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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A BESTA
A BESTA

 

 

 

                                                            Irmandade da "Adaga Negra"                                                                 

 

 

 

 

Capítulo QUARENTA E CINCO
Sentada ao lado do túmulo da mãe, Mary prendeu a respiração enquanto esperava que Bitty dissesse algo mais. No silêncio, as palavras da garota pairaram no ar frio
entre elas.
Meu pai costumava me bater.
— Pode ser muito difícil falar sobre coisas assim. – murmurou Mary.
— Seu pai também...
— Não. Na verdade, nem me lembro mais dele. Ele morreu quando eu tinha dois anos em um acidente. Minha mãe era o único parente que eu tinha.
— Minha mahmen também era tudo o que eu tinha. Mas às vezes, não me sentia assim tão próxima a ela. É difícil explicar.
— Havia uma porção de coisas acontecendo na sua casa.
— Eu costumava deixá-lo com raiva de mim de propósito. Só para que ele não... Sabe, fosse atrás dela. – Bitty deu de ombros. — Eu era mais rápida do que ele. Tinha
mais chances.
Mary fechou os olhos e impediu-se de praguejar.
— Eu sinto muito.
— Tudo bem.
— Não, na verdade não está.
— Estou com frio. – Disse Bitty abruptamente.
— Vamos voltar para o carro então. – Mary levantou-se, respeitando a mudança do rumo da conversa. — Eu ligo o aquecimento.
— Você não quer ficar mais?
— Sempre posso voltar. – Ela queria tomar a mão da garota, mas sabia que não devia forçar. — E está mesmo frio.
Bitty anuiu, e juntas caminharam pelos túmulos, o chão suave sob seus pés até chegarem à alameda. Quando chegaram ao Volvo, a garota hesitou.
Mary olhou por cima do ombro ao abrir a porta do motorista.
— Quer que eu vá pelo caminho mais longo até o Lugar Seguro?
— Como sabia?
— Acho que foi só um chute.
Conforme seguiam a alameda principal para fora dos portões de ferro do cemitério, Bitty murmurou:
— Nunca pensei que Caldwell fosse tão grande.
Mary anuiu.
— É uma cidade de bom tamanho. Já viu o centro?
— Só em fotos. Meu pai tinha um caminhão, mas minha mãe não podia dirigi-lo. Quando viemos ao Havers daquela vez, ela o pegou quando ele apagou. Foi por isto que...
Outras coisas aconteceram. Sabe, depois que voltamos.
— Sim. – Mary olhou pelo retrovisor. — Posso imaginar.
— Eu gostaria de ver o centro da cidade.
— Quer ir agora? É bem bonito à noite...
— Podemos?
— Pode apostar.
Na entrada de Pine Grove, Mary pegou à esquerda e se dirigiu através dos subúrbios até a rodovia. Ao passarem por uma vizinhança cheia de casas humanas, a maior
parte das quais estavam escuras, Bitty tinha a cara pressionada contra a janela... E então veio as lojas, e mais além, as galerias de lojas onde não havia nada além
de placas luminosas, estacionamentos vazios e espaços fechados.
— Esta é a Northway. – Mary ligou a seta. — Vai nos levar até lá em segurança.
Subiram a rampa da saída. Para o pouco de tráfego que havia às dez da noite.
E então ali estava no horizonte, como um tipo diferente de nascer do sol, os arranha-céus pontilhados com luzes em padrões aleatórios.
— Oh, veja isto. – Bitty sentou-se na beira do banco. — Os prédios são tão altos. Quando mahmen me levou para o outro lado do rio para a clínica, ela me escondeu
por baixo de um cobertor. Eu não pude ver nada.
— Como vocês... – Mary pigarreou. — Como vocês arrumavam comida? Viviam em uma área bem rural... Não havia muitos lugares por perto que desse para ir a pé, não é?
— Meu pai trazia para casa o que queria. A gente podia ficar com o que sobrava.
— Você já esteve, sabe, em um supermercado?
— Não.
— Quer ir a um? Na volta?
— Oh, eu adoraria!
Mary manteve a velocidade a vinte e cinco quilômetros por hora ao atravessarem a floresta de prédios, as ruas um tanto parecidas como as alamedas do cemitério, curvas
abertas trazendo-as perto de pilhas verticais de incontáveis escritórios antes de virar em outra direção para ainda outra vista de aço e vidros.
— Nem todas as luzes estão apagadas.
— Não. – Riu Mary. — Sempre que passo por aqui de carro à noite, costumo inventar histórias sobre por que alguém esqueceu de apertar o interruptor antes de ir embora.
Será que estavam com pressa para encontrar alguém para um jantar de comemoração? Um primeiro encontro? O nascimento de um bebê? Tento imaginar coisas boas.
— Talvez eles tenham um cachorrinho novo.
— Ou um periquito.
— Não acho que um peixe seria digno de tal pressa.
Eeeeeee esta foi a discussão boba enquanto Mary fazia o retorno através do distrito financeiro de Caldwell para pegar uma estrada de quatro vias que levou-as de
volta em direção de onde vieram. O Hannaford que ela queria ficava a quatro quilômetros de distância do Lugar Seguro, e quando entrou no estacionamento do mercado,
só havia alguns clientes esparsos entrando e saindo da entrada bem iluminada, alguns com sacolas, outros com carrinhos, alguns ainda de mãos vazias.
Estacionou, e então ela e Bitty saltaram.
— Está com fome? – Mary perguntou, ao se dirigirem para as portas automáticas.
— Não sei.
— Bem, me avise se quiser alguma coisa.
— Tem comida lá no Lugar Seguro.
— Sim, tem sim.
Bitty parou e observou as portas abrindo e fechando.
— Isto é tão incrível.
— É... Acho que é mesmo.
Quando entraram juntas, Mary pensou... Deus, quantas vezes tinha entrado e saído por portas assim, com a cabeça fervilhando com listas de coisas para comprar, ou
coisas que a preocupavam, ou planos de que voltaria depois? Ela jamais deu atenção ao modo incrível como as portas funcionavam sozinhas, indo e voltando como pequenos
corredores, nem rápido demais, nem devagar demais, como quando acionadas por pessoas.
Pelos olhos de Bitty, ela viu o que tinha subestimado sob uma luz totalmente nova.
E aquilo foi tão incrível.
Sem pensar, Mary colocou a mão sobre o ombro da garota... Só pareceu uma coisa tão natural a se fazer que não conseguiu evitar.
— Vê aqui? Há um sensor... Quando uma pessoa chega ao campo de reconhecimento deste sensor, é isto que faz elas funcionarem. Tente.
Bitty deu um passo à frente e riu quando a porta de vidro se abriu para ela. Então voltou um passo para trás. Ela se inclinou e abanou as mãos até elas abrirem de
novo.
Mary ficou ali por perto... Com um grande sorriso no rosto, o peito cheio de algo tão morno que não conseguia aguentar analisar muito de perto.
De pé, do lado de fora do quarto de Throe, Assail virou-se para confrontar a fêmea que tinha feito a pergunta a ele... O tempo todo se perguntando que nível de complicação
aquilo resultaria para ele.
Mas era só a empregada que tinha passado transportando as roupas para lavar quando ele estava subindo as escadas dos fundos da mansão... E os olhos da doggen estavam
arregalados e um pouco assustados, dificilmente uma sugestão de problemas, mesmo que tivesse sido flagrado em um lugar onde não deveria estar.
Assail buscou transmitir confiança para ela, oferecendo um sorriso fácil.
— Receio estar um pouco perdido.
— Perdão, senhor. – Ela fez uma reverência acentuada. — Achei que os convidados da senhora só chegariam ao anoitecer.
— Cheguei um pouco cedo. Mas não precisa se preocupar. A escada principal é por ali?
— Sim. – A empregada fez outra reverência. — Sim, senhor.
— Problema resolvido. Você foi de muita ajuda.
— O prazer foi meu, senhor.
Ele parou antes de virar.
— Diga-me, quantos convidados estão esperando?
— Foram preparados seis quartos, senhor.
— Obrigado.
Afastando-se, deixou-a no corredor, fingindo reparar na decoração ao caminhar com as mãos nos bolsos. Ao se aproximar da escada principal, olhou para trás. Ela tinha
sumido... E dada a posição dela na casa, dificilmente diria alguma coisa a alguém. Empregadas eram pouco mais do que lavadoras/secadoras que precisavam ser alimentadas...
Pelo menos nos termos de hierarquia da equipe.
Era mais provável que levasse uma bronca se fosse incomodar o mordomo, mesmo que achasse que a informação fosse importante para a equipe.
Assail prosseguiu ao descer a escada principal em passos lentos. Afinal, o melhor disfarce em uma situação destas era agir abertamente... E já tinha preparado suas
desculpas.
Mas não encontrou nenhum outro serviçal e ninguém mais ao dirigir-se aos fundos da casa e voltar à escada de serviço que tinha usado anteriormente para subir. Usando-a
para descer até o porão, parou na frente da porta reforçada com aquele teclado numérico.
Agora que tinha menos pressa, detectou um aroma no ar. Um que não conseguiu identificar imediatamente, mas não pode se demorar ali para tentar identificar.
Pondo-se novamente em movimento, seguiu até a masmorra da senhora e se esgueirou para dentro. As coisas tinham progredido com admirável eficiência, seus primos fervilhavam
sobre a carne nua da fêmea, o sangue marcava a pele e colchão do mesmo modo, os paus e o sexo dela escorregadios de orgasmos. Mas aquela gravata Hermès ainda estava
no lugar, cobrindo os olhos dela.
Tal havia sido a boa performance dos primos...
A porta se abriu poucos momentos depois que ele entrou e Assail olhou por cima do ombro.
— Bem, bem, bem. – Disse ele com um sorriso. — O hóspede favorito da madame voltou.
Throe não pareceu nem um pouco satisfeito, a tomar pelas sobrancelhas cerradas e a tensão que seu corpo emanava.
— Eu não sabia que você viria.
— O celular é um aparelho incrível. Permite que alguém ligue para alguém e que alguém receba chamadas de alguém, o que resulta em encontros.
A senhora da casa gemeu e arqueou-se quando Ehric trocou de lugar entre suas pernas com o irmão.
Os olhos de Throe se estreitaram.
— Não sei o que está fazendo aqui.
Assail indicou o sexo que ocorria.
— Isto não é suficientemente racional? E se está tão preocupado com minha presença, fale com sua senhora. É o show dela, não é?
— Não por muito tempo. – O macho disse baixinho.
— Ocupado com planos. Que surpresa.
— Observe e aprenda. – Os olhos de Throe brilharam de malícia. — A estrutura desta família está a ponto de ser mudada.
— É mesmo?
— Desfrute dela enquanto ainda pode.
Throe partiu, fechando a porta à sua passagem, sem som algum. Graças à ação anterior de Assail.
Ao voltar a atenção para a cama... Assail teve a distinta impressão de que um funeral aconteceria em breve. A questão era se seria o funeral do senhor ou da senhora
primeiro.
Capítulo QUARENTA E SEIS
Layla se levantou apoiada nos cotovelos quando a Dra. Jane começou a limpar o gel espalhado em sua grande barriga. Este exame, já previamente agendado, acabou vindo
em excelente ocasião – mesmo que tivesse acabado de fazer um, a confirmação dupla era reconfortante.
— É, está tudo bem. – A médica sorriu, ajudando a fechar as duas partes de seu roupão. — Você está indo realmente muito bem...
— Só mais um pouquinho e vou poder relaxar mais, não é?
— Pode apostar. Logo aqueles pulmõezinhos estarão em um ponto onde poderemos lidar melhor com eles. – A Dra. Jane olhou para o outro lado da sala de exames. — Os
pais tem alguma pergunta?
Do canto, Qhuinn meneou a cabeça, mudando de posição em sua cadeira e esfregando os olhos díspares. Ao lado dele, Blay massageava os ombros do macho.
— Estamos preocupados com a alimentação. – Disse Blay. — Será que Layla está recebendo o suficiente de nós?
— Os exames dela estão ótimos. O que estão fazendo está funcionando bem.
— E o parto? – Blay perguntou. — Como vamos saber se... Acho que não dá pra saber se tudo vai correr bem, não é?
A Dra. Jane recostou-se em seu banquinho de rodinhas e cruzou os braços.
— Eu gostaria de dizer que dá para prever tudo o que vai acontecer, mas não dá. Mas posso dizer que Manny e eu estamos preparados, Havers vai estar de prontidão
e Ehlena já acompanhou mais de cem partos. Estamos prontos para ajudar a natureza tomar seu curso... E quando eles estiverem fora, tenho duas incubadoras aqui, além
de equipamento de assistência respiratória, que é o mais moderno que já vi. Acho, e fico feliz por isto, que todo mundo está disposto a oferecer a veia, caso seja
necessário. E o lado bom é que os bebês estão se desenvolvendo perfeitamente neste momento. Estamos preparados e isto é o melhor que podemos fazer. Tenham em mente
que ainda pode levar meses e meses. A marca de duas semanas daqui por diante é só o mínimo necessário para a sobrevivência. Tenho esperança que eles fiquem por aí
mais uns seis meses, pelo menos.
Layla baixou o olhar para a barriga e se perguntou quanto espaço mais tinha a ceder. Já sentia como se os pulmões estivessem esmagados debaixo dos ossos e a bexiga
tivesse escorrido para baixo dos joelhos. Mas custasse o que custasse. Qualquer coisa que os bebês precisassem.
Quando Qhuinn e Blay se levantaram houve um pouco de conversa amena, algo sobre Rhage e Mary terem inundado o banheiro deles, e então abraços de despedida quando
os machos partiram.
A Dra. Jane voltou a sentar-se no banquinho.
— Está bem, e você, o que quer me perguntar?
— Como é? – Layla jogou o cabelo para trás dos ombros. — Sobre?
— Já faz um tempo que você é minha paciente... Consigo ver o que se passa em você... Provavelmente Qhuinn e Blay também conseguiriam se não estivessem tão preocupados
com os bebês.
Layla brincou com a lapela felpuda de seu roupão.
— Não é nada com a gravidez. Estou bem mais tranquila em relação a isto.
— Então...
— Bem, ah, Luchas e eu estávamos imaginando, – Layla sorriu de um modo que esperava soasse desinteressado. — Você sabe, ele e eu não temos muito sobre o que conversar
aqui embaixo. Além do quão grande estou ficando e o quão dura a fisioterapia é para ele.
A Dra. Jane anuiu.
— Você estão mesmo se esforçando muito.
— Então... Como está o prisioneiro? – Layla ergueu as mãos. — Não é da minha conta... Bem, da nossa conta. Só estamos curiosos. E não perguntei na frente de Qhuinn
e Blay por que eles querem fingir que eu existo dentro de uma bolha, onde nada me preocupe e, sabe, não exista nada feio para estragar o meu mundinho. Eu só pensei
que talvez você pudesse contar pra nós como ele está agora que foi transferido. Ele se recuperou dos derrames?
A Dra. Jane meneou a cabeça.
— Eu não devia ter dito nada.
— Ele ainda está vivo?
— Não vou responder a isto. Sinto muito, Layla. Entendo sua curiosidade. Entendo mesmo. Mas não posso responder.
— Pode ao menos dizer se ele está vivo?
A Dra. Jane respirou fundo.
— Não posso. Sinto muito. Agora, me dá licença? Hora de arranjar algo para comer.
Layla baixou os olhos.
— Desculpa. Não foi minha intenção forçar o assunto.
— Tudo bem... E não se preocupe com nada além de cuidar de si mesma e destes bebês, está bem? – A Dra. Jane deu um leve aperto em seu joelho. — Precisa de ajuda
pra descer o corredor?
Layla meneou a cabeça.
— Não, obrigada.
Descendo da maca para o chão, arrumou o roupão, saiu da sala de exames e começou a voltar para o seu quarto. Quando uma insistente culpa se abateu sobre ela, disse
a si mesma que era o que acontecia quando se fazia escolhas ruins...
De repente sua barriga se contraiu da frente para trás, a ponto de ter de parar e apoiar na parede do corredor. Mas um momento depois, a faixa invisível sumiu e
foi como se nada tivesse acontecido... E ela também não sofreu a temida liberação da bexiga.
Tudo estava bem.
— Vocês estão bem aí? – Sussurrou para a barriga, acariciando-a em movimentos circulares.
Quando sentiu um chute como se fosse uma resposta, sentiu-se incrivelmente aliviada.
A Dra. Jane estava certa. Ela precisava se concentrar no que estava fazendo aqui... Comer bem, dormir bem e garantir que tudo o que estava sob seu controle não desse
errado.
Além disto, era melhor para todo mundo se deixasse de lado essa coisa com Xcor.
De tantas formas.
Ao retomar seu passo cambaleante, praguejou. Por que tinha de ter esta conversa consigo mesma tantas e tantas vezes?
Depois de deixar Rhage no beco, Vishous tornou a se materializar nos degraus da frente da mansão, pegou um jogo de chaves de carro do Fritz e guiou o Hummer de Qhuinn
montanha abaixo. Aumentando o som, relaxou com uma canção da velha escola de Goodie Mobi cantando Soul Food antes de colocar algo do Tupac. Ele não acendeu um. Teria
sido falta de respeito.
Vê, que cavalheiro ele era. Um verdadeiro filho da puta a postos.
Ao chegar à estrada na base da propriedade, pisou no acelerador e seguiu em direção às pontes gêmeas no centro da cidade. Vinte minutos depois, seguiu para o rio,
pegou a primeira saída do outro lado e prosseguiu em uma estrada estreita que seguia à margem para o norte.
A casa de vidro de Assail ficava em uma península que se projetava no Hudson e V parou na área de estacionamento dos fundos, perto das portas da garagem. Ao desligar
os faróis e o motor, lembrou-se de uma noite diferente quando também tinha vindo até ali, quando reinou todo o tipo de caos... Especialmente depois de Wrath ter
sido atingido por um tiro na porra da garganta.
Um pesadelo da porra.
A porta dos fundos abriu e Assail saiu da moderna mansão vestido como se fosse jantar em um restaurante francês... Exceto pelo fato de sua gravata estar pendurada
em um dos bolsos laterais.
— Você se arrumou todo pra mim? – Perguntou V, acendendo um cigarro.
— Sempre. Mas é melhor estacionar lá dentro, se não se importar.
Com isso, uma das portas da garagem começou a subir, revelando um interior bem iluminado, onde havia uma van, uma Range Rover preta e uma vaga para o Hummer de Qhuinn.
— Só um minuto. – V disse ao dar outra tragada.
Assail riu.
— Infelizmente também estou me sentindo necessitado. Mas de algo diferente.
O macho virou as costas, como se o segredinho sujo de quem cuidou, fungando uma narina e então a outra, fosse passar cooooooooompletamente despercebido.
V sorriu através da fumaça.
— Está afundado neste vício até o pescoço, não é?
Assail guardou o frasco de volta no bolso interno do paletó.
— Você não pode fumar no veículo?
— Não é meu. E ei, pelo menos para disfarçar seu probleminha não é preciso usar Bom Ar.
Quando o macho esfregou o nariz, uma vez... Duas vezes... E de novo, V franziu o cenho ao captar um cheiro no ar.
— Está com uma hemorragia aí, colega.
Em seguida, Assail tirou aquela gravata de seda perfeitamente elegante, da cor do interior de um melão coberta por algum tipo de padrão, e pressionou-a na nareba.
Era isto ou arruinar aquela camisa elegantérrima que vestia.
Vishous ergueu uma bota, apagou o cigarro na sola e enfiou a bituca amassada no bolso da jaqueta de couro.
— Afaste-se, cuzão. – Ele empurrou o cara contra o SUV, forçou o queixo dele para cima e segurou a gravata no lugar. — Há quanto tempo isto vem acontecendo?
Quando Assail emitiu um tipo de ruído, V revirou os olhos e apertou o nariz do FDP.
— Deixa pra lá, esta é sua noite de sorte. Eu sou médico e vou te examinar assim que parar com essa imitação de chafariz. E você pode calar a boca a menos que seja
para me agradecer.
Os dois ficaram lá fora no frio por um tempo. De vez em quando, Assail murmurava alguma merda, que soava como Pee-Wee Herman19, mas V o ignorava.
— Aqui, segure. – Murmurou V. — E não se mexa.
V colocou os dedos do cara onde sua mão esteve. Então se enfiou no Hummer e retirou o canivete suíço que Qhuinn mantinha no suporte de copos dianteiro. De volta
ao paciente, pegou o celular, ligou a lanterna e tirou a mão de Assail do caminho.
Usando a parte sem corte da maior lâmina como separador, examinou dentro das narinas judiadas.
Apagou a lanterna, limpou a lâmina em sua calça de couro e fechou o canivete.
— Você está com o septo bem perfurado. Anda com dificuldades pra dormir? Algum de seus milhares de parceiros sexuais já falou que você anda roncando?
— Eu durmo sozinho. E não durmo muito.
— Alguma dificuldade para respirar? Ainda tem algum olfato?
— Sinto cheiros. E nem reparei a respiração.
— Bem, um conselho, não que você vá ouvir, é melhor parar com o pó. Ou vai piorar tanto esta merda que a cirurgia não vai ser somente sua única opção, mas possivelmente
não vá resolver nada.
Assail olhou para a floresta distraidamente.
— Não é tão fácil, é? – V meneou a cabeça. — Essa coisa te aprisiona.
Cruzando os braços sobre o peito, Assail embolou a gravata ensanguentada no punho.
— Estou em uma prisão curiosa. Uma que eu mesmo construí. O problema é que, embora eu tenha construído, não estava ciente das barras de ferro que pus ao meu redor.
Elas se tornaram... Intransponíveis, por assim dizer.
— Quanto você está cheirando? De verdade.
Levou um tempo até o cara responder. E quando finalmente o fez, ficou claro que a pausa se devia aos enormes números envolvidos na matemática, adições e multiplicações.
Por falar em subir os “uns” e “cincos”.
Vishous assoviou suavemente.
— Ok, vou ser franco com você. Embora o vampiro médio tenha enorme vantagem sobre os humanos em se tratando de saúde, você vai acabar explodindo seu coração se continuar
cheirando tanto. Ou seu cérebro. No mínimo, vai acabar seriamente paranóico, se é que já não está, e não é de se espantar que não consiga dormir.
Assail esfregou a área sob o nariz e então olhou para o sangue que secava em seus dedos.
— Quando estiver pronto, – Disse V. — Nos chame. É melhor se desintoxicar sob supervisão médica, e podemos fazer isto de forma discreta. E não me faça perder tempo
negando a extensão de seu problema ou tentando amenizar esta merda. Você está com um parasita horrível dentro de você, e se não se livrar dele, ele vai se livrar
de você. Vai acabar te matando.
— Quanto tempo?
— Quanto tempo o que? Você tem antes de sucumbir e acordar morto?
— Dura a desintoxicação?
— Depende de como ela for feita. A desintoxicação física não oferece risco de vida, mas a merda psicológica vai te fazer desejar estar morto.
Assail permaneceu silencioso por um tempo, e já que V se coçava por um cigarro, desistiu e acendeu um.
— Eu sei tudo sobre vícios. – V olhou para a ponta brilhante de seu cigarro. — Graças a Deus vampiros não desenvolvem câncer, certo? Então não estou te julgando.
Você sabe onde me encontrar quando estiver pronto.
— Talvez eu esteja mesmo ficando paranóico.
— Como assim?
— Estive na casa de Naasha antes de voltar pra cá.
— E?
O macho balançou a cabeça para frente e para trás.
— Tive uma sensação de morte iminente naquela casa.
— Aquele hellren dela está muito doente.
— Fato. – Assail desviou o olhar, seus olhos prateados como a lua flamejavam. — Mas não me surpreenderia se ele tivesse uma ajudinha para virar cinzas. Ou pelo menos
foi o que eu senti.
— Heranças são coisas poderosas.
— Sim. – Assail estremeceu como se voltando da beira de um abismo interno. — Se importa de pegar as armas agora?
Vishous exalou uma faixa de fumaça para longe do cara.
— Foi para isto que vim.
— Por favor, mova seu veículo para dentro quando estiver pronto. Vamos carregar ali.
Quando Assail desviou o olhar, V interrompeu-o.
— Estou com seu dinheiro... Não se preocupe. E não vou cobrar pela consulta médica.
— Que cavalheiro você é, Vishous.
— Nem um pouco. Agora vamos acabar com isto.
Capítulo QUARENTA E SETE
Quando a Irmandade se reuniu para a Última Refeição na sala de jantar principal, Mary se aproximou e sentou-se perto de Marissa.
— Se importa de conversarmos um pouquinho antes de jantar?
Marissa baixou sua taça e anuiu com um sorriso brilhante.
— Desculpe por ter saído cedo do trabalho hoje, mas Butch me levou para um encontro.
— Oh, vocês merecem! Onde foram?
— Nenhum lugar especial. Só uma pizzaria nos subúrbios. Ele tinha razão, foi a melhor pizza de peperoni com cebolas que eu já comi. Ele está ajudando V a descarregar
alguns suprimentos e então virá só para conversar, igual a mim. Foi bom passar um tempo a sós, sabe?
— Sei. Na verdade, Rhage e eu vamos sair amanhã. – Mary pigarreou. — Que é parte do que eu preciso conversar com você. Finalmente consegui um pouco de progresso
com a Bitty.
— Mesmo? – Marissa se inclinou para um abraço rápido. — Eu sabia que ia conseguir! Isto é maravilhoso. Há tanto para ela processar.
— É. – Mary se recostou. — Mas há algo que preciso averiguar. Em termos clínicos, digo. Não que seja urgente... É... Só que ela tem treze anos e não nove.
Quando as sobrancelhas de Marissa se ergueram de surpresa, a fêmea murmurou.
— Tem certeza?
Mary contou tudo, inclusive o que Bitty tinha dito sobre sua mãe mentir sobre sua idade, a visita ao cemitério e ao supermercado.
Marissa franziu o cenho.
— Você a levou até o túmulo da sua mãe?
— Ela queria ver. Ela pediu. O tratamento dela vai ter que envolver mais do que só sentar em uma cadeira e ouvir. Ela é incrivelmente inteligente, mas levou uma
vida tão reclusa, tão cheia de violência que, para ter qualquer esperança de passar pelo período de luto inteira e se adequar ao mundo, ela vai ter de se expor.
— Existem grupos de atividades em campo para alcançar coisas assim.
— Ela nunca tinha visto um supermercado antes. – Quando Marissa recuou, Mary anuiu. — E não sabia nem o que eram portas automáticas. Nunca tinha visto o centro da
cidade. Ela me disse, quando eu e Rhage a levamos para tomar sorvete ontem, que nunca tinha ido a um restaurante ou a uma lanchonete.
— Eu não fazia ideia.
— Nem eu. – Mary olhou para a mesa de jantar de nove metros de comprimento, com toda a sua elegância. — Ela e a mãe mantiveram silêncio por medo. E a coisa é, estou
preocupada com a saúde de Bitty. Sei que ela foi examinada na clínica de Havers por conta daquela perna quebrada e houve melhora naquele ponto. Mas já faz um tempo.
Quero que alguém dê uma olhada nela logo, e queria trazê-la para a clínica daqui, não para a de Havers.
Quando Marissa começou a protestar, Mary ergueu a mão.
— Ouça-me. A mãe dela morreu lá. Acha que ela precisa voltar àquele lugar tão cedo? E sim, dá para esperar um mês ou dois, mas é possível perceber que está frágil
demais. Mesmo levando em conta que vampiros são menos desenvolvidos que os humanos de idades similares até a transição, ela é alarmantemente pequena. Ehlena tem
uma larga experiência com jovens vampiros, a Dra. Jane tem um conhecimento mais do que adequado, e podemos levar Bitty para o centro de treinamento com toda tranquilidade,
fazer os exames lá e levá-la embora assim que acabar.
Marissa remexeu seu garfo.
— Consigo entender a lógica.
— Pensei em fazer amanhã à noite, se a Dra. Jane estiver disponível. Vamos levar Bitty para jantar.
— Você e Rhage?
— É como o passeio para o sorvete. Ela realmente gosta dele. – Mary sorriu. — Diz que ele é como um grande cão amigável.
O cenho franzido de Marissa não expressava muita confiança. E nem o período de silêncio, preenchido pela conversa de outras pessoas, enquanto chegavam à sala em
pares e grupos pequenos.
— Marissa. Eu sei o que estou fazendo. E mais ainda, a prova de que estou agindo certo é o fato dela finalmente estar começando a se abrir. Ela está conosco há quanto
tempo?
— Olha, não sou qualificada para te dizer como executar o seu trabalho... E realmente acho que isto pode ser um problema. Como diretora, minha obrigação é fazer
os trens andarem no tempo certo. Como não sou formada em serviço social... Gostaria de conversar com alguns dos outros. Você é muito boa em seu trabalho e não posso
discutir com os resultados, especialmente no caso de Bitty. Mas não quero que você meta os pés pelas mãos... E estou um pouco preocupada com isto.
— Como assim? – Mary ergueu as mãos. — Admito que poderia ter tratado a situação da morte da mãe dela de uma maneira diferente se eu soubesse...
— Você levou uma órfã para tomar sorvete. Para visitar o túmulo da sua mãe. Vai levá-la para jantar com o seu marido. Não acha que há uma possibilidade de que esteja
fazendo isto por razões de natureza pessoal?
— Deixa eu ver. Vamos lá, deixa eu ver.
Do lado de fora, na frente da mansão, Rhage acotovelou o corpo de Butch para o lado a fim de poder ver o que havia no porta-malas do Hummer. Ao pôr os olhos sobre
os equipamentos expostos, riu baixinho.
— Nada mal. – Ele tirou uma das Glock automáticas de seu estojo e a avaliou, tirando o clip, bombeando o gatilho, analisando peso e aparência. — Quantas destas conseguiu?
V abriu outra maleta de aço.
— Aqui tem mais oito. Dezesseis no total.
— Qual o preço? – Butch perguntou ao pegar outra arma e passá-la pela mesma verificação.
— Dez mil. – V abriu uma sacola preta de nylon e expôs as caixas de munição. — Sem desconto, mas também não são numeradas e não temos de nos preocupar sobre negociar
com canais humanos legítimos.
Rhage anuiu.
— Fritz deve estar em alguma lista de observação a esta altura.
— O que mais podemos conseguir com eles? – Butch perguntou ao pegar uma terceira, o som de metal sobre metal ecoando de suas mãos rápidas.
— Como se eles tivessem alguma merda de catálogo. – V deu de ombros. — Estou achando que podemos pedir qualquer coisa que quisermos e eles vão conseguir.
— Podemos encomendar alguns mísseis? – Perguntou Rhage. — Ou, estou dizendo, seria útil algum equipamento antiaéreo.
Butch deu um soco nos bíceps de Rhage.
— Se o negócio descambar para o campo antiaéreo, vou querer um canhão.
— Vocês são dois fodidos imbecis, sabiam?
Rhage pegou a sacola com a munição, e Butch pegou as duas maletas para V poder trancar o carro e acender um cigarro. Estavam no meio do caminho de paralelepípedos
quando V hesitou. Cambaleou. Meneou a cabeça.
— O que foi? – Perguntou Butch.
— Nada. – O Irmão prosseguiu, subindo os degraus de pedra de dois em dois e abrindo a porta do vestíbulo. Ao colocar o rosto na frente da câmera, murmurou: — Só
estou com fome.
— Eu te entendo. – Rhage esfregou a barriga. — Preciso de comida imediatamente.
O comentário foi casual. Ao contrário do olhar que ele e Butch compartilharam. No entanto, a realidade era que mesmo os Irmãos eram capazes de ficar hipoglicêmicos
e nem tudo era emergência. Mas pela cara sombria do tira, ele cuidaria daquilo quando ele e V voltassem para o Pit para passar o dia.
— Onde quer que eu guarde isto, V? No túnel?
Quando Vishous fez um sinal de concordância, Rhage pegou as maletas de Butch e levou a carga por trás da escada principal até a porta oculta que levava ao túnel.
Destrancando as coisas ao digitar a senha, depositou a carga de metal no chão e certificou-se duplamente de voltar a trancar a porta. Com Nalla engatinhando, ninguém
se arriscava com armas ou munições, mesmo quando as merdas eram guardadas separadamente.
Virando-se, voltou para a sala de jantar.
Dentro do belo espaço havia muita conversa e risos, pessoas por todos os lados e doggen servindo bebidas antes da comida. Mary estava perto de Marissa, e de início
Rhage começou a ir em direção a elas, mas então detectou a tensão no ar e recuou, sentando-se em seu lugar de costume, do outro lado da mesa.
Enquanto isto, Mary se inclinou para a chefe falando com urgência. Marissa anuiu. Então meneou a cabeça. Então falou. E daí novamente era a vez de Mary.
Devia ser sobre trabalho.
Talvez mesmo até sobre Bitty?
Manny puxou uma cadeira.
— Como vai, meu jovem?
— Ei, peido velho. Cadê sua melhor parte?
— Payne está tirando uma soneca. Eu a esgotei, se é que me entende.
Os dois se cumprimentaram juntando as mãos cerradas e então Rhage voltou a disfarçar sua tentativa de leitura de lábios. O que, a propósito, não conseguiu muito
bem.
— Pesadelo repolho, máquina de espremer, toca fitas. – Disse Mary.
— Filmes de magia doze vezes por dia. – Marissa bebericou sua taça de vinho. — Então o tênis com o can-can. Amendoins e filé à Filadélfia, bagel, bagel cream cheese.
— Filme plástico?
— Creme dental.
— Baía garagem, biquíni de Natal, quero ser cereal Grape Nuts com Dr. Pepper.
— Caralhos me fodam. – Ele murmurou. E considerando o tanto de referências culinárias que seu cérebro estava arrancando daquelas bocas, estava mesmo precisando comer.
Mary eventualmente se levantou e as duas anuíram. Então sua shellan voltou para ele.
— Tudo bem? – Perguntou ao puxar a cadeira para ela.
— Oh, sim. Sim. – Ela sorriu para ele, então sentou-se e encarou o prato vazio. — Desculpe, eu só estava...
— O que posso fazer para ajudar?
Virando-se para ele, ela esfregou o rosto.
— Pode me dizer que tudo vai ficar bem?
Rhage a puxou para seu colo e correu as mãos para cima e para baixo de sua coxa.
— Prometo pra você. Tudo vai acabar bem. Seja o que for, vamos fazer dar certo.
Os doggen da casa entraram enfileirados, trazendo bandejas de prata com carne assada e batatas, frango e arroz, alguns vegetais no vapor e molhos. Quando Mary voltou
para sua cadeira, ele ficou desapontado, mas entendeu o que estava acontecendo com ela. Acabaria alimentando-a até ela estar estufada enquanto ele morreria de fome...
E então devoraria como um lobo tudo o que restasse antes da sobremesa ser servida.
Eles já tinham passado por aquilo antes.
— Senhor. – Um doggen disse por trás dele. — Preparamos um prato especial para o senhor.
Mesmo preocupado com sua Mary, Rhage bateu palmas e esfregou as mãos.
— Fantástico. Sou capaz de comer esta mesa inteira.
Um segundo membro da equipe removeu sua carga e puxou a tampa da bandeja. Então um enorme prato de prata coberto por um pano foi colocado à sua frente.
— E aí, Hollywood? – Alguém disse. — Nossa comida não é boa o bastante pra você?
— Ei, Rhage, você tem direito a um boi só para você ou algo assim?
— Pensei que estivesse na onda da Jenny Craig. – Outra voz exclamou.
— Acho que se bobear ele come a Jenny Craig... O que seria completamente errado. Humanos não são comida.
Ele mostrou o dedo do meio pra todo mundo e puxou a beirada do pano...
— Oh, qual é?! – Rosnou, quando risadas explodiram no ambiente. — Sério? Vocês estão mesmo falando sério? Mesmo?
Um snorkel e uma máscara de mergulho tinham sido cuidadosamente arrumados sobre um grande prato de porcelana, com salpicos de salsinha e gomos de limão arrumados
nas beiradas.
Mary começou a rir e o que salvou os seus irmãos foi o fato dela ter jogado os braços ao redor de seu pescoço antes de beijá-lo.
— Essa foi boa, – Ela disse contra sua boca. — Vamos lá, você sabe que foi.
— Um cara inunda um maldito banheiro e subitamente vira tema...
— Shhh, só me beije, está bem?
Ele ainda resmungava, mas fez o que sua shellan lhe disse pra fazer. Era isto ou estragar seu apetite... Cometendo assassinato.
Capítulo QUARENTA E OITO
— Você sabe que o cara é casado.
Era quase meio dia, Jo assustou-se em sua cadeira de recepcionista e franziu o cenho. Bryant se inclinava sobre o balcão de sua mesa com o rosto extremamente sério,
a gravata borboleta tão perfeitamente colocada, que parecia um pedaço de plástico esculpido ao invés de algo feito de seda.
— Do que está falando? – Ela estendeu-lhe uma pasta. — Isto é para a reunião de uma e meia.
— Bill. Ele é casado.
— Do que está... Como é que é?
— Ouça. – Bryant correu as unhas perfeitamente cuidadas ao redor das beiradas da pasta de tamanho legal. — Eu vi vocês, está bem? Em um semáforo. Você estava no
carro dele. Eu só não quero que se magoe.
Pela primeira vez na história conhecida, Jo recostou em sua cadeira e realmente olhou para o cara. Engraçado, na verdade a aura dele era um bom disfarce para algumas
pequenas falhas que tinham lhe passado despercebidas antes: seus olhos eram um tanto juntos demais; o lábio superior tinha um curioso excesso; aquele nariz tinha
uma espinha na ponta.
— Só estou preocupado com você. – Concluiu ele. — Como um irmão mais velho.
Jo cruzou os braços sobre o peito. Pensando bem, a voz dele também era meio esganiçada, um pouco irritante.
— Olá? – Ele exclamou. Como se esperasse uma reação específica por parte dela e estivesse determinado a extraí-la. — Jo, ouviu o que eu disse?
Definitivamente era hora de seguir adiante, decidiu. Atualizar seu currículo. Cadastrar-se no Empregos.com e no site do CCJ. Fazer outra coisa.
Ela tinha desperdiçado quase um ano e meio pairando sobre este narcisista, vivendo por uma piscadela ou um galanteio, desdobrando-se em duas para que a vida pessoal
e profissional dele corresse com suavidade... E, por fim, varrendo sua libido pra baixo do tapete, por que esta tensão sexual unilateral com o idiota era uma aposta
melhor do que tentar encontrar um cara de verdade para ela.
— Estou te dando meu aviso prévio.
— Como é que é?
— Você me ouviu.
— Espere, ficou louca? Está se demitindo só por que falei que o seu namoradinho tem uma esposa? Quando você já sabia? Eles assinaram o contrato aqui no escritório,
você a conheceu...
— Não tem nada a ver com Bill. Ele e eu estamos trabalhando juntos em uma matéria. – Okay, um pouco de exagero. — Eu só preciso mais do que você pode me dar.
— É por causa da prova para agente imobiliário? Tudo bem, se você insiste em fazer...
— Na verdade, não é nada disso. – Ela olhou de esguelha para o computador. — E é meio dia, então vou almoçar.
Com movimentos rápidos sobre o aparelho telefônico do escritório, acionou o desvio do número principal para a secretária eletrônica, pegou sua bolsa do chão e atravessou
o escritório. Bryant se pôs no seu caminho como se quisesse discutir, mas ela só balançou a cabeça.
— É melhor começar a procurar por uma nova recepcionista se quiser que eu tenha algum tempo para treiná-la.
— Jo. Você está agindo de uma maneira bem pouco profissional.
Baixando o tom de sua voz, ela disse.
— Você me fez mentir para as mulheres com quem sai para que elas não descubram o escroto que você é. Eu tenho de levar sua roupa para a lavanderia. Agendar seus
cortes de cabelo. Levei seu carro para a revisão quantas vezes? Isso sem falar das queixas de seu condomínio pelas suas violações da lei do silêncio, o cara que
limpa sua piscina, seus problemas de ar condicionado e o cara da dedetização. Isto sim não foi nada profissional. Mas não se preocupe. Você vai encontrar outra otária.
Homens como você sempre encontram. Só não serei mais eu.
Jo passou pelas portas de vidro e saiu para o sol de outubro... Fraco demais para elevar a temperatura, mas brilhante o suficiente para fazê-la pegar seus óculos
escuros.
Ao entrar em seu VW, não se surpreendeu ao ver que Bryant não veio atrás dela... Sem dúvida ele estava resolvendo a crise do próximo jantar. Ou talvez arrumando
o cabelo em seu banheiro privativo. Ou fosse o diabo que estivesse fazendo. Uma coisa que ela sabia? Não era mais da conta dela.
Nunca foi da conta dela, pelo menos, não por parte dele. E a coisa que ele tinha dito sobre Bill? Era bem o tipo de reflexo de autodefesa porque ela era uma boa
criada e ele não queria abrir mão dela.
Mas como disse, haveria outra. Sem dúvida.
Enquanto guiava para longe, Jo via o escritório da imobiliária diminuindo em seu retrovisor e pensou em Bill e seu primo Troy. Eles eram caras legais, mas não tinham
realmente nada que lhe chamasse atenção.
Quando iria encontrar um homem de verdade?
Tanto faz. Precisava encontrar outro emprego, e então havia aquela coisa toda de vampiros para se preocupar.
Pegando seu celular, ela ligou para Bill.
— Estou indo para a fazenda agora, se quiser me encontrar lá.
— Está pronta para irmos?
Ao som da voz de Rhage, Mary pulou no sofá, chutando para o chão a coberta que tinha sido colocada sobre suas pernas. Sentando-se, olhou ao redor da sala de jogos
e então olhou para Rhage, que se inclinava sobre ela.
— Eu dormi. Cadê todo mundo? O torneio acabou?
Ele anuiu ao sentar na mesinha de centro e equilibrar o taco na ponta do dedo indicador.
— Butch venceu. O bastardo. Ele e V acabaram de ir para o Pit.
Com um grande bocejo, ela empurrou o cabelo para trás. A imensa TV sobre a lareira estava no mudo e exibia um filme do Steven Seagal do final dos anos 90, que o
mostrava golpeando um bando de caras em uma rua da cidade.
— Acho que foi nessa parte que eu adormeci. – Ela disse tolamente apontando para a tela.
— Na verdade, foi há três filmes atrás. – Rhage acariciou-a no rosto. — Este é outro filme, mas não se sinta mal. Eles parecem realmente o mesmo. Vai me deixar carregá-la?
— Posso subir sozinha.
— Eu sei. – Ele deixou o taco de lado e ofereceu-lhe uma mão. — A pergunta é, vai me impedir de pegá-la no colo?
Ela sorriu.
— Não.
Rhage tirou-a do sofá e a próxima coisa que viu, estava em seus braços fortes e ele a levava por entre as mesas de bilhar. No saguão, bocejou de novo e aconchegou-se
mais a ele.
— Você é bom demais para mim. – Ela murmurou.
— Nada disso.
No segundo andar, ele parou na frente da porta fechada do quarto deles e ela se inclinou e abriu para que eles passassem. Sem esforço nenhum, ele a levou até a cama
e deitou-a de lado sobre o colchão.
— Pode escovar os dentes por mim? – Ela perguntou. — Esta é a verdadeira questão.
— Pode deixar.
Quando ele ia se afastar, ela riu.
— Foi uma pergunta retórica.
— Eu ia te trazer a escova e um copo de água. – Ele colocou as mãos nos quadris e baixou o olhar para ela. — A menos que você consiga chegar até a pia?
Cara, ele era um macho de aparência fantástica, ela pensou ao medir os ombros enormes e braços fortes, o estômago e a pélvis esguios, aquelas pernas longas e poderosas.
E então havia aqueles cabelos louros, os brilhantes olhos de um azul oceano, aquela estrutura óssea que parecia desenhada por um artista ao invés de algo nascido
neste mundo.
— Mary?
— Só estou admirando a vista.
— Oh!? – Ele deu uma voltinha e exibiu o traseiro. — Gosta?
— Muito. Que tal tirar a camisa para mim?
Olhando por cima dos ombros, ele estreitou os olhos.
— Está dando em cima de mim?
— Por que... Sim, acho que estou sim.
Ele virou de novo, agarrou a frente de sua camiseta sem mangas e gemeu.
— Primeiro, pede por favor.
— Pooooooor favooooooor...
Riiiiip. E lá estava o peito nu dele à mostra, toda a musculatura lançando sombras sob a luz fraca do abajur sobre a escrivaninha.
Rhage moveu a mão para baixo entre suas pernas, agarrando a grande ereção que tinha feito uma aparição para valer na frente de seus couros.
— Quer ver mais alguma coisa? – Sussurrou.
— Sim... – Ela murmurou.
Os dedos dele abriram os botões bem lentamente, provocando-a ao revelar sua ereção centímetro a centímetro até ela estar totalmente livre e se projetar na direção
dela.
Mary abaixou a mão e desapareceu com ela entre suas próprias calças, abrindo as pernas enquanto ele recuava e acariciava a si mesmo.
— Venha cá. – Disse ela.
Rhage veio para a cama deles e em questão de segundos estava por cima dela, e ela o guiou com a mão, trazendo a cabeça para junto de seu núcleo. Com um gemido, ela
enroscou as pernas ao redor do traseiro dele, e ele estocou com força, unindo-os, ondulando contra ela com velocidade crescente, cada vez mais duro até a cama ranger,
os travesseiros voarem para fora do colchão e o edredom embolar por baixo dela.
Ao acariciar as costas dele, ela podia sentir a fera se mexer sob suas unhas, a tatuagem eriçando e criando um padrão em relevo na pele dele como se quisesse sair.
— Mary. – Rhage disse contra seu pescoço. — Ai, cacete, Mary...
Ante o som de sua voz rouca, um orgasmo a atingiu como um relâmpago, o prazer fazendo-a gritar enquanto ele bombeava a pélvis dentro dela de novo e de novo enquanto
ejaculava.
Quando finalmente se imobilizaram, ela acariciou sua espinha, acariciando a fera que se movia sob seu toque. E era tão estranho. Em momentos como este, mesmo que
fosse loucura, parecia que os três estavam juntos.
— Gostaria de vir comigo para o chuveiro? – Rhage perguntou ao acarinhá-la na garganta com o nariz. — Eu posso imaginar umas coisas bem divertidas para fazer com
o sabonete.
— Sério? Tipo o que?
— Limpeza é um tipo de santidade... Esta não é uma expressão humana?
Mary bocejou e se esticou, sentindo-o ainda dentro de si.
— Tenho uma ideia. Vai na frente, eu já te encontro lá.
— Perfeito.
Depois de alguns beijos lânguidos, Rhage desceu da cama e se levantou. Livrando-se dos couros que ainda estavam abaixados à altura de suas coxas, ele caminhou até
o banheiro totalmente nu.
Uau, que vista!
Ele era como uma estátua grega viva.
O chuveiro foi ligado e ela sentiu um aroma do xampu que eles usavam, e então o sabonete... E então o condicionador.
Motivando-se, espreguiçou mais uma vez e saiu da cama. Ao chegar ao banheiro, Rhage estava inclinado sob o jato de água enxaguando o cabelo. Ela despiu-se rapidamente
e logo estava lá com ele, o corpo escorregadio e excitado dele cintilando sob a luz dos espelhos.
— Aqui está ela. – Ele murmurou ao puxá-la para perto.
Levou um tempo até eles saírem, e no final as pernas dela estavam tão moles que era bom que não tivesse uma longa distância a percorrer. Enrolada no roupão de Rhage,
cambaleou até a penteadeira para tirar os brincos de pérolas enquanto ele levava as roupas que deixaram espalhadas por todo o quarto até a saída da lavanderia que
havia dentro de seu closet.
Ela tinha tirado somente um dos brincos quando reparou na pasta.
— O que é isto?
— O que é o que? – Ele disse de dentro do closet.
Ela abriu a frente da pasta...
.... E sentiu o ar abandonar seus pulmões.
Capítulo QUARENTA E NOVE
Ao sair do closet e voltar para o quarto, Rhage sentia-se muito bem com a vida. É claro, o tira tinha ganhado dele no bilhar de novo, mas depois do tratamento que
sua Mary tinha acabado de lhe dar? Sentia-se um verdadeiro vencedor.
Aquela sessão no chuveiro tinha sido praticamente Olímpica, o máximo do máximo, coisa de campeão.
Ao sair, ele...
... Congelou onde estava.
Mary estava sentada na cadeira ao lado da escrivaninha deles com o pequeno pé rosado no tapete, o corpo engolfado pelo roupão de banho dele, a cabeça baixa com o
cabelo úmido pendurado para a frente. Em seu colo, totalmente aberta, havia uma pasta que Rhage não reconheceu.
Mas sabia para o que ela estava olhando.
Rhage voltou para o closet e pegou um par de calças de corrida de nylon. Pensando melhor, pegou também aquele moletom do AHS que tinha usado na outra noite. Voltando
a sair, caminhou até a cama e sentou-se.
Mary ergueu o olhar ao chegar à última página.
— O que é isto? Digo... – Ela balançou a cabeça. — Acho que sei o que é. Eu só...
Rhage agarrou a beirada do colchão e se apoiou nos braços. Estranhamente, as antiguidades no quarto, as cortinas pesadas, o padrão do tapete, tudo se tornou claro
demais, cada coisa à sua volta se aguçou a ponto de fazê-lo hesitar.
— Não fui eu quem pediu a Saxton para imprimir isso tudo. – Falou abruptamente.
— O formulário de adoção? É o que é, não é? Digo, não sou completamente versada no Antigo Idioma, mas consegui apreender o sentido.
— Olha, não temos de fazer nada com eles. Não é como... Digo, não estou dizendo pra gente adotá-la. Pedi ao Vishous para ajudar a encontrar o tio dela... É, eu sei
que você não me pediu pra fazer isto, mas pensei que, se algum dos meus irmãos pudesse ajudar seria ele. Ele revirou alguns bancos de dados na Casa de Audiências
e não encontrou nada. Verificou em outros lugares também. Não havia traço de nada, nem família, nem tio. E ah, falei com ele sobre você e eu e a coisa da garota.
Foi ele quem mencionou o processo de adoção e então apareceu com isto.
Mary fechou a pasta e pousou a mão em cima. Quando não disse nada, ele praguejou.
— Sinto muito. Talvez eu devesse ter conversado com você antes de ir falar com Vishous...
— Marissa acha que estou envolvida demais. Com a Bitty, quero dizer. Era sobre isto que discutíamos antes da Última Refeição hoje. Ela acha que estou ultrapassando
os limites do profissionalismo tornando a coisa pessoal demais.
— Uau.
— E mesmo que eu tenha argumentado contra... Ela tem razão. Estou mesmo.
O coração de Rhage falhou uma batida, de terror.
— O que quer dizer?
Houve um grande período de silêncio. E então ela deu de ombros.
— Já trabalhei com vários jovens. Não só no Lugar Seguro, mas também antes, quando trabalhava com crianças autistas. – Ela desviou o olhar. — Lembra quando eu estava
na casa da Bella? Quando disse que não queria mais ver você?
Rhage fechou os olhos e lembranças daquele confronto horrível voltaram à sua mente. Por alguma razão, lembrou-se da manta naquele quarto de hóspedes onde ela estivera
dormindo, aquela manta de retalhos feita à mão com seus retângulos de cores diversas. Mary estava na cama quando ele chegou. E mesmo que estivesse bem ali na sua
frente, sentiu como se estivessem a um mundo de distância.
— Sim. – Disse ele roucamente. — Eu me lembro.
— Doía tanto que não conseguia me imaginar puxando para baixo mais ninguém comigo. Eu estava bloqueada, fechada, pronta para perder aquela batalha que realmente
não tinha mais interesse em lutar. Eu te afastei com violência. Mas você veio mesmo assim. Você veio e... E em você vi um farol do qual eu não conseguia me afastar.
Eu não estou bem.
Em sua mente, ele a ouviu dizendo aquelas palavras. Sentiu seu corpo quase bater no dele ao sair correndo daquela casa atrás dele, enquanto ele só estava ali, de
pé, segurando a lua nas mãos do jeito que ela tinha ensinado a fazer.
— Acho que senti como se Bitty fosse como eu. Digo, pelos últimos sei lá quanto tempo eu a conheço, ela esteve completamente fechada. Mesmo com a mãe por perto,
era como uma criaturinha provinciana, observando as pessoas à distância, fechando-se completamente. E depois do abuso e as mortes? Eu jamais a culpei. Só queria
desesperadamente alcançá-la. Era como... Bem, em retrospecto, acho que estive tentando salvar meu antigo eu.
— Ela realmente se abriu a noite passada. – Rhage disse. — Pelo menos, eu senti isto. Mas não teria como saber...
— Foi o que eu disse para Marissa. Não sei se os protocolos normais de tratamento teriam tido efeito sobre ela. E ela está reagindo. Eu a levei ao túmulo da minha
mãe. Então compramos M&Ms no supermercado Hannaford. Ela só está começando uma jornada muito difícil e não quero parar de ajudá-la.
— Marissa te retirou do caso? – Ele exigiu.
— Não, ela só acha que estou emocionalmente envolvida demais... E estou mesmo, admito. Bitty é especial para mim.
Rhage baixou o olhar para a pasta que Mary tinha trazido para junto do peito e abraçava... De um jeito que não sabia se ela tinha ciência de estar fazendo.
— Mary.
Quando ela finalmente ergueu o olhar, ele sentiu como se estivesse pulando de um abismo. O lado bom? Se tinha de voar pelo ar com alguém, não podia pensar em ninguém
melhor do que sua shellan.
— A gente podia dar a ela um bom lar.
Os olhos de Mary se encheram de lágrimas e ele se levantou e foi até ela, ajoelhando-se na frente de sua shellan e colocou as mãos em suas pernas.
— Você não quer dizer isto, quer? – Ele sussurrou.
Ela deu um soluço. E então balançou a cabeça.
— Isso não era para acontecer com a gente. A gente conversou sobre isto. Não... Era para acontecer com a gente. Essa coisa de sermos pais.
— Quem disse?
Mary abriu a boca. Então fechou enquanto segurava aqueles papéis ainda mais forte contra o coração.
— Eu estava conformada. Realmente estava. Eu realmente... De nunca poder ser mãe.
Quando as lágrimas começaram a cair, Rhage estendeu a mão e limpou o rosto da sua amada.
— Tudo bem se não puder falar. Por que eu falo por você. Você seria... A mais maravilhosa mahmen para aquela garotinha. Bitty seria tão sortuda por ter você em sua
vida.
As palavras que disse pareceram destruí-la de certa forma, e sabia exatamente como ela se sentia. Ele tinha se preparado para aceitar a perda de uma grande parte
da vida, por que entre as muitas bênçãos que lhe foram concedidas, ser pai não estava entre elas. E sim, era um tipo de crueldade ter aquela porta, que tinha tão
resolutamente trancado, recebendo batidas tão cedo.
Mas havia uma coisa que ele sabia malditamente bem.
Se por algum milagre eles fossem chamados pelo destino para cuidarem daquela garotinha? Ele aceitaria sem hesitação. E sabia sem nem precisar perguntar que sua Mary
também.
Pais.
Seria um milagre.
Mary estava surpresa pelo grande abismo de dor que havia se aberto no meio do seu peito.
E enquanto pensava sobre tudo, ela decidiu que sim, era inteiramente possível que ela pudesse ter sublimado a coisa toda de viver sem filhos... Automedicando uma
agonia desconhecida com bons serviços honestos que serviam àqueles que precisavam de ajuda durante seus momentos mais vulneráveis.
Com um estremecimento, inclinou-se pra frente e Rhage estava lá para segurá-la quando caiu da cadeira para o colo dele no chão. Quando os braços dele se enroscaram
ao redor dela e apertaram forte, ela abraçou aquela pasta cheia de papéis tão forte quanto era possível.
Tinha sido aterrorizante demais admitir para si mesma ou para Rhage a ideia que vinha acalentando em seu coração no último ano. Mas um instinto materno tinha se
enraizado em algum ponto ao longo de sua jornada com Bitty – embora Mary tenha sido cuidadosa em nunca infringir ou invadir o verdadeiro vínculo mãe/filha sem nem
mesmo admitir os sentimentos em sua própria mente.
Mas, de vez em quando, tinha se perguntado o que a garotinha faria se fosse deixada sozinha no mundo.
E sim, houve uma fantasia ocasional sobre trazê-la para suas vidas.
Sem dúvida este era o motivo pelo qual, na noite da morte da mãe, Mary tinha dirigido na direção do complexo e da mansão ao invés do Lugar Seguro.
Mas sabia que tais sentimentos não eram apropriados ou profissionais, então não disse nada, não fez nada, não agiu de forma diferente do que agia perto das outras
crianças com quem trabalhava.
Mas seu coração tinha seguido outro rumo.
Recostando-se, ergueu o olhar para o belo rosto de Rhage.
— O que Vishous disse sobre o tio?
Mesmo que ela achasse ter ouvido Rhage dizer que V não descobriu nada.
— Ele disse que não conseguiu achar ninguém com aquele nome. E nenhum detalhe registrado de Bitty, sua mãe ou qualquer familiar também. – Rhage secou a área debaixo
dos seus olhos com os dedões; então secou as lágrimas dela em seu moletom. — Ela realmente está sozinha.
Eles ficaram quietos por um tempo. E então Mary disse.
— Não seriam só passeios divertidos à sorveteria.
— Eu sei.
— E ela pode nem querer vir morar com a gente.
— Eu sei.
— Mas você gosta dela, não gosta? Ela é especial, não é?
— Muito. – Ele riu numa explosão curta. — Acho que decidi que queria adotá-la no momento em que ela pediu aquela casquinha.
— O que?
— Longa história. Mas é só... É como se estivesse escrito.
— É o que eu sinto também.
Rhage mudou de posição de modo que se recostou na parede e ela se pôs entre suas pernas, encostada em seu peito. Talvez eles devessem ir para a cama. Afinal, seria
mais confortável. Mas a sensação de que uma mudança imensa estava a ponto de ocorrer em suas vidas fazia parecer mais seguro ficar no chão... Só no caso do terremoto
que estava acontecendo aos dois, em nível emocional, se traduzisse no mundo físico de alguma forma.
A maldita coisa seria capaz de destruir a mansão aos pedaços.
— Vai ser um processo, Rhage. Não vai acontecer da noite para o dia. Existem coisas que teremos de fazer, juntos e sozinhos, para ter certeza que é para valer.
Mas tudo aquilo era retórica.
Em seu coração, ao que lhe constava, a decisão já havia sido tomada.
Mary sentou e virou-se.
— Quer mesmo ser pai dela? Digo, eu sei o que sinto...
— Seria uma honra e um privilégio para mim. – Ele posicionou a mão direita sobre o coração ao falar no Antigo Idioma. — Seria uma tarefa que eu procuraria cumprir
todas as minhas noites sobre a terra.
Mary respirou fundo. E praguejou.
— Vamos ter de explicar a ela o que... Eu sou. O que você tem.
Oh Deus, e se a Besta e sua situação existencial... impedissem-nos de serem pais em potencial? E quem decidia isto? E onde poderiam descobrir como fazer isto?
Com um grunhido, ela recostou-se na força de Rhage. E foi engraçado... Ao sentir os músculos dele a seu redor, soube que estaria com ela pelo tempo que fosse necessário
sem nunca fugir do desafio, insistindo com propósito e foco até cruzarem a linha de chegada.
Era como ele sempre agia. Ele não desistia. Nunca.
— Eu amo você. – Disse ela, olhando pra frente.
— Amo você também. – Ele prendeu o cabelo dela atrás da orelha e massageou seus ombros. — E Mary... Vai ficar tudo bem. Eu prometo.
— Eles podem não permitir que a gente fique com ela. Mesmo que ela queira.
— Por quê?
— Você sabe o motivo. Nós não somos exatamente “normais”, Rhage.
— E quem é?
— Pessoas que estão vivas no sentido convencional. E que não tem uma Besta dentro do corpo.
Quando ele caiu em silêncio, ela se sentiu mal, como se tivesse arruinado alguma coisa. Mas precisavam ser realistas.
Só que Rhage só deu de ombros.
— Então vamos procurar aconselhamento. Ou alguma merda assim.
Mary riu um pouco.
— Aconselhamento?
— Claro. Que inferno. Posso desabafar como me sinto em relação à Besta. E talvez ela possa devorar alguns conselheiros para poder internalizar os comentários construtivos
deles. Digo, Jesus, tirar a porra de mim na base de acupuntura e talvez o dragão se transforme em um coelhinho ou um passarinho ou...
— Um passarinho.
— É, ou tipo um esquilo Gopher. Acabaria como uma marmota gigante roxa, tipo vegetariana. – Quando a risada de Mary intensificou, ele acariciou os braços dela. —
Que tal um Cavalier King Charles spaniel?
— Oh, dá um tempo...
— Não, não. É isso. Eu sei que é assim que vai acontecer.
Mary rolou em seu colo e sorriu para ele.
— Seja gentil. Tive uma manhã dura. Bem, exceto pela parte do chuveiro. Aquilo não foi nem um pouco duro.
Rhage ergueu o dedo.
— Está bem, primeiro de tudo, algo estava duro ali sim. E você viu em primeira mão. – Quando ela riu de novo, ele anuiu. — Uh-huh. Está certo, e quanto ao alter
ego da Besta... Que tal um enorme lebrílope roxo?
— Eles não existem!
— Certo. Um macacobra.
— Também não existe.
— Então posso fazer os sonhos dos caçadores de macacobra ao redor do mundo se realizarem. – Rhage sorriu. — Quem iria nos recusar depois disto? Depois de eu prestar
um serviço público bom destes?
— Você tem razão. – Acariciou o rosto dele. — Precisamos colocar o plano da acupuntura/lebrílope em funcionamento imediato.
Rhage se abaixou e beijou-a.
— Eu amo quando estamos falando a mesma língua. Simplesmente amo.
Capítulo CINQUENTA
Quando a noite caiu, Layla estava enormemente desorientada. Uma das desvantagens de viver no subterrâneo do centro de treinamento era não conseguir acertar seu relógio
biológico aos ritmos do sol e lua. O tempo era apenas números na face de um relógio, refeições aparecendo em intervalos regulares, visitantes e tráfego indo e vindo
em padrões aleatórios que eventualmente significavam pouco em termos de noite e dia.
Seu sono tinha caído em um ciclo de seis horas de vigília, seguidos por três horas de sono irregular. Repetindo-se eternamente.
Geralmente.
No entanto, esta noite quando o relógio eletrônico mostrou um oito brilhante vermelho seguido por um dezesseis depois de dois pontos verticais, ela fechou os olhos
com propósito diferente de dormir.
Agonizava sobre isto desde sua resolução depois do ultrassom. Pesou os prós e os contras em sua mente até achar que enlouqueceria.
No final se decidiu, para o bem ou para o mal.
Provavelmente para o mal. Por que era sempre isto que acontecia a ela quando se tratava de Xcor.
Respirando fundo, percebeu que tudo a irritava. Os lençóis pareciam ásperos. O travesseiro debaixo de sua cabeça não estava na posição correta, e movê-lo pra cima
e pra baixo não ajudava. O peso de sua barriga parecia enorme, uma entidade à parte do resto de seu corpo. Seus pés se retorciam como se alguém lhe fizesse cócegas
com uma pena. Os pulmões pareciam inflar só parcialmente.
Esqueça o “pareciam”.
E a escuridão de seu quarto amplificava tudo.
Praguejando, descobriu que seus olhos tinham se aberto sozinhos, e desejou ter fita adesiva para poder fazer as pálpebras permanecerem fechadas.
Concentrando-se, forçou-se a respirar lenta e profundamente. Relaxou a tensão em seu corpo, começando nos dedos dos pés e subindo até a ponta da orelha. Acalmar
sua mente.
O sono chegou em uma onda gentil, submergindo-a sob a consciência comum, libertando-a das dores e inquietações, preocupação e medo.
Da culpa.
Deu a si mesma um momento para aproveitar a flutuação sem peso. E então enviou seu eu central, sua alma, aquela luz mágica que animava seu corpo, não só para fora
da cama do hospital e fora do quarto, não só pelo corredor e para fora do centro de treinamento... Mas para fora do reino da realidade terrestre.
Para o Santuário.
Dada sua gravidez, não era seguro para viajar para o Outro Lado em sua forma física. Mas deste jeito, ela cobria a distância com graça e facilidade... Além disso,
mesmo fora de seu corpo ainda podia sentir sua carne debaixo dos lençóis e era, desta forma, capaz de monitorar continuamente sua encarnação corpórea. Se algo acontecesse,
poderia voltar em um piscar de olhos.
Momentos depois, estava de pé em um gramado verde resplandecente. Acima de sua cabeça, o céu leitoso provia iluminação de nenhuma fonte definida, e ao redor, à distância,
um anel de floresta estabelecia os limites sagrados do território. Templos de mármore branco brilhavam imaculados e frescos como a noite quando tinham sido chamados
à existência tantos milênios atrás pela Virgem Escriba, e tulipas e narcisos brilhantemente coloridos eram como pedras preciosas derrubadas de um saquinho de tesouros.
Aspirando o ar adocicado, ela podia sentir sua energia sendo recarregada, e lembrou-se dos séculos que passara servindo à mãe da raça aqui em cima. Àquela época
tudo era branco, sem nuances, e não havia variação em nada, nem mesmo sombras lançadas. Mas o Primale atual, Phury, tinha mudado tudo aquilo, liberando ela e suas
irmãs para viverem suas vidas lá embaixo, para experimentarem o mundo e a si mesmas como indivíduos, ao invés de engrenagens em um todo homogêneo.
Inconscientemente levou a mão à barriga... E sentiu um calafrio. Seu estômago estava liso e ela quase entrou em pânico... Mas aí sentiu suas funções corporais na
Terra. Sim, ela pensou. A carne estava com os bebês; a alma não. E esta representação dela era como uma miragem que se movia, tanto existente quanto não existente.
Erguendo as dobras de sua túnica cerimonial, atravessou a extensão ondulante, passando pelos aposentos privativos do Primale, onde as impregnações costumavam acontecer,
e continuou em frente até parar nos umbrais do Templo das Escribas Reclusas.
Um rápido olhar ao redor confirmou o que tinha sido verdade, não só desde sua chegada neste momento, mas pelo tempo desde que o Primale as liberou: por mais belo
que o Santuário fosse, por mais que tivesse a oferecer em termos de paz e repouso, ele estava vazio e abandonado como uma fábrica desativada. Uma mina de ouro com
os veios esgotados. Uma cozinha com armários vazios.
Para seus propósitos, isto era bom.
E em seu coração, era agridoce. Liberdade tinha levado a um abandono, uma cessação no servir, um fim ao modo como as coisas eram.
A mudança, no entanto, foi mais da natureza do destino do que de outra coisa. E muita coisa boa tinha advindo disto... Embora talvez não para a Virgem Escriba. Mas
quem poderia saber como ela se sentia, já que ninguém a via há quanto tempo mesmo?
Com uma prece solene, Layla entrou no templo das escribas e observou as mesas simples brancas com suas vasilhas de água, as penas e os rolos de pergaminho. No espaço
majestoso, não havia poeira caindo pelas vigas do teto para macular as poças sagradas de vidência ou atenuar os contornos das coisas... E ainda assim, parecia que
a observação da história da raça, antigamente um dever sagrado, agora era uma tarefa abandonada improvável de ser retomada.
E aquilo parecia tornar o templo decrépito, de certa forma.
De fato, era difícil não pensar na grande biblioteca não muito longe dali, e uma imagem de suas prateleiras cheias de manuscritos após manuscritos de passagens cuidadosamente
registradas, aqueles símbolos sagrados no Antigo Idioma posto no pergaminho quando as escribas testemunhavam os acontecimentos da raça nestes mesmas vasilhas. E
havia mais outros registros lá: da Irmandade da Adaga Negra e suas linhagens, dos ditames da Virgem Escriba, das decisões dos Reis, da observação dos calendários
dos festivais e das tradições da glymera, e do respeito que devia ser prestado à Virgem Escriba.
De certo modo, a falta da continuidade do registro histórico era uma morte para a raça.
Mas também era o renascimento. Tanta coisa positiva tinha resultado da mudança dos valores, como o reconhecimento dos direitos das fêmeas, a abolição da escravatura
de sangue e liberdade para as Escolhidas.
Mas a Virgem Escriba tinha praticamente desaparecido em um vácuo espiritual, como se sua idolatria fosse um sustento que, após removido, a diminuísse à ponto da
incapacidade. E sim, Layla sentia falta de partes dos antigos costumes e se preocupava por não terem um líder espiritual no momento de tal inquietação... Mas o destino
era maior do que não somente ela, mas da raça como um todo.
E de fato, seu criador.
Andando adiante, foi até uma das mesas e puxou uma cadeira branca. Ao assentar-se, arrumou sua túnica e ofereceu uma prece pedindo que o que estava a ponto de fazer,
fosse por um bem maior.
Qualquer bem maior.
Ah, droga. Era impossível argumentar que o que estava a ponto de fazer era por puro interesse próprio.
Curvando a cabeça, posicionou as mãos na vasilha, espalmando o recipiente com reverência. Com o máximo de clareza que pôde juntar, visualizou o rosto de Xcor, dos
olhos estreitos ao lábio superior defeituoso, do cabelo cortado curto ao pescoço grosso. Imaginou o cheiro dele em seu nariz e sua presença física grandiosa diante
dela. Imaginou aqueles antebraços cheios de veias e as mãos rudes e cheias de calos, seu peito pesado e as pernas fortes.
Em sua mente, ouviu a voz dele. Viu seus movimentos. Capturou seu olhar e o sustentou.
A superfície da água começou a se mover, círculos concêntricos se formando às batidas de seu coração. E então o redemoinho começou.
Uma imagem surgiu, erguendo-se das profundezas e imobilizando a animação do líquido transparente como cristal.
Layla franziu o cenho e pensou: isto não faz sentido.
A vasilha lhe mostrava prateleiras, fileiras e mais fileiras de prateleiras cheias de... Alguma espécie de urnas. Havia tochas flamejando, luz cor de laranja tremeluzindo
sobre o que parecia ser um ambiente subterrâneo todo empoeirado.
— Xcor? – Ela sussurrou. — Oh... Querida Virgem Escriba.
A imagem que recebeu era clara como se estivesse de volta ao seu corpo em repouso. Ele estava deitado coberto por lençóis brancos em uma maca no centro do salão
das prateleiras, olhos fechados, pele pálida, braços e pernas imóveis. Máquinas bipavam perto dele, umas que ela reconheceu de seu próprio quarto na clínica. John
Matthew e Blaylock estavam sentados no chão de pedra próximos a ele, a mão de John se movia como se estivesse dizendo alguma coisa.
Blay somente anuía.
Layla desejou que a imagem mudasse para poder ver o que havia em frente e atrás de onde Xcor estava deitado. Ao aprofundar-se mais no que acabou se mostrando uma
caverna, eventualmente chegou a um vasto espaço cerimonial...
A Tumba.
Xcor estava na ante-sala da Tumba.
Layla desejou que a imagem voltasse ao local onde John e Blay estavam e ouviu Blay dizer:
— A pressão está caindo. Então, nada de cirurgia. Mas ele não parece mais que vai acordar, pelo menos não tão cedo.
John gesticulou algo.
— Eu sei, mas qual a outra opção?
Layla pediu à vasilha que mostrasse o caminho da saída e a imagem proveu uma progressão na direção oposta até onde havia um portal terminal de construção robusta,
com malha de aço sobre suas barras – além de uma tranca que parecia forte o bastante para manter fora até o mais determinado dos invasores. Então estava na barriga
da caverna, as paredes de pedra entalhadas por mãos ou pela natureza, ou talvez uma combinação de ambos.
Finalmente estava passando livremente por uma floresta de muitos pinheiros.
Afastando a visão, notou a paisagem ficando cada vez menor... Até conseguir ver o brilho da mansão.
Então ele ainda estava na propriedade. Não era tão longe.
Soltando as beiradas da vasilha, ela observou enquanto o que havia sido mostrado desaparecia como se jamais tivesse existido, a água reassumindo sua característica
transparência e anonimato.
Ao recostar na cadeira, refletiu por um longo tempo.
Então se levantou e saiu do templo das escribas.
Mas não voltou à Terra. Não de imediato.
— Sinto como se estivéssemos prestes a nos dar mal, não sei por que.
Quando sentou ao lado de Rhage na biblioteca da mansão, Mary lhe deu um tapinha nos joelhos.
— Você sabe que não é verdade.
— Minha aparência está boa?
Inclinando-se no sofá de seda, Mary observou o companheiro.
— Tão lindo como sempre.
— Será que isto funcionará a nosso favor?
— Como poderia não funcionar? – Ela beijou a bochecha dele. — Basta se lembrar de não dar em cima dela. Ela é a melhor amiga de sua esposa.
— Até parece. Ela é bonitinha e tudo o mais, assim como a maior parte dos aparelhos na cozinha de Fritz, e eu não tenho interesse em encoxar nenhum deles.
Mary riu e lhe deu outro apertão. Então voltou a sentir como se sua cabeça fosse explodir.
— Então. É. Enfim... Sabe, nunca prestei muita atenção a esta sala antes. É bonita.
Quando Rhage fez um mmm-hmmmm, ela olhou ao redor para as prateleiras de livros e a lareira crepitante e todos os tons ricos de joia dos carpetes, cortinas e almofadas.
Havia uma escrivaninha. Sofás para se acomodar com algum livro da coleção... Ou seu Kindle, se assim preferisse. Algumas pinturas a óleo. E então todos os tipos
de itens decorativos que Darius tinha colecionado em vida, de conchas marinhas especiais a pedras raras e fósseis.
— Não consigo respirar.
Quando Rhage colocou a cabeça entre os joelhos, ela esfregou os ombros dele, confortando-se ao confortá-lo também. Provavelmente não ajudaria dizer a ele que ela
também se sentia meio sufocada. E um pouco nauseada.
Marissa entrou apressada dez minutos depois.
— Desculpe! Sinto muito... Oh, ei, Rhage.
— Oi. – Rhage pigarreou e ergueu a mão. — Ah... Oi. É.
Marissa olhou de um para o outro. Então pareceu se recompor e fechou as portas.
— Estava me perguntando por que é que você quis me encontrar aqui. Agora entendo.
— É. – Disse Rhage. — Eu não posso... Bem, sabe. Entrar no Lugar Seguro. Coisa que você deve saber... Por que é diretora do lugar. E... Eu realmente preciso parar
de falar aqui, não é?
Marissa se aproximou do fogo, sua beleza extraordinária parecendo atrair toda a iluminação e calor da lareira. Ao sentar-se em uma poltrona, cruzou as pernas como
a dama perfeita que era.
Seu rosto estava remoto, mas não frio. Ela parecia atenta.
Isto não vai dar certo, Mary pensou aterrorizada.
— Então... Obrigada por aceitar nos encontrar. – Mary pegou a mão de Rhage. — Vou evitar rodeios. Rhage e eu estivemos conversando e gostaríamos de explorar a possibilidade
de adotar, ou no mínimo tutelar Bitty. Antes de você dizer não, gostaria que considerasse que eu tenho conhecimentos clínicos em...
— Espere. – Marissa ergueu as mãos. — Espere, isto não é sobre... Você pedir demissão?
— O que?
Marissa ergueu a mão até o coração e apoiou-se em seu assento.
— Você não está se demitindo.
— Não... Santo Deus, de onde tirou esta ideia?
— Achei que tinha te ofendido durante nossa conversa antes da Última Refeição. Eu não sabia onde estava pisando... Digo, só estou tentando fazer o que é correto
para Bitty e eu... – Marissa parou de supetão. Assustou-se. — Eu te ouvi dizer adoção?
Mary respirou fundo. E cara, ela apertou a mão de seu hellren.
— Rhage e eu conversamos sobre isto. Nós queremos ser pais, e podemos dar a Bitty um lar cheio de amor, um lugar para ela chamar de seu, um sistema de suporte que
seja mais do que profissional. Como você sabe, eu não posso ter filhos... E Bitty está realmente sozinha no mundo. Mesmo Vishous não foi capaz de encontrar o tio
dela.
Marissa piscou algumas vezes. Olhou de um para outro de novo.
— Isto é... Extraordinário.
Rhage se inclinou para a frente.
— Isto é bom ou ruim?
— Bom. Digo... – Marissa recostou-se e encarou o fogo. — É maravilhoso... Fantástico. Só não sei direito o que temos de fazer.
Espere, aquilo foi um “sim”? Mary pensou com o coração aos saltos.
— Bitty precisa opinar sobre isto. – Disse ela tentando manter a cabeça fria. — Ela tem idade suficiente para escolher. E eu sei que não vai ser fácil... O processo
de adoção ou virarmos pais. Rhage também sabe. Eu acho, no entanto... Isto meio que começa com você, sabe?
Sem qualquer aviso, Marissa levantou-se rapidamente de sua poltrona e abraçou Mary, e então Rhage. Quando voltou a sentar, ela abanou as lágrimas em seus olhos.
— Eu acho que realmente é uma ótima ideia!
Está bem, Mary começou a ficar um pouquinho lacrimosa. E não podia olhar para Rhage... Por que se ele tivesse lágrimas nos olhos, e ela tinha quase certeza que sim,
o jogo estaria acabado.
— Fico muito feliz por você nos apoiar. – Mary disse com voz rouca. — Embora eu não saiba se seremos aceitos...
A mão elegante de Marissa cortou o ar.
— Não estou nem um pouco preocupada sobre a capacidade de vocês dois serem bons pais. E por favor, não encare qualquer pausa que eu fizer como falta de apoio. Eu
só nunca tive de fazer algo assim.
Rhage falou.
— Saxton conhece o procedimento legal. Ele nos mandou alguns documentos. Acho que preciso de uma audiência diante do Rei como membro da aristocracia...
Mary ergueu as mãos, tipo, uaaaaau.
— Espere, espere, será necessária uma avaliação formal de nós dois antes. E temos que pesquisar mais a família da mãe dela... E a do pai. E temos de perguntar a
ela se sequer está interessada nisso. A morte da mãe é muito recente. Não quero que ela pense que estamos querendo tomar o lugar da família legítima dela ou tentar
substituir de alguém que jamais poderá ser substituído. Precisamos agir com calma. Também há um problema em potencial.
— E o que seria? – Perguntou Marissa.
Quando Mary olhou para Rhage, ele pigarreou.
— Eu devoro pessoas. Digo... A Besta. Você sabe. Ela devora coisas. Que não deviam... Hum, sabe... Ser devoradas.
— Ele nunca apresentou risco para mim. – Mary exclamou. — Mas não podemos fingir que o dragão dele não é um fator nisto. Quem quer que for determinar se nos encaixamos
no papel, seja você, ou Wrath, ou outra pessoa, precisa estar plenamente ciente de que levaremos junto um monstro da altura de três andares coberto de escamas roxas,
comedor de lessers.
Rhage ergueu a mão como se estivesse em sala de aula esperando pra ser chamado. Quando ambas só olharam para ele, abaixou o braço, desconfortavelmente.
— Ah, na verdade ele nunca consumiu nada além de lessers. Embora eu realmente ache que tentou comer Vishous. – Seu hellren hesitou. — Está bem, certo, pelo que ouvi,
na outra noite ele perseguiu V e Assail até uma cabana, da qual ele pode ter arrancado o telhado e pode ter tentado devorá-los... Mas não conseguiu.
— Graças a mim. – Mary declarou.
— Ele ouve a Mary. Aquilo. Ouve. Quero dizer. – Houve uma pausa. — Merda.
Mary deu de ombros.
— De qualquer forma, estamos cientes de que não somos os pais convencionais mais atraentes. Mas prometo... Se tivermos a chance, iremos amar aquela garotinha com
tudo o que temos.
— Idem. – Disse Rhage. — Completamente idem.
Marissa soltou uma risada suave.
— Eeeeeee é exatamente por isto que não estou preocupada com vocês dois adotando qualquer coisa ou qualquer um, seja um cão de um abrigo ou uma criança do Lugar
Seguro.
Mary exalou em alívio.
Enquanto isto, Rhage pegou uma página do livro de Marissa e começou a se abanar. Então apoiou um braço na mesinha de centro como se estivesse com medo de desmaiar.
— Não está quente aqui? Sinto calor... Acho que vou...
Mary pulou e correu para uma das portas francesas. Quando a abriu, ela disse:
— Ele fica um pouco zonzo às vezes. Sabe, quando está aliviado. Respire comigo, amor. Respire comigo.
Marissa aproximou-se e sentou perto de Rhage. Ao pegar uma almofada e começar a abaná-la perto daquele rosto belo e profundamente corado, ela riu.
— A gente vai dar um jeito. De alguma forma, de alguma maneira, vamos dar um jeito, está bem? E esperançosamente, no final Bitty virá para casa com vocês dois.
Quando Mary pegou outra almofada e se juntou ao esforço, ela olhou dentro dos olhos do Irmão que amava... E tentou ver o futuro em suas feições.
— Eu espero. Deus, espero tanto que chega a doer.
Capítulo CINQUENTA E UM
— Você quer saber o que?
Enquanto V colocava a questão meio compreensível, Assail mudou seu celular para o outro ouvido e pôs a caneca de café na máquina de lavar. O doggen que tinha esperado
entrevistar nesta noite... Para que seus primos cessassem e desistissem de todas as refeições congeladas... Teve que ser remarcado. Então isso significava que ele
permanecia o Sr. Limpeza.
— Master Lock20, – Assail explicou. — Preciso saber como liberar uma Master Lock. E tem que ser de tal forma que a coisa permaneça funcional depois disso.
O irmão riu com uma linha dura.
— Sim, meu primeiro conselho seria atirar nessa porcaria... O que não iria ajudar se você quer que isso continue funcionando. O que exatamente está tentando acessar?
— Um segredo.
— Parece bizarro. E de quão antigo estamos falando? O cadeado, não o segredo.
— Novo.
— Ok, sim, tenho algo pra você. Onde você está...
Um sutil sinal sonoro cortou a conversa e Assail colocou o celular longe de sua orelha.
— Ah, sim, aqui está ela. E estou em casa, Vishous.
— Estarei aí em dois minutos. Em seu quintal.
— Estou esperando à frente por sua audiência. – Assail clicou na outra chamada. — Olá querida...
Chorando. Naasha estava chorando abertamente e Assail sabia a causa sem a explicação.
— O que aconteceu? – Disse enquanto caminhava e abria a porta dos fundos.
O ar frio irritou seu nariz, mas segurou os espirros enquanto todos os tipos de gagueiras e fungadas vinham através da conexão.
— Ele está morto. Meu hellren... Está morto.
É claro que está, Assail pensou. E sei o por quê.
— Sinto muito, querida. O que posso fazer por você em seu luto?
A fêmea fungou uma quantidade de vezes.
— Você pode vir, por favor?
— Sim. Dê-me dez minutos?
— Obrigado. Estou de coração partido.
Não, você é a herdeira dele, pensou enquanto terminava a chamada. E seu amante é quem está coordenando tudo isso... E você é a próxima na fila para o caixão, querida.
De fora na escuridão, uma forma enorme apareceu sobre o gramado e o Irmão Vishous ativou as luzes de segurança enquanto andava até a casa.
— Houve uma morte de certa nota, – Assail anunciou. — Parece que o hellren da amante de Throe faleceu.
— Oh, sério?
— Não estou paranóico ainda, mas é o que parece. É uma certeza, pra ser mais preciso. – Ele encontrou Vishous na metade do caminho para o gramado e trocaram cumprimentos
com as mãos. — Eu sabia que ele não tinha muito tempo neste mundo. A questão é como ele faleceu... E eu pretendo descobrir.
— Há um assassino sob aquele teto.
— De fato. E deixarei você saber o que eu descobrir.
— Se precisar de apoio, nós pegamos você. E se acontecer de encontrar evidências de assassinato? Estarei feliz de colocar a "morte" na sentença.
— Combinado.
— Ah, e se ainda estiver interessado na Master Lock, isto é o que você precisa. – Vishous entregou a ele uma ferramenta prateada que parecia uma chave de fenda em
miniatura. — Use isso como uma chave. Deve funcionar.
— Obrigado.
Vishous bateu no ombro dele.
— Você está provando valer a pele que usa, verdade?
— Não tenho certeza se isso é um elogio ou não.
— Esperteza sua.
Puf! O irmão foi embora, deixando apenas uma brisa fria para trás. E na sequência da sua partida, Assail voltou para sua casa e gritou:
— Cavalheiros? Estou saindo.
Ehric deu um passo na entrada.
— Para onde?
— Pra Naasha. Ela teve uma mudança de posto, por assim dizer. Seu hellren faleceu... Ou foi assassinado, como pode muito bem ser o caso.
— Interessante. Deixe-nos saber se você nos precisar?
— Eu devo.
Fechando os olhos, Assail desmaterializou e viajou em uma dispersão sobre o rio até a propriedade do hellren de Naasha. Assim que se reconstituiu na entrada da frente,
caminhou diretamente para o portal e o abriu completamente, evitando qualquer batida ou toque.
Throe estava em pé no foyer, e quando avistou a porta abrindo, franziu a testa e depois recuou.
— O que... O que você está fazendo aqui?
Assail fechou a porta pesada atrás de si, e em seguida contorceu o lenço no bolso de volta na posição ideal.
— Fui convidado aqui.
— Então deve entrar apropriadamente... Tocando a campainha. Você não vive aqui.
— E você vive.
— Sim.
Assail cruzou a distância para parar diante do outro homem; então estendeu a mão e correu as pontas dos dedos por baixo da lapela do terno preto reconhecidamente
refinado de Throe. O filho da puta era bonito... Tinha que dar isso a ele. Claro, também era moralmente corrupto e tão confiável quanto uma víbora sob os pés.
E não era autêntico, porque essa combinação reuniu de modo muito constante.
— Meu caro rapaz, – Assail murmurou. — Se você não sabe o porquê de eu ter sido convocado, você é cego ou ingênuo.
Throe deu um tapa na mão do Assail para a afastar.
— Eu não sou seu “rapaz”.
Assail se inclinou.
— Mas gostaria de ser, não é?
— Foda-se.
— Tudo que você tem a fazer é pedir agradavelmente e vou considerar. Enquanto isso, pode lembrar a si mesmo que sua amante estará à procura de sua próxima vítima...
Quero dizer hellren. E por mais que você seja encantador, acredito que está faltando um critério importante. Pelo que andei ouvindo, você é pobre. Ou, pelo menos,
o que se passa por pobre para os padrões dela. No entanto, eu não tenho esse problema, tenho? Quem sabe seja por isso que ela tenha me chamado?
Enquanto Throe mostrava suas presas e parecia preparado para oferecer uma reprimenda, o som de passos apressados veio descendo pela escada em espiral.
— Assail!
Abrindo os braços, aceitou o perfume cuidadosamente escolhido que o atingiu, e enquanto segurava Naasha rente a seu corpo, ele encontrou os olhos de Throe. Jogando
ao cavalheiro uma piscadela, Assail deliberadamente moveu a mão para baixo até a bunda da fêmea e apertou.
Naasha recuou.
— O advogado está chegando. Você vai ficar enquanto eu me encontro com ele?
— Mas é claro. Aliás, quando você precisar, estarei sempre ao seu serviço.
— Levaram embora os restos mortais do meu companheiro. – tirando o lenço de seda de seu decote, ela enxugou as bochechas que estavam secas e cuidou dos olhos que
não estavam nem injetados de vermelho nem manchados. — Ele deve ser cremado nesta noite. E então teremos a cerimônia do Fade. Ele sempre disse que desejava ser espalhado
na propriedade.
— Então é isso que você precisa fazer por ele em seu repouso final.
— Mandei meus hospedes embora. Parecia impróprio tê-los sob este teto enquanto esses arranjos estão sendo feitos. – Mais um pouco de fingir que estava enxugando
os olhos. — Estou muito sozinha. Vou precisar de você agora mais do que nunca.
Assail curvou-se enquanto sentia Throe ferver.
— O prazer é meu.
— Talvez você deva se sentar comigo e o advogado...
Throe falou.
— Não, estarei lá para apoiá-la. Isso precisa ser privado.
— Ele tem razão. – Assail murmurou enquanto acariciava seu rosto com as costas dos dedos. — Estarei feliz em permanecer aqui pelo tempo que for preciso. Providencie
pra mim uma sala e talvez eu me distraia com algo da sua biblioteca.
Houve um badalar na porta da frente, e o mordomo se materializou saído de um aposento nos fundos. Enquanto o doggen se apressava adiante para responder à convocação,
Throe levantou uma sobrancelha... Como se salientasse que esta era realmente a forma apropriada como os hóspedes deviam ser recebidos.
E então Saxton, o próprio advogado do Rei, entrou na mansão.
Saxton estava mais harmonizado ao tom da Regência do que à vida moderna em muitos aspectos, seu cabelo loiro ondulado penteado para trás, seu terno feito sob medida
por um especialista, o casaco de caxemira e a maleta Louis Vuitton colocando-se entre pólos opostos da moda elegante e do advogado de carreira.
— Senhora, – Disse ele com uma reverência. — Meus pêsames por sua perda.
Interpretou outra rodada teatral de secar de olhos e lenço espanando... E enquanto o drama seguia, Assail saiu da conversa, porém chamou a atenção do Saxton. À medida
que acenavam um ao outro de forma discreta, Assail teve a nítida impressão de que o advogado sabia exatamente por que ele estava na casa.
Ah, Wrath. Com os dedos nas tortas de todo mundo... E isso até que era bom, Assail estava chegando a acreditar.
— Permita-me mostrar ao meu amigo o estúdio, – Disse Naasha. — E então teremos nosso encontro na biblioteca. Meu doggen irá levá-lo lá agora e aceitar seu pedido
por algo para beber. Throe deve se juntar a nós como um conselheiro meu.
Assail teve o cuidado de se desculpar formalmente com o Saxton, como se eles dois não se conhecessem. E então estava seguindo Naasha até uma sala que cheirava como
potpourri e madeira enfumaçada. Enquanto ela os fechava ali dentro, as portas de correr eram tão ornamentadas quanto as estátuas lapidadas e tinha tanto ouro sobre
elas quanto o colar Bvlgari que a fêmea tinha em sua garganta.
Ela caminhou até ele. Fungando delicadamente.
— Você me aliviará em meu luto?
— Sempre.
Ele a puxou contra si por que ela queria assim. E beijou-a com cuidado para que não borrasse o batom vermelho fosco... Também por que ela queria.
— Minha querida, – Disse enquanto passava uma mão levemente sobre seus cachos penteados e em cascata. — Diga-me. Como descobriu que o seu amado tinha falecido?
Enquanto falava, ele memorizou cada palavra que ela disse:
— Entrei para cumprimentá-lo antes de sua Primeira Refeição ser servida. Ele estava deitado em sua cama, tão calmo quanto podia estar... Mas ele estava frio. Tão
frio. Ele se foi. Em seu sono... O que foi uma bênção.
— Uma boa morte. Uma morte aprazível para um homem digno.
Ela o beijou de novo, lambendo sua boca... E ele pôde provar Throe nela, sentir o cheiro do outro macho sobre ela.
— Vai estar aqui quando eu terminar? – Ela disse com um toque de comando.
O interior dominante de Assail recusou-se à ordem, mas seu lado lógico cancelou o instinto.
— Como eu disse, vou esperar pelo tempo que for preciso.
— O testamento tem muitas disposições.
— E não tenho mais nada a fazer do que te atender.
Ela positivamente brilhou ante aquilo... E ele teve que se segurar para não revirar os olhos. Mas logo ela estava dançando pra fora do aposento, pronta para ir descobrir
tudo o que estava para herdar.
— Tchau por enquanto, – Ela brincou antes de deslizar as portas de volta no lugar.
Conforme o clicar de seus saltos altos sobre o mármore desaparecia, ele olhou para o teto. Não havia câmeras de segurança que pudesse ver, mas este seria o lugar
mais óbvio para colocá-los.
Antes de tentar afastar-se do estudo, ele precisava saber se alguém estava olhando.
Capítulo CINQUENTA E DOIS
— Fritz... Como descrever Fritz...?
Ao chegar a um semáforo, Rhage pisou no freio do GTO e olhou pelo retrovisor. Bitty estava no banco de trás e olhava para frente com uma expressão fascinada, como
se o que ele estivesse falando fosse a coisa mais interessante que já tivesse ouvido.
Por um momento, o coração dele disparou. Não conseguia acreditar que houvesse mesmo uma possibilidade de que pudesse ter a chance de...
Foco, disse a si mesmo. Temos um longo caminho a percorrer antes de poder ficar todo sentimental.
Mas Deus, se acontecesse ele ia ter muitas conversas com a garotinha.
— Rhage. – Mary chamou.
— Desculpe, certo. – O sinal ficou verde, o que indicou a seu cérebro para mover o carro adiante. — Está bem, então, Fritz parece o cara do filme Os Caçadores da
Arca Perdida, sabe? O que aparece com a cara derretendo. Só que não é tão assustador... E na verdade, nada derretido.
— O que é Os Caçadores da Arca... O que?
Rhage afundou no banco do motorista.
— Oh, meu Deus, ouça... Teremos de trabalhar na sua educação. Tem tanta coisa... Você já assistiu Tubarão?
— Não...
Ele se debateu contra o apoio da cabeça do banco.
— Não! Oh, não... A humanidade!
Quando Bitty começou a rir, Rhage estendeu uma mão para Mary.
— Segure-me, preciso saber do mais importante.
— Estou aqui contigo, querido.
Rhage olhou pelo retrovisor de novo.
— Você ao menos sabe quem é John McClane?
— Não...
— Hans Gruber?
— Humm... Não...
— Maaaaaary, me segura!
Mary começou a rir e empurrá-lo de volta para sua posição.
— Dirija o carro!
Com as risadas das garotas, ele forçou-se a se recompor.
— Vamos ter de trabalhar nisto mais tarde. Enfim, Fritz é... Ele é mais velho do que Deus, como dizem os humanos. E fica todo atrapalhado se você tentar fazer qualquer
coisa. Ele não deixa a gente limpar nossa própria bagunça, se estressa se a gente tenta preparar qualquer comida e tem uma necessidade obsessiva de aspirar o pó.
Mas... – Ele apontou com o dedo indicador. — Ele comprou um freezer de sorvete só pra mim. E estou te dizendo, isto perdoa uma infinidade de pecados.
Mary virou-se.
— Fritz é a força mais gentil do planeta. Ele é responsável pela equipe de empregados e cuida de tudo e de todos na casa.
— Quantas pessoas vivem lá? – Perguntou Bitty.
— Contando os doggen? – Mary ficou quieta por um momento. — Deus, talvez trinta? Trinta e cinco? Quarenta? Eu não sei ao certo.
Rhage interrompeu.
— O mais importante é...
— ... Tem uma porção de amor.
— ... Há um cinema com direito a doces à vontade.
Quando Mary dardejou-o com o olhar, ele deu de ombros.
— Não subestime a importância de Milk Duds no escuro. Bitty, diga, já comeu Milk Duds?
Quando a garota negou com a cabeça com um sorriso, ele ergueu as mãos.
— Cara, eu tenho uma porção de coisas para te ensinar, mocinha.
Adiante deles, a Lucas Square apareceu à distância, o brilho de todas as lojas e letreiros de neon brilhavam como a luz do dia. E por falar em sacolejos... Havia
pedestres por todo o lado nas calçadas largas, humanos românticos caminhando de braços dados com parceiros, famílias implicando entre si, turmas de garotas adolescentes
e bandos de garotos adolescentes passando de lá para cá.
— É sexta-feira? – Perguntou ele, ao entrar em um dos estacionamentos descobertos.
— Acho que é... Não, espere, é sábado. – May verificou em seu celular. — É, é sábado.
— Não é de se surpreender estar tão cheio.
Levou um tempo para achar uma boa vaga e ele rejeitou algumas por terem aspecto de aglomeração de caminhões, SUVite estrábica ou deformação de minivan. Finalmente
achou uma vaga próxima a uma área verde, onde parou seu bebê perto do meio-fio.
— Sim, ele sempre é seletivo deste jeito. – Mary disse ao descer e puxar o banco para Bitty.
— Ei, eu cuido de minhas fêmeas, tá? – Quando a porta delas foi fechada, ele estendeu a mão e trancou-a manualmente, então também saiu e usou a chave na fechadura
do lado do motorista. — Nenhum humano vai arranhar minha lataria.
Eles entraram na fila juntos com Bitty entre os dois. O TGI Friday estava logo à frente na esquina, e quando um grupo de humanos barulhentos saiu correndo por suas
portas, Rhage franziu o cenho.
— Ei, Bitty? – Chamou ele casualmente. — Quer dizer que você nunca esteve em um restaurante antes?
— Não.
Rhage parou e colocou a mão sobre um ombro que o chocou por ser tão fino e pequeno. Mas ele tinha outra preocupação naquele momento.
— Pode parecer meio barulhento, está bem? Muita gente conversando, bebês chorando, pessoas rindo alto. Vai ter pessoas correndo pra lá e pra cá com grandes bandejas
de comida... Muitos cheiros e sons diferentes. Pode ser opressivo. Eis o que precisa se lembrar. Se tiver de ir ao banheiro, Mary vai com você, para não ter de se
preocupar em se perder ou ficar sozinha. E se achar, em qualquer momento, que é estímulo demais, podemos ir embora. Não importa se mal tivermos olhado o cardápio,
feito o pedido ou estejamos com o garfo na mão. Eu deixo o dinheiro na mesa, – Ele estalou os dedos. — E damos o fora.
Bitty o encarou. E ele se preocupou de ter ido longe demais ou...
A garota jogou o corpinho frágil contra o dele e abraçou forte. De início, Rhage não soube o que fazer, e só baixou os braços nas laterais de seu corpo e olhou para
Mary em pânico. Mas quando sua shellan levou a mão à boca e pareceu, ela mesma, procurar se recompor, ele retribuiu o abraço da garota de forma bem leve.
Enquanto ainda estavam unidos, Rhage fechou os olhos. E emitiu uma prece silenciosa.
Mary só conseguiu balançar a cabeça. E ela pensava ter se apaixonado por Rhage antes. Pensava que o amasse com todo o coração. Pensava que ele era sua alma gêmea,
seu centro, seu melhor impossível.
Conversa fiada.
Vê-lo curvar seu enorme corpo ao redor daquela garotinha ao retribuir o abraço de Bitty?
Bem, quem diria, aquilo não só fez seus ovários gritarem... Os inúteis bem que pareceram quase explodir entre seus quadris.
Quando os três voltaram a andar, Rhage manteve uma mão pousada sobre o ombro de Bitty. Como se para os dois fosse a coisa mais natural do mundo... Mesmo Rhage tendo
de se inclinar para o lado e os dois esbarrarem um no outro até acertarem os passos.
Quando se aproximaram do restaurante, Mary olhou ao redor e identificou outras famílias... E não conseguiu impedir de abrir a porta da fantasia por uma fração de
segundo e fingir que sua pequena unidade ali era igual às outras. Que eram uma mãe, um pai e uma filha saindo para jantar para conversar sobre coisas bobas, coisas
sérias e também sobre nada em específico... Antes de voltarem para casa juntos, para um lugar onde ficassem a salvo.
Rhage adiantou-se, abriu a porta, e dentro o restaurante era exatamente como tinha descrito, barulhento, agitado e fervilhando de vida. Felizmente Bitty parecia
mais curiosa do que nervosa, embora tenha agarrado Rhage quando ele se aproximou da recepcionista e pediu uma mesa para os três em um reservado, se possível.
A morena que estava atrás da caixa registradora deu uma olhada para ele... E quem diria, nada de espera para Rhage. Quando a jovem sorriu exibindo todos os dentes
da boca e fez um pequeno bamboleio ao tirar três da pilha de cardápios, Mary meneou a cabeça em sinal de desculpas para as outras vinte pessoas na fila.
— Por aqui!
A recepcionista abriu caminho através de diferentes sessões do local, levando-os para o outro lado onde havia, de fato, um reservado recém-liberado, a superfície
ainda úmida, ainda sem novos talheres dispostos. O que foi resolvido imediatamente, quando Rhage e Bitty sentaram-se de um lado e Mary assumiu o banco à frente deles.
— Aproveitem sua refeição. – A recepcionista disse para Rhage.
Antes que alguém pudesse dizer qualquer coisa, uma loura de cabelos curtos e olhos muito maquiados apareceu trazendo água em uma bandeja. Sua expressão era uma combinação
de tédio e aflição... Até ver a quem serviria.
Mary só sorriu e meneou a cabeça, abrindo o seu menu. Enquanto avaliava a enorme variedade de pratos oferecidos, estava vagamente ciente da conversa acontecendo,
mas não se incomodou em acompanhar.
Ao ficarem sozinhos, Rhage abriu seu cardápio.
— Está bem, o que temos...
— Elas sempre fazem isto? – Perguntou Bitty.
— Fazem o que? – Ele virou uma página plastificada. — Quem?
— As humanas. Encaram você desse jeito.
Rhage pegou seu copo de água para provar um gole.
— Não sei do que está falando.
— Como se elas quisessem pedir uma refeição com você como prato principal?
Água. Para. Todo o canto. Quando Rhage tossiu e deu um soco no peito, Mary teve de rir. Também teve de desenrolar seus talheres para usar o guardanapo para secar
a bagunça.
— Sim, elas sempre fazem. – Disse Mary. — Elas são sugadas para a Zona do Isto é Incrível e não conseguem sair.
Rhage respirou fundo.
— Eu não sei... Do que vocês estão falando.
Bitty se virou para ele.
— Você não vê como...
— Eu não reparo. – Rhage olhou dentro dos olhos da garota. — Minha Mary é a única fêmea que vejo. É assim que é, e é assim que sempre será. As outras podem olhar
o quanto quiserem, elas jamais irão chegar aos pés daquilo com o que fui abençoado, e eu nunca, nunca teria nada com elas.
Bitty pareceu considerar aquilo por um momento. Então pegou seu próprio cardápio com um sorrisinho.
— Acho que isto foi muito bonito.
— Então, o que você quer comer? – Perguntou Mary. — Vocês dois.
— Estou no clima pra filé. – Rhage virou outra página. — E também comida mexicana. E frango. E acho que umas batatas.
Mary se inclinou para Bitty.
— Que bom que somos só três ou iríamos precisar de outra mesa só para os pratos dele.
— Não sei o que escolher. – A garota disse. — Eu nunca vi... Tantas opções.
— Bem, se quiser posso dividir com você. – Mary fechou os menus e colocou na beirada da mesa. — Mas vou pedir só uma grande salada.
— Ainda estou escolhendo minha lista. – Rhage cutucou Bitty com o cotovelo. — Acho que você devia provar pelo menos uma coisa só sua. Você merece ter seu próprio
prato... Além disso, se sobrar eu posso comer.
Quando a garçonete voltou, só tinha olhos para Rhage... E foi engraçado. Mary se lembrava de como ficava insegura com aquele tipo de coisa no começo de seu relacionamento...
Especialmente à luz daquele episódio. Mas agora? Verdadeiramente não a incomodava. Rhage não tinha mentido. Estas mulheres podiam literalmente ficar peladas na frente
dele, e ele não teria mais interesse nelas sexualmente do que teria por um sofá.
Incrível como seu companheiro podia fazer você sentir-se amada sem realmente dizer uma palavra.
— Então, o que vão pedir? – A garçonete perguntou a Rhage.
— Primeiro minhas garotas. Bitty?
A garota pareceu entrar em pânico.
— Eu não sei. Eu não...
— Se importa se eu fizer uma sugestão? – Rhage perguntou. Quando ela anuiu, ele disse. — Peça o macarrão com queijo, com brócolis à parte e as iscas de frango crocante
com o molho barbecue com mel. Simples. Cai fácil no estômago. Sem muita confusão para as papilas gustativas.
Bitty pareceu se preparar. Então olhou para a garçonete.
— Pode me trazer, por favor, isto que ele disse?
A garçonete anuiu em concordância.
— Sem problema.
— Minha Mary?
Mary sorriu.
— Eu quero a salada de frango Cobb grelhado, por favor, sem abacate e sem queijo gorgonzola... Molho somente ranch ou algo parecido, seria ótimo. À parte.
— Temos molho ranch. – A garçonete se concentrou em Rhage, seus olhos devorando o rosto dele, os ombros, o peito. — E você?
— Bem, acho que vou começar com as asas de frango ao modo buffalo com as batatas gratinadas recheadas. Então os espetinhos de frango hibachi, o combo New York meio
costelas barbecue, meio Memphis, o filé no ponto, e para finalizar, o Reuben triplo. Oh, e acho que quero o hambúrguer All-American também. Também no ponto. Oh,
e molho ranch com as asas, por favor. À parte.
Ao fechar o menu, pareceu inconsciente de estar sendo encarado.
— Sim? – Ele disse à garçonete.
— Vocês... Vocês estão esperando mais pessoas?
— Não. – Ele juntou os menus e entregou a ela. — E quero duas coca-colas, por favor. Senhoras?
— Água para mim. – Disse Mary. — Bitty, água ou refri? Água? Está bem, ela quer água... E então eu acho que é só. Estamos com muita fome, como pode ver.
Quando a garçonete se afastou com um par de olhos arregalados, Bitty começou a rir.
— Você não vai mesmo comer tudo aquilo, vai?
— Diabos, claro que vou! – Rhage estendeu a mão. — Quer apostar?
Bitty apertou a mão dele.
— Mas o que acontece se eu perder?
— Você vai ter de comer o que sobrar.
— Eu não vou conseguir fazer isto!
Enquanto os dois discutiam, Mary só observava, o macho enorme e impossivelmente bonito com a garota pequena como um duende, tão confortáveis um com o outro quanto
possível.
— Mary?
Ela voltou à realidade.
— O que?
Rhage estendeu a mão sobre mesa.
—Bitty perguntou como nos conhecemos.
Quando Mary bateu na mão dele, ela teve de sorrir.
— Oh, você não acreditaria.
— Conta pra mim? – A garota pediu, sentando-se mais na beirada do seu banco. — Por favor?
Capítulo CINQUENTA E TRÊS
Quando teve certeza de que não havia câmeras de circuito interno ou qualquer outro tipo de monitoramento no escritório, Assail foi até as portas entalhadas e abriu
uma fresta. Como não ouviu ruído algum, saiu para o saguão e permaneceu completamente imóvel, procurando ouvir sons de vozes ou passos.
— A costa está limpa, com certeza. – Murmurou, olhando ao redor.
Estava a ponto de ir para a escada principal quando ouviu um grito agudo vindo da sala fechada, do outro lado do corredor.
— … Mentira! – Naasha berrou, o volume de sua voz mal abafado. — Devem ter forjado a assinatura dele! Isto é uma abominação!
Más notícias? Ele se perguntou com um sorriso. Talvez algum parente há muito tempo perdido tenha acabado de aparecer no testamento?
Ele correu de volta para o escritório de onde tinha saído e mal teve tempo de fechar totalmente a porta, quando Naasha irrompeu para o corredor e foi pisando duro
na direção da escada. Mas logo Throe a alcançou, segurou seu cotovelo com um toque rude e a girou.
Avançando o macho disse em um tom de voz baixo.
— Você precisa ouvir o resto das disposições. Sim, eu sei que é um choque, mas não poderemos lutar contra o que não conhecermos por completo. Volte lá. Pare de gritar.
E deixe Saxton terminar a leitura. Quando ele concluir, perguntaremos quais podem ser os seus direitos e quem vai julgar sua contestação do testamento. Então constituiremos
nosso próprio advogado. Mas você não pode sair correndo, despreparada e histérica. Não se quiser o dinheiro que lhe é devido. Compreende o que estou dizendo?
A voz que saiu da garganta irritada da fêmea era desagradável como o rosnado de um cão.
— Era para ser meu. Passei os últimos vinte anos ouvindo as reclamações dele. Eu mereço cada centavo daquele dinheiro.
— E vou te ajudar a obter o que é seu. Mas isto não vai acontecer se você não se controlar. Emoções não são bem-vindas neste momento.
Houve um pouco mais de conversa. Então Naasha endireitou os ombros e voltou à sala onde a reunião se desenrolava.
Pobre Saxton.
Mas não havia tempo para sentir pena do pobre advogado agora.
Assail não perdeu tempo quando ouviu a porta sendo novamente fechada. Ele se esgueirou para fora do escritório, fechou a porta e chegou correndo à escada. Ao chegar
ao segundo andar, cruzou o corredor mais adiante de onde já tinha ido antes até uma grandiosa suíte, que tinha a porta aberta. No momento em que sentiu o cheiro
adstringente no ar, soube que era o quarto do hellren dela... Era o que achava, mas a cama estava sem lençóis, os travesseiros empilhados no centro do colchão, todos
parecendo muito gastos.
Puxou o celular e começou a tirar fotos. Não fazia ideia do que podia ou não estar fora do lugar, mas aquilo era para investigação futura.
Manchas. No colchão.
Mais para cima do que poderia se esperar de uma perda de controle da bexiga.
Os travesseiros estavam igualmente manchados.
Um fugaz aroma lhe disse que não era sangue, nem urina. Mas o que era aquela substância?
Dentro do banheiro. Medicamentos por todos os cantos, frascos com tampas tortas ou sem tampa nenhuma. Um andador. Uma bengala. Suportes.
Voltou a sair da suíte em menos de sete minutos e parou no alto das escadas. Duas maneiras de chegar ao andar do porão. Pelos fundos, naquele caminho que ele tinha
feito na outra noite...
Não, usaria o outro método desta vez.
Fechando os olhos, desmaterializou no primeiro andar e se transportou de forma incorpórea através dos umbrais até retomar a forma no topo da escada principal que
levava ao porão.
Seus ouvidos não indicavam razão para preocupação, então abriu a porta e adentrou a escuridão. Usando a lanterna de seu celular para guiar seus passos, manteve-se
nas laterais dos degraus toscos, sentindo o ar úmido e frio pinicando suas narinas.
Lá embaixo prosseguiu, passando rapidamente pela sala das safadezas de Naasha. Não gostou da quantidade de ruídos que seus sapatos de couro faziam no chão de pedra,
mas não havia nada a ser feito a respeito disso... E logo se deparou com aquela porta da fechadura reforçada.
Aquele cheiro ainda estava no ar, pensou ao tirar a ferramenta de Vishous e inseri-la onde a chave adequada se encaixaria. Manipulando o pedaço de metal em movimentos
circulares, a tranca se soltou.
Sem nem verificar onde precisamente estava entrando, esgueirou-se para dentro e voltou a fechar a porta.
Na escuridão completa, ouviu um som de movimento no canto. E um arrastar de...
Correntes?
Respiração. Alguma coisa estava respirando ali.
Assail apontou o celular naquela direção, mas o pequeno feixe de luz não iluminava mais do que poucos metros. Voltou a guardar o celular, empunhou uma das armas
e tateou ao redor das vigas expostas, perto da porta.
Ao encontrar o interruptor de luz, acionou-o...
E recuou, horrorizado.
Havia um macho nu acorrentado ao chão no canto do cômodo. Acorrentado e trêmulo, encurvado sobre si mesmo, cabeça baixa e braços enlaçando pernas esqueléticas, o
longo cabelo era a única cobertura que tinha.
O cheiro... O cheiro era da refeição velha que havia sido deixada em uma bandeja fora de alcance. O sanitário, se é que se podia chamar assim, ficava atrás dele
e não passava de um buraco aberto no chão. Havia também uma mangueira, como aquelas usadas em jardins, pendurada em um gancho. E um balde.
Para o resto de sua vida, Assail jamais se esqueceria dos sons suaves de retinir que se levantava das amarras do macho quando o corpo esquelético estremecia.
Assail deu um passo adiante.
O lamento foi como o de um animal.
— Não vou machucá-lo. – Assail disse roucamente. — Por favor... Eu... Por que está aprisionado aqui?
Mas ele sabia.
Era um escravo de sangue. Estava olhando para um escravo de sangue... Dava para ver até... Sim, lá estavam as tatuagens: uma ao redor da garganta e duas nos pulsos.
— Como posso ajudá-lo?
Não houve resposta, o macho só recuou ainda mais; os ossos de seus cotovelos parecendo rasgar a pele, as costelas como marcas de garras pelas laterais de seu torso,
suas coxas tão pequenas que os joelhos pareciam grandes nós inchados.
Assail procurou em volta, embora soubesse que era idiotice. O que havia no quarto estava lá e permanecia imutável.
— Preciso te tirar daqui.
Vasculhando ao redor, visualizou a saída.
— Eu vou te tirar...
O que podia fazer? Carregar o pobre macho?
Assail se aprofundou ainda mais no calabouço.
— Fique tranquilo, não vou machucá-lo.
Ele se aproximou com cautela e ficou muito ciente de que seu cérebro estava ligado como um painel, com todos os tipos de pensamentos rodopiando e o distraindo.
— Meu caro macho, não precisa temer. – Falou ainda mais forte. — Estou aqui para resgatá-lo.
A cabeça do escravo se ergueu um pouco. E então um pouco mais.
E finalmente o macho olhou para ele com olhos aterrorizados, avermelhados, tão afundados no crânio que Assail se perguntou o quanto de vida ainda continham.
— Você consegue andar? – Assail perguntou. Quando não houve resposta, apontou para aquelas pernas. — Pode ficar em pé? Consegue andar?
— Quem... – A palavra saiu tão débil, que mal passava de uma sílaba.
— Eu me chamo Assail. – Ele tocou o próprio peito. — Eu sou... Ninguém importante. Mas vou te salvar.
Os olhos do escravo começaram a lacrimejar.
— Por que...
Assail se inclinou para tocar o braço dele, mas o reflexo automático do escravo foi tão violento, que o fez retrair a mão imediatamente.
— Por que você precisa ser salvo. – Ao falar em tom de voz completamente cru, ele sentiu de alguma forma como se estivesse falando consigo mesmo. — E eu... Preciso
cometer um ato de bondade para me colocar à prova.
Olhando por cima do ombro, calculou a distância até a porta da frente da mansão. O tempo que tinha se passado desde que saiu do escritório. A quantidade de munição
que tinha trazido. As ligações que precisaria fazer para chamar os primos. E Vishous.
Qualquer um.
Merda. As correntes.
Não, ele podia lidar com elas.
Tateando o coldre sob seu braço, pegou a nove milímetros que trouxe consigo e tirou o silenciador do bolso do paletó. Com gestos rápidos, encaixou o equipamento
no cano da arma.
— Preciso que se afaste. – Indicou a outra direção. — Preciso que se afaste da parede o máximo que conseguir.
O escravo ainda tremia, mas tentou obedecer, arrastando-se de quatro do lugar onde habitualmente se enrodilhava – de fato, dava para ver a sombra impressa na pedra,
tanto do chão quanto da parede, conforme o macho se afastava da área.
De repente, suor porejou por todo o corpo de Assail, acumulando sobre seu lábio superior e sobrancelhas... E seu coração subitamente acelerou.
— Pare. – Quando o macho congelou, Assail negou com a cabeça. — Não, estou falando comigo mesmo. Não foi com você.
As correntes estavam chumbadas na parede através de um anel grosso como o polegar de um macho e largo como um pescoço – chumbado na pedra.
Qualquer tiro iria ricochetear pelo local. Mas que escolha ele tinha?
Deixar o escravo aqui certamente não era uma opção.
— Você vai precisar... Aqui, posso tocá-lo?
O macho anuiu em silêncio e preparou-se para o contato. Com gestos rápidos, Assail o levantou...
Deuses, ele não pesava nada.
As correntes se arrastaram ruidosamente no chão... Da mesma forma que os dentes do macho batiam conforme ele gemia, pois obviamente sentia dor.
Quando estavam o mais longe possível, Assail deixou o escravo no chão e colocou-se na frente dele, abrigando o macho com o próprio corpo. Então mirou e...
A bala não emitiu som algum ao ser disparada, mas quicou ao redor da cela atingindo as superfícies das rochas até se enterrar em um lugar longe do alvo pretendido.
Assail levou um momento para verificar se tinha sido ferido. Então checou o escravo.
— Você está bem? – Quando ele concordou com a cabeça, foi até a parede inspecionar o anel. — Passou perto, mas errei, maldição.
Sua mira até que foi boa, mas o metal era muito grosso. E não ousaria dar outro tiro.
Agarrando a coisa, ele moveu a parte danificada do metal para baixo e colocou todo o seu peso e força ao puxar. Grunhindo e se esforçando, ficou curiosamente desesperado
ao tentar quebrar o metal.
Depois de muito esforço houve um ruído agudo como se o metal estivesse xingando, e então tropeçou para trás com o anel nas mãos, sentindo o chão fugir sob seus pés.
A queda doeu pra caralho, mas ele não ligou. Estava em pé e de volta ao macho uma fração de segundo depois.
Tirando rapidamente o paletó, desejou ter trazido um casaco adequado consigo, mas como tinha apenas se desmaterializado ali, assumiu que não precisaria de um traje
completo de inverno.
— Deixe eu colocar isto sobre você.
Aquilo se provou mais fácil na teoria do que na prática, já que as correntes não permitiam vestir os pulsos ou lapelas. No final voltou a vestir a coisa só para
não deixá-la para trás.
Enrolando as correntes ao redor de seu próprio pescoço – duas vezes, por conta da extensão – ele ergueu o macho e conseguiu segurá-lo com um braço só. Então seguiu
para a direção da porta.
Foi o escravo quem abriu a porta para que ambos saíssem.
O que permitiu que Assail mantivesse a arma empunhada.
Deixou a luz acesa. Logo os moradores da casa descobririam que o escravo tinha desaparecido, e não queria perder tempo em fechar as portas de maneira adequada.
A pior conclusão possível seria descobrir que a reunião com Saxton já tinha acabado, e Throe e a senhora da casa estariam procurando por ele.
Passou pela masmorra sexual. Subiu as escadas.
O escravo estendeu a mão para a maçaneta da porta de novo.
— Devagar. – Assail sussurrou. — Deixe-me ouvir primeiro.
Som nenhum. Ao seu sinal, o macho abriu totalmente a porta e Assail a atravessou com passos largos, o coração martelando, as pernas curiosamente entorpecidas, mesmo
que funcionassem de forma adequada.
Rapidamente, bem rápido, com asas nos pés e ouvidos alertas, correu pelos vários cômodos e ante-salas até chegar ao saguão. Parou antes de entrar no espaço e rezou
para a Virgem Escriba, aos deuses, ao destino, a porra toda, para que a grande área aberta estivesse não apenas vazia, mas continuasse assim até ele atravessar a
porta da frente.
Depois daquilo? Teria de correr para longe o suficiente e encontrar um lugar seguro para chamar os primos. E então a Irmandade.
Escravatura de sangue tinha sido considerada fora da lei pelo Rei... Então devia haver uma maneira legal de proteger esta criatura viva e consciente, que jamais
deveria ter sido transformada em propriedade de outro. Mas Assail não deixaria o macho para trás só pra poder aparecer mais tarde com um bando de Irmãos e descobrir
que Naasha tinha dado um fim nele por ter desconfiado de alguma coisa.
Que apenas haja um meio de sair daqui, ele pensou. Por favor...
— Pela porta da frente. – Sussurrou — Vamos sair pela porta da frente. Está pronto? Tente se segurar em mim.
O macho anuiu várias vezes e intensificou seu aperto um pouquinho mais.
— Lá vamos nós.
Assail irrompeu pelo espaço, movendo-se rapidamente, as correntes batendo, sua carga escorregando, todo aquele cabelo sujo e úmido o estapeando...
Ele teve de parar de chofre a menos de meio caminho de seu objetivo.
Capítulo CINQUENTA E QUATRO
— Por favor. – Disse Bitty. — Por favor, contem como se conheceram.
Mary olhou para Rhage e se perguntou quem iria contar. Quando ele balançou a cabeça para ela com um sorriso, ela deu de ombros e acariciou a mão dele.
— Está bem, então... – Começou ela. — Era...
— Uma noite escura e tempestuosa... – Rhage cortou.
— Bem, com certeza foi em uma noite escura. – Ela começou a lembrar dos acontecimentos que tanto pareciam há uma eternidade quanto ao mesmo tempo há meros dois segundos.
— Eu trabalhava em um serviço de ajuda por telefone. Sabe, para pessoas que precisam de conselhos. – Está bem, na verdade era a Linha de Prevenção ao Suicídio, mas
pareceu apropriado amenizar isto. — E uma pessoa ficava ligando repetidas vezes. Eventualmente o encontrei e minha vizinha da casa ao lado reconheceu a verdadeira
natureza dele... Um pretrans que vivia no mundo humano. Para encurtar a história, acabei indo para o centro de treinamento da Irmandade como intérprete...
— John Matthew não consegue falar. – Disse Rhage. — E como ela conhece a linguagem de sinais, ela o ajudava a se comunicar.
— Então lá estava eu, me perguntando onde é que eu tinha me metido...
— Quando eu apareci no corredor. E foi amor à primeira vista para a gente.
— Okay, ele estava temporariamente cego...
Bitty falou, alarmada.
— Por quê?
Mary olhou para Rhage e ambos congelaram.
— Ah...
— É uma longa história. – Disse ele.
A garçonete voltou com as duas cocas de Rhage.
— Me avise se precisar de refil, está bem?
— Obrigado. – Rhage deu um gole em um dos copos grandes, quando a mulher seguiu para outra mesa. — Enfim, eu não conseguia enxergar, mas no momento em que ouvi a
voz dela, me apaixonei.
— O que você achou dele? – Bitty perguntou.
Mary baixou os olhos enquanto um sorriso tão grande quanto a mesa se abria em seu rosto.
— Bem, de início fiquei confusa. Há muito nele para se apreender, como deve saber. E eu não sabia onde estava ou quem ele era... E não conseguia imaginar por que
ele estava me dando tanta atenção.
— É porque você é linda. Só por isso...
— Enfiiiiiiiiiim. – Mary descartou o elogio com um abano da mão, daí parou pra pensar em que tipo de impressão aquilo teria sobre a jovem fêmea. — Eu... Ah, obrigada.
Ela estava corando? Por que, sim, sim, ela estava.
Rhage se levantou e inclinou por cima da mesa, dando-lhe um beijo.
— Assim é melhor.
Mary tentou esconder seu rubor por trás do copo de água.
— Então nós saímos para um encontro... Na verdade nosso primeiro encontro foi aqui, neste restaurante.
— Sério? – Disse Bitty.
— Naquela mesa...
— Naquela mesa...
Quando ambos apontaram para o outro lado, Mary terminou.
— Bem ali. E sim, ele também pediu esse tanto de comida.
Rhage recostou-se quando a garçonete chegou com os aperitivos.
— Oh, obrigado... E ouça, não precisamos esperar se os pratos já estiverem prontos. Pode trazer tudo de uma vez. Mmmm, quer provar, Bits?
— O cheiro é bom. – A garotinha se aproximou. — Sim, por favor.
— Pegue seu garfo e aproveite. A batata assada é maravilhosa. Bacon é vida!
Quando os dois passaram a alternar os ataques aos pratos, Mary lembrou-se daqueles primeiros dias: Rhage pedindo a ela para falar “inconstitucionalissimamente” no
corredor do centro de treinamento. O encontro dos dois aqui, quando ele a olhava por cima da mesa como se ela fosse a coisa mais cativante do mundo. E depois, ele
aparecendo em sua casa às quatro da madrugada...
— Um tostão por seus pensamentos. – Rhage disse.
— Eu... Ah... – Quando Bitty olhou para ela, Mary se perguntou o que mais podia dizer. — Bem, para ser honesta, estava me lembrando do momento em que você descobriu...
Mary interrompeu-se subitamente. Não queria falar sobre a sua doença, sua estranha condição para Bitty. Ainda tinha coisa demais acontecendo.
Rhage ficou sombrio.
— Sei exatamente do que você estava lembrando.
Mary cruzou os braços e apoiou-os na mesa. Inclinando-se, disse a Bitty:
— Quando ele veio à minha casa pela primeira vez, eu não estava esperando. Tinha acordado às quatro da manhã e estava abrindo uma lata de café... Daí cortei o dedo
bem profundamente. É claro, não descobri até bem depois... Bem, eu não sabia que ele era um vampiro naquele momento em particular.
Bitty balançou a cabeça.
— Eu vivo esquecendo que você é humana. O que você... Você ficou surpresa?
Mary riu alegremente.
— Pode-se dizer que sim. Demorou um tempo até eu descobrir. Ele acabou... Passando um dia comigo. Não podia ir embora por causa da luz do sol, mas não queria me
dizer o motivo... E então também havia...
Ela se lembrou dele desaparecendo em seu banheiro. E reaparecendo oito horas depois sem saber que tinha passado tanto tempo.
— Bom, tivemos de superar um monte de coisa. Eu o pressionei muito.
— Então o que fez vocês ficarem juntos?
Mary olhou para Rhage.
— Oh, é uma história muito longa. O que importa é que tudo deu certo no final.
— E olhe, o jantar chegou! – O hellren dela só faltou se levantou e apressar a garçonete. — Perfeito!
Rhage ajudou-a a dispor os pratos pra frente e pra trás, trocando pratos vazios por outros cheios. E então arrumou a constelação de calorias que tinha pedido em
um semicírculo ao redor dele e de Bitty.
— Pode comer tudo o que quiser. – Ele disse à garota. — Não seja tímida.
Ao avançar sobre a comida, Rhage pareceu inteiramente inconsciente do modo como Bitty o encarava, como se ela estivesse realinhando algo em sua mente.
— Eu sei. – Mary se viu dizendo. Quando a garota olhou para ela, murmurou. — Também não conseguia acreditar que ele era real. Mas juro pela alma da minha mãe que
ele é simplesmente o melhor macho que eu já conheci... E quando diz que nunca vai te machucar ou permitir que algo te machuque? Ele está realmente falando sério.
Bitty olhou de volta para Rhage. E então disse.
— Posso provar seu filé?
Oh, ela sabia exatamente o que dizer, Mary pensou, com um sorriso.
E claro, o peito de Rhage estufou... Porque ele era exatamente o tipo de macho que gostava de prover. Na verdade, para ele isto era ainda melhor do que comer.
— Deixa eu cortar a melhor parte pra você. – Ele disse ao pegar o garfo e faca, e começar a extrair um corte cirúrgico do enorme pedaço de carne. — O melhor do melhor.
Quando Assail se imobilizou com o escravo de sangue nos braços, o macho que estava no meio do saguão de Naasha se virou... E Saxton quase morreu de susto ao ver
o que tinha acabado de surgir.
Felizmente o advogado do Rei se recuperou rapidamente. E teve até mesmo a presença de espírito de manter a voz baixa.
— O que você está...
Assail engoliu em seco.
— Ajude-me, por favor.
Saxton tateou o paletó... E então tirou do bolso o que pareceu a Assail tão valioso quanto o Cálice Sagrado.
— Meu carro está lá fora... Eu ia fazer compras esta noite, e graças à Virgem Escriba por isto. Tome... Mas seja rápido. Eles me pediram para sair enquanto discutiam.
Não sei quanto tempo vai durar. Vá! Vá agora!
O advogado foi para a porta principal, abriu-a e Assail sentiu o gelado ar noturno que invadiu a mansão.
— Vou tentar distraí-los. – Disse Saxton — Pelo maior tempo possível.
Assail parou por uma fração de segundo ao pegar a chave do carro e atravessar a porta.
— Estou em débito com você. Para sempre.
Não esperou uma resposta. Saiu correndo e quase escorregou nos degraus baixos. E querido Deus, aquelas correntes, aquelas assustadoras correntes, além do barulho
que faziam, ameaçavam cortar seu suprimento de ar, enquanto percorria a distância até o BMW 750i.
Ele só faltou jogar o macho no banco de trás.
Não havia tempo a perder. Livre da carga, voou para a porta do motorista, entrou e ligou o motor. A tentação era meter o pé no acelerador, mas não queria arriscar
chamar atenção. Então partiu com cuidado, mas aumentou gradualmente a velocidade, e logo a mansão sumia no espelho retrovisor, conforme avançava descendo uma longa
e acentuada ladeira.
Agora, era ele que tremia ao pegar seu celular.
Ele usou a Siri, assistente de chamada de voz, para fazer a chamada. E quando foi atendido, cortou os cumprimentos.
— Vishous, preciso de ajuda médica. Agora. Onde está? Está bem. Certo. Chego lá em quinze minutos. Por favor. Apresse-se.
Finalizando a conexão, ajeitou o retrovisor para ver o banco de trás.
— Aguenta firme. Vamos arrumar ajuda. Diga, qual o seu nome?
— Eu... Não sei. – Veio a resposta fraca.
Ao parar na base da estrada, Assail virou à direita, mas não respirou fundo de alívio por estarem livres. Ainda ia levar um tempo até conseguir fazer aquilo.
— Fique comigo. Você precisa... Ficar comigo... Você está perto demais da segurança para desistir agora. Fique comigo!
Consciente de estar gritando, forçou-se a abrandar o tom de voz.
— Não morra. – Murmurou ao se ver perdido.
Onde estava indo? Para onde...?
Vishous disse a ele para ir para a parte nordeste da cidade, para...
Ele pegou o celular de novo e acionou a Siri de novo. Quando Vishous atendeu. Assail não reconheceu a própria voz.
— Para onde devo ir? Diga...
Vishous começou a falar.
— Não consigo ouvi-lo... Não consigo... Ver... – Assail esfregou os olhos. Deuses, ele estava chorando? — Me ajude...
— Onde você está?
— Não sei.
— Procure por uma placa. Procure uma placa, Assail.
Os olhos embaçados de Assail se ergueram para o retrovisor, para o macho nu e trêmulo sobre o banco de couro. Então, olhou pelo pára-brisa.
— Montgomery Place. A placa diz... Montgomery Place.
— Vire à esquerda. Agora.
Assail obedeceu sem discutir, girou o volante, derrapou no asfalto, fechou um carro na via oposta. Quando uma buzina soou, Vishous continuou falando.
— Três quilômetros à frente há um Shopping Center de alto padrão. Tem uma imobiliária, salão de beleza, restaurantes. Uma joalheria. Vá para os fundos, vou estar
lá.
Assail anuiu, mesmo que o Irmão não conseguisse vê-lo.
E quando não desligou a chamada, Vishous disse calmamente.
— Estou contigo, camarada. Seja o que for, vamos resolver qualquer merda.
— Tudo bem. Tudo bem. – Assail voltou a olhar para o macho. — Fique comigo...
— Não vou a lugar algum. – Vishous murmurou. — Só vou ficar em silêncio pelo tempo em que estiver desmaterializado. Está bem, estou de volta.
Assail não disse mais nada ao se inclinar para o volante e esperar pelo... Quantos quilômetros ele tinha mesmo de percorrer? Três?... Shopping Center aparecer. E
então lá estava ele, com as placas luminosas como quase um farol de esperança deserto, um símbolo de salvação.
— Estou aqui. Estou aqui.
Ele acelerou, passando pelo escritório da imobiliária e contornando para os fundos do prédio. Nos fundos só havia instalações de serviço e lixeiras, estacionamento
de funcionários e plataformas de cargas para as lojas. O BMW pegou velocidade, disparando como um míssil.
À luz dos faróis, no canto oposto, uma figura sombria e sozinha estava de pé com os pés firmemente plantados no chão.
Assail pisou no freio, então se arrependeu ao ouvir uma batida e um gemido de dor vindos do banco de trás. Quando o carro parou, saiu sem desligar o motor e teve
de se enfiar de novo para desengatar o câmbio.
— Por que está com o carro de Saxton...?
Ele cortou o Irmão.
— Ajude-me...
— Você está tendo uma overdose...?
Assail abriu a porta de trás.
— Ajude-o! Por favor!
Ele teve de esfregar os olhos de novo... De fato, seus olhos vazavam por todos os cantos.
Vishous sacou uma arma e se aproximou do carro aberto, espiando dentro.
— Mas. Que. Caralho.
— Ele... Ele... Ele... – Merda, não conseguia falar. — Eu o encontrei. Trancado. No porão. Não pude deixá-lo para trás.
O macho fugiu de Vishous, recuando seu corpo magro para a outra extremidade do banco, aquele cabelo emaranhado espalhou-se sobre os braços magros e as costas ossudas.
— Merda. – Vishous se endireitou e desviou o olhar. — Não posso nem começar a examiná-lo aqui. Temos de levá-lo. Cristo... As correntes... Está bem, entre... Nada
de volante. Eu dirijo. Você me explica no caminho.
Assail cambaleou para contornar até o lado do carona. Mas então parou, pensou melhor e se enfiou no banco de trás, junto do macho. Tirou o paletó e colocou-o sobre
a nudez do escravo.
— Está tudo bem. – O carro começou a se mover, as luzes da rua flamejaram na escuridão do interior enquanto Assail tentava se controlar. — Nós vamos ficar... Bem.
Capítulo CINQUENTA E CINCO
Layla voltou à Terra e à consciência em sua forma física, abrindo os olhos para o teto baixo de seu quarto de hospital. Suas mãos foram imediatamente para a barriga,
e quando moveu as pernas e respirou fundo, houve um movimento lá, afiançando movimentos fortes e vitais.
Ela tinha deixado a luz do banheiro acesa e a porta quase fechada, como era de costume quando tentava dormir, e seu olhar gravitou para a luz. Então olhou para o
relógio. Onze e trinta e quatro da noite.
Ela tinha ficado no Santuário por um longo tempo.
Após ir do Templo das Escribas Reclusas para a biblioteca, tinha levado um tempo até encontrar o que buscava. E então, tinha estudado aquele volume em particular
por bastante tempo. Bem como outros.
Apoiando-se para sentar no colchão, esfregou as têmporas.
Ela não devia ter lido a história de Xcor.
Mas também, se a história dele fosse diferente, se a verdadeira identidade do pai dele fosse outra, ela achava que não teria tanta importância. Mas era chocante.
De fato, tinha até cruzado as referências encontradas, indo até os registros sagrados da Irmandade da Adaga Negra, retirando volumes em busca de inconsistências,
alguma contradição nos registros do pai.
Mas não tinha encontrado nada. Na verdade, só havia confirmações.
E agora, não conseguia esquecer o que tinha descoberto.
Com um grunhido se ergueu ainda mais, passou as pernas para o lado e notou que os tornozelos estavam tão inchados, que era como se suas panturrilhas terminassem
direto nos pés.
Ela não devia ter ido à caça de informações.
Mas agora, o que faria? Como iria explicar os motivos de sua busca?
Levantou-se, ajeitou a camisola e jogou o cabelo para trás dos ombros. Praguejando, deu um passo à frente...
Umidade... Pelas suas pernas de novo.
Ótimo. Bem o que precisava no meio de tudo isto.
Bamboleando adiante, estava preocupada com Xcor e irritada com sua bexiga. Mas pelo menos podia tomar um banho e relaxar sabendo que estava tudo bem com os bebês.
E não era para isto que serviam as fraldas para adultos, justamente para este tipo de situação?
Estava virando para fechar a porta do banheiro quando olhou para trás...
Sangue. Sangue no chão... Pegadas de sangue no chão.
Ergueu a camisola, havia sangue na parte interna de suas pernas.
Começou a gritar e alguém entrou correndo... Ehlena invadiu o quarto.
A enfermeira deu uma olhada no que acontecia... E imediatamente ativou o modo profissional.
— Venha comigo. Volte para a cama. Vamos para a cama.
Layla estava vagamente ciente da fêmea levando-a pelo braço e depositando-a de volta no colchão.
— Os bebês... E os bebês...
— Espere, vou chamar a Dra. Jane. – Ehlena apertou o botão de chamada. — Só vou ligar alguns equipamentos, está bem?
Tudo aconteceu tão rápido. Fios foram ligados nela, monitores trazidos, a Dra. Jane entrou correndo. O aparelho de ultrassonografia foi trazido para o quarto. Manny
chegou. Qhuinn e Blay quase derrubaram a porta ao entrarem.
— Os bebês. – Ela gemeu. — E os bebês...?
Era como o vento soprando sobre a terra.
A consciência voltou a Xcor do modo como uma rajada de vento varria uma paisagem, passando por algumas coisas, farfalhando outras, penetrando por entre outras ainda.
Do mesmo modo, ele tomou consciência de muitas dores e de uma grande extensão de entorpecimento... Podia sentir pontadas de agonia e câimbras de formigamento...
Contorções e espasmos... E então, nada mais em grandes faixas de sua carne.
Mas o cheiro se registrava com clareza.
O aroma de sujeira o confundiu.
Por trás dos olhos fechados, orientou-se o máximo que pôde, usando o nariz e os ouvidos. Não estava sozinho. Havia o cheiro de um... Não, dois outros vampiros machos
ali com ele. Além disso, eles falavam em voz baixa... Bem, um deles falava. O outro não dizia nada que Xcor pudesse ouvir.
Não os conhecia. Ou mais acuradamente, não os reconhecia como dois de seus soldados...
A Irmandade. Na verdade... É, já tinha sentido o cheiro deles antes. Quando a Irmandade tinha vindo conversar com a glymera no encontro do Conselho.
Tinha sido capturado?
Detalhes enevoados da noite voltaram a ele. Ele naquele beco perto do carro carbonizado. Depois seguindo um caminhão de comida... Seguindo para onde? Onde tinha
ido?
Seria aquilo um sonho?
Imagens se filtravam através dos olhos de sua mente, mas não duraram suficiente para ele decifrar...
— Ele está franzindo o cenho. – A voz masculina disse. — As mãos dele estão se movendo. Está acordado, bastardo?
Ele não poderia ter respondido nem que sua vida dependesse daquilo... E de fato, sua vida dependia daquilo. Se tinha sido capturado, precisava se lembrar do modo
e do local...
Campus.
Ele não tinha seguido o caminhão de comida. Não, estivera no alto do veículo, sendo levado pela noite enquanto os lessers que perseguia seguiam para o centro da
cidade, passavam pelos subúrbios até um colégio abandonado ou campus de escola preparatória.
Onde ele tinha testemunhado a conclusão de uma grande batalha, uma perda devastadora para a Sociedade Lessening.
Deflagrada pela Irmandade.
Ele tinha visto um humano. Em cima do telhado.
Então, ele mesmo tinha sido golpeado na cabeça.
Quanto tempo tinha passado inconsciente? Seu corpo doía inteiro, não como se tivesse sido surrado, mas mais como se não fosse usado há um tempo.
— Está acordado finalmente? – A voz exigiu.
Finalmente? É, ele devia estar inconsciente há um tempo. De fato, sentia como se estivesse deitado há um período bem prolongado.
E o que eram aqueles sons de bip...
Alarmes. De repente, ouviu alarmes... Um celular tocou. O macho que tinha falado atendeu.
— O que? Quando? Quanto tempo? Oh, Deus... Sim. Agora mesmo. Será que Lassiter pode vir vigiá-lo? Cadê ele? Nós dois iremos, – Então uma pausa. — John... Sim, está
acontecendo agora e eles precisam de nós por causa do sangue. Temos de ir. Não quero deixá-lo também, mas o que vamos fazer? Não, não sei onde Lassiter está.
Houve alguns sons, como se estivessem juntando suprimentos.
— Não, eles querem a nós dois. Ela está em trabalho de parto. Os bebês estão nascendo e ainda é cedo demais.
Layla!
Sem pensar, as pálpebras de Xcor se abriram. Os dois guerreiros estavam de costas, já de saída, graças aos deuses, desta forma não o viram.
— Também estou com medo. – Disse aquele de cabelos vermelhos. — Por ela, por Qhuinn. E ele vai ficar bem. Não vai a lugar nenhum.
O som dos passos deles diminuiu até haver um som de batida, como se um portão ou talvez algumas correntes estivessem sendo puxadas. E então houve um repeteco de
tudo aquilo.
Xcor piscou largamente. Ao tentar se sentar, descobriu que de fato não ia mesmo a lugar algum. Havia faixas de metal em seus punhos e tornozelos, e até mesmo ao
redor da cintura. Mais do que isto, sentia-se fraco demais para fazer qualquer coisa além de erguer a cabeça.
Olhando ao redor, viu que estava em algum tipo de depósito de armazenamento... Havia urnas, urnas sobre prateleiras que iam do chão ao teto. Em uma caverna? E ainda
tinha os equipamento de monitoramento, que mantinham leitura de suas funções corporais de natureza complexa e eletrônica.
— Layla... – Ele disse, em voz entrecortada. — Layla...
Ruindo de costas contra a cama onde estava amarrado, seu desejo de escapar e ir até ela era grande, embora não soubesse onde ela estava ou onde ele mesmo estava.
Mas seu corpo tinha outros planos. Quando a noite eclipsou a luz das horas diurnas, a escuridão se abateu sobre ele de novo.
Possuindo-o.
Seu último pensamento foi que a fêmea que ele tanto amava quanto temia precisava dele, e que queria estar lá para ela...
Capítulo CINQUENTA E SEIS
Na saída do TGI Friday, Rhage parou no stand da recepcionista. Ou melhor, foi forçado a parar por que a humana que tinha arrumado a mesa para eles se colocou em
seu caminho e não quis se mover.
— Gostaram do jantar? – Disse ela, ao deslizar algo na mão dele. — Este é o número de nosso serviço de atendimento ao cliente. Ligue e dê sua opinião sobre a comida.
A piscadela que ela lhe deu revelou tudo o que infernos ele já sabia e ainda mais sobre o que ligar para aquele número acarretaria... E certo como a merda não seria
uma pesquisa de opinião.
Nenhuma que não envolvesse a humana ajoelhada à sua frente de qualquer forma.
Ele devolveu o pedaço de papel à mão dela.
— Posso responder agora mesmo. Minha esposa e eu tivemos um jantar maravilhoso. Da mesma forma que nossa... Amiga. Obrigado.
Ao se virar, passou um braço ao redor de Mary e puxou-a para perto. Então fez o mesmo com Bitty, antes mesmo de pensar a respeito.
Eles saíram juntos, espremendo-se para passar ao mesmo tempo pelas portas duplas.
Do lado de fora, a noite tinha esfriado ainda mais, mas a barriga dele estava mais do que cheia de comida e estava realmente feliz... Era incrível como aquele tipo
de humor criava seu próprio calor, independente da temperatura externa.
Inferno, poderia estar nevando e ainda teria olhado para o céu negro, suspirando um Ahhhhhhhhh.
Quando estavam a ponto de sair do meio-fio em direção ao carro, uma minivan parou e uma mãe e filha correram para entrar. Cara, aquilo é que era herança genética.
As duas tinham cabelos castanhos idênticos, o da adolescente preso em um rabo de cavalo, o da mãe cortado à altura do queixo. Elas tinham mais ou menos a mesma altura
e ambas usavam jeans e blusas de moletom. Os rostos tinham a mesma estrutura óssea, os malares pronunciados, as testas altas, e o tipo de nariz reto que imaginava
que alguns humanos encomendavam em clínicas de cirurgia plástica.
Elas não eram nem feias, nem bonitas. Nem pobres, nem ricas. Mas estavam rindo de forma exatamente igual. E aquilo tornava ambas espetaculares.
A mãe abriu a porta para a filha e incitou-a a entrar. Então se inclinou e gracejou para a garota.
— Rá, eu ganhei mesmo a aposta! Eu realmente ganhei... E você vai lavar os pratos a semana inteira. Este foi o trato.
— Mãããããããããe!
A mãe fechou a porta cortando o protesto e pulou para o banco da frente, ao lado do que tinha de ser o marido ou companheiro.
— Eu disse a ela, não aposte comigo. Não em se tratando de citações de O Poderoso Chefão.
O cara virou para a filha.
— De jeito nenhum, eu não vou me meter nisso, nem de longe. Você sabe que ela decorou o filme, e sim, a frase correta é “Um siciliano não pode recusar um pedido
no dia do casamento de sua filha”.
A mãe fechou a porta e a minivan azul bebê se afastou.
Por um momento, Rhage imaginou como seria aquela volta para casa... E se pegou com uma imensa vontade de fazer o mesmo. Isto é, de levar Bitty para casa.
E também discutir sobre O Poderoso Chefão, caso fosse necessário. Ou sobre qual era o gosto de massinha de modelar. Ou ainda se ia nevar no início ou no fim da estação.
— Tudo bem? – Ele perguntou quando Bitty hesitou. — Bitty?
— Desculpe. – A garota disse suavemente. — O que?
— Vamos, vamos para o carro.
Foi mesmo bom andar com suas fêmeas de volta para o GTO e melhor ainda guiá-las pelas ruas, obedecendo aos semáforos. Mantendo sua faixa. Sem aceitar o desafio quando
dois babacas em um Charger pararam ao seu lado, no farol fechado e bombearam o motor como se a coisa fosse uma extensão de suas bolas e paus.
Ele só dirigiu.
Quando o celular tocou, deixou cair no correio de voz. Logo estariam no Lugar Seguro e então poderia...
E então tocou de novo.
Pegando a coisa, franziu o cenho.
— Preciso atender. – Aceitando a chamada, levou o celular ao ouvido. — Manny?
A voz do cirurgião era urgente.
— Preciso de você aqui nesse instante. Layla está tendo uma hemorragia. Os bebês estão nascendo... Precisamos de veias para ela tomar. Pode desmaterializar?
— Merda. – Sibilou ao ligar o pisca alerta e estacionar. — Sim. Posso ir.
Mary e Bitty olharam para ele alarmadas quando desligou e olhou ao redor.
— Ouçam, sinto muito. Há uma... – Ele se interrompeu ao olhar para a garota. — Tenho que ir para casa.
— O que houve? – Perguntou Mary.
— Layla. – Ele não queria falar sobre aquilo. Não depois de tudo o que Bitty tinha passado. — Precisam de ajuda. Pode dirigir de volta? Tenho que me desmaterializar
agora.
— Claro. E eu vou direto para casa...
— Posso ir com vocês? – Bitty pediu.
Houve um momento de hummmmm. E então Mary virou-se para o banco traseiro.
— É melhor eu te levar de volta para o Lugar Seguro. Pode ser talvez um outro dia?
— Você vai ficar bem?
Levou um momento para Rhage perceber que a garota estava falando com ele. E ao fitar aqueles olhos grandes e ansiosos, um sobressalto o atravessou.
— Sim, vou ficar bem. Só preciso ajudar uma amiga.
— Oh, tudo bem então. Quando eu vejo você de novo?
— Quando você quiser. Sempre estarei por perto para você. – Ele esticou um braço para trás e acariciou o rosto dela com a mão. — E vamos ter de assistir ao O Poderoso
Chefão. Parte I e II. A III não.
— O que é isto? – Ela perguntou quando ele abriu a porta e saiu.
— Somente o melhor filme do mundo. Cuidem-se!
Mary já estava fora dando a volta na frente do carro e eles se encontraram em frente aos faróis, abraçando-se por um segundo.
— Eu te amo. – Disse ele ao dar a ela um beijo rápido.
— Eu também. Diga a eles que já estou voltando?
Ao encarar o olhar de Mary, colocou-se no lugar de Qhuinn... E multiplicou por um bilhão. Então se forçou a voltar à realidade e se concentrar.
— Direi. – Tomou o rosto dela entre as mãos e beijou-a de novo. — Dirija com cuidado.
— Sempre.
Com um meneio de cabeça, ele fechou os olhos, respirou fundo... E então deu o fora dali, viajando em uma porção de moléculas, sobrevoando vizinhanças humanas...
E então através da área rural... E indo mais adiante, aos sopés que se tornavam montanhas.
Ele voltou a tomar forma na entrada da frente da mansão, abrindo caminho para o vestíbulo e exibindo a cara para a câmera de segurança.
Enquanto esperava que alguém abrisse, seu coração estava acelerado por vários motivos. Mas principalmente por causa do modo como Bitty o tinha encarado.
Engraçado como era possível ser transformado por alguém.
A porta abriu e Fritz estava do outro lado parecendo preocupado.
— Senhor, que bom vê-lo. Todos estão descendo para o centro de treinamento. Estamos providenciando refeições, caso alguém queira comer.
Rhage sentiu um estranho impulso de abraçar o doggen... E podia ter feito isto, não fosse pela possibilidade de Fritz desmaiar pela quebra de protocolo.
— Obrigado. Você tem tudo sob controle. Isto significa muito.
Rhage se apressou e passou pisando forte pelo mosaico de macieira... E estava quase diante da porta oculta debaixo da escada principal quando parou e olhou para
trás.
— Fritz?
O mordomo parou na arcada da sala de jantar.
— Sim, senhor?
— Eu sei que é uma péssima hora. Mas preciso que compre uma coisa para mim. Agora.
O mordomo idoso fez uma reverência tão profunda que sua papada quase encostou no chão polido.
— Seria um alívio poder fazer algo por alguém. Às vezes me sinto tão inútil.
Por trás do volante do GTO, Mary sentia como se o tempo estivesse correndo para trás... Que de alguma forma ela e Bitty tinha caído em uma dobra, de onde voltaram
para noites atrás, indo na direção da clínica do outro lado do rio.
E não só por causa de Layla e pelo que estava acontecendo na casa. No banco de trás, a garota tinha novamente se fechado dentro de si mesma, os olhos fixos na janela
ao seu lado, o rosto uma máscara de compostura, o que era ainda mais alarmante por que Mary já tinha descoberto o quanto ela podia se tornar interessada e alegre.
— Bitty?
— Mmmm? – Veio a resposta.
— Converse comigo. Sei que tem algo acontecendo... E sim, eu podia fingir que não reparei, mas acho que já passamos desta fase. Pelo menos é o que espero.
Passou-se um longo tempo até a garota responder.
— Quando saímos do restaurante, – Bitty disse. — Você viu aquela mahmen humana e a filha?
— Sim. – Mary respirou fundo. — Eu vi.
Quando o silêncio voltou, Mary olhou pelo espelho retrovisor.
— Elas te fizeram pensar em sua mahmen?
Tudo o que a garota fez foi anuir.
Mary esperou. E esperou.
— Sente falta dela?
E foi só o que bastou. De repente, Bitty começou a chorar com grandes soluços balançando seu corpinho. E Mary estacionou. Precisou.
Graças a Deus estavam em uma parte boa da cidade, em uma seção onde havia várias padarias, papelarias e pet shops de proprietários locais. O que significava muitos
locais para estacionar bem na rua, que se encontrava vazia.
Após desengatar o GTO e puxar o freio de mão, Mary girou até os joelhos ficarem pressionados contra o peito.
Estendeu uma mão e tentou tocar Bitty, mas a garota recuou.
— Oh, querida... Eu sei que sente falta dela...
A garota girou de volta com lágrimas escorrendo pelo rosto.
— Mas não sinto! Não sinto nenhuma falta dela! Como eu posso não sentir falta dela?
Ao ver Bitty cobrir os olhos com as mãos e soluçar, Mary deixou-a em paz, mesmo que aquilo a matasse por dentro. E após uma espera agonizante, a garota recomeçou
a falar.
— Eu não tive aquilo! O que a humana e sua mahmen tinham! Eu não tive... Apostas e risos... Nem saídas para jantar ou um pai amigável vindo me buscar de carro! –
Quando ela fungou e secou o rosto com os punhos, Mary remexeu em sua bolsa e tirou uma caixa de lenços de papel. Bitty pegou a caixa e pareceu se esquecer deles
imediatamente. — Minha mãe tinha medo... Estava ferida e se escondendo! E então ela estava grávida e aí ficou doente e... Ela morreu! E eu não sinto falta dela!
Mary desligou o motor, abriu a porta e foi para o banco de trás. Tomou a precaução de trancar as portas no carro escuro ao se sentar ao lado da garota, e a luz externa
ajudou a ver a angústia e o horror no rosto de Bitty.
— Como posso não sentir falta dela? – A garota tremia. — Eu a amava... E devia sentir falta dela...
Mary estendeu a mão, e ficou aliviada ao conseguir puxar Bitty e abraçá-la bem forte. Acariciando os cabelos dela, murmurou palavras suaves enquanto Bitty chorava.
Era impossível não sentir lágrimas em seus próprios olhos.
E foi difícil não sussurrar banalidades como “Tudo vai ficar bem” ou “Tudo bem” por que ela queria dizer algo, qualquer coisa para acalmar a garota. Mas a verdade
era, as coisas a que Bitty fora exposta ao crescer não estavam certas, e garotas e pessoas que viveram neste tipo de ambiente não estavam bem por um longo, longo
tempo, se é que jamais estiveram.
— Estou com você. – Foi tudo o que conseguiu dizer. Várias vezes.
Pareceu levar anos até Bitty dar um suspiro entrecortado e se recostar. E quando ela remexeu no pacote de lenços, Mary tirou o dela e abriu o lacre, retirando um.
E outro.
Depois de Bitty assoar o nariz e cair contra o banco, Mary soltou o cinto de segurança da garota para lhe dar mais espaço.
— Eu não conhecia sua mãe tanto assim, – Disse Mary. — Mas tenho certeza absoluta que, se ela tivesse tido chance de viver todos estes momentos normais e carinhosos
com você, ela não teria hesitado. A violência invade tudo ao entrar em casa. Não dá pra fugir dela a menos que saia da casa, então ela vai manchando tudo. Não acha
que talvez o que não sente falta é do sofrimento que vocês duas enfrentaram? Que não sente falta de ter medo e ser machucada?
Bitty fungou.
— Sou uma filha má? Eu sou... Má?
— Não. Deus, não. De jeito nenhum.
— E eu a amava. Muito.
— É claro que amava. E aposto que se pensar bem, vai perceber que ainda ama.
— Tive tanto medo o tempo todo em que ela esteve doente. – Bitty remexeu nos lenços. — Eu não sabia o que ia acontecer com ela, e estava realmente preocupada comigo
mesma o tempo inteiro. Isto é ruim?
— Não. Isto é normal. Chama-se sobrevivência. – Mary enfiou uma mecha do cabelo atrás da orelha de Bitty. — Quando se é jovem e não se consegue cuidar de si mesmo,
é normal se preocupar com este tipo de coisa. Droga, quando se fica mais velho e se torna mais capaz de cuidar de si mesma, isto também acontece.
Bitty aceitou outro lenço, colocou-o sobre o joelho e o alisou.
— Quando minha mãe morreu, – Disse Mary. — Eu fiquei brava com ela.
A garota ergueu o olhar, surpresa.
— Sério?
— É. Estava amargamente brava. Digo, ela tinha sofrido e eu tinha ficado ao lado dela por tantos anos enquanto ela lentamente definhava. Ela não tinha escolhido
nada daquilo. Não pediu pra ficar doente. Mas eu me ressentia do fato de meus amigos não terem de ficar cuidando dos pais. Que meus colegas fossem livres pra sair,
beber, festejar e se divertir... Serem jovens e irresponsáveis, sem responsabilidade alguma. Enquanto que eu tinha de me preocupar em arrumar a casa, comprar mantimentos,
cozinhar... E quando a doença progrediu, limpá-la, banhá-la, fazer os curativos quando as enfermeiras não vinham por causa do mau tempo. E daí ela morreu. – Mary
respirou fundo e balançou a cabeça. — Só o que consegui pensar, depois de levarem o corpo dela, foi... Ótimo, agora vou ter de planejar o funeral, lidar com as dívidas
do banco, o testamento, doar as roupas dela. Foi aí que realmente enlouqueci. Eu surtei e chorei, por que sentia que era a pior filha na história do mundo.
— Mas você não era?
— Não. Eu era humana. Eu sou humana. E o luto é uma coisa complexa. Dizem que há estágios para ele. Já ouviu falar? – Quando Bitty negou com a cabeça, Mary continuou.
— Negação, negociação, raiva, depressão e aceitação. Estas são mais ou menos as fases que todas as pessoas atravessam. Mas também há muitas outras coisas misturadas
a tudo isto. Assuntos não resolvidos. Exaustão. Às vezes há alívio, e com ele vem muita culpa. O melhor conselho que posso dar? Como alguém que não só já passou
por isto, mas também já ajudou a muitas pessoas que também passaram? Deixe seus pensamentos e sentimentos aparecerem quando quiserem... E não os julgue. Posso garantir
que você não é a única pessoa que tem pensamentos dos quais não gosta ou emoções que parecem erradas. Além disso, se conversar sobre o que está acontecendo com você,
é absolutamente possível atravessar a dor, medo e confusão para o que tem do outro lado.
— E o que é que tem do outro lado?
— Uma certa quantidade de paz. – Mary deu de ombros. — De novo, eu queria poder te dizer que a dor desaparece... Só que não seria verdade. Mas melhora. Ainda penso
em minha mãe, e sim, às vezes dói. Acho que sempre vai doer... E honestamente? Não quero que a dor desapareça completamente. O luto... É um jeito sagrado de honrar
aqueles que amamos. Minha dor é meu coração funcionando, é meu amor por ela, e isto é uma coisa bonita.
Bitty alisou o lenço em seu joelho.
— Eu não amava o meu pai.
— Não posso culpá-la.
— E às vezes eu ficava frustrada por minha mãe não abandoná-lo.
— Como poderia não ficar?
Bitty respirou fundo e exalou, longa e lentamente.
— Isto está certo? Tudo isto... É normal?
Mary se inclinou e tomou ambas as mãos da garota.
— É cem por cento, absolutamente, positivamente certo. Juro.
— Você diria se não fosse?
Os olhos de Mary não vacilaram.
— Juro pela vida do meu marido. E sabe o que mais? Eu entendo completamente o que você sente. Eu entendo, Bitty. Entendo totalmente.

 

CONTINUA

Capítulo QUARENTA E CINCO
Sentada ao lado do túmulo da mãe, Mary prendeu a respiração enquanto esperava que Bitty dissesse algo mais. No silêncio, as palavras da garota pairaram no ar frio
entre elas.
Meu pai costumava me bater.
— Pode ser muito difícil falar sobre coisas assim. – murmurou Mary.
— Seu pai também...
— Não. Na verdade, nem me lembro mais dele. Ele morreu quando eu tinha dois anos em um acidente. Minha mãe era o único parente que eu tinha.
— Minha mahmen também era tudo o que eu tinha. Mas às vezes, não me sentia assim tão próxima a ela. É difícil explicar.
— Havia uma porção de coisas acontecendo na sua casa.
— Eu costumava deixá-lo com raiva de mim de propósito. Só para que ele não... Sabe, fosse atrás dela. – Bitty deu de ombros. — Eu era mais rápida do que ele. Tinha
mais chances.
Mary fechou os olhos e impediu-se de praguejar.
— Eu sinto muito.
— Tudo bem.
— Não, na verdade não está.
— Estou com frio. – Disse Bitty abruptamente.
— Vamos voltar para o carro então. – Mary levantou-se, respeitando a mudança do rumo da conversa. — Eu ligo o aquecimento.
— Você não quer ficar mais?
— Sempre posso voltar. – Ela queria tomar a mão da garota, mas sabia que não devia forçar. — E está mesmo frio.
Bitty anuiu, e juntas caminharam pelos túmulos, o chão suave sob seus pés até chegarem à alameda. Quando chegaram ao Volvo, a garota hesitou.
Mary olhou por cima do ombro ao abrir a porta do motorista.
— Quer que eu vá pelo caminho mais longo até o Lugar Seguro?
— Como sabia?
— Acho que foi só um chute.
Conforme seguiam a alameda principal para fora dos portões de ferro do cemitério, Bitty murmurou:
— Nunca pensei que Caldwell fosse tão grande.
Mary anuiu.
— É uma cidade de bom tamanho. Já viu o centro?
— Só em fotos. Meu pai tinha um caminhão, mas minha mãe não podia dirigi-lo. Quando viemos ao Havers daquela vez, ela o pegou quando ele apagou. Foi por isto que...
Outras coisas aconteceram. Sabe, depois que voltamos.
— Sim. – Mary olhou pelo retrovisor. — Posso imaginar.
— Eu gostaria de ver o centro da cidade.
— Quer ir agora? É bem bonito à noite...
— Podemos?
— Pode apostar.
Na entrada de Pine Grove, Mary pegou à esquerda e se dirigiu através dos subúrbios até a rodovia. Ao passarem por uma vizinhança cheia de casas humanas, a maior
parte das quais estavam escuras, Bitty tinha a cara pressionada contra a janela... E então veio as lojas, e mais além, as galerias de lojas onde não havia nada além
de placas luminosas, estacionamentos vazios e espaços fechados.
— Esta é a Northway. – Mary ligou a seta. — Vai nos levar até lá em segurança.
Subiram a rampa da saída. Para o pouco de tráfego que havia às dez da noite.
E então ali estava no horizonte, como um tipo diferente de nascer do sol, os arranha-céus pontilhados com luzes em padrões aleatórios.
— Oh, veja isto. – Bitty sentou-se na beira do banco. — Os prédios são tão altos. Quando mahmen me levou para o outro lado do rio para a clínica, ela me escondeu
por baixo de um cobertor. Eu não pude ver nada.
— Como vocês... – Mary pigarreou. — Como vocês arrumavam comida? Viviam em uma área bem rural... Não havia muitos lugares por perto que desse para ir a pé, não é?
— Meu pai trazia para casa o que queria. A gente podia ficar com o que sobrava.
— Você já esteve, sabe, em um supermercado?
— Não.
— Quer ir a um? Na volta?
— Oh, eu adoraria!
Mary manteve a velocidade a vinte e cinco quilômetros por hora ao atravessarem a floresta de prédios, as ruas um tanto parecidas como as alamedas do cemitério, curvas
abertas trazendo-as perto de pilhas verticais de incontáveis escritórios antes de virar em outra direção para ainda outra vista de aço e vidros.
— Nem todas as luzes estão apagadas.
— Não. – Riu Mary. — Sempre que passo por aqui de carro à noite, costumo inventar histórias sobre por que alguém esqueceu de apertar o interruptor antes de ir embora.
Será que estavam com pressa para encontrar alguém para um jantar de comemoração? Um primeiro encontro? O nascimento de um bebê? Tento imaginar coisas boas.
— Talvez eles tenham um cachorrinho novo.
— Ou um periquito.
— Não acho que um peixe seria digno de tal pressa.
Eeeeeee esta foi a discussão boba enquanto Mary fazia o retorno através do distrito financeiro de Caldwell para pegar uma estrada de quatro vias que levou-as de
volta em direção de onde vieram. O Hannaford que ela queria ficava a quatro quilômetros de distância do Lugar Seguro, e quando entrou no estacionamento do mercado,
só havia alguns clientes esparsos entrando e saindo da entrada bem iluminada, alguns com sacolas, outros com carrinhos, alguns ainda de mãos vazias.
Estacionou, e então ela e Bitty saltaram.
— Está com fome? – Mary perguntou, ao se dirigirem para as portas automáticas.
— Não sei.
— Bem, me avise se quiser alguma coisa.
— Tem comida lá no Lugar Seguro.
— Sim, tem sim.
Bitty parou e observou as portas abrindo e fechando.
— Isto é tão incrível.
— É... Acho que é mesmo.
Quando entraram juntas, Mary pensou... Deus, quantas vezes tinha entrado e saído por portas assim, com a cabeça fervilhando com listas de coisas para comprar, ou
coisas que a preocupavam, ou planos de que voltaria depois? Ela jamais deu atenção ao modo incrível como as portas funcionavam sozinhas, indo e voltando como pequenos
corredores, nem rápido demais, nem devagar demais, como quando acionadas por pessoas.
Pelos olhos de Bitty, ela viu o que tinha subestimado sob uma luz totalmente nova.
E aquilo foi tão incrível.
Sem pensar, Mary colocou a mão sobre o ombro da garota... Só pareceu uma coisa tão natural a se fazer que não conseguiu evitar.
— Vê aqui? Há um sensor... Quando uma pessoa chega ao campo de reconhecimento deste sensor, é isto que faz elas funcionarem. Tente.
Bitty deu um passo à frente e riu quando a porta de vidro se abriu para ela. Então voltou um passo para trás. Ela se inclinou e abanou as mãos até elas abrirem de
novo.
Mary ficou ali por perto... Com um grande sorriso no rosto, o peito cheio de algo tão morno que não conseguia aguentar analisar muito de perto.
De pé, do lado de fora do quarto de Throe, Assail virou-se para confrontar a fêmea que tinha feito a pergunta a ele... O tempo todo se perguntando que nível de complicação
aquilo resultaria para ele.
Mas era só a empregada que tinha passado transportando as roupas para lavar quando ele estava subindo as escadas dos fundos da mansão... E os olhos da doggen estavam
arregalados e um pouco assustados, dificilmente uma sugestão de problemas, mesmo que tivesse sido flagrado em um lugar onde não deveria estar.
Assail buscou transmitir confiança para ela, oferecendo um sorriso fácil.
— Receio estar um pouco perdido.
— Perdão, senhor. – Ela fez uma reverência acentuada. — Achei que os convidados da senhora só chegariam ao anoitecer.
— Cheguei um pouco cedo. Mas não precisa se preocupar. A escada principal é por ali?
— Sim. – A empregada fez outra reverência. — Sim, senhor.
— Problema resolvido. Você foi de muita ajuda.
— O prazer foi meu, senhor.
Ele parou antes de virar.
— Diga-me, quantos convidados estão esperando?
— Foram preparados seis quartos, senhor.
— Obrigado.
Afastando-se, deixou-a no corredor, fingindo reparar na decoração ao caminhar com as mãos nos bolsos. Ao se aproximar da escada principal, olhou para trás. Ela tinha
sumido... E dada a posição dela na casa, dificilmente diria alguma coisa a alguém. Empregadas eram pouco mais do que lavadoras/secadoras que precisavam ser alimentadas...
Pelo menos nos termos de hierarquia da equipe.
Era mais provável que levasse uma bronca se fosse incomodar o mordomo, mesmo que achasse que a informação fosse importante para a equipe.
Assail prosseguiu ao descer a escada principal em passos lentos. Afinal, o melhor disfarce em uma situação destas era agir abertamente... E já tinha preparado suas
desculpas.
Mas não encontrou nenhum outro serviçal e ninguém mais ao dirigir-se aos fundos da casa e voltar à escada de serviço que tinha usado anteriormente para subir. Usando-a
para descer até o porão, parou na frente da porta reforçada com aquele teclado numérico.
Agora que tinha menos pressa, detectou um aroma no ar. Um que não conseguiu identificar imediatamente, mas não pode se demorar ali para tentar identificar.
Pondo-se novamente em movimento, seguiu até a masmorra da senhora e se esgueirou para dentro. As coisas tinham progredido com admirável eficiência, seus primos fervilhavam
sobre a carne nua da fêmea, o sangue marcava a pele e colchão do mesmo modo, os paus e o sexo dela escorregadios de orgasmos. Mas aquela gravata Hermès ainda estava
no lugar, cobrindo os olhos dela.
Tal havia sido a boa performance dos primos...
A porta se abriu poucos momentos depois que ele entrou e Assail olhou por cima do ombro.
— Bem, bem, bem. – Disse ele com um sorriso. — O hóspede favorito da madame voltou.
Throe não pareceu nem um pouco satisfeito, a tomar pelas sobrancelhas cerradas e a tensão que seu corpo emanava.
— Eu não sabia que você viria.
— O celular é um aparelho incrível. Permite que alguém ligue para alguém e que alguém receba chamadas de alguém, o que resulta em encontros.
A senhora da casa gemeu e arqueou-se quando Ehric trocou de lugar entre suas pernas com o irmão.
Os olhos de Throe se estreitaram.
— Não sei o que está fazendo aqui.
Assail indicou o sexo que ocorria.
— Isto não é suficientemente racional? E se está tão preocupado com minha presença, fale com sua senhora. É o show dela, não é?
— Não por muito tempo. – O macho disse baixinho.
— Ocupado com planos. Que surpresa.
— Observe e aprenda. – Os olhos de Throe brilharam de malícia. — A estrutura desta família está a ponto de ser mudada.
— É mesmo?
— Desfrute dela enquanto ainda pode.
Throe partiu, fechando a porta à sua passagem, sem som algum. Graças à ação anterior de Assail.
Ao voltar a atenção para a cama... Assail teve a distinta impressão de que um funeral aconteceria em breve. A questão era se seria o funeral do senhor ou da senhora
primeiro.
Capítulo QUARENTA E SEIS
Layla se levantou apoiada nos cotovelos quando a Dra. Jane começou a limpar o gel espalhado em sua grande barriga. Este exame, já previamente agendado, acabou vindo
em excelente ocasião – mesmo que tivesse acabado de fazer um, a confirmação dupla era reconfortante.
— É, está tudo bem. – A médica sorriu, ajudando a fechar as duas partes de seu roupão. — Você está indo realmente muito bem...
— Só mais um pouquinho e vou poder relaxar mais, não é?
— Pode apostar. Logo aqueles pulmõezinhos estarão em um ponto onde poderemos lidar melhor com eles. – A Dra. Jane olhou para o outro lado da sala de exames. — Os
pais tem alguma pergunta?
Do canto, Qhuinn meneou a cabeça, mudando de posição em sua cadeira e esfregando os olhos díspares. Ao lado dele, Blay massageava os ombros do macho.
— Estamos preocupados com a alimentação. – Disse Blay. — Será que Layla está recebendo o suficiente de nós?
— Os exames dela estão ótimos. O que estão fazendo está funcionando bem.
— E o parto? – Blay perguntou. — Como vamos saber se... Acho que não dá pra saber se tudo vai correr bem, não é?
A Dra. Jane recostou-se em seu banquinho de rodinhas e cruzou os braços.
— Eu gostaria de dizer que dá para prever tudo o que vai acontecer, mas não dá. Mas posso dizer que Manny e eu estamos preparados, Havers vai estar de prontidão
e Ehlena já acompanhou mais de cem partos. Estamos prontos para ajudar a natureza tomar seu curso... E quando eles estiverem fora, tenho duas incubadoras aqui, além
de equipamento de assistência respiratória, que é o mais moderno que já vi. Acho, e fico feliz por isto, que todo mundo está disposto a oferecer a veia, caso seja
necessário. E o lado bom é que os bebês estão se desenvolvendo perfeitamente neste momento. Estamos preparados e isto é o melhor que podemos fazer. Tenham em mente
que ainda pode levar meses e meses. A marca de duas semanas daqui por diante é só o mínimo necessário para a sobrevivência. Tenho esperança que eles fiquem por aí
mais uns seis meses, pelo menos.
Layla baixou o olhar para a barriga e se perguntou quanto espaço mais tinha a ceder. Já sentia como se os pulmões estivessem esmagados debaixo dos ossos e a bexiga
tivesse escorrido para baixo dos joelhos. Mas custasse o que custasse. Qualquer coisa que os bebês precisassem.
Quando Qhuinn e Blay se levantaram houve um pouco de conversa amena, algo sobre Rhage e Mary terem inundado o banheiro deles, e então abraços de despedida quando
os machos partiram.
A Dra. Jane voltou a sentar-se no banquinho.
— Está bem, e você, o que quer me perguntar?
— Como é? – Layla jogou o cabelo para trás dos ombros. — Sobre?
— Já faz um tempo que você é minha paciente... Consigo ver o que se passa em você... Provavelmente Qhuinn e Blay também conseguiriam se não estivessem tão preocupados
com os bebês.
Layla brincou com a lapela felpuda de seu roupão.
— Não é nada com a gravidez. Estou bem mais tranquila em relação a isto.
— Então...
— Bem, ah, Luchas e eu estávamos imaginando, – Layla sorriu de um modo que esperava soasse desinteressado. — Você sabe, ele e eu não temos muito sobre o que conversar
aqui embaixo. Além do quão grande estou ficando e o quão dura a fisioterapia é para ele.
A Dra. Jane anuiu.
— Você estão mesmo se esforçando muito.
— Então... Como está o prisioneiro? – Layla ergueu as mãos. — Não é da minha conta... Bem, da nossa conta. Só estamos curiosos. E não perguntei na frente de Qhuinn
e Blay por que eles querem fingir que eu existo dentro de uma bolha, onde nada me preocupe e, sabe, não exista nada feio para estragar o meu mundinho. Eu só pensei
que talvez você pudesse contar pra nós como ele está agora que foi transferido. Ele se recuperou dos derrames?
A Dra. Jane meneou a cabeça.
— Eu não devia ter dito nada.
— Ele ainda está vivo?
— Não vou responder a isto. Sinto muito, Layla. Entendo sua curiosidade. Entendo mesmo. Mas não posso responder.
— Pode ao menos dizer se ele está vivo?
A Dra. Jane respirou fundo.
— Não posso. Sinto muito. Agora, me dá licença? Hora de arranjar algo para comer.
Layla baixou os olhos.
— Desculpa. Não foi minha intenção forçar o assunto.
— Tudo bem... E não se preocupe com nada além de cuidar de si mesma e destes bebês, está bem? – A Dra. Jane deu um leve aperto em seu joelho. — Precisa de ajuda
pra descer o corredor?
Layla meneou a cabeça.
— Não, obrigada.
Descendo da maca para o chão, arrumou o roupão, saiu da sala de exames e começou a voltar para o seu quarto. Quando uma insistente culpa se abateu sobre ela, disse
a si mesma que era o que acontecia quando se fazia escolhas ruins...
De repente sua barriga se contraiu da frente para trás, a ponto de ter de parar e apoiar na parede do corredor. Mas um momento depois, a faixa invisível sumiu e
foi como se nada tivesse acontecido... E ela também não sofreu a temida liberação da bexiga.
Tudo estava bem.
— Vocês estão bem aí? – Sussurrou para a barriga, acariciando-a em movimentos circulares.
Quando sentiu um chute como se fosse uma resposta, sentiu-se incrivelmente aliviada.
A Dra. Jane estava certa. Ela precisava se concentrar no que estava fazendo aqui... Comer bem, dormir bem e garantir que tudo o que estava sob seu controle não desse
errado.
Além disto, era melhor para todo mundo se deixasse de lado essa coisa com Xcor.
De tantas formas.
Ao retomar seu passo cambaleante, praguejou. Por que tinha de ter esta conversa consigo mesma tantas e tantas vezes?
Depois de deixar Rhage no beco, Vishous tornou a se materializar nos degraus da frente da mansão, pegou um jogo de chaves de carro do Fritz e guiou o Hummer de Qhuinn
montanha abaixo. Aumentando o som, relaxou com uma canção da velha escola de Goodie Mobi cantando Soul Food antes de colocar algo do Tupac. Ele não acendeu um. Teria
sido falta de respeito.
Vê, que cavalheiro ele era. Um verdadeiro filho da puta a postos.
Ao chegar à estrada na base da propriedade, pisou no acelerador e seguiu em direção às pontes gêmeas no centro da cidade. Vinte minutos depois, seguiu para o rio,
pegou a primeira saída do outro lado e prosseguiu em uma estrada estreita que seguia à margem para o norte.
A casa de vidro de Assail ficava em uma península que se projetava no Hudson e V parou na área de estacionamento dos fundos, perto das portas da garagem. Ao desligar
os faróis e o motor, lembrou-se de uma noite diferente quando também tinha vindo até ali, quando reinou todo o tipo de caos... Especialmente depois de Wrath ter
sido atingido por um tiro na porra da garganta.
Um pesadelo da porra.
A porta dos fundos abriu e Assail saiu da moderna mansão vestido como se fosse jantar em um restaurante francês... Exceto pelo fato de sua gravata estar pendurada
em um dos bolsos laterais.
— Você se arrumou todo pra mim? – Perguntou V, acendendo um cigarro.
— Sempre. Mas é melhor estacionar lá dentro, se não se importar.
Com isso, uma das portas da garagem começou a subir, revelando um interior bem iluminado, onde havia uma van, uma Range Rover preta e uma vaga para o Hummer de Qhuinn.
— Só um minuto. – V disse ao dar outra tragada.
Assail riu.
— Infelizmente também estou me sentindo necessitado. Mas de algo diferente.
O macho virou as costas, como se o segredinho sujo de quem cuidou, fungando uma narina e então a outra, fosse passar cooooooooompletamente despercebido.
V sorriu através da fumaça.
— Está afundado neste vício até o pescoço, não é?
Assail guardou o frasco de volta no bolso interno do paletó.
— Você não pode fumar no veículo?
— Não é meu. E ei, pelo menos para disfarçar seu probleminha não é preciso usar Bom Ar.
Quando o macho esfregou o nariz, uma vez... Duas vezes... E de novo, V franziu o cenho ao captar um cheiro no ar.
— Está com uma hemorragia aí, colega.
Em seguida, Assail tirou aquela gravata de seda perfeitamente elegante, da cor do interior de um melão coberta por algum tipo de padrão, e pressionou-a na nareba.
Era isto ou arruinar aquela camisa elegantérrima que vestia.
Vishous ergueu uma bota, apagou o cigarro na sola e enfiou a bituca amassada no bolso da jaqueta de couro.
— Afaste-se, cuzão. – Ele empurrou o cara contra o SUV, forçou o queixo dele para cima e segurou a gravata no lugar. — Há quanto tempo isto vem acontecendo?
Quando Assail emitiu um tipo de ruído, V revirou os olhos e apertou o nariz do FDP.
— Deixa pra lá, esta é sua noite de sorte. Eu sou médico e vou te examinar assim que parar com essa imitação de chafariz. E você pode calar a boca a menos que seja
para me agradecer.
Os dois ficaram lá fora no frio por um tempo. De vez em quando, Assail murmurava alguma merda, que soava como Pee-Wee Herman19, mas V o ignorava.
— Aqui, segure. – Murmurou V. — E não se mexa.
V colocou os dedos do cara onde sua mão esteve. Então se enfiou no Hummer e retirou o canivete suíço que Qhuinn mantinha no suporte de copos dianteiro. De volta
ao paciente, pegou o celular, ligou a lanterna e tirou a mão de Assail do caminho.
Usando a parte sem corte da maior lâmina como separador, examinou dentro das narinas judiadas.
Apagou a lanterna, limpou a lâmina em sua calça de couro e fechou o canivete.
— Você está com o septo bem perfurado. Anda com dificuldades pra dormir? Algum de seus milhares de parceiros sexuais já falou que você anda roncando?
— Eu durmo sozinho. E não durmo muito.
— Alguma dificuldade para respirar? Ainda tem algum olfato?
— Sinto cheiros. E nem reparei a respiração.
— Bem, um conselho, não que você vá ouvir, é melhor parar com o pó. Ou vai piorar tanto esta merda que a cirurgia não vai ser somente sua única opção, mas possivelmente
não vá resolver nada.
Assail olhou para a floresta distraidamente.
— Não é tão fácil, é? – V meneou a cabeça. — Essa coisa te aprisiona.
Cruzando os braços sobre o peito, Assail embolou a gravata ensanguentada no punho.
— Estou em uma prisão curiosa. Uma que eu mesmo construí. O problema é que, embora eu tenha construído, não estava ciente das barras de ferro que pus ao meu redor.
Elas se tornaram... Intransponíveis, por assim dizer.
— Quanto você está cheirando? De verdade.
Levou um tempo até o cara responder. E quando finalmente o fez, ficou claro que a pausa se devia aos enormes números envolvidos na matemática, adições e multiplicações.
Por falar em subir os “uns” e “cincos”.
Vishous assoviou suavemente.
— Ok, vou ser franco com você. Embora o vampiro médio tenha enorme vantagem sobre os humanos em se tratando de saúde, você vai acabar explodindo seu coração se continuar
cheirando tanto. Ou seu cérebro. No mínimo, vai acabar seriamente paranóico, se é que já não está, e não é de se espantar que não consiga dormir.
Assail esfregou a área sob o nariz e então olhou para o sangue que secava em seus dedos.
— Quando estiver pronto, – Disse V. — Nos chame. É melhor se desintoxicar sob supervisão médica, e podemos fazer isto de forma discreta. E não me faça perder tempo
negando a extensão de seu problema ou tentando amenizar esta merda. Você está com um parasita horrível dentro de você, e se não se livrar dele, ele vai se livrar
de você. Vai acabar te matando.
— Quanto tempo?
— Quanto tempo o que? Você tem antes de sucumbir e acordar morto?
— Dura a desintoxicação?
— Depende de como ela for feita. A desintoxicação física não oferece risco de vida, mas a merda psicológica vai te fazer desejar estar morto.
Assail permaneceu silencioso por um tempo, e já que V se coçava por um cigarro, desistiu e acendeu um.
— Eu sei tudo sobre vícios. – V olhou para a ponta brilhante de seu cigarro. — Graças a Deus vampiros não desenvolvem câncer, certo? Então não estou te julgando.
Você sabe onde me encontrar quando estiver pronto.
— Talvez eu esteja mesmo ficando paranóico.
— Como assim?
— Estive na casa de Naasha antes de voltar pra cá.
— E?
O macho balançou a cabeça para frente e para trás.
— Tive uma sensação de morte iminente naquela casa.
— Aquele hellren dela está muito doente.
— Fato. – Assail desviou o olhar, seus olhos prateados como a lua flamejavam. — Mas não me surpreenderia se ele tivesse uma ajudinha para virar cinzas. Ou pelo menos
foi o que eu senti.
— Heranças são coisas poderosas.
— Sim. – Assail estremeceu como se voltando da beira de um abismo interno. — Se importa de pegar as armas agora?
Vishous exalou uma faixa de fumaça para longe do cara.
— Foi para isto que vim.
— Por favor, mova seu veículo para dentro quando estiver pronto. Vamos carregar ali.
Quando Assail desviou o olhar, V interrompeu-o.
— Estou com seu dinheiro... Não se preocupe. E não vou cobrar pela consulta médica.
— Que cavalheiro você é, Vishous.
— Nem um pouco. Agora vamos acabar com isto.
Capítulo QUARENTA E SETE
Quando a Irmandade se reuniu para a Última Refeição na sala de jantar principal, Mary se aproximou e sentou-se perto de Marissa.
— Se importa de conversarmos um pouquinho antes de jantar?
Marissa baixou sua taça e anuiu com um sorriso brilhante.
— Desculpe por ter saído cedo do trabalho hoje, mas Butch me levou para um encontro.
— Oh, vocês merecem! Onde foram?
— Nenhum lugar especial. Só uma pizzaria nos subúrbios. Ele tinha razão, foi a melhor pizza de peperoni com cebolas que eu já comi. Ele está ajudando V a descarregar
alguns suprimentos e então virá só para conversar, igual a mim. Foi bom passar um tempo a sós, sabe?
— Sei. Na verdade, Rhage e eu vamos sair amanhã. – Mary pigarreou. — Que é parte do que eu preciso conversar com você. Finalmente consegui um pouco de progresso
com a Bitty.
— Mesmo? – Marissa se inclinou para um abraço rápido. — Eu sabia que ia conseguir! Isto é maravilhoso. Há tanto para ela processar.
— É. – Mary se recostou. — Mas há algo que preciso averiguar. Em termos clínicos, digo. Não que seja urgente... É... Só que ela tem treze anos e não nove.
Quando as sobrancelhas de Marissa se ergueram de surpresa, a fêmea murmurou.
— Tem certeza?
Mary contou tudo, inclusive o que Bitty tinha dito sobre sua mãe mentir sobre sua idade, a visita ao cemitério e ao supermercado.
Marissa franziu o cenho.
— Você a levou até o túmulo da sua mãe?
— Ela queria ver. Ela pediu. O tratamento dela vai ter que envolver mais do que só sentar em uma cadeira e ouvir. Ela é incrivelmente inteligente, mas levou uma
vida tão reclusa, tão cheia de violência que, para ter qualquer esperança de passar pelo período de luto inteira e se adequar ao mundo, ela vai ter de se expor.
— Existem grupos de atividades em campo para alcançar coisas assim.
— Ela nunca tinha visto um supermercado antes. – Quando Marissa recuou, Mary anuiu. — E não sabia nem o que eram portas automáticas. Nunca tinha visto o centro da
cidade. Ela me disse, quando eu e Rhage a levamos para tomar sorvete ontem, que nunca tinha ido a um restaurante ou a uma lanchonete.
— Eu não fazia ideia.
— Nem eu. – Mary olhou para a mesa de jantar de nove metros de comprimento, com toda a sua elegância. — Ela e a mãe mantiveram silêncio por medo. E a coisa é, estou
preocupada com a saúde de Bitty. Sei que ela foi examinada na clínica de Havers por conta daquela perna quebrada e houve melhora naquele ponto. Mas já faz um tempo.
Quero que alguém dê uma olhada nela logo, e queria trazê-la para a clínica daqui, não para a de Havers.
Quando Marissa começou a protestar, Mary ergueu a mão.
— Ouça-me. A mãe dela morreu lá. Acha que ela precisa voltar àquele lugar tão cedo? E sim, dá para esperar um mês ou dois, mas é possível perceber que está frágil
demais. Mesmo levando em conta que vampiros são menos desenvolvidos que os humanos de idades similares até a transição, ela é alarmantemente pequena. Ehlena tem
uma larga experiência com jovens vampiros, a Dra. Jane tem um conhecimento mais do que adequado, e podemos levar Bitty para o centro de treinamento com toda tranquilidade,
fazer os exames lá e levá-la embora assim que acabar.
Marissa remexeu seu garfo.
— Consigo entender a lógica.
— Pensei em fazer amanhã à noite, se a Dra. Jane estiver disponível. Vamos levar Bitty para jantar.
— Você e Rhage?
— É como o passeio para o sorvete. Ela realmente gosta dele. – Mary sorriu. — Diz que ele é como um grande cão amigável.
O cenho franzido de Marissa não expressava muita confiança. E nem o período de silêncio, preenchido pela conversa de outras pessoas, enquanto chegavam à sala em
pares e grupos pequenos.
— Marissa. Eu sei o que estou fazendo. E mais ainda, a prova de que estou agindo certo é o fato dela finalmente estar começando a se abrir. Ela está conosco há quanto
tempo?
— Olha, não sou qualificada para te dizer como executar o seu trabalho... E realmente acho que isto pode ser um problema. Como diretora, minha obrigação é fazer
os trens andarem no tempo certo. Como não sou formada em serviço social... Gostaria de conversar com alguns dos outros. Você é muito boa em seu trabalho e não posso
discutir com os resultados, especialmente no caso de Bitty. Mas não quero que você meta os pés pelas mãos... E estou um pouco preocupada com isto.
— Como assim? – Mary ergueu as mãos. — Admito que poderia ter tratado a situação da morte da mãe dela de uma maneira diferente se eu soubesse...
— Você levou uma órfã para tomar sorvete. Para visitar o túmulo da sua mãe. Vai levá-la para jantar com o seu marido. Não acha que há uma possibilidade de que esteja
fazendo isto por razões de natureza pessoal?
— Deixa eu ver. Vamos lá, deixa eu ver.
Do lado de fora, na frente da mansão, Rhage acotovelou o corpo de Butch para o lado a fim de poder ver o que havia no porta-malas do Hummer. Ao pôr os olhos sobre
os equipamentos expostos, riu baixinho.
— Nada mal. – Ele tirou uma das Glock automáticas de seu estojo e a avaliou, tirando o clip, bombeando o gatilho, analisando peso e aparência. — Quantas destas conseguiu?
V abriu outra maleta de aço.
— Aqui tem mais oito. Dezesseis no total.
— Qual o preço? – Butch perguntou ao pegar outra arma e passá-la pela mesma verificação.
— Dez mil. – V abriu uma sacola preta de nylon e expôs as caixas de munição. — Sem desconto, mas também não são numeradas e não temos de nos preocupar sobre negociar
com canais humanos legítimos.
Rhage anuiu.
— Fritz deve estar em alguma lista de observação a esta altura.
— O que mais podemos conseguir com eles? – Butch perguntou ao pegar uma terceira, o som de metal sobre metal ecoando de suas mãos rápidas.
— Como se eles tivessem alguma merda de catálogo. – V deu de ombros. — Estou achando que podemos pedir qualquer coisa que quisermos e eles vão conseguir.
— Podemos encomendar alguns mísseis? – Perguntou Rhage. — Ou, estou dizendo, seria útil algum equipamento antiaéreo.
Butch deu um soco nos bíceps de Rhage.
— Se o negócio descambar para o campo antiaéreo, vou querer um canhão.
— Vocês são dois fodidos imbecis, sabiam?
Rhage pegou a sacola com a munição, e Butch pegou as duas maletas para V poder trancar o carro e acender um cigarro. Estavam no meio do caminho de paralelepípedos
quando V hesitou. Cambaleou. Meneou a cabeça.
— O que foi? – Perguntou Butch.
— Nada. – O Irmão prosseguiu, subindo os degraus de pedra de dois em dois e abrindo a porta do vestíbulo. Ao colocar o rosto na frente da câmera, murmurou: — Só
estou com fome.
— Eu te entendo. – Rhage esfregou a barriga. — Preciso de comida imediatamente.
O comentário foi casual. Ao contrário do olhar que ele e Butch compartilharam. No entanto, a realidade era que mesmo os Irmãos eram capazes de ficar hipoglicêmicos
e nem tudo era emergência. Mas pela cara sombria do tira, ele cuidaria daquilo quando ele e V voltassem para o Pit para passar o dia.
— Onde quer que eu guarde isto, V? No túnel?
Quando Vishous fez um sinal de concordância, Rhage pegou as maletas de Butch e levou a carga por trás da escada principal até a porta oculta que levava ao túnel.
Destrancando as coisas ao digitar a senha, depositou a carga de metal no chão e certificou-se duplamente de voltar a trancar a porta. Com Nalla engatinhando, ninguém
se arriscava com armas ou munições, mesmo quando as merdas eram guardadas separadamente.
Virando-se, voltou para a sala de jantar.
Dentro do belo espaço havia muita conversa e risos, pessoas por todos os lados e doggen servindo bebidas antes da comida. Mary estava perto de Marissa, e de início
Rhage começou a ir em direção a elas, mas então detectou a tensão no ar e recuou, sentando-se em seu lugar de costume, do outro lado da mesa.
Enquanto isto, Mary se inclinou para a chefe falando com urgência. Marissa anuiu. Então meneou a cabeça. Então falou. E daí novamente era a vez de Mary.
Devia ser sobre trabalho.
Talvez mesmo até sobre Bitty?
Manny puxou uma cadeira.
— Como vai, meu jovem?
— Ei, peido velho. Cadê sua melhor parte?
— Payne está tirando uma soneca. Eu a esgotei, se é que me entende.
Os dois se cumprimentaram juntando as mãos cerradas e então Rhage voltou a disfarçar sua tentativa de leitura de lábios. O que, a propósito, não conseguiu muito
bem.
— Pesadelo repolho, máquina de espremer, toca fitas. – Disse Mary.
— Filmes de magia doze vezes por dia. – Marissa bebericou sua taça de vinho. — Então o tênis com o can-can. Amendoins e filé à Filadélfia, bagel, bagel cream cheese.
— Filme plástico?
— Creme dental.
— Baía garagem, biquíni de Natal, quero ser cereal Grape Nuts com Dr. Pepper.
— Caralhos me fodam. – Ele murmurou. E considerando o tanto de referências culinárias que seu cérebro estava arrancando daquelas bocas, estava mesmo precisando comer.
Mary eventualmente se levantou e as duas anuíram. Então sua shellan voltou para ele.
— Tudo bem? – Perguntou ao puxar a cadeira para ela.
— Oh, sim. Sim. – Ela sorriu para ele, então sentou-se e encarou o prato vazio. — Desculpe, eu só estava...
— O que posso fazer para ajudar?
Virando-se para ele, ela esfregou o rosto.
— Pode me dizer que tudo vai ficar bem?
Rhage a puxou para seu colo e correu as mãos para cima e para baixo de sua coxa.
— Prometo pra você. Tudo vai acabar bem. Seja o que for, vamos fazer dar certo.
Os doggen da casa entraram enfileirados, trazendo bandejas de prata com carne assada e batatas, frango e arroz, alguns vegetais no vapor e molhos. Quando Mary voltou
para sua cadeira, ele ficou desapontado, mas entendeu o que estava acontecendo com ela. Acabaria alimentando-a até ela estar estufada enquanto ele morreria de fome...
E então devoraria como um lobo tudo o que restasse antes da sobremesa ser servida.
Eles já tinham passado por aquilo antes.
— Senhor. – Um doggen disse por trás dele. — Preparamos um prato especial para o senhor.
Mesmo preocupado com sua Mary, Rhage bateu palmas e esfregou as mãos.
— Fantástico. Sou capaz de comer esta mesa inteira.
Um segundo membro da equipe removeu sua carga e puxou a tampa da bandeja. Então um enorme prato de prata coberto por um pano foi colocado à sua frente.
— E aí, Hollywood? – Alguém disse. — Nossa comida não é boa o bastante pra você?
— Ei, Rhage, você tem direito a um boi só para você ou algo assim?
— Pensei que estivesse na onda da Jenny Craig. – Outra voz exclamou.
— Acho que se bobear ele come a Jenny Craig... O que seria completamente errado. Humanos não são comida.
Ele mostrou o dedo do meio pra todo mundo e puxou a beirada do pano...
— Oh, qual é?! – Rosnou, quando risadas explodiram no ambiente. — Sério? Vocês estão mesmo falando sério? Mesmo?
Um snorkel e uma máscara de mergulho tinham sido cuidadosamente arrumados sobre um grande prato de porcelana, com salpicos de salsinha e gomos de limão arrumados
nas beiradas.
Mary começou a rir e o que salvou os seus irmãos foi o fato dela ter jogado os braços ao redor de seu pescoço antes de beijá-lo.
— Essa foi boa, – Ela disse contra sua boca. — Vamos lá, você sabe que foi.
— Um cara inunda um maldito banheiro e subitamente vira tema...
— Shhh, só me beije, está bem?
Ele ainda resmungava, mas fez o que sua shellan lhe disse pra fazer. Era isto ou estragar seu apetite... Cometendo assassinato.
Capítulo QUARENTA E OITO
— Você sabe que o cara é casado.
Era quase meio dia, Jo assustou-se em sua cadeira de recepcionista e franziu o cenho. Bryant se inclinava sobre o balcão de sua mesa com o rosto extremamente sério,
a gravata borboleta tão perfeitamente colocada, que parecia um pedaço de plástico esculpido ao invés de algo feito de seda.
— Do que está falando? – Ela estendeu-lhe uma pasta. — Isto é para a reunião de uma e meia.
— Bill. Ele é casado.
— Do que está... Como é que é?
— Ouça. – Bryant correu as unhas perfeitamente cuidadas ao redor das beiradas da pasta de tamanho legal. — Eu vi vocês, está bem? Em um semáforo. Você estava no
carro dele. Eu só não quero que se magoe.
Pela primeira vez na história conhecida, Jo recostou em sua cadeira e realmente olhou para o cara. Engraçado, na verdade a aura dele era um bom disfarce para algumas
pequenas falhas que tinham lhe passado despercebidas antes: seus olhos eram um tanto juntos demais; o lábio superior tinha um curioso excesso; aquele nariz tinha
uma espinha na ponta.
— Só estou preocupado com você. – Concluiu ele. — Como um irmão mais velho.
Jo cruzou os braços sobre o peito. Pensando bem, a voz dele também era meio esganiçada, um pouco irritante.
— Olá? – Ele exclamou. Como se esperasse uma reação específica por parte dela e estivesse determinado a extraí-la. — Jo, ouviu o que eu disse?
Definitivamente era hora de seguir adiante, decidiu. Atualizar seu currículo. Cadastrar-se no Empregos.com e no site do CCJ. Fazer outra coisa.
Ela tinha desperdiçado quase um ano e meio pairando sobre este narcisista, vivendo por uma piscadela ou um galanteio, desdobrando-se em duas para que a vida pessoal
e profissional dele corresse com suavidade... E, por fim, varrendo sua libido pra baixo do tapete, por que esta tensão sexual unilateral com o idiota era uma aposta
melhor do que tentar encontrar um cara de verdade para ela.
— Estou te dando meu aviso prévio.
— Como é que é?
— Você me ouviu.
— Espere, ficou louca? Está se demitindo só por que falei que o seu namoradinho tem uma esposa? Quando você já sabia? Eles assinaram o contrato aqui no escritório,
você a conheceu...
— Não tem nada a ver com Bill. Ele e eu estamos trabalhando juntos em uma matéria. – Okay, um pouco de exagero. — Eu só preciso mais do que você pode me dar.
— É por causa da prova para agente imobiliário? Tudo bem, se você insiste em fazer...
— Na verdade, não é nada disso. – Ela olhou de esguelha para o computador. — E é meio dia, então vou almoçar.
Com movimentos rápidos sobre o aparelho telefônico do escritório, acionou o desvio do número principal para a secretária eletrônica, pegou sua bolsa do chão e atravessou
o escritório. Bryant se pôs no seu caminho como se quisesse discutir, mas ela só balançou a cabeça.
— É melhor começar a procurar por uma nova recepcionista se quiser que eu tenha algum tempo para treiná-la.
— Jo. Você está agindo de uma maneira bem pouco profissional.
Baixando o tom de sua voz, ela disse.
— Você me fez mentir para as mulheres com quem sai para que elas não descubram o escroto que você é. Eu tenho de levar sua roupa para a lavanderia. Agendar seus
cortes de cabelo. Levei seu carro para a revisão quantas vezes? Isso sem falar das queixas de seu condomínio pelas suas violações da lei do silêncio, o cara que
limpa sua piscina, seus problemas de ar condicionado e o cara da dedetização. Isto sim não foi nada profissional. Mas não se preocupe. Você vai encontrar outra otária.
Homens como você sempre encontram. Só não serei mais eu.
Jo passou pelas portas de vidro e saiu para o sol de outubro... Fraco demais para elevar a temperatura, mas brilhante o suficiente para fazê-la pegar seus óculos
escuros.
Ao entrar em seu VW, não se surpreendeu ao ver que Bryant não veio atrás dela... Sem dúvida ele estava resolvendo a crise do próximo jantar. Ou talvez arrumando
o cabelo em seu banheiro privativo. Ou fosse o diabo que estivesse fazendo. Uma coisa que ela sabia? Não era mais da conta dela.
Nunca foi da conta dela, pelo menos, não por parte dele. E a coisa que ele tinha dito sobre Bill? Era bem o tipo de reflexo de autodefesa porque ela era uma boa
criada e ele não queria abrir mão dela.
Mas como disse, haveria outra. Sem dúvida.
Enquanto guiava para longe, Jo via o escritório da imobiliária diminuindo em seu retrovisor e pensou em Bill e seu primo Troy. Eles eram caras legais, mas não tinham
realmente nada que lhe chamasse atenção.
Quando iria encontrar um homem de verdade?
Tanto faz. Precisava encontrar outro emprego, e então havia aquela coisa toda de vampiros para se preocupar.
Pegando seu celular, ela ligou para Bill.
— Estou indo para a fazenda agora, se quiser me encontrar lá.
— Está pronta para irmos?
Ao som da voz de Rhage, Mary pulou no sofá, chutando para o chão a coberta que tinha sido colocada sobre suas pernas. Sentando-se, olhou ao redor da sala de jogos
e então olhou para Rhage, que se inclinava sobre ela.
— Eu dormi. Cadê todo mundo? O torneio acabou?
Ele anuiu ao sentar na mesinha de centro e equilibrar o taco na ponta do dedo indicador.
— Butch venceu. O bastardo. Ele e V acabaram de ir para o Pit.
Com um grande bocejo, ela empurrou o cabelo para trás. A imensa TV sobre a lareira estava no mudo e exibia um filme do Steven Seagal do final dos anos 90, que o
mostrava golpeando um bando de caras em uma rua da cidade.
— Acho que foi nessa parte que eu adormeci. – Ela disse tolamente apontando para a tela.
— Na verdade, foi há três filmes atrás. – Rhage acariciou-a no rosto. — Este é outro filme, mas não se sinta mal. Eles parecem realmente o mesmo. Vai me deixar carregá-la?
— Posso subir sozinha.
— Eu sei. – Ele deixou o taco de lado e ofereceu-lhe uma mão. — A pergunta é, vai me impedir de pegá-la no colo?
Ela sorriu.
— Não.
Rhage tirou-a do sofá e a próxima coisa que viu, estava em seus braços fortes e ele a levava por entre as mesas de bilhar. No saguão, bocejou de novo e aconchegou-se
mais a ele.
— Você é bom demais para mim. – Ela murmurou.
— Nada disso.
No segundo andar, ele parou na frente da porta fechada do quarto deles e ela se inclinou e abriu para que eles passassem. Sem esforço nenhum, ele a levou até a cama
e deitou-a de lado sobre o colchão.
— Pode escovar os dentes por mim? – Ela perguntou. — Esta é a verdadeira questão.
— Pode deixar.
Quando ele ia se afastar, ela riu.
— Foi uma pergunta retórica.
— Eu ia te trazer a escova e um copo de água. – Ele colocou as mãos nos quadris e baixou o olhar para ela. — A menos que você consiga chegar até a pia?
Cara, ele era um macho de aparência fantástica, ela pensou ao medir os ombros enormes e braços fortes, o estômago e a pélvis esguios, aquelas pernas longas e poderosas.
E então havia aqueles cabelos louros, os brilhantes olhos de um azul oceano, aquela estrutura óssea que parecia desenhada por um artista ao invés de algo nascido
neste mundo.
— Mary?
— Só estou admirando a vista.
— Oh!? – Ele deu uma voltinha e exibiu o traseiro. — Gosta?
— Muito. Que tal tirar a camisa para mim?
Olhando por cima dos ombros, ele estreitou os olhos.
— Está dando em cima de mim?
— Por que... Sim, acho que estou sim.
Ele virou de novo, agarrou a frente de sua camiseta sem mangas e gemeu.
— Primeiro, pede por favor.
— Pooooooor favooooooor...
Riiiiip. E lá estava o peito nu dele à mostra, toda a musculatura lançando sombras sob a luz fraca do abajur sobre a escrivaninha.
Rhage moveu a mão para baixo entre suas pernas, agarrando a grande ereção que tinha feito uma aparição para valer na frente de seus couros.
— Quer ver mais alguma coisa? – Sussurrou.
— Sim... – Ela murmurou.
Os dedos dele abriram os botões bem lentamente, provocando-a ao revelar sua ereção centímetro a centímetro até ela estar totalmente livre e se projetar na direção
dela.
Mary abaixou a mão e desapareceu com ela entre suas próprias calças, abrindo as pernas enquanto ele recuava e acariciava a si mesmo.
— Venha cá. – Disse ela.
Rhage veio para a cama deles e em questão de segundos estava por cima dela, e ela o guiou com a mão, trazendo a cabeça para junto de seu núcleo. Com um gemido, ela
enroscou as pernas ao redor do traseiro dele, e ele estocou com força, unindo-os, ondulando contra ela com velocidade crescente, cada vez mais duro até a cama ranger,
os travesseiros voarem para fora do colchão e o edredom embolar por baixo dela.
Ao acariciar as costas dele, ela podia sentir a fera se mexer sob suas unhas, a tatuagem eriçando e criando um padrão em relevo na pele dele como se quisesse sair.
— Mary. – Rhage disse contra seu pescoço. — Ai, cacete, Mary...
Ante o som de sua voz rouca, um orgasmo a atingiu como um relâmpago, o prazer fazendo-a gritar enquanto ele bombeava a pélvis dentro dela de novo e de novo enquanto
ejaculava.
Quando finalmente se imobilizaram, ela acariciou sua espinha, acariciando a fera que se movia sob seu toque. E era tão estranho. Em momentos como este, mesmo que
fosse loucura, parecia que os três estavam juntos.
— Gostaria de vir comigo para o chuveiro? – Rhage perguntou ao acarinhá-la na garganta com o nariz. — Eu posso imaginar umas coisas bem divertidas para fazer com
o sabonete.
— Sério? Tipo o que?
— Limpeza é um tipo de santidade... Esta não é uma expressão humana?
Mary bocejou e se esticou, sentindo-o ainda dentro de si.
— Tenho uma ideia. Vai na frente, eu já te encontro lá.
— Perfeito.
Depois de alguns beijos lânguidos, Rhage desceu da cama e se levantou. Livrando-se dos couros que ainda estavam abaixados à altura de suas coxas, ele caminhou até
o banheiro totalmente nu.
Uau, que vista!
Ele era como uma estátua grega viva.
O chuveiro foi ligado e ela sentiu um aroma do xampu que eles usavam, e então o sabonete... E então o condicionador.
Motivando-se, espreguiçou mais uma vez e saiu da cama. Ao chegar ao banheiro, Rhage estava inclinado sob o jato de água enxaguando o cabelo. Ela despiu-se rapidamente
e logo estava lá com ele, o corpo escorregadio e excitado dele cintilando sob a luz dos espelhos.
— Aqui está ela. – Ele murmurou ao puxá-la para perto.
Levou um tempo até eles saírem, e no final as pernas dela estavam tão moles que era bom que não tivesse uma longa distância a percorrer. Enrolada no roupão de Rhage,
cambaleou até a penteadeira para tirar os brincos de pérolas enquanto ele levava as roupas que deixaram espalhadas por todo o quarto até a saída da lavanderia que
havia dentro de seu closet.
Ela tinha tirado somente um dos brincos quando reparou na pasta.
— O que é isto?
— O que é o que? – Ele disse de dentro do closet.
Ela abriu a frente da pasta...
.... E sentiu o ar abandonar seus pulmões.
Capítulo QUARENTA E NOVE
Ao sair do closet e voltar para o quarto, Rhage sentia-se muito bem com a vida. É claro, o tira tinha ganhado dele no bilhar de novo, mas depois do tratamento que
sua Mary tinha acabado de lhe dar? Sentia-se um verdadeiro vencedor.
Aquela sessão no chuveiro tinha sido praticamente Olímpica, o máximo do máximo, coisa de campeão.
Ao sair, ele...
... Congelou onde estava.
Mary estava sentada na cadeira ao lado da escrivaninha deles com o pequeno pé rosado no tapete, o corpo engolfado pelo roupão de banho dele, a cabeça baixa com o
cabelo úmido pendurado para a frente. Em seu colo, totalmente aberta, havia uma pasta que Rhage não reconheceu.
Mas sabia para o que ela estava olhando.
Rhage voltou para o closet e pegou um par de calças de corrida de nylon. Pensando melhor, pegou também aquele moletom do AHS que tinha usado na outra noite. Voltando
a sair, caminhou até a cama e sentou-se.
Mary ergueu o olhar ao chegar à última página.
— O que é isto? Digo... – Ela balançou a cabeça. — Acho que sei o que é. Eu só...
Rhage agarrou a beirada do colchão e se apoiou nos braços. Estranhamente, as antiguidades no quarto, as cortinas pesadas, o padrão do tapete, tudo se tornou claro
demais, cada coisa à sua volta se aguçou a ponto de fazê-lo hesitar.
— Não fui eu quem pediu a Saxton para imprimir isso tudo. – Falou abruptamente.
— O formulário de adoção? É o que é, não é? Digo, não sou completamente versada no Antigo Idioma, mas consegui apreender o sentido.
— Olha, não temos de fazer nada com eles. Não é como... Digo, não estou dizendo pra gente adotá-la. Pedi ao Vishous para ajudar a encontrar o tio dela... É, eu sei
que você não me pediu pra fazer isto, mas pensei que, se algum dos meus irmãos pudesse ajudar seria ele. Ele revirou alguns bancos de dados na Casa de Audiências
e não encontrou nada. Verificou em outros lugares também. Não havia traço de nada, nem família, nem tio. E ah, falei com ele sobre você e eu e a coisa da garota.
Foi ele quem mencionou o processo de adoção e então apareceu com isto.
Mary fechou a pasta e pousou a mão em cima. Quando não disse nada, ele praguejou.
— Sinto muito. Talvez eu devesse ter conversado com você antes de ir falar com Vishous...
— Marissa acha que estou envolvida demais. Com a Bitty, quero dizer. Era sobre isto que discutíamos antes da Última Refeição hoje. Ela acha que estou ultrapassando
os limites do profissionalismo tornando a coisa pessoal demais.
— Uau.
— E mesmo que eu tenha argumentado contra... Ela tem razão. Estou mesmo.
O coração de Rhage falhou uma batida, de terror.
— O que quer dizer?
Houve um grande período de silêncio. E então ela deu de ombros.
— Já trabalhei com vários jovens. Não só no Lugar Seguro, mas também antes, quando trabalhava com crianças autistas. – Ela desviou o olhar. — Lembra quando eu estava
na casa da Bella? Quando disse que não queria mais ver você?
Rhage fechou os olhos e lembranças daquele confronto horrível voltaram à sua mente. Por alguma razão, lembrou-se da manta naquele quarto de hóspedes onde ela estivera
dormindo, aquela manta de retalhos feita à mão com seus retângulos de cores diversas. Mary estava na cama quando ele chegou. E mesmo que estivesse bem ali na sua
frente, sentiu como se estivessem a um mundo de distância.
— Sim. – Disse ele roucamente. — Eu me lembro.
— Doía tanto que não conseguia me imaginar puxando para baixo mais ninguém comigo. Eu estava bloqueada, fechada, pronta para perder aquela batalha que realmente
não tinha mais interesse em lutar. Eu te afastei com violência. Mas você veio mesmo assim. Você veio e... E em você vi um farol do qual eu não conseguia me afastar.
Eu não estou bem.
Em sua mente, ele a ouviu dizendo aquelas palavras. Sentiu seu corpo quase bater no dele ao sair correndo daquela casa atrás dele, enquanto ele só estava ali, de
pé, segurando a lua nas mãos do jeito que ela tinha ensinado a fazer.
— Acho que senti como se Bitty fosse como eu. Digo, pelos últimos sei lá quanto tempo eu a conheço, ela esteve completamente fechada. Mesmo com a mãe por perto,
era como uma criaturinha provinciana, observando as pessoas à distância, fechando-se completamente. E depois do abuso e as mortes? Eu jamais a culpei. Só queria
desesperadamente alcançá-la. Era como... Bem, em retrospecto, acho que estive tentando salvar meu antigo eu.
— Ela realmente se abriu a noite passada. – Rhage disse. — Pelo menos, eu senti isto. Mas não teria como saber...
— Foi o que eu disse para Marissa. Não sei se os protocolos normais de tratamento teriam tido efeito sobre ela. E ela está reagindo. Eu a levei ao túmulo da minha
mãe. Então compramos M&Ms no supermercado Hannaford. Ela só está começando uma jornada muito difícil e não quero parar de ajudá-la.
— Marissa te retirou do caso? – Ele exigiu.
— Não, ela só acha que estou emocionalmente envolvida demais... E estou mesmo, admito. Bitty é especial para mim.
Rhage baixou o olhar para a pasta que Mary tinha trazido para junto do peito e abraçava... De um jeito que não sabia se ela tinha ciência de estar fazendo.
— Mary.
Quando ela finalmente ergueu o olhar, ele sentiu como se estivesse pulando de um abismo. O lado bom? Se tinha de voar pelo ar com alguém, não podia pensar em ninguém
melhor do que sua shellan.
— A gente podia dar a ela um bom lar.
Os olhos de Mary se encheram de lágrimas e ele se levantou e foi até ela, ajoelhando-se na frente de sua shellan e colocou as mãos em suas pernas.
— Você não quer dizer isto, quer? – Ele sussurrou.
Ela deu um soluço. E então balançou a cabeça.
— Isso não era para acontecer com a gente. A gente conversou sobre isto. Não... Era para acontecer com a gente. Essa coisa de sermos pais.
— Quem disse?
Mary abriu a boca. Então fechou enquanto segurava aqueles papéis ainda mais forte contra o coração.
— Eu estava conformada. Realmente estava. Eu realmente... De nunca poder ser mãe.
Quando as lágrimas começaram a cair, Rhage estendeu a mão e limpou o rosto da sua amada.
— Tudo bem se não puder falar. Por que eu falo por você. Você seria... A mais maravilhosa mahmen para aquela garotinha. Bitty seria tão sortuda por ter você em sua
vida.
As palavras que disse pareceram destruí-la de certa forma, e sabia exatamente como ela se sentia. Ele tinha se preparado para aceitar a perda de uma grande parte
da vida, por que entre as muitas bênçãos que lhe foram concedidas, ser pai não estava entre elas. E sim, era um tipo de crueldade ter aquela porta, que tinha tão
resolutamente trancado, recebendo batidas tão cedo.
Mas havia uma coisa que ele sabia malditamente bem.
Se por algum milagre eles fossem chamados pelo destino para cuidarem daquela garotinha? Ele aceitaria sem hesitação. E sabia sem nem precisar perguntar que sua Mary
também.
Pais.
Seria um milagre.
Mary estava surpresa pelo grande abismo de dor que havia se aberto no meio do seu peito.
E enquanto pensava sobre tudo, ela decidiu que sim, era inteiramente possível que ela pudesse ter sublimado a coisa toda de viver sem filhos... Automedicando uma
agonia desconhecida com bons serviços honestos que serviam àqueles que precisavam de ajuda durante seus momentos mais vulneráveis.
Com um estremecimento, inclinou-se pra frente e Rhage estava lá para segurá-la quando caiu da cadeira para o colo dele no chão. Quando os braços dele se enroscaram
ao redor dela e apertaram forte, ela abraçou aquela pasta cheia de papéis tão forte quanto era possível.
Tinha sido aterrorizante demais admitir para si mesma ou para Rhage a ideia que vinha acalentando em seu coração no último ano. Mas um instinto materno tinha se
enraizado em algum ponto ao longo de sua jornada com Bitty – embora Mary tenha sido cuidadosa em nunca infringir ou invadir o verdadeiro vínculo mãe/filha sem nem
mesmo admitir os sentimentos em sua própria mente.
Mas, de vez em quando, tinha se perguntado o que a garotinha faria se fosse deixada sozinha no mundo.
E sim, houve uma fantasia ocasional sobre trazê-la para suas vidas.
Sem dúvida este era o motivo pelo qual, na noite da morte da mãe, Mary tinha dirigido na direção do complexo e da mansão ao invés do Lugar Seguro.
Mas sabia que tais sentimentos não eram apropriados ou profissionais, então não disse nada, não fez nada, não agiu de forma diferente do que agia perto das outras
crianças com quem trabalhava.
Mas seu coração tinha seguido outro rumo.
Recostando-se, ergueu o olhar para o belo rosto de Rhage.
— O que Vishous disse sobre o tio?
Mesmo que ela achasse ter ouvido Rhage dizer que V não descobriu nada.
— Ele disse que não conseguiu achar ninguém com aquele nome. E nenhum detalhe registrado de Bitty, sua mãe ou qualquer familiar também. – Rhage secou a área debaixo
dos seus olhos com os dedões; então secou as lágrimas dela em seu moletom. — Ela realmente está sozinha.
Eles ficaram quietos por um tempo. E então Mary disse.
— Não seriam só passeios divertidos à sorveteria.
— Eu sei.
— E ela pode nem querer vir morar com a gente.
— Eu sei.
— Mas você gosta dela, não gosta? Ela é especial, não é?
— Muito. – Ele riu numa explosão curta. — Acho que decidi que queria adotá-la no momento em que ela pediu aquela casquinha.
— O que?
— Longa história. Mas é só... É como se estivesse escrito.
— É o que eu sinto também.
Rhage mudou de posição de modo que se recostou na parede e ela se pôs entre suas pernas, encostada em seu peito. Talvez eles devessem ir para a cama. Afinal, seria
mais confortável. Mas a sensação de que uma mudança imensa estava a ponto de ocorrer em suas vidas fazia parecer mais seguro ficar no chão... Só no caso do terremoto
que estava acontecendo aos dois, em nível emocional, se traduzisse no mundo físico de alguma forma.
A maldita coisa seria capaz de destruir a mansão aos pedaços.
— Vai ser um processo, Rhage. Não vai acontecer da noite para o dia. Existem coisas que teremos de fazer, juntos e sozinhos, para ter certeza que é para valer.
Mas tudo aquilo era retórica.
Em seu coração, ao que lhe constava, a decisão já havia sido tomada.
Mary sentou e virou-se.
— Quer mesmo ser pai dela? Digo, eu sei o que sinto...
— Seria uma honra e um privilégio para mim. – Ele posicionou a mão direita sobre o coração ao falar no Antigo Idioma. — Seria uma tarefa que eu procuraria cumprir
todas as minhas noites sobre a terra.
Mary respirou fundo. E praguejou.
— Vamos ter de explicar a ela o que... Eu sou. O que você tem.
Oh Deus, e se a Besta e sua situação existencial... impedissem-nos de serem pais em potencial? E quem decidia isto? E onde poderiam descobrir como fazer isto?
Com um grunhido, ela recostou-se na força de Rhage. E foi engraçado... Ao sentir os músculos dele a seu redor, soube que estaria com ela pelo tempo que fosse necessário
sem nunca fugir do desafio, insistindo com propósito e foco até cruzarem a linha de chegada.
Era como ele sempre agia. Ele não desistia. Nunca.
— Eu amo você. – Disse ela, olhando pra frente.
— Amo você também. – Ele prendeu o cabelo dela atrás da orelha e massageou seus ombros. — E Mary... Vai ficar tudo bem. Eu prometo.
— Eles podem não permitir que a gente fique com ela. Mesmo que ela queira.
— Por quê?
— Você sabe o motivo. Nós não somos exatamente “normais”, Rhage.
— E quem é?
— Pessoas que estão vivas no sentido convencional. E que não tem uma Besta dentro do corpo.
Quando ele caiu em silêncio, ela se sentiu mal, como se tivesse arruinado alguma coisa. Mas precisavam ser realistas.
Só que Rhage só deu de ombros.
— Então vamos procurar aconselhamento. Ou alguma merda assim.
Mary riu um pouco.
— Aconselhamento?
— Claro. Que inferno. Posso desabafar como me sinto em relação à Besta. E talvez ela possa devorar alguns conselheiros para poder internalizar os comentários construtivos
deles. Digo, Jesus, tirar a porra de mim na base de acupuntura e talvez o dragão se transforme em um coelhinho ou um passarinho ou...
— Um passarinho.
— É, ou tipo um esquilo Gopher. Acabaria como uma marmota gigante roxa, tipo vegetariana. – Quando a risada de Mary intensificou, ele acariciou os braços dela. —
Que tal um Cavalier King Charles spaniel?
— Oh, dá um tempo...
— Não, não. É isso. Eu sei que é assim que vai acontecer.
Mary rolou em seu colo e sorriu para ele.
— Seja gentil. Tive uma manhã dura. Bem, exceto pela parte do chuveiro. Aquilo não foi nem um pouco duro.
Rhage ergueu o dedo.
— Está bem, primeiro de tudo, algo estava duro ali sim. E você viu em primeira mão. – Quando ela riu de novo, ele anuiu. — Uh-huh. Está certo, e quanto ao alter
ego da Besta... Que tal um enorme lebrílope roxo?
— Eles não existem!
— Certo. Um macacobra.
— Também não existe.
— Então posso fazer os sonhos dos caçadores de macacobra ao redor do mundo se realizarem. – Rhage sorriu. — Quem iria nos recusar depois disto? Depois de eu prestar
um serviço público bom destes?
— Você tem razão. – Acariciou o rosto dele. — Precisamos colocar o plano da acupuntura/lebrílope em funcionamento imediato.
Rhage se abaixou e beijou-a.
— Eu amo quando estamos falando a mesma língua. Simplesmente amo.
Capítulo CINQUENTA
Quando a noite caiu, Layla estava enormemente desorientada. Uma das desvantagens de viver no subterrâneo do centro de treinamento era não conseguir acertar seu relógio
biológico aos ritmos do sol e lua. O tempo era apenas números na face de um relógio, refeições aparecendo em intervalos regulares, visitantes e tráfego indo e vindo
em padrões aleatórios que eventualmente significavam pouco em termos de noite e dia.
Seu sono tinha caído em um ciclo de seis horas de vigília, seguidos por três horas de sono irregular. Repetindo-se eternamente.
Geralmente.
No entanto, esta noite quando o relógio eletrônico mostrou um oito brilhante vermelho seguido por um dezesseis depois de dois pontos verticais, ela fechou os olhos
com propósito diferente de dormir.
Agonizava sobre isto desde sua resolução depois do ultrassom. Pesou os prós e os contras em sua mente até achar que enlouqueceria.
No final se decidiu, para o bem ou para o mal.
Provavelmente para o mal. Por que era sempre isto que acontecia a ela quando se tratava de Xcor.
Respirando fundo, percebeu que tudo a irritava. Os lençóis pareciam ásperos. O travesseiro debaixo de sua cabeça não estava na posição correta, e movê-lo pra cima
e pra baixo não ajudava. O peso de sua barriga parecia enorme, uma entidade à parte do resto de seu corpo. Seus pés se retorciam como se alguém lhe fizesse cócegas
com uma pena. Os pulmões pareciam inflar só parcialmente.
Esqueça o “pareciam”.
E a escuridão de seu quarto amplificava tudo.
Praguejando, descobriu que seus olhos tinham se aberto sozinhos, e desejou ter fita adesiva para poder fazer as pálpebras permanecerem fechadas.
Concentrando-se, forçou-se a respirar lenta e profundamente. Relaxou a tensão em seu corpo, começando nos dedos dos pés e subindo até a ponta da orelha. Acalmar
sua mente.
O sono chegou em uma onda gentil, submergindo-a sob a consciência comum, libertando-a das dores e inquietações, preocupação e medo.
Da culpa.
Deu a si mesma um momento para aproveitar a flutuação sem peso. E então enviou seu eu central, sua alma, aquela luz mágica que animava seu corpo, não só para fora
da cama do hospital e fora do quarto, não só pelo corredor e para fora do centro de treinamento... Mas para fora do reino da realidade terrestre.
Para o Santuário.
Dada sua gravidez, não era seguro para viajar para o Outro Lado em sua forma física. Mas deste jeito, ela cobria a distância com graça e facilidade... Além disso,
mesmo fora de seu corpo ainda podia sentir sua carne debaixo dos lençóis e era, desta forma, capaz de monitorar continuamente sua encarnação corpórea. Se algo acontecesse,
poderia voltar em um piscar de olhos.
Momentos depois, estava de pé em um gramado verde resplandecente. Acima de sua cabeça, o céu leitoso provia iluminação de nenhuma fonte definida, e ao redor, à distância,
um anel de floresta estabelecia os limites sagrados do território. Templos de mármore branco brilhavam imaculados e frescos como a noite quando tinham sido chamados
à existência tantos milênios atrás pela Virgem Escriba, e tulipas e narcisos brilhantemente coloridos eram como pedras preciosas derrubadas de um saquinho de tesouros.
Aspirando o ar adocicado, ela podia sentir sua energia sendo recarregada, e lembrou-se dos séculos que passara servindo à mãe da raça aqui em cima. Àquela época
tudo era branco, sem nuances, e não havia variação em nada, nem mesmo sombras lançadas. Mas o Primale atual, Phury, tinha mudado tudo aquilo, liberando ela e suas
irmãs para viverem suas vidas lá embaixo, para experimentarem o mundo e a si mesmas como indivíduos, ao invés de engrenagens em um todo homogêneo.
Inconscientemente levou a mão à barriga... E sentiu um calafrio. Seu estômago estava liso e ela quase entrou em pânico... Mas aí sentiu suas funções corporais na
Terra. Sim, ela pensou. A carne estava com os bebês; a alma não. E esta representação dela era como uma miragem que se movia, tanto existente quanto não existente.
Erguendo as dobras de sua túnica cerimonial, atravessou a extensão ondulante, passando pelos aposentos privativos do Primale, onde as impregnações costumavam acontecer,
e continuou em frente até parar nos umbrais do Templo das Escribas Reclusas.
Um rápido olhar ao redor confirmou o que tinha sido verdade, não só desde sua chegada neste momento, mas pelo tempo desde que o Primale as liberou: por mais belo
que o Santuário fosse, por mais que tivesse a oferecer em termos de paz e repouso, ele estava vazio e abandonado como uma fábrica desativada. Uma mina de ouro com
os veios esgotados. Uma cozinha com armários vazios.
Para seus propósitos, isto era bom.
E em seu coração, era agridoce. Liberdade tinha levado a um abandono, uma cessação no servir, um fim ao modo como as coisas eram.
A mudança, no entanto, foi mais da natureza do destino do que de outra coisa. E muita coisa boa tinha advindo disto... Embora talvez não para a Virgem Escriba. Mas
quem poderia saber como ela se sentia, já que ninguém a via há quanto tempo mesmo?
Com uma prece solene, Layla entrou no templo das escribas e observou as mesas simples brancas com suas vasilhas de água, as penas e os rolos de pergaminho. No espaço
majestoso, não havia poeira caindo pelas vigas do teto para macular as poças sagradas de vidência ou atenuar os contornos das coisas... E ainda assim, parecia que
a observação da história da raça, antigamente um dever sagrado, agora era uma tarefa abandonada improvável de ser retomada.
E aquilo parecia tornar o templo decrépito, de certa forma.
De fato, era difícil não pensar na grande biblioteca não muito longe dali, e uma imagem de suas prateleiras cheias de manuscritos após manuscritos de passagens cuidadosamente
registradas, aqueles símbolos sagrados no Antigo Idioma posto no pergaminho quando as escribas testemunhavam os acontecimentos da raça nestes mesmas vasilhas. E
havia mais outros registros lá: da Irmandade da Adaga Negra e suas linhagens, dos ditames da Virgem Escriba, das decisões dos Reis, da observação dos calendários
dos festivais e das tradições da glymera, e do respeito que devia ser prestado à Virgem Escriba.
De certo modo, a falta da continuidade do registro histórico era uma morte para a raça.
Mas também era o renascimento. Tanta coisa positiva tinha resultado da mudança dos valores, como o reconhecimento dos direitos das fêmeas, a abolição da escravatura
de sangue e liberdade para as Escolhidas.
Mas a Virgem Escriba tinha praticamente desaparecido em um vácuo espiritual, como se sua idolatria fosse um sustento que, após removido, a diminuísse à ponto da
incapacidade. E sim, Layla sentia falta de partes dos antigos costumes e se preocupava por não terem um líder espiritual no momento de tal inquietação... Mas o destino
era maior do que não somente ela, mas da raça como um todo.
E de fato, seu criador.
Andando adiante, foi até uma das mesas e puxou uma cadeira branca. Ao assentar-se, arrumou sua túnica e ofereceu uma prece pedindo que o que estava a ponto de fazer,
fosse por um bem maior.
Qualquer bem maior.
Ah, droga. Era impossível argumentar que o que estava a ponto de fazer era por puro interesse próprio.
Curvando a cabeça, posicionou as mãos na vasilha, espalmando o recipiente com reverência. Com o máximo de clareza que pôde juntar, visualizou o rosto de Xcor, dos
olhos estreitos ao lábio superior defeituoso, do cabelo cortado curto ao pescoço grosso. Imaginou o cheiro dele em seu nariz e sua presença física grandiosa diante
dela. Imaginou aqueles antebraços cheios de veias e as mãos rudes e cheias de calos, seu peito pesado e as pernas fortes.
Em sua mente, ouviu a voz dele. Viu seus movimentos. Capturou seu olhar e o sustentou.
A superfície da água começou a se mover, círculos concêntricos se formando às batidas de seu coração. E então o redemoinho começou.
Uma imagem surgiu, erguendo-se das profundezas e imobilizando a animação do líquido transparente como cristal.
Layla franziu o cenho e pensou: isto não faz sentido.
A vasilha lhe mostrava prateleiras, fileiras e mais fileiras de prateleiras cheias de... Alguma espécie de urnas. Havia tochas flamejando, luz cor de laranja tremeluzindo
sobre o que parecia ser um ambiente subterrâneo todo empoeirado.
— Xcor? – Ela sussurrou. — Oh... Querida Virgem Escriba.
A imagem que recebeu era clara como se estivesse de volta ao seu corpo em repouso. Ele estava deitado coberto por lençóis brancos em uma maca no centro do salão
das prateleiras, olhos fechados, pele pálida, braços e pernas imóveis. Máquinas bipavam perto dele, umas que ela reconheceu de seu próprio quarto na clínica. John
Matthew e Blaylock estavam sentados no chão de pedra próximos a ele, a mão de John se movia como se estivesse dizendo alguma coisa.
Blay somente anuía.
Layla desejou que a imagem mudasse para poder ver o que havia em frente e atrás de onde Xcor estava deitado. Ao aprofundar-se mais no que acabou se mostrando uma
caverna, eventualmente chegou a um vasto espaço cerimonial...
A Tumba.
Xcor estava na ante-sala da Tumba.
Layla desejou que a imagem voltasse ao local onde John e Blay estavam e ouviu Blay dizer:
— A pressão está caindo. Então, nada de cirurgia. Mas ele não parece mais que vai acordar, pelo menos não tão cedo.
John gesticulou algo.
— Eu sei, mas qual a outra opção?
Layla pediu à vasilha que mostrasse o caminho da saída e a imagem proveu uma progressão na direção oposta até onde havia um portal terminal de construção robusta,
com malha de aço sobre suas barras – além de uma tranca que parecia forte o bastante para manter fora até o mais determinado dos invasores. Então estava na barriga
da caverna, as paredes de pedra entalhadas por mãos ou pela natureza, ou talvez uma combinação de ambos.
Finalmente estava passando livremente por uma floresta de muitos pinheiros.
Afastando a visão, notou a paisagem ficando cada vez menor... Até conseguir ver o brilho da mansão.
Então ele ainda estava na propriedade. Não era tão longe.
Soltando as beiradas da vasilha, ela observou enquanto o que havia sido mostrado desaparecia como se jamais tivesse existido, a água reassumindo sua característica
transparência e anonimato.
Ao recostar na cadeira, refletiu por um longo tempo.
Então se levantou e saiu do templo das escribas.
Mas não voltou à Terra. Não de imediato.
— Sinto como se estivéssemos prestes a nos dar mal, não sei por que.
Quando sentou ao lado de Rhage na biblioteca da mansão, Mary lhe deu um tapinha nos joelhos.
— Você sabe que não é verdade.
— Minha aparência está boa?
Inclinando-se no sofá de seda, Mary observou o companheiro.
— Tão lindo como sempre.
— Será que isto funcionará a nosso favor?
— Como poderia não funcionar? – Ela beijou a bochecha dele. — Basta se lembrar de não dar em cima dela. Ela é a melhor amiga de sua esposa.
— Até parece. Ela é bonitinha e tudo o mais, assim como a maior parte dos aparelhos na cozinha de Fritz, e eu não tenho interesse em encoxar nenhum deles.
Mary riu e lhe deu outro apertão. Então voltou a sentir como se sua cabeça fosse explodir.
— Então. É. Enfim... Sabe, nunca prestei muita atenção a esta sala antes. É bonita.
Quando Rhage fez um mmm-hmmmm, ela olhou ao redor para as prateleiras de livros e a lareira crepitante e todos os tons ricos de joia dos carpetes, cortinas e almofadas.
Havia uma escrivaninha. Sofás para se acomodar com algum livro da coleção... Ou seu Kindle, se assim preferisse. Algumas pinturas a óleo. E então todos os tipos
de itens decorativos que Darius tinha colecionado em vida, de conchas marinhas especiais a pedras raras e fósseis.
— Não consigo respirar.
Quando Rhage colocou a cabeça entre os joelhos, ela esfregou os ombros dele, confortando-se ao confortá-lo também. Provavelmente não ajudaria dizer a ele que ela
também se sentia meio sufocada. E um pouco nauseada.
Marissa entrou apressada dez minutos depois.
— Desculpe! Sinto muito... Oh, ei, Rhage.
— Oi. – Rhage pigarreou e ergueu a mão. — Ah... Oi. É.
Marissa olhou de um para o outro. Então pareceu se recompor e fechou as portas.
— Estava me perguntando por que é que você quis me encontrar aqui. Agora entendo.
— É. – Disse Rhage. — Eu não posso... Bem, sabe. Entrar no Lugar Seguro. Coisa que você deve saber... Por que é diretora do lugar. E... Eu realmente preciso parar
de falar aqui, não é?
Marissa se aproximou do fogo, sua beleza extraordinária parecendo atrair toda a iluminação e calor da lareira. Ao sentar-se em uma poltrona, cruzou as pernas como
a dama perfeita que era.
Seu rosto estava remoto, mas não frio. Ela parecia atenta.
Isto não vai dar certo, Mary pensou aterrorizada.
— Então... Obrigada por aceitar nos encontrar. – Mary pegou a mão de Rhage. — Vou evitar rodeios. Rhage e eu estivemos conversando e gostaríamos de explorar a possibilidade
de adotar, ou no mínimo tutelar Bitty. Antes de você dizer não, gostaria que considerasse que eu tenho conhecimentos clínicos em...
— Espere. – Marissa ergueu as mãos. — Espere, isto não é sobre... Você pedir demissão?
— O que?
Marissa ergueu a mão até o coração e apoiou-se em seu assento.
— Você não está se demitindo.
— Não... Santo Deus, de onde tirou esta ideia?
— Achei que tinha te ofendido durante nossa conversa antes da Última Refeição. Eu não sabia onde estava pisando... Digo, só estou tentando fazer o que é correto
para Bitty e eu... – Marissa parou de supetão. Assustou-se. — Eu te ouvi dizer adoção?
Mary respirou fundo. E cara, ela apertou a mão de seu hellren.
— Rhage e eu conversamos sobre isto. Nós queremos ser pais, e podemos dar a Bitty um lar cheio de amor, um lugar para ela chamar de seu, um sistema de suporte que
seja mais do que profissional. Como você sabe, eu não posso ter filhos... E Bitty está realmente sozinha no mundo. Mesmo Vishous não foi capaz de encontrar o tio
dela.
Marissa piscou algumas vezes. Olhou de um para outro de novo.
— Isto é... Extraordinário.
Rhage se inclinou para a frente.
— Isto é bom ou ruim?
— Bom. Digo... – Marissa recostou-se e encarou o fogo. — É maravilhoso... Fantástico. Só não sei direito o que temos de fazer.
Espere, aquilo foi um “sim”? Mary pensou com o coração aos saltos.
— Bitty precisa opinar sobre isto. – Disse ela tentando manter a cabeça fria. — Ela tem idade suficiente para escolher. E eu sei que não vai ser fácil... O processo
de adoção ou virarmos pais. Rhage também sabe. Eu acho, no entanto... Isto meio que começa com você, sabe?
Sem qualquer aviso, Marissa levantou-se rapidamente de sua poltrona e abraçou Mary, e então Rhage. Quando voltou a sentar, ela abanou as lágrimas em seus olhos.
— Eu acho que realmente é uma ótima ideia!
Está bem, Mary começou a ficar um pouquinho lacrimosa. E não podia olhar para Rhage... Por que se ele tivesse lágrimas nos olhos, e ela tinha quase certeza que sim,
o jogo estaria acabado.
— Fico muito feliz por você nos apoiar. – Mary disse com voz rouca. — Embora eu não saiba se seremos aceitos...
A mão elegante de Marissa cortou o ar.
— Não estou nem um pouco preocupada sobre a capacidade de vocês dois serem bons pais. E por favor, não encare qualquer pausa que eu fizer como falta de apoio. Eu
só nunca tive de fazer algo assim.
Rhage falou.
— Saxton conhece o procedimento legal. Ele nos mandou alguns documentos. Acho que preciso de uma audiência diante do Rei como membro da aristocracia...
Mary ergueu as mãos, tipo, uaaaaau.
— Espere, espere, será necessária uma avaliação formal de nós dois antes. E temos que pesquisar mais a família da mãe dela... E a do pai. E temos de perguntar a
ela se sequer está interessada nisso. A morte da mãe é muito recente. Não quero que ela pense que estamos querendo tomar o lugar da família legítima dela ou tentar
substituir de alguém que jamais poderá ser substituído. Precisamos agir com calma. Também há um problema em potencial.
— E o que seria? – Perguntou Marissa.
Quando Mary olhou para Rhage, ele pigarreou.
— Eu devoro pessoas. Digo... A Besta. Você sabe. Ela devora coisas. Que não deviam... Hum, sabe... Ser devoradas.
— Ele nunca apresentou risco para mim. – Mary exclamou. — Mas não podemos fingir que o dragão dele não é um fator nisto. Quem quer que for determinar se nos encaixamos
no papel, seja você, ou Wrath, ou outra pessoa, precisa estar plenamente ciente de que levaremos junto um monstro da altura de três andares coberto de escamas roxas,
comedor de lessers.
Rhage ergueu a mão como se estivesse em sala de aula esperando pra ser chamado. Quando ambas só olharam para ele, abaixou o braço, desconfortavelmente.
— Ah, na verdade ele nunca consumiu nada além de lessers. Embora eu realmente ache que tentou comer Vishous. – Seu hellren hesitou. — Está bem, certo, pelo que ouvi,
na outra noite ele perseguiu V e Assail até uma cabana, da qual ele pode ter arrancado o telhado e pode ter tentado devorá-los... Mas não conseguiu.
— Graças a mim. – Mary declarou.
— Ele ouve a Mary. Aquilo. Ouve. Quero dizer. – Houve uma pausa. — Merda.
Mary deu de ombros.
— De qualquer forma, estamos cientes de que não somos os pais convencionais mais atraentes. Mas prometo... Se tivermos a chance, iremos amar aquela garotinha com
tudo o que temos.
— Idem. – Disse Rhage. — Completamente idem.
Marissa soltou uma risada suave.
— Eeeeeee é exatamente por isto que não estou preocupada com vocês dois adotando qualquer coisa ou qualquer um, seja um cão de um abrigo ou uma criança do Lugar
Seguro.
Mary exalou em alívio.
Enquanto isto, Rhage pegou uma página do livro de Marissa e começou a se abanar. Então apoiou um braço na mesinha de centro como se estivesse com medo de desmaiar.
— Não está quente aqui? Sinto calor... Acho que vou...
Mary pulou e correu para uma das portas francesas. Quando a abriu, ela disse:
— Ele fica um pouco zonzo às vezes. Sabe, quando está aliviado. Respire comigo, amor. Respire comigo.
Marissa aproximou-se e sentou perto de Rhage. Ao pegar uma almofada e começar a abaná-la perto daquele rosto belo e profundamente corado, ela riu.
— A gente vai dar um jeito. De alguma forma, de alguma maneira, vamos dar um jeito, está bem? E esperançosamente, no final Bitty virá para casa com vocês dois.
Quando Mary pegou outra almofada e se juntou ao esforço, ela olhou dentro dos olhos do Irmão que amava... E tentou ver o futuro em suas feições.
— Eu espero. Deus, espero tanto que chega a doer.
Capítulo CINQUENTA E UM
— Você quer saber o que?
Enquanto V colocava a questão meio compreensível, Assail mudou seu celular para o outro ouvido e pôs a caneca de café na máquina de lavar. O doggen que tinha esperado
entrevistar nesta noite... Para que seus primos cessassem e desistissem de todas as refeições congeladas... Teve que ser remarcado. Então isso significava que ele
permanecia o Sr. Limpeza.
— Master Lock20, – Assail explicou. — Preciso saber como liberar uma Master Lock. E tem que ser de tal forma que a coisa permaneça funcional depois disso.
O irmão riu com uma linha dura.
— Sim, meu primeiro conselho seria atirar nessa porcaria... O que não iria ajudar se você quer que isso continue funcionando. O que exatamente está tentando acessar?
— Um segredo.
— Parece bizarro. E de quão antigo estamos falando? O cadeado, não o segredo.
— Novo.
— Ok, sim, tenho algo pra você. Onde você está...
Um sutil sinal sonoro cortou a conversa e Assail colocou o celular longe de sua orelha.
— Ah, sim, aqui está ela. E estou em casa, Vishous.
— Estarei aí em dois minutos. Em seu quintal.
— Estou esperando à frente por sua audiência. – Assail clicou na outra chamada. — Olá querida...
Chorando. Naasha estava chorando abertamente e Assail sabia a causa sem a explicação.
— O que aconteceu? – Disse enquanto caminhava e abria a porta dos fundos.
O ar frio irritou seu nariz, mas segurou os espirros enquanto todos os tipos de gagueiras e fungadas vinham através da conexão.
— Ele está morto. Meu hellren... Está morto.
É claro que está, Assail pensou. E sei o por quê.
— Sinto muito, querida. O que posso fazer por você em seu luto?
A fêmea fungou uma quantidade de vezes.
— Você pode vir, por favor?
— Sim. Dê-me dez minutos?
— Obrigado. Estou de coração partido.
Não, você é a herdeira dele, pensou enquanto terminava a chamada. E seu amante é quem está coordenando tudo isso... E você é a próxima na fila para o caixão, querida.
De fora na escuridão, uma forma enorme apareceu sobre o gramado e o Irmão Vishous ativou as luzes de segurança enquanto andava até a casa.
— Houve uma morte de certa nota, – Assail anunciou. — Parece que o hellren da amante de Throe faleceu.
— Oh, sério?
— Não estou paranóico ainda, mas é o que parece. É uma certeza, pra ser mais preciso. – Ele encontrou Vishous na metade do caminho para o gramado e trocaram cumprimentos
com as mãos. — Eu sabia que ele não tinha muito tempo neste mundo. A questão é como ele faleceu... E eu pretendo descobrir.
— Há um assassino sob aquele teto.
— De fato. E deixarei você saber o que eu descobrir.
— Se precisar de apoio, nós pegamos você. E se acontecer de encontrar evidências de assassinato? Estarei feliz de colocar a "morte" na sentença.
— Combinado.
— Ah, e se ainda estiver interessado na Master Lock, isto é o que você precisa. – Vishous entregou a ele uma ferramenta prateada que parecia uma chave de fenda em
miniatura. — Use isso como uma chave. Deve funcionar.
— Obrigado.
Vishous bateu no ombro dele.
— Você está provando valer a pele que usa, verdade?
— Não tenho certeza se isso é um elogio ou não.
— Esperteza sua.
Puf! O irmão foi embora, deixando apenas uma brisa fria para trás. E na sequência da sua partida, Assail voltou para sua casa e gritou:
— Cavalheiros? Estou saindo.
Ehric deu um passo na entrada.
— Para onde?
— Pra Naasha. Ela teve uma mudança de posto, por assim dizer. Seu hellren faleceu... Ou foi assassinado, como pode muito bem ser o caso.
— Interessante. Deixe-nos saber se você nos precisar?
— Eu devo.
Fechando os olhos, Assail desmaterializou e viajou em uma dispersão sobre o rio até a propriedade do hellren de Naasha. Assim que se reconstituiu na entrada da frente,
caminhou diretamente para o portal e o abriu completamente, evitando qualquer batida ou toque.
Throe estava em pé no foyer, e quando avistou a porta abrindo, franziu a testa e depois recuou.
— O que... O que você está fazendo aqui?
Assail fechou a porta pesada atrás de si, e em seguida contorceu o lenço no bolso de volta na posição ideal.
— Fui convidado aqui.
— Então deve entrar apropriadamente... Tocando a campainha. Você não vive aqui.
— E você vive.
— Sim.
Assail cruzou a distância para parar diante do outro homem; então estendeu a mão e correu as pontas dos dedos por baixo da lapela do terno preto reconhecidamente
refinado de Throe. O filho da puta era bonito... Tinha que dar isso a ele. Claro, também era moralmente corrupto e tão confiável quanto uma víbora sob os pés.
E não era autêntico, porque essa combinação reuniu de modo muito constante.
— Meu caro rapaz, – Assail murmurou. — Se você não sabe o porquê de eu ter sido convocado, você é cego ou ingênuo.
Throe deu um tapa na mão do Assail para a afastar.
— Eu não sou seu “rapaz”.
Assail se inclinou.
— Mas gostaria de ser, não é?
— Foda-se.
— Tudo que você tem a fazer é pedir agradavelmente e vou considerar. Enquanto isso, pode lembrar a si mesmo que sua amante estará à procura de sua próxima vítima...
Quero dizer hellren. E por mais que você seja encantador, acredito que está faltando um critério importante. Pelo que andei ouvindo, você é pobre. Ou, pelo menos,
o que se passa por pobre para os padrões dela. No entanto, eu não tenho esse problema, tenho? Quem sabe seja por isso que ela tenha me chamado?
Enquanto Throe mostrava suas presas e parecia preparado para oferecer uma reprimenda, o som de passos apressados veio descendo pela escada em espiral.
— Assail!
Abrindo os braços, aceitou o perfume cuidadosamente escolhido que o atingiu, e enquanto segurava Naasha rente a seu corpo, ele encontrou os olhos de Throe. Jogando
ao cavalheiro uma piscadela, Assail deliberadamente moveu a mão para baixo até a bunda da fêmea e apertou.
Naasha recuou.
— O advogado está chegando. Você vai ficar enquanto eu me encontro com ele?
— Mas é claro. Aliás, quando você precisar, estarei sempre ao seu serviço.
— Levaram embora os restos mortais do meu companheiro. – tirando o lenço de seda de seu decote, ela enxugou as bochechas que estavam secas e cuidou dos olhos que
não estavam nem injetados de vermelho nem manchados. — Ele deve ser cremado nesta noite. E então teremos a cerimônia do Fade. Ele sempre disse que desejava ser espalhado
na propriedade.
— Então é isso que você precisa fazer por ele em seu repouso final.
— Mandei meus hospedes embora. Parecia impróprio tê-los sob este teto enquanto esses arranjos estão sendo feitos. – Mais um pouco de fingir que estava enxugando
os olhos. — Estou muito sozinha. Vou precisar de você agora mais do que nunca.
Assail curvou-se enquanto sentia Throe ferver.
— O prazer é meu.
— Talvez você deva se sentar comigo e o advogado...
Throe falou.
— Não, estarei lá para apoiá-la. Isso precisa ser privado.
— Ele tem razão. – Assail murmurou enquanto acariciava seu rosto com as costas dos dedos. — Estarei feliz em permanecer aqui pelo tempo que for preciso. Providencie
pra mim uma sala e talvez eu me distraia com algo da sua biblioteca.
Houve um badalar na porta da frente, e o mordomo se materializou saído de um aposento nos fundos. Enquanto o doggen se apressava adiante para responder à convocação,
Throe levantou uma sobrancelha... Como se salientasse que esta era realmente a forma apropriada como os hóspedes deviam ser recebidos.
E então Saxton, o próprio advogado do Rei, entrou na mansão.
Saxton estava mais harmonizado ao tom da Regência do que à vida moderna em muitos aspectos, seu cabelo loiro ondulado penteado para trás, seu terno feito sob medida
por um especialista, o casaco de caxemira e a maleta Louis Vuitton colocando-se entre pólos opostos da moda elegante e do advogado de carreira.
— Senhora, – Disse ele com uma reverência. — Meus pêsames por sua perda.
Interpretou outra rodada teatral de secar de olhos e lenço espanando... E enquanto o drama seguia, Assail saiu da conversa, porém chamou a atenção do Saxton. À medida
que acenavam um ao outro de forma discreta, Assail teve a nítida impressão de que o advogado sabia exatamente por que ele estava na casa.
Ah, Wrath. Com os dedos nas tortas de todo mundo... E isso até que era bom, Assail estava chegando a acreditar.
— Permita-me mostrar ao meu amigo o estúdio, – Disse Naasha. — E então teremos nosso encontro na biblioteca. Meu doggen irá levá-lo lá agora e aceitar seu pedido
por algo para beber. Throe deve se juntar a nós como um conselheiro meu.
Assail teve o cuidado de se desculpar formalmente com o Saxton, como se eles dois não se conhecessem. E então estava seguindo Naasha até uma sala que cheirava como
potpourri e madeira enfumaçada. Enquanto ela os fechava ali dentro, as portas de correr eram tão ornamentadas quanto as estátuas lapidadas e tinha tanto ouro sobre
elas quanto o colar Bvlgari que a fêmea tinha em sua garganta.
Ela caminhou até ele. Fungando delicadamente.
— Você me aliviará em meu luto?
— Sempre.
Ele a puxou contra si por que ela queria assim. E beijou-a com cuidado para que não borrasse o batom vermelho fosco... Também por que ela queria.
— Minha querida, – Disse enquanto passava uma mão levemente sobre seus cachos penteados e em cascata. — Diga-me. Como descobriu que o seu amado tinha falecido?
Enquanto falava, ele memorizou cada palavra que ela disse:
— Entrei para cumprimentá-lo antes de sua Primeira Refeição ser servida. Ele estava deitado em sua cama, tão calmo quanto podia estar... Mas ele estava frio. Tão
frio. Ele se foi. Em seu sono... O que foi uma bênção.
— Uma boa morte. Uma morte aprazível para um homem digno.
Ela o beijou de novo, lambendo sua boca... E ele pôde provar Throe nela, sentir o cheiro do outro macho sobre ela.
— Vai estar aqui quando eu terminar? – Ela disse com um toque de comando.
O interior dominante de Assail recusou-se à ordem, mas seu lado lógico cancelou o instinto.
— Como eu disse, vou esperar pelo tempo que for preciso.
— O testamento tem muitas disposições.
— E não tenho mais nada a fazer do que te atender.
Ela positivamente brilhou ante aquilo... E ele teve que se segurar para não revirar os olhos. Mas logo ela estava dançando pra fora do aposento, pronta para ir descobrir
tudo o que estava para herdar.
— Tchau por enquanto, – Ela brincou antes de deslizar as portas de volta no lugar.
Conforme o clicar de seus saltos altos sobre o mármore desaparecia, ele olhou para o teto. Não havia câmeras de segurança que pudesse ver, mas este seria o lugar
mais óbvio para colocá-los.
Antes de tentar afastar-se do estudo, ele precisava saber se alguém estava olhando.
Capítulo CINQUENTA E DOIS
— Fritz... Como descrever Fritz...?
Ao chegar a um semáforo, Rhage pisou no freio do GTO e olhou pelo retrovisor. Bitty estava no banco de trás e olhava para frente com uma expressão fascinada, como
se o que ele estivesse falando fosse a coisa mais interessante que já tivesse ouvido.
Por um momento, o coração dele disparou. Não conseguia acreditar que houvesse mesmo uma possibilidade de que pudesse ter a chance de...
Foco, disse a si mesmo. Temos um longo caminho a percorrer antes de poder ficar todo sentimental.
Mas Deus, se acontecesse ele ia ter muitas conversas com a garotinha.
— Rhage. – Mary chamou.
— Desculpe, certo. – O sinal ficou verde, o que indicou a seu cérebro para mover o carro adiante. — Está bem, então, Fritz parece o cara do filme Os Caçadores da
Arca Perdida, sabe? O que aparece com a cara derretendo. Só que não é tão assustador... E na verdade, nada derretido.
— O que é Os Caçadores da Arca... O que?
Rhage afundou no banco do motorista.
— Oh, meu Deus, ouça... Teremos de trabalhar na sua educação. Tem tanta coisa... Você já assistiu Tubarão?
— Não...
Ele se debateu contra o apoio da cabeça do banco.
— Não! Oh, não... A humanidade!
Quando Bitty começou a rir, Rhage estendeu uma mão para Mary.
— Segure-me, preciso saber do mais importante.
— Estou aqui contigo, querido.
Rhage olhou pelo retrovisor de novo.
— Você ao menos sabe quem é John McClane?
— Não...
— Hans Gruber?
— Humm... Não...
— Maaaaaary, me segura!
Mary começou a rir e empurrá-lo de volta para sua posição.
— Dirija o carro!
Com as risadas das garotas, ele forçou-se a se recompor.
— Vamos ter de trabalhar nisto mais tarde. Enfim, Fritz é... Ele é mais velho do que Deus, como dizem os humanos. E fica todo atrapalhado se você tentar fazer qualquer
coisa. Ele não deixa a gente limpar nossa própria bagunça, se estressa se a gente tenta preparar qualquer comida e tem uma necessidade obsessiva de aspirar o pó.
Mas... – Ele apontou com o dedo indicador. — Ele comprou um freezer de sorvete só pra mim. E estou te dizendo, isto perdoa uma infinidade de pecados.
Mary virou-se.
— Fritz é a força mais gentil do planeta. Ele é responsável pela equipe de empregados e cuida de tudo e de todos na casa.
— Quantas pessoas vivem lá? – Perguntou Bitty.
— Contando os doggen? – Mary ficou quieta por um momento. — Deus, talvez trinta? Trinta e cinco? Quarenta? Eu não sei ao certo.
Rhage interrompeu.
— O mais importante é...
— ... Tem uma porção de amor.
— ... Há um cinema com direito a doces à vontade.
Quando Mary dardejou-o com o olhar, ele deu de ombros.
— Não subestime a importância de Milk Duds no escuro. Bitty, diga, já comeu Milk Duds?
Quando a garota negou com a cabeça com um sorriso, ele ergueu as mãos.
— Cara, eu tenho uma porção de coisas para te ensinar, mocinha.
Adiante deles, a Lucas Square apareceu à distância, o brilho de todas as lojas e letreiros de neon brilhavam como a luz do dia. E por falar em sacolejos... Havia
pedestres por todo o lado nas calçadas largas, humanos românticos caminhando de braços dados com parceiros, famílias implicando entre si, turmas de garotas adolescentes
e bandos de garotos adolescentes passando de lá para cá.
— É sexta-feira? – Perguntou ele, ao entrar em um dos estacionamentos descobertos.
— Acho que é... Não, espere, é sábado. – May verificou em seu celular. — É, é sábado.
— Não é de se surpreender estar tão cheio.
Levou um tempo para achar uma boa vaga e ele rejeitou algumas por terem aspecto de aglomeração de caminhões, SUVite estrábica ou deformação de minivan. Finalmente
achou uma vaga próxima a uma área verde, onde parou seu bebê perto do meio-fio.
— Sim, ele sempre é seletivo deste jeito. – Mary disse ao descer e puxar o banco para Bitty.
— Ei, eu cuido de minhas fêmeas, tá? – Quando a porta delas foi fechada, ele estendeu a mão e trancou-a manualmente, então também saiu e usou a chave na fechadura
do lado do motorista. — Nenhum humano vai arranhar minha lataria.
Eles entraram na fila juntos com Bitty entre os dois. O TGI Friday estava logo à frente na esquina, e quando um grupo de humanos barulhentos saiu correndo por suas
portas, Rhage franziu o cenho.
— Ei, Bitty? – Chamou ele casualmente. — Quer dizer que você nunca esteve em um restaurante antes?
— Não.
Rhage parou e colocou a mão sobre um ombro que o chocou por ser tão fino e pequeno. Mas ele tinha outra preocupação naquele momento.
— Pode parecer meio barulhento, está bem? Muita gente conversando, bebês chorando, pessoas rindo alto. Vai ter pessoas correndo pra lá e pra cá com grandes bandejas
de comida... Muitos cheiros e sons diferentes. Pode ser opressivo. Eis o que precisa se lembrar. Se tiver de ir ao banheiro, Mary vai com você, para não ter de se
preocupar em se perder ou ficar sozinha. E se achar, em qualquer momento, que é estímulo demais, podemos ir embora. Não importa se mal tivermos olhado o cardápio,
feito o pedido ou estejamos com o garfo na mão. Eu deixo o dinheiro na mesa, – Ele estalou os dedos. — E damos o fora.
Bitty o encarou. E ele se preocupou de ter ido longe demais ou...
A garota jogou o corpinho frágil contra o dele e abraçou forte. De início, Rhage não soube o que fazer, e só baixou os braços nas laterais de seu corpo e olhou para
Mary em pânico. Mas quando sua shellan levou a mão à boca e pareceu, ela mesma, procurar se recompor, ele retribuiu o abraço da garota de forma bem leve.
Enquanto ainda estavam unidos, Rhage fechou os olhos. E emitiu uma prece silenciosa.
Mary só conseguiu balançar a cabeça. E ela pensava ter se apaixonado por Rhage antes. Pensava que o amasse com todo o coração. Pensava que ele era sua alma gêmea,
seu centro, seu melhor impossível.
Conversa fiada.
Vê-lo curvar seu enorme corpo ao redor daquela garotinha ao retribuir o abraço de Bitty?
Bem, quem diria, aquilo não só fez seus ovários gritarem... Os inúteis bem que pareceram quase explodir entre seus quadris.
Quando os três voltaram a andar, Rhage manteve uma mão pousada sobre o ombro de Bitty. Como se para os dois fosse a coisa mais natural do mundo... Mesmo Rhage tendo
de se inclinar para o lado e os dois esbarrarem um no outro até acertarem os passos.
Quando se aproximaram do restaurante, Mary olhou ao redor e identificou outras famílias... E não conseguiu impedir de abrir a porta da fantasia por uma fração de
segundo e fingir que sua pequena unidade ali era igual às outras. Que eram uma mãe, um pai e uma filha saindo para jantar para conversar sobre coisas bobas, coisas
sérias e também sobre nada em específico... Antes de voltarem para casa juntos, para um lugar onde ficassem a salvo.
Rhage adiantou-se, abriu a porta, e dentro o restaurante era exatamente como tinha descrito, barulhento, agitado e fervilhando de vida. Felizmente Bitty parecia
mais curiosa do que nervosa, embora tenha agarrado Rhage quando ele se aproximou da recepcionista e pediu uma mesa para os três em um reservado, se possível.
A morena que estava atrás da caixa registradora deu uma olhada para ele... E quem diria, nada de espera para Rhage. Quando a jovem sorriu exibindo todos os dentes
da boca e fez um pequeno bamboleio ao tirar três da pilha de cardápios, Mary meneou a cabeça em sinal de desculpas para as outras vinte pessoas na fila.
— Por aqui!
A recepcionista abriu caminho através de diferentes sessões do local, levando-os para o outro lado onde havia, de fato, um reservado recém-liberado, a superfície
ainda úmida, ainda sem novos talheres dispostos. O que foi resolvido imediatamente, quando Rhage e Bitty sentaram-se de um lado e Mary assumiu o banco à frente deles.
— Aproveitem sua refeição. – A recepcionista disse para Rhage.
Antes que alguém pudesse dizer qualquer coisa, uma loura de cabelos curtos e olhos muito maquiados apareceu trazendo água em uma bandeja. Sua expressão era uma combinação
de tédio e aflição... Até ver a quem serviria.
Mary só sorriu e meneou a cabeça, abrindo o seu menu. Enquanto avaliava a enorme variedade de pratos oferecidos, estava vagamente ciente da conversa acontecendo,
mas não se incomodou em acompanhar.
Ao ficarem sozinhos, Rhage abriu seu cardápio.
— Está bem, o que temos...
— Elas sempre fazem isto? – Perguntou Bitty.
— Fazem o que? – Ele virou uma página plastificada. — Quem?
— As humanas. Encaram você desse jeito.
Rhage pegou seu copo de água para provar um gole.
— Não sei do que está falando.
— Como se elas quisessem pedir uma refeição com você como prato principal?
Água. Para. Todo o canto. Quando Rhage tossiu e deu um soco no peito, Mary teve de rir. Também teve de desenrolar seus talheres para usar o guardanapo para secar
a bagunça.
— Sim, elas sempre fazem. – Disse Mary. — Elas são sugadas para a Zona do Isto é Incrível e não conseguem sair.
Rhage respirou fundo.
— Eu não sei... Do que vocês estão falando.
Bitty se virou para ele.
— Você não vê como...
— Eu não reparo. – Rhage olhou dentro dos olhos da garota. — Minha Mary é a única fêmea que vejo. É assim que é, e é assim que sempre será. As outras podem olhar
o quanto quiserem, elas jamais irão chegar aos pés daquilo com o que fui abençoado, e eu nunca, nunca teria nada com elas.
Bitty pareceu considerar aquilo por um momento. Então pegou seu próprio cardápio com um sorrisinho.
— Acho que isto foi muito bonito.
— Então, o que você quer comer? – Perguntou Mary. — Vocês dois.
— Estou no clima pra filé. – Rhage virou outra página. — E também comida mexicana. E frango. E acho que umas batatas.
Mary se inclinou para Bitty.
— Que bom que somos só três ou iríamos precisar de outra mesa só para os pratos dele.
— Não sei o que escolher. – A garota disse. — Eu nunca vi... Tantas opções.
— Bem, se quiser posso dividir com você. – Mary fechou os menus e colocou na beirada da mesa. — Mas vou pedir só uma grande salada.
— Ainda estou escolhendo minha lista. – Rhage cutucou Bitty com o cotovelo. — Acho que você devia provar pelo menos uma coisa só sua. Você merece ter seu próprio
prato... Além disso, se sobrar eu posso comer.
Quando a garçonete voltou, só tinha olhos para Rhage... E foi engraçado. Mary se lembrava de como ficava insegura com aquele tipo de coisa no começo de seu relacionamento...
Especialmente à luz daquele episódio. Mas agora? Verdadeiramente não a incomodava. Rhage não tinha mentido. Estas mulheres podiam literalmente ficar peladas na frente
dele, e ele não teria mais interesse nelas sexualmente do que teria por um sofá.
Incrível como seu companheiro podia fazer você sentir-se amada sem realmente dizer uma palavra.
— Então, o que vão pedir? – A garçonete perguntou a Rhage.
— Primeiro minhas garotas. Bitty?
A garota pareceu entrar em pânico.
— Eu não sei. Eu não...
— Se importa se eu fizer uma sugestão? – Rhage perguntou. Quando ela anuiu, ele disse. — Peça o macarrão com queijo, com brócolis à parte e as iscas de frango crocante
com o molho barbecue com mel. Simples. Cai fácil no estômago. Sem muita confusão para as papilas gustativas.
Bitty pareceu se preparar. Então olhou para a garçonete.
— Pode me trazer, por favor, isto que ele disse?
A garçonete anuiu em concordância.
— Sem problema.
— Minha Mary?
Mary sorriu.
— Eu quero a salada de frango Cobb grelhado, por favor, sem abacate e sem queijo gorgonzola... Molho somente ranch ou algo parecido, seria ótimo. À parte.
— Temos molho ranch. – A garçonete se concentrou em Rhage, seus olhos devorando o rosto dele, os ombros, o peito. — E você?
— Bem, acho que vou começar com as asas de frango ao modo buffalo com as batatas gratinadas recheadas. Então os espetinhos de frango hibachi, o combo New York meio
costelas barbecue, meio Memphis, o filé no ponto, e para finalizar, o Reuben triplo. Oh, e acho que quero o hambúrguer All-American também. Também no ponto. Oh,
e molho ranch com as asas, por favor. À parte.
Ao fechar o menu, pareceu inconsciente de estar sendo encarado.
— Sim? – Ele disse à garçonete.
— Vocês... Vocês estão esperando mais pessoas?
— Não. – Ele juntou os menus e entregou a ela. — E quero duas coca-colas, por favor. Senhoras?
— Água para mim. – Disse Mary. — Bitty, água ou refri? Água? Está bem, ela quer água... E então eu acho que é só. Estamos com muita fome, como pode ver.
Quando a garçonete se afastou com um par de olhos arregalados, Bitty começou a rir.
— Você não vai mesmo comer tudo aquilo, vai?
— Diabos, claro que vou! – Rhage estendeu a mão. — Quer apostar?
Bitty apertou a mão dele.
— Mas o que acontece se eu perder?
— Você vai ter de comer o que sobrar.
— Eu não vou conseguir fazer isto!
Enquanto os dois discutiam, Mary só observava, o macho enorme e impossivelmente bonito com a garota pequena como um duende, tão confortáveis um com o outro quanto
possível.
— Mary?
Ela voltou à realidade.
— O que?
Rhage estendeu a mão sobre mesa.
—Bitty perguntou como nos conhecemos.
Quando Mary bateu na mão dele, ela teve de sorrir.
— Oh, você não acreditaria.
— Conta pra mim? – A garota pediu, sentando-se mais na beirada do seu banco. — Por favor?
Capítulo CINQUENTA E TRÊS
Quando teve certeza de que não havia câmeras de circuito interno ou qualquer outro tipo de monitoramento no escritório, Assail foi até as portas entalhadas e abriu
uma fresta. Como não ouviu ruído algum, saiu para o saguão e permaneceu completamente imóvel, procurando ouvir sons de vozes ou passos.
— A costa está limpa, com certeza. – Murmurou, olhando ao redor.
Estava a ponto de ir para a escada principal quando ouviu um grito agudo vindo da sala fechada, do outro lado do corredor.
— … Mentira! – Naasha berrou, o volume de sua voz mal abafado. — Devem ter forjado a assinatura dele! Isto é uma abominação!
Más notícias? Ele se perguntou com um sorriso. Talvez algum parente há muito tempo perdido tenha acabado de aparecer no testamento?
Ele correu de volta para o escritório de onde tinha saído e mal teve tempo de fechar totalmente a porta, quando Naasha irrompeu para o corredor e foi pisando duro
na direção da escada. Mas logo Throe a alcançou, segurou seu cotovelo com um toque rude e a girou.
Avançando o macho disse em um tom de voz baixo.
— Você precisa ouvir o resto das disposições. Sim, eu sei que é um choque, mas não poderemos lutar contra o que não conhecermos por completo. Volte lá. Pare de gritar.
E deixe Saxton terminar a leitura. Quando ele concluir, perguntaremos quais podem ser os seus direitos e quem vai julgar sua contestação do testamento. Então constituiremos
nosso próprio advogado. Mas você não pode sair correndo, despreparada e histérica. Não se quiser o dinheiro que lhe é devido. Compreende o que estou dizendo?
A voz que saiu da garganta irritada da fêmea era desagradável como o rosnado de um cão.
— Era para ser meu. Passei os últimos vinte anos ouvindo as reclamações dele. Eu mereço cada centavo daquele dinheiro.
— E vou te ajudar a obter o que é seu. Mas isto não vai acontecer se você não se controlar. Emoções não são bem-vindas neste momento.
Houve um pouco mais de conversa. Então Naasha endireitou os ombros e voltou à sala onde a reunião se desenrolava.
Pobre Saxton.
Mas não havia tempo para sentir pena do pobre advogado agora.
Assail não perdeu tempo quando ouviu a porta sendo novamente fechada. Ele se esgueirou para fora do escritório, fechou a porta e chegou correndo à escada. Ao chegar
ao segundo andar, cruzou o corredor mais adiante de onde já tinha ido antes até uma grandiosa suíte, que tinha a porta aberta. No momento em que sentiu o cheiro
adstringente no ar, soube que era o quarto do hellren dela... Era o que achava, mas a cama estava sem lençóis, os travesseiros empilhados no centro do colchão, todos
parecendo muito gastos.
Puxou o celular e começou a tirar fotos. Não fazia ideia do que podia ou não estar fora do lugar, mas aquilo era para investigação futura.
Manchas. No colchão.
Mais para cima do que poderia se esperar de uma perda de controle da bexiga.
Os travesseiros estavam igualmente manchados.
Um fugaz aroma lhe disse que não era sangue, nem urina. Mas o que era aquela substância?
Dentro do banheiro. Medicamentos por todos os cantos, frascos com tampas tortas ou sem tampa nenhuma. Um andador. Uma bengala. Suportes.
Voltou a sair da suíte em menos de sete minutos e parou no alto das escadas. Duas maneiras de chegar ao andar do porão. Pelos fundos, naquele caminho que ele tinha
feito na outra noite...
Não, usaria o outro método desta vez.
Fechando os olhos, desmaterializou no primeiro andar e se transportou de forma incorpórea através dos umbrais até retomar a forma no topo da escada principal que
levava ao porão.
Seus ouvidos não indicavam razão para preocupação, então abriu a porta e adentrou a escuridão. Usando a lanterna de seu celular para guiar seus passos, manteve-se
nas laterais dos degraus toscos, sentindo o ar úmido e frio pinicando suas narinas.
Lá embaixo prosseguiu, passando rapidamente pela sala das safadezas de Naasha. Não gostou da quantidade de ruídos que seus sapatos de couro faziam no chão de pedra,
mas não havia nada a ser feito a respeito disso... E logo se deparou com aquela porta da fechadura reforçada.
Aquele cheiro ainda estava no ar, pensou ao tirar a ferramenta de Vishous e inseri-la onde a chave adequada se encaixaria. Manipulando o pedaço de metal em movimentos
circulares, a tranca se soltou.
Sem nem verificar onde precisamente estava entrando, esgueirou-se para dentro e voltou a fechar a porta.
Na escuridão completa, ouviu um som de movimento no canto. E um arrastar de...
Correntes?
Respiração. Alguma coisa estava respirando ali.
Assail apontou o celular naquela direção, mas o pequeno feixe de luz não iluminava mais do que poucos metros. Voltou a guardar o celular, empunhou uma das armas
e tateou ao redor das vigas expostas, perto da porta.
Ao encontrar o interruptor de luz, acionou-o...
E recuou, horrorizado.
Havia um macho nu acorrentado ao chão no canto do cômodo. Acorrentado e trêmulo, encurvado sobre si mesmo, cabeça baixa e braços enlaçando pernas esqueléticas, o
longo cabelo era a única cobertura que tinha.
O cheiro... O cheiro era da refeição velha que havia sido deixada em uma bandeja fora de alcance. O sanitário, se é que se podia chamar assim, ficava atrás dele
e não passava de um buraco aberto no chão. Havia também uma mangueira, como aquelas usadas em jardins, pendurada em um gancho. E um balde.
Para o resto de sua vida, Assail jamais se esqueceria dos sons suaves de retinir que se levantava das amarras do macho quando o corpo esquelético estremecia.
Assail deu um passo adiante.
O lamento foi como o de um animal.
— Não vou machucá-lo. – Assail disse roucamente. — Por favor... Eu... Por que está aprisionado aqui?
Mas ele sabia.
Era um escravo de sangue. Estava olhando para um escravo de sangue... Dava para ver até... Sim, lá estavam as tatuagens: uma ao redor da garganta e duas nos pulsos.
— Como posso ajudá-lo?
Não houve resposta, o macho só recuou ainda mais; os ossos de seus cotovelos parecendo rasgar a pele, as costelas como marcas de garras pelas laterais de seu torso,
suas coxas tão pequenas que os joelhos pareciam grandes nós inchados.
Assail procurou em volta, embora soubesse que era idiotice. O que havia no quarto estava lá e permanecia imutável.
— Preciso te tirar daqui.
Vasculhando ao redor, visualizou a saída.
— Eu vou te tirar...
O que podia fazer? Carregar o pobre macho?
Assail se aprofundou ainda mais no calabouço.
— Fique tranquilo, não vou machucá-lo.
Ele se aproximou com cautela e ficou muito ciente de que seu cérebro estava ligado como um painel, com todos os tipos de pensamentos rodopiando e o distraindo.
— Meu caro macho, não precisa temer. – Falou ainda mais forte. — Estou aqui para resgatá-lo.
A cabeça do escravo se ergueu um pouco. E então um pouco mais.
E finalmente o macho olhou para ele com olhos aterrorizados, avermelhados, tão afundados no crânio que Assail se perguntou o quanto de vida ainda continham.
— Você consegue andar? – Assail perguntou. Quando não houve resposta, apontou para aquelas pernas. — Pode ficar em pé? Consegue andar?
— Quem... – A palavra saiu tão débil, que mal passava de uma sílaba.
— Eu me chamo Assail. – Ele tocou o próprio peito. — Eu sou... Ninguém importante. Mas vou te salvar.
Os olhos do escravo começaram a lacrimejar.
— Por que...
Assail se inclinou para tocar o braço dele, mas o reflexo automático do escravo foi tão violento, que o fez retrair a mão imediatamente.
— Por que você precisa ser salvo. – Ao falar em tom de voz completamente cru, ele sentiu de alguma forma como se estivesse falando consigo mesmo. — E eu... Preciso
cometer um ato de bondade para me colocar à prova.
Olhando por cima do ombro, calculou a distância até a porta da frente da mansão. O tempo que tinha se passado desde que saiu do escritório. A quantidade de munição
que tinha trazido. As ligações que precisaria fazer para chamar os primos. E Vishous.
Qualquer um.
Merda. As correntes.
Não, ele podia lidar com elas.
Tateando o coldre sob seu braço, pegou a nove milímetros que trouxe consigo e tirou o silenciador do bolso do paletó. Com gestos rápidos, encaixou o equipamento
no cano da arma.
— Preciso que se afaste. – Indicou a outra direção. — Preciso que se afaste da parede o máximo que conseguir.
O escravo ainda tremia, mas tentou obedecer, arrastando-se de quatro do lugar onde habitualmente se enrodilhava – de fato, dava para ver a sombra impressa na pedra,
tanto do chão quanto da parede, conforme o macho se afastava da área.
De repente, suor porejou por todo o corpo de Assail, acumulando sobre seu lábio superior e sobrancelhas... E seu coração subitamente acelerou.
— Pare. – Quando o macho congelou, Assail negou com a cabeça. — Não, estou falando comigo mesmo. Não foi com você.
As correntes estavam chumbadas na parede através de um anel grosso como o polegar de um macho e largo como um pescoço – chumbado na pedra.
Qualquer tiro iria ricochetear pelo local. Mas que escolha ele tinha?
Deixar o escravo aqui certamente não era uma opção.
— Você vai precisar... Aqui, posso tocá-lo?
O macho anuiu em silêncio e preparou-se para o contato. Com gestos rápidos, Assail o levantou...
Deuses, ele não pesava nada.
As correntes se arrastaram ruidosamente no chão... Da mesma forma que os dentes do macho batiam conforme ele gemia, pois obviamente sentia dor.
Quando estavam o mais longe possível, Assail deixou o escravo no chão e colocou-se na frente dele, abrigando o macho com o próprio corpo. Então mirou e...
A bala não emitiu som algum ao ser disparada, mas quicou ao redor da cela atingindo as superfícies das rochas até se enterrar em um lugar longe do alvo pretendido.
Assail levou um momento para verificar se tinha sido ferido. Então checou o escravo.
— Você está bem? – Quando ele concordou com a cabeça, foi até a parede inspecionar o anel. — Passou perto, mas errei, maldição.
Sua mira até que foi boa, mas o metal era muito grosso. E não ousaria dar outro tiro.
Agarrando a coisa, ele moveu a parte danificada do metal para baixo e colocou todo o seu peso e força ao puxar. Grunhindo e se esforçando, ficou curiosamente desesperado
ao tentar quebrar o metal.
Depois de muito esforço houve um ruído agudo como se o metal estivesse xingando, e então tropeçou para trás com o anel nas mãos, sentindo o chão fugir sob seus pés.
A queda doeu pra caralho, mas ele não ligou. Estava em pé e de volta ao macho uma fração de segundo depois.
Tirando rapidamente o paletó, desejou ter trazido um casaco adequado consigo, mas como tinha apenas se desmaterializado ali, assumiu que não precisaria de um traje
completo de inverno.
— Deixe eu colocar isto sobre você.
Aquilo se provou mais fácil na teoria do que na prática, já que as correntes não permitiam vestir os pulsos ou lapelas. No final voltou a vestir a coisa só para
não deixá-la para trás.
Enrolando as correntes ao redor de seu próprio pescoço – duas vezes, por conta da extensão – ele ergueu o macho e conseguiu segurá-lo com um braço só. Então seguiu
para a direção da porta.
Foi o escravo quem abriu a porta para que ambos saíssem.
O que permitiu que Assail mantivesse a arma empunhada.
Deixou a luz acesa. Logo os moradores da casa descobririam que o escravo tinha desaparecido, e não queria perder tempo em fechar as portas de maneira adequada.
A pior conclusão possível seria descobrir que a reunião com Saxton já tinha acabado, e Throe e a senhora da casa estariam procurando por ele.
Passou pela masmorra sexual. Subiu as escadas.
O escravo estendeu a mão para a maçaneta da porta de novo.
— Devagar. – Assail sussurrou. — Deixe-me ouvir primeiro.
Som nenhum. Ao seu sinal, o macho abriu totalmente a porta e Assail a atravessou com passos largos, o coração martelando, as pernas curiosamente entorpecidas, mesmo
que funcionassem de forma adequada.
Rapidamente, bem rápido, com asas nos pés e ouvidos alertas, correu pelos vários cômodos e ante-salas até chegar ao saguão. Parou antes de entrar no espaço e rezou
para a Virgem Escriba, aos deuses, ao destino, a porra toda, para que a grande área aberta estivesse não apenas vazia, mas continuasse assim até ele atravessar a
porta da frente.
Depois daquilo? Teria de correr para longe o suficiente e encontrar um lugar seguro para chamar os primos. E então a Irmandade.
Escravatura de sangue tinha sido considerada fora da lei pelo Rei... Então devia haver uma maneira legal de proteger esta criatura viva e consciente, que jamais
deveria ter sido transformada em propriedade de outro. Mas Assail não deixaria o macho para trás só pra poder aparecer mais tarde com um bando de Irmãos e descobrir
que Naasha tinha dado um fim nele por ter desconfiado de alguma coisa.
Que apenas haja um meio de sair daqui, ele pensou. Por favor...
— Pela porta da frente. – Sussurrou — Vamos sair pela porta da frente. Está pronto? Tente se segurar em mim.
O macho anuiu várias vezes e intensificou seu aperto um pouquinho mais.
— Lá vamos nós.
Assail irrompeu pelo espaço, movendo-se rapidamente, as correntes batendo, sua carga escorregando, todo aquele cabelo sujo e úmido o estapeando...
Ele teve de parar de chofre a menos de meio caminho de seu objetivo.
Capítulo CINQUENTA E QUATRO
— Por favor. – Disse Bitty. — Por favor, contem como se conheceram.
Mary olhou para Rhage e se perguntou quem iria contar. Quando ele balançou a cabeça para ela com um sorriso, ela deu de ombros e acariciou a mão dele.
— Está bem, então... – Começou ela. — Era...
— Uma noite escura e tempestuosa... – Rhage cortou.
— Bem, com certeza foi em uma noite escura. – Ela começou a lembrar dos acontecimentos que tanto pareciam há uma eternidade quanto ao mesmo tempo há meros dois segundos.
— Eu trabalhava em um serviço de ajuda por telefone. Sabe, para pessoas que precisam de conselhos. – Está bem, na verdade era a Linha de Prevenção ao Suicídio, mas
pareceu apropriado amenizar isto. — E uma pessoa ficava ligando repetidas vezes. Eventualmente o encontrei e minha vizinha da casa ao lado reconheceu a verdadeira
natureza dele... Um pretrans que vivia no mundo humano. Para encurtar a história, acabei indo para o centro de treinamento da Irmandade como intérprete...
— John Matthew não consegue falar. – Disse Rhage. — E como ela conhece a linguagem de sinais, ela o ajudava a se comunicar.
— Então lá estava eu, me perguntando onde é que eu tinha me metido...
— Quando eu apareci no corredor. E foi amor à primeira vista para a gente.
— Okay, ele estava temporariamente cego...
Bitty falou, alarmada.
— Por quê?
Mary olhou para Rhage e ambos congelaram.
— Ah...
— É uma longa história. – Disse ele.
A garçonete voltou com as duas cocas de Rhage.
— Me avise se precisar de refil, está bem?
— Obrigado. – Rhage deu um gole em um dos copos grandes, quando a mulher seguiu para outra mesa. — Enfim, eu não conseguia enxergar, mas no momento em que ouvi a
voz dela, me apaixonei.
— O que você achou dele? – Bitty perguntou.
Mary baixou os olhos enquanto um sorriso tão grande quanto a mesa se abria em seu rosto.
— Bem, de início fiquei confusa. Há muito nele para se apreender, como deve saber. E eu não sabia onde estava ou quem ele era... E não conseguia imaginar por que
ele estava me dando tanta atenção.
— É porque você é linda. Só por isso...
— Enfiiiiiiiiiim. – Mary descartou o elogio com um abano da mão, daí parou pra pensar em que tipo de impressão aquilo teria sobre a jovem fêmea. — Eu... Ah, obrigada.
Ela estava corando? Por que, sim, sim, ela estava.
Rhage se levantou e inclinou por cima da mesa, dando-lhe um beijo.
— Assim é melhor.
Mary tentou esconder seu rubor por trás do copo de água.
— Então nós saímos para um encontro... Na verdade nosso primeiro encontro foi aqui, neste restaurante.
— Sério? – Disse Bitty.
— Naquela mesa...
— Naquela mesa...
Quando ambos apontaram para o outro lado, Mary terminou.
— Bem ali. E sim, ele também pediu esse tanto de comida.
Rhage recostou-se quando a garçonete chegou com os aperitivos.
— Oh, obrigado... E ouça, não precisamos esperar se os pratos já estiverem prontos. Pode trazer tudo de uma vez. Mmmm, quer provar, Bits?
— O cheiro é bom. – A garotinha se aproximou. — Sim, por favor.
— Pegue seu garfo e aproveite. A batata assada é maravilhosa. Bacon é vida!
Quando os dois passaram a alternar os ataques aos pratos, Mary lembrou-se daqueles primeiros dias: Rhage pedindo a ela para falar “inconstitucionalissimamente” no
corredor do centro de treinamento. O encontro dos dois aqui, quando ele a olhava por cima da mesa como se ela fosse a coisa mais cativante do mundo. E depois, ele
aparecendo em sua casa às quatro da madrugada...
— Um tostão por seus pensamentos. – Rhage disse.
— Eu... Ah... – Quando Bitty olhou para ela, Mary se perguntou o que mais podia dizer. — Bem, para ser honesta, estava me lembrando do momento em que você descobriu...
Mary interrompeu-se subitamente. Não queria falar sobre a sua doença, sua estranha condição para Bitty. Ainda tinha coisa demais acontecendo.
Rhage ficou sombrio.
— Sei exatamente do que você estava lembrando.
Mary cruzou os braços e apoiou-os na mesa. Inclinando-se, disse a Bitty:
— Quando ele veio à minha casa pela primeira vez, eu não estava esperando. Tinha acordado às quatro da manhã e estava abrindo uma lata de café... Daí cortei o dedo
bem profundamente. É claro, não descobri até bem depois... Bem, eu não sabia que ele era um vampiro naquele momento em particular.
Bitty balançou a cabeça.
— Eu vivo esquecendo que você é humana. O que você... Você ficou surpresa?
Mary riu alegremente.
— Pode-se dizer que sim. Demorou um tempo até eu descobrir. Ele acabou... Passando um dia comigo. Não podia ir embora por causa da luz do sol, mas não queria me
dizer o motivo... E então também havia...
Ela se lembrou dele desaparecendo em seu banheiro. E reaparecendo oito horas depois sem saber que tinha passado tanto tempo.
— Bom, tivemos de superar um monte de coisa. Eu o pressionei muito.
— Então o que fez vocês ficarem juntos?
Mary olhou para Rhage.
— Oh, é uma história muito longa. O que importa é que tudo deu certo no final.
— E olhe, o jantar chegou! – O hellren dela só faltou se levantou e apressar a garçonete. — Perfeito!
Rhage ajudou-a a dispor os pratos pra frente e pra trás, trocando pratos vazios por outros cheios. E então arrumou a constelação de calorias que tinha pedido em
um semicírculo ao redor dele e de Bitty.
— Pode comer tudo o que quiser. – Ele disse à garota. — Não seja tímida.
Ao avançar sobre a comida, Rhage pareceu inteiramente inconsciente do modo como Bitty o encarava, como se ela estivesse realinhando algo em sua mente.
— Eu sei. – Mary se viu dizendo. Quando a garota olhou para ela, murmurou. — Também não conseguia acreditar que ele era real. Mas juro pela alma da minha mãe que
ele é simplesmente o melhor macho que eu já conheci... E quando diz que nunca vai te machucar ou permitir que algo te machuque? Ele está realmente falando sério.
Bitty olhou de volta para Rhage. E então disse.
— Posso provar seu filé?
Oh, ela sabia exatamente o que dizer, Mary pensou, com um sorriso.
E claro, o peito de Rhage estufou... Porque ele era exatamente o tipo de macho que gostava de prover. Na verdade, para ele isto era ainda melhor do que comer.
— Deixa eu cortar a melhor parte pra você. – Ele disse ao pegar o garfo e faca, e começar a extrair um corte cirúrgico do enorme pedaço de carne. — O melhor do melhor.
Quando Assail se imobilizou com o escravo de sangue nos braços, o macho que estava no meio do saguão de Naasha se virou... E Saxton quase morreu de susto ao ver
o que tinha acabado de surgir.
Felizmente o advogado do Rei se recuperou rapidamente. E teve até mesmo a presença de espírito de manter a voz baixa.
— O que você está...
Assail engoliu em seco.
— Ajude-me, por favor.
Saxton tateou o paletó... E então tirou do bolso o que pareceu a Assail tão valioso quanto o Cálice Sagrado.
— Meu carro está lá fora... Eu ia fazer compras esta noite, e graças à Virgem Escriba por isto. Tome... Mas seja rápido. Eles me pediram para sair enquanto discutiam.
Não sei quanto tempo vai durar. Vá! Vá agora!
O advogado foi para a porta principal, abriu-a e Assail sentiu o gelado ar noturno que invadiu a mansão.
— Vou tentar distraí-los. – Disse Saxton — Pelo maior tempo possível.
Assail parou por uma fração de segundo ao pegar a chave do carro e atravessar a porta.
— Estou em débito com você. Para sempre.
Não esperou uma resposta. Saiu correndo e quase escorregou nos degraus baixos. E querido Deus, aquelas correntes, aquelas assustadoras correntes, além do barulho
que faziam, ameaçavam cortar seu suprimento de ar, enquanto percorria a distância até o BMW 750i.
Ele só faltou jogar o macho no banco de trás.
Não havia tempo a perder. Livre da carga, voou para a porta do motorista, entrou e ligou o motor. A tentação era meter o pé no acelerador, mas não queria arriscar
chamar atenção. Então partiu com cuidado, mas aumentou gradualmente a velocidade, e logo a mansão sumia no espelho retrovisor, conforme avançava descendo uma longa
e acentuada ladeira.
Agora, era ele que tremia ao pegar seu celular.
Ele usou a Siri, assistente de chamada de voz, para fazer a chamada. E quando foi atendido, cortou os cumprimentos.
— Vishous, preciso de ajuda médica. Agora. Onde está? Está bem. Certo. Chego lá em quinze minutos. Por favor. Apresse-se.
Finalizando a conexão, ajeitou o retrovisor para ver o banco de trás.
— Aguenta firme. Vamos arrumar ajuda. Diga, qual o seu nome?
— Eu... Não sei. – Veio a resposta fraca.
Ao parar na base da estrada, Assail virou à direita, mas não respirou fundo de alívio por estarem livres. Ainda ia levar um tempo até conseguir fazer aquilo.
— Fique comigo. Você precisa... Ficar comigo... Você está perto demais da segurança para desistir agora. Fique comigo!
Consciente de estar gritando, forçou-se a abrandar o tom de voz.
— Não morra. – Murmurou ao se ver perdido.
Onde estava indo? Para onde...?
Vishous disse a ele para ir para a parte nordeste da cidade, para...
Ele pegou o celular de novo e acionou a Siri de novo. Quando Vishous atendeu. Assail não reconheceu a própria voz.
— Para onde devo ir? Diga...
Vishous começou a falar.
— Não consigo ouvi-lo... Não consigo... Ver... – Assail esfregou os olhos. Deuses, ele estava chorando? — Me ajude...
— Onde você está?
— Não sei.
— Procure por uma placa. Procure uma placa, Assail.
Os olhos embaçados de Assail se ergueram para o retrovisor, para o macho nu e trêmulo sobre o banco de couro. Então, olhou pelo pára-brisa.
— Montgomery Place. A placa diz... Montgomery Place.
— Vire à esquerda. Agora.
Assail obedeceu sem discutir, girou o volante, derrapou no asfalto, fechou um carro na via oposta. Quando uma buzina soou, Vishous continuou falando.
— Três quilômetros à frente há um Shopping Center de alto padrão. Tem uma imobiliária, salão de beleza, restaurantes. Uma joalheria. Vá para os fundos, vou estar
lá.
Assail anuiu, mesmo que o Irmão não conseguisse vê-lo.
E quando não desligou a chamada, Vishous disse calmamente.
— Estou contigo, camarada. Seja o que for, vamos resolver qualquer merda.
— Tudo bem. Tudo bem. – Assail voltou a olhar para o macho. — Fique comigo...
— Não vou a lugar algum. – Vishous murmurou. — Só vou ficar em silêncio pelo tempo em que estiver desmaterializado. Está bem, estou de volta.
Assail não disse mais nada ao se inclinar para o volante e esperar pelo... Quantos quilômetros ele tinha mesmo de percorrer? Três?... Shopping Center aparecer. E
então lá estava ele, com as placas luminosas como quase um farol de esperança deserto, um símbolo de salvação.
— Estou aqui. Estou aqui.
Ele acelerou, passando pelo escritório da imobiliária e contornando para os fundos do prédio. Nos fundos só havia instalações de serviço e lixeiras, estacionamento
de funcionários e plataformas de cargas para as lojas. O BMW pegou velocidade, disparando como um míssil.
À luz dos faróis, no canto oposto, uma figura sombria e sozinha estava de pé com os pés firmemente plantados no chão.
Assail pisou no freio, então se arrependeu ao ouvir uma batida e um gemido de dor vindos do banco de trás. Quando o carro parou, saiu sem desligar o motor e teve
de se enfiar de novo para desengatar o câmbio.
— Por que está com o carro de Saxton...?
Ele cortou o Irmão.
— Ajude-me...
— Você está tendo uma overdose...?
Assail abriu a porta de trás.
— Ajude-o! Por favor!
Ele teve de esfregar os olhos de novo... De fato, seus olhos vazavam por todos os cantos.
Vishous sacou uma arma e se aproximou do carro aberto, espiando dentro.
— Mas. Que. Caralho.
— Ele... Ele... Ele... – Merda, não conseguia falar. — Eu o encontrei. Trancado. No porão. Não pude deixá-lo para trás.
O macho fugiu de Vishous, recuando seu corpo magro para a outra extremidade do banco, aquele cabelo emaranhado espalhou-se sobre os braços magros e as costas ossudas.
— Merda. – Vishous se endireitou e desviou o olhar. — Não posso nem começar a examiná-lo aqui. Temos de levá-lo. Cristo... As correntes... Está bem, entre... Nada
de volante. Eu dirijo. Você me explica no caminho.
Assail cambaleou para contornar até o lado do carona. Mas então parou, pensou melhor e se enfiou no banco de trás, junto do macho. Tirou o paletó e colocou-o sobre
a nudez do escravo.
— Está tudo bem. – O carro começou a se mover, as luzes da rua flamejaram na escuridão do interior enquanto Assail tentava se controlar. — Nós vamos ficar... Bem.
Capítulo CINQUENTA E CINCO
Layla voltou à Terra e à consciência em sua forma física, abrindo os olhos para o teto baixo de seu quarto de hospital. Suas mãos foram imediatamente para a barriga,
e quando moveu as pernas e respirou fundo, houve um movimento lá, afiançando movimentos fortes e vitais.
Ela tinha deixado a luz do banheiro acesa e a porta quase fechada, como era de costume quando tentava dormir, e seu olhar gravitou para a luz. Então olhou para o
relógio. Onze e trinta e quatro da noite.
Ela tinha ficado no Santuário por um longo tempo.
Após ir do Templo das Escribas Reclusas para a biblioteca, tinha levado um tempo até encontrar o que buscava. E então, tinha estudado aquele volume em particular
por bastante tempo. Bem como outros.
Apoiando-se para sentar no colchão, esfregou as têmporas.
Ela não devia ter lido a história de Xcor.
Mas também, se a história dele fosse diferente, se a verdadeira identidade do pai dele fosse outra, ela achava que não teria tanta importância. Mas era chocante.
De fato, tinha até cruzado as referências encontradas, indo até os registros sagrados da Irmandade da Adaga Negra, retirando volumes em busca de inconsistências,
alguma contradição nos registros do pai.
Mas não tinha encontrado nada. Na verdade, só havia confirmações.
E agora, não conseguia esquecer o que tinha descoberto.
Com um grunhido se ergueu ainda mais, passou as pernas para o lado e notou que os tornozelos estavam tão inchados, que era como se suas panturrilhas terminassem
direto nos pés.
Ela não devia ter ido à caça de informações.
Mas agora, o que faria? Como iria explicar os motivos de sua busca?
Levantou-se, ajeitou a camisola e jogou o cabelo para trás dos ombros. Praguejando, deu um passo à frente...
Umidade... Pelas suas pernas de novo.
Ótimo. Bem o que precisava no meio de tudo isto.
Bamboleando adiante, estava preocupada com Xcor e irritada com sua bexiga. Mas pelo menos podia tomar um banho e relaxar sabendo que estava tudo bem com os bebês.
E não era para isto que serviam as fraldas para adultos, justamente para este tipo de situação?
Estava virando para fechar a porta do banheiro quando olhou para trás...
Sangue. Sangue no chão... Pegadas de sangue no chão.
Ergueu a camisola, havia sangue na parte interna de suas pernas.
Começou a gritar e alguém entrou correndo... Ehlena invadiu o quarto.
A enfermeira deu uma olhada no que acontecia... E imediatamente ativou o modo profissional.
— Venha comigo. Volte para a cama. Vamos para a cama.
Layla estava vagamente ciente da fêmea levando-a pelo braço e depositando-a de volta no colchão.
— Os bebês... E os bebês...
— Espere, vou chamar a Dra. Jane. – Ehlena apertou o botão de chamada. — Só vou ligar alguns equipamentos, está bem?
Tudo aconteceu tão rápido. Fios foram ligados nela, monitores trazidos, a Dra. Jane entrou correndo. O aparelho de ultrassonografia foi trazido para o quarto. Manny
chegou. Qhuinn e Blay quase derrubaram a porta ao entrarem.
— Os bebês. – Ela gemeu. — E os bebês...?
Era como o vento soprando sobre a terra.
A consciência voltou a Xcor do modo como uma rajada de vento varria uma paisagem, passando por algumas coisas, farfalhando outras, penetrando por entre outras ainda.
Do mesmo modo, ele tomou consciência de muitas dores e de uma grande extensão de entorpecimento... Podia sentir pontadas de agonia e câimbras de formigamento...
Contorções e espasmos... E então, nada mais em grandes faixas de sua carne.
Mas o cheiro se registrava com clareza.
O aroma de sujeira o confundiu.
Por trás dos olhos fechados, orientou-se o máximo que pôde, usando o nariz e os ouvidos. Não estava sozinho. Havia o cheiro de um... Não, dois outros vampiros machos
ali com ele. Além disso, eles falavam em voz baixa... Bem, um deles falava. O outro não dizia nada que Xcor pudesse ouvir.
Não os conhecia. Ou mais acuradamente, não os reconhecia como dois de seus soldados...
A Irmandade. Na verdade... É, já tinha sentido o cheiro deles antes. Quando a Irmandade tinha vindo conversar com a glymera no encontro do Conselho.
Tinha sido capturado?
Detalhes enevoados da noite voltaram a ele. Ele naquele beco perto do carro carbonizado. Depois seguindo um caminhão de comida... Seguindo para onde? Onde tinha
ido?
Seria aquilo um sonho?
Imagens se filtravam através dos olhos de sua mente, mas não duraram suficiente para ele decifrar...
— Ele está franzindo o cenho. – A voz masculina disse. — As mãos dele estão se movendo. Está acordado, bastardo?
Ele não poderia ter respondido nem que sua vida dependesse daquilo... E de fato, sua vida dependia daquilo. Se tinha sido capturado, precisava se lembrar do modo
e do local...
Campus.
Ele não tinha seguido o caminhão de comida. Não, estivera no alto do veículo, sendo levado pela noite enquanto os lessers que perseguia seguiam para o centro da
cidade, passavam pelos subúrbios até um colégio abandonado ou campus de escola preparatória.
Onde ele tinha testemunhado a conclusão de uma grande batalha, uma perda devastadora para a Sociedade Lessening.
Deflagrada pela Irmandade.
Ele tinha visto um humano. Em cima do telhado.
Então, ele mesmo tinha sido golpeado na cabeça.
Quanto tempo tinha passado inconsciente? Seu corpo doía inteiro, não como se tivesse sido surrado, mas mais como se não fosse usado há um tempo.
— Está acordado finalmente? – A voz exigiu.
Finalmente? É, ele devia estar inconsciente há um tempo. De fato, sentia como se estivesse deitado há um período bem prolongado.
E o que eram aqueles sons de bip...
Alarmes. De repente, ouviu alarmes... Um celular tocou. O macho que tinha falado atendeu.
— O que? Quando? Quanto tempo? Oh, Deus... Sim. Agora mesmo. Será que Lassiter pode vir vigiá-lo? Cadê ele? Nós dois iremos, – Então uma pausa. — John... Sim, está
acontecendo agora e eles precisam de nós por causa do sangue. Temos de ir. Não quero deixá-lo também, mas o que vamos fazer? Não, não sei onde Lassiter está.
Houve alguns sons, como se estivessem juntando suprimentos.
— Não, eles querem a nós dois. Ela está em trabalho de parto. Os bebês estão nascendo e ainda é cedo demais.
Layla!
Sem pensar, as pálpebras de Xcor se abriram. Os dois guerreiros estavam de costas, já de saída, graças aos deuses, desta forma não o viram.
— Também estou com medo. – Disse aquele de cabelos vermelhos. — Por ela, por Qhuinn. E ele vai ficar bem. Não vai a lugar nenhum.
O som dos passos deles diminuiu até haver um som de batida, como se um portão ou talvez algumas correntes estivessem sendo puxadas. E então houve um repeteco de
tudo aquilo.
Xcor piscou largamente. Ao tentar se sentar, descobriu que de fato não ia mesmo a lugar algum. Havia faixas de metal em seus punhos e tornozelos, e até mesmo ao
redor da cintura. Mais do que isto, sentia-se fraco demais para fazer qualquer coisa além de erguer a cabeça.
Olhando ao redor, viu que estava em algum tipo de depósito de armazenamento... Havia urnas, urnas sobre prateleiras que iam do chão ao teto. Em uma caverna? E ainda
tinha os equipamento de monitoramento, que mantinham leitura de suas funções corporais de natureza complexa e eletrônica.
— Layla... – Ele disse, em voz entrecortada. — Layla...
Ruindo de costas contra a cama onde estava amarrado, seu desejo de escapar e ir até ela era grande, embora não soubesse onde ela estava ou onde ele mesmo estava.
Mas seu corpo tinha outros planos. Quando a noite eclipsou a luz das horas diurnas, a escuridão se abateu sobre ele de novo.
Possuindo-o.
Seu último pensamento foi que a fêmea que ele tanto amava quanto temia precisava dele, e que queria estar lá para ela...
Capítulo CINQUENTA E SEIS
Na saída do TGI Friday, Rhage parou no stand da recepcionista. Ou melhor, foi forçado a parar por que a humana que tinha arrumado a mesa para eles se colocou em
seu caminho e não quis se mover.
— Gostaram do jantar? – Disse ela, ao deslizar algo na mão dele. — Este é o número de nosso serviço de atendimento ao cliente. Ligue e dê sua opinião sobre a comida.
A piscadela que ela lhe deu revelou tudo o que infernos ele já sabia e ainda mais sobre o que ligar para aquele número acarretaria... E certo como a merda não seria
uma pesquisa de opinião.
Nenhuma que não envolvesse a humana ajoelhada à sua frente de qualquer forma.
Ele devolveu o pedaço de papel à mão dela.
— Posso responder agora mesmo. Minha esposa e eu tivemos um jantar maravilhoso. Da mesma forma que nossa... Amiga. Obrigado.
Ao se virar, passou um braço ao redor de Mary e puxou-a para perto. Então fez o mesmo com Bitty, antes mesmo de pensar a respeito.
Eles saíram juntos, espremendo-se para passar ao mesmo tempo pelas portas duplas.
Do lado de fora, a noite tinha esfriado ainda mais, mas a barriga dele estava mais do que cheia de comida e estava realmente feliz... Era incrível como aquele tipo
de humor criava seu próprio calor, independente da temperatura externa.
Inferno, poderia estar nevando e ainda teria olhado para o céu negro, suspirando um Ahhhhhhhhh.
Quando estavam a ponto de sair do meio-fio em direção ao carro, uma minivan parou e uma mãe e filha correram para entrar. Cara, aquilo é que era herança genética.
As duas tinham cabelos castanhos idênticos, o da adolescente preso em um rabo de cavalo, o da mãe cortado à altura do queixo. Elas tinham mais ou menos a mesma altura
e ambas usavam jeans e blusas de moletom. Os rostos tinham a mesma estrutura óssea, os malares pronunciados, as testas altas, e o tipo de nariz reto que imaginava
que alguns humanos encomendavam em clínicas de cirurgia plástica.
Elas não eram nem feias, nem bonitas. Nem pobres, nem ricas. Mas estavam rindo de forma exatamente igual. E aquilo tornava ambas espetaculares.
A mãe abriu a porta para a filha e incitou-a a entrar. Então se inclinou e gracejou para a garota.
— Rá, eu ganhei mesmo a aposta! Eu realmente ganhei... E você vai lavar os pratos a semana inteira. Este foi o trato.
— Mãããããããããe!
A mãe fechou a porta cortando o protesto e pulou para o banco da frente, ao lado do que tinha de ser o marido ou companheiro.
— Eu disse a ela, não aposte comigo. Não em se tratando de citações de O Poderoso Chefão.
O cara virou para a filha.
— De jeito nenhum, eu não vou me meter nisso, nem de longe. Você sabe que ela decorou o filme, e sim, a frase correta é “Um siciliano não pode recusar um pedido
no dia do casamento de sua filha”.
A mãe fechou a porta e a minivan azul bebê se afastou.
Por um momento, Rhage imaginou como seria aquela volta para casa... E se pegou com uma imensa vontade de fazer o mesmo. Isto é, de levar Bitty para casa.
E também discutir sobre O Poderoso Chefão, caso fosse necessário. Ou sobre qual era o gosto de massinha de modelar. Ou ainda se ia nevar no início ou no fim da estação.
— Tudo bem? – Ele perguntou quando Bitty hesitou. — Bitty?
— Desculpe. – A garota disse suavemente. — O que?
— Vamos, vamos para o carro.
Foi mesmo bom andar com suas fêmeas de volta para o GTO e melhor ainda guiá-las pelas ruas, obedecendo aos semáforos. Mantendo sua faixa. Sem aceitar o desafio quando
dois babacas em um Charger pararam ao seu lado, no farol fechado e bombearam o motor como se a coisa fosse uma extensão de suas bolas e paus.
Ele só dirigiu.
Quando o celular tocou, deixou cair no correio de voz. Logo estariam no Lugar Seguro e então poderia...
E então tocou de novo.
Pegando a coisa, franziu o cenho.
— Preciso atender. – Aceitando a chamada, levou o celular ao ouvido. — Manny?
A voz do cirurgião era urgente.
— Preciso de você aqui nesse instante. Layla está tendo uma hemorragia. Os bebês estão nascendo... Precisamos de veias para ela tomar. Pode desmaterializar?
— Merda. – Sibilou ao ligar o pisca alerta e estacionar. — Sim. Posso ir.
Mary e Bitty olharam para ele alarmadas quando desligou e olhou ao redor.
— Ouçam, sinto muito. Há uma... – Ele se interrompeu ao olhar para a garota. — Tenho que ir para casa.
— O que houve? – Perguntou Mary.
— Layla. – Ele não queria falar sobre aquilo. Não depois de tudo o que Bitty tinha passado. — Precisam de ajuda. Pode dirigir de volta? Tenho que me desmaterializar
agora.
— Claro. E eu vou direto para casa...
— Posso ir com vocês? – Bitty pediu.
Houve um momento de hummmmm. E então Mary virou-se para o banco traseiro.
— É melhor eu te levar de volta para o Lugar Seguro. Pode ser talvez um outro dia?
— Você vai ficar bem?
Levou um momento para Rhage perceber que a garota estava falando com ele. E ao fitar aqueles olhos grandes e ansiosos, um sobressalto o atravessou.
— Sim, vou ficar bem. Só preciso ajudar uma amiga.
— Oh, tudo bem então. Quando eu vejo você de novo?
— Quando você quiser. Sempre estarei por perto para você. – Ele esticou um braço para trás e acariciou o rosto dela com a mão. — E vamos ter de assistir ao O Poderoso
Chefão. Parte I e II. A III não.
— O que é isto? – Ela perguntou quando ele abriu a porta e saiu.
— Somente o melhor filme do mundo. Cuidem-se!
Mary já estava fora dando a volta na frente do carro e eles se encontraram em frente aos faróis, abraçando-se por um segundo.
— Eu te amo. – Disse ele ao dar a ela um beijo rápido.
— Eu também. Diga a eles que já estou voltando?
Ao encarar o olhar de Mary, colocou-se no lugar de Qhuinn... E multiplicou por um bilhão. Então se forçou a voltar à realidade e se concentrar.
— Direi. – Tomou o rosto dela entre as mãos e beijou-a de novo. — Dirija com cuidado.
— Sempre.
Com um meneio de cabeça, ele fechou os olhos, respirou fundo... E então deu o fora dali, viajando em uma porção de moléculas, sobrevoando vizinhanças humanas...
E então através da área rural... E indo mais adiante, aos sopés que se tornavam montanhas.
Ele voltou a tomar forma na entrada da frente da mansão, abrindo caminho para o vestíbulo e exibindo a cara para a câmera de segurança.
Enquanto esperava que alguém abrisse, seu coração estava acelerado por vários motivos. Mas principalmente por causa do modo como Bitty o tinha encarado.
Engraçado como era possível ser transformado por alguém.
A porta abriu e Fritz estava do outro lado parecendo preocupado.
— Senhor, que bom vê-lo. Todos estão descendo para o centro de treinamento. Estamos providenciando refeições, caso alguém queira comer.
Rhage sentiu um estranho impulso de abraçar o doggen... E podia ter feito isto, não fosse pela possibilidade de Fritz desmaiar pela quebra de protocolo.
— Obrigado. Você tem tudo sob controle. Isto significa muito.
Rhage se apressou e passou pisando forte pelo mosaico de macieira... E estava quase diante da porta oculta debaixo da escada principal quando parou e olhou para
trás.
— Fritz?
O mordomo parou na arcada da sala de jantar.
— Sim, senhor?
— Eu sei que é uma péssima hora. Mas preciso que compre uma coisa para mim. Agora.
O mordomo idoso fez uma reverência tão profunda que sua papada quase encostou no chão polido.
— Seria um alívio poder fazer algo por alguém. Às vezes me sinto tão inútil.
Por trás do volante do GTO, Mary sentia como se o tempo estivesse correndo para trás... Que de alguma forma ela e Bitty tinha caído em uma dobra, de onde voltaram
para noites atrás, indo na direção da clínica do outro lado do rio.
E não só por causa de Layla e pelo que estava acontecendo na casa. No banco de trás, a garota tinha novamente se fechado dentro de si mesma, os olhos fixos na janela
ao seu lado, o rosto uma máscara de compostura, o que era ainda mais alarmante por que Mary já tinha descoberto o quanto ela podia se tornar interessada e alegre.
— Bitty?
— Mmmm? – Veio a resposta.
— Converse comigo. Sei que tem algo acontecendo... E sim, eu podia fingir que não reparei, mas acho que já passamos desta fase. Pelo menos é o que espero.
Passou-se um longo tempo até a garota responder.
— Quando saímos do restaurante, – Bitty disse. — Você viu aquela mahmen humana e a filha?
— Sim. – Mary respirou fundo. — Eu vi.
Quando o silêncio voltou, Mary olhou pelo espelho retrovisor.
— Elas te fizeram pensar em sua mahmen?
Tudo o que a garota fez foi anuir.
Mary esperou. E esperou.
— Sente falta dela?
E foi só o que bastou. De repente, Bitty começou a chorar com grandes soluços balançando seu corpinho. E Mary estacionou. Precisou.
Graças a Deus estavam em uma parte boa da cidade, em uma seção onde havia várias padarias, papelarias e pet shops de proprietários locais. O que significava muitos
locais para estacionar bem na rua, que se encontrava vazia.
Após desengatar o GTO e puxar o freio de mão, Mary girou até os joelhos ficarem pressionados contra o peito.
Estendeu uma mão e tentou tocar Bitty, mas a garota recuou.
— Oh, querida... Eu sei que sente falta dela...
A garota girou de volta com lágrimas escorrendo pelo rosto.
— Mas não sinto! Não sinto nenhuma falta dela! Como eu posso não sentir falta dela?
Ao ver Bitty cobrir os olhos com as mãos e soluçar, Mary deixou-a em paz, mesmo que aquilo a matasse por dentro. E após uma espera agonizante, a garota recomeçou
a falar.
— Eu não tive aquilo! O que a humana e sua mahmen tinham! Eu não tive... Apostas e risos... Nem saídas para jantar ou um pai amigável vindo me buscar de carro! –
Quando ela fungou e secou o rosto com os punhos, Mary remexeu em sua bolsa e tirou uma caixa de lenços de papel. Bitty pegou a caixa e pareceu se esquecer deles
imediatamente. — Minha mãe tinha medo... Estava ferida e se escondendo! E então ela estava grávida e aí ficou doente e... Ela morreu! E eu não sinto falta dela!
Mary desligou o motor, abriu a porta e foi para o banco de trás. Tomou a precaução de trancar as portas no carro escuro ao se sentar ao lado da garota, e a luz externa
ajudou a ver a angústia e o horror no rosto de Bitty.
— Como posso não sentir falta dela? – A garota tremia. — Eu a amava... E devia sentir falta dela...
Mary estendeu a mão, e ficou aliviada ao conseguir puxar Bitty e abraçá-la bem forte. Acariciando os cabelos dela, murmurou palavras suaves enquanto Bitty chorava.
Era impossível não sentir lágrimas em seus próprios olhos.
E foi difícil não sussurrar banalidades como “Tudo vai ficar bem” ou “Tudo bem” por que ela queria dizer algo, qualquer coisa para acalmar a garota. Mas a verdade
era, as coisas a que Bitty fora exposta ao crescer não estavam certas, e garotas e pessoas que viveram neste tipo de ambiente não estavam bem por um longo, longo
tempo, se é que jamais estiveram.
— Estou com você. – Foi tudo o que conseguiu dizer. Várias vezes.
Pareceu levar anos até Bitty dar um suspiro entrecortado e se recostar. E quando ela remexeu no pacote de lenços, Mary tirou o dela e abriu o lacre, retirando um.
E outro.
Depois de Bitty assoar o nariz e cair contra o banco, Mary soltou o cinto de segurança da garota para lhe dar mais espaço.
— Eu não conhecia sua mãe tanto assim, – Disse Mary. — Mas tenho certeza absoluta que, se ela tivesse tido chance de viver todos estes momentos normais e carinhosos
com você, ela não teria hesitado. A violência invade tudo ao entrar em casa. Não dá pra fugir dela a menos que saia da casa, então ela vai manchando tudo. Não acha
que talvez o que não sente falta é do sofrimento que vocês duas enfrentaram? Que não sente falta de ter medo e ser machucada?
Bitty fungou.
— Sou uma filha má? Eu sou... Má?
— Não. Deus, não. De jeito nenhum.
— E eu a amava. Muito.
— É claro que amava. E aposto que se pensar bem, vai perceber que ainda ama.
— Tive tanto medo o tempo todo em que ela esteve doente. – Bitty remexeu nos lenços. — Eu não sabia o que ia acontecer com ela, e estava realmente preocupada comigo
mesma o tempo inteiro. Isto é ruim?
— Não. Isto é normal. Chama-se sobrevivência. – Mary enfiou uma mecha do cabelo atrás da orelha de Bitty. — Quando se é jovem e não se consegue cuidar de si mesmo,
é normal se preocupar com este tipo de coisa. Droga, quando se fica mais velho e se torna mais capaz de cuidar de si mesma, isto também acontece.
Bitty aceitou outro lenço, colocou-o sobre o joelho e o alisou.
— Quando minha mãe morreu, – Disse Mary. — Eu fiquei brava com ela.
A garota ergueu o olhar, surpresa.
— Sério?
— É. Estava amargamente brava. Digo, ela tinha sofrido e eu tinha ficado ao lado dela por tantos anos enquanto ela lentamente definhava. Ela não tinha escolhido
nada daquilo. Não pediu pra ficar doente. Mas eu me ressentia do fato de meus amigos não terem de ficar cuidando dos pais. Que meus colegas fossem livres pra sair,
beber, festejar e se divertir... Serem jovens e irresponsáveis, sem responsabilidade alguma. Enquanto que eu tinha de me preocupar em arrumar a casa, comprar mantimentos,
cozinhar... E quando a doença progrediu, limpá-la, banhá-la, fazer os curativos quando as enfermeiras não vinham por causa do mau tempo. E daí ela morreu. – Mary
respirou fundo e balançou a cabeça. — Só o que consegui pensar, depois de levarem o corpo dela, foi... Ótimo, agora vou ter de planejar o funeral, lidar com as dívidas
do banco, o testamento, doar as roupas dela. Foi aí que realmente enlouqueci. Eu surtei e chorei, por que sentia que era a pior filha na história do mundo.
— Mas você não era?
— Não. Eu era humana. Eu sou humana. E o luto é uma coisa complexa. Dizem que há estágios para ele. Já ouviu falar? – Quando Bitty negou com a cabeça, Mary continuou.
— Negação, negociação, raiva, depressão e aceitação. Estas são mais ou menos as fases que todas as pessoas atravessam. Mas também há muitas outras coisas misturadas
a tudo isto. Assuntos não resolvidos. Exaustão. Às vezes há alívio, e com ele vem muita culpa. O melhor conselho que posso dar? Como alguém que não só já passou
por isto, mas também já ajudou a muitas pessoas que também passaram? Deixe seus pensamentos e sentimentos aparecerem quando quiserem... E não os julgue. Posso garantir
que você não é a única pessoa que tem pensamentos dos quais não gosta ou emoções que parecem erradas. Além disso, se conversar sobre o que está acontecendo com você,
é absolutamente possível atravessar a dor, medo e confusão para o que tem do outro lado.
— E o que é que tem do outro lado?
— Uma certa quantidade de paz. – Mary deu de ombros. — De novo, eu queria poder te dizer que a dor desaparece... Só que não seria verdade. Mas melhora. Ainda penso
em minha mãe, e sim, às vezes dói. Acho que sempre vai doer... E honestamente? Não quero que a dor desapareça completamente. O luto... É um jeito sagrado de honrar
aqueles que amamos. Minha dor é meu coração funcionando, é meu amor por ela, e isto é uma coisa bonita.
Bitty alisou o lenço em seu joelho.
— Eu não amava o meu pai.
— Não posso culpá-la.
— E às vezes eu ficava frustrada por minha mãe não abandoná-lo.
— Como poderia não ficar?
Bitty respirou fundo e exalou, longa e lentamente.
— Isto está certo? Tudo isto... É normal?
Mary se inclinou e tomou ambas as mãos da garota.
— É cem por cento, absolutamente, positivamente certo. Juro.
— Você diria se não fosse?
Os olhos de Mary não vacilaram.
— Juro pela vida do meu marido. E sabe o que mais? Eu entendo completamente o que você sente. Eu entendo, Bitty. Entendo totalmente.

 

 

CONTINUA