apenas o começo.
Ela permaneceu calada enquanto caminhavam juntos pela rua. O sol poente lançava um clarão dourado por trás de uma massa de nuvens; então, olhando firme para a frente, ela disse:
- O senhor é bondosíssimo, Mr. Moray. Espero apenas que não se tenha arruinado.
Ele balançou a cabeça.
- Eu lhe havia dito que tinha uma dívida a pagar, Mas é você quem a está pagando.
Ela voltou-se a meio e olhou-o fixamente.
- É a coisa mais bonita que até hoje me disseram.
- Então quer fazer-me um favor? Sr. Moray é tão cerimonioso! Preferia que me chamasse, simplesmente, David...
- Oh, pois não - tornou ela, timidamente.
E antes que o silêncio se tornasse incómodo, ele exclamou alegremente:
- Misericórdia! Já passa das cinco! É hora do chá... Até aqui comandei o espetáculo, mas agora passo-lhe a batuta. Que lugar recomenda?
Sem hesitar ela citou um café, o melhor na sua opinião e de preço moderado. Não ficava longe, e daí a pouco ambos estavam sentados na sala clara e tépida de um primeiro andar, em meio a um alegre burburinho de vozes e contemplando os jardins da calçada fronteira. A mesa, segundo o estilo escocês, estava abarrotada de tentadores pãezinhos e bolinhos, tendo ao centro um suporte de várias prateleiras com todas as variedades do bolo típico feito de pão-de-ló, camadas de açúcar e maçapão, e conhecido como bolo "francês". Ele passou-lhe o cardápio, firmemente seguro por uma pequena bola de metal.
- O que sugere?
- Está com fome? - perguntou ela.
- Simplesmente esfomeado.
- Eu também. - E esboçou um sorriso discreto e brincalhão. - Já se esqueceu de como é bom um verdadeiro chá escocês?
- Ainda não. E o melhor que até hoje bebi foi em sua velha casa de Ardfillan.
- Aqui há um prato... filé de peixe com molho de salsa... Não parece grande coisa, mas positivamente é de se derreter na boca de quem o come.
Ele fitou-a com um ar zombeteiro.
- É muito caro?
Ela soltou uma risada livre e espontânea - uma risada tão feliz, que provocou sorrisos correspondentes em severos cidadãos de Edimburgo sentados nas mesas próximas.
- Custa uma boa meia coroa. E, depois do que você gastou hoje, e que daria para o resgate de um rei, acho melhor consentir que eu pague.
Quando a garçonete se aproximou, ele deixou que Kathy fizesse o pedido. O peixe, como ela dissera, estava delicioso, recém-trazido do mar, as torradas com manteiga, quentes, o chá forte e escaldante. A animação do passeio e a certeza de que estava bem vestida afrouxaram a timidez de Kathy, emprestando-lhe um entusiasmo que tornava a sua companhia mais deliciosa, se bem que ele já tivesse percebido em sua natureza, um veio introspectivo, até mesmo uma tendência para a melancolia, e agora era bom ele poder erguê-la para uma disposição de espírito mais leve. E como estava bonita naquele vestido novo e elegante, e tão transformada a ponto de atrair para si muitos olhares admirativos, que ele claramente percebia e ela continuava a ignorar! Sim, pensou ele observando-a com indulgência, ela bem merece tudo quanto pretendo fazer em seu favor, pois corresponderá ao meu esforço.
Depois de comer, ficaram algum tempo sentados num silêncio comunicativo, e ela enfim soltou um suspiro de satisfação.
- É uma pena que um dia tão maravilhoso tenha de se acabar. Mas preciso voltar para substituir a enfermeira Ingram às sete horas.
- Precisa mesmo? - perguntou ele, com um timbre de desapontamento.
- Infelizmente preciso.
- E eu que pensava que você podia ficar para irmos a um teatro! Não gostaria?
Ela baixou os olhos, mas dentro em pouco levantou-os e fitou-o com franqueza.
- Decerto vai ficar admirado, Mr. Moray... isto é, David... mas nunca fui a um teatro. Quando mamãe era viva, íamos todos os anos assistir à exibição do Messias, pelo Coro Orfeu. Também fui a alguns concertos no Usher Hall.
- Mas o teatro regular... bons dramas, a ópera, e coisas assim?
Ela balançou a cabeça com uma tal expressão no rosto, que ele ficou profundamente comovido.
- Mas Kathy, querida, aflijo-me só em pensar no quanto você perdeu. Nunca desejou ir a esses lugares?
- Não... Na realidade, não.
- Mas por quê?
Ela fez uma pausa, como para estudar a pergunta, e enfim disse simplesmente:
- Mamãe não dava atenção a isso... Acho também que sempre vivi muito ocupada... e tinha outras coisas na cabeça.
- Que menina mais séria você é!
- Não acha que é também muito séria a época em que vivemos?
- Sim - foi obrigado a confessar. - Acho que sim.
Sua capacidade para deixá-lo atónito parecia ilimitada. E como podia ser reservada quando aquela expressão contida lhe transparecia nos olhos! No entanto, que maravilha, nessa época de Moray envelhecida, descobrir uma inocência tão pura e intacta!
- Então vamos, querida - disse ele com ternura. - vou levá-la para casa.
Guiou o carro lentamente através do crepúsculo que se adensava, passando por cidadezinhas do estuário onde as luzes já surgiam sobre um fundo de treva invasora. Mas, ao macio ronronar do carro, ia ele pensando no futuro. Solo virgem - pensava Moray, - digno de todos os esforços de sua parte. O tempo estava a seu favor, naturalmente, mas havia muito que fazer. A despeito da natural doçura e inteligência dela, foi obrigado a reconhecer, como homem do mundo, que ela era uma moça simplória e sem instrução, que nada conhecia de música, de arte ou de literatura. Aquele quadro em sua sala de visitas... horrível... alguns compêndios, e a Bíblia, edificante, sem dúvida, mas insuficiente... Pobre criança! Provavelmente trabalhava demais, e ficava muito cansada para ler à noite. Isso teria que mudar, ela precisava receber educação, aprender línguas, frequentar uma boa universidade - Genebra ou Losana seriam apropriadas, - fazer um curso, digamos, de Ciências Sociais. Tudo isso e mais a convivência de pessoas cultas e civilizadas lhe dariam segurança,
aparar-lhe-iam as pequenas arestas, contribuiriam para aprimorá-la. Sua criação era de certo modo a responsável - por mais pura e espartana que tivesse sido, fora, sem dúvida, muito estreita. E a sua obsessão a respeito de Willie, embora esplendidamente altruísta, era um entrave, devia ser atenuada. Mas a necessidade mais
premente era retirá-la do seu emprego atual; com efeito, ela já insinuara que pretendia deixá-lo... E ele, pensando em incentivar isso, disse-lhe:
- Gostaria de acompanhá-la, num de seus giros domiciliares. Estou muito interessado. Pode ser esta semana?
- Naturalmente - respondeu ela prontamente. - Amanhã não, pois tenho de visitar o médico da Saúde Pública do distrito, em Dalhaven; mas depois de amanhã, se você quiser.
- Está bem. Virei buscá-la às nove.
Ao chegarem a Markinch, ele reuniu os embrulhos, acompanhou-a até a porta, silenciou-lhe os agradecimentos renovados, e deu-lhe um boa noite amável, conquanto breve. O dia que ele tão cuidadosamente planejara falaria por si. Um liame se criara entre os dois, e ele não se arriscaria a rompê-lo com blandícias no vão da porta da rua...