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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A BESTA / J. R. Ward
A BESTA / J. R. Ward

 

 

 

                                                            Irmandade da "Adaga Negra"                                                                 

 

 

 

 

Nada era como costumava ser para a Irmandade da Adaga Negra. Depois de evitar a guerra com os Sombras, alianças mudaram e linhas foram desenhadas. Os assassinos da Sociedade Lesser estão mais fortes do que nunca, aproveitando-se da fraqueza humana para adquirir mais dinheiro, mais armas, mais poder. Mas enquanto a Irmandade se prepara para um ataque total pra cima deles, um dos seus luta uma batalha dentro de si mesmo...
Para Rhage, o Irmão com o maior dos apetites, mas também o maior coração, a vida era suposta ser perfeita — ou pelo menos, perfeitamente agradável. Mary, sua adorada shellan, está ao seu lado, e seu Rei e seus Irmãos estão prosperando. Mas Rhage não pode entender — ou controlar — o pânico e insegurança que o afligem...
E isso o aterroriza — como também a distância entre ele e sua companheira. Depois de sofrer um ferimento mortal em batalha, Rhage deve reavaliar suas prioridades — e a resposta, quando se trata dele, balança seu mundo... E o de Mary. Mas Mary está em uma jornada própria, uma que vai fazê-los ou se aproximar mais ou causar uma divisão que não vai ter como recuperar...

 

 


 

 


Capítulo UM
INTERNATO PARA GAROTAS BROWNSWICK, CALDWELL, NOVA YORK
Formigamento por seu corpo inteiro.
Ao transferir seu peso de uma bota para outra, Rhage sentiu como se sua corrente sanguínea estivesse começando a fervilhar e as bolhas o pinicassem por baixo de
cada centímetro quadrado de sua carne. E isto não era nem o começo. Fibras aleatórias de músculos despertaram ao longo de todo o seu corpo, os espasmos fazendo seus
dedos tremerem, os joelhos bambearem e os ombros tensos, como se a ponto de um ataque com a força e foco de uma raquete de tênis ao atingir uma bola.
Pela milésima vez desde que tinha se materializado para aquela posição, ele varreu com o olhar o terreno mal cuidado com mato excessivamente grande à sua frente.
Antigamente, quando o internato para garotas Bronswick ainda era uma instituição em funcionamento, sem dúvida o terreno à sua frente devia ser um gramado mantido
bem cortado durante a primavera e verão, no outono diariamente limpo de folhas e belamente coberto de neve no inverno, digno de um livro de histórias infantis. Agora,
como um campo de futebol saído do inferno, cravejado e emaranhado por arbustos retorcidos, capazes de mais do que somente danos estéticos à região testicular de
um cara; mudas que pareciam filhas adotivas, feias e disformes, de carvalhos e bordos mais maduros e o mato marrom crescido de fins de outubro, eram capazes de te
fazer tropeçar como um filho da puta se tentasse correr.
Da mesma forma, o prédio que fora construído para abrigar e prover espaço de convivência e instrução aos frutos de uma elite privilegiada, envelheceram mal, carentes
de manutenção regular: janelas quebradas, portas apodrecidas, persianas destruídas e oscilando ao vento frio, como se os fantasmas fossem incapazes de se decidirem
se desejavam ser vistos ou somente ouvidos.
Era o campus do filme Sociedade dos Poetas Mortos. Supondo que todo mundo tenha feito as malas depois da gravação do filme em 1988, picado a mula e nunca mais ninguém
tenha modificado uma porra de coisa por lá desde então.
Mas o prédio não estava vazio.
Ao respirar fundo, o reflexo de deglutição de Rhage executou uma porção de tropeços no fundo de sua garganta. Tantos lessers se escondiam nos cômodos abandonados
que era impossível isolar individualmente os cheiros que golpeavam suas narinas. Cristo, era como enfiar a cara dentro um balde cheio de restos orgânicos e inalar
como se estivesse prestes a acabar todo o oxigênio do mundo.
Supondo que alguém tivesse adicionado talco de bebê ao costumeiro resto diário de cabeças e tripas de peixe.
Para dar aquele toque final, sacou?
Quando sua pele foi atacada por uma nova rodada de arrepios, ele disse à sua maldição para sossegar o facho, puta merda, que ele logo ia liberá-la. Não ia nem tentar
impedir que a maldita saísse – não que tentar puxar o freio funcionasse em qualquer circunstância ou de qualquer forma – mesmo que dar à fera liberdade total nem
sempre fosse uma coisa boa, esta noite ela seria uma vantagem imensa. A Irmandade da Adaga Negra estava a ponto de encarar quantos lessers? Cinquenta? Cento e cinquenta?
Havia muito a fazer, mesmo para eles – então, sim, seu pequeno... Presente... Da Virgem Escriba seria muito útil.
Por falar em chamadas de longa distância... Há mais de um século, a mãe da raça havia lhe dado sua própria bomba relógio, um programa de melhorias tão oneroso, tão
desagradável, tão incapacitante, que era de fato capaz de trazê-lo da beira da babaquice total, de volta à normalidade. Por cortesia do dragão, a menos que controlasse
seus níveis de energia e moderasse suas emoções, o inferno recaía sobre a terra.
Literalmente.
Sim, ao longo do último século, ele tinha se tornado altamente bem-sucedido em garantir que a coisa não comesse seus amigos ou que os fizesse aparecer no noticiário
noturno com a manchete “Jurassic Park existe de verdade”. Mas com o que ele e seus irmãos estavam prestes a enfrentar – e devido ao isolamento deste campus? Se tivessem
sorte, o grande bastardo de escamas roxas com os dentes de serra elétrica e barriga sem fundo conseguiria seu banquete. Mas só teria acesso a uma dieta balanceada,
baseada somente em lessers.
Sem petiscar os Irmãos, por favor. E sem rocamboles ou tortas de humanos, muito, muito obrigado.
Este último, mais por discrição do que afeição. Era notório que aqueles ratos sem rabo não desgrudavam de duas coisas: meia dúzia de seus amiguinhos, noturnamente
co-dependentes e evolucionariamente inferiores, e seus malditos telefones celulares. Cara, o YouTube podia ser um pé no saco quando só o que se queria era manter
por baixo dos panos uma guerra contra os mortos. Por quase dois mil anos, a luta dos vampiros contra a Sociedade Lessening não tinha sido problema de mais ninguém
além dos combatentes envolvidos, e o fato de que os humanos não conseguiam se ater a cuidar de seus próprios assuntos, tipo suas competências de arruinar o meio-ambiente
e dizer uns aos outros o que pensar e dizer, era somente uma das razões para odiá-los.
Internet do caralho.
Avaliando os arredores a fim de evitar soltar a fera cedo demais, Rhage fixou o olhar em um macho dando cobertura a uma distância de mais ou menos seis metros. Assail,
filho de Foda-se-lá-quem, usava preto dos pés à cabeça como alguém de luto, seus cabelos, escuros como os do Conde Drácula, não requeriam camuflagem adicional, seu
rosto pecaminosamente belo estava tão contraído pela ansiedade de matar que era preciso dar um crédito ao cara. Ele estava sendo de muita ajuda. E tinha mudado completamente
de direção. O traficante de drogas tinha se juntado à Irmandade, cumprindo a promessa de cortar relações comerciais com a Sociedade Lessening ao depositar a cabeça
do Fore-lesser dentro de uma caixa, aos pés de Wrath.
E também revelou este local que os assassinos vinham usando como quartel general.
E era por isto que todo mundo tinha acabado aqui, enterrado até a cintura em mato alto, esperando que a contagem regressiva de seus relógios V-sincronizados chegasse
logo a 00h00min.
Este ataque não era coisa pequena, era uma abordagem de grosso calibre ao inimigo. Depois de algumas noites – e dias, graças a Lassiter, também conhecido por 00-CUZÃO,
que havia feito reconhecimento do local durante as horas de sol – o ataque foi adequadamente coordenado, ensaiado e preparado para ser posto em prática. Todos os
guerreiros estavam aqui: Z e Phury, Butch e V, Tohr e John Mattew, Qhuinn e Blay, além de Assail e seus dois primos, Presas I e II.
Quem ligava para seus nomes, contanto que aparecessem armados e com muita munição?
A equipe médica da Irmandade também estava na área preparada para agir, com Manny em sua unidade cirúrgica móvel a um quilômetro e meio de distância, e Jane e Ehlena
em uma das vans, num raio de três quilômetros.
Rhage verificou o relógio. Seis minutos e contando.
Quando seu olho esquerdo começou a tremelicar, praguejou. Como caralhos conseguiria esperar por tanto tempo?
Expondo as presas, exalou pelo nariz, soprando correntes gêmeas de respiração condensada muito parecidas com as que antecedem o ataque de um touro.
Cristo, não conseguia se lembrar da última vez em que esteve tão tenso. E não queria pensar no motivo. De fato, vinha evitando a coisa toda do por que há quanto
tempo?
Bem, desde que ele e Mary chegaram àquela fase estranha e ele tinha começado a sentir...
— Rhage.
Seu nome foi sussurrado tão baixinho que ele se voltou por não saber ao certo se era o seu subconsciente decidindo começar um papo com ele. Não, era Vishous – pela
expressão do irmão, Rhage teria preferido ter desenvolvido dupla personalidade. Aqueles olhos diamantinos flamejavam uma luz sombria. E aquelas tatuagens ao redor
das têmporas também não ajudavam.
O cavanhaque era neutro – a menos que o avaliasse como quesito de estilo. Neste caso, o filho da puta era uma caricatura de proporções épicas.
Rhage meneou a cabeça. — Você não devia estar na sua posição...
— Tive uma visão sobre esta noite.
Ah, inferno, não, Rhage pensou. Não, não faça isto comigo agora, mano.
Virando as costas, murmurou. — Me poupe dessa coisa de Vincent Price, está bem? Ou está ensaiando para ser o cara que faz as narrações dos trailers de filmes...?
— Rhage.
— ... Pois você leva jeito pra isto. Em um mundo... Onde pessoas devem... Calar a boca e fazer seu serviço...
— Rhage.
Ao ver que ele não ia se voltar para olhá-lo, V se aproximou e o encarou, aqueles olhos pálidos pra cacete, um par de explosões nucleares gêmeas, daquelas que levantam
um nuvem em forma de cogumelo, para frente e para trás. — Quero que vá pra casa. Agora.
Rhage abriu a boca. Fechou. Abriu de novo – e teve de lembrar a si mesmo de manter a voz baixa.
— Ouça, não é uma boa hora para essa merda psíquica...
O Irmão agarrou seu braço e apertou. — Vá pra casa. Não estou brincando.
Terror gélido varreu as veias de Rhage, abaixando sua temperatura corporal... E ainda assim conseguiu menear a cabeça novamente.
— Foda-se, Vishous. Sério mesmo!
Ele não tinha o menor interesse de pôr mais nada daquela magia da Virgem Escriba em cheque. Ele não ia...
— Você vai morrer esta noite, porra.
Quando o coração de Rhage falhou uma batida, ele olhou para aquele rosto que conhecia a tantos anos traçando aquelas tatuagens, os lábios comprimidos, as cerradas
sobrancelhas escuras... E a inteligência radiante geralmente expressada através de um filtro de sarcasmo, afiado como a espada de um samurai.
— Sua mãe me deu a palavra dela. – Disse Rhage. Espere, estava realmente falando sobre bater as botas? — Ela me prometeu que quando eu morresse Mary iria comigo
para o Fade. Sua mãe disse...
— Foda-se a minha mãe. Vá pra casa.
Rhage desviou o olhar porque foi necessário. Era isto ou sua cabeça explodiria. — Não vou abandonar os irmãos. Não vai acontecer. Primeiro, você pode estar errado.
Sim, e quando foi a última vez que aquilo aconteceu? No século dezoito? Dezessete?
Nunca?
Ele falou para V.
— Segundo, não vou fugir correndo do Fade. Se começar a pensar assim vou morrer, mesmo com a arma na mão. – Ele ergueu a mão até a altura daquele cavanhaque para
evitar que o irmão o interrompesse. — E pra terminar? Se eu não lutar esta noite, não vou conseguir sobreviver ao dia de amanhã, trancado na mansão... Não sem meu
amiguinho roxo sair para o café da manhã, almoço e jantar, sacou?
Bem, havia uma quarta coisa. E era racional... Ruim, tão ruim que não conseguia encará-la por mais do que a fração de segundo necessária para ela surgir em sua mente.
— Rhage...
— Nada vai me acontecer. Está tudo sob controle.
— Não, não está – sibilou V.
— Está bem. – Rhage rosnou, endireitando o corpo. — E daí se eu morrer? Sua mãe deu à minha Mary a graça final. Se eu for para o Fade, Mary vai me encontrar lá.
Não tenho de me preocupar de me separar dela. Ela e eu ficaremos perfeitamente bem. Quem vai se importar de verdade se eu bater as botas?
V endireitou-se também.
— Você não acha que os Irmãos ligam? Sério? Muito obrigado, seu cuzão filho da puta.
Rhage verificou o relógio. Faltavam dois minutos.
Bem pareciam dois mil anos.
— E você confia em minha mãe, – Rosnou V — em algo tão importante. Nunca pensei que fosse tão ingênuo.
— Ela conseguiu me dar a porra de um alter ego T. Rex! Isto inspira uma credibilidade boa pra cacete.
De repente, sons de inúmeros pássaros soaram na escuridão que os rodeava. Qualquer um acharia que devia ser somente um bando de corujas noturnas piando ao luar.
Maldição, os dois estavam gritando.
— Não importa, V. – Sussurrou ele. — Você é inteligente pra caralho, preocupe-se com sua própria vida.
Seu último pensamento consciente antes do cérebro entrar em modo de A Hora Mais Escura e nada mais se registrar além da agressividade, foi sua Mary.
Ele visualizou a última vez em que estiveram sozinhos.
Era um ritual dele antes de enfrentar o inimigo, um talismã mental que esfregava em busca de boa sorte, e esta noite visualizou o modo como ela tinha ficado em pé
em frente ao espelho do quarto deles, aquele sobre a mesinha de apoio onde mantinham os relógios e chaves, as joias dela e os pirulitos dele, e os celulares.
Ela estava na ponta dos pés debruçada sobre a mesa, tentando colocar um brinco de pérola no lóbulo da orelha sem conseguir encontrar o furo. Com a cabeça virada
para o lado, seus cabelos castanhos escuros flutuavam sobre o ombro e o faziam querer enfiar a cara naquelas ondas recém-lavadas. E isto não era nem metade do que
o impressionava nela. O ângulo reto de seu maxilar capturava e refletia a luz da arandela na parede, e a blusa de seda cor creme, que descortinava sobre seus seios,
enfiada dentro da cintura estreita, e as calças moldavam seu corpo magro. Nenhuma maquiagem. Sem perfume.
Seria como tentar retocar a Mona Lisa ou atingir um botão de rosa com um jato de Bom Ar.
Havia centenas de milhares de pequenos detalhes nos atributos físicos de sua companheira, e nenhuma frase, nem mesmo um livro inteiro, passaria perto de descrever
sua presença.
Ela era o relógio em seu pulso, o assado quando tinha fome, o jarro de limonada quando tinha sede. Ela era sua igreja e seu coral, a montanha de sua escalada, a
biblioteca de sua curiosidade e cada nascer ou por do sol que já houve ou jamais haverá. Com um olhar ou a sílaba de uma palavra, ela tinha o poder de transformar
seu humor, levando-o às nuvens, mesmo com os pés firmes no chão. Com um único toque, ela conseguia acorrentar seu dragão interior ou fazê-lo gozar sem ele nem mesmo
estar de pau duro. Ela era todo o poder do universo compactado em uma criatura viva, o milagre que lhe tinha sido concedido, apesar dele há longo tempo não merecer
nada além de maldições.
Mary Madonna Luce era a virgem que Vishous dissera que estava em seu caminho – e era mais do que suficiente para transformá-lo em um vampiro temente a Deus.
Por falar nisto...
Rhage avançou sem esperar o sinal de “Já” de sua equipe. Correndo pelo campo, trazia as duas armas erguidas à sua frente e combustível Premium aditivado percorrendo
os músculos de suas pernas. E não, ele não parou para ouvir os irmãos praguejarem de frustração quando rompeu a cobertura e partiu cedo demais para o ataque.
Estava acostumado aos garotos emputecidos com ele.
Era muito mais difícil lidar com seus próprios seus demônios do que os irmãos.
LUGAR SEGURO, ESCRITÓRIO DA MARY
Ao desligar o telefone, Mary Madonna Luce manteve a mão sobre a superfície lisa do receptor. Como muitos dos equipamentos e móveis do Lugar Seguro, ele tinha mais
de uma década de uso, era um AT&T doado por alguma companhia de seguro ou talvez de uma corretora imobiliária, depois de ser trocado por algo mais moderno. O mesmo
com a mesa. A cadeira. Até o tapete sob seus pés. No único abrigo contra violência doméstica contra fêmeas e crianças da raça, cada centavo que saía das generosas
doações do Rei era gasto com o apoio, tratamento e reabilitação das pessoas que precisavam.
As vítimas eram admitidas gratuitamente. E ficavam na casa grande e cheia de cômodos por quanto tempo fosse necessário.
A folha de pagamento era, é claro, a maior despesa... E com notícias como a que tinha acabado de chegar pelo telefone, Mary ficava verdadeiramente agradecida pelas
prioridades de Marissa.
— Foda-se, morte. – Sussurrou ela. — Foda-se mesmo, muito, muito mesmo.
O ruído que sua cadeira emitiu quando se inclinou para trás lhe causou um estremecimento, mesmo acostumada a ele.
Olhando para o teto, sentiu uma vontade arrebatadora de entrar em ação, mas a primeira regra de qualquer terapeuta era que era preciso controlar suas próprias emoções.
Despreparo e agitação não fazia bem algum aos pacientes, e contaminar uma situação já estressante com drama pessoal por parte do profissional era totalmente inaceitável.
Se houvesse tempo, procuraria um dos outros assistentes em busca de ajuda, para esclarecer o curso de suas ações com questionamentos técnicos a fim de sentir-se
novamente centrada e permanentemente composta. Dado o rumo dos acontecimentos, tudo o que tinha era tempo para uma das respirações profundas, típicas de Rhage.
Não, não do tipo sexual.
Mais do tipo ioga, que o fazia inflar os pulmões em três puxadas de ar, prender o oxigênio e então soltá-lo, junto com a tensão em seus músculos.
Ou tentar liberar a dita tensão.
Está bem, isto não estava ajudando em nada.
Mary levantou-se e teve de se contentar com dois “quase lá” no quesito compostura: um, ajeitou a blusa de seda e correu os dedos pelos cabelos, que estava deixando
crescer; e dois, recobriu suas feições com uma máscara digna de Halloween, congelando tudo em um semblante de preocupação, calorosa e sem nenhuma indicação de estar
surtando com seu próprio trauma passado.
Ao sair para o corredor do segundo andar, o cheiro de chocolate e açúcar de confeiteiro, manteiga e farinha anunciava que a Noite dos Biscoitos estava a pleno vapor
– e por um momento insano, sentiu vontade de abrir todas as janelas para deixar o ar gelado de outubro levar aquele cheiro para fora da casa.
O contraste entre aquele conforto doméstico e a bomba que estava a ponto jogar parecia desrespeitoso, na melhor das hipóteses, uma parte a mais da tragédia, na pior.
O Lugar Seguro era uma construção de três andares da virada do século XX, apenas teto e quatro paredes, com toda a graça e distinção de um saco de pão. O que ele
tinha na verdade eram quartos e banheiros em abundância, uma cozinha funcional e privacidade suficiente para que o mundo humano nunca tivesse a menor indicação de
que os vampiros usavam a coisa à sua revelia. E então veio a expansão. Depois da morte da Wellsie, Tohr tinha feito uma doação em seu nome, o Anexo Wellesandra foi
construído nos fundos por uma equipe vampira de construção. Agora eles contavam com uma sala de convivência, uma segunda cozinha, grande o bastante para que todo
mundo se sentasse junto para comer, e mais quatro suítes para as adicionais fêmeas e seus filhos.
Marissa dirigia a instalação com coração compassivo e mentalidade fantasticamente logística, e com sete conselheiros, inclusive Mary, eles executavam um serviço
útil e cheio de significado.
Isto sim, às vezes partia seu coração ao meio.
A porta para o sótão não emitiu ruído algum quando Mary a abriu porque ela mesma tinha passado óleo nas dobradiças há algumas noites. As escadas, no entanto, rangeram
ruidosamente à sua subida, as velhas placas de madeira reclamando e guinchando, por mais que ela tentasse pisar o mais leve possível.
Era impossível não sentir-se um tipo de Mensageira da Morte.
No andar acima, a luz amarela das luminárias de latão no teto destacavam os tons avermelhados, tanto dos centenários lambris sem pintura quanto da passadeira trançada
que percorria o estreito corredor. No final dele, havia uma abertura oval e a iluminação, em tons rosados da luz exterior de segurança acima, derramava para dentro
e era dividida em quadrantes pelas divisões de seus painéis.
Das seis suítes, cinco portas estavam abertas.
Ela se dirigiu até a que estava fechada e bateu. Ao ouvir um suave “Olá?” entreabriu a porta e enfiou a cabeça.
A garotinha sentada em uma das duas camas estava penteando os cabelos de uma boneca com uma escova a qual faltavam várias cerdas. Seus cabelos longos e castanhos
estavam presos para trás em um rabo de cavalo, e o vestido folgado era feito a mão, de um tecido azulado muito gasto, mas com costuras feitas para durar. Seus sapatos
estavam gastos, ainda que amarrados cuidadosamente.
Ela parecia muito pequena no que já não era um lugar muito grande.
Abandonada contra sua vontade.
— Bitty?
Levou um momento até os olhos castanhos claros se erguerem.
— Ela não está bem, está?
Mary engoliu em seco.
— Não, querida. Sua mahmen não está bem.
— É hora de me despedir dela?
Depois de um momento, Mary sussurrou.
— Sim... Receio que sim.
Capítulo DOIS
— Isso só pode ser brincadeira, porra!
Quando viu o massivo corpo do Hollywood e a bosta da sua cabeça estúpida avançar em direção aos alojamentos, Vishous quase correu atrás só para poder acabar com
a raça do irmão. Mas nããããããããããão.
Não era possível estender a mão e catar uma bala depois que o gatilho era apertado.
Mesmo que se estivesse só tentando salvar um idiota da sepultura.
V assoviou alto, mas não era como se o resto dos guerreiros não tivessem visto também as costas do cretino distanciarem-se como um morcego fugido do inferno.
Membros da Irmandade e os outros machos explodiram fora de suas posições por trás das árvores e construções, assumindo formação de asa atrás de Rhage, de armas e
adagas empunhadas. Gritos do inimigo anunciaram que o ataque foi percebido quase imediatamente, e eles chegaram a somente meia distância do objetivo quando os lessers
começaram a jorrar pelas portas, feito vespas de uma colméia.
Muita aglomeração? Pops ocos espocavam quando Rhage descarregava sua arma por todo o canto atingindo assassinos na cara, suas balas de grosso calibre explodindo
a parte de trás daqueles crânios e derrubando os mortos-vivos em emaranhados de braços e pernas irrequietos. O que era bom – mas possivelmente não iria durar, já
que os assassinos tentavam se aproximar do cara por trás, a fim de isolá-lo e criar uma segunda linha de frente contra o resto dos irmãos.
Obrigado, Sr. Apressadinho e sua ejaculação precoce, por arruinar o plano sobre o qual se debruçaram por noites a fio.
Instalou-se o caos total, o que era de se esperar, ao contrário da ação de Rhage: do mesmo modo que era possível garantir que cada combate corporal iria eventualmente
acabar no chão, era possível garantir que mesmo o ataque melhor planejado iria, depois de um tempo, cair na área do: “Puta merda” e “Cagou a porra toda”. Se tivesse
sorte, aquela inevitabilidade levaria um tempo para lhe despencar na cabeça, e até que acontecesse, o inimigo teria baixas incapacitantes.
Mas não com Hollywood por perto.
Oh, e a propósito, quando alguém diz que você vai morrer esta noite, que tal não correr direto para uma quantidade de inimigos que beirava os três dígitos? Seu filho
da puta de merda.
— Eu estava tentando salvá-lo! – V gritou em meio à ação. Só por que agora ele podia, já que não precisavam mais manter suas presenças ocultas.
Rhage era tão impulsivo. E sabendo disto, V devia ter confrontado o idiota lá na mansão antes de saírem, mas esteve distraído demais cuidando de suas próprias coisas
para se concentrar na visão. Não foi até chegarem ao campus abandonado e ele piscar algumas vezes... Que percebeu, sim, era ali que aconteceria para Rhage. Esta
noite. Neste campo.
Não revelar seria como colocar ele mesmo uma bala no cara.
É claro, dizer algo tinha funcionado tão bem.
— Foda-se, Hollywood! – Gritou ele. — Eu vou te pegar!
Pois ele ia tirar aquele puto daquele lugar nem que fosse a última coisa que faria.
V não atirou até estar a cerca de três metros de distância do primeiro alvo – era isto ou correr o risco de atingir um dos irmãos ou outro aliado. O lesser que mirou
tinha cabelos e olhos escuros e aquela agressão típica de um urso pardo: ataque direto com uma porção de cuspidelas. Uma bala acertou no olho direito e o bastardo
caiu.
Não dava tempo de apunhalar a coisa de volta ao Ômega. Vishous passou por cima do pedaço de carne que ainda se remexia sem sair do lugar e mirou o próximo. Identificando
um assassino louro a cerca de quatro metros e meio de distância à esquerda, rapidamente avaliou a periferia para ter certeza de que a Irmandade não estava sendo
destroçada. Então, usando o dedo coberto pela luva, escolheu o cara que parecia o Rod Stewart dos anos 80.
De três ao infinito, V atingiu tudo o que parecia seguro derrubar, certificando-se de não acertar seus aliados. Uns duzentos metros de corrida estilo videogame mais
tarde, alcançou tanto cobertura quanto perigo: o primeiro dos alojamentos, que o plano original era emboscar. A maldita coisa era uma concha vazia com muitos locais
para se esconder que somente um idiota acharia estarem vazias, e ele teve cuidado em monitorar seus arredores ao caminhar cuidadosamente com as costas voltadas contra
a parede, abaixando-se debaixo de janelas, passando por cima de arbustos baixos.
O fedor de algodão doce/carne podre dos lessers o golpeava por todos os lados, espiralando ao redor devido ao vento gelado que misturava tudo em uma salada de guerra
com os ecos de disparos de armas e os gritos do inimigo. A raiva que fervilhava em suas entranhas o fez avançar, ao mesmo tempo em que o mantinha focado, enquanto
tentava derrubar alvos sem ser atingido.
Assim que alcançasse Rhage, derrubaria o maldito rei da beleza no chão.
Supondo que o destino não derrubasse o filho da puta primeiro.
O lado bom era que, com o Fore-lesser fora da jogada, a resposta da Sociedade Lessening não parecia mais coordenada do que o ataque da Irmandade, e o fato do inimigo
estar pobremente armado e pateticamente destreinado era outra vantagem. Parecia haver uma média de cinco lessers armados para cada irmão, e uma média de um para
dez guerreiros competentes – e dado os números? Aquilo bem que poderia ser o que salvaria seus traseiros.
Esquerda, pop! Direita, pop! Esquivar, cair e rolar. Levantar-se e continuar a correr. Mais dois assassinos derrubados – obrigado, Assail, seu filhodaputa maluco
– pop! Bem na sua frente.
A magia aconteceu entre cerca de cinco minutos e cinquenta mil anos de luta. Sem aviso, sentiu-se separar-se de seu corpo, desfazendo-se da carne que funcionava
de forma tão rija e com tanta eficiência, seu espírito flutuando acima da adrenalina que incendiava seus braços e pernas, sua essência testemunhando-o cobrir distâncias
e impulsionando-o a frente de uma posição acima de seu ombro direito.
Era a zona, geralmente algo que o arrebatava assim que começava a lutar. Mas com Rhage sob sua pele, grudado em seu traseiro e fodendo sua cabeça, a merda estava
atrasada para a festa.
E foi por causa dessa sua perspectiva acima do quadro, que notou primeiro o dilema que se armava.
Às vezes o contra-intuitivo, o QUEPORRAÉESSA, o agir contra a corrente, era tão importante quanto todas as coisas que se esperava ver em uma batalha.
Tipo, por exemplo, três figuras correndo lateralmente ao longo daquele show de horrores rumo à saída. É claro, podiam ser lessers que amarelaram e fugiam — exceto
por um detalhe: o sangue do Ômega em seus corpos era um puta rastreador GPS, e ter de contar para aquele tipo de chefe, que tinha amarelado e picado a mula de uma
briga daquelas, seria garantia do tipo de tortura que faria o inferno parecer um passeio no campo.
Maldição, não podia permitir que eles se fossem. Não quando poderiam acabar chamando os tiras e adicionando outra camada de merda jogada naquele ventilador.
Se é que aquilo já não tinha sido feito.
Praguejando, Vishous foi atrás dos três desertores, desmaterializando-se para a área a frente onde o trio estava se dirigindo. Ao retomar forma, descobriu que eram
malditos humanos, mesmo antes de conseguir ver que aquele que estava por último corria de costas com o que, sem dúvida, era uma porra da Apple, um pedaço de merda
iConformista, apontando e mirando, evidentemente gravando um vídeo.
Ele positivamente odiava qualquer coisa com o símbolo da Macintosh.
V pulou, interceptando o caminho do cara, o que, é claro, não foi notado pelo J.J. Abrams, por que, olá, ele estava ocupado demais filmando tudo.
Vishous meteu o pé, e enquanto o humano obedecia à lei da gravidade, o celular voou e V pegou a coisa, enfiando-a no bolso da jaqueta.
O próximo passo foi pisar no esterno do cara e enfiar a arma na sua cara. Baixando o olhar para a expressão de “Puta Merda” e o choramingo gaguejado que o cara soltava,
V precisou de todo seu autocontrole para não rasgar a garganta dele, e então ir para cima dos outros dois que continuavam a correr, tal qual Jason Voorhees. Ele
estava acima disto com humanos. Tinha trabalho de verdade pra fazer, mas nããããão, ele estava de novo limpando a bunda destes ratos sem rabo para que o resto deles
não ficassem bravinhos por saberem que vampiros existiam entre eles.
— N-n-n-n-ão me m-m-m-m-machuque – gaguejou o cara. Junto com o cheiro de urina quando o cara mijou nas calças.
— Você é patético pra caralho.
Praguejando de novo, V acessou rapidamente a mente do cara para ter certeza de que não tinham chamado a polícia – a resposta foi “não” – antes de apagar a memória
do garoto, do momento em que tinha se encontrado com os amigos para fumar maconha até quando a viagem foi interrompida pelo inferno desenfreado.
— Você teve uma viagem ruim, seu cuzão. – Murmurou V. — Viagem ruim. Isto tudo é só uma porra de uma viagem ruim. Agora corra de volta para o papai e a mamãe.
Como o bom brinquedinho programado que agora era, o garoto levantou-se sobre seus antiquados tênis Converse e disparou atrás dos amigos, com uma expressão de confusão
total no rosto enrubescido.
Vishous deu outro pulo à frente e interceptou Frick e Frack. E, quem diria, a mera presença de V se materializando do nada à frente deles foi suficiente para deixá-los
em pânico – os dois congelaram no lugar como cães acorrentados ficando sem espaço na corrente, com um puxão para trás, esvoaçando suas parkas combinando.
— Vocês cuzões estão sempre no lugar errado na hora errada.
Mentalmente apagou suas memórias e os revistou, esvaziando seus bolsos ao mesmo tempo em que os cérebros – então os mandou retomar a fuga, rezando para que um ou
outro não tivesse alguma doença cardíaca não diagnosticada que subitamente disparasse sob tensão, matando-o instantaneamente.
Mas até aí, V era um bastardo malvado, então tudo bem.
Não havia tempo a perder. Voltou a tentar alcançar Rhage, sacando novamente suas armas e buscando uma maneira mais eficiente de chegar até o filho da puta. Que pena
que desmaterializar-se direto no meio do entrevero estava fora de cogitação, mas merda, tinha arma demais apontando para cada direção naquele quadrante. Ao menos
a necessária cobertura veio rápido, primeiro em uma série de árvores de bordo e então na forma de um prédio que devia ser ainda outro alojamento.
Batendo as costas contra os tijolos frios e duros, seus ouvidos se aguçaram ante o som de sua respiração pesada. Os disparos mais intensos estavam à sua esquerda,
acima e à frente, e rapidamente trocou ambos os cartuchos, mesmo que ainda houvesse três balas em um e duas no outro. Recarregado, correu na direção da quina do
prédio e espiou...
O assassino atirou na última janela sob a qual ele estava e, não fosse o ruído do caixilho, V teria sido ferido. Foi o instinto, ao invés do treinamento, que fez
seu braço se erguer e apontar para a lateral antes de ter consciência de estar se movendo, e o dedo indicador disparar meio quilo de chumbo bem nas fuças do fodido,
fazendo nuvens de sangue preto explodir da parte de trás do crânio como um vidro de nanquim caindo de uma grande altura.
Infelizmente, uma contração autônoma do aperto do assassino na arma automática que trazia na mão, causou o disparo de algumas balas e a ardência na lateral do quadril
de V mostrou que ele foi atingido, pelo menos uma vez. Mas melhor ali do que em outra parte do corpo...
Um segundo assassino surgiu da esquina e V o atingiu na garganta com a arma da mão esquerda. Aquele parecia estar desarmado, nada digno de nota, caiu na grama alta
quando a coisa agarrou a frente do pescoço para tentar conter o jorro negro.
Não havia tempo para recolher nenhuma arma ou apunhalá-los de volta ao Ômega.
À frente, Rhage estava com problemas.
No coração do campus, na área retangular formada por prédios erguidos com uns cinco acres de distância, Rhage estava no centro da atenção de uma galera da primeira
fila, composta por pelo menos vinte assassinos que o rodeavam.
— Jesus Cristo. – Murmurou V.
Não havia tempo para elaborar uma estratégia. Dã. E ninguém mais viria ajudar Hollywood. Os outros irmãos e guerreiros estavam muito ocupados, o ataque tendo se
dissipado em meia dúzia de escaramuças se desenvolvendo em diferentes quadrantes.
Não havia ninguém disponível em uma situação que bem necessitava de três ou quatro anjos salvadores. Ao invés de um que tinha um ferimento na coxa e um rancor do
tamanho do Canadá.
Maldição, ele estava acostumado a estar sempre certo, mas às vezes isto era um pé no saco.
Vishous avançou e se concentrou na lateral da briga, escolhendo assassinos enquanto tentava dar a seu irmão uma rota de escape viável. Mas Rhage... Porra, Rhage.
Ele estava, de alguma forma, totalmente imerso naquilo. Mesmo que a matemática não chegasse a resultado algum além de caixão, o maldito imbecil era de uma beleza
mortal ao lentamente girar, esvaziando as armas nos que estavam mais perto, recarregando sua automática sem perder um movimento, criando um anel de corpos que se
contorciam, meio mortos, meio vivos, como se estivesse no olho de um furacão destruidor.
A única coisa que não parecia estar sob controle? Seu belo rosto, digno de uma história infantil, estava contorcido no esgar de um monstro, a raiva assassina dentro
dele nem ao menos parcialmente contida. E isto teria sido quase aceitável.
Não fosse o fato de se esperar profissionalismo por parte dele.
Aquele tipo de emoção assassina era um comportamento amador, o tipo de coisa que te cegava ao invés de te manter focado, te enfraquecia ao invés de te tornar invencível.
Vishous trabalhou o mais rápido que pôde mirando em peitos, entranhas, cabeças, até o fedor saturar o ar livre, mesmo com o vento soprando em direção oposta. Mas
tinha de compensar o campo de tiro, sempre circular, de Rhage, tentando ficar ele próprio fora de alcance, por que tinha certeza de que o irmão não conseguiria diferenciá-lo
de seus alvos.
E esta era a porra do problema quando você entrava despreparado na luta.
E então acabou.
Mais ou menos.
Mesmo depois daqueles vinte ou vinte e cinco lessers estarem caídos no chão, Rhage ainda girava e continuava a atirar, um carrossel mortal sem passageiros em seus
cavalos demoníacos, estúpidos demais para saberem onde seu próprio botão de desligar ficar.
— Rhage! – V olhou ao redor mantendo as armas apontadas, mas sem atirar. — Seu maldito idiota! Pare!
Pop! Pop! Pop-pop!
O cano de Hollywood continuou a tossir flashes de luz mesmo que não houvesse mais alvos – exceto outros guerreiros à distância, fora de alcance naquele momento.
Mas não era garantido que permanecessem assim.
Vishous se aproximou, passando por cima dos corpos que se agitavam no chão, mantendo-se às costas de Rhage, que ainda girava.
— Rhage!
A tentação de atirar na bunda do cara foi tão forte, que sua mão direita chegou a abaixar o cano até à altura do traseiro. Mas era só uma fantasia. Dar a Hollywood
uma injeção de chumbo só dispararia a fera quando o próprio V estava ao alcance para virar seu aperitivo.
— Rhage!
Algo deve ter chegado até o irmão por que a barragem de tiros inúteis diminuiu... E então parou, deixando Rhage arfando, curvando-se de forma neutra.
Estavam tão a descoberto que ambos bem podiam ter setas de neon apontando para suas cabeças.
— Você vai sair daqui. – Rosnou V. — Está brincando comigo, porra, nessa merda...
Foi quando aconteceu.
Em um segundo, estava contornando para ficar de frente para o irmão... E no seguinte ele viu, pelo canto dos olhos, um dos lessers não-suficientemente-mortos erguer
um braço instável... Com uma arma anexada à extremidade. Quando a bala explodiu para fora daquele cano, o cérebro de V fez os cálculos de distância e ângulo tão
rápido quanto o vôo da bala de chumbo.
Direto para o peito de Rhage.
Bem no meio do peito de Rhage – por que, olá, era o maior alvo, tirando a porra da porta do alojamento do campus.
— Não! – Gritou V ao pular e se interpor no caminho.
É, pois ele morrer no lugar de Rhage seria um resultado bem melhor, né? Perder/perder, de ambos os jeitos.
Não houve dor alguma em seu vôo, nem o som ressoante da entrada de uma bala na lateral de seu corpo, seu quadril, sua outra coxa.
Por que a maldita coisa já tinha encontrado outro lar.
Rhage soltou um grunhido e suas duas armas apontaram para o céu, aquela típica compressão autônoma nos gatilhos naquelas mãos esvaziaram os cartuchos: bang, bang,
bang, bang! Para o céu, para o paraíso, como se Rhage estivesse amaldiçoando de dor.
E então o irmão caiu.
Ao contrário dos garotos do Ômega, um ferimento certeiro como aquele mataria qualquer vampiro, mesmo um membro da Irmandade. Ninguém escapava daquele tipo de merda,
ninguém.
Ao gritar de novo, V caiu em seu próprio pedaço de chão e descarregou uma de suas amas, enchendo o assassino com tanto chumbo que o fodido poderia virar um cofre
de banco.
Com a ameaça neutralizada, engatinhou até o irmão se arrastando de lado com as armas e a ponta dos coturnos. Para um macho que nunca sentia medo, ele se viu olhando
para a boca escancarada do puro terror.
— Rhage! – Disse ele. — Puta que pariu... Rhage!
Capítulo TRÊS
O novo centro médico de Havers estava localizado do outro lado do rio, em meio a uma área florestal de quatrocentos acres, intocado a não ser por uma velha fazenda
e três ou quatro quiosques recém-construídos que serviam de entrada para a instalação subterrânea. Enquanto dirigia o último trecho da viagem de vinte minutos em
seu Volvo XC70, Mary fitava seguidamente o espelho retrovisor, preocupada com Bitty.
A garota estava sentada no banco de trás do utilitário e olhava pela janela escura ao seu lado, como se fosse uma televisão transmitindo um programa viciante.
Cada vez que Mary voltava a se concentrar na estrada a sua frente, apertava o volante com mais força. E o acelerador.
— Estamos quase chegando. – Disse ela. De novo.
A afirmação pretendia ser confortadora, mas não estava fazendo bem nenhum à Bitty e Mary sabia que só tentava acalmar a si própria. A ideia de que pudessem não chegar
a tempo ao lado do leito era um fardo hipotético que não conseguia evitar de cogitar – e cara, aquela sensação de pesar e frustração a fazia sentir-se incapaz de
respirar.
— Aqui está o desvio.
Mary ligou a seta e entrou à direita, para uma via de mão única que era irregular e exatamente o que toda a sua agitação interna não precisava.
Mas também, ela bem poderia estar em uma super rodovia perfeitamente asfaltada e seu coração continuaria a parecer dançar a conga dentro do peito.
O único centro médico da raça tinha sido construído para dispersar, tanto a atenção humana quanto os efeitos impiedosos da luz do sol, e ao trazer alguém ou buscar
tratamento médico para si mesmo, era designado um dos vários pontos de entrada. Quando a enfermeira tinha ligado para dar a triste notícia, Mary foi orientada a
ir diretamente à fazenda e estacionar lá, e foi o que fez, parando entre uma caminhonete que era nova e um sedã Nissan que não era.
— Está pronta? – Perguntou pelo retrovisor ao desligar o carro.
Diante da ausência de resposta, circulou o carro até a porta de Bitty. A garota pareceu surpresa ao descobrir que já tinham chegado e as pequenas mãos remexeram
para soltar o cinto de segurança.
— Quer ajuda?
— Não, obrigada.
Bitty estava claramente determinada a sair sozinha do carro, mesmo que levasse mais tempo do que se aceitasse a ajuda. E o atraso talvez fosse intencional. A sensação
de insegurança quanto ao que aconteceria depois daquela morte era quase terrível demais para se imaginar. Sem família. Sem dinheiro. Sem educação.
Mary apontou um celeiro atrás da fazenda.
— Vamos por ali.
Cinco minutos depois, passaram por alguns pontos de controle e desceram pelo elevador, de onde saíram para uma recepção muito limpa e iluminada e uma sala de espera
que cheirava exatamente igual àquelas dos hospitais humanos: aroma artificial de limão, vaga mistura de perfume e o tênue cheiro do jantar de alguém.
Pavlov tinha razão, Mary pensou ao se aproximar da recepção central. Só era preciso aquela combinação de anti-séptico e ar viciado em seu nariz para sentir-se de
volta àquela cama de hospital, com tubos entrando e saindo dela, as medicações que tentavam matar o câncer em seu sangue fazendo-a sentir, na melhor das hipóteses,
como se estivesse com gripe, e na pior, como se fosse morrer a qualquer momento.
Época divertida.
Quando a enfermeira loura atrás da tela do computador ergueu o olhar, Mary disse:
— Oi, eu sou...
— Siga por ali. – A fêmea disse com urgência. — Pelas portas duplas. Vou destravá-la. O posto de enfermagem fica bem à frente. Elas te levarão direto para lá.
May não esperou nem para agradecer. Agarrou a mão de Bitty, apressou-se pelo chão brilhoso e polido, e empurrou as portas de metal assim que ouviu o mecanismo da
tranca ser liberado.
Do outro lado das cadeiras confortáveis e das revistas muito folheadas da sala de espera, tudo era profissionalmente clínico, pessoas de jaleco e com os tradicionais
uniformes de enfermagem brancos, andando para lá e para cá carregando bandejas, notebooks e estetoscópios.
— Por aqui. – Alguém chamou.
A enfermeira em questão tinha cabelos pretos bem curtos, olhos azuis que combinavam com seu uniforme e um rosto tipo Paloma Picasso.
— Eu levo vocês até ela.
Mary pôs-se atrás de Bitty, guiando a garota pelos ombros enquanto andavam pelo corredor e então outro para o que obviamente levava à área da UTI: quartos normais
de hospital não possuíam paredes de vidro com cortinas cerradas por dentro. Não tinham tanta equipe em volta. Não tinham painéis com sinais vitais piscando atrás
do posto de enfermagem.
Quando a enfermeira parou e abriu uma das portas, o ruído do equipamento médico soava urgente, um tipo frenético de bips e guinchos que sugeriam que os computadores
estavam preocupados com o que estava acontecendo à paciente.
A fêmea manteve a cortina afastada.
— Podem entrar.
Quando Bitty hesitou, Mary se abaixou.
— Não vou sair do seu lado.
E de novo, era algo que Mary estava dizendo por si mesma. A garota nunca tinha parecido particularmente interessada com qual membro da equipe do Lugar Seguro estava
ou não ao seu redor.
Quando Bitty permaneceu no mesmo lugar, Mary levantou o olhar. Havia duas enfermeiras verificando os sinais vitais de Annalye, uma de cada lado da cama, e Havers
também estava lá colocando algum tipo de medicação no acesso intravenoso daquele braço assustadoramente fino.
Por uma fração de segundo, ela violentamente conscientizou-se do quadro. A figura na cama tinha cabelos escuros ralos, a pele estava cinzenta, os olhos estavam fechados
e uma boca que estava relaxada – e durante aquele instante infinito enquanto Mary olhava para a fêmea que estava morrendo, não conseguia decidir se estava vendo
sua própria mãe ou a si mesma em cima daquele travesseiro imaculadamente branco.
Não posso fazer isto, pensou.
— Vamos lá, Bitty. – Disse com a voz rouca. — Vamos até lá segurar a mão dela. Ela vai gostar de saber que você está aqui.
Enquanto Mary levava a garota, Havers e a equipe desaparecia ao fundo, recuando sem estardalhaço como se soubessem muito bem que não havia nada que pudessem fazer
para interromper o inevitável e que a chance de Bitty dizer adeus era o caminho inevitável.
Ao lado da cama, Mary manteve a mão sobre o ombro de Bitty.
— Tudo bem, pode tocá-la. Aqui.
Mary se inclinou à frente e segurou a suave mão gelada.
— Olá, Annalye. Bitty veio te ver.
Olhando para a garota, ela anuiu em encorajamento... E Bitty franziu o cenho.
— Ela já está morta? – A garota sussurrou.
Mary piscou com força.
— Ah, não, querida. Ela não está. E consegue te ouvir.
— Como?
— Ela consegue. Vá em frente. Fale com ela. Sei que vai gostar de ouvir sua voz.
—Mahmen? – Disse Bitty.
— Segure a mão dela. Está tudo bem.
Quando Mary recuou um passo, Bitty estendeu a mão... E quando o contato foi feito, a garota franziu o cenho de novo.
— Mahmen?
De repente, alarmes começaram a soar com pânico renovado, os sons estridentes invadindo a frágil conexão entre mãe e filha, trazendo a equipe médica de volta para
a cama apressadamente.
— Mahmen! – Bitty agarrou com ambas as mãos. — Mahmen! Não vá!
Mary foi forçada a puxar Bitty para tirá-la do caminho quando Havers começou a gritar ordens. A garota lutou contra seu gesto, mas então entrou em colapso gritando
com os braços estendidos na direção da mãe e o cabelo emaranhando.
Mary segurou o pequeno corpo agitado.
— Bitty, oh, Deus...
Havers aproximou-se da cama e começou a fazer massagem cardíaca enquanto o ressuscitador de emergência era trazido.
— Temos de ir, – Disse Mary, empurrando Bitty na direção da porta. — Vamos esperar lá fora...
— Eu a matei! Eu a matei!
Ao derrapar na direção de Rhage, Vishous caiu de joelhos e buscou pela jaqueta de couro e camisa do irmão, arrancando as camadas de tecido e expondo...
— Ai... Caralho.
A bala tinha entrado à direita do centro, exatamente onde ficava o coração de seis válvulas de um vampiro dentro das costelas. E quando Rhage ofegou em busca de
ar e cuspiu sangue, V olhou ao redor freneticamente. Guerra pra todo canto. Cobertura em canto nenhum. O tempo... Estava acabando...
Butch vinha correndo até eles de cabeça baixa, disparando um par de armas calibre 40 ao redor de si mesmo em ciclos de bombeamento, de forma que os assassinos ao
alcance tinham de cair no chão em posição fetal para evitar serem atingidos pelos tiros. O ex-tira abaixou-se, as armas ainda erguidas e prontas para disparar, suas
pernas de buldogue e torso se jogaram também na grama alta marrom.
— Temos de tirá-lo daqui. – Aquele sotaque de Boston anunciou.
A boca de Rhage abriu largamente e a inalação que veio em seguida era chiada como uma caixa de pedras.
Geralmente o cérebro de V era aguçado pra caralho, sua grande inteligência era mais uma característica pessoal que uma aptidão e definia tudo em sua vida. Ele era
o racional, o lógico, o filho da puta cínico que nunca errava.
E ainda assim, suas células cinzentas imediatamente pifaram.
Anos de prestação de assistência médica e intervenções em campo lhe diziam que seu irmão ia morrer em um minuto ou dois, caso o músculo do coração tivesse sido mesmo
dilacerado ou perfurado, e uma ou mais válvulas começasse a vazar sangue na cavidade torácica.
Isto resultaria na interrupção da função cardíaca quando o saco peritoneal se inundasse e fatalmente comprometeria a pressão sanguínea.
Era o tipo de ferimento catastrófico que requeria intervenção cirúrgica imediata – e mesmo assumindo que tivessem toda a tecnologia e equipamentos necessários em
uma situação de clínica esterilizada, o sucesso não era garantido.
— V! Temos de tirá-lo daqui...
Balas voavam ao redor e ambos se jogaram no chão. Com um terrível cálculo mental, a unidade de processamento de V chegou a uma conclusão insustentável: a vida de
Rhage ou a deles.
Porra! A culpa é minha, pensou V.
Se não tivesse contado ao irmão sobre a visão, Rhage não teria corrido prematuramente e teria tido mais controle sobre a luta...
Vishous ergueu suas armas e abateu três assassinos que se aproximavam enquanto Butch girava no chão e fazia o mesmo na direção oposta.
— Rhage, fique conosco. – V grunhiu ao se desfazer do cartucho vazio e recarregar as armas, uma após a outra. — Rhage, você precisa... Merda!
Mais tiros. E ele foi atingido no maldito braço.
Enquanto seu próprio sangue corria, ele ignorou, seu cérebro lutando para encontrar uma solução que não resultasse na porra de uma pira funerária para Rhage. Ele
podia chamar Jane por que ela não podia morrer. Mas ela não conseguiria executar uma cirurgia cardíaca de peito aberto aqui, pelo amor de Deus. E se...
O flash de luz foi tão brilhante, tão súbito, que o fez se perguntar quem infernos estaria perdendo tempo apunhalando um lesser de volta para o Ômega...
O segundo jorro de iluminação o fez girar e olhar para Rhage. Oh... Merda. Feixes gêmeos de luz brilhante espocavam das órbitas dos olhos do irmão, apontando para
o céu como feixes de laser em correntes paralelas que poderiam atingir a face da lua.
— Caraaaaaalho!
Mudança total de planos. O tema filho da puta da noite.
V avançou para Butch e o puxou, afastando-o de Rhage.
— Corre!
— O que está fazendo... Santa Maria, mãe de Deus!
Os dois puseram-se a correr desabaladamente mantendo a cabeça baixa, as pernas comendo a distância pela área aberta, enquanto pulavam sobre lessers e se desviavam
para se tornarem alvos mais difíceis. Ao chegarem à construção mais próxima da escola abandonada, eles se alternaram nos cantos em busca de cobertura, V pela frente,
Butch pelos fundos.
Com o peito ofegando, Vishous se inclinou. No centro da clareira, a transformação torturava o corpo caído de Rhage, seus braços e pernas se contorciam enquanto seu
torso convulsionava e tinha espasmos, a fera emergindo da carne do macho, o grande dragão se libertando do DNA que era forçado a compartilhar.
Se Rhage não tivesse morrido ainda, aquilo certamente o mataria.
E ainda assim, não havia como interromper a transformação. A Virgem Escriba tinha entremeado a maldição em cada uma das células de Rhage, e quando a hora chegava,
o processo era um trem descarrilado que ninguém conseguia deter.
A morte cuidaria disto.
A morte de Rhage... Acabaria com aquilo tudo.
V fechou os olhos e gritou por dentro.
Um segundo depois ergueu as pálpebras e pensou, “de jeito nenhum, porra”. “De jeito nenhum, cacete, que vou deixar isto acontecer.”
— Butch, – Rosnou ele. — Tenho que ir.
— O que? Onde você...
Foi a última coisa que Vishous ouviu ao se levantar e desaparecer.
Capítulo QUATRO
Não havia dor.
Nenhuma dor vinha do ferimento que a bala fez no peito de Rhage. E aquela era a primeira indicação de que a merda era séria. Ferimentos que doem tendem a não ser
do tipo que te coloca em estado de choque. Não sentir nada? Provavelmente uma boa indicação – juntamente com o fato de ele ter desabado no chão e o tiro ter sido
certeiro em seu peito – de que corria perigo mortal.
Piscada. Tente respirar. Piscada.
O sangue em sua boca, espesso em sua garganta... Uma maré crescente que ia contra seus esforços de fazer o oxigênio entrar em seus pulmões. A audição tinha se reduzido
a uma abafada versão de si mesma, como se estivesse deitado de costas em uma banheira e o nível da água tivesse subido até cobrir seus dois ouvidos. A visão ia e
vinha, o céu noturno acima dele se revelava e se obscurecia, enquanto as coisas falhavam e voltavam a aparecer. Respirar ficava cada vez mais difícil, um peso crescente
se instalava em seu peito, primeiro como uma sacola, então um baú cheio... Agora já no nível de um trem de carga.
Rápido, estava acontecendo rápido demais.
Mary, ele pensou. Mary?
Seu cérebro cuspiu o nome de sua shellan – talvez ele tenha mesmo chamado em voz alta? – como se sua companheira pudesse ouvi-lo, de alguma forma.
Mary!
O pânico inundou sua corrente sanguínea, acumulando-se dentro das costelas – junto com o plasma que, sem dúvida, estava vazando pela porra toda. Seu único pensamento,
mais do que a morte, a batalha ou mesmo a segurança dos irmãos, era... Oh, Deus, faça a Virgem Escriba manter sua parte da barganha.
Não permita que ele acabe no Fade sozinho.
Mary devia deixar a terra com ele. Devia lhe ser permitido segui-lo quando ele fosse para o Fade. Era parte do acordo que tinha feito com a Virgem Escriba: ficaria
com a maldição e sua Mary sobreviveria à leucemia, e por que sua companheira tinha se tornado infértil devido ao tratamento contra o câncer, ela ficaria com ele
pelo tempo que quisesse.
Você vai morrer esta noite, porra.
Bem ao ouvir a voz de Vishous em sua mente, o rosto do irmão apareceu em seu campo de visão, substituindo o céu. A boca de V se movia, o cavanhaque ondulava enquanto
enunciava as palavras. Rhage tentou afastar o macho, mas seus braços não obedeciam aos comandos de seu cérebro.
A última coisa que precisava era que outra pessoa também morresse. Embora, sendo o filho da Virgem Escriba, V provavelmente seria o último a se preocupar sobre algo
tão improvável quanto bater as botas. Mas quando Butch, o terceiro elo do trio, chegou escorregando e berrando também? Agora, ali estava um cara que não tinha um
cartão de dispensa da Dona Morte...
Tiros. Ambos começaram a atirar.
Não! Rhage ordenou a eles. Diga a Mary que eu a amo e me deixem aqui antes que vocês...
V recuou como se algo de chumbo tivesse penetrado em alguma de suas partes.
E foi quando aconteceu.
Foi o cheiro do sangue do irmão que desencadeou. No instante em que aquela nuance de cobre atingiu o nariz de Rhage, a fera despertou dentro da prisão de seu corpo
e começou a sair, a mudança dando início a terremotos internos que estalaram seus ossos, despedaçaram seus órgãos internos e o transformaram em uma coisa totalmente
diferente.
Agora havia dor.
Bem como a sensação de que este esforço era uma perda da porra do tempo. Se ele ia morrer, o dragão estava só tomando seu lugar na merda da situação.
— Diga a Mary para vir comigo. – Rhage gritou ao ficar completamente cego. — Diga a ela...
Mas teve a sensação de que os irmãos já tinham se afastado e graças a Deus por isso: o sangue de V não estava mais no ar e ninguém respondeu.
Mesmo quando sua força vital se esvaiu, fez de tudo para seguir a corrente enquanto os violentos movimentos da fera destruíam seu corpo moribundo. Mesmo que tivesse
a energia, lutar contra aquela corrente seria desperdício de esforço e não facilitaria nada. Entretanto, enquanto seu corpo e mente, suas próprias emoções e consciência
recuavam, era estranho que não soubesse se era a morte ou a transformação que estava ocorrendo a ele.
Quando o sistema nervoso da fera assumiu completamente o controle sobre ele e suas sensações de dor desapareceram, Rhage recuou a uma zona de flutuação metafísica,
como se quem e o que ele era fosse depositado em um globo de neve no alto da prateleira do continuum tempo.
Só que neste caso tinha a impressão que não seria mais retirado de lá.
O que era engraçado. Cada uma das criaturas que tinham consciência e sabiam de sua própria mortalidade inevitavelmente se perguntavam, de vez em quando, quando e
onde, como e por que de sua própria morte. O próprio Rhage tinha seguido este fluxo mórbido de pensamento, especialmente durante seu período pré-Mary, quando era
um solitário sem nada além de um catálogo de suas falhas e fraquezas para lhe fazer companhia durante as densas e desertas horas de luz do dia.
Para ele, aquelas questões desconexas tinham sido inesperadamente respondidas esta noite: “onde” era no meio do campo de batalha em uma escola abandonada para garotas;
“como” era devido a uma hemorragia cardíaca, resultado de um tiro; “por que” era consequência de seu dever; “quando” seria provavelmente nos próximos dez minutos,
talvez menos.
Dada a natureza de seu trabalho, nada daquilo era surpresa. Está bem, talvez a parte da escola fosse, mas só isso.
Ele sentiria falta dos irmãos, Jesus... E aquilo doía mais do que a fera. E se preocuparia com todos eles e o futuro do reinado de Wrath. Merda, perderia o crescimento
de Nalla e L.W1. E o nascimento dos gêmeos de Qhuinn... Que nasçam vivos e saudáveis. Será que conseguiria ver a todos de lá do Fade?
Oh, sua Mary. Sua bela, preciosa Mary.
O terror o atingiu, mas era difícil apegar-se à emoção enquanto sentia-se enfraquecer cada vez mais. Para se acalmar, disse a si mesmo que a Virgem Escriba não mentia.
A Virgem Escriba era toda poderosa. A Escriba Virgem tinha determinado o equilíbrio necessário para salvar a vida de sua Mary e dera a eles o grande presente para
compensar o fato de que sua shellan nunca poderia ter filhos.
Sem filhos, pensou com um angústia. Ele e sua Mary jamais teriam filhos de qualquer forma agora.
Isto era tão triste.
Estranho... Não tinha pensando que os queria, pelo menos não conscientemente. Mas agora que tudo aquilo tinha acontecido? Estava totalmente desolado.
Pelo menos sua Mary jamais o abandonaria.
E precisava ter fé em que, quando chegasse às portas do Fade e prosseguisse a atravessá-la para o que havia do outro lado, ela conseguiria encontrá-lo.
Senão, esta coisa toda de morte seria insuportável de enfrentar. A ideia de que poderia estar morrendo e que jamais veria sua amada de novo? Jamais voltar a sentir
o cheiro de seus cabelos? Sentir seu toque? Falar a verdade mesmo que ela já soubesse, do quanto a amava?
Era por tudo isto que a morte era tal tragédia, pensou. Era o grande separador, e às vezes atingia sem aviso, um ladrão cruel roubando as pessoas de seus cursos
emocionais que os arruinaria pelo resto de suas vidas...
Merda, e se a Virgem Escriba estivesse errada? Ou tivesse mentido? Ou não fosse tão poderosa?
Subitamente seu pânico recarregou e seus pensamentos começaram a embaralhar, prendendo-o na distância que ultimamente tinha aparecido entre ele e sua shellan, distância
que tinha subestimado, achando que teria tempo e espaço para corrigir.
Oh, Deus... Mary, disse em sua cabeça. Mary! Eu te amo!
Merda. Devia ter falado sobre estas coisas com ela, escavado profundamente para descobrir onde estava o problema, aproximando-os novamente até que estivessem de
novo alma-a-alma.
O problema era, percebeu com terror, enquanto o coração finalmente parava de bater em seu peito, tudo o que você desejava ter dito, todas as peças que faltavam de
si mesmo que ainda tinha a oferecer, todas as falhas que tinha varrido para baixo do tapete, sob a desculpa da vida ser corrida demais... Aquilo acabava também.
O meio do passo, que jamais seria completado, era o pior arrependimento que alguém poderia ter.
Talvez você só não aprendesse isto até que todas as coisas sobre as quais sempre se questionou sobre sua morte realmente acontecesse. E sim, aquelas perguntas que
sempre se fez, os comos e porquês, ondes e quandos... Se tornavam malditamente imateriais quando você partia desta existência.
Eles tinham se afastado, ele e Mary.
Ultimamente... Eles perderam um pouco da conexão entre eles.
Ele não queria partir assim...
Luz branca varreu tudo, devorando-o vivo, roubando sua consciência.
O Fade tinha vindo até ele. E só podia rezar para que sua Mary Madonna fosse capaz de encontrá-lo do outro lado.
Tinha coisas que precisava desesperadamente dizer a ela.
Vishous reassumiu a forma em um pátio de mármore branco que se abria para um céu leitoso tão vasto e brilhante que não havia sombras lançadas pela fonte no centro
ou pela árvore cheia de passarinhos coloridos chilreando mais ao canto.
Os quais silenciaram ao pressentirem seu humor.
— Mãe! – Sua voz entoou, ecoando entre as paredes. — Onde diabos você está!?
Ao avançar, a trilha de sangue que deixou à sua passagem era de um vermelho brilhante e, quando parou à porta que levava aos aposentos particulares da Virgem Escriba,
gotas caíram de seu cotovelo e perna em impactos suaves. Quando bateu e chamou novamente o nome dela, salpicos do sangue tingiram a porta branca, como esmalte de
unha caindo no chão.
— Foda-se!
Forçando a porta com o ombro, invadiu os aposentos da mãe – só para parar de supetão. Sobre a plataforma de dormir, debaixo de lençóis de cetim branco, a entidade
que tinha criado a raça vampírica e também corporeamente gerado ele e sua irmã, estava deitada em absoluta imobilidade e silêncio. Mas não havia forma corpórea nela.
Somente uma poça tridimensional de luz que outrora fora tão brilhante quanto o estouro de uma bomba, mas agora era como uma antiquada lamparina com a luz embaçada.
— Você precisa salvá-lo, – Ao cruzar o chão de mármore, Vishous reparou vagamente que o quarto estava vazio, exceto pela cama. Mas quem se importava? — Acorda, porra!
Alguém importante está morrendo e você precisa impedir, maldição.
Se ela tivesse um corpo, ele a teria agarrado e forçado a prestar atenção. Mas não havia braços para ele puxar para fora da cama ou ombros para chacoalhar.
Estava a ponto de gritar de novo quando palavras soaram pelo quarto como se viessem de um sistema de som surround.
O que tiver de ser, será.
Como se isto explicasse tudo. Como se ele fosse um cuzão por ter vindo incomodá-la. Como se estivesse desperdiçando o tempo dela.
— Por que nos criou se não liga a mínima?
Exatamente o que te preocupa? O futuro dele ou o seu?
— Do que infernos está falando? – Oh, e sim, sabia que não devia questioná-la, mas foda-se. — O que isto significa?
Será necessário mesmo uma explicação?
Ao cerrar os dentes, V lembrou a si mesmo de que Rhage estava em campo se transformando em um monstro e morrendo daquela encarnação: ficar de bate boca com a querida
mamãe não seria o melhor caminho aqui.
— Apenas salve-o, tudo bem? Tire-o daquele teatro de horrores para que possamos operá-lo e eu te deixo aqui para apodrecer em paz...
E isto resolveria o destino dele em que?
Está bem, agora sabia por que os humanos com questões maternas iam àqueles programas que o Lassiter gostava de assistir. Cada vez que V chegava perto desta fêmea,
entrava em estado de psicose induzida pelo útero.
— Ele vai continuar respirando, é isto que vai resolver.
O destino vai acabar se cumprindo de outras maneiras.
V imaginou Hollywood escorregando no tapete do banheiro numa queda em casa que o mataria. Ou engasgando com uma coxa de peru. Ou só Deus sabe o que mais poderia
matar o irmão.
— Então o mude. Você é poderosa pra cacete. Mude o destino dele agora mesmo.
Houve uma longa pausa e se perguntou se ela não teria caído no sono de novo ou merda do tipo – e cara, ele realmente a odiou. Ela era uma maldita desistente, retirando-se
do mundo, isolando-se aqui em cima como uma reclusa rabugenta só por que ninguém mais estava beijando sua bunda do jeito que ela queria.
Que peninha.
Enquanto isto, um dos melhores guerreiros deles, um que era absolutamente indispensável na guarda privada do Rei, estava a ponto de se pirulitar deste planeta. E
V era a última pessoa a querer que outra pessoa resolvesse os problemas por ele, mas tinha de tentar salvar Rhage com tudo o que podia, e quem diabos mais tinha
este tipo de poder?
— Ele é importante, – V rosnou. — A vida dele é importante.
Pra você.
— Foda-se, isto não é sobre mim. Ele importa ao Rei, à Irmandade, à guerra. Se o perdermos? Teremos um problemão.
Por que não tenta ser honesto?
— Acha que estou preocupado com ele e Mary? Sim. Confesso essa merda também por que neste exato momento você não parece ser capaz sequer de ficar em pé, quanto mais
acompanhar uma não-entidade que você arrancou do reino mortal pela travessia até o Fade no momento em que ela quiser.
Porra. Agora que tinha falado em voz alta, realmente tinha de se perguntar se aquela coisa alquebrada em cima da cama poderia mesmo cumprir a promessa que fizera
no que parecia ser antigamente, mesmo que só tivesse sido há três anos.
Tanta coisa tinha mudado.
Exceto o fato de que ainda odiava qualquer tipo de fraqueza. E continuava a detestar estar na presença da mãe.
Vá embora. Você me cansa.
— Eu te canso. É, por que você tem mesmo tanta coisa pra fazer aqui em cima. Jesus Cristo.
Tudo bem, ela que se fodesse. Ele descobriria outra saída. Outro... Alguma coisa.
Merda, o que mais havia?
Vishous virou-se para a porta que tinha arrombado. A cada passo dado, esperava que ela o chamasse de volta, dissesse algo ou lhe desse uma dor no peito quase tão
letal quanto o golpe que derrubara Rhage. Quando ela não chamou, e a porta se fechou mal tinha passado, quase acertando seu traseiro, ele pensou que já devia saber.
Ela não se importava o suficiente nem para cagar nele.
De volta ao pátio, a trilha de sangue que havia deixado sobre o revestimento de mármore era como o destino que tinha seguido por toda a vida, torto e bagunçado,
evidenciando a dor que ele totalmente falhava em reconhecer. E sim, queria que a mancha se infiltrasse naquela pedra, como se talvez isto pudesse chamar a atenção
dela.
Por falar nisto, por que simplesmente não se jogava no maldito chão com um ataque de birra, como se estivesse nos corredores de uma loja de departamentos, enfurecido
por não ganhar um triciclo?
Enquanto ficava parado ali, o silêncio se registrou como se fosse um som. O que era ilógico e precisamente a experiência que ele teve ao perceber o quão verdadeiramente
silencioso aquele lugar agora estava. As Escolhidas estavam todas na Terra, aprendendo sobre si mesmas, separadas individualmente, renegando seu papel tradicional
de servir à mãe. O mesmo acontecendo com a raça, existindo em tempos modernos onde os velhos ciclos de festivais e costumes eram ignorados, em sua maioria, e as
tradições que outrora eram respeitadas, estavam agora à beira do esquecimento.
Bom, pensou. Esperava que ela estivesse se sentindo sozinha e desrespeitada. Ele a queria bem calma e isolada, com seus fiéis mais fervorosos dando-lhe as costas.
Ele a queria ferida.
Ele a queria morta.
Seus olhar foi para os pássaros que tinha trazido para ela e o bando fugiu dele, subindo para outros galhos do outro lado da árvore branca, amontoando-se juntos
como se temessem que ele fosse torcer os pescoços deles, um a um.
Aqueles passarinhos tinham sido uma oferta de paz de um filho que jamais havia sido realmente querido, mas também não tinha se comportado muito bem. Sua mãe provavelmente
não tinha dirigido a eles mais do que um olhar – e, quem diria, também tinha superado este breve flamejar de uma fraqueza conciliatória, de volta às margens de sua
inimizade. Como poderia ser diferente?
A Virgem Escriba não veio a eles quando Wrath fora quase assassinado. Ela não tinha ajudado o Rei a manter sua coroa. Beth quase morreu ao dar à luz e teve de abrir
mão de qualquer possibilidade de ter filhos no futuro. Pelo amor de Deus, Selena, uma das Escolhidas da própria Virgem Escriba, tinha acabado de morrer e arrebentar
o coração de um maldito macho de valor – e qual foi a resposta? Nada.
E antes de tudo isto? A morte de Wellsie. Os ataques.
E à frente? Qhuinn estava se borrando de preocupação de que Layla morresse dando à luz aos gêmeos. E Rhage estava morrendo ali embaixo no meio da batalha.
Precisava mais?
Girando a cabeça, V olhou para a porta que tinha voltado a se fechar à sua passagem. Ele ficava contente por ela estar sofrendo. E não, não confiava nela.
Ao se desmaterializar de volta para o campo de combate, não tinha absolutamente fé nenhuma de que ela faria o correto para Rhage e Mary. Ele fez uma aposta que tinha
perdido ao ir até a mãe, mas com ela aquilo era sempre o que acontecia.
Milagre. Ele precisava da porra de um milagre.
Capítulo CINCO
A água que caía sobre a mão de Mary estava fria, e ainda assim queimava sua pele – provando que lados opostos do termômetro podem coexistir ao mesmo tempo.
A pia do banheiro feminino que estava usando era branca e de porcelana. Seu ralo brilhava e era prateado. À sua frente, um espelho de parede inteira refletia três
reservados, todos tinham as portas cor de pêssego fechadas, mas somente um deles estava ocupado.
— Está tudo bem aí? – Disse ela.
Ouviu o barulho da descarga, mesmo que Bitty não tivesse usado.
Mary encarou seu reflexo. É. Ela parecia tão mal quanto se sentia: por algum motivo, nos últimos trinta minutos bolsas escuras se formaram sob as órbitas que pareciam
afundadas, e sua pele parecia tão pálida quanto o piso no qual estava pisando.
Por algum motivo? Besteira. Sabia exatamente o motivo.
Eu a matei!
Mary teve de fechar os olhos e fingir recompor-se novamente. Quando abriu os olhos de novo, tentou se lembrar do que estava fazendo. Oh. Certo. Havia uma pequena
pilha de toalhas de papel em uma prateleira do tipo entrelaçado e dobrado, e ao avançar para pegar um, respingou os outros de água e pensou consigo mesma que era
estranho que Havers, tão meticuloso com a clínica, permitisse tal bagunça. Daí entendeu... O suporte na parede perto da porta estava quebrado, a parte inferior pendurada,
frouxa.
Igual a mim, pensou. Cheia de técnica e experiência em ajudar pessoas, mas sem executar meu trabalho direito.
Segure a mão dela. Está tudo bem...
Eu a matei!
— Bitty? – Quando a palavra não saiu mais do que um resmungo, ela pigarreou. — Bitty.
Depois de secar as mãos, virou-se para os reservados.
— Bitty, vou entrar se você não sair.
A garota abriu a porta do meio, e por alguma razão Mary soube que jamais se esqueceria da visão daquela mãozinha fortemente cerrada, sem se abrir, quando ela saiu.
Ela tinha chorado lá dentro. Sozinha. E agora que a garota estava sendo forçada a mostrar o rosto, estava fazendo exatamente o que a própria Mary esteve desesperadamente
tentando fazer.
Às vezes a compostura era tudo o que se tinha; dignidade, seu único consolo; a ilusão de “tudo bem” sua única fonte de conforto.
— Aqui, me deixe... – Quando a voz de Mary se apagou, voltou para as toalhas de papel e umedeceu uma na pia que tinha usado. — Isto vai ajudar.
Aproximando-se lentamente da garota, trouxe o papel frio e macio para o rosto corado dela, pressionando-o na pele quente e avermelhada. Enquanto isto, na sua cabeça
se desculpava com a Bitty adulta, aquela que ela esperançosamente se tornaria: Sinto muito ter te feito fazer isto. Não, você não a matou. Quem dera eu tivesse te
deixado fazer as coisas do seu jeito e a seu tempo. Sinto muito. Não, você não a matou. Sinto muito.
Sinto tanto.
Mary ergueu o queixo da garota.
— Bitty...
— O que eles vão fazer com ela agora? Para onde ela vai?
Deus, aquele olhar castanho claro era firme.
— Eles vão levá-la... Bem, eles vão cremá-la.
— O que é isto?
— Eles vão queimar o corpo dela até torná-lo cinzas, para o rito de passagem.
— Vai doer?
Mary pigarreou de novo.
— Não, querida. Ela não vai sentir nada. Está livre... Ela está no Fade esperando por você.
O lado bom era que ao menos isto Mary sabia ser verdade. Mesmo tendo sido criada católica, ela própria tinha visto a Virgem Escriba, então não, não estava dando
à garota falsas esperanças. Para os vampiros existia mesmo um paraíso, e eles real e verdadeiramente encontravam seus entes queridos lá.
Diabos, talvez isto também fosse verdade para os humanos, mas a magia era muito menos visível no mundo deles; desta forma, a salvação eterna era muito mais difícil
de ser vendida ao humano comum.
Afastando a toalha de papel, Mary recuou um passo.
— Eu gostaria de voltar ao Lugar Seguro agora, tudo bem? Não há mais nada que a gente possa fazer aqui e já está quase amanhecendo.
A última frase saiu só por hábito, ela achava. Como uma pré-trans, Bitty era capaz de tolerar qualquer quantidade de luz do sol. E a verdade real era que só queria
levar a garota para longe de toda a morte dali.
— Tudo bem? – Mary repetiu.
— Não quero deixá-la.
Em qualquer outra circunstância, Mary teria se abaixado e gentilmente exposto um pouco do que ia ser o mundo novo de Bitty. A realidade horrorosa era que não havia
mais mãe para deixar para trás, e tirar a garota deste ambiente clínico onde pacientes estavam sendo tratados, às vezes em situações terríveis, era inteiramente
apropriado.
Eu a matei.
Em vez disto, Mary disse.
— Está bem, podemos ficar o quanto você quiser.
Bitty anuiu e foi até a porta que levava ao corredor. Parada diante da porta fechada, seu vestido tremendamente gasto parecia a ponto de se desmanchar de sua figura
magra, seu feio casaco preto parecia um cobertor jogado de qualquer jeito ao seu redor, seus cabelos castanhos despontados arrepiavam contra o tecido.
— Eu realmente queria...
— O que? – Sussurrou Mary.
— Eu queria voltar a antes. À hora que eu acordei hoje.
— Eu também queria que fosse possível.
Bitty olhou por cima do ombro.
— Por que não pode voltar? É tão estranho. Digo, consigo lembrar tudo dela. É como... É como se minhas lembranças fossem um quarto no qual eu pudesse entrar. Ou
algo assim.
Mary franziu o cenho, pensando que aquela era uma maneira muito madura de se expressar para alguém daquela idade.
Mas antes que pudesse responder a garota abriu a porta, claramente não interessada em uma resposta – e talvez isto fosse uma coisa boa. Que infernos se podia responder
diante aquilo?
No corredor, Mary quis pousar a mão sobre aquele ombro pequeno, mas se segurou. A garota era tão fechada, do mesmo modo que um livro seria no meio de uma biblioteca
ou uma boneca em uma fila de colecionáveis, e era difícil forçar a quebrar aquelas fronteiras.
Especialmente quando, como uma terapeuta, você mesma já estava se sentindo muito desequilibrada em seu papel de profissional.
— Para onde vamos? – Bitty perguntou quando duas enfermeiras passaram por elas.
Mary olhou ao redor. Elas ainda estavam na área da UTI, mas a alguma distância de onde a mãe de Bitty tinha morrido.
— Podemos procurar uma sala para nos sentar.
A garota parou.
— Nós não vamos poder vê-la de novo, vamos?
— Não.
— Acho que é melhor a gente voltar.
— O que você quiser.
Cinco minutos depois estavam no Volvo indo para o Lugar Seguro. Ao guiá-las pela ponte, Mary voltou a olhar pelo retrovisor, verificando Bitty a cada cinquenta metros.
No silêncio, ela se pegou novamente a desfiar um cordão de desculpas em sua mente... Por ter dado um conselho ruim, por colocar a garota na posição de mais sofrimento.
Mas toda aquela comiseração era auto-infligida, uma busca por absolvição pessoal, totalmente injusta com a paciente, especialmente uma tão jovem.
Este pesadelo profissional era algo que Mary teria de superar sozinha.
Uma entrada na I-87 apareceu assim que chegaram ao lado do centro, após a ponte, e a seta soou alto no interior do utilitário. Dirigindo-se para o norte, Mary permaneceu
no limite de velocidade e foi ultrapassada por alguns caminhões fazendo oitenta em uma pista de sessenta e cinco. De vez em quando, sinais luminosos indicando áreas
de ultrapassagem piscavam acima delas em um ritmo que nunca demorava, e o pouco tráfego local era diminuído ainda mais enquanto elas prosseguiam.
Quando chegassem, Mary decidiu que tentaria dar algo para a garota comer. Bitty tinha perdido a Primeira Refeição e devia estar morrendo de fome. Então talvez um
filme até o amanhecer, algo calmo. O trauma era tão recente, e não só o fato de perder a mãe. O que tinha acontecido lá no Havers devia ter trazido à tona tudo o
que tinha acontecido antes – os abusos em casa, o resgate onde Rhage, V e Butch mataram o pai para salvar Bitty e a mãe, a descoberta que a mãe estava grávida, a
perda do bebê, os meses que se arrastaram depois, onde Annalye jamais se recuperara totalmente...
— Sra. Luce?
— Sim? – Oh, Deus, por favor, pergunte algo que eu possa responder decentemente. — Sim, Bitty?
— Para onde estamos indo?
Mary olhou para a placa na estrada. Dizia “Saída 19 Glen Falls”.
— Desculpe? Estamos indo para casa. Devemos chegar lá em quinze minutos.
— Achei que o Lugar Seguro não era tão longe.
— O q...?
Oh, Deus.
Estava indo na direção da maldita mansão.
— Oh, Bitty, desculpe. – Mary meneou a cabeça. — Eu acho que confundi as saídas. Eu...
Onde estava com a cabeça?
Bem, ela sabia a resposta... Todas as hipóteses que vinha imaginando em sua cabeça sobre o que fariam quando saíssem do carro eram coisas que envolviam o lugar onde
Mary morava com Rhage, o Rei, os Irmãos, os guerreiros e suas companheiras.
Onde infernos estava com a cabeça?
Mary pegou a saída 19, desceu a rodovia e voltou a seguir para o sul. Cara, não estava dando uma dentro esta noite, estava?
Pelo menos as coisas não poderiam piorar.
De volta ao Internato para Garotas Bownswick, Assail, filho de Assail, ouviu o rugido mesmo através da sobrecarga sensorial da batalha.
Apesar do caos de todos os tiros, dos xingamentos e das loucas corridas de cobertura a cobertura, o som trovejante que rolava pelo campus abandonado era o tipo de
coisa que chamava a atenção.
Ao se virar, manteve o dedo no gatilho da automática, continuando a descarga de balas adiante, certeiramente em uma fila de mortos-vivos...
Por uma fração de segundo, parou de atirar.
Seu cérebro simplesmente não conseguia processar o que os olhos sugeriam que tinha magicamente aparecido a cinquenta metros à sua frente. Era... Algum tipo de criatura
parecida com um dragão, coberta de escamas roxas, cauda serrilhada e uma boca arreganhada cheia de dentes de T. Rex. O monstro pré-histórico tinha bem a altura de
dois andares, comprido como um trailer, e rápido como um crocodilo ao avançar para atacar qualquer coisa que se mexesse...
Queda livre.
Sem aviso, seu corpo voou adiante, e uma dor se espalhou pela frente de sua perna e rasgou até seu tornozelo. Girando em meio ao ar, caiu de cara na grama alta...
E uma respiração depois, o assassino parcialmente ferido que o tinha atingido com uma faca caiu em cima de seu peito, aquela lâmina arqueando pelo seu ombro, os
lábios curvados em um esgar enquanto o sangue preto derramava em Assail inteiro.
Certo, foda-se, cara.
Assail agarrou um punhado do cabelo ainda castanho, enfiou o cano da arma naquela boca arreganhada e apertou o gatilho, explodindo a parte de trás do crânio, incapacitando
o corpo de forma que caiu em cima dele como um peso morto agitado. Chutando o corpo que se contorcia para tirá-lo de cima, voltou a se levantar.
E se viu diretamente diante da fera.
Seus movimentos para se levantar chamaram a atenção, os olhos do dragão se fixaram nele, estreitados em fendas. Então, com outro rugido a criatura veio em direção
à ele fazendo o chão tremer, esmagando os assassinos sob suas massivas patas traseiras, as garras da frente encurvadas para cima e prontas para o ataque.
— Porra!
Assail jogou-se para frente, não mais preocupado onde mirava a arma e absolutamente despreocupado com o fato de que agora corria para a fileira avançada de lessers.
O lado bom? A fera cuidou daquele probleminha. Os assassinos lançaram igualmente um olhar para aquela criatura dos infernos vindo em direção a eles e dispersaram
como folhas sob o vento de outono.
Naturalmente, não havia nada diretamente adiante que provesse nenhuma cobertura. Por azar, sua rota de fuga não oferecia nada além de arbustos e grama, sem nenhuma
proteção significativa. A construção mais próxima? Estava a duzentos metros de distância. Pelo menos.
Praguejando, correu mais rápido, abusando dos músculos de suas pernas, buscando mais e mais velocidade.
Era uma corrida que a fera estava fadada a vencer – uma vitoria inevitável quando um par de pernas que mal cobria um metro e meio a cada passo, tentava vencer um
par de pernas que podia cobrir vinte e cinco em um único passo. A cada segundo, aquele som ficava mais alto e mais perto, até que jatos quentes de respiração atingiram
as costas de Assail, esquentando-o, apesar do frio.
O medo inundou o seu núcleo.
Mas não havia tempo para tentar dominar o pânico que invadiu sua mente. Um grande rugido explodiu na sua direção, a força do som tão grande que o empurrou adiante,
provendo um jorro de ar fedorento que o enojou. Merda, sua única chance era...
A mordida veio depois do grande rugido, aqueles maxilares estalando tão perto da nuca de Assail que ele se encolheu, mesmo que isto diminuísse sua velocidade. Mas
era tarde demais para se salvar. Transportado pelo ar. Ele foi erguido, arrancado do chão em meio a um passo – só que, por que não doía mais?
Certamente se a fera o tivesse agarrado pelos ombros ou pelo torso, ele teria sido rasgado – não, espere, ela o pegou pela jaqueta. A coisa o agarrou pela jaqueta
de couro, não pela carne, e uma faixa de constrição cortava pelo seu peito e erguia-o pelas axilas, as pernas flutuavam, a arma disparava enquanto ele cerrava as
mãos em punhos. Abaixo dele, a paisagem girava como se estivesse em uma gangorra, os lessers restantes, os irmãos lutando, os arbustos muito crescidos e as árvores
balançavam ao redor dele como se estivesse sendo chacoalhado.
A porra da coisa ia devorá-lo. Esta baboseira sem sentido era só para amaciar a carne.
Maldito fosse ele, era o equivalente vampírico a uma asa de frango.
Não havia tempo. Soltou a arma e tateou em busca do zíper em sua garganta. O movimento balançante tornou seu pequeno alvo rápido como um rato, escorregadio como
mármore, estilo agulha em palheiro para suas mãos trêmulas e escorregadias, e as pontas dos dedos suadas.
O próprio aperto da fera foi o que o ajudou.
Com aqueles dentes travados nas costas da jaqueta, o couro não conseguiu suportar seu peso e ele caiu, despencando das presas, o chão duro se apressando para recebê-lo.
Encolhendo-se e rolando, procurando não quebrar nada, no entanto, pousou num monte de entulho.
Direto de ombro.
O estalar foi algo que se registrou pelo seu corpo todo, deixando-o tão inútil quanto um bebê indefeso, sem fôlego, a vista embaçada. Mas não havia tempo se quisesse
viver. Virando-se, ele...
Pop! Pop! Pop! Pop! Pop! BUM!
Seus primos surgiram do nada, correndo como se estivessem sendo perseguidos quando de fato não estavam. Ehric tinha duas automáticas em riste e atirando... E Evale
tinha uma metralhadora sobre os ombros.
Aquele era o BUM!
A arma era de fato uma metralhadora de verdade, uma enorme arma de fogo que tinha sobrado do tempo do Raj na Índia. Evale, o bastardo agressivo, há muito parecia
ter fixação pela coisa de uma maneira nada natural, estilo “meu precioso”.
Graças aos Destinos pelas preocupações nada saudáveis.
Aquelas balas calibre quarenta não tinham efeito nenhum sobre a fera, ricocheteando pelas escamas roxas como ervilhas jogadas na lataria de um carro. Mas a carga
de chumbo da metralhadora resultou em um uivo de dor e a fez recuar.
Era a única oportunidade de Assail escapar.
Fechando os olhos, ele se concentrou, concentrou, concentrou...
Não dava para se desmaterializar. Muita adrenalina além de muita cocaína, junto com muita dor em seu ombro, pra piorar.
E a fera voltou ao ataque, voltando a se concentrar em Assail e lhe dando o equivalente dragão de um foda-se na forma de um enorme rugido...
A imensa arma disparou uma segunda vez, atingindo a coisa no peito.
— Corra! – Ehric gritou enquanto recarregava suas armas calibre 40 com invólucros saltando pela parte de trás das pequenas armas. — Levante-se!
Assail usou o braço bom para apoiar e levantar do chão, e suas pernas voltaram a funcionar com desenvoltura admirável. Segurando o braço ferido contra o peito, arrastou-se
o mais rápido que pôde, com os restos de sua jaqueta esvoaçando, o estômago embrulhado, o coração disparado.
BUM!
Por todo canto, em toda parte – ele tinha de chegar a qualquer porra de abrigo – e rápido. Que pena seu corpo não obedecer. Mesmo enquanto seu cérebro gritava por
velocidade, tudo o que conseguia fazer era cambalear como um zumbi...
Alguém o pegou por trás, erguendo-o do chão em um saco de batatas, jogando-o por cima do ombro como um bombeiro. Enquanto caía em posição de cabeça pra baixo, vomitou
de agonia com estrelas espocando em seus olhos, enquanto o estômago esvaziava com violência. As boas novas eram que ele não comia há doze ou quinze horas àquela
altura, então não sujou muito a perna da calça do primo.
Ele queria ajudar no esforço. Queria se levantar. Queria...
Arbustos o golpearam no rosto e cerrou os olhos para se proteger. Sangue começou a fluir e encheu seu nariz. Seu ombro doía cada vez mais. A pressão em sua cabeça
ficou insuportável, fazendo-o pensar em pneus muito cheios, bagagens superlotadas, balões de água que estourava e derramava seu conteúdo por todo canto.
Graças a Deus pelos primos. Eles jamais o abandonavam.
Não podia se esquecer de recompensá-los de alguma maneira.
O galpão parecia galopar na direção deles, e da posição privilegiada – de ponta cabeça – que Assail estava, a coisa parecia se dependurar da terra ao invés de estar
plantada em cima dela. Tijolos. Mesmo com os solavancos e a escuridão dava para perceber que o abrigo era de tijolos.
Era de se esperar que fosse uma construção resistente.
Seu primo arrombou a porta e o ar dentro era úmido e mofado.
Sem aviso, Assail foi largado como o lixo que era e caiu em um chão empoeirado com uma queda que o fez ter ânsia de vômito de novo. A porta se fechou e então tudo
o que ouviu foi a respiração pesada do primo. E a sua.
E os sons abafados da batalha.
Houve um súbito brilho de luz alaranjada.
Pela névoa de sua dor, Assail franziu o cenho... E então recuou. O rosto se iluminou quando um cigarro enrolado a mão foi aceso, mas não de era nenhum de seus primos.
— O quanto seu ferimento é grave? – O Irmão da Adaga Negra, Vishous, perguntou ao exalar a fumaça mais deliciosa.
— Foi você?
— Não, foi o Papai Noel.
— Que salvador improvável é você, – Assail fez uma careta e limpou a boca na manga da jaqueta. — E sinto muito por suas calças.
V olhou para si mesmo.
— Tem algo contra couro preto?
— Eu vomitei atrás delas...
— Merda!
— Bem, dá pra limpar...
— Não, cuzão, ela está vindo para cá, – V indicou a janela suja. — Maldição.
De fato, à distância, o retumbante som trovejante dos passos do dragão soou de novo, como uma tempestade se formando e vindo na direção deles.
Assail se agitou ao redor procurando algum lugar para se esconder. Um armário. Um banheiro. Um sótão. Nada. O interior estava vazio, exceto por duas pilhas até o
teto de entulhos de mais de uma década. Graças à Virgem Escriba o abrigo parecia ser tijolo firme e mais provável de aguentar...
O teto foi erguido e despedaçado de uma só vez, os pedaços chovendo, as telhas e o concreto caindo no chão como se o abrigo estivesse anunciando sua própria morte
com uma rodada de aplausos. O ar fresco da noite amenizou o cheiro mofado, mas isto dificilmente era um alívio, dado o que havia precipitado o acesso.
A fera não era vegetariana, fato. Mas também não parecia preocupada pela sua absorção de fibras: a coisa cuspiu aquele telhado de madeira para o lado, abaixou-se
e abriu sua bocarra, emitindo um bum sônico de rugido.
Não havia para onde correr. A criatura estava montada sobre o prédio, preparada para atacar o que havia se tornado sua lancheira. Não havia lugar algum para se abrigar.
Nenhuma defesa possível a tentar.
— Vá, – Assail disse ao Irmão quando aqueles grandes olhos reptilianos se estreitaram e o focinho explodiu um bafo tão quente e fétido quanto um Lixão no verão.
— Me dê sua arma. Eu vou distraí-lo.
— Não vou te deixar.
— Não sou um dos seus irmãos.
— Você nos deu a localização deles. Entregou a cabeça do Fore-lesser. Não vou te largar aqui, seu bundão.
— Quanta educação. E esses elogios. Pare.
Quando a fera soltou outro rugido e jogou a cabeça como se preparada para brincar um pouco com eles antes de devorá-los, Assail pensou em seu negócio de drogas...
Seu vício em cocaína...
A fêmea humana por quem tinha se apaixonado e a quem precisou deixar ir embora. Por que ela não conseguiria lidar com seu estilo de vida e ele estava muito preso
a isso para parar, mesmo por ela.
Ele meneou a cabeça para o Irmão.
— Não, não valho a pena salvar. Dá a porra do fora daqui.

 

CONTINUA

Nada era como costumava ser para a Irmandade da Adaga Negra. Depois de evitar a guerra com os Sombras, alianças mudaram e linhas foram desenhadas. Os assassinos da Sociedade Lesser estão mais fortes do que nunca, aproveitando-se da fraqueza humana para adquirir mais dinheiro, mais armas, mais poder. Mas enquanto a Irmandade se prepara para um ataque total pra cima deles, um dos seus luta uma batalha dentro de si mesmo...
Para Rhage, o Irmão com o maior dos apetites, mas também o maior coração, a vida era suposta ser perfeita — ou pelo menos, perfeitamente agradável. Mary, sua adorada shellan, está ao seu lado, e seu Rei e seus Irmãos estão prosperando. Mas Rhage não pode entender — ou controlar — o pânico e insegurança que o afligem...
E isso o aterroriza — como também a distância entre ele e sua companheira. Depois de sofrer um ferimento mortal em batalha, Rhage deve reavaliar suas prioridades — e a resposta, quando se trata dele, balança seu mundo... E o de Mary. Mas Mary está em uma jornada própria, uma que vai fazê-los ou se aproximar mais ou causar uma divisão que não vai ter como recuperar...


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Capítulo UM
INTERNATO PARA GAROTAS BROWNSWICK, CALDWELL, NOVA YORK
Formigamento por seu corpo inteiro.
Ao transferir seu peso de uma bota para outra, Rhage sentiu como se sua corrente sanguínea estivesse começando a fervilhar e as bolhas o pinicassem por baixo de
cada centímetro quadrado de sua carne. E isto não era nem o começo. Fibras aleatórias de músculos despertaram ao longo de todo o seu corpo, os espasmos fazendo seus
dedos tremerem, os joelhos bambearem e os ombros tensos, como se a ponto de um ataque com a força e foco de uma raquete de tênis ao atingir uma bola.
Pela milésima vez desde que tinha se materializado para aquela posição, ele varreu com o olhar o terreno mal cuidado com mato excessivamente grande à sua frente.
Antigamente, quando o internato para garotas Bronswick ainda era uma instituição em funcionamento, sem dúvida o terreno à sua frente devia ser um gramado mantido
bem cortado durante a primavera e verão, no outono diariamente limpo de folhas e belamente coberto de neve no inverno, digno de um livro de histórias infantis. Agora,
como um campo de futebol saído do inferno, cravejado e emaranhado por arbustos retorcidos, capazes de mais do que somente danos estéticos à região testicular de
um cara; mudas que pareciam filhas adotivas, feias e disformes, de carvalhos e bordos mais maduros e o mato marrom crescido de fins de outubro, eram capazes de te
fazer tropeçar como um filho da puta se tentasse correr.
Da mesma forma, o prédio que fora construído para abrigar e prover espaço de convivência e instrução aos frutos de uma elite privilegiada, envelheceram mal, carentes
de manutenção regular: janelas quebradas, portas apodrecidas, persianas destruídas e oscilando ao vento frio, como se os fantasmas fossem incapazes de se decidirem
se desejavam ser vistos ou somente ouvidos.
Era o campus do filme Sociedade dos Poetas Mortos. Supondo que todo mundo tenha feito as malas depois da gravação do filme em 1988, picado a mula e nunca mais ninguém
tenha modificado uma porra de coisa por lá desde então.
Mas o prédio não estava vazio.
Ao respirar fundo, o reflexo de deglutição de Rhage executou uma porção de tropeços no fundo de sua garganta. Tantos lessers se escondiam nos cômodos abandonados
que era impossível isolar individualmente os cheiros que golpeavam suas narinas. Cristo, era como enfiar a cara dentro um balde cheio de restos orgânicos e inalar
como se estivesse prestes a acabar todo o oxigênio do mundo.
Supondo que alguém tivesse adicionado talco de bebê ao costumeiro resto diário de cabeças e tripas de peixe.
Para dar aquele toque final, sacou?
Quando sua pele foi atacada por uma nova rodada de arrepios, ele disse à sua maldição para sossegar o facho, puta merda, que ele logo ia liberá-la. Não ia nem tentar
impedir que a maldita saísse – não que tentar puxar o freio funcionasse em qualquer circunstância ou de qualquer forma – mesmo que dar à fera liberdade total nem
sempre fosse uma coisa boa, esta noite ela seria uma vantagem imensa. A Irmandade da Adaga Negra estava a ponto de encarar quantos lessers? Cinquenta? Cento e cinquenta?
Havia muito a fazer, mesmo para eles – então, sim, seu pequeno... Presente... Da Virgem Escriba seria muito útil.
Por falar em chamadas de longa distância... Há mais de um século, a mãe da raça havia lhe dado sua própria bomba relógio, um programa de melhorias tão oneroso, tão
desagradável, tão incapacitante, que era de fato capaz de trazê-lo da beira da babaquice total, de volta à normalidade. Por cortesia do dragão, a menos que controlasse
seus níveis de energia e moderasse suas emoções, o inferno recaía sobre a terra.
Literalmente.
Sim, ao longo do último século, ele tinha se tornado altamente bem-sucedido em garantir que a coisa não comesse seus amigos ou que os fizesse aparecer no noticiário
noturno com a manchete “Jurassic Park existe de verdade”. Mas com o que ele e seus irmãos estavam prestes a enfrentar – e devido ao isolamento deste campus? Se tivessem
sorte, o grande bastardo de escamas roxas com os dentes de serra elétrica e barriga sem fundo conseguiria seu banquete. Mas só teria acesso a uma dieta balanceada,
baseada somente em lessers.
Sem petiscar os Irmãos, por favor. E sem rocamboles ou tortas de humanos, muito, muito obrigado.
Este último, mais por discrição do que afeição. Era notório que aqueles ratos sem rabo não desgrudavam de duas coisas: meia dúzia de seus amiguinhos, noturnamente
co-dependentes e evolucionariamente inferiores, e seus malditos telefones celulares. Cara, o YouTube podia ser um pé no saco quando só o que se queria era manter
por baixo dos panos uma guerra contra os mortos. Por quase dois mil anos, a luta dos vampiros contra a Sociedade Lessening não tinha sido problema de mais ninguém
além dos combatentes envolvidos, e o fato de que os humanos não conseguiam se ater a cuidar de seus próprios assuntos, tipo suas competências de arruinar o meio-ambiente
e dizer uns aos outros o que pensar e dizer, era somente uma das razões para odiá-los.
Internet do caralho.
Avaliando os arredores a fim de evitar soltar a fera cedo demais, Rhage fixou o olhar em um macho dando cobertura a uma distância de mais ou menos seis metros. Assail,
filho de Foda-se-lá-quem, usava preto dos pés à cabeça como alguém de luto, seus cabelos, escuros como os do Conde Drácula, não requeriam camuflagem adicional, seu
rosto pecaminosamente belo estava tão contraído pela ansiedade de matar que era preciso dar um crédito ao cara. Ele estava sendo de muita ajuda. E tinha mudado completamente
de direção. O traficante de drogas tinha se juntado à Irmandade, cumprindo a promessa de cortar relações comerciais com a Sociedade Lessening ao depositar a cabeça
do Fore-lesser dentro de uma caixa, aos pés de Wrath.
E também revelou este local que os assassinos vinham usando como quartel general.
E era por isto que todo mundo tinha acabado aqui, enterrado até a cintura em mato alto, esperando que a contagem regressiva de seus relógios V-sincronizados chegasse
logo a 00h00min.
Este ataque não era coisa pequena, era uma abordagem de grosso calibre ao inimigo. Depois de algumas noites – e dias, graças a Lassiter, também conhecido por 00-CUZÃO,
que havia feito reconhecimento do local durante as horas de sol – o ataque foi adequadamente coordenado, ensaiado e preparado para ser posto em prática. Todos os
guerreiros estavam aqui: Z e Phury, Butch e V, Tohr e John Mattew, Qhuinn e Blay, além de Assail e seus dois primos, Presas I e II.
Quem ligava para seus nomes, contanto que aparecessem armados e com muita munição?
A equipe médica da Irmandade também estava na área preparada para agir, com Manny em sua unidade cirúrgica móvel a um quilômetro e meio de distância, e Jane e Ehlena
em uma das vans, num raio de três quilômetros.
Rhage verificou o relógio. Seis minutos e contando.
Quando seu olho esquerdo começou a tremelicar, praguejou. Como caralhos conseguiria esperar por tanto tempo?
Expondo as presas, exalou pelo nariz, soprando correntes gêmeas de respiração condensada muito parecidas com as que antecedem o ataque de um touro.
Cristo, não conseguia se lembrar da última vez em que esteve tão tenso. E não queria pensar no motivo. De fato, vinha evitando a coisa toda do por que há quanto
tempo?
Bem, desde que ele e Mary chegaram àquela fase estranha e ele tinha começado a sentir...
— Rhage.
Seu nome foi sussurrado tão baixinho que ele se voltou por não saber ao certo se era o seu subconsciente decidindo começar um papo com ele. Não, era Vishous – pela
expressão do irmão, Rhage teria preferido ter desenvolvido dupla personalidade. Aqueles olhos diamantinos flamejavam uma luz sombria. E aquelas tatuagens ao redor
das têmporas também não ajudavam.
O cavanhaque era neutro – a menos que o avaliasse como quesito de estilo. Neste caso, o filho da puta era uma caricatura de proporções épicas.
Rhage meneou a cabeça. — Você não devia estar na sua posição...
— Tive uma visão sobre esta noite.
Ah, inferno, não, Rhage pensou. Não, não faça isto comigo agora, mano.
Virando as costas, murmurou. — Me poupe dessa coisa de Vincent Price, está bem? Ou está ensaiando para ser o cara que faz as narrações dos trailers de filmes...?
— Rhage.
— ... Pois você leva jeito pra isto. Em um mundo... Onde pessoas devem... Calar a boca e fazer seu serviço...
— Rhage.
Ao ver que ele não ia se voltar para olhá-lo, V se aproximou e o encarou, aqueles olhos pálidos pra cacete, um par de explosões nucleares gêmeas, daquelas que levantam
um nuvem em forma de cogumelo, para frente e para trás. — Quero que vá pra casa. Agora.
Rhage abriu a boca. Fechou. Abriu de novo – e teve de lembrar a si mesmo de manter a voz baixa.
— Ouça, não é uma boa hora para essa merda psíquica...
O Irmão agarrou seu braço e apertou. — Vá pra casa. Não estou brincando.
Terror gélido varreu as veias de Rhage, abaixando sua temperatura corporal... E ainda assim conseguiu menear a cabeça novamente.
— Foda-se, Vishous. Sério mesmo!
Ele não tinha o menor interesse de pôr mais nada daquela magia da Virgem Escriba em cheque. Ele não ia...
— Você vai morrer esta noite, porra.
Quando o coração de Rhage falhou uma batida, ele olhou para aquele rosto que conhecia a tantos anos traçando aquelas tatuagens, os lábios comprimidos, as cerradas
sobrancelhas escuras... E a inteligência radiante geralmente expressada através de um filtro de sarcasmo, afiado como a espada de um samurai.
— Sua mãe me deu a palavra dela. – Disse Rhage. Espere, estava realmente falando sobre bater as botas? — Ela me prometeu que quando eu morresse Mary iria comigo
para o Fade. Sua mãe disse...
— Foda-se a minha mãe. Vá pra casa.
Rhage desviou o olhar porque foi necessário. Era isto ou sua cabeça explodiria. — Não vou abandonar os irmãos. Não vai acontecer. Primeiro, você pode estar errado.
Sim, e quando foi a última vez que aquilo aconteceu? No século dezoito? Dezessete?
Nunca?
Ele falou para V.
— Segundo, não vou fugir correndo do Fade. Se começar a pensar assim vou morrer, mesmo com a arma na mão. – Ele ergueu a mão até a altura daquele cavanhaque para
evitar que o irmão o interrompesse. — E pra terminar? Se eu não lutar esta noite, não vou conseguir sobreviver ao dia de amanhã, trancado na mansão... Não sem meu
amiguinho roxo sair para o café da manhã, almoço e jantar, sacou?
Bem, havia uma quarta coisa. E era racional... Ruim, tão ruim que não conseguia encará-la por mais do que a fração de segundo necessária para ela surgir em sua mente.
— Rhage...
— Nada vai me acontecer. Está tudo sob controle.
— Não, não está – sibilou V.
— Está bem. – Rhage rosnou, endireitando o corpo. — E daí se eu morrer? Sua mãe deu à minha Mary a graça final. Se eu for para o Fade, Mary vai me encontrar lá.
Não tenho de me preocupar de me separar dela. Ela e eu ficaremos perfeitamente bem. Quem vai se importar de verdade se eu bater as botas?
V endireitou-se também.
— Você não acha que os Irmãos ligam? Sério? Muito obrigado, seu cuzão filho da puta.
Rhage verificou o relógio. Faltavam dois minutos.
Bem pareciam dois mil anos.
— E você confia em minha mãe, – Rosnou V — em algo tão importante. Nunca pensei que fosse tão ingênuo.
— Ela conseguiu me dar a porra de um alter ego T. Rex! Isto inspira uma credibilidade boa pra cacete.
De repente, sons de inúmeros pássaros soaram na escuridão que os rodeava. Qualquer um acharia que devia ser somente um bando de corujas noturnas piando ao luar.
Maldição, os dois estavam gritando.
— Não importa, V. – Sussurrou ele. — Você é inteligente pra caralho, preocupe-se com sua própria vida.
Seu último pensamento consciente antes do cérebro entrar em modo de A Hora Mais Escura e nada mais se registrar além da agressividade, foi sua Mary.
Ele visualizou a última vez em que estiveram sozinhos.
Era um ritual dele antes de enfrentar o inimigo, um talismã mental que esfregava em busca de boa sorte, e esta noite visualizou o modo como ela tinha ficado em pé
em frente ao espelho do quarto deles, aquele sobre a mesinha de apoio onde mantinham os relógios e chaves, as joias dela e os pirulitos dele, e os celulares.
Ela estava na ponta dos pés debruçada sobre a mesa, tentando colocar um brinco de pérola no lóbulo da orelha sem conseguir encontrar o furo. Com a cabeça virada
para o lado, seus cabelos castanhos escuros flutuavam sobre o ombro e o faziam querer enfiar a cara naquelas ondas recém-lavadas. E isto não era nem metade do que
o impressionava nela. O ângulo reto de seu maxilar capturava e refletia a luz da arandela na parede, e a blusa de seda cor creme, que descortinava sobre seus seios,
enfiada dentro da cintura estreita, e as calças moldavam seu corpo magro. Nenhuma maquiagem. Sem perfume.
Seria como tentar retocar a Mona Lisa ou atingir um botão de rosa com um jato de Bom Ar.
Havia centenas de milhares de pequenos detalhes nos atributos físicos de sua companheira, e nenhuma frase, nem mesmo um livro inteiro, passaria perto de descrever
sua presença.
Ela era o relógio em seu pulso, o assado quando tinha fome, o jarro de limonada quando tinha sede. Ela era sua igreja e seu coral, a montanha de sua escalada, a
biblioteca de sua curiosidade e cada nascer ou por do sol que já houve ou jamais haverá. Com um olhar ou a sílaba de uma palavra, ela tinha o poder de transformar
seu humor, levando-o às nuvens, mesmo com os pés firmes no chão. Com um único toque, ela conseguia acorrentar seu dragão interior ou fazê-lo gozar sem ele nem mesmo
estar de pau duro. Ela era todo o poder do universo compactado em uma criatura viva, o milagre que lhe tinha sido concedido, apesar dele há longo tempo não merecer
nada além de maldições.
Mary Madonna Luce era a virgem que Vishous dissera que estava em seu caminho – e era mais do que suficiente para transformá-lo em um vampiro temente a Deus.
Por falar nisto...
Rhage avançou sem esperar o sinal de “Já” de sua equipe. Correndo pelo campo, trazia as duas armas erguidas à sua frente e combustível Premium aditivado percorrendo
os músculos de suas pernas. E não, ele não parou para ouvir os irmãos praguejarem de frustração quando rompeu a cobertura e partiu cedo demais para o ataque.
Estava acostumado aos garotos emputecidos com ele.
Era muito mais difícil lidar com seus próprios seus demônios do que os irmãos.
LUGAR SEGURO, ESCRITÓRIO DA MARY
Ao desligar o telefone, Mary Madonna Luce manteve a mão sobre a superfície lisa do receptor. Como muitos dos equipamentos e móveis do Lugar Seguro, ele tinha mais
de uma década de uso, era um AT&T doado por alguma companhia de seguro ou talvez de uma corretora imobiliária, depois de ser trocado por algo mais moderno. O mesmo
com a mesa. A cadeira. Até o tapete sob seus pés. No único abrigo contra violência doméstica contra fêmeas e crianças da raça, cada centavo que saía das generosas
doações do Rei era gasto com o apoio, tratamento e reabilitação das pessoas que precisavam.
As vítimas eram admitidas gratuitamente. E ficavam na casa grande e cheia de cômodos por quanto tempo fosse necessário.
A folha de pagamento era, é claro, a maior despesa... E com notícias como a que tinha acabado de chegar pelo telefone, Mary ficava verdadeiramente agradecida pelas
prioridades de Marissa.
— Foda-se, morte. – Sussurrou ela. — Foda-se mesmo, muito, muito mesmo.
O ruído que sua cadeira emitiu quando se inclinou para trás lhe causou um estremecimento, mesmo acostumada a ele.
Olhando para o teto, sentiu uma vontade arrebatadora de entrar em ação, mas a primeira regra de qualquer terapeuta era que era preciso controlar suas próprias emoções.
Despreparo e agitação não fazia bem algum aos pacientes, e contaminar uma situação já estressante com drama pessoal por parte do profissional era totalmente inaceitável.
Se houvesse tempo, procuraria um dos outros assistentes em busca de ajuda, para esclarecer o curso de suas ações com questionamentos técnicos a fim de sentir-se
novamente centrada e permanentemente composta. Dado o rumo dos acontecimentos, tudo o que tinha era tempo para uma das respirações profundas, típicas de Rhage.
Não, não do tipo sexual.
Mais do tipo ioga, que o fazia inflar os pulmões em três puxadas de ar, prender o oxigênio e então soltá-lo, junto com a tensão em seus músculos.
Ou tentar liberar a dita tensão.
Está bem, isto não estava ajudando em nada.
Mary levantou-se e teve de se contentar com dois “quase lá” no quesito compostura: um, ajeitou a blusa de seda e correu os dedos pelos cabelos, que estava deixando
crescer; e dois, recobriu suas feições com uma máscara digna de Halloween, congelando tudo em um semblante de preocupação, calorosa e sem nenhuma indicação de estar
surtando com seu próprio trauma passado.
Ao sair para o corredor do segundo andar, o cheiro de chocolate e açúcar de confeiteiro, manteiga e farinha anunciava que a Noite dos Biscoitos estava a pleno vapor
– e por um momento insano, sentiu vontade de abrir todas as janelas para deixar o ar gelado de outubro levar aquele cheiro para fora da casa.
O contraste entre aquele conforto doméstico e a bomba que estava a ponto jogar parecia desrespeitoso, na melhor das hipóteses, uma parte a mais da tragédia, na pior.
O Lugar Seguro era uma construção de três andares da virada do século XX, apenas teto e quatro paredes, com toda a graça e distinção de um saco de pão. O que ele
tinha na verdade eram quartos e banheiros em abundância, uma cozinha funcional e privacidade suficiente para que o mundo humano nunca tivesse a menor indicação de
que os vampiros usavam a coisa à sua revelia. E então veio a expansão. Depois da morte da Wellsie, Tohr tinha feito uma doação em seu nome, o Anexo Wellesandra foi
construído nos fundos por uma equipe vampira de construção. Agora eles contavam com uma sala de convivência, uma segunda cozinha, grande o bastante para que todo
mundo se sentasse junto para comer, e mais quatro suítes para as adicionais fêmeas e seus filhos.
Marissa dirigia a instalação com coração compassivo e mentalidade fantasticamente logística, e com sete conselheiros, inclusive Mary, eles executavam um serviço
útil e cheio de significado.
Isto sim, às vezes partia seu coração ao meio.
A porta para o sótão não emitiu ruído algum quando Mary a abriu porque ela mesma tinha passado óleo nas dobradiças há algumas noites. As escadas, no entanto, rangeram
ruidosamente à sua subida, as velhas placas de madeira reclamando e guinchando, por mais que ela tentasse pisar o mais leve possível.
Era impossível não sentir-se um tipo de Mensageira da Morte.
No andar acima, a luz amarela das luminárias de latão no teto destacavam os tons avermelhados, tanto dos centenários lambris sem pintura quanto da passadeira trançada
que percorria o estreito corredor. No final dele, havia uma abertura oval e a iluminação, em tons rosados da luz exterior de segurança acima, derramava para dentro
e era dividida em quadrantes pelas divisões de seus painéis.
Das seis suítes, cinco portas estavam abertas.
Ela se dirigiu até a que estava fechada e bateu. Ao ouvir um suave “Olá?” entreabriu a porta e enfiou a cabeça.
A garotinha sentada em uma das duas camas estava penteando os cabelos de uma boneca com uma escova a qual faltavam várias cerdas. Seus cabelos longos e castanhos
estavam presos para trás em um rabo de cavalo, e o vestido folgado era feito a mão, de um tecido azulado muito gasto, mas com costuras feitas para durar. Seus sapatos
estavam gastos, ainda que amarrados cuidadosamente.
Ela parecia muito pequena no que já não era um lugar muito grande.
Abandonada contra sua vontade.
— Bitty?
Levou um momento até os olhos castanhos claros se erguerem.
— Ela não está bem, está?
Mary engoliu em seco.
— Não, querida. Sua mahmen não está bem.
— É hora de me despedir dela?
Depois de um momento, Mary sussurrou.
— Sim... Receio que sim.
Capítulo DOIS
— Isso só pode ser brincadeira, porra!
Quando viu o massivo corpo do Hollywood e a bosta da sua cabeça estúpida avançar em direção aos alojamentos, Vishous quase correu atrás só para poder acabar com
a raça do irmão. Mas nããããããããããão.
Não era possível estender a mão e catar uma bala depois que o gatilho era apertado.
Mesmo que se estivesse só tentando salvar um idiota da sepultura.
V assoviou alto, mas não era como se o resto dos guerreiros não tivessem visto também as costas do cretino distanciarem-se como um morcego fugido do inferno.
Membros da Irmandade e os outros machos explodiram fora de suas posições por trás das árvores e construções, assumindo formação de asa atrás de Rhage, de armas e
adagas empunhadas. Gritos do inimigo anunciaram que o ataque foi percebido quase imediatamente, e eles chegaram a somente meia distância do objetivo quando os lessers
começaram a jorrar pelas portas, feito vespas de uma colméia.
Muita aglomeração? Pops ocos espocavam quando Rhage descarregava sua arma por todo o canto atingindo assassinos na cara, suas balas de grosso calibre explodindo
a parte de trás daqueles crânios e derrubando os mortos-vivos em emaranhados de braços e pernas irrequietos. O que era bom – mas possivelmente não iria durar, já
que os assassinos tentavam se aproximar do cara por trás, a fim de isolá-lo e criar uma segunda linha de frente contra o resto dos irmãos.
Obrigado, Sr. Apressadinho e sua ejaculação precoce, por arruinar o plano sobre o qual se debruçaram por noites a fio.
Instalou-se o caos total, o que era de se esperar, ao contrário da ação de Rhage: do mesmo modo que era possível garantir que cada combate corporal iria eventualmente
acabar no chão, era possível garantir que mesmo o ataque melhor planejado iria, depois de um tempo, cair na área do: “Puta merda” e “Cagou a porra toda”. Se tivesse
sorte, aquela inevitabilidade levaria um tempo para lhe despencar na cabeça, e até que acontecesse, o inimigo teria baixas incapacitantes.
Mas não com Hollywood por perto.
Oh, e a propósito, quando alguém diz que você vai morrer esta noite, que tal não correr direto para uma quantidade de inimigos que beirava os três dígitos? Seu filho
da puta de merda.
— Eu estava tentando salvá-lo! – V gritou em meio à ação. Só por que agora ele podia, já que não precisavam mais manter suas presenças ocultas.
Rhage era tão impulsivo. E sabendo disto, V devia ter confrontado o idiota lá na mansão antes de saírem, mas esteve distraído demais cuidando de suas próprias coisas
para se concentrar na visão. Não foi até chegarem ao campus abandonado e ele piscar algumas vezes... Que percebeu, sim, era ali que aconteceria para Rhage. Esta
noite. Neste campo.
Não revelar seria como colocar ele mesmo uma bala no cara.
É claro, dizer algo tinha funcionado tão bem.
— Foda-se, Hollywood! – Gritou ele. — Eu vou te pegar!
Pois ele ia tirar aquele puto daquele lugar nem que fosse a última coisa que faria.
V não atirou até estar a cerca de três metros de distância do primeiro alvo – era isto ou correr o risco de atingir um dos irmãos ou outro aliado. O lesser que mirou
tinha cabelos e olhos escuros e aquela agressão típica de um urso pardo: ataque direto com uma porção de cuspidelas. Uma bala acertou no olho direito e o bastardo
caiu.
Não dava tempo de apunhalar a coisa de volta ao Ômega. Vishous passou por cima do pedaço de carne que ainda se remexia sem sair do lugar e mirou o próximo. Identificando
um assassino louro a cerca de quatro metros e meio de distância à esquerda, rapidamente avaliou a periferia para ter certeza de que a Irmandade não estava sendo
destroçada. Então, usando o dedo coberto pela luva, escolheu o cara que parecia o Rod Stewart dos anos 80.
De três ao infinito, V atingiu tudo o que parecia seguro derrubar, certificando-se de não acertar seus aliados. Uns duzentos metros de corrida estilo videogame mais
tarde, alcançou tanto cobertura quanto perigo: o primeiro dos alojamentos, que o plano original era emboscar. A maldita coisa era uma concha vazia com muitos locais
para se esconder que somente um idiota acharia estarem vazias, e ele teve cuidado em monitorar seus arredores ao caminhar cuidadosamente com as costas voltadas contra
a parede, abaixando-se debaixo de janelas, passando por cima de arbustos baixos.
O fedor de algodão doce/carne podre dos lessers o golpeava por todos os lados, espiralando ao redor devido ao vento gelado que misturava tudo em uma salada de guerra
com os ecos de disparos de armas e os gritos do inimigo. A raiva que fervilhava em suas entranhas o fez avançar, ao mesmo tempo em que o mantinha focado, enquanto
tentava derrubar alvos sem ser atingido.
Assim que alcançasse Rhage, derrubaria o maldito rei da beleza no chão.
Supondo que o destino não derrubasse o filho da puta primeiro.
O lado bom era que, com o Fore-lesser fora da jogada, a resposta da Sociedade Lessening não parecia mais coordenada do que o ataque da Irmandade, e o fato do inimigo
estar pobremente armado e pateticamente destreinado era outra vantagem. Parecia haver uma média de cinco lessers armados para cada irmão, e uma média de um para
dez guerreiros competentes – e dado os números? Aquilo bem que poderia ser o que salvaria seus traseiros.
Esquerda, pop! Direita, pop! Esquivar, cair e rolar. Levantar-se e continuar a correr. Mais dois assassinos derrubados – obrigado, Assail, seu filhodaputa maluco
– pop! Bem na sua frente.
A magia aconteceu entre cerca de cinco minutos e cinquenta mil anos de luta. Sem aviso, sentiu-se separar-se de seu corpo, desfazendo-se da carne que funcionava
de forma tão rija e com tanta eficiência, seu espírito flutuando acima da adrenalina que incendiava seus braços e pernas, sua essência testemunhando-o cobrir distâncias
e impulsionando-o a frente de uma posição acima de seu ombro direito.
Era a zona, geralmente algo que o arrebatava assim que começava a lutar. Mas com Rhage sob sua pele, grudado em seu traseiro e fodendo sua cabeça, a merda estava
atrasada para a festa.
E foi por causa dessa sua perspectiva acima do quadro, que notou primeiro o dilema que se armava.
Às vezes o contra-intuitivo, o QUEPORRAÉESSA, o agir contra a corrente, era tão importante quanto todas as coisas que se esperava ver em uma batalha.
Tipo, por exemplo, três figuras correndo lateralmente ao longo daquele show de horrores rumo à saída. É claro, podiam ser lessers que amarelaram e fugiam — exceto
por um detalhe: o sangue do Ômega em seus corpos era um puta rastreador GPS, e ter de contar para aquele tipo de chefe, que tinha amarelado e picado a mula de uma
briga daquelas, seria garantia do tipo de tortura que faria o inferno parecer um passeio no campo.
Maldição, não podia permitir que eles se fossem. Não quando poderiam acabar chamando os tiras e adicionando outra camada de merda jogada naquele ventilador.
Se é que aquilo já não tinha sido feito.
Praguejando, Vishous foi atrás dos três desertores, desmaterializando-se para a área a frente onde o trio estava se dirigindo. Ao retomar forma, descobriu que eram
malditos humanos, mesmo antes de conseguir ver que aquele que estava por último corria de costas com o que, sem dúvida, era uma porra da Apple, um pedaço de merda
iConformista, apontando e mirando, evidentemente gravando um vídeo.
Ele positivamente odiava qualquer coisa com o símbolo da Macintosh.
V pulou, interceptando o caminho do cara, o que, é claro, não foi notado pelo J.J. Abrams, por que, olá, ele estava ocupado demais filmando tudo.
Vishous meteu o pé, e enquanto o humano obedecia à lei da gravidade, o celular voou e V pegou a coisa, enfiando-a no bolso da jaqueta.
O próximo passo foi pisar no esterno do cara e enfiar a arma na sua cara. Baixando o olhar para a expressão de “Puta Merda” e o choramingo gaguejado que o cara soltava,
V precisou de todo seu autocontrole para não rasgar a garganta dele, e então ir para cima dos outros dois que continuavam a correr, tal qual Jason Voorhees. Ele
estava acima disto com humanos. Tinha trabalho de verdade pra fazer, mas nããããão, ele estava de novo limpando a bunda destes ratos sem rabo para que o resto deles
não ficassem bravinhos por saberem que vampiros existiam entre eles.
— N-n-n-n-ão me m-m-m-m-machuque – gaguejou o cara. Junto com o cheiro de urina quando o cara mijou nas calças.
— Você é patético pra caralho.
Praguejando de novo, V acessou rapidamente a mente do cara para ter certeza de que não tinham chamado a polícia – a resposta foi “não” – antes de apagar a memória
do garoto, do momento em que tinha se encontrado com os amigos para fumar maconha até quando a viagem foi interrompida pelo inferno desenfreado.
— Você teve uma viagem ruim, seu cuzão. – Murmurou V. — Viagem ruim. Isto tudo é só uma porra de uma viagem ruim. Agora corra de volta para o papai e a mamãe.
Como o bom brinquedinho programado que agora era, o garoto levantou-se sobre seus antiquados tênis Converse e disparou atrás dos amigos, com uma expressão de confusão
total no rosto enrubescido.
Vishous deu outro pulo à frente e interceptou Frick e Frack. E, quem diria, a mera presença de V se materializando do nada à frente deles foi suficiente para deixá-los
em pânico – os dois congelaram no lugar como cães acorrentados ficando sem espaço na corrente, com um puxão para trás, esvoaçando suas parkas combinando.
— Vocês cuzões estão sempre no lugar errado na hora errada.
Mentalmente apagou suas memórias e os revistou, esvaziando seus bolsos ao mesmo tempo em que os cérebros – então os mandou retomar a fuga, rezando para que um ou
outro não tivesse alguma doença cardíaca não diagnosticada que subitamente disparasse sob tensão, matando-o instantaneamente.
Mas até aí, V era um bastardo malvado, então tudo bem.
Não havia tempo a perder. Voltou a tentar alcançar Rhage, sacando novamente suas armas e buscando uma maneira mais eficiente de chegar até o filho da puta. Que pena
que desmaterializar-se direto no meio do entrevero estava fora de cogitação, mas merda, tinha arma demais apontando para cada direção naquele quadrante. Ao menos
a necessária cobertura veio rápido, primeiro em uma série de árvores de bordo e então na forma de um prédio que devia ser ainda outro alojamento.
Batendo as costas contra os tijolos frios e duros, seus ouvidos se aguçaram ante o som de sua respiração pesada. Os disparos mais intensos estavam à sua esquerda,
acima e à frente, e rapidamente trocou ambos os cartuchos, mesmo que ainda houvesse três balas em um e duas no outro. Recarregado, correu na direção da quina do
prédio e espiou...
O assassino atirou na última janela sob a qual ele estava e, não fosse o ruído do caixilho, V teria sido ferido. Foi o instinto, ao invés do treinamento, que fez
seu braço se erguer e apontar para a lateral antes de ter consciência de estar se movendo, e o dedo indicador disparar meio quilo de chumbo bem nas fuças do fodido,
fazendo nuvens de sangue preto explodir da parte de trás do crânio como um vidro de nanquim caindo de uma grande altura.
Infelizmente, uma contração autônoma do aperto do assassino na arma automática que trazia na mão, causou o disparo de algumas balas e a ardência na lateral do quadril
de V mostrou que ele foi atingido, pelo menos uma vez. Mas melhor ali do que em outra parte do corpo...
Um segundo assassino surgiu da esquina e V o atingiu na garganta com a arma da mão esquerda. Aquele parecia estar desarmado, nada digno de nota, caiu na grama alta
quando a coisa agarrou a frente do pescoço para tentar conter o jorro negro.
Não havia tempo para recolher nenhuma arma ou apunhalá-los de volta ao Ômega.
À frente, Rhage estava com problemas.
No coração do campus, na área retangular formada por prédios erguidos com uns cinco acres de distância, Rhage estava no centro da atenção de uma galera da primeira
fila, composta por pelo menos vinte assassinos que o rodeavam.
— Jesus Cristo. – Murmurou V.
Não havia tempo para elaborar uma estratégia. Dã. E ninguém mais viria ajudar Hollywood. Os outros irmãos e guerreiros estavam muito ocupados, o ataque tendo se
dissipado em meia dúzia de escaramuças se desenvolvendo em diferentes quadrantes.
Não havia ninguém disponível em uma situação que bem necessitava de três ou quatro anjos salvadores. Ao invés de um que tinha um ferimento na coxa e um rancor do
tamanho do Canadá.
Maldição, ele estava acostumado a estar sempre certo, mas às vezes isto era um pé no saco.
Vishous avançou e se concentrou na lateral da briga, escolhendo assassinos enquanto tentava dar a seu irmão uma rota de escape viável. Mas Rhage... Porra, Rhage.
Ele estava, de alguma forma, totalmente imerso naquilo. Mesmo que a matemática não chegasse a resultado algum além de caixão, o maldito imbecil era de uma beleza
mortal ao lentamente girar, esvaziando as armas nos que estavam mais perto, recarregando sua automática sem perder um movimento, criando um anel de corpos que se
contorciam, meio mortos, meio vivos, como se estivesse no olho de um furacão destruidor.
A única coisa que não parecia estar sob controle? Seu belo rosto, digno de uma história infantil, estava contorcido no esgar de um monstro, a raiva assassina dentro
dele nem ao menos parcialmente contida. E isto teria sido quase aceitável.
Não fosse o fato de se esperar profissionalismo por parte dele.
Aquele tipo de emoção assassina era um comportamento amador, o tipo de coisa que te cegava ao invés de te manter focado, te enfraquecia ao invés de te tornar invencível.
Vishous trabalhou o mais rápido que pôde mirando em peitos, entranhas, cabeças, até o fedor saturar o ar livre, mesmo com o vento soprando em direção oposta. Mas
tinha de compensar o campo de tiro, sempre circular, de Rhage, tentando ficar ele próprio fora de alcance, por que tinha certeza de que o irmão não conseguiria diferenciá-lo
de seus alvos.
E esta era a porra do problema quando você entrava despreparado na luta.
E então acabou.
Mais ou menos.
Mesmo depois daqueles vinte ou vinte e cinco lessers estarem caídos no chão, Rhage ainda girava e continuava a atirar, um carrossel mortal sem passageiros em seus
cavalos demoníacos, estúpidos demais para saberem onde seu próprio botão de desligar ficar.
— Rhage! – V olhou ao redor mantendo as armas apontadas, mas sem atirar. — Seu maldito idiota! Pare!
Pop! Pop! Pop-pop!
O cano de Hollywood continuou a tossir flashes de luz mesmo que não houvesse mais alvos – exceto outros guerreiros à distância, fora de alcance naquele momento.
Mas não era garantido que permanecessem assim.
Vishous se aproximou, passando por cima dos corpos que se agitavam no chão, mantendo-se às costas de Rhage, que ainda girava.
— Rhage!
A tentação de atirar na bunda do cara foi tão forte, que sua mão direita chegou a abaixar o cano até à altura do traseiro. Mas era só uma fantasia. Dar a Hollywood
uma injeção de chumbo só dispararia a fera quando o próprio V estava ao alcance para virar seu aperitivo.
— Rhage!
Algo deve ter chegado até o irmão por que a barragem de tiros inúteis diminuiu... E então parou, deixando Rhage arfando, curvando-se de forma neutra.
Estavam tão a descoberto que ambos bem podiam ter setas de neon apontando para suas cabeças.
— Você vai sair daqui. – Rosnou V. — Está brincando comigo, porra, nessa merda...
Foi quando aconteceu.
Em um segundo, estava contornando para ficar de frente para o irmão... E no seguinte ele viu, pelo canto dos olhos, um dos lessers não-suficientemente-mortos erguer
um braço instável... Com uma arma anexada à extremidade. Quando a bala explodiu para fora daquele cano, o cérebro de V fez os cálculos de distância e ângulo tão
rápido quanto o vôo da bala de chumbo.
Direto para o peito de Rhage.
Bem no meio do peito de Rhage – por que, olá, era o maior alvo, tirando a porra da porta do alojamento do campus.
— Não! – Gritou V ao pular e se interpor no caminho.
É, pois ele morrer no lugar de Rhage seria um resultado bem melhor, né? Perder/perder, de ambos os jeitos.
Não houve dor alguma em seu vôo, nem o som ressoante da entrada de uma bala na lateral de seu corpo, seu quadril, sua outra coxa.
Por que a maldita coisa já tinha encontrado outro lar.
Rhage soltou um grunhido e suas duas armas apontaram para o céu, aquela típica compressão autônoma nos gatilhos naquelas mãos esvaziaram os cartuchos: bang, bang,
bang, bang! Para o céu, para o paraíso, como se Rhage estivesse amaldiçoando de dor.
E então o irmão caiu.
Ao contrário dos garotos do Ômega, um ferimento certeiro como aquele mataria qualquer vampiro, mesmo um membro da Irmandade. Ninguém escapava daquele tipo de merda,
ninguém.
Ao gritar de novo, V caiu em seu próprio pedaço de chão e descarregou uma de suas amas, enchendo o assassino com tanto chumbo que o fodido poderia virar um cofre
de banco.
Com a ameaça neutralizada, engatinhou até o irmão se arrastando de lado com as armas e a ponta dos coturnos. Para um macho que nunca sentia medo, ele se viu olhando
para a boca escancarada do puro terror.
— Rhage! – Disse ele. — Puta que pariu... Rhage!
Capítulo TRÊS
O novo centro médico de Havers estava localizado do outro lado do rio, em meio a uma área florestal de quatrocentos acres, intocado a não ser por uma velha fazenda
e três ou quatro quiosques recém-construídos que serviam de entrada para a instalação subterrânea. Enquanto dirigia o último trecho da viagem de vinte minutos em
seu Volvo XC70, Mary fitava seguidamente o espelho retrovisor, preocupada com Bitty.
A garota estava sentada no banco de trás do utilitário e olhava pela janela escura ao seu lado, como se fosse uma televisão transmitindo um programa viciante.
Cada vez que Mary voltava a se concentrar na estrada a sua frente, apertava o volante com mais força. E o acelerador.
— Estamos quase chegando. – Disse ela. De novo.
A afirmação pretendia ser confortadora, mas não estava fazendo bem nenhum à Bitty e Mary sabia que só tentava acalmar a si própria. A ideia de que pudessem não chegar
a tempo ao lado do leito era um fardo hipotético que não conseguia evitar de cogitar – e cara, aquela sensação de pesar e frustração a fazia sentir-se incapaz de
respirar.
— Aqui está o desvio.
Mary ligou a seta e entrou à direita, para uma via de mão única que era irregular e exatamente o que toda a sua agitação interna não precisava.
Mas também, ela bem poderia estar em uma super rodovia perfeitamente asfaltada e seu coração continuaria a parecer dançar a conga dentro do peito.
O único centro médico da raça tinha sido construído para dispersar, tanto a atenção humana quanto os efeitos impiedosos da luz do sol, e ao trazer alguém ou buscar
tratamento médico para si mesmo, era designado um dos vários pontos de entrada. Quando a enfermeira tinha ligado para dar a triste notícia, Mary foi orientada a
ir diretamente à fazenda e estacionar lá, e foi o que fez, parando entre uma caminhonete que era nova e um sedã Nissan que não era.
— Está pronta? – Perguntou pelo retrovisor ao desligar o carro.
Diante da ausência de resposta, circulou o carro até a porta de Bitty. A garota pareceu surpresa ao descobrir que já tinham chegado e as pequenas mãos remexeram
para soltar o cinto de segurança.
— Quer ajuda?
— Não, obrigada.
Bitty estava claramente determinada a sair sozinha do carro, mesmo que levasse mais tempo do que se aceitasse a ajuda. E o atraso talvez fosse intencional. A sensação
de insegurança quanto ao que aconteceria depois daquela morte era quase terrível demais para se imaginar. Sem família. Sem dinheiro. Sem educação.
Mary apontou um celeiro atrás da fazenda.
— Vamos por ali.
Cinco minutos depois, passaram por alguns pontos de controle e desceram pelo elevador, de onde saíram para uma recepção muito limpa e iluminada e uma sala de espera
que cheirava exatamente igual àquelas dos hospitais humanos: aroma artificial de limão, vaga mistura de perfume e o tênue cheiro do jantar de alguém.
Pavlov tinha razão, Mary pensou ao se aproximar da recepção central. Só era preciso aquela combinação de anti-séptico e ar viciado em seu nariz para sentir-se de
volta àquela cama de hospital, com tubos entrando e saindo dela, as medicações que tentavam matar o câncer em seu sangue fazendo-a sentir, na melhor das hipóteses,
como se estivesse com gripe, e na pior, como se fosse morrer a qualquer momento.
Época divertida.
Quando a enfermeira loura atrás da tela do computador ergueu o olhar, Mary disse:
— Oi, eu sou...
— Siga por ali. – A fêmea disse com urgência. — Pelas portas duplas. Vou destravá-la. O posto de enfermagem fica bem à frente. Elas te levarão direto para lá.
May não esperou nem para agradecer. Agarrou a mão de Bitty, apressou-se pelo chão brilhoso e polido, e empurrou as portas de metal assim que ouviu o mecanismo da
tranca ser liberado.
Do outro lado das cadeiras confortáveis e das revistas muito folheadas da sala de espera, tudo era profissionalmente clínico, pessoas de jaleco e com os tradicionais
uniformes de enfermagem brancos, andando para lá e para cá carregando bandejas, notebooks e estetoscópios.
— Por aqui. – Alguém chamou.
A enfermeira em questão tinha cabelos pretos bem curtos, olhos azuis que combinavam com seu uniforme e um rosto tipo Paloma Picasso.
— Eu levo vocês até ela.
Mary pôs-se atrás de Bitty, guiando a garota pelos ombros enquanto andavam pelo corredor e então outro para o que obviamente levava à área da UTI: quartos normais
de hospital não possuíam paredes de vidro com cortinas cerradas por dentro. Não tinham tanta equipe em volta. Não tinham painéis com sinais vitais piscando atrás
do posto de enfermagem.
Quando a enfermeira parou e abriu uma das portas, o ruído do equipamento médico soava urgente, um tipo frenético de bips e guinchos que sugeriam que os computadores
estavam preocupados com o que estava acontecendo à paciente.
A fêmea manteve a cortina afastada.
— Podem entrar.
Quando Bitty hesitou, Mary se abaixou.
— Não vou sair do seu lado.
E de novo, era algo que Mary estava dizendo por si mesma. A garota nunca tinha parecido particularmente interessada com qual membro da equipe do Lugar Seguro estava
ou não ao seu redor.
Quando Bitty permaneceu no mesmo lugar, Mary levantou o olhar. Havia duas enfermeiras verificando os sinais vitais de Annalye, uma de cada lado da cama, e Havers
também estava lá colocando algum tipo de medicação no acesso intravenoso daquele braço assustadoramente fino.
Por uma fração de segundo, ela violentamente conscientizou-se do quadro. A figura na cama tinha cabelos escuros ralos, a pele estava cinzenta, os olhos estavam fechados
e uma boca que estava relaxada – e durante aquele instante infinito enquanto Mary olhava para a fêmea que estava morrendo, não conseguia decidir se estava vendo
sua própria mãe ou a si mesma em cima daquele travesseiro imaculadamente branco.
Não posso fazer isto, pensou.
— Vamos lá, Bitty. – Disse com a voz rouca. — Vamos até lá segurar a mão dela. Ela vai gostar de saber que você está aqui.
Enquanto Mary levava a garota, Havers e a equipe desaparecia ao fundo, recuando sem estardalhaço como se soubessem muito bem que não havia nada que pudessem fazer
para interromper o inevitável e que a chance de Bitty dizer adeus era o caminho inevitável.
Ao lado da cama, Mary manteve a mão sobre o ombro de Bitty.
— Tudo bem, pode tocá-la. Aqui.
Mary se inclinou à frente e segurou a suave mão gelada.
— Olá, Annalye. Bitty veio te ver.
Olhando para a garota, ela anuiu em encorajamento... E Bitty franziu o cenho.
— Ela já está morta? – A garota sussurrou.
Mary piscou com força.
— Ah, não, querida. Ela não está. E consegue te ouvir.
— Como?
— Ela consegue. Vá em frente. Fale com ela. Sei que vai gostar de ouvir sua voz.
—Mahmen? – Disse Bitty.
— Segure a mão dela. Está tudo bem.
Quando Mary recuou um passo, Bitty estendeu a mão... E quando o contato foi feito, a garota franziu o cenho de novo.
— Mahmen?
De repente, alarmes começaram a soar com pânico renovado, os sons estridentes invadindo a frágil conexão entre mãe e filha, trazendo a equipe médica de volta para
a cama apressadamente.
— Mahmen! – Bitty agarrou com ambas as mãos. — Mahmen! Não vá!
Mary foi forçada a puxar Bitty para tirá-la do caminho quando Havers começou a gritar ordens. A garota lutou contra seu gesto, mas então entrou em colapso gritando
com os braços estendidos na direção da mãe e o cabelo emaranhando.
Mary segurou o pequeno corpo agitado.
— Bitty, oh, Deus...
Havers aproximou-se da cama e começou a fazer massagem cardíaca enquanto o ressuscitador de emergência era trazido.
— Temos de ir, – Disse Mary, empurrando Bitty na direção da porta. — Vamos esperar lá fora...
— Eu a matei! Eu a matei!
Ao derrapar na direção de Rhage, Vishous caiu de joelhos e buscou pela jaqueta de couro e camisa do irmão, arrancando as camadas de tecido e expondo...
— Ai... Caralho.
A bala tinha entrado à direita do centro, exatamente onde ficava o coração de seis válvulas de um vampiro dentro das costelas. E quando Rhage ofegou em busca de
ar e cuspiu sangue, V olhou ao redor freneticamente. Guerra pra todo canto. Cobertura em canto nenhum. O tempo... Estava acabando...
Butch vinha correndo até eles de cabeça baixa, disparando um par de armas calibre 40 ao redor de si mesmo em ciclos de bombeamento, de forma que os assassinos ao
alcance tinham de cair no chão em posição fetal para evitar serem atingidos pelos tiros. O ex-tira abaixou-se, as armas ainda erguidas e prontas para disparar, suas
pernas de buldogue e torso se jogaram também na grama alta marrom.
— Temos de tirá-lo daqui. – Aquele sotaque de Boston anunciou.
A boca de Rhage abriu largamente e a inalação que veio em seguida era chiada como uma caixa de pedras.
Geralmente o cérebro de V era aguçado pra caralho, sua grande inteligência era mais uma característica pessoal que uma aptidão e definia tudo em sua vida. Ele era
o racional, o lógico, o filho da puta cínico que nunca errava.
E ainda assim, suas células cinzentas imediatamente pifaram.
Anos de prestação de assistência médica e intervenções em campo lhe diziam que seu irmão ia morrer em um minuto ou dois, caso o músculo do coração tivesse sido mesmo
dilacerado ou perfurado, e uma ou mais válvulas começasse a vazar sangue na cavidade torácica.
Isto resultaria na interrupção da função cardíaca quando o saco peritoneal se inundasse e fatalmente comprometeria a pressão sanguínea.
Era o tipo de ferimento catastrófico que requeria intervenção cirúrgica imediata – e mesmo assumindo que tivessem toda a tecnologia e equipamentos necessários em
uma situação de clínica esterilizada, o sucesso não era garantido.
— V! Temos de tirá-lo daqui...
Balas voavam ao redor e ambos se jogaram no chão. Com um terrível cálculo mental, a unidade de processamento de V chegou a uma conclusão insustentável: a vida de
Rhage ou a deles.
Porra! A culpa é minha, pensou V.
Se não tivesse contado ao irmão sobre a visão, Rhage não teria corrido prematuramente e teria tido mais controle sobre a luta...
Vishous ergueu suas armas e abateu três assassinos que se aproximavam enquanto Butch girava no chão e fazia o mesmo na direção oposta.
— Rhage, fique conosco. – V grunhiu ao se desfazer do cartucho vazio e recarregar as armas, uma após a outra. — Rhage, você precisa... Merda!
Mais tiros. E ele foi atingido no maldito braço.
Enquanto seu próprio sangue corria, ele ignorou, seu cérebro lutando para encontrar uma solução que não resultasse na porra de uma pira funerária para Rhage. Ele
podia chamar Jane por que ela não podia morrer. Mas ela não conseguiria executar uma cirurgia cardíaca de peito aberto aqui, pelo amor de Deus. E se...
O flash de luz foi tão brilhante, tão súbito, que o fez se perguntar quem infernos estaria perdendo tempo apunhalando um lesser de volta para o Ômega...
O segundo jorro de iluminação o fez girar e olhar para Rhage. Oh... Merda. Feixes gêmeos de luz brilhante espocavam das órbitas dos olhos do irmão, apontando para
o céu como feixes de laser em correntes paralelas que poderiam atingir a face da lua.
— Caraaaaaalho!
Mudança total de planos. O tema filho da puta da noite.
V avançou para Butch e o puxou, afastando-o de Rhage.
— Corre!
— O que está fazendo... Santa Maria, mãe de Deus!
Os dois puseram-se a correr desabaladamente mantendo a cabeça baixa, as pernas comendo a distância pela área aberta, enquanto pulavam sobre lessers e se desviavam
para se tornarem alvos mais difíceis. Ao chegarem à construção mais próxima da escola abandonada, eles se alternaram nos cantos em busca de cobertura, V pela frente,
Butch pelos fundos.
Com o peito ofegando, Vishous se inclinou. No centro da clareira, a transformação torturava o corpo caído de Rhage, seus braços e pernas se contorciam enquanto seu
torso convulsionava e tinha espasmos, a fera emergindo da carne do macho, o grande dragão se libertando do DNA que era forçado a compartilhar.
Se Rhage não tivesse morrido ainda, aquilo certamente o mataria.
E ainda assim, não havia como interromper a transformação. A Virgem Escriba tinha entremeado a maldição em cada uma das células de Rhage, e quando a hora chegava,
o processo era um trem descarrilado que ninguém conseguia deter.
A morte cuidaria disto.
A morte de Rhage... Acabaria com aquilo tudo.
V fechou os olhos e gritou por dentro.
Um segundo depois ergueu as pálpebras e pensou, “de jeito nenhum, porra”. “De jeito nenhum, cacete, que vou deixar isto acontecer.”
— Butch, – Rosnou ele. — Tenho que ir.
— O que? Onde você...
Foi a última coisa que Vishous ouviu ao se levantar e desaparecer.
Capítulo QUATRO
Não havia dor.
Nenhuma dor vinha do ferimento que a bala fez no peito de Rhage. E aquela era a primeira indicação de que a merda era séria. Ferimentos que doem tendem a não ser
do tipo que te coloca em estado de choque. Não sentir nada? Provavelmente uma boa indicação – juntamente com o fato de ele ter desabado no chão e o tiro ter sido
certeiro em seu peito – de que corria perigo mortal.
Piscada. Tente respirar. Piscada.
O sangue em sua boca, espesso em sua garganta... Uma maré crescente que ia contra seus esforços de fazer o oxigênio entrar em seus pulmões. A audição tinha se reduzido
a uma abafada versão de si mesma, como se estivesse deitado de costas em uma banheira e o nível da água tivesse subido até cobrir seus dois ouvidos. A visão ia e
vinha, o céu noturno acima dele se revelava e se obscurecia, enquanto as coisas falhavam e voltavam a aparecer. Respirar ficava cada vez mais difícil, um peso crescente
se instalava em seu peito, primeiro como uma sacola, então um baú cheio... Agora já no nível de um trem de carga.
Rápido, estava acontecendo rápido demais.
Mary, ele pensou. Mary?
Seu cérebro cuspiu o nome de sua shellan – talvez ele tenha mesmo chamado em voz alta? – como se sua companheira pudesse ouvi-lo, de alguma forma.
Mary!
O pânico inundou sua corrente sanguínea, acumulando-se dentro das costelas – junto com o plasma que, sem dúvida, estava vazando pela porra toda. Seu único pensamento,
mais do que a morte, a batalha ou mesmo a segurança dos irmãos, era... Oh, Deus, faça a Virgem Escriba manter sua parte da barganha.
Não permita que ele acabe no Fade sozinho.
Mary devia deixar a terra com ele. Devia lhe ser permitido segui-lo quando ele fosse para o Fade. Era parte do acordo que tinha feito com a Virgem Escriba: ficaria
com a maldição e sua Mary sobreviveria à leucemia, e por que sua companheira tinha se tornado infértil devido ao tratamento contra o câncer, ela ficaria com ele
pelo tempo que quisesse.
Você vai morrer esta noite, porra.
Bem ao ouvir a voz de Vishous em sua mente, o rosto do irmão apareceu em seu campo de visão, substituindo o céu. A boca de V se movia, o cavanhaque ondulava enquanto
enunciava as palavras. Rhage tentou afastar o macho, mas seus braços não obedeciam aos comandos de seu cérebro.
A última coisa que precisava era que outra pessoa também morresse. Embora, sendo o filho da Virgem Escriba, V provavelmente seria o último a se preocupar sobre algo
tão improvável quanto bater as botas. Mas quando Butch, o terceiro elo do trio, chegou escorregando e berrando também? Agora, ali estava um cara que não tinha um
cartão de dispensa da Dona Morte...
Tiros. Ambos começaram a atirar.
Não! Rhage ordenou a eles. Diga a Mary que eu a amo e me deixem aqui antes que vocês...
V recuou como se algo de chumbo tivesse penetrado em alguma de suas partes.
E foi quando aconteceu.
Foi o cheiro do sangue do irmão que desencadeou. No instante em que aquela nuance de cobre atingiu o nariz de Rhage, a fera despertou dentro da prisão de seu corpo
e começou a sair, a mudança dando início a terremotos internos que estalaram seus ossos, despedaçaram seus órgãos internos e o transformaram em uma coisa totalmente
diferente.
Agora havia dor.
Bem como a sensação de que este esforço era uma perda da porra do tempo. Se ele ia morrer, o dragão estava só tomando seu lugar na merda da situação.
— Diga a Mary para vir comigo. – Rhage gritou ao ficar completamente cego. — Diga a ela...
Mas teve a sensação de que os irmãos já tinham se afastado e graças a Deus por isso: o sangue de V não estava mais no ar e ninguém respondeu.
Mesmo quando sua força vital se esvaiu, fez de tudo para seguir a corrente enquanto os violentos movimentos da fera destruíam seu corpo moribundo. Mesmo que tivesse
a energia, lutar contra aquela corrente seria desperdício de esforço e não facilitaria nada. Entretanto, enquanto seu corpo e mente, suas próprias emoções e consciência
recuavam, era estranho que não soubesse se era a morte ou a transformação que estava ocorrendo a ele.
Quando o sistema nervoso da fera assumiu completamente o controle sobre ele e suas sensações de dor desapareceram, Rhage recuou a uma zona de flutuação metafísica,
como se quem e o que ele era fosse depositado em um globo de neve no alto da prateleira do continuum tempo.
Só que neste caso tinha a impressão que não seria mais retirado de lá.
O que era engraçado. Cada uma das criaturas que tinham consciência e sabiam de sua própria mortalidade inevitavelmente se perguntavam, de vez em quando, quando e
onde, como e por que de sua própria morte. O próprio Rhage tinha seguido este fluxo mórbido de pensamento, especialmente durante seu período pré-Mary, quando era
um solitário sem nada além de um catálogo de suas falhas e fraquezas para lhe fazer companhia durante as densas e desertas horas de luz do dia.
Para ele, aquelas questões desconexas tinham sido inesperadamente respondidas esta noite: “onde” era no meio do campo de batalha em uma escola abandonada para garotas;
“como” era devido a uma hemorragia cardíaca, resultado de um tiro; “por que” era consequência de seu dever; “quando” seria provavelmente nos próximos dez minutos,
talvez menos.
Dada a natureza de seu trabalho, nada daquilo era surpresa. Está bem, talvez a parte da escola fosse, mas só isso.
Ele sentiria falta dos irmãos, Jesus... E aquilo doía mais do que a fera. E se preocuparia com todos eles e o futuro do reinado de Wrath. Merda, perderia o crescimento
de Nalla e L.W1. E o nascimento dos gêmeos de Qhuinn... Que nasçam vivos e saudáveis. Será que conseguiria ver a todos de lá do Fade?
Oh, sua Mary. Sua bela, preciosa Mary.
O terror o atingiu, mas era difícil apegar-se à emoção enquanto sentia-se enfraquecer cada vez mais. Para se acalmar, disse a si mesmo que a Virgem Escriba não mentia.
A Virgem Escriba era toda poderosa. A Escriba Virgem tinha determinado o equilíbrio necessário para salvar a vida de sua Mary e dera a eles o grande presente para
compensar o fato de que sua shellan nunca poderia ter filhos.
Sem filhos, pensou com um angústia. Ele e sua Mary jamais teriam filhos de qualquer forma agora.
Isto era tão triste.
Estranho... Não tinha pensando que os queria, pelo menos não conscientemente. Mas agora que tudo aquilo tinha acontecido? Estava totalmente desolado.
Pelo menos sua Mary jamais o abandonaria.
E precisava ter fé em que, quando chegasse às portas do Fade e prosseguisse a atravessá-la para o que havia do outro lado, ela conseguiria encontrá-lo.
Senão, esta coisa toda de morte seria insuportável de enfrentar. A ideia de que poderia estar morrendo e que jamais veria sua amada de novo? Jamais voltar a sentir
o cheiro de seus cabelos? Sentir seu toque? Falar a verdade mesmo que ela já soubesse, do quanto a amava?
Era por tudo isto que a morte era tal tragédia, pensou. Era o grande separador, e às vezes atingia sem aviso, um ladrão cruel roubando as pessoas de seus cursos
emocionais que os arruinaria pelo resto de suas vidas...
Merda, e se a Virgem Escriba estivesse errada? Ou tivesse mentido? Ou não fosse tão poderosa?
Subitamente seu pânico recarregou e seus pensamentos começaram a embaralhar, prendendo-o na distância que ultimamente tinha aparecido entre ele e sua shellan, distância
que tinha subestimado, achando que teria tempo e espaço para corrigir.
Oh, Deus... Mary, disse em sua cabeça. Mary! Eu te amo!
Merda. Devia ter falado sobre estas coisas com ela, escavado profundamente para descobrir onde estava o problema, aproximando-os novamente até que estivessem de
novo alma-a-alma.
O problema era, percebeu com terror, enquanto o coração finalmente parava de bater em seu peito, tudo o que você desejava ter dito, todas as peças que faltavam de
si mesmo que ainda tinha a oferecer, todas as falhas que tinha varrido para baixo do tapete, sob a desculpa da vida ser corrida demais... Aquilo acabava também.
O meio do passo, que jamais seria completado, era o pior arrependimento que alguém poderia ter.
Talvez você só não aprendesse isto até que todas as coisas sobre as quais sempre se questionou sobre sua morte realmente acontecesse. E sim, aquelas perguntas que
sempre se fez, os comos e porquês, ondes e quandos... Se tornavam malditamente imateriais quando você partia desta existência.
Eles tinham se afastado, ele e Mary.
Ultimamente... Eles perderam um pouco da conexão entre eles.
Ele não queria partir assim...
Luz branca varreu tudo, devorando-o vivo, roubando sua consciência.
O Fade tinha vindo até ele. E só podia rezar para que sua Mary Madonna fosse capaz de encontrá-lo do outro lado.
Tinha coisas que precisava desesperadamente dizer a ela.
Vishous reassumiu a forma em um pátio de mármore branco que se abria para um céu leitoso tão vasto e brilhante que não havia sombras lançadas pela fonte no centro
ou pela árvore cheia de passarinhos coloridos chilreando mais ao canto.
Os quais silenciaram ao pressentirem seu humor.
— Mãe! – Sua voz entoou, ecoando entre as paredes. — Onde diabos você está!?
Ao avançar, a trilha de sangue que deixou à sua passagem era de um vermelho brilhante e, quando parou à porta que levava aos aposentos particulares da Virgem Escriba,
gotas caíram de seu cotovelo e perna em impactos suaves. Quando bateu e chamou novamente o nome dela, salpicos do sangue tingiram a porta branca, como esmalte de
unha caindo no chão.
— Foda-se!
Forçando a porta com o ombro, invadiu os aposentos da mãe – só para parar de supetão. Sobre a plataforma de dormir, debaixo de lençóis de cetim branco, a entidade
que tinha criado a raça vampírica e também corporeamente gerado ele e sua irmã, estava deitada em absoluta imobilidade e silêncio. Mas não havia forma corpórea nela.
Somente uma poça tridimensional de luz que outrora fora tão brilhante quanto o estouro de uma bomba, mas agora era como uma antiquada lamparina com a luz embaçada.
— Você precisa salvá-lo, – Ao cruzar o chão de mármore, Vishous reparou vagamente que o quarto estava vazio, exceto pela cama. Mas quem se importava? — Acorda, porra!
Alguém importante está morrendo e você precisa impedir, maldição.
Se ela tivesse um corpo, ele a teria agarrado e forçado a prestar atenção. Mas não havia braços para ele puxar para fora da cama ou ombros para chacoalhar.
Estava a ponto de gritar de novo quando palavras soaram pelo quarto como se viessem de um sistema de som surround.
O que tiver de ser, será.
Como se isto explicasse tudo. Como se ele fosse um cuzão por ter vindo incomodá-la. Como se estivesse desperdiçando o tempo dela.
— Por que nos criou se não liga a mínima?
Exatamente o que te preocupa? O futuro dele ou o seu?
— Do que infernos está falando? – Oh, e sim, sabia que não devia questioná-la, mas foda-se. — O que isto significa?
Será necessário mesmo uma explicação?
Ao cerrar os dentes, V lembrou a si mesmo de que Rhage estava em campo se transformando em um monstro e morrendo daquela encarnação: ficar de bate boca com a querida
mamãe não seria o melhor caminho aqui.
— Apenas salve-o, tudo bem? Tire-o daquele teatro de horrores para que possamos operá-lo e eu te deixo aqui para apodrecer em paz...
E isto resolveria o destino dele em que?
Está bem, agora sabia por que os humanos com questões maternas iam àqueles programas que o Lassiter gostava de assistir. Cada vez que V chegava perto desta fêmea,
entrava em estado de psicose induzida pelo útero.
— Ele vai continuar respirando, é isto que vai resolver.
O destino vai acabar se cumprindo de outras maneiras.
V imaginou Hollywood escorregando no tapete do banheiro numa queda em casa que o mataria. Ou engasgando com uma coxa de peru. Ou só Deus sabe o que mais poderia
matar o irmão.
— Então o mude. Você é poderosa pra cacete. Mude o destino dele agora mesmo.
Houve uma longa pausa e se perguntou se ela não teria caído no sono de novo ou merda do tipo – e cara, ele realmente a odiou. Ela era uma maldita desistente, retirando-se
do mundo, isolando-se aqui em cima como uma reclusa rabugenta só por que ninguém mais estava beijando sua bunda do jeito que ela queria.
Que peninha.
Enquanto isto, um dos melhores guerreiros deles, um que era absolutamente indispensável na guarda privada do Rei, estava a ponto de se pirulitar deste planeta. E
V era a última pessoa a querer que outra pessoa resolvesse os problemas por ele, mas tinha de tentar salvar Rhage com tudo o que podia, e quem diabos mais tinha
este tipo de poder?
— Ele é importante, – V rosnou. — A vida dele é importante.
Pra você.
— Foda-se, isto não é sobre mim. Ele importa ao Rei, à Irmandade, à guerra. Se o perdermos? Teremos um problemão.
Por que não tenta ser honesto?
— Acha que estou preocupado com ele e Mary? Sim. Confesso essa merda também por que neste exato momento você não parece ser capaz sequer de ficar em pé, quanto mais
acompanhar uma não-entidade que você arrancou do reino mortal pela travessia até o Fade no momento em que ela quiser.
Porra. Agora que tinha falado em voz alta, realmente tinha de se perguntar se aquela coisa alquebrada em cima da cama poderia mesmo cumprir a promessa que fizera
no que parecia ser antigamente, mesmo que só tivesse sido há três anos.
Tanta coisa tinha mudado.
Exceto o fato de que ainda odiava qualquer tipo de fraqueza. E continuava a detestar estar na presença da mãe.
Vá embora. Você me cansa.
— Eu te canso. É, por que você tem mesmo tanta coisa pra fazer aqui em cima. Jesus Cristo.
Tudo bem, ela que se fodesse. Ele descobriria outra saída. Outro... Alguma coisa.
Merda, o que mais havia?
Vishous virou-se para a porta que tinha arrombado. A cada passo dado, esperava que ela o chamasse de volta, dissesse algo ou lhe desse uma dor no peito quase tão
letal quanto o golpe que derrubara Rhage. Quando ela não chamou, e a porta se fechou mal tinha passado, quase acertando seu traseiro, ele pensou que já devia saber.
Ela não se importava o suficiente nem para cagar nele.
De volta ao pátio, a trilha de sangue que havia deixado sobre o revestimento de mármore era como o destino que tinha seguido por toda a vida, torto e bagunçado,
evidenciando a dor que ele totalmente falhava em reconhecer. E sim, queria que a mancha se infiltrasse naquela pedra, como se talvez isto pudesse chamar a atenção
dela.
Por falar nisto, por que simplesmente não se jogava no maldito chão com um ataque de birra, como se estivesse nos corredores de uma loja de departamentos, enfurecido
por não ganhar um triciclo?
Enquanto ficava parado ali, o silêncio se registrou como se fosse um som. O que era ilógico e precisamente a experiência que ele teve ao perceber o quão verdadeiramente
silencioso aquele lugar agora estava. As Escolhidas estavam todas na Terra, aprendendo sobre si mesmas, separadas individualmente, renegando seu papel tradicional
de servir à mãe. O mesmo acontecendo com a raça, existindo em tempos modernos onde os velhos ciclos de festivais e costumes eram ignorados, em sua maioria, e as
tradições que outrora eram respeitadas, estavam agora à beira do esquecimento.
Bom, pensou. Esperava que ela estivesse se sentindo sozinha e desrespeitada. Ele a queria bem calma e isolada, com seus fiéis mais fervorosos dando-lhe as costas.
Ele a queria ferida.
Ele a queria morta.
Seus olhar foi para os pássaros que tinha trazido para ela e o bando fugiu dele, subindo para outros galhos do outro lado da árvore branca, amontoando-se juntos
como se temessem que ele fosse torcer os pescoços deles, um a um.
Aqueles passarinhos tinham sido uma oferta de paz de um filho que jamais havia sido realmente querido, mas também não tinha se comportado muito bem. Sua mãe provavelmente
não tinha dirigido a eles mais do que um olhar – e, quem diria, também tinha superado este breve flamejar de uma fraqueza conciliatória, de volta às margens de sua
inimizade. Como poderia ser diferente?
A Virgem Escriba não veio a eles quando Wrath fora quase assassinado. Ela não tinha ajudado o Rei a manter sua coroa. Beth quase morreu ao dar à luz e teve de abrir
mão de qualquer possibilidade de ter filhos no futuro. Pelo amor de Deus, Selena, uma das Escolhidas da própria Virgem Escriba, tinha acabado de morrer e arrebentar
o coração de um maldito macho de valor – e qual foi a resposta? Nada.
E antes de tudo isto? A morte de Wellsie. Os ataques.
E à frente? Qhuinn estava se borrando de preocupação de que Layla morresse dando à luz aos gêmeos. E Rhage estava morrendo ali embaixo no meio da batalha.
Precisava mais?
Girando a cabeça, V olhou para a porta que tinha voltado a se fechar à sua passagem. Ele ficava contente por ela estar sofrendo. E não, não confiava nela.
Ao se desmaterializar de volta para o campo de combate, não tinha absolutamente fé nenhuma de que ela faria o correto para Rhage e Mary. Ele fez uma aposta que tinha
perdido ao ir até a mãe, mas com ela aquilo era sempre o que acontecia.
Milagre. Ele precisava da porra de um milagre.
Capítulo CINCO
A água que caía sobre a mão de Mary estava fria, e ainda assim queimava sua pele – provando que lados opostos do termômetro podem coexistir ao mesmo tempo.
A pia do banheiro feminino que estava usando era branca e de porcelana. Seu ralo brilhava e era prateado. À sua frente, um espelho de parede inteira refletia três
reservados, todos tinham as portas cor de pêssego fechadas, mas somente um deles estava ocupado.
— Está tudo bem aí? – Disse ela.
Ouviu o barulho da descarga, mesmo que Bitty não tivesse usado.
Mary encarou seu reflexo. É. Ela parecia tão mal quanto se sentia: por algum motivo, nos últimos trinta minutos bolsas escuras se formaram sob as órbitas que pareciam
afundadas, e sua pele parecia tão pálida quanto o piso no qual estava pisando.
Por algum motivo? Besteira. Sabia exatamente o motivo.
Eu a matei!
Mary teve de fechar os olhos e fingir recompor-se novamente. Quando abriu os olhos de novo, tentou se lembrar do que estava fazendo. Oh. Certo. Havia uma pequena
pilha de toalhas de papel em uma prateleira do tipo entrelaçado e dobrado, e ao avançar para pegar um, respingou os outros de água e pensou consigo mesma que era
estranho que Havers, tão meticuloso com a clínica, permitisse tal bagunça. Daí entendeu... O suporte na parede perto da porta estava quebrado, a parte inferior pendurada,
frouxa.
Igual a mim, pensou. Cheia de técnica e experiência em ajudar pessoas, mas sem executar meu trabalho direito.
Segure a mão dela. Está tudo bem...
Eu a matei!
— Bitty? – Quando a palavra não saiu mais do que um resmungo, ela pigarreou. — Bitty.
Depois de secar as mãos, virou-se para os reservados.
— Bitty, vou entrar se você não sair.
A garota abriu a porta do meio, e por alguma razão Mary soube que jamais se esqueceria da visão daquela mãozinha fortemente cerrada, sem se abrir, quando ela saiu.
Ela tinha chorado lá dentro. Sozinha. E agora que a garota estava sendo forçada a mostrar o rosto, estava fazendo exatamente o que a própria Mary esteve desesperadamente
tentando fazer.
Às vezes a compostura era tudo o que se tinha; dignidade, seu único consolo; a ilusão de “tudo bem” sua única fonte de conforto.
— Aqui, me deixe... – Quando a voz de Mary se apagou, voltou para as toalhas de papel e umedeceu uma na pia que tinha usado. — Isto vai ajudar.
Aproximando-se lentamente da garota, trouxe o papel frio e macio para o rosto corado dela, pressionando-o na pele quente e avermelhada. Enquanto isto, na sua cabeça
se desculpava com a Bitty adulta, aquela que ela esperançosamente se tornaria: Sinto muito ter te feito fazer isto. Não, você não a matou. Quem dera eu tivesse te
deixado fazer as coisas do seu jeito e a seu tempo. Sinto muito. Não, você não a matou. Sinto muito.
Sinto tanto.
Mary ergueu o queixo da garota.
— Bitty...
— O que eles vão fazer com ela agora? Para onde ela vai?
Deus, aquele olhar castanho claro era firme.
— Eles vão levá-la... Bem, eles vão cremá-la.
— O que é isto?
— Eles vão queimar o corpo dela até torná-lo cinzas, para o rito de passagem.
— Vai doer?
Mary pigarreou de novo.
— Não, querida. Ela não vai sentir nada. Está livre... Ela está no Fade esperando por você.
O lado bom era que ao menos isto Mary sabia ser verdade. Mesmo tendo sido criada católica, ela própria tinha visto a Virgem Escriba, então não, não estava dando
à garota falsas esperanças. Para os vampiros existia mesmo um paraíso, e eles real e verdadeiramente encontravam seus entes queridos lá.
Diabos, talvez isto também fosse verdade para os humanos, mas a magia era muito menos visível no mundo deles; desta forma, a salvação eterna era muito mais difícil
de ser vendida ao humano comum.
Afastando a toalha de papel, Mary recuou um passo.
— Eu gostaria de voltar ao Lugar Seguro agora, tudo bem? Não há mais nada que a gente possa fazer aqui e já está quase amanhecendo.
A última frase saiu só por hábito, ela achava. Como uma pré-trans, Bitty era capaz de tolerar qualquer quantidade de luz do sol. E a verdade real era que só queria
levar a garota para longe de toda a morte dali.
— Tudo bem? – Mary repetiu.
— Não quero deixá-la.
Em qualquer outra circunstância, Mary teria se abaixado e gentilmente exposto um pouco do que ia ser o mundo novo de Bitty. A realidade horrorosa era que não havia
mais mãe para deixar para trás, e tirar a garota deste ambiente clínico onde pacientes estavam sendo tratados, às vezes em situações terríveis, era inteiramente
apropriado.
Eu a matei.
Em vez disto, Mary disse.
— Está bem, podemos ficar o quanto você quiser.
Bitty anuiu e foi até a porta que levava ao corredor. Parada diante da porta fechada, seu vestido tremendamente gasto parecia a ponto de se desmanchar de sua figura
magra, seu feio casaco preto parecia um cobertor jogado de qualquer jeito ao seu redor, seus cabelos castanhos despontados arrepiavam contra o tecido.
— Eu realmente queria...
— O que? – Sussurrou Mary.
— Eu queria voltar a antes. À hora que eu acordei hoje.
— Eu também queria que fosse possível.
Bitty olhou por cima do ombro.
— Por que não pode voltar? É tão estranho. Digo, consigo lembrar tudo dela. É como... É como se minhas lembranças fossem um quarto no qual eu pudesse entrar. Ou
algo assim.
Mary franziu o cenho, pensando que aquela era uma maneira muito madura de se expressar para alguém daquela idade.
Mas antes que pudesse responder a garota abriu a porta, claramente não interessada em uma resposta – e talvez isto fosse uma coisa boa. Que infernos se podia responder
diante aquilo?
No corredor, Mary quis pousar a mão sobre aquele ombro pequeno, mas se segurou. A garota era tão fechada, do mesmo modo que um livro seria no meio de uma biblioteca
ou uma boneca em uma fila de colecionáveis, e era difícil forçar a quebrar aquelas fronteiras.
Especialmente quando, como uma terapeuta, você mesma já estava se sentindo muito desequilibrada em seu papel de profissional.
— Para onde vamos? – Bitty perguntou quando duas enfermeiras passaram por elas.
Mary olhou ao redor. Elas ainda estavam na área da UTI, mas a alguma distância de onde a mãe de Bitty tinha morrido.
— Podemos procurar uma sala para nos sentar.
A garota parou.
— Nós não vamos poder vê-la de novo, vamos?
— Não.
— Acho que é melhor a gente voltar.
— O que você quiser.
Cinco minutos depois estavam no Volvo indo para o Lugar Seguro. Ao guiá-las pela ponte, Mary voltou a olhar pelo retrovisor, verificando Bitty a cada cinquenta metros.
No silêncio, ela se pegou novamente a desfiar um cordão de desculpas em sua mente... Por ter dado um conselho ruim, por colocar a garota na posição de mais sofrimento.
Mas toda aquela comiseração era auto-infligida, uma busca por absolvição pessoal, totalmente injusta com a paciente, especialmente uma tão jovem.
Este pesadelo profissional era algo que Mary teria de superar sozinha.
Uma entrada na I-87 apareceu assim que chegaram ao lado do centro, após a ponte, e a seta soou alto no interior do utilitário. Dirigindo-se para o norte, Mary permaneceu
no limite de velocidade e foi ultrapassada por alguns caminhões fazendo oitenta em uma pista de sessenta e cinco. De vez em quando, sinais luminosos indicando áreas
de ultrapassagem piscavam acima delas em um ritmo que nunca demorava, e o pouco tráfego local era diminuído ainda mais enquanto elas prosseguiam.
Quando chegassem, Mary decidiu que tentaria dar algo para a garota comer. Bitty tinha perdido a Primeira Refeição e devia estar morrendo de fome. Então talvez um
filme até o amanhecer, algo calmo. O trauma era tão recente, e não só o fato de perder a mãe. O que tinha acontecido lá no Havers devia ter trazido à tona tudo o
que tinha acontecido antes – os abusos em casa, o resgate onde Rhage, V e Butch mataram o pai para salvar Bitty e a mãe, a descoberta que a mãe estava grávida, a
perda do bebê, os meses que se arrastaram depois, onde Annalye jamais se recuperara totalmente...
— Sra. Luce?
— Sim? – Oh, Deus, por favor, pergunte algo que eu possa responder decentemente. — Sim, Bitty?
— Para onde estamos indo?
Mary olhou para a placa na estrada. Dizia “Saída 19 Glen Falls”.
— Desculpe? Estamos indo para casa. Devemos chegar lá em quinze minutos.
— Achei que o Lugar Seguro não era tão longe.
— O q...?
Oh, Deus.
Estava indo na direção da maldita mansão.
— Oh, Bitty, desculpe. – Mary meneou a cabeça. — Eu acho que confundi as saídas. Eu...
Onde estava com a cabeça?
Bem, ela sabia a resposta... Todas as hipóteses que vinha imaginando em sua cabeça sobre o que fariam quando saíssem do carro eram coisas que envolviam o lugar onde
Mary morava com Rhage, o Rei, os Irmãos, os guerreiros e suas companheiras.
Onde infernos estava com a cabeça?
Mary pegou a saída 19, desceu a rodovia e voltou a seguir para o sul. Cara, não estava dando uma dentro esta noite, estava?
Pelo menos as coisas não poderiam piorar.
De volta ao Internato para Garotas Bownswick, Assail, filho de Assail, ouviu o rugido mesmo através da sobrecarga sensorial da batalha.
Apesar do caos de todos os tiros, dos xingamentos e das loucas corridas de cobertura a cobertura, o som trovejante que rolava pelo campus abandonado era o tipo de
coisa que chamava a atenção.
Ao se virar, manteve o dedo no gatilho da automática, continuando a descarga de balas adiante, certeiramente em uma fila de mortos-vivos...
Por uma fração de segundo, parou de atirar.
Seu cérebro simplesmente não conseguia processar o que os olhos sugeriam que tinha magicamente aparecido a cinquenta metros à sua frente. Era... Algum tipo de criatura
parecida com um dragão, coberta de escamas roxas, cauda serrilhada e uma boca arreganhada cheia de dentes de T. Rex. O monstro pré-histórico tinha bem a altura de
dois andares, comprido como um trailer, e rápido como um crocodilo ao avançar para atacar qualquer coisa que se mexesse...
Queda livre.
Sem aviso, seu corpo voou adiante, e uma dor se espalhou pela frente de sua perna e rasgou até seu tornozelo. Girando em meio ao ar, caiu de cara na grama alta...
E uma respiração depois, o assassino parcialmente ferido que o tinha atingido com uma faca caiu em cima de seu peito, aquela lâmina arqueando pelo seu ombro, os
lábios curvados em um esgar enquanto o sangue preto derramava em Assail inteiro.
Certo, foda-se, cara.
Assail agarrou um punhado do cabelo ainda castanho, enfiou o cano da arma naquela boca arreganhada e apertou o gatilho, explodindo a parte de trás do crânio, incapacitando
o corpo de forma que caiu em cima dele como um peso morto agitado. Chutando o corpo que se contorcia para tirá-lo de cima, voltou a se levantar.
E se viu diretamente diante da fera.
Seus movimentos para se levantar chamaram a atenção, os olhos do dragão se fixaram nele, estreitados em fendas. Então, com outro rugido a criatura veio em direção
à ele fazendo o chão tremer, esmagando os assassinos sob suas massivas patas traseiras, as garras da frente encurvadas para cima e prontas para o ataque.
— Porra!
Assail jogou-se para frente, não mais preocupado onde mirava a arma e absolutamente despreocupado com o fato de que agora corria para a fileira avançada de lessers.
O lado bom? A fera cuidou daquele probleminha. Os assassinos lançaram igualmente um olhar para aquela criatura dos infernos vindo em direção a eles e dispersaram
como folhas sob o vento de outono.
Naturalmente, não havia nada diretamente adiante que provesse nenhuma cobertura. Por azar, sua rota de fuga não oferecia nada além de arbustos e grama, sem nenhuma
proteção significativa. A construção mais próxima? Estava a duzentos metros de distância. Pelo menos.
Praguejando, correu mais rápido, abusando dos músculos de suas pernas, buscando mais e mais velocidade.
Era uma corrida que a fera estava fadada a vencer – uma vitoria inevitável quando um par de pernas que mal cobria um metro e meio a cada passo, tentava vencer um
par de pernas que podia cobrir vinte e cinco em um único passo. A cada segundo, aquele som ficava mais alto e mais perto, até que jatos quentes de respiração atingiram
as costas de Assail, esquentando-o, apesar do frio.
O medo inundou o seu núcleo.
Mas não havia tempo para tentar dominar o pânico que invadiu sua mente. Um grande rugido explodiu na sua direção, a força do som tão grande que o empurrou adiante,
provendo um jorro de ar fedorento que o enojou. Merda, sua única chance era...
A mordida veio depois do grande rugido, aqueles maxilares estalando tão perto da nuca de Assail que ele se encolheu, mesmo que isto diminuísse sua velocidade. Mas
era tarde demais para se salvar. Transportado pelo ar. Ele foi erguido, arrancado do chão em meio a um passo – só que, por que não doía mais?
Certamente se a fera o tivesse agarrado pelos ombros ou pelo torso, ele teria sido rasgado – não, espere, ela o pegou pela jaqueta. A coisa o agarrou pela jaqueta
de couro, não pela carne, e uma faixa de constrição cortava pelo seu peito e erguia-o pelas axilas, as pernas flutuavam, a arma disparava enquanto ele cerrava as
mãos em punhos. Abaixo dele, a paisagem girava como se estivesse em uma gangorra, os lessers restantes, os irmãos lutando, os arbustos muito crescidos e as árvores
balançavam ao redor dele como se estivesse sendo chacoalhado.
A porra da coisa ia devorá-lo. Esta baboseira sem sentido era só para amaciar a carne.
Maldito fosse ele, era o equivalente vampírico a uma asa de frango.
Não havia tempo. Soltou a arma e tateou em busca do zíper em sua garganta. O movimento balançante tornou seu pequeno alvo rápido como um rato, escorregadio como
mármore, estilo agulha em palheiro para suas mãos trêmulas e escorregadias, e as pontas dos dedos suadas.
O próprio aperto da fera foi o que o ajudou.
Com aqueles dentes travados nas costas da jaqueta, o couro não conseguiu suportar seu peso e ele caiu, despencando das presas, o chão duro se apressando para recebê-lo.
Encolhendo-se e rolando, procurando não quebrar nada, no entanto, pousou num monte de entulho.
Direto de ombro.
O estalar foi algo que se registrou pelo seu corpo todo, deixando-o tão inútil quanto um bebê indefeso, sem fôlego, a vista embaçada. Mas não havia tempo se quisesse
viver. Virando-se, ele...
Pop! Pop! Pop! Pop! Pop! BUM!
Seus primos surgiram do nada, correndo como se estivessem sendo perseguidos quando de fato não estavam. Ehric tinha duas automáticas em riste e atirando... E Evale
tinha uma metralhadora sobre os ombros.
Aquele era o BUM!
A arma era de fato uma metralhadora de verdade, uma enorme arma de fogo que tinha sobrado do tempo do Raj na Índia. Evale, o bastardo agressivo, há muito parecia
ter fixação pela coisa de uma maneira nada natural, estilo “meu precioso”.
Graças aos Destinos pelas preocupações nada saudáveis.
Aquelas balas calibre quarenta não tinham efeito nenhum sobre a fera, ricocheteando pelas escamas roxas como ervilhas jogadas na lataria de um carro. Mas a carga
de chumbo da metralhadora resultou em um uivo de dor e a fez recuar.
Era a única oportunidade de Assail escapar.
Fechando os olhos, ele se concentrou, concentrou, concentrou...
Não dava para se desmaterializar. Muita adrenalina além de muita cocaína, junto com muita dor em seu ombro, pra piorar.
E a fera voltou ao ataque, voltando a se concentrar em Assail e lhe dando o equivalente dragão de um foda-se na forma de um enorme rugido...
A imensa arma disparou uma segunda vez, atingindo a coisa no peito.
— Corra! – Ehric gritou enquanto recarregava suas armas calibre 40 com invólucros saltando pela parte de trás das pequenas armas. — Levante-se!
Assail usou o braço bom para apoiar e levantar do chão, e suas pernas voltaram a funcionar com desenvoltura admirável. Segurando o braço ferido contra o peito, arrastou-se
o mais rápido que pôde, com os restos de sua jaqueta esvoaçando, o estômago embrulhado, o coração disparado.
BUM!
Por todo canto, em toda parte – ele tinha de chegar a qualquer porra de abrigo – e rápido. Que pena seu corpo não obedecer. Mesmo enquanto seu cérebro gritava por
velocidade, tudo o que conseguia fazer era cambalear como um zumbi...
Alguém o pegou por trás, erguendo-o do chão em um saco de batatas, jogando-o por cima do ombro como um bombeiro. Enquanto caía em posição de cabeça pra baixo, vomitou
de agonia com estrelas espocando em seus olhos, enquanto o estômago esvaziava com violência. As boas novas eram que ele não comia há doze ou quinze horas àquela
altura, então não sujou muito a perna da calça do primo.
Ele queria ajudar no esforço. Queria se levantar. Queria...
Arbustos o golpearam no rosto e cerrou os olhos para se proteger. Sangue começou a fluir e encheu seu nariz. Seu ombro doía cada vez mais. A pressão em sua cabeça
ficou insuportável, fazendo-o pensar em pneus muito cheios, bagagens superlotadas, balões de água que estourava e derramava seu conteúdo por todo canto.
Graças a Deus pelos primos. Eles jamais o abandonavam.
Não podia se esquecer de recompensá-los de alguma maneira.
O galpão parecia galopar na direção deles, e da posição privilegiada – de ponta cabeça – que Assail estava, a coisa parecia se dependurar da terra ao invés de estar
plantada em cima dela. Tijolos. Mesmo com os solavancos e a escuridão dava para perceber que o abrigo era de tijolos.
Era de se esperar que fosse uma construção resistente.
Seu primo arrombou a porta e o ar dentro era úmido e mofado.
Sem aviso, Assail foi largado como o lixo que era e caiu em um chão empoeirado com uma queda que o fez ter ânsia de vômito de novo. A porta se fechou e então tudo
o que ouviu foi a respiração pesada do primo. E a sua.
E os sons abafados da batalha.
Houve um súbito brilho de luz alaranjada.
Pela névoa de sua dor, Assail franziu o cenho... E então recuou. O rosto se iluminou quando um cigarro enrolado a mão foi aceso, mas não de era nenhum de seus primos.
— O quanto seu ferimento é grave? – O Irmão da Adaga Negra, Vishous, perguntou ao exalar a fumaça mais deliciosa.
— Foi você?
— Não, foi o Papai Noel.
— Que salvador improvável é você, – Assail fez uma careta e limpou a boca na manga da jaqueta. — E sinto muito por suas calças.
V olhou para si mesmo.
— Tem algo contra couro preto?
— Eu vomitei atrás delas...
— Merda!
— Bem, dá pra limpar...
— Não, cuzão, ela está vindo para cá, – V indicou a janela suja. — Maldição.
De fato, à distância, o retumbante som trovejante dos passos do dragão soou de novo, como uma tempestade se formando e vindo na direção deles.
Assail se agitou ao redor procurando algum lugar para se esconder. Um armário. Um banheiro. Um sótão. Nada. O interior estava vazio, exceto por duas pilhas até o
teto de entulhos de mais de uma década. Graças à Virgem Escriba o abrigo parecia ser tijolo firme e mais provável de aguentar...
O teto foi erguido e despedaçado de uma só vez, os pedaços chovendo, as telhas e o concreto caindo no chão como se o abrigo estivesse anunciando sua própria morte
com uma rodada de aplausos. O ar fresco da noite amenizou o cheiro mofado, mas isto dificilmente era um alívio, dado o que havia precipitado o acesso.
A fera não era vegetariana, fato. Mas também não parecia preocupada pela sua absorção de fibras: a coisa cuspiu aquele telhado de madeira para o lado, abaixou-se
e abriu sua bocarra, emitindo um bum sônico de rugido.
Não havia para onde correr. A criatura estava montada sobre o prédio, preparada para atacar o que havia se tornado sua lancheira. Não havia lugar algum para se abrigar.
Nenhuma defesa possível a tentar.
— Vá, – Assail disse ao Irmão quando aqueles grandes olhos reptilianos se estreitaram e o focinho explodiu um bafo tão quente e fétido quanto um Lixão no verão.
— Me dê sua arma. Eu vou distraí-lo.
— Não vou te deixar.
— Não sou um dos seus irmãos.
— Você nos deu a localização deles. Entregou a cabeça do Fore-lesser. Não vou te largar aqui, seu bundão.
— Quanta educação. E esses elogios. Pare.
Quando a fera soltou outro rugido e jogou a cabeça como se preparada para brincar um pouco com eles antes de devorá-los, Assail pensou em seu negócio de drogas...
Seu vício em cocaína...
A fêmea humana por quem tinha se apaixonado e a quem precisou deixar ir embora. Por que ela não conseguiria lidar com seu estilo de vida e ele estava muito preso
a isso para parar, mesmo por ela.
Ele meneou a cabeça para o Irmão.
— Não, não valho a pena salvar. Dá a porra do fora daqui.

 

CONTINUA

Nada era como costumava ser para a Irmandade da Adaga Negra. Depois de evitar a guerra com os Sombras, alianças mudaram e linhas foram desenhadas. Os assassinos da Sociedade Lesser estão mais fortes do que nunca, aproveitando-se da fraqueza humana para adquirir mais dinheiro, mais armas, mais poder. Mas enquanto a Irmandade se prepara para um ataque total pra cima deles, um dos seus luta uma batalha dentro de si mesmo...
Para Rhage, o Irmão com o maior dos apetites, mas também o maior coração, a vida era suposta ser perfeita — ou pelo menos, perfeitamente agradável. Mary, sua adorada shellan, está ao seu lado, e seu Rei e seus Irmãos estão prosperando. Mas Rhage não pode entender — ou controlar — o pânico e insegurança que o afligem...
E isso o aterroriza — como também a distância entre ele e sua companheira. Depois de sofrer um ferimento mortal em batalha, Rhage deve reavaliar suas prioridades — e a resposta, quando se trata dele, balança seu mundo... E o de Mary. Mas Mary está em uma jornada própria, uma que vai fazê-los ou se aproximar mais ou causar uma divisão que não vai ter como recuperar...


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Capítulo UM
INTERNATO PARA GAROTAS BROWNSWICK, CALDWELL, NOVA YORK
Formigamento por seu corpo inteiro.
Ao transferir seu peso de uma bota para outra, Rhage sentiu como se sua corrente sanguínea estivesse começando a fervilhar e as bolhas o pinicassem por baixo de
cada centímetro quadrado de sua carne. E isto não era nem o começo. Fibras aleatórias de músculos despertaram ao longo de todo o seu corpo, os espasmos fazendo seus
dedos tremerem, os joelhos bambearem e os ombros tensos, como se a ponto de um ataque com a força e foco de uma raquete de tênis ao atingir uma bola.
Pela milésima vez desde que tinha se materializado para aquela posição, ele varreu com o olhar o terreno mal cuidado com mato excessivamente grande à sua frente.
Antigamente, quando o internato para garotas Bronswick ainda era uma instituição em funcionamento, sem dúvida o terreno à sua frente devia ser um gramado mantido
bem cortado durante a primavera e verão, no outono diariamente limpo de folhas e belamente coberto de neve no inverno, digno de um livro de histórias infantis. Agora,
como um campo de futebol saído do inferno, cravejado e emaranhado por arbustos retorcidos, capazes de mais do que somente danos estéticos à região testicular de
um cara; mudas que pareciam filhas adotivas, feias e disformes, de carvalhos e bordos mais maduros e o mato marrom crescido de fins de outubro, eram capazes de te
fazer tropeçar como um filho da puta se tentasse correr.
Da mesma forma, o prédio que fora construído para abrigar e prover espaço de convivência e instrução aos frutos de uma elite privilegiada, envelheceram mal, carentes
de manutenção regular: janelas quebradas, portas apodrecidas, persianas destruídas e oscilando ao vento frio, como se os fantasmas fossem incapazes de se decidirem
se desejavam ser vistos ou somente ouvidos.
Era o campus do filme Sociedade dos Poetas Mortos. Supondo que todo mundo tenha feito as malas depois da gravação do filme em 1988, picado a mula e nunca mais ninguém
tenha modificado uma porra de coisa por lá desde então.
Mas o prédio não estava vazio.
Ao respirar fundo, o reflexo de deglutição de Rhage executou uma porção de tropeços no fundo de sua garganta. Tantos lessers se escondiam nos cômodos abandonados
que era impossível isolar individualmente os cheiros que golpeavam suas narinas. Cristo, era como enfiar a cara dentro um balde cheio de restos orgânicos e inalar
como se estivesse prestes a acabar todo o oxigênio do mundo.
Supondo que alguém tivesse adicionado talco de bebê ao costumeiro resto diário de cabeças e tripas de peixe.
Para dar aquele toque final, sacou?
Quando sua pele foi atacada por uma nova rodada de arrepios, ele disse à sua maldição para sossegar o facho, puta merda, que ele logo ia liberá-la. Não ia nem tentar
impedir que a maldita saísse – não que tentar puxar o freio funcionasse em qualquer circunstância ou de qualquer forma – mesmo que dar à fera liberdade total nem
sempre fosse uma coisa boa, esta noite ela seria uma vantagem imensa. A Irmandade da Adaga Negra estava a ponto de encarar quantos lessers? Cinquenta? Cento e cinquenta?
Havia muito a fazer, mesmo para eles – então, sim, seu pequeno... Presente... Da Virgem Escriba seria muito útil.
Por falar em chamadas de longa distância... Há mais de um século, a mãe da raça havia lhe dado sua própria bomba relógio, um programa de melhorias tão oneroso, tão
desagradável, tão incapacitante, que era de fato capaz de trazê-lo da beira da babaquice total, de volta à normalidade. Por cortesia do dragão, a menos que controlasse
seus níveis de energia e moderasse suas emoções, o inferno recaía sobre a terra.
Literalmente.
Sim, ao longo do último século, ele tinha se tornado altamente bem-sucedido em garantir que a coisa não comesse seus amigos ou que os fizesse aparecer no noticiário
noturno com a manchete “Jurassic Park existe de verdade”. Mas com o que ele e seus irmãos estavam prestes a enfrentar – e devido ao isolamento deste campus? Se tivessem
sorte, o grande bastardo de escamas roxas com os dentes de serra elétrica e barriga sem fundo conseguiria seu banquete. Mas só teria acesso a uma dieta balanceada,
baseada somente em lessers.
Sem petiscar os Irmãos, por favor. E sem rocamboles ou tortas de humanos, muito, muito obrigado.
Este último, mais por discrição do que afeição. Era notório que aqueles ratos sem rabo não desgrudavam de duas coisas: meia dúzia de seus amiguinhos, noturnamente
co-dependentes e evolucionariamente inferiores, e seus malditos telefones celulares. Cara, o YouTube podia ser um pé no saco quando só o que se queria era manter
por baixo dos panos uma guerra contra os mortos. Por quase dois mil anos, a luta dos vampiros contra a Sociedade Lessening não tinha sido problema de mais ninguém
além dos combatentes envolvidos, e o fato de que os humanos não conseguiam se ater a cuidar de seus próprios assuntos, tipo suas competências de arruinar o meio-ambiente
e dizer uns aos outros o que pensar e dizer, era somente uma das razões para odiá-los.
Internet do caralho.
Avaliando os arredores a fim de evitar soltar a fera cedo demais, Rhage fixou o olhar em um macho dando cobertura a uma distância de mais ou menos seis metros. Assail,
filho de Foda-se-lá-quem, usava preto dos pés à cabeça como alguém de luto, seus cabelos, escuros como os do Conde Drácula, não requeriam camuflagem adicional, seu
rosto pecaminosamente belo estava tão contraído pela ansiedade de matar que era preciso dar um crédito ao cara. Ele estava sendo de muita ajuda. E tinha mudado completamente
de direção. O traficante de drogas tinha se juntado à Irmandade, cumprindo a promessa de cortar relações comerciais com a Sociedade Lessening ao depositar a cabeça
do Fore-lesser dentro de uma caixa, aos pés de Wrath.
E também revelou este local que os assassinos vinham usando como quartel general.
E era por isto que todo mundo tinha acabado aqui, enterrado até a cintura em mato alto, esperando que a contagem regressiva de seus relógios V-sincronizados chegasse
logo a 00h00min.
Este ataque não era coisa pequena, era uma abordagem de grosso calibre ao inimigo. Depois de algumas noites – e dias, graças a Lassiter, também conhecido por 00-CUZÃO,
que havia feito reconhecimento do local durante as horas de sol – o ataque foi adequadamente coordenado, ensaiado e preparado para ser posto em prática. Todos os
guerreiros estavam aqui: Z e Phury, Butch e V, Tohr e John Mattew, Qhuinn e Blay, além de Assail e seus dois primos, Presas I e II.
Quem ligava para seus nomes, contanto que aparecessem armados e com muita munição?
A equipe médica da Irmandade também estava na área preparada para agir, com Manny em sua unidade cirúrgica móvel a um quilômetro e meio de distância, e Jane e Ehlena
em uma das vans, num raio de três quilômetros.
Rhage verificou o relógio. Seis minutos e contando.
Quando seu olho esquerdo começou a tremelicar, praguejou. Como caralhos conseguiria esperar por tanto tempo?
Expondo as presas, exalou pelo nariz, soprando correntes gêmeas de respiração condensada muito parecidas com as que antecedem o ataque de um touro.
Cristo, não conseguia se lembrar da última vez em que esteve tão tenso. E não queria pensar no motivo. De fato, vinha evitando a coisa toda do por que há quanto
tempo?
Bem, desde que ele e Mary chegaram àquela fase estranha e ele tinha começado a sentir...
— Rhage.
Seu nome foi sussurrado tão baixinho que ele se voltou por não saber ao certo se era o seu subconsciente decidindo começar um papo com ele. Não, era Vishous – pela
expressão do irmão, Rhage teria preferido ter desenvolvido dupla personalidade. Aqueles olhos diamantinos flamejavam uma luz sombria. E aquelas tatuagens ao redor
das têmporas também não ajudavam.
O cavanhaque era neutro – a menos que o avaliasse como quesito de estilo. Neste caso, o filho da puta era uma caricatura de proporções épicas.
Rhage meneou a cabeça. — Você não devia estar na sua posição...
— Tive uma visão sobre esta noite.
Ah, inferno, não, Rhage pensou. Não, não faça isto comigo agora, mano.
Virando as costas, murmurou. — Me poupe dessa coisa de Vincent Price, está bem? Ou está ensaiando para ser o cara que faz as narrações dos trailers de filmes...?
— Rhage.
— ... Pois você leva jeito pra isto. Em um mundo... Onde pessoas devem... Calar a boca e fazer seu serviço...
— Rhage.
Ao ver que ele não ia se voltar para olhá-lo, V se aproximou e o encarou, aqueles olhos pálidos pra cacete, um par de explosões nucleares gêmeas, daquelas que levantam
um nuvem em forma de cogumelo, para frente e para trás. — Quero que vá pra casa. Agora.
Rhage abriu a boca. Fechou. Abriu de novo – e teve de lembrar a si mesmo de manter a voz baixa.
— Ouça, não é uma boa hora para essa merda psíquica...
O Irmão agarrou seu braço e apertou. — Vá pra casa. Não estou brincando.
Terror gélido varreu as veias de Rhage, abaixando sua temperatura corporal... E ainda assim conseguiu menear a cabeça novamente.
— Foda-se, Vishous. Sério mesmo!
Ele não tinha o menor interesse de pôr mais nada daquela magia da Virgem Escriba em cheque. Ele não ia...
— Você vai morrer esta noite, porra.
Quando o coração de Rhage falhou uma batida, ele olhou para aquele rosto que conhecia a tantos anos traçando aquelas tatuagens, os lábios comprimidos, as cerradas
sobrancelhas escuras... E a inteligência radiante geralmente expressada através de um filtro de sarcasmo, afiado como a espada de um samurai.
— Sua mãe me deu a palavra dela. – Disse Rhage. Espere, estava realmente falando sobre bater as botas? — Ela me prometeu que quando eu morresse Mary iria comigo
para o Fade. Sua mãe disse...
— Foda-se a minha mãe. Vá pra casa.
Rhage desviou o olhar porque foi necessário. Era isto ou sua cabeça explodiria. — Não vou abandonar os irmãos. Não vai acontecer. Primeiro, você pode estar errado.
Sim, e quando foi a última vez que aquilo aconteceu? No século dezoito? Dezessete?
Nunca?
Ele falou para V.
— Segundo, não vou fugir correndo do Fade. Se começar a pensar assim vou morrer, mesmo com a arma na mão. – Ele ergueu a mão até a altura daquele cavanhaque para
evitar que o irmão o interrompesse. — E pra terminar? Se eu não lutar esta noite, não vou conseguir sobreviver ao dia de amanhã, trancado na mansão... Não sem meu
amiguinho roxo sair para o café da manhã, almoço e jantar, sacou?
Bem, havia uma quarta coisa. E era racional... Ruim, tão ruim que não conseguia encará-la por mais do que a fração de segundo necessária para ela surgir em sua mente.
— Rhage...
— Nada vai me acontecer. Está tudo sob controle.
— Não, não está – sibilou V.
— Está bem. – Rhage rosnou, endireitando o corpo. — E daí se eu morrer? Sua mãe deu à minha Mary a graça final. Se eu for para o Fade, Mary vai me encontrar lá.
Não tenho de me preocupar de me separar dela. Ela e eu ficaremos perfeitamente bem. Quem vai se importar de verdade se eu bater as botas?
V endireitou-se também.
— Você não acha que os Irmãos ligam? Sério? Muito obrigado, seu cuzão filho da puta.
Rhage verificou o relógio. Faltavam dois minutos.
Bem pareciam dois mil anos.
— E você confia em minha mãe, – Rosnou V — em algo tão importante. Nunca pensei que fosse tão ingênuo.
— Ela conseguiu me dar a porra de um alter ego T. Rex! Isto inspira uma credibilidade boa pra cacete.
De repente, sons de inúmeros pássaros soaram na escuridão que os rodeava. Qualquer um acharia que devia ser somente um bando de corujas noturnas piando ao luar.
Maldição, os dois estavam gritando.
— Não importa, V. – Sussurrou ele. — Você é inteligente pra caralho, preocupe-se com sua própria vida.
Seu último pensamento consciente antes do cérebro entrar em modo de A Hora Mais Escura e nada mais se registrar além da agressividade, foi sua Mary.
Ele visualizou a última vez em que estiveram sozinhos.
Era um ritual dele antes de enfrentar o inimigo, um talismã mental que esfregava em busca de boa sorte, e esta noite visualizou o modo como ela tinha ficado em pé
em frente ao espelho do quarto deles, aquele sobre a mesinha de apoio onde mantinham os relógios e chaves, as joias dela e os pirulitos dele, e os celulares.
Ela estava na ponta dos pés debruçada sobre a mesa, tentando colocar um brinco de pérola no lóbulo da orelha sem conseguir encontrar o furo. Com a cabeça virada
para o lado, seus cabelos castanhos escuros flutuavam sobre o ombro e o faziam querer enfiar a cara naquelas ondas recém-lavadas. E isto não era nem metade do que
o impressionava nela. O ângulo reto de seu maxilar capturava e refletia a luz da arandela na parede, e a blusa de seda cor creme, que descortinava sobre seus seios,
enfiada dentro da cintura estreita, e as calças moldavam seu corpo magro. Nenhuma maquiagem. Sem perfume.
Seria como tentar retocar a Mona Lisa ou atingir um botão de rosa com um jato de Bom Ar.
Havia centenas de milhares de pequenos detalhes nos atributos físicos de sua companheira, e nenhuma frase, nem mesmo um livro inteiro, passaria perto de descrever
sua presença.
Ela era o relógio em seu pulso, o assado quando tinha fome, o jarro de limonada quando tinha sede. Ela era sua igreja e seu coral, a montanha de sua escalada, a
biblioteca de sua curiosidade e cada nascer ou por do sol que já houve ou jamais haverá. Com um olhar ou a sílaba de uma palavra, ela tinha o poder de transformar
seu humor, levando-o às nuvens, mesmo com os pés firmes no chão. Com um único toque, ela conseguia acorrentar seu dragão interior ou fazê-lo gozar sem ele nem mesmo
estar de pau duro. Ela era todo o poder do universo compactado em uma criatura viva, o milagre que lhe tinha sido concedido, apesar dele há longo tempo não merecer
nada além de maldições.
Mary Madonna Luce era a virgem que Vishous dissera que estava em seu caminho – e era mais do que suficiente para transformá-lo em um vampiro temente a Deus.
Por falar nisto...
Rhage avançou sem esperar o sinal de “Já” de sua equipe. Correndo pelo campo, trazia as duas armas erguidas à sua frente e combustível Premium aditivado percorrendo
os músculos de suas pernas. E não, ele não parou para ouvir os irmãos praguejarem de frustração quando rompeu a cobertura e partiu cedo demais para o ataque.
Estava acostumado aos garotos emputecidos com ele.
Era muito mais difícil lidar com seus próprios seus demônios do que os irmãos.
LUGAR SEGURO, ESCRITÓRIO DA MARY
Ao desligar o telefone, Mary Madonna Luce manteve a mão sobre a superfície lisa do receptor. Como muitos dos equipamentos e móveis do Lugar Seguro, ele tinha mais
de uma década de uso, era um AT&T doado por alguma companhia de seguro ou talvez de uma corretora imobiliária, depois de ser trocado por algo mais moderno. O mesmo
com a mesa. A cadeira. Até o tapete sob seus pés. No único abrigo contra violência doméstica contra fêmeas e crianças da raça, cada centavo que saía das generosas
doações do Rei era gasto com o apoio, tratamento e reabilitação das pessoas que precisavam.
As vítimas eram admitidas gratuitamente. E ficavam na casa grande e cheia de cômodos por quanto tempo fosse necessário.
A folha de pagamento era, é claro, a maior despesa... E com notícias como a que tinha acabado de chegar pelo telefone, Mary ficava verdadeiramente agradecida pelas
prioridades de Marissa.
— Foda-se, morte. – Sussurrou ela. — Foda-se mesmo, muito, muito mesmo.
O ruído que sua cadeira emitiu quando se inclinou para trás lhe causou um estremecimento, mesmo acostumada a ele.
Olhando para o teto, sentiu uma vontade arrebatadora de entrar em ação, mas a primeira regra de qualquer terapeuta era que era preciso controlar suas próprias emoções.
Despreparo e agitação não fazia bem algum aos pacientes, e contaminar uma situação já estressante com drama pessoal por parte do profissional era totalmente inaceitável.
Se houvesse tempo, procuraria um dos outros assistentes em busca de ajuda, para esclarecer o curso de suas ações com questionamentos técnicos a fim de sentir-se
novamente centrada e permanentemente composta. Dado o rumo dos acontecimentos, tudo o que tinha era tempo para uma das respirações profundas, típicas de Rhage.
Não, não do tipo sexual.
Mais do tipo ioga, que o fazia inflar os pulmões em três puxadas de ar, prender o oxigênio e então soltá-lo, junto com a tensão em seus músculos.
Ou tentar liberar a dita tensão.
Está bem, isto não estava ajudando em nada.
Mary levantou-se e teve de se contentar com dois “quase lá” no quesito compostura: um, ajeitou a blusa de seda e correu os dedos pelos cabelos, que estava deixando
crescer; e dois, recobriu suas feições com uma máscara digna de Halloween, congelando tudo em um semblante de preocupação, calorosa e sem nenhuma indicação de estar
surtando com seu próprio trauma passado.
Ao sair para o corredor do segundo andar, o cheiro de chocolate e açúcar de confeiteiro, manteiga e farinha anunciava que a Noite dos Biscoitos estava a pleno vapor
– e por um momento insano, sentiu vontade de abrir todas as janelas para deixar o ar gelado de outubro levar aquele cheiro para fora da casa.
O contraste entre aquele conforto doméstico e a bomba que estava a ponto jogar parecia desrespeitoso, na melhor das hipóteses, uma parte a mais da tragédia, na pior.
O Lugar Seguro era uma construção de três andares da virada do século XX, apenas teto e quatro paredes, com toda a graça e distinção de um saco de pão. O que ele
tinha na verdade eram quartos e banheiros em abundância, uma cozinha funcional e privacidade suficiente para que o mundo humano nunca tivesse a menor indicação de
que os vampiros usavam a coisa à sua revelia. E então veio a expansão. Depois da morte da Wellsie, Tohr tinha feito uma doação em seu nome, o Anexo Wellesandra foi
construído nos fundos por uma equipe vampira de construção. Agora eles contavam com uma sala de convivência, uma segunda cozinha, grande o bastante para que todo
mundo se sentasse junto para comer, e mais quatro suítes para as adicionais fêmeas e seus filhos.
Marissa dirigia a instalação com coração compassivo e mentalidade fantasticamente logística, e com sete conselheiros, inclusive Mary, eles executavam um serviço
útil e cheio de significado.
Isto sim, às vezes partia seu coração ao meio.
A porta para o sótão não emitiu ruído algum quando Mary a abriu porque ela mesma tinha passado óleo nas dobradiças há algumas noites. As escadas, no entanto, rangeram
ruidosamente à sua subida, as velhas placas de madeira reclamando e guinchando, por mais que ela tentasse pisar o mais leve possível.
Era impossível não sentir-se um tipo de Mensageira da Morte.
No andar acima, a luz amarela das luminárias de latão no teto destacavam os tons avermelhados, tanto dos centenários lambris sem pintura quanto da passadeira trançada
que percorria o estreito corredor. No final dele, havia uma abertura oval e a iluminação, em tons rosados da luz exterior de segurança acima, derramava para dentro
e era dividida em quadrantes pelas divisões de seus painéis.
Das seis suítes, cinco portas estavam abertas.
Ela se dirigiu até a que estava fechada e bateu. Ao ouvir um suave “Olá?” entreabriu a porta e enfiou a cabeça.
A garotinha sentada em uma das duas camas estava penteando os cabelos de uma boneca com uma escova a qual faltavam várias cerdas. Seus cabelos longos e castanhos
estavam presos para trás em um rabo de cavalo, e o vestido folgado era feito a mão, de um tecido azulado muito gasto, mas com costuras feitas para durar. Seus sapatos
estavam gastos, ainda que amarrados cuidadosamente.
Ela parecia muito pequena no que já não era um lugar muito grande.
Abandonada contra sua vontade.
— Bitty?
Levou um momento até os olhos castanhos claros se erguerem.
— Ela não está bem, está?
Mary engoliu em seco.
— Não, querida. Sua mahmen não está bem.
— É hora de me despedir dela?
Depois de um momento, Mary sussurrou.
— Sim... Receio que sim.
Capítulo DOIS
— Isso só pode ser brincadeira, porra!
Quando viu o massivo corpo do Hollywood e a bosta da sua cabeça estúpida avançar em direção aos alojamentos, Vishous quase correu atrás só para poder acabar com
a raça do irmão. Mas nããããããããããão.
Não era possível estender a mão e catar uma bala depois que o gatilho era apertado.
Mesmo que se estivesse só tentando salvar um idiota da sepultura.
V assoviou alto, mas não era como se o resto dos guerreiros não tivessem visto também as costas do cretino distanciarem-se como um morcego fugido do inferno.
Membros da Irmandade e os outros machos explodiram fora de suas posições por trás das árvores e construções, assumindo formação de asa atrás de Rhage, de armas e
adagas empunhadas. Gritos do inimigo anunciaram que o ataque foi percebido quase imediatamente, e eles chegaram a somente meia distância do objetivo quando os lessers
começaram a jorrar pelas portas, feito vespas de uma colméia.
Muita aglomeração? Pops ocos espocavam quando Rhage descarregava sua arma por todo o canto atingindo assassinos na cara, suas balas de grosso calibre explodindo
a parte de trás daqueles crânios e derrubando os mortos-vivos em emaranhados de braços e pernas irrequietos. O que era bom – mas possivelmente não iria durar, já
que os assassinos tentavam se aproximar do cara por trás, a fim de isolá-lo e criar uma segunda linha de frente contra o resto dos irmãos.
Obrigado, Sr. Apressadinho e sua ejaculação precoce, por arruinar o plano sobre o qual se debruçaram por noites a fio.
Instalou-se o caos total, o que era de se esperar, ao contrário da ação de Rhage: do mesmo modo que era possível garantir que cada combate corporal iria eventualmente
acabar no chão, era possível garantir que mesmo o ataque melhor planejado iria, depois de um tempo, cair na área do: “Puta merda” e “Cagou a porra toda”. Se tivesse
sorte, aquela inevitabilidade levaria um tempo para lhe despencar na cabeça, e até que acontecesse, o inimigo teria baixas incapacitantes.
Mas não com Hollywood por perto.
Oh, e a propósito, quando alguém diz que você vai morrer esta noite, que tal não correr direto para uma quantidade de inimigos que beirava os três dígitos? Seu filho
da puta de merda.
— Eu estava tentando salvá-lo! – V gritou em meio à ação. Só por que agora ele podia, já que não precisavam mais manter suas presenças ocultas.
Rhage era tão impulsivo. E sabendo disto, V devia ter confrontado o idiota lá na mansão antes de saírem, mas esteve distraído demais cuidando de suas próprias coisas
para se concentrar na visão. Não foi até chegarem ao campus abandonado e ele piscar algumas vezes... Que percebeu, sim, era ali que aconteceria para Rhage. Esta
noite. Neste campo.
Não revelar seria como colocar ele mesmo uma bala no cara.
É claro, dizer algo tinha funcionado tão bem.
— Foda-se, Hollywood! – Gritou ele. — Eu vou te pegar!
Pois ele ia tirar aquele puto daquele lugar nem que fosse a última coisa que faria.
V não atirou até estar a cerca de três metros de distância do primeiro alvo – era isto ou correr o risco de atingir um dos irmãos ou outro aliado. O lesser que mirou
tinha cabelos e olhos escuros e aquela agressão típica de um urso pardo: ataque direto com uma porção de cuspidelas. Uma bala acertou no olho direito e o bastardo
caiu.
Não dava tempo de apunhalar a coisa de volta ao Ômega. Vishous passou por cima do pedaço de carne que ainda se remexia sem sair do lugar e mirou o próximo. Identificando
um assassino louro a cerca de quatro metros e meio de distância à esquerda, rapidamente avaliou a periferia para ter certeza de que a Irmandade não estava sendo
destroçada. Então, usando o dedo coberto pela luva, escolheu o cara que parecia o Rod Stewart dos anos 80.
De três ao infinito, V atingiu tudo o que parecia seguro derrubar, certificando-se de não acertar seus aliados. Uns duzentos metros de corrida estilo videogame mais
tarde, alcançou tanto cobertura quanto perigo: o primeiro dos alojamentos, que o plano original era emboscar. A maldita coisa era uma concha vazia com muitos locais
para se esconder que somente um idiota acharia estarem vazias, e ele teve cuidado em monitorar seus arredores ao caminhar cuidadosamente com as costas voltadas contra
a parede, abaixando-se debaixo de janelas, passando por cima de arbustos baixos.
O fedor de algodão doce/carne podre dos lessers o golpeava por todos os lados, espiralando ao redor devido ao vento gelado que misturava tudo em uma salada de guerra
com os ecos de disparos de armas e os gritos do inimigo. A raiva que fervilhava em suas entranhas o fez avançar, ao mesmo tempo em que o mantinha focado, enquanto
tentava derrubar alvos sem ser atingido.
Assim que alcançasse Rhage, derrubaria o maldito rei da beleza no chão.
Supondo que o destino não derrubasse o filho da puta primeiro.
O lado bom era que, com o Fore-lesser fora da jogada, a resposta da Sociedade Lessening não parecia mais coordenada do que o ataque da Irmandade, e o fato do inimigo
estar pobremente armado e pateticamente destreinado era outra vantagem. Parecia haver uma média de cinco lessers armados para cada irmão, e uma média de um para
dez guerreiros competentes – e dado os números? Aquilo bem que poderia ser o que salvaria seus traseiros.
Esquerda, pop! Direita, pop! Esquivar, cair e rolar. Levantar-se e continuar a correr. Mais dois assassinos derrubados – obrigado, Assail, seu filhodaputa maluco
– pop! Bem na sua frente.
A magia aconteceu entre cerca de cinco minutos e cinquenta mil anos de luta. Sem aviso, sentiu-se separar-se de seu corpo, desfazendo-se da carne que funcionava
de forma tão rija e com tanta eficiência, seu espírito flutuando acima da adrenalina que incendiava seus braços e pernas, sua essência testemunhando-o cobrir distâncias
e impulsionando-o a frente de uma posição acima de seu ombro direito.
Era a zona, geralmente algo que o arrebatava assim que começava a lutar. Mas com Rhage sob sua pele, grudado em seu traseiro e fodendo sua cabeça, a merda estava
atrasada para a festa.
E foi por causa dessa sua perspectiva acima do quadro, que notou primeiro o dilema que se armava.
Às vezes o contra-intuitivo, o QUEPORRAÉESSA, o agir contra a corrente, era tão importante quanto todas as coisas que se esperava ver em uma batalha.
Tipo, por exemplo, três figuras correndo lateralmente ao longo daquele show de horrores rumo à saída. É claro, podiam ser lessers que amarelaram e fugiam — exceto
por um detalhe: o sangue do Ômega em seus corpos era um puta rastreador GPS, e ter de contar para aquele tipo de chefe, que tinha amarelado e picado a mula de uma
briga daquelas, seria garantia do tipo de tortura que faria o inferno parecer um passeio no campo.
Maldição, não podia permitir que eles se fossem. Não quando poderiam acabar chamando os tiras e adicionando outra camada de merda jogada naquele ventilador.
Se é que aquilo já não tinha sido feito.
Praguejando, Vishous foi atrás dos três desertores, desmaterializando-se para a área a frente onde o trio estava se dirigindo. Ao retomar forma, descobriu que eram
malditos humanos, mesmo antes de conseguir ver que aquele que estava por último corria de costas com o que, sem dúvida, era uma porra da Apple, um pedaço de merda
iConformista, apontando e mirando, evidentemente gravando um vídeo.
Ele positivamente odiava qualquer coisa com o símbolo da Macintosh.
V pulou, interceptando o caminho do cara, o que, é claro, não foi notado pelo J.J. Abrams, por que, olá, ele estava ocupado demais filmando tudo.
Vishous meteu o pé, e enquanto o humano obedecia à lei da gravidade, o celular voou e V pegou a coisa, enfiando-a no bolso da jaqueta.
O próximo passo foi pisar no esterno do cara e enfiar a arma na sua cara. Baixando o olhar para a expressão de “Puta Merda” e o choramingo gaguejado que o cara soltava,
V precisou de todo seu autocontrole para não rasgar a garganta dele, e então ir para cima dos outros dois que continuavam a correr, tal qual Jason Voorhees. Ele
estava acima disto com humanos. Tinha trabalho de verdade pra fazer, mas nããããão, ele estava de novo limpando a bunda destes ratos sem rabo para que o resto deles
não ficassem bravinhos por saberem que vampiros existiam entre eles.
— N-n-n-n-ão me m-m-m-m-machuque – gaguejou o cara. Junto com o cheiro de urina quando o cara mijou nas calças.
— Você é patético pra caralho.
Praguejando de novo, V acessou rapidamente a mente do cara para ter certeza de que não tinham chamado a polícia – a resposta foi “não” – antes de apagar a memória
do garoto, do momento em que tinha se encontrado com os amigos para fumar maconha até quando a viagem foi interrompida pelo inferno desenfreado.
— Você teve uma viagem ruim, seu cuzão. – Murmurou V. — Viagem ruim. Isto tudo é só uma porra de uma viagem ruim. Agora corra de volta para o papai e a mamãe.
Como o bom brinquedinho programado que agora era, o garoto levantou-se sobre seus antiquados tênis Converse e disparou atrás dos amigos, com uma expressão de confusão
total no rosto enrubescido.
Vishous deu outro pulo à frente e interceptou Frick e Frack. E, quem diria, a mera presença de V se materializando do nada à frente deles foi suficiente para deixá-los
em pânico – os dois congelaram no lugar como cães acorrentados ficando sem espaço na corrente, com um puxão para trás, esvoaçando suas parkas combinando.
— Vocês cuzões estão sempre no lugar errado na hora errada.
Mentalmente apagou suas memórias e os revistou, esvaziando seus bolsos ao mesmo tempo em que os cérebros – então os mandou retomar a fuga, rezando para que um ou
outro não tivesse alguma doença cardíaca não diagnosticada que subitamente disparasse sob tensão, matando-o instantaneamente.
Mas até aí, V era um bastardo malvado, então tudo bem.
Não havia tempo a perder. Voltou a tentar alcançar Rhage, sacando novamente suas armas e buscando uma maneira mais eficiente de chegar até o filho da puta. Que pena
que desmaterializar-se direto no meio do entrevero estava fora de cogitação, mas merda, tinha arma demais apontando para cada direção naquele quadrante. Ao menos
a necessária cobertura veio rápido, primeiro em uma série de árvores de bordo e então na forma de um prédio que devia ser ainda outro alojamento.
Batendo as costas contra os tijolos frios e duros, seus ouvidos se aguçaram ante o som de sua respiração pesada. Os disparos mais intensos estavam à sua esquerda,
acima e à frente, e rapidamente trocou ambos os cartuchos, mesmo que ainda houvesse três balas em um e duas no outro. Recarregado, correu na direção da quina do
prédio e espiou...
O assassino atirou na última janela sob a qual ele estava e, não fosse o ruído do caixilho, V teria sido ferido. Foi o instinto, ao invés do treinamento, que fez
seu braço se erguer e apontar para a lateral antes de ter consciência de estar se movendo, e o dedo indicador disparar meio quilo de chumbo bem nas fuças do fodido,
fazendo nuvens de sangue preto explodir da parte de trás do crânio como um vidro de nanquim caindo de uma grande altura.
Infelizmente, uma contração autônoma do aperto do assassino na arma automática que trazia na mão, causou o disparo de algumas balas e a ardência na lateral do quadril
de V mostrou que ele foi atingido, pelo menos uma vez. Mas melhor ali do que em outra parte do corpo...
Um segundo assassino surgiu da esquina e V o atingiu na garganta com a arma da mão esquerda. Aquele parecia estar desarmado, nada digno de nota, caiu na grama alta
quando a coisa agarrou a frente do pescoço para tentar conter o jorro negro.
Não havia tempo para recolher nenhuma arma ou apunhalá-los de volta ao Ômega.
À frente, Rhage estava com problemas.
No coração do campus, na área retangular formada por prédios erguidos com uns cinco acres de distância, Rhage estava no centro da atenção de uma galera da primeira
fila, composta por pelo menos vinte assassinos que o rodeavam.
— Jesus Cristo. – Murmurou V.
Não havia tempo para elaborar uma estratégia. Dã. E ninguém mais viria ajudar Hollywood. Os outros irmãos e guerreiros estavam muito ocupados, o ataque tendo se
dissipado em meia dúzia de escaramuças se desenvolvendo em diferentes quadrantes.
Não havia ninguém disponível em uma situação que bem necessitava de três ou quatro anjos salvadores. Ao invés de um que tinha um ferimento na coxa e um rancor do
tamanho do Canadá.
Maldição, ele estava acostumado a estar sempre certo, mas às vezes isto era um pé no saco.
Vishous avançou e se concentrou na lateral da briga, escolhendo assassinos enquanto tentava dar a seu irmão uma rota de escape viável. Mas Rhage... Porra, Rhage.
Ele estava, de alguma forma, totalmente imerso naquilo. Mesmo que a matemática não chegasse a resultado algum além de caixão, o maldito imbecil era de uma beleza
mortal ao lentamente girar, esvaziando as armas nos que estavam mais perto, recarregando sua automática sem perder um movimento, criando um anel de corpos que se
contorciam, meio mortos, meio vivos, como se estivesse no olho de um furacão destruidor.
A única coisa que não parecia estar sob controle? Seu belo rosto, digno de uma história infantil, estava contorcido no esgar de um monstro, a raiva assassina dentro
dele nem ao menos parcialmente contida. E isto teria sido quase aceitável.
Não fosse o fato de se esperar profissionalismo por parte dele.
Aquele tipo de emoção assassina era um comportamento amador, o tipo de coisa que te cegava ao invés de te manter focado, te enfraquecia ao invés de te tornar invencível.
Vishous trabalhou o mais rápido que pôde mirando em peitos, entranhas, cabeças, até o fedor saturar o ar livre, mesmo com o vento soprando em direção oposta. Mas
tinha de compensar o campo de tiro, sempre circular, de Rhage, tentando ficar ele próprio fora de alcance, por que tinha certeza de que o irmão não conseguiria diferenciá-lo
de seus alvos.
E esta era a porra do problema quando você entrava despreparado na luta.
E então acabou.
Mais ou menos.
Mesmo depois daqueles vinte ou vinte e cinco lessers estarem caídos no chão, Rhage ainda girava e continuava a atirar, um carrossel mortal sem passageiros em seus
cavalos demoníacos, estúpidos demais para saberem onde seu próprio botão de desligar ficar.
— Rhage! – V olhou ao redor mantendo as armas apontadas, mas sem atirar. — Seu maldito idiota! Pare!
Pop! Pop! Pop-pop!
O cano de Hollywood continuou a tossir flashes de luz mesmo que não houvesse mais alvos – exceto outros guerreiros à distância, fora de alcance naquele momento.
Mas não era garantido que permanecessem assim.
Vishous se aproximou, passando por cima dos corpos que se agitavam no chão, mantendo-se às costas de Rhage, que ainda girava.
— Rhage!
A tentação de atirar na bunda do cara foi tão forte, que sua mão direita chegou a abaixar o cano até à altura do traseiro. Mas era só uma fantasia. Dar a Hollywood
uma injeção de chumbo só dispararia a fera quando o próprio V estava ao alcance para virar seu aperitivo.
— Rhage!
Algo deve ter chegado até o irmão por que a barragem de tiros inúteis diminuiu... E então parou, deixando Rhage arfando, curvando-se de forma neutra.
Estavam tão a descoberto que ambos bem podiam ter setas de neon apontando para suas cabeças.
— Você vai sair daqui. – Rosnou V. — Está brincando comigo, porra, nessa merda...
Foi quando aconteceu.
Em um segundo, estava contornando para ficar de frente para o irmão... E no seguinte ele viu, pelo canto dos olhos, um dos lessers não-suficientemente-mortos erguer
um braço instável... Com uma arma anexada à extremidade. Quando a bala explodiu para fora daquele cano, o cérebro de V fez os cálculos de distância e ângulo tão
rápido quanto o vôo da bala de chumbo.
Direto para o peito de Rhage.
Bem no meio do peito de Rhage – por que, olá, era o maior alvo, tirando a porra da porta do alojamento do campus.
— Não! – Gritou V ao pular e se interpor no caminho.
É, pois ele morrer no lugar de Rhage seria um resultado bem melhor, né? Perder/perder, de ambos os jeitos.
Não houve dor alguma em seu vôo, nem o som ressoante da entrada de uma bala na lateral de seu corpo, seu quadril, sua outra coxa.
Por que a maldita coisa já tinha encontrado outro lar.
Rhage soltou um grunhido e suas duas armas apontaram para o céu, aquela típica compressão autônoma nos gatilhos naquelas mãos esvaziaram os cartuchos: bang, bang,
bang, bang! Para o céu, para o paraíso, como se Rhage estivesse amaldiçoando de dor.
E então o irmão caiu.
Ao contrário dos garotos do Ômega, um ferimento certeiro como aquele mataria qualquer vampiro, mesmo um membro da Irmandade. Ninguém escapava daquele tipo de merda,
ninguém.
Ao gritar de novo, V caiu em seu próprio pedaço de chão e descarregou uma de suas amas, enchendo o assassino com tanto chumbo que o fodido poderia virar um cofre
de banco.
Com a ameaça neutralizada, engatinhou até o irmão se arrastando de lado com as armas e a ponta dos coturnos. Para um macho que nunca sentia medo, ele se viu olhando
para a boca escancarada do puro terror.
— Rhage! – Disse ele. — Puta que pariu... Rhage!
Capítulo TRÊS
O novo centro médico de Havers estava localizado do outro lado do rio, em meio a uma área florestal de quatrocentos acres, intocado a não ser por uma velha fazenda
e três ou quatro quiosques recém-construídos que serviam de entrada para a instalação subterrânea. Enquanto dirigia o último trecho da viagem de vinte minutos em
seu Volvo XC70, Mary fitava seguidamente o espelho retrovisor, preocupada com Bitty.
A garota estava sentada no banco de trás do utilitário e olhava pela janela escura ao seu lado, como se fosse uma televisão transmitindo um programa viciante.
Cada vez que Mary voltava a se concentrar na estrada a sua frente, apertava o volante com mais força. E o acelerador.
— Estamos quase chegando. – Disse ela. De novo.
A afirmação pretendia ser confortadora, mas não estava fazendo bem nenhum à Bitty e Mary sabia que só tentava acalmar a si própria. A ideia de que pudessem não chegar
a tempo ao lado do leito era um fardo hipotético que não conseguia evitar de cogitar – e cara, aquela sensação de pesar e frustração a fazia sentir-se incapaz de
respirar.
— Aqui está o desvio.
Mary ligou a seta e entrou à direita, para uma via de mão única que era irregular e exatamente o que toda a sua agitação interna não precisava.
Mas também, ela bem poderia estar em uma super rodovia perfeitamente asfaltada e seu coração continuaria a parecer dançar a conga dentro do peito.
O único centro médico da raça tinha sido construído para dispersar, tanto a atenção humana quanto os efeitos impiedosos da luz do sol, e ao trazer alguém ou buscar
tratamento médico para si mesmo, era designado um dos vários pontos de entrada. Quando a enfermeira tinha ligado para dar a triste notícia, Mary foi orientada a
ir diretamente à fazenda e estacionar lá, e foi o que fez, parando entre uma caminhonete que era nova e um sedã Nissan que não era.
— Está pronta? – Perguntou pelo retrovisor ao desligar o carro.
Diante da ausência de resposta, circulou o carro até a porta de Bitty. A garota pareceu surpresa ao descobrir que já tinham chegado e as pequenas mãos remexeram
para soltar o cinto de segurança.
— Quer ajuda?
— Não, obrigada.
Bitty estava claramente determinada a sair sozinha do carro, mesmo que levasse mais tempo do que se aceitasse a ajuda. E o atraso talvez fosse intencional. A sensação
de insegurança quanto ao que aconteceria depois daquela morte era quase terrível demais para se imaginar. Sem família. Sem dinheiro. Sem educação.
Mary apontou um celeiro atrás da fazenda.
— Vamos por ali.
Cinco minutos depois, passaram por alguns pontos de controle e desceram pelo elevador, de onde saíram para uma recepção muito limpa e iluminada e uma sala de espera
que cheirava exatamente igual àquelas dos hospitais humanos: aroma artificial de limão, vaga mistura de perfume e o tênue cheiro do jantar de alguém.
Pavlov tinha razão, Mary pensou ao se aproximar da recepção central. Só era preciso aquela combinação de anti-séptico e ar viciado em seu nariz para sentir-se de
volta àquela cama de hospital, com tubos entrando e saindo dela, as medicações que tentavam matar o câncer em seu sangue fazendo-a sentir, na melhor das hipóteses,
como se estivesse com gripe, e na pior, como se fosse morrer a qualquer momento.
Época divertida.
Quando a enfermeira loura atrás da tela do computador ergueu o olhar, Mary disse:
— Oi, eu sou...
— Siga por ali. – A fêmea disse com urgência. — Pelas portas duplas. Vou destravá-la. O posto de enfermagem fica bem à frente. Elas te levarão direto para lá.
May não esperou nem para agradecer. Agarrou a mão de Bitty, apressou-se pelo chão brilhoso e polido, e empurrou as portas de metal assim que ouviu o mecanismo da
tranca ser liberado.
Do outro lado das cadeiras confortáveis e das revistas muito folheadas da sala de espera, tudo era profissionalmente clínico, pessoas de jaleco e com os tradicionais
uniformes de enfermagem brancos, andando para lá e para cá carregando bandejas, notebooks e estetoscópios.
— Por aqui. – Alguém chamou.
A enfermeira em questão tinha cabelos pretos bem curtos, olhos azuis que combinavam com seu uniforme e um rosto tipo Paloma Picasso.
— Eu levo vocês até ela.
Mary pôs-se atrás de Bitty, guiando a garota pelos ombros enquanto andavam pelo corredor e então outro para o que obviamente levava à área da UTI: quartos normais
de hospital não possuíam paredes de vidro com cortinas cerradas por dentro. Não tinham tanta equipe em volta. Não tinham painéis com sinais vitais piscando atrás
do posto de enfermagem.
Quando a enfermeira parou e abriu uma das portas, o ruído do equipamento médico soava urgente, um tipo frenético de bips e guinchos que sugeriam que os computadores
estavam preocupados com o que estava acontecendo à paciente.
A fêmea manteve a cortina afastada.
— Podem entrar.
Quando Bitty hesitou, Mary se abaixou.
— Não vou sair do seu lado.
E de novo, era algo que Mary estava dizendo por si mesma. A garota nunca tinha parecido particularmente interessada com qual membro da equipe do Lugar Seguro estava
ou não ao seu redor.
Quando Bitty permaneceu no mesmo lugar, Mary levantou o olhar. Havia duas enfermeiras verificando os sinais vitais de Annalye, uma de cada lado da cama, e Havers
também estava lá colocando algum tipo de medicação no acesso intravenoso daquele braço assustadoramente fino.
Por uma fração de segundo, ela violentamente conscientizou-se do quadro. A figura na cama tinha cabelos escuros ralos, a pele estava cinzenta, os olhos estavam fechados
e uma boca que estava relaxada – e durante aquele instante infinito enquanto Mary olhava para a fêmea que estava morrendo, não conseguia decidir se estava vendo
sua própria mãe ou a si mesma em cima daquele travesseiro imaculadamente branco.
Não posso fazer isto, pensou.
— Vamos lá, Bitty. – Disse com a voz rouca. — Vamos até lá segurar a mão dela. Ela vai gostar de saber que você está aqui.
Enquanto Mary levava a garota, Havers e a equipe desaparecia ao fundo, recuando sem estardalhaço como se soubessem muito bem que não havia nada que pudessem fazer
para interromper o inevitável e que a chance de Bitty dizer adeus era o caminho inevitável.
Ao lado da cama, Mary manteve a mão sobre o ombro de Bitty.
— Tudo bem, pode tocá-la. Aqui.
Mary se inclinou à frente e segurou a suave mão gelada.
— Olá, Annalye. Bitty veio te ver.
Olhando para a garota, ela anuiu em encorajamento... E Bitty franziu o cenho.
— Ela já está morta? – A garota sussurrou.
Mary piscou com força.
— Ah, não, querida. Ela não está. E consegue te ouvir.
— Como?
— Ela consegue. Vá em frente. Fale com ela. Sei que vai gostar de ouvir sua voz.
—Mahmen? – Disse Bitty.
— Segure a mão dela. Está tudo bem.
Quando Mary recuou um passo, Bitty estendeu a mão... E quando o contato foi feito, a garota franziu o cenho de novo.
— Mahmen?
De repente, alarmes começaram a soar com pânico renovado, os sons estridentes invadindo a frágil conexão entre mãe e filha, trazendo a equipe médica de volta para
a cama apressadamente.
— Mahmen! – Bitty agarrou com ambas as mãos. — Mahmen! Não vá!
Mary foi forçada a puxar Bitty para tirá-la do caminho quando Havers começou a gritar ordens. A garota lutou contra seu gesto, mas então entrou em colapso gritando
com os braços estendidos na direção da mãe e o cabelo emaranhando.
Mary segurou o pequeno corpo agitado.
— Bitty, oh, Deus...
Havers aproximou-se da cama e começou a fazer massagem cardíaca enquanto o ressuscitador de emergência era trazido.
— Temos de ir, – Disse Mary, empurrando Bitty na direção da porta. — Vamos esperar lá fora...
— Eu a matei! Eu a matei!
Ao derrapar na direção de Rhage, Vishous caiu de joelhos e buscou pela jaqueta de couro e camisa do irmão, arrancando as camadas de tecido e expondo...
— Ai... Caralho.
A bala tinha entrado à direita do centro, exatamente onde ficava o coração de seis válvulas de um vampiro dentro das costelas. E quando Rhage ofegou em busca de
ar e cuspiu sangue, V olhou ao redor freneticamente. Guerra pra todo canto. Cobertura em canto nenhum. O tempo... Estava acabando...
Butch vinha correndo até eles de cabeça baixa, disparando um par de armas calibre 40 ao redor de si mesmo em ciclos de bombeamento, de forma que os assassinos ao
alcance tinham de cair no chão em posição fetal para evitar serem atingidos pelos tiros. O ex-tira abaixou-se, as armas ainda erguidas e prontas para disparar, suas
pernas de buldogue e torso se jogaram também na grama alta marrom.
— Temos de tirá-lo daqui. – Aquele sotaque de Boston anunciou.
A boca de Rhage abriu largamente e a inalação que veio em seguida era chiada como uma caixa de pedras.
Geralmente o cérebro de V era aguçado pra caralho, sua grande inteligência era mais uma característica pessoal que uma aptidão e definia tudo em sua vida. Ele era
o racional, o lógico, o filho da puta cínico que nunca errava.
E ainda assim, suas células cinzentas imediatamente pifaram.
Anos de prestação de assistência médica e intervenções em campo lhe diziam que seu irmão ia morrer em um minuto ou dois, caso o músculo do coração tivesse sido mesmo
dilacerado ou perfurado, e uma ou mais válvulas começasse a vazar sangue na cavidade torácica.
Isto resultaria na interrupção da função cardíaca quando o saco peritoneal se inundasse e fatalmente comprometeria a pressão sanguínea.
Era o tipo de ferimento catastrófico que requeria intervenção cirúrgica imediata – e mesmo assumindo que tivessem toda a tecnologia e equipamentos necessários em
uma situação de clínica esterilizada, o sucesso não era garantido.
— V! Temos de tirá-lo daqui...
Balas voavam ao redor e ambos se jogaram no chão. Com um terrível cálculo mental, a unidade de processamento de V chegou a uma conclusão insustentável: a vida de
Rhage ou a deles.
Porra! A culpa é minha, pensou V.
Se não tivesse contado ao irmão sobre a visão, Rhage não teria corrido prematuramente e teria tido mais controle sobre a luta...
Vishous ergueu suas armas e abateu três assassinos que se aproximavam enquanto Butch girava no chão e fazia o mesmo na direção oposta.
— Rhage, fique conosco. – V grunhiu ao se desfazer do cartucho vazio e recarregar as armas, uma após a outra. — Rhage, você precisa... Merda!
Mais tiros. E ele foi atingido no maldito braço.
Enquanto seu próprio sangue corria, ele ignorou, seu cérebro lutando para encontrar uma solução que não resultasse na porra de uma pira funerária para Rhage. Ele
podia chamar Jane por que ela não podia morrer. Mas ela não conseguiria executar uma cirurgia cardíaca de peito aberto aqui, pelo amor de Deus. E se...
O flash de luz foi tão brilhante, tão súbito, que o fez se perguntar quem infernos estaria perdendo tempo apunhalando um lesser de volta para o Ômega...
O segundo jorro de iluminação o fez girar e olhar para Rhage. Oh... Merda. Feixes gêmeos de luz brilhante espocavam das órbitas dos olhos do irmão, apontando para
o céu como feixes de laser em correntes paralelas que poderiam atingir a face da lua.
— Caraaaaaalho!
Mudança total de planos. O tema filho da puta da noite.
V avançou para Butch e o puxou, afastando-o de Rhage.
— Corre!
— O que está fazendo... Santa Maria, mãe de Deus!
Os dois puseram-se a correr desabaladamente mantendo a cabeça baixa, as pernas comendo a distância pela área aberta, enquanto pulavam sobre lessers e se desviavam
para se tornarem alvos mais difíceis. Ao chegarem à construção mais próxima da escola abandonada, eles se alternaram nos cantos em busca de cobertura, V pela frente,
Butch pelos fundos.
Com o peito ofegando, Vishous se inclinou. No centro da clareira, a transformação torturava o corpo caído de Rhage, seus braços e pernas se contorciam enquanto seu
torso convulsionava e tinha espasmos, a fera emergindo da carne do macho, o grande dragão se libertando do DNA que era forçado a compartilhar.
Se Rhage não tivesse morrido ainda, aquilo certamente o mataria.
E ainda assim, não havia como interromper a transformação. A Virgem Escriba tinha entremeado a maldição em cada uma das células de Rhage, e quando a hora chegava,
o processo era um trem descarrilado que ninguém conseguia deter.
A morte cuidaria disto.
A morte de Rhage... Acabaria com aquilo tudo.
V fechou os olhos e gritou por dentro.
Um segundo depois ergueu as pálpebras e pensou, “de jeito nenhum, porra”. “De jeito nenhum, cacete, que vou deixar isto acontecer.”
— Butch, – Rosnou ele. — Tenho que ir.
— O que? Onde você...
Foi a última coisa que Vishous ouviu ao se levantar e desaparecer.
Capítulo QUATRO
Não havia dor.
Nenhuma dor vinha do ferimento que a bala fez no peito de Rhage. E aquela era a primeira indicação de que a merda era séria. Ferimentos que doem tendem a não ser
do tipo que te coloca em estado de choque. Não sentir nada? Provavelmente uma boa indicação – juntamente com o fato de ele ter desabado no chão e o tiro ter sido
certeiro em seu peito – de que corria perigo mortal.
Piscada. Tente respirar. Piscada.
O sangue em sua boca, espesso em sua garganta... Uma maré crescente que ia contra seus esforços de fazer o oxigênio entrar em seus pulmões. A audição tinha se reduzido
a uma abafada versão de si mesma, como se estivesse deitado de costas em uma banheira e o nível da água tivesse subido até cobrir seus dois ouvidos. A visão ia e
vinha, o céu noturno acima dele se revelava e se obscurecia, enquanto as coisas falhavam e voltavam a aparecer. Respirar ficava cada vez mais difícil, um peso crescente
se instalava em seu peito, primeiro como uma sacola, então um baú cheio... Agora já no nível de um trem de carga.
Rápido, estava acontecendo rápido demais.
Mary, ele pensou. Mary?
Seu cérebro cuspiu o nome de sua shellan – talvez ele tenha mesmo chamado em voz alta? – como se sua companheira pudesse ouvi-lo, de alguma forma.
Mary!
O pânico inundou sua corrente sanguínea, acumulando-se dentro das costelas – junto com o plasma que, sem dúvida, estava vazando pela porra toda. Seu único pensamento,
mais do que a morte, a batalha ou mesmo a segurança dos irmãos, era... Oh, Deus, faça a Virgem Escriba manter sua parte da barganha.
Não permita que ele acabe no Fade sozinho.
Mary devia deixar a terra com ele. Devia lhe ser permitido segui-lo quando ele fosse para o Fade. Era parte do acordo que tinha feito com a Virgem Escriba: ficaria
com a maldição e sua Mary sobreviveria à leucemia, e por que sua companheira tinha se tornado infértil devido ao tratamento contra o câncer, ela ficaria com ele
pelo tempo que quisesse.
Você vai morrer esta noite, porra.
Bem ao ouvir a voz de Vishous em sua mente, o rosto do irmão apareceu em seu campo de visão, substituindo o céu. A boca de V se movia, o cavanhaque ondulava enquanto
enunciava as palavras. Rhage tentou afastar o macho, mas seus braços não obedeciam aos comandos de seu cérebro.
A última coisa que precisava era que outra pessoa também morresse. Embora, sendo o filho da Virgem Escriba, V provavelmente seria o último a se preocupar sobre algo
tão improvável quanto bater as botas. Mas quando Butch, o terceiro elo do trio, chegou escorregando e berrando também? Agora, ali estava um cara que não tinha um
cartão de dispensa da Dona Morte...
Tiros. Ambos começaram a atirar.
Não! Rhage ordenou a eles. Diga a Mary que eu a amo e me deixem aqui antes que vocês...
V recuou como se algo de chumbo tivesse penetrado em alguma de suas partes.
E foi quando aconteceu.
Foi o cheiro do sangue do irmão que desencadeou. No instante em que aquela nuance de cobre atingiu o nariz de Rhage, a fera despertou dentro da prisão de seu corpo
e começou a sair, a mudança dando início a terremotos internos que estalaram seus ossos, despedaçaram seus órgãos internos e o transformaram em uma coisa totalmente
diferente.
Agora havia dor.
Bem como a sensação de que este esforço era uma perda da porra do tempo. Se ele ia morrer, o dragão estava só tomando seu lugar na merda da situação.
— Diga a Mary para vir comigo. – Rhage gritou ao ficar completamente cego. — Diga a ela...
Mas teve a sensação de que os irmãos já tinham se afastado e graças a Deus por isso: o sangue de V não estava mais no ar e ninguém respondeu.
Mesmo quando sua força vital se esvaiu, fez de tudo para seguir a corrente enquanto os violentos movimentos da fera destruíam seu corpo moribundo. Mesmo que tivesse
a energia, lutar contra aquela corrente seria desperdício de esforço e não facilitaria nada. Entretanto, enquanto seu corpo e mente, suas próprias emoções e consciência
recuavam, era estranho que não soubesse se era a morte ou a transformação que estava ocorrendo a ele.
Quando o sistema nervoso da fera assumiu completamente o controle sobre ele e suas sensações de dor desapareceram, Rhage recuou a uma zona de flutuação metafísica,
como se quem e o que ele era fosse depositado em um globo de neve no alto da prateleira do continuum tempo.
Só que neste caso tinha a impressão que não seria mais retirado de lá.
O que era engraçado. Cada uma das criaturas que tinham consciência e sabiam de sua própria mortalidade inevitavelmente se perguntavam, de vez em quando, quando e
onde, como e por que de sua própria morte. O próprio Rhage tinha seguido este fluxo mórbido de pensamento, especialmente durante seu período pré-Mary, quando era
um solitário sem nada além de um catálogo de suas falhas e fraquezas para lhe fazer companhia durante as densas e desertas horas de luz do dia.
Para ele, aquelas questões desconexas tinham sido inesperadamente respondidas esta noite: “onde” era no meio do campo de batalha em uma escola abandonada para garotas;
“como” era devido a uma hemorragia cardíaca, resultado de um tiro; “por que” era consequência de seu dever; “quando” seria provavelmente nos próximos dez minutos,
talvez menos.
Dada a natureza de seu trabalho, nada daquilo era surpresa. Está bem, talvez a parte da escola fosse, mas só isso.
Ele sentiria falta dos irmãos, Jesus... E aquilo doía mais do que a fera. E se preocuparia com todos eles e o futuro do reinado de Wrath. Merda, perderia o crescimento
de Nalla e L.W1. E o nascimento dos gêmeos de Qhuinn... Que nasçam vivos e saudáveis. Será que conseguiria ver a todos de lá do Fade?
Oh, sua Mary. Sua bela, preciosa Mary.
O terror o atingiu, mas era difícil apegar-se à emoção enquanto sentia-se enfraquecer cada vez mais. Para se acalmar, disse a si mesmo que a Virgem Escriba não mentia.
A Virgem Escriba era toda poderosa. A Escriba Virgem tinha determinado o equilíbrio necessário para salvar a vida de sua Mary e dera a eles o grande presente para
compensar o fato de que sua shellan nunca poderia ter filhos.
Sem filhos, pensou com um angústia. Ele e sua Mary jamais teriam filhos de qualquer forma agora.
Isto era tão triste.
Estranho... Não tinha pensando que os queria, pelo menos não conscientemente. Mas agora que tudo aquilo tinha acontecido? Estava totalmente desolado.
Pelo menos sua Mary jamais o abandonaria.
E precisava ter fé em que, quando chegasse às portas do Fade e prosseguisse a atravessá-la para o que havia do outro lado, ela conseguiria encontrá-lo.
Senão, esta coisa toda de morte seria insuportável de enfrentar. A ideia de que poderia estar morrendo e que jamais veria sua amada de novo? Jamais voltar a sentir
o cheiro de seus cabelos? Sentir seu toque? Falar a verdade mesmo que ela já soubesse, do quanto a amava?
Era por tudo isto que a morte era tal tragédia, pensou. Era o grande separador, e às vezes atingia sem aviso, um ladrão cruel roubando as pessoas de seus cursos
emocionais que os arruinaria pelo resto de suas vidas...
Merda, e se a Virgem Escriba estivesse errada? Ou tivesse mentido? Ou não fosse tão poderosa?
Subitamente seu pânico recarregou e seus pensamentos começaram a embaralhar, prendendo-o na distância que ultimamente tinha aparecido entre ele e sua shellan, distância
que tinha subestimado, achando que teria tempo e espaço para corrigir.
Oh, Deus... Mary, disse em sua cabeça. Mary! Eu te amo!
Merda. Devia ter falado sobre estas coisas com ela, escavado profundamente para descobrir onde estava o problema, aproximando-os novamente até que estivessem de
novo alma-a-alma.
O problema era, percebeu com terror, enquanto o coração finalmente parava de bater em seu peito, tudo o que você desejava ter dito, todas as peças que faltavam de
si mesmo que ainda tinha a oferecer, todas as falhas que tinha varrido para baixo do tapete, sob a desculpa da vida ser corrida demais... Aquilo acabava também.
O meio do passo, que jamais seria completado, era o pior arrependimento que alguém poderia ter.
Talvez você só não aprendesse isto até que todas as coisas sobre as quais sempre se questionou sobre sua morte realmente acontecesse. E sim, aquelas perguntas que
sempre se fez, os comos e porquês, ondes e quandos... Se tornavam malditamente imateriais quando você partia desta existência.
Eles tinham se afastado, ele e Mary.
Ultimamente... Eles perderam um pouco da conexão entre eles.
Ele não queria partir assim...
Luz branca varreu tudo, devorando-o vivo, roubando sua consciência.
O Fade tinha vindo até ele. E só podia rezar para que sua Mary Madonna fosse capaz de encontrá-lo do outro lado.
Tinha coisas que precisava desesperadamente dizer a ela.
Vishous reassumiu a forma em um pátio de mármore branco que se abria para um céu leitoso tão vasto e brilhante que não havia sombras lançadas pela fonte no centro
ou pela árvore cheia de passarinhos coloridos chilreando mais ao canto.
Os quais silenciaram ao pressentirem seu humor.
— Mãe! – Sua voz entoou, ecoando entre as paredes. — Onde diabos você está!?
Ao avançar, a trilha de sangue que deixou à sua passagem era de um vermelho brilhante e, quando parou à porta que levava aos aposentos particulares da Virgem Escriba,
gotas caíram de seu cotovelo e perna em impactos suaves. Quando bateu e chamou novamente o nome dela, salpicos do sangue tingiram a porta branca, como esmalte de
unha caindo no chão.
— Foda-se!
Forçando a porta com o ombro, invadiu os aposentos da mãe – só para parar de supetão. Sobre a plataforma de dormir, debaixo de lençóis de cetim branco, a entidade
que tinha criado a raça vampírica e também corporeamente gerado ele e sua irmã, estava deitada em absoluta imobilidade e silêncio. Mas não havia forma corpórea nela.
Somente uma poça tridimensional de luz que outrora fora tão brilhante quanto o estouro de uma bomba, mas agora era como uma antiquada lamparina com a luz embaçada.
— Você precisa salvá-lo, – Ao cruzar o chão de mármore, Vishous reparou vagamente que o quarto estava vazio, exceto pela cama. Mas quem se importava? — Acorda, porra!
Alguém importante está morrendo e você precisa impedir, maldição.
Se ela tivesse um corpo, ele a teria agarrado e forçado a prestar atenção. Mas não havia braços para ele puxar para fora da cama ou ombros para chacoalhar.
Estava a ponto de gritar de novo quando palavras soaram pelo quarto como se viessem de um sistema de som surround.
O que tiver de ser, será.
Como se isto explicasse tudo. Como se ele fosse um cuzão por ter vindo incomodá-la. Como se estivesse desperdiçando o tempo dela.
— Por que nos criou se não liga a mínima?
Exatamente o que te preocupa? O futuro dele ou o seu?
— Do que infernos está falando? – Oh, e sim, sabia que não devia questioná-la, mas foda-se. — O que isto significa?
Será necessário mesmo uma explicação?
Ao cerrar os dentes, V lembrou a si mesmo de que Rhage estava em campo se transformando em um monstro e morrendo daquela encarnação: ficar de bate boca com a querida
mamãe não seria o melhor caminho aqui.
— Apenas salve-o, tudo bem? Tire-o daquele teatro de horrores para que possamos operá-lo e eu te deixo aqui para apodrecer em paz...
E isto resolveria o destino dele em que?
Está bem, agora sabia por que os humanos com questões maternas iam àqueles programas que o Lassiter gostava de assistir. Cada vez que V chegava perto desta fêmea,
entrava em estado de psicose induzida pelo útero.
— Ele vai continuar respirando, é isto que vai resolver.
O destino vai acabar se cumprindo de outras maneiras.
V imaginou Hollywood escorregando no tapete do banheiro numa queda em casa que o mataria. Ou engasgando com uma coxa de peru. Ou só Deus sabe o que mais poderia
matar o irmão.
— Então o mude. Você é poderosa pra cacete. Mude o destino dele agora mesmo.
Houve uma longa pausa e se perguntou se ela não teria caído no sono de novo ou merda do tipo – e cara, ele realmente a odiou. Ela era uma maldita desistente, retirando-se
do mundo, isolando-se aqui em cima como uma reclusa rabugenta só por que ninguém mais estava beijando sua bunda do jeito que ela queria.
Que peninha.
Enquanto isto, um dos melhores guerreiros deles, um que era absolutamente indispensável na guarda privada do Rei, estava a ponto de se pirulitar deste planeta. E
V era a última pessoa a querer que outra pessoa resolvesse os problemas por ele, mas tinha de tentar salvar Rhage com tudo o que podia, e quem diabos mais tinha
este tipo de poder?
— Ele é importante, – V rosnou. — A vida dele é importante.
Pra você.
— Foda-se, isto não é sobre mim. Ele importa ao Rei, à Irmandade, à guerra. Se o perdermos? Teremos um problemão.
Por que não tenta ser honesto?
— Acha que estou preocupado com ele e Mary? Sim. Confesso essa merda também por que neste exato momento você não parece ser capaz sequer de ficar em pé, quanto mais
acompanhar uma não-entidade que você arrancou do reino mortal pela travessia até o Fade no momento em que ela quiser.
Porra. Agora que tinha falado em voz alta, realmente tinha de se perguntar se aquela coisa alquebrada em cima da cama poderia mesmo cumprir a promessa que fizera
no que parecia ser antigamente, mesmo que só tivesse sido há três anos.
Tanta coisa tinha mudado.
Exceto o fato de que ainda odiava qualquer tipo de fraqueza. E continuava a detestar estar na presença da mãe.
Vá embora. Você me cansa.
— Eu te canso. É, por que você tem mesmo tanta coisa pra fazer aqui em cima. Jesus Cristo.
Tudo bem, ela que se fodesse. Ele descobriria outra saída. Outro... Alguma coisa.
Merda, o que mais havia?
Vishous virou-se para a porta que tinha arrombado. A cada passo dado, esperava que ela o chamasse de volta, dissesse algo ou lhe desse uma dor no peito quase tão
letal quanto o golpe que derrubara Rhage. Quando ela não chamou, e a porta se fechou mal tinha passado, quase acertando seu traseiro, ele pensou que já devia saber.
Ela não se importava o suficiente nem para cagar nele.
De volta ao pátio, a trilha de sangue que havia deixado sobre o revestimento de mármore era como o destino que tinha seguido por toda a vida, torto e bagunçado,
evidenciando a dor que ele totalmente falhava em reconhecer. E sim, queria que a mancha se infiltrasse naquela pedra, como se talvez isto pudesse chamar a atenção
dela.
Por falar nisto, por que simplesmente não se jogava no maldito chão com um ataque de birra, como se estivesse nos corredores de uma loja de departamentos, enfurecido
por não ganhar um triciclo?
Enquanto ficava parado ali, o silêncio se registrou como se fosse um som. O que era ilógico e precisamente a experiência que ele teve ao perceber o quão verdadeiramente
silencioso aquele lugar agora estava. As Escolhidas estavam todas na Terra, aprendendo sobre si mesmas, separadas individualmente, renegando seu papel tradicional
de servir à mãe. O mesmo acontecendo com a raça, existindo em tempos modernos onde os velhos ciclos de festivais e costumes eram ignorados, em sua maioria, e as
tradições que outrora eram respeitadas, estavam agora à beira do esquecimento.
Bom, pensou. Esperava que ela estivesse se sentindo sozinha e desrespeitada. Ele a queria bem calma e isolada, com seus fiéis mais fervorosos dando-lhe as costas.
Ele a queria ferida.
Ele a queria morta.
Seus olhar foi para os pássaros que tinha trazido para ela e o bando fugiu dele, subindo para outros galhos do outro lado da árvore branca, amontoando-se juntos
como se temessem que ele fosse torcer os pescoços deles, um a um.
Aqueles passarinhos tinham sido uma oferta de paz de um filho que jamais havia sido realmente querido, mas também não tinha se comportado muito bem. Sua mãe provavelmente
não tinha dirigido a eles mais do que um olhar – e, quem diria, também tinha superado este breve flamejar de uma fraqueza conciliatória, de volta às margens de sua
inimizade. Como poderia ser diferente?
A Virgem Escriba não veio a eles quando Wrath fora quase assassinado. Ela não tinha ajudado o Rei a manter sua coroa. Beth quase morreu ao dar à luz e teve de abrir
mão de qualquer possibilidade de ter filhos no futuro. Pelo amor de Deus, Selena, uma das Escolhidas da própria Virgem Escriba, tinha acabado de morrer e arrebentar
o coração de um maldito macho de valor – e qual foi a resposta? Nada.
E antes de tudo isto? A morte de Wellsie. Os ataques.
E à frente? Qhuinn estava se borrando de preocupação de que Layla morresse dando à luz aos gêmeos. E Rhage estava morrendo ali embaixo no meio da batalha.
Precisava mais?
Girando a cabeça, V olhou para a porta que tinha voltado a se fechar à sua passagem. Ele ficava contente por ela estar sofrendo. E não, não confiava nela.
Ao se desmaterializar de volta para o campo de combate, não tinha absolutamente fé nenhuma de que ela faria o correto para Rhage e Mary. Ele fez uma aposta que tinha
perdido ao ir até a mãe, mas com ela aquilo era sempre o que acontecia.
Milagre. Ele precisava da porra de um milagre.
Capítulo CINCO
A água que caía sobre a mão de Mary estava fria, e ainda assim queimava sua pele – provando que lados opostos do termômetro podem coexistir ao mesmo tempo.
A pia do banheiro feminino que estava usando era branca e de porcelana. Seu ralo brilhava e era prateado. À sua frente, um espelho de parede inteira refletia três
reservados, todos tinham as portas cor de pêssego fechadas, mas somente um deles estava ocupado.
— Está tudo bem aí? – Disse ela.
Ouviu o barulho da descarga, mesmo que Bitty não tivesse usado.
Mary encarou seu reflexo. É. Ela parecia tão mal quanto se sentia: por algum motivo, nos últimos trinta minutos bolsas escuras se formaram sob as órbitas que pareciam
afundadas, e sua pele parecia tão pálida quanto o piso no qual estava pisando.
Por algum motivo? Besteira. Sabia exatamente o motivo.
Eu a matei!
Mary teve de fechar os olhos e fingir recompor-se novamente. Quando abriu os olhos de novo, tentou se lembrar do que estava fazendo. Oh. Certo. Havia uma pequena
pilha de toalhas de papel em uma prateleira do tipo entrelaçado e dobrado, e ao avançar para pegar um, respingou os outros de água e pensou consigo mesma que era
estranho que Havers, tão meticuloso com a clínica, permitisse tal bagunça. Daí entendeu... O suporte na parede perto da porta estava quebrado, a parte inferior pendurada,
frouxa.
Igual a mim, pensou. Cheia de técnica e experiência em ajudar pessoas, mas sem executar meu trabalho direito.
Segure a mão dela. Está tudo bem...
Eu a matei!
— Bitty? – Quando a palavra não saiu mais do que um resmungo, ela pigarreou. — Bitty.
Depois de secar as mãos, virou-se para os reservados.
— Bitty, vou entrar se você não sair.
A garota abriu a porta do meio, e por alguma razão Mary soube que jamais se esqueceria da visão daquela mãozinha fortemente cerrada, sem se abrir, quando ela saiu.
Ela tinha chorado lá dentro. Sozinha. E agora que a garota estava sendo forçada a mostrar o rosto, estava fazendo exatamente o que a própria Mary esteve desesperadamente
tentando fazer.
Às vezes a compostura era tudo o que se tinha; dignidade, seu único consolo; a ilusão de “tudo bem” sua única fonte de conforto.
— Aqui, me deixe... – Quando a voz de Mary se apagou, voltou para as toalhas de papel e umedeceu uma na pia que tinha usado. — Isto vai ajudar.
Aproximando-se lentamente da garota, trouxe o papel frio e macio para o rosto corado dela, pressionando-o na pele quente e avermelhada. Enquanto isto, na sua cabeça
se desculpava com a Bitty adulta, aquela que ela esperançosamente se tornaria: Sinto muito ter te feito fazer isto. Não, você não a matou. Quem dera eu tivesse te
deixado fazer as coisas do seu jeito e a seu tempo. Sinto muito. Não, você não a matou. Sinto muito.
Sinto tanto.
Mary ergueu o queixo da garota.
— Bitty...
— O que eles vão fazer com ela agora? Para onde ela vai?
Deus, aquele olhar castanho claro era firme.
— Eles vão levá-la... Bem, eles vão cremá-la.
— O que é isto?
— Eles vão queimar o corpo dela até torná-lo cinzas, para o rito de passagem.
— Vai doer?
Mary pigarreou de novo.
— Não, querida. Ela não vai sentir nada. Está livre... Ela está no Fade esperando por você.
O lado bom era que ao menos isto Mary sabia ser verdade. Mesmo tendo sido criada católica, ela própria tinha visto a Virgem Escriba, então não, não estava dando
à garota falsas esperanças. Para os vampiros existia mesmo um paraíso, e eles real e verdadeiramente encontravam seus entes queridos lá.
Diabos, talvez isto também fosse verdade para os humanos, mas a magia era muito menos visível no mundo deles; desta forma, a salvação eterna era muito mais difícil
de ser vendida ao humano comum.
Afastando a toalha de papel, Mary recuou um passo.
— Eu gostaria de voltar ao Lugar Seguro agora, tudo bem? Não há mais nada que a gente possa fazer aqui e já está quase amanhecendo.
A última frase saiu só por hábito, ela achava. Como uma pré-trans, Bitty era capaz de tolerar qualquer quantidade de luz do sol. E a verdade real era que só queria
levar a garota para longe de toda a morte dali.
— Tudo bem? – Mary repetiu.
— Não quero deixá-la.
Em qualquer outra circunstância, Mary teria se abaixado e gentilmente exposto um pouco do que ia ser o mundo novo de Bitty. A realidade horrorosa era que não havia
mais mãe para deixar para trás, e tirar a garota deste ambiente clínico onde pacientes estavam sendo tratados, às vezes em situações terríveis, era inteiramente
apropriado.
Eu a matei.
Em vez disto, Mary disse.
— Está bem, podemos ficar o quanto você quiser.
Bitty anuiu e foi até a porta que levava ao corredor. Parada diante da porta fechada, seu vestido tremendamente gasto parecia a ponto de se desmanchar de sua figura
magra, seu feio casaco preto parecia um cobertor jogado de qualquer jeito ao seu redor, seus cabelos castanhos despontados arrepiavam contra o tecido.
— Eu realmente queria...
— O que? – Sussurrou Mary.
— Eu queria voltar a antes. À hora que eu acordei hoje.
— Eu também queria que fosse possível.
Bitty olhou por cima do ombro.
— Por que não pode voltar? É tão estranho. Digo, consigo lembrar tudo dela. É como... É como se minhas lembranças fossem um quarto no qual eu pudesse entrar. Ou
algo assim.
Mary franziu o cenho, pensando que aquela era uma maneira muito madura de se expressar para alguém daquela idade.
Mas antes que pudesse responder a garota abriu a porta, claramente não interessada em uma resposta – e talvez isto fosse uma coisa boa. Que infernos se podia responder
diante aquilo?
No corredor, Mary quis pousar a mão sobre aquele ombro pequeno, mas se segurou. A garota era tão fechada, do mesmo modo que um livro seria no meio de uma biblioteca
ou uma boneca em uma fila de colecionáveis, e era difícil forçar a quebrar aquelas fronteiras.
Especialmente quando, como uma terapeuta, você mesma já estava se sentindo muito desequilibrada em seu papel de profissional.
— Para onde vamos? – Bitty perguntou quando duas enfermeiras passaram por elas.
Mary olhou ao redor. Elas ainda estavam na área da UTI, mas a alguma distância de onde a mãe de Bitty tinha morrido.
— Podemos procurar uma sala para nos sentar.
A garota parou.
— Nós não vamos poder vê-la de novo, vamos?
— Não.
— Acho que é melhor a gente voltar.
— O que você quiser.
Cinco minutos depois estavam no Volvo indo para o Lugar Seguro. Ao guiá-las pela ponte, Mary voltou a olhar pelo retrovisor, verificando Bitty a cada cinquenta metros.
No silêncio, ela se pegou novamente a desfiar um cordão de desculpas em sua mente... Por ter dado um conselho ruim, por colocar a garota na posição de mais sofrimento.
Mas toda aquela comiseração era auto-infligida, uma busca por absolvição pessoal, totalmente injusta com a paciente, especialmente uma tão jovem.
Este pesadelo profissional era algo que Mary teria de superar sozinha.
Uma entrada na I-87 apareceu assim que chegaram ao lado do centro, após a ponte, e a seta soou alto no interior do utilitário. Dirigindo-se para o norte, Mary permaneceu
no limite de velocidade e foi ultrapassada por alguns caminhões fazendo oitenta em uma pista de sessenta e cinco. De vez em quando, sinais luminosos indicando áreas
de ultrapassagem piscavam acima delas em um ritmo que nunca demorava, e o pouco tráfego local era diminuído ainda mais enquanto elas prosseguiam.
Quando chegassem, Mary decidiu que tentaria dar algo para a garota comer. Bitty tinha perdido a Primeira Refeição e devia estar morrendo de fome. Então talvez um
filme até o amanhecer, algo calmo. O trauma era tão recente, e não só o fato de perder a mãe. O que tinha acontecido lá no Havers devia ter trazido à tona tudo o
que tinha acontecido antes – os abusos em casa, o resgate onde Rhage, V e Butch mataram o pai para salvar Bitty e a mãe, a descoberta que a mãe estava grávida, a
perda do bebê, os meses que se arrastaram depois, onde Annalye jamais se recuperara totalmente...
— Sra. Luce?
— Sim? – Oh, Deus, por favor, pergunte algo que eu possa responder decentemente. — Sim, Bitty?
— Para onde estamos indo?
Mary olhou para a placa na estrada. Dizia “Saída 19 Glen Falls”.
— Desculpe? Estamos indo para casa. Devemos chegar lá em quinze minutos.
— Achei que o Lugar Seguro não era tão longe.
— O q...?
Oh, Deus.
Estava indo na direção da maldita mansão.
— Oh, Bitty, desculpe. – Mary meneou a cabeça. — Eu acho que confundi as saídas. Eu...
Onde estava com a cabeça?
Bem, ela sabia a resposta... Todas as hipóteses que vinha imaginando em sua cabeça sobre o que fariam quando saíssem do carro eram coisas que envolviam o lugar onde
Mary morava com Rhage, o Rei, os Irmãos, os guerreiros e suas companheiras.
Onde infernos estava com a cabeça?
Mary pegou a saída 19, desceu a rodovia e voltou a seguir para o sul. Cara, não estava dando uma dentro esta noite, estava?
Pelo menos as coisas não poderiam piorar.
De volta ao Internato para Garotas Bownswick, Assail, filho de Assail, ouviu o rugido mesmo através da sobrecarga sensorial da batalha.
Apesar do caos de todos os tiros, dos xingamentos e das loucas corridas de cobertura a cobertura, o som trovejante que rolava pelo campus abandonado era o tipo de
coisa que chamava a atenção.
Ao se virar, manteve o dedo no gatilho da automática, continuando a descarga de balas adiante, certeiramente em uma fila de mortos-vivos...
Por uma fração de segundo, parou de atirar.
Seu cérebro simplesmente não conseguia processar o que os olhos sugeriam que tinha magicamente aparecido a cinquenta metros à sua frente. Era... Algum tipo de criatura
parecida com um dragão, coberta de escamas roxas, cauda serrilhada e uma boca arreganhada cheia de dentes de T. Rex. O monstro pré-histórico tinha bem a altura de
dois andares, comprido como um trailer, e rápido como um crocodilo ao avançar para atacar qualquer coisa que se mexesse...
Queda livre.
Sem aviso, seu corpo voou adiante, e uma dor se espalhou pela frente de sua perna e rasgou até seu tornozelo. Girando em meio ao ar, caiu de cara na grama alta...
E uma respiração depois, o assassino parcialmente ferido que o tinha atingido com uma faca caiu em cima de seu peito, aquela lâmina arqueando pelo seu ombro, os
lábios curvados em um esgar enquanto o sangue preto derramava em Assail inteiro.
Certo, foda-se, cara.
Assail agarrou um punhado do cabelo ainda castanho, enfiou o cano da arma naquela boca arreganhada e apertou o gatilho, explodindo a parte de trás do crânio, incapacitando
o corpo de forma que caiu em cima dele como um peso morto agitado. Chutando o corpo que se contorcia para tirá-lo de cima, voltou a se levantar.
E se viu diretamente diante da fera.
Seus movimentos para se levantar chamaram a atenção, os olhos do dragão se fixaram nele, estreitados em fendas. Então, com outro rugido a criatura veio em direção
à ele fazendo o chão tremer, esmagando os assassinos sob suas massivas patas traseiras, as garras da frente encurvadas para cima e prontas para o ataque.
— Porra!
Assail jogou-se para frente, não mais preocupado onde mirava a arma e absolutamente despreocupado com o fato de que agora corria para a fileira avançada de lessers.
O lado bom? A fera cuidou daquele probleminha. Os assassinos lançaram igualmente um olhar para aquela criatura dos infernos vindo em direção a eles e dispersaram
como folhas sob o vento de outono.
Naturalmente, não havia nada diretamente adiante que provesse nenhuma cobertura. Por azar, sua rota de fuga não oferecia nada além de arbustos e grama, sem nenhuma
proteção significativa. A construção mais próxima? Estava a duzentos metros de distância. Pelo menos.
Praguejando, correu mais rápido, abusando dos músculos de suas pernas, buscando mais e mais velocidade.
Era uma corrida que a fera estava fadada a vencer – uma vitoria inevitável quando um par de pernas que mal cobria um metro e meio a cada passo, tentava vencer um
par de pernas que podia cobrir vinte e cinco em um único passo. A cada segundo, aquele som ficava mais alto e mais perto, até que jatos quentes de respiração atingiram
as costas de Assail, esquentando-o, apesar do frio.
O medo inundou o seu núcleo.
Mas não havia tempo para tentar dominar o pânico que invadiu sua mente. Um grande rugido explodiu na sua direção, a força do som tão grande que o empurrou adiante,
provendo um jorro de ar fedorento que o enojou. Merda, sua única chance era...
A mordida veio depois do grande rugido, aqueles maxilares estalando tão perto da nuca de Assail que ele se encolheu, mesmo que isto diminuísse sua velocidade. Mas
era tarde demais para se salvar. Transportado pelo ar. Ele foi erguido, arrancado do chão em meio a um passo – só que, por que não doía mais?
Certamente se a fera o tivesse agarrado pelos ombros ou pelo torso, ele teria sido rasgado – não, espere, ela o pegou pela jaqueta. A coisa o agarrou pela jaqueta
de couro, não pela carne, e uma faixa de constrição cortava pelo seu peito e erguia-o pelas axilas, as pernas flutuavam, a arma disparava enquanto ele cerrava as
mãos em punhos. Abaixo dele, a paisagem girava como se estivesse em uma gangorra, os lessers restantes, os irmãos lutando, os arbustos muito crescidos e as árvores
balançavam ao redor dele como se estivesse sendo chacoalhado.
A porra da coisa ia devorá-lo. Esta baboseira sem sentido era só para amaciar a carne.
Maldito fosse ele, era o equivalente vampírico a uma asa de frango.
Não havia tempo. Soltou a arma e tateou em busca do zíper em sua garganta. O movimento balançante tornou seu pequeno alvo rápido como um rato, escorregadio como
mármore, estilo agulha em palheiro para suas mãos trêmulas e escorregadias, e as pontas dos dedos suadas.
O próprio aperto da fera foi o que o ajudou.
Com aqueles dentes travados nas costas da jaqueta, o couro não conseguiu suportar seu peso e ele caiu, despencando das presas, o chão duro se apressando para recebê-lo.
Encolhendo-se e rolando, procurando não quebrar nada, no entanto, pousou num monte de entulho.
Direto de ombro.
O estalar foi algo que se registrou pelo seu corpo todo, deixando-o tão inútil quanto um bebê indefeso, sem fôlego, a vista embaçada. Mas não havia tempo se quisesse
viver. Virando-se, ele...
Pop! Pop! Pop! Pop! Pop! BUM!
Seus primos surgiram do nada, correndo como se estivessem sendo perseguidos quando de fato não estavam. Ehric tinha duas automáticas em riste e atirando... E Evale
tinha uma metralhadora sobre os ombros.
Aquele era o BUM!
A arma era de fato uma metralhadora de verdade, uma enorme arma de fogo que tinha sobrado do tempo do Raj na Índia. Evale, o bastardo agressivo, há muito parecia
ter fixação pela coisa de uma maneira nada natural, estilo “meu precioso”.
Graças aos Destinos pelas preocupações nada saudáveis.
Aquelas balas calibre quarenta não tinham efeito nenhum sobre a fera, ricocheteando pelas escamas roxas como ervilhas jogadas na lataria de um carro. Mas a carga
de chumbo da metralhadora resultou em um uivo de dor e a fez recuar.
Era a única oportunidade de Assail escapar.
Fechando os olhos, ele se concentrou, concentrou, concentrou...
Não dava para se desmaterializar. Muita adrenalina além de muita cocaína, junto com muita dor em seu ombro, pra piorar.
E a fera voltou ao ataque, voltando a se concentrar em Assail e lhe dando o equivalente dragão de um foda-se na forma de um enorme rugido...
A imensa arma disparou uma segunda vez, atingindo a coisa no peito.
— Corra! – Ehric gritou enquanto recarregava suas armas calibre 40 com invólucros saltando pela parte de trás das pequenas armas. — Levante-se!
Assail usou o braço bom para apoiar e levantar do chão, e suas pernas voltaram a funcionar com desenvoltura admirável. Segurando o braço ferido contra o peito, arrastou-se
o mais rápido que pôde, com os restos de sua jaqueta esvoaçando, o estômago embrulhado, o coração disparado.
BUM!
Por todo canto, em toda parte – ele tinha de chegar a qualquer porra de abrigo – e rápido. Que pena seu corpo não obedecer. Mesmo enquanto seu cérebro gritava por
velocidade, tudo o que conseguia fazer era cambalear como um zumbi...
Alguém o pegou por trás, erguendo-o do chão em um saco de batatas, jogando-o por cima do ombro como um bombeiro. Enquanto caía em posição de cabeça pra baixo, vomitou
de agonia com estrelas espocando em seus olhos, enquanto o estômago esvaziava com violência. As boas novas eram que ele não comia há doze ou quinze horas àquela
altura, então não sujou muito a perna da calça do primo.
Ele queria ajudar no esforço. Queria se levantar. Queria...
Arbustos o golpearam no rosto e cerrou os olhos para se proteger. Sangue começou a fluir e encheu seu nariz. Seu ombro doía cada vez mais. A pressão em sua cabeça
ficou insuportável, fazendo-o pensar em pneus muito cheios, bagagens superlotadas, balões de água que estourava e derramava seu conteúdo por todo canto.
Graças a Deus pelos primos. Eles jamais o abandonavam.
Não podia se esquecer de recompensá-los de alguma maneira.
O galpão parecia galopar na direção deles, e da posição privilegiada – de ponta cabeça – que Assail estava, a coisa parecia se dependurar da terra ao invés de estar
plantada em cima dela. Tijolos. Mesmo com os solavancos e a escuridão dava para perceber que o abrigo era de tijolos.
Era de se esperar que fosse uma construção resistente.
Seu primo arrombou a porta e o ar dentro era úmido e mofado.
Sem aviso, Assail foi largado como o lixo que era e caiu em um chão empoeirado com uma queda que o fez ter ânsia de vômito de novo. A porta se fechou e então tudo
o que ouviu foi a respiração pesada do primo. E a sua.
E os sons abafados da batalha.
Houve um súbito brilho de luz alaranjada.
Pela névoa de sua dor, Assail franziu o cenho... E então recuou. O rosto se iluminou quando um cigarro enrolado a mão foi aceso, mas não de era nenhum de seus primos.
— O quanto seu ferimento é grave? – O Irmão da Adaga Negra, Vishous, perguntou ao exalar a fumaça mais deliciosa.
— Foi você?
— Não, foi o Papai Noel.
— Que salvador improvável é você, – Assail fez uma careta e limpou a boca na manga da jaqueta. — E sinto muito por suas calças.
V olhou para si mesmo.
— Tem algo contra couro preto?
— Eu vomitei atrás delas...
— Merda!
— Bem, dá pra limpar...
— Não, cuzão, ela está vindo para cá, – V indicou a janela suja. — Maldição.
De fato, à distância, o retumbante som trovejante dos passos do dragão soou de novo, como uma tempestade se formando e vindo na direção deles.
Assail se agitou ao redor procurando algum lugar para se esconder. Um armário. Um banheiro. Um sótão. Nada. O interior estava vazio, exceto por duas pilhas até o
teto de entulhos de mais de uma década. Graças à Virgem Escriba o abrigo parecia ser tijolo firme e mais provável de aguentar...
O teto foi erguido e despedaçado de uma só vez, os pedaços chovendo, as telhas e o concreto caindo no chão como se o abrigo estivesse anunciando sua própria morte
com uma rodada de aplausos. O ar fresco da noite amenizou o cheiro mofado, mas isto dificilmente era um alívio, dado o que havia precipitado o acesso.
A fera não era vegetariana, fato. Mas também não parecia preocupada pela sua absorção de fibras: a coisa cuspiu aquele telhado de madeira para o lado, abaixou-se
e abriu sua bocarra, emitindo um bum sônico de rugido.
Não havia para onde correr. A criatura estava montada sobre o prédio, preparada para atacar o que havia se tornado sua lancheira. Não havia lugar algum para se abrigar.
Nenhuma defesa possível a tentar.
— Vá, – Assail disse ao Irmão quando aqueles grandes olhos reptilianos se estreitaram e o focinho explodiu um bafo tão quente e fétido quanto um Lixão no verão.
— Me dê sua arma. Eu vou distraí-lo.
— Não vou te deixar.
— Não sou um dos seus irmãos.
— Você nos deu a localização deles. Entregou a cabeça do Fore-lesser. Não vou te largar aqui, seu bundão.
— Quanta educação. E esses elogios. Pare.
Quando a fera soltou outro rugido e jogou a cabeça como se preparada para brincar um pouco com eles antes de devorá-los, Assail pensou em seu negócio de drogas...
Seu vício em cocaína...
A fêmea humana por quem tinha se apaixonado e a quem precisou deixar ir embora. Por que ela não conseguiria lidar com seu estilo de vida e ele estava muito preso
a isso para parar, mesmo por ela.
Ele meneou a cabeça para o Irmão.
— Não, não valho a pena salvar. Dá a porra do fora daqui.

 

CONTINUA

Nada era como costumava ser para a Irmandade da Adaga Negra. Depois de evitar a guerra com os Sombras, alianças mudaram e linhas foram desenhadas. Os assassinos da Sociedade Lesser estão mais fortes do que nunca, aproveitando-se da fraqueza humana para adquirir mais dinheiro, mais armas, mais poder. Mas enquanto a Irmandade se prepara para um ataque total pra cima deles, um dos seus luta uma batalha dentro de si mesmo...
Para Rhage, o Irmão com o maior dos apetites, mas também o maior coração, a vida era suposta ser perfeita — ou pelo menos, perfeitamente agradável. Mary, sua adorada shellan, está ao seu lado, e seu Rei e seus Irmãos estão prosperando. Mas Rhage não pode entender — ou controlar — o pânico e insegurança que o afligem...
E isso o aterroriza — como também a distância entre ele e sua companheira. Depois de sofrer um ferimento mortal em batalha, Rhage deve reavaliar suas prioridades — e a resposta, quando se trata dele, balança seu mundo... E o de Mary. Mas Mary está em uma jornada própria, uma que vai fazê-los ou se aproximar mais ou causar uma divisão que não vai ter como recuperar...


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Capítulo UM
INTERNATO PARA GAROTAS BROWNSWICK, CALDWELL, NOVA YORK
Formigamento por seu corpo inteiro.
Ao transferir seu peso de uma bota para outra, Rhage sentiu como se sua corrente sanguínea estivesse começando a fervilhar e as bolhas o pinicassem por baixo de
cada centímetro quadrado de sua carne. E isto não era nem o começo. Fibras aleatórias de músculos despertaram ao longo de todo o seu corpo, os espasmos fazendo seus
dedos tremerem, os joelhos bambearem e os ombros tensos, como se a ponto de um ataque com a força e foco de uma raquete de tênis ao atingir uma bola.
Pela milésima vez desde que tinha se materializado para aquela posição, ele varreu com o olhar o terreno mal cuidado com mato excessivamente grande à sua frente.
Antigamente, quando o internato para garotas Bronswick ainda era uma instituição em funcionamento, sem dúvida o terreno à sua frente devia ser um gramado mantido
bem cortado durante a primavera e verão, no outono diariamente limpo de folhas e belamente coberto de neve no inverno, digno de um livro de histórias infantis. Agora,
como um campo de futebol saído do inferno, cravejado e emaranhado por arbustos retorcidos, capazes de mais do que somente danos estéticos à região testicular de
um cara; mudas que pareciam filhas adotivas, feias e disformes, de carvalhos e bordos mais maduros e o mato marrom crescido de fins de outubro, eram capazes de te
fazer tropeçar como um filho da puta se tentasse correr.
Da mesma forma, o prédio que fora construído para abrigar e prover espaço de convivência e instrução aos frutos de uma elite privilegiada, envelheceram mal, carentes
de manutenção regular: janelas quebradas, portas apodrecidas, persianas destruídas e oscilando ao vento frio, como se os fantasmas fossem incapazes de se decidirem
se desejavam ser vistos ou somente ouvidos.
Era o campus do filme Sociedade dos Poetas Mortos. Supondo que todo mundo tenha feito as malas depois da gravação do filme em 1988, picado a mula e nunca mais ninguém
tenha modificado uma porra de coisa por lá desde então.
Mas o prédio não estava vazio.
Ao respirar fundo, o reflexo de deglutição de Rhage executou uma porção de tropeços no fundo de sua garganta. Tantos lessers se escondiam nos cômodos abandonados
que era impossível isolar individualmente os cheiros que golpeavam suas narinas. Cristo, era como enfiar a cara dentro um balde cheio de restos orgânicos e inalar
como se estivesse prestes a acabar todo o oxigênio do mundo.
Supondo que alguém tivesse adicionado talco de bebê ao costumeiro resto diário de cabeças e tripas de peixe.
Para dar aquele toque final, sacou?
Quando sua pele foi atacada por uma nova rodada de arrepios, ele disse à sua maldição para sossegar o facho, puta merda, que ele logo ia liberá-la. Não ia nem tentar
impedir que a maldita saísse – não que tentar puxar o freio funcionasse em qualquer circunstância ou de qualquer forma – mesmo que dar à fera liberdade total nem
sempre fosse uma coisa boa, esta noite ela seria uma vantagem imensa. A Irmandade da Adaga Negra estava a ponto de encarar quantos lessers? Cinquenta? Cento e cinquenta?
Havia muito a fazer, mesmo para eles – então, sim, seu pequeno... Presente... Da Virgem Escriba seria muito útil.
Por falar em chamadas de longa distância... Há mais de um século, a mãe da raça havia lhe dado sua própria bomba relógio, um programa de melhorias tão oneroso, tão
desagradável, tão incapacitante, que era de fato capaz de trazê-lo da beira da babaquice total, de volta à normalidade. Por cortesia do dragão, a menos que controlasse
seus níveis de energia e moderasse suas emoções, o inferno recaía sobre a terra.
Literalmente.
Sim, ao longo do último século, ele tinha se tornado altamente bem-sucedido em garantir que a coisa não comesse seus amigos ou que os fizesse aparecer no noticiário
noturno com a manchete “Jurassic Park existe de verdade”. Mas com o que ele e seus irmãos estavam prestes a enfrentar – e devido ao isolamento deste campus? Se tivessem
sorte, o grande bastardo de escamas roxas com os dentes de serra elétrica e barriga sem fundo conseguiria seu banquete. Mas só teria acesso a uma dieta balanceada,
baseada somente em lessers.
Sem petiscar os Irmãos, por favor. E sem rocamboles ou tortas de humanos, muito, muito obrigado.
Este último, mais por discrição do que afeição. Era notório que aqueles ratos sem rabo não desgrudavam de duas coisas: meia dúzia de seus amiguinhos, noturnamente
co-dependentes e evolucionariamente inferiores, e seus malditos telefones celulares. Cara, o YouTube podia ser um pé no saco quando só o que se queria era manter
por baixo dos panos uma guerra contra os mortos. Por quase dois mil anos, a luta dos vampiros contra a Sociedade Lessening não tinha sido problema de mais ninguém
além dos combatentes envolvidos, e o fato de que os humanos não conseguiam se ater a cuidar de seus próprios assuntos, tipo suas competências de arruinar o meio-ambiente
e dizer uns aos outros o que pensar e dizer, era somente uma das razões para odiá-los.
Internet do caralho.
Avaliando os arredores a fim de evitar soltar a fera cedo demais, Rhage fixou o olhar em um macho dando cobertura a uma distância de mais ou menos seis metros. Assail,
filho de Foda-se-lá-quem, usava preto dos pés à cabeça como alguém de luto, seus cabelos, escuros como os do Conde Drácula, não requeriam camuflagem adicional, seu
rosto pecaminosamente belo estava tão contraído pela ansiedade de matar que era preciso dar um crédito ao cara. Ele estava sendo de muita ajuda. E tinha mudado completamente
de direção. O traficante de drogas tinha se juntado à Irmandade, cumprindo a promessa de cortar relações comerciais com a Sociedade Lessening ao depositar a cabeça
do Fore-lesser dentro de uma caixa, aos pés de Wrath.
E também revelou este local que os assassinos vinham usando como quartel general.
E era por isto que todo mundo tinha acabado aqui, enterrado até a cintura em mato alto, esperando que a contagem regressiva de seus relógios V-sincronizados chegasse
logo a 00h00min.
Este ataque não era coisa pequena, era uma abordagem de grosso calibre ao inimigo. Depois de algumas noites – e dias, graças a Lassiter, também conhecido por 00-CUZÃO,
que havia feito reconhecimento do local durante as horas de sol – o ataque foi adequadamente coordenado, ensaiado e preparado para ser posto em prática. Todos os
guerreiros estavam aqui: Z e Phury, Butch e V, Tohr e John Mattew, Qhuinn e Blay, além de Assail e seus dois primos, Presas I e II.
Quem ligava para seus nomes, contanto que aparecessem armados e com muita munição?
A equipe médica da Irmandade também estava na área preparada para agir, com Manny em sua unidade cirúrgica móvel a um quilômetro e meio de distância, e Jane e Ehlena
em uma das vans, num raio de três quilômetros.
Rhage verificou o relógio. Seis minutos e contando.
Quando seu olho esquerdo começou a tremelicar, praguejou. Como caralhos conseguiria esperar por tanto tempo?
Expondo as presas, exalou pelo nariz, soprando correntes gêmeas de respiração condensada muito parecidas com as que antecedem o ataque de um touro.
Cristo, não conseguia se lembrar da última vez em que esteve tão tenso. E não queria pensar no motivo. De fato, vinha evitando a coisa toda do por que há quanto
tempo?
Bem, desde que ele e Mary chegaram àquela fase estranha e ele tinha começado a sentir...
— Rhage.
Seu nome foi sussurrado tão baixinho que ele se voltou por não saber ao certo se era o seu subconsciente decidindo começar um papo com ele. Não, era Vishous – pela
expressão do irmão, Rhage teria preferido ter desenvolvido dupla personalidade. Aqueles olhos diamantinos flamejavam uma luz sombria. E aquelas tatuagens ao redor
das têmporas também não ajudavam.
O cavanhaque era neutro – a menos que o avaliasse como quesito de estilo. Neste caso, o filho da puta era uma caricatura de proporções épicas.
Rhage meneou a cabeça. — Você não devia estar na sua posição...
— Tive uma visão sobre esta noite.
Ah, inferno, não, Rhage pensou. Não, não faça isto comigo agora, mano.
Virando as costas, murmurou. — Me poupe dessa coisa de Vincent Price, está bem? Ou está ensaiando para ser o cara que faz as narrações dos trailers de filmes...?
— Rhage.
— ... Pois você leva jeito pra isto. Em um mundo... Onde pessoas devem... Calar a boca e fazer seu serviço...
— Rhage.
Ao ver que ele não ia se voltar para olhá-lo, V se aproximou e o encarou, aqueles olhos pálidos pra cacete, um par de explosões nucleares gêmeas, daquelas que levantam
um nuvem em forma de cogumelo, para frente e para trás. — Quero que vá pra casa. Agora.
Rhage abriu a boca. Fechou. Abriu de novo – e teve de lembrar a si mesmo de manter a voz baixa.
— Ouça, não é uma boa hora para essa merda psíquica...
O Irmão agarrou seu braço e apertou. — Vá pra casa. Não estou brincando.
Terror gélido varreu as veias de Rhage, abaixando sua temperatura corporal... E ainda assim conseguiu menear a cabeça novamente.
— Foda-se, Vishous. Sério mesmo!
Ele não tinha o menor interesse de pôr mais nada daquela magia da Virgem Escriba em cheque. Ele não ia...
— Você vai morrer esta noite, porra.
Quando o coração de Rhage falhou uma batida, ele olhou para aquele rosto que conhecia a tantos anos traçando aquelas tatuagens, os lábios comprimidos, as cerradas
sobrancelhas escuras... E a inteligência radiante geralmente expressada através de um filtro de sarcasmo, afiado como a espada de um samurai.
— Sua mãe me deu a palavra dela. – Disse Rhage. Espere, estava realmente falando sobre bater as botas? — Ela me prometeu que quando eu morresse Mary iria comigo
para o Fade. Sua mãe disse...
— Foda-se a minha mãe. Vá pra casa.
Rhage desviou o olhar porque foi necessário. Era isto ou sua cabeça explodiria. — Não vou abandonar os irmãos. Não vai acontecer. Primeiro, você pode estar errado.
Sim, e quando foi a última vez que aquilo aconteceu? No século dezoito? Dezessete?
Nunca?
Ele falou para V.
— Segundo, não vou fugir correndo do Fade. Se começar a pensar assim vou morrer, mesmo com a arma na mão. – Ele ergueu a mão até a altura daquele cavanhaque para
evitar que o irmão o interrompesse. — E pra terminar? Se eu não lutar esta noite, não vou conseguir sobreviver ao dia de amanhã, trancado na mansão... Não sem meu
amiguinho roxo sair para o café da manhã, almoço e jantar, sacou?
Bem, havia uma quarta coisa. E era racional... Ruim, tão ruim que não conseguia encará-la por mais do que a fração de segundo necessária para ela surgir em sua mente.
— Rhage...
— Nada vai me acontecer. Está tudo sob controle.
— Não, não está – sibilou V.
— Está bem. – Rhage rosnou, endireitando o corpo. — E daí se eu morrer? Sua mãe deu à minha Mary a graça final. Se eu for para o Fade, Mary vai me encontrar lá.
Não tenho de me preocupar de me separar dela. Ela e eu ficaremos perfeitamente bem. Quem vai se importar de verdade se eu bater as botas?
V endireitou-se também.
— Você não acha que os Irmãos ligam? Sério? Muito obrigado, seu cuzão filho da puta.
Rhage verificou o relógio. Faltavam dois minutos.
Bem pareciam dois mil anos.
— E você confia em minha mãe, – Rosnou V — em algo tão importante. Nunca pensei que fosse tão ingênuo.
— Ela conseguiu me dar a porra de um alter ego T. Rex! Isto inspira uma credibilidade boa pra cacete.
De repente, sons de inúmeros pássaros soaram na escuridão que os rodeava. Qualquer um acharia que devia ser somente um bando de corujas noturnas piando ao luar.
Maldição, os dois estavam gritando.
— Não importa, V. – Sussurrou ele. — Você é inteligente pra caralho, preocupe-se com sua própria vida.
Seu último pensamento consciente antes do cérebro entrar em modo de A Hora Mais Escura e nada mais se registrar além da agressividade, foi sua Mary.
Ele visualizou a última vez em que estiveram sozinhos.
Era um ritual dele antes de enfrentar o inimigo, um talismã mental que esfregava em busca de boa sorte, e esta noite visualizou o modo como ela tinha ficado em pé
em frente ao espelho do quarto deles, aquele sobre a mesinha de apoio onde mantinham os relógios e chaves, as joias dela e os pirulitos dele, e os celulares.
Ela estava na ponta dos pés debruçada sobre a mesa, tentando colocar um brinco de pérola no lóbulo da orelha sem conseguir encontrar o furo. Com a cabeça virada
para o lado, seus cabelos castanhos escuros flutuavam sobre o ombro e o faziam querer enfiar a cara naquelas ondas recém-lavadas. E isto não era nem metade do que
o impressionava nela. O ângulo reto de seu maxilar capturava e refletia a luz da arandela na parede, e a blusa de seda cor creme, que descortinava sobre seus seios,
enfiada dentro da cintura estreita, e as calças moldavam seu corpo magro. Nenhuma maquiagem. Sem perfume.
Seria como tentar retocar a Mona Lisa ou atingir um botão de rosa com um jato de Bom Ar.
Havia centenas de milhares de pequenos detalhes nos atributos físicos de sua companheira, e nenhuma frase, nem mesmo um livro inteiro, passaria perto de descrever
sua presença.
Ela era o relógio em seu pulso, o assado quando tinha fome, o jarro de limonada quando tinha sede. Ela era sua igreja e seu coral, a montanha de sua escalada, a
biblioteca de sua curiosidade e cada nascer ou por do sol que já houve ou jamais haverá. Com um olhar ou a sílaba de uma palavra, ela tinha o poder de transformar
seu humor, levando-o às nuvens, mesmo com os pés firmes no chão. Com um único toque, ela conseguia acorrentar seu dragão interior ou fazê-lo gozar sem ele nem mesmo
estar de pau duro. Ela era todo o poder do universo compactado em uma criatura viva, o milagre que lhe tinha sido concedido, apesar dele há longo tempo não merecer
nada além de maldições.
Mary Madonna Luce era a virgem que Vishous dissera que estava em seu caminho – e era mais do que suficiente para transformá-lo em um vampiro temente a Deus.
Por falar nisto...
Rhage avançou sem esperar o sinal de “Já” de sua equipe. Correndo pelo campo, trazia as duas armas erguidas à sua frente e combustível Premium aditivado percorrendo
os músculos de suas pernas. E não, ele não parou para ouvir os irmãos praguejarem de frustração quando rompeu a cobertura e partiu cedo demais para o ataque.
Estava acostumado aos garotos emputecidos com ele.
Era muito mais difícil lidar com seus próprios seus demônios do que os irmãos.
LUGAR SEGURO, ESCRITÓRIO DA MARY
Ao desligar o telefone, Mary Madonna Luce manteve a mão sobre a superfície lisa do receptor. Como muitos dos equipamentos e móveis do Lugar Seguro, ele tinha mais
de uma década de uso, era um AT&T doado por alguma companhia de seguro ou talvez de uma corretora imobiliária, depois de ser trocado por algo mais moderno. O mesmo
com a mesa. A cadeira. Até o tapete sob seus pés. No único abrigo contra violência doméstica contra fêmeas e crianças da raça, cada centavo que saía das generosas
doações do Rei era gasto com o apoio, tratamento e reabilitação das pessoas que precisavam.
As vítimas eram admitidas gratuitamente. E ficavam na casa grande e cheia de cômodos por quanto tempo fosse necessário.
A folha de pagamento era, é claro, a maior despesa... E com notícias como a que tinha acabado de chegar pelo telefone, Mary ficava verdadeiramente agradecida pelas
prioridades de Marissa.
— Foda-se, morte. – Sussurrou ela. — Foda-se mesmo, muito, muito mesmo.
O ruído que sua cadeira emitiu quando se inclinou para trás lhe causou um estremecimento, mesmo acostumada a ele.
Olhando para o teto, sentiu uma vontade arrebatadora de entrar em ação, mas a primeira regra de qualquer terapeuta era que era preciso controlar suas próprias emoções.
Despreparo e agitação não fazia bem algum aos pacientes, e contaminar uma situação já estressante com drama pessoal por parte do profissional era totalmente inaceitável.
Se houvesse tempo, procuraria um dos outros assistentes em busca de ajuda, para esclarecer o curso de suas ações com questionamentos técnicos a fim de sentir-se
novamente centrada e permanentemente composta. Dado o rumo dos acontecimentos, tudo o que tinha era tempo para uma das respirações profundas, típicas de Rhage.
Não, não do tipo sexual.
Mais do tipo ioga, que o fazia inflar os pulmões em três puxadas de ar, prender o oxigênio e então soltá-lo, junto com a tensão em seus músculos.
Ou tentar liberar a dita tensão.
Está bem, isto não estava ajudando em nada.
Mary levantou-se e teve de se contentar com dois “quase lá” no quesito compostura: um, ajeitou a blusa de seda e correu os dedos pelos cabelos, que estava deixando
crescer; e dois, recobriu suas feições com uma máscara digna de Halloween, congelando tudo em um semblante de preocupação, calorosa e sem nenhuma indicação de estar
surtando com seu próprio trauma passado.
Ao sair para o corredor do segundo andar, o cheiro de chocolate e açúcar de confeiteiro, manteiga e farinha anunciava que a Noite dos Biscoitos estava a pleno vapor
– e por um momento insano, sentiu vontade de abrir todas as janelas para deixar o ar gelado de outubro levar aquele cheiro para fora da casa.
O contraste entre aquele conforto doméstico e a bomba que estava a ponto jogar parecia desrespeitoso, na melhor das hipóteses, uma parte a mais da tragédia, na pior.
O Lugar Seguro era uma construção de três andares da virada do século XX, apenas teto e quatro paredes, com toda a graça e distinção de um saco de pão. O que ele
tinha na verdade eram quartos e banheiros em abundância, uma cozinha funcional e privacidade suficiente para que o mundo humano nunca tivesse a menor indicação de
que os vampiros usavam a coisa à sua revelia. E então veio a expansão. Depois da morte da Wellsie, Tohr tinha feito uma doação em seu nome, o Anexo Wellesandra foi
construído nos fundos por uma equipe vampira de construção. Agora eles contavam com uma sala de convivência, uma segunda cozinha, grande o bastante para que todo
mundo se sentasse junto para comer, e mais quatro suítes para as adicionais fêmeas e seus filhos.
Marissa dirigia a instalação com coração compassivo e mentalidade fantasticamente logística, e com sete conselheiros, inclusive Mary, eles executavam um serviço
útil e cheio de significado.
Isto sim, às vezes partia seu coração ao meio.
A porta para o sótão não emitiu ruído algum quando Mary a abriu porque ela mesma tinha passado óleo nas dobradiças há algumas noites. As escadas, no entanto, rangeram
ruidosamente à sua subida, as velhas placas de madeira reclamando e guinchando, por mais que ela tentasse pisar o mais leve possível.
Era impossível não sentir-se um tipo de Mensageira da Morte.
No andar acima, a luz amarela das luminárias de latão no teto destacavam os tons avermelhados, tanto dos centenários lambris sem pintura quanto da passadeira trançada
que percorria o estreito corredor. No final dele, havia uma abertura oval e a iluminação, em tons rosados da luz exterior de segurança acima, derramava para dentro
e era dividida em quadrantes pelas divisões de seus painéis.
Das seis suítes, cinco portas estavam abertas.
Ela se dirigiu até a que estava fechada e bateu. Ao ouvir um suave “Olá?” entreabriu a porta e enfiou a cabeça.
A garotinha sentada em uma das duas camas estava penteando os cabelos de uma boneca com uma escova a qual faltavam várias cerdas. Seus cabelos longos e castanhos
estavam presos para trás em um rabo de cavalo, e o vestido folgado era feito a mão, de um tecido azulado muito gasto, mas com costuras feitas para durar. Seus sapatos
estavam gastos, ainda que amarrados cuidadosamente.
Ela parecia muito pequena no que já não era um lugar muito grande.
Abandonada contra sua vontade.
— Bitty?
Levou um momento até os olhos castanhos claros se erguerem.
— Ela não está bem, está?
Mary engoliu em seco.
— Não, querida. Sua mahmen não está bem.
— É hora de me despedir dela?
Depois de um momento, Mary sussurrou.
— Sim... Receio que sim.
Capítulo DOIS
— Isso só pode ser brincadeira, porra!
Quando viu o massivo corpo do Hollywood e a bosta da sua cabeça estúpida avançar em direção aos alojamentos, Vishous quase correu atrás só para poder acabar com
a raça do irmão. Mas nããããããããããão.
Não era possível estender a mão e catar uma bala depois que o gatilho era apertado.
Mesmo que se estivesse só tentando salvar um idiota da sepultura.
V assoviou alto, mas não era como se o resto dos guerreiros não tivessem visto também as costas do cretino distanciarem-se como um morcego fugido do inferno.
Membros da Irmandade e os outros machos explodiram fora de suas posições por trás das árvores e construções, assumindo formação de asa atrás de Rhage, de armas e
adagas empunhadas. Gritos do inimigo anunciaram que o ataque foi percebido quase imediatamente, e eles chegaram a somente meia distância do objetivo quando os lessers
começaram a jorrar pelas portas, feito vespas de uma colméia.
Muita aglomeração? Pops ocos espocavam quando Rhage descarregava sua arma por todo o canto atingindo assassinos na cara, suas balas de grosso calibre explodindo
a parte de trás daqueles crânios e derrubando os mortos-vivos em emaranhados de braços e pernas irrequietos. O que era bom – mas possivelmente não iria durar, já
que os assassinos tentavam se aproximar do cara por trás, a fim de isolá-lo e criar uma segunda linha de frente contra o resto dos irmãos.
Obrigado, Sr. Apressadinho e sua ejaculação precoce, por arruinar o plano sobre o qual se debruçaram por noites a fio.
Instalou-se o caos total, o que era de se esperar, ao contrário da ação de Rhage: do mesmo modo que era possível garantir que cada combate corporal iria eventualmente
acabar no chão, era possível garantir que mesmo o ataque melhor planejado iria, depois de um tempo, cair na área do: “Puta merda” e “Cagou a porra toda”. Se tivesse
sorte, aquela inevitabilidade levaria um tempo para lhe despencar na cabeça, e até que acontecesse, o inimigo teria baixas incapacitantes.
Mas não com Hollywood por perto.
Oh, e a propósito, quando alguém diz que você vai morrer esta noite, que tal não correr direto para uma quantidade de inimigos que beirava os três dígitos? Seu filho
da puta de merda.
— Eu estava tentando salvá-lo! – V gritou em meio à ação. Só por que agora ele podia, já que não precisavam mais manter suas presenças ocultas.
Rhage era tão impulsivo. E sabendo disto, V devia ter confrontado o idiota lá na mansão antes de saírem, mas esteve distraído demais cuidando de suas próprias coisas
para se concentrar na visão. Não foi até chegarem ao campus abandonado e ele piscar algumas vezes... Que percebeu, sim, era ali que aconteceria para Rhage. Esta
noite. Neste campo.
Não revelar seria como colocar ele mesmo uma bala no cara.
É claro, dizer algo tinha funcionado tão bem.
— Foda-se, Hollywood! – Gritou ele. — Eu vou te pegar!
Pois ele ia tirar aquele puto daquele lugar nem que fosse a última coisa que faria.
V não atirou até estar a cerca de três metros de distância do primeiro alvo – era isto ou correr o risco de atingir um dos irmãos ou outro aliado. O lesser que mirou
tinha cabelos e olhos escuros e aquela agressão típica de um urso pardo: ataque direto com uma porção de cuspidelas. Uma bala acertou no olho direito e o bastardo
caiu.
Não dava tempo de apunhalar a coisa de volta ao Ômega. Vishous passou por cima do pedaço de carne que ainda se remexia sem sair do lugar e mirou o próximo. Identificando
um assassino louro a cerca de quatro metros e meio de distância à esquerda, rapidamente avaliou a periferia para ter certeza de que a Irmandade não estava sendo
destroçada. Então, usando o dedo coberto pela luva, escolheu o cara que parecia o Rod Stewart dos anos 80.
De três ao infinito, V atingiu tudo o que parecia seguro derrubar, certificando-se de não acertar seus aliados. Uns duzentos metros de corrida estilo videogame mais
tarde, alcançou tanto cobertura quanto perigo: o primeiro dos alojamentos, que o plano original era emboscar. A maldita coisa era uma concha vazia com muitos locais
para se esconder que somente um idiota acharia estarem vazias, e ele teve cuidado em monitorar seus arredores ao caminhar cuidadosamente com as costas voltadas contra
a parede, abaixando-se debaixo de janelas, passando por cima de arbustos baixos.
O fedor de algodão doce/carne podre dos lessers o golpeava por todos os lados, espiralando ao redor devido ao vento gelado que misturava tudo em uma salada de guerra
com os ecos de disparos de armas e os gritos do inimigo. A raiva que fervilhava em suas entranhas o fez avançar, ao mesmo tempo em que o mantinha focado, enquanto
tentava derrubar alvos sem ser atingido.
Assim que alcançasse Rhage, derrubaria o maldito rei da beleza no chão.
Supondo que o destino não derrubasse o filho da puta primeiro.
O lado bom era que, com o Fore-lesser fora da jogada, a resposta da Sociedade Lessening não parecia mais coordenada do que o ataque da Irmandade, e o fato do inimigo
estar pobremente armado e pateticamente destreinado era outra vantagem. Parecia haver uma média de cinco lessers armados para cada irmão, e uma média de um para
dez guerreiros competentes – e dado os números? Aquilo bem que poderia ser o que salvaria seus traseiros.
Esquerda, pop! Direita, pop! Esquivar, cair e rolar. Levantar-se e continuar a correr. Mais dois assassinos derrubados – obrigado, Assail, seu filhodaputa maluco
– pop! Bem na sua frente.
A magia aconteceu entre cerca de cinco minutos e cinquenta mil anos de luta. Sem aviso, sentiu-se separar-se de seu corpo, desfazendo-se da carne que funcionava
de forma tão rija e com tanta eficiência, seu espírito flutuando acima da adrenalina que incendiava seus braços e pernas, sua essência testemunhando-o cobrir distâncias
e impulsionando-o a frente de uma posição acima de seu ombro direito.
Era a zona, geralmente algo que o arrebatava assim que começava a lutar. Mas com Rhage sob sua pele, grudado em seu traseiro e fodendo sua cabeça, a merda estava
atrasada para a festa.
E foi por causa dessa sua perspectiva acima do quadro, que notou primeiro o dilema que se armava.
Às vezes o contra-intuitivo, o QUEPORRAÉESSA, o agir contra a corrente, era tão importante quanto todas as coisas que se esperava ver em uma batalha.
Tipo, por exemplo, três figuras correndo lateralmente ao longo daquele show de horrores rumo à saída. É claro, podiam ser lessers que amarelaram e fugiam — exceto
por um detalhe: o sangue do Ômega em seus corpos era um puta rastreador GPS, e ter de contar para aquele tipo de chefe, que tinha amarelado e picado a mula de uma
briga daquelas, seria garantia do tipo de tortura que faria o inferno parecer um passeio no campo.
Maldição, não podia permitir que eles se fossem. Não quando poderiam acabar chamando os tiras e adicionando outra camada de merda jogada naquele ventilador.
Se é que aquilo já não tinha sido feito.
Praguejando, Vishous foi atrás dos três desertores, desmaterializando-se para a área a frente onde o trio estava se dirigindo. Ao retomar forma, descobriu que eram
malditos humanos, mesmo antes de conseguir ver que aquele que estava por último corria de costas com o que, sem dúvida, era uma porra da Apple, um pedaço de merda
iConformista, apontando e mirando, evidentemente gravando um vídeo.
Ele positivamente odiava qualquer coisa com o símbolo da Macintosh.
V pulou, interceptando o caminho do cara, o que, é claro, não foi notado pelo J.J. Abrams, por que, olá, ele estava ocupado demais filmando tudo.
Vishous meteu o pé, e enquanto o humano obedecia à lei da gravidade, o celular voou e V pegou a coisa, enfiando-a no bolso da jaqueta.
O próximo passo foi pisar no esterno do cara e enfiar a arma na sua cara. Baixando o olhar para a expressão de “Puta Merda” e o choramingo gaguejado que o cara soltava,
V precisou de todo seu autocontrole para não rasgar a garganta dele, e então ir para cima dos outros dois que continuavam a correr, tal qual Jason Voorhees. Ele
estava acima disto com humanos. Tinha trabalho de verdade pra fazer, mas nããããão, ele estava de novo limpando a bunda destes ratos sem rabo para que o resto deles
não ficassem bravinhos por saberem que vampiros existiam entre eles.
— N-n-n-n-ão me m-m-m-m-machuque – gaguejou o cara. Junto com o cheiro de urina quando o cara mijou nas calças.
— Você é patético pra caralho.
Praguejando de novo, V acessou rapidamente a mente do cara para ter certeza de que não tinham chamado a polícia – a resposta foi “não” – antes de apagar a memória
do garoto, do momento em que tinha se encontrado com os amigos para fumar maconha até quando a viagem foi interrompida pelo inferno desenfreado.
— Você teve uma viagem ruim, seu cuzão. – Murmurou V. — Viagem ruim. Isto tudo é só uma porra de uma viagem ruim. Agora corra de volta para o papai e a mamãe.
Como o bom brinquedinho programado que agora era, o garoto levantou-se sobre seus antiquados tênis Converse e disparou atrás dos amigos, com uma expressão de confusão
total no rosto enrubescido.
Vishous deu outro pulo à frente e interceptou Frick e Frack. E, quem diria, a mera presença de V se materializando do nada à frente deles foi suficiente para deixá-los
em pânico – os dois congelaram no lugar como cães acorrentados ficando sem espaço na corrente, com um puxão para trás, esvoaçando suas parkas combinando.
— Vocês cuzões estão sempre no lugar errado na hora errada.
Mentalmente apagou suas memórias e os revistou, esvaziando seus bolsos ao mesmo tempo em que os cérebros – então os mandou retomar a fuga, rezando para que um ou
outro não tivesse alguma doença cardíaca não diagnosticada que subitamente disparasse sob tensão, matando-o instantaneamente.
Mas até aí, V era um bastardo malvado, então tudo bem.
Não havia tempo a perder. Voltou a tentar alcançar Rhage, sacando novamente suas armas e buscando uma maneira mais eficiente de chegar até o filho da puta. Que pena
que desmaterializar-se direto no meio do entrevero estava fora de cogitação, mas merda, tinha arma demais apontando para cada direção naquele quadrante. Ao menos
a necessária cobertura veio rápido, primeiro em uma série de árvores de bordo e então na forma de um prédio que devia ser ainda outro alojamento.
Batendo as costas contra os tijolos frios e duros, seus ouvidos se aguçaram ante o som de sua respiração pesada. Os disparos mais intensos estavam à sua esquerda,
acima e à frente, e rapidamente trocou ambos os cartuchos, mesmo que ainda houvesse três balas em um e duas no outro. Recarregado, correu na direção da quina do
prédio e espiou...
O assassino atirou na última janela sob a qual ele estava e, não fosse o ruído do caixilho, V teria sido ferido. Foi o instinto, ao invés do treinamento, que fez
seu braço se erguer e apontar para a lateral antes de ter consciência de estar se movendo, e o dedo indicador disparar meio quilo de chumbo bem nas fuças do fodido,
fazendo nuvens de sangue preto explodir da parte de trás do crânio como um vidro de nanquim caindo de uma grande altura.
Infelizmente, uma contração autônoma do aperto do assassino na arma automática que trazia na mão, causou o disparo de algumas balas e a ardência na lateral do quadril
de V mostrou que ele foi atingido, pelo menos uma vez. Mas melhor ali do que em outra parte do corpo...
Um segundo assassino surgiu da esquina e V o atingiu na garganta com a arma da mão esquerda. Aquele parecia estar desarmado, nada digno de nota, caiu na grama alta
quando a coisa agarrou a frente do pescoço para tentar conter o jorro negro.
Não havia tempo para recolher nenhuma arma ou apunhalá-los de volta ao Ômega.
À frente, Rhage estava com problemas.
No coração do campus, na área retangular formada por prédios erguidos com uns cinco acres de distância, Rhage estava no centro da atenção de uma galera da primeira
fila, composta por pelo menos vinte assassinos que o rodeavam.
— Jesus Cristo. – Murmurou V.
Não havia tempo para elaborar uma estratégia. Dã. E ninguém mais viria ajudar Hollywood. Os outros irmãos e guerreiros estavam muito ocupados, o ataque tendo se
dissipado em meia dúzia de escaramuças se desenvolvendo em diferentes quadrantes.
Não havia ninguém disponível em uma situação que bem necessitava de três ou quatro anjos salvadores. Ao invés de um que tinha um ferimento na coxa e um rancor do
tamanho do Canadá.
Maldição, ele estava acostumado a estar sempre certo, mas às vezes isto era um pé no saco.
Vishous avançou e se concentrou na lateral da briga, escolhendo assassinos enquanto tentava dar a seu irmão uma rota de escape viável. Mas Rhage... Porra, Rhage.
Ele estava, de alguma forma, totalmente imerso naquilo. Mesmo que a matemática não chegasse a resultado algum além de caixão, o maldito imbecil era de uma beleza
mortal ao lentamente girar, esvaziando as armas nos que estavam mais perto, recarregando sua automática sem perder um movimento, criando um anel de corpos que se
contorciam, meio mortos, meio vivos, como se estivesse no olho de um furacão destruidor.
A única coisa que não parecia estar sob controle? Seu belo rosto, digno de uma história infantil, estava contorcido no esgar de um monstro, a raiva assassina dentro
dele nem ao menos parcialmente contida. E isto teria sido quase aceitável.
Não fosse o fato de se esperar profissionalismo por parte dele.
Aquele tipo de emoção assassina era um comportamento amador, o tipo de coisa que te cegava ao invés de te manter focado, te enfraquecia ao invés de te tornar invencível.
Vishous trabalhou o mais rápido que pôde mirando em peitos, entranhas, cabeças, até o fedor saturar o ar livre, mesmo com o vento soprando em direção oposta. Mas
tinha de compensar o campo de tiro, sempre circular, de Rhage, tentando ficar ele próprio fora de alcance, por que tinha certeza de que o irmão não conseguiria diferenciá-lo
de seus alvos.
E esta era a porra do problema quando você entrava despreparado na luta.
E então acabou.
Mais ou menos.
Mesmo depois daqueles vinte ou vinte e cinco lessers estarem caídos no chão, Rhage ainda girava e continuava a atirar, um carrossel mortal sem passageiros em seus
cavalos demoníacos, estúpidos demais para saberem onde seu próprio botão de desligar ficar.
— Rhage! – V olhou ao redor mantendo as armas apontadas, mas sem atirar. — Seu maldito idiota! Pare!
Pop! Pop! Pop-pop!
O cano de Hollywood continuou a tossir flashes de luz mesmo que não houvesse mais alvos – exceto outros guerreiros à distância, fora de alcance naquele momento.
Mas não era garantido que permanecessem assim.
Vishous se aproximou, passando por cima dos corpos que se agitavam no chão, mantendo-se às costas de Rhage, que ainda girava.
— Rhage!
A tentação de atirar na bunda do cara foi tão forte, que sua mão direita chegou a abaixar o cano até à altura do traseiro. Mas era só uma fantasia. Dar a Hollywood
uma injeção de chumbo só dispararia a fera quando o próprio V estava ao alcance para virar seu aperitivo.
— Rhage!
Algo deve ter chegado até o irmão por que a barragem de tiros inúteis diminuiu... E então parou, deixando Rhage arfando, curvando-se de forma neutra.
Estavam tão a descoberto que ambos bem podiam ter setas de neon apontando para suas cabeças.
— Você vai sair daqui. – Rosnou V. — Está brincando comigo, porra, nessa merda...
Foi quando aconteceu.
Em um segundo, estava contornando para ficar de frente para o irmão... E no seguinte ele viu, pelo canto dos olhos, um dos lessers não-suficientemente-mortos erguer
um braço instável... Com uma arma anexada à extremidade. Quando a bala explodiu para fora daquele cano, o cérebro de V fez os cálculos de distância e ângulo tão
rápido quanto o vôo da bala de chumbo.
Direto para o peito de Rhage.
Bem no meio do peito de Rhage – por que, olá, era o maior alvo, tirando a porra da porta do alojamento do campus.
— Não! – Gritou V ao pular e se interpor no caminho.
É, pois ele morrer no lugar de Rhage seria um resultado bem melhor, né? Perder/perder, de ambos os jeitos.
Não houve dor alguma em seu vôo, nem o som ressoante da entrada de uma bala na lateral de seu corpo, seu quadril, sua outra coxa.
Por que a maldita coisa já tinha encontrado outro lar.
Rhage soltou um grunhido e suas duas armas apontaram para o céu, aquela típica compressão autônoma nos gatilhos naquelas mãos esvaziaram os cartuchos: bang, bang,
bang, bang! Para o céu, para o paraíso, como se Rhage estivesse amaldiçoando de dor.
E então o irmão caiu.
Ao contrário dos garotos do Ômega, um ferimento certeiro como aquele mataria qualquer vampiro, mesmo um membro da Irmandade. Ninguém escapava daquele tipo de merda,
ninguém.
Ao gritar de novo, V caiu em seu próprio pedaço de chão e descarregou uma de suas amas, enchendo o assassino com tanto chumbo que o fodido poderia virar um cofre
de banco.
Com a ameaça neutralizada, engatinhou até o irmão se arrastando de lado com as armas e a ponta dos coturnos. Para um macho que nunca sentia medo, ele se viu olhando
para a boca escancarada do puro terror.
— Rhage! – Disse ele. — Puta que pariu... Rhage!
Capítulo TRÊS
O novo centro médico de Havers estava localizado do outro lado do rio, em meio a uma área florestal de quatrocentos acres, intocado a não ser por uma velha fazenda
e três ou quatro quiosques recém-construídos que serviam de entrada para a instalação subterrânea. Enquanto dirigia o último trecho da viagem de vinte minutos em
seu Volvo XC70, Mary fitava seguidamente o espelho retrovisor, preocupada com Bitty.
A garota estava sentada no banco de trás do utilitário e olhava pela janela escura ao seu lado, como se fosse uma televisão transmitindo um programa viciante.
Cada vez que Mary voltava a se concentrar na estrada a sua frente, apertava o volante com mais força. E o acelerador.
— Estamos quase chegando. – Disse ela. De novo.
A afirmação pretendia ser confortadora, mas não estava fazendo bem nenhum à Bitty e Mary sabia que só tentava acalmar a si própria. A ideia de que pudessem não chegar
a tempo ao lado do leito era um fardo hipotético que não conseguia evitar de cogitar – e cara, aquela sensação de pesar e frustração a fazia sentir-se incapaz de
respirar.
— Aqui está o desvio.
Mary ligou a seta e entrou à direita, para uma via de mão única que era irregular e exatamente o que toda a sua agitação interna não precisava.
Mas também, ela bem poderia estar em uma super rodovia perfeitamente asfaltada e seu coração continuaria a parecer dançar a conga dentro do peito.
O único centro médico da raça tinha sido construído para dispersar, tanto a atenção humana quanto os efeitos impiedosos da luz do sol, e ao trazer alguém ou buscar
tratamento médico para si mesmo, era designado um dos vários pontos de entrada. Quando a enfermeira tinha ligado para dar a triste notícia, Mary foi orientada a
ir diretamente à fazenda e estacionar lá, e foi o que fez, parando entre uma caminhonete que era nova e um sedã Nissan que não era.
— Está pronta? – Perguntou pelo retrovisor ao desligar o carro.
Diante da ausência de resposta, circulou o carro até a porta de Bitty. A garota pareceu surpresa ao descobrir que já tinham chegado e as pequenas mãos remexeram
para soltar o cinto de segurança.
— Quer ajuda?
— Não, obrigada.
Bitty estava claramente determinada a sair sozinha do carro, mesmo que levasse mais tempo do que se aceitasse a ajuda. E o atraso talvez fosse intencional. A sensação
de insegurança quanto ao que aconteceria depois daquela morte era quase terrível demais para se imaginar. Sem família. Sem dinheiro. Sem educação.
Mary apontou um celeiro atrás da fazenda.
— Vamos por ali.
Cinco minutos depois, passaram por alguns pontos de controle e desceram pelo elevador, de onde saíram para uma recepção muito limpa e iluminada e uma sala de espera
que cheirava exatamente igual àquelas dos hospitais humanos: aroma artificial de limão, vaga mistura de perfume e o tênue cheiro do jantar de alguém.
Pavlov tinha razão, Mary pensou ao se aproximar da recepção central. Só era preciso aquela combinação de anti-séptico e ar viciado em seu nariz para sentir-se de
volta àquela cama de hospital, com tubos entrando e saindo dela, as medicações que tentavam matar o câncer em seu sangue fazendo-a sentir, na melhor das hipóteses,
como se estivesse com gripe, e na pior, como se fosse morrer a qualquer momento.
Época divertida.
Quando a enfermeira loura atrás da tela do computador ergueu o olhar, Mary disse:
— Oi, eu sou...
— Siga por ali. – A fêmea disse com urgência. — Pelas portas duplas. Vou destravá-la. O posto de enfermagem fica bem à frente. Elas te levarão direto para lá.
May não esperou nem para agradecer. Agarrou a mão de Bitty, apressou-se pelo chão brilhoso e polido, e empurrou as portas de metal assim que ouviu o mecanismo da
tranca ser liberado.
Do outro lado das cadeiras confortáveis e das revistas muito folheadas da sala de espera, tudo era profissionalmente clínico, pessoas de jaleco e com os tradicionais
uniformes de enfermagem brancos, andando para lá e para cá carregando bandejas, notebooks e estetoscópios.
— Por aqui. – Alguém chamou.
A enfermeira em questão tinha cabelos pretos bem curtos, olhos azuis que combinavam com seu uniforme e um rosto tipo Paloma Picasso.
— Eu levo vocês até ela.
Mary pôs-se atrás de Bitty, guiando a garota pelos ombros enquanto andavam pelo corredor e então outro para o que obviamente levava à área da UTI: quartos normais
de hospital não possuíam paredes de vidro com cortinas cerradas por dentro. Não tinham tanta equipe em volta. Não tinham painéis com sinais vitais piscando atrás
do posto de enfermagem.
Quando a enfermeira parou e abriu uma das portas, o ruído do equipamento médico soava urgente, um tipo frenético de bips e guinchos que sugeriam que os computadores
estavam preocupados com o que estava acontecendo à paciente.
A fêmea manteve a cortina afastada.
— Podem entrar.
Quando Bitty hesitou, Mary se abaixou.
— Não vou sair do seu lado.
E de novo, era algo que Mary estava dizendo por si mesma. A garota nunca tinha parecido particularmente interessada com qual membro da equipe do Lugar Seguro estava
ou não ao seu redor.
Quando Bitty permaneceu no mesmo lugar, Mary levantou o olhar. Havia duas enfermeiras verificando os sinais vitais de Annalye, uma de cada lado da cama, e Havers
também estava lá colocando algum tipo de medicação no acesso intravenoso daquele braço assustadoramente fino.
Por uma fração de segundo, ela violentamente conscientizou-se do quadro. A figura na cama tinha cabelos escuros ralos, a pele estava cinzenta, os olhos estavam fechados
e uma boca que estava relaxada – e durante aquele instante infinito enquanto Mary olhava para a fêmea que estava morrendo, não conseguia decidir se estava vendo
sua própria mãe ou a si mesma em cima daquele travesseiro imaculadamente branco.
Não posso fazer isto, pensou.
— Vamos lá, Bitty. – Disse com a voz rouca. — Vamos até lá segurar a mão dela. Ela vai gostar de saber que você está aqui.
Enquanto Mary levava a garota, Havers e a equipe desaparecia ao fundo, recuando sem estardalhaço como se soubessem muito bem que não havia nada que pudessem fazer
para interromper o inevitável e que a chance de Bitty dizer adeus era o caminho inevitável.
Ao lado da cama, Mary manteve a mão sobre o ombro de Bitty.
— Tudo bem, pode tocá-la. Aqui.
Mary se inclinou à frente e segurou a suave mão gelada.
— Olá, Annalye. Bitty veio te ver.
Olhando para a garota, ela anuiu em encorajamento... E Bitty franziu o cenho.
— Ela já está morta? – A garota sussurrou.
Mary piscou com força.
— Ah, não, querida. Ela não está. E consegue te ouvir.
— Como?
— Ela consegue. Vá em frente. Fale com ela. Sei que vai gostar de ouvir sua voz.
—Mahmen? – Disse Bitty.
— Segure a mão dela. Está tudo bem.
Quando Mary recuou um passo, Bitty estendeu a mão... E quando o contato foi feito, a garota franziu o cenho de novo.
— Mahmen?
De repente, alarmes começaram a soar com pânico renovado, os sons estridentes invadindo a frágil conexão entre mãe e filha, trazendo a equipe médica de volta para
a cama apressadamente.
— Mahmen! – Bitty agarrou com ambas as mãos. — Mahmen! Não vá!
Mary foi forçada a puxar Bitty para tirá-la do caminho quando Havers começou a gritar ordens. A garota lutou contra seu gesto, mas então entrou em colapso gritando
com os braços estendidos na direção da mãe e o cabelo emaranhando.
Mary segurou o pequeno corpo agitado.
— Bitty, oh, Deus...
Havers aproximou-se da cama e começou a fazer massagem cardíaca enquanto o ressuscitador de emergência era trazido.
— Temos de ir, – Disse Mary, empurrando Bitty na direção da porta. — Vamos esperar lá fora...
— Eu a matei! Eu a matei!
Ao derrapar na direção de Rhage, Vishous caiu de joelhos e buscou pela jaqueta de couro e camisa do irmão, arrancando as camadas de tecido e expondo...
— Ai... Caralho.
A bala tinha entrado à direita do centro, exatamente onde ficava o coração de seis válvulas de um vampiro dentro das costelas. E quando Rhage ofegou em busca de
ar e cuspiu sangue, V olhou ao redor freneticamente. Guerra pra todo canto. Cobertura em canto nenhum. O tempo... Estava acabando...
Butch vinha correndo até eles de cabeça baixa, disparando um par de armas calibre 40 ao redor de si mesmo em ciclos de bombeamento, de forma que os assassinos ao
alcance tinham de cair no chão em posição fetal para evitar serem atingidos pelos tiros. O ex-tira abaixou-se, as armas ainda erguidas e prontas para disparar, suas
pernas de buldogue e torso se jogaram também na grama alta marrom.
— Temos de tirá-lo daqui. – Aquele sotaque de Boston anunciou.
A boca de Rhage abriu largamente e a inalação que veio em seguida era chiada como uma caixa de pedras.
Geralmente o cérebro de V era aguçado pra caralho, sua grande inteligência era mais uma característica pessoal que uma aptidão e definia tudo em sua vida. Ele era
o racional, o lógico, o filho da puta cínico que nunca errava.
E ainda assim, suas células cinzentas imediatamente pifaram.
Anos de prestação de assistência médica e intervenções em campo lhe diziam que seu irmão ia morrer em um minuto ou dois, caso o músculo do coração tivesse sido mesmo
dilacerado ou perfurado, e uma ou mais válvulas começasse a vazar sangue na cavidade torácica.
Isto resultaria na interrupção da função cardíaca quando o saco peritoneal se inundasse e fatalmente comprometeria a pressão sanguínea.
Era o tipo de ferimento catastrófico que requeria intervenção cirúrgica imediata – e mesmo assumindo que tivessem toda a tecnologia e equipamentos necessários em
uma situação de clínica esterilizada, o sucesso não era garantido.
— V! Temos de tirá-lo daqui...
Balas voavam ao redor e ambos se jogaram no chão. Com um terrível cálculo mental, a unidade de processamento de V chegou a uma conclusão insustentável: a vida de
Rhage ou a deles.
Porra! A culpa é minha, pensou V.
Se não tivesse contado ao irmão sobre a visão, Rhage não teria corrido prematuramente e teria tido mais controle sobre a luta...
Vishous ergueu suas armas e abateu três assassinos que se aproximavam enquanto Butch girava no chão e fazia o mesmo na direção oposta.
— Rhage, fique conosco. – V grunhiu ao se desfazer do cartucho vazio e recarregar as armas, uma após a outra. — Rhage, você precisa... Merda!
Mais tiros. E ele foi atingido no maldito braço.
Enquanto seu próprio sangue corria, ele ignorou, seu cérebro lutando para encontrar uma solução que não resultasse na porra de uma pira funerária para Rhage. Ele
podia chamar Jane por que ela não podia morrer. Mas ela não conseguiria executar uma cirurgia cardíaca de peito aberto aqui, pelo amor de Deus. E se...
O flash de luz foi tão brilhante, tão súbito, que o fez se perguntar quem infernos estaria perdendo tempo apunhalando um lesser de volta para o Ômega...
O segundo jorro de iluminação o fez girar e olhar para Rhage. Oh... Merda. Feixes gêmeos de luz brilhante espocavam das órbitas dos olhos do irmão, apontando para
o céu como feixes de laser em correntes paralelas que poderiam atingir a face da lua.
— Caraaaaaalho!
Mudança total de planos. O tema filho da puta da noite.
V avançou para Butch e o puxou, afastando-o de Rhage.
— Corre!
— O que está fazendo... Santa Maria, mãe de Deus!
Os dois puseram-se a correr desabaladamente mantendo a cabeça baixa, as pernas comendo a distância pela área aberta, enquanto pulavam sobre lessers e se desviavam
para se tornarem alvos mais difíceis. Ao chegarem à construção mais próxima da escola abandonada, eles se alternaram nos cantos em busca de cobertura, V pela frente,
Butch pelos fundos.
Com o peito ofegando, Vishous se inclinou. No centro da clareira, a transformação torturava o corpo caído de Rhage, seus braços e pernas se contorciam enquanto seu
torso convulsionava e tinha espasmos, a fera emergindo da carne do macho, o grande dragão se libertando do DNA que era forçado a compartilhar.
Se Rhage não tivesse morrido ainda, aquilo certamente o mataria.
E ainda assim, não havia como interromper a transformação. A Virgem Escriba tinha entremeado a maldição em cada uma das células de Rhage, e quando a hora chegava,
o processo era um trem descarrilado que ninguém conseguia deter.
A morte cuidaria disto.
A morte de Rhage... Acabaria com aquilo tudo.
V fechou os olhos e gritou por dentro.
Um segundo depois ergueu as pálpebras e pensou, “de jeito nenhum, porra”. “De jeito nenhum, cacete, que vou deixar isto acontecer.”
— Butch, – Rosnou ele. — Tenho que ir.
— O que? Onde você...
Foi a última coisa que Vishous ouviu ao se levantar e desaparecer.
Capítulo QUATRO
Não havia dor.
Nenhuma dor vinha do ferimento que a bala fez no peito de Rhage. E aquela era a primeira indicação de que a merda era séria. Ferimentos que doem tendem a não ser
do tipo que te coloca em estado de choque. Não sentir nada? Provavelmente uma boa indicação – juntamente com o fato de ele ter desabado no chão e o tiro ter sido
certeiro em seu peito – de que corria perigo mortal.
Piscada. Tente respirar. Piscada.
O sangue em sua boca, espesso em sua garganta... Uma maré crescente que ia contra seus esforços de fazer o oxigênio entrar em seus pulmões. A audição tinha se reduzido
a uma abafada versão de si mesma, como se estivesse deitado de costas em uma banheira e o nível da água tivesse subido até cobrir seus dois ouvidos. A visão ia e
vinha, o céu noturno acima dele se revelava e se obscurecia, enquanto as coisas falhavam e voltavam a aparecer. Respirar ficava cada vez mais difícil, um peso crescente
se instalava em seu peito, primeiro como uma sacola, então um baú cheio... Agora já no nível de um trem de carga.
Rápido, estava acontecendo rápido demais.
Mary, ele pensou. Mary?
Seu cérebro cuspiu o nome de sua shellan – talvez ele tenha mesmo chamado em voz alta? – como se sua companheira pudesse ouvi-lo, de alguma forma.
Mary!
O pânico inundou sua corrente sanguínea, acumulando-se dentro das costelas – junto com o plasma que, sem dúvida, estava vazando pela porra toda. Seu único pensamento,
mais do que a morte, a batalha ou mesmo a segurança dos irmãos, era... Oh, Deus, faça a Virgem Escriba manter sua parte da barganha.
Não permita que ele acabe no Fade sozinho.
Mary devia deixar a terra com ele. Devia lhe ser permitido segui-lo quando ele fosse para o Fade. Era parte do acordo que tinha feito com a Virgem Escriba: ficaria
com a maldição e sua Mary sobreviveria à leucemia, e por que sua companheira tinha se tornado infértil devido ao tratamento contra o câncer, ela ficaria com ele
pelo tempo que quisesse.
Você vai morrer esta noite, porra.
Bem ao ouvir a voz de Vishous em sua mente, o rosto do irmão apareceu em seu campo de visão, substituindo o céu. A boca de V se movia, o cavanhaque ondulava enquanto
enunciava as palavras. Rhage tentou afastar o macho, mas seus braços não obedeciam aos comandos de seu cérebro.
A última coisa que precisava era que outra pessoa também morresse. Embora, sendo o filho da Virgem Escriba, V provavelmente seria o último a se preocupar sobre algo
tão improvável quanto bater as botas. Mas quando Butch, o terceiro elo do trio, chegou escorregando e berrando também? Agora, ali estava um cara que não tinha um
cartão de dispensa da Dona Morte...
Tiros. Ambos começaram a atirar.
Não! Rhage ordenou a eles. Diga a Mary que eu a amo e me deixem aqui antes que vocês...
V recuou como se algo de chumbo tivesse penetrado em alguma de suas partes.
E foi quando aconteceu.
Foi o cheiro do sangue do irmão que desencadeou. No instante em que aquela nuance de cobre atingiu o nariz de Rhage, a fera despertou dentro da prisão de seu corpo
e começou a sair, a mudança dando início a terremotos internos que estalaram seus ossos, despedaçaram seus órgãos internos e o transformaram em uma coisa totalmente
diferente.
Agora havia dor.
Bem como a sensação de que este esforço era uma perda da porra do tempo. Se ele ia morrer, o dragão estava só tomando seu lugar na merda da situação.
— Diga a Mary para vir comigo. – Rhage gritou ao ficar completamente cego. — Diga a ela...
Mas teve a sensação de que os irmãos já tinham se afastado e graças a Deus por isso: o sangue de V não estava mais no ar e ninguém respondeu.
Mesmo quando sua força vital se esvaiu, fez de tudo para seguir a corrente enquanto os violentos movimentos da fera destruíam seu corpo moribundo. Mesmo que tivesse
a energia, lutar contra aquela corrente seria desperdício de esforço e não facilitaria nada. Entretanto, enquanto seu corpo e mente, suas próprias emoções e consciência
recuavam, era estranho que não soubesse se era a morte ou a transformação que estava ocorrendo a ele.
Quando o sistema nervoso da fera assumiu completamente o controle sobre ele e suas sensações de dor desapareceram, Rhage recuou a uma zona de flutuação metafísica,
como se quem e o que ele era fosse depositado em um globo de neve no alto da prateleira do continuum tempo.
Só que neste caso tinha a impressão que não seria mais retirado de lá.
O que era engraçado. Cada uma das criaturas que tinham consciência e sabiam de sua própria mortalidade inevitavelmente se perguntavam, de vez em quando, quando e
onde, como e por que de sua própria morte. O próprio Rhage tinha seguido este fluxo mórbido de pensamento, especialmente durante seu período pré-Mary, quando era
um solitário sem nada além de um catálogo de suas falhas e fraquezas para lhe fazer companhia durante as densas e desertas horas de luz do dia.
Para ele, aquelas questões desconexas tinham sido inesperadamente respondidas esta noite: “onde” era no meio do campo de batalha em uma escola abandonada para garotas;
“como” era devido a uma hemorragia cardíaca, resultado de um tiro; “por que” era consequência de seu dever; “quando” seria provavelmente nos próximos dez minutos,
talvez menos.
Dada a natureza de seu trabalho, nada daquilo era surpresa. Está bem, talvez a parte da escola fosse, mas só isso.
Ele sentiria falta dos irmãos, Jesus... E aquilo doía mais do que a fera. E se preocuparia com todos eles e o futuro do reinado de Wrath. Merda, perderia o crescimento
de Nalla e L.W1. E o nascimento dos gêmeos de Qhuinn... Que nasçam vivos e saudáveis. Será que conseguiria ver a todos de lá do Fade?
Oh, sua Mary. Sua bela, preciosa Mary.
O terror o atingiu, mas era difícil apegar-se à emoção enquanto sentia-se enfraquecer cada vez mais. Para se acalmar, disse a si mesmo que a Virgem Escriba não mentia.
A Virgem Escriba era toda poderosa. A Escriba Virgem tinha determinado o equilíbrio necessário para salvar a vida de sua Mary e dera a eles o grande presente para
compensar o fato de que sua shellan nunca poderia ter filhos.
Sem filhos, pensou com um angústia. Ele e sua Mary jamais teriam filhos de qualquer forma agora.
Isto era tão triste.
Estranho... Não tinha pensando que os queria, pelo menos não conscientemente. Mas agora que tudo aquilo tinha acontecido? Estava totalmente desolado.
Pelo menos sua Mary jamais o abandonaria.
E precisava ter fé em que, quando chegasse às portas do Fade e prosseguisse a atravessá-la para o que havia do outro lado, ela conseguiria encontrá-lo.
Senão, esta coisa toda de morte seria insuportável de enfrentar. A ideia de que poderia estar morrendo e que jamais veria sua amada de novo? Jamais voltar a sentir
o cheiro de seus cabelos? Sentir seu toque? Falar a verdade mesmo que ela já soubesse, do quanto a amava?
Era por tudo isto que a morte era tal tragédia, pensou. Era o grande separador, e às vezes atingia sem aviso, um ladrão cruel roubando as pessoas de seus cursos
emocionais que os arruinaria pelo resto de suas vidas...
Merda, e se a Virgem Escriba estivesse errada? Ou tivesse mentido? Ou não fosse tão poderosa?
Subitamente seu pânico recarregou e seus pensamentos começaram a embaralhar, prendendo-o na distância que ultimamente tinha aparecido entre ele e sua shellan, distância
que tinha subestimado, achando que teria tempo e espaço para corrigir.
Oh, Deus... Mary, disse em sua cabeça. Mary! Eu te amo!
Merda. Devia ter falado sobre estas coisas com ela, escavado profundamente para descobrir onde estava o problema, aproximando-os novamente até que estivessem de
novo alma-a-alma.
O problema era, percebeu com terror, enquanto o coração finalmente parava de bater em seu peito, tudo o que você desejava ter dito, todas as peças que faltavam de
si mesmo que ainda tinha a oferecer, todas as falhas que tinha varrido para baixo do tapete, sob a desculpa da vida ser corrida demais... Aquilo acabava também.
O meio do passo, que jamais seria completado, era o pior arrependimento que alguém poderia ter.
Talvez você só não aprendesse isto até que todas as coisas sobre as quais sempre se questionou sobre sua morte realmente acontecesse. E sim, aquelas perguntas que
sempre se fez, os comos e porquês, ondes e quandos... Se tornavam malditamente imateriais quando você partia desta existência.
Eles tinham se afastado, ele e Mary.
Ultimamente... Eles perderam um pouco da conexão entre eles.
Ele não queria partir assim...
Luz branca varreu tudo, devorando-o vivo, roubando sua consciência.
O Fade tinha vindo até ele. E só podia rezar para que sua Mary Madonna fosse capaz de encontrá-lo do outro lado.
Tinha coisas que precisava desesperadamente dizer a ela.
Vishous reassumiu a forma em um pátio de mármore branco que se abria para um céu leitoso tão vasto e brilhante que não havia sombras lançadas pela fonte no centro
ou pela árvore cheia de passarinhos coloridos chilreando mais ao canto.
Os quais silenciaram ao pressentirem seu humor.
— Mãe! – Sua voz entoou, ecoando entre as paredes. — Onde diabos você está!?
Ao avançar, a trilha de sangue que deixou à sua passagem era de um vermelho brilhante e, quando parou à porta que levava aos aposentos particulares da Virgem Escriba,
gotas caíram de seu cotovelo e perna em impactos suaves. Quando bateu e chamou novamente o nome dela, salpicos do sangue tingiram a porta branca, como esmalte de
unha caindo no chão.
— Foda-se!
Forçando a porta com o ombro, invadiu os aposentos da mãe – só para parar de supetão. Sobre a plataforma de dormir, debaixo de lençóis de cetim branco, a entidade
que tinha criado a raça vampírica e também corporeamente gerado ele e sua irmã, estava deitada em absoluta imobilidade e silêncio. Mas não havia forma corpórea nela.
Somente uma poça tridimensional de luz que outrora fora tão brilhante quanto o estouro de uma bomba, mas agora era como uma antiquada lamparina com a luz embaçada.
— Você precisa salvá-lo, – Ao cruzar o chão de mármore, Vishous reparou vagamente que o quarto estava vazio, exceto pela cama. Mas quem se importava? — Acorda, porra!
Alguém importante está morrendo e você precisa impedir, maldição.
Se ela tivesse um corpo, ele a teria agarrado e forçado a prestar atenção. Mas não havia braços para ele puxar para fora da cama ou ombros para chacoalhar.
Estava a ponto de gritar de novo quando palavras soaram pelo quarto como se viessem de um sistema de som surround.
O que tiver de ser, será.
Como se isto explicasse tudo. Como se ele fosse um cuzão por ter vindo incomodá-la. Como se estivesse desperdiçando o tempo dela.
— Por que nos criou se não liga a mínima?
Exatamente o que te preocupa? O futuro dele ou o seu?
— Do que infernos está falando? – Oh, e sim, sabia que não devia questioná-la, mas foda-se. — O que isto significa?
Será necessário mesmo uma explicação?
Ao cerrar os dentes, V lembrou a si mesmo de que Rhage estava em campo se transformando em um monstro e morrendo daquela encarnação: ficar de bate boca com a querida
mamãe não seria o melhor caminho aqui.
— Apenas salve-o, tudo bem? Tire-o daquele teatro de horrores para que possamos operá-lo e eu te deixo aqui para apodrecer em paz...
E isto resolveria o destino dele em que?
Está bem, agora sabia por que os humanos com questões maternas iam àqueles programas que o Lassiter gostava de assistir. Cada vez que V chegava perto desta fêmea,
entrava em estado de psicose induzida pelo útero.
— Ele vai continuar respirando, é isto que vai resolver.
O destino vai acabar se cumprindo de outras maneiras.
V imaginou Hollywood escorregando no tapete do banheiro numa queda em casa que o mataria. Ou engasgando com uma coxa de peru. Ou só Deus sabe o que mais poderia
matar o irmão.
— Então o mude. Você é poderosa pra cacete. Mude o destino dele agora mesmo.
Houve uma longa pausa e se perguntou se ela não teria caído no sono de novo ou merda do tipo – e cara, ele realmente a odiou. Ela era uma maldita desistente, retirando-se
do mundo, isolando-se aqui em cima como uma reclusa rabugenta só por que ninguém mais estava beijando sua bunda do jeito que ela queria.
Que peninha.
Enquanto isto, um dos melhores guerreiros deles, um que era absolutamente indispensável na guarda privada do Rei, estava a ponto de se pirulitar deste planeta. E
V era a última pessoa a querer que outra pessoa resolvesse os problemas por ele, mas tinha de tentar salvar Rhage com tudo o que podia, e quem diabos mais tinha
este tipo de poder?
— Ele é importante, – V rosnou. — A vida dele é importante.
Pra você.
— Foda-se, isto não é sobre mim. Ele importa ao Rei, à Irmandade, à guerra. Se o perdermos? Teremos um problemão.
Por que não tenta ser honesto?
— Acha que estou preocupado com ele e Mary? Sim. Confesso essa merda também por que neste exato momento você não parece ser capaz sequer de ficar em pé, quanto mais
acompanhar uma não-entidade que você arrancou do reino mortal pela travessia até o Fade no momento em que ela quiser.
Porra. Agora que tinha falado em voz alta, realmente tinha de se perguntar se aquela coisa alquebrada em cima da cama poderia mesmo cumprir a promessa que fizera
no que parecia ser antigamente, mesmo que só tivesse sido há três anos.
Tanta coisa tinha mudado.
Exceto o fato de que ainda odiava qualquer tipo de fraqueza. E continuava a detestar estar na presença da mãe.
Vá embora. Você me cansa.
— Eu te canso. É, por que você tem mesmo tanta coisa pra fazer aqui em cima. Jesus Cristo.
Tudo bem, ela que se fodesse. Ele descobriria outra saída. Outro... Alguma coisa.
Merda, o que mais havia?
Vishous virou-se para a porta que tinha arrombado. A cada passo dado, esperava que ela o chamasse de volta, dissesse algo ou lhe desse uma dor no peito quase tão
letal quanto o golpe que derrubara Rhage. Quando ela não chamou, e a porta se fechou mal tinha passado, quase acertando seu traseiro, ele pensou que já devia saber.
Ela não se importava o suficiente nem para cagar nele.
De volta ao pátio, a trilha de sangue que havia deixado sobre o revestimento de mármore era como o destino que tinha seguido por toda a vida, torto e bagunçado,
evidenciando a dor que ele totalmente falhava em reconhecer. E sim, queria que a mancha se infiltrasse naquela pedra, como se talvez isto pudesse chamar a atenção
dela.
Por falar nisto, por que simplesmente não se jogava no maldito chão com um ataque de birra, como se estivesse nos corredores de uma loja de departamentos, enfurecido
por não ganhar um triciclo?
Enquanto ficava parado ali, o silêncio se registrou como se fosse um som. O que era ilógico e precisamente a experiência que ele teve ao perceber o quão verdadeiramente
silencioso aquele lugar agora estava. As Escolhidas estavam todas na Terra, aprendendo sobre si mesmas, separadas individualmente, renegando seu papel tradicional
de servir à mãe. O mesmo acontecendo com a raça, existindo em tempos modernos onde os velhos ciclos de festivais e costumes eram ignorados, em sua maioria, e as
tradições que outrora eram respeitadas, estavam agora à beira do esquecimento.
Bom, pensou. Esperava que ela estivesse se sentindo sozinha e desrespeitada. Ele a queria bem calma e isolada, com seus fiéis mais fervorosos dando-lhe as costas.
Ele a queria ferida.
Ele a queria morta.
Seus olhar foi para os pássaros que tinha trazido para ela e o bando fugiu dele, subindo para outros galhos do outro lado da árvore branca, amontoando-se juntos
como se temessem que ele fosse torcer os pescoços deles, um a um.
Aqueles passarinhos tinham sido uma oferta de paz de um filho que jamais havia sido realmente querido, mas também não tinha se comportado muito bem. Sua mãe provavelmente
não tinha dirigido a eles mais do que um olhar – e, quem diria, também tinha superado este breve flamejar de uma fraqueza conciliatória, de volta às margens de sua
inimizade. Como poderia ser diferente?
A Virgem Escriba não veio a eles quando Wrath fora quase assassinado. Ela não tinha ajudado o Rei a manter sua coroa. Beth quase morreu ao dar à luz e teve de abrir
mão de qualquer possibilidade de ter filhos no futuro. Pelo amor de Deus, Selena, uma das Escolhidas da própria Virgem Escriba, tinha acabado de morrer e arrebentar
o coração de um maldito macho de valor – e qual foi a resposta? Nada.
E antes de tudo isto? A morte de Wellsie. Os ataques.
E à frente? Qhuinn estava se borrando de preocupação de que Layla morresse dando à luz aos gêmeos. E Rhage estava morrendo ali embaixo no meio da batalha.
Precisava mais?
Girando a cabeça, V olhou para a porta que tinha voltado a se fechar à sua passagem. Ele ficava contente por ela estar sofrendo. E não, não confiava nela.
Ao se desmaterializar de volta para o campo de combate, não tinha absolutamente fé nenhuma de que ela faria o correto para Rhage e Mary. Ele fez uma aposta que tinha
perdido ao ir até a mãe, mas com ela aquilo era sempre o que acontecia.
Milagre. Ele precisava da porra de um milagre.
Capítulo CINCO
A água que caía sobre a mão de Mary estava fria, e ainda assim queimava sua pele – provando que lados opostos do termômetro podem coexistir ao mesmo tempo.
A pia do banheiro feminino que estava usando era branca e de porcelana. Seu ralo brilhava e era prateado. À sua frente, um espelho de parede inteira refletia três
reservados, todos tinham as portas cor de pêssego fechadas, mas somente um deles estava ocupado.
— Está tudo bem aí? – Disse ela.
Ouviu o barulho da descarga, mesmo que Bitty não tivesse usado.
Mary encarou seu reflexo. É. Ela parecia tão mal quanto se sentia: por algum motivo, nos últimos trinta minutos bolsas escuras se formaram sob as órbitas que pareciam
afundadas, e sua pele parecia tão pálida quanto o piso no qual estava pisando.
Por algum motivo? Besteira. Sabia exatamente o motivo.
Eu a matei!
Mary teve de fechar os olhos e fingir recompor-se novamente. Quando abriu os olhos de novo, tentou se lembrar do que estava fazendo. Oh. Certo. Havia uma pequena
pilha de toalhas de papel em uma prateleira do tipo entrelaçado e dobrado, e ao avançar para pegar um, respingou os outros de água e pensou consigo mesma que era
estranho que Havers, tão meticuloso com a clínica, permitisse tal bagunça. Daí entendeu... O suporte na parede perto da porta estava quebrado, a parte inferior pendurada,
frouxa.
Igual a mim, pensou. Cheia de técnica e experiência em ajudar pessoas, mas sem executar meu trabalho direito.
Segure a mão dela. Está tudo bem...
Eu a matei!
— Bitty? – Quando a palavra não saiu mais do que um resmungo, ela pigarreou. — Bitty.
Depois de secar as mãos, virou-se para os reservados.
— Bitty, vou entrar se você não sair.
A garota abriu a porta do meio, e por alguma razão Mary soube que jamais se esqueceria da visão daquela mãozinha fortemente cerrada, sem se abrir, quando ela saiu.
Ela tinha chorado lá dentro. Sozinha. E agora que a garota estava sendo forçada a mostrar o rosto, estava fazendo exatamente o que a própria Mary esteve desesperadamente
tentando fazer.
Às vezes a compostura era tudo o que se tinha; dignidade, seu único consolo; a ilusão de “tudo bem” sua única fonte de conforto.
— Aqui, me deixe... – Quando a voz de Mary se apagou, voltou para as toalhas de papel e umedeceu uma na pia que tinha usado. — Isto vai ajudar.
Aproximando-se lentamente da garota, trouxe o papel frio e macio para o rosto corado dela, pressionando-o na pele quente e avermelhada. Enquanto isto, na sua cabeça
se desculpava com a Bitty adulta, aquela que ela esperançosamente se tornaria: Sinto muito ter te feito fazer isto. Não, você não a matou. Quem dera eu tivesse te
deixado fazer as coisas do seu jeito e a seu tempo. Sinto muito. Não, você não a matou. Sinto muito.
Sinto tanto.
Mary ergueu o queixo da garota.
— Bitty...
— O que eles vão fazer com ela agora? Para onde ela vai?
Deus, aquele olhar castanho claro era firme.
— Eles vão levá-la... Bem, eles vão cremá-la.
— O que é isto?
— Eles vão queimar o corpo dela até torná-lo cinzas, para o rito de passagem.
— Vai doer?
Mary pigarreou de novo.
— Não, querida. Ela não vai sentir nada. Está livre... Ela está no Fade esperando por você.
O lado bom era que ao menos isto Mary sabia ser verdade. Mesmo tendo sido criada católica, ela própria tinha visto a Virgem Escriba, então não, não estava dando
à garota falsas esperanças. Para os vampiros existia mesmo um paraíso, e eles real e verdadeiramente encontravam seus entes queridos lá.
Diabos, talvez isto também fosse verdade para os humanos, mas a magia era muito menos visível no mundo deles; desta forma, a salvação eterna era muito mais difícil
de ser vendida ao humano comum.
Afastando a toalha de papel, Mary recuou um passo.
— Eu gostaria de voltar ao Lugar Seguro agora, tudo bem? Não há mais nada que a gente possa fazer aqui e já está quase amanhecendo.
A última frase saiu só por hábito, ela achava. Como uma pré-trans, Bitty era capaz de tolerar qualquer quantidade de luz do sol. E a verdade real era que só queria
levar a garota para longe de toda a morte dali.
— Tudo bem? – Mary repetiu.
— Não quero deixá-la.
Em qualquer outra circunstância, Mary teria se abaixado e gentilmente exposto um pouco do que ia ser o mundo novo de Bitty. A realidade horrorosa era que não havia
mais mãe para deixar para trás, e tirar a garota deste ambiente clínico onde pacientes estavam sendo tratados, às vezes em situações terríveis, era inteiramente
apropriado.
Eu a matei.
Em vez disto, Mary disse.
— Está bem, podemos ficar o quanto você quiser.
Bitty anuiu e foi até a porta que levava ao corredor. Parada diante da porta fechada, seu vestido tremendamente gasto parecia a ponto de se desmanchar de sua figura
magra, seu feio casaco preto parecia um cobertor jogado de qualquer jeito ao seu redor, seus cabelos castanhos despontados arrepiavam contra o tecido.
— Eu realmente queria...
— O que? – Sussurrou Mary.
— Eu queria voltar a antes. À hora que eu acordei hoje.
— Eu também queria que fosse possível.
Bitty olhou por cima do ombro.
— Por que não pode voltar? É tão estranho. Digo, consigo lembrar tudo dela. É como... É como se minhas lembranças fossem um quarto no qual eu pudesse entrar. Ou
algo assim.
Mary franziu o cenho, pensando que aquela era uma maneira muito madura de se expressar para alguém daquela idade.
Mas antes que pudesse responder a garota abriu a porta, claramente não interessada em uma resposta – e talvez isto fosse uma coisa boa. Que infernos se podia responder
diante aquilo?
No corredor, Mary quis pousar a mão sobre aquele ombro pequeno, mas se segurou. A garota era tão fechada, do mesmo modo que um livro seria no meio de uma biblioteca
ou uma boneca em uma fila de colecionáveis, e era difícil forçar a quebrar aquelas fronteiras.
Especialmente quando, como uma terapeuta, você mesma já estava se sentindo muito desequilibrada em seu papel de profissional.
— Para onde vamos? – Bitty perguntou quando duas enfermeiras passaram por elas.
Mary olhou ao redor. Elas ainda estavam na área da UTI, mas a alguma distância de onde a mãe de Bitty tinha morrido.
— Podemos procurar uma sala para nos sentar.
A garota parou.
— Nós não vamos poder vê-la de novo, vamos?
— Não.
— Acho que é melhor a gente voltar.
— O que você quiser.
Cinco minutos depois estavam no Volvo indo para o Lugar Seguro. Ao guiá-las pela ponte, Mary voltou a olhar pelo retrovisor, verificando Bitty a cada cinquenta metros.
No silêncio, ela se pegou novamente a desfiar um cordão de desculpas em sua mente... Por ter dado um conselho ruim, por colocar a garota na posição de mais sofrimento.
Mas toda aquela comiseração era auto-infligida, uma busca por absolvição pessoal, totalmente injusta com a paciente, especialmente uma tão jovem.
Este pesadelo profissional era algo que Mary teria de superar sozinha.
Uma entrada na I-87 apareceu assim que chegaram ao lado do centro, após a ponte, e a seta soou alto no interior do utilitário. Dirigindo-se para o norte, Mary permaneceu
no limite de velocidade e foi ultrapassada por alguns caminhões fazendo oitenta em uma pista de sessenta e cinco. De vez em quando, sinais luminosos indicando áreas
de ultrapassagem piscavam acima delas em um ritmo que nunca demorava, e o pouco tráfego local era diminuído ainda mais enquanto elas prosseguiam.
Quando chegassem, Mary decidiu que tentaria dar algo para a garota comer. Bitty tinha perdido a Primeira Refeição e devia estar morrendo de fome. Então talvez um
filme até o amanhecer, algo calmo. O trauma era tão recente, e não só o fato de perder a mãe. O que tinha acontecido lá no Havers devia ter trazido à tona tudo o
que tinha acontecido antes – os abusos em casa, o resgate onde Rhage, V e Butch mataram o pai para salvar Bitty e a mãe, a descoberta que a mãe estava grávida, a
perda do bebê, os meses que se arrastaram depois, onde Annalye jamais se recuperara totalmente...
— Sra. Luce?
— Sim? – Oh, Deus, por favor, pergunte algo que eu possa responder decentemente. — Sim, Bitty?
— Para onde estamos indo?
Mary olhou para a placa na estrada. Dizia “Saída 19 Glen Falls”.
— Desculpe? Estamos indo para casa. Devemos chegar lá em quinze minutos.
— Achei que o Lugar Seguro não era tão longe.
— O q...?
Oh, Deus.
Estava indo na direção da maldita mansão.
— Oh, Bitty, desculpe. – Mary meneou a cabeça. — Eu acho que confundi as saídas. Eu...
Onde estava com a cabeça?
Bem, ela sabia a resposta... Todas as hipóteses que vinha imaginando em sua cabeça sobre o que fariam quando saíssem do carro eram coisas que envolviam o lugar onde
Mary morava com Rhage, o Rei, os Irmãos, os guerreiros e suas companheiras.
Onde infernos estava com a cabeça?
Mary pegou a saída 19, desceu a rodovia e voltou a seguir para o sul. Cara, não estava dando uma dentro esta noite, estava?
Pelo menos as coisas não poderiam piorar.
De volta ao Internato para Garotas Bownswick, Assail, filho de Assail, ouviu o rugido mesmo através da sobrecarga sensorial da batalha.
Apesar do caos de todos os tiros, dos xingamentos e das loucas corridas de cobertura a cobertura, o som trovejante que rolava pelo campus abandonado era o tipo de
coisa que chamava a atenção.
Ao se virar, manteve o dedo no gatilho da automática, continuando a descarga de balas adiante, certeiramente em uma fila de mortos-vivos...
Por uma fração de segundo, parou de atirar.
Seu cérebro simplesmente não conseguia processar o que os olhos sugeriam que tinha magicamente aparecido a cinquenta metros à sua frente. Era... Algum tipo de criatura
parecida com um dragão, coberta de escamas roxas, cauda serrilhada e uma boca arreganhada cheia de dentes de T. Rex. O monstro pré-histórico tinha bem a altura de
dois andares, comprido como um trailer, e rápido como um crocodilo ao avançar para atacar qualquer coisa que se mexesse...
Queda livre.
Sem aviso, seu corpo voou adiante, e uma dor se espalhou pela frente de sua perna e rasgou até seu tornozelo. Girando em meio ao ar, caiu de cara na grama alta...
E uma respiração depois, o assassino parcialmente ferido que o tinha atingido com uma faca caiu em cima de seu peito, aquela lâmina arqueando pelo seu ombro, os
lábios curvados em um esgar enquanto o sangue preto derramava em Assail inteiro.
Certo, foda-se, cara.
Assail agarrou um punhado do cabelo ainda castanho, enfiou o cano da arma naquela boca arreganhada e apertou o gatilho, explodindo a parte de trás do crânio, incapacitando
o corpo de forma que caiu em cima dele como um peso morto agitado. Chutando o corpo que se contorcia para tirá-lo de cima, voltou a se levantar.
E se viu diretamente diante da fera.
Seus movimentos para se levantar chamaram a atenção, os olhos do dragão se fixaram nele, estreitados em fendas. Então, com outro rugido a criatura veio em direção
à ele fazendo o chão tremer, esmagando os assassinos sob suas massivas patas traseiras, as garras da frente encurvadas para cima e prontas para o ataque.
— Porra!
Assail jogou-se para frente, não mais preocupado onde mirava a arma e absolutamente despreocupado com o fato de que agora corria para a fileira avançada de lessers.
O lado bom? A fera cuidou daquele probleminha. Os assassinos lançaram igualmente um olhar para aquela criatura dos infernos vindo em direção a eles e dispersaram
como folhas sob o vento de outono.
Naturalmente, não havia nada diretamente adiante que provesse nenhuma cobertura. Por azar, sua rota de fuga não oferecia nada além de arbustos e grama, sem nenhuma
proteção significativa. A construção mais próxima? Estava a duzentos metros de distância. Pelo menos.
Praguejando, correu mais rápido, abusando dos músculos de suas pernas, buscando mais e mais velocidade.
Era uma corrida que a fera estava fadada a vencer – uma vitoria inevitável quando um par de pernas que mal cobria um metro e meio a cada passo, tentava vencer um
par de pernas que podia cobrir vinte e cinco em um único passo. A cada segundo, aquele som ficava mais alto e mais perto, até que jatos quentes de respiração atingiram
as costas de Assail, esquentando-o, apesar do frio.
O medo inundou o seu núcleo.
Mas não havia tempo para tentar dominar o pânico que invadiu sua mente. Um grande rugido explodiu na sua direção, a força do som tão grande que o empurrou adiante,
provendo um jorro de ar fedorento que o enojou. Merda, sua única chance era...
A mordida veio depois do grande rugido, aqueles maxilares estalando tão perto da nuca de Assail que ele se encolheu, mesmo que isto diminuísse sua velocidade. Mas
era tarde demais para se salvar. Transportado pelo ar. Ele foi erguido, arrancado do chão em meio a um passo – só que, por que não doía mais?
Certamente se a fera o tivesse agarrado pelos ombros ou pelo torso, ele teria sido rasgado – não, espere, ela o pegou pela jaqueta. A coisa o agarrou pela jaqueta
de couro, não pela carne, e uma faixa de constrição cortava pelo seu peito e erguia-o pelas axilas, as pernas flutuavam, a arma disparava enquanto ele cerrava as
mãos em punhos. Abaixo dele, a paisagem girava como se estivesse em uma gangorra, os lessers restantes, os irmãos lutando, os arbustos muito crescidos e as árvores
balançavam ao redor dele como se estivesse sendo chacoalhado.
A porra da coisa ia devorá-lo. Esta baboseira sem sentido era só para amaciar a carne.
Maldito fosse ele, era o equivalente vampírico a uma asa de frango.
Não havia tempo. Soltou a arma e tateou em busca do zíper em sua garganta. O movimento balançante tornou seu pequeno alvo rápido como um rato, escorregadio como
mármore, estilo agulha em palheiro para suas mãos trêmulas e escorregadias, e as pontas dos dedos suadas.
O próprio aperto da fera foi o que o ajudou.
Com aqueles dentes travados nas costas da jaqueta, o couro não conseguiu suportar seu peso e ele caiu, despencando das presas, o chão duro se apressando para recebê-lo.
Encolhendo-se e rolando, procurando não quebrar nada, no entanto, pousou num monte de entulho.
Direto de ombro.
O estalar foi algo que se registrou pelo seu corpo todo, deixando-o tão inútil quanto um bebê indefeso, sem fôlego, a vista embaçada. Mas não havia tempo se quisesse
viver. Virando-se, ele...
Pop! Pop! Pop! Pop! Pop! BUM!
Seus primos surgiram do nada, correndo como se estivessem sendo perseguidos quando de fato não estavam. Ehric tinha duas automáticas em riste e atirando... E Evale
tinha uma metralhadora sobre os ombros.
Aquele era o BUM!
A arma era de fato uma metralhadora de verdade, uma enorme arma de fogo que tinha sobrado do tempo do Raj na Índia. Evale, o bastardo agressivo, há muito parecia
ter fixação pela coisa de uma maneira nada natural, estilo “meu precioso”.
Graças aos Destinos pelas preocupações nada saudáveis.
Aquelas balas calibre quarenta não tinham efeito nenhum sobre a fera, ricocheteando pelas escamas roxas como ervilhas jogadas na lataria de um carro. Mas a carga
de chumbo da metralhadora resultou em um uivo de dor e a fez recuar.
Era a única oportunidade de Assail escapar.
Fechando os olhos, ele se concentrou, concentrou, concentrou...
Não dava para se desmaterializar. Muita adrenalina além de muita cocaína, junto com muita dor em seu ombro, pra piorar.
E a fera voltou ao ataque, voltando a se concentrar em Assail e lhe dando o equivalente dragão de um foda-se na forma de um enorme rugido...
A imensa arma disparou uma segunda vez, atingindo a coisa no peito.
— Corra! – Ehric gritou enquanto recarregava suas armas calibre 40 com invólucros saltando pela parte de trás das pequenas armas. — Levante-se!
Assail usou o braço bom para apoiar e levantar do chão, e suas pernas voltaram a funcionar com desenvoltura admirável. Segurando o braço ferido contra o peito, arrastou-se
o mais rápido que pôde, com os restos de sua jaqueta esvoaçando, o estômago embrulhado, o coração disparado.
BUM!
Por todo canto, em toda parte – ele tinha de chegar a qualquer porra de abrigo – e rápido. Que pena seu corpo não obedecer. Mesmo enquanto seu cérebro gritava por
velocidade, tudo o que conseguia fazer era cambalear como um zumbi...
Alguém o pegou por trás, erguendo-o do chão em um saco de batatas, jogando-o por cima do ombro como um bombeiro. Enquanto caía em posição de cabeça pra baixo, vomitou
de agonia com estrelas espocando em seus olhos, enquanto o estômago esvaziava com violência. As boas novas eram que ele não comia há doze ou quinze horas àquela
altura, então não sujou muito a perna da calça do primo.
Ele queria ajudar no esforço. Queria se levantar. Queria...
Arbustos o golpearam no rosto e cerrou os olhos para se proteger. Sangue começou a fluir e encheu seu nariz. Seu ombro doía cada vez mais. A pressão em sua cabeça
ficou insuportável, fazendo-o pensar em pneus muito cheios, bagagens superlotadas, balões de água que estourava e derramava seu conteúdo por todo canto.
Graças a Deus pelos primos. Eles jamais o abandonavam.
Não podia se esquecer de recompensá-los de alguma maneira.
O galpão parecia galopar na direção deles, e da posição privilegiada – de ponta cabeça – que Assail estava, a coisa parecia se dependurar da terra ao invés de estar
plantada em cima dela. Tijolos. Mesmo com os solavancos e a escuridão dava para perceber que o abrigo era de tijolos.
Era de se esperar que fosse uma construção resistente.
Seu primo arrombou a porta e o ar dentro era úmido e mofado.
Sem aviso, Assail foi largado como o lixo que era e caiu em um chão empoeirado com uma queda que o fez ter ânsia de vômito de novo. A porta se fechou e então tudo
o que ouviu foi a respiração pesada do primo. E a sua.
E os sons abafados da batalha.
Houve um súbito brilho de luz alaranjada.
Pela névoa de sua dor, Assail franziu o cenho... E então recuou. O rosto se iluminou quando um cigarro enrolado a mão foi aceso, mas não de era nenhum de seus primos.
— O quanto seu ferimento é grave? – O Irmão da Adaga Negra, Vishous, perguntou ao exalar a fumaça mais deliciosa.
— Foi você?
— Não, foi o Papai Noel.
— Que salvador improvável é você, – Assail fez uma careta e limpou a boca na manga da jaqueta. — E sinto muito por suas calças.
V olhou para si mesmo.
— Tem algo contra couro preto?
— Eu vomitei atrás delas...
— Merda!
— Bem, dá pra limpar...
— Não, cuzão, ela está vindo para cá, – V indicou a janela suja. — Maldição.
De fato, à distância, o retumbante som trovejante dos passos do dragão soou de novo, como uma tempestade se formando e vindo na direção deles.
Assail se agitou ao redor procurando algum lugar para se esconder. Um armário. Um banheiro. Um sótão. Nada. O interior estava vazio, exceto por duas pilhas até o
teto de entulhos de mais de uma década. Graças à Virgem Escriba o abrigo parecia ser tijolo firme e mais provável de aguentar...
O teto foi erguido e despedaçado de uma só vez, os pedaços chovendo, as telhas e o concreto caindo no chão como se o abrigo estivesse anunciando sua própria morte
com uma rodada de aplausos. O ar fresco da noite amenizou o cheiro mofado, mas isto dificilmente era um alívio, dado o que havia precipitado o acesso.
A fera não era vegetariana, fato. Mas também não parecia preocupada pela sua absorção de fibras: a coisa cuspiu aquele telhado de madeira para o lado, abaixou-se
e abriu sua bocarra, emitindo um bum sônico de rugido.
Não havia para onde correr. A criatura estava montada sobre o prédio, preparada para atacar o que havia se tornado sua lancheira. Não havia lugar algum para se abrigar.
Nenhuma defesa possível a tentar.
— Vá, – Assail disse ao Irmão quando aqueles grandes olhos reptilianos se estreitaram e o focinho explodiu um bafo tão quente e fétido quanto um Lixão no verão.
— Me dê sua arma. Eu vou distraí-lo.
— Não vou te deixar.
— Não sou um dos seus irmãos.
— Você nos deu a localização deles. Entregou a cabeça do Fore-lesser. Não vou te largar aqui, seu bundão.
— Quanta educação. E esses elogios. Pare.
Quando a fera soltou outro rugido e jogou a cabeça como se preparada para brincar um pouco com eles antes de devorá-los, Assail pensou em seu negócio de drogas...
Seu vício em cocaína...
A fêmea humana por quem tinha se apaixonado e a quem precisou deixar ir embora. Por que ela não conseguiria lidar com seu estilo de vida e ele estava muito preso
a isso para parar, mesmo por ela.
Ele meneou a cabeça para o Irmão.
— Não, não valho a pena salvar. Dá a porra do fora daqui.

 

CONTINUA

Nada era como costumava ser para a Irmandade da Adaga Negra. Depois de evitar a guerra com os Sombras, alianças mudaram e linhas foram desenhadas. Os assassinos da Sociedade Lesser estão mais fortes do que nunca, aproveitando-se da fraqueza humana para adquirir mais dinheiro, mais armas, mais poder. Mas enquanto a Irmandade se prepara para um ataque total pra cima deles, um dos seus luta uma batalha dentro de si mesmo...
Para Rhage, o Irmão com o maior dos apetites, mas também o maior coração, a vida era suposta ser perfeita — ou pelo menos, perfeitamente agradável. Mary, sua adorada shellan, está ao seu lado, e seu Rei e seus Irmãos estão prosperando. Mas Rhage não pode entender — ou controlar — o pânico e insegurança que o afligem...
E isso o aterroriza — como também a distância entre ele e sua companheira. Depois de sofrer um ferimento mortal em batalha, Rhage deve reavaliar suas prioridades — e a resposta, quando se trata dele, balança seu mundo... E o de Mary. Mas Mary está em uma jornada própria, uma que vai fazê-los ou se aproximar mais ou causar uma divisão que não vai ter como recuperar...


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Capítulo UM
INTERNATO PARA GAROTAS BROWNSWICK, CALDWELL, NOVA YORK
Formigamento por seu corpo inteiro.
Ao transferir seu peso de uma bota para outra, Rhage sentiu como se sua corrente sanguínea estivesse começando a fervilhar e as bolhas o pinicassem por baixo de
cada centímetro quadrado de sua carne. E isto não era nem o começo. Fibras aleatórias de músculos despertaram ao longo de todo o seu corpo, os espasmos fazendo seus
dedos tremerem, os joelhos bambearem e os ombros tensos, como se a ponto de um ataque com a força e foco de uma raquete de tênis ao atingir uma bola.
Pela milésima vez desde que tinha se materializado para aquela posição, ele varreu com o olhar o terreno mal cuidado com mato excessivamente grande à sua frente.
Antigamente, quando o internato para garotas Bronswick ainda era uma instituição em funcionamento, sem dúvida o terreno à sua frente devia ser um gramado mantido
bem cortado durante a primavera e verão, no outono diariamente limpo de folhas e belamente coberto de neve no inverno, digno de um livro de histórias infantis. Agora,
como um campo de futebol saído do inferno, cravejado e emaranhado por arbustos retorcidos, capazes de mais do que somente danos estéticos à região testicular de
um cara; mudas que pareciam filhas adotivas, feias e disformes, de carvalhos e bordos mais maduros e o mato marrom crescido de fins de outubro, eram capazes de te
fazer tropeçar como um filho da puta se tentasse correr.
Da mesma forma, o prédio que fora construído para abrigar e prover espaço de convivência e instrução aos frutos de uma elite privilegiada, envelheceram mal, carentes
de manutenção regular: janelas quebradas, portas apodrecidas, persianas destruídas e oscilando ao vento frio, como se os fantasmas fossem incapazes de se decidirem
se desejavam ser vistos ou somente ouvidos.
Era o campus do filme Sociedade dos Poetas Mortos. Supondo que todo mundo tenha feito as malas depois da gravação do filme em 1988, picado a mula e nunca mais ninguém
tenha modificado uma porra de coisa por lá desde então.
Mas o prédio não estava vazio.
Ao respirar fundo, o reflexo de deglutição de Rhage executou uma porção de tropeços no fundo de sua garganta. Tantos lessers se escondiam nos cômodos abandonados
que era impossível isolar individualmente os cheiros que golpeavam suas narinas. Cristo, era como enfiar a cara dentro um balde cheio de restos orgânicos e inalar
como se estivesse prestes a acabar todo o oxigênio do mundo.
Supondo que alguém tivesse adicionado talco de bebê ao costumeiro resto diário de cabeças e tripas de peixe.
Para dar aquele toque final, sacou?
Quando sua pele foi atacada por uma nova rodada de arrepios, ele disse à sua maldição para sossegar o facho, puta merda, que ele logo ia liberá-la. Não ia nem tentar
impedir que a maldita saísse – não que tentar puxar o freio funcionasse em qualquer circunstância ou de qualquer forma – mesmo que dar à fera liberdade total nem
sempre fosse uma coisa boa, esta noite ela seria uma vantagem imensa. A Irmandade da Adaga Negra estava a ponto de encarar quantos lessers? Cinquenta? Cento e cinquenta?
Havia muito a fazer, mesmo para eles – então, sim, seu pequeno... Presente... Da Virgem Escriba seria muito útil.
Por falar em chamadas de longa distância... Há mais de um século, a mãe da raça havia lhe dado sua própria bomba relógio, um programa de melhorias tão oneroso, tão
desagradável, tão incapacitante, que era de fato capaz de trazê-lo da beira da babaquice total, de volta à normalidade. Por cortesia do dragão, a menos que controlasse
seus níveis de energia e moderasse suas emoções, o inferno recaía sobre a terra.
Literalmente.
Sim, ao longo do último século, ele tinha se tornado altamente bem-sucedido em garantir que a coisa não comesse seus amigos ou que os fizesse aparecer no noticiário
noturno com a manchete “Jurassic Park existe de verdade”. Mas com o que ele e seus irmãos estavam prestes a enfrentar – e devido ao isolamento deste campus? Se tivessem
sorte, o grande bastardo de escamas roxas com os dentes de serra elétrica e barriga sem fundo conseguiria seu banquete. Mas só teria acesso a uma dieta balanceada,
baseada somente em lessers.
Sem petiscar os Irmãos, por favor. E sem rocamboles ou tortas de humanos, muito, muito obrigado.
Este último, mais por discrição do que afeição. Era notório que aqueles ratos sem rabo não desgrudavam de duas coisas: meia dúzia de seus amiguinhos, noturnamente
co-dependentes e evolucionariamente inferiores, e seus malditos telefones celulares. Cara, o YouTube podia ser um pé no saco quando só o que se queria era manter
por baixo dos panos uma guerra contra os mortos. Por quase dois mil anos, a luta dos vampiros contra a Sociedade Lessening não tinha sido problema de mais ninguém
além dos combatentes envolvidos, e o fato de que os humanos não conseguiam se ater a cuidar de seus próprios assuntos, tipo suas competências de arruinar o meio-ambiente
e dizer uns aos outros o que pensar e dizer, era somente uma das razões para odiá-los.
Internet do caralho.
Avaliando os arredores a fim de evitar soltar a fera cedo demais, Rhage fixou o olhar em um macho dando cobertura a uma distância de mais ou menos seis metros. Assail,
filho de Foda-se-lá-quem, usava preto dos pés à cabeça como alguém de luto, seus cabelos, escuros como os do Conde Drácula, não requeriam camuflagem adicional, seu
rosto pecaminosamente belo estava tão contraído pela ansiedade de matar que era preciso dar um crédito ao cara. Ele estava sendo de muita ajuda. E tinha mudado completamente
de direção. O traficante de drogas tinha se juntado à Irmandade, cumprindo a promessa de cortar relações comerciais com a Sociedade Lessening ao depositar a cabeça
do Fore-lesser dentro de uma caixa, aos pés de Wrath.
E também revelou este local que os assassinos vinham usando como quartel general.
E era por isto que todo mundo tinha acabado aqui, enterrado até a cintura em mato alto, esperando que a contagem regressiva de seus relógios V-sincronizados chegasse
logo a 00h00min.
Este ataque não era coisa pequena, era uma abordagem de grosso calibre ao inimigo. Depois de algumas noites – e dias, graças a Lassiter, também conhecido por 00-CUZÃO,
que havia feito reconhecimento do local durante as horas de sol – o ataque foi adequadamente coordenado, ensaiado e preparado para ser posto em prática. Todos os
guerreiros estavam aqui: Z e Phury, Butch e V, Tohr e John Mattew, Qhuinn e Blay, além de Assail e seus dois primos, Presas I e II.
Quem ligava para seus nomes, contanto que aparecessem armados e com muita munição?
A equipe médica da Irmandade também estava na área preparada para agir, com Manny em sua unidade cirúrgica móvel a um quilômetro e meio de distância, e Jane e Ehlena
em uma das vans, num raio de três quilômetros.
Rhage verificou o relógio. Seis minutos e contando.
Quando seu olho esquerdo começou a tremelicar, praguejou. Como caralhos conseguiria esperar por tanto tempo?
Expondo as presas, exalou pelo nariz, soprando correntes gêmeas de respiração condensada muito parecidas com as que antecedem o ataque de um touro.
Cristo, não conseguia se lembrar da última vez em que esteve tão tenso. E não queria pensar no motivo. De fato, vinha evitando a coisa toda do por que há quanto
tempo?
Bem, desde que ele e Mary chegaram àquela fase estranha e ele tinha começado a sentir...
— Rhage.
Seu nome foi sussurrado tão baixinho que ele se voltou por não saber ao certo se era o seu subconsciente decidindo começar um papo com ele. Não, era Vishous – pela
expressão do irmão, Rhage teria preferido ter desenvolvido dupla personalidade. Aqueles olhos diamantinos flamejavam uma luz sombria. E aquelas tatuagens ao redor
das têmporas também não ajudavam.
O cavanhaque era neutro – a menos que o avaliasse como quesito de estilo. Neste caso, o filho da puta era uma caricatura de proporções épicas.
Rhage meneou a cabeça. — Você não devia estar na sua posição...
— Tive uma visão sobre esta noite.
Ah, inferno, não, Rhage pensou. Não, não faça isto comigo agora, mano.
Virando as costas, murmurou. — Me poupe dessa coisa de Vincent Price, está bem? Ou está ensaiando para ser o cara que faz as narrações dos trailers de filmes...?
— Rhage.
— ... Pois você leva jeito pra isto. Em um mundo... Onde pessoas devem... Calar a boca e fazer seu serviço...
— Rhage.
Ao ver que ele não ia se voltar para olhá-lo, V se aproximou e o encarou, aqueles olhos pálidos pra cacete, um par de explosões nucleares gêmeas, daquelas que levantam
um nuvem em forma de cogumelo, para frente e para trás. — Quero que vá pra casa. Agora.
Rhage abriu a boca. Fechou. Abriu de novo – e teve de lembrar a si mesmo de manter a voz baixa.
— Ouça, não é uma boa hora para essa merda psíquica...
O Irmão agarrou seu braço e apertou. — Vá pra casa. Não estou brincando.
Terror gélido varreu as veias de Rhage, abaixando sua temperatura corporal... E ainda assim conseguiu menear a cabeça novamente.
— Foda-se, Vishous. Sério mesmo!
Ele não tinha o menor interesse de pôr mais nada daquela magia da Virgem Escriba em cheque. Ele não ia...
— Você vai morrer esta noite, porra.
Quando o coração de Rhage falhou uma batida, ele olhou para aquele rosto que conhecia a tantos anos traçando aquelas tatuagens, os lábios comprimidos, as cerradas
sobrancelhas escuras... E a inteligência radiante geralmente expressada através de um filtro de sarcasmo, afiado como a espada de um samurai.
— Sua mãe me deu a palavra dela. – Disse Rhage. Espere, estava realmente falando sobre bater as botas? — Ela me prometeu que quando eu morresse Mary iria comigo
para o Fade. Sua mãe disse...
— Foda-se a minha mãe. Vá pra casa.
Rhage desviou o olhar porque foi necessário. Era isto ou sua cabeça explodiria. — Não vou abandonar os irmãos. Não vai acontecer. Primeiro, você pode estar errado.
Sim, e quando foi a última vez que aquilo aconteceu? No século dezoito? Dezessete?
Nunca?
Ele falou para V.
— Segundo, não vou fugir correndo do Fade. Se começar a pensar assim vou morrer, mesmo com a arma na mão. – Ele ergueu a mão até a altura daquele cavanhaque para
evitar que o irmão o interrompesse. — E pra terminar? Se eu não lutar esta noite, não vou conseguir sobreviver ao dia de amanhã, trancado na mansão... Não sem meu
amiguinho roxo sair para o café da manhã, almoço e jantar, sacou?
Bem, havia uma quarta coisa. E era racional... Ruim, tão ruim que não conseguia encará-la por mais do que a fração de segundo necessária para ela surgir em sua mente.
— Rhage...
— Nada vai me acontecer. Está tudo sob controle.
— Não, não está – sibilou V.
— Está bem. – Rhage rosnou, endireitando o corpo. — E daí se eu morrer? Sua mãe deu à minha Mary a graça final. Se eu for para o Fade, Mary vai me encontrar lá.
Não tenho de me preocupar de me separar dela. Ela e eu ficaremos perfeitamente bem. Quem vai se importar de verdade se eu bater as botas?
V endireitou-se também.
— Você não acha que os Irmãos ligam? Sério? Muito obrigado, seu cuzão filho da puta.
Rhage verificou o relógio. Faltavam dois minutos.
Bem pareciam dois mil anos.
— E você confia em minha mãe, – Rosnou V — em algo tão importante. Nunca pensei que fosse tão ingênuo.
— Ela conseguiu me dar a porra de um alter ego T. Rex! Isto inspira uma credibilidade boa pra cacete.
De repente, sons de inúmeros pássaros soaram na escuridão que os rodeava. Qualquer um acharia que devia ser somente um bando de corujas noturnas piando ao luar.
Maldição, os dois estavam gritando.
— Não importa, V. – Sussurrou ele. — Você é inteligente pra caralho, preocupe-se com sua própria vida.
Seu último pensamento consciente antes do cérebro entrar em modo de A Hora Mais Escura e nada mais se registrar além da agressividade, foi sua Mary.
Ele visualizou a última vez em que estiveram sozinhos.
Era um ritual dele antes de enfrentar o inimigo, um talismã mental que esfregava em busca de boa sorte, e esta noite visualizou o modo como ela tinha ficado em pé
em frente ao espelho do quarto deles, aquele sobre a mesinha de apoio onde mantinham os relógios e chaves, as joias dela e os pirulitos dele, e os celulares.
Ela estava na ponta dos pés debruçada sobre a mesa, tentando colocar um brinco de pérola no lóbulo da orelha sem conseguir encontrar o furo. Com a cabeça virada
para o lado, seus cabelos castanhos escuros flutuavam sobre o ombro e o faziam querer enfiar a cara naquelas ondas recém-lavadas. E isto não era nem metade do que
o impressionava nela. O ângulo reto de seu maxilar capturava e refletia a luz da arandela na parede, e a blusa de seda cor creme, que descortinava sobre seus seios,
enfiada dentro da cintura estreita, e as calças moldavam seu corpo magro. Nenhuma maquiagem. Sem perfume.
Seria como tentar retocar a Mona Lisa ou atingir um botão de rosa com um jato de Bom Ar.
Havia centenas de milhares de pequenos detalhes nos atributos físicos de sua companheira, e nenhuma frase, nem mesmo um livro inteiro, passaria perto de descrever
sua presença.
Ela era o relógio em seu pulso, o assado quando tinha fome, o jarro de limonada quando tinha sede. Ela era sua igreja e seu coral, a montanha de sua escalada, a
biblioteca de sua curiosidade e cada nascer ou por do sol que já houve ou jamais haverá. Com um olhar ou a sílaba de uma palavra, ela tinha o poder de transformar
seu humor, levando-o às nuvens, mesmo com os pés firmes no chão. Com um único toque, ela conseguia acorrentar seu dragão interior ou fazê-lo gozar sem ele nem mesmo
estar de pau duro. Ela era todo o poder do universo compactado em uma criatura viva, o milagre que lhe tinha sido concedido, apesar dele há longo tempo não merecer
nada além de maldições.
Mary Madonna Luce era a virgem que Vishous dissera que estava em seu caminho – e era mais do que suficiente para transformá-lo em um vampiro temente a Deus.
Por falar nisto...
Rhage avançou sem esperar o sinal de “Já” de sua equipe. Correndo pelo campo, trazia as duas armas erguidas à sua frente e combustível Premium aditivado percorrendo
os músculos de suas pernas. E não, ele não parou para ouvir os irmãos praguejarem de frustração quando rompeu a cobertura e partiu cedo demais para o ataque.
Estava acostumado aos garotos emputecidos com ele.
Era muito mais difícil lidar com seus próprios seus demônios do que os irmãos.
LUGAR SEGURO, ESCRITÓRIO DA MARY
Ao desligar o telefone, Mary Madonna Luce manteve a mão sobre a superfície lisa do receptor. Como muitos dos equipamentos e móveis do Lugar Seguro, ele tinha mais
de uma década de uso, era um AT&T doado por alguma companhia de seguro ou talvez de uma corretora imobiliária, depois de ser trocado por algo mais moderno. O mesmo
com a mesa. A cadeira. Até o tapete sob seus pés. No único abrigo contra violência doméstica contra fêmeas e crianças da raça, cada centavo que saía das generosas
doações do Rei era gasto com o apoio, tratamento e reabilitação das pessoas que precisavam.
As vítimas eram admitidas gratuitamente. E ficavam na casa grande e cheia de cômodos por quanto tempo fosse necessário.
A folha de pagamento era, é claro, a maior despesa... E com notícias como a que tinha acabado de chegar pelo telefone, Mary ficava verdadeiramente agradecida pelas
prioridades de Marissa.
— Foda-se, morte. – Sussurrou ela. — Foda-se mesmo, muito, muito mesmo.
O ruído que sua cadeira emitiu quando se inclinou para trás lhe causou um estremecimento, mesmo acostumada a ele.
Olhando para o teto, sentiu uma vontade arrebatadora de entrar em ação, mas a primeira regra de qualquer terapeuta era que era preciso controlar suas próprias emoções.
Despreparo e agitação não fazia bem algum aos pacientes, e contaminar uma situação já estressante com drama pessoal por parte do profissional era totalmente inaceitável.
Se houvesse tempo, procuraria um dos outros assistentes em busca de ajuda, para esclarecer o curso de suas ações com questionamentos técnicos a fim de sentir-se
novamente centrada e permanentemente composta. Dado o rumo dos acontecimentos, tudo o que tinha era tempo para uma das respirações profundas, típicas de Rhage.
Não, não do tipo sexual.
Mais do tipo ioga, que o fazia inflar os pulmões em três puxadas de ar, prender o oxigênio e então soltá-lo, junto com a tensão em seus músculos.
Ou tentar liberar a dita tensão.
Está bem, isto não estava ajudando em nada.
Mary levantou-se e teve de se contentar com dois “quase lá” no quesito compostura: um, ajeitou a blusa de seda e correu os dedos pelos cabelos, que estava deixando
crescer; e dois, recobriu suas feições com uma máscara digna de Halloween, congelando tudo em um semblante de preocupação, calorosa e sem nenhuma indicação de estar
surtando com seu próprio trauma passado.
Ao sair para o corredor do segundo andar, o cheiro de chocolate e açúcar de confeiteiro, manteiga e farinha anunciava que a Noite dos Biscoitos estava a pleno vapor
– e por um momento insano, sentiu vontade de abrir todas as janelas para deixar o ar gelado de outubro levar aquele cheiro para fora da casa.
O contraste entre aquele conforto doméstico e a bomba que estava a ponto jogar parecia desrespeitoso, na melhor das hipóteses, uma parte a mais da tragédia, na pior.
O Lugar Seguro era uma construção de três andares da virada do século XX, apenas teto e quatro paredes, com toda a graça e distinção de um saco de pão. O que ele
tinha na verdade eram quartos e banheiros em abundância, uma cozinha funcional e privacidade suficiente para que o mundo humano nunca tivesse a menor indicação de
que os vampiros usavam a coisa à sua revelia. E então veio a expansão. Depois da morte da Wellsie, Tohr tinha feito uma doação em seu nome, o Anexo Wellesandra foi
construído nos fundos por uma equipe vampira de construção. Agora eles contavam com uma sala de convivência, uma segunda cozinha, grande o bastante para que todo
mundo se sentasse junto para comer, e mais quatro suítes para as adicionais fêmeas e seus filhos.
Marissa dirigia a instalação com coração compassivo e mentalidade fantasticamente logística, e com sete conselheiros, inclusive Mary, eles executavam um serviço
útil e cheio de significado.
Isto sim, às vezes partia seu coração ao meio.
A porta para o sótão não emitiu ruído algum quando Mary a abriu porque ela mesma tinha passado óleo nas dobradiças há algumas noites. As escadas, no entanto, rangeram
ruidosamente à sua subida, as velhas placas de madeira reclamando e guinchando, por mais que ela tentasse pisar o mais leve possível.
Era impossível não sentir-se um tipo de Mensageira da Morte.
No andar acima, a luz amarela das luminárias de latão no teto destacavam os tons avermelhados, tanto dos centenários lambris sem pintura quanto da passadeira trançada
que percorria o estreito corredor. No final dele, havia uma abertura oval e a iluminação, em tons rosados da luz exterior de segurança acima, derramava para dentro
e era dividida em quadrantes pelas divisões de seus painéis.
Das seis suítes, cinco portas estavam abertas.
Ela se dirigiu até a que estava fechada e bateu. Ao ouvir um suave “Olá?” entreabriu a porta e enfiou a cabeça.
A garotinha sentada em uma das duas camas estava penteando os cabelos de uma boneca com uma escova a qual faltavam várias cerdas. Seus cabelos longos e castanhos
estavam presos para trás em um rabo de cavalo, e o vestido folgado era feito a mão, de um tecido azulado muito gasto, mas com costuras feitas para durar. Seus sapatos
estavam gastos, ainda que amarrados cuidadosamente.
Ela parecia muito pequena no que já não era um lugar muito grande.
Abandonada contra sua vontade.
— Bitty?
Levou um momento até os olhos castanhos claros se erguerem.
— Ela não está bem, está?
Mary engoliu em seco.
— Não, querida. Sua mahmen não está bem.
— É hora de me despedir dela?
Depois de um momento, Mary sussurrou.
— Sim... Receio que sim.
Capítulo DOIS
— Isso só pode ser brincadeira, porra!
Quando viu o massivo corpo do Hollywood e a bosta da sua cabeça estúpida avançar em direção aos alojamentos, Vishous quase correu atrás só para poder acabar com
a raça do irmão. Mas nããããããããããão.
Não era possível estender a mão e catar uma bala depois que o gatilho era apertado.
Mesmo que se estivesse só tentando salvar um idiota da sepultura.
V assoviou alto, mas não era como se o resto dos guerreiros não tivessem visto também as costas do cretino distanciarem-se como um morcego fugido do inferno.
Membros da Irmandade e os outros machos explodiram fora de suas posições por trás das árvores e construções, assumindo formação de asa atrás de Rhage, de armas e
adagas empunhadas. Gritos do inimigo anunciaram que o ataque foi percebido quase imediatamente, e eles chegaram a somente meia distância do objetivo quando os lessers
começaram a jorrar pelas portas, feito vespas de uma colméia.
Muita aglomeração? Pops ocos espocavam quando Rhage descarregava sua arma por todo o canto atingindo assassinos na cara, suas balas de grosso calibre explodindo
a parte de trás daqueles crânios e derrubando os mortos-vivos em emaranhados de braços e pernas irrequietos. O que era bom – mas possivelmente não iria durar, já
que os assassinos tentavam se aproximar do cara por trás, a fim de isolá-lo e criar uma segunda linha de frente contra o resto dos irmãos.
Obrigado, Sr. Apressadinho e sua ejaculação precoce, por arruinar o plano sobre o qual se debruçaram por noites a fio.
Instalou-se o caos total, o que era de se esperar, ao contrário da ação de Rhage: do mesmo modo que era possível garantir que cada combate corporal iria eventualmente
acabar no chão, era possível garantir que mesmo o ataque melhor planejado iria, depois de um tempo, cair na área do: “Puta merda” e “Cagou a porra toda”. Se tivesse
sorte, aquela inevitabilidade levaria um tempo para lhe despencar na cabeça, e até que acontecesse, o inimigo teria baixas incapacitantes.
Mas não com Hollywood por perto.
Oh, e a propósito, quando alguém diz que você vai morrer esta noite, que tal não correr direto para uma quantidade de inimigos que beirava os três dígitos? Seu filho
da puta de merda.
— Eu estava tentando salvá-lo! – V gritou em meio à ação. Só por que agora ele podia, já que não precisavam mais manter suas presenças ocultas.
Rhage era tão impulsivo. E sabendo disto, V devia ter confrontado o idiota lá na mansão antes de saírem, mas esteve distraído demais cuidando de suas próprias coisas
para se concentrar na visão. Não foi até chegarem ao campus abandonado e ele piscar algumas vezes... Que percebeu, sim, era ali que aconteceria para Rhage. Esta
noite. Neste campo.
Não revelar seria como colocar ele mesmo uma bala no cara.
É claro, dizer algo tinha funcionado tão bem.
— Foda-se, Hollywood! – Gritou ele. — Eu vou te pegar!
Pois ele ia tirar aquele puto daquele lugar nem que fosse a última coisa que faria.
V não atirou até estar a cerca de três metros de distância do primeiro alvo – era isto ou correr o risco de atingir um dos irmãos ou outro aliado. O lesser que mirou
tinha cabelos e olhos escuros e aquela agressão típica de um urso pardo: ataque direto com uma porção de cuspidelas. Uma bala acertou no olho direito e o bastardo
caiu.
Não dava tempo de apunhalar a coisa de volta ao Ômega. Vishous passou por cima do pedaço de carne que ainda se remexia sem sair do lugar e mirou o próximo. Identificando
um assassino louro a cerca de quatro metros e meio de distância à esquerda, rapidamente avaliou a periferia para ter certeza de que a Irmandade não estava sendo
destroçada. Então, usando o dedo coberto pela luva, escolheu o cara que parecia o Rod Stewart dos anos 80.
De três ao infinito, V atingiu tudo o que parecia seguro derrubar, certificando-se de não acertar seus aliados. Uns duzentos metros de corrida estilo videogame mais
tarde, alcançou tanto cobertura quanto perigo: o primeiro dos alojamentos, que o plano original era emboscar. A maldita coisa era uma concha vazia com muitos locais
para se esconder que somente um idiota acharia estarem vazias, e ele teve cuidado em monitorar seus arredores ao caminhar cuidadosamente com as costas voltadas contra
a parede, abaixando-se debaixo de janelas, passando por cima de arbustos baixos.
O fedor de algodão doce/carne podre dos lessers o golpeava por todos os lados, espiralando ao redor devido ao vento gelado que misturava tudo em uma salada de guerra
com os ecos de disparos de armas e os gritos do inimigo. A raiva que fervilhava em suas entranhas o fez avançar, ao mesmo tempo em que o mantinha focado, enquanto
tentava derrubar alvos sem ser atingido.
Assim que alcançasse Rhage, derrubaria o maldito rei da beleza no chão.
Supondo que o destino não derrubasse o filho da puta primeiro.
O lado bom era que, com o Fore-lesser fora da jogada, a resposta da Sociedade Lessening não parecia mais coordenada do que o ataque da Irmandade, e o fato do inimigo
estar pobremente armado e pateticamente destreinado era outra vantagem. Parecia haver uma média de cinco lessers armados para cada irmão, e uma média de um para
dez guerreiros competentes – e dado os números? Aquilo bem que poderia ser o que salvaria seus traseiros.
Esquerda, pop! Direita, pop! Esquivar, cair e rolar. Levantar-se e continuar a correr. Mais dois assassinos derrubados – obrigado, Assail, seu filhodaputa maluco
– pop! Bem na sua frente.
A magia aconteceu entre cerca de cinco minutos e cinquenta mil anos de luta. Sem aviso, sentiu-se separar-se de seu corpo, desfazendo-se da carne que funcionava
de forma tão rija e com tanta eficiência, seu espírito flutuando acima da adrenalina que incendiava seus braços e pernas, sua essência testemunhando-o cobrir distâncias
e impulsionando-o a frente de uma posição acima de seu ombro direito.
Era a zona, geralmente algo que o arrebatava assim que começava a lutar. Mas com Rhage sob sua pele, grudado em seu traseiro e fodendo sua cabeça, a merda estava
atrasada para a festa.
E foi por causa dessa sua perspectiva acima do quadro, que notou primeiro o dilema que se armava.
Às vezes o contra-intuitivo, o QUEPORRAÉESSA, o agir contra a corrente, era tão importante quanto todas as coisas que se esperava ver em uma batalha.
Tipo, por exemplo, três figuras correndo lateralmente ao longo daquele show de horrores rumo à saída. É claro, podiam ser lessers que amarelaram e fugiam — exceto
por um detalhe: o sangue do Ômega em seus corpos era um puta rastreador GPS, e ter de contar para aquele tipo de chefe, que tinha amarelado e picado a mula de uma
briga daquelas, seria garantia do tipo de tortura que faria o inferno parecer um passeio no campo.
Maldição, não podia permitir que eles se fossem. Não quando poderiam acabar chamando os tiras e adicionando outra camada de merda jogada naquele ventilador.
Se é que aquilo já não tinha sido feito.
Praguejando, Vishous foi atrás dos três desertores, desmaterializando-se para a área a frente onde o trio estava se dirigindo. Ao retomar forma, descobriu que eram
malditos humanos, mesmo antes de conseguir ver que aquele que estava por último corria de costas com o que, sem dúvida, era uma porra da Apple, um pedaço de merda
iConformista, apontando e mirando, evidentemente gravando um vídeo.
Ele positivamente odiava qualquer coisa com o símbolo da Macintosh.
V pulou, interceptando o caminho do cara, o que, é claro, não foi notado pelo J.J. Abrams, por que, olá, ele estava ocupado demais filmando tudo.
Vishous meteu o pé, e enquanto o humano obedecia à lei da gravidade, o celular voou e V pegou a coisa, enfiando-a no bolso da jaqueta.
O próximo passo foi pisar no esterno do cara e enfiar a arma na sua cara. Baixando o olhar para a expressão de “Puta Merda” e o choramingo gaguejado que o cara soltava,
V precisou de todo seu autocontrole para não rasgar a garganta dele, e então ir para cima dos outros dois que continuavam a correr, tal qual Jason Voorhees. Ele
estava acima disto com humanos. Tinha trabalho de verdade pra fazer, mas nããããão, ele estava de novo limpando a bunda destes ratos sem rabo para que o resto deles
não ficassem bravinhos por saberem que vampiros existiam entre eles.
— N-n-n-n-ão me m-m-m-m-machuque – gaguejou o cara. Junto com o cheiro de urina quando o cara mijou nas calças.
— Você é patético pra caralho.
Praguejando de novo, V acessou rapidamente a mente do cara para ter certeza de que não tinham chamado a polícia – a resposta foi “não” – antes de apagar a memória
do garoto, do momento em que tinha se encontrado com os amigos para fumar maconha até quando a viagem foi interrompida pelo inferno desenfreado.
— Você teve uma viagem ruim, seu cuzão. – Murmurou V. — Viagem ruim. Isto tudo é só uma porra de uma viagem ruim. Agora corra de volta para o papai e a mamãe.
Como o bom brinquedinho programado que agora era, o garoto levantou-se sobre seus antiquados tênis Converse e disparou atrás dos amigos, com uma expressão de confusão
total no rosto enrubescido.
Vishous deu outro pulo à frente e interceptou Frick e Frack. E, quem diria, a mera presença de V se materializando do nada à frente deles foi suficiente para deixá-los
em pânico – os dois congelaram no lugar como cães acorrentados ficando sem espaço na corrente, com um puxão para trás, esvoaçando suas parkas combinando.
— Vocês cuzões estão sempre no lugar errado na hora errada.
Mentalmente apagou suas memórias e os revistou, esvaziando seus bolsos ao mesmo tempo em que os cérebros – então os mandou retomar a fuga, rezando para que um ou
outro não tivesse alguma doença cardíaca não diagnosticada que subitamente disparasse sob tensão, matando-o instantaneamente.
Mas até aí, V era um bastardo malvado, então tudo bem.
Não havia tempo a perder. Voltou a tentar alcançar Rhage, sacando novamente suas armas e buscando uma maneira mais eficiente de chegar até o filho da puta. Que pena
que desmaterializar-se direto no meio do entrevero estava fora de cogitação, mas merda, tinha arma demais apontando para cada direção naquele quadrante. Ao menos
a necessária cobertura veio rápido, primeiro em uma série de árvores de bordo e então na forma de um prédio que devia ser ainda outro alojamento.
Batendo as costas contra os tijolos frios e duros, seus ouvidos se aguçaram ante o som de sua respiração pesada. Os disparos mais intensos estavam à sua esquerda,
acima e à frente, e rapidamente trocou ambos os cartuchos, mesmo que ainda houvesse três balas em um e duas no outro. Recarregado, correu na direção da quina do
prédio e espiou...
O assassino atirou na última janela sob a qual ele estava e, não fosse o ruído do caixilho, V teria sido ferido. Foi o instinto, ao invés do treinamento, que fez
seu braço se erguer e apontar para a lateral antes de ter consciência de estar se movendo, e o dedo indicador disparar meio quilo de chumbo bem nas fuças do fodido,
fazendo nuvens de sangue preto explodir da parte de trás do crânio como um vidro de nanquim caindo de uma grande altura.
Infelizmente, uma contração autônoma do aperto do assassino na arma automática que trazia na mão, causou o disparo de algumas balas e a ardência na lateral do quadril
de V mostrou que ele foi atingido, pelo menos uma vez. Mas melhor ali do que em outra parte do corpo...
Um segundo assassino surgiu da esquina e V o atingiu na garganta com a arma da mão esquerda. Aquele parecia estar desarmado, nada digno de nota, caiu na grama alta
quando a coisa agarrou a frente do pescoço para tentar conter o jorro negro.
Não havia tempo para recolher nenhuma arma ou apunhalá-los de volta ao Ômega.
À frente, Rhage estava com problemas.
No coração do campus, na área retangular formada por prédios erguidos com uns cinco acres de distância, Rhage estava no centro da atenção de uma galera da primeira
fila, composta por pelo menos vinte assassinos que o rodeavam.
— Jesus Cristo. – Murmurou V.
Não havia tempo para elaborar uma estratégia. Dã. E ninguém mais viria ajudar Hollywood. Os outros irmãos e guerreiros estavam muito ocupados, o ataque tendo se
dissipado em meia dúzia de escaramuças se desenvolvendo em diferentes quadrantes.
Não havia ninguém disponível em uma situação que bem necessitava de três ou quatro anjos salvadores. Ao invés de um que tinha um ferimento na coxa e um rancor do
tamanho do Canadá.
Maldição, ele estava acostumado a estar sempre certo, mas às vezes isto era um pé no saco.
Vishous avançou e se concentrou na lateral da briga, escolhendo assassinos enquanto tentava dar a seu irmão uma rota de escape viável. Mas Rhage... Porra, Rhage.
Ele estava, de alguma forma, totalmente imerso naquilo. Mesmo que a matemática não chegasse a resultado algum além de caixão, o maldito imbecil era de uma beleza
mortal ao lentamente girar, esvaziando as armas nos que estavam mais perto, recarregando sua automática sem perder um movimento, criando um anel de corpos que se
contorciam, meio mortos, meio vivos, como se estivesse no olho de um furacão destruidor.
A única coisa que não parecia estar sob controle? Seu belo rosto, digno de uma história infantil, estava contorcido no esgar de um monstro, a raiva assassina dentro
dele nem ao menos parcialmente contida. E isto teria sido quase aceitável.
Não fosse o fato de se esperar profissionalismo por parte dele.
Aquele tipo de emoção assassina era um comportamento amador, o tipo de coisa que te cegava ao invés de te manter focado, te enfraquecia ao invés de te tornar invencível.
Vishous trabalhou o mais rápido que pôde mirando em peitos, entranhas, cabeças, até o fedor saturar o ar livre, mesmo com o vento soprando em direção oposta. Mas
tinha de compensar o campo de tiro, sempre circular, de Rhage, tentando ficar ele próprio fora de alcance, por que tinha certeza de que o irmão não conseguiria diferenciá-lo
de seus alvos.
E esta era a porra do problema quando você entrava despreparado na luta.
E então acabou.
Mais ou menos.
Mesmo depois daqueles vinte ou vinte e cinco lessers estarem caídos no chão, Rhage ainda girava e continuava a atirar, um carrossel mortal sem passageiros em seus
cavalos demoníacos, estúpidos demais para saberem onde seu próprio botão de desligar ficar.
— Rhage! – V olhou ao redor mantendo as armas apontadas, mas sem atirar. — Seu maldito idiota! Pare!
Pop! Pop! Pop-pop!
O cano de Hollywood continuou a tossir flashes de luz mesmo que não houvesse mais alvos – exceto outros guerreiros à distância, fora de alcance naquele momento.
Mas não era garantido que permanecessem assim.
Vishous se aproximou, passando por cima dos corpos que se agitavam no chão, mantendo-se às costas de Rhage, que ainda girava.
— Rhage!
A tentação de atirar na bunda do cara foi tão forte, que sua mão direita chegou a abaixar o cano até à altura do traseiro. Mas era só uma fantasia. Dar a Hollywood
uma injeção de chumbo só dispararia a fera quando o próprio V estava ao alcance para virar seu aperitivo.
— Rhage!
Algo deve ter chegado até o irmão por que a barragem de tiros inúteis diminuiu... E então parou, deixando Rhage arfando, curvando-se de forma neutra.
Estavam tão a descoberto que ambos bem podiam ter setas de neon apontando para suas cabeças.
— Você vai sair daqui. – Rosnou V. — Está brincando comigo, porra, nessa merda...
Foi quando aconteceu.
Em um segundo, estava contornando para ficar de frente para o irmão... E no seguinte ele viu, pelo canto dos olhos, um dos lessers não-suficientemente-mortos erguer
um braço instável... Com uma arma anexada à extremidade. Quando a bala explodiu para fora daquele cano, o cérebro de V fez os cálculos de distância e ângulo tão
rápido quanto o vôo da bala de chumbo.
Direto para o peito de Rhage.
Bem no meio do peito de Rhage – por que, olá, era o maior alvo, tirando a porra da porta do alojamento do campus.
— Não! – Gritou V ao pular e se interpor no caminho.
É, pois ele morrer no lugar de Rhage seria um resultado bem melhor, né? Perder/perder, de ambos os jeitos.
Não houve dor alguma em seu vôo, nem o som ressoante da entrada de uma bala na lateral de seu corpo, seu quadril, sua outra coxa.
Por que a maldita coisa já tinha encontrado outro lar.
Rhage soltou um grunhido e suas duas armas apontaram para o céu, aquela típica compressão autônoma nos gatilhos naquelas mãos esvaziaram os cartuchos: bang, bang,
bang, bang! Para o céu, para o paraíso, como se Rhage estivesse amaldiçoando de dor.
E então o irmão caiu.
Ao contrário dos garotos do Ômega, um ferimento certeiro como aquele mataria qualquer vampiro, mesmo um membro da Irmandade. Ninguém escapava daquele tipo de merda,
ninguém.
Ao gritar de novo, V caiu em seu próprio pedaço de chão e descarregou uma de suas amas, enchendo o assassino com tanto chumbo que o fodido poderia virar um cofre
de banco.
Com a ameaça neutralizada, engatinhou até o irmão se arrastando de lado com as armas e a ponta dos coturnos. Para um macho que nunca sentia medo, ele se viu olhando
para a boca escancarada do puro terror.
— Rhage! – Disse ele. — Puta que pariu... Rhage!
Capítulo TRÊS
O novo centro médico de Havers estava localizado do outro lado do rio, em meio a uma área florestal de quatrocentos acres, intocado a não ser por uma velha fazenda
e três ou quatro quiosques recém-construídos que serviam de entrada para a instalação subterrânea. Enquanto dirigia o último trecho da viagem de vinte minutos em
seu Volvo XC70, Mary fitava seguidamente o espelho retrovisor, preocupada com Bitty.
A garota estava sentada no banco de trás do utilitário e olhava pela janela escura ao seu lado, como se fosse uma televisão transmitindo um programa viciante.
Cada vez que Mary voltava a se concentrar na estrada a sua frente, apertava o volante com mais força. E o acelerador.
— Estamos quase chegando. – Disse ela. De novo.
A afirmação pretendia ser confortadora, mas não estava fazendo bem nenhum à Bitty e Mary sabia que só tentava acalmar a si própria. A ideia de que pudessem não chegar
a tempo ao lado do leito era um fardo hipotético que não conseguia evitar de cogitar – e cara, aquela sensação de pesar e frustração a fazia sentir-se incapaz de
respirar.
— Aqui está o desvio.
Mary ligou a seta e entrou à direita, para uma via de mão única que era irregular e exatamente o que toda a sua agitação interna não precisava.
Mas também, ela bem poderia estar em uma super rodovia perfeitamente asfaltada e seu coração continuaria a parecer dançar a conga dentro do peito.
O único centro médico da raça tinha sido construído para dispersar, tanto a atenção humana quanto os efeitos impiedosos da luz do sol, e ao trazer alguém ou buscar
tratamento médico para si mesmo, era designado um dos vários pontos de entrada. Quando a enfermeira tinha ligado para dar a triste notícia, Mary foi orientada a
ir diretamente à fazenda e estacionar lá, e foi o que fez, parando entre uma caminhonete que era nova e um sedã Nissan que não era.
— Está pronta? – Perguntou pelo retrovisor ao desligar o carro.
Diante da ausência de resposta, circulou o carro até a porta de Bitty. A garota pareceu surpresa ao descobrir que já tinham chegado e as pequenas mãos remexeram
para soltar o cinto de segurança.
— Quer ajuda?
— Não, obrigada.
Bitty estava claramente determinada a sair sozinha do carro, mesmo que levasse mais tempo do que se aceitasse a ajuda. E o atraso talvez fosse intencional. A sensação
de insegurança quanto ao que aconteceria depois daquela morte era quase terrível demais para se imaginar. Sem família. Sem dinheiro. Sem educação.
Mary apontou um celeiro atrás da fazenda.
— Vamos por ali.
Cinco minutos depois, passaram por alguns pontos de controle e desceram pelo elevador, de onde saíram para uma recepção muito limpa e iluminada e uma sala de espera
que cheirava exatamente igual àquelas dos hospitais humanos: aroma artificial de limão, vaga mistura de perfume e o tênue cheiro do jantar de alguém.
Pavlov tinha razão, Mary pensou ao se aproximar da recepção central. Só era preciso aquela combinação de anti-séptico e ar viciado em seu nariz para sentir-se de
volta àquela cama de hospital, com tubos entrando e saindo dela, as medicações que tentavam matar o câncer em seu sangue fazendo-a sentir, na melhor das hipóteses,
como se estivesse com gripe, e na pior, como se fosse morrer a qualquer momento.
Época divertida.
Quando a enfermeira loura atrás da tela do computador ergueu o olhar, Mary disse:
— Oi, eu sou...
— Siga por ali. – A fêmea disse com urgência. — Pelas portas duplas. Vou destravá-la. O posto de enfermagem fica bem à frente. Elas te levarão direto para lá.
May não esperou nem para agradecer. Agarrou a mão de Bitty, apressou-se pelo chão brilhoso e polido, e empurrou as portas de metal assim que ouviu o mecanismo da
tranca ser liberado.
Do outro lado das cadeiras confortáveis e das revistas muito folheadas da sala de espera, tudo era profissionalmente clínico, pessoas de jaleco e com os tradicionais
uniformes de enfermagem brancos, andando para lá e para cá carregando bandejas, notebooks e estetoscópios.
— Por aqui. – Alguém chamou.
A enfermeira em questão tinha cabelos pretos bem curtos, olhos azuis que combinavam com seu uniforme e um rosto tipo Paloma Picasso.
— Eu levo vocês até ela.
Mary pôs-se atrás de Bitty, guiando a garota pelos ombros enquanto andavam pelo corredor e então outro para o que obviamente levava à área da UTI: quartos normais
de hospital não possuíam paredes de vidro com cortinas cerradas por dentro. Não tinham tanta equipe em volta. Não tinham painéis com sinais vitais piscando atrás
do posto de enfermagem.
Quando a enfermeira parou e abriu uma das portas, o ruído do equipamento médico soava urgente, um tipo frenético de bips e guinchos que sugeriam que os computadores
estavam preocupados com o que estava acontecendo à paciente.
A fêmea manteve a cortina afastada.
— Podem entrar.
Quando Bitty hesitou, Mary se abaixou.
— Não vou sair do seu lado.
E de novo, era algo que Mary estava dizendo por si mesma. A garota nunca tinha parecido particularmente interessada com qual membro da equipe do Lugar Seguro estava
ou não ao seu redor.
Quando Bitty permaneceu no mesmo lugar, Mary levantou o olhar. Havia duas enfermeiras verificando os sinais vitais de Annalye, uma de cada lado da cama, e Havers
também estava lá colocando algum tipo de medicação no acesso intravenoso daquele braço assustadoramente fino.
Por uma fração de segundo, ela violentamente conscientizou-se do quadro. A figura na cama tinha cabelos escuros ralos, a pele estava cinzenta, os olhos estavam fechados
e uma boca que estava relaxada – e durante aquele instante infinito enquanto Mary olhava para a fêmea que estava morrendo, não conseguia decidir se estava vendo
sua própria mãe ou a si mesma em cima daquele travesseiro imaculadamente branco.
Não posso fazer isto, pensou.
— Vamos lá, Bitty. – Disse com a voz rouca. — Vamos até lá segurar a mão dela. Ela vai gostar de saber que você está aqui.
Enquanto Mary levava a garota, Havers e a equipe desaparecia ao fundo, recuando sem estardalhaço como se soubessem muito bem que não havia nada que pudessem fazer
para interromper o inevitável e que a chance de Bitty dizer adeus era o caminho inevitável.
Ao lado da cama, Mary manteve a mão sobre o ombro de Bitty.
— Tudo bem, pode tocá-la. Aqui.
Mary se inclinou à frente e segurou a suave mão gelada.
— Olá, Annalye. Bitty veio te ver.
Olhando para a garota, ela anuiu em encorajamento... E Bitty franziu o cenho.
— Ela já está morta? – A garota sussurrou.
Mary piscou com força.
— Ah, não, querida. Ela não está. E consegue te ouvir.
— Como?
— Ela consegue. Vá em frente. Fale com ela. Sei que vai gostar de ouvir sua voz.
—Mahmen? – Disse Bitty.
— Segure a mão dela. Está tudo bem.
Quando Mary recuou um passo, Bitty estendeu a mão... E quando o contato foi feito, a garota franziu o cenho de novo.
— Mahmen?
De repente, alarmes começaram a soar com pânico renovado, os sons estridentes invadindo a frágil conexão entre mãe e filha, trazendo a equipe médica de volta para
a cama apressadamente.
— Mahmen! – Bitty agarrou com ambas as mãos. — Mahmen! Não vá!
Mary foi forçada a puxar Bitty para tirá-la do caminho quando Havers começou a gritar ordens. A garota lutou contra seu gesto, mas então entrou em colapso gritando
com os braços estendidos na direção da mãe e o cabelo emaranhando.
Mary segurou o pequeno corpo agitado.
— Bitty, oh, Deus...
Havers aproximou-se da cama e começou a fazer massagem cardíaca enquanto o ressuscitador de emergência era trazido.
— Temos de ir, – Disse Mary, empurrando Bitty na direção da porta. — Vamos esperar lá fora...
— Eu a matei! Eu a matei!
Ao derrapar na direção de Rhage, Vishous caiu de joelhos e buscou pela jaqueta de couro e camisa do irmão, arrancando as camadas de tecido e expondo...
— Ai... Caralho.
A bala tinha entrado à direita do centro, exatamente onde ficava o coração de seis válvulas de um vampiro dentro das costelas. E quando Rhage ofegou em busca de
ar e cuspiu sangue, V olhou ao redor freneticamente. Guerra pra todo canto. Cobertura em canto nenhum. O tempo... Estava acabando...
Butch vinha correndo até eles de cabeça baixa, disparando um par de armas calibre 40 ao redor de si mesmo em ciclos de bombeamento, de forma que os assassinos ao
alcance tinham de cair no chão em posição fetal para evitar serem atingidos pelos tiros. O ex-tira abaixou-se, as armas ainda erguidas e prontas para disparar, suas
pernas de buldogue e torso se jogaram também na grama alta marrom.
— Temos de tirá-lo daqui. – Aquele sotaque de Boston anunciou.
A boca de Rhage abriu largamente e a inalação que veio em seguida era chiada como uma caixa de pedras.
Geralmente o cérebro de V era aguçado pra caralho, sua grande inteligência era mais uma característica pessoal que uma aptidão e definia tudo em sua vida. Ele era
o racional, o lógico, o filho da puta cínico que nunca errava.
E ainda assim, suas células cinzentas imediatamente pifaram.
Anos de prestação de assistência médica e intervenções em campo lhe diziam que seu irmão ia morrer em um minuto ou dois, caso o músculo do coração tivesse sido mesmo
dilacerado ou perfurado, e uma ou mais válvulas começasse a vazar sangue na cavidade torácica.
Isto resultaria na interrupção da função cardíaca quando o saco peritoneal se inundasse e fatalmente comprometeria a pressão sanguínea.
Era o tipo de ferimento catastrófico que requeria intervenção cirúrgica imediata – e mesmo assumindo que tivessem toda a tecnologia e equipamentos necessários em
uma situação de clínica esterilizada, o sucesso não era garantido.
— V! Temos de tirá-lo daqui...
Balas voavam ao redor e ambos se jogaram no chão. Com um terrível cálculo mental, a unidade de processamento de V chegou a uma conclusão insustentável: a vida de
Rhage ou a deles.
Porra! A culpa é minha, pensou V.
Se não tivesse contado ao irmão sobre a visão, Rhage não teria corrido prematuramente e teria tido mais controle sobre a luta...
Vishous ergueu suas armas e abateu três assassinos que se aproximavam enquanto Butch girava no chão e fazia o mesmo na direção oposta.
— Rhage, fique conosco. – V grunhiu ao se desfazer do cartucho vazio e recarregar as armas, uma após a outra. — Rhage, você precisa... Merda!
Mais tiros. E ele foi atingido no maldito braço.
Enquanto seu próprio sangue corria, ele ignorou, seu cérebro lutando para encontrar uma solução que não resultasse na porra de uma pira funerária para Rhage. Ele
podia chamar Jane por que ela não podia morrer. Mas ela não conseguiria executar uma cirurgia cardíaca de peito aberto aqui, pelo amor de Deus. E se...
O flash de luz foi tão brilhante, tão súbito, que o fez se perguntar quem infernos estaria perdendo tempo apunhalando um lesser de volta para o Ômega...
O segundo jorro de iluminação o fez girar e olhar para Rhage. Oh... Merda. Feixes gêmeos de luz brilhante espocavam das órbitas dos olhos do irmão, apontando para
o céu como feixes de laser em correntes paralelas que poderiam atingir a face da lua.
— Caraaaaaalho!
Mudança total de planos. O tema filho da puta da noite.
V avançou para Butch e o puxou, afastando-o de Rhage.
— Corre!
— O que está fazendo... Santa Maria, mãe de Deus!
Os dois puseram-se a correr desabaladamente mantendo a cabeça baixa, as pernas comendo a distância pela área aberta, enquanto pulavam sobre lessers e se desviavam
para se tornarem alvos mais difíceis. Ao chegarem à construção mais próxima da escola abandonada, eles se alternaram nos cantos em busca de cobertura, V pela frente,
Butch pelos fundos.
Com o peito ofegando, Vishous se inclinou. No centro da clareira, a transformação torturava o corpo caído de Rhage, seus braços e pernas se contorciam enquanto seu
torso convulsionava e tinha espasmos, a fera emergindo da carne do macho, o grande dragão se libertando do DNA que era forçado a compartilhar.
Se Rhage não tivesse morrido ainda, aquilo certamente o mataria.
E ainda assim, não havia como interromper a transformação. A Virgem Escriba tinha entremeado a maldição em cada uma das células de Rhage, e quando a hora chegava,
o processo era um trem descarrilado que ninguém conseguia deter.
A morte cuidaria disto.
A morte de Rhage... Acabaria com aquilo tudo.
V fechou os olhos e gritou por dentro.
Um segundo depois ergueu as pálpebras e pensou, “de jeito nenhum, porra”. “De jeito nenhum, cacete, que vou deixar isto acontecer.”
— Butch, – Rosnou ele. — Tenho que ir.
— O que? Onde você...
Foi a última coisa que Vishous ouviu ao se levantar e desaparecer.
Capítulo QUATRO
Não havia dor.
Nenhuma dor vinha do ferimento que a bala fez no peito de Rhage. E aquela era a primeira indicação de que a merda era séria. Ferimentos que doem tendem a não ser
do tipo que te coloca em estado de choque. Não sentir nada? Provavelmente uma boa indicação – juntamente com o fato de ele ter desabado no chão e o tiro ter sido
certeiro em seu peito – de que corria perigo mortal.
Piscada. Tente respirar. Piscada.
O sangue em sua boca, espesso em sua garganta... Uma maré crescente que ia contra seus esforços de fazer o oxigênio entrar em seus pulmões. A audição tinha se reduzido
a uma abafada versão de si mesma, como se estivesse deitado de costas em uma banheira e o nível da água tivesse subido até cobrir seus dois ouvidos. A visão ia e
vinha, o céu noturno acima dele se revelava e se obscurecia, enquanto as coisas falhavam e voltavam a aparecer. Respirar ficava cada vez mais difícil, um peso crescente
se instalava em seu peito, primeiro como uma sacola, então um baú cheio... Agora já no nível de um trem de carga.
Rápido, estava acontecendo rápido demais.
Mary, ele pensou. Mary?
Seu cérebro cuspiu o nome de sua shellan – talvez ele tenha mesmo chamado em voz alta? – como se sua companheira pudesse ouvi-lo, de alguma forma.
Mary!
O pânico inundou sua corrente sanguínea, acumulando-se dentro das costelas – junto com o plasma que, sem dúvida, estava vazando pela porra toda. Seu único pensamento,
mais do que a morte, a batalha ou mesmo a segurança dos irmãos, era... Oh, Deus, faça a Virgem Escriba manter sua parte da barganha.
Não permita que ele acabe no Fade sozinho.
Mary devia deixar a terra com ele. Devia lhe ser permitido segui-lo quando ele fosse para o Fade. Era parte do acordo que tinha feito com a Virgem Escriba: ficaria
com a maldição e sua Mary sobreviveria à leucemia, e por que sua companheira tinha se tornado infértil devido ao tratamento contra o câncer, ela ficaria com ele
pelo tempo que quisesse.
Você vai morrer esta noite, porra.
Bem ao ouvir a voz de Vishous em sua mente, o rosto do irmão apareceu em seu campo de visão, substituindo o céu. A boca de V se movia, o cavanhaque ondulava enquanto
enunciava as palavras. Rhage tentou afastar o macho, mas seus braços não obedeciam aos comandos de seu cérebro.
A última coisa que precisava era que outra pessoa também morresse. Embora, sendo o filho da Virgem Escriba, V provavelmente seria o último a se preocupar sobre algo
tão improvável quanto bater as botas. Mas quando Butch, o terceiro elo do trio, chegou escorregando e berrando também? Agora, ali estava um cara que não tinha um
cartão de dispensa da Dona Morte...
Tiros. Ambos começaram a atirar.
Não! Rhage ordenou a eles. Diga a Mary que eu a amo e me deixem aqui antes que vocês...
V recuou como se algo de chumbo tivesse penetrado em alguma de suas partes.
E foi quando aconteceu.
Foi o cheiro do sangue do irmão que desencadeou. No instante em que aquela nuance de cobre atingiu o nariz de Rhage, a fera despertou dentro da prisão de seu corpo
e começou a sair, a mudança dando início a terremotos internos que estalaram seus ossos, despedaçaram seus órgãos internos e o transformaram em uma coisa totalmente
diferente.
Agora havia dor.
Bem como a sensação de que este esforço era uma perda da porra do tempo. Se ele ia morrer, o dragão estava só tomando seu lugar na merda da situação.
— Diga a Mary para vir comigo. – Rhage gritou ao ficar completamente cego. — Diga a ela...
Mas teve a sensação de que os irmãos já tinham se afastado e graças a Deus por isso: o sangue de V não estava mais no ar e ninguém respondeu.
Mesmo quando sua força vital se esvaiu, fez de tudo para seguir a corrente enquanto os violentos movimentos da fera destruíam seu corpo moribundo. Mesmo que tivesse
a energia, lutar contra aquela corrente seria desperdício de esforço e não facilitaria nada. Entretanto, enquanto seu corpo e mente, suas próprias emoções e consciência
recuavam, era estranho que não soubesse se era a morte ou a transformação que estava ocorrendo a ele.
Quando o sistema nervoso da fera assumiu completamente o controle sobre ele e suas sensações de dor desapareceram, Rhage recuou a uma zona de flutuação metafísica,
como se quem e o que ele era fosse depositado em um globo de neve no alto da prateleira do continuum tempo.
Só que neste caso tinha a impressão que não seria mais retirado de lá.
O que era engraçado. Cada uma das criaturas que tinham consciência e sabiam de sua própria mortalidade inevitavelmente se perguntavam, de vez em quando, quando e
onde, como e por que de sua própria morte. O próprio Rhage tinha seguido este fluxo mórbido de pensamento, especialmente durante seu período pré-Mary, quando era
um solitário sem nada além de um catálogo de suas falhas e fraquezas para lhe fazer companhia durante as densas e desertas horas de luz do dia.
Para ele, aquelas questões desconexas tinham sido inesperadamente respondidas esta noite: “onde” era no meio do campo de batalha em uma escola abandonada para garotas;
“como” era devido a uma hemorragia cardíaca, resultado de um tiro; “por que” era consequência de seu dever; “quando” seria provavelmente nos próximos dez minutos,
talvez menos.
Dada a natureza de seu trabalho, nada daquilo era surpresa. Está bem, talvez a parte da escola fosse, mas só isso.
Ele sentiria falta dos irmãos, Jesus... E aquilo doía mais do que a fera. E se preocuparia com todos eles e o futuro do reinado de Wrath. Merda, perderia o crescimento
de Nalla e L.W1. E o nascimento dos gêmeos de Qhuinn... Que nasçam vivos e saudáveis. Será que conseguiria ver a todos de lá do Fade?
Oh, sua Mary. Sua bela, preciosa Mary.
O terror o atingiu, mas era difícil apegar-se à emoção enquanto sentia-se enfraquecer cada vez mais. Para se acalmar, disse a si mesmo que a Virgem Escriba não mentia.
A Virgem Escriba era toda poderosa. A Escriba Virgem tinha determinado o equilíbrio necessário para salvar a vida de sua Mary e dera a eles o grande presente para
compensar o fato de que sua shellan nunca poderia ter filhos.
Sem filhos, pensou com um angústia. Ele e sua Mary jamais teriam filhos de qualquer forma agora.
Isto era tão triste.
Estranho... Não tinha pensando que os queria, pelo menos não conscientemente. Mas agora que tudo aquilo tinha acontecido? Estava totalmente desolado.
Pelo menos sua Mary jamais o abandonaria.
E precisava ter fé em que, quando chegasse às portas do Fade e prosseguisse a atravessá-la para o que havia do outro lado, ela conseguiria encontrá-lo.
Senão, esta coisa toda de morte seria insuportável de enfrentar. A ideia de que poderia estar morrendo e que jamais veria sua amada de novo? Jamais voltar a sentir
o cheiro de seus cabelos? Sentir seu toque? Falar a verdade mesmo que ela já soubesse, do quanto a amava?
Era por tudo isto que a morte era tal tragédia, pensou. Era o grande separador, e às vezes atingia sem aviso, um ladrão cruel roubando as pessoas de seus cursos
emocionais que os arruinaria pelo resto de suas vidas...
Merda, e se a Virgem Escriba estivesse errada? Ou tivesse mentido? Ou não fosse tão poderosa?
Subitamente seu pânico recarregou e seus pensamentos começaram a embaralhar, prendendo-o na distância que ultimamente tinha aparecido entre ele e sua shellan, distância
que tinha subestimado, achando que teria tempo e espaço para corrigir.
Oh, Deus... Mary, disse em sua cabeça. Mary! Eu te amo!
Merda. Devia ter falado sobre estas coisas com ela, escavado profundamente para descobrir onde estava o problema, aproximando-os novamente até que estivessem de
novo alma-a-alma.
O problema era, percebeu com terror, enquanto o coração finalmente parava de bater em seu peito, tudo o que você desejava ter dito, todas as peças que faltavam de
si mesmo que ainda tinha a oferecer, todas as falhas que tinha varrido para baixo do tapete, sob a desculpa da vida ser corrida demais... Aquilo acabava também.
O meio do passo, que jamais seria completado, era o pior arrependimento que alguém poderia ter.
Talvez você só não aprendesse isto até que todas as coisas sobre as quais sempre se questionou sobre sua morte realmente acontecesse. E sim, aquelas perguntas que
sempre se fez, os comos e porquês, ondes e quandos... Se tornavam malditamente imateriais quando você partia desta existência.
Eles tinham se afastado, ele e Mary.
Ultimamente... Eles perderam um pouco da conexão entre eles.
Ele não queria partir assim...
Luz branca varreu tudo, devorando-o vivo, roubando sua consciência.
O Fade tinha vindo até ele. E só podia rezar para que sua Mary Madonna fosse capaz de encontrá-lo do outro lado.
Tinha coisas que precisava desesperadamente dizer a ela.
Vishous reassumiu a forma em um pátio de mármore branco que se abria para um céu leitoso tão vasto e brilhante que não havia sombras lançadas pela fonte no centro
ou pela árvore cheia de passarinhos coloridos chilreando mais ao canto.
Os quais silenciaram ao pressentirem seu humor.
— Mãe! – Sua voz entoou, ecoando entre as paredes. — Onde diabos você está!?
Ao avançar, a trilha de sangue que deixou à sua passagem era de um vermelho brilhante e, quando parou à porta que levava aos aposentos particulares da Virgem Escriba,
gotas caíram de seu cotovelo e perna em impactos suaves. Quando bateu e chamou novamente o nome dela, salpicos do sangue tingiram a porta branca, como esmalte de
unha caindo no chão.
— Foda-se!
Forçando a porta com o ombro, invadiu os aposentos da mãe – só para parar de supetão. Sobre a plataforma de dormir, debaixo de lençóis de cetim branco, a entidade
que tinha criado a raça vampírica e também corporeamente gerado ele e sua irmã, estava deitada em absoluta imobilidade e silêncio. Mas não havia forma corpórea nela.
Somente uma poça tridimensional de luz que outrora fora tão brilhante quanto o estouro de uma bomba, mas agora era como uma antiquada lamparina com a luz embaçada.
— Você precisa salvá-lo, – Ao cruzar o chão de mármore, Vishous reparou vagamente que o quarto estava vazio, exceto pela cama. Mas quem se importava? — Acorda, porra!
Alguém importante está morrendo e você precisa impedir, maldição.
Se ela tivesse um corpo, ele a teria agarrado e forçado a prestar atenção. Mas não havia braços para ele puxar para fora da cama ou ombros para chacoalhar.
Estava a ponto de gritar de novo quando palavras soaram pelo quarto como se viessem de um sistema de som surround.
O que tiver de ser, será.
Como se isto explicasse tudo. Como se ele fosse um cuzão por ter vindo incomodá-la. Como se estivesse desperdiçando o tempo dela.
— Por que nos criou se não liga a mínima?
Exatamente o que te preocupa? O futuro dele ou o seu?
— Do que infernos está falando? – Oh, e sim, sabia que não devia questioná-la, mas foda-se. — O que isto significa?
Será necessário mesmo uma explicação?
Ao cerrar os dentes, V lembrou a si mesmo de que Rhage estava em campo se transformando em um monstro e morrendo daquela encarnação: ficar de bate boca com a querida
mamãe não seria o melhor caminho aqui.
— Apenas salve-o, tudo bem? Tire-o daquele teatro de horrores para que possamos operá-lo e eu te deixo aqui para apodrecer em paz...
E isto resolveria o destino dele em que?
Está bem, agora sabia por que os humanos com questões maternas iam àqueles programas que o Lassiter gostava de assistir. Cada vez que V chegava perto desta fêmea,
entrava em estado de psicose induzida pelo útero.
— Ele vai continuar respirando, é isto que vai resolver.
O destino vai acabar se cumprindo de outras maneiras.
V imaginou Hollywood escorregando no tapete do banheiro numa queda em casa que o mataria. Ou engasgando com uma coxa de peru. Ou só Deus sabe o que mais poderia
matar o irmão.
— Então o mude. Você é poderosa pra cacete. Mude o destino dele agora mesmo.
Houve uma longa pausa e se perguntou se ela não teria caído no sono de novo ou merda do tipo – e cara, ele realmente a odiou. Ela era uma maldita desistente, retirando-se
do mundo, isolando-se aqui em cima como uma reclusa rabugenta só por que ninguém mais estava beijando sua bunda do jeito que ela queria.
Que peninha.
Enquanto isto, um dos melhores guerreiros deles, um que era absolutamente indispensável na guarda privada do Rei, estava a ponto de se pirulitar deste planeta. E
V era a última pessoa a querer que outra pessoa resolvesse os problemas por ele, mas tinha de tentar salvar Rhage com tudo o que podia, e quem diabos mais tinha
este tipo de poder?
— Ele é importante, – V rosnou. — A vida dele é importante.
Pra você.
— Foda-se, isto não é sobre mim. Ele importa ao Rei, à Irmandade, à guerra. Se o perdermos? Teremos um problemão.
Por que não tenta ser honesto?
— Acha que estou preocupado com ele e Mary? Sim. Confesso essa merda também por que neste exato momento você não parece ser capaz sequer de ficar em pé, quanto mais
acompanhar uma não-entidade que você arrancou do reino mortal pela travessia até o Fade no momento em que ela quiser.
Porra. Agora que tinha falado em voz alta, realmente tinha de se perguntar se aquela coisa alquebrada em cima da cama poderia mesmo cumprir a promessa que fizera
no que parecia ser antigamente, mesmo que só tivesse sido há três anos.
Tanta coisa tinha mudado.
Exceto o fato de que ainda odiava qualquer tipo de fraqueza. E continuava a detestar estar na presença da mãe.
Vá embora. Você me cansa.
— Eu te canso. É, por que você tem mesmo tanta coisa pra fazer aqui em cima. Jesus Cristo.
Tudo bem, ela que se fodesse. Ele descobriria outra saída. Outro... Alguma coisa.
Merda, o que mais havia?
Vishous virou-se para a porta que tinha arrombado. A cada passo dado, esperava que ela o chamasse de volta, dissesse algo ou lhe desse uma dor no peito quase tão
letal quanto o golpe que derrubara Rhage. Quando ela não chamou, e a porta se fechou mal tinha passado, quase acertando seu traseiro, ele pensou que já devia saber.
Ela não se importava o suficiente nem para cagar nele.
De volta ao pátio, a trilha de sangue que havia deixado sobre o revestimento de mármore era como o destino que tinha seguido por toda a vida, torto e bagunçado,
evidenciando a dor que ele totalmente falhava em reconhecer. E sim, queria que a mancha se infiltrasse naquela pedra, como se talvez isto pudesse chamar a atenção
dela.
Por falar nisto, por que simplesmente não se jogava no maldito chão com um ataque de birra, como se estivesse nos corredores de uma loja de departamentos, enfurecido
por não ganhar um triciclo?
Enquanto ficava parado ali, o silêncio se registrou como se fosse um som. O que era ilógico e precisamente a experiência que ele teve ao perceber o quão verdadeiramente
silencioso aquele lugar agora estava. As Escolhidas estavam todas na Terra, aprendendo sobre si mesmas, separadas individualmente, renegando seu papel tradicional
de servir à mãe. O mesmo acontecendo com a raça, existindo em tempos modernos onde os velhos ciclos de festivais e costumes eram ignorados, em sua maioria, e as
tradições que outrora eram respeitadas, estavam agora à beira do esquecimento.
Bom, pensou. Esperava que ela estivesse se sentindo sozinha e desrespeitada. Ele a queria bem calma e isolada, com seus fiéis mais fervorosos dando-lhe as costas.
Ele a queria ferida.
Ele a queria morta.
Seus olhar foi para os pássaros que tinha trazido para ela e o bando fugiu dele, subindo para outros galhos do outro lado da árvore branca, amontoando-se juntos
como se temessem que ele fosse torcer os pescoços deles, um a um.
Aqueles passarinhos tinham sido uma oferta de paz de um filho que jamais havia sido realmente querido, mas também não tinha se comportado muito bem. Sua mãe provavelmente
não tinha dirigido a eles mais do que um olhar – e, quem diria, também tinha superado este breve flamejar de uma fraqueza conciliatória, de volta às margens de sua
inimizade. Como poderia ser diferente?
A Virgem Escriba não veio a eles quando Wrath fora quase assassinado. Ela não tinha ajudado o Rei a manter sua coroa. Beth quase morreu ao dar à luz e teve de abrir
mão de qualquer possibilidade de ter filhos no futuro. Pelo amor de Deus, Selena, uma das Escolhidas da própria Virgem Escriba, tinha acabado de morrer e arrebentar
o coração de um maldito macho de valor – e qual foi a resposta? Nada.
E antes de tudo isto? A morte de Wellsie. Os ataques.
E à frente? Qhuinn estava se borrando de preocupação de que Layla morresse dando à luz aos gêmeos. E Rhage estava morrendo ali embaixo no meio da batalha.
Precisava mais?
Girando a cabeça, V olhou para a porta que tinha voltado a se fechar à sua passagem. Ele ficava contente por ela estar sofrendo. E não, não confiava nela.
Ao se desmaterializar de volta para o campo de combate, não tinha absolutamente fé nenhuma de que ela faria o correto para Rhage e Mary. Ele fez uma aposta que tinha
perdido ao ir até a mãe, mas com ela aquilo era sempre o que acontecia.
Milagre. Ele precisava da porra de um milagre.
Capítulo CINCO
A água que caía sobre a mão de Mary estava fria, e ainda assim queimava sua pele – provando que lados opostos do termômetro podem coexistir ao mesmo tempo.
A pia do banheiro feminino que estava usando era branca e de porcelana. Seu ralo brilhava e era prateado. À sua frente, um espelho de parede inteira refletia três
reservados, todos tinham as portas cor de pêssego fechadas, mas somente um deles estava ocupado.
— Está tudo bem aí? – Disse ela.
Ouviu o barulho da descarga, mesmo que Bitty não tivesse usado.
Mary encarou seu reflexo. É. Ela parecia tão mal quanto se sentia: por algum motivo, nos últimos trinta minutos bolsas escuras se formaram sob as órbitas que pareciam
afundadas, e sua pele parecia tão pálida quanto o piso no qual estava pisando.
Por algum motivo? Besteira. Sabia exatamente o motivo.
Eu a matei!
Mary teve de fechar os olhos e fingir recompor-se novamente. Quando abriu os olhos de novo, tentou se lembrar do que estava fazendo. Oh. Certo. Havia uma pequena
pilha de toalhas de papel em uma prateleira do tipo entrelaçado e dobrado, e ao avançar para pegar um, respingou os outros de água e pensou consigo mesma que era
estranho que Havers, tão meticuloso com a clínica, permitisse tal bagunça. Daí entendeu... O suporte na parede perto da porta estava quebrado, a parte inferior pendurada,
frouxa.
Igual a mim, pensou. Cheia de técnica e experiência em ajudar pessoas, mas sem executar meu trabalho direito.
Segure a mão dela. Está tudo bem...
Eu a matei!
— Bitty? – Quando a palavra não saiu mais do que um resmungo, ela pigarreou. — Bitty.
Depois de secar as mãos, virou-se para os reservados.
— Bitty, vou entrar se você não sair.
A garota abriu a porta do meio, e por alguma razão Mary soube que jamais se esqueceria da visão daquela mãozinha fortemente cerrada, sem se abrir, quando ela saiu.
Ela tinha chorado lá dentro. Sozinha. E agora que a garota estava sendo forçada a mostrar o rosto, estava fazendo exatamente o que a própria Mary esteve desesperadamente
tentando fazer.
Às vezes a compostura era tudo o que se tinha; dignidade, seu único consolo; a ilusão de “tudo bem” sua única fonte de conforto.
— Aqui, me deixe... – Quando a voz de Mary se apagou, voltou para as toalhas de papel e umedeceu uma na pia que tinha usado. — Isto vai ajudar.
Aproximando-se lentamente da garota, trouxe o papel frio e macio para o rosto corado dela, pressionando-o na pele quente e avermelhada. Enquanto isto, na sua cabeça
se desculpava com a Bitty adulta, aquela que ela esperançosamente se tornaria: Sinto muito ter te feito fazer isto. Não, você não a matou. Quem dera eu tivesse te
deixado fazer as coisas do seu jeito e a seu tempo. Sinto muito. Não, você não a matou. Sinto muito.
Sinto tanto.
Mary ergueu o queixo da garota.
— Bitty...
— O que eles vão fazer com ela agora? Para onde ela vai?
Deus, aquele olhar castanho claro era firme.
— Eles vão levá-la... Bem, eles vão cremá-la.
— O que é isto?
— Eles vão queimar o corpo dela até torná-lo cinzas, para o rito de passagem.
— Vai doer?
Mary pigarreou de novo.
— Não, querida. Ela não vai sentir nada. Está livre... Ela está no Fade esperando por você.
O lado bom era que ao menos isto Mary sabia ser verdade. Mesmo tendo sido criada católica, ela própria tinha visto a Virgem Escriba, então não, não estava dando
à garota falsas esperanças. Para os vampiros existia mesmo um paraíso, e eles real e verdadeiramente encontravam seus entes queridos lá.
Diabos, talvez isto também fosse verdade para os humanos, mas a magia era muito menos visível no mundo deles; desta forma, a salvação eterna era muito mais difícil
de ser vendida ao humano comum.
Afastando a toalha de papel, Mary recuou um passo.
— Eu gostaria de voltar ao Lugar Seguro agora, tudo bem? Não há mais nada que a gente possa fazer aqui e já está quase amanhecendo.
A última frase saiu só por hábito, ela achava. Como uma pré-trans, Bitty era capaz de tolerar qualquer quantidade de luz do sol. E a verdade real era que só queria
levar a garota para longe de toda a morte dali.
— Tudo bem? – Mary repetiu.
— Não quero deixá-la.
Em qualquer outra circunstância, Mary teria se abaixado e gentilmente exposto um pouco do que ia ser o mundo novo de Bitty. A realidade horrorosa era que não havia
mais mãe para deixar para trás, e tirar a garota deste ambiente clínico onde pacientes estavam sendo tratados, às vezes em situações terríveis, era inteiramente
apropriado.
Eu a matei.
Em vez disto, Mary disse.
— Está bem, podemos ficar o quanto você quiser.
Bitty anuiu e foi até a porta que levava ao corredor. Parada diante da porta fechada, seu vestido tremendamente gasto parecia a ponto de se desmanchar de sua figura
magra, seu feio casaco preto parecia um cobertor jogado de qualquer jeito ao seu redor, seus cabelos castanhos despontados arrepiavam contra o tecido.
— Eu realmente queria...
— O que? – Sussurrou Mary.
— Eu queria voltar a antes. À hora que eu acordei hoje.
— Eu também queria que fosse possível.
Bitty olhou por cima do ombro.
— Por que não pode voltar? É tão estranho. Digo, consigo lembrar tudo dela. É como... É como se minhas lembranças fossem um quarto no qual eu pudesse entrar. Ou
algo assim.
Mary franziu o cenho, pensando que aquela era uma maneira muito madura de se expressar para alguém daquela idade.
Mas antes que pudesse responder a garota abriu a porta, claramente não interessada em uma resposta – e talvez isto fosse uma coisa boa. Que infernos se podia responder
diante aquilo?
No corredor, Mary quis pousar a mão sobre aquele ombro pequeno, mas se segurou. A garota era tão fechada, do mesmo modo que um livro seria no meio de uma biblioteca
ou uma boneca em uma fila de colecionáveis, e era difícil forçar a quebrar aquelas fronteiras.
Especialmente quando, como uma terapeuta, você mesma já estava se sentindo muito desequilibrada em seu papel de profissional.
— Para onde vamos? – Bitty perguntou quando duas enfermeiras passaram por elas.
Mary olhou ao redor. Elas ainda estavam na área da UTI, mas a alguma distância de onde a mãe de Bitty tinha morrido.
— Podemos procurar uma sala para nos sentar.
A garota parou.
— Nós não vamos poder vê-la de novo, vamos?
— Não.
— Acho que é melhor a gente voltar.
— O que você quiser.
Cinco minutos depois estavam no Volvo indo para o Lugar Seguro. Ao guiá-las pela ponte, Mary voltou a olhar pelo retrovisor, verificando Bitty a cada cinquenta metros.
No silêncio, ela se pegou novamente a desfiar um cordão de desculpas em sua mente... Por ter dado um conselho ruim, por colocar a garota na posição de mais sofrimento.
Mas toda aquela comiseração era auto-infligida, uma busca por absolvição pessoal, totalmente injusta com a paciente, especialmente uma tão jovem.
Este pesadelo profissional era algo que Mary teria de superar sozinha.
Uma entrada na I-87 apareceu assim que chegaram ao lado do centro, após a ponte, e a seta soou alto no interior do utilitário. Dirigindo-se para o norte, Mary permaneceu
no limite de velocidade e foi ultrapassada por alguns caminhões fazendo oitenta em uma pista de sessenta e cinco. De vez em quando, sinais luminosos indicando áreas
de ultrapassagem piscavam acima delas em um ritmo que nunca demorava, e o pouco tráfego local era diminuído ainda mais enquanto elas prosseguiam.
Quando chegassem, Mary decidiu que tentaria dar algo para a garota comer. Bitty tinha perdido a Primeira Refeição e devia estar morrendo de fome. Então talvez um
filme até o amanhecer, algo calmo. O trauma era tão recente, e não só o fato de perder a mãe. O que tinha acontecido lá no Havers devia ter trazido à tona tudo o
que tinha acontecido antes – os abusos em casa, o resgate onde Rhage, V e Butch mataram o pai para salvar Bitty e a mãe, a descoberta que a mãe estava grávida, a
perda do bebê, os meses que se arrastaram depois, onde Annalye jamais se recuperara totalmente...
— Sra. Luce?
— Sim? – Oh, Deus, por favor, pergunte algo que eu possa responder decentemente. — Sim, Bitty?
— Para onde estamos indo?
Mary olhou para a placa na estrada. Dizia “Saída 19 Glen Falls”.
— Desculpe? Estamos indo para casa. Devemos chegar lá em quinze minutos.
— Achei que o Lugar Seguro não era tão longe.
— O q...?
Oh, Deus.
Estava indo na direção da maldita mansão.
— Oh, Bitty, desculpe. – Mary meneou a cabeça. — Eu acho que confundi as saídas. Eu...
Onde estava com a cabeça?
Bem, ela sabia a resposta... Todas as hipóteses que vinha imaginando em sua cabeça sobre o que fariam quando saíssem do carro eram coisas que envolviam o lugar onde
Mary morava com Rhage, o Rei, os Irmãos, os guerreiros e suas companheiras.
Onde infernos estava com a cabeça?
Mary pegou a saída 19, desceu a rodovia e voltou a seguir para o sul. Cara, não estava dando uma dentro esta noite, estava?
Pelo menos as coisas não poderiam piorar.
De volta ao Internato para Garotas Bownswick, Assail, filho de Assail, ouviu o rugido mesmo através da sobrecarga sensorial da batalha.
Apesar do caos de todos os tiros, dos xingamentos e das loucas corridas de cobertura a cobertura, o som trovejante que rolava pelo campus abandonado era o tipo de
coisa que chamava a atenção.
Ao se virar, manteve o dedo no gatilho da automática, continuando a descarga de balas adiante, certeiramente em uma fila de mortos-vivos...
Por uma fração de segundo, parou de atirar.
Seu cérebro simplesmente não conseguia processar o que os olhos sugeriam que tinha magicamente aparecido a cinquenta metros à sua frente. Era... Algum tipo de criatura
parecida com um dragão, coberta de escamas roxas, cauda serrilhada e uma boca arreganhada cheia de dentes de T. Rex. O monstro pré-histórico tinha bem a altura de
dois andares, comprido como um trailer, e rápido como um crocodilo ao avançar para atacar qualquer coisa que se mexesse...
Queda livre.
Sem aviso, seu corpo voou adiante, e uma dor se espalhou pela frente de sua perna e rasgou até seu tornozelo. Girando em meio ao ar, caiu de cara na grama alta...
E uma respiração depois, o assassino parcialmente ferido que o tinha atingido com uma faca caiu em cima de seu peito, aquela lâmina arqueando pelo seu ombro, os
lábios curvados em um esgar enquanto o sangue preto derramava em Assail inteiro.
Certo, foda-se, cara.
Assail agarrou um punhado do cabelo ainda castanho, enfiou o cano da arma naquela boca arreganhada e apertou o gatilho, explodindo a parte de trás do crânio, incapacitando
o corpo de forma que caiu em cima dele como um peso morto agitado. Chutando o corpo que se contorcia para tirá-lo de cima, voltou a se levantar.
E se viu diretamente diante da fera.
Seus movimentos para se levantar chamaram a atenção, os olhos do dragão se fixaram nele, estreitados em fendas. Então, com outro rugido a criatura veio em direção
à ele fazendo o chão tremer, esmagando os assassinos sob suas massivas patas traseiras, as garras da frente encurvadas para cima e prontas para o ataque.
— Porra!
Assail jogou-se para frente, não mais preocupado onde mirava a arma e absolutamente despreocupado com o fato de que agora corria para a fileira avançada de lessers.
O lado bom? A fera cuidou daquele probleminha. Os assassinos lançaram igualmente um olhar para aquela criatura dos infernos vindo em direção a eles e dispersaram
como folhas sob o vento de outono.
Naturalmente, não havia nada diretamente adiante que provesse nenhuma cobertura. Por azar, sua rota de fuga não oferecia nada além de arbustos e grama, sem nenhuma
proteção significativa. A construção mais próxima? Estava a duzentos metros de distância. Pelo menos.
Praguejando, correu mais rápido, abusando dos músculos de suas pernas, buscando mais e mais velocidade.
Era uma corrida que a fera estava fadada a vencer – uma vitoria inevitável quando um par de pernas que mal cobria um metro e meio a cada passo, tentava vencer um
par de pernas que podia cobrir vinte e cinco em um único passo. A cada segundo, aquele som ficava mais alto e mais perto, até que jatos quentes de respiração atingiram
as costas de Assail, esquentando-o, apesar do frio.
O medo inundou o seu núcleo.
Mas não havia tempo para tentar dominar o pânico que invadiu sua mente. Um grande rugido explodiu na sua direção, a força do som tão grande que o empurrou adiante,
provendo um jorro de ar fedorento que o enojou. Merda, sua única chance era...
A mordida veio depois do grande rugido, aqueles maxilares estalando tão perto da nuca de Assail que ele se encolheu, mesmo que isto diminuísse sua velocidade. Mas
era tarde demais para se salvar. Transportado pelo ar. Ele foi erguido, arrancado do chão em meio a um passo – só que, por que não doía mais?
Certamente se a fera o tivesse agarrado pelos ombros ou pelo torso, ele teria sido rasgado – não, espere, ela o pegou pela jaqueta. A coisa o agarrou pela jaqueta
de couro, não pela carne, e uma faixa de constrição cortava pelo seu peito e erguia-o pelas axilas, as pernas flutuavam, a arma disparava enquanto ele cerrava as
mãos em punhos. Abaixo dele, a paisagem girava como se estivesse em uma gangorra, os lessers restantes, os irmãos lutando, os arbustos muito crescidos e as árvores
balançavam ao redor dele como se estivesse sendo chacoalhado.
A porra da coisa ia devorá-lo. Esta baboseira sem sentido era só para amaciar a carne.
Maldito fosse ele, era o equivalente vampírico a uma asa de frango.
Não havia tempo. Soltou a arma e tateou em busca do zíper em sua garganta. O movimento balançante tornou seu pequeno alvo rápido como um rato, escorregadio como
mármore, estilo agulha em palheiro para suas mãos trêmulas e escorregadias, e as pontas dos dedos suadas.
O próprio aperto da fera foi o que o ajudou.
Com aqueles dentes travados nas costas da jaqueta, o couro não conseguiu suportar seu peso e ele caiu, despencando das presas, o chão duro se apressando para recebê-lo.
Encolhendo-se e rolando, procurando não quebrar nada, no entanto, pousou num monte de entulho.
Direto de ombro.
O estalar foi algo que se registrou pelo seu corpo todo, deixando-o tão inútil quanto um bebê indefeso, sem fôlego, a vista embaçada. Mas não havia tempo se quisesse
viver. Virando-se, ele...
Pop! Pop! Pop! Pop! Pop! BUM!
Seus primos surgiram do nada, correndo como se estivessem sendo perseguidos quando de fato não estavam. Ehric tinha duas automáticas em riste e atirando... E Evale
tinha uma metralhadora sobre os ombros.
Aquele era o BUM!
A arma era de fato uma metralhadora de verdade, uma enorme arma de fogo que tinha sobrado do tempo do Raj na Índia. Evale, o bastardo agressivo, há muito parecia
ter fixação pela coisa de uma maneira nada natural, estilo “meu precioso”.
Graças aos Destinos pelas preocupações nada saudáveis.
Aquelas balas calibre quarenta não tinham efeito nenhum sobre a fera, ricocheteando pelas escamas roxas como ervilhas jogadas na lataria de um carro. Mas a carga
de chumbo da metralhadora resultou em um uivo de dor e a fez recuar.
Era a única oportunidade de Assail escapar.
Fechando os olhos, ele se concentrou, concentrou, concentrou...
Não dava para se desmaterializar. Muita adrenalina além de muita cocaína, junto com muita dor em seu ombro, pra piorar.
E a fera voltou ao ataque, voltando a se concentrar em Assail e lhe dando o equivalente dragão de um foda-se na forma de um enorme rugido...
A imensa arma disparou uma segunda vez, atingindo a coisa no peito.
— Corra! – Ehric gritou enquanto recarregava suas armas calibre 40 com invólucros saltando pela parte de trás das pequenas armas. — Levante-se!
Assail usou o braço bom para apoiar e levantar do chão, e suas pernas voltaram a funcionar com desenvoltura admirável. Segurando o braço ferido contra o peito, arrastou-se
o mais rápido que pôde, com os restos de sua jaqueta esvoaçando, o estômago embrulhado, o coração disparado.
BUM!
Por todo canto, em toda parte – ele tinha de chegar a qualquer porra de abrigo – e rápido. Que pena seu corpo não obedecer. Mesmo enquanto seu cérebro gritava por
velocidade, tudo o que conseguia fazer era cambalear como um zumbi...
Alguém o pegou por trás, erguendo-o do chão em um saco de batatas, jogando-o por cima do ombro como um bombeiro. Enquanto caía em posição de cabeça pra baixo, vomitou
de agonia com estrelas espocando em seus olhos, enquanto o estômago esvaziava com violência. As boas novas eram que ele não comia há doze ou quinze horas àquela
altura, então não sujou muito a perna da calça do primo.
Ele queria ajudar no esforço. Queria se levantar. Queria...
Arbustos o golpearam no rosto e cerrou os olhos para se proteger. Sangue começou a fluir e encheu seu nariz. Seu ombro doía cada vez mais. A pressão em sua cabeça
ficou insuportável, fazendo-o pensar em pneus muito cheios, bagagens superlotadas, balões de água que estourava e derramava seu conteúdo por todo canto.
Graças a Deus pelos primos. Eles jamais o abandonavam.
Não podia se esquecer de recompensá-los de alguma maneira.
O galpão parecia galopar na direção deles, e da posição privilegiada – de ponta cabeça – que Assail estava, a coisa parecia se dependurar da terra ao invés de estar
plantada em cima dela. Tijolos. Mesmo com os solavancos e a escuridão dava para perceber que o abrigo era de tijolos.
Era de se esperar que fosse uma construção resistente.
Seu primo arrombou a porta e o ar dentro era úmido e mofado.
Sem aviso, Assail foi largado como o lixo que era e caiu em um chão empoeirado com uma queda que o fez ter ânsia de vômito de novo. A porta se fechou e então tudo
o que ouviu foi a respiração pesada do primo. E a sua.
E os sons abafados da batalha.
Houve um súbito brilho de luz alaranjada.
Pela névoa de sua dor, Assail franziu o cenho... E então recuou. O rosto se iluminou quando um cigarro enrolado a mão foi aceso, mas não de era nenhum de seus primos.
— O quanto seu ferimento é grave? – O Irmão da Adaga Negra, Vishous, perguntou ao exalar a fumaça mais deliciosa.
— Foi você?
— Não, foi o Papai Noel.
— Que salvador improvável é você, – Assail fez uma careta e limpou a boca na manga da jaqueta. — E sinto muito por suas calças.
V olhou para si mesmo.
— Tem algo contra couro preto?
— Eu vomitei atrás delas...
— Merda!
— Bem, dá pra limpar...
— Não, cuzão, ela está vindo para cá, – V indicou a janela suja. — Maldição.
De fato, à distância, o retumbante som trovejante dos passos do dragão soou de novo, como uma tempestade se formando e vindo na direção deles.
Assail se agitou ao redor procurando algum lugar para se esconder. Um armário. Um banheiro. Um sótão. Nada. O interior estava vazio, exceto por duas pilhas até o
teto de entulhos de mais de uma década. Graças à Virgem Escriba o abrigo parecia ser tijolo firme e mais provável de aguentar...
O teto foi erguido e despedaçado de uma só vez, os pedaços chovendo, as telhas e o concreto caindo no chão como se o abrigo estivesse anunciando sua própria morte
com uma rodada de aplausos. O ar fresco da noite amenizou o cheiro mofado, mas isto dificilmente era um alívio, dado o que havia precipitado o acesso.
A fera não era vegetariana, fato. Mas também não parecia preocupada pela sua absorção de fibras: a coisa cuspiu aquele telhado de madeira para o lado, abaixou-se
e abriu sua bocarra, emitindo um bum sônico de rugido.
Não havia para onde correr. A criatura estava montada sobre o prédio, preparada para atacar o que havia se tornado sua lancheira. Não havia lugar algum para se abrigar.
Nenhuma defesa possível a tentar.
— Vá, – Assail disse ao Irmão quando aqueles grandes olhos reptilianos se estreitaram e o focinho explodiu um bafo tão quente e fétido quanto um Lixão no verão.
— Me dê sua arma. Eu vou distraí-lo.
— Não vou te deixar.
— Não sou um dos seus irmãos.
— Você nos deu a localização deles. Entregou a cabeça do Fore-lesser. Não vou te largar aqui, seu bundão.
— Quanta educação. E esses elogios. Pare.
Quando a fera soltou outro rugido e jogou a cabeça como se preparada para brincar um pouco com eles antes de devorá-los, Assail pensou em seu negócio de drogas...
Seu vício em cocaína...
A fêmea humana por quem tinha se apaixonado e a quem precisou deixar ir embora. Por que ela não conseguiria lidar com seu estilo de vida e ele estava muito preso
a isso para parar, mesmo por ela.
Ele meneou a cabeça para o Irmão.
— Não, não valho a pena salvar. Dá a porra do fora daqui.

 

CONTINUA

Nada era como costumava ser para a Irmandade da Adaga Negra. Depois de evitar a guerra com os Sombras, alianças mudaram e linhas foram desenhadas. Os assassinos da Sociedade Lesser estão mais fortes do que nunca, aproveitando-se da fraqueza humana para adquirir mais dinheiro, mais armas, mais poder. Mas enquanto a Irmandade se prepara para um ataque total pra cima deles, um dos seus luta uma batalha dentro de si mesmo...
Para Rhage, o Irmão com o maior dos apetites, mas também o maior coração, a vida era suposta ser perfeita — ou pelo menos, perfeitamente agradável. Mary, sua adorada shellan, está ao seu lado, e seu Rei e seus Irmãos estão prosperando. Mas Rhage não pode entender — ou controlar — o pânico e insegurança que o afligem...
E isso o aterroriza — como também a distância entre ele e sua companheira. Depois de sofrer um ferimento mortal em batalha, Rhage deve reavaliar suas prioridades — e a resposta, quando se trata dele, balança seu mundo... E o de Mary. Mas Mary está em uma jornada própria, uma que vai fazê-los ou se aproximar mais ou causar uma divisão que não vai ter como recuperar...


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Capítulo UM
INTERNATO PARA GAROTAS BROWNSWICK, CALDWELL, NOVA YORK
Formigamento por seu corpo inteiro.
Ao transferir seu peso de uma bota para outra, Rhage sentiu como se sua corrente sanguínea estivesse começando a fervilhar e as bolhas o pinicassem por baixo de
cada centímetro quadrado de sua carne. E isto não era nem o começo. Fibras aleatórias de músculos despertaram ao longo de todo o seu corpo, os espasmos fazendo seus
dedos tremerem, os joelhos bambearem e os ombros tensos, como se a ponto de um ataque com a força e foco de uma raquete de tênis ao atingir uma bola.
Pela milésima vez desde que tinha se materializado para aquela posição, ele varreu com o olhar o terreno mal cuidado com mato excessivamente grande à sua frente.
Antigamente, quando o internato para garotas Bronswick ainda era uma instituição em funcionamento, sem dúvida o terreno à sua frente devia ser um gramado mantido
bem cortado durante a primavera e verão, no outono diariamente limpo de folhas e belamente coberto de neve no inverno, digno de um livro de histórias infantis. Agora,
como um campo de futebol saído do inferno, cravejado e emaranhado por arbustos retorcidos, capazes de mais do que somente danos estéticos à região testicular de
um cara; mudas que pareciam filhas adotivas, feias e disformes, de carvalhos e bordos mais maduros e o mato marrom crescido de fins de outubro, eram capazes de te
fazer tropeçar como um filho da puta se tentasse correr.
Da mesma forma, o prédio que fora construído para abrigar e prover espaço de convivência e instrução aos frutos de uma elite privilegiada, envelheceram mal, carentes
de manutenção regular: janelas quebradas, portas apodrecidas, persianas destruídas e oscilando ao vento frio, como se os fantasmas fossem incapazes de se decidirem
se desejavam ser vistos ou somente ouvidos.
Era o campus do filme Sociedade dos Poetas Mortos. Supondo que todo mundo tenha feito as malas depois da gravação do filme em 1988, picado a mula e nunca mais ninguém
tenha modificado uma porra de coisa por lá desde então.
Mas o prédio não estava vazio.
Ao respirar fundo, o reflexo de deglutição de Rhage executou uma porção de tropeços no fundo de sua garganta. Tantos lessers se escondiam nos cômodos abandonados
que era impossível isolar individualmente os cheiros que golpeavam suas narinas. Cristo, era como enfiar a cara dentro um balde cheio de restos orgânicos e inalar
como se estivesse prestes a acabar todo o oxigênio do mundo.
Supondo que alguém tivesse adicionado talco de bebê ao costumeiro resto diário de cabeças e tripas de peixe.
Para dar aquele toque final, sacou?
Quando sua pele foi atacada por uma nova rodada de arrepios, ele disse à sua maldição para sossegar o facho, puta merda, que ele logo ia liberá-la. Não ia nem tentar
impedir que a maldita saísse – não que tentar puxar o freio funcionasse em qualquer circunstância ou de qualquer forma – mesmo que dar à fera liberdade total nem
sempre fosse uma coisa boa, esta noite ela seria uma vantagem imensa. A Irmandade da Adaga Negra estava a ponto de encarar quantos lessers? Cinquenta? Cento e cinquenta?
Havia muito a fazer, mesmo para eles – então, sim, seu pequeno... Presente... Da Virgem Escriba seria muito útil.
Por falar em chamadas de longa distância... Há mais de um século, a mãe da raça havia lhe dado sua própria bomba relógio, um programa de melhorias tão oneroso, tão
desagradável, tão incapacitante, que era de fato capaz de trazê-lo da beira da babaquice total, de volta à normalidade. Por cortesia do dragão, a menos que controlasse
seus níveis de energia e moderasse suas emoções, o inferno recaía sobre a terra.
Literalmente.
Sim, ao longo do último século, ele tinha se tornado altamente bem-sucedido em garantir que a coisa não comesse seus amigos ou que os fizesse aparecer no noticiário
noturno com a manchete “Jurassic Park existe de verdade”. Mas com o que ele e seus irmãos estavam prestes a enfrentar – e devido ao isolamento deste campus? Se tivessem
sorte, o grande bastardo de escamas roxas com os dentes de serra elétrica e barriga sem fundo conseguiria seu banquete. Mas só teria acesso a uma dieta balanceada,
baseada somente em lessers.
Sem petiscar os Irmãos, por favor. E sem rocamboles ou tortas de humanos, muito, muito obrigado.
Este último, mais por discrição do que afeição. Era notório que aqueles ratos sem rabo não desgrudavam de duas coisas: meia dúzia de seus amiguinhos, noturnamente
co-dependentes e evolucionariamente inferiores, e seus malditos telefones celulares. Cara, o YouTube podia ser um pé no saco quando só o que se queria era manter
por baixo dos panos uma guerra contra os mortos. Por quase dois mil anos, a luta dos vampiros contra a Sociedade Lessening não tinha sido problema de mais ninguém
além dos combatentes envolvidos, e o fato de que os humanos não conseguiam se ater a cuidar de seus próprios assuntos, tipo suas competências de arruinar o meio-ambiente
e dizer uns aos outros o que pensar e dizer, era somente uma das razões para odiá-los.
Internet do caralho.
Avaliando os arredores a fim de evitar soltar a fera cedo demais, Rhage fixou o olhar em um macho dando cobertura a uma distância de mais ou menos seis metros. Assail,
filho de Foda-se-lá-quem, usava preto dos pés à cabeça como alguém de luto, seus cabelos, escuros como os do Conde Drácula, não requeriam camuflagem adicional, seu
rosto pecaminosamente belo estava tão contraído pela ansiedade de matar que era preciso dar um crédito ao cara. Ele estava sendo de muita ajuda. E tinha mudado completamente
de direção. O traficante de drogas tinha se juntado à Irmandade, cumprindo a promessa de cortar relações comerciais com a Sociedade Lessening ao depositar a cabeça
do Fore-lesser dentro de uma caixa, aos pés de Wrath.
E também revelou este local que os assassinos vinham usando como quartel general.
E era por isto que todo mundo tinha acabado aqui, enterrado até a cintura em mato alto, esperando que a contagem regressiva de seus relógios V-sincronizados chegasse
logo a 00h00min.
Este ataque não era coisa pequena, era uma abordagem de grosso calibre ao inimigo. Depois de algumas noites – e dias, graças a Lassiter, também conhecido por 00-CUZÃO,
que havia feito reconhecimento do local durante as horas de sol – o ataque foi adequadamente coordenado, ensaiado e preparado para ser posto em prática. Todos os
guerreiros estavam aqui: Z e Phury, Butch e V, Tohr e John Mattew, Qhuinn e Blay, além de Assail e seus dois primos, Presas I e II.
Quem ligava para seus nomes, contanto que aparecessem armados e com muita munição?
A equipe médica da Irmandade também estava na área preparada para agir, com Manny em sua unidade cirúrgica móvel a um quilômetro e meio de distância, e Jane e Ehlena
em uma das vans, num raio de três quilômetros.
Rhage verificou o relógio. Seis minutos e contando.
Quando seu olho esquerdo começou a tremelicar, praguejou. Como caralhos conseguiria esperar por tanto tempo?
Expondo as presas, exalou pelo nariz, soprando correntes gêmeas de respiração condensada muito parecidas com as que antecedem o ataque de um touro.
Cristo, não conseguia se lembrar da última vez em que esteve tão tenso. E não queria pensar no motivo. De fato, vinha evitando a coisa toda do por que há quanto
tempo?
Bem, desde que ele e Mary chegaram àquela fase estranha e ele tinha começado a sentir...
— Rhage.
Seu nome foi sussurrado tão baixinho que ele se voltou por não saber ao certo se era o seu subconsciente decidindo começar um papo com ele. Não, era Vishous – pela
expressão do irmão, Rhage teria preferido ter desenvolvido dupla personalidade. Aqueles olhos diamantinos flamejavam uma luz sombria. E aquelas tatuagens ao redor
das têmporas também não ajudavam.
O cavanhaque era neutro – a menos que o avaliasse como quesito de estilo. Neste caso, o filho da puta era uma caricatura de proporções épicas.
Rhage meneou a cabeça. — Você não devia estar na sua posição...
— Tive uma visão sobre esta noite.
Ah, inferno, não, Rhage pensou. Não, não faça isto comigo agora, mano.
Virando as costas, murmurou. — Me poupe dessa coisa de Vincent Price, está bem? Ou está ensaiando para ser o cara que faz as narrações dos trailers de filmes...?
— Rhage.
— ... Pois você leva jeito pra isto. Em um mundo... Onde pessoas devem... Calar a boca e fazer seu serviço...
— Rhage.
Ao ver que ele não ia se voltar para olhá-lo, V se aproximou e o encarou, aqueles olhos pálidos pra cacete, um par de explosões nucleares gêmeas, daquelas que levantam
um nuvem em forma de cogumelo, para frente e para trás. — Quero que vá pra casa. Agora.
Rhage abriu a boca. Fechou. Abriu de novo – e teve de lembrar a si mesmo de manter a voz baixa.
— Ouça, não é uma boa hora para essa merda psíquica...
O Irmão agarrou seu braço e apertou. — Vá pra casa. Não estou brincando.
Terror gélido varreu as veias de Rhage, abaixando sua temperatura corporal... E ainda assim conseguiu menear a cabeça novamente.
— Foda-se, Vishous. Sério mesmo!
Ele não tinha o menor interesse de pôr mais nada daquela magia da Virgem Escriba em cheque. Ele não ia...
— Você vai morrer esta noite, porra.
Quando o coração de Rhage falhou uma batida, ele olhou para aquele rosto que conhecia a tantos anos traçando aquelas tatuagens, os lábios comprimidos, as cerradas
sobrancelhas escuras... E a inteligência radiante geralmente expressada através de um filtro de sarcasmo, afiado como a espada de um samurai.
— Sua mãe me deu a palavra dela. – Disse Rhage. Espere, estava realmente falando sobre bater as botas? — Ela me prometeu que quando eu morresse Mary iria comigo
para o Fade. Sua mãe disse...
— Foda-se a minha mãe. Vá pra casa.
Rhage desviou o olhar porque foi necessário. Era isto ou sua cabeça explodiria. — Não vou abandonar os irmãos. Não vai acontecer. Primeiro, você pode estar errado.
Sim, e quando foi a última vez que aquilo aconteceu? No século dezoito? Dezessete?
Nunca?
Ele falou para V.
— Segundo, não vou fugir correndo do Fade. Se começar a pensar assim vou morrer, mesmo com a arma na mão. – Ele ergueu a mão até a altura daquele cavanhaque para
evitar que o irmão o interrompesse. — E pra terminar? Se eu não lutar esta noite, não vou conseguir sobreviver ao dia de amanhã, trancado na mansão... Não sem meu
amiguinho roxo sair para o café da manhã, almoço e jantar, sacou?
Bem, havia uma quarta coisa. E era racional... Ruim, tão ruim que não conseguia encará-la por mais do que a fração de segundo necessária para ela surgir em sua mente.
— Rhage...
— Nada vai me acontecer. Está tudo sob controle.
— Não, não está – sibilou V.
— Está bem. – Rhage rosnou, endireitando o corpo. — E daí se eu morrer? Sua mãe deu à minha Mary a graça final. Se eu for para o Fade, Mary vai me encontrar lá.
Não tenho de me preocupar de me separar dela. Ela e eu ficaremos perfeitamente bem. Quem vai se importar de verdade se eu bater as botas?
V endireitou-se também.
— Você não acha que os Irmãos ligam? Sério? Muito obrigado, seu cuzão filho da puta.
Rhage verificou o relógio. Faltavam dois minutos.
Bem pareciam dois mil anos.
— E você confia em minha mãe, – Rosnou V — em algo tão importante. Nunca pensei que fosse tão ingênuo.
— Ela conseguiu me dar a porra de um alter ego T. Rex! Isto inspira uma credibilidade boa pra cacete.
De repente, sons de inúmeros pássaros soaram na escuridão que os rodeava. Qualquer um acharia que devia ser somente um bando de corujas noturnas piando ao luar.
Maldição, os dois estavam gritando.
— Não importa, V. – Sussurrou ele. — Você é inteligente pra caralho, preocupe-se com sua própria vida.
Seu último pensamento consciente antes do cérebro entrar em modo de A Hora Mais Escura e nada mais se registrar além da agressividade, foi sua Mary.
Ele visualizou a última vez em que estiveram sozinhos.
Era um ritual dele antes de enfrentar o inimigo, um talismã mental que esfregava em busca de boa sorte, e esta noite visualizou o modo como ela tinha ficado em pé
em frente ao espelho do quarto deles, aquele sobre a mesinha de apoio onde mantinham os relógios e chaves, as joias dela e os pirulitos dele, e os celulares.
Ela estava na ponta dos pés debruçada sobre a mesa, tentando colocar um brinco de pérola no lóbulo da orelha sem conseguir encontrar o furo. Com a cabeça virada
para o lado, seus cabelos castanhos escuros flutuavam sobre o ombro e o faziam querer enfiar a cara naquelas ondas recém-lavadas. E isto não era nem metade do que
o impressionava nela. O ângulo reto de seu maxilar capturava e refletia a luz da arandela na parede, e a blusa de seda cor creme, que descortinava sobre seus seios,
enfiada dentro da cintura estreita, e as calças moldavam seu corpo magro. Nenhuma maquiagem. Sem perfume.
Seria como tentar retocar a Mona Lisa ou atingir um botão de rosa com um jato de Bom Ar.
Havia centenas de milhares de pequenos detalhes nos atributos físicos de sua companheira, e nenhuma frase, nem mesmo um livro inteiro, passaria perto de descrever
sua presença.
Ela era o relógio em seu pulso, o assado quando tinha fome, o jarro de limonada quando tinha sede. Ela era sua igreja e seu coral, a montanha de sua escalada, a
biblioteca de sua curiosidade e cada nascer ou por do sol que já houve ou jamais haverá. Com um olhar ou a sílaba de uma palavra, ela tinha o poder de transformar
seu humor, levando-o às nuvens, mesmo com os pés firmes no chão. Com um único toque, ela conseguia acorrentar seu dragão interior ou fazê-lo gozar sem ele nem mesmo
estar de pau duro. Ela era todo o poder do universo compactado em uma criatura viva, o milagre que lhe tinha sido concedido, apesar dele há longo tempo não merecer
nada além de maldições.
Mary Madonna Luce era a virgem que Vishous dissera que estava em seu caminho – e era mais do que suficiente para transformá-lo em um vampiro temente a Deus.
Por falar nisto...
Rhage avançou sem esperar o sinal de “Já” de sua equipe. Correndo pelo campo, trazia as duas armas erguidas à sua frente e combustível Premium aditivado percorrendo
os músculos de suas pernas. E não, ele não parou para ouvir os irmãos praguejarem de frustração quando rompeu a cobertura e partiu cedo demais para o ataque.
Estava acostumado aos garotos emputecidos com ele.
Era muito mais difícil lidar com seus próprios seus demônios do que os irmãos.
LUGAR SEGURO, ESCRITÓRIO DA MARY
Ao desligar o telefone, Mary Madonna Luce manteve a mão sobre a superfície lisa do receptor. Como muitos dos equipamentos e móveis do Lugar Seguro, ele tinha mais
de uma década de uso, era um AT&T doado por alguma companhia de seguro ou talvez de uma corretora imobiliária, depois de ser trocado por algo mais moderno. O mesmo
com a mesa. A cadeira. Até o tapete sob seus pés. No único abrigo contra violência doméstica contra fêmeas e crianças da raça, cada centavo que saía das generosas
doações do Rei era gasto com o apoio, tratamento e reabilitação das pessoas que precisavam.
As vítimas eram admitidas gratuitamente. E ficavam na casa grande e cheia de cômodos por quanto tempo fosse necessário.
A folha de pagamento era, é claro, a maior despesa... E com notícias como a que tinha acabado de chegar pelo telefone, Mary ficava verdadeiramente agradecida pelas
prioridades de Marissa.
— Foda-se, morte. – Sussurrou ela. — Foda-se mesmo, muito, muito mesmo.
O ruído que sua cadeira emitiu quando se inclinou para trás lhe causou um estremecimento, mesmo acostumada a ele.
Olhando para o teto, sentiu uma vontade arrebatadora de entrar em ação, mas a primeira regra de qualquer terapeuta era que era preciso controlar suas próprias emoções.
Despreparo e agitação não fazia bem algum aos pacientes, e contaminar uma situação já estressante com drama pessoal por parte do profissional era totalmente inaceitável.
Se houvesse tempo, procuraria um dos outros assistentes em busca de ajuda, para esclarecer o curso de suas ações com questionamentos técnicos a fim de sentir-se
novamente centrada e permanentemente composta. Dado o rumo dos acontecimentos, tudo o que tinha era tempo para uma das respirações profundas, típicas de Rhage.
Não, não do tipo sexual.
Mais do tipo ioga, que o fazia inflar os pulmões em três puxadas de ar, prender o oxigênio e então soltá-lo, junto com a tensão em seus músculos.
Ou tentar liberar a dita tensão.
Está bem, isto não estava ajudando em nada.
Mary levantou-se e teve de se contentar com dois “quase lá” no quesito compostura: um, ajeitou a blusa de seda e correu os dedos pelos cabelos, que estava deixando
crescer; e dois, recobriu suas feições com uma máscara digna de Halloween, congelando tudo em um semblante de preocupação, calorosa e sem nenhuma indicação de estar
surtando com seu próprio trauma passado.
Ao sair para o corredor do segundo andar, o cheiro de chocolate e açúcar de confeiteiro, manteiga e farinha anunciava que a Noite dos Biscoitos estava a pleno vapor
– e por um momento insano, sentiu vontade de abrir todas as janelas para deixar o ar gelado de outubro levar aquele cheiro para fora da casa.
O contraste entre aquele conforto doméstico e a bomba que estava a ponto jogar parecia desrespeitoso, na melhor das hipóteses, uma parte a mais da tragédia, na pior.
O Lugar Seguro era uma construção de três andares da virada do século XX, apenas teto e quatro paredes, com toda a graça e distinção de um saco de pão. O que ele
tinha na verdade eram quartos e banheiros em abundância, uma cozinha funcional e privacidade suficiente para que o mundo humano nunca tivesse a menor indicação de
que os vampiros usavam a coisa à sua revelia. E então veio a expansão. Depois da morte da Wellsie, Tohr tinha feito uma doação em seu nome, o Anexo Wellesandra foi
construído nos fundos por uma equipe vampira de construção. Agora eles contavam com uma sala de convivência, uma segunda cozinha, grande o bastante para que todo
mundo se sentasse junto para comer, e mais quatro suítes para as adicionais fêmeas e seus filhos.
Marissa dirigia a instalação com coração compassivo e mentalidade fantasticamente logística, e com sete conselheiros, inclusive Mary, eles executavam um serviço
útil e cheio de significado.
Isto sim, às vezes partia seu coração ao meio.
A porta para o sótão não emitiu ruído algum quando Mary a abriu porque ela mesma tinha passado óleo nas dobradiças há algumas noites. As escadas, no entanto, rangeram
ruidosamente à sua subida, as velhas placas de madeira reclamando e guinchando, por mais que ela tentasse pisar o mais leve possível.
Era impossível não sentir-se um tipo de Mensageira da Morte.
No andar acima, a luz amarela das luminárias de latão no teto destacavam os tons avermelhados, tanto dos centenários lambris sem pintura quanto da passadeira trançada
que percorria o estreito corredor. No final dele, havia uma abertura oval e a iluminação, em tons rosados da luz exterior de segurança acima, derramava para dentro
e era dividida em quadrantes pelas divisões de seus painéis.
Das seis suítes, cinco portas estavam abertas.
Ela se dirigiu até a que estava fechada e bateu. Ao ouvir um suave “Olá?” entreabriu a porta e enfiou a cabeça.
A garotinha sentada em uma das duas camas estava penteando os cabelos de uma boneca com uma escova a qual faltavam várias cerdas. Seus cabelos longos e castanhos
estavam presos para trás em um rabo de cavalo, e o vestido folgado era feito a mão, de um tecido azulado muito gasto, mas com costuras feitas para durar. Seus sapatos
estavam gastos, ainda que amarrados cuidadosamente.
Ela parecia muito pequena no que já não era um lugar muito grande.
Abandonada contra sua vontade.
— Bitty?
Levou um momento até os olhos castanhos claros se erguerem.
— Ela não está bem, está?
Mary engoliu em seco.
— Não, querida. Sua mahmen não está bem.
— É hora de me despedir dela?
Depois de um momento, Mary sussurrou.
— Sim... Receio que sim.
Capítulo DOIS
— Isso só pode ser brincadeira, porra!
Quando viu o massivo corpo do Hollywood e a bosta da sua cabeça estúpida avançar em direção aos alojamentos, Vishous quase correu atrás só para poder acabar com
a raça do irmão. Mas nããããããããããão.
Não era possível estender a mão e catar uma bala depois que o gatilho era apertado.
Mesmo que se estivesse só tentando salvar um idiota da sepultura.
V assoviou alto, mas não era como se o resto dos guerreiros não tivessem visto também as costas do cretino distanciarem-se como um morcego fugido do inferno.
Membros da Irmandade e os outros machos explodiram fora de suas posições por trás das árvores e construções, assumindo formação de asa atrás de Rhage, de armas e
adagas empunhadas. Gritos do inimigo anunciaram que o ataque foi percebido quase imediatamente, e eles chegaram a somente meia distância do objetivo quando os lessers
começaram a jorrar pelas portas, feito vespas de uma colméia.
Muita aglomeração? Pops ocos espocavam quando Rhage descarregava sua arma por todo o canto atingindo assassinos na cara, suas balas de grosso calibre explodindo
a parte de trás daqueles crânios e derrubando os mortos-vivos em emaranhados de braços e pernas irrequietos. O que era bom – mas possivelmente não iria durar, já
que os assassinos tentavam se aproximar do cara por trás, a fim de isolá-lo e criar uma segunda linha de frente contra o resto dos irmãos.
Obrigado, Sr. Apressadinho e sua ejaculação precoce, por arruinar o plano sobre o qual se debruçaram por noites a fio.
Instalou-se o caos total, o que era de se esperar, ao contrário da ação de Rhage: do mesmo modo que era possível garantir que cada combate corporal iria eventualmente
acabar no chão, era possível garantir que mesmo o ataque melhor planejado iria, depois de um tempo, cair na área do: “Puta merda” e “Cagou a porra toda”. Se tivesse
sorte, aquela inevitabilidade levaria um tempo para lhe despencar na cabeça, e até que acontecesse, o inimigo teria baixas incapacitantes.
Mas não com Hollywood por perto.
Oh, e a propósito, quando alguém diz que você vai morrer esta noite, que tal não correr direto para uma quantidade de inimigos que beirava os três dígitos? Seu filho
da puta de merda.
— Eu estava tentando salvá-lo! – V gritou em meio à ação. Só por que agora ele podia, já que não precisavam mais manter suas presenças ocultas.
Rhage era tão impulsivo. E sabendo disto, V devia ter confrontado o idiota lá na mansão antes de saírem, mas esteve distraído demais cuidando de suas próprias coisas
para se concentrar na visão. Não foi até chegarem ao campus abandonado e ele piscar algumas vezes... Que percebeu, sim, era ali que aconteceria para Rhage. Esta
noite. Neste campo.
Não revelar seria como colocar ele mesmo uma bala no cara.
É claro, dizer algo tinha funcionado tão bem.
— Foda-se, Hollywood! – Gritou ele. — Eu vou te pegar!
Pois ele ia tirar aquele puto daquele lugar nem que fosse a última coisa que faria.
V não atirou até estar a cerca de três metros de distância do primeiro alvo – era isto ou correr o risco de atingir um dos irmãos ou outro aliado. O lesser que mirou
tinha cabelos e olhos escuros e aquela agressão típica de um urso pardo: ataque direto com uma porção de cuspidelas. Uma bala acertou no olho direito e o bastardo
caiu.
Não dava tempo de apunhalar a coisa de volta ao Ômega. Vishous passou por cima do pedaço de carne que ainda se remexia sem sair do lugar e mirou o próximo. Identificando
um assassino louro a cerca de quatro metros e meio de distância à esquerda, rapidamente avaliou a periferia para ter certeza de que a Irmandade não estava sendo
destroçada. Então, usando o dedo coberto pela luva, escolheu o cara que parecia o Rod Stewart dos anos 80.
De três ao infinito, V atingiu tudo o que parecia seguro derrubar, certificando-se de não acertar seus aliados. Uns duzentos metros de corrida estilo videogame mais
tarde, alcançou tanto cobertura quanto perigo: o primeiro dos alojamentos, que o plano original era emboscar. A maldita coisa era uma concha vazia com muitos locais
para se esconder que somente um idiota acharia estarem vazias, e ele teve cuidado em monitorar seus arredores ao caminhar cuidadosamente com as costas voltadas contra
a parede, abaixando-se debaixo de janelas, passando por cima de arbustos baixos.
O fedor de algodão doce/carne podre dos lessers o golpeava por todos os lados, espiralando ao redor devido ao vento gelado que misturava tudo em uma salada de guerra
com os ecos de disparos de armas e os gritos do inimigo. A raiva que fervilhava em suas entranhas o fez avançar, ao mesmo tempo em que o mantinha focado, enquanto
tentava derrubar alvos sem ser atingido.
Assim que alcançasse Rhage, derrubaria o maldito rei da beleza no chão.
Supondo que o destino não derrubasse o filho da puta primeiro.
O lado bom era que, com o Fore-lesser fora da jogada, a resposta da Sociedade Lessening não parecia mais coordenada do que o ataque da Irmandade, e o fato do inimigo
estar pobremente armado e pateticamente destreinado era outra vantagem. Parecia haver uma média de cinco lessers armados para cada irmão, e uma média de um para
dez guerreiros competentes – e dado os números? Aquilo bem que poderia ser o que salvaria seus traseiros.
Esquerda, pop! Direita, pop! Esquivar, cair e rolar. Levantar-se e continuar a correr. Mais dois assassinos derrubados – obrigado, Assail, seu filhodaputa maluco
– pop! Bem na sua frente.
A magia aconteceu entre cerca de cinco minutos e cinquenta mil anos de luta. Sem aviso, sentiu-se separar-se de seu corpo, desfazendo-se da carne que funcionava
de forma tão rija e com tanta eficiência, seu espírito flutuando acima da adrenalina que incendiava seus braços e pernas, sua essência testemunhando-o cobrir distâncias
e impulsionando-o a frente de uma posição acima de seu ombro direito.
Era a zona, geralmente algo que o arrebatava assim que começava a lutar. Mas com Rhage sob sua pele, grudado em seu traseiro e fodendo sua cabeça, a merda estava
atrasada para a festa.
E foi por causa dessa sua perspectiva acima do quadro, que notou primeiro o dilema que se armava.
Às vezes o contra-intuitivo, o QUEPORRAÉESSA, o agir contra a corrente, era tão importante quanto todas as coisas que se esperava ver em uma batalha.
Tipo, por exemplo, três figuras correndo lateralmente ao longo daquele show de horrores rumo à saída. É claro, podiam ser lessers que amarelaram e fugiam — exceto
por um detalhe: o sangue do Ômega em seus corpos era um puta rastreador GPS, e ter de contar para aquele tipo de chefe, que tinha amarelado e picado a mula de uma
briga daquelas, seria garantia do tipo de tortura que faria o inferno parecer um passeio no campo.
Maldição, não podia permitir que eles se fossem. Não quando poderiam acabar chamando os tiras e adicionando outra camada de merda jogada naquele ventilador.
Se é que aquilo já não tinha sido feito.
Praguejando, Vishous foi atrás dos três desertores, desmaterializando-se para a área a frente onde o trio estava se dirigindo. Ao retomar forma, descobriu que eram
malditos humanos, mesmo antes de conseguir ver que aquele que estava por último corria de costas com o que, sem dúvida, era uma porra da Apple, um pedaço de merda
iConformista, apontando e mirando, evidentemente gravando um vídeo.
Ele positivamente odiava qualquer coisa com o símbolo da Macintosh.
V pulou, interceptando o caminho do cara, o que, é claro, não foi notado pelo J.J. Abrams, por que, olá, ele estava ocupado demais filmando tudo.
Vishous meteu o pé, e enquanto o humano obedecia à lei da gravidade, o celular voou e V pegou a coisa, enfiando-a no bolso da jaqueta.
O próximo passo foi pisar no esterno do cara e enfiar a arma na sua cara. Baixando o olhar para a expressão de “Puta Merda” e o choramingo gaguejado que o cara soltava,
V precisou de todo seu autocontrole para não rasgar a garganta dele, e então ir para cima dos outros dois que continuavam a correr, tal qual Jason Voorhees. Ele
estava acima disto com humanos. Tinha trabalho de verdade pra fazer, mas nããããão, ele estava de novo limpando a bunda destes ratos sem rabo para que o resto deles
não ficassem bravinhos por saberem que vampiros existiam entre eles.
— N-n-n-n-ão me m-m-m-m-machuque – gaguejou o cara. Junto com o cheiro de urina quando o cara mijou nas calças.
— Você é patético pra caralho.
Praguejando de novo, V acessou rapidamente a mente do cara para ter certeza de que não tinham chamado a polícia – a resposta foi “não” – antes de apagar a memória
do garoto, do momento em que tinha se encontrado com os amigos para fumar maconha até quando a viagem foi interrompida pelo inferno desenfreado.
— Você teve uma viagem ruim, seu cuzão. – Murmurou V. — Viagem ruim. Isto tudo é só uma porra de uma viagem ruim. Agora corra de volta para o papai e a mamãe.
Como o bom brinquedinho programado que agora era, o garoto levantou-se sobre seus antiquados tênis Converse e disparou atrás dos amigos, com uma expressão de confusão
total no rosto enrubescido.
Vishous deu outro pulo à frente e interceptou Frick e Frack. E, quem diria, a mera presença de V se materializando do nada à frente deles foi suficiente para deixá-los
em pânico – os dois congelaram no lugar como cães acorrentados ficando sem espaço na corrente, com um puxão para trás, esvoaçando suas parkas combinando.
— Vocês cuzões estão sempre no lugar errado na hora errada.
Mentalmente apagou suas memórias e os revistou, esvaziando seus bolsos ao mesmo tempo em que os cérebros – então os mandou retomar a fuga, rezando para que um ou
outro não tivesse alguma doença cardíaca não diagnosticada que subitamente disparasse sob tensão, matando-o instantaneamente.
Mas até aí, V era um bastardo malvado, então tudo bem.
Não havia tempo a perder. Voltou a tentar alcançar Rhage, sacando novamente suas armas e buscando uma maneira mais eficiente de chegar até o filho da puta. Que pena
que desmaterializar-se direto no meio do entrevero estava fora de cogitação, mas merda, tinha arma demais apontando para cada direção naquele quadrante. Ao menos
a necessária cobertura veio rápido, primeiro em uma série de árvores de bordo e então na forma de um prédio que devia ser ainda outro alojamento.
Batendo as costas contra os tijolos frios e duros, seus ouvidos se aguçaram ante o som de sua respiração pesada. Os disparos mais intensos estavam à sua esquerda,
acima e à frente, e rapidamente trocou ambos os cartuchos, mesmo que ainda houvesse três balas em um e duas no outro. Recarregado, correu na direção da quina do
prédio e espiou...
O assassino atirou na última janela sob a qual ele estava e, não fosse o ruído do caixilho, V teria sido ferido. Foi o instinto, ao invés do treinamento, que fez
seu braço se erguer e apontar para a lateral antes de ter consciência de estar se movendo, e o dedo indicador disparar meio quilo de chumbo bem nas fuças do fodido,
fazendo nuvens de sangue preto explodir da parte de trás do crânio como um vidro de nanquim caindo de uma grande altura.
Infelizmente, uma contração autônoma do aperto do assassino na arma automática que trazia na mão, causou o disparo de algumas balas e a ardência na lateral do quadril
de V mostrou que ele foi atingido, pelo menos uma vez. Mas melhor ali do que em outra parte do corpo...
Um segundo assassino surgiu da esquina e V o atingiu na garganta com a arma da mão esquerda. Aquele parecia estar desarmado, nada digno de nota, caiu na grama alta
quando a coisa agarrou a frente do pescoço para tentar conter o jorro negro.
Não havia tempo para recolher nenhuma arma ou apunhalá-los de volta ao Ômega.
À frente, Rhage estava com problemas.
No coração do campus, na área retangular formada por prédios erguidos com uns cinco acres de distância, Rhage estava no centro da atenção de uma galera da primeira
fila, composta por pelo menos vinte assassinos que o rodeavam.
— Jesus Cristo. – Murmurou V.
Não havia tempo para elaborar uma estratégia. Dã. E ninguém mais viria ajudar Hollywood. Os outros irmãos e guerreiros estavam muito ocupados, o ataque tendo se
dissipado em meia dúzia de escaramuças se desenvolvendo em diferentes quadrantes.
Não havia ninguém disponível em uma situação que bem necessitava de três ou quatro anjos salvadores. Ao invés de um que tinha um ferimento na coxa e um rancor do
tamanho do Canadá.
Maldição, ele estava acostumado a estar sempre certo, mas às vezes isto era um pé no saco.
Vishous avançou e se concentrou na lateral da briga, escolhendo assassinos enquanto tentava dar a seu irmão uma rota de escape viável. Mas Rhage... Porra, Rhage.
Ele estava, de alguma forma, totalmente imerso naquilo. Mesmo que a matemática não chegasse a resultado algum além de caixão, o maldito imbecil era de uma beleza
mortal ao lentamente girar, esvaziando as armas nos que estavam mais perto, recarregando sua automática sem perder um movimento, criando um anel de corpos que se
contorciam, meio mortos, meio vivos, como se estivesse no olho de um furacão destruidor.
A única coisa que não parecia estar sob controle? Seu belo rosto, digno de uma história infantil, estava contorcido no esgar de um monstro, a raiva assassina dentro
dele nem ao menos parcialmente contida. E isto teria sido quase aceitável.
Não fosse o fato de se esperar profissionalismo por parte dele.
Aquele tipo de emoção assassina era um comportamento amador, o tipo de coisa que te cegava ao invés de te manter focado, te enfraquecia ao invés de te tornar invencível.
Vishous trabalhou o mais rápido que pôde mirando em peitos, entranhas, cabeças, até o fedor saturar o ar livre, mesmo com o vento soprando em direção oposta. Mas
tinha de compensar o campo de tiro, sempre circular, de Rhage, tentando ficar ele próprio fora de alcance, por que tinha certeza de que o irmão não conseguiria diferenciá-lo
de seus alvos.
E esta era a porra do problema quando você entrava despreparado na luta.
E então acabou.
Mais ou menos.
Mesmo depois daqueles vinte ou vinte e cinco lessers estarem caídos no chão, Rhage ainda girava e continuava a atirar, um carrossel mortal sem passageiros em seus
cavalos demoníacos, estúpidos demais para saberem onde seu próprio botão de desligar ficar.
— Rhage! – V olhou ao redor mantendo as armas apontadas, mas sem atirar. — Seu maldito idiota! Pare!
Pop! Pop! Pop-pop!
O cano de Hollywood continuou a tossir flashes de luz mesmo que não houvesse mais alvos – exceto outros guerreiros à distância, fora de alcance naquele momento.
Mas não era garantido que permanecessem assim.
Vishous se aproximou, passando por cima dos corpos que se agitavam no chão, mantendo-se às costas de Rhage, que ainda girava.
— Rhage!
A tentação de atirar na bunda do cara foi tão forte, que sua mão direita chegou a abaixar o cano até à altura do traseiro. Mas era só uma fantasia. Dar a Hollywood
uma injeção de chumbo só dispararia a fera quando o próprio V estava ao alcance para virar seu aperitivo.
— Rhage!
Algo deve ter chegado até o irmão por que a barragem de tiros inúteis diminuiu... E então parou, deixando Rhage arfando, curvando-se de forma neutra.
Estavam tão a descoberto que ambos bem podiam ter setas de neon apontando para suas cabeças.
— Você vai sair daqui. – Rosnou V. — Está brincando comigo, porra, nessa merda...
Foi quando aconteceu.
Em um segundo, estava contornando para ficar de frente para o irmão... E no seguinte ele viu, pelo canto dos olhos, um dos lessers não-suficientemente-mortos erguer
um braço instável... Com uma arma anexada à extremidade. Quando a bala explodiu para fora daquele cano, o cérebro de V fez os cálculos de distância e ângulo tão
rápido quanto o vôo da bala de chumbo.
Direto para o peito de Rhage.
Bem no meio do peito de Rhage – por que, olá, era o maior alvo, tirando a porra da porta do alojamento do campus.
— Não! – Gritou V ao pular e se interpor no caminho.
É, pois ele morrer no lugar de Rhage seria um resultado bem melhor, né? Perder/perder, de ambos os jeitos.
Não houve dor alguma em seu vôo, nem o som ressoante da entrada de uma bala na lateral de seu corpo, seu quadril, sua outra coxa.
Por que a maldita coisa já tinha encontrado outro lar.
Rhage soltou um grunhido e suas duas armas apontaram para o céu, aquela típica compressão autônoma nos gatilhos naquelas mãos esvaziaram os cartuchos: bang, bang,
bang, bang! Para o céu, para o paraíso, como se Rhage estivesse amaldiçoando de dor.
E então o irmão caiu.
Ao contrário dos garotos do Ômega, um ferimento certeiro como aquele mataria qualquer vampiro, mesmo um membro da Irmandade. Ninguém escapava daquele tipo de merda,
ninguém.
Ao gritar de novo, V caiu em seu próprio pedaço de chão e descarregou uma de suas amas, enchendo o assassino com tanto chumbo que o fodido poderia virar um cofre
de banco.
Com a ameaça neutralizada, engatinhou até o irmão se arrastando de lado com as armas e a ponta dos coturnos. Para um macho que nunca sentia medo, ele se viu olhando
para a boca escancarada do puro terror.
— Rhage! – Disse ele. — Puta que pariu... Rhage!
Capítulo TRÊS
O novo centro médico de Havers estava localizado do outro lado do rio, em meio a uma área florestal de quatrocentos acres, intocado a não ser por uma velha fazenda
e três ou quatro quiosques recém-construídos que serviam de entrada para a instalação subterrânea. Enquanto dirigia o último trecho da viagem de vinte minutos em
seu Volvo XC70, Mary fitava seguidamente o espelho retrovisor, preocupada com Bitty.
A garota estava sentada no banco de trás do utilitário e olhava pela janela escura ao seu lado, como se fosse uma televisão transmitindo um programa viciante.
Cada vez que Mary voltava a se concentrar na estrada a sua frente, apertava o volante com mais força. E o acelerador.
— Estamos quase chegando. – Disse ela. De novo.
A afirmação pretendia ser confortadora, mas não estava fazendo bem nenhum à Bitty e Mary sabia que só tentava acalmar a si própria. A ideia de que pudessem não chegar
a tempo ao lado do leito era um fardo hipotético que não conseguia evitar de cogitar – e cara, aquela sensação de pesar e frustração a fazia sentir-se incapaz de
respirar.
— Aqui está o desvio.
Mary ligou a seta e entrou à direita, para uma via de mão única que era irregular e exatamente o que toda a sua agitação interna não precisava.
Mas também, ela bem poderia estar em uma super rodovia perfeitamente asfaltada e seu coração continuaria a parecer dançar a conga dentro do peito.
O único centro médico da raça tinha sido construído para dispersar, tanto a atenção humana quanto os efeitos impiedosos da luz do sol, e ao trazer alguém ou buscar
tratamento médico para si mesmo, era designado um dos vários pontos de entrada. Quando a enfermeira tinha ligado para dar a triste notícia, Mary foi orientada a
ir diretamente à fazenda e estacionar lá, e foi o que fez, parando entre uma caminhonete que era nova e um sedã Nissan que não era.
— Está pronta? – Perguntou pelo retrovisor ao desligar o carro.
Diante da ausência de resposta, circulou o carro até a porta de Bitty. A garota pareceu surpresa ao descobrir que já tinham chegado e as pequenas mãos remexeram
para soltar o cinto de segurança.
— Quer ajuda?
— Não, obrigada.
Bitty estava claramente determinada a sair sozinha do carro, mesmo que levasse mais tempo do que se aceitasse a ajuda. E o atraso talvez fosse intencional. A sensação
de insegurança quanto ao que aconteceria depois daquela morte era quase terrível demais para se imaginar. Sem família. Sem dinheiro. Sem educação.
Mary apontou um celeiro atrás da fazenda.
— Vamos por ali.
Cinco minutos depois, passaram por alguns pontos de controle e desceram pelo elevador, de onde saíram para uma recepção muito limpa e iluminada e uma sala de espera
que cheirava exatamente igual àquelas dos hospitais humanos: aroma artificial de limão, vaga mistura de perfume e o tênue cheiro do jantar de alguém.
Pavlov tinha razão, Mary pensou ao se aproximar da recepção central. Só era preciso aquela combinação de anti-séptico e ar viciado em seu nariz para sentir-se de
volta àquela cama de hospital, com tubos entrando e saindo dela, as medicações que tentavam matar o câncer em seu sangue fazendo-a sentir, na melhor das hipóteses,
como se estivesse com gripe, e na pior, como se fosse morrer a qualquer momento.
Época divertida.
Quando a enfermeira loura atrás da tela do computador ergueu o olhar, Mary disse:
— Oi, eu sou...
— Siga por ali. – A fêmea disse com urgência. — Pelas portas duplas. Vou destravá-la. O posto de enfermagem fica bem à frente. Elas te levarão direto para lá.
May não esperou nem para agradecer. Agarrou a mão de Bitty, apressou-se pelo chão brilhoso e polido, e empurrou as portas de metal assim que ouviu o mecanismo da
tranca ser liberado.
Do outro lado das cadeiras confortáveis e das revistas muito folheadas da sala de espera, tudo era profissionalmente clínico, pessoas de jaleco e com os tradicionais
uniformes de enfermagem brancos, andando para lá e para cá carregando bandejas, notebooks e estetoscópios.
— Por aqui. – Alguém chamou.
A enfermeira em questão tinha cabelos pretos bem curtos, olhos azuis que combinavam com seu uniforme e um rosto tipo Paloma Picasso.
— Eu levo vocês até ela.
Mary pôs-se atrás de Bitty, guiando a garota pelos ombros enquanto andavam pelo corredor e então outro para o que obviamente levava à área da UTI: quartos normais
de hospital não possuíam paredes de vidro com cortinas cerradas por dentro. Não tinham tanta equipe em volta. Não tinham painéis com sinais vitais piscando atrás
do posto de enfermagem.
Quando a enfermeira parou e abriu uma das portas, o ruído do equipamento médico soava urgente, um tipo frenético de bips e guinchos que sugeriam que os computadores
estavam preocupados com o que estava acontecendo à paciente.
A fêmea manteve a cortina afastada.
— Podem entrar.
Quando Bitty hesitou, Mary se abaixou.
— Não vou sair do seu lado.
E de novo, era algo que Mary estava dizendo por si mesma. A garota nunca tinha parecido particularmente interessada com qual membro da equipe do Lugar Seguro estava
ou não ao seu redor.
Quando Bitty permaneceu no mesmo lugar, Mary levantou o olhar. Havia duas enfermeiras verificando os sinais vitais de Annalye, uma de cada lado da cama, e Havers
também estava lá colocando algum tipo de medicação no acesso intravenoso daquele braço assustadoramente fino.
Por uma fração de segundo, ela violentamente conscientizou-se do quadro. A figura na cama tinha cabelos escuros ralos, a pele estava cinzenta, os olhos estavam fechados
e uma boca que estava relaxada – e durante aquele instante infinito enquanto Mary olhava para a fêmea que estava morrendo, não conseguia decidir se estava vendo
sua própria mãe ou a si mesma em cima daquele travesseiro imaculadamente branco.
Não posso fazer isto, pensou.
— Vamos lá, Bitty. – Disse com a voz rouca. — Vamos até lá segurar a mão dela. Ela vai gostar de saber que você está aqui.
Enquanto Mary levava a garota, Havers e a equipe desaparecia ao fundo, recuando sem estardalhaço como se soubessem muito bem que não havia nada que pudessem fazer
para interromper o inevitável e que a chance de Bitty dizer adeus era o caminho inevitável.
Ao lado da cama, Mary manteve a mão sobre o ombro de Bitty.
— Tudo bem, pode tocá-la. Aqui.
Mary se inclinou à frente e segurou a suave mão gelada.
— Olá, Annalye. Bitty veio te ver.
Olhando para a garota, ela anuiu em encorajamento... E Bitty franziu o cenho.
— Ela já está morta? – A garota sussurrou.
Mary piscou com força.
— Ah, não, querida. Ela não está. E consegue te ouvir.
— Como?
— Ela consegue. Vá em frente. Fale com ela. Sei que vai gostar de ouvir sua voz.
—Mahmen? – Disse Bitty.
— Segure a mão dela. Está tudo bem.
Quando Mary recuou um passo, Bitty estendeu a mão... E quando o contato foi feito, a garota franziu o cenho de novo.
— Mahmen?
De repente, alarmes começaram a soar com pânico renovado, os sons estridentes invadindo a frágil conexão entre mãe e filha, trazendo a equipe médica de volta para
a cama apressadamente.
— Mahmen! – Bitty agarrou com ambas as mãos. — Mahmen! Não vá!
Mary foi forçada a puxar Bitty para tirá-la do caminho quando Havers começou a gritar ordens. A garota lutou contra seu gesto, mas então entrou em colapso gritando
com os braços estendidos na direção da mãe e o cabelo emaranhando.
Mary segurou o pequeno corpo agitado.
— Bitty, oh, Deus...
Havers aproximou-se da cama e começou a fazer massagem cardíaca enquanto o ressuscitador de emergência era trazido.
— Temos de ir, – Disse Mary, empurrando Bitty na direção da porta. — Vamos esperar lá fora...
— Eu a matei! Eu a matei!
Ao derrapar na direção de Rhage, Vishous caiu de joelhos e buscou pela jaqueta de couro e camisa do irmão, arrancando as camadas de tecido e expondo...
— Ai... Caralho.
A bala tinha entrado à direita do centro, exatamente onde ficava o coração de seis válvulas de um vampiro dentro das costelas. E quando Rhage ofegou em busca de
ar e cuspiu sangue, V olhou ao redor freneticamente. Guerra pra todo canto. Cobertura em canto nenhum. O tempo... Estava acabando...
Butch vinha correndo até eles de cabeça baixa, disparando um par de armas calibre 40 ao redor de si mesmo em ciclos de bombeamento, de forma que os assassinos ao
alcance tinham de cair no chão em posição fetal para evitar serem atingidos pelos tiros. O ex-tira abaixou-se, as armas ainda erguidas e prontas para disparar, suas
pernas de buldogue e torso se jogaram também na grama alta marrom.
— Temos de tirá-lo daqui. – Aquele sotaque de Boston anunciou.
A boca de Rhage abriu largamente e a inalação que veio em seguida era chiada como uma caixa de pedras.
Geralmente o cérebro de V era aguçado pra caralho, sua grande inteligência era mais uma característica pessoal que uma aptidão e definia tudo em sua vida. Ele era
o racional, o lógico, o filho da puta cínico que nunca errava.
E ainda assim, suas células cinzentas imediatamente pifaram.
Anos de prestação de assistência médica e intervenções em campo lhe diziam que seu irmão ia morrer em um minuto ou dois, caso o músculo do coração tivesse sido mesmo
dilacerado ou perfurado, e uma ou mais válvulas começasse a vazar sangue na cavidade torácica.
Isto resultaria na interrupção da função cardíaca quando o saco peritoneal se inundasse e fatalmente comprometeria a pressão sanguínea.
Era o tipo de ferimento catastrófico que requeria intervenção cirúrgica imediata – e mesmo assumindo que tivessem toda a tecnologia e equipamentos necessários em
uma situação de clínica esterilizada, o sucesso não era garantido.
— V! Temos de tirá-lo daqui...
Balas voavam ao redor e ambos se jogaram no chão. Com um terrível cálculo mental, a unidade de processamento de V chegou a uma conclusão insustentável: a vida de
Rhage ou a deles.
Porra! A culpa é minha, pensou V.
Se não tivesse contado ao irmão sobre a visão, Rhage não teria corrido prematuramente e teria tido mais controle sobre a luta...
Vishous ergueu suas armas e abateu três assassinos que se aproximavam enquanto Butch girava no chão e fazia o mesmo na direção oposta.
— Rhage, fique conosco. – V grunhiu ao se desfazer do cartucho vazio e recarregar as armas, uma após a outra. — Rhage, você precisa... Merda!
Mais tiros. E ele foi atingido no maldito braço.
Enquanto seu próprio sangue corria, ele ignorou, seu cérebro lutando para encontrar uma solução que não resultasse na porra de uma pira funerária para Rhage. Ele
podia chamar Jane por que ela não podia morrer. Mas ela não conseguiria executar uma cirurgia cardíaca de peito aberto aqui, pelo amor de Deus. E se...
O flash de luz foi tão brilhante, tão súbito, que o fez se perguntar quem infernos estaria perdendo tempo apunhalando um lesser de volta para o Ômega...
O segundo jorro de iluminação o fez girar e olhar para Rhage. Oh... Merda. Feixes gêmeos de luz brilhante espocavam das órbitas dos olhos do irmão, apontando para
o céu como feixes de laser em correntes paralelas que poderiam atingir a face da lua.
— Caraaaaaalho!
Mudança total de planos. O tema filho da puta da noite.
V avançou para Butch e o puxou, afastando-o de Rhage.
— Corre!
— O que está fazendo... Santa Maria, mãe de Deus!
Os dois puseram-se a correr desabaladamente mantendo a cabeça baixa, as pernas comendo a distância pela área aberta, enquanto pulavam sobre lessers e se desviavam
para se tornarem alvos mais difíceis. Ao chegarem à construção mais próxima da escola abandonada, eles se alternaram nos cantos em busca de cobertura, V pela frente,
Butch pelos fundos.
Com o peito ofegando, Vishous se inclinou. No centro da clareira, a transformação torturava o corpo caído de Rhage, seus braços e pernas se contorciam enquanto seu
torso convulsionava e tinha espasmos, a fera emergindo da carne do macho, o grande dragão se libertando do DNA que era forçado a compartilhar.
Se Rhage não tivesse morrido ainda, aquilo certamente o mataria.
E ainda assim, não havia como interromper a transformação. A Virgem Escriba tinha entremeado a maldição em cada uma das células de Rhage, e quando a hora chegava,
o processo era um trem descarrilado que ninguém conseguia deter.
A morte cuidaria disto.
A morte de Rhage... Acabaria com aquilo tudo.
V fechou os olhos e gritou por dentro.
Um segundo depois ergueu as pálpebras e pensou, “de jeito nenhum, porra”. “De jeito nenhum, cacete, que vou deixar isto acontecer.”
— Butch, – Rosnou ele. — Tenho que ir.
— O que? Onde você...
Foi a última coisa que Vishous ouviu ao se levantar e desaparecer.
Capítulo QUATRO
Não havia dor.
Nenhuma dor vinha do ferimento que a bala fez no peito de Rhage. E aquela era a primeira indicação de que a merda era séria. Ferimentos que doem tendem a não ser
do tipo que te coloca em estado de choque. Não sentir nada? Provavelmente uma boa indicação – juntamente com o fato de ele ter desabado no chão e o tiro ter sido
certeiro em seu peito – de que corria perigo mortal.
Piscada. Tente respirar. Piscada.
O sangue em sua boca, espesso em sua garganta... Uma maré crescente que ia contra seus esforços de fazer o oxigênio entrar em seus pulmões. A audição tinha se reduzido
a uma abafada versão de si mesma, como se estivesse deitado de costas em uma banheira e o nível da água tivesse subido até cobrir seus dois ouvidos. A visão ia e
vinha, o céu noturno acima dele se revelava e se obscurecia, enquanto as coisas falhavam e voltavam a aparecer. Respirar ficava cada vez mais difícil, um peso crescente
se instalava em seu peito, primeiro como uma sacola, então um baú cheio... Agora já no nível de um trem de carga.
Rápido, estava acontecendo rápido demais.
Mary, ele pensou. Mary?
Seu cérebro cuspiu o nome de sua shellan – talvez ele tenha mesmo chamado em voz alta? – como se sua companheira pudesse ouvi-lo, de alguma forma.
Mary!
O pânico inundou sua corrente sanguínea, acumulando-se dentro das costelas – junto com o plasma que, sem dúvida, estava vazando pela porra toda. Seu único pensamento,
mais do que a morte, a batalha ou mesmo a segurança dos irmãos, era... Oh, Deus, faça a Virgem Escriba manter sua parte da barganha.
Não permita que ele acabe no Fade sozinho.
Mary devia deixar a terra com ele. Devia lhe ser permitido segui-lo quando ele fosse para o Fade. Era parte do acordo que tinha feito com a Virgem Escriba: ficaria
com a maldição e sua Mary sobreviveria à leucemia, e por que sua companheira tinha se tornado infértil devido ao tratamento contra o câncer, ela ficaria com ele
pelo tempo que quisesse.
Você vai morrer esta noite, porra.
Bem ao ouvir a voz de Vishous em sua mente, o rosto do irmão apareceu em seu campo de visão, substituindo o céu. A boca de V se movia, o cavanhaque ondulava enquanto
enunciava as palavras. Rhage tentou afastar o macho, mas seus braços não obedeciam aos comandos de seu cérebro.
A última coisa que precisava era que outra pessoa também morresse. Embora, sendo o filho da Virgem Escriba, V provavelmente seria o último a se preocupar sobre algo
tão improvável quanto bater as botas. Mas quando Butch, o terceiro elo do trio, chegou escorregando e berrando também? Agora, ali estava um cara que não tinha um
cartão de dispensa da Dona Morte...
Tiros. Ambos começaram a atirar.
Não! Rhage ordenou a eles. Diga a Mary que eu a amo e me deixem aqui antes que vocês...
V recuou como se algo de chumbo tivesse penetrado em alguma de suas partes.
E foi quando aconteceu.
Foi o cheiro do sangue do irmão que desencadeou. No instante em que aquela nuance de cobre atingiu o nariz de Rhage, a fera despertou dentro da prisão de seu corpo
e começou a sair, a mudança dando início a terremotos internos que estalaram seus ossos, despedaçaram seus órgãos internos e o transformaram em uma coisa totalmente
diferente.
Agora havia dor.
Bem como a sensação de que este esforço era uma perda da porra do tempo. Se ele ia morrer, o dragão estava só tomando seu lugar na merda da situação.
— Diga a Mary para vir comigo. – Rhage gritou ao ficar completamente cego. — Diga a ela...
Mas teve a sensação de que os irmãos já tinham se afastado e graças a Deus por isso: o sangue de V não estava mais no ar e ninguém respondeu.
Mesmo quando sua força vital se esvaiu, fez de tudo para seguir a corrente enquanto os violentos movimentos da fera destruíam seu corpo moribundo. Mesmo que tivesse
a energia, lutar contra aquela corrente seria desperdício de esforço e não facilitaria nada. Entretanto, enquanto seu corpo e mente, suas próprias emoções e consciência
recuavam, era estranho que não soubesse se era a morte ou a transformação que estava ocorrendo a ele.
Quando o sistema nervoso da fera assumiu completamente o controle sobre ele e suas sensações de dor desapareceram, Rhage recuou a uma zona de flutuação metafísica,
como se quem e o que ele era fosse depositado em um globo de neve no alto da prateleira do continuum tempo.
Só que neste caso tinha a impressão que não seria mais retirado de lá.
O que era engraçado. Cada uma das criaturas que tinham consciência e sabiam de sua própria mortalidade inevitavelmente se perguntavam, de vez em quando, quando e
onde, como e por que de sua própria morte. O próprio Rhage tinha seguido este fluxo mórbido de pensamento, especialmente durante seu período pré-Mary, quando era
um solitário sem nada além de um catálogo de suas falhas e fraquezas para lhe fazer companhia durante as densas e desertas horas de luz do dia.
Para ele, aquelas questões desconexas tinham sido inesperadamente respondidas esta noite: “onde” era no meio do campo de batalha em uma escola abandonada para garotas;
“como” era devido a uma hemorragia cardíaca, resultado de um tiro; “por que” era consequência de seu dever; “quando” seria provavelmente nos próximos dez minutos,
talvez menos.
Dada a natureza de seu trabalho, nada daquilo era surpresa. Está bem, talvez a parte da escola fosse, mas só isso.
Ele sentiria falta dos irmãos, Jesus... E aquilo doía mais do que a fera. E se preocuparia com todos eles e o futuro do reinado de Wrath. Merda, perderia o crescimento
de Nalla e L.W1. E o nascimento dos gêmeos de Qhuinn... Que nasçam vivos e saudáveis. Será que conseguiria ver a todos de lá do Fade?
Oh, sua Mary. Sua bela, preciosa Mary.
O terror o atingiu, mas era difícil apegar-se à emoção enquanto sentia-se enfraquecer cada vez mais. Para se acalmar, disse a si mesmo que a Virgem Escriba não mentia.
A Virgem Escriba era toda poderosa. A Escriba Virgem tinha determinado o equilíbrio necessário para salvar a vida de sua Mary e dera a eles o grande presente para
compensar o fato de que sua shellan nunca poderia ter filhos.
Sem filhos, pensou com um angústia. Ele e sua Mary jamais teriam filhos de qualquer forma agora.
Isto era tão triste.
Estranho... Não tinha pensando que os queria, pelo menos não conscientemente. Mas agora que tudo aquilo tinha acontecido? Estava totalmente desolado.
Pelo menos sua Mary jamais o abandonaria.
E precisava ter fé em que, quando chegasse às portas do Fade e prosseguisse a atravessá-la para o que havia do outro lado, ela conseguiria encontrá-lo.
Senão, esta coisa toda de morte seria insuportável de enfrentar. A ideia de que poderia estar morrendo e que jamais veria sua amada de novo? Jamais voltar a sentir
o cheiro de seus cabelos? Sentir seu toque? Falar a verdade mesmo que ela já soubesse, do quanto a amava?
Era por tudo isto que a morte era tal tragédia, pensou. Era o grande separador, e às vezes atingia sem aviso, um ladrão cruel roubando as pessoas de seus cursos
emocionais que os arruinaria pelo resto de suas vidas...
Merda, e se a Virgem Escriba estivesse errada? Ou tivesse mentido? Ou não fosse tão poderosa?
Subitamente seu pânico recarregou e seus pensamentos começaram a embaralhar, prendendo-o na distância que ultimamente tinha aparecido entre ele e sua shellan, distância
que tinha subestimado, achando que teria tempo e espaço para corrigir.
Oh, Deus... Mary, disse em sua cabeça. Mary! Eu te amo!
Merda. Devia ter falado sobre estas coisas com ela, escavado profundamente para descobrir onde estava o problema, aproximando-os novamente até que estivessem de
novo alma-a-alma.
O problema era, percebeu com terror, enquanto o coração finalmente parava de bater em seu peito, tudo o que você desejava ter dito, todas as peças que faltavam de
si mesmo que ainda tinha a oferecer, todas as falhas que tinha varrido para baixo do tapete, sob a desculpa da vida ser corrida demais... Aquilo acabava também.
O meio do passo, que jamais seria completado, era o pior arrependimento que alguém poderia ter.
Talvez você só não aprendesse isto até que todas as coisas sobre as quais sempre se questionou sobre sua morte realmente acontecesse. E sim, aquelas perguntas que
sempre se fez, os comos e porquês, ondes e quandos... Se tornavam malditamente imateriais quando você partia desta existência.
Eles tinham se afastado, ele e Mary.
Ultimamente... Eles perderam um pouco da conexão entre eles.
Ele não queria partir assim...
Luz branca varreu tudo, devorando-o vivo, roubando sua consciência.
O Fade tinha vindo até ele. E só podia rezar para que sua Mary Madonna fosse capaz de encontrá-lo do outro lado.
Tinha coisas que precisava desesperadamente dizer a ela.
Vishous reassumiu a forma em um pátio de mármore branco que se abria para um céu leitoso tão vasto e brilhante que não havia sombras lançadas pela fonte no centro
ou pela árvore cheia de passarinhos coloridos chilreando mais ao canto.
Os quais silenciaram ao pressentirem seu humor.
— Mãe! – Sua voz entoou, ecoando entre as paredes. — Onde diabos você está!?
Ao avançar, a trilha de sangue que deixou à sua passagem era de um vermelho brilhante e, quando parou à porta que levava aos aposentos particulares da Virgem Escriba,
gotas caíram de seu cotovelo e perna em impactos suaves. Quando bateu e chamou novamente o nome dela, salpicos do sangue tingiram a porta branca, como esmalte de
unha caindo no chão.
— Foda-se!
Forçando a porta com o ombro, invadiu os aposentos da mãe – só para parar de supetão. Sobre a plataforma de dormir, debaixo de lençóis de cetim branco, a entidade
que tinha criado a raça vampírica e também corporeamente gerado ele e sua irmã, estava deitada em absoluta imobilidade e silêncio. Mas não havia forma corpórea nela.
Somente uma poça tridimensional de luz que outrora fora tão brilhante quanto o estouro de uma bomba, mas agora era como uma antiquada lamparina com a luz embaçada.
— Você precisa salvá-lo, – Ao cruzar o chão de mármore, Vishous reparou vagamente que o quarto estava vazio, exceto pela cama. Mas quem se importava? — Acorda, porra!
Alguém importante está morrendo e você precisa impedir, maldição.
Se ela tivesse um corpo, ele a teria agarrado e forçado a prestar atenção. Mas não havia braços para ele puxar para fora da cama ou ombros para chacoalhar.
Estava a ponto de gritar de novo quando palavras soaram pelo quarto como se viessem de um sistema de som surround.
O que tiver de ser, será.
Como se isto explicasse tudo. Como se ele fosse um cuzão por ter vindo incomodá-la. Como se estivesse desperdiçando o tempo dela.
— Por que nos criou se não liga a mínima?
Exatamente o que te preocupa? O futuro dele ou o seu?
— Do que infernos está falando? – Oh, e sim, sabia que não devia questioná-la, mas foda-se. — O que isto significa?
Será necessário mesmo uma explicação?
Ao cerrar os dentes, V lembrou a si mesmo de que Rhage estava em campo se transformando em um monstro e morrendo daquela encarnação: ficar de bate boca com a querida
mamãe não seria o melhor caminho aqui.
— Apenas salve-o, tudo bem? Tire-o daquele teatro de horrores para que possamos operá-lo e eu te deixo aqui para apodrecer em paz...
E isto resolveria o destino dele em que?
Está bem, agora sabia por que os humanos com questões maternas iam àqueles programas que o Lassiter gostava de assistir. Cada vez que V chegava perto desta fêmea,
entrava em estado de psicose induzida pelo útero.
— Ele vai continuar respirando, é isto que vai resolver.
O destino vai acabar se cumprindo de outras maneiras.
V imaginou Hollywood escorregando no tapete do banheiro numa queda em casa que o mataria. Ou engasgando com uma coxa de peru. Ou só Deus sabe o que mais poderia
matar o irmão.
— Então o mude. Você é poderosa pra cacete. Mude o destino dele agora mesmo.
Houve uma longa pausa e se perguntou se ela não teria caído no sono de novo ou merda do tipo – e cara, ele realmente a odiou. Ela era uma maldita desistente, retirando-se
do mundo, isolando-se aqui em cima como uma reclusa rabugenta só por que ninguém mais estava beijando sua bunda do jeito que ela queria.
Que peninha.
Enquanto isto, um dos melhores guerreiros deles, um que era absolutamente indispensável na guarda privada do Rei, estava a ponto de se pirulitar deste planeta. E
V era a última pessoa a querer que outra pessoa resolvesse os problemas por ele, mas tinha de tentar salvar Rhage com tudo o que podia, e quem diabos mais tinha
este tipo de poder?
— Ele é importante, – V rosnou. — A vida dele é importante.
Pra você.
— Foda-se, isto não é sobre mim. Ele importa ao Rei, à Irmandade, à guerra. Se o perdermos? Teremos um problemão.
Por que não tenta ser honesto?
— Acha que estou preocupado com ele e Mary? Sim. Confesso essa merda também por que neste exato momento você não parece ser capaz sequer de ficar em pé, quanto mais
acompanhar uma não-entidade que você arrancou do reino mortal pela travessia até o Fade no momento em que ela quiser.
Porra. Agora que tinha falado em voz alta, realmente tinha de se perguntar se aquela coisa alquebrada em cima da cama poderia mesmo cumprir a promessa que fizera
no que parecia ser antigamente, mesmo que só tivesse sido há três anos.
Tanta coisa tinha mudado.
Exceto o fato de que ainda odiava qualquer tipo de fraqueza. E continuava a detestar estar na presença da mãe.
Vá embora. Você me cansa.
— Eu te canso. É, por que você tem mesmo tanta coisa pra fazer aqui em cima. Jesus Cristo.
Tudo bem, ela que se fodesse. Ele descobriria outra saída. Outro... Alguma coisa.
Merda, o que mais havia?
Vishous virou-se para a porta que tinha arrombado. A cada passo dado, esperava que ela o chamasse de volta, dissesse algo ou lhe desse uma dor no peito quase tão
letal quanto o golpe que derrubara Rhage. Quando ela não chamou, e a porta se fechou mal tinha passado, quase acertando seu traseiro, ele pensou que já devia saber.
Ela não se importava o suficiente nem para cagar nele.
De volta ao pátio, a trilha de sangue que havia deixado sobre o revestimento de mármore era como o destino que tinha seguido por toda a vida, torto e bagunçado,
evidenciando a dor que ele totalmente falhava em reconhecer. E sim, queria que a mancha se infiltrasse naquela pedra, como se talvez isto pudesse chamar a atenção
dela.
Por falar nisto, por que simplesmente não se jogava no maldito chão com um ataque de birra, como se estivesse nos corredores de uma loja de departamentos, enfurecido
por não ganhar um triciclo?
Enquanto ficava parado ali, o silêncio se registrou como se fosse um som. O que era ilógico e precisamente a experiência que ele teve ao perceber o quão verdadeiramente
silencioso aquele lugar agora estava. As Escolhidas estavam todas na Terra, aprendendo sobre si mesmas, separadas individualmente, renegando seu papel tradicional
de servir à mãe. O mesmo acontecendo com a raça, existindo em tempos modernos onde os velhos ciclos de festivais e costumes eram ignorados, em sua maioria, e as
tradições que outrora eram respeitadas, estavam agora à beira do esquecimento.
Bom, pensou. Esperava que ela estivesse se sentindo sozinha e desrespeitada. Ele a queria bem calma e isolada, com seus fiéis mais fervorosos dando-lhe as costas.
Ele a queria ferida.
Ele a queria morta.
Seus olhar foi para os pássaros que tinha trazido para ela e o bando fugiu dele, subindo para outros galhos do outro lado da árvore branca, amontoando-se juntos
como se temessem que ele fosse torcer os pescoços deles, um a um.
Aqueles passarinhos tinham sido uma oferta de paz de um filho que jamais havia sido realmente querido, mas também não tinha se comportado muito bem. Sua mãe provavelmente
não tinha dirigido a eles mais do que um olhar – e, quem diria, também tinha superado este breve flamejar de uma fraqueza conciliatória, de volta às margens de sua
inimizade. Como poderia ser diferente?
A Virgem Escriba não veio a eles quando Wrath fora quase assassinado. Ela não tinha ajudado o Rei a manter sua coroa. Beth quase morreu ao dar à luz e teve de abrir
mão de qualquer possibilidade de ter filhos no futuro. Pelo amor de Deus, Selena, uma das Escolhidas da própria Virgem Escriba, tinha acabado de morrer e arrebentar
o coração de um maldito macho de valor – e qual foi a resposta? Nada.
E antes de tudo isto? A morte de Wellsie. Os ataques.
E à frente? Qhuinn estava se borrando de preocupação de que Layla morresse dando à luz aos gêmeos. E Rhage estava morrendo ali embaixo no meio da batalha.
Precisava mais?
Girando a cabeça, V olhou para a porta que tinha voltado a se fechar à sua passagem. Ele ficava contente por ela estar sofrendo. E não, não confiava nela.
Ao se desmaterializar de volta para o campo de combate, não tinha absolutamente fé nenhuma de que ela faria o correto para Rhage e Mary. Ele fez uma aposta que tinha
perdido ao ir até a mãe, mas com ela aquilo era sempre o que acontecia.
Milagre. Ele precisava da porra de um milagre.
Capítulo CINCO
A água que caía sobre a mão de Mary estava fria, e ainda assim queimava sua pele – provando que lados opostos do termômetro podem coexistir ao mesmo tempo.
A pia do banheiro feminino que estava usando era branca e de porcelana. Seu ralo brilhava e era prateado. À sua frente, um espelho de parede inteira refletia três
reservados, todos tinham as portas cor de pêssego fechadas, mas somente um deles estava ocupado.
— Está tudo bem aí? – Disse ela.
Ouviu o barulho da descarga, mesmo que Bitty não tivesse usado.
Mary encarou seu reflexo. É. Ela parecia tão mal quanto se sentia: por algum motivo, nos últimos trinta minutos bolsas escuras se formaram sob as órbitas que pareciam
afundadas, e sua pele parecia tão pálida quanto o piso no qual estava pisando.
Por algum motivo? Besteira. Sabia exatamente o motivo.
Eu a matei!
Mary teve de fechar os olhos e fingir recompor-se novamente. Quando abriu os olhos de novo, tentou se lembrar do que estava fazendo. Oh. Certo. Havia uma pequena
pilha de toalhas de papel em uma prateleira do tipo entrelaçado e dobrado, e ao avançar para pegar um, respingou os outros de água e pensou consigo mesma que era
estranho que Havers, tão meticuloso com a clínica, permitisse tal bagunça. Daí entendeu... O suporte na parede perto da porta estava quebrado, a parte inferior pendurada,
frouxa.
Igual a mim, pensou. Cheia de técnica e experiência em ajudar pessoas, mas sem executar meu trabalho direito.
Segure a mão dela. Está tudo bem...
Eu a matei!
— Bitty? – Quando a palavra não saiu mais do que um resmungo, ela pigarreou. — Bitty.
Depois de secar as mãos, virou-se para os reservados.
— Bitty, vou entrar se você não sair.
A garota abriu a porta do meio, e por alguma razão Mary soube que jamais se esqueceria da visão daquela mãozinha fortemente cerrada, sem se abrir, quando ela saiu.
Ela tinha chorado lá dentro. Sozinha. E agora que a garota estava sendo forçada a mostrar o rosto, estava fazendo exatamente o que a própria Mary esteve desesperadamente
tentando fazer.
Às vezes a compostura era tudo o que se tinha; dignidade, seu único consolo; a ilusão de “tudo bem” sua única fonte de conforto.
— Aqui, me deixe... – Quando a voz de Mary se apagou, voltou para as toalhas de papel e umedeceu uma na pia que tinha usado. — Isto vai ajudar.
Aproximando-se lentamente da garota, trouxe o papel frio e macio para o rosto corado dela, pressionando-o na pele quente e avermelhada. Enquanto isto, na sua cabeça
se desculpava com a Bitty adulta, aquela que ela esperançosamente se tornaria: Sinto muito ter te feito fazer isto. Não, você não a matou. Quem dera eu tivesse te
deixado fazer as coisas do seu jeito e a seu tempo. Sinto muito. Não, você não a matou. Sinto muito.
Sinto tanto.
Mary ergueu o queixo da garota.
— Bitty...
— O que eles vão fazer com ela agora? Para onde ela vai?
Deus, aquele olhar castanho claro era firme.
— Eles vão levá-la... Bem, eles vão cremá-la.
— O que é isto?
— Eles vão queimar o corpo dela até torná-lo cinzas, para o rito de passagem.
— Vai doer?
Mary pigarreou de novo.
— Não, querida. Ela não vai sentir nada. Está livre... Ela está no Fade esperando por você.
O lado bom era que ao menos isto Mary sabia ser verdade. Mesmo tendo sido criada católica, ela própria tinha visto a Virgem Escriba, então não, não estava dando
à garota falsas esperanças. Para os vampiros existia mesmo um paraíso, e eles real e verdadeiramente encontravam seus entes queridos lá.
Diabos, talvez isto também fosse verdade para os humanos, mas a magia era muito menos visível no mundo deles; desta forma, a salvação eterna era muito mais difícil
de ser vendida ao humano comum.
Afastando a toalha de papel, Mary recuou um passo.
— Eu gostaria de voltar ao Lugar Seguro agora, tudo bem? Não há mais nada que a gente possa fazer aqui e já está quase amanhecendo.
A última frase saiu só por hábito, ela achava. Como uma pré-trans, Bitty era capaz de tolerar qualquer quantidade de luz do sol. E a verdade real era que só queria
levar a garota para longe de toda a morte dali.
— Tudo bem? – Mary repetiu.
— Não quero deixá-la.
Em qualquer outra circunstância, Mary teria se abaixado e gentilmente exposto um pouco do que ia ser o mundo novo de Bitty. A realidade horrorosa era que não havia
mais mãe para deixar para trás, e tirar a garota deste ambiente clínico onde pacientes estavam sendo tratados, às vezes em situações terríveis, era inteiramente
apropriado.
Eu a matei.
Em vez disto, Mary disse.
— Está bem, podemos ficar o quanto você quiser.
Bitty anuiu e foi até a porta que levava ao corredor. Parada diante da porta fechada, seu vestido tremendamente gasto parecia a ponto de se desmanchar de sua figura
magra, seu feio casaco preto parecia um cobertor jogado de qualquer jeito ao seu redor, seus cabelos castanhos despontados arrepiavam contra o tecido.
— Eu realmente queria...
— O que? – Sussurrou Mary.
— Eu queria voltar a antes. À hora que eu acordei hoje.
— Eu também queria que fosse possível.
Bitty olhou por cima do ombro.
— Por que não pode voltar? É tão estranho. Digo, consigo lembrar tudo dela. É como... É como se minhas lembranças fossem um quarto no qual eu pudesse entrar. Ou
algo assim.
Mary franziu o cenho, pensando que aquela era uma maneira muito madura de se expressar para alguém daquela idade.
Mas antes que pudesse responder a garota abriu a porta, claramente não interessada em uma resposta – e talvez isto fosse uma coisa boa. Que infernos se podia responder
diante aquilo?
No corredor, Mary quis pousar a mão sobre aquele ombro pequeno, mas se segurou. A garota era tão fechada, do mesmo modo que um livro seria no meio de uma biblioteca
ou uma boneca em uma fila de colecionáveis, e era difícil forçar a quebrar aquelas fronteiras.
Especialmente quando, como uma terapeuta, você mesma já estava se sentindo muito desequilibrada em seu papel de profissional.
— Para onde vamos? – Bitty perguntou quando duas enfermeiras passaram por elas.
Mary olhou ao redor. Elas ainda estavam na área da UTI, mas a alguma distância de onde a mãe de Bitty tinha morrido.
— Podemos procurar uma sala para nos sentar.
A garota parou.
— Nós não vamos poder vê-la de novo, vamos?
— Não.
— Acho que é melhor a gente voltar.
— O que você quiser.
Cinco minutos depois estavam no Volvo indo para o Lugar Seguro. Ao guiá-las pela ponte, Mary voltou a olhar pelo retrovisor, verificando Bitty a cada cinquenta metros.
No silêncio, ela se pegou novamente a desfiar um cordão de desculpas em sua mente... Por ter dado um conselho ruim, por colocar a garota na posição de mais sofrimento.
Mas toda aquela comiseração era auto-infligida, uma busca por absolvição pessoal, totalmente injusta com a paciente, especialmente uma tão jovem.
Este pesadelo profissional era algo que Mary teria de superar sozinha.
Uma entrada na I-87 apareceu assim que chegaram ao lado do centro, após a ponte, e a seta soou alto no interior do utilitário. Dirigindo-se para o norte, Mary permaneceu
no limite de velocidade e foi ultrapassada por alguns caminhões fazendo oitenta em uma pista de sessenta e cinco. De vez em quando, sinais luminosos indicando áreas
de ultrapassagem piscavam acima delas em um ritmo que nunca demorava, e o pouco tráfego local era diminuído ainda mais enquanto elas prosseguiam.
Quando chegassem, Mary decidiu que tentaria dar algo para a garota comer. Bitty tinha perdido a Primeira Refeição e devia estar morrendo de fome. Então talvez um
filme até o amanhecer, algo calmo. O trauma era tão recente, e não só o fato de perder a mãe. O que tinha acontecido lá no Havers devia ter trazido à tona tudo o
que tinha acontecido antes – os abusos em casa, o resgate onde Rhage, V e Butch mataram o pai para salvar Bitty e a mãe, a descoberta que a mãe estava grávida, a
perda do bebê, os meses que se arrastaram depois, onde Annalye jamais se recuperara totalmente...
— Sra. Luce?
— Sim? – Oh, Deus, por favor, pergunte algo que eu possa responder decentemente. — Sim, Bitty?
— Para onde estamos indo?
Mary olhou para a placa na estrada. Dizia “Saída 19 Glen Falls”.
— Desculpe? Estamos indo para casa. Devemos chegar lá em quinze minutos.
— Achei que o Lugar Seguro não era tão longe.
— O q...?
Oh, Deus.
Estava indo na direção da maldita mansão.
— Oh, Bitty, desculpe. – Mary meneou a cabeça. — Eu acho que confundi as saídas. Eu...
Onde estava com a cabeça?
Bem, ela sabia a resposta... Todas as hipóteses que vinha imaginando em sua cabeça sobre o que fariam quando saíssem do carro eram coisas que envolviam o lugar onde
Mary morava com Rhage, o Rei, os Irmãos, os guerreiros e suas companheiras.
Onde infernos estava com a cabeça?
Mary pegou a saída 19, desceu a rodovia e voltou a seguir para o sul. Cara, não estava dando uma dentro esta noite, estava?
Pelo menos as coisas não poderiam piorar.
De volta ao Internato para Garotas Bownswick, Assail, filho de Assail, ouviu o rugido mesmo através da sobrecarga sensorial da batalha.
Apesar do caos de todos os tiros, dos xingamentos e das loucas corridas de cobertura a cobertura, o som trovejante que rolava pelo campus abandonado era o tipo de
coisa que chamava a atenção.
Ao se virar, manteve o dedo no gatilho da automática, continuando a descarga de balas adiante, certeiramente em uma fila de mortos-vivos...
Por uma fração de segundo, parou de atirar.
Seu cérebro simplesmente não conseguia processar o que os olhos sugeriam que tinha magicamente aparecido a cinquenta metros à sua frente. Era... Algum tipo de criatura
parecida com um dragão, coberta de escamas roxas, cauda serrilhada e uma boca arreganhada cheia de dentes de T. Rex. O monstro pré-histórico tinha bem a altura de
dois andares, comprido como um trailer, e rápido como um crocodilo ao avançar para atacar qualquer coisa que se mexesse...
Queda livre.
Sem aviso, seu corpo voou adiante, e uma dor se espalhou pela frente de sua perna e rasgou até seu tornozelo. Girando em meio ao ar, caiu de cara na grama alta...
E uma respiração depois, o assassino parcialmente ferido que o tinha atingido com uma faca caiu em cima de seu peito, aquela lâmina arqueando pelo seu ombro, os
lábios curvados em um esgar enquanto o sangue preto derramava em Assail inteiro.
Certo, foda-se, cara.
Assail agarrou um punhado do cabelo ainda castanho, enfiou o cano da arma naquela boca arreganhada e apertou o gatilho, explodindo a parte de trás do crânio, incapacitando
o corpo de forma que caiu em cima dele como um peso morto agitado. Chutando o corpo que se contorcia para tirá-lo de cima, voltou a se levantar.
E se viu diretamente diante da fera.
Seus movimentos para se levantar chamaram a atenção, os olhos do dragão se fixaram nele, estreitados em fendas. Então, com outro rugido a criatura veio em direção
à ele fazendo o chão tremer, esmagando os assassinos sob suas massivas patas traseiras, as garras da frente encurvadas para cima e prontas para o ataque.
— Porra!
Assail jogou-se para frente, não mais preocupado onde mirava a arma e absolutamente despreocupado com o fato de que agora corria para a fileira avançada de lessers.
O lado bom? A fera cuidou daquele probleminha. Os assassinos lançaram igualmente um olhar para aquela criatura dos infernos vindo em direção a eles e dispersaram
como folhas sob o vento de outono.
Naturalmente, não havia nada diretamente adiante que provesse nenhuma cobertura. Por azar, sua rota de fuga não oferecia nada além de arbustos e grama, sem nenhuma
proteção significativa. A construção mais próxima? Estava a duzentos metros de distância. Pelo menos.
Praguejando, correu mais rápido, abusando dos músculos de suas pernas, buscando mais e mais velocidade.
Era uma corrida que a fera estava fadada a vencer – uma vitoria inevitável quando um par de pernas que mal cobria um metro e meio a cada passo, tentava vencer um
par de pernas que podia cobrir vinte e cinco em um único passo. A cada segundo, aquele som ficava mais alto e mais perto, até que jatos quentes de respiração atingiram
as costas de Assail, esquentando-o, apesar do frio.
O medo inundou o seu núcleo.
Mas não havia tempo para tentar dominar o pânico que invadiu sua mente. Um grande rugido explodiu na sua direção, a força do som tão grande que o empurrou adiante,
provendo um jorro de ar fedorento que o enojou. Merda, sua única chance era...
A mordida veio depois do grande rugido, aqueles maxilares estalando tão perto da nuca de Assail que ele se encolheu, mesmo que isto diminuísse sua velocidade. Mas
era tarde demais para se salvar. Transportado pelo ar. Ele foi erguido, arrancado do chão em meio a um passo – só que, por que não doía mais?
Certamente se a fera o tivesse agarrado pelos ombros ou pelo torso, ele teria sido rasgado – não, espere, ela o pegou pela jaqueta. A coisa o agarrou pela jaqueta
de couro, não pela carne, e uma faixa de constrição cortava pelo seu peito e erguia-o pelas axilas, as pernas flutuavam, a arma disparava enquanto ele cerrava as
mãos em punhos. Abaixo dele, a paisagem girava como se estivesse em uma gangorra, os lessers restantes, os irmãos lutando, os arbustos muito crescidos e as árvores
balançavam ao redor dele como se estivesse sendo chacoalhado.
A porra da coisa ia devorá-lo. Esta baboseira sem sentido era só para amaciar a carne.
Maldito fosse ele, era o equivalente vampírico a uma asa de frango.
Não havia tempo. Soltou a arma e tateou em busca do zíper em sua garganta. O movimento balançante tornou seu pequeno alvo rápido como um rato, escorregadio como
mármore, estilo agulha em palheiro para suas mãos trêmulas e escorregadias, e as pontas dos dedos suadas.
O próprio aperto da fera foi o que o ajudou.
Com aqueles dentes travados nas costas da jaqueta, o couro não conseguiu suportar seu peso e ele caiu, despencando das presas, o chão duro se apressando para recebê-lo.
Encolhendo-se e rolando, procurando não quebrar nada, no entanto, pousou num monte de entulho.
Direto de ombro.
O estalar foi algo que se registrou pelo seu corpo todo, deixando-o tão inútil quanto um bebê indefeso, sem fôlego, a vista embaçada. Mas não havia tempo se quisesse
viver. Virando-se, ele...
Pop! Pop! Pop! Pop! Pop! BUM!
Seus primos surgiram do nada, correndo como se estivessem sendo perseguidos quando de fato não estavam. Ehric tinha duas automáticas em riste e atirando... E Evale
tinha uma metralhadora sobre os ombros.
Aquele era o BUM!
A arma era de fato uma metralhadora de verdade, uma enorme arma de fogo que tinha sobrado do tempo do Raj na Índia. Evale, o bastardo agressivo, há muito parecia
ter fixação pela coisa de uma maneira nada natural, estilo “meu precioso”.
Graças aos Destinos pelas preocupações nada saudáveis.
Aquelas balas calibre quarenta não tinham efeito nenhum sobre a fera, ricocheteando pelas escamas roxas como ervilhas jogadas na lataria de um carro. Mas a carga
de chumbo da metralhadora resultou em um uivo de dor e a fez recuar.
Era a única oportunidade de Assail escapar.
Fechando os olhos, ele se concentrou, concentrou, concentrou...
Não dava para se desmaterializar. Muita adrenalina além de muita cocaína, junto com muita dor em seu ombro, pra piorar.
E a fera voltou ao ataque, voltando a se concentrar em Assail e lhe dando o equivalente dragão de um foda-se na forma de um enorme rugido...
A imensa arma disparou uma segunda vez, atingindo a coisa no peito.
— Corra! – Ehric gritou enquanto recarregava suas armas calibre 40 com invólucros saltando pela parte de trás das pequenas armas. — Levante-se!
Assail usou o braço bom para apoiar e levantar do chão, e suas pernas voltaram a funcionar com desenvoltura admirável. Segurando o braço ferido contra o peito, arrastou-se
o mais rápido que pôde, com os restos de sua jaqueta esvoaçando, o estômago embrulhado, o coração disparado.
BUM!
Por todo canto, em toda parte – ele tinha de chegar a qualquer porra de abrigo – e rápido. Que pena seu corpo não obedecer. Mesmo enquanto seu cérebro gritava por
velocidade, tudo o que conseguia fazer era cambalear como um zumbi...
Alguém o pegou por trás, erguendo-o do chão em um saco de batatas, jogando-o por cima do ombro como um bombeiro. Enquanto caía em posição de cabeça pra baixo, vomitou
de agonia com estrelas espocando em seus olhos, enquanto o estômago esvaziava com violência. As boas novas eram que ele não comia há doze ou quinze horas àquela
altura, então não sujou muito a perna da calça do primo.
Ele queria ajudar no esforço. Queria se levantar. Queria...
Arbustos o golpearam no rosto e cerrou os olhos para se proteger. Sangue começou a fluir e encheu seu nariz. Seu ombro doía cada vez mais. A pressão em sua cabeça
ficou insuportável, fazendo-o pensar em pneus muito cheios, bagagens superlotadas, balões de água que estourava e derramava seu conteúdo por todo canto.
Graças a Deus pelos primos. Eles jamais o abandonavam.
Não podia se esquecer de recompensá-los de alguma maneira.
O galpão parecia galopar na direção deles, e da posição privilegiada – de ponta cabeça – que Assail estava, a coisa parecia se dependurar da terra ao invés de estar
plantada em cima dela. Tijolos. Mesmo com os solavancos e a escuridão dava para perceber que o abrigo era de tijolos.
Era de se esperar que fosse uma construção resistente.
Seu primo arrombou a porta e o ar dentro era úmido e mofado.
Sem aviso, Assail foi largado como o lixo que era e caiu em um chão empoeirado com uma queda que o fez ter ânsia de vômito de novo. A porta se fechou e então tudo
o que ouviu foi a respiração pesada do primo. E a sua.
E os sons abafados da batalha.
Houve um súbito brilho de luz alaranjada.
Pela névoa de sua dor, Assail franziu o cenho... E então recuou. O rosto se iluminou quando um cigarro enrolado a mão foi aceso, mas não de era nenhum de seus primos.
— O quanto seu ferimento é grave? – O Irmão da Adaga Negra, Vishous, perguntou ao exalar a fumaça mais deliciosa.
— Foi você?
— Não, foi o Papai Noel.
— Que salvador improvável é você, – Assail fez uma careta e limpou a boca na manga da jaqueta. — E sinto muito por suas calças.
V olhou para si mesmo.
— Tem algo contra couro preto?
— Eu vomitei atrás delas...
— Merda!
— Bem, dá pra limpar...
— Não, cuzão, ela está vindo para cá, – V indicou a janela suja. — Maldição.
De fato, à distância, o retumbante som trovejante dos passos do dragão soou de novo, como uma tempestade se formando e vindo na direção deles.
Assail se agitou ao redor procurando algum lugar para se esconder. Um armário. Um banheiro. Um sótão. Nada. O interior estava vazio, exceto por duas pilhas até o
teto de entulhos de mais de uma década. Graças à Virgem Escriba o abrigo parecia ser tijolo firme e mais provável de aguentar...
O teto foi erguido e despedaçado de uma só vez, os pedaços chovendo, as telhas e o concreto caindo no chão como se o abrigo estivesse anunciando sua própria morte
com uma rodada de aplausos. O ar fresco da noite amenizou o cheiro mofado, mas isto dificilmente era um alívio, dado o que havia precipitado o acesso.
A fera não era vegetariana, fato. Mas também não parecia preocupada pela sua absorção de fibras: a coisa cuspiu aquele telhado de madeira para o lado, abaixou-se
e abriu sua bocarra, emitindo um bum sônico de rugido.
Não havia para onde correr. A criatura estava montada sobre o prédio, preparada para atacar o que havia se tornado sua lancheira. Não havia lugar algum para se abrigar.
Nenhuma defesa possível a tentar.
— Vá, – Assail disse ao Irmão quando aqueles grandes olhos reptilianos se estreitaram e o focinho explodiu um bafo tão quente e fétido quanto um Lixão no verão.
— Me dê sua arma. Eu vou distraí-lo.
— Não vou te deixar.
— Não sou um dos seus irmãos.
— Você nos deu a localização deles. Entregou a cabeça do Fore-lesser. Não vou te largar aqui, seu bundão.
— Quanta educação. E esses elogios. Pare.
Quando a fera soltou outro rugido e jogou a cabeça como se preparada para brincar um pouco com eles antes de devorá-los, Assail pensou em seu negócio de drogas...
Seu vício em cocaína...
A fêmea humana por quem tinha se apaixonado e a quem precisou deixar ir embora. Por que ela não conseguiria lidar com seu estilo de vida e ele estava muito preso
a isso para parar, mesmo por ela.
Ele meneou a cabeça para o Irmão.
— Não, não valho a pena salvar. Dá a porra do fora daqui.

 

CONTINUA

Nada era como costumava ser para a Irmandade da Adaga Negra. Depois de evitar a guerra com os Sombras, alianças mudaram e linhas foram desenhadas. Os assassinos da Sociedade Lesser estão mais fortes do que nunca, aproveitando-se da fraqueza humana para adquirir mais dinheiro, mais armas, mais poder. Mas enquanto a Irmandade se prepara para um ataque total pra cima deles, um dos seus luta uma batalha dentro de si mesmo...
Para Rhage, o Irmão com o maior dos apetites, mas também o maior coração, a vida era suposta ser perfeita — ou pelo menos, perfeitamente agradável. Mary, sua adorada shellan, está ao seu lado, e seu Rei e seus Irmãos estão prosperando. Mas Rhage não pode entender — ou controlar — o pânico e insegurança que o afligem...
E isso o aterroriza — como também a distância entre ele e sua companheira. Depois de sofrer um ferimento mortal em batalha, Rhage deve reavaliar suas prioridades — e a resposta, quando se trata dele, balança seu mundo... E o de Mary. Mas Mary está em uma jornada própria, uma que vai fazê-los ou se aproximar mais ou causar uma divisão que não vai ter como recuperar...


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Capítulo UM
INTERNATO PARA GAROTAS BROWNSWICK, CALDWELL, NOVA YORK
Formigamento por seu corpo inteiro.
Ao transferir seu peso de uma bota para outra, Rhage sentiu como se sua corrente sanguínea estivesse começando a fervilhar e as bolhas o pinicassem por baixo de
cada centímetro quadrado de sua carne. E isto não era nem o começo. Fibras aleatórias de músculos despertaram ao longo de todo o seu corpo, os espasmos fazendo seus
dedos tremerem, os joelhos bambearem e os ombros tensos, como se a ponto de um ataque com a força e foco de uma raquete de tênis ao atingir uma bola.
Pela milésima vez desde que tinha se materializado para aquela posição, ele varreu com o olhar o terreno mal cuidado com mato excessivamente grande à sua frente.
Antigamente, quando o internato para garotas Bronswick ainda era uma instituição em funcionamento, sem dúvida o terreno à sua frente devia ser um gramado mantido
bem cortado durante a primavera e verão, no outono diariamente limpo de folhas e belamente coberto de neve no inverno, digno de um livro de histórias infantis. Agora,
como um campo de futebol saído do inferno, cravejado e emaranhado por arbustos retorcidos, capazes de mais do que somente danos estéticos à região testicular de
um cara; mudas que pareciam filhas adotivas, feias e disformes, de carvalhos e bordos mais maduros e o mato marrom crescido de fins de outubro, eram capazes de te
fazer tropeçar como um filho da puta se tentasse correr.
Da mesma forma, o prédio que fora construído para abrigar e prover espaço de convivência e instrução aos frutos de uma elite privilegiada, envelheceram mal, carentes
de manutenção regular: janelas quebradas, portas apodrecidas, persianas destruídas e oscilando ao vento frio, como se os fantasmas fossem incapazes de se decidirem
se desejavam ser vistos ou somente ouvidos.
Era o campus do filme Sociedade dos Poetas Mortos. Supondo que todo mundo tenha feito as malas depois da gravação do filme em 1988, picado a mula e nunca mais ninguém
tenha modificado uma porra de coisa por lá desde então.
Mas o prédio não estava vazio.
Ao respirar fundo, o reflexo de deglutição de Rhage executou uma porção de tropeços no fundo de sua garganta. Tantos lessers se escondiam nos cômodos abandonados
que era impossível isolar individualmente os cheiros que golpeavam suas narinas. Cristo, era como enfiar a cara dentro um balde cheio de restos orgânicos e inalar
como se estivesse prestes a acabar todo o oxigênio do mundo.
Supondo que alguém tivesse adicionado talco de bebê ao costumeiro resto diário de cabeças e tripas de peixe.
Para dar aquele toque final, sacou?
Quando sua pele foi atacada por uma nova rodada de arrepios, ele disse à sua maldição para sossegar o facho, puta merda, que ele logo ia liberá-la. Não ia nem tentar
impedir que a maldita saísse – não que tentar puxar o freio funcionasse em qualquer circunstância ou de qualquer forma – mesmo que dar à fera liberdade total nem
sempre fosse uma coisa boa, esta noite ela seria uma vantagem imensa. A Irmandade da Adaga Negra estava a ponto de encarar quantos lessers? Cinquenta? Cento e cinquenta?
Havia muito a fazer, mesmo para eles – então, sim, seu pequeno... Presente... Da Virgem Escriba seria muito útil.
Por falar em chamadas de longa distância... Há mais de um século, a mãe da raça havia lhe dado sua própria bomba relógio, um programa de melhorias tão oneroso, tão
desagradável, tão incapacitante, que era de fato capaz de trazê-lo da beira da babaquice total, de volta à normalidade. Por cortesia do dragão, a menos que controlasse
seus níveis de energia e moderasse suas emoções, o inferno recaía sobre a terra.
Literalmente.
Sim, ao longo do último século, ele tinha se tornado altamente bem-sucedido em garantir que a coisa não comesse seus amigos ou que os fizesse aparecer no noticiário
noturno com a manchete “Jurassic Park existe de verdade”. Mas com o que ele e seus irmãos estavam prestes a enfrentar – e devido ao isolamento deste campus? Se tivessem
sorte, o grande bastardo de escamas roxas com os dentes de serra elétrica e barriga sem fundo conseguiria seu banquete. Mas só teria acesso a uma dieta balanceada,
baseada somente em lessers.
Sem petiscar os Irmãos, por favor. E sem rocamboles ou tortas de humanos, muito, muito obrigado.
Este último, mais por discrição do que afeição. Era notório que aqueles ratos sem rabo não desgrudavam de duas coisas: meia dúzia de seus amiguinhos, noturnamente
co-dependentes e evolucionariamente inferiores, e seus malditos telefones celulares. Cara, o YouTube podia ser um pé no saco quando só o que se queria era manter
por baixo dos panos uma guerra contra os mortos. Por quase dois mil anos, a luta dos vampiros contra a Sociedade Lessening não tinha sido problema de mais ninguém
além dos combatentes envolvidos, e o fato de que os humanos não conseguiam se ater a cuidar de seus próprios assuntos, tipo suas competências de arruinar o meio-ambiente
e dizer uns aos outros o que pensar e dizer, era somente uma das razões para odiá-los.
Internet do caralho.
Avaliando os arredores a fim de evitar soltar a fera cedo demais, Rhage fixou o olhar em um macho dando cobertura a uma distância de mais ou menos seis metros. Assail,
filho de Foda-se-lá-quem, usava preto dos pés à cabeça como alguém de luto, seus cabelos, escuros como os do Conde Drácula, não requeriam camuflagem adicional, seu
rosto pecaminosamente belo estava tão contraído pela ansiedade de matar que era preciso dar um crédito ao cara. Ele estava sendo de muita ajuda. E tinha mudado completamente
de direção. O traficante de drogas tinha se juntado à Irmandade, cumprindo a promessa de cortar relações comerciais com a Sociedade Lessening ao depositar a cabeça
do Fore-lesser dentro de uma caixa, aos pés de Wrath.
E também revelou este local que os assassinos vinham usando como quartel general.
E era por isto que todo mundo tinha acabado aqui, enterrado até a cintura em mato alto, esperando que a contagem regressiva de seus relógios V-sincronizados chegasse
logo a 00h00min.
Este ataque não era coisa pequena, era uma abordagem de grosso calibre ao inimigo. Depois de algumas noites – e dias, graças a Lassiter, também conhecido por 00-CUZÃO,
que havia feito reconhecimento do local durante as horas de sol – o ataque foi adequadamente coordenado, ensaiado e preparado para ser posto em prática. Todos os
guerreiros estavam aqui: Z e Phury, Butch e V, Tohr e John Mattew, Qhuinn e Blay, além de Assail e seus dois primos, Presas I e II.
Quem ligava para seus nomes, contanto que aparecessem armados e com muita munição?
A equipe médica da Irmandade também estava na área preparada para agir, com Manny em sua unidade cirúrgica móvel a um quilômetro e meio de distância, e Jane e Ehlena
em uma das vans, num raio de três quilômetros.
Rhage verificou o relógio. Seis minutos e contando.
Quando seu olho esquerdo começou a tremelicar, praguejou. Como caralhos conseguiria esperar por tanto tempo?
Expondo as presas, exalou pelo nariz, soprando correntes gêmeas de respiração condensada muito parecidas com as que antecedem o ataque de um touro.
Cristo, não conseguia se lembrar da última vez em que esteve tão tenso. E não queria pensar no motivo. De fato, vinha evitando a coisa toda do por que há quanto
tempo?
Bem, desde que ele e Mary chegaram àquela fase estranha e ele tinha começado a sentir...
— Rhage.
Seu nome foi sussurrado tão baixinho que ele se voltou por não saber ao certo se era o seu subconsciente decidindo começar um papo com ele. Não, era Vishous – pela
expressão do irmão, Rhage teria preferido ter desenvolvido dupla personalidade. Aqueles olhos diamantinos flamejavam uma luz sombria. E aquelas tatuagens ao redor
das têmporas também não ajudavam.
O cavanhaque era neutro – a menos que o avaliasse como quesito de estilo. Neste caso, o filho da puta era uma caricatura de proporções épicas.
Rhage meneou a cabeça. — Você não devia estar na sua posição...
— Tive uma visão sobre esta noite.
Ah, inferno, não, Rhage pensou. Não, não faça isto comigo agora, mano.
Virando as costas, murmurou. — Me poupe dessa coisa de Vincent Price, está bem? Ou está ensaiando para ser o cara que faz as narrações dos trailers de filmes...?
— Rhage.
— ... Pois você leva jeito pra isto. Em um mundo... Onde pessoas devem... Calar a boca e fazer seu serviço...
— Rhage.
Ao ver que ele não ia se voltar para olhá-lo, V se aproximou e o encarou, aqueles olhos pálidos pra cacete, um par de explosões nucleares gêmeas, daquelas que levantam
um nuvem em forma de cogumelo, para frente e para trás. — Quero que vá pra casa. Agora.
Rhage abriu a boca. Fechou. Abriu de novo – e teve de lembrar a si mesmo de manter a voz baixa.
— Ouça, não é uma boa hora para essa merda psíquica...
O Irmão agarrou seu braço e apertou. — Vá pra casa. Não estou brincando.
Terror gélido varreu as veias de Rhage, abaixando sua temperatura corporal... E ainda assim conseguiu menear a cabeça novamente.
— Foda-se, Vishous. Sério mesmo!
Ele não tinha o menor interesse de pôr mais nada daquela magia da Virgem Escriba em cheque. Ele não ia...
— Você vai morrer esta noite, porra.
Quando o coração de Rhage falhou uma batida, ele olhou para aquele rosto que conhecia a tantos anos traçando aquelas tatuagens, os lábios comprimidos, as cerradas
sobrancelhas escuras... E a inteligência radiante geralmente expressada através de um filtro de sarcasmo, afiado como a espada de um samurai.
— Sua mãe me deu a palavra dela. – Disse Rhage. Espere, estava realmente falando sobre bater as botas? — Ela me prometeu que quando eu morresse Mary iria comigo
para o Fade. Sua mãe disse...
— Foda-se a minha mãe. Vá pra casa.
Rhage desviou o olhar porque foi necessário. Era isto ou sua cabeça explodiria. — Não vou abandonar os irmãos. Não vai acontecer. Primeiro, você pode estar errado.
Sim, e quando foi a última vez que aquilo aconteceu? No século dezoito? Dezessete?
Nunca?
Ele falou para V.
— Segundo, não vou fugir correndo do Fade. Se começar a pensar assim vou morrer, mesmo com a arma na mão. – Ele ergueu a mão até a altura daquele cavanhaque para
evitar que o irmão o interrompesse. — E pra terminar? Se eu não lutar esta noite, não vou conseguir sobreviver ao dia de amanhã, trancado na mansão... Não sem meu
amiguinho roxo sair para o café da manhã, almoço e jantar, sacou?
Bem, havia uma quarta coisa. E era racional... Ruim, tão ruim que não conseguia encará-la por mais do que a fração de segundo necessária para ela surgir em sua mente.
— Rhage...
— Nada vai me acontecer. Está tudo sob controle.
— Não, não está – sibilou V.
— Está bem. – Rhage rosnou, endireitando o corpo. — E daí se eu morrer? Sua mãe deu à minha Mary a graça final. Se eu for para o Fade, Mary vai me encontrar lá.
Não tenho de me preocupar de me separar dela. Ela e eu ficaremos perfeitamente bem. Quem vai se importar de verdade se eu bater as botas?
V endireitou-se também.
— Você não acha que os Irmãos ligam? Sério? Muito obrigado, seu cuzão filho da puta.
Rhage verificou o relógio. Faltavam dois minutos.
Bem pareciam dois mil anos.
— E você confia em minha mãe, – Rosnou V — em algo tão importante. Nunca pensei que fosse tão ingênuo.
— Ela conseguiu me dar a porra de um alter ego T. Rex! Isto inspira uma credibilidade boa pra cacete.
De repente, sons de inúmeros pássaros soaram na escuridão que os rodeava. Qualquer um acharia que devia ser somente um bando de corujas noturnas piando ao luar.
Maldição, os dois estavam gritando.
— Não importa, V. – Sussurrou ele. — Você é inteligente pra caralho, preocupe-se com sua própria vida.
Seu último pensamento consciente antes do cérebro entrar em modo de A Hora Mais Escura e nada mais se registrar além da agressividade, foi sua Mary.
Ele visualizou a última vez em que estiveram sozinhos.
Era um ritual dele antes de enfrentar o inimigo, um talismã mental que esfregava em busca de boa sorte, e esta noite visualizou o modo como ela tinha ficado em pé
em frente ao espelho do quarto deles, aquele sobre a mesinha de apoio onde mantinham os relógios e chaves, as joias dela e os pirulitos dele, e os celulares.
Ela estava na ponta dos pés debruçada sobre a mesa, tentando colocar um brinco de pérola no lóbulo da orelha sem conseguir encontrar o furo. Com a cabeça virada
para o lado, seus cabelos castanhos escuros flutuavam sobre o ombro e o faziam querer enfiar a cara naquelas ondas recém-lavadas. E isto não era nem metade do que
o impressionava nela. O ângulo reto de seu maxilar capturava e refletia a luz da arandela na parede, e a blusa de seda cor creme, que descortinava sobre seus seios,
enfiada dentro da cintura estreita, e as calças moldavam seu corpo magro. Nenhuma maquiagem. Sem perfume.
Seria como tentar retocar a Mona Lisa ou atingir um botão de rosa com um jato de Bom Ar.
Havia centenas de milhares de pequenos detalhes nos atributos físicos de sua companheira, e nenhuma frase, nem mesmo um livro inteiro, passaria perto de descrever
sua presença.
Ela era o relógio em seu pulso, o assado quando tinha fome, o jarro de limonada quando tinha sede. Ela era sua igreja e seu coral, a montanha de sua escalada, a
biblioteca de sua curiosidade e cada nascer ou por do sol que já houve ou jamais haverá. Com um olhar ou a sílaba de uma palavra, ela tinha o poder de transformar
seu humor, levando-o às nuvens, mesmo com os pés firmes no chão. Com um único toque, ela conseguia acorrentar seu dragão interior ou fazê-lo gozar sem ele nem mesmo
estar de pau duro. Ela era todo o poder do universo compactado em uma criatura viva, o milagre que lhe tinha sido concedido, apesar dele há longo tempo não merecer
nada além de maldições.
Mary Madonna Luce era a virgem que Vishous dissera que estava em seu caminho – e era mais do que suficiente para transformá-lo em um vampiro temente a Deus.
Por falar nisto...
Rhage avançou sem esperar o sinal de “Já” de sua equipe. Correndo pelo campo, trazia as duas armas erguidas à sua frente e combustível Premium aditivado percorrendo
os músculos de suas pernas. E não, ele não parou para ouvir os irmãos praguejarem de frustração quando rompeu a cobertura e partiu cedo demais para o ataque.
Estava acostumado aos garotos emputecidos com ele.
Era muito mais difícil lidar com seus próprios seus demônios do que os irmãos.
LUGAR SEGURO, ESCRITÓRIO DA MARY
Ao desligar o telefone, Mary Madonna Luce manteve a mão sobre a superfície lisa do receptor. Como muitos dos equipamentos e móveis do Lugar Seguro, ele tinha mais
de uma década de uso, era um AT&T doado por alguma companhia de seguro ou talvez de uma corretora imobiliária, depois de ser trocado por algo mais moderno. O mesmo
com a mesa. A cadeira. Até o tapete sob seus pés. No único abrigo contra violência doméstica contra fêmeas e crianças da raça, cada centavo que saía das generosas
doações do Rei era gasto com o apoio, tratamento e reabilitação das pessoas que precisavam.
As vítimas eram admitidas gratuitamente. E ficavam na casa grande e cheia de cômodos por quanto tempo fosse necessário.
A folha de pagamento era, é claro, a maior despesa... E com notícias como a que tinha acabado de chegar pelo telefone, Mary ficava verdadeiramente agradecida pelas
prioridades de Marissa.
— Foda-se, morte. – Sussurrou ela. — Foda-se mesmo, muito, muito mesmo.
O ruído que sua cadeira emitiu quando se inclinou para trás lhe causou um estremecimento, mesmo acostumada a ele.
Olhando para o teto, sentiu uma vontade arrebatadora de entrar em ação, mas a primeira regra de qualquer terapeuta era que era preciso controlar suas próprias emoções.
Despreparo e agitação não fazia bem algum aos pacientes, e contaminar uma situação já estressante com drama pessoal por parte do profissional era totalmente inaceitável.
Se houvesse tempo, procuraria um dos outros assistentes em busca de ajuda, para esclarecer o curso de suas ações com questionamentos técnicos a fim de sentir-se
novamente centrada e permanentemente composta. Dado o rumo dos acontecimentos, tudo o que tinha era tempo para uma das respirações profundas, típicas de Rhage.
Não, não do tipo sexual.
Mais do tipo ioga, que o fazia inflar os pulmões em três puxadas de ar, prender o oxigênio e então soltá-lo, junto com a tensão em seus músculos.
Ou tentar liberar a dita tensão.
Está bem, isto não estava ajudando em nada.
Mary levantou-se e teve de se contentar com dois “quase lá” no quesito compostura: um, ajeitou a blusa de seda e correu os dedos pelos cabelos, que estava deixando
crescer; e dois, recobriu suas feições com uma máscara digna de Halloween, congelando tudo em um semblante de preocupação, calorosa e sem nenhuma indicação de estar
surtando com seu próprio trauma passado.
Ao sair para o corredor do segundo andar, o cheiro de chocolate e açúcar de confeiteiro, manteiga e farinha anunciava que a Noite dos Biscoitos estava a pleno vapor
– e por um momento insano, sentiu vontade de abrir todas as janelas para deixar o ar gelado de outubro levar aquele cheiro para fora da casa.
O contraste entre aquele conforto doméstico e a bomba que estava a ponto jogar parecia desrespeitoso, na melhor das hipóteses, uma parte a mais da tragédia, na pior.
O Lugar Seguro era uma construção de três andares da virada do século XX, apenas teto e quatro paredes, com toda a graça e distinção de um saco de pão. O que ele
tinha na verdade eram quartos e banheiros em abundância, uma cozinha funcional e privacidade suficiente para que o mundo humano nunca tivesse a menor indicação de
que os vampiros usavam a coisa à sua revelia. E então veio a expansão. Depois da morte da Wellsie, Tohr tinha feito uma doação em seu nome, o Anexo Wellesandra foi
construído nos fundos por uma equipe vampira de construção. Agora eles contavam com uma sala de convivência, uma segunda cozinha, grande o bastante para que todo
mundo se sentasse junto para comer, e mais quatro suítes para as adicionais fêmeas e seus filhos.
Marissa dirigia a instalação com coração compassivo e mentalidade fantasticamente logística, e com sete conselheiros, inclusive Mary, eles executavam um serviço
útil e cheio de significado.
Isto sim, às vezes partia seu coração ao meio.
A porta para o sótão não emitiu ruído algum quando Mary a abriu porque ela mesma tinha passado óleo nas dobradiças há algumas noites. As escadas, no entanto, rangeram
ruidosamente à sua subida, as velhas placas de madeira reclamando e guinchando, por mais que ela tentasse pisar o mais leve possível.
Era impossível não sentir-se um tipo de Mensageira da Morte.
No andar acima, a luz amarela das luminárias de latão no teto destacavam os tons avermelhados, tanto dos centenários lambris sem pintura quanto da passadeira trançada
que percorria o estreito corredor. No final dele, havia uma abertura oval e a iluminação, em tons rosados da luz exterior de segurança acima, derramava para dentro
e era dividida em quadrantes pelas divisões de seus painéis.
Das seis suítes, cinco portas estavam abertas.
Ela se dirigiu até a que estava fechada e bateu. Ao ouvir um suave “Olá?” entreabriu a porta e enfiou a cabeça.
A garotinha sentada em uma das duas camas estava penteando os cabelos de uma boneca com uma escova a qual faltavam várias cerdas. Seus cabelos longos e castanhos
estavam presos para trás em um rabo de cavalo, e o vestido folgado era feito a mão, de um tecido azulado muito gasto, mas com costuras feitas para durar. Seus sapatos
estavam gastos, ainda que amarrados cuidadosamente.
Ela parecia muito pequena no que já não era um lugar muito grande.
Abandonada contra sua vontade.
— Bitty?
Levou um momento até os olhos castanhos claros se erguerem.
— Ela não está bem, está?
Mary engoliu em seco.
— Não, querida. Sua mahmen não está bem.
— É hora de me despedir dela?
Depois de um momento, Mary sussurrou.
— Sim... Receio que sim.
Capítulo DOIS
— Isso só pode ser brincadeira, porra!
Quando viu o massivo corpo do Hollywood e a bosta da sua cabeça estúpida avançar em direção aos alojamentos, Vishous quase correu atrás só para poder acabar com
a raça do irmão. Mas nããããããããããão.
Não era possível estender a mão e catar uma bala depois que o gatilho era apertado.
Mesmo que se estivesse só tentando salvar um idiota da sepultura.
V assoviou alto, mas não era como se o resto dos guerreiros não tivessem visto também as costas do cretino distanciarem-se como um morcego fugido do inferno.
Membros da Irmandade e os outros machos explodiram fora de suas posições por trás das árvores e construções, assumindo formação de asa atrás de Rhage, de armas e
adagas empunhadas. Gritos do inimigo anunciaram que o ataque foi percebido quase imediatamente, e eles chegaram a somente meia distância do objetivo quando os lessers
começaram a jorrar pelas portas, feito vespas de uma colméia.
Muita aglomeração? Pops ocos espocavam quando Rhage descarregava sua arma por todo o canto atingindo assassinos na cara, suas balas de grosso calibre explodindo
a parte de trás daqueles crânios e derrubando os mortos-vivos em emaranhados de braços e pernas irrequietos. O que era bom – mas possivelmente não iria durar, já
que os assassinos tentavam se aproximar do cara por trás, a fim de isolá-lo e criar uma segunda linha de frente contra o resto dos irmãos.
Obrigado, Sr. Apressadinho e sua ejaculação precoce, por arruinar o plano sobre o qual se debruçaram por noites a fio.
Instalou-se o caos total, o que era de se esperar, ao contrário da ação de Rhage: do mesmo modo que era possível garantir que cada combate corporal iria eventualmente
acabar no chão, era possível garantir que mesmo o ataque melhor planejado iria, depois de um tempo, cair na área do: “Puta merda” e “Cagou a porra toda”. Se tivesse
sorte, aquela inevitabilidade levaria um tempo para lhe despencar na cabeça, e até que acontecesse, o inimigo teria baixas incapacitantes.
Mas não com Hollywood por perto.
Oh, e a propósito, quando alguém diz que você vai morrer esta noite, que tal não correr direto para uma quantidade de inimigos que beirava os três dígitos? Seu filho
da puta de merda.
— Eu estava tentando salvá-lo! – V gritou em meio à ação. Só por que agora ele podia, já que não precisavam mais manter suas presenças ocultas.
Rhage era tão impulsivo. E sabendo disto, V devia ter confrontado o idiota lá na mansão antes de saírem, mas esteve distraído demais cuidando de suas próprias coisas
para se concentrar na visão. Não foi até chegarem ao campus abandonado e ele piscar algumas vezes... Que percebeu, sim, era ali que aconteceria para Rhage. Esta
noite. Neste campo.
Não revelar seria como colocar ele mesmo uma bala no cara.
É claro, dizer algo tinha funcionado tão bem.
— Foda-se, Hollywood! – Gritou ele. — Eu vou te pegar!
Pois ele ia tirar aquele puto daquele lugar nem que fosse a última coisa que faria.
V não atirou até estar a cerca de três metros de distância do primeiro alvo – era isto ou correr o risco de atingir um dos irmãos ou outro aliado. O lesser que mirou
tinha cabelos e olhos escuros e aquela agressão típica de um urso pardo: ataque direto com uma porção de cuspidelas. Uma bala acertou no olho direito e o bastardo
caiu.
Não dava tempo de apunhalar a coisa de volta ao Ômega. Vishous passou por cima do pedaço de carne que ainda se remexia sem sair do lugar e mirou o próximo. Identificando
um assassino louro a cerca de quatro metros e meio de distância à esquerda, rapidamente avaliou a periferia para ter certeza de que a Irmandade não estava sendo
destroçada. Então, usando o dedo coberto pela luva, escolheu o cara que parecia o Rod Stewart dos anos 80.
De três ao infinito, V atingiu tudo o que parecia seguro derrubar, certificando-se de não acertar seus aliados. Uns duzentos metros de corrida estilo videogame mais
tarde, alcançou tanto cobertura quanto perigo: o primeiro dos alojamentos, que o plano original era emboscar. A maldita coisa era uma concha vazia com muitos locais
para se esconder que somente um idiota acharia estarem vazias, e ele teve cuidado em monitorar seus arredores ao caminhar cuidadosamente com as costas voltadas contra
a parede, abaixando-se debaixo de janelas, passando por cima de arbustos baixos.
O fedor de algodão doce/carne podre dos lessers o golpeava por todos os lados, espiralando ao redor devido ao vento gelado que misturava tudo em uma salada de guerra
com os ecos de disparos de armas e os gritos do inimigo. A raiva que fervilhava em suas entranhas o fez avançar, ao mesmo tempo em que o mantinha focado, enquanto
tentava derrubar alvos sem ser atingido.
Assim que alcançasse Rhage, derrubaria o maldito rei da beleza no chão.
Supondo que o destino não derrubasse o filho da puta primeiro.
O lado bom era que, com o Fore-lesser fora da jogada, a resposta da Sociedade Lessening não parecia mais coordenada do que o ataque da Irmandade, e o fato do inimigo
estar pobremente armado e pateticamente destreinado era outra vantagem. Parecia haver uma média de cinco lessers armados para cada irmão, e uma média de um para
dez guerreiros competentes – e dado os números? Aquilo bem que poderia ser o que salvaria seus traseiros.
Esquerda, pop! Direita, pop! Esquivar, cair e rolar. Levantar-se e continuar a correr. Mais dois assassinos derrubados – obrigado, Assail, seu filhodaputa maluco
– pop! Bem na sua frente.
A magia aconteceu entre cerca de cinco minutos e cinquenta mil anos de luta. Sem aviso, sentiu-se separar-se de seu corpo, desfazendo-se da carne que funcionava
de forma tão rija e com tanta eficiência, seu espírito flutuando acima da adrenalina que incendiava seus braços e pernas, sua essência testemunhando-o cobrir distâncias
e impulsionando-o a frente de uma posição acima de seu ombro direito.
Era a zona, geralmente algo que o arrebatava assim que começava a lutar. Mas com Rhage sob sua pele, grudado em seu traseiro e fodendo sua cabeça, a merda estava
atrasada para a festa.
E foi por causa dessa sua perspectiva acima do quadro, que notou primeiro o dilema que se armava.
Às vezes o contra-intuitivo, o QUEPORRAÉESSA, o agir contra a corrente, era tão importante quanto todas as coisas que se esperava ver em uma batalha.
Tipo, por exemplo, três figuras correndo lateralmente ao longo daquele show de horrores rumo à saída. É claro, podiam ser lessers que amarelaram e fugiam — exceto
por um detalhe: o sangue do Ômega em seus corpos era um puta rastreador GPS, e ter de contar para aquele tipo de chefe, que tinha amarelado e picado a mula de uma
briga daquelas, seria garantia do tipo de tortura que faria o inferno parecer um passeio no campo.
Maldição, não podia permitir que eles se fossem. Não quando poderiam acabar chamando os tiras e adicionando outra camada de merda jogada naquele ventilador.
Se é que aquilo já não tinha sido feito.
Praguejando, Vishous foi atrás dos três desertores, desmaterializando-se para a área a frente onde o trio estava se dirigindo. Ao retomar forma, descobriu que eram
malditos humanos, mesmo antes de conseguir ver que aquele que estava por último corria de costas com o que, sem dúvida, era uma porra da Apple, um pedaço de merda
iConformista, apontando e mirando, evidentemente gravando um vídeo.
Ele positivamente odiava qualquer coisa com o símbolo da Macintosh.
V pulou, interceptando o caminho do cara, o que, é claro, não foi notado pelo J.J. Abrams, por que, olá, ele estava ocupado demais filmando tudo.
Vishous meteu o pé, e enquanto o humano obedecia à lei da gravidade, o celular voou e V pegou a coisa, enfiando-a no bolso da jaqueta.
O próximo passo foi pisar no esterno do cara e enfiar a arma na sua cara. Baixando o olhar para a expressão de “Puta Merda” e o choramingo gaguejado que o cara soltava,
V precisou de todo seu autocontrole para não rasgar a garganta dele, e então ir para cima dos outros dois que continuavam a correr, tal qual Jason Voorhees. Ele
estava acima disto com humanos. Tinha trabalho de verdade pra fazer, mas nããããão, ele estava de novo limpando a bunda destes ratos sem rabo para que o resto deles
não ficassem bravinhos por saberem que vampiros existiam entre eles.
— N-n-n-n-ão me m-m-m-m-machuque – gaguejou o cara. Junto com o cheiro de urina quando o cara mijou nas calças.
— Você é patético pra caralho.
Praguejando de novo, V acessou rapidamente a mente do cara para ter certeza de que não tinham chamado a polícia – a resposta foi “não” – antes de apagar a memória
do garoto, do momento em que tinha se encontrado com os amigos para fumar maconha até quando a viagem foi interrompida pelo inferno desenfreado.
— Você teve uma viagem ruim, seu cuzão. – Murmurou V. — Viagem ruim. Isto tudo é só uma porra de uma viagem ruim. Agora corra de volta para o papai e a mamãe.
Como o bom brinquedinho programado que agora era, o garoto levantou-se sobre seus antiquados tênis Converse e disparou atrás dos amigos, com uma expressão de confusão
total no rosto enrubescido.
Vishous deu outro pulo à frente e interceptou Frick e Frack. E, quem diria, a mera presença de V se materializando do nada à frente deles foi suficiente para deixá-los
em pânico – os dois congelaram no lugar como cães acorrentados ficando sem espaço na corrente, com um puxão para trás, esvoaçando suas parkas combinando.
— Vocês cuzões estão sempre no lugar errado na hora errada.
Mentalmente apagou suas memórias e os revistou, esvaziando seus bolsos ao mesmo tempo em que os cérebros – então os mandou retomar a fuga, rezando para que um ou
outro não tivesse alguma doença cardíaca não diagnosticada que subitamente disparasse sob tensão, matando-o instantaneamente.
Mas até aí, V era um bastardo malvado, então tudo bem.
Não havia tempo a perder. Voltou a tentar alcançar Rhage, sacando novamente suas armas e buscando uma maneira mais eficiente de chegar até o filho da puta. Que pena
que desmaterializar-se direto no meio do entrevero estava fora de cogitação, mas merda, tinha arma demais apontando para cada direção naquele quadrante. Ao menos
a necessária cobertura veio rápido, primeiro em uma série de árvores de bordo e então na forma de um prédio que devia ser ainda outro alojamento.
Batendo as costas contra os tijolos frios e duros, seus ouvidos se aguçaram ante o som de sua respiração pesada. Os disparos mais intensos estavam à sua esquerda,
acima e à frente, e rapidamente trocou ambos os cartuchos, mesmo que ainda houvesse três balas em um e duas no outro. Recarregado, correu na direção da quina do
prédio e espiou...
O assassino atirou na última janela sob a qual ele estava e, não fosse o ruído do caixilho, V teria sido ferido. Foi o instinto, ao invés do treinamento, que fez
seu braço se erguer e apontar para a lateral antes de ter consciência de estar se movendo, e o dedo indicador disparar meio quilo de chumbo bem nas fuças do fodido,
fazendo nuvens de sangue preto explodir da parte de trás do crânio como um vidro de nanquim caindo de uma grande altura.
Infelizmente, uma contração autônoma do aperto do assassino na arma automática que trazia na mão, causou o disparo de algumas balas e a ardência na lateral do quadril
de V mostrou que ele foi atingido, pelo menos uma vez. Mas melhor ali do que em outra parte do corpo...
Um segundo assassino surgiu da esquina e V o atingiu na garganta com a arma da mão esquerda. Aquele parecia estar desarmado, nada digno de nota, caiu na grama alta
quando a coisa agarrou a frente do pescoço para tentar conter o jorro negro.
Não havia tempo para recolher nenhuma arma ou apunhalá-los de volta ao Ômega.
À frente, Rhage estava com problemas.
No coração do campus, na área retangular formada por prédios erguidos com uns cinco acres de distância, Rhage estava no centro da atenção de uma galera da primeira
fila, composta por pelo menos vinte assassinos que o rodeavam.
— Jesus Cristo. – Murmurou V.
Não havia tempo para elaborar uma estratégia. Dã. E ninguém mais viria ajudar Hollywood. Os outros irmãos e guerreiros estavam muito ocupados, o ataque tendo se
dissipado em meia dúzia de escaramuças se desenvolvendo em diferentes quadrantes.
Não havia ninguém disponível em uma situação que bem necessitava de três ou quatro anjos salvadores. Ao invés de um que tinha um ferimento na coxa e um rancor do
tamanho do Canadá.
Maldição, ele estava acostumado a estar sempre certo, mas às vezes isto era um pé no saco.
Vishous avançou e se concentrou na lateral da briga, escolhendo assassinos enquanto tentava dar a seu irmão uma rota de escape viável. Mas Rhage... Porra, Rhage.
Ele estava, de alguma forma, totalmente imerso naquilo. Mesmo que a matemática não chegasse a resultado algum além de caixão, o maldito imbecil era de uma beleza
mortal ao lentamente girar, esvaziando as armas nos que estavam mais perto, recarregando sua automática sem perder um movimento, criando um anel de corpos que se
contorciam, meio mortos, meio vivos, como se estivesse no olho de um furacão destruidor.
A única coisa que não parecia estar sob controle? Seu belo rosto, digno de uma história infantil, estava contorcido no esgar de um monstro, a raiva assassina dentro
dele nem ao menos parcialmente contida. E isto teria sido quase aceitável.
Não fosse o fato de se esperar profissionalismo por parte dele.
Aquele tipo de emoção assassina era um comportamento amador, o tipo de coisa que te cegava ao invés de te manter focado, te enfraquecia ao invés de te tornar invencível.
Vishous trabalhou o mais rápido que pôde mirando em peitos, entranhas, cabeças, até o fedor saturar o ar livre, mesmo com o vento soprando em direção oposta. Mas
tinha de compensar o campo de tiro, sempre circular, de Rhage, tentando ficar ele próprio fora de alcance, por que tinha certeza de que o irmão não conseguiria diferenciá-lo
de seus alvos.
E esta era a porra do problema quando você entrava despreparado na luta.
E então acabou.
Mais ou menos.
Mesmo depois daqueles vinte ou vinte e cinco lessers estarem caídos no chão, Rhage ainda girava e continuava a atirar, um carrossel mortal sem passageiros em seus
cavalos demoníacos, estúpidos demais para saberem onde seu próprio botão de desligar ficar.
— Rhage! – V olhou ao redor mantendo as armas apontadas, mas sem atirar. — Seu maldito idiota! Pare!
Pop! Pop! Pop-pop!
O cano de Hollywood continuou a tossir flashes de luz mesmo que não houvesse mais alvos – exceto outros guerreiros à distância, fora de alcance naquele momento.
Mas não era garantido que permanecessem assim.
Vishous se aproximou, passando por cima dos corpos que se agitavam no chão, mantendo-se às costas de Rhage, que ainda girava.
— Rhage!
A tentação de atirar na bunda do cara foi tão forte, que sua mão direita chegou a abaixar o cano até à altura do traseiro. Mas era só uma fantasia. Dar a Hollywood
uma injeção de chumbo só dispararia a fera quando o próprio V estava ao alcance para virar seu aperitivo.
— Rhage!
Algo deve ter chegado até o irmão por que a barragem de tiros inúteis diminuiu... E então parou, deixando Rhage arfando, curvando-se de forma neutra.
Estavam tão a descoberto que ambos bem podiam ter setas de neon apontando para suas cabeças.
— Você vai sair daqui. – Rosnou V. — Está brincando comigo, porra, nessa merda...
Foi quando aconteceu.
Em um segundo, estava contornando para ficar de frente para o irmão... E no seguinte ele viu, pelo canto dos olhos, um dos lessers não-suficientemente-mortos erguer
um braço instável... Com uma arma anexada à extremidade. Quando a bala explodiu para fora daquele cano, o cérebro de V fez os cálculos de distância e ângulo tão
rápido quanto o vôo da bala de chumbo.
Direto para o peito de Rhage.
Bem no meio do peito de Rhage – por que, olá, era o maior alvo, tirando a porra da porta do alojamento do campus.
— Não! – Gritou V ao pular e se interpor no caminho.
É, pois ele morrer no lugar de Rhage seria um resultado bem melhor, né? Perder/perder, de ambos os jeitos.
Não houve dor alguma em seu vôo, nem o som ressoante da entrada de uma bala na lateral de seu corpo, seu quadril, sua outra coxa.
Por que a maldita coisa já tinha encontrado outro lar.
Rhage soltou um grunhido e suas duas armas apontaram para o céu, aquela típica compressão autônoma nos gatilhos naquelas mãos esvaziaram os cartuchos: bang, bang,
bang, bang! Para o céu, para o paraíso, como se Rhage estivesse amaldiçoando de dor.
E então o irmão caiu.
Ao contrário dos garotos do Ômega, um ferimento certeiro como aquele mataria qualquer vampiro, mesmo um membro da Irmandade. Ninguém escapava daquele tipo de merda,
ninguém.
Ao gritar de novo, V caiu em seu próprio pedaço de chão e descarregou uma de suas amas, enchendo o assassino com tanto chumbo que o fodido poderia virar um cofre
de banco.
Com a ameaça neutralizada, engatinhou até o irmão se arrastando de lado com as armas e a ponta dos coturnos. Para um macho que nunca sentia medo, ele se viu olhando
para a boca escancarada do puro terror.
— Rhage! – Disse ele. — Puta que pariu... Rhage!
Capítulo TRÊS
O novo centro médico de Havers estava localizado do outro lado do rio, em meio a uma área florestal de quatrocentos acres, intocado a não ser por uma velha fazenda
e três ou quatro quiosques recém-construídos que serviam de entrada para a instalação subterrânea. Enquanto dirigia o último trecho da viagem de vinte minutos em
seu Volvo XC70, Mary fitava seguidamente o espelho retrovisor, preocupada com Bitty.
A garota estava sentada no banco de trás do utilitário e olhava pela janela escura ao seu lado, como se fosse uma televisão transmitindo um programa viciante.
Cada vez que Mary voltava a se concentrar na estrada a sua frente, apertava o volante com mais força. E o acelerador.
— Estamos quase chegando. – Disse ela. De novo.
A afirmação pretendia ser confortadora, mas não estava fazendo bem nenhum à Bitty e Mary sabia que só tentava acalmar a si própria. A ideia de que pudessem não chegar
a tempo ao lado do leito era um fardo hipotético que não conseguia evitar de cogitar – e cara, aquela sensação de pesar e frustração a fazia sentir-se incapaz de
respirar.
— Aqui está o desvio.
Mary ligou a seta e entrou à direita, para uma via de mão única que era irregular e exatamente o que toda a sua agitação interna não precisava.
Mas também, ela bem poderia estar em uma super rodovia perfeitamente asfaltada e seu coração continuaria a parecer dançar a conga dentro do peito.
O único centro médico da raça tinha sido construído para dispersar, tanto a atenção humana quanto os efeitos impiedosos da luz do sol, e ao trazer alguém ou buscar
tratamento médico para si mesmo, era designado um dos vários pontos de entrada. Quando a enfermeira tinha ligado para dar a triste notícia, Mary foi orientada a
ir diretamente à fazenda e estacionar lá, e foi o que fez, parando entre uma caminhonete que era nova e um sedã Nissan que não era.
— Está pronta? – Perguntou pelo retrovisor ao desligar o carro.
Diante da ausência de resposta, circulou o carro até a porta de Bitty. A garota pareceu surpresa ao descobrir que já tinham chegado e as pequenas mãos remexeram
para soltar o cinto de segurança.
— Quer ajuda?
— Não, obrigada.
Bitty estava claramente determinada a sair sozinha do carro, mesmo que levasse mais tempo do que se aceitasse a ajuda. E o atraso talvez fosse intencional. A sensação
de insegurança quanto ao que aconteceria depois daquela morte era quase terrível demais para se imaginar. Sem família. Sem dinheiro. Sem educação.
Mary apontou um celeiro atrás da fazenda.
— Vamos por ali.
Cinco minutos depois, passaram por alguns pontos de controle e desceram pelo elevador, de onde saíram para uma recepção muito limpa e iluminada e uma sala de espera
que cheirava exatamente igual àquelas dos hospitais humanos: aroma artificial de limão, vaga mistura de perfume e o tênue cheiro do jantar de alguém.
Pavlov tinha razão, Mary pensou ao se aproximar da recepção central. Só era preciso aquela combinação de anti-séptico e ar viciado em seu nariz para sentir-se de
volta àquela cama de hospital, com tubos entrando e saindo dela, as medicações que tentavam matar o câncer em seu sangue fazendo-a sentir, na melhor das hipóteses,
como se estivesse com gripe, e na pior, como se fosse morrer a qualquer momento.
Época divertida.
Quando a enfermeira loura atrás da tela do computador ergueu o olhar, Mary disse:
— Oi, eu sou...
— Siga por ali. – A fêmea disse com urgência. — Pelas portas duplas. Vou destravá-la. O posto de enfermagem fica bem à frente. Elas te levarão direto para lá.
May não esperou nem para agradecer. Agarrou a mão de Bitty, apressou-se pelo chão brilhoso e polido, e empurrou as portas de metal assim que ouviu o mecanismo da
tranca ser liberado.
Do outro lado das cadeiras confortáveis e das revistas muito folheadas da sala de espera, tudo era profissionalmente clínico, pessoas de jaleco e com os tradicionais
uniformes de enfermagem brancos, andando para lá e para cá carregando bandejas, notebooks e estetoscópios.
— Por aqui. – Alguém chamou.
A enfermeira em questão tinha cabelos pretos bem curtos, olhos azuis que combinavam com seu uniforme e um rosto tipo Paloma Picasso.
— Eu levo vocês até ela.
Mary pôs-se atrás de Bitty, guiando a garota pelos ombros enquanto andavam pelo corredor e então outro para o que obviamente levava à área da UTI: quartos normais
de hospital não possuíam paredes de vidro com cortinas cerradas por dentro. Não tinham tanta equipe em volta. Não tinham painéis com sinais vitais piscando atrás
do posto de enfermagem.
Quando a enfermeira parou e abriu uma das portas, o ruído do equipamento médico soava urgente, um tipo frenético de bips e guinchos que sugeriam que os computadores
estavam preocupados com o que estava acontecendo à paciente.
A fêmea manteve a cortina afastada.
— Podem entrar.
Quando Bitty hesitou, Mary se abaixou.
— Não vou sair do seu lado.
E de novo, era algo que Mary estava dizendo por si mesma. A garota nunca tinha parecido particularmente interessada com qual membro da equipe do Lugar Seguro estava
ou não ao seu redor.
Quando Bitty permaneceu no mesmo lugar, Mary levantou o olhar. Havia duas enfermeiras verificando os sinais vitais de Annalye, uma de cada lado da cama, e Havers
também estava lá colocando algum tipo de medicação no acesso intravenoso daquele braço assustadoramente fino.
Por uma fração de segundo, ela violentamente conscientizou-se do quadro. A figura na cama tinha cabelos escuros ralos, a pele estava cinzenta, os olhos estavam fechados
e uma boca que estava relaxada – e durante aquele instante infinito enquanto Mary olhava para a fêmea que estava morrendo, não conseguia decidir se estava vendo
sua própria mãe ou a si mesma em cima daquele travesseiro imaculadamente branco.
Não posso fazer isto, pensou.
— Vamos lá, Bitty. – Disse com a voz rouca. — Vamos até lá segurar a mão dela. Ela vai gostar de saber que você está aqui.
Enquanto Mary levava a garota, Havers e a equipe desaparecia ao fundo, recuando sem estardalhaço como se soubessem muito bem que não havia nada que pudessem fazer
para interromper o inevitável e que a chance de Bitty dizer adeus era o caminho inevitável.
Ao lado da cama, Mary manteve a mão sobre o ombro de Bitty.
— Tudo bem, pode tocá-la. Aqui.
Mary se inclinou à frente e segurou a suave mão gelada.
— Olá, Annalye. Bitty veio te ver.
Olhando para a garota, ela anuiu em encorajamento... E Bitty franziu o cenho.
— Ela já está morta? – A garota sussurrou.
Mary piscou com força.
— Ah, não, querida. Ela não está. E consegue te ouvir.
— Como?
— Ela consegue. Vá em frente. Fale com ela. Sei que vai gostar de ouvir sua voz.
—Mahmen? – Disse Bitty.
— Segure a mão dela. Está tudo bem.
Quando Mary recuou um passo, Bitty estendeu a mão... E quando o contato foi feito, a garota franziu o cenho de novo.
— Mahmen?
De repente, alarmes começaram a soar com pânico renovado, os sons estridentes invadindo a frágil conexão entre mãe e filha, trazendo a equipe médica de volta para
a cama apressadamente.
— Mahmen! – Bitty agarrou com ambas as mãos. — Mahmen! Não vá!
Mary foi forçada a puxar Bitty para tirá-la do caminho quando Havers começou a gritar ordens. A garota lutou contra seu gesto, mas então entrou em colapso gritando
com os braços estendidos na direção da mãe e o cabelo emaranhando.
Mary segurou o pequeno corpo agitado.
— Bitty, oh, Deus...
Havers aproximou-se da cama e começou a fazer massagem cardíaca enquanto o ressuscitador de emergência era trazido.
— Temos de ir, – Disse Mary, empurrando Bitty na direção da porta. — Vamos esperar lá fora...
— Eu a matei! Eu a matei!
Ao derrapar na direção de Rhage, Vishous caiu de joelhos e buscou pela jaqueta de couro e camisa do irmão, arrancando as camadas de tecido e expondo...
— Ai... Caralho.
A bala tinha entrado à direita do centro, exatamente onde ficava o coração de seis válvulas de um vampiro dentro das costelas. E quando Rhage ofegou em busca de
ar e cuspiu sangue, V olhou ao redor freneticamente. Guerra pra todo canto. Cobertura em canto nenhum. O tempo... Estava acabando...
Butch vinha correndo até eles de cabeça baixa, disparando um par de armas calibre 40 ao redor de si mesmo em ciclos de bombeamento, de forma que os assassinos ao
alcance tinham de cair no chão em posição fetal para evitar serem atingidos pelos tiros. O ex-tira abaixou-se, as armas ainda erguidas e prontas para disparar, suas
pernas de buldogue e torso se jogaram também na grama alta marrom.
— Temos de tirá-lo daqui. – Aquele sotaque de Boston anunciou.
A boca de Rhage abriu largamente e a inalação que veio em seguida era chiada como uma caixa de pedras.
Geralmente o cérebro de V era aguçado pra caralho, sua grande inteligência era mais uma característica pessoal que uma aptidão e definia tudo em sua vida. Ele era
o racional, o lógico, o filho da puta cínico que nunca errava.
E ainda assim, suas células cinzentas imediatamente pifaram.
Anos de prestação de assistência médica e intervenções em campo lhe diziam que seu irmão ia morrer em um minuto ou dois, caso o músculo do coração tivesse sido mesmo
dilacerado ou perfurado, e uma ou mais válvulas começasse a vazar sangue na cavidade torácica.
Isto resultaria na interrupção da função cardíaca quando o saco peritoneal se inundasse e fatalmente comprometeria a pressão sanguínea.
Era o tipo de ferimento catastrófico que requeria intervenção cirúrgica imediata – e mesmo assumindo que tivessem toda a tecnologia e equipamentos necessários em
uma situação de clínica esterilizada, o sucesso não era garantido.
— V! Temos de tirá-lo daqui...
Balas voavam ao redor e ambos se jogaram no chão. Com um terrível cálculo mental, a unidade de processamento de V chegou a uma conclusão insustentável: a vida de
Rhage ou a deles.
Porra! A culpa é minha, pensou V.
Se não tivesse contado ao irmão sobre a visão, Rhage não teria corrido prematuramente e teria tido mais controle sobre a luta...
Vishous ergueu suas armas e abateu três assassinos que se aproximavam enquanto Butch girava no chão e fazia o mesmo na direção oposta.
— Rhage, fique conosco. – V grunhiu ao se desfazer do cartucho vazio e recarregar as armas, uma após a outra. — Rhage, você precisa... Merda!
Mais tiros. E ele foi atingido no maldito braço.
Enquanto seu próprio sangue corria, ele ignorou, seu cérebro lutando para encontrar uma solução que não resultasse na porra de uma pira funerária para Rhage. Ele
podia chamar Jane por que ela não podia morrer. Mas ela não conseguiria executar uma cirurgia cardíaca de peito aberto aqui, pelo amor de Deus. E se...
O flash de luz foi tão brilhante, tão súbito, que o fez se perguntar quem infernos estaria perdendo tempo apunhalando um lesser de volta para o Ômega...
O segundo jorro de iluminação o fez girar e olhar para Rhage. Oh... Merda. Feixes gêmeos de luz brilhante espocavam das órbitas dos olhos do irmão, apontando para
o céu como feixes de laser em correntes paralelas que poderiam atingir a face da lua.
— Caraaaaaalho!
Mudança total de planos. O tema filho da puta da noite.
V avançou para Butch e o puxou, afastando-o de Rhage.
— Corre!
— O que está fazendo... Santa Maria, mãe de Deus!
Os dois puseram-se a correr desabaladamente mantendo a cabeça baixa, as pernas comendo a distância pela área aberta, enquanto pulavam sobre lessers e se desviavam
para se tornarem alvos mais difíceis. Ao chegarem à construção mais próxima da escola abandonada, eles se alternaram nos cantos em busca de cobertura, V pela frente,
Butch pelos fundos.
Com o peito ofegando, Vishous se inclinou. No centro da clareira, a transformação torturava o corpo caído de Rhage, seus braços e pernas se contorciam enquanto seu
torso convulsionava e tinha espasmos, a fera emergindo da carne do macho, o grande dragão se libertando do DNA que era forçado a compartilhar.
Se Rhage não tivesse morrido ainda, aquilo certamente o mataria.
E ainda assim, não havia como interromper a transformação. A Virgem Escriba tinha entremeado a maldição em cada uma das células de Rhage, e quando a hora chegava,
o processo era um trem descarrilado que ninguém conseguia deter.
A morte cuidaria disto.
A morte de Rhage... Acabaria com aquilo tudo.
V fechou os olhos e gritou por dentro.
Um segundo depois ergueu as pálpebras e pensou, “de jeito nenhum, porra”. “De jeito nenhum, cacete, que vou deixar isto acontecer.”
— Butch, – Rosnou ele. — Tenho que ir.
— O que? Onde você...
Foi a última coisa que Vishous ouviu ao se levantar e desaparecer.
Capítulo QUATRO
Não havia dor.
Nenhuma dor vinha do ferimento que a bala fez no peito de Rhage. E aquela era a primeira indicação de que a merda era séria. Ferimentos que doem tendem a não ser
do tipo que te coloca em estado de choque. Não sentir nada? Provavelmente uma boa indicação – juntamente com o fato de ele ter desabado no chão e o tiro ter sido
certeiro em seu peito – de que corria perigo mortal.
Piscada. Tente respirar. Piscada.
O sangue em sua boca, espesso em sua garganta... Uma maré crescente que ia contra seus esforços de fazer o oxigênio entrar em seus pulmões. A audição tinha se reduzido
a uma abafada versão de si mesma, como se estivesse deitado de costas em uma banheira e o nível da água tivesse subido até cobrir seus dois ouvidos. A visão ia e
vinha, o céu noturno acima dele se revelava e se obscurecia, enquanto as coisas falhavam e voltavam a aparecer. Respirar ficava cada vez mais difícil, um peso crescente
se instalava em seu peito, primeiro como uma sacola, então um baú cheio... Agora já no nível de um trem de carga.
Rápido, estava acontecendo rápido demais.
Mary, ele pensou. Mary?
Seu cérebro cuspiu o nome de sua shellan – talvez ele tenha mesmo chamado em voz alta? – como se sua companheira pudesse ouvi-lo, de alguma forma.
Mary!
O pânico inundou sua corrente sanguínea, acumulando-se dentro das costelas – junto com o plasma que, sem dúvida, estava vazando pela porra toda. Seu único pensamento,
mais do que a morte, a batalha ou mesmo a segurança dos irmãos, era... Oh, Deus, faça a Virgem Escriba manter sua parte da barganha.
Não permita que ele acabe no Fade sozinho.
Mary devia deixar a terra com ele. Devia lhe ser permitido segui-lo quando ele fosse para o Fade. Era parte do acordo que tinha feito com a Virgem Escriba: ficaria
com a maldição e sua Mary sobreviveria à leucemia, e por que sua companheira tinha se tornado infértil devido ao tratamento contra o câncer, ela ficaria com ele
pelo tempo que quisesse.
Você vai morrer esta noite, porra.
Bem ao ouvir a voz de Vishous em sua mente, o rosto do irmão apareceu em seu campo de visão, substituindo o céu. A boca de V se movia, o cavanhaque ondulava enquanto
enunciava as palavras. Rhage tentou afastar o macho, mas seus braços não obedeciam aos comandos de seu cérebro.
A última coisa que precisava era que outra pessoa também morresse. Embora, sendo o filho da Virgem Escriba, V provavelmente seria o último a se preocupar sobre algo
tão improvável quanto bater as botas. Mas quando Butch, o terceiro elo do trio, chegou escorregando e berrando também? Agora, ali estava um cara que não tinha um
cartão de dispensa da Dona Morte...
Tiros. Ambos começaram a atirar.
Não! Rhage ordenou a eles. Diga a Mary que eu a amo e me deixem aqui antes que vocês...
V recuou como se algo de chumbo tivesse penetrado em alguma de suas partes.
E foi quando aconteceu.
Foi o cheiro do sangue do irmão que desencadeou. No instante em que aquela nuance de cobre atingiu o nariz de Rhage, a fera despertou dentro da prisão de seu corpo
e começou a sair, a mudança dando início a terremotos internos que estalaram seus ossos, despedaçaram seus órgãos internos e o transformaram em uma coisa totalmente
diferente.
Agora havia dor.
Bem como a sensação de que este esforço era uma perda da porra do tempo. Se ele ia morrer, o dragão estava só tomando seu lugar na merda da situação.
— Diga a Mary para vir comigo. – Rhage gritou ao ficar completamente cego. — Diga a ela...
Mas teve a sensação de que os irmãos já tinham se afastado e graças a Deus por isso: o sangue de V não estava mais no ar e ninguém respondeu.
Mesmo quando sua força vital se esvaiu, fez de tudo para seguir a corrente enquanto os violentos movimentos da fera destruíam seu corpo moribundo. Mesmo que tivesse
a energia, lutar contra aquela corrente seria desperdício de esforço e não facilitaria nada. Entretanto, enquanto seu corpo e mente, suas próprias emoções e consciência
recuavam, era estranho que não soubesse se era a morte ou a transformação que estava ocorrendo a ele.
Quando o sistema nervoso da fera assumiu completamente o controle sobre ele e suas sensações de dor desapareceram, Rhage recuou a uma zona de flutuação metafísica,
como se quem e o que ele era fosse depositado em um globo de neve no alto da prateleira do continuum tempo.
Só que neste caso tinha a impressão que não seria mais retirado de lá.
O que era engraçado. Cada uma das criaturas que tinham consciência e sabiam de sua própria mortalidade inevitavelmente se perguntavam, de vez em quando, quando e
onde, como e por que de sua própria morte. O próprio Rhage tinha seguido este fluxo mórbido de pensamento, especialmente durante seu período pré-Mary, quando era
um solitário sem nada além de um catálogo de suas falhas e fraquezas para lhe fazer companhia durante as densas e desertas horas de luz do dia.
Para ele, aquelas questões desconexas tinham sido inesperadamente respondidas esta noite: “onde” era no meio do campo de batalha em uma escola abandonada para garotas;
“como” era devido a uma hemorragia cardíaca, resultado de um tiro; “por que” era consequência de seu dever; “quando” seria provavelmente nos próximos dez minutos,
talvez menos.
Dada a natureza de seu trabalho, nada daquilo era surpresa. Está bem, talvez a parte da escola fosse, mas só isso.
Ele sentiria falta dos irmãos, Jesus... E aquilo doía mais do que a fera. E se preocuparia com todos eles e o futuro do reinado de Wrath. Merda, perderia o crescimento
de Nalla e L.W1. E o nascimento dos gêmeos de Qhuinn... Que nasçam vivos e saudáveis. Será que conseguiria ver a todos de lá do Fade?
Oh, sua Mary. Sua bela, preciosa Mary.
O terror o atingiu, mas era difícil apegar-se à emoção enquanto sentia-se enfraquecer cada vez mais. Para se acalmar, disse a si mesmo que a Virgem Escriba não mentia.
A Virgem Escriba era toda poderosa. A Escriba Virgem tinha determinado o equilíbrio necessário para salvar a vida de sua Mary e dera a eles o grande presente para
compensar o fato de que sua shellan nunca poderia ter filhos.
Sem filhos, pensou com um angústia. Ele e sua Mary jamais teriam filhos de qualquer forma agora.
Isto era tão triste.
Estranho... Não tinha pensando que os queria, pelo menos não conscientemente. Mas agora que tudo aquilo tinha acontecido? Estava totalmente desolado.
Pelo menos sua Mary jamais o abandonaria.
E precisava ter fé em que, quando chegasse às portas do Fade e prosseguisse a atravessá-la para o que havia do outro lado, ela conseguiria encontrá-lo.
Senão, esta coisa toda de morte seria insuportável de enfrentar. A ideia de que poderia estar morrendo e que jamais veria sua amada de novo? Jamais voltar a sentir
o cheiro de seus cabelos? Sentir seu toque? Falar a verdade mesmo que ela já soubesse, do quanto a amava?
Era por tudo isto que a morte era tal tragédia, pensou. Era o grande separador, e às vezes atingia sem aviso, um ladrão cruel roubando as pessoas de seus cursos
emocionais que os arruinaria pelo resto de suas vidas...
Merda, e se a Virgem Escriba estivesse errada? Ou tivesse mentido? Ou não fosse tão poderosa?
Subitamente seu pânico recarregou e seus pensamentos começaram a embaralhar, prendendo-o na distância que ultimamente tinha aparecido entre ele e sua shellan, distância
que tinha subestimado, achando que teria tempo e espaço para corrigir.
Oh, Deus... Mary, disse em sua cabeça. Mary! Eu te amo!
Merda. Devia ter falado sobre estas coisas com ela, escavado profundamente para descobrir onde estava o problema, aproximando-os novamente até que estivessem de
novo alma-a-alma.
O problema era, percebeu com terror, enquanto o coração finalmente parava de bater em seu peito, tudo o que você desejava ter dito, todas as peças que faltavam de
si mesmo que ainda tinha a oferecer, todas as falhas que tinha varrido para baixo do tapete, sob a desculpa da vida ser corrida demais... Aquilo acabava também.
O meio do passo, que jamais seria completado, era o pior arrependimento que alguém poderia ter.
Talvez você só não aprendesse isto até que todas as coisas sobre as quais sempre se questionou sobre sua morte realmente acontecesse. E sim, aquelas perguntas que
sempre se fez, os comos e porquês, ondes e quandos... Se tornavam malditamente imateriais quando você partia desta existência.
Eles tinham se afastado, ele e Mary.
Ultimamente... Eles perderam um pouco da conexão entre eles.
Ele não queria partir assim...
Luz branca varreu tudo, devorando-o vivo, roubando sua consciência.
O Fade tinha vindo até ele. E só podia rezar para que sua Mary Madonna fosse capaz de encontrá-lo do outro lado.
Tinha coisas que precisava desesperadamente dizer a ela.
Vishous reassumiu a forma em um pátio de mármore branco que se abria para um céu leitoso tão vasto e brilhante que não havia sombras lançadas pela fonte no centro
ou pela árvore cheia de passarinhos coloridos chilreando mais ao canto.
Os quais silenciaram ao pressentirem seu humor.
— Mãe! – Sua voz entoou, ecoando entre as paredes. — Onde diabos você está!?
Ao avançar, a trilha de sangue que deixou à sua passagem era de um vermelho brilhante e, quando parou à porta que levava aos aposentos particulares da Virgem Escriba,
gotas caíram de seu cotovelo e perna em impactos suaves. Quando bateu e chamou novamente o nome dela, salpicos do sangue tingiram a porta branca, como esmalte de
unha caindo no chão.
— Foda-se!
Forçando a porta com o ombro, invadiu os aposentos da mãe – só para parar de supetão. Sobre a plataforma de dormir, debaixo de lençóis de cetim branco, a entidade
que tinha criado a raça vampírica e também corporeamente gerado ele e sua irmã, estava deitada em absoluta imobilidade e silêncio. Mas não havia forma corpórea nela.
Somente uma poça tridimensional de luz que outrora fora tão brilhante quanto o estouro de uma bomba, mas agora era como uma antiquada lamparina com a luz embaçada.
— Você precisa salvá-lo, – Ao cruzar o chão de mármore, Vishous reparou vagamente que o quarto estava vazio, exceto pela cama. Mas quem se importava? — Acorda, porra!
Alguém importante está morrendo e você precisa impedir, maldição.
Se ela tivesse um corpo, ele a teria agarrado e forçado a prestar atenção. Mas não havia braços para ele puxar para fora da cama ou ombros para chacoalhar.
Estava a ponto de gritar de novo quando palavras soaram pelo quarto como se viessem de um sistema de som surround.
O que tiver de ser, será.
Como se isto explicasse tudo. Como se ele fosse um cuzão por ter vindo incomodá-la. Como se estivesse desperdiçando o tempo dela.
— Por que nos criou se não liga a mínima?
Exatamente o que te preocupa? O futuro dele ou o seu?
— Do que infernos está falando? – Oh, e sim, sabia que não devia questioná-la, mas foda-se. — O que isto significa?
Será necessário mesmo uma explicação?
Ao cerrar os dentes, V lembrou a si mesmo de que Rhage estava em campo se transformando em um monstro e morrendo daquela encarnação: ficar de bate boca com a querida
mamãe não seria o melhor caminho aqui.
— Apenas salve-o, tudo bem? Tire-o daquele teatro de horrores para que possamos operá-lo e eu te deixo aqui para apodrecer em paz...
E isto resolveria o destino dele em que?
Está bem, agora sabia por que os humanos com questões maternas iam àqueles programas que o Lassiter gostava de assistir. Cada vez que V chegava perto desta fêmea,
entrava em estado de psicose induzida pelo útero.
— Ele vai continuar respirando, é isto que vai resolver.
O destino vai acabar se cumprindo de outras maneiras.
V imaginou Hollywood escorregando no tapete do banheiro numa queda em casa que o mataria. Ou engasgando com uma coxa de peru. Ou só Deus sabe o que mais poderia
matar o irmão.
— Então o mude. Você é poderosa pra cacete. Mude o destino dele agora mesmo.
Houve uma longa pausa e se perguntou se ela não teria caído no sono de novo ou merda do tipo – e cara, ele realmente a odiou. Ela era uma maldita desistente, retirando-se
do mundo, isolando-se aqui em cima como uma reclusa rabugenta só por que ninguém mais estava beijando sua bunda do jeito que ela queria.
Que peninha.
Enquanto isto, um dos melhores guerreiros deles, um que era absolutamente indispensável na guarda privada do Rei, estava a ponto de se pirulitar deste planeta. E
V era a última pessoa a querer que outra pessoa resolvesse os problemas por ele, mas tinha de tentar salvar Rhage com tudo o que podia, e quem diabos mais tinha
este tipo de poder?
— Ele é importante, – V rosnou. — A vida dele é importante.
Pra você.
— Foda-se, isto não é sobre mim. Ele importa ao Rei, à Irmandade, à guerra. Se o perdermos? Teremos um problemão.
Por que não tenta ser honesto?
— Acha que estou preocupado com ele e Mary? Sim. Confesso essa merda também por que neste exato momento você não parece ser capaz sequer de ficar em pé, quanto mais
acompanhar uma não-entidade que você arrancou do reino mortal pela travessia até o Fade no momento em que ela quiser.
Porra. Agora que tinha falado em voz alta, realmente tinha de se perguntar se aquela coisa alquebrada em cima da cama poderia mesmo cumprir a promessa que fizera
no que parecia ser antigamente, mesmo que só tivesse sido há três anos.
Tanta coisa tinha mudado.
Exceto o fato de que ainda odiava qualquer tipo de fraqueza. E continuava a detestar estar na presença da mãe.
Vá embora. Você me cansa.
— Eu te canso. É, por que você tem mesmo tanta coisa pra fazer aqui em cima. Jesus Cristo.
Tudo bem, ela que se fodesse. Ele descobriria outra saída. Outro... Alguma coisa.
Merda, o que mais havia?
Vishous virou-se para a porta que tinha arrombado. A cada passo dado, esperava que ela o chamasse de volta, dissesse algo ou lhe desse uma dor no peito quase tão
letal quanto o golpe que derrubara Rhage. Quando ela não chamou, e a porta se fechou mal tinha passado, quase acertando seu traseiro, ele pensou que já devia saber.
Ela não se importava o suficiente nem para cagar nele.
De volta ao pátio, a trilha de sangue que havia deixado sobre o revestimento de mármore era como o destino que tinha seguido por toda a vida, torto e bagunçado,
evidenciando a dor que ele totalmente falhava em reconhecer. E sim, queria que a mancha se infiltrasse naquela pedra, como se talvez isto pudesse chamar a atenção
dela.
Por falar nisto, por que simplesmente não se jogava no maldito chão com um ataque de birra, como se estivesse nos corredores de uma loja de departamentos, enfurecido
por não ganhar um triciclo?
Enquanto ficava parado ali, o silêncio se registrou como se fosse um som. O que era ilógico e precisamente a experiência que ele teve ao perceber o quão verdadeiramente
silencioso aquele lugar agora estava. As Escolhidas estavam todas na Terra, aprendendo sobre si mesmas, separadas individualmente, renegando seu papel tradicional
de servir à mãe. O mesmo acontecendo com a raça, existindo em tempos modernos onde os velhos ciclos de festivais e costumes eram ignorados, em sua maioria, e as
tradições que outrora eram respeitadas, estavam agora à beira do esquecimento.
Bom, pensou. Esperava que ela estivesse se sentindo sozinha e desrespeitada. Ele a queria bem calma e isolada, com seus fiéis mais fervorosos dando-lhe as costas.
Ele a queria ferida.
Ele a queria morta.
Seus olhar foi para os pássaros que tinha trazido para ela e o bando fugiu dele, subindo para outros galhos do outro lado da árvore branca, amontoando-se juntos
como se temessem que ele fosse torcer os pescoços deles, um a um.
Aqueles passarinhos tinham sido uma oferta de paz de um filho que jamais havia sido realmente querido, mas também não tinha se comportado muito bem. Sua mãe provavelmente
não tinha dirigido a eles mais do que um olhar – e, quem diria, também tinha superado este breve flamejar de uma fraqueza conciliatória, de volta às margens de sua
inimizade. Como poderia ser diferente?
A Virgem Escriba não veio a eles quando Wrath fora quase assassinado. Ela não tinha ajudado o Rei a manter sua coroa. Beth quase morreu ao dar à luz e teve de abrir
mão de qualquer possibilidade de ter filhos no futuro. Pelo amor de Deus, Selena, uma das Escolhidas da própria Virgem Escriba, tinha acabado de morrer e arrebentar
o coração de um maldito macho de valor – e qual foi a resposta? Nada.
E antes de tudo isto? A morte de Wellsie. Os ataques.
E à frente? Qhuinn estava se borrando de preocupação de que Layla morresse dando à luz aos gêmeos. E Rhage estava morrendo ali embaixo no meio da batalha.
Precisava mais?
Girando a cabeça, V olhou para a porta que tinha voltado a se fechar à sua passagem. Ele ficava contente por ela estar sofrendo. E não, não confiava nela.
Ao se desmaterializar de volta para o campo de combate, não tinha absolutamente fé nenhuma de que ela faria o correto para Rhage e Mary. Ele fez uma aposta que tinha
perdido ao ir até a mãe, mas com ela aquilo era sempre o que acontecia.
Milagre. Ele precisava da porra de um milagre.
Capítulo CINCO
A água que caía sobre a mão de Mary estava fria, e ainda assim queimava sua pele – provando que lados opostos do termômetro podem coexistir ao mesmo tempo.
A pia do banheiro feminino que estava usando era branca e de porcelana. Seu ralo brilhava e era prateado. À sua frente, um espelho de parede inteira refletia três
reservados, todos tinham as portas cor de pêssego fechadas, mas somente um deles estava ocupado.
— Está tudo bem aí? – Disse ela.
Ouviu o barulho da descarga, mesmo que Bitty não tivesse usado.
Mary encarou seu reflexo. É. Ela parecia tão mal quanto se sentia: por algum motivo, nos últimos trinta minutos bolsas escuras se formaram sob as órbitas que pareciam
afundadas, e sua pele parecia tão pálida quanto o piso no qual estava pisando.
Por algum motivo? Besteira. Sabia exatamente o motivo.
Eu a matei!
Mary teve de fechar os olhos e fingir recompor-se novamente. Quando abriu os olhos de novo, tentou se lembrar do que estava fazendo. Oh. Certo. Havia uma pequena
pilha de toalhas de papel em uma prateleira do tipo entrelaçado e dobrado, e ao avançar para pegar um, respingou os outros de água e pensou consigo mesma que era
estranho que Havers, tão meticuloso com a clínica, permitisse tal bagunça. Daí entendeu... O suporte na parede perto da porta estava quebrado, a parte inferior pendurada,
frouxa.
Igual a mim, pensou. Cheia de técnica e experiência em ajudar pessoas, mas sem executar meu trabalho direito.
Segure a mão dela. Está tudo bem...
Eu a matei!
— Bitty? – Quando a palavra não saiu mais do que um resmungo, ela pigarreou. — Bitty.
Depois de secar as mãos, virou-se para os reservados.
— Bitty, vou entrar se você não sair.
A garota abriu a porta do meio, e por alguma razão Mary soube que jamais se esqueceria da visão daquela mãozinha fortemente cerrada, sem se abrir, quando ela saiu.
Ela tinha chorado lá dentro. Sozinha. E agora que a garota estava sendo forçada a mostrar o rosto, estava fazendo exatamente o que a própria Mary esteve desesperadamente
tentando fazer.
Às vezes a compostura era tudo o que se tinha; dignidade, seu único consolo; a ilusão de “tudo bem” sua única fonte de conforto.
— Aqui, me deixe... – Quando a voz de Mary se apagou, voltou para as toalhas de papel e umedeceu uma na pia que tinha usado. — Isto vai ajudar.
Aproximando-se lentamente da garota, trouxe o papel frio e macio para o rosto corado dela, pressionando-o na pele quente e avermelhada. Enquanto isto, na sua cabeça
se desculpava com a Bitty adulta, aquela que ela esperançosamente se tornaria: Sinto muito ter te feito fazer isto. Não, você não a matou. Quem dera eu tivesse te
deixado fazer as coisas do seu jeito e a seu tempo. Sinto muito. Não, você não a matou. Sinto muito.
Sinto tanto.
Mary ergueu o queixo da garota.
— Bitty...
— O que eles vão fazer com ela agora? Para onde ela vai?
Deus, aquele olhar castanho claro era firme.
— Eles vão levá-la... Bem, eles vão cremá-la.
— O que é isto?
— Eles vão queimar o corpo dela até torná-lo cinzas, para o rito de passagem.
— Vai doer?
Mary pigarreou de novo.
— Não, querida. Ela não vai sentir nada. Está livre... Ela está no Fade esperando por você.
O lado bom era que ao menos isto Mary sabia ser verdade. Mesmo tendo sido criada católica, ela própria tinha visto a Virgem Escriba, então não, não estava dando
à garota falsas esperanças. Para os vampiros existia mesmo um paraíso, e eles real e verdadeiramente encontravam seus entes queridos lá.
Diabos, talvez isto também fosse verdade para os humanos, mas a magia era muito menos visível no mundo deles; desta forma, a salvação eterna era muito mais difícil
de ser vendida ao humano comum.
Afastando a toalha de papel, Mary recuou um passo.
— Eu gostaria de voltar ao Lugar Seguro agora, tudo bem? Não há mais nada que a gente possa fazer aqui e já está quase amanhecendo.
A última frase saiu só por hábito, ela achava. Como uma pré-trans, Bitty era capaz de tolerar qualquer quantidade de luz do sol. E a verdade real era que só queria
levar a garota para longe de toda a morte dali.
— Tudo bem? – Mary repetiu.
— Não quero deixá-la.
Em qualquer outra circunstância, Mary teria se abaixado e gentilmente exposto um pouco do que ia ser o mundo novo de Bitty. A realidade horrorosa era que não havia
mais mãe para deixar para trás, e tirar a garota deste ambiente clínico onde pacientes estavam sendo tratados, às vezes em situações terríveis, era inteiramente
apropriado.
Eu a matei.
Em vez disto, Mary disse.
— Está bem, podemos ficar o quanto você quiser.
Bitty anuiu e foi até a porta que levava ao corredor. Parada diante da porta fechada, seu vestido tremendamente gasto parecia a ponto de se desmanchar de sua figura
magra, seu feio casaco preto parecia um cobertor jogado de qualquer jeito ao seu redor, seus cabelos castanhos despontados arrepiavam contra o tecido.
— Eu realmente queria...
— O que? – Sussurrou Mary.
— Eu queria voltar a antes. À hora que eu acordei hoje.
— Eu também queria que fosse possível.
Bitty olhou por cima do ombro.
— Por que não pode voltar? É tão estranho. Digo, consigo lembrar tudo dela. É como... É como se minhas lembranças fossem um quarto no qual eu pudesse entrar. Ou
algo assim.
Mary franziu o cenho, pensando que aquela era uma maneira muito madura de se expressar para alguém daquela idade.
Mas antes que pudesse responder a garota abriu a porta, claramente não interessada em uma resposta – e talvez isto fosse uma coisa boa. Que infernos se podia responder
diante aquilo?
No corredor, Mary quis pousar a mão sobre aquele ombro pequeno, mas se segurou. A garota era tão fechada, do mesmo modo que um livro seria no meio de uma biblioteca
ou uma boneca em uma fila de colecionáveis, e era difícil forçar a quebrar aquelas fronteiras.
Especialmente quando, como uma terapeuta, você mesma já estava se sentindo muito desequilibrada em seu papel de profissional.
— Para onde vamos? – Bitty perguntou quando duas enfermeiras passaram por elas.
Mary olhou ao redor. Elas ainda estavam na área da UTI, mas a alguma distância de onde a mãe de Bitty tinha morrido.
— Podemos procurar uma sala para nos sentar.
A garota parou.
— Nós não vamos poder vê-la de novo, vamos?
— Não.
— Acho que é melhor a gente voltar.
— O que você quiser.
Cinco minutos depois estavam no Volvo indo para o Lugar Seguro. Ao guiá-las pela ponte, Mary voltou a olhar pelo retrovisor, verificando Bitty a cada cinquenta metros.
No silêncio, ela se pegou novamente a desfiar um cordão de desculpas em sua mente... Por ter dado um conselho ruim, por colocar a garota na posição de mais sofrimento.
Mas toda aquela comiseração era auto-infligida, uma busca por absolvição pessoal, totalmente injusta com a paciente, especialmente uma tão jovem.
Este pesadelo profissional era algo que Mary teria de superar sozinha.
Uma entrada na I-87 apareceu assim que chegaram ao lado do centro, após a ponte, e a seta soou alto no interior do utilitário. Dirigindo-se para o norte, Mary permaneceu
no limite de velocidade e foi ultrapassada por alguns caminhões fazendo oitenta em uma pista de sessenta e cinco. De vez em quando, sinais luminosos indicando áreas
de ultrapassagem piscavam acima delas em um ritmo que nunca demorava, e o pouco tráfego local era diminuído ainda mais enquanto elas prosseguiam.
Quando chegassem, Mary decidiu que tentaria dar algo para a garota comer. Bitty tinha perdido a Primeira Refeição e devia estar morrendo de fome. Então talvez um
filme até o amanhecer, algo calmo. O trauma era tão recente, e não só o fato de perder a mãe. O que tinha acontecido lá no Havers devia ter trazido à tona tudo o
que tinha acontecido antes – os abusos em casa, o resgate onde Rhage, V e Butch mataram o pai para salvar Bitty e a mãe, a descoberta que a mãe estava grávida, a
perda do bebê, os meses que se arrastaram depois, onde Annalye jamais se recuperara totalmente...
— Sra. Luce?
— Sim? – Oh, Deus, por favor, pergunte algo que eu possa responder decentemente. — Sim, Bitty?
— Para onde estamos indo?
Mary olhou para a placa na estrada. Dizia “Saída 19 Glen Falls”.
— Desculpe? Estamos indo para casa. Devemos chegar lá em quinze minutos.
— Achei que o Lugar Seguro não era tão longe.
— O q...?
Oh, Deus.
Estava indo na direção da maldita mansão.
— Oh, Bitty, desculpe. – Mary meneou a cabeça. — Eu acho que confundi as saídas. Eu...
Onde estava com a cabeça?
Bem, ela sabia a resposta... Todas as hipóteses que vinha imaginando em sua cabeça sobre o que fariam quando saíssem do carro eram coisas que envolviam o lugar onde
Mary morava com Rhage, o Rei, os Irmãos, os guerreiros e suas companheiras.
Onde infernos estava com a cabeça?
Mary pegou a saída 19, desceu a rodovia e voltou a seguir para o sul. Cara, não estava dando uma dentro esta noite, estava?
Pelo menos as coisas não poderiam piorar.
De volta ao Internato para Garotas Bownswick, Assail, filho de Assail, ouviu o rugido mesmo através da sobrecarga sensorial da batalha.
Apesar do caos de todos os tiros, dos xingamentos e das loucas corridas de cobertura a cobertura, o som trovejante que rolava pelo campus abandonado era o tipo de
coisa que chamava a atenção.
Ao se virar, manteve o dedo no gatilho da automática, continuando a descarga de balas adiante, certeiramente em uma fila de mortos-vivos...
Por uma fração de segundo, parou de atirar.
Seu cérebro simplesmente não conseguia processar o que os olhos sugeriam que tinha magicamente aparecido a cinquenta metros à sua frente. Era... Algum tipo de criatura
parecida com um dragão, coberta de escamas roxas, cauda serrilhada e uma boca arreganhada cheia de dentes de T. Rex. O monstro pré-histórico tinha bem a altura de
dois andares, comprido como um trailer, e rápido como um crocodilo ao avançar para atacar qualquer coisa que se mexesse...
Queda livre.
Sem aviso, seu corpo voou adiante, e uma dor se espalhou pela frente de sua perna e rasgou até seu tornozelo. Girando em meio ao ar, caiu de cara na grama alta...
E uma respiração depois, o assassino parcialmente ferido que o tinha atingido com uma faca caiu em cima de seu peito, aquela lâmina arqueando pelo seu ombro, os
lábios curvados em um esgar enquanto o sangue preto derramava em Assail inteiro.
Certo, foda-se, cara.
Assail agarrou um punhado do cabelo ainda castanho, enfiou o cano da arma naquela boca arreganhada e apertou o gatilho, explodindo a parte de trás do crânio, incapacitando
o corpo de forma que caiu em cima dele como um peso morto agitado. Chutando o corpo que se contorcia para tirá-lo de cima, voltou a se levantar.
E se viu diretamente diante da fera.
Seus movimentos para se levantar chamaram a atenção, os olhos do dragão se fixaram nele, estreitados em fendas. Então, com outro rugido a criatura veio em direção
à ele fazendo o chão tremer, esmagando os assassinos sob suas massivas patas traseiras, as garras da frente encurvadas para cima e prontas para o ataque.
— Porra!
Assail jogou-se para frente, não mais preocupado onde mirava a arma e absolutamente despreocupado com o fato de que agora corria para a fileira avançada de lessers.
O lado bom? A fera cuidou daquele probleminha. Os assassinos lançaram igualmente um olhar para aquela criatura dos infernos vindo em direção a eles e dispersaram
como folhas sob o vento de outono.
Naturalmente, não havia nada diretamente adiante que provesse nenhuma cobertura. Por azar, sua rota de fuga não oferecia nada além de arbustos e grama, sem nenhuma
proteção significativa. A construção mais próxima? Estava a duzentos metros de distância. Pelo menos.
Praguejando, correu mais rápido, abusando dos músculos de suas pernas, buscando mais e mais velocidade.
Era uma corrida que a fera estava fadada a vencer – uma vitoria inevitável quando um par de pernas que mal cobria um metro e meio a cada passo, tentava vencer um
par de pernas que podia cobrir vinte e cinco em um único passo. A cada segundo, aquele som ficava mais alto e mais perto, até que jatos quentes de respiração atingiram
as costas de Assail, esquentando-o, apesar do frio.
O medo inundou o seu núcleo.
Mas não havia tempo para tentar dominar o pânico que invadiu sua mente. Um grande rugido explodiu na sua direção, a força do som tão grande que o empurrou adiante,
provendo um jorro de ar fedorento que o enojou. Merda, sua única chance era...
A mordida veio depois do grande rugido, aqueles maxilares estalando tão perto da nuca de Assail que ele se encolheu, mesmo que isto diminuísse sua velocidade. Mas
era tarde demais para se salvar. Transportado pelo ar. Ele foi erguido, arrancado do chão em meio a um passo – só que, por que não doía mais?
Certamente se a fera o tivesse agarrado pelos ombros ou pelo torso, ele teria sido rasgado – não, espere, ela o pegou pela jaqueta. A coisa o agarrou pela jaqueta
de couro, não pela carne, e uma faixa de constrição cortava pelo seu peito e erguia-o pelas axilas, as pernas flutuavam, a arma disparava enquanto ele cerrava as
mãos em punhos. Abaixo dele, a paisagem girava como se estivesse em uma gangorra, os lessers restantes, os irmãos lutando, os arbustos muito crescidos e as árvores
balançavam ao redor dele como se estivesse sendo chacoalhado.
A porra da coisa ia devorá-lo. Esta baboseira sem sentido era só para amaciar a carne.
Maldito fosse ele, era o equivalente vampírico a uma asa de frango.
Não havia tempo. Soltou a arma e tateou em busca do zíper em sua garganta. O movimento balançante tornou seu pequeno alvo rápido como um rato, escorregadio como
mármore, estilo agulha em palheiro para suas mãos trêmulas e escorregadias, e as pontas dos dedos suadas.
O próprio aperto da fera foi o que o ajudou.
Com aqueles dentes travados nas costas da jaqueta, o couro não conseguiu suportar seu peso e ele caiu, despencando das presas, o chão duro se apressando para recebê-lo.
Encolhendo-se e rolando, procurando não quebrar nada, no entanto, pousou num monte de entulho.
Direto de ombro.
O estalar foi algo que se registrou pelo seu corpo todo, deixando-o tão inútil quanto um bebê indefeso, sem fôlego, a vista embaçada. Mas não havia tempo se quisesse
viver. Virando-se, ele...
Pop! Pop! Pop! Pop! Pop! BUM!
Seus primos surgiram do nada, correndo como se estivessem sendo perseguidos quando de fato não estavam. Ehric tinha duas automáticas em riste e atirando... E Evale
tinha uma metralhadora sobre os ombros.
Aquele era o BUM!
A arma era de fato uma metralhadora de verdade, uma enorme arma de fogo que tinha sobrado do tempo do Raj na Índia. Evale, o bastardo agressivo, há muito parecia
ter fixação pela coisa de uma maneira nada natural, estilo “meu precioso”.
Graças aos Destinos pelas preocupações nada saudáveis.
Aquelas balas calibre quarenta não tinham efeito nenhum sobre a fera, ricocheteando pelas escamas roxas como ervilhas jogadas na lataria de um carro. Mas a carga
de chumbo da metralhadora resultou em um uivo de dor e a fez recuar.
Era a única oportunidade de Assail escapar.
Fechando os olhos, ele se concentrou, concentrou, concentrou...
Não dava para se desmaterializar. Muita adrenalina além de muita cocaína, junto com muita dor em seu ombro, pra piorar.
E a fera voltou ao ataque, voltando a se concentrar em Assail e lhe dando o equivalente dragão de um foda-se na forma de um enorme rugido...
A imensa arma disparou uma segunda vez, atingindo a coisa no peito.
— Corra! – Ehric gritou enquanto recarregava suas armas calibre 40 com invólucros saltando pela parte de trás das pequenas armas. — Levante-se!
Assail usou o braço bom para apoiar e levantar do chão, e suas pernas voltaram a funcionar com desenvoltura admirável. Segurando o braço ferido contra o peito, arrastou-se
o mais rápido que pôde, com os restos de sua jaqueta esvoaçando, o estômago embrulhado, o coração disparado.
BUM!
Por todo canto, em toda parte – ele tinha de chegar a qualquer porra de abrigo – e rápido. Que pena seu corpo não obedecer. Mesmo enquanto seu cérebro gritava por
velocidade, tudo o que conseguia fazer era cambalear como um zumbi...
Alguém o pegou por trás, erguendo-o do chão em um saco de batatas, jogando-o por cima do ombro como um bombeiro. Enquanto caía em posição de cabeça pra baixo, vomitou
de agonia com estrelas espocando em seus olhos, enquanto o estômago esvaziava com violência. As boas novas eram que ele não comia há doze ou quinze horas àquela
altura, então não sujou muito a perna da calça do primo.
Ele queria ajudar no esforço. Queria se levantar. Queria...
Arbustos o golpearam no rosto e cerrou os olhos para se proteger. Sangue começou a fluir e encheu seu nariz. Seu ombro doía cada vez mais. A pressão em sua cabeça
ficou insuportável, fazendo-o pensar em pneus muito cheios, bagagens superlotadas, balões de água que estourava e derramava seu conteúdo por todo canto.
Graças a Deus pelos primos. Eles jamais o abandonavam.
Não podia se esquecer de recompensá-los de alguma maneira.
O galpão parecia galopar na direção deles, e da posição privilegiada – de ponta cabeça – que Assail estava, a coisa parecia se dependurar da terra ao invés de estar
plantada em cima dela. Tijolos. Mesmo com os solavancos e a escuridão dava para perceber que o abrigo era de tijolos.
Era de se esperar que fosse uma construção resistente.
Seu primo arrombou a porta e o ar dentro era úmido e mofado.
Sem aviso, Assail foi largado como o lixo que era e caiu em um chão empoeirado com uma queda que o fez ter ânsia de vômito de novo. A porta se fechou e então tudo
o que ouviu foi a respiração pesada do primo. E a sua.
E os sons abafados da batalha.
Houve um súbito brilho de luz alaranjada.
Pela névoa de sua dor, Assail franziu o cenho... E então recuou. O rosto se iluminou quando um cigarro enrolado a mão foi aceso, mas não de era nenhum de seus primos.
— O quanto seu ferimento é grave? – O Irmão da Adaga Negra, Vishous, perguntou ao exalar a fumaça mais deliciosa.
— Foi você?
— Não, foi o Papai Noel.
— Que salvador improvável é você, – Assail fez uma careta e limpou a boca na manga da jaqueta. — E sinto muito por suas calças.
V olhou para si mesmo.
— Tem algo contra couro preto?
— Eu vomitei atrás delas...
— Merda!
— Bem, dá pra limpar...
— Não, cuzão, ela está vindo para cá, – V indicou a janela suja. — Maldição.
De fato, à distância, o retumbante som trovejante dos passos do dragão soou de novo, como uma tempestade se formando e vindo na direção deles.
Assail se agitou ao redor procurando algum lugar para se esconder. Um armário. Um banheiro. Um sótão. Nada. O interior estava vazio, exceto por duas pilhas até o
teto de entulhos de mais de uma década. Graças à Virgem Escriba o abrigo parecia ser tijolo firme e mais provável de aguentar...
O teto foi erguido e despedaçado de uma só vez, os pedaços chovendo, as telhas e o concreto caindo no chão como se o abrigo estivesse anunciando sua própria morte
com uma rodada de aplausos. O ar fresco da noite amenizou o cheiro mofado, mas isto dificilmente era um alívio, dado o que havia precipitado o acesso.
A fera não era vegetariana, fato. Mas também não parecia preocupada pela sua absorção de fibras: a coisa cuspiu aquele telhado de madeira para o lado, abaixou-se
e abriu sua bocarra, emitindo um bum sônico de rugido.
Não havia para onde correr. A criatura estava montada sobre o prédio, preparada para atacar o que havia se tornado sua lancheira. Não havia lugar algum para se abrigar.
Nenhuma defesa possível a tentar.
— Vá, – Assail disse ao Irmão quando aqueles grandes olhos reptilianos se estreitaram e o focinho explodiu um bafo tão quente e fétido quanto um Lixão no verão.
— Me dê sua arma. Eu vou distraí-lo.
— Não vou te deixar.
— Não sou um dos seus irmãos.
— Você nos deu a localização deles. Entregou a cabeça do Fore-lesser. Não vou te largar aqui, seu bundão.
— Quanta educação. E esses elogios. Pare.
Quando a fera soltou outro rugido e jogou a cabeça como se preparada para brincar um pouco com eles antes de devorá-los, Assail pensou em seu negócio de drogas...
Seu vício em cocaína...
A fêmea humana por quem tinha se apaixonado e a quem precisou deixar ir embora. Por que ela não conseguiria lidar com seu estilo de vida e ele estava muito preso
a isso para parar, mesmo por ela.
Ele meneou a cabeça para o Irmão.
— Não, não valho a pena salvar. Dá a porra do fora daqui.

 

 

 

CONTINUA