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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A BATALHA DO APOCALIPSE / Eduardo Spohr
A BATALHA DO APOCALIPSE / Eduardo Spohr

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

Há muitos e muitos anos, há tantos anos quanto o número de estrelas no céu, o Paraíso Celeste foi palco de um terrível levante. Armados com espadas místicas e coragem divina, Querubins leais a Jeová travaram uma sangrenta batalha contra o arcanjo São Miguel e os anjos que o seguiam.

         Deus, o Senhor Supremo de Todas as Coisas, continuava imerso no profundo sono que caíra após ter concluído o trabalho da Criação – o descanso do Sétimo Dia. Enquanto Ele permanecia ausente, os arcanjos ditavam as ordens, impondo seus desígnios no Céu e na Terra. Sentados no topo de seus tronos de luz, cada um deles almejava alcançar a divindade.

         Concentrando todo o poder debaixo de suas asas, os poderosos arcanjos, onipotentes e intocáveis, utilizavam a Palavra de Deus para fazer jus à sua própria vontade. Revoltados com o amor do Criador para com os seres humanos, e movidos por um ciúme intenso, decidiram ir contra as leis do Altíssimo e destruir todo homem que caminhava sobre a Terra, acabando assim com parte da Criação do Divino.

         Impulsionado por essa fúria, Miguel, o Príncipe dos Anjos, enviou à Haled diversas calamidades mas, como insetos persistentes, os mortais resistiram. Os tiranos alados desejavam um regresso à aurora dos tempos, quando só os animais povoavam o mundo. Eles nunca aceitariam venerar uma criatura feita do barro, uma vez que tinham sido gerados a partir do próprio esplendor e glória do Senhor.

         Decidido a eliminar de vez a humanidade, Miguel ordenou que os Ishim, a casta angélica que controla as forças da natureza, arquitetassem a Destruição Final. Submissos, eles derreteram as calotas polares e a Terra foi inundada por um volumoso dilúvio. Não obstante, os mortais novamente subsistiram.

         Diante de tanta morte e devastação, uma conjuração teve início. Em sua inocência política os líderes dessa conjuração foram traídos por outro arcanjo, Lúcifer, a Estrela da Manhã, único que conhecia o plano dos revoltosos para libertar o Paraíso da opressão a que era submetido. Quando o Arcanjo Sombrio denunciou as idéias revolucionárias, os rebeldes foram derrotados, expulsos do Céu, e condenados a vagar pelo mundo dos homens até o fim dos tempos. Enquanto a luz do Sétimo Dia brilhar, enquanto Deus continuar adormecido, os anjos renegados serão perseguidos e mortos pelos agentes celestiais.

         Com o poder e prestígio que conseguiu por ter delatado os insurgentes, Lúcifer arquitetou a sua própria revolução. Movido por interesses nem um pouco justos, o Arcanjo Sombrio pretendia tomar o principado de Miguel e ascender acima mesmo do Criador, coroando-se em Tsafon, o Monte da Congregação, e tornado-se assim igual a Deus. O Filho do Alvorecer não queria apenas vencer seu irmão, mas desejava tornar-se ele próprio Deus – subjugar não apenas o monarca, mas também Yahweh.

         Muitos anjos, revoltados com a política celeste, não conheciam as motivações egoístas de Lúcifer, e se juntaram a ele. Ao descobrir a traição, o Príncipe dos Anjos declarou nova guerra, e uma segunda batalha estalou. Por seus atos e ambições macabros, a Estrela da Manhã e seus seguidores foram lançados ao Sheol, um poço obscuro de trevas e sofrimento, um lugar terrível, um cárcere permanente. Lá, o Arcanjo Sombrio governa, e espera o momento certo para iniciar sua vingança. Hoje, os mortais conhecem essa dimensão pelo nome de Inferno.

         Muitos milênios se seguiram às duas guerras angélicas, e então os humanos reinventaram o período das grandes catástrofes, com suas próprias armas modernas.

         Na Fortaleza de Sion, a Roda do Tempo está prestes a terminar o seu giro. No alvorecer do milênio, a humanidade caminha lentamente para o Apocalipse. Em nível regional, a marginalidade, a violência e o crime organizado são mais fortes do que a polícia e o governo. A pobreza e a miséria são crescentes. No plano internacional, há guerras por todo o globo, pessoas matando umas às outras e conflitos onde os mais prejudicados são os membros da indefesa população civil. Milhares de crianças morrem a cada dia, vítimas do ódio e do orgulho de líderes sem rosto, que lutam em prol de ideais hipócritas e egoístas. Não há justiça. O mundo chora. As pessoas sofrem. A civilização dá os seus últimos gritos desesperados em busca da salvação. Mas é provável que ninguém mais a ouça.

         No Céu e no Inferno, o Armagedon marca o início de uma nova era. Quando o ciclo for

completado, Deus despertará de seu sono e todas as sentenças serão revistas. O Tecido da Realidade cairá. Antigos inimigos se enfrentarão, e não haverá fronteiras entre as dimensões paralelas. E esse será o Dia do Ajuste de Contas.

         O crepúsculo do Sétimo Dia se aproxima, e a noite cairá em breve.

 

 

 

 

 

 

Tsafon, o Monte da Congregação, dias atuais.

Certo dia, o arcanjo Uziel, cansado daquela espera infindável, resolveu galgar o monte Tsafon e afrontar seu irmão. Armou-se de sua espada de fogo, vestiu uma armadura dourada e tomou a longa escadaria de mármore que levava à construção de pedra no topo do morro. Ao fim dos degraus, o Santuário do Alvorecer aparecia meio oculto pelas nuvens geladas, um aposento imponente, erguido por largas colunas redondas. Uma forte luz azulada coruscava em seu interior, um brilho que o arcanjo acreditava ser as emanações do próprio Deus Yahweh.

         Mesmo através de seu elmo polido, que completava o conjunto da bela couraça, o rosto de Uziel era austero, e demonstrava a sua vontade. Sozinho, ele ponderara por anos a fio, e agora enfim decidira visitar o Altíssimo, só para ter certeza de que o espírito de Deus continuava adormecido, deitado no santuário, e não morto, como às vezes ele suspeitava. Um dia, há muito tempo, Uziel havia contemplado a face do Criador, uma dádiva reservada só aos arcanjos – nem os anjos tiveram esse júbilo. E o que ele viu foi fraternidade, amor e compreensão. Então, como teriam os celestiais chegado àquele grau de corrupção? O Paraíso caíra em decadência, e junto a ele também o mundo dos homens.

         Mas o caminho ao santuário não seria facilmente vencido. Miguel, o Príncipe dos Anjos, irmão direto de Uziel, guardava o trono divino, e não estava disposto a permitir seu ingresso. Sozinho, ele bloqueava a passagem, brandindo sua espada sagrada, a insuperável Chama da Morte. Envergava uma armadura completa, prateada como os raios da lua, e adornada por detalhes dourados no peito, que formavam desenhos complexos no metal espelhado. O capacete, de crista vermelha e queixada pontuda, fora posto de lado, deixando aparentes as feições masculinas, a barba por fazer, e o rosto cheio de cicatrizes horríveis, adquiridas nas Batalhas Primevas, um confronto ancestral, sucedido antes mesmo da criação do universo.

         Miguel era o mais forte dos cinco arcanjos, o primogênito, o herdeiro do Criador. Seu cabelo, negro e comprido, era cortado por uma mecha alva que corria à nuca, e os fios estavam presos em um rabo-de-cavalo pouco alinhado. Se avistado por olhos humanos, poucos o reconheceriam como uma entidade celeste, não fossem as asas branquíssimas, afiadas como navalhas nas pontas.

         O vento ameno da aurora agitou o cabelo do príncipe, e soou com apito aos ouvidos de Uziel. O visitante estacou a dez metros do guardião, na parte mais baixa da escadaria. Silenciosos, os dois Gigantes se encararam – Miguel, forte e confiante; Uziel, indignado e decidido. O invasor levantou sua espada em posição de defesa, segurando a arma com ambas as mãos.

         — Saia de meu caminho, Miguel. Estou reivindicando o direito de visitar o nosso Pai Yahweh, em seu leito de repouso. É meu direito como arcanjo e descendente do Criador.

         Por um momento, o príncipe nada disse. Em seguida, desceu um degrau.

         — Você não vai a lugar algum, caro irmão. Minha paciência esgotou-se. Estou farto de sua insolência. Eu sou o Príncipe dos Anjos, e isso significa que eu sou o líder dos arcanjos também. A minha palavra é a lei – determinou – Yahweh está dormindo, como todos sabemos. E Ele não pode ser perturbado. Eu estou aqui para defendê-lo, e não será você ou qualquer outro que destituirá de minha função principal.

         Uziel pareceu ainda mais irritado.

         — E como saberei que Ele está mesmo aí dentro, Miguel? Você nos diz o mesmo há milênios, insistindo que, um dia, o Criador despertará para punir os injustos. Pois eu digo que este dia chegou. A podridão tomou conta do mundo. Já é hora de sabermos se o que fala é correto.

         — Atreve-se a questionar os meus comandos? Eu sou o seu irmão mais velho! Não duvide de seu comandante.

         — Veja aonde você nos levou, e pergunte a si mesmo se é realmente algum tipo de líder. Gabriel arrastou metade dos nossos anjos para uma guerra civil contra nós, e Rafael nos abandonou, caindo em desgraça. Se você se opuser a mim, qual o outro arcanjo que terá ao seu lado? Lúcifer? – ironizou, evocando o nome do maior de todos os inimigos do Céu: Lúcifer, o Arcanjo Sombrio, expulso pelo próprio Miguel do Paraíso junto com sua horda nefasta.

         O Príncipe dos Anjos lançou ao invasor um olhar de desdém, ao mesmo tempo em que levantava sua espada fulgente.

         — Eu não preciso de você, Uziel. Não preciso de ninguém.

         Então, o guardião empunhou sua arma, e a moveu para o ataque. Suas chamas cresceram, e a luz do fogo sagrado refletiu nos olhos castanhos do príncipe. Uziel sentiu vontade de fugir frente à majestade do inimigo, mas sua pujança o motivou ao combate.

         — Então é verdade, não é? É verdade o que Gabriel disse aos seus anjos... – Mas antes que Uziel terminasse, Miguel alçou vôo, abriu suas asas, e desceu para ferir o irmão com um golpe violento de espada. Ofuscado pelo brilho do sol, o visitante quase não se esquivou, mas conseguiu rolar para o lado no instante preciso. Um estrondo titânico abalou a montanha, e a lâmina flamejante tocou a escadaria de mármore, abrindo uma fenda larga no solo. O invasor teria caído pela encosta do morro, não tivesse adejado em reflexo. Ascendeu às alturas, mas em seguida mergulhou, aterrissando em um sítio acima do guardião, muito perto da passagem ao santuário. Dando as costas ao perigo, disparou para dentro do templo, subestimando a potência do algoz.

         Mesmo entendendo que jamais venceria o impiedoso vigia, Uziel continuou sua trilha. Queria entrar no Santuário do Alvorecer e vislumbrar a face do Onipotente, só mais uma vez, nem que isso custasse sua vida. Se o Altíssimo estivesse realmente adormecido, ele teria obtido a resposta que procurava – a de que a sua luta ao lado do arcanjo Miguel tinha sido legitima. Mas e se nada encontrasse?

E se Yahweh não estivesse deitado em Tsafon? Essa hipótese o apavorava sobremaneira, mas ainda assim pereceria feliz, sabendo que desafiara seu tirânico irmão, mesmo que num derradeiro momento. Teria, então, se redimido de todas as matanças, de todas as catástrofes que promovera, de todos os cataclismos que comandara.

         Correndo e voando, ele pulou para o interior do edifício, venceu as colunas e ultrapassou o umbral de entrada.

         Uma luz intensa confundiu seus sentidos, mas logo a vista se adaptou à claridade. No centro do grande aposento, surgiu um pedestal trabalhado, e sobre ele descansava um livro grosso, de aparência antiga, escrito por dentro e por fora. Aquele era o Livro da Vida, um magnífico artefato deixado ao Príncipe dos Anjos pelo próprio Deus Yahweh, e que relatava, em detalhes, toda a história do Sétimo Dia, desde a criação do homem até o crepúsculo dos tempos. Estava marcado com o código secreto dos Malakim, um idioma anterior à aurora do mundo. Miguel nunca deixava que qualquer um se aproximasse do tomo, e sua obsessão para com o objeto chegava a ser psicótica.

         Quando percebeu o que se passava, Uziel sentiu as costas rasgarem em um corte abrasado. A dor do fogo queimou suas asas, e o sangue escorreu pelo ferimento. Como um raio certeiro, a espada flamejante do furioso Miguel dilacerou suas costas, lançando o invasor ao estado letal. Atordoado, desabou contra o chão, largando o sabre e se esticando à espera da morte.

         O guardião pisoteou o busto do visitante, esmagando o metal da armadura dourada. Então, apontou sua lâmina ao rosto do irmão, em prelúdio ao choque final.

         — Miguel, você nos traiu! – protestou o ferido, cuspindo um refluxo de sangue – Você traiu a confiança dos arcanjos e de todos os celestiais.

         — Eu não traí ninguém, Uziel. Foi você quem traiu a si próprio.

         — Onde está Deus, Miguel? Onde está o nosso Pai Luminoso?

         Às portas do desfalecimento, Uziel ainda resistia, procurando resposta à sua busca desesperada. Não distinguira sinais do Altíssimo no templo de mármore, só os contornos de um livro envelhecido. O que teria acontecido ao Criador?

         — O Onipotente está aqui mesmo, Uziel. Será que não percebe? Ele está aqui, no Santuário do Alvorecer!

         Uziel maneou a cabeça, convencido da insanidade do irmão.

         — Yahweh está morto, é isso! Ele morreu ao fim do Sexto Dia! Não está apenas adormecido como você havia contado. Você nos enganou por todos estes anos, Príncipe Celeste – acusou – Eu me sinto envergonhado por ter acatado as suas ordens, mas estou feliz por, enfim, ter alcançado a verdade.

         Desta feita, Uziel acalmou-se. A vida o estava deixando, mas ele havia cumprido a sua missão. Agora, sua essência vital poderia se dissipar finalmente, e regressar ao ventre do Infinito.

         Pronto à execução, Miguel deteve sua espada por mais um segundo.

         — Perdeu seu juízo, pobre irmão. Se preferisse esperar só mais um pouco, não estaria agora estendido neste piso gelado. A Roda do Tempo não tardará a anunciar o Apocalipse. Mas não é sua culpa. Nada você poderia ter feito para evitar o destino. Assim está escrito – completou, fatalista.

         Então, o príncipe levantou sua lâmina, e Uziel aguardou a sentença.

         — Não me tome por louco – acrescentou o arcanjo Miguel, em inesperado discurso – Antes que morra, quero que saiba que eu só digo a verdade, e faço tudo pelo bem da Criação. Deus está adormecido, e se você não o encontrou quando entrou nesta sala – pausou e em seguida atacou com a espada, perfurando o estomago do moribundo – é porque não teve a dignidade de olhar para trás.

         Quando a arma encravou, o invasor se contorceu em espasmos de dor. Miguel trespassara seu peito, a parte mais sensível da anatomia angélica, onde está concentrada toda a essência celeste, toda a energia sagrada, todo o poder da aura pulsante.

         Com uma mão, o príncipe despedaçou a couraça, e com a outra arrancou o coração do irmão. Uma luminosidade mística envolveu o cadáver, e o corpo se dispersou em vibrações cintilantes. E esse foi o fim do arcanjo Uziel, patrono da casta dos Querubins.

         Vitorioso, Miguel se aproximou do pedestal, onde repousava o livro fechado. Deslizou os dedos sobre as inscrições, e sublinhou com os olhos os caracteres marcados. Virou-se para trás, para a nave do templo, agora vazia. Então, regressou a atenção ao tomo sagrado. Com um misto de seriedade e loucura, o arcanjo falou em sussurro:

         — Concordo com você em um ponto, irmão: chegou o dia de Deus despertar de seu sono.

 

Rio de Janeiro, costa leste da América do Sul, em um futuro próximo.

O Rei Caído de Atlântida

O sol estava se pondo.

         Em pé, sobre a gigantesca mão da estátua do Cristo Redentor, o Anjo Renegado observava a cidade, à aproximação do crepúsculo. Sua expressão, inabalável e serena, era de alguém que muitas vidas vivera, de um andarilho que percorrera o mundo, desvendara seus infinitos mistérios, e enfrentara toda a sorte de criaturas, abissais e celestes. Mas era também o semblante de um pioneiro, que visitara nações já perdidas, e que se sentara à mesa com os grandes homens de outrora. Era como se, nas profundezas daqueles olhos cinzentos, estivesse gravada uma parte singela de cada civilização, de cada povo, de cada cultura ancestral e moderna – das torres resplandecentes de Atlântida às pirâmides da Babilônia; das cidades-estado gregas à majestade do Império Romano; das catedrais medievais às caravelas de Sagres; das campanhas napoleônicas ao horror nuclear. A história de toda uma espécie vivia agora na mente do fugitivo, um guerreiro de jovem aparência, tão preservado quanto os homens mortais no auge da casa dos trinta.

         Às vezes o lutador ficava imóvel por horas, em absoluto silêncio, meditando sobre seus amigos já mortos, de maneira a não olvidá-los jamais. Padecia de um único temor: o medo de esquecer – esquecer os seus ideais, o seu passado, e a sua luta incansável.

         Uma rajada de vento sacudiu a montanha, balouçando os loiros cabelos do renegado. Ele os prendeu com uma fita, e caminhou sobre a estrutura de pedra. Seu equilíbrio era impecável, mesmo na estreita passagem, que completava o braço da escultura titânica. Não se parecia com um anjo de fato, porque escondia suas asas, enfiadas na carne. O rosto era nórdico, tipicamente, e o corpo atlético, forte e delgado. Guardava um aspecto felino – era a face de um caçador, sempre alerta ao perigo, e pronto a responder ao ataque. A barba, mais espessa à volta da boca, formava um cavanhaque dourado, e as roupas escuras delineavam uma silhueta sombria. Estático, inabalável ao vento, o Querubim esperava por algo. Provava o cheiro do ar, escutava o movimento das nuvens, e enxergava a despedida do sol.

         Dali, do cume da imensa montanha, mesmo os maiores arranha-céus eram agulhas, farpas minúsculas no coração da cidade. As águas da baía de Guanabara, cercada pelo morro do Pão de Açúcar e pelas brancas areias da enseada, refletiam o róseo brilho poente. Foi então que, à contemplação da paisagem, o celeste percebeu o quanto a metrópole crescera, desde sua chegada ao Brasil, há trezentos anos exatos. As praias estavam interditadas, e as fábricas poluíam a baía. As pessoas construíram pontes e ruas, e levantaram antenas no alto dos morros.

         Agora, era só uma questão de tempo até que o sol extinguisse seu fogo, e a civilização mortal perecesse.

         E o gigante dos tempos entendeu porque estava triste.

         Por mais que um dia tivesse sido um anjo, ele agora era humano também.

 

         O Tecido da Realidade tremeu, e um trovão correu pelas nuvens.

         A membrana mística, a película invisível que separa o Mundo Físico do Espiritual, fora abalada, lançando ao Plano Material dois visitantes, duas entidades tão fortes quanto o general exilado. Uma delas se materializara à distância, e permanecia parada sobre a grade de ferro que circulava a base da estátua. Emanava uma aura terrível, maléfica, cheia de ódio e furor. O segundo era amistoso, e não desejava combate. Apareceu ali perto, por cima do ombro do Cristo, próximo ao anfitrião renegado. Coxo, ele caminhou ao encontro do anjo guerreiro, apoiado em uma bengala afiada.

         — Ablon, o Anjo Renegado – sussurrou o forasteiro, evocando o verdadeiro nome do general        — Imaginei que o encontraria aqui. De certa forma não deixa de ser irônico...

         A criatura saiu das sombras e, tal como o lutador, parecia um homem comum. Maduro, tinha o corpo largo e maciço, mas era mais baixo do que o celeste. Usava um terno alinhado, imitando os trajes mundanos. Uma barba escura cobria a face, delineando um queixo redondo.

         — ... nos braços de Deus – completou.

         Orion, o Rei Caído de Atlântida. Era assim que o chamavam.

         — Pensei que você viesse sozinho – reagiu o Querubim, fitando o demônio disfarçado de gente, trepado na grade metálica a 30 metros abaixo de si.

         — Ah, sim, Apollyon... – a atenção de Orion se desviou à mureta de ferro – Eu sinto muito. Tive que trazê-lo. Ordens do chefe.

         As montanhas enfim engoliram todo o lume do sol vespertino, e o oceano aguardou o nascimento da lua. Já na penumbra da noite, Ablon virou-se para encarar seu velho confrade, um anjo caído, hoje um dos duques do Inferno, um monarca falido, que havia seguido as hostes de Lúcifer nos tempos da Guerra no Céu. Como muitos, Orion fora ludibriado pela persuasão do Diabo. Quando celeste, fora enviado à Terra para governar a legendária cidade de Atlântida, mas o Dilúvio destruiu toda a ilha, e sepultou seu povo adorado. O Rei Caído então regressou ao Paraíso, revoltado com as catástrofes incitadas pelo arcanjo Miguel. Assim, quando Lúcifer se levantou contra o Príncipe dos Anjos, Orion assumiu seu partido, mas a revolução fracassou, e os rebeldes foram lançados ao Abismo. Isso foi depois do expurgo dos renegados. Nos dias da revolução, Ablon e sua irmandade já haviam sido execrados. Se Orion estivesse no Céu à época da conjuração, talvez tivesse se juntado a ela.

         — Orion, em consideração à nossa antiga amizade eu aceitei me encontrar com você. Eu quero deixar claro que este é o único motivo. O seu mestre me traiu. O demônio que o acompanha – e ele se referia ao implacável Apollyon, um assassino terrível, conhecido por ter vitimado dez dos dezoito renegados – matou muitos de meus amigos. Ademais, eu nunca simpatizei com os condenados do Porão – era uma gíria que definia o Inferno – Portanto seja breve. O tempo corre.

         O Rei Caído sorriu. Aquele era o antigo Ablon, sem dúvida, o seu bom camarada que às vezes o visitava em Atlântida, e se sentava ao banquete nos dias festivos. O general não havia mudado. Orion o admirava porque, apesar das provações, das perdas e das perseguições, ele não largara os seus verdadeiros valores. Desafiara a todos para defender uma causa, e por ela continuaria lutando. Quisera eu ser como ele – pensou o monarca, mas ele reconhecia também o revés da liberdade. A morte e a solidão acompanham os exilados, e de repente Orion achou que, mesmo que tivesse escolhido o caminho dos bravos, ele talvez não conseguisse trilhá-lo.

         — Então você também notou, não é? – instigou o infernal – Os sinais. Eles são a prova

definitiva de que o fim do Sétimo Dia está terminando, e com ele toda a vida humana.

         O Apocalipse.

         Orion estava certo. Os sinais eram evidentes. Todos os símbolos e profecias apontavam para o Juízo Final.

         — Eu sou um anjo renegado, o último ainda vivo. Estou condenado a viver neste Mundo Físico. Não posso mais cruzar o Tecido da Realidade como vocês. Mas não é preciso ser muito esperto para notar que o Armagedon se aproxima – o guerreiro fez uma pausa, e então concluiu:

         – E é triste pensar que tudo o que fizemos foi em vão.

         Orion achegou-se ao exilado, e tocou o seu ombro. Mesmo manco, se equilibrava com maestria no braço da estátua de pedra, arrastando a bengala.

         — Não há mais saída, Orion – continuou o fugitivo – Não há mais esperança. O arcanjo

Miguel finalmente conseguirá seu intento, mas desta vez ele não enviará os seus anjos. A civilização humana arruinará a si própria, com suas guerras e armas modernas. E contra os homens, nada podemos fazer.

         Seguiu-se um longo silêncio, e a conversa penetrou na noite cerrada. Ablon continuava atento à silenciosa presença de Apollyon, o Exterminador, que o observava de longe. Os dois eram inimigos declarados, desde os tempos em que ambos eram generais no Paraíso – Apollyon era também um anjo caído, como Orion e Lúcifer. Era aquela uma contenda milenar, e essas brigas ancestrais só se resolvem na espada.

         — Há muitos anos, eu fui o príncipe de Atlântida – começou o visitante – Como um deus, eu governei a cidade. Cada humano era para mim como um filho. A felicidade estava em todo o lugar, e quase não existia o sofrimento. Naquela época, eu tinha um amigo. Ele era um formidável guerreiro, um soldado valente e sábio. Não raro, ele vinha ao meu palácio. Nós falávamos à multidão e depois cantávamos louvores ao Altíssimo – ele mirou as ondas do mar – Mas um dia, terminou a utopia. A fúria dos arcanjos devastou minha ilha, e o povo morreu. Com ela, acabou também o meu sonho, o meu desejo de difundir a perfeita civilização, sem dor ou miséria. Quando regressei ao Salão Celestial, soube que o meu amigo, o general incansável, havia enfrentado os primogênitos, e a coragem dele me fez prosseguir. Tudo o que eu queria era vingança, e então, desesperado, eu aceitei as idéias de Lúcifer. É verdade que fomos derrotados, e que tenebrosa foi a nossa punição, mas eu nunca me arrependi por ter confrontado o opressor. Para isso, eu me inspirei em alguém – o olhar voltou ao lutador – Por toda a sua vida você lutou, general. Não pode desistir logo agora.

         — E qual é a sua proposta? – perguntou, amolecido pela confissão do monarca.

         — Sei que Lúcifer o traiu. Talvez ele não seja a criatura mais justa do universo, mas é quem melhor conhece as fraquezas do tirânico Miguel. Todos, no Inferno e no Céu, esperam pelo derradeiro confronto, a batalha do Armagedon, que antecederá ao despertar do Altíssimo. O combate é a nossa última chance de despojar o Príncipe dos Anjos, antes de o Criador voltar à cena do cosmo. Os vencedores estarão mais perto de Deus, e a Ele apresentarão suas armas.

         — Quando Yahweh acordar, Ele punirá os perversos – argumentou o renegado – E não há dúvida de que Miguel será o primeiro a ser condenado, por ter usado a Sua Palavra para justificar tantos massacres. Então, por que não esperar, simplesmente. Por que não aguardar o regresso de Jeová?

         — Não sei quanto a você, mas nós queremos vingança – rebateu, e analisou o rosto sofrido do fugitivo – E eu diria que você também.

         — Tudo o que eu quero é a justiça.

         — Que seja. Chame-a como quiser. Os seus interesses estão ligados ao nosso. Miguel se

prepara para a guerra, e nós temos um inimigo em comum.

         — O que está me propondo é uma aliança – digeriu o guerreiro, incrédulo.

         — A Estrela da Manhã quer você ao nosso lado.

         — Seu mestre sabe que eu nunca me uniria a ele, não depois de ele nos ter enganado, e

denunciado a conjuração. Se eu tiver que lutar essa última batalha, não será sob as asas de um maldito farsante.

         Orion já esperava aquela resposta, e chegara a julgar estúpido o seu senhor, por tê-lo enviado à Terra com tão inusitada proposta. Mas por muitas vezes o Rei Caído se surpreendera com a perspicácia do Arcanjo Sombrio, e preferiu não julgá-lo precipitadamente.

         — Eu entendo todas as suas preocupações, mas desta vez é diferente. Este é o embate final de uma guerra que persiste por milhares de anos. Não haverá uma outra oportunidade para derrotar o arcanjo.

         Ablon cerrou os punhos, e fechou os olhos, em ligeira meditação. Tudo o que ele mais desejava era completar o ministério de sua vida, enfrentar o Príncipe Celeste e vingar a memória dos renegados. O anjo guerreiro sabia que jamais venceria uma guerra sozinho, mas certamente aquela guerra não seria vencida sem ele. Depois de tantas batalhas, de tantos combates, o fugitivo era o comandante ideal, o mais indicado para dirigir um exército hostil ao tirano. Mas, controlando ou não uma armada, Ablon iria desafiar Miguel mais cedo ou mais tarde, porquê essa era a sua demanda vital, o sentido de sua existência. O duelo só seria possível quando o Tecido da Realidade caísse, já que o exilado estava preso ao seu corpo físico, e portanto incapaz de passar ao plano espiritual, e de viajar ao Paraíso. E a membrana só desapareceria à conclusão do Apocalipse. Mas, caso firmasse acordo com Lúcifer, teria o Diabo meios de pôr príncipe e vagabundo cara a cara, para uma peleja mortal?

         — Estarei esperando por você nas proximidades da ponte Rio-Niterói daqui a quatro dias exatos. – disse Orion, quebrando o silêncio – Se você não estiver lá, eu voltarei ao Sheol e direi ao meu mestre qual foi a sua resposta.

         O renegado concordou, com um tímido sinal de cabeça. Não descuidava nem um instante de seu odiado rival, o demônio Apollyon, ainda empoleirado no gradeado. Era fortíssimo o tal Exterminador, um demônio guerreiro, pertencente à casta dos Malikis, os soldados do Inferno. A pele era morena como a dos beduínos, e os cabelos negros e ralos. Vestia um sobretudo marrom, muito batido, e roupas grossas. Tinha, assim como Ablon, instintos de predador, e é claro que estava preparado para o assalto, caso o celestial explodisse, e saltasse para atacá-lo.

         Orion andou para as trevas, mas acrescentou antes de desaparecer no escuro:

         — Quero que fique com isso – sussurrou, sacando um fragmento de pedra do bolso. Era

um estilhaço negro de basalto, e um símbolo em baixo-relevo marcava a superfície.

         — É a runa atlântica da paz – reconheceu.

         — Era parte do monolito que eu levantei na praça central de Atlântida. Foi a única coisa que sobrou da minha cidade – completou, melancólico.

         — Eu me lembro – respeitou o guerreiro, aceitando o presente.

         Ablon não era o único a sofrer com as memórias passadas. Orion também tinha os seus próprios fantasmas, e talvez fosse a dor que os unisse, a nostalgia inesquecível daqueles dias de glória. Compreendeu, então, mais uma das grandes emoções humanas. A ligação entre demônio e renegado era forte, porquê compartilhavam das mesmas lembranças. E essas recordações são invioláveis, precisamente porquê se transformam em lugares míticos, inalcançáveis, ícones para uma mente doída.

         Quando a lua nasceu, arrastando o anil da primavera, os dois infernais já haviam sumido. A membrana fora novamente partida, e agora Orion e Apollyon estavam a caminho do Inferno.

         — Lúcifer foi muito esperto ao mandar você até aqui, Rei Caído – sussurrou o celeste – É o único a quem ouço. Mas eu estarei preparado para tudo. Como sempre estive.

         Desceu a estátua com um pulo, e tomou a estrada em retorno à cidade.

 

Quarto Céu, doze mil anos atrás

As Guerras Etéreas

No princípio, havia O céu E a terra, as duas grandes dimensões de um uni­verso bem jovem. Há muito tempo, antes da queda de Lúcifer, o inferno não existia, só a Gehenna, o purgatório das almas, uma das sete camadas celestes destinadas a abrigar o espírito dos pecadores. Esse lugar não era muito diferente do Sheol, para onde o Arcanjo Sombrio e seus seguidores foram lançados após o fracasso na guerra. Na Gehenna a Estrela da Manhã governou, até que fosse expulsa pelo arcanjo Miguel.

Naqueles dias antigos, anteriores mesmo à conjuração, os anjos eram nu­merosos e fortes, e alguns por demais violentos. Antes do dilúvio, a civilização humana na terra era dominada por duas nações rivais: Enoque, a Bela Gigante, e Atlântida, a Pérola do Mar. Mas, apesar da majestade das grandes potências e de seus heróis inesquecíveis, sua influência não chegava a todos os rincões do planeta. Porções significativas continuavam independentes, e dezenas de milha­res de tribos e clãs habitavam o mundo.

Muitas aldeias não reconheciam a existência de um único Deus e veneravam suas próprias divindades locais. Essas divindades nada mais eram do que espíritos de grandes heróis que, adorados após a morte, se tornaram entidades po­derosas, crescendo com a energia das preces de seus dedicados fiéis, A fim de permanecer em contato com seu séquito de adoradores, essas entidades prefe­riram não seguir para o paraíso, mas ficar na camada mais profunda do mun­do espiritual, o chamado plano etéreo — daí se chamarem espíritos etéreos.

Com o tempo, os espíritos etéreos, personificados sob a forma de divindades tribais, foram ampliando sua influência, à medida que seus cultistas se multipli­cavam. Esse poder paralelo na esfera mística ameaçava a autoridade dos celes­tiais, que assistiam, aos poucos, à decadência de seu domínio sobrenatural sobre os seres humanos.

Diante da situação, os arcanjos determinaram que os espíritos etéreos deve­riam ser confrontados e destruídos. Iniciaram-se então as Guerras Etéreas, uma serie de campanhas militares conduzidas no plano etéreo, cujo objetivo era ani­quilar toda e qualquer entidade deificada. As Guerras Etéreas duraram cerca de dois mil anos, entre doze mil e dez mil anos antes de Cristo. Em algumas regiões, opecialmente no Oriente, as legiões celestes foram destronadas, mas em outras partes saíram vitoriosas.

Ao fim das Guerras Etéreas, os arcanjos retomaram a política dos grandes massacres, enviando pelotões de anjos à terra para assassinar os seres humanos. A justificativa era muito simples. Segundo Miguel, que dizia falar em nome de Deus, Yahweh havia se envergonhado de sua criação, tão perversos haviam se tornado os homens. A civilização humana não parava de guerrear — clã contra clã, tribo contra tribo, aldeia contra aldeia. Pelo ódio natural que carregavam no coração, os mortais deveriam ser descartados.

Muitos anjos bons não concordavam com os morticínios, mas como ques­tionar uma entidade que era a própria voz do Criador? E além disso, os arcan­jos eram insuperáveis em inteligência e vigor.

Os poucos que enxergavam a verdade sabiam que Miguel tinha inveja e ciú­me da humanidade, por Deus ter dado a ela o mundo, a alma e o livre-arbítrio. O Príncipe dos Anjos desejava em seu íntimo acabar com todos os homens, rou­bar-lhes a terra e assumir o trono do Deus adormecido, pelo menos até seu des­pertar. Mas ele não era o único. O ambicioso Lúcifer tinha igual motivação, e fet então que se tornaram rivais.

No entanto, a cada ano que se passava, à medida que a civilização florescia, engrossava o tecido da realidade. Assim, tornava-se cada vez mais difícil para os celestes agirem na esfera material, e então Miguel, indomável, arquitetou o cataclismo que, segundo ele, liquidaria de vez os "bonecos de barro".

Para seu desagrado, o príncipe descobriria a verdadeira resistência da espé­cie terrena.

 

Chuva de Sangue

No Quarto Céu, isolada no coração do oceano celeste, havia uma montanha delgada que se alargava no topo, imitando a forma de um cogumelo. Em seu cume ficava o Castelo da Luz, o principal núcleo de atividade dos guerreiros alados no paraíso. A fortaleza fora projetada para suportar mil legiões, prontas a defender o céu contra qualquer invasão. O líder do castelo era o arrogante Balberith, o príncipe da casta dos querubins. Temido por todos os soldados, envergava uma armadura sagrada chamada Couraça da Honra, dada a ele pelo arcanjo Uziel, patrono da ordem dos combatentes.

Naquele dia, há doze mil anos, a aurora dava espetáculo, e o sol nascente desenhava uma estrada tremulante no mar. Ablon, o Primeiro General, aterrissou no pátio central e contraiu as asas. Só então regressava ao forte, depois de um longo período de recuperação. Gravemente ferido durante as Guerras Eté­reas, o lutador quase perdera a visão ao afrontar o deus Rahab, chefe de uma horda de entidades etéreas. De foto, não estava totalmente curado, mas um acon­tecimento terrível antecipara sua volta.

Justo e bom como era, Ablon não tolerava participar das carnificinas orde­nadas pelos arcanjos, mas, enquanto descansava, o comando de sua legião fora entregue ao maior de seus adversários — o abominável Apollyon, o Anjo Des­truidor. Esse homicida nefasto liderara seus soldados em uma sangrenta incursão pela Haled — como os celestiais chamam o plano físico —, aniquilando um po­voado inteiro. A operação fora chamada de Chuva de Sangue, em alusão à pas­sagem atroz da legião.

Indignado, porém contido, o general retornou sem demora, preocupado em retomar a liderança de suas divisões. Mas, a despeito de sua querela com o Des­truidor, outro evento marcante estava para mudar para sempre a política angé­lica, e quanto a isso o lutador nada podia fazer.

No Palácio Celestial, no Quinto Céu, os cinco arcanjos discutiam a propos­ta de Miguel de lançar um cataclismo à terra. A decisão dos primogénitos seria anunciada em breve, e os dez generais deveriam estar reunidos — havia dez gran-is querubins sob a tutela de Balberith. Ablon e Apollyon estavam entre eles.

Lúcifer, a Estrela da Manhã, mostrara-se contrário à hecatombe. O impasse foi resolvido, então, com o envio de três celestiais à Haled, cuja missão seria comprovar — ou refutar — a perversidade dos homens. Se existisse ao menos uma pessoa justa e reta na face da terra, ela seria poupada.

Os escolhidos para a missão foram três anjos de castas distintas. Um deles era Balam, da casta dos hashmalins, ordem que defende a purificação da alma pelo sofrimento da carne. O segundo enviado era Nathanael, da casta dos ofa-nins. Os ofanins são anjos da guarda, figuras de luz e sabedoria que amam os mortais e os ajudam no caminho da salvação. Por fim, o terceiro designado era Baturiel, o Honrado, capitão da ordem dos querubins, guerreiro cuja única atri­buição seria arbitrar a disputa.

Durante a incursão, Balam tentou corromper cada mortal que encontrou, usando de seus estratagemas para incitar a cobiça nos homens. Nathanael ten­tou anular suas artimanhas, mas o hashmalim era ardiloso e teria voltado ao céu com um relatório impecável, não fosse por um único humano que resistiu às provações: Noé. E era precisamente sobre o destino desse homem que os arcan­jos agora deliberavam.

Ablon, por sua vez, já tinha em mente uma conjuração. Planejava reunir al­guns celestiais que compartilhavam das mesmas idéias que ele e depois buscaria o apoio de um dos cinco gigantes — Lúcífer, o principal inimigo do poderoso Miguel. Mas, para isso, a humanidade teria que sobreviver à próxima destruição, e então os conjurados agiriam.

Por ora, a situação estava nas mãos dos arcanjos.

 

O Castelo da Luz era uma edificação grandiosa, lapidada em pedra clara, ouro e mármore e praticamente inacessível por terra ou mar. Por ar, os virtuais inimigos teriam que, antes, vencer as numerosas patrulhas aladas que defen­diam a fortaleza. Por todos os cantos do céu, anjos armados deslizavam ao ven­to, subiam, desciam, mergulhavam e rodopiavam, em uma dança bela e mortal.

No pátio menor, uma área circular com cem metros de raio, os querubins praticavam técnicas de infantaria, manejando suas espadas contra oponentes invisíveis. Outros moviam suas lanças, simulando o combate, enquanto um re­gimento de mulheres-anjo praticava tiro com seus arcos fantásticos.

Ablon ajeitou sua armadura dourada, uma couraça peitoral coruscante. As armaduras completas, com placas por todo o corpo, estavam reservadas aos prín­cipes de casta e aos insuperáveis arcanjos — Balberith, o líder da ordem dos anjos guerreiros, tinha uma couraça completa. Depois, o general apertou a fivela cinto e desceu a mão à bainha, só para sentir o conforto de sua espada mística, a Vingadora Sagrada. Para os querubins, mestres da luta, a espada é uma rte do corpo, um acessório indispensável à batalha. Eles nunca esquecem suas armas e se sentem incompletos sem elas.

Nas alturas da fortaleza, a brisa gelada trazia o aroma da maresia. Com sen­tidos de caçador, o Primeiro General escutava as ondas a estourar na base da delgada montanha, novecentos metros abaixo. Ouvia o espargir dos respingos e as gotas salgadas escorrendo na rocha.

De repente, um movimento chamou sua atenção. No céu, avistou dois soldados em disputa feroz. Sem armas, eles trocavam socos e chutes, disparando nuvens e em seguida descendo ao pátio. Os duelos eram comuns no castelo e incentivados como parte da natureza dos querubins. De acordo com o código da casta, qualquer guerreiro podia desafiar outro de mesma hierarquia para um combate particular. No confronto, porém, as armas eram vetadas, e o uso de armadura, obrigatório. Assim, a peleja nunca era letal. O duelo virava treinamento diário, motivando os adversários a aprimorar suas habilidades. Muitos desafios eram aceitos na hora, e frequentemente a fortaleza se convertia em arena aberta. Anjos em serviço não podiam lutar, apenas os celestiais em período de descanso.

O costume de convocar alguém ao duelo consistia em desatar a fivela do cinto, deixando cair a espada. Era o sinal que indicava que o rival estava desarmado e pronto para a disputa. Os alados que portavam armas distintas — como lanças e arcos — simplesmente largavam o objeto no chão e aguardavam a resposta do oponente.

Esquecendo a briga, Ablon escutou um andar regular, acompanhado do tilintar de metal. O capitão Dariel, lutador célebre pela rapidez e percepção, parou diante do superior.

— General, o príncipe Balberith solicita a presença de todos os líderes de leg­ião no pátio central — anunciou, contraindo as asas em sinal de respeito.

— Ele adiantou alguma coisa?

— Baturiel retornou, senhor. Ele traz a decisão dos arcanjos.

 

A Vontade dos Homens

O pátio principal do castelo era enorme. Vista de cima, a fortaleza desenhava um grande círculo central, orlado por quatro pátios menores. Entre eles, altas torres de guarda faziam a segurança, com os olhos voltados aos pontos mais distantes do oceano.

A área do pátio somava trezentos metros de diâmetro. A leste, na direção do sol nascente, uma escadaria em meia-lua levava à sala de guerra, uma cons­trução semelhante aos templos de teto abobadado, suportada por colunas bran­cas e cingida por estátuas de aço que copiavam a imagem dos cinco arcanjos. O grande largo era envolvido por um peristilo, uma galeria de pilas trás em vol­ta da praça, formando um corredor circular.

A oeste, duas fileiras de pinheiros adultos delimitavam o caminho até uma larga piscina de mármore, cuja fonte de água brotava do coração da montanha. Nas torres e nos muros, galhardetes e flâmulas exibiam os brasões das legiões, diversos em formas e cores.

Balberith, o príncipe dos querubins, subiu a um parlatórío no pátio e en­carou os dez generais, ajoelhados diante dele. Não era um lutador muito forte, mas Incrivelmente ágil, frio e audaz. Com a armadura completa, parecia um deus dourado, de longas asas esbranquiçadas. Os cabelos eram vermelhos, com­pridos e lisos, e desciam pelas costas como uma cachoeira de fogo.

Ele enfrentou os oficiais como se fossem inimigos, arrogante que era. Gos­tava de imprimir medo em seus subalternos e, como todo militar, não admitia ser questionado. Quando entendeu que estavam ali os comandantes, prostra­dos e a suas ordens, anunciou:

—Miguel, o Príncipe dos Anjos, decretou a destruição final da humanidade.

Havia certa satisfação em sua voz. Era bajulador dos arcanjos e apoiava suas campanhas funestas. Ablon suspeitava que este era o motivo pelo qual ele co­locara Apollyon para controlar a legião.

— Mas a piedade dos gigantes é copiosa, e eles julgaram por bem poupar um único mortal, que se mostrou virtuoso. Esse homem será preservado, e também sua família.

— Então, há realmente pelo menos um humano justo e puro na face da ter­ra, meu príncipe? — indagou Sheníal, general conhecido pela cautela e inteli­gência.

— É o que foi constatado.

— E qual seria a participação da nossa casta nesse evento tão importante? — interpelou o ousado Apollyon, ávido por tomar parte na hecatombe.

— Nenhuma — devolveu o príncipe, indiferente. — O cataclismo será prece­dido de causas naturais. Os ishins farão todo o serviço. Um dilúvio. A destruição virá por meio de uma grande inundação.

         — E quem comandará a mortandade? — inquiriu o Anjo Destruidor, invocado.

         — Amael, o Senhor dos Vulcões, soberano da Cidadela do Fogo.

         — Esse Amael é um fraco — grunhiu Apollyon. — Até mesmo seu aprendiz, Aziel, despreza sua autoridade. Os ishins são incapazes, um bando de incom­petentes que nunca pegaram em armas.

         — Lembre-se de quem você é — alertou Varna, mulher-anjo comandante da legião das arqueiras. — Somos anjos, querubins e soldados. Nosso dever é obe­decer às ordens supremas e cumpri-las.

         — Não há lugar para nós nesta destruição — completou Ablon, contestando o Destruidor. — Faremos como nos foi ordenado.

         Aliviara-se por não ter que participar da matança. Mas, na certa, a preser­vação de Noé era um engodo para obscurecer uma decisão leviana. Os arcan­jos nunca achariam que uma só família mortal resistiria à desolação após o di­lúvio.

         Apollyon irritou-se ao ser contrariado por seu mais odiado rival. O sangue ferveu, e ele ensaiou uma réplica, mas Balberith o cortou.

         — Está acertado. Instruam seus soldados e assegurem toda a proteção aos ishins nessa operação. Alguns de nós teremos de ir à Haled para escoltá-los — e dirigiu o olhar ao Destruidor. — Você pode se apresentar como voluntário.

         Somos querubins, guerreiros, assassinos de Deus!— pensou Apollyon. Como dar o comando da missão aos ishins?— revoltou-se, e sua raiva recaiu sobre o Primei­ro General, que tão seriamente o questionara. Quem ele pensa que é? Tornou-se herói à minha custa, superando a minha legião nas Guerras Etéreas.

         Quando Balberith terminou, os generais se dispersaram. Imediatamente, Ablon imaginou como poderia arquitetar uma resistência. O Castelo da Luz não era o melhor lugar para principiar uma conjuração, mas não havia tempo a per­der. Nunca fora bom político, e teria que pensar muito se quisesse obter qual­quer tipo de apoio.

         Preferiu, então, procurar Baturiel.

 

         Baturiel, o Honrado, era um dos mais destacados capitães querubins. Seu principal rival era outro capitão, um guerreiro chamado Euzin, subordinado ao voraz Apollyon. Euzin consagrara-se nas Guerras Etéreas, depois de uma terrí­vel batalha em que venceu vários espíritos. Desde então, sua espada mística fi­cou conhecida como Raio de Aço, uma homenagem à lâmina mortal. Mas, pa­ra alguns, a fama tem seu revés. A celebridade o tornou orgulhoso, e Euzin virou um detestável celeste, invejoso e inseguro. Receava, mais do que tudo, perder o renome, por isso desafiava anjos mais fracos ao duelo, desviando de seus su­periores e desprezando o código da casta. Não cansava de humilhar seus solda­dos e cobiçava a posição de seus chefes.

         Ablon e Baturiel se encontraram no passadiço externo. De um lado, o preci­pício altíssimo terminava no oceano; de outro, uma escada descia ao pátio les­te, um dos quatro largos menores à volta da esplanada central.

         A despeito de sua natureza disciplinada, Baturiel não era simpático ao assas­sinato dos homens. Ablon conhecia bem seus lutadores e entendia a bondade do capitão. Mesmo assim, não incluíra seu nome entre os potenciais conjurados, porque era demasiado ordeiro, e o general temia que não fosse capaz de desa­fiar os arcanjos. Naquele momento, tudo que precisava era de um fio de espe­rança, uma centelha que lhe indicasse que os humanos poderiam resistir à ca­tástrofe.

         — A Haled... a terra dos homens — divagou o general, fitando o horizonte. — Poucos anjos conhecem a dimensão material.

         O lar dos celestiais era o paraíso, e muitos não gostavam de viajar ao mun­do físico.

         — Ela é para nós um lugar sufocante — acrescentou Baturiel. Trajava uma placa dourada, semelhante à couraça de Ablon, e carregava lança e espada. Ti­nha os cabelos curtos e negros, e os olhos como duas esmeraldas fulgentes. — O tecido da realidade limita os nossos poderes, e a cada dia a terra se afasta do pla­no espiritual. Desde que o primeiro mortal se esclareceu, tomando consciência de sua individualidade, os celestes não mais detém sobre eles o mesmo domínio. A força dos homens é inigualável, general. Foi esse o grande aprendizado que obtive em minha missão. Frágeis enquanto criaturas palpáveis, são insuperáveis em vontade. Esse é o poder de sua alma imortal.

         — Então me diga, capitão... A humanidade resistirá ao holocausto?

         Baturiel silenciou por um curto instante e depois respondeu.

         — Os homens têm sentimentos que nós, anjos, desconhecemos. São senti­mentos divinos, sublimes. Eles, que geram a vida como Deus nos gerou, não abandonam sua cria e de tudo fazem para protegê-la. E o tipo de emoção que nunca entenderemos. Talvez o Altíssimo lhes tenha dado esse instinto, o da pre­servação da espécie, para que vivessem para sempre na superfície da terra.

         — E qual é sua conclusão?

         — Os arcanjos nada conhecem sobre a humanidade. Suspeito que tenham medo de descer à Haled e nunca voltar, fascinados por suas maravilhas. O instinto humano da multiplicação é incrível, eu diria que nem todas as águas do mundo poderiam apagá-lo — afirmou, e finalizou num sussurro:

         — O dilúvio resultará em fracasso. A inundação não apagará a existência mortal.

         Ablon abriu um breve sorriso, mas o suprimiu em seguida. No íntimo, o coração festejava.

         — E será que a família escolhida resistirá ao cataclismo? Serão capazes de re­construir a civilização?

         — Nem só eles sobreviverão. Muitos desprotegidos também vão escapar à ma­tança. A resistência dos terrenos é admirável. Além disso, até Miguel tem seus inimigos, e agora me refiro a Lúcifer. Se os escolhidos morrerem, a unidade dos arcanjos será abalada. Não acho que o monarca se arriscaria a tal ponto. Uma briga entre Miguel e Lúcifer terminaria em uma guerra sangrenta, que poderia arrasar o paraíso.

         Lúcifer — pensou o Primeiro General. O Filho do Alvorecer será o trunfo dos conjurados — planejou. Quem melhor do que ele para apoiar uma revolta contra o perverso Miguel?

         Na ocasião, Ablon não sabia que seria vítima de sua própria inocência po­lítica. Lúcifer também era perverso, porém mais inteligente e astucioso que seu irmão. Não assumia uma postura tirânica, mas carismática. Muitos anjos — bons e cruéis — o adoravam, porque a Estrela da Manhã era a voz da liberdade em um reino opressor, a força que se levantava pelo direito dos fracos.

         Suas pretensões, no entanto, eram medonhas.

 

O Legendário Duelo

         Ablon ficou em silêncio ao lado do capitão, imerso no distante sonho da conjuração. Apollyon, o Anjo Destruidor, se aproximava pelo passadiço, seguido por dois celestiais que adejavam em escolta. Apollyon era quase um gigante, vi­goroso e possante — certamente o mais forte dos generais. Uma couraça de metal prateado protegia-lhe o torso, e na cinta levava uma lâmina afiada. Os olhos es­curos fulminavam, brilhando de ira e maldade.

         Ablon manteve apertado o cabo da arma, mas conservou a espada na bai­nha. Dificilmente seria atacado de surpresa, embora seu rival não obedecesse às regras da ordem.

Os olhares inimigos se cruzaram, e as sentinelas pressentiram a tensão.

         — Relaxe a guarda, guerreiro — disse o Destruidor, percebendo a prevenção do herói. — Só vim devolver-lhe o comando de sua legião, oficialmente.

         — Parece que conseguiu a vingança que procurava — retrucou Ablon, refe­rindo-se à rixa pessoal entre eles. — Estamos quites agora. Não quero mais con­tinuar esta briga — propôs, tentando pôr termo à rivalidade.

         — Aquela vitória era minha! — protestou Apollyon, relembrando as Guerras Etéreas. — Nossa contenda só terminará com sua humilhação — determinou — ou com sua morte.

         — Se assim prefere... Então é provável que nunca consiga sua desforra — de­safiou, o general, e isso enfureceu o brutamontes, que instantaneamente dirigiu o punho ao cinto. Ablon imaginou que fosse sacar a espada e assumiu posição de batalha, mas o perverso deslizou a mão até a fivela e a desatou.

         Os outros querubins debandaram e voaram para longe dali, espalhando-se como pássaros em revoada,

         Um duelo!

         Ablon não tinha saída. Era lutar ou morrer.

         O cinto e a espada de Apollyon caíram, e o guerreiro, compreendendo o desafio, abriu também sua fivela. Mas, antes que a Vingadora Sagrada tombasse, o Destruidor investiu como um touro e acertou um murro no rosto do gene-ral. Sua cabeça inclinou para trás, e o corpo angélico foi arremessado do passadi­ço ao pátio central. Só parou quando as costas encontraram uma grande coluna e, rachando a pilastra, ele escorregou para o chão.

         Com o nariz imundo de sangue, o herói viu o adversário chegar voando ao largo.

         — Pelo jeito, ainda não engoliu o fato de eu tê-lo superado na guerra — dísse Ablon, ainda aturdido. — Mas é bom se acostumar. Logo terá uma coleção de fracassos.

         — Você é atrevido, guerreiro. Vou esmagar sua ousadia.

         Os soldados, capitães e generais, surpreendidos pela escaramuça, correram para assistir ao confronto. Eis uma ocasião que seria por milénios lembrada: o combate entre os dois principais generais.

         Ablon se levantou, apoiado em um dos pilares. A visão era turva. A face en­sanguentada tornava a mirada obscura, mas ele distinguiu uma mancha verme­lha crescendo em sua direção — era o rival que corria novamente ao ataque.

Abrindo as asas em posição defensiva, o guerreiro usou os outros sentidos, menos feridos, para perceber o inimigo. Apollyon vinha em carga, e o general decidiu que seu próximo movimento seria um contra-ataque. Tolice bater de frente com ele, um monstro grande e poderoso.

         No instante em que os dois lutadores estavam para se chocar, Ablon se des­viou. E em vez de deixar que o inimigo enfrentasse as colunas, simplesmente o agarrou pela gola da armadura e alçou voo. Surpreso, o homicida não reagiu, à medida que era puxado para cima.

         Quando, enfim, o Primeiro General alcançou a linha das muralhas, empur­rou o oponente ao solo com tanta violência e rapidez que o grandalhão nem conseguiu abrir as asas. O Destruidor se espatifou contra o mármore, abrindo uma cratera no chão. O impacto da armadura na pedra gerou som estridente e fez as torres da fortaleza tremerem.

         Os anjos vibraram. As flâmulas das legiões sacudiram ao vento.

         Mas Apollyon não estava incapacitado, absolutamente, apesar da força do golpe. Ciente da resistência do inimigo, o general desceu voando para mais um assalto. Como uma águia, pretendia cair com as duas pernas sobre o brutamon­tes, pressionando o rosto do adversário contra o piso estilhaçado. O perverso, porém, pressentiu a investida e saltou aos céus com as asas abertas, para inter­ceptar o lutador. No ar, Ablon descia com a guarda afrouxada, e Apollyon gi­rou de baixo para cima, acertando o guerreiro com um chute feroz.

De novo, o herói foi jogado para longe, a oeste do pátio, onde duas fileiras de pinheiros desembocavam em uma piscina quadrada. O choque do corpo ar­rancou duas árvores, e o general continuou em trajetória, abrindo um caminho profundo no chão.

         Aquele era um duelo de grandes. Era melhor assistir a distância.

         Ferido, Ablon pulou da fissura, pronto para mais um embate. O sangue ago­ra subia pela garganta, avisando que algum órgão interno tinha se rompido. Quem disse que as batalhas desarmadas não eram letais? Sim, já houvera mortes em combates assim, mas eram raríssimas. As armaduras geralmente absorviam a maior parte da potência dos golpes.

De longe, Balberith observava a disputa. Nem mesmo ele, em toda sua vi­vência de guerra, tinha assistido a tão magnífico duelo. Claro que já tinha pre­senciado uma centena de escaramuças mortais, mas nunca entre dois generais. Com tanta pujança, o príncipe sabia que os oponentes poderiam até se matar e destruir o castelo. De acordo com a norma da casta, só ele tinha autoridade para interromper o confronto. Mas deveria pará-los? Apenas com um bom mo­tivo, ou os competidores seriam desonrados. Afinal, o duelo era um direito que assistia a todos os querubins. E, mesmo assim, Balberith não poderia se arris­car a perder um de seus comandantes. Preferiu, então, esperar e acompanhar a evolução da batalha. Talvez o próximo golpe finalizasse a briga — ou liquidasse um deles.

         No pátio, Ablon tomou posição, mas sentiu crescer a ardência por dentro. Um litro de sangue saiu pela boca, e ele se encurvou para cuspi-lo. Debilitado pelo enjoo, descuidou-se de seu inimigo, que pulou para esmagá-lo. Os pés do assassino atingiram-lhe o peito, e o grandalhão montou sobre ele. Em seguida, veio uma sequência de socos. A cada pancada, a cabeça do general afundava no chão, lanceando seu rosto.

         Ablon estava no limite de suas forças, machucado e com a aura já fraca. Te­ria apenas uma oportunidade de virar o combate, se acertasse um assalto pre­ciso. Mas como?

         Os querubins conhecem uma técnica especial chamada Ira de Deus, com a qual concentram toda sua energia divina em um único golpe. Essa tática não era usada com frequência, por seu caráter potencialmente fatal. O Primeiro Ge­neral estava certo de que se lançasse a Ira de Deus sobre Apollyon poderia ven­cê-lo, mas a disputa se transformaria em uma peleja mortal.

         Reanimado por uma raiva suprema e estimulado pelo cheiro de sangue, o guerreiro acometeu.

         A Ira de Deus!

         Sim, esse combate seria para sempre lembrado.

         O punho vermelho de Ablon reluziu em uma leve aura dourada e encontrou o estômago do homicida. Num instante, a armadura do brutamontes cedeu e se partiu ao meio. O Anjo Destruidor foi atirado para cima, como se atingido por uma explosão colossal. Foi lançado na direçáo das muralhas, traçando uma linha de sangue no ar e depois batendo contra as pedras do passadiço.

         Interromper o duelo? — pensou Balberith.

         Uma dezena de estilhaços de rocha despencou para o mar, e alguns especta­dores nos muros foram também acertados. Apollyon desabou, caindo paralelo ao rochedo. Sem a armadura, estava vulnerável não só ao perigo da queda, mas também aos ataques do general.

         Ablon voou à passarela e de lá viu seu inimigo desabando, desgovernado demais para desfraldar as asas. Resolveu, então, que sua vitória seria total. Era um querubim, um combatente honrado, e prosseguiria a luta em igualdade, mesmo que o Destruidor não desse importância ao código.

         Assim, desfez as amarras laterais da couraça e largou a placa de lado. Com o peito nu, derrotaria o adversário.

Então, com sobrenatural velocidade, mergulhou na direção do oponente, que raspava nas pedras a cada segundo. Dali, eram pelo menos novecentos me­tros até o sopé da delgada montanha, onde uma praia de pedras pontudas os aguardava.

         No cimo de uma torre dourada, Balberith observava inquieto o duelo, a ex­pressão preocupada encrespando-lhe o rosto.

         Interromper o duelo?— pensou novamente.

         No passadiço, o capitão Baturiel também divisava a batalha, calado. Euzin, subordinado a Apollyon, visualizava igualmente, do outro extremo da fortaleza. Um deles seguramente perderia seu general.

         Perto do príncipe da casta, à volta da bastilha de ouro, Shenial, um dos dez generais, dirigiu-se a Varna, a comandante da legião das arqueiras.

         — Agora eles estão sem armadura, a única coisa que assegurava que sairiam vivos deste combate. Sem ela, um deles vai morrer, com certeza.

         — Sim, mas qual deles? — rebateu a mulher-anjo. Interromper o duelo?— ponderou Balberith, sinceramente.

         Enquanto Apollyon desmoronava pela encosta, Ablon disparou, procurando a garganta do inimigo. Batendo as asas com toda a energia, agarrou o pescoço do Destruidor com as duas mãos, fortalecidas pela Ira de Deus. Despencando, no meio do caminho entre o castelo e o mar, o guerreiro não sentia mais nada ao seu redor, obcecado por um único objetivo sangrento: matar o perverso. O mundo à sua volta era só um cenário sem vida. Tudo que importava era aque­la peleja, seu duelo final.

         Engalfinhados, os dois competidores entraram em combate cerrado, enquan­to rolavam pelo paredão. E assim, no meio da luta, Apollyon invocou sua pró­pria Ira de Deus, quebrando as costelas do herói com murros consecutivos.

         De súbito, então, os golpes pararam.

         O possante Apollyon, perceptivo, agarrou forte a goela do general com uma só mão e com a outra puxou o braço do inimigo. O corpo de Ablon rodou e logo ele estava por baixo, em plena caída,

         Um segundo depois da manobra do assassino, as asas do guerreiro encon­traram o chão de pedras afiadas, em uma sufocante batida. A pele, já arranha­da, lascou-se em cortes profundos, e o sangue escorreu pelas penas. As últimas forças do general estavam a sumir novamente.

         Os lutadores estacaram, imóveis nas rochas. Perto dali, a seção prateada da couraça do Destruidor jazia num buraco de erosão — a mesma placa que se que­brara ao receber o ataque enfurecido de Ablon. Mais próximo ao aclive, logo atrás, uma pilha de escombros de mármore evidenciava a destruição da muralha.

Apollyon mantinha os dedos apertados em volta da garganta do inimigo, imobilizando-o com o joelho no peito. Ambos estavam arrasados, feridos e fa­tigados. Mas cada um acreditava ainda na própria vitória.

         Interromper o duelo!— decidiu Balberith.

         Supostamente em perfeita vantagem, Apollyon não estrangulou sua vítima. Manteve o general preso e ergueu a mão direita para a investida final.

         O coração! O Destruidor visava o coração, a parte mais vulnerável da ana­tomia angélica. Perfurar o coração de um celestial é o mesmo que matá-lo na hora, e essa seria a próxima manobra do assassino. Para os alados, não há outra Tida após a morte. Sua consciência se apaga» e a vibração pessoal regressa à fluên­cia do cosmo. Talvez por isso os dois lutassem tão bravamente para preservar a existência.

         O brutamontes se preparou, concentrando a Ira de Deus. Mas Ablon não estava assim tão indefeso. Escondera na manga um segredo, uma estratégia de guerra. Fingia estar abatido, mas se esquivaria do assalto no momento mais cru­cial, deixando que o atacante estourasse o punho nas pedras. Então, aplicaria a aut ofensiva fatal.

         O herói viu os dedos do inimigo se enrijecerem em forma de garras. Man-tinharn olhos nos olhos. Um único deslize levaria um deles à morte. A vida estava segura por uma fronteira bem frágil.

         E assim, no auge do combate, uma voz ecoou por todos os oceanos:

         — Parem agora! — ordenou Balberith, flutuando para baixo com as asas abertas.

         Mas a fúria de Apollyon não amainara, e ele esticou a mão como uma lança, desprezando o comando do príncipe. Na hora Balberith endureceu, e sua fala soou como um trovão:

         — Por acaso você tem a intenção de me desobedecer, Apollyon? — perguntou, cm tom assustador.

         É claro que tenho!— pensou o assassino. Mas só pensou.

         A paisagem retomou a cor, e a cólera diminuiu no semblante dos predadores. Balberith pairou a três metros da água, repreendendo os duelistas com uma expressão irritada.

         Centenas de anjos mergulharam para a base do alto rochedo, para assistir à conclusão da legendária disputa. Mas eles não eram os únicos que queriam a continuidade da briga. Os dois rivais, mesmo já esfriados, desejavam terminar logo o embate.

         — Meu príncipe, deixe que prossiga o confronto! — suplicou o Primeiro General. Não queria desobedecer ao superior, mas era grande a vontade de exter­minar o adversário e conservar a honra.

         Balberith chegou ao lado dos dois celestes e os encarou. Não usava sandálias, como os outros, mas botas de couro macio. Sua presença era fascinante, e sua aura, admirável.

         — Se insistirem neste combate, terei que matá-los — blefou, e fez gelar o san­gue dos generais. Ainda que poderosos, nem Ablon nem Apollyon eram páreo para o príncipe da ordem. O Destruidor se enfureceu com a decisão e teria ata­cado o soberano, mas preferiu guardar seu ódio. Felizmente para ele, Balberith era um combatente, mas não podia ler pensamentos. Se pudesse, Apollyon es­taria arruinado.

         Os oponentes se levantaram.

         Quando o ruivo foi embora, regressando à torre dourada, o brutamontes rosnou:

         —Ablon, da próxima vez não haverá nenhum príncipe para salvá-lo.

         — Esperaremos ansiosos por esse dia — devolveu o lutador, dando de om­bros e voejando ao Castelo da Luz.

         O duelo estava encerrado.

 

A terceira guerra

ablon estacionou a motocicleta de guidão cromado em um beco escuro, desmontou e atravessou a estreita rua de paralelepípedos, já deserta àquela hora da noite. Mesmo sendo uma cidade grande, algumas áreas do Rio de Janeiro, especialmente as do centro, conservam a arquitetura do século XIX — sobrados de três andares, igrejas barrocas e vias pouco iluminadas , uma herança do pas­sado colonial que continua presente nas zonas históricas, onde outrora caminha-lam piratas, jesuítas e escravos. A alguns metros dali, as ruelas antigas conver­gem em uma larga avenida asfaltada, margeada por enormes arranha-céus com anúncios de néon no topo. Pela calçada, buracos de metro adentram o solo, à luz dos postes noturnos e dos semáforos piscantes. Esse é o aspecto do centro, uma conjunção entre o velho e o novo, um choque arquitetônico entre a urbe moderna e a extinta capital da colónia.

         Há cerca de cinquenta anos, com o crescimento da cidade, muitas pessoas ac mudaram para bairros mais distantes, e o centro deixou de ser residencial, passando a ser exclusivamente comercial. Quase ninguém mais mora por ali, e os poucos residentes são na maioria mendigos ou forasteiros que dormem em abrigos ou nas poucas pensões, mais usadas pelas prostitutas.

         À noite, aquele é um bairro fantasma, visitado apenas pelos operários da prefcitura, que consertam sinais de trânsito e reparam o asfalto. Quando chega o dia, contudo, a vizinhança é invadida pela mais heterogénea das turbas exe­cutivos de terno, aleijados, pedintes, vendedores de amendoim, motoristas de ônibus, estudantes atrasados e pregadores religiosos. O movimento diminui só pelo fim da tarde, ao término do expediente, quando os trabalhadores voltam para casa. Alguns permanecem, divertindo-se nos bares ou frequentando os pros­tíbulos, mas tudo acaba antes da meia-noite, para renascer com o brilho do sol.

         Havia uma pensão escondida no lado antigo, o Hotel Montenegro, que Ablon escolhera como refúgio. Conseguira convencer o proprietário a alugar um dos quartos grandes por tempo indefinido, o que salvou as contas da hos­pedaria, já quase entregue às baratas.

         Se havia um lugar na cidade para um anjo renegado se hospedar, era aquele local. O Hotel Montenegro não passava de uma pensão desprezível, pratica­mente abandonada. E, mesmo sendo uma construção bem antiga, o mundo es­piritual estava limpo sob o tecido da realidade — nada de espíritos arrastando correntes ou espectros saindo das sombras. Os antigos residentes do sobrado, conforme Ablon já concluíra, não deixaram assuntos pendentes para castigar a alma. Ao contrário do que se pensa, nem sempre os fantasmas atormentam os vivos, mas os anjos podem avistá-los no plano astral, e é aborrecido, por ve­zes, assistir ao lamento das assombrações.

         O Hotel Montenegro estava de acordo — isolado e obscuro, um buraco de­cadente na cidade decrépita.

 

         Ablon abriu a porta e entrou no apartamento. O quarto era grande, anti­go, com o pé-direito alto e o chão de madeira, que provavelmente fazia parte da construção original. O cómodo, largo e sem divisórias, ocupava todo o ter­ceiro andar do sobrado. O proprietário contara ao renegado que o recinto fo­ra, no passado, uma espécie de depósito. Havia poucos meses, ao se estabelecer ali, o celestial trouxera centenas de inusitados objetos, artefatos que colecionara por cerca de seís mil anos. Nunca carregava coisa alguma em suas viagens, mas guardava os itens em sítios escondidos, e agora ele os reunira em seu refúgio. Assim, o salão mais parecia um pequeno museu. Nas estantes abarrotadas, des­cansavam documentos ancestrais, tomos de feitiçaria, tapeçarias medievais, trata­dos helênicos, papiros egípcios, mapas espanhóis e exemplares de livros originais do século XIX, incluindo um manuscrito de A origem das espécies, de Darwin. Outras prateleiras sustentavam mais caixas, dentro das quais jaziam gládios ro­manos, armaduras japonesas, escudos nórdicos, placas sumérias, quadros renascentistas e outros ícones culturais que Ablon preferia preservar, nem que fosse simplesmente para não esquecer o próprio passado.

         Trancada a porta, o lutador tirou o sobretudo emborrachado, que usava pa­ra se proteger das chuvas frequentes que caíam sem avisar naquela cidade úmida e quente. Puxou uma cadeira e se sentou à maciça távola de mogno, entulhada de jornais e revistas, que dividiam espaço com rolos envelhecidos de pergaminho, escritos em aramaico. O guerreiro estivera, por semanas, analisando os periódi­cos e buscando ligações entre os fatos recentes e as velhas profecias. Infelizmente, reconhecera os paralelos e notara os sinais.

         Os sinais do Apocalipse.

         Para um pária como Ablon, era difícil saber o que acontecia no céu ou no inferno. Mas, com o tempo, ele foi entendendo que os eventos espirituais en­contram reflexo no plano físico. Foi assim que, pela primeira vez, percebeu os sinais, os indícios que confirmavam os últimos dias da terra. Começou com aqui­lo que os profetas chamaram de "cavaleiros do Apocalipse". Não houve cavalei­ro de fato nem entidades montadas que personificassem a previsão. Mas o re­negado podia percebê-los nas guerras no Oriente Médio, nas crianças famintas da África, nas epidemias, nos falsos videntes e em todo lugar onde a morte arrastava seu manto. Depois, a situação mundial se degradou, e isso nada teve a ver com as forças infernais ou celestes.

         No início do século XXI, a crise econômica mundial voltou a fomentar o expansionismo das grandes potências, a exemplo do que acontecera em fins do século XIX, Os Estados Unidos da América, abalados por problemas políticos e financeiros, buscavam expandir seus territórios de influência, invadindo e ocu­pando dezenas de países menores. Após a invasão do Afeganistão, os americanos avançaram para o Iraque e depois continuaram a operação, ocupando a Síria, O Irá e a Líbia, sempre sob o pretexto de autodefesa. Acusavam levianamente seus inimigos de deter arsenais de armas químicas, biológicas e nucleares, argu­mentos que quase sempre eram refutados pelos inspetores das Nações Unidas. Fixando o domínio sobre esses países, os estadunidenses fecharam o cerco ao Oriente Médio, estabelecendo bases sólidas para suas operações na Ásia. Para assegurar o contingente de tropas nas regiões ocupadas, os EUA selaram um pacto de cooperação com os principais países da Europa, encabeçados pela Grã-Bretanha, Itália e Alemanha. Assim criou-se a chamada Liga de Berlim, em alusão ao nome da capital que abrigou os chefes de Estado durante a conferên­cia que formalizou o acordo.

         Surgia, porém, a necessidade de implantar um posto de operações no Orien­te, e o marco escolhido foi Taiwan, cujo governo aceitou de bom grado o capital investido pelos patronos ocidentais. Mas a aliança com a ilha não passou des­percebida aos olhos da China e da Coreia do Norte, nações que assim como os Estados Unidos, desejavam expandir suas áreas de influência e dominar mer­cados. Os dois países exigiram a evacuação das empresas ocidentais de Taíwan, e a recusa levou ao primeiro grande conflito do século XXI, a Guerra dos Tre­zentos Días, que vitimou em apenas um ano cerca de três milhões de pessoas, entre militares e civis, e terminou com a vitória do Oriente. A Liga de Berlim foi obrigada a deixar a ilha, e desde então os dois blocos trocam hostilidades, como uma panela de pressão prestes a explodir.

         A China e a Coreia do Norte entenderam que eram os principais alvos da Liga e decidiram pela expansão. Em uma campanha sem precedentes na histó­ria da humanidade, os dois exércitos invadiram o Japão sem disparar um só tíro e ocuparam todo o arquipélago, na chamada Ofensiva dos Dois Exércitos. Fe­charam acordos de cooperação com a índia, Mongólia, Tailândia, Malásia, Indo­nésia e Filipinas, mas o golpe final ainda estava por vir. Descontentes com a miséria crescente após o fim do comunismo, os russos abraçaram com todas as forças a causa chinesa, e o país se uniu ao bloco do leste, formando a Aliança Oriental, que recebeu, em poucos meses, adesões de algumas ex-repúblicas so­viéticas-

         Preocupados com a perda de soberania, os americanos conseguiram, depois de inúmeras conversações, o apoio do Canadá e da preciosa Oceania, e conti­nuaram sua política expansionista, invadindo Cuba e Panamá. Um novo con­fronto entre os dois blocos estourou na Turquia, úníco país muçulmano aliado à Otan, aja desfeita Organização do Tratado do Atlântico Norte. O governo turco se dividiu, dando origem a dois partidos que pegaram em armas e trans­formaram Ancara em um mar de sangue, afundando a nação em uma guerra civil. Cada uma das potências enviou armas e tropas. Para a Liga de Berlim, era imperativo deter o controle da Turquia, para que pudesse fazer uma ponte com os países ocupados do Oriente Médio. A Aliança Oriental, por sua vez, sabia que, se os inimigos tomassem a capital, se abriria uma frente de invasão pelo sul.

         Estava, então, armado o palco para um conflito mundial. De um lado, a Liga de Berlim, formada pelos Estados Unídos e a Europa; de outro, a Aliança Oriental, liderada pela China, Coreia do Norte e Rússia. E no meio desses dois blocos conservavam-se neutros os países pobres da África e da América Latina, agora mais preocupados em defender as próprias fronteiras. Foi nesse contexto calamitoso que os sinais se tornaram mais claros. Ablon sabia que um embate dessas proporções culminaria em um confronto atómico, e não via salvação pa­ra a humanidade caso isso acontecesse.

         Mas isso tudo seria simplesmente mais uma guerra, não fossem os rasgos permanentes no tecido da realidade. Todos, anjos e demônios, sentiram que a membrana estava se desfazendo. E compreenderam, alguns mais cedo que ou­tros, que o Apocalipse estava em decurso, e começaram a se preparar para o Armagedon — a batalha final que decidirá a soberania da Haled, que estará aber­ta à invasão espiritual quando a membrana cair.

         Apesar de todos tomarem por verdade a profecia sobre o despertar de Yahweh, oa melhor não arriscar. Ambos — celestes e infernais — já preparavam suas fileiras para o maior dos confrontos e esperavam o estalar do conflito. Os únicos que seriam capazes de antever o futuro — os malakins, uma casta de anjos estu­diosos e sábios — não falavam mais nada. Eles se distanciaram do céu, e alguns sustentavam que evoluíram a outras esferas, imergindo em transe profundo.

         O pergaminho em aramaico na mesa do renegado era o texto original das revelaçóes de João, que narra a visão do profeta sobre os últimos dias do mundo. Ablon conseguira esse registro por sorte em Roma, no ano de 119, época em que o Império estava sob o comando de Adriano. O general comprara o do­cumento de um ladrão de estrada, que o tinha roubado de um aristocrata ítaliano. Nenhum deles — nem o patrício nem o gatuno — sabia o valor do que esta-iram portando. O texto fora copiado quando João ainda vivia, e o original deve ter caído nas mãos de algum centurião nos anos em que o apóstolo foi atirado ao cárcere, com outros cristãos. Já nessa época, em 119, o pergaminho estava apodrecendo, mas o querubim conseguiu recuperá-lo com uma mistura à base de ervas, uma receita secreta da Ordem de Sippar, a ele ensinada por uma amiga feiticeira. A versão bíblica atual de João é praticamente a mesma, salvo al­guns erros que os escritos sofreram quando foram traduzidos para o grego.

         O apartamento estava iluminado somente pela luz dos postes noturnos da rua, que chegava ao quarto através de uma larga janela. Sentado, Ablon recolheu alguns papéis e com eles organizou uma pilha. Em seguida, levantou-se e espiou lá fora.

         Tudo calmo.

         Sentiu o peso da runa atlântica da paz, inscrita no fragmento de basalto. Tirou o objeto do bolso e o examinou, sob o brilho fraco das lâmpadas urba­nas. Então, andou até o telefone e puxou o gancho ao ouvido.

         Começou a discar.

 

Shamira, a Feiticeira de En-dor

         Shamira era a supervisora da escavação. Não era para menos. Toda a expedi­ção fora financiada por ela mesma, uma mulher que dominava como ninguém os mistérios da arqueologia. Não quis o auxílio de universidades ou organizações, mas também não precisava. Aquela era uma pesquisa pessoal, um objetivo par­ticular, uma missão.

         Fora o trabalho operário, a moça fazia todo o resto — mapeava a área, regis­trava os objetos, estudava o solo e montava os equipamentos. Em todo o mundo, não havia ninguém melhor do que ela nos segredos sumérios. Conhecia mui­to bem aquele deserto, uma região que visitara pela primeira vez havia quatro mil anos, quando fora a Babel invocar um espírito.

         O sítio de escavação fora montado nas proximidades das ruínas da fabulosa Babel, mas a mulher não procurava vestígios da capital esquecida. Buscava só um objeto, um item ordinário em aparência, mas carregado de poder magnífi­co, um artefato havia muito deixado naquele cenário infértil.

         Esperta, Shamira fitou com cuidado a vala, escavada em diferentes níveis de profundidade. No acampamento, o sol atingira o zénite. Os homens, cansa­dos, largaram as picaretas e foram almoçar. A moça, então, ficou ali sozinha, observando cada detalhe do fosso.

         De repente, teve uma intuição quase divina, pegou uma pá e saltou ao bu­raco. Ao fraco sopro do vento, balançaram suas longas e negras madeixas, lisas como a planície desértica. Os olhos eram castanhos, e a pele clara e macia bri­lhava com o frescor da mocidade. Seu corpo, ainda bem jovem, fora conservado por mágica. A expressão, ainda que sensual, era decidida e forte — o semblante de uma mulher nada indefesa.

         Avistou, então, uma ponta a brilhar na areia e começou a cavar frenetica-nente. Encontrou, assim, uma haste metálica que refletia ao sol. Tirou os óculos escuros e se ajoelhou ante o objeto. Com uma escova, removeu o excesso de ter­ra e descobriu uma longa espada, corroída pela intempérie. A lâmina, enferm­ada, tinha o fio dentado. O cabo, supostamente dourado, estava descascado e preto. Em quase toda sua extensão, a arma estava coberta por uma casca de pedra, e Shamira teve de usar sua faca para raspar a dureza da crosta.

         A Vingadora Sagrada.

         Sorriu, finalmente. Achara o que viera buscar.

         Escutou os passos de um operário. Um sujeito alto, coberto dos pés à cabeça por uma túnica árabe, a chamou de fora da vala, gritando um aviso. Rápida e destra, ela voltou ao deserto com a espada arruinada nas mãos e caminhou até um jipe cinzento. Estacionado no sopé de uma enorme montanha, no meio de cinco tendas de lona, o carro estava aparelhado com um telefone via satélite e dois computadores. Outros equipamentos de comunicação estavam guarda­dos em uma barraca, ao lado da geladeira de suprimentos e de galões de refresco.

         No espaço entre o banco do motorista e o assento do passageiro, uma luz vermelha piscava. Era a chamada do comunicador.

         — Sim — disse ela, sacando o aparelho.

         — E então, revirando os escombros? — falou alguém do outro lado da linha.

         — Ablon! — exclamou, alegre pelo contato. — Você não se cansa de me sur­preender, renegado. Como sabia onde eu estava?

         — Nós sempre sabemos. Na verdade achei que, mais cedo ou mais tarde, vo­cê voltaria para casa.

         — Quem conhece o passado prevê o futuro — ela concordou, nostálgica.

         — Como estão as coisas por aí?

         — Quase como deixamos — replicou, rapidamente.—Já tem anos que não nos vemos — ela mudou de assunto —, e eu quase me sinto como uma senhora de idade recebendo o telefonema de um amor platónico do colegial. Mas, por algum motivo, receio que as notícias que você me traz não sejam boas.

         — Por que está dizendo isso?

         — Não é sempre assim? — a voz baixou uma oitava. — Os espíritos me sussurraram umas coisas, e a maioria delas é assustadora. Tem algo errado, não tem? O

está decaindo. Começou, não é?

         Depois de um longo silêncio, o Anjo Renegado respondeu:

         — Receio que sim, feiticeira. Mas, antes do fim, preciso de seu auxílio, mais uma vez. Infelizmente, tem sempre de ser assim.

         A moça tremeu com um pressentimento ruim ao escutar o pedido. Todas as vezes que Ablon solicitara sua ajuda fora para se lançar em uma missão além de suas capacidades.

         Quem ou o que o Anjo Renegado pretende enfrentar desta vez?, pensou, preocupada. Ela não queria que ele se arriscasse, mas os guerreiros sempre se arriscam. Além disso, mesmo que ela se recusasse a apoiá-lo, ele perseguiria seu objetivo sozinho.

         — O que foi? Problemas com o pessoal do porão?

         —Acho que não. Ainda não sei realmente — ele hesitou. — Mas não se preocupe. Não vou me enfiar em nenhuma luta voraz. Foi Lúcifer que decidiu me caçar e não o contrário.

 

         Shamira se sentiu mais segura ao compreender que Ablon desejava, desta vez, só uma conversa pacífica com seu traidor. Mas nem sempre as coisas foram assim.

         — Você pode se encontrar comigo? — indagou o renegado.

         — É claro — devolveu a mulher, olhando a espada enferrujada. — De fato, era justamente o que eu pretendia fazer.

         Ela pegou um bloco e uma caneta no porta-luvas do carro.

         — Onde você está?

         — No Rio de Janeiro — ele revelou, e ela anotou no papel.

         — Acho que posso chegar aí em 48 horas. Vou tomar um avião.

         — Isso seria ótimo. Gostaria de vê-la mais uma vez, antes que o mundo mer­gulhe nas trevas — confessou, naturalmente sombrio.

         As trevas. A feiticeira sempre esperou que elas se dissipassem, mas a civili­zação tomou um caminho adverso e agora rumava à destruição.

         — Encontro você no aeroporto — ela combinou.

         — Estarei lá — confirmou o general, desligando o telefone.

         No deserto, o olhar da moça alcançou o topo da enorme montanha, como se sua memória recuasse muito no tempo, a um passado imemorial, já apaga­do de todos os registros humanos.

         — Espero que você esteja bem — divagou a mulher, deslizando os dedos pelo cabo da espada.

 

Mesopotâmia, 2334 a.C.

A Torre de Babel

A comitiva militar babilônica deixou o sítio das grandes colinas e ganhou a estrada pelo deserto rochoso. Cinquenta soldados de elite, em seus cavalos e charretes, escoltavam uma única mulher, uma feiticeira, trazida por eles de Canaã por ordem de seu rei, Nimrod. Presa por correntes a uma coluna de ferro, afixada no cargueiro de uma carroça vulgar, a moça tentava procurar uma posição confortável, mas as amarras a esticavam. Seus cabelos negros estavam su-jos, cheios de terra, e a alva pele, castigada pelas tempestades de areia. Sentia fome, sede e calor, sob o forte sol da árida planície. Dos pulsos, algemados por toda a viagem, escorriam filetes de sangue. Amordaçada, ela quase não conseguia respirar.

         Shamira era conhecida em toda parte como a Feiticeira de En-Dor, nome que indicava sua aldeia de origem. Dezesseis guardas a vigiavam de perto, cer­cando a carroça em movimento. Usavam primitivas armaduras de ferro e elmos cm formato de ogiva. Suas armas eram a lança, o arco e a faca longa, e alguns carregavam escudos.

         Naquelas terras do Oriente, a cativa era famosa por sua necromancia, o ra­mo da magia que estuda os mortos e o mundo espiritual. Era tida como uma bruxa terrível, mas os sábios compreendiam que os necromantes não eram essen­cialmente malignos. Lidar com os mortos não significa, necessariamente, trabalhar o bem ou o mal. A vida e a morte são leis naturais, às quais todos estãol submetidos, e os necromantes devem, melhor do que ninguém, entender a neutralidade do processo vital.

         Em Babel, o rei Nimrod não só era o líder político, mas comandava o exér­cito também — diretamente. Além de ser um exímio lutador, nunca perecia ei combate, mesmo depois de atingido por mais de cem flechas. Seu povo acredi­tava que ele era invulnerável, graças à bênção da deusa Ishtar.

         Com sua força avassaladora, Nimrod já havia sobrepujado a Suméria, a Acádia e a Assíria — e isso era a maior parte do mundo, no século XXIV a.C. Mas uma tribo de nômades do deserto, chamada Filhos de Jafé, desafiava sua pujança. O soberano não conseguia encontrá-los, mesmo enquanto infligiam pesadas perdas aos babilônicos. Como se não bastasse, os tribais mataram seu pai, Cush, queimaram o corpo e esfarelaram a ossada, guardando apenas o crânio chamuscado, o qual enviaram de volta aos inimigos. No processo, submeteram o velho monarca a um ritual de purificação, uma cerimónia sagrada que condena ao inferno o espírito do falecido e liberta a alma dos que pereceram em agonia sob seus comandos cimérios.

         Com o assassinato de seu protetor, Nimrod mergulhou na insanidade. Enquanto aguardava a vitória final contra os Filhos de Jafé, decidiu que, para ele, o mundo dos homens não seria o bastante. Seus domínios se estenderiam também à esfera celestial, à terra dos anjos, à morada de Deus. Para isso, fez de seus conquistados escravos e os usou para iniciar a construção de uma torre que, segundo ele, alcançaria o céu.

         Shamira já tinha ouvido falar do fabuloso edifício, mas não estava preparada para aquela aparição. Quando a comitiva se desviou à planície, a feiticeira avis­tou a silhueta de uma montanha fina, que subia em espiral. Estavam, então, a duzentos quilômetros da capital, e o sol ofuscava sua vista. Mas, no instante em que a carroça virou de direção, teve uma revelação impressionante,

         Não é uma montanha — é uma torre!

         — Observe, mulher, a magnífica Torre de Babel, a maior construção já erguida pela raça humana — rejubilou-se o capitão, cheio de orgulho nacionalista. — Goze este momento, pois, de todas as maravilhas, esta é a maior.

         A Feiticeira de En-Dor não discordou. O monumento era espantoso. Nem mesmo na era moderna contemplaria tão extraordinária edificação. Era boa com números e calculou que sua ponta, inacabada, já chegava a mil metros de al­tura. De longe, a estrutura era cônica — larga na base, ia se afunilando no topo. A parede externa era ladeada por uma rampa contínua, que subia em espiral, delimitando seções. O arcabouço era essencialmente de pedra e adobe, mas nos níveis inferiores os escravos trabalhavam no acabamento, preparando placas de bronze para revestir as paredes. O acesso ao interior já era possível nos primei­ros andares, projetados para abrigar os escritórios reais. Escadarias e andaimes cingiam a bastilha em construção, e nela trabalhavam sessenta mil operários. Como formigas, subiam e desciam pela rampa externa, executando uma tarefa contínua, tal qual uma linha de produção tenebrosa.

         A Torre de Babel estava sendo edificada dentro dos muros da capital, que por si sós já eram altíssimos, somando cinquenta metros do chão às guaritas. As muralhas, de ferro enegrecido, imitavam uma terrível onda negra, que se pre­cipitava sobre os invasores. Na época, os babilônicos eram os únicos hábeis na manufatura do ferro, o que tornava insuperáveis suas armas.

         As únicas construções mais altas que o muro, as quais Shamira podia avis­tar, eram a torre e o zigurate — uma imensa pirâmide de degraus toda revestida de prata que abrigava, no cume, o trono dourado do reí.

         — Sob a proteção de nosso senhor Nimrod, o Imortal, o povo da Babilônia tocará as bordas do céu — continuou o capitão — e invadirá o reduto dos anjos. E governaremos todo o universo.

         Para Shamira, aquele discurso era um delírio abismal. Qualquer um que co­nhecesse o mínimo sobre os reinos espirituais sabia que o paraíso celeste não escava acima das nuvens ou da atmosfera, mas em outra dimensão, além dos pianos astral e etéreo, e só era acessado por raros portais, vigiados por criaturas incríveis. Não importava quanto subissem — jamais chegariam ao céu que pretendiam. A motivação de toda uma civilização, ela reparou, evidenciava a ignorância de seu soberano — ou a esperteza de quem o controlava.

 

         — Alto, homens! — gritou o capitão, e a comitiva parou. — E hora do almo­ço. Mas sejam breves. Em três dias, estaremos cruzando os portões de Babel e entregando ao Imortal os frutos de nossa missão — ele desviou o olhar à feiticeira e então reforçou:

         — Não demorem com a ração nem amoleçam o coração. Somos babilôni­cos, filhos da terra e descendentes de Adão.

         A maioria dos soldados viajava a cavalo, mas um time de vanguarda con­duzia charretes de duas rodas — belicosos veículos reforçados com folhas de cobre. Um dos dianteiros era o capitão Pazuno, um sujeito bruto, de cabelos negros e crespos. A barba era cheia, encaracolada, e em sua armadura estava gravado, em alto-relevo, o rosto de um touro enfezado — símbolo do poder nacional.

         Para a ligeira refeição, os guardas tiraram carne e pães de seus embrulhos e destamparam as bexigas de água. Então, Pazuno ordenou a um dos guerreiros:

         — Nahor! — chamou, cuspindo migalhas no chão. — Alimente a bruxa.

         Descontente e temeroso, o jovem oficial acatou o comando, sem saber por que fora escolhido. Nahor, como a maioria dos babilônicos, era um homem cheio de fúria e malícia. Tinha o rosto marcado por cicatrizes de sucessivas ba­talhas e era amante da violência.

         Subindo à carroça, o soldado encarou a necromante, imaginando, no ínti­mo, que segredos ela escondia. A moça, coberta só por um vestido rasgado de lã, tinha parte dos seios brancos à mostra. Os cabelos pretos reluziam ao sol, e os olhos eram como pérolas negras no leito marinho. Mas o que excitava o de­pravado não era a beleza do corpo perfeito, mas sua situação degradante — su­ja, amarrada, ensanguentada e à mercê do ardor masculino.

         Cumprindo a ordem, Nahor puxou a mordaça de Shamira e levantou o cantil.

         —Tem sede? — perguntou, sádico, sorvendo ele próprio um gole profundo. Deixou que a água escorresse pelos fios da barba e sorriu entre os dentes. Todo molhado, aproximou o rosto ao da mulher, procurando um beijo forçado» mas ela o repudiou, desviando a face.

         Os outros guardas caíram na gargalhada, debochando do conterrâneo, des­prezado pela bruxa infernal. O motejo deixou o oficial ainda mais irritado, e ele puxou a moça pelos cabelos, trazendo-a para junto de si.

         — Sua víbora endoriana! Acha que tenho medo dos seus encantamentos? Vou mostrar-lhe toda a pujança de um legionário.

         Uns vinte homens já se aglomeravam ao redor da carroça, aguardando o gro­tesco espetáculo. Conviviam com Nahor já havia alguns anos e conheciam sua fama de bárbaro estuprador.

         — Cuidado! — zombou um deles. — Ela vai te lançar uma maldição e perderás a potência.

         — Para o abismo com as bruxarias! — ele retrucou, em meio à torrente de ri­sadas cruéis. — Vou fazê-la sangrar, agora não só pelos pulsos.

         Despindo-se, o bruto lançou as mãos aos seios da moça, ao mesmo tempo em que rasgava suas vestes. Em resposta, a feiticeira não reagiu, mas iniciou o murmurar de uma dezena de palavras estranhas:

         — Zi Dingir nngi e ne Kanpa. Zi Dingir ennul e ne Kanpa.

         — Está rezando — sugeriu um batedor, irônico.

         — Está dando graças por ter encontrado homens tão viris no deserto — emen­dou um arqueiro.

         Sedento, Nahor desceu a mão pelos quadris da mulher, mas naquele instante o capitão Pazuno percebeu o escarcéu e vociferou em alarde:

         — Não a deixem falar, suas bestas!

         Porém o soldado, entretido, não deteve seus impulsos perversos. Enfiou o baço pelo vestido, mas logo sentiu um formigamento estranho entre os dedos evolveu a mão, assustado.

         Por Ishtar!

         A carne de seu punho estava apodrecendo, como a dos cadáveres em putrefação, e uma colônia de vermes devorava-lhe a palma da mão.

         Nahor deu um passo atrás e notou que o cargueiro estava infestado de serpentes — najas ferozes, que cuspiam peçonha de suas presas agudas. Descontrolado, pulou da carroça, mas caiu meio aturdido, arrebentando o joelho em um pedregulho pontudo. O pânico sobrepujou toda a dor, e o militar se arrastou para longe, fugindo das cobras que o perseguiam, até ser despertado pelo capitão.

         — Levante do chão, ó covarde — exigiu Pazuno, sacudindo o guarda, agora de perna quebrada.

         Ao novo suspiro, as serpentes haviam sumido, e o braço podre voltara ao normal. Fora alvo de uma ilusão, um feitiço psíquico que só afetara sua mente, arrastando-o ao terror invisível. Nenhum dos perigos era real — nem a decomposição nem as najas.

         Os camaradas não perdoaram a chacota e, absorto, o depravado não reagiu. A tropa, que via em Nahor um pavoroso assassino, perdera todo o respeito por ele. Era agora só um poltrão, que corria diante das ameaças de uma mulher indefesa.

         Com a desistência do oficial, enfiado ainda em situação vergonhosa, o ca-assumiu o comando. Subiu ao cargueiro e voltou a amordaçar a cativa.

         — Vai ficar sem comida, sua bruxa maldita — avisou, apertando bem as correntes.

         A distância segura, com o tendão estourado, Nahor tremia, soluçava e orava ao seu monarca imortal. Provara o sinistro poder da magia e talvez não regressasse à consciência integral.

         Oh, sublime Nimrod, livre-nos desta, aberração.

         —Vamos partir agora! — retomou o experiente Pazuno, saltando para a charrete. — Logo estaremos na presença do Imortal.

         Assim que subiu em seu carro, o capitão puxou o arco, preparou uma flecha e a apontou ao meio da comitiva. Sob os olhares surpresos dos soldados, Pazuno disparou uma seta, que voou pelo ar até encontrar o coração de Nahor.

         — Isso é o que acontece com todo babilônico que sucumbe à feitiçaria — justificou, e os lutadores engoliram em seco.

         O grupo prosseguiu pela planície, afundado em macabro silêncio. O corpo do estuprador ficou ali no deserto, para mais tarde servir de alimento aos leões.

 

Os Jardins Suspensos e o Zigurate de Prata

         O comboio chegou à capital três dias depois, à hora exata do sol meridiano. Babel era uma feérica mistura de maravilha e horror. Muitas vezes, em En-Dor, Shamira ouvira descrições sobre a famosa metrópole, mas os relatos esta­vam muito aquém da verdade.

         Os muros eram de ferro maciço, ligeiramente envergados para fora. No pas­sadiço, guardas com arcos e lanças observavam o movimento, à atenta supervi­são de seus comandantes nas guaritas blindadas. A capital, enorme para os pa­drões ancestrais, tinha um portão duplo de pedra e metal, que não se abria para fora ou para dentro, como as portas comuns, mas se recolhia para o interior das muralhas, quando puxado por vigorosos mamutes. No passado, todos tinham acesso a Babel, porque ela era também um centro comercial importante. Depois, com a ascensão de Nimrod, os babilônicos subjugaram todas as nações parceiras e passaram a roubar suas riquezas, em vez de comprá-las. Assim, não havia mais a necessidade — nem o interesse — de receber forasteiros, só escravos.

         Na seção externa do muro, cingindo os portões, duas gigantescas estátuas de quarenta metros retratavam a imagem de um homem com cabeça de touro, um dos símbolos principais do Estado. Shamira calculou que o "touro" fosse Cush, o pai falecido do atual soberano.

         — Parados! — gritou um oficial, do alto do muro, à comitiva que se aproxi­mava. Sua voz soava muito baixa, dada a altura do passadiço. — Quem são aque­les que se aproximam dos portões de Babel?

         — Sou o capitão Pazuno — anunciou-se o comandante. Era lógico que eram babilônicos, mas Shamira notou um padrão ritualístico, como se sempre se apre­sentassem assim, não importava quantas vezes entrassem ou saíssem. — Trago ao Imortal a nossa cativa, a Feiticeira de En-Dor.

         O militar no cimo das muralhas silenciou, e suas sentinelas assumiram uma expressão de surpresa.

         — Pois então pode entrar, capitão. Nimrod o espera.

         Os portões se separaram com um arrastar de correntes, acompanhado do bramir de elefantes peludos, e o grupo penetrou na capital da Babilônia.

 

         Um cenário inesperado se escondia no interior das muralhas. Em contraste com a desolação do deserto, a metrópole estava apinhada de gente, uma mul­tidão que se aglomerava nas ruas. Naquele tempo, Babel tinha cerca de cem mil cidadãos e quatrocentos mil escravos. Estes infelizes, militares e civis de nações conquistadas, caminhavam pelas avenidas sujos como mendigos, presos a grilhões que os forçavam ao movimento constante. Seguindo em fila indiana, tra­balhavam sem parar na construção da torre maldita. Não raro, morriam de fome e insolação, e os corpos continuavam atrelados às gargantilhas de ferro por dias, até que um soldado decepasse o defunto ou fossem devorados pelos próprios colegas esfomeados.

         Do outro lado da configuração social estavam os cidadãos babilônicos, um povo doutrinado desde a infância para odiar seus diferentes. Caminhavam como deuses pelas avenidas, descansando à sombra dos grandes monumentos e se alimentando de iguarias excêntricas. Vestiam túnica branca, braceletes de bronze e colares de ouro, adornados com pedras azuis. Quase sempre portavam um bastão de cobre com a extremidade superior em forma de gancho, útil para açoitar os escravos, e calçavam sandálias de couro.

         Perseguindo com o olhar os transeuntes, a atenção da necromante foi naturalmente desviada à prodigiosa Torre de Babel, cuja base ocupava um terço da área central da grande metrópole. De perto, era visível o sofrimento dos operários, que andavam pela rampa externa e se metiam pelos andaimes.

         E tão alta... Como será que fica em pé? A moça não sabia, mas também não era especialista na arte da engenharia. Pelo seu raciocínio matemático, a edifi­cação já devia ter desabado. A altura já superara de longe a largura, e os andares inferiores não seriam fortes o bastante para aguentar os níveis acima.

         Entre o portão e a torre ficava um altíssimo zigurate de prata, uma pirâmide de degraus com duzentos metros de altura, com um trono de ouro no topo. Esse era o palácio real, dividido em seis andares, ou pátios, tão largos que guardavam jardins fabulosos, revestidos de grama e decorados com plantas raras, animais exóticos e árvores frutíferas. A vivacidade da natureza suspensa se fazia possível graças ao lençol de água subterrâneo, um braço submerso do rio Eu-frates, que atravessava o deserto e brotava na capital. A pirâmide, toda prateada, refletia o brilho do sol, dando a impressão de que tinha luz própria. Com efeito, era difícil mirá-la díretamente, pelo lume que refulgia, e assim, durante o dia, era possível avistá-la a quilômetros na árida planície. Em suas câmaras suntuosas, com almofadas de seda e piscinas de ouro, moravam o corpo real e os militares de alta patente, cercados por uma legião de escravos domésticos.

         Na superfície leste do zigurate, uma longa escadaria em linha reta cortava os degraus e levava ao pináculo — um terraço quadrado, centralizado por um trono belíssimo, onde Nimrod permanecia sentado. Shamira podia vê-lo lá em cima, imóvel, impenetrável, defendido por centenas de guardas que montavam formação na escada.

         Nos edifícios comuns de Babel, que margeavam as vias, morava a elite. Fei­tos de pedra marrom, tinham formato piramidal, imitando o palácio. Essas man­sões particulares somavam entre dez e doze metros de altura, e nelas cada uma das famílias tradicionais conservava seus copiosos tesouros.

         Imersa na contemplação da cidade, Shamira não percebeu que ela própria era alvo de observação. Cautelosos, os passantes a encaravam com um misto de ódio e aversão. Eram por demais supersticiosos, e a feiticeira supôs que isso te­ria ajudado na propagação do mito do rei imortal.

         Pobres ignorantes.

         Desviando o rosto das ruas, a necromante percebeu que estava sendo guiada, ainda atrelada à carroça, pela avenida principal, diretamente à Pirâmide de Prata, na cidadela real. Uma segunda muralha circulava o zigurate, e seu portão arquea­do levava à escadaria.

         O comboio parou diante das portas internas, guardadas por soldados fortes e de olhar apurado. O capitão Pazuno desceu do carro, disse alguma coisa às sentinelas e as grades do portão se abriram. Shamira foi tirada do cargueiro por três homens armados, que mantiveram suas mãos algemadas e a empurraram para as escadas. Respirando fundo, a necromante reuniu suas últimas forças pa­ra vencer a caminhada, porque sabia que, se caísse, seria arrastada.

         Enquanto subiam, ela reparou na cidade vista de cima, impressionada com sua magnitude. Passou ao lado dos jardins suspensos, sobre os pátios laterais, e sentiu o cheiro da mata, tão rara naquela região seca. Em certos sítios, entre as árvores, brotavam fontes de água que se ampliavam em pequenos lagos refres­cantes, copiando a vegetação dos oásis. A prisioneira estava sedenta e pensou no que não daria para se banhar naquelas piscinas.

         Pisando firme no último degrau, Shamira viu o homem que a aguardava no trono. Não era muito diferente de seus oficiais. Já beirando os 50 anos, tinha uma longa barba trançada e os cabelos compridos. Era robusto, mas não mui­to alto, e projetava uma expressão séria e irritada. A única arma que carregava era um cetro de ouro adornado com rubis, jades e diamantes e decorado com uma cabeça de touro na ponta, esculpida em quartzo azul. Suas vestimentas eram também fabulosas. Trajava uma capa de pele de carneiro, borrifada com gotículas de ouro. No peito carregava um colete de cobre incrustado de pérolas, so­bre uma túnica de algodão tingida de azul. Protegido por dois guardas muscu­losos, mantinha a seu lado um enorme tigre de estimação, muito maior do que os tigres normais. Era um dos grandes dentes-de-sabre, uma raça perdida de fe­linos, preservada até ali em cativeiro.

         Shamira foi jogada aos pés de Nimrod, que a fitou, impiedoso. A um ges­to do rei, os homens tiraram suas algemas e mordaça. Aliviada, ela se ergueu com dificuldade, e os soldados se afastaram, em um ato temeroso instintivo. Mas a Feiticeira de En-Dor estava fraca demais para reagir. Sentia-se arrasada, exausta e faminta. Os lábios secos se quebravam, a pele ardia pela viagem ao sol, e a cabeça latejava.

         — Esta mulher está imprestável! — reclamou o Imortal, ao reconhecer o esta­do deplorável de sua cativa. — Levem-na para o palácio — ordenou aos guardas — e tragam-na a mim quando estiver em condições de me servir.

         A mulher nada disse, mas abençoou sua sorte. Tudo o que precisava era de descanso e de uma boa refeição, com a qual pudesse reaver suas forças. Mas o melhor de tudo, ela reparou, era o fato de o rei não ser feiticeiro — os magos se identificam com uma simples troca de olhares. Ignorante nas artes mágicas, o soberano precisaria das habilidades da moça, e isso garantiria sua vida, ou pe­lo menos assim ela imaginava.

         Arrastada pelas sentinelas, Shamira entregou-se ao cansaço e deixou-se desfalecer.

Estava segura de que Babel não seria o seu túmulo.

 

No Mundo Sem Cor

         Shamira acordou imersa em uma piscina de água quente, no interior de um aposento fantástico. Não teve dúvidas de que estava no palácio real, quando percebeu o chão de mosaicos e as colunas de mármore rosado que sustentavam o teto do quarto. Uma janela em arco dava vista ao exterior, trazendo o vento frio noite, peculiar ao deserto. Perto das pilastras, uma dezena de piras de óleo iluminava o recinto, e um umbral na parede sul indicava a saída, bloqueada só por uma cortina de couro. Sozinha, sem ninguém a vigiá-la, a feiticeira deu-se conta de que estava nua na água. Suas velhas roupas não estavam mais lá, mas uma túnica vermelha jazia sobre uma cadeira de prata, à frente de uma mesa farta de alimentos. Recordou-se, então, que já não comia havia horas, e deixou o banho agradável para satisfazer suas necessidades mais básicas. Sem nenhum pudor, correu à mesa redonda e devorou toda a refeição — um banquete com pães, uvas, mel e avelãs. Bebeu a água direto da jarra, sem parar para derrama-la numa taça dourada.

         Foi só quando a fome amansou que trajou a veste rubra, bordada com a tra­dicional cabeça de touro, e conseguiu raciocinar calmamente. Divisou, então, um par de sandálias no piso e as calçou. Agora, estava protegida do frio e um tanto mais relaxada.

         Achegou-se ao parapeito e confirmou que estava cativa na Pirâmide de Pra­ta. Da janela avistou os jardins suspensos nos pátios laterais, logo abaixo, con­cluindo que aquele era o terceiro andar dos seis que completavam o zigurate. Esticando ainda mais o pescoço, viu pane do segundo andar, abaixo. Duas ve­zes mais largo do que a área do terceiro nível, seu jardim tinha vegetação me­nos densa, com plantas coloridas dividindo espaço com altas palmeiras reais.

         De súbito, a necromante escutou um barulho, olhou para trás e viu uma menina que adentrava o quarto, atravessando a cortina marrom que delimita­va o umbral. Tinha 10 ou 12 anos e usava uma túnica sóbria e alinhada, de al­godão cru, com cortes bem feitos. A pele era escura, mas os traços, finos, e os cabelos, lisos e negros. A julgar pela excentricidade daquele palácio, só podia ser uma escrava.

         Carregando um jarro de cristal azulado, a pequena seguiu até a mesa e pou­sou sobre ela o recipiente.

         Vinho — inferiu a mulher, pelo cheiro da uva. Os prisioneiros devem fazer fi­la nos portões de Babel— pensou, irónica, estranhando o melindre no tratamento,

         — Meu nome é Adnari — apresentou-se a garota, colando os olhos no chão. Guardava uma face serena e conformada, como a das marionetes. — O grão-servo me selecionou para atendê-la.

         Shamíra não gostou da mordomia, ao reconhecer a condição da criança. Nunca possuíra um escravo, e aquele luxo não combinava com seu estilo de vi­da nem com seu caráter idóneo. Pensou em dizer alguma coisa, mas as palavras sumiram.

         A menina deixou o aposento e desapareceu no corredor.

         A Feiticeira de En-Dor preferiu esperar.

         Agora que tinha voltado à razão, Shamíra estava pronta para sentar e pon­derar sobre a situação. A fuga estava, a princípio, fora de questão. Não achava que Nimrod fosse tolo a ponto de deixá-la desguarnecida, apesar da janela sem grades e da porta fechada só por cortinas. Se fosse pega, poderia estragar tudo eenterrar para sempre seus sonhos de liberdade. A magia também não teria uti­lidade por enquanto, a não ser que saísse voando por cima dos muros — e a necromante não conhecia nenhum encanto do tipo.

         Mas se Shamíra era prisioneira na realidade material, talvez não o fosse na dimensão irreal. Desde pequena, aprendera a projetar seu espírito, levando a alma a viajar pelo plano astral. O plano astral é a camada mais rasa do mundo espiritual, a que primeiro se conecta ao plano físico. Não é nada mais do que m espelho descolorado da terra dos homens, por onde vagueiam os fantasmas — espectros de pessoas mortas, que ainda permanecem presos a suas pendências mais. Um espírito vivo, quando projetado, pode deslizar pelo ar, atravessar paredes e levitar à atmosfera da terra. A alma permanece ligada ao corpo por um fio místico de prata, tal qual um cordão umbilical. Acessando a dimensão irreal, a feiticeira esperava espionar o palácio, obter informações sobre o rei e sua corte eprocurar a saída mais fácil do zigurate, para o caso de uma evasão desesperada.

         Obstinada, Shamira recostou-se em um divã de madeira, que completava o conjunto do mobiliário, e expandiu a mente. Juntou algumas almofadas de seda e iniciou a concentração, esquecendo a existência do universo palpável.

         Seus olhos piscaram com velocidade, e logo a audição apagou. Pouco depois, o breu da consciência deu lugar a uma imagem disforme e, gradualmente, ela sentiu como se estivesse emergindo de um lago. Cruzava, assim, o tecido da realidade — ou a fronteira espiritual, como era comumente chamado pelos ma­lgas no Ocidente. Em instantes não ouvia mais nada, somente o silêncio dos mortos.

         Então, descobriu-se flutuando pelo meio do dormitório, mas seu corpo material permanecia bem fixo, e ela agora podia vê-lo no plano físico, relaxado sobre o divã. Distinguiu novamente o recinto, mas ele não era exatamente real, só um reflexo, um cenário sem cor, em tons plúmbeos e azulados. Os objetos reluziam com uma fraca aura brilhante» denunciando que eram intocáveis na dimensão dos espectros — não podiam ser agarrados ou movimentados, apenas ultrapassados.

         Esquadrinhando a câmara, a necromantc não encontrou nenhum fantasma, o que a intrigou. Uma cidade como Babel, cheia de escravos em sofrimento, devia possuir uma legião de avejões, obcecados por vingar a própria alma. Centenas de trabalhadores deviam ter morrido durante a construção do palácio, e quando os homens perecem em agonia geralmente se convertem em espíritos errantes, angustiados e empenhados em sua desforra — às vezes pela eternidade.

         Nada, Nenhum brado, lamento ou arrastar de correntes.

         Flutuando pela sala, como um polvo deslizante no fundo do mar, ela notou a presença de um espírito que atravessava as pedras do chão. Era a alma de uma menina morena e estava ligada aos níveis abaixo pelo cordão místico de prata, comprovando que estava viva também, mas projetada ao astral.

         É a pequena escrava — raciocinou a feiticeira, reconhecendo a garota que ha­via pouco trouxera ao seu quarto o jarro de vinho. Fora ao além falar com os mortos e só encontrara sua serva mais acessível.

         No rosto, a criança inibira toda a expressão reprimida. Ali, no mundo es­piritual, parecia muito mais solta e festiva. Não era de admirar. No plano ima­terial ela certamente encontrava toda a liberdade que lhe fora negada, mas com quem aprendera a técnica da projeção?

— Eu sou Adnari — começou a menina, ainda um pouco contida. — Lembra-se de mim?

         — Eu sou Shamira — apresentou-se, meio confusa. Seria aquela alguma arti­manha do rei? Como a menina podia saber que a necromante viajaria ao astral?

         — A Feiticeira de En-Dor. Todo mundo aqui em Babel conhece você ou já ouviu alguma história a seu respeito. Eu fiquei muito contente quando o grão-servo me escolheu para servi-la. Eu gosto muito de mágica — disse, com uma linguagem um tanto simplista.

         — Notei — retrucou a mulher, em tom amigável. Se a garota estava projeta­da, certamente aprendera isso com alguém com um mínimo conhecimento do oculto.

         — Não fique preocupada — acrescentou Adnari, como que entendendo o re­ceio da prisioneira. — Eu não vou contar nada a ninguém. Os buscadores me matariam se soubessem que às vezes visito o mundo sem cor.

         O mundo sem cor — Shamira simpatizou com o nome.

         — Buscadores? Quem são os buscadores? — interessou-se a feiticeira. Tinha que coletar todas as informações que pudesse, e essa era a oportunidade.

         — São os conselheiros do Imortal. Eles não gostam dos escravos nem dos fo­rasteiros. Vivem mandando a gente fazer um monte de coisas erradas.

         O semblante de Shamira encrespou-se pela injustiça, porém Adnari a re­confortou:

         — Mas não tem problema. Eles nunca me descobrem. Acham que estou dor­mindo junto com os outros domésticos.

         — E com quem aprendeu a visitar o "mundo sem cor"?

         — A minha mãe era uma feiticeira, ou uma bruxa... — a menina se perdeu nas nomenclaturas. — Ela fazia mágicas.

         — E como sabia que me encontraria por aqui? — Shamira fez acompanhar um sorriso, para não assustar a garota com sua tempestade de dúvidas. A ver­dade, porém, era que estava desesperada por uma pista que a tirasse dali.

         — É a primeira coisa que fazem os necromantes, não é? Vasculhar a terra dos mortos? Foi o que disse a minha mãe. E ela me contou também que muitos necromantes são maus.

         — Mas nem todos. Nossa arte lida com a natureza da morte, que é uma for­ça muito poderosa, inescapável. Com tanto poder nas mãos, alguns realmente são corrompidos pela maldade, que é o caminho mais fácil à ascensão. Mas isso não acontece só com os feiticeiros, também com os guerreiros e os monarcas. É uma fraqueza dos homens,

         — E também das mulheres? — inquiriu a menina, imediatamente. À narra­ção, seus olhos se arregalaram. Era fascinada pelos assuntos fantásticos, como são todos os infantes.

         — Eu quis dizer isso — Shamira sorriu, complacente. Por um instante, gostaria de ser criança de novo. Insuperável é a alegria da infância, quando tudo é novo e magnífico. Mas, a despeito da deleitável conversa, era importante saber sobre o zigurate.

         — Você já viajou por todo o palácio, Adnarí?

         — Por toda a cidade — ela se gabou, em vaidade tipicamente infantil. — Eu ia muito à câmara do tesouro, mas parei. Não conseguia tocar em nada mesmo...

         — E o rei?

         — Fica sempre lá em cima, sentado no trono. Nunca sai do pináculo, nem para comer ou dormir.

         Mais superstições — pensou Shamira, incrédula, mas depois ponderou. Teria se enganado sobre a ignorância mágica de Nimrod? Afinal, quem era ela para desprezar as superstições? Era uma feiticeira e vivia da matéria inexplicável.

         — Como um homem pode não se alimentar nem descansar, e ainda por cima ser imortal? Ele é um bruxo ou mago?

         — Não — replicou a pequena, convicta. —A força da deusa o protege, A deusa que vive nos subterrâneos deste palácio.

         — Deusa? O que é essa deusa? Um espírito, um ídolo, um totem?

         — Não sei — admitiu Adnari, desagradada por não ter as respostas. — Eu já

desci às masmorras, flutuando pelo mundo sem cor, trespassando as paredes, e nada encontrei. É como se ela não tivesse alma, como nós. Mas ela existe! Os escravos que trabalham nos andares submersos disseram que já a contemplaram.

         — Uma deusa, viva? — divagou a feiticeira, mais para si. Ela sabia que as entídades etéreas, veneradas fora de Canaã, nada mais eram do que espíritos mui­to poderosos, mas não tinham a capacidade de se materializar e passar ao mundo material. Então, como a tal deusa podia estar "confinada" em um calabouço, no plano físico? Tal história era absurda.

         — E quanto aos espíritos da gente comum, as almas dos mortos? Não vi ne­nhum espectro pela pirâmide.

         Adnari sorriu, satisfeita por ter a explicação na ponta da língua.

         — O zigurate era cheio deles, desses fantasmas, mas agora eles foram embora. Eles não gostavam muito de conversar. Eram apáticos, cansados, e só grunhiam pelos corredores. E aí, uma noite, uma luz levou todos num só furacão.

         O ritual da purificação! Estava tudo muito claro agora. Cush, o pai de Nimrod, que construíra o palácio, fora submetido ao ritual da purificação pelos sa­cerdotes nômades da tribo inimiga. Pela cerimónia, qualquer espírito pode ser condenado, e são libertas as almas daqueles que morreram em sofrimento, sob suas ordens. O ódio dos antigos espectros da pirâmide estava direcíonado a Cush, e quando ele foi levado ao sacrifício os fantasmas do zigurate se viram livres pa­ra seguir ao paraíso.

         O ritual da purificação é, de fato, uma prática bastante sinistra, embora efi­ciente. A pessoa, ainda viva, é envolta por tecidos marcados com fórmulas mági­cas. Depois, é presa à fogueira. Enquanto a carne é incinerada, os clérigos verbali­zam cânticos místicos, e toda a carga negativa acumulada pela vítima é revertida para sua alma, que é amaldiçoada. Não raro, o inferno é o destino dos pecadores, mas alguns acabam por vagar para o limbo, onde permanecem indefinida­mente.

         — Eu ficava longe deles — continuou Adnari. — Tinha medo que cortassem meu cordão de prata e separassem para sempre minha alma do corpo, mas eles nada faziam.

         A vingança. Shamira conhecia bem a natureza dos fantasmas.

         — Você sabe por que Nimrod me capturou? — indagou a feiticeira, agora mais à vontade na presença da serviçal,

         — Não faço idéia. Ele pode estar querendo a ajuda de uma necromante contra os sacerdotes tribais. Não há necromantes aqui em Babel.

         — Não pretendo trabalhar para Nimrod.

         — Não diga isso! — assustou-se Adnari, gesticulando para que falasse mais baixo. — O rei mata todos que a ele se opõem.

         — Se ele tentar, usarei nele a minha magia — rebateu Shamira, intencionalmente dramática para impressionar a pequena, mas a frase não surtiu efeito.

         —A bênção da deusa Ishtar o afasta das maldições. É a mesma força que impede que seja ferido ou morto. Nenhum feitiço tem resultado sobre o Imortal.

         Invulnerável, imortal e resistente à bruxaria. Devia haver uma brecha nas defesas do rei. Não podia ser de todo invencível.

         — Então talvez seja preciso mais do que mágica para me tirar do cativeiro — comentou a mulher. Sua mente era agora um mar de questões, muito maior que a poça de dúvidas que pretendia esclarecer antes de se projetar ao astral.

         Por mais meia hora, Adnari e Shamira ficaram ali, nas sombras do mundo, conversando sobre muitos assuntos, a maioria sem grande importância. Então, as duas concordaram que deviam retornar ao corpo físico. A projeção astral é processo cansativo, e a necromante precisava de um tempo sozinha, para descansar e digerir o conteúdo das revelações.

         A menina, por sua vez, contou ainda um pouco sobre sua vida pessoal. Disse que pertencera a uma tribo chamada Filhos de Sem, uma comunidade que foi aniquilada pelos babilônicos. Os sobreviventes, como ela, foram feitos escravizados e trazidos para a Mesopotâmia. A mãe de Adnari era uma feiticeira tribal, conhecimento da alta magia, mas instruída nas cerimônias de sua aldeia.

         Já no mundo material, Shamira avistou, pela janela, a lua alta no céu e calculou que estava perto da meia-noite. Sete das dez piras de óleo já tinham se apagado, deixando o quarto em uma penumbra aprazível.

         Esticando o corpo pelas almofadas do suntuoso divã, a moça tentou pregar os olhos, pelo menos até o despertar da aurora no leste.

         Um rei indestrutível, uma torre que sobe aos céus, uma deusa encarcerada no calabouço.

         Shamira não conseguiu dormir.

 

Revelação no Miolo do Pão

         O sol nasceu e a grande cidade acordou — para alguns. Para outros, ela nunca dormia.

         O ruído das correntes, agora, dividia as ruas com o passeio dos cidadãos, invadiam as avenidas aos primeiros raios de sol, enlouquecidos pela febre do desenfreado consumo. De pé à janela, Shamira observava, do zigurate, o movimento nas vias centrais. Tinha estado superativa por toda a madrugada, ca­minhando pelo quarto de lá para cá, sem adormecer um instante sequer.

         Um rei indestrutível, uma torre que sobe aos céus, uma deusa encarcerada no calabouço.

         Lá pelas oito horas a temperatura esquentou, obedecendo ao ciclo comum do deserto, para se tornar realmente cáustica às nove. Na praça central da me­trópole, visível dos jardins do palácio, um obelisco tinha a função de pontei­ro, projetando sua sombra na esplanada e indicando assim as horas do dia, co­mo um gigantesco relógio de sol.

         Voltando ao interior do aposento, a feiticeira reparou que a água que caiai da fonte e inundava a piscina mudou de quente para fria, refrescando o ambien­te antes gelado, mas agora escaldante. Cansada pelas longas horas de espera, a necromante banhou-se de novo, desta vez na piscina refrescante, avivando o corpo e clareando a mente.

         Às dez horas, Adnari entrou pela sala, acompanhada por dois escravos adul­tos, que carregavam bandejas de metal prateado. Traziam o desjejum — pão, quei­jo, leite, água potável, tâmaras, ovos e um tipo de chá de ervas. A menina nada disse, temente aos buscadores, mas as duas trocaram olhares de conivência. Não podiam, de jeito nenhum, demonstrar empatia ou sugerir cumplicidade, mesmo longe da presença dos guardas.

         A pequena ajeitou os talheres na mesa e os alinhou de um jeito irrelevante aos estrangeiros. A maioria dos aldeões ou camponeses nunca usava colheres ou garfos nas refeições.

         — É feito de trigo da Média, o melhor que há neste mundo — disse a garota, referindo-se à massa do pão. — Seria bom que comesse tudo — sugeriu, e deixou o quarto com seus assistentes.

         Quando Adnari e os escravos saíram, Shamira sentou-se à mesa e provou a doçura do leite. Comeu um dos ovos cozidos e, sempre vigilante, separou com uma faca a casca do pão, revelando o miolo.

         Um pergaminho!

         No interior do pão estava escondido um pergaminho enrolado, cujos detalhes, a princípio, a feiticeira não conseguiu decifrar. Então, ao ter certeza de que nin­guém mais a olhava, esticou o rolo por baixo da mesa c visualizou o conteúdo.

         Um mapa. Uma planta das profundas masmorras do palácio real, com uma de­zena de saídas secretas.

         Como teria a pequena Adnari obtido um documento tão sigiloso? Quem teria desenhado o projeto? Para onde corriam aquelas rotas de fuga?

         Então, por um momento, Shamira sorriu com a ironia. Teria sido melhor se tivesse sido jogada em uma cela escura, de onde, mais provavelmente, teria condições de escapar.

         Memorizando todo o mapa, ela o escondeu dentro de uma das almofadas de seda. Costumava gravar imagens estáticas e raramente as esquecia. O que pre­cisava, agora, era ser lacrada nos calabouços, mas como convencer os soldados a levá-la até o subterrâneo sem levantar mais suspeitas?

         Bebeu um gole de água, tomou um copo de leite e engoliu duas tâmaras. Ao término do desjejum, rasgou uma tira da própria roupa e a usou para prender a faca de pão por baixo da manga da túnica.

         Armada e provida de um bom plano de escape, a necromante estava pronta para ficar frente a frente com o rei de Babel.

O Rei Imortal

 

         Ao meio-día em ponto, de acordo com o relógio de sol da praça central, quatro guardas reais entraram pela porta do dormitório, rasgando a cortina mar­rom que delimitava o umbral. Estavam armados de lanças de ponta de cobre e longas facas de ferro e carregavam escudos retangulares. Esses soldados de elite dam liderados por um homem magro, alto, de pele morena e postura elegante. Parecia mais um político, pela constituição delgada e gesticular requintado. Tínha o nariz fino, a barba pontuda, e emanava sufocante presença. Os olhos amendoados estavam delineados com lápis azul, e os cabelos, untados com óleo vegetal perfumado. A roupa era parecida com a dos aristocratas, mas um colete de couro fechava o conjunto da túnica, exibindo o brasão com a cabeça bovina.

         — Meu nome é Zamir — apresentou-se. Sua fala era calma e segura, como a dos patrícios mais influentes. — Sou um dos buscadores.

         Os buscadores do rei. Os conselheiros ao Imortal.

         — Acompanhe-me — convidou. — O grande Nimrod espera por você na plataforma elevada.

         Shamira não questionou — sabia a hora certa de agir. Caminhou até o mais vigoroso dos guardas e ofereceu os punhos à algema, mas o buscador sacudiu a cabeça em negativa.

         — Isso não é necessário. O poder de Babel é grande, e sua força não está só energia das armas. A cidade é um organismo imortal, assim como seu soberano — suas palavras eram frias e educadas, sem muita emoção. — Aqui estamos seguros.

         Obediente, a necromante seguiu sua escolta através dos corredores do zigurate. Ali, viu maravilhas que nunca mais esqueceria. Contemplou passagens orladas por pilastras de ouro, jardins internos com tetos de cristal, lagos e rios ar­tificiais, salas de prata e marfim, pisos de rubis e esmeraldas, estátuas de diamantes e escadarias intermináveis.

         Por meia hora caminharam, até estacar diante de uma longa rampa, altíssi­ma, que certamente dava passagem ao terraço, pelo brilho intenso do sol no to­po. A subida não tinha degraus, mas o casco de um escaler estava alinhado a um veio no meio da rampa, puxado para cima em um trilho, por um sistema de engrenagens.

         A feiticeira, o buscador e seus guardas chegaram ao jardim do penúltimo an­dar e caminharam pela escadaria externa até o pináculo, e de lá à base do trono dourado. A vista, do cimo da Pirâmide de Prata, estendia-se para muito além dos muros da grande cidade, alcançando o horizonte deserto.

         Impassível, Nimrod observou em silêncio a aproximação da Feiticeira de En-Dor, cercado por seu corpo de elite, enquanto afagava o pescoço do tigre-dentes-de-sabre, preso por uma coleira à lateral do assento. Estimulado pelo odor feminino, o felino rosnou, e Shamira teve medo de que a fera avançasse, mas o predador já não era tão feroz quanto seus ancestrais selvagens.

         O Imortal conservou a face penetrante e perigosa, quando Zamir e os guar­das se ajoelharam para saudá-lo. A necromante reparou que o buscador era uma figura maligna, mas razoável. Se tentasse negociar sua libertação, que fosse com o conselheiro, não com o exaltado monarca.

         — Vejo que já conhece Zamir, o Brilhante — falou o rei. Sua voz era grossa e imponente, e seu tom, nada amigável. — Meus súditos me contaram sobre uma necromante que vivia além do mar Salgado. Não esperava que fosse tão jovem — disparou em desprezo, mas a prisioneira não se abalou,

         — Venho de En-Dor, na terra de Canaã... — começou a mulher.

         — Poupe-me de sua inútil apresentação. Seu protocolo tribal não é necessário aqui. Sei quem você é, caso contrário não estaria aos meus pés. Os buscadores investigaram sua miserável trajetória no mundo, antes que fosse capturada, e traçaram suas origens até a aldeia de Knossos, através do Grande Mar.

         Shamira engoliu em seco e não disse mais nada. Quando pensava ter virado a situação, o Imortal frustrara todos os seus planos, provando que conhecia tanto sobre sua vida quanto ela mesma. Na verdade, Nimrod podia fazer muito pior do que simplesmente matá-la. A necromante temeu por seu povo, pelos aldeões e pescadores de En-Dor — pobres camponeses que nunca desejaram rnal a nin­guém, mas que agora estavam ameaçados pela fúria de um rei enlouquecido, um escravocrata cruel, que se proclamara o maior dos homens da terra.

         — Assim como você, Zamir é também um feiticeiro — continuou o Imortal, e a moça gelou. A magia era sua única vantagem e garantia de vida. Sem ela, Shamira não seria mais do que uma garota indefesa diante daqueles usurpado­res sinistros.

         O conselheiro fez uma vénia e deu dois passos na direçáo da mulher.

         — Sou um invocador — falou à cativa, já prevendo sua dúvida. — Sabe o que é isso?

         A feiticeira não respondeu. Sentia-se a última das criaturas, a maís inútil das mulheres. Em sua aldeia, era adorada e respeitada como uma jovem prodígio, mas ali não passava de uma novata.

         — Eu imaginei — retomou o conselheiro, entendendo a confusão. — Nós, in-vocadores, estudamos um campo da mágica diferente daquele da necromancia. Buscamos a canalização de nossos feitiços nos elementos naturais. Manipula­mos o fogo, a água, o ar e a terra, e também as substâncias paraelementais, tais como a lava, a fumaça, o pó e o vapor. Não sou hábil na matéria dos mortos, e é por isso que você está aqui.

         — Então o que precisam é de alguém instruído no objeto espiritual — arriscou, atisfeita por finalmente reparar que era essencial.

         — Não se julgue inestimável — fez questão de afirmar Nimrod. — Não fosse você, seria outro necromante.

         — Infelizmente — completou Zamir —, a maioria dos grandes necromantes vive além da segunda catarata do Nilo. Canaã é mais perto daqui, e mais acessível.

         Verdade?

         — Nossa tradição mágica — continuou o buscador — remonta aos tempos da gloriosa cidade de Enoque, a Bela Gigante. É a partir de Caim que nós, babi­lônicos, traçamos nossa ancestralidade, razão pela qual estamos fadados a vencer sempre.

         — Nem que para isso tenhamos que derramar sangue, maculado ou inocente — desfechou o Imortal.

         — E será que sofrerão o mesmo destino de seus antepassados? — ousou a mulher.

         Ao escutar a inaceitável blasfémia, a face do soberano corou de ódio. Os guardas recuaram, temerosos como raposas que se escondem na tempestade.

         — Os celestes que mandem outra inundação — esbravejou, exaltado, erguendo o cetro de ouro na direção da torre em construção —, e eu vingarei os meus ancestrais, pois a minha torre se erguerá ainda mais alto do que o monte Ararat. Nenhum deus vai me tirar esta cidade! — gritou, violento. — Que venham os exércitos! Que venham os anjos! Que venham os espíritos! Nada pode debelar o esplendor de Babel.

         — Sim — apoiou o conselheiro. — Somos invencíveis.

         — Tragam a arca! — bradou Nimrod para suas sentinelas. — Começa agora a vingança de meus progenitores.

 

         As pragas seguiu-se o cansaço, e o soberano voltou ao trono, espumando de raiva pela boca barbuda. Respirou longamente e apoiou o rosto entre os dedos morenos.

         Que louco! — Shamira pensou, preocupada com seu destino naquela cidade de alucinados. Nimrod não hesitaria em torturá-la, ou mesmo matá-la, se assim julgasse preciso.

         Então, enquanto o Imortal meditava, Zamir achegou-se à necromante e sussurrou de esguelha:

         — Não há como se opor à nossa potência. Seja prudente e colabore. Faça o certo e todo o conhecimento do mundo antigo estará ao seu alcance. Decline e morrerá lentamente. Você tem mais a ganhar do que nós.

         O conhecimento do mundo antigo.

         Mas, àquela altura, não era só em poder que a feiticeira pensava. Era ainda jovem, e talvez tenha sido a mocidade que a livrara da tentação. Aos 20 anos, não tivera muito tempo para as decepções da vida adulta. Era sonhadora e cul­tivava ideais inflamados, mais fortes que a riqueza e a glória. Não queria termi­nar a vida mergulhada numa piscina de ouro, servindo de conselheira na cor­te de um monarca insano. Queria amar, ter filhos e ser feliz ao lado de alguém. Sob a máscara da bruxa infernal, havia uma mulher como todas as outras, que via nas coisas simples o verdadeiro prazer de viver. Gostava de se sentar à foguei­ra e escutar histórias até o sono chegar. Queria passear pelo campo, tomar ba­nho no rio, escutar o canto dos pássaros e provar o toque do homem amado.

         E, por mais singelos que fossem seus sonhos comparados ao poder do di­nheiro, Shamira não pretendia abandoná-los.

 

         Ao rufar dos tambores, dois guardas trouxeram ao terraço uma arca de pu­ro marfim, esculpida, nos flancos, com a heráldica da cabeça de touro. Os sol­dados a pousaram na plataforma, ao fim dos degraus, e Zamir caminhou até ela.

         — Cush, progenitor de nosso Rei Imortal, foi morto pelo inimigo. Acredita­mos que seu espírito possa nos indicar o caminho ao acampamento rebelde.

         O conselheiro ergueu a tampa da arca e enfiou a mão na escuridão do baú. Nimrod continuava afundado no trono, quieto, autista, perigosamente calado. A moça temia que ele explodisse em um novo ataque de fúria e a atacasse com o cetro metálico.

         Então, o feiticeiro retirou da caixa um crânio enegrecido, visivelmente humano, mas chamuscado pelo contato com o fogo.

         — Os Filhos de Jafé nos enviaram isso — mostrou o conselheiro, esticando a .caveira queimada. — Sabe por quê?

         — O corpo foi submetido ao ritual da purificação, com certeza. Os ossos, agora, não têm nenhuma serventia.

         O invocador examinou o crânio mais uma vez, como um professor que desconfia da mentira infantil. Enquanto isso, o Imortal despertou de seu transe e correu à plataforma,

         — Você invocará à matéria a alma de meu pai, e teremos a nossa vitória.

         — Não posso — confessou a mulher. — A alma de seu pai está agora vagando no abismo e de lá não pode voltar. Duvido que algum necromante consiga resgatá-la do grande vazio.

         Dito isso, o dentes-de-sabre rosnou, e o soberano acompanhou sua cólera. Brandiu o cetro adornado e precipitou-se ao ataque, cheio de ódio mortal. Surpreendida, Shamira tentou desviar, mas o bastão acertou-lhe cabeça, e ela foi jogada contra o piso da escada. Em seguida, foi chutada na boca do estômago tomada pelos cabelos.

         O Imortal a lançou feito brinquedo à base do trono, com toda a violência de um chefe guerreiro. Ali, seu rosto delicado encontrou o chão prateado, abrindo um corte ralo acima da testa.

         A Feiticeira de En-Dor encarou seu agressor e percebeu a vontade assassina em seus olhos vermelhos. Nimrod não a pouparia — não depois de sua pronta recusa. Seria esmagada ali, no pináculo da Pirâmide de Prata, para servir de exemplo aos futuros capturados. Mas o que ela poderia ter feito? A reversão do ritual era inviável, mesmo ao mais poderoso dos mágicos.

         Levantando o cetro sobre a cabeça, o governante preparou a pancada final. Mas quando a mulher fechou os cotovelos para proteger a cabeça, sentiu pesar a manga da túnica e lembrou que ali escondera a faca de pão. Não pretendia sacá-la tão cedo nem ter de usá-la em combate, mas não tinha mais opção. Diante da realidade da morte, puxou o punhal e, com todo o vigor de uma presa acuada, atacou. Era uma necromante, iniciada nos segredos da vida e sábia nos estudos de anatomia. Conhecia cada vaso do corpo humano, cada órgão, cada ponto crítico da carcaça vital.

         A adaga correu e, com uma fincada certeira, rasgou a túnica do Imortal, alcançando sua carne. Um esguicho de sangue acompanhou a ferida, e a lâmina cravou fundo no coração.

         Com o fluido rubro a manchar-lhe as mãos, Shamira se afastou do rei cambaleante, espantada pela própria pujança. Rejeitava todo tipo de assassinato e crueldade, mas sua ação fora instintiva. Agora, o soberano feneceria aos poucos, no cume de seu adorado palácio. Nenhum homem, mago ou guerreiro, suportaria aquela punhalada fatal.

         Mas em vez de avançar, como qualquer sentinela faria, os guardas não se mexeram, copiando a tranquilidade do buscador, que persistia altivo na plata­forma. Seu comandante estava agonizando, morrendo, e continuavam estacados os soldados!

         Foi então que o impossível aconteceu.

         Esparramado sobre o trono, definhando na poça de sangue, Nimrod aindal respirava, lutando como um touro bravio pela última centelha de vida. O monarca soltou um urro terrível, um berro inumano e gutural, como uma funes­ta oração aos deuses perdidos. Deslizou a mão ao punho da faca e, tremendo de dor, finalmente a arrancou do peito.

         Em proeza fantástica, digna dos grandes heróis do passado, ele se levantou e proferiu uma gargalhada sinistra, lunática, no mesmo instante em que abria o colete da túnica, revelando o corte coagulado.

         O ferimento regenerou sobre a pele!

         — Que Ishtar seja louvada! — exclamou o conselheiro, elevando as palmas ao céu. Os vigilantes o imitaram, tombando lanças e escudos ao piso.

         Recuperando seu cetro — e também sua perfeita saúde —, o Imortal cuspiu uma nódoa de sangue e dirigiu-se à fascinada Feiticeira de En-Dor.

         — Assim é o meu povo, invencível — e exibiu o busto sarado. — Não tememos a ira de Deus nem o ataque dos anjos. Eu o desafio, ó Yahweh! — aproveitou, arrostando o profundo lume do sol. —Você que inundou Enoque, a pátria dos meus ancestrais. Eu o renego, ó Refulgente, pois eu sou Nimrod, o legado do grande Caím.

         E apontou o bastão à feiticeira, completando a sentença.

         — Será poupada, mulher, para que estude o ritual e aprenda a convertê-lo. Ele não aceitara, ainda, o fato de que o encantamento era irreversível.

         — Agora levem-na daqui — gritou aos guardas. — Joguem-na no calabouço, nos porões do zigurate. É sob a terra a morada dos necromantes.

         As sentinelas a algemaram, mas antes que fosse amarrada Zamír disparou mais um de seus desprezíveis conselhos.

         — Seria melhor que você estivesse em condições de realizar a cerimónia ao cair da madrugada. Eu não desagradaria Nimrod outra vez.

         Dali Shamira foi arrastada pela escadaria até o jardim, e de lá para as masmorras na fundura do palácio real. Mas, antes que desaparecesse pelos degraus, avistou o soberano, meio tonto, procurar a mão amíga do feiticeiro.

         — Zamir, preciso ter com a deusa.

 

Pelos Olhos do Rato

         Nimrod não era nem um pouco tolo. Ao ser jogada em uma cela úmida, inunda, escura e cheia de ratos, Shamira entendeu que o tratamento especial que recebera na noite anterior tinha um propósito. O Rei Imortal não a hospedara em um quarto luxuoso porque se preocupava com sua saúde. Era uma tática — uma manobra para mostrar à prisioneira o que de melhor e de pior havía em Babel.

         Era óbvio que depois de passar toda uma noite nas masmorras do zigurate, sem água ou comida, ela de tudo faria para voltar ao quarto de mármore, mergulhar na piscina aquecida e provar as iguarias do farto banquete. Até mesmo o mais forte dos homens, fosse ele rei ou escravo, sucumbiria hora ou outra às necessidades vitais e aos prazeres da carne. E era essa a intenção do Imortal e de seu feiticeiro.

         Nimrod e Zamir sabiam que a necromante se dobraria como qualquer outro cativo, mas desconheciam a peça fundamental que desbancava a estratégia: o mapa do calabouço, entregue à prisioneira pela menina Adnari. Shamira deixara o pergaminho no dormitório, mas memorizara cada detalhe do projeto sub­terrâneo e se lembrava perfeitamente da localização das saídas secretas. O de­sfio, agora, estava em transpor as paredes da cela, bloqueada por uma grossa porta de ferro e trancada por três classes de fechaduras trançadas. A feiticeira não tinha muito tempo de ação. Calculava mais seis ou sete horas até o crepús­culo, e dali mais sete à madrugada.

         A cela onde fora enfiada era mínima, abafada, e a única luz incidente vinha dos archotes do corredor e penetrava pela fresta na soleira da porta. O silêncio era cortado pelas gotas de água que escorriam da pedra e pelos gritos ocasionais dos prisioneiros em tortura. Não totalmente sozinhos, os condenados tinham a companhia dos ratos, que de início se espantavam com as pancadas no chão, mas depois, famintos, perdiam a inibição e não raro atacavam.

         Depois de certo tempo, já adaptada à escuridão, Shamira distinguiu a aproxi­mação dos roedores e os afastou com uma pisada. Um delicioso almoço os aguar­dava em outras alcovas, onde os cadáveres dos prisioneiros ficavam por dias, até que os escravos os recolhessem.

         Como humana, a feiticeira dali não podia sair. A porta era muito forte para ser arrombada, mas a ferrugem corroerá o canto das dobradiças, desenhando pe­quenas gretas no ferro, por onde entravam e saíam ratos e baratas. Era o momento de Shamira usar novamente sua mágica. Estava ferida na testa, mas podia ainda se mover, falar e lançar feitiços elementares. Os componentes seriam seus únicos companheiros de cela, os mesmos que desejavam devorá-la com os dentes agudos.

         Improvisou uma luva, fazendo duas dobras no tecido da túnica, e agarrou um dos roedores que pela ferrugem se esgueirava. Com a mão direita, coletou um pouco de seu próprio sangue, que fluía pelo ferimento, e marcou uma runa má­gica nas costas do animal. Depois, arrancou um fio de pelo do bicho e o enfiou debaixo da língua.

         — Ia Mashmashti! Kakammu Selah!— recitou, fitando os miúdos olhos da criatura.

         O encanto de consciência animal é um ritual dos mais básicos, ensinado aos jovens feiticeiros como um instrumento de espionagem e exploração. Pelo fei­tiço, o mago é capaz de estender sua consciência ao animal e enxergar através de seus olhos. Enquanto o sangue permanecesse fresco no dorso do rato, Sha­mira poderia também controlar sua rota e visualizar seu caminho.

         Soltando o bicho no chão, a feiticeira fechou os olhos e principiou a visão.

 

         Se comparada à do homem, a visão dos ratos é embaçada e monocromática, mas extremamente eficiente à noite. As pupilas saltadas contribuem para uma percepção panorâmica do espaço, ajudando na detecção de sombras de movi­mento, em ângulos muito expandidos.

         Foi assim que Shamira avistou sua rota — uma passagem escura, tenebrosa» pontilhada pelo fulgor descolorado das tochas, que seguia infinitamente pelo corredor. O animal avançou para o norte, procurando a escada ao nível supe­rior, e encontrou dois carcereiros que, indiferentes à sua presença, conversavam à guarda de um largo umbral arqueado. Adiante, a senda dava acesso a uma escada espiral, que subia e descia em sentidos opostos.

         Driblando os vigias, o rato saltou para os degraus e galgou, um após o outro, buscando o próximo lance. Mas então congelou, ao perceber a sombra de dois descendo. Recuou à fresta mais próxima e ali os esperou em silêncio. Foi então que a necromante, pelos olhos do bicho, identificou os passantes eram ninguém menos do que o próprio rei Nimrod, apoiado em seu buscador! Tremulante, o Imortal caminhava, aturdido, exausto, abatido.

         Shamira queria fugir, mas não resistiu ao mistério. Na indecisão entre ficar ou correr, a feiticeira tomou o rastro de seus inimigos. Deixou que os babilônicos seguissem na frente, e pelos olhos do rato acompanhou o percurso. Zamir e Nímrod desceram até o nível mais fundo e entraram por uma passagem estreita, quase um túnel, que culminava em uma única porta de ferro, reforçada por chapas de cobre.

         O roedor viu quando os dois homens deslizaram à câmara — uma sala ilumínada por piras de fogo — e riscou pelo chão antes que fechassem o caminho. Encontrou um largo aposento, redondo, centralizado por um tipo de anfiteatro, com degraus circulares e orlado por pilastras cilíndricas.

         O animal levantou o focinho, captando o cheiro de sangue, e em sua mente distante a feiticeira assistiu a uma cena que nunca mais esqueceria e que encerrava todos os segredos da antiga Babel.

 

A Deusa do Mundo Interior

         Fechada cm sua cela, incapaz de sair, Shamira apertou forte as pálpebras e mordeu a língua em horror, quando o rato transpôs a passagem.

         Suspensa por correntes ao teto estava uma bela mulher, de pele clara e face apática. Os cabelos, louros, compridos e ondulados, caíam-lhe às costas, indicando seu traço mais absurdo — um par de longas asas de penas brancas, marcadas por rajas de sangue.

         A deusa! A deusa Ishtar. A deusa do mundo interior. A deusa de Nimrod!

         A condenada não era realmente mulher, mas uma entidade celestial, como aquelas descritas no Livro de Magan, um dos antigos compêndios de misticismo aja autoria se atribui aos sábios da extinta cidade de Enoque. Esses celestes, até onde se sabia, foram criados pela luz do Altíssimo e serviram como arautos em sua criação. Foram eles a primeira raça do universo, e muito antes da feitura do homem já vagavam pelas estrelas, desbravando o infinito.

         Mas quem teria capturado criatura tão majestosa, e por quê?

         Era impossível, mesmo para um necromante, ter certeza se a alada ainda vivia, pela gravidade de seus ferimentos. Não só as asas, mas todo o corpo esta­va coberto de lesões e hematomas, como o dos soldados que regressam da guerra.

         Mas então, quando o rato circulou a pilastra, a própria Shamira estremeceu à visão do espetáculo dantesco. Usando uma faca magica de ritual, o feiticeiro Zamir rasgava as costelas da deusa, deixando verter o sangue da pobre entidade dependurada. Enquanto isso, ajoelhado aos pés da celeste, Nimrod sorvia o flui­do vermelho, engolindo com ardor as gotas de plasma.

         Bebendo o sangue da deusa!

         O sangue humano é o alimento de muitos espíritos e frequentemente é usa­do como material nos rituais de bruxaria. Mas a necromante nunca ouvira fa­lar de um homem que tivesse provado o sangue imortal e não tinha idéia dos efeitos resultantes de tal cerimónia. Era certo, porém, que os filhos de Nod (que viviam em Enoque) muito pesquisaram sobre a natureza angélica. Se o busca-dor tivesse mesmo os tomos antigos de feitiçaria, provavelmente fosse experto nas propriedades ocultas da anatomia celestial, e então a feiticeira inferiu o mais lógico.

         É o sangue da deusa que torna, o soberano invencível.

         A situação hedionda desconcertou a mulher, que quis vomitar, mas deteve o impulso. A concentração vacilou, e foi quebrado o encanto. Na sala, o rato, liberto, fugiu para a escuridão, e os profanos avançaram com sua orgia macabra.

 

         No calabouço, uma figura solitária percorreu as alcovas e parou em frente à cela de Shamira. Sacou do cinto um molho de chaves e destrancou cada uma das três fechaduras.

         Quem será? — assustou-se a mulher. E se o bruxo tivesse detectado seu fei­tiço de consciência animal? Que destino ele poderia arquitetar para ela, além da execução? Se Zamir conhecia os segredos ancestrais, certamente saberia como amaldiçoá-la, convertendo-a em uma criatura inumana, como faziam os magos de Nod.

         A porta se abriu, e Shamira viu não um guarda, mas um escravo, um sujeito alto, moreno e forte, que trabalhava como serviçal em alguma ala do palácio. Não portava armas, só uma veste comum, e não parecia agressivo.

         — Sou amigo de Adnari — esclareceu, e o coração da moça quase pulou de alívio. —A menina me contou que você conhece a saída.

 

         — Um escravo por aqui... e sozinho? — ela murmurou, ainda meio abalada. Nenhum vigia circulava pelos corredores, e a masmorra parecia desguarnecida.

         — Você tem de se apressar. O rei e o buscador desceram às câmaras inferiores. Sempre que isso acontece, as sentinelas são ordenadas a deixar a prisão. A evacuação temporária permitiu o meu ingresso.

         Zamir e Nimrod zelavam pela conservação do mistério, embora Adnari tenha dito que alguns escravos chegaram a contemplar "a face da deusa". Na verdade, a presença física da divindade não era um tabu, e sim a dependência do governante de seu sangue. Se algum aristocrata descobrisse a fonte da invencibilidade do rei, certamente tentaria roubá-la.

         — Qual é seu nome? — ela quis saber, finalmente recobrando a razão.

         — Não seria seguro, nem para mim nem para você, que eu revelasse meu nome. Faço parte de um círculo de escravos que articula uma insurreição. Muitos perderiam se eu fosse exterminado.

         E, sem mais perguntas, os dois correram pela senda do norte e venceram a escada, agora vazia, até o arco de acesso ao próximo nível. A feiticeira parou no umbral e avisou ao escravo:

         — Eu fico aqui. Este é o caminho para a saída secreta.

         — Boa sorte — desejou o conspirador, pronto para continuar sua rota de volta ao palácio.

         — Escute — chamou a feiticeira, certa de que poderia ajudar na insurreição. — A deusa Ishtar...

         Um ruído contínuo interrompeu a conversa, e os fugitivos distinguiram uma sombra disforme que subia os degraus.

         — Vá — insistiu o escravo, repudiando a silhueta. Se a prisão havia sido esvaziada, então só restavam duas pessoas livres a vagar pelos subterrâneos.

         Nimrod e Zamir.

         Aterrorizada pela possibilidade de reencontrá-los, a moça correu pelo corredor quase como um gato em caçada, à procura do túnel de saída.

 

A Passagem Secreta

         Shamira foi caminhando pelo corredor, até dobrar em uma curva ao leste. A passagem parecia muito com o calabouço inferior, ladeada por centenas de celas trancadas. As paredes continuavam imundas, mas ali a iluminação era mais regular. Do teto pendiam lamparinas de bronze, e não tochas, alimentadas por cargas de óleo e marcadas com a heráldica real.

         Trezentos metros além da entrada, a vereda terminava em uma parede limosa, e diante dela havia um poço de pedra, solitário no fundo do beco. Era. uma cacimba de água, uma fonte subterrânea de suprimento. O buraco não era profundo, e a distância de um braço separava a boca do poço da linha da água. Shamira esticou a mão à cisterna e provou o gosto do líquido.

         Agua doce.

         Era aquela a saída, certamente, segundo as diretrizes do mapa.

         Enchendo os pulmões, a moça mergulhou na água gelada e abriu os olhos na profundeza. Distinguiu um túnel submerso, anelado e redondo, e se meteu dentro dele, sem reparar muito bem para onde levava.

         A tubulação era deslizante e estreita e subia em ângulo suave, até emergir para o ar.

         Com o peito a queimar, a Feiticeira de En-Dor insurgiu e respirou o gás precioso, engasgada pelo esforço excessivo. A saída delgada fazia lembrar um ca­no de despejo de esgoto, mas a água era pura. Lá dentro, a escuridão seria total não fosse um brilho dourado no fim da passagem, dali a mil metros, que guiava a travessia.

         Uma longa distância para percorrer rastejando — mas nem por isso exatamente penosa. A alegria por ter deixado a masmorra era tanta que a feiticeira esque­ceu a palpitação do ferimento na testa e nem se importou de ralar os joelhos no cascalho afiado.

         Assim se passaram duas horas inteiras.

         Esgotada, a feiticeira escutou o ruído do vento e distinguiu o anel de saída. Apressou sua rota e enfim sentiu o aroma da terra, quando o túnel se abriu em uma caverna minúscula, ligada ao exterior por uma racha pequena. Um fio de água escorria da boca do cano, desenhando uma poça diminuta no solo arenoso.

         Livre!

         A Feiticeira de En-Dor conseguira fugir. Estava livre dos calabouços da terrível Babel e do assédio de seus inimigos, mas para onde teria escapado? Certamente o tubo avançava sob as muralhas da capital e subia em leve inclinação, para aca­bar em um recanto seguro, longe da agitação da cidade.

         Era noite quando Shamira saiu pela abertura. O deserto à sua volta dava vida a um cenário irregular e montanhoso, uma região pedregosa, que delineava um labirinto de passos rochosos, desfiladeiros e morros pontudos. Aquela era uma terra infértil e desabitada, conhecida pelos mesopotâmicos como Mar de Rocha. A fase cheia da lua iluminava os montes, e do vale a necromante avis­tou o caminho mais óbvio, que enveredava ao centro de uma ampla garganta.

         Então, enquanto vagava descansada pela trilha, Shamira escutou repetidas pancadas estremecerem o desfiladeiro.

         Cavalos.

         A feiticeira estava sendo procurada!

 

         O rei e o buscador não tardaram a descobrir que Shamira havia fugido dos até então intransponíveis calabouços da Babilônia, mas como teriam rastreado seu curso? O túnel, de fato, não era uma saída de prisioneiros, mas uma rota secreta construída pelos próprios babilônicos, como uma alternativa de evasão no caso de sítio. Sendo assim, era óbvio que o soberano conhecia cada uma das tubulações e seus respectivos destinos. Como uma escrava doméstica, Adnari tinha acesso ao quarto dos buscadores e de lá roubou o mapa, na melhor intenção de facilitar a fuga da amiga. Mas a menina não contava com a perspicácia dos conselheiros nem esperava que Nimrod e Zamir estivessem subindo a escada no exato minuto em que a feiticeira saía da cela.

         A necromante correu pelo vale, perdida. Procurou por um esconderijo, mas não encontrou nenhuma gruta que servisse. O barulho dos cascos aumentou, e a moça reparou na desgraça da geografia. As curvas e os paredões do Mar de Rocha confundiam a visão e impediam a observação a distância. A qualquer momento, um soldado poderia saltar do meio das fendas e render a feiticeira com sua lança.

         Na corrida, a feiticeira perdeu a percepção dos ruídos mais graves, e as batidas do coração suplantaram os passos dos caçadores. Com os pés inchados, Shamira obrigou-se a sentar. Voltou a escutar o relinchar dos cavalos e percebeu um guarda no alto do desfiladeiro. No instante em que os soldados irromperam no vale, a feiticeira teve certeza de que, mais cedo ou mais tarde, seria descoberta. Distinguiu, então, no canto extremo da garganta, uma saída para a planície — uma fissura no paredão, que cruzava uma senda e levava ao deserto.

         Os caçadores puxaram as rédeas, e o pelotão de vanguarda desmontou. Havía, ali, perto de quarenta guerreiros de olhar apurado, e ao menos dez deles inciaram a busca pela base da encosta. Acenderam lampiões e com bastões fustigaram os buracos. Foi aí que, sem alternativa, Shamira correu, atenta principalmente aos guardas armados de arcos.

         A areia mais fofa atrasou-lhe a disparada, mas os vigilantes não a perceberam, até que ela se meteu pela fissura, e uma sentinela deu o alarme. Ao soar dos berrantes, os cavaleiros partiram em perseguição.

         Quando entrou no desfiladeiro, Shamira ouviu o som de engrenagens metá­licas e distinguiu, logo adiante, uma charrete de duas rodas, puxada por um par de negros corcéis. Seu auriga era um homem comprido, de nariz fino e barba pontuda. A pele morena estava bem maquiada, e os cabelos, tratados com uma solução oleosa.

         Era Zamir, o feiticeiro.

 

O justiceiro das montanhas alongadas

         Encurralada entre uma horda de lutadores e a charrete do mago, Shamira recuou ao vale, na vá tentativa de escalar o aclive. Conhecendo a real impor­tância de uma vitória integral, sem falhas ou desvios, Zamir resolveu demonstrar suas habilidades fantásticas e alcançar assim o triunfo perfeito.

         Sempre calmo e ordeiro, o feiticeiro se transformou de repente, incorporando uma máscara de ardor infernal. Levantou os braços e gritou uma prece aos po­deres antigos.

         — Ia Dag! Ia Dag! Ia Margolqbabbonnesh! Ia Marrutukku! Ia Tukuí Suhrim Suhgurim!— bradou o conselheiro, contorcendo os punhos em gestos profanos.

         E assim a areia subiu ao redor da mulher, formando uma onda espiralada, tal qual um pequeno tornado. O furacão sugou sua vítima, e Shamira foí jogada para lá e para cá no coração do ciclone, sendo enfim lançada ao chão, com vio­lência e brutalidade abissais. Engasgada pela terra e suja de poeira calcária, ro­lou para o extremo do vale, parando a um metro do carro de Zamir.

         — Infelizmente, você descobriu o poder de um invocador pela via mais rude — disse o conselheiro, retomando sua postura alinhada.

         A Feiticeira de En-Dor simplesmente não podía falar. A boca sangrava e o peito doía. Os soldados, por sua vez, estavam igualmente assustados. Todos em Babel eram acostumados aos mitos fantásticos, mas nunca haviam presenciado a invocação de um feitiço tão magnífico. Não duvidariam, nunca mais, das len­das sobre o Imortal.

         — O rei não costuma deixar a cidade — esclareceu o buscador —, mas quer você viva, para que seja executada diante da torre. Entenda que foi a única que já escapou das masmorras do zigurate. Não podemos deixá-la incólume.

         Na frieza do homem, havia uma neutralidade peculiar. Zamir não parecia exatamente cruel, apesar de suas atitudes. Era como se o extermínio de Shamira nada significasse para ele, um bruxo cuja ambição morava muito além da rea­lidade mundana.

         — Espanquem-na! — ordenou, finalmente. — Poupem o rosto, para que seja reconhecida pelo povo nas ruas. — E completou, oficializando o comando:

         — E o desejo do Imortal.

         Três homens desceram do cavalo com curtos chicotes. Um quarto avançou annado de bastões de bronze.

         Já entregue à ruína, Shamira perdeu todas as esperanças e aceitou sua sina. Mas, naquele momento, os guardas silenciaram, ao ruído de passos firmes que chegavam ao vale.

         Quem? Quem em sã consciência se aventuraria pelo desfiladeiro assombrado ainda mais lotado de guerreiros armados, nascidos na maior de todas as nações de seu tempo?

         Os batedores, e até o mago, estranharam quando um forasteiro apareceu caminhando às costas do pelotão. Com a surpresa, os soldados abriram caminho, e o homem seguiu pelo meio da tropa, para estacar diante da moça. Vestia uma túnica pesada, de pano marrom, castigada pela longa viagem. Um capuz obscuro tapava-lhe o rosto, mas a necromante pôde reparar nos olhos cinzentos no cavanhaque alourado. Não carregava arma ou escudo. A expressão era temerária, refreando o assalto dos combatentes.

         Durante um longo minuto ninguém disse nada, nem mesmo o buscador, o viajante ajoelhou-se para ajudar Shamira, alheio à presença do esquadrão. Examinou o ferimento da testa e tateou os ossos quebrados. Indignado, Zamir exigiu:

         — Alto lá, forasteiro! Quem é você, que debela nossas defesas?

         Desfeitos do choque, os guardas cobriram a dianteira, preparando as lanças e apontando os arcos. O estrangeiro encarou o bruxo, e Shamira viu que ele tinha a pele bem clara. Era alto, robusto e guardava toda a dureza de um guerreiro versado.

         — Sou um viajante, mas já conheço um pouco estas bandas — respondeu, e voz era forte. — Seguia o caminho de meu santuário, quando avistei o pelotão cm perseguição à mulher. E para que tanta gente? — e olhou ao redor, indican­do a multidão de infantes.

         — Ela é uma bruxa — justificou um dos oficiais.

         Somente a segurança do eremita impedia que fosse alvejado.

         — Ora... — argumentou, levantando do chão como um tigre assassino. — Ela não me parece assim tão perigosa — desviou-se ao feiticeiro. — Sua caçada noturna está encerrada — endureceu as palavras. — Sua prisioneira está quase morta, e vou levá-la comigo.

         Os soldados retrocederam, mas o mago não parecia vencido.

         — Não vai conseguir isso tão fácil.

         — Eu imaginei que não — reagiu o viajante.

         Assim, decidido a liquidar qualquer obstáculo à sua demanda nacionalista, Zamir fez sinal aos lutadores, que retesaram os arcos e apontaram as flechas.

         O desfiladeiro não era lá muito vasto, e apenas sete homens compunham a linha de frente. Os outros caçadores vinham logo atrás, mas eram justamen­te os primeiros que miravam as setas. A maioria estava a pé, inclusive os arquei­ros, que haviam desmontado para esquadrinhar a garganta.

         No preciso ato do disparo dos guardas, o forasteiro jogou para cima sua ca­pa, enganando os atiradores — eles lançaram flechas aos céus, mirando a veste vazia.

         Voltando as vistas ao solo, notaram, estupefatos, o solitário guerreiro, que vinha de encontro à tropa como um projétil de catapulta. O estrangeiro aco­meteu com os punhos cerrados, mas, em vez de esmurrar os capitães, atacou o chão, em premeditada investida.

         O soco produziu uma extraordinária onda de choque, que correu para frente em forma de cone, pondo todo o pelotão a nocaute. Aturdidos, os guardas de­sabaram, mas nem Shamira nem Zamir foram atingidos. Na retaguarda, os ca­valos fugiram, horrorizados com a sacudida.

         Nesse momento, o inabalável Zamir fraquejou. Julgava-se insuperável, mas agora encontrara um oponente ao qual não podia vencer. E não era só isso. No semblante do feiticeiro, a necromante leu a máscara do terror, como se o via­jante tivesse despertado nele a lembrança de um pavor enterrado.

         Afundado em desespero, o mago tentou mais um de seus encantos bizar­ros, mas o forasteiro saltou sobre ele como um leão em caçada e o arrancou pa­ra fora da biga. Quando ambos caíram, o andarilho o levantou pela camisa, de costas para o brilho da lua. Ao contemplar o rosto de seu agressor, Zamir tre­meu feito criança e abortou qualquer reação.

         — Parece que a coragem dos babilônicos falha ao primeiro sinal de perigo — constatou o forasteiro. — Será que a força divina dos exércitos de Nimrod só funciona contra moças feridas e escravos desnutridos?

         — Perdão! — suplicou o buscador, tomado pelo pânico irracional. — Perdão! A idéia não foi minha. Foi o rei que me persuadiu. Piedade, eu imploro! Não tire minha vida!

         — Tenha calma, homem — retrucou o estrangeiro, sem entender muito bem covardia tão brusca. — Não tenho a intenção de feri-lo.

         Assim, o viajante solitário liberou a pegada, e o bruxo deslizou para o deserto, deixando para trás a charrete, os corcéis e também o pelotão desacordado.

         O silêncio voltou ao desfiladeiro, e Shamira sentiu que era erguida nos braços pelo justiceiro das montanhas alongadas. Não viu mais nada depois, só o breu e o conforto do sono.

 

O Homem sem Alma

         Shamira acordou com o agradável aroma de peixe cozido, uma fragrância particularmente gostosa, que sempre a transportava ao passado, às tardes de sábado ­em En-Dor, quando todo o povo descansava do labor da semana e preparava o banquete comunitário.

         O corpo já não doía. Ela abriu os olhos, mas a luz indireta do sol machucou a retina. Aos poucos, reparou ao redor e distinguiu os contornos de uma gruta pequena, aquecida e aberta ao norte por uma saída redonda. Uma fogueira, no centro da caverna, cozinhava uma sopa marinha — uma mistura de peixes, algas e lula.

         No extremo sul da gruta, reluzia um objeto metálico, encravado no coração de uma alcova. O canto mais parecia um altar, destacado por uma espada longa, que jazia enfiada na pedra. Sua lâmina era de um material diferente do ferro, muito mais brilhante e maciço.

         E, do outro lado da galeria, próximo à abertura na pedra, meditava o forasteiro, sentado, de pernas cruzadas. Os cabelos loiros chegavam à altura dos ombros fazendo um rabo de cavalo abaixo da nuca.

         Faminta, a feiticeira provou o cozido, separando boa porção em uma tigela de argila. Não queria incomodar seu salvador nem tirá-lo de seu repouso. Nos dias da Babilônia, o cavalheirismo não era uma atitude comum, principalmente entre os viajantes. Uma mulher capturada podia esperar pelo pior, do estupro à morte, da humilhação à tortura.

         Shamira voltou ao seu leito, uma cama rústica de tecidos e feno, e continuou a refeição merecida, descobrindo lascas de palmito no fundo do prato.

         — Não dê muita importância ao gosto. Sou péssimo cozinheiro — surpreendeu o andarilho. — Guardei um pouco de água naquela garrafa — e indicou uma vasilha de barro.

— Há o suficiente para vários dias.

         Shamira não bebia nada desde que fora atirada ao cárcere, ou assim ela pensava. Os lábios estavam rachados e secos, mas os ferimentos tinham sarado, todos eles, e os ossos quebrados voltaram ao lugar.

         O jovem ermitão caminhou até a fogueira. A feiticeira nunca tinha visto um homem daqueles — bonito e imponente, mas singelo também, simples em suas ações e direto em seus objetivos. Não devia ter muito mais que 30 anos, mas os olhos cinzentos projetavam uma sabedoria ancestral, descendente de uma era anterior à feitura do mundo.

         Desde criança, Shamira sempre fora destacada nas habilidades místicas, mes­mo antes de aprender a arte dos mortos. Algumas de suas capacidades eram ina­tas e não dependiam de fórmulas mágicas ou runas simbólicas. Uma dessas ha­bilidades era a de se projetar ao astral, e outra era a de contemplar os espíritos. A necromante podia ver os fantasmas, os espectros errantes, e consequentemen-te podia enxergar também a alma dos vivos, presa ao corpo encarnado.

         A silhueta astral do estrangeiro, porém, era terrivelmente apagada, e a mulher recuou. Se não tinha alma, não era realmente humano, mas então o que era?

         — Quem é você e por que me salvou no Mar de Rocha? — ela balbuciou.

         — Acho que é de minha natureza assistir os desamparados — respondeu, meio desprevenido. — Mas não sou exatamente um herói, talvez precisamente o con­trário — ele sorriu, descontraindo a tensão. — Sou apenas um viajante, um guer­reiro perdido, um desertor de meu próprio exército.

         — E que lugar é este? Por que me trouxe para cá?

         — Para tratá-la, é claro, em ambiente seguro. Este é um santuário, uma es­pécie de templo que eu mesmo construí, um tanto singelo, como pode ver. Co­mo soldado, nunca fui apegado ao luxo.

         Um santuário? Dedicado a que deus?

         Instintivamente, os olhos da moça se voltaram ao altar, à espada fincada na rocha.

         — Esta é a Vingadora Sagrada—ele explicou, orgulhoso como quem apresenta um filho. — É o último esplendor que carrego comigo, desde que fui expurgado.

         — Você disse que é um desertor? — interpelou a feiticeira, intrigada pela his­tória. Não conhecia nenhum exército de homens brancos naquelas partes de­sérticas, nem tivera notícias de legiões em batalha.

         — Um renegado, um desgarrado talvez. Assim como você, eu também sou um fugitivo. Quem sabe tenha sido isso que me levou a defendê-la no passo.

         — E o que aconteceu? Não sei de nenhum exército estrangeiro cruzando es­tas cercanias.

         — O meu exército não viaja por terra, mas pela vastidão do céu azulado, acima das nuvens e além da realidade comum—revelou. — Não é um exército mundano, tampouco uma tropa terrena, mas uma legião invisível.

         Recuperada, mas ainda confusa, Shamira deslizou até a boca da pequena caverna e vislumbrou a saída. A abertura não levava ao deserto ou a alguma outra planície, mas a um precipício indescritível, mais elevado que qualquer formação do Mar de Rocha. A gruta, de fato, estava encravada no alto de uma mon-. colossal, e sua encosta era tão lisa que não podia ser escalada nem mesmo mais hábil dos alpinistas.

         E só então a Feiticeira de En-Dor entendeu que seu salvador não era humano ou etéreo, mas uma entidade celestial, uma figura antiga, mais velha que qualquer pessoa vivente.

 

         A montanha para onde Shamira fora levada era a infame montanha de Mashu, o reduto anteriormente assombrado, mas agora absolutamente tranquilo. No passado, a formação havia sido o lar dos terríveis espíritos-serpente de Kur, uma horda de monstros rastejantes adorada pelos aldeões primitivos da velha Suméria. A região foi então invadida pelos celestiais durante as Guerras Etéreas, dez anos antes do nascimento de Nimrod, quando todas as entidades ofídicas

aniquiladas pelas legiões do arcanjo Miguel.

         A caverna, um recanto impenetrável aos homens comuns, dava vistas ao norte e era tão alta que, de lá, se podia ver com clareza o rio Tigre, ao leste, que com o Eufrates fechava as fronteiras da Mesopotâmia. Uma planície árida se estendia ao norte, e mais para oeste outra formação se elevava aos céus — a Torre de Babel. O Mar de Rocha ficava quilômetros ao sul, na direção da cidade, e quase inavistável pelo ângulo invertido.

         O eremita que salvara Shamira não era um homem mortal, mas um anjo renegado, um querubim que, segundo ele próprio, fora expulso do céu por desafiar a autoridade dos impiedosos arcanjos. Os dois — o anjo e a feiticeira — conversaram por horas sobre muitos assuntos, materiais e sublimes, até que a cananeia se convenceu da integridade do novo amigo e de sua intenção de ajudá-la. Ele revelou o seu nome — Ablon — traduzido para a língua terrena e contou um pouco sobre sua origem alada.

         Quando o sol decaiu no horizonte, os fugitivos se sentaram na entrada da caverna. A paisagem vespertina traçava uma linha azul acima da superfície do Tigre, circulada pela faixa verde à margem do rio.

         — Você salvou a minha vida, e eu não tenho como agradecer-lhe — disse a necromante, à luz do espetáculo dourado. — Mas não vejo sua alma, se é que tem uma, e isso me deixa assustada. Sou uma feiticeira e sempre dependi de minhas capacidades para sobreviver neste mundo.

         —A alma é uma propriedade humana— aclarou o renegado. — E um presente de Deus aos Filhos do Éden, como nós, anjos, chamamos a espécie mortal. E na alma que reside a capacidade dos homens de guiar seu destino e comandar a própria vontade.

         — Mas como alguém, mesmo um celeste, pode não ter alma? Qual é a ener­gia que os move, que os mantém ativos no cosmo?

         — Todos nós temos um espírito: humanos, deuses, animais e até plantas. O espírito é a energia vital que alimenta os seres viventes, mas espírito e alma são elementos distintos, embora poucos o saibam. É a alma que faz dos terrenos es­peciais no universo. E a força da alma que os torna conscientes, autónomos, que dá a vocês o livre-arbítrio, a dádiva que foi negada às entidades aladas.

         — E como regem sua vida, se não pela rota do coração?

         — Os celestiais não são conduzidos pelos próprios anseios, mas por sua natu­reza divina. No céu, estamos divididos em castas, cada qual com sua função. Existem anjos guerreiros, estudiosos, protetores, juizes e também aqueles que governam as províncias elementais.

         — São como os magos invocadores? — perguntou a mulher, à traumática lem­brança de sua estadia em Babel.

         — Não como eles. Nós nunca seríamos mágicos, porque a magia provém da força da alma, a alma que nunca tivemos. Nossos poderes, aos quais chamamos divindades, nascem da potência de nossa aura pulsante, uma energia suprema que é o sopro essencial dos angélicos.

         — Se são espíritos, pura e simplesmente, como se manifestam na terra?

         Parecia óbvio que o lar dos espíritos fosse o plano astral, e só ele.

         — Diferentemente da maioria das entidades astrais e etéreas, os anjos são ca­pazes de se materializar no plano físico. Para isso, formamos um avatar, um in­vólucro carnal com o qual agimos através do tecido. Mas os anjos renegados, como eu, foram amaldiçoados e presos para sempre ao corpo material. Não po­demos mais dissipar nosso avatar e regressar ao mundo espiritual, muito menos voltar ao paraíso.

         —Alguns sacerdotes, em Canaã, contavam histórias sobre anjos caídos, terrí­veis monstros que se escondem na sombra do infinito.

         — Os anjos caídos e os anjos renegados são dois grupos diferentes. Os caí­dos protagonizaram uma verdadeira guerra no céu, e por sua crueldade foram atirados ao Sheol, um lugar de horror e sofrimento, uma dimensão obscura. Hoje, são demônios do desespero, eternamente agarrados ao mesmo ódio que os derrubou.

         Quando o sol finalmente desceu, todo o calor foi embora com de, e Shamira preferiu retornar à caverna, pouco confortada com os gélidos vencos da altitu­de. Ali ficaram acordados por mais algum tempo, e a moça discorreu sobre sua história de vida, sobre sua iniciação mágica em En-Dor e sobre a linhagem de sua família, que chegara ao Oriente fugindo de uma guerra fratricida que agi­tara o Mediterrâneo havia trezentos anos.

         Cerca da meia-noite, a fogueira morreu, e o sono apertou, Shamira não resistiu ao chamado da noite e adormeceu profundamente, encoberta pelos remendos de lã.

         Ablon retomou sua vigília na entrada da gruta, mas não temia o ataque de guardas ou feiticeiros.

         Com efeito, seus inimigos eram bem mais pavorosos.

 

Glosas sobre a Criação

         Na manha seguinte, Shamira despertou agitada, O sono fora interrompido várias vezes, à repetição do mesmo pesadelo, que recordava zigurates, masmorras, feiticeiros e deusas aprisionadas em calabouços de pedra. Volta e meia ela abria os olhos nas trevas, atônita, mas a presença sóbria do celeste acalmava-lhe o coração. Ablon era como um falcão protetor, uma ave de rapina que defende seu ninho, sempre alerta. Agachado na entrada da gruta, ele não se cansava, não se movia, não vacilava, nunca dormia.

         Antes de se levantar, a Feiticeira de En-Dor esticou-se no leito, ainda dolorida pelos golpes que sofrera a caminho do cárcere. Mais tarde, o renegado revelaria à moça o período de seu torpor curativo. Desde o assalto no Mar de Rocha até sua primeira visão da caverna haviam se passado duas semanas, tempo em que ela fora alimentada, exclusivamente, com extrato de ervas — um preparado esverdeado e pastoso, rico em vitaminas e minerais, e especialmente indicado aos enfermos. Havia, na gruta, pelo menos vinte vasos de barro, com tampas e asas, óprios para a conservação de água e comida, mas o suprimento não duraria para sempre, e a necromante tremia ante a possibilidade de ter de escalar o rochedo.

         Foi durante o desjejum que o celestial contou sobre a existência de uma fonte no topo da montanha, cinquenta metros acima, na qual teria de repor o quanto antes o conteúdo dos vasos. Ele a convidou a subir ao cume, de onde teriam ampla visão de todo o país babilônico.

         —A nascente fica escondida entre duas pedras irmãs — disse Ablon. — Ela brota aos pingos de uma fonte pequena e depois regressa ao ventre da rocha.

         — Eu nunca conseguiria galgar o paredão, para cima ou para baixo — resistiu a mulher. — É muito ereto, impossível de ser escalado, mesmo com um gancho nos pés.

         — Posso levá-la comigo — ele ofereceu.—Já escalei muitas vezes esta montanha, e na última ocasião eu a trouxe comigo.

         — É muito íngreme. Os apoios físicos são mínimos.

         — E como você acha que chegou até aqui?

         — Não sei... — ela se confundiu. — Pensei que os anjos... sempre imaginei que os celestes voassem como pássaros no céu.

         — Durante a materialização, nossas asas são incorporadas à carne, desapa­recendo inteiramente no corpo físico. Manifestá-las é cansativo e doloroso, e pouco inteligente a um fugitivo. Para todos os efeitos, sou um humano viajan­do pelo deserto, e não um alado.

         Antes do meio-dia, portanto, Shamira aceitou participar da empreitada, cer­ta de que aquele que a salvara não seria o mesmo a sacrificar sua vida ou a ex­pô-la ao perigo desnecessário. Espantada, porém confiante, ela viu quando o general usou uma corda para atá-la às suas costas, como uma mochila viva. Pren­deu outro cabo ao cinto de couro, ligando sua extremidade às asas dos vasos, no interior da caverna, para que pudesse puxá-los depois.

         Então, acocorado no platô à saída da gruta, Ablon saltou para o vazio, como quem se atira para a morte, e por um instante a feiticeira achou que despencaria nas rochas, com seu salvador suicida. Mas o renegado havia pulado para cima e encravado os punhos em uma racha minúscula, invisível a distância. Dali, pen­durado na encosta regular da montanha, foi subindo feito uma aranha, apro­veitando os raros apoios e produzindo fendas de suporte onde elas não existiam, com seus dedos poderosos, capazes de perfurar o calcário. Em certo momento, pulou novamente, chegando a uma plataforma, quase no auge da elevação.

         A seguir, o caminho se aplainava em uma trilha, larga o bastante para um homem passar. A passagem contornava a encosta e terminava no pico. Lá, no ponto mais alto da montanha de Mashu, o caminho se abria em uma praça na­tural, cercada por megálítos pontudos.

         Enquanto Ablon puxava os vasos, a necromante contemplou toda a terra. Tentou não olhar para oeste, para a cidade maldita, mas a curiosidade a forçou, e ela enxergou a silhueta da terrível Torre de Babel,

         — Não é um cenário muito aprazível, esse do oeste — comentou o celestial, percebendo o receio nos olhos da moça. — Preferia que Enoque nunca tivesse sido arrasada. Seus descendentes, os babilônicos, não têm a menor idéia de quem foram seus antepassados.

         — Mas eu pensei que todos nós, humanos, fôssemos de alguma forma her­deiros dos antigos homens de Nod — argumentou a mulher.

         — E são. Todas as etnias humanas provêm de um mesmo ramo ancestral. Antes mesmo da fundação de Enoque, nos tempos de Adão, os mortais se espalharam pelo mundo, construindo povoados e vilas, algumas muito distantes da capital. Os babilônicos são os herdeiros desse povo central, os sucessores dos clãs fundamentais que decidiram não emigrar.

         — E quanto à gente da legendária Atlântida?

         — Os atlantes eram tão humanos quanto os filhos de Nod, mas sua raça tinha origem em um galho independente. De qualquer forma, nenhum deles sbreviveu ao dilúvio.

 

         Shamira queria saber de tudo. Como feiticeira e estudiosa, não se cansava de perguntar sobre os objetos mais variados, e muitas dessas questões nem o celeste era capaz de responder. Mas Ablon não se aborrecia com isso. Ele admirava sua vivacidade humana, sua criatividade e sua inteligência, traços comuns à juventude.

         — Conte-me tudo — ela pediu. — Fale-me sobre o universo, sobre as coisas que viu enquanto vagava pela sombra do espaço. Revele-me o aspecto de Deus.

         — Mas eu sei muito pouco. Só os arcanjos conhecem os verdadeiros mistérios do cosmo. Sou só um guerreiro, um executor, ou pelo menos era...

         Mas, ao notar a decepção no rosto da necromante, o renegado emendou:

         — Posso lhe contar o que sei, o que ouvi dos malakíns, os anjos sábios que no Sexto Céu e vivem para estudar os segredos antigos.

         A Feiticeira de En-Dor recostou-se na rocha, já fascinada pelo relato que seguiria. Um vento agradável soprava no alto, abrandando o calor da manhã.

         — Houve um tempo, muito anterior à aurora do universo, em que o infinito dividido em duas províncias, a província das trevas e a província da luz. A escuridão era então governada por uma divindade hedionda, Tehom, a deusa caos. Essa monstruosidade cósmica era assistida por diversos deuses menores, eles Behemot, o Horrendo, com sua lâmina negra, e controlava a maior parte do extenso vazio. Seu opositor era o deus da luz, o resplandecente Yahweh. determinada ocasião, Yahweh e Tehom entraram em guerra.

         — Um só deus, contra muitos?

         — Para ajudá-lo nesse combate, o Reluzente fez nascer os cinco arcanjos, seres de poder fabuloso, que lutaram a seu lado contra os deuses das trevas. Yahweh e seus arautos venceram o confronto, ao qual nos referimos como Baralhas Primevas, e lançaram ao inferno os cadáveres de seus inimigos. Com Tehom der­rotada, o Pai Celestial assumiu as duas províncias, comandando tanto a luz quan­to as trevas e consagrando-se onipotente sobre todas as coisas. Invencível, ele teve tempo para iniciar a criação do universo. Com um estalo, o Altíssimo deu vida aos anjos, todos de uma vez, povoando o espaço com as legiões celestes. Depois, produziu uma fagulha de luz e principiou a feitura do cosmo.

         — E sobre Deus, o que sabe dele?

         — Só sentimentos e energia. O Senhor nunca foi acessível, mesmo enquanto moldava o infinito. Só os arcanjos falavam com ele, e não creio que falassem muito. Yahweh era como um pai ocupado, um progenitor que dava muita im­portância ao seu trabalho. Mas podíamos senti-lo em nosso coração, e no fun­do não estávamos sozinhos. Tolo é o filho que depende do pai, que se apoia em sua segurança e desiste de desbravar o mundo por si.

         — E depois, o que aconteceu?

         — Ao correr de bilhões de anos, o Criador cultivou seu labor, dividindo seu projeto em dias. Cada um desses dias sagrados corresponde a milhares de anos humanos. No primeiro dia ele criou o céu, o sol e os primeiros astros do firma­mento. Construiu uma miríade de luas e planetas, até descobrir seu mundo per­feito. Por incontáveis séculos, a terra foi o lar dos animais, o canteiro dos an­jos, até que, no fim do sexto dia, surgiram os homens, a maior de todas as obras de Deus. Encantado pelo resultado final, Yahweh deu a eles uma alma, concluin­do a tarefa da criação. Então, exausto e realizado, o Reluzente caiu em letargo. Voou até o Sétimo Céu, a seu santuário no topo do monte Tsafon, e ali adormeceu, deixando aos arcanjos o serviço de governar em seu nome. Terminou assim o sexto dia, e começou o sétimo, que persiste até hoje.

         — O sétimo dia — repetiu a mulher. — E quando será concluído?

         — É impossível dizer. Os arcanjos, e também os malakins, sustentam que o Altíssimo despertará no futuro, para punir os injustos, e esse será o tempo do Apocalipse, um evento universal que encerrará o último dia. Miguel, o Prínci­pe dos Anjos, detém, no pináculo de sua fortaleza, em Sion, a Roda do Tempo, um artefato incrível que marca, supostamente, a continuidade do sétimo dia. Quando seu ciclo estiver terminado, o Onipotente ressurgirá e instaurará um reino de paz. Mas isso é só previsão.

         — E você? — ela perguntou. — Por que está aqui? Por que viaja por terra e não com sua espécie no céu?

         Ablon fez uma pausa dramática e fitou o brilho do sol, que agora já descia pela rota do oeste. Substituiu os vasos na pia da fonte e sentou-se à frente da moça.

         — Yahweh sempre foi muito dedicado à sua criação, o que entristecia os ar­canjos, que disputavam sua atenção. Então, quando o Reluzente deu a alma ao homem, os arcanjos, e também muitos anjos, se encheram de ciúmes e raiva. Assim, no instante em que o Altíssimo adormeceu, o príncipe Miguel iniciou sua política de destruição. Alegando falar em nome de Deus, avisou que o Pai estava farto da crueldade humana e que decidira eliminar todo mortal da face da terra. Começou, com isso, a era das grandes catástrofes, dentre as quais a pior foi o dilúvio.

         — A inundação que sepultou Enoque e Atlântida — acompanhou a feiticeira.

         — O cataclismo indignou metade do paraíso, mas os anjos ainda não estavam preparados para reagir nem para desafiar a autoridade do Monarca Alado. Por isso, decidi articular uma conjuração.

         — Você? — surpreendeu-se Shamira. — Achei que fosse só um guerreiro.

         — É no exército que reside o poder das revoluções, mas sua surpresa é justificável. Eu era um general, um líder militar consagrado, mas subordinado ao chefe de minha casta e logicamente aos arcanjos também. Sozinho, seria esmagado.

         — E o que resolveu fazer?

         — Formei um círculo de conjurados, todos eles confiáveis, composto por dezoito querubins, que não me trairiam jamais. Contudo, precisava de apoio contra o enfadonho Miguel, e para isso recorri a outro arcanjo.

         — E quem era ele?

         — Lúcifer, a Estrela da Manhã. Ainda que fosse um arcanjo, Lúcifer sempre se mostrou favorável à causa humana, mesmo que só para desafiar seu irmão. Ele era o único que tinha poder para debelar o Príncipe Celestial e era perfeito ao quadro da conjuração.

         — Qual foi a resposta dele?

         — Ele aceitou o meu plano, e achei que juntos poderíamos pôr fim às hecatombes e talvez despojar o tirano. Mas nem tudo correu como esperado. Séculos depois do dilúvio, os homens voltaram a se multiplicar, o que enfureceu sobremaneira o ditador. Sua fúria caiu, então, sobre a cidade de Sodoma, um terreno que prosperava e crescia. Miguel resolveu devastar o lugar e convocou todos os anjos para uma assembléia, com o intuito de anunciar sua decisão. Após um demorado discurso, confirmou o extermínio não só de Sodoma, mas de todas as cidades na vastidão da planície. Irritados, eu os conjurados levantamos a palavra, e tudo não teria passado de discussão se o ardiloso Lúcifer não tivesse nos delatado. Ali, diante do conselho, o Arcanjo Sombrio nos traiu, revelou a conjuração, e então pegamos em armas. Uma luta violenta se sucedeu, até que os pilares do paraíso racharam, e despencamos. Fantástico e insuperável é o poder do sinistro Miguel; ele nos amaldiçoou, condenando-nos à pior sentença que poderia ser dada aos celestiais. Ele nos encarcerou em nos­so corpo físico e nos expulsou para a terra. E assim fomos relegados ao plano material.

         — Mas por que Lúcifer preferiu traí-los, se era Miguel o seu verdadeiro ini­migo?

         — A Estrela da Manhã não desejava nossa aliança. Ele não se preocupava verdadeiramente com a preservação da humanidade, mas só em contrariar o ti­rano. Almejava tomar o trono e depois ascender acima do próprio Deus, fir­mando seu palácio emTsafon, o Monte da Congregação.

         — É difícil concluir qual dos dois é pior, um ditador assassino ou um vilão ardiloso.

         — Delatar a conjuração deu a Lúcifer influência e prestígio, poder que ele usou para arquitetar sua própria revolução. Atraiu milhões a seu lado, prometen­do um governo de paz e o fim da tirania. Alguns anjos bons aderiram à sua re­volta, desiludidos com o ministério do príncipe. Pouco tempo depois do expur­go dos dezoito renegados, uma guerra sangrenta agitou o paraíso, mas a rebelião foi derrotada. O Diabo e seus anjos foram lançados ao Sheol, uma dimensão escura e funesta, e ali permanecem como demônios do desespero.

         — Como soube de tudo isso, se já não frequentava o céu à época da batalha?

         — Por Orion, um anjo caído que aceitou, erroneamente, os termos da revo­lução. Éramos amigos nos dias da velha Adântida, e ele subiu do inferno para me procurar. Falou-me sobre a guerra, e disse-me também que Lúcifer pusera toda a culpa de sua derrota nos renegados, que teriam sido o início de tudo.

         — A corda sempre arrebenta do lado mais fraco.

         — Orion veio me avisar que a Estrela da Manhã designara caçadores para nos acossar. E, por uma detestável ironia, Miguel, no céu, fizera o mesmo, sus­tentando que a conjuração semeara o fruto da revolução. Embora nunca tenha­mos tido nada a ver com a insurreição de Lúcifer, ambos os lados precisavam encontrar um alvo para descarregar sua raiva. Já prevendo a perseguição, nós, os renegados, preferimos nos separar e nos espalhar pelo mundo.

         — Uma decisão arriscada.

         — Logo que chegamos à terra, fomos ao único lugar que conhecíamos: Eno­que, então uma ruína submersa no deserto de Nod, povoada pelos fantasmas daqueles que morreram na devastação do dilúvio. Lá, a Irmandade dos Renegados ficou oculta por séculos, estudando as obras de arte, a arquitetura e os imentos humanos. E no fim desse período de exílio, resolvemos partir solitários, porque juntos seríamos achados e mortos de uma só vez.

         — E o que o trouxe à Babilônia, afinal?

         — Meu encontro com Orion aconteceu depois da dissolução da irmandade, quando eu vagava sozinho pelas pradarias sumérias. Agora, é minha missão reagrupar os fugitivos e alertá-los para o perigo que correm.

         — E você já encontrou algum deles?

         — Um dia, durante minhas andanças pelas margens do Tigre, percebi um tremor no tecido da realidade. É uma técnica conhecida pelos celestiais a prática de enviar mensagens através da membrana. Com efeito, era um alarme, um pedido de socorro, um sinal lançado por uma querubim renegada: a guerreira Ishtar.

         Ishtar!

         Shamira empalideceu. Seria aquela a mesma Ishtar de Babel? A deusa que ela vira aprisionada no calabouço de pedra, a entidade alada, encarcerada nas masmorras do zigurate? E se fosse? Deveria a feiticeira revelar o segredo ou omití-lo pela segurança do general? Poderia Ablon penetrar na capital babilônica, vencer seu exército armado e derrotar o Imortal e seu conselheiro? Ela apostou não. Imaginou que, na cidade maldita, Zamir seria invencível ao lado do rei. Não fosse assim, jamais teria capturado a deusa e a usado em suas cerimônias nefastas.

         — O que foi? — reparou o general, e o sangue da moça gelou.

         — De repente, eu me vi jogada de volta ao pesadelo — ela disfarçou, decidida arriscar a vida do amigo. — Conte-me o que aconteceu em seguida — esquivou-se.

         — A mensagem sugeria que Ishtar havia descoberto alguma coisa bem grande, assunto que requeria minha imediata atenção. Farejei o seu rastro por toda a Mesopotâmia, e minha busca me levou ao Mar de Rocha — ele apontou a sudoeste, indicando o labirinto rochoso. — Mas cheguei lá muito tarde. Em meio aos rochedos, avistei a lutadora em combate com uma criatura incrível, um te­nebroso anjo de asas negras. Sua aura era confusa, conspurcada, e um elmo metálico cobria-lhe a face. Eu não sabia se era demônio ou anjo, mas, percebendo que não alcançaria a montanha a tempo de salvar a celeste, atirei-me contra o paredão, e todo o morro ruiu. Não sei o que aconteceu aos duelistas, mas seria morta se eu não tivesse destruído o monte no instante preciso. Acho difícil que ela tenha perecido no desabamento, considerando sua resistência imortal. Desde então, venho esquadrinhando o Mar de Rocha à sua procura, mas sem sucesso. Minha hipótese é de que tenha rugido para o norte.

         Ishtar não morreu no colapso do morro, calculou Shamira. Talvez só tenha apagado, o que, seguramente facilitou sua captura pelos babilônicos.

         Competência ou oportunismo? O que teria, em verdade, permitido o aprisionamento da deusa?

         — Por que não viaja para o norte então? — arriscou a mulher, tentando afastar o renegado da capital odiada e do mago que, provavelmente, poderia subjugá-lo como fez com Ishtar.

         — Ainda não. O mais correto é esperar. Se a guerreira estiver por aqui, ela me achará.

         A feiticeira calou-se, esquecendo todas as questões que patrulhavam sua mente, à exceção de uma, que não a abandonaria tão cedo. Estava atônita. Não sabia o que fazer ou que movimento seguir para contornar o impasse. Se contassee a Ablon sobre sua visão pelos olhos do rato, ele certamente invadiria Babel e morreria pelas lanças do exército, pela força do Rei Imortal e pelos feitiços do bruxo. E se não contasse, ele possivelmente viveria, mas ela teria traído a con­fiança de seu salvador.

         Na dúvida, a necromante resolveu adiar o anúncio.

 

         Ablon e Shamira continuaram juntos no topo da montanha até a noite cair. Abalada pela revelação, ela não conseguia tirar a figura de Ishtar da cabeça, agora que sabia quem era e como fora levada ao zigurate.

         Antes mesmo de a lua nascer, o anjo e a feiticeira desceram à caverna, mas continuaram a conversar sobre a capital babilônica, reparando nos estranhos hábitos de seus habitantes. O renegado se mostrou consternado pelo sofrimento dos operários, mas tinha por ideologia não interferir no curso da história.

         — Os homens têm livre-arbítrio, que é um presente sagrado, e deveriam ser os únicos responsáveis por sua redenção ou por sua condenação — explicou. — Assim como o arcanjo Miguel não tem o direito de massacrá-los, eu não devo salvá-los.

         — Mas os renegados se levantaram justamente contra o assassínio da huma­nidade — lembrou a feiticeira.

         — A conjuração pretendia preservar os mortais da fúria celeste, e não deles mesmos. Não somos deuses, mas anjos, e só podemos guiar os seres humanos, nunca empurrá-los ao caminho premeditado.

         — E por quê?

         — Porque essa é a vontade de Deus — respondeu, simplesmente. — Assim planejou Yahweh, e nós, celestiais, somos o seu instrumento, os executores de suas ordens. E isso que nos diferencia dos homens, que são livres de fato, e não estão presos a nenhum desígnio ou ordem.

         Recuando ao fundo da gruta, a necromante se cobriu com uma manta de lá e acendeu a fogueira. Tomou um pouco de sopa e depois se deitou, acomo­dada no leito de palha.

         — Só tem uma coisa que eu ainda não entendi — estendeu o general, antes que ela se virasse na cama. — Se Babel tem tantos escravos, por que eles não se revoltam?

         — Os trabalhadores temem o rei Nimrod, que é imortal e não pode ser ferido por arma alguma.

         — Imortal? — espantou-se o renegado. — Ora, isso é impossível.

         Shamira fechou os olhos e rolou para o lado.

         Dormiu muito pouco.

 

Ablon e Shamira

         A chegada do verão deixou o tempo um pouco mais úmido. Nessa época, o calor na Mesopotâmia castiga as montanhas, aquece o deserto, esquenta as planícies e faz borbulhar as águas do Tigre, criando zonas sazonais de precipitação, que fertilizam o solo no leste.

         Por toda a primavera, a Torre de Babel não cessou suas obras, rasgando a paisagem e instigando a já perturbada consciência da Feiticeira de En-Dor. Ela não encontrou coragem para revelar ao renegado a verdade, e agora já era tarde demais.

         Com o tempo, e apesar do dilema, Ablon e Shamira se tornaram amigos. Certo dia, ao brilho derradeiro da tarde, os dois descansavam no platô da caverna, quando repararam na sombra da torre.

         — Está ficando maior a cada dia — comentou o renegado. — Deve ter mais de mil metros agora. Em breve alcançará dois mil.

         — Como? — contestou a feiticeira. — Se crescer mais, tudo desaba, O edifí­cio não tem sustentação para suportar todos os andares abaixo. Não sei como ainda fica de pé.

         — Não é nenhum mistério da mágica, mas uma proeza da engenharia. Nunca estive em Babel, mas venho acompanhando a distância o progresso da construção. Um lençol subterrâneo cruza a cidade, e seu volume de água é imenso.

         — É o mesmo lençol que abastece os jardins do palácio — ela recordou.

         — É um canal submerso do rio Eufrates. Depois de cortar as muralhas e o zigurate, a torrente segue adiante. Os operários cavaram fundo na terra até en­contrar seu curso e então construíram uma barragem, forçando o rio a conti­nuar fluindo, mas para cima.

         — Para cima?

         — No centro da Torre de Babel há um gigantesco cilindro de ferro, um cano vertical de largo calibre. O canal corre por dentro dele, e sua pressão é tão forte que mantém o tubo reto. Para sustentar o equilíbrio, minúsculas comportas dei­xam a água escapar em direções estratégicas, criando uma coluna de apoio, que suporta a estrutura central.

         — É incrível. Assim poderão continuar trabalhando infinitamente.

         — Ambição. Nesse ponto, anjos, demônios e homens compartilham da mes­ma maldade.

         E ali ficaram, na plataforma da gruta, até que as estrelas nasceram e o frio apertou. Eram tão diferentes — o celestial e a terrena — e ao mesmo tempo tão parecidos. Ambos fugiram da opressão e descobriram por si os próprios valores. Não procuravam a guerra, o ódio ou a dor. Só desejavam a paz, mas suas trajetórias os lançaram à violência, a uma vida de aventuras que, embora excitan­te, nada tinha de agradável.

         O vento soprou nas alturas, e os dois se abraçaram num instinto humano.

         Nenhum deles jamais esqueceu aquele momento.

 

Missão Divina

         Depois do primeiro mês de verão, o calor aumentou. A caverna ficava a muitos metros do solo, e a altitude refrescava a manhã, mas ao meio-dia nem a gruta escapava do sol. Assim, em uma tarde escaldante de julho, o anjo e a feiticeira decidiram excursionar até as margens do Tigre. A caminhada seria lon­ga, mas Shamira precisava andar, e o querubim saberia guiá-la. Eles já tinham escalado a montanha algumas vezes e reposto a água dos jarros, mas agora era a comida que terminava nos vasos.

         Com fios de corda, Ablon improvisou uma rede de pesca e depois costurou muitos metros de pele de carneiro esticada, preparando uma larga sacola, den­tro da qual guardaria os víveres. Buscariam peixe, palmito, romãs e talvez um pouco de carne para incrementar a dieta. Os celestiais não precisam comer, mas o general sempre degustava as receitas da moça, já que as suas eram quase intragáveis.

         Pela primeira vez em muitas semanas, Shamira pisou o chão de areia, e juntos, eles viajaram na trilha do leste, na direção da faixa verde que fecundava a margem do rio. Dois dias depois, já avistavam raposas, gazelas, lontras, falcões mhas, além de vários tipos de árvores frutíferas e um bosque de tamareiras. Arbustos esparsos surgiram da terra, até que o cenário se esticou em um tapete de relva.

         Alguns casebres se levantavam ao sul, tristes propriedades de fazendeiros roubados condenados à miséria pelos impostos reais. A cada dois meses, Nimrod os buscadores aos recantos distantes do império, para oprimir os camponeses e executar os rebeldes. A possibilidade de os viajantes encontrarem patrulhas armadas era grande, mas o renegado não temia os batedores.

         — Os babilônicos passaram por aquí faz cinco dias — ele notou, tateando as pegadas na grama. — Vieram com uma comitiva e carregavam uma liteira pesada.

         — Eles viajam muito rápido, mesmo a pé — concordou a mulher.

         — A Coroa dispõe de uma trilha secreta, que passa por dentro da terra. Eu já vi o caminho do alto, mas nunca estive nele de fato.

         — Um túnel subterrâneo que atravessa o país? — ela estranhou.

         — Não um túnel, mas uma vala, uma estrada afundada. Eu não saberia precisar os detalhes nem dizer como foi construída.

         — E por que você nunca usou essas rotas? Devem ser a passagem mais rápida aos rincões da Babilônia.

         — Nunca quis topar com um batalhão. Os buscadores estão sempre a cavalgar pela via oculta, acompanhados por seu séquito de combatentes.

         — Achei que fosse praticamente invencível — rebateu a feiticeira.

         O renegado sorriu, em sua modéstia habitual. A maioria dos anjos é superior aos terrenos comuns, mental e fisicamente, mesmo materializados em seus avatares, e a necromante não se esquecera da luta no Mar de Rocha, quando seu salvador aturdira os guardas com um único assalto preciso.

         — Não sou invencível. Se fosse, não teria sido expulso do céu.

         — Mas tem resistido a seus assassinos.

         — Não sei por quanto tempo. Logo um caçador me achará como achou a guerreira Ishtar. E não posso recuar ao combate.

         Seu orgulho é tão mortífero assim? — instigou a mulher, entristecida pela soberba do amigo.

         — Isso não tem nada a ver com orgulho. Sou um querubim, um guardião e um predador. Essa é a minha natureza — repetiu.

         Ablon e Shamira já tinham conversado um bocado sobre o livre-arbítrio dos homens e sobre a natureza invariável dos celestiais, mas ela ainda não se conformara com o impulso do lutador, talvez porque fosse humana, e os humanos não padecem de uma vontade constante.

         — E quanto ao receio da morte? — ela insistiu.

         — Para um soldado, a morte é só o fim da missão.

         — E o que você teme, então, general? Ou são os alados também imunes a toda falha do espírito?

         O renegado parou sobre a relva e tocou o rosto da moça.

         — Esquecer — disse ele, acariciando sua pele macia. — Esquecer as coisas pelas quais passei, as lições que aprendi, esquecer aqueles que amo. E, acima de tudo, temo esquecer meus valores, perder minha ideologia e matar minha causa.

         A necromante engoliu um soluço e desviou o olhar. Entendeu, só então, que seria muito egoísta se tentasse desviá-lo de sua missão, uma demanda que certamente o levaria à morte, mas que salvaria sua causa.

         Essa é geralmente a escolha dos verdadeiros heróis, e Shamira não poderia detê-lo.

         Sozinha, chorou em silêncio.

 

         Os dois andarilhos montaram acampamento a uns duzentos metros da mar­gem do rio, esticando mantas na grama. Dali em diante, o campo virava um charco, um pântano lodoso que se estendia até a orla do Tigre.

         A tarde já ia findando, e eles resolveram descansar apesar dos insetos, cozi­nhar alguma coisa e levantar bem cedo no dia seguinte, para pescar e recolher alimento. Shamira usou algumas pedras para delinear a fogueira e queimou um punhado de ervas exóticas para afastar os mosquitos. Juntou uma pasta hetero­gênea de raízes estranhas e ensinou ao renegado um preparado secreto, capaz de conservar a matéria orgânica por anos, preservando couro, papel e tecidos. A fórmula fora desenvolvida pela antiga Ordem de Sippar, uma confraria de ma­gos extinta havia séculos.

         Naquela mesma noite, enquanto a feiticeira dormia, Ablon sentou-se sobre uma pedra redonda e mergulhou em profunda meditação. Os celestiais meditam com alguma frequência, para recordar lugares e situações do passado, que do contrário seriam esquecidos. Diferentemente dos homens, os anjos vivem por milhares de anos, e nem todos são espertos como os malakins, cuja mente não esmorece jamais.

         Antes mesmo do alvorecer, no dia seguinte, os viajantes venceram o charco e atingiram as águas serenas do Tigre. Depois da caminhada, banharam-se na na refrescante corrente e ali ficaram nadando ao sol por quase toda a manhã.

         Ao meio-día, Shamira recolheu-se à praia, e Ablon lançou a rede de pesca à torrente, onde o fluxo descia em queda. Estavam no paraíso, realmenie, uma visão delirante e fértil, cercada de vida e beleza, um sítio agradável na vastidão deserto.

         — Os sacerdotes em Canaá nos ensinavam que os homens surgiram do barro — começou a feiticeira, rateando a terra molhada. — Quando criança, eu ficava pensando se as escrituras estavam corretas.

         — O barro é metafórico — explicou o general. — Ele representa a carne, a matéria física, a substância palpável do universo concreto. O ser humano é parte de uma escala evolutiva que se iniciou no mar, no quarto dia, e que deu início ao nascimento de várias espécies.

         — Mas você disse que os terrenos foram criados por Deus.

         —A força de Deus sempre esteve presente na evolução. Ela é a energia essencial que move o curso do infinito e o engrandecimento das coisas. Os clérigos costumam comparar o trabalho de Yahweh com o labor da gente comum, para que possam compreendê-lo. Mas o ofício de um marceneiro ou de um pescador não se equipara à potência divina. A criação movimentou energias supremas, misteriosas e invisíveis.

         — Então, os documentos sagrados nada mais são do que velhas parábolas?

         —As parábolas não são desprezíveis, mas representam o ápice da comunicação humana. Assim, cabe ao indivíduo interpretá-las. Não há nada mais adequado raça dotada de livre vontade, aberta a encontrar as próprias respostas. As ituras estão cheias de símbolos que ajudam os homens a entender o sígnificado do cosmo. Mas a verdade perfeita só existe na mente de cada um.

         — E quem foram os nossos ancestrais, antes do surgimento de Adão?

         — Uma espécie de hominídeos que habitava a escuridão das cavernas. Os anjos desprezavam na época, até que eles alcançaram o cimo da evolução, e os concedeu uma alma, instigando o ciúme dos perversos arcanjos. É por isso que muitos celestiais invejosos preferem se referir aos mortais como bonecos de barro, ou primatas, uma alusão à sua origem material.

         — E curioso pensar que um anjo nunca tenha visto a face de Deus — ela comentou, relembrando a conversa que tiveram no topo do morro.

         — Mas isso é o que menos importa. Prefiro pensar nele como um conceito, uma inspiração, um objetivo. Acho que a fé é justamente a propriedade de acreditar no indecifrável.

         Shamira conhecia bem a força da fé, porque era uma feiticeira, e nenhum encanto é operado sem fé. A energia de seus encantamentos provinha de sua alma humana, mas a alma é também uma herança de Deus, um canal que liga os terrenos à potência suprema. Os feitiços, prodígios e milagres agem todos através da essência dos homens, a mesma essência que os une ao Altíssimo e os conecta ao universo.

 

Zamir Desaparece — Babilônia em Crise

         Zamir desapareceu da corte babilônica em meados da primavera, depois que Nimrod o havia enviado, juntamente com um pelotão, para perseguir a Feiticei­ra de En-Dor. O comandante da tropa, um homem de 50 anos chamado Nebron, relatou ao rei que a bruxa escapara, mas nada avisou sobre a aparição do anda­rilho. O ambicioso capitão pusera a culpa do fracasso na imprudência do invocador, que os teria enviado na direçao incorreta. Como Zamir não regressara à capital, a versão militar foi aceita, e os soldados foram poupados da morte.

         Nas semanas que se seguiram, o Imortal ficou mais agressivo, visivelmente abalado pela perda de seu conselheiro. Mas encontrou falso conforto na com­panhia dos demais buscadores, que não passavam de sombras do mago, mas que de tudo fariam para assumir seu lugar. Com isso, o palácio foi agitado por uma rede de traições e intrigas, que culminou com a morte de diversos aristocratas. Assassinos contratados se esgueiravam pelos jardins, arriscando ávida para ex­terminar a de outrem.

         O Império Babilônico tremeu, mas Nimrod estava certo de que poderia su­portá-lo sozinho. Segundo ele, nada nem ninguém tinha o poder de enfrentá-lo ou a seu exército. Havia guardado o punhal mágico do feiticeiro, a única arma capaz de rasgar a pele da deusa, e se fosse preciso desceria sozinho ao calabouço para subtrair-lhe o sangue.

         Embora descontrolado, Nimrod era também precavido. No princípio do verão, circularam rumores sobre a existência de um "deus do deserto", que teria dado cabo do bruxo. Logo, o rei voltou a interrogar os batedores e arrancou de­les toda a verdade. O veterano Nebron confessou que a tropa fora aturdida com um único golpe e falou sobre o estrangeiro. Enfurecido, o Imortal executou ofi­ciais e soldados e ponderou sobre a natureza de seu inimigo. Como Ishtar fora encontrada no Mar de Rocha, concluiu que o forasteiro era também uma en­tidade celeste, só que mais poderosa. Entretanto, ele era um babilônico e não temia sequer a ira do esplendoroso Yahweh.

         Não fosse a tradição, que o impedia de deixar o zigurate a não ser em tempos de guerra, Nimrod teria ido pessoalmente ao deserto, para desafiar o viajante. Mas aqueles eram dias conturbados, e ele sabia que só a sua presença na capital uma revolta de escravos. Além disso, se saísse em campanha, uma guerra civil ameaçava estourar entre os buscadores, que disputariam à força o cargo à direita do rei. Preferiu, então, aguardar o assalto do "deus", convencido de que certa hora ele viria vingar sua companheira. Resolveu manter a adaga de Zamir consigo, já que era uma lâmina enfeitiçada, adequada para ferir qualquer divindade. Sonhou com o combate por noites a fio e fantasiou proezas e feitos. Já conquistara o mundo, tornara-se imortal, e agora venceria um deus. Seu nome seria gravado em poemas, narrado em lendas, e ele atingiria o céu, superando os anjos do paraíso.

         No começo de agosto, o segredo vazou, e a existência do tal deus do deserto passou a ser aceita como verdade pelos escravos, alimentando suas esperanças e revivificando a causa dos operários rebeldes, liderados por Kumarbi, o Alto. Um perigo externo certamente facilitaria a insurreição, contando que o rei deixasse a metrópole. O imprevisível sumiço do feiticeiro era igualmente animador aos conspiradores. Zamir era o cérebro por trás do trono, a inteligência que lentava a cidade.

         No terceiro mês do verão, um novo e perturbador boato assustou a realeza. Murmurava-se nas ruas que Zamir havia retornado a Babel, disfarçado, e que planejava uma desforra terrível contra aqueles que tentaram ocupar sua posição. Os buscadores repudiaram a idéia, mas à noite nenhum deles dormia direito.

         As semanas correram, e Nimrod se afastou de tudo e de todos, isolando-se no pináculo da Pirâmide de Prata. Lá do alto, em seu trono dourado, só fitava o horizonte, como que à espera de algo.

 

         Ablon e Shamira tinham agora água e comida para todo o verão e não precisariam ­mais descer à planície. Juntos, continuaram a estudar, um com o outro, os sedutores segredos do cosmo. A feiticeira ensinou ao Anjo Renegado muitos costumes humanos, como também a arte da medicina e da culinária, e ele discorreu sobre a dimensão celestial, e sobre os planos além. Formavam uma dupla extraordinária, cada qual com suas habilidades fantásticas. O querubim era um perito em combate, resistente e veloz, e a necromante, uma mestra da mágica.

         — Você tem o dom — elogiou o general, em meio a uma conversa comum. — E a melhor feiticeira que já conheci. E conheci muitos sábios c místicos.

         — Muitos? Pensei que fôssemos poucos neste mundo deserto.

         — Agora são. Mas isso foi há muito tempo, antes da submersão da Atlântida. Naquele tempo, a magia fazia parte do dia a dia. Quase nada era feito sem mágica.

         — Deviam ser tempos felizes. Mas como a feitiçaria pôde se perder tão in­tensamente?

         — Não tenho certeza. Não conheço muito sobre a história das confrarias, mas provavelmente a extinção dos sensitivos tem a ver com a dilatação do tecido.

         — O tecido da realidade — considerou a feiticeira. — A membrana que separa os dois mundos.

         — Qualquer efeito místico produzido na realidade mundana é dragado dos planos além. A energia dos encantos dos magos provém de sua alma humana, que reside no plano astral. A potência das divindades dos anjos dimana de sua aura pulsante. Assim, os feitiços devem atravessar a película para ser lançados aqui, no mundo físico. Quanto mais grosso o tecido, mais difícil é a mágica. Antes do dilúvio a membrana era muito mais fina. Hoje, só os humanos mais dotados podem manipular as forças incríveis.

         — Mas por que o tecido da realidade se adensou tanto?

         — Não sei, mais uma vez só posso supor. O tecido, segundo os malakins, é formado pela consciência coletiva da humanidade. É uma defesa inconsciente dos homens a tudo aquilo que não podem compreender e tampouco afrontar. Nasceu quando o primeiro terreno, Adão, tomou razão de quem era e passou a questionar a natureza do universo. Desde então, as pessoas vêm criando ex­plicações lógicas para tudo o que vêem, costurando uma membrana psíquica entre aquilo que consideram real e o que julgam onírico. E essa força humana é tão exuberante que foi mesmo capaz de dividir o espaço e segmentar as duas realidades: os mundos físico e espiritual.

         — Ainda que eu conheça bem a fronteira dos mortos, a teoria não deixa de ser complicada — reconheceu Shamira. — E tudo muito abstrato.

         — Certas coisas não devem ser racionalizadas. Muitas delas continuam obscu­ras aos anjos também, que têm um contato muito mais próximo com o infinito.

         As lendas a respeito de Atlântida sempre despertaram a atenção de Shamira, embora tratadas com certo ceticismo até mesmo pelos sacerdotes de Canaã, que aos poucos viriam a excluí-las dos documentos sagrados. A Feiticeira de En-Dor gostava de pensar em como seriam os atlantes, um povo justo, avançado e be­lo. Toda a magia que resta no mundo descende das migalhas ruídas da antiga Enoque, um conhecimento minúsculo se comparado ao esplendor integral de outrora.

 

         — Você já esteve em Atlântida, que hoje é a utopia dos homens. Fale-me da força que eles detinham, que tanto inspira os mais lindos sonhos.

         Mas Ablon nada contou, recuando ao fundo da gruta.

         — O que foi? — a moça perguntou, embaraçada pela atitude do amigo.

         — Shamira, preciso partir — declarou, sem rodeios. — Devo dar continuidade a minha missão e reagrupar os renegados. Irei embora no fim do verão.

         — Bom... — ela murmurou, meio sem graça. — Eu posso ir com você.

         O general balançou a cabeça e a encarou seriamente.

         — Receio que não vá querer me acompanhar.

         — Por quê? — reagiu a necromante, no impulso da inocência.

         — Porque... — ele hesitou. — Porque vou para Babel.

         — Não — ela suplicou, aos lampejos da lembrança traumática.

         — Babel é a capital do mundo. É para onde convergem todas as informações. Outros fugitivos podem ter passado por lá.

         — A cidade é perigosa. O rei... — a feiticeira engasgou, ainda sem saber se deveria revelar o cativeiro de Ishtar.

         — Posso me mesclar aos mortais. Já aprendi a ocultar as emanações de minha aura pulsante. Nenhum caçador me descobrirá em Babel.

         —Você pode voltar comigo para Canaã. Jericó também é uma localidade importante, o centro comercial do Ocidente.

         — Canaã está na região de Sion, um território patrulhado pelos celestiais. Lá, no plano etéreo, fica a maior de todas as bases do arcanjo Miguel, a Fortaleza de Sion, guardada por mais de dez mil legiões. Mesmo viajando pelo mundo material, os alados me achariam, e quem sou eu para confrontar um exército? Seguir para oeste já é arriscado, quanto mais atravessar o mar Morto...

         A Feiticeira de En-Dor escondeu o rosto e enxugou os olhos molhados.

         — Muito bem — conformou-se, e se afastou. Não queria alongar a conversa, porque não tinha mais argumentos. Restava ainda um mês para o fim da cstação, um mês inteiro em que eles conviveriam na gruta.

         Durante esse tempo, Shamira esperava convencer Ablon a mudar de idéia.

         Pelo menos, era com isso que contava.

 

Fúria Vermelha

         Para Shamira, as últimas semanas do verão passaram como areia em uma ampulheta. Vivia atormentada pela dor da consciência. Não imaginava qual seria a reação de Ablon ao anúncio do aprisionamento da deusa, nem gostava muito de pensar sobre isso. Diante do impasse, relembrou as palavras do lutador sobre o livre-arbítrio dos homens e ponderou se a liberdade era mesmo uma dádiva. Melhor seria se tivesse uma natureza exata, que falasse por suas ações, mas o fa­to é que a vida humana é feita de escolhas, e algumas delas não podem ser evi­tadas — e geralmente é melhor que não sejam.

         Então, no último dia de agosto, o anjo e a feiticeira amarraram suas trouxas e se prepararam para abandonar a montanha. A necromante levava suprimentos para sobreviver no deserto e uma pepita de ouro encontrada no Tigre, com a qual pretendia comprar um cavalo na aldeia mais próxima. O Anjo Renegado, por sua vez, carregava somente a espada, presa às costas por um cinto de couro. Embrulhada em tecido sedoso, a arma viajava escondida, disfarçada de vara ou bastão.

         Até metade da jornada, Ablon e Shamira tomaram o mesmo caminho, uma trilha estéril que culminava na falda do Eufrates, o rio limítrofe a oeste da Babi­lônia. Dali, o guerreiro se voltaria ao sul, à cidade maldita, e a necromante con­tinuaria direto pelo deserto fechado, até alcançar as fronteiras de sua terra natal.

         A orla do Eufrates, a exemplo do Tigre, era fértil também, embora pouco alagada. A água do rio era distribuída em canais e avançava sem excesso às plan­tações. Nos arredores, fazendas cultivavam ervilha, cevada, lentilha e cebola. Um campo de relva e capim acompanhava o curso do grande ribeiro, e nele pasta­vam bois, vacas, bodes e cabras. Mas a paisagem rural era conspurcada pela som­bra da torre, associada à violência das muralhas de ferro.

         O anjo e a necromante seguiram até a ponta de um ancoradouro e ali pa­raram, aguardando a chegada de um fazendeiro qualquer que aceitasse trans­portar a mulher em sua canoa ao custo de um metro de couro. Já passava das três horas da tarde, mas o tempo aberto aguçava o calor, refratando miragens disformes na linha do horizonte. Bem longe dali, no Mar de Rocha, uma tem­pestade de areia nascia, revirando poeira nos vales minguados.

         Enquanto esperavam, os dois fugitivos se olharam de perto, e um calor for­midável os tocou. Embora largamente temidos, respeitados por seus iguais, ne­nhum deles antes conhecera o verdadeiro ardor da paixão. Ablon era um anjo, um guardião empenhado, e Shamira uma garota, adolescente e imaculada.

         — Ablon... Você não deve ir a Babel — tentou a mulher, pela última vez.

         — Você ainda insiste nisso? — redarguiu o rebelde, certo de já ter superado a persistência da moça. — Acha que será fácil para mim? Detesto isso tanto como você. Mas é assim que tem de ser.

         — Mas... — gaguejou, a ponto de desmoronar novamente.

         Na expressão da feiticeira, então, o renegado notou um tormento muito maior que a simples dor da despedida.

         — O que há com você, feiticeira? Desde a primeira vez que conversamos sobre a Babilônia você se recolheu em palavras. Se há algum segredo que não te­nha me contado, é melhor deixá-lo sair agora, antes que eu siga em jornada.

         Dito isso, a Feiticeira de En-Dor explodiu em lágrimas. O mistério ruía, naturalmente. Shamira condenaria o amigo ao revelar toda a história, mas largá-lo desprevenido em Babel talvez fosse ainda mais perigoso. Em sua visão, Zamir continuava ativo no zigurate, na companhia de Nimrod, à espreita de mais alados para suas cerimônias infaustas.

         — Ishtar... — ela balbuciou, derrubada em prantos.

         — Ishtar? O que tem Ishtar? — estranhou o celeste, afagando os negros fios da jovem.

         — Ela... Ishtar é mantida prisioneira na Pirâmide de Prata — disparou. — Nimrod a capturou.

         — O quê? — rugiu o Anjo Renegado. — Por que escondeu isso de mim?

         — Eu... Eu... — Shamira tremia. Queria provar ao querubim sua verdadeira intenção, que nunca foi enganá-lo. Estava determinada a preservar a vida dele, é o bem mais precioso para os seres humanos, mas não para os celestiais.

         Com isso, viu crescer a fúria no rosto do lutador. Toda. sua aura ferveu em ódio escaldante, e os olhos brilharam em fogo vermelho. A mulher teve medo do general, mesmo sabendo que ele nunca seria capaz de machucá-la. De uma hora para outra, o mais sábio dos andarilhos se converteu num assassino voraz.

         O renegado girou em direcão à metrópole e deslizou irreconhecível rumo ao deserto.

         — Ablon! — Shamira gritou, num último ímpeto de salvá-lo. — Milhares de homens defendem os muros de Babel. E Nimrod... Nimrod... — ela esgoelou-se mas o guerreiro não desistiu, então só restava o alerta:

         — Você será morto!

         E assim, sem desviar de sua rota, Ablon retrucou:

         — Para isso, é preciso muito mais do que um exército de barro — e prosseguiu,

qual um leão em caçada.

 

         Com a visão ainda turva pelas lágrimas, Shamira viu o Anjo Renegado desaparecer na paisagem, como um jaguar faz para esconder o seu rastro. Enquanto isso, no Mar de Rocha, a tempestade ganhava potência.

         Está feito!

         Dali em diante, os dados estavam lançados, e os caminhos, traçados. A Feiti­ceira de En-Dor fizera o que julgava correto, apesar das consequências — e se sentia aliviada por isso. Estava livre, afinal, do conflito que atordoava sua mente, mas ainda triste pelo rumo das coisas.

         Rumo?

         Quem disse que estava tudo acabado? Ainda não. Ela era uma necromante, uma mística experimentada, e tinha ainda alguns trunfos na manga. Encontra­ria um meio de salvar seu amigo, e este seria seu teste final — não uma prova de bruxaria ou um exame trivial de feitiços, mas uma etapa de raciocínio, um en­saio de imaginação porque é aí que reside a verdadeira natureza da mágica.

         A Feiticeira de En-Dor sentou-se próxima ao canal, entre as raízes de uma figueira. O calor decaía lentamente, à ténue aproximação da tormenta. Sorveu um gole do cantil e descansou as mãos nos joelhos.

         Para escapar do calabouço, Shamira fora ajudada por um escravo rebelde, um servidor que dissera estar articulando uma insurreição. Esse conjurado, se­guramente, era conhecido da pequena Adnari, e juntando as peças a feiticeira concluiu que a menina participava, a seu modo, dos interesses da rebelião. Es­tava claro também que era a presença de Nimrod em Babel que inibia o levante dos operários. Mas dentro em pouco um celestial atacaria a cidade, e sua ofen­siva ocuparia toda a atenção do Rei Imortal. Enquanto o soberano e seu exér­cito estivessem em batalha, os escravos teriam a chance de estourar a revolta e quem sabe conquistar a vitória.

         Shamira decidiu, portanto, que era imperativo avisar à garota sobre a invasão do celeste. Mas como a alcançaria antes do anjo guerreiro, se o zigurate era só um montículo reduzido na imensidão da planície, à sombra da grande torre elevada?

         É a primeira coisa que fazem os necromantes, não é? Vasculhara terra dos mortos?

         Sem mais esperar, a Feiticeira de En-Dor relaxou todo o corpo, esticou a coluna e ampliou a mente. Os sentidos se apagaram, aos poucos, e ela foi lan­çada à percepção do além.

 

Tempestade de Areia

         No quarto de um dos buscadores, em Babel, Adnari arrumava uma cesta de frutas, enquanto outra menina, Mari, um pouco mais velha que ela, limpava e polia as bandejas de ouro. Entardecia lá fora, e no palácio os andares residenciais estavam vazios. Os aristocratas haviam subido aos níveis superiores para trabalhar, e suas mulheres agora passeavam nas avenidas, escoltadas pelos soldados reais.

         Uma rajada de vento irrompeu a janela. Mari, uma adolescente de pele marrom e fios encrespados, desviou a atenção aos arcos de mármore e depois correu o olhar à vastidão do deserto.

         — Uma tempestade está vindo para cá. Vai ser uma noite difícil para os trabalhadores da torre.

         — Tem alguém aqui! — percebeu Adnari.

         — Aqui? — sussurrou a amiga, vasculhando a sala vazia. — Estamos sozinhas no quarto.

         — A Feiticeira de En-Dor. Ela voltou à cidade.

         — Os portões estão sendo vigiados — argumentou Mari. — Como poderia alcançar o palácio?

         Adnari não respondeu. Saiu correndo do dormitório, dobrou o corredor principal, desceu um lance de escadas, cruzou uma passagem arqueada, venceu tcanteíro interno e voltou ao aposento dos escravos. Se fosse flagrada longe tarefas diárias, poderia ser executada sem julgamento, porque era obrigação dos escravos servir, simplesmente, e nunca questionar. Adnari conhecia o perigo, mas não era a primeira vez que se arriscava. Era ainda criança, destemida e curiosa, e não tinha quase nada a perder.

         Já os buscadores... Eles tinham um reino inteiro.

 

         O setor dos escravos, na Pirâmide de Prata, em nada se comparava aos salões regulares. Um corredor estreito terminava numa janela pequena, por on-iluz penetrava, difusa. Aos servos não era permitido o uso de velas, tochas ou lamparinas, então o lugar ficava escuro. Nas duas paredes, do chão ao teto, pontilhavam pequenos nichos, usados como leito. De longe, pareciam colméias, impróprias ao conforto humano.

         Adnari teve sorte e não topou com nenhum guarda no percurso. Subiu até sua cama e se escondeu no buraco. Era uma sensitiva e havia notado uma presença espiritual muito forte no quarto do buscador. Imaginou, logo de cara, que fosse a Feiticeira de En-Dor, já que Shamira era a única, na Babilônia, que dividia com ela aquele dom.

         Projetando a consciência, Adnari rompeu o tecido e empurrou sua alma ao plano astral. No espaço do corredor, flutuando perto do teto, a garota viu a alma brilhante da feiticeira.

         — Adnari... — chamou a mulher, no curioso tremular do além.

         — Então você sobreviveu! — exclamou a menina. — Os buscadores disseram que tinha morrido numa disputa mágica com o mago Zamir.

         — Eu fui salva. Fui ajudada pelo deus do deserto.

         A garota franziu o cenho, à menção da misteriosa entidade. Ishtar era a única divindade cultuada na época da Babel legendária, embora os buscadores re­conhecessem a existência de ídolos e heróis estrangeiros — e também do superior Yahweh.

         — Foi ele quem matou o feiticeiro? — interpelou Adnari.

         — Não... — retrucou a necromante. — Por quê? Zamir foi assassinado?

         — Bom, desde sua fuga ele nunca mais apareceu no palácio. Mas, é claro, isso não quer dizer que tenha sido morto.

         Como subestimar a inteligência de um bruxo? Shamira sabia que os místícos não davam ponto sem nó e que o conselheiro devia ter um bom motivo para não retornar à capital. Mas agora isso não tinha importância. A ausência do invocador, talvez, facilitasse o assalto de Ablon, mas não anulava o risco.

         —Adnari — a feiticeira mudou de assunto e abordou o ponto central. — Escute muito bem agora, porque é urgente minha mensagem. Há uma chance de li­bertar os escravos,

         — Como?

         — O deus do deserto. O deus que me amparou. Ele é o marido da deusa — inventou, para incrementar o impacto. — E ficou furioso com o aprisionamento de sua esposa.

         A criança sorriu, silenciosa, e Shamira recordou o universo infantil — tão puro, inocente e verdadeiro. Ela própria fora menina, não havia muito tempo. Na aldeia de En-Dor, os sensitivos eram treinados desde cedo no ramo da ne-cromancia. Na velha Canaã, feiticeiros e sacerdotes caminhavam juntos. En­quanto os magos estudavam a mágica e preparavam feitiços, os clérigos guar­davam as escrituras, zelavam pelas tradições e ministravam os ritos.

         — Em poucas horas, a cidade será atacada! Invadida pelo deus do deserto — continuou a necromante. — Você, Adnari, precisa avisar aos outros escravos.

         — Nós ansiamos por esta revolta, mas o rei aumentou o número de guardas nos portões e duplicou a escolta dos buscadores. Colocou também uma linha extra de soldados fora das muralhas, como uma primeira defesa aos invasores. E a deusa... — ela se confundiu. — Achei que a deusa o protegesse.

         — Não! — insistiu Shamira. — A deusa foi capturada e forçada a servir ao Imor­tal, o que enfureceu seu marido. O deus, agora, enfrentará Nimrod, e durante o duelo os trabalhadores poderão principiar o levante. A torre deve ser evacuada e o zigurate também.

         — Sei a quem avisar — disse a pequena, mentalizando a figura de Kumarbi, o Alto, chefe dos conspiradores. — Graças aos rumores, todos a vêem como uma bruxa poderosa, que desafiou o insuperável Zamir. Direi aos insurgentes que fui visitada pela Feiticeira de En-Dor e falarei do assalto.

         — Mas você precisa correr! A ofensiva virá com a tempestade, antes do pôr do sol.

         — A notícia vai se espalhar com o vento e correr com o turbilhão.

         — À exceçáo dos escravos domésticos, todos os demais trabalharam presos icorrentes, atrelados uns aos outros por grilhões apertados. Tão juntos, grudados pelo lavor, sua comunicação era rápida e discreta, especialmente adaptada àquela vida de sofrimento.

         E assim, na pressão da urgência, a menina voltou ao corpo físico, e Shamira retrocedeu à margem do Eufrates, à base da grande figueira. Quando abriu os olhos, viu a tormenta, cuja potência só aumentava. Um tufão revolvia poeira ao sul, assustando os animais e mergulhando o deserto numa borrasca de areia.

 

         Nas casas piramidais dos cidadãos babilônicos, o vento apagou as lamparinas. A temperatura caiu, e quando isso acontecia em pleno verão era sinal da chegada de um furacão ou tornado. As tempestades não eram incomuns naquela época do ano, especialmente as mais fracas. Na maioria das vezes, os muros capital inibiam a entrada da areia, mas não raro os grãos deslizavam por cima dos portões e alcançavam as avenidas. Nessas ocasiões, as famílias abastadas se refuugiavam no interior de seus palacetes, deixando os servos nas ruas, à mercê das rajadas de pó.

         No horizonte, o sol baixou. As cortesãs voltaram ao zigurate, e até os soldados regressaram às suas guaritas, coladas aos muros, para escapar do tufão, deixando os escravos desguarnecidos. Cerca de quatrocentos mil homens trabalhavam na torre, subindo e descendo os infinitos andaimes. Eram figuras tristes, desprovidas de felicidade ou fortuna, que viviam dia a dia à espera da morte. Mas, naquele dia, algo mudara. No rosto dos operários, havia uma reviravolta sutil, que o ar carregado ajudou a esconder dos feitores. Um sopro de esperança lançado, aquecendo o coração dos aflitos.

         A notícia de que a cidade seria atacada correu feito epidemia e antecipou o sonho da liberdade. Com tal urgência em preparar o levante, nenhuma revolta poderia vingar, mas a verdade é que a insurreição estava acertada havia meses, como um vírus silencioso que carcomia o Império. Desesperados, os trabalha­dores estavam preparados para desafiar seus senhores e arrasar a Babilônia, mes­mo desarmados.

         As correntes de ferro que prendiam os escravos eram, de fato, uma única correia longa e contínua, composta por seçóes, em que eram afixadas garganti­lhas de bronze, feitas para fechar os pescoços. Essa extensa correia estava atada a duas polias que giravam em seu eixo, como gigantescas roldanas.

         Uma das polias encontrava-se no interior da torre, e a outra, uma coluna giratória de cobre, estava instalada em uma das praças centrais. A corrente, presa às extremidades, determinava um circuito fechado, percorrido pelos escravos, que começava na torre, atravessava a cidade, passava pela praça e retornava à torre. Geralmente, era nesses entroncamentos que os operários recebiam sua dose de água e depois um pedaço de pão. Ora, não era preciso ser engenheiro para entender que, se uma das polias fosse quebrada, o trajeto seria interrom­pido.

         Os revoltosos pretendiam desde o início derrubar a coluna de cobre da pra­ça, o que daria aos trabalhadores a liberdade de movimento necessária à insurrei­ção. Ainda estariam presos pelo pescoço, mas a corrente era tão comprida que eles poderiam ir de um canto a outro da capital, lutar e mais tarde usar suas ferramentas para estourar os eixos metálicos.

         Derrubar a pilastra não seria difícil. Se todos puxassem o cabo de uma só vez, ele se partiria tão facilmente quanto um graveto seco de sândalo,

         O que era só aspiração, então, floresceu de repente. Foi tudo tão rápido que os guardas não tiveram tempo de avaliar o perigo. As lonas da rebelião estavam de pé. No momento oportuno, uma trombeta vibraria na pirâmide.

         Era o sinal combinado.

 

O Deus do Deserto - A Trombeta de Cobre

         Uma guarnição composta por dez mil soldados, liderada pelo experiente co­mandante Pazuno, patrulhava o exterior da cidade. A tropa estava espalhada ao redor das muralhas, formando um anel defensivo além dos portões. Parte dos militares circulava o perímetro, correndo em seus cavalos e charretes de guerra. Outros eram homens de infantaria, basicamente, e trabalhavam parados, enca­rando o horizonte deserto.

         Logo atrás deles, os negros muros se levantavam, encimados por milhares de guardas, sempre atentos no passadiço. Das guaritas e torres, os capitães organizavam os arqueiros, separando-os em posição uniforme. Logo abaixo, já no rior da Babilônia, os treinadores alimentavam os gigantescos mamutes, pobre animais em extinção, que só serviam para fechar e abrir os portões.

         O furacão engrossava, jogando areia ao céu. No firmamento, a refracão do poente atravessava a poeira, colorindo a tarde de um vermelho pesado. Em pé, sua biga de bronze, um soldado reparou numa figura comum, que caminhou em direção ao portão principal. Todo coberto por uma velha manta de pano, o andarilho não fazia medo a ninguém. Mais parecia um eremita perdido, viajante indefeso. Esse era, a propósito, o tipo de gente que os babilônicos gostavam de importunar.

         — Pare aí, forasteiro! — gritou o vigilante, apontando sua lança.

         O andarilho não fez menção de parar e prosseguiu, indiferente ao comando. Quanto mais ele se aproximava, mais crescia em presença. De repente, e a cada passo, ele não parecia mais tão ordinário, e então o oficial recuou.

         Um outro guarda, mais destemido, vinha atrás, dirigindo sua própria charete. Determinado a impressionar seus colegas, ele saltou para fora do carro e correu de lança na mão, para perfurar a barriga do recém-chegado. Tentou a estocada, mas o eremita desviou e com habilidade impressionante agarrou o cabo da arma. Puxou forte sua haste e, como o soldado se recusou a largar, foi jogado ao longe, expelido pela força inumana.

         O capitão Pazuno assumiu, então, a dianteira do ataque. Decidiu não subestimar o invasor, porque era um veterano e já escutara muitas histórias sobre ma­gos e heróis invencíveis. Pensando nisso, fez sinal aos guerreiros de elite e dois lutadores giraram suas bigas. Tomaram distância, prepararam as lanças e dispararam em carga. Nesse momento, o capitão pressentiu seu erro. De longe, vislumbrou o olhar do peregrino e avaliou sua coragem assassina. Tinha rosto de homem, mas aspecto de predador. O semblante era como o de uma fera, mistura sinistra de falcão e pantera.

         Supostamente desarmado, o andarilho carregava nas costas um longo embrulho delgado, curto demais para ser uma lança e muito grande se comparado às facas. Os babilônicos não imaginavam que podia ser uma espada, pois não conheciam a manufatura das lâminas longas.

         As rodas dos carros se arrastaram, os cavalos explodiram em relinchos, e os dois carreteiros avançaram contra a força do vento. Foi então que sucedeu o prodígio. Com uma só pisada no chão, o estrangeiro fez o solo tremer. A vibração desequilibrou os soldados, que perderam as rédeas e também o impulso da carga. Uma das charretes tombou, e a outra, desordenada, atropelou uma pedra, partindo o eixo no fundo do carro.

         O capuz do eremita escorregou, e todos enxergaram sua expressão enervada. Um terror inexplicável assaltou a guarnição, e o velho Pazuno não pensou duas vezes.

         — Recuar! — berrou aos vigilantes. — Voltem para dentro da cidade, todos os batalhões!

         Mas, de tão espalhados à volta dos muros, muitos guardas não escutaram a ordem. Foi quando o comandante soprou o berrante, e toda Babel se deu contai do ataque. No passadiço, os arqueiros pegaram suas setas, e as tropas do lado de fora convergiram às portas de acesso.

         — Fechem os portões! — bradou, o mestre da torre, e os treinadores chicotearam: os mamutes, que com bramidos estridentes retesaram as correntes, cerrando aos poucos as seções gigantescas.

         Em suas guaritas, os generais babilônicos respeitaram o alerta, mas não com­preenderam o desespero. Não fosse a exigência do rei, de reagir com toda a cautela a qualquer situação anormal, teriam repudiado a "loucura" dos pelotões, que retrocediam à metrópole por todos os cantos, à simples aproximação de um an­darilho.

         O portão foi lacrado com uma batida metálica, que reverberou com inten­sidade tremenda. Ablon parou diante da entrada principal e observou os dois ídolos que cingiam a porta. No alto da Pirâmide de Prata, Nimrod ergueu-se do trono e afagou o pelo de seu tigre pré-histórico.

         — É ele, sem dúvida — murmurou para si mesmo. — O deus do deserto. Será este o último combate, a batalha final entre mim, o maior de todos os homens, e o emissário celeste. Começa aqui uma nova era para a nação babilônica.

         Assim, finalmente, os generais entenderam o perigo e de suas torres coman­daram os arqueiros. O capitão Pazuno chegou correndo ao passadiço, exausto, e clamou aos soldados:

         — Os tambores! Toquem os tambores! Puxem as flechas. Levantem as lanças.          Comecem o ataque!

         Na torre e nas avenidas, os escravos perceberam a agitação dos soldados. Então, os rumores eram verdadeiros — Babel estava sendo atacada!

         O estouro do levante estava muito próximo agora, mas eles continuaram a trabalhar, martelando suas pedras e rodando a corrente. Logo, a insurreição ex­plodiria num assalto repentino, no exato instante do sinal combinado.

         No quinto andar da Pirâmide de Prata, o último anterior ao terraço do trono, uma sala de pedra, estreita e longa, onde descansava uma alal — espécie de trombeta de cobre, muito grande, um objeto característico da velha Mesopotâmia, que produzia um som agudo fortíssimo. O rei Cush mandara construir essa câmara para servir como posto de alerta. Contudo, pouco depois da inauguração do palácio, os buscadores decidiram substituir a corneta por uma série de instrumentos de percussão e alocá-los não no zigurate, mas nas guaritas sobre as muralhas. Desde então, a sala estava abandonada, salvo por dois serviçais que às vezes iam até lá limpar a poeira.

         Kumarbi, o Alto, um escravo jovem, corpulento, de personalidade forte e grande carisma, fora poupado de trabalhar na torre por causa de seu privilegiado intelecto. Capturado ainda menino, já sabia ler e escrever com precisão, e por isso assumiu o cargo de escriba oficial dos buscadores. Suas cartas e documentos a intimidade da corte, desvendando histórias de intriga, manobras, tratados comerciais, planos de guerra e projetos arquitetônicos. Confidente dos palacianos, Kumarbi era o conspirador ideal, e não foi à toa que assumiu a dianteira da revolução.

         O Alto estava a postos desde o início da tarde, quando Adnari lhe contara sobre a aparição da Feiticeira de En-Dor. Apesar da pouca idade, Adnari era uma garota prodígio, muito esperta e perspicaz, por isso de nem pensou em desacreditá-la. As suas viagens noturnas ao “mundo sem cor” muitas vezes foram úteis à rebelião, ajudando os conspiradores a descobrir os segredos mais ocultos da Babel legendária. Adnari era uma espiã por necessidade, embora não reconhecesse muito bem sua função e espiasse os mistérios sem nenhuma maldade. Entendendo sua pureza, Kumarbi de tudo fazia para preservá-la, e nunca chegou a revelar, nem aos outros insurgentes, quem era sua fonte principal.

         Quando o portão se fechou, juntando suas seções num estrondo terrível, Kumarbi compreendeu que precisava tocar a trombeta, sinal acertado para o estalar da revolta. Tão logo seus amos saíram, largou pena e papiro e deixou o escritório — uma sala arejada no quarto nível, onde geralmente eram redigidos os discursos políticos. Passou confiante por muitos soldados, porque era um servidor conhecido e costumava circular por ali.

         Alcançou um aposento final, um salão construído em várias tonalidades de mármore. Era adornado por vasos enormes, de onde brotavam plantas pré-históricas — algumas altas e duras, outras coloridas e leves. O aposento, iluminado por altas janelas, fora por anos um ponto de festas da realeza, onde a corte dançava, se divertia e assassinava escravos por puro prazer.

         Kumarbi percorreu o espaço vazio até a base de uma escadaria, a principal passagem às salas do quinto andar. Dois guardas em armaduras defendiam a entrada, barrando o acesso.

         —Acha que vai aonde, escravo? — rosnou um deles. — Volte já para o seu chi­queiro.

         — Tenho uma carta aos buscadores — improvisou.

         — Então é só mostrar sua autorização — resolveu o segundo, mais sério. — Sem ela, nem o velho Adão subiria aqui.

         O Alto estendeu um rolo de papiro aos vigilantes, uma imitação feita por ele, às pressas, no escritório, sem o selo real. Era uma alternativa inverossímil, nada convincente, mas não tinha outro pretexto.

         — Esta porcaria é falsa! — percebeu o guardião, sacando a faca comprida. — Está condenado, chacal!

         Mas Kumarbi, já esperando o ataque, tirou um punhal escondido e com ele perfurou a garganta do guarda, num golpe surpresa. O homem caiu, sem reação, e seu sangue encobriu o reflexo no mármore.

         O segundo puxou a lança, mas o escravo já tinha corrido e agora sumia através do umbral.

         Kumarbi disparou como nunca, sem pensar em mais nada. Não viu ninguém no corredor, nenhuma sombra ou perigo, só caminhos sem foco, enevoados pela descarga de adrenalina. No alucinante ritmo da emergência, o Alto enxergou finalmente a entrada certa e a corneta de cobre colada à janela. Deslizou díreto para a porta, mas então seus reflexos falharam por um segundo mortal. De repen­te, um soldado surgiu do escuro e manobrou sua lança para a investida fatal.

         Uma dor aguda perfurou-lhe o corpo, e ele reparou que o arpão tinha atra­vessado o pulmão, rasgado a pele e destroçado a coluna. Kumarbi tombou, tal qual o guarda esfaqueado na escada, e foi aí que cresceu o tormento. O solda­do puxou a arma, escorregando o fio para baixo, e com a lâmina veio um pe­daço do estômago, selando, para o ferido, todas as esperanças de vida.

         — O que vai fazer? — ele escutou um homem dizer, mas a visão era turva. Esticou o braço no chão, à procura da faca, mas os dedos encontraram só uma massa melada. Era uma seção delgada de seu próprio intestino.

         — Vou acabar logo com ele — respondeu outro alguém. — Escravo imbecil. Será que não ouviu o alarme? Por que continuou aqui, como uma barata que vasculha o esgoto?

         — Não, não faça nada — sugeriu o primeiro. — Ele está quase morto. Deixe que agonize. Agora, todos de volta a seus postos — ordenou.

         Havia pelo menos dez guardas ali, embora o Alto não os distinguisse.

         — Há confusão nas muralhas.

         Assim, os guerreiros saíram, alguns desapontados, e regressaram a suas posições, naquele e noutros andares. Deitado, largado no piso, desamparado, Kumarbí não sentia mais dor, só o tenebroso calor dos espirros de sangue que precedem a completa frieza da morte.

         Flutuando entre a consciência real e o sombrio abismo do extermínio, ele notou uma vibração suave no assoalho e escutou pegadas bem calculadas, típicas de um escravo em trabalho.

         — Kumarbi! — era a voz soluçante de Adnari.

         —Adnarí — ele sibilou, ao toque afetuoso da pegada infantil.

         — Eles o machucaram.

         — Vou morrer, pequenina.

         A garota engoliu as palavras, em respeito ao falecimento do mártir.

         — A sala — esforçou-se o rebelde. — A saía da trombeta. Você deve soá-la, Adnari. Toda a gente está dependendo só disso. Conduza os escravos para fora daqui. Guie-os. Lidere-os. Você é a única que pode comandá-los e reviver o encanto das tribos.

         O Alto engasgou-se e cuspiu muito sangue. A hemorragia era fatal, inevitável, e ele fitou o vazio, antes de arriscar sua primeira — e última — profecia:

         — A cidade de Babel não passará desta noite.

 

No Abismo da Ira

         Nas muralhas, fez-se silêncio completo por todo um minuto. Nenhum som. Nenhum movimento. Nenhum suspiro. Então, os tambores vibraram, mergulhando a cidade no prenúncio da guerra.

         BUM... BUM... BUM...

         No passadiço, três mil arqueiros apontaram as armas ao solitário invasor. O capitão Pazuno, de braço erguido, aguardou uma trégua do vento. O estrangeiro estava de pé, só a dez passos do muro, mas a poeira era tanta que ninguém o enxergava direito. A roupa marrom o confundia com a terra, mas quem, mesmo oculto, suportaria uma saraivada de flechas?

         Seguiu-se um instante de pura tensão e depois o comando de ataque.

         Uma negra chuva de setas eclipsou o céu rosado, e a nuvem mortal encobriu o anjo guerreiro. O assalto varreu toda a área, e os soldados, em seus postos, escutaram o choque das pontas perfurando o solo arenoso.

         O inimigo estava morto, com certeza. Ninguém sobreviveria àquela investida.

         Mas, quando as sentinelas descansaram os arcos, não avistaram o corpo do forasteiro, apenas uma floresta de varas, pela metade, encravadas no chão. Pa­ra onde teria fugido? Como desaparecera assim, instantaneamente, sob a vista de todos? Pazuno e os generais, em suas torres, fitaram o deserto, confusos, pro­curando a carcaça do morto.

         O cadáver... sumiu!

         E foi aí, exatamente, que um berro agudo sacudiu a cidade, e os babilôni­cos tremeram de susto. Pensaram que pudesse ser o grito de um monstro ou o lamento final do deus do deserto... mas não. O brado era o sinal da corneta de cobre, a alai da Pirâmide de Prata, incitando os escravos à revolta.

         Pela primeira vez em dezenas de anos, as correntes pararam. Todos juntos, de uma só vez, os escravos puxaram os cabos de ferro, e a coluna que os movia caiu, desfazendo o percurso fechado.

         Imediatamente, como açáo de reflexo, os arqueiros no passadiço se viraram para o interior de Babel, e enquanto isso, lá fora, na base do portão, uma figura se elevava, incólume e ainda mais ruriosa.

         Uma onda de vento e poeira jogou pedras ao longe, e de um buraco na areia surgiu uma sombra alada, uma criatura de outrora, titânica, fenomenal. O corpo era essencialmente humano, ou assim parecia, mas duas asas de anjo nasciam das costas, de penas brancas rajadas de sangue. Os olhos brilhavam em brasa, e a presença era terrível, quase diabólica. À aparição, alguns guardas correram, mas outros continuaram firmes, estimulados pelo sabor das histórias antigas, sobre o povo de Enoque, que desafiava os celestes em suas fortalezas de pedra.

         E assim, o Anjo Renegado voou, espargiu as penas e aterrissou sobre o pas­sadiço. Os celestiais expurgados, preocupados em esconder sua natureza divi­na, quase nunca desprendiam as asas, conservando-as sempre incorporadas às costas. Mas, no furor do combate, Ablon esqueceu muitos princípios e agiu por instinto, procurando o caminho mais rápido ao coração da metrópole. Nem mesmo ele poderia saltar cinquenta metros, e esta era, precisamente, a altura dos muros.

         Sobre a mureta, apenas quatro soldados poderiam atacá-lo por vez, dois de cada íado. Uma fila dupla de homens se aproximava ao norte, certa de que, se o primeiro tombasse, o seguinte daria continuidade ao golpe. Ao sul, um par de guerreiros, sozinhos, puxou suas facas, e um deles atacou, mas o alado evi­tou a rasgada dobrando os joelhos. Levantou, um segundo depois, e num giro chicoteou com a asa o pelotão à esquerda, jogando todo mundo para trás. Mui­tos largaram as armas e se agarraram ao anteparo, evitando a queda fetal.

         Os dois combatentes ameaçaram o celeste com furadas de facão no ar. O mais jovem deles, então, tomou coragem e investiu novamente, para nova tentativa frustrada. Com uma mão, o querubim bloqueou o assalto, c com a outra desferiu um soco potente, que destroçou os dentes e o nariz do terreno. O homem percebeu o impulso, e seu corpo voou, caindo inerte perto do abismo.

         A linha dupla do norte refez formação e tornou a avançar. Desta vez, porém, Ablon não esperou o embate, preferindo iniciar sua própria sequência. Revoou, sobre a tropa e desceu com os dois pés no peito dos oficiais dianteiros, supostamente os líderes do pelotão. Correu depois pelo meio dos homens, evitanto cada ataque, cada pancada, e revidando também, com movimentos tão rápidos que incapacitavam os soldados. Logo, perto de mil babilônicos já haviam sucumbido.

         Assim, Ablon chegou a uma grande guarita de esquina, no ponto exato onde a muralha se virava para o oeste. Vinte arqueiros, incentivados por seus capitães, surgiram nas janelas da torre e miraram as setas. Dispararam com todo o vigor, o anjo bateu forte as asas, levantando uma rajada de vento que desviou as pontas letais.

         Impressionados, os vigilantes retrocederam. Prepararam escadas e cordas para descer às avenidas e ganhar campo aberto.

         Quando lançaram os cabos, porém, deram-se conta do alvoroço.

         Nas ruas, nas casas e mesmo no zigurate, uma multidão de escravos sublevava o exército, roubando-lhe todas as armas e lutando como cães furiosos. Tal qual um cordão de formigas carnívoras, os trabalhadores evacuavam a torre e partiam, reforçando a legião de operários.

         Mas e o Rei Imortal? Onde estava? Por que nada fazia? O que estaria aguardando?

 

         Nimrod continuava lá, no alto do palácio, sentado no trono, observando o levante. Conservava a tripla expressão, uma mistura obscura de orgulho, ódio e satisfação.

         Então, o deus ouviu meu chamado e aceitou o desafio — pensou o monarca, puxando pela coleira o tigre-dentes-de-sabre. A besta rosnava, excitada pela confusão e nervosa pelo barulho.

         Os olhos irados de Ablon e os lunáticos de Nimrod enfim se cruzaram, e o general renegado distinguiu seu inimigo. Maldito porco de barro, refletiu o alado. Vou estourar seu trono e lançá-lo às profundezas da, terra, que é seu lugar. Arrasarei sua cidade e lhe arrancarei o coração.

         Nas muralhas, os soldados entenderam a contenda e interromperam o ataque ao celeste. De alguma forma, perceberam que aquela batalha era inútil, e que o rei era o único que, dali em diante, poderia resolver o embate.

         O anjo decolou do anteparo no muro, desfraldou as asas rajadas, atravessou a cidade e flutuou rumo à escadaria da Pirâmide de Prata. Da base, subiu voí do, rasante aos degraus, e no pináculo o Imortal libertou seu felino pré-histórico.

         — Acabe com o invasor! — ordenou ao animal. — Mate-o! Engula-o! Aceitando o comando, o tigre-dentes-de-sabre acelerou pela escada, mas quando chegou perto do choque, o querubim arremeteu, e a fera passou reto por ele, indo morder um dos guardiões babilônicos que defendiam a rampa do zigurate. Não queria machucar bicho algum, e, sinceramente, nem mesmo os soldados. Desejava apenas vingar sua amiga e exterminar o Rei Imortal.

         Quando perceberam a invasão e avistaram a entidade em voo, todos — escravos e cidadãos, civis e militares — congelaram os golpes, engoliram os gritos e pararam para assistir ao confronto. O sol já havia se posto, e o furacão circulava Babel. No passadiço, o capitão Pazuno, muito ferido, esbravejou aos treinadores

         — Soltem os mamutes! Soltem os mamutes!

         Dali a seguir, sabia o capitão, não havia muito mais esperança à nação. O levante já tomava conta das ruas, os aristocratas estavam sendo dizimados, a tor­re estava vazia, e uma divindade desafiava o soberano. E verdade que aqueles mamutes, os últimos de sua raça, nunca tinham lutado antes. Todavia, raciocinou Pazuno, ainda matariam muitos escravos, se jogados à revelia nas avenidas.

         Os treinadores assim fizeram, e recolheram as portinholas, desligando as correntes. A manada saiu pelos quarteirões, correndo, derrubando homens com suas trombadas, atropelando pessoas e demolindo paredes. Em sua marcha fre­nética, não distinguiam soldados ou escravos, rebeldes ou legalistas, perversos ou justos.

         Ablon pousou no fastígio do trono, e Nímrod se levantou para encará-lo. A barba trançada pingava de suor, e o capacete ogival protegia-lhe a cabeça. Es­tava visualmente desarmado e não carregava nem mesmo o cetro cravejado de joías que era duro, bom para amassar em combate.

         —Você veio! — regozijou-se o monarca. — Eu sabia que não resistiria ao cha­mado. Estou aqui, pronto para liquidá-lo — desafiou, apontando os braços ao firmamento. — Envie as catástrofes. Mande as enfermidades. Lance todas as hecatombes. Ao contrário de Enoque, Babel resistirá.

         Ablon teria achado graça, não estivesse tão bravo. Nimrod era um louco, ignorante nos assuntos antigos. Mesmo assim, havia certa ironia na situação.

         Ao mencionar os cataclismos, o rei seguramente se referia aos dias anteriores ao dilúvio. Ele citara os desastres, e não havia dúvidas de que detestava os anjos, mais precisamente os arcanjos. Nessa matéria, o príncipe Miguel era o verda­deiro culpado, e não os renegados, que se rebelaram justamente contra o assas­sinato dos homens!

         — Ajoelhe-se! — exigiu o governante, a confiança cega estampada no rosto. — Ajoelhe-se perante Nimrod.

         — Eu só me ajoelho perante Deus — rebateu o general, cansado da arrogância. Seus ideais, por um minuto, fizeram-no hesitar, mas aí ele se lembrou de Ishtar e extravasou sua ira.

         Com um murro poderoso, acertou o terreno, fazendo-o trombar contra o encosto do trono. O apoio se quebrou, e o monarca estatelou-se na platafor­ma, com os escombros dourados. Apesar das advertências, Ablon nunca levara multo a sério as lendas sobre o Rei Imortal, por isso achou que tivesse matado o sujeito, mas não. Num segundo, Nimrod estava colado no chão, e noutro se levantava, tão veloz quanto uma serpente faminta. Da bota, tirou uma faca, uma adaga mágica — o punhal de Zamir —, e golpeou.

         Mas seu adversário não era um anjo comum, e sim um anjo guerreiro. O general renegado pressentiu o perigo, com suas habilidades fantásticas, e se esqui­nou. O fio passou muito perto, cortando duas penas rajadas, mas foi só isso. As plumas logo flutuaram, levadas pelo vento fortíssimo aos jardins mais abaixo.

         Fitando o instrumento de morte, capaz de dilacerar humanos e celestiais, Ablon esperou nova investida, e quando Nimrod estocou, estendendo o golpe ao máximo, uma defesa precisa o desarmou. Deslizando às costas do rei, o ce­lestial prendeu-lhe o pescoço em um golpe do tipo gravata.

         — Sou imortal, abominação — rugiu o soberano, quase sufocado. — Nunca poderá me vencer. Deixe a minha cidade, eu ordeno!

         Imortal., o Rei Imortal... Agora, sim o discurso de Shamira fazia todo o sen­tido. Era isso que ela tentava me dizer à margem ao rio... Nimrod,.. ele e seu fei­ticeiro... Nimrod e Zamir capturaram Ishtar para beber-lhe o sangue. Um humano que prova o sangue de um anjo se torna imortal, nunca envelhece, e raramente é ferido. O ritual era antigo e fora desenvolvido pelos magos de Nod, que com suas magias vitimaram muitos alados.

         — Então, você se alimentou do sangue de Ishtar? — gritou o renegado, forçando a cabeça do rei contra o assento do trono, tal qual um carrasco arrasta sua vítima à tora de execução.

         — Eu já disse, criatura! Fuja enquanto é tempo. Nada poderá me matar, nenhum efeito do céu ou da terra seria possante para destituir Nimrod.

         — Como pode ter tanta certeza? Não passa de uma escultura de barro, um primata imperfeito, um macaco que aprendeu a falar. Agora mostrarei a você o supremo brio celeste, a verdadeira potência de Deus, contra a qual é indefeso.

         E foi então que o querubim levou a mão às costas, onde as asas se dobravam num veio, e pegou o embrulho que carregava consigo. Dos panos, sacou a es­pada mística, até então escondida no rolo de peles. E ao contemplar lhe a lâmina, os mortais — e também Nimrod — ficaram como que hipnotizados, tão refulgente era o brilho da arma. Nunca haviam vislumbrado a textura do aço, que agora coruscava em tons alaranjados, espelhando a cor do poente.

         — Prepare-se para morrer, Nimrod, porque esta é a Vingadora Sagrada, for­jada no início dos tempos, quando seus ancestrais ainda rastejavam pelos ocea­nos. É uma arma sagrada, e sob seu fio já sucumbiram anjos, demônios e deuses. Agora, chegou a vez de ela provar sangue humano.

         O rei balbuciou murmúrios guturais, antigas profanações ensinadas a ele pelo mago Zamir, fórmulas mágicas feitas para afastar espíritos maus, que no entanto eram absolutamente inúteis contra o celeste.

         Nesse momento, Ablon ergueu o flagelo e segurou forte o rei pela nuca, pronto para decapitá-lo. Com o joelho imobilizava o monarca, mas antes de descer o fio puxou-lhe a franja, obrigando o ditador a mirar toda a longitude da torre, agora praticamente vazia,

         —Aprecie pela última vez a sua capital, pois em breve o único domínio que conhecerá será o reino dos mortos — declarou, estendendo o punho da espada, para o golpe final.

         — Espere, general! — interrompeu uma voz feminina. — Estas palavras já fo­ram proferidas antes, mas não por você,

         — Shamira? — exclamou o renegado, reconhecendo a amiga. Ele virou o cor­po, sem liberar sua presa, e distinguiu o semblante da Feiticeira de En-Dor, que subia as escadas da Pirâmide de Prata. Nos braços, ela carregava o corpo inerte da guerreira Ishtar, com as asas marcadas de sangue.

         — Como chegou até aqui?

         — Memorizei a planta do calabouço, com todas as entradas e saídas secre­tas. Havia um túnel perto do rio, e o usei para voltar à masmorra. Achei que deveria trazé-la até aqui — respondeu, pousando no chão o cadáver da celestial renegada.

         Na plataforma, Ablon continuava parado, ainda surpreso, sem entender mui­to bem qual teria sido a intenção da necromante ao regressar ao seu lugar de tortura. Com que objetivo tirara Ishtar de seu túmulo?

         Nas ruas, a ventania acalmou, mas o pior ainda estava por vir. Naquele instante Babel entrava no olho do furacão, onde o turbilhão geralmente abre uma e toma fôlego para o sopro final.

         —Você vê? — instigou a mulher. — Ishtar está morta, e agora não há mais como mudar sua sina. Não acha que já basta de tantos massacres? — perguntou, ido com o olhar o rei derrotado.

         — Como pode defendê-lo? — reagiu o querubim. — Depois de tudo o que ele lhe fez...

         A feiticeira encarou o general e subiu à plataforma. Tomou nos dedos o punho calejado do guerreiro celeste e revelou-lhe a palma.

         — Suas mãos estão cheias de sangue humano — ela fez uma longa pausa. — Será que não compreende?

         Dito isso, o braço punitivo do lutador fraquejou, e a Vingadora Sagrada tremeu. Visões desencontradas atacaram-lhe a mente, como um pesadelo remoto que insiste em voltar. Numa série de lampejos terríveis, ele recordou seus tempos como assassino, quando batalhava sob a bandeira do arcanjo Miguel. Reviveu campos de morte, chacinas intermináveis, morticínios de gente indefesa, extermínios de seres humanos. E rememorou a face de seu inimigo mais pessoal, o demônio Apollyon, que, quando ainda anjo, chefiara a destruição de Sodoma e Gomorra. À medida que a raiva se dispersava, começou a questionar impulsos. É o ódio. Ele obscurece nossos valores e nos empurra à ruína.

         — Percebe o que eu digo? — foi Shamira quem quebrou o silêncio. — Isso não tem nada a ver com a crueldade do rei, tem a ver com você. Se matá-lo agora, sobre este palácio, estará entregando seu coração à fúria instintiva. Estará matando um ser humano e, por mais perverso que seja Nímrod, esse pequeno ato irá enterrar sua causa. Não foi por isso que você foi expulso do céu, porque repudiava o extermínio da espécie terrena? E não é justamente esse o seu grande temor, o de esquecer seus ideais e abandonar a justiça?

         Então, a feiticeira se afastou, deixando o renegado sozinho em sua decisão. Ele percebia, melhor do que ele, que o homicídio do Rei Imortal, naquelas circunstâncias, marcaria o fim de sua jornada, de toda sua luta contra os arcanjos, isso que quis dizer quando recriminou suas palavras de ira.

         — Sou uma necromante — acrescentou, antes de se calar finalmente —, e como mestre na arte dos mortos sei que há uma ténue línha entre o bem e o mal. Se você ultrapassar essa fronteira, talvez não possa voltar. Vingança ou justiça. Qual das duas você vai escolher?

         — Elas são a mesma coisa.

         — A única diferença é quando você as executa com ódio.

         Nimrod, que a tudo escutara, teve medo pela primeira vez. Ali, sob o fio da arma, ele não era mais o monarca supremo, mas apenas um mortal indefeso, humilhado. Pensou em implorar pela vida, em gritar e chamar pelo pai, mas a garganta estava cada vez mais apertada, e naquela posição mal conseguia gemer.

         Nas avenidas, os insurgentes observavam o duelo. Os soldados já tinham sido debelados, em todos os cantos da capital, e até as muralhas estavam tomadas. Bastava um só comando para que a turba derrubasse os portões. Mas, por outro lado, se o ditador sobrevivesse, a situação ainda poderia se inverter. Com o rei novamente ativo, o exército lutaria até a última faísca, e o levante seria contido.

         Agora, o destino de muitos dependia da resolução do celeste. O que ele pre­tendia fazer? Deveria poupar Nimrod e conservar seus valores, ou decapitar o soberano, desforrando assim a memória de Ishtar?

         Os olhos cinzentos voltaram a brilhar, e ele estendeu sua arma. Retomando a força do golpe, o renegado atacou, e a espada desceu contra o Rei Imortal.

         Shamira desviou o olhar e aguardou o ruído da cabeça rolando. Mas, em vez do som abafado, toda a metrópole escutou um grito agudo, seguido por um lamento de dor. A lâmina penetrou não na nuca, mas no ombro, atravessou a carne e se afundou no assento dourado, prendendo Nimrod ao apoio. O san­gue espirrou pelo braço, em quantidade muito superior à humana, e escorre­gou pela rampa, molhando os degraus e enegrecendo o reflexo da prata.

         — Você continuará vivo, Nimrod — sentenciou o Primeiro General. — Está condenado a viver para sempre, e a nunca morrer. O ferimento em seu ombro continuará escorrendo por toda a eternidade. E daqui a muitos anos, toda vez que sentir seu estigma ardendo, vai se lembrar deste dia em Babel e saberá que foi a piedade celeste que o poupou. Então, nessas horas, terá vontade de morrer, mas não poderá.

         Sozinha, reclusa às sombras do novo crepúsculo, Shamira sorriu, mas nin­guém notou. Nas praças e nos quarteirões, a Babilônia era então só calmaria. Organizados e vitoriosos, os escravos escancararam os portões e abriram passa­gem à planície. Aos poucos, a tormenta voltava, com toda a intensidade de um tufão legendário. Os operários desprezaram a pilhagem e saíram todos em fila, sem nem ao menos olhar para trás.

         No topo da Pirâmide de Prata, embora vencido, Nimrod não resistiu à so­berba. Restava-lhe, ainda, um último consolo, um pilar derradeiro que alimen­tava a luxúria, um monumento perene que, segundo os buscadores, resistiria a qualquer calamidade.

         — Você me condenou, é verdade, mas minha torre prosseguirá eterna — disse ele, já enfraquecido pela perda de sangue, ao seu carrasco. — Os viajantes con­tinuarão a enxergá-la a quilômetros no deserto e saberão quem a construiu, mes­mo depois de passados séculos.

         — Engana-se, mais uma vez. Toda sua obra será apagada — corrigiu o general. — Foi astuto ao canalizar o curso do rio para dar sustentação ao edifício. É um projeto arrojado, contudo possuí um ponto fraco.

         Ele sabe!, desesperou-se Nimrod. Ele conhece o segredo da coluna de água, que mantém ereta a construção. De todas as realizações de Zamir, essa foi a maior, e não pode ser,,,

         — Não! Minha torre não! — berrou o babilônico, chorando e esperneando como uma criança no berço. Tentou se levantar com todo o vigor, mas a lâmina de aço o prendia ao assento.

         E assim, o Anjo Renegado voejou, novamente, dali à base da torre. Entrou unhando por seus amplos salões e seguiu ao núcleo do prédio. Contemplou muitas câmaras vazias, algumas suntuosas, outras rústicas, e lamentou pelos escravos que ali faleceram. Destruiu várias portas lacradas, despedaçou um portão dulo de cobre e chegou ao eixo central.

         Bem no meio da Torre de Babel, descobriu o interior de um imenso vão circular, que alcançava as máximas altitudes do edifício. Por ali corria, em vertical, grosso tubo de ferro que, do chão, subia quase infinito, e nele se apoiavam todas as vigas que seguravam as paredes. Através dessa tubulação eram bombeados os milhões de litros de água por dia, e sua pressão era tão forte que sustentava o cano assentado, como uma coluna vertebral que segura todo o esqueleto. Em pontos-chave do tubo, o líquido saía por escoadouros pequenos, diminuindo gradualmente sua violência.

         O general tocou o cano de ferro e calculou sua espessura. Devia ter mais de metro, e era revestido, por dentro, por uma grossa camada de marfim, que impedia o desgaste do ferro. Será que ele, apesar de suas capacidades fantásticas, conseguiria romper a parede?

         Concentrando a energia divina da aura nos punhos cerrados, invocou a Ira de Deus, sua técnica mais poderosa, a arma fundamental dos querubins, a mesma divindade que usara em duelo contra o terrífico Apollyon, no Castelo da Luz.

         Esmurrou a tubulação, e o metal não suportou. Uma fissura correu para cima, e a água começou a jorrar, cada vez mais intensa. A pressão, por si só, terminaria o serviço, e a natureza vingaria seu cárcere.

         As rachaduras se alastraram, as vigas ruíram, e a torre entrou em colapso. O celeste saiu voando dali, esquivando-se das pedras cadentes, desviando-se das pilastras tombadas e escapando da força da água que inundava os escombros.

         Quando, enfim, cruzou o portal de saída, a torre já estava em destroços. O canal subterrâneo cuspia seu leito, como um chafariz colossal, alagando ruas e becos, imergindo terraços e jardins. Ablon ascendeu ao topo do zigurate e em pleno voo retirou a espada do ombro do rei, que de tão consternado não se mo­veu. Continuou a fitar sua torre, autista, lacrimejante, desconcertado pela des­truição, inconsolável pelo fracasso.

         Sem pousar, o renegado recolheu sua arma. Agarrou Shamira com um bra­ço e com o outro apanhou o cadáver da guerreira Ishtar. Subiram alto, muito alto, aproveitando o revolver do ciclone, e de lá assistiram à queda da torre mal­dita, quando desabou a última laje. A água invadiu as casas, as avenidas, as pra­ças, arrebentou os muros e engoliu o palácio.

         Nada sobrou.

         A tempestade de areia chegou logo depois e varreu a capital, enterrando a cidade no coração do deserto.

         Babel estava morta.

         Séculos mais tarde, outras cidades da Babilônia surgiriam. Seriam os gloriosos tempos de Hamurabi, de Nabucodonosor e de muitos outros. No entanto, a verdadeira Babel, a Babel de Nimrod e Cush, a Babel lendária, foi sepultada no último dia daquele verão do ano de 2334 a.C.

         E foi assim que tudo aconteceu.

 

Viver para Sempre

         — Você tem comida e água para muitos dias nesta mochila — disse Ablon, entregando à moça uma bolsa de couro revestida com peles, que ele mesmo fi­zera nos dias de reclusão na caverna. As asas rajadas estavam recolhidas de novo, imperceptíveis sob a musculatura do dorso.

         O anjo e a feiticeira tinham parado um minuto, no decurso de uma trilha estreita que circulava a encosta de uma montanha altíssima. À esquerda nascia um paredão, todo de rocha, que se aplainava antes da base, formando uma sen­da, e à direita a vereda se abria numa vala profunda, entre duas pedras gigantes, e descia às profundezas do solo. Grandes elevações eram comuns naquela região do deserto, e assim elas continuavam, por muitas milhas, até onde as colinas encontravam o planalto de dunas.

         — Então, esta é a despedida final? — instigou a feiticeira, charmosa. Ficava mais linda ao sol da manhã, quando os raios vermelhos coloriam-lhe a pele. Estavam felizes, os dois, apesar da separação. Haviam feito o certo, seguido seus valores e rejeitado o abismo das trevas.

         — O mundo não é tão grande assim — ele brincou, também sedutor.

         — Não demore muito. O tempo é implacável com os seres humanos. Logo estarei tão velha que meus olhos não reconhecerão seu rosto. E este o fado dos homens.

         — Eu sei. Apesar de minha origem celeste, hoje me considero humano — confessou e virou os olhos à moça. — Foi você que me fez assim, Shamira. Você fez com que eu desvendasse minha própria humanidade, e me ajudou a entender o que é ser carne.

         Ela sorriu, ruborizada, e desviou o olhar.

         Então, o general tomou uma ação inesperada. Sacou da bainha a Vingadora Sagrada e contemplou sua folha brilhante, como quem dá adeus a um amigo.

         — Não sou mais um celestial, feiticeira, a despeito de minha força divina. O querubim que havia em mim morreu com a devastação de Babel. E é preciso saber onde um mundo acaba e o outro começa.

         E assim, Ablon girou a arma sobre a cabeça, cortando o ar em arcos redondos, e arremessou pelo meio da vala. A lâmina desceu rolando o precipício e encontrou jazigo na fundura da terra.

         A espada não vive sem o querubim, e o querubim não vive sem sua espada.

         — A Vingadora Sagrada era a única coisa que me remetia a meus antecedentes primevos — explicou o general. — Vou tentar viver como homem, Shamira. É assiim que deve ser daqui para frente. Não quero me tornar um anjo amargurado e vingativo. Devo me libertar de todo o ódio que carrego.

         A mulher o abraçou, e ele a envolveu.

         — Assim como eu, você vive à margem dos dois mundos, renegado. Esse é o nosso legado. É a nossa sentença.

         Ficaram ali por um longo tempo, debaixo do sol ascendente. Era o princípio do outono, e a brisa trouxe de longe o cheiro salgado do mar. Um falcão rasgou o firmamento e, no chão, ratos selvagens cavavam sua toca.

         — Para onde pretende ir agora? — quis saber o guerreiro.

         — Ouvi dizer que há um sábio necromante que vive além do Sinai e conhece encantamentos capazes de driblar até mesmo a morte. Quem sabe ainda possamos nos encontrar mais algumas vezes ao longo da história?

         — Quem sabe... — ele respondeu, e beijou-lhe a testa.

         A mulher seguiu seu caminho a passos largos e dobrou a falda do morro. Antes que sumisse pela orla da rocha, Ablon a mirou a distância e murmurou baixinho:

         — Que Deus a acompanhe, Feiticeira de En-Dor.

 

         Alguns meses depois, Shamira alcançou o Egito e conheceu o mestre Dra-kali-Toth, que foi seu grande professor na arte da mágica. Ele a ensinou a rou­bar a energia dos espíritos maléficos e assim conservar a própria vitalidade por séculos infinitos.

         Ablon construiu um túmulo para Ishtar na caverna, no topo da montanha de Mashu, e lacrou a sepultura para nunca mais reabri-la.

         Adnari guiou os escravos com segurança para fora de Babel e os liderou, fundando uma nova civilização. Morreu muito velha, aos 130 anos, e até hoje os místicos a conhecem como a maior maga de seu tempo.

 

Outono Tropical

O boeing 747 em que shamira viajava decolará de Bagdá às 23h48 — atrasado, como é de praxe. Dessa vez, a culpa não era dos funcionários da companhia aérea. Em sua trajetória, o avião sobrevoaria Israel, cujo espaço aéreo vinha sendo interditado duas ou três vezes ao dia, em virtude das invasões de jatos árabes de reconhecimento — provenientes principalmente da Síria e do Líbano. Sempre que isso acontecia, caças eram acionados para patrulhar a área, e o clima de tensão aumentava. Pela primeira vez desde a Guerra dos Seis Dias, havia a ameaça de um conflito generalizado no Oriente Médio. Os países árabes ocupados pelos Estados Unidos se insurgiam, e as nações muçulmanas livres firmavam aliança contra a Liga de Berlim, o bloco ocidental encabeçado pelos EUA e pela Europa. Em Jerusalém, o número de atentados terroristas também crescera em igual proporção das agressões do exército israelense aos territórios palestinos. A única coisa segundo os especialistas, garantia a integridade da Terra Santa era o fato de estar localizada em solo sagrado para as três religiões — caso contrário, diziam os mais pessimistas, já teria sofrido um ataque atômico.

         A aeronave foi sacudida por uma turbulência inesperada, logo após sobrevoar o mar Morto. A velhinha sentada ao lado de Shamira agarrou-se à poltrona e beijou o crucifixo. Era uma senhora simpática, com mais de 70 anos, que passara a maior parte do tempo discursando sobre a vida dos cristãos no Iraque, mas que agora só proferia orações. O comandante informara, pelo amplifica­dor, que as sacudidelas a bordo eram resultantes de uma corrente de ar, mas a feiticeira conhecia bem a região e sabia que aquilo nada tinha a ver com o cli­ma. Segundos depois, os bebes começaram a chorar, e as mães, impacientes, não conseguiram acalmá-los. Mesmo ciente das implicações místicas da situação, a necromante manteve a calma e pousou seu computador portátil sobre a mesi­nha. Tentou ligar o aparelho, mas a bateria falhou, sinal de que o tecido da rea­lidade estava sendo abalado. A agitação que vinha sentindo no plano astral che­gou ao ápice quando passaram por Jerusalém, que há milênios tem sido uma área em que a atividade espiritual é intensa.

         Dez minutos depois tudo se acalmou e as crianças calaram o berreiro. O voo seguiu tranquilo pelo Mediterrâneo e fez escalas em Atenas e Madri, antes de cruzar o oceano Atlântico em direção ao Rio de Janeiro, o destino final. Quan­do desceram na Espanha, o avião superlotou. A senhora idosa suspirou aliviada, agradeceu a Deus por ter chegado com segurança e se despediu de Shamira, dis­tribuindo graças. O assento vazio foi ocupado por um homem de meia-idade, de pele clara e cabelo grisalho, vestido com um terno cinzento — um tipo blasé e um tanto arrogante.

         O pessoal da tripulação serviu o jantar, e depois as luzes no interior do avião diminuíram de intensidade. A feiticeira não dormiu. Ligou a lâmpada pessoal da poltrona e passou a noite toda compenetrada no laptop, estudando e ano­tando tudo o que podia sobre o conflito mundial que se aproximava. Ao lado do micro, deixou aberto um exemplar da Bíblia em Apocalipse 5,6, onde se lia: "A abertura dos seis primeiros selos". Tentou estabelecer alguma conexão entre a situação política e o livro sagrado, mas não achou nada concreto. A maioria das coisas descritas ali não passava de metáforas e alegorias que podiam ser in­terpretadas de muitas maneiras. Sentiu-se frustrada e, quando o sol nasceu na imensidão do oceano, parou de trabalhar e cochilou por meia hora. Foi desper­tada pela comissária de bordo, que a sacudiu no assento.

         — Jornal, revista ou um fone de ouvido? — ofereceu a aeromoça, alinhada em uma camisa de seda branca, fechada por uma jaqueta de linho azul.

         — Não... obrigada — respondeu Shamira, ainda desnorteada pelo cansaço. — Só uma xícara de café, por favor.

         Depois de se recompor, a Feiticeira de En-Dor reparou no relógio.

         14h11. 12° dia de março. Princípio do outono no hemisfério sul. Então, quando a visão clareou, esticou o pescoço e identificou a chamada principal do jornal, nas mãos de seu vizinho de banco, que dizia o seguinte:

"Liga de Berlim lança ofensiva na Turquia". E continuava: "Aliança Oriental admite usar armas nucleares para defender seus domínios".

         O avião voltou a tremer, mas agora a vibração era puramente mecânica — o trem de pouso estava sendo acionado. Ouviu o som agudo das turbinas chupando golfadas de ar, e então veio o aviso pelo alto-falante:

         — Atenção, tripulação, preparar para o pouso. Temperatura local 35 graus.

 

         Shamira não teve problemas com a liberação da bagagem na alfândega, a despeito de todos os objetos estranhos que trazia consigo e da espada enferrujada que desencavara no Iraque. Tinha autorização internacional para transportar artefatos antigos, emitida por uma dúzia de universidades de arqueologia ao redor do planeta. Era uma cientista, para todos os efeitos, um disfarce deveras irônico para uma feiticeira. Mas era eficiente. Diferentemente de Ablon, que tentatava conservar ao máximo seu anacronismo, mantendo-se à margem da sociedade mortal, a necromante estava sempre informada sobre as novas tecnologias e usava isso a seu favor. Frequentava, abertamente, lugares públicos os mais variados, desde faculdades a danceterias, com objetivo puramente didático. Cada vez mais se surpreendia com a capacidade mutável do homem, com habilidade de criar, inovar e se adaptar às situações mais inusitadas. Chegou à conclusão de que, não importava quanto vivesse, sempre se espantaria com a mente inconstante e a alma apaixonada dos seres humanos.

         Deixou a seção alfandegária por uma porta dupla, automática, que se abria em um amplo salão, com colunas inclinadas de metal que sustentaram um teto vidro. À sua frente, separada por uma armação de correntes, uma pequena multidão se aglomerava, à espera dos passageiros. Agentes de turismo seguravam placas de identificação, e familiares aguardavam parentes.

         Já passava das quinze horas, e o sol da tarde entrava oblíquo pelo teto envidraçado, que se dobrava em uma parede também transparente. Lá fora, a rua asfaltada protagonizava a agitação característica dos aeroportos, com seu trânsito habitual de carros comerciais, ônibus públicos e furgões de hotel.

         O desembarque foi às 14h37, mas Shamira gastara pelo menos vinte minutos enchendo documentos de liberação e esperando pelas malas na esteira. Agora, livre da burocracia, olhou ao redor, à procura do Anjo Renegado, mas não o avistou em parte alguma. Temores terríveis percorreram-lhe a mente, sobre a possibilidade de o fugitivo ter sido finalmente encontrado... e quem sabe morto? Mas logo lembrou que, como pária, Ablon aprendera a assumir uma postura discreta, e por isso, incrivelmente, às vezes os seres humanos simplesmente não o enxergavam. No início era intencional, mas agora acontecia quase sem­pre, e o querubim nem precisava mais se esforçar para sumir no cenário.

         A feiticeira aprimorou a mirada e o localizou, imóvel ao lado de uma das co­lunas de aço. Já fazia mais de um século que não o via, mas ele nada mudara, à exceção das roupas escuras. Os raios vespertinos, já enfraquecidos, davam um tom dourado a seus loiros cabelos. O olhar era o mesmo: expressivo, determi­nado, temerário. E a expressão era de inegável satisfação por reencontrar a única pessoa em todo o mundo com quem se preocupava realmente.

         Ablon esboçou um sorriso — afável, acolhedor. Shamira chegou perto dele e pousou as malas no chão, sobre o mármore escuro. Por um longo momento, apenas o contemplou, em silêncio. O rosto da moça era uma máscara de incredu­lidade, mas também de alívio. Um minuto depois, então, ela o abraçou, emo­cionada.

         — É você mesmo? Nem parece verdade — constatou, reconfortada. — É difícil acreditar que esteja vivo.

         Ele voltou a sorrir.

         — Vai ficando mais fácil. Se eu estivesse morto, você já saberia.

         — É provável. Do jeito que as coisas vão no mundo espiritual, não me ad­miraria se recebesse notícias desencontradas a seu respeito.

         Ablon pegou as duas malas no piso — uma de mão, e a outra, maior — e as carregou para fora. Os dois cruzaram o saguão e saíram pela porta automática.

         — Realmente — ele concordou. — O céu e o inferno estão se preparando para a guerra. É por isso que os espíritos estão tão agitados. O tecido da realidade está prestes a se romper.

         — O Armagedon! Então é verdade. Finalmente o Dia do Juízo Final se aproxi­ma — ela achou graça nas próprias palavras. — Olha só para mim, até pareço um daqueles profetas falando.

         — Eles tiveram o seu valor — comentou o renegado, nostálgico.

         Saíram para a calçada e sentiram o calor escaldante do outono tropical. A rua fervilhava com o barulho de motores, buzinas e arrancadas.

         — E o que você tem a ver com tudo isso... digo, com o fim do mundo? Pensei que tivesse decidido não tomar parte na política celeste.

         — Agora é diferente. Parece que o porão quer fazer um acordo comigo.

         — Foi por isso que me chamou aqui, não foi?

         — Preciso da proteção de seus encantamentos.

         — Pensei que tivesse dito que as coisas estavam mais fáceis — replicou a mu­lher, explicitando sua preocupação com o Anjo Renegado.

         — Os dois lados estão mobilizando suas tropas, concluindo alianças, acertan­do tudo para a batalha final. Ninguém está mais preocupado em me caçar. Pela primeira vez desde o expurgo, sinto-me seguro. Os anjos e demônios têm suas próprias preocupações.

         — Mesmo assim... acho que não custa você dormir com um dos olhos aberto — advertiu, como força de expressão.

         — Eu nunca durmo — ele respondeu, espontâneo. Shamira era uma mulher precavida. Tinha aprendido isso com o próprio general renegado.

         No final da calçada, chegaram ao local onde Ablon estacionara sua motocicleta. Tinha a cor negro-metálica, pneus grossos e foscos, e rodas e guidão cromados. O assento de couro era longo, fazendo uma lombada para o carona, so­ldo ainda espaço para a bagagem.

         — Um transporte nada usual para uma dama — reparou a feiticeira, descontraída.

         — Mas bem de acordo com um renegado — replicou o guerreiro, no mesmo informal.

 

O Último Anjo Renegado

         O anjo e a feiticeira passaram no Hotel Montenegro, a fim de descarregar a bagagem, e depois seguiram para um lugar mais arejado. Shamira nunca tinha viajado ao Rio de Janeiro, só conhecia a metrópole por fotos e filmes, por isso convenceu o renegado a levá-la para perto do mar, onde ele revelaria seus planos. A cidade, litorânea e acidentada, é quente durante todo o ano, e o clima esfria muito pouco, mesmo ao cair do crepúsculo — um ambiente totalmente diferente do deserto iraquiano, com suas noites geladas e madrugadas insuportáveis.

         Por volta das 17h30, pouco antes do início da hora do rush, a motocicleta cou o centro e manobrou entre os carros em direção à zona sul, alcançando o litoral. Ablon e Shamira percorreram a avenida à beira-mar até o fim, onde a pista para automóveis contínua, circundando a encosta de uma montanha rochosa. No meio do caminho há um ponto turístico, um mirante belíssimo próximo à falda, que exibe uma das mais belas paisagens do mundo. Daquele local avistaram toda a praia do Leblon e de Ipanema, que, juntas, formam uma enseada, com sua faixa de areia terminando em um calçadão de pedras portuguesas. Além da calçada está o asfalto, e em seguida inúmeros prédios altos com sacadas de vidro e coberturas milionárias erguem-se como gigantes de concreto. Partindo da orla, em direçáo ao oeste, o terreno vai aos poucos se inclinando para cima, dando aos observadores a falsa impressão de que a cidade está apoiada em solo plano. É aí que fica grande parte da área urbana.

         No extremo oeste, o horizonte é recortado por uma cadeia de morros verdes, sobre os quais estão fixas inúmeras antenas de transmissão de rádio e TV. O ponto mais alto desse maciço montanhoso é uma saliência afinada chamada de Pico do Corcovado, coroada pela impressionante estátua do Cristo Redentor, com os braços abertos.

         Ablon parou a motocicleta em uma pequena área de estacionamento ao redor do mirante. Shamira não se conteve e caminhou até a mureta de pedra. Dez metros abaixo, as ondas do mar se chocavam contra a falésia, lançando respingos, e a feiticeira ficou ali por alguns instantes, tranquila, contemplando o espetáculo marinho. O renegado chegou logo depois trazendo uma garrafa de água mineral, que tinha comprado em um quiosque. Ele sabia que a necromante ain­da guardava necessidades humanas, mesmo que já tivesse aprendido a evitar a própria morte. Ela olhou toda a paisagem, até que sua vista foi parar lá longe, onde o Cristo Redentor se erguia imponente.

         — Agora entendo por que você escolheu esta cidade para esperar o Dia do Ajuste de Contas.

         — Parece sugestivo, não? — concordou o general, desviando a visão à está­tua. — Mas não é isso. Eu tenho a impressão de que, quando tudo começar a ruir, este será o último lugar a desaparecer. O Brasil é um dos chamados países neutros, um dos Estados fora da linha de conflito entre a Liga de Berlim e a Aliança Oriental.

         —Acho que perdi alguma coisa... — replicou a feiticeira, sem entender muito bem.

         — Não sei como será o fim do mundo. Não acredito que estrelas cairão do céu, ou que a lua se transformará em sangue. O que essas profecias nos indi­cam são sinais. E esses sinais são evidentes.

         Shamira encarou Ablon, séria.

         — Você acha que o Apocalipse se aproxima?

         — Ele já começou. Não há dúvida. Os quatro cavaleiros iniciaram sua marcha.

         — Guerra, fome, doenças... já vimos isso antes. O que o faz pensar que ago­ra é diferente?

         Ele deslizou o olhar pelos morros. Feixes de sol cortavam as nuvens, colorindo as encostas verdejantes. Era um raro momento de paz, que em muito lembrava os tempos antigos. Era triste pensar que tudo aquilo — a terra, o céu, os oceanos — acabaria em breve.

         — A humanidade está corrompida, Shamira — e ao dizer isso a expressão do renegado era muito mais de frustração do que de melancolia. — No coração dos homens, a esperança foi suplantada pelo ódio.

         — Mas não em todos eles.

         — Como sempre, poucos pagarão pelos erros de muitos. Foi assim no dilúvio, que destruiu Enoque e Atlântida. Foi assim em Sodoma e Gomorra. E será as­ssim no Armagedon. Aconteceria mais cedo ou mais tarde. A Roda do Tempo não pode ser contida. Somente o próprio Deus tem poder para movê-la. E, como sabemos, ele se encontra ausente por ora.

         — A Roda do Tempo... — murmurou a necromante, como se estivesse buscando algo guardado lá no fundo da mente. — Você me falou dela uma vez.

         — A Roda do Tempo é um artefato divino. Foi criada por Yahweh com o objetivo de marcar a continuidade do sétimo dia. Quando seu ciclo chegar ao o sétimo dia também estará terminado. O Altíssimo acordará, e o tecido da realidade cairá por completo. Os dois mundos, o físico e o espiritual, se tornarão um só, e esse será também o princípio do reino de Deus.

         Shamira escutava em silêncio, compenetrada.

         — É isso o que nos conta o manuscrito sagrado dos malakins — continuou o general. — Mas ele não diz que o fim dos dias será precedido por episódios cruéis e sangrentos. Foram os humanos que profetizaram o Apocalipse dessa forma. Eu, particularmente, sempre acreditei no contrário. Sempre achei que despertaria quando os terrenos tivessem alcançado a plenitude, quando a paz reinasse absoluta. Foi assim que eu sempre quis que acontecesse. Mas, depois de tanto tempo na terra, deixei de me iludir e entendi que a salvação da alma é uma dádiva para poucos.

         Ablon parou de falar e respirou fundo, apreciando o cheiro agradável do mar. A lua nascia no leste, parecendo emergir do oceano. Sua luz formava uma trilha ida que começava no horizonte e só terminava na arrebentação, perto da praia. A mente da feiticeira fervilhava com tanta informação, mas ela continuou calada, digerindo as palavras sinceras.

         — Você se lembra de quando a conheci? — ele falou, de repente, — Certa vez lhe contei sobre o livre-arbítrio e disse que esse era o prémio máximo concedido por Deus aos mortais.

         — Sim... — respondeu a mulher, simplesmente.

         — Não acho que precisava ter sido assim. Foram os terrenos que escolheram caminho, eles fizeram o seu mundo. Decidiram pela trilha da morte e se iram na própria luxúria. Mas... — repensou — não falo isso como inquisidor, tampouco como juiz. Não sou e nunca fui um modelo a ser seguido. Tam­bém já cometi muitos erros.

         Ao dizer isso, ele a encarou com os olhos cinzentos e prosseguiu com ternura:

         — Lembro que uma vez estive às portas da corrupção. Mas, no instante mais negro, tive alguém que me resgatou das trevas.

         — Eu apenas lhe apresentei as opções. Você fez sua escolha.

         — Sim. Nem todos tiveram a chance que eu tive. Nem todos tiveram alguém para indicar-lhes o caminho. É por isso que eu não os julgo. Às vezes penso que eu mesmo tenho uma parcela de culpa nisso. Poderia ter feito mais. Poderia ter ajudado a humanidade, em vez de ter caminhado pelas sombras do mundo, ten­tando reconstituir a irmandade. Mas lamentos não mudarão nada. O que está feito está feito.

         A noite ia chegando, sorrateira. A maré encolheu, e as ondas recuaram na areia.

         — Muito bem — falou Shamira, quebrando a tensão da conversa. — Então, o que o Anjo Renegado quer de mim? Você falou em um acordo.

         — Lúcifer mandou Orion me trazer uma mensagem. Parece que a Estrela da Manhã quer que eu me junte às suas fileiras nesta guerra final.

         — Então, por que precisa de mim? A proteçáo do Arcanjo Sombrio não é suficiente?

         — A verdadeira proteçáo que eu preciso é contra ele. Lúcifer já me traiu uma vez. Não pretendo aceitar sua proposta, mas estou curioso para ouvir o que ele tem a me dizer. Por isso decidi ir visitá-lo no inferno.

         — Olhe lá o que você vai fazer... — ela advertiu. — Lembra-se da última vez que solicitou minha magia para esse tipo de coisa?

         — Eu nunca esqueci. Meu corpo ainda dói pelas queimaduras. Aquilo foi imprudente. Mas os tempos eram outros. Eu era caçado naquela época, e havia uma recompensa pela minha cabeça. Além disso, eu invadi levianamente os li­mites proibidos. Era natural que os súditos de Lúcifer esperassem dele uma ati­tude impiedosa. Agora, entretanto, fui convidado.

         Os argumentos do renegado eram convincentes, e Shamíra concordava com eles. Todavia, continuava preferindo que Ablon não empreendesse aquela jor­nada. Levantou-se da mureta de pedra e, pensativa, andou um pouco, pesqui­sando, mentalmente, os encantamentos que guardava na manga. Sim, ela possuía alguns rituais que poderiam ser úteis.

         — Uma viagem ao inferno... — encolheu os lábios, raciocinando. — Você conhe­ce os perigos. Uma vez lá estará vulnerável.

         — Estou disposto a correr o risco.

         — Conheço alguns feitiços que podem lhe dar uma proteção limitada. Mas, se eles quiserem acabar com você, nem todo o meu poder poderá preservá-lo.

         — Prefiro pensar na sua magia como uma precaução. Não creio que o Arcanjo Sombrio e suas hordas desejem mesmo me matar. Não desta vez.

         A necromante ainda tinha suas dúvidas.

         — Por que você confia tanto nisso?

         — Orion. Ele pareceu estar falando a verdade, e nele eu confio. Além disso, se Lúcifer está às portas da guerra, é bem provável que queira mesmo minha ajuda. Seria prático para ele me usar como símbolo, afinal sempre fui o ícone da resistência.

         — Isso contraria um pouco toda a propaganda que ele fez em prol da caça aos renegados, não acha? O Diabo pôs em vocês toda a culpa por sua queda. Você mesmo me disse isso há muito tempo.

         — Sim, mas a Estrela da Manhã sabe muito bem como moldar as situações a seu favor. É o maior mestre da persuasão que existe. É capaz de transformar até o pior inimigo em mártir. Se você o tivesse conhecido, saberia do que estou falando. Tem a língua afiada como cobra e a inteligência de mil estrategistas. Não foi à toa que arrastou um terço dos alados à sua rebelião contra o arcanjo Miguel.

         — Orion... o Rei Caído de Atlântida — ponderou a feiticeira. — Sim, você tem motivos para confiar nele. Mas será que o próprio satanis não está sendo vítima das persuasões de seu mestre? — Os satanis constituem a ordem mais nobre de demônios, equivalentes aos celestiais serafins.

         — Talvez. Mas, como eu disse antes, é um risco que estou disposto a correr. Depois de tantos séculos, enfim me sinto pronto para qualquer desafio. Sinto-me preparado para enfrentar Miguel em combate e depois apresentar armas diante de Deus. Mas só poderei chamar o Príncipe dos Anjos ao duelo quando o tecido da realidade cair. Por enquanto, minha maldição me prende ao mundo físico. Então, só me resta aguardar. Aguardar até que todos os Selos do Apocalipse estejam abertos e a membrana tenha se desmantelado.

         A lua, por fim, subiu reta ao céu, e os carros na avenida reduziram seu fluxo. As janelas dos edifícios brilhavam, e as antenas de TV balançavam ao vento.

         — Somos tudo o que resta de uma época que se perdeu no esquecimento, varrida pela mesma tempestade que devastou a velha Babel — declarou a mulher, saudosa. — Vou ajudá-lo, general. Eu lhe devo isso, e muito mais... Sempre lhe deverei alguma coisa. Mas não concordo com isso. Acho que sou egoísta, no fundo... Não quero perdê-lo.

         —Você sempre espera pelo pior... e de certa forma eu também. É nosso jeito de reagir ao desconhecido, ao futuro imprevisível. Mas já escapei da morte mui­tas vezes, e penso que posso fazê-lo uma última vez.

         — Mas e se não conseguir?

         — Você mesma já disse que nossa era acabou. Estamos vivendo além de nosso tempo. E já fui muito mais longe do que deveria ir. Sou o último anjo renega­do. E sobre mim pesa a tarefa daqueles que, um dia, resolveram aceitar os meus ideais. Não posso decepcioná-los, feiticeira.

         Não pode, de fato — pensou a necromante. Você nunca os esqueceu nem aban­donou aqueles de quem gosta. Salvou minha vida e me defendeu, muitas vezes. De­pois, venceu espíritos, bruxos, assassinos e caçadores. Escapou do inferno e derrotou a inveja de seus inimigos. Agora, caminha para sua rota final, para a mais terrível das guerras, para a convergência derradeira de todas as suas virtudes.

         Sim, Shamira iria ajudá-lo. E o faria com orgulho.

 

Interlúdio Noturno

         Ablon e Shamira voltaram ao Hotel Montenegro pouco depois do cair da noite. O senhorio estava embriagado e teve de se esforçar para cumprimentar os hóspedes com um aceno de mão. Murmurou algumas palavras, todas sem coerência, e voltou a cochilar no balcão.

         Subiram para o quarto e se acomodaram no aposento. Instantes depois, uma tempestade engoliu a cidade, formando caminhos de água no vidro da janela.: Não havia camas por ali, mas a feiticeira improvisou um colchão com cobertor e pedaços de lona. Quando finalmente esticou o corpo, reparou na própria exaus­tão e se lembrou de que já não dormia havia quase dois dias.

         Ela se deitou, fechou os olhos e procurou relaxar. Antes, porém, percebeu Ablon sentado à mesa, na penumbra, lendo alguns pergaminhos antigos, e sentiu uma sensação agradável, que não provava havia muito tempo. Era como estar de volta à caverna, quando adormecia sob a proteção do renegado, sempre gado, sempre atento a qualquer invasão. Estava segura e certa de que, enquant aqueles olhos cinzentos a vigiassem, nada de ruim lhe aconteceria.

         Pegou no sono.

         Acordou lá pela meia-noite. Ainda chovia. Ablon estava de pé, em silêncio colado à janela, examinando com o olhar a quietude da rua, os postes de luz, o telhado dos prédios. Ela conhecia aquela expressão afiada, de águia no ninho, e temeu pelo pior.

         — O que houve? — perguntou, em sussurros.

         — Shhhhh... — sinalizou o anjo, indicando que não fizesse barulho. O sangue da necromante gelou ante a suposta ameaça.

Passaram-se uns três minutos, até que Ablon relaxou a postura, afastando-se da vidraça. Agia como se tivesse captado um falso alarme. A tensão se dissolveu e Shamira perguntou novamente:

         — O que aconteceu?

         — Nada. Está tudo bem. Eu só tive a impressão de que... Só achei que...

         — O quê? — cortou a feiticeira.

         — Nada. Não há de ser nada. Volte a dormir.

         Ela insistiu mais um pouco.

         —Talvez um anjo caçador ou um demônio vingativo? — e usou um tom mais descontraído, para esconder de si mesma o próprio nervosismo.

         — Não. Se alguma entidade estivesse por perto, eu já teria percebido as vibrações de sua aura.

         As pálpebras de Shamira pesavam. Se não estivesse tão cansada, teria voltado assunto, mas o letargo a dominou. Dormiu tranquilamente e não voltou a despertar.

 

O Ritual de Proteção

         Shamira passou toda a manhã lançando encantos invisíveis e executando pequenos rituais no interior do apartamento de Ablon. O objetivo era converter o antigo depósito em um santuário. Um santuário é, por definição, uma área atada no plano físico onde o tecido da realidade é muito fino, quase nulo. A suavidade da membrana, em um santuário, permite que ela se rasgue mais facilmentc, e o resultado prático disso é que os efeitos sobrenaturais, no ponto afetado, são produzidos com muito mais eficácia. Há muitas maneiras de criar um santuário. Cada tradição mágica, seita ou religião tem os próprios métodos para isso. A trilha da necromancia, em particular, vale-se de objetos místicos e fcrmulas mágicas para remodelar o tecido. Os encantamentos preliminares estavam contidos em um livro muito antigo, com capa de couro e folhas de papiro, denominado Grimório de Nippur. Um preparado lodoso, especial, é usado para delimitar a câmara escolhida — que ali se estendia da porta à janela, abran­gendo todo o espaço do quarto.

         Há situações, mais raras, em que os santuários são criados sem nenhuma intervenção humana. Isso ocorre com frequência em locais onde santos ou personagens lendários são mortos, ou onde entidades místicas fazem aparições ocasionais.

         O tamanho de um santuário é variável. Eles podem ser tão pequenos quantc camarinhas ou tão grandes quanto florestas. Diferentemente do que muitos pen­sam, esses locais místicos, contudo, podem ser maculados. Há meios intencionais para isso, como a utilização de feitiços profanos, mas a maneira mais comum a simples banalização do lugar. Uma catedral que é demolida, transformada er praça pública, e cuja importância é totalmente esquecida, logo volta ao pata­mar inicial, e o tecido reverte à consistência normal.

         A intenção de Shamira ao criar ali um santuário visava preparar o cômodo para a realização de um ritual realmente poderoso. Teria que ser forte o bastan­te para proteger Ablon no inferno, pois os demônios raramente são enganados por truques baratos. Resolvera, desta vez, empregar um pouco da antiga magia, a magia esquecida, a magia da velha Enoque, registrada nas páginas do grímório ancião. A execução a deixaria exausta e incapaz de usar suas habilidades místicas por um dia inteiro, mas seria por uma boa causa.

         A Feiticeira de En-Dor concluiu as preparações no fim da tarde. Descansou um pouco e se satisfez com a comida chinesa em caixinhas que o renegado comprara. Como sempre, Ablon a acompanhou no jantar, embora não precisasse comer — nenhum anjo precisa. Sentados no assoalho de madeira, despojados, conversaram sobre futilidades, sobre suas viagens ao Oriente, e Shamira relem­brou o sabor da autêntica comida chinesa, da época dos mandarins, muito diferente daquele macarrão oleoso.

         — Quando vamos começar a cerimônia? — perguntou o general, recolhendo os restos do jantar.

         — Vamos esperar pela noite. E nessas horas que o mundo espiritual está mais acessível. E ainda preciso terminar os detalhes.

 

         Depois de levarem o lixo para fora, o anjo e a feiticeira afastaram a escriva­ninha e as estantes maiores, criando uma área limpa, um grande espaço vazio. Sobre o velho piso de tábuas, Shamira desenhou um pentagrama, uma estrela de cinco pontas, usando um barro avermelhado antiquíssimo, cuja terra per­tencera ao solo de Enoque. A argila, somente, já era carregada de misticismo, em virtude de sua origem lendária.

         O pentagrama foi rodeado por inscrições. Em quatro das cinco pontas, a moça posicionou recipientes de cerâmica contendo porções ínfimas dos elementos naturais — um deles estava cheio de terra; o segundo continha água; do terceiro emanava fogo; e o quarto deixava escapar uma fumaça branca. Na quinta ponta, a superior, a necromante fixou um punhal, sua adaga pessoal de encantamento.

         O palco estava pronto. O sol havia morrido, sem que eles percebessem, obscurecendo as ruas. O céu estava limpo, sem nuvens, e agora era o brilho da lua ,e não as gotas de chuva, que tingia a vidraça, desenhando formas prateadas no chão.

         — Estamos com sorte — avisou a mulher. — É uma noite agitada no mundo espiritual. Acho que vamos conseguir completar o ritual com sucesso. Está preparado?

         — Sem problema — replicou o celeste.

         Ela pôs de lado suas roupas modernas e vestiu uma túnica simples, de um só corte. Era feita de algodão cru e tinha aparência antiga, mas estava conservada. e pertencera à sua primeira mestra, em Canaã, e manteve-se intacta graças ao preparado Sippar. Em um dos braços apoiava o grimório e com a outra mão gesticulava os dedos.

         — O que vamos fazer aqui é tentar invocar dois espíritos maiores. O poder entidades é grande, comparável mesmo à potência dos celestiais. Uma vez invocados, teremos que barganhar um pouco da essência deles, e com ela energizarei o punhal — e apontou para a faca deitada no pavimento. — Só então completar o feitiço.

         — Você acha que vai ser fácil convencê-los a entregar sua essência?

         — Nunca é fácil. Esses espíritos são muito antigos e com o tempo vão ficando mais arrogantes. Mas já tenho alguma experiência com eles.

         — Você é modesta — comentou o general. — O que devo fazer?

         — Nada, pelo menos até que eu diga o contrário. Por enquanto, observe, apenas.

         Ablon acedeu com a cabeça e a feiticeira começou a lançar um feitiço, Repetiu, em voz alta, a série de runas místicas contidas no livro:

         — Mer Sidi! Mer Kurra! Mer Urulu! Mer Martu! Zi Dingir Anna Kanpa! — a entonação era estranha e não se assemelhava a nenhuma linguagem conhecida pela humanidade. Fazia parte de um código mágico, um idioma oculto pronunciado apenas pelos feiticeiros.

         À medida que a canção prosseguia, Shamira começou a suar. Foi então que algo estranho aconteceu. O brilho da lua, que cortava a janela, foi sumindo aos poucos, até tudo lá fora ser dominado pela mais completa escuridão, um breu terrível, comparável à negritude cósmica.

         — O que está acontecendo?

         — Uma transferência momentânea para o plano etéreo. Eu estou abrindo a passagem pelos quatro portões. Nós, juntamente com este cómodo, estamos agora atravessando as fronteiras da realidade.

         Um frio fantasmagórico inundou o apartamento. Não se via mais nada através da vidraça: os prédios, a lua, os postes de iluminação da calçada... nada, apenas trevas. Era como se o salão tivesse sido atirado aos confins do espaço, inóspito e longínquo. Agora, a única fonte de claridade provinha da tigela com fogo, que ardia numa das pontas do desenho em estrela.

         A necromante parou o recital, descansou a cabeça e deitou o pesado tomo de lado, sobre uma caixa comum. O silêncio era absoluto, mas não durou muito tempo.

         O general escutou um barulho de madeira quebrando. De repente, as tábuas do chão se arquearam para fora. Uma criatura de odor repugnante forçava o chão para sair, destruindo o assoalho dentro da área demarcada pelo pentagrama. Se não fosse já tão experta, tão acostumada ao universo bizarro, Shamira teria fi­cado nauseada pela aparição.

         A entidade que emergia das tábuas era um ser monstruoso e disforme. Lem­brava uma massa de carne, ora negra, ora esverdeada, com centenas de peque­nos olhos espalhados pela superfície do corpo e dezenas de bocas que mordiam o ar. Movimentava-se com lentidão, por meio de pseudópodes gosmentos. O cheiro insuportável vinha da secreção que expelia pela carne, penteada de poros abertos, cheios de pus.

         Destemida, a moça caminhou ao circulo mágico, sem avançar para dentro. Encarou a criatura com autoridade. Seu olhar era duro e austero, e a face nada indefesa.

         — Bacarata! — assim ela chamou o monstro, em uma linguagem obscura, nor­malmente usada pelos espíritos corrompidos que vagueiam na fundura do etéreo.

         Os múltiplos olhos se fixaram na necromante, e as bocas se abriram, dantescas.

         — Feiticeira de En-Dor, mestre da arte da necromancia, conjuradora de mui­tos espíritos. Bacarata escuta.

         Os lábios copiosos se articulavam todos ao mesmo tempo, produzindo uma voz estridente.

         — Bacarata, príncipe da matéria. Venho implorar um côndice da sua essência para a realização do feitiço da proteçáo.

         O côndice é um tipo de unidade mística usada para medir a energia espi­ritual.

         A criatura se moveu, cuspindo o odor insalubre.

         — E quem receberá o encantamento? — intimou o monstrengo.

         — Ablon, o Anjo Renegado, expulso do céu antes mesmo da queda de Lúcifer. O querubim que desafiou a tirania do arcanjo Miguel após a destruição Sodoma.

         Quieto, um pouco mais recuado, Ablon teve a impressão de que alguns olhos de Bacarata o observavam, analisando-o dos pés à cabeça. As asas do anjo estavam recolhidas, como sempre, fundidas às costas, imperceptíveis. Mesmo assim, sua sombra na parede mostrava o contorno das asas abertas. Há uma confraria de feiticeiros, os Magos Negros, que busca a energia para seus feitiços na escuridão. Eles costumam dizer que a sombra sempre revela nossa verdadeira natureza.

         — A aura dele é poderosa — divagou a entidade, e depois soltou um grunhido ridículo, seguido por um silvo.

         — Eu acho — sussurrou o general ao ouvido da necromante — que não vamos conseguir nada desta figura asquerosa. — Ele já começava a ficar impaciente. Os querubins são combatentes e pouco acostumados à diplomacia.

         — Paciência — sugeriu a mulher. — A barganha ainda nem começou.

         A entidade voltou a rugir, deslizando no pentagrama. Suas palavras eram pouco compreensíveis, muito arranhadas.

         — Aura poderosa... Bacarata quer essência do anjo. Essência por essência, essa é a troca.

         — Mas essa não é uma troca, Bacarata — desafiou a Feiticeira de En-Dor, lançando um olhar perigoso.

         Imediatamente, o espírito emitiu um berro agudo, de ódio, e reconheceu o ardil. O excesso de secreção que saía de seu corpo indicava um estado de raiva, e a criatura avançou em fúria contra a necromante. Mas estacou ao alcançar as do círculo, como se algum muro invisível o prendesse lá dentro. Em um reflexo, o general avançou, deu um passo à frente para proteger a amiga, ela o deteve, indicando que não corria perigo.

         — Você está preso no Pentagrama de Bethor, Bacarata, caso ainda não tenha percebido.

         Vulnerável e incapaz de ultrapassar a área demarcada, a entidade se contorceu e do corpo jorrou mais um litro da gosma. Cuspiu uma torrente de barulhos infames, amaldiçoando a feiticeira.

         — Feiticeira... você queimará no fogo de Xahra quando eu me libertar.

         Ela sorriu, maliciosa.

         — Não pragueje, "príncipe". Posso resolver deixá-lo aí para sempre — ameaçou, e depois retomou a barganha. — Estou apenas procurando urna solução bilateral — e fez uma pausa para que o espírito se acalmasse. — Você seria capaz de esquecer esse ódio se eu lhe desse uma gota do sangue do renegado?

         — Sangue... é só matéria — rosnou a criatura.

         — Você é o mestre da matéria. Tenho certeza de que vai encontrar uma utili­dade preciosa para o fluido vital. O que estou pedindo é um côndice da sua es­sência. Em troca eu lhe ofereço a liberdade, e mais o plasma fervente do general fugitivo.

         Bacarata não tinha saída. Fora encurralado, trapaceado, enganado por uma feiticeira — um tipo de situação bastante humilhante para um espírito tão in­fluente. Mas, apesar das circunstâncias desfavoráveis, chegou à conclusão de que não perderia tanto ao aceitar a oferta.

         Pelos resmungos e movimentos irregulares dos pseudópodes e pela agitação das bocas minúsculas, Shamira entendeu que ele aceitara a permuta, mesmo a contragosto. E que outra opção ele tinha?

         — Ablon, faça um furo superficial no seu dedo e deixe que uma gota de san­gue caia no pentagrama — indicou a necromante, estendendo ao querubim uma agulha enfeitiçada. — Mas não pise dentro do círculo, ou o selo de proteção será quebrado.

         O anjo guerreiro fitou a entidade, intrigado, e hesitou em entregar-lhe seu sangue, mas a amiga o confortou.

         — Não se preocupe. Ele não tem poder efetívo sobre seu avatar.

         Conformado, Ablon pressionou a ponta da agulha e lançou um pingo ver­melho ao chão, perto do monstro. Bacarata se retorceu e proferiu um gemido profano, de prazer diabólico, quando provou com a pele o precioso fluido ce­leste. Quando, enfim, nada mais lhe restava para sugar, o monstrengo escorre­gou de volta ao buraco, e as tábuas saltadas se endireitaram, como se nunca ti­vessem sido quebradas.

         O punhal acima do pentagrama irrompeu em chamas, mas não derreteu. O fogo era de cor violeta, diferente da ardência normal, e basicamente espiritual. A faca estava energizada, enfim, com a essência da criatura, mas um côndice só ainda não era suficiente.

         — Preciso aproveitar que o tecido aínda esta flexível para chamar a próxima entidade — avisou Shamira, endireitando a túnica.

 

         Sem perder muito tempo, a feiticeira caminhou à valise e sacou lá de den­tro um pergaminho gravado com fórmulas mágicas. Eram inscrições tão poderosas quanto aquelas do velho grimório, mas o desenho era bem diferente, provavelmente desenvolvido por alguma cultura européia. Os contornos das letras tão retilíneos, e sim mais circulares. Todos os caracteres estavam ligados por curvas, dando a impressão de formarem um único pictograma. A necromante analisou o documento com cuidado e iniciou a leitura.

         O espírito demorou a aparecer, e Ablon chegou a pensar que ele não mais viria. Quanto mais evoluído é um ser etéreo, mais distante ele está do universo carnal — e portanto menos acessível. As entidades corrompidas são muito dependentes da energia dos seres humanos, por isso é mais fácil encontrá-las vagando, perdidas além do tecido, do que fixadas em seus domínios singulares. O convidado con­seguinte, no entanto, era justamente o oposto.

         Para atrair a próxima criatura, Shamira precisou recitar o feitiço várias vezes. Quando já estava exaurida, quase sem forças, uma luminosidade dourada apareceu adiante, flutuando um metro acima do círculo. O espírito veio sob a forma de um belíssimo espectro de luz, que refulgia em tons acobreados. Ao observá-lo, o Anjo Renegado distinguiu braços e pernas e também a cabeça, mas o rosto estava ofuscado, invisível na claridade.

         A feiticeira largou o pergaminho, fatigada, e quase caiu de joelhos, mas o renegado a amparou. O esforço exagerado roubara-lhe todo o vigor, e ela precisava respirar, antes de tudo.

         Enquanto Shamira se recompunha, a entidade falou. Sua voz era feminina, suave e musical, como a melodia adorável do reino das fadas.

         — O que você me traz, feiticeira? — sibilou a imagem. — Um celestial... posso sentir sua aura pulsando. Um querubim... Sexto ciclo. Anjos como ele não costumam visitar o plano físico. O que faz aqui, arauto?

         Ablon abriu a boca para responder, mas antes que dissesse palavra a criatura já replicava:

         — Você é um anjo renegado, e está preso ao seu avatar. — Se ela já sabia, então por que perguntou? — cochichou o general à necromante.

— Ela não sabia, até ler seus pensamentos. Captou a resposta na ponta da língua, assim que você a formulou em sua mente. Seu nome é Korrigan, deu­sa celta de grande sabedoria.

         O espírito retomou seu discurso. Já entendera, por seus poderes divinatórios, tudo o que Shamira desejava e o objetivo real daquele ritual.

         — Os celestiais estão em guerra — começou a divindade, profética. — O Armagedon, como os anjos o chamam, está muito próximo agora. Nós, os espíritos, não queremos a devastação do planeta. É por isso que o mundo espiritual está tão agitado. A minha essência, conforme necessitam, já está no punhal.

         E o que mais?, pensou Shamira, certa de que Korrigan poderia escutá-la. Vo­cê não me ajudaria de graça,., Nem os espíritos evoluídos nem os deuses etéreos são tão altruístas. O que quer como barganha?

         — Tudo o que eu quero é a preservação dos dois mundos — manobrou a ima­gem. — O general renegado... É ele que tem na palma da mão a opção do futuro, a chave para trancar a ganância celeste. Ele impedirá que o Armagedon se com­plete — determinou.

         — Mas esta não é e nunca foi minha intenção — interpelou Ablon. — Quando o Apocalipse terminar, a membrana estará desfiada, e então subirei até as nu­vens, para desafiar o tirano Miguel. Deus, em seguida, acordará e punirá os per­versos. Mesmo que eu morra em batalha, o Príncipe dos Anjos será condena­do por ter instaurado o horror e desrespeitado a vontade do Pai. O Armagedon é, para mim, a redenção final.

         — E como você pode ter tanta certeza de que Yahweh despertará realmente? — propôs a entidade.

         — Assim está escrito no Livro da Vida — ele rebateu, automático.

         — E alguma vez você já viu esse livro? — instigou, e o celestial ponderou. O Livro da Vida era um tomo místico, dado a Miguel pelo Criador, e que registrava a história do mundo. Ali estaria contida toda a sequência do sétimo dia, da fei­tura do homem ao Juízo Final. Mas só os arcanjos o acessavam.

         O espírito flutuou à borda do pentagrama. Korrigan podia rastrear pensamen­tos, lembranças e emoções e interpretar seus valores.

         — Nem todas as coisas acontecem como projetamos, guerreiro. Agora, neste exato momento, um exército de anjos está deixando o Quinto Céu e se deslo­cando para a Fortaleza de Sion, no plano etéreo, onde o arcanjo Miguel aguarda o início da grande batalha. Se o Príncipe Celestial vai ser de fato punido pelo Reluzente, não lhe parece estranho que esteja esperando tão ansiosamente pela conclusão desta guerra? Qual seria o interesse dele em promover o Armagedon?

         O Anjo Renegado engoliu seu protesto e ficou em silêncio, preocupado, divindade celta propusera uma questão complicada — e extremamente releva te. Como ele fora cego por, durante séculos, nunca ter raciocinado sobre isso!

         E o que mais você vê, espírito?, pensou o querubim. O que mais pode nos velar sobre os planos além?

         — Tudo o que vejo é o crepúsculo dos tempos, uma terra arrasada, destruída por humanos e anjos. Vejo um impasse, o mais fundamental dos dilemas.

Quando muitos já tiverem morrido, e só as cinzas cobrirem a face da terra, você terá que resolver uma crise e escolher entre a divindade e a humanidade.

         — Não sei se compreendo. Por que a minha escolha é tão importante?

         — Não saberia dizê-lo, nem acho que deveria. A sua natureza é reta, mas haverá um dia em que você decidirá pelo mundo. É tudo o que sei.

         — Eu não esperava por tanta responsabilidade.

         — Você sempre foi um rebelde — afirmou a entidade. — Mas viver à margem do mundo é muito mais fácil do que governá-lo. Seu tempo de andarilho findou. Cedo ou tarde, terá de regressar à batalha, aparecer aos inimigos e assumir seu posto. O Apocalipse já começou. O último sinal, o Sétimo Selo, acaba de ser aberto. Agora, apenas as Sete Trombetas nos separam da destruição terminal.

         Poucas vezes, mesmo no paraíso, Ablon fora iluminado por tanta argúcia. Agora, estranhamente, o universo ao redor parecia fazer mais sentido, e sua perspectiva sobre muitas coisas começou a mudar. Ele não tinha a capacidade de, sozinho, sem o recurso da mágica, penetrar no plano etéreo, e não tinha a menor idéia do que lá acontecia. Mas o espírito trouxera informações preciosas sobre o movimento das tropas celestes.

         O som musical terminou e, abruptamente, a luz sobrenatural apagou. O etéreo de Korrigan se desfez, sumindo do pentagrama. Durante algum tempo, Shamira e Ablon ficaram quietos, estupefatos, ainda não percebendo a importância de tudo o que tinham escutado.

         A janela do apartamento acendeu, refletindo a luminosidade mundana dos postes elétricos e trazendo-os de volta à realidade comum. O contorno dos prédios se destacou na paisagem, e uma sirene ao longe confirmou o regresso.

         — Estamos de volta? — perguntou o renegado.

         — Ao plano material? Sim.

         — E o encantamento? Foi concluído?

         — Não. Ainda não. Usarei o punhal energizado para lançar o feitiço.

         Dali em diante, a feiticeira sabia bem o que fazer. A parte difícil já fora. É verdade que nunca tinha testado antes esse ritual, mas a maioria dos encanta­mentos complexos é efetuada poucas vezes, especialmente nos dias de hoje, em que há tão poucos feiticeiros no mundo.

         Shamira buscou o punhal, na ponta superior do selo, e o tomou entre os dedos. Depois, rodou nos calcanhares e voltou à presença do anjo.

         — Estenda o braço. Isso vai doer um pouco.

         Ele esticou o braço direito. Compenetrada, a mulher usou a adaga para mar­car uma runa

mágica na parte inferior do antebraço do amigo. A lâmina queimou ao toque da pele, deixando escapar uma fumaça escura e produzindo uma ci­catriz pequenina, que delineava a inscrição.

         — Isso dói mais do que um ferimento normal — constatou o general, provando a aflição da furada.

         — A adaga está encantada. O corte está atingindo não só sua carcaça física, mas também seu corpo espiritual. Carne e espírito estão sendo afètados — e afas­tou a lâmina. —Agora, mostre-me o outro braço.

         O querubim estendeu o antebraço esquerdo, e Sharnira inscreveu nele uma segunda runa, diferente da primeira, mas seguindo padrões iconográficos se­melhantes. Certamente pertenciam ao mesmo código mágico. Há centenas de­les. Praticamente cada cultura humana com tradições místicas tem seu alfabe­to oculto.

         A feiticeira terminou de marcar a última runa e respirou fundo, esgota­da. Largou a faca, e a arma perdeu o brilho. A energia dos espíritos fora con­sumida, e o feitiço, fechado. Os elementos naturais dentro dos potes de cerâ­mica não mais existiam, levados pela força da bruxaria. O barro vermelho secou, e todas as fórmulas mágicas desenhadas no círculo estavam, agora, borradas ou ilegíveis.

         — O feitiço está completo — anunciou a mulher, ofegante. Alguns rituais de­mandam energia demais, e esse estava no topo da lista.

         Ablon olhou para as queimaduras em ambos os braços. Sentia na própria pele o poder das inscrições, mas não compreendia sua utilidade.

         — Esses ferimentos serão cicatrizados no mesmo ritmo dos de um humano normal — avisou a feiticeira. — Infelizmente, você não poderá utilizar seus po­deres angélicos para regenerá-los. Depois disso, restará apenas uma marca es­cura, como uma tatuagem, que permanecerá gravada em seu corpo até que a runa entre em ação.

         — E qual é o poder dessas runas?

         — Cada uma delas tem sua função. A primeira, gravada no braço direito, é a runa do corpo. Ela irá poupá-lo de um ferimento mortal.

         — Se eu for morto, ela me trará de volta?

         — Sim, mas só funcionará uma vez. Depois disso a runa desaparecerá e você estará novamente vulnerável. De forma semelhante funciona a segunda runa, marcada no braço esquerdo: a runa da mente. Ela preservará sua mente contra qualquer investida psíquica, como esquecimento, tentativa de dominação e lei­tura de pensamentos. Não importa quão forte seja o poder de seu atacante, a magia o protegerá.

 

         O renegado sorriu. Ficara satisfeito com o resultado do ritual, mas sua principal alegria era ver quanto sua amiga evoluíra, aprendera e se especializara durante todos aqueles anos. Era sem sombra de dúvida a mulher mais fascinante já conhecera, e uma exímia praticante das artes mágicas. Era inteligente e bela, sabia e atraente.

         — Acho que estou bem protegido. Esse ritual é muito mais eficiente do que supunha.

         — Sim... Mas não se esqueça, cada runa age apenas uma vez, e não mais.

         A mágica é a mais complexa de todas as atividades do mundo, a mais estimulante e compensadora. Todavia, anjos e demônios não podem usá-la, portanto nunca a compreenderão realmente.

         Um raio dourado entrou pela janela. Um novo dia estava nascendo.

         — Já é dia? — estranhou o general. — Pensei que...

         — O tempo passa mais depressa no plano etéreo — lembrou a necromante.

         — Ah, sim, claro — recordou o guerreiro. — Há muito tempo que eu não deixo a Haled. Os assuntos etéreos me fogem.

         Shamira estava arrasada.

         — Agora preciso descansar e dormir. Acho que não vou despertar antes do pôr do sol.

         Ela cambaleava, e o renegado a acompanhou até a cama. Ficou a seu lado por uns dez minutos e ouviu quando ela sussurrou, antes de apagar finalmente.

         — O que você acha que Korrigan quis dizer quando falou que o Sétimo Selo já foi aberto?

         A atenção do celeste estava perdida no céu nublado, através da vidraça.

         — Ela quis dizer que a guerra começa hoje.

 

Vingadora Sagrada

Os quatro dias de espera combinados com orion haviam terminado. Sc o demônio cumprisse sua palavra, estaria esperando por Ablon no princípio da noite, em um ponto específico à sombra da ponte Río-Niterói, uma colossal estrutura de concreto, de treze quilômetros de extensão, que cruza a baía de Gua­nabara e liga o Rio de Janeiro à cidade vizinha.

         A despeito do convite que recebera para encontrar Lúcifer no inferno, o re­negado se perguntava como faria para chegar até seu anfitrião. E claro que a Estrela da Manhã já devia ter cuidado disso, mas como? Diferentemente dos outros anjos, que podem se materializar e se desmaterializar à vontade, o gene­ral perdera a propriedade de cruzar o tecido da realidade. O Sheol, assim como o paraíso, é um reino espiritual, apesar de não estar sobreposto ao plano material, como estão o astral e o etéreo. Levando em conta essa cosmologia, as chances que Ablon tinha de atravessar a membrana eram limitadas, para não dizer nulas. A forma mais comum de rasgar o tecido é mediante rituais mágicos, como aquele ministrado pela Feiticeira de En-Dor, mas ele não acreditava que Lúcifer ou Orion mantivessem um mago de plantão para uma ocasião tão peculiar. O mais provável é que utilizassem portais dimensionais — portas místicas que ligam uma dimensão a outra —, mas o querubim desconhecia a existência de qualquer um desses pontos de poder naquela região da cidade. Analisando as alternativas, Ablon só conseguia pensar em mais um meio — o rio Styx.

         O rio Styx é um mistério até mesmo para os malakins. Ninguém sabe sua origem, sua natureza, ou onde começa e termina. Sabe-se, contudo, que é um rio exclusivamente espiritual, que percorre o etéreo em locais específicos. Suas águas agem da mesma forma que os portais, transportando o viajante para algum reino superior ou inferior. O Styx tem muitas bifurcações e trilhas diferentes, todas memorizadas secretamente pelos barqueiros.

         Os barqueiros são seres etéreos de procedência desconhecida. Parecem ser os únicos que conhecem a verdadeira natureza do Styx e suas rotas. Mediante o pagamento adequado, essas entidades sinistras podem levar o forasteiro a qualquer lugar.

         Viajar pelo Styx sem ajuda é complicado, muitas vezes fatal. Embora as águas tortuosas do rio não sejam aparentemente nocivas, guardam perigos. De uma para outra, vertentes amenas podem desembocar em corredeiras bravias, tornando o nado impossível. Não obstante, alguns redemoinhos podem sugar os viajantes, e alguns deles são na verdade vórtices que levam a dimensões inexploradas. Além disso, muitas criaturas belicosas se escondem nas profundezas e não hesitam em atacar qualquer um que cruze seu território — muitas vezes em busca de comida. Inúmeros anjos, demônios e deuses encontraram a destruição total no leito do Styx.

         Shamira dormira quase o dia todo, acordando só ocasionalmente para beber água. Ablon não desgrudou os olhos da janela do nascer ao pôr do sol, estendendo seus sentidos para além da vidraça. Estava mais curioso do que apreensivo em razão de sua entrevista com o Arcanjo Sombrio. Por natureza, sempre desconfiado, uma característica inerente à sua casta.

         Shamira levantou às seis horas da tarde, praticamente restabelecida. Como não havia banheiro no quarto, teve de usar um chuveiro comum no fim do corredor. Com a água escorrendo pelo corpo, sentiu-se muito melhor. Vestiu roupas confortáveis, porque não pretendia deixar o hotel até o general retornar.

         Na volta para o quarto, a feiticeira arrastou uma velha televisão, jogada no corredor, para dentro do apartamento. O objeto era propriedade do hotel, mas parecia abandonado. Com a pensão vazia, o proprietário não encontrava utilidade para o aparelho. Shamira tinha o bom hábito de se manter informada sobre tudo o que acontecia no mundo, então deu um jeito de ligar o dispositivo, o que não foi uma tarefa muito simples. Enquanto Ablon estivesse ausente, ten­taria se divertir com coisas mundanas — nada de feitiços, fantasmas ou bruxarias.

Tudo o que queria era assistir a seriados engraçados, comer biscoitos de choco­late e escutar uma musica agradável.

         A temperatura voltou a esfriar e começou a chuviscar. Ablon precisava partir, mas temia deixar a feiticeira sozinha. Ela sempre soubera se defender, durante todos aqueles anos, mas, naquela noite, havia uma sensação ruim no ar, um es­tranho cheiro de perigo, que deixou o renegado em alerta. Como guerreiros, os querubins às vezes são surpreendidos por premonições desse tipo. Ele teria de­sistido da viagem, mas Shamira o tranquilizou.

         — Meu poder está voltando. Não há razão para se preocupar — garantiu a necromante.       — Você tomou sua decisão. Acho que precisa focar suas energias para o encontro com Lúcifer. Eu é que deveria estar preocupada com você, e não o contrário.

         — Você tem certeza de que vai ficar bem?

         — Claro — ela sorriu. — Tenho TV, comida chinesa, uma bela vista da cida­de... É claro que ficarei bem — e piscou um dos olhos, bem-humorada. — Além disso, trouxe comigo alguns objetos místicos para o caso de ocorrer alguma even­tualidade.

         Ele pareceu mais seguro e acariciou-lhe os cabelos, descendo a mão ao rosto macio.

         — Muito bem. Tranque a porta — disse o renegado, meio sério, meio brin­cando. Entregou-lhe a chave do apartamento, vestiu o sobretudo e tocou a ma­çaneta, mas então a mulher o chamou:

         — Espere...

         — O que foi? — ele estranhou.

         Quando a viu novamente, a Feiticeira de En-Dor estava ajoelhada ao lado de sua mala maior, abrindo a tranca e levantando a aba de couro. Dali resgatou um artefato comprido, muito parecido com uma espada. A lâmina estava en­ferrujada, quebradiça e cheia de falhas, e uma casca áspera cobria a superfície da folha. O cabo era de um metal enegrecido, mais semelhante ao bronze oxidado.

         — Quero que leve isso em sua jornada — pediu a mulher, estendendo a espada ao amigo.

         — A Vingadora Sagrada! — ele exclamou, um tanto surpreso. — Como a en­controu?

         — Eu notei os sinais. Não estava certa se eram os prenúncios do Apocalipse, mas decidi arriscar. Então concluí que, se o Armagedon estivesse mesmo pró­ximo, você precisaria dela novamente. Voltei ao local onde a tinha deixado e Iniciei a escavação. Não foi nada fácil encontrá-la na base da montanha. A energia mística que havia nela sumiu. Não pude usar minha mágica para rastreá-la. Tive de confiar somente nos velhos equipamentos, nos quais felizmente sou perita.

         — É natural. A espada não vive sem o guerreiro. Sem a força de minha aura, a Vingadora Sagrada é apenas um pedaço de metal.

         — Eu sei disso. Por isso a trouxe até você. Achei que talvez fosse a hora de reviver o querubim que salvou minha vida.

         — É uma relíquia maravilhosa, e só a usaria em último recurso — ele fez uma pausa e olhou para a necromante, com todo o afeto. — Agradeço seu empenho, mas não devo levá-la nesta viagem.

         — Por quê?

         — Não me deixariam entrar armado no inferno. Além disso, a Vingadora não me impedirá de ser morto por Lúcifer, se assim ele quiser. Em uma situação extrema as runas terão maior serventia. Elas são um elemento-surpresa.

         A feiticeira concordou.

         — Está bem. Mas, sobre as runas, volto a dizer: elas não agem infinitamente. Você só terá uma chance de fuga, caso seja atacado.

         — Farei o máximo para me manter vivo, feiticeira, quantas vezes puder. Ela pôs a arma de volta na mala, e o guerreiro deixou a pensão. Um pressentimento terrível a sacudiu, e ela pensou em avisar ao general, mas talvez fosse um calafrio.

         Só um calafrio.

         Agora, pelo menos, o Anjo Renegado sabia onde estava a Vingadora Sagrada e clamaria por ela, se assim desejasse.

 

O Senhor dos Vulcões

         Em uma determinada altura da ponte, quase chegando a Niterói, as águas da baía de Guanabara vão ficando mais rasas, e a via de concreto segue por mais três quilômetros sobre terra firme. Nesse ponto, o que se vê à direita é uma paisagem decadente, cujo centro é um complexo de indústrias de peças navais e materiais pesados. De seus galpões brotam fileiras de tubos de concreto que despejam esgoto e resíduos tóxicos no mar. As margens, próximas às fábricas, exibem dormes pedaços de metal enferrujado e carcaças podres de petroleiros. O cheiro do ar é repugnante, e as partículas de sujeira expelidas pelas chaminés aderem às superfícies, padronizando as construções com um deprimente tom cinza-escuro.

         Uma faixa contínua, de areia suja, estende-se ao longo de dois quilômetros à sombra da ponte, dando forma a pequenas praias de águas negras, constan-temente cobertas pela névoa da poluição.

         A motocicleta de Ablon contava com boa traçáo e pneus resistentes, por is­so ele conseguiu seguir dirigindo até o exato local onde marcara o encontro com Orion. Era uma dessas praias escuras, rejeitadas até mesmo pelos insetos rastejan-tes. Por ter estacionado bem debaixo da ponte, o renegado achou que o ruído dos carros seria insuportável, mas olhou para cima e viu que as pilastras que sus­tentavam a pista tinham mais de trinta metros de altura — distância suficiente para dispersar qualquer barulheira.

         Desligou o motor, mas deixou o farol ligado, para indicar sua posição. Era uma atitude mais simbólica do que prática, pois sabia que os demônios enxer­gavam na escuridão — até bem demais.

         Segundos antes da hora combinada, a fumaça pareceu expandir-se — mas não era a poluição, realmente. O denso nevoeiro que avançava não vinha das fábricas nem de nenhuma outra fonte mundana. Assemelhava-se, muito mais, a uma bruma espectral, uma força diabólica dragada das dimensões esquecidas. O farol da motocicleta falhou, e então o anjo sentiu um abalo no tecido da realidade.

         Ablon entendeu que seus anfitriões se aproximavam e desmontou, cami­nhando em seguida para perto do mar. Em meio à neblina, surgiu um barco mediano, confeccionado em madeira, muito parecido com as embarcações usa­das pelos egípcios durante o Novo Império para navegar pelo Nilo, porém sem velas. Era longo e fino, com a proa e a popa distantes, e dotado de uma cabine fechada no centro. Tal cabine tinha o teto alto, o que bloqueava a visão dos pas­sageiros à outra extremidade do barco. Mas o detalhe mais assustador era, com efeito, seus condutores — fantasmagóricas criaturas guiavam o transporte, e o fugitivo deduziu que fossem eles os estranhos barqueiros.

         Ablon nunca viajara antes pelo rio Styx e jamais tinha se deparado com ura daqueles seres bizarros. Vestiam túnicas negras, com capuzes longos que cobriam totalmente o rosto. Dois deles empurravam o barco com varas longas. A apa­rência em si não era assustadora, mas o que impressionava, sem dúvida, era a ausência total de emanações místicas provenientes de seus espíritos negros. Era como se não existissem, como se simplesmente não estivessem ali. Não podia senti-los.

         Em pé, sobre uma elevação na proa, estava Orion. Mostrava a antiga impo­nência real e vestia a máscara da aparência humana.

         Anjos e demônios são espírito de luz, ou de trevas, cujas formas verdadeiras só podem ser percebidas nos reinos espirituais. Os anjos, em geral, são muito parecidos com os seres humanos, mas a grande maioria dos demônios reflete no corpo espiritual a corrupção do coração. São a imagem da decadência, e sua é quase sempre distorcida e monstruosa.

         Celestiais e infernais diferem dos espíritos comuns porque possuem a habilidade de se materializar. Os avatares são dotados de órgãos humanos, ossos, carne e sangue, mas não necessitam de alimentação, a não ser quando estão feridos. Os avatares são idênticos à estrutura corporal humana, não importa qual seja a forma espiritual daqueles que a controlam. A aparência exata é definida pela entidade, que normalmente escolhe a forma que mais lhe convém. Querubins, por exemplo, preferem avatares fortes e resistentes, ao passo que demônios negociadores e trapaceiros costumam adotar um semblante mais carismático, de moças bonitas, velhinhos simpáticos ou crianças adoráveis.

         Os únicos apêndices sobrenaturais que anjos e demônios podem manifestar no físico são as asas. Alguns demônios, porém, não as possuem, e naturalmente não têm como invocá-las. Ambos, todavia, raramente fazem isso. Desprender as asas gera grandes abalos no tecido, o que torna o processo praticamente impossível em áreas em que a membrana é espessa.

         Quando um celestial retorna ao plano espiritual e ascende ao céu, o avatar se dispersa no tecido da realidade, sumindo do universo palpável. A única maneira de um celestial ou um infernal alcançar o mundo físico sem utilizar a materialização é por meio de rituais mágicos, executados por bruxos e feiticeiros. O avatar de Orion sofria de uma deformidade na perna. O joelho se partira muito tempo, durante os últimos dias de Atlântida, quando o obelisco principal da cidade tombara sobre ele, esmigalhando os ossos abaixo da coxa. Por razões inexplicáveis, o ferimento nunca sarou por completo, e ele era obrigado a recorrer ao apoio de uma bengala.

         Os olhos de Ablon encontraram o rosto de Orion através da bruma cerrada, no instante em que o barco ancorou.

         — Sabia que viria, meu amigo — disse o Rei Caído, com um tom de voz calculado, característico dos satanis. A expressão era sóbria, mas não escondia a satisfação por estar, novamente, ao lado de seu companheiro celeste.

         O general conhecia bem as vibrações do amigo e teve certeza de que aquele à sua frente, na proa, era mesmo o antigo elohim, e não um simulacro enviado por Lúcifer para emboscá-lo. A desconfiança se foi, e ele pulou com elegância para dentro do barco.

         Ao notar o ingresso do passageiro, os barqueiros aparentemente entenderam o que vieram buscar e fincaram os bastões no leito, preparando-se para dar meia-volta. O anjo apenas os observou em silêncio.

         — Nossa viagem não será longa — avisou Orion, enquanto o barco regressava à fumaça. De repente, as margens sumiram, e a baía desapareceu. A água mudou de cor e consistência, passando do verde-escuro ao vermelho-sangue. Penetravam assim em outra dimensão.

         O renegado não disse nada. Analisou as alterações e os movimentos das cria­turas de negro.

         — Você deve estar se perguntando quem são esses, não é? — falou o atlante, indicando as entidades sem rosto. — Não, eles não são demônios, como eu. São os barqueiros.

         — Eu imaginei — concordou o querubim, pela primeira vez. — Então, vamos pegar a rota pelo Styx?

         — É a maneira mais rápida, e por isso muito mais cara.

         O general não conhecia a logística daquelas viagens. Nunca precisara per­correr as vias ocultas.

         — E qual foi o pagamento exigido?

         — Essência — revelou o amigo. — Eles apreciam muito a energia de nossa aura pulsante.

         Ablon entranhou a resposta.

         — Senti suas emanações quando subi a bordo, Orion, e ainda as sinto agora. Se você usou a energia de sua aura para pagar os barqueiros, deveria estar exausto por isso.

         — Não fui eu que paguei pela viagem — interrompeu o infernal, apontando à popa.

         O querubim esticou o pescoço e avistou, na outra extremidade do barco, os contornos de uma criatura humanoide, envolta pelas sombras da noite.

         — Foi Amael, o Senhor dos Vulcões — emendou o caído. — Ele cedeu uma boa quantidade de sua energia aos barqueiros. Vai ficar enfraquecido por algum tempo. Por isso você não sentiu a presença dele. Ele está vazio.

         — Amael... — murmurou o general, mais para si. Lembrava-se com clareza daquela figura, outrora gloriosa, que um dia fora um anjo também, mas como muitos, acabara iludida pelas falsas promessas de Lúcifer, juntando-se ao Arcanjo Sombrio na guerra contra Miguel.

         Comovido, o renegado fez menção de rumar ao seu encontro, mas Orion o deteve.

         — Não — alertou o demônio. — É melhor não chegar muito perto. Ele não conseguiria encará-lo.

         — Por quê?

         — Você conhece a história. Amael foi, no passado, um ishim, um anjo que controlava as forças da natureza. Seu título era Senhor dos Vulcões, por causa de seu poder supremo sobre a província do fogo. Quando Miguel e os arcanjos ordenaram o dilúvio, Amael foi escolhido para executar a missão. Usou toda sua potência para derreter as calotas polares e aumentar assim o nível dos oceanos. Mas, na verdade, ele nunca quis ter feito aquilo. Seu pupilo, Aziel, teve a chance de recusar o encargo, mas ele não teve saída. E responsável pela morte milhões, e ainda assim um inocente — Orion fez uma pausa e fitou-lhe a silhueta sombria. — Tomado por um terrível sentimento de culpa, ele se juntou ao Diabo e caiu ao inferno, como eu. Hoje, é um zanathus, um demônio elemental.

         — Foi esse o mesmo dilúvio que destruiu sua cidade de Atlântida. Foram as mesmas águas que sepultaram seus sonhos?

         — Sim. Eu considerava Amael responsável. Já senti muito ódio dele. Agora, contudo, só consigo sentir pena. Pobre criatura atormentada. Um assassino de milhões, vítima do próprio crime.

         Havia muito que os antigos companheiros não conversavam daquela maneira. Tinham sido separados pela arrogância de seus líderes, mas nem mesmo a distância liquidara a amizade. A presença do Rei Caído transportou Ablon de volta a Atlântida, a majestosa capital dos reinos de antigamente.

         — O ódio nos transformou em monstros, meu amigo — discorreu o querubim. E a verdade é que, por mais que eu decida participar de uma guerra, já me cansei dessas matanças intermináveis. Cansei de fugir. Minha maldição não é ser um renegado, mas ter sido obrigado a me tornar um assassino. Estou farto de matar para me manter vivo.

         — Você não é mais um fugitivo, general, e nunca foi um assassino. O tempo das perseguições acabou. É chegada a hora de selar alianças e deixar o passado de lado. Não é mais importante quem fomos, c sim o que somos e o que seremos. Todos temos os nossos pecados. Alguns já pagaram por eles, outros não, o que importa? Cedo ou tarde, todos terão de enfrentar a sentença. E não nos cabe julgá-los. A nós, cabe apenas fazer o que achamos certo. Assim garantiremos nossa redenção.

         As palavras de Orion pareciam emanar do próprio general renegado. O passado em comum moldara neles os mesmos valores, as mesmas convicções. Era difícil entender como o acaso os pusera em lados tão diferentes.

 

No Vale dos Condenados

         O barco navegava nas trilhas etéreas do Styx, guiado pela hábil condução dos barqueiros. As águas avermelhadas estavam mais agitadas, mas a névoa re­cuara, permitindo a visão das margens. Deslizando pela orla, corria uma série de vultos, mas Ablon não conseguiu identificar suas formas. Como os condu­tores nada fizeram, ele concluiu que tais monstros eram inofensivos. Acima, o céu era uma cortina escura, estéril, sem lua nem estrelas.

         Em certo momento, um cheiro agradável despertou a atenção dos passageiros. Estava no ar, nas águas do rio, em todo lugar. Era um tipo de vapor aromático, que guardava em si a maravilhosa fragrância das flores silvestres. Assim, quando o querubim olhou em volta, o cenário tinha mudado radicalmente. O ambiente sombrio desaparecera, e uma luminosidade confortável branqueara a paisagem. Ablon reparou na beira fluvial e percebeu que agora o rio cruzava uma dimen­são florestal. Flores multicoloridas dividiam espaço com árvores magníficas, que de tão belas nem existiam na terra. Esquilos escalavam os troncos, coelhos be­biam água das poças, e uma raposa dormia entre as raízes de um grande carvalho.

         — Você sabe que lugar é este? — Ablon perguntou.

         — Não tenho certeza — respondeu Orion. — Os barqueiros do Styx nunca pegam a mesma rota mais de uma vez. Imagino que estejamos cruzando a Ar­cádia, a terra das fadas.

         — A terra das fadas — concordou. — Ela é incompreensível até mesmo para nós. Mas pensei que as fadas vivessem no plano etéreo, que permeia o mundo físico. Não imaginava que tivessem também uma dimensão só para elas.

         —Alguns dizem que elas migraram para o mundo dos homens há muito tem­po, mas é a Arcádia sua casa central — arriscou o atlante.

         — E por onde mais deveremos passar?

         — Não sei. Foi Amael quem liderou toda a barganha. Ele me disse que o rio Styx era largamente usado antigamente, pelos deuses pagãos, e que foi abando­nado depois das Guerras Etéreas. Contou-me sobre a lenda dos leviatãs, barcos como este, mas gigantes, capazes de transportar milhares de almas.

         Não muito tempo depois, o barco fez uma curva brusca à direita, invadindo um canal secundário e subindo o rio contra a corrente. A visibilidade era boa, e logo à frente os passageiros avistaram uma pequena cascata, cuja queda descia por uma encosta rochosa. Pelo curso da embarcação, passariam bem debaixo da cachoeira. Os viajantes sentiram os respingos, mas as águas se abriram e o barco correu para dentro de um túnel lotado de estalactites.

         A sensação de tranquilidade foi ficando para trás. Gritos de desespero se fizeram ouvir — terríveis berros humanos, cheios de pavor e angústia. Por algum motivo, Ablon achou que estavam no caminho certo para o inferno. Com sentidos apurados notou, mesmo na escuridão, que as paredes de pedra decoradas com rostos de homens e mulheres, que se moviam presos à argila.

         Enfim, o barco deslizou para fora do túnel e saiu em campo aberto. Proseguiu rio abaixo por uma região detestável, de céu avermelhado, conhecida pelo nome de vale dos Condenados. Uma planície tenebrosa nascia à margem do rio, e seu solo estava amontoado, até onde a vista alcançava, de pedaços de corpos humanos, que se contorciam em agonia. Criaturas híbridas — misturas bizarras de homem e bicho — pulavam sobre os cadáveres, mordendo e devorando-lhes as carnes. Em alguns pontos, buracos no chão cuspiam jatos de fogo, formando línguas de chamas.

         — Este lugar sempre foi horroroso — divagou Ablon —, mas percebo claramente o toque pessoal de seu amo aqui. Lúcifer transformou o Sheol em uma segunda Gehenna.

         — Meu amo é o senhor da dor e do desespero. Mas não sinta pena daqueles que você vê sofrendo aqui. Eles fizeram por merecer.

         Sob os pés do querubim, o soalho de vime tremeu. Eram os condutores que atracavam o barco, prendendo as cordas às hastes do fundeadouro — uma apavorante estrutura, toda construída com ossos humanos.

         O Rei Caído deixou a embarcação e seguiu por uma estrada pavimentada crânios, que passava em meio aos corpos e ía terminar na boca de uma ca­ma de pedras chamuscadas. Em algum lugar ali dentro, a Estrela da Manhã aguardava seu convidado.

         Ablon pisou fora do barco, tencionando acompanhar o amigo, mas alguém o segurou pelo braço. Como não tinha sentido nenhuma vibração, o renegado imaginou que fosse um dos barqueiros, mas ao se virar descobriu o pobre Amael, o Senhor dos Vulcões, que lhe chamava a atenção. Conservava a aparência humana, que usara para ir à Haled. Os olhos castanhos eram profundos, afunda­dos em olheiras pesadas. O cabelo longo e crespo pingava de suor, e ele parecia muito fraco e exausto — até mesmo a fala vacilava.

         — General... você me perdoa? Perdoa-me pelo que fiz? — a voz soou rouca, como o suspiro de um doente final.

         O querubim não pôde ficar insensível à situação. Teve pena do infernal, uma entidade perturbada, cheia de mágoa no coração.

         — Você não precisa do meu perdão, Amael. Além disso, quem sou eu para perdoá-lo? Sou apenas um fugitivo, só isso — retrucou, meio sem jeito. Não se via na posição de juiz, muito menos de salvador.

         O olhar do zanathus brilhou de esperança, e ele voltou a suplicar:

         — Você sabe que o que fiz foi errado. Nunca concordou com as ordens dos arcanjos. Sabia que Miguel ordenava as catástrofes porque odiava os terrenos, tinha inveja deles. Aqui, no porão, a maioria acha que agi corretarnente. É por isso que preciso do seu perdão — implorou.

         Ablon analisou o infeliz, com toda a piedade do mundo, e pousou-lhe a mão no ombro, só para confortá-lo.

         — Se isso vai fazê-lo sentir-se melhor, então eu o perdoo.

         — Obrigado, general — a criatura abaixou a cabeça, agradecida, — Um dia me redimirei por completo. É uma promessa.

         Já a distância, o Rei Caído de Atlântida, parado sobre a via de crânios, cha­mou o general.

         — Ablon, meu senhor o aguarda.

         O renegado voltou-se ao abatido Amael pela última vez, mas ele já tinha regres­sado à penumbra. Tentou esquecer a cena no barco. Tentou expulsar a angustia do coração. Tentou esquecer a dor daqueles que estavam sofrendo, no céu, na terra e também no inferno. Deixou os tormentos para trás e retomou a confiança.

         Deu as costas para o ancoradouro e seguiu em frente, diretamente ao covil da serpente.

 

O Exterminador

         A entrada da caverna estava sendo vigiada, e seu guardião não era uma sen­tinela comum.

         Ninguém menos do que o demônio Apollyon, o Extermínador, antes conhe­cido como Anjo Destruidor, um dos assassinos mais temidos do inferno, de­fendia a passagem. Coincidência ou não, era também o maior inimigo de Ablon, e isso já havia milhares de anos. Alguns dizem que as antigas inimizades nun­ca se acabam, mas ganham força, acumulando ódio e fúria, e por vezes explo­dem em ataques violentos. Durante a maior parte de sua existência, o Anjo Re­negado soubera controlar sua ira, mas a presença do malikis sempre despertava nele uma raiva especial. Dessa vez, porém, era o general quem dava as cartas. Ele havia sido convidado e contava com a proteção do chefão. Preferiu, então, conter seus impulsos destrutivos e não acometer de primeira.

         Quando os dois lutadores se encararam, porém, a tensão não pôde ser evitada. Eram combatentes por natureza e desejavam, os dois, entrar em duelo. O demônio avançou, mas Orion o deteve.

         — Afaste-se, Apollyon, ele é nosso convidado.

         O Exterminador segurava uma espada mística, a famigerada Fogo Negro, tecida por ser a arma mais poderosa do universo, superando até mesmo as relíquias dos arcanjos. Pertencera ao deus Behemot, servo de Tehom, e fora um presente de Lúcífer. Conhecida por tomar parte em incontáveis crueldades, sua lâmina era escura, larga e pesada, e ardia em chamas negras, espectrais. Era cobiçada por todos os demônios guerreiros, mas não havia quem a roubasse de seu esgrimidor. Agressivo, ele desembainhou sua folha, mas a manteve apontada ao chão.

         O corpo do Destruidor parecia humano, mas o rosto deformado denunciava a marca de sua discórdia. Os olhos eram como globos pretos, e da boca saltavam duas fileiras de dentes pontudos. Uma longa queimadura do lado direito da face, que começava na cabeça e terminava no queixo, deixava a carne exposta, revelando parte dos músculos e dos tecidos do crânio. O ferimento fora infligido pelo Flagelo de Fogo, a espada flamejante do arcanjo Gabriel, durante a guerra no céu.

         Apollyon era mais alto e mais forte que Ablon, mas não tão ágil e resistente. Suas asas estavam recolhidas, imperceptíveis. Mais tarde, Orion revelaria que o monstro não costumava usá-las, quase nunca.

         O malikis não liberou o caminho, então o satanis forçou a passagem. Mas o guardião não queria ceder e apertou forte o cabo da espada. Seu olhar fulminava o renegado, seu inimigo de eras.

         — Ablon, o Anjo Renegado... — desdenhou o assassino, numa voz inumana.

         — Deve ter muita coragem para vir aqui, sozinho e desarmado — o comentário soou como uma ameaça.

         — Eu imaginei que você não entenderia — respondeu o celeste, impassível. — Mas não estou desarmado — e olhou para os próprios punhos. — Acho que posso fazer um bom estrago com o que já tenho — provocou, referindo-se, ob­viamente, à sua técnica de batalha, a Ira de Deus.

         O demônio guerreiro sorriu, malicioso.

         — Continua arrogante. Tem sorte de estar vivo. Seus amigos, porém, estão todos mortos. Eu mesmo acabei com muitos deles. A cabeça de seu principal comparsa, Yarion, tem lugar de honra em meu castelo. A Irmandade dos Re­negados sucumbiu finalmente. E, em breve, você encontrará a mesma fortuna.

         — Se é assim tão capaz, por que nunca me venceu? Eu sempre estive na Haled, à sua espera. Muitos demônios encontraram o meu rastro e a todos superei.

         A cólera é um sentimento inerente aos malikis, a ordem de diabos guerreiros. Apollyon era a imagem do caos e pouco podia fazer para segurar sua raiva. Não estava preocupado em dominar seu ardor, mas só em destruir, liquidar, esmagar. Assim, à declaração do celeste, investiu sem pensar, erguendo a espada em po­sição de combate. Mas o querubim não se moveu e, antes que o Exterminador atacasse, o Rei Caído de Atlântida se interpôs entre os dois, esfriando a tensão.

         — Não, Apollyon. Não haverá peleja neste lugar — censurou, usando toda sua oratória monárquica. — Já disse que Lúcifer tem assuntos com ele.

         Furioso, o Destruidor acatou, sem saber ao certo por quê, e liberou a entrada.

         — Tenha paciência, malikis — instigou o Anjo Renegado. — O Dia do Ajus­te de Contas está próximo.

         Ainda cheio de raiva, mas impedido de avançar pelos poderes repelentes de Orion, o infernal replicou, em caráter profético:

         — Ablon, seu destino é tão rubro quanto suas asas.

         — E o seu é tão negro quanto seu coração.

 

A Proposta de Lúcifer

         Orion e Ablon desceram por túneis obscuros, que terminavam em um gran­de salão escavado na pedra. Uma galeria nascia além da passagem e estava abarro­tada de ossos, do chão às paredes. Labaredas ocasionais brotavam do solo, ilu­minando o cenário e soltando fumaça.

         Apesar da amplitude da gruta, o renegado experimentou uma desagradável sensação de claustrofobia, talvez por causa da atmosfera enevoada, que reservava zonas de penumbra aqui e ali, ocultando inomináveis perigos.

         Lúcifer, a Estrela da Manhã, estava no fundo da furna, elegantemente sen­tado em seu trono de crânios. Sua postura majestosa era muito superior à dos líderes comuns e imitava a imponência de um deus. De longe, parecia um ho­mem belíssimo, de rosto juvenil, traços finos e aparência angelical. A pele era macia, delicada, e os olhos refletiam um azul profundo, tal qual o brilho do céu. Os longos cabelos loiros estavam presos em trança, atados por pequeninos fios de ouro. Uma túnica de seda branca cobria-lhe todo o corpo delgado, deixando escapar a única coisa que realmente o distinguia como um ser infernal: um hor­rendo par de asas de morcego.

         Em pé, a seu lado, estava seu principal conselheiro, o odioso demônio Samael. À primeira vista, era só uma criaturinha desprezível, magra e esguia. Tinha, o corpo como o das serpentes e uma língua dupla que se agitava para den­tro e para fora da boca, por entre as presas ofídicas. Andava se arrastando, pois não tinha pernas, só braços, iguais aos humanos, em contraste com sua forma bizarra.

         Quando ainda era um anjo, Samael fora incumbido da tarefa de transmutar-se em cobra e ir ao Jardim do Éden tentar o memorável Adão. Sua natureza vil e perigosa o aproximou de Lúcífer desde o início, e depois da queda acompanhou seu mestre às trevas do Sheol. Ao converter-se em demônio, continuou deixando sua marca detestável na humanidade, tendo guiado inúmeras almas à corrupcão. Ficou tão famoso entre os terrenos que muitas vezes foi confundido com o próprio Diabo, recebendo dos mortais a designação de Satã ou Satanás.

         Orion se ajoelhou diante de seu mestre, espalhado na cadeira de ossos. Mais atrás, Ablon estava em alerta.

         — Bom trabalho, meu servo — elogiou o Arcanjo Sombrio, reconhecendo o esforço do Rei Caído de Atlântida. — Agradeço por sua lealdade.

         Depois, encarou o general, satisfeito, e voltou-se a seus comandados.

         — Orion, Samael — falou aos demônios. — Podem ir agora.

         — Sim, meu amo — aceitou o atlante, retornando ao mesmo túnel por onde tinha entrado, Samael se arrastou e desapareceu em um canto obscuro.

         Quando teve certeza de que seus súditos já não o escutavam, o Filho do Alvorecer relaxou e abriu um sorriso cordial.

         — Não imagina como estou feliz por ter aceitado meu convite.

         — Poupe-me de suas amabilidades, Lúcifer. Esta é uma viagem de negócios.

         — Mas é claro que é — acedeu a Estrela da Manhã, com um sorriso malvado, ocultado pela fumaça das labaredas.

         — O que aconteceu com seus chifres e cauda? Você parece ter mudado bastante desde a última vez que o vi.

         O Arcanjo Sombrio se levantou, deixando transparecer muita calma. A auto-confiança certamente era sua característica mais importante.

         — Ora, general, não fique impressionado. Posso assumir qualquer forma. No princípio até eu me surpreendia, mas depois de tantos anos a coisa vai ficando aborrecida. "O Diabo tem muitas faces." Você já deve ter ouvido isso em algum lugar.

         A expressão séria de Ablon não se alterou, apesar do humor diabólico.

         — Entendo — disse apenas, como quem não vê graça em uma piada de mau gosto.

         Lúcifer caminhou firme na direção do renegado, mas estacou a uma distância aceitável.

         — A propósito, espero que Apollyon não tenha causado problemas na entra­da. Se o fez, peço desculpas. Tente compreender que ele e você são como os dois lados de uma moeda. Absolutamente diferentes, mas pertencentes à mesma peça.

         — O que quer dizer? — reagiu o celeste, perguntando a si mesmo se aquele não era mais um dos muitos estratagemas da espécie infernal.

         — Perceba, o destino de vocês está unido desde o princípio. Apollyon uma vez foi um anjo, encarregado de destruir Sodoma e Gomorra. E sabemos que a conjuração que você comandou foi deflagrada quando Miguel ordenou a ani­quilação dessas duas cidades. Infelizmente vocês puseram tudo a perder quan­do levantaram armas contra o conselho.

         — Infelizmente — Ablon se apressou em esclarecer — confiei minha revolta a um dos arcanjos, a um dos grandes. Acreditava que ele também estava indigna­do com a tirania do príncipe e com sua intenção de acabar com a humanidade.

         Ao dizer isso, o guerreiro olhou zangado para o anfitrião e completou:

         — Mas esse arcanjo me traiu.

         O Filho do Alvorecer logo entendeu a indireta e passou à defensiva: — Eu não queria de fato fazê-lo, Ablon, juro a você! — protestou, com um toque de inocência infantil.

         — Então por que o fez? Você sabia que delatando a conjuração conseguiria mais poder e prestígio. Foi por isso, não foi? Ambição.

         — Sim, sim! — exclamou, excitado por ter a oportunidade de expor sua ver­são. — Eu os delatei para poder subir na hierarquia e me igualar a Miguel. Só assim poderia arquitetar minha própria rebelião e ter chance de sair vitorioso. Eu sabia que vocês nunca despojariam o tirano. Eram apenas dezoito. Dezoito anjos! — Lúcifer se esforçava para ser convincente. — Eu, ao contrário, consegui trazer um terço do céu para o meu lado. Tínhamos realmente a chance de vencer. Será que entende agora? Não foi nada pessoal. Nunca tive coisa alguma contra você. Sempre admirei sua vontade e sua perseverança. Mas tive de sacrificar a irmandade para dar início a algo muito maior, que, eu imaginava, duraria pa­ra sempre.

         — Não seja hipócrita, Lúcifer. Você nunca quis o bem dos humanos, tam­pouco dos anjos. Queria depor Miguel por razões particulares. Queria tomar o lugar dele e ascender acima de Deus.

         — Isso não é verdade, general. Quero o bem da humanidade, E foi por isso, que o chamei aqui. Para evitar que nosso inimigo traga o Armagedon sobre a terra.

         — E por que você acha que eu ia querer impedi-lo? O Armagedon marca o despertar do Altíssimo. Yahweh acordará de seu sono e punirá os injustos.

         — Ora, Ablon, pense bem! Se isso é verdade, então por que Miguel está se preparando para o Juízo Final, por que está tão ávido por esse momento? Ele é um opressor e seguramente o primeiro a ser condenado se o Criador acordar.

         — Qual é sua hipótese, então?

         — Miguel provavelmente descobriu um meio de usar a energia que será despreendida ao despertar do Altíssimo para se converter em um deus, ele próprio — declarou Lúcifer, chegando ao ponto em que queria.

         O querubim estava confuso.

         — Isso é possível?

         — Sem dúvida.

         Ablon sabia que a Miguel não faltava vontade de tornar-se onipotente. Sua gana de poder era ilimitada. Ele seria capaz de qualquer coisa para alcançar a divindade, até mesmo roubar a energia do Pai. Quanto a isso o renegado tinha certeza, mas como o príncipe pretendia implementar seu projeto macabro?

         A Estrela da Manhã passeava pela caverna, aguardando a reflexão do guerreiro. As asas de morcego movimentavam-se lentamente, para frente e para trás, acompanhando o caminhar elegante. Parou ao lado de uma labareda e brincou com o fogo, pondo o dedo na chama.

         — Estou pedindo sua ajuda para impedir que o Príncipe dos Anjos conclua seu plano terrível, poupando assim milhares de vidas humanas — desfechou o Senhor do Sheol.

         — Se é verdade que Miguel pretende ascender ao nível de Deus, o que me assegura que você não tentará imitá-lo?

         — Já disse que não quero ser Deus, Ablon. Talvez no passado, quando ainda um arcanjo, isso já tenha me passado pela cabeça, mas hoje não. Dê uma olhada à sua volta. Tenho meu próprio reino aqui. Tenho meus servos. Nada me ameaça, nem as legiões celestiais — garantiu, caminhando de volta ao trono. — Trazer as almas injustas para cá e torturá-las é o que eu gosto de fazer, você sabe disso. Para mim, é imperativo preservar as coisas como estão. Anjos no céu; nós, demônios, no inferno. Não há ninguém que se beneficie mais com disputa do que eu. Ela move o paraíso também, mas a verdade é que meu irmão percebeu que está perdendo. A degradação tomou conta da humanidade. Cada vez mais, os mortos vêm até mim. Por isso Miguel quer o fim do mundo, quer que o tecido se desintegre logo.

         O Diabo se sentou novamente e teceu uma explicação mais detalhada:

         — Nós, os infernais, não temos devaneios de pureza. Veja o caso daqueles que morrem em bondade. Seus espíritos seguem ao céu e lá permanecem por toda a eternidade, enfiados naquelas chatíssimas colónias celestes. Os arcanjos nunca permitiriam que se tornassem alados. Mas nós... ah, conosco é diferen­te — regozijou-se. —Toda alma corrompida que vem para cá tem sua chance de crescer, de prosperar e de vir a comandar hordas inteiras. Não é um caminho fácil, é claro, mas com isso nossas forcas estão se multiplicando. Em breve te­remos contingente suficiente para invadir o paraíso.

         Ablon não gostou nem um pouco do que ouviu, mas Lúcifer o tranquilizou:

         — É claro que não pretendemos fazer nada disso. Sei, melhor do que nin­guém, que não há trevas sem luz. Mas a verdade é que aquele déspota lá no polei­ro — e apontou um dedo para cima — está se borrando de medo do que eu possa vir a fazer — o tom ficou mais agressivo — e encontrou a hora certa para agir.

         A capacidade de persuasão do demônio era lendária. Por muitas vezes, Ablon tinha repetido para si mesmo que recusaria o acordo, mas agora não podia negar que estava ansioso para ouvir a proposta. Ainda não sabia se a aceitaria, mas o fato era que os argumentos do Arcanjo Sombrio faziam todo sentido. Poucas vezes o guerreiro escutara verdades tão sérias sobre o tirano Miguel, e as propo­sições de Lúcifer, com efeito, eram postas de forma que ambos pareciam já alia­dos contra um perigo maior.

         — Digamos que eu aceite. Qual é minha parte no acordo?

         O Filho do Alvorecer sorriu na penumbra e se ajeitou no trono de ossos.

         — Você conhece a Fortaleza de Sion. Não era uma pergunta.

         — Eu a vi ser construída.

         — Em uma câmara no penúltimo andar de Sion, está a Sala dos Portais. É um aposento circular, com muitas portas, que na verdade são passagens místi­cas para outros planos de existência. Uma delas leva ao Sheol, ligando a câma­ra a um ponto específico no inferno, muito próximo a esta caverna em que es­tamos agora. O que você precisa fazer é entrar na torre e abrir a porta correra. Assim, eu e minhas hostes poderemos invadir o baluarte por dentro. Pegare­mos Miguel desprevenido e o mataremos, abreviando assim seus dias de cruel­dade. De outra maneira, nunca poderíamos penetrar na bastilha.

         O Anjo Renegado fitou o vazio, digerindo aquelas palavras. Enquanto isso, Lúcifer enfiou a mão em um buraco ao lado do trono e de lá tirou um objeto rústico, moldado em barro sólido. Tinha a forma de uma cruz, envolta por um: anel, e o tamanho não superava o de uma palma aberta. A aparência era ordinária, mas suas vibrações eram muito fortes. A superfície estava marcada por inscrições místicas, em uma linguagem só acessível aos anjos.

         — Pegue! — o Arcanjo Sombrio jogou o objeto no ar, e o lutador o agarrou reflexo. — Esta é a chave. Basta que você a encaixe na cavidade da porta e empurre a passagem. Estaremos lá em instantes.

         O renegado analisou a relíquia e constatou sua autenticidade.

         — Por que eu? — indagou de repente, ainda relutante em concordar. — Por você precisa de mim para fazer o serviço?

         Lúcifer contemplou o convidado, com certo ar de admiração.

         — Primeiro porque você é o melhor combatente que conheço. Depois de tudo pelo que passou e de todos os inimigos que enfrentou, não creio que haja no mundo quem possa vencê-lo em combate direto — era um exagero, é claro, a Estrela da Manhã entendeu que deveria exaltá-lo, como técnica de eloquência. — Segundo, porque você viveu muito tempo na Haled e sabe melhor que ninguém ocultar sua aura pulsante. Por isso, os guardiões de Sion não poderão ser alertados de sua presença, se decidir por uma infiltração sorrateira, o que recomendo fortemente. Afinal, nem mesmo um general sobreviveria a um exército de querubins furiosos — concluiu e aguardou a reação do guerreiro, deixando-o bem à vontade.

         Ablon estava ainda indeciso, mas não sabia exatamente por quê. Como poderia acertar um pacto com a mesma entidade que, havia anos, pusera ele e seus amigos na linha de fogo?

         — O que eu lhe ofereço — reforçou o demônio, percebendo a hesitação do celeste — não é apenas a oportunidade de derrotar Miguel. É a chance de salvar o universo.

         O Anjo Renegado ponderou. Não era exatamente aquilo que esperava ouvir do Senhor do Sheol. O Diabo sempre tinha as palavras corretas para o momento mais oportuno. Em contendas verbais era invencível.

         — Escute, guerreiro — prosseguiu, emendando um novo assunto —, não ache que estou alheio ao que acontece na terra. Sei que os homens estão envolvidos em sua própria guerra e que desenvolveram armas capazes de devastar o plane­ta. Mas para nós, imortais, essas bombas que ameaçam cair são apenas sinais que nos indicam a iminência do Apocalipse. Por mais que os humanos tentem se destruir, nunca terão sucesso absoluto. Nem mesmo nós conseguimos isso. Você se lembra da era glacial? Lembra-se do dilúvio? Já perdi a conta de quan­tos cataclismos os arcanjos fomentaram — e ajustou a tonalidade da voz, para parecer mais dramática. — Não... os terrenos vão sobreviver a esta guerra mundial, como já fizeram anteriormente, c seus remanescentes ressurgirão das ruí­nas. Entretanto, se Miguel conseguir o que planeja, os massacres continuarão. Sem o tecido da realidade para limitar-lhes os poderes, os anjos da morte vaga­rão pelos escombros ceifando cada vida humana, até que não reste mais "ne­nhum primata para sujar a criação". Mas... — o tom mudou novamente, assu­mindo um caráter glorioso — se vencermos... Se vencermos tudo voltará a ser como era antes da tirania, c o paraíso será finalmente governado pelos alados devotos da palavra de Deus. Você alcançará sua redenção e voltará ao céu como herói.

         — E quanto a Deus? — surpreendeu o anjo, encurralando o infernal.

         — Deus? — pela primeira vez Lúcifer se complicou, mas com sua mente agu­çada logo contornou a situação. — Bem... Se Yahweh acordar mesmo, general, então saberá o que fazer. Mas acho que não devemos contar mais com isso. Ca­so queira mesmo saber, minha consciência está limpa. Sempre fiz o que achei certo. Nunca me curvei e nunca me curvarei a um assassino. Todavia, tenho ciência de que não serei meu próprio juiz. Se o Altíssimo resolver me punir, não poderei fazer nada além de aceitar a sentença. Não tenho vergonha dos meus pecados, porque não são maiores do que os erros dos outros.

         Foi um discurso impressionante, reconheceu Ablon, mas será que as palavras do Arcanjo Sombrio eram verdadeiras, ou aquilo não passava de uma encenação para empurrá-lo à armadilha ou usá-lo como peça em seu jogo? O Filho do Al­vorecer era astuto, traiçoeiro e, acima de tudo, sedutor. Dominava a oratória e sabia explorar os pontos fracos de seus entrevistados. Qualquer um se dobraria facilmente a ele, sobretudo diante de uma proposta tão tentadora: destruir o perverso Miguel, salvar a humanidade e retornar ao paraíso. O que mais um anjo renegado poderia querer? Tudo se encaixava e, pelo que o querubim co­nhecia da personalidade de Lúcifer, ele não estava sendo adverso à sua natureza. Todos ganhariam: anjos, demônios e homens. É claro, muitos mortais seriam vitimados pela força de suas armas humanas e pela guerra que eles próprios ar-quitetaram. Mas o general já testemunhara situações bem piores, como a que sucedeu ao dilúvio, quando somente alguns poucos terrenos sobreviveram, e mesmo reduzidos revitalizaram toda a civilização.

         As evidências empurravam o renegado à resposta positiva, mas seu veredicto final surpreendeu o Diabo.

         — Não posso fazer isso, Lúcifer.

         — Não compreendo, general — sua expressão era séria, mas neutra. — Se nos unirmos, poderemos concretizar aquilo que tanto eu como você sempre sonha­mos: pôr fim à opressão dos arcanjos.

         — Sou um anjo renegado. Nunca tomei parte neste confronto entre o céu e o inferno porque nunca concordei com ele. E não será agora, próximo do fim, mudar minha posição — e virou o corpo, já se preparando para deixar a caverna. — Mas não se preocupe. Suas informações estão seguras comigo. Vou usá-las da melhor forma e talvez até faça alguma coisa para deter o Armagedon — e acrescentou, com firmeza —, mas não será ao lado de um traidor.

         As palavras saíram agressivas, mas não havia raiva em seu coração. Era uma opinião tão sólida, consciente, que provinha da experiência, e não do furor da vingança. Na verdade, Lúcifer nunca fora o objeto de sua vingança, nem mesmo o Arcanjo Miguel, e sim o demônio Apollyon, que torturara seus amigos.

         Preparado para qualquer investida, o celestial fechou os punhos e recuou uns dois passos, Lúcifer não era o tipo que engolia desaforos e talvez não tivesse gostado de ter sido chamado de traidor. Mas, como o demônio observara anteriormente, Ablon era um oponente inigualável, e agora ainda contava com a proteção das runas mágicas gravadas em seu braço pela Feiticeira de En-Dor.

         Contrariando todas as expectativas, Lúcifer replicou:

         — Respeito sua decisão, general. Se é nisso que acredita, então que assim seja.

         Sim, era isso. E ponto final. Não havia muito mais a dizer, e o general não estava disposto a continuar por ali, em tão funesta companhia. Caminhou à saída, mas aí se lembrou que ainda segurava a chave de pedra — a relíquia mística que Lúcifer lhe entregara e que, supostamente, abriria a passagem ao inferno. Como não tinha selado nenhum acordo, achou por bem devolvê-la, mas a Estrela da Manhã o impediu.

         — Não, Ablon, fique com a chave. Para o caso de você mudar de idéia.

         O Anjo Renegado estranhou. Lúcifer sempre fora esperto e prudente, mas não havia prudência alguma em deixar uma peça tão importante em poder de alguém que não fosse seu aliado. O celestial imaginou que aquela atitude poderia ser calculada, uma ação posta em prática para fazê-lo reconsiderar. Mas, se era seu objetivo, o Arcanjo Sombrio falhara. Ablon não estava disposto a entrar na ciranda. Moveu a cabeça em negativa e mais uma vez pensou em largar o objeto, porém o anfitrião reiterou:

         — Não se preocupe comigo. Mandei fazer uma cópia — declarou, piscando um dos olhos e reassumindo sua faceta sarcástica. — Leve-a com você.

         Por fim, o herói concordou, e guardou a relíquia no bolso — não havia mal algum em ficar com ela. Talvez suas vibrações pudessem denunciá-lo, mas quem viria caçá-lo, a esta altura? Acabara de se encontrar com o próprio Diabo, e, se Miguel em pessoa aparecesse para matá-lo, ele o enfrentaria. Novamente refletiu sobre todas as artimanhas e trapaças possíveis e concluiu que Lúcifer não era mais ameaça. Em seguida, deixou a caverna.

Sua última visão foi bem parecida com a primeira: vislumbrou o Diabo sen­tado em seu trono de crânios, com a expressão indecifrável por trás da fumaça.

 

Um Pressentimento Terrível

         Enquanto caminhava rumo à saída da caverna, percorrendo aqueles nebulo­sos túneis de pedra, Ablon entendeu que não estaria realmente seguro enquan­to continuasse ali, no inferno, à mercê de seus inimigos. Sempre soubera, de fato, que aquele seria o momento mais crítico — uma vez recusada a aliança, nada impediria Lúcifer de ordenar sua morte. Por isso, não ficaria espantado se encontrasse um grupo de extermínio à sua espera, pronto para aniquilá-lo na passagem adiante,

         Foi com surpresa, entretanto, que o Anjo Renegado se deparou com o cami­nho livre. Ao contrário de uma recepção brutal e sangrenta, tudo o que o ge­neral percebeu foi a abertura na caverna à sua frente e a extensa via de ossos que levava ao ancoradouro, onde os barqueiros o esperavam para levá-lo de volta. Orion estava lá, aguardando seu retorno, mas ele não viu sinal de Apollyon, e isso o perturbou seriamente.

         O Rei Caído de Atlântida se aproximou pela estrada de ossos, sempre mancando com a dor no joelho.

         — Você recusou a aliança, não foi? — perguntou, já prevendo a resposta.

         — Como você já imaginava.

         Os dois foram andando na direção do barco de vime. Ali, os sinistros condutores preparavam suas varas.

         — Esta poderia ter sido nossa última chance de vencer o arcanjo Miguel lamentou o atlante, visivelmente desconsolado.

         — Não confio em Lúcifer. Por trás daquele discurso apaixonante, há mente doentia e maligna. O Diabo mente sempre, e por isso é totalmente previsível. Não, Orion, já fui suscetível às idéias dele, mas desta vez eu pude de alguma forma, ver a sombra da traição em seus olhos. Ainda não sei ao sei o que ele planeja, mas nada é como parece. Algo me diz que estamos sendo usados como peões em uma conspiração gigantesca. Todos nós. Inclusive você.

         Orion também já tinha sido enganado por Lúcifer, assim como Amael e tantos que se entregaram à rebelião. Outros, como Samael e Apollyon, de sempre tiveram o coração corrompido, e para esses não houve graça maior do que serem atirados ao inferno. Para o Rei de Atlântida, então, que conhecia melhor do que ninguém as múltiplas faces de seu amo, as desconfianças do Anjo Renegado não eram de todo infundadas. Ao ouvir a advertência do general, o satanis assentiu levemente com a cabeça, mas não ousou ir além.

         Antes de entrar no barco, Ablon olhou mais uma vez para trás, para a entrada da gruta, e uma sensação pavorosa o assaltou. — Vamos embora, Orion. Alguma coisa terrível está para acontecer.

 

À Meia-Noite

Eram quase onze horas da noite quando shamira trocou de canal para assistir ao último telejornal do dia. Desde que Ablon saíra, ela estivera atenta às principais notícias, e a maioria delas detalhava os fatos associados à tensão internacional. As hostilidades se agravaram imensamente naquela tarde, após a rejeição, pelos dois lados, da última proposta de paz apresentada pelo secretário-geral das Nações Unidas, que poria fim à guerra civil na Turquia, principal pon­to de confronto entre a Liga de Berlim e a Aliança Oriental. Depois de mais de dois anos de inimizades, que sucederam à Guerra dos Trezentos Dias, pelo do­mínio de Taiwan, estava claro que as alianças para uma nova guerra mundial já tinham sido definidas e rachavam o planeta ao meio.

         As trocas de ameaças, que havia meses vinham se tornando mais concretas, incluíam a utilização de mísseis de longo alcance para levar a cabo ataques com armas nucleares. Diante disso, as vias diplomáticas, esgotadas, perderam força e falharam em seu intento de buscar uma solução pacífica para a crise. Temerosas, milhões de pessoas na América do Norte, Europa e Ásia já deixavam as gran­des cidades rumo ao campo, onde estocavam alimentos, construíam abrigos e adquiriam toda sorte de material isolante e roupas contra radiação. Aqueles que tinham parentes ou residência nos países neutros emigravam aos milhares, já esperando pelo pior.

         Na fronteira entre os dois blocos, o Oriente Médio padecia de uma situação singular. Animada com o fortalecimento da Aliança Oriental, a população civil dos países árabes ocupados pelos Estados Unidos — Afeganistão, Iraque, Síria, Irã e Líbia — formava milícias para se insurgir contra a potência estrangeira. O estado de Israel, tradicional aliado dos americanos, abrigava as únicas instalações aos soldados estadunidenses na Ásia Central, mas por uma ironia histórica a Terra Santa era, agora, uma das áreas menos conflituosas da região, porque israelenses como palestinos desejavam preservar seus santuários sagrados em Jerusalém e arredores. Mesmo assim, o clima era tenso. Ninguém atacava e ninguém defendia, porque todos temiam que o banho de sangue que se seguiria ao barulho do primeiro tiro viesse a arrasar a Terra Santa para sempre, pondo abaixo templos e monumentos adorados pelos dois povos.

         Perto da meia-noite, a luz da TV oscilou. Aquele tipo de fenômeno estava associado a um abalo no tecido, e a conclusão óbvia era a de que alguma entidade havia se materializado ali perto. O quarto, a princípio, estava lacrado à invasão espiritual — ela mesma efetuara um ritual para assegurar esse tipo de proteção —, o que significava que qualquer visitante que tentasse entrar no apartam­ento teria que estar no plano físico.

         Como todo bom necromante, Shamira sabia que mundo espiritual é tudo aquilo que está por trás do tecido. É um espelho do mundo físico, com diversas passagens e túneis para outros inúmeros reinos dimensionais, tais como o céu e o inferno. No mundo espiritual, há muitas camadas sobrepostas, que refletem o plano material, e entre elas as mais importantes e acessíveis são o plano astral e o plano etéreo.

         O astral, a primeira camada, é um reflexo, puro e simples, do plano físico. A camada mais profunda, o plano etéreo, está separada do astral por uma membrana semelhante ao tecido da realidade, chamada de membrana etérea. Esse é o lar dos poderosos espíritos desencarnados e dos deuses pagãos. Embora a geo­grafia do etéreo seja a mesma que a do mundo físico, as construções e objetos feitos pelo homem não encontram reflexo ali. Na verdade, as entidades que ha­bitam o etéreo ergueram sua própria civilização além das fronteiras da realidade humana. Por essa razão, as cidades, torres e palácios existentes nessa camada não são vistos ou percebidos pelos mortais, à exceção de magos ou sacerdotes dotados de poderes para isso. E no plano etéreo que fica a famosa ilha mística de Avalon, venerada pelos povos celtas e que por isso era avistada apenas por algumas pessoas, quando a membrana afinava e a conexão com o mundo espi­ritual permitia sua observação. O templo dos deuses localizado no topo do mon­te Olimpo, na Grécia, é igualmente uma construção etérea.

         Além do astral e do etéreo, há outros planos sobrepostos ao físico, porém menos conhecidos e visitados e de mais difícil acesso. Alguns são curiosos, como o mundo dos sonhos; outros enigmáticos como a dimensão dos espelhos; e há também aqueles perigosos e sinistros, como o plano das sombras,

 

         Ablon sempre chegava sem ser notado, então, ao perceber o abalo no teci­do da realidade, Shamira entendeu que não era o renegado que se aproximava. Cautelosa, ela se afastou lentamente da televisão e andou de costas, em direção à escrivaninha, onde estava apoiada sua mala menor. Pôs a mão direita lá den­tro, procurando um de seus artefatos especiais, e voltou a atenção à porta, por onde esperava que o perigo surgisse.

         Ouviu passos no corredor e concluiu que estavam vindo ao seu quarto. Uma pancada forte escancarou a madeira, e ela distinguiu dois homens lá fora.

         Eram fortes como lutadores e guardavam expressões arrogantes. A feiticeira não enxergou-lhes a alma, então supôs que não fossem humanos. O primeiro tinha os cabelos escuros e o olhar perigoso; o outro, que vinha atrás, exibia na testa, abaixo da cabeça raspada, o inconfundível símbolo dos querubins, inscri­to como tatuagem.

         O moreno, que parecia deter a autoridade, mostrou um sorriso maldoso, feliz por ver a necromante acuada, com a mão para trás. Avançou para dentro da sala, provando o gosto do ar.

         — Uhh... ahhhh... — suspirou, ao sentir o perfume feminino. Tinha sen tidos de predador, comuns aos guerreiros celestes, e pelo olfato notou que Shamira era humana. — Acho que temos uma festa das boas hoje — zombou, ao ver os saquinhos vazios de biscoito.

         — Quem é você? — perguntou a mulher, controlando o medo.

         — Sou Euzin. E este aqui — ele apontou para o companheiro, que fechava a saída — é Ankarel, o Chicote de São Miguel — acrescentou com um orgulho amea­çador, deixando claro que não era amistoso.

         Mas a necromante não se intimidou. Tentou pensar rápido, procurar uma estratégia, pois só a inteligência a deixaria em vantagem. Recordou-se, então, de algumas coisas sobre aquele tal Euzin, informações que poderiam ajudá-la numa contenda moral. Ablon tinha lhe contado, certa vez, que Euzin era um anjo covarde e inseguro, características que o levariam à ruína dentro de uma casta em que os membros, supostamente, não deveriam temer coisa alguma.

         — Euzin? — ela se aproveitou, devolvendo-lhe o sorriso maldoso. — Ablon me fclou de você. É o anjo que só desafia inferiores e recua diante de seus iguais. Estou certa?

         Se não estivesse, provavelmente o celeste não teria ficado tão furioso. A raiva subiu-lhe à cabeça, precisamente por ter sido insultado por uma feiticeira humana. Era um lutador invejoso e detestava, assim como seu líder Miguel, a simples existência dos homens. Sua missão, naquela noite, não era matar sua vítima, mas ele decidiu, assim mesmo, puni-la por sua ousadia.

         Precipitou-se com os punhos fechados para agredir a mulher, mas nessa hora a feiticeira surpreendeu e sacou da valise uma pistola de grosso calibre, a te­mida Desert Eagle .50, uma das armas de mão mais potentes do mundo. Era grande e cromada, e seu cano espesso como um polegar. Euzin parou, impres­sionado pela atitude. Esperava de tudo, desde facas enfeitiçadas até encantos pirotécnicos, mas nunca uma arma de fogo. Mal sabia ele que a força dos sá­bios está, justamente, na capacidade de se aproveitar do imprevisível, de enganar o oponente e atacá-lo no ponto mais fraco, de fingir debilidade e depois in­vestir feito leão.

         Felizmente para o invasor, as armas mundanas não eram perigosas para os anjos, e dificilmente uma delas furaria seu avatar. Ao raciocinar isso em sua mente vagarosa, Euzin se desfez do assombro e continuou caminhando para cima da moça, ainda irado, mas satisfeito por desbancar sua tática.

         — É isso que usa para se defender?

         —Afaste-se! — ameaçou a necromante. — Encantei o metal dos projéteis. São tão mortais a você quanto uma adaga ritual.

         Ele hesitou, novamente, mas então Ankarel, seu comparsa, que até ali nada dissera, estimulou o atacante, disparando um conselho:

         — Ela está blefando.

         Incentivado pelas palavras de confiança, Euzin retomou a ofensiva e replicou à mulher:

         — Uma pistola mágica! Isto é patético — desdenhou, e em seguida acometeu. Abriu os dedos em forma de gancho, para estrangular a mulher e depois quem sabe estuprá-la. Os anjos perversos apreciavam tais crueldades, quando encar­nados em seus avatares.

         Sem pensar duas vezes, Shamíra reconheceu o perigo e puxou o gatilho. O tiro atingiu a cabeça de Euzin, estourando parte do crânio e espalhando miolos quentes por todo o apartamento. Imediatamente, o invasor foi atirado ao chão, num arrojo desengonçado. Ankarel, o careca tatuado, recuou.

         — Sua vaca! — gritou Euzin, esparramado no assoalho. — Sabe quanta energia preciso gastar para materializar esta carcaça? — praguejou. Estava inútil, embo­ra vivo. Não podia mais caminhar nem enxergar muito bem, mas seu avatar não seria destruído enquanto o coração estivesse pulsando.

         — Você tem um péssimo vocabulário, querubim. Seu príncipe lhe ensinou isso?

         Do outro lado da sala, porém, o espantado Ankarel, mais desesperado do que corajoso, ameaçou saltar sobre ela.

         — Fique onde está, eu já disse! — avisou a feiticeira, puxando o cão da pistola. — Estou mirando no seu coração.

         Ele deu um passo atrás, erguendo a mão em sinal de derrota.

         Shamira não aliviou a mira e retrocedeu à porta dos fundos. Tinha agora que sair daquela ratoeira e procurar um refugio seguro, pelo menos até o regresso do general. Nessas horas, o melhor é ficar em lugares cheios de gente, onde o tecido da realidade é espesso. Ablon a encontraria, seguramente, não importa­va onde ela estivesse.

         Ablon.

         Estes anjos... Eles não me atacariam na presença do renegado. A não ser que soubessem que ele estaria em viagem!

         Mas como? Eram anjos, não demônios. O general fora ao inferno encontrar o Diabo. Como Miguel teria descoberto sua ausência?

         A Feiticeira de En-Dor engoliu em seco e subitamente algo sinistro virou a balança.

         Uma criatura de aspecto ameaçador arrebentou a vidraça e voou para dentro do quarto, desfraldando as asas escuras. A aura era confusa, indecifrável, e o rosto estava oculto por uma máscara de aço. O corpo era forte, musculoso, e uma couraça negra protegia o peito. Se era anjo ou demônio, a necromante não sabia dizer. Até onde se lembrava, os anjos tinham asas brancas, não pretas, e raramente as manifestavam na terra, pelo exorbitante gasto de energia.

         Afobada, ela disparou com a pistola, mas a armadura refletiu os projéteis. Era rápido, apesar do tamanho, e aterrissou no meio da sala, destruindo as es­tantes. Shamira reparou em seus olhos por dentro do elmo e percebeu uma vontade assassina. Parecia obstinado, como Ablon, porém voraz e malvado.

         O Anjo Negro!— imaginou a feiticeira. Era ele! O Anjo Negro. Sua figura combinava com a descrição do caçador de Babel, o mesmo que perseguira a guer­reira Ishtar, havia tanto tempo. Seria ele mesmo? O terrível predador do Mar de Rocha?

         O Anjo Negro — pensou novamente, tentando imaginar quem era, de fato, aquela entidade abominável, e por que a atacava. Não encontrou a resposta.

 

Duelo na Ponte

         Orion e Amael acompanharam Ablon na viagem Styx acima. A volta para a Haled foi um pouco mais taciturna. Amael, recolhido nas sombras, estava fraco demais para falar, e Orion não escondia o desconsolo pelo amigo não ter se juntado a Lúcifer, Mas não era só isso. O próprio Ablon estava calado. Preocupava-se com o que podia acontecer, depois de ter pressentido uma vibração negativa.

         Um pouco antes da meia-noite, o barco aproximou-se da praia, às sombras Aponte, sempre envolto naquelas brumas espectrais. O renegado desembarcou e dali subiu na motocicleta. Avistou a embarcação sumindo na névoa e depois desligou os motores. Conduziu a moto até a via asfaltada e acelerou sobre o concreto.

         A ponte estava vazia, o que era comum àquela hora da noite. Nenhum veí­culo transitava pelos dois sentidos, o que despertou a curiosidade do anjo. Espe­cialmente atento às perturbações, Ablon captou um aroma conhecido e notou as falhas de energia nos postes de luz. Apertou o freio e vírou o guidão abruptamente. O pneu traseiro raspou no asfalto, soltando o cheiro de borracha queimada. A moto parou de lado, cruzando a faixa principal.

         Enxergou, então, um anjo de cabelos ruivos, trepado em um dos postes à magem da pista. De tão equilibrado, era óbvio que se tratava de um queru­bim, por sua habilidade em manter o balanço. O controle gravitacional é a di­vindade que dá a desenvoltura aos guerreiros, que lhes permite saltar à distân­cia e escalar com maestria.

         O anjo sobre o poste escorregou, gracioso, e pisou onde as linhas amarelas pintadas no chão demarcavam a divisão das duas raias. Seu rosto era magro, e o ar carismático não deixava dúvidas sobre sua identidade.

         Balberith, o príncipe da casta dos querubins.

         Ablon não o via desde o dia em que fora expulso do céu e não planejava reencontrá-lo, sobretudo em uma situação tão conturbada. Uma vez o general admirara seu príncipe, mas todo o respeito se fora, à medida que ele se corrom­pia. Balberith acatava todas as ordens do arcanjo Miguel, até mesmo as mais homicidas, sem nunca questionar seus métodos. E verdade que dos querubins se exige toda a obediência, afinal são soldados — mas não propriamente assassinos!

         Houve um tempo em que Balberith era invencível dentro da casta, e talvez ainda o fosse, mas Ablon não era o mesmo combatente de outrora. Desde sua expulsão, tinha aprimorado sua destreza, enquanto Balberith ficara, por todo o tempo, sentado em seu trono no Castelo da Luz, dando ordens e se meten­do na política celeste. Outrora tivera força e autoridade para derrotar Ablon e Apollyon juntos, mas hoje sua aura seria ofuscada pela energia de qualquer um dos dois.

         O príncipe dos querubins não era muito forte, o que compensava em agi­lidade e perícia. Mas, apesar disso, parecia corpulento a distância e vestia roupas pesadas. As camadas sobrepostas tinham um único objetivo: ocultar sua armadura dourada. Balberith nunca largava sua casca, a famosa Couraça da Honra, uma das mais resistentes e cobiçadas peças do paraíso. Enquanto a maioria dos anjos vestia chapas peitorais, Balberith possuía uma armadura completa, com placas que cobriam os braços e as pernas, porém sem elmo. Não levava espada, é claro, porque o código dos lutadores o impedia de erguê-la contra um oponente de­sarmado, ainda que fosse um renegado — ou até um demônio.

         Ablon conservou a expressão confiante, diante de alguém que, obviamente, estava ali para atrasá-lo. O semblante determinado desagradou o anjo ruivo, mais acostumado a ser bajulado.

         — Ablon! — esbravejou Balberith. — Será que não se recorda de seu velho líder?

         — Não reconheço nenhum líder — retrucou o guerreiro. Não estava disposto a iniciar um diálogo. Só queria ir embora, voltar à presença de Shamira.

         — O que se passa em sua cabeça distorcida, general? — mudou de assunto, fingindo se preocupar. — Você agora deu para formar aliança com perdedores? Logo você?

         Era, naturalmente, uma provocação pelo seu encontro com Lúcifer, a quem os anjos julgavam um "derrotado". Mas como ele sabia da viagem?

         — Saía da minha frente, Balberith — limitou-se a dizer, sem muita paciência. Girou o acelerador da motocicleta e se preparou para arrancar.

         — Não, soldado. Não posso deixá-lo partir. Tenho minhas ordens e costumo cumpri-las. Como perceberá em breve, as coisas mudaram um pouco por aqui enquanto esteve fora.

         O príncipe caminhou para o lado, a fim de ficar frente a frente com o general. Ablon ainda não tinha conseguido entender o motivo daquela abordagem. Não acreditava realmente que Miguel estava preocupado em matá-lo, e se estivesse não mandaria só um caçador. Mas como o teria encontrado?

         A ponte continuava vazia. Nenhum veículo.

         Um vento frio soprou do leste, c Ablon teve a impressão de que o príncipe tomava posição de combate.

         — Você é um maldito anjo renegado, Ablon, e não respeita ninguém. Mas precisa aceitar de uma vez por todas que sou seu superior. Sim, ainda sou, E também o mais poderoso dos querubins. Se hoje você é o que é, deve tudo a mim. Eu o treinei. Eu o nomeei general. E por isso me sinto responsável por todo esse fiasco em que se meteu. Eu nunca deveria ter interrompido aquele duelo entre você e Apollyon. Mas preferi fazê-lo porque não queria perder um bom lutador. Salvei sua vida naquele dia.

         O renegado não queria conversa.

         —Você fala demais, Balberith.

         —Acho que não compreendeu. De certa forma, você é produto do meu tra­balho. Não posso continuar carregando esta vergonha. É algo que macula minha honra. Prefiro ter um oficial morto a vê-lo andando no meio dessa gente de barro. E, neste particular, acho que você passou dos limites.

         Gente de barro. Era como Miguel se referia aos humanos.

         — Shamira! — concluiu Ablon. Era lógico. O relacionamento dele com a humana era o que o príncipe queria dizer com "você passou dos limites". Se os celestes sabiam onde ele estava, seguramente encontrariam a feiticeira, ou já a tinham encontrado!

         Sem que percebesse, a fúria esquentou-lhe a pele. Costumava ser calmo e dificilmente perdia o controle, mesmo quando sua vida estava ameaçada. Apren­dera a conservar a paz e a nunca dar vazão ao ardor. Mas a necromante era, in­dubitavelmente, seu ponto fraco. Morreria para defendê-la e não admitiria que fosse jogada naquela guerra estúpida por sua causa. Os soldados são assim, geralmente. Dão a vida por seus companheiros, por sua nação ou por um ideal, sem se preocupar com as consequências.

         Apesar da ira, Ablon não desejava enfrentar Balberith. Não devia perder mais tempo. Tudo que pensou foi em acelerar a motocicleta rumo à cidade, mas seu oponente não saiu do meio da pista. Não o deixaria passar, não importava o que acontecesse. O renegado conhecia a determinação dos querubins, porque era um deles também.

         — Você não vai a parte alguma — reforçou o príncipe, sugerindo um duelo entre os dois. O guerreiro estava furioso, ciente de que Shamira estava em pe­rigo, e tinha pressa, mas simplesmente não podia recuar ao confronto.

         Tentou, pela última vez, alertar o inimigo.

         — Balberith, eu não sou mais seu antigo oficial do Castelo da Luz. Eu mudei desde então. Aprendi coisas novas, aprimorei minhas técnicas e não permitirei que meus valores se desfaçam em pó — e completou, com uma frase antes usa­da pelo próprio Balberith:

         — Portanto, se insistir neste combate, terei que matá-lo.

         O príncipe dos querubins surpreendeu-se ao ver que ele se lembrava tão bem daquelas palavras distantes. Mas isso não foi o bastante para intimidá-lo, como já era de esperar. Sentia-se resoluto, ainda mais com sua Couraça da Honra. Con­siderava-se o melhor dos lutadores, o vassalo mais perfeito do arcanjo Miguel Seu erro não foi ter se oferecido ao duelo, mas não ter analisado corretamente a capacidade do adversário.

         Ablon não teve escolha. Desmontou da motocicleta e aceitou o desafio.

         Estavam distantes uns vinte metros e se posicionaram na mesma linha, um de frente para o outro. Ajoelharam-se quase ao mesmo tempo, fecharam os olhos e concentraram nos punhos o poder invisível da Ira de Deus. Não era mais um simples treinamento. Um deles morreria. E os dois estavam cientes dos riscos.

         A ponte continuava vazia.

         Ablon e Balberith abriram os olhos e encararam-se profundamente. Quando dois querubins chegam a esse ponto, parece que são tomados por uma espécie de transe, e daí em diante nada pode detê-los.

         O príncipe e o renegado dispararam, um contra o outro, a uma velocidade inumana. Eram tão rápidos que seus movimentos deslocavam o ar, produzindo um ruído igual às lufadas de vento. O rosto era como o dos predadores, pron­tos para destroçar o almoço.

         Quando chegaram perto o bastante para golpear, ambos saltaram bem alto, quase alcançando a linha onde os postes de luz se encurvavam para dentro. No espaço em que os dois se cruzaram, em pleno ar, sabiam que só teriam tempo para desferir um único ataque, que deveria ser letal, para aniquilar o oponente.

         E então atacaram.

         Nenhum barulho foi ouvido.

         Ablon e Balberith aterrissaram, com os pés firmes no chão, um de cosias para o outro. Aparentemente nenhum deles tinha acertado a pancada, pois não pareciam feridos. Estavam como começaram.

         O Anjo Renegado olhou para o punho fechado, como um carrasco fita a espada. Relaxou o corpo, certo de que havia concluído a infeliz tarefa de eliminar seu capitão. Deixou a linha de combate e caminhou em direção à motocicleta. Já tinha feito o que precisava fazer.

         Mas, ao perceber a evasiva, Balberith protestou.

         — Pare onde está, general! Eu avisei que você não iría a lugar algum sem me enfrentar. Não há como fugir, soldado! Volte já para sua linha de duelo. O com­bate ainda não terminou.

         — Para você já, Balberith.

         O anjo ruivo ia continuar praguejando, mas sentiu uma estranha dor no peito, como se uma agulha lhe apertasse o coração, e calou-se. De repente, to­do o corpo começou a tremer, e então ele ouviu o barulho de uma rachadura no metal. Depois outra e outras. Estupefato, percebeu que a Couraça da Hon­ra, a belíssima armadura dourada que envergava, estava ruindo! Naquele ins­tante, Balberith ficou sem açáo, apenas assistindo ao estilhaçar da famosa relí­quia, até que se reduzisse a minúsculas lascas de ouro. Um terrível sentimento de derrota o dominou — uma sensação nova para alguém que, até então, nun­ca fora vencido.

         A dor no peito aumentou — ele não podia mais respirar. O coração, a parte mais sensível do corpo de um anjo, fora atingido, e ele nem sequer vira o golpe. Foi tão potente, tão rápido, que um único soco destruiu a armadura, penetrou o tórax e fez explodir o músculo cardíaco. A velocidade extraordinária do ataque desintegrou as moléculas do metal e despedaçou os átomos da carne, mas o efei­to foi retardado, pela celeridade do choque.

         Um segundo depois, o coração estourou, de dentro para fora. Balberith tom­bou. O sangue esparramou-se na pista, desenhando uma enorme poça no asfalto molhado.

         Balberith, o príncipe dos querubins, estava morto.

         Ablon voltou à motocicleta, subiu na máquina e acelerou. Antes, diminuiu a velocidade e passou novamente pelo local onde jazia o avatar inerte de seu ex-comandante. Parecia um boneco, um invólucro, ainda mais inanimado do que um cadáver humano. Essa é a aparência dos corpos físicos dos anjos quando são destruídos.

         Apesar de tudo, o general não queria matá-lo. Mas aquela era uma guerra, e ele era um guerreiro.

         Olhou maís uma vez para a carcaça estirada.

         Não conseguiu sentir pena.

 

O Anjo Negro

         Ablon correu como nunca com sua motocicleta, avançando todos os semá­foros vermelhos e não parando nos cruzamentos. Os pneus desprendiam fumaça a cada encruzilhada, e o cano de descarga cuspia gasolina fervente. Chovera mais cedo, e as falhas no calçamento formavam poças na pista.

         Era quase meia-noite, as ruas estavam praticamente vazias, e o retorno à ve­lha pensão foi bem rápido. O Anjo Renegado já imaginava o pior, por isso ace­lerou. Tomou todos os atalhos que conhecia, passando por vias interditadas e becos mal iluminados. Parou a moto numa rua estreita, onde se erguia a facha­da do Hotel Montenegro, e não se preocupou em estacionar corretamente o veículo. A maioria dos postes de luz estava quebrada, e a viela mergulhara na escuridão urbana.

         Três andares acima, a janela de seu apartamento estava em pedaços. Alguns estilhaços haviam despencado na calçada e agora descansavam a seus pés, no chão da ruela. As narinas aguçadas captaram um detestável cheiro de podridão, misturado a carne queimada. Sentiu uma presença misteriosa, que não soube identificar. Captou a fragrância da necromante e teve certeza de que estava vi­va, ainda.

         Manipulando o centro de gravidade de seu corpo, saltou e se agarrou a um cano de ferro, no segundo andar, que servia como escoadouro da chuva. Dali pulou diretamente para dentro do quarto, atravessando o arco da janela,

         O cômodo estava vazio, e a bagunça dominava o lugar. A mesa de madeira fora quebrada, e várias folhas de papel repousavam espalhadas no chão. As pra­teleiras que sustentavam os objetos históricos tombaram, destruindo alguns artefatos antigos, que o anjo guardara ao longo de séculos. O odor peculiar pro­vinha de pedaços de carne cinzenta, agarrados ao chão — não eram de Shamira, e isso o aliviou. A televisão estava ligada, porém silenciosa. Suas imagens eram a única fonte de luz a clarear o salão.

         As emanações da aura maligna vinham lá de fora, do terraço do prédio. Em um canto do apartamento, uma porta de fundos dava acesso ao pátio externo — uma área imunda, com antenas de TV, sacos de lixo e quinquilharias estragadas. Sem perder tempo, Ablon escancarou a passagem, preparando-se para enfrentar qualquer inimigo. Mas nem mesmo suas suposições mais macabras o haviam preparado para o que viria a seguir.

         O Anjo Negro!

         Um anjo de asas negras segurava Shamira nos braços, desacordada. O corpo, essencialmente humano, era muiro forte e estava protegido por uma armadura negra. Um elmo metálico cobria-lhe o rosto, tapando-lhe totalmente a face. Apoiava-se sobre a mureta de concreto, quase adejando. Atrás dele o terraço acabava em um vão de cinco metros, que separava o sobrado do prédio ao lado.

         O Anjo Negro!

         Era a mesma entidade que tentara assassinar a renegada Ishtar no Mar de Rocha. Ablon jamais esperara encontrá-lo ali e chegara a pensar que havia morto. O renegado o odiava por ter perseguido e quase matado sua companheira. No princípio, pensara em se vingar, pela perda que lhe causara. Mas ninguém nunca tinha ouvido falar de um anjo de asas negras no céu ou no inferno, isso o guerreiro havia desistido de procurá-lo. Agora, aquele ser odioso reaparecera para, mais uma vez, levar embora aquilo que ele mais adorava.

         — Ablon! — chamou o Anjo Negro, com a voz abafada saindo da máscara. — Parece que é meu destino roubar suas mulheres — regozijou-se, sarcástico.

         Ablon notou que um outro anjo, mais fraco, se posicionava entre ele e a entidade. Era o tal Ankarel, conforme se lembrava, um capanga do Príncipe dos Anjos. Não materializara as asas, diferentemente do raptor, e nessa forma assemelhava-se a qualquer ser humano. Usava roupas comuns, inclusive. Na jaqueta agarravam-se marcas de sangue, que não eram dele.

         Ablon não deu importância à débil presença de Ankarel. Seus olhos de caçador estavam focados no Anjo Negro, analisando seus movimentos e aguardando o instante perfeito para dar o bote e salvar Shamira. O calor de sua fúria queimou o tecido, e todos os seres espirituais que estavam por ali souberam que um fabuloso combate estava para acontecer.

         — Solte-a! — gritou. — Ela não tem nada a ver com esta guerra abominável. Acertemos as contas, nós dois!

         E sem esperar uma reação, o renegado avançou, pronto para lutar, mas Ankarel pulou à sua frente, bloqueando o caminho. Escondia na manga uma espada curta, uma arma celestial, capaz de matar qualquer criatura, comum ou divina. Sacou sua lâmina e, traçando no ar um semicírculo, tentou decepar a cabeça do general, Ablon abaixou-se, evitando o ataque, e em seguida levantou o corpo novamente, com o braço esticado, desferindo um soco forte no queixo do adversário. O capanga foi arremessado para o lado e caiu desnorteado em uma pilha de sacos de lixo.

         A briga deu ao Anjo de Asas Negras o tempo necessário para alçar voo, sobrevoar o vão e recuar para o terraço do outro prédio, tomando distância. Mas estava fugindo. Ainda tinha um recado a transmitir.

         — Certamente, renegado, temos contas a acertar. Mas você nunca esteve em posição de caçar ninguém — desdenhou. — Não, ainda não será desta vez. A feiticeira é a nossa garantia. A garantia de que sua aliança com Lúcifer não se concretizará. Ela ficará a salvo e voltará com vida, se você não se opuser à vontade do arcanjo Miguel.

         E acrescentou:

         —Aguardo-o no crepúsculo dos tempos, general. Sou o Anjo do Abismo Sem Fundo, aquele que abre todas as portas. Sou a luz e as trevas, o começo e o fim.

         Apesar de abafada, a voz do raptor era alta e soava como um rugido. Mas Ablon não parou para ouvi-lo. Pulou sobre o vão e seguiu em carga para golpear o rival. Havia muito abandonara a idéia de fazer acordos.

         Mas, subitamente, um barulho estremeceu a membrana. Não era uma sono­ridade natural, mas uma sinfonia do além, que abalou todo o tecido. Os seres humanos não podiam ouvi-la, mas os anjos e demônios, em todas as partes do mundo, caíram de joelhos, com os tímpanos ardendo. Ablon e Ankarel aperta­ram as mãos contra os ouvidos, mas não adiantou. Era como um sopro desafi­nado e irritante, cujo eco demorou a se dissipar.

 

         Quando a agonia cessou, Ablon olhou à sua volta, procurando pelo Anjo Negro, mas ele havia sumido. Sua aura também desaparecera, o que significar vá que não estava mais no plano material. Sobre os telhados daqueles prédios antigos, avistou apenas o querubim Ankarel, que, como ele, acabara de se re­cuperar do sopro místico.

         Ankarel fugiu pelo terraço, ao notar que estava sozinho, e pulou para o te­lhado do outro prédio. Ainda estava desorientado demais para se desmaterializai; então correr era a alternativa de escape mais óbvia. Mas Ablon não estava dis­posto a facilitar-lhe a evasão. Aquele querubim agora era a sua única pista para esclarecer o mistério do Anjo de Asas Negras. Quem era aquela criatura? O que queria? Para quem trabalhava?

         Depois de três saltos perfeitos, o general agarrou o fugitivo pela jaqueta e o atirou de costas contra as telhas. Por pouco o forro não cedeu, graças às vigas mais grossas.

         — Quem era aquele anjo negro? Para onde ele levou a feiticeira? — pressionou Ablon, cheio de raiva.

         — Não sei — respondeu Ankarel, assustado. — Minha missão era só atrasá-lo nada mais.

         — Então você veio com Balberith!

         — Ele nos mandou para cá — confessou.

         — E de quem é o sangue no piso?

         — Do nosso chefe, Euzin. A feiticeira o baleou. Euzin! Aquele abutre nojento.

         — Quem ordenou esta missão?

         — Não sei — repetiu o prisioneiro. — Ninguém sabe sobre ela além de mim, Euzin, Balberith e o Anjo Negro.

         Maldição!

         Ablon enfrentara Balberith, e o sangue na jaqueta de Ankarel parecia mesmo ser de Euzin, se ele bem conhecia seu cheiro. Ambos estavam fora de seu alcance agora. Balberith estava morto e Euzin já retornara ao plano etéreo. Mas mesmo eles não deviam saber muito sobre o sequestro. Estava claro que eram só comandados, e que Miguel e o próprio Anjo Negro eram a chave de todo o segredo.

         O Anjo Renegado acalmou-se. No princípio tentara rejeitar essa guerra — recusando a aliança com Lúcífer —, mas ela viera em seu encalço. Agora, não poderia mais evitá-la. De certa forma, fora ingênuo ao achar que conseguiria permanecer vagando pelas trevas da humanidade, quando o Dia do Ajuste de Contas chegasse. Ele era o líder dos renegados. Se não tivesse virado as costas para isso anteriormente, talvez Shamira não estivesse agora em poder do arcanjo. Assim, a guerra ganhava amplitude. Não era mais só de Miguel ou de Lúcifer — era sua também.

         O general soltou a pegada, liberando Ankarel. O capanga se levantou, cambaleando, ainda assustado, e recuou. Ablon não pretendia matá-lo a sangue-frio. Degolar o prisioneiro não mudaria muito as coisas.

         Sem dizer palavra, o renegado deu as costas ao inimigo e caminhou ao apartamento.

         Contrariando o código de honra dos lutadores, Ankarel aproveitou-se da vantagem para tentar estocar o rebelde. Sacou novamente a espada curta e adiantou-se com a lâmina em riste, pronto para fincá-la nas costas. Mas o general já esperava por isso. Ouviu o barulho do metal deslizando na bainha e em seguida captou o som do corte no ar.

         Desviou para o lado, c a espada atingiu o vazio. Sem encontrar obstáculo à frente, o atacante perdeu o equilíbrio, expondo parte do tronco. Ablon então assaltou, golpeando-lhe o coração. Foi tudo muito rápido. Mal Ankarel investíra, a mão do renegado já perfurara-lhe o tórax. O anjo sentiu o impacto; depois tudo por dentro se rompeu.

         Com uma puxada forte, Ablon retirou-lhe o músculo pulsante. Pôde sentir a energia invisível se dispersando, e a consciência do inimigo apagou. Os dedos amoleceram, e a espada curta escorregou de seu punho afrouxado. As pernas perderam a força, e o corpo despencou na ruela.

         O renegado observou o avatar de Ankarel se espatifar lá embaixo, estourando a cabeça nos paralelepípedos do beco. Olhou para o coração, novamente, e o atirou para longe. Nesse momento, a espada do morto, largada sobre um cano, começou a se decompor. O aço enferrujou, rachou-se, e o ouro enegreceu. De­pois, a arma se desfez em pedras de cinza.

         A espada, não vive sem o querubim, e o querubim não vive sem sua espada.

         Pingos de chuva caíram do céu, e a água lavou os telhados.

         De cócoras sobre a mureta de concreto, o anjo guerreiro observou a cidade, em meio ao temporal. Estava sozinho, pela primeira vez. No passado, tivera a companhia dos renegados, e depois da Feiticeira de En-Dor.

         Antes, pretendia esperar a desintegração do tecido, para só então desafiar o arcanjo Miguel. Só que agora o Príncipe dos Anjos estava com sua amiga, e tal­vez fosse arriscado demais esperar o Armagedon para resgatá-la. Não, o Anjo Renegado não podia esperar. Não devia confiar no destino, tampouco em seus inimigos, que sempre o traíam em momentos estratégicos.

         Ablon ficou um bom tempo parado no topo do prédio, com a chuva a en­charcar seus cabelos, pensando sobre aquele barulho terrível, que o impedira de atacar o Anjo de Asas Negras. De onde partira o silvo? Quem o teria provocado?

         Meio perdido, refletiu sobre o que faria adiante.

         E então, de repente, a solução apareceu na penumbra.

 

A Primeira Trombeta

         O Anjo Renegado regressou ao apartamento. Observou a bagunça. Tudo parecia ter virado de pernas para o ar. Os móveis estavam quebrados, os objetos destruídos, e o chão arruinado. A chuva caía sem parar, invadindo o quarto atra­vés da janela e borrando as inscrições mágicas gravadas no piso. Ablon se lembrou do ritual ministrado pela necromante e das runas em seu braço, que, primei­ramente, teriam o objetivo de protegê-lo no inferno. Mas não houve nenhuma emboscada, e todo o esforço acabou sendo inútil.

         Inútil!— lamentou o guerreiro. De que adiantava ser imbatível, ou parecer imbatível, se ele nem ao menos conseguira defender sua amiga?

         Do outro lado do cómodo, defronte a uma poltrona de couro rasgada, a velha televisão ainda funcionava. O som estava desligado, mas o anjo distinguiu uma série de imagens estranhas, de mísseis e bombas, e depois uma repórter apareceu ao microfone, falando em uma mesa de estúdio. Os noticiosos não transmitidos àquela hora, só os informes especiais. Correu, então, e aumentou o volume. Trocou de canal várias vezes, mas todas as emissoras mostravam o mesmo quadro.

         — Aconteceu há meia hora — informou a jornalista. — O míssil que atingiu Pequim levava uma ogiva de cem megatons e devastou toda a área metropolitana. O impacto estendeu-se a outras cidades, agitando o golfo de Bo. Pelo menos outras trinta localidades foram afetadas, e a radiação já chegou à Mongólia — a apresentadora tremia, visivelmente abalada. — Os prejuízos são incalculáveis.

         A tela mostrou imagens de Washington, e a voz seguiu em off:

         — Os chefes de Estado americanos e europeus ainda não se manifestaram a respeito, mas a Aliança Oriental afirmou ter provas de que o ataque partiu de uma das bases da Liga de Berlim no oceano Pacífico, e prometeu uma resposta violenta. O ministro das Relações Exteriores... — Ablon tirou o fio da tomada.

         A Primeira Trombeta! — deduziu o general. O discurso de Korrigan era claro agora. Os Sete Selos já haviam sido abertos. Os sinais se esgotavam a cada instante e levavam consigo a vitalidade do sétimo dia.

         Como Lúcifer sugerira anteriormente, as Sete Trombetas, assim como os Selos do Apocalipse, nada mais eram do que sinais, indícios que índicavam o fim dos tempos e a proximidade do Armagedon. A Estrela da Manhã havia comentado sobre essas armas nucleares, mas o Anjo Renegado não espe­rava que fossem usadas tão de repente, nem que a guerra mundial dos humanos estourasse em tão poucos dias. Ele detestava admitir, mas o Arcanjo Sombrio era um visionário. Sua percepção das coisas, mundanas e espirituais, era realmente incrível.

         Parte do mistério se esclarecera. O barulho que o guerreiro ouvira minutos atrás, ao tentar atacar o Anjo Negro, fora de fato o ruído da Primeira Trombeta, uma designação antiga utilizada por um profeta igualmente antigo para classficar o evento. "O primeiro anjo tocou a trombeta. Granizo e fogo, em mistura de sangue, caíram sobre a terra", diz a Bíblia em Apocalipse 8,7. Não fora um sopro apenas, mas o reflexo de um rasgo permanente no tecido da realidade, produzido quando centenas de milhares de almas, vitimadas pela explosão, atravessaram a membrana ao mesmo tempo. O abalo foi tamanho que sacudiu toda a extensão da fronteira espiritual e quase a destruiu.

         O Anjo de Asas Negras provavelmente sabia o instante exato em que a trom­beta soaria e escolheu a hora certa para escapar, levando Shamira consigo. Mas como ele conhecia aqueles detalhes? Como podia ter certeza do momento es­pecífico da detonação?

         As respostas só lançavam mais dúvidas, então Ablon desistiu de pensar so­bre elas.

         O Apocalipse tinha chegado, e a guerra humana começara. O Dia de Ajuste de Contas não tardaria.

         Do coração vazio, surgiu a esperança, e o Anjo Renegado entendeu que pre­cisava, enfim, retornar ao caminho da luz. As palavras de Shamira ecoaram em sua mente, como vela na escuridão: Achei que talvez fosse a hora de reviver o que~ rubim que salvou minha vida,

         Em seguida, era a voz de Orion que surgia em seus pensamentos: Por toda sua vida você lutou, general. Não pode desistir logo agora.

         E, mais uma vez, Ablon entendeu que não combatia somente por si, mas por seus amigos, por aqueles a quem amava e por todos que, de uma forma ou de outra, depositaram nele sua fé. Lutava pelo Deus Yahweh, onde quer que ele estivesse. Mais do que isso, lutava por uma causa, combatia para defender aquilo que considerava certo e justo e para preservar a grande criação do Altís­simo.

         Aproximou-se lentamente da mala de Shamira e a abriu. Lá dentro, dani­ficada como um esqueleto de metal, estava a Vingadora Sagrada, a arma celes­tial que empunhara quando ainda era um general de legiões, e que o acompa­nhara em inúmeras batalhas. Lá estava ela, apodrecida, enferrujada, rachada e parcialmente fossilizada por uma craca de pedra.

         A espada não vive sem o querubim, e o querubim não vive sem sua espada.

         Ablon tomou a Vingadora nas mãos e apertou firme o cabo da arma.

         Subitamente, um espetáculo maravilhoso ocorreu. A casca de pedra se es­farelou e sumiu como fumaça no ar. As rachaduras no metal fixaram-se sozinhas e a empunhadura voltou a reluzir. O aço retomou seu polimento, e as inscrições místicas na superfície da lâmina tornaram-se novamente visíveis. O anjo captou a poderosa aura de poder da espada, que era, em essência, a canalização de sua própria energia.

         Não precisava mais se esconder. Não tinha mais por que fazer isso.

         Ele e a Vingadora Sagrada estavam juntos de novo.

         O Primeiro General renascera.

 

O Mestre do Fogo

Cidadela do Fogo, região central do Primeiro Céu

Ajelhado NO chão de mármore, envolto pelos vapores do templo, o arcanjo Gabriel meditava. A expressão era serena, como o orvalho da manhã que escorre pela superfície das plantas, ao encontro dos primeiros raios de sol. Tinha longos cabelos cor de mel, atados em uma trança comprida. O corpo magro, porém :uloso, estava coberto por uma belíssima armadura de ouro, com placas que protegiam não só o tronco, mas também as pernas e os braços. Lindas ombreiras suportavam uma capa branca, dividida ao meio para não prejudicar o movimento das asas. E diante dele, a um palmo de distância, descansava a Flagelo de Fogo, a espada flamejante que, no passado, servira para expulsar Lúcifer e seus seguidores da morada divina.

         O Templo da Harmonia era um salão gigantesco, todo trabalhado em pedra alva e sustentado por grossas colunas, medindo cem metros de altura. O chão, em toda sua amplitude, fora preenchido com água fervente, à exceção de uma ponte que levava à plataforma do arcanjo. O líquido puro evaporava, inundando o lugar com brumas quentes e confortantes, de aroma revigorante. A névoa con­fundia a visão, mas a escuridão era afastada por feixes de luz que entravam por aberturas no teto.

         O templo era a principal construção da Cidadela do Fogo, cerne político do Primeiro Céu. Essa era a morada dos ishins, a casta de anjos que controla os elementos da natureza. A cidadela ficava na boca do maior vulcão do paraíso, o Netúnia. Quatro grandes correntes, presas por ganchos às paredes do vulcão, suportavam um bloco pesadíssimo de pedra, sobre o qual fora moldada a cidade-fortaleza. Poucos metros abaixo, a lava borbulhava. Agentes leais a Gabriel pa­trulhavam as redondezas, alertas a qualquer invasor, fosse ele anjo ou demônio. Em um passado distante, a Cidadela do Fogo fora governada por Amael, o Se­nhor dos Vulcões, mas este se aliou a Lúcifer, deixando as rédeas do poder nas mãos de seu pupilo, Aziel, a Chama Sagrada. Mais tarde, quando a unidade dos arcanjos começou a ruir, Aziel cederia o templo a Gabriel, dando abrigo a seus anjos, que não mais desejavam permanecer no Quinto Céu, próximos à tirânica opressão de Miguel.

 

         Gabriel, com as mãos pousadas sobre os joelhos e os olhos fechados, respirou fundo, deixando que o vapor quente deslizasse às narinas. Relaxou, buscando sentir o universo, procurando tocar a imensidão do cosmo com sua aura pulsante. Na concentração, sentiu uma presença. Ergueu as pálpebras, revelando seus sublimes olhos castanhos. Tranquilo, observou o visitante a caminhar pela ponte de mármore. Era o ishim Aziel, a Chama Sagrada, que viera atender a seu chamado. Pisava com leveza na pedra, quase não deixando escapar nenhum som. Vestia uma túnica delicada, de seda e algodão, e revelava uma longa cabe­leira preta, que alcançava a linha da cintura. A pele era tão branca quanto as asas, e os olhos, negros como a noite profunda.

         Aziel ajoelhou-se diante de seu patrono, não ousando invadir a plataforma. A Flagelo de Fogo interpunha-se entre eles, desembainhada, com a lamina a cre­pitar, pronta para decepar qualquer invasor desagradável

         — Venho atender a seu comando, Mestre do Fogo — esse era o principal título do arcanjo Gabriel, famoso por seu domínio sobre os elementos. — Em que posso ajudá-lo?

         — Ablon ainda está vivo — disse o gigante, direto.

         — Sim. Captei as emanações de sua aura.

         O Mestre do Fogo respirou a névoa escaldante e encarou o subordinado.

         — O Anjo Renegado ocultou sua presença por incontáveis séculos, provavel­mente para impedir que os agentes de Miguel o encontrassem. Mas, agora, expandiu novamente a aura que guarda no coração. E essa energia é tão forte que foi sentida até mesmo aqui, no Primeiro Céu.

         Aziel abaixou a cabeça, em dúvida.

         — Não compreendo, mestre. Por que ele faria isso? Logo agora que o Sétimo Selo foi rompido... Imaginei que ele fosse esperar pelo Juízo Final, para só então executar sua vingança.

         — Eu diria que é um chamado — respondeu Gabriel, conclusivo. — Ablon está pedindo nosso auxílio. E nós também precisamos da ajuda dele.

         — Mas é provável que ele nem saiba que existamos. Como poderia saber que nos separamos de Miguel e montamos um exército próprio? Ablon é um fugitivo e, vagando escondido na terra, não teria como assistir aos nossos progressos.

         — Isso é correto, Aziel. De fato, talvez nem o próprio general saiba que suas idéias dividiram o céu e lançaram as sementes da guerra civil. Mas, apesar de tudo, estou certo de que ele ainda confia que há anjos leais à sua causa. É para eles que o querubim expande sua aura. É com eles que conta. É por isso que temos o dever de ir ao seu encontro.

         Ao dizer isso, o arcanjo fez um minuto de silêncio. Depois, pegou a Flagelo de Fogo e ficou um longo tempo a olhar sua folha. Assim como Ablon, Gabriel também temia esquecer — esquecer as situações pelas quais passara e, principalmente, as coisas que aprendera. A espada estava ali como testemunha, para ajudá-lo a se recordar das falhas antigas e obrigá-lo a não voltar a cometer os erros de outrora.

         Aziel aguardou pacientemente até seu mestre retomar o pronunciamento.

         — Envie nossas tropas para o plano etéreo e as posicione próximas à Fortaleza de Sion, bastião das forças inimigas — ordenou o arcanjo. — Ao que tudo indica, a batalha final será mesmo travada na terra, ainda que não no plano físico, mas no mundo espiritual. Quem vencer essa guerra garantirá a soberania sobre a Haled.

         — Nossos espiões reportaram que um anjo de asas negras levou uma humana a Sion, provavelmente uma feiticeira — acrescentou o ishim.

         — Talvez seja Shamira, a Feiticeira de En-Dor. Soube que Ablon a salvou na Babilônia. Se for mesmo ela então tudo se encaixa. Ablon quer nossa ajuda para libertá-la.

         — Mas por que Miguel raptaria uma humana?

         — É difícil prever as intenções de meu irmão. Sou um arcanjo, mas nem mesmo eu sei tudo. Na verdade, sei muito menos do que pensava saber. Mas a única coisa que um terreno tem e os anjos não possuem é a alma.

         Gabriel devaneou por mais um curto instante e depois completou, enérgico:

         — Execute as manobras militares e entregue o comando a Baturiel, o Hon­rado. Em seguida vá ao encontro de Ablon e leve-o ao acampamento de nossas tropas. Soube que foram bons amigos no passado. É um dos poucos a quem o guerreiro admira.

         Fez uma pausa, mas logo prosseguiu:

         — Há um portal para o etéreo na montanha Horeb, através do qual o gene­ral poderá passar, mesmo estando preso a seu avatar. Eu os estarei aguardando. Sieme, da casta dos serafins acompanhará você nessa jornada.

         Aziel desagradou-se, mas não demonstrou. O problema não era a missão, mas a companhia. Não tinha nada em particular contra Sieme, mas a postura fria e calculista dos serafins às vezes o irritava. Isso não quer dizer que fossem anjos maléficos, eram apenas autoconfiantes demais. Mas não os culpava. Como poderia? Essa era a natureza deles. Os serafins são políticos, diplomatas e con­selheiros, para isso foram concebidos. Era natural que gostassem de comandar e tivessem sérios problemas em receber ordens e aceitar opiniões divergentes. Estavam sempre tentando convencer os outros de seus próprios pontos de vista, eram irredutíveis, e esse era o tipo de coisa que Aziel mais detestava.

         — O Anjo Renegado é o elemento que faltava ao nosso teatro de operações, Aziel — explicou o Mestre do Fogo. — Só ele poderá liderar nosso exército no Armagedon.

         — Sim, mestre — respondeu o ishim, recurvando-se em sinal de respeito. Logo ao perceber que seu líder tinha concluído o discurso, virou-se respeitosamente e deixou o Templo da Harmonia.

         Gabriel observou a Chama Sagrada sair. Pousou a Flagelo de Fogo novamente à sua frente, pôs as mãos sobre os joelhos, fechou os olhos e voltou a meditar. Antes de mergulhar no transe místico, disse para si mesmo, com a voz sossegada:

         — Enfim, poderá lutar por seu ideal, general. Sua revolta não foi em vão. E retornou à harmonia do cosmo.

 

Aziel e Sieme

         Aziel e Sieme chegaram à terra nas primeiras horas da manhã, antes mesmo de o sol despontar no horizonte. Para viajar entre as dimensões, utilizaram-se de um vórtice que ligava o Primeiro Céu a uma praia no plano astral, relativamente próxima à cidade de onde partiram, na noite anterior, as emanações do Anjo Renegado. Voaram pelo astral sobre o mar e, ao atingir as ruas da me­trópole, deslizaram por entre os prédios até encontrar um beco, onde o tecido da realidade era mais fino, e então se materializaram, alcançando finalmente o mundo físico.

         Há muitos tipos de conexões místicas que ligam as diversas dimensões. As principais são os portais, os vórtices e os vértices. Os portais são sem dúvida o . tipo de passagem mais visado. Eles ligam os reinos superiores e inferiores (como o céu e o inferno) ou o etéreo díretamente ao plano material. Uma entidade que cruze esse umbral não precisa gastar energia para se materializar, passando para a dimensão adjacente usando seu corpo espiritual, sem que para isso tenha que formar um avatar. Da mesma forma, um ser humano pode alcançar outro plano de existência com seu corpo físico, sem precisar projetar o espírito. Os portais permanentes são muito raros e por isso são vigiados pelas criaturas na­tivas das dimensões a que estão ligados. Os humanos praticantes de magia de­senvolveram, com suas habilidades, rituais capazes de abrir portais, mas a du­ração deles está sempre limitada por conjunções estelares, atividades climáticas ou esgotamento de material de sacrifício. Feiticeiros malignos costumam abrir portais com frequência, para invocar demônios em suas terríveis formas espiri­tuais e utilizá-los em tarefas macabras. Há ainda alguns portais, menos impor­tantes, que têm a propriedade de conectar o mundo material ao plano etéreo, mas estes raramente são procurados.

         Os vórtices são conexões parecidas com os portais, mas ligam algum reino superior ou inferior ao plano astral ou ao plano etéreo — mas nunca ao plano físico. Uma vez no astral ou no etéreo, o viajante ainda terá de utilizar sua pró­pria capacidade de materialização para cruzar o tecido da realidade e chegar ao mundo material. O vórtice tomado por Aziel e Sieme ligava o Primeiro Céu ao plano astral sobre uma praia próxima ao Rio de Janeiro.

         Por fim, os vértices não são exatamente passagens místicas; são sítios onde ocorre uma interseção dimensional. São locais que existem tanto no plano ma­terial como no plano etéreo. Esses pontos podem ser frequentados tanto por se­res humanos como por entidades em suas formas espirituais. Naturalmente, os vértices existem em espaços limitados, como pequenas grutas, templos e porões antigos. Nos santuários o nível do tecido aproxima-se do zero, ao passo que nos vértices a membrana tem grau negativo, permitindo assim a fusão dos dois planos.

         Aziel, a Chama Sagrada, e Sieme, a Mestre da Mente, saíram do beco bem ao lado da velha pensão onde Ablon estava hospedado. Sieme sentia-se pouco confortável em sua carcaça física, pois os serafins não costumam atuar na Haled, posto que seu ofício, essencialmente político, tem os Sete Céus como centro de atividade. Não obstante, seu avatar não devia nada a seu corpo espiritual em matéria de elegância e imponência. Era uma bela mulher, de cabelos prateados e corpo escultural, rosto fino e expressão séria. Vestia-se de forma impecável, com uma parca de couro, botas longas e óculos de sol espelhados que lhe protegiam os olhos azuis.

         — Não sinto nada — avisou Sieme, com aquela confiança típica dos serafins, que beirava a arrogância. — Nenhuma emanação. Tem certeza de que este é o local certo?

         — Absoluta. — respondeu Aziel — Eu mesmo captei a essência do general na noite passada.

         Eram por volta de seis horas da manhã, e a vizinhança de sobrados e prédios baixos ainda não atingira o ápice de sua atividade urbana. Em uma hora ou duas, as lojas estariam abertas, os ambulantes invadiriam as calçadas e os carros circu­lariam sem parar. Agora, contudo, só havia um grupo de lixeiros juntando os dejetos acumulados no meio-fio pela chuva da noite anterior, e algumas pessoas que cortavam caminho para tomar o metro em uma das grandes avenidas mais adiante,

         — Veja! — Sieme apontou para o último andar do Hotel Montenegro, para a vidraça quebrada do apartamento de Ablon. — A janela foi despedaçada. Há fragmentos de vidro no chão — e mostrou os pedaços pequeninos em que quase pisara sobre o asfalto molhado. — São marcas de luta. Houve combate aqui du­rante a noite.

         — Sim, é verdade — concordou Aziel. O semblante da Chama Sagrada des­toava imensamente do de Sieme. Usava roupas simples, claras, que realçavam a negritude de suas meíenas. — Você sente algum cheiro?

         — Sou um serafim, Aziel, não um querubim com sentidos de predador. O único cheiro que sinto é de toda esta sujeira — ela se referia à podridão da cal­cada. — Mas também estou curiosa. Eu posso, melhor do que ninguém, captar os abalos no tecido, e não percebo coisa alguma. Ou o Anjo Renegado está ocultando sua aura ou então ele foi a vítima da peleja que ocorreu aqui.

         — Não seja tola, Sieme. Se ele tivesse morrido, não teríamos sentido a explosão de sua aura pulsante.

         Ela não deu importância às palavras de seu comparsa.

         — Seja como for... Chega de suposições. Vamos subir e verificar. Não estou disposta a passar todo meu tempo na Haled parada em frente a esta espelunca — e caminhou em direção à porta da pensão, adentrando o estabelecimento.

         Aziel a acompanhou.

 

         A porta do quarto de Ablon, no último andar do sobrado, estava entreaberta. Sieme a empurrou com cuidado e observou o espaço interno. No apartamento de um só cómodo, reinava uma completa bagunça. Prateleiras estavam atiradas ao chão, espalhando dezenas de objetos antigos pelo piso de madeira. Uma mesa pesada de mogno fora destroçada e agora jazia em pedaços em um canto da sala, juntamente com estilhaços de vidro. O sistema elétrico também fora avariado, mas a luz do sol que entrava pela janela era agora suficiente para banhar todo o recinto. Porém nada disso chamou a atenção da serafim, que buscava por indícios místicos. Não encontrou nenhum sinal do renegado, então se precipitou para dentro do quarto e imediatamente percebeu a diferença no ambiente.

         — Magia! — exclamou em voz baixa.

         — O quê? — indagou Aziel, que vinha logo atrás.

         — Utilizaram magia para transformar este lugar em um santuário. Não percebe que aqui o tecido é incrivelmente frágil?

         A Chama Sagrada acabara de entrar no cômodo e também sentiu a mudança.

         — Sim, é um bom sinal. Então a Feiticeira de En-Dor deve ter estado aqui. Estamos na pista certa. Mas onde está...

         O ishim calou-se subitamente. Antes que qualquer um dos recém-chegados reagir, Ablon emergiu das sombras, por trás deles, e pousou a lâmina da Vingadora Sagrada sobre a nuca de Sieme, submetendo-a. A Mestre da Mente sentiu o toque gelado do aço no pescoço, e seu sangue frio de serafim congelou.

         Aziel entendeu que o general estivera ali durante todo o tempo, oculto, escondido para surpreendê-los. Conseguira permanecer escondido mesmo naquela sala bem iluminada, e isso deixou a Chama Sagrada impressionada. Aziel foi assaltado por emoções conflitantes. Estava feliz em rever o amigo, mas ao mesmo tempo precisava convencê-lo, o mais depressa possível, de que Sieme não era inimiga, mas aliada. Os anjos renegados, sobretudo o líder deles, eram bastante desconfiados, uma característica compreensível para um bando de fugitivos que passou a maior parte de seus dias sendo caçados.

         — Aziel — exclamou o Primeiro General em tom cordial, porém firme. — Você é bem-vindo — acrescentou, sem desviar a atenção de Sieme.

         A Chama Sagrada sentiu-se mais aliviada com a receptividade, mas ainda tinha impasse a resolver. O renegado não afrouxara a lâmina um milímetro sequer.

         — Ablon... Muitos de nós no Primeiro Céu captamos a expansão cósmica de sua aura, e por esse motivo estamos aqui. Desejamos oferecer lhe nosso auxílio. Acho que sabemos para onde levaram a Feiticeira de En-Dor e quem a capturou — falou com sinceridade — Não há com o que se preocupar. Pode confiar em mim.

         — Confio em você, Aziel. Mas quem é ela? — perguntou, indicando Sieme com um movimento de olho.

         — Esta é... — o ishim ia começar a falar, mas a mulher-anjo o interrompeu. Demonstrando coragem, virou lentamente o corpo, ficando de frente para o general. A espada estava agora a ameaçar-lhe a garganta. Tirou os óculos espelhados e fitou profundamente os olhos cinzentos de seu algoz.

         — Eu sou Sieme, Mestre da Mente, da casta dos serafins — apresentou-se. — Viemos encontrá-lo, general, não para julgá-lo, mas porque decidimos segui-lo. Resolvemos trilhar os seus passos. Assim como muitos, acreditamos em seu ideal e estamos dispostos a morrer por ele. Sei que nós, serafins, não somos tão rápidos ou tão espertos na arte do combate quanto vocês, querubins, mas ofe­reço minhas habilidades psíquicas em defesa de nossa causa — e, dizendo isso, abaixou a cabeça, desviou o olhar e entregou sua sorte nas mãos do guerreiro.

         Os serafins são peritos em política e oratória. Aziel não acreditava que Sie­me estivesse mentindo — pelo contrário, sabia que ela lutava pela mesma causa que ele. Também não cogitava que fosse uma espia ou algo do género. Entre­tanto, supunha que a forma demasiado respeitosa com que ela conduzira o dis­curso fora uma manobra diplomática para livrar-se daquela enrascada. Os se­rafins se tornam mais humildes quando postos sob o fio da espada.

         Ablon era perspicaz e havia aprendido, ao longo de anos submetido a tra­paças, a ler a verdade na fisionomia dos outros. Era um soldado e tivera que desenvolver essa perícia para reconhecer seus inimigos. Foi isso, aliado às traições do passado, que o impedira de pactuar com Lúcifer. Resolveu, então, acreditar nas palavras calculadas de Sieme. Também não nutria muita simpatia pelos sera­fins, mas as virtudes da casta eram inegáveis. Se a celestial subjugara-se a ele, coisa que raramente os serafins fazem, era porque acreditava na legitimidade do general.

         — Muito bem, Sieme — disse o renegado, abaixando a espada. — Aceito sua ajuda. Não se espante com minha atitude. Você deve compreender que ainda há muitos que teriam prazer em acabar comigo, apesar da situação conturbada.

         — Não é de surpreender que seja tão precavido — constatou Aziel, quando o clima de tensão amansou.

         — É exatamente por isso que continuo vivo — acrescentou Ablon, agora tran­quilo quanto à presença dos novos celestiais. Não havia mais necessidade de confinar sua aura, e mais uma vez ele a libertou. Sieme e Aziel captaram na to­talidade a forte emanação que partia do general e entenderam que ele era mes­mo o único que poderia ter liderado a ousada revolta que o tornara famoso. Era uma força intensa, envolvente, inspiradora, digna de alguém que ascendera ao mais alto ciclo de poder.

         Ablon afastou-se e pegou alguns panos soltos, em meio às estantes. Começou, a enrolar a Vingadora Sagrada no tecido, procurando ocultá-la. Aziel imaginou que ele se preparava para deixar o apartamento.

         Sendo uma sensitiva, Sieme não pôde deixar de notar as nuances do tecido.

         — Sinto os remanescentes de uma energia terrível nesta sala. Mas não consigo perceber sua natureza exata. É uma força estranha, misteriosa.

         — O Anjo Negro — esclareceu o renegado, enquanto amarrava com uma cor­da os anos que escondiam a espada. — Uma criatura de procedência desconhecida que se autointitula Anjo do Abismo Sem Fundo — completou, atando firme­mente dois nós às extremidades do volume, formando uma alça para carregar às costas. — Ele esteve aqui, ontem à noite, juntamente com dois querubins. Foi de quem levou a feiticeira ao soar da Primeira Trombeta — e voltou a encarar a Chama Sagrada. — Aziel, você disse que tinha informações sobre o rapto.

         — Sim.

         — Quero saber tudo. Mas antes vamos deixar este quarto. O santuário que havia aqui foi profanado — explicou, ao mesmo tempo em que caminhava à porta. — Acompanhem-me. Conheço um bom lugar para o desjejum.

         — Desjejum? — sussurrou Sieme para Aziel, em sua ignorância quanto aos assuntos mundanos.

         — E um tipo de ritual alimentar humano — indicou seu parceiro de missão.

         — Entendo — replicou a celestial. Tinha vindo pouquíssimas vezes à Haled, e não conhecia quase nada sobre os costumes mortais. Felizmente era a Mestre da Mente, e aprenderia rápido.

 

Uma Revelação Impressionante - A Guerra Civil

         Ablon guiou Aziel e Sieme por seis quarteirões, até que os três chegaram a uma das avenidas principais. O general aproveitou a caminhada para contar à Chama Sagrada o que tinha lhe acontecido desde que os sinais do Apocalipse começaram, do encontro com Orion ao sequestro de Shamira.

         No meio do caminho, o cenário urbano se transformou, e quando os celestiais menos esperavam tinham deixado a vizinhança de sobrados e adentrado a área moderna, com seus arranha-céus de vidro e concreto. Igrejas barrocas, protegidas por leis de tombamento, escondiam-se em recantos decadentes, às sombras de construções magníficas, A sujeira enegrecera a fachada dos templos, e a poluição enfraquecera suas vigas, deixando-os praticamente arruinados.

         O movimento e a correria aumentaram com a abertura dos pontos comerciais. Eram quase oito horas da manhã, e a temperatura subira cinco graus. O sol arrastava-se pelo leste, e agora a bola de fogo já podia ser avistada no topo dos edifícios. Para a infelicidade de Sieme, o clima ia ficando cada vez mais abafado à medida que penetravam o labirinto de prédios — onde o ar encontra dificul­dade para circular. O calor excessivo a obrigou a retirar a parca e a continuar o trajeto apenas de camisa. Para ela, que era uma novata nas questões corpóreas, as duras condições tropicais eram um aborrecimento à parte. Entretanto, as des­cobertas desagradáveis que a Mestre da Mente fazia eram compensadas por no­vas experiências, muito mais interessantes.

         Ao observar a massa de pessoas que a toda hora cruzava seu caminho, Sieme percebeu quão débeis eram as defesas psíquicas dos seres humanos. Os pensa­mentos dos mortais brotavam-lhes da mente como água da fonte, e ela podia ouvi-los sem nenhum esforço: A bolsa caiu 2,3% esta semana; Meu Deus, então a coisa deu em guerra mesmo; Tenho que levar meus filhos ao jogo; Acho que o super­visor não vai ficar satisfeito; A receita leva ovo batido. Com isso, em poucos minu­tos, a inteligente serafim já acumulara uma quantidade considerável de infor­mação a respeito do comportamento terreno, e tentava, em sua mente, organizar e processar todas essas idéias, para então desvendar seus reais significados.

         Passaram em frente a uma banca de jornal, e em volta dela havia uma aglo­meração incomum. Mesmo atrasados para seus compromissos, muitos não con­seguiam prosseguir sem antes dar uma olhadela na primeira página dos jornais pendurados. As manchetes de todos eles, sem exceção, falavam sobre o ataque nuclear a Pequim da noite anterior. A guerra mundial ainda não fora oficialmen­te declarada, mas todos acreditavam que seria em breve, com uma sangrenta resposta oriental à ofensiva que, supostamente, partira de um dos postos mili­tares da Liga de Berlim no oceano Pacífico. Os periódicos sensacionalistas aler­tavam para a proximidade do "fim do mundo", enquanto os mais moderados indicavam que certos países, os chamados países neutros, como o Brasil, estavam fora do eixo de combate. As páginas principais também mostravam entrevistas com cientistas, que afirmavam que a capacidade de destruição dessas novas ar­mas era muitíssimo superior àquelas que devastaram Hiroshima e Nagasaki, na Segunda Guerra Mundial. Um só míssil seria capaz, segundo eles, de aniquilar um país inteiro.

         O coro — como os celestiais chamam um grupo de três ou mais anjos — an­dou mais uma quadra e entrou em uma cafeteria pequena, de formato estreito e profundo. De longe, Ablon sentiu o aroma do ébano, com que foram talhados os móveis. O renegado descobriu aquele lugar logo que chegou ao Rio de Janeiro e rapidamente se acostumou com ele. Era calmo, silencioso, e passava a maior parte do tempo vazio. O movimento era maior à noite e depois do almoço, quando os executivos vinham tomar uma xícara de chá ou degustar uma dose de uísque. A fachada era antiga, devia ter mais de cem anos. Quando foi inaugurado, por volta de 1900, era uma chapelaria, depois passou a vender charutos e por fim converteu-se em uma casa que servia cafés, drinques e petiscos. No fundo do bar, sobre o balcão, uma televisão com o volume baixo transmitia um jogo de futebol.

         Os três sentaram-se em uma mesa próxima à janela, de onde tinham uma excelente visão da rua e da confusão metropolitana. O Anjo Renegado pediu à garçonete uma lata de suco de laranja e esperou a mulher se afastar, para só en­tão iniciar o diálogo.

 

         — E então, onde ela está?

         — Na Fortaleza de Sion — respondeu Aziel. — Um anjo desconhecido a levou às câmaras internas. Pela descrição que você me deu, trata-se de fato do Anjo Negro, o mesmo que invadiu seu apartamento.

         A Fortaleza de Sion — pensou o general, intrigado pela coincidência.

         — O que foi? — inquiriu a Chama Sagrada, reparando no devaneio.

         Ablon voltou à realidade.

         — A Fortaleza de Sion. Era para lá que Lúcifer queria me mandar quando me apresentou seu plano.

         — E o que a Estrela da Manhã pretendia?

         Como resposta, Ablon pôs a mão no bolso do sobretudo e sacou um objeto rústico, circular, moldado em barro sólido. Media mais ou menos dez centímetros de diâmetro e tinha a forma de uma cruz envolvida por um anel. Pôs a relíquia sobre a mesa.

         — Reconhece este artefato?

         — É a chave de uma das passagens dimensionais da Sala dos Portais, localizada no interior da Fortaleza de Sion — rebateu Aziel, aguçado. — Pelas inscrições, eu diria que ela abre um vórtice para os domínios do Arcanjo Sombrio nas pro­fundezas, Lúcifer deu isso a você?

         — Sim.

         — Muito estranho...

         — Por quê?

         — Não imagino como ele possa ter conseguido este objeto. A Fortaleza de Sion é completamente impenetrável a qualquer demônio.

         — Pode ter sido um traidor.

         Aziel ponderou por um segundo e depois respondeu, convicto:

         — Não acredito nisso. Mesmo que um anjo estivesse trabalhando para Lúcífer, jamais conseguiria adquirir essa chave. É claro que o Diabo pode ter espiões es­palhados por Sion, nós mesmos temos vários. Mas entrar na Sala dos Portais significa estar cara a cara com o arcanjo Miguel.

         — Então a chave pode ser falsa?

         — É possível, mas acho que não. Posso sentir o poder do artefato — opinou Aziel, deslizando o dedo indicador sobre as runas místicas que delineavam a su­perfície do barro.

         Os dois ficaram em silêncio por um momento, arriscando hipóteses mentais que os ajudassem a lançar alguma luz sobre o mistério que se apresentava. Sieme estava atenta ao diálogo, mas continuava calada, lendo os pensamentos das pes­soas que passavam na rua. Achava que isso a ajudaria a compreender melhor o mundo onde estava, sobre o qual quase nada sabia.

         A reunião está começando; Essa não! Eu tenho um amigo que mora em Pequim; Puxa, que noite; Acho que vou comprar uma trava para o carro; Ah, ele é maravi­lhoso!; Vão jogar uma bomba na nossa cabeça.

         — Há alguma peça desse quebra-cabeça que não se encaixa, Aziel — constatou Ablon, preocupado.

         O ishim limitou-se a concordar. Também não conseguia pensar em nada que esclarecesse a situação.

         O general devolveu a chave de barro ao bolso do sobretudo. Depois, voltou o olhar à Chama Sagrada e retomou a conversa do ponto onde parara.

         — Com ou sem a chave, você acha que pode me ajudar a salvar Shamira?

         — Eu não. Mas talvez Gabriel possa.

         — Gabriel? — reagiu Ablon, surpreso. Agora era sua vez de estranhar as pa­lavras do amigo. — Gabriel é um arcanjo! Os arcanjos são nossos inimigos.

         Aziel trocou olhares com Sieme, que enfim entrou na conversa. Até ali, os dois celestes não tinham parado para pensar quanto tempo fazia que o renegado estava na terra, e que realmente não tinha como saber o que se passava no céu. Pela primeira vez, a Mestre da Mente falou:

         — Muita coisa aconteceu desde que você foi confinado à Haled, general. Aziel adicionou:

         — Acho que você está defasado em relação a mais de dois mil anos de his­tória celeste.

         O querubim nada disse, apenas se ajeitou na cadeira, esperando que os en­viados lhe explicassem o que de tão importante teria ocorrido em sua ausência. Aziel começou:

         — Logo depois do expurgo dos renegados, muitos de nós fomos tomados por um estranho sentimento, uma mistura de remorso e confusão. Queríamos estar ao seu lado, mas nada fizemos para impedir que Miguel os expulsasse. E também não tínhamos iniciativa para continuar sua luta. Talvez fosse o medo dos arcanjos, ou simplesmente a falta de uma liderança coesa... Não sei ao certo.

         Ao terminar a frase, o ishim foi interrompido. A garçonete trazia uma lata de suco de laranja e três copos. Sieme analisou o recipiente, sem saber como funcionava ou para que servia. Ablon puxou a tampa e serviu aos amigos, mas a serafim recusou o líquido amarelo, indiferente ao paladar. Quando perceberam que estavam a sós, Aziel continuou:

         — Alguns tomaram a decisão errada e se uniram a Lúcifer, na esperança de que a rebelião do Arcanjo Sombrio fosse uma continuação da sua, porém com mais chances de sucesso. Outros, como eu e Sieme, vimos as verdadeiras inten­ções da Estrela da Manhã e o rechaçamos. É claro, muitos abraçaram a revolução por anseios sinistros e diabólicos. Quando a batalha no céu eclodiu, só havia dois lados: ou você estava com Miguel ou com Lúcifer. Preferi o Príncipe dos Anjos porque, mesmo reconhecendo que era um tirano, achei que as coisas po­deriam ser piores se os rebeldes vencessem.

         Ablon bebeu um pouco de suco, sem tirar os olhos de Aziel.

         — Lúcifer caiu, junto com seus aliados — prosseguiu o ishim. — Com a vitória sobre os revoltosos, Miguel se fortaleceu e começou a se isolar cada vez mais no poder. Dos cinco arcanjos que governavam o paraíso, agora só sobravam quatro: Gabriel, Uziel, Rafael e o próprio Príncipe dos Anjos. Destes, apenas o Mestre cio Fogo era páreo para o ditador, mas seu desinteresse quanto à política celestial ajudou o irmão a galgar as escadas do trono. Sem Lúcifer para se opor a ele, o balanço de forças no conselho ruiu.

         — Diante desse quadro — interferiu Sieme — tudo levava a crer que em pouco tempo a Haled c seus habitantes sofreriam novos desastres.

         — Sim — concordou Ablon, acompanhando o raciocínio.

         — Sim — retomou Aziel. — E era isso que aconteceria no longo prazo. Mas então alguma coisa ocorreu, algo que mudaria para sempre o rumo das forças no céu.

         O guerreiro pousou o copo sobre a mesa, interessado. O ishim seguiu com suas palavras:

         — Há cerca de dois mil anos, o até então passivo Gabriel pôs-se em conflito com seu irmão. As divergências estavam relacionadas ao destino da Criança Sa­grada. Miguel queria dar fim ao menino, mas Gabriel se opôs ao assassinato. A contenda gerou um racha permanente nos Sete Céus. Com isso, o ideal da con­juração, semeado por você e pelos renegados, ganhou um novo impulso. O ar­canjo Gabriel deixou o Palácio Celestial e solicitou exílio na Cidadela do Fogo. É claro que teve todo o meu apoio. Uma legião fabulosa e imensa o acompa­nhou. Todos ali ansiavam por derrubar o Príncipe dos Anjos e pôr fim ao seu reinado de medo, tanto sobre os celestes quanto sobre os seres terrenos. Dese­javam acabar com a tirania e salvaguardar os mortais na Haled.

         — Miguel nunca entendeu que a humanidade é parte da criação divina — ar­gumentou Ablon. — Feri-la significa ferir também uma parte de Deus.

         — Mas mesmo depois de o paraíso ter sido palco de duas rebeliões, Miguel não se deu por vencido. Sua insistência arrastou as duas facções para uma guerra civil. O Quarto Céu transformou-se em um infinito campo de batalha, onde os exércitos lutaram, por mais de mil anos, em pé de igualdade. A cada instante, uma fortaleza caía e outra era retomada. As tropas estavam tão niveladas em termos de contingente e perícia que os progressos eram ínfimos. As forças do tirano não conseguiram invadir o Primeiro Céu e sitiar a Cidadela do Fogo, e nosso exército não foi capaz de subir ao Quinto Céu e atacar o palácio.

         — Mas com a chegada do Apocalipse tudo muda — afirmou Sieme.

         Aziel maneou novamente a cabeça, em uma afirmativa emocionada.

         — O Príncipe dos Anjos moveu sua base de operações para a Fortaleza de Sion, no plano etéreo, de onde espera iniciar a dominação da Haled, quando o tecido da realidade cair. Ele e os anjos que o acompanham já estão posicionados ao redor da bastilha. Mas essa manobra do inimigo, ironicamente, nos foi muito propícia. Diferentemente das investidas no Quarto Céu, onde as forças travavam combates isolados, no etéreo os exércitos poderão se enfrentar até o fim, digla-diando-se na grande Batalha do Armagedon. E aos ganhadores será reservado o prémio de assistir ao despertar do Altíssimo.

         A expressão do Anjo Renegado encrespou-se. A emissão do nome divino lançou sobre ele novas preocupações, trazendo à tona questões que supunha ser de menor importância.

         — No que está pensando, general? — perguntou Sieme, evitando ler seus pen­samentos.

         — Só em uma coisa que Lúcifer me disse. Para o Arcanjo Sombrio, Miguel estaria arquitetando um plano pelo qual usaria a energia liberada no despertar de Deus para atingir a própria divindade.

         Aziel e Sieme se entreolharam, mostrando-se absolutamente descrentes,

         — Essa idéia é absurda — protestou o ishim. — Você acredita mesmo naquele traidor?

         — Não, mas devo reconhecer que há algum sentido em seu discurso. Vocês acham mesmo que Miguel passará impune aos olhos do Criador no Dia do Juízo Final? Não, sem dúvida será o primeiro a ser condenado. Além disso, o retorno de Yahweh tira o arcanjo do rol das decisões. E não foi apenas o Diabo que le­vantou essa teoria. Urna entidade com quem conversei propôs a mesma coisa. Eu também custei a aceitar, mas, se você raciocinar bem, é bastante lógico. Só não consigo compreender por que Orion ou Lúcífer não me contaram sobre isso, sobre a guerra civil e o exército de Gabriel. Seguramente o demônio estava tramando alguma coisa ao ocultar-me todas essas informações.

         — Imagino que sim — retrucou Aziel. — A Estrela da Manhã está sempre ma­quinando algo. Você tomou a atitude certa em não firmar aliança com ele.

         — Isso eu nunca faria, de uma forma ou de outra. Mas se a batalha será entre Miguel e Gabriel, qual é a participação de Lúcifer nessa guerra?

         Sieme opinou:

         — A julgar por sua natureza vil, ele esperará que os dois exércitos se matem, para só então tentar um acordo com os vencedores, já enfraquecidos pelo com­bate. Todos sabemos quanto as hostes infernais são belicosas, mas ainda assim não são suficientemente fortes para enfrentar os anjos estacionados na Fortaleza de Sion nem nossa legião comandada pelo Mestre do Fogo.

         O Mestre do Fogo — esse era o principal título ostentado pelo famoso arcanjo Gabriel, graças ao seu absoluto poder sobre o calor e as chamas. O único que poderia fazer frente a ele nesse domínio era Lúcifer, que, além de muitas maes­trias, também era perito na arte elemental. Além desse, Gabriel tinha outros nomes, entre os quais O Mensageiro, Força de Deus, Príncipe da Justiça e O Anjo da Revelação. Foi ele quem anunciou a vinda de Cristo. Foi ele quem ofe­receu o perdão a Caim. Foi ele quem ditou as palavras do Alcorão a Maomé. Diferentemente de Miguel, Gabriel sempre atuou na esfera terrena.

         Talvez isso o tenha feito, em determinado momento, recusar as idéias brutais de seu irmão — pensou o renegado, e então recordou-se, espontaneamente, dos outros arcanjos, Uziel e Rafael. Onde estariam?

         — O que aconteceu com os outros arcanjos? — inquiriu Ablon, dando-se con­ta de que ainda não havia escutado a história toda. — Qual foi a posição que tomaram nessa guerra?

         Aziel sacudiu a cabeça, desta vez indicando uma negativa.

         — Rafael há muito deixou o reino dos anjos, desiludido com a atitude de seus irmãos. Perdeu toda a vontade de continuar governando e desistiu de tudo e de todos, isolando-se em alguma dimensão desconhecida. Já Uziel esteve ao lado de Miguel, liderando os querubins, há até bem pouco tempo, mas então, certo dia, sua aura simplesmente se apagou.

         O Primeiro General respirou fundo. Por um momento, amaldiçoou sua fal­ta de conhecimento. Se soubesse dessas coisas antes, teria as respostas certas para os momentos oportunos — como Lúcifer tinha. Mas não podia se culpar. A ver­dade, por mais fatalista que fosse, era que, fora as oscilações do tecido, não tinha outra maneira de obter notícias do mundo espiritual. As nuances da membrana carregavam apenas fracos resquícios sobre os acontecimentos que se sucediam em outros planos.

         Ainda preocupado com Shamira, voltou à questão do rapto:

         — E esse Anjo Negro, ou Anjo do Abismo Sem Fundo, como gosta de ser chamado? Não pude identificar sua aura. Carregava em si uma energia diferente de tudo o que já senti. O que sabem sobre ele?

         — Tanto quanto você, general — rebateu Sieme. — Ele serve apenas ao Príncipe dos Anjos, e a ninguém mais. É forte e poderoso, cruel e impiedoso. Nossos es­piões reportaram que nem mesmo os lacaios de Miguel conhecem sua verda­deira identidade.

         Ablon bebeu de uma vez todo o suco que restava no copo. Percebeu que o jogo de futebol, antes transmitido pela TV, havia acabado, e agora os clientes no bar assistiam ao noticiário matinal.

         Aziel e Sieme vieram à Haled prestar auxílio ao general, mas ele tinha a im­pressão de que não era só por isso que estavam ali. Havia algo mais. Tinham sido enviados por um arcanjo e, por mais que aceitasse a redenção de Gabriel, custava a acreditar que o Mestre do Fogo fosse tão altruísta. Voltou os olhos cinzentos aos dois celestes e resumiu:

         — Vocês têm uma inigualável legião de querubins e um líder forte como Ga­briel. O que querem de mim?

         — O Armagedon é a grande batalha — reconheceu Aziel —, o combate pelo qual todos os celestiais têm esperado. Você é o Anjo Renegado, aquele que pri­meiro desafiou as ordens do inimigo, e por isso tornou-se uma lenda. Os feitos de bondade e bravura perpetrados pela conjuração inspiraram muitos de nós, até mesmo o próprio Mestre do Fogo,

         — Gabriel não pretende continuar nos liderando por muito tempo — Sieme revelou. — Até então os dois exércitos lutaram em equilíbrio, mas em Sion nós seremos os invasores, e eles defenderão suas posições. Terão a vantagem de estar confinados em sua fortaleza. Por isso precisamos de você. Se o último anjo re­negado puder comandar nossas tropas, se o próprio ícone da resistência erguer a bandeira da liberdade, então a vitória será certa.

         Os serafins costumam ser frios e controlados, mas Ablon percebeu um bri­lho apaixonado na última frase da mulher-anjo. Seguramente havia ali uma imen­sa admiração, que a natureza autoconfiante de sua casta a impedia de demonstrar. Quando foi expulso do céu, o anjo guerreiro não esperava se tornar um mito, Era irónico pensar sobre isso, mas não foi ele quem cultivou essa reputação, e sim o arcanjo Miguel, que ordenou a caçada aos renegados. Se pelo menos um deles sobrevivesse às perseguições, como foi o caso de Ablon, se tornaria um mártir.

         Aziel e Sieme ficaram quietos, esperando ansiosos pela resposta do Primeiro General. O segundo que se seguiu pareceu-lhes uma eternidade.

         — Este é o tipo de proposta que se faz — disse Ablon, decidido, arriscando um leve sorriso com o canto da boca. Quando, havia milhares de anos, jutou vingar-se de Miguel e confrontá-lo no Dia do Ajuste de Contas, não esperava fazê-lo com uma legião sob seu comando. Mas se era assim que a situação se apresentava, tanto melhor.

         Azíel sorriu e pôs a mão no ombro do amigo, oferecendo-lhe apoio incon­dicional e jurando nunca mais abandoná-lo. Sieme fez apenas um gesto de apro­vação, mas seu contentamento não era menor que o do companheiro.

         — Contudo — ponderou Ablon — há um porém. Não posso me desmateria­lizar. Como espera que eu encontre as tropas de Gabriel acampadas no plano etéreo?

         A Mestre da Mente tinha a solução.

         — Tomamos conhecimento de um portal pelo qual você poderá passar sem ter de atravessar a membrana. A passagem nos levará às proximidades do local onde o exército do Mensageiro está se preparando.

         — Um portal? Portais são muito raros. Com quem obtiveram essa informação?

         — Com o próprio arcanjo Gabriel — revelou Aziel.

         O general tranquilizou-se. Se quisesse entrar de cabeça nessa guerra, não teria outra opção a não ser confiar em Gabriel e em seus anjos.

         — E onde fica esse canal místico?

         — Em uma caverna na montanha de Horeb, no deserto do Sinai.

         O deserto do Sinai pertence hoje ao Egito, mas fica próximo à Terra Santa. Ao imaginar aquele cenário milenar, Ablon lembrou-se de uma passagem do Êxodo bíblico. Conhecia bem as escrituras.

         — A montanha de Horeb? É onde o Antigo Testamento sustenta que o profeta Moisés teve sua primeira revelação de Deus. É compreensível. Só Gabriel po­deria saber a localização desse portal. Ele é o Anjo da Revelação, que apareceu ao hebreu em forma de fogo, ao lado da árvore que ardia em chamas. Por isso alertou Moisés para tirar as sandálias e não se aproximar da sarça. Se o profeta pisasse naquele solo sagrado, seria atirado para dentro do túnel místico.

         — Então devemos partir imediatamente — propôs Sieme. — Qual é o barco mais veloz que vocês têm por aqui?

         —Vamos tentar uma coisa um pouco mais rápida — sugeriu o general, achan­do graça na inocência da serafim. Ela não imaginava o que era um avião ou mes­mo um carro, embora já tivesse visto alguns automóveis circulando nas ruas.

         Ablon e Aziel, que já conheciam melhor os recursos modernos, não deram importância ao anacronismo da Mestre da Mente. Estavam mais preocupados com como chegar à Terra Santa, em um momento tão crítico como aquele, quan­do a Haled era sacudida por um conflito mundial. O Anjo Renegado, que já presenciara centenas de guerras humanas, sabia que todo tipo de locomoção se tornava difícil em tempos de crise. Calculou, pelo que vira nos jornais, que os aeroportos nos países árabes estariam todos fechados, portanto era inviável tentar chegar ao Egito de avião. A opção mais óbvia era embarcar em um voo para Is­rael e, a partir de Jerusalém, seguir de carro para a península do Sinai. Só não tinha pensado ainda como colocaria os dois anjos, Aziel e Sieme, sem passaportes ou documentos, dentro da uma aeronave.

         Jerusalém, a Cidade Santa — o nome soou como uma música triste na mente do general. Por anos, ele sonhou em conhecer aquela região que, no passado, fora palco de momentos históricos tão significantes e grandiosos. Imaginava como seria caminhar sobre suas muralhas, vagar pelo monte das Oliveiras e ex­plorar os santuários judeus, cristãos e muçulmanos. Mas Ablon era um exilado. Nunca pôde se aproximar da Terra Sacra, território proibido a todo anjo rene­gado. Jerusalém sempre esteve cercada pelos agentes de Miguel, que estendiam suas rondas desde o mar Morto até a linha do Mediterrâneo. Ultrapassar aquelas fronteiras era, para qualquer inimigo dos arcanjos, um ato suicida. Agora, porém, com a chegada do Apocalipse, Miguel chamara todos os seus soldados para de­fender a Fortaleza de Sion, suspendendo as patrulhas e posicionando esses guer­reiros na linha de frente. Pela primeira vez, a cidade estava desprotegida, e o Anjo Renegado poderia adentrá-la sem problemas.

         — Sieme está certa. Não devemos perder mais tempo — concordou o guerreiro, olhando por cima dos ombros e procurando a garçonete. Ao ver a moça, fez sinal para encerrar o serviço.

 

         Os três anjos já se preparavam para levantar, quando uma dor terrível os acometeu. Não sabiam de onde vinha, e diante dela ficaram inúteis. Chegou sob a forma de um barulho estrondoso, um eco estridente que os perfurava e os paralisava. O flagelo auditivo os queimou por dentro, e Aziel, tomado pelo sofrimento, tropeçou e caiu. A cabeça de Sieme, que era a mais sensível dos três, ameaçou explodir. A serafim apagou por um segundo, mas logo retornou à cons­ciência, quando o assobio místico se calou.

         Aziel, ainda desorientado, pôs-se de pé. As pessoas no bar, curiosas, olhavam para ele, imaginando por que um homem jovem e saudável desmaiara tão de repente. A garçonete, solícita, veio ajudá-lo, e a Chama Sagrada constatou que ele, Ablon e Sieme haviam sido os únicos afetados pela sensação.

         — O senhor está bem? — perguntou a garçonete, amparando Aziel.

         — Ah, sim... obrigado, foi só uma leve tontura — disfarçou o ishim, ainda desnorteado.

         — Vou buscar um copo-d'água — ofereceu a moça, correndo ao bar.

         — A Segunda Trombeta — os anjos ouviram Ablon dizer, enquanto se recupe­ravam. O renegado já tinha ouvido o silvo da primeira, por isso não ficara tão impressionado.

         — No Primeiro Céu, onde estávamos, o sopro não foi tão agudo — resmungou Sieme.

         — O que acabamos de sentir foi um rasgo permanente no tecido — explicou o general, pondo algumas moedas na mesa. — A Haled está toda permeada por cie, e é natural que o ruído seja mais forte no mundo físico. O que vocês ouviram no Primeiro Céu foi apenas um eco do que aconteceu aqui — concluiu, dirigindo-se à saída. Aziel e Sieme o seguiram.

         — A guerra dos humanos acaba de ser declarada. O mundo está sendo ata­cado — disse o querubim. — Temos de chegar a Jerusalém antes que a cidade se converta em cinzas.

         — E como pretende viajar ao Oriente Médio? — questionou Aziel. — Conhe­ço alguns atalhos pelo plano astral, mas você não pode se desmaterializar.

         — Vamos embarcar em um voo para Israel hoje mesmo. Acho que tenho um passaporte antigo nos escombros de meu apartamento. Mas não há como mas­carar a identidade de vocês dois. Ainda não sei o que fazer.

         — O que é um passaporte? — perguntou Sieme.

         — É como uma carta de fronteiras — esclareceu Aziel à parceira. — Precisamos dela para ingressar em outros países. Sem esse papel, não temos como entrar na Terra Santa.

         — Deixe isso comigo — retrucou a Mestre da Mente. Ela tinha métodos mais eficientes, porém menos éticos, para ajudá-los a passar pelos postos da polícia. Ablon aceitou de imediato o inestimável auxílio da mulher-anjo e abençoou Gabriel por tê-la enviado àquela missão. Certamente o Mestre do Fogo previra sua utilidade. A ajuda de uma telepata era indispensável, mas aquele não seria o único obstáculo que precisariam superar.

         Ablon viajaria pela primeira vez a Jerusalém e sentiu um frio na barriga ao lembrar-se da última vez em que caminhara por aquelas bandas e de como fora barrado ao alcançar os portões da cidade, muito tempo atrás. Foi uma das poucas vezes em que fora obrigado a recuar e a dar as costas ao seu objerivo.

         Determinado, decidiu que, desta vez, entraria em Jerusalém e não retroce­deria de novo.

         Por um segundo, o Primeiro General fechou os olhos e, em um único instan­te, recordou-se daquela que, provavelmente, fora a mais célebre de suas aventuras.

 

Vale do rio Amarelo, norte da China, perto do ano 1 a.C.

Perigo Invisível

A viagem fora longa, mas finalmente lá estava eu, no Oriente. No princípio, custei a acreditar que tinha chegado tão longe. Deixei Roma no ano 61 a.C., logo após César, Crasso e Pompeu terem instaurado o triunvirato, e caminhei calmamente em direção ao leste, sem me preocupar muito para onde as estradas me levariam. Não pretendia voltar tão cedo à Cidade Eterna, mas alguns pro­blemas me obrigaram, mais tarde, a alterar os planos. Naquele dia quente de julho, porém, eu não imaginava quão perigosa seria minha jornada às províncias chinesas, entáo governadas pela dinastia Han.

         Em 202 a.C., uma feroz guerra civil derrubou os monarcas Qin, e Gaozu, o primeiro imperador Han, subiu ao poder. Com ele, a China conheceu um novo período de prosperidade e expansão, conquistando extensos territórios ao sul e na península da Coreia. Indiferentes a esses conflitos, os camponeses se­guiam uma vida tranquila, e foi com essas pessoas simples que tive contato du­rante quase todo o tempo em que estive trilhando aquelas planícies férteis.

         Depois de três dias caminhando, meu objetivo inicial fora completado — eu havia chegado, são e salvo, às margens do rio Amarelo. Vi o sol se deitando atrás das montanhas e achei que era uma boa hora para fazer uma pausa e lavar o rosto. Parei diante de uma falésia de dez metros, cuja queda levava ao leito do rio, responsável por abastecer toda a região e irrigar o solo. Mas minha idéia não era enfrentar aquela língua-d'água. Desejava justamente acompanhar a mar­gem e seguir para o norte, até a bela Muralha de Zhao, construção que anos depois veio a integrar o extenso conjunto de fortificações que deram origem à Muralha da China. De lá, talvez esticasse minha viagem ao deserto de Gobi, com suas áridas planícies e rincões inabitados.

         A noite chegou e os poucos camponeses que continuavam recolhendo arroz deixaram as plantações e voltaram para casa com balaios enormes. Fiquei sozi­nho, no alagado, e resolvi procurar uma área seca onde pudesse esticar as roupas molhadas. Por sorte, logo encontrei uma pedra, cujo topo formava uma superfície plana. Joguei primeiro as botas e depois saltei sobre a rocha, sentindo-me bem melhor ao pisar em solo áspero e quente. Lá de cima eu tinha uma excelente visão de toda a esplanada, e me espantei ao ver como era ampla, continuando ao sul, além do rio, até o coração da China. A oeste o terreno ia ficando mais árido, até que os montes viravam morros, e estes, montanhas, para se alinhar, quilômetros à frente, à grande cordilheira do Himalaia.

         Fechei os olhos e mergulhei em profunda meditação. Tudo estava de acordo: o clima, a noite, o cheiro de terra molhada e até mesmo o eco regular das ma­rolas do rio se arrastando contra a encosta.

         O inimigo nos ataca quando menos esperamos. E, de todos os meus adver­sários, o próximo a me enfrentar seria o mais inesperado de todos.

         Naturalmente, naquela noite de verão, eu ainda não sabia disso.

 

         Quando o sol raiou, segui caminhada pelos campos de arroz. Para não cha­mar atenção, conservava o rosto coberto por um capuz, mas meu porte avan­tajado me denunciava. Era mais alto que os lavradores e mais forte que os guer­reiros que patrulhavam aquelas cercanias.

         Agachados, recolhendo os cereais, os agricultores me lembravam anões autó­matos, criados para desempenhar apenas uma função. Vestiam-se todos iguais, com roupas escuras de algodão e largos chapéus de palha, necessários para su­portar um dia inteiro trabalhando sob o sol forte. Raras vezes tiravam as mãos de dentro da água, então era difícil observar-lhes a pele e o rosto.

         À exceção de alguns olhares amedrontados e meia dúzia de palavrões, os po­bres lavradores não tinham como me ameaçar, por isso não me preocupei com eles. A viagem, portanto, evoluía sem problemas, quando, em uma daquelas tardes de marcha, enquanto a chuva caía fininha sobre a lavoura, meu senso de perigo foi ativado. Destro, pulei para trás, procurando as sombras de uma árvore, e ali fiquei em silêncio, preparado para qualquer investida. Mas não vi ninguém além dos trabalhadores que, distantes, davam continuidade a seu trabalho. On­de estaria o adversário para o qual minha intuição me alertara? Não havia nada ali — nenhuma presença, nenhum abalo no tecido da realidade. Vasculhei a plan­tação com meus sentidos de predador e, desconfiado, observei a alma de cada um dos camponeses. Não captei nenhuma dissonância psíquica. Eles eram hu­manos, simples mortais, e não entidades em cascas físicas.

         Fiquei sob a árvore por mais meia hora e, ao me certificar de que nenhum anjo ou demônio circulava a plantação, voltei à trilha. Não consegui parar de pensar no que tinha acontecido.

         Meu senso de perigo nunca falhara.

 

Nathanael, o Mais Puro

         Assim correram os dias, até que uma semana depois deixei o vale e avistei no horizonte uma linha de pedras marrons, que bloqueava a passagem para o norte. Não era uma formação natural, mas uma fortificação erigida pelo homem — era a primeira imagem que, a distância, um forasteiro tinha da grande Mu­ralha de Zhao. Aos poucos, tornaram-se visíveis também os galhardetes, as ban­deiras, os animais de guerra e os soldados alinhados em guarda.

         À saída do vale, o clima e o terreno ficaram mais secos, e a vegetação, mais esparsa. Naquele solo acidentado, eu levaria mais dois dias para alcançar o co­losso de pedra, mas, como não tinha pressa, à chegada da noite, fiz mais uma daquelas minhas longas paradas para apreciar o céu.

         Ao fixar a atenção no céu estrelado, pus a mão dentro da algibeira e tateei, nas moedas de prata, o rosto do ditador Sila em alto-relevo. Quase imediata­mente, minhas lembranças me transportaram de volta à Cidade Eterna. Roma não era o tipo de lugar para um anjo renegado. A burocracia apoderara-se do Estado. Viver em meio à civilização demandava possuir documentos, registros c papéis que eu não podia me dar ao luxo de ter. Mas devo admitir que passei bons momentos na capital do mundo. Durante os últimos anos da República, Shamira, após uma longa viagem à Ásia, chegou à Cidade das Sete Colinas. Apai­xonou-se pela efervescência urbana e decidiu comprar uma casa confortável perto do monte Capitolino. Os magos costumam ter fascínio pelo conhecimento, e Roma era o ponto para onde todas as informações convergiam. Não demo­rou muito para que, ao passear pelas calçadas, eu sentisse o cheiro doce de sua pele. Foi em um dia gelado do ano 62 a.C. que, por acaso, nos encontramos às margens do Tibre. Fazia duzentos anos que não a via, e tínhamos muito a contar um ao outro. Relaxamos ao sol, no átrio da casa romana, e a manhã, a tarde e a noite daquele inverno urbano correram embaladas por histórias de demônios, bruxos, espíritos e anjos. Um desses relatos, e, vale dizer, o mais impressionante, ilustrava um evento que assustara os magos ao redor do mundo: o assassinato de Drakali-Toth, que até então era o maior dos necromantes e que fora o princi­pal instrutor de Shamira. Ninguém sabia quem cometera o crime, mas especu­lava-se que sua morte estava ligada ao assassinato de outros mestres feiticeiros.

         Um ano depois, no outono de 61, achei que seria prudente deixar a cidade — não podia esquecer que continuava sendo caçado.

         Eu fechara os olhos ao imaginar aqueles dias felizes e deixara as constelações para depois.

         Foi então que, na escuridão noturna, em meio aos pontinhos de luz, uma estrela começou a brilhar com majestosa intensidade. Da altitude extrema, o astro começou a descer, e o céu inundou-se com seu fulgor dourado. Não era uma estrela que caía, não era um meteoro errante nem mesmo um tanto de poei­ra cósmica. O esplendor que eu contemplava era um anjo, uma entidade que descia à terra. E por seu lume ficara evidente que era um ofanim.

         De todas as castas de anjos, os ofanins são os mais puros. Dedicam-se a pro­teger os mortais e a guiá-los à salvação. Atuam com frequência no mundo espi­ritual, afastando os homens do assédio de demônios e espíritos maus. Não raro, formam avatares e, disfarçados de pessoas comuns, vêm ao plano físico ajudar os necessitados, os pobres e os desgostosos de si. Amam como ninguém os seres humanos e repudiam os massacres perpetrados pelos arcanjos. Suas divindades concentram-se principalmente em habilidades de cura, física ou mental. São também hábeis em manipular partículas de luz, o que lhes permite fazer o pró­prio corpo reluzir.

         Ao perceber a que casta pertencia o visitante celeste, inflei-me de paixão. Sua simples presença me inspirava coragem e, tranquilo, observei a estrela viva suprimir seu brilho ao descer em minha direção. Mesmo ofuscado, eu agora já podia distinguir suas formas, mas não as feições que lhe compunham a face. Seguramente eu o conhecia, mas ainda era impossível dizer quem era. Voava gracioso, com o auxílio de um par de asas.

         Ao fim de sua trajetória descendente, o ofanim aterrissou, recolhendo as penas. A luz, outrora deslumbrante, foi murchando e enfim resumiu-se a um único pulso brilhante, concentrado no coração.

         — Paz, meu amigo! Rogo-lhe que não tema, pois não venho como juiz ou carrasco — anunciou uma voz masculina, que soava como uma melodia infinita. — Procuro por Ablon, o Primeiro General, e não pelo anjo renegado que os agentes da vergonha insistem em perseguir.

         À audição, o timbre soou familiar, mas minha mente ainda estava confusa.

         — Se não me deseja mal, então aproxime-se para que eu veja seu rosto.

         O anjo chegou mais perto e, à luz de seu coração pulsante, reconheci o sem­blante de Nathanael, um celestial que carregava a alcunha de O Mais Puro. Tinha longos cabelos dourados, e os olhos eram como peças de cobre. Eu e Nathanael havíamos sido grandes amigos. Mesmo pertencendo a uma casta de natureza pacífica, ele tinha a coragem de um leão, e a história de seus feitos era coroada de glórias.

         Eu sabia que, mesmo sendo um anjo e tendo acabado de descer dos céus, Nathanael jamais levantaria um só dedo contra mim. A amizade que eu tinha por ele era tão forte quanto a que sentia por Orion e Aziel. Ao perceber minha fisionomia de contentamento, o ofanim abriu os braços e nos abraçamos for­te. Além da felicidade de reencontrar um companheiro, as emanações de sua aura transmitiam harmonia e confiança.

         — Nathanael, meu bom Nathanael. Que bons ventos o trazem, velho amigo?

         Ele sorriu brevemente, mas logo retomou a expressão séria, indicando, pe­lo olhar, que a situação era crítica.

         — Refiz seu rastro desde a Cidade das Sete Colinas e felizmente o encontrei a tempo. Você é difícil de achar, general.

         O tom grave empregado pelo Mais Puro me deixou apreensivo. Poucas ve­zes o vira tão sisudo.

         — Então suponho que o que tem a me dizer seja muito importante.

         —Talvez nunca tenha havido algo de tamanha importância, e provavelmente

nunca mais haverá — afirmou Nathanael, em caráter épico. — Se não fosse assirn, não voaria do Ocidente para alcançá-lo. Mas, apesar de minha jornada ter sido árdua, preciso ser breve. Estou correndo um risco enorme. Ninguém de­ve saber que vim à sua presença. Todavia, nossa amizade é duradoura, e achei que você deveria saber o que se passa.

         Evidentemente havia um risco tremendo em Nathanael vir ao meu encon­tro, afinal eu era um criminoso, e ninguém desejava ser cúmplice de um fugi­tivo.

         O Mais Puro me encarou profundamente com seus olhos de cobre, preparan­do-se para proferir a mensagem que tanto se empenhara em trazer.

         — A oeste, na Terra de Canaã, o arcanjo Gabriel profetizou a vinda de uma criança sagrada — anunciou.

         — Uma criança sagrada? — eu ainda não percebera a gravidade do fato. — O que ela é? Algum tipo de santo?

         — É muito mais do que isso, general. Essa criança poderá mudar o destino da humanidade. É nessa alma que estamos depositando toda nossa esperança. Sem ela, a civilização humana dentro em pouco cairá em desgraça.

         Que figura prometida seria aquela? Qual seria a extensão de seu poder?

         — Não compreendo, Nathanael. Como posso ajudá-lo?

         — O arcanjo Miguel anseia pela corrupção da humanidade. Ele deseja ver o ódio crescer no coração dos homens, para que possa justificar os próprios mas­sacres. Por isso sabemos que tentará matar a criança. Alguns anjos, como eu, se uniram para proteger a vida do Salvador e dar-lhe a chance de espalhar sua men­sagem ao mundo. Ainda somos poucos, mas estamos crescendo em número. Não sei se estou certo em meu julgamento, mas achei que esta seria a oportu­nidade para você retomar sua luta. Conheço uma legião que o seguiria.

         As palavras de Nathanael, e a maneira como ele falara, me fizeram, de ante­mão, entender que a chegada daquela criança sagrada afetaria não só a história humana, mas também o balanço de forças no céu. Se o ofanim viera até mim, então havia, com certeza, outros anjos dispostos a pegar em armas para defender a legitimidade do Iluminado, Mas por natureza eu era precavido, e deixei esca­par o comentário:

         — Como posso ter certeza de que esta não é uma cilada armada pelos arcan­jos para reunir e capturar os renegados? Talvez eles tenham induzido você a vir até mim.

         Se na época eu soubesse a grandiosidade do acontecimento que estava por vir, não teria sido tão pretensioso. Mas ameaças de traição viviam povoando mi­nha mente. Era algo inevitável, uma cicatriz perpétua deixada pela falsidade de Lúcifer.

         — Conheço bem a perspicácia dos arcanjos, Ablon, e posso lhe garantir que ninguém me mandou aqui. Vim sozinho. Além do mais, vi a mãe e a criança iluminada no ventre dela. Se você também as tivesse visto, entenderia o que es­tou falando. Infelizmente, não há como pôr em palavras esse tipo de sensação. Você deve prová-la por si mesmo. Por isso acho que deveria ir à Terra Santa. Eu não mentiria para você, meu amigo. Você acredita em mim?

         É claro que sim, claro que acreditava nele. Em quem mais poderia acreditar, se desconfiasse de alguém cuja principal missão fora, em uma época longínqua, invalidar os argumentos do Príncipe dos Anjos e tentar evitar o dilúvio? Confesso que me senti envergonhado por, ainda que por um momento, ter questionado as intenções do Mais Puro.

         — Acredito em você, Nathanael.

         Ele se permitiu um sorriso, e, naquele instante, eu o vi como realmente era: um anjo alegre, confiante, caridoso, que agora carregava um tremendo fardo nos ombros, uma responsabilidade que, supostamente, todos os celestiais de­veriam assumir.

         — Então — retomou o Mais Puro — você deve partir para Canaã o mais rápido possível. O menino nascerá no solstício de inverno.

         — E as sentinelas de Miguel que vasculham o mundo espiritual? Sei que há querubins montando guarda no plano astral, por toda a região. Você conhece algum meio de evitá-los?

         — Enquanto o Salvador viver, os interesses celestiais estarão todos voltados para ele. Os agentes de Miguel tentarão exterminá-lo, e faremos de tudo para defendê-lo. Isso não quer dizer que as patrulhas serão suspensas, mas a presença do Iluminado na Terra Santa provocará alvoroço. Você poderá se aproveitar des­sa distração para alcançar os portões de Jerusalém. Ainda não sabemos ao certo onde o menino nascerá, mas estamos concentrando nossas forças na Cidade Sa­cra. Viaje como homem comum e caminhe nas sombras sempre que possível.

         — Mas desse jeito levarei anos para chegar ao Oriente Médio. Como renega­do, nunca me arrisquei além do mar Morto, e desconheço as rotas que cruzam aquela área — argumentei, contando que o Mais Puro tivesse uma solução. Sin­ceramente, não via meio algum de percorrer mais de oito mil quilômetros em seis meses.

         Felizmente o ofanim já tinha pensando nisso.

         — Voarei bem alto, acima das estrelas, em direção à Palestina, Siga minha luz e encontrará o caminho.

         Viajar sob as estrelas. Era o que eu fazia melhor. Sabia guiar-me por elas e, se pudesse contar com o auxílio de um astro próprio que me indicasse as coor­denadas, alcançaria Canaã em tempo recorde. Calculei, no entanto, que, mesmo tomando os atalhos certos e não parando durante a noite, seria impossível che­gar a meu objctivo antes de dezembro.

         — Mesmo guiado por você, não posso garantir que estarei lá para o nasci­mento. Porém, asseguro-lhe que caminharei sempre observando o céu. Não o perderei de vista.

         — Sua noção de compromisso é invejável, meu amigo. Sim, eu entendo. Mas evite atrasos. Como qualquer ser de carne e osso, um dia o Salvador morrerá. Não devemos permitir que isso aconteça antes que ele conclua sua obra — de­clarou, orgulhoso, e concluiu:

         — Contamos com você. Precisamos do Primeiro General.

         Limitei-me a concordar, balançando lentamente a cabeça para baixo. Res­peitei o silêncio e vi o Mais Puro se afastar. Os cabelos dourados e os olhos de cobre foram se fundido à luz crescente do coração, que se expandiu em um fei­xe excelso, transformando a noite em dia. Em segundos, todo seu corpo havia se convertido em um imenso clarão, que subiu aos céus e tomou lugar entre as estrelas. Permaneceu ali, como o mais brilhante de todos os corpos celestes e, quando atingiu a altitude máxima, iniciou sua trajetória ao oeste.

         Eu precisava acompanhá-lo. Imediatamente.

 

Na Armadilha

         A necessidade de viajar ligeiro me levou a tomar uma estrada de terra batida, que era a rota oficial chinesa até a Muralha de Zhao. A dinastia Han, que então sofria com ataques de rebeldes, incentivou, desde o princípio, a abertura de es­tradas. Os imperadores Han eram, na maioria, militaristas, mas também valo­rosos defensores do comércio. Nunca antes a China conhecera uma troca comer­cial tão intensa com o Ocidente. Aos gregos e aos romanos vendia-se de tudo, desde ouro e jade até pimenta e cavalos. Mas certamente o produto mais apre­ciado pelos estrangeiros era. a seda, que por seu alto valor era comercializada às sacas e seguia em caravanas até a Anatólia, atual Turquia, para depois embarcar em navios para a Europa. Com o crescimento da demanda, o número de mer­cadores de seda que viajavam às províncias chinesas aumentou, e o caminho por eles percorrido tornou-se famoso e recebeu o nome de Rota da Seda. A es­trada, que atravessava praticamente toda a Ásia, encontrava seu ponto final na cidade de Antióquia, às margens do mar Mediterrâneo.

         A muralha que se erguia diante de mim começara a ser construída por volta de 300 a.C., durante a dinastia Qin. Os Han só fizeram ampliá-la, e foi no rei­nado do imperador Wu que essas defesas foram estendidas para oeste, aden­trando o território tibetano. Imensos blocos de pedra sobrepostos compunham sua estrutura, que atingia, em certos pontos, dezesseis metros de altura. Ao lon­go de sua extensão, o paredão defensivo contava com torres de guarda a cada cinco quilômetros, onde as tropas fronteiriças acampavam e vigiavam as planí­cies que terminavam no deserto de Gobi. Quando o nevoeiro se dissipou, a pri­meira coisa que vi foi precisamente uma dessas torres. Sob ela havia um portão retangular, através do qual passavam caravanas oriundas de várias partes do mun­do. Essa legião de comerciantes, juntamente com suas carroças, animais e es­cravos, aglomerava-se à volta de uma estalagem solitária, único estabelecimen­to existente no largo em frente ao gigante de pedra.

         Durante o dia, não era possível distinguir a luz estelar emanada por Nathanael em pleno voo, mas eu memorizara sua direção e estava seguro de que não me perderia. Segundo suas coordenadas, eu não me desviaria do caminho se des­cesse a colina e atravessasse a muralha. Desejava tomar a rota pelo norte, aden­trando o deserto, onde um andarilho podia caminhar em Unha reta indefini­damente, sem ser surpreendido por barreiras naturais.

         O largo defronte à muralha estava lotado. Notei a presença de ocidentais no acampamento, o que me deixou mais tranquilo. Ali, certamente, meu disfarce de viajante grego cairia como uma luva, embora não houvesse ninguém de pele tão clara. Logo encontrei um sapateiro e adquiri o melhor par de botas de couro que ele possuía no estoque. Consegui também, a um alto preço, um mapa de pergaminho da estrada que cortava o deserto de Gobi e troquei boa parte de meu dinheiro romano por moeda chinesa. Eram peças de bronze furadas no centro. O orifício servia para que as moedas fossem presas umas às outras com um fio ou barbante.

         Com isso estava, pois, pronto para partir.

 

         Já eram quinze horas e andei mais cinquenta metros até o portão, que se fe­charia em poucos minutos. Foi nesse instante, quando já estava de costas para o largo da estalagem, que novamente meu senso de perigo disparou. Imediata­mente, o reflexo falou mais alto, e voltei a atenção para a praça do comércio, assumindo uma postura defensiva. Dali tinha uma visão clara das pessoas que ca­minhavam pela área pavimentada. E o que me deixou mais assustado foi que não pude, mais uma vez, identificar o inimigo. Seria apenas paranóia de minha mente? Ou meu senso de perigo teria finalmente entrado em colapso?

         Apreensivo, observei as pessoas que circulavam e concluí que eram todas mortais — simples seres humanos que não faziam a menor idéia de que eu era um anjo. Como poderiam me ameaçar?

         Andei até a passagem sob a muralha, estacando antes de atravessá-la. Dali a cinco minutos os guardas baixariam a grade de ferro, bloqueando a saída e abrindo-a novamente ao nascer do sol do próximo dia. Alguma coisa, contu­do, me impedia de prosseguir. O que seria?

         Um tipo de sensação desconhecida se apoderara de mím, confundindo mi­nha mente. De repente, a fabulosa idéia de tomar a rota pelo deserto me pareceu totalmente absurda. Senti-me estranhamente impelido a recuar para o sul, vol­tando ao vale do rio Amarelo. De lá poderia rumar a oeste até o ponto inicial da Rota da Seda em Chang'an, a capital chinesa, e caminhar com as caravanas pelo corredor de Gansu até a Ásia Central. Sim, é uma boa alternativa, pensei.

         Não, era péssima! Era o pior caminho que eu poderia tomar. Todavia, por algum motivo, naquele momento, a trilha pelo sul me pareceu a melhor. Mais do que isso: eu tinha uma necessidade inexplicável de seguir aquele trajeto. De onde partira aquele desejo?

         O portão se fechou, e o barulho do metal despencando contra o chão de pedra ficou-me gravado na memória.

         Eu caíra na armadilha.

 

Chang'an

         Um mês se passou desde que eu desistira de viajar pelo deserto de Gobi. Da Grande Muralha, onde eu estava, segui para sudoeste até chegar à capital, Chang’an. Meu único objetivo ali era trocar o mapa do deserto que eu tinha por um que me indicasse as vias da Rota da Seda pelo corredor de Gansu, que se espremia entre os montes Qilian e o paredão norte da muralha.

         À noite, a luz de Nathanael ainda piscava, o que me garantia certa seguran­ça em relação à direçáo que deveria tomar. Mas o brilho do ofanim não reluzi­ria para sempre. E eu tinha a terrível sensação de que já me atrasara demais.

         No século I a.C., Chang'an era a sede do governo, onde moravam o impe­rador e todos os seus funcionários. Era uma enorme cidade murada, com três portões principais na parede sul, que se abriam para as avenidas internas. Os no­bres e mandarins residiam perto do palácio, em uma verdadeira cidadela ao nor­te da cidade, onde um exército protegia a integridade do monarca e sua corte.

         Ao meio-dia cheguei à praça do mercado, bem na hora em que os comercian­tes iniciavam suas atividades. Ali perto havia uma casa de vinhos, um estabele­cimento público onde moradores e viajantes se reuniam para beber um pouco e conversar sobre qualquer assunto. Tinha dois andares e ficava de pé graças às resistentes vigas de madeira que sustentavam sua estrutura. Uma soleira estreita levava à porta de entrada, uma ampla abertura que podia ser fechada com uma frágil tela de correr. Escolhi um canto no primeiro andar e me sentei no chão, com as pernas cruzadas, pois as mesas eram baixas, como quase todos os móveis na China. Uma bela moça de roupão verde-claro e sapatilhas pretas aproximou-se de mim carregando uma bandeja de tiras de bambu. Meus trajes eram sim­ples, mas, pela minha aparência ocidental, todos achavam que eu era um mer­cador, e esse tipo de gente quase sempre leva algum dinheiro consigo.

         Ela abaixou a cabeça em sinal de respeito.

         — Haurá cumprimentou-me a chinesa, usando uma expressão já esquecida hoje em dia, que significa algo do tipo "vida longa". —Aprecia algum tipo es­pecial de vinho?

         — Pode me trazer qualquer um deles — respondi, modesto. — Vocês aceitam prata?

         — Naturalmente, meu senhor. Mais alguma coisa?

         — Não, obrigado — agradeci, pronto para dispensá-la, mas então mudei de idéia. Resolvi me adiantar e buscar logo a informação que procurava. — Na ver­dade, talvez você possa me ajudar. Procuro por um mapa da Rota da Seda, sa­be onde posso conseguir?

         — Na praça do comércio. Mas acho que seria mais simples contratar um guia até Wu-Wei. E não há lugar melhor para conseguir um guia do que aqui, na capital.

         Ponderei por um segundo. Não era bem isso que eu tinha em mente.

         — Está bem, eu agradeço — repliquei, escondendo o desinteresse pela sugestão. A moça fez uma vénia e se afastou, indo buscar a bebida.

         Fiquei ali parado, olhando através da janela e imaginando como trocaria o mapa. Antes de o vinho chegar, escutei, atrás de mim, a discussão de dois ho­mens, aos quais não dera muita importância ao entrar. Estavam bebendo ern uma mesa próxima e, graças à minha fluência no idioma local, logo entendi que se referiam a mim. Quando olhei para trás, um deles me chamou.

         — Eí, estrangeiro! Venha até aqui. Sente-se conosco.

         Pelas vestes azul-claras, limpas e novas, supus que eram comerciantes. Po­diam também ser nobres ou mandarins, mas dificilmente um funcionário im­perial se juntaria ao povo em um estabelecimento público. Um deles era mais wclho. O cabelo branco e a pele castigada indicavam que já chegara aos 60 anos. O outro, que havia me chamado, era mais gordo e gargalhava repetidamente enquanto bebia o vinho em uma tigela vermelha.

         Como precisava conhecer a área e fazer contatos, aceitei o convite, juntan­do-me aos dois alegres chineses. O gordo não esperou que eu me sentasse para se apresentar:

         — Como está, forasteiro? Sou Shen, e este ao meu lado é Wang. Somos co­merciantes de Luoyang — disse, sorridente. — E você, quem é?

         A pergunta de Shen me pegou meio de surpresa. Antes de meu encontro com Nathanael, eu não planejara parar em cidades, por isso não havia pensado em um nome de viagem que pudesse usar nas terras orientais.

         — Sou um forasteiro, um viajante ocidental — respondi apenas.

         O velho Wang disparou uma sonora risada,

         — Isso é fácil de notar, meu jovem. Estamos querendo saber qual é seu nome. Meu semblante se encrespou, e o mercador aparentemente entendeu minha hesitação.

         — Ah, entendi — exclamou Shen, olhando para o velho Wang. — Não quer dizer seu nome. Tudo bem. O que importa isso, afinal?

         — Venho de Roma — despistei.

         — Que interessante — divertiu-se o mais gordo. — Escute, estrangeiro, eu e meu sócio ouvimos você falando com a moça dos vinhos. Então precisa de um mapa da Rota da Seda?

         — Vocês são sócios? Que tipo de sociedade presidem? — eu não estava muito interessado, mas achei que deveria demonstrar um mínimo de desconfiança. Os negociadores aproveitam-se de seus interlocutores quando percebem que são convencidos muito facilmente.

         — Estamos à frente de uma caravana de seda. Além do tecido, levamos tape­tes e porcelana. Mas estávamos falando dos seus negócios.

         — Sim, estou disposto a comprar o mapa, se bem que preferia trocá-lo por um que tenho aqui. Indica as trilhas de camelos pelo deserto de Gobi.

         Os dois voltaram a rir, e Shen quase se engasgou com o vinho. Pelo hálito, não era difícil perceber que estavam embriagados. No entanto, articulavam bem as palavras.

         — Um mapa de Gobi? — prosseguiu o gordo. — É peso morto por aqui. Nunca vai conseguir trocar isso pelo que quer. A estrada pelo deserto é uma via alter­nativa. Só é usada pelos árabes.

         — É uma pena. Necessito seguir o quanto antes para o Ocidente.

         Os dois chineses se entreolharam, mas dessa vez só trocaram sorrisos. O velho adiantou a proposta:

         — Foi por isso que o chamamos aqui — começou Wang, — Eu e Shen estamos de partida para a cidade de Wu-Wei, no oeste. Se quiser, pode seguir conosco.

         Fiquei sério, mas tomei cuidado para não parecer arrogante. Viajar com uma caravana seria o ideal, mas era lógico que aqueles mercadores não me levariam de graça.

         — E o que querem em troca?

         O velho deu outra gargalhada e falou alto, para todos ouvirem:

         — Isso é que é um romano de verdade! Está vendo, Shen, por que eles do­minaram o mundo?

         — Dominaram coisa nenhuma — devolveu o gordo, um pouco indignado, mas conservando o bom humor. Depois olhou para mim e resumiu a missão que lideravam:

         — Nosso comboio sairá daqui ao pôr do sol. Vamos deixar a carga em Wu-Wei e depois voltamos. São três carroças ao todo, oito mulas e cinco cavalos. O que me diz de nos prestar escolta até lá?

         — Escolta? — estranhei. Não estava em meus planos trabalhar para ninguém.

         — Claro, rapaz — disse Shen. — Olhe só para você. Tem duas vezes o tamanho de qualquer chinês. Precisamos de um guarda-costas, e até agora não consegui­mos nenhum.

         — Entendi agora. A estrada está cheia de ladrões, não é?

         — Mais do que nunca. Não vou mentir para você. Não podemos pagá-lo em dinheiro, mas consigo o mapa que quer quando chegarmos a Wu-Wei. E de lá pode continuar sua jornada até Antióquia, se quiser.

         Eu não pretendia trabalhar para ninguém, mas a proposta do gordo Shen e do velho Wang era bastante interessante. O pagamento era insuficiente para os mercenários comuns, que só trabalhavam a troco de ouro. Para mim, con­tudo, o soldo era perfeito. Tudo o que eu viera buscar em Chang'an era um ma­pa e uma caravana e, em menos de uma hora, conseguira os dois.

         Shen e Wang repararam em minha expressão de satisfação.

         — Está feito, então. Eu aceito o serviço.

         A moça de robe verde trouxe enfim meu copo de vinho. Enquanto pousa­va o recipiente na mesa, Shen e Wang engoliram de uma vez o que restava nas taças laqueadas.

         — E você tem alguma arma? — quis saber o gordo, após sorver todo o líquido.

         — Não, mas sei manusear qualquer uma delas.

         — Um guerreiro e tanto — brincou, divertido. — Tenho uma espada e uma lança na carruagem. Pertenciam a um homem que morreu. Você poderá usá-las.

         — Está bem — concordei.

         Eles passaram por mim e me cumprimentaram, encerrando a entrevista. Ca­minharam sem pressa até a porta e desceram a escadinha para a rua. Já lá fora, em meio aos ambulantes, o velho deu meia-volta, olhou para mim e gritou:

         — Ao pôr do sol, no portão principal.

         Retribuí o olhar e balancei a cabeça para baixo, sinalizando uma resposta positiva. Observei o trajeto dos dois, até que se perdessem na multidão. O sol baixara, mas ainda faltavam quatro horas para o crepúsculo.

         Satisfeito, voltei ao meu vinho.

 

O Boque Tin-Sen

         A caravana de Shen e Wang era menos luxuosa do que eu pensara a princípio. Pela maneira ostensiva como se vestiam, achei que, ao me deparar com o com­boio, encontraria carruagens com toldos de seda, cavalos de raça e pelo menos uma dúzia de criados. Mas não foi bem isso que avistei ao atingir os portões da cidade. A maior parte da mercadoria seria levada no lombo de mulas, provavel­mente para dar mais mobilidade à caravana. As três carroças, já prontas para partir, estavam cobertas por tetos baixos de lona, e a madeira das rodas era rús­tica. Dois cavalos, usados por meus contratantes, eram de boa qualidade, mas o resto não passava de pangarés carregadores. Havia cinco criados, todos ho­mens. Três deles conduziriam os carros, e os outros dois guiariam os animais. Imaginei que o aspecto ordinário do comboio fosse um disfarce, uma tentati­va de não despertar a cobiça dos salteadores, que se organizavam em bandos e atacavam os viajantes na estrada.

         Quando partimos, ainda era dia. O comboio viajava em ritmo acelerado, e quando a noite chegou já estávamos em plena estrada. Aquele era o primeiro trecho da Rota da Seda, e me senti aliviado por finalmente estar rumando pa­ra oeste. Avistei alto no céu a luz de Nathanael e felicitei-me ao notar que está­vamos correndo no mesmo caminho.

         A viagem, que duraria oito dias, transcorreu sem problemas, A Rota da Seda, naquele trecho, atravessava planícies e arrozais, e a ausência de barreiras naturais facilitava a detecção de pessoas ou animais se aproximando a distância.

         No fim do sétimo dia de viagem, quando o sol começava a se pôr, Shen con­duziu o comboio por uma trilha que nos levaria ao topo de uma colina, e ao chegarmos lá avistamos as muralhas de Wu-Wei. A cidade tinha crescido du­rante a dinastia Han, por estar no decurso de uma importante via comercial, mas ainda assim sua área não chegava a um terço do tamanho de Chang'an. Ao sul da cidade, um singular bosque de bambus cobria parte da planície e inva­dia o sopé das montanhas. A visão daquela imensidão verde me despertou uma sensação sinistra. Era um sentimento não natural, obsessivo, que nunca provara anteriormente. Alguma coisa, ou alguém, me chamava àquelas árvores. Um impulso irresistível me assaltou, contra o qual não pude lutar.

         O velho Wang, que aprendera a respeitar meu silêncio, parou ao meu lado, Eu estava tão distante, tão imerso naqueles pensamentos, que nem percebi sua chegada.

         — Impressionado? Sua reaçâo é justificável. Esse é o bosque de Tin-Sen — re­velou, com certo orgulho nacionalista —, lar de uma centena de espíritos ances­trais.

         — Que tipo de espíritos?

         — Espíritos malignos de ladrões e assassinos. Todos nesta província sabem que a floresta é assombrada, e ninguém vai até lá. Não há trilhas ou passagens cm seu interior.

         — Você acredita mesmo nessas superstições?

         Eu sabia que havia alguma coisa errada com aquele bosque, mas adicionei uma pitada de ceticismo justamente para despertar o interesse do velho.

         — Sou um comerciante, não um camponês. Já caminhei por todo este im­pério e hoje sei distinguir histórias de criança do verdadeiro sobrenatural. Não sei como são os deuses de Roma, mas os daqui são bastante presentes. Muitos são bons, mas há outros degenerados e vingativos. Não queira despertar a fúria dessas entidades, estrangeiro — advertiu, em caráter alarmista.

         Ao concluir o discurso, o velho chinês se calou, e por sua expressão imagi­nei que estivesse mentalizando uma prece individual. Depois, conservou-se quie­to, esperando que eu dissesse alguma coisa. Mas, ao entender que minha mente flutuava distante dali, murmurou, fazendo com que eu me libertasse do transe:

         — Vamos, romano. Amanhã estaremos em Wu-Wei — desfechou, montando seu cavalo.

         A caravana o acompanhou, tomando a trilha que descia a colina.

         Ainda fiquei longos minutos hipnotizado, encarando a floresta, e tive de usar de toda minha força de vontade para prosseguir. Uma força mística me atraía para lá. Era a mesma força que me impedira de cruzar a Muralha de Zhao c de trilhar o caminho pelo deserto.

 

Os Três Espíritos Antigos

         À medida que nos aproximávamos de Wu-Wei, a atração inexplicável que eu sentia por aquela floresta aumentava. Ao pararmos nos portões da cidade, Shen e Wang me deram o mapa que haviam me prometido, completando assim o pagamento por meu serviço de mercenário. Já tinham o documento com eles, mas por alguma razão inventaram que o conseguiriam somente quando che­gassem ao destino. Talvez temessem que eu os roubasse e fugisse com o mapa antes da hora.

         A manhã já estava no fim quando, sozinho, deixei a Rota da Seda e desviei meu caminho para o sul, seguindo em direção à floresta, Tin-Sen não ficava muito longe, e achei que poderia entrar no bosque, investigar a misteriosa for­ca que me chamava e voltar à estrada antes do anoitecer. Já a distância, perce­bi que aquela não era uma floresta normal — o tecido da realidade era incrivel­mente frágil lá dentro.

         A grande maioria dos deuses pagãos, bem como muitos espíritos poderosos, habitam o plano etéreo. Com frequência viajam ao plano astral para se comu­nicar com os seres humanos. Essa comunicação pode ser feita de muitas for­mas. Pessoas mais sensitivas podem ver e ouvir através do tecido. Outro méto­do usado para falar com as divindades é a possessão. O médium empresta seu corpo ao espírito e, por meio dele, a criatura conversa e interage com seus in­terlocutores mortais.

         Em geral, os espíritos não podem prejudicar muito os vivos. Eles não têm a capacidade de se materializar, e tudo o que podem fazer é manipular energias. Assim, roubam ou transferem energias para os seres humanos, enfraquecendo-os ou fortalecendo-os, segundo sua vontade. Alguns espíritos, especialmente na Chi­na, permanecem junto de seus descendentes mortais, auxiliando-os com emis­sões de vibrações positivas.

         Feiticeiros e magos, ou qualquer um que domine a necromancia, utilizam-se de rituais e encantos para abrir canais de comunicação com entidades etéreas. Com os feitiços, um necromante pode falar com os mortos, pactuar com eles ou até mesmo escravizá-los. Espíritos muito fortes, bem como anjos e demô­nios, são imunes a esses encantamentos, a não ser que o feiticeiro tenha um objeto pertencente à entidade — como um pedaço de unha ou um fio de cabelo.

         Wang me dissera, no topo da colina, que não havia trilhas na mata. E de fato não havia. Qualquer um se perderia lá dentro. Mas, estranhamente, eu sa­bia perfeitamente para onde estava rumando. A tal força me guiava como um chamado, uma convocação diabólica, e tive a horrível impressão de que aquele impulso me arrastava para o coração da floresta.

         Um nevoeiro apareceu de repente, meio que cercando a área onde eu estava. Eu sabia que isso confundiria minha orientação se pensasse em voltar, assim decidi ir em frente, já que daquele ponto em diante não havia mesmo como recuar.

         Ao fim da caminhada avistei um templo pagão de arquitetura tipicamente chinesa, ao qual chamamos "pagode". O teto era de telhas vermelhas, e as pare­des, de tábuas. Muitas janelas, cobertas por telas, circundavam as laterais, tanto no primeiro quanto no segundo andar. A porta dupla que dava acesso ao inte­rior era trabalhada em bronze, e sobre ela havia símbolos chineses que repre­sentavam a tempestade, o macaco c o escorpião.

         Ao chegar mais perto, o senso de perigo me alertou para o terror que me aguardava. Mas não freei os movimentos, pois continuava sob o efeito daque­le impulso irresistível. Cautelosamente, empurrei uma das seções da porta e me adiantei para dentro do templo.

         A primeira coisa que vi foi o chão, forrado com esteiras de palha. Observei também que o segundo andar não era propriamente outro nível de aposentos, mas um espaço alto circundado em todas as direções por uma sacada de madeira. O espaço interno parecia vazio, desprovido de móveis ou objetos avulsos. Lá, no fim da sala, encostada na parede, avistei uma bela chinesa, de longos cabe­los negros e túnica avermelhada. Tinha os olhos verdes como jade e afundava-se, da cintura para baixo, em um amontoado de almofadas de seda. Ao meu ver, fez sinal para que eu me aproximasse.

         — Seja bem-vindo ao templo do bosque Tin-Sen. Meu nome é Mai Yun, o Escorpião de Jade.

         — Foi você quem me chamou aqui? — perguntei, pressentindo pelo olhar da anfitriã que o perigo aumentava.

         — Não exatamente. Você foi convocado aqui por um feitiço — explicou, ainda enfiada até a cintura no montículo de almofadas.

         Estranhei o argumento de Mai Yun. Até então, eu pensava que minha qua­lidade angelical me conferisse certa imunidade à magia.

         — Um feitiço? Então você é uma feiticeira?

         — Longe disso. Como você, não sou humana. Estamos distantes do mundo dos homens agora.

         Nunca tinha visto aquela mulher antes, mas não precisava ter intuição de guer­reiro para compreender que ela estava me ameaçando. Minha natureza de queru­bim me impedia de fugir a um duelo, mas não me obrigava a levar adiante uma luta sem sentido. Resolvi, então, recuar lentamente em direção à porta. Ao pri­meiro vacilo de Mai Yun, escaparia pela abertura. Precisava aproveitar o brilho noturno de Nathanael, enquanto ele ainda reluzia.

         — O que quer de mim, Mai Yun? Por que me chamou aqui? — procurei dis­traí-la enquanto retrocedia rumo à saída.

         — Pergunte isso a si mesmo, querubim. O que você faz aqui? Esta não é uma terra para seres alados. A China é o lar dos espíritos antigos. Não há espaço para outras divindades entre nós. Vocês, celestiais, só provocam devastação por onde quer que passem. Fazem o povo esquecer de seus deuses antigos e o obrigam a venerar um Deus adormecido.

         Não há espaço para outras divindades entre nós. Seria Mal Yun algum tipo de deus ou espírito? Mas como conseguira se materializar?

         Os deuses pagãos nutrem pouca simpatia pelos celestes, principalmente por conta das Guerras Etéreas. Ainda que Miguel clamasse vitória, a verdade é que os arcanjos nunca tiveram grande sucesso em suas ofensivas além da Ásia Me­nor, porque a crença de muitos povos em seus deuses tribais foi mais forte do que as legiões de anjos invasoras. Por esse motivo, os poderosos espíritos da Chi­na não apreciavam a presença de nenhum anjo vagando por suas terras.

         Sem tirar os olhos da enigmática chinesa, caminhei de costas para a porta, e quando senti que estava próximo à saída me preparei para saltar. Em minha mente de lutador, estava claro que deveria me mover muito rápido, para não dar a Mai Yun nenhuma chance de ataque. Esperei o momento certo e, na fração de segundo em que suas pálpebras se fecharam, disparei. Somente cinco me­tros me separavam do portal de saída, e já dava a fuga como certa quando al­guma coisa terrível bloqueou meu caminho. Uma criatura de pelos vermelhos, metade homem, metade gorila, despencou das vigas do teto, fechando a passa­gem. Escondera-se nas sombras e permanecera em silêncio até aquele instante. Mesmo curvado, alcançava dois metros de altura, e sua genética símia garan­tia-lhe músculos avantajados. As mãos eram desproporcionais, e concluí que aquela era a ferramenta que usava para esmagar seus inimigos.

         O monstro grunhiu e tentou me capturar, mas rolei de costas, escapando de sua pegada. Pus-me em guarda, mas a criatura não avançou. Ficou onde es­tava, guardando a porta para que eu não tentasse fugir novamente. Levantei-me do chão e voltei a encarar o Escorpião de Jade.

         — Quem são vocês? — perguntei, ainda sem entender a real natureza daqueles espíritos.

         Antes que Mai Yun me respondesse, um torvelinho apareceu a seu lado. A estática provocada por correntes elétricas sacudiu o pequeno tornado, até que o vento tomou a forma de um guerreiro chinês. Vestia-se como um camponês, com quimono de algodão cru e chapéu largo de palha, mas os olhos, como todo o corpo, reluziam em raios azuis. Empunhava uma maça, arma com haste de madeira e cabeça de ferro, que também tiritava com a eletricidade.

         — Somos os três espíritos antigos — disse Mai Yun. — Este à minha direita é Hanki, o Senhor das Tempestades, e atrás de você está Grun-Kar, o Zelador. Juntos, governamos o bosque Tin-Sen.

         — Se são espíritos ancestrais, como conseguiram se materializar?

         — Estou surpresa em ver como sua percepção da realidade é insuficiente. Este templo é um vértice, um ponto no espaço em que os mundos físico e espi­ritual se cruzam. A porta de bronze pela qual você entrou é a passagem que li­ga as duas dimensões. Ela existe tanto na terra dos vivos como no mundo dos mortos.

         Decidi jogar. Não venceria três espíritos antigos utilizando apenas força bruta. Precisava valer-me de uma arma que era a preferida de Shamira: a inteligência.

         — Então, Escorpião de Jade, o que está me dizendo é que só preciso ultrapas­sar aquela porta — e apontei para trás — para que não possam mais me perseguir.

         — Para isso, terá de derrotar Grun-Kar.

         — E a mim também — vociferou o guerreiro chinês, libertando toda sua fú­ria. Pensei que ele correria ao meu encontro, mas, em vez disso, o Senhor das Tempestades desfez-se em uma nuvem de vapor. No instante seguinte, a mes­ma nuvem apareceu à minha esquerda, refazendo-se instantaneamente na forma do lutador camponês. Se não fosse meu senso de perigo, teria sido atingido pe­lo golpe da maça, mas fui salvo por meu instinto de combate. Pulei para o la­do, e o ataque atingiu o espaço. Aquela criatura que tentava me ferir tinha ha­bilidades admiráveis. Podia desaparecer no ar e tornar a aparecer em outro lugar em um décimo de segundo.

         Tomei uma distância segura de Hanki, que era o mais agressivo dos espíritos antigos, e tentei desfazer o mal-en tendido. Não desejava lutar com eles.

         — Acho que está havendo um engano — falei a Mai Yun, que parecia coman­dar os outros. — Não sou exatamente quem vocês pensam que sou.

         — Não? — indagou a mulher, cínica. — Posso sentir o poder de sua aura pulsante, a energia primordial característica dos celestiais. Sabemos quem é e suas intenções. O Feiticeiro do Deserto nos contou qual é seu plano. Ele nos disse que você é o primeiro de um grupo de batedores que pretende explorar em se­gredo nossas terras, abrindo caminho para uma ofensiva de sua legião.

         — Feiticeiro do Deserto? Não sei quem é esse mágico, mas posso lhe garantir que mentiu. Não sou nenhum batedor. Sou um anjo renegado. Fui expulso do céu há muito tempo e não tenho nada contra vocês.

         Em mais uma explosão de raiva, Hanki me atacou com a arma mística. Ex­periente em combates corpo a corpo, esquivei o primeiro, o segundo e o tercei­ro golpes, o que pareceu deixar o lutador ainda mais irritado,

         — Morra, maldito! — gritou o guerreiro.

         Concentrado nos movimentos ofensivos do Senhor das Tempestades, não vi que Grun-Kar, o gigante que guardava a porta, se aproximava. O monstro esticou o braço e moveu a pata dianteira contra mim, acertando-me o rosto com um soco violento. Fui arremessado para trás, e minhas costas se chocaram contra uma viga de madeira. Ao escorregar para o chão, tentei me recompor, mas a vi­são embaçara, e não pude evitar que o gorila me pisasse o peito, pressionando-me contra o assoalho de palha. Senti suas mãos enormes envolvendo minha nuca, e quando dei por mim estava sendo erguido no ar, sem chance de defe­sa. Ele me agarrara por trás, c nessa posição não tinha como atacá-lo. Mesmo que lhe forçasse os dedos, nunca escaparia de sua pegada.

         — Traga-o até mim — ordenou Mai Yun.

         Corn uma série de rosnados, a fera de pelos vermelhos me levou até a mulher, sem aliviar o aperto. Voltei a encará-la.

         — Já disse que não quero lutar — balbuciei. Não conseguia faiar direito com Grun-Kar me asfixiando.

         — Um querubim implorando misericórdia? — zombou o lutador camponês. — Nunca pensei que fossem covardes. O que diria seu Deus diante desta ver­gonha? Esta batalha terá um gosto especial para nós, Mai Yun.

         — Sim, Hanki — concordou a chinesa, com um sorriso insidioso.

         Pela primeira vez desde que eu entrara na sala, o Escorpião de Jade sacudiu seu ventre feminino, jogando para longe as almofadas que lhe escondiam as per­nas. Percebi, com certa repugnância, que o montículo de travesseiros ocultava sua metade corrompida. Da cintura para baixo, Mai Yun não era mulher. Seu abdome dilatou-se, revelando uma barriga enorme, coberta por uma casca es­cura, de onde partiam três pares de patas inumanas. O corpo afunilava-se, ter­minando em uma cauda igual à dos escorpiões, com um ferrão que se encurva­va para frente. A moça era, de forma semelhante ao Zelador, um ser híbrido, uma mistura bizarra de mulher e aracnídeo.

         Ao ver aquela imagem pavorosa, concluí que Mai Yun tentaria me furar com seu aguilhão envenenado. Esperei, mais uma vez, pela hora certa de contra-atacar.

         Ela chegou mais perto, com o ferrão já pingando de veneno, e me golpeou com a cauda tóxica. Agarrei os dedos de Grun-Kar, que ainda apertava meu pes­coço, e arqueei a coluna, jogando as pernas para trás. O movimento me tirou da linha de ataque, e a agulha do escorpião, em vez de me ferir, espetou o pei­to do gorila, desprendendo um cheiro nauseante. Ao sentir a dor da toxina, a feroz criatura me largou de imediato, e escorreguei para longe.

         O aguilhão da mulher-aracnídeo atingira o macaco no coração, e esse flagelo o mataria dentro em pouco. Tomado pelo desespero, o monstro foi acometido pelo frenesi e começou a socar o ar com as mãos gigantescas. O delírio o dei­xara incontrolável e, em sua loucura, avançou contra Mai Yun, que foi obriga­da a recuar para não ser esmagada por seus golpes desencontrados.

         Apesar da confusão, o guerreiro Hanki, que, como eu, se encontrava fora da zona de alcance de Grun-Kar, não hesitou em lançar-se contra mim. Desta vez, porém, com Mai Yun e o gorila distantes, eu poderia me dedicar inteira­mente à luta contra o Senhor das Tempestades.

         Ele investiu, descrevendo um arco com a maça, de cima para baixo, mas es­capei me jogando para o lado. Contra-ataquei na hora, com um chute lateral no rosto, que quase destroçou a mandíbula do chinês. O impacto o deixou ton­to, e ele se ajoelhou, com uma das mãos sobre a boca. Tentei golpeá-lo em se­quência, mas novamente ele desapareceu, convertendo-se em névoa.

         No exato instante em que Hanki sumira, Mai Yun já preparava um novo ataque. Enquanto se aproximava, vi que o macaco gigante, antes frenético, tom­bara em um ponto sombrio da sala, tremendo em convulsões e cuspindo um líquido esverdeado.

         O Escorpião de Jade manobrou com a cauda uma, duas, três vezes. Deixei taticamente que chegasse mais perto e, quando investiu uma quarta vez, cerrei os punhos e, invocando a Ira de Deus, afundei-lhe um soco no rosto, esmagan­do-lhe o nariz humano. Mai Yun cambaleou, mas não estava vencida. O san­gue escuro a cegou, e essa era minha chance de derrotá-la definitivamente.

         Armei um segundo golpe, mas uma nuvem elétrica apareceu na minha fren­te, forçando-me a desistir. Era Hanki, o lutador camponês, que voltava ao com­bate. Ele ergueu a maça e, desta vez, não consegui me esquivar. À dor da panca­da no ombro seguiu-se o calor de um choque elétrico — o ferro místico estava imbuído com a energia de mil raios e trovões. Meu corpo tremeu, e parte da minha roupa pegou fogo. Ainda consciente, arrastei-me para trás, evitando o avanço do incansável Senhor das Tempestades.

         Pela força da arma de Hanki, deduzi que não resistiria a mais um impacto. Foquei, portanto, todas as minhas energias na defesa, mas fazendo isso cometi um grave erro. Fiquei tão preocupado em não ser ferido pelo guerreiro chinês que não fui astuto o bastante para notar que estava de novo na mira do ferrão de Mai Yun. Ao ver a agulha apontada para mim, só tive tempo de bloqueá-la com o braço, mas fui incapaz de me esquivar. O aguilháo perfurou-me a pele dez centímetros acima do punho e jorrou o veneno para dentro do meu corpo. A dor paralisou os músculos do braço, e a máo enrijeceu como pedra. Ao me­nos eu havia evitado que a pinça penetrasse o coração.

         Dali em diante, minha sobrevivência dependeria unicamente da rapidez. Rolei para frente e, uma vez distante de meus inimigos, pulei para a sacada de madeira que circulava o segundo andar. Lá em cima, encostei-me à janela de te­las e me recolhi à escuridão. Precisava de tempo. Se a toxina chegasse ao coração, eu sofreria o mesmo destino do monstro Grun-Kar. Rasguei um pedaço de rou­pa e amarrei o pano em volta do braço, improvisando um garrote.

         O veneno agia rápido. A fadiga aumentava, e a respiração tornou-se lenta e difícil. Não sei como ainda resistia.

         Ouvi o chamado de Hanki, vindo do andar de baixo.

         — Desça já daí! Você está condenado à agonia. Ao menos morra com honra e faça jus à sua reputação — o insulto fez-se acompanhar de um ruído de está­tica, proveniente das descargas elétricas que dançavam pelo seu corpo.

         Mai Yun completou a injúria.

         — Não há salvação para você, querubim. Nem o Zelador resistiu ao veneno. Você sucumbirá em instantes, e o levaremos para o inferno dos pecadores, on­de será frito em óleo fervente. Sua pele cairá, e deixaremos sua carne apodrecer na imundície.

         Recuperando o fôlego, levantei-me, deixei a penumbra e caminhei até a mureta da sacada. De lá podia ver os dois espíritos parados no nível inferior da sala.

         — Se vou morrer em breve, como diz, Escorpião de Jade, então não tenho mais nada a perder nesta vida. Se este templo é minha sepultura, não há mais razão para mentir ou para enganá-los.

         A mulher-aracnídeo e o guerreiro chinês me olharam, confusos. Eu dissera algo que fez com que se calassem por um minuto.

         — Desde que entrei aqui, tentei explicar-lhes quem realmente sou. Você fala em reputação, Hanki, mas é óbvio que não sabe nada a meu respeito. Você, Mai Yun, que comanda os espíritos do bosque, foi imprudente e tola — ela me olhou com raiva, mas continuou estável. — Em seu ódio pelos celestiais, não se preo­cupou em averiguar a verdade e acabou sendo ludibriada por esse Feiticeiro do Deserto, E o que conseguiu com isso? Um de seus espíritos foi morto e, como ele, vocês terão o mesmo destino.

         A expressão do Senhor das Tempestades, que antes denotava raiva e desprezo, convertera-se em um misto de nervosismo e admiração.

         — Como pode demonstrar tamanha ousadia diante da própria morte? Como ainda continua lúcido depois de ter recebido o veneno do escorpião?

         — Nós, os anjos renegados, não temos nada a que nos apegar. Vivemos no limite entre os dois mundos. Não podemos provar o amor humano nem a glória de Deus, portanto a amizade é tudo o que nos resta. Quando eu morrer, morrerá a esperança daqueles que confiaram em mim. É por eles que luto, e talvez seja por isso que continuo de pé. Sua emboscada, Mai Yun, tirou-me de meu cami­nho. Não tem idéia da missão que me privou de completar. Agora, nada mais faz sentido. Não preciso mais viver. Prefiro acabar com vocês.

         O desafio reacendeu a ira na face de meus inimigos. Ao ouvir meu ultimo comentário, a mulher-aracnídeo soltou um silvo animalesco. Só então notei que seus caninos eram pontiagudos, como os das cobras.

         — Já chega! — a voz assumiu um timbre demoníaco. — Estou farta da sua la­dainha infernal. Você teve a chance de implorar perdão e continua a nos desafiar. Hanki, acabe com esse moribundo por mim.

         — Será um prazer! — replicou o guerreiro, sumindo em uma nuvem de vapor.

         O chinês surgiu perto de mim, com os olhos ardendo em raios azuis. Mal a névoa se dispersou, ele já investiu. Manobrou a arma em um movimento la­teral, buscando esmagar minhas costelas. Mas, dessa vez, em vez de recuar, avan­cei. Colei meu corpo ao dele, antes que o golpe fosse completado, evitando o choque com a bola de metal. Com uma das mãos, agarrei firme o cabo da ma­ca, um pouco acima da empunhadura. Apertei a haste entre os dedos e puxei o objeto com toda a força, conseguindo arrancá-lo de seu esgrimista.

         Desarmado, Hanki retrocedeu, então girei nos calcanhares e, usando a ar­ma dele, acertei o espírito no peito. A pancada veio acompanhada por uma fan­tástica explosão elétrica, que chamuscou a pele do chinês e espalhou faíscas pe­lo templo. Ferido e assustado, ele escorregou da sacada, mas se desfez em névoa antes de tocar o chão.

         Onde meu oponente reapareceria? Como poderia prever seu próximo ata­que? Raciocinei e concluí que só havia um jeito de saber — meu movimento se­guinte seria premeditado.

         Arremessei a maça para um canto do templo, e a arma rolou sozinha, sobre o próprio eixo, até parar em uma quina do primeiro andar. Certamente Hanki desejava recuperar seu instrumento de luta, então deduzi que ele ressurgiria no exato local onde a maça descansava.

         Antes que o tempestuoso camponês se manifestasse novamente, corri sobre a mureta e pulei para baixo. A poucos metros do assoalho, chutei o ar bem acima do ponto onde a arma mística jazia. No preciso instante em que desferi o golpe, o chinês apareceu, sendo pego de surpresa por meu pontapé. Ao cho­que, seguiu-se um ensurdecedor barulho de estática. Seus raios tremelicaram, e em seguida se apagaram quando ele tombou desfalecido ao lado do cadáver do gigante símio.

         Mas ainda havia o Escorpião de Jade.

         Dobrei os joelhos e me agachei sobre o assoalho. Tateando a palha, retomei do chão a maça do Senhor das Tempestades, agora inútil ao seu antigo dono, Apertando a empunhadura, busquei o ângulo correto-e atirei a ferramenta contra a mulher-aracnídeo. A cabeça de ferro chocou-se ao encontrar o crânio de Mai Yun, quebrando seus ossos e ferindo-a mortalmente. As pernas de escorpião, que suportavam o pesado abdome, inchado de veneno, tremeram, e ela despencou para o lado.

         Mas, apesar da voracidade do ataque, eu não tinha certeza se realmente ani­quilara Mai Yun. Esgucirei-me para perto da carcaça insalubre e verifiquei, com minha audição afiada, que seus batimentos cardíacos diminuíam. A força esma­gadora do metal, aliada ao calor escaldante da corrente elétrica, derretera seus órgãos internos, empurrando o sangue para fora do corpo. O resultado foi a di­latação dos poros, que se rompiam à pressão dos esguichos de plasma.

         — Então... — balbuciou ela — o Feiticeiro do Deserto mentiu. Ele mentiu pa­ra nós! Você não é o batedor que procuramos.

         — Não há nenhum batedor, Mai Yun. Receio que nunca tenha havido — res­pondi, austero, respeitando as últimas palavras da senhora da floresta.

         Os olhos verdes foram perdendo o brilho, gradualmente. Antes de morrer, com a cabeça apoiada sobre o chão, ela inspirou fundo e tentou sussurrar alguma coisa, mas não conseguiu. Levada por um último reflexo vital, bateu com uma das patas no piso, rasgando a palha e quebrando a madeira que havia por bai­xo. Quando terminou, sua pele humana empalideceu, as pálpebras se fecharam e a força a abandonou.

         Mai Yun, o Escorpião de Jade, o mais poderoso dos espíritos ancestrais de Tin-Sen, estava morta.

         De início, não entendi o que a entidade estava tentando me indicar, então pulei para perto da abertura no chão, esperando elucidar o enigma. Através da cavidade, vi que havia, sob o templo, um pavimento inferior, entre o assoalho e o solo de terra. Tratava-se de um pequeno porão — era úmido, fétido e sombrio.

         Com a visão apurada, observei o aposento e avistei, abaixo de mim, uma garrafa de cerâmica marcada com símbolos mágicos, O objeto encontrava-se no centro de um círculo, semelhante ao pentagrama, usado pelos feiticeiros pa­ra completar um ritual de bruxaria. Logo me ocorreu que era isso que Mai Yun tentava me dizer. Fora lá, naquela câmara, que o Feiticeiro do Deserto execu­tara sua diabrura — o encantamento responsável por me atrair àquele local. De­pois, teria convencido os três espíritos de que eu era um inimigo, fechando as­sim a emboscada. Mas como teria feito isso? Como teria me afetado com sua magia, uma vez que eu era imune às feitiçarias humanas?

         A garrafa! A garrafa de cerâmica!

         Deslizei pelo buraco e saltei para o porão, desfazendo com o pé as inscrições que compunham o círculo. Profanei o selo mágico e ergui a garrafa, sacudindo o recipiente. Pelo peso, calculei que a peça lá dentro era muito leve, táo leve quanto uma pena. Uma pena!

         Quebrei a garrafa, jogando-a contra o chão, e o que vi me apavorou. Em meio aos cacos de argila, distingui o que parecia ser unia pena. Sim, era uma pena, mas não uma comum. Era branca e, para minha surpresa, estava man­chada de sangue. Era uma pena de anjo. Não de um anjo qualquer, mas de um anjo renegado.

         A pena era minha!

         As inscrições mágicas! Como eu não percebera? Aquilo não era bruxaria chi­nesa, mas um tipo muito mais antigo de misticismo. Era a magia de Enoque, herdada pelos magos babilónicos havia muito tempo. Foi assim, munido de uma pena de minha asa, que o feiticeiro conseguira me afetar com suas mágicas trai­çoeiras. Sem aquela pluma, nunca teria tido sucesso. Precisava dela para com­pletar o ritual.

         De repente, uma macabra ligação formou-se em minha mente. A última vez que eu expusera minhas asas fora mais de dois mil anos atrás, na cidade legendá­ria de Babel. Fiz um esforço de memória e lembrei-me de que o rei babilónico contava com o auxílio de um mago, um homem alto, magro, de pele morena, nariz fino e barba pontuda. Era o invocador Zamir, um feiticeiro inteligente, «jue me implorara perdão e fugira depois que o ataquei no Mar de Rocha. Só poderia ser ele. Mas por que teria voltado? Eu poupara sua vida, então que in­teresse teria em acabar comigo?

         O encanto da convocação arrastara-me para longe de minha rota, condu­zindo-me a uma cilada. Eu deveria ser eliminado. Por quê? A resposta era mais óbvia do que eu imaginava. Zamir queria vingança, mas não contra mim. Eu era apenas um obstáculo que ele precisava eliminar para...

         Shamira! Era ela o objeto de sua vingança. Ele a odiava como uma rival nos assuntos mágicos. E, acima de tudo, odiava a si mesmo por tê-la deixado escapar das masmorras. De certa forma, Shamira fora responsável pelo ataque final a Babel, ao me contar, ainda que tardiamente, a verdade sobre a renegada Ishtar. Ao se confrontar comigo, no Mar de Rocha, Zamir já sabia, talvez por sua mag­nífica inteligência, que a desgraça de sua nação era iminente. Não poderia me derrotar com seus encantos, por isso preferiu, bem ao estilo dos magos, aguar­dar o momento certo para pôr em prática seus planos, e só então destruir a Fei­ticeira de En-Dor, a mulher que, com o anjo guerreiro, deixou a Babilônia em ruínas.

         De uma hora para outra, toda a minha missão deixara de existir. A Criança Sagrada, a Terra Santa, meu compromisso com Nathanael... tudo isso passara a ser apenas um pensamento distante, em face da grande demanda que me aguardava. Não iria mais à Palestina. Não seguiria mais a luz noturna do ofanim. Até esquecera onde era Canaa. Meu objetivo mudara.

         Roma. Roma tornara-se o meu destino — o único destino.

         Eu tinha que correr para chegar à Cidade Eterna antes do mago, antes que o cruel feiticeiro atentasse contra a vida de Shamira.

         Com um chute forte, escancarei a porta de bronze e pulei para fora do tem­plo. Disparei, corri como nunca, mas minhas pernas não me obedeciam mais. Estavam contraídas, rígidas, inúteis como carne morta. Perdi o equilíbrio, tro­pecei e caí no meio das árvores. As pupilas se retraíram, e a pressão sanguínea despencou. Em minha pressa e desespero, havia me esquecido de uma coisa: o veneno de Mai Yun continuava ativo em minhas veias.

         Que destino mais tenebroso, pensei. Um anjo renegado, morto por um espí­rito etéreo, dentro de uma floresta amaldiçoada, acusado de ser um agente do arcanjo Miguel. Terminaria da pior maneira.

         Não. Não deveria ser assim — não poderia ser assim. Eu resistiria, precisava resistir. Não deixaria Shamira sozinha no momento em que ela mais precisa­va de mim.

         Cambaleei por mais alguns metros e encontrei um riacho. Imagino que, àquela altura, eu já estava quase fora da selva. Arrastei-me até a margem do ri­beiro e bebi um gole de água. Limpei a garganta e cuspi de volta um pouco de veneno, uma gosma verde que se agarrava à goela. Pensei que assim pudesse ex­pelir a toxina, mas ela já se diluíra inteiramente em meu sangue.

         Olhei por cima do ombro e vi que meu braço estava escuro, necrosado. Se sobrevivesse, imaginei, teria de amputá-lo.

         As contrações paralisaram os músculos, e o último deles era o coração.

         A visão apagou-se. Tudo ficou escuro.

 

Das Trevas

         Frio. Escuridão. Uma ventania abismal, fantasmagórica.

         No completo e desolado vazio da inconsciência, uma voz se fez ouvir.

         — Que porcaria é essa?

         — Não sei. Encontrei boiando no rio. Fui revistar para ver se tinha dinheiro e descobri que estava vivo.

         Pelo timbre e pela entonação, concluí que eram dois homens, e conversa­vam em grego. Tentei me mexer, fazer algum sinal, mas os músculos não res­ponderam.

         — E o dinheiro?

         — O quê?

         — O dinheiro. Ele carregava dinheiro, afinal?

         — Não. Nada. Só a roupa do corpo.

         — Então por que o trouxe para cá?

         — Achei que pudéssemos vendê-lo em Alexandria. Seu pai...

         — Vendê-lo? Bom, talvez. Mas, por Apoio, olhe para o braço dele. Está quase podre.

         — É. Mas pensei que não faria mal trazê-lo à atenção de seu pai. Como já temos a menina chinesa, imaginei que poderíamos carregar este bárbaro tam­bém. Pode render uma boa soma quando chegarmos ao Egito.

         — Está bem, Tommaso. Você fez o certo. Coloque-o na carroça. Vou falar com meu pai antes de voltarmos à estrada. Ele decidirá o que fazer.

         Escutei passos se afastando, e a mente retornou às trevas.

 

         Alguém me tocou. Senti uma mão firme virando meu rosto. Meus tecidos já reconheciam impulsos táteis, mas a paralisia ainda me obstruía os movimentos.

         — É este? — perguntou uma voz grave.

         — Sim. Tommaso o tirou do leito do rio esta manhã. Não carregava armas nem dinheiro.

         — Interessante. Um bárbaro.

         — Foi o que deduzimos. Curioso, não? O que um sujeito desses estaria fa­zendo aqui?

         — É um fugitivo, certamente. Para estar tão longe de casa... A maioria deles não passa de um bando de assassinos ou traidores de seu próprio povo.

         — E de onde o senhor acha que ele é?

         — Este aí é germânico, tenho certeza. Sua constituição física é admirável.

         — Será que podemos vendê-lo?

         — É provável. Conheço um mercador em Alexandria que costuma adquirir esses tipos.

         — Devo embarcá-lo, então?

         — Faça isso. Fez um bom trabalho, filho.

         — E o braço? Devemos cortá-lo?

         — Pense, Pólíx. Como vamos vender um escravo sem braço? Silêncio.

         — Coloque-o na carroça com a menina. Ela conhece um tipo de medicina que talvez possa curá-lo. Se não der certo, nos livramos dele na próxima para­da. E não se esqueça de amarrá-lo.

         Escutei as pegadas se afastando.

         — Agora vou encontrarTommaso. Acho que ele merece pelo menos um sestércio pelo serviço.

         Foi tudo o que ouvi. Depois, a audição extinguiu-se de novo, e voltei a ador­mecer.

 

Sete Meses

         Uma leve picada atravessou-me a pele do braço. Depois outra, e outra, e mais uma dezena delas. Era fina, indolor, como o toque de uma agulha. Tentei mover um dos dedos paralisados e senti a puxada do tendão — o membro necrosado estava, aos poucos, recuperando a força.

         Ouvi um barulho uniforme, de madeira amassando o cascalho, e experimen­tei uma sensação de instabilidade e movimento. Havia também som de cavalo e um fraco aroma de maquiagem. Pelas alterações de calor captadas por meu corpo, concluí que alguém estava sentado ao meu lado; seu ritmo respiratório era contínuo, disciplinado, tranquilo.

         Abri os olhos.

         A luz forte do dia, ainda que indireta, cegou-me. Tentei me levantar, mas uma súbita tontura me pôs de volta à posição anterior. Uma fria mão de mulher empurrou meu peito com delicadeza, indicando a necessidade do prolongado repouso. Aceitei a imposição do toque sutil. Fechei os olhos e tornei a abri-los, devagar, esperando até que a pupila se habituasse à claridade.

         A imagem à minha volta formou-se lentamente. Era dia, mas o sol escondia-se acima do teto de lona. Uma carroça. Eu estava em uma carroça fechada, coberta por um tecido áspero. Não era um carro luxuoso, mas um transporte rústi­co, sem melindres. Estava abarrotado de objetos sem importância: rodas, lonas para barraca, cordas de cânhamo e balaios de palha. Enquanto admirava os de­talhes, uma nova fincada perfurou-me a pele. Entorpecido, esquecera-me de olhar para o lado.

         Uma jovem chinesa, sentada à minha esquerda, fixava, com a máxima con­centração, múltiplas agulhas em meu braço escuro. Olhei para o lado e vi que já havia dezenas delas espalhadas desde o ombro até a ponta dos dedos. As in­cisões pareciam seguir um padrão, atingindo pontos específicos de estímulo à circulação. A moça, observei, era pequena e magra, de olhos estreitos e pele branca. Calculei que tivesse entre 15 e 16 anos, pelo porte físico e pela consis­tência da pele. As roupas que vestia eram comparáveis às dos nobres chineses, mas esravam sujas e gastas, como se fossem as únicas que possuísse. Ela continuou a me olhar e, em silêncio, introduziu a última agulha.

Empurrei o ar para fora dos pulmões, reunindo forças para falar, mas tudo o que consegui emitir foi um rosnado, que acabou em uma crise de tosse. A menina entendeu minha vontade e trouxe ao colo um cesto de palha, retiran­do a tampa que fechava a abertura. Um cheiro familiar tomou conta do carro, c experimentei uma necessidade que raramente me acometia: fome. Anjos e de­mônios, mesmo em sua forma física, não precisam se alimentar como os huma­nos, a não ser que estejam gravemente feridos.

         Instintivamente, enfiei a mão no balaio e agarrei dois suculentos bolos de atroz, devorando-os rapidamente. Ao fazê-lo, senti-me bem melhor. Ao contrário do que pensara, a garota não demonstrou repugnância diante de minha vora­cidade. Ofereceu-me alguns legumes, os quais comi sem hesitar. Depois, sorvi água de uma cuia de cerâmica.

         — Obrigado — agradeci, falando em mandarim e indicando o braço ferido, em sincera recuperação.

         Ela respondeu à gratidão com um tímido movimento de cabeça. Parecia ser muito reservada, exatamente como mandavam os costumes chineses naquela época.

         — Sabe onde estamos? Sabe que caravana é esta?

         Mais uma vez ela não respondeu. Possivelmente não entendia mandarim, afinal a China conservava uma série de dialetos diferentes.

         De repente, uma voz surgiu do nada e veio esclarecer a confusão.

         — Não adianta. Não adianta tentar falar com ela. A menina é muda.

         — O quê? — perguntei, ainda sem entender o que acontecia. A voz falara cm grego, mas havia um leve sotaque latino na pronúncia dos prefixos. Olhando para trás, notei a presença do carroceiro, que até então me passara despercebido. Os cabelos e os olhos eram escuros, e a pele, morena e desgastada. O corpo era forte, revelando preponderância de atividades braçais.

         — Ela não tem língua — respondeu o homem. — Os nômades rebeldes a cor­taram quando foi capturada.

         — Nômades rebeldes?

         — Sim, homens ligados a um tal de Wang Mang, opositores do regime im­perial. Sinto muito não poder ser mais explícito, mas entendo pouco da polí­tica dessa gente.

         Aquela voz... já a ouvira antes.

         — Você é Tommaso. Foi você quem me tirou do rio. Ele esboçou um sorriso desinteressado.

         — Não posso me vangloriar disso. Foi tudo em benefício próprio.

         — Por quê?

         — Trabalho para um mercador grego, Tales, e para seu filho, Pólix.

         — Mas você não é grego.

         — Sou siciliano. Quando vi que você estava vivo, resolvi trazê-lo ao meu pa­trão. Vamos vendê-lo em um mercado de escravos de Alexandria, você e a me­nina. O velho me prometeu um décimo dos lucros.

         — É um preço baixo a pagar por sua ambição — mas ele ignorou meu co­mentário. — Onde está esse tal mercador?

         — No outro carro, logo atrás de nós. Esta é só uma carroça auxiliar, um trans­porte que eles usam para carregar os entulhos — Tommaso ficou meio sem graça — e os criados. Mas não tenha pressa. Você vai conhecê-lo à noite. É um homem justo, apesar de sua rigidez de caráter.

         — Justo?Traficando escravos?

         — Não deixe que isso o aborreça. Ser escravo não é tão ruim. Eu mesmo tra­balhei nos campos da Sicília até os 20 anos, depois consegui comprar minha liberdade. Há uma década trabalho como condutor, carregador e guarda-costas.

         Desde as Guerras Púnicas, entre Roma e Cartago, a Sicília era uma grande fazenda escravista, produzindo grãos que abasteciam toda a Itália.

         — Talvez um dia você consiga fazer o mesmo. E sua sorte, pelo que vejo, se­rá melhor que a minha. Sabe falar latim?

         — Sim.

         — Você fala grego e latim. Com certeza vão querê-lo como tradutor, e você não precisará se arriscar nas arenas de gladiadores. Será bem tratado e terá co­mida e vinho à vontade. O que mais um homem pode querer?

         — O que me diz da liberdade?

         Ele simulou uma expressão de desprezo.

         — Isso não tem muita importância quando se vive como um mendigo. Mendigo. Era exatamente o que eu parecia, vestido com trapos velhos e ras­gados, e com ferimentos e queimaduras por todo o corpo.

         Minha missão! Como eu havia esquecido? Nathanael, Shamira, Canaá, Ro­ma, Zamir, a Criança Sagrada,.. As palavras voltaram a me entupir a mente. O colapso da experiência de quase morte obscurecera meu cérebro, ocultando, no fundo da memória, esses objetivos tão importantes. Por quanto tempo eu perma­necera desacordado? Em que parte do mundo estava? Como faria para chegar a Roma?

         — Pare o carro — ordenei ao condutor, exaltado.

         — De jeito nenhum. Só pararemos ao cair da noite.

         — Você não entendeu — e tentei, pela segunda vez, me levantar. Os ossos en­fraquecidos, contudo, novamente me empurraram ao chão. A menina chinesa indicou, com um movimento de mão, que eu deveria permanecer deitado. As agulhas finíssimas que ela havia aplicado ainda estavam fincadas em meu braço. Os resultados positivos de sua medicina dependiam de meu descanso.

         Impossibilitado de caminhar, perguntei ao siciliano:

         — Em que mês estamos? — eu precisava saber por quanto tempo dormira. Ele continuou guiando o veículo, calmamente.

         — Estamos no quarto dia de antestério.

         Antestério era o período grego correspondente ao mês de março no calen­dário gregoriano. Era chamado pelos helênicos de mês das flores, porque coin­cidia com o início da primavera.

         Março. Nathanael me visitara em julho, e eu travara a luta com os espíritos antigos no fim do verão do ano l a.C. Teria permanecido inconsciente por sete meses? Ou por mais tempo?

         — De que ano? Em que ano estamos?

         — Você não compreenderia a contagem ateniense dos anos; nem eu e, às vezes, nem eles entendem. Mas posso dizer que estamos no 28° ano do reinado de Augusto de Roma.

         Isso correspondia ao exato ano l d.C., o primeiro após o nascimento da Criança Sagrada.

         Sete meses. Então eu desfalecera por sete meses! Nesse intervalo, Zamir já poderia ter chegado à Itália e aniquilado Shamira. Mas não o fizera. Com certeza não o fizera. Ainda não.

         Eu e Shamira estávamos ligados de forma inexplicável. Um podia sentir, mes­mo a distância, as mais latentes emoções do outro. Sim, a Feiticeira de En-Dor seguia com vida, e era exatamente por isso que eu precisava retomar minha jor­nada. Ainda estava em tempo de alertá-la para a armadilha. Depois, só depois, eu avançaria à Palestina, onde supostamente Nathanael me aguardava.

         Estiquei o corpo e deixei que a garota chinesa retirasse as agulhas. Com di­ficuldade, pressionei o ligamento, e o polegar retraiu-se lentamente, um sinal de que as funções circulatórias respondiam bem ao tratamento e que em breve eu recuperaria os movimentos, ou assim esperava.

 

Mudança De Planos

         Ao entardecer, a temperatura caiu drasticamente. O clima seco me fizera perceber, desde minhas primeiras horas de consciência, que percorríamos áreas desérticas. Mais tarde, Tommaso confirmou minha suposição. Explicou-me que seguíamos a Rota da Seda, ainda dentro dos territórios da dinastia Han. Os co­lossais picos nevados dos montes Qilian, que eu havia visto pela primeira vez ao chegar a Wu-Wei, iam vagarosamente ficando para trás. Durante a maior parte de seu trajeto chinês, a Rota da Seda permeava a encosta das altíssimas montanhas tibetanas, mas no meio do caminho desviava um pouco para o norte, penetrando na chamada depressão Turfan, rumo à cidade de mesmo nome. To­da a região é incrivelmente árida, mas não inóspita como um deserto de areia. O solo é acidentado e pedregoso, o que explicava a sonoridade das rodas no cascalho.

         Finalmente, depois de um longo dia de dores e tonturas, a noite chegou, e o comboio de dois carros parou, afastando-se alguns metros da estrada. Segun­do o condutor, jantaríamos e depois dormiríamos em barracas, pois só a lona de cânhamo, coberta por peles de carneiro, afastaria a hostilidade do frio. Apro­ximava-se o momento em que conheceria o patrão de Tommaso — que agora era também meu proprietário.

         Fiquei um tempo sozinho na carroça, enquanto o siciliano e a menina chi­nesa preparavam o acampamento. Após montar as tendas e acender o fogo, Tom­maso e a garota voltaram para me levar para perto da fogueira. Preparavam, em uma resistente panela de bronze, algum tipo de sopa, com arroz, legumes e las­cas de carne de pássaro. Também me ofereceram um manto de lã, que, embora sujo, aceitei de bom grado.

         Tales e Pólix, que se sentavam ao redor do fogo, eram dois gregos típicos e se vestiam como tal. O olhar denotava um grau de superioridade, comum dos homens ditos civilizados. Tales era o mais velho, um homem na casa dos 50 anos. O nariz, a exemplo do de seu filho, era triangular, descrevendo uma li­nha reta até a testa. Tinha pouco cabelo, e os fios escassos aglomeravam-se nas laterais e na nuca. Pólix, por outro lado, era um jovem forte, que se considera­va a própria encarnação do deus Apoio.

         Tales serviu-se de sopa e depois caminhou ao meu encontro. A túnica pe­sada, ajustada para o frio, ia dos pés ao pescoço, mas observei que sob ela o mer­cador usava sandálias, calçado padrão adorado pelos povos mediterrâneos.

         — Coma quanto quiser — avisou, com certa frieza, indicando-me um prato de cerâmica. Eu precisava comer bastante para alavancar a recuperação.

         — Muito bem — agradeci com um cumprimento de cabeça. Falei em grego, mas simulando um sotaque germânico. O velho achava que eu era um bárbaro, então vesti o disfarce que me fora previamente atribuído.

         Ele não deu importância às formalidades.

         — Tommaso já deve ter-lhe explicado. Sou o comandante desta caravana — afirmou, amargo. — Salvamos sua vida e, por direito, você é nosso escravo ago­ra. Vamos comercializá-lo quando chegarmos a Alexandria.

         — Aprecio sua sinceridade.

         Pólix se intrometeu.

         — Este bárbaro provavelmente não tem a menor idéia de onde fica o Egito, pai.

         Eu o ignorei. O velho também.

         — Sim — emendei. — Eu e a garota. Espera nos vender para os romanos.

         — Exato. E a minha intenção.

         — Pois então devo adverti-lo de que perde seu tempo.

         — Como disse? — vociferou o velho. Pólix levantou-se, buscando uma faca. Tommaso sorriu, mas escondeu a fisionomia divertida no escuro. A menina en­colheu-se.

         — Origem civilizada, costumes bárbaros. É assim que vejo a maioria dos gre­gos hoje em dia — atestei. — Não haverá comércio algum desse tipo.

         Pólix avançou, com a faca em riste.

         — Como se atreve? Deveria matá-lo agora mesmo.

         — Seria imprudente tentar uma coisa dessas. Na verdade, não creio que pu­desse me matar realmente — voltei-me para Tales. — Tenho uma proposta me­lhor a fazer, vantajosa para todos.

         Ao ver que seu paí não ultimava o comando de ataque, o jovem continuou a gritar.

         — Você é um bárbaro! O que pode um bárbaro contra um legítimo filho de Atenas? Não há disciplina em suas escaramuças. Não há glória em suas guerras.

         — Não me venha com essa. A glória da Hélade findou-se após as campanhas de Alexandre.

         Alexandre, o Grande, da Macedônia, fora um dos maiores monarcas da An­tiguidade. Durante seu reinado, entre 336 e 323 a.C., alongara as fronteiras de seu país desde a Grécia até o oeste da índia.

         — É aí que você se engana — interferiu Tales. — Nossa cultura nunca antes alcançou tamanha expansão.

         — A cultura helênica, sim. Mas o que é a Grécia hoje senão uma inacabável indústria de escravos intelectuais, destinada a fornecer mão de obra qualificada aos aristocratas romanos? Foi isso que sua gloriosa Atenas se tornou. Apenas mais uma província romana.

         Furioso, Pólix armou o golpe com a faca, mas Tales o puxou pela camisa.

         — Não. Vamos ouvir o que ele tem a dizer. Talvez sua proposta seja mesmo irrecusável. Espero que seja.

         — Acho que pode lucrar mais com nossos serviços do que com nossa cabe­ça. Vamos ficar mais de quatrocentos dias juntos, viajando nesta rota intermi­nável — esse era o tempo estimado que levava uma caravana, naquela época, pa­ra percorrer os seis mil quilômetros desde os montes Qilían até a capital egípcia de Alexandria —, então devemos nos ajudar. Não é esse o espírito democrático grego?

         Ele se conservou inabalável diante do comentário.

         — Continue.

         — Quando deixarmos as fronteiras da China, entraremos nos territórios das tribos Yu-chi e depois caminharemos rumo ao Império Parto, uma extensa re­gião administrada por funcionários que não possuem nenhum conhecimento da língua grega e são estimulados a cobrar taxas abusivas pela travessia.

         — Sim, já percorri esta rota dezenas de vezes — concordou Tales, neutro,

         — Sou fluente em aramaíco, o idioma dos mercadores do Oriente Médio, além de conhecer alguns diaíetos do deserto. Posso ajudá-los na intermediação e conseguir um alívio nas taxas.

         — Só isso?

         — Não. Sei como guiá-los por uma trilha mais curta e segura até Alexandria,

         — Sabe? — indagou o velho, desconfiado. — Tommaso! — chamou, sem tirar os olhos de mim. — Traga o mapa. Está no meu transporte.

         O sicilíano obedeceu.

         O planisfério, desenhado sobre um pergaminho resistente, fora certamente elaborado por um académico grego, tamanha era a precisão de detalhes. Mos­trava cidades, vilas e estradas que se espalhavam desde o extremo oeste do Me­diterrâneo até os confins do Oriente, terminando na latitude que delimitava a capital chinesa, Chang'an.

         Tales esticou o mapa à luz da fogueira.

         — Qual é a trilha que você nos sugere? — e apontou para a depressão onde estávamos. — Vamos ver se seu conhecimento é mesmo útil.

         — Deixaremos a Rota da Seda neste ponto — indiquei um marco na área cen­tral do planalto do Irã — e desceremos pelas terras da Partia até Persépolis. De lá atravessaremos os rios Tigre e Eufrates, cruzaremos o grande deserto da Arábia em direção ao Sinai e depois seguiremos diretamente para Alexandria.

         O Império Parto, ou Pártia, ocupava, no século I d.C., as regiões que hoje conhecemos como Irã, parte da Arménia e o antigo reino da Mesopotâmia. Na­quele tempo, os conflitos com os legionários romanos tornaram-se comuns e acabaram por levar os dois lados ao confronto direto. Romanos e partos viriam mais tarde a se enfrentar na famosa Batalha de Garras, que culminou com uma humilhante derrota dos latinos.

         — Este caminho que você aponta — argumentou Tales — nos obriga a viajar pelo coração da Arábia Deserta — e usou o termo em latim. — Não me parece uma opção muito inteligente.

         — A outra opção, isto é, a rota que vocês traçaram inicialmente, passa pelo meio de duas províncias romanas.

         — E o que há de errado nisso?

         — Quanto você acha que vai gastar em taxas informais e suborno?

         — Esse prejuízo já é calculado.

         — Arrisco dizer que chega a um oitavo do valor total dos produtos. O grego fez uma conta rápida de cabeça. Não respondeu à pergunta.

         — Pelo que pude notar — prossegui —, vocês levam objetos de bronze, metal especialmente apreciado pelos romanos.

         Tales e Pólix, ao mesmo tempo, fuzilaram Tommaso com olhares de rapi­na, julgando ser ele o delator. Preferiam conservar a carga em segredo, por isso levavam tudo com eles em seu próprio transporte. Mas eu sentira o cheiro do metal logo ao sair da carroça, e nunca me enganava quanto à composição quí­mica desses minerais.

         — Eu não disse nada — defendeu-se o condutor, ao perceber a reprovação na fisionomia de seus patrões.

         — É verdade — esclareci. — Ele não me contou nada. Vi o brilho do metal refletindo à luz das estrelas.

         Realmente havia, dentro da carroça dos gregos, uma peça de bronze que os helênicos haviam esquecido de embrulhar. O segundo transporte, utilizado pe­lo mercador e seu filho, era todo de madeira e mais parecia uma carruagem. As paredes e o teto formavam uma carroceria sólida, única, bem diferente da con­dução auxiliar, coberta apenas por um revestimento de lona.

         O velho deu de ombros e voltou a atenção para mim.

         — A viagem pelo deserto poderia nos sair muito mais cara. A imensidão de areia é inóspita, desolada e perigosa. Além disso, estaríamos vulneráveis aos ata­ques dos beduínos.

         Pólix acrescentou:

         —Algumas tribos nômades vivem exclusivamente da bandidagem, e não te­mos uma escolta armada para nos defender.

         — Isso tudo é verdade, o deserto é traiçoeiro. Mas conheço muitas rotas con­fiáveis, desde as ruínas de Persépolis até as fronteiras do Egito. A via secreta que sugiro pode ser tomada a oeste da antiga capital persa.

         — Via secreta? — estranhou Tales.

         — No passado os espiões babilónicos usavam estradas secretas para percor­rer todo o Oriente Médio. São caminhos rápidos, ocultos e dotados de lençóis subterrâneos.

         — Você tem um mapa dessas estradas?

         — Está tudo em minha cabeça — rebati, confiante.

         — Humm... — ponderou o velho. — É uma história bastante fantástica. Mas se for verdade será de uma serventia inestimável. Pelo traçado que você fez, eu diria que economizaríamos quase cem dias de viagem.

         — A rota indicada funciona como um atalho. Além disso, a totalidade de sua mercadoria será conservada. Os ladrões desconhecem essa trilha.

         — Sim, isso já estava entendido. Mas tem uma questão que permanece obs­cura. Por que eu e meu filho deveríamos acreditar em você?

         Respirei fundo antes de responder e engoli um gemido seco. O frio come­çava a contrair os músculos, e meu braço tornou a doer. Tentei dobrá-lo, mas os ossos danificados ainda não estavam preparados para uma manobra completa.

         — Não há ninguém nesta caravana que deseje viajar tão rapidamente quan­to eu. Preciso chegar a Alexandria o quanto antes, e de lá pegar um navio para Roma. Tenho negócios urgentes na Cidade Eterna. Infelizmente, meu estado de saúde me impede de prosseguir sozinho. Preciso de vocês para alcançar meu destino.

 

         Tales fez silêncio, cruzou os braços e olhou para as estrelas, parecendo pro­curar, no céu, uma resposta à situação. Pólix, desolado, afundou a cabeça entre os joelhos, afetado pela humilhação. Tommaso, mais uma vez, ocultou a fisio­nomia de satisfação — o siciliano torcia a meu favor.

         — E se você estiver mentindo? — interpelou o velho, de repente. Era um teste.

         — Não vejo motivo para enganá-los. Se tentasse, o que impediria seu filho de fincar a adaga em meu coração? — encarei o rapaz, mas ele desviou o olhar.

         O mercador moveu levemente a cabeça para baixo,

         — E a menina chinesa? Você disse que encontraria utilidade para ela também.

         — A garota conhece técnicas de medicina incompreensíveis aos ocidentais. Veja, meu braço está retomando a vida — retirei o manto de lã para mostrar-lhes a evolução do tratamento. — Nas cidades em que pararmos, poderemos ofere­cer os serviços dela em troca de ouro. Muitos pagariam por uma consulta.

         Tommaso arriscou uma constatação.

         — É verdade. O que a menina fez no braço dele é fantástico.

         O velho não se deu o trabalho de olhar para o criado. Já tinha tomado sua decisão.

         — Aceitaremos seu plano, mas esteja ciente dos riscos. Se for algum tipo de trapaça, Pólix e Tommaso terão ordem para executá-lo.

         — Temos um trato, então — desfechei.

         — Sim — ele replicou, com a habitual seriedade que o caracterizava. —Agora, todos para as barracas. Tommaso, deixe o fogo crepitando para afastar as cobras. Partiremos antes da aurora.

         Tales deu a volta na fogueira, já em brasa, e dirigiu-se a seu abrigo sob lo­nas. Antes de se recolher, deteve-se na entrada da cabana e me encarou.

         — Como vamos chamá-lo daqui para frente, forasteiro?

         Eu sempre era pego de surpresa por esse tipo de pergunta.

         — Acho que "bárbaro" seria apropriado.

         — Está bem. Leve a chinesa para sua tenda. De agora em diante, você é res­ponsável por ela — reparou no meu braço ferido —, e ela por você, creio.

         Concordei com um sinal, desejando boa-noite ao mercador, mas ele não se mexeu. Continuou parado na entrada da barraca, analisando-me dos pés à ca­beça.

         — Há alguma coisa estranha em você — comentou, um minuto depois. — Se­rá que um dia nos contará sua verdadeira história?

         Devolvi-lhe a pergunta com um olhar sereno.

         — Esse é o tipo de coisa que jamais saberá — fui sincero.

         — Foi o que pensei — ele sorriu brevemente Em seguida, desapareceu pela abertura.

 

Flor do Leste

         Mal o dia amanhecera, já estávamos de volta à estrada. Rumávamos para noroeste, afastando-nos das colossais encostas tibetanas. A Rota da Seda, naquele ponto, afundava-se por trilhas poeirentas e tomava um desvio para dentro de uma depressão montanhosa, chamada de depressão Turfan. Assemelhava-se a um vale gigantesco, onde muitas línguas-d'água descendentes das montanhas se encontravam e corriam para um lago, no coração da ravina. Às suas margens, erigia-se a cidade de Turfan, centro urbano por onde passavam nove em cada dez mercadores que cruzavam aquelas cercanias.

         O lago e as fontes aliviavam a aridez do deserto. A vegetação florescia nas encostas de pedra, mas não eram só os arbustos que compunham a imagem. Belas árvores exibiam suas flores, pássaros cantarolavam, e o ruído agradável de um riacho completava a sequência de maravilhas da estrada. A depressão Tur­fan era como um oásis, uma magnífica jóia incrustada no seio de uma via estéril.

         Enquanto descíamos a alameda em direção à cidade, a menina chinesa, ao meu lado no cargueiro, preparava a aplicação de mais uma de suas técnicas es­peciais. Desta vez, deixou as agulhas de lado e pegou na mochila um emara­nhado de ervas. Com um graveto, amassou a planta dentro de uma cuia de bar­ro, e em outro pote preparou-se para acender o fogo. Ao mesmo tempo, dispôs, a seu lado, cinco largas tiras de couro. Quando o fogo irrompeu, queimou as ervas e pôs as cinzas flamejantes sobre as ataduras. Em seguida, fixou as tiras em meu braço, apertando forte as ervas ferventes, que provocaram queimadu­ras superficiais na pele. A técnica, apesar de dolorosa, empurrava os vapores me­dicinais da substância para dentro do organismo, que absorvia suas propriedades benéficas. Esse tratamento, conhecido pela medicina moderna como moxibus-tão, é bastante eficaz no combate a várias enfermidades, até mesmo às simples dores de cabeça, e já era usado pelos chineses desde tempos remotos.

         A menina manteve as tiras pressionadas por uma hora. No meio do processo, enquanto a ardência das ervas abrandava, tive uma idéia.

         —Tommaso! — chamei, enquanto o siciliano conduzia a carroça pela alameda.

         — Estamos a uma hora da cidade — devolveu.

         — Não, não se trata disso. Este é o carro onde vocês carregam os supérfluos, não é?

         — Por quê? Precisa de alguma coisa?

         — Tintas c pena. Sabe onde Tales guarda o material de anotação? Ele matutou por três segundos. Estava concentrado demais na estrada para dar uma resposta imediata.

         — Os documentos estão todos com eles no segundo carro, mas há bastante tinta e pena em uma pequena arca bem embaixo desse balaio — e indicou um cesto de palha escondido em um canto do cargueiro. — Infelizmente creio que os pergaminhos acabaram. Foram todos usados para discriminar os objetos de bronze.

         — Não acho que seja necessário — agradeci, pondo o balaio de lado. Na pe­quena arca havia tinta para escrita, encerrada em dois potes de cobre, e dois pin­céis de pontas diferentes. O material era chinês, de qualidade superior, e prova­velmente fora adquirido em alguma loja em Chang'an.

         Abri o potinho e molhei a ponta do pincel no corante.

         — Qual é o seu nome? — perguntei à menina, oferecendo-lhe o pincel untado.

         Ela agarrou a haste do instrumento, ainda um pouco acanhada, e rabiscou

uns caracteres chineses no chão de madeira. Flor ao Leste. escreveu, no idioma mandarim.

         Flor do Leste. Que belo nome, pensei, e precisamente adequado. Era isso o que ela era, de fato — frágil como uma flor, e dotada de uma beleza inocente. Era o botão do Oriente: tranquila, inabalável como a planta que floresce na monta­nha e que sobrevive até às piores tempestades.

         — Flor do Leste — murmurei, mais para mim mesmo do que para ela.

         — O quê? — indagou Tommaso, pensando que o sussurro fosse dirigido a ele.

         — Flor do Leste — repeti, em grego.

         — Flor do Leste? — ele se confundiu.

         — Sim. Flor do Leste. E o nome dela. O nome da menina.

         O condutor torceu o pescoço e reparou nos ideogramas desenhados no chão.

         — Ah, a mocinha sabe escrever. Vejo que finalmente estabeleceram uma for­ma de comunicação. Por que você não ensina a ela a gramática grega? Ninguém aqui sabe falar chinês.

         — Não tinha pensado nisso. Mas até que é uma boa idéia. O que acha, Flor do Leste?

         Ela deixou escapar um sorriso. Era uma menina comum, mas durante toda a infância fora repreendida por expressar suas emoções. As mulheres chinesas passavam por um rígido treinamento durante a adolescência, que as ensinava a ser esposas perfeitas — submissas, disciplinadas e condescendentes.

         A roda da carroça atropelou uma pedra, e o carro todo deu um pulo de em­brulhar o estômago. O pote de tinta virou e o corante borrou o nome escrito no chão.

         — O seu mundo está ficando para trás, Flor do Leste. Esta é a última cidade dentro das fronteiras da dinastia Han — devaneei, observando os picos nevados desaparecerem no horizonte. — Não precisa mais temer coisa alguma. Os nó­mades já se foram, e os gregos não lhe farão mal.

         Ela me olhou um pouco envergonhada, enquanto retirava as tiras de cou­ro amarradas ao meu braço. A recuperação do membro era espetacular.

         —Você vai comigo para Roma, menina. Conheço uma mulher que vai gostar de conhecê-la. Talvez ela possa ajudá-la a localizar seus parentes vivos.

Shamira tinha contatos, era esperta, rica e sábia. Possivelmente saberia como embarcar Flor do Leste de volta à China e devolvê-la a seu clã familiar. Grandes caravanas partiam todos os dias da Cidade Eterna, e ao menos uma delas acei­taria escoltar a jovem chinesa de volta à sua terra. A tarefa não sairia de graça, mas as reservas monetárias da feiticeira seriam mais do que suficientes para co­brir todas as despesas,

         A menina sinalizou uma afirmativa e pôs-se a recolher o material. Guardou as ervas na mochila e pousou a cuia num canto. Dobrou em rolos as tiras de couro e jogou fora as cinzas das plantas.

 

Turfan

         A localidade de Turfan não era defendida por muros ou portões, mas um portal de madeira, talhado com a forma de dois dragões que se engoliam mutua­mente, guardava a entrada da cidade. O monumento, segundo os taoístas, bar­rava o assalto dos espíritos maus e protegia o vale contra a fúria dos deuses. Não senti nenhum abalo místico ao cruzá-lo, mas meus sentidos continuavam de­bilitados em decorrência do meu precário estado de saúde.

         Apesar das belezas naturais, Turfan não reservava grandes luxos. As habitações padronizavam uma coloração homogénea, entre o bege e o cinza, um tipo de edificação mais tibetana do que chinesa. Observei que muitas casas eram de pe­dra e adobe, destoando imensamente do tradicional projeto arquitetônico chi­nês. Havia também, próxima ao lago, uma quantidade excessiva de barracas, que abrigavam centenas de mercadores acampados.

         Tales abriu a cortina traseira da carroça com uma puxada violenta. Percebi, com isso, que tínhamos estacionado em meio ao intenso comércio de uma pa­ragem fronteiriça.

         — Como se sente hoje, forasteiro? Acha que pode caminhar? — seu interesse era puramente profissional.

         — Sim, posso andar. Ainda não estou completamente recuperado, mas as articulações da perna já se dobram com perfeição. Eu não arriscaria uma corrida, mas não vejo problema em sair para um passeio.

         — Ótimo. Pólix e eu pensamos que você poderia nos ajudar com os supri­mentos. Se vai ser nosso guia daqui para frente, acho que deveria assumir parte da responsabilidade pelas contas da caravana.

         — Claro — concordei, finalizando um sinal positivo. O velho deu meia-volta e seguiu para a praça do mercado.

         Dentro do carro, cobri o corpo com o conjunto deplorável de trapos que usava desde que fora retirado do rio e tentei esconder o braço ferido jogando sobre ele o manto de lá. Lembrei-me de que tanto Flor do Leste quanto eu pre­cisávamos de roupas novas. Infelizmente não tínhamos um só dcnário no bolso.

         Saltei para a rua e o brilho do sol irritou meus olhos. Flor do Leste me puxou pelo braço, indicando o local onde Tales e Pólix analisavam as carroças. O mer­cador tinha à mão uma tábua recoberta de cera, onde fazia anotações com um estilete de osso.

         Olhando para a caravana, calculei as despesas. O comboio era composto por dois carros. O primeiro, onde viajavam os gregos, era puxado por dois cavalos, ambos de carga, impróprios para uma corrida veloz. O segundo transporte, o carro dos criados e das quinquilharias, tinha mulas à frente.

         Pólix parou a meu lado, mas não disse coisa alguma. O velho palpitou:

         —Vi um homem vendendo camelos na entrada da cidade. O que me diz de trocarmos os carros por uma dúzia desses ruminantes? Doze animais saudáveis devem ser o bastante para levar toda a mercadoria através do deserto.

         — Não seria vantajoso — devolvi. — A areia fina pode danificar o bronze. Acho melhor preservar o metal embrulhado e dentro do ambiente fechado do car­gueiro. Vamos continuar com os carros.

         — Deve estar brincando — depreciou Pólix. — Não é possível cruzarmos um deserto de areia sobre rodas. Isso é absurdo. Os carros não conseguem subir as dunas. Precisamos dos animais para levar a carga, caso contrário ficaremos ato­lados.

         — É uma questão interessante, bárbaro — reforçou o velho.

         — Eu disse que conhecia uma rota auxiliar. Um lençol subterrâneo corre por baixo dessa trilha. O resultado é uma via de solo arenoso, porém rígido. As car­roças não encontrarão dificuldades.

         O rapaz olhou para o pai, exigindo uma atitude.

         — Você está absolutamente certo da existência dessa rota? — intimou Tales.

         — Tem a minha palavra, apesar de eu ter a impressão de que já discutimos isso antes.

         Ele analisou meu olhar.

         — Confio em você, forasteiro — encerrou.

         Caminhei de volta ao carro dos suprimentos e contei as ânforas e os cestos. Sacudi alguns recipientes, para testar o conteúdo. Ainda havia bastante água, mas a comida estava no fim.

         — Vamos ter que estocar muita comida, se quisermos seguir viagem sem pa­radas longas — propus. — Felizmente nosso estoque de água só precisa aguentar até as ruínas de Persépolis.

         —Você não acha que uma grande quantidade de alimento pode acabar apo­drecendo durante a viagem? — cutucou o velho.

         — Sim, acho. Há alguns povoados no deserto onde poderemos reabastecei, mas para isso teríamos de nos distanciar demais de nossa rota. Sinceramente ainda não sei o que fazer. Vou tentar pensar em alguma coisa.

         Pólix alfinetou.

         — Então seu plano começa a apresentar falhas.

         — Talvez você possa me ajudar a resolvê-las.

         O rapaz balbuciou alguma coisa, mas minha atenção foi desviada para a me­nina chinesa, que me puxava insistentemente pelo braço. Como não podia fa­lar, Flor do Leste arriscou um sinal mímico, imitando o movimento circular de uma colher a mexer um caldeirão.

         — Você poderia elaborar um preparado — chutei. Ela concordou com a cabe­ça. — Que tipo de preparado?

         Ela levou a mão vazia à boca, reproduzindo o gesto de uma pessoa comendo. Depois, deu duas palmadinhas na própria barriga, simulando urna expressão de contentamento. Flor do Leste soltou meu braço e correu de volta à carroça. Tales, Pólix e eu a seguimos, intrigados, e notamos que a menina se apressava a buscar seu livrinho de ervas na mochila. Satisfeita, ela me indicou uma das páginas, rabiscadas com ideogramas e desenhos de plantas e raízes. Apesar de meu desconhecimento quanto à matéria herbórea, li as primeiras palavras e ra­pidamente compreendi a sugestão.

 

         — Acho que encontramos a solução para o impasse que o aborrece, Pólíx. Isto é, Flor do Leste encontrou.

         — Flor do Leste? — interpelou Tales. Esquecera-me completamente de que os gregos ainda não conheciam o verdadeiro nome da pequena. Tommaso me ajudou:

         — Flor do Leste é o nome da menina, senhor.

         — Poético — replicou o velho. — Mas o que ela quer dizer com todos estes sinais?

         Mostrei-lhe os desenhos nas páginas do livro. Ao mesmo tempo, a menina puxou umas ervas de dentro da bolsa e as sacudiu no ar.

         — E um tipo de substância, uma mistura de azeite, sal e ervas especiais. A menina acredita que esse preparado pode conservar a comida por muito tempo. A receita contida neste livro é bem específica.

         — E qual é sua opinião sobre isso? — perguntou Tales, imparcial,

         — Acho que devemos dar-lhe crédito. Seus conhecimentos já se mostraram bastante úteis. Se o preparado de ervas funcionar, poderemos reduzir ainda mais o tempo de viagem.

         — Mas e se não funcionar? — instigou o mercador. Como dono e responsável pelo comboio, ele tinha de pensar em tudo.

         — Aí faremos como eu planejara anteriormente. Compraremos um cavalo forte e o usaremos para buscar comida nas aldeias próximas à via.

         O velho marcou anotações na tábua de cera. Quando terminou, virou-se para o criado.

         — Tommaso, você será o responsável por escolher o cavalo — e entregou um saquinho de dinheiro ao siciliano. — Faça-o bem. Quero um animal jovem e sau­dável. Se ele adoecer no meio da viagem, deduziremos o valor de seu pagamen­to. Quero que compre também o par de camelos que combinamos. Você tem experiência com esse tipo de câmbio.

         — Está bem — concordou, um pouco decepcionado pela cláusula acerca da indenização.

         — Pólix e eu vamos cuidar dos suprimentos, incluindo o sal e o azeite.

         — Seria bom que tivéssemos mais potes de cerâmica para guardar a comida — intervim. —Três crateras seriam perfeitas.

         Crateras eram grandes vasos em forma de taça. Os gregos e os romanos nor­malmente as utilizavam para misturar água e vinho.

         — Você ficará por aqui, bárbaro, com a menina — ultimou Tales. — Tome con­ta da caravana. Esta é a prova definitiva de que confio em seu julgamento. Quando Tommaso voltar, pode andar pela cidade, se é que esse tipo de caminhada o agrada,

         — Não pretendo ir muito longe. Só o bastante para encontrar uma roupa nova para Flor do Leste. Acho que é o mínimo que devemos a ela.

         — Você deve muito mais a ela do que nós, forasteiro, por isso deveria ser o seu mecenas, não eu — argumentou, separando mais alguns denários. — Mas com­preendo a situação. A garota é importante para todos nós — e atirou ao ar três denários e quatro sestércios, que agarrei prontamente. — Compre vestimentas para ela e para você também. Mas aguarde o retorno de Tommaso. Cidades e ladrões são substantivos que caminham juntos.

 

Filho do Perigo

         Tommaso retornou à caravana, montado em um magnífico corcel marrom-avermelhado. Poucas vezes na vida eu apreciara um animal de tamanha bele­za. Era árabe, e pelo porte altivo deduzi que nascera selvagem e provavelmen­te fora retirado da manada ainda potro e amestrado por habilidosos treinadores beduínos. Essa mistura de ousadia e disciplina fazia dele um espécime único, inestimável.

         O siciliano não escondia a satisfação por ter encontrado, indiscutivelmente, o melhor corcel da cidade.

         — Hurra! — gritou o criado, puxando as rédeas e desmontando. Uma nuvem de poeira levantava-se cada vez que o equino afundava os cascos no chão, à ba­tida de seu trote majestoso. Aproximei-me do animal, sempre apoiado no cajado.

         — E então, o que achou? — perguntou Tommaso, orgulhoso.

         — É lindo. Com certeza o cavalo mais belo que já vi — respondi, acarician­do o pelo vermelho.

         — É também muito veloz. O antigo proprietário deixou que eu o cavalgasse antes de vendê-lo. Não vejo a hora de disparar pelo deserto em seu lombo,

         — É árabe, não é? Há algo de selvagem nele.

         — Sim, bem como seu dono anterior. O sujeito me vendeu mais barato por­que lhe garanti que seria bem tratado. Disse que o corcel era amestrado e aten­dia pelo nome de Ibn-Hatar, que em árabe significa filho do perigo.

         — Um corcel amestrado e que atende pelo nome. Deveria valer muito mais do que catorze denários. Como conseguiu adquiri-lo por esse preço?

         Ele sorriu.

         — Paguei-lhe somente doze denários e dez sestércios. O homem precisava do dinheiro para repor os camelos que morreram no deserto. Venha, suba ne­le, veja como é disciplinado e atende aos comandos do cavaleiro.

         — Eu adoraria, mas ainda não estou em condições de cavalgar. Preciso de descanso urgentemente.

         — Você não come nada desde ontem à noite.

         — É verdade. Acho que nunca estive tão fraco assim. Então, é justificável que eu esteja um pouco confuso.

         — Entendo. A inutilidade é uma condição pouco admirável.

         Retornei ao cargueiro, onde Flor do Leste me ofereceu um pedaço de peixe salgado. Bebi um pouco d'água e tossi algumas vezes. Limpando a boca com as costas da mão, vi que os gregos voltavam. No mesmo instante, Tommaso desceu da carroça, pronto a ajudar o patrão. Tales e Pólix vinham pela rua, seguidos por um chinês magricelo, desdentado, que, com dificuldade, puxava uma car-rocinha abarrotada de sacos, balaios e recipientes de cerâmica. Ali estava toda a comida de que precisaríamos para completar a jornada até Alexandria.

         O siciliano levou o que havia na carreta para dentro do carro dos criados e deu o sal e o azeite para Flor do Leste, que os misturou às ervas especiais. De­pois de aquecido, o preparado estaria pronto, e chegaria o momento de untar com ele os alimentos. Por fim, poderíamos conservar a comida palatáveí por bastante tempo. A questão dos suprimentos fora definitivamente resolvida.

         Estávamos na primavera, e a viagem era calculada em pelo menos dez meses. Com sorte, completaríamos o percurso em tempo recorde.

 

Predestinado em Delfos

         À chegada do crepúsculo, montamos acampamento às margens do lago. Es­friava rápido, e os gregos acenderam uma fogueira, pronta para receber a deliciosa refeição de Flor do Leste. Tommaso retornou com os camelos e as roupas, fi­nalizando assim os itens discriminados na lista de compras.

         Minhas novas vestimentas eram confortáveis, resistentes e me serviram per­feitamente, sem necessidade de ajustes. A calça era de um algodão rígido, bom para cavalgada, as botas eram longas, de couro duro, e a camisa fora costurada em duas camadas — uma de linho e outra de algodão acolchoado. As cores eram neutras e combinavam bem com a paisagem do deserto rochoso. Juntos vieram um par de braçadeiras e luvas de cavaleiro, que deixavam os dedos à mostra, justamente para facilitar o manuseio das rédeas.

         Flor do Leste ganhou um quimono simples, bege e cinza, sem desenhos ou ornamentos, mas muito mais quente e limpo do que seu traje anterior.

         No início da noite, já com o preparado borbulhando ao fogo, a menina chi­nesa fez sinal para que eu descobrisse meu braço e aplicou-me uma nova sessão de moxibustão. Com alegria, constatei que meus dedos já se dobravam à me­tade. Ao toque, a dor das ervas queimadas aumentou, e isso era bom, pois sig­nificava que o tato e a sensibilidade voltavam, aos poucos, ao normal.

         Depois do jantar, sentei-me no topo de uma pedra e cobri o corpo com uma manta de lá. Quando o silêncio total caiu sobre o acampamento, percebi, com minha audição afiada, que dentro da tenda Pólix chamava o pai à discussão. Ra­ras vezes utilizei-me dos sentidos para escutar conversas alheias, mas ao entender que era o alvo dos comentários, atentei ao diálogo.

         As duas silhuetas se moviam dentro da barraca, ao reflexo da luz do braseiro.

         Apurei os ouvidos.

 

         — Pai, tem uma coisa que ainda não entendi. Sou seu filho e sei que lhe devo respeito, mas penso que você confia demais nesse bárbaro. Estamos com ele só há dois dias, e o senhor segue cegamente seus comandos.

         O velho sorriu, como se já aguardasse aquela reação.

         — Compreendo sua preocupação. Em seu lugar, eu teria a mesma atitude. Cedo ou tarde isso teria que ser discutido, e acho que chegou a hora.

         — Isso o quê? — assustou-se Pólix. Eu mesmo fiquei confuso. Saberia ele algo a meu respeito que eu próprio desconhecia?

         Tales fez uma pausa, levantou-se e tomou distância do braseiro.

         — Já lhe contei que, quando tinha a sua idade, servi no exército. Isso foi há muito tempo, e ao terminar o serviço militar tive de escolher se continuava co­mo oficial ou se pedia dispensa, para viver como mercador. Já havia viajado bas­tante, conhecia terras longínquas, e por isso me sentia seguro para continuar viajando, mas como comerciante, ganhando meu próprio dinheiro.

         — Sim, conheço a história.

         — Mas você não sabe que, para tomar essa decisão, recorri ao conselho do oráculo.

         — O Oráculo de Delfos? — exclamou o rapaz, — A fala de Apoio! — Achei que deveria pedir auxílio dos deuses para concretizar a sentença que mudaria minha vida.

         O templo de Apoio em Delfos, na Grécia, era para os helênicos o centro do universo. Reis e governantes de todo o mundo vinham de terras distantes para sacrificar cabras e ouvir os conselhos do oráculo, que era, em essência, a voz su­blime dos deuses. Uma sacerdotisa, assaltada pelo êxtase divino, escutava o sus­surro que vinha das profundezas da terra e transmitia a mensagem a um acóli­to, que a anotava e a repassava ao visitante. Para os gregos, Delfos era mais do que uma localidade — era também uma inspiração, um orgulho, uma represen­tação viva do poder superior.

         — E o que foi que o oráculo lhe disse? — perguntou Pólix, excitado diante de um relato tão fantástico. — O que essa conversa tem a ver com o bárbaro que retiramos do rio?

         — Naquele dia, entre outras coisas, o deus profetizou minha morte.

         O jovem engoliu em seco, sem reação. Tales prosseguiu:

         — A mensagem do oráculo dizia que, em uma de minhas viagens de volta a Atenas, eu seria assassinado por harpias.

         Minha visão aprimorada não me permitia enxergar através da lona da bar­raca, mas não era difícil concluir, pelo gemido assustado, que Pólix tremera à menção daquelas criaturas. As harpias são figuras mitológicas, espécie de mu­lheres aladas com patas de abutre, derivadas da imaginação popular e retratadas em meia dúzia de antigos poemas helênicos. Como conhecedor da matéria ocul­ta, eu tinha certeza de que havia muita coisa estranha no mundo, mas harpias, pégasos e medusas nunca existiram de fato.

         — Harpias? Mas esses monstros são reais?

         — Ora, pode estar certo disso. A voz de Apoio me alertou de que eu seria avisado da proximidade desse dia, e o alarme víria na forma de um andarilho dos céus. Um homem que se faria passar por gente, mas que na verdade seria um emissário dos deuses.

         Pólix respirou fundo, limpou o suor da testa e acalmou-se. Seu inconsciente o impeliu a ironizar a situação, que de tão absurda parecia engraçada.

         — O senhor está dizendo que aquele bárbaro é um enviado dos deuses?

         — Eu o encontrei no rio antes de Tommaso — revelou o velho.

         — Você o quê? — murmurou Pólix, deixando de lado a disciplina familiar. — Por que não me disse antes?

         A resposta foi evasiva.

         — Fiquei a observá-lo por meia hora e cheguei a me lembrar das palavras do oráculo. Não tinha certeza, mas imaginei que ele poderia ser a figura mencio­nada na profecia. Temendo por minha vida, dei as costas ao meu destino e vol­tei ao acampamento. Pouco depois você me avisou que Tommaso o havia reti­rado do rio. Ninguém teria sobrevivido por tanto tempo na água. Só um deus ou um herói teria essa capacidade.

         — Ele não é um deus nem um herói, é somente um bandido.

         — Não, as evidências são claras. Também resisti a acreditar, mas ouvindo-o falar reparei que seus conhecimentos ultrapassam em muito as informações co­muns aos guias, generais e filósofos. E finalmente me convenci de que não exis­te escapatória ao destino — a voz baixou uma oitava, — E já alcancei idade e sa­bedoria suficientes para entender que não devo questionar o que é escrito pelos deuses.

         Consternado, Pólix desabou no chão e refugiou-se cm um canto frio da ten­da, longe do calor do fogo. Cobriu a face com ambas as mãos e ali ficou, meio desolado, quase autista, observando impassível o crepitar do braseiro. Tales aga­chou-se ao lado do filho, pôs a mão direita em seu ombro e pediu-lhe que não sofresse, já que sua suposta morte era "inevitável". Explicou-lhe que todos os documentos já haviam sido passados para o nome do filho e que ele deveria dar continuidade ao seu trabalho, guiando a caravana até Alexandria.

         De minha parte, estava certo de que não era o andarilho profetizado. Não questionava a capacidade fatídica do oráculo, mas sabia que a sacerdotisa em Delfos sempre falava por enigmas. Certa vez, o rei Creso, da Lídia, perguntou ao oráculo se deveria lançar-se na guerra contra os persas. A voz de Apoio res­pondeu que, se o fizesse, um império seria perdido. O monarca acreditou que o oráculo se referia ao Império Persa, mas enganou-se — era o seu. Portanto, a mensagem que chegara até Tales não queria dizer, literalmente, que ele seria ata­cado por harpias, ou que morreria massacrado por elas. A meu ver, eram tudo alegorias, informações passíveis de ser interpretadas. Até mesmo a questão da morte poderia ser tão somente uma figura simbólica.

         Além disso, eu estava certo de que não era um enviado dos deuses. Poderia ter perdido minha glória e meu exército, mas retinha a absoluta consciência de rainha identidade.

E mais uma coisa: harpias não existem.

 

Pistas na Estrada

         A caravana deixou a depressão de Turfan na manhã seguinte e retomou o caminho pela Rota da Seda. Dali até o Mediterrâneo, o deserto seria uma com­panhia constante. Primeiro, seguiríamos por terreno árido, montanhoso, mar­geando a cadeia de montanhas Tian rumo a sudoeste, até as terras que hoje per­tencem ao Afeganistão, Depois, pretendíamos adentrar o Império Parto, atual Irã, e em certo ponto deixaríamos a estrada para alcançar, ao sul, as ruínas de Persépolis, onde começava a trilha secreta traçada pelos babilônicos.

         Por dois meses, viajamos por vales secos, desfiladeiros profundos e monta­nhas rochosas, esbarrando com árabes, partos e chineses, O terreno era árido, mas não raro encontrávamos arbustos no caminho, e eu recolhia as cascas e fo­lhas para usá-las como lousa. Nelas, rabiscava caracteres gregos e, aos poucos, ensinava o idioma helênico à menina chinesa. Flor do Leste tinha uma esplên­dida capacidade intelectual, mas o grau de dificuldade para aprender uma lin­guagem ocidental era extremo. O alfabeto grego era totalmente diferente dos ideogramas mandarins, e tive que explicá-lo à pequena letra a letra, verbalizan­do os sons e repetindo os significados.

         No último mês do verão, estávamos a poucos quilômetros da fronteira com a Partia, onde, pelo mapa, havia um povoado chamado Bactro, composto de um forte, um posto de controle e meia dúzia de casas de pastores e oleiros.

         Com o tratamento de agulhas de Flor do Leste e seus elixires de ervas, re­cuperara-me quase totalmente, e o braço ferido já se movia com perfeição, res­tando apenas uma cicatriz circular um palmo acima do punho, onde o ferrão de Mai Yun penetrara. Restabelecido, passei a atuar como batedor, viajando sem­pre à frente, montado no veloz Ibn-Hatar. Como guardião, minha função era observar as condições da estrada por onde passariam as carroças, averiguar a pos­sível presença de ladrões e retornar ao grupo com relatórios. Fiz isso tantas ve­zes que o corcel se apegou mais a mim do que a qualquer outro, elegendo-me instintivamente seu cavaleiro.

         Dizem os beduínos que, quando o tempo está calmo e o céu azul espelha a magnificência do cosmo, é sinal de que uma violenta tempestade se aproxima.

         E foi isso que aconteceu.

 

         Em uma manhã quente e particularmente abafada, a um dia de viagem de Bactro, notei, à margem da estrada, um montículo de terra que me chamou a atenção. Em um piscar de olhos meu cérebro captou na areia impressões hu­manas, como se o local tivesse sido remexido e forjado para parecer uma obra natural do vento. Ora, não havia razões para um mercador, um andarilho ou mesmo um militar esconder seu rastro, ainda mais em uma rota compartilha­da por tanta gente. Aproveitei, então, meus dez minutos de vantagem em rela­ção ao primeiro carro e fui investigar a estranha elevação.

         Sob sol forte, desmontei e me agachei diante do sítio, estendendo ao máximo a capacidade sobre-humana de meus sentidos. Toquei o terreno com a ponta dos dedos, farejei o ambiente e, pelo tato, percebi uma variação nas emissões de calor abaixo do solo, o que significava que havia mais do que areia enterra­da ali. Pensei em buscar urna pá na carroça, mas não quis perder tempo e comecei a cavar com as mãos. Dois minutos depois, encontrei, afundados em um bura­co, uma caneca de argila e um graveto queimado. Deduzi que fossem vestígios de um acampamento, mas por que teriam sido propositadamente ocultados?

         Tommaso, ao me ver ajoelhado no deserto, longe da trilha, puxou as rédeas das mulas e o comboio estacou. Pólix, que guiava o segundo transporte, também parou e gritou para o criado:

         — O que está havendo lá na frente? Por que o bárbaro saiu da estrada?

         — Não sei, o sol está contra nós — ele respondeu em voz alta, para vencer a distância e a amplitude do espaço. — Acho que está procurando alguma coisa na areia.

         O helênico suspirou, impaciente.

         — Pois corra até lá e descubra que tipo de maluquice ele está aprontando. E tente trazê-lo de volta. Nesse ritmo nunca chegaremos a Bactro.

         — Sim, senhor — obedeceu o empregado, descendo da plataforma do carreteiro.          Enfiando a mão ainda mais profundamente no chão, retirei da terra uma

pedra chamuscada, que certamente havia sido usada para delimitar uma fogueira. Então vi Tommaso se aproximando.

         — Algum problema? Encontrou algum tesouro? — brincou o siciliano, ao me ver revirando a poeira.

         —Alguém acampou neste lugar e depois forjou um montículo de areia e pe­dras para ocultar sua passagem. Ajude-me a limpar o perímetro.

         Ele não se mobilizou imediatamente, tentando entender a relevância da in­vestigação. Sem chegar a conclusão alguma, perguntou:

         — Você desencavou alguns utensílios singulares — ele se referia à caneca de argila —, mas que interesse temos em um ponto de parada abandonado? É pos­sível que esteja aí há anos e tenha sido soterrado pelas tempestades do deserto.

         — Não. Eles jogaram terra e pedras sobre a fogueira. Por que acha que fa­riam isso?

         — Talvez não quisessem ser rastreados.

         — Foi exatamente o que pensei.

         O italiano olhou-me passivo, mas por fim se agachou, separando algumas rochas. Continuava curioso quanto à minha atitude e voltou a alimentar o diá­logo:

         — Está procurando por alguma coisa em especial?

         — Uma pista — eu disse, aproximando o rosto do solo, para captar melhor os aromas.

         Foi então que tateei, no meio dos pedregulhos, um objeto em forma de disco. Era um prato de porcelana quebrado, ordinário, mas que guardava um cheiro característico.

         — Zamir! — exclamei, reflexivo. As impressões olfativas que ainda se agarravam à louça eram as mesmas contidas na garrafa de cerâmica do bosque Tín-Sen.

         — Zamir? O que é isso? — perguntou Tommaso.

         — Um nome. O nome de um velho conhecido.

         — Esse Zamir é amigável?

         — Nem um pouco. Foi ele quem tentou me matar da última vez.

         — Foi o homem que perfurou seu braço?

         — Não. Ele enviou assassinos para dar cabo de minha vida — confessei, ob­servando o horizonte deserto. — E isso naturalmente o torna tão hostil quanto seus contratados.

         Retirei a braçadeira e a luva e, com a palma da mão, provei a consistência e a temperatura da areia. As pegadas deixadas pelos viajantes tinham sido co­bertas pela poeira havia muito tempo, mas, em certos pontos, havia variações de calor no solo, um nível abaixo da camada de areia depositada pelo vento. Nesses lugares, os grãos estavam mais unidos, compactados, amassados — era a evidência de que haviam sido afundados sob a pressão do peso de um homem. Tratava-se de pegadas, sem dúvida, e não só de um par delas, mas de cinco ou seis pares, o que me levou a crer que Zamir contava com a ajuda de carregado­res, provavelmente escravos.

         Não existiam indícios de animais, o que provava que o mago viajava a pé, com cinco acompanhantes que, pelo peso, eram todos homens. Segui o rastro por cinquenta metros até o leito da estrada, quando as impressões se apagavam completamente, em meio ao cruzamento de inúmeras outras marcas de caravanas que passavam por ali todos os dias. O siciliano me acompanhou gentilmente, trazendo Ibn-Hatar pelas rédeas.

         — Eles estão somente seis semanas à nossa frente — confidenciei a Tommaso. O vento naquela parte da Rota da Seda levava um mês e meio para cobrir o so­lo com aquela quantidade específica de terra, que formava um nível sobre a tri­lha de calor que eu encontrara.

         — Quem? Esse tal Zamir?

         — Ele e maís cinco homens. Viajam todos a pé e caminham para oeste. Talvez ainda possamos alcançá-los, se continuarmos nesse ritmo acelerado.

         — Você quer se vingar dele, não é? Quer persegui-lo?

         — Não. Só quero impedir que ele cumpra sua vingança. Preciso neutralizá-lo antes que tente assassinar outros em sua lista.

         Observei mais uma vez o horizonte, onde a Rota da Seda encontrava o po­voado de Bactro.

         Seis semanas.

         Durante toda a jornada, o inimigo estava mais perto do que eu imaginara.

 

O Rei Mendigo

         De longe, o povoado fronteiriço de Bactro parecia abrigar somente uma for­taleza, porque essa era a única construção realmente imponente na paisagem adiante. A aproximação posterior, porém, revelou-nos a existência não de meia dúzia, mas de dezenas de pequenas casas de barro, que juntas formavam um tí­mido aglomerado urbano.

         A primeira impressão que tive ao avistar a fortaleza, aos raios ofuscantes da aurora, foi de que tínhamos finalmente chegado ao Ocidente. Diferentemente dos templos chineses, feitos de madeira, e das cabanas bárbaras, de pedra e pa­lha, o forte de Bactro havia sido construído com blocos de tijolo secos ao sol. Os portais de entrada eram largos, em forma de arco, e o interior era ricamen­te decorado com mosaicos multicolores. No centro do edifício, os engenheiros projetaram um pátio interno, semelhante aos átrios romanos, mas muito mais amplo. O teto se fechava em abóbada, imitando o firmamento celeste.

         Havia arbustos ao longo de todo o cenário árido e pedregoso que margea­va a Rota da Seda, mas raramente se encontravam, no deserto, plantas grandes ou comestíveis. Bactro, contudo, contava com diversas fontes de água, que ali­mentavam a vida de palmeiras, tamareiras e juníperos e permitiam o floresci­mento natural de um capim ralo, que servia como pastagem para ovelhas. A temperatura, embora mais úmida, continuava escaldante, e decidimos reabas­tecer as crateras, para seguir com tranquilidade até o ponto onde deixaríamos a estrada.

         Nenhum muro ou cerca delimitava a pequena comunidade, mas um bata­lhão de soldados montados vigiava seus limites, atento a qualquer movimentação irregular além das colinas. Carregavam arcos longos, lanças e cimitarras — espa­das curvas, normalmente usadas com uma só mão pelos esgrimistas. As arma­duras tinham a aparência de roupas longas, de linho, costuradas em várias ca­madas para absorver o corte das lâminas inimigas.

         Os guardas de fronteira exigiram um pagamento exorbitante pela travessia — dez denários —, que, a pedido deles mesmos, foi feito em dracmas gregas. Essa seria, entretanto, a última vez que seríamos extorquidos, pois em breve deixa­ríamos a estrada oficial.

         Além da alameda de palmeiras, pudemos contemplar melhor a fortaleza e sua bela arquitetura. Em suas escadas, um homem coberto de roupas pesadas, provavelmente leproso, pedia comida aos transeuntes, quando um bando de crianças remelentas começou a atirar-lhe pedras. Ninguém se importou, até que um soldado ordenou que os pequenos parassem e, com a bainha de sua espa­da, açoitou o mendigo e o conduziu para longe do forte. Era uma figura lamen­tável. Com vestes longas e sujas, caminhava com dificuldade, escondendo o ros­to em um capuz escuro, A túnica velha parecia manchada de sangue fresco, que, calculei, escorria de uma ferida aberta no ombro.

         À tarde, antes de o sol se pôr, caminhei até o centro da aldeia para investigar qualquer pista acerca do mago Zamir. Flor do Leste me acompanhou até o meio do caminho, mas parou em uma área verde para recolher raízes de um junípero.

         Parei em um local próximo à fortaleza, na saída da alameda de palmeiras, por onde, obrigatoriamente, todas as caravanas passavam. Retirando a luva e a braçadeira, ajoelhei-me para rastear o solo. Olhei as pedrinhas no chão, a poei­ra e a areia dura do terreno, farejando, tateando e escutando as mais delicadas vibrações. Analisei as impressões térmicas, mas havia pegadas em todo o lugar, tornando impossível uma conclusão detalhada.

         Em determinado momento, pressenti que alguém se aproximava à minha esquerda, trazendo consigo um detestável aroma de suor, sangue e imundice, Estiquei o pescoço, e lá estava o mendigo que, mais cedo, pedia esmolas à en­trada do forte. Conservava a cabeça baixa, oculta por um capuz sombrio, e as mãos enroladas em ataduras nojentas. Ao vê-lo pela primeira vez, supus que era leproso, mas agora já não tinha tanta certeza da natureza de sua enfermidade. Não cheirava como um doente, mas havia manchas de sangue em sua roupa. A princípio tenrei ignorá-lo, a fim de não interromper a concentração, mas o moribundo me evocou.

         — Sei o que está procurando — murmurou. A voz era rouca, cansada.

         — Sabe? — devolvi, incrédulo.

         Ele se aproximou ainda mais.

         — Procura pelo rastro do Feiticeiro do Deserto.

         Como aquele mendigo sabia sobre Zamir? E mesmo que tivesse visto seu comboio, que tipo de conhecimento um pedinte teria sobre magia ou ocultismo? Surpreso, levantei-me e caminhei ao seu encontro.

         — Quem é você?

         — Por favor, não se aproxime. Quem sou ou quem fui não tem mais impor­tância. Escolhi o anonimato, a mendicância, a fome. Esta é minha maldição, assim como você tem a sua. Foi o meio que encontrei para me redimir dos meus pecados. Deve respeitar minha escolha.

         — Mas você é... — estava sem palavras.

         — Zamir, o Feiticeiro do Deserto — continuou o pobretão —, vem vagando pelo mundo e assassinando os mestres da magia, para roubar-lhes os segredos. Foi ele quem matou Drakali-Toth, e agora, munido de suas artes místicas, dirige-se a Roma, para destruir a Feiticeira de En-Dor. É uma época negra para os magos, forasteiro, e você deve correr para salvar sua amiga.

         — É isso que venho tentando fazer — retruquei, sem mais me importar com a identidade do mendicante. — Identifiquei o rastro do bruxo na manhã passada.

         — Eu sei. Há seis semanas, o feiticeiro esteve neste povoado, carregado por escravos em uma liteira de ébano. Eles seguirão pela Rota da Seda e, na altura do deserto de Kavir, descerão para sul, onde pretendem encontrar as trilhas se­cretas babilônicas. Esse é também o seu caminho, creio.

         — É a maneira mais rápida de chegar ao Egito.

         — Decerto que é, decerto que é — sussurrou, quase se perdendo em lembran­ças proibidas. — Mas não se preocupe. Zamir viaja a pé. Se a caravana dos gre­gos prosseguir nesse ritmo, avançará um pouco a cada dia, reduzindo a vanta­gem do vingador babilónico. Se tudo ocorrer conforme seus planos, você chegará a Alexandria pouco depois do feiticeiro e aportará na Itália quase ao mesmo tempo que ele.

         — Espero que esteja certo. Pelo bem de Shamira e de todos que estão na mira desse assassino — até então, eu desconhecia o fato de Zamir ser o responsável por aqueles crimes pavorosos.

         — Tem mais uma coisa. Talvez o invocador faça uma mágica para ocultar a entrada para as rotas secretas. Se, quando ultrapassar as ruínas de Persépolis, tudo o que vir forem dunas, aguarde o crepúsculo e siga a estrela vespertina, sem dar atenção aos obstáculos. Sem demora será lançado à trilha correia,

         Perplexo, olhei com fraternidade e compaixão para o sábio à minha frente, certo de que minha piedade, no passado, assistida pelos conselhos de Shamira, havia enfim gerado um soberano. Não um soberano comum, detentor de um império magnífico, mas um mestre da sabedoria, um profeta da verdade. O Rei Mendigo superara suas provações e finalmente se tornara tão grande quanto um dia quisera ser.

         — E você, para onde vai agora? — perguntei.

         Eu o ouvi sorrindo baixinho.

         — Continuarei meu martírio, renegado. Continuarei a ser açoitado, apedre­jado e discriminado. Mas isso não me enfraquece. Não tenho inveja dos ricos, dos generais, dos imperadores, porque já estive no lugar deles, e esse foi o pior de meus castigos,

         Ao fim do discurso, o mendigo cabeceou um cumprimento, deu meia-volta e deixou o povoado, para nunca mais regressar. Errou para o sul, sem sandá­lias, com os pés machucados, raspando a sola contra a areia fervente. Enquanto sua figura caía no horizonte, sumindo em carona com o sol poente, escutei o trotar de Ibn-Hatar, guiado pelo siciliano.

         — Não quis interrompê-lo, companheiro, mas fiquei curioso para saber o que conversava com aquele pedinte. Pelo modo como deliberavam, qualquer um diria que se conhecem há anos.

         Achei a observação um tanto oportuna.

         —Tudo o que sei são lendas, Tommaso. Nas terras da Suméria, quando a ci­vilização era jovem, contava-se que havia um rei imortal que governara o maior de todos os impérios da terra. Era um reino degenerado, pútrido, odioso. O terrível monarca obrigava seus escravos a trabalhar até a morte, para erguer mo­numentos em seu nome. Um dia, um anjo renegado chegou à capital procurando vingança e, com sua espada mística, golpeou o soberano. O rei não morreu, mas a ferida que carregava não podia mais ser curada, e ele foi condenado ao esqueci­mento. Desde então, o Rei Mendigo percorre o mundo como indigente, pagan­do pelo mal que fez a seus súditos.

         — Gostei da história — replicou o criado. — Mas esse rei... Qual era o seu nome?

         — Ele renegou o seu nome. Decidiu por vontade própria abandoná-lo, e com isso deixou para trás toda a culpa que carregava.

         Tommaso suspirou e voltou a olhar na direção do mendigo, mas ele havia sumido.

         — Venha — convidou —, estamos começando a preparar o jantar.

         Eu o acompanhei, com um pensamento a martelar o cérebro. Isso acontece frequentemente quando se vive demais — não só ouvimos lendas, mas nos tor­namos parte delas.

         Eu sabia o nome do rei.

         Seu nome era Nimrod.

 

Persépolis — As Dunas Irreais

         Com o fim do verão, o calor abrandou. Agora, mesmo nas horas mais quen­tes do dia, os cavalos se cansavam menos, e nossa viagem seguiu calma, sem im­previstos.

         No início do segundo mês do outono, a estrada estreitou-se entre duas es­plêndidas manifestações geográficas. Ao sul, a cadeia de montanhas Kopet dese­nhava o horizonte, e ao norte o terreno plano e arenoso acabava era um deserto de terra e sal — o deserto de Kavir. As montanhas Kopet são gigantescas eleva­ções rochosas, de pedras escuras e enrugadas, que atualmente delimitam a fron­teira entre o Irá e o Turcomenistão. Naquela época, os picos também traçavam as bordas do reino — povos nómades da estepe atuavam além das cordilheiras, estendendo seus territórios por todo o Cazaquistão, a Rússia e a Mongólia. A partir dali, o deserto nos aguardava. Sete meses após termos partido de Turfan, deixaríamos a Rota da Seda, rumo ao sul. A trilha secreta começava somente a oeste de Persépolis., e isso significava que ainda teríamos de vencer todo o pla­nalto do Irã para alcançá-la. Esse, portanto, seria o período mais crítico da via­gem, uma vez que não teríamos picadas a seguir. Nós nos movimentaríamos tendo como guia apenas o mapa e as estrelas, mas felizmente eu conhecia rela­tivamente bem o caminho. Mesmo assim, as chances de nos perdermos eram consideráveis.

         Não foi o que aconteceu. Com a cooperação de todos, levamos dois meses para cruzar a Partia. Evitamos bandidos, soldados, terrenos difíceis e ainda tive­mos tempo para contar histórias ao pé da fogueira e nos deliciar com jantares saborosos, preparados por Flor do Leste. Nas horas vagas, continuei a dar au­las de grego à menina, que já conseguia escrever frases completas. Concentra­do na guarda, desisti de rastrear Zamir e sua comitiva — o mendigo revelara-me o caminho do bruxo, e concluí que cedo ou tarde passaríamos à sua dianteira.

         Minha relação com os gregos melhorou, especialmente com Pólix, que ini­cialmente temia que eu os levasse para uma armadilha. Em vez disso, conduzi sabiamente o comboio pelas planícies iranianas, e o rapaz passou a me respeitar como guia.

         Em uma fria manhã de dezembro, no início do inverno do ano l, divisamos ao leste o triste e sombrio esqueleto da antiga capitai dos persas, Persépolis, de­vastada por Alexandre, o Grande, no século IV a.C. Daquele ponto em dian­te, somente duas horas nos separavam da entrada da via secreta babilônica.

         A oeste de Persépolis, o solo era plano e seco, e a vegetação de palmeiras completava o cenário. O mapa trazido pelos gregos era muito preciso e não indicava nenhuma mudança no ambiente. Todavia, ao continuarmos rumo ao sul, deparamo-nos com um inesperado obstáculo.

         — Um deserto de dunas? — estranhou Pólix, protegendo os olhos com a mão sobre a testa. — O que fazem essas colinas no meio do planalto persa?

         Uma inoportuna faixa de areia fina formava uma meia-lua à nossa frente, cercando sul, leste e oeste com quilômetros de terra fofa, intransponível a qual­quer veículo sobre rodas.

         Tales conferiu o mapa.

         — Essa formação não consta em nossos registros, e nunca ouvi nada a respei­to. Não me parece simplesmente uma área de areia acumulada, trazida pelo vento, mas pela extensão eu diria que é um verdadeiro deserto, vasto e perigoso.

         Não era nem uma coisa nem outra. A imensidão misteriosa não só era ar­tificial, como guardava em si algo de místico. Os humanos podiam não notar, mas meus sentidos me revelavam que todo aquele lugar estava sob efeito de um poderoso feitiço. O barulho do vento era irreal, o cheiro da areia não existia, e a imagem projetada não passava de um simulacro aos olhos de um querubim.

         — Você já caminhou por estas terras, bárbaro! — exclamou o jovem grego. — Onde estão as trilhas secretas que nos prometeu?

         Voltei a atenção à caravana.

         —Aparecerão no início da noite. A estrela vespertina nos indicará o caminho.

         — É algum tipo de truque?

         — Não, nada de truques. Eu conheço a direção, ou pelo menos sei como identificá-la.

         Tales interferiu:

         — O bárbaro nos guiou sabiamente até aqui, filho. Vamos confiar nele um pouco mais.

         O rapaz respondeu olhando para mim:

         — Eu não disse que não confiava. Só não consigo compreender a lógica dessa situação.

         — Não estamos perdidos — expliquei. — A aparição das colinas de areia prova isso. Elas escondem a entrada da via secreta. Mas teremos de esperar até o crepúsculo para encontrar a passagem.

         — Se teremos que esperar, então é melhor descansar e comer alguma coisa — decidiu o velho Tales, caminhando até o cargueiro.

         Pólix pôs de lado as rédeas da carroça e analisou os detalhes do mapa.

         — Não pode ser. Não há nenhum deserto por aqui.

         Ele estava certo.

 

No Túnel dos Mortos

         A estrela vespertina, também reconhecida como o planeta Vênus, despontou nos primeiros minutos do crepúsculo, reluzindo intensamente no leste.

         — Vejam! — apontou Pólix. — Ali está a estrela prateada, a mais brilhante do céu. Mas ainda não vejo a entrada para a via secreta — era uma indireta.

         — Nem a verá, Pólix — endureci, oferecendo-lhe uma tira comprida de pa­no. Ele segurou o objeto sem entender.

         — Para que isso?

         — Coloque-a sobre os olhos.

         — Como espera que eu guie a caravana de olhos vendados, bárbaro?

         Tales, Tommaso e Flor do Leste observavam, impassíveis, a discussão.

         — Amarraremos uma carroça à outra, e os camelos ao último dos carros. Con­duzirei o primeiro transporte. Quanto a você, não deve observar a passagem — olhei para os outros. — Nenhum de vocês deve.

         O jovem grego cabeceou uma negativa. Estava irredutível, e de tudo faria para rechaçar um comando, a seu ver, tão absurdo. Ao lado dele, o velho já ajus­tava a faixa, e Tommaso fazia o mesmo na carroça dos criados. Flor do Leste, calada, organizava as ervas na mochila.

         — Mas para que tudo isso, forasteiro? Para que esse mistério? Pede para que confiemos em você, mas ao mesmo tempo nos aparece com uma idéia estúpida.

         — Há coisas neste mundo para as quais seus olhos não estão preparados. A razão, a sanidade e a consciência são riquezas inestimáveis de um homem. Não queira perdê-las, rapaz.

         — Por quê? — interpelou, frenético. Ele não daria o braço a torcer. — O que há de tão tenebroso que nossos olhos não podem suportar? O que o faz diferen­te de nós?

         Tales, com a paciência já por um fio, explodiu em uma chuva de injúrias:

         — Faça o que ele manda! Basta de desobediência!

         Pólix estremeceu, assustado com a súbita inflamação do pai, mas não se in­timidou por completo.

         — Desculpe-me, mas tudo que estou fazendo é zelar pela segurança da ca­ravana. O senhor mesmo me disse que...

         — Cale-se! Se tivesse realmente entendido o que eu disse, não estaria se com­portando como uma criança. Ponha a venda e fique quieto.

         O rosto do velho inchara, um indicativo óbvio de que perdera totalmente o controle. Não sei o que o levara a tanto. Talvez pensasse que as harpias esti­vessem além das colinas, esperando para matá-lo.

         Contrariado, o jovem grego enfim se dobrou à repreensão c cobriu os olhos com o pedaço de lona. Não guardei nenhuma mágoa pelo acontecido. Em seu lugar, teria feito o mesmo. De fato, Pólix e eu éramos mais parecidos do que eu imaginara a princípio.

         Para mim estava claro, desde o início, que o deserto adiante era uma ilusão fantasmagórica, lançada para confundir os passantes. A imagem fora produzi­da por um feitiço. O bruxo Zamir passara por ali, sem dúvida, e, como o Rei Mendigo havia suposto, pusera uma magia para ocultar a entrada da trilha. As­sim, poucos se aventurariam pelo caminho, e mesmo aqueles que o fizessem não encontrariam a passagem, a não ser que tomassem a direção correta de Vésper.

         A decisão de vendar os humanos era calculada. Qual seria o impacto que aquelas mentes despreparadas sofreriam ao contemplar um evento tão inacre­ditável? A simples visão da passagem ilusória poderia causar um dano táo pro­fundo à razão deles que talvez fossem acometidos pela loucura. E verdade que os magos e feiticeiros, que manipulam a magia diariamente, também são hu­manos, porém exercitam suas habilidades gradualmente e aos poucos aprendem a aceitar a realidade do impossível. Mas para alguns, como Pólix, que estavam muito ligados ao mundo natural, uma revelação como aquela poderia inutili­zar-lhes a mente e roubar-lhes a sanidade.

 

         Quando avancei, juntamente com o comboio, por entre as colinas espectrais, a subida de terra que levava ao topo da duna simplesmente desapareceu, e entra­mos no coração da imagem ilusória criada por Zamir. Uma ventania fantasma­górica sacudiu as carroças, acompanhada por uma série de gritos e murmúrios esganiçados. Sombras tenebrosas surgiram à nossa volta, dançando em rodas frenéticas. Eram espíritos atormentados, que haviam sido capturados por um ritual mágico.

         Alguns feitiços, como esse magnífico encantamento de ilusão, necessitam ser constantemente alimentados por infusões de energia. Para obtê-la, alguns bruxos capturam espíritos errantes, sugam suas forças e assim garantem a pre­servação de seus encantos. Os fantasmas aprisionados são quase sempre cria­turas confusas, o que os torna alvos fáceis para os necromantes.

         — O que está acontecendo? — demandou Pólix, com um berro amedronta­do. O ruído das sombras era tão intenso que quase não-consegui escutá-lo.

         — Sente-se, feche os olhos e tape os ouvidos — ordenei. — Não se mova até escutar o meu sinal.

         — Não! Quero saber o que se passa. Eu exijo saber!

         — Faça o que mando, garoto, ou então esta pode ser sua última noite de cons­ciência.

         — Não aceito isso! Não aceito isso — insurgiu-se o jovem. Quanto mais ber­rava, mais sua voz ia se perdendo no frenesi espectral. Em sua excitação juvenil, Pólix não se conteve e arrancou a tira de lona que protegia seus olhos.

         Não sei, e nunca procurei saber, o que se passou na mente do helênico na­quela hora. A visão de uma cena tão macabra levou seu cérebro a colapso e, in­conscientemente, ele se atirou ao chão, tremendo. Recolheu-se à posição fetal, gemendo e chorando. O corpo também respondeu, relaxando o intestino e des­prendendo fezes e urina em uma poça fedorenra.

         Puxando as rédeas de Ibn-Hatar e prendendo bem os pés nos estribos, re­trocedi e emparelhei o corcel aos flancos da segunda carroça, detendo-me ao adentrar o sítio onde o grego jazia. Não poderíamos ficar mais tempo ali, ab­solutamente. Precisávamos escapar logo daquele furacão místico, antes que Pólix se afundasse para sempre no abismo da loucura.

         Com a mão esquerda segurei firme o pescoço do alazáo, agachei-me e com a mão direita agarrei com toda a força o braço do rapaz, puxando-o para mim. Pressionando-lhe a nuca para baixo e dedilhando um ponto-chave sobre o pes­coço, afetei uma de suas zonas vitais, acalmando assim as convulsões, A mani­pulação dos pontos vitais era uma técnica marcial conhecida pelos querubins, mas que também poderia ser útil à medicina. Um segundo depois, Pólix ador­meceu, permitindo que eu retomasse o controle do comboio.

         Os fantasmas continuaram a dançar e a silvar, mas a ventania foi aos pou­cos se acalmando. Estávamos agora próximos à saída — e próximos à entrada da trilha. A área afetada pelo encantamento era curta, mas o horror dos monstros espectrais alongava a percepção da jornada.

         Enxerguei uma luz prateada, uma ponta de esperança no meio do caos. Era a lua que brilhava no céu, sinal de que estávamos deixando o túnel dos mortos.

         De repente, a ilusão terminou. Os fantasmas sumiram, levando consigo suas rajadas de pavor. Ibn-Hatar bateu com os cascos no chão, e observei o espaço ao meu redor. Estávamos em um largo, uma área circular de trinta metros de diâmetro, de solo duro e seco, que se afunilava em uma trilha árida, quase in­finita. O caminho ia para o sul até onde a vista alcançava e depois virava a oes­te, na direção da Mesopotâmia.

         Para conservar-se oculta em toda sua extensão, a rota secreta afundava-se a três metros do solo, de modo que os andarilhos e mercadores, ao longe, não perceberiam a passagem dos viajantes. Dos dois lados da estrada, barrancos de barro rígido, que se encolhiam para dentro em forma de muro, funcionavam como barreiras para impedir o escoamento da areia de fora para dentro da via. Tratava-se, portanto, de um tipo de vala, larga e profunda.

         — Já chegamos? — alguém perguntou. Era Tommaso.

         — Já podem tirar a venda — anunciei.

         Saltei do cavalo e estiquei no chão o corpo inerte de Pólix, ainda adormecido. Analisei seus batimentos cardíacos, a consistência da pele e a mobilidade dos ossos. Fisicamente, ele nada sofrera.

         — Ele está bem? — perguntou o pai, correndo ao encontro do filho.

         — Ele ficará bem, eu acho. Sofreu um impacto emocional muito forte, uma experiência que pode marcá-lo por toda a vida.

         Tales amparou a cabeça do rapaz com uma das mãos, e com a outra verificou sua temperatura. Tristonho, projetou o olhar perdido em algum ponto da face juvenil. Flor do Leste ajoelhou-se a seu lado e deitou um pano molhado na testa do jovem grego.

         O velho devolveu o filho ao chão, confiando-o aos indispensáveis cuidados da menina chinesa. Levantou-se e contemplou toda a área, ao brilho noturno da lua. À esquerda, desenhava-se um recuo no barranco, e dentro dele havia uma estátua de pedra. A obra, em tamanho real, fora castigada pelo tempo, mas ainda era possível distinguir as inconfundíveis feições do rei Nimrod.

         — Você é um enviado dos deuses, não é? — perguntou Tales, austero, voltan­do-se a mim. — Tudo isso que está acontecendo... Você é o arauto que veio anun­ciar minha morte.

         Eu sabia que seria difícil convencê-lo do contrário, especialmente depois da­quele evento fantástico.

         — Não sou nada disso, Tales. Nada tenho a ver com deuses e não participo de nenhuma profecia. Mas sei, e agora você também sabe, que existem muitas verdades além da realidade mundana. Essas trilhas foram construídas há mui­to tempo, por homens sob as ordens de um bruxo. E é de esperar que a mes­ma bruxaria esteja sendo usada para ocultar sua entrada.

         — Bruxaria?

         — Não se impressione. A grande maioria das pessoas jamais entrará em contato com esses fenómenos. A cada dia, os seres humanos se apegam mais ao mundo material, esquecendo seus instintos. Foi por isso que os animais não se assustaram. Para eles, nada é impossível. Mas Pólix não estava preparado para o que viu. Não foi à toa que pedi que colocassem a venda.

         Ele não disse nada. Tommaso escutava a conversa em um canto.

         — O caminho é seguro — enfatizei —, e seu filho ficará bem. Não sou adivinho, mas arriscarei algumas previsões. Não veremos mais patrulhas, obstáculos ou ladrões. Em dois meses chegaremos sãos e salvos a Alexandria. Garanto que não teremos mais contratempos.

         — Então o oráculo estava errado? Estava errado quanto à sua pessoa?

         Ao vê-lo suplicar uma resposta direta, pensei em esclarecê-lo sobre a inexis­tência das harpias. Mas, se fizesse isso, ele saberia que eu havia escutado sua con­versa com Pólix, na tenda em Turfan, e começaria a se perguntar que tipo de poderes especiais eu tinha. Portanto, decidi lançar uma resposta ambígua:

         — É possível que você o tenha interpretado erroneamente. As palavras do oráculo não devem ser levadas ao pé da letra.

         — É possível... — murmurou, retornando à carroça. — É possível.

         Depois disso, Tales não tocou mais no assunto e não fez mais perguntas so­bre fantasmas e feitiçaria. Não creio que se satisfizera com as respostas daque­la noite, mas imagino que tenha, por livre vontade, escolhido a ignorância.

         E quanto a Flor do Leste? Será que também havia optado pela ignorância?

         A resposta ela soube por acidente naquela mesma noite. Em minha ânsia de convencer Pólix a usar a venda, esquecera-me de entregar uma delas à me­nina.

         Quieta, ela observara tudo.

 

A Via Secreta

         Como já haviam descansado à tarde, Tales e Tommaso aceitaram meu con­selho e seguimos viagem por mais uma hora, para chegarmos o quanto antes à fonte de água adiante. Já totalmente recuperado dos ferimentos no braço, eu não necessitava mais de alimento ou descanso e continuei a encabeçar a cara­vana. As chances de nos perdermos, entretanto, eram praticamente nulas — a rota era única, seguia em uma só direção, e por um bom pedaço não veríamos nenhuma bifurcação.

         Não precisei nem mesmo desmontar para notar no chão as marcas da passa­gem de Zamir e seu séquito. Não havia pegadas, porque o solo era muito duro, mas as impressões térmicas indicavam com clareza o percurso do mago, que era, em síntese, o mesmo que o nosso. Ele seguia na direçáo sul e depois viraria a oeste, adentrando os antigos territórios babilônicos. Se os cálculos do Rei Mendigo estivessem correios, eu não precisava mais me preocupar em correr além da conta para alcançar o feiticeiro. Mantendo o ritmo constante, acabaria por alcançar o assassino em Roma, antes que ele pusesse em prática seu plano dia­bólico.

         Tranquilizei-me.

         O frio da noite engoliu o deserto, mas o vento cortante não nos molestava, justamente porque a trilha fora construída abaixo do nível do solo. Uma idéia maravilhosa, sem dúvida, que só poderia ter sido idealizada por uma mente ge­nial. Era triste pensar, porém, que o engenheiro daquelas rotas, Zamir, era agora meu adversário.

         Quando estávamos a poucos metros do marco da fonte de água, a carroça dos gregos, que vinha atrás, parou, e Tales anunciou em voz alta:

         — Bárbaro! Venha até aqui. Acho que Pólix acordou.

         No interior da carroça dos proprietários, Flor do Leste oferecia um copo com água e ervas ao rapaz. O jovem já abrira os olhos, mas parecia ainda imer­so em um mundo distante. Sentado, com as pernas cruzadas, encarava o chão, alheio a tudo à sua volta. Não respondia aos chamados, não aceitava nem re­cusava comandos, não reconhecia pessoas ou objetos. Estava completamente caduco, e comecei a questionar meu diagnóstico inicial. Tales o cutucou duas vezes, mas depois desistiu, tentando não demonstrar nenhum sentimento ao ver o filho afundado naquela maluquice,

         Como não podia falar, Flor do Leste escreveu um bilhete para mim em um pedaço de lona, dizendo que não sabia bem como ajudá-lo, mas acreditava que tudo o que ele precisava era de tempo e descanso. Não tínhamos mais o que fa­zer em seu auxílio, a não ser obrigá-lo a comer e beber enquanto permaneces­se em estado de apatia.

         — E então — disse o velho —, você arriscaria um palpite?

         Como não tinha muita certeza, preferi ser otimista.

         — Ele despertou, e isso é um bom sinal. Sua mente deve estar lutando agora. Lutando para entender o que viu, para digerir aquilo pelo que passou. Muitos dos que sobrevivem a essas experiências costumam voltar logo à razão, porque simplesmente desistem de compreender os eventos testemunhados. Mas sabe­mos que Pólix não é do tipo que desiste fácil — fiz soar como um elogio, mas o pai não se impressionou.

         — Esperemos que os deuses o ajudem nesta batalha.

         Ele depositava sua esperança nas forças supremas.

         — Toda ajuda é bem-vinda — concordei, retornando ao cavalo e retomando o comando da caravana.

         Sob a luz brilhante da lua cheia, viajamos por mais dez ou quinze minutos, e então avistei uma concavidade no barranco — uma espécie de lapa, que se am­pliava em uma caverna pequena. Dentro dela, uma fonte nascia do chão, dese­nhando um lago minúsculo, quase uma poça, onde tomamos banho — apesar do frio — e de onde recolhemos toda a água necessária até a próxima abertura. Paramos por ali, estacionamos os carros, prendemos os animais e levantamos acampamento.

         A via fora abandonada após a destruição de Babel, mas conservara-se pre­servada desde então. Além das fontes em intervalos regulares, um tipo de erva rasteira, chamada pelos antigos de pé-da-estrada, crescia na base do barranco. Era uma planta muito resistente, e suas folhas eram ricas em vitaminas e mine­rais. O gosto parecia detestável, mas suas propriedades nutritivas eram suficien­tes para garantir a sobrevivência de um homem por um largo período de tempo.

         Quando os gregos, Flor do Leste e Tommaso se recolheram, escalei o bar­ranco de três metros e saltei para fora da trilha, para observar o deserto de perto. As planícies de rocha, bem visíveis ao reflexo prateado da lua, lembraram-me as terras bárbaras dos Yu-chi, mas sem as altas montanhas e as colinas rochosas que tão bem caracterizavam o terreno afegáo. Instintivamente, olhei para cima, e lembranças dolorosas me atacaram.

         Fogo no céu. O sangue que queimava como óleo. Um clangor de metal. Espadas. Lâminas que se chocavam. Gritos de combate. Calor. Ódio. O coração que clamava por justiça. E o chão desmoronando sob nossos pés, uma força ter­rível que nos dragava para baixo, nos puxava para fora, ferindo-nos.

         Em seguida, as estrelas. O espaço. O frio. Uma explosão nebulosa.

         Caíamos, despencávamos e não conseguíamos mais voar.

         Abandonados. Expulsos. Renegados.

         A matéria sucedeu-se ao abismo. A terra. A areia que grudava na pele. As asas manchadas de sangue. A vergonha que se transformara em vingança.

         Era a expulsão dos anjos renegados. Eram minhas lembranças, minhas úl­timas e mais profundas recordações da insurreição e de nossa posterior chegada ao mundo dos homens.

         Acontecera ali, naquelas mesmas planícies, chamadas outrora de Terra de Nod, havia 2.500 anos. O deserto fora nosso ponto de partida. A Haled, nossa prisão.

         Desconsolados e perseguidos, os anjos renegados caminharam juntos para oeste, escapando de seus algozes, até encontrar a cidade devastada de Enoque, submersa nas entranhas do mundo desde o dilúvio que a liquidara.

         Rancorosos e vingativos, os espíritos de seus habitantes, que ainda vagavam pelos escombros da metrópole afundada, aceitaram-nos em seu refúgio. Reco­nheceram-nos como inimigos dos arcanjos e, com sua energia astral, levantaram uma cobertura mística, que ocultou as emanações de nossa aura pulsante. Na­quele lugar, naquela cidade perdida, não seríamos descobertos e teríamos o tem­po necessário para planejar nossa entrada na sociedade mortal. Aprendemos a ocultar nossas vibrações e decidimos não desprender mais as asas, a fim de nos confundirmos com os humanos. As inscrições, as obras de arte e os documen­tos antigos nos ensinaram tudo de que precisávamos saber sobre a natureza ter­rena. Aprendemos a ler e a falar o idioma de Enoque, que formou as bases para todas as línguas da terra.

         Enoque foi nosso santuário, o primeiro e último refugio da Irmandade dos Renegados, o lugar onde aquele formidável grupo de guerreiros se reuniu pela última vez. Foi no túmulo dos homens que deixamos nossa divindade. Foi ali que abandonamos nossa glória.

         Enoque, a Primeira e Ultima.

         Em dois ou três dias, a caravana passaria perto da gruta que conduzia à me­trópole subterrânea. A emoção e a nostalgia daqueles dias me chamavam de vol­ta ao ponto onde tudo começara. Foram tempos difíceis, mas ao menos está­vamos juntos, os dezoito anjos renegados.

         Enoque, a Primeira e Ultima.

 

Visita à Terra de Nod

         A região de Nod, cuja capital era Enoque, foi a maior das nações humanas antes do dilúvio, ao lado da memorável Atlântida. O deserto que a circundava — o mesmo em que havíamos acabado de entrar — compunha-se de um solo ro­choso, escuro, formado por um tipo singular de rocha vulcânica. Esse terreno, que outrora se fazia uniforme, sofrera com a força das águas do cataclismo, aca­bando por se tornar uma vasta planície de estilhaços de rocha. A areia, trazida pelo vento ao longo de milhares de anos, acumulava-se em pequenas crateras, concebendo curiosas "piscinas de terra", apelidadas pelos árabes de Hin-Kaban, Caldeirão de Pedra. Os relatos dos cananeus, que se referiam a Nod como "um país distante, assombrado, de solo negro e devastado", podem ter se originado daí. Certamente, se os cananeus alguma vez se aventuraram por aquelas bandas, identificaram-nas como alvo de uma extraordinária devastação.

         Logo no dia seguinte à entrada na via oculta, Pólix melhorara sensivelmente, porém continuava apático. Já comia, dormia e caminhava por iniciativa pró­pria, mas todas as nossas tentativas de comunicação resultaram frustradas. O rapaz emudecera completamente e passava as manhas na boleia da carroça, de olhos abertos, mas inexpressivos. À noite, fitava as estrelas até adormecer.

         Ao entardecer, um alto morro de rocha negra despontou no leste, e pelo ân­gulo lateral foi fácil divisar seu topo. Instintivamente, parei onde estava, aper­tando as rédeas de Ibn-Hatar. Tommaso e o primeiro carro ainda estavam distan­tes, e ninguém notou, a princípio, que eu travara o corcel.

         Quando as águas do dilúvio baixaram, Amael, o Senhor dos Vulcões, fez surgir do solo de Nod um terrível jorro de magma, uma majestosa explosão de lava que desceu sobre as já destronadas fundações de Enoque. Os detritos da erupção soterraram os escombros, sepultando a cidade para sempre sob uma colina funesta. O acaso, contudo, foi generoso em sua arquitetura. Ainda ha­via oxigénio nos níveis inferiores quando os dejetos vulcânicos encerraram o buraco. Os gases das profundezas pularam para fora, abrindo caminho com ve­locidade e força devastadoras. Esses caminhos desenharam uma série de passa­gens que, uma vez solidificado o magma, formaram túneis entre as ruínas e o mundo exterior. O principal túnel para o ventre de Enoque descansa abaixo do morro negro, ao fim de uma gruta onde os renegados, há muito tempo, buscaram abrigo em uma noite de tempestade.

         O morro. A gruta. O túnel. Era como se os anos não tivessem passado.

         Enoque, a Primeira e Ultima.

         Eu precisava voltar à cidade amaldiçoada, nem que fosse somente para ter certeza de que não precisaria ter voltado.

 

         — Vou me ausentar do acampamento esta noite — revelei.

         Tales me olhou confuso, sem saber o que dizer. A noite já tinha chegado, e Flor do Leste preparava o jantar, enquanto Tommaso alimentava a fogueira.

         —Tem certeza de que isso é absolutamente necessário? — questionou o velho, fixando no chão, com um martelo grande, os pregos que esticariam a tenda. — Sabe que precisamos de você aqui.

         — Não precisam. Não precisam mais — retruquei, ao mesmo tempo em que ajustava os estribos de Ibn-Hatar. — A trilha continua segura e imutável até a península do Sinai. Tudo o que há à frente são algumas bifurcações e recuos de estrada, braços que partem da via principal. Não há como se perderem.

         — Por que está me dizendo isso? — perguntou, pondo o grande martelo de lado. — Há algum risco que dificulte seu retorno?

         — Não creio. Na verdade, espero estar de volta antes do alvorecer — e montei no cavalo. — Mesmo assim, não há mal algum que o chefe da caravana conheça as coordenadas. Não há erro — reforcei. — Basta seguir a rota na direcão oeste. Se eu não voltar até o fim do desjejum de amanha, vocês devem prosseguir viagem.

         — E se você sofrer algum atraso?

         Um vento encanado ameaçou apagar a fogueira, mas Tommaso enfiou mais lenha por baixo do fogo. A temperatura esfriara bastante, obrigando os viajan­tes a vestir grossas mantas de lã.

         — Aí eu alcançarei vocês adiante. A cavalo será fácil recuperar a dianteira. Mas não acho que haverá atraso algum.

         Tales sentou-se em uma pedra e esticou as costas. Sem a ajuda de Pólíx, o trabalho braçal de montar a barraca dobrara, e Tommaso não podia dar conta de tudo sozinho.

         — Está bem. Vamos esperá-lo por uma hora após o nascer do sol.

         — Mantenha um turno regular de guarda, embora eu duvide que alguém venha emboscá-los. Mesmo assim, eu diria que a vigília é necessária — comple­tei, ao me recordar das artimanhas perpetradas pelo odioso Zamir.

         — Será feita.

         Liberei as rédeas do corcel, entregando o animal ao trote. A trilha era ladeada por barrancos eretos, fáceis de escalar, mas intransponíveis aos carros e animais. Por isso, os babilónicos abriram, a cada cinco quilômetros, sulcos nos barran­cos, por onde os animais podiam deixar a estrada oculta. A fenda mais próxi­ma ficava a duzentos metros — subia gradualmente por dentro da terra, fazia uma curva e terminava na planície escura de Nod.

         — Ibn-Hatar, está vendo aquele morro, a colina negra? — soprei, inclinando-me ao ouvido do animal, — lemos de alcançá-lo bem rápido, ou então não es­taremos de volta ao raiar do dia. Corra, pule, avance. Invista. Hoje, o vento nos indicará o passado.

         Enoque, a Primeira e Ultima.

         Cavalgar por aquelas terras era como dar um salto de volta no tempo.

 

A Cidade dos Amaldiçoados

         Enoque, a Primeira e Última.

         A colina negra erguia-se diante de mim, silenciosa, aguardando meu assal­to. Do lado de fora, eu a encarava, austero, determinado e um pouco eufórico.

         Deixei Ibn-Hatar livre nas planícies. Assim, se eu não aparecesse até o nascer do dia, ele poderia voltar sozinho à caravana.

         Furtivo, adentrei a Gruta dos Afogados, nome dado por nós, renegados, à caverna que se abria em forma de túnel e conduzia às fundações da terra. O grande salão natural, desenhado pela força da atividade vulcânica, era um lugar sufocante, apesar da amplitude. Um ruído constante inundava a galeria, sob a forma de um único lamento de desespero. Era o som ofegante dos condenados, o eco dos fantasmas de Enoque, que pereceram afogados durante a grande inun­dação e ainda tentavam, em vão, deixar as galerias submersas.

         O túnel ao fim da caverna estreitava-se ao diâmetro de dois metros e descia em caracol por alguns quilômetros, penetrando fiindo no coração da terra. No princípio, a luz da lua continuava brilhando, mas, à medida que a passagem avançava, a penumbra ia sendo sobrepujada pela escuridão total — era um tipo de negritude abissal, que só existe no interior do mundo. Dali para frente eu confiaria apenas em meu tato apurado, que me permitiria perceber as manchas de calor que emanavam à minha volta.

         Após uma longa descida, o túnel abria-se no glorioso Caminho da Eternida­de, um corredor muito largo, ladeado por altos muros e separado em duas pistas por uma extensa fileira de colunas, chamadas Pilares da História. Nelas, milhares de caracteres contavam a história da linhagem dos reis de Enoque, começando por Caim e terminando em Lemék. A catástrofe arquitetara um teto cavernoso no corredor, irregular e oblíquo.

         Além do Caminho da Eternidade estava a Porta do Sol, um portão de quin­ze metros, de umbral inclinado para dentro e recortado na estrutura do muro principal da cidade. Sobre ele ainda era visível o desenho de uma árvore de fo­lhas fartas — a Árvore do Conhecimento, uma referência simbólica ao anteces­sor de toda a espécie humana, Adão.

         O ruído ofegante dos fantasmas aumentava naquele trecho, porque era para lá que todos os espectros se dirigiam — para a saída da cidade. Todos que, como eu, podiam enxergar o plano astral veriam, além do tecido da realidade, uma nuvem espectral que se movia, tremulante, pelo Caminho da Eternidade e em seguida rumava de volta à Porta do Sol.

         Através da grande porta, uma avenida larga, contornada por prédios de pe­dra em ruínas, fora, quando Lemék ainda vivia, o acesso ao palácio real. Pisei com cuidado sobre o chão instável de rocha, cheio de buracos abertos no cal­çamento. Algumas daquelas fossas eram tão profundas que chegavam ao nú­cleo fervente do planeta, e um homem levaria dias em queda livre antes de ser detido. Resquícios quase indistinguíveis de esqueletos humanos, reduzidos a montículos de pó grosso, figuravam em toda parte — espalhados pelo chão, aglo­merados nos montes de entulhos e empilhados nos edifícios.

         A caminhada pela extensa avenida era o ponto mais obscuro de minha jor­nada. Tudo à minha volta era composto do mesmo material, o que prejudicava a percepção dos diferentes espectros de calor. As manchas acinzentadas, unifor­mes a cada passo, acusavam a existência da rocha vulcânica por todos os lados. Foi então que, à metade da travessia, surgiram, no chão, pontos alaranjados. Apressei-me a investigar, mas não foi preciso tocar o líquido para descobrir que era uma trilha de sangue. Ainda frescos, os pingos seguiam rentes pela abertu­ra, que ao fim passava da escuridão à penumbra, delatando a existência de uma fonte de luz nos corredores adiante.

         Espalhei uma gota de sangue na superfície do indicador e o levei à ponta da língua. Ao paladar de qualquer fragmento de órgão, pele ou secreção, um anjo guerreiro é capaz de descobrir a identidade da presa, contanto que já tenha memorizado seu cheiro, como fazem os cães farejadores.

         Eu conhecia aquele sangue! Mas como era possível?

         Minha mente estreitou-se, buscando um objetivo. A Sala dos Heróis!

         O ponto final da passagem terminava em uma greta vertical, cuja fissura se abria à parede de um dos muitos corredores do palácio real.

 

         A Sala dos Heróis era uma câmara vasta, circular, de teto ogival, fracamente iluminada por uma grande fogueira que ardia bem no meio do salão, ao centro de uma mesa redonda de pedra, trabalhada para abrigar vinte assentos — um para cada ancião das famílias antigas e mais dois para o rei e a rainha. As pare­des, também de pedra, não estavam divididas em seções ou blocos, porque to­da a sala fora esculpida a partir de um único e colossal fragmento de rocha. Suas paredes, por isso, eram indestrutíveis e conservaram o recinto intacto mesmo durante os horrores do dilúvio. Encostadas nas paredes, havia dez grandes es­tátuas de vinte metros de altura, retratando os famosos heróis que pereceram durante as Guerras Mediterrâneas, uma série de conflitos entre Enoque e Atlântida, que culminou com a vitória dessa última.

         Entrei na Sala dos Heróis, e minhas pupilas se contraíram à visão das cha­mas. Do outro lado da mesa, sentada diante do fogo, uma sombra negra, cor­pulenta, apoiava-se, ferida, à superfície da távola. Tinha asas de anjo, enormes asas brancas rajadas de sangue.

         Hazai — esse era o seu nome —, o grande capitão dos renegados. Um guerrei­ro forte, habilidoso, de pele negra e longos cabelos crespos. Segundo em coman­do, Hazai ajudara-me a organizar todas as fases da conjuração, que acabou com nossa expulsão dos Sete Céus. Em seus tempos áureos, fora ele que, por muitas vezes, comandara minha legião em batalha — era o único a quem eu confiaria minhas tropas. Quando os renegados decidiram se separar, Hazai errou para o Egito, ao passo que fui para a Babilônia, e Ishtar, para Ur, na Caldeia. Outros foram para o Oriente, alguns preferiram atravessar o oceano, e também houve aqueles que seguiram para as geleiras ao norte.

         O sangue que eu encontrara no túnel era mesmo dele, de um anjo renega­do, e foi por isso que não pude sentir sua presença ao me aproximar pelos escom­bros — Hazai aprendera, como eu, a ocultar as emanações de sua aura pulsante. Mas, infelizmente, isso não fora suficiente para salvá-lo. O capitão descansava à minha frente, ferido, às portas da morte, de cabeça baixa sobre a pedra, ain­da segurando firme o cabo de sua espada mística. As asas dobravam-se para den­tro, como que protegendo o corpo injuriado. Ele não percebera minha entrada nem sequer se movera, mas eu podia ouvir sua respiração e as batidas lentas de seu coração, por isso sabia que estava vivo.

         Aproximei-me devagar, meio tristonho, meio revoltado e também um pouco surpreso. Nunca pensara que minha impulsiva visita a Enoque traria revelações tão surpreendentes. Que tipo de fatalidade nos unira de novo, capitão e general, justamente naquele lugar onde a morte e o sofrimento estavam em todo canto?

         Ajoelhei-me a seu lado e deitei a mão sobre seu ombro largo. As asas mar­cadas se expandiram, e Hazai levantou lentamente a cabeça, desnorteado pela dor. Tinha inúmeros cortes no rosto e um dos olhos estava inchado, em virtu­de, certamente, de uma pancada muito forte.

         — Hazai... — sussurrei com delicadeza.

         Ele não tinha forças para reagir euforicamente à minha presença, então es­boçou um tímido sorriso. Era o máximo que podia fazer.

         — General, você voltou. Minha missão está cumprida.

         Eu não tinha noção do que ele estava falando, mas deduzi, em um primeiro momento, que delirava.

         — Hazai, o que aconteceu?

         — O que vem acontecendo com todos nós, meu senhor. Eles me acharam. Pensei que poderia... — ele parou e cuspiu um pouco de sangue. — Imaginei que seria capaz de viver para sempre, escondido, mas eles sabem de tudo. Consegui­ram descobrir meu rastro.

         — Quem? Quem foi seu caçador?

         — As rapinas. Foram as rapinas, por ordem direta de Miguel.

         As rapinas. Eu as conhecia bem, pois sua fama era magnífica. Principais ser­vidoras do arcanjo Miguel para caça e assassinato, as rapinas eram duas pode­rosas guerreiras querubins, tão vis e cruéis quanto seu mestre. Chamavam-se Zambil e Marilli e atacavam sempre em dupla. Sua estratégia de combate era única, covarde, o que as tornava praticamente imbatíveis quando amavam jun­tas. Empunhavam exuberantes lanças místicas, douradas, tão temíveis quanto as usuais espadas das legiões celestiais, e não raro as arremessavam contra seus inimigos, não lhes dando chance de luta. Eu tinha certeza de que Hazai fora atingido de longe por uma daquelas lanças, pois nem mesmo as rapinas teriam coragem de enfrentá-lo de perto.

         As rapinas, repeti em pensamento, como se pudesse abreviar minha vingança.

         — Dizem que os anjos não sonham, general — esforçou-se o capitão. — Nós nunca dormimos. Mas ontem, quando cheguei a esta sala, arrastando-me pelo túnel, tive a impressão de ter visto algo. Não sei se foi uma alucinação ou uma profecia, então decidi que não faria mal algum acreditar nela.

         Ele tossiu, uma tosse áspera, que lhe rasgava a garganta, e por um instante pensei que perderia a razão e despencaria para sempre no precipício da incons­ciência. Mas Hazai tinha uma demanda a cumprir, e foi então que percebi que não morreria sem completá-la. Sem dizer palavra, esperei que continuasse.

         — Eu vi um campo extenso, um campo lotado de tropas de anjos. Sonhei com o Dia do Ajuste de Contas. Muitos celestiais estavam lá, muitos que não se uniram a nós no passado, mas em cujo coração palpita o ideal da justiça. Eles terão uma segunda chance, meu senhor — ele me encarou profundamente, e vi a antiga força do capitão emergir como uma explosão. — E você os comandará. A virtude que semeamos se espalhará, e nosso séquito se transformará em uma legião. É a Legião dos Renegados, a herança que deixamos para o mundo.

         Ouvi sua voz minguar, reduzir-se a um murmúrio abafado.

         — Não sou um malakim, general — prosseguiu. — Não tenho poderes precógnitos. Mas gosto de pensar que talvez Yahweh tenha me concedido esta última graça, trazendo-o de volta à minha presença.

         Quando Hazai fez uma pausa para respirar, achei que aquilo era tudo o que tinha a dizer, mas seu discurso mal começara.

         — Como sabia onde me encontrar, Hazai? Por que insistiu em me achar depois de ter sido mortalmente ferido?

         Eu ainda não compreendera direito o sentido de tudo aquilo.

         — Alguns espíritos me disseram que você estava voltando do Oriente. Disse­ram-me que o Anjo Renegado havia deixado Roma e caminhava rumo à China. Isso já faz quase cinquenta anos. Imaginei que você tomaria este caminho e pas­saria perto da Terra de Nod. Sei que, para nós, é muito difícil resistir a uma vi­sita às ruínas. Enoque é nossa casa, o único lugar do mundo onde estamos completamente seguros.

         — Por isso veio para cá? Para fugir da morte?

         — Não, meu líder. Minha morte é inevitável. Perdi muito sangue. Mas eu precisava encontrá-lo a qualquer custo. Já tinha planejado isso antes de ter sido atacado. No caminho, porém, viajei com pressa e fui descuidado. Foi assim que as rapinas me acharam.

         Apertei-lhe a mão, certo de que seu sacrifício não fora em vão. Hazai pu­sera-se em risco para me reencontrar, mas por quê?

         — Por quê, Hazai? Com que objetivo? Por que era tão importante para você ter comigo antes de... — morrer. Engoli a palavra. Não queria profetizar a par­tida do capitão, embora soubesse que não havia salvação para ele.

         — Esta é a minha busca. É a missão que tenho carregado por tanto tempo: reencontrar meu comandante e alertá-lo sobre o inimigo.

         Aguardei em silêncio até que ele retomasse a palavra. Daquele ponto em diante, ficou óbvio que alguma revelação estrondosa estava prestes a ser posta às claras. Senti o sangue quente do renegado escorrer entre meus dedos.

         — Há algo que você precisa saber, meu senhor. Uma coisa que aconteceu após nossa partida de Enoque.

         Isso fora cerca de três mil anos antes, calculei. A capital de Nod alcançara o esplendor entre 40.000 e 12.000 a. C., mais de dez mil anos antes da ascen­são dos egípcios e dos babilónicos, ambas civilizações que floresceram após o dilúvio.

         — Deixei este santuário e vagueei para o Egito, Não esperava encontrar mais nenhum anjo renegado antes do Dia do Juízo Final, mas pouco tempo depois, quando já havia me fixado no Crescente Fértil, resolvi continuar viagem e se­gui o curso do Nilo em direção à Núbia. Foi nesse percurso que encontrei Ishtar.

         — Ishtar?

         — Ela estava à sua procura, general. Voava com suas asas de anjo, cruzava os céus, desesperada para revê-lo, sem dar importância ao perigo que corria. Viajava como celestial por uma terra vigiada pelos agentes do mal.

         — Sim! Captei o pedido de socorro dela através do tecido. Segui seu rastro e fui ao seu encontro na Babilônia, mas o inimigo a achou primeiro. Um anjo negro — a lembrança dolorosa voltou como uma punhalada no coração —, um anjo de asas negras. Não sei que tipo de criatura era ou para quem trabalhava. E não pude salvá-la, Hazai. Falhei no intento de protegê-la.

         Eu nunca me perdoara realmente pela morte de Ishtar.

         Ele esboçou um sorriso fraco, como que desaprovando meu martírio.

         — Você nos deu a liberdade, meu líder, e isso é uma coisa pela qual vale a pena morrer. Somos querubins, e a morte nos acompanha onde quer que este­jamos. Nossa natureza nos empurra à luta e nos impede de recuar ao combate. Fomos criados para morrer, por isso não deve chorar a morte de Ishtar nem a minha. Ela pereceu perseguindo um propósito e, agora que o encontrei, pode­rei dar prosseguimento ao seu desejo.

         Ele me puxou para mais perto e sussurrou ao meu ouvido:

         — Ishtar não foi caçada como nós. Foi assassinada. Sua morte foi encomen­dada.

         — Não entendo — argumentei. As palavras de Hazai me soavam desconexas.

         — Pouco depois de deixar Enoque, Ishtar descobriu algo, coisa grande, uma conspiração que aparentemente envolvia o céu e o inferno. Um plano que po­deria afundar o mundo no caos e ameaçar a existência do próprio Yahweh.

         Como assim? — foi a primeira coisa que pensei. Ninguém nem nada neste universo teria poder para fazer frente ao Criador. Aquela era uma hipótese ridí­cula. Mas então me lembrei de Ishtar e de sua vontade inabalável. Ela morrera por isso; morrera por mim e pelos renegados. Morrera por algo em que acredi­tava. E foi por isso que resolvi acreditar também.

         — Mas quem? Quem são os arquitetos dessa conspiração?

         — Ela não me disse. Ishtar sabia que minha existência estaria ameaçada caso eu tomasse conhecimento dos detalhes. Ela decidiu que só contaria esse segredo a você, meu senhor. Foi por esse motivo que eles a executaram.

         Ergui suavemente a cabeça, e nossos olhares se encontraram, convergindo para o mesmo pensamento, para a mesma conclusão.

         — Você os ameaça, meu líder — instigou o capitão. — Não sei por que nem como, mas seja quem for que está por trás desse conluio vê em você um peri­goso obstáculo. Eles assassinaram Ishtar porque receavam que ela lhe contasse sobre essa trama.

         O aperto fraterno do capitão afrouxou-se, e senti que a vida o abandonava.

         Foi então que algo inesperado aconteceu. Um raio dourado, solitário, irrom­peu por uma minúscula rachadura no teto, e esse único feixe iluminou toda a sala. A escuridão que engolia os salões curvou-se à imponência do sol — um novo dia estava nascendo na superfície.

         Nesse momento, fui testemunha de um evento do qual jamais me esquece­ria. Subitamente, os gritos dos espectros, que já me acostumara a ignorar, silencia­ram. Na cidade afundada, os fantasmas estavam em todas as câmaras, berrando em desespero. Mas o sol apareceu, banindo as trevas. Os espíritos emudeceram. Por um breve instante, nada fizeram, e ao olhar para eles entendi o porquê.

         — Esperança — gemeu Hazai. — Eles são os condenados, general. Viram sua nação ser devastada. Viram seus filhos serem mortos, sua terra ser destruída. Sobre eles, pesa a culpa de toda a humanidade. Mas ainda lhes resta uma ténue vontade. Talvez um dia sejam libertos e possam seguir finalmente para o paraí­so. Lá onde o sol brilha.

         Aos poucos, o raio começou a perder força, e a sala retrocedeu à penumbra. Percebi, então, que o alvorecer era a única hora do dia em que o sol encontrava o ângulo certo sobre a colina negra e penetrava o subterrâneo.

         O capitão observou os espíritos, que tentavam abraçar o jato de luz, mas ele se apagara.

         — São os arcanjos — sibilou Hazai, encarando a pira que ardia no centro da mesa. — Enquanto eles governarem o céu, homens e anjos viverão atados às som­bras — alertou, e reuniu forças para uma súplica final:

         — General... Quando o sétimo dia chegar ao fim, é provável que você seja o último anjo renegado. Não desista.

         Aquelas foram as últimas palavras que ouvi de Hazai. Ele poderia ter sobre­vivido por mais dois ou três dias, mas sua aflição seria tremenda. A energia de sua aura dispersou-se, e, no mundo espiritual, sucedeu uma majestosa explosão luminosa, que lançou faíscas e clareou a sala, para depois ser absorvida pelo te­cido da realidade e se incorporar ao contínuo do universo. Antes de morrer, Hazai suspirou duas vezes, e durante esse tempo eu poderia ter replicado. Po­deria ter proferido um discurso vigoroso, honrando assim seu tormento. Mas, ao vê-lo desfalecer, a oratória me abandonou. Ishtar e Hazai morreram perse­guindo a mesma missão. Eles não pretendiam, como eu, retornar aos Sete Céus e destituir os arcanjos. Não queriam ser mártires ou heróis. Não se importavam de morrer, contanto que sua virtude fosse passada adiante. Confiavam em mím, talvez mais do que eu mesmo, e por isso arriscaram a vida. Eu os carregaria co­migo se pudesse; levaria o corpo de ambos de volta ao paraíso, para que fossem aclamados. Mas isso era impossível. Seus valores, porém, viveriam para sempre comigo, A coragem, a honra, a verdade, a justiça. Os renegados estariam sem­pre lutando a meu lado, estivessem vivos ou mortos.

 

O Impossível Acontece

         Cavalgando contra o vento, alcancei a via secreta no fim da tarde. No lusco-fusco, avistei as duas carroças estacionadas ao lado do barranco que delimitava o caminho. Tommaso terminava de montar as tendas enquanto o velho Tales alimentava uma fogueira. Em um canto mais afastado, Flor do Leste servia co­lheradas de uma sopa aguada a Pólix, que as engolia sem manifestar nenhuma expressão.

         Ao me ver, a chinesa veio ao meu encontro, surpreendendo-me ao fechar os braços em volta da minha cintura, em um abraço fraterno. Era pequenina até mesmo para uma menina de 15 anos, e sua cabeça não chegava à aluíra de meu peito. Sorri, meio encabulado. Já tinha enfrentado anjos, demônios e espíritos, mas de repente não sabia como agir diante daquele rosto imaculado. Por fim, todos se juntaram ao calor da fogueira. Tales tinha o mapa à mão e o abriu à luz do fogo.

         — A trilha contorna o golfo Pérsico, onde as águas do rio Tigre se unem ao Eufrates — expliquei. — Em dez dias teremos cruzado todo o sul da Mesopotâmía, deixando definitivamente as fronteiras do Império Parto para entrar no terri­tório dos nabateus.

         — Em seguida vem o grande deserto — completou Tommaso.

         — Costuma ser a parte mais tranquila da viagem. A rota segue reta, e a vala retém a umidade do lençol subterrâneo, deixando o ar menos abafado. Com sorre, conseguiremos cruzar o deserto em um mês.

         Tales consultou mais uma vez o mapa.

         — Há algum tipo de mágica envolvida nisso?

         — Em que exatamente?

         — É difícil acreditar que cobriremos essa distância em um mês. Viajo pelo mundo desde bem jovem e sei que nem um exército em marcha forçada levaria apenas rrinta dias para transpor a Arábia. Deserta.

         É natural que, como guia, eu tivesse a resposta para essa pergunta. Mas nunca havia pensado nisso. E claro que a imagem ilusória através da qual passamos na entrada da via fora produzida por um feitiço, mas não havia evidências de que Zamir tivesse lançado um encanto sobre o caminho em si. No entanto, a per­gunta do velho levantava uma questão óbvia.

         — Realmente, a idéia de atravessar um deserto vasto em tão pouco tempo é estranha — e era, até mesmo para mím. — Mas não creio que haja feitiçaria por perto. As técnicas de engenharia utilizadas pelos babilônicos eram fantásticas.

         Nem eu as entendo. De qualquer maneira, se houvesse um encantamento em curso, eu não saberia dizer como funciona.

         — É possível que tenha alguma coisa a ver com os deuses? — insistiu o mercador.

         — É provável que não — ultimei, mas logo depois já não estava tão certo do que falara.

         O grego fechou o mapa e retomou o planejamento da trajetória.

         — E este nosso caminho secreto termina onde?

         — Perto do porto de Eilath.

         Eilath era uma cidade portuária às margens do golfo de Acaba. Mercadores do mundo todo, inclusive os gregos, conheciam bem a localidade, ou pelo menos já tinham ouvido falar dela.

         — Lá, teremos que trocar as carroças por camelos, porque não poderemos mais contar com o solo firme da trilha oculta. Aí nos restarão vinte dias para vencer o deserto do Sinai e chegar finalmente a Alexandria. Então, nossos rumos se separam.

         Tales fez um sinal afirmativo e depois se levantou. Pegou Pólix pelo braço e os dois se recolheram à tenda. O velho parecia ligeiramente mais sisudo aquela noite. Não sou telepata, mas era fácil perceber que as insinuações do oráculo ainda o perturbavam.

 

O Largo de Pedra

         Entre 23 e 26 de dezembro, perto do solstício de inverno, deixamos a Partia e cruzamos a fronteira rumo à Nabateia. Esse era o país dos grandes desertos, que se alongava por toda a Arábia e leste da Síria,

         Ao fim do caminho, a via secreta convertia-se em um túnel, que se inclinava para dentro da terra em um ângulo suave, atravessando uma passagem larga e cavernosa. Além dela via-se um arco natural, que se abria à encosta de um morro baixo, e ao fim enxergava-se a luz do sol. Esse era o marco final da estrada babiló­nica, o último trecho idealizado e construído pelos homens de antigamente. Pou­cos quilômetros a oeste estava o golfo de Acaba e, além dele, o Sinai.

         Na cidade de Eilath, Tales conseguiu vender 20% de sua mercadoria. Com o dinheiro, comprou mais oito camelos, totalizando dez. Vendemos as duas car­roças e os cavalos de carga e dispusemos todas as peças restantes no lombo dos animais, já que, adiante, veículos sobre rodas só nos atrasariam.

         No quinto dia do mês de fevereiro do ano 2 d.C., tomamos uma balsa e atravessamos o recôncavo, pisando enfim nas terras quentes e pedregosas do de­serto do Sinai.

 

         Por três semanas vagamos por caminhos tortuosos, até que descemos as mon­tanhas e nos deparamos com um campo seco, de solo plano, mas pedregoso. A terra sob nossos pés era dura, e fragmentos gigantescos de rocha espalhados pela planície tornavam a trilha sinuosa, o que não chegava a ser um entrave para os camelos nem para o habilidoso Ibn-Hatar. As marcações de estrada indicavam a existência de um posto de abastecimento de água ao sul, o conhecido oásis de Feiran, que não podia estar a mais de três ou quatro quilômetros de distância. Decidimos continuar a marcha para oeste, porque a noite se aproximava, e acam­par assim que encontrássemos um sítio apropriado. Sugeri que um de nós caval­gasse até o oásis antes do nascer do sol, para buscar a água de que precisávamos para completar a viagem.

         Não muito depois do crepúsculo, a caravana, então reduzida a dez camelos e um corcel, chegou a um largo natural, bastante amplo, cercado por altas pa­redes de rocha clara. A oeste, a fissura continuava em uma passagem que desem­bocaria em um campo de areia fofa.

         — Não poderíamos encontrar lugar melhor para acampar — disse Tales ao adentrar o largo de pedra. Seu comentário não soara otimista. Na verdade, pou­cas vezes seu tom era agradável.

         — O lugar perfeito para uma emboscada — eu disse, mais para mim mesmo do que para os outros. Não podia negar o que meus olhos de guerreiro me in­dicavam. Só havia duas saídas do largo, ambas longas e delgadas.

         — O que disse? — perguntou o velho. O vento fraco confundira minhas pa­lavras.

         — Nada. Aqui estaremos protegidos do frio da noite. E, se houver tempestade, estas paredes de pedra devem reter a areia atirada pelo vento.

         Tommaso fez um movimento com a rédea e o camelo agachou-se, para que pudesse desmontar.

         — Vou fixar as barracas naquele lugar — avisou o siciliano, apontando para um ponto onde o paredão se curvava para dentro, desenhando uma espécie de lapa.

         Tales virou-se para mim.

         — Se pensa em manter seu habitual turno de guarda noturno, bárbaro, reco­mendo atenção redobrada esta noite. Desta vez eu mesmo me arriscaria a substituí-lo. Não quero ser assaltado no trecho final de nossa jornada. Depois dessa epopeia pela qual passamos, eu ficaria muito desapontado se, logo agora, per­desse todo o meu bronze.

         — Não se incomode. Não vou tirar os olhos destes morros até o amanhecer. Há alguma coisa que não me agrada neste lugar. Não sei bem o que é.

         Desci do dorso de Ibn-Hatar, sempre com o olhar fixo no topo do paredão. Havia uma nuance maléfica no tecido da realidade.

         — Vai cavalgar até o oásis amanhã? — perguntou Tales, sem dar importância ao meu agouro.

         Comecei a afrouxar as tiras que prendiam a sela do corcel, liberando o animal do aperto no abdome.

         — Sim, logo ao alvorecer. Pretendo estar de volta antes do pico do sol.

 

Maus Presságios

         As cabanas foram armadas uma ao lado da outra, de costas para a rocha, sob a proteçáo da concavidade da parede sul. Quando todos dormiam, escalei o paredão e cheguei ao cume da colina. Ali fiquei por toda a noite, atento. En­contrei um bom lugar de vigília e me encolhi às sombras, apostando que nem mesmo o mais esperto dos querubins me encontraria. Até onde a vista alcançava, a região estava mergulhada em profundo silêncio. As aves noturnas não apare­ceram naquela noite, e as serpentes preferiram ficar em seus covis. Até o eco dos fantasmas errantes, que às vezes vagam pelos ermos, foi suprimido na es­curidão.

         Antes de o dia amanhecer, desci a colina e selei Ibn-Hatar. Um resto de fu­maça ainda escapava da fogueira, e apaguei o resquício com um punhado de areia. Tommaso acordaria em breve para preparar os camelos, e eu deveria partir o quanto antes, para que pudesse estar de volta ao meio-dia. Apesar dos maus presságios da noite anterior, a caravana estava alojada em local seguro. Obser­vara as imediações por horas com minha visão apurada e estava certo de que ninguém espreitava nos campos. Se algum ladrão pretendesse cavalgar naquela direção, certamente ainda estaria atrás das montanhas — e eu duvidava que qual­quer um, mesmo guiando um cavalo veloz, fosse capaz de alcançar aquelas co­linas antes do meu regresso.

         No leste, o horizonte reluziu em carmesim, anunciando a chegada do sol. Amarrei duas crateras grandes ao lombo do cavalo, com as quais deveria recolher a água no oásis Feiran. Vesti um manto com capuz e montei no alazáo. Antes de partir, porém, vi que Flor do Leste estava acordada. Em uma atitude inespe­rada, ela deixou a tenda, já vestida com roupas de viagem, e caminhou até mim.

         — O que foi, Flor do Leste? Voltarei logo.

         Ela não podia falar, mas suas feições eram claras. A pequena não queria ficar ali, não sem mim, naquele acampamento entre as pedras.

         — Está tudo bem — confortei-a. — Já esteve sozinha outras vezes, você se lem­bra? Tommaso cuidará de você. Os gregos não lhe farão mal.

         Mas meus argumentos não tiveram nenhum efeito sobre a garota. Então concluí o lógico.

         — Sim, eu sei, há uma sensação ruim aqui, mas não há nada a temer. As tri­lhas para cá estão vazias. Não há bandidos no caminho.

         Ela não cedeu às minhas palavras e ergueu uma das mãos para que eu a pu­xasse para a sela e a levasse comigo.

         — Muito bem. Se quer vir, então suba — e a coloquei na garupa, não atrás de mim, mas na frente, onde poderia segurá-la no caso de queda.

         Ofereci-lhe um lenço grande.

         — Ponha isto em volta da cabeça, em forma de véu. Deixe só os olhos desco­bertos. Vai protegê-la do sol. Além disso, temos de ser rápidos e discretos. Não acho que os beduínos já tenham visto algum chinês, então é melhor que não despertemos a curiosidade deles. O tempo tornou-se um fator crucial em nossa viagem.

         Ela concordou com um aceno, e iniciamos nossa corrida ao posto de abaste­cimento de água. Enquanto cavalgava, fiquei pensando sobre o que exatamente Flor do Leste havia sentido aquela noite. Teria ela somente notado uma aura maligna a sacudir o tecido, ou teria prenunciado algo muito pior, algum acon­tecimento pavoroso que escapara aos meus sentidos?

         De qualquer maneira, eu não tardaria a voltar.

 

         Diferentemente do que muitos estrangeiros poderiam pensar, o oásis Fei­ran não era um local cercado de palmeiras, com uma fonte natural no centro. Era, e ainda é, o maior dos oásis do Sinai. Segundo os escritos hebreus, fora ao impacto do cajado de Moisés que a água surgira do rochedo, para saciar o povo sedento que, sob sua liderança, havia escapado do Egito.

         Feiran assemelhava-se mais a uma pequena aldeia, e os homens que ali vi­viam não eram muito receptivos a viajantes de pele clara, que associavam aos arrogantes legionários romanos. Chegamos a ser abordados por supostos guar­das, que mais pareciam bandidos, e senti alívio ao entender que tudo o que que­riam era uma mísera taxa para que utilizássemos a fonte.

         Pensando na vida dura daqueles pobres coitados, acabei pagando mais do que deveria — nada que me fizesse falta. Enchi os recipientes com bastante água e em instantes Flor do Leste e eu já estávamos voltando ao largo de pedra. Ca­valgamos sob sol alto, com o vento quente no rosto, contemplando paisagens tão lindas que era difícil imaginar que poderiam ser maculadas.

         Meu caminho estava livre, e eu o trilhei em paz.

         Então, veio a tempestade.

 

As Harpias

         Ventava forte na planície quando avistamos as colinas de arenito, e a greta estreita que conduzia ao largo natural entre os dois morros. O sol ia alto, e ima­ginei que os gregos já tivessem levantado o acampamento. Vesti o capuz, mas o calor, a areia e a ventania continuavam a castigar-me o rosto, então cobri a face com um pano grosso em forma de triângulo. Ibn-Hatar já demonstrava si­nais de cansaço, tinha fome e sede, e eu não via a hora de alcançar a garganta de pedra, onde estaríamos protegidos das vicissitudes do clima.

         Quando adentramos a fenda, o vendaval parou. Lá fora, ele soprava no mes­mo sentido em que cavalgávamos. Isso anulara em parte meu olfato, porque os aromas no ar são, em geral, trazidos pelo vento e dispersados por ele. Foi só en­tão, quando já caminhava pela senda, que senti o cheiro salgado que é sinónimo de morte.

         — Sangue! — sussurrei em mandarim, para que Flor do Leste entendesse o aviso.

         Desmontei do cavalo e desviei o animal do caminho.

         — Fuja para os campos, corra, e me espere lá — exclamei, desferindo um tapa no lombo do corcel. A menina pouco sabia cavalgar, mas o corcel, além de hábil, era inteligente e compreendeu meu comando somático. A pequena agarrou-se às rédeas, apertou as pernas contra a sela e deixou-se levar pela força do alazão.

         Senti um abalo no tecido da realidade e tive certeza da presença maligna que me aguardava. Andei furtivo pela senda, encostado ao paredão, até que es­cutei o ruminar dos camelos. Quando a vereda se abriu no largo de rocha, tomei consciência da destruição que me precedera. À saída da garganta, quase a meu lado, jazia um cadáver humano, coberto de sangue da cabeça aos pés. O rosto, virado para cima em expressão de horror, tivera a língua e os olhos arrancados. As costas estavam rasgadas em múltiplos cortes, e o coração, perfurado por um objeto penetrante. Era Tales, o mercador grego.

         Uma pavorosa orgia de sangue e carne se espalhava pelo passo. Uma figura voluptuosa, com corpo de mulher e asas de anjo, estava parada no centro do pátio natural, apoiada em uma lança de ouro. Sua pele era clara, os seios, far­tos, e os cabelos, ruivos e ondulados. Vestia-se somente com leves tiras de seda, amarradas em uma túnica pequena, que lhe tapava o sexo e os mamilos. A seus pés, um segundo corpo tombava inerte, trespassado por sua arma nefasta. Era Tommaso.

         Enquanto a caçadora arrancava a ponta dourada das costas de sua vítima, uma segunda mulher alada flutuava, mantendo uma posição estática trinta me­tros acima da parceira. Era uma disposição de vigília — enquanto uma atacava, a outra dava cobertura, atenta a qualquer ataque surpresa. A exemplo de sua comparsa, empunhava também uma lança metálica. Os olhos azuis vasculha­vam tudo ao redor, e os ouvidos afiados captavam a menor das vibrações.

         Aquelas eram as rapinas, duas perversas querubins, assassinas cruéis, servi­doras cegas do arcanjo Miguel. Foram elas que molestaram Hazai, prolongando-lhe o sofrimento antes da morte. Mesmo incapacitado, ele conseguira escapar das lutadoras, mas certamente elas haviam seguido seu rastro, e este as levou ao Sinai. Era provável que as rapinas estivessem à procura do capitão, e não de seu líder. Pretendiam assim terminar o trabalho que começaram e levar a cabeça do renegado ao Príncipe dos Anjos.

         A primeira delas, que pisoteava o cadáver de Tommaso, era Zambil, e a que a protegia do céu chamava-se Marilli. Não usavam armadura ou qualquer outra proteção que limitasse os movimentos, e isso as tornava rápidas e silenciosas. As asas assumiam uma coloração neutra, entre o bege e o caqui, para que me­lhor pudessem se confundir ao cenário desértico.

         E mesmo elas, prontas para a emboscada, não perceberam minha chegada. Até que me revelei.

         Incrédula, Zambil deixou escapar um sorriso nervoso.

         — Finalmente o encontramos! Pena que tenha demorado a aparecer.

         Marilli compartilhou a crueldade.

         — Dizem que os renegados não gostam de ver humanos ser mortos. Poderíamos tê-los poupado, mas essas porcarias de barro não quiseram ceder.

         — De fato — replicou Zambil, apontando para mim. — Não fosse por sua postura, eu diria que é um deles. Você cheira a pelo de macaco, capitão — caçoou, com uma risada maldosa. — E então, pronto para uma nova peleja?

         Capitão, Foi como eu pensara. As rapinas julgavam que eu fosse Hazai.

         Não queria ludibriá-las por mais tempo. Com uma mão, arranquei o pano do rosto, e com a outra deitei fora a túnica e o capuz.

         A reação delas foi imediata. Zambil manteve-se firme, mas sua expressão satisfeita encrespou-se. No ar, Marilli bateu as asas, recuando alguns metros. A manobra revolveu o vento, levantando areia no campo do passo.

         — Este não é o capitão Hazai! É Ablon, o Primeiro General — resmungou, surpresa, a guerreira de olhos azuis.

         — Ablon, o Anjo Renegado, você quer dizer — corrigiu Zambil, recuperando o sorriso perverso. — Nossa recompensa virá em dobro.

         Insolente, a lutadora armou a lança, mas a outra, que a protegia de cima, não parecia tão confiante. Talvez tivesse ouvido histórias a meu respeito.

         — Onde está sua espada, general? — perguntou a assassina ruiva.

         — Eu dispenso minha arma.

         Ela estranhou minha frieza.

         — Nesse caso, o código dos querubins me impede de usar minha lança — era um blefe. Ela a usaria de qualquer forma.

         — A não ser que eu, como seu oponente, a dispense dessa obrigação.

         Ela rosnou e expandiu as asas, preparando-se para o ataque. As rapinas eram perspicazes, e eu não as derrotaria se não soubesse como enganá-las. Desde que jogara a Vingadora Sagrada no abismo, tive de aprender a lutar desarmado, mes­mo contra inimigos armados. Logo, entendi que aqueles que portam armas acre­ditam que esses instrumentos os tornam superiores em combate. Isso os faz to­talmente dependentes delas. Toda vez que alguém utiliza uma espada, uma lança ou mesmo um punhal, faz de tudo para acertar o adversário com aquela arma. E cada arma tem um número limitado de golpes. Já um guerreiro desarmado não sofre tais restrições, estando livre, assim, para usar o corpo todo para atacar. Socos, pontapés, cotoveladas, encontrões e joelhadas são apenas algumas alterna­tivas. Além disso, as rapinas padeciam de outra fraqueza. Eu sabia que, sempre que podiam, atiravam suas lanças a distância, mas contra um oponente desarma­do, como eu, Zambil, arrogante e certa da vitória, arriscaria o corpo a corpo. Se eu pudesse trazê-la para dentro de meu raio de ação, talvez conseguisse vencê-la.

         A ruiva levantou a lança dourada.

         — Saiba, renegado, que foi com esta arma que perfurei seu oficial mais gra­duado,

         — Em instantes desejará nunca tê-la usado — retruquei, aguardando a inves­tida.

         A mulher-anjo inclinou as asas para trás e precipítou-se ao meu encontro, com os olhos vermelhos de fúria. Imersa na fervura do combate, não suspeitou de minha estratégia, até que sua comparsa, Marilli, esbravejou:

         — Espere, Zambil, não se aproxime dele!

         Mas era tarde demais para a audaciosa querubim. Ela já estava ao meu al­cance quando desferiu o golpe. Conforme eu suspeitava, ela tentou um ataque frontal, perfurante, reto. Conhecendo o assalto, não foi difícil sair da linha de perigo, desviando para o lado e ao mesmo tempo me movendo para dentro da área de combate. Do céu, a segunda rapina entendeu o objetivo da manobra e brandiu a lança para arremessar, mas Zambil e eu estávamos já quase engalfi­nhados, e um arrojo daqueles poderia atingir sua parceira. Indecisa, ela esperou, acompanhando, nervosa, o duelo.

         As lanças são quase imbatíveis à primeira investida da batalha, mas depois, quando o adversário chega mais perto, elas praticamente perdem a utilidade, porque são objetos grandes, e seus movimentos são longos, demorados e deman­dam espaço. Aproveitando um vacilo da lutadora, agarrei a haste abaixo da lâ­mina e puxei-a para mim. Para não ter que disputar força com Zambil, rodei o cabo da arma para fora, descrevendo um arco horizontal e quebrando assim sua dura pegada. O artefato escapou instantaneamente das mãos da celestial, como óleo a deslizar na pele. Por uma fração de segundo, ela não soube que ação tomar, tão condicionada estava a manobrar o instrumento fatal. Ao ver a assassina vulnerável, deí um passo para trás e prossegui o movimento em um arco contínuo. Girei a lança sobre a cabeça, e a ponta afiada cortou o ar, chiou e desceu em direção ao seu pescoço. Para evitar a inesperada ofensiva, ela recuou, mas a precisão do ataque foi suficiente para atingi-la na garganta, rasgando-lhe a pele e degolando-a de ponta a ponta.

         O sangue da rapina esguichou em minha roupa. Em uma ação quase invo­luntária, preventiva, soltei a arma mística e, com a mão nua, perfurei-lhe o pei­to. Os dedos rijos atravessaram a carne e fecharam-se em volta do coração. Com uma puxada enérgica, revolvi o músculo cardíaco, atirando o órgão ensanguenta­do para longe. Os olhos murcharam, e o gemido calou-se, Zambil estava morta.

         Mas Marilli seguia com vida.

         Assustada, a celestial manejou a lança de ouro, mirando meu coração. Res­tava-me, portanto, tomar a arma da finada e arremessá-la antes que a guardiã fizesse o mesmo. A velocidade, compreendi, seria o fator crítico nessa disputa. Marilli tinha a vantagem de já estar preparada, mas o avatar inútil de Zambil ainda não tombara, e seu corpo me serviu de cobertura. Enquanto a assassina procurava o melhor ângulo para atirar, peguei a lança do chão e a arremessei.

         A arma chispou contra o vento, soltando faíscas em seu trajeto. O espeto atingiu em cheio a celeste, em um impacto que a matou de imediato. As asas se recolheram, e o corpo despencou do céu, rolou pela encosta íngreme da co­lina e deslizou para dentro da garganta, indo chocar-se contra o solo da greta.

         As rapinas, as mais severas assassinas de Miguel, estavam vencidas.

 

         Com as guerreiras derrotadas, relaxei a guarda e recuei dois passos, assimi­lando a brutalidade da carnificina que ali ocorrera. Fui tomado por uma fadiga dispensável, íncomum, e tive que respirar fundo antes de avançar. Não era, con­tudo, o cansaço que me abalava.

         Voltei à entrada do largo e lamentei a morte horrível de Tales. Depois, ca­minhei até o centro do passo e ajoelhei-me diante do corpo sem vida de Tommaso. Seu tórax fora destruído, mas ao menos não sofrera como o velho grego.

         Mortos. Estavam todos mortos. Inocentes, infelizes, lançados em uma guerra que nada tinha a ver com seus interesses mundanos. Vítimas da mais terrível maldição imposta aos renegados — a solidão. Era assim que devia ser, para to­dos os exilados. Tudo e todos à nossa volta sucumbiriam um dia, até que fosse anunciada nossa própria destruição. Era esta minha fortuna: suportar o exter­mínio de meus amigos e nada poder fazer diante disso.

         Mas nem toda vida fora apagada.

         — Tive medo de ajudá-los — sibilou uma voz, que se achegava ao meu lado.

         À minha esquerda, um rapaz forte, alto e de rosto calmo fitava o cadáver

do criado. Vestia-se com uma túnica branca, cortada em detalhes vermelhos, e pela postura altiva era fácil identificar sua origem. No semblante, a imagem da razão; nos olhos, o brilho da sobriedade. Era Pólix.

         — Eu me escondi — continuou o rapaz — em uma concavidade na rocha. As harpias chegaram com o vento, apareceram no meio de nós, e então entendi a natureza dos dois mundos. Elas não existiam, não é? Mas isso não quer dizer que não viessem a existir.

         Perplexo, digeri a súbita recuperação de Pólix. Não esperava que, tão brusca­mente, ele recobrasse a lucidez. Infelizmente, porém, não havia outra maneira de voltar à razão a não ser testemunhando outro evento místico. A visão dos fantasmas na entrada da trilha secreta confundira sua mente. Fora uma situa­ção tão fantástica que o levara às fronteiras mais profundas da loucura, enquanto ele tentava encontrar a única resposta ao enigma que o massacrava: o que real­mente acontecera aquela noite? A busca pela iluminação o deixara catatônico, mas, ao presenciar a materialização das rapinas, o rapaz enfim compreendeu que não existia apenas uma realidade, mas várias. Foi justamente isso que ele quis me dizer aquela tarde. Durante toda sua vida ele não acreditara na existência das harpias — que acabaram por revelar-se na figura das rapinas — porque isso não fazia parte de sua realidade palpável. E, nesse contexto, elas realmente não existiam. Mas o fato de que, para ele, elas não existiam não queria dizer que não pudessem vir a existir. Acreditar no impossível é a chave para entender os segredos do universo.

         O som de cascos nos trouxe à realidade. Através da senda, vimos a silhueta avermelhada de Ibn-Hatar e de Flor do Leste. Eu tinha ordenado que fugisse para os campos, mas, ao escutar o silêncio que se seguiu à escaramuça, a menina decidira voltar ao acampamento. Olhou com pesar para os corpos estendidos, mas não se desesperou. Já devia ter assistido a atrocidades semelhantes na China, um país onde os opositores do imperador eram condenados às execuções mais atrozes.

         — E agora? — perguntei a Pólix. — O que pretende fazer?

         — Era desejo de meu pai que eu continuasse a sua empresa. A caravana está intacta. Vamos continuar pelo deserto até Alexandria e então nos separamos. Você vai para Roma, e eu para Antióquia. De lá tomarei um navio para Atenas.

         Eu... — uma dor inesperada silenciou minhas palavras, e a frase distorceu-se em um gemido gutural. Senti que meu corpo se contorcia, e então uma forte pontada no estômago me atirou ao chão. A pele latejou, como o ataque impie­doso de uma febre terçã.

         Pólix afastou-se. Flor do Leste saltou do cavalo e correu em meu socorro.

         O que aconteceu? — perguntou o rapaz. — Você parece doente.

         A aflição contraiu meus músculos, tornando a fala impossível. Com suas nãos delicadas, a menina pressionou meu abdome e, devagar, empurrou minha cabeça para baixo.

         — Mas você não foi sequer ferido. Está incólume... — protestou o helênico.

         Tossindo sem parar, senti que um líquido viscoso me subia pela garganta,

queimando tudo por dentro. Engasguei com o refluxo, e depois o fluido letal chegou à minha boca. Uma gosma esverdeada espirrou por entre os dentes, desenhando uma mancha indigesta na terra.

         — É veneno — compreendeu Pólix.

         Sim, era um veneno mortal, que havia muito adormecera em minha carne. Era a peçonha assassina de Mai Yun, o Escorpião de Jade. Eu pensava que tod­as as cicatrizes daquela batalha infernal tivessem sarado, mas estava errado. O legado diabólico da mulher-aracnídeo ainda clamava por minha morte.

         A habilidade curativa de Flor do Leste e suas maravilhosas técnicas medi­cinais haviam recuperado a necrose em meu braço, impedindo que o tecido apo­drecesse, mas o veneno não fora expelido. Não fosse meu período de hibernação no leito do rio, a toxina já teria me matado, mas a atividade de meu corpo re­duzira-se a quase zero enquanto dormia, e aparentemente isso manteve a peçonha estagnada. Ao lutar com as rapinas, porém, o sangue voltou a aquecer, desper­tando os efeitos mortíferos da substância.

         Agora era só uma questão de tempo até que o veneno chegasse ao coração. Não sabia quanto de vida ainda me restava, mas não estava disposto a tombar antes de avisar Shamira sobre o perigo que corria. Saudável ou moribundo, con­tinuaria minha missão. Navegaria até Roma e afastaria a Feiticeira de En-Dor da vingança do impiedoso bruxo Zamir.

         E depois morreria.

 

O Veneno Avança

         Atacado pela força renovada do veneno, minha energia celestial feneceu. O poder espiritual da aura, que é a sublime ligação dos anjos com a potência di­vina, começava a esmorecer em meu avatar, consumindo lentamente a vitalidade de meu corpo. A toxina me pusera doente, atacando impiedosamente os múscu­los e nervos e dificultando meus movimentos. Os sentidos aguçados apagaram-se, e minha aparente invulnerabilidade às fraquezas humanas reduziu-se aos níveis comuns a qualquer mortal.

         Julguei, contudo, que a sorte estava a meu lado, pois a surpreendente recu­peração de Pólix me permitiria completar a viagem e chegar a Roma em relativa segurança — pelo menos eu assim esperava.

         Lentamente, os dias converteram-se em semanas, até que toda a noção de tempo foi eclipsada de minha mente. Experimentei um pouco da breve existên­cia humana, tão efémera, e por isso tão intensa. Preso ao lombo do corcel, tudo o que me restava era fitar o horizonte, o deserto, as montanhas, sem poder al­cançá-los.

         No início da primavera, a caravana deixou o Sinai, contornou por terra o golfo de Suez e chegou a uma estrada imperial, que cortava o rio Nilo e seguia para Ménfis e Alexandria. Aquele era o período em que começavam as secas, a época em que os agricultores colhiam os víveres plantados em janeiro, após o recuo das águas da inundação. Pouco pude ver as maravilhas da travessia, e não cheguei a divisar os portões de Mênfis. Alguns quilômetros ao norte da cidade, a estrada se bifurcava, e tomamos o caminho que conduzia à capital.

         Foi em uma noite de lua nova, quando apenas as estrelas decoravam a ne­gritude do céu, que um brilho reluziu a noroeste. Tentei erguer o corpo, desa­bado sobre o corcel, mas, ainda aturdido ao despertar, tudo o que consegui foi levantar minimamente a cabeça e fitar o ponto luminoso que sinalizava ao longe.

         — São as luzes da ilha de Faros — avisou Pólix, emparelhando ao meu lado sobre a corcova do camelo. — Em uma noite escura, é possível enxergá-las no mar a quilômetros de distância.

         — O Farol de Alexandria! — exclamei, arriscando um sorriso. — Já não era sem tempo.

 

O Farol de Alexandria

         Ao nascer do dia, o terreno sob a estrada declinou suavemente, descendo em direção à cidade ao nível do mar. O aroma salgado do porto me despertou e recobrei os sentidos, confiando na força que poupara por toda a jornada.

         A cidade de Alexandria fora construída em uma faixa estreita de terra, com­primida entre o mar Mediterrâneo, ao norte, e o esplendoroso lago Mareotis, ao sul. A capital outrora fora o lar de uma pacata vila de pescadores, até que, em um dia de verão do ano 332 a.C., Alexandre, o Grande, que acabara de con­quistar o Egito, viajava com sua comitiva ao oásis Siwa, na Líbia, quando avistou uma aldeia e a deslumbrante ilha rochosa que protegia o ancoradouro. Mara­vilhado com a beleza e o potencial daquele recanto bucólico, decidiu que ali fundaria sua capital regional, uma localidade que mais tarde seria batizada em sua homenagem — Alexandria. A metrópole se tornaria parte fundamental da rota marítima que ligava a Grécia ao Egito, servindo também como ponto de saída para a via navegável que percorria o Nilo, atravessava o mar Vermelho e desembocava no oceano Indico.

         Embora fosse macedônio, Alexandre era apaixonado pela cultura grega, considerando-se um helênico. Todos os seus palácios obedeciam em detalhes ao modelo arquitetônico grego, com fachadas triangulares, altas colunas que sustenta-n o teto e longas escadarias de mármore que conduziam à entrada principal. Alexandria não era diferente. Portanto, em vários aspectos, a cidade se parecia muito com Atenas, mas a dinastia dos Ptolomeus, que passou a governar o Egito alguns anos depois da morte de Alexandre, reformou parte da metrópole e deu a ela uma aparência mais faraônica. Ptolomeu II, que reinou por volta de 280 a.C., espalhou obeliscos egípcios peia capital, ergueu colunas decoradas com an­tigos hieróglifos e erigiu inúmeros monumentos imortais, como o palácio real, o Templo de Serapis e o famoso Farol de Alexandria. Para fazer frente a Atenas no domínio intelectual, a dinastia construiu o Mouseion, a grandiosa biblioteca que abrigava, em seu tempo, mais de quinhentos mil volumes, entre eles os ma­nuscritos de Aristóteles, os comentários de Platão e incontáveis textos proféticos judaicos.

         Com a claridade machucando-me os olhos, avistei a enseada, abraçada e de­fendida por uma muralha que se precipitava mar adentro, protegendo os navios atracados. Uma faixa artificial de terra, com base de cascalho e superfície de pe­dra, ligava o continente à ilha de Faros, onde fora edificada uma das sete mara­vilhas de antigamente. O Farol de Alexandria era uma torre larga, de 150 metros de altura, toda construída de pedra calcária e encimada por uma magnífica está­tua de bronze representando o deus Poseidon, com seu inseparável tridente. Mas o atrativo mais impressionante do edifício estava no último de seus seis andares, onde uma miríade de espelhos fitava o horizonte como uma luneta, refletindo o mar e detectando a aproximação de navios invisíveis a olho nu. À noite, esses mesmos espelhos giratórios multiplicavam a luz do fogo que ardia no andar de baixo, emitindo um majestoso clarão que guiava os barcos no escuro.

         — Veja, há fumaça no farol — indicou Pólix, enquanto dois legionários ro­manos, com armaduras segmentadas e gládios polidos, passavam ao nosso la­do sem dar atenção à conversa.

         — Os escravos devem ter acabado de despejar no mar o resto de óleo que queimou durante a noite, alimentando a luz que vimos ontem na estrada — comentei.

         O jovem grego olhou-me surpreso, mas não incrédulo.

         — Eu já reconhecera sua sabedoria nas áreas selvagens, mas não sabia que também era letrado nos mistérios do mundo civilizado.

         —Ainda conhece pouco sobre mim, Pólix. E pena que esta seja a última etapa da nossa viagem. Receio que não nos vejamos de novo.

         — Pelo jeito já conhece a cidade.

         — Estive aqui há quarenta anos, antes que os romanos tomassem a capital — respondi, apontando com o indicador três galeras romanas atracadas ao anco­radouro real.

         O helênico já não se assustava quando eu contava histórias ancestrais, a des­peito de minha aparência humana.

         — Já sabe como chegar a Roma?

         — Tenho uma idéia.

         — Eu também — precipitou-se o rapaz. — Acho que posso vender boa parte de minha mercadoria de bronze aqui, antes de seguir para Antióquia. Além dis­so, quero me livrar dos camelos e trocá-los por uma carroça grande, afinal há boas estradas por toda a costa do mar Interior. Com o dinheiro posso comprar sua passagem em um barco decente, e aí nos separamos.

         — Sua gentileza é admirável, mas não há tempo. Minha missão é urgente. Pensei em uma maneira rápida e barata de tomar um navio.

         — Não consigo imaginar outra opção. Para mim, a alternativa era óbvia.

— Quando vocês me tiraram do rio, ouvi seu pai dizer que conhecia um mer­cador de escravos em Alexandria, um homem que tinha clientes fixos entre os romanos.

         O jovem vasculhou a memória, avivando suas lembranças mais remotas, até que o nome que procurava apareceu em sua mente.

         — Alexius! Sim, eu me lembro vagamente dele. Meu pai costumava beber com esses tipos em uma taverna no Brucheium.

         O Brucheium era um dos distritos mais belos e movimentados de Alexan­dria. Ficava na ala leste da cidade, encostado às muralhas e recortado por um canal, aberto para ligar o lago Mariotis ao porto marítimo.

         — Mas como acha que esse traficante pode nos ser útil?

         — Ele vai me prestar o serviço essencial. Você me venderá a ele como escravo.

         — Como escravo? — estranhou Pólix, sem entender minha intenção. Flor do Leste arregalou os olhos.

         — Infelizmente, é a maneira mais rápida de eu chegar a Roma, direto e sem escalas. Um navio comercial a vela pode vencer o mar Interior em vinte dias. E essa rapidez que procuro.

         Ele se recuperou depressa do susto, ao compreender a lógica do meu plano.

         — Você deve estar mesmo com muita pressa, mas o que lhe garante que vai estar seguro? Em seu estado, qualquer esforço poderá levá-lo à morte.

         — Eu sei, é arriscado. Mas os traficantes romanos costumam tratar bem seus escravos, para que estejam em forma ao ser vendidos. Duvido que me recusem comida e descanso, pelos menos até chegarmos a Ostia.

         O rapaz fez silêncio por um longo minuto, observando a cidade mais abaixo e a movimentação dos barcos que chegavam ao ancoradouro. À minha direita, vi que os olhos da menina chinesa se enchiam de lágrimas, lembrando minús­culas pérolas reveladas em uma concha.

         — Então é esse seu plano? — perguntou Pólix pela última vez.

         — É o único que consegui conceber.

         Ele desceu do camelo.

         — Está bem. Vou levá-lo a Alexius, então. Acho que sei onde posso encon­trá-lo. Ademais, acabei de me lembrar de uma coisa.

         — Do quê?

         — Meu pai certa vez pagou suborno aos legionários, que não queriam dei­xar esse Alexius entrar na cidade. Não sei qual era o impedimento e não tenho noção de quanto ele deu aos soldados, mas isso nos dá uma vantagem. Aquele homem me deve um favor!

 

Brucheium

         Ao trote altivo de Ibn-Hatar, segui a caravana, que continuou estrada abaixo, contornando o lago Mareotis e se aproximando das muralhas da cidade. Aos poucos, Alexandria acordava, e a temperatura esquentava nas cercanias externas.

         O comboio, com Pólix à dianteira, atravessou o Portão do Sol, uma passagem larga e bem guardada, aberta na muralha norte. Essa era a principal porta de acesso para os viajantes que ali chegavam por terra.

         Passamos perto de um teatro romano, semelhante a um anfiteatro grego, recentemente construído, e continuamos pela avenida até o centro da cidade, onde a Via Canopica encontrava sua mais famosa transversal, a Via Soma. Na praça entre as ruas, um batalhão de comerciantes negociava seus produtos ao ar livre. Muitos eram judeus, mas havia também nabateus e fenícios na feira popular. Os animadores aproveitavam a multidão, e vi, em uma esquina distante, um grupo de atores, provavelmente gregos, que improvisavam uma tragédia ves­tindo máscaras de linho enrijecido.

         Pólix, que caminhava à frente da caravana, veio andando até o corcel.

         — Você está bem?

         — Não posso dizer que sim. Nossa conversa na entrada da cidade me deixou esgotado. Qualquer esforço enfraquece meus músculos, até mesmo um breve diálogo.

         — Você tem piorado — o helênico buscou um cantil e um pedaço de pão na sacola de alimentos e os ofertou a mim. — Beba um pouco e coma este pão. Tam­bém estou cansado, mas precisamos procurar Alexius, já que sua missão não po­de esperar. Os navios escravistas partem todos os dias para Roma, e o traficante pode estar de saída.

         Demos a volta em uma esquina superlotada, onde um cão vira-lata comia restos de peixe na calçada. Continuamos por uma rua mais calma, até que che­gamos a um novo distrito. Minha cabeça girou sob o sol, e a mente ameaçou apagar. Algum tempo se passou, até que voltei a mim.

         — Onde estamos? — indaguei, zonzo.

         — No Brucheium, perto do palácio — respondeu Pólix. Ele amarrou as rédeas dos camelos a um descanso de madeira, que mais parecia uma cerca rústica, on­de outros cavalos bebiam água de uma tina. — Fique aqui. Vou tentar falar com Alexius, Se estiver em Alexandria, este é o lugar certo para encontrá-lo.

         Reparei, então, que estávamos à frente de um edifício baixo, mas largo, que ocupava quase todo o quarteirão. Estátuas de bronze decoravam a fachada, re­cortada em todo o seu comprimento por arcos de pedra em sequência. Era uma construção romana, pois não existia antes da invasão. Homens tagarelando em latim entravam e saíam do prédio, desciam e subiam as escadas, e concluí que aquele era um banho público, um espaço de diversão muito popular entre os estrangeiros, onde eles se lavavam com óleo, conversavam e praticavam esportes.

         — Se eu demorar, é porque encontrei o mercador. A caravana estará a salvo aqui. Esta é uma das áreas mais seguras da cidade — garantiu o rapaz.

         Sem aguardar uma réplica, Pólix deu meia-volta e galgou a escadaria, trans­pondo um arco que levava aos jardins interiores, e depois às piscinas aquecidas. Nauseado, desmontei do corcel e me arrastei até os degraus de mármore, pro­curando me sentar. Flor do Leste se agachou ao meu lado. A presença da pe­quena e o apreço que sentia por mim me ajudavam a suportar as terríveis dores.

         — Afinal, o que seria de mim sem você, Flor do Leste? — murmurei, abençoan­do sua cordialidade.

         A menina me encarou com aqueles olhos miúdos e sorriu.

 

alexius - flor do leste faz sua escolha

         Duas longas horas se passaram, e o sol ascendeu no céu. Flor do Leste cu­tucou minhas costas, indicando que Pólix retornava pela escada. Estava acom­panhado por um homem de meia-idade, gordo, calvo e sem barba, que vestia uma toga púrpura e comprida, feita de linho, imitando a roupa dos senadores de Roma. Os olhos esbugalhados e a boca exageradamente larga lembravam o rosto de um sapo, e a pele rosada sugeria a ascendência europeia. Os dedos re­dondos estavam preenchidos por anéis, do polegar ao mínimo; no braço, exibia um bracelete dourado. Ambos, Pólix e o estrangeiro, exalavam um aroma de oliva, e concluí que o helênico tinha também se lavado nos banhos, provavel­mente para simular um encontro casual.

         Ao reconhecer meu comprador, levantei-me, mas meu estado precário era visível.

         — Este é o bárbaro de que lhe falei, Alexius — disse Pólix. — Como vê, ele está um pouco enfraquecido, mas vai se recuperar rápido. Já me foi muito útil ao longo de minha viagem.

         O mercador, um tipo cínico e devasso, olhou-me bem de perto, apertou-me os músculos do braço e examinou meus dentes. Não esboçou nenhum interesse, ou pelo menos não o demonstrou, mas notei que, malicioso, lançava um olhar sedento à menina.

         — Enfraquecido? — zombou Alexius. Sua fala era morosa, como o som dos anfíbios a coaxar nos pântanos. — Ele mais parece um defunto!

         — Está doente. É febre da Núbia. Em dez dias estará como novo.

         A febre da Núbia era uma enfermidade benigna, hoje extinta, causada por um protozoário e transmitida pelos mosquitos. Afligia a vítima por três semanas e depois, subitamente, desaparecia. Não era letal, e o repouso era o único tra­tamento conhecido.

         — Compreendo, compreendo — replicou, sarcástico. — E como encontrou um bárbaro germânico no meio do deserto? Ele é germânico, não é?

         — Foi o que ele me disse — explicou Pólix, evasivo, e depois respondeu à pri­meira pergunta. — Comprei este escravo de um sacerdote em Mentis — inventou. — O clérigo me garantiu que era letrado em latim, grego e aramaico. No princípio nem eu acreditei, mas depois veio a provar suas capacidades.

         O romano explodiu em uma gargalhada.

         — Um bárbaro poliglota? Mas isso é um ultraje! O jovem não gostou da brincadeira.

         — Você pode comprovar isso pessoalmente, Alexius. O escravo está fraco, mas ainda pode falar.

         O traficante suprimiu lentamente a risada,

         — Muito bem, muito bem — rouquejou, tomando as palavras do helênico a sério. — Vamos ver se este traste serve mesmo para alguma coisa — exclamou, voltando-se à minha presença. — De onde você é, forasteiro? — falou em aramaico.

         — Isso não é de sua conta, seu porco romano — devolvi no mesmo idioma, simulando uma reação agressiva. O gordo voltou a rir.

         — Muito bom, Pólix, muito bom! Gostei bastante deste seu amigo. E quanto supõe que eu deva pagar por ele?

         Pólix coçou o queixo, como se estivesse calculando um preço justo, mas eu sabia que ele já tinha planejado tudo.

         — Eu pediria cinquenta denários,

         — Cinquenta denários! — praguejou o mercador. — Cinquenta moedas de prata romanas? Você é doido, meu jovem. Ele não vale nem dez!

         — Mas é claro que vale — contestou o grego. — Mesmo que não tivesse as per­nas, ainda teria serventia como intérprete.

         — Mas, por Júpiter, por que eu precisaria de um intérprete? Recebi um bom lote de escravos da Numídia ontem, e meu carregamento está fechado. Vamos fazer o seguinte: eu compro o bárbaro por cem denários. Seu pai e eu éramos amigos, e não vou deixá-lo na mão.

         Pólix franziu o cenho, parecendo não acreditar em sua sorte.

         — Mas você acabou de dizer que ele não vale nem dez — resmungou, confuso. O traficante sorriu. Tinha levado o vendedor ao ponto que queria.

         — Eu pago o dobro pelo selvagem, mas quero levar a menina também — afir­mou, apontando um dedo inchado para Flor do Leste.

         — Ela não está à venda — rosnei, em latim, e dessa vez minha fúria era real. O mercador me ignorou, esperando a resposta de Pólix.

         Por um instante, o helênico ficou estático, sem saber o que dizer. Olhou pa­ra mim, como que suplicando uma salvação. Foi aí que a pequena se agarrou ao meu braço, como que avisando que não queria me deixar. O rapaz simples­mente não sabia o que fazer.

         — E então, garoto, o que me diz? Negócio fechado? — exigiu o romano, triun­fante.

         — Não sei — vacilou. — Ainda não sei se quero me desfazer dela.

         Uma liteira vazia, de cedro e marfim, carregada por quatro escravos more­nos, vinha cruzando a esquina.

         — Pense nisso, menino. Pense bem. Meu navio partirá amanhã de manhã. Encontre-me na área leste das docas se resolver fechar negócio.

         A liteira parou em frente ao gordo, e compreendi que aquela era sua con­dução particular.

         — E não se esqueça, faço isso em memória de seu pai — sorriu, dissimulado.

         Os escravos agacharam-se, e o traficante meteu-se com dificuldade no acon­chego. Levou um tempo se revirando, até acomodar o corpo pesado entre as dobras de um coxim. Depois, gritou uma ordem em latim, e os carregadores avançaram pela rua. Pólix, Flor do Leste e eu ficamos a observá-lo, até que seu séquito fosse engolido pela multidão.

         — Aquele descarado me enganou direitinho — reclamou o rapaz, — Dez denários foi o que eu paguei só por este banho.

         — É o trabalho dele — ponderei, já conformado. — Infelizmente vou ter que pensar em outro jeito de completar a viagem.

         Pólix percebeu uma coisa que eu não havia notado.

         — Você sabe que ela não vai querer deixá-lo, não é? — sua expressão era dúbia, um misto de tristeza e alívio. Temia pelo destino da menina, mas consolava-sc ao lembrar que eu poderia, assim, cumprir minha missão.

         Flor do Leste agarrou-se ainda mais forte ao meu braço, reforçando as pa­lavras do grego. Comovido, ajoelhei-me e enfrentei seu rosto exótico.

         — Não, Flor do Leste. Um navio escravo não é lugar para mulheres. Muito menos para meninas. Você vai para a Grécia com Pólix.

         Ela aparentemente não se curvou à minha censura, recusando-se a soltar meu corpo. O jovem grego não queria, mas sentiu-se na obrigação de esclarecer a verdade,

         — Sem ela você não vai sobreviver ao percurso pelo mar — alertou, e se afastou em silêncio.

 

Sabedoria e Inteligência

         Era início de tarde e ainda nos restava um dia inteiro em Alexandria. Todos estavam cansados e com fome, e procuramos uma boa estalagem para passar a noite. Pólix, que conhecia bem a cidade, foi ao comércio. Pretendia trocar os camelos por uma carroça grande, de preferência puxada por quatro cavalos for­tes. Com esse novo transporte, o jovem grego planejava percorrer as estradas costeiras, atravessando o Egito, a Palestina e a Síria, para então alcançar a Antióquia.

         Assistido por Flor do Leste, não demorei a cair no sono. Durante o torpor, fui acometido por pesadelos terríveis, que envolviam Zamir, Shamira, a Criança Sagrada e a minha missão. Os sonhos persistiram por todo o período de sono­lência, até que Pólix me despertou do delírio.

         —Acorde — a voz continuava essencialmente a mesma, mas o timbre mudara desde que ele emergira da catatonia.

         Abri os olhos e vi que a luz do sol entrava pela janela do quarto, aquecendo o aposento quadrado. Pela posição e pela intensidade do raio, deduzi que ainda era de manhã.

         — Ainda é dia?

         — É dia de novo. Você dormiu quase vinte horas.

         — Perdi completamente a noção do tempo.

         — Agora precisa se levantar. O navio de Alexius partirá em uma hora.

 

         O porto de Alexandria era a real essência da cidade. Tratava-se, de fato, de um dos mais movimentados do mundo, e era impossível não perder o fôlego ao ver os grandes navios atracados no ancoradouro. Muitos deles eram naus ro­manas de comércio, largas e fundas, movidas avela. Mas havia também as gale­ras, com longas fileiras de remos, acionadas pek força de escravos. As embarca­ções maiores e mais pesadas estavam estacionadas ao longe, ao fim de compridos fundeadouros de madeira ou pedra.

         Pólix me disse que conseguira a carroça, mas ainda não havia negociado a contratação dos empregados. Por isso, ficaria mais três dias em Alexandria, de­pois da nossa partida. Em meio à confusão da rua, o jovem grego parou, e o in­teligente alazão suprimiu o trote.

         — Aquele é o navio de Alexius — o rapaz indicou um imenso veleiro, com dois remos de segurança na popa. — Já estão embarcando a carga.

         A carga era uma centena de escravos numídicos, homens fortes, de pele ne­gra, capturados na África pelos legionários romanos. A Numídia fora subjugada por Roma ainda nos tempos da República, mas os ferozes guerrilheiros continua­vam a ameaçar as legiões, e assim continuariam até os últimos anos do Império.

         — É um navio a vela — constatei, forçando a vista para enxergar. — Insula Ma­jor — li as letras grandes, escritas no casco. — Quer dizer ilha maior em latim. Não sei por quê, mas esperava encontrar uma galera.

         — Na certa preferem preservar a mercadoria, por isso não põem os escravos para remar. Você mesmo previu esse procedimento.

         Concordei com um gesto e desmontei do cavalo, esforçando-me para me sustentar de pé. Esticando o corpo, vi a beleza do mar que delineava o cais e observei, com deleite, as várias tonalidades de azul, que indicavam as diferentes profundidades da costa. Mais distantes, abraçando a enseada, estavam a ilha de Faros e a altíssima torre do farol.

         Um homem gordo, de aparência anfíbia, acabara de deixar a plataforma e enfiava-se na confusão da rua. Estava acompanhado por um segundo homem, um tipo carrancudo, cuja pele clara fora duramente castigada pela exposição diária ao sol. Tinha a barba por fazer, portava um gládio na cinta e levava na mão um porrete de madeira. O cabelo negro era curto e espetado, combinando com os fios ralos da barba.

         — É Alexius! — reparou Pólix. — Está vindo para cá, acompanhado de um ca­panga.

         O aroma de oliva, que o romano exalava ao deixar os banhos, no dia anterior, sumira por completo, e agora cheirava a carne de porco e vinho barato. O es­trangeiro estampou um sorriso cobiçoso ao ver o rapaz e a pequena chinesa.

         — Então, garoto de Atenas, decidiu-se? — perguntou o traficante, irônico, como se estivesse contando uma anedota.

         — Cem denários — lembrou Pólix. — Foi o nosso acordo.

         O gordo olhou para o homem carrancudo atrás dele e sorriu, cínico. Tivemos a impressão de que os dois trocavam expressões combinadas, e fiquei atento ao imprevisível. Houve um curto instante de tensão, então o romano falou:

         — É lógico! Cem moedas de prata — abriu a mão, e de pronto o guarda-costas lhe entregou um saco de couro surrado, supostamente cheio de dinheiro. — Aqui está — Alexius passou a algibeira a Pólix. — Você ouvirá falar muito de mim, me­nino, mas nunca que sou desonesto.

         Era, obviamente, uma piada de mau gosto. O rapaz conferiu o pagamento, verificou que estava completo e sinalizou uma afirmativa com a cabeça.

         — Muito bem. Está tudo aqui. Eu já levo os dois escravos para o barco.

         — Não se dê ao incômodo. Cassius da Calábria cuida disso para você — com o polegar, o traficante indicou o segurança. O homem adiantou-se, erguendo o porrete, mas Pólix o fez parar com um comando enérgico.

         — Não! Eu disse que eu mesmo os levarei.

         Alexius quase se assustou com o protesto, mas sentia-se seguro à guarda do brutamontes. Sorriu, um pouco nervoso, e enfim cedeu.

         — Não demore. Vou comprar uma ânfora de vinho e depois o barco vai zar­par. Se fugir com o dinheiro, eu o encontrarei nem que tenha que subornar ca­da legionário nesta cidade.

         —Você ouvirá falar muito de mim, mas nunca que sou desonesto — rebateu, ironizando as palavras levianas do traficante.

         Alexius não respondeu. Deu as costas e embrenhou-se no mercado.

         — É possível que você tenha problemas no navio — advertiu-me Pólix.

         — Posso imaginar.

         Ele olhou para mim e depois para a menina chinesa, enrolada em seu quimono descolorado. Pôs a mão em meu ombro, em um gesto de afeição.

         — Obrigado — disse apenas. — Obrigado por tudo.

         Apertei-lhe a mão.

         — Eu é que tenho a agradecer, meu amigo. Sua sabedoria me trouxe até aqui. Sua sabedoria e a inteligência de Flor do Leste. E também a força de Ibn-Hatar — creditei, acariciando com leveza os pelos vermelhos do animal. — Todos nós tivemos nossas provações e as superamos. Até mesmo aqueles que morreram na viagem.

         — Eles cumpriram seu destino — completou o rapaz, fatalista.

         — Prefiro dizer que cumpriram sua missão. Só a minha continua pendente.

         — Em breve estará na Cidade Eterna, e sua demanda será encerrada.

         Com um giro de corpo e um impulso no estribo, o rapaz montou o corcel,

como poucas vezes o fizera. Acomodou-se na sela e tomou as rédeas. O sol ca­minhava para oeste. Era hora de partir,

         — Você conhece o caminho até o navio — apontou o íundeadouro de madeira. — Não creio que precise escoltá-lo.

         — O traficante não vai gostar de nos ver sozinhos, chegando ao barco como turistas.

         — Esse escravocrata precisa aprender que nem sempre está no comando de tudo — decidiu. — Adeus, meu bom bárbaro. Pedirei aos deuses que olhem por você.

         — Eu não exigiria tanto — agradeci.

         — Espero que um dia volte a encontrá-lo.

         — Acho pouco provável, mas nem por isso impossível — eu conhecia a ameaça que perseguia os renegados e preferi não alimentar reencontros.

         — Farei uma oferenda a Atena para que o abençoe com uma longa e gloriosa vida.

         As palavras de esperança do helênico me contaminaram, e por um momento, em meu coração, a vontade de viver superou o desprezo pela morte.

         — Tomara que sim — repliquei, satisfeito.

         Com um aceno, Pólix deixou o porto, e vi a sombra rubra do alazão pela última vez. Apertei firme a mão de Flor do Leste e caminhei para a plataforma.

         — Agora somos só nós dois, pequenina.

 

Insula Major

         O Insula Major era um navio poderoso para a época, mas minúsculo para os padrões modernos. Tinha trinta metros de comprimento e oito de largura, com o casco profundo, deixando espaço para um amplo porão. Tinha um mas­tro principal, alto, e outro menor, fixo à proa. As velas haviam sido tingidas de vermelho, mas a cor já desgastara. Na parte de trás havia um pequeno tomba­dilho, sobre uma cabine modesta, e na popa os marceneiros prenderam uma fi­gura de cedro, que imitava o pescoço de um cisne.

         Quando Flor do Leste e eu subimos a ponte que levava ao convés, pudemos ver a tripulação e os marinheiros. Eram morenos e ágeis, e supus que fossem fenícios. Os fenícios eram comerciantes espertos, famosos por navegar com des­treza por todo o Mediterrâneo. Não havia, em todo o mundo civilizado, marujos de igual perícia. Dentre eles, distingui cinco homens de semblante europeu, fortes e mal-encarados, que chutavam os numídicos e os empurravam de encon­tro à mureta. Um deles era o guarda-costas de Alexius, o tal Cassius da Calá­bria. Percebi, então, que não eram realmente marinheiros, e sim feitores, que preparavam os grilhões para prender os escravos.

         Minha chegada despertou pouco interesse. Ninguém imaginava que a pe­quena chinesa e eu fôssemos escravos, até que ouvi os passos do feitor se apro­ximando por trás e senti que um ataque se aproximava. Agachei o corpo, e um porrete de ébano zumbiu sobre minha cabeça. No instante seguinte, o bruta­montes passou a meu lado, desequilibrado pelo golpe perdido — era Cassius, o chefe dos capangas. Virei-me de frente para ele, protegendo Flor do Leste com o corpo. Ele tentou uma nova investida, mirando um soco no estômago, e dessa vez não me esquivei. Sabia que isso o deixaria ainda mais agressivo.

         O impacto atingiu o abdome, e desabei de joelhos. Em circunstâncias nor­mais, um murro daqueles não me afetaria, mas a ação do veneno reduzira por completo minha resistência. Antes que pudesse me levantar, Cassius desferiu-me uma joelhada no rosto, e caí a nocaute. Senti que dois outros feitores me levantaram pelos braços, e o brutamontes afundou-me mais duas pancadas nas costelas.

         — Quero que saiba, de antemão, que meu irmão era um legionário romano, que morreu emboscado por uma horda de bárbaros na Gália — Alexius devia ter-lhe avisado que eu era germânico, conforme Pólix o dissera. A Gália e a Germânia eram regiões distintas, mas os italianos consideravam bárbaros todos os estrangeiros. — Esteja certo de que farei de tudo para que esta seja a pior viagem de sua vida.

         Ele fez um sinal aos outros capangas, que me atiraram aos pés dos numídicos. Com a visão embaçada, tentei procurar Flor do Leste e logo senti sua mão pe­quena agarrando meu braço. O navio começou a vacilar, e o toque de um sino anunciou a partida.

         No meio da tarde, o Insula Major atingiu mar aberto, deslizando sublime sobre o manto náutico, e finalmente os marujos tiveram descanso. Alexius saiu da cabine e subiu ao tombadilho. Sentou-se em uma cadeira de cedro e olhou com firmeza para os escravos, preparando-se para proferir seu discurso. Aguar­dou, porém, um outro homem chegar, um marinheiro de meia-idade, robusto, de expressão séria, provavelmente fenício. Não vestia camisa, apenas um espesso colar de ouro, uma calça larga tingida de verde e um lenço vermelho na cabeça.

         — Muito bem — vociferou Alexius aos escravos, em latim —, não sei se todos falam a minha língua, mas pelo menos alguns entenderão o que digo. Levare­mos trinta dias para chegar a Roma, onde serão vendidos. Alguns trabalharão na lavoura, outros passarão a vida na calmaria doméstica, e os mais fortes serão encaminhados aos jogos. Vocês são a minha mercadoria, mas não hesitarei em me livrar de todos, se for preciso. Portanto, se souberem se comportar, em trinta dias poderão ver a Cidade Eterna e terão uma nova vida de paz e trabalho. A outra opção é a morte — e enfatizou essa ultima palavra. — Ficarão confinados no porão por toda a viagem e terão água e comida. O capitão Epidicus de Tiro — e apontou para o fenício mais velho, que permanecera calado no tombadi­lho — talvez precise treinar alguns de vocês para ajudar na navegação. Os volun­tários terão privilégios.

         Quando Alexius terminou, os fenícios abriram um grande alçapão, bem no meio do convés, e os feitores começaram a empurrar os escravos lá para dentro, com violência inumana. O buraco levava ao porão e tinha dois metros de altura. Alguns caíam de mau jeito e machucavam as pernas. Eu já me preparava para pular, com Flor do Leste nos braços, quando escutei a voz morosa do traficante:

         — Você desce, bárbaro. A menina ficará em minha cabine.

         Cassius tentou tomar a garota dos meus braços, mas me esquivei e a pus no chão, em segurança. O brutamontes se animou, porque aquilo justificaria uma nova sessão de pancadas.

         — A coragem dos bárbaros é ultrajante — desdenhou o gordo, enquanto o grandalhão erguia o cassetete. A dureza do ébano atingiu minha testa. Cambaleei para o lado, mas permaneci de pé.

         — Ele é persistente — constatou o calabrês, e com um chute acertou-me o joelho. Um outro golpe alcançou-me a nuca, e tombei. Uma vez no chão, fui alvo de muitos pontapés, desferidos por mais de um inimigo.

         Quando pararam, vi que Cassius puxava Flor do Leste pelo braço. A brutalidade do capataz fez ferver meu sangue, e minha natureza de querubim empurrou-me ao ataque. Reunindo a pouca energia que ainda me restava, levantei-me cruzei a área ameaçada pelos feitores e investi contra Cassius com um soco. O murro estourou em seu peito, e o grandalháo foi atirado para longe. O cor­panzil chegou a elevar-se do piso, e caiu rolando nas tábuas do convés, para ser detido pela amurada do barco.

         Fez-se um silêncio medonho, e Alexius deu um passo para trás, com os olhos esbugalhados quase saltando para fora. Um marinheiro ajudou Cassius a se le­vantar, e ele se escorou em um cabo de sustentação das velas, tossindo para re­cuperar o fôlego.

         O susto se extinguiu como um raio, e os homens do mar superaram o es­panto. O traficante, ainda alarmado, apontou-me um dedo inquisidor:

         — Cela dos rebeldes! — ordenou aos feitores. — Os dois!

         Não me opus quando três capangas e quatro marujos me arrastaram para a proa. Um quarto homem conduziu Flor do Leste. Na parte superior da proa, um metro antes do bico, dois marinheiros abriram no chão um alçapão gradeado, que dava acesso a um compartimento minúsculo. Fora feito, imaginei, para con­servar a âncora quando o navio estivesse em curso, mas seu propósito mudara, passando a ser utilizado como solitária para os escravos mais perigosos.

         — Já que querem ficar juntos, aí ficarão — sentenciou o mercador —, e que apodreçam neste poço imundo.

         Os capatazes nos empurraram para o buraco e fecharam a grade sobre nossa cabeça, com um espesso trinco de ferro. Lá de dentro, abaixo da linha do piso, vi Alexius no convés, cuspindo no chão e dando uma ordem inflamada aos se-guranças:

         — Três dias sem água e comida. Depois disso, se estiverem vivos, vamos ver o que faremos com eles. Se o bárbaro morrer, quero que me tragam a garota.

         — O bárbaro deve morrer antes dela, patrão. Está nas últimas — comentou um homem qualquer.

         — Nessas condições ele perece em dois dias — devolveu Alexius. — Conheço bem a resistência desses selvagens, e não é infinita — coaxou e deixou o castelo de proa.

         Desanimado, abracei Flor do Leste. Sentado, minha cabeça roçava na grade, e me sentia espremido como massa de pão. Não havia como me levantar.

         — Três dias sem comida... — lamentei em voz baixa, para só a chinesa escutar.

         Ela fez um sinal de silêncio, como se ocultasse um segredo. Esperou alguns segundos e, quando viu que não éramos mais observados, abriu a mochila, mos­trando-me algumas sementes de romã que guardara enroladas num pano. Tam­bém tinha um pouco de água em um cantil, além das ervas e dos aparatos me dicos que comumente levava.

         — Não sei se isto vai dar para nós dois, pequenina, mas obrigado — sorri. Ela fez uma expressão otimista, e assenti. Em meio ao balançar do navio,

abracei-a ainda mais forte, porque a tarde ia caindo, e um vento gelado casti­gava o navio.

 

 

 

                                                                             CONTINUA

 

 

 

Morte em Alto-Mar

         Três longos dias se passaram, durante os quais fomos espiados de perto por um homem armado de porrete e espada. Não vi mais o rosto de Cassius, embora tivesse pensado, inicialmente, que ele próprio nos vigiaria.

         As noites se tornavam mais frias à medida que nos afastávamos do continente c nos embrenhávamos na isolação marinha. Presos no compartimento da proa, Flor do Leste e eu recebíamos as lufadas mais geladas da madrugada primaveril, e meu vigor renovado, restaurado pelo tratamento de ervas, minguou-se nova­mente.

         No terceiro dia, a despeito das sementes de romã, desfaleci duas vezes. Pas­sei a noite imóvel, tão esgotado estava meu corpo. Foi então que, na manhã do quarto dia, ouvi os capangas conversando. Apostavam uns contra os outros que eu já estava morto e, conforme ordenado, abriram a cela para retirar Flor do Leste. Ouvi o trinco correndo, mas não pude reagir de imediato. O guarda que nos vigiava era mais jovem que Cassius, mas dotado de igual crueldade. Forte c alto, rinha cabelos loiros e curtos, e a barba malfeita lembrava a de seu dire-tor. Os marinheiros o chamavam de Titus e, apesar de esse nome ser tipicamente romano, eu não tinha certeza se era mesmo de Roma. O feitor levantou o al­çapão e puxou a menina pelo braço. Ela procurou reagir, mas estava fraca. Títus a arrastou para o convés, sem muita dificuldade. Mais uma vez, tentei me erguer, mas ainda não conseguia uma resposta dos músculos.

 

 

 

 

         — Ela se debate como um inseto — ouvi o guarda dizer, com uma gargalhada tão sonora quanto perversa.

         Um sujeito estufado, apelidado de Olho de Peixe, perguntou em latim:

         — E o bárbaro? Morreu, afinal?

         Titus, ainda imobilizando a garota, espiou novamente o buraco, bem no instante em que eu levantava a cabeça. Não fui capaz de distingui-lo de pronto, em meio à desordem que me nublava a mente.

         — Quase, Olho de Peixe, quase. Vou dar cabo do miserável de uma vez. De­pois podemos nos divertir com a menina.

         Enquanto me erguia, escorando-me sem rumo nas paredes sujas da cela, Titus passou a pequena à guarda de um segundo feitor, que a travou com os bra­ços possantes. Meu esforço foi poupado quando o capanga me arrancou para fora, com um puxão. Um golpe de bastão explodiu em minhas costelas. Olhei ao redor, mas nada avistei, apenas um borrão vacilante. Escutei, porém, os gritos dos marujos, excitados por assistir à peleja.

         Um outro impacto assaltou-me a cabeça, perto do ouvido, e segurei-me à amurada, para não esmorecer outra vez.

         — Esse bárbaro não sangra? — berrou alguém, sedento pelo linchamento.

         — Não o poupe, Titus! — incentivou outro.

         — Queremos o sangue do selvagem! — esbravejou um terceiro.

         Estimulado por tão inflamada torcida, o capanga apertou-me o pescoço e sacou o gládio da bainha. Notei que a espada tinha o escudo do exército, então deduzi que...

 

                                                                               Eduardo Spohr 

 

 

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