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CAPÍTULO SETE
Durante AQUELA noite Moray se recolheu cedo, com uma inusitada sensação de serenidade. Estava cônscio de que tudo caminhara bem, de que tudo fora em verdade perfeito. E que repousante companheirazinha ela provara ser, e quão supremamente tranquilizadora! Devidamente educada, podia vir a ser uma fonte de interesse para ele, um novo objetivo em sua vida, além de lhe proporcionar a satisfação longamente procurada de um exercício nos domínios da virtude. Adormeceu, nem bem pousou confortavelmente a cabeça no travesseiro.
Na manhã seguinte, quando lhe trouxeram o chá, viu que desgraçadamente o tempo mudara. A chuva pesada que golpeava a janela não o induzia a levantar-se. Engolidos o chá e a fina fatia de pão com manteiga que o acompanhava, deitou-se e cerrou os olhos; mas, incapaz de tornar a adormecer, tocou a campainha para pedir os jornais da manhã. O empregado que os trouxe estendeu-lhe um maço de correspondência remetida de Schwansee por Arturo: alguns comunicados comerciais de seus corretores nova-iorquinos, duas faturas, vários dividendos, um catálogo ilustrado de um leilão de desenhos de Daumier a realizar-se em Berna e, finalmente, uma carta de Madame Von Altishofer. Abriu-a.
Caro amigo:
Gasthof Lindenhof
Baden-Baden
Terça-feira, 15
Soube por meus correspondentes de Schwansee que você ainda não regressou à villa, e começo a recear que algum contratempo seja o responsável por sua longa ausência, especialmente porque não tive nenhuma notícia sua desde que partiu inesperadamente. Mostraram-se os seus negócios mais fatigantes do que previra? Ou você estará doente? Sinceramente espero que ambas essas suspeitas, que ultimamente me têm perturbado, não sejam fundadas. Mas, por favor, arranje um tempinho para me escrever. Estou certa de que sabe que nada é maior do que o meu profundo interesse por tudo quanto lhe diz respeito.
O tempo tem estado muito agradável aqui e eu estou muito melhor. Mas ando entediada... entediada... Em verdade estou ficando cada vez mais consciente da minha solidão. É-me difícil arranjar novos amigos, e excetuando uma velha conhecida - uma senhora idosa e inválida, que conheci nas termas - raramente falo com alguém. E que existência mais sossegada! Levanto-me cedo, bebo as águas, tomo o meu café com zwiebach num café das vizinhanças. Depois vou para as colinas - e você sabe como gosto de andar - e volto para esta pensão modesta, onde todos são muito bondosos para comigo, e como o meu simples Mitagessen no terraço, sob as tílias. Então descanso uma hora ou duas. De tarde vou sentar-me no jardim, ainda verde e viçoso, escolhendo cuidadosamente uma cadeira não muito perto da banda, a qual, desde que cheguei, já executou quatorze vezes a Valsa Vienense de Strauss. Passo uma parte do tempo sonhando, outra parte estudando os rostos dos passantes. Serão felizes? - me pergunto., Quase sempre duvido. Acabo enfim por achá-los diferentes das pessoas que conheci quando primeiro vim para cá com meus pais na minha primeira mocidade. Este pensamento me oprime, e eu me precipito para o pavilhão, onde me servem uma xícara de chá - não tão bom como o seu delicioso Twinings - e uma fatia de bôlo-inglês. De noite não me arrisco a ir ao cassino - a visão de todos aqueles olhares gananciosos me é repelente. Em vez disso, apanho o meu belo livro - estou relendo Ana Karenina - e me recolho junto à janela eternamente aberta de meu quarto. A luz da minha lâmpada atrai alguma mariposa fortuita, vaga-lumes piscam sob
as tílias, o sono vem chegando, e, para citar o seu conterrâneo Mr. Pepys, "cama".
Assim passo o meu dia, caro amigo. Não é simples e um pouco triste? Sim, triste porque sinto falta de você e de sua encantadora Kameradschaft. Preciso também de seu conselho, pois um homem de Basileia - químico de profissão - quer comprar Seeburg. Não queria separar-me dessa amada casa que você também admira, mas as circunstâncias são agora extremamente difíceis. Por isso me escreva logo, dizendo quando voltará. E como nada há que me leve a Schwansee durante a sua ausência, permanecerei em Baden até receber notícias suas.
Perdoe-me a revelação da estima em que o tenho.
Sinceramente, Frida von Altishofer
Ele pousou lentamente a carta. Uma linda carta, disse com seus botões, a despeito do estilo um tanto guindado; carta de uma mulher bem-nascida e distinta, que lhe era inteiramente dedicada. Normalmente, a sua leitura tê-lo-ia comovido; mas agora, talvez devido a seu estado de ânimo, consequência da véspera, deixou-o indiferente. Estava, é claro, satisfeito por ter recebido notícias dela, lisonjeado pela falta que ela sentia dele, mas, naquele momento, não podia ter o interesse que habitualmente tinha pelas atividades dela. E não estaria Frida exagerando um pouco a sua solidão? Era mulher que atraía e desfrutava de companhia. Ao mesmo tempo, no frugal almoço que ela descrevia, havia uma nota incongruente. Bem sabia que ela não era infensa aos prazeres da mesa, e, em sua última visita a Baden, voltara com uma excelente receita de sopa de castanhas. Fosse como fosse, não estava disposto a responder naquele mesmo dia. Dar-lhe-ia conselhos a respeito de Seeburg, não agora, porém mais tarde - pois tinha a cabeça cheia de outros pensamentos.
Já era quase meio-dia quando se levantou e começou a vestir-se pachorrentamente. A chuva continuava a cair depois do almoço, e ele ficou rondando no interior do hotel, tentando interessar-se por algumas velhas revistas principalmente dedicadas ao esporte e à agricultura escoceses. Foi quando se apossou dele o impulso de tirar o carro da garagem e tocar para Markinch, mas refletiu que ela não estaria lá. Dissera-lhe que precisava ir a Dalhaven. Ainda assim, teria a satisfação de passar sob a sua janela... a este absurdo, empertigou-se subitamente ruborizado e contrafeito. Vê-la-ia no dia
seguinte; precisava esperar. Olhando entediado pela vidraça embaçada do saguão, tinha esperança de que o tempo voltasse a melhorar.
Mas no dia seguinte ainda chovia, o céu permanecia pesadamente anuviado. Apesar disso, sua disposição de ânimo era de alegre expectativa quando tirou o carro da garagem e saiu rodando entre as húmidas sebes em direção a Markinch.
Quando ele chegou, já ela acabara seu plantão matutino na clínica. Fechou a porta do dispensário e, carregando a maleta, foi sentar-se junto dele.
- bom dia - disse ele, sentindo que era bom tornar a vê-la. - Ou melhor: que dia este! Foi bom ter vindo buscá-la; não tê-la deixado voltar de bicicleta debaixo desta chuva.
- Não desgosto de andar de bicicleta - disse ela - ou de andar debaixo de chuva.
O tom da observação surpreendeu-o levemente, mas ele apenas comentou:
- Seja como for, estou inteiramente à sua disposição. Aonde vamos?
- Vamos a Finden. Não lhe prometo uma paisagem bonita. A terra é toda argilosa, e Finden uma pobre aldeia, edificada em torno de uma olaria que só agora recomeçou a trabalhar. Esteve muito tempo parada.
- Bem, o dia também não está de molde para se contemplar a paisagem - disse ele, amavelmente; e, depois de pedir e receber instruções, rodou aldeia fora.
Durante o trajeto, ela permaneceu singularmente calada, e ele começou a imaginar que havia uma certa reserva em suas maneiras. Não era exatamente frieza, todavia ela perdera aquele espírito animado e receptivo que assinalara o dia passado por ambos em Edimburgo, quando ele teve a sensação de que um simpático entendimento os unia. Depois de a olhar de esguelha por diversas vezes, disse:
- Parece cansada. - Em verdade ela não tinha o seu habitual aspecto de bem-estar. - Está trabalhando demais.
- Gosto de trabalhar bastante. - A voz lhe saía naquele tom singular e um tanto contrafeito. - E tenho em mãos uma porção de casos graves...
- Isso prova que está se excedendo. Acho-a bastante pálida. - E fez uma pausa. - Já é tempo de tomar o que lhe resta de férias.
- com um tempo destes?
- Tanto mais razão para você fugir dele. - Ela não respondeu. Mas... por que não o fitava? Ele esperou uns instantes, e, em seguida, disse: - Que tem você, Kathy? Ofendi-a em alguma coisa?
Todo o rosto fresco e jovem de Kathy corou profunda, vividamente.
- Não, não - disse ela apressadamente. - Por favor, não pense isso... nada podia estar mais longe da verdade. É que... talvez eu esteja um pouco indisposta.
Isso era bastante verossímil, embora não constituísse uma explicação. Entretanto, como poderia ela falar-lhe da disposição de espírito que se seguira àquele dia passado em Edimburgo, ou da intensidade da sua reação ao mesmo? Ao acordar na manhã da véspera, experimentara, numa quente e sonolenta evocação, um esplendor crepuscular de felicidade, quase que imediatamente seguido por uma penetrante angústia de consciência perturbada. A alegre e pródiga aventura do dia anterior, excedendo a toda a sua experiência precedente, agora apresentava as cores de uma ação de autocomplacência, quase de um ato pecaminoso. com que estúpida vaidade impera em suas roupas novas! Decerto que eram lindas; mas não se destinavam a pessoas como ela. "E, quanto ao vestido, »por que andais solícitos? Olhai para os lírios do campo...» - teria ela porventura esquecido esse versículo? Sentia-se culpada - culpada e inautêntica para consigo mesma e para com tudo aquilo em que fora ensinada a crer. A lembrança da elegante vendedora que a viu apenas com a sua barata combinação de rayon e compridas calças serzidas, de lã azul-marinho, os agrados e a indulgência que a mesma tivera para com ela na sala de provas - tudo lhe provocava um doloroso rubor. Que teria pensado sua mãe, se a visse naquela situação? Não é o Sr. Moray, ou antes - cumprindo a promessa, corrigiu-se David, que ela devia censurar. Ninguém mais bondoso nem mais generoso; sua intenção era boa, e ele agira movido pelos motivos mais desinteressados. Além disso, era tão fino, tão elegante, tão companheiro, tinha uns modos tão agradáveis e tão cheios de tato, que teria parecido uma grosseria recusar-lhe as dádivas. Mas uma voz interior lhe dizia que era melhor se as tivesse recusado. Sim: a culpa era inteiramente sua, e ela devia precaver-se para que aquilo não se repetisse.
Levantou-se às pressas, banhou-se em água fria e vestiu o uniforme. Mas enquanto o fazia, tentando concentrar-se na tarefa que a esperava no Hospital de Dalhaven e na difícil entrevista com o diretor da Saúde Pública, quando lhe deveria dizer da sua intenção de deixar o Serviço de Saúde, a perspectiva pareceu-lhe tão desinteressante e inócua, que ela mal pôde continuar a encará-la. Pior que tudo, porém, foi o desejo, que a invadiu, de uma repetição do
dia anterior, não necessariamente um retorno à cidade, mas qualquer coisa de natureza similar, sob igual orientação e proteção.
Abruptamente, com toda a firmeza de uma mente habituada à autodisciplina, afastou a ideia de si; porém mesmo agora não se perdoara de todo. Entretanto, ao se aproximarem da primeira cabana que ela devia visitar, fez um esforço para se libertar de seu constrangimento, e, voltando-se para ele, perguntou-lhe se não gostaria de entrar com ela,
- Para isso estou aqui - exclamou ele. - Quero ver tudo.
A casa era alugada a um lavrador cuja perna fora apanhada numa trilhadeira na última colheita. Achava-se deitado em sua costumeira cama de alcova, na pequena e escura cozinha onde também estava sua esposa - uma mulher desanimada envolta num roupão rasgado - e três crianças sujas e mal vestidas, uma das quais engatinhava no chão com as nalguinhas de fora, babavam uma fatia de pão com geléia. A peça estava em grande desordem - caçarolas empilhadas dentro da pia, pratos engordurados em cima da mesa coberta por um jornal velho todo manchado. Nessa confusão e sujidade, que deixaram Moray estarrecido, Kathy penetrou com um ar despreocupado, deu bom dia à mulher e às crianças chamando-as todas pelo nome, depois dirigiu-se para a cama.
- Então, John... Como se sente hoje?
- Oh, não muito mal, Miss Kathy. - Seu rosto iluminou-se ao vê-la. - Assim é... tal como minha mulher, parece que nunca saio do freio...
- Ora, homem, nada de desânimo. Numa semana ou duas, voltará a ficar bom. Agora deixe-me examiná-lo. - E, enquanto abria a maleta, acrescentou casualmente: - Esse senhor veio comigo para lhe dar bom dia, John.
A ferida era profunda e grave. Avistando-a por cima do ombro de Kathy, Moray pôde verificar que a artéria femoral escapara por um triz. Vários tendões haviam sido rompidos, e, como sobreviera infecção em algumas das suturas, a cicatrização não fora imediata. Ele observava Kathy enquanto ela, depois de tomar o pulso e a temperatura, limpava a ferida, trocava as gazes e reenfaixava a perna, ao mesmo tempo que fazia algumas observações animadoras. Finalmente, endireitando o corpo, disse:
- John não sabe a sorte que teve. Mais uma polegada e a trilhadeira lhe pegava o grande vaso sanguíneo da perna. - E em voz baixa para Moray acrescentou, mostrando os seus conhecimentos: - Chama-se artéria femoral.
Ele conteve um sorriso, aceitou a informação com um olhar agradecido, e continuou a observá-la enquanto ela fechava a maleta e afastava-se da cama, dizendo:
- Basta por hoje, John. Agora vou dar uma mão à sua mulherzinha. - E voltando-se para a mulher: - Vamos, Jeannie, mexa-se um pouco. Lave os pratos, que eu cuidarei das crianças.
Era espantoso! Em quinze minutos tinha dado banho e vestido as crianças, varrido e posto em ordem o quarto, e enxugado os pratos que a mulher de John lhe apresentava ainda escorrendo. Depois, quase que num só fôlego, desenrolou as mangas e dirigiu-se para a saída, dizendo por sobre o ombro:
- Não se esqueça. Hoje de tarde mande buscar no centro o leite para as crianças.
Moray não fez nenhum comentário até que se instalaram no carro e ele deu a partida. Então disse:
- Fez tudo com grande perícia, Kathy.
- Oh, estou acostumada a isso - disse ela, amavelmente. - É apenas uma questão de método.
- Não, é muito mais do que isso... Você pôs o coração no curativo e nas crianças...
Ela sacudiu a cabeça.
- Deus sabe o quanto necessitam! Pobrezinhos!
O dia continuava desoladoramente húmido e ventoso, o emaranhado de atalhos rurais que serviam ao distrito estava coberto de barro líquido, as fileiras de cabanas dos lavradores e dos oleiros - pobres e minúsculos lares - gotejavam enlameadas sob a chuva. Mas essa miséria toda não parecia deprimir Kathy. Desaparecera-lhe a triste disposição de ânimo matinal. Quando descia do carro com sua maleta de enfermeira para chapinhar na lama em direção às cozinhas encharcadas e às sórdidas mansardas, dela irradiava uma alegria que transcendia a simples atitude profissional, uma boa vontade espontânea que ele não podia compreender. Embora ela quisesse que ele permanecesse abrigado dentro do carro, Moray insistia em acompanhá-la; qualquer coisa inexplicável o obrigava a isso. Todo aquele dia viu-a trabalhar; cuidar de mães que amamentavam e de crianças rabugentas; de uma mocinha com um braço dolorosamente queimado, cuja gaze aderira tanto à ferida que foi preciso retirá-la com demorado cuidado; da mulher de um oleiro, presa à cama com asma crónica; depois, das pessoas velhas, algumas acamadas, cheias de tediosos queixumes; de um ancião inválido e sofrendo de incontinência, que precisava ser lavado, seus lençóis trocados
e banhadas com álcool as feridas que lhe haviam surgido por viver preso à cama.
Além de tudo isso, ainda havia os deveres que ela mesma se impusera: os quartos bolorentos, cheirando a azeite de lamparina, que precisavam de ser limpos e arejados; roupa suja para torcer, pratos para lavar, leite para aquecer, sopa a cozinhar na chapa do fogão, tudo em circunstâncias que o teriam reduzido à mais funda melancolia, mas que no entanto ela executava não apenas com tranquila competência, mas com uma compaixão, um senso animoso de realização, que o deixavam perplexo.
Ele podia, de vez em quando, ter interferido com uma observação oriunda de seu próprio conhecimento na matéria, pois este contacto renovado com a doença e a miséria, embora longamente adiado, levava-o a evocar estranhamente os dias em que palmilhara as enfermarias do hospital de Winton. Continha-se, todavia, principalmente porque ela, no esforço que fazia para excitar-lhe a curiosidade, continuou a fazer pequenos e simples comentários médicos sobre as condições de seus pacientes. Moray não queria magoá-la.
Ao cair da tarde, numa de suas últimas visitas, depois de haver atendido a um caso numa fileira de cabanas, Kathy foi chamada, de uma porta vizinha, por uma mulher. Angus, seu filho caçula, tinha "um bocado de borbulhas"; achava que a enfermeira devia dar uma olhadela. O rapazinho, febril de aspecto e desassossegado, estava deitado sob uma manta axadrezada, em cima de duas cadeiras encostadas uma na outra. Disse a mãe que ele se queixava de dor de cabeça e recusara o jantar. Depois,
vira-lhe as borbulhas - algumas delas iguais a pequenas pústulas.
Kathy conversou um pouco com o menino, e em seguida, tendo-lhe captado a confiança, levantou a manta e abriu-lhe a camisa. À vista das borbulhas, Moray pôde observar-lhe a mudança do rosto. Mandando então a mãe para a copa sob algum pretexto, voltou-se para Moray.
- Pobre menino! - murmurou. - É varíola. Já houve dois casos em Berwick e, infelizmente, este é mais um. Tenho de avisar imediatamente o Serviço de Saúde.
Ele hesitou, então, no interesse dela, e sentiu-se obrigado a intervir. Num tom que parodiava ligeiramente a maneira profissional, disse a Kathy:
- Olhe outra vez, Miss Kathy.
- Que quer dizer?
- Quero dizer que não se preocupe, Kathy. - Curvou-se para a frente, apontando com o dedo para ilustrar as suas observações. - Olhe apenas a distribuição dessas empolas. São centrípetas, não há nenhuma nas mãos, nos pés ou no rosto. Ao mesmo tempo, não são multiloculares e não apresentam sinais de pústulas umbilicadas. Finalmente, essas pápulas estão em diferentes fases de desenvolvimento... ao contrário da varíola, onde as lesões aparecem simultaneamente. Segundo a benignidade dos sintomas prodrômicos, não há a menor dúvida quanto ao diagnóstico.
- Trata-se de varicela. Diga à mãe que lhe dê uma dose de óleo de rícino, que lhe ponha um pouco de bicarbonato nas coceiras, e dentro de uma semana ele ficará bom.
A expressão de surpresa de Kathy foi-se acentuando gradualmente, até que ela pareceu quase petrificada.
- Tem certeza?
- Estou absoluta e positivamente certo. - E leu em seus olhos a pergunta que ela não fez! - Sim, sou médico, Kathy. - Falava com uma espécie de suave franqueza, como que pedindo desculpas. - Isso a abala?
Ela mal podia falar.
- Fez-me perder o fôlego. Por que não disse antes?
- Bem, você compreende... eu nunca cliniquei.
- Nunca clinicou! Incrível! E por que não?
- É uma história muito comprida, Kathy. E que lhe tenho querido contar desde o instante em que nos conhecemos. Ainda a ouvirá... Que tal, depois que terminar as visitas?
Kathy, depois de um silêncio breve, porém intenso durante o qual ainda fitou Moray com olhos dilatados, sacudiu a cabeça com desconfiança; em seguida, como a mãe de Angus voltasse, ela a tranquilizou, deu-lhe as instruções de Moray, e ambos saíram. Mais meia hora, e ela acabou a tarefa do dia. Sem mais novidades, ele apertou o acelerador e guiou depressa para o hotel. Como na deserta sala do hotel fizesse frio e houvesse correntes de vento, ele a levou diretamente para a sua sala de visitas, onde ardia um brilhante fogo de lenha de refugo; depois tocou a campainha e pediu um prato de consommé quente e torradas com manteiga. O fatigado aspecto de Kathy, que muito o preocupara de manhã, intensificara-se de repente - e não era para admirar, pensou ele com amargura, após tantas horas de labuta e de exposição ao frio. Mas nada disse antes que ela se sentisse reanimada e aquecida. Quando isso aconteceu, puxou sua cadeira para junto da dela.
- Tenho tanto a dizer-lhe, que nem sei por onde começar. Mas a última coisa que desejo é caceteá-la.
- Oh, não há perigo disso. Quero saber por que nunca clinicou.
Ele encolheu ligeiramente os ombros.
- Eu era um pobre estudante, e acabava de receber meu diploma... um diploma com menção honrosa. De repente recebi oferta para trabalhar no laboratório de uma grande empresa comercial. Nada mais que isso, minha cara.
Ela o examinou sofregamente um minuto inteiro.
- Mas que desperdício... que horrível desperdício!
- Entreguei-me a uma obra científica - explicou ele docemente, traduzindo as suas aventuras com pílulas e perfumes em termos mais aceitáveis.
- Oh, que pena! - disse ela com fervor. - Isso está muito bem para alguns. Mas para um homem como você, dotado de uma tal personalidade... - corou, mas prosseguiu valentemente - sim, dotado de tais qualidades, atirar fora a oportunidade de ajudar os outros, os doentes e os que sofrem, o verdadeiro objetivo de um médico... eis o que me parece uma gritante vergonha. - Nisto, foi assaltada por uma ideia: - Nunca pensou em voltar a clinicar?
- Agora? Nesta época da minha vida? - Mas imediatamente, a fim de corrigir a falsa impressão que essa frase infeliz acaso lhe tivesse dado, acrescentou com perdoável subtração: - Não estou longe dos quarenta e cinco.
- Que tem isso? Está apto, tem saúde, está na força da vida... sim, tem a aparência jovem... Por que não volta ao seu trabalho verdadeiro?
Lembre-se da parábola dos talentos enterrados!
- Teria de espanar a poeira que se acumulou em mim - disse ele. À sua lisonjeira alusão à sua jovem aparência, Moray sorrira tão encantadoramente, que ela se vira forçada a sorrir também.
- Pelo menos poupou-me ao susto da varíola. E eu que lhe queria ensinar coisas sobre a artéria femoral! Que topete!
Fez-se uma pausa breve. Como ela era linda com a luz do fogo a lhe brincar no rosto sério, em meio à treva que se insinuava na sala. Uma onda de protetora ternura, não de todo paternal, o invadiu, e ele soergueu-se.
- vou servir-lhe mais uma tigela dessa sopa.
- Não, não. Está muito bom, sinto-me muito melhor, mas prefiro ... prefiro continuar com a nossa conversa.
- Pensa com grande seriedade nesse assunto! - E franziu as sobrancelhas, bem-humorado.
- Oh sim, sim! Muito seriamente. É a ideia que faço da vida... a gente procurar ajudar os outros. É para isso que viemos ao mundo: para fazer o melhor que nos for possível. Fé, esperança, caridade... Mas a melhor de todas é a caridade - assim me ensinaram a crer. Foi por isso que estudei para enfermeira.
O conteúdo espiritual de suas palavras era levemente desencorajante, mas ele as recebeu bondosamente. Depois disse, cheio de firmeza:
- Kathy, você é uma enfermeira maravilhosa. Não a vi em ação? Admiro-a e respeito-a pela obra que está realizando, embora, para ser franco, não a considere suficientemente forte para ela; mas deixemos isso passar. Sinto, entretanto, que você pode exercitar os seus dons num nível diferente, digamos, um nível mais alto, com resultados muito mais amplos e compensadores. Não, não diga nada, espere um minuto. - Docemente silenciou-lhe a interrupção e prosseguiu. - Desde que nos conhecemos, há uma coisa que escondi de você; que escondi deliberadamente, pois queria que você simpatizasse comigo, que gostasse de mim por meus próprios méritos, se é que tenho algum... - Esboçou um sorriso: - Será que gosta de mim?
- Gosto, sim; gosto muito - respondeu ela com uma impetuosa sinceridade. - Nunca conheci quem produzisse em mim uma tal... uma tal impressão.
- Obrigado, querida Kathy. Por conseguinte, agora estou livre para lhe contar, com toda a humildade deste mundo, que sou homem abastado. Sinto não poder exprimi-lo menos cruamente, pois em verdade sou lamentavelmente, ultrajantemente rico - ao que nunca fui tão grato como neste momento, pois isso me habilita a fazer muito por você. Não, por favor - e ele tornou a erguer a mão, - deixe-me terminar. - E, após uma pausa, prosseguiu com uma expressão grave: - Sou um homem solitário, Kathy. Fiz um casamento infeliz... bem, encaremo-lo como ele foi na realidade: uma verdadeira tragédia. Minha pobre mulher ficou anos a fio internada num instituto de psicopatas, e ali morreu. Não tenho filhos, ninguém como você para encher meu tempo. Trabalhei arduamente toda a vida. Agora, ainda moço, aposentei-me, com amplos lazeres e mais bens materiais do que preciso ou mereço. - Fez nova pausa. - Já lhe contei que tenho uma grande dívida a saldar com a sua família. Não me pergunte que dívida é essa, se não quiser me fazer lembrar de uma mocidade desagradável e ingrata. Apenas direi que tenho de saldar essa dívida, e pretendo fazer isso interessando-me
por você, tirando-a deste apagado ambiente, dando-lhe uma cultura apropriada e todas as demais coisas que você merece. Uma vida cheia, opulenta e compensadora; não, naturalmente, uma vida ociosa; pois, como você está cheia de ideias humanitárias, poderá cumpri-las com a minha cooperação, e com os recursos que porei à sua disposição.
Enquanto Moray falava, ela fitava-o com um crescente nervosismo; agora, porém, que ele terminara, Kathy baixou os olhos e por um bom momento permaneceu calada. Afinal, disse:
- O senhor é extremamente bondoso. Mas isso é impossível.
- Impossível?
Ela inclinou a cabeça.
- Porquê? - inquiriu ele, com uma expressão persuasiva.
Fez-se nova pausa.
- Decerto se esqueceu... mas no primeiro dia lhe contei que ia deixar o trabalho distrital por algo melhor. No fim do mês que vem irei para Angola... trabalhar com o tio Willie na Missão.
- Oh, não! - exclamou ele com voz alta e sobressaltada.
- vou, sim. - Sorrindo debilmente, ela ergueu o olhar e encontrou o dele. - Tio Willie vem buscar-me. Chegará no dia sete do mês que vem. Iremos de avião a vinte e oito.
Estultamente, ele perguntou:
- E quanto tempo conta ficar lá?
- Para sempre - respondeu ela com simplicidade. - Fiz a notificação ontem ao médico da Saúde Pública.
Um silêncio prolongado tombou na sala. Ela partiria - calculou ele rapidamente - dentro de cinco semanas! A notícia arrasou-o, matou-lhe as esperanças, arruinou-lhe fatalmente os planos. Não, não, impossível aceitá-lo. Os projetos que ele acariciava tinham atingido uma enorme força possessiva, não apenas no interesse dela, mas também no dele próprio. Kathy era a sua missão na vida. E nada tão fútil para opor-se a isso como aquele desejo absurdo de imolar-se na agrestia do jângal tropical. Nunca, jamais. Mas o raciocínio lhe voltava, ele viu o perigo de a contrariar abertamente e arriscar-se a um rompimento iminente. Devia confiar em que o tempo e as circunstâncias mudassem o modo de pensar de Kathy. Quando voltou a falar, fê-lo com calma, calcando a devida nota de consternação.
- Isto me desaponta gravemente, Kathy. Foi em verdade um golpe. Entretanto, percebo quão estreitamente ligado está esse plano ao seu coração.
Ela se preparara para a oposição. Mas, em face dessa tranquila aquiescência, os olhos se lhe inundaram de grata simpatia.
- Você tem tanta compreensão!
- E posso ajudar também. - A ideia pareceu reanimá-lo. - Willie receberá pelo próximo correio um donativo para a Missão, e um donativo excelente. Apenas quero que você me dê o endereço dele.
- Oh, darei sim! Como agradecer-lhe?
- Mas isto é apenas o começo, querida. Não lhe disse já quanta coisa quero fazer por você? O futuro o provará. Quanto ao presente. .. deixe-me refletir. Quando foi que disse que Willie deve chegar?
- Dentro de uma quinzena, aproximadamente. Partiremos três semanas depois.
Ele calou-se, contraindo a testa para refletir.
- Creio que descobri - disse afinal. - Como você vai partir tão inesperadamente e tão depressa, acho razoável que me dê um pouquinho do tempo que lhe resta. Está exausta; e, para aguentar o duro trabalho no calor do trópico, deve tirar umas férias, ou pelo menos descansar um pouco. Por conseguinte sugiro, com toda a reserva, que você tire as duas semanas de férias que ainda lhe restam e vá passá-las comigo em minha propriedade entre as montanhas. Willie irá unir-se a nós em seu regresso, e, mesmo que nenhum de vocês dois possa ficar muito tempo lá, desfrutaremos os três da mais feliz reunião do mundo!
Durante cinco fatais segundos ele pensou que ela ia recusar. Surpresa e dúvida anuviavam a franca expressão do rosto de Kathy; isto, porém, fundindo-se com a indecisão, se fez seguir por um sorriso hesitante. Moray percebeu que a inclusão de Willie no convite fora um golpe de pura inspiração. Mas seria bastante? A dúvida voltara aos olhos dela.
- Seria ótimo - disse Kathy devagar. - Mas não seria grande incómodo para você?
- Incómodo? Não sei o que significa essa palavra.
- O ar da montanha fará bem a tio Willie - disse ela. - A ele, que regressa de Kwibu.
- E para você... que vai para lá. - Foi com esforço que conseguiu ser natural. - Então você irá?
- Bem queria - disse ela em voz baixa, fazendo-se pequenina e desamparada na poltrona funda. - Mas há dificuldades... meu trabalho, por exemplo. Depois, porque avisei, talvez não me dêem as férias. Tenho de falar sobre isso com a enfermeira-chefe ou com o
médico-residente. - E após tomar uma funda respiração: - Estou de serviço no hospital até ao fim desta semana. Quer deixar-me pensar no assunto até lá? - Naquele momento ele viu que nada lhe restava senão concordar.
CAPÍTULO OITO
LEVOU-A de volta a Markinch para o serviço noturno. Quando chegaram, ele, receoso de dizer alguma imprudência no estado de espírito em que se encontrava, limitou-se a algumas palavras de despedida e a um olhar contido mas eloquente. Depois rodou lentamente em direção ao hotel.
A chuva cessara e - com aquela perversidade do tempo escocês
que ocasionalmente ao fim de um dia de chuva torrencial promete melhores coisas - uma barra de luz clara apareceu no horizonte. Mas esse clarão transitório pouco contribuiu para animá-lo, e ele, desligando o motor, encostou o carro à margem da estrada para refletir.
com efeito, tratava-se de um revés desagradável; pior ainda, pois era, dentre todas as coisas, a que menos esperava. Quem teria previsto aquilo? Uma linda garota decidida a perder-se entre um bando de pintados selvagens que não poderiam apreciá-la mais do que ao pequeno e admirável Bonnard pendurado na parede de seu estúdio, em Schwansee. A mão de Moray tremia de aflição, enquanto ele acendia um cigarro com seu isqueiro de ouro e puxava uma funda baforada. Claro, não podia negar que lera ou ouvira falar de casos semelhantes. Não havia uma rica dama da sociedade renunciado, recentemente, à sua fortuna, indo viver de bananas com um médico excêntrico no jângal brasileiro? Era comum saírem as freiras do país como irmãs-enfermeiras, mas isso fazia parte da sua vocação. Supunha igualmente que o dever das esposas de missionários era acompanhar os maridos. Mas, no caso em apreço, não havia a menor necessidade de renúncia, nem obrigação moral ou matrimonial, e todos os aspectos do projeto lhe pareciam absurdos e fúteis.
Que podia ele fazer? - essa era a questão. Acendendo cigarro após cigarro - excesso inteiramente estranho a seu feitio moderado - consagrou-se ao problema com uma concentração só possível mediante a força da indignação. A solução mais simples seria abandonar seus planos, desistir, poupar-se a dificuldades ulteriores e voltar para casa. Não, não, não poderia fazer isso, e imediatamente repeliu tal
ideia. Além da implícita obrigação que tinha para com ela e para consigo mesmo, ele ficara naquele curto espaço de tempo tão apaixonado pela pequena Kathy, que a simples ideia de nunca mais tornar a vê-la era demasiado derrotista, demasiado sombria para ser aceita.
Quanto mais ele refletia, mais ficava convencido de que o melhor meio para furtá-la a uma tal obsessão consistia em mostrar-lhe, embora por pouco tempo, a plenitude e a riqueza da vida que lhe podia oferecer. Educada com grande rigor, dir-se-ia que isolada do mundo, ela não tinha a menor ideia do que ele poderia fazer por ela. Se ao menos pudesse levá-la para a Europa, mostrar-lhe o encanto e a elegância das grandes cidades continentais que ele tão bem conhecia - Paris, Roma, Viena, com suas galerias de arte, edifícios históricos, monumentos e igrejas célebres, restaurantes de elite e belos hotéis - e em seguida apresentar-lhe o conforto e os recursos de sua casa, decerto ela voltaria à razão e se deixaria convencer. Seu convite, portanto, feito de repente, fora um golpe de mestre, o qual, mesmo agora e após madura reflexão, não podia ser substituído por outro melhor. Restava apenas assegurar-se de que ela o aceitaria. Mas como? Procurando mentalmente quem lhe poderia dar assistência e apoio, não tardou muito a ocorrer-lhe a pessoa mais indicada para isso.
Apagou o cigarro, apertou com força o botão da partida, e, dando a volta guiou de regresso, através de Markinch, até ao presbitério. Em cinco minutos chegava a seu destino. Enquanto estacionava o carro e entrava na aléia, distinguiu um andaime na parte alta da torre e ouviu Fotheringay dando ordens em voz alta, o que parecia indicar que o sino estava sendo retirado. Mas não tinha a intenção de encontrar o ministro, que na certa o embaraçaria com novas expressões de gratidão. Foi, pois, com alívio, enquanto passava pelo crescido arvoredo de louros, que viu a Sra. Fotheringay na horta, ao lado da casa. Tinha ela na cabeça um velho chapéu de feltro, de homem, vestia uma capa impermeável, toda manchada, e calçava pesadas botas ferradas, ao mesmo tempo que trazia na mão uma podadeira.
- Desta vez me apanhou na "estica"! - exclamou ela, com um sorriso torcido, embora acolhedor, ao vê-lo aproximar-se. - Estou matando lesmas. Depois da chuva, elas vão direitinho para as couves-flôres. Mas parece que já matei a maior parte. Vamos entrar.
- Se não se importa - disse ele com certa hesitação - gostaria de falar com a senhora aqui mesmo.
Ela fitou-o bem no rosto, e depois, sem dizer palavra, conduziu-o a um caramanchão pintado de verde, que se erguia ao fundo do jardim.
Sentando-se num banco de madeira, indicou-lhe um lugar ao lado dela. Em seguida, após um novo olhar atento, disse-lhe:
- Quer dizer que afinal Kathy lhe contou?
Sua perspicácia surpreendeu-o; foi todavia um auxílio para ele começar.
- Faz apenas uma hora que o sei.
- E não aprova?
- Quem aprovaria? - disse com voz embargada. - A simples ideia de uma garota ir enterrar-se por toda a vida naquele sertão... Sinto-me... sinto-me indizivelmente infeliz.
- Sim, calculei que isso o deixaria transtornado - falou ela devagar, franzindo o largo rosto crestado pelas intempéries. - E não é o único. Meu marido também é contra, embora, em sua qualidade de ministro, lhe seja difícil deixar transparecer tal coisa. Mas eu, que sou apenas a esposa do ministro, eu digo que é uma lástima.
- A coisa já seria péssima em qualquer época. Mas agora, especialmente com a agitação que está havendo na África...
Ela concordou com a cabeça, séria e moderadamente. Porém, Moray não se podia conter.
- Ela não serve para isso. Depois do trabalho de hoje, ficou morta de cansaço. E por que vai ela para lá? Qual a razão disso tudo? É seu tio o responsável?
- Sim, de certo modo penso que ela vai para o bem de Willie. Mas também para o dela própria.
- Quer dizer, motivos religiosos.
- Sim, talvez... mas não unicamente isso.
- Mas ela é religiosa!
- E no melhor sentido da palavra. - Falava com sentimento, caindo cada vez mais no dialeto rústico. - Ajuda-nos na igreja, ensina as crianças, mas não é dessas que andam de Bíblia debaixo do braço e o branco do olho revirado para o céu. Não, o senhor precisa conhecer Kathy para compreender o que a leva a partir. Não preciso dizer que ela é uma moça excepcional, nos tempos que correm, tão diferente, como a aveia o é da palha, dessas garotas de rabo-de-cavalo, cabeça vazia e sensuais que andam por aí com o seu jazz e seu rock and roll, só preocupadas em se divertir, sabe-se lá com que péssimas diversões! Ela é séria, sensível e quieta, não se esqueça-mas nervosa, cheia de miolo e ideais próprios. Sua criação (a mãe dela era excepcionalmente rigorosa) tem muito a ver
com isso. E o fato de viver sozinha, aqui no interior, manteve-a muito isolada. Ao mesmo tempo, desde que Willie foi para Angola, onde parece haver não apenas doença, mas fome também, parece que ela, como era natural, ficou cada vez mais firme na ideia de ajudá-lo. Ajudar onde a necessidade é maior... servir.. .- são essas as suas palavras no que concerne à missão de Willie. E isso é hoje a única coisa que lhe importa; a mola de sua vida.
Moray permaneceu calado, mordendo os lábios em protesto.
- Mas pode servir sem se enterrar!
- E quantas vezes eu já não lhe disse isso?
- E Willie, por que não lho diz? Deve compreender que a coisa é inteiramente impraticável.
- Willie não é homem prático. - Parecia a pique de dizer qualquer coisa mais, mas só fez acrescentar: - Para falar a verdade, Willie está fora do mundo.
- Mas eu estou no mundo - exclamou ele nervosamente. - Interesso-me por Kathy. A senhora decerto já o percebeu. Quero fazer coisas para o bem dela; dar-lhe tudo quanto ela precisa e bem merece.
A mulher não respondeu, mas continuou a fitá-lo com uns olhos inquiridores, onde também brilhava uma tão franca simpatia, que ele sentiu uma repentina necessidade de desabafar, de justificar seus motivos e conquistá-la definitivamente para si, mediante uma plena confissão de seu passado. O impulso foi irresistível, e ele cedeu. com a respiração arfante, logo mais rápida, por vezes quase desarticuladamente e
poupando-se bastante na narrativa, contou à Sra. Fotheringay o que o trouxera a Markinch.
- Como vê, tenho todas as razões, todos os direitos de reparar os males passados. Se eu não tivesse feito aquela malfadada viagem - e sua voz ficou quase de todo embargada, - Kathy bem podia ter sido minha filha!
Na pausa que se seguiu, ele conservou-se de olhos baixos. Quando os levantou, o sorriso dela era ainda mais bondoso do que antes.
- Adivinhei desde o princípio. A mãe de Kathy era uma mulher reservada, mas uma vez, mostrando-me um álbum antigo, vi numa das páginas um ramilhete de flores secas. À minha moda habitual, fiz uma piada sobre o assunto. Ela desviou o olhar e suspirou, dizendo apenas o suficiente para me fazer sabedora de que houve alguém de quem ela muito gostara antes de se casar.
Ele titubeou ligeiramente a essa evocação demasiado vívida da sua deserção, mas rapidamente se recuperou.
- Então a senhora me ajudará! Convidei Kathy a ir comigo para a Suíça, e lá, em minha casa, Willie irá a seu encontro. Se conseguir reuni-los ali, em um novo ambiente, creio que posso fazê-los voltar à razão, Kathy especialmente. E ela precisa de umas férias, pobre criança! Quer a senhora persuadi-la a acompanhar-me? Não há dúvida de que lhe virá pedir conselho.
A Sra. Fotheringay não respondeu no mesmo instante, mas continuou pensando com o ar circunspecto de quem medita. Depois disse, como que dando expressão a seus pensamentos:
- É uma coisa estranha... Esperei, sim, e orei, suplicando que alguma coisa acontecesse para demover Kathy desse pulo no escuro. Não é apenas o perigo - que é bem grande, pois Willie, esse maluco, quase foi morto uma meia dúzia de vezes, - mas também o fato de Kathy ser tão delicada que, em menos de um ano, ficará extenuada naquele clima medonho. E ela é um amor de garota, talhada para coisa diferente. Bem, parecia não haver mais esperança e eis que, no derradeiro momento, quando um já desiste de lutar e ela está a ponto de partir, o senhor aparece como um segundo pai - o senhor assim se expressou - e está claro para mim porque nos foi enviado. - Ela fez uma pausa, estendeu a mão grande e maltratada, e a pôs sobre a dele. - Sempre cometemos desatinos quando moços. Não admira que tivesse errado naquela época. Acredito que é um homem direito e de bom coração. Não há muitos a quem eu confiaria Kathy, mas ao senhor confio. Se ao menos o senhor pudesse tirá-la desta rotina, fazê-la viajar um pouco,
pô-la em contato com gente nova, e sobretudo descobrir para ela um marido jovem e sólido que lhe desse uma boa casa e filhos para cuidar, alguém que zelasse por ela, então o senhor teria mais do que saldado sua antiga dívida. - Apertou-lhe firmemente a mão. - Acredito na intervenção da Providência. Embora o senhor não saiba, tenho a ideia inabalável de que o senhor é a resposta para o que venho procurando. Creia que o ajudarei em tudo o que puder.
Moray tinha os olhos húmidos ao sair do presbitério. Sentia-se recuperado, purificado pela confissão e, cônscio do valor da promessa da boa mulher, bastante seguro para aguardar pacientemente uma palavra de Kathy. Ela o avisara que estaria muito ocupada no Hospital de Dalhaven até ao fim da semana. Não devia esperar uma resposta antes disso. Entretanto, quando o primeiro dia se fundiu no segundo, e o segundo no terceiro, uma dúvida incessante começou a atormentá-lo, a sua preocupação voltou e ele quase perdeu totalmente as esperanças. Não havia nada para lhe prender
a atenção ou aliviar-lhe a monotonia da espera. O tempo ficara frio e ventoso, o mar esbravejava, e espuma e areia eram sopradas em redemoinhos sobre as dunas e os relvados. Mesmo que quisesse jogar, o golfe estava fora de cogitações; Finlay, o profissional do golfe, suspendera o trabalho ali e regressara para o clube de Dalhaven. O hotel repentinamente reduzira-se, fecharam-se mais quartos e janelas, o derradeiro hóspede do outono foi-se embora, e apenas duas moradoras permanentes, duas senhoras idosas, ficaram para compartilhar com Moray os rigores das rajadas do nordeste. Como já não pudesse dar a desculpa de estar em férias, seus amigos do lugar e do estrangeiro começaram a ficar admirados pela sua prolongada ausência de casa. Duas vezes Miss Carmichael lhe pediu informação sobre seus planos, enquanto em Schwansee os seus admiráveis criados começavam a inquietar-se com a longa demora. Mas tudo isso nada era, comparado com a sua crescente ansiedade, a percepção de que o tempo corria, reduzindo ainda mais o já limitado período que tinha à sua disposição.
No sábado, fazendo um esforço para distrair as ideias, Moray resolveu passar algumas horas fora do hotel e tomar informações em Edimburgo, quanto à possibilidade de reserva de passagens de avião. Passou toda a manhã na cidade; depois, como o céu clareasse, em vez de regressar cedo, foi de carro explorar a região norte do campo. Por duas vezes se extraviou - o que não lhe foi desagradável - no ambiente rural, parou para se informar do caminho a seguir e bebeu um copo de leite num pequeno sítio das redondezas; depois, tornou a partir para retomar o rumo, e no fim descobriu que se havia extraviado mais do que pensava, pois, de repente, quando quis voltar, encontrou-se em meio de uma paisagem estranhamente familiar para si. Olhando em torno com uma certa tensão nervosa, notou um após outro os acidentes do terreno. Não podia haver engano. Talvez não fosse o simples acaso o que o trouxera ali, mas um impulso subconsciente. Achava-se no vale Fruin, na deserta vereda que, a partir do lago, conduzia ao mesmo trecho da linda charneca onde há tantos anos, ao regressar do hospital de Glenburn, Mary se lhe entregara.
Invadiu-o uma estranha fraqueza e ele quis voltar, mas não pôde. com uma expressão tensa no rosto, rodou mais algumas milhas; depois, apertando o breque, fez o carro parar. Sim, o lugar era aquele mesmo. Indeciso, ali permaneceu alguns momentos, o corpo rígido; depois desceu do carro e caminhou pela margem relvosa, até ao alagadiço. À medida que avançava, ia penetrando naquele
estreito vale abrigado e inesquecível, onde o riacho corria cristalino e ligeiro em seu leito de pedregulho. Santo Deus, pensou ele, tudo tão igual, que se diria ter acontecido na véspera!
Postado ali, com um vazio no estômago e o coração batendo célere, viu o passado ressurgir diante de si - a chegada na motocicleta, o piquenique ao sol quente, os risos e olhares enternecidos, o zumbido das abelhas, e depois, sob a cúpula azul do céu - enquanto as gaivotas giravam no alto gritando em vão, - a alegria e o medo daquele momento de êxtase em que, irresistivelmente atraídos, ambos se abraçaram. Moray viu, sentiu tudo aquilo, e assim permaneceu, num banho de recordação sentimental, até que, com um estremecimento pânico - verdadeiro choque físico, - tapou os olhos com uma das mãos.
A moça que ele tinha nos braços não era a amada há muito perdida. Cada sensação, cada ardente particularidade daquela cena apaixonada, ele a revivera, não com a mãe, mas com a filha! A mulher que ele tão estreitamente apertara nos braços fora Kathy, cujos lábios quentes e macios haviam premido os seus num tão doce abandono. Soltou um grito na charneca deserta. Inteiramente abatido, ferido por uma súbita vergonha, deu de caminhar, tropeçou indeciso encosta acima e, através da macega, voltou ao carro. Rodou estrada afora como um possesso. Como é que não percebera aquilo antes? Estava em verdade apaixonado - não pelo passado, mas pelo presente. Pensar em Kathy como pensaria em uma filha, em uma pupila que ele podia proteger, não era mais que uma ilusão, um disfarce protetor do seu desejo subconsciente. Desde o primeiro minuto em que a encontrara, seu primitivo amor - longamente cultivado como o único de sua vida - fora recriado, revigorado e transferido para Kathy. Ela não era apenas a imagem desse amor, fresca, jovem, mais bela até, mas uma vívida realidade de carne e osso. Olhando fixamente para a frente, guiando como um autómato, experimentou conter essa maré de sensação. A situação era delicada. Perfeitamente correta, nada havia nela de vergonhoso; todavia, surgiam escrúpulos exigindo exame ou pelo menos contenção, pois do contrário os maliciosos poderiam imaginar coisas. Mas, como se atreveriam a isso? Seus motivos eram os mais elevados; seus sentimentos, naturais, honestos e normais, e jamais poderiam ser tidos como incestuosos; não havia motivo para compunção, razão alguma para recuo. Quem iria
censurá-lo? E como podia ter sido de outro modo? A ideia aliviou-o, encheu-o de uma alegria palpitante, e o futuro, que a rigor, até então, jamais
adquirira forma, encaixava-se agora no lugar devido e exalo, adquiria cores encantadoramente vivas e nítidas. E - Deus do Céu!- como ele se sentia jovem, rejuvenescido de fato, por aquelas duas excitantes paixões, sedutoramente fundidas em uma só!
Mais do que nunca, era preciso, agora, que não houvesse mais hesitação nem delongas. Discrição, sim, é claro, mas nenhuma revelação imprudente ou prematura de seus sentimentos. Assim que regressasse, ligaria para Dalhaven e chamaria Kathy. Moray apertou o acelerador, e o carro voou como se tivesse asas. Ao chegar ao hotel, saltou para fora e correu diretamente para a cabina telefónica do hall. Estava quase a entrar, quando o porteiro lhe acenou da portaria.
- Há um recado para o senhor. A Sra. Fotheringay veio procurá-lo na sua ausência, e deixou-lhe esta carta com as melhores recomendações.
O homem estendeu-lhe um envelope comum, fechado, no qual estava escrito o seu nome. Não ousou abri-lo ali. Precipitou-se para o quarto, abriu-o sofregamente, e, com dedos trémulos, tirou do interior uma folha de papel ordinário. Num relance percebeu que era de Kathy.
Caro David:
Tivemos tanto trabalho no hospital, que não me sobrou uma folga sequer; mas ontem à tarde acabei o serviço e tive uma longa conversa com a Sra. Fotheringay. Depois falei com a enfermeira-chefe, que aquiesceu em conceder-me as duas semanas de férias que me restam, a partir de
segunda-feira que vem. Por conseguinte, estarei livre para aceitar o seu generoso oferecimento de me levar à Suíça, e já escrevi a tio Willie dizendo-lhe do seu convite para que vá ao nosso encontro.
Sinceramente sua, Kathy
Estou muito contente por ir com você.
Desnecessário telefonar! Espontaneamente, Kathy iria consigo. Moray sentou-se numa confortável poltrona. Penetrava-o uma cálida sensação de triunfo. E a caminho de Schwansee - atendendo à sua intenção original - por que não fazer uma parada em Viena, sua cidade favorita, apenas por uns dias, para dar a Kathy um ante-gosto da vida continental? Tornou a ler a carta: ela escrevera a Willie. Um cabograma seria melhor e mais rápido. No dia seguinte
enviaria ele uma mensagem pessoal, comprida e franca, que explicaria muita coisa a Willie, facilitando assim o consequente encontro deles. Voltou a ler o pós-escrito: Estou muito contente por ir com você. Só havia uma coisa possível para um homem de tanto gosto e sentimento, um homem de tal requinte, ainda intocado pela crueza e vulgaridade desta época bárbara. E, levantando o retalhinho de papel vulgar, premiu-o contra os lábios.
CAPÍTULO Nove
DE uma altitude de vinte mil pés, o Caravelle começou gradualmente a descer do estrelado céu noturno para o escuro platô das nuvens embaixo. Moray olhou o relógio: nove e meia. Voltou-se para a companheira:
- Falta pouco. Deve estar cansada.
A viagem fora adiada, mercê de delongas em Londres e Paris; ele, porém, não lamentava o atraso. Estar sentado junto dela, na intimidade da cabina de luxo, observando com uma solicitude divertida mas cheia de ternura as suas reações durante o seu primeiro voo, antecipando o que ele julgava fossem desejos dela embora Kathy não exprimisse nenhum - tudo isso eram prazeres raros e preciosos. Como tudo lhe era novidade para si, ela pouco falava; e, por causa desse silêncio, que parecia indício de alguma ligeira tensão, decidiu ele dar a nota estimulante.
- Espero que se divirta, querida Kathy. Esqueça-se das caminhadas na lama de Markinch e trate de desfrutar umas férias verdadeiras. Relaxe um pouco a tensão. - E riu-se. - Distendamos nossos nervos... nós ambos; e sejamos... bem... sejamos humanos.
- Oh, sou até demasiado humana - respondeu ela, concordando. - Daqui a pouco dirá que sou uma caceteação!
Nisto, fez-se ouvir a voz da aeromoça no sistema de intercomunicação.
- Estamos chegando ao aeroporto de Viena. Façam o favor de apertar os cintos de segurança e apagar os cigarros.
Como ela ainda não tivesse prática, ele a ajudou pressurosamente a ajustar o cinto. Ao tocar-lhe a fina e elegante cintura, e sentir a tepidez de seu corpo, uma súbita alegria o invadiu.
Visíveis, lá embaixo, as luzes do aeroporto, se empinaram violentamente quando o avião adernou; depois, com um último giro
e uma perfeita descida, o aparelho correu pela pista, manobrando em direção do edifício da alfândega.
- É um modesto aeroporto este de Viena - disse ele ao descerem a escada. - Não o reconstruíram depois da guerra. Mas não demora, e ficaremos livres.
E cumpriu rigorosamente a palavra. Em menos de sete minutos se acharam na avenida principal, e ali, segundo as instruções que dera por telegrama, estava o Rolls cintilando sob as luzes de néon, enquanto Arturo, no seu melhor uniforme, todo sorrisos e mesuras, esperava o patrão. Ele nada contara a Kathy sobre esse pormenor: preferiu surpreendê-la, e o êxito lhe sorriu. Depois de trocar cumprimentos com Arturo, rodaram pela noite adentro. Tendo nos joelhos uma suave manta de peles, e em torno o macio estofado cor de cinza do carro, ela enfim murmurou em voz baixa:
- Que beleza de automóvel!
- Nunca o apreciei tanto como agora. - E deu-lhe, sob a manta, umas pancadinhas tranquilizadoras na mão. - Serve para eu lhe mostrar a cidade.
A estrada, de Flughaven para Viena, era, ele bem sabia, uma péssima introdução à alegria. Flanqueava-a uma ininterrupta sucessão de cemitérios e, como se isso não bastasse, viam-se em ambas as margens estabelecimentos dedicados à fabricação e exposição de lápides mortuárias. Todavia, a escuridão encobria benevolamente essas sombrias sugestões da mortalidade. Em meia hora, a alegre cidade iluminada os acolheu, e eles se dirigiram para o Prinz Ambassador. Não sendo um hotel muito grande, era contudo de luxo. E Moray dava-lhe preferência por ser o mais tipicamente vienense, com uma aprazível localização à antiga, sobranceira à fonte Donner e à igreja dos Capuchinhos. Também ali ele era conhecido e apreciado. Foi logo conduzido para um apartamento duplo do andar de cima. A sala de estar era uma peça de estilo antigo, com brocados e veludo vermelho, e um deslumbrante lustre central, arandelas de cristal nas paredes e uma mesa barroca de gesso, onde a gerência já havia mandado pôr um grande vaso de crisântemos bronzeados e uma cesta cheia de frutas selecionadas.
- Agora, Kathy - disse autoritário, depois de aprovar o quarto onde ela dormiria e o moderno banheiro anexo, ambos pintados num delicioso amarelo-pálido e com cortinas de cor cinza-pombo - está cansada, embora proteste que não. Portanto, boa noite. vou encomendar para você uma bandeja de coisas gostosas; depois tome um banho e vá deitar-se.
Como era previdente, gentil e delicado! Moray felicitou-se, pois pelo olhar de Kathy adivinhara exatamente o que ela queria. Qualquer outra palavra se fazia desnecessária: restava-lhe apenas sair, com graça e simplicidade. Levantou-lhe levemente o pulso, roçou por ele os lábios, fez uma rápida inclinação de cabeça e, saindo, disse alegremente:
- Encontrar-nos-emos amanhã de manhã, para o café!
Chamou o garçom daquele andar, encomendou sanduíches de peito de galinha e chocolate quente para Kathy, depois desceu ao restaurante. Antes de entrar, acendeu um Sobranie, e, de cabeça descoberta, deu um breve giro pela Ringstrasse. Como era bom estar de novo em Viena, ouvir risos nas ruas e música de valsa saindo dos cafés, ver até mesmo as pequenas dirnen pecadoras dando início à sua caçada noturna! A Escócia era excelente, uma vez que se lhe aceitasse o clima; era ótima para o golfe e a pesca... Viena, porém, era mais gemutlich, mais a seu feitio. Quando tomasse pé, Kathy a adoraria!
A manhã seguinte raiou clara e bela, verdadeiro dia outonal, e às nove horas, depois que trouxeram o café, ele atravessou a sala e bateu discretamente à porta de Kathy. Ela estava de pé e já vestida, fazendo um pouco de tricô enquanto esperava que ele a chamasse. Sentaram-se juntos. Ela serviu o café - quente, saboroso e aromático, o melhor dos cafés, - que jorrou espumejante nas belas xícaras de porcelana de Meissen, brancas como a toalha imaculada e ornadas com uma coroa de ouro. A manteiga, em cima do gelo, tinha a cor do creme, e o mel, em seu boiãozinho de prata, era de um rico amarelo dourado. Os pãezinhos, frescos e de cheiro adocicado, traziam ainda o calor do forno.
- Experimente um destes. São os célebres kaisersemmeln, dignos de um imperador - disse ele, desejoso de informar. - Faz quase um século que a mesma padaria os fabrica... Passou bem a noite? Pois muito me alegro. Está pronta para um dia inteiro de passeios.
- Espero-os com impaciência. - E fitou-o com um ar indagador. - Iremos de carro?
Ao mesmo instante ele percebeu que a moça tinha acanhamento de usar o Rolls. Que adorável garota! Não era nada estragada, e ao mesmo tempo bonita, ainda fresca do orvalho noturno! Respondeu-lhe penalizado:
- Esta manhã, sim, pois iremos a um lugar um tanto longe. Mas, de outra vez, iremos de chancas...
A frase pareceu agradar a Kathy e ela sorriu.
- Será ótimo, David. Quando se anda, vê-se mais. Não acha? Também se vêem melhor as pessoas...
- E você tem de ver tudo, querida!
Arturo já esperava lá fora. Podia-se vê-lo da janela, a andar de um lado para outro, fazendo guarda contra a curiosidade de uma pequena multidão admirada e inquisitiva. Quando afinal eles desceram, tirou rápido o boné, curvou-se respeitosamente e presenteou Kathy com um único botão de rosa e - delicioso gesto! - já munido de um alfinete de cabeça de latão.
- Repare - murmurou Moray em seu ouvido. - O meu bom italiano já aprovou...
Ela corou profundamente; mas ao entrarem no carro, sujeitou-se,
deixando-o prender a rosa na lapela de seu costume Lovat. Em seguida partiram, rumo a Kahlenberg.
Foi um passeio deslumbrante, de curvas ascendentes por entre lindos subúrbios asseados e o relvado coberto de pinheiros do Bosque de Viena. O sol brilhava; o ar, eletrizado por uma pontinha de geada, era puro como cristal; e de repente, ao vencerem a última ladeira, todo o panorama de Viena se lhes descortinou no sopé do morro, com um fulgor que lhes deixou o fôlego suspenso. Descendo do carro, passearam pelo píncaro, enquanto ele lhe ia indicando os pontos altos da cidade: o palácio Belvedere, a igreja de Santo Estêvão, o Hofburg, a Casa da Ópera, e, bem em frente, o famoso restaurante Sacher, onde ele propôs levá-la para almoçar.
- É lugar famoso?
- Um dos melhores da Europa.
Ouvindo isso ela hesitou, e, pousando timidamente a mão no braço dele:
- David, não podíamos almoçar qualquer coisa aqui mesmo? - E indicou com o olhar o pequeno café fronteiro. - Parece um lugar tão bom! E isto aqui em cima é uma beleza!
- Bem - respondeu ele. - É um lugar simples... e o cardápio deve ser ainda mais simples...
- Provavelmente tem pratos simples e sadios.
E quando ela o fitava com aquela expressão, as faces ardendo na brisa cortante, ele tinha de ceder.
- Então vamos. Arrisquemo-nos juntos.
Ele nada podia recusar-lhe, embora os seus pressentimentos fossem mais do que justificados. A mesa era uma tábua em cima de um cavalete, não tinha toalha, o talher era ordinário, e lá estava o indefectível Wiener Schnitzel, duro e insosso, acompanhado, imagine-se,
de apfel saft! Ela entretanto não deu mostras de se incomodar, até pareceu gostar de tudo, e no fim do repasto ambos se reconciliaram bem-humorados. Ficaram sentados algum tempo à mesa - ela ainda fascinada com o panorama. Depois, por volta das duas horas, tornaram ao carro e partiram para Schõnbmnn.
Era esse o regalo especial que Moray prometera a si próprio, pois, como alguém inflexivelmente contrário aos horrores arquitetônicos da era moderna, cultivara uma afeição romântica para com o majestoso palácio de verão de Maria Teresa, edificado no século XVIII, e para com os lindos jardins circundantes, traçados à antiga maneira francesa. Além disso, agradava-lhe o papel de cicerone. Desde que transpuseram o portão de ferro maciço, ele se empenhou resolutamente em despertar a curiosidade de Kathy, e, como conhecesse bem o assunto, teve um êxito espetacular. Enquanto vagueavam pelos vastos aposentos barrocos, recriava ele a Corte Imperial em todo o seu luxo e esplendor. Fez uma vívida descrição da vida de Maria Teresa, desde a graciosa menina recatada - ele parou diante do retrato que a apresentava com seis anos de idade, usando uma comprida túnica de brocado azul e ouro, reprodução do vestido de uma elegante dama vienense da época - que, ao ver o pai em traje de gala, exclamou, para diversão de toda a corte: "Oh, que lindo está o papai! Venha aqui, quero admirá-lo!" - até à mulher de forte e nobre individualidade, figura central da política europeia, patrocinadora das artes, mãe de cinco filhos e onze filhas, e que, interrogada no leito de morte se estava sofrendo muito, como com efeito estava, respondeu tranquilamente - suas últimas palavras:
- Estou bastante à vontade para morrer.
O tempo passava imperceptivelmente. Nunca Moray se entregara a um entusiasmo tão dramático. Quando de novo transpuseram o pátio empedrado da entrada, ficaram ambos surpresos ao descobrir que eram quase seis horas e começava a escurecer.
- Meu Deus! - exclamou ele, desculpando-se - fiz você andar demais e falei tanto que decerto fatigou-se. E, o que é pior, fi-la perder o chá. Isso é indesculpável na Áustria, onde há kuchen tão maravilhosos!
- Mas por coisa alguma queria perder tudo o que vi, - tornou ela, rapidamente. - Você sabe tanto e faz tudo ficar tão real!
Ele lhe fornecera, visivelmente, assunto para reflexão pois, no caminho de volta para o hotel, após um silêncio pensativo, ela observou:
- Naquele tempo as classes privilegiadas viviam muito bem. Mas como vivia o povo comum?
- Decerto que não tão bem - e riu-se. - Diz-se que, em Viena, trinta mil famílias moravam, cada uma, num único aposento. E se o quarto fosse razoavelmente espaçoso, moravam duas, separadas apenas por um varal!
- Que horror! - exclamou ela, penalizada.
- Realmente - concordou ele consoladoramente. - A época não era boa para a gente ser pobre.
- Mesmo agora - prosseguiu ela - tenho visto muitos indícios de pobreza na cidade. Quando saímos, vi crianças descalças, mendigando nas ruas...
- Sempre os houve, sempre haverá mendigos em Viena. Mas esta é uma cidade do amor, do riso e da canção. Seus mendigos até que são muito felizes!
- Serão mesmo? - disse ela devagar. - Como poderão ser felizes quando sentem fome? Hoje de manhã conversei um pouco com a arrumadeira do hotel - ela fala muito bem inglês. Disse-me que é viúva, tem quatro filhos, e que o marido foi morto num motim durante a ocupação. Tem lutado horrivelmente... a vida está tão cara... e o que ela ganha mal dá para manter a família com vida!
- Não lhe parece que essa é a velha história da falta de sorte?
- Não, David, não é. A mulher é uma pessoa decente e perfeitamente sincera.
- Nesse caso, dê-lhe um pouco do dinheiro que tem reservado para os alfinetes.
- Já dei!
Ao tom exultante da exclamação, ele a olhou de esguelha. Ao saírem do aeroporto, e para que ela tivesse alguma coisa para os gastos, ele pusera-lhe na bolsa um maço de notas, talvez uns mil e quinhentos xelins austríacos, equivalentes a vinte libras esterlinas.
- Quanto lhe deu?
Ela fitou-o com certa hesitação.
- Tudo.
- Não diga, Kathy! - E soltou uma risada. - Que caridosa você me saiu! Desfazendo-se de toda a fortuna de uma vez só!
- Tenho certeza de que ela a empregará bem.
- bom; se isto lhe agrada, a mim também me agrada - disse ele, ainda achando graça na coisa. - Em Viena, a gente tem de ser liberal e um pouco maluca. Adoro esta cidade, Kathy. Adoro-a tanto, que me entristece ver como está mudando depressa. Ê preciso
ver tudo agora, meu bem; daqui a pouco, com tantos lugares bonitos existentes no mundo, Viena vai ficar abandonada. Olhe só aquele horror à direita!
Passavam por um edifício novo e alto, de apartamentos, construído para as classes trabalhadoras.
- Esse pesadelo sem fisionomia, feito de aço e concreto, repleto de quartinhos que mais parecem canis, veio substituir uma bela e antiga residência barroca, um pequeno palácio demolido há doze meses, para em seu lugar fincarem isto... esta penitenciária!
- Não lhe agrada?
- A quem agradaria?
- Mas David... - E ela respirou fundo, logo prosseguindo com um ar pensativo: - As pessoas que aí moram devem gostar. Têm sobre a cabeça um telhado firme, têm conforto - calefação, água quente, instalações sanitárias adequadas, e intimidade. Não é melhor do que viverem como porcos, separados apenas por um varal?
Ele franziu o sobrolho com uma expressão de perplexidade.
- Seja como for, não viverão sempre como porcos? Mas a questão não é essa. O que a gente sente é a destruição da beleza existente no mundo. Tratores e caminhões a derrubarem tudo, arruinando e arrancando os mais belos monumentos do passado para construírem estes edifícios de carregação, todos idênticos, todos tão medonhamente feios... A Inglaterra se deixou engolir por seus lúgubres subúrbios. A Itália está cheia de fábricas. E, na Suíça, há dezenas de apartamentos atulhados, nos sítios mais belos, junto às praias de seus lagos - mas não perto de mim, graças a Deus.
- Sim, é verdade que vivemos num mundo novo - disse ela concordando. - Tanto mais razão para aproveitá-lo ao máximo. E fazer o que pudermos para melhorá-lo.
Fitou-o interrogativamente, como que ansiosa para saber o que iria ele responder à sua observação. Mas eis que chegavam à Ringstrasse, onde luzes já se acendiam, e empregados, saindo dos escritórios,
aglomeravam-se nos cafés das calçadas, falando, rindo, pondo no ar uma nota de expectativa. A hora era fascinante, e, pelo menos ali, nada havia que ofendesse a vista. Ao deslizarem por entre o tráfego, ele se lhe aproximou, e, no crepúsculo que caía, tomou-lhe o braço.
- Fatiguei-a com tanta conversa e discussão. Suba para o quarto e descanse uma hora. Depois vamos jantar.
Percebera-lhe a timidez ante o convite para ir jantar ao Sacher, mas, no próprio interesse dela, decidiu levá-la ao famoso restaurante.
Um pouco de incentivo, e ela dominaria o constrangimento; além disso, não era preciso toalete para u janta»r no Sacher. Quando o relógio batia oito horas na igreja de Santo Estêvão, já ele - escoltava, escada abaixo, para fora do hotel; depois, como a noite estivesse bonita, percorreram a pé o curto trecho ao longo da Karntnerstrasse. O terraço envidraçado do restaurante estava repleto, mas ele tomara a precaução de mandar reservar uma mesa discreta na sala lateral, conhecida como Bar Vermelho. Percebeu que a escolha do local a encheu de confiança, e, relanceando o olhar pelo cardápio, a expressão do rosto se lhe foi tornando nostálgica.
- Espero encomendar algo tão bom como aquele peixe que você escolheu em Edimburgo. Foi a primeira refeição que fizemos juntos... Nunca a esquecerei. Diga-me: gosta de foie gras?
- Não sei - e abanou a cabeça. - Acho que sim.
- Então vamos encomendá-lo. com um pouco de Garniertes Rehrúcken, e um Salzburger Knocke para acompanhar. - Fez a encomenda, e acrescentou: - Como estamos na Áustria, vamos homenagear o país e beber um pouco de Dúrnsteiner Katzensprung. É originário do belo vale do Danúbio, a umas cinquenta milhas daqui.
Trouxeram o foie gras, que era delicadamente rosado. Moray cheirou-o para ver se se tratava do verdadeiro foie gras de Estrasburgo, e em seguida encomendou um molho de framboesas. Quando trouxeram o vinho, que foi provado, aprovado e servido, ele ergueu o copo.
- Bebamos à nossa saúde. - Depois, ternamente, ao vê-la hesitar: - Lembre-se de que prometeu ser humana. Quero vê-la sair da sua linda conchinha escocesa.
Obediente, embora um pouco trémula, ela ergueu o copo esguio e encostou os lábios no perfumado líquido ambarino.
- Tem gosto de mel.
- E é tão inofensivo como o mel. Acho que nesta altura você já me conhece..,
- Oh, sim, David. Você é muito bom.
O assado era tudo quanto se poderia esperar de melhor, e foi servido com um saboroso molho de rabanetes e maçãs. Ele comia não apenas devagar, como de costume, mas com sentimento, dando a cada bocado a respeitosa atenção que o mesmo merecia. Na saleta anexa alguém começou a tocar suavemente ao piano - uma valsa de Strauss naturalmente, mas como calhava naquele ambiente! Era uma valsa sedutora, melodiosa, obsedante...
- Não acha isto agradável? - murmurou ele no outro lado da mesa. Gostava de ver o rubor aparecer e desaparecer das jovens faces de Kathy. Como era linda! E como sabia despertar o que ele tinha de melhor em sua natureza, fazendo aflorar todo o bem que existia em seu interior!
A sobremesa, segundo ele previra, foi um triunfo. Lendo a expressão do rosto dela, (tarefa na qual se tornara especialista), ele explicou:
- É feita quase que inteiramente de ovos frescos e creme.
- Quantos ovos levou? - perguntou ela, admirada.
Ele voltou-se para o garçom.
- Herr ober, quantos ovos levou este Salzburger Knocke?
O homem encolheu os ombros, sem contudo deixar de ser polido.
- Tantos, senhor, que já perdi a conta. Se Madame deseja fazer um bom knocke, não deve poupar ovos.
Moray franziu o sobrolho para Kathy e disse:
- Temos de iniciar uma criação de galinhas.
Ela rompeu a rir como uma colegial.
- Pobres das galinhas, precisando botar ovos nesse ritmo!
Encantado com aquela inusitada animação não deixou ele de notar que ela não fizera a menor objeção à futura assistência com que ele lhe acenou. Nisto, a conta chegou, e, depois do costumeiro exame, Moray pagou-a com uma cédula de valor elevado, e deu ao garçom uma gorjeta tão generosa que o resultado foi uma sucessão de curvaturas, que se diriam devidas à passagem de um rei.
Ao saírem do restaurante, foram recebidos na calçada pelas habituais mãos estendidas - de vendedores de fósforos e de flores de papel, de aleijados (falsos e genuínos), do velho maltrapilho de acordeão fanhoso, da velha que agora nada mais tinha a vender, exceto lisonjas. Moray distribuiu o troco da conta generosamente, indiscriminadamente, só para ver-se livre dos pedintes. Depois, escapando para o hotel, foi inesperadamente recompensado durante o trajeto: Kathy tomou-lhe o braço, e, de sua livre e espontânea vontade, aconchegou-se mais a ele durante o trajeto para o Neuer Markt.
- Estou contente por você ter feito aquilo. Depois de uma refeição tão dispendiosa, sentir-me-ia envergonhada se o não fizesse. Mas isso é bem de você, David: ser bom e generoso, sem qualquer ideia de poupança. E que dia me proporcionou! Tudo tão novo, tão impressionante, que mal posso acreditar. Quando penso que há alguns dias apenas eu lavava pratos na cozinha de Jeannie Lang... Mas isto é um sonho!
Era tão bom vê-la à vontade, livre de inibições, na realidade
- alegre. Escutando-a num silêncio indulgente, ele a deixou falar,
cônscio de que aquele simples copo de Diirnsteiner sabendo a mel não teria podido transmitir-lhe, por si só, aquela disposição de ânimo, pela qual em grande parte ele era responsável. E numa súbita evocação, Moray lembrou-se de que também para com Mary demonstrara o mesmo talento - caberia- até dizer-se poder - de furtá-la a preocupações mais sérias, desoprimindo-lhe o coração. O augúrio ; era auspicioso.
Infelizmente, o trajeto para o hotel foi muito curto. Já na porta do quarto, Kathy voltou-se para ele a fim de lhe dar boa noite.
- Obrigada por este maravilhoso dia, David. Se você não se esquece daquele dia que passamos em Edimburgo, eu por mim jamais me esquecerei do dia de hoje.
Ele demorou-se um instante, querendo retê-la.
- Você gostou mesmo, Kathy?
- Extremamente.
- Verdade?
- Juro.
- Então diga: de que gostou mais?
Ela entreparou no ato de fechar a porta, ficou subitamente séria, pareceu revisar seus pensamentos. Depois, furtando o rosto à sua vista, e sem olhar para ele, disse muito simplesmente:
- Estar com você, David.
Em seguida entrou.
CAPÍTULO DEZ
Nos três dias seguintes o tempo, embora mais frio, permaneceu radiosamente belo; as condições não podiam ser mais perfeitas para o prazer e a novidade dos passeios. Variando de programa com uma louvável destreza, Moray levou-a ao Hofburg e ao Hofgarten, ao Museu Imperial de Belas-Artes, ao Senado, ao Belvedere e ao Parlamento. Tomaram chá no Demel, percorreram as lojas elegantes do Graben, assistiram a um exercício da Escola Espanhola de Equitação, que entretanto redundou em desapontamento, uma vez que, embora abstendo-se de qualquer comentário, ela visivelmente desaprovara a exibição daqueles belos cavalos brancos se distendendo em atitudes circenses, contrárias ao seu natural. Ele acompanhou-a
também numa visita aos quatro filhos da camareira Arma, todos de pé e em fila, de roupas novas e quentes, e sólidas botinhas de inverno, e esta foi sem dúvida a mais bem sucedida de suas excursões. Aqueles dias, dizia Moray para consigo mesmo, foram os mais felizes de sua vida. Ela lhe trouxera alegria e doçura, dera-lhe uma nova mocidade. Quanto mais a via, mais acreditava já não poder viver sem ela.
Todavia, não raro Kathy o intrigava, até mesmo lhe causando uma singular preocupação. Divertir-se-ia ela realmente com tudo quanto ele tão sedutoramente lhe mostrava? Impossível duvidar, tantas vezes vira iluminarem-se-lhe os olhos, repletos de interesse e animação. Não obstante, não faltavam ocasiões em que, apesar de docilmente atenta, ela se diria confusa, nervosa e perturbada. Em dado momento ela se aconchegava estreitamente a ele para logo em seguida subitamente se afastar. Tinha uma estranha capacidade de fechar-se dentro de si mesma e podia surpreendê-lo pela fidelidade a suas próprias opiniões.
Certa vez, no Graben, debalde ele empregara toda a sua sutileza para induzi-la a aceitar um presente - um colar de estilo simples, mas incrustado de esmeraldas - que, sem pensar, e com pouco conhecimento do preço, ela havia admirado.
- É lindo - respondeu ela, abanando a cabeça - mas não é para mim.
E nada a demoveu. Apesar disso, ele decidiu fazer o que queria. Mas a maior surpresa de Moray foi verificar que o dinheiro contava pouco na opinião de Kathy, que não dera importância ao luxo do hotel, cujas refeições dispendiosas e complicadas simplesmente a atrapalhavam. Percebeu igualmente que ela preferia o pequeno carro de aluguel ao reservado conforto de seu Rolls. E certa feita, tendo ele aludido discretamente ao assunto, ela respondera inesperadamente:
- Mas David, o dinheiro não pode comprar nenhuma das coisas que realmente importam!
Desapontado e um tanto melancólico por essa falta de apreciação, Moray todavia consolou-se com a ideia de que seria amado, ou, como agora se atrevia a esperar, de que estava sendo amado pelo que pessoalmente valia. E, desde que a vida simples visivelmente agradava Kathy, ele resolveu desviar sua atenção para a Suíça e a repousante tranquilidade que ela ali encontraria. Mas não se enganara levando-a primeiro a Viena. Não apenas a conhecera melhor, como também fizera progresso, um grande progresso naqueles últimos dias. Inegavelmente, uma intimidade se estabelecera entre
ambos, uma corrente de vibrações passava de um para o outro. Embora ela mesma não soubesse, ele percebia que, pelos rubores repentinos ao toque de sua mão, pelo brilho de seus olhos quando ele aparecia, ela ultrapassara o ponto donde já não há regresso. Todos os seus instintos assim o confirmavam. E ver e sentir aquela moça tímida e apaixonada expandir-se gradualmente sob a coação das primícias do amor era para ele a experiência mais deliciosa de sua vida.
No sábado de manhã, depois que acabaram de almoçar, ele observou displicente, mas com uma pontinha de mágoa:
- Começa a parecer que estamos fartos desta cidade. Pelo menos por enquanto. Você não gostaria que partíssemos amanhã para Schwansee? Se este frio continua, decerto haverá neve no Oberland, e isso é algo que você não deve perder.
O entusiasmo de Kathy imediatamente confirmou-lhe a intuição.
- Gostaria mais do que tudo... isto é, se lhe convém partir. Gosto tanto do campo. - E depressa acrescentou: - Não que não me sinta feliz aqui.
- Então, resolvido! Sairemos no avião de domingo, à tarde. Mando Arturo na frente. A viagem de carro através do Ardberg é muito fatigante nesta época do ano. Mas antes de partirmos - fez uma pausa e sorriu - ainda há mais uma cerca para você pular. Creio que será um prazer, não uma penitência.
- Sim? - inquiriu ela, um tanto indecisa.
- Haverá uma noite de gala, hoje, na Ópera. Representa-se Madame Butterfly; mas o espetáculo vai ser excepcional, uma vez que Tebaldi estará cantando. Os cenários são de Benois. Era praticamente impossível conseguir entradas, mas fui bem sucedido graças a um golpe da sorte. Estou certo de que gostará especialmente dessa ópera... Quer ir?
- Sim, David - respondeu ela com uma hesitação apenas perceptível. - Mas me preocupa vê-lo incomodar-se tanto por minha causa.
- Não pense nisso.
Não lhe disse que somente mediante um ágio enorme, pago por intermédio do porteiro, fora ele capaz de obter com tanto atraso duas entradas de camarote.
- A propósito; hoje descansamos, a fim de que você esteja bem disposta para o espetáculo da noite.
O descanso fez-lhes bem, especialmente porque o céu se anuviara e um vento cortante, que soprava de Semmering, fazia das
ruas outras tantas geleiras. Entretanto, após dar instruções para o regresso de Arturo, ele saiu a fim de tratar de um assunto pessoal. Segundo sugerira, jantaram cedo, na sala de estar: apenas uma sopa de tartaruga, uma omelette fines herbes com pommes pont neuf, pêche melba e café: propositalmente, uma refeição leve porém boa.
Quando terminaram, ele levantou-se.
- É uma amolação, minha querida puritana, mas este assunto exige traje de rigor. Felizmente eu sabia o seu tamanho, por isso encontrará no quarto uma novidade. Pedi à boa Anna que o estendesse sobre a cama. - E, passando-lhe um braço carinhoso em torno do ombro, inclinou-se sobre ela e disse-lhe com o seu jeito mais sedutor: - Por favor, use-o... por minha causa.
E, trauteando baixinho a ária do dueto "Noite de Enlevo", da Btttterfly, Moray foi para seu quarto e começou a vestir-se devagar. Primeiro fez a barba com um barbeador elétrico, até ficar satisfeito com a maciez do rosto; depois tomou um banho quente seguido de uma ducha tépida, fez uma boa fricção, para polvilhar-se com simples talco. O criado de quarto já havia retirado do guarda-roupa o seu traje de rigor; as abotoaduras de ônix e diamantes e o botão do colarinho já estavam postos na camisa engomada, de preguinhas no plastrão; as meias de seda preta, desdobradas, os sapatos de couro já sem as formas de madeira e com as línguas voltadas para fora - tudo disposto na maior ordem, junto da poltrona. Arturo não teria feito melhor; precisava não se esquecer de dar uma gorjeta ao homem... Afinal ficou pronto. Um salpico de Eau de Muguet e uma enérgica escovadela nos cabelos com suas escovas militares, de dorso de marfim com monograma - graças a Deus, nem sinal de calvície! - e o quadro ficou completo. Examinou-se no espelho. Assentavam-lhe muito bem a gravata branca e a casaca (ninguém, no Bonocampagni, chegava aos pés de Caraceni na perfeição do corte), e naquela noite, com toda modéstia, ele sabia, sem sombra de dúvida, que compunha uma figura agradável e distinta, surpreendentemente jovem. Tenso de expectativa, apagou a luz - hábito antigo, que lhe vinha da mocidade - e foi para a saleta.
Kathy não se fez esperar. A porta do quarto dela abriu-se daí a pouco e a moça aproximou-se lentamente trajando o vestido verde que Moray escolhera para ela, e trazendo no pescoço, para deleite dele, o delgado colarzinho de esmeraldas, que combinava à maravilha com o vestido. Literalmente, ele perdeu o fôlego, enquanto ela, olhos abaixados e faces levemente enrubescidas, avançou e postou-se
à sua frente. Se ele a achara linda no seu modesto costume Lovat, agora não havia palavras que servissem para o caso.
- Kathy - disse ele em voz baixa, - você não vai gostar que eu o diga, mas não devo calar-me. Você está encantadoramente, indizivelmente bela.
Nunca em sua vida dissera uma verdade tão absoluta. Tão jovem e fresca, com aquela tez de quente tonalidade e aqueles cabelos louro-avermelhados, o verde era indubitavelmente a sua cor. Que não faria dela quando a levasse a Dior ou Balenciaga! Mas... ela tremia? Kathy humedeceu os lábios.
- É um vestido belíssimo - disse vagarosamente. - E você ainda foi comprar o colar...
- Para combinar com o vestido - disse ele alegremente, resolvido a aliviar-lhe a consciência. - Apenas algumas pedras verdes...
- Não. Anna admirou-as, e disse-me que eram cabochões de esmeralda.
- Ah! bem. Apenas quero que o seu acompanhante também combine com elas.
Ela o fitou, depois desviou o olhar.
- Nunca imaginei que pudesse existir alguém como você. - Parecia que ela procurava uma frase, e esta veio com uma falta de jeito inabitual: - Você... você não pertence a este mundo.
- Espero continuar pertencendo ainda por muito tempo - disse ele rindo. - E agora, vamos. Sua índole democrática vai ficar lisonjeada: como Arturo já partiu, tomaremos um táxi.
- Devo calçar as luvas? - perguntou ela nervosamente enquanto desciam pelo elevador. - São muito - compridas.
- Calce-as, ou leve-as na mão, como quiser, querida Kathy. Não faz diferença. Nada se pode acrescentar ao que já é perfeito...
O porteiro, embora chocado porque eles, vestidos com tamanho esplendor, tivessem rejeitado a sua habitual condução, levou-os entre curvaturas para uma respeitável caleça. Dentro em pouco chegaram à Ópera, atravessaram o foyer apinhado e foram conduzidos ao camarote, onde ele arranjara lugares na segunda fila. Ali, na intimidade aconchegada das cortinas vermelhas e num camarote que era só deles, Moray percebeu que Kathy se acalmava. Livre do nervosismo, fitava a brilhante cena com crescente interesse e animação, enquanto ele, sentado atrás, mas muito perto, e olhando pelo binóculo por sobre o ombro dela, saboreava a agradável impressão de estarem ambos a reproduzir o incomparável quadro de
Renoir sobre o mesmo tema - um Renoir que não lhe pertencia, mas que ele sempre admirara.
- O teatro é novo, naturalmente; foi reconstruído depois da guerra - explicou ele. - Talvez com brancos e dourados um tanto a mais... Os vienenses gostam excessivamente de cristais. . . Mas, ainda assim, como é belo!
- Oh, realmente! - aquiesceu ela sem restrições.
- E, como está vendo, todo mundo na estica para ouvir a Tebaldi. A propósito, como ela cantará em italiano, devo dar a você uma ideia do libreto. Começa em Nagasáqui, no Japão, onde Pinkerton, um oficial da marinha dos Estados Unidos, arranjou casamento, por intermédio de um corretor, com uma linda moça japonesa, chamada Cho-Cho-San... - E fez o resumo dos pontos principais da história, concluindo: - Como vê, é muito sentimental; é uma das mais leves produções de Puccini. Está longe de ser uma grande ópera; mas, apesar disso, é deliciosamente comovedora e pungente.
Nem bem acabara, uma explosão de aplausos fez-se ouvir na sala, anunciando o aparecimento do regente, Karajan. As luzes obscureceram, a abertura começou... Depois o pano abriu-se devagar, mostrando um interior japonês, de singular delicadeza.
Moray já havia visto duas vezes a mesma ópera no Metropolitano de Nova Iorque, do qual tivera, durante anos, uma assinatura, e onde muitas vezes ouvira cantar a célebre Tebaldi. Logo que percebeu que a grande diva estava num de seus melhores dias, pôde dedicar-se às reações de Kathy, e, sem ser observado, com uma estranha e secreta expectativa, acompanhar as expressões cambiantes que iluminavam, para logo ensombrecer, o seu rostinho jovem e atento.
Ela, a princípio, pareceu confusa com a novidade da experiência e o exotismo oriental do cenário. Mas gradualmente se deixou absorver. O belo Pinkerton - que ele sempre achara insuportável, visivelmente repugnava a Kathy. Moray percebeu a crescente simpatia dela por Cho-Cho-San, e a presença de um estranho pressentimento de desgraça iminente. Quando, ao fim do primeiro ato, o pano caiu, Kathy não se conteve.
- Oh, que homem desprezível! - exclamou ela, voltando-se para ele com as faces abrasadas. - Desde o começo a gente sabe que ele não presta.
- Vaidoso e comodista, talvez - aquiesceu Moray. - Mas por que o detesta tanto?
Ela baixou o olhar como que refletindo, depois disse:
- Para mim, a pior coisa... é a gente nunca pensar nos outros, mas somente em si mesma.
O segundo ato, iniciando-se com uma nota de tristonha ternura, sustentada por uma esperança subjacente sempre adiada, a afetaria mais dolorosamente que o primeiro, pensou ele. Enquanto a ópera prosseguia, ele não a olhou, considerando intromissão indevida observar uma tão sincera preamar de sentimento. Mas, no final da cena, enquanto as luzes se obscureciam no palco e Cho-Cho-San acendia a lanterna junto à porta para dar início à vigília noturna; enquanto a melodia obsedante da ária "Un bei di" se elevava para depois morrer na sala penumbrosa, ele relanceou o olhar à companheira e viu lágrimas lhe escorrendo pelas faces abaixo.
- Querida Kathy... - disse, inclinando-se para ela, - Se está demasiado comovida, vamo-nos embora.
- Não, não - protestou ela com a voz embargada. - É triste, mas maravilhoso. E quero ver o que acontece no fim. Empreste-me o o lenço; o meu já não serve. Obrigada, querido David. . . você é tão bondoso! Pobre moça! E tão linda! Custa crer que um homem possa ser tão inumano... tão... tão animalesco... - Faltou-lhe a voz e ela fez um esforço para se conter.
Em verdade, durante o terceiro ato, que ascende de uma emoção quase insuportável até à final tragédia que tudo destrói, ela se dominou perfeitamente. Quando o pano caiu e ele arriscou fitá-la, viu que ela não chorava, mas debruçara a cabeça sobre o peito, como se já não pudesse suportar a emoção.
Saíram do teatro. Ainda subjugada pela dor, Kathy só falou quando se acharam dentro do táxi; depois, certa de que não estava sendo observada, disse com voz sumida:
- Nunca me esquecerei desta noite... Nunca...
Ele escolheu cuidadosamente as palavras que ia dizer.
- Eu sabia que você tem sentimento... que tem uma grande capacidade de emoção... Esperava que você se comovesse...
- Comovi-me sim, David... Mas o melhor de tudo foi ter visto o espetáculo em sua companhia.
Nada mais do que isso, mas o bastante para ele perceber em seus nervos ainda vibrantes uma doce ternura para com ele. Silenciosa e mansamente, tateando na intimidade fechada do táxi, Moray estreitou na sua a mãozinha dela.
Ela não a retirou. O que lhe acontecera? Aquilo nunca se dera antes. Naturalmente, recebera atenções. Quando frequentava o curso de enfermeira, um estudante universitário em luta para diplomar-se
sentira-se fortemente atraído por ela, que não correspondera. No hospital, durante as festividades do último Natal, o jovem
médico-assistente tentou beijá-la sob a árvore, só conseguindo alcançar-lhe, canhestramente, a orelha esquerda. Ela viu a tentativa com indiferença, e mais tarde recusou seu convite para o baile de Ano Novo. Julgava-se austera, não interessada pelos rapazes, mas em verdade compartilhava da opinião da mãe - opinião tão insistente que ela a adotara - de que os rapazes são ousados, irrefletidos e não merecem confiança.
Mas David não era nada disso. Ao contrário, suas qualidades eram exatamente o oposto. E sua maturidade, singularmente tranquilizadora, desde o começo a impressionara. Ele continuava suave e carinhosamente segurando-lhe a mão quando chegaram ao hotel. Nem aí a largou. O porteiro noturno cochilava no seu canto, quando eles entraram e tomaram o elevador para o primeiro pavimento. No corredor Moray parou, abriu a porta da sala de estar comum aos aposentos de ambos... Um rápido fiozinho de pulsações vibrava nos dedos aprisionados em sua mão.
O próprio coração dele batia desesperadamente.
- Recomendei que deixassem chocolate quente para nós... Ficará mais animada se tomar uma xícara...
- Não. - Afastando-se um pouco, ela sacudiu a cabeça. - Nada... por favor.
- Você continua perturbada. Não posso deixar que você vá assim.
E conduziu-a, sem que ela resistisse, para dentro do quarto, onde, como ele dissera, uma garrafa térmica, frutas e sanduíches cobertos por um guardanapo estavam postos sobre a mesa. O quarto estava na penumbra, mercê de uma lâmpada velada que lançava uma suave claridade no tapete, enquanto as paredes permaneciam na sombra - a mesma sombra em que os dois se encontravam frente a frente.
- Querida Kathy, que direi... que deverei fazer por você?
Ainda sem olhá-lo, ela respondeu com voz abafada:
- Amanhã cedo já estarei boa...
- Mas já é quase manhã - observou ele docemente, a despeito das pancadas do sangue golpeando-lhe as veias. - E você não está bem. Que é que tem?
- Nada, nada... não sei. Sinto-me um tanto perdida... não sei como. Nunca me senti assim, triste e feliz ao mesmo tempo.
- Mas como pode sentir-se perdida se está comigo?
- Bem sei, bem sei... - disse Kathy; depois deu de falar incoerentemente. - Aquele infeliz herói da ópera fez-me ver como é diferente ... mas a dificuldade é essa mesma... Você é tão... - Ela interrompeu-se, lágrimas correram-lhe pelas faces abaixo.
Tinha a cabeça baixa; ele, porém, pondo-lhe os dedos sob o queixo, levantou-lhe o rosto banhado de lágrimas, de modo que ambos se fitaram nos olhos.
- Kathy, meu bem - murmurou ele com uma ternura indescritível. - Amo-a apaixonadamente. Creio que você também me ama.
E, inclinando-se, beijou-lhe os lábios frescos e jovens, inocentes de qualquer maquilagem - que ele abominava - e deliciosamente salgados de lágrimas. Engolindo um soluço, ela aconchegou-se mais em seus braços, o rosto ardente e húmido premido contra o peito dele.
- David... querido David...
Mas foi apenas um instante, pois, soltando um grito, ela subitamente se afastou.
- Não adianta... não adianta absolutamente nada. Eu devia saber desde o começo...
- Mas por quê, Kathy? Se nos amamos...
- Como é possível isso, a três mil milhas de distância? Você sabe que parto. Só lograríamos despedaçar os nossos corações... O meu já está despedaçado...
- Não poderá ficar, Kathy?
- Nunca... Isso é impossível.
Ele segurara-lhe o pulso para impedi-la de fugir. Lutando como um pássaro cativo para lhe escapar, ela continuava falando com ar alucinado.
- Preciso partir. Levei toda a minha vida preparando-me só para isso... Estudei enfermagem, ganhei prática em Dalhaven. Não pensava noutra coisa. Precisam de mim lá... Willie me espera... mais do que ninguém. Antes de mamãe morrer prometi-lhe que iria; não faltarei à palavra dada a ela... nunca...
- Não vá, Kathy - atalhou ele, por mim. - Pelo amor de Deus, não vá!
- Devo ir - justamente pelo amor de Deus; pelo amor de nós ambos...
E, num repelão, libertou-se dele, atravessou correndo o quarto e desapareceu.
Moray ficou olhando dolorosamente para a porta fechada. Resistindo ao impulso de segui-la, pôs-se a andar de cá para lá sobre o grosso tapete, num estado de extrema agitação. Entretanto, à
sensação de seus macios lábios ainda sobre os dele, sua desventura gradualmente cedeu lugar a um sentimento de alegria. Ela amava-o - extremamente, inequivocamente, de todo coração. Nada mais importava. Havia obstáculos no caminho, mas estes poderiam ser vencidos. Era mister persuadi-la, e ele a persuadiria. Qualquer outra coisa estava fora de cogitação. Custasse o que custasse, havia de possuí-la.
Repentinamente sentiu-se forte, cheio de vigor e de uma enorme potencialidade para o amor. Também com fome. E, relanceando o olhar pelas boas coisas que se achavam sobre a mesa, apercebeu-se das muitas horas que haviam decorrido desde o jantar - e a comida não fora apreciavelmente substanciosa. Sentando-se, serviu-se do chocolate que ainda fumegava, desdobrou o guardanapo e atacou os sanduíches. Ah, eram de caviar, e do verdadeiro caviar Beluga! Absorto, todavia deliciado, comeu gulosamente sem deixar resto.
CAPÍTULO ONZE
MORAY previra que na Suíça ia nevar, e, como que para confirmar a sua infalibilidade, a neve os acolheu - uma camada prematura e leve que se congelara e agora lampejava sob um céu de cobalto. Já fazia uma semana que estavam em Schwansee, rigorosamente conformados com o pacto de contenção que, como exigência pela sua ida, ela o obrigara a aceitar. Durante esse horrível xequemate da emoção, num esforço frenético para influenciar Kathy, Moray fez da simplicidade e da calma a ordem do dia. A acolhida excessivamente teatral de Arturo e Elena fora rapidamente suprimida, a seriedade imposta e refeições mais simples encomendadas e servidas sem a menor formalidade. Esforçando-se para realçar a sedução da pitoresca paisagem, ele levava-a todas as tardes a passear e respirar o ar vivo e tonificante; excursões, essas, na maior parte feitas em silêncio, e que às vezes os levava até aos brancos sopés dos Alpes, a cujos pináculos altíssimos o sol poente e o sol nascente conferiam uma tonalidade côr-de-rosa. À noite, sentados na biblioteca, junto à lareira crepitante alimentada a lenha, mais cansados pela persistente contenção do que pelas excursões, Moray selecionava para ela alguns de seus discos - seleções principalmente de Handel, Bach e Mozart - que ele punha a tocar na vitrola estereofónica, de mogno envernizado habilmente disfarçado numa prateleira
de laca de Coromandel. Ninguém sabia que ele regressara, não havia visitas intrusas, nenhuma distração, apenas eles, sozinhos. Em circunstâncias normais, como seria idílica essa existência! Mas - ai! - debaixo daquele domínio superficial vibrava intoleravelmente uma tensão de corda de arco, com uma exasperante sensação, para ele, de frustração e derrota. com toda a sua sedução e sutileza, tentara dissuadi-la da intenção de abandoná-lo, mas malograra. A persuasão e os argumentos mostraram-se igualmente fúteis. E o tempo voava; em verdade, já voara... Kathy devia partir três dias após a chegada de Willie.
A inflexibilidade de uma pessoa tão nova, tão pouco provada e inexperiente, constituía para ele uma fonte inesgotável não só de angústia, mas de estupefação. Não que ela não o amasse. A cada hora do dia era evidente que sofria a constante supressão dos seus desejos naturais. Se, acidentalmente, ele lhe tocava a mão, como quando lhe passava um prato, o tremor que a percorria era fisicamente perceptível. E quantas vezes, quando pensava que não era observada, ele lhe surpreendeu o olhar pousado nele, num olhar carregado de desejo e de toda a triste fome do coração.
Certa manhã, embora as visitas estivessem proibidas, ele achou que devia apresentar-lhe seus dois amiguinhos, os filhos do trapicheiro. Hans e Suzy foram chamados, apresentados e obsequiados com elevenses de bolo de cereja e laranjada. Depois, foram os quatro para o jardim fazer um boneco com a neve que se amontoara junto ao grosso tronco da árvore-de-judas. Essa neve, debaixo de sua dura crosta, era macia e maleável, e ele armou o balanço que fizera no verão passado, para que as crianças ali se balançassem. Que diversão, que gritos de alegria, que faces coradas e olhos brilhantes! Vendo-as brincar, Moray disse a Kathy, com certo laconismo:
- Você não gostaria de ter filhos... como esses?
Ela corou, depois empalideceu, súbito magoada.
- São lindos - disse, esquivando-se à pergunta. - Tão naturais e espontâneos...
Por que recusava ela o seu amor, os filhos que ele lhe poderia dar e todas as imensas vantagens de sua riqueza e posição? Por que... por quê? - Além do mais, que lhe poderia oferecer aquela opção? Naquela mesma tarde, no seu passeio favorito ao longo da alta cordilheira do Riesenthal, ele fez a si próprio essas perguntas com uma espécie de desânimo cismarento e desesperado, produzido pela primeira vez num lampejo de dificuldade vencida, por assim dizer de
um reconhecimento forçado de que devia haver alguma coisa na teimosia com que ela o recusava. E embora uma trégua se tivesse declarado entre eles, ao perlongarem a vereda de pinheiros polvilhados de nevosa prata, ele não mais pôde dominar-se.
- Querida Kathy, eu não queria reabrir nossas feridas, mas tal fato ajudaria a aliviar as minhas, se me fosse dada uma compreensão perfeita de suas razões. Você vai deixar-me, principalmente porque empenhou sua palavra?
- Em parte, sim - respondeu ela, de cabeça baixa. - Mas não é só por isso.
- Então, por que é?
- Conforme eu disse... por causa daquilo que se exige de cada um de nós. Vivemos numa época terrível, David... Parece que estamos sendo levados para a autodestruição - moral e física. Debaixo da superfície, todos temos medo, mas o mundo continua a afastar-se de Deus. Nunca venceremos, a menos que cada um de nós, cada pessoa isoladamente faça alguma coisa sobre o assunto... faça, pelo menos, a parte que lhe cabe, não importa quão pequena ela seja. Oh, não sou inteligente, mas é tão claro o que diz tio Willie! Devemos provar que o amor é mais forte do que o ódio... mostrar que a coragem, a abnegação e, sobretudo, a caridade podem derrotar a brutalidade, o egoísmo e o medo.
Mentalmente, Moray encarava o estado do mundo como tabu, exceto quando refletia que o seu destino era sair ileso desse mesmo estado. A despeito disso, ficou impressionado - e quem não o ficaria, perante um tão ingénuo fervor?
- Quer dizer que, por causa do dever e do serviço, você se condena a uma vida de sofrimentos e miséria?
- Miséria? - E ela ergueu a cabeça num protesto. - Você não pode imaginar as compensações pessoais de uma tal vida.
- Uma vida de sacrifício...
- É a única maneira em que é possível viver-se a vida. Principalmente hoje em dia.
- Não está falando sério...
- Nunca falei com maior seriedade. Espere até ver tio Willie. Ele tem sofrido aquilo que você denomina vida miserável; tem uma saúde precária... mas é o homem mais feliz do mundo.
Moray permaneceu calado. Na verdade, aquilo lhe escapava, estava além de si, fora da concepção que fazia da vida. Podia-se realmente ser feliz naquele lugar, fazer o bem naquelas paragens abomináveis? - perguntava a si mesmo com crescente nervosismo.
- E há mais do que felicidade - prosseguiu ela com dificuldade, lutando para se exprimir. - Há contentamento, paz de espírito e um senso de realização. Não é possível obter-se isso mediante o gozo da vida, mediante a corrida atrás do prazer, mediante os olhos fechados à dor alheia. E isso não pode ser comprado. Mas se alguém fizer um trabalho realmente bom, se fizer qualquer coisa em benefício dos outros... em benefício dos necessitados... - oh, não sei me exprimir, mas você me entende!... - E interrompeu-se, para logo em seguida continuar: - Se você tivesse clinicado, saberia... e eu creio... perdoe-me, David... estou certa de que teria sido muito mais feliz.
Ele continuava calado, mordendo os lábios e fustigando com sua bengala de ponta de aço os blocos de neve congelada que a passagem das carroças levantara na estrada. Ela, por sua vez, enunciava ingenuamente um chavão humanitário... Não havia, entretanto, algo mais do que um grãozinho de verdade no que ela dizia? O resultado das compensações que ele perseguia neste mundo não tinha sido apenas mágoa, tédio, insatisfações e remorsos reiterados, e uma constelação de complexos neuróticos, que mais de uma vez o haviam conduzido à beira da pressão nervosa?
- Querida Kathy! - exclamou ele com uma repentina piedade de si mesmo e num ímpeto de emoção. - Eu sempre quis ser bom... sempre quis fazer o bem... mas as circunstâncias foram mais fortes do que eu.
- Você é bom - disse ela pressurosamente. - Vê-se isso em seu rosto... Só precisa da oportunidade para prová-lo.
- Acredita sinceramente nisso?
- De todo o coração.
- Meu Deus, Kathy... Se você soubesse o que tem sido a minha vida, o que sofri até que... virtualmente, até que a encontrei... - E prosseguiu, emocionado: - Quando moço, na índia, literalmente apanhado num casamento desastroso; depois, durante anos, labutando na mó do moinho americano, para progredir... progredir... progredir... às vezes refugiando-me nas artes... Mas a trégua era apenas temporária; nunca obtive uma satisfação verdadeira, apesar da ilusão de a ter alcançado. Tudo tem origem na minha pobre infância de criança indesejável, quando a árvore da minha vida se formava - raízes, tronco e galhos. Disseram-me - ele evitou mencionar Wilenski, o analista, - e eu também sei, que todo o meu ser atual provém daqueles primeiros anos em que eu não era ninguém... exceto eu mesmo.
- Tudo isso que acaba de me dizer só fez convencer-me mais de que ainda pode realizar grandes coisas.
Ele estava muito comovido para responder, e ambos continuaram em constrangido silêncio. Todavia, as palavras de Kathy vibravam no cérebro de Moray, e ele sentiu que ela tinha razão: o potencial das grandes realizações permanecia vivo em seu interior. Que era mesmo que dizia aquele verso? "Realize nobres feitos, não fique o dia inteiro a
sonhá-los...". E, de repente, lembrou-se do conselho que Wilenski lhe dera em Nova Iorque: "Quando chegar lá, pelo amor de Deus, procure fazer alguma coisa útil, alguma coisa que se relacione com os outros, para não ficar pensando só em si mesmo." Por que ignorara esse conselho? Por que o esquecera? Foi preciso que Kathy lho lembrasse; que sua meiguice e bondade, a pureza de seu ser - não se eriçou diante da frase... - agisse nele inconscientemente, afetando-o sem que ele mesmo o soubesse. Como podia ser de outro modo?
Estava prestes a falar quando, erguendo os olhos, viu que tinham alcançado a choça da montanha onde, em ocasiões anteriores, haviam parado para tomar café - um café pobre, feito de pó inferior, mas que aquecia. Kathy parecia ter gostado, e a camponesa, de saia arregaçada sobre o saiote listrado, já os saudava, acolhedora. Sentaram-se no terraço de madeira sob um sol frio, ambos cônscios de algo momentoso e inevitável a crescer entre eles. Ele pôs-se a tamborilar nervoso em cima da mesa, tomou um gole de café rápido e descuidado, derramando um pouco em torno, pois a mão lhe tremia; depois, disse de chofre:
- Concordo, Kathy; concordo em que todos devemos fazer algo útil na vida. Esperei encontrar esse algo na dedicação que me propus oferecer a você. Mas agora... começa a parecer-me que algo mais se exige de mim...
- Que será, David? - e os lábios dela tremiam.
- Não adivinha? Foi você quem me fez sentir isso, não apenas por ter-me falado claramente, ainda agora, mas simplesmente porque está presente, Kathy - murmurou ele em voz baixa e vacilante. - Deixando de lado as demais considerações, precisa você realmente de mim?
Ela fitou-o com uma tensão que se diria estar além de suas forças.
- Como pode fazer uma pergunta dessas? - Depois disse, num súbito enfraquecimento de autodomínio, e esquivando-se, lastimosa, a encará-lo: - Preciso tanto de você... Queria... queria que você me acompanhasse...
Finalmente dissera, vira-se forçada a dizer o que até então trouxera trancado dentro do peito. Ele olhou-a fixamente, num trémulo silêncio de revelação, percebendo o apelo por que esperara durante aquele longo período de tensão.
- Quer dizer - disse ele lentamente, querendo ouvir mais, querendo pelo menos ouvir uma repetição daquela súplica, - quer dizer que você quer mesmo que eu a acompanhe nessa viagem?
- Não, não... quero que vá para ficar. - Ela falava quase febrilmente. - Como médico, há grande necessidade de você lá. Tio Willie pretende construir um hospital anexo ao orfanato. Ali você encontrará o trabalho exato para o qual está preparado, e que sem saber procura de todo coração. E ficaremos juntos... juntos e felizes.
- Para ficar junto de você, Kathy - concordou ele, emocionado, - eu daria o meu braço direito. Mas pense nas mudanças que isso vai acarretar ao meu... pelo menos, ao meu modo de vida. Outra coisa: já faz bastante tempo que me diplomei em medicina...
- Ora, pode recapitular depressa o que aprendeu... você é tão inteligente! Quanto ao modo de viver, logo se acostumará.
- Sim, querida Kathy, mas há outras dificuldades. - E um desejo desordenado de se fazer rogado forçou-o a prosseguir; - Assuntos económicos que exigem atenção constante, responsabilidades... Depois, no que concerne à Missão, você já sabe que não sou homem de fé... Embora concorde com o que você acaba de dizer, tenho dúvidas de que pudesse render-me às suas convicções espirituais.
- O trabalho que você fizesse seria a melhor das religiões. Em tempo oportuno, virá a conhecer o significado da graça. Oh, eu não sei, nunca fui capaz de falar dessas coisas... Transformadas em palavras, tornam-se rígidas, pesadas... Posso apenas senti-las com o coração. E você também as sentirá... se me acompanhar.
E as mãos deles se juntaram. A de Kathy, mercê da tensão interior, estava fria como mármore; mas ele a reteve estreitamente, até que o sangue começasse a palpitar. Nunca se sentira tão unido a ela; era como se a alma de Kathy fluísse agora para dentro dele.
A chegada da camponesa interrompeu aquele esplêndido momento. Como ele a fitasse sem a ver, a mulher apontou para o lado norte do céu e disse avisadamente:
- Es wird Schnee kommen. Schau, diese Wolken. Es ist besser Sie gehen zurúck zu Schwansee.
- Aconselha-nos a voltar - disse Moray. E, voltando à realidade, respondeu ao olhar inquiridor de Kathy: - Há ameaça de nevada; não tarda a cair.
Pagou a conta, deixando um generoso trinkgeld, e ambos começaram a descer a montanha, agora num silêncio total, pois ele estava profundamente mergulhado em seus pensamentos. A atmosfera tornara-se cinzenta, fria e muito quieta, e o sol, como uma enorme laranja sanguínea, depressa se escondeu por detrás da montanha. Antes que a hora se acabasse, já se achavam na planície, e, apreensivo quanto a Kathy por causa do crepúsculo enregelante, tratou de chegar quanto antes à villa. Porém, quando iam atravessar o breve trecho da estrada principal, que cortava o caminho de Schwansee, um Morris tipo esporte, vermelho, passou voando por eles, mais adiante parou com um ranger de freios, e ruidosamente deu marcha à ré.
- Alo, alo, alo! - foi a efusiva saudação que lhes veio num tom de alto diapasão. - Sabia que era você, meu velho!
Arrancado à sua meditação, Moray reconheceu com desconfiança o paletó de botões dourados de Archie Stench. Debruçado volúvelmente sobre a janela do assento dianteiro, sorrindo com todos es dentes, Stench estendeu uma mão enluvada que Moray aceitou com a amabilidade forçada de um indizível aborrecimento. O tom solene da tarde dissipara-se.
- Apresento-lhe Miss Urquhart, filha de uma velha amiga minha - disse ele depressa, na intenção de apagar o lampejo sugestivo que já brilhava no olhar malicioso de Stench. - O tio dela, missionário na África, vai chegar nestes dois dias.
- Que interessante! - largou Stench, escandindo a palavra. - Vem para cá?
- Para uma breve visita. - Moray sacudiu afirmativamente a cabeça, com uma expressão glacial.
- Gostaria de conhecê-lo. A África está nos noticiários; e de que maneira! Sopram ventos de mudança. Ah, ah! Uma verdadeira ventania sopra no Congo. Está gostando daqui, Miss Urquhart? É hóspede de Moray, suponho?
- Sim - tornou Kathy, respondendo a ambas as perguntas. - Mas logo partirei.
- Não para a África selvagem? - Olhando-a de soslaio, Stench lançou a pergunta em tom de facécia. - Sim, para a África.
- Santo Deus! - estridulou Stench. - Está falando sério? Mais parece lenda. Quer dizer que a senhora faz parte da exploração... perdão, do negócio missionário?
Kathy esboçou um sorriso, para desgosto de Moray, como se não fizesse restrições à insistência de Stench.
- Sou enfermeira - explicou - e vou à África ajudar meu tio, que está organizando um hospital em Kwibu... na fronteira de Angola.
- Obra benemérita! - disse Stench, radiante. - Quando todo o mundo está fugindo daquela região de furacões, a senhora se precipita para lá. A nação precisa saber disso. Nós, britânicos, temos de manter bem alto a nossa bandeira. Darei um pulo aqui, quando seu tio chegar. E você me dará um trago, velhinho, em nome de uma antiga amizade... bom, preciso ir-me. Estou exausto. Venho da Aldeia Pestalozzi, onde dei um espetáculo de prestidigitação para os garotos. Sessenta quilómetros para ir e sessenta para voltar. Uma estafa! Mas uns fedelhos bastante decentes. Felicidades, Miss Urquhart... Adeus, meu caro. Que maravilha você ter voltado!
E, enquanto recomeçavam a caminhar, Archie gritou para Moray, confirmando a futura visita:
- Não se esqueça: qualquer dia destes telefono.
- Parece boa pessoa - observou Kathy puxando conversa, após terem atravessado a estrada. - Bondade dele ir dar espetáculo para as crianças da Pestalozzi.
- Sim; está sempre ocupado com coisas desse jaez. Mas... é um tanto ou quanto intrometido... - respondeu Moray com tom de alguém que se via forçado a condenar, mas acrescentando, como se isto explicasse tudo - é correspondente do Daily Echo.
O infeliz encontro naquela hora especial, quando surgiam em sua mente questões vitais para a alma, havia-o transtornado completamente. Stench era uma ameaça. com os diabos, pensou ele voltando às coisas mundanas, em menos de meia hora a notícia do seu retorno com Kathy se espalharia pelo cantão inteiro.
com efeito, nem bem acabaram de tomar chá, o telefone tocou.
- Ligue para o estúdio - disse ele laconicamente a Arturo. - com licença, querida Kathy. Nosso amigo Stench já fez seu trabalhinho...
Uma vez no primeiro andar apanhou o fone, apertou o botão vermelho com um pressentimento irritadiço, imediatamente confirmado pela voz de contralto de Madame Von Altishofer.
- Seja bem-vindo à terra, meu amigo! Agora mesmo fiquei sabendo que você já regressou. Por que não me avisou? Foi uma ausência tão comprida! Fez grande falta aqui, todos falavam nessa ausência misteriosa. Quando poderei vê-lo? E à sua encantadora visitante, que tem planos para a escuríssima África?
Espantoso como ele achava desagradável essa intromissão! E não apenas o que ela dizia, mas a sua maneira de dizê-lo, e o seu inglês arrevesado, até mesmo as modulações de sua voz bem-educada. Limpou a garganta e lançou-se numa explicação perfuntória, cuja essência era a de que a insistência de velhos amigos de família o prenderam mais tempo do que ele previra.
- Parentes? - inquiriu ela, polidamente.
- Sim, de certo modo - tornou ele, evasivo. - Quando o outro hóspede chegar, espero que você apareça para conhecer os dois.
- Mas antes, quero que você venha tomar um drinque comigo.
- Bem que gostaria, se pudesse. Mas tenho tantas coisas a atender após tão longa ausência... - E, olhando para fora da janela, viu que os primeiros e frágeis flocos de neve principiavam a cair. Mais que depressa mudou de assunto: - Misericórdia! Já está nevando de verdade. Receio que o inverno já tenha começado.
- Sem dúvida - disse ela com uma risadinha. - Mas será que estamos reduzidos a falar sobre o tempo?
- Claro que não. Logo nos veremos.
De sobrolho franzido, pendurou o fone, dando por finda a conversa, aborrecido com a interferência dela... o que era totalmente injusto. A despeito da sua obstinação germânica, era Frida uma excelente mulher, a quem ele talvez tivesse dado excessivas esperanças ... Estava nervoso. Vinha-lhe outra vez aquela sensação de que o tempo urgia. Chegando ao andar térreo, ficou desapontado verificando que Kathy subira para seu quarto. Não apareceu até à hora do jantar, e ele percebeu que, para agradar-lhe, ela pusera o vestido verde. Comovido até ao âmago, viu que no mundo inteiro só havia para ele uma mulher. Desejava-a com uma necessidade tão grande, que precisou de se afastar sem o elogio habitual, sem sequer uma palavra. E depois do jantar, apesar de seus esforços para distraí-la, ficou alheado - preocupado, ou melhor, obcecado ante a necessidade de tomar alguma decisão nas horas minguantes que ainda lhe restavam. Depois de tocar alguns discos, desejou ficar só. Ela decerto percebeu; e, alegando fadiga, recolheu-se cedo, deixando-o na biblioteca.
CONTINUA
CAPÍTULO SETE
Durante AQUELA noite Moray se recolheu cedo, com uma inusitada sensação de serenidade. Estava cônscio de que tudo caminhara bem, de que tudo fora em verdade perfeito. E que repousante companheirazinha ela provara ser, e quão supremamente tranquilizadora! Devidamente educada, podia vir a ser uma fonte de interesse para ele, um novo objetivo em sua vida, além de lhe proporcionar a satisfação longamente procurada de um exercício nos domínios da virtude. Adormeceu, nem bem pousou confortavelmente a cabeça no travesseiro.
Na manhã seguinte, quando lhe trouxeram o chá, viu que desgraçadamente o tempo mudara. A chuva pesada que golpeava a janela não o induzia a levantar-se. Engolidos o chá e a fina fatia de pão com manteiga que o acompanhava, deitou-se e cerrou os olhos; mas, incapaz de tornar a adormecer, tocou a campainha para pedir os jornais da manhã. O empregado que os trouxe estendeu-lhe um maço de correspondência remetida de Schwansee por Arturo: alguns comunicados comerciais de seus corretores nova-iorquinos, duas faturas, vários dividendos, um catálogo ilustrado de um leilão de desenhos de Daumier a realizar-se em Berna e, finalmente, uma carta de Madame Von Altishofer. Abriu-a.
Caro amigo:
Gasthof Lindenhof
Baden-Baden
Terça-feira, 15
Soube por meus correspondentes de Schwansee que você ainda não regressou à villa, e começo a recear que algum contratempo seja o responsável por sua longa ausência, especialmente porque não tive nenhuma notícia sua desde que partiu inesperadamente. Mostraram-se os seus negócios mais fatigantes do que previra? Ou você estará doente? Sinceramente espero que ambas essas suspeitas, que ultimamente me têm perturbado, não sejam fundadas. Mas, por favor, arranje um tempinho para me escrever. Estou certa de que sabe que nada é maior do que o meu profundo interesse por tudo quanto lhe diz respeito.
O tempo tem estado muito agradável aqui e eu estou muito melhor. Mas ando entediada... entediada... Em verdade estou ficando cada vez mais consciente da minha solidão. É-me difícil arranjar novos amigos, e excetuando uma velha conhecida - uma senhora idosa e inválida, que conheci nas termas - raramente falo com alguém. E que existência mais sossegada! Levanto-me cedo, bebo as águas, tomo o meu café com zwiebach num café das vizinhanças. Depois vou para as colinas - e você sabe como gosto de andar - e volto para esta pensão modesta, onde todos são muito bondosos para comigo, e como o meu simples Mitagessen no terraço, sob as tílias. Então descanso uma hora ou duas. De tarde vou sentar-me no jardim, ainda verde e viçoso, escolhendo cuidadosamente uma cadeira não muito perto da banda, a qual, desde que cheguei, já executou quatorze vezes a Valsa Vienense de Strauss. Passo uma parte do tempo sonhando, outra parte estudando os rostos dos passantes. Serão felizes? - me pergunto., Quase sempre duvido. Acabo enfim por achá-los diferentes das pessoas que conheci quando primeiro vim para cá com meus pais na minha primeira mocidade. Este pensamento me oprime, e eu me precipito para o pavilhão, onde me servem uma xícara de chá - não tão bom como o seu delicioso Twinings - e uma fatia de bôlo-inglês. De noite não me arrisco a ir ao cassino - a visão de todos aqueles olhares gananciosos me é repelente. Em vez disso, apanho o meu belo livro - estou relendo Ana Karenina - e me recolho junto à janela eternamente aberta de meu quarto. A luz da minha lâmpada atrai alguma mariposa fortuita, vaga-lumes piscam sob
as tílias, o sono vem chegando, e, para citar o seu conterrâneo Mr. Pepys, "cama".
Assim passo o meu dia, caro amigo. Não é simples e um pouco triste? Sim, triste porque sinto falta de você e de sua encantadora Kameradschaft. Preciso também de seu conselho, pois um homem de Basileia - químico de profissão - quer comprar Seeburg. Não queria separar-me dessa amada casa que você também admira, mas as circunstâncias são agora extremamente difíceis. Por isso me escreva logo, dizendo quando voltará. E como nada há que me leve a Schwansee durante a sua ausência, permanecerei em Baden até receber notícias suas.
Perdoe-me a revelação da estima em que o tenho.
Sinceramente, Frida von Altishofer
Ele pousou lentamente a carta. Uma linda carta, disse com seus botões, a despeito do estilo um tanto guindado; carta de uma mulher bem-nascida e distinta, que lhe era inteiramente dedicada. Normalmente, a sua leitura tê-lo-ia comovido; mas agora, talvez devido a seu estado de ânimo, consequência da véspera, deixou-o indiferente. Estava, é claro, satisfeito por ter recebido notícias dela, lisonjeado pela falta que ela sentia dele, mas, naquele momento, não podia ter o interesse que habitualmente tinha pelas atividades dela. E não estaria Frida exagerando um pouco a sua solidão? Era mulher que atraía e desfrutava de companhia. Ao mesmo tempo, no frugal almoço que ela descrevia, havia uma nota incongruente. Bem sabia que ela não era infensa aos prazeres da mesa, e, em sua última visita a Baden, voltara com uma excelente receita de sopa de castanhas. Fosse como fosse, não estava disposto a responder naquele mesmo dia. Dar-lhe-ia conselhos a respeito de Seeburg, não agora, porém mais tarde - pois tinha a cabeça cheia de outros pensamentos.
Já era quase meio-dia quando se levantou e começou a vestir-se pachorrentamente. A chuva continuava a cair depois do almoço, e ele ficou rondando no interior do hotel, tentando interessar-se por algumas velhas revistas principalmente dedicadas ao esporte e à agricultura escoceses. Foi quando se apossou dele o impulso de tirar o carro da garagem e tocar para Markinch, mas refletiu que ela não estaria lá. Dissera-lhe que precisava ir a Dalhaven. Ainda assim, teria a satisfação de passar sob a sua janela... a este absurdo, empertigou-se subitamente ruborizado e contrafeito. Vê-la-ia no dia
seguinte; precisava esperar. Olhando entediado pela vidraça embaçada do saguão, tinha esperança de que o tempo voltasse a melhorar.
Mas no dia seguinte ainda chovia, o céu permanecia pesadamente anuviado. Apesar disso, sua disposição de ânimo era de alegre expectativa quando tirou o carro da garagem e saiu rodando entre as húmidas sebes em direção a Markinch.
Quando ele chegou, já ela acabara seu plantão matutino na clínica. Fechou a porta do dispensário e, carregando a maleta, foi sentar-se junto dele.
- bom dia - disse ele, sentindo que era bom tornar a vê-la. - Ou melhor: que dia este! Foi bom ter vindo buscá-la; não tê-la deixado voltar de bicicleta debaixo desta chuva.
- Não desgosto de andar de bicicleta - disse ela - ou de andar debaixo de chuva.
O tom da observação surpreendeu-o levemente, mas ele apenas comentou:
- Seja como for, estou inteiramente à sua disposição. Aonde vamos?
- Vamos a Finden. Não lhe prometo uma paisagem bonita. A terra é toda argilosa, e Finden uma pobre aldeia, edificada em torno de uma olaria que só agora recomeçou a trabalhar. Esteve muito tempo parada.
- Bem, o dia também não está de molde para se contemplar a paisagem - disse ele, amavelmente; e, depois de pedir e receber instruções, rodou aldeia fora.
Durante o trajeto, ela permaneceu singularmente calada, e ele começou a imaginar que havia uma certa reserva em suas maneiras. Não era exatamente frieza, todavia ela perdera aquele espírito animado e receptivo que assinalara o dia passado por ambos em Edimburgo, quando ele teve a sensação de que um simpático entendimento os unia. Depois de a olhar de esguelha por diversas vezes, disse:
- Parece cansada. - Em verdade ela não tinha o seu habitual aspecto de bem-estar. - Está trabalhando demais.
- Gosto de trabalhar bastante. - A voz lhe saía naquele tom singular e um tanto contrafeito. - E tenho em mãos uma porção de casos graves...
- Isso prova que está se excedendo. Acho-a bastante pálida. - E fez uma pausa. - Já é tempo de tomar o que lhe resta de férias.
- com um tempo destes?
- Tanto mais razão para você fugir dele. - Ela não respondeu. Mas... por que não o fitava? Ele esperou uns instantes, e, em seguida, disse: - Que tem você, Kathy? Ofendi-a em alguma coisa?
Todo o rosto fresco e jovem de Kathy corou profunda, vividamente.
- Não, não - disse ela apressadamente. - Por favor, não pense isso... nada podia estar mais longe da verdade. É que... talvez eu esteja um pouco indisposta.
Isso era bastante verossímil, embora não constituísse uma explicação. Entretanto, como poderia ela falar-lhe da disposição de espírito que se seguira àquele dia passado em Edimburgo, ou da intensidade da sua reação ao mesmo? Ao acordar na manhã da véspera, experimentara, numa quente e sonolenta evocação, um esplendor crepuscular de felicidade, quase que imediatamente seguido por uma penetrante angústia de consciência perturbada. A alegre e pródiga aventura do dia anterior, excedendo a toda a sua experiência precedente, agora apresentava as cores de uma ação de autocomplacência, quase de um ato pecaminoso. com que estúpida vaidade impera em suas roupas novas! Decerto que eram lindas; mas não se destinavam a pessoas como ela. "E, quanto ao vestido, »por que andais solícitos? Olhai para os lírios do campo...» - teria ela porventura esquecido esse versículo? Sentia-se culpada - culpada e inautêntica para consigo mesma e para com tudo aquilo em que fora ensinada a crer. A lembrança da elegante vendedora que a viu apenas com a sua barata combinação de rayon e compridas calças serzidas, de lã azul-marinho, os agrados e a indulgência que a mesma tivera para com ela na sala de provas - tudo lhe provocava um doloroso rubor. Que teria pensado sua mãe, se a visse naquela situação? Não é o Sr. Moray, ou antes - cumprindo a promessa, corrigiu-se David, que ela devia censurar. Ninguém mais bondoso nem mais generoso; sua intenção era boa, e ele agira movido pelos motivos mais desinteressados. Além disso, era tão fino, tão elegante, tão companheiro, tinha uns modos tão agradáveis e tão cheios de tato, que teria parecido uma grosseria recusar-lhe as dádivas. Mas uma voz interior lhe dizia que era melhor se as tivesse recusado. Sim: a culpa era inteiramente sua, e ela devia precaver-se para que aquilo não se repetisse.
Levantou-se às pressas, banhou-se em água fria e vestiu o uniforme. Mas enquanto o fazia, tentando concentrar-se na tarefa que a esperava no Hospital de Dalhaven e na difícil entrevista com o diretor da Saúde Pública, quando lhe deveria dizer da sua intenção de deixar o Serviço de Saúde, a perspectiva pareceu-lhe tão desinteressante e inócua, que ela mal pôde continuar a encará-la. Pior que tudo, porém, foi o desejo, que a invadiu, de uma repetição do
dia anterior, não necessariamente um retorno à cidade, mas qualquer coisa de natureza similar, sob igual orientação e proteção.
Abruptamente, com toda a firmeza de uma mente habituada à autodisciplina, afastou a ideia de si; porém mesmo agora não se perdoara de todo. Entretanto, ao se aproximarem da primeira cabana que ela devia visitar, fez um esforço para se libertar de seu constrangimento, e, voltando-se para ele, perguntou-lhe se não gostaria de entrar com ela,
- Para isso estou aqui - exclamou ele. - Quero ver tudo.
A casa era alugada a um lavrador cuja perna fora apanhada numa trilhadeira na última colheita. Achava-se deitado em sua costumeira cama de alcova, na pequena e escura cozinha onde também estava sua esposa - uma mulher desanimada envolta num roupão rasgado - e três crianças sujas e mal vestidas, uma das quais engatinhava no chão com as nalguinhas de fora, babavam uma fatia de pão com geléia. A peça estava em grande desordem - caçarolas empilhadas dentro da pia, pratos engordurados em cima da mesa coberta por um jornal velho todo manchado. Nessa confusão e sujidade, que deixaram Moray estarrecido, Kathy penetrou com um ar despreocupado, deu bom dia à mulher e às crianças chamando-as todas pelo nome, depois dirigiu-se para a cama.
- Então, John... Como se sente hoje?
- Oh, não muito mal, Miss Kathy. - Seu rosto iluminou-se ao vê-la. - Assim é... tal como minha mulher, parece que nunca saio do freio...
- Ora, homem, nada de desânimo. Numa semana ou duas, voltará a ficar bom. Agora deixe-me examiná-lo. - E, enquanto abria a maleta, acrescentou casualmente: - Esse senhor veio comigo para lhe dar bom dia, John.
A ferida era profunda e grave. Avistando-a por cima do ombro de Kathy, Moray pôde verificar que a artéria femoral escapara por um triz. Vários tendões haviam sido rompidos, e, como sobreviera infecção em algumas das suturas, a cicatrização não fora imediata. Ele observava Kathy enquanto ela, depois de tomar o pulso e a temperatura, limpava a ferida, trocava as gazes e reenfaixava a perna, ao mesmo tempo que fazia algumas observações animadoras. Finalmente, endireitando o corpo, disse:
- John não sabe a sorte que teve. Mais uma polegada e a trilhadeira lhe pegava o grande vaso sanguíneo da perna. - E em voz baixa para Moray acrescentou, mostrando os seus conhecimentos: - Chama-se artéria femoral.
Ele conteve um sorriso, aceitou a informação com um olhar agradecido, e continuou a observá-la enquanto ela fechava a maleta e afastava-se da cama, dizendo:
- Basta por hoje, John. Agora vou dar uma mão à sua mulherzinha. - E voltando-se para a mulher: - Vamos, Jeannie, mexa-se um pouco. Lave os pratos, que eu cuidarei das crianças.
Era espantoso! Em quinze minutos tinha dado banho e vestido as crianças, varrido e posto em ordem o quarto, e enxugado os pratos que a mulher de John lhe apresentava ainda escorrendo. Depois, quase que num só fôlego, desenrolou as mangas e dirigiu-se para a saída, dizendo por sobre o ombro:
- Não se esqueça. Hoje de tarde mande buscar no centro o leite para as crianças.
Moray não fez nenhum comentário até que se instalaram no carro e ele deu a partida. Então disse:
- Fez tudo com grande perícia, Kathy.
- Oh, estou acostumada a isso - disse ela, amavelmente. - É apenas uma questão de método.
- Não, é muito mais do que isso... Você pôs o coração no curativo e nas crianças...
Ela sacudiu a cabeça.
- Deus sabe o quanto necessitam! Pobrezinhos!
O dia continuava desoladoramente húmido e ventoso, o emaranhado de atalhos rurais que serviam ao distrito estava coberto de barro líquido, as fileiras de cabanas dos lavradores e dos oleiros - pobres e minúsculos lares - gotejavam enlameadas sob a chuva. Mas essa miséria toda não parecia deprimir Kathy. Desaparecera-lhe a triste disposição de ânimo matinal. Quando descia do carro com sua maleta de enfermeira para chapinhar na lama em direção às cozinhas encharcadas e às sórdidas mansardas, dela irradiava uma alegria que transcendia a simples atitude profissional, uma boa vontade espontânea que ele não podia compreender. Embora ela quisesse que ele permanecesse abrigado dentro do carro, Moray insistia em acompanhá-la; qualquer coisa inexplicável o obrigava a isso. Todo aquele dia viu-a trabalhar; cuidar de mães que amamentavam e de crianças rabugentas; de uma mocinha com um braço dolorosamente queimado, cuja gaze aderira tanto à ferida que foi preciso retirá-la com demorado cuidado; da mulher de um oleiro, presa à cama com asma crónica; depois, das pessoas velhas, algumas acamadas, cheias de tediosos queixumes; de um ancião inválido e sofrendo de incontinência, que precisava ser lavado, seus lençóis trocados
e banhadas com álcool as feridas que lhe haviam surgido por viver preso à cama.
Além de tudo isso, ainda havia os deveres que ela mesma se impusera: os quartos bolorentos, cheirando a azeite de lamparina, que precisavam de ser limpos e arejados; roupa suja para torcer, pratos para lavar, leite para aquecer, sopa a cozinhar na chapa do fogão, tudo em circunstâncias que o teriam reduzido à mais funda melancolia, mas que no entanto ela executava não apenas com tranquila competência, mas com uma compaixão, um senso animoso de realização, que o deixavam perplexo.
Ele podia, de vez em quando, ter interferido com uma observação oriunda de seu próprio conhecimento na matéria, pois este contacto renovado com a doença e a miséria, embora longamente adiado, levava-o a evocar estranhamente os dias em que palmilhara as enfermarias do hospital de Winton. Continha-se, todavia, principalmente porque ela, no esforço que fazia para excitar-lhe a curiosidade, continuou a fazer pequenos e simples comentários médicos sobre as condições de seus pacientes. Moray não queria magoá-la.
Ao cair da tarde, numa de suas últimas visitas, depois de haver atendido a um caso numa fileira de cabanas, Kathy foi chamada, de uma porta vizinha, por uma mulher. Angus, seu filho caçula, tinha "um bocado de borbulhas"; achava que a enfermeira devia dar uma olhadela. O rapazinho, febril de aspecto e desassossegado, estava deitado sob uma manta axadrezada, em cima de duas cadeiras encostadas uma na outra. Disse a mãe que ele se queixava de dor de cabeça e recusara o jantar. Depois,
vira-lhe as borbulhas - algumas delas iguais a pequenas pústulas.
Kathy conversou um pouco com o menino, e em seguida, tendo-lhe captado a confiança, levantou a manta e abriu-lhe a camisa. À vista das borbulhas, Moray pôde observar-lhe a mudança do rosto. Mandando então a mãe para a copa sob algum pretexto, voltou-se para Moray.
- Pobre menino! - murmurou. - É varíola. Já houve dois casos em Berwick e, infelizmente, este é mais um. Tenho de avisar imediatamente o Serviço de Saúde.
Ele hesitou, então, no interesse dela, e sentiu-se obrigado a intervir. Num tom que parodiava ligeiramente a maneira profissional, disse a Kathy:
- Olhe outra vez, Miss Kathy.
- Que quer dizer?
- Quero dizer que não se preocupe, Kathy. - Curvou-se para a frente, apontando com o dedo para ilustrar as suas observações. - Olhe apenas a distribuição dessas empolas. São centrípetas, não há nenhuma nas mãos, nos pés ou no rosto. Ao mesmo tempo, não são multiloculares e não apresentam sinais de pústulas umbilicadas. Finalmente, essas pápulas estão em diferentes fases de desenvolvimento... ao contrário da varíola, onde as lesões aparecem simultaneamente. Segundo a benignidade dos sintomas prodrômicos, não há a menor dúvida quanto ao diagnóstico.
- Trata-se de varicela. Diga à mãe que lhe dê uma dose de óleo de rícino, que lhe ponha um pouco de bicarbonato nas coceiras, e dentro de uma semana ele ficará bom.
A expressão de surpresa de Kathy foi-se acentuando gradualmente, até que ela pareceu quase petrificada.
- Tem certeza?
- Estou absoluta e positivamente certo. - E leu em seus olhos a pergunta que ela não fez! - Sim, sou médico, Kathy. - Falava com uma espécie de suave franqueza, como que pedindo desculpas. - Isso a abala?
Ela mal podia falar.
- Fez-me perder o fôlego. Por que não disse antes?
- Bem, você compreende... eu nunca cliniquei.
- Nunca clinicou! Incrível! E por que não?
- É uma história muito comprida, Kathy. E que lhe tenho querido contar desde o instante em que nos conhecemos. Ainda a ouvirá... Que tal, depois que terminar as visitas?
Kathy, depois de um silêncio breve, porém intenso durante o qual ainda fitou Moray com olhos dilatados, sacudiu a cabeça com desconfiança; em seguida, como a mãe de Angus voltasse, ela a tranquilizou, deu-lhe as instruções de Moray, e ambos saíram. Mais meia hora, e ela acabou a tarefa do dia. Sem mais novidades, ele apertou o acelerador e guiou depressa para o hotel. Como na deserta sala do hotel fizesse frio e houvesse correntes de vento, ele a levou diretamente para a sua sala de visitas, onde ardia um brilhante fogo de lenha de refugo; depois tocou a campainha e pediu um prato de consommé quente e torradas com manteiga. O fatigado aspecto de Kathy, que muito o preocupara de manhã, intensificara-se de repente - e não era para admirar, pensou ele com amargura, após tantas horas de labuta e de exposição ao frio. Mas nada disse antes que ela se sentisse reanimada e aquecida. Quando isso aconteceu, puxou sua cadeira para junto da dela.
- Tenho tanto a dizer-lhe, que nem sei por onde começar. Mas a última coisa que desejo é caceteá-la.
- Oh, não há perigo disso. Quero saber por que nunca clinicou.
Ele encolheu ligeiramente os ombros.
- Eu era um pobre estudante, e acabava de receber meu diploma... um diploma com menção honrosa. De repente recebi oferta para trabalhar no laboratório de uma grande empresa comercial. Nada mais que isso, minha cara.
Ela o examinou sofregamente um minuto inteiro.
- Mas que desperdício... que horrível desperdício!
- Entreguei-me a uma obra científica - explicou ele docemente, traduzindo as suas aventuras com pílulas e perfumes em termos mais aceitáveis.
- Oh, que pena! - disse ela com fervor. - Isso está muito bem para alguns. Mas para um homem como você, dotado de uma tal personalidade... - corou, mas prosseguiu valentemente - sim, dotado de tais qualidades, atirar fora a oportunidade de ajudar os outros, os doentes e os que sofrem, o verdadeiro objetivo de um médico... eis o que me parece uma gritante vergonha. - Nisto, foi assaltada por uma ideia: - Nunca pensou em voltar a clinicar?
- Agora? Nesta época da minha vida? - Mas imediatamente, a fim de corrigir a falsa impressão que essa frase infeliz acaso lhe tivesse dado, acrescentou com perdoável subtração: - Não estou longe dos quarenta e cinco.
- Que tem isso? Está apto, tem saúde, está na força da vida... sim, tem a aparência jovem... Por que não volta ao seu trabalho verdadeiro?
Lembre-se da parábola dos talentos enterrados!
- Teria de espanar a poeira que se acumulou em mim - disse ele. À sua lisonjeira alusão à sua jovem aparência, Moray sorrira tão encantadoramente, que ela se vira forçada a sorrir também.
- Pelo menos poupou-me ao susto da varíola. E eu que lhe queria ensinar coisas sobre a artéria femoral! Que topete!
Fez-se uma pausa breve. Como ela era linda com a luz do fogo a lhe brincar no rosto sério, em meio à treva que se insinuava na sala. Uma onda de protetora ternura, não de todo paternal, o invadiu, e ele soergueu-se.
- vou servir-lhe mais uma tigela dessa sopa.
- Não, não. Está muito bom, sinto-me muito melhor, mas prefiro ... prefiro continuar com a nossa conversa.
- Pensa com grande seriedade nesse assunto! - E franziu as sobrancelhas, bem-humorado.
- Oh sim, sim! Muito seriamente. É a ideia que faço da vida... a gente procurar ajudar os outros. É para isso que viemos ao mundo: para fazer o melhor que nos for possível. Fé, esperança, caridade... Mas a melhor de todas é a caridade - assim me ensinaram a crer. Foi por isso que estudei para enfermeira.
O conteúdo espiritual de suas palavras era levemente desencorajante, mas ele as recebeu bondosamente. Depois disse, cheio de firmeza:
- Kathy, você é uma enfermeira maravilhosa. Não a vi em ação? Admiro-a e respeito-a pela obra que está realizando, embora, para ser franco, não a considere suficientemente forte para ela; mas deixemos isso passar. Sinto, entretanto, que você pode exercitar os seus dons num nível diferente, digamos, um nível mais alto, com resultados muito mais amplos e compensadores. Não, não diga nada, espere um minuto. - Docemente silenciou-lhe a interrupção e prosseguiu. - Desde que nos conhecemos, há uma coisa que escondi de você; que escondi deliberadamente, pois queria que você simpatizasse comigo, que gostasse de mim por meus próprios méritos, se é que tenho algum... - Esboçou um sorriso: - Será que gosta de mim?
- Gosto, sim; gosto muito - respondeu ela com uma impetuosa sinceridade. - Nunca conheci quem produzisse em mim uma tal... uma tal impressão.
- Obrigado, querida Kathy. Por conseguinte, agora estou livre para lhe contar, com toda a humildade deste mundo, que sou homem abastado. Sinto não poder exprimi-lo menos cruamente, pois em verdade sou lamentavelmente, ultrajantemente rico - ao que nunca fui tão grato como neste momento, pois isso me habilita a fazer muito por você. Não, por favor - e ele tornou a erguer a mão, - deixe-me terminar. - E, após uma pausa, prosseguiu com uma expressão grave: - Sou um homem solitário, Kathy. Fiz um casamento infeliz... bem, encaremo-lo como ele foi na realidade: uma verdadeira tragédia. Minha pobre mulher ficou anos a fio internada num instituto de psicopatas, e ali morreu. Não tenho filhos, ninguém como você para encher meu tempo. Trabalhei arduamente toda a vida. Agora, ainda moço, aposentei-me, com amplos lazeres e mais bens materiais do que preciso ou mereço. - Fez nova pausa. - Já lhe contei que tenho uma grande dívida a saldar com a sua família. Não me pergunte que dívida é essa, se não quiser me fazer lembrar de uma mocidade desagradável e ingrata. Apenas direi que tenho de saldar essa dívida, e pretendo fazer isso interessando-me
por você, tirando-a deste apagado ambiente, dando-lhe uma cultura apropriada e todas as demais coisas que você merece. Uma vida cheia, opulenta e compensadora; não, naturalmente, uma vida ociosa; pois, como você está cheia de ideias humanitárias, poderá cumpri-las com a minha cooperação, e com os recursos que porei à sua disposição.
Enquanto Moray falava, ela fitava-o com um crescente nervosismo; agora, porém, que ele terminara, Kathy baixou os olhos e por um bom momento permaneceu calada. Afinal, disse:
- O senhor é extremamente bondoso. Mas isso é impossível.
- Impossível?
Ela inclinou a cabeça.
- Porquê? - inquiriu ele, com uma expressão persuasiva.
Fez-se nova pausa.
- Decerto se esqueceu... mas no primeiro dia lhe contei que ia deixar o trabalho distrital por algo melhor. No fim do mês que vem irei para Angola... trabalhar com o tio Willie na Missão.
- Oh, não! - exclamou ele com voz alta e sobressaltada.
- vou, sim. - Sorrindo debilmente, ela ergueu o olhar e encontrou o dele. - Tio Willie vem buscar-me. Chegará no dia sete do mês que vem. Iremos de avião a vinte e oito.
Estultamente, ele perguntou:
- E quanto tempo conta ficar lá?
- Para sempre - respondeu ela com simplicidade. - Fiz a notificação ontem ao médico da Saúde Pública.
Um silêncio prolongado tombou na sala. Ela partiria - calculou ele rapidamente - dentro de cinco semanas! A notícia arrasou-o, matou-lhe as esperanças, arruinou-lhe fatalmente os planos. Não, não, impossível aceitá-lo. Os projetos que ele acariciava tinham atingido uma enorme força possessiva, não apenas no interesse dela, mas também no dele próprio. Kathy era a sua missão na vida. E nada tão fútil para opor-se a isso como aquele desejo absurdo de imolar-se na agrestia do jângal tropical. Nunca, jamais. Mas o raciocínio lhe voltava, ele viu o perigo de a contrariar abertamente e arriscar-se a um rompimento iminente. Devia confiar em que o tempo e as circunstâncias mudassem o modo de pensar de Kathy. Quando voltou a falar, fê-lo com calma, calcando a devida nota de consternação.
- Isto me desaponta gravemente, Kathy. Foi em verdade um golpe. Entretanto, percebo quão estreitamente ligado está esse plano ao seu coração.
Ela se preparara para a oposição. Mas, em face dessa tranquila aquiescência, os olhos se lhe inundaram de grata simpatia.
- Você tem tanta compreensão!
- E posso ajudar também. - A ideia pareceu reanimá-lo. - Willie receberá pelo próximo correio um donativo para a Missão, e um donativo excelente. Apenas quero que você me dê o endereço dele.
- Oh, darei sim! Como agradecer-lhe?
- Mas isto é apenas o começo, querida. Não lhe disse já quanta coisa quero fazer por você? O futuro o provará. Quanto ao presente. .. deixe-me refletir. Quando foi que disse que Willie deve chegar?
- Dentro de uma quinzena, aproximadamente. Partiremos três semanas depois.
Ele calou-se, contraindo a testa para refletir.
- Creio que descobri - disse afinal. - Como você vai partir tão inesperadamente e tão depressa, acho razoável que me dê um pouquinho do tempo que lhe resta. Está exausta; e, para aguentar o duro trabalho no calor do trópico, deve tirar umas férias, ou pelo menos descansar um pouco. Por conseguinte sugiro, com toda a reserva, que você tire as duas semanas de férias que ainda lhe restam e vá passá-las comigo em minha propriedade entre as montanhas. Willie irá unir-se a nós em seu regresso, e, mesmo que nenhum de vocês dois possa ficar muito tempo lá, desfrutaremos os três da mais feliz reunião do mundo!
Durante cinco fatais segundos ele pensou que ela ia recusar. Surpresa e dúvida anuviavam a franca expressão do rosto de Kathy; isto, porém, fundindo-se com a indecisão, se fez seguir por um sorriso hesitante. Moray percebeu que a inclusão de Willie no convite fora um golpe de pura inspiração. Mas seria bastante? A dúvida voltara aos olhos dela.
- Seria ótimo - disse Kathy devagar. - Mas não seria grande incómodo para você?
- Incómodo? Não sei o que significa essa palavra.
- O ar da montanha fará bem a tio Willie - disse ela. - A ele, que regressa de Kwibu.
- E para você... que vai para lá. - Foi com esforço que conseguiu ser natural. - Então você irá?
- Bem queria - disse ela em voz baixa, fazendo-se pequenina e desamparada na poltrona funda. - Mas há dificuldades... meu trabalho, por exemplo. Depois, porque avisei, talvez não me dêem as férias. Tenho de falar sobre isso com a enfermeira-chefe ou com o
médico-residente. - E após tomar uma funda respiração: - Estou de serviço no hospital até ao fim desta semana. Quer deixar-me pensar no assunto até lá? - Naquele momento ele viu que nada lhe restava senão concordar.
CAPÍTULO OITO
LEVOU-A de volta a Markinch para o serviço noturno. Quando chegaram, ele, receoso de dizer alguma imprudência no estado de espírito em que se encontrava, limitou-se a algumas palavras de despedida e a um olhar contido mas eloquente. Depois rodou lentamente em direção ao hotel.
A chuva cessara e - com aquela perversidade do tempo escocês
que ocasionalmente ao fim de um dia de chuva torrencial promete melhores coisas - uma barra de luz clara apareceu no horizonte. Mas esse clarão transitório pouco contribuiu para animá-lo, e ele, desligando o motor, encostou o carro à margem da estrada para refletir.
com efeito, tratava-se de um revés desagradável; pior ainda, pois era, dentre todas as coisas, a que menos esperava. Quem teria previsto aquilo? Uma linda garota decidida a perder-se entre um bando de pintados selvagens que não poderiam apreciá-la mais do que ao pequeno e admirável Bonnard pendurado na parede de seu estúdio, em Schwansee. A mão de Moray tremia de aflição, enquanto ele acendia um cigarro com seu isqueiro de ouro e puxava uma funda baforada. Claro, não podia negar que lera ou ouvira falar de casos semelhantes. Não havia uma rica dama da sociedade renunciado, recentemente, à sua fortuna, indo viver de bananas com um médico excêntrico no jângal brasileiro? Era comum saírem as freiras do país como irmãs-enfermeiras, mas isso fazia parte da sua vocação. Supunha igualmente que o dever das esposas de missionários era acompanhar os maridos. Mas, no caso em apreço, não havia a menor necessidade de renúncia, nem obrigação moral ou matrimonial, e todos os aspectos do projeto lhe pareciam absurdos e fúteis.
Que podia ele fazer? - essa era a questão. Acendendo cigarro após cigarro - excesso inteiramente estranho a seu feitio moderado - consagrou-se ao problema com uma concentração só possível mediante a força da indignação. A solução mais simples seria abandonar seus planos, desistir, poupar-se a dificuldades ulteriores e voltar para casa. Não, não, não poderia fazer isso, e imediatamente repeliu tal
ideia. Além da implícita obrigação que tinha para com ela e para consigo mesmo, ele ficara naquele curto espaço de tempo tão apaixonado pela pequena Kathy, que a simples ideia de nunca mais tornar a vê-la era demasiado derrotista, demasiado sombria para ser aceita.
Quanto mais ele refletia, mais ficava convencido de que o melhor meio para furtá-la a uma tal obsessão consistia em mostrar-lhe, embora por pouco tempo, a plenitude e a riqueza da vida que lhe podia oferecer. Educada com grande rigor, dir-se-ia que isolada do mundo, ela não tinha a menor ideia do que ele poderia fazer por ela. Se ao menos pudesse levá-la para a Europa, mostrar-lhe o encanto e a elegância das grandes cidades continentais que ele tão bem conhecia - Paris, Roma, Viena, com suas galerias de arte, edifícios históricos, monumentos e igrejas célebres, restaurantes de elite e belos hotéis - e em seguida apresentar-lhe o conforto e os recursos de sua casa, decerto ela voltaria à razão e se deixaria convencer. Seu convite, portanto, feito de repente, fora um golpe de mestre, o qual, mesmo agora e após madura reflexão, não podia ser substituído por outro melhor. Restava apenas assegurar-se de que ela o aceitaria. Mas como? Procurando mentalmente quem lhe poderia dar assistência e apoio, não tardou muito a ocorrer-lhe a pessoa mais indicada para isso.
Apagou o cigarro, apertou com força o botão da partida, e, dando a volta guiou de regresso, através de Markinch, até ao presbitério. Em cinco minutos chegava a seu destino. Enquanto estacionava o carro e entrava na aléia, distinguiu um andaime na parte alta da torre e ouviu Fotheringay dando ordens em voz alta, o que parecia indicar que o sino estava sendo retirado. Mas não tinha a intenção de encontrar o ministro, que na certa o embaraçaria com novas expressões de gratidão. Foi, pois, com alívio, enquanto passava pelo crescido arvoredo de louros, que viu a Sra. Fotheringay na horta, ao lado da casa. Tinha ela na cabeça um velho chapéu de feltro, de homem, vestia uma capa impermeável, toda manchada, e calçava pesadas botas ferradas, ao mesmo tempo que trazia na mão uma podadeira.
- Desta vez me apanhou na "estica"! - exclamou ela, com um sorriso torcido, embora acolhedor, ao vê-lo aproximar-se. - Estou matando lesmas. Depois da chuva, elas vão direitinho para as couves-flôres. Mas parece que já matei a maior parte. Vamos entrar.
- Se não se importa - disse ele com certa hesitação - gostaria de falar com a senhora aqui mesmo.
Ela fitou-o bem no rosto, e depois, sem dizer palavra, conduziu-o a um caramanchão pintado de verde, que se erguia ao fundo do jardim.
Sentando-se num banco de madeira, indicou-lhe um lugar ao lado dela. Em seguida, após um novo olhar atento, disse-lhe:
- Quer dizer que afinal Kathy lhe contou?
Sua perspicácia surpreendeu-o; foi todavia um auxílio para ele começar.
- Faz apenas uma hora que o sei.
- E não aprova?
- Quem aprovaria? - disse com voz embargada. - A simples ideia de uma garota ir enterrar-se por toda a vida naquele sertão... Sinto-me... sinto-me indizivelmente infeliz.
- Sim, calculei que isso o deixaria transtornado - falou ela devagar, franzindo o largo rosto crestado pelas intempéries. - E não é o único. Meu marido também é contra, embora, em sua qualidade de ministro, lhe seja difícil deixar transparecer tal coisa. Mas eu, que sou apenas a esposa do ministro, eu digo que é uma lástima.
- A coisa já seria péssima em qualquer época. Mas agora, especialmente com a agitação que está havendo na África...
Ela concordou com a cabeça, séria e moderadamente. Porém, Moray não se podia conter.
- Ela não serve para isso. Depois do trabalho de hoje, ficou morta de cansaço. E por que vai ela para lá? Qual a razão disso tudo? É seu tio o responsável?
- Sim, de certo modo penso que ela vai para o bem de Willie. Mas também para o dela própria.
- Quer dizer, motivos religiosos.
- Sim, talvez... mas não unicamente isso.
- Mas ela é religiosa!
- E no melhor sentido da palavra. - Falava com sentimento, caindo cada vez mais no dialeto rústico. - Ajuda-nos na igreja, ensina as crianças, mas não é dessas que andam de Bíblia debaixo do braço e o branco do olho revirado para o céu. Não, o senhor precisa conhecer Kathy para compreender o que a leva a partir. Não preciso dizer que ela é uma moça excepcional, nos tempos que correm, tão diferente, como a aveia o é da palha, dessas garotas de rabo-de-cavalo, cabeça vazia e sensuais que andam por aí com o seu jazz e seu rock and roll, só preocupadas em se divertir, sabe-se lá com que péssimas diversões! Ela é séria, sensível e quieta, não se esqueça-mas nervosa, cheia de miolo e ideais próprios. Sua criação (a mãe dela era excepcionalmente rigorosa) tem muito a ver
com isso. E o fato de viver sozinha, aqui no interior, manteve-a muito isolada. Ao mesmo tempo, desde que Willie foi para Angola, onde parece haver não apenas doença, mas fome também, parece que ela, como era natural, ficou cada vez mais firme na ideia de ajudá-lo. Ajudar onde a necessidade é maior... servir.. .- são essas as suas palavras no que concerne à missão de Willie. E isso é hoje a única coisa que lhe importa; a mola de sua vida.
Moray permaneceu calado, mordendo os lábios em protesto.
- Mas pode servir sem se enterrar!
- E quantas vezes eu já não lhe disse isso?
- E Willie, por que não lho diz? Deve compreender que a coisa é inteiramente impraticável.
- Willie não é homem prático. - Parecia a pique de dizer qualquer coisa mais, mas só fez acrescentar: - Para falar a verdade, Willie está fora do mundo.
- Mas eu estou no mundo - exclamou ele nervosamente. - Interesso-me por Kathy. A senhora decerto já o percebeu. Quero fazer coisas para o bem dela; dar-lhe tudo quanto ela precisa e bem merece.
A mulher não respondeu, mas continuou a fitá-lo com uns olhos inquiridores, onde também brilhava uma tão franca simpatia, que ele sentiu uma repentina necessidade de desabafar, de justificar seus motivos e conquistá-la definitivamente para si, mediante uma plena confissão de seu passado. O impulso foi irresistível, e ele cedeu. com a respiração arfante, logo mais rápida, por vezes quase desarticuladamente e
poupando-se bastante na narrativa, contou à Sra. Fotheringay o que o trouxera a Markinch.
- Como vê, tenho todas as razões, todos os direitos de reparar os males passados. Se eu não tivesse feito aquela malfadada viagem - e sua voz ficou quase de todo embargada, - Kathy bem podia ter sido minha filha!
Na pausa que se seguiu, ele conservou-se de olhos baixos. Quando os levantou, o sorriso dela era ainda mais bondoso do que antes.
- Adivinhei desde o princípio. A mãe de Kathy era uma mulher reservada, mas uma vez, mostrando-me um álbum antigo, vi numa das páginas um ramilhete de flores secas. À minha moda habitual, fiz uma piada sobre o assunto. Ela desviou o olhar e suspirou, dizendo apenas o suficiente para me fazer sabedora de que houve alguém de quem ela muito gostara antes de se casar.
Ele titubeou ligeiramente a essa evocação demasiado vívida da sua deserção, mas rapidamente se recuperou.
- Então a senhora me ajudará! Convidei Kathy a ir comigo para a Suíça, e lá, em minha casa, Willie irá a seu encontro. Se conseguir reuni-los ali, em um novo ambiente, creio que posso fazê-los voltar à razão, Kathy especialmente. E ela precisa de umas férias, pobre criança! Quer a senhora persuadi-la a acompanhar-me? Não há dúvida de que lhe virá pedir conselho.
A Sra. Fotheringay não respondeu no mesmo instante, mas continuou pensando com o ar circunspecto de quem medita. Depois disse, como que dando expressão a seus pensamentos:
- É uma coisa estranha... Esperei, sim, e orei, suplicando que alguma coisa acontecesse para demover Kathy desse pulo no escuro. Não é apenas o perigo - que é bem grande, pois Willie, esse maluco, quase foi morto uma meia dúzia de vezes, - mas também o fato de Kathy ser tão delicada que, em menos de um ano, ficará extenuada naquele clima medonho. E ela é um amor de garota, talhada para coisa diferente. Bem, parecia não haver mais esperança e eis que, no derradeiro momento, quando um já desiste de lutar e ela está a ponto de partir, o senhor aparece como um segundo pai - o senhor assim se expressou - e está claro para mim porque nos foi enviado. - Ela fez uma pausa, estendeu a mão grande e maltratada, e a pôs sobre a dele. - Sempre cometemos desatinos quando moços. Não admira que tivesse errado naquela época. Acredito que é um homem direito e de bom coração. Não há muitos a quem eu confiaria Kathy, mas ao senhor confio. Se ao menos o senhor pudesse tirá-la desta rotina, fazê-la viajar um pouco,
pô-la em contato com gente nova, e sobretudo descobrir para ela um marido jovem e sólido que lhe desse uma boa casa e filhos para cuidar, alguém que zelasse por ela, então o senhor teria mais do que saldado sua antiga dívida. - Apertou-lhe firmemente a mão. - Acredito na intervenção da Providência. Embora o senhor não saiba, tenho a ideia inabalável de que o senhor é a resposta para o que venho procurando. Creia que o ajudarei em tudo o que puder.
Moray tinha os olhos húmidos ao sair do presbitério. Sentia-se recuperado, purificado pela confissão e, cônscio do valor da promessa da boa mulher, bastante seguro para aguardar pacientemente uma palavra de Kathy. Ela o avisara que estaria muito ocupada no Hospital de Dalhaven até ao fim da semana. Não devia esperar uma resposta antes disso. Entretanto, quando o primeiro dia se fundiu no segundo, e o segundo no terceiro, uma dúvida incessante começou a atormentá-lo, a sua preocupação voltou e ele quase perdeu totalmente as esperanças. Não havia nada para lhe prender
a atenção ou aliviar-lhe a monotonia da espera. O tempo ficara frio e ventoso, o mar esbravejava, e espuma e areia eram sopradas em redemoinhos sobre as dunas e os relvados. Mesmo que quisesse jogar, o golfe estava fora de cogitações; Finlay, o profissional do golfe, suspendera o trabalho ali e regressara para o clube de Dalhaven. O hotel repentinamente reduzira-se, fecharam-se mais quartos e janelas, o derradeiro hóspede do outono foi-se embora, e apenas duas moradoras permanentes, duas senhoras idosas, ficaram para compartilhar com Moray os rigores das rajadas do nordeste. Como já não pudesse dar a desculpa de estar em férias, seus amigos do lugar e do estrangeiro começaram a ficar admirados pela sua prolongada ausência de casa. Duas vezes Miss Carmichael lhe pediu informação sobre seus planos, enquanto em Schwansee os seus admiráveis criados começavam a inquietar-se com a longa demora. Mas tudo isso nada era, comparado com a sua crescente ansiedade, a percepção de que o tempo corria, reduzindo ainda mais o já limitado período que tinha à sua disposição.
No sábado, fazendo um esforço para distrair as ideias, Moray resolveu passar algumas horas fora do hotel e tomar informações em Edimburgo, quanto à possibilidade de reserva de passagens de avião. Passou toda a manhã na cidade; depois, como o céu clareasse, em vez de regressar cedo, foi de carro explorar a região norte do campo. Por duas vezes se extraviou - o que não lhe foi desagradável - no ambiente rural, parou para se informar do caminho a seguir e bebeu um copo de leite num pequeno sítio das redondezas; depois, tornou a partir para retomar o rumo, e no fim descobriu que se havia extraviado mais do que pensava, pois, de repente, quando quis voltar, encontrou-se em meio de uma paisagem estranhamente familiar para si. Olhando em torno com uma certa tensão nervosa, notou um após outro os acidentes do terreno. Não podia haver engano. Talvez não fosse o simples acaso o que o trouxera ali, mas um impulso subconsciente. Achava-se no vale Fruin, na deserta vereda que, a partir do lago, conduzia ao mesmo trecho da linda charneca onde há tantos anos, ao regressar do hospital de Glenburn, Mary se lhe entregara.
Invadiu-o uma estranha fraqueza e ele quis voltar, mas não pôde. com uma expressão tensa no rosto, rodou mais algumas milhas; depois, apertando o breque, fez o carro parar. Sim, o lugar era aquele mesmo. Indeciso, ali permaneceu alguns momentos, o corpo rígido; depois desceu do carro e caminhou pela margem relvosa, até ao alagadiço. À medida que avançava, ia penetrando naquele
estreito vale abrigado e inesquecível, onde o riacho corria cristalino e ligeiro em seu leito de pedregulho. Santo Deus, pensou ele, tudo tão igual, que se diria ter acontecido na véspera!
Postado ali, com um vazio no estômago e o coração batendo célere, viu o passado ressurgir diante de si - a chegada na motocicleta, o piquenique ao sol quente, os risos e olhares enternecidos, o zumbido das abelhas, e depois, sob a cúpula azul do céu - enquanto as gaivotas giravam no alto gritando em vão, - a alegria e o medo daquele momento de êxtase em que, irresistivelmente atraídos, ambos se abraçaram. Moray viu, sentiu tudo aquilo, e assim permaneceu, num banho de recordação sentimental, até que, com um estremecimento pânico - verdadeiro choque físico, - tapou os olhos com uma das mãos.
A moça que ele tinha nos braços não era a amada há muito perdida. Cada sensação, cada ardente particularidade daquela cena apaixonada, ele a revivera, não com a mãe, mas com a filha! A mulher que ele tão estreitamente apertara nos braços fora Kathy, cujos lábios quentes e macios haviam premido os seus num tão doce abandono. Soltou um grito na charneca deserta. Inteiramente abatido, ferido por uma súbita vergonha, deu de caminhar, tropeçou indeciso encosta acima e, através da macega, voltou ao carro. Rodou estrada afora como um possesso. Como é que não percebera aquilo antes? Estava em verdade apaixonado - não pelo passado, mas pelo presente. Pensar em Kathy como pensaria em uma filha, em uma pupila que ele podia proteger, não era mais que uma ilusão, um disfarce protetor do seu desejo subconsciente. Desde o primeiro minuto em que a encontrara, seu primitivo amor - longamente cultivado como o único de sua vida - fora recriado, revigorado e transferido para Kathy. Ela não era apenas a imagem desse amor, fresca, jovem, mais bela até, mas uma vívida realidade de carne e osso. Olhando fixamente para a frente, guiando como um autómato, experimentou conter essa maré de sensação. A situação era delicada. Perfeitamente correta, nada havia nela de vergonhoso; todavia, surgiam escrúpulos exigindo exame ou pelo menos contenção, pois do contrário os maliciosos poderiam imaginar coisas. Mas, como se atreveriam a isso? Seus motivos eram os mais elevados; seus sentimentos, naturais, honestos e normais, e jamais poderiam ser tidos como incestuosos; não havia motivo para compunção, razão alguma para recuo. Quem iria
censurá-lo? E como podia ter sido de outro modo? A ideia aliviou-o, encheu-o de uma alegria palpitante, e o futuro, que a rigor, até então, jamais
adquirira forma, encaixava-se agora no lugar devido e exalo, adquiria cores encantadoramente vivas e nítidas. E - Deus do Céu!- como ele se sentia jovem, rejuvenescido de fato, por aquelas duas excitantes paixões, sedutoramente fundidas em uma só!
Mais do que nunca, era preciso, agora, que não houvesse mais hesitação nem delongas. Discrição, sim, é claro, mas nenhuma revelação imprudente ou prematura de seus sentimentos. Assim que regressasse, ligaria para Dalhaven e chamaria Kathy. Moray apertou o acelerador, e o carro voou como se tivesse asas. Ao chegar ao hotel, saltou para fora e correu diretamente para a cabina telefónica do hall. Estava quase a entrar, quando o porteiro lhe acenou da portaria.
- Há um recado para o senhor. A Sra. Fotheringay veio procurá-lo na sua ausência, e deixou-lhe esta carta com as melhores recomendações.
O homem estendeu-lhe um envelope comum, fechado, no qual estava escrito o seu nome. Não ousou abri-lo ali. Precipitou-se para o quarto, abriu-o sofregamente, e, com dedos trémulos, tirou do interior uma folha de papel ordinário. Num relance percebeu que era de Kathy.
Caro David:
Tivemos tanto trabalho no hospital, que não me sobrou uma folga sequer; mas ontem à tarde acabei o serviço e tive uma longa conversa com a Sra. Fotheringay. Depois falei com a enfermeira-chefe, que aquiesceu em conceder-me as duas semanas de férias que me restam, a partir de
segunda-feira que vem. Por conseguinte, estarei livre para aceitar o seu generoso oferecimento de me levar à Suíça, e já escrevi a tio Willie dizendo-lhe do seu convite para que vá ao nosso encontro.
Sinceramente sua, Kathy
Estou muito contente por ir com você.
Desnecessário telefonar! Espontaneamente, Kathy iria consigo. Moray sentou-se numa confortável poltrona. Penetrava-o uma cálida sensação de triunfo. E a caminho de Schwansee - atendendo à sua intenção original - por que não fazer uma parada em Viena, sua cidade favorita, apenas por uns dias, para dar a Kathy um ante-gosto da vida continental? Tornou a ler a carta: ela escrevera a Willie. Um cabograma seria melhor e mais rápido. No dia seguinte
enviaria ele uma mensagem pessoal, comprida e franca, que explicaria muita coisa a Willie, facilitando assim o consequente encontro deles. Voltou a ler o pós-escrito: Estou muito contente por ir com você. Só havia uma coisa possível para um homem de tanto gosto e sentimento, um homem de tal requinte, ainda intocado pela crueza e vulgaridade desta época bárbara. E, levantando o retalhinho de papel vulgar, premiu-o contra os lábios.
CAPÍTULO Nove
DE uma altitude de vinte mil pés, o Caravelle começou gradualmente a descer do estrelado céu noturno para o escuro platô das nuvens embaixo. Moray olhou o relógio: nove e meia. Voltou-se para a companheira:
- Falta pouco. Deve estar cansada.
A viagem fora adiada, mercê de delongas em Londres e Paris; ele, porém, não lamentava o atraso. Estar sentado junto dela, na intimidade da cabina de luxo, observando com uma solicitude divertida mas cheia de ternura as suas reações durante o seu primeiro voo, antecipando o que ele julgava fossem desejos dela embora Kathy não exprimisse nenhum - tudo isso eram prazeres raros e preciosos. Como tudo lhe era novidade para si, ela pouco falava; e, por causa desse silêncio, que parecia indício de alguma ligeira tensão, decidiu ele dar a nota estimulante.
- Espero que se divirta, querida Kathy. Esqueça-se das caminhadas na lama de Markinch e trate de desfrutar umas férias verdadeiras. Relaxe um pouco a tensão. - E riu-se. - Distendamos nossos nervos... nós ambos; e sejamos... bem... sejamos humanos.
- Oh, sou até demasiado humana - respondeu ela, concordando. - Daqui a pouco dirá que sou uma caceteação!
Nisto, fez-se ouvir a voz da aeromoça no sistema de intercomunicação.
- Estamos chegando ao aeroporto de Viena. Façam o favor de apertar os cintos de segurança e apagar os cigarros.
Como ela ainda não tivesse prática, ele a ajudou pressurosamente a ajustar o cinto. Ao tocar-lhe a fina e elegante cintura, e sentir a tepidez de seu corpo, uma súbita alegria o invadiu.
Visíveis, lá embaixo, as luzes do aeroporto, se empinaram violentamente quando o avião adernou; depois, com um último giro
e uma perfeita descida, o aparelho correu pela pista, manobrando em direção do edifício da alfândega.
- É um modesto aeroporto este de Viena - disse ele ao descerem a escada. - Não o reconstruíram depois da guerra. Mas não demora, e ficaremos livres.
E cumpriu rigorosamente a palavra. Em menos de sete minutos se acharam na avenida principal, e ali, segundo as instruções que dera por telegrama, estava o Rolls cintilando sob as luzes de néon, enquanto Arturo, no seu melhor uniforme, todo sorrisos e mesuras, esperava o patrão. Ele nada contara a Kathy sobre esse pormenor: preferiu surpreendê-la, e o êxito lhe sorriu. Depois de trocar cumprimentos com Arturo, rodaram pela noite adentro. Tendo nos joelhos uma suave manta de peles, e em torno o macio estofado cor de cinza do carro, ela enfim murmurou em voz baixa:
- Que beleza de automóvel!
- Nunca o apreciei tanto como agora. - E deu-lhe, sob a manta, umas pancadinhas tranquilizadoras na mão. - Serve para eu lhe mostrar a cidade.
A estrada, de Flughaven para Viena, era, ele bem sabia, uma péssima introdução à alegria. Flanqueava-a uma ininterrupta sucessão de cemitérios e, como se isso não bastasse, viam-se em ambas as margens estabelecimentos dedicados à fabricação e exposição de lápides mortuárias. Todavia, a escuridão encobria benevolamente essas sombrias sugestões da mortalidade. Em meia hora, a alegre cidade iluminada os acolheu, e eles se dirigiram para o Prinz Ambassador. Não sendo um hotel muito grande, era contudo de luxo. E Moray dava-lhe preferência por ser o mais tipicamente vienense, com uma aprazível localização à antiga, sobranceira à fonte Donner e à igreja dos Capuchinhos. Também ali ele era conhecido e apreciado. Foi logo conduzido para um apartamento duplo do andar de cima. A sala de estar era uma peça de estilo antigo, com brocados e veludo vermelho, e um deslumbrante lustre central, arandelas de cristal nas paredes e uma mesa barroca de gesso, onde a gerência já havia mandado pôr um grande vaso de crisântemos bronzeados e uma cesta cheia de frutas selecionadas.
- Agora, Kathy - disse autoritário, depois de aprovar o quarto onde ela dormiria e o moderno banheiro anexo, ambos pintados num delicioso amarelo-pálido e com cortinas de cor cinza-pombo - está cansada, embora proteste que não. Portanto, boa noite. vou encomendar para você uma bandeja de coisas gostosas; depois tome um banho e vá deitar-se.
Como era previdente, gentil e delicado! Moray felicitou-se, pois pelo olhar de Kathy adivinhara exatamente o que ela queria. Qualquer outra palavra se fazia desnecessária: restava-lhe apenas sair, com graça e simplicidade. Levantou-lhe levemente o pulso, roçou por ele os lábios, fez uma rápida inclinação de cabeça e, saindo, disse alegremente:
- Encontrar-nos-emos amanhã de manhã, para o café!
Chamou o garçom daquele andar, encomendou sanduíches de peito de galinha e chocolate quente para Kathy, depois desceu ao restaurante. Antes de entrar, acendeu um Sobranie, e, de cabeça descoberta, deu um breve giro pela Ringstrasse. Como era bom estar de novo em Viena, ouvir risos nas ruas e música de valsa saindo dos cafés, ver até mesmo as pequenas dirnen pecadoras dando início à sua caçada noturna! A Escócia era excelente, uma vez que se lhe aceitasse o clima; era ótima para o golfe e a pesca... Viena, porém, era mais gemutlich, mais a seu feitio. Quando tomasse pé, Kathy a adoraria!
A manhã seguinte raiou clara e bela, verdadeiro dia outonal, e às nove horas, depois que trouxeram o café, ele atravessou a sala e bateu discretamente à porta de Kathy. Ela estava de pé e já vestida, fazendo um pouco de tricô enquanto esperava que ele a chamasse. Sentaram-se juntos. Ela serviu o café - quente, saboroso e aromático, o melhor dos cafés, - que jorrou espumejante nas belas xícaras de porcelana de Meissen, brancas como a toalha imaculada e ornadas com uma coroa de ouro. A manteiga, em cima do gelo, tinha a cor do creme, e o mel, em seu boiãozinho de prata, era de um rico amarelo dourado. Os pãezinhos, frescos e de cheiro adocicado, traziam ainda o calor do forno.
- Experimente um destes. São os célebres kaisersemmeln, dignos de um imperador - disse ele, desejoso de informar. - Faz quase um século que a mesma padaria os fabrica... Passou bem a noite? Pois muito me alegro. Está pronta para um dia inteiro de passeios.
- Espero-os com impaciência. - E fitou-o com um ar indagador. - Iremos de carro?
Ao mesmo instante ele percebeu que a moça tinha acanhamento de usar o Rolls. Que adorável garota! Não era nada estragada, e ao mesmo tempo bonita, ainda fresca do orvalho noturno! Respondeu-lhe penalizado:
- Esta manhã, sim, pois iremos a um lugar um tanto longe. Mas, de outra vez, iremos de chancas...
A frase pareceu agradar a Kathy e ela sorriu.
- Será ótimo, David. Quando se anda, vê-se mais. Não acha? Também se vêem melhor as pessoas...
- E você tem de ver tudo, querida!
Arturo já esperava lá fora. Podia-se vê-lo da janela, a andar de um lado para outro, fazendo guarda contra a curiosidade de uma pequena multidão admirada e inquisitiva. Quando afinal eles desceram, tirou rápido o boné, curvou-se respeitosamente e presenteou Kathy com um único botão de rosa e - delicioso gesto! - já munido de um alfinete de cabeça de latão.
- Repare - murmurou Moray em seu ouvido. - O meu bom italiano já aprovou...
Ela corou profundamente; mas ao entrarem no carro, sujeitou-se,
deixando-o prender a rosa na lapela de seu costume Lovat. Em seguida partiram, rumo a Kahlenberg.
Foi um passeio deslumbrante, de curvas ascendentes por entre lindos subúrbios asseados e o relvado coberto de pinheiros do Bosque de Viena. O sol brilhava; o ar, eletrizado por uma pontinha de geada, era puro como cristal; e de repente, ao vencerem a última ladeira, todo o panorama de Viena se lhes descortinou no sopé do morro, com um fulgor que lhes deixou o fôlego suspenso. Descendo do carro, passearam pelo píncaro, enquanto ele lhe ia indicando os pontos altos da cidade: o palácio Belvedere, a igreja de Santo Estêvão, o Hofburg, a Casa da Ópera, e, bem em frente, o famoso restaurante Sacher, onde ele propôs levá-la para almoçar.
- É lugar famoso?
- Um dos melhores da Europa.
Ouvindo isso ela hesitou, e, pousando timidamente a mão no braço dele:
- David, não podíamos almoçar qualquer coisa aqui mesmo? - E indicou com o olhar o pequeno café fronteiro. - Parece um lugar tão bom! E isto aqui em cima é uma beleza!
- Bem - respondeu ele. - É um lugar simples... e o cardápio deve ser ainda mais simples...
- Provavelmente tem pratos simples e sadios.
E quando ela o fitava com aquela expressão, as faces ardendo na brisa cortante, ele tinha de ceder.
- Então vamos. Arrisquemo-nos juntos.
Ele nada podia recusar-lhe, embora os seus pressentimentos fossem mais do que justificados. A mesa era uma tábua em cima de um cavalete, não tinha toalha, o talher era ordinário, e lá estava o indefectível Wiener Schnitzel, duro e insosso, acompanhado, imagine-se,
de apfel saft! Ela entretanto não deu mostras de se incomodar, até pareceu gostar de tudo, e no fim do repasto ambos se reconciliaram bem-humorados. Ficaram sentados algum tempo à mesa - ela ainda fascinada com o panorama. Depois, por volta das duas horas, tornaram ao carro e partiram para Schõnbmnn.
Era esse o regalo especial que Moray prometera a si próprio, pois, como alguém inflexivelmente contrário aos horrores arquitetônicos da era moderna, cultivara uma afeição romântica para com o majestoso palácio de verão de Maria Teresa, edificado no século XVIII, e para com os lindos jardins circundantes, traçados à antiga maneira francesa. Além disso, agradava-lhe o papel de cicerone. Desde que transpuseram o portão de ferro maciço, ele se empenhou resolutamente em despertar a curiosidade de Kathy, e, como conhecesse bem o assunto, teve um êxito espetacular. Enquanto vagueavam pelos vastos aposentos barrocos, recriava ele a Corte Imperial em todo o seu luxo e esplendor. Fez uma vívida descrição da vida de Maria Teresa, desde a graciosa menina recatada - ele parou diante do retrato que a apresentava com seis anos de idade, usando uma comprida túnica de brocado azul e ouro, reprodução do vestido de uma elegante dama vienense da época - que, ao ver o pai em traje de gala, exclamou, para diversão de toda a corte: "Oh, que lindo está o papai! Venha aqui, quero admirá-lo!" - até à mulher de forte e nobre individualidade, figura central da política europeia, patrocinadora das artes, mãe de cinco filhos e onze filhas, e que, interrogada no leito de morte se estava sofrendo muito, como com efeito estava, respondeu tranquilamente - suas últimas palavras:
- Estou bastante à vontade para morrer.
O tempo passava imperceptivelmente. Nunca Moray se entregara a um entusiasmo tão dramático. Quando de novo transpuseram o pátio empedrado da entrada, ficaram ambos surpresos ao descobrir que eram quase seis horas e começava a escurecer.
- Meu Deus! - exclamou ele, desculpando-se - fiz você andar demais e falei tanto que decerto fatigou-se. E, o que é pior, fi-la perder o chá. Isso é indesculpável na Áustria, onde há kuchen tão maravilhosos!
- Mas por coisa alguma queria perder tudo o que vi, - tornou ela, rapidamente. - Você sabe tanto e faz tudo ficar tão real!
Ele lhe fornecera, visivelmente, assunto para reflexão pois, no caminho de volta para o hotel, após um silêncio pensativo, ela observou:
- Naquele tempo as classes privilegiadas viviam muito bem. Mas como vivia o povo comum?
- Decerto que não tão bem - e riu-se. - Diz-se que, em Viena, trinta mil famílias moravam, cada uma, num único aposento. E se o quarto fosse razoavelmente espaçoso, moravam duas, separadas apenas por um varal!
- Que horror! - exclamou ela, penalizada.
- Realmente - concordou ele consoladoramente. - A época não era boa para a gente ser pobre.
- Mesmo agora - prosseguiu ela - tenho visto muitos indícios de pobreza na cidade. Quando saímos, vi crianças descalças, mendigando nas ruas...
- Sempre os houve, sempre haverá mendigos em Viena. Mas esta é uma cidade do amor, do riso e da canção. Seus mendigos até que são muito felizes!
- Serão mesmo? - disse ela devagar. - Como poderão ser felizes quando sentem fome? Hoje de manhã conversei um pouco com a arrumadeira do hotel - ela fala muito bem inglês. Disse-me que é viúva, tem quatro filhos, e que o marido foi morto num motim durante a ocupação. Tem lutado horrivelmente... a vida está tão cara... e o que ela ganha mal dá para manter a família com vida!
- Não lhe parece que essa é a velha história da falta de sorte?
- Não, David, não é. A mulher é uma pessoa decente e perfeitamente sincera.
- Nesse caso, dê-lhe um pouco do dinheiro que tem reservado para os alfinetes.
- Já dei!
Ao tom exultante da exclamação, ele a olhou de esguelha. Ao saírem do aeroporto, e para que ela tivesse alguma coisa para os gastos, ele pusera-lhe na bolsa um maço de notas, talvez uns mil e quinhentos xelins austríacos, equivalentes a vinte libras esterlinas.
- Quanto lhe deu?
Ela fitou-o com certa hesitação.
- Tudo.
- Não diga, Kathy! - E soltou uma risada. - Que caridosa você me saiu! Desfazendo-se de toda a fortuna de uma vez só!
- Tenho certeza de que ela a empregará bem.
- bom; se isto lhe agrada, a mim também me agrada - disse ele, ainda achando graça na coisa. - Em Viena, a gente tem de ser liberal e um pouco maluca. Adoro esta cidade, Kathy. Adoro-a tanto, que me entristece ver como está mudando depressa. Ê preciso
ver tudo agora, meu bem; daqui a pouco, com tantos lugares bonitos existentes no mundo, Viena vai ficar abandonada. Olhe só aquele horror à direita!
Passavam por um edifício novo e alto, de apartamentos, construído para as classes trabalhadoras.
- Esse pesadelo sem fisionomia, feito de aço e concreto, repleto de quartinhos que mais parecem canis, veio substituir uma bela e antiga residência barroca, um pequeno palácio demolido há doze meses, para em seu lugar fincarem isto... esta penitenciária!
- Não lhe agrada?
- A quem agradaria?
- Mas David... - E ela respirou fundo, logo prosseguindo com um ar pensativo: - As pessoas que aí moram devem gostar. Têm sobre a cabeça um telhado firme, têm conforto - calefação, água quente, instalações sanitárias adequadas, e intimidade. Não é melhor do que viverem como porcos, separados apenas por um varal?
Ele franziu o sobrolho com uma expressão de perplexidade.
- Seja como for, não viverão sempre como porcos? Mas a questão não é essa. O que a gente sente é a destruição da beleza existente no mundo. Tratores e caminhões a derrubarem tudo, arruinando e arrancando os mais belos monumentos do passado para construírem estes edifícios de carregação, todos idênticos, todos tão medonhamente feios... A Inglaterra se deixou engolir por seus lúgubres subúrbios. A Itália está cheia de fábricas. E, na Suíça, há dezenas de apartamentos atulhados, nos sítios mais belos, junto às praias de seus lagos - mas não perto de mim, graças a Deus.
- Sim, é verdade que vivemos num mundo novo - disse ela concordando. - Tanto mais razão para aproveitá-lo ao máximo. E fazer o que pudermos para melhorá-lo.
Fitou-o interrogativamente, como que ansiosa para saber o que iria ele responder à sua observação. Mas eis que chegavam à Ringstrasse, onde luzes já se acendiam, e empregados, saindo dos escritórios,
aglomeravam-se nos cafés das calçadas, falando, rindo, pondo no ar uma nota de expectativa. A hora era fascinante, e, pelo menos ali, nada havia que ofendesse a vista. Ao deslizarem por entre o tráfego, ele se lhe aproximou, e, no crepúsculo que caía, tomou-lhe o braço.
- Fatiguei-a com tanta conversa e discussão. Suba para o quarto e descanse uma hora. Depois vamos jantar.
Percebera-lhe a timidez ante o convite para ir jantar ao Sacher, mas, no próprio interesse dela, decidiu levá-la ao famoso restaurante.
Um pouco de incentivo, e ela dominaria o constrangimento; além disso, não era preciso toalete para u janta»r no Sacher. Quando o relógio batia oito horas na igreja de Santo Estêvão, já ele - escoltava, escada abaixo, para fora do hotel; depois, como a noite estivesse bonita, percorreram a pé o curto trecho ao longo da Karntnerstrasse. O terraço envidraçado do restaurante estava repleto, mas ele tomara a precaução de mandar reservar uma mesa discreta na sala lateral, conhecida como Bar Vermelho. Percebeu que a escolha do local a encheu de confiança, e, relanceando o olhar pelo cardápio, a expressão do rosto se lhe foi tornando nostálgica.
- Espero encomendar algo tão bom como aquele peixe que você escolheu em Edimburgo. Foi a primeira refeição que fizemos juntos... Nunca a esquecerei. Diga-me: gosta de foie gras?
- Não sei - e abanou a cabeça. - Acho que sim.
- Então vamos encomendá-lo. com um pouco de Garniertes Rehrúcken, e um Salzburger Knocke para acompanhar. - Fez a encomenda, e acrescentou: - Como estamos na Áustria, vamos homenagear o país e beber um pouco de Dúrnsteiner Katzensprung. É originário do belo vale do Danúbio, a umas cinquenta milhas daqui.
Trouxeram o foie gras, que era delicadamente rosado. Moray cheirou-o para ver se se tratava do verdadeiro foie gras de Estrasburgo, e em seguida encomendou um molho de framboesas. Quando trouxeram o vinho, que foi provado, aprovado e servido, ele ergueu o copo.
- Bebamos à nossa saúde. - Depois, ternamente, ao vê-la hesitar: - Lembre-se de que prometeu ser humana. Quero vê-la sair da sua linda conchinha escocesa.
Obediente, embora um pouco trémula, ela ergueu o copo esguio e encostou os lábios no perfumado líquido ambarino.
- Tem gosto de mel.
- E é tão inofensivo como o mel. Acho que nesta altura você já me conhece..,
- Oh, sim, David. Você é muito bom.
O assado era tudo quanto se poderia esperar de melhor, e foi servido com um saboroso molho de rabanetes e maçãs. Ele comia não apenas devagar, como de costume, mas com sentimento, dando a cada bocado a respeitosa atenção que o mesmo merecia. Na saleta anexa alguém começou a tocar suavemente ao piano - uma valsa de Strauss naturalmente, mas como calhava naquele ambiente! Era uma valsa sedutora, melodiosa, obsedante...
- Não acha isto agradável? - murmurou ele no outro lado da mesa. Gostava de ver o rubor aparecer e desaparecer das jovens faces de Kathy. Como era linda! E como sabia despertar o que ele tinha de melhor em sua natureza, fazendo aflorar todo o bem que existia em seu interior!
A sobremesa, segundo ele previra, foi um triunfo. Lendo a expressão do rosto dela, (tarefa na qual se tornara especialista), ele explicou:
- É feita quase que inteiramente de ovos frescos e creme.
- Quantos ovos levou? - perguntou ela, admirada.
Ele voltou-se para o garçom.
- Herr ober, quantos ovos levou este Salzburger Knocke?
O homem encolheu os ombros, sem contudo deixar de ser polido.
- Tantos, senhor, que já perdi a conta. Se Madame deseja fazer um bom knocke, não deve poupar ovos.
Moray franziu o sobrolho para Kathy e disse:
- Temos de iniciar uma criação de galinhas.
Ela rompeu a rir como uma colegial.
- Pobres das galinhas, precisando botar ovos nesse ritmo!
Encantado com aquela inusitada animação não deixou ele de notar que ela não fizera a menor objeção à futura assistência com que ele lhe acenou. Nisto, a conta chegou, e, depois do costumeiro exame, Moray pagou-a com uma cédula de valor elevado, e deu ao garçom uma gorjeta tão generosa que o resultado foi uma sucessão de curvaturas, que se diriam devidas à passagem de um rei.
Ao saírem do restaurante, foram recebidos na calçada pelas habituais mãos estendidas - de vendedores de fósforos e de flores de papel, de aleijados (falsos e genuínos), do velho maltrapilho de acordeão fanhoso, da velha que agora nada mais tinha a vender, exceto lisonjas. Moray distribuiu o troco da conta generosamente, indiscriminadamente, só para ver-se livre dos pedintes. Depois, escapando para o hotel, foi inesperadamente recompensado durante o trajeto: Kathy tomou-lhe o braço, e, de sua livre e espontânea vontade, aconchegou-se mais a ele durante o trajeto para o Neuer Markt.
- Estou contente por você ter feito aquilo. Depois de uma refeição tão dispendiosa, sentir-me-ia envergonhada se o não fizesse. Mas isso é bem de você, David: ser bom e generoso, sem qualquer ideia de poupança. E que dia me proporcionou! Tudo tão novo, tão impressionante, que mal posso acreditar. Quando penso que há alguns dias apenas eu lavava pratos na cozinha de Jeannie Lang... Mas isto é um sonho!
Era tão bom vê-la à vontade, livre de inibições, na realidade
- alegre. Escutando-a num silêncio indulgente, ele a deixou falar,
cônscio de que aquele simples copo de Diirnsteiner sabendo a mel não teria podido transmitir-lhe, por si só, aquela disposição de ânimo, pela qual em grande parte ele era responsável. E numa súbita evocação, Moray lembrou-se de que também para com Mary demonstrara o mesmo talento - caberia- até dizer-se poder - de furtá-la a preocupações mais sérias, desoprimindo-lhe o coração. O augúrio ; era auspicioso.
Infelizmente, o trajeto para o hotel foi muito curto. Já na porta do quarto, Kathy voltou-se para ele a fim de lhe dar boa noite.
- Obrigada por este maravilhoso dia, David. Se você não se esquece daquele dia que passamos em Edimburgo, eu por mim jamais me esquecerei do dia de hoje.
Ele demorou-se um instante, querendo retê-la.
- Você gostou mesmo, Kathy?
- Extremamente.
- Verdade?
- Juro.
- Então diga: de que gostou mais?
Ela entreparou no ato de fechar a porta, ficou subitamente séria, pareceu revisar seus pensamentos. Depois, furtando o rosto à sua vista, e sem olhar para ele, disse muito simplesmente:
- Estar com você, David.
Em seguida entrou.
CAPÍTULO DEZ
Nos três dias seguintes o tempo, embora mais frio, permaneceu radiosamente belo; as condições não podiam ser mais perfeitas para o prazer e a novidade dos passeios. Variando de programa com uma louvável destreza, Moray levou-a ao Hofburg e ao Hofgarten, ao Museu Imperial de Belas-Artes, ao Senado, ao Belvedere e ao Parlamento. Tomaram chá no Demel, percorreram as lojas elegantes do Graben, assistiram a um exercício da Escola Espanhola de Equitação, que entretanto redundou em desapontamento, uma vez que, embora abstendo-se de qualquer comentário, ela visivelmente desaprovara a exibição daqueles belos cavalos brancos se distendendo em atitudes circenses, contrárias ao seu natural. Ele acompanhou-a
também numa visita aos quatro filhos da camareira Arma, todos de pé e em fila, de roupas novas e quentes, e sólidas botinhas de inverno, e esta foi sem dúvida a mais bem sucedida de suas excursões. Aqueles dias, dizia Moray para consigo mesmo, foram os mais felizes de sua vida. Ela lhe trouxera alegria e doçura, dera-lhe uma nova mocidade. Quanto mais a via, mais acreditava já não poder viver sem ela.
Todavia, não raro Kathy o intrigava, até mesmo lhe causando uma singular preocupação. Divertir-se-ia ela realmente com tudo quanto ele tão sedutoramente lhe mostrava? Impossível duvidar, tantas vezes vira iluminarem-se-lhe os olhos, repletos de interesse e animação. Não obstante, não faltavam ocasiões em que, apesar de docilmente atenta, ela se diria confusa, nervosa e perturbada. Em dado momento ela se aconchegava estreitamente a ele para logo em seguida subitamente se afastar. Tinha uma estranha capacidade de fechar-se dentro de si mesma e podia surpreendê-lo pela fidelidade a suas próprias opiniões.
Certa vez, no Graben, debalde ele empregara toda a sua sutileza para induzi-la a aceitar um presente - um colar de estilo simples, mas incrustado de esmeraldas - que, sem pensar, e com pouco conhecimento do preço, ela havia admirado.
- É lindo - respondeu ela, abanando a cabeça - mas não é para mim.
E nada a demoveu. Apesar disso, ele decidiu fazer o que queria. Mas a maior surpresa de Moray foi verificar que o dinheiro contava pouco na opinião de Kathy, que não dera importância ao luxo do hotel, cujas refeições dispendiosas e complicadas simplesmente a atrapalhavam. Percebeu igualmente que ela preferia o pequeno carro de aluguel ao reservado conforto de seu Rolls. E certa feita, tendo ele aludido discretamente ao assunto, ela respondera inesperadamente:
- Mas David, o dinheiro não pode comprar nenhuma das coisas que realmente importam!
Desapontado e um tanto melancólico por essa falta de apreciação, Moray todavia consolou-se com a ideia de que seria amado, ou, como agora se atrevia a esperar, de que estava sendo amado pelo que pessoalmente valia. E, desde que a vida simples visivelmente agradava Kathy, ele resolveu desviar sua atenção para a Suíça e a repousante tranquilidade que ela ali encontraria. Mas não se enganara levando-a primeiro a Viena. Não apenas a conhecera melhor, como também fizera progresso, um grande progresso naqueles últimos dias. Inegavelmente, uma intimidade se estabelecera entre
ambos, uma corrente de vibrações passava de um para o outro. Embora ela mesma não soubesse, ele percebia que, pelos rubores repentinos ao toque de sua mão, pelo brilho de seus olhos quando ele aparecia, ela ultrapassara o ponto donde já não há regresso. Todos os seus instintos assim o confirmavam. E ver e sentir aquela moça tímida e apaixonada expandir-se gradualmente sob a coação das primícias do amor era para ele a experiência mais deliciosa de sua vida.
No sábado de manhã, depois que acabaram de almoçar, ele observou displicente, mas com uma pontinha de mágoa:
- Começa a parecer que estamos fartos desta cidade. Pelo menos por enquanto. Você não gostaria que partíssemos amanhã para Schwansee? Se este frio continua, decerto haverá neve no Oberland, e isso é algo que você não deve perder.
O entusiasmo de Kathy imediatamente confirmou-lhe a intuição.
- Gostaria mais do que tudo... isto é, se lhe convém partir. Gosto tanto do campo. - E depressa acrescentou: - Não que não me sinta feliz aqui.
- Então, resolvido! Sairemos no avião de domingo, à tarde. Mando Arturo na frente. A viagem de carro através do Ardberg é muito fatigante nesta época do ano. Mas antes de partirmos - fez uma pausa e sorriu - ainda há mais uma cerca para você pular. Creio que será um prazer, não uma penitência.
- Sim? - inquiriu ela, um tanto indecisa.
- Haverá uma noite de gala, hoje, na Ópera. Representa-se Madame Butterfly; mas o espetáculo vai ser excepcional, uma vez que Tebaldi estará cantando. Os cenários são de Benois. Era praticamente impossível conseguir entradas, mas fui bem sucedido graças a um golpe da sorte. Estou certo de que gostará especialmente dessa ópera... Quer ir?
- Sim, David - respondeu ela com uma hesitação apenas perceptível. - Mas me preocupa vê-lo incomodar-se tanto por minha causa.
- Não pense nisso.
Não lhe disse que somente mediante um ágio enorme, pago por intermédio do porteiro, fora ele capaz de obter com tanto atraso duas entradas de camarote.
- A propósito; hoje descansamos, a fim de que você esteja bem disposta para o espetáculo da noite.
O descanso fez-lhes bem, especialmente porque o céu se anuviara e um vento cortante, que soprava de Semmering, fazia das
ruas outras tantas geleiras. Entretanto, após dar instruções para o regresso de Arturo, ele saiu a fim de tratar de um assunto pessoal. Segundo sugerira, jantaram cedo, na sala de estar: apenas uma sopa de tartaruga, uma omelette fines herbes com pommes pont neuf, pêche melba e café: propositalmente, uma refeição leve porém boa.
Quando terminaram, ele levantou-se.
- É uma amolação, minha querida puritana, mas este assunto exige traje de rigor. Felizmente eu sabia o seu tamanho, por isso encontrará no quarto uma novidade. Pedi à boa Anna que o estendesse sobre a cama. - E, passando-lhe um braço carinhoso em torno do ombro, inclinou-se sobre ela e disse-lhe com o seu jeito mais sedutor: - Por favor, use-o... por minha causa.
E, trauteando baixinho a ária do dueto "Noite de Enlevo", da Btttterfly, Moray foi para seu quarto e começou a vestir-se devagar. Primeiro fez a barba com um barbeador elétrico, até ficar satisfeito com a maciez do rosto; depois tomou um banho quente seguido de uma ducha tépida, fez uma boa fricção, para polvilhar-se com simples talco. O criado de quarto já havia retirado do guarda-roupa o seu traje de rigor; as abotoaduras de ônix e diamantes e o botão do colarinho já estavam postos na camisa engomada, de preguinhas no plastrão; as meias de seda preta, desdobradas, os sapatos de couro já sem as formas de madeira e com as línguas voltadas para fora - tudo disposto na maior ordem, junto da poltrona. Arturo não teria feito melhor; precisava não se esquecer de dar uma gorjeta ao homem... Afinal ficou pronto. Um salpico de Eau de Muguet e uma enérgica escovadela nos cabelos com suas escovas militares, de dorso de marfim com monograma - graças a Deus, nem sinal de calvície! - e o quadro ficou completo. Examinou-se no espelho. Assentavam-lhe muito bem a gravata branca e a casaca (ninguém, no Bonocampagni, chegava aos pés de Caraceni na perfeição do corte), e naquela noite, com toda modéstia, ele sabia, sem sombra de dúvida, que compunha uma figura agradável e distinta, surpreendentemente jovem. Tenso de expectativa, apagou a luz - hábito antigo, que lhe vinha da mocidade - e foi para a saleta.
Kathy não se fez esperar. A porta do quarto dela abriu-se daí a pouco e a moça aproximou-se lentamente trajando o vestido verde que Moray escolhera para ela, e trazendo no pescoço, para deleite dele, o delgado colarzinho de esmeraldas, que combinava à maravilha com o vestido. Literalmente, ele perdeu o fôlego, enquanto ela, olhos abaixados e faces levemente enrubescidas, avançou e postou-se
à sua frente. Se ele a achara linda no seu modesto costume Lovat, agora não havia palavras que servissem para o caso.
- Kathy - disse ele em voz baixa, - você não vai gostar que eu o diga, mas não devo calar-me. Você está encantadoramente, indizivelmente bela.
Nunca em sua vida dissera uma verdade tão absoluta. Tão jovem e fresca, com aquela tez de quente tonalidade e aqueles cabelos louro-avermelhados, o verde era indubitavelmente a sua cor. Que não faria dela quando a levasse a Dior ou Balenciaga! Mas... ela tremia? Kathy humedeceu os lábios.
- É um vestido belíssimo - disse vagarosamente. - E você ainda foi comprar o colar...
- Para combinar com o vestido - disse ele alegremente, resolvido a aliviar-lhe a consciência. - Apenas algumas pedras verdes...
- Não. Anna admirou-as, e disse-me que eram cabochões de esmeralda.
- Ah! bem. Apenas quero que o seu acompanhante também combine com elas.
Ela o fitou, depois desviou o olhar.
- Nunca imaginei que pudesse existir alguém como você. - Parecia que ela procurava uma frase, e esta veio com uma falta de jeito inabitual: - Você... você não pertence a este mundo.
- Espero continuar pertencendo ainda por muito tempo - disse ele rindo. - E agora, vamos. Sua índole democrática vai ficar lisonjeada: como Arturo já partiu, tomaremos um táxi.
- Devo calçar as luvas? - perguntou ela nervosamente enquanto desciam pelo elevador. - São muito - compridas.
- Calce-as, ou leve-as na mão, como quiser, querida Kathy. Não faz diferença. Nada se pode acrescentar ao que já é perfeito...
O porteiro, embora chocado porque eles, vestidos com tamanho esplendor, tivessem rejeitado a sua habitual condução, levou-os entre curvaturas para uma respeitável caleça. Dentro em pouco chegaram à Ópera, atravessaram o foyer apinhado e foram conduzidos ao camarote, onde ele arranjara lugares na segunda fila. Ali, na intimidade aconchegada das cortinas vermelhas e num camarote que era só deles, Moray percebeu que Kathy se acalmava. Livre do nervosismo, fitava a brilhante cena com crescente interesse e animação, enquanto ele, sentado atrás, mas muito perto, e olhando pelo binóculo por sobre o ombro dela, saboreava a agradável impressão de estarem ambos a reproduzir o incomparável quadro de
Renoir sobre o mesmo tema - um Renoir que não lhe pertencia, mas que ele sempre admirara.
- O teatro é novo, naturalmente; foi reconstruído depois da guerra - explicou ele. - Talvez com brancos e dourados um tanto a mais... Os vienenses gostam excessivamente de cristais. . . Mas, ainda assim, como é belo!
- Oh, realmente! - aquiesceu ela sem restrições.
- E, como está vendo, todo mundo na estica para ouvir a Tebaldi. A propósito, como ela cantará em italiano, devo dar a você uma ideia do libreto. Começa em Nagasáqui, no Japão, onde Pinkerton, um oficial da marinha dos Estados Unidos, arranjou casamento, por intermédio de um corretor, com uma linda moça japonesa, chamada Cho-Cho-San... - E fez o resumo dos pontos principais da história, concluindo: - Como vê, é muito sentimental; é uma das mais leves produções de Puccini. Está longe de ser uma grande ópera; mas, apesar disso, é deliciosamente comovedora e pungente.
Nem bem acabara, uma explosão de aplausos fez-se ouvir na sala, anunciando o aparecimento do regente, Karajan. As luzes obscureceram, a abertura começou... Depois o pano abriu-se devagar, mostrando um interior japonês, de singular delicadeza.
Moray já havia visto duas vezes a mesma ópera no Metropolitano de Nova Iorque, do qual tivera, durante anos, uma assinatura, e onde muitas vezes ouvira cantar a célebre Tebaldi. Logo que percebeu que a grande diva estava num de seus melhores dias, pôde dedicar-se às reações de Kathy, e, sem ser observado, com uma estranha e secreta expectativa, acompanhar as expressões cambiantes que iluminavam, para logo ensombrecer, o seu rostinho jovem e atento.
Ela, a princípio, pareceu confusa com a novidade da experiência e o exotismo oriental do cenário. Mas gradualmente se deixou absorver. O belo Pinkerton - que ele sempre achara insuportável, visivelmente repugnava a Kathy. Moray percebeu a crescente simpatia dela por Cho-Cho-San, e a presença de um estranho pressentimento de desgraça iminente. Quando, ao fim do primeiro ato, o pano caiu, Kathy não se conteve.
- Oh, que homem desprezível! - exclamou ela, voltando-se para ele com as faces abrasadas. - Desde o começo a gente sabe que ele não presta.
- Vaidoso e comodista, talvez - aquiesceu Moray. - Mas por que o detesta tanto?
Ela baixou o olhar como que refletindo, depois disse:
- Para mim, a pior coisa... é a gente nunca pensar nos outros, mas somente em si mesma.
O segundo ato, iniciando-se com uma nota de tristonha ternura, sustentada por uma esperança subjacente sempre adiada, a afetaria mais dolorosamente que o primeiro, pensou ele. Enquanto a ópera prosseguia, ele não a olhou, considerando intromissão indevida observar uma tão sincera preamar de sentimento. Mas, no final da cena, enquanto as luzes se obscureciam no palco e Cho-Cho-San acendia a lanterna junto à porta para dar início à vigília noturna; enquanto a melodia obsedante da ária "Un bei di" se elevava para depois morrer na sala penumbrosa, ele relanceou o olhar à companheira e viu lágrimas lhe escorrendo pelas faces abaixo.
- Querida Kathy... - disse, inclinando-se para ela, - Se está demasiado comovida, vamo-nos embora.
- Não, não - protestou ela com a voz embargada. - É triste, mas maravilhoso. E quero ver o que acontece no fim. Empreste-me o o lenço; o meu já não serve. Obrigada, querido David. . . você é tão bondoso! Pobre moça! E tão linda! Custa crer que um homem possa ser tão inumano... tão... tão animalesco... - Faltou-lhe a voz e ela fez um esforço para se conter.
Em verdade, durante o terceiro ato, que ascende de uma emoção quase insuportável até à final tragédia que tudo destrói, ela se dominou perfeitamente. Quando o pano caiu e ele arriscou fitá-la, viu que ela não chorava, mas debruçara a cabeça sobre o peito, como se já não pudesse suportar a emoção.
Saíram do teatro. Ainda subjugada pela dor, Kathy só falou quando se acharam dentro do táxi; depois, certa de que não estava sendo observada, disse com voz sumida:
- Nunca me esquecerei desta noite... Nunca...
Ele escolheu cuidadosamente as palavras que ia dizer.
- Eu sabia que você tem sentimento... que tem uma grande capacidade de emoção... Esperava que você se comovesse...
- Comovi-me sim, David... Mas o melhor de tudo foi ter visto o espetáculo em sua companhia.
Nada mais do que isso, mas o bastante para ele perceber em seus nervos ainda vibrantes uma doce ternura para com ele. Silenciosa e mansamente, tateando na intimidade fechada do táxi, Moray estreitou na sua a mãozinha dela.
Ela não a retirou. O que lhe acontecera? Aquilo nunca se dera antes. Naturalmente, recebera atenções. Quando frequentava o curso de enfermeira, um estudante universitário em luta para diplomar-se
sentira-se fortemente atraído por ela, que não correspondera. No hospital, durante as festividades do último Natal, o jovem
médico-assistente tentou beijá-la sob a árvore, só conseguindo alcançar-lhe, canhestramente, a orelha esquerda. Ela viu a tentativa com indiferença, e mais tarde recusou seu convite para o baile de Ano Novo. Julgava-se austera, não interessada pelos rapazes, mas em verdade compartilhava da opinião da mãe - opinião tão insistente que ela a adotara - de que os rapazes são ousados, irrefletidos e não merecem confiança.
Mas David não era nada disso. Ao contrário, suas qualidades eram exatamente o oposto. E sua maturidade, singularmente tranquilizadora, desde o começo a impressionara. Ele continuava suave e carinhosamente segurando-lhe a mão quando chegaram ao hotel. Nem aí a largou. O porteiro noturno cochilava no seu canto, quando eles entraram e tomaram o elevador para o primeiro pavimento. No corredor Moray parou, abriu a porta da sala de estar comum aos aposentos de ambos... Um rápido fiozinho de pulsações vibrava nos dedos aprisionados em sua mão.
O próprio coração dele batia desesperadamente.
- Recomendei que deixassem chocolate quente para nós... Ficará mais animada se tomar uma xícara...
- Não. - Afastando-se um pouco, ela sacudiu a cabeça. - Nada... por favor.
- Você continua perturbada. Não posso deixar que você vá assim.
E conduziu-a, sem que ela resistisse, para dentro do quarto, onde, como ele dissera, uma garrafa térmica, frutas e sanduíches cobertos por um guardanapo estavam postos sobre a mesa. O quarto estava na penumbra, mercê de uma lâmpada velada que lançava uma suave claridade no tapete, enquanto as paredes permaneciam na sombra - a mesma sombra em que os dois se encontravam frente a frente.
- Querida Kathy, que direi... que deverei fazer por você?
Ainda sem olhá-lo, ela respondeu com voz abafada:
- Amanhã cedo já estarei boa...
- Mas já é quase manhã - observou ele docemente, a despeito das pancadas do sangue golpeando-lhe as veias. - E você não está bem. Que é que tem?
- Nada, nada... não sei. Sinto-me um tanto perdida... não sei como. Nunca me senti assim, triste e feliz ao mesmo tempo.
- Mas como pode sentir-se perdida se está comigo?
- Bem sei, bem sei... - disse Kathy; depois deu de falar incoerentemente. - Aquele infeliz herói da ópera fez-me ver como é diferente ... mas a dificuldade é essa mesma... Você é tão... - Ela interrompeu-se, lágrimas correram-lhe pelas faces abaixo.
Tinha a cabeça baixa; ele, porém, pondo-lhe os dedos sob o queixo, levantou-lhe o rosto banhado de lágrimas, de modo que ambos se fitaram nos olhos.
- Kathy, meu bem - murmurou ele com uma ternura indescritível. - Amo-a apaixonadamente. Creio que você também me ama.
E, inclinando-se, beijou-lhe os lábios frescos e jovens, inocentes de qualquer maquilagem - que ele abominava - e deliciosamente salgados de lágrimas. Engolindo um soluço, ela aconchegou-se mais em seus braços, o rosto ardente e húmido premido contra o peito dele.
- David... querido David...
Mas foi apenas um instante, pois, soltando um grito, ela subitamente se afastou.
- Não adianta... não adianta absolutamente nada. Eu devia saber desde o começo...
- Mas por quê, Kathy? Se nos amamos...
- Como é possível isso, a três mil milhas de distância? Você sabe que parto. Só lograríamos despedaçar os nossos corações... O meu já está despedaçado...
- Não poderá ficar, Kathy?
- Nunca... Isso é impossível.
Ele segurara-lhe o pulso para impedi-la de fugir. Lutando como um pássaro cativo para lhe escapar, ela continuava falando com ar alucinado.
- Preciso partir. Levei toda a minha vida preparando-me só para isso... Estudei enfermagem, ganhei prática em Dalhaven. Não pensava noutra coisa. Precisam de mim lá... Willie me espera... mais do que ninguém. Antes de mamãe morrer prometi-lhe que iria; não faltarei à palavra dada a ela... nunca...
- Não vá, Kathy - atalhou ele, por mim. - Pelo amor de Deus, não vá!
- Devo ir - justamente pelo amor de Deus; pelo amor de nós ambos...
E, num repelão, libertou-se dele, atravessou correndo o quarto e desapareceu.
Moray ficou olhando dolorosamente para a porta fechada. Resistindo ao impulso de segui-la, pôs-se a andar de cá para lá sobre o grosso tapete, num estado de extrema agitação. Entretanto, à
sensação de seus macios lábios ainda sobre os dele, sua desventura gradualmente cedeu lugar a um sentimento de alegria. Ela amava-o - extremamente, inequivocamente, de todo coração. Nada mais importava. Havia obstáculos no caminho, mas estes poderiam ser vencidos. Era mister persuadi-la, e ele a persuadiria. Qualquer outra coisa estava fora de cogitação. Custasse o que custasse, havia de possuí-la.
Repentinamente sentiu-se forte, cheio de vigor e de uma enorme potencialidade para o amor. Também com fome. E, relanceando o olhar pelas boas coisas que se achavam sobre a mesa, apercebeu-se das muitas horas que haviam decorrido desde o jantar - e a comida não fora apreciavelmente substanciosa. Sentando-se, serviu-se do chocolate que ainda fumegava, desdobrou o guardanapo e atacou os sanduíches. Ah, eram de caviar, e do verdadeiro caviar Beluga! Absorto, todavia deliciado, comeu gulosamente sem deixar resto.
CAPÍTULO ONZE
MORAY previra que na Suíça ia nevar, e, como que para confirmar a sua infalibilidade, a neve os acolheu - uma camada prematura e leve que se congelara e agora lampejava sob um céu de cobalto. Já fazia uma semana que estavam em Schwansee, rigorosamente conformados com o pacto de contenção que, como exigência pela sua ida, ela o obrigara a aceitar. Durante esse horrível xequemate da emoção, num esforço frenético para influenciar Kathy, Moray fez da simplicidade e da calma a ordem do dia. A acolhida excessivamente teatral de Arturo e Elena fora rapidamente suprimida, a seriedade imposta e refeições mais simples encomendadas e servidas sem a menor formalidade. Esforçando-se para realçar a sedução da pitoresca paisagem, ele levava-a todas as tardes a passear e respirar o ar vivo e tonificante; excursões, essas, na maior parte feitas em silêncio, e que às vezes os levava até aos brancos sopés dos Alpes, a cujos pináculos altíssimos o sol poente e o sol nascente conferiam uma tonalidade côr-de-rosa. À noite, sentados na biblioteca, junto à lareira crepitante alimentada a lenha, mais cansados pela persistente contenção do que pelas excursões, Moray selecionava para ela alguns de seus discos - seleções principalmente de Handel, Bach e Mozart - que ele punha a tocar na vitrola estereofónica, de mogno envernizado habilmente disfarçado numa prateleira
de laca de Coromandel. Ninguém sabia que ele regressara, não havia visitas intrusas, nenhuma distração, apenas eles, sozinhos. Em circunstâncias normais, como seria idílica essa existência! Mas - ai! - debaixo daquele domínio superficial vibrava intoleravelmente uma tensão de corda de arco, com uma exasperante sensação, para ele, de frustração e derrota. com toda a sua sedução e sutileza, tentara dissuadi-la da intenção de abandoná-lo, mas malograra. A persuasão e os argumentos mostraram-se igualmente fúteis. E o tempo voava; em verdade, já voara... Kathy devia partir três dias após a chegada de Willie.
A inflexibilidade de uma pessoa tão nova, tão pouco provada e inexperiente, constituía para ele uma fonte inesgotável não só de angústia, mas de estupefação. Não que ela não o amasse. A cada hora do dia era evidente que sofria a constante supressão dos seus desejos naturais. Se, acidentalmente, ele lhe tocava a mão, como quando lhe passava um prato, o tremor que a percorria era fisicamente perceptível. E quantas vezes, quando pensava que não era observada, ele lhe surpreendeu o olhar pousado nele, num olhar carregado de desejo e de toda a triste fome do coração.
Certa manhã, embora as visitas estivessem proibidas, ele achou que devia apresentar-lhe seus dois amiguinhos, os filhos do trapicheiro. Hans e Suzy foram chamados, apresentados e obsequiados com elevenses de bolo de cereja e laranjada. Depois, foram os quatro para o jardim fazer um boneco com a neve que se amontoara junto ao grosso tronco da árvore-de-judas. Essa neve, debaixo de sua dura crosta, era macia e maleável, e ele armou o balanço que fizera no verão passado, para que as crianças ali se balançassem. Que diversão, que gritos de alegria, que faces coradas e olhos brilhantes! Vendo-as brincar, Moray disse a Kathy, com certo laconismo:
- Você não gostaria de ter filhos... como esses?
Ela corou, depois empalideceu, súbito magoada.
- São lindos - disse, esquivando-se à pergunta. - Tão naturais e espontâneos...
Por que recusava ela o seu amor, os filhos que ele lhe poderia dar e todas as imensas vantagens de sua riqueza e posição? Por que... por quê? - Além do mais, que lhe poderia oferecer aquela opção? Naquela mesma tarde, no seu passeio favorito ao longo da alta cordilheira do Riesenthal, ele fez a si próprio essas perguntas com uma espécie de desânimo cismarento e desesperado, produzido pela primeira vez num lampejo de dificuldade vencida, por assim dizer de
um reconhecimento forçado de que devia haver alguma coisa na teimosia com que ela o recusava. E embora uma trégua se tivesse declarado entre eles, ao perlongarem a vereda de pinheiros polvilhados de nevosa prata, ele não mais pôde dominar-se.
- Querida Kathy, eu não queria reabrir nossas feridas, mas tal fato ajudaria a aliviar as minhas, se me fosse dada uma compreensão perfeita de suas razões. Você vai deixar-me, principalmente porque empenhou sua palavra?
- Em parte, sim - respondeu ela, de cabeça baixa. - Mas não é só por isso.
- Então, por que é?
- Conforme eu disse... por causa daquilo que se exige de cada um de nós. Vivemos numa época terrível, David... Parece que estamos sendo levados para a autodestruição - moral e física. Debaixo da superfície, todos temos medo, mas o mundo continua a afastar-se de Deus. Nunca venceremos, a menos que cada um de nós, cada pessoa isoladamente faça alguma coisa sobre o assunto... faça, pelo menos, a parte que lhe cabe, não importa quão pequena ela seja. Oh, não sou inteligente, mas é tão claro o que diz tio Willie! Devemos provar que o amor é mais forte do que o ódio... mostrar que a coragem, a abnegação e, sobretudo, a caridade podem derrotar a brutalidade, o egoísmo e o medo.
Mentalmente, Moray encarava o estado do mundo como tabu, exceto quando refletia que o seu destino era sair ileso desse mesmo estado. A despeito disso, ficou impressionado - e quem não o ficaria, perante um tão ingénuo fervor?
- Quer dizer que, por causa do dever e do serviço, você se condena a uma vida de sofrimentos e miséria?
- Miséria? - E ela ergueu a cabeça num protesto. - Você não pode imaginar as compensações pessoais de uma tal vida.
- Uma vida de sacrifício...
- É a única maneira em que é possível viver-se a vida. Principalmente hoje em dia.
- Não está falando sério...
- Nunca falei com maior seriedade. Espere até ver tio Willie. Ele tem sofrido aquilo que você denomina vida miserável; tem uma saúde precária... mas é o homem mais feliz do mundo.
Moray permaneceu calado. Na verdade, aquilo lhe escapava, estava além de si, fora da concepção que fazia da vida. Podia-se realmente ser feliz naquele lugar, fazer o bem naquelas paragens abomináveis? - perguntava a si mesmo com crescente nervosismo.
- E há mais do que felicidade - prosseguiu ela com dificuldade, lutando para se exprimir. - Há contentamento, paz de espírito e um senso de realização. Não é possível obter-se isso mediante o gozo da vida, mediante a corrida atrás do prazer, mediante os olhos fechados à dor alheia. E isso não pode ser comprado. Mas se alguém fizer um trabalho realmente bom, se fizer qualquer coisa em benefício dos outros... em benefício dos necessitados... - oh, não sei me exprimir, mas você me entende!... - E interrompeu-se, para logo em seguida continuar: - Se você tivesse clinicado, saberia... e eu creio... perdoe-me, David... estou certa de que teria sido muito mais feliz.
Ele continuava calado, mordendo os lábios e fustigando com sua bengala de ponta de aço os blocos de neve congelada que a passagem das carroças levantara na estrada. Ela, por sua vez, enunciava ingenuamente um chavão humanitário... Não havia, entretanto, algo mais do que um grãozinho de verdade no que ela dizia? O resultado das compensações que ele perseguia neste mundo não tinha sido apenas mágoa, tédio, insatisfações e remorsos reiterados, e uma constelação de complexos neuróticos, que mais de uma vez o haviam conduzido à beira da pressão nervosa?
- Querida Kathy! - exclamou ele com uma repentina piedade de si mesmo e num ímpeto de emoção. - Eu sempre quis ser bom... sempre quis fazer o bem... mas as circunstâncias foram mais fortes do que eu.
- Você é bom - disse ela pressurosamente. - Vê-se isso em seu rosto... Só precisa da oportunidade para prová-lo.
- Acredita sinceramente nisso?
- De todo o coração.
- Meu Deus, Kathy... Se você soubesse o que tem sido a minha vida, o que sofri até que... virtualmente, até que a encontrei... - E prosseguiu, emocionado: - Quando moço, na índia, literalmente apanhado num casamento desastroso; depois, durante anos, labutando na mó do moinho americano, para progredir... progredir... progredir... às vezes refugiando-me nas artes... Mas a trégua era apenas temporária; nunca obtive uma satisfação verdadeira, apesar da ilusão de a ter alcançado. Tudo tem origem na minha pobre infância de criança indesejável, quando a árvore da minha vida se formava - raízes, tronco e galhos. Disseram-me - ele evitou mencionar Wilenski, o analista, - e eu também sei, que todo o meu ser atual provém daqueles primeiros anos em que eu não era ninguém... exceto eu mesmo.
- Tudo isso que acaba de me dizer só fez convencer-me mais de que ainda pode realizar grandes coisas.
Ele estava muito comovido para responder, e ambos continuaram em constrangido silêncio. Todavia, as palavras de Kathy vibravam no cérebro de Moray, e ele sentiu que ela tinha razão: o potencial das grandes realizações permanecia vivo em seu interior. Que era mesmo que dizia aquele verso? "Realize nobres feitos, não fique o dia inteiro a
sonhá-los...". E, de repente, lembrou-se do conselho que Wilenski lhe dera em Nova Iorque: "Quando chegar lá, pelo amor de Deus, procure fazer alguma coisa útil, alguma coisa que se relacione com os outros, para não ficar pensando só em si mesmo." Por que ignorara esse conselho? Por que o esquecera? Foi preciso que Kathy lho lembrasse; que sua meiguice e bondade, a pureza de seu ser - não se eriçou diante da frase... - agisse nele inconscientemente, afetando-o sem que ele mesmo o soubesse. Como podia ser de outro modo?
Estava prestes a falar quando, erguendo os olhos, viu que tinham alcançado a choça da montanha onde, em ocasiões anteriores, haviam parado para tomar café - um café pobre, feito de pó inferior, mas que aquecia. Kathy parecia ter gostado, e a camponesa, de saia arregaçada sobre o saiote listrado, já os saudava, acolhedora. Sentaram-se no terraço de madeira sob um sol frio, ambos cônscios de algo momentoso e inevitável a crescer entre eles. Ele pôs-se a tamborilar nervoso em cima da mesa, tomou um gole de café rápido e descuidado, derramando um pouco em torno, pois a mão lhe tremia; depois, disse de chofre:
- Concordo, Kathy; concordo em que todos devemos fazer algo útil na vida. Esperei encontrar esse algo na dedicação que me propus oferecer a você. Mas agora... começa a parecer-me que algo mais se exige de mim...
- Que será, David? - e os lábios dela tremiam.
- Não adivinha? Foi você quem me fez sentir isso, não apenas por ter-me falado claramente, ainda agora, mas simplesmente porque está presente, Kathy - murmurou ele em voz baixa e vacilante. - Deixando de lado as demais considerações, precisa você realmente de mim?
Ela fitou-o com uma tensão que se diria estar além de suas forças.
- Como pode fazer uma pergunta dessas? - Depois disse, num súbito enfraquecimento de autodomínio, e esquivando-se, lastimosa, a encará-lo: - Preciso tanto de você... Queria... queria que você me acompanhasse...
Finalmente dissera, vira-se forçada a dizer o que até então trouxera trancado dentro do peito. Ele olhou-a fixamente, num trémulo silêncio de revelação, percebendo o apelo por que esperara durante aquele longo período de tensão.
- Quer dizer - disse ele lentamente, querendo ouvir mais, querendo pelo menos ouvir uma repetição daquela súplica, - quer dizer que você quer mesmo que eu a acompanhe nessa viagem?
- Não, não... quero que vá para ficar. - Ela falava quase febrilmente. - Como médico, há grande necessidade de você lá. Tio Willie pretende construir um hospital anexo ao orfanato. Ali você encontrará o trabalho exato para o qual está preparado, e que sem saber procura de todo coração. E ficaremos juntos... juntos e felizes.
- Para ficar junto de você, Kathy - concordou ele, emocionado, - eu daria o meu braço direito. Mas pense nas mudanças que isso vai acarretar ao meu... pelo menos, ao meu modo de vida. Outra coisa: já faz bastante tempo que me diplomei em medicina...
- Ora, pode recapitular depressa o que aprendeu... você é tão inteligente! Quanto ao modo de viver, logo se acostumará.
- Sim, querida Kathy, mas há outras dificuldades. - E um desejo desordenado de se fazer rogado forçou-o a prosseguir; - Assuntos económicos que exigem atenção constante, responsabilidades... Depois, no que concerne à Missão, você já sabe que não sou homem de fé... Embora concorde com o que você acaba de dizer, tenho dúvidas de que pudesse render-me às suas convicções espirituais.
- O trabalho que você fizesse seria a melhor das religiões. Em tempo oportuno, virá a conhecer o significado da graça. Oh, eu não sei, nunca fui capaz de falar dessas coisas... Transformadas em palavras, tornam-se rígidas, pesadas... Posso apenas senti-las com o coração. E você também as sentirá... se me acompanhar.
E as mãos deles se juntaram. A de Kathy, mercê da tensão interior, estava fria como mármore; mas ele a reteve estreitamente, até que o sangue começasse a palpitar. Nunca se sentira tão unido a ela; era como se a alma de Kathy fluísse agora para dentro dele.
A chegada da camponesa interrompeu aquele esplêndido momento. Como ele a fitasse sem a ver, a mulher apontou para o lado norte do céu e disse avisadamente:
- Es wird Schnee kommen. Schau, diese Wolken. Es ist besser Sie gehen zurúck zu Schwansee.
- Aconselha-nos a voltar - disse Moray. E, voltando à realidade, respondeu ao olhar inquiridor de Kathy: - Há ameaça de nevada; não tarda a cair.
Pagou a conta, deixando um generoso trinkgeld, e ambos começaram a descer a montanha, agora num silêncio total, pois ele estava profundamente mergulhado em seus pensamentos. A atmosfera tornara-se cinzenta, fria e muito quieta, e o sol, como uma enorme laranja sanguínea, depressa se escondeu por detrás da montanha. Antes que a hora se acabasse, já se achavam na planície, e, apreensivo quanto a Kathy por causa do crepúsculo enregelante, tratou de chegar quanto antes à villa. Porém, quando iam atravessar o breve trecho da estrada principal, que cortava o caminho de Schwansee, um Morris tipo esporte, vermelho, passou voando por eles, mais adiante parou com um ranger de freios, e ruidosamente deu marcha à ré.
- Alo, alo, alo! - foi a efusiva saudação que lhes veio num tom de alto diapasão. - Sabia que era você, meu velho!
Arrancado à sua meditação, Moray reconheceu com desconfiança o paletó de botões dourados de Archie Stench. Debruçado volúvelmente sobre a janela do assento dianteiro, sorrindo com todos es dentes, Stench estendeu uma mão enluvada que Moray aceitou com a amabilidade forçada de um indizível aborrecimento. O tom solene da tarde dissipara-se.
- Apresento-lhe Miss Urquhart, filha de uma velha amiga minha - disse ele depressa, na intenção de apagar o lampejo sugestivo que já brilhava no olhar malicioso de Stench. - O tio dela, missionário na África, vai chegar nestes dois dias.
- Que interessante! - largou Stench, escandindo a palavra. - Vem para cá?
- Para uma breve visita. - Moray sacudiu afirmativamente a cabeça, com uma expressão glacial.
- Gostaria de conhecê-lo. A África está nos noticiários; e de que maneira! Sopram ventos de mudança. Ah, ah! Uma verdadeira ventania sopra no Congo. Está gostando daqui, Miss Urquhart? É hóspede de Moray, suponho?
- Sim - tornou Kathy, respondendo a ambas as perguntas. - Mas logo partirei.
- Não para a África selvagem? - Olhando-a de soslaio, Stench lançou a pergunta em tom de facécia. - Sim, para a África.
- Santo Deus! - estridulou Stench. - Está falando sério? Mais parece lenda. Quer dizer que a senhora faz parte da exploração... perdão, do negócio missionário?
Kathy esboçou um sorriso, para desgosto de Moray, como se não fizesse restrições à insistência de Stench.
- Sou enfermeira - explicou - e vou à África ajudar meu tio, que está organizando um hospital em Kwibu... na fronteira de Angola.
- Obra benemérita! - disse Stench, radiante. - Quando todo o mundo está fugindo daquela região de furacões, a senhora se precipita para lá. A nação precisa saber disso. Nós, britânicos, temos de manter bem alto a nossa bandeira. Darei um pulo aqui, quando seu tio chegar. E você me dará um trago, velhinho, em nome de uma antiga amizade... bom, preciso ir-me. Estou exausto. Venho da Aldeia Pestalozzi, onde dei um espetáculo de prestidigitação para os garotos. Sessenta quilómetros para ir e sessenta para voltar. Uma estafa! Mas uns fedelhos bastante decentes. Felicidades, Miss Urquhart... Adeus, meu caro. Que maravilha você ter voltado!
E, enquanto recomeçavam a caminhar, Archie gritou para Moray, confirmando a futura visita:
- Não se esqueça: qualquer dia destes telefono.
- Parece boa pessoa - observou Kathy puxando conversa, após terem atravessado a estrada. - Bondade dele ir dar espetáculo para as crianças da Pestalozzi.
- Sim; está sempre ocupado com coisas desse jaez. Mas... é um tanto ou quanto intrometido... - respondeu Moray com tom de alguém que se via forçado a condenar, mas acrescentando, como se isto explicasse tudo - é correspondente do Daily Echo.
O infeliz encontro naquela hora especial, quando surgiam em sua mente questões vitais para a alma, havia-o transtornado completamente. Stench era uma ameaça. com os diabos, pensou ele voltando às coisas mundanas, em menos de meia hora a notícia do seu retorno com Kathy se espalharia pelo cantão inteiro.
com efeito, nem bem acabaram de tomar chá, o telefone tocou.
- Ligue para o estúdio - disse ele laconicamente a Arturo. - com licença, querida Kathy. Nosso amigo Stench já fez seu trabalhinho...
Uma vez no primeiro andar apanhou o fone, apertou o botão vermelho com um pressentimento irritadiço, imediatamente confirmado pela voz de contralto de Madame Von Altishofer.
- Seja bem-vindo à terra, meu amigo! Agora mesmo fiquei sabendo que você já regressou. Por que não me avisou? Foi uma ausência tão comprida! Fez grande falta aqui, todos falavam nessa ausência misteriosa. Quando poderei vê-lo? E à sua encantadora visitante, que tem planos para a escuríssima África?
Espantoso como ele achava desagradável essa intromissão! E não apenas o que ela dizia, mas a sua maneira de dizê-lo, e o seu inglês arrevesado, até mesmo as modulações de sua voz bem-educada. Limpou a garganta e lançou-se numa explicação perfuntória, cuja essência era a de que a insistência de velhos amigos de família o prenderam mais tempo do que ele previra.
- Parentes? - inquiriu ela, polidamente.
- Sim, de certo modo - tornou ele, evasivo. - Quando o outro hóspede chegar, espero que você apareça para conhecer os dois.
- Mas antes, quero que você venha tomar um drinque comigo.
- Bem que gostaria, se pudesse. Mas tenho tantas coisas a atender após tão longa ausência... - E, olhando para fora da janela, viu que os primeiros e frágeis flocos de neve principiavam a cair. Mais que depressa mudou de assunto: - Misericórdia! Já está nevando de verdade. Receio que o inverno já tenha começado.
- Sem dúvida - disse ela com uma risadinha. - Mas será que estamos reduzidos a falar sobre o tempo?
- Claro que não. Logo nos veremos.
De sobrolho franzido, pendurou o fone, dando por finda a conversa, aborrecido com a interferência dela... o que era totalmente injusto. A despeito da sua obstinação germânica, era Frida uma excelente mulher, a quem ele talvez tivesse dado excessivas esperanças ... Estava nervoso. Vinha-lhe outra vez aquela sensação de que o tempo urgia. Chegando ao andar térreo, ficou desapontado verificando que Kathy subira para seu quarto. Não apareceu até à hora do jantar, e ele percebeu que, para agradar-lhe, ela pusera o vestido verde. Comovido até ao âmago, viu que no mundo inteiro só havia para ele uma mulher. Desejava-a com uma necessidade tão grande, que precisou de se afastar sem o elogio habitual, sem sequer uma palavra. E depois do jantar, apesar de seus esforços para distraí-la, ficou alheado - preocupado, ou melhor, obcecado ante a necessidade de tomar alguma decisão nas horas minguantes que ainda lhe restavam. Depois de tocar alguns discos, desejou ficar só. Ela decerto percebeu; e, alegando fadiga, recolheu-se cedo, deixando-o na biblioteca.
CONTINUA
CAPÍTULO SETE
Durante AQUELA noite Moray se recolheu cedo, com uma inusitada sensação de serenidade. Estava cônscio de que tudo caminhara bem, de que tudo fora em verdade perfeito. E que repousante companheirazinha ela provara ser, e quão supremamente tranquilizadora! Devidamente educada, podia vir a ser uma fonte de interesse para ele, um novo objetivo em sua vida, além de lhe proporcionar a satisfação longamente procurada de um exercício nos domínios da virtude. Adormeceu, nem bem pousou confortavelmente a cabeça no travesseiro.
Na manhã seguinte, quando lhe trouxeram o chá, viu que desgraçadamente o tempo mudara. A chuva pesada que golpeava a janela não o induzia a levantar-se. Engolidos o chá e a fina fatia de pão com manteiga que o acompanhava, deitou-se e cerrou os olhos; mas, incapaz de tornar a adormecer, tocou a campainha para pedir os jornais da manhã. O empregado que os trouxe estendeu-lhe um maço de correspondência remetida de Schwansee por Arturo: alguns comunicados comerciais de seus corretores nova-iorquinos, duas faturas, vários dividendos, um catálogo ilustrado de um leilão de desenhos de Daumier a realizar-se em Berna e, finalmente, uma carta de Madame Von Altishofer. Abriu-a.
Caro amigo:
Gasthof Lindenhof
Baden-Baden
Terça-feira, 15
Soube por meus correspondentes de Schwansee que você ainda não regressou à villa, e começo a recear que algum contratempo seja o responsável por sua longa ausência, especialmente porque não tive nenhuma notícia sua desde que partiu inesperadamente. Mostraram-se os seus negócios mais fatigantes do que previra? Ou você estará doente? Sinceramente espero que ambas essas suspeitas, que ultimamente me têm perturbado, não sejam fundadas. Mas, por favor, arranje um tempinho para me escrever. Estou certa de que sabe que nada é maior do que o meu profundo interesse por tudo quanto lhe diz respeito.
O tempo tem estado muito agradável aqui e eu estou muito melhor. Mas ando entediada... entediada... Em verdade estou ficando cada vez mais consciente da minha solidão. É-me difícil arranjar novos amigos, e excetuando uma velha conhecida - uma senhora idosa e inválida, que conheci nas termas - raramente falo com alguém. E que existência mais sossegada! Levanto-me cedo, bebo as águas, tomo o meu café com zwiebach num café das vizinhanças. Depois vou para as colinas - e você sabe como gosto de andar - e volto para esta pensão modesta, onde todos são muito bondosos para comigo, e como o meu simples Mitagessen no terraço, sob as tílias. Então descanso uma hora ou duas. De tarde vou sentar-me no jardim, ainda verde e viçoso, escolhendo cuidadosamente uma cadeira não muito perto da banda, a qual, desde que cheguei, já executou quatorze vezes a Valsa Vienense de Strauss. Passo uma parte do tempo sonhando, outra parte estudando os rostos dos passantes. Serão felizes? - me pergunto., Quase sempre duvido. Acabo enfim por achá-los diferentes das pessoas que conheci quando primeiro vim para cá com meus pais na minha primeira mocidade. Este pensamento me oprime, e eu me precipito para o pavilhão, onde me servem uma xícara de chá - não tão bom como o seu delicioso Twinings - e uma fatia de bôlo-inglês. De noite não me arrisco a ir ao cassino - a visão de todos aqueles olhares gananciosos me é repelente. Em vez disso, apanho o meu belo livro - estou relendo Ana Karenina - e me recolho junto à janela eternamente aberta de meu quarto. A luz da minha lâmpada atrai alguma mariposa fortuita, vaga-lumes piscam sob
as tílias, o sono vem chegando, e, para citar o seu conterrâneo Mr. Pepys, "cama".
Assim passo o meu dia, caro amigo. Não é simples e um pouco triste? Sim, triste porque sinto falta de você e de sua encantadora Kameradschaft. Preciso também de seu conselho, pois um homem de Basileia - químico de profissão - quer comprar Seeburg. Não queria separar-me dessa amada casa que você também admira, mas as circunstâncias são agora extremamente difíceis. Por isso me escreva logo, dizendo quando voltará. E como nada há que me leve a Schwansee durante a sua ausência, permanecerei em Baden até receber notícias suas.
Perdoe-me a revelação da estima em que o tenho.
Sinceramente, Frida von Altishofer
Ele pousou lentamente a carta. Uma linda carta, disse com seus botões, a despeito do estilo um tanto guindado; carta de uma mulher bem-nascida e distinta, que lhe era inteiramente dedicada. Normalmente, a sua leitura tê-lo-ia comovido; mas agora, talvez devido a seu estado de ânimo, consequência da véspera, deixou-o indiferente. Estava, é claro, satisfeito por ter recebido notícias dela, lisonjeado pela falta que ela sentia dele, mas, naquele momento, não podia ter o interesse que habitualmente tinha pelas atividades dela. E não estaria Frida exagerando um pouco a sua solidão? Era mulher que atraía e desfrutava de companhia. Ao mesmo tempo, no frugal almoço que ela descrevia, havia uma nota incongruente. Bem sabia que ela não era infensa aos prazeres da mesa, e, em sua última visita a Baden, voltara com uma excelente receita de sopa de castanhas. Fosse como fosse, não estava disposto a responder naquele mesmo dia. Dar-lhe-ia conselhos a respeito de Seeburg, não agora, porém mais tarde - pois tinha a cabeça cheia de outros pensamentos.
Já era quase meio-dia quando se levantou e começou a vestir-se pachorrentamente. A chuva continuava a cair depois do almoço, e ele ficou rondando no interior do hotel, tentando interessar-se por algumas velhas revistas principalmente dedicadas ao esporte e à agricultura escoceses. Foi quando se apossou dele o impulso de tirar o carro da garagem e tocar para Markinch, mas refletiu que ela não estaria lá. Dissera-lhe que precisava ir a Dalhaven. Ainda assim, teria a satisfação de passar sob a sua janela... a este absurdo, empertigou-se subitamente ruborizado e contrafeito. Vê-la-ia no dia
seguinte; precisava esperar. Olhando entediado pela vidraça embaçada do saguão, tinha esperança de que o tempo voltasse a melhorar.
Mas no dia seguinte ainda chovia, o céu permanecia pesadamente anuviado. Apesar disso, sua disposição de ânimo era de alegre expectativa quando tirou o carro da garagem e saiu rodando entre as húmidas sebes em direção a Markinch.
Quando ele chegou, já ela acabara seu plantão matutino na clínica. Fechou a porta do dispensário e, carregando a maleta, foi sentar-se junto dele.
- bom dia - disse ele, sentindo que era bom tornar a vê-la. - Ou melhor: que dia este! Foi bom ter vindo buscá-la; não tê-la deixado voltar de bicicleta debaixo desta chuva.
- Não desgosto de andar de bicicleta - disse ela - ou de andar debaixo de chuva.
O tom da observação surpreendeu-o levemente, mas ele apenas comentou:
- Seja como for, estou inteiramente à sua disposição. Aonde vamos?
- Vamos a Finden. Não lhe prometo uma paisagem bonita. A terra é toda argilosa, e Finden uma pobre aldeia, edificada em torno de uma olaria que só agora recomeçou a trabalhar. Esteve muito tempo parada.
- Bem, o dia também não está de molde para se contemplar a paisagem - disse ele, amavelmente; e, depois de pedir e receber instruções, rodou aldeia fora.
Durante o trajeto, ela permaneceu singularmente calada, e ele começou a imaginar que havia uma certa reserva em suas maneiras. Não era exatamente frieza, todavia ela perdera aquele espírito animado e receptivo que assinalara o dia passado por ambos em Edimburgo, quando ele teve a sensação de que um simpático entendimento os unia. Depois de a olhar de esguelha por diversas vezes, disse:
- Parece cansada. - Em verdade ela não tinha o seu habitual aspecto de bem-estar. - Está trabalhando demais.
- Gosto de trabalhar bastante. - A voz lhe saía naquele tom singular e um tanto contrafeito. - E tenho em mãos uma porção de casos graves...
- Isso prova que está se excedendo. Acho-a bastante pálida. - E fez uma pausa. - Já é tempo de tomar o que lhe resta de férias.
- com um tempo destes?
- Tanto mais razão para você fugir dele. - Ela não respondeu. Mas... por que não o fitava? Ele esperou uns instantes, e, em seguida, disse: - Que tem você, Kathy? Ofendi-a em alguma coisa?
Todo o rosto fresco e jovem de Kathy corou profunda, vividamente.
- Não, não - disse ela apressadamente. - Por favor, não pense isso... nada podia estar mais longe da verdade. É que... talvez eu esteja um pouco indisposta.
Isso era bastante verossímil, embora não constituísse uma explicação. Entretanto, como poderia ela falar-lhe da disposição de espírito que se seguira àquele dia passado em Edimburgo, ou da intensidade da sua reação ao mesmo? Ao acordar na manhã da véspera, experimentara, numa quente e sonolenta evocação, um esplendor crepuscular de felicidade, quase que imediatamente seguido por uma penetrante angústia de consciência perturbada. A alegre e pródiga aventura do dia anterior, excedendo a toda a sua experiência precedente, agora apresentava as cores de uma ação de autocomplacência, quase de um ato pecaminoso. com que estúpida vaidade impera em suas roupas novas! Decerto que eram lindas; mas não se destinavam a pessoas como ela. "E, quanto ao vestido, »por que andais solícitos? Olhai para os lírios do campo...» - teria ela porventura esquecido esse versículo? Sentia-se culpada - culpada e inautêntica para consigo mesma e para com tudo aquilo em que fora ensinada a crer. A lembrança da elegante vendedora que a viu apenas com a sua barata combinação de rayon e compridas calças serzidas, de lã azul-marinho, os agrados e a indulgência que a mesma tivera para com ela na sala de provas - tudo lhe provocava um doloroso rubor. Que teria pensado sua mãe, se a visse naquela situação? Não é o Sr. Moray, ou antes - cumprindo a promessa, corrigiu-se David, que ela devia censurar. Ninguém mais bondoso nem mais generoso; sua intenção era boa, e ele agira movido pelos motivos mais desinteressados. Além disso, era tão fino, tão elegante, tão companheiro, tinha uns modos tão agradáveis e tão cheios de tato, que teria parecido uma grosseria recusar-lhe as dádivas. Mas uma voz interior lhe dizia que era melhor se as tivesse recusado. Sim: a culpa era inteiramente sua, e ela devia precaver-se para que aquilo não se repetisse.
Levantou-se às pressas, banhou-se em água fria e vestiu o uniforme. Mas enquanto o fazia, tentando concentrar-se na tarefa que a esperava no Hospital de Dalhaven e na difícil entrevista com o diretor da Saúde Pública, quando lhe deveria dizer da sua intenção de deixar o Serviço de Saúde, a perspectiva pareceu-lhe tão desinteressante e inócua, que ela mal pôde continuar a encará-la. Pior que tudo, porém, foi o desejo, que a invadiu, de uma repetição do
dia anterior, não necessariamente um retorno à cidade, mas qualquer coisa de natureza similar, sob igual orientação e proteção.
Abruptamente, com toda a firmeza de uma mente habituada à autodisciplina, afastou a ideia de si; porém mesmo agora não se perdoara de todo. Entretanto, ao se aproximarem da primeira cabana que ela devia visitar, fez um esforço para se libertar de seu constrangimento, e, voltando-se para ele, perguntou-lhe se não gostaria de entrar com ela,
- Para isso estou aqui - exclamou ele. - Quero ver tudo.
A casa era alugada a um lavrador cuja perna fora apanhada numa trilhadeira na última colheita. Achava-se deitado em sua costumeira cama de alcova, na pequena e escura cozinha onde também estava sua esposa - uma mulher desanimada envolta num roupão rasgado - e três crianças sujas e mal vestidas, uma das quais engatinhava no chão com as nalguinhas de fora, babavam uma fatia de pão com geléia. A peça estava em grande desordem - caçarolas empilhadas dentro da pia, pratos engordurados em cima da mesa coberta por um jornal velho todo manchado. Nessa confusão e sujidade, que deixaram Moray estarrecido, Kathy penetrou com um ar despreocupado, deu bom dia à mulher e às crianças chamando-as todas pelo nome, depois dirigiu-se para a cama.
- Então, John... Como se sente hoje?
- Oh, não muito mal, Miss Kathy. - Seu rosto iluminou-se ao vê-la. - Assim é... tal como minha mulher, parece que nunca saio do freio...
- Ora, homem, nada de desânimo. Numa semana ou duas, voltará a ficar bom. Agora deixe-me examiná-lo. - E, enquanto abria a maleta, acrescentou casualmente: - Esse senhor veio comigo para lhe dar bom dia, John.
A ferida era profunda e grave. Avistando-a por cima do ombro de Kathy, Moray pôde verificar que a artéria femoral escapara por um triz. Vários tendões haviam sido rompidos, e, como sobreviera infecção em algumas das suturas, a cicatrização não fora imediata. Ele observava Kathy enquanto ela, depois de tomar o pulso e a temperatura, limpava a ferida, trocava as gazes e reenfaixava a perna, ao mesmo tempo que fazia algumas observações animadoras. Finalmente, endireitando o corpo, disse:
- John não sabe a sorte que teve. Mais uma polegada e a trilhadeira lhe pegava o grande vaso sanguíneo da perna. - E em voz baixa para Moray acrescentou, mostrando os seus conhecimentos: - Chama-se artéria femoral.
Ele conteve um sorriso, aceitou a informação com um olhar agradecido, e continuou a observá-la enquanto ela fechava a maleta e afastava-se da cama, dizendo:
- Basta por hoje, John. Agora vou dar uma mão à sua mulherzinha. - E voltando-se para a mulher: - Vamos, Jeannie, mexa-se um pouco. Lave os pratos, que eu cuidarei das crianças.
Era espantoso! Em quinze minutos tinha dado banho e vestido as crianças, varrido e posto em ordem o quarto, e enxugado os pratos que a mulher de John lhe apresentava ainda escorrendo. Depois, quase que num só fôlego, desenrolou as mangas e dirigiu-se para a saída, dizendo por sobre o ombro:
- Não se esqueça. Hoje de tarde mande buscar no centro o leite para as crianças.
Moray não fez nenhum comentário até que se instalaram no carro e ele deu a partida. Então disse:
- Fez tudo com grande perícia, Kathy.
- Oh, estou acostumada a isso - disse ela, amavelmente. - É apenas uma questão de método.
- Não, é muito mais do que isso... Você pôs o coração no curativo e nas crianças...
Ela sacudiu a cabeça.
- Deus sabe o quanto necessitam! Pobrezinhos!
O dia continuava desoladoramente húmido e ventoso, o emaranhado de atalhos rurais que serviam ao distrito estava coberto de barro líquido, as fileiras de cabanas dos lavradores e dos oleiros - pobres e minúsculos lares - gotejavam enlameadas sob a chuva. Mas essa miséria toda não parecia deprimir Kathy. Desaparecera-lhe a triste disposição de ânimo matinal. Quando descia do carro com sua maleta de enfermeira para chapinhar na lama em direção às cozinhas encharcadas e às sórdidas mansardas, dela irradiava uma alegria que transcendia a simples atitude profissional, uma boa vontade espontânea que ele não podia compreender. Embora ela quisesse que ele permanecesse abrigado dentro do carro, Moray insistia em acompanhá-la; qualquer coisa inexplicável o obrigava a isso. Todo aquele dia viu-a trabalhar; cuidar de mães que amamentavam e de crianças rabugentas; de uma mocinha com um braço dolorosamente queimado, cuja gaze aderira tanto à ferida que foi preciso retirá-la com demorado cuidado; da mulher de um oleiro, presa à cama com asma crónica; depois, das pessoas velhas, algumas acamadas, cheias de tediosos queixumes; de um ancião inválido e sofrendo de incontinência, que precisava ser lavado, seus lençóis trocados
e banhadas com álcool as feridas que lhe haviam surgido por viver preso à cama.
Além de tudo isso, ainda havia os deveres que ela mesma se impusera: os quartos bolorentos, cheirando a azeite de lamparina, que precisavam de ser limpos e arejados; roupa suja para torcer, pratos para lavar, leite para aquecer, sopa a cozinhar na chapa do fogão, tudo em circunstâncias que o teriam reduzido à mais funda melancolia, mas que no entanto ela executava não apenas com tranquila competência, mas com uma compaixão, um senso animoso de realização, que o deixavam perplexo.
Ele podia, de vez em quando, ter interferido com uma observação oriunda de seu próprio conhecimento na matéria, pois este contacto renovado com a doença e a miséria, embora longamente adiado, levava-o a evocar estranhamente os dias em que palmilhara as enfermarias do hospital de Winton. Continha-se, todavia, principalmente porque ela, no esforço que fazia para excitar-lhe a curiosidade, continuou a fazer pequenos e simples comentários médicos sobre as condições de seus pacientes. Moray não queria magoá-la.
Ao cair da tarde, numa de suas últimas visitas, depois de haver atendido a um caso numa fileira de cabanas, Kathy foi chamada, de uma porta vizinha, por uma mulher. Angus, seu filho caçula, tinha "um bocado de borbulhas"; achava que a enfermeira devia dar uma olhadela. O rapazinho, febril de aspecto e desassossegado, estava deitado sob uma manta axadrezada, em cima de duas cadeiras encostadas uma na outra. Disse a mãe que ele se queixava de dor de cabeça e recusara o jantar. Depois,
vira-lhe as borbulhas - algumas delas iguais a pequenas pústulas.
Kathy conversou um pouco com o menino, e em seguida, tendo-lhe captado a confiança, levantou a manta e abriu-lhe a camisa. À vista das borbulhas, Moray pôde observar-lhe a mudança do rosto. Mandando então a mãe para a copa sob algum pretexto, voltou-se para Moray.
- Pobre menino! - murmurou. - É varíola. Já houve dois casos em Berwick e, infelizmente, este é mais um. Tenho de avisar imediatamente o Serviço de Saúde.
Ele hesitou, então, no interesse dela, e sentiu-se obrigado a intervir. Num tom que parodiava ligeiramente a maneira profissional, disse a Kathy:
- Olhe outra vez, Miss Kathy.
- Que quer dizer?
- Quero dizer que não se preocupe, Kathy. - Curvou-se para a frente, apontando com o dedo para ilustrar as suas observações. - Olhe apenas a distribuição dessas empolas. São centrípetas, não há nenhuma nas mãos, nos pés ou no rosto. Ao mesmo tempo, não são multiloculares e não apresentam sinais de pústulas umbilicadas. Finalmente, essas pápulas estão em diferentes fases de desenvolvimento... ao contrário da varíola, onde as lesões aparecem simultaneamente. Segundo a benignidade dos sintomas prodrômicos, não há a menor dúvida quanto ao diagnóstico.
- Trata-se de varicela. Diga à mãe que lhe dê uma dose de óleo de rícino, que lhe ponha um pouco de bicarbonato nas coceiras, e dentro de uma semana ele ficará bom.
A expressão de surpresa de Kathy foi-se acentuando gradualmente, até que ela pareceu quase petrificada.
- Tem certeza?
- Estou absoluta e positivamente certo. - E leu em seus olhos a pergunta que ela não fez! - Sim, sou médico, Kathy. - Falava com uma espécie de suave franqueza, como que pedindo desculpas. - Isso a abala?
Ela mal podia falar.
- Fez-me perder o fôlego. Por que não disse antes?
- Bem, você compreende... eu nunca cliniquei.
- Nunca clinicou! Incrível! E por que não?
- É uma história muito comprida, Kathy. E que lhe tenho querido contar desde o instante em que nos conhecemos. Ainda a ouvirá... Que tal, depois que terminar as visitas?
Kathy, depois de um silêncio breve, porém intenso durante o qual ainda fitou Moray com olhos dilatados, sacudiu a cabeça com desconfiança; em seguida, como a mãe de Angus voltasse, ela a tranquilizou, deu-lhe as instruções de Moray, e ambos saíram. Mais meia hora, e ela acabou a tarefa do dia. Sem mais novidades, ele apertou o acelerador e guiou depressa para o hotel. Como na deserta sala do hotel fizesse frio e houvesse correntes de vento, ele a levou diretamente para a sua sala de visitas, onde ardia um brilhante fogo de lenha de refugo; depois tocou a campainha e pediu um prato de consommé quente e torradas com manteiga. O fatigado aspecto de Kathy, que muito o preocupara de manhã, intensificara-se de repente - e não era para admirar, pensou ele com amargura, após tantas horas de labuta e de exposição ao frio. Mas nada disse antes que ela se sentisse reanimada e aquecida. Quando isso aconteceu, puxou sua cadeira para junto da dela.
- Tenho tanto a dizer-lhe, que nem sei por onde começar. Mas a última coisa que desejo é caceteá-la.
- Oh, não há perigo disso. Quero saber por que nunca clinicou.
Ele encolheu ligeiramente os ombros.
- Eu era um pobre estudante, e acabava de receber meu diploma... um diploma com menção honrosa. De repente recebi oferta para trabalhar no laboratório de uma grande empresa comercial. Nada mais que isso, minha cara.
Ela o examinou sofregamente um minuto inteiro.
- Mas que desperdício... que horrível desperdício!
- Entreguei-me a uma obra científica - explicou ele docemente, traduzindo as suas aventuras com pílulas e perfumes em termos mais aceitáveis.
- Oh, que pena! - disse ela com fervor. - Isso está muito bem para alguns. Mas para um homem como você, dotado de uma tal personalidade... - corou, mas prosseguiu valentemente - sim, dotado de tais qualidades, atirar fora a oportunidade de ajudar os outros, os doentes e os que sofrem, o verdadeiro objetivo de um médico... eis o que me parece uma gritante vergonha. - Nisto, foi assaltada por uma ideia: - Nunca pensou em voltar a clinicar?
- Agora? Nesta época da minha vida? - Mas imediatamente, a fim de corrigir a falsa impressão que essa frase infeliz acaso lhe tivesse dado, acrescentou com perdoável subtração: - Não estou longe dos quarenta e cinco.
- Que tem isso? Está apto, tem saúde, está na força da vida... sim, tem a aparência jovem... Por que não volta ao seu trabalho verdadeiro?
Lembre-se da parábola dos talentos enterrados!
- Teria de espanar a poeira que se acumulou em mim - disse ele. À sua lisonjeira alusão à sua jovem aparência, Moray sorrira tão encantadoramente, que ela se vira forçada a sorrir também.
- Pelo menos poupou-me ao susto da varíola. E eu que lhe queria ensinar coisas sobre a artéria femoral! Que topete!
Fez-se uma pausa breve. Como ela era linda com a luz do fogo a lhe brincar no rosto sério, em meio à treva que se insinuava na sala. Uma onda de protetora ternura, não de todo paternal, o invadiu, e ele soergueu-se.
- vou servir-lhe mais uma tigela dessa sopa.
- Não, não. Está muito bom, sinto-me muito melhor, mas prefiro ... prefiro continuar com a nossa conversa.
- Pensa com grande seriedade nesse assunto! - E franziu as sobrancelhas, bem-humorado.
- Oh sim, sim! Muito seriamente. É a ideia que faço da vida... a gente procurar ajudar os outros. É para isso que viemos ao mundo: para fazer o melhor que nos for possível. Fé, esperança, caridade... Mas a melhor de todas é a caridade - assim me ensinaram a crer. Foi por isso que estudei para enfermeira.
O conteúdo espiritual de suas palavras era levemente desencorajante, mas ele as recebeu bondosamente. Depois disse, cheio de firmeza:
- Kathy, você é uma enfermeira maravilhosa. Não a vi em ação? Admiro-a e respeito-a pela obra que está realizando, embora, para ser franco, não a considere suficientemente forte para ela; mas deixemos isso passar. Sinto, entretanto, que você pode exercitar os seus dons num nível diferente, digamos, um nível mais alto, com resultados muito mais amplos e compensadores. Não, não diga nada, espere um minuto. - Docemente silenciou-lhe a interrupção e prosseguiu. - Desde que nos conhecemos, há uma coisa que escondi de você; que escondi deliberadamente, pois queria que você simpatizasse comigo, que gostasse de mim por meus próprios méritos, se é que tenho algum... - Esboçou um sorriso: - Será que gosta de mim?
- Gosto, sim; gosto muito - respondeu ela com uma impetuosa sinceridade. - Nunca conheci quem produzisse em mim uma tal... uma tal impressão.
- Obrigado, querida Kathy. Por conseguinte, agora estou livre para lhe contar, com toda a humildade deste mundo, que sou homem abastado. Sinto não poder exprimi-lo menos cruamente, pois em verdade sou lamentavelmente, ultrajantemente rico - ao que nunca fui tão grato como neste momento, pois isso me habilita a fazer muito por você. Não, por favor - e ele tornou a erguer a mão, - deixe-me terminar. - E, após uma pausa, prosseguiu com uma expressão grave: - Sou um homem solitário, Kathy. Fiz um casamento infeliz... bem, encaremo-lo como ele foi na realidade: uma verdadeira tragédia. Minha pobre mulher ficou anos a fio internada num instituto de psicopatas, e ali morreu. Não tenho filhos, ninguém como você para encher meu tempo. Trabalhei arduamente toda a vida. Agora, ainda moço, aposentei-me, com amplos lazeres e mais bens materiais do que preciso ou mereço. - Fez nova pausa. - Já lhe contei que tenho uma grande dívida a saldar com a sua família. Não me pergunte que dívida é essa, se não quiser me fazer lembrar de uma mocidade desagradável e ingrata. Apenas direi que tenho de saldar essa dívida, e pretendo fazer isso interessando-me
por você, tirando-a deste apagado ambiente, dando-lhe uma cultura apropriada e todas as demais coisas que você merece. Uma vida cheia, opulenta e compensadora; não, naturalmente, uma vida ociosa; pois, como você está cheia de ideias humanitárias, poderá cumpri-las com a minha cooperação, e com os recursos que porei à sua disposição.
Enquanto Moray falava, ela fitava-o com um crescente nervosismo; agora, porém, que ele terminara, Kathy baixou os olhos e por um bom momento permaneceu calada. Afinal, disse:
- O senhor é extremamente bondoso. Mas isso é impossível.
- Impossível?
Ela inclinou a cabeça.
- Porquê? - inquiriu ele, com uma expressão persuasiva.
Fez-se nova pausa.
- Decerto se esqueceu... mas no primeiro dia lhe contei que ia deixar o trabalho distrital por algo melhor. No fim do mês que vem irei para Angola... trabalhar com o tio Willie na Missão.
- Oh, não! - exclamou ele com voz alta e sobressaltada.
- vou, sim. - Sorrindo debilmente, ela ergueu o olhar e encontrou o dele. - Tio Willie vem buscar-me. Chegará no dia sete do mês que vem. Iremos de avião a vinte e oito.
Estultamente, ele perguntou:
- E quanto tempo conta ficar lá?
- Para sempre - respondeu ela com simplicidade. - Fiz a notificação ontem ao médico da Saúde Pública.
Um silêncio prolongado tombou na sala. Ela partiria - calculou ele rapidamente - dentro de cinco semanas! A notícia arrasou-o, matou-lhe as esperanças, arruinou-lhe fatalmente os planos. Não, não, impossível aceitá-lo. Os projetos que ele acariciava tinham atingido uma enorme força possessiva, não apenas no interesse dela, mas também no dele próprio. Kathy era a sua missão na vida. E nada tão fútil para opor-se a isso como aquele desejo absurdo de imolar-se na agrestia do jângal tropical. Nunca, jamais. Mas o raciocínio lhe voltava, ele viu o perigo de a contrariar abertamente e arriscar-se a um rompimento iminente. Devia confiar em que o tempo e as circunstâncias mudassem o modo de pensar de Kathy. Quando voltou a falar, fê-lo com calma, calcando a devida nota de consternação.
- Isto me desaponta gravemente, Kathy. Foi em verdade um golpe. Entretanto, percebo quão estreitamente ligado está esse plano ao seu coração.
Ela se preparara para a oposição. Mas, em face dessa tranquila aquiescência, os olhos se lhe inundaram de grata simpatia.
- Você tem tanta compreensão!
- E posso ajudar também. - A ideia pareceu reanimá-lo. - Willie receberá pelo próximo correio um donativo para a Missão, e um donativo excelente. Apenas quero que você me dê o endereço dele.
- Oh, darei sim! Como agradecer-lhe?
- Mas isto é apenas o começo, querida. Não lhe disse já quanta coisa quero fazer por você? O futuro o provará. Quanto ao presente. .. deixe-me refletir. Quando foi que disse que Willie deve chegar?
- Dentro de uma quinzena, aproximadamente. Partiremos três semanas depois.
Ele calou-se, contraindo a testa para refletir.
- Creio que descobri - disse afinal. - Como você vai partir tão inesperadamente e tão depressa, acho razoável que me dê um pouquinho do tempo que lhe resta. Está exausta; e, para aguentar o duro trabalho no calor do trópico, deve tirar umas férias, ou pelo menos descansar um pouco. Por conseguinte sugiro, com toda a reserva, que você tire as duas semanas de férias que ainda lhe restam e vá passá-las comigo em minha propriedade entre as montanhas. Willie irá unir-se a nós em seu regresso, e, mesmo que nenhum de vocês dois possa ficar muito tempo lá, desfrutaremos os três da mais feliz reunião do mundo!
Durante cinco fatais segundos ele pensou que ela ia recusar. Surpresa e dúvida anuviavam a franca expressão do rosto de Kathy; isto, porém, fundindo-se com a indecisão, se fez seguir por um sorriso hesitante. Moray percebeu que a inclusão de Willie no convite fora um golpe de pura inspiração. Mas seria bastante? A dúvida voltara aos olhos dela.
- Seria ótimo - disse Kathy devagar. - Mas não seria grande incómodo para você?
- Incómodo? Não sei o que significa essa palavra.
- O ar da montanha fará bem a tio Willie - disse ela. - A ele, que regressa de Kwibu.
- E para você... que vai para lá. - Foi com esforço que conseguiu ser natural. - Então você irá?
- Bem queria - disse ela em voz baixa, fazendo-se pequenina e desamparada na poltrona funda. - Mas há dificuldades... meu trabalho, por exemplo. Depois, porque avisei, talvez não me dêem as férias. Tenho de falar sobre isso com a enfermeira-chefe ou com o
médico-residente. - E após tomar uma funda respiração: - Estou de serviço no hospital até ao fim desta semana. Quer deixar-me pensar no assunto até lá? - Naquele momento ele viu que nada lhe restava senão concordar.
CAPÍTULO OITO
LEVOU-A de volta a Markinch para o serviço noturno. Quando chegaram, ele, receoso de dizer alguma imprudência no estado de espírito em que se encontrava, limitou-se a algumas palavras de despedida e a um olhar contido mas eloquente. Depois rodou lentamente em direção ao hotel.
A chuva cessara e - com aquela perversidade do tempo escocês
que ocasionalmente ao fim de um dia de chuva torrencial promete melhores coisas - uma barra de luz clara apareceu no horizonte. Mas esse clarão transitório pouco contribuiu para animá-lo, e ele, desligando o motor, encostou o carro à margem da estrada para refletir.
com efeito, tratava-se de um revés desagradável; pior ainda, pois era, dentre todas as coisas, a que menos esperava. Quem teria previsto aquilo? Uma linda garota decidida a perder-se entre um bando de pintados selvagens que não poderiam apreciá-la mais do que ao pequeno e admirável Bonnard pendurado na parede de seu estúdio, em Schwansee. A mão de Moray tremia de aflição, enquanto ele acendia um cigarro com seu isqueiro de ouro e puxava uma funda baforada. Claro, não podia negar que lera ou ouvira falar de casos semelhantes. Não havia uma rica dama da sociedade renunciado, recentemente, à sua fortuna, indo viver de bananas com um médico excêntrico no jângal brasileiro? Era comum saírem as freiras do país como irmãs-enfermeiras, mas isso fazia parte da sua vocação. Supunha igualmente que o dever das esposas de missionários era acompanhar os maridos. Mas, no caso em apreço, não havia a menor necessidade de renúncia, nem obrigação moral ou matrimonial, e todos os aspectos do projeto lhe pareciam absurdos e fúteis.
Que podia ele fazer? - essa era a questão. Acendendo cigarro após cigarro - excesso inteiramente estranho a seu feitio moderado - consagrou-se ao problema com uma concentração só possível mediante a força da indignação. A solução mais simples seria abandonar seus planos, desistir, poupar-se a dificuldades ulteriores e voltar para casa. Não, não, não poderia fazer isso, e imediatamente repeliu tal
ideia. Além da implícita obrigação que tinha para com ela e para consigo mesmo, ele ficara naquele curto espaço de tempo tão apaixonado pela pequena Kathy, que a simples ideia de nunca mais tornar a vê-la era demasiado derrotista, demasiado sombria para ser aceita.
Quanto mais ele refletia, mais ficava convencido de que o melhor meio para furtá-la a uma tal obsessão consistia em mostrar-lhe, embora por pouco tempo, a plenitude e a riqueza da vida que lhe podia oferecer. Educada com grande rigor, dir-se-ia que isolada do mundo, ela não tinha a menor ideia do que ele poderia fazer por ela. Se ao menos pudesse levá-la para a Europa, mostrar-lhe o encanto e a elegância das grandes cidades continentais que ele tão bem conhecia - Paris, Roma, Viena, com suas galerias de arte, edifícios históricos, monumentos e igrejas célebres, restaurantes de elite e belos hotéis - e em seguida apresentar-lhe o conforto e os recursos de sua casa, decerto ela voltaria à razão e se deixaria convencer. Seu convite, portanto, feito de repente, fora um golpe de mestre, o qual, mesmo agora e após madura reflexão, não podia ser substituído por outro melhor. Restava apenas assegurar-se de que ela o aceitaria. Mas como? Procurando mentalmente quem lhe poderia dar assistência e apoio, não tardou muito a ocorrer-lhe a pessoa mais indicada para isso.
Apagou o cigarro, apertou com força o botão da partida, e, dando a volta guiou de regresso, através de Markinch, até ao presbitério. Em cinco minutos chegava a seu destino. Enquanto estacionava o carro e entrava na aléia, distinguiu um andaime na parte alta da torre e ouviu Fotheringay dando ordens em voz alta, o que parecia indicar que o sino estava sendo retirado. Mas não tinha a intenção de encontrar o ministro, que na certa o embaraçaria com novas expressões de gratidão. Foi, pois, com alívio, enquanto passava pelo crescido arvoredo de louros, que viu a Sra. Fotheringay na horta, ao lado da casa. Tinha ela na cabeça um velho chapéu de feltro, de homem, vestia uma capa impermeável, toda manchada, e calçava pesadas botas ferradas, ao mesmo tempo que trazia na mão uma podadeira.
- Desta vez me apanhou na "estica"! - exclamou ela, com um sorriso torcido, embora acolhedor, ao vê-lo aproximar-se. - Estou matando lesmas. Depois da chuva, elas vão direitinho para as couves-flôres. Mas parece que já matei a maior parte. Vamos entrar.
- Se não se importa - disse ele com certa hesitação - gostaria de falar com a senhora aqui mesmo.
Ela fitou-o bem no rosto, e depois, sem dizer palavra, conduziu-o a um caramanchão pintado de verde, que se erguia ao fundo do jardim.
Sentando-se num banco de madeira, indicou-lhe um lugar ao lado dela. Em seguida, após um novo olhar atento, disse-lhe:
- Quer dizer que afinal Kathy lhe contou?
Sua perspicácia surpreendeu-o; foi todavia um auxílio para ele começar.
- Faz apenas uma hora que o sei.
- E não aprova?
- Quem aprovaria? - disse com voz embargada. - A simples ideia de uma garota ir enterrar-se por toda a vida naquele sertão... Sinto-me... sinto-me indizivelmente infeliz.
- Sim, calculei que isso o deixaria transtornado - falou ela devagar, franzindo o largo rosto crestado pelas intempéries. - E não é o único. Meu marido também é contra, embora, em sua qualidade de ministro, lhe seja difícil deixar transparecer tal coisa. Mas eu, que sou apenas a esposa do ministro, eu digo que é uma lástima.
- A coisa já seria péssima em qualquer época. Mas agora, especialmente com a agitação que está havendo na África...
Ela concordou com a cabeça, séria e moderadamente. Porém, Moray não se podia conter.
- Ela não serve para isso. Depois do trabalho de hoje, ficou morta de cansaço. E por que vai ela para lá? Qual a razão disso tudo? É seu tio o responsável?
- Sim, de certo modo penso que ela vai para o bem de Willie. Mas também para o dela própria.
- Quer dizer, motivos religiosos.
- Sim, talvez... mas não unicamente isso.
- Mas ela é religiosa!
- E no melhor sentido da palavra. - Falava com sentimento, caindo cada vez mais no dialeto rústico. - Ajuda-nos na igreja, ensina as crianças, mas não é dessas que andam de Bíblia debaixo do braço e o branco do olho revirado para o céu. Não, o senhor precisa conhecer Kathy para compreender o que a leva a partir. Não preciso dizer que ela é uma moça excepcional, nos tempos que correm, tão diferente, como a aveia o é da palha, dessas garotas de rabo-de-cavalo, cabeça vazia e sensuais que andam por aí com o seu jazz e seu rock and roll, só preocupadas em se divertir, sabe-se lá com que péssimas diversões! Ela é séria, sensível e quieta, não se esqueça-mas nervosa, cheia de miolo e ideais próprios. Sua criação (a mãe dela era excepcionalmente rigorosa) tem muito a ver
com isso. E o fato de viver sozinha, aqui no interior, manteve-a muito isolada. Ao mesmo tempo, desde que Willie foi para Angola, onde parece haver não apenas doença, mas fome também, parece que ela, como era natural, ficou cada vez mais firme na ideia de ajudá-lo. Ajudar onde a necessidade é maior... servir.. .- são essas as suas palavras no que concerne à missão de Willie. E isso é hoje a única coisa que lhe importa; a mola de sua vida.
Moray permaneceu calado, mordendo os lábios em protesto.
- Mas pode servir sem se enterrar!
- E quantas vezes eu já não lhe disse isso?
- E Willie, por que não lho diz? Deve compreender que a coisa é inteiramente impraticável.
- Willie não é homem prático. - Parecia a pique de dizer qualquer coisa mais, mas só fez acrescentar: - Para falar a verdade, Willie está fora do mundo.
- Mas eu estou no mundo - exclamou ele nervosamente. - Interesso-me por Kathy. A senhora decerto já o percebeu. Quero fazer coisas para o bem dela; dar-lhe tudo quanto ela precisa e bem merece.
A mulher não respondeu, mas continuou a fitá-lo com uns olhos inquiridores, onde também brilhava uma tão franca simpatia, que ele sentiu uma repentina necessidade de desabafar, de justificar seus motivos e conquistá-la definitivamente para si, mediante uma plena confissão de seu passado. O impulso foi irresistível, e ele cedeu. com a respiração arfante, logo mais rápida, por vezes quase desarticuladamente e
poupando-se bastante na narrativa, contou à Sra. Fotheringay o que o trouxera a Markinch.
- Como vê, tenho todas as razões, todos os direitos de reparar os males passados. Se eu não tivesse feito aquela malfadada viagem - e sua voz ficou quase de todo embargada, - Kathy bem podia ter sido minha filha!
Na pausa que se seguiu, ele conservou-se de olhos baixos. Quando os levantou, o sorriso dela era ainda mais bondoso do que antes.
- Adivinhei desde o princípio. A mãe de Kathy era uma mulher reservada, mas uma vez, mostrando-me um álbum antigo, vi numa das páginas um ramilhete de flores secas. À minha moda habitual, fiz uma piada sobre o assunto. Ela desviou o olhar e suspirou, dizendo apenas o suficiente para me fazer sabedora de que houve alguém de quem ela muito gostara antes de se casar.
Ele titubeou ligeiramente a essa evocação demasiado vívida da sua deserção, mas rapidamente se recuperou.
- Então a senhora me ajudará! Convidei Kathy a ir comigo para a Suíça, e lá, em minha casa, Willie irá a seu encontro. Se conseguir reuni-los ali, em um novo ambiente, creio que posso fazê-los voltar à razão, Kathy especialmente. E ela precisa de umas férias, pobre criança! Quer a senhora persuadi-la a acompanhar-me? Não há dúvida de que lhe virá pedir conselho.
A Sra. Fotheringay não respondeu no mesmo instante, mas continuou pensando com o ar circunspecto de quem medita. Depois disse, como que dando expressão a seus pensamentos:
- É uma coisa estranha... Esperei, sim, e orei, suplicando que alguma coisa acontecesse para demover Kathy desse pulo no escuro. Não é apenas o perigo - que é bem grande, pois Willie, esse maluco, quase foi morto uma meia dúzia de vezes, - mas também o fato de Kathy ser tão delicada que, em menos de um ano, ficará extenuada naquele clima medonho. E ela é um amor de garota, talhada para coisa diferente. Bem, parecia não haver mais esperança e eis que, no derradeiro momento, quando um já desiste de lutar e ela está a ponto de partir, o senhor aparece como um segundo pai - o senhor assim se expressou - e está claro para mim porque nos foi enviado. - Ela fez uma pausa, estendeu a mão grande e maltratada, e a pôs sobre a dele. - Sempre cometemos desatinos quando moços. Não admira que tivesse errado naquela época. Acredito que é um homem direito e de bom coração. Não há muitos a quem eu confiaria Kathy, mas ao senhor confio. Se ao menos o senhor pudesse tirá-la desta rotina, fazê-la viajar um pouco,
pô-la em contato com gente nova, e sobretudo descobrir para ela um marido jovem e sólido que lhe desse uma boa casa e filhos para cuidar, alguém que zelasse por ela, então o senhor teria mais do que saldado sua antiga dívida. - Apertou-lhe firmemente a mão. - Acredito na intervenção da Providência. Embora o senhor não saiba, tenho a ideia inabalável de que o senhor é a resposta para o que venho procurando. Creia que o ajudarei em tudo o que puder.
Moray tinha os olhos húmidos ao sair do presbitério. Sentia-se recuperado, purificado pela confissão e, cônscio do valor da promessa da boa mulher, bastante seguro para aguardar pacientemente uma palavra de Kathy. Ela o avisara que estaria muito ocupada no Hospital de Dalhaven até ao fim da semana. Não devia esperar uma resposta antes disso. Entretanto, quando o primeiro dia se fundiu no segundo, e o segundo no terceiro, uma dúvida incessante começou a atormentá-lo, a sua preocupação voltou e ele quase perdeu totalmente as esperanças. Não havia nada para lhe prender
a atenção ou aliviar-lhe a monotonia da espera. O tempo ficara frio e ventoso, o mar esbravejava, e espuma e areia eram sopradas em redemoinhos sobre as dunas e os relvados. Mesmo que quisesse jogar, o golfe estava fora de cogitações; Finlay, o profissional do golfe, suspendera o trabalho ali e regressara para o clube de Dalhaven. O hotel repentinamente reduzira-se, fecharam-se mais quartos e janelas, o derradeiro hóspede do outono foi-se embora, e apenas duas moradoras permanentes, duas senhoras idosas, ficaram para compartilhar com Moray os rigores das rajadas do nordeste. Como já não pudesse dar a desculpa de estar em férias, seus amigos do lugar e do estrangeiro começaram a ficar admirados pela sua prolongada ausência de casa. Duas vezes Miss Carmichael lhe pediu informação sobre seus planos, enquanto em Schwansee os seus admiráveis criados começavam a inquietar-se com a longa demora. Mas tudo isso nada era, comparado com a sua crescente ansiedade, a percepção de que o tempo corria, reduzindo ainda mais o já limitado período que tinha à sua disposição.
No sábado, fazendo um esforço para distrair as ideias, Moray resolveu passar algumas horas fora do hotel e tomar informações em Edimburgo, quanto à possibilidade de reserva de passagens de avião. Passou toda a manhã na cidade; depois, como o céu clareasse, em vez de regressar cedo, foi de carro explorar a região norte do campo. Por duas vezes se extraviou - o que não lhe foi desagradável - no ambiente rural, parou para se informar do caminho a seguir e bebeu um copo de leite num pequeno sítio das redondezas; depois, tornou a partir para retomar o rumo, e no fim descobriu que se havia extraviado mais do que pensava, pois, de repente, quando quis voltar, encontrou-se em meio de uma paisagem estranhamente familiar para si. Olhando em torno com uma certa tensão nervosa, notou um após outro os acidentes do terreno. Não podia haver engano. Talvez não fosse o simples acaso o que o trouxera ali, mas um impulso subconsciente. Achava-se no vale Fruin, na deserta vereda que, a partir do lago, conduzia ao mesmo trecho da linda charneca onde há tantos anos, ao regressar do hospital de Glenburn, Mary se lhe entregara.
Invadiu-o uma estranha fraqueza e ele quis voltar, mas não pôde. com uma expressão tensa no rosto, rodou mais algumas milhas; depois, apertando o breque, fez o carro parar. Sim, o lugar era aquele mesmo. Indeciso, ali permaneceu alguns momentos, o corpo rígido; depois desceu do carro e caminhou pela margem relvosa, até ao alagadiço. À medida que avançava, ia penetrando naquele
estreito vale abrigado e inesquecível, onde o riacho corria cristalino e ligeiro em seu leito de pedregulho. Santo Deus, pensou ele, tudo tão igual, que se diria ter acontecido na véspera!
Postado ali, com um vazio no estômago e o coração batendo célere, viu o passado ressurgir diante de si - a chegada na motocicleta, o piquenique ao sol quente, os risos e olhares enternecidos, o zumbido das abelhas, e depois, sob a cúpula azul do céu - enquanto as gaivotas giravam no alto gritando em vão, - a alegria e o medo daquele momento de êxtase em que, irresistivelmente atraídos, ambos se abraçaram. Moray viu, sentiu tudo aquilo, e assim permaneceu, num banho de recordação sentimental, até que, com um estremecimento pânico - verdadeiro choque físico, - tapou os olhos com uma das mãos.
A moça que ele tinha nos braços não era a amada há muito perdida. Cada sensação, cada ardente particularidade daquela cena apaixonada, ele a revivera, não com a mãe, mas com a filha! A mulher que ele tão estreitamente apertara nos braços fora Kathy, cujos lábios quentes e macios haviam premido os seus num tão doce abandono. Soltou um grito na charneca deserta. Inteiramente abatido, ferido por uma súbita vergonha, deu de caminhar, tropeçou indeciso encosta acima e, através da macega, voltou ao carro. Rodou estrada afora como um possesso. Como é que não percebera aquilo antes? Estava em verdade apaixonado - não pelo passado, mas pelo presente. Pensar em Kathy como pensaria em uma filha, em uma pupila que ele podia proteger, não era mais que uma ilusão, um disfarce protetor do seu desejo subconsciente. Desde o primeiro minuto em que a encontrara, seu primitivo amor - longamente cultivado como o único de sua vida - fora recriado, revigorado e transferido para Kathy. Ela não era apenas a imagem desse amor, fresca, jovem, mais bela até, mas uma vívida realidade de carne e osso. Olhando fixamente para a frente, guiando como um autómato, experimentou conter essa maré de sensação. A situação era delicada. Perfeitamente correta, nada havia nela de vergonhoso; todavia, surgiam escrúpulos exigindo exame ou pelo menos contenção, pois do contrário os maliciosos poderiam imaginar coisas. Mas, como se atreveriam a isso? Seus motivos eram os mais elevados; seus sentimentos, naturais, honestos e normais, e jamais poderiam ser tidos como incestuosos; não havia motivo para compunção, razão alguma para recuo. Quem iria
censurá-lo? E como podia ter sido de outro modo? A ideia aliviou-o, encheu-o de uma alegria palpitante, e o futuro, que a rigor, até então, jamais
adquirira forma, encaixava-se agora no lugar devido e exalo, adquiria cores encantadoramente vivas e nítidas. E - Deus do Céu!- como ele se sentia jovem, rejuvenescido de fato, por aquelas duas excitantes paixões, sedutoramente fundidas em uma só!
Mais do que nunca, era preciso, agora, que não houvesse mais hesitação nem delongas. Discrição, sim, é claro, mas nenhuma revelação imprudente ou prematura de seus sentimentos. Assim que regressasse, ligaria para Dalhaven e chamaria Kathy. Moray apertou o acelerador, e o carro voou como se tivesse asas. Ao chegar ao hotel, saltou para fora e correu diretamente para a cabina telefónica do hall. Estava quase a entrar, quando o porteiro lhe acenou da portaria.
- Há um recado para o senhor. A Sra. Fotheringay veio procurá-lo na sua ausência, e deixou-lhe esta carta com as melhores recomendações.
O homem estendeu-lhe um envelope comum, fechado, no qual estava escrito o seu nome. Não ousou abri-lo ali. Precipitou-se para o quarto, abriu-o sofregamente, e, com dedos trémulos, tirou do interior uma folha de papel ordinário. Num relance percebeu que era de Kathy.
Caro David:
Tivemos tanto trabalho no hospital, que não me sobrou uma folga sequer; mas ontem à tarde acabei o serviço e tive uma longa conversa com a Sra. Fotheringay. Depois falei com a enfermeira-chefe, que aquiesceu em conceder-me as duas semanas de férias que me restam, a partir de
segunda-feira que vem. Por conseguinte, estarei livre para aceitar o seu generoso oferecimento de me levar à Suíça, e já escrevi a tio Willie dizendo-lhe do seu convite para que vá ao nosso encontro.
Sinceramente sua, Kathy
Estou muito contente por ir com você.
Desnecessário telefonar! Espontaneamente, Kathy iria consigo. Moray sentou-se numa confortável poltrona. Penetrava-o uma cálida sensação de triunfo. E a caminho de Schwansee - atendendo à sua intenção original - por que não fazer uma parada em Viena, sua cidade favorita, apenas por uns dias, para dar a Kathy um ante-gosto da vida continental? Tornou a ler a carta: ela escrevera a Willie. Um cabograma seria melhor e mais rápido. No dia seguinte
enviaria ele uma mensagem pessoal, comprida e franca, que explicaria muita coisa a Willie, facilitando assim o consequente encontro deles. Voltou a ler o pós-escrito: Estou muito contente por ir com você. Só havia uma coisa possível para um homem de tanto gosto e sentimento, um homem de tal requinte, ainda intocado pela crueza e vulgaridade desta época bárbara. E, levantando o retalhinho de papel vulgar, premiu-o contra os lábios.
CAPÍTULO Nove
DE uma altitude de vinte mil pés, o Caravelle começou gradualmente a descer do estrelado céu noturno para o escuro platô das nuvens embaixo. Moray olhou o relógio: nove e meia. Voltou-se para a companheira:
- Falta pouco. Deve estar cansada.
A viagem fora adiada, mercê de delongas em Londres e Paris; ele, porém, não lamentava o atraso. Estar sentado junto dela, na intimidade da cabina de luxo, observando com uma solicitude divertida mas cheia de ternura as suas reações durante o seu primeiro voo, antecipando o que ele julgava fossem desejos dela embora Kathy não exprimisse nenhum - tudo isso eram prazeres raros e preciosos. Como tudo lhe era novidade para si, ela pouco falava; e, por causa desse silêncio, que parecia indício de alguma ligeira tensão, decidiu ele dar a nota estimulante.
- Espero que se divirta, querida Kathy. Esqueça-se das caminhadas na lama de Markinch e trate de desfrutar umas férias verdadeiras. Relaxe um pouco a tensão. - E riu-se. - Distendamos nossos nervos... nós ambos; e sejamos... bem... sejamos humanos.
- Oh, sou até demasiado humana - respondeu ela, concordando. - Daqui a pouco dirá que sou uma caceteação!
Nisto, fez-se ouvir a voz da aeromoça no sistema de intercomunicação.
- Estamos chegando ao aeroporto de Viena. Façam o favor de apertar os cintos de segurança e apagar os cigarros.
Como ela ainda não tivesse prática, ele a ajudou pressurosamente a ajustar o cinto. Ao tocar-lhe a fina e elegante cintura, e sentir a tepidez de seu corpo, uma súbita alegria o invadiu.
Visíveis, lá embaixo, as luzes do aeroporto, se empinaram violentamente quando o avião adernou; depois, com um último giro
e uma perfeita descida, o aparelho correu pela pista, manobrando em direção do edifício da alfândega.
- É um modesto aeroporto este de Viena - disse ele ao descerem a escada. - Não o reconstruíram depois da guerra. Mas não demora, e ficaremos livres.
E cumpriu rigorosamente a palavra. Em menos de sete minutos se acharam na avenida principal, e ali, segundo as instruções que dera por telegrama, estava o Rolls cintilando sob as luzes de néon, enquanto Arturo, no seu melhor uniforme, todo sorrisos e mesuras, esperava o patrão. Ele nada contara a Kathy sobre esse pormenor: preferiu surpreendê-la, e o êxito lhe sorriu. Depois de trocar cumprimentos com Arturo, rodaram pela noite adentro. Tendo nos joelhos uma suave manta de peles, e em torno o macio estofado cor de cinza do carro, ela enfim murmurou em voz baixa:
- Que beleza de automóvel!
- Nunca o apreciei tanto como agora. - E deu-lhe, sob a manta, umas pancadinhas tranquilizadoras na mão. - Serve para eu lhe mostrar a cidade.
A estrada, de Flughaven para Viena, era, ele bem sabia, uma péssima introdução à alegria. Flanqueava-a uma ininterrupta sucessão de cemitérios e, como se isso não bastasse, viam-se em ambas as margens estabelecimentos dedicados à fabricação e exposição de lápides mortuárias. Todavia, a escuridão encobria benevolamente essas sombrias sugestões da mortalidade. Em meia hora, a alegre cidade iluminada os acolheu, e eles se dirigiram para o Prinz Ambassador. Não sendo um hotel muito grande, era contudo de luxo. E Moray dava-lhe preferência por ser o mais tipicamente vienense, com uma aprazível localização à antiga, sobranceira à fonte Donner e à igreja dos Capuchinhos. Também ali ele era conhecido e apreciado. Foi logo conduzido para um apartamento duplo do andar de cima. A sala de estar era uma peça de estilo antigo, com brocados e veludo vermelho, e um deslumbrante lustre central, arandelas de cristal nas paredes e uma mesa barroca de gesso, onde a gerência já havia mandado pôr um grande vaso de crisântemos bronzeados e uma cesta cheia de frutas selecionadas.
- Agora, Kathy - disse autoritário, depois de aprovar o quarto onde ela dormiria e o moderno banheiro anexo, ambos pintados num delicioso amarelo-pálido e com cortinas de cor cinza-pombo - está cansada, embora proteste que não. Portanto, boa noite. vou encomendar para você uma bandeja de coisas gostosas; depois tome um banho e vá deitar-se.
Como era previdente, gentil e delicado! Moray felicitou-se, pois pelo olhar de Kathy adivinhara exatamente o que ela queria. Qualquer outra palavra se fazia desnecessária: restava-lhe apenas sair, com graça e simplicidade. Levantou-lhe levemente o pulso, roçou por ele os lábios, fez uma rápida inclinação de cabeça e, saindo, disse alegremente:
- Encontrar-nos-emos amanhã de manhã, para o café!
Chamou o garçom daquele andar, encomendou sanduíches de peito de galinha e chocolate quente para Kathy, depois desceu ao restaurante. Antes de entrar, acendeu um Sobranie, e, de cabeça descoberta, deu um breve giro pela Ringstrasse. Como era bom estar de novo em Viena, ouvir risos nas ruas e música de valsa saindo dos cafés, ver até mesmo as pequenas dirnen pecadoras dando início à sua caçada noturna! A Escócia era excelente, uma vez que se lhe aceitasse o clima; era ótima para o golfe e a pesca... Viena, porém, era mais gemutlich, mais a seu feitio. Quando tomasse pé, Kathy a adoraria!
A manhã seguinte raiou clara e bela, verdadeiro dia outonal, e às nove horas, depois que trouxeram o café, ele atravessou a sala e bateu discretamente à porta de Kathy. Ela estava de pé e já vestida, fazendo um pouco de tricô enquanto esperava que ele a chamasse. Sentaram-se juntos. Ela serviu o café - quente, saboroso e aromático, o melhor dos cafés, - que jorrou espumejante nas belas xícaras de porcelana de Meissen, brancas como a toalha imaculada e ornadas com uma coroa de ouro. A manteiga, em cima do gelo, tinha a cor do creme, e o mel, em seu boiãozinho de prata, era de um rico amarelo dourado. Os pãezinhos, frescos e de cheiro adocicado, traziam ainda o calor do forno.
- Experimente um destes. São os célebres kaisersemmeln, dignos de um imperador - disse ele, desejoso de informar. - Faz quase um século que a mesma padaria os fabrica... Passou bem a noite? Pois muito me alegro. Está pronta para um dia inteiro de passeios.
- Espero-os com impaciência. - E fitou-o com um ar indagador. - Iremos de carro?
Ao mesmo instante ele percebeu que a moça tinha acanhamento de usar o Rolls. Que adorável garota! Não era nada estragada, e ao mesmo tempo bonita, ainda fresca do orvalho noturno! Respondeu-lhe penalizado:
- Esta manhã, sim, pois iremos a um lugar um tanto longe. Mas, de outra vez, iremos de chancas...
A frase pareceu agradar a Kathy e ela sorriu.
- Será ótimo, David. Quando se anda, vê-se mais. Não acha? Também se vêem melhor as pessoas...
- E você tem de ver tudo, querida!
Arturo já esperava lá fora. Podia-se vê-lo da janela, a andar de um lado para outro, fazendo guarda contra a curiosidade de uma pequena multidão admirada e inquisitiva. Quando afinal eles desceram, tirou rápido o boné, curvou-se respeitosamente e presenteou Kathy com um único botão de rosa e - delicioso gesto! - já munido de um alfinete de cabeça de latão.
- Repare - murmurou Moray em seu ouvido. - O meu bom italiano já aprovou...
Ela corou profundamente; mas ao entrarem no carro, sujeitou-se,
deixando-o prender a rosa na lapela de seu costume Lovat. Em seguida partiram, rumo a Kahlenberg.
Foi um passeio deslumbrante, de curvas ascendentes por entre lindos subúrbios asseados e o relvado coberto de pinheiros do Bosque de Viena. O sol brilhava; o ar, eletrizado por uma pontinha de geada, era puro como cristal; e de repente, ao vencerem a última ladeira, todo o panorama de Viena se lhes descortinou no sopé do morro, com um fulgor que lhes deixou o fôlego suspenso. Descendo do carro, passearam pelo píncaro, enquanto ele lhe ia indicando os pontos altos da cidade: o palácio Belvedere, a igreja de Santo Estêvão, o Hofburg, a Casa da Ópera, e, bem em frente, o famoso restaurante Sacher, onde ele propôs levá-la para almoçar.
- É lugar famoso?
- Um dos melhores da Europa.
Ouvindo isso ela hesitou, e, pousando timidamente a mão no braço dele:
- David, não podíamos almoçar qualquer coisa aqui mesmo? - E indicou com o olhar o pequeno café fronteiro. - Parece um lugar tão bom! E isto aqui em cima é uma beleza!
- Bem - respondeu ele. - É um lugar simples... e o cardápio deve ser ainda mais simples...
- Provavelmente tem pratos simples e sadios.
E quando ela o fitava com aquela expressão, as faces ardendo na brisa cortante, ele tinha de ceder.
- Então vamos. Arrisquemo-nos juntos.
Ele nada podia recusar-lhe, embora os seus pressentimentos fossem mais do que justificados. A mesa era uma tábua em cima de um cavalete, não tinha toalha, o talher era ordinário, e lá estava o indefectível Wiener Schnitzel, duro e insosso, acompanhado, imagine-se,
de apfel saft! Ela entretanto não deu mostras de se incomodar, até pareceu gostar de tudo, e no fim do repasto ambos se reconciliaram bem-humorados. Ficaram sentados algum tempo à mesa - ela ainda fascinada com o panorama. Depois, por volta das duas horas, tornaram ao carro e partiram para Schõnbmnn.
Era esse o regalo especial que Moray prometera a si próprio, pois, como alguém inflexivelmente contrário aos horrores arquitetônicos da era moderna, cultivara uma afeição romântica para com o majestoso palácio de verão de Maria Teresa, edificado no século XVIII, e para com os lindos jardins circundantes, traçados à antiga maneira francesa. Além disso, agradava-lhe o papel de cicerone. Desde que transpuseram o portão de ferro maciço, ele se empenhou resolutamente em despertar a curiosidade de Kathy, e, como conhecesse bem o assunto, teve um êxito espetacular. Enquanto vagueavam pelos vastos aposentos barrocos, recriava ele a Corte Imperial em todo o seu luxo e esplendor. Fez uma vívida descrição da vida de Maria Teresa, desde a graciosa menina recatada - ele parou diante do retrato que a apresentava com seis anos de idade, usando uma comprida túnica de brocado azul e ouro, reprodução do vestido de uma elegante dama vienense da época - que, ao ver o pai em traje de gala, exclamou, para diversão de toda a corte: "Oh, que lindo está o papai! Venha aqui, quero admirá-lo!" - até à mulher de forte e nobre individualidade, figura central da política europeia, patrocinadora das artes, mãe de cinco filhos e onze filhas, e que, interrogada no leito de morte se estava sofrendo muito, como com efeito estava, respondeu tranquilamente - suas últimas palavras:
- Estou bastante à vontade para morrer.
O tempo passava imperceptivelmente. Nunca Moray se entregara a um entusiasmo tão dramático. Quando de novo transpuseram o pátio empedrado da entrada, ficaram ambos surpresos ao descobrir que eram quase seis horas e começava a escurecer.
- Meu Deus! - exclamou ele, desculpando-se - fiz você andar demais e falei tanto que decerto fatigou-se. E, o que é pior, fi-la perder o chá. Isso é indesculpável na Áustria, onde há kuchen tão maravilhosos!
- Mas por coisa alguma queria perder tudo o que vi, - tornou ela, rapidamente. - Você sabe tanto e faz tudo ficar tão real!
Ele lhe fornecera, visivelmente, assunto para reflexão pois, no caminho de volta para o hotel, após um silêncio pensativo, ela observou:
- Naquele tempo as classes privilegiadas viviam muito bem. Mas como vivia o povo comum?
- Decerto que não tão bem - e riu-se. - Diz-se que, em Viena, trinta mil famílias moravam, cada uma, num único aposento. E se o quarto fosse razoavelmente espaçoso, moravam duas, separadas apenas por um varal!
- Que horror! - exclamou ela, penalizada.
- Realmente - concordou ele consoladoramente. - A época não era boa para a gente ser pobre.
- Mesmo agora - prosseguiu ela - tenho visto muitos indícios de pobreza na cidade. Quando saímos, vi crianças descalças, mendigando nas ruas...
- Sempre os houve, sempre haverá mendigos em Viena. Mas esta é uma cidade do amor, do riso e da canção. Seus mendigos até que são muito felizes!
- Serão mesmo? - disse ela devagar. - Como poderão ser felizes quando sentem fome? Hoje de manhã conversei um pouco com a arrumadeira do hotel - ela fala muito bem inglês. Disse-me que é viúva, tem quatro filhos, e que o marido foi morto num motim durante a ocupação. Tem lutado horrivelmente... a vida está tão cara... e o que ela ganha mal dá para manter a família com vida!
- Não lhe parece que essa é a velha história da falta de sorte?
- Não, David, não é. A mulher é uma pessoa decente e perfeitamente sincera.
- Nesse caso, dê-lhe um pouco do dinheiro que tem reservado para os alfinetes.
- Já dei!
Ao tom exultante da exclamação, ele a olhou de esguelha. Ao saírem do aeroporto, e para que ela tivesse alguma coisa para os gastos, ele pusera-lhe na bolsa um maço de notas, talvez uns mil e quinhentos xelins austríacos, equivalentes a vinte libras esterlinas.
- Quanto lhe deu?
Ela fitou-o com certa hesitação.
- Tudo.
- Não diga, Kathy! - E soltou uma risada. - Que caridosa você me saiu! Desfazendo-se de toda a fortuna de uma vez só!
- Tenho certeza de que ela a empregará bem.
- bom; se isto lhe agrada, a mim também me agrada - disse ele, ainda achando graça na coisa. - Em Viena, a gente tem de ser liberal e um pouco maluca. Adoro esta cidade, Kathy. Adoro-a tanto, que me entristece ver como está mudando depressa. Ê preciso
ver tudo agora, meu bem; daqui a pouco, com tantos lugares bonitos existentes no mundo, Viena vai ficar abandonada. Olhe só aquele horror à direita!
Passavam por um edifício novo e alto, de apartamentos, construído para as classes trabalhadoras.
- Esse pesadelo sem fisionomia, feito de aço e concreto, repleto de quartinhos que mais parecem canis, veio substituir uma bela e antiga residência barroca, um pequeno palácio demolido há doze meses, para em seu lugar fincarem isto... esta penitenciária!
- Não lhe agrada?
- A quem agradaria?
- Mas David... - E ela respirou fundo, logo prosseguindo com um ar pensativo: - As pessoas que aí moram devem gostar. Têm sobre a cabeça um telhado firme, têm conforto - calefação, água quente, instalações sanitárias adequadas, e intimidade. Não é melhor do que viverem como porcos, separados apenas por um varal?
Ele franziu o sobrolho com uma expressão de perplexidade.
- Seja como for, não viverão sempre como porcos? Mas a questão não é essa. O que a gente sente é a destruição da beleza existente no mundo. Tratores e caminhões a derrubarem tudo, arruinando e arrancando os mais belos monumentos do passado para construírem estes edifícios de carregação, todos idênticos, todos tão medonhamente feios... A Inglaterra se deixou engolir por seus lúgubres subúrbios. A Itália está cheia de fábricas. E, na Suíça, há dezenas de apartamentos atulhados, nos sítios mais belos, junto às praias de seus lagos - mas não perto de mim, graças a Deus.
- Sim, é verdade que vivemos num mundo novo - disse ela concordando. - Tanto mais razão para aproveitá-lo ao máximo. E fazer o que pudermos para melhorá-lo.
Fitou-o interrogativamente, como que ansiosa para saber o que iria ele responder à sua observação. Mas eis que chegavam à Ringstrasse, onde luzes já se acendiam, e empregados, saindo dos escritórios,
aglomeravam-se nos cafés das calçadas, falando, rindo, pondo no ar uma nota de expectativa. A hora era fascinante, e, pelo menos ali, nada havia que ofendesse a vista. Ao deslizarem por entre o tráfego, ele se lhe aproximou, e, no crepúsculo que caía, tomou-lhe o braço.
- Fatiguei-a com tanta conversa e discussão. Suba para o quarto e descanse uma hora. Depois vamos jantar.
Percebera-lhe a timidez ante o convite para ir jantar ao Sacher, mas, no próprio interesse dela, decidiu levá-la ao famoso restaurante.
Um pouco de incentivo, e ela dominaria o constrangimento; além disso, não era preciso toalete para u janta»r no Sacher. Quando o relógio batia oito horas na igreja de Santo Estêvão, já ele - escoltava, escada abaixo, para fora do hotel; depois, como a noite estivesse bonita, percorreram a pé o curto trecho ao longo da Karntnerstrasse. O terraço envidraçado do restaurante estava repleto, mas ele tomara a precaução de mandar reservar uma mesa discreta na sala lateral, conhecida como Bar Vermelho. Percebeu que a escolha do local a encheu de confiança, e, relanceando o olhar pelo cardápio, a expressão do rosto se lhe foi tornando nostálgica.
- Espero encomendar algo tão bom como aquele peixe que você escolheu em Edimburgo. Foi a primeira refeição que fizemos juntos... Nunca a esquecerei. Diga-me: gosta de foie gras?
- Não sei - e abanou a cabeça. - Acho que sim.
- Então vamos encomendá-lo. com um pouco de Garniertes Rehrúcken, e um Salzburger Knocke para acompanhar. - Fez a encomenda, e acrescentou: - Como estamos na Áustria, vamos homenagear o país e beber um pouco de Dúrnsteiner Katzensprung. É originário do belo vale do Danúbio, a umas cinquenta milhas daqui.
Trouxeram o foie gras, que era delicadamente rosado. Moray cheirou-o para ver se se tratava do verdadeiro foie gras de Estrasburgo, e em seguida encomendou um molho de framboesas. Quando trouxeram o vinho, que foi provado, aprovado e servido, ele ergueu o copo.
- Bebamos à nossa saúde. - Depois, ternamente, ao vê-la hesitar: - Lembre-se de que prometeu ser humana. Quero vê-la sair da sua linda conchinha escocesa.
Obediente, embora um pouco trémula, ela ergueu o copo esguio e encostou os lábios no perfumado líquido ambarino.
- Tem gosto de mel.
- E é tão inofensivo como o mel. Acho que nesta altura você já me conhece..,
- Oh, sim, David. Você é muito bom.
O assado era tudo quanto se poderia esperar de melhor, e foi servido com um saboroso molho de rabanetes e maçãs. Ele comia não apenas devagar, como de costume, mas com sentimento, dando a cada bocado a respeitosa atenção que o mesmo merecia. Na saleta anexa alguém começou a tocar suavemente ao piano - uma valsa de Strauss naturalmente, mas como calhava naquele ambiente! Era uma valsa sedutora, melodiosa, obsedante...
- Não acha isto agradável? - murmurou ele no outro lado da mesa. Gostava de ver o rubor aparecer e desaparecer das jovens faces de Kathy. Como era linda! E como sabia despertar o que ele tinha de melhor em sua natureza, fazendo aflorar todo o bem que existia em seu interior!
A sobremesa, segundo ele previra, foi um triunfo. Lendo a expressão do rosto dela, (tarefa na qual se tornara especialista), ele explicou:
- É feita quase que inteiramente de ovos frescos e creme.
- Quantos ovos levou? - perguntou ela, admirada.
Ele voltou-se para o garçom.
- Herr ober, quantos ovos levou este Salzburger Knocke?
O homem encolheu os ombros, sem contudo deixar de ser polido.
- Tantos, senhor, que já perdi a conta. Se Madame deseja fazer um bom knocke, não deve poupar ovos.
Moray franziu o sobrolho para Kathy e disse:
- Temos de iniciar uma criação de galinhas.
Ela rompeu a rir como uma colegial.
- Pobres das galinhas, precisando botar ovos nesse ritmo!
Encantado com aquela inusitada animação não deixou ele de notar que ela não fizera a menor objeção à futura assistência com que ele lhe acenou. Nisto, a conta chegou, e, depois do costumeiro exame, Moray pagou-a com uma cédula de valor elevado, e deu ao garçom uma gorjeta tão generosa que o resultado foi uma sucessão de curvaturas, que se diriam devidas à passagem de um rei.
Ao saírem do restaurante, foram recebidos na calçada pelas habituais mãos estendidas - de vendedores de fósforos e de flores de papel, de aleijados (falsos e genuínos), do velho maltrapilho de acordeão fanhoso, da velha que agora nada mais tinha a vender, exceto lisonjas. Moray distribuiu o troco da conta generosamente, indiscriminadamente, só para ver-se livre dos pedintes. Depois, escapando para o hotel, foi inesperadamente recompensado durante o trajeto: Kathy tomou-lhe o braço, e, de sua livre e espontânea vontade, aconchegou-se mais a ele durante o trajeto para o Neuer Markt.
- Estou contente por você ter feito aquilo. Depois de uma refeição tão dispendiosa, sentir-me-ia envergonhada se o não fizesse. Mas isso é bem de você, David: ser bom e generoso, sem qualquer ideia de poupança. E que dia me proporcionou! Tudo tão novo, tão impressionante, que mal posso acreditar. Quando penso que há alguns dias apenas eu lavava pratos na cozinha de Jeannie Lang... Mas isto é um sonho!
Era tão bom vê-la à vontade, livre de inibições, na realidade
- alegre. Escutando-a num silêncio indulgente, ele a deixou falar,
cônscio de que aquele simples copo de Diirnsteiner sabendo a mel não teria podido transmitir-lhe, por si só, aquela disposição de ânimo, pela qual em grande parte ele era responsável. E numa súbita evocação, Moray lembrou-se de que também para com Mary demonstrara o mesmo talento - caberia- até dizer-se poder - de furtá-la a preocupações mais sérias, desoprimindo-lhe o coração. O augúrio ; era auspicioso.
Infelizmente, o trajeto para o hotel foi muito curto. Já na porta do quarto, Kathy voltou-se para ele a fim de lhe dar boa noite.
- Obrigada por este maravilhoso dia, David. Se você não se esquece daquele dia que passamos em Edimburgo, eu por mim jamais me esquecerei do dia de hoje.
Ele demorou-se um instante, querendo retê-la.
- Você gostou mesmo, Kathy?
- Extremamente.
- Verdade?
- Juro.
- Então diga: de que gostou mais?
Ela entreparou no ato de fechar a porta, ficou subitamente séria, pareceu revisar seus pensamentos. Depois, furtando o rosto à sua vista, e sem olhar para ele, disse muito simplesmente:
- Estar com você, David.
Em seguida entrou.
CAPÍTULO DEZ
Nos três dias seguintes o tempo, embora mais frio, permaneceu radiosamente belo; as condições não podiam ser mais perfeitas para o prazer e a novidade dos passeios. Variando de programa com uma louvável destreza, Moray levou-a ao Hofburg e ao Hofgarten, ao Museu Imperial de Belas-Artes, ao Senado, ao Belvedere e ao Parlamento. Tomaram chá no Demel, percorreram as lojas elegantes do Graben, assistiram a um exercício da Escola Espanhola de Equitação, que entretanto redundou em desapontamento, uma vez que, embora abstendo-se de qualquer comentário, ela visivelmente desaprovara a exibição daqueles belos cavalos brancos se distendendo em atitudes circenses, contrárias ao seu natural. Ele acompanhou-a
também numa visita aos quatro filhos da camareira Arma, todos de pé e em fila, de roupas novas e quentes, e sólidas botinhas de inverno, e esta foi sem dúvida a mais bem sucedida de suas excursões. Aqueles dias, dizia Moray para consigo mesmo, foram os mais felizes de sua vida. Ela lhe trouxera alegria e doçura, dera-lhe uma nova mocidade. Quanto mais a via, mais acreditava já não poder viver sem ela.
Todavia, não raro Kathy o intrigava, até mesmo lhe causando uma singular preocupação. Divertir-se-ia ela realmente com tudo quanto ele tão sedutoramente lhe mostrava? Impossível duvidar, tantas vezes vira iluminarem-se-lhe os olhos, repletos de interesse e animação. Não obstante, não faltavam ocasiões em que, apesar de docilmente atenta, ela se diria confusa, nervosa e perturbada. Em dado momento ela se aconchegava estreitamente a ele para logo em seguida subitamente se afastar. Tinha uma estranha capacidade de fechar-se dentro de si mesma e podia surpreendê-lo pela fidelidade a suas próprias opiniões.
Certa vez, no Graben, debalde ele empregara toda a sua sutileza para induzi-la a aceitar um presente - um colar de estilo simples, mas incrustado de esmeraldas - que, sem pensar, e com pouco conhecimento do preço, ela havia admirado.
- É lindo - respondeu ela, abanando a cabeça - mas não é para mim.
E nada a demoveu. Apesar disso, ele decidiu fazer o que queria. Mas a maior surpresa de Moray foi verificar que o dinheiro contava pouco na opinião de Kathy, que não dera importância ao luxo do hotel, cujas refeições dispendiosas e complicadas simplesmente a atrapalhavam. Percebeu igualmente que ela preferia o pequeno carro de aluguel ao reservado conforto de seu Rolls. E certa feita, tendo ele aludido discretamente ao assunto, ela respondera inesperadamente:
- Mas David, o dinheiro não pode comprar nenhuma das coisas que realmente importam!
Desapontado e um tanto melancólico por essa falta de apreciação, Moray todavia consolou-se com a ideia de que seria amado, ou, como agora se atrevia a esperar, de que estava sendo amado pelo que pessoalmente valia. E, desde que a vida simples visivelmente agradava Kathy, ele resolveu desviar sua atenção para a Suíça e a repousante tranquilidade que ela ali encontraria. Mas não se enganara levando-a primeiro a Viena. Não apenas a conhecera melhor, como também fizera progresso, um grande progresso naqueles últimos dias. Inegavelmente, uma intimidade se estabelecera entre
ambos, uma corrente de vibrações passava de um para o outro. Embora ela mesma não soubesse, ele percebia que, pelos rubores repentinos ao toque de sua mão, pelo brilho de seus olhos quando ele aparecia, ela ultrapassara o ponto donde já não há regresso. Todos os seus instintos assim o confirmavam. E ver e sentir aquela moça tímida e apaixonada expandir-se gradualmente sob a coação das primícias do amor era para ele a experiência mais deliciosa de sua vida.
No sábado de manhã, depois que acabaram de almoçar, ele observou displicente, mas com uma pontinha de mágoa:
- Começa a parecer que estamos fartos desta cidade. Pelo menos por enquanto. Você não gostaria que partíssemos amanhã para Schwansee? Se este frio continua, decerto haverá neve no Oberland, e isso é algo que você não deve perder.
O entusiasmo de Kathy imediatamente confirmou-lhe a intuição.
- Gostaria mais do que tudo... isto é, se lhe convém partir. Gosto tanto do campo. - E depressa acrescentou: - Não que não me sinta feliz aqui.
- Então, resolvido! Sairemos no avião de domingo, à tarde. Mando Arturo na frente. A viagem de carro através do Ardberg é muito fatigante nesta época do ano. Mas antes de partirmos - fez uma pausa e sorriu - ainda há mais uma cerca para você pular. Creio que será um prazer, não uma penitência.
- Sim? - inquiriu ela, um tanto indecisa.
- Haverá uma noite de gala, hoje, na Ópera. Representa-se Madame Butterfly; mas o espetáculo vai ser excepcional, uma vez que Tebaldi estará cantando. Os cenários são de Benois. Era praticamente impossível conseguir entradas, mas fui bem sucedido graças a um golpe da sorte. Estou certo de que gostará especialmente dessa ópera... Quer ir?
- Sim, David - respondeu ela com uma hesitação apenas perceptível. - Mas me preocupa vê-lo incomodar-se tanto por minha causa.
- Não pense nisso.
Não lhe disse que somente mediante um ágio enorme, pago por intermédio do porteiro, fora ele capaz de obter com tanto atraso duas entradas de camarote.
- A propósito; hoje descansamos, a fim de que você esteja bem disposta para o espetáculo da noite.
O descanso fez-lhes bem, especialmente porque o céu se anuviara e um vento cortante, que soprava de Semmering, fazia das
ruas outras tantas geleiras. Entretanto, após dar instruções para o regresso de Arturo, ele saiu a fim de tratar de um assunto pessoal. Segundo sugerira, jantaram cedo, na sala de estar: apenas uma sopa de tartaruga, uma omelette fines herbes com pommes pont neuf, pêche melba e café: propositalmente, uma refeição leve porém boa.
Quando terminaram, ele levantou-se.
- É uma amolação, minha querida puritana, mas este assunto exige traje de rigor. Felizmente eu sabia o seu tamanho, por isso encontrará no quarto uma novidade. Pedi à boa Anna que o estendesse sobre a cama. - E, passando-lhe um braço carinhoso em torno do ombro, inclinou-se sobre ela e disse-lhe com o seu jeito mais sedutor: - Por favor, use-o... por minha causa.
E, trauteando baixinho a ária do dueto "Noite de Enlevo", da Btttterfly, Moray foi para seu quarto e começou a vestir-se devagar. Primeiro fez a barba com um barbeador elétrico, até ficar satisfeito com a maciez do rosto; depois tomou um banho quente seguido de uma ducha tépida, fez uma boa fricção, para polvilhar-se com simples talco. O criado de quarto já havia retirado do guarda-roupa o seu traje de rigor; as abotoaduras de ônix e diamantes e o botão do colarinho já estavam postos na camisa engomada, de preguinhas no plastrão; as meias de seda preta, desdobradas, os sapatos de couro já sem as formas de madeira e com as línguas voltadas para fora - tudo disposto na maior ordem, junto da poltrona. Arturo não teria feito melhor; precisava não se esquecer de dar uma gorjeta ao homem... Afinal ficou pronto. Um salpico de Eau de Muguet e uma enérgica escovadela nos cabelos com suas escovas militares, de dorso de marfim com monograma - graças a Deus, nem sinal de calvície! - e o quadro ficou completo. Examinou-se no espelho. Assentavam-lhe muito bem a gravata branca e a casaca (ninguém, no Bonocampagni, chegava aos pés de Caraceni na perfeição do corte), e naquela noite, com toda modéstia, ele sabia, sem sombra de dúvida, que compunha uma figura agradável e distinta, surpreendentemente jovem. Tenso de expectativa, apagou a luz - hábito antigo, que lhe vinha da mocidade - e foi para a saleta.
Kathy não se fez esperar. A porta do quarto dela abriu-se daí a pouco e a moça aproximou-se lentamente trajando o vestido verde que Moray escolhera para ela, e trazendo no pescoço, para deleite dele, o delgado colarzinho de esmeraldas, que combinava à maravilha com o vestido. Literalmente, ele perdeu o fôlego, enquanto ela, olhos abaixados e faces levemente enrubescidas, avançou e postou-se
à sua frente. Se ele a achara linda no seu modesto costume Lovat, agora não havia palavras que servissem para o caso.
- Kathy - disse ele em voz baixa, - você não vai gostar que eu o diga, mas não devo calar-me. Você está encantadoramente, indizivelmente bela.
Nunca em sua vida dissera uma verdade tão absoluta. Tão jovem e fresca, com aquela tez de quente tonalidade e aqueles cabelos louro-avermelhados, o verde era indubitavelmente a sua cor. Que não faria dela quando a levasse a Dior ou Balenciaga! Mas... ela tremia? Kathy humedeceu os lábios.
- É um vestido belíssimo - disse vagarosamente. - E você ainda foi comprar o colar...
- Para combinar com o vestido - disse ele alegremente, resolvido a aliviar-lhe a consciência. - Apenas algumas pedras verdes...
- Não. Anna admirou-as, e disse-me que eram cabochões de esmeralda.
- Ah! bem. Apenas quero que o seu acompanhante também combine com elas.
Ela o fitou, depois desviou o olhar.
- Nunca imaginei que pudesse existir alguém como você. - Parecia que ela procurava uma frase, e esta veio com uma falta de jeito inabitual: - Você... você não pertence a este mundo.
- Espero continuar pertencendo ainda por muito tempo - disse ele rindo. - E agora, vamos. Sua índole democrática vai ficar lisonjeada: como Arturo já partiu, tomaremos um táxi.
- Devo calçar as luvas? - perguntou ela nervosamente enquanto desciam pelo elevador. - São muito - compridas.
- Calce-as, ou leve-as na mão, como quiser, querida Kathy. Não faz diferença. Nada se pode acrescentar ao que já é perfeito...
O porteiro, embora chocado porque eles, vestidos com tamanho esplendor, tivessem rejeitado a sua habitual condução, levou-os entre curvaturas para uma respeitável caleça. Dentro em pouco chegaram à Ópera, atravessaram o foyer apinhado e foram conduzidos ao camarote, onde ele arranjara lugares na segunda fila. Ali, na intimidade aconchegada das cortinas vermelhas e num camarote que era só deles, Moray percebeu que Kathy se acalmava. Livre do nervosismo, fitava a brilhante cena com crescente interesse e animação, enquanto ele, sentado atrás, mas muito perto, e olhando pelo binóculo por sobre o ombro dela, saboreava a agradável impressão de estarem ambos a reproduzir o incomparável quadro de
Renoir sobre o mesmo tema - um Renoir que não lhe pertencia, mas que ele sempre admirara.
- O teatro é novo, naturalmente; foi reconstruído depois da guerra - explicou ele. - Talvez com brancos e dourados um tanto a mais... Os vienenses gostam excessivamente de cristais. . . Mas, ainda assim, como é belo!
- Oh, realmente! - aquiesceu ela sem restrições.
- E, como está vendo, todo mundo na estica para ouvir a Tebaldi. A propósito, como ela cantará em italiano, devo dar a você uma ideia do libreto. Começa em Nagasáqui, no Japão, onde Pinkerton, um oficial da marinha dos Estados Unidos, arranjou casamento, por intermédio de um corretor, com uma linda moça japonesa, chamada Cho-Cho-San... - E fez o resumo dos pontos principais da história, concluindo: - Como vê, é muito sentimental; é uma das mais leves produções de Puccini. Está longe de ser uma grande ópera; mas, apesar disso, é deliciosamente comovedora e pungente.
Nem bem acabara, uma explosão de aplausos fez-se ouvir na sala, anunciando o aparecimento do regente, Karajan. As luzes obscureceram, a abertura começou... Depois o pano abriu-se devagar, mostrando um interior japonês, de singular delicadeza.
Moray já havia visto duas vezes a mesma ópera no Metropolitano de Nova Iorque, do qual tivera, durante anos, uma assinatura, e onde muitas vezes ouvira cantar a célebre Tebaldi. Logo que percebeu que a grande diva estava num de seus melhores dias, pôde dedicar-se às reações de Kathy, e, sem ser observado, com uma estranha e secreta expectativa, acompanhar as expressões cambiantes que iluminavam, para logo ensombrecer, o seu rostinho jovem e atento.
Ela, a princípio, pareceu confusa com a novidade da experiência e o exotismo oriental do cenário. Mas gradualmente se deixou absorver. O belo Pinkerton - que ele sempre achara insuportável, visivelmente repugnava a Kathy. Moray percebeu a crescente simpatia dela por Cho-Cho-San, e a presença de um estranho pressentimento de desgraça iminente. Quando, ao fim do primeiro ato, o pano caiu, Kathy não se conteve.
- Oh, que homem desprezível! - exclamou ela, voltando-se para ele com as faces abrasadas. - Desde o começo a gente sabe que ele não presta.
- Vaidoso e comodista, talvez - aquiesceu Moray. - Mas por que o detesta tanto?
Ela baixou o olhar como que refletindo, depois disse:
- Para mim, a pior coisa... é a gente nunca pensar nos outros, mas somente em si mesma.
O segundo ato, iniciando-se com uma nota de tristonha ternura, sustentada por uma esperança subjacente sempre adiada, a afetaria mais dolorosamente que o primeiro, pensou ele. Enquanto a ópera prosseguia, ele não a olhou, considerando intromissão indevida observar uma tão sincera preamar de sentimento. Mas, no final da cena, enquanto as luzes se obscureciam no palco e Cho-Cho-San acendia a lanterna junto à porta para dar início à vigília noturna; enquanto a melodia obsedante da ária "Un bei di" se elevava para depois morrer na sala penumbrosa, ele relanceou o olhar à companheira e viu lágrimas lhe escorrendo pelas faces abaixo.
- Querida Kathy... - disse, inclinando-se para ela, - Se está demasiado comovida, vamo-nos embora.
- Não, não - protestou ela com a voz embargada. - É triste, mas maravilhoso. E quero ver o que acontece no fim. Empreste-me o o lenço; o meu já não serve. Obrigada, querido David. . . você é tão bondoso! Pobre moça! E tão linda! Custa crer que um homem possa ser tão inumano... tão... tão animalesco... - Faltou-lhe a voz e ela fez um esforço para se conter.
Em verdade, durante o terceiro ato, que ascende de uma emoção quase insuportável até à final tragédia que tudo destrói, ela se dominou perfeitamente. Quando o pano caiu e ele arriscou fitá-la, viu que ela não chorava, mas debruçara a cabeça sobre o peito, como se já não pudesse suportar a emoção.
Saíram do teatro. Ainda subjugada pela dor, Kathy só falou quando se acharam dentro do táxi; depois, certa de que não estava sendo observada, disse com voz sumida:
- Nunca me esquecerei desta noite... Nunca...
Ele escolheu cuidadosamente as palavras que ia dizer.
- Eu sabia que você tem sentimento... que tem uma grande capacidade de emoção... Esperava que você se comovesse...
- Comovi-me sim, David... Mas o melhor de tudo foi ter visto o espetáculo em sua companhia.
Nada mais do que isso, mas o bastante para ele perceber em seus nervos ainda vibrantes uma doce ternura para com ele. Silenciosa e mansamente, tateando na intimidade fechada do táxi, Moray estreitou na sua a mãozinha dela.
Ela não a retirou. O que lhe acontecera? Aquilo nunca se dera antes. Naturalmente, recebera atenções. Quando frequentava o curso de enfermeira, um estudante universitário em luta para diplomar-se
sentira-se fortemente atraído por ela, que não correspondera. No hospital, durante as festividades do último Natal, o jovem
médico-assistente tentou beijá-la sob a árvore, só conseguindo alcançar-lhe, canhestramente, a orelha esquerda. Ela viu a tentativa com indiferença, e mais tarde recusou seu convite para o baile de Ano Novo. Julgava-se austera, não interessada pelos rapazes, mas em verdade compartilhava da opinião da mãe - opinião tão insistente que ela a adotara - de que os rapazes são ousados, irrefletidos e não merecem confiança.
Mas David não era nada disso. Ao contrário, suas qualidades eram exatamente o oposto. E sua maturidade, singularmente tranquilizadora, desde o começo a impressionara. Ele continuava suave e carinhosamente segurando-lhe a mão quando chegaram ao hotel. Nem aí a largou. O porteiro noturno cochilava no seu canto, quando eles entraram e tomaram o elevador para o primeiro pavimento. No corredor Moray parou, abriu a porta da sala de estar comum aos aposentos de ambos... Um rápido fiozinho de pulsações vibrava nos dedos aprisionados em sua mão.
O próprio coração dele batia desesperadamente.
- Recomendei que deixassem chocolate quente para nós... Ficará mais animada se tomar uma xícara...
- Não. - Afastando-se um pouco, ela sacudiu a cabeça. - Nada... por favor.
- Você continua perturbada. Não posso deixar que você vá assim.
E conduziu-a, sem que ela resistisse, para dentro do quarto, onde, como ele dissera, uma garrafa térmica, frutas e sanduíches cobertos por um guardanapo estavam postos sobre a mesa. O quarto estava na penumbra, mercê de uma lâmpada velada que lançava uma suave claridade no tapete, enquanto as paredes permaneciam na sombra - a mesma sombra em que os dois se encontravam frente a frente.
- Querida Kathy, que direi... que deverei fazer por você?
Ainda sem olhá-lo, ela respondeu com voz abafada:
- Amanhã cedo já estarei boa...
- Mas já é quase manhã - observou ele docemente, a despeito das pancadas do sangue golpeando-lhe as veias. - E você não está bem. Que é que tem?
- Nada, nada... não sei. Sinto-me um tanto perdida... não sei como. Nunca me senti assim, triste e feliz ao mesmo tempo.
- Mas como pode sentir-se perdida se está comigo?
- Bem sei, bem sei... - disse Kathy; depois deu de falar incoerentemente. - Aquele infeliz herói da ópera fez-me ver como é diferente ... mas a dificuldade é essa mesma... Você é tão... - Ela interrompeu-se, lágrimas correram-lhe pelas faces abaixo.
Tinha a cabeça baixa; ele, porém, pondo-lhe os dedos sob o queixo, levantou-lhe o rosto banhado de lágrimas, de modo que ambos se fitaram nos olhos.
- Kathy, meu bem - murmurou ele com uma ternura indescritível. - Amo-a apaixonadamente. Creio que você também me ama.
E, inclinando-se, beijou-lhe os lábios frescos e jovens, inocentes de qualquer maquilagem - que ele abominava - e deliciosamente salgados de lágrimas. Engolindo um soluço, ela aconchegou-se mais em seus braços, o rosto ardente e húmido premido contra o peito dele.
- David... querido David...
Mas foi apenas um instante, pois, soltando um grito, ela subitamente se afastou.
- Não adianta... não adianta absolutamente nada. Eu devia saber desde o começo...
- Mas por quê, Kathy? Se nos amamos...
- Como é possível isso, a três mil milhas de distância? Você sabe que parto. Só lograríamos despedaçar os nossos corações... O meu já está despedaçado...
- Não poderá ficar, Kathy?
- Nunca... Isso é impossível.
Ele segurara-lhe o pulso para impedi-la de fugir. Lutando como um pássaro cativo para lhe escapar, ela continuava falando com ar alucinado.
- Preciso partir. Levei toda a minha vida preparando-me só para isso... Estudei enfermagem, ganhei prática em Dalhaven. Não pensava noutra coisa. Precisam de mim lá... Willie me espera... mais do que ninguém. Antes de mamãe morrer prometi-lhe que iria; não faltarei à palavra dada a ela... nunca...
- Não vá, Kathy - atalhou ele, por mim. - Pelo amor de Deus, não vá!
- Devo ir - justamente pelo amor de Deus; pelo amor de nós ambos...
E, num repelão, libertou-se dele, atravessou correndo o quarto e desapareceu.
Moray ficou olhando dolorosamente para a porta fechada. Resistindo ao impulso de segui-la, pôs-se a andar de cá para lá sobre o grosso tapete, num estado de extrema agitação. Entretanto, à
sensação de seus macios lábios ainda sobre os dele, sua desventura gradualmente cedeu lugar a um sentimento de alegria. Ela amava-o - extremamente, inequivocamente, de todo coração. Nada mais importava. Havia obstáculos no caminho, mas estes poderiam ser vencidos. Era mister persuadi-la, e ele a persuadiria. Qualquer outra coisa estava fora de cogitação. Custasse o que custasse, havia de possuí-la.
Repentinamente sentiu-se forte, cheio de vigor e de uma enorme potencialidade para o amor. Também com fome. E, relanceando o olhar pelas boas coisas que se achavam sobre a mesa, apercebeu-se das muitas horas que haviam decorrido desde o jantar - e a comida não fora apreciavelmente substanciosa. Sentando-se, serviu-se do chocolate que ainda fumegava, desdobrou o guardanapo e atacou os sanduíches. Ah, eram de caviar, e do verdadeiro caviar Beluga! Absorto, todavia deliciado, comeu gulosamente sem deixar resto.
CAPÍTULO ONZE
MORAY previra que na Suíça ia nevar, e, como que para confirmar a sua infalibilidade, a neve os acolheu - uma camada prematura e leve que se congelara e agora lampejava sob um céu de cobalto. Já fazia uma semana que estavam em Schwansee, rigorosamente conformados com o pacto de contenção que, como exigência pela sua ida, ela o obrigara a aceitar. Durante esse horrível xequemate da emoção, num esforço frenético para influenciar Kathy, Moray fez da simplicidade e da calma a ordem do dia. A acolhida excessivamente teatral de Arturo e Elena fora rapidamente suprimida, a seriedade imposta e refeições mais simples encomendadas e servidas sem a menor formalidade. Esforçando-se para realçar a sedução da pitoresca paisagem, ele levava-a todas as tardes a passear e respirar o ar vivo e tonificante; excursões, essas, na maior parte feitas em silêncio, e que às vezes os levava até aos brancos sopés dos Alpes, a cujos pináculos altíssimos o sol poente e o sol nascente conferiam uma tonalidade côr-de-rosa. À noite, sentados na biblioteca, junto à lareira crepitante alimentada a lenha, mais cansados pela persistente contenção do que pelas excursões, Moray selecionava para ela alguns de seus discos - seleções principalmente de Handel, Bach e Mozart - que ele punha a tocar na vitrola estereofónica, de mogno envernizado habilmente disfarçado numa prateleira
de laca de Coromandel. Ninguém sabia que ele regressara, não havia visitas intrusas, nenhuma distração, apenas eles, sozinhos. Em circunstâncias normais, como seria idílica essa existência! Mas - ai! - debaixo daquele domínio superficial vibrava intoleravelmente uma tensão de corda de arco, com uma exasperante sensação, para ele, de frustração e derrota. com toda a sua sedução e sutileza, tentara dissuadi-la da intenção de abandoná-lo, mas malograra. A persuasão e os argumentos mostraram-se igualmente fúteis. E o tempo voava; em verdade, já voara... Kathy devia partir três dias após a chegada de Willie.
A inflexibilidade de uma pessoa tão nova, tão pouco provada e inexperiente, constituía para ele uma fonte inesgotável não só de angústia, mas de estupefação. Não que ela não o amasse. A cada hora do dia era evidente que sofria a constante supressão dos seus desejos naturais. Se, acidentalmente, ele lhe tocava a mão, como quando lhe passava um prato, o tremor que a percorria era fisicamente perceptível. E quantas vezes, quando pensava que não era observada, ele lhe surpreendeu o olhar pousado nele, num olhar carregado de desejo e de toda a triste fome do coração.
Certa manhã, embora as visitas estivessem proibidas, ele achou que devia apresentar-lhe seus dois amiguinhos, os filhos do trapicheiro. Hans e Suzy foram chamados, apresentados e obsequiados com elevenses de bolo de cereja e laranjada. Depois, foram os quatro para o jardim fazer um boneco com a neve que se amontoara junto ao grosso tronco da árvore-de-judas. Essa neve, debaixo de sua dura crosta, era macia e maleável, e ele armou o balanço que fizera no verão passado, para que as crianças ali se balançassem. Que diversão, que gritos de alegria, que faces coradas e olhos brilhantes! Vendo-as brincar, Moray disse a Kathy, com certo laconismo:
- Você não gostaria de ter filhos... como esses?
Ela corou, depois empalideceu, súbito magoada.
- São lindos - disse, esquivando-se à pergunta. - Tão naturais e espontâneos...
Por que recusava ela o seu amor, os filhos que ele lhe poderia dar e todas as imensas vantagens de sua riqueza e posição? Por que... por quê? - Além do mais, que lhe poderia oferecer aquela opção? Naquela mesma tarde, no seu passeio favorito ao longo da alta cordilheira do Riesenthal, ele fez a si próprio essas perguntas com uma espécie de desânimo cismarento e desesperado, produzido pela primeira vez num lampejo de dificuldade vencida, por assim dizer de
um reconhecimento forçado de que devia haver alguma coisa na teimosia com que ela o recusava. E embora uma trégua se tivesse declarado entre eles, ao perlongarem a vereda de pinheiros polvilhados de nevosa prata, ele não mais pôde dominar-se.
- Querida Kathy, eu não queria reabrir nossas feridas, mas tal fato ajudaria a aliviar as minhas, se me fosse dada uma compreensão perfeita de suas razões. Você vai deixar-me, principalmente porque empenhou sua palavra?
- Em parte, sim - respondeu ela, de cabeça baixa. - Mas não é só por isso.
- Então, por que é?
- Conforme eu disse... por causa daquilo que se exige de cada um de nós. Vivemos numa época terrível, David... Parece que estamos sendo levados para a autodestruição - moral e física. Debaixo da superfície, todos temos medo, mas o mundo continua a afastar-se de Deus. Nunca venceremos, a menos que cada um de nós, cada pessoa isoladamente faça alguma coisa sobre o assunto... faça, pelo menos, a parte que lhe cabe, não importa quão pequena ela seja. Oh, não sou inteligente, mas é tão claro o que diz tio Willie! Devemos provar que o amor é mais forte do que o ódio... mostrar que a coragem, a abnegação e, sobretudo, a caridade podem derrotar a brutalidade, o egoísmo e o medo.
Mentalmente, Moray encarava o estado do mundo como tabu, exceto quando refletia que o seu destino era sair ileso desse mesmo estado. A despeito disso, ficou impressionado - e quem não o ficaria, perante um tão ingénuo fervor?
- Quer dizer que, por causa do dever e do serviço, você se condena a uma vida de sofrimentos e miséria?
- Miséria? - E ela ergueu a cabeça num protesto. - Você não pode imaginar as compensações pessoais de uma tal vida.
- Uma vida de sacrifício...
- É a única maneira em que é possível viver-se a vida. Principalmente hoje em dia.
- Não está falando sério...
- Nunca falei com maior seriedade. Espere até ver tio Willie. Ele tem sofrido aquilo que você denomina vida miserável; tem uma saúde precária... mas é o homem mais feliz do mundo.
Moray permaneceu calado. Na verdade, aquilo lhe escapava, estava além de si, fora da concepção que fazia da vida. Podia-se realmente ser feliz naquele lugar, fazer o bem naquelas paragens abomináveis? - perguntava a si mesmo com crescente nervosismo.
- E há mais do que felicidade - prosseguiu ela com dificuldade, lutando para se exprimir. - Há contentamento, paz de espírito e um senso de realização. Não é possível obter-se isso mediante o gozo da vida, mediante a corrida atrás do prazer, mediante os olhos fechados à dor alheia. E isso não pode ser comprado. Mas se alguém fizer um trabalho realmente bom, se fizer qualquer coisa em benefício dos outros... em benefício dos necessitados... - oh, não sei me exprimir, mas você me entende!... - E interrompeu-se, para logo em seguida continuar: - Se você tivesse clinicado, saberia... e eu creio... perdoe-me, David... estou certa de que teria sido muito mais feliz.
Ele continuava calado, mordendo os lábios e fustigando com sua bengala de ponta de aço os blocos de neve congelada que a passagem das carroças levantara na estrada. Ela, por sua vez, enunciava ingenuamente um chavão humanitário... Não havia, entretanto, algo mais do que um grãozinho de verdade no que ela dizia? O resultado das compensações que ele perseguia neste mundo não tinha sido apenas mágoa, tédio, insatisfações e remorsos reiterados, e uma constelação de complexos neuróticos, que mais de uma vez o haviam conduzido à beira da pressão nervosa?
- Querida Kathy! - exclamou ele com uma repentina piedade de si mesmo e num ímpeto de emoção. - Eu sempre quis ser bom... sempre quis fazer o bem... mas as circunstâncias foram mais fortes do que eu.
- Você é bom - disse ela pressurosamente. - Vê-se isso em seu rosto... Só precisa da oportunidade para prová-lo.
- Acredita sinceramente nisso?
- De todo o coração.
- Meu Deus, Kathy... Se você soubesse o que tem sido a minha vida, o que sofri até que... virtualmente, até que a encontrei... - E prosseguiu, emocionado: - Quando moço, na índia, literalmente apanhado num casamento desastroso; depois, durante anos, labutando na mó do moinho americano, para progredir... progredir... progredir... às vezes refugiando-me nas artes... Mas a trégua era apenas temporária; nunca obtive uma satisfação verdadeira, apesar da ilusão de a ter alcançado. Tudo tem origem na minha pobre infância de criança indesejável, quando a árvore da minha vida se formava - raízes, tronco e galhos. Disseram-me - ele evitou mencionar Wilenski, o analista, - e eu também sei, que todo o meu ser atual provém daqueles primeiros anos em que eu não era ninguém... exceto eu mesmo.
- Tudo isso que acaba de me dizer só fez convencer-me mais de que ainda pode realizar grandes coisas.
Ele estava muito comovido para responder, e ambos continuaram em constrangido silêncio. Todavia, as palavras de Kathy vibravam no cérebro de Moray, e ele sentiu que ela tinha razão: o potencial das grandes realizações permanecia vivo em seu interior. Que era mesmo que dizia aquele verso? "Realize nobres feitos, não fique o dia inteiro a
sonhá-los...". E, de repente, lembrou-se do conselho que Wilenski lhe dera em Nova Iorque: "Quando chegar lá, pelo amor de Deus, procure fazer alguma coisa útil, alguma coisa que se relacione com os outros, para não ficar pensando só em si mesmo." Por que ignorara esse conselho? Por que o esquecera? Foi preciso que Kathy lho lembrasse; que sua meiguice e bondade, a pureza de seu ser - não se eriçou diante da frase... - agisse nele inconscientemente, afetando-o sem que ele mesmo o soubesse. Como podia ser de outro modo?
Estava prestes a falar quando, erguendo os olhos, viu que tinham alcançado a choça da montanha onde, em ocasiões anteriores, haviam parado para tomar café - um café pobre, feito de pó inferior, mas que aquecia. Kathy parecia ter gostado, e a camponesa, de saia arregaçada sobre o saiote listrado, já os saudava, acolhedora. Sentaram-se no terraço de madeira sob um sol frio, ambos cônscios de algo momentoso e inevitável a crescer entre eles. Ele pôs-se a tamborilar nervoso em cima da mesa, tomou um gole de café rápido e descuidado, derramando um pouco em torno, pois a mão lhe tremia; depois, disse de chofre:
- Concordo, Kathy; concordo em que todos devemos fazer algo útil na vida. Esperei encontrar esse algo na dedicação que me propus oferecer a você. Mas agora... começa a parecer-me que algo mais se exige de mim...
- Que será, David? - e os lábios dela tremiam.
- Não adivinha? Foi você quem me fez sentir isso, não apenas por ter-me falado claramente, ainda agora, mas simplesmente porque está presente, Kathy - murmurou ele em voz baixa e vacilante. - Deixando de lado as demais considerações, precisa você realmente de mim?
Ela fitou-o com uma tensão que se diria estar além de suas forças.
- Como pode fazer uma pergunta dessas? - Depois disse, num súbito enfraquecimento de autodomínio, e esquivando-se, lastimosa, a encará-lo: - Preciso tanto de você... Queria... queria que você me acompanhasse...
Finalmente dissera, vira-se forçada a dizer o que até então trouxera trancado dentro do peito. Ele olhou-a fixamente, num trémulo silêncio de revelação, percebendo o apelo por que esperara durante aquele longo período de tensão.
- Quer dizer - disse ele lentamente, querendo ouvir mais, querendo pelo menos ouvir uma repetição daquela súplica, - quer dizer que você quer mesmo que eu a acompanhe nessa viagem?
- Não, não... quero que vá para ficar. - Ela falava quase febrilmente. - Como médico, há grande necessidade de você lá. Tio Willie pretende construir um hospital anexo ao orfanato. Ali você encontrará o trabalho exato para o qual está preparado, e que sem saber procura de todo coração. E ficaremos juntos... juntos e felizes.
- Para ficar junto de você, Kathy - concordou ele, emocionado, - eu daria o meu braço direito. Mas pense nas mudanças que isso vai acarretar ao meu... pelo menos, ao meu modo de vida. Outra coisa: já faz bastante tempo que me diplomei em medicina...
- Ora, pode recapitular depressa o que aprendeu... você é tão inteligente! Quanto ao modo de viver, logo se acostumará.
- Sim, querida Kathy, mas há outras dificuldades. - E um desejo desordenado de se fazer rogado forçou-o a prosseguir; - Assuntos económicos que exigem atenção constante, responsabilidades... Depois, no que concerne à Missão, você já sabe que não sou homem de fé... Embora concorde com o que você acaba de dizer, tenho dúvidas de que pudesse render-me às suas convicções espirituais.
- O trabalho que você fizesse seria a melhor das religiões. Em tempo oportuno, virá a conhecer o significado da graça. Oh, eu não sei, nunca fui capaz de falar dessas coisas... Transformadas em palavras, tornam-se rígidas, pesadas... Posso apenas senti-las com o coração. E você também as sentirá... se me acompanhar.
E as mãos deles se juntaram. A de Kathy, mercê da tensão interior, estava fria como mármore; mas ele a reteve estreitamente, até que o sangue começasse a palpitar. Nunca se sentira tão unido a ela; era como se a alma de Kathy fluísse agora para dentro dele.
A chegada da camponesa interrompeu aquele esplêndido momento. Como ele a fitasse sem a ver, a mulher apontou para o lado norte do céu e disse avisadamente:
- Es wird Schnee kommen. Schau, diese Wolken. Es ist besser Sie gehen zurúck zu Schwansee.
- Aconselha-nos a voltar - disse Moray. E, voltando à realidade, respondeu ao olhar inquiridor de Kathy: - Há ameaça de nevada; não tarda a cair.
Pagou a conta, deixando um generoso trinkgeld, e ambos começaram a descer a montanha, agora num silêncio total, pois ele estava profundamente mergulhado em seus pensamentos. A atmosfera tornara-se cinzenta, fria e muito quieta, e o sol, como uma enorme laranja sanguínea, depressa se escondeu por detrás da montanha. Antes que a hora se acabasse, já se achavam na planície, e, apreensivo quanto a Kathy por causa do crepúsculo enregelante, tratou de chegar quanto antes à villa. Porém, quando iam atravessar o breve trecho da estrada principal, que cortava o caminho de Schwansee, um Morris tipo esporte, vermelho, passou voando por eles, mais adiante parou com um ranger de freios, e ruidosamente deu marcha à ré.
- Alo, alo, alo! - foi a efusiva saudação que lhes veio num tom de alto diapasão. - Sabia que era você, meu velho!
Arrancado à sua meditação, Moray reconheceu com desconfiança o paletó de botões dourados de Archie Stench. Debruçado volúvelmente sobre a janela do assento dianteiro, sorrindo com todos es dentes, Stench estendeu uma mão enluvada que Moray aceitou com a amabilidade forçada de um indizível aborrecimento. O tom solene da tarde dissipara-se.
- Apresento-lhe Miss Urquhart, filha de uma velha amiga minha - disse ele depressa, na intenção de apagar o lampejo sugestivo que já brilhava no olhar malicioso de Stench. - O tio dela, missionário na África, vai chegar nestes dois dias.
- Que interessante! - largou Stench, escandindo a palavra. - Vem para cá?
- Para uma breve visita. - Moray sacudiu afirmativamente a cabeça, com uma expressão glacial.
- Gostaria de conhecê-lo. A África está nos noticiários; e de que maneira! Sopram ventos de mudança. Ah, ah! Uma verdadeira ventania sopra no Congo. Está gostando daqui, Miss Urquhart? É hóspede de Moray, suponho?
- Sim - tornou Kathy, respondendo a ambas as perguntas. - Mas logo partirei.
- Não para a África selvagem? - Olhando-a de soslaio, Stench lançou a pergunta em tom de facécia. - Sim, para a África.
- Santo Deus! - estridulou Stench. - Está falando sério? Mais parece lenda. Quer dizer que a senhora faz parte da exploração... perdão, do negócio missionário?
Kathy esboçou um sorriso, para desgosto de Moray, como se não fizesse restrições à insistência de Stench.
- Sou enfermeira - explicou - e vou à África ajudar meu tio, que está organizando um hospital em Kwibu... na fronteira de Angola.
- Obra benemérita! - disse Stench, radiante. - Quando todo o mundo está fugindo daquela região de furacões, a senhora se precipita para lá. A nação precisa saber disso. Nós, britânicos, temos de manter bem alto a nossa bandeira. Darei um pulo aqui, quando seu tio chegar. E você me dará um trago, velhinho, em nome de uma antiga amizade... bom, preciso ir-me. Estou exausto. Venho da Aldeia Pestalozzi, onde dei um espetáculo de prestidigitação para os garotos. Sessenta quilómetros para ir e sessenta para voltar. Uma estafa! Mas uns fedelhos bastante decentes. Felicidades, Miss Urquhart... Adeus, meu caro. Que maravilha você ter voltado!
E, enquanto recomeçavam a caminhar, Archie gritou para Moray, confirmando a futura visita:
- Não se esqueça: qualquer dia destes telefono.
- Parece boa pessoa - observou Kathy puxando conversa, após terem atravessado a estrada. - Bondade dele ir dar espetáculo para as crianças da Pestalozzi.
- Sim; está sempre ocupado com coisas desse jaez. Mas... é um tanto ou quanto intrometido... - respondeu Moray com tom de alguém que se via forçado a condenar, mas acrescentando, como se isto explicasse tudo - é correspondente do Daily Echo.
O infeliz encontro naquela hora especial, quando surgiam em sua mente questões vitais para a alma, havia-o transtornado completamente. Stench era uma ameaça. com os diabos, pensou ele voltando às coisas mundanas, em menos de meia hora a notícia do seu retorno com Kathy se espalharia pelo cantão inteiro.
com efeito, nem bem acabaram de tomar chá, o telefone tocou.
- Ligue para o estúdio - disse ele laconicamente a Arturo. - com licença, querida Kathy. Nosso amigo Stench já fez seu trabalhinho...
Uma vez no primeiro andar apanhou o fone, apertou o botão vermelho com um pressentimento irritadiço, imediatamente confirmado pela voz de contralto de Madame Von Altishofer.
- Seja bem-vindo à terra, meu amigo! Agora mesmo fiquei sabendo que você já regressou. Por que não me avisou? Foi uma ausência tão comprida! Fez grande falta aqui, todos falavam nessa ausência misteriosa. Quando poderei vê-lo? E à sua encantadora visitante, que tem planos para a escuríssima África?
Espantoso como ele achava desagradável essa intromissão! E não apenas o que ela dizia, mas a sua maneira de dizê-lo, e o seu inglês arrevesado, até mesmo as modulações de sua voz bem-educada. Limpou a garganta e lançou-se numa explicação perfuntória, cuja essência era a de que a insistência de velhos amigos de família o prenderam mais tempo do que ele previra.
- Parentes? - inquiriu ela, polidamente.
- Sim, de certo modo - tornou ele, evasivo. - Quando o outro hóspede chegar, espero que você apareça para conhecer os dois.
- Mas antes, quero que você venha tomar um drinque comigo.
- Bem que gostaria, se pudesse. Mas tenho tantas coisas a atender após tão longa ausência... - E, olhando para fora da janela, viu que os primeiros e frágeis flocos de neve principiavam a cair. Mais que depressa mudou de assunto: - Misericórdia! Já está nevando de verdade. Receio que o inverno já tenha começado.
- Sem dúvida - disse ela com uma risadinha. - Mas será que estamos reduzidos a falar sobre o tempo?
- Claro que não. Logo nos veremos.
De sobrolho franzido, pendurou o fone, dando por finda a conversa, aborrecido com a interferência dela... o que era totalmente injusto. A despeito da sua obstinação germânica, era Frida uma excelente mulher, a quem ele talvez tivesse dado excessivas esperanças ... Estava nervoso. Vinha-lhe outra vez aquela sensação de que o tempo urgia. Chegando ao andar térreo, ficou desapontado verificando que Kathy subira para seu quarto. Não apareceu até à hora do jantar, e ele percebeu que, para agradar-lhe, ela pusera o vestido verde. Comovido até ao âmago, viu que no mundo inteiro só havia para ele uma mulher. Desejava-a com uma necessidade tão grande, que precisou de se afastar sem o elogio habitual, sem sequer uma palavra. E depois do jantar, apesar de seus esforços para distraí-la, ficou alheado - preocupado, ou melhor, obcecado ante a necessidade de tomar alguma decisão nas horas minguantes que ainda lhe restavam. Depois de tocar alguns discos, desejou ficar só. Ela decerto percebeu; e, alegando fadiga, recolheu-se cedo, deixando-o na biblioteca.