Biblio VT
Thomas apanhou a faca e entregou-a a ela, e curvou a cabeça. Ela cortou o rabo-de-cavalo dele, e depois uns punhados de cabelos pretos que atirou na fogueira. Thomas não disse nada enquanto ela cortava, mas só pensava na missa do padre Hobbe. Uma missa pelos mortos, pensou ele, ou por aqueles que estão para morrer.
Porque no escuro chuvoso, do lado de lá da floresta, o poderio da França se aproximava. Os ingleses tinham escapado do inimigo duas vezes, atravessando rios que eram considerados intransponíveis, mas não poderiam escapar uma terceira vez. Finalmente, os franceses os tinham apanhado.
A aldeia ficava a apenas uma curta caminhada ao norte da beira da floresta, da qual ficava separada por um pequeno rio que serpenteava por entre plácidas campinas irrigadas pela água transbordante do rio. A aldeia era um lugar sem nada em particular: um lago com patos, uma pequena igreja e umas vinte choupanas com espessos telhados de sapé, pequenos jardins e altos montes de estrume. A aldeia, tal como a floresta, chamava-se Crécy.
Os campos ao norte da aldeia erguiam-se para um longo morro que corria para o norte e para o sul. Uma estrada rural, sulcada por carroças das fazendas, corria ao longo da crista do morro, indo de Crécy para outra aldeia, tão simples quanto ela, chamada Wadicourt. Se um exército tivesse marchado de Abbeville e contornado a floresta de Crécy, iria rumar para o oeste em busca dos ingleses e, depois de algum tempo, veria o morro entre Crécy e Wadicourt erguendo-se à sua frente. Veria as torres atarracadas das igrejas nas duas pequenas aldeias, e entre as aldeias, mas muito mais perto de Crécy e lá no alto da crista, onde suas velas podiam captar os ventos, um moinho. A encosta em frente aos franceses era longa e lisa, sem ser perturbada por sebes ou valas, uma área de recreio para cavaleiros montados.
O exército foi acordado antes do amanhecer. Era um sábado, 26 de agosto, e homens resmungavam contra o frio fora de época. Fogueiras foram trazidas de volta à vida, refletindo a luz das chamas nas cotas de malha e nas armaduras que estavam à espera. A aldeia de Crécy fora ocupada pelo rei e seus altos lordes, alguns dos quais tinham dormido na igreja, e aqueles homens ainda estavam se armando quando o capelão da comitiva real chegou para rezar a missa. Velas foram acesas, uma sineta de mão tocou e o padre, ignorando o estalar de armaduras que enchia a pequena nave, pediu a ajuda de São Zeferino, São Gelásio e os dois santos chamados Genésio, todos os quais tinham suas festas naquele dia, e o padre também solicitou o auxílio do pequeno Sir Hugh de Lincoln, um menino que tinha sido assassinado pelos judeus naquela mesma data, quase duzentos anos antes. O menino, que se dizia ter mostrado uma piedade fora do comum, fora encontrado morto, e ninguém entendia como Deus podia ter permitido que tamanho exemplo fosse arrancado da Terra tão jovem, mas havia judeus em Lincoln e a presença deles fornecera uma resposta conveniente. O padre rezou para todos eles. São Zeferino, rezou ele, dê-nos a vitória. São Gelásio, implorou ele, esteja com os nossos homens. São Genésio, tome conta de nós, e São Genésio, dê-nos força. Pequeno Sir Hugh, pediu ele, criança nos braços de Deus, interceda por nós. Deus querido, rezou ele, em Sua grande misericórdia, poupai-nos. Os cavaleiros aproximaram-se do altar vestindo suas camisas de linho para receber os sacramentos.
Na floresta, os arqueiros ajoelhavam-se diante de outros padres. Confessaram-se e receberam o pão seco e velho que era o corpo de Cristo. Fizeram o sinal-da-cruz. Ninguém sabia que iria haver uma batalha naquele dia, mas eles pressentiam que a campanha chegara ao fim e que deveriam lutar naquele dia ou no dia seguinte. Dê-nos flechas suficientes, rezaram os arqueiros, e nós deixaremos a terra vermelha, e estenderam as hastes de teixo para os padres, que tocaram os arcos e rezaram sobre eles.
Lanças foram desembrulhadas. Tinham sido carregadas em cavalos de carga ou carroças e praticamente não foram usadas na campanha, mas os cavaleiros sonhavam, todos, com uma batalha tal como devia ser, de cavaleiros girando, pontuada pelo choque de lanças atingindo escudos. Os mais velhos e mais experientes sabiam que iriam lutar a pé e que suas armas seriam, em sua maioria, espadas, machados ou cimitarras, mas ainda assim as lanças pintadas foram retiradas de suas capas de pano ou de couro que as protegiam para que não fossem secas pelo sol ou empenadas pela chuva.
— Nós podemos usá-las como piques — sugeriu o conde de Northampton.
Escudeiros e pajens armavam seus cavaleiros, ajudando-os com os pesados casacos de couro, malha e placas de ferro. Tiras eram afiveladas e apertadas. Cavalos de combate eram escovados com palha enquanto os ferreiros arrastavam pedras de amolar pelas longas lâminas das espadas. O rei, que começara a se armar sozinho às quatro da madrugada, ajoelhou-se e beijou um relicário que continha uma pena da asa do anjo Gabriel e, depois de se benzer, disse ao padre que levasse o relicário para seu filho. Depois, com uma coroa de ouro cercando o seu elmo, foi ajudado a subir em uma égua cinza e seguiu para o norte da aldeia.
Amanhecia e a serra entre as duas aldeias estava vazia. O moinho, as velas de linho perfeitamente enroladas e presas, estalava ao vento que agitava os longos capins, onde lebres pastavam mas agora ergueram as orelhas e saíram correndo enquanto os cavalarianos subiam pela trilha que levava ao moinho.
O rei liderava, montado na égua que estava envolta numa capa vistosa com o brasão real. A bainha da espada era de veludo vermelho com flores-de-lis douradas incrustadas, enquanto o punho era decorado com doze grandes rubis. Levava um longo bastão branco, doze companheiros e vinte cavaleiros como escolta, mas como seus companheiros eram todos grandes senhores, eram devidamente seguidos por suas comitivas, e, assim, perto de trezentos homens subiam pela trilha que serpenteava. Quanto mais alta a posição de um homem, mais perto do rei ele cavalgava, enquanto os escudeiros e os pajens ficavam atrás, onde tentavam ouvir a conversa de seus superiores.
Um soldado desmontou e entrou no moinho. Subiu a escada, abriu uma pequena porta que dava acesso às velas e, lá, montou no eixo enquanto olhava para o leste.
— Está vendo alguma coisa? — perguntou o rei, animado, em voz alta, mas o homem ficou tão emocionado pelo fato de seu rei ter se dirigido a ele que só conseguiu sacudir a cabeça, mudo.
O céu estava meio coberto de nuvens e a região estava escura. Da altura do moinho, o soldado podia ver a longa encosta que dava para os pequenos campos a seus pés, e depois outra inclinação que subia até uma floresta. Uma estrada vazia corria para o leste, depois da floresta. O rio, cheio de cavalos ingleses, bebendo, torcia-se cinzento à direita para marcar o limite da floresta. O rei, a viseira erguida contra o frontal da coroa, olhava para a mesma paisagem. Um habitante local, descoberto escondido na floresta, confirmara que a estrada de Abbeville vinha do leste, o que significava que os franceses teriam de atravessar os pequenos campos na base da encosta se quisessem fazer um ataque frontal contra o morro. Os campos não tinham sebes, apenas fossas rasas que não ofereceriam obstáculo a um cavaleiro montado.
— Se eu fosse o Filipe — sugeriu o conde de Northampton —, contornaria o nosso flanco norte, majestade.
— Você não é o Filipe, e eu agradeço a Deus por isso — disse Eduardo da Inglaterra. — Ele não é inteligente.
— E eu sou? — O conde parecia surpreso.
— Você é inteligente na guerra, William — disse o rei. Ele ficou um longo tempo a olhar de cima da encosta. — Se eu fosse o Filipe — disse ele, por fim —, ficaria muitíssimo tentado por aqueles campos — ele apontou para a base da encosta —, especialmente se visse os nossos homens esperando em cima deste morro.
A longa encosta verde da zona de pastagem aberta era perfeita para uma carga de cavalaria. Era um convite a lanças e glória, um lugar feito por Deus para os senhores da França fazerem um inimigo petulante em pedaços.
— O morro é íngreme, majestade — avisou o conde de Warwick.
— Eu aposto que ele não vai parecer tão íngreme assim visto da base — disse o rei, e então fez a égua girar e seguiu para o norte, pela crista. A égua trotou com facilidade, deliciando-se com o ar matutino.
— Ela é espanhola — disse o rei ao conde —, comprada do Grindley. Você faz negócios com ele?
— Eu não tenho condições de pagar os preços que ele pede.
— Claro que pode, William! Um homem rico como você? Vou usá-la como reprodutora. Ela deve dar belos corcéis.
— Se der, majestade, eu comprarei um de Vossa Majestade.
— Se você não tem como pagar os preços que o Grindley pede — provocou o rei —, como é que vai pagar os meus?
Ele esporeou a égua para fazê-la passar para um meio galope, a armadura retinindo, e a longa fila de homens apressou-se a ir atrás dele pela trilha que levava ao norte no ponto mais alto da crista. Brotos verdes de trigo e centeio, condenados a morrer no inverno, cresciam nos pontos em que os grãos tinham caído das carroças que levavam a safra para o moinho. O rei parou no final da crista, bem acima da aldeia de Wadicourt, e olhou para o norte. Seu primo estava certo, pensou ele. Filipe deveria marchar para aquela área vazia e impedir sua passagem para Flandres. Os franceses, se soubessem mesmo disso, eram os senhores ali. O exército deles era maior, seus homens estavam mais descansados, e poderiam ficar provocando o inimigo exausto até que os ingleses fossem obrigados a um ataque desesperado ou ficassem encurralados num lugar que não lhes proporcionasse vantagem alguma. Mas Eduardo sabia que não podia deixar que todos os temores lhe dominassem a mente. Os franceses também estavam desesperados. Tinham sofrido a humilhação de ver um exército inimigo atravessar seu país causando devastação e não estavam num estado de espírito que lhes permitisse agir com inteligência. Eles queriam vingança. Ofereça-lhes uma chance, calculou ele, e as probabilidades eram de que a pegariam, e por isso o rei afastou seus temores e desceu para a aldeia de Wadicourt. Uns poucos tinham tido a ousadia de permanecer na aldeia, e aquela gente, vendo a coroa de ouro cercando o elmo do rei e as correntes de prata do freio que a égua usava, puseram-se de joelhos.
— Nós não queremos fazer mal algum a vocês — disse o rei airosamente, mas sabia que até o final da manhã as casas teriam sido totalmente saqueadas.
Ele se voltou para o sul de novo, seguindo pelo terreno aos pés da crista. A relva do vale era macia, mas não traiçoeira. Um cavalo não tropeçaria ali, uma carga seria possível e — melhor ainda, tal como ele calculara — o morro não parecia tão íngreme visto daquele ângulo. Era enganador. O longo trecho de capim parecia suave até, embora na verdade fosse sugar os pulmões dos cavalos quando eles alcançassem os soldados ingleses. Se chegassem a alcançá-los.
— Quantas flechas nós temos? — perguntou a cada homem ao alcance de sua voz.
— Mil e duzentos feixes — disse o bispo de Durham.
— Duas carroças cheias — respondeu o conde de Warwick.
— Oitocentos e sessenta feixes — disse o conde de Northampton.
Fez-se silêncio durante um certo intervalo.
— Os homens têm algumas com eles? — perguntou o rei.
— Talvez cada um tenha um feixe — disse o conde de Northampton, melancólico.
— Vai ter que ser o suficiente — disse o rei, desolado.
Ele teria gostado de ter o dobro de flechas, mas também gostaria de ter muitas coisas. Poderia ter desejado o dobro dos homens e um morro duas vezes mais íngreme e um inimigo chefiado por um homem com o dobro do nervosismo de Filipe de Valois que, Deus sabe, já estava bastante nervoso, mas de nada adiantava desejar. Ele tinha de lutar e vencer. Olhou de cenho franzido para a extremidade sul da crista, onde ela descia para a aldeia de Crécy. Aquele seria o lugar mais fácil para os franceses atacarem, e o mais próximo também, o que significava que a luta seria dura ali.
— Canhões, William — disse ele para o conde de Northampton.
— Canhões, majestade?
— Vamos ter os canhões nos flancos. As porcarias têm de ser úteis alguma vez!
— Nós poderíamos empurrar aquelas coisas morro abaixo, majestade, talvez? Talvez esmagar um ou dois homens?
O rei soltou uma gargalhada e seguiu em frente.
— Parece que vai chover.
— Parece que vai demorar um pouco — respondeu o conde de Warwick. — E os franceses também podem demorar, majestade.
— Você acha que eles não virão, William?
O conde abanou a cabeça.
— Eles virão, majestade, mas vão demorar. Muito tempo. Poderemos ver a vanguarda deles ao meio-dia, mas a retaguarda ainda estará atravessando a ponte em Abbeville. Eu seria capaz de apostar que eles vão esperar até amanhã de manhã para provocar uma luta.
— Hoje ou amanhã — disse o rei, indiferente —, dá tudo no mesmo.
— Nós poderíamos seguir em frente — sugeriu o conde de Warwick.
— E procurar um morro melhor? — O rei sorriu. Ele era mais moço e menos experiente do que muitos dos condes, mas também era o rei e, por isso, a decisão tinha de ficar por sua conta. Ele estava, na verdade, cheio de dúvidas, mas sabia que tinha de parecer confiante. Iria lutar ali. Foi o que disse, e com firmeza.
— Nós lutamos aqui — tornou a dizer o rei, olhando encosta acima.
Ele imaginava seu exército lá, vendo-o tal como os franceses iriam vê-lo, e percebeu que era correta a sua suspeita de que a parte mais baixa da crista, perto de Crécy, seria o terreno perigoso. Aquele seria o seu flanco direito, perto do moinho.
— Meu filho vai comandar à direita — disse ele, apontando — e você, William, estará com ele.
— Estarei, majestade — concordou o conde de Northampton.
— E vossa majestade? — perguntou o conde de Warwick.
— Eu estarei no moinho — disse o rei, e impeliu sua égua morro acima. Desmontou a dois terços da subida da encosta e esperou que um escudeiro segurasse as rédeas do animal, e então deu início ao verdadeiro trabalho da manhã. Caminhou ao longo do morro, marcando lugares ao furar a relva com o seu bastão e instruindo os senhores que o acompanhavam de que os homens deles ficariam aqui, ou ali, e aqueles senhores mandaram chamar seus comandantes para que, quando o exército marchasse para a longa encosta verde, eles soubessem para onde ir.
— Tragam os estandartes para cá — ordenou o rei — e coloque-os nos pontos em que os homens deverão reunir-se.
Ele manteve seu exército nos três batalhões que tinham marchado desde a Normandia. Dois, os maiores, iriam formar uma longa e espessa fila de soldados estendendo-se pelos pontos superiores da encosta.
— Eles lutarão a pé — ordenou o rei, confirmando aquilo que todos tinham esperado, embora um ou dois dos senhores mais jovens ainda reclamassem, porque a fama a ser obtida era maior quando se lutava montado. Mas Eduardo se importava mais com vitória do que com fama. Sabia perfeitamente bem que, se seus soldados estivessem montados, os malucos iriam fazer uma carga assim que os franceses atacassem, e sua batalha iria degenerar-se numa rixa no sopé do morro que os franceses deveriam ganhar, porque tinham a vantagem numérica. Mas se seus homens estivessem a pé, não poderiam fazer uma carga alucinada contra cavaleiros, mas esperar por trás dos escudos que fossem atacados.
— Os cavalos deverão ser mantidos atrás, do outro lado da crista — ordenou ele.
Ele próprio comandaria o terceiro e melhor batalhão no topo da crista, onde o batalhão ficaria como reserva.
— O senhor ficará comigo, senhor bispo — disse o rei ao bispo de Durham.
O bispo, com armadura do pescoço aos pés e levando uma maciça clava pontuda, empertigou-se.
— Vossa majestade vai me negar a oportunidade de quebrar cabeças francesas?
— Em vez disso, deixarei que o senhor canse Deus com suas orações — disse o rei, e seus senhores riram. — E nossos arqueiros — continuou o rei — vão ficar aqui, aqui e aqui.
Ele caminhava pela relva e enfiava o bastão branco na terra a intervalos de poucos passos. Protegeria sua linha com arqueiros, e colocaria mais nos dois flancos. Os arqueiros, Eduardo sabia, eram a sua única vantagem. Suas flechas compridas, de penas brancas, iriam matar naquele local que convidava os cavaleiros inimigos a uma carga gloriosa.
— Aqui — ele continuou a andar e tornou a entalhar a relva — e aqui.
— Vossa majestade quer fossos? — perguntou o conde de Northampton.
— Quantos você quiser, William — disse o rei.
Os arqueiros, assim que estivessem reunidos em seus grupos ao longo da face da fila, seriam ordenados a cavar fossos na relva a alguns metros encosta abaixo. Os fossos não precisavam ser grandes, só do tamanho suficiente para quebrar a perna de um cavalo se ele não visse o buraco. Se fizessem fossos suficientes, a carga deveria ser refreada e desbaratada.
— E aqui — o rei havia chegado ao extremo norte da crista — nós estacionaremos algumas carroças vazias. Coloquem metade dos canhões aqui, e a outra metade na outra ponta. E eu quero mais arqueiros aqui.
— Se sobrarem alguns — resmungou o conde de Warwick.
— Carroças? — perguntou o conde de Northampton.
— Não se pode atacar com cavalos contra uma fila de carroças, William — disse o rei, animado, e fez um gesto para que seu cavalo fosse até ele e, pelo fato de sua armadura ser muito pesada, dois pajens tiveram que erguê-lo até certa altura e empurrá-lo para cima da sela. Aquilo significava uma subida desajeitada, nada digna, mas uma vez instalado na sela, ele olhou para trás, correndo os olhos pela crista que já não estava vazia, mas pontilhada com os primeiros estandartes indicando onde os homens estariam se reunindo. Dali a uma ou duas horas, pensou ele, todo o seu exército estaria ali para atrair os franceses para as flechas dos arqueiros. Ele limpou a terra da ponta do bastão e esporeou a égua em direção a Crécy.
— Vamos ver se há alguma coisa para comer — disse ele.
As primeiras bandeiras tremulavam sobre a crista vazia. O céu inculcava um cinza em campos e florestas distantes. Chuva caía ao norte e o vento era frio. A estrada para o leste, pela qual os franceses teriam de vir, ainda estava deserta. Os padres rezavam.
Tende piedade de nós, ó Senhor, em Sua grande misericórdia, tende piedade de nós.
O homem que se intitulava o Arlequim estava nos bosques do morro que ficava a leste da crista que corria entre Crécy e Wadicourt. Ele saíra de Abbeville alta madrugada, obrigando as sentinelas a abrir a porta norte, e liderara seus homens no escuro, com a ajuda de um padre de Abbeville que conhecia as estradas locais. Depois, escondido pelas faias, ficara observando o rei da Inglaterra cavalgar e caminhar pela crista distante. Agora o rei tinha ido embora, mas a relva verde estava salpicada de estandartes e as primeiras tropas inglesas apareciam aqui e ali, vindas da aldeia.
— Eles esperam que lutemos aqui — observou ele.
— É um lugar tão bom quanto qualquer outro — comentou Sir Simon Jekyll, mal-humorado.
Ele não gostava de ser acordado no meio da noite. Sabia que o estranho trajado de preto que se intitulava Arlequim se oferecera para ser um batedor para o exército francês, mas Sir Simon não pensara que se esperava que todos os seguidores do Arlequim fossem deixar de tomar o café da manhã e andar às cegas por um campo escuro como breu e vazio durante seis frias horas.
— É um lugar ridículo para um combate — respondeu o Arlequim. — Eles vão formar os arqueiros em linha naquele morro e nós teremos que cavalgar direto contra as pontas deles. O que devíamos fazer é cercar o flanco deles. — Ele apontou para o norte.
— Diga isso a sua majestade — disse Sir Simon, malévolo.
— Eu duvido que ele me dê ouvidos. — O Arlequim ouvira o sarcasmo, mas não aderiu. — Não por enquanto. Quando tivermos feito o nosso nome, ele ouvirá. — Ele deu uns tapinhas no pescoço do cavalo. — Eu só enfrentei flechas inglesas uma vez, e era apenas um arqueiro, mas vi uma flecha atravessar uma cota de malha.
— Eu vi uma flecha penetrar em cinco centímetros de carvalho — disse Sir Simon.
— Sete e meio — acrescentou Henry Colley.
Ele, tal como Sir Simon, poderia ter de enfrentar aquelas flechas naquele dia, mas ele ainda sentia orgulho do que as armas inglesas podiam fazer.
— Uma arma perigosa — reconheceu o Arlequim, embora num tom de voz sem denotar preocupação.
Estava sempre despreocupado, sempre confiante, perpetuamente calmo, e aquele autocontrole irritava Sir Simon, embora ele ficasse ainda mais perturbado pelos olhos de pálpebras levemente caídas que, pelo que Sir Simon percebia, faziam-no lembrar-se de Thomas de Hookton. Tinha a mesma beleza, mas pelo menos Thomas de Hookton estava morto, e era menos um arqueiro a enfrentar naquele dia.
— Mas arqueiros podem ser derrotados — acrescentou o Arlequim.
Sir Simon raciocinou que o francês enfrentara apenas um arqueiro em toda a vida, e no entanto já imaginara como derrotá-los.
— Como?
— O senhor me explicou — lembrou o Arlequim. — Acaba-se com o estoque de flechas deles, é claro. Mande menos alvos, deixe que eles matem camponeses, malucos e mercenários durante uma ou duas horas, e depois libere a sua força principal. O que vamos fazer — ele fez o cavalo voltar-se, afastando-se — é atacar com a segunda linha. Não importa que ordens recebamos, vamos esperar até que as flechas estejam acabando. Quem quer ser morto por um camponês imundo? Não há glória nisso, Sir Simon.
Isso, reconheceu Sir Simon, era a pura verdade. Ele acompanhou o Arlequim até o lado mais distante da floresta de faias, onde os escudeiros e os criados aguardavam com os cavalos de carga. Dois mensageiros foram mandados de volta com a notícia sobre os preparativos ingleses, enquanto o resto desmontava e desselava os cavalos. Havia tempo para homens e animais descansarem e se alimentarem, tempo para vestir a armadura de combate e tempo para rezar.
O Arlequim rezava com freqüência, o que desconcertava Sir Simon, que se considerava um bom cristão, mas um cristão que não prendia a alma nas cordas de Deus. Ele se confessava uma ou duas vezes por ano, ia à missa e tirava o chapéu quando os sacramentos passavam mas, fora isso, dedicava pouca atenção aos atos piedosos. O Arlequim, por outro lado, confidenciava todos os dias a Deus, embora raramente entrasse numa igreja e não desse importância aos padres. Era como se tivesse um relacionamento particular com o céu, e isso era tanto perturbador quanto confortador para Sir Simon. Perturbava-o porque parecia efeminado, e confortava-o porque se Deus tivesse alguma utilidade para um combatente, era no dia da batalha.
Aquele dia, porém, parecia especial para o Arlequim, porque depois de ajoelhar-se apenas sobre um dos joelhos e rezar em silêncio por algum tempo, ele se levantou e mandou que seu escudeiro lhe trouxesse a lança. Sir Simon, desejando que eles pudessem acabar a bobagem piedosa e comer, imaginou que se esperava que eles se armassem e mandou Colley buscar a sua lança, mas o Arlequim o impediu.
— Espere — ordenou ele.
As lanças, embrulhadas em couro, eram levadas num cavalo de carga, mas o escudeiro do Arlequim apanhou uma lança diferente, uma lança que viajara num cavalo só para ela e estava envolta em linho e em couro. Sir Simon supôs que fosse a arma pessoal do Arlequim, mas em vez disso, quando o linho foi retirado da haste, viu que se tratava de uma lança antiga e empenada, feita de uma madeira tão velha e escura, que com toda certeza iria estilhaçar-se se fosse submetida à menor das tensões. A lâmina parecia de prata, o que era uma tolice, porque o metal era fraco demais para se fazer uma lâmina mortal.
Sir Simon sorriu.
— O senhor não vai lutar com isso!
— Nós todos vamos lutar com isto — disse o Arlequim e, para surpresa de Sir Simon, o homem vestido de preto tornou a se pôr de joelhos.
— Ajoelhe — instruiu ele a Sir Simon.
Sir Simon ajoelhou-se, sentindo-se um tolo.
— O senhor é um bom soldado, Sir Simon — disse o Arlequim. — Eu conheci poucos que sabem usar armas como o senhor usa e eu não consigo pensar em outro homem que eu gostaria de ter lutando ao meu lado, mas combater é mais do que espadas, lanças e flechas. É preciso pensar antes de combater, e deve-se sempre rezar, porque se Deus estiver do seu lado, homem algum poderá derrotá-lo.
Sir Simon, obscuramente cônscio de que estava sendo criticado, fez o sinal-da-cruz.
— Eu rezo — disse ele, na defensiva.
— Então, agradeça a Deus por entrarmos em combate com aquela lança.
— Por quê?
— Porque ela é a lança de São Jorge, e o homem que lutar sob a proteção daquela lança estará aninhado nos braços de Deus.
Sir Simon olhou para a lança, que fora colocada com reverência sobre a relva. Tinham sido poucas as vezes em sua vida, em geral quando ele estava um tanto bêbado, em que ele percebia de relance algo dos mistérios de Deus. Certa vez, fora reduzido às lágrimas por um dominicano arrebatado, embora o efeito não tivesse durado além de sua visita seguinte a uma taberna, e ele se sentira reduzido em tamanho na primeira vez em que entrara numa catedral e vira toda a cúpula fracamente iluminada por velas, mas momentos assim eram poucos, infreqüentes e indesejados. No entanto, naquele momento, de repente, o mistério de Cristo veio do alto para tocar-lhe o coração. Ele olhou fixamente para a lança e não viu uma velha arma de mau gosto adornada com uma lâmina de prata inútil, mas um objeto com o poder dado por Deus. Tinha sido dada pelo Céu para tornar invencíveis homens na terra, e Sir Simon ficou perplexo ao sentir lágrimas formigarem em seus olhos.
— Minha família a trouxe da Terra Santa — disse o Arlequim — e dizia que quem lutasse sob a proteção da lança não poderia ser derrotado, mas isso não era verdade. Eles foram derrotados, mas depois que todos os seus aliados morreram, que as fogueiras do inferno foram acesas para matar seus seguidores, eles viveram. Foram embora da França e levaram a lança, mas meu tio a roubou e escondeu-a de nós. Depois eu a achei, e agora ela dará suas bênçãos à nossa batalha.
Sir Simon não disse nada. Limitou-se a olhar fixo para a arma, com uma expressão que beirava o medo respeitoso.
Henry Colley, insensível ao fervor daquele momento, meteu o dedo no nariz.
— O mundo — disse o Arlequim — está apodrecendo. A Igreja é corrupta e os reis são fracos. Cabe a nós, Sir Simon, fazer um mundo novo, amado por Deus, mas para fazê-lo temos de destruir o velho. Temos de tomar o poder e depois dar o poder a Deus. É por isso que estamos lutando.
Henry Colley pensou que o francês estivesse louco de pedra, mas Sir Simon estava com uma expressão arrebatada.
— Diga-me — o Arlequim olhou para Sir Simon —, qual é a bandeira de campanha do rei inglês?
— O estandarte com o dragão — disse Sir Simon.
O Arlequim deu um de seus raros sorrisos.
— Isso não é um presságio? — perguntou ele, e fez uma pausa. — Eu vou lhe dizer o que vai acontecer hoje — prosseguiu. — O rei da França vai chegar, estará impaciente e atacará. O dia vai ser ruim para nós. Os ingleses vão nos vaiar porque não podemos derrotá-los, mas então nós levaremos a lança para o campo de batalha e o senhor vai ver Deus inverter a luta. Nós vamos arrebatar a vitória do fracasso. O senhor fará o filho do rei inglês prisioneiro e talvez cheguemos até a capturar o próprio Eduardo, e a nossa recompensa serão as graças de Filipe de Valois. É por isso que lutamos, Sir Simon — pelas graças do rei, porque essas graças significam poder, riqueza e terras. O senhor compartilhará dessa riqueza, mas só se compreender que iremos usar o nosso poder para remover a podridão da cristandade. Nós seremos um flagelo contra os maus.
Louco de pedra, pensou Henry Colley. Maluquinho. Ele ficou olhando enquanto o Arlequim se levantava e ia até o alforje do cavalo de carga, do qual tirou um quadrado de pano que, desdobrado, revelou-se um estandarte vermelho com um estranho animal com chifres, presas e garras, erguendo-se sobre as patas traseiras enquanto segurava um cálice com as garras dianteiras.
— Este é o estandarte de minha família — disse o Arlequim, amarrando o estandarte à comprida cabeça de prata da lança com fitas pretas — e por muitos anos, Sir Simon, este estandarte foi proibido na França porque seus donos tinham lutado contra o rei e contra a Igreja. Nossas terras foram arrasadas e o nosso castelo ainda é desprezado, mas hoje nós seremos os heróis e este estandarte voltará a cair nas boas graças. — Ele enrolou o estandarte na ponta da lança, de modo que o yale ficou escondido. — Hoje — disse ele, com fervor — minha família vai ressuscitar.
— Qual é a sua família? — perguntou Sir Simon.
— Meu nome é Guy Vexille — admitiu o Arlequim — e eu sou o conde de Astarac.
Sir Simon nunca ouvira falar em Astarac, mas ficou satisfeito por ver que o seu patrão era um nobre e, para indicar sua obediência, dirigiu as mãos em oração para Guy Vexille, em sinal de homenagem.
— Eu não o desapontarei, senhor conde — disse Sir Simon com uma humildade à qual não estava acostumado.
— Deus não irá nos desapontar hoje — disse Guy Vexille. Ele tomou as mãos de Sir Simon nas dele. — Hoje — ergueu a voz para falar a todos os seus cavaleiros — nós destruiremos a Inglaterra.
Porque ele tinha a lança.
E o real exército da França estava chegando.
E os ingleses tinham se oferecido ao massacre.
— Flechas — disse Will Skeat. Ele estava de pé à beira da floresta, ao lado de uma pilha de feixes descarregados de uma carroça, mas de repente fez uma pausa. — Meu Deus. — Ele estava olhando fixo para Thomas. — Parece que um rato comeu o seu cabelo. — Ele franziu o cenho. — Mas em você, fica bem. Finalmente, você parece um adulto. Flechas! — tornou ele a dizer. — Não vão desperdiçá-las. — Ele jogou os feixes, um a um, para os arqueiros. — Parece muito, mas a maioria de vocês, seus leprosos miseráveis, nunca estiveram numa batalha de verdade, e as batalhas engolem flechas como putas engolindo... bom dia, padre Hobbe!
— Vai me dar um feixe, Will?
— Não o desperdice com pecadores, padre — disse Will, jogando um feixe para o sacerdote. — Mate alguns franceses tementes a Deus.
— Isso não existe, Will. Todos eles vieram de Satã.
Thomas despejou um feixe na sacola e meteu outro no cinto. Tinha um par de cordas de arco no elmo, protegido contra a chuva que ameaçava cair. Um ferreiro tinha ido ao acampamento dos arqueiros e, com um martelo, nivelara os chanfrados das espadas, dos machados, das facas e dos podões, e depois amolara as lâminas com as pedras. O ferreiro, que estivera percorrendo o exército, disse que o rei fora para o norte à procura de um campo de batalha, mas ele, o ferreiro, calculava que os franceses não atacariam naquele dia.
— É muito suor para nada — resmungara ele enquanto passava uma pedra pela espada de Thomas. — Isto é trabalho francês — disse ele, olhando de perto a lâmina longa.
— De Caen.
— Você poderia vender isto por um pêni ou dois — o elogio foi dado de má vontade —, bom aço. Velho, é claro, mas bom.
Agora, reabastecidos de flechas, os arqueiros colocaram seus pertences numa carroça que se juntaria ao restante da bagagem do exército e um homem, que estava passando mal do estômago, iria vigiá-la durante o dia, enquanto um segundo inválido ficaria de sentinela junto aos cavalos dos arqueiros. Will Skeat mandou que a carroça fosse embora, e depois correu os olhos por seus arqueiros reunidos.
— Os canalhas estão vindo — grunhiu ele — se não hoje, então amanhã, e eles são em número maior do que nós, e não estão com fome, e todos estão de botas, e acham que a merda deles tem o perfume de rosas porque eles são franceses, mas morrem como outra pessoa qualquer. Matem os cavalos deles, e vocês viverão para ver o pôr-do-sol. E lembrem-se, eles não têm arqueiros de verdade, e por isso vão perder. Não é difícil compreender. Mantenham a calma, mirem nos cavalos, não desperdicem flechas e fiquem atentos às ordens. Vamos, rapazes.
Eles vadearam o rio raso, um dos muitos bandos de arqueiros que surgiram das árvores para entrar em fila na aldeia de Crécy, onde cavaleiros andavam de um lado para o outro, depois batiam os pés e chamavam escudeiros e pajens para apertar ou afrouxar uma fivela para tornar confortáveis suas armaduras. Grupos de cavalos, amarrados rédeas com rédeas, estavam sendo levados para o outro lado do morro onde, com as mulheres, as crianças e a bagagem do exército, ficariam no interior de um círculo de carroças. O príncipe de Gales, com armadura da cintura para baixo, comia uma maçã verde ao lado da igreja e agitou a cabeça, distraído, quando os homens de Skeat tiraram respeitosamente seus elmos. Não havia sinal de Jeanette, e Thomas ficou imaginando se ela teria fugido sozinha, e depois concluiu que não se importava.
Eleanor caminhava a seu lado. Ela tocou a sacola de flechas.
— Você tem flechas suficientes?
— Depende de quantos franceses vierem — disse Thomas.
— Quantos ingleses há?
Diziam os boatos que o exército tinha oito mil homens agora, metade dos quais arqueiros, e Thomas calculou que provavelmente girasse em torno disso. Ele transmitiu aquele número a Eleanor, que franziu o cenho.
— E quantos franceses? — perguntou ela.
— Só Deus sabe — disse Thomas, mas ele calculava que tinha de ser muito mais de oito mil, muitíssimo mais, mas agora ele não podia fazer nada quanto a isso, e assim tentou esquecer a disparidade numérica enquanto os arqueiros subiam em direção ao moinho de vento.
Eles atravessaram a crista para ver a longa encosta do outro lado, e por um instante Thomas teve a impressão de que uma grande feira estava começando. Bandeiras vistosas pontilhavam o morro e bandos de homens perambulavam entre elas. Tudo de que se precisava eram alguns ursos dançantes e alguns malabaristas, e o cenário teria ficado parecido com a feira de Dorchester.
Will Skeat parara de procurar pelo estandarte do conde de Northampton, e então localizou-o à direita da encosta, na reta do moinho. Liderou seus homens na descida e um soldado mostrou a eles as varas assinalando o ponto onde os arqueiros iriam lutar.
— E o conde quer que cavem fossos contra os cavalos — disse o soldado.
— Vocês ouviram o que ele disse! — gritou Will Skeat. — Comecem a cavar!
Eleanor ajudou Thomas a fazer os fossos. O solo estava duro e eles usaram facas para soltar a terra, que retiraram com as mãos.
— Por que vocês cavam fossos? — perguntou Eleanor.
— Para que os cavalos tropecem — disse Thomas, chutando a terra retirada antes de começar outro buraco. Por toda a face do morro arqueiros faziam pequenos buracos similares a vinte passos em frente de suas posições. Os cavaleiros inimigos poderia atacar a pleno galope, mas os fossos iriam contê-los. Eles poderiam passar, mas só devagar, e o ímpeto da carga estaria quebrado. Enquanto eles tentassem passar pelos traiçoeiros buracos, ficariam sob o ataque dos arqueiros.
— Lá — disse Eleanor, apontando, e Thomas ergueu os olhos e viu um grupo de cavaleiros na crista do morro oposta. Os primeiros franceses tinham chegado e olhavam para aquele lado do vale, onde o exército inglês se reunia lentamente sob os estandartes.
— Ainda vai levar horas — disse Thomas. Aqueles franceses, calculava ele, eram a vanguarda que fora enviada para localizar o inimigo, enquanto o exército principal francês ainda estaria vindo, marchando de Abbeville. Os besteiros, que sem dúvida alguma iriam liderar o ataque, estariam todos a pé.
À direita de Thomas, lá onde a encosta descia para o rio e para a aldeia, uma fortaleza improvisada de carroças vazias estava sendo construída. As carroças estavam estacionadas bem juntas umas das outras, formando uma barreira contra homens a cavalo, e entre elas havia canhões. Não eram os canhões que não tinham conseguido derrotar o castelo de Caen, mas muito menores.
— Desbocados — disse Will Skeat a Thomas.
— Desbocados?
— É assim que eles são chamados, desbocados.
Ele conduziu Thomas e Eleanor pela encosta para ver os canhões, que eram estranhos feixes de tubos de ferro. Artilheiros agitavam a pólvora, enquanto outros desfaziam feixes de garrochas, os compridos mísseis de ferro semelhantes a uma flecha, que eram enfiados nos tubos. Alguns dos desbocados tinham oito canos, alguns sete e uns poucos apenas quatro.
— Porcarias imprestáveis — vociferou Skeat —, mas poderão amedrontar os cavalos.
Ele fez com a cabeça uma saudação aos arqueiros que cavavam fossos antes dos desbocados. Os canhões eram numerosos ali — Thomas contou 34 e outros estavam sendo arrastados para suas posições —, mas ainda precisavam da proteção de arqueiros.
Skeat apoiou-se numa carroça e olhou para o morro distante. Não fazia calor, mas ele estava suando.
— Você está doente? — perguntou Thomas.
— As tripas estão se agitando um pouco — admitiu Skeat —, mas nada para preocupar.
Havia, agora, cerca de quatrocentos cavaleiros franceses lá no morro, e outros estavam aparecendo, saídos da floresta.
— Talvez não aconteça — disse Skeat, tranqüilo.
— A batalha?
— Filipe de França é inconstante — disse Skeat. — Ele tem o cacoete de marchar para a batalha e depois resolver que seria melhor estar em casa, se divertindo. Foi o que eu ouvi dizer. Um bastardo nervoso. — Ele deu de ombros. — Mas se ele pensar que vai ter uma chance hoje, Tom, a coisa vai ser terrível.
Thomas sorriu.
— Os fossos? Os arqueiros?
— Não seja idiota, rapaz — retorquiu Skeat. — Nem todo fosso quebra uma perna e nem toda flecha atinge o alvo. Nós poderíamos deter a primeira carga e talvez a segunda, mas eles continuarão vindo, e no final irão passar. Os bastardos são muito numerosos. Eles vão estar em cima da gente, Tom, e vai ficar por conta dos soldados dar uma surra neles. Mantenha o seu controle, rapaz, e lembre-se de que são os soldados que fazem o serviço a pequena distância. Se os bastardos passarem pelos fossos, pegue de volta o seu arco, espere um alvo e mantenha-se vivo. E se perdermos? — Ele deu de ombros. — Corra para a floresta e esconda-se por lá.
— O que é que ele está dizendo? — perguntou Eleanor.
— Que hoje o trabalho deve ser fácil.
— Você é um péssimo mentiroso, Thomas.
— Eles são muitos — disse Skeat, quase que para si mesmo. — Tommy Dougdale enfrentou desvantagens maiores lá na Bretanha, Tom, mas ele tinha muitas flechas. Nós temos poucas.
— Vai dar tudo certo, Will.
— Muito bem. Talvez. — Skeat impulsionou o corpo, afastando-se da carroça. — Vocês dois vão em frente. Eu preciso de um lugar tranqüilo por um segundo.
Thomas e Eleanor caminharam de volta para o norte. A linha inglesa estava se formando, agora, as bandeiras espalhadas sendo tragadas por soldados que se uniam em blocos. Arqueiros ficavam à frente de cada formação, enquanto marechais, armados de bastões brancos, garantiam a existência de claros na linha através dos quais os arqueiros pudessem escapar se os cavaleiros chegassem perto demais. Feixes de lanças tinham sido levados da aldeia e estavam sendo distribuídos aos soldados da fila da frente porque, se os franceses passassem pelos fossos e pelas flechas, as lanças teriam de ser usadas como piques.
Quando a manhã ia ao meio, o exército inteiro estava reunido no morro. Ele parecia muito maior do que era na realidade, porque muitas mulheres tinham ficado ao lado de seus homens e agora estavam sentadas na relva, ou deitadas e dormindo. Um sol intermitente aparecia e ia embora, fazendo com que sombras corressem pelo vale. Os fossos estavam cavados e os canhões carregados. Talvez mil franceses observassem do morro distante, mas nenhum arriscou-se a descer a encosta.
— Pelo menos, é melhor do que marchar — reconheceu Sam. Ele sacudiu a cabeça em direção ao morro distante. — Os bastardos não são muitos, hã?
— Aquilo é apenas a vanguarda, seu idiota — disse Jake.
— Tem mais vindo? — Sam parecia surpreso de verdade.
— Todo bastardo da França está vindo — disse Jake.
Thomas manteve-se calado. Ele imaginava o exército francês avançando em fila pela estrada de Abbeville. Todos eles deveriam saber que os ingleses tinham parado de fugir, que estavam esperando, e sem dúvida os franceses estavam andando depressa, para não perderem a batalha. Tinham de estar confiantes. Ele fez o sinal-da-cruz e Eleanor, percebendo o seu temor, tocou em seu braço.
— Você vai se sair bem — disse ela.
— Você também, amor.
— Lembra-se de sua promessa ao meu pai? — perguntou ela.
Thomas confirmou com a cabeça, mas não tinha como se convencer de que iria ver a lança de São Jorge naquele dia. Aquele dia era de verdade, enquanto que a lança fazia parte de um mundo misterioso no qual Thomas não queria se envolver. Todos os demais, pensou ele, preocupavam-se apaixonadamente com a relíquia, e só ele, que tinha um motivo tão bom quanto ninguém mais de descobrir a verdade, era indiferente. Ele gostaria de nunca ter visto a lança, quisera que o homem que se dizia chamar o Arlequim nunca tivesse ido a Hookton, mas se os franceses não tivessem desembarcado, pensou ele, ele não estaria levando o arco preto e não estaria naquela encosta verde e não teria conhecido Eleanor. Não se pode dar as costas para Deus, disse ele a si mesmo.
— Se eu vir a lança — prometeu ele a Eleanor —, lutarei por ela.
Aquela era a sua penitência, embora ele ainda tivesse a esperança de que não teria de cumpri-la.
Comeram pão bolorento como sua refeição do meio-dia. Os franceses eram uma massa escura no morro distante, numerosos demais para serem contados, e os primeiros homens da infantaria tinham chegado. Um borrifo de chuva fez com que os arqueiros que tinham suas cordas penduradas numa ponta de arco apressassem-se a enrolá-las e protegê-las sob elmos ou chapéus, mas a chuvinha passou. Um vento agitou a relva.
E ainda chegavam franceses ao morro distante. Eram uma horda, tinham chegado a Crécy e vieram para se vingar.
OS INGLESES ESPERAVAM. Dois dos arqueiros de Skeat tocavam flauta de bambu, enquanto os hobelars, que ajudavam a proteger os canhões nos flancos do exército, cantavam canções de bosques verdes e cursos d’água. Alguns homens dançavam os passos que teriam usado num parque de aldeia em seu país de origem, outros dormiam, muitos jogavam dados, e todos, exceto os dorminhocos, ficavam olhando para o outro lado do vale, para a distante crista do morro que se enchia de homens.
Jake tinha um pedaço de cera de abelha envolto em pano, que ele fazia circular pelos arqueiros, para que eles pudessem cobrir os arcos com ela. Aquilo não era necessário, apenas alguma coisa para fazer.
— Onde foi que você arranjou a cera? — perguntou Thomas.
— Roubei, é claro, de algum soldado idiota. Eu acho que é para polir selas.
Surgiu uma discussão sobre qual a madeira que dava as melhores flechas. Era um debate antigo, mas fazia o tempo passar. Todo mundo sabia que o freixo dava as melhores hastes, mas havia quem gostasse de afirmar que o vidoeiro ou carpa, até mesmo o carvalho, voava com a mesma eficiência. O amieiro, embora pesado, era bom para matar alces, mas precisava de uma ponta pesada e não tinha o alcance para uma batalha.
Sam tirou uma de suas novas flechas da sacola e mostrou a todos como a haste estava empenada.
— Deve ser feita da porcaria do abrunheiro bravo — reclamou ele, amargurado. — Dava para disparar e fazer ela dobrar uma esquina.
— Já não se fazem mais flechas como antigamente — disse Will Skeat, e seus arqueiros zombaram, porque aquilo era uma queixa antiga. — É verdade — disse Skeat. — Hoje em dia, é tudo na base da pressa e sem que a pessoa entenda do assunto. Quem se importa? Os bastardos são pagos por feixe, e os feixes são mandados para Londres e ninguém olha para eles até que cheguem a nós, e o que é que nós vamos fazer? Olhem só!
Ele tirou a flecha de Sam e torceu-a nos dedos.
— Isso não é pena de ganso! É uma porcaria de pena de pardal. Não serve para coisa alguma, exceto coçar a bunda.
Ele jogou a flecha de volta para Sam.
— Não, um arqueiro de verdade faz suas próprias flechas.
— Eu fazia — disse Thomas.
— Mas agora você é um bastardo preguiçoso, hein, Tom? — Skeat sorriu, mas o sorriso desapareceu quando ele olhou para o lado oposto do vale. — Já chega dos malditos bastardos — resmungou ele, olhando para os franceses que se reuniam, e depois fez uma careta quando um solitário pingo de chuva bateu em suas botas gastas. — Eu queria que chovesse e acabasse com isso. Está ameaçando chover. Se mijar na gente quando os bastardos estiverem atacando, é melhor a gente dar no pé, porque os arcos não vão disparar.
Eleanor estava sentada ao lado de Thomas e observava o morro distante. Havia pelo menos a mesma quantidade de homens que no exército inglês agora, e o principal batalhão francês estava apenas acabando de chegar. Soldados montados espalhavam-se pelo morro, organizando-se em conrois. Um conroi era a unidade básica de combate para um cavaleiro ou um soldado, e a maioria tinha entre doze e vinte homens, mas aqueles que formavam os guarda-costas dos grandes senhores eram muito maiores. Havia, agora, tantos cavaleiros no alto do morro distante que alguns tinham de descer pela encosta, que estava se transformando numa gama de cores, porque os soldados usavam casacos bordados com as insígnias de seus senhores e os cavalos tinham capas vistosas, enquanto os estandartes franceses acrescentavam mais azul, vermelho, amarelo e verde. No entanto, apesar das cores, o cinza opaco do aço e das malhas ainda predominava. Em frente dos cavaleiros estavam os primeiros blusões verde e vermelho dos besteiros genoveses. Havia apenas uns poucos daqueles besteiros, mas um número cada vez maior afluía por cima do morro para juntar-se aos companheiros.
Uma ovação veio do centro inglês e Thomas inclinou-se para a frente para ver que arqueiros estavam se pondo de pé, desajeitados. O primeiro pensamento foi de que os franceses deviam ter atacado, mas não havia cavaleiro inimigo algum e nenhuma seta voava.
— Levantem-se! — gritou Will Skeat de repente. — Levantem-se!
— O que é? — perguntou Jake.
Então Thomas viu os cavaleiros. Não franceses, mas uma dezena de ingleses que cavalgavam pela face da linha de combate que esperava, com o cuidado de manter seus cavalos longe dos fossos feitos pelos arqueiros. Três dos cavaleiros levavam estandartes, e um deles era enorme, mostrando os lírios e os leopardos emoldurados em ouro.
— É o rei — disse um homem, e os arqueiros de Skeat começaram a ovacionar.
O rei parou e falou com os homens do centro da linha, e depois continuou trotando para a direita inglesa. Sua escolta montava grandes corcéis, mas o rei cavalgava uma égua cinza. Vestia seu vistoso casaco, mas pendurara o elmo coroado no arção anterior da sela e, por isso, estava com a cabeça descoberta. Seu estandarte real, todo vermelho, ouro e azul, liderava as bandeiras, enquanto atrás dele estava a insígnia pessoal do rei, o flamejante sol nascente, e o terceiro, que provocou a ovação mais alta de todas, era um galhardete extravagantemente longo que mostrava o dragão de Wessex cuspindo fogo. Era a bandeira da Inglaterra, dos homens que haviam lutado contra o Conquistador, e o descendente do Conquistador agora a exibia para mostrar que ele era da Inglaterra, tal como os homens que o ovacionavam enquanto ele cavalgava a égua cinza.
Ele parou perto dos homens de Will Skeat e ergueu um bastão branco para silenciar as ovações. Os arqueiros tinham tirado seus elmos e alguns se ajoelharam sobre apenas uma perna. O rei ainda parecia jovem, e os cabelos e a barba eram tão dourados quanto o sol nascente em seu estandarte.
— Eu me sinto grato — começou numa voz tão rouca que ele fez uma pausa e recomeçou. — Eu me sinto grato por vocês estarem aqui.
Aquilo fez com que a ovação reiniciasse e Thomas, que ovacionava com os demais, nem mesmo pensou na opção que lhes fora oferecida. O rei ergueu o bastão branco, para que se fizesse silêncio.
— Os franceses, como vocês estão vendo, decidiram juntar-se a nós! Talvez se sintam solitários.
Não era uma grande piada, mas provocou um rugido de gargalhadas que se transformou em escárnio pelo inimigo. O rei sorriu enquanto esperava que os gritos diminuíssem.
— Nós viemos aqui — disse ele, então, em voz alta — apenas para obter os direitos, as terras e os privilégios que são nossos pelas leis do homem e de Deus. O meu primo da França nos desafia, e ao fazê-lo desafia a Deus.
Os homens estavam calados, agora, ouvindo com atenção. Os cavalos de combate da escolta do rei batiam com as patas no chão, mas nenhum homem se mexia.
— Deus não vai tolerar o atrevimento de Filipe da França — continuou o rei. — Ele castigará a França, e vocês — ele fez um gesto com uma das mãos para indicar os arqueiros — serão o Seu instrumento. Deus está com vocês, e eu lhes prometo, eu juro perante Deus e pela minha vida, que não deixarei este campo até que o último homem de meu exército tenha marchado para fora daqui. Nós ficaremos aqui e lutaremos aqui juntos, e venceremos juntos por Deus, por São Jorge e pela Inglaterra!
As ovações recomeçaram e o rei sorriu e acenou com a cabeça, e depois voltou-se quando o conde de Northampton deixou a linha e se aproximou. O rei inclinou-se na sela e ouviu o que o conde dizia por um instante, e depois endireitou o corpo e sorriu outra vez.
— Há um Mestre Skeat aqui?
Skeat enrubesceu imediatamente, mas não acusou sua presença. O conde sorria, o rei esperava, e então uns vinte arqueiros apontaram para o seu líder.
— Ele está aqui!
— Venha cá! — ordenou o rei, com severidade.
Will Skeat parecia contrafeito enquanto caminhava por entre os arqueiros e se aproximava da égua do rei, onde se ajoelhou apenas sobre um dos joelhos. O rei sacou de sua espada de punho cravejado de rubis e tocou com ela o ombro de Skeat.
— Soubemos que você é um de nossos melhores soldados, de modo que daqui por diante você será Sir William Skeat.
Os arqueiros gritaram ainda mais alto. Will Skeat, agora Sir William, permaneceu de joelhos enquanto o rei esporeava sua égua e ia fazer o mesmo discurso aos últimos homens na linha e para aqueles que guarneciam os canhões no círculo de carroças agrícolas. O conde de Northampton, que evidentemente fora o responsável pela nomeação de Skeat como cavaleiro, ajudou-o a levantar-se e levou-o de volta para seus homens, que ovacionavam, e Skeat ainda estava ruborizado enquanto seus arqueiros lhe davam tapinhas nas costas.
— Que absurdo — disse ele a Thomas.
— Você merece, Will — disse Thomas, e depois sorriu —, Sir William.
— Só que eu tenho que pagar mais a porcaria do imposto, não tenho? — disse Skeat, mas mesmo assim parecia satisfeito. Então, franziu o cenho quando um pingo de chuva caiu-lhe na testa descoberta. — Cordas de arco! — gritou ele.
A maioria dos homens ainda estava protegendo suas cordas, mas alguns tiveram que enrolar as cordas quando a chuva começou a cair mais pesadamente. Um dos soldados do conde aproximou-se dos arqueiros, gritando que as mulheres deveriam recuar para o outro lado da crista.
— Vocês ouviram! — gritou Skeat. — Mulheres para junto da bagagem!
Algumas mulheres choraram, mas Eleanor agarrou-se a Thomas por um instante.
— Fique vivo — disse ela simplesmente, e depois afastou-se na chuva, passando pelo príncipe de Gales que, com seis outros homens montados, seguia para o seu lugar entre os soldados atrás dos arqueiros de Will Skeat. O príncipe decidira lutar montado, para que pudesse ver por cima da cabeça dos homens a pé e, para assinalar sua chegada, seu estandarte, que era maior do que qualquer outro à direita do campo, foi desfraldado para a forte chuva que caía.
Thomas já não conseguia ver o outro lado do vale, porque largas cortinas de forte chuva cinzenta vinham do norte e obscureciam o ar. Não havia outra coisa a fazer a não ser sentar e esperar, enquanto o forro de couro de sua cota de malha ficava frio e pegajoso. Ele se curvou, angustiado, olhando fixo para o cinza, sabendo que nenhum arco poderia ser armado como devia até que aquela chuvarada parasse.
— O que eles deviam fazer — disse o padre Hobbe, que se sentara ao lado de Thomas — era atacar agora.
— Eles não poderiam achar o caminho nesta lama, padre — disse Thomas. Ele viu que o padre estava com um arco e uma sacola de flechas, mas sem nenhum outro equipamento bélico. — O senhor devia arranjar uma cota de malha — disse ele — ou ao menos um casaco forrado.
— Eu estou protegido pela fé, meu filho.
— Onde estão as cordas do arco? — perguntou Thomas, porque o padre não tinha nem elmo nem chapéu.
— Eu as enrolei no meu... ora, pouco importa. Ele tem que servir para alguma coisa que não para mijar, hã? E lá, está seco. — O padre parecia indecentemente alegre. — Eu andei pelas linhas, Tom, procurando por sua lança. Ela não está aqui.
— Isso praticamente não é uma surpresa dos diabos — disse Thomas. — Eu nunca pensei que estivesse.
O padre Hobbe ignorou a blasfêmia.
— E eu bati um papo com o padre Pryke. Você o conhece?
— Não — disse Thomas, lacônico. A chuva batia na frente de seu elmo e molhava a ponte quebrada de seu nariz. — Como, diabos, eu iria conhecer o padre Pryke?
O padre Hobbe não foi tolhido com a grosseria de Thomas.
— Ele é o confessor do rei e um grande homem. Será bispo dentro em pouco. Eu perguntei a ele sobre os Vexille.
O padre Hobbe fez uma pausa, mas Thomas nada disse.
— Ele se lembra da família — prosseguiu o padre. — Disse que tinha terras em Cheshire, mas apoiava os Mortimer no início do reinado do rei, e por isso foi considerada fora-da-lei. Ele disse mais. Eles sempre foram considerados piedosos, mas o bispo deles desconfiava que tinham idéias estranhas. Um toque de gnosticismo.
— Cátaros — disse Thomas.
— Parece que sim, não parece?
— E se se trata de uma família piedosa — disse Thomas — é provável que eu não pertença a ela. Não é uma boa notícia?
— Você não tem como escapar, Thomas — disse o padre Hobbe baixinho. Os cabelos geralmente despenteados estavam colados na cabeça pela chuva. — Você prometeu a seu pai. Você aceitou a penitência.
Thomas abanou a cabeça, irritado.
— Há uns vinte bastardos aqui, padre — ele indicou os arqueiros agachados sob a chicotada da chuva —, que mataram mais homens do que eu. Vá martirizar a alma deles e deixe a minha em paz.
O padre Hobbe abanou a cabeça.
— Você foi escolhido, Thomas, e eu sou a sua consciência. Ocorreu-me a idéia, entende?, de que se os Vexille apoiaram Mortimer, eles não podem gostar do nosso rei. Se eles estão em algum lugar hoje, é lá do outro lado.
Ele fez com a cabeça um gesto para o lado oposto do vale, que ainda estava encoberto pela chuva pesada.
— Então eles irão viver para ver o amanhã, não vão? — disse Thomas.
O padre Hobbe franziu o cenho.
— Você acha que nós vamos perder? — perguntou ele, ríspido. — Não!
Thomas sentiu um calafrio.
— A tarde deve estar chegando ao fim, padre. Se eles não atacarem agora, vão esperar até amanhecer. Isso lhes dará um dia inteiro para nos massacrar.
— Ah, Thomas! Como Deus te ama!
Thomas nada respondeu. Estava pensando que tudo o que ele queria era ser um arqueiro, tornar-se Sir Thomas de Hookton como Will acabara de se tornar Sir William. Ele se sentia feliz em servir ao rei e não precisava de um senhor celestial para metê-lo em batalhas esquisitas contra senhores negros.
— Deixe que eu lhe dê um conselho, padre — disse ele.
— É sempre um prazer, Tom.
— O primeiro bastardo que cair, pegue o elmo e a cota de malha dele. Cuide bem do senhor mesmo.
O padre Hobbe deu um tapa nas costas de Thomas.
— Deus está do nosso lado. Você ouviu o rei dizer isso.
Ele se levantou e foi conversar com outros homens. Thomas ficou sentado sozinho e viu que a chuva finalmente estava diminuindo. Ele podia ver de novo as árvores ao longe, ver as cores dos estandartes e dos casacos franceses, e agora podia ver uma massa de besteiros em vermelho e verde do outro lado do vale. Eles não iam fazer coisa alguma, reconheceu ele, porque a corda de uma besta era tão sensível à umidade quanto qualquer outra.
— Vai ser amanhã — gritou ele para Jake, que estava mais abaixo. — Nós vamos fazer tudo de novo, amanhã.
— Vamos esperar que o sol brilhe — disse Jake.
O vento trouxe do norte os últimos pingos de chuva. Era tarde. Thomas pôs-se de pé, esticou-se e bateu os pés. Um dia perdido, pensou ele, e uma noite faminta pela frente.
E amanhã, sua primeira batalha de verdade.
Um agitado grupo de homens montados tinha-se agrupado em torno do rei francês, que ainda estava a uns oitocentos metros do morro onde a maior parte de seu exército se reunira. Havia pelo menos dois mil soldados na retaguarda que ainda marchavam, mas aqueles que tinham atingido o vale representavam uma imensa superioridade numérica em relação aos ingleses que esperavam.
— Dois para um, majestade! — disse com veemência Charles, o conde de Alençon e irmão mais moço do rei. Tal como o resto dos cavaleiros, seu casaco estava ensopado e a tinta de sua insígnia escorrera para o linho branco. Seu elmo estava coberto de gotas de água.
— Nós temos de matá-los agora! — insistiu o conde.
Mas o instinto de Filipe de Valois era esperar. Seria mais prudente, pensou ele, deixar todo o seu exército se reunir, fazer um reconhecimento adequado e depois atacar na manhã seguinte, mas ele também estava ciente de que seus companheiros, especialmente seu irmão, o achavam cauteloso. Eles até acreditavam que ele fosse tímido, porque evitara bater-se com os ingleses antes, e mesmo propor esperar um simples dia poderia fazer com que pensassem que ele não tinha tutano para as atividades mais elevadas dos reis. Ainda assim, ele arriscou a proposta, sugerindo que a vitória seria ainda mais completa se fosse apenas adiada um dia.
— E se você esperar — disse Alençon, mordaz —, Eduardo vai fugir durante a noite e amanhã nós estaremos olhando um morro vazio.
— Eles estão com frio, molhados, com fome e prontos para serem abatidos — insistiu o conde de Lorena.
— E se eles não forem embora, majestade — avisou o conde de Flandres —, vão ter mais tempo para cavar trincheiras e buracos.
— E os sinais são bons — acrescentou John de Hainault, íntimo companheiro do rei e lorde de Beaumont.
— Os sinais? — perguntou o rei.
John de Hainault fez um gesto para que um homem numa capa preta se aproximasse. O homem, que tinha uma longa barba branca, fez uma mesura acentuada.
— O sol, majestade — disse ele —, está em conjunção com Mercúrio e em frente a Saturno. E o melhor de tudo, nobre majestade, Marte está na casa de Virgem. Isso significa vitória, e não poderia ser mais auspicioso.
E quanto, em ouro, perguntou-se Filipe, tinha sido pago ao astrólogo para vir com aquela profecia, e no entanto ele também ficou tentado por ela. Achava imprudente fazer qualquer coisa sem um horóscopo e ficou imaginando onde estaria o seu astrólogo. Talvez ainda na estrada de Abbeville.
— Avance agora! — Alençon instigou o irmão.
Guy de Vexille, o conde de Astarac, forçou a entrada de seu cavalo na multidão que cercava o rei. Viu um besteiro com casaco verde e vermelho, evidentemente o comandante dos genoveses, e falou com ele em italiano.
— A chuva afetou as cordas?
— Muito — admitiu Carlo Grimaldi, o chefe genovês.
As cordas das bestas não podiam ser retiradas como as cordas de arcos comuns, porque a tensão nas cordas era forte demais, e por isso os homens tinham simplesmente tentado proteger as armas sob seus casacos inadequados.
— Nós devíamos esperar até amanhã — insistiu Grimaldi. — Não podemos avançar sem paveses.
— O que é que ele está dizendo? — perguntou Alençon.
O conde de Astarac traduziu para que sua majestade entendesse e o rei, pálido e de fisionomia sombria, franziu o cenho quando soube que os longos escudos dos besteiros que os protegiam das flechas inimigas enquanto recarregavam suas complicadas armas ainda não tinham chegado.
— Quanto tempo eles vão demorar? — perguntou ele em tom de lamento, mas ninguém sabia. — Por que eles não seguiram com os besteiros? — quis ele saber, mas de novo ninguém tinha uma resposta. — Quem é o senhor? — perguntou o rei, por fim, ao conde.
— Astarac, majestade — disse Guy Vexille.
— Ah.
Era evidente que o rei não tinha idéia de quem ou o quê era Astarac, e também não reconheceu o escudo de Vexille que levava o símbolo simples da cruz, mas o cavalo e a armadura do Vexille eram caros e por isso o rei não discutiu o direito daquele homem de dar conselhos.
— E o senhor diz que as bestas não vão armar?
— Claro que vão armar! — interrompeu o conde de Alençon. — Os malditos genoveses não querem lutar. Genoveses bastardos. — Ele foi veemente. — As cordas inglesas vão estar tão molhadas quanto estas — acrescentou.
— As bestas estarão enfraquecidas, majestade — explicou Vexille com cuidado, ignorando a hostilidade do irmão mais moço do rei. — Os arcos vão armar, mas não terão o alcance ou a força plena.
— Seria melhor esperar? — perguntou o rei.
— Seria prudente esperar, majestade — disse Vexille — e seria especialmente prudente esperar pelos paveses.
— O horóscopo para amanhã? — pediu John de Hainault ao astrólogo.
O homem abanou a cabeça.
— Netuno se aproxima das curvaturas amanhã, majestade. Não é uma conjunção promissora.
— Ataque agora! Eles estão molhados, cansados e com fome — insistiu Alençon. — Ataque agora!
O rei ainda pareceu ter dúvidas, mas a maioria dos grandes senhores estava confiante e eles o bombardeavam com seus argumentos. Os ingleses estavam encurralados e uma demora até mesmo de um dia poderia dar a eles uma chance de fugir. Talvez a frota deles fosse para Le Crotoy? Ataque agora, insistiam, muito embora o dia já estivesse avançado. Ataque e mate. Ataque e vença. Mostre à cristandade que Deus está do lado dos franceses. Ataque, ataque agora. E o rei, por ser fraco e por querer parecer forte, rendeu-se aos desejos deles.
Assim, a auriflama foi retirada de seu cilindro de couro e levada a seu lugar de honra à frente dos soldados. Nenhuma outra bandeira teria permissão para seguir à frente do longo estandarte vermelho liso que tremulava de seu mastro em forma de cruz e era protegida por trinta cavaleiros escolhidos que usavam fitas escarlates no braço direito. Os cavaleiros receberam suas lanças compridas, depois os conrois aproximaram-se mais um dos outros para que cavaleiros e soldados ficassem tão juntos que seus joelhos se tocavam. Tamboreiros tiraram as capas de chuva de seus instrumentos e Grimaldi, o comandante genovês, recebeu uma ordem peremptória de avançar e matar os arqueiros ingleses. O rei fez o sinal-da-cruz, enquanto uns vinte padres caíram de joelhos na relva molhada e começaram a rezar.
Os senhores da França cavalgaram até a crista do morro onde seus cavaleiros, com cotas de malha, aguardavam. Até o cair da noite, todos eles teriam espadas molhadas e prisioneiros em quantidade suficiente para derrotar a Inglaterra para sempre.
Porque a auriflama estava entrando em combate.
— Pelos dentes de Deus! — Will Skeat parecia perplexo enquanto se levantava desajeitado. — Os bastardos estão vindo!
Sua surpresa se justificava, porque a tarde já ia avançada, era a hora em que os trabalhadores pensavam em deixar os campos e ir para casa.
Os arqueiros levantaram-se e olharam. O inimigo ainda não estava avançando, mas uma horda de besteiros se espalhava pelo fundo do vale, enquanto acima deles os cavaleiros e os soldados franceses armavam-se de lanças.
Thomas pensou que aquilo devia ser uma encenação. Estaria escuro dali a três ou quatro horas, e no entanto talvez os franceses estivessem confiantes em que poderiam fazer o serviço depressa. Os besteiros, finalmente, começavam a avançar. Thomas tirou o elmo para apanhar uma corda de arco, prendeu uma das pontas com um laço numa ponta de osso, depois flexionou o arco para fixar o outro laço no entalhe dele. Atrapalhou-se e teve de fazer três tentativas para encordoar a longa arma preta. Doce Jesus, pensou ele, eles estão avançando mesmo! Fique calmo, disse para si mesmo, fique calmo, mas ele se sentia tão nervoso quanto se sentira quando estivera na encosta acima de Hookton e tivera a ousadia de matar um homem pela primeira vez na vida. Ele puxou os laços da sacola de flechas, abrindo-os.
Os tambores começaram a tocar do lado francês do vale e ouviu-se uma grande ovação. Não havia nada para explicar a ovação; os soldados não estavam se mexendo e os besteiros ainda estavam muito longe. Trombetas inglesas responderam, soando suave e claro do moinho onde o rei e uma reserva de soldados aguardavam. Arqueiros se espreguiçavam e batiam com os pés por todo o morro. Quatro mil arcos ingleses estavam encordoados e prontos, mas havia cinqüenta por cento mais besteiros indo outra vez em direção a eles, e por trás daqueles seis mil genoveses havia milhares de cavaleiros com cotas de malha.
— Sem paveses! — gritou Will Skeat. — E as cordas deles estarão úmidas.
— Eles não terão alcance para nos atingir. — O padre Hobbe aparecera ao lado de Thomas de novo.
Thomas confirmou com a cabeça, mas estava com a boca seca demais para responder. Uma besta em boas mãos, e não havia ninguém melhor do que os genoveses, teria um alcance maior do que um arco reto, mas não se tivesse uma corda úmida. O alcance extra não era grande vantagem, porque levava tanto tempo para se rearmar uma seta, que um arqueiro poderia avançar para o raio de ação e disparar seis ou sete flechas antes que o inimigo ficasse pronto para disparar sua segunda seta. Muito embora Thomas entendesse aquele desequilíbrio, ainda estava nervoso. O inimigo parecia muito numeroso e os tambores franceses eram grandes tímpanos pesados com peles grossas que retumbavam como as batidas do coração do diabo no vale. Os cavaleiros inimigos avançavam pouco a pouco, ansiosos por esporearem suas montarias contra uma linha inglesa que eles esperavam estar profundamente ferida pelo assalto das bestas enquanto os soldados ingleses arrastavam os pés e se juntavam, fechando a linha para formar fileiras sólidas de escudos e aço. As malhas tiniam e tilintavam.
— Deus está com vocês! — gritou um padre.
— Não desperdicem as flechas — bradou Will Skeat. — Mirem bem, rapazes, mirem bem. Eles não vão ficar em pé por muito tempo. — Ele repetia a mensagem enquanto caminhava ao longo de sua linha. — Você parece que viu um fantasma, Tom.
— Dez mil fantasmas — disse Thomas.
— Os bastardos são mais do que isso — disse Will Skeat. Ele se voltou e olhou para o morro. — Talvez doze mil cavaleiros? — Ele sorriu. — Então, isso representa doze mil flechas, rapaz.
Havia seis mil besteiros e o dobro disso de soldados, que estavam sendo reforçados pela infantaria que aparecia nos dois flancos franceses. Thomas duvidava de que aqueles soldados a pé fossem tomar alguma parte na batalha, a menos que esta se tornasse um tumulto, e ele entendia que os besteiros talvez pudessem ser mandados de volta, porque estavam avançando sem paveses e teriam armas enfraquecidas pela chuva, mas para mandar genoveses de volta seria preciso ter flechas, flechas em quantidade, e isso iria significar menos flechas para a massa de cavaleiros cujas lanças pintadas, mantidas erguidas, formavam um bosque cerrado ao longo do topo do morro distante.
— Nós precisamos de mais flechas — disse ele a Skeat.
— Você vai se virar com o que tem — disse Skeat —, todos nós vamos. Não se pode desejar o que não se tem.
Os besteiros fizeram uma pausa no sopé da encosta inglesa e puseram-se em linha antes de encaixarem as setas nas canaletas de suas bestas. Thomas retirou sua primeira flecha e, supersticioso, beijou-lhe a ponta, que era uma cunha de aço ligeiramente enferrujada com uma ponta retorcida e duas farpas alcantiladas. Apoiou a flecha na mão esquerda e encaixou a extremidade entalhada no centro da corda do arco, protegida contra o desgaste por uma camada de cânhamo. Puxou um pouco o arco, ficando satisfeito com a resistência do teixo. A flecha ficou do lado de dentro da haste, à esquerda do punho. Ele desfez a tensão, agarrou a flecha com o polegar esquerdo e flexionou os dedos da mão direita.
Um súbito clangor de trombetas o fez dar um pulo. Cada tamborileiro e trompetista estavam trabalhando agora, fazendo uma cacofonia de barulho que fez com que os genoveses voltassem a avançar. Eles estavam subindo a encosta inglesa, os rostos eram manchas brancas emolduradas pelo cinza dos elmos. Os cavaleiros franceses desciam a encosta, mas devagar, avançando e pensando como se estivessem tentando prever a ordem de atacar.
— Deus está conosco! — bradou o padre Hobbe. Ele estava em sua posição de arqueiro, pé esquerdo bem à frente, e Thomas viu que o padre estava descalço.
— O que houve com as suas botas, padre?
— Um rapaz pobre precisava mais delas do que eu. Eu vou arranjar um par francês.
Thomas alisou as penas de sua primeira flecha.
— Esperem! — gritou Will Skeat. — Esperem!
Um cachorro fugiu da linha de combate inglesa e o dono gritava para que ele voltasse, e em questão de segundos os arqueiros bradavam o nome do cachorro.
— Mordedor! Mordedor! Venha cá, seu safado! Mordedor!
— Silêncio! — vociferou Will Skeat quando o cachorro, extremamente confuso, correu em direção ao inimigo.
À direita de Thomas, ao longe, os canhoneiros estavam agachados junto às carroças, bota-fogos fumegando. Arqueiros estavam em pé nas carroças, as armas meio esticadas. O conde de Northampton fora ficar entre os arqueiros.
— O senhor não devia estar aqui, senhor conde — disse Will Skeat.
— O rei dá a ele o título de cavaleiro — disse o conde — e ele pensa que pode me dar ordens! — Os arqueiros sorriram. — Não mate todos os soldados, Will — prosseguiu o conde. — Deixe alguns para nós, pobres espadachins.
— Os senhores terão a sua chance — disse Will Skeat, sério. — Esperem! — gritou ele para o arqueiros. — Esperem!
Os genoveses gritavam enquanto avançavam, embora suas vozes fossem quase abafadas pelo forte bater de tambores e pelos alucinados toques de trombeta. Mordedor estava correndo de volta para os ingleses e uma ovação soou quando o cachorro finalmente achou abrigo na linha de combate.
— Não desperdicem suas malditas flechas — bradou Will Skeat. — Mirem direito, como suas mães lhes ensinaram.
Os genoveses estavam ao alcance dos arcos agora, mas nenhuma flecha voou, e os besteiros com casacos vermelhos e verdes continuavam chegando, inclinando-se ligeiramente para a frente enquanto se esforçavam para subir o morro. Eles não estavam indo em linha reta para os ingleses, mas numa direção ligeiramente oblíqua, o que significava que a direita da linha inglesa, onde Thomas estava, seria atacada primeiro. Era, também, o lugar em que o declive era mais gradual e Thomas, desanimado, percebeu que deveria ficar no centro da luta. Então os genoveses pararam, arrastando os pés para se colocarem em linha, e começaram a berrar seu grito de guerra.
— Cedo demais — sussurrou o conde.
As bestas ficaram em posição de disparo. Estavam voltadas muito para cima, já que os genoveses esperavam lançar uma espessa chuva de morte sobre a linha inglesa.
— Retesem! — disse Skeat, e Thomas sentiu seu coração bater enquanto ele puxava a grossa corda até o ouvido direito. Escolheu um homem na linha inimiga, colocou a ponta da flecha diretamente entre o tal homem e seu olho direito, voltou o arco para a direita porque aquilo iria compensar a tendência da mira da arma, depois ergueu a mão esquerda e mudou-a de volta para a esquerda, porque o vento estava vindo daquela direção. Não era muito vento. Ele não pensara na mira da flecha, agindo por instinto, mas ainda se sentia nervoso e um músculo se contraía na perna direita. A linha inglesa estava num silêncio completo, os besteiros gritavam e os tambores e as trombetas francesas eram de ensurdecer. A linha genovesa parecia formada por estátuas verdes e vermelhas.
— Soltem, seus bastardos — resmungou um homem, e os genoveses obedeceram. Seis mil setas de bestas ergueram em arco para o céu.
— Agora — disse Will, com uma suavidade surpreendente.
E as flechas voaram.
Eleanor agachou-se ao lado da carroça que continha a bagagem dos arqueiros. Trinta ou quarenta outras mulheres estavam lá, muitas com filhos, e todas se encolheram ao ouvir as trombetas, os tambores e os gritos distantes. Quase todas eram francesas ou bretãs, embora nenhuma esperasse uma vitória francesa, porque eram seus homens que estavam no morro verde.
Eleanor rezava por Thomas, por Will Skeat e por seu pai. O estacionamento da bagagem ficava embaixo da crista do morro, de modo que ela não podia ver o que acontecia, mas ouvia a grave e distinta nota das cordas dos arcos ingleses sendo soltas, e depois a passagem do ar pelas penas, que era o som de milhares de flechas em vôo. Ela estremeceu. Um cachorro preso por uma corda à carroça, um dos muitos desgarrados que tinham sido adotados pelos arqueiros, grunhiu. Ela lhe fez um afago.
— Vai ter carne hoje à noite — disse ela ao cachorro.
Tinha sido espalhada a notícia de que o gado capturado em Le Crotoy estaria chegando ao exército naquele dia. Se sobrasse um exército para comê-lo. Os arcos soaram outra vez, mais dissonantes. As trombetas ainda berravam e as batidas de tambores eram constantes. Ela ergueu os olhos para a crista do morro, com uma certa esperança de ver flechas no céu, mas havia apenas uma nuvem cinzenta contra a qual se delineavam dezenas de cavaleiros. Aqueles cavaleiros eram parte da pequena reserva de tropas do rei e Eleanor sabia que se ela os visse avançar era porque a linha principal tinha sido rompida. O estandarte do rei tremulava da vela mais alta do moinho de vento, onde se agitava na leve brisa para mostrar o seu ouro, seu vermelho e seu azul.
O imenso estacionamento de bagagem era guardado por uma simples vintena de soldados doentes ou feridos que não durariam um segundo se os franceses rompessem a linha inglesa. A bagagem do rei, empilhada em três carroças pintadas de branco, tinha uma dezena de soldados para protegerem as jóias reais, mas fora isso havia apenas o grande número de mulheres e crianças, e uns poucos pajens que estavam armados com pequenas espadas. Os milhares de cavalos do exército também estavam lá, amarrados a estacas perto da floresta e vigiados por uns poucos homens aleijados. Eleanor percebeu que a maioria dos cavalos estava selada, como se os soldados e os arqueiros quisessem os animais prontos para o caso de precisarem fugir.
Um padre estivera ao lado da bagagem real, mas quando os arcos soaram ele correra para a crista e Eleanor ficou tentada a fazer o mesmo. Era melhor ver o que está se passando, pensou ela, do que esperar aqui, ao lado da floresta, e temer pelo que poderia estar acontecendo. Ela afagou o cachorro e levantou-se, com a intenção de caminhar até a crista, mas naquele exato momento viu a mulher que fora procurar Thomas na noite chuvosa na floresta de Crécy. A condessa de Armórica, belamente trajada numa túnica vermelha e com os cabelos presos por uma rede prateada, cavalgava uma pequena égua branca de um lado para o outro, junto às carroças do príncipe. Parava de vez em quando para olhar para a crista e depois olhava para a floresta de Crécy-Grange, que ficava a oeste.
Um estrondo assustou Eleanor e fez com que ela se voltasse para a crista. Nada explicava o terrível barulho que parecia absurdamente uma trovoada bem próxima, mas não havia relâmpago ou chuva alguma e o moinho estava intacto. Então, um escapamento de fumaça cinza-esbranquiçado surgiu acima das velas enroladas do moinho e Eleanor percebeu que os canhões tinham disparado. Lembrou-se de que eles eram chamados de desbocados e imaginou as flechas de ferro enferrujadas dando cutiladas encosta abaixo.
Tornou a olhar para a condessa, mas Jeanette tinha ido embora. Ela cavalgara para a floresta, levando suas jóias consigo. Eleanor viu o vestido vermelho mover-se como um relâmpago por entre as árvores e desaparecer. Então a condessa fugira, temendo as conseqüências da derrota, e Eleanor, desconfiando de que a mulher do príncipe devia saber mais das perspectivas inglesas do que as mulheres dos arqueiros, fez o sinal-da-cruz. Depois, porque não suportava mais a espera, caminhou para a crista. Se seu amado morresse, refletiu ela, ela queria estar perto dele.
Outras mulheres a seguiram. Nenhuma falou. Apenas ficaram em cima do morro, olhando.
E rezaram por seus homens.
A segunda flecha de Thomas estava no ar antes que a primeira tivesse alcançado sua altura máxima e começasse a cair. Ele pegou uma terceira e percebeu que disparara a segunda em estado de pânico, e por isso fez uma pausa, olhando para o céu nublado que estava estranhamente coberto por hastes pretas adejando, tão densas quanto estorninhos e mais mortíferas do que falcões. Ele não viu setas de bestas, e então apoiou a terceira flecha na mão esquerda e escolheu um homem na linha genovesa. Ouviu-se um barulho como um tamborilar que o assustou, e ele olhou para ver que era a chuva de setas genovesas atingindo a turfa em torno dos fossos para os cavalos.
E um segundo depois a primeira onda de flechas inglesas atingiu o alvo. Dezenas de besteiros foram lançados para trás, inclusive aquele que Thomas escolhera para a terceira flecha, e por isso ele mudou a mira para outro homem, puxou a corda até a orelha e disparou a flecha.
— Elas não estão atingindo o alvo! — gritou o conde de Northmapton, exultante, e alguns dos arqueiros praguejaram, pensando que ele se referisse às flechas deles, mas eram os arcos genoveses que tinham sido enfraquecidos pela chuva e nenhuma das setas tinha chegado até os arqueiros ingleses que, vendo a chance de uma matança, soltaram uivos de alegria e deram alguns passos encosta abaixo.
— Matem eles! — gritou Will Skeat.
Eles mataram. Os grandes arcos eram puxados repetidas vezes, e as flechas de penas brancas desciam o morro para perfurar cotas de malha e tecido e transformar o morro mais baixo num campo de morte. Alguns besteiros afastaram-se mancando, uns poucos rastejavam, e os ilesos foram recuando, em vez de reduzir a distância de suas armas.
— Mirem bem! — bradou o conde.
— Não desperdicem flechas! — gritou Will Skeat.
Thomas tornou a atirar, apanhou mais uma flecha da sacola e procurou um novo alvo, enquanto a flecha anterior caía para atingir um homem na coxa. O gramado em torno da linha genovesa estava com uma grossa camada de flechas que tinham errado o alvo, mas um número mais do que suficiente acertara. A linha genovesa estava mais fina, muito mais fina, e estava em silêncio, agora, exceto pelos gritos de homens sendo atingidos e os gemidos dos feridos. Os arqueiros avançaram outra vez, até a beira dos fossos que tinham aberto, e uma nova salva de aço desceu a encosta em disparada.
E os besteiros fugiram.
Em dado momento eles tinham formado uma linha irregular, ainda grossa por causa dos homens que estavam atrás dos corpos de seus camaradas, e agora eram uma turba que corria o mais rápido que podia para escapar das flechas.
— Parem de atirar! — berrou Will Skeat. — Parem!
— Alto! — gritou John Armstrong, cujos homens estavam à esquerda do bando de Skeat.
— Belo trabalho! — bradou o conde de Northampton.
— Recuem, rapazes, recuem! — Will Skeat fazia sinais para os arqueiros. — Sam! David! Depressa, vão recolher algumas flechas — ele apontou a encosta abaixo onde, em meio aos genoveses moribundos e mortos, as hastes com penas brancas enfiadas na grama formavam uma camada espessa. — Depressa, rapazes. John! Peter! Vão ajudar. Vão!
Ao longo de toda a linha arqueiros corriam para recuperar flechas da grama, mas então veio um grito de alerta dos homens que tinham permanecido em seus lugares.
— Voltem! Voltem! — berrou Will Skeat.
Os cavaleiros estavam chegando.
Sir Guillaume d’Evecque liderava um conroi de doze homens na extrema esquerda da segunda linha francesa de cavaleiros. À frente dele estava uma massa da cavalaria francesa pertencente ao primeiro batalhão, à sua esquerda havia um grupo de infantaria cujos membros estavam sentados na relva, e depois deles o pequeno rio serpenteava pelas campinas que banhava ao lado da floresta. À direita não havia coisa alguma, exceto cavaleiros bem juntos esperando que os besteiros enfraquecessem a linha inimiga.
Aquela linha inglesa parecia deploravelmente pequena, talvez porque seus soldados estivessem a pé e, por isso, ocupassem muito menos espaço do que cavaleiros montados, mas Sir Guillaume, com relutância, reconheceu que o rei inglês escolhera bem a sua posição. Os cavaleiros franceses não podiam atacar nenhum dos dois flancos, porque ambos estavam protegidos por uma aldeia. Não podiam contornar a direita inglesa, porque ela estava protegida pelas terras fofas à margem do rio, enquanto circundar a esquerda de Eduardo significaria uma longa viagem em torno de Wadicourt e, quando os franceses pudessem tornar a avistar os ingleses, os arqueiros, sem dúvida alguma, teriam sido dispostos de modo a enfrentar a força francesa que estaria esgotada pelo longo desvio. O que significava que só um ataque frontal poderia provocar uma vitória rápida e isso, por sua vez, significava arremeter contra as flechas.
— Cabeças baixas, escudos erguidos, e mantenham-se perto uns dos outros — disse ele a seus homens, antes de arriar, com um estalo, o protetor do rosto de seu elmo. Depois, sabendo que ainda faltava algum tempo para atacar, empurrou a viseira para cima de novo. Seus soldados movimentaram os cavalos de modo a ficarem joelho com joelho. O vento, segundo se dizia, não conseguiria passar entre as lanças de um conroi em plena carga.
— Ainda falta um pouco — avisou-os Sir Guillaume.
Os besteiros em fuga subiam correndo o morro ocupado pelos franceses. Sir Guillaume os vira avançando e fizera uma oração muda para que Deus estivesse nos ombros do genoveses. Mate alguns daqueles malditos arqueiros, rezara ele, mas poupe o Thomas. Os tambores estavam batendo em seus grandes tímpanos, baixando as baquetas como se pudessem derrotar os ingleses só pelo barulho, e Sir Guillaume, extasiado pelo momento, colocara o punho de sua lança no chão e a usara para erguer-se nos estribos a fim de que pudesse ver por cima da cabeça dos homens que estavam à frente. Ele vira os genoveses disparar suas bestas, vira as setas formando um rápido ofuscamento no céu, e então os ingleses tinham disparado e as flechas deles eram uma mancha escura contra a encosta verde e as nuvens cinzentas, e Sir Guillaume vira os genoveses cambaleando. Olhara para ver os arqueiros ingleses caindo, mas em vez disso estavam avançando, ainda disparando flechas, e então os dois flancos da pequena linha inglesa emitiram uma fumaça escura quando os canhões acrescentaram seus mísseis à saraivada de flechas despejadas pela encosta. Seu cavalo se agitara, inquieto, quando o estouro dos canhões rolou pelo vale e Sir Guillaume sentou-se rápido na sela, estalando a língua. Não podia afagar o cavalo, porque a lança estava na sua mão direita e o braço esquerdo estava preso ao escudo com os três falcões amarelos sobre o campo azul.
Os genoveses tinham fracassado. A princípio, Sir Guillaume não acreditou, achando que talvez seu comandante estivesse tentando enganar os arqueiros ingleses, levando-os a uma perseguição indisciplinada que iria encurralá-los no fundo da encosta, onde as bestas poderiam disparar contra eles. Mas os ingleses não se moveram e os genoveses em fuga não tinham parado. Correram, deixando uma linha espessa de mortos e moribundos, e agora subiam em pânico em direção aos cavaleiros franceses.
Um grunhido saiu dos soldados franceses. Era raiva, e o som aumentou de volume, transformando-se em zombaria.
— Covardes! — gritou um homem perto de Sir Guillaume.
O conde de Alençon teve um acesso de pura raiva.
— Eles foram pagos! — vociferou a um companheiro. — Os bastardos foram subornados!
— Derrubem-nos! — gritou o rei de seu lugar à beira do bosque de teixos. — Derrubem-nos!
Seu irmão ouviu e bastava isso para que obedecesse. O conde estava na segunda linha, não na primeira, mas esporeou seu cavalo para uma brecha entre dois dos conrois principais e gritou a seus homens para que o seguissem.
— Derrubem-nos! — gritou ele. — Derrubem os bastardos!
Os genoveses se encontravam entre os cavaleiros e a linha inglesa, e agora estavam condenados, porque ao longo de todo o morro os franceses avançavam. Homens de sangue quente do segundo batalhão estavam se embaralhando com os conrois da primeira linha para formar uma massa desordenada de estandartes, lanças e cavalos. Eles deviam ter descido o morro com os cavalos a passo reduzido, para que ainda estivessem em formação cerrada, mas em vez disso enfiaram as esporas e, levados por um ódio pelos próprios aliados, apostaram uma corrida para ver quem chegava primeiro ao golpe fatal.
— Nós ficamos! — gritou Guy Vexille, conde de Astarac, para os seus homens.
— Esperem! — bradou Sir Guillaume. Era melhor deixar a primeira carga desordenada perder o impulso, calculou ele, do que unir-se àquela loucura.
Talvez metade dos cavaleiros franceses tenha ficado no morro. O resto, liderado pelo irmão do rei, perseguiu os genoveses. Os besteiros tentaram escapar. Correram pelo vale numa tentativa de alcançar as extremidades norte e sul, mas a massa de cavaleiros ultrapassou-os e não havia saída. Alguns genoveses, sensatamente, deitaram-se e encolheram-se formando uma bola, outros agacharam-se nos fossos rasos, mas a maioria foi morta ou ficou ferida quando os cavaleiros passaram sobre eles. Os corcéis eram animais grandes, com patas que pareciam martelos. Eram treinados para derrubar homens, e os genoveses gritavam ao ser pisoteados ou receber cutiladas.
Alguns cavaleiros usaram suas lanças nos besteiros, e o peso de um cavalo e de um homem vestindo armadura fazia com que as lanças de madeira perfurassem com facilidade as vítimas de um lado ao outro, mas todas aquelas lanças ficaram perdidas, deixadas nos torsos destroçados dos mortos, e os cavaleiros tiveram de sacar as espadas. Por um instante, houve caos no fundo do vale enquanto os cavaleiros abriam milhares de trilhas em meio aos besteiros espalhados. Depois, apenas os restos estraçalhados dos mercenários genoveses, seus casacos vermelhos e verdes ensopados de sangue e suas armas jazendo quebradas na lama.
Os cavaleiros, uma vitória fácil em sua lista, ovacionaram a si mesmos.
— Montjoie St Denis! — gritavam eles. — Montjoie St Denis!
Centenas de bandeiras estavam sendo levadas à frente com os cavaleiros, ameaçando ultrapassar a auriflama, mas os cavaleiros com as fitas vermelhas guardando a bandeira sagrada cavalgaram à frente da carga, gritando o seu desafio enquanto subiam a encosta em direção aos ingleses, e assim subiram de um fundo de vale que agora estava cheio de cavaleiros que atacavam. As lanças restantes foram abaixadas, as esporas foram para trás, mas alguns dos homens mais sensatos, que tinham esperado atrás pelo ataque seguinte, perceberam que não havia o som do tropel das patas vindo da enorme carga.
— Virou lama — disse Sir Guillaume para ninguém em especial.
Xairéis e casacos eram salpicados com a lama levantada pelas patas do solo raso amolecido pela chuva. Por um momento a carga parecia ter chafurdado, e depois os cavaleiros que iam à frente libertaram-se do fundo do vale molhado e encontraram um apoio melhor no morro inglês. “Montjoie St Denis!” Os tambores batiam mais depressa do que nunca e as trombetas gritavam para os céus, enquanto os cavalos subiam em direção ao moinho.
— Loucos — disse Guy Vexille.
— Pobres sujeitos — disse Sir Guillaume.
— O que está acontecendo? — perguntou o rei, querendo saber por que a sua cuidadosa arrumação das linhas de combate tinha se rompido antes mesmo que a luta de verdade tivesse começado.
Mas ninguém lhe respondeu. Todos limitaram-se a olhar.
— Jesus, Maria e José — disse o padre Hobbe, porque parecia que metade dos cavaleiros da cristandade estava subindo o morro.
— Em linha! — gritou Will Skeat.
— Deus esteja com vocês! — bradou o conde de Northampton, voltando-se para se juntar a seus soldados.
— Mirem nos cavalos! — ordenou John Armstrong a seus homens.
— Os bastardos atropelaram os próprios arqueiros! — disse Jake, impressionado.
— E, por isso, vamos matar os malditos bastardos — disse Thomas, em tom de vingança.
A carga se aproximava da linha daqueles genoveses que tinham morrido na tempestade de flechas. Para Thomas, olhando morro abaixo, o ataque era uma agitação de espalhafatosos xairéis e vistosos escudos, de lanças pintadas e bandeirolas que ondeavam ao vento, e agora, porque os cavalos tinham saído do terreno molhado, todo arqueiro ouvia as patas que ecoavam mais alto até do que nos tímpanos do inimigo. O chão tremia, a ponto de Thomas sentir a vibração através das solas gastas das botas que tinham sido um presente de Sir Guillaume. Ele procurou pelos três falcões, mas não os viu, e depois esqueceu Sir Guillaume quando sua perna foi para a frente e seu braço direito recuou, puxando. As penas da flecha estavam ao lado de sua boca e ele as beijou, depois fixou o olhar num homem que levava um escudo preto e amarelo.
— Agora! — gritou Will Skeat.
As flechas subiram, assobiando enquanto seguiam. Thomas colocou uma segunda na corda, puxou e soltou. Uma terceira, dessa vez escolhendo um homem com um elmo que lembrava um focinho de porco, decorado com fitas vermelhas. A cada vez, ele mirava nos cavalos, na esperança de enfiar as lâminas de fio retorcido nos xairéis forrados e bem fundo no peito dos cavalos. Uma quarta flecha. Ele via torrões de relva e terra sendo lançados para o alto atrás dos cavalos que iam à frente. A primeira flecha ainda voava quando ele puxou a quarta para trás e procurou outro alvo. Fixou-se em um homem sem casaco, numa armadura polida. Disparou, e naquele exato momento o homem de armadura caiu para a frente quando seu cavalo foi atingido por outra flecha, e por toda a encosta havia cavalos que relinchavam, patas se agitando e homens caindo enquanto as flechas inglesas atingiam o alvo. Uma lança rodopiou encosta acima, ouviu-se um grito acima da batida das patas, um cavalo bateu num animal moribundo e quebrou a perna, e cavaleiros agiam com os joelhos, pressionando os cavalos para que eles se desviassem dos animais atingidos. Uma quinta flecha, uma sexta, e para os soldados atrás da linha de arqueiros parecia que o céu estava cheio de um interminável fluxo de flechas, escuras contra as nuvens que escureciam, de pontas brancas, erguendo-se acima da encosta para mergulhar nos soldados que se agitavam.
Dezenas de cavalos tinham caído, seus cavaleiros estavam presos nas selas altas e eram pisoteados enquanto jaziam sem saída, e ainda assim os cavaleiros chegavam e os homens lá atrás podiam ver adiante o suficiente para achar espaço entre as pilhas estrebuchantes de mortos e moribundos. “Montjoie St Denis! Montjoie St Denis!” Esporas eram enfiadas, tirando sangue. Para Thomas, a encosta parecia um pesadelo de cavalos arfando com dentes amarelos e olhos brancos, de lanças compridas e escudos com flechas espetadas, de lama voando, estandartes agitados e elmos cinzentos com talhos no lugar de olhos e pontas no lugar de narizes. Os estandartes tremulavam, levados por uma tira vermelha semelhante a uma fita. Ele atirava sem parar, despejando flechas contra a loucura, mas para cada cavalo que caía havia outro para tomar o seu lugar e outro animal atrás dele. Flechas sobressaíam de xairéis, de cavalos, de homens, até de lanças, as penas brancas balançando à medida que a carga se aproximava ribombando.
E então a fila dianteira francesa estava entre os fossos, e o osso da perna de um garanhão estalou. O grito do animal elevou-se acima dos tambores, trombetas, retinir de cotas de malha e da batida de patas. Alguns homens passaram sem problemas pelos fossos, mas outros caíram e levaram com eles os cavalos que vinham atrás. Os franceses tentaram conter os cavalos e desviá-los, mas agora a carga estava empenhada e os homens que vinham atrás pressionavam os da frente para os fossos e o raio de ação das flechas. O arco emitiu um barulho surdo na mão de Thomas e a flecha penetrou na garganta de um cavaleiro, cortando a cota de malha como se fosse pano e jogando o homem para trás, de modo que sua lança subiu aos céus.
— Voltem! — gritava Will Skeat. A carga estava perto demais. Muitíssimo perto. — Voltem! Voltem! Voltem! Agora! Andem!
Os arqueiros correram para os vazios entre os soldados, e os franceses, vendo seus algozes desaparecerem, soltaram um grande grito de alegria. “Montjoie St Denis!”
— Escudos! — gritou o conde de Northampton, e os soldados ingleses colaram seus escudos e ergueram as lanças, para fazer uma cerca de pontas.
— São Jorge! — berrou o conde. — São Jorge!
“Montjoie St Denis!” Um grande número de cavaleiros passara pelas flechas e pelos fossos, e ainda havia soldados subindo o morro.
E agora, finalmente, atacavam o alvo.
SE UMA AMEIXA fosse atirada contra um conroi, diziam os entendidos, deveria ficar espetada numa lança. Era essa a proximidade que os cavaleiros deveriam manter numa carga, porque assim eles tinham a chance de sobreviver, mas se o conroi se espalhasse, cada homem acabaria cercado pelos inimigos. Seu vizinho, numa carga de cavalaria, diziam os experientes para os mais jovens, deve estar mais próximo de você do que sua esposa. Mais perto, ainda, do que a sua prostituta. Mas a primeira carga francesa foi um galope alucinado e os homens se dispersaram da primeira vez quando trucidaram os genoveses, e a confusão ficou maior quando eles subiram a encosta para cerrar contra o inimigo.
A carga não devia ser um galope alucinado, mas um ataque ordenado, temível e disciplinado. Os homens, alinhados joelho a joelho, deviam ter começado devagar e ficado colados até, e só no último minuto, entrar num galope para enfiar as lanças em uníssono. Era assim que os homens eram treinados para atacar, e seus cavalos de combate eram treinados com o mesmo afinco. O instinto de um cavalo, ao enfrentar uma linha compacta de homens ou de cavalaria, era intimidar-se, mas os grandes garanhões eram impiedosamente ensinados a continuar correndo e chocar-se com o inimigo compactado e continuar em frente, pisando, mordendo e empinando. Uma carga de cavaleiros devia ser uma morte trovejante sobre patas, um bater de metal impulsionado pelo poderoso peso de homens, cavalos e armaduras e, quando feita como devia, era um gerador de viúvas em massa.
Mas os homens do exército de Filipe, que sonharam fazer o inimigo em pedaços e matar os tontos sobreviventes, não tinham levado arqueiros e fossos em consideração. Quando a desordenada primeira carga francesa chegou aos soldados ingleses, ela mesma já se rompera em pedaços e tivera a velocidade reduzida a passo, porque a longa, suave e convidativa encosta revelara-se uma pista de obstáculos de cavalos mortos, cavaleiros derrubados das selas, flechas assobiando e fossos escondidos na relva, que quebravam pernas. Só uns poucos homens alcançaram o inimigo.
Aqueles poucos avançaram os últimos metros e miraram suas lanças nos soldados ingleses desmontados, mas os cavaleiros foram recebidos por mais lanças que estavam enfiadas no chão, inclinadas para cima para perfurar o peito de seus cavalos. Os garanhões foram de encontro às lanças, giraram para escapar, e os franceses estavam caindo. Os soldados ingleses avançaram a pé com machados e espadas, para liquidá-los.
— Mantenham-se em linha! — gritou o conde de Northampton.
Mais cavalos estavam passando pelos fossos e agora não havia arqueiros na frente para reduzir-lhes a velocidade. Eram a terceira e quarta filas da carga francesa. Tinham sofrido menos danos causados pelas flechas e vinham ajudar os homens que atacavam a linha inglesa, ainda eriçada com lanças. Homens rugiam seus gritos de guerra, golpeavam com espadas e machados, e os cavalos moribundos derrubavam as lanças inglesas, de modo que finalmente os franceses puderam cerrar o ataque contra os soldados. Aço tilintava em aço e batia seco em madeira, mas cada cavaleiro se via diante de dois ou três soldados, e os franceses estavam sendo arrastados de suas selas e massacrados no chão.
— Nada de prisioneiros! — gritava o conde de Northampton. — Nada de prisioneiros!
Eram ordens do rei. Prender alguém significava a possibilidade de riqueza, mas também exigia um momento de cortesia para perguntar se um inimigo se rendia verdadeiramente, e os ingleses não tinham tempo para atos de civilidade daqueles. Precisavam apenas matar os cavaleiros que continuavam a afluir morro acima.
O rei, observando de sob as velas enroladas do moinho, que estalavam quando o vento torcia as cordas que as prendiam, viu que os franceses tinham rompido a linha de arqueiros apenas à direita, onde seu filho lutava, a linha ficava mais perto dos franceses e a encosta apresentava um declive mais suave do que todos os outros pontos. A grande carga fora detida por flechas, mas um número mais do que suficiente de cavaleiros sobrevivera, e aqueles homens estavam avançando em direção ao local em que as espadas tilintavam. Quando a carga francesa começara, espalhara-se por todo o campo de batalha, mas agora encolhera para uma forma de cunha enquanto os homens que enfrentavam a esquerda inglesa desviavam-se dos arqueiros que lá estavam e acrescentavam seu peso aos cavaleiros e soldados que atacavam o batalhão do príncipe de Gales. Centenas de cavaleiros ainda se deslocavam de maneira confusa no fundo lamacento do vale, sem disposição para enfrentar a tempestade de flechas uma segunda vez, mas os marechais franceses estavam tornando a formar aqueles homens e a enviá-los morro acima, para a crescente escaramuça que se desenvolvia sob os estandartes de Alençon e do príncipe de Gales.
— Permita que eu desça até lá, majestade — apelou para o rei o bispo de Durham, parecendo desajeitado em sua pesada cota de malha e segurando uma maciça clava cheia de espetos.
— Eles não estão cedendo — disse Eduardo, suavemente.
Sua linha de soldados tinha a largura de quatro fileiras, e apenas as duas primeiras estavam lutando, e lutando bem. A maior vantagem de um cavaleiro sobre a infantaria era a velocidade, mas toda a velocidade da carga francesa havia sido perdida. Os cavaleiros eram obrigados a avançar a passo, para contornar os corpos e os fossos, e não havia espaço, depois, para entrar num trote antes de serem recebidos por uma violenta defesa de machados, espadas, clavas e lanças. Os franceses golpeavam para baixo, mas os ingleses mantinham seus escudos erguidos e golpeavam com suas lâminas na barriga dos cavalos ou, então, usavam as espadas para cortar os jarretes. Os corcéis caíam, gritando e escoiceando, quebrando pernas de homens com seus golpes alucinados, mas cada cavalo derrubado era mais um obstáculo e, embora vigoroso, o ataque francês não conseguia romper a linha. Nenhum estandarte inglês tinha caído ainda, embora o rei temesse pela bandeira vistosa de seu filho, que era a que ficava mais perto do violento combate.
— Vocês viram a auriflama? — perguntou ele à sua comitiva.
— Ela caiu, majestade — respondeu um de seus cavaleiros. O homem apontou para o ponto da encosta onde uma pilha de cavalos mortos e homens derrotados era o que restava do primeiro ataque francês. — Por ali, majestade. Flechas.
— Deus abençoe as flechas — disse o rei.
Um conroi de 14 franceses conseguiu passar incólume pelos fossos. “Montjoie St Denis!”, gritavam eles, e abaixavam as lanças enquanto esporeavam os cavalos para investir contra a escaramuça, onde foram recebidos pelo conde de Northampton e uma dúzia de seus homens.
O conde usava uma lança quebrada como um espeto e enfiou a haste partida no peito de um cavalo, sentiu a lança resvalar na armadura escondida pelo xairel, e instintivamente ergueu seu escudo. Uma clava estalou ao bater nele, atravessando com um espeto o couro e o salgueiro, mas o conde tinha sua espada presa por uma tira e largou a lança, agarrou o punho da espada e enfiou-a no cavalo, fazendo com que o animal se afastasse, contorcendo-se. Puxou o escudo para livrá-lo dos espetos da clava, brandiu a espada contra o cavaleiro, teve seu golpe desviado, e depois um soldado agarrou a arma do francês e deu um puxão. O francês recuou, mas o conde ajudou e o francês gritou ao ser derrubado e ficar sob os pés ingleses. Uma espada penetrou na abertura da armadura em sua virilha, ele dobrou o corpo e caiu, e uma clava esmagou-lhe o elmo. Foi deixado, estrebuchando, enquanto o conde e seus homens passavam por cima de seu corpo e atacavam o cavalo e o homem seguintes.
O príncipe de Gales meteu seu cavalo na escaramuça, chamando a atenção para sua pessoa pelo filete de ouro que circundava o elmo preto. Tinha apenas 16 anos, bom físico, era forte, alto e fora excelentemente treinado. Desviou um machado com o escudo e enfiou a espada na cota de malha de outro cavaleiro.
— Saia desse maldito cavalo! — gritou o duque de Northampton para o príncipe. — Saia desse maldito cavalo!
Ele correu para o príncipe, agarrou o freio e puxou o cavalo para fora da luta. Um francês avançou a cavalo, tentando enfiar a lança nas costas do príncipe, mas um soldado vestindo o uniforme verde e branco do príncipe enfiou seu escudo na boca do corcel e o animal afastou-se.
O conde arrastou o príncipe de volta.
— Eles vêem um homem a cavalo, alteza — disse ele, gritando —, e pensam que é francês.
O príncipe sacudiu a cabeça, num gesto afirmativo. Os cavaleiros de sua comitiva tinham se aproximado e ajudaram-no a descer da sela. Ele não disse nada. Se foi ofendido pelo conde, escondeu o fato por trás do protetor do rosto enquanto voltava para a escaramuça.
— São Jorge! São Jorge!
O porta-bandeira do príncipe esforçou-se para ficar com o seu senhor, e a visão da bandeira ricamente bordada atraía ainda mais franceses que gritavam.
— Em linha! — berrou o conde. — Em linha! — Mas os cavalos mortos e homens massacrados formavam obstáculos que nem franceses, nem ingleses conseguiam vencer, e por isso os soldados, liderados pelo príncipe, passavam com dificuldade por cima dos corpos para se aproximarem de mais inimigos. Um cavalo estripado arrastava as tripas em direção aos ingleses, caindo sobre as patas dianteiras para lançar seu cavaleiro na direção do príncipe, que enfiou a espada no elmo do homem, destroçando a viseira e fazendo com que o sangue saísse pelos buracos para os olhos. “São Jorge!” O príncipe exultante e sua armadura preta estava cheia de fios de sangue inimigo. Ele lutava com a viseira erguida, porque de outro modo não enxergaria direito, e estava adorando aquele momento. As horas e horas de treinamento com armas, os dias suarentos quando sargentos o exercitavam, batiam em seu escudo e xingavam-no por não manter a ponta da espada erguida, estavam todos provando seu valor, e ele não podia ter pedido nada mais na vida: uma mulher no acampamento e um inimigo avançando às centenas para ser morto.
A cunha francesa se alargava, à medida que mais homens subiam o morro. Eles não tinham rompido a linha, mas arrastado as duas fileiras inglesas da frente pela linha formada pelos mortos e feridos e, assim, espalhando-os em grupos de homens que se defendiam contra uma onda de cavaleiros. O príncipe estava entre eles. Alguns franceses, derrubados de seus cavalos, mas ilesos, lutavam a pé.
— Avancem! — gritou o conde de Northampton para a terceira fileira. Já não era mais possível manter coesa a muralha de escudos. Agora ele tinha que vadear para o meio do horror para proteger o príncipe, e seus homens o seguiram para dentro da grande confusão de cavalos, lâminas e massacre. Deslocavam-se com dificuldade por cima de animais mortos, tentavam evitar as patas agitadas dos cavalos moribundos, e enfiavam as espadas em cavalos vivos para derrubar os cavaleiros para um lugar em que pudessem ser atacados com ferocidade.
Cada francês tinha dois ou três ingleses a pé para enfrentar, e embora os cavalos batessem os dentes, empinassem e escoiceassem, e apesar de os cavaleiros golpearem à esquerda e à direita com suas espadas, os ingleses desmontados invariavelmente acabavam aleijando os cavalos de batalha, e mais cavaleiros franceses eram atirados na relva marcada pelas patas e eram agredidos ou feridos com arma pontiaguda até a morte. Alguns franceses, reconhecendo a inutilidade, voltavam seus cavalos e se afastavam correndo, atravessando a área dos fossos, para fazer novos conrois entre os sobreviventes. Escudeiros lhes levavam lanças sobressalentes, e os cavaleiros, rearmados e querendo vingança, voltavam à luta, e sempre seguiam em direção à vistosa bandeira do príncipe.
O conde de Northampton estava perto da bandeira, agora. Ele meteu o escudo na cara de um cavalo, golpeou-lhe as pernas e furou a coxa do cavaleiro. Outro conroi veio da direita, três de seus homens ainda portando lanças e os outros com espadas estendidas para a frente. Golpearam os escudos dos guarda-costas do príncipe, fazendo com que aqueles homens recuassem, mas outros homens vestindo verde e branco saíram em auxílio deles e o príncipe empurrou dois para que saíssem do caminho e ele pudesse golpear o pescoço de um corcel. O conroi voltou-se e foi embora, deixando dois de seus cavaleiros mortos.
— Formem a linha! — berrou o conde. — Formem a linha!
Havia uma pausa na luta em torno da bandeira do príncipe, porque os franceses estavam se reagrupando.
E justo naquele momento o segundo batalhão francês, tão grande quanto o primeiro, começou a descer o morro. Eles vinham a passo, joelho encostado em joelho calçado de botas, lanças mantidas tão próximas que uma lufada de vento não poderia passar entre elas.
Estavam mostrando como a coisa devia ser feita.
Os poderosos tambores os impulsionavam. As trombetas cortavam o céu.
E os franceses se aproximavam, para concluir a batalha.
— Oito — disse Jake.
— Três — disse Sam a Will Skeat.
— Sete — disse Thomas.
Eles estavam contando flechas. Nenhum arqueiro havia morrido ainda, não do bando de Will Skeat, mas estavam com um estoque de flechas perigosamente reduzido. Skeat estava sempre olhando por cima da cabeça dos soldados, temeroso de que os franceses rompessem a linha, mas ela resistia. Às vezes, quando nenhum estandarte ou cabeça inglesa estava no caminho, um arqueiro disparava uma das preciosas flechas contra um cavaleiro, mas quando uma flecha era desperdiçada ao resvalar num elmo, Skeat mandava que economizassem o estoque. Um rapaz trouxera do depósito de bagagem uma dúzia de sacos de pele com água e os homens passavam os sacos adiante.
Skeat fez um levantamento das flechas e abanou a cabeça. Ninguém tinha mais de dez, enquanto o padre Hobbe que, segundo ele mesmo alegara, tinha começado com menos do que qualquer outro, não tinha nenhuma.
— Suba o morro, padre — disse Skeat ao sacerdote —, e veja se eles estão guardando alguma flecha. Os arqueiros do rei devem poupar algumas. O capitão deles se chama Hal Crowley e ele me conhece. Seja como for, pergunte a ele. — Skeat não parecia esperançoso. — Muito bem, pessoal, por aqui — disse ele para os demais, liderando-os para a ponta sul da linha inglesa, onde os franceses não tinham se aproximado, e depois à frente dos soldados para reforçar os arqueiros que, com tão poucas flechas quanto o resto do exército, continuavam preocupados com qualquer grupo de cavaleiros que ameaçasse aproximar-se de sua posição. Os canhões ainda disparavam intermitentemente, cuspindo um barulhento fedor de fumaça de pólvora na borda da área de combate, mas Thomas via poucas provas de que os desbocados estivessem matando algum francês, embora o barulho e o assobio de seus mísseis de ferro estivessem mantendo os cavaleiros inimigos bem longe do flanco.
— Vamos esperar aqui — disse Skeat, e então praguejou, porque vira a segunda linha francesa deixar a distante crista do morro. Eles não vinham como a primeira, num caos completo, mas num ritmo constante e de forma adequada. Skeat fez o sinal-da-cruz. — Rezem por flechas — disse ele.
O rei olhava o filho lutar. Ficara preocupado quando o príncipe avançara a cavalo, mas sacudiu a cabeça num gesto de aprovação silenciosa quando vira que o rapaz tivera o bom senso de desmontar. O bispo de Durham insistia para ter permissão para ir em auxílio do príncipe Eduardo, mas o rei abanou a cabeça.
— Ele tem de aprender a vencer lutas. — Ele fez uma pausa. — Eu aprendi.
O rei não tinha intenção alguma de descer para meter-se no horror, não porque temesse uma luta daquelas, mas porque uma vez envolvido com os cavaleiros franceses, não teria como vigiar o resto da linha. Seu trabalho era ficar ao lado do moinho e liberar aos poucos os reforços para as partes mais ameaçadas de seu exército. Homens da sua reserva suplicavam continuamente permissão para participarem da escaramuça, mas o rei, obstinado, recusava-a, mesmo quando reclamavam que a honra ficaria manchada se não participassem da luta. O rei não tinha coragem de liberar homens, porque observava o segundo batalhão francês descer o morro e sabia que deveria reunir todos os homens no caso daquela grande onda de cavaleiros furar a sua linha.
Aquela segunda linha francesa, com cerca de mil e seiscentos metros de largura e três ou quatro fileiras de profundidade, desceu a passo a encosta, onde seus cavalos tinham de pisar nos corpos dos genoveses massacrados.
— Em forma! — gritaram os chefes de conrois depois que os corpos dos besteiros ficaram para trás, e os homens, obedientes, voltaram a se deslocar joelho contra joelho quando entraram em terreno mais suave. As patas não faziam praticamente barulho algum no solo molhado, e assim o barulho mais alto da carga era o tilintar de malhas, o bater das bainhas de espadas e o arrastar das capas dos cavalos no capim alto. Os tambores ainda batiam no morro atrás deles, mas nenhuma trombeta soava.
— Está vendo a bandeira do príncipe? — perguntou Guy de Vexille a Sir Simon Jekyll, que cavalgava a seu lado.
— Lá. — Jekyll voltou a ponta da lança para onde a luta desigual era mais acirrada. Todos os membros do conroi de Vexille tinham anteparos nas lanças, colocados logo atrás da ponta, para que as lanças de madeira não se enterrassem nos corpos das vítimas. Uma lança com um anteparo poderia ser arrancada de um moribundo e utilizada outra vez. — A bandeira mais alta — acrescentou Sir Simon.
— Sigam-me! — gritou Vexille, e fez um sinal para Henry Colley, que tinha recebido o posto de porta-bandeira. Colley ficou ressentido com a nomeação, achando que devia ter tido permissão para lutar com lança e espada, mas Sir Simon lhe dissera que era um privilégio levar a lança de São Jorge e Colley foi obrigado a aceitar a tarefa. Ele planejava livrar-se da lança inútil e sua bandeira vermelha assim que entrasse na escaramuça, mas por enquanto a levava erguida enquanto se afastava da bem organizada linha. Os homens de Vexille seguiram a bandeira deles, e a partida do conroi deixou um claro na formação francesa e alguns homens gritaram, irados, chegando a acusar Vexille de covarde, mas o conde de Astarac ignorou a zombaria enquanto passava em diagonal pela parte de trás da linha, indo para o ponto em que calculava que seus cavaleiros estavam exatamente em frente aos homens do príncipe, e ali encontrou um espaço imprevisto, forçou a entrada de seu cavalo no espaço e deixou seus homens o seguirem da melhor maneira que pudessem.
A trinta passos à esquerda de Vexille, um conroi com insígnias mostrando falcões amarelos num campo azul subia a trote o morro inglês. Vexille não viu o estandarte de Sir Guillaume, nem Sir Guillaume viu a insígnia do yale de seu inimigo. Os dois estavam observando o morro em frente, perguntando-se quando os arqueiros iriam atirar e admirando a bravura dos sobreviventes da primeira carga, que repetidamente recuavam alguns passos, tornavam a se formar e atacavam de novo a teimosa linha inglesa. Nenhum homem ameaçava quebrar a resistência do inimigo, mas ainda assim eles tentavam, mesmo quando estavam feridos e seus corcéis mancavam. Então, quando a segunda carga francesa se aproximava da linha de besteiros genoveses mortos pelos arqueiros ingleses, mais trombetas soaram no morro francês e os cavalos ergueram as orelhas para trás e tentaram passar para o meio-galope. Homens contiveram os cavalos e torceram-se desajeitados nas selas para espiarem pelas aberturas da viseira, a fim de descobrir o que as trombetas queriam dizer, e viram que os últimos cavaleiros franceses, o rei e os guerreiros de sua comitiva, e o rei cego da Boêmia e seus companheiros, avançavam a trote para acrescentar seu peso e suas armas à matança. O rei da França cavalgava sob sua bandeira azul, exibindo a flor-de-lis dourada, enquanto a bandeira do rei da Boêmia mostrava três penas brancas sobre um campo vermelho-escuro. Agora todos os cavaleiros da França estavam engajados. Os tambores suavam, os padres rezavam e os trombeteiros reais sopraram uma grande fanfarra como presságio da morte do exército inglês.
O conde de Alençon, irmão do rei, iniciara a carga alucinada que deixara tantos franceses mortos na encosta distante, mas o conde também estava morto, a perna quebrada pelo cavalo ao cair e o crânio esmagado por um machado inglês. Os homens que ele comandara, aqueles que ainda viviam, estavam aturdidos, feridos por flechas, cegos pelo suor e cansados, mas continuavam a lutar, girando os cavalos cansados para golpear com espadas, clavas e machados contra soldados, que desviavam os golpes com escudos e metiam suas espadas entre as pernas dos cavalos. Então uma nova trombeta soou muito mais perto da escaramuça. As notas saíam em urgentes tercetos que se seguiam uns aos outros, e alguns cavaleiros reconheceram o toque e entenderam que estavam recebendo ordem de recuar. Não bater em retirada, mas abrir caminho, porque o maior ataque ainda estava por vir.
— Deus salve o rei — disse Will Skeat macambúzio, porque só lhe restavam dez flechas e metade da França avançava contra ele.
Thomas observava o estranho ritmo da batalha, a estranha calmaria na violência e a súbita ressurreição do horror. Homens lutavam como demônios e pareciam invencíveis, e quando os cavaleiros recuavam para se reagrupar, apoiavam-se nos escudos e espadas e pareciam homens próximos da morte. Os cavalos tornavam a se mexer, vozes inglesas gritavam avisos, os soldados endireitavam o corpo e erguiam as espadas já chanfradas. O barulho no morro era avassalador: o ocasional estalar dos canhões que de pouco adiantavam, exceto fazer com que o campo de batalha fedesse com o cheiro negro do inferno, os gritos dos cavalos, o clangor das armas como de ferreiros, homens ofegando, gritando e gemendo. Cavalos moribundos mostravam os dentes e batiam as patas com força na relva. Thomas piscou para tirar o suor dos olhos e observou a longa encosta coberta de cavalos mortos, dezenas deles, talvez centenas, e depois deles, aproximando-se dos corpos dos genoveses que tinham morrido sob o açoite das flechas, ainda mais cavaleiros chegavam sob uma nova camada de bandeiras vistosas. Sir Guillaume? Onde estava ele? Teria sobrevivido? Então Thomas percebeu que a terrível carga inicial, quando as flechas derrubaram tantos cavalos e homens, tinha sido apenas isso, um início. A batalha de verdade começava naquele momento.
— Will! Will! — a voz do padre Hobbe chamava de algum ponto atrás dos soldados. — Sir William!
— Aqui, padre!
Os soldados abriram caminho para o padre, que levava uma grande quantidade de feixes de flechas e conduzia um garoto amedrontado que levava ainda mais.
— Um presente dos arqueiros reais — disse o padre Hobbe, e despejou as flechas na relva.
Thomas viu que as flechas tinham as penas tintas de vermelho dos arqueiros do rei. Sacou a faca, cortou uma fita que prendia as flechas e enfiou as novas na sua sacola.
— Em linha! Em linha! — gritou o conde de Northampton em voz rouca.
Seu elmo estava profundamente chanfrado sobre a têmpora direita e seu casaco manchado com gotas de sangue. O príncipe de Gales berrava insultos aos franceses, que desviavam seus cavalos e se afastavam, voltando pela confusa extensão de mortos e feridos.
— Arqueiros! — bradou o conde, e puxou o príncipe para o meio dos soldados que lentamente entravam em formação. Dois homens apanhavam lanças inimigas que tinham caído, para rearmar a fileira da frente. — Arqueiros! — tornou a bradar o conde.
Will Skeat levou seus homens de volta à antiga posição em frente do conde.
— Estamos aqui, senhor conde.
— Vocês têm flechas?
— Algumas.
— O bastante?
— Algumas — respondeu Skeat, teimoso.
Thomas deu um pontapé numa espada quebrada em que ele pisara. A dois ou três passos à sua frente estava um cavalo morto, as moscas arrastando-se em seus grandes olhos brancos e sobre o sangue que brilhava no focinho preto. A manta era branca e amarela, e o cavaleiro que o montara estava preso sob o corpo. A viseira do homem estava erguida. Muitos soldados franceses e quase todos os soldados ingleses lutavam com viseiras abertas e os olhos daquele homem morto olhavam fixamente para Thomas, e de repente piscaram.
— Meu doce Jesus — praguejou Thomas, como se tivesse visto um fantasma.
— Tenha piedade — sussurrou o homem em francês. — Pelo amor de Deus, tenha piedade.
Thomas não ouviu o que ele disse, porque o ar estava tomado pelo trotar de patas e zurrar de trombetas.
— Deixem-no! Estão derrotados! — berrou Will Skeat, porque alguns de seus homens estavam prestes a disparar seus arcos contra os cavaleiros que tinham sobrevivido à primeira carga e recuado para realinhar suas fileiras bem ao alcance dos arcos.
— Esperem! — gritou Skeat. — Esperem!
Thomas olhou para a esquerda. Havia homens e cavalos mortos por quase dois quilômetros ao longo da encosta, mas parecia que os franceses só tinham conseguido chegar à linha inglesa no ponto em que ele se achava. Agora eles vinham outra vez, e ele piscou para tirar o suor dos olhos e observou a carga subir a encosta. Dessa vez, vinham devagar, mantendo a disciplina. Um dos cavaleiros na fileira da frente usava extravagantes plumas brancas e amarelas em seu elmo, como se estivesse numa justa. Aquele era um homem morto, pensou Thomas, porque nenhum arqueiro poderia resistir a um alvo assim tão vistoso.
Thomas tornou a olhar para a carnificina em frente. Haveria ingleses entre os mortos? Parecia impossível que não, mas ele não via nenhum. Um francês, uma flecha enfiada fundo na coxa, cambaleava formando um círculo entre os corpos, e então desabou de joelhos. Sua cota de malha estava rasgada na cintura e a viseira de seu elmo pendurada num só rebite. Por um instante, com as mãos fechadas sobre o botão do punho da espada, ele pareceu um homem rezando, e depois caiu lentamente para a frente. Um cavalo ferido relinchou. Um homem tentou se levantar e Thomas viu a cruz vermelha de São Jorge em seu braço, e os quartéis vermelho e amarelo do conde de Oxford no seu manto. Então, apesar de tudo, havia baixas inglesas.
— Esperem! — gritou Skeat. Thomas ergueu os olhos e viu que os cavaleiros estavam mais perto, muito mais perto. Puxou o arco preto. Ele havia disparado tantas flechas, que os dois dedos calejados da mão direita que seguravam a corda estavam doloridos, enquanto que o lado da mão esquerda ficara em carne viva pelo atrito das penas de ganso deslocando-se em velocidade contra a pele. Os longos músculos das costas e dos braços doíam. Ele sentia sede.
— Esperem! — tornou a gritar Skeat, e Thomas afrouxou a corda alguns centímetros.
A ordem cerrada da segunda carga fora rompida pelos corpos dos besteiros, mas os cavaleiros voltavam a se formar e estavam bem dentro do raio de ação dos arcos. Mas Will Skeat, sabendo da pouca quantidade de flechas de que dispunha, queria que todas fossem aproveitadas.
— Mirem bem, rapazes — bradou ele. — Nós agora não temos aço para desperdiçar; por isso, mirem bem! Matem os malditos cavalos.
Os arcos esticaram-se na sua extensão máxima e a corda queimava como fogo os dedos doloridos de Thomas.
— Agora!
Skeat gritou e uma nova onda de flechas deslizou pela encosta, dessa vez com penas vermelhas em meio às brancas. A corda do arco de Jake arrebentou e ele praguejou enquanto procurava, afobado, a sobressalente. Uma segunda onda foi lançada, suas penas assobiando no ar, e então as terceiras flechas estavam nas cordas quando a primeira onda atingiu o alvo. Cavalos gritaram e empinaram. Os cavaleiros esquivaram-se e acionaram as esporas como se compreendessem que a maneira mais rápida de escapar das flechas era atropelar os arqueiros. Thomas atirava sem parar, agora sem pensar, apenas procurando um cavalo, seguindo à frente dele com a ponta de aço da flecha e depois disparando. Apanhou uma flecha de penas brancas e viu sangue nos cálamos, percebendo que os dedos que manejavam o arco sangravam pela primeira vez desde que ele era menino. Disparou repetidas vezes, até os dedos ficarem em carne viva e ele quase chorar de dor, mas a segunda carga perdera toda a coesão à medida que as pontas farpadas torturavam os cavalos e os cavaleiros deparavam-se com os cadáveres deixados pelo primeiro ataque. Os franceses estavam paralisados, incapazes de avançar para o açoite das flechas, mas sem querer bater em retirada. Cavalos e homens caíam, os tambores continuavam batendo e os cavaleiros da retaguarda empurravam as fileiras da frente para o campo sangrento, onde os fossos esperavam e as flechas picavam. Thomas disparou outra flecha, observou as penas vermelhas penetrarem no peito de um cavalo, depois revirou a sacola para descobrir que só restava uma flecha. Ele praguejou.
— Flechas? — bradou Sam, mas ninguém tinha flecha para ceder.
Thomas disparou a sua última e depois voltou-se para procurar um espaço nos soldados que lhe permitisse fugir dos cavaleiros que sem dúvida alguma chegariam, agora que as flechas tinham acabado, mas não havia espaço algum.
Sentiu uma batida no coração de terror. Não havia escapatória, e os franceses estavam chegando. Então, quase sem pensar, colocou a mão direita sob a ponta de osso do arco e atirou-o bem para o alto, por cima dos soldados ingleses, para que caísse atrás deles. O arco, agora, era um empecilho, de modo que se livraria dele, e Thomas apanhou um escudo que tinha caído, pedindo a Deus que o escudo exibisse uma insígnia inglesa, e enfiou o braço esquerdo nas alças apertadas. Sacou a espada e recuou entre duas das lanças seguras pelos soldados. Outros arqueiros faziam o mesmo.
— Deixem entrar os arqueiros! — gritou o conde de Northampton. — Deixem-nos entrar!
Mas os soldados estavam amedrontados demais pelos franceses que se aproximavam para abrir suas linhas.
— Prontos! — gritou um homem. — Prontos! — Havia um tom de histeria em sua voz.
Os cavaleiros franceses, agora que as flechas estavam esgotadas, subiam pela encosta por entre os corpos e os fossos. Suas lanças estavam abaixadas e suas esporas cutucavam, exigindo um último esforço dos cavalos antes de chegarem ao inimigo. As capas dos cavalos estavam salpicadas de lama e tinham flechas penduradas. Thomas ficou observando uma lança, manteve erguido o escudo ao qual não estava acostumado e pensou como era monstruosa a aparência dos rostos de aço do inimigo.
— Você vai se sair bem, rapaz — disse uma voz tranqüila atrás dele. — Mantenha o escudo erguido e ataque o cavalo.
Thomas olhou de relance e viu que era Reginald Cobham, de cabelos grisalhos, o velho paladino em pessoa, em pé na fileira da frente.
— Agüentem firme! — gritou Cobham.
Os cavalos estavam em cima deles, vastos e altos, lanças estiradas, o barulho das patas e o tilintar avassalador das malhas. Franceses gritavam vitória enquanto se inclinavam para o golpe.
— Agora, matem-nos! — gritou Cobham.
As lanças atingiram os escudos e Thomas foi jogado para trás. Uma pata pisou-lhe o ombro, mas um homem atrás puxou-o para que ficasse em pé, de modo que ele foi apertado com força contra o cavalo inimigo. Não tinha espaço para usar a espada, e o escudo estava espremido contra o lado de seu corpo. Em suas narinas havia o fedor de suor e sangue de cavalo. Alguma coisa atingiu seu elmo, fazendo com que seu crânio vibrasse e a visão escurecesse, e então milagrosamente a pressão passou e ele viu uma nesga de luz do dia e cambaleou na direção dela, brandindo a espada para o local em que pensava que o inimigo estivesse.
— Escudo para cima! — berrou uma voz e ele obedeceu por instinto, apenas para ter o escudo golpeado, mas a visão enevoada estava ficando mais nítida e ele viu uma capa de cavalo de cores brilhantes e um pé protegido com cota de malha num grande estribo de couro, perto, à esquerda. Enfiou a espada na capa e no ventre do cavalo e o animal contorceu-se para livrar-se dele. Thomas foi arrastado junto com ele pela espada presa, mas conseguiu dar um puxão violento que a liberou, com tamanha força, que o recuo atingiu um escudo inglês.
A carga não rompera a linha, mas rompera-se contra ela, como uma onda do mar ao atingir um rochedo. Os cavalos recuaram e os soldados ingleses avançaram para atacar os cavaleiros que abandonavam as lanças para sacar as espadas. Thomas foi empurrado para o lado pelos soldados. Estava ofegante, tonto e cego pelo suor. A cabeça era uma mancha de dor. Um arqueiro jazia morto à sua frente, a cabeça esmagada por uma pata. Por que o homem não usava elmo? Então os soldados recuavam, enquanto mais cavaleiros passavam por entre os mortos para engrossar o combate, todos forçando a passagem em direção à bandeira do príncipe de Gales, que era a mais elevada. Thomas bateu com força com o escudo na cara de um cavalo, sentiu na espada um golpe para desviá-la e espetou a lâmina no flanco do cavalo. O cavaleiro lutava com um homem do outro lado do cavalo e Thomas viu um pequeno espaço entre o arção da sela e a camisa de malha do homem, enfiando a espada na barriga do francês, ouvindo o rugido de raiva do homem transformar-se num berro, e viu que o cavalo estava caindo em sua direção. Com dificuldade, saiu do caminho, empurrando um homem da frente antes que o cavalo caísse num estrondo de armadura e patas batendo. Soldados ingleses passaram em ondas sobre o cavalo moribundo para enfrentar o inimigo seguinte. Um cavalo com uma garrocha de ferro cravada fundo na anca empinava e atacava com as patas. Outro cavalo tentou morder Thomas e ele o agrediu com o escudo, e depois atacou com a espada o cavaleiro, mas o homem girou o cavalo e se afastou, e Thomas procurou desesperadamente pelo próximo inimigo.
— Nada de prisioneiros! — berrou o conde, vendo um homem tentando conduzir um francês para fora da escaramuça. O conde jogara seu escudo fora e brandia a espada com as duas mãos, usando-a como o machado de um madeireiro e desafiando qualquer francês a enfrentá-lo. Eles aceitaram o desafio. Mais e mais cavaleiros entraram no horror; pareciam não ter fim. O céu estava brilhante de bandeiras e com estrias de aço, a relva goivada pelo ferro e escorregadiça devido ao sangue. Um francês golpeou com a borda inferior do escudo o elmo de um inglês, girou o cavalo, enfiou a espada nas costas de um arqueiro, girou novamente e golpeou com o escudo o homem ainda tonto pela pancada. “Montjoie St Denis!” — gritou ele.
— São Jorge! — O conde de Northampton, viseira erguida e rosto com fios de sangue, enfiou a espada por uma fresta numa testeira para tirar o olho de um cavalo. O animal empinou e o cavaleiro caiu, sendo pisoteado por um cavalo que vinha atrás. O conde procurou pelo príncipe e não o viu, e depois não pôde mais procurar, porque um novo conroi com cruzes brancas em escudos negros forçava a passagem pela escaramuça, empurrando amigo e inimigo para fora do caminho enquanto carregava suas lanças em direção à bandeira do príncipe.
Thomas viu uma lança com anteparo vindo em sua direção e jogou-se ao chão, onde encolheu-se todo, formando uma bola, e deixou os pesados cavalos passarem.
Sir Guillaume d’Evecque nunca vira nada igual. Esperava nunca tornar a ver. Viu um grande exército rompendo contra uma linha de homens a pé.
Era verdade que a batalha não estava perdida e Sir Guillaume se convencera de que ainda podia ser vencida, mas também estava ciente de uma preguiça fora do comum que tomava conta dele. Ele gostava de guerra. Adorava a liberação da guerra, deliciava-se com a imposição de sua vontade a um inimigo e ele sempre lucrava com o combate, mas de repente sentiu que não queria arremeter morro acima. Havia um mau presságio naquele lugar, e ele afastou aquele pensamento e esporeou o cavalo. “Montjoie St Denis!”, gritou ele, mas sabia que estava apenas fingindo o entusiasmo. Ninguém mais na carga parecia atormentado por dúvidas. Os cavaleiros começavam a empurrar uns aos outros ao se esforçarem para mirar as lanças na linha inglesa. Muito poucas flechas voavam agora, e nenhuma vinha do caos lá em frente, onde a bandeira do príncipe de Gales tremulava muito alto. Cavaleiros agora atacavam ao longo de toda a linha, golpeando os ingleses com espadas e machados, mas um número cada vez maior de homens cortava a encosta em diagonal para entrar na fúria na esquerda inglesa. Era lá, disse Sir Guillaume a si mesmo, que a batalha seria vencida e os ingleses, derrotados. Ia ser uma tarefa difícil, é claro, e sangrenta, forçar a passagem pelas tropas inglesas, mas assim que os cavaleiros franceses ficassem atrás da linha inglesa, ela desabaria como madeira podre, e quantidade alguma de reforços vindos do alto do morro poderia deter aquela debandada em pânico. Por isso, lute, disse ele para si mesmo, lute, mas ainda havia o importuno medo de que ele estava cavalgando para o desastre. Nunca sentira nada parecido, e teve raiva disso, amaldiçoando a si mesmo por ser um covarde!
Um cavaleiro francês desmontado, o protetor do rosto do elmo arrancado e sangue pingando da mão que segurava uma espada partida, enquanto a outra mão agarrava os restos de um escudo que tinha sido dividido em dois, desceu o morro cambaleando e depois caiu de joelhos e vomitou. Um cavalo sem cavaleiro, estribos balançando, atravessou a galope, os olhos brancos, a linha que avançava, com a capa rasgada sendo arrastada na relva. O chão, ali, estava salpicado das penas brancas das flechas caídas, parecendo um campo de flores.
— Vamos! Vamos! Vamos! — gritou Sir Guillaume para seus homens, e sabia que estava gritando consigo mesmo. Ele nunca diria aos soldados que fossem para um campo de batalha, mas que viessem, que o seguissem, e amaldiçoou a si mesmo por usar aquela palavra e olhou para a frente, à procura de uma vítima para a sua lança, e tomou cuidado com os fossos, tentando ignorar a escaramuça que ficava logo à sua direita. Planejava ampliar a escaramuça perfurando a linha inglesa no ponto em que ela ainda lutava um pouco. Morra como herói, disse ele a si mesmo, leve a maldita lança até o alto do morro e que ninguém jamais diga que Sir Guillaume d’Evecque era um covarde.
Então ouviu-se uma grande ovação à sua direita e ele teve a coragem de olhar para lá, para longe dos fossos. Viu que a grande bandeira do príncipe de Gales caía em meio aos homens que lutavam. Os franceses ovacionavam e o desânimo de Sir Guillaume passou como que por mágica, porque era uma bandeira francesa que avançava, indo para o ponto em que a bandeira do príncipe tremulara. Sir Guillaume viu o estandarte. Viu e olhou fixo para ele. Viu um yale segurando uma taça e apertou os joelhos para fazer o cavalo girar, gritando para que seus homens o seguissem.
— À guerra! — gritou ele. Matar. E não havia mais desânimo nem dúvidas. Porque Sir Guillaume encontrara seu inimigo.
O rei viu os cavaleiros inimigos com os escudos com cruzes brancas romperem o batalhão de seu filho e viu o estandarte do filho cair. Não conseguiu ver a armadura preta do filho. Nada se refletia em seu rosto.
— Deixe-me ir! — pediu o bispo de Durham.
O rei afastou com a mão uma mosca do pescoço de seu cavalo.
— Reze por ele — instruiu ele ao bispo.
— Para que diabos vai servir uma oração? — perguntou o bispo, e ergueu sua temível clava. — Deixe-me ir, majestade!
— Eu preciso do senhor aqui — disse o rei, delicado — e o rapaz precisa aprender como eu aprendi.
Eu tenho outros filhos homens, disse Eduardo da Inglaterra para si mesmo, embora nenhum igual àquele. Aquele filho será um grande rei um dia, um rei guerreiro, um flagelo de nossos inimigos. Se sair vivo. E ele tem de aprender a viver no caos e no terror da batalha.
— O senhor fica — disse ele ao bispo, com firmeza, e fez um gesto para um arauto. — Aquela insígnia — disse ele, apontando para o estandarte vermelho com o yale —, de quem é?
O arauto olhou demoradamente para o estandarte e franziu o cenho como se tivesse dúvidas quanto à sua opinião.
— E então? — instigou-o o rei.
— Eu não a vejo há 16 anos — disse o arauto, parecendo, pelo tom de voz, duvidar de seu julgamento —, mas acredito que seja a insígnia da família Vexille, majestade.
— Os Vexille? — perguntou o rei.
— Os Vexille? — urrou o bispo. — Os Vexille! Malditos traidores. Eles fugiram da França no reinado do seu bisavô, majestade, e ele deu terras a eles em Cheshire. E depois eles se aliaram ao Mortimer.
— Ah! — disse o rei, com um meio-sorriso. Então os Vexille tinham apoiado sua mãe e o amante dela, Mortimer, que, juntos, tentaram impedir que ele ocupasse o trono. Não era de admirar que eles lutassem bem. Estavam tentando vingar a perda de suas propriedades em Cheshire.
— O filho mais velho nunca saiu da Inglaterra — disse o bispo, olhando para a luta na encosta, que se ampliava. Ele precisou erguer a voz para ser ouvido acima do barulho de aço. — Era um sujeito estranho. Virou padre! Acredita nisso? Um filho mais velho! Ele não gostava do pai, segundo dizia, mas nós o prendemos, mesmo assim.
— Por ordem minha? — perguntou o rei.
— Vossa majestade era muito jovem, de modo que um dos membros de seu conselho tomou as providências para que o padre Vexille não provocasse encrenca. Isolou-o num mosteiro, depois bateu nele e deixou-o passando fome até que ele se convenceu de que era santo. Depois disso, ficou inofensivo e eles o colocaram numa paróquia do interior, para apodrecer. A esta altura, já deve ter morrido.
O bispo franziu o cenho, porque a linha inglesa estava se curvando para trás, empurrada pelo conroi de cavaleiros Vexille.
— Deixe-me descer até lá, majestade — implorou ele —, eu lhe rogo, deixe-me levar meus homens lá para baixo.
— Eu lhe pedi que rogasse a Deus e não a mim.
— Eu tenho vinte padres rezando — disse o bispo — e os franceses, também. Nós estamos deixando Deus surdo com as nossas orações. Por favor, majestade, eu lhe suplico!
O rei cedeu.
— Vá a pé — disse ele ao bispo — e só com um conroi.
O bispo soltou um urro de triunfo e deslizou desajeitado das costas de seu corcel.
— Barratt! — gritou ele para um de seus soldados. — Traga seus homens! Vamos!
O bispo ergueu sua clava cheia de pontas ameaçadoras e desceu o morro correndo, gritando para os franceses que chegara a hora da morte deles.
O arauto contou o conroi que seguiu o bispo encosta abaixo.
— Será que vinte homens podem fazer diferença, majestade? — perguntou ele ao rei.
— Vai fazer pouca diferença para o meu filho — disse o rei, na esperança de que o filho ainda vivesse —, mas uma grande diferença para o bispo. Acho que ficaria com um inimigo na Igreja para sempre se não o liberasse para realizar sua paixão.
Ficou observando o bispo abrir caminho empurrando as fileiras inglesas de trás e, ainda gritando, meter-se na escaramuça. Ainda não havia sinal da armadura preta do príncipe, nem de seu estandarte.
O arauto fez seu palafrém recuar, afastando-se do rei, que fez o sinal-da-cruz e depois torceu a espada de punho de rubis para se certificar de que a chuva que caíra antes, naquele dia, não tinha enferrujado a lâmina, grudando-a na entrada de metal da bainha. A arma mexeu-se com facilidade e ele sabia que ainda poderia precisar dela, mas por enquanto cruzou sobre o arção da sela as mãos protegidas por malhas e ficou apenas assistindo à batalha.
Decidiu que iria deixar o filho vencê-la. Ou, então, que perderia o filho.
O arauto deu uma olhada rápida em direção a seu rei e viu que os olhos de Eduardo da Inglaterra estavam fechados. O rei estava rezando.
A batalha espalhara-se pelo morro. Todas as partes da linha inglesa estavam envolvidas, agora, embora na maioria dos pontos a luta estivesse fraca. As flechas tinham feito suas baixas, mas não restava nenhuma, e assim os franceses podiam avançar a cavalo até chegarem aos soldados desmontados. Alguns franceses tentavam romper a linha, mas a maioria se contentava em gritar insultos na esperança de atraírem alguns dos ingleses desmontados para que saíssem do muro de escudos. Mas a disciplina inglesa resistia. Eles rebatiam insulto com insulto, convidando os franceses para morrerem em suas espadas.
Só no ponto em que a bandeira do príncipe de Gales tremulara a luta estava feroz, e lá, e por uns cem passos para cada lado, os dois exércitos tinham ficado inextricavelmente emaranhados. A linha inglesa fora rompida, mas não perfurada. As fileiras de trás ainda defendiam o morro enquanto as da frente tinham se espalhado misturadas ao inimigo, onde lutavam contra os cavaleiros que as cercavam. Os condes de Northampton e Warwick tinham tentado manter a linha firme, mas o príncipe de Gales rompera a formação com a sua ânsia de levar a luta ao inimigo e os guarda-costas do príncipe estavam, agora, na encosta perto dos fossos, onde muitos cavalos jaziam com pernas quebradas. Foi lá que Guy Vexille golpeara com a lança o porta-bandeira do príncipe, fazendo com que a grande bandeira, com seus lírios, leopardos e a borda dourada, fosse pisoteada pelas patas ferradas de seu conroi.
Thomas estava a vinte metros de distância, encolhido, colado na barriga sangrenta de um cavalo morto e encolhendo-se mais ainda toda vez que outro corcel passava perto dele. O barulho era esmagador, mas em meio aos gritos e às batidas ele ouviu vozes inglesas que ainda gritavam desafios. Ergueu a cabeça e viu Will Skeat com o padre Hobbe, um grupo de arqueiros e dois soldados defendendo-se de cavaleiros franceses. Thomas ficou tentado a permanecer em seu abrigo fedendo a sangue, mas reagiu e, desajeitado, passou por cima do corpo do cavalo e correu para o lado de Skeat. Uma espada francesa resvalou em seu elmo, ele esbarrou na anca de um cavalo e, cambaleando, juntou-se ao pequeno grupo.
— Ainda está vivo, rapaz? — disse Skeat.
— Jesus — blasfemou Thomas.
— Ele não está interessado. Venha, seu bastardo! Vamos! — Skeat gritava para um francês, mas o inimigo preferiu levar sua lança intacta para a batalha que era travada em torno da bandeira caída. — Eles ainda estão vindo — disse Skeat em tom de perplexidade. — Os malditos bastardos não acabam.
Um arqueiro com o uniforme verde e branco do príncipe, sem elmo e sangrando de um profundo ferimento no ombro, correu em direção ao grupo de Skeat. Um francês o viu, girou o cavalo com simplicidade e golpeou com uma alabarda.
— Que bastardo! — disse Sam e, antes que Skeat pudesse detê-lo, saiu do grupo correndo e saltou para a garupa do cavalo do francês. Passou um braço pelo pescoço do cavaleiro e simplesmente caiu para trás, arrastando o homem da sela. Dois soldados inimigos tentaram intervir, mas o cavalo da vítima estava no caminho.
— Protejam-no! — berrou Skeat, e liderou seu grupo para o ponto em que Sam agredia com os punhos a armadura do francês. Skeat empurrou Sam, ergueu o peitoral do francês apenas o suficiente para permitir a entrada de uma espada, e enfiou sua lâmina no peito do homem.
— Bastardo — disse Skeat. — Você não tem o direito de matar arqueiros. Bastardo.
Ele torceu a espada, enfiou-a ainda mais e depois retirou-a com um safanão.
Sam ergueu a alabarda e sorriu.
— Boa arma — disse ele, e então se voltou quando dois pretensos salvadores chegaram a cavalo. — Bastardos, bastardos — gritava Sam enquanto golpeava com a alabarda o cavalo mais próximo. Skeat e um dos soldados brandiam espadas contra o outro animal. Thomas tentou protegê-los com o seu escudo enquanto golpeava o francês, e sentiu a espada desviada por um escudo ou uma armadura, e então os dois cavalos, ambos sangrando, se afastaram.
— Fiquem juntos — disse Skeat —, fiquem juntos. Vigie as nossas costas, Tom.
Thomas não respondeu.
— Tom! — berrou Skeat.
Thomas tinha avistado a lança. Havia milhares de lanças no campo, mas a maioria era pintada em cores espiraladas, e aquela era preta, empenada e fraca. Era a lança de São Jorge que estivera pendurada nas teias de aranha da nave de sua infância e agora estava sendo usada como mastro de uma bandeira, e a bandeira que pendia da lâmina prateada era vermelha como sangue e bordada com um yale de prata. Seu coração balançou. A lança estava ali! Todos os mistérios que ele tentara tanto evitar estavam naquele campo de batalha. Os Vexille estavam ali! O assassino de seu pai talvez estivesse ali.
— Tom! — tornou a gritar Skeat.
Thomas apenas apontou para a bandeira.
— Eu tenho que matá-los.
— Não seja tolo, Tom — disse Skeat, e deu um salto para trás quando um cavaleiro surgiu da parte mais baixa da encosta. O homem tentou desviar-se do grupo da infantaria, mas o padre Hobbe, o único homem que ainda levava um arco, anfiou a arma nas pernas dianteiras do cavalo, entrelaçando-as e quebrando o arco. O cavalo caiu com um estrondo ao lado deles e Sam meteu a alabarda na espinha do cavaleiro, que gritava.
— Vexille! — Thomas gritava o mais alto que podia. — Vexille!
— Perdeu a porcaria do juízo — disse Skeat ao padre Hobbe.
— Não perdeu, não — disse o padre. Ele agora estava sem arma nenhuma, mas quando Sam terminara de meter sua nova arma em malha e couro, o padre pegou a cimitarra do francês morto, que brandiu, demonstrando aprovação.
— Vexille! Vexille! — berrava Thomas.
Um dos cavaleiros que estava próximo do estandarte com o yale ouviu o grito e girou seu elmo, o protetor para o nariz lembrando o nariz de um porco. A Thomas pareceu que o homem olhou para ele através das aberturas para os olhos no protetor por um longo tempo, embora pudesse ser apenas por um instante ou dois, porque o homem estava sendo atacado por homens a pé. Ele se defendia com habilidade, o cavalo dançando os passos da batalha para evitar que lhe acertassem os jarretes, e o cavaleiro derrubou a espada de um inglês e passou a espora esquerda na cara do outro antes de girar o ágil cavalo e matar o primeiro homem, com um golpe de espada. O segundo se afastou cambaleando e o cavaleiro com o protetor de nariz voltou-se e trotou em direção a Thomas.
— Está provocando encrenca — grunhiu Skeat, mas foi para o lado de Thomas. O cavaleiro deu uma guinada no último momento e golpeou com a espada. Thomas escorou o golpe e ficou chocado com a força do golpe do homem, que deixou dolorido até o ombro o braço que segurava o escudo. O cavalo se afastou, girou, voltou e o cavaleiro tornou a bater em Thomas. Skeat deu uma estocada no cavalo, mas o corcel usava uma cota de malha por baixo da capa e a espada resvalou. Thomas escorou de novo o golpe e a força da pancada o deixou de joelhos, exausto. Então o cavaleiro estava a três passos de distância, o corcel girava depressa e o cavaleiro ergueu a mão que usava a espada para erguer o protetor do nariz, e Thomas viu que ele era Sir Simon Jekyll.
O ódio subiu em Thomas como fel e, ignorando o grito de alerta de Skeat, ele avançou correndo, a espada oscilando. Sir Simon aparou o golpe com uma facilidade desdenhosa, o cavalo treinado afastou-se delicadamente de lado e a espada de Sir Simon estava voltando rápida. Thomas teve de se torcer para o lado e mesmo assim, embora fosse ligeiro, a lâmina bateu contra o seu elmo com uma força estonteante.
— Desta vez, você vai morrer — disse Sir Simon, e investiu com a espada, golpeando com força mortal o peito de Thomas, vestido de cota de malha, mas Thomas tropeçara num cadáver e já estava caindo para trás. O golpe empurrou-o, fazendo com que caísse mais depressa, e ele se estatelou de costas, a cabeça girando com a pancada no elmo. Já não havia ninguém para ajudá-lo, porque ele se afastara correndo do grupo de Skeat, que estava se defendendo de uma nova onda de cavaleiros. Thomas tentou levantar-se, mas uma dor rachou-lhe a cabeça e ele estava sem fôlego por causa do golpe no peito. E então Sir Simon estava se inclinando em sua sela e sua longa espada procurava o rosto desprotegido de Thomas.
— Maldito bastardo — disse Sir Simon, e então escancarou a boca como se estivesse bocejando. Olhou para Thomas e vomitou um jato de sangue que borrifou o rosto de Thomas. Uma lança atravessara o lado de Sir Simon e Thomas, sacudindo o sangue dos olhos, viu que um francês enfiara a lança azul e amarela. Um cavaleiro? Só os franceses estavam montados, mas Thomas vira o cavaleiro largar a lança que estava pendurada no lado de Sir Simon e agora o inglês, olhos girando, balançava em sua sela, sufocando e morrendo. E então Thomas viu as capas dos animais dos cavalareiros que tinham passado por ele em disparada. Exibiam falcões amarelos num campo azul.
Thomas se levantou com dificuldade. Meu doce Cristo, pensou ele, mas tinha de aprender a lutar com uma espada. Um arco não era suficiente. Os homens de Sir Guillaume já tinham passado por ele, penetrando no conroi dos Vexille. Will Skeat gritou para que Thomas voltasse, mas ele, teimoso, foi atrás dos homens de Sir Guillaume. Franceses estavam lutando contra franceses! Os Vexille tinham quase rompido a linha inglesa, mas agora tinham de defender suas costas enquanto os soldados ingleses tentavam derrubá-los de suas selas.
— Vexille! Vexille! — gritava Sir Guillaume, sem saber qual dos homens com viseiras abaixadas era o seu inimigo. Bateu repetidas vezes no escudo de um homem, fazendo-o inclinar-se para trás na sela, e depois deu uma cutilada com a espada no pescoço do cavalo e o animal desabou, e um inglês, um padre, golpeava com uma cimitarra a cabeça do cavaleiro caído.
Um lampejo de cor subindo fez com que Sir Guillaume olhasse para a sua direita. O estandarte do príncipe de Gales fora recuperado e hasteado. Ele olhou para trás à procura de Vexille, mas viu apenas meia dúzia de cavaleiros com cruzes brancas em seus escudos negros. Seguiu depressa em direção a eles, ergueu seu escudo para escorar um golpe de machado e enfiou a espada na coxa de um homem, torceu-a para arrancá-la, sentiu uma pancada nas costas, girou o cavalo com uma pressão do joelho e escorou um golpe de espada de baixo para cima. Homens gritavam com ele, querendo saber por que ele combatia o seu próprio lado, e então o porta-bandeira dos Vexille começou a cair quando seu cavalo teve os jarretes cortados. Dois arqueiros golpeavam as pernas do animal e o yale de prata caiu no meio da escaramuça quando Henry Colley soltou a velha lança e sacou a espada.
— Bastardos! — gritava ele para os homens que tinham cortado os jarretes de seu cavalo. — Bastardos!
Ele arriou a espada, penetrando no ombro de um homem protegido por uma cota de malha, e um grande rugido fez com que se voltasse para ver um homem corpulento, de armadura, cota de malha e um crucifixo pendurado no pescoço, brandindo uma clava. Colley, ainda montado no cavalo em queda, atacou o bispo, que desviou a espada com o escudo e depois arriou a clava no elmo de Colley.
— Em nome de Deus! — vociferou o bispo enquanto puxava as pontas para libertá-las do elmo amassado. Colley estava morto, o crânio esmagado, e o bispo brandiu a clava ensangüentada contra um cavalo com uma capa amarela e azul, mas o cavaleiro desviou-se no último instante.
Sir Guillaume não viu o bispo com a clava. Em vez disso, viu que um dos membros do conroi dos Vexille usava uma armadura mais bonita do que os demais e esporeou forte o seu cavalo para chegar até aquele homem, mas sentiu o cavalo tropeçar e olhou para trás para ver de relance, através das limitadoras aberturas para os olhos de sua viseira, que ingleses golpeavam as pernas traseiras do cavalo. Ele afastou as espadas com golpes, mas o animal estava desabando e uma voz potentíssima gritava:
— Abram caminho! Eu quero matar o bastardo. Em nome de Cristo, saiam da frente!
Sir Guillaume não entendeu as palavras, mas de repente um braço estava em volta de seu pescoço e ele estava sendo puxado da sela. Gritou de raiva, depois perdeu o fôlego quando bateu no chão. Um homem o mantinha deitado e Sir Guillaume tentou atingi-lo com a espada, mas seu cavalo ferido esperneava a seu lado, ameaçando rolar para cima dele e o atacante de Sir Guillaume arrastou-o para longe, torcendo a espada do francês para tirá-la dele.
— Fique aí deitado! — Uma voz berrou para Sir Guillaume.
— O maldito bastardo está morto? — bradou o bispo.
— Ele está morto! — berrou Thomas.
— Louvado seja Deus! Vamos! Vamos! Matem!
— Thomas? — Sir Guillaume se contorceu.
— Não se mexa! — disse Thomas.
— Eu quero o Vexille!
— Eles foram embora! — gritou Thomas. — Eles foram embora! Fique quieto!
Guy Vexille, atacado de dois lados e com o estandarte vermelho caído, tinha feito voltarem seus três homens que restavam, mas apenas para se juntar aos últimos cavaleiros franceses. O próprio rei, com seu amigo, o rei da Boêmia, estava entrando na escaramuça. Embora João da Boêmia fosse cego, insistira em lutar e por isso seus guarda-costas tinham amarrado as rédeas de seus cavalos umas nas outras e colocado o corcel do rei no centro, para que ele não se perdesse deles.
— Praga! — Eles berravam seu grito de guerra. — Praga!
O filho do rei, o príncipe Carlos, também estava amarrado ao grupo.
— Praga! — gritou ele enquanto os cavaleiros boêmios lideravam a última carga, só que não era uma carga, mas um atrapalhado avanço por um emaranhado de cadáveres e de corpos se agitando e cavalos aterrorizados.
O príncipe de Gales ainda estava vivo. O filete de ouro tinha tido a metade cortada de seu elmo e a beira de cima de seu escudo fora rachada em meia dúzia de lugares, mas agora ele liderava o contra-ataque e cem homens seguiam com ele, mostrando os dentes e berrando, sem desejar outra coisa a não ser espancar aquele último inimigo que chegava à luz mortiça no local onde tantos franceses tinham morrido. O conde de Northampton, que estivera reunindo as fileiras da retaguarda do batalhão do príncipe para mantê-las em linha, sentiu que a batalha se invertera. A enorme pressão contra os soldados ingleses perdera as forças, e embora os franceses tentassem de novo, seus melhores homens estavam ensangüentados ou mortos, e os novos chegavam devagar demais, e por isso ele gritou para que seus soldados de infantaria o seguissem.
— Matem-nos! — gritava ele. — Matem-nos!
Arqueiros, soldados e até mesmo hobelars, que tinham vindo de seus lugares dentro dos círculos de carroças que protegiam os canhões nos flancos da linha, avançaram em grande quantidade contra os franceses. Para Thomas, agachado ao lado de Sir Guillaume, aquilo era uma repetição da raiva insensata na ponte de Caen. Tratava-se de loucura liberada, uma loucura ávida de sangue, mas os franceses sofreriam com ela. Os ingleses tinham oferecido uma resistência que se estendera muito pelo longo anoitecer de verão, e queriam vingança pelo terror de ver os grandes cavalos avançarem contra eles, e por isso avançavam contra os cavaleiros reais, agarrando-os, batendo, golpeando. O príncipe de Gales os liderava, lutando ao lado de arqueiros e soldados, derrubando cavalos e matando quem os montava num furor de sangue. O rei de Majorca morreu, e o conde de St. Pol, o duque de Lorena e o conde de Flandres. E então a bandeira da Boêmia, com suas três penas brancas, caiu, e o rei cego foi arrastado de cima do cavalo e massacrado por machados, clavas e espadas. O resgate de um rei morreu com ele, e seu filho sangrou até morrer sobre o corpo do pai, enquanto seus guarda-costas, prejudicados pelos cavalos mortos que ainda estavam amarrados aos animais vivos, eram abatidos um atrás do outro por ingleses que já não gritavam seu grito de guerra, mas berravam num furor uivante como almas perdidas. Estavam riscados de sangue, manchados, salpicados e ensopados nele, mas o sangue era francês. O príncipe de Gales amaldiçoou os boêmios que morriam, acusando-os de impedirem sua aproximação do rei francês, cuja bandeira azul e dourada ainda tremulava. Dois soldados ingleses golpeavam o cavalo do rei, a guarda real avançava para matá-los, mais homens em uniforme inglês corriam para derrubar Filipe e o príncipe queria estar lá, ser o homem que capturasse o rei inimigo, mas um dos cavalos boêmios, morrendo, caiu de lado. O príncipe ainda usava suas esporas e uma delas ficou presa na capa do cavalo moribundo. O príncipe deu uma guinada, ficou preso, e foi então que Guy Vexille viu a armadura negra, o casaco real e o filete de ouro rompido e viu, também, que o príncipe estava desequilibrado em meio aos cavalos moribundos.
Por isso, Guy Vexille voltou-se e arremeteu.
Thomas viu Vexille girar. Ele não podia alcançar com a espada o cavaleiro que avançava, porque isso significaria passar por cima dos mesmos cavalos onde o príncipe estava preso, mas sob a sua mão direita estava uma vara de freixo preta com ponta de prata, e ele ergueu a lança, correndo contra o homem que arremetia. Skeat também estava lá, cambaleando por cima dos cavalos boêmios com sua velha espada.
A lança de São Jorge atingiu Guy Vexille no peito. A lâmina de prata amassou e enroscou-se com a bandeira vermelha, mas a velha vara de freixo só teve força suficiente para derrubar o cavaleiro para trás e afastar a espada dele do príncipe, que estava sendo libertado por dois de seus soldados. Vexille golpeou de novo, esticando-se bem para fora da sela e Will Skeat gritou para ele, enfiando a espada com força em direção à cintura de Vexille, mas o escudo negro desviou o golpe e o cavalo treinado de Vexille virou-se instintivamente para o lado de ataque, e o cavaleiro golpeou com força de cima para baixo.
— Não! — gritou Thomas.
Ele tornou a investir com a lança, mas era uma arma fraca e o freixo seco estilhaçou-se contra o escudo de Vexille. Will Skeat estava caindo, sangue aparecendo no talho desigual em seu elmo. Vexille ergueu a espada para golpear Skeat uma segunda vez enquanto Thomas avançava cambaleando. A espada caiu, atingindo a cabeça de Skeat, e a máscara inexpressiva da viseira negra de Vexille voltou-se em direção a Thomas. Will Skeat estava no chão, sem se mexer. O cavalo de Vexille girou para colocar seu senhor no ponto em que pudesse matar com mais eficiência e Thomas viu a morte na brilhante espada do francês, mas então, num desespero em pânico, meteu a ponta quebrada da lança preta na boca aberta do corcel e enfiou a madeira áspera na língua do animal. O garanhão afastou-se, relinchando e empinando, e Vexille foi jogado com força contra a patilha da sela.
O cavalo, olhos brancos por trás da testeira e boca pingando sangue, voltou-se de novo para Thomas, mas o príncipe de Gales tinha sido libertado de sob o cavalo moribundo e levou dois soldados para atacar o outro flanco de Vexille. O cavaleiro escorou o golpe da espada do príncipe e viu que deveria ser dominado por completo, e por isso esporeou o cavalo para que ele atravessasse a escaramuça e fugisse do perigo.
— Calix meus inebrians! — gritou Thomas.
Ele não sabia por quê. As palavras simplesmente lhe ocorreram, as palavras pronunciadas por seu pai ao morrer, mas elas fizeram com que Vexille olhasse para trás. Ele olhou fixo pelas aberturas para os olhos, viu o homem de cabelos pretos que segurava a bandeira que lhe pertencia, e uma nova onda de ingleses vingativos espalhou-se encosta abaixo. Ele esporeou o cavalo, atravessando a escamaruça e os homens moribundos e os destroçados sonhos da França.
Uma ovação veio do alto do morro inglês. O rei ordenara que sua reserva montada de cavaleiros atacasse os franceses, e enquanto aqueles homens abaixavam as lanças, outros cavalos estavam sendo levados às pressas do parque das bagagens, para que mais homens pudessem montar e perseguir o inimigo derrotado.
John de Hainault, lorde de Beaumont, pegou as rédeas do rei francês e arrastou Filipe para longe da escaramuça. O cavalo era uma remonta, porque um cavalo real já havia sido morto, enquanto o rei fora ferido no rosto porque insistira em lutar com a viseira erguida, para que seus homens soubessem que ele estava no campo.
— Está na hora de ir, majestade — disse, delicado, o lorde de Beaumont.
— Acabou? — perguntou Filipe. Havia lágrimas em seus olhos e incredulidade em sua voz.
— Acabou, majestade — disse o lorde de Beaumont.
Os ingleses uivavam como cães e os cavaleiros da França se contorciam e sangravam numa encosta de morro. John de Hainault não sabia como aquilo acontecera, só que a batalha, a auriflama e o orgulho da França estavam todos perdidos.
— Venha, majestade — disse ele, e puxou o cavalo do rei para longe. Grupos de cavaleiros franceses, as capas de seus cavalos chocalhando de tantas flechas, atravessavam o vale para os bosques distantes que estavam escuros por causa da noite que chegava.
— Aquele astrólogo, John — disse o rei francês.
— Majestade?
— Mande executá-lo. Com crueldade. Está me ouvindo? Com crueldade!
O rei chorava enquanto, com o que restara de sua guarda, se afastava.
Um número cada vez maior de franceses fugia à procura de segurança na escuridão que se instalava, e sua retirada transformou-se num galope quando os primeiros cavaleiros ingleses do batalhão irromperam pelos remanescentes de sua linha quebrada para iniciar a perseguição.
A encosta inglesa parecia contorcer-se enquanto os soldados perambulavam por entre os feridos e os mortos. A contorção eram as contrações dos homens e cavalos moribundos. O chão do vale estava juncado dos genoveses que tinham sido mortos pelos próprios senhores. De repente, ficou tudo em muito silêncio. Não havia o tilintar de aço, nenhum grito rouco, nenhum tambor. Havia gemidos e choros e, às vezes, um ofegar, mas parecia silencioso. O vento agitava os estandartes caídos e fazia adejar as penas brancas das flechas caídas que tinham feito Sir Guillaume lembrar-se de uma colcha de flores.
E acabou-se.
Sir William Skeat sobreviveu. Não podia falar, não havia vida em seus olhos, e ele parecia surdo. Não podia andar, embora parecesse tentar quando Thomas o ergueu, mas as pernas cederam e ele caiu no chão cheio de sangue.
O padre Hobbe tirou o elmo de Skeat, fazendo-o com uma delicadeza extraordinária. Sangue saía dos cabelos grisalhos de Skeat e Thomas teve ânsias de vômito quando viu o corte de espada no couro cabeludo. Havia pedaços de crânio, fios de cabelo e o cérebro de Skeat exposto ao ar.
— Will? — Thomas ajoelhou-se em frente a ele. — Will?
Skeat olhou para ele, mas não parecia que o estava vendo. Estava com um meio-sorriso e olhos vazios.
— Will! — disse Thomas.
— Ele vai morrer, Thomas — disse o padre Hobbe baixinho.
— Não vai! Diabos, não vai! Está me ouvindo? Ele vai viver. Trate de rezar por ele!
— Vou rezar, Deus sabe que vou rezar — o padre Hobbe tranqüilizou Thomas —, mas primeiro temos que tratar dele.
Eleanor ajudou. Lavou o couro cabeludo de Will Skeat, e depois ela e o padre Hobbe colocaram pedaços de crânio quebrado como se fossem azulejos estilhaçados. Depois, Eleanor rasgou uma tira de pano de seu vestido azul e delicadamente passou-a pelo crânio de Will Skeat, amarrando-a embaixo do queixo, de modo que quando acabou ele parecia uma velha senhora com um lenço na cabeça. Ele não disse coisa alguma enquanto Eleanor e o padre faziam o curativo, e se sentiu alguma dor sua fisionomia não demonstrou.
— Beba, Will — disse Thomas e estendeu uma garrafa de água tirada de um francês morto, mas Skeat ignorou a oferta. Eleanor pegou a garrafa e levou-a aos lábios dele, mas a água escorreu pelo queixo. Àquela altura, já anoitecera. Sam e Jake tinham acendido uma fogueira, usando uma alabarda para cortar lanças francesas para servirem de lenha. Will Skeat ficou sentado ao lado das chamas. Respirava, mas nada mais.
— Eu já vi isso antes — disse Sir Guillaume a Thomas. Ele praticamente não falara desde a batalha, mas agora estava sentado ao lado de Thomas. Ficara observando a filha cuidar de Skeat e aceitara comida e bebida dela, mas não ligara para sua conversa.
— Ele vai se recuperar? — perguntou Thomas.
Sir Guillaume deu de ombros.
— Eu vi um homem com o crânio cortado. Viveu quatro anos, mas só porque as irmãs da abadia cuidaram dele.
— Ele vai viver! — disse Thomas.
Sir Guillaume ergueu uma das mãos de Skeat, segurou-a por alguns segundos, e depois soltou-a.
— Talvez — ele parecia cético. — Você gostava muito dele?
— Ele é como um pai — disse Thomas.
— Os pais morrem — disse Sir Guillaume, triste.
Ele parecia esgotado, como um homem que tivesse voltado sua espada contra o seu rei e fracassara em seu dever.
— Ele vai viver — disse Thomas, teimoso.
— Durma — disse Sir Guillaume. — Eu velo por ele.
Thomas dormiu em meio aos mortos, na linha de batalha onde os feridos gemiam e o vento noturno agitava as penas brancas que sarapintavam o vale. Will Skeat não estava diferente de manhã. Apenas ficava sentado, olhos vagos, olhando para o nada e fedendo porque se sujara.
— Eu vou procurar o conde — disse o padre Hobbe — e dizer que ele deve mandar Will de volta para a Inglaterra.
O exército deslocou-se com morosidade. Quarenta soldados ingleses e outros tantos arqueiros foram enterrados no átrio da igreja de Crécy, mas as centenas de cadáveres franceses, com exceção dos grandes príncipes e dos senhores mais nobres, foram deixados no morro. Os habitantes de Crécy podiam enterrá-los, se quisessem, Eduardo da Inglaterra não se importava.
O padre Hobbe procurou pelo conde de Northampton, mas dois mil homens da infantaria francesa tinham chegado logo depois do amanhecer, para reforçar um exército que já fora derrotado, e à luz enevoada tinham pensado que os homens a cavalo que os receberam eram amigos, e os cavaleiros abaixaram suas viseiras, enristaram as lanças e esporearam os cavalos. O conde os liderava.
A maioria dos cavaleiros ingleses tivera negada uma chance de lutar montados na batalha do dia anterior, mas agora, naquela manhã de domingo, receberam a oportunidade e os grandes corcéis abriram espaços sangrentos nas fileiras em marcha, e depois se voltado para abater os sobreviventes num terror desigual. Os franceses tinham fugido, perseguidos pelos cavaleiros implacáveis, que cortaram e arremeteram até os braços ficarem cansados com a matança.
No morro entre Crécy e Wadicourt, uma pilha de estandartes inimigos fora reunida. As bandeiras estavam rasgadas e algumas ainda se achavam úmidas de sangue. A auriflama foi levada para Eduardo, que a dobrou e mandou que os padres dessem graças. Seu filho estava vivo, a batalha fora vencida e a cristandade toda ficaria sabendo que Deus era a favor da causa inglesa. Eduardo declarou que passaria aquele dia específico no campo, para assinalar a vitória, e depois seguiria em frente. Seu exército ainda estava cansado, mas agora tinha botas e seria alimentado. Cabeças de gado mugiam enquanto os arqueiros as abatiam e mais arqueiros traziam comida do morro, onde o exército francês abandonara seus suprimentos. Outros homens recolhiam flechas do campo e amarravam-nas em feixes, enquanto suas mulheres saqueavam os mortos.
O conde de Northampton voltou para o morro de Crécy urrando e sorrindo.
— Foi como abater ovelhas! — exultava ele, e depois andou de um lado para o outro ao longo da linha para reviver as emoções dos últimos dois dias. Parou ao lado de Thomas e sorriu para os arqueiros e suas mulheres.
— Você está diferente, jovem Thomas! — disse ele, contente, mas então baixou o olhar e viu Will Skeat sentado como uma criança, a cabeça envolta no lenço azul.
— Will? — disse o conde, intrigado. — Sir William?
Skeat continuou sentado.
— Ele recebeu um corte no crânio, senhor conde — disse Thomas.
A linguagem bombástica do conde escapou como ar de uma bexiga perfurada. Ele inclinou-se na sela, abanando a cabeça.
— Não — protestou ele —, não. O Will, não!
Ele ainda estava com uma espada ensangüentada na mão, mas agora limpou a lâmina na crina do cavalo e enfiou-a na bainha.
— Eu ia mandá-lo de volta para a Bretanha — disse ele. — Ele vai viver?
Ninguém respondeu.
— Will? — chamou o conde e, desajeitado, desceu da sela. Agachou-se ao lado do homem de Yorkshire.
— Will? Fale comigo, Will!
— Ele tem de ir para a Inglaterra, senhor conde — disse o padre Hobbe.
— Claro — disse o conde.
— Não — disse Thomas.
O conde olhou para ele de cenho franzido.
— Não?
— Há um médico em Caen, senhor conde — Thomas falava em francês agora —, e eu gostaria de levá-lo para lá. Esse médico faz milagres, senhor.
O conde teve um sorriso triste.
— Caen está em mãos francesas outra vez, Thomas — disse ele —, e eu duvido que eles recebam vocês bem.
— Ele será bem recebido — disse Sir Guillaume, e pela primeira vez ele percebeu o francês e seu traje desconhecido.
— Ele é um prisioneiro, senhor conde — explicou Thomas —, mas também um amigo. Nós servimos ao senhor, de modo que o resgate dele é seu, mas só ele pode levar Will para Caen.
— O resgate é grande? — perguntou o conde.
— Imenso — disse Thomas.
— Neste caso, senhor — o conde falava para Sir Guillaume —, é a vida de Will Skeat.
Ele tirou as rédeas de seu cavalo de um arqueiro e voltou-se de novo para Thomas. O rapaz estava diferente, pensou ele, parecia um homem feito. Tinha cortado o cabelo, era isso. Pelo menos, o picotara. E agora parecia um soldado, um homem que podia liderar arqueiros em combate.
— Eu quero você na primavera, Thomas — disse ele. — Haverá arqueiros para liderar, e se o Will não puder, então você terá de fazê-lo. Cuide dele agora, mas na primavera você voltará a me servir, está ouvindo?
— Estou, senhor conde.
— Espero que o seu médico saiba fazer milagres — disse o conde, e afastou-se a pé.
Sir Guillaume entendera as coisas que tinham sido ditas em francês, mas não o resto, e agora ele olhou para Thomas.
— Nós vamos para Caen? — perguntou ele.
— Vamos levar Will ao doutor Mordecai — disse Thomas.
— E depois?
— Eu procuro o conde — disse Thomas, lacônico.
Sir Guillaume teve um sobressalto.
— E o Vexille? O que vai ser dele?
— O que vai ser dele? — perguntou Thomas, ríspido. — Ele perdeu a maldita lança. — Ele olhou para o padre Hobbe e falou em inglês. — Minha penitência acabou, padre?
O padre Hobbe sacudiu a cabeça, em sinal afirmativo. Ele tirara a lança partida de Thomas e a entregara ao confessor do rei, que prometera que a relíquia seria levada para Westminster.
— Você cumpriu sua penitência — disse o padre.
Sir Guillaume não falava inglês, mas deve ter entendido o tom do padre Hobbe, porque dirigiu a Thomas um olhar magoado.
— O Vexille ainda está vivo — disse ele. — Ele matou seu pai e a minha família. Até Deus o quer morto! — Havia lágrimas nos olhos de Sir Guillaume. — Você me deixaria tão destruído quanto a lança? — perguntou ele a Thomas.
— O que é que o senhor gostaria que eu fizesse? — perguntou Thomas.
— Ache o Vexille. Mate-o. — Ele falava com ênfase, mas Thomas não disse nada. — Ele tem o Graal! — insistiu o francês.
— Isso, nós não sabemos — disse Thomas, irritado.
Deus e Cristo, pensou ele, poupai-me! Eu posso ser um chefe de arqueiros. Posso ir até Caen e deixar o Mordecai fazer o milagre dele e depois chefiar os homens de Skeat em combate. Nós podemos vencer por Will, pelo rei e pela Inglaterra. Voltou-se para o francês.
— Eu sou um arqueiro inglês — disse ele, ríspido —, não um cavaleiro da távola redonda.
Sir Guillaume sorriu.
— Diga-me, Thomas — disse ele, delicado —, seu pai era o filho mais velho, ou um filho mais moço?
Thomas abriu a boca. Estava para dizer que era claro que o padre Ralph tinha sido um filho mais moço, e depois percebeu que não sabia. Seu pai nunca dissera, e isso significava que talvez tivesse escondido a verdade, como escondera tantas coisas.
— Pense bem, senhor — disse Sir Guillaume, de propósito —, pense bem. E lembre-se, o Arlequim aleijou seu amigo e o Arlequim está vivo.
Eu sou um arqueiro inglês, pensou Thomas, e não quero mais nada.
Mas Deus quer mais, pensou, e ele não queria aquele fardo.
Era o bastante o sol brilhar sobre os campos no verão, sobre penas brancas e homens mortos.
E que Hookton fosse vingada.
Nota Histórica
APENAS DUAS AÇÕES no livro são pura invenção: o ataque inicial a Hookton (embora os franceses fizessem, de fato, muitos ataques desse tipo na costa inglesa) e a luta entre os cavaleiros de Sir Simon Jekyll e os soldados sob o comando de Sir Geoffrey de Pont Blanc do lado de fora de La Roche-Derrien. Fora esses dois, todos os cercos, batalhas e escaramuças são retirados da história, como foi a morte de Sir Geoffrey em Lannion. La Roche-Derrien caiu devido a uma escalada, e não por um ataque vindo da margem do rio, mas eu queria dar a Thomas alguma coisa para fazer, e por isso tomei liberdades com o feito do conde de Northampton. O conde fez tudo que lhe é atribuído no romance: a captura de La Roche-Derrien, a bem-sucedida travessia do Somme no baixio de Blanchetaque, bem como suas proezas na batalha de Crécy. A captura e o saque de Caen aconteceram em grande parte tal como descrito no romance, do mesmo modo que a famosa batalha de Crécy. Foi, em resumo, um horrendo e aterrorizante período da história que agora é reconhecido como o começo da Guerra dos Cem Anos.
Quando comecei e ler e a pesquisar para escrever o livro, pensei que ficaria muito preocupado com cavalheirismo, cortesia e bravura dos cavaleiros. Essas coisas podem ter existido, mas não naqueles campos de batalha, que eram brutais, indesculpáveis e odiosos. A epígrafe do livro, do rei João II da França, serve como um corretivo: “muitas batalhas mortais foram travadas, pessoas massacradas, igrejas roubadas, almas destruídas, mulheres jovens e virgens defloradas, respeitáveis esposas e viúvas desonradas; cidades, mansões e prédios incendiados, e assaltos, crueldades e emboscadas cometidos nas estradas principais.” Essas palavras, escritas cerca de 14 anos depois da batalha de Crécy, justificaram os motivos pelos quais o rei João estava entregando quase um terço do território francês aos ingleses; a humilhação era preferível a uma continuação daquela guerra tão medonha e horrenda.
Batalhas convencionais como a de Crécy eram relativamente raras nas longas guerras anglo-francesas, talvez por serem de um poder destruidor tão extremo, embora os números de baixas para Crécy mostrem que foram os franceses que sofreram, e não os ingleses. As perdas são mais difíceis de se computar, mas no mínimo os franceses perderam dois mil homens e o número talvez se aproximasse mais de quatro mil, a maioria deles cavaleiros e soldados. As perdas genovesas foram muito altas, e pelo menos metade deles foi morta pelo seu próprio lado. As perdas inglesas foram irrisórias, talvez inferiores a cem. A maior parte do crédito deve ir para os arqueiros ingleses, mas mesmo quando os franceses furaram a cortina de flechas, tiveram perdas pesadas. Um cavaleiro que tivesse perdido o impulso da carga e não contasse com o apoio de outros cavaleiros era uma presa fácil para os soldados a pé, e assim a cavalaria da França foi massacrada na escaramuça. Depois da batalha, quando os franceses buscavam explicações para sua perda, culparam os genoveses, e houve massacres de mercenários genoveses em muitas cidades francesas, mas o verdadeiro erro francês foi atacar às pressas numa tarde de sábado que já ia avançada, em vez de esperar até o domingo, quando poderiam ter disposto o exército com um cuidado maior. E, tendo tomado a decisão de atacar, eles perderam a disciplina e com isso jogaram fora a primeira leva de cavaleiros, e os remanescentes daquela carga obstruíram a segunda leva, mais bem conduzida.
Tem havido muita discussão sobre as disposições inglesas em combate, a maioria concentrando-se no ponto em que os arqueiros eram colocados. A maioria dos historiadores os coloca nas alas inglesas, mas eu aceitei a sugestão de Robert Hardy de que eles eram dispostos ao longo de toda a linha, bem como nas alas. Quando se trata de assuntos relativos a arcos, arqueiros e suas proezas, o sr. Hardy é um bom conselheiro.
As batalhas eram raras, mas a chevauchée, uma expedição que partia com o fim deliberado de devastar o território do inimigo, era comum. Era, é claro, uma guerra econômica — o equivalente do século XIV ao bombardeio sistemático de uma área inteira. Contemporâneos, descrevendo o interior francês depois da passagem de uma chevauchée inglesa, registraram que a França estava “dominada e pisoteada”, que se achava “à beira da ruína completa” ou “atormentada e arrassada pela guerra”. Nada de cavalheirismo lá, pouco espírito nobre e menos cortesia. A França acabaria por se recuperar e expulsar os ingleses da França, mas só depois de ter aprendido a lidar com a chevauchée e, o mais importante, com os arqueiros ingleses (e galeses).
O termo arco longo não aparece no romance, porque não era usado no século XIV (é pelo mesmo motivo que Eduardo de Woodstock, o príncipe de Gales, não é chamado de Príncipe Negro — termo criado mais tarde). O arco era simplesmente isso, o arco, ou talvez o grande arco ou o arco de guerra. Muita tinta tem sido gasta discutindo as origens do arco longo, se ele é galês ou inglês, uma invenção medieval ou remontando ao neolítico, mas o fato importante é que ele surgiu nos anos que levaram à Guerra dos Cem Anos como uma arma que vencia batalhas. O que o tornava tão eficiente era o número de arqueiros que podiam ser reunidos em um exército. Um ou dois arcos longos poderiam provocar danos, mas milhares destruiriam um exército, e os ingleses, únicos na Europa, eram capazes de reunir uma quantidade daquelas. Por quê? A tecnologia não podia ser mais simples, e no entanto outros países não produziram arqueiros. Parte da resposta está, sem dúvida alguma, na grande dificuldade em se tornar um arqueiro excelente. Eram necessárias horas e anos de treino, e o hábito desse treinamento enraizou-se em apenas algumas regiões inglesas e galesas. É provável que tenham existido peritos desse tipo na Inglaterra desde o período neolítico (arcos de teixo do comprimento dos usados em Crécy foram encontrados em túmulos neolíticos), mas igualmente provável é que houvesse apenas uns poucos peritos, mas que por um motivo ou outro a Idade Média viu um entusiasmo popular pela procura da arte do arco e flecha em partes da Inglaterra e do País de Gales, levando à elevação do arco longo à condição de arma de guerra, e sem dúvida, tão logo aquele entusiasmo diminuiu, o arco desapareceu rapidamente do arsenal inglês. A sabedoria popular diz que o arco longo foi substituído pela arma de fogo, mas é mais verdadeiro dizer que o arco longo desapareceu apesar da arma de fogo. Benjamin Franklin, que não era bobo, calculava que os rebeldes americanos teriam vencido a guerra deles muito mais depressa se tivessem sido arqueiros experimentados e é certíssimo que um batalhão de arqueiros poderia ter superado na pontaria e derrotado, com facilidade, um batalhão de veteranos de Wellington armados de mosquetões sem raia. Mas uma arma (ou uma besta) era muito mais fácil de dominar do que um arco longo. O arco longo, em resumo, era um fenômeno, provavelmente alimentado por uma mania popular pelo arco e flecha que resultou numa arma que vencia batalhas para os reis da Inglaterra. Ele aumentou, também, o nível dos soldados de infantaria, quando até mesmo o mais obtuso nobre inglês chegou à conclusão de que sua vida dependia de arqueiros, e não é de admirar que os arqueiros tivessem vantagem numérica em relação aos soldados nos exércitos ingleses da época.
Devo assinalar uma dívida enorme para com Jonathan Sumption, autor de Trial by Battle, the Hundred Years War, Volume 1. É uma extrema ofensa a escritores de tempo integral como eu o fato de um homem que exerce com sucesso a profissão de advogado poder escrever livros excelentes no que, pelo que se presume, sejam suas “horas de folga”, mas eu fico grato por ele ter feito isso e recomendo sua história a todo aquele que deseje aprender mais sobre a época. Quaisquer erros que restem são totalmente meus.
Tradução de
LUIZ CARLOS DO NASCIMENTO SILVA
18ª EDIÇÃO
2014
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
C835a
Cornwell, Bernard, 1944-
O andarilho [recurso eletrônico] / Bernard Cornwell ; tradução Luiz Carlos do Nascimento Silva. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Record, 2014.
recurso digital : il. (A busca do Graal ; 2)
Tradução de: Vagabond
Sequência de: O arqueiro
Continua com: O herege
ISBN 978-85-01-05998-7
1. Ficção inglesa.
2. Livros eletrônicos.
I. Silva, Luiz Carlos do Nascimento.
II. Título.
III. Série.
14-14476
CDD: 813
CDU: 821.111-3
Título original inglês
VAGABOND
Copyright © 2002 by Bernard Cornwell
Projeto gráfico da versão impressa: Porto+Martinez
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo
ou em parte, através de quaisquer meios.
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens e acontecimentos nela retratados são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas reais, acontecimentos e lugares será mera coincidência.
Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa para o Brasil adquiridos pela
EDITORA RECORD LTDA.
Rua Argentina 171 – Rio de Janeiro, RJ – 20921-380 – Tel.: 2585-2000 que se reserva a propriedade literária desta tradução
O ANDARILHO
é dedicado a
June e Eddie Bell
com amizade e gratidão
Primeira Parte
INGLATERRA, OUTUBRO DE 1346
Flechas no Morro
ERA OUTUBRO, a época da morte do ano, quando o gado era abatido antes do inverno e quando os ventos do norte traziam uma promessa de gelo. As folhas dos castanheiros tinham-se tornado douradas, as faias eram árvores de fogo e os carvalhos eram feitos de bronze. Thomas de Hookton com sua mulher, Eleanor, e seu amigo, o padre Hobbe, chegaram à fazenda do planalto ao anoitecer, e o fazendeiro recusou-se a abrir a porta, mas gritou através da parede que os viajantes podiam dormir no estábulo de vacas. A chuva retinia no sapé que se desfazia. Thomas conduziu o único cavalo deles para debaixo do telhado que eles dividiam com uma pilha de lenha, seis porcos num chiqueiro sólido e uma porção de penas espalhadas onde uma galinha fora depenada. As penas lembraram ao padre Hobbe que era o dia de São Galo, e ele contou a Eleanor que o bendito santo, ao voltar para casa numa noite de inverno, encontrara um urso roubando o seu jantar.
— Ele mandou o animal dar o fora! — disse o padre Hobbe. — Passou um carão no bicho e depois mandou que ele fosse apanhar a lenha para o santo.
— Eu vi uma gravura disso — disse Eleanor. — O urso não ficou sendo criado dele?
— Isso porque Galo era um homem santo — explicou o padre Hobbe. — Os ursos não apanham lenha para qualquer um! Só para um homem santo.
— Um homem santo — interveio Thomas — que é o padroeiro das galinhas. — Thomas sabia tudo sobre os santos, mais até do que o padre Hobbe. — Por que uma galinha iria querer um santo? — perguntou ele em tom de sarcasmo.
— Galo é o santo padroeiro das galinhas? — perguntou Eleanor, confusa por causa do tom de voz de Thomas. — Não dos ursos?
— Das galinhas — confirmou o padre Hobbe. — Na verdade, de todas as aves domésticas.
— Mas por quê? — quis saber Eleanor.
— Porque certa vez ele expulsou um demônio malvado de uma jovem.
O padre Hobbe, rosto largo, cabelos como espinhos de um esgana-gata, nascido camponês, corpulento, jovem e ansioso, gostava de contar histórias dos benditos santos.
— Um monte de bispos tinha tentado expulsar o demônio — continuou ele — e todos tinham fracassado, mas o bendito Galo apareceu e amaldiçoou o demônio. Ele o amaldiçoou! E o demônio ganiu, aterrorizado — o padre Hobbe agitou as mãos no ar para imitar o pânico do espírito mau —, e fugiu do corpo dela, isso mesmo, e parecia muito com uma galinha, uma franga. Uma franga preta.
— Eu nunca vi uma gravura disso — observou Eleanor no seu inglês com sotaque, e então, pensativa, olhando pela porta do estábulo: — Mas eu gostaria de ver um urso de verdade carregando lenha.
Thomas sentou-se ao lado dela e olhou para o crepúsculo molhado, que estava turvo por causa de um leve nevoeiro. Ele não tinha muita certeza de que era o dia de São Galo, porque perdera o senso de cálculo enquanto viajavam. Talvez já estivessem no dia de Santa Audrey? Era outubro, disso ele sabia, e sabia que mil e trezentos e quarenta e seis anos tinham-se passado desde que Cristo nascera, mas não tinha certeza quanto ao dia em que estavam. Era fácil perder a conta. Certa vez seu pai recitara todas as missas de domingo num sábado e tivera de repetir tudo no dia seguinte. Sub-repticiamente, Thomas fez o sinal-da-cruz. Era filho bastardo de um padre e diziam que aquilo dava azar. Ele estremeceu. Havia um peso no ar que nada tinha a ver com o sol poente nem com as nuvens carregadas de chuva, nem com o nevoeiro. Que Deus nos ajude, pensou, mas havia um mal naquele crepúsculo e ele tornou a fazer o sinal-da-cruz e rezou em silêncio para São Galo e seu urso obediente. Tinha existido um urso dançarino em Londres, os dentes nada mais do que cotocos amarelos apodrecidos, os flancos marrons manchados de sangue provocado pela aguilhada do dono. Os cachorros vira-latas tinham rosnado para ele, girado em torno dele furtivamente e recuado quando ele os golpeara.
— Quanto falta para chegar a Durham? — perguntou Eleanor, desta vez falando em francês, sua língua natal.
— Acho que amanhã — respondeu Thomas, ainda olhando para o norte, para onde o escuro pesado amortalhava a terra. — Ela perguntou — explicou em inglês ao padre Hobbe — quando é que vamos chegar a Durham.
— Amanhã, se Deus quiser — disse o padre.
— Amanhã você poderá descansar — prometeu Thomas a Eleanor, em francês.
Ela estava grávida de um filho que, se Deus quisesse, iria nascer na primavera. Thomas não estava certo de como se sentia por ser pai. Parecia cedo demais para assumir uma responsabilidade. Mas Eleanor estava feliz, e ele gostava de agradá-la, e por isso dizia que também se sentia feliz. Numa certa parte do tempo, até que era verdade.
— E amanhã — disse o padre Hobbe — vamos colher nossas respostas.
— Amanhã — corrigiu Thomas — vamos fazer nossas perguntas.
— Deus não vai nos deixar vir tão longe assim para ficarmos desapontados — disse o padre Hobbe. Depois, para evitar que Thomas apresentasse argumentos, serviu o escasso jantar. — Isto foi tudo o que restou do pão — disse ele — e nós devíamos guardar um pouco do queijo e uma maçã para o desjejum.
Ele fez o sinal-da-cruz sobre a comida, abençoando-a, e depois partiu o pão duro em três pedaços.
— Devemos comer antes do anoitecer.
A escuridão trouxe um frio efêmero. Uma curta pancada de chuva passou e depois o vento diminuiu. Thomas dormiu mais próximo da porta do estábulo de vacas, e em determinado momento depois que o vento parou ele acordou, porque havia uma luz no céu do norte.
Rolou o corpo, sentou-se e esqueceu que estava com frio, esqueceu a fome, esqueceu todos os irritantes desconfortos da vida, porque estava vendo o Graal. O Santo Graal, o mais precioso de todos os legados de Cristo ao homem, perdido naqueles mil e tantos anos, e ele o via brilhando no céu como um sangue reluzente, e à sua volta, brilhantes como a cintilante coroa de um santo, raios de um fulgor estonteante enchiam o céu.
Thomas queria acreditar. Ele queria que o Graal existisse. Achava que se o Graal fosse encontrado todo o mal do mundo iria escoar pelas suas profundezas. Queria muito acreditar, e naquela noite de outubro ele via o Graal como um grande cálice em fogo no norte, e seus olhos encheram-se de lágrimas a ponto de a imagem ficar turva, e no entanto ainda o via, e parecia-lhe que um vapor saía do vaso sagrado. Por trás dele, em fileiras que subiam para as alturas do ar, estavam filas de anjos, as asas tocadas pelo fogo. Todo o céu do norte era fumaça e ouro e escarlate, brilhando na noite como um sinal para o indeciso Thomas.
— Oh, Deus — disse ele em voz alta, e tirou o cobertor com um gesto rápido e ajoelhou-se no frio portal do estábulo. — Oh, Deus!
— Thomas? — Eleanor, ao lado dele, acordara. Ela sentou-se e olhou para a noite. — Fogo — disse ela em francês — c’est un grand incendie.
Em sua voz transparecia um medo reverencial.
— C’est un incendie? — perguntou Thomas, e então ficou desperto por completo. Viu que realmente havia um grande incêndio no horizonte, do qual as chamas se erguiam para iluminar uma fenda com a forma de um cálice nas nuvens.
— Há um exército lá — sussurrou Eleanor em francês. — Olha! — Ela apontou para um outro brilho, mais ao longe. Eles tinham visto luzes como aquelas no céu da França, luz das chamas refletida na nuvem onde o exército da Inglaterra assinalava com fogo a sua travessia da Normandia e da Picardia.
Thomas ainda olhava fixo para o norte, mas agora desapontado. Era um exército? Não era o Graal?
— Thomas? — Eleanor estava preocupada.
— É só um boato — disse ele.
Ele era filho bastardo de um padre e tinha sido criado com as escrituras sagradas. No Evangelho segundo Mateus fora prometido que no fim dos tempos haveria batalhas e rumores de batalhas. As escrituras prometiam que o mundo chegaria ao seu final numa confusão de guerra e sangue, e na última aldeia, onde os habitantes os tinham olhado com desconfiança, um padre mal-humorado os acusara de espiões escoceses. O padre Hobbe reagira ameaçando bater nas orelhas do seu colega de ofício, mas Thomas acalmara os dois homens e depois falara com um pastor que dissera ter visto fumaça nas montanhas ao sul. Os escoceses, dissera o pastor, estavam marchando para o sul, embora a mulher do padre zombasse da história dele alegando que as tropas escocesas não passavam de ladrões de gado.
— Tranquem as suas portas durante a noite — aconselhara ela —, e eles os deixarão em paz.
A luz distante diminuiu. Não era o Graal.
— Thomas? — disse Eleanor, o cenho franzido.
— Eu tive um sonho — disse ele —, só um sonho.
— Eu senti a criança se mexer — disse ela, e tocou o ombro dele. — Você e eu vamos nos casar?
— Em Durham — prometeu ele. Ele era um bastardo e não queria que filho seu algum levasse o mesmo estigma. — Vamos chegar à cidade amanhã — assegurou à mulher —, e você e eu vamos nos casar numa igreja e depois faremos nossas perguntas.
E, rezou ele, que uma das respostas seja a de que o Graal nunca existiu. Que seja um sonho, uma simples ilusão de fogo e nuvem num céu noturno, porque, caso contrário, Thomas temia que aquilo levasse a pessoa à loucura. Ele queria abandonar sua busca, queria desistir do Graal e voltar a ser o que era e o que queria ser: um arqueiro da Inglaterra.
Bernard de Taillebourg, francês, frade dominicano e inquisidor, passou a noite de outono num chiqueiro e, quando o amanhecer chegou espesso e branco de tanto nevoeiro, ajoelhou-se e agradeceu a Deus pelo privilégio de dormir em cima de uma palha emporcalhada. Depois, cônscio de sua elevada tarefa, disse uma oração a São Domingos, implorando ao santo que intercedesse junto a Deus para tornar bom o trabalho daquele dia.
— Assim como a chama em sua boca nos ilumina para ver a verdade — disse ele em voz alta —, que ela ilumine o nosso caminho para o sucesso.
Ele se inclinou para a frente na intensidade da emoção, e sua cabeça bateu num rude pilar de pedra que sustentava um dos cantos do chiqueiro. A dor penetrou-lhe o crânio e ele provocou mais ao tornar a bater a cabeça contra a pedra, ralando a pele até sentir o sangue escorrer para o nariz.
— Bendito Domingos — bradou ele —, bendito Domingos! Graças sejam dadas a Deus pela sua glória! Ilumine o nosso caminho!
O sangue agora estava nos lábios, e ele o lambeu e pensou em todo o sofrimento que os santos e mártires tinham suportado pela Igreja. Suas mãos estavam entrelaçadas e havia um sorriso no rosto desvairado.
Soldados que na noite anterior tinham posto fogo em grande parte da aldeia, reduzindo-a a cinzas, e estuprado as mulheres que não conseguiram fugir, e matado os homens que tentaram proteger as mulheres, agora ficavam olhando o padre bater repetidas vezes a cabeça contra a pedra salpicada de sangue.
— Domingos — disse Bernard de Taillebourg, ofegante —, oh, Domingos!
Alguns soldados fizeram o sinal-da-cruz, porque sabiam identificar um homem santo só em olhar para ele. Um ou dois até se ajoelharam, embora isso fosse incômodo devido às cotas de malha, mas a maioria apenas ficou olhando desconfiada para o padre ou então observava o criado dele que, sentado do lado de fora do chiqueiro, olhava para eles.
O criado, como Bernard de Taillebourg, era francês, mas alguma coisa na aparência do rapaz indicava um nascimento mais exótico. A pele era amarelada, quase tão escura quanto a de um mouro, e os longos cabelos eram de um preto liso que, com o rosto fino, davam-lhe uma aparência ferina. Ele vestia cota de malha, e levava uma espada e, embora não fosse nada mais do que o criado de um padre, portava-se com confiança e dignidade. O traje era elegante, um tanto estranho naquele exército maltrapilho. Ninguém sabia o seu nome. E ninguém queria perguntar, assim como ninguém queria perguntar por que ele jamais comia ou conversava com os outros criados, antes mantendo-se fastidiosamente à parte. Agora o misterioso criado observava os soldados e na mão direita segurava uma faca com uma lâmina muito comprida e fina. Assim que percebeu que um número suficiente de homens olhava para ele, equilibrou a faca num dedo estendido. A faca estava apoiada na ponta afiada, que era impedida de furar a pele do criado pelo dedo cortado de uma luva de malhas que ele usava como bainha. Então ele deu um impulso com o dedo e a faca girou no ar, lâmina brilhando, para cair de ponta e equilibrar-se no dedo outra vez. O criado não olhara uma vez sequer para a faca, mas mantivera os olhos negros fixos nos soldados. O padre, sem perceber a exibição, uivava orações, as faces magras rendadas de sangue.
— Domingos! Domingos! Ilumine o nosso caminho!
A faca tornou a girar, a lâmina maldosa refletindo a fraca luz da nevoenta manhã.
— Domingos! Guie-nos! Guie-nos!
— A cavalo! Montem! Mexam-se! — Um homem grisalho, um grande escudo pendurado no ombro esquerdo, forçou a passagem entre os espectadores. — Não temos o dia todo! O que em nome do diabo vocês estão olhando? Jesus Cristo em Sua maldita cruz, o que é isto, a porcaria da feira de Eskdale? Pelo amor de Deus, mexam-se! Mexam-se!
O escudo no ombro exibia o emblema de um coração vermelho, mas a tinta desbotara tanto, e a cobertura de couro do escudo estava tão arranhada, que era difícil distinguir o escudo.
— Ah, meu Cristo sofredor! — O homem localizara o dominicano e seu criado. — Padre! Nós estamos indo agora. Agora mesmo! E não vou esperar por orações. — Ele voltou-se para os seus comandados. — Montem! Mexam os ossos! Há um trabalho dos diabos para fazer!
— Douglas! — vociferou o dominicano.
O homem grisalho voltou, rápido.
— Meu nome, padre, é Sir William, e é bom o senhor se lembrar dele.
O padre piscou os olhos. Parecia estar sofrendo de uma confusão momentânea, ainda dominado pelo êxtase de sua oração impulsionada pela dor, e então fez uma mesura maquinal como se admitindo sua falta por ter usado o sobrenome de Sir William.
— Eu estava falando com o bendito Domingos — explicou ele.
— Está bem, mas espero que tenha pedido a ele que mande para bem longe esse maldito nevoeiro.
— E ele vai nos liderar hoje! Ele vai nos guiar!
— Então é bom ele calçar suas malditas botas — resmungou Sir William Douglas, Cavaleiro de Liddesdale, para o padre —, porque nós vamos partir, quer o seu santo esteja pronto, quer não.
A cota de malha de Sir William estava rasgada de tanto combate e remendada com anéis mais novos. A ferrugem aparecia nas bordas e nos cotovelos. O escudo desbotado, como o rosto castigado pelo tempo, estava todo lanhado. Ele estava agora com quarenta e seis anos e calculava que tinha uma cicatriz feita por espada, flecha ou lança para cada um daqueles anos que tinham embranquecido seus cabelos e sua barba curta. Puxou a pesada porta do chiqueiro, abrindo-a.
— Levante-se, padre. Tenho um cavalo para o senhor.
— Eu vou a pé — disse Bernard de Taillebourg munindo-se de um bastão comprido com uma tira de couro enfiada na ponta —, como Nosso Senhor.
— Neste caso, o senhor não vai se molhar quando atravessarmos os rios, não é? — Sir William fez um muxoxo. — Vai andar sobre as águas, não vai, padre? O senhor e seu criado?
O único entre os seus homens, ele não parecia impressionado com o padre francês ou desconfiado do bem armado criado dele, mas Sir William Douglas tinha a fama de não ter medo de homem algum. Ele era um capitão de fronteira que empregava assassinato, fogo, espada e lança para proteger sua terra, e um impetuoso padre vindo de Paris dificilmente iria impressioná-lo. Sir William, na verdade, não gostava muito de padres, mas o seu rei mandara que ele levasse Bernard de Taillebourg no ataque daquela manhã, e Sir William, embora relutante, concordara.
Em toda a sua volta, soldados subiram para as selas. Estavam com armas leves, porque não esperavam encontrar inimigo algum. Alguns, como Sir William, levavam escudos, mas a maioria se contentava com uma espada. Bernard de Taillebourg, a batina úmida e salpicada de lama, andava depressa ao lado de Sir William.
— O senhor vai entrar na cidade?
— É claro que não vou entrar na porcaria da cidade. Existe uma trégua, lembra-se?
— Mas se há uma trégua...
— Se há uma porcaria de trégua, nós os deixamos em paz.
O inglês do padre francês era bom, mas ele levou alguns instantes para decifrar o que as últimas três palavras de Sir William significavam.
— Não vai haver luta?
— Entre nós e a cidade, não. E não há nenhuma porcaria de exército inglês a menos de quatrocentos e oitenta quilômetros, de modo que não vai haver luta. Tudo o que estamos fazendo é procurar por alimentos e forragem, padre, alimentos e forragem. Alimente seus homens e alimente seus animais, e é assim que se vencem as guerras.
Enquanto falava, Sir William montou em seu cavalo, que era seguro por um escudeiro. Enfiou as botas nos estribos, tirou o saiote da cota de malha de sob as coxas e segurou as rédeas.
— Eu levo o senhor até perto da cidade, padre, mas depois vai ter de se deslocar sozinho.
— Deslocar? — perguntou Bernard de Taillebourg, mas Sir William já fizera um giro e esporeara o cavalo por uma pista lamacenta que corria entre muros de pedra baixos. Duzentos soldados montados, carrancudos e pálidos naquela nevoenta manhã, seguiam atrás dele, e o padre, fustigado pelos seus grandes cavalos sujos, esforçava-se para manter o ritmo. O criado ia atrás, sem aparentar preocupação. Era evidente que ele estava acostumado a ficar em meio a soldados e não mostrava apreensão alguma. Na verdade, seu comportamento indicava que ele poderia ser melhor com suas armas do que a maioria dos homens que cavalgavam atrás de Sir William.
O dominicano e seu criado tinham viajado até a Escócia com uma dúzia de outros mensageiros enviados ao rei David II por Filipe de Valois, rei da França. A delegação fora um pedido de socorro. Os ingleses tinham posto fogo em tudo o que encontravam ao atravessarem a Normandia e a Picardia, tinham trucidado o exército do rei francês perto de uma aldeia chamada Crécy, e seus arqueiros agora dominavam uma dúzia de fortes na Bretanha, enquanto seus selvagens cavalarianos seguiam das antigas possessões de Eduardo da Inglaterra na Gasconha. Tudo isso era ruim, mas ainda pior, e como para mostrar a toda a Europa que a França podia ser desmembrada impunemente, o rei inglês estava agora sitiando o grande porto-fortaleza de Calais. Filipe de Valois fazia todo o possível para levantar o cerco, mas o inverno estava chegando, os nobres resmungavam que seu rei não era guerreiro coisa nenhuma, e por isso ele apelara para a ajuda do rei David, da Escócia, filho do Robert the Bruce. Invada a Inglaterra, implorara o rei francês, e com isso obrigue Eduardo a abandonar o cerco de Calais para proteger sua terra natal. Os escoceses tinham estudado o convite e depois foram persuadidos pela delegação do rei francês de que a Inglaterra estava indefesa. Como poderia ser de outra maneira? O exército de Eduardo da Inglaterra estava todo em Calais, ou então na Bretanha ou na Gasconha, e não restara ninguém para defender a Inglaterra, e aquilo significava que o velho inimigo estava indefeso, estava pedindo para ser estuprado, e todas as riquezas da Inglaterra estavam apenas esperando para cair em mãos escocesas.
E por isso os escoceses tinham ido para o sul.
Era o maior exército que a Escócia já mandara para além da fronteira. Os grandes senhores estavam todos lá, os filhos e netos dos guerreiros que tinham humilhado a Inglaterra no sangrento massacre em torno do Bannockburn, e aqueles senhores tinham levado seus soldados já bastante calejados em incessantes batalhas nas fronteiras, mas dessa vez, farejando saques, faziam-se acompanhar dos chefes de clãs vindos das montanhas e das ilhas: chefes liderando membros selvagens das tribos que falavam uma língua própria e lutavam como demônios desvairados. Eles tinham chegado aos milhares, para ficar ricos, e os mensageiros franceses, o dever cumprido, tinham embarcado de volta para dizer a Filipe de Valois que Eduardo da Inglaterra iria, sem dúvida alguma, levantar o cerco de Calais quando soubesse que os escoceses estavam assolando suas terras ao norte.
A delegação francesa tinha voltado para casa, mas Bernard de Taillebourg ficara. Ele tinha negócios a resolver no norte da Inglaterra, mas nos primeiros dias da invasão não sentira senão frustração. O exército escocês tinha doze mil homens, era maior do que o exército com o qual Eduardo da Inglaterra derrotara os franceses em Crécy, mas, uma vez do outro lado da fronteira, o grande exército havia parado para sitiar uma fortaleza solitária defendida por apenas trinta e oito homens e, embora todos eles tivessem morrido, havia perdido quatro dias na ação. Um tempo maior fora gasto negociando com os cidadãos de Carlisle, que pagaram em ouro para ter a cidade poupada. Em seguida, o jovem rei escocês desperdiçara mais três dias saqueando o grande priorado dos cônegos em Hexham. Agora, dez dias depois de cruzada a fronteira, e depois de perambular pelos terrenos turfosos ingleses do norte, o exército escocês chegara finalmente a Durham. A cidade oferecera mil libras de ouro para ser poupada, e o rei David lhe dera dois dias para levantar o dinheiro. O que significava que Bernard de Taillebourg tinha dois dias para achar um meio de entrar na cidade, objetivo pelo qual, escorregando na lama e meio cego pelo nevoeiro, ele seguia Sir William Douglas até um vale, atravessava um rio e subia um monte íngreme.
— Para que lado fica a cidade? — perguntou a Sir William.
— Quando o nevoeiro acabar, padre, eu lhe direi.
— Eles vão respeitar a trégua?
— Em Durham, eles são homens santos, padre — respondeu Sir William com sarcasmo —, mas, o que é ainda melhor, são homens amedrontados.
Tinham sido os monges da cidade que negociaram o resgate, e Sir William se manifestara contra a aceitação da proposta. Se monges ofereciam mil libras, calculava ele, teria sido melhor matar os monges e levar duas mil, mas o rei David rejeitara o seu conselho. David the Bruce passara grande parte da juventude na França e por isso considerava-se aculturado, mas Sir William não era tolhido assim por escrúpulos.
— O senhor estará a salvo se puder entender-se com eles para que o deixem entrar na cidade — assegurou Sir William ao padre.
Os cavalarianos tinham chegado ao alto do morro e Sir William seguiu para o sul ao longo da crista do monte, ainda seguindo uma trilha que era margeada por muros de pedra e que levou, depois de mais ou menos quilômetro e meio, a uma aldeia deserta onde quatro chalés, tão baixos que seus rudes telhados de sapé pareciam brotar da turfa irregular, estavam agrupados numa encruzilhada. No centro da encruzilhada, onde os enlameados sulcos dos carros cercavam uma faixa de urtigas e capim, uma cruz de pedra inclinava-se para o sul. Sir William parou seu cavalo ao lado do monumento e olhou para o dragão entalhado que cercava o tronco da cruz. Faltava um braço na cruz. Uma dúzia de seus soldados desmontou e curvou-se para entrar nos chalés baixos, mas não encontrou ninguém nem coisa alguma, embora em um dos chalés as brasas de uma lareira ainda brilhassem e, por isso, eles usaram a lenha que ardia para pôr fogo nos telhados de sapé. O sapé relutou em pegar fogo, porque estava tão úmido que cogumelos nasciam em seu musgoso emaranhado.
Sir William tirou o pé do estribo e tentou derrubar a cruz partida com pontapés, mas ela não se mexeu. Ele grunhia com o esforço, viu a expressão de censura de Bernard de Taillebourg e franziu o cenho.
— Aqui não é terreno sagrado, padre. É apenas a porcaria da Inglaterra. — Olhou para o dragão entalhado, que estava com a boca aberta enquanto o resto do corpo se esticava pelo tronco da cruz. — Que bicho feio, não?
— Os dragões são criaturas do pecado, coisas do demônio — disse Bernard de Taillebourg —, e por isso é claro que ele é horrendo.
— Uma coisa do demônio, hein? — Sir William tornou a chutar a cruz. — Minha mãe — explicou enquanto dava um terceiro pontapé inútil — sempre me disse que a porcaria dos ingleses enterravam o produto do roubo embaixo de cruzes com dragões.
Dois minutos depois a cruz tinha sido erguida para o lado e meia dúzia de homens olhava, desapontada, para dentro do buraco que ela deixara. A fumaça dos telhados em chamas tornava o nevoeiro mais espesso, girava por cima da estrada e desaparecia no tom cinzento do ar matutino.
— Nada de ouro — resmungou Sir William, e chamou seus homens e liderou-os em direção sul, saindo da fumaça sufocante.
Ele procurava por qualquer cabeça de gado que pudesse ser levada para o exército escocês, mas os campos estavam vazios. O fogo dos chalés tinha tons turvos de vermelho e ouro no nevoeiro atrás dos atacantes, um brilho que morreu devagar até que só restou o cheiro do incêndio, e então, enorme, enchendo o mundo inteiro com o alarme do seu barulho, um soar de sinos tilintou pelo céu. Sir William, supondo que o som viesse do leste, passou por uma brecha no muro para o pasto, onde fez o cavalo parar e ficou em pé nos estribos. Prestava atenção ao som, mas no nevoeiro era impossível dizer onde estavam os sinos ou a que distância estavam sendo tocados. Mas o som parou tão de repente quanto começara. O nevoeiro se diluía, agora desfazendo-se através das folhas laranja de uma floresta de olmos. Cogumelos brancos pontilhavam o pasto vazio onde Bernard de Taillebourg caiu de joelhos e começou a rezar em voz alta.
— Cale-se, padre! — vociferou Sir William.
O padre fez o sinal-da-cruz como a implorar aos céus que perdoassem a irreverência de Sir William ao interromper a oração.
— O senhor disse que não havia inimigo algum — reclamou ele.
— Eu não estou tentando ouvir porcaria de inimigo algum — disse Sir William —, mas animais. Estou de ouvido atento a sinos de gado vacum ou de ovelhas.
No entanto Sir William parecia estranhamente nervoso para um homem que só procurava cabeças de gado. Ele continuava girando o corpo na sela, olhando para o nevoeiro e franzindo o cenho diante dos leves ruídos de correntes de retenção ou patas pisando em terra úmida. Com rispidez, mandou os soldados que estavam mais próximos a ele que calassem a boca. Ele era soldado antes mesmo de alguns daqueles homens terem nascido e só continuava vivo porque nunca ignorara os instintos, e agora, naquele nevoeiro úmido, ele sentia o perigo no ar. A razão lhe dizia que nada havia a temer, que o exército inglês estava bem longe, do outro lado do mar, mas mesmo assim sentia o cheiro da morte e, inconsciente do que fazia, tirou o escudo do ombro e enfiou o braço esquerdo nas alças. Era um escudo grande, feito antes que os homens começassem a acrescentar placas de blindagem às suas malhas, um escudo com largura suficiente para proteger o corpo inteiro de um homem.
Um soldado soltou um brado da beira do pasto e Sir William agarrou o punho da espada, e então percebeu que o homem apenas tivera uma exclamação diante da repentina aparição de torres no nevoeiro, que agora era pouco mais do que uma névoa no topo da montanha, embora nos vales profundos dos dois lados o nevoeiro fluísse como um rio branco. E do lado oriental do rio, na direção norte onde surgiam da brancura espectral de um outro topo de montanha, havia uma imponente catedral e um castelo. Eles se erguiam da névoa, imensos e escuros, como edifícios saídos da imaginação sinistra de um mágico. O criado de Bernard de Taillebourg, que acreditava não ver civilização havia semanas, olhou enfeitiçado para as duas construções. Monges de batina preta enchiam a mais alta das duas torres da catedral, e o criado os viu apontando para os cavalarianos escoceses.
— Durham — resmungou Sir William. Os sinos, concluiu, deviam estar convocando os fiéis para as orações matutinas.
— Eu tenho de ir até lá!
O dominicano pôs-se de pé e, agarrando o bastão, saiu em direção à cidade envolta em nevoeiro.
Sir William esporeou o cavalo na frente do francês.
— Que pressa é essa, padre? — perguntou, e de Taillebourg tentou esgueirar-se para passar pelo escocês, mas ouviu-se um som de metal arrastando-se em metal, e de repente uma lâmina, fria, pesada e cinzenta, estava no rosto do dominicano.
— Eu lhe perguntei, padre, que pressa é essa.
A voz de Sir William era tão fria quanto sua espada; então, alertado por um de seus soldados, ergueu o olhar e viu que o criado do padre sacara pela metade a espada.
— Se o seu criado bastardo não embainhar a espada dele, padre — Sir William falava em tom suave, mas havia uma ameaça terrível na voz —, vou comer os bagos dele no jantar.
De Taillebourg disse alguma coisa em francês, e o criado, relutante, empurrou a espada toda para dentro da bainha. O padre ergueu o olhar para Sir William.
— O senhor não teme pela sua alma mortal? — perguntou ele.
Sir William sorriu, fez uma pausa e correu os olhos pelo topo da montanha, mas nada viu de irregular no nevoeiro que se esgarçava e concluiu que o seu nervosismo anterior fora provocado por sua imaginação. Resultado talvez de um excesso de carne de vaca, carne de porco e vinho na noite anterior. Os escoceses tinham festejado na casa capturada do prior de Durham, e o prior vivia bem, a julgar pela sua despensa e sua adega, mas jantares ricos davam premonições aos homens.
— Eu tenho um padre para se preocupar com a minha alma — disse Sir William e ergueu a ponta da espada para obrigar o rosto de Bernard de Taillebourg a voltar-se para cima. — Por que um francês teria negócios a tratar com os nossos inimigos em Durham? — perguntou.
— É assunto da Igreja — disse de Taillebourg com firmeza.
— Não dou a mínima para que negócio é esse — disse Sir William —, mas mesmo assim quero saber.
— Impeça-me — disse de Taillebourg empurrando a lâmina da espada para longe —, e eu farei com que o rei o castigue, a Igreja o condene e o Santo Padre mande sua alma para a perdição eterna. Vou convocar...
— Cale a porcaria dessa boca! — disse Sir William. — O senhor acha, padre, que pode me amedrontar? Nosso rei é um fantoche, e a Igreja faz o que os seus pagadores mandam que ela faça. — Ele recolocou a lâmina da espada no ponto anterior, dessa vez apoiando-a no pescoço do dominicano. — Agora me conte qual é o assunto. Diga-me por que um francês ficaria conosco em vez de voltar para casa com os seus conterrâneos. Diga-me o que o senhor quer em Durham.
Bernard de Taillebourg agarrou o crucifixo que lhe pendia do pescoço e ergueu-o na direção de Sir William. Em outro homem o gesto poderia ter sido interpretado como uma demonstração de medo, mas no dominicano parecia mais como se ele ameaçasse a alma de Sir William com os poderes do céu. Sir William limitou-se a lançar um olhar cobiçoso para o crucifixo como estimando o seu valor, mas a cruz era de madeira, ao passo que a pequena figura de Cristo, contorcida na agonia da morte, era apenas feita de um osso amarelado. Se a figura fosse de ouro, Sir William poderia ter tirado a jóia, mas em vez disso deu uma cuspida de zombaria. Alguns de seus soldados, temendo mais a Deus do que ao seu senhor, fizeram o sinal-da-cruz, mas a maioria não deu importância. Eles vigiavam atentamente o criado, porque ele parecia perigoso, mas um clérigo de meia-idade vindo de Paris, por mais violento e magro que fosse, não os amedrontava.
— E o que é que o senhor vai fazer? — perguntou de Taillebourg a Sir William com desdém. — Me matar?
— Se for preciso — disse Sir William, implacável.
A presença do padre na delegação francesa tinha sido um enigma, e o fato de ele ter ficado quando os demais foram embora só aumentava o mistério, mas um soldado tagarela, um dos franceses que tinham levado duzentas armaduras como presente para os escoceses, dissera a Sir William que o padre estava à cata de um grande tesouro. Se esse tesouro estivesse em Durham, Sir William ia querer saber. Ia querer uma parte.
— Já matei padres antes — disse ele a de Taillebourg —, e um outro padre me vendeu uma indulgência pelas mortes. De modo que não pense que eu tenho medo do senhor ou da sua Igreja. Não há pecado que não se possa anular pagando, nem perdão que não possa ser comprado.
O dominicano deu de ombros. Dois dos homens de Sir William estavam atrás dele, espadas desembainhadas, e ele percebeu que aqueles escoceses seriam mesmo capazes de matá-lo e matar seu criado. Aqueles homens que seguiam o coração vermelho de Douglas eram celerados de fronteira, criados para combater, tal como um cão era criado para a caça, e o dominicano sabia que de nada adiantava continuar a ameaçar-lhes as almas, porque eles não davam importância alguma a isso.
— Vou entrar em Durham — disse de Taillebourg — para procurar um homem.
— Que homem? — perguntou Sir William, a espada ainda no pescoço do padre.
— Ele é um monge — explicou de Taillebourg, paciente —, e agora um velho, tão velho que é até possível que nem mesmo esteja vivo. É francês, um beneditino que fugiu de Paris há muitos anos.
— Por que fugiu?
— Porque o rei queria a cabeça dele.
— A cabeça de um monge? — O tom de voz de Sir William denotava dúvida.
— Ele nem sempre foi beneditino — disse de Taillebourg —, antes já foi um templário.
— Ah! — Sir William começava a compreender.
— E ele sabe — continuou de Taillebourg — onde um grande tesouro está escondido.
— O tesouro dos templários?
— Dizem que está escondido em Paris — disse de Taillebourg —, escondido todos esses anos, mas só no ano passado foi que se descobriu que o francês estava vivo e na Inglaterra. O beneditino, entende?, foi sacristão dos templários. O senhor sabe o que é isso?
— Não faça pouco-caso de mim, padre — disse Sir William com frieza.
De Tailleburg inclinou a cabeça para reconhecer a justiça da observação.
— Se alguém sabe onde está o tesouro dos templários — continuou ele com humildade —, esse alguém é o homem que foi o sacristão deles, e agora, segundo soubemos, esse homem mora em Durham.
Sir William afastou a espada. Tudo o que o padre dizia fazia sentido. Os Cavaleiros do Templo, uma ordem de soldados monges que tinham feito o juramento de proteger as rotas dos peregrinos entre a cristandade e Jerusalém, tinham enriquecido muito acima do que os reis imaginavam possível, e isso fora uma tolice, porque fizeram com que os reis ficassem enciumados, e reis enciumados são inimigos terríveis. O rei da França era justamente um desses inimigos e mandara que os templários fossem destruídos: para alcançar tal fim inventaram uma heresia para eles, advogados distorceram verdades, sem dificuldade, e os templários foram extintos. Seus líderes tinham sido queimados e suas terras, confiscadas, mas os tesouros, os lendários tesouros dos templários, jamais tinham sido encontrados. O sacristão da ordem, o homem responsável por mantê-los em segurança, devia sem dúvida alguma saber do paradeiro deles.
— Quando os templários foram dissolvidos? — perguntou Sir William.
— Há vinte e nove anos — respondeu de Taillebourg.
Nesse caso, o sacristão ainda podia estar vivo, pensou Sir William. Devia ser um homem velho, mas estaria vivo. Sir William embainhou a espada, plenamente convencido da história de Bernard de Taillebourg. No entanto nada daquilo era verdade, exceto que havia um velho monge em Durham, mas ele não era francês e nunca fora um templário. Com toda probabilidade, nada sabia sobre o tesouro dos templários. Mas de Taillebourg falara com persuasão e a história do tesouro desaparecido ecoava por toda a Europa, abordada sempre que homens se reuniam para trocar histórias fantásticas. Sir William queria que a história fosse verdadeira, e isso, mais do que qualquer outra coisa, o convenceu de que era.
— Se o senhor achar esse homem — disse ele a de Taillebourg — e se ele estiver vivo, e se então o senhor achar o tesouro, será porque nós tornamos isso possível. Terá sido porque nós o trouxemos até aqui e porque nós o protegemos em sua viagem até Durham.
— É verdade, Sir William — disse de Taillebourg.
Sir William ficou surpreso com a pronta concordância do padre. Franziu o cenho, mexeu-se na sela e olhou para o dominicano como avaliando o seu grau de confiabilidade.
— De modo que temos que compartilhar esse tesouro — ordenou ele.
— É claro — disse instantaneamente de Taillebourg.
Sir William não era bobo. Se deixasse o padre entrar em Durham, nunca mais voltaria a vê-lo. Torceu-se na sela e olhou para o norte, em direção à catedral. Dizia-se que o tesouro dos templários era o ouro de Jerusalém, mais ouro do que se poderia sonhar, e Sir William era suficientemente honesto para saber que não possuía os recursos para levar uma parte daquele tesouro descoberto para Liddesdale. O rei tinha de ser usado. David II podia ser um rapaz fraco, pouco experiente e abrandado demais por ter vivido na França, mas os reis tinham recursos que eram negados aos cavaleiros, e David da Escócia podia falar com Filipe da França quase que de igual para igual, ao passo que qualquer mensagem enviada por William Douglas seria ignorada em Paris.
— Jamie! — berrou ele para seu sobrinho, que era um dos dois homens que vigiavam de Taillebourg. — Você e Dougal vão levar o padre de volta para o rei.
— O senhor tem de me soltar! — protestou Bernard de Taillebourg.
Sir William inclinou-se na sela.
— Quer que eu mande cortar o seu saco sacerdotal para fazer uma bolsa para mim? — Ele sorriu para o dominicano e depois olhou para trás, para o sobrinho. — Diga ao rei que este padre francês tem informações que nos dizem respeito e diga a ele que o mantenha em segurança até eu voltar.
Sir William tinha decidido que se houvesse um velho monge francês em Durham ele deveria ser interrogado pelos servidores do rei da Escócia, e a informação prestada pelo monge, se é que teria alguma informação a dar, poderia então ser vendida ao rei francês.
— Leve-o, Jamie — ordenou ele —, e vigie aquele maldito criado. Tire a espada dele.
James Douglas sorriu da idéia de que um simples padre e seu criado lhe causassem problema, mas ainda assim obedeceu ao tio. Mandou que o criado entregasse a espada e, quando o homem demonstrou reação à ordem, Jamie desembainhou a sua espada até a metade. De Taillebourg, ríspido, mandou seu criado obedecer e a espada foi entregue de mau humor. Jamie Douglas sorriu enquanto pendurava a espada no seu próprio cinto.
— Eles não vão me importunar, tio.
— Vão indo — disse Sir William e ficou olhando enquanto o sobrinho e seu companheiro, ambos bem montados em belos garanhões capturados das terras de Percy em Northumberland, escoltavam o padre e seu criado de volta para o acampamento do rei. Sem dúvida o padre iria queixar-se ao rei, mas David, muito mais fraco do que seu eminente pai, embora viesse a ficar preocupado com a contrariedade de Deus e dos franceses, se preocuparia muito mais com a contrariedade de Sir William. Este sorriu ao pensar nisso, e então viu que alguns de seus homens lá do outro lado do campo tinham desmontado.
— Quem, diabos, mandou vocês desmontarem? — gritou ele, irado, só então reparando que não eram homens seus, mas estranhos revelados pelo nevoeiro que se desfazia, e lembrou-se de seus instintos, e amaldiçoou a si mesmo por haver perdido tempo com o padre.
E enquanto se amaldiçoava a primeira flecha adejou, vindo do sul. O som que ela fazia era um chiado, pena no ar, e então atingiu o alvo e o barulho foi como uma acha de armas cortando carne. Foi um choque surdo, com um rebordo de penetração de aço num músculo e terminando com a áspera raspagem de lâmina num osso, e então um grunhido da vítima e um segundo de silêncio.
E depois disso, o grito.
Thomas de Hookton ouviu os sinos, graves e sonoros, não o som de sinos pendurados em alguma igreja de aldeia, mas sinos de uma força trovejante. Durham, pensou, e sentiu um grande cansaço, porque a viagem tinha sido muito longa.
Ela começara na Picardia, num campo fedendo a homens e cavalos mortos, um local de bandeiras caídas, armas quebradas e flechas desperdiçadas. Tinha sido uma grande vitória, e Thomas se perguntava por que ela o deixara insensível e nervoso. Os ingleses tinham marchado para o norte, para sitiar Calais, mas Thomas, preso ao dever de servir ao conde de Northampton, recebera a permissão dele para levar o companheiro ferido para Caen, onde havia um médico de uma competência extraordinária. Mas fora decretado que ninguém podia deixar o exército sem a permissão do rei, e por isso o conde abordara o rei e, assim, Eduardo Plantageneta ouviu falar em Thomas de Hookton e que o pai dele tinha sido um padre que nascera de uma família de exilados franceses chamada Vexille, e que, segundo se dizia, a família Vexille possuíra, em determinada época, o Graal. Era apenas um rumor, claro, uma história tênue num mundo cruel, mas a história dizia respeito ao Santo Graal e este era a coisa mais preciosa que já existira, se é que realmente existira; e o rei interrogara Thomas de Hookton e este tentara zombar da autenticidade da história do Graal, levando o bispo de Durham, que lutara na parede de escudos que acabara com os assaltos franceses, a dizer que o pai de Thomas estivera preso em certa ocasião em Durham.
— Ele era um louco — explicara o bispo ao rei —, com o juízo levado pelos ventos! Por isso eles o confinaram, para o seu próprio bem.
— Ele falou sobre o Graal? — perguntara o rei, e o bispo de Durham respondera que havia um homem em sua diocese que poderia saber, um velho monge chamado Hugh Collimore, que havia cuidado do louco Ralph Vexille, pai de Thomas. O rei poderia ter considerado que as histórias não passavam de mexericos de igreja, se Thomas não tivesse recuperado a herança de seu pai, a lança de São Jorge, na batalha que deixara tantos mortos na encosta verde acima da aldeia de Crécy. A batalha também deixara o amigo e comandante de Thomas, Sir William Skeat, ferido, e ele quisera levar Skeat ao médico na Normandia, mas o rei insistira em que Thomas fosse a Durham e falasse com o irmão Collimore. Por isso o pai de Eleanor levara Sir William Skeat para Caen, e Thomas, Eleanor e o padre Hobbe tinham acompanhado um capelão real e um cavaleiro da casa do rei Eduardo à Inglaterra, mas em Londres o capelão e o cavaleiro ficaram doentes, com uma febre do início do inverno, e Thomas e seus companheiros viajaram para o norte sozinhos e agora estavam perto de Durham, numa manhã nevoenta, ouvindo os sinos da catedral. Eleanor, como o padre Hobbe, ficou agitada, porque acreditava que descobrir o Graal traria paz e justiça para um mundo que fedia a chalés incendiados. Não haveria mais sofrimento, achava Eleanor, nem mais guerras, e talvez nem mesmo mais doenças.
Thomas queria acreditar nisso. Queria que sua visão noturna fosse verdadeira, não chamas e fumaça, e no entanto se o Graal existisse mesmo ele achava que estaria numa grande catedral, protegido por anjos. Ou então fora embora deste mundo, e, se não havia Graal nenhum na terra, a fé de Thomas estava num arco de guerra feito de teixo italiano, pintado de preto, cordoado com cânhamo, que disparava uma flecha feita de freixo, empenada com penas de ganso e com ponta de aço. Na barriga do arco, onde sua mão esquerda agarrava o teixo, havia uma placa de prata entalhada com um yale, um animal fabuloso de patas, chifres e presas e escamas que era o emblema da família de seu pai, os Vexille. O yale segurava uma taça, e tinham dito a Thomas que aquela taça era o Graal. Sempre o Graal. O Graal o chamava, zombava dele, desviava sua vida, mudava tudo, mas nunca aparecia, exceto num sonho com fogo. Era um mistério, assim como a família de Thomas era um mistério, mas talvez o irmão Collimore pudesse lançar uma luz sobre aquele mistério, e por isso Thomas tinha ido para o norte. Ele poderia não obter informações sobre o Graal, mas esperava descobrir mais sobre sua família, e isso, quando mais nada, fazia com que a viagem valesse a pena.
— De que lado? — perguntou o padre Hobbe.
— Deus sabe — disse Thomas. O nevoeiro amortalhava a terra.
— O som dos sinos veio de lá.
O padre Hobbe apontou para o norte e para o leste. Ele era agitado, cheio de entusiasmo, e confiava ingenuamente no senso de direção de Thomas, embora na verdade Thomas não soubesse onde estava. Mais cedo naquele dia eles tinham chegado a uma bifurcação na estrada e ele seguira, aleatoriamente, a trilha da esquerda que agora se reduzia a uma simples cicatriz no gramado à medida que subia. Cogumelos cresciam no pasto, que estava úmido e pesado de orvalho, de modo que o cavalo deles escorregava enquanto subia. O cavalo era a égua de Thomas, e ela estava levando a pequena bagagem deles e em uma das sacolas penduradas no arção dianteiro da sela estava uma carta do bispo de Durham para John Fossor, o prior de Durham. “Caríssimo irmão em Cristo”, começava a carta, e em seguida instruía Fossor a permitir que Thomas de Hookton e seus companheiros interrogassem o irmão Collimore sobre o padre Ralph Vexille, “de quem você não vai se lembrar, porque ele esteve internado em nossa casa antes de você ir para Durham, na verdade antes de eu vir para a Sé, mas haverá alguns que sabem a respeito dele, e o irmão Collimore, se Deus quiser que ele ainda esteja vivo, terá um certo conhecimento sobre ele e o grande tesouro que ele escondeu. Pedimos isso em nome do rei e a serviço de Deus Todo-Poderoso que abençoou nossas armas nesta empreitada.”
— Qu’est-ce que c’est? — perguntou Eleanor, apontando para a montanha, onde um opaco reflexo avermelhado descorava o nevoeiro.
— O quê? — perguntou o padre Hobbe, o único que não falava francês.
— Fique calado — disse Thomas erguendo a mão.
Ele sentia o cheiro de queimado e via o bruxulear das chamas, mas não se ouviam vozes. Tirou o arco de onde este pendia da sela e encordoou-o, curvando a enorme vara para prender a corda por cima do pedaço de osso entalhado. Tirou uma flecha da sacola e então, fazendo sinais para que Eleanor e o padre Hobbe ficassem onde estavam, esgueirou-se trilha acima até a proteção de uma espessa cerca viva onde cotovias e tentilhões voavam através das folhas moribundas. As chamas aumentavam, sugerindo que tinham sido reanimadas. Ele se aproximou mais, sorrateiramente, o arco meio armado, até poder ver que tinha havido três ou quatro chalés em torno de uma encruzilhada e as vigas e os telhados de sapé queimavam bem e lançavam fagulhas que giravam para o cinza úmido. Os incêndios pareciam recentes, mas não havia ninguém à vista: nenhum inimigo, nada de homens em cotas de malha, e por isso ele fez um sinal para que Eleanor e o padre Hobbe avançassem. Então, acima do som do incêndio, ouviu um grito. Foi muito longe, ou talvez perto mas abafado pelo nevoeiro, e Thomas olhou fixo através da fumaça e do nevoeiro e para além das chamas agitadas, e de repente dois homens em cotas de malha, ambos montados em garanhões pretos, surgiram a meio galope. Os cavaleiros usavam chapéus pretos, botas pretas e espadas pretas embainhadas, e escoltavam dois outros homens que estavam a pé. Um deles era um padre, um dominicano, a julgar pelo hábito preto e branco, e tinha o rosto ensangüentado, enquanto o outro era alto, trajando uma cota de malha, e tinha longos cabelos pretos e um rosto fino, parecendo inteligente. Os dois seguiram os cavaleiros através do nevoeiro enfumaçado, e então pararam na encruzilhada, onde o padre caiu de joelhos e fez o sinal-da-cruz.
O cavaleiro no comando pareceu irritado com a prece do padre, porque volteou o cavalo e, desembainhando a espada, cutucou o homem ajoelhado com a lâmina. O padre ergueu os olhos e, para espanto de Thomas, de repente ergueu o bastão e bateu com ele no pescoço do garanhão. O animal afastou-se, torcendo o corpo, e o padre bateu com força o bastão no braço do cavaleiro que segurava a espada. O cavaleiro, desequilibrado pelo movimento espasmódico do seu garanhão, tentou golpear do outro lado do corpo com a longa espada. O segundo cavaleiro já havia desmontado, embora Thomas não o tivesse visto cair, e o homem de cabelos compridos e cota de malha estava em pé, com uma perna de cada lado dele, uma longa faca desembainhada. Thomas limitou-se a olhar, intrigado, porque estava convencido de que nem os dois cavaleiros, nem o padre, nem o homem de cabelos pretos tinham soltado o grito, mas não havia mais ninguém à vista. Um dos dois cavaleiros já estava morto, e o outro agora lutava com o padre em silêncio, e Thomas teve a sensação de que o conflito era irreal, que ele estava sonhando, que na verdade aquilo era uma representação com fundo moralista, numa peça muda: o cavaleiro vestido de preto era o diabo e o padre era a vontade de Deus, e as dúvidas de Thomas quanto ao Graal estavam para ser esclarecidas por quem ganhasse, e então o padre Hobbe tirou o grande arco de Thomas.
— Nós temos de ajudar!
Mas o padre praticamente não precisava de ajuda. Ele usava o seu bastão como uma espada, aparando os golpes do adversário, atacando com ímpeto para machucar as costelas do cavaleiro, e então o homem de cabelos compridos enfiou uma espada nas costas do cavaleiro e este arqueou-se, tremeu, e sua espada caiu. Por um instante ele olhou para o padre e depois caiu da sela para trás. Seus pés ficaram momentaneamente presos nos estribos, e o cavalo, em pânico, galopou montanha acima. O assassino limpou a lâmina da espada e apanhou uma bainha de um dos mortos.
O padre havia corrido para segurar o outro cavalo e agora, sentindo que estava sendo observado, voltou-se para ver dois homens e uma mulher no nevoeiro. Um dos homens era um padre, que estava com uma flecha encaixada na corda de um arco.
— Eles iam me matar! — protestou Bernard de Taillebourg em francês. O homem de cabelos pretos voltou-se rápido, a espada erguida numa ameaça.
— Tudo bem — disse Thomas ao padre Hobbe e tirou o arco preto do amigo e pendurou-o no ombro. Deus havia falado, o padre vencera a luta e Thomas lembrou-se da sua visão noturna, quando o Graal surgira nas nuvens como uma taça de fogo. Então viu que, sob os arranhões e o sangue, o rosto do padre estranho era vigoroso e magro, o rosto de um mártir, com a expressão de quem ansiara por Deus e conseguira uma evidente santidade, e Thomas quase se pôs de joelhos.
— Quem é o senhor? — perguntou em voz alta ao dominicano.
— Sou um mensageiro.
Bernard de Taillebourg agarrava-se a qualquer explicação para disfarçar sua confusão. Ele escapara de sua escolta escocesa e agora se perguntava como iria escapar do jovem alto com o longo arco preto, mas naquele momento uma saraivada de flechas chiou, vinda do sul, e uma delas espetou-se, com uma batida surda, num tronco de olmo que ficava perto, enquanto uma segunda resvalava pela grama molhada. Um cavalo relinchou perto dali e homens gritavam, desordenados. O padre de Taillebourg mandou seu criado pegar o segundo cavalo, que trotava montanha acima, e, quando foi apanhado, de Taillebourg viu que o estranho com o arco esquecera-se dele e olhava para o sul, para o lugar de onde as flechas partiam.
Por isso voltou-se em direção à cidade, gritou para que o criado o seguisse e esporeou o cavalo.
Por Deus, pela França, por São Denis e pelo Graal.
Sir William Douglas praguejou. Flechas chiavam a sua volta. Cavalos gritavam e homens jaziam mortos ou feridos na grama. Por um instante, ele ficou perplexo, e depois percebeu que seu grupo de pilhagem esbarrara, numa mancada, com uma força inglesa, mas que tipo de força? Não havia exército inglês algum ali por perto! O exército inglês inteiro estava na França, não ali! O que significava, sem dúvida alguma, que os cidadãos de Durham tinham rompido a trégua, e esta idéia encheu Sir William de uma raiva terrível. Cristo, pensou ele, mas não ficaria pedra sobre pedra quando ele tivesse acabado com a cidade, e ele puxou com força o grande escudo para proteger o corpo e esporeou o cavalo em direção ao sul, para os arqueiros que estavam alinhados ao longo de uma sebe baixa. Calculou que não havia tantos assim, talvez apenas uns cinqüenta, mas ele ainda tinha quase duzentos homens montados e, assim, berrou a ordem de atacar. Espadas saíram das bainhas.
— Matem os bastardos! — gritou Sir William. — Matem eles!
Ele castigava o cavalo com as esporas e empurrava outros cavalarianos confusos na ânsia de chegar à sebe. Sabia que a carga seria imperfeita, sabia que alguns de seus homens iriam morrer, mas, uma vez do outro lado do abrunheiro-bravo e entre os arqueiros, eles iriam matar todos eles.
Malditos arqueiros, pensou. Ele odiava arqueiros. Odiava, em especial, os arqueiros ingleses e acima de tudo os arqueiros traiçoeiros, rompedores de trégua, de Durham.
— Avancem! Avancem! — gritava ele. — Douglas! Douglas!
Ele gostava de avisar aos inimigos quem os estava matando e quem estaria estuprando suas mulheres depois que eles estivessem mortos. Se a cidade tinha rompido a trégua, que Deus a ajudasse, porque ele iria saquear, estuprar e queimar tudo. Iria pôr fogo nas casas, sulcar as cinzas e deixar os ossos dos cidadãos para o castigo do inverno, e durante anos as pessoas iriam ver as pedras desnudas da catedral arruinada e observar os pássaros fazendo ninhos nas torres vazias do castelo e ficariam sabendo que o Cavaleiro de Liddesdale tivera a sua vingança.
— Douglas! — gritou ele. — Douglas! — e sentiu o barulho de flechas batendo no seu escudo e então seu cavalo gritou e ele percebeu que mais flechas deviam ter penetrado fundo no peito do animal, porque sentiu que escorregava. Tirou rápido os pés dos estribos enquanto o cavalo se torcia para o lado. Homens passaram por ele atacando, com gritos de desafio, e Sir William jogou-se da sela para o escudo, que deslizou pela grama molhada como se fosse um trenó, e ouviu seu cavalo berrar de dor, mas ele mesmo estava ileso, praticamente nem arranhado, e ergueu-se de um salto, achou a espada que largara ao cair e saiu correndo ao lado dos seus cavalarianos. Um deles tinha uma flecha espetada no joelho. Um cavalo caiu, olhos brancos, dentes à mostra, sangue saindo dos ferimentos causados por flechas. Os primeiros cavalarianos estavam na sebe e alguns tinham achado uma brecha e a estavam atravessando, e Sir William viu que os malditos arqueiros ingleses fugiam. Bastardos, pensou, covardes porcarias de ingleses bastardos, podres filhos-da-puta, e então mais flechas zuniram à sua esquerda, e ele viu um homem cair do cavalo com uma flecha atravessada na cabeça. O nevoeiro melhorou o suficiente para mostrar que os arqueiros inimigos não tinham fugido, mas apenas se juntado a uma sólida massa de soldados desmontados. As cordas dos arcos voltaram a soar. Um cavalo empinou de dor e uma flecha penetrou-lhe a barriga. Um homem cambaleou, tornou a ser atingido e caiu para trás, com um ruído de malhas.
Doce Cristo, pensou Sir William, mas havia um maldito exército aqui! Um maldito exército completo!
— Voltem! Voltem! — berrou. — Vamos embora! Voltem!
Gritou até ficar rouco. Uma outra flecha penetrou no escudo, a ponta furando o salgueiro coberto de couro e, na raiva, ele bateu nela com a mão, quebrando a haste de freixo.
— Tio! Tio! — gritou um homem, e Sir William viu que era Robbie Douglas, um de seus oito sobrinhos que estavam com o exército escocês, levando-lhe um cavalo, mas duas flechas inglesas atingiram o quarto do animal e, alucinado de dor, ele se soltou do controle de Robbie.
— Vá para o norte! — gritou Sir William para o sobrinho. — Vá, Robbie!
Em vez disso, Robbie cavalgou até onde estava o tio. Uma flecha atingiu a sela dele, uma outra resvalou no seu elmo, mas ele se inclinou, agarrou a mão de Sir William e arrastou-o em direção ao norte. Flechas os seguiam, mas o nevoeiro veio espesso e os escondeu. Sir William livrou-se, com uma sacudidela, da mão do sobrinho e cambaleou para o norte, desajeitado devido ao escudo com flechas espetadas e à pesada cota de malha. Maldição, maldição!
— Cuidado à esquerda! Cuidado à esquerda! — bradou uma voz escocesa, e Sir William viu alguns cavalarianos ingleses vindo da cerca viva. Um deles viu Sir William e achou que este seria uma presa fácil. Os ingleses não estavam mais preparados para o combate do que os escoceses. Uns poucos usavam cotas de malha. Nenhum deles, porém, estava protegido de forma adequada ou usava lança. Mas Sir William concluiu que eles deviam ter detectado a sua presença muito antes de dispararem as primeiras flechas, e a raiva de ser emboscado daquela maneira fez com que ele caminhasse em direção ao cavalariano que segurava a espada com o braço estendido, como se fosse uma lança. Sir William nem mesmo se importou com tentar aparar o golpe. Apenas ergueu o pesado escudo, batendo com ele na boca do cavalo, e ouviu o animal relinchar de dor quando golpeava com a espada as pernas e o animal se contorcia para escapar e o cavaleiro sacudia os braços para manter o equilíbrio e ainda tentava acalmar o cavalo, quando a espada de Sir William subiu por sob a cota de malha e penetrou-lhe o ventre.
— Bastardo! — vociferou Sir William, e o homem choramingava enquanto Sir William torceu a lâmina, e então Robbie aproximou-se, a cavalo, pelo outro lado e arriou a espada no pescoço do homem, de modo que a cabeça do inglês por pouco não se separou do corpo enquanto ele caía da sela. O outro cavalariano desaparecera misteriosamente, mas então flechas tornaram a voar e Sir William percebeu que o caprichoso nevoeiro se diluía. Ele tirou a espada do cadáver, embainhou a lâmina molhada e subiu para a sela do morto.
— Vamos embora! — gritou ele para Robbie, que parecia inclinado a enfrentar sozinho toda a força inglesa. — Vamos embora, rapaz! Venha!
Por Deus, pensou ele, é doloroso fugir de um inimigo, mas não era vergonha alguma duzentos homens fugirem de seiscentos ou setecentos. E quando o nevoeiro acabasse poderia haver uma batalha adequada, um choque assassino de homens e aço, e Sir William iria ensinar àqueles bastardos ingleses como é que se luta. Esporeou o cavalo que tomara por empréstimo, decidido a levar a notícia sobre o exército inglês para o resto do exército escocês, mas então viu um arqueiro à espreita numa sebe. Uma mulher e um padre estavam com ele. Sir William levou uma das mãos ao punho da espada e pensou em desviar-se para vingar-se um pouco das flechas que tinham penetrado no seu grupo de pilhagem, mas atrás dele os outros ingleses lançavam seu grito de guerra: “São Jorge! São Jorge!”, e por isso Sir William deixou em paz o arqueiro isolado. Seguiu em frente, deixando bons homens no gramado de outono. Eles estavam mortos e morrendo, feridos e amedrontados. Mas ele era um Douglas. Ele iria voltar e iria vingar-se.
UMA ONDA DE CAVALARIANOS em pânico passou galopando pela sebe onde Thomas, Eleanor e o padre Hobbe estavam agachados. Uns seis cavalos estavam sem cavaleiros, enquanto pelo menos vinte outros sangravam de ferimentos dos quais sobressaíam as flechas com suas penas de ganso brancas sujas de sangue. Os cavalarianos foram seguidos por trinta ou quarenta homens a pé, alguns mancando, alguns com flechas espetadas na roupa e uns poucos levando selas. Eles passaram depressa pelos chalés em chamas enquanto uma nova saraivada de flechas apressou a retirada, e então a batida surda de patas fez com que eles olhassem para trás, em pânico, e alguns dos fugitivos romperam numa corrida desajeitada quando uns vinte cavalarianos com cotas de malha surgiram do nevoeiro como um trovão. Grandes pedaços de terra molhada saltavam das patas dos cavalos. Os garanhões estavam sendo contidos, obrigados a dar passos curtos enquanto seus cavalarianos miravam suas vítimas, e então as esporas voltaram quando os cavalos foram liberados para o golpe final, e Eleanor soltou um berro ao pressentir a carnificina. As pesadas espadas cortaram. Um ou dois dos fugitivos caíram de joelhos e ergueram as mãos em sinal de rendição, mas a maioria tentou fugir. Um deles desviou-se atrás de um cavalariano a galope e correu em direção à sebe, viu Thomas e seu arco e voltou-se, indo direto para o caminho de um outro cavalariano que deu com o fio da espada no rosto do homem. O escocês caiu de joelhos, a boca aberta como se ele fosse gritar, mas não saiu som algum, só sangue escorrendo por entre os dedos que se fechavam sobre o nariz e os olhos. O cavalariano, que não tinha escudo nem elmo, manobrou seu cavalo e inclinou-se para fora da sela para golpear com a espada o pescoço da vítima, matando o homem como se ele fosse uma vaca sendo abatida, e isso nada tinha de apropriado, porque Thomas viu que o matador montado usava o emblema de uma vaca marrom no gibão, que era um casaco curto, semelhante a uma jaqueta, cobrindo pela metade o casacão de malha. O gibão estava rasgado, manchado de sangue e o emblema da vaca desbotara de tal maneira que a princípio Thomas pensou que se tratasse de um touro. Então o cavalariano voltou-se em direção a Thomas, ergueu a espada suja de sangue num gesto de ameaça, mas, percebendo o arco, deteve o cavalo.
— Ingleses?
— E com orgulho! — respondeu o padre Hobbe por Thomas.
Um segundo cavalariano, este com três corvos pretos bordados no gibão branco, parou seu cavalo ao lado do primeiro. Três prisioneiros estavam sendo empurrados na direção dos dois cavalarianos.
— Que diabo, como foi que vocês chegaram assim tão longe na frente? — perguntou o recém-chegado a Thomas.
— Na frente? — perguntou Thomas.
— Do resto de nós.
— Nós viemos a pé — disse Thomas — da França. Ou pelo menos de Londres.
— De Southampton! — O padre Hobbe corrigiu Thomas com um pedantismo extremamente deslocado naquele topo de montanha fedendo a fumaça, onde um escocês estrebuchava nas agonias da morte.
— França? — O primeiro homem, cabelos emaranhados, rosto moreno e um sotaque nortista tão carregado, que Thomas achou difícil entender, dava a impressão de que nunca ouvira falar na França. — Vocês estiveram na França? — perguntou ele.
— Com o rei.
— Vocês agora estão conosco — disse o segundo homem em tom ameaçador, e então olhou Eleanor de alto a baixo.
— Vocês trouxeram a boneca da França?
— Trouxemos — respondeu Thomas, ríspido.
— Ele está mentindo, ele está mentindo — disse uma nova voz, e um terceiro cavalariano forçou a passagem, avançando. Era um homem esguio, talvez com trinta anos de idade, com um rosto tão vermelho e liso que parecia ter arrancado a pele com os pêlos quando fizera a barba nas faces murchas e no queixo pontudo. Os cabelos pretos eram compridos e presos à altura da nuca com um laço de couro. O cavalo, um ruão cheio de cicatrizes, era tão magro quanto o cavaleiro e tinha olhos brancos, nervosos. — Eu odeio malditos mentirosos — disse o homem olhando fixo para Thomas, e depois voltou-se e lançou um olhar malfazejo para os prisioneiros, um dos quais exibia o emblema do coração vermelho do Cavaleiro de Liddesdale no gibão. — Quase tanto quanto odeio os malditos Douglas.
O recém-chegado usava uma túnica de couro forrada em vez de um casacão de malha. Era o tipo de proteção que um arqueiro poderia usar se não tivesse meios de pagar outra coisa melhor, mas aquele homem estava evidentemente acima dos arqueiros, porque usava uma corrente de ouro no pescoço, uma marca de distinção reservada à pequena nobreza e acima dela. Um elmo amassado, com a proteção do nariz em forma de focinho de porco, tão arranhado quanto o cavalo, pendia do arção dianteiro da sela, uma espada, visivelmente embainhada em couro, estava à cintura, enquanto um escudo, pintado de branco com um machado preto, pendia do ombro esquerdo. Ele também tinha um chicote enrolado, pendurado do cinto.
— Os escoceses têm arqueiros — disse o homem olhando para Thomas, e então o inamistoso olhar deslocou-se para Eleanor — e têm mulheres.
— Eu sou inglês — insistiu Thomas.
— Nós todos somos ingleses — disse o padre Hobbe com firmeza, esquecendo-se de que Eleanor era normanda.
— Um escocês diria que é inglês se isso o impedisse de ser estripado — disse o homem de rosto em carne viva, cáustico. Os outros dois cavalarianos tinham recuado, evidentemente desconfiados do homem magro que agora desenrolou o chicote e, com uma perícia casual, agitou-o de modo que a ponta serpenteou e estalou no ar a uns três centímetros do rosto de Eleanor. — Ela é inglesa?
— É francesa — disse Thomas.
O cavalariano não respondeu de pronto, mas limitou-se a olhar para Eleanor. O chicote ondulava enquanto sua mão tremia. Ele viu uma jovem loura, magra, de cabelos dourados e olhos grandes, amedrontados. A gravidez ainda não era visível e havia uma delicadeza que falava de luxo e de um deleite incomum.
— Escocesa, galesa, francesa, que importa? — perguntou o homem. — Ela é mulher. Você se importa em saber onde o cavalo nasceu, antes de montar nele?
O cavalo dele, magro e arranhado, ficou com medo naquele exato momento, porque o vento que mudava de direção soprou uma amarga lufada de ar nas suas narinas. Andou de lado numa série de pequenos e nervosos passos até que o homem fincou as esporas com tanta selvageria que furou a manta forrada e fez com que o cavalo de combate ficasse parado, tremendo de medo.
— O que ela é — disse o homem a Thomas e apontou o cabo do chicote para Eleanor — não importa, mas você é escocês.
— Eu sou inglês — tornou a dizer Thomas.
Outros doze homens usando o emblema do machado preto tinham chegado para olhar para Thomas e seus companheiros. Os homens cercaram os três prisioneiros escoceses, que pareciam saber quem era o cavalariano com o chicote e não gostavam disso. Mais arqueiros e soldados observavam os chalés em chamas e riam dos ratos em pânico que saíam desordenadamente do que restava do musgoso telhado de sapé que desabara.
Thomas tirou uma flecha da sacola, e na mesma hora quatro ou cinco arqueiros usando a túnica com o machado preto colocaram flechas em seus arcos. Os outros homens com as túnicas que exibiam o machado preto sorriram na expectativa, como se conhecessem aquele jogo e gostassem dele. Mas antes que ele pudesse ser jogado, o cavalariano teve a atenção distraída por um dos prisioneiros escoceses, o homem que usava o emblema de Sir William Douglas e que, aproveitando-se do interesse de seus captores por Thomas e Eleanor, livrara-se e corria para o norte. Não tinha avançado vinte passos antes de ser atropelado por um dos soldados ingleses, e o homem magro, divertido com a desesperada tentativa de fuga do escocês, apontou para um dos chalés em chamas.
— Esquentem o bastardo — ordenou ele. — Dickon! Beggar! — Ele falava para dois soldados desmontados. — Tomem conta desses três. — Ele fez um sinal com a cabeça em direção a Thomas. — Vigiem-nos com muita atenção!
Dickon, o mais jovem dos dois, tinha um rosto redondo e sorria, mas Beggar era um homem enorme, um gigante que caminhava de forma desajeitada, com um rosto tão barbudo que só se viam os olhos e o nariz através dos cabelos emaranhados, sujos, por baixo da aba do enferrujado gorro de malha de ferro que servia como elmo. Thomas media um metro e oitenta de altura, o comprimento de um arco, mas era um anão perto de Beggar, cujo imenso peito repuxava um gibão de couro incrustado de placas de metal. Na cintura do gigante, suspensas por dois pedaços de corda, estavam uma espada e uma maça. *A espada não tinha bainha e seu fio estava lascado, enquanto que um dos espetos na grande bola de metal da estrela-d’alva estava torto e sujo de sangue e cabelos. O cabo de noventa centímetros da arma batia nas pernas nuas do gigante enquanto ele cambaleava em direção a Eleanor.
— Beleza — disse ele —, beleza!
— Beggar! Calma, rapaz! Calma! — ordenou Dickon, animado, e Beggar, obediente, afastou-se de Eleanor, embora ainda olhasse fixo para ela e rosnasse baixo. Então um grito fez com que ele olhasse para o chalé em chamas, mais próximo, onde o escocês, totalmente despido agora, tinha sido empurrado para dentro e para fora do fogo. Os longos cabelos do prisioneiro estavam em chamas e ele, agitado, batia nas chamas enquanto corria em círculos em pânico, divertindo seus captores ingleses. Dois outros prisioneiros escoceses estavam agachados perto dali, mantidos no chão por espadas desembainhadas.
O cavalariano magro ficou observando enquanto um arqueiro envolvia os cabelos do prisioneiro num pedaço de aniagem para apagar as chamas.
— Quantos são vocês? — perguntou o homem magro.
— Milhares! — respondeu o escocês, desafiador.
O cavalariano inclinou-se no arção dianteiro da sela.
— Quantos milhares, seu trouxa?
O escocês, a barba e os cabelos soltando fumaça e a pele nua escurecida por cinzas e lacerada por cortes, fez o possível para aparentar desafio.
— Mais do que o suficiente para levar vocês para casa numa jaula.
— Ele não devia dizer isso para o Espantalho! — disse Dickon divertido. — Não devia dizer isso!
— Espantalho? — perguntou Thomas. Parecia um apelido adequado, pois o cavalariano com o emblema do machado preto era esguio, pobre e amedrontador.
— Este é Sir Geoffrey Carr, seu trouxa — disse Dickon, olhando com admiração para o Espantalho.
— E quem é Sir Geoffrey Carr? — perguntou Thomas.
— Ele é o Espantalho e é o senhor de Lackby — disse Dickon num tom que indicava que todo mundo sabia quem era Sir Geoffrey Carr —, e agora ele vai fazer suas brincadeiras de Espantalho!
Dickon sorriu, porque Sir Geoffrey, o chicote enrolado outra vez à cintura, descera do cavalo e, com uma faca desembainhada, aproximara-se do prisioneiro escocês.
— Mantenham ele deitado — ordenou Sir Geoffrey aos arqueiros —, mantenham ele deitado e abram as pernas dele.
— Non! — gritou Eleanor em protesto.
— Beleza — disse Beggar na sua voz que trovejava fundo em seu imenso peito.
O escocês gritou e tentou libertar-se, mas recebeu uma rasteira e depois foi mantido deitado por três arqueiros, enquanto o homem evidentemente conhecido em todo o norte como o Espantalho ajoelhou-se entre suas pernas. Em algum lugar do nevoeiro que se levantava, um corvo grasnou. Alguns arqueiros olhavam fixo para o norte, para o caso de os escoceses voltarem, mas a maioria observava o Espantalho e sua faca.
— Você quer continuar com seus colhões enrugados? — perguntou Sir Geoffrey ao escocês. — Então me diga quantos vocês são.
— Quinze mil? Dezesseis? — O escocês de repente ficou ansioso por falar.
— Ele quer dizer dez ou onze mil — anunciou Sir Geoffrey aos arqueiros que ouviam —, o que é mais do que suficiente para nossas poucas flechas. E o bastardo do seu rei está aqui?
O escocês empertigou-se ao ouvir aquilo, mas um toque da lâmina da faca na virilha o fez lembrar-se da situação em que se encontrava.
— David Bruce está aqui, sim.
— Quem mais?
O desesperado escocês citou os outros líderes de seu exército. O meio-irmão do rei e herdeiro do trono, Lorde Robert Stewart, estava com o exército invasor, assim como estavam os condes de Moray, de March, de Wigtown, Fife e Menteith. Ele citou outros, chefes de clãs e homens rebeldes do interior no extremo norte, mas Carr estava mais interessado em dois dos condes.
— Fife e Menteith? — perguntou ele. — Eles estão aqui?
— Estão, sim, senhor.
— Mas eles juraram fidelidade ao rei Eduardo — disse Geoffrey, evidentemente sem acreditar no homem.
— Eles agora marcham com a gente — insistiu o escocês —, tal como Douglas de Liddesdale.
— Aquele bastardo — disse Sir Geoffrey —, aquele merda do inferno.
Ele olhou para o norte através do nevoeiro que se esgarçava no topo, que estava sendo revelado como um platô estreito e rochoso que ia do norte ao sul. A pastagem no platô era rasa, e a pedra do topo, castigada pelo tempo, sobressaía através da grama como costelas de um homem faminto. Lá para o nordeste, depois do vale de nevoeiro, a catedral e o castelo de Durham erguiam-se em seu penhasco lambido pelo rio, enquanto a oeste havia montes e bosques e campos com muros de pedras cortados por pequenos cursos d’água. Dois urubus voaram acima da cadeia de montanhas, na direção do exército escocês que ainda estava escondido pelo nevoeiro que continuava para o norte, mas Thomas pensava que não iria demorar para que tropas saíssem à procura dos homens que tinham expulsado seus conterrâneos escoceses das encruzilhadas.
Sir Geoffrey endireitou o corpo e ia devolver a faca à bainha, mas pareceu lembrar-se de alguma coisa e sorriu para o prisioneiro.
— Você ia me levar para a Escócia numa jaula, não é?
— Não!
— Mas ia, sim! E por que eu haveria de querer visitar a Escócia? Eu posso olhar para dentro de uma privada sempre que tiver vontade. — Ele cuspiu no prisioneiro e fez um sinal com a cabeça para os arqueiros. — Segurem ele.
— Não! — gritou o escocês, e então o grito se transformou num berro terrível quando Sir Geoffrey inclinou-se para a frente com a faca outra vez.
O prisioneiro contorceu-se e arquejou enquanto o Espantalho, a frente de sua túnica acolchoada coberta de sangue, pôs-se de pé. O prisioneiro ainda gritava, mãos fechadas contra a virilha ensangüentada, e a visão levou um sorriso aos lábios do Espantalho.
— Joguem o resto dele no fogo. — E voltou-se para olhar para os outros dois prisioneiros escoceses. — Quem é o senhor de vocês? — perguntou ele.
Eles hesitaram, e então um deles passou a língua pelos lábios.
— Nós servimos a Douglas — disse com orgulho.
— Eu odeio os Douglas. Odeio todos esses Douglas que foram cagados pelo diabo. — Sir Geoffrey estremeceu e voltou-se para o seu cavalo. — Queimem os dois — ordenou.
Thomas, desviando o olhar do sangue repentino, tinha visto uma cruz de pedra caída no centro da encruzilhada. Olhou fixo para ela, sem ver o dragão entalhado mas ouvindo os ecos do barulho e então os novos gritos quando os prisioneiros foram lançados nas chamas. Eleanor correu até ele e apertou com força o seu braço direito.
— Beleza — disse Beggar.
— Calma, Beggar, calma! — bradou Sir Geoffrey. — Me levante!
O gigante fez um degrau com as mãos e Sir Geoffrey usou-o para subir para a sela e depois esporeou o cavalo em direção a Thomas e Eleanor.
— Eu sempre fico com fome — disse Sir Geoffrey — depois de uma castração.
Ele se voltou para olhar a fogueira onde um dos escoceses, cabelos em chamas, tentava fugir, mas foi cutucado de volta para o inferno por uma dúzia de varas de arcos. O grito de dor do homem estancou abruptamente quando ele caiu.
— Hoje estou com vontade de castrar e queimar escoceses — disse Sir Geoffrey —, e para mim você parece um escocês, garoto.
— Não sou garoto — disse Thomas, a raiva aumentando.
— Para mim, você parece a porcaria de um garoto, garoto. Um garoto escocês?
Sir Geoffrey, visivelmente deleitando-se com a raiva de Thomas, sorriu para sua mais recente vítima, que, na verdade, parecia jovem, embora Thomas tivesse vinte e dois verões e tivesse lutado nos últimos quatro na Bretanha, na Normandia e na Picardia.
— Você parece escocês, garoto — disse o Espantalho, provocando Thomas a desafiá-lo outra vez. — Todos os escoceses são pretos! — Ele apelou à multidão para julgar a cor da pele de Thomas, e era verdade que Thomas tinha uma pele queimada do sol e cabelos pretos, mas o mesmo acontecia com vinte ou mais dos arqueiros do próprio Espantalho. E, embora Thomas parecesse jovem, tinha também a aparência de um homem forte e destemido. Os cabelos estavam cortados rente ao crânio e quatro anos de guerra tinham-lhe encovado as faces, mas ainda havia algo de característico em sua aparência, uma beleza que atraía os olhares e servia para provocar a inveja de Sir Geoffrey.
— O que há em cima da sua égua? — Sir Geoffrey fez um gesto com a cabeça em direção à égua de Thomas.
— Nada que lhe pertença — disse Thomas.
— O que é meu é meu, garoto, e o que é seu é meu, se eu quiser. Para fazer o que eu quiser. Beggar! Você quer aquela garota?
Beggar sorriu por trás da barba e sacudiu a cabeça para cima e para baixo.
— Beleza — disse ele. Coçou a sujeira da barba. — Beggar gosta da beleza.
— Acho que você poderá ficar com a beleza depois que eu tiver acabado de lidar com ela — disse Sir Geoffrey com um sorriso e tirou o chicote de onde ele estava pendurado e estalou-o no ar. Thomas viu que a comprida tira de couro tinha uma pequena garra de ferro na ponta. Sir Geoffrey tornou a sorrir para Thomas e então inclinou o chicote para trás, numa ameaça. — Tire a roupa dela, Beggar — disse ele —, vamos dar aos rapazes um pouquinho de prazer.
Ele ainda sorria quando Thomas golpeou forte, com a vara do seu arco, nos dentes do cavalo de Sir Geoffrey e o animal empinou, berrando, como Thomas sabia que ia acontecer, e o Espantalho, despreparado para o movimento, caiu para trás, agitando os membros para se equilibrar, e seus homens, que deveriam tê-lo protegido, estavam tão atentos aos prisioneiros escoceses que pegavam fogo que nenhum deles sacou um arco ou uma espada antes de Thomas arrastar Sir Geoffrey para fora da sela e tê-lo no chão com uma faca tocando-lhe na garganta.
— Venho matando homens há quatro anos — disse Thomas — e nem todos eram franceses.
— Thomas! — gritou Eleanor.
— Agarre-a, Beggar, agarre-a! — berrou Sir Geoffrey. Ele se esforçou para levantar-se, mas Thomas era um arqueiro, e anos de armar seu grande arco preto tinham-lhe dado uma força extraordinária nos braços e no peito, e Sir Geoffrey não conseguia deslocá-lo, e por isso cuspiu em Thomas.
— Pegue-a, Beggar! — tornou a gritar.
Os homens do Espantalho correram em direção ao seu líder, mas pararam quando viram que Thomas estava com uma faca encostada na garganta do prisioneiro.
— Tire a roupa dela, Beggar! Tire a roupa da beleza! Nós todos vamos possuí-la! — vociferou Sir Geoffrey, aparentemente esquecido da lâmina na garganta.
— Quem sabe ler aqui? Quem sabe ler? — bradou o padre Hobbe.
A estranha pergunta fez todo mundo parar, até mesmo Beggar, que já tinha arrancado o chapéu de Eleanor e agora estava com o enorme braço esquerdo no pescoço dela, enquanto a mão direita agarrava o decote do vestido.
— Quem nesta companhia sabe ler? — tornou a perguntar o padre Hobbe enquanto brandia o pergaminho que tirara de um dos sacos que estavam na garupa do cavalo de Thomas. — Isto é uma carta do senhor bispo de Durham, que está com o nosso senhor, o rei, na França e é enviada a John Fossor, prior de Durham, e só ingleses que lutaram ao lado do nosso rei iriam portar uma carta dessas. Nós a trouxemos da França.
— Isso não prova nada! — berrou Sir Geoffrey, e depois tornou a cuspir em Thomas quando a lâmina foi pressionada com força contra a sua garganta.
— E em que língua essa carta está escrita?
Um novo cavalariano avançara passando pelos homens do Espantalho. Ele não usava casaco ou gibão, mas o emblema sobre o escudo castigado era uma venera sobre uma cruz, e proclamava que ele não era um dos seguidores de Sir Geoffrey.
— Em que língua? — insistiu ele.
— Latim — disse Thomas, a faca ainda pressionando com força o pescoço de Sir Geoffrey.
— Deixe Sir Geoffrey se levantar — ordenou o recém-chegado a Thomas —, e eu lerei a carta.
— Diga a ele para soltar minha mulher — vociferou Thomas.
O cavalariano pareceu surpreso por ter recebido ordem de um simples arqueiro, mas não protestou. Em vez disso, guiou seu cavalo em direção a Beggar.
— Solte-a — disse ele e, quando o grandalhão não obedeceu, sacou a espada até a metade. — Quer que eu lhe arranque as orelhas, Beggar? É isso? Ficar sem as duas orelhas? Depois o nariz, depois o pinto, é isso o que quer, Beggar? Quer ser fatiado como uma ovelha no verão? Cortado como um duende?
— Solte ela, Beggar — disse Sir Geoffrey, mal-humorado.
Beggar obedeceu e recuou, e o cavalariano inclinou-se da sela para tirar a carta do padre Hobbe.
— Solte Sir Geoffrey — ordenou o recém-chegado a Thomas — porque vamos ter paz entre os ingleses hoje pelo menos por um dia.
O cavalariano era um homem idoso, com pelo menos cinqüenta anos, com uma enorme cabeleira branca, desgrenhada, que parecia nunca ter chegado perto de uma escova ou de um pente. Era um homem grande, alto e barrigudo, num cavalo robusto que não tinha arnês mas apenas um xairel esfarrapado. A cota de malha, de corpo inteiro, estava lamentavelmente enferrujada em alguns pontos e rasgada em outros, enquanto por cima da cota usava uma couraça que perdera duas das fitas. Uma longa espada pendia sobre a coxa direita. Para Thomas, ele parecia um pequeno proprietário rural que se metera na guerra com o equipamento que os vizinhos puderam emprestar-lhe, mas tinha sido reconhecido pelos arqueiros de Sir Geoffrey, os quais, rápidos, tinham tirado os chapéus e elmos quando ele aparecera e agora o tratavam com deferência. Até Sir Geoffrey parecia intimidado pelo homem de cabelos brancos, que franzia o cenho enquanto lia a carta.
— Thesaurus, hein? — Ele falava consigo mesmo. — E isto é uma bela história! Um Thesaurus mesmo!
Thesaurus era latim, mas o restante de suas palavras foi dito em francês normando e, evidentemente, ele estava certo de que nenhum arqueiro poderia entender o que ele dizia.
— A menção de tesouro — Thomas usou a mesma língua, que lhe fora ensinada por seu pai — deixa os homens alvoroçados. Muito alvoroçados.
— Meu bom Deus, e bom, de fato, você fala francês! Os milagres nunca deixam de acontecer. Thesaurus significa tesouro, não? O meu latim não é o que era quando eu era jovem. Eu o aprendi a chibatadas por parte de um padre e parece que a maior parte foi esquecida de lá para cá. O tesouro, hein? E você fala francês!
O cavaleiro mostrou uma surpresa prazerosa pelo fato de Thomas falar a língua dos aristocratas, embora Sir Geoffrey, que não falava francês, parecesse alarmado, porque aquilo sugeria que Thomas poderia ter tido um berço muito melhor do que o que ele pensara. O cavaleiro devolveu a carta ao padre Hobbe e depois aproximou-se de Sir Geoffrey.
— O senhor estava criando confusão com um inglês, Sir Geoffrey, um mensageiro, nada menos do que isso, de nosso senhor o rei. Como explica isso?
— Não tenho de explicar coisa alguma — disse Sir Geoffrey —, excelência. — A última palavra foi acrescentada com relutância.
— Eu deveria arrancar-lhe os ossos agora — disse sua alteza em tom brando — e depois mandar empalhá-lo e montá-lo num poste para espantar os corvos das minhas ovelhas recém-nascidas. Eu poderia exibi-lo na feira de Skipton, Sir Geoffrey, como exemplo para outros pecadores.
Ele pareceu pensar na idéia por uns instantes e depois abanou a cabeça.
— Monte no seu cavalo — disse ele — e lute contra os escoceses hoje, em vez de discutir com seu conterrâneo inglês. — Ele voltou-se na sela e levantou a voz para que todos os arqueiros e soldados pudessem ouvi-lo. — Todos vocês, desçam do topo da montanha! Depressa, antes que os escoceses venham e os expulsem daí! Querem juntar-se àqueles patifes no fogo?
Ele apontou para os três prisioneiros escoceses que agora eram apenas escuras formas encolhidas nas chamas brilhantes e depois fez um gesto para Thomas; então ele mudou a língua para o francês.
— Você vem mesmo da França?
— Venho, excelência.
— Pois então me faça a gentileza, meu caro rapaz, de falar comigo.
Eles seguiram para o sul, deixando uma cruz de pedra quebrada e cadáveres atingidos por flechas numa névoa que se desfazia, onde o exército da Escócia tinha chegado a Durham.
Bernard de Taillebourg tirou o crucifixo do pescoço e beijou a contorcida figura de Cristo pregada na pequena cruz de madeira.
— Que Deus esteja com você, meu irmão — murmurou ele ao homem idoso que jazia no banco de pedra forrado por um colchão de palha e um cobertor dobrado. Um segundo cobertor, tão fino quanto o outro, cobria o idoso cujos cabelos eram brancos e finos.
— Está frio — disse o irmão Hugh Collimore com voz fraca —, muito frio.
Ele falou em francês, embora para de Taillebourg o sotaque do velho monge fosse bárbaro, porque era o francês da Normandia e dos governantes normandos da Inglaterra.
— O inverno está chegando — disse de Taillebourg. — Pode-se sentir o cheiro dele no vento.
— Eu estou morrendo — o irmão Collimore voltou os olhos com as bordas avermelhadas para o visitante — e não sinto o cheiro de nada. Quem é você?
— Tome isto — disse de Taillebourg e entregou o crucifixo ao velho monge.
Deu uma cutucada na lareira para aumentar o fogo, colocou mais duas achas de lenha na chama revitalizada e farejou uma botija de vinho quente que estava na lareira. O vinho não estava azedo demais, e por isso despejou um pouco dele numa taça de osso.
— Pelo menos você tem uma lareira — disse ele curvando-se para olhar pela pequena janela, não mais que um telho de flecha voltado para o lado ocidental do rio Wear, que rodeava o local.
O hospital do monge ficava na encosta do monte de Durham, abaixo da catedral, e de Taillebourg pôde ver os soldados escoceses carregando suas lanças através dos restos da névoa que se dispersava no horizonte. Percebeu que poucos dos homens que usavam cota de malha tinham cavalos, o que sugeria que os escoceses planejavam lutar a pé.
O irmão Collimore, o rosto pálido e a voz fraca, agarrou a pequena cruz.
— Os moribundos podem ter uma lareira — disse ele, como se tivesse sido acusado de dar-se àquele luxo. — Quem é você?
— Venho da parte do cardeal Bessières, em Paris — disse de Taillebourg —, e ele lhe manda suas saudações. Beba isto, que vai aquecê-lo. — Ele estendeu o vinho quente para o homem idoso.
Collimore recusou o vinho. Seus olhos eram cautelosos.
— Cardeal Bessières? — perguntou, o tom de voz dando a entender que o nome era novidade para ele.
— O legado papal na França.
De Taillebourg estranhou que o monge não reconhecesse o nome, mas concluiu que talvez a ignorância do moribundo fosse ser útil.
— E o cardeal — continuou o dominicano — é um homem que ama a Igreja com a mesma intensidade com que ama Deus.
— Se ele ama a Igreja — disse Collimore com uma força surpreendente —, irá usar sua influência para persuadir o Santo Padre a levar o papado de volta para Roma.
A declaração exauriu-o e ele fechou os olhos. Nunca fora um homem grande, mas agora, debaixo daquele cobertor cheio de piolhos, parecia ter encolhido para o tamanho de um menino de dez anos, e seus cabelos brancos eram escassos e finos como os de um pequeno infante.
— Que ele leve o papado para Roma — repetiu, embora com voz fraca —, porque todos os nossos problemas pioraram desde que ele foi transferido para Avignon.
— O cardeal Bessières quer, acima de tudo, levar o Santo Padre de volta para Roma — mentiu de Taillebourg —, e talvez você, irmão, possa nos ajudar a conseguir isso.
O irmão Collimore pareceu não ter ouvido as palavras. Tornara a abrir os olhos, mas ficou apenas olhando para cima, para as pedras caiadas do teto abobadado. O quarto era baixo, frio e branco. Às vezes, quando o sol de verão estava alto, ele via o cintilar da água refletida nas pedras brancas. No céu, pensou, ele estaria para sempre vendo rios cristalinos e sob um sol quente.
— Estive em Roma uma vez — disse ele, melancólico. — Lembro-me de ter descido alguns degraus para entrar numa igreja na qual um coro cantava. Tão bonito!
— O cardeal quer a sua ajuda — disse de Taillebourg.
— Lá havia uma santa. — Collimore estava de cenho franzido, tentando lembrar-se. — Os ossos dela eram amarelos.
— Por isso o cardeal me mandou para vir procurá-lo, irmão — disse de Taillebourg com delicadeza. Seu criado, de olhos pretos e elegante, observava da porta.
— Cardeal Bessières — disse o irmão Collimore num suspiro.
— Ele lhe envia suas saudações em Cristo, irmão.
— O que o Bessières quer — disse Collimore, ainda num sussurro —, ele tira com chicotes e escorpiões.
De Taillebourg sorriu com ironia. Afinal, Collimore sabia mesmo quem era Bessières, o que não era de admirar, mas talvez o medo que Bessières inspirava fosse suficiente para fazer surgir a verdade. O monge tornara a fechar os olhos e seus lábios moviam-se em silêncio, sugerindo que estava rezando. De Taillebourg não perturbou as orações, mas limitou-se a olhar pela pequena janela para onde os escoceses formavam sua linha de combate no monte distante. Os invasores estavam voltados para o sul, de modo que a ponta esquerda da linha era a que ficava mais próximo da cidade, e de Taillebourg via homens acotovelando-se para tomar posição ao tentarem ocupar os lugares de honra mais próximos de seus senhores. Era evidente que os escoceses tinham decidido lutar a pé, para que os arqueiros ingleses não pudessem destruir seus soldados ao derrubarem os cavalos. Ainda não havia sinal daqueles ingleses, embora por tudo que de Taillebourg ouvira eles não pudessem ter reunido uma grande força. O exército deles estava na França, fora de Calais, não ali, de modo que talvez se tratasse apenas de um senhor local chefiando seus contratados. No entanto era claro que havia homens em quantidade suficiente para convencer os escoceses a formar uma linha de combate, e de Taillebourg não esperava que o exército de David fosse contido por muito tempo. O que significava que, se ele quisesse ouvir a história do velho e estar longe de Durham antes de os escoceses entrarem na cidade, era melhor andar depressa. Tornou a olhar para o monge.
— O cardeal Bessières quer apenas a glória da Igreja e de Deus. E quer saber a respeito do padre Ralph Vexille.
— Meu Deus — disse Collimore, e seus dedos correram pela figura de osso sobre o pequeno crucifixo enquanto ele abria os olhos e voltava a cabeça para olhar para o padre. A expressão do monge dava a entender que era a primeira vez que ele realmente percebera a presença de Bernard de Taillebourg, e então estremeceu, reconhecendo no visitante um homem que acreditava que o sofrimento dava mérito. Um homem, refletiu Collimore, que seria tão implacável quanto o chefe dele em Paris. — Vexille! — repetiu Collimore, como quase esquecido do nome, e então suspirou. — É uma longa história — completou, cansado.
— Nesse caso, vou lhe contar o que sei dela — disse de Taillebourg.
O emaciado dominicano agora andava de um lado para o outro no quarto, voltando-se e tornando a voltar-se no pequeno espaço sob a parte mais alta do teto arqueado.
— Você soube — perguntou ele — que houve uma batalha na Picardia no verão? Eduardo da Inglaterra lutou contra o primo dele da França, e um homem chegou pelo sul para lutar pela França e no estandarte dele havia a figura de um yale segurando uma taça.
Collimore piscou os olhos mas nada disse. Seus olhos estavam fixos em de Taillebourg, que por sua vez parou de andar para encarar o monge.
— Um yale segurando uma taça — repetiu.
— Conheço o animal — disse Collimore com tristeza.
Um yale era um animal heráldico, desconhecido na natureza, com patas de leão, chifres de bode e coberto de escamas como um dragão.
— Ele veio do sul — disse de Taillebourg — e achou que ao lutar pela França iria limpar do timbre de sua família as velhas manchas de heresia e traição.
O irmão Collimore estava doente demais para ver que o criado do padre escutava agora com atenção, quase com arrebatamento, ou para perceber que o dominicano erguera ligeiramente a voz para tornar mais fácil ao criado, ainda de pé no portal, ouvir o que ele dizia.
— Esse homem veio do sul, cavalgando com orgulho, acreditando que sua alma estava acima de censura, mas nenhum homem está fora do alcance de Deus. Ele achou que com a vitória iria penetrar no âmbito das afeições do rei, mas em vez disso compartilhou a derrota da França. Às vezes Deus nos torna humildes, irmão, antes de nos elevar à glória. — De Taillebourg falava para o velho monge, mas as palavras eram endereçadas aos ouvidos de seu criado. — E depois da batalha, irmão, quando a França chorava, eu encontrei esse homem e ele o mencionou.
O irmão Collimore pareceu assustado mas nada disse.
— Ele o mencionou para mim — disse o padre de Taillebourg —, e eu sou um inquisidor.
Os dedos do irmão Collimore oscilaram numa tentativa de fazer o sinal-da-cruz.
— A Inquisição — disse ele, hesitante — não tem autoridade alguma na Inglaterra.
— A Inquisição tem autoridade no céu e no inferno, e você pensa que a pequena Inglaterra pode resistir a nós? — A fúria na voz de Bernard de Taillebourg ecoou na cela do hospital. — Para extirpar a heresia, irmão, nós cavalgaremos até os confins da Terra.
A Inquisição, tal como a ordem de frades dominicanos, era dedicada à erradicação da heresia, e para isso empregava fogo e sofrimento. Eles não podiam derramar sangue, porque isso era contra a lei de Deus, mas qualquer sofrimento provocado sem derramamento de sangue era permitido, e a Inquisição sabia bem que o fogo cauterizava o sangramento e que a tortura não perfurava a pele de um herege e que grandes pesos colocados sobre o peito de um homem não rompiam veia alguma. Em porões fedendo a fogo, medo, urina e fumaça, numa escuridão cortada pela chama de um fogo e pelos gritos dos hereges, a Inquisição caçava os inimigos de Deus e, pela aplicação da dor sem sangue, levava suas almas à bendita unidade com Cristo.
— Um homem veio do sul — repetiu de Taillebourg para Collimore — e o timbre em seu escudo era um yale segurando um cálice.
— Um Vexille — disse Collimore.
— Um Vexille — disse de Taillebourg — que sabia o seu nome. Ora, por que, irmão, um herege vindo das terras do Sul sabe o nome de um monge inglês em Durham?
O irmão Collimore suspirou.
— Todos eles sabiam — disse, cansado —, a família toda sabia. Eles sabiam, porque Ralph Vexille foi mandado para mim. O bispo pensava que eu pudesse curá-lo da loucura, mas a família achava que em vez disso ele iria me contar segredos. Eles queriam que ele morresse, mas nós o isolamos numa cela onde ninguém, a não ser eu, podia ter acesso a ele.
— E que segredos ele lhe contou? — perguntou de Taillebourg.
— Loucura — disse o irmão Collimore —, só loucura.
O criado estava de pé à porta e o observava.
— Fale-me dessa loucura — ordenou o dominicano.
— Os loucos falam de mil coisas — disse o irmão Collimore —, falam de espíritos e fantasmas, de neve no verão e escuridão durante o dia.
— Mas o padre Ralph lhe falou sobre o Graal — disse de Taillebourg sem rodeios.
— Ele falou do Graal — confirmou o irmão Collimore.
O dominicano teve um suspiro de alívio.
— O que foi que ele lhe contou sobre o Graal?
Durante um certo tempo Hugh Collimore nada disse. Seu peito subia e descia com tamanha fraqueza que o movimento praticamente não era percebido, e então ele abanou a cabeça.
— Ele me disse que sua família tinha possuído o Graal e que ele o roubara e escondera! Mas falava de uma centena de outras coisas. Uma centena de coisas assim.
— Onde o teria escondido? — perguntou de Taillebourg.
— Ele era louco, louco. Meu serviço era cuidar dos loucos, sabe? Nós os deixávamos sem comer ou batíamos neles para expulsar os demônios, mas nem sempre isso funcionava. No inverno, nós os mergulhávamos no rio, por dentro do gelo, e isso dava certo. Os demônios odeiam o frio. Deu certo com Ralph Vexille, quer dizer na maior parte do tempo funcionou. Nós o liberamos depois de algum tempo. Os demônios tinham ido embora, entende?
— Onde ele escondeu o Graal? — A voz de Taillebourg era mais ríspida e mais alta.
O irmão Collimore olhou fixo para o cintilar no teto da luz refletida na água.
— Ele era louco — sussurrou ele —, mas inofensivo. Inofensivo. E quando foi embora, foi enviado para uma paróquia no sul. Bem lá no sul.
— Em Hookton, em Dorset?
— Em Hookton, em Dorset — concordou o irmão Collimore —, onde ele teve um filho. Ele era um grande pecador, entende?, muito embora fosse padre. Ele teve um filho.
O padre de Taillebourg olhou para o monge, que afinal lhe dera alguma novidade. Um filho?
— O que é que você sabe sobre o filho?
— Nada. — O irmão Collimore pareceu surpreso com a pergunta.
— E o que é que você sabe sobre o Graal? — sondou de Taillebourg.
— Sei apenas que Ralph Vexille era louco — disse Collimore num sussurro.
De Taillebourg sentou-se na cama dura.
— Louco até que ponto?
A voz de Collimore ficou ainda mais fraca.
— Ele dizia que mesmo que a pessoa achasse o Graal não iria reconhecê-lo, a menos que se tratasse de alguém de grande mérito. — Ele fez uma pausa, e uma expressão de dúvida, quase espanto, surgiu-lhe no rosto por um instante. — Era preciso ser digno, dizia ele, para saber o que era o Graal, mas se a pessoa fosse merecedora ele iria brilhar como o sol. Iria deslumbrá-la.
De Taillebourg inclinou-se mais para perto do monge.
— Você acreditou nele?
— Eu acredito que Ralph Vexille era louco — disse o irmão Collimore.
— Às vezes os loucos dizem a verdade — disse de Taillebourg.
— Eu penso — continuou o irmão Collimore como se o inquisidor não tivesse falado — que Deus colocou sobre Ralph Vexille um ônus grande demais para ele suportar.
— O Graal? — perguntou de Taillebourg.
— Você poderia suportá-lo? Eu não poderia.
— Pois então, onde está ele? — insistiu de Taillebourg. — Onde está ele?
O irmão Collimore tornou a aparentar perplexidade.
— Como é que eu iria saber?
— Ele não estava em Hookton — disse de Taillebourg. — Guy Vexille procurou por ele.
— Guy Vexille? — perguntou o irmão Collimore.
— O homem que veio do sul, irmão, para lutar pela França e acabou sob minha custódia.
— Pobre homem — disse o monge.
O padre de Taillebourg abanou a cabeça.
— Eu simplesmente mostrei a ele a câmara de tortura, deixei-o tocar nas pinças e cheirar a fumaça. E então ofereci a ele a vida e ele me disse tudo o que sabia e me disse que o Graal não estava em Hookton.
O rosto do velho monge contorceu-se num sorriso.
— Você não ouviu o que eu disse, padre. Se um homem for indigno, o Graal não irá revelar-se. Guy Vexille não podia ser digno.
— Mas o padre Ralph o tinha em seu poder? — De Taillebourg procurava uma garantia. — Acha que ele o possuía mesmo?
— Eu não disse isso — alertou o monge.
— Mas acreditava que ele o possuía? — perguntou de Taillebourg e, quando o irmão Collimore não disse coisa alguma, balançou a cabeça num gesto para si mesmo. — Você acredita que ele estava com o Graal.
Ele desceu da cama, ficando de joelhos, e uma expressão de respeito tomou conta do seu rosto enquanto as mãos postas apertavam uma à outra.
— O Graal — disse ele num tom de extrema admiração.
— Ele era louco — avisou-o o irmão Collimore.
De Taillebourg não estava prestando atenção.
— O Graal — disse ele outra vez —, le Graal! — Agora abraçava a si mesmo com força, balançando para trás e para a frente, em êxtase. — Le Graal!
— Os loucos dizem coisas — sentenciou o irmão Collimore — e não sabem o que dizem.
— Ou Deus fala através deles — disse Taillebourg, inflamado.
— Nesse caso, às vezes Deus usa uma linguagem terrível — replicou o velho monge.
— Você tem que me dizer — insistiu de Taillebourg — tudo o que o padre Ralph lhe contou.
— Mas isso foi há tanto tempo!
— É le Graal! — berrou de Taillebourg e, na sua frustração, sacudia o velho homem. — É le Graal! Não me diga que esqueceu.
Ele olhou pela janela e viu, erguida no cume distante, a aspa vermelha sobre o estandarte amarelo do rei escocês e, abaixo dela, uma massa de homens com cotas de malha cinza com sua floresta de lanças e piques. Nenhum bandido inglês estava à vista, mas de Taillebourg não teria se importado se todos os inimigos da cristandade tivessem ido para Durham, porque ele encontrara a sua visão, era o Graal, e mesmo que o mundo tremesse com exércitos por toda a sua volta ele iria atrás do Graal.
E um velho monge falou.
O cavalariano com a cota de malha enferrujada, couraça de tiras rotas e escudo festonado disse chamar-se Lorde Outhwaite de Witcar.
— Conhece o lugar? — perguntou ele a Thomas.
— Witcar, excelência? Nunca ouvi falar.
— Não ouviu falar em Witcar! Meu Deus! E é um lugar aprazível, muito aprazível. Bom solo, água doce, ótima caça. Ah, você chegou!
A última observação foi dirigida a um menino montado num grande cavalo, trazendo um segundo corcel pelas rédeas. O menino vestia um gibão que tinha a cruz festonada bordada em amarelo e vermelho e, puxando o corcel atrás de si, esporeou o cavalo em direção ao seu amo.
— Desculpe, excelência — disse o menino —, mas Hereward puxa a gente. — Era evidente que Hereward era o corcel que ele guiava. — E ele me puxou para longe do senhor!
— Dê Hereward a este jovem aqui — disse Lorde Outhwaite. — Você sabe montar? — acrescentou, sério, para Thomas.
— Sei, excelência.
— Mas Hereward é difícil, de uma dificuldade rara. Esporeie com força para que ele saiba quem é que manda.
Uns vinte homens apareceram, vestindo o uniforme de Lorde Outhwaite, todos montados e todos com armaduras em melhor estado do que a do senhor deles. Lorde Outhwaite mandou-os de volta para o sul.
— Nós estávamos marchando contra Durham — disse ele a Thomas —, cuidando da vida como devem fazer os bons cristãos, e os malditos escoceses apareceram! Agora não vamos atacar Durham. Eu me casei lá, sabe? Na catedral. Há trinta e dois anos, você acredita? — Ele olhou satisfeito para Thomas. — E a minha querida Margaret ainda vive, graças a Deus. Ela gostaria de ouvir a sua história. Você esteve mesmo em Wadicourt?
— Estive, excelência.
— Que homem de sorte, que homem de sorte! — disse Lorde Outhwaite, e gritou para mais outros de seus homens para que dessem meia-volta antes que esbarrassem com os escoceses.
Thomas estava chegando rapidamente à conclusão de que Lorde Outhwaite, apesar da cota de malha em pedaços e da aparência desgrenhada, era um grande senhor, um dos maiorais da região norte, e sua excelência confirmou essa opinião resmungando que tinha sido proibido pelo rei de lutar na França, porque ele e seus homens poderiam ter de rechaçar uma invasão dos escoceses.
— E ele tinha toda razão! — Lorde Outhwaite parecia surpreso. — Os patifes vieram para o sul! Eu lhe disse que meu filho mais velho estava na Picardia? É por isso que estou usando isto aqui. — Ele tocou num rasgão da velha cota de malha. — Dei a ele a melhor armadura que tínhamos, porque achei que não íamos precisar dela aqui! O jovem David da Escócia me parecia bem pacífico, mas agora a Inglaterra está invadida pelos seguidores dele. É verdade que a chacina em Wadicourt foi enorme?
— Foi um campo de mortos, excelência.
— Deles, não nossos, graças a Deus e aos santos dele. — Sua Excelência olhou para alguns arqueiros que se desgarravam em direção ao sul. — Não percam tempo! — bradou em inglês. — Daqui a pouco os escoceses estarão à procura de vocês. — Ele tornou a olhar para Thomas e sorriu. — Então, o que teria feito se eu não tivesse chegado? — perguntou ainda usando o inglês. — Ia cortar mesmo a garganta do Espantalho?
— Se fosse preciso.
— E ter a sua cortada pelos homens dele — observou Outhwaite, alegre. — Ele é um beberrão venenoso. Só Deus sabe por que a mãe dele não o matou afogado quando ele nasceu, mas acontece que ela era uma maldita bruxa de coração de merda, se é que já houve alguma assim. — Como muitos senhores que tinham sido criados falando francês, Lorde Outhwaite aprendera inglês com os criados dos pais, e por isso falava-o usando termos baixos. — O Espantalho merece uma garganta cortada, mas é mau tê-lo como inimigo. Ele guarda um ressentimento melhor do que ninguém, mas tem tantos ressentimentos que talvez não tenha lugar para mais um. Ele odeia Sir William Douglas acima de tudo.
— Por quê?
— Porque William o manteve preso. Veja bem, Willie Douglas manteve a maioria de nós presa numa ou outra ocasião, e um ou dois de nós até o mantiveram preso em troca, mas o resgate quase matou Sir Geoffrey. Ele ficou reduzido à sua última vintena de servidores e eu ficaria surpreso se ele tivesse mais de três moedas de meio pêni num vidro. O Espantalho é um homem pobre, muito pobre, mas orgulhoso, e isso o torna um mau inimigo.
Lorde Outhwaite fez uma pausa para erguer a mão em saudação a um grupo de arqueiros que vestia seu uniforme.
— Sujeitos maravilhosos, maravilhosos. Mas me conte sobre a batalha de Wadicourt. É verdade que os franceses atropelaram seus próprios arqueiros?
— Atropelaram, excelência. Besteiros genoveses.
— Pois então conte-me tudo o que aconteceu.
Lorde Outhwaite tinha recebido uma carta de seu filho mais velho que lhe falara sobre a batalha na Picardia, mas estava muito ansioso por ouvir falar da luta por alguém que estivera naquela longa encosta verde entre as aldeias de Wadicourt e Crécy, e Thomas agora contou-lhe que o inimigo atacara quando a tarde já ia avançada e que as flechas tinham voado montanha abaixo para cortar o grande exército do rei da França em pilhas de homens e cavalos que berravam, e que alguns dos inimigos ainda tinham chegado através da linha de fossos recém-cavados e passado pelas flechas para atacar os soldados ingleses, e que, no fim da batalha, não restava flecha alguma, só arqueiros com dedos sangrando e um longo monte de homens e animais moribundos. O próprio céu parecera tinto de sangue.
O relato da história levou Thomas serra abaixo e para fora do ângulo de visão de Durham. Eleanor e o padre Hobbe caminhavam atrás, guiando a égua e às vezes fazendo os seus próprios comentários, enquanto vinte dos servidores de Lorde Outhwaite cavalgavam ao lado deles para ouvir a história da batalha. Thomas contou-a bem, e era evidente que Lorde Outhwaite tinha gostado dele. Thomas de Hookton sempre possuíra um encanto que o protegera e recomendara, muito embora às vezes deixasse com inveja homens como Sir Geoffrey Carr. Sir Geoffrey tinha seguido na frente e, quando Thomas atingiu a pradaria irrigada pela inundação do rio, onde as forças inglesas estavam reunidas, o cavaleiro apontou para ele como se estivesse lançando uma maldição e Thomas reagiu fazendo o sinal-da-cruz. Sir Geoffrey cuspiu.
Lorde Outhwaite carregou o sobrolho para o Espantalho.
— Não me esqueci da carta que o seu padre me mostrou — disse ele, falando agora com Thomas em francês —, mas espero que você não nos deixe para poder entregá-la pessoalmente em Durham. Não enquanto tivermos inimigos a enfrentar.
— Posso ficar com os arqueiros de Vossa Excelência? — perguntou Thomas.
Eleanor fez um muxoxo em sinal de desaprovação, mas os dois homens a ignoraram. Lorde Outhwaite acenou com a cabeça num gesto de aceitação da oferta de Thomas e depois fez outro gesto indicando que o jovem devia descer do cavalo.
— Mas uma coisa me deixa intrigado — continuou ele —, e é por que o senhor nosso rei foi confiar uma missão dessas a uma pessoa tão jovem.
— E de berço tão inferior? — perguntou Thomas com um sorriso, sabendo que aquela era a verdadeira pergunta que Lorde Outhwaite tinha sido cuidadoso demais para fazer.
Sua Excelência riu ao ser desmascarado.
— Você fala francês, meu jovem, mas carrega um arco. O que você é? Bem-nascido ou de origem inferior?
— Bem-nascido, excelência, mas fora do casamento.
— Ah!
— E a resposta à sua pergunta, excelência, é que o senhor nosso rei me enviou com um de seus capelães e um cavaleiro da casa real, mas os dois ficaram doentes em Londres e é lá que eles estão. Eu segui viagem com os meus companheiros.
— Porque estava ansioso por conversar com esse velho monge?
— Se ele estiver vivo, sim, porque ele pode me falar sobre a família de meu pai. Minha família.
— E ele pode lhe falar sobre esse tesouro, esse Thesaurus. Você sabe a respeito dele?
— Sei alguma coisa, excelência — disse Thomas, cauteloso.
— Motivo pelo qual o rei o enviou, hein? — perguntou Lorde Outhwaite mas sem dar tempo a Thomas para responder. Pegou as rédeas. — Lute com os meus arqueiros, rapaz, mas tome o cuidado de ficar vivo, hein? Eu gostaria de saber mais sobre o seu Thesaurus. O tesouro é assim tão grande quanto diz a carta?
Thomas deu as costas para o seu Lorde Outhwaite de cabelos desgrenhados e olhou para cima, para a crista da montanha onde agora nada havia para ser visto, exceto as árvores de folhas de cores vivas e uma pluma de fumaça, que se diluía, dos chalés consumidos pelo fogo.
— Se ele existir, excelência — disse em francês —, será o tipo de tesouro que é protegido pelos anjos e procurado pelos demônios.
— E você o procura? — perguntou Lorde Outhwaite com um sorriso.
Thomas devolveu o sorriso.
— Simplesmente procuro o prior de Durham, excelência, para entregar a ele a carta do bispo.
— Você procura o prior Fossor, não? — Lorde Outhwaite fez com a cabeça um gesto em direção a um grupo de monges. — Ele é aquele lá. O que está montado.
Ele indicara um monge alto, de cabelos brancos, montado numa égua cinza e cercado por uns vinte outros monges, todos a pé, um dos quais carregava um estranho estandarte que nada mais era do que um pedaço de pano branco pendurado de uma vara pintada.
— Fale com ele — disse Lorde Outhwaite — e depois procure a minha bandeira. Que Deus o acompanhe! — Ele disse as quatro últimas palavras em inglês.
— E acompanhe a Vossa Excelência — responderam, juntos, Thomas e o padre Hobbe.
Thomas caminhou em direção ao prior, passando com dificuldade por arqueiros que se aglomeravam em torno de três carroções para receber feixes de flechas de reserva. O pequeno exército inglês estivera marchando em direção a Durham em duas estradas separadas e agora os homens vagueavam por campos para ficarem juntos, para a eventualidade de os escoceses descerem da parte alta. Soldados passavam cotas de malha pela cabeça e os mais ricos entre eles abotoavam as peças de armadura que possuíam. Os líderes do exército deviam ter feito uma rápida conferência, porque os primeiros estandartes estavam sendo levados para o norte, mostrando que os ingleses queriam enfrentar os escoceses no terreno mais elevado da serra, em vez de serem atacados nos prados irrigados pelas inundações do rio ou tentarem alcançar Durham por um caminho indireto. Thomas se acostumara com os estandartes ingleses na Bretanha, na Normandia e na Picardia, mas aquelas bandeiras eram todas estranhas para ele: um crescente prateado, uma vaca marrom, um leão azul, o machado preto do Espantalho, a cabeça de um varrão vermelho, a cruz festonada de Lorde Outhwaite e, a mais espalhafatosa de todas, uma grande bandeira escarlate mostrando um par de chaves cruzadas espessamente bordada com fios de ouro e prata. A bandeira do prior parecia surrada e barata comparada a todas as outras, porque não era mais do que um pequeno quadrado de pano puído, embaixo do qual o prior estava em delírio.
— Vão fazer o trabalho de Deus — gritava ele para alguns arqueiros que estavam próximos a ele —, porque os escoceses são animais! Derrubem-nos! Matem todos eles! Deus irá recompensar cada morte! Vão, e castiguem-nos! Matem-nos! — Ele viu Thomas se aproximando. — Você quer uma bênção, meu filho? Então, que Deus dê força ao seu arco e aumente o poder de penetração de suas flechas! Que seu braço nunca se canse e seus olhos nunca se ofusquem. Que Deus e os anjos o abençoem enquanto você mata!
Thomas benzeu-se e depois estendeu a carta.
— Vim lhe dar isto, senhor — disse ele.
O prior estranhou bastante que um arqueiro se dirigisse a ele com tamanha familiaridade e ainda por cima ter uma carta para ele. A princípio não pegou o pergaminho, mas um dos seus monges o arrancou da mão de Thomas e, vendo o lacre rompido, ergueu as sobrancelhas.
— O senhor bispo mandou uma carta para o senhor — disse ele.
— Eles são animais! — repetiu o prior ainda dominado pela sua peroração, só depois percebendo o que o monge dissera. — O senhor bispo escreveu?
— A você, irmão — disse o monge.
O prior agarrou a vara pintada e arriou a bandeira improvisada para que ela ficasse perto do rosto de Thomas.
— Pode beijá-la — disse ele, imponente.
— Beijá-la? — Thomas foi colhido de surpresa. O pano esfarrapado, agora que estava perto do seu nariz, fedia a mofo.
— É o manto funerário de São Cuthbert — disse o prior, agitado —, tirado do túmulo dele, meu filho! O abençoado São Cuthbert lutará por nós! Os próprios anjos do céu irão segui-lo na batalha!
Thomas, diante da relíquia do santo, ficou de joelhos e levou o pano aos lábios. Era linho, pensou, e então viu que estava bordado nas margens com um desenho complicado, com uma linha azul desbotada. No centro do pano, usado durante a missa para conter as hóstias, havia uma cruz trabalhada, bordada com fios de prata que praticamente não se destacavam contra o puído linho branco.
— É mesmo o manto de São Cuthbert? — perguntou.
— Dele mesmo! — exclamou o prior. — Nós abrimos o túmulo na catedral hoje mesmo pela manhã e rezamos para ele. Ele irá lutar por nós hoje! — O prior ergueu a bandeira num gesto rápido e agitou-a em direção a alguns soldados que dirigiam seus cavalos para o norte. — Façam o trabalho de Deus! Matem todos eles! Adubem os campos com a sua carne nociva, irriguem-nos com o seu sangue traiçoeiro!
— O bispo quer que este jovem fale com o irmão Hugh Collimore — disse naquele momento ao prior o homem que lera a carta — e o rei também quer. Sua Alteza diz que há um tesouro que precisa ser encontrado.
— O rei quer? — O prior olhou perplexo para Thomas. — O rei quer? — tornou a perguntar, e então caiu em si e percebeu que havia uma grande vantagem no apoio real. Por isso, agarrou a carta com um gesto repentino e leu-a, apenas para descobrir uma vantagem ainda maior do que previra. — Você veio à procura de um grande Thesaurus? — perguntou a Thomas, desconfiado.
— O bispo acredita que sim, senhor — respondeu Thomas.
— Que tesouro? — retrucou o prior, e todos os monges olharam para ele boquiabertos, quando a idéia de um tesouro os fez esquecer momentaneamente a proximidade do exército escocês.
— O tesouro, senhor — Thomas evitou dar uma resposta sincera — é do conhecimento do irmão Collimore.
— Mas por que mandar você? — perguntou o bispo, e foi uma pergunta justa, porque Thomas parecia um jovem e não tinha nenhum posto aparente.
— Porque eu também tenho um certo conhecimento do assunto — disse Thomas, perguntando-se se não teria falado demais.
O prior dobrou a carta, inadvertidamente rasgando o lacre ao fazê-lo, e enfiou-a numa bolsa que estava pendurada no seu cinto amarrado.
— Vamos conversar depois da batalha — disse ele —, e então, e só então, eu vou decidir se você poderá falar com o irmão Collimore. Ele está doente, sabe? Doente, pobre homem. Talvez esteja morrendo. Pode não ser conveniente você perturbá-lo. Vamos ver, vamos ver.
Era evidente que ele queria conversar com o velho monge e, assim, ser o único possuidor de qualquer que fosse o conhecimento que Collimore pudesse ter.
— Que Deus o abençoe, meu filho. — O prior dispensou Thomas e então ergueu sua sagrada bandeira e seguiu rápido para o norte. A maior parte do exército inglês já estava subindo a serra, deixando apenas seus carroções e uma multidão de mulheres, crianças e os homens doentes demais para caminhar. Os monges, fazendo uma procissão atrás de seu manto funerário, começaram a cantar enquanto seguiam os soldados.
Thomas correu até uma carroça e apanhou um feixe de flechas, que enfiou no cinto. Viu que os soldados de Lorde Outhwaite estavam cavalgando em direção à serra, seguidos por um grande grupo de arqueiros.
— Talvez vocês dois devam ficar aqui — disse ele ao padre Hobbe.
— Não! — disse Eleanor. — E você não devia estar lutando.
— Não lutar? — perguntou Thomas.
— A batalha não é sua! — insistiu Eleanor. — Nós devíamos ir para a cidade! Devíamos procurar o monge.
Thomas fez uma pausa. Estava pensando no padre que, no remoinho de nevoeiro e fumaça, matara o escocês e depois falara com ele em francês. Eu sou um mensageiro, dissera o padre. “Je suis un avant-coureur”, tinham sido suas palavras exatas, e um avant-coureur era mais do que um simples mensageiro. Um arauto, talvez? Até mesmo um anjo? Thomas não podia afastar a imagem daquela luta silenciosa, os homens tão desiguais, um soldado contra um padre, e no entanto o padre vencera e depois voltara o rosto magro, ensangüentado, para Thomas e se anunciara: “Je suis un avant-coureur.” Era um sinal, pensou Thomas, e ele não queria acreditar em sinais e visões, queria acreditar no seu arco. Pensou que talvez Eleanor tivesse razão e que o conflito com o seu vencedor inesperado era um sinal do céu de que ele devia entrar na cidade atrás do avant-coureur, mas também havia inimigos no alto da montanha e ele era um arqueiro, e arqueiros não abandonavam uma batalha.
— Nós iremos para a cidade — disse ele — depois da batalha.
— Por quê? — perguntou ela, impetuosa.
Mas Thomas não quis responder. Apenas começou a andar, subindo um morro onde cotovias e tentilhões adejavam pelas sebes, enquanto tordos marrons e cinzentos chamavam das pastagens vazias. O nevoeiro desaparecera por completo e um vento seco soprou vindo do outro lado do rio Wear.
E então, de onde os escoceses esperavam no terreno mais elevado, os tambores começaram a tocar.
Sir William Douglas, Cavaleiro de Liddesdale, preparou-se para a batalha. Vestiu calções de couro com espessura suficiente para reduzir um corte de espada e sobre a camisa de linho pendurou um crucifixo que tinha sido benzido por um padre em Santiago de Compostela, onde São Tiago estava enterrado. Sir William Douglas não era exatamente um homem religioso, mas pagava um padre para cuidar de sua alma e o padre lhe garantira que usar o crucifixo de São Tiago, o filho do trovão, iria assegurar que ele receberia os ritos finais em segurança, em seu próprio leito. Em torno da cintura, amarrou uma faixa de seda vermelha que tinha sido arrancada de um dos estandartes capturados dos ingleses em Bannockburn. A seda tinha sido mergulhada na água benta da fonte na capela do seu castelo em Hermitage, e Sir William tinha sido convencido de que o pedaço de seda iria garantir a vitória sobre o velho e muito odiado inimigo.
Ele usava uma cota de malha tirada de um inglês morto em um dos seus muitos ataques de surpresa ao sul da fronteira. Sir William lembrava-se bem daquela morte. Tinha reparado na qualidade da cota de malha do inglês logo no início do combate e gritara para seus homens que não tocassem no homem, e então o derrubara atingindo-lhe os tornozelos, e o inglês, de joelhos, soltara um som parecido com um miado que fizera com que os homens de Sir William caíssem na gargalhada. O homem tinha-se rendido, mas mesmo assim Sir William cortara-lhe a garganta, porque achava que o homem que fizesse um som de miado não era um guerreiro de verdade. Os criados em Hermitage tinham levado duas semanas para lavar o sangue do fino trançado da malha. A maioria dos líderes escoceses vestia casacões de malha, que cobriam o corpo de um homem do pescoço à barriga das pernas, enquanto a cota de malha era muito mais curta e deixava as pernas desprotegidas. Mas Sir William pretendia lutar a pé e sabia que o peso de um casacão cansava o homem depressa, e homens cansados eram mortos com facilidade. Sobre a cota de malha usava uma capa de corpo inteiro que mostrava a sua insígnia do coração vermelho. O elmo era um morrião, sem visor nem protetor para o rosto, mas em combate Sir William gostava de ver o que os inimigos à esquerda e à direita faziam. Um homem com um elmo completo ou com uma das viseiras em forma de focinho de porco, que era moda na época, não via nada, exceto aquilo que a fenda que ficava bem em frente aos olhos deixava que ele visse, motivo pelo qual quem usava elmos com viseira passava a batalha virando a cabeça para a esquerda e a direita, esquerda e direita, como uma galinha entre raposas, e torciam-se até o pescoço ficar doendo, e mesmo assim raramente viam o golpe que lhes esmagava o crânio. Sir William, em combate, procurava homens cujas cabeças se agitavam como galinhas, para trás e para a frente, porque sabia que se tratava de homens nervosos que tinham como pagar um belo elmo e, assim, pagar um resgate ainda melhor. Ele portava o seu grande escudo. O escudo era, na verdade, muito pesado para um homem a pé, mas ele esperava que os ingleses soltassem a sua tempestade de flechas e o escudo era grosso bastante para absorver o barulhento impacto de flechas de uma jarda de comprimento, com ponta de aço. Ele podia apoiar a base do escudo no chão e agachar-se em segurança atrás dele e, quando os ingleses ficassem sem flechas, ele sempre poderia abandoná-lo. Ele levava uma lança, para o caso de os cavalarianos ingleses atacarem, e uma espada, que era a sua arma favorita para matar. O punho da espada guardava um pedaço de cabelo cortado do cadáver de Santo André, ou pelo menos fora isso que alegara o monge que vendia indulgências e que vendera o pedaço a Sir William.
Robbie Douglas, sobrinho de Sir William, usava cota de malha e um morrião e levava uma espada e um escudo. Tinha sido ele quem levara a Sir William a notícia de que Jamie Douglas, irmão mais velho de Robbie, fora morto, presumivelmente pelo criado de um padre dominicano. Ou talvez o próprio padre de Taillebourg cometera o crime? Pelo menos, tinha de ter sido ordem sua. Robbie Douglas, vinte e nove anos de idade, chorara pelo irmão.
— Como é que um padre pode fazer isso? — perguntou Robbie ao tio.
— Você faz uma idéia estranha dos padres, Robbie — disse Sir William. — A maioria dos padres é formada por homens fracos que receberam a autoridade de Deus, e isso os torna perigosos. Eu agradeço a Deus pelo fato de que jamais um Douglas vestiu uma batina de padre. Nós todos somos honestos demais.
— Quando o dia de hoje acabar — disse Robbie Douglas —, o senhor vai me deixar ir atrás daquele padre.
Sir William sorriu. Ele podia não ser um homem abertamente religioso, mas achava sagrado um credo, o de que o assassinato de qualquer membro da família devia ser vingado, e Robbie, na sua opinião, faria uma vingança perfeita. Era um jovem bom, rijo e bonito, alto e íntegro, e Sir William sentia orgulho do filho de sua irmã caçula.
— Nós conversaremos no final do dia — prometeu Sir William —, mas até lá, Robbie, fique perto de mim.
— Eu fico, tio.
— Vamos matar alguns ingleses, se Deus quiser — disse Sir William, e então levou o sobrinho para falar com o rei e para receber a bênção dos capelães reais.
Sir William, como a maioria dos cavaleiros e chefes escoceses, usava cota de malha, mas o rei usava uma armadura feita na França, uma coisa tão rara ao norte da fronteira que homens das tribos selvagens iam olhar aquela criatura que refletia o sol, feita de um metal que se mexia. O jovem rei parecia tão impressionado quanto eles, porque tirou a manta e andava de um lado para o outro admirando a si mesmo e sendo admirado enquanto seus senhores chegavam para uma bênção e para dar conselhos. O conde de Moray, que Sir William acreditava ser um bobo, queria lutar a cavalo, e o rei ficou tentado a concordar. O pai dele, o grande Robert the Bruce, derrotara os ingleses em Bannockburn montado a cavalo, e não apenas os derrotara, mas os humilhara. A flor da Escócia havia derrubado a nobreza da Inglaterra, e David, agora rei do país de seu pai, queria fazer o mesmo. Queria sangue sob suas patas e glória ligada ao seu nome; queria que sua reputação se espalhasse por toda a cristandade, e por isso voltou-se e olhou, com olhos compridos, para a sua lança pintada de vermelho e amarelo apoiada num galho de olmo.
Sir William Douglas viu para onde o rei estava olhando.
— Arqueiros — disse ele, lacônico.
— Havia arqueiros em Bannockburn — insistiu o conde de Moray.
— É, e os imbecis não sabiam usá-los — disse Sir William —, mas não podemos esperar que os ingleses sejam imbecis para sempre.
— E quantos arqueiros eles podem ter? — perguntou o conde. — Dizem que há milhares de arqueiros na França, centenas mais na Bretanha e outros tantos na Gasconha. E então, quantos eles podem ter aqui?
— Têm o suficiente — resmungou Sir William, sucinto, sem se importar em esconder o desprezo que sentia por John Randolph, terceiro conde de Moray. O conde era tão experiente em guerras quanto Sir William mas passara muito tempo preso pelos ingleses e o ódio resultante disso fazia com que ele ficasse impetuoso.
O rei, jovem e inexperiente, queria ficar do lado do conde, de quem era amigo, mas viu que seus outros senhores concordavam com Sir William, que, embora não tivesse nenhum título de vulto nem cargo oficial, tinha mais experiência de guerra do que qualquer outro homem da Escócia. O conde de Moray percebeu que estava perdendo a discussão e insistiu na pressa.
— Ataque agora, senhor — sugeriu ele —, antes que eles possam formar uma linha de combate. — Ele apontou para o sul, onde os primeiros soldados ingleses apareciam nos pastos. — Derrube os bastardos antes que eles se preparem.
— Este — interveio o conde de Menteith com calma — foi o conselho dado a Filipe de Valois na Picardia. Não adiantou lá e não vai adiantar aqui.
— Além disso — observou Sir William Douglas em tom mordaz —, temos de enfrentar muros de pedra.
Ele apontou para os muros que cercavam as pastagens onde os ingleses começavam a formar sua linha.
— Talvez Moray possa nos dizer como cavaleiros em armaduras ultrapassam muros de pedra — sugeriu ele.
O conde de Moray empertigou-se.
— Você pensa que eu sou bobo, Douglas?
— Penso que você é aquilo que demonstra ser, John Randolph — respondeu Sir William.
— Cavalheiros! — retrucou o rei.
Ele não tinha percebido os muros de pedra quando formou sua linha de combate ao lado dos chalés incendiados e a cruz caída. Vira apenas os pastos verdes vazios, a estrada larga e o seu sonho ainda mais amplo de glória. Agora observava o inimigo surgindo das árvores ao longe e espalhando-se. Havia uma grande quantidade de arqueiros que chegavam, e ele ouvira falar que aqueles arqueiros podiam encher o céu com suas flechas e que as pontas de aço das flechas penetravam fundo em cavalos e que os cavalos ficavam loucos de dor. E ele não ousava perder aquela batalha. Prometera a seus nobres que iriam celebrar o Natal no salão do rei inglês em Londres, e se ele perdesse iria perder o respeito deles e estimular alguns a se rebelarem. Tinha de vencer e, por ser impaciente, queria vencer depressa.
— Se atacarmos com a rapidez necessária — sugeriu ele, especulativo — antes que todos eles alcancem suas linhas...
— Então Vossa Majestade irá quebrar as pernas de seu cavalo nos muros de pedra — disse Sir William com pouco respeito pelo seu senhor real. — Se o cavalo de Vossa Majestade chegar até lá. Não se pode proteger um cavalo das flechas, majestade, mas pode-se superar as dificuldades a pé. Ponha seus piques na frente, mas misture-os com soldados que possam usar seus escudos para proteger os que estiverem portando piques. Escudos erguidos, cabeças baixas e agüentar firme, é assim que venceremos esta.
O rei puxou a ombreira que lhe cobria o ombro direito e tinha o incomodativo hábito de escorregar para a borda superior do peitoral da armadura. Por tradição, a defesa dos exércitos escoceses estava nas mãos dos piqueiros que usavam suas armas monstruosamente compridas para rechaçar os cavaleiros inimigos, mas piqueiros precisavam das duas mãos para segurar as lâminas pouco manejáveis e por isso tornavam-se alvos fáceis para os arqueiros ingleses, que gostavam de jactar-se de que levavam a vida dos piqueiros nas suas sacolas de flechas. Por isso protejam os piqueiros com os escudos dos soldados e deixem que o inimigo desperdice suas flechas. Fazia sentido, mas ainda assim deixava David Bruce aborrecido pelo fato de não poder liderar seus cavalarianos num assalto de abalar a terra enquanto as trombetas berravam aos céus.
Sir William percebeu a hesitação do rei e insistiu no seu argumento.
— Temos de ficar aqui, majestade, e temos de esperar, e temos de deixar que nossos escudos escorem as flechas, mas no fim eles irão se cansar de desperdiçar flechas e virão ao ataque, e é aí que nós vamos derrubá-los como se fossem cachorros.
Um rosnar de concordância saudou aquela declaração. Os senhores escoceses, todos homens vigorosos, armados e vestindo armaduras, barbados e sérios, estavam confiantes em que poderiam vencer aquela luta, porque não havia um atalho para a vitória, não quando arqueiros os enfrentavam, e por isso teriam de fazer o que Sir William dizia: resistir às flechas, açular o inimigo e depois dar a ele a matança.
O rei ouviu seus senhores concordarem com Sir William e por isso, com relutância, abandonou o sonho de vencer o inimigo com cavaleiros montados. Aquilo foi uma decepção, mas ele correu os olhos pelos seus senhores e refletiu que com tais homens ao seu lado não podia haver possibilidade de perder.
— Vamos lutar a pé — decretou ele — e abatê-los como se fossem cachorros. Vamos fazer deles picadinho! — E depois, pensou, quando os sobreviventes estivessem fugindo para o sul, a cavalaria escocesa completaria o massacre.
Mas por enquanto seria infantaria contra infantaria, de modo que os estandartes de guerra da Escócia foram levados para a frente e enfiados de um lado a outro da crista da montanha. Os chalés incendiados eram agora apenas cinzas que embalavam três cadáveres encolhidos, pretos e pequenos como se fossem crianças, e o rei plantou suas bandeiras perto daqueles mortos. Ele mandara fincar sua própria bandeira, uma aspa vermelha sobre campo amarelo, e o estandarte do santo da Escócia, aspa branca sobre azul, no centro da linha, e à esquerda e à direita agitavam-se os estandartes dos senhores menos importantes. O leão de Stuart brandiu a espada, o falcão de Randolph abriu as asas enquanto a leste e a oeste as estrelas, os machados e as cruzes estalavam ao vento. O exército estava disposto em três divisões, chamadas de sheltrons, e os três sheltrons eram tão grandes que os homens nos flancos mais extremos acotovelavam-se em direção ao centro para se manter no terreno mais plano do topo do morro.
As fileiras dos sheltrons que ficavam na extrema retaguarda eram compostas de membros de tribos das ilhas e do norte, homens que lutavam de pernas nuas, sem proteção de metal, portando espadas imensas que podiam matar um homem tanto com a lâmina quanto com uma simples pancada. Eram guerreiros terríveis, mas a falta de armadura tornava-os horrivelmente vulneráveis a flechas, de modo que eram colocados na retaguarda, e as principais fileiras dos três sheltrons estavam cheias de soldados e piqueiros. Os soldados levavam espadas, machados, clavas ou machados ou martelos de guerra e, o que era mais importante, os escudos que podiam proteger os piqueiros cujas armas tinham na ponta um pique, um gancho e uma cabeça de machado. O pique podia manter um inimigo à distância, o gancho podia arrancar da sela um homem vestindo uma armadura ou derrubá-lo se ele estivesse no chão, e o machado podia penetrar-lhe a malha ou a couraça. A linha ouriçava-se com os piques que formavam uma cerca de aço para recepcionar os ingleses, e padres caminhavam pela cerca abençoando as armas e os homens que as portavam. Soldados ajoelhavam para receber as bênçãos. Alguns senhores, como o próprio rei, estavam a cavalo, mas apenas o suficiente para que pudessem ver por cima da cabeça de seus soldados, e aqueles homens olhavam para o sul, para verem surgir os últimos dos soldados ingleses. Eram muito poucos! Um exército muito pequeno para se derrotar! À esquerda dos escoceses ficava Durham, suas torres e reparos repletos de pessoas que assistiam à batalha, e em frente estava aquele pequeno exército de ingleses que não tinham o senso de bater em retirada em direção a York. Em vez disso, iriam lutar no topo da montanha, e os escoceses tinham a vantagem da posição e da quantidade de homens.
— Se vocês têm raiva dos ingleses — gritou Sir William para os seus homens à direita da linha de combate escocesa —, transmitam isso a eles!
Os escoceses expressaram seu ódio aos berros. Bateram nos escudos com espadas e lanças, gritaram aos céus e, no centro da linha, onde o sheltron do rei aguardava sob os estandartes da cruz, uma tropa de tambores começou a tocar enormes tambores de pele de cabra. Cada tambor era um grande aro de carvalho sobre o qual eram esticadas com cordas duas peles de cabra até que uma bolota, deixada cair sobre uma das peles, pulasse até a altura da mão que a tivesse largado, e os tambores, tocados com varas finas, produziam um som agudo, quase metálico, que enchia o céu. Eles executavam um assalto só de barulho.
— Se vocês odeiam os ingleses, digam isso a eles! — gritou o conde de March da esquerda da linha escocesa que ficava mais perto da cidade. — Se vocês odeiam os ingleses, digam isso a eles! — e o fragor ficou mais alto, o ruído do choque da vara da lança nos escudos ficou mais forte, e o barulho do ódio da Escócia espalhou-se pela crista da montanha de modo que nove mil homens uivavam para os três mil que eram loucos o bastante para enfrentá-los.
— Vamos ceifá-los como talos de cevada — prometeu um padre —, vamos encharcar os campos com o fedorento sangue deles e encher o inferno com suas almas inglesas.
— As mulheres deles são de vocês! — disse Sir William a seus homens. — As mulheres e as filhas deles serão seus brinquedos hoje à noite! — Ele sorriu para o sobrinho Robbie. — Você vai poder escolher mulheres de Durham, Robbie.
— E as mulheres de Londres — disse Robbie — antes do Natal.
— É isso, elas também — prometeu Sir William.
— Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo — berrou o capelão mais antigo do rei —, mandem todos eles para o inferno! Todos os asquerosos, sem sobrar nenhum, para o inferno! Cada inglês que vocês matarem hoje significa mil semanas a menos no purgatório!
— Se vocês odeiam os ingleses — bradou Lorde Robert Stewart, intendente da Escócia e herdeiro do trono —, digam isso a eles!
E o barulho daquele ódio parecia um trovão que encheu o vale profundo do Wear, e o trovão reverberou do rochedo em que se erguia Durham e ainda assim o barulho aumentou para dizer a toda a região norte que os escoceses tinham chegado ao sul.
E David, rei daqueles escoceses, ficou contente por ter ido até aquele lugar onde a cruz com o dragão tinha caído e as casas incendiadas queimavam e os ingleses esperavam para serem mortos. Porque naquele dia ele iria levar a glória a Santo Andrew, à grande casa de Bruce e à Escócia.
Nota:
* No original: morningstar. O termo reflete a forma da extremidade da arma, que é uma bola de metal com espetos. (N. do T.)
THOMAS, O PADRE HOBBE E ELEANOR seguiram o prior e seus monges, que ainda cantavam, embora as vozes dos irmãos àquela altura estivessem dissonantes, porque eles estavam ofegantes por andarem depressa. O manto funerário oscilava de um lado para o outro e o estandarte atraiu uma errante procissão de mulheres e crianças que, por não quererem esperar onde seus homens não os pudessem ver, levavam feixes de flechas extras para o alto do morro. Thomas queria seguir mais depressa, ultrapassar os monges e encontrar os homens de Lorde Outhwaite, mas Eleanor atrasou-se de propósito até que ele se voltou para ela, irritado.
— Você pode andar mais depressa — protestou ele em francês.
— Eu posso andar mais depressa — disse ela — e você pode ignorar uma batalha!
O padre Hobbe, conduzindo o cavalo, compreendeu o tom, apesar de não entender as palavras. Suspirou, merecendo com isso um olhar selvagem de Eleanor.
— Você não precisa lutar! — continuou ela.
— Eu sou um arqueiro — disse Thomas, obstinado — e há um inimigo lá em cima.
— Seu rei mandou você procurar o Graal! — insistiu Eleanor. — Não para morrer! Não para me deixar sozinha! — Ela agora tinha parado, as mãos agarrando a barriga e com lágrimas nos olhos. — Eu vou ficar aqui sozinha? Na Inglaterra?
— Não vou morrer aqui — disse Thomas, mordaz.
— Como sabe? — Eleanor era toda sarcasmo. — Deus por acaso falou com você? Você sabe o que outras pessoas não sabem? Sabe o dia em que vai morrer?
Thomas foi colhido de surpresa por aquela explosão. Eleanor era uma jovem forte, não dada a acessos de raiva, mas agora estava profundamente perturbada e chorava.
— Aqueles homens — disse Thomas — são o Espantalho e Beggar, e não vão tocar em você. Eu estarei aqui.
— Não são eles! — lamentou-se Eleanor. — Ontem à noite eu tive um sonho. Um sonho.
Thomas pôs as mãos nos ombros dela. Suas mãos eram grandes e fortalecidas por puxarem a corda de cânhamo do grande arco.
— Sonhei com o Graal na noite passada — disse ele, sabendo que aquilo não era bem verdade. Ele não sonhara com o Graal, mas acordara para ter uma visão que se revelara um engano, mas isso ele não podia dizer a Eleanor. — Ele era dourado e belo como um cálice de fogo.
— No meu sonho — disse Eleanor erguendo o olhar para ele — você estava morto e seu corpo estava todo preto e inchado.
— O que é que ela está dizendo? — perguntou o padre Hobbe.
— Ela teve um sonho mau — disse Thomas em inglês —, um pesadelo.
— O diabo nos envia pesadelos — confirmou o padre. — Todo mundo sabe. Diga isso a ela.
Thomas traduziu para ela e depois afastou uma madeixa de cabelos dourados da testa de Eleanor e meteu-a por baixo do chapéu de tricô. Ele adorava o rosto dela, muito decidido e estreito, muito felino, mas com olhos grandes e uma boca expressiva.
— Foi apenas um pesadelo — assegurou-lhe ele —, un cauchemar.
— O Espantalho — disse Eleanor com um estremecimento —, ele é o cauchemar.
Thomas atraiu-a para um abraço.
— Ele não vai chegar perto de você — prometeu. Ele ouviu um canto ao longe, mas nada parecido com as solenes orações dos monges. Era um canto zombeteiro, insistente, forte como a batida de tambor que lhe dava o ritmo. Não conseguia ouvir as palavras, mas não precisava. — O inimigo — disse a Eleanor — está esperando por nós.
— Eles não são meus inimigos — disse ela, impetuosa.
— Se entrarem em Durham — retorquiu Thomas —, eles não vão saber disso. Vão pegar você de qualquer maneira.
— Todo mundo odeia os ingleses. Você sabia disso? Os franceses odeiam vocês, os bretões odeiam vocês, os escoceses odeiam vocês, todo mundo na cristandade odeia vocês! E por quê? Porque vocês adoram brigar! Adoram, sim! Todo mundo sabe disso em relação aos ingleses. E você? Não precisa lutar hoje, a briga não é sua, mas está ansioso por estar lá, para matar de novo!
Thomas não sabia o que dizer, porque havia verdade no que Eleanor acabara de dizer. Ele deu de ombros e apanhou o pesado arco.
— Eu luto pelo meu rei, e há um exército de inimigos no morro. Eles estão em superioridade numérica. Sabe o que vai acontecer se eles entrarem em Durham?
— Sei — disse Eleanor com firmeza, e sabia mesmo, porque estivera em Caen quando os arqueiros ingleses, desobedecendo ao rei, tinham-se lançado em massa pela ponte e dizimado a cidade.
— Se nós não lutarmos contra eles e não os detivermos aqui — disse Thomas —, os cavalarianos deles irão nos perseguir até acabarem com a gente. Um atrás do outro.
— Você disse que se casaria comigo — declarou Eleanor tornando a chorar. — Eu não quero que meu filho não tenha pai, não quero que ele seja como eu. — Ela queria dizer “ilegítimo”.
— Eu vou me casar com você, prometo. Quando a batalha terminar, nós nos casaremos em Durham. Na catedral, não? — Ele sorriu para ela. — Podemos nos casar na catedral.
Eleanor ficou contente com a promessa, mas estava furiosa demais para demonstrar a satisfação.
— Devíamos ir para a catedral agora — vociferou ela. — Lá ficaríamos a salvo. Devemos rezar no altar principal.
— Você pode ir para a cidade — disse Thomas. — Deixe eu combater os inimigos do meu rei e vá para a cidade, você e o padre Hobbe, e vocês encontrarão o velho monge e os dois poderão conversar com ele, e depois podem ir para a catedral e esperar por mim.
Ele desatrelou um dos grandes sacos que estavam no lombo da égua e tirou a cota de malha, que ergueu por cima da cabeça. O forro de couro estava duro e frio e cheirava a mofo. Forçou as mãos pelas mangas, prendeu o cinto da espada na cintura e pendurou a arma do lado direito.
— Vá para a cidade — disse ele a Eleanor — e fale com o monge.
Eleanor chorava.
— Você vai morrer — disse ela. — Eu sonhei com isso.
— Eu não posso ir para a cidade — protestou o padre Hobbe.
— O senhor é padre — vociferou Thomas —, não soldado! Leve Eleanor para Durham. Procure o irmão Collimore e converse com ele.
O prior insistira em que Thomas esperasse, e de repente pareceu muito sensato mandar o padre Hobbe para conversar com o velho monge antes que o prior envenenasse suas memórias.
— Vocês dois — insistiu Thomas — conversem com o irmão Collimore. Vocês sabem o que perguntar a ele. E eu me encontro com vocês lá, hoje à noite, na catedral.
Ele pegou seu morrião, com a aba larga para aparar o golpe de cima para baixo de uma lâmina, e amarrou-o à cabeça. Estava zangado com Eleanor, porque percebia que ela estava certa. A batalha iminente nada tinha a ver com ele, exceto quanto ao fato de que lutar era a sua profissão e a Inglaterra era a sua pátria.
— Eu não vou morrer — disse ele a Eleanor com uma irracionalidade obstinada — e você vai me ver hoje à noite.
Ele atirou as rédeas do cavalo para o padre Hobbe.
— Mantenha Eleanor a salvo — disse ao padre. — O Espantalho não vai arriscar coisa alguma dentro do mosteiro ou na catedral.
Quis dar um beijo de despedida em Eleanor, mas ela estava zangada com ele e ele estava zangado com ela, de modo que pegou seu arco e a sacola de flechas e afastou-se. Ela não disse nada, porque, tal como Thomas, era orgulhosa demais para desistir da discussão. Além do mais, sabia que tinha razão. Aquele embate com os escoceses não era uma luta de Thomas, ao passo que o Graal era dever dele. O padre Hobbe, apanhado no meio da teimosia dos dois, caminhou em silêncio, mas percebeu que Eleanor voltou-se mais de uma vez, evidentemente na esperança de pegar Thomas olhando para trás, mas tudo o que ela viu foi o amado subindo a trilha com o grande arco passado de través no ombro.
Era um arco enorme, mais alto do que a maioria dos homens e, à altura da barriga, era mais grosso do que o pulso de um homem. Era feito de teixo. Thomas estava razoavelmente certo de que era teixo italiano, embora nunca pudesse ter certeza, porque a aduela crua tinha sido jogada pelo mar na praia, vinda de um navio naufragado. Ele dera forma à aduela, deixando o centro grosso, e aquecera com vapor as pontas para curvá-las no sentido contrário àquele em que o arco iria curvar-se quando fosse armado. Pintara o arco de preto, usando cera, óleo e fuligem, e depois colocara nas duas pontas da aduela pedaços de chifre de veado, entalhados para segurar a corda. A aduela fora cortada de modo a fazer com que na barriga do arco, onde ele ficava voltado para Thomas quando ele esticava a corda de cânhamo, ficasse o cerne duro que era comprimido quando a flecha era puxada para trás, enquanto a parte externa da barriga era de alburno flexível. Quando ele soltava a corda o cerne saía da compressão e o alburno a puxava de novo para a forma original, os dois, atuando em conjunto, disparavam a flecha com uma força selvagem. A barriga do arco, no ponto em que a mão esquerda de Thomas segurava o teixo, estava enrolada com cânhamo, e acima do cânhamo, que tinha sido endurecido com cola feita de casco de animal, ele pregara um pedaço de prata cortado de um cálice de missa que seu pai usara na igreja de Hookton, e o pedaço de cálice de prata mostrava o yale com o Graal seguro por suas garras. O yale vinha do brasão de família de Thomas, embora ele não soubesse disso quando crescera, porque o pai nunca lhe contara a história. Ele nunca dissera a Thomas que ele era um Vexille, de uma família que tinha sido de senhores dos hereges cátaros, uma família que tivera de fugir quando incendiaram sua casa no sul da França, indo esconder-se nos cantos mais escuros da cristandade.
Thomas sabia pouca coisa sobre a heresia cátara. Ele conhecia o seu arco e sabia escolher uma flecha de freixo tenro ou vidoeiro ou carpa, e sabia emplumar a vara com penas de ganso e colocar nela uma ponta de aço. Ele sabia tudo isso, mas não sabia como fazer com que aquela flecha penetrasse em escudo, malha ou carne. Isso era instinto, algo que ele treinara desde a infância; treinara até que os dedos que seguravam a corda sangrassem; treinara até não pensar mais quando puxava a corda até junto à orelha; treinara até que, como todos os arqueiros, ficara de peito largo e com músculos enormes nos braços. Ele não precisava saber como usar um arco, aquilo era instintivo, tal como respirar, andar ou lutar.
Ele se voltou quando chegou a uma plataforma de carpas que protegia a trilha superior como um baluarte. Eleanor caminhava, teimosa, para longe, e Thomas sentiu vontade de gritar para ela, mas sabia que ela já estava longe demais e não iria ouvi-lo. Ele já discutira com ela antes; a Thomas parecia que homens e mulheres passavam metade da vida brigando e metade amando, e a intensidade da primeira alimentava a paixão da segunda, e quase sorriu, porque reconhecia a teimosia de Eleanor e até mesmo gostava dela; e então voltou-se e caminhou pelos pisoteados montes de folhas de carpa ao longo da trilha entre pastagens com muros de pedra onde centenas de garanhões selados pastavam. Eram os corcéis dos cavaleiros e soldados ingleses, e sua presença nos pastos indicou a Thomas que os ingleses esperavam que os escoceses atacassem, porque um cavaleiro tinha muito mais capacidade de se defender a pé. Os cavalos eram mantidos selados, para que os soldados com cotas de malha pudessem bater em retirada com rapidez ou então montar e perseguir um inimigo derrotado.
Thomas ainda não via o exército escocês, mas ouvia o canto dele, que era reforçado pelo infernal bater dos grandes tambores. O som estava deixando alguns dos garanhões no pasto nervosos, e três deles, perseguidos por pajens, galopavam ao lado do muro de pedra com os olhos mostrando o branco. Mais pajens exercitavam corcéis logo atrás da linha inglesa, que estava dividida em três batalhões. Cada batalhão tinha um grupo de cavalarianos no centro da fileira de trás, com os homens montados sendo os comandantes sob os brilhantes estandartes, enquanto à frente deles havia quatro ou cinco fileiras de soldados carregando espadas, machados, lanças e escudos, e à frente dos soldados, formando um grupo compacto nos espaços entre os três batalhões, ficavam os arqueiros.
Os escoceses, a uma distância de dois disparos de flechas dos ingleses, estavam num terreno ligeiramente mais elevado e também divididos em três divisões que, tal como os batalhões ingleses, estavam dispostas sob os aglomerados de estandartes de comandantes. A bandeira mais alta, o pavilhão real vermelho e amarelo, estava ao centro. Os cavaleiros e soldados escoceses, como os ingleses, estavam a pé, mas cada um dos seus sheltrons era muito maior do que seu adversário batalhão inglês, três ou quatro vezes maior, mas Thomas, alto o bastante para olhar por cima da linha inglesa, viu que não havia muitos arqueiros nas fileiras inimigas. Aqui e ali, ao longo da linha escocesa, ele viu algumas varas de arco longas e em meio ao maciço de piques viam-se algumas bestas, mas não havia, nem de longe, tantos arqueiros quanto na formação inglesa, embora os ingleses, por sua vez, estivessem numa enorme desvantagem numérica em relação ao exército escocês. Por isso a batalha, se batalha houvesse, seria entre flechas e piques e soldados escoceses, e se não houvesse flechas em número suficiente, a crista da montanha iria tornar-se um cemitério inglês.
O estandarte de Lorde Outhwaite, com a cruz e a concha de vieira, estava no batalhão da esquerda, e Thomas dirigiu-se a ele. O prior, agora desmontado, estava no espaço entre as divisões da esquerda e do centro, onde um de seus monges balançava um turíbulo e um outro brandia a toalha da missa em sua vara pintada. O próprio prior estava aos gritos, embora Thomas não soubesse dizer se ele gritava insultos ao inimigo ou orações a Deus, porque o cantar escocês estava muito alto. Thomas também não conseguia distinguir as palavras do inimigo, mas o sentido delas era bastante claro e tinha sua veemência aumentada pelo maciço som dos tambores.
Thomas via agora os enormes tambores e observava a paixão com que os tocadores batiam nos grandes couros para fazer um barulho tão surdo quanto o de um osso sendo quebrado. Alto, rítmico e reverberador, um assalto de trovão de romper o tímpano, e, à frente dos tambores, no centro da linha do inimigo, alguns homens barbados giravam numa dança selvagem. Eles chegaram vindos da retaguarda da linha escocesa e não usavam malha nem ferro, antes estavam envoltos em grossas camadas de tecido e brandiam espadas de lâmina comprida em volta da cabeça e tinham pequenos escudos redondos de couro, praticamente não maiores do que pratos usados para comida, amarrados ao antebraço esquerdo. Atrás deles, os soldados escoceses batiam os lados das espadas contra os escudos deles, enquanto os piqueiros batiam no chão com os cantos de suas armas compridas para aumentar o barulho dos enormes tambores. O som era tão volumoso que os monges do prior tinham abandonado seus cantos e agora limitavam-se a olhar para o inimigo.
— O que eles estão fazendo — Lorde Outhwaite, a pé como seus homens, tendo de levantar a voz para fazer-se ouvir — é tentar nos amedrontar com barulho antes de nos matarem.
Sua Alteza mancava, se devido à idade ou a algum ferimento antigo, Thomas não queria perguntar; era evidente que o homem queria um lugar onde pudesse andar de um lado para o outro e chutar a turfa, e por isso tinha ido conversar com os monges, apesar de agora voltar o rosto amável na direção de Thomas.
— E você deve ter o máximo de cuidado com esses patifes — disse ele apontando para os homens que dançavam —, porque eles são mais selvagens do que gatos escaldados. Dizem que esfolam os prisioneiros vivos. — Lorde Outhwaite fez o sinal-da-cruz. — Não é freqüente vê-los chegarem tanto ao sul assim.
— Eles? — perguntou Thomas.
— Pertencem a tribos do extremo norte — explicou um dos monges. Era um homem alto com uma franja de cabelos grisalhos, um rosto com cicatrizes e apenas um olho. — Patifes, é o que são — prosseguiu o monge —, patifes! Eles se curvam para ídolos! — Abanou a cabeça, triste. — Nunca fui tão ao norte assim, mas ouvi dizer que a terra deles está envolta num nevoeiro permanente e que se um homem morrer com um ferimento pelas costas, sua mulher come os filhos pequenos e atira-se dos penhascos, tamanha é a vergonha pelo acontecido.
— É mesmo? — perguntou Thomas.
— Foi o que ouvi dizer — disse o monge fazendo o sinal-da-cruz.
— Eles vivem alimentando-se de ninhos de pássaros, algas marinhas e peixe cru. — Lorde Outhwaite assumiu a narrativa e sorriu. — Veja bem, algumas pessoas do meu povo em Witcar fazem isso, mas pelo menos também rezam a Deus. Pelo menos, acho que rezam.
— Mas o seu povo não tem pés fendidos — disse o monge olhando firme para o inimigo.
— Os escoceses têm? — perguntou, ansioso, um monge muito mais moço, com um rosto horrivelmente marcado pela varíola.
— Os membros de clãs têm — disse Lorde Outhwaite. — Eles praticamente não são humanos! — Abanou a cabeça e estendeu uma das mãos para o monge mais velho. — É o irmão Michael, não é?
— Vossa Alteza me envaidece ao lembrar-se de mim — respondeu o monge, satisfeito.
— Ele já foi um soldado de Lorde Percy — explicou Lorde Outhwaite a Thomas —, e um bom soldado!
— Antes de eu perder isto para os escoceses — disse o irmão Michael erguendo o braço direito de modo que a manga de sua túnica escorregou para revelar o cotoco à altura do pulso — e isto — apontou para a órbita do olho vazia. — Por isso agora eu rezo em vez de lutar. — Voltou-se e olhou para a linha escocesa. — Eles hoje estão barulhentos — resmungou.
— Eles estão confiantes — disse placidamente Lorde Outhwaite —, e devem estar mesmo. Quando foi a última vez que um exército escocês foi numericamente superior a nós?
— Eles podem levar vantagem numérica — disse o irmão Michael —, mas escolheram um lugar estranho para isso. Deviam ter ido para a extremidade sul da crista da montanha.
— E deviam mesmo, irmão — concordou Lorde Outhwaite —, mas vamos dar graças por pequenos favores.
O que o irmão Michael queria dizer era que os escoceses estavam sacrificando a vantagem que tinham em número ao lutarem no estreito topo da montanha onde a linha inglesa, embora mais estreita e com muito menos homens, não podia ser envolvida. Se os escoceses tivessem ido mais para o sul, onde a crista se alargava à medida que descia até as planícies alagadas, eles poderiam ter desbordado o flanco do inimigo. A escolha de terreno podia ter sido um erro que ajudava os ingleses, mas isso era um pequeno consolo quando Thomas tentou fazer uma estimativa do tamanho do exército inimigo. Outros homens faziam o mesmo e os cálculos iam de seis a dezesseis mil, embora Lorde Outhwaite estimasse que não havia mais de oito mil escoceses.
— O que é apenas três ou quatro vezes o nosso tamanho — disse ele, alegre —, e eles não têm um número suficiente de arqueiros. Graças a Deus pelos arqueiros ingleses.
— Amém — disse o irmão Michael.
O monge mais moço, marcado pela varíola, olhava fascinado para a espessa linha escocesa.
— Ouvi dizer que os escoceses pintam o rosto de azul. Mas não vejo nenhum deles assim.
Lorde Outhwaite ficou pasmo.
— Você ouviu dizer o quê?
— Que eles pintam o rosto de azul, excelência — disse o monge, agora encabulado —, ou talvez pintem apenas metade do rosto. Para assustar a gente.
— Para assustar a gente? — Sua Alteza estava achando graça. — O mais provável é que seja para nos fazer rir. Nunca vi isso.
— Nem eu — interpôs o irmão Michael.
— Foi só o que eu ouvi dizer — disse o jovem monge.
— Eles já provocam medo sem pintura. — Lorde Outhwaite apontou para um estandarte em frente à sua parte da linha. — Vejo que Sir William está aqui.
— Sir William? — perguntou Thomas.
— Willie Douglas — disse Lorde Outhwaite. — Fui prisioneiro dele durante dois anos e ainda estou pagando aos banqueiros por causa disso. — Ele queria dizer que sua família tomara dinheiro emprestado para pagar o resgate. — Mas eu gostava dele, o canalha. E está lutando ao lado de Moray.
— Moray? — perguntou o irmão Michael.
— John Randolph, conde de Moray. — Lorde Outhwaite fez um gesto com a cabeça em direção a um outro estandarte perto da bandeira com coração vermelho de Douglas. — Eles se odeiam. Deus sabe por que estão juntos na linha.
Ele tornou a olhar para os tambores escoceses que se inclinavam bem para trás para equilibrar os grandes instrumentos na barriga.
— Odeio esses tambores — disse ele em tom suave. — Pintar a cara de azul! Nunca ouvi falar num absurdo desses! — Ele fez um muxoxo.
O prior agora estava discursando para os soldados mais próximos, dizendo-lhes que os escoceses tinham destruído a grande casa religiosa de Hexham.
— Eles profanaram a santa igreja de Deus! Mataram os confrades! Roubaram do próprio Cristo e fizeram lágrimas rolar pelas faces de Deus! Apliquem a vingança dele! Não tenham misericórdia!
Os arqueiros mais próximos flexionaram os dedos, lamberam os lábios e olharam para o inimigo, que não dava sinais de que iria avançar.
— Vocês vão matá-los — gritou o prior —, e Deus os abençoará por isso! Ele despejará bênçãos sobre vocês!
— Eles querem que a gente os ataque — observou o irmão Michael secamente. Ele parecia constrangido pela paixão do prior.
— Isso mesmo — disse Lorde Outhwaite —, e eles acham que vamos atacar a cavalo. Está vendo os piques?
— Eles também são bons contra homens a pé, excelência — disse o irmão Michael.
— São, sim, são, sim — concordou Lorde Outhwaite. — Os piques são terríveis.
Ele remexeu em alguns dos anéis soltos de sua cota de malha e pareceu surpreso quando um deles se soltou em seus dedos.
— Eu gosto do Willie Douglas — disse ele. — Nós íamos caçar juntos quando eu era prisioneiro dele. Eu me lembro de que pegamos uns javalis muito bons em Liddesdale. — Ele franziu o cenho. — Que tambores barulhentos!
— Nós vamos atacá-los? — O jovem monge tinha tomado coragem para perguntar.
— Deus me livre, não, espero que não — disse Lorde Outhwaite. — Nós estamos em inferioridade numérica! É muito melhor manter nossa posição e deixar que eles venham até nós.
— E se não vierem? — perguntou Thomas.
— Nesse caso, eles vão escapulir de volta para casa de bolsos vazios — disse Lorde Outhwaite — e não vão gostar disso, não vão gostar nada disso. Eles só estão aqui para saquear! É por isso que nos odeiam tanto.
— Odeiam a gente? Porque vieram aqui para saquear? — Thomas não compreendera o raciocínio de sua excelência.
— Eles são invejosos, meu rapaz! Simplesmente invejosos. Nós temos riqueza, eles não, e há poucas coisas mais calculadas para provocar o ódio do que um desequilíbrio desses. Eu tinha um vizinho em Witcar que parecia um sujeito razoável, mas ele e seus homens tentaram aproveitar-se de minha ausência quando eu era prisioneiro de Douglas. Tentaram roubar o dinheiro do meu resgate, se é que você pode acreditar! Parece que foi por pura inveja, porque ele era pobre.
— E agora ele está morto, excelência? — perguntou Thomas, achando graça.
— Meu Deus, não — disse Sua Excelência em tom de reprovação —, ele está num buraco muito profundo nos fundos da minha propriedade. Bem lá no fundo, com os ratos. De vez em quando eu jogo algumas moedas para ele, para fazê-lo lembrar-se do motivo pelo qual está lá.
Ele ficou na ponta dos pés e olhou para oeste, onde as montanhas eram mais altas. Estava à procura de soldados escoceses a cavalo que pudessem fazer um ataque pelo sul, mas não viu nenhum.
— O pai dele — disse, referindo-se a Robert the Bruce — não ficaria esperando aqui. Teria mandado homens a cavalo para rodear nossos flancos, a fim de nos deixar mortos de medo, mas esse rapazola não conhece o seu ofício, conhece? Ele está completamente no lugar errado!
— Ele está se fiando no número de homens — disse o irmão Michael.
— E talvez a quantidade deles seja suficiente — replicou Lorde Outhwaite em tom de lamentação e fez o sinal-da-cruz.
Thomas, agora que tinha a oportunidade de ver o terreno entre os dois exércitos, compreendeu o motivo pelo qual Lorde Outhwaite zombara tanto do rei escocês que dispusera seu exército logo ao sul dos chalés incendiados onde a cruz com o dragão tinha caído. Não era apenas o fato de a estreiteza da crista da montanha confinar os escoceses, negando-lhes a chance de flanquear os ingleses numericamente inferiores, mas que o campo de batalha mal escolhido era obstruído por espessas cercas de abrunheiro-bravo e pelo menos um muro de pedra. Nenhum exército poderia avançar através daqueles obstáculos e esperar manter a linha intacta, mas o rei escocês parecia confiante em que os ingleses iriam atacá-lo, porque não se mexia. Seus homens gritavam insultos na esperança de provocar um ataque, mas os ingleses mantinham-se teimosamente em suas posições.
Os escoceses zombaram ainda mais alto quando um homem alto, montando um majestoso cavalo, saiu do centro da linha inglesa. Seu garanhão tinha fitas roxas enroladas na crina preta e uma manta protetora roxa bordada com chaves douradas que era tão comprida que raspava no chão atrás das patas traseiras do cavalo. A cabeça do garanhão era protegida por uma máscara de couro na qual estava preso um chifre de prata, torcido como a arma de um unicórnio. O homem que o montava usava uma armadura que brilhava de tão polida e tinha um sobretudo sem mangas, de roxo e ouro, as mesmas cores exibidas pelo seu pajem, pelo porta-bandeira e pelos doze cavaleiros que o seguiam. O alto cavaleiro não tinha espada trazendo, em vez disso, uma grande maça com pontas, como a de Beggar. Os tamboreiros escoceses redobraram os esforços, os soldados escoceses berraram insultos e os ingleses ovacionaram até que o homem alto ergueu uma mão protegida por malha, pedindo silêncio.
— Vamos ouvir uma homilia de sua Excelência Reverendíssima — disse Lorde Outhwaite em tom de lamentação. — Sua Excelência Reverendíssima gosta muito do som de sua voz.
O homem alto era, evidentemente, o arcebispo de York e, quando as fileiras inglesas ficaram em silêncio, tornou a erguer a mão direita protegida por malha, bem acima de seu elmo com plumas roxas e fez um extravagante sinal-da-cruz.
— Dominus vobiscum — bradou ele. — Dominus vobiscum.
Ele percorria a fila repetindo a invocação.
— Vocês vão matar o inimigo de Deus hoje — bradava ele depois de cada promessa de que Deus estaria com os ingleses. Ele tinha que gritar para se fazer ouvir acima do barulho do inimigo. — Deus está com vocês, e vocês farão o trabalho dele fazendo muitas viúvas e órfãos. Irão encher a Escócia de dor, como um castigo justo pela impiedade atéia. O Senhor das Multidões está com vocês; a vingança de Deus é a tarefa de vocês!
O cavalo do arcebispo avançava altaneiro, a cabeça oscilando para cima e para baixo, enquanto Sua Excelência reverendíssima levava seu estímulo para os flancos do exército. Os últimos fiapos de névoa há muito se haviam derretido e, embora ainda houvesse um frio no ar, o sol tinha calor e sua luz refletia em milhares de lâminas escocesas. Duas carroças puxadas por um cavalo cada uma tinham chegado da cidade e doze mulheres distribuíam arenque seco, pão e odres de cerveja.
O escudeiro de Lorde Outhwaite levou um barril de arenque vazio para que sua excelência pudesse sentar-se. Um homem tocava uma flauta de bambu perto dali e o irmão Michael cantou uma velha canção do interior sobre a pele de texugo e o monge que vendia indulgências, e Lorde Outhwaite riu da letra e depois fez um sinal com a cabeça em direção ao terreno entre os dois exércitos onde dois cavalarianos, um de cada exército, se encontravam.
— Estou vendo que hoje nós estamos corteses — observou.
Um arauto inglês num tabardo vistoso tinha ido em direção aos escoceses, e um padre, apressadamente nomeado arauto da Escócia, tinha ido recebê-lo. Os dois homens inclinaram-se na sela, conversaram algum tempo e depois voltaram aos seus respectivos exércitos. O inglês, chegando perto da linha, abriu os braços num gesto que dizia que os escoceses estavam sendo teimosos.
— Eles vêm assim tão longe, no sul, e não querem lutar? — perguntou o prior, irritado.
— Eles querem que nós iniciemos a batalha — disse Lorde Outhwaite, tranqüilo —, e nós queremos que eles façam o mesmo.
Os arautos tinham se encontrado para discutir como a batalha devia ser travada e era evidente que cada um exigia que o outro lado começasse fazendo um ataque, e os dois lados tinham recusado o convite, de modo que agora tornaram a tentar provocar os ingleses com insultos. Alguns homens do inimigo avançavam até o raio de ação de um disparo de arco e berravam que os ingleses eram porcos e que suas mães eram porcas, e quando um arqueiro ergueu o arco para responder aos insultos um capitão inglês gritou com ele.
— Não desperdice flechas contra palavras — ordenou.
— Covardes! — Um escocês ousara chegar ainda mais perto da linha inglesa, bem na metade da faixa de alcance de um tiro de arco. — Seus bastardos covardes! Suas mães são putas que amamentaram vocês com mijo de bode! Suas mulheres são porcas! Putas e porcas! Estão me ouvindo? Seus bastardos! Ingleses bastardos! Vocês são excrementos do diabo!
A fúria do ódio dele fazia-o tremer. Ele tinha uma barba eriçada, um gibão esfarrapado e uma cota de malha com um grande corte na parte de trás, de modo que quando virava de costas e se curvava mostrava a bunda nua aos ingleses. Aquilo tinha a intenção de insultar, mas era saudado por um estouro de gargalhadas.
— Eles vão ter de nos atacar mais cedo ou mais tarde — declarou Lorde Outhwaite com calma. — Ou atacam ou voltam para casa sem nada, e não imagino que façam isso. Não se levanta um exército desse tamanho sem ter a esperança de tirar lucro.
— Eles saquearam Hexham — observou o padre, taciturno.
— E não conseguiram coisa alguma, a não ser quinquilharias — disse Lorde Outhwaite rejeitando a idéia. — Os verdadeiros tesouros de Hexham foram levados embora para um lugar seguro há muito tempo. Ouvi dizer que Carlisle pagou a eles o suficiente para ser deixado em paz, mas seria o bastante para deixar ricos oito ou nove mil homens? — Abanou a cabeça. — Aqueles soldados não recebem salário — disse ele a Thomas —, não são como os nossos. O rei da Escócia não tem dinheiro para pagar aos seus soldados. Não, eles querem fazer alguns prisioneiros ricos hoje e depois saquear Durham e York, e se não quiserem voltar para casa pobres e de mãos vazias é melhor erguerem os escudos e nos atacarem.
Mas ainda assim os escoceses não se mexiam e os ingleses eram muito poucos para fazer um ataque, embora constantemente chegassem homens que tinham se desgarrado, para reforçar o exército do arcebispo. Eram, em sua maioria, homens da região e poucos tinham qualquer tipo de armadura ou quaisquer armas além de ferramentas como machados e picaretas. Era quase meio-dia agora, e o sol expulsara o frio da terra, a ponto de Thomas estar suando debaixo do couro e da malha. Dois dos criados leigos do prior tinham chegado com uma carroça puxada a cavalo, carregada de tonéis de cerveja aguada, sacos de pão, uma caixa de maçãs e um grande queijo, e doze dos monges mais moços levaram as provisões ao longo da linha inglesa. A maioria dos membros do exército estava sentada agora, alguns até dormiam, e muitos dos escoceses faziam o mesmo. Até os tambores deles tinham desistido, colocando os grandes instrumentos no pasto. Doze corvos circulavam lá em cima, e Thomas, achando que a presença deles pressagiava morte, fez o sinal-da-cruz e depois ficou aliviado quando os pássaros pretos voaram para o norte, passando pelas tropas escocesas.
Um grupo de arqueiros chegara da cidade e estava enfiando quantas flechas pudessem em suas aljavas, sinal claro de que nunca tinham lutado com o arco, porque uma aljava era algo bastante inadequado em combate. As aljavas tendiam a derramar flechas quando o homem corria, e poucas tinham capacidade para mais de vinte pontas. Arqueiros como Thomas preferiam uma grande sacola feita de linho esticado sobre uma armação de vime, na qual as flechas ficavam em pé, evitando que as penas fossem esmagadas pela armação e com as pontas de aço projetando-se do pescoço da sacola, que era seguro por um cordão. Thomas selecionara suas flechas com cuidado, rejeitando todas que tivessem a haste empenada ou as penas tortas. Na França, onde muitos dos cavaleiros inimigos possuíam dispendiosas armaduras, os ingleses usavam flechas furadoras com pontas compridas, estreitas e pesadas sem rebarbas e por isso tinham mais probabilidade de furar peitorais ou elmos, mas ali ainda estavam usando as flechas de caça com as terríveis rebarbas que tornavam impossível retirá-las de um ferimento. Eram chamadas flechas de carne, mas mesmo uma flecha de carne podia furar malha a duzentos passos de distância.
Thomas dormiu um pouco no início da tarde, só acordando quando o cavalo de Lorde Outhwaite quase pisou nele. Sua Excelência, com os outros comandantes ingleses, tinha sido convocado pelo arcebispo, e por isso mandara trazer seu cavalo e, acompanhado do escudeiro, seguiu para o centro do exército. Um dos capelães do arcebispo percorreu a linha levando um crucifixo. O crucifixo tinha um saco de couro pendurado logo abaixo dos pés de Cristo e no saco, alegava o capelão, estavam os ossos dos nós dos dedos do martirizado Santo Osvaldo.
— Beijem o saco e Deus os poupará — prometia o capelão, e arqueiros e soldados se acotovelavam para não perderem essa chance de obedecer. Thomas não conseguiu chegar perto o bastante para beijar o saco, mas pôde esticar o braço e tocá-lo. Muitos homens tinham amuletos ou tiras de pano que lhes foram dados pelas esposas, amantes ou filhas quando deixaram suas fazendas ou casas para marchar contra os invasores. Eles agora tocavam naqueles talismãs enquanto os escoceses, sentindo que finalmente alguma coisa estava para acontecer, punham-se de pé. Um dos grandes tambores começou seu terrível barulho.
Thomas olhou a sua direita, onde conseguia ver apenas o topo das torres gêmeas da catedral e o estandarte hasteado na defesa do castelo. Àquela altura Eleanor e o padre Hobbe já deviam estar na cidade, e Thomas sentiu uma agonia de arrependimento por ter se separado de sua mulher com tanta raiva, e então agarrou o arco com força para que o toque da madeira pudesse protegê-la do mal. Consolou a si mesmo com a certeza de que Eleanor estaria a salvo na cidade, e à noite, depois de vencida a batalha, eles poderiam fazer as pazes. Então, supunha, eles se casariam. Não tinha certeza de que queria se casar, parecia muito cedo em sua vida para ter uma esposa, ainda que se tratasse de Eleanor, a quem ele tinha certeza de amar, mas estava igualmente certo de que ela iria querer que ele abandonasse o arco de teixo e passasse a viver numa casa, e isso era a última coisa que Thomas queria. O que ele queria era ser um chefe de arqueiros, ser um homem como Will Skeat. Queria ter o seu bando de arqueiros, que pudesse alugar a grandes senhores. Oportunidade não faltava. Dizia-se que os estados italianos pagariam uma fortuna por arqueiros ingleses, e Thomas queria uma parte daquilo, mas era preciso cuidar de Eleanor e ele não queria que o filho deles fosse um bastardo. Já havia bastardos suficientes no mundo.
Os senhores ingleses conversaram durante algum tempo. Havia uma dúzia deles e eles estavam sempre olhando para o inimigo e Thomas estava perto o bastante para ver a ansiedade estampada nos rostos. Seria preocupação com o fato de o inimigo ser numeroso demais? Ou de que os escoceses estavam se recusando a lutar e, no nevoeiro da manhã seguinte, pudessem desaparecer em direção ao norte?
O irmão Michael se aproximou e apoiou os velhos ossos no barril de arenque que servira de assento a Lorde Outhwaite.
— Eles vão mandar vocês, os arqueiros, avançarem. É o que eu faria. Mandar vocês, arqueiros, avançarem para provocar os bastardos. Ou isso, ou fazê-los bater em retirada, mas não se expulsa escoceses com essa facilidade. São uns bastardos valentes.
— Valentes? Então por que não estão atacando?
— Porque não são bobos. Eles estão vendo isto. — O irmão Michael tocou a vara preta do arco de Thomas. — Sabem o que os arqueiros podem fazer. Já ouviu falar no monte Halidon? — Ergueu as sobrancelhas num gesto de surpresa quando Thomas abanou a cabeça. — É claro, você é do sul. Cristo poderia aparecer de novo no norte e vocês, sulistas, nunca ficariam sabendo ou nunca iriam acreditar, se o soubessem. Mas já faz treze anos que eles nos atacaram por Berwick e nós os dizimamos em ondas. Ou os nossos arqueiros dizimaram, e eles não devem sentir-se entusiasmados por terem o mesmo destino aqui.
O irmão Michael franziu o cenho quando se ouviu um pequeno estalido.
— O que foi isso?
Alguma coisa tocara o elmo de Thomas e ele se voltou para ver o Espantalho, Sir Geoffrey Carr, que estalara seu chicote, apenas roçando a garra de metal que havia na ponta no alto do morrião de Thomas. Sir Geoffrey enrolou o chicote enquanto zombava de Thomas.
— Protegendo-se atrás das saias dos monges, é?
O irmão Michael conteve Thomas.
— Vá embora, Sir Geoffrey — ordenou o monge —, antes que eu lance uma maldição sobre a sua alma negra.
Sir Geoffrey enfiou um dedo em uma das narinas e tirou dali algo pegajoso que atirou na direção do monge.
— Pensa que me amedronta, seu bastardo caolho? Você, que perdeu as bolas quando sua mão foi decepada? — Ele soltou uma gargalhada e tornou a olhar para Thomas. — Você provocou uma briga comigo, rapaz, e não me deu a chance de terminá-la.
— Agora, não! — retrucou o irmão Michael.
Sir Geoffrey ignorou o monge.
— Indo contra os seus superiores, rapaz? Você pode ser enforcado por isso. Não — ele estremeceu e apontou um longo e ossudo dedo para Thomas —, você vai ser mesmo enforcado por isso! Está ouvindo? Vai ser enforcado por isso.
Cuspiu em Thomas e girou seu ruão esporeando-o de volta para a linha.
— Como conhece o Espantalho? — perguntou o irmão Michael.
— Acabamos de nos conhecer.
— Uma criatura má — disse o irmão Michael fazendo o sinal-da-cruz —, nascido numa noite de lua minguante, quando caía uma tempestade. — Ele continuava observando o Espantalho. — Dizem que Sir Geoffrey deve dinheiro ao próprio diabo. Ele teve de pagar um resgate a Douglas de Liddesdale e para isso levantou empréstimos altíssimos junto aos banqueiros. O solar, os campos, tudo o que ele tem corre perigo se não puder pagar, e mesmo que ele ganhe uma fortuna hoje irá jogá-la fora nos dados. O Espantalho é um tolo, mas um tolo perigoso. — O irmão voltou o olho solitário para Thomas. — Você provocou mesmo uma briga com ele?
— Ele quis estuprar minha mulher.
— Ah, esse é o nosso Espantalho. Pois tome cuidado, rapaz, porque ele não esquece desfeitas e nunca as perdoa.
Os senhores ingleses deviam ter chegado a algum acordo, porque estenderam os punhos protegidos com malha e tocaram nó de dedo de metal em nó de dedo de metal; depois Lorde Outhwaite girou o cavalo e voltou para junto de seus homens.
— John! John! — bradou ele para o capitão de seus arqueiros. — Não vamos esperar que eles tomem uma decisão — disse, desmontando. — Nós é que os provocaremos.
Parecia que o prognóstico do irmão Michael estava certo; os arqueiros teriam ordem de avançar para provocar os escoceses. O plano era enraivecê-los com flechas e, assim, instigá-los a um ataque apressado.
Um escudeiro montou no cavalo de Lorde Outhwaite e levou-o de volta para o pasto murado, enquanto o arcebispo de York andava no seu corcel em frente ao exército.
— Deus irá ajudá-los! — bradava para os homens da divisão central que ele comandava. — Os escoceses têm medo de nós! — gritou. — Eles sabem que com a ajuda de Deus deixaremos muitas crianças órfãs na sua terra empestada! Eles ficam parados e nos observam porque têm medo de nós. Por isso temos de atacá-los.
Aquele sentimento provocou uma ovação. O arcebispo ergueu a mão para calar seus homens.
— Quero que os arqueiros se adiantem — bradou —, só os arqueiros! Acertem-nos! Matem-nos! E que Deus abençoe todos vocês. Que Deus os abençoe muito!
Com que então os arqueiros iriam dar início ao combate... Os escoceses negavam-se teimosamente a se mexer, na esperança de que os ingleses fizessem o ataque, porque era muito mais fácil defender uma posição do que assaltar um inimigo formado, mas agora os arqueiros ingleses iriam adiantar-se para incitar, atormentar e hostilizar o inimigo até que ele fugisse ou, o que era mais provável, avançasse para vingar-se.
Thomas já escolhera sua melhor flecha. Era nova, tão nova que a cola tingida de verde que fora passada em torno da linha que prendia as penas ainda estava pegajosa, mas tinha uma haste peituda, haste ligeiramente mais larga atrás da cabeça e que depois ia afinando no sentido das penas. Uma haste daquelas batia forte e era uma bela peça reta de freixo, com o terço do comprimento do braço de Thomas, e este não iria desperdiçá-la, muito embora seu disparo de abertura fosse feito a uma distância muito grande.
Seria um tiro longo, porque o rei escocês estava atrás do grande sheltron central de seu exército, mas não seria um lançamento impossível, porque o arco preto era enorme e Thomas era jovem, forte e preciso na mira.
— Deus esteja com vocês — disse o irmão Michael.
— Mirem bem! — bradou Lorde Outhwaite.
— Que Deus dirija suas flechas! — gritou o arcebispo de York.
Os tambores soaram mais alto, os escoceses zombaram e os arqueiros da Inglaterra avançaram.
Bernard de Taillebourg já sabia muita coisa do que o velho monge estava contando, mas agora que a história fluía não o interrompeu. Era a história de uma família cujos membros tinham sido senhores de um obscuro condado no sul da França. O condado tinha o nome de Astarac, ficava perto das terras cátaras e com o tempo fora contaminado pela heresia.
— O falso ensinamento espalhou-se — dissera o irmão Collimore — como uma peste. Do mar interno ao oceano, e para o norte, entrando na Borgonha.
O padre de Taillebourg sabia de tudo isso, mas não disse nada, apenas deixou que o velho homem continuasse a descrever como, quando os cátaros foram obrigados a deixar a terra por força de incêndios e o fogo da morte deles enviara a fumaça aos céus, para dizer a Deus e Seus anjos que a verdadeira religião tinha sido restaurada nas terras entre a França e Aragão, os Vexille, que estavam entre os últimos membros da nobreza a serem contaminados pelo mal cátaro, tinham fugido para os pontos mais distantes da cristandade.
— Mas antes de ir embora — disse o irmão Collimore erguendo os olhos para o arco do teto pintado de branco — eles levaram os tesouros dos hereges para protegê-los.
— E o Graal estava entre esses tesouros?
— É o que dizem, mas quem pode saber? — O irmão Collimore voltou a cabeça e franziu o cenho para o dominicano. — Se possuíam o Graal, por que este não os ajudou? Eu nunca compreendi isso.
Fechou os olhos. Às vezes, quando o velho fazia uma pausa para tomar fôlego e quase parecia adormecido, de Taillebourg olhava pela janela para ver os dois exércitos na montanha ao longe. Eles não se mexiam, embora o barulho que faziam parecesse o estalar e o rugir de uma grande fogueira. O rugir era o barulho de vozes masculinas e o estalar eram os tambores, e os sons gêmeos subiam e desciam com os caprichos do vento que açoitava o desfiladeiro rochoso acima do rio Wear. O criado do padre de Taillebourg ainda estava em pé à porta, onde ficava meio escondido por uma das muitas pilhas de pedras sem revestimento que se erguiam no espaço aberto entre o castelo e a catedral. Andaimes escondiam a torre da catedral que ficava mais perto, e meninos, ansiosos por darem uma olhada no combate, subiam desajeitados pela teia de vigas amarradas. Os pedreiros tinham abandonado o trabalho para observar os dois exércitos.
Agora, depois de levantar a dúvida sobre o motivo pelo qual o Graal não ajudara os Vexille, o irmão Collimore caiu num breve sono profundo e de Taillebourg foi até o seu criado vestido de preto.
— Você acredita nele?
O criado deu de ombros e não disse nada.
— Algum detalhe o deixou surpreso? — perguntou de Taillebourg.
— O de que o padre Ralph tem um filho — respondeu o criado. — Para mim, isso foi novidade.
— Temos de conversar com esse filho — disse o dominicano, sério, e então voltou para o seu lugar, porque o velho monge acordara.
— Onde é que eu estava? — perguntou o irmão Collimore, um pequeno fio de saliva escorrendo de um canto da boca.
— Estava se perguntando por que o Graal não ajudou os Vexille — lembrou-lhe Bernard de Taillebourg.
— Devia ter ajudado — disse o velho monge. — Se possuíam o Graal, por que não ficaram poderosos?
O padre de Taillebourg sorriu.
— Suponha — disse ele ao velho monge — que os infiéis muçulmanos conseguissem apoderar-se do Graal. Acha que Deus daria esse poder a eles? O Graal é um grande tesouro, irmão, o maior de todos os tesouros da Terra, mas não é maior do que Deus.
— Não é — concordou o irmão Collimore.
— E se Deus não aprovar o possuidor do Graal, este não terá poder algum.
— É — reconheceu o irmão Collimore.
— Você disse que os Vexille fugiram?
— Eles fugiram dos inquisidores — disse o irmão Collimore com um olhar sonso para de Taillebourg —, e um ramo da família veio aqui para a Inglaterra, onde prestou algum serviço ao rei. Não o nosso rei atual, claro — ressalvou o velho monge —, mas o bisavô dele, o último Henrique.
— Que serviço? — perguntou de Taillebourg.
— Eles deram ao rei uma pata do cavalo de São Jorge. — O monge falava como se tais coisas fossem corriqueiras. — Uma pata engastada em ouro e capaz de fazer milagres. Pelo menos o rei acreditava que sim, porque o filho dele ficou curado de uma febre ao ser tocado com a pata. Disseram-me que a pata ainda está na abadia de Westminster.
A família tinha sido recompensada com terras em Cheshire, prosseguiu Collimore, e se eram hereges, seus membros não o demonstravam, antes viviam como qualquer outra família nobre. A derrocada deles, disse ele, chegara no início do reinado presente, quando a mãe do jovem rei, ajudada pela família Mortimer, tentara evitar que o filho assumisse o poder. Os Vexille tinham se aliado à rainha, e quando ela perdeu eles fugiram de volta para o continente.
— Todos eles exceto um dos filhos — disse o irmão Collimore —, o mais velho, e era Ralph, claro. Pobre Ralph.
— Mas, se a família tinha fugido de volta para a França, por que você cuidou dele? — perguntou de Taillebourg, a perplexidade desfigurando o rosto que tinha crostas de sangue nos arranhões nos pontos em que ele se batera contra a pedra naquela manhã. — Por que não executá-lo como traidor?
— Ele se ordenara padre — protestou Collimore —, não podia ser executado! Além do mais, era sabido que ele odiava o pai e que se declarara a favor do rei.
— Com que então não era de todo louco — disse secamente de Taillebourg.
— Ele também tinha dinheiro — prosseguiu Collimore —, era nobre e alegara conhecer o segredo dos Vexille.
— Os tesouros cátaros?
— Mas o demônio estava nele até mesmo naquela época! Ele se dizia bispo e pregava sermões alucinados nas ruas de Londres. Dizia que iria chefiar uma nova cruzada para expulsar o infiel de Jerusalém e prometia que o Graal iria garantir o sucesso.
— E por isso você o trancafiou?
— Ele foi mandado para mim — disse o irmão Collimore em tom de reprovação —, porque sabiam que eu sabia derrotar demônios. — Ele fez uma pausa, recordando-se. — Na minha vida, eu açoitei centenas deles! Centenas!
— Mas você não curou Ralph Vexille por completo?
O monge abanou a cabeça.
— Ele parecia um homem esporeado e chicoteado por Deus, de modo que chorava e gritava e se autoflagelava até correr sangue. — O irmão Collimore, sem saber que poderia estar descrevendo de Taillebourg, estremeceu. — E também era perseguido pelas mulheres. Acho que nunca o curamos disso, mas, se não tiramos todos os demônios dele, conseguimos fazer com que eles se escondessem tão profundamente que raramente ousavam mostrar-se.
— Será que o Graal foi um sonho transmitido a ele por demônios? — perguntou o dominicano.
— Era o que queríamos saber — respondeu o irmão Collimore.
— E que resposta vocês obtiveram?
— Eu disse aos meus superiores que o padre Ralph mentia. Que ele tinha inventado o Graal. Que não havia nada de verdade na sua loucura. E então, quando os demônios dele já não o transformavam num flagelo, ele foi mandado para uma paróquia lá no sul, onde podia pregar para as gaivotas e as focas. Ele já não alegava ser um senhor, era simplesmente o padre Ralph, e nós o mandamos embora para ser esquecido.
— Para ser esquecido? — repetiu de Taillebourg. — No entanto vocês tiveram notícias dele. Descobriram que ele tinha um filho.
O velho monge confirmou com a cabeça.
— Tínhamos uma casa irmã perto de Dorchester e eles me mandaram notícias. Disseram que o padre Ralph havia arranjado uma mulher, uma governanta, mas que padre do interior não faz isso? E ele teve um filho e pendurou uma velha lança na igreja dele e disse que era a lança de São Jorge.
De Taillebourg olhou para a montanha a oeste, porque o barulho ficara muito mais alto. Parecia que os ingleses, que eram de longe o exército menor, estavam avançando e isso significava que iriam perder a batalha, e isso queria dizer que o padre de Taillebourg teria de sair daquele mosteiro, na verdade sair daquela cidade, antes que Sir William Douglas chegasse à procura de vingança.
— Você disse aos seus superiores que o padre Ralph mentia. Mentia mesmo?
O velho monge fez uma pausa, e para de Taillebourg parecia que o próprio firmamento prendera a respiração.
— Não acho que ele mentisse — sussurrou Collimore.
— Então por que disse aos seus superiores que ele mentia?
— Porque eu gostava dele — disse o irmão Collimore — e não achava que devêssemos arrancar a verdade dele na base do chicote, ou fazê-lo passar fome até confessar, ou arrancá-la tentando afogá-lo em água fria. Eu achava que ele era inofensivo e devia ser deixado a cargo de Deus.
De Taillebourg olhou pela janela. O Graal, pensou ele, o Graal. Os cães de Deus estavam seguindo o seu rastro. Ele iria encontrá-lo!
— Um dos membros da família voltou da França — disse o dominicano —, e roubou a lança e matou o padre Ralph.
— Eu soube disso.
— Mas eles não acharam o Graal.
— Graças a Deus — disse baixinho o irmão Collimore.
De Taillebourg ouviu um movimento e viu que o seu criado, que estivera ouvindo com atenção, agora olhava para o pátio. O criado devia ter ouvido alguém se aproximando, e de Taillebourg, inclinando-se mais para perto do irmão Collimore, baixou a voz para que ninguém mais o ouvisse.
— Quantas pessoas sabem a respeito do padre Ralph e o Graal?
O irmão Collimore refletiu por alguns segundos.
— Ninguém falou nisso em anos — disse ele —, até que o novo bispo chegou. Ele deve ter ouvido rumores, porque me perguntou sobre o caso. Disse-lhe que Ralph Vexille era louco.
— Ele acreditou em você?
— Ficou desapontado. Ele queria o Graal para a catedral.
Claro que queria, pensou de Taillebourg, porque qualquer catedral que possuísse o Graal iria tornar-se a igreja mais rica da cristandade. Até mesmo Gênova, que tinha a vistosa peça de vidro verde que eles alegavam ser o Graal, tirava dinheiro de milhares de peregrinos. Mas coloque o verdadeiro Graal numa igreja, e o povo virá às centenas de milhares, trazendo moedas e jóias às toneladas. Reis, rainhas, príncipes e duques vão encher a nave e competir para oferecer sua riqueza.
O criado desaparecera, esgueirando-se sem fazer barulho para trás de uma das pilhas de pedras de cantaria, e de Taillebourg esperou, vigiando a porta e imaginando que problema iria surgir por ali. Então, em vez de encrenca, apareceu um padre jovem. Ele usava uma batina de tecido cru, tinha cabelos revoltos e um rosto largo, franco, queimado do sol. Uma mulher jovem, pálida e frágil, estava com ele. Ela parecia nervosa, mas o padre saudou de Taillebourg com animação.
— Bom dia, padre.
— Bom dia, padre — respondeu de Taillebourg, delicado. Seu criado reaparecera por trás dos estranhos, impedindo que eles saíssem, a menos que de Taillebourg desse permissão.
— Estou ouvindo a confissão do irmão Collimore — disse de Taillebourg.
— Uma boa confissão, espero eu — disse o padre Hobbe sorrindo. — O senhor não parece inglês, padre.
— Sou francês — disse de Taillebourg.
— Como eu — disse Eleanor naquela língua —, e nós viemos conversar com o irmão Collimore.
— Conversar com ele? — perguntou de Taillebourg, cortês.
— O bispo nos mandou aqui — disse Eleanor, orgulhosa —, e o rei também.
— Que rei, minha jovem?
— Edouard d’Angleterre — jactou-se Eleanor. O padre Hobbe, que não falava francês, olhava de Eleanor para o dominicano.
— Por que Eduardo enviaria vocês? — perguntou de Taillebourg e, quando Eleanor pareceu confusa, repetiu a pergunta: — Por que Eduardo enviaria vocês?
— Não sei, padre — disse Eleanor.
— Acho que sabe, menina, acho que sabe.
Ele se levantou, e o padre Hobbe, pressentindo problemas, agarrou o pulso de Eleanor e tentou puxá-la para fora do quarto, mas de Taillebourg fez um sinal com a cabeça para o seu criado e um gesto em direção ao padre Hobbe, e este ainda tentava compreender por que desconfiava do dominicano quando a faca deslizou entre suas costelas. Ele fez um ruído como se estivesse engasgado, depois tossiu, e a respiração chocalhou em sua garganta enquanto ele desabava sobre as pedras do chão. Eleanor tentou fugir, mas não foi rápida o suficiente e de Taillebourg agarrou-a pelo pulso e empurrou-a com brutalidade de volta. Ela gritou, mas o dominicano silenciou-a pressionando uma das mãos sobre sua boca.
— O que está acontecendo? — perguntou o irmão Collimore.
— Estamos fazendo a obra de Deus — disse de Taillebourg acalmando-o. — A obra de Deus.
E na crista da montanha as flechas voaram.
Thomas avançou com os arqueiros do batalhão esquerdo, e eles não tinham avançado mais de vinte metros quando, logo do outro lado de um fosso, uma encosta e alguns pés de abrunheiro-bravo recém-plantados, foram obrigados a desviar-se para a direita, porque uma grande cavidade tinha sido feita no flanco da crista do morro para deixar um buraco com lados íngremes demais para o arado. O buraco estava cheio de samambaia que ficara amarela e do outro lado havia um muro de pedras coberto de liquens, e a sacola de flechas de Thomas prendeu e rasgou-se num pedaço bruto da crista do muro enquanto ele subia para passar para o outro lado. Só uma flecha caiu, mas foi dentro de um círculo mais escuro de cogumelos, e ele tentou entender se aquilo era um sinal de azar ou de sorte, mas o barulho dos tambores escoceses desviou sua atenção. Ele apanhou a flecha e avançou depressa. Àquela altura, todos os tambores inimigos estavam trabalhando, batucando nos couros num frenesi, a ponto de o próprio ar parecer vibrar. Os soldados escoceses estavam erguendo os escudos, certificando-se de que protegiam os piqueiros, e um besteiro mexia no lingüete de catraca que puxava a corda para trás e encaixou-a no gancho do gatilho. O homem ergueu os olhos, aflito, para os arqueiros ingleses que avançavam, e então jogou fora os cabos do lingüete e colocou um quadrelo de metal no canalete de disparo da besta. O inimigo começara a gritar e agora Thomas conseguia distinguir algumas palavras. “Se você odeia os ingleses”, ouviu ele, e então uma seta de besta passou zumbindo por ele e ele esqueceu o canto do inimigo. Centenas de arqueiros ingleses estavam avançando pelos campos, a maioria correndo. Os escoceses tinham apenas umas poucas bestas, mas aquelas armas tinham um alcance maior do que o dos arcos de guerra, mais compridos, dos ingleses, que estavam se apressando para diminuir a distância. Uma flecha resvalou na grama em frente a Thomas. Não uma seta de besta, mas uma flecha de um dos poucos arcos de teixo escoceses, e a visão da flecha disse a Thomas que ele estava quase no raio de alcance. Os primeiros dos arqueiros ingleses tinham parado e puxado as cordas, e então suas flechas adejaram no céu. Um arqueiro vestindo um gibão de couro forrado caiu para trás com uma seta de besta enfiada na testa. Sangue jorrou para o céu, para onde a sua última flecha, disparada quase que na vertical, voou inutilmente.
— Mirem nos arqueiros! — gritou um homem com um peitoral enferrujado. — Matem primeiro os arqueiros!
Thomas parou e procurou a bandeira real. Ela estava à sua direita, muito longe, mas no seu tempo ele já tinha atirado contra alvos mais distantes, e por isso voltou-se e se concentrou e então, em nome de Deus e de São Jorge, encaixou a flecha escolhida na corda e puxou as penas brancas de ganso até chegar à orelha. Ele estava olhando para o rei David II da Escócia, viu o sol refletir-se em ouro no elmo real, viu também que a viseira do rei estava aberta e mirou para o peito, deslocou o arco para a direita, a fim de compensar o vento, e soltou. A flecha saiu perfeita, não vibrando como faria uma flecha malfeita, e Thomas a viu subir e viu-a cair e viu que o rei teve um movimento espasmódico para trás, e então os cortesãos cercaram-no e Thomas colocou a segunda flecha na mão esquerda e procurou outro alvo. Um arqueiro escocês saía da linha mancando, com uma flecha na perna. Os soldados rodearam o ferido, isolando a linha com escudos pesados. Thomas ouvia cães ladrando entre a formação inimiga ou talvez estivesse ouvindo o uivo de guerra dos homens das tribos. O rei se afastara e homens inclinavam-se em sua direção. O céu estava cheio do sussurro das flechas em vôo e o barulho dos arcos era uma música invariável, grave. Os franceses a chamavam de música da harpa do diabo. Thomas não via mais nenhum arqueiro escocês. Todos eles tinham sido alvos para os arqueiros ingleses e as flechas tinham transformado os arqueiros inimigos numa miséria sangrenta, de modo que agora os ingleses voltavam seus projéteis para os homens com piques, espadas, machados e lanças. Os homens das tribos, todos cabelos, barba e fúria, ficavam atrás dos soldados, que estavam dispostos em fileiras de seis ou oito homens, de modo que as flechas chocalhavam e retiniam em armaduras e escudos. Os cavaleiros, soldados e porta-piques escoceses protegiam-se da melhor maneira possível, agachando-se sob a cruel chuva de aço, mas algumas flechas sempre achavam as brechas entre os escudos, enquanto outras atravessavam com perfeição as placas de salgueiro cobertas de couro. O som surdo das flechas atingindo os escudos rivalizava com o barulho mais estridente dos tambores.
— Avancem, rapazes! Avancem! — Um dos líderes dos arqueiros encorajava seus homens a se aproximarem mais vinte passos do inimigo, para que suas flechas penetrassem mais nas fileiras escocesas. — Matem eles, rapazes!
Dois de seus homens jaziam na grama, prova de que os arqueiros escoceses tinham causado algum dano antes de serem abatidos pelas flechas inglesas. Um outro inglês cambaleava como se estivesse bêbado, dando voltas e indo na direção de seu próprio lado e agarrando a barriga, da qual escorria sangue pelas perneiras. A corda de um arco arrebentou, atirando a flecha para o lado, enquanto o arqueiro praguejava e enfiava a mão sob a túnica, à procura de uma sobressalente.
Os escoceses agora nada podiam fazer. Não lhes restavam arqueiros e os ingleses se aproximavam cada vez mais, até poderem disparar as flechas numa trajetória nivelada que fazia com que as pontas de aço perfurassem escudos, malha e até mesmo a rara armadura. Thomas estava a praticamente setenta metros da linha inimiga e escolhia os alvos com fria deliberação. Ele viu a perna de um homem aparecendo sob um escudo e mandou uma flecha que lhe atravessou a coxa. Os tambores tinham fugido, e dois de seus instrumentos, os couros rasgados como fruta podre, jaziam abandonados sobre a turfa. O cavalo de um nobre estava bem atrás das fileiras desmontadas e Thomas acertou uma flecha que penetrou fundo no peito do corcel e, da outra vez que olhou, o animal estava caído e houve uma comoção de homens em pânico que tentavam fugir de suas patas agitadas, e todos aqueles homens, expondo-se ao deixarem os escudos oscilar, caíram sob a ferroada das flechas, e então, um instante depois, uns doze cães de caça, pêlos compridos, dentes amarelos e uivando, saíram das fileiras que se agachavam e foram derrubados pelas flechas cortantes.
— É sempre assim tão fácil? — perguntou um garoto, evidentemente em sua primeira batalha, a um arqueiro que estava perto.
— Se o outro lado não tiver arqueiros — respondeu o homem mais velho — e enquanto as nossas flechas durarem, é fácil. Depois disso, é difícil pra cacete.
Thomas puxou e soltou, disparando num ângulo para a frente escocesa, para colocar uma flecha longa atrás de um escudo e no rosto de um homem barbudo. O rei escocês ainda estava montado em seu cavalo, mas agora protegido por quatro escudos que estavam, todos, cheios de flechas espetadas e Thomas lembrou-se dos cavalos franceses subindo com dificuldade a encosta da Picardia com as flechas com pontas de penas espetadas nos pescoços, pernas e corpos. Ele remexeu na sacola usada de flechas, encontrou um outro projétil e disparou-a contra o cavalo do rei. O inimigo agora estava sob o ataque de mangual, e ou fugia da tempestade de flechas ou então, enfurecido, atacava o exército inglês, que era menor, e a julgar pelos gritos que vinham dos homens que estavam atrás dos escudos espetados de flechas Thomas suspeitou de que eles iriam atacar.
Estava certo. Teve tempo de disparar uma última flecha e então ouviu-se um súbito rugir aterrorizante. Toda a linha escocesa, aparentemente sem que ninguém tivesse dado a ordem, atacou. Eles corriam uivando e gritando, incitados ao ataque pelas flechas, e os arqueiros ingleses fugiram. Milhares de escoceses enfurecidos estavam atacando, e os arqueiros, ainda que disparassem todas as flechas que possuíam contra a horda que avançava, seriam dominados num instante, e por isso correram para procurar abrigo atrás de seus soldados. Thomas tropeçou enquanto trepava no muro de pedra, mas levantou-se e continuou correndo, e então viu que outros arqueiros tinham parado e atiravam contra os seus perseguidores. O muro de pedra estava dificultando o avanço dos escoceses e ele mesmo voltou-se e mandou duas flechas em homens indefesos antes de o inimigo vencer a barreira numa onda e obrigá-lo a recuar de novo. Ele corria em direção à pequena brecha na linha inglesa, onde tremulava o manto de São Cuthbert, mas o espaço estava entupido de arqueiros que tentavam ir para trás da linha com armadura, de modo que Thomas foi para a direita, visando à faixa de chão aberto que ficava entre o flanco do exército e o lado íngreme da montanha.
— Escudos à frente! — gritou para os soldados ingleses um guerreiro grisalho, o visor do elmo erguido. — Agüentem firme! Agüentem firme!
A linha inglesa, com apenas quatro ou cinco fileiras, firmara-se para enfrentar o ataque alucinado com os escudos à frente e a perna direita para trás, buscando apoio.
— São Jorge! São Jorge! — bradou um homem. — Agüentem firme agora! Golpeiem com força e agüentem firme!
Thomas estava agora no flanco do exército e voltou-se para ver que os escoceses, em seu avanço precipitado, tinham ampliado sua linha. Eles tinham sido dispostos ombro a ombro na primeira posição, mas agora, correndo, tinham-se espalhado e isso significava que o sheltron que ficava no extremo oeste tinha sido empurrado encosta abaixo e para dentro do fosso profundo que estreitava de forma tão inesperada o campo de batalha. Eles estavam no fundo do fosso olhando para cima, para o céu, condenados.
— Arqueiros! — berrou Thomas, imaginando-se de volta à França e responsável por uma tropa de arqueiros de Will Skeat. — Arqueiros! — gritou, avançando até a borda do fosso. — Matem eles agora!
Homens foram para o lado dele, tiveram um grito de triunfo e puxaram suas cordas.
Agora era a hora da matança, a hora dos arqueiros. A ala direita escocesa estava no terreno que afundara e os arqueiros estavam acima deles e não podiam errar. Dois monges estavam trazendo feixes de flechas sobressalentes, cada feixe contendo vinte e quatro flechas colocadas com a mesma distância entre si em torno de dois discos de couro que mantinham as flechas separadas e, com isso, protegiam as penas, evitando que fossem esmagadas. Os monges cortaram o barbante que segurava as flechas e despejaram-nas no chão ao lado dos arqueiros que puxavam uma após outra e matavam uma vez após outra, enquanto atiravam para baixo, para o fosso da morte. Thomas ouvia o barulho ensurdecedor quando os soldados colidiam no centro do campo, mas ali, na esquerda inglesa, os escoceses jamais chegariam aos escudos do inimigo, porque tinham mergulhado na baixa samambaia amarelada do reino da morte.
Thomas passara sua infância em Hookton, uma aldeia na costa sul da Inglaterra onde um rio, desaguando no mar, cavara um canal profundo na praia de cascalho. O canal fazia uma curva para deixar um gancho de terra que protegia os barcos pesqueiros e uma vez ao ano, quando os ratos ficavam muito numerosos nos porões e fundos dos cascos, os pescadores encalhavam suas embarcações no fundo do rio, enchiam os porões com pedras e deixavam que a preamar inundasse os fedorentos cascos. Era um dia de festa para as crianças da aldeia que, em pé no alto do Hook, esperavam os ratos fugirem dos barcos e então, dando vivas e soltando gritos de alegria, apedrejavam os animais. Os ratos entravam em pânico, e isso só fazia aumentar o prazer das crianças, enquanto os adultos ficavam em volta e riam, aplaudiam e estimulavam.
Tal como agora. Os escoceses estavam no terreno baixo, os arqueiros estavam na borda da montanha e a morte era o domínio deles. As flechas deslocavam-se como um relâmpago encosta abaixo, praticamente sem nenhum arco em seu vôo, e atingindo o alvo com o som de cutelos atingindo carne. Os escoceses contorciam-se e morriam na depressão, e a samambaia amarelada de outono ficava vermelha. Alguns dos inimigos tentavam subir em direção aos seus algozes, tornando-se alvos ainda mais fáceis. Alguns tentavam fugir pelo lado oposto e eram atingidos nas costas, enquanto outros fugiam montanha abaixo, em grande desordem. Sir Thomas Rokeby, xerife de Yorkshire e comandante da esquerda inglesa, viu a fuga e ordenou que vinte homens montassem em seus cavalos e limpassem o vale. Os soldados com cotas de malha brandiam as espadas e as maças para finalizar o trabalho sangrento dos arqueiros.
A base do vale era uma massa sangrenta, estrebuchante. Um homem de armadura, um elmo com plumas na cabeça, tentou subir para sair da carnificina e duas flechas atravessaram seu peitoral e uma terceira achou uma fresta na sua viseira e ele caiu para trás, contorcendo-se. Uma moita de flechas projetava-se do falcão que estava no seu escudo. As flechas diminuíram em quantidade agora, porque não restavam muitos escoceses para matar, e então os primeiros arqueiros desceram, agarrando-se com as mãos, pela encosta, com facas desembainhadas, para saquear os mortos e matar os feridos.
— Quem é que odeia os ingleses agora? — berrou um dos arqueiros. — Vamos, seus bastardos, falem! Quem é que odeia os ingleses agora?
Então, do centro veio um grito.
— Arqueiros! À direita! À direita! — A voz tinha um tom de puro pânico. — À direita! Pelo amor de Deus, agora!
Os soldados da esquerda inglesa praticamente não tinham entrado na luta, porque os arqueiros estavam matando os escoceses que estavam na samambaia baixa. O centro inglês estava resistindo firme, porque os homens do arcebispo estavam dispostos atrás de um muro de pedras que, embora tivesse uma altura que só chegava à cintura, era uma barreira mais do que adequada contra o assalto escocês. Os invasores podiam arremeter, estocar e retalhar por cima do topo do muro, e podiam tentar subir nele e, até, tentar derrubar o muro pedra por pedra, mas não podiam empurrá-lo, e por isso eram impedidos por ele, e os ingleses, embora em número muito menor, podiam resistir, apesar de os escoceses arremeterem contra eles com seus pesados piques. Alguns cavaleiros ingleses gritaram pedindo seus cavalos e, uma vez montados e armados com lanças, aproximavam-se bem por trás dos companheiros atacados e enfiavam as lanças em olhos escoceses. Outros soldados agachavam-se por baixo dos piques rígidos e atacavam o inimigo com espadas e machados, e durante todo o tempo as flechas compridas chegavam, vindas da esquerda. O barulho no centro eram os gritos de homens nas fileiras de retaguarda, os berros dos feridos, o clangor de lâmina contra lâmina, o estalo de lâmina contra escudo e o estrondo de lança contra pique, mas o muro significava que nenhum dos dois lados podia pressionar o outro para recuar, e por isso, apinhados contra as pedras e atrapalhados pelos mortos, eles simplesmente arremetiam, cortavam, sofriam, sangravam e morriam.
Mas na direita inglesa, onde Lorde Neville e Lorde Percy comandavam, o muro estava inacabado, era nada mais do que uma pilha de pedras que não oferecia obstáculo algum ao assalto da ala esquerda escocesa, que era comandada pelo conde de March e pelo sobrinho do rei, Lorde Robert Stewart. O sheltron deles, que ficava mais próximo da cidade, era a maior das três divisões escocesas e lançou-se contra a direita inglesa como uma alcatéia que não comia há um mês. Os atacantes queriam sangue e os arqueiros fugiam de sua carga uivante como ovelhas dispersando-se diante de presas caninas, e então os escoceses atacaram a direita inglesa e o simples impulso do assalto fez com que os defensores recuassem vinte passos antes que, de algum modo, os soldados conseguissem deter os escoceses que agora tropeçavam nos corpos dos homens que eles tinham ferido ou matado. Os ingleses, apertando-se ombro a ombro, agachavam-se atrás dos escudos e reagiam empurrando também, golpeando com as espadas em tornozelos e rostos, e gemendo com o esforço de resistir à imensa pressão da horda escocesa.
Era duro lutar nas fileiras de frente. Homens empurravam por trás, fazendo com que ingleses e escoceses ficassem próximos como amantes, perto demais para brandir uma espada de alguma maneira, exceto num golpe rudimentar. As fileiras de trás tinham mais espaço, e um escocês deu um golpe com um pique que ele brandia como se fosse um machado gigante, a lâmina esmagando a cabeça de um inimigo para rachar elmo, forro de couro, couro cabeludo e crânio com a facilidade com que se esmagava um ovo. Sangue jorrou num jato que atingiu doze homens enquanto o soldado morto caía e outros escoceses penetraram na vaga que sua morte provocara, e um membro de um clã tropeçou no corpo e gritou quando um inglês serrou seu pescoço exposto com uma faca cega. O pique tornou a cair matando um segundo homem, e dessa vez, quando foi erguido, a viseira amassada do morto ficou presa na ponta ensangüentada do pique.
Os tambores, aqueles que ainda estavam inteiros, tinham recomeçado o barulho, e os escoceses agitavam-se no ritmo. “O Bruce! O Bruce!” cantavam alguns, enquanto outros invocavam seu padroeiro: “Santo Andrew! Santo Andrew!” Lorde Robert Stewart, extravagante em suas cores azul e amarelo e com uma fina tira de ouro em torno da testa do elmo, usava um montante para golpear os soldados ingleses que se encolhiam de medo dos ferozes escoceses. Lorde Robert, finalmente a salvo de flechas, erguera o visor para poder ver o inimigo.
— Venham! — gritava para os seus homens. — Venham! Ataquem eles! Matem eles! Matem eles!
O rei tinha prometido que a festa de Natal seria em Londres e parecia haver apenas uma pequena barreira de homens amedrontados a romper antes que aquela promessa se tornasse realidade. Os tesouros de Durham, York e Londres estavam a uma distância de uns poucos golpes de espada; toda a riqueza de Norwich e Oxford, de Bristol e Southampton estava a apenas um punhado de mortes das bolsas escocesas.
— Escócia! Escócia! Escócia! — bradava Lorde Robert. — Escócia!
E o piqueiro, devido ao fato de que a viseira presa estava obstruindo a sua lâmina, batia no elmo de um homem com o lado da cabeça de sua arma que tinha um gancho, não cortando o metal, mas esmagando-o, martelando o elmo quebrado para dentro do cérebro do moribundo, de modo que sangue e uma substância gelatinosa escorriam pelas fendas da viseira. Um inglês berrou quando o pique de um escocês furou sua malha e penetrou-lhe a virilha. Um garoto, talvez um pajem, cambaleou para trás, com os olhos ensangüentados devido a um corte de espada.
— Escócia!
Lorde Robert sentia agora o cheiro da vitória. Muito perto! Ele foi empurrando, sentiu a linha inglesa agitar-se e recuar, viu o quanto ela era fina, desviou um golpe com o seu escudo, golpeou com a espada para matar um inimigo caído e ferido, gritou aos seus escudeiros para que procurassem qualquer nobre inglês rico cujo resgate pudesse enriquecer a casa de Stuart. Homens grunhiam enquando davam estocadas e cortavam. Um membro de uma tribo cambaleou para fora do combate, fazendo esforço para respirar, tentando manter as entranhas dentro da barriga aberta. Um tambor tocava para estimular os escoceses.
— Traga o meu cavalo! — bradou Lorde Robert para um escudeiro. Ele sabia que a linha inglesa derrotada deveria romper-se dali a instantes, e então ele iria montar, apanhar sua lança e perseguir o inimigo vencido.
— Avancem! — gritava ele. — Avancem!
E o homem que brandia o pique de cabo longo, o enorme escocês que provocara uma abertura na fileira de frente inglesa e que parecia estar entalhando uma trilha sangrenta para o sul, sozinho, de repente fez um barulho que parecia um miado. Seu pique, voltado para cima, ainda enredado na viseira torta, vacilou. O homem sacudiu o corpo e sua boca abriu e fechou, tornou a abrir e fechar, mas ele não conseguiu falar porque uma flecha, as penas brancas ensangüentadas, projetava-se de sua cabeça.
Uma flecha, viu Lorde Robert, e de repente o ar ficou cheio delas e ele baixou a viseira do elmo, de modo que o dia escureceu.
Os malditos arqueiros ingleses estavam de volta.
SIR WILLIAM DOUGLAS não tinha percebido como era funda a selada coberta de samambaia e como eram íngremes suas paredes no flanco da crista, até chegar à sua base e lá, sob o mangual dos arqueiros, descobrir que não podia avançar nem recuar. Nas duas fileiras da frente dos soldados escoceses estavam todos mortos ou feridos, e seus corpos formavam uma pilha por sobre a qual ele não podia passar vestindo a pesada cota de malha. Robbie lançava gritos de desafio e tentava passar, desajeitado, por cima da pilha, mas Sir William, sem cerimônia, arrastou o sobrinho de volta e jogou-o na samambaia.
— Aqui não é lugar para se morrer, Robbie!
— Bastardos!
— Eles podem ser bastardos, mas nós não somos bobos!
Sir William agachou-se ao lado do sobrinho, cobrindo os dois com o enorme escudo. Voltar era impensável, porque seria correr do inimigo, mas ele não podia avançar e por isso limitou-se a ficar impressionado com a força das flechas enquanto elas batiam e penetravam na frente do escudo. Uma onda de homens tribais barbudos, mais ágeis do que os soldados porque se recusavam a usar armaduras, passou por ele agitada, uivando seu desafio selvagem enquanto engatinhavam, pernas nuas, por cima da pilha de escoceces moribundos, mas então as flechas inglesas começaram a atingir e lançar os membros dos clãs de volta. As flechas faziam sons de bexigas se rompendo quando atingiam o alvo e os homens miavam e gemiam, contorcendo-se à medida que mais flechas chegavam ao seu destino. Cada uma provocava um jato de sangue, a ponto de Sir William e Robbie Douglas, ilesos debaixo do pesado escudo, ficarem salpicados de sangue.
Um súbito tumulto entre os soldados que estavam próximos provocou mais flechas e Sir William gritou, irritado, para que os soldados se deitassem, na esperança de que a imobilidade convencesse os arqueiros ingleses de que não havia escoceses vivos, mas os soldados retrucaram, dizendo que o conde de Moray tinha sido atingido.
— Já não era sem tempo — resmungou Sir William para Robbie. Ele odiava o conde mais do que odiava os ingleses, e sorriu quando um homem gritou que sua excelência não estava apenas ferido, mas morto, e então uma nova saraivada de flechas calou os servidores do conde e Sir William ouviu os projéteis tilintando em metal, penetrando em carne e atingindo as placas de salgueiro dos escudos, e quando o retinir de flechas acabou restavam apenas o gemido e o choro, o chiar de respiração e o estalar de couro enquanto homens morriam ou tentavam sair de sob as pilhas de moribundos.
— O que aconteceu? — perguntou Robbie.
— Nós não fizemos um reconhecimento adequado da área — respondeu Sir William. — Temos superioridade numérica sobre os bastardos, e isso nos deixou confiantes.
Agourentamente, no silêncio sem flechas, ele ouviu gargalhadas e o tropel de botas. Um grito soou e Sir William, que era veterano em guerras, sabia que os soldados ingleses estavam descendo para a selada para liquidar os feridos.
— Vamos sair correndo daqui a pouco — disse ele a Robbie —, não há escolha. Cubra o seu traseiro com o escudo e corra como um demônio.
— Vamos fugir? — perguntou Robbie, perplexo.
Sir William suspirou.
— Robbie, seu imbecil, você pode correr para a frente e pode morrer, e eu vou dizer à sua mãe que você morreu como um bravo e como um mentecapto, ou pode sair em disparada para o alto da montanha comigo e tentar vencer esta batalha.
Robbie não discutiu, mas apenas olhou para trás, para cima, para o lado escocês da depressão onde a samambaia estava salpicada de flechas com penas brancas.
— Me diga quando for a hora de correr — disse ele.
Doze arqueiros e outros tantos soldados ingleses estavam usando facas para cortar gargantas escocesas. Eles faziam uma pausa antes de eliminar um soldado, para descobrir se ele tinha algum valor como fonte de resgate, mas poucos homens estavam nessa condição, e os homens dos clãs não tinham valor algum. Estes, odiados acima de todos os escoceses porque eram muito diferentes, eram tratados como vermes. Sir William levantou cautelosamente a cabeça e decidiu que aquele era o momento para a retirada. Era melhor sair engatinhando daquela maldita armadilha do que ser capturado, e por isso, ignorando os gritos indignados dos ingleses, ele e o sobrinho subiram a encosta. Para surpresa de Sir William, não lançaram flecha alguma. Ele esperava que o gramado e a samambaia fossem açoitados por flechas enquanto ele subia com dificuldade para sair da depressão, mas ele e Robbie foram deixados em paz. Quando estava na metade da subida pela encosta, voltou-se e viu que os arqueiros ingleses tinham desaparecido, deixando apenas soldados naquele flanco do campo. Na chefia deles, olhando em sua direção da borda mais distante da depressão, estava Lorde Outhwaite, que já tinha sido seu prisioneiro. Outhwaite, que mancava, usava uma lança como apoio e, ao ver Sir William, ergueu a arma numa saudação.
— Arranje uma armadura adequada, Willie! — gritou Sir William. Lorde Outhwaite, como o cavaleiro de Liddesdale, tinha recebido o nome de batismo de William. — Ainda não acabamos com vocês.
— Eu não tenho medo, Sir William, não tenho mesmo — retrucou Lorde Outhwaite. Ele se firmou na lança. — Espero que o senhor esteja bem.
— É claro que não estou bem, seu imbecil! Metade dos meus homens está lá embaixo.
— Meu caro senhor — disse Outhwaite com uma careta, e depois fez um gesto genial enquanto Sir William empurrava Robbie para continuar a subir o morro e foi atrás dele para ficar a salvo.
Uma vez de volta ao planalto, Sir William fez um levantamento da situação. Via que os escoceses tinham sido derrotados na sua direita, mas isso fora por culpa deles mesmos, por atacarem de frente na baixada, onde os arqueiros tinham podido matar impunemente. Aqueles arqueiros tinham desaparecido misteriosamente, mas Sir William imaginava que tivessem sido transferidos para o outro lado do campo, para o flanco esquerdo escocês que tinha avançado bastante à frente do centro. Ele podia confirmar aquilo, porque o estandarte azul e amarelo do leão de Lorde Robert Stewart estava muito à frente da bandeira vermelha e amarela do rei. Assim, a batalha estava indo bem à esquerda, mas Sir William via que ela não estava indo a lugar nenhum no centro por causa do muro de pedra que obstruía o avanço escocês.
— Não vamos conseguir nada aqui — disse ele a Robbie. — Por isso vamos ser úteis.
Voltou-se e ergueu a espada ensangüentada.
— Douglas! — gritou ele. — Douglas!
Seu porta-bandeira tinha desaparecido e Sir William imaginou que o homem, com sua bandeira com o coração vermelho, estivesse morto na baixada.
— Douglas! — tornou a chamar e, quando um número suficiente de seus homens se aproximou dele, ele os liderou para o sheltron central em ordem de batalha. — Vamos lutar aqui — disse-lhes, e depois forçou a passagem até o rei, que estava a cavalo na segunda ou terceira fileira, lutando sob sua bandeira que estava cheia de flechas espetadas. Ele também lutava com a viseira erguida, e Sir William viu que o rosto do rei estava meio coberto de sangue. — Abaixe a viseira! — berrou ele.
O rei tentava arremeter com uma lança comprida para o outro lado do muro, mas a pressão dos homens tornava inúteis os seus esforços. Seu casaco azul e amarelo tinha sido rasgado para revelar a brilhante placa de metal que estava por baixo. Uma flecha penetrou na sua ombreira direita que outra vez tinha trepado no peitoral, e ele a arrancou no exato momento em que uma outra flecha fazia um rasgo na orelha esquerda do seu corcel. Viu Sir William e sorriu como se aquilo fosse um esporte de classe.
— Abaixe a viseira! — berrou Sir William, e viu finalmente que o rei não estava sorrindo. Na verdade toda a saliência da face tinha sido arrancada e o sangue ainda brotava do ferimento e vazava pela borda inferior do elmo para ensopar o casaco rasgado. — Mande fazer um curativo no rosto! — gritou ainda acima do estrépito da batalha.
O rei deixou que seu cavalo, assustado, recuasse, afastando-se do muro.
— O que aconteceu à direita? — O ferimento tornava-lhe a voz indistinta.
— Eles nos mataram — disse Sir William, sucinto, inadvertidamente agitando sua longa espada e fazendo com que gotas de sangue fossem lançadas da ponta. — Não, eles nos assassinaram — resmungou. — Havia uma falha no terreno, e caímos numa cilada.
— A nossa esquerda está ganhando! Vamos derrotá-los lá!
A boca do rei continuava enchendo-se de sangue, que ele cuspia, mas apesar do abundante sangramento não parecia demasiado preocupado com o ferimento. Ele fora provocado logo no início da batalha, quando uma flecha passara chiando por cima das cabeças de seu exército para abrir um entalhe na sua bochecha antes de parar no forro do elmo.
— Nós os manteremos aqui — disse ele.
— John Randolph está morto — disse Sir William. — O conde de Moray — acrescentou ao ver que o rei não entendera as primeiras palavras.
— Morreu? — O rei David piscou e depois cuspiu mais sangue. — Ele morreu? Não foi feito prisioneiro? — Uma outra flecha bateu na sua bandeira, mas o rei não percebia o perigo. Voltou-se e olhou para as bandeiras do inimigo. — Vamos mandar o arcebispo fazer uma oração ao lado da sepultura, e depois o bastardo poderá dizer a ação de graças no nosso jantar.
Ele viu uma brecha na fileira escocesa da frente, esporeou o cavalo para preenchê-la e arremeteu com sua lança contra um defensor inglês. O golpe do rei quebrou o ombro do homem, mutilando o sangrento ferimento com os pedaços de malha rasgada.
— Bastardos! — berrou o rei. — Nós estamos vencendo! — bradou para os seus homens, e então uma onda de seguidores de Douglas forçou a passagem entre ele e o muro. Os recém-chegados chocaram-se contra o muro de pedra como uma grande onda, mas o muro mostrou ser mais forte e a onda quebrou-se em suas pedras. Espadas e machados chocaram-se por cima da crista do muro e homens dos dois lados arrastavam os mortos para fora do caminho, a fim de desobstruir a passagem para a matança.
— Vamos segurar os bastardos aqui — garantiu o rei a Sir William — e derrotar a direita deles.
Mas Sir William, os ouvidos sempre sintonizados no barulho do combate, tinha captado algo novo. Há poucos minutos ele estivera escutando gritos, clangores, berros e tambores, mas um som estivera faltando, e era o da música da harpa do diabo, o som grave do dedilhar de cordas de arcos, mas agora ele o ouvia outra vez e sabia que apesar de que vintenas do inimigo pudessem ter sido mortos poucos daqueles mortos eram arqueiros. E agora os arcos da Inglaterra tinham recomeçado o seu horrível trabalho.
— Quer um conselho, majestade?
— Claro.
O rei parecia esperançoso. Seu corcel, ferido por várias flechas, deu pequenos passos nervosos para longe da mais populosa batalha que era travada a poucos passos de distância.
— Abaixe a viseira — disse Sir William — e depois recue.
— Recuar? — O rei ficou imaginando se tinha ouvido mal.
— Recuar! — repetiu Sir William, e seu tom de voz era ríspido e seguro, e no entanto ele não tinha certeza quanto ao motivo pelo qual dera o conselho. Era outra maldita premonição como a que tivera no nevoeiro ao amanhecer, mas ele sabia que o conselho era bom. Recuar agora, recuar de volta até a Escócia, onde havia grandes castelos que podiam suportar uma tempestade de flechas, mas ele sabia que não podia explicar o conselho. Não conseguia achar um motivo para ele. Um temor tomara conta de seu coração e o enchera de pressentimentos. Partindo de qualquer outro homem, o conselho teria sido considerado uma covardia, mas ninguém jamais acusaria Sir William Douglas, o Cavaleiro de Liddesdale, de covardia.
O rei pensou que o conselho fosse uma brincadeira de mau gosto e soltou uma gargalhada de desdém.
— Nós estamos vencendo! — disse ele, enquanto mais sangue derramava-se do elmo e escorria para a sela. — Há algum perigo à direita? — perguntou.
— Nenhum — disse Sir William. A depressão do terreno seria tão eficiente na detenção do avanço inglês quanto o fora em frustrar o ataque escocês.
— Então vamos vencer esta batalha na nossa esquerda — declarou o rei, e puxou as rédeas para afastar-se. — Recuar, ora, ora!
O rei soltou uma gargalhada e então tirou um pedaço de pano de um de seus capelães e enfiou-o entre o rosto e o elmo.
— Estamos vencendo! — tornou a dizer para Sir William, e depois esporeou o cavalo em direção ao leste. Cavalgava para levar a vitória à Escócia e para mostrar que era um filho digno do grande Bruce.
— Santo Andrew! — gritava ele através de um sangue espesso. — Santo Andrew!
— O senhor acha que devíamos recuar, tio? — perguntou Robbie Douglas. Ele estava tão confuso quanto o rei. — Mas nós estamos vencendo!
— Estamos? — Sir William prestava atenção à música dos arcos. — É melhor fazer suas orações, Robbie — disse ele —, é melhor dizer suas malditas orações e pedir a Deus que deixe o diabo levar os malditos arqueiros.
E rezar para que Deus ou o diabo estivesse ouvindo.
Sir Geoffrey Carr estava estacionado na esquerda inglesa, onde os escoceses tinham sido rechaçados de maneira muito decisiva pelo terreno e seus poucos soldados estavam agora lá na baixada fedendo a sangue, à procura de prisioneiros. O Espantalho tinha visto os escoceses encurralados na baixada e rira com ferino deleite enquanto as flechas desciam para penetrar nos atacantes. Um homem tribal, enfurecido, as grossas dobras de sua roupa de tecido enxadrezado cheio de tantas flechas que mais parecia um porco-espinho, tentara subir a encosta lutando. Ele xingou e amaldiçoou, foi atingido repetidas vezes por flechas, uma delas até estava espetada no crânio coberto por cabelos emaranhados, e uma outra estava presa na moita de sua barba, e no entanto ele ainda avançou, sangrando e resfolegando, tão cheio de ódio que nem mesmo sabia que devia estar morto, e conseguiu chegar a menos de cinco passos dos arqueiros antes que Sir Geoffrey estalasse seu chicote para tirar o olho esquerdo do homem de sua órbita, por inteiro, como uma avelã tirada da casca, e então um arqueiro avançara e casualmente rachara com um machado o crânio do homem espetado de flechas. O Espantalho enrolou o chicote e tocou com os dedos a umidade na garra de ferro da ponta. “Eu gosto muito de uma batalha”, disse para ninguém em especial.
Assim que o ataque tinha sido detido, ele viu que um dos senhores escoceses, todo vistoso em azul e prata, jazia morto na pilha de corpos, e aquilo era uma pena. Era mesmo uma pena. Uma fortuna tinha sido perdida com aquela morte, e Sir Geoffrey, lembrando de suas dívidas, ordenou a seus homens que descessem para cortar gargantas, saquear cadáveres e encontrar qualquer prisioneiro que valesse um resgate de certa importância. Seus arqueiros tinham sido levados para o outro lado do campo, mas seus soldados ficaram para procurar algum dinheiro vivo.
— Depressa, Beggar! — berrou Sir Geoffrey. — Depressa! Prisioneiros e butim! Procurem cavalheiros e senhores! Não que haja algum cavalheiro na Escócia! — Esta última observação, feita apenas para si mesmo, divertiu o Espantalho a ponto de fazê-lo gargalhar. A piada pareceu melhorar enquanto ele pensava nela, e ele quase se dobrou de tanta satisfação. — Cavalheiros na Escócia! — repetiu, e então viu um jovem monge olhando para ele com expressão preocupada.
O monge era um dos homens do prior, distribuindo comida e cerveja aos soldados, mas ficara alarmado com a gargalhada alucinada de Sir Geoffrey. O Espantalho, ficando subitamente calado, olhou com olhos arregalados para o monge e então, em silêncio, deixou o rolo que ele fizera de seu chicote cair-lhe da mão. O couro macio não fez barulho enquanto se desenrolava e caía, e então Sir Geoffrey mexeu o braço direito com a rapidez de um relâmpago e o chicote enrolou-se no pescoço do jovem monge. Sir Geoffrey sacudiu o chicote.
— Venha cá, menino — ordenou.
A sacudidela fez o monge cambalear a ponto de largar o pão e as maçãs que estivera carregando, e no instante seguinte estava de pé junto ao cavalo de Sir Geoffrey e o Espantalho se inclinava de cima da sela para que o monge pudesse sentir seu hálito fedorento.
— Escute aqui, seu piedoso montinho de merda — sussurrou Sir Geoffrey —, se não me disser a verdade, vou cortar aquilo de que você não precisa e não usa, a não ser para mijar, e dar ao meu porco para comer, está entendendo, garoto?
O monge, horrorizado, limitou-se a fazer um gesto afirmativo com a cabeça.
Sir Geoffrey enrolou uma vez mais o chicote no pescoço do rapaz e deu um bom puxão, só para deixar bem claro quem é que mandava.
— Um arqueiro, um sujeito com um arco preto, trouxe uma carta para o seu prior.
— Trouxe sim, senhor.
— E o prior a leu?
— Leu sim, senhor.
— E ele lhe disse o que ela continha?
O monge abanou a cabeça instintivamente, depois viu a raiva no olho do Espantalho e, em pânico, deixou escapar a palavra que ouvira pela primeira vez quando a carta fora aberta.
— Thesaurus, senhor, é o que dizia a carta, Thesaurus.
— Thesaurus? — disse Sir Geoffrey, tropeçando na palavra estrangeira. — E o que, seu castrado pedaço de merda de doninha, o que, em nome de mil virgens, é um Thesaurus?
— Tesouro, senhor, tesouro. É latim, senhor. Thesaurus, senhor, é a palavra em latim para... — a voz do monge foi diminuindo de intensidade — ... tesouro — encerrou ele, claudicante.
— Tesouro. — Sir Geoffrey repetiu a palavra sem expressão.
O monge, meio sufocado, ficou subitamente ansioso por repetir o boato que circulava entre a irmandade desde que Thomas de Hookton tivera o encontro com o prior.
— O rei o enviou, senhor, sua majestade em pessoa, e o senhor meu bispo também, senhor, da França, e eles estão procurando um tesouro, senhor, mas ninguém sabe o que é.
— O rei?
— Ou onde o tesouro está, senhor, sim, senhor, o rei em pessoa, senhor. Ele o enviou, senhor.
Sir Geoffrey olhou o monge nos olhos, não viu falsidade alguma e por isso desenrolou o chicote.
— Você deixou cair algumas maçãs, rapaz.
— Deixei, sim, senhor, deixei.
— Dê uma delas ao meu cavalo. — Ele ficou observando o monge apanhar uma maçã, e então de repente sua fisionomia ficou distorcida de raiva. — Limpe a lama da maçã primeiro, seu filho de sapo! Limpe!
Ele estremeceu e olhou para o norte, mas não estava vendo os sobreviventes escoceses da ala direita do inimigo saindo desajeitados da baixada e nem mesmo percebeu a fuga de seu odiado inimigo, Sir William Douglas, que o deixara pobre. Não viu nenhuma daquelas coisas porque o Espantalho estava pensando em tesouro. Em ouro. Em pilhas de ouro. No que ele mais queria. Em dinheiro, jóias, moedas, prataria, mulheres e tudo que alguém pudesse querer.
O sheltron da esquerda escocesa, agressivo e selvagem, forçou a direita inglesa a recuar tanto, que uma grande brecha surgiu entre o centro inglês, atrás do muro de pedra, e a divisão em retirada, à direita. Aquela retirada significava que o flanco direito da divisão central estava agora exposto aos escoceses, mas então, vindos lá do outro lado da crista, os arqueiros chegaram para salvá-los.
Chegaram para formar uma nova linha que protegesse o flanco do arcebispo, uma linha voltada para o lado, para o triunfante assalto escocês, e o enxame de arqueiros disparou suas flechas contra o sheltron de Lorde Robert Stewart. Eles não podiam errar. Eram arqueiros que começavam o treinamento da arte do arco e flecha a uma distância de cem passos e acabavam a mais de duzentos passos dos alvos cheios de palha, e agora estavam atirando a vinte passos, e as flechas voavam com tamanha força, que algumas furavam malha, corpo e malha outra vez. Homens em armaduras estavam sendo trespassados pelas flechas e o lado direito do avanço escocês desabava em sangue e dor, e cada homem que caía expunha uma outra vítima para os arqueiros, que atiravam com a rapidez com que conseguiam encaixar as flechas nas cordas. Os escoceses morriam às dúzias. Estavam morrendo e estavam gritando. Alguns homens tentavam instintivamente atacar os arqueiros, mas eram logo derrubados; nenhum soldado podia resistir àquele assalto de aço com penas, e de repente os escoceses estavam recuando, tropeçando nos mortos deixados pela sua carga, cambaleando de volta pelo pasto, para o ponto de onde tinham começado o ataque, e eram perseguidos a cada passo pelas flechas que assobiavam, até que finalmente uma voz inglesa ordenou que os arqueiros descansassem seus arcos.
— Mas fiquem aqui! — ordenou o homem, querendo que os arqueiros que tinham vindo da ala esquerda continuassem na direita assediada.
Thomas estava entre os arqueiros. Ele contou suas flechas, descobrindo que só restavam sete na sacola, e por isso começou a apanhar no gramado flechas disparadas que não estivessem muito danificadas, mas então um homem cutucou-o e apontou para uma carroça que atravessava o campo com feixes sobressalentes. Thomas ficou perplexo.
— Na França nós estávamos sempre ficando sem flechas.
— Aqui, não. — O homem tinha um lábio leporino, o que tornava difícil entendê-lo. — Eles as guardam em Durham. No castelo. Três condados as mandaram para cá. — Ele apanhou dois feixes novos.
As flechas eram feitas em toda a área da Inglaterra e do País de Gales. Alguns homens cortavam e aplainavam as hastes, outros colhiam as penas, mulheres teciam as cordas e homens ferviam a cola de couro, pata e azinhavre, enquanto ferreiros forjavam as pontas, e depois as peças separadas eram levadas a cidades onde as flechas eram montadas, enfeixadas e enviadas para Londres, York, Chester ou Durham, onde aguardavam uma emergência. Thomas rompeu o barbante de dois feixes e colocou as novas flechas numa sacola que ele tirara de um arqueiro morto. Ele tinha encontrado o homem caído atrás das tropas do arcebispo e Thomas deixara sua velha sacola rasgada ao lado do corpo e agora tinha uma sacola nova, cheia de flechas novas. Ele flexionou os dedos da mão direita. Estavam doloridos, prova de que ele não tinha disparado uma quantidade suficiente de flechas desde a batalha da Picardia. Suas costas doíam, como sempre acontecia depois de disparar o arco umas vinte vezes ou mais. Cada puxada equivalia a levantar um homem com uma só mão, e o esforço fazia com que a dor lhe penetrasse na espinha, mas as flechas tinham levado a ala esquerda escocesa de volta ao ponto de partida e onde, como faziam seus inimigos ingleses, eles agora tomavam fôlego. O terreno entre os dois exércitos estava cheio de flechas perdidas, homens mortos e feridos, alguns dos quais se mexiam lentamente ao tentar se arrastar de volta para os companheiros. Dois cães cheiravam um corpo, mas saíram correndo quando um monge atirou uma pedra neles.
Thomas desprendeu a corda do arco e a vara ficou reta. Alguns arqueiros gostavam de deixar suas armas permanentemente amarradas até que a vara tivesse adquirido a curva de um arco retesado, e dizia-se que ele acompanhara a corda; a curvatura deveria mostrar que o arco estava bem usado, revelando seu dono um soldado experiente, mas Thomas achava que um arco que tivesse acompanhado a corda ficava enfraquecido, e por isso tirava a corda do dele sempre que podia. Isso também ajudava a preservar a corda. Era difícil fazer uma corda de comprimento exatamente correto pois, inevitavelmente, ela distendia, mas uma boa corda de cânhamo, encharcada de cola, podia durar quase um ano se fosse mantida seca e não fosse submetida a uma tensão constante. Como muitos outros arqueiros, Thomas gostava de reforçar suas cordas de arco com cabelos de mulher porque protegiam as cordas de um rompimento numa luta. Isso, e rezar para São Sebastião. Thomas deixou a corda pendurada no topo do arco e agachou-se na grama, onde tirou as flechas da sacola uma a uma e passou-as entre os dedos para detectar quaisquer empenos nas hastes.
— Os bastardos vão voltar! — Um homem, com um crescente de prata no manto, percorria a linha a pé. — Eles vão voltar para atacar mais! Mas vocês trabalharam bem!
O crescente de prata estava quase oculto por sangue. Um arqueiro cuspiu e um outro tocou impulsivamente no seu arco sem corda. Thomas pensou que se ele se deitasse provavelmente iria dormir, mas foi tomado pelo medo ridículo de que os outros arqueiros iriam bater em retirada e deixá-lo ali, dormindo, e os escoceses iriam encontrá-lo e matá-lo. Mas os escoceses estavam descansando, como o faziam os ingleses. Alguns homens estavam curvados à altura da cintura como se estivessem recuperando o fôlego, outros estavam sentados na grama enquanto outros mais agrupavam-se em torno de um barril de água ou de cerveja. Os grandes tambores estavam silentes, mas Thomas ouvia o roçar de pedra em aço enquanto homens amolavam lâminas que tinham perdido o fio devido ao primeiro entrechoque da batalha. Nenhum insulto estava sendo berrado de nenhum dos lados agora, os homens apenas se entreolhavam desconfiados. Padres ajoelhavam-se ao lado de moribundos, rezando para que suas almas entrassem no céu, enquanto mulheres gritavam porque os maridos, amantes ou filhos estavam mortos. A ala direita inglesa, sua quantidade reduzida pela ferocidade do ataque escocês, voltara para o lugar de origem, e atrás dela estavam dezenas de mortos e moribundos. As baixas escocesas abandonadas pela retirada precipitada estavam sendo despidas e revistadas, e logo rompeu uma briga entre dois homens por causa de um punhado de moedas manchadas. Dois monges levavam água para os feridos. Uma criancinha brincava com os anéis rompidos de uma cota de malha, enquanto a mãe tentava soltar uma viseira quebrada de um pique que, segundo ela, daria um bom machado. Um escocês, dado por morto, de repente gemeu e virou-se, e um soldado dirigiu-se até ele e o golpeou com a espada de cima para baixo. O inimigo enrijeceu, relaxou e não tornou a se mexer.
— Ainda não chegou o dia da ressurreição, seu bastardo — disse o soldado enquanto liberava a espada. — Maldito filho de uma puta — resmungou, enxugando a espada no casaco rasgado do morto —, acordando dessa maneira! Me deu um susto!
Ele não estava falando com ninguém em especial, tinha apenas se agachado ao lado do homem que matara e começado a revistar-lhe as roupas.
As torres da catedral e os muros do castelo estavam lotados de espectadores. Uma garça voou embaixo dos reparos, seguindo o rio cheio de curvas que cintilava lindamente sob o sol de outono. Thomas ouvia codornizãos na encosta. Borboletas, sem dúvida as últimas do ano, voavam acima do gramado lustroso de tanto sangue. Os escoceses estavam se levantando, espreguiçando-se, colocando elmos, enfiando os antebraços nas alças dos escudos e erguendo espadas, piques e lanças recém-afiados. Alguns olhavam para a cidade e imaginavam os tesouros guardados na cripta da catedral e nos porões do castelo. Eles sonhavam com baús cheios de ouro, barris transbordando de moedas, salas com pilhas de prataria, tabernas despejando cerveja e ruas cheias de mulheres.
— Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo — bradou um padre. — Santo Andrew está com vocês. Vocês lutam pelo seu rei! Os inimigos são filhos ateus de Satã! Deus está conosco!
— Levantem-se, rapazes, levantem-se! — bradou um arqueiro do lado inglês.
Homens se levantaram, encordoaram seus arcos e tiraram a primeira flecha da sacola. Alguns se benzeram, sem perceber que os escoceses faziam o mesmo.
Lorde Robert Stewart, montado em um corcel cinza descansado, forçou a passagem em direção à frente da ala esquerda escocesa.
— Eles têm poucas flechas sobrando — prometeu aos seus homens —, poucas flechas. Nós podemos derrotá-los!
Por muito pouco seus homens não tinham derrotado os malditos ingleses da última vez. Por muito pouco, e sem dúvida uma outra investida ululante iria liquidar o pequeno exército desafiador e abrir o caminho para as opulentas riquezas do sul.
— Por Santo Andrew! — bradou Lorde Robert e os tambores começaram a sua batida. — Pelo nosso rei! Pela Escócia!
E os uivos recomeçaram.
Bernard de Taillebourg foi até a catedral quando seus negócios no pequeno hospital do mosteiro acabaram. Seu criado estava preparando os cavalos, quando o dominicano seguiu pela grande nave entre os imensos pilares pintados em listras irregulares de vermelho, amarelo, verde e azul. Ele foi até a tumba de São Cuthbert para fazer uma oração. Não tinha certeza de que Cuthbert era um santo importante —, sem dúvida, não era uma das almas abençoadas que podiam falar com Deus no céu — mas era muito venerado localmente, e sua tumba, fartamente decorada com jóias, ouro e prata, confirmava essa devoção.
Pelo menos cem mulheres estavam reunidas em torno do túmulo, a maioria chorando, e de Taillebourg empurrou algumas à sua frente para que pudesse chegar suficientemente perto a fim de tocar no manto bordado que envolvia a campa. Uma das mulheres resmungou contra ele. Percebeu então que era um padre e, vendo-lhe o rosto ensangüentado, arranhado, pediu perdão. Bernard de Taillebourg ignorou-a, curvando-se para a tumba. O manto era enfeitado com borlas e as mulheres tinham amarrado pequenas tiras de pano às borlas, cada tira uma oração. A maioria das orações pedia saúde, a restauração de um membro, o dom da visão, a cura de uma criança à beira da morte, mas naquele dia pediam a Cuthbert que tirasse os homens sãos e salvos da montanha.
Bernard de Taillebourg acrescentou sua oração. Vá procurar São Denis, rogou ele a Cuthbert, e peça-lhe que fale com Deus. Cuthbert, ainda que não pudesse atrair a atenção de Deus, poderia, sem dúvida alguma, encontrar São Denis que, sendo francês, deveria estar mais perto de Deus do que Cuthbert. Peça a Denis que reze para que minha missão tenha êxito e que a bênção de Deus recaia sobre a busca e que a graça de Deus dê sucesso a ela. E reze a Deus para que perdoe os nossos pecados, mas saiba que nossos pecados, apesar de cruéis, são cometidos apenas a serviço de Deus. Ele gemeu ao se lembrar dos pecados daquele dia, depois beijou o manto e tirou uma moeda de sob a batina. Depositou a moeda na grande jarra de metal onde os peregrinos davam o que podiam para o santuário e voltou depressa pela nave da catedral. Um edifício despojado, pensou ele, os pilares coloridos muito grossos e toscos, e seus entalhes tão malfeitos quanto rabiscos de crianças, muito diferente das abadias e igrejas novas e graciosas que se erguiam na França. Ele molhou os dedos na água benta, fez o sinal-da-cruz e saiu para a luz do sol onde seu criado estava esperando com as montarias.
— Você podia ter partido sem mim — disse ao criado.
— Teria sido mais fácil — disse o criado — matar você no caminho e depois continuar sem você.
— Mas não vai fazer isso — disse de Taillebourg — porque a graça de Deus apossou-se de sua alma.
— Graças a Deus — disse o criado.
O homem não era um criado de nascimento, mas um cavaleiro e bem-nascido. Agora, pela vontade de Bernard de Taillebourg, ele estava sendo castigado por seus pecados e pelos pecados de sua família. Havia pessoas, e o cardeal Bessières estava entre elas, que achavam que o homem devia ter sido esticado na roda, que devia ter sido imprensado por grandes pesos, que os ferros de queimar deviam ter cauterizado sua carne para que suas costas se arqueassem enquanto ele berrava arrependimento aos tetos, mas de Taillebourg convencera o cardeal a não fazer nada, exceto mostrar àquele homem os instrumentos de tortura da Inquisição.
— Depois entregue-o a mim — dissera de Taillebourg — e deixe que ele me conduza ao Graal.
— Mate-o em seguida. — Tinha sido essa instrução do cardeal ao inquisidor.
— Tudo será diferente quando tivermos o Graal — dissera de Taillebourg, evasivo.
Ele ainda não sabia se teria de matar aquele rapaz magro de pele queimada do sol e os olhos pretos e o rosto fino que em certa época dizia chamar-se o Arlequim. Ele adotara o nome por orgulho, porque os arlequins eram almas perdidas, mas de Taillebourg acreditava que poderia muito bem ter salvado a alma daquele arlequim. O verdadeiro nome do Arlequim era Guy Vexille, conde de Astarac, e foi Guy Vexille que de Taillebourg descreveu quando falou com o irmão Collimore sobre o homem que viera do sul para lutar pela França na Picardia. Vexille tinha sido preso depois da batalha, quando o rei francês estava à procura de bodes expiatórios, e um homem que ousava exibir o timbre de uma família declarada herege e rebelde servira como um bom bode expiatório.
Vexille foi entregue à Inquisição na esperança de que tirassem a heresia dele à custa de torturas, mas de Taillebourg acabou gostando do Arlequim. Ele reconheceu uma alma irmã, um homem durão, um homem dedicado, um homem que sabia que sua vida nada significava porque o que valia era a próxima, e por isso de Taillebourg poupou Vexille das agonias. Limitou-se apenas a mostrar a ele a câmara onde homens e mulheres pediam aos gritos desculpas a Deus, e então interrogou-o com delicadeza e Vexille revelou que certa vez navegara até a Inglaterra para procurar o Graal e, embora tivesse matado o tio, pai de Thomas, não o encontrara. Agora, com de Taillebourg, ele ouvira Eleanor contar a história de Thomas.
— Você acreditou nela? — perguntou o dominicano.
— Acreditei — disse Vexille.
— Mas será que ela foi enganada? — quis saber o inquisidor. Eleanor tinha dito a eles que Thomas fora encarregado de procurar o Graal, mas que sua fé era fraca e a busca não o animava muito.
— Mas nós ainda teremos de matá-lo — acrescentou de Taillebourg.
— É claro.
De Taillebourg franziu o cenho.
— Você não se importa?
— De matar? — Guy Vexille parecia surpreso pelo simples fato de Bernard de Taillebourg ter perguntado. — Matar é o meu ofício, padre — disse o Arlequim.
O cardeal Bessières tinha decretado que todo aquele que procurasse o Graal devia ser morto, todos exceto aqueles que o procurassem em nome do próprio cardeal, e Guy Vexille se tornara de bom grado o assassino de Deus. Claro que ele não tinha escrúpulo algum quanto a cortar a garganta de seu primo Thomas.
— Vai esperar por ele aqui? — perguntou ao inquisidor. — A garota disse que ele estaria na catedral depois da batalha.
De Taillebourg olhou para o outro lado da montanha. Os escoceses iriam ganhar, ele estava certo, e isso tornava duvidoso que Thomas de Hookton fosse até a cidade. O mais provável era que fugisse para o sul, em pânico.
— Nós iremos a Hookton.
— Eu já revistei Hookton — disse Guy Vexille.
— Neste caso, vai revistá-la outra vez — retrucou de Taillebourg.
— Sim, padre.
Guy Vexille, humilde, baixou a cabeça. Ele era um pecador; dele se exigia que mostrasse penitência e, por isso, não discutia. Fazia apenas o que de Taillebourg mandava e a recompensa, segundo lhe fora prometido, seria a reintegração. Ele teria de volta o seu orgulho, teria permissão para liderar seus homens numa guerra outra vez e seria perdoado pela Igreja.
— Vamos embora agora — disse de Taillebourg.
Ele queria partir antes que William Douglas viesse à procura deles e, de modo ainda mais urgente, antes que alguém descobrisse os três corpos na cela do hospital. O dominicano fechara a porta, deixando os cadáveres lá dentro, e sem dúvida os monges iriam acreditar que Collimore estava dormindo e, por isso, não iriam perturbá-lo, mas de Taillebourg ainda queria estar longe da cidade quando os corpos fossem encontrados, e por isso subiu para a sela de um dos cavalos que eles tinham roubado de Jamie Douglas na manhã daquele dia. Àquela altura, parecia ter sido há muito tempo. Enfiou os pés nos estribos e deu um pontapé para afastar um pedinte. O homem tinha agarrado a perna do inquisidor, queixando-se de que estava com fome, mas então rodopiou para livrar-se do selvagem empurrão do padre.
O barulho da batalha aumentou. O dominicano tornou a olhar para a crista da montanha, mas a luta não lhe dizia respeito. Se os ingleses e os escoceses queriam espancar uns aos outros, que o fizessem. Ele tinha assuntos mais importantes em mente, assuntos de Deus e do Graal do céu e do inferno. Também tinha pecados na consciência, mas estes seriam absolvidos pelo Santo Padre e até o céu seria indulgente com esses pecados depois que ele encontrasse o Graal.
As portas da cidade, embora fortemente protegidas, estavam abertas para que os feridos pudessem ser levados para dentro e comida e bebida fossem levadas para a crista da montanha. Os guardas eram homens mais velhos e tinham recebido ordens para não deixar nenhum atacante escocês tentar entrar na cidade, mas não tinham sido encarregados de impedir que alguém saísse, e por isso não prestaram atenção no padre pálido, com o rosto arranhado, montado num corcel, nem no seu elegante criado. Assim, de Taillebourg e o Arlequim saíram de Durham, viraram em direção à estrada para York, esporearam os cavalos e, enquanto o barulho da batalha ecoava do penhasco da cidade, afastaram-se em direção ao sul.
A tarde ia em meio quando os escoceses atacaram uma segunda vez, mas este assalto, ao contrário do primeiro, não veio em cima dos calcanhares de arqueiros em fuga. Agora os arqueiros estavam armados, prontos para receber a carga, e dessa vez as flechas voaram como um bando de estorninhos. Os que estavam na esquerda escocesa, que tinham chegado muito perto de romper a linha inglesa, enfrentavam agora o dobro de arqueiros, e sua carga, que começara com tanta confiança, reduziu o ritmo para um simples rastejar até que parou de todo, quando homens se agachavam atrás de escudos. A direita escocesa não chegou a avançar, enquanto o sheltron central do rei foi detido a cinqüenta passos do muro de pedra, atrás do qual uma multidão de arqueiros disparava uma incessante chuva de flechas. Os escoceses não queriam recuar, não podiam avançar, e durante um certo tempo as flechas de haste longa batiam e entravam em escudos em corpos descuidadamente expostos, e então os homens de Lorde Robert Stewart recuaram para fora do alcance e o sheltron do rei seguiu o exemplo deles. Assim, durante algum tempo uma outra pausa tomou conta do campo de batalha de terra vermelha. Os tambores estavam calados e não se gritavam mais insultos de um lado para o outro do pasto juncado. Os senhores escoceses, os que ainda viviam, reuniram-se sob o bandeira da aspa do rei e o arcebispo de York, vendo os inimigos reunidos em conselho, convocou os seus senhores. Os ingleses estavam desalentados. O inimigo, alegavam eles, jamais iria expor-se ao que o arcebispo descrevia como um terceiro batismo de flechas.
— Os bastardos vão escapulir para o norte — predisse o arcebispo —, e malditas sejam suas almas.
— Neste caso, nós iremos atrás deles — disse Lorde Percy.
— Eles se deslocam mais depressa do que nós — disse o arcebispo. Ele havia tirado o elmo, e o forro de couro deixara um sulco nos cabelos em volta do crânio.
— Vamos liquidar a infantaria deles — disse outro Lorde, voraz.
— A infantaria deles que vá para o inferno — retrucou o arcebispo, impaciente com tanta tolice. Ele queria capturar os senhores escoceses, os homens montados nos cavalos mais rápidos e mais caros, porque eram os resgates pagos por eles que iriam torná-lo rico, e ele queria, em especial, capturar os nobres escoceses como o conde de Menteith, que juraram fidelidade a Eduardo da Inglaterra e cuja presença no exército inimigo provava a sua traição. Homens assim não teriam resgates exigidos, mas seriam executados como exemplo para outros que quebrassem seus juramentos, mas se o arcebispo saísse vitorioso naquele dia poderia liderar seu pequeno exército e entrar na Escócia e tomar as propriedades dos traidores. Ele iria tirar tudo deles: a madeira de seus parques, os lençóis de suas camas, as próprias camas, as ardósias de seus telhados, seus vasos, suas panelas, seu gado, até mesmo o junco do fundo de seus rios.
— Mas eles não tornarão a atacar — disse o arcebispo.
— Então temos de ser inteligentes — disse Lorde Outhwaite, entusiasmado.
Os outros senhores olharam com desconfiança para Outhwaite. Inteligência não era uma qualidade que eles apreciassem, porque não caçava javalis, não matava veados machos, não gostava de mulheres e não fazia prisioneiros. Os religiosos podiam ser inteligentes, e sem dúvida havia bobos inteligentes em Oxford, e até mesmo mulheres podiam ser inteligentes, desde que não alardeassem isso, mas no campo de batalha? Inteligência?
— Inteligentes? — perguntou Lorde Neville, sem rodeios.
— Eles têm medo dos nossos arqueiros — disse Lorde Outhwaite —, mas se os nossos arqueiros parecerem ter poucas flechas esse medo acabará e eles bem poderão tornar a atacar.
— É verdade, é verdade... — começou a dizer o arcebispo, mas logo parou, porque era tão inteligente quanto Lorde Outhwaite, inteligente bastante, de fato, para esconder o quanto era inteligente. — Mas, como é que nós vamos convencê-los? — perguntou.
Lorde Outhwaite atendeu o arcebispo, explicando o que desconfiava que o arcebispo já percebera.
— Acho, excelência, que se os nossos arqueiros forem vistos revirando o campo à procura de flechas o inimigo tirará a conclusão correta.
— Ou, neste caso — expôs o arcebispo para que os outros senhores entendessem —, a conclusão errada.
— Ah, essa é boa — disse entusiasmado um daqueles outros senhores.
— Poderia ficar ainda melhor, excelência — sugeriu Lorde Outhwaite, acanhado —, se nossos cavalos fossem levados para a frente: O inimigo poderia então presumir que estávamos nos preparando para fugir.
O arcebispo não hesitou.
— Tragam todos os cavalos para a frente — disse ele.
— Mas... — Um senhor estava de cenho franzido.
— Os arqueiros vão vasculhar à procura de flechas, escudeiros e pajens vão trazer os cavalos para os soldados — retrucou o arcebispo, compreendendo perfeitamente o que Lorde Outhwaite estava pensando e ansioso por executá-lo antes que o inimigo resolvesse retirar-se para o norte.
Lorde Outhwaite deu pessoalmente as ordens aos arqueiros, e, momentos depois, dezenas de arqueiros estavam no espaço aberto entre os exércitos, onde recolheram flechas perdidas. Alguns deles resmungavam, chamando aquilo de tolice, porque se sentiam expostos aos soldados escoceses que, uma vez mais, começaram a xingá-los. Um dos arqueiros, que se adiantara mais do que a maioria, foi atingido no peito por uma seta de besta e caiu de joelhos, uma expressão de espanto no rosto, cuspindo sangue na palma da mão posta em concha. Começou a chorar, e isso só fez piorar o engasgo. Um segundo homem, indo em auxílio do primeiro, foi atingido na coxa pela mesma besta. Os escoceses ululavam seu escárnio para os feridos, mas se encolheram quando uma dúzia de arqueiros ingleses dispararam flechas contra o besteiro solitário.
— Poupem as flechas! Poupem as flechas! — berrou Lorde Outhwaite, montado em seu cavalo, para os arqueiros. Ele galopou até perto deles. — Poupem as flechas! Pelo amor de Deus! Poupem as flechas!
Ele gritava alto bastante para que o inimigo o escutasse, e então um grupo de escoceses, cansados de se proteger dos arqueiros, avançou correndo numa evidente tentativa de cortar a retirada de Lorde Outhwaite e todos os ingleses saíram em disparada de volta à sua linha. Lorde Outhwaite esporeou o cavalo e facilmente fugiu da onda de homens que se contentaram em matar os dois arqueiros feridos. Os demais escoceses, vendo os ingleses fugirem, deram risadas e xingaram. Lorde Outhwaite voltou-se e olhou para os dois arqueiros mortos.
— Devíamos ter trazido aqueles rapazes para cá — censurou a si mesmo.
Ninguém respondeu. Alguns dos arqueiros olhavam ressentidos para os soldados, supondo que os cavalos destes tinham sido trazidos para ajudar a fuga deles, mas então Lorde Outhwaite gritou para grupos de arqueiros, mandando que ficassem atrás dos soldados.
— Alinhem-se atrás! Não todos. Estamos tentando fazer com que eles acreditem que estamos com poucas flechas, e se vocês não tivessem flechas não estariam na frente, estariam? Mantenham os cavalos onde estão!
Ele gritou a última ordem para os escudeiros, pajens e criados que tinham levado os corcéis. Os soldados não deviam montar por enquanto, os cavalos estavam simplesmente sendo mantidos por trás da linha, logo atrás do lugar em que metade dos arqueiros estava formada. O inimigo, ao ver os cavalos, deveria concluir que os ingleses, com escassez de flechas, estavam pensando em fugir.
E assim a armadilha simples foi armada.
Um silêncio caiu sobre o campo de batalha, exceto que os feridos gemiam, corvos cantavam e algumas mulheres choravam. Os monges recomeçaram a cantar, mas ainda estavam na esquerda inglesa e a Thomas, agora na direita, o som chegava fraco. Um sino tocou na cidade.
— Acho que estamos sendo inteligentes demais — observou Lorde Outhwaite a Thomas. Sua Excelência não era homem que pudesse ficar calado, e não havia mais ninguém, na divisão da direita, com quem manter uma conversa de certo nível e por isso ele escolhera Thomas. Ele soltou um suspiro. — Nem sempre agir com inteligência funciona.
— Para nós funcionou na Bretanha, excelência.
— Você esteve na Bretanha e também na Picardia? — perguntou Lorde Outhwaite. Ele ainda estava montado e olhava para os escoceses por cima dos soldados.
— Servi a um homem inteligente lá, excelência.
— E quem era ele? — Lorde Outhwaite fingia estar interessado, talvez lamentando até mesmo ter iniciado a conversa.
— Will Skeat, senhor, só que agora ele é Sir William. O rei o fez cavaleiro na batalha.
— Will Skeat? — Lorde Outhwaite agora estava participando. — Você serviu ao Will? Pela graça de Deus, serviu? Meu caro William. Faz muitos anos que não ouço esse nome. Como vai ele?
— Não está bem, excelência — disse Thomas, e contou que Will Skeat, um homem do povo que se tornara líder de um bando de arqueiros e soldados que eram temidos onde quer que se falasse francês, tinha sido gravemente ferido na batalha da Picardia. — Ele foi levado para Caen, excelência.
Lorde Outhwaite franziu o cenho.
— Um francês o levou para lá, excelência — explicou Thomas —, um amigo, porque há um médico na cidade que sabe fazer milagres.
Ao terminar a batalha, quando finalmente se podia pensar que tinham sobrevivido ao horror, o crânio de Skeat tinha sido aberto e quando Thomas o vira pela última vez Skeat estava mudo, cego e incapacitado.
— Não sei por que os franceses dão melhores médicos — disse Lorde Outhwaite com ligeira contrariedade —, mas parece que dão. Meu pai sempre disse que davam, e ele tinha grandes problemas com o catarro.
— Esse homem é judeu, excelência.
— E com os ombros. Judeu! Você disse judeu? — Lorde Outhwaite parecia alarmado. — Eu nada tenho contra os judeus — continuou, embora sem convicção —, mas posso pensar numa dúzia de boas razões pelas quais nunca se deveria procurar um médico judeu.
— É verdade, excelência?
— Meu caro rapaz, como é que eles podem utilizar o poder dos santos? Ou as propriedades curativas de relíquias? Ou a eficácia da água benta? Até a oração é um mistério para eles. Minha mãe, que descanse em paz, sentia muitas dores nos joelhos. Eu sempre achei que era excesso de reza, mas o médico mandou que ela envolvesse as pernas em panos que tinham sido colocados no túmulo de São Cuthbert e rezasse três vezes ao dia para São Gregório de Nazianzeno, e deu certo! Deu certo! Mas nenhum judeu poderia receitar um tratamento desses, poderia? E se receitasse seria uma blasfêmia e iria fracassar. Devo dizer que acho muitíssimo contra-indicado ter colocado o pobre Will nas mãos de um judeu. Ele merece coisa melhor, merece mesmo. — Abanou a cabeça num gesto de desaprovação. — Will trabalhou para meu pai durante algum tempo, mas era um sujeito inteligente demais para ficar confinado na fronteira escocesa. Não há saques suficientes, entende? Ele foi trabalhar por conta própria. Pobre Will.
— O médico judeu — disse Thomas, teimoso — me curou.
— Só nos resta rezar. — Lorde Outhwaite ignorou a afirmativa de Thomas e falou num tom que indicava que era quase certo que a oração, embora necessária, viesse a ser inútil. Então, de repente, se animou. — Ah! Acho que os nossos amigos estão se mexendo!
Os tambores escoceses tinham começado a soar e ao longo de toda a linha do inimigo homens estavam engatando escudos, abaixando viseiras ou erguendo espadas. Eles viam que os ingleses tinham levado seus cavalos mais para perto, presumivelmente para ajudar a retirada deles, e que a linha inimiga parecia estar desfalcada de metade de seus arqueiros, de modo que deviam ter acreditado que aqueles arqueiros estavam com uma perigosa escassez de projéteis, e no entanto os escoceses ainda preferiram avançar a pé, sabendo que mesmo um punhado de flechas poderia enlouquecer seus cavalos e transformar em caos uma carga montada. Eles gritavam enquanto avançavam, tanto para animar a si mesmos quanto para provocar medo nos ingleses, mas ficaram mais confiantes quando chegaram ao local onde jaziam os corpos de sua última carga e ainda assim nenhuma flecha foi disparada.
— Ainda não, rapazes, ainda não.
Lorde Outhwaite tinha assumido o comando dos arqueiros na ala direita. Lorde Percy e Lorde Neville comandavam ali, mas os dois ficaram contentes por permitir que o homem mais velho desse ordens aos arqueiros enquanto eles aguardavam com seus soldados. Lorde Outhwaite estava sempre olhando para o outro lado do campo para onde os escoceses avançavam contra a ala esquerda inglesa, onde estavam os homens dele, mas estava certo de que a depressão no terreno continuaria protegendo-os, tal como o muro de pedra protegia o centro. Era ali, no lado da crista mais próxima de Durham, que os escoceses eram mais fortes, e os ingleses, mais vulneráveis.
— Deixem eles chegarem mais perto — avisou aos arqueiros. — Queremos acabar com eles de uma vez por todas, coitados.
Ele começou a tamborilar com os dedos no arção anterior da sela, acompanhando o ritmo dos poucos tambores grandes escoceses que restavam e aguardando até que a fileira de frente dos escoceses estivesse a uma distância de apenas cem passos.
— Arqueiros da frente — bradou quando achou que o inimigo estava numa distância boa —, são vocês, na frente da linha! Comecem a atirar!
Cerca de metade dos arqueiros podia ser vista perfeitamente na frente do exército, e agora eles armaram os arcos, viraram as flechas para cima e soltaram. Os escoceses, vendo a saraivada chegando, começaram a correr na esperança de diminuir a distância, para que apenas umas poucas flechas atingissem o alvo.
— Todos os arqueiros! — ribombou Lorde Outhwaite, temendo ter esperado demais, e os arqueiros que tinham estado escondidos atrás dos soldados começaram a disparar por cima da cabeça dos homens da frente. Os escoceses estavam perto agora, perto o bastante para que mesmo o pior arqueiro não pudesse deixar de atingir o alvo, tão perto que as flechas estavam furando outra vez malha e corpos e cobrindo o campo com mais homens feridos e moribundos. Thomas ouvia as flechas atingindo o alvo. Algumas tilintavam resvalando em armaduras, algumas penetravam em escudos com uma batida seca, mas muitas faziam um barulho como o machado de um abatedor quando este abatia cabeças de gado com a aproximação do inverno. Ele mirou num grandalhão cuja viseira estava erguida e enfiou-lhe uma flecha pela garganta. Uma outra flecha num homem tribal cuja fisionomia estava contorcida de ódio. Então, o talho de uma flecha rachou, fazendo com que o projétil saísse descontrolado quando ele soltou a corda. Ele tirou os pedaços de penas da corda, apanhou uma nova flecha e atirou-a contra um outro homem tribal barbudo que era só fúria e cabelos. Um escocês a cavalo estimulava seus homens a avançarem e aí começou a agitar braços e pernas na sela, atingido por três flechas, e Thomas disparou outra haste, atingindo um soldado bem no peito, de modo que a ponta perfurou malha, couro, osso e carne. A flecha seguinte afundou-se num escudo. Os escoceses estavam cometendo erros, tentando meter-se na chuva da morte.
— Calma, rapazes, calma! — bradou um arqueiro para os companheiros, temendo que eles estivessem puxando as cordas com muita ânsia e, com isso, não estivessem usando a força plena dos arcos.
— Continuem atirando! — bradou Lorde Outhwaite. Seus dedos ainda tamborilavam no arção de sua sela, apesar de os tambores escoceses estarem falhando. — Belo trabalho! Belo trabalho!
— Cavalos! — ordenou Lorde Percy.
Ele via que os escoceses estavam à beira do desespero, porque os arqueiros ingleses não tinham, no final das contas, escassez de flechas.
— Cavalos! — tornou ele a gritar, e seus soldados correram de volta para pularem para as selas. Pajens e escudeiros entregaram as lanças grandes e pesadas enquanto homens encaixavam pés protegidos por aço nos estribos, olhavam para o inimigo sofredor e abaixavam com um gesto rápido as viseiras.
— Atirem! Atirem! — bradou Lorde Outhwaite. — É isso, rapazes!
As flechas eram impiedosas. Os feridos escoceses gritavam por Deus, gritavam pelas suas mães e ainda assim a morte enfeitada de penas atingia o alvo. Um homem trajando o leão dos Stewart vomitou uma espuma rosa de sangue e saliva. Ele estava de joelhos, mas conseguiu se levantar, deu um passo, tornou a cair de joelhos, arrastou-se assim para a frente, vomitou mais bolhas manchadas de sangue e então uma flecha enfiou-se em seu olho e atravessou-lhe o cérebro para bater na parte de trás do crânio e ele foi lançado para trás como se tivesse sido atingido por um raio.
E então chegaram os grandes cavalos.
— Pela Inglaterra, Eduardo e São Jorge! — bradou Lorde Percy, e um trombeteiro acompanhou o desafio enquanto os grandes corcéis arremetiam. Sem cerimônia, eles empurravam os arqueiros para o lado enquanto as lanças desciam.
A turfa tremeu. Só uns poucos cavalarianos estavam atacando, mas o choque da carga atingiu o inimigo com uma força estonteante e os escoceses cambalearam para trás. Lanças eram abandonadas em corpos de homens e os cavaleiros sacaram as espadas e atacaram homens amedrontados, encolhidos, que não podiam correr porque a pressão dos corpos era demasiada. Mais cavalarianos estavam montando e os soldados que não queriam esperar seus corcéis corriam para juntar-se à carnificina. Os arqueiros uniram-se a eles, sacando espadas ou brandindo machados. Os tambores, finalmente, estavam calados e a matança começara.
Thomas já vira aquilo acontecer antes. Ele já tinha visto como, num piscar de olhos, uma batalha podia mudar. Os escoceses tinham estado pressionando o dia todo, tinham chegado muito perto de estraçalhar os ingleses, estavam desenfreados e ganhando, e no entanto agora estavam derrotados e os homens da esquerda escocesa, que tinham chegado tão perto de dar a vitória ao seu rei, foram os que perderam. Os corcéis ingleses entraram nas suas fileiras a galope para abrir trilhas sangrentas e os cavalarianos brandiam espadas, machados, porretes e maças contra homens em pânico. Os arqueiros ingleses juntaram-se a eles, atacando os escoceses mais lentos como bandos de cães de caça saltando contra corças.
— Prisioneiros! — gritava Lorde Percy a seus servidores. — Eu quero prisioneiros!
Um escocês tentou atingir o cavalo dele com um machado, errou, e foi derrubado pela espada de Sua Excelência, um arqueiro completou o trabalho com uma faca e depois cortou o gibão forrado do homem à procura de moedas. Dois carpinteiros de Durham retalharam com enxós um soldado que se debatia, golpeando-lhe o crânio, matando-o lentamente. Um arqueiro cambaleou para trás, ofegante, a barriga aberta com um corte e um escocês foi atrás dele, gritando de raiva, mas tropeçou numa vara de arco que colocaram em seu caminho e caiu sob um enxame de homens. Os caparazãos dos cavalos ingleses estavam gotejando sangue enquanto seus cavaleiros se voltavam para abrir a cortes o caminho de volta por entre a hoste escocesa. Eles tinham atravessado por completo e agora voltavam para ir ao encontro da onda seguinte de soldados ingleses que lutavam com as viseiras abertas, porque o inimigo, em pânico, não oferecia nenhuma resistência de verdade.
No entanto a direita e o centro escoceses estavam intatos.
A direita fora empurrada para a depressão do terreno, mas agora, em vez de os arqueiros lutarem contra eles da borda, eles enfrentavam os soldados que cometeram a loucura de descer para a depressão para enfrentar a carga escocesa. Homens com cotas de malha chocavam-se por cima dos corpos dos escoceses mortos, cambaleando, desajeitados, em suas roupas de metal para brandir espadas e machados contra escudos e crânios. Homens grunhiam enquanto matavam. Rosnavam, atacavam e morriam na samambaia enlameada, e no entanto a luta era inútil, porque se qualquer um dos lados obtinha uma vantagem ele apenas forçava o inimigo a recuar encosta acima, e imediatamente o lado perdedor ficava com o terreno como aliado e pressionava de novo morro abaixo e mais mortos juntavam-se aos cadáveres no fundo da depressão, e assim a luta rolava para a frente e para trás, cada grande onda deixando homens chorando e morrendo, invocando Jesus, amaldiçoando o inimigo, sangrando.
Beggar estava lá, um grande rochedo de homem em pé por sobre o cadáver do conde de Moray, zombando dos escoceses e convidando-os a lutar, e seis deles atacaram e foram mortos antes de uma matilha de homens de clãs da Alta Escócia chegar gritando para matá-lo, e ele rugiu para eles, brandindo sua imensa maça cheia de pontas, e ao Espantalho, que observava lá de cima, ele parecia um grande urso felpudo assaltado por mastins. Sir William Douglas, esperto demais para ser apanhado uma segunda vez no terreno baixo, também observava da borda oposta e ficou impressionado com o fato de homens descerem de bom grado para o massacre. Depois, sabendo que a batalha não seria ganha nem perdida naquele fosso de morte, voltou para o centro onde o sheltron do rei ainda tinha uma chance de obter uma grande vitória, apesar do desastre na esquerda escocesa.
Porque os homens do rei tinham passado pelo muro de pedras. Em certos pontos, eles o haviam derrubado e, em outros, o próprio muro acabara por desabar diante da pressão dos homens, e embora as pedras caídas ainda representassem um enorme obstáculo para soldados sobrecarregados com pesados escudos e cotas de malha, eles o estavam atravessando desajeitados e empurrando para trás o centro inglês. Os escoceses tinham feito uma carga para dentro do raio de alcance das flechas, resistindo a elas e até mesmo encurralando vinte arqueiros, que eles mataram com satisfação e agora abriam caminho a golpes e arremetidas, em direção à grande bandeira do arcebispo. O rei, com a viseira pegajosa do sangue de seu rosto ferido, estava na vanguarda do sheltron. O capelão do rei estava ao lado de seu senhor, brandindo um porrete com espetos, e Sir William e seu sobrinho juntaram-se ao ataque. Sir William ficou repentinamente envergonhado pela premonição que o fizera aconselhar uma retirada. Era assim que os escoceses lutavam! Com paixão e selvageria. O centro inglês recuava cambaleando, praticamente sem manter as fileiras. Sir William viu que o inimigo tinha levado seus cavalos para perto da linha de combate e presumiu que eles estavam se preparando para fugir, e por isso redobrou seus esforços.
— Matem-nos! — berrava.
Se os escoceses rompessem a linha, os ingleses estariam no caos, incapazes de chegar aos cavalos, e virariam simples carne para os carniceiros.
— Matem! Matem! — gritava o rei para os seus homens, altaneiro em seu cavalo.
— Prisioneiros! — bradava o conde de Menteith, mais sensato. — Façam prisioneiros!
— Destruam-nos! Destruam-nos agora! — berrava Sir William.
Ele levou o escudo à frente para receber um golpe de espada, golpeou abaixo do escudo e sentiu a lâmina furar uma cota de malha. Girou a espada e num safanão liberou-a antes que a carne pudesse agarrar o aço. Empurrou com o escudo, impossibilitado de olhar por cima da borda superior, sentiu o inimigo cambalear para trás, abaixou o escudo prevendo um golpe por baixo e depois empurrou-o para a frente outra vez, atirando o inimigo para trás. Ele cambaleou para a frente, quase perdendo o equilíbrio ao pisar no homem que havia ferido, mas apoiou o peso abaixando a borda inferior do escudo no chão, deu um impulso para tornar a ficar em pé e enfiou a espada num rosto barbudo. A lâmina resvalou no osso da face, levando um olho, e o homem caiu para trás, boca aberta, abandonando a luta. Sir William dobrou-se para evitar um golpe de machado, aparou outra espada no escudo e arremeteu alucinado contra os dois homens que o atacavam. Robbie, soltando palavrões e amaldiçoando, matou o homem que brandia o machado e depois chutou o rosto de um soldado caído. Sir William deu uma estocada com a mão por baixo e sentiu a espada raspar em malha rasgada e torceu para evitar que a lâmina ficasse presa e deu nela um puxão, fazendo com que um jato de sangue se derramasse através dos anéis de metal da armadura do homem ferido. O homem caiu, ofegante e contorcendo-se, e mais ingleses chegaram da direita, desesperados para deter o ataque escocês que ameaçava penetrar por completo a linha do arcebispo.
— Douglas! — berrou Sir William. — Douglas!
Ele clamava aos seus seguidores para que fossem ajudá-lo a arremeter e arrancar e retalhar o último inimigo. Ele e seu sobrinho tinham aberto uma trilha sangrenta pelas fileiras do arcebispo, e bastaria uma luta violenta de alguns instantes para romper o centro inglês, e depois o massacre de verdade poderia começar. Sir William agachou-se quando um outro machado agitou-se em sua direção. Robbie matou o homem que o empunhava, atravessando-lhe a garganta com a espada, mas imediatamente teve de aparar um golpe de lança e, ao fazê-lo, cambaleou para trás, contra o tio. Sir William empurrou o sobrinho para que ele ficasse ereto e bateu com o escudo na cara de um inimigo. Que diabo, onde estavam os seus homens?
— Douglas! — tornou a bradar Sir William. — Douglas!
E naquele exato momento uma espada ou uma lança enredou seus pés, e ele caiu, e cobriu-se instintivamente com o escudo. Homens passavam por ele pesadamente e ele rezou para que fossem seus seguidores que estivessem quebrando a última resistência inglesa e esperou o começo dos gritos do inimigo, mas em vez disso houve uma batida insistente no seu elmo. A batida parou, e recomeçou depois.
— Sir William? — perguntou uma voz delicada.
A gritaria começara, de modo que Sir William mal podia ouvir, mas as suaves batidas na coroa do elmo o convenceram de que não havia perigo em baixar o escudo. Levou uns instantes para ver o que estava acontecendo, porque seu elmo tinha sido deslocado para o lado quando ele havia caído e ele teve de colocá-lo na posição certa.
— Pelos dentes de Deus — disse ele quando o mundo apareceu.
— Caro Sir William — disse a voz delicada — presumo que o senhor se rende? Claro que sim. E esse é o jovem Robbie? Ora, como você cresceu, rapaz! Eu me lembro de você ainda guri.
— Oh, pelos dentes de Deus — repetiu Sir William, erguendo os olhos para Lorde Outhwaite.
— Permite que lhe dê a mão? — perguntou Lorde Outhwaite, solícito, estendendo a mão do alto da sela. — E depois poderemos conversar sobre resgates.
— Jesus — disse Sir William. — Maldição! — Porque agora percebia que os pés que tinham passado pisando com força tinham sido pés ingleses e que os gritos vinham dos escoceses.
O centro inglês resistira, no final das contas, e para os escoceses a batalha se transformara num desastre total.
Eram os arqueiros de novo. Os escoceses tinham perdido homens o dia inteiro e ainda assim tinham vantagem numérica sobre o inimigo, mas não podiam responder às flechas. Quando o centro escocês derrubou o muro e se lançou em massa pelos destroços, a esquerda escocesa bateu em retirada e expôs o flanco do sheltron do rei às flechas inglesas.
Os arqueiros levaram poucos instantes para perceber a vantagem. Eles aderiram à perseguição da rompida esquerda escocesa e não sabiam o quanto o centro escocês estava perto da vitória, mas então um dos homens de Lorde Neville percebeu o perigo.
— Arqueiros! — O seu berro podia ser ouvido na outra margem do Wear, em Durham. — Arqueiros!
Homens interromperam os saques e tiraram flechas das sacolas.
Os arcos começaram a soar de novo, cada nota grave de harpa mandando uma flecha no flanco dos escoceses desenfreados. O sheltron de David tinha forçado o batalhão central inglês a recuar através de um pasto, tinha-o esticado tanto que ele afinara, e eles estavam fechando o cerco à grande bandeira do arcebispo, e então as flechas começaram a morder e depois das flechas vieram os soldados da ala direita inglesa, os seguidores de Lorde Percy e de Lorde Neville, e alguns já estavam montados em seus grandes cavalos que eram treinados a morder, empinar e escoicear com as patas com ferraduras. Os arqueiros, abandonando uma vez mais os arcos, seguiram os cavalarianos com machados e espadas, e dessa vez suas mulheres também foram, com as facas desembainhadas.
O rei escocês deu uma estocada num inglês, viu-o cair, e ouviu seu porta-bandeira gritar aterrorizado. Voltou-se para ver a grande bandeira caindo. O cavalo do porta-bandeira tinha sido jarretado; o animal berrava enquanto desabava e uma turba de arqueiros e soldados agarrou homem e cavalo, arrebatou a bandeira e derrubou o porta-bandeira e arrastou-o para uma morte horrível, mas então o capelão real agarrou as rédeas do cavalo do rei e arrastou David Bruce para fora da refrega. Mais escoceses reuniram-se em torno de seu rei, escoltando-o para longe, e atrás deles os ingleses arremetiam de suas selas, cortando com as espadas, amaldiçoando enquanto matavam, e o rei tentou voltar e continuar a luta, mas o capelão obrigou o cavalo dele a se afastar.
— Vá embora, majestade! Vá embora! — gritou o capelão.
Homens amedrontados esbarraram no cavalo do rei que atropelou um homem de clã e depois tropeçou num cadáver. Havia ingleses na retaguarda escocesa agora, e o rei, vendo o perigo que corria, esporeou o cavalo. Um cavaleiro inimigo arremeteu contra ele, mas o rei aparou o golpe e passou a galope pelo perigo. Seu exército se desintegrara em grupos de fugitivos desesperados. Ele viu o conde de Menteith tentar montar num cavalo, mas um arqueiro agarrou a perna de sua excelência e puxou-o para trás, depois sentou em cima dele e encostou-lhe uma faca na garganta. O conde gritou que se rendia. O conde de Fife tinha sido feito prisioneiro, o conde de Strathearn estava morto, o conde de Wigtown estava sendo assaltado por dois cavaleiros ingleses cujas espadas tilintavam contra sua armadura como martelos de ferreiros. Um dos grandes tambores escoceses, os couros rasgados e em frangalhos, rolou morro abaixo, indo cada vez mais depressa, à medida que a encosta ficava mais íngreme, fazendo um som surdo ao bater nas rochas, até que finalmente caiu de lado e rolou até parar.
A grande bandeira do rei estava em mãos inglesas agora, assim como os estandartes de uma dúzia de lordes escoceses. Alguns escoceses galopavam para o norte. Lorde Robert Stewart, que quase chegara a ganhar o dia, estava livre e desimpedido no lado leste da crista, enquanto o rei mergulhava pelo lado oeste, entrando na sombra, porque o sol agora estava mais baixo do que os morros em cuja direção o rei cavalgava, numa necessidade desesperada de refúgio. Ele pensou na mulher. Será que ela estava grávida? Tinham dito a ele que Lorde Robert contratara uma feiticeira para fazer um feitiço no ventre dela, para que o trono passasse de Bruce para Stewart.
— Senhor! Senhor!
Um de seus homens berrava para ele, e o rei saiu de seu devaneio para ver um grupo de arqueiros ingleses já lá embaixo, no vale. Como tinham passado a frente dele? Puxou as rédeas, inclinou-se para a direita para ajudar o cavalo a fazer o giro e sentiu a flecha bater e entrar no peito do garanhão. Outro de seus homens fora derrubado, rolando pelo chão pedregoso que lhe rasgava a cota de malha em tiras brilhantes. Um cavalo berrou, sangue espirrou em leque no crepúsculo, e outra flecha penetrou no escudo do rei que estava pendurado às costas. Uma terceira flecha ficou presa na crina de seu cavalo e o garanhão estava diminuindo o passo, arriando e erguendo o corpo enquanto respirava com dificuldade.
O rei apertou com força as esporas, mas o cavalo não podia ir mais depressa. O rei fez uma careta e isso abriu o ferimento na face que estava coberto por uma crosta, de modo que o sangue derramou-se pela viseira aberta, caindo pelo casaco rasgado. O cavalo tornou a tropeçar. Havia um curso d’água à frente e uma pequena ponte de pedra, e o rei ficou impressionado com o fato de alguém ter feito uma ponte de alvenaria sobre um curso d’água tão pequeno, e então as patas dianteiras do cavalo desabaram e o rei estava rolando no chão, milagrosamente fora de sua montaria moribunda e sem quaisquer ossos quebrados, e ele levantou-se desajeitado e correu para a ponte, onde três de seus homens esperavam a cavalo, um deles com um garanhão sem cavaleiro. Mas mesmo antes que o rei pudesse chegar aos três homens as flechas adejaram e atingiram o alvo, cada uma fazendo o cavalo cambalear para o lado com o choque do impacto. O garanhão berrou, livrou-se com um safanão do controle do homem e galopou em direção leste com sangue pingando da barriga. Um outro cavalo desabou com uma flecha profundamente enfiada na anca, duas na barriga e outra na jugular.
— Debaixo da ponte! — gritou o rei.
Haveria abrigo sob o vão, um lugar onde se esconder, e quando tivesse uma dúzia de homens ele tentaria fugir. O crepúsculo não podia demorar, e se eles esperassem o cair da noite e então caminhassem a noite toda poderiam chegar à Escócia ao amanhecer.
E assim, quatro escoceses, um dos quais era rei, amontoaram-se debaixo da ponte de pedra e prenderam a respiração. As flechas tinham parado de voar, os cavalos deles estavam todos mortos e o rei ousou ter a esperança de que os arqueiros ingleses tivessem ido à procura de outras presas.
— Vamos esperar aqui — sussurrou ele.
Ele ouvia gritos vindos da parte alta, dava para ouvir patas na encosta, mas nenhum deles parecia vir de perto da pequena ponte baixa. Ele estremeceu, percebendo a magnitude do desastre. Seu exército acabara, suas grandes esperanças tinham morrido, a festa de Natal não seria em Londres, e a Escócia estava aberta aos inimigos. Deu uma olhada para o norte. Um grupo de homens de clãs patinhava no curso d’água e de repente seis cavalarianos ingleses apareceram e dirigiram seus corcéis para fora da encosta alta e as grandes espadas golpearam para baixo e houve sangue girando corrente abaixo para passar pelos pés do rei protegidos por malha, e ele encolheu-se para as sombras enquanto os soldados esporeavam seus cavalos para oeste, à procura de mais fugitivos. Cavalos passaram barulhentos pela ponte e os quatro escoceses não disseram nada, não tiveram coragem nem mesmo para se entreolharem enquanto o som das patas não tivesse desaparecido. Uma trombeta soava da crista da montanha, e seu tom era odioso: triunfante e zombeteiro. O rei fechou os olhos porque temia que fosse chorar.
— Vossa Majestade precisa consultar um médico — disse um homem, e o rei abriu os olhos para ver que quem falara era um de seus criados.
— Isso não tem cura — disse o rei, referindo-se à Escócia.
— A face vai cicatrizar, majestade — disse o criado, tranqüilizador.
O rei olhou para o seu seguidor como se o homem tivesse falado em alguma língua estranha e então, terrível e subitamente, seu rosto gravemente ferido começou a doer. Não houvera dor o dia inteiro, mas agora era uma agonia, e o rei sentiu lágrimas brotarem nos olhos. Não de dor, mas de vergonha, e então, quando tentou afastar as lágrimas piscando os olhos, houve gritos, sombras se projetando e o espadanar de botas quando homens pularam da ponte. Os atacantes tinham espadas e lanças e mergulharam sob o vão da ponte como caçadores de lontras partindo para a matança, e o rei rugiu, desafiante, e saltou contra o homem que estava à sua frente e a raiva era tanta que ele se esqueceu de sacar a espada e, em vez disso, deu um soco no homem com o punho protegido por aço e sentiu os dentes do inglês sendo esmagados com o golpe, viu o sangue jorrar e jogou o homem no rio, surrando-o, e então não conseguiu se mexer porque outros homens o estavam segurando. O homem que estava debaixo dele, quase afogado com dentes quebrados e lábios ensangüentados, começou a rir.
Porque ele tinha feito um prisioneiro. E iria ficar rico.
Ele tinha capturado o rei.
Segunda Parte
INGLATERRA E NORMANDIA, 1346-7
O Cerco do Inverno
ESTAVA ESCURO na catedral. Tão escuro, que as cores brilhantes pintadas nos pilares e nas paredes tinham desbotado para o tom de escuridão. A única luz vinha das velas sobre os altares laterais e do outro lado da tela da cruz, onde chamas tremeluziam no coro e monges de batina preta cantavam. A voz deles provocava um encantamento no escuro, unindo-se e abaixando, elevando-se e aumentando, um som que teria provocado lágrimas nos olhos de Thomas se ainda lhe restassem lágrimas para derramar. “Libera me, Domine, de morte aeterna”, cantavam os monges enquanto a fumaça das velas espiralava para o teto da catedral. Livrai-me, Senhor, da morte eterna, e nas lajotas do coro estava o caixão no qual o irmão Hugh Collimore jazia ainda não liberado, as mãos cruzadas sobre a túnica, os olhos fechados e, sem que o prior soubesse, uma moeda pagã colocada sob a língua por um dos outros monges que temia que o diabo levasse a alma de Collimore, se o barqueiro que transportava a alma dos mortos para o outro lado do rio do além não fosse pago.
“Requiem aeternam dona eis, Domine”, cantavam os monges, pedindo ao Senhor que desse ao irmão Collimore o descanso eterno, e na cidade, debaixo da catedral, nas pequenas casas que se penduravam no lado do rochedo, havia choro, porque eram muitos os homens de Durham que tinham sido mortos na batalha, mas o choro não era nada para as lágrimas que seriam derramadas quando a notícia do desastre voltasse para a Escócia. O rei tinha sido feito prisioneiro, o mesmo acontecendo com Sir William Douglas e os condes de Fife, Menteith e Wigtown, e o conde de Moray estava morto, como o estavam também o condestável da Escócia, o marechal do rei e o camarista do rei, todos chacinados, os corpos desnudos e alvos da zombaria dos inimigos, e com eles estavam centenas de conterrâneos, a carne branca coberta de sangue e agora alimento para raposas, lobos, cães e corvos. Os estandartes escoceses manchados de sangue estavam no altar da catedral de Durham e os remanescentes do grande exército de David estavam em fuga noite adentro, e em seus calcanhares iam os ingleses vingativos, para devastar e saquear as terras baixas, para levar de volta o que tinha sido roubado e roubar mais alguma coisa. “Et lux perpetua luceat eis”, cantavam os monges, rezando para que a luz eterna brilhasse sobre o monge morto, enquanto na crista da montanha outros mortos jaziam sob a escuridão onde as corujas guinchavam.
— Você tem de confiar em mim — sussurrou o prior para Thomas nos fundos da catedral. Pequenas velas tremeluziam sobre as dezenas de altares laterais onde sacerdotes, muitos deles refugiados de aldeias próximas saqueadas pelos escoceses, diziam missas pelos mortos. O latim daqueles sacerdotes rurais era com freqüência execrável, uma fonte de diversão para o clero próprio da catedral e para o prior que estava sentado ao lado de Thomas numa saliência de pedra.
— Eu sou o seu superior em Deus — insistiu o prior, mas ainda assim Thomas continuou calado e o prior se irritou. — O rei lhe deu uma ordem! A carta do bispo diz isso! Pois então diga-me o que está procurando.
— Quero minha mulher de volta — disse Thomas, e ficou satisfeito por estar escuro na catedral, porque seus olhos estavam vermelhos de tanto chorar. Eleanor estava morta, o padre Hobbe estava morto e o irmão Collimore estava morto, todos eles esfaqueados e ninguém sabia por quem, embora um dos monges falasse de um homem moreno, um criado que chegara com o padre estrangeiro, e Thomas estava se lembrando do mensageiro que ele tinha visto ao amanhecer, e Eleanor estava viva àquela altura, e eles não tinham discutido. Agora ela estava morta, e a culpa era dele. Dele. A tristeza tomou conta dele, dominou-o e ele expressou o sofrimento num uivo na nave da catedral.
— Cale a boca! — disse o prior, chocado com o barulho.
— Eu a amava!
— Há outras mulheres, centenas delas. — Enojado, ele fez o sinal-da-cruz. — O que foi que o rei mandou você procurar? Ordeno-lhe que me conte.
— Ela estava grávida — disse Thomas olhando para o teto — e eu ia me casar com ela. — Sua alma sentia-se tão vazia e escura quanto o espaço acima dele.
— Eu lhe ordeno que me conte! — repetiu o prior. — Em nome de Deus, eu lhe ordeno!
— Se o rei quiser que o senhor saiba o que eu procuro — falou Thomas em francês, apesar de o prior estar usando o inglês —, o rei terá o prazer de lhe contar.
O prior olhou, irritado, para a tela da cruz. A língua francesa, língua dos aristocratas, o silenciara, fazendo com que se perguntasse quem era aquele arqueiro. Dois soldados, as cotas de malha tilintando ligeiramente, passaram pelas lajotas a caminho de agradecer a São Cuthbert por terem escapado com vida. A maioria do exército inglês estava lá no norte, descansando durante as horas de escuridão antes de recomeçarem a perseguição do exército derrotado, mas alguns cavaleiros e soldados tinham ido para a cidade, onde vigiavam os prisioneiros valiosos que tinham sido colocados na residência do bispo no castelo. Talvez, pensou o prior, o tesouro que Thomas de Hookton procurava já não tivesse importância; afinal, um rei tinha sido capturado com metade dos condes da Escócia, e seus resgates iriam tirar o último tostão daquele maldito país, mas no entanto ele não conseguia livrar-se da palavra Thesaurus. Um tesouro, e a Igreja estava sempre necessitando de dinheiro. Ele se levantou.
— Você se esquece — disse ele com frieza — que é meu hóspede.
— Eu não me esqueço — disse Thomas. Tinham-lhe dado espaço nos aposentos de hóspedes dos monges, ou melhor, nos estábulos deles, porque havia homens de nível mais elevado que precisavam dos aposentos mais aquecidos. — Eu não me esqueço — repetiu ele, cansado.
O prior agora ergueu o olhar para a escuridão elevada do teto.
— Talvez — sugeriu ele — você saiba mais sobre o assassinato do irmão Collimore do que finge saber.
Thomas não respondeu; as palavras do prior eram absurdas, e o prior sabia disso, porque ele e Thomas estavam no campo de batalha quando o velho monge fora morto, e a dor de Thomas pelo assassinato de Eleanor era sincera, mas o prior estava zangado e frustrado, e falou sem pensar. A esperança de achar um tesouro fazia isso com um homem.
— Você vai ficar em Durham — ordenou o prior — até que eu lhe dê permissão para partir. Dei instruções para que o seu cavalo seja mantido nos meus estábulos. Está entendendo?
— Eu entendo o senhor — disse Thomas, cansado, e depois ficou vendo o prior afastar-se. Mais soldados entravam na catedral, as pesadas espadas tilintando ao bater em pilares e túmulos. Nas sombras, atrás de um dos altares laterais, o Espantalho, Beggar e Dickon observavam Thomas. Eles o vinham seguindo desde o término da batalha. Sir Geoffrey agora vestia uma bela cota de malha que tinha tirado de um escocês morto, e ele refletira sobre participar ou não da perseguição, mas em vez disso mandara um sargento e meia dúzia de homens com ordens de pegar o que pudessem quando começasse o saque da Escócia. O próprio Sir Geoffrey estava apostando que o tesouro de Thomas, pelo fato de ter provocado o interesse do rei, valeria o seu interesse, e por isso decidira seguir o arqueiro.
Thomas, sem perceber o olhar do Espantalho, curvou-se para a frente, olhos bem apertados, pensando que nunca mais voltaria ao normal. Os músculos das costas e dos braços ardiam por causa de um dia de armar um arco e os dedos da mão direita estavam em carne viva pelo atrito da corda. Se fechava os olhos, não via coisa alguma a não ser escoceses vindo em sua direção e o arco fazendo uma linha escura no quadro da memória e o branco das penas das flechas diminuindo ao voarem, e depois aquela imagem desaparecia e ele via Eleanor contorcendo-se sob a faca que a torturara. Eles a tinham feito falar. No entanto, o que ela sabia? Que Thomas duvidava da existência do Graal, que ele era um investigador relutante, que só queria ser um líder de arqueiros e que tinha deixado sua mulher e seu amigo irem para a morte.
Uma mão tocou-lhe a parte posterior da cabeça e Thomas quase saltou para o lado na expectativa de algo pior, uma lâmina talvez, mas a voz que falou era a de Lorde Outhwaite.
— Vamos lá para fora, rapaz — ordenou ele a Thomas —, para algum lugar em que o Espantalho não possa ouvir o que conversarmos.
Ele disse aquilo em voz alta e em inglês, depois baixou o tom e usou o francês.
— Eu estava à sua procura. — Ele tocou o braço de Thomas, encorajando-o. — Soube sobre sua garota e fiquei triste. Ela era uma mulher bonita.
— Era sim, excelência.
— A voz dela indicava que era bem-nascida — disse Lorde Outhwaite —, de modo que sem dúvida a família dela vai ajudá-lo a se vingar.
— O pai dela tem um título, excelência, mas ela era filha bastarda.
— Ah! — Lorde Outhwaite continuou manquejando, ajudando o seu andar desigual com a lança que carregara a maior parte do dia. — Neste caso é provável que ele não ajude, não é? Mas você pode fazer isso por conta própria. Parece perfeitamente capaz.
Sua Excelência tinha levado Thomas para uma noite fria, pura. Uma lua alta flertava com nuvens de bordas prateadas enquanto na crista oeste grandes fogueiras queimavam para lançar sobre a cidade um véu de fumaça com toques de vermelho. As fogueiras iluminavam o campo de batalha para os homens e mulheres de Durham que revistavam os mortos para saquearem e esfaqueavam os escoceses feridos para deixá-los mortos, a fim de que também pudessem ser saqueados.
— Estou muito velho para participar de uma perseguição — disse Lorde Outhwaite olhando para as fogueiras distantes —, muito velho e muito duro nas juntas. Esta é uma caçada para gente jovem, e eles vão persegui-los até Edimburgo. Você já viu o Castelo de Edimburgo?
— Não, excelência. — Thomas falou sem expressão, não se importando se algum dia fosse ver Edimburgo ou o castelo.
— Ah, ele é lindo! Muito bonito! — disse Lorde Outhwaite com entusiasmo. — Sir William Douglas capturou-o para nós. Ele infiltrou homens na cidade dentro de barris. Barris enormes. Homem esperto, não? E agora ele é meu prisioneiro.
Lorde Outhwaite olhou para o castelo como se esperasse ver Sir William Douglas e outros prisioneiros escoceses de berço nobre descendo das ameias. Duas tochas em fogaréus de metal inclinados iluminavam a entrada onde uma dúzia de soldados montava guarda.
— Um bandido, o nosso William, um bandido. Por que o Espantalho está seguindo você?
— Não faço idéia, excelência.
— Eu acho que faz.
Sua Excelência recostou-se numa pilha de pedra. A área perto da catedral estava cheia de pedra e madeira, porque os construtores estavam restaurando uma das grandes torres.
— Ele sabe que você procura um tesouro, e por isso agora ele também procura.
Thomas prestou atenção naquilo, olhando Sua Excelência com perspicácia, e depois tornando a olhar para a catedral. Sir Geoffrey e seus dois homens tinham chegado até a porta, mas era evidente que não ousavam chegar mais perto do que aquilo, com medo de contrariar Lorde Outhwaite.
— Como é que ele pode saber? — perguntou Thomas.
— Como é que ele pode deixar de ficar sabendo? — perguntou Lorde Outhwaite. — Os monges sabem, e isso é o mesmo que pedir a um arauto que anuncie a novidade. Os monges mexericam como mulheres no mercado! Por isso o Espantalho sabe que você pode ser a fonte de uma grande riqueza, e ele a quer. Qual é o tesouro?
— Só um tesouro, excelência, apesar de eu duvidar que ele tenha um grande valor intrínseco.
Lorde Outhwaite sorriu. Por algum tempo, não disse nada, mas limitou-se a olhar para o outro lado do golfo escuro acima do rio.
— Você me disse, não? — disse ele, por fim —, que o rei o enviou em companhia de um cavaleiro da equipe do rei e um capelão da casa real.
— Enviou, excelência.
— E eles ficaram doentes em Londres?
— Ficaram.
— Um lugar doentio. Eu estive lá duas vezes, e duas vezes é mais do que suficiente! Nocivo! Os meus porcos vivem em condições mais limpas! Mas um capelão real, hein? Sem dúvida um sujeito inteligente, não um padre do interior, hein? Não um camponês ignorante enfeitado com uma ou duas frases em latim, mas um homem que progride, um sujeito que em pouco tempo será bispo, se escapar da febre com vida. Ora, por que o rei iria enviar um homem desses?
— Vossa Excelência deve perguntar a ele.
— Um capelão real, nada menos do que isso — continuou Lorde Outhwaite como se Thomas não tivesse falado, e depois ficou calado. Um punhado de estrelas apareceu entre as nuvens e ele ergueu o olhar para elas e depois suspirou. — Certa vez — retornou —, faz muito tempo, eu vi um frasco de cristal contendo o sangue de nosso Senhor. Foi em Flandres, e o sangue se liquefazia em resposta a uma oração! Há um outro frasco em Gloucestershire, segundo me contaram, mas esse eu não vi. Eu toquei, certa vez, na barba de São Jerônimo em Nantes; segurei um fio do rabo do burro de Balaão; beijei uma pena da asa de São Gabriel e brandi a própria mandíbula com que Sansão abateu tantos filisteus! Eu vi uma sandália de São Paulo, uma unha de Maria Madalena e seis fragmentos da verdadeira cruz, um deles manchado com o mesmo sangue santo que eu vi em Flandres. Dei uma olhada nos ossos dos peixes com que nosso Senhor alimentou as cinco mil pessoas, senti o corte afiado de uma das pontas de flecha que abateram São Sebastião e cheirei uma folha da macieira do Jardim do Éden. Na minha capela, rapaz, eu tenho um nó de dedo de Santo Tomás e uma dobradiça da caixa na qual o olíbano foi dado ao Menino Jesus. Essa dobradiça me custou muito dinheiro, muito. Pois me diga, Thomas, que relíquia é mais preciosa do que todas essas que eu já vi e todas as que pretendo ver nas grandes igrejas da cristandade?
Thomas olhou para as fogueiras na crista da montanha, onde jaziam tantos mortos. Será que Eleanor já estava no céu? Ou estaria condenada a passar milhares de anos no purgatório? Aquele pensamento fez com que ele se lembrasse de que teria de pagar por missas pela alma dela.
— Você fica calado — observou Lorde Outhwaite. — Mas me diga, rapaz, acha que tenho realmente uma dobradiça da caixinha de brinquedo do Menino Jesus que continha olíbano?
— Não tenho como dizer, excelência.
— Às vezes, eu duvido — disse Lorde Outhwaite em tom genial —, mas minha mulher acredita! E é isso que importa: crença! Se você acreditar que uma coisa possui o poder de Deus, ela irá usar esse poder em seu favor.
Ele fez uma pausa, a grande cabeça cabeluda erguida para a escuridão como se ele farejasse à procura de inimigos.
— Acho que você está procurando uma coisa que tem o poder de Deus, uma coisa muito importante, e acredito que o diabo está tentando impedi-lo.
Lorde Outhwaite voltou para Thomas um rosto que expressava ansiedade.
— Esse estranho padre e seu criado moreno são agentes do diabo, o mesmo acontecendo com Sir Geoffrey! Se alguma vez existiu um filho de Satanás, é ele.
Ele lançou um olhar para o alpendre da catedral, onde o Espantalho e seus dois capangas tinham recuado para as sombras enquanto uma procissão de monges encapuzados saía para a noite.
— Satanás está cometendo maldades — disse Lorde Outhwaite — e você tem de lutar contra isso. Você tem recursos suficientes?
Depois da conversa sobre o diabo, a pergunta corriqueira sobre recursos causou surpresa a Thomas.
— Se tenho recursos, excelência?
— Se o diabo lutar contra você, rapaz, eu o ajudarei, e poucas coisas neste mundo são mais úteis do que o dinheiro. Você tem uma busca a realizar, tem jornadas a terminar e vai precisar de recursos. Por isso, você tem o suficiente?
— Não, excelência — disse Thomas.
— Pois então permita que eu o ajude. — Lorde Outhwaite colocou um saco de moedas sobre a pilha de pedras. — E talvez queira um companheiro na sua procura?
— Um companheiro? — perguntou Thomas, ainda bestificado.
— Não eu! Não eu! Eu estou velho demais. — Lorde Outhwaite fez um muxoxo. — Não, mas confesso que gosto muito de Willie Douglas. O padre que eu penso que matou sua mulher também matou o sobrinho de Douglas, e Douglas quer vingança. Ele pede, não, ele implora que o irmão do morto tenha permissão para viajar com você.
— Ele é um prisioneiro, certo?
— Eu acho que é, mas o jovem Robbie praticamente não vale um pedido de resgate. Suponho que eu poderia conseguir algumas libras por ele, mas nada como a fortuna que pretendo tirar do tio dele. Não, eu prefiro que Robbie viaje com você. Ele quer achar o padre e seu criado e eu acho que pode ajudar você.
Lorde Outhwaite fez uma pausa, e quando Thomas não respondeu insistiu no pedido.
— O Robbie é um bom rapaz. Eu o conheço, gosto dele e ele é competente. Um bom soldado também, segundo me disseram.
Thomas deu de ombros. Naquele momento não se importava se metade da Escócia viajasse com ele.
— Ele pode vir comigo, excelência — disse —, se eu tiver permissão para ir a qualquer lugar.
— O que quer dizer? Ter permissão?
— Não tenho permissão para viajar. — Thomas parecia ressentido. — O prior me proibiu de sair da cidade e tirou o meu cavalo.
Thomas encontrara o cavalo, levado para Durham pelo padre Hobbe, amarrado na porta do mosteiro.
Lorde Outhwaite soltou uma gargalhada.
— E você vai obedecer ao prior?
— Não posso perder um bom cavalo, excelência — disse Thomas.
— Eu tenho cavalos — disse Lorde Outhwaite em tom de encerrar o assunto —, inclusive dois bons cavalos escoceses que peguei hoje, e ao amanhecer, amanhã, os mensageiros do arcebispo partirão para o sul para levar a Londres notícias sobre o dia de hoje, e três de meus homens irão acompanhá-los. Sugiro que você e Robbie vão com eles. Isso levará vocês dois em segurança até Londres, e depois? Para onde você irá depois?
— Vou voltar para casa, excelência — disse Thomas —, para Hookton, para a aldeia onde meu pai morava.
— E será que aquele padre assassino espera que você vá até lá?
— Não sei.
— Ele vai procurar por você. Sem dúvida pensou em esperar por você aqui, mas isso era perigoso demais. Mas ele vai querer o que você sabe, Thomas, e irá atormentá-lo para conseguir. Sir Geoffrey vai fazer o mesmo. Aquele maldito Espantalho fará qualquer coisa por dinheiro, mas eu desconfio que o padre é o mais perigoso.
— Por isso eu fico de olho aberto e com as flechas afiadas.
— Eu seria mais esperto do que isso — disse Lorde Outhwaite. — Sempre descobri que se um homem estiver caçando você é melhor que ele o encontre num lugar que você tenha escolhido. Não caia numa emboscada, mas esteja pronto para emboscá-lo.
Thomas aceitou a sabedoria do conselho, mas mesmo assim parecia em dúvida.
— E como é que eles vão saber para onde eu vou?
— Porque eu vou dizer a eles — disse Lorde Outhwaite —, ou melhor, quando o prior reclamar que você desobedeceu a ele ao sair da cidade, vou dizer a ele e os monges dele irão contar a todo mundo que puderem. Os monges são criaturas tagarelas. Assim, onde você gostaria de enfrentar seus inimigos, rapaz? Na sua cidade natal?
— Não, excelência — disse Thomas, apressado, e refletiu por alguns segundos. — Em La Roche-Derrien — prosseguiu.
— Na Bretanha? — Lorde Outhwaite parecia surpreso. — O que você procura está na Bretanha?
— Eu não sei onde está, excelência, mas tenho amigos na Bretanha.
— Ah, e eu espero que você também me considere um amigo. — Ele empurrou o saco de moedas em direção a Thomas. — Tome.
— Eu pagarei a Vossa Excelência.
— Você vai me pagar — disse Sua Excelência, levantando-se — trazendo-me o tesouro e deixando que eu o toque só uma vez, antes que ele vá para o rei. — Ele olhou para a catedral, de onde Sir Geoffrey espreitava. — Acho melhor você dormir no castelo esta noite. Tenho homens lá que podem manter o maldito Espantalho afastado. Venha.
Sir Geoffrey observou os dois homens se afastarem. Ele não podia atacar Thomas enquanto Lorde Outhwaite estivesse com ele, porque Lorde Outhwaite era poderoso demais; mas o poder, sabia o Espantalho, vinha do dinheiro, e parecia que havia um tesouro à deriva no mundo, um tesouro que interessava ao rei e que agora interessa também a Lorde Outhwaite.
Por isso o Espantalho, mesmo que o inferno e o diabo fossem contra ele, pretendia encontrá-lo primeiro.
Thomas não estava indo para La Roche-Derrien. Ele mentira, citando a cidade porque a conhecia e porque não se importava se seus perseguidores fossem até lá, mas ele planejava estar em outro lugar. Ele iria a Hookton para ver se o pai tinha escondido o Graal lá, e depois, porque não esperava encontrá-lo, iria para a França, porque era lá que o exército inglês estava sitiando Calais e era lá que estavam seus amigos, e lá um arqueiro poderia arranjar um bom emprego. Os homens de Will Skeat estavam nas linhas que faziam o sítio e os arqueiros de Will quiseram que Thomas fosse o líder deles, e ele sabia que tinha capacidade para o cargo. Poderia chefiar um bando seu, ser temido como Will Skeat. Pensava nisso enquanto cavalgava para o sul, embora não raciocinasse de maneira consistente ou bem. Estava obcecado demais com as mortes de Eleanor e do padre Hobbe, e torturando-se com a lembrança do último olhar para trás, para Eleanor, e a recordação daquele olhar significava que ele via a região por onde cavalgava deturpada pelas lágrimas.
Thomas deveria seguir para o sul com os homens que levavam a notícia da vitória inglesa a Londres, mas não passou de York. Ele devia deixar York ao amanhecer, mas Robbie Douglas desaparecera. O cavalo do escocês ainda estava nos estábulos do arcebispo e sua bagagem estava onde ele a deixara, no pátio, mas Robbie tinha desaparecido. Por um instante Thomas ficou tentado a deixar o escocês para trás, mas um vago senso de dever contrariado fez com que ele ficasse. Ou talvez fosse porque ele não fazia muita questão da companhia dos soldados com suas notícias triunfantes, e por isso deixou que eles partissem e foi procurar pelo companheiro.
Encontrou o escocês olhando boquiaberto para as protuberâncias douradas do teto da igreja do mosteiro.
— Devíamos estar seguindo para o sul — disse Thomas.
— Sei — respondeu Robbie, ríspido, e, quanto ao mais, ignorando Thomas.
Thomas esperou. Depois de um curto intervalo:
— Eu disse que devíamos estar seguindo para o sul.
— Devíamos, sim — concordou Robbie —, e não estou detendo você. — Ele fez um gesto magnânimo com um braço. — Vá em frente!
— Você está desistindo da caça a de Taillebourg? — perguntou Thomas. Ele ficara sabendo o nome do padre por intermédio de Robbie.
— Não. — Robbie ainda estava de cabeça inclinada para trás enquanto olhava a suntuosidade do teto do transepto. — Vou encontrá-lo e então vou desventrar o bastardo.
Thomas não sabia o que era desventrar, mas concluiu que a palavra representava má notícia para de Taillebourg.
— Então, que diabo, por que é que você está aqui?
Robbie franziu o cenho. Ele tinha uma cabeleira espessa, de cabelos encaracolados, e um rosto com nariz arrebitado que, à primeira vista, fazia com que parecesse um rapaz, embora um segundo olhar detectasse a força da linha do queixo e a dureza do olhar. Finalmente, ele voltou aqueles olhos para Thomas.
— O que não consigo agüentar — disse ele — são aqueles malditos sujeitos! Aqueles bastardos!
Passaram-se alguns segundos antes que Thomas percebesse que ele se referia aos soldados que tinham sido seus companheiros na viagem de Durham para York, os homens que agora estavam há duas horas seguindo para o sul, na estrada que ia para Londres.
— O que há de errado com eles?
— Você ouviu o que eles disseram ontem à noite? — A indignação de Robbie fervilhou, atraindo a atenção de dois homens que estavam num cavalete alto, onde pintavam a alimentação dos cinco mil na parede da nave. — E na noite anterior? — prosseguiu Robbie.
— Eles ficaram bêbados — disse Thomas —, mas nós também ficamos.
— Contando como foi que eles lutaram a batalha! — disse Robbie. — E ao ouvir os bastardos, dava a impressão de que nós fugimos!
— Fugiram — disse Thomas.
Robbie não o tinha ouvido.
— Dava a impressão de que nós não lutamos nada! Jactando-se, era o que eles estavam, e nós quase ganhamos. Está ouvindo? — Ele cutucou o peito de Thomas com um dedo agressivo. — Quase ganhamos, e aqueles bastardos faziam com que a gente parecesse covarde!
— Vocês perderam — disse Thomas.
Robbie olhou para Thomas como se não acreditasse no que ouvia.
— Nós fizemos vocês recuarem quase até metade do caminho para a porcaria de Londres! Fizemos vocês correr! Mijando nas calças! Quase vencemos, isso é que é, e aqueles bastardos estão se vangloriando. Só se vangloriando! Eu queria matar o bando todo!
Umas vinte pessoas estavam ouvindo. Dois peregrinos, que seguiam de joelhos até o santuário atrás do altar principal, olhavam boquiabertos para Robbie. Um padre franzia o cenho, nervoso, enquanto uma criança chupava o polegar e olhava perplexa para o homem de cabelos revoltos que gritava tanto.
— Está me ouvindo? — berrou Robbie. — Quase vencemos!
Thomas se afastou.
— Para onde está indo? — perguntou Robbie.
— Para o sul — disse Thomas.
Ele compreendia o constrangimento de Robbie. Os mensageiros, levando notícias sobre a batalha, não resistiam a embelezar a história da luta quando eram recebidos em castelo ou mosteiro, e com isso uma carnificina difícil, selvagem, tornara-se uma vitória fácil. Não era de admirar que Robbie ficasse ofendido, mas Thomas pouco ligava para isso. Ele se voltou e apontou para o escocês.
— Você devia ter ficado em casa.
Robbie deu uma cusparada de nojo e então ficou ciente da platéia.
— Fizemos vocês correrem — disse ele, inflamado, e depois deu saltos para chegar perto de Thomas. Sorriu, e havia na expressão dele um charme atraente. — Eu não quis gritar com você — disse ele —, só estava zangado.
— Eu também — disse Thomas, mas a zanga era consigo mesmo e estava misturada com culpa e dor e não diminuiu enquanto os dois seguiam para o sul. Eles caíam na estrada em manhãs carregadas de orvalho, cavalgavam através de nevoeiros de outono, encolhiam-se sob a batida de chuva, e a quase cada passo da viagem Thomas pensava em Eleanor. Lorde Outhwaite prometera sepultá-la e mandar rezar missas pela alma dela, e às vezes Thomas desejava estar compartilhando o túmulo com ela.
— E por que de Taillebourg está perseguindo você? — perguntou Robbie no dia em que eles partiram de York. Eles falavam em inglês, porque, apesar de Robbie ser da nobre casa de Douglas, não falava francês.
Por algum tempo Thomas não disse nada, e justo quando Robbie pensou que ele não iria responder coisa nenhuma ele deu uma risada de desdém.
— Porque — disse ele — o bastardo acredita que o meu pai possuía o Graal.
— O Graal! — Robbie fez o sinal-da-cruz. — Ouvi dizer que ele estava na Escócia.
— Na Escócia? — perguntou Thomas, espantado. — Eu sei que Gênova alega estar com ele, mas a Escócia?
— E por que não? — Robbie eriçou-se. — Veja bem — ele abrandou o tom — ouvi dizer que também tem um na Espanha.
— Espanha?
— E se os espanhóis tiverem um — disse Robbie — os franceses também têm de ter um, e pelo que eu sei os portugueses também. — Ele deu de ombros e voltou a olhar para Thomas. — Então seu pai tinha outro?
Thomas não sabia o que responder. Seu pai tinha sido intratável, louco, brilhante, difícil e torturado. Tinha sido um grande pecador e, apesar de tudo, bem que poderia ter sido um santo também. O padre Ralph tinha rido dos alcances mais amplos da superstição, zombado dos ossos de porcos vendidos como relíquias de santos por monges que vendiam indulgências, e no entanto tinha pendurado uma lança antiga, escurecida e empenada nos caibros da igreja e dizia que era a lança de São Jorge. Ele nunca falara no Graal com Thomas, mas depois da sua morte Thomas ficara sabendo que a história de sua família estava entrelaçada com o Graal. Por fim decidiu contar a verdade a Robbie.
— Eu não sei — disse ele —, simplesmente não sei.
Robbie abaixou-se para passar sob um galho que crescera atravessado na estrada.
— Está me dizendo que este é o Graal verdadeiro?
— Se ele existir — disse Thomas, e uma vez mais perguntou-se se existia. Ele supunha que fosse possível, mas desejava que não fosse. No entanto, fora incumbido do dever de descobrir, e por isso iria procurar o único amigo de seu pai e iria perguntar àquele homem sobre o Graal, e quando recebesse a resposta esperada iria voltar para a França e unir-se aos arqueiros de Skeat. O próprio Will Skeat, seu antigo comandante e amigo, estava detido em Caen, e Thomas não sabia se Will ainda estava vivo ou, se estivesse, se conseguia falar ou compreender ou até mesmo andar. Ele poderia descobrir enviando uma carta para Sir Guillaume d’Evecque, pai de Eleanor, e Will poderia receber um salvo-conduto em troca da liberação de algum nobre francês menos importante. Thomas iria pagar a Lorde Outhwaite com dinheiro saqueado do inimigo e depois, disse a si mesmo, encontraria consolo na prática de sua habilidade no arco e flecha, na matança dos inimigos do rei. Talvez de Taillebourg viesse e o achasse, e Thomas poderia matá-lo como se eliminasse um rato. E quanto a Robbie? Thomas decidira que gostava do escocês, mas não se importava se ele ficasse ou fosse embora.
Robbie só entendia que de Taillebourg iria estar à procura de Thomas e por isso iria ficar ao lado do arqueiro até que pudesse matar o dominicano. Ele não tinha outra ambição, apenas a de vingar seu irmão: aquilo era um dever de família.
— Você toca num Douglas — disse ele a Thomas — e nós fatiamos você. Nós o esfolamos vivo. É uma disputa de sangue, entende?
— Mesmo se o assassino for o padre?
— Foi ele ou o criado dele — disse Robbie —, e o criado obedece ao patrão: seja como for, o padre é responsável, e por isso vai morrer. Vou cortar a maldita garganta dele.
Cavalgou algum tempo em silêncio, então sorriu.
— E depois vou para o inferno, mas pelo menos haverá muitos Douglas fazendo companhia ao diabo. — Ele soltou uma gargalhada.
Eles levaram dez dias para chegar a Londres e, uma vez lá, Robbie fingiu não estar impressionado, como se a Escócia tivesse cidades daquele tamanho, um vale sim, outro não, mas depois de um certo tempo ele abandonou o fingimento e limitava-se a olhar impressionado os edifícios imponentes, as ruas cheias de gente e de bancas de mercado enfileiradas. Thomas usava as moedas de Lorde Outhwaite, e por isso puderam alojar-se numa taberna logo do lado de fora dos muros da cidade, ao lado do tanque de água para os cavalos em Smithfield e próximo do gramado no qual mais de trezentos comerciantes tinham suas bancas.
— E nem mesmo é dia de mercado? — exclamou Robbie, e então deu um puxão na manga de Thomas. — Olhe!
Um malabarista girava meia dúzia de bolas no ar — o que não tinha nada de extraordinário, porque qualquer feira do interior mostraria o mesmo —, mas aquele homem estava trepado em duas espadas, usando-as como pernas de pau, com os pés descalços apoiados na ponta das espadas.
— Como é que ele faz isso? — perguntou Robbie. — E olhe!
Um urso dançarino arrastava as patas ao som de uma flauta bem embaixo de um patíbulo do qual pendiam dois corpos. Era para lá que os criminosos de Londres eram levados para serem enviados rapidamente para o inferno. Os dois corpos estavam envoltos em correntes para manter a carne que apodrecia junto aos ossos, e o fedor de corpos em decomposição misturava-se com o cheiro de fumaça e o mau cheiro do gado amedrontado que era comprado e vendido no gramado, que se estendia entre o muro de Londres e o priorado de St. Bartholomew, onde Thomas pagou a um padre para rezar missas pelas almas de Eleanor e do padre Hobbe.
Thomas, fingindo para Robbie que estava muito mais familiarizado com Londres do que o estava na realidade, escolhera a taberna em Smithfield por nenhum outro motivo que não o de que a tabuleta representava duas flechas cruzadas. Aquela era apenas a sua segunda visita à cidade e ele estava tão impressionado, confuso, perplexo e surpreso quanto Robbie. Eles perambulavam pelas ruas, olhando boquiabertos as igrejas e as casas de nobres, e Thomas usou o dinheiro de Lorde Outhwaite para comprar botas novas, perneiras de couro de bezerro, um casaco de couro de boi e uma bela capa de lã. Ficou tentado por uma elegante navalha francesa num estojo de marfim, mas, sem saber o valor da navalha, ficou com medo de estar sendo tapeado; reconheceu que podia roubar uma navalha do corpo de um francês quando chegasse a Calais. Em vez da compra, pagou a um barbeiro para fazer-lhe a barba e depois, vestindo os novos trajes vistosos, gastou o preço da navalha não comprada com uma das mulheres da taberna, e, em seguida, ficou deitado com lágrimas nos olhos porque estava pensando em Eleanor.
— Existe algum motivo para estarmos em Londres? — perguntou Robbie aquela noite.
Thomas bebeu sua cerveja e acenou para a jovem para que trouxesse mais.
— Londres fica no nosso caminho para Dorset.
— É uma ótima razão.
Na verdade, Londres não estava no caminho entre Durham e Dorchester, mas as estradas para a capital eram muito melhores do que as que cortavam o interior, e por isso era mais rápido viajar passando pela grande cidade. No entanto, depois de três dias, Thomas sabia que eles tinham de seguir em frente, de modo que ele e Robbie cavalgaram para o oeste. Contornaram Westminster, e Thomas pensou, por um segundo, em visitar John Pryke, o capelão real enviado para acompanhá-lo a Durham e que caíra doente em Londres e agora vivia ou então morrera no hospital da abadia, mas Thomas não tinha estômago para conversar sobre o Graal e por isso seguiu viagem.
O ar ficou mais limpo à medida que eles avançavam pelo interior. Não era considerado seguro viajar por aquelas estradas, mas a fisionomia de Thomas estava tão fechada, que outros viajantes concluíam que ele era o perigo, não a presa. Ele estava com a barba por fazer, e, como sempre, vestido de preto, e o sofrimento dos últimos dias colocara rugas profundas em seu rosto magro. Com a massa de cabelos desgrenhados de Robbie, os dois estavam parecidos com quaisquer outros vagabundos que perambulavam pelas estradas, exceto que aqueles estavam armados de meter medo. Thomas levava sua espada, seu arco e sua sacola de flechas, enquanto Robbie estava com a espada do tio, com o pedaço do cabelo de Sto. Andrew encaixado no punho. Sir William concluíra que praticamente não teria de usar a espada nos próximos anos, enquanto sua família tentava levantar o vultoso resgate, e por isso a emprestara a Robbie com o encorajamento para que fizesse bom uso dela.
— Você acha que de Taillebourg vai estar em Dorset? — perguntou Robbie a Thomas enquanto eles seguiam sob uma picante chuva forte.
— Duvido.
— Então por que estamos indo?
— Porque ele pode acabar aparecendo por lá — disse Thomas —, ele e o maldito criado.
Ele nada sabia sobre o criado, exceto o que Robbie lhe contara: que o homem era exigente, elegante, moreno escuro e misterioso, mas Robbie nunca ouvira o nome dele. Thomas, achando difícil acreditar que um padre tivesse matado Eleanor, convencera-se de que o criado era o criminoso e por isso planejara fazer com que o homem sofresse em agonia.
A tarde já ia avançada quando eles se curvaram para passar pela porta leste de Dorchester. Um guarda de lá, alarmado pelas armas deles, mandou que se identificassem, mas desistiu quando Thomas respondeu em francês. Aquilo sugeria que ele era um aristocrata, e o guarda, embirrado, deixou passarem os dois homens a cavalo, e depois ficou observando enquanto eles subiam pela East Street, passando pela igreja de Todos os Santos e pela prisão do condado. As casas ficavam mais prósperas à medida que se aproximavam do centro da cidade e, perto da igreja de São Pedro, as casas dos mercadores de lã poderiam não ficar deslocadas em Londres. Thomas sentia o cheiro dos matadouros atrás das casas, onde os açougueiros exerciam sua tarefa, e depois ele levou Robbie até Cornhill, passando pela casa do fabricante de utensílios de estanho, que gaguejava e tinha um olho gázeo, e depois pelo ferreiro, onde certa vez comprara algumas pontas de flecha. Ele conhecia a maioria daquelas pessoas. O Homem-cão, um mendigo sem pernas que ganhara o apelido porque bebia água do rio Cerne lambendo como um cachorro, arfava pela South Street sobre os tijolos de madeira amarrados nas mãos. Dick Adyn, irmão do carcereiro da cidade, guiava três ovelhas morro acima e fez uma parada para dirigir um benévolo insulto a Willie Palmer, que estava fechando sua loja de artigos de malha. Um jovem padre entrou apressado num beco abraçando um livro e desviou os olhos de uma mulher agachada na sarjeta. Uma lufada de vento soprou fumaça de madeira para a rua. Dorcas Galton, cabelos castanhos erguidos num coque, sacudiu um tapete de uma janela de um andar superior e deu uma risada devido a algo que Dick Adyn disse. Todos falavam com o mesmo sotaque local, sonoro, carregado e zumbidor, como o de Thomas, e este quase fez o cavalo parar para falar com eles, mas Dick Adyn olhou para ele e depois desviou rápido o olhar e Dorcas bateu com a janela, fechando-a. Robbie parecia ameaçador, mas o ar sombrio de Thomas era ainda mais amedrontador, e nenhum dos moradores da cidade reconheceu-o como o filho bastardo do último padre que Hookton tivera. Eles o reconheceriam se ele se apresentasse, mas a guerra mudara Thomas. Ela lhe dera uma dureza que repelia os estranhos. Ele saíra de Dorset ainda criança, mas voltara como um dos melhores matadores de Eduardo da Inglaterra, e quando ele saiu da cidade pela porta sul um guarda desejou a ele e a Robbie que bons ventos os levassem e disse-lhes que não voltassem.
— Vocês têm sorte por não estarem na cadeia! — bradou o homem, encorajado pela sua cota de malha municipal e sua lança antiga.
Thomas parou o cavalo, voltou-se na sela e apenas olhou para o homem, que de repente achou motivo para voltar para o beco ao lado da porta. Thomas cuspiu e seguiu em frente.
— Sua cidade? — perguntou Robbie, mordaz.
— Agora, não — disse Thomas, e se perguntou onde ficava a cidade em que ele morava, e por algum motivo estranho La Roche-Derrien penetrou, sem ser convidada, em seus pensamentos e ele se viu recordando Jeanette Chenier em sua magnífica casa à margem do rio Jaudy, e aquela lembrança de um velho amor fez com que ele se sentisse culpado uma vez mais pelo que acontecera com Eleanor.
— Onde fica a sua cidade? — perguntou ele a Robbie, para não se aprofundar em recordações.
— Eu cresci perto de Langholm.
— Onde fica isso?
— À beira do rio Esk — disse Robbie —, não muito longe, ao norte da fronteira. É uma região inóspita, isso ela é. Não é como aqui.
— Esta região do interior é boa — disse Thomas, conciliador.
Ele ergueu os olhos para os altos muros verdes do Castelo Maiden, onde o diabo brincava na Véspera do Dia de Todos os Santos e onde codornizões agora emitiam sua canção dissonante. Havia amoras silvestres maduras nas cercas vivas e, à medida que as sombras se alongavam, filhotes de raposa faziam suas investidas sorrateiras à beira dos campos. Poucos quilômetros adiante, e o crepúsculo quase se tornara noite, mas ele agora sentia o cheiro do mar e imaginava que podia ouvi-lo, sugando e rolando sobre o cascalho grosso de Dorset. Aquela era a hora dos fantasmas, quando as almas dos mortos cintilavam nas margens da visão dos homens e quando as pessoas de bem iam depressa para casa, para sua lareira, seu sapé e suas portas trancadas. Um cachorro uivou em uma das aldeias.
Thomas havia pensado em seguir até Down Mapperley, onde Sir Giles Marriott, o senhor de Hookton entre outras aldeias, tinha o seu solar, mas estava tarde e ele não achava prudente chegar ao solar depois do anoitecer. Além do mais, Thomas queria ver Hookton antes de falar com Sir Giles, e por isso dirigiu seu cavalo cansado em direção ao mar e conduziu Robbie sob o vulto gigantesco do monte Lipp.
— Matei meus primeiros homens lá em cima daquele monte — jactou-se ele.
— Com o arco?
— Quatro deles — disse Thomas — com quatro flechas.
Aquilo não era de todo verdade, porque ele devia ter disparado sete ou oito flechas, talvez mais, mas ainda assim matara quatro dos assaltantes que tinham atravessado o Canal para saquear Hookton. E agora ele estava bem dentro da sombra crepuscular do vale do mar de Hookton e via o agitar das ondas que arrebentavam, com um cintilar branco no lusco-fusco adiantado enquanto cavalgava pela margem do rio até o local em que seu pai havia pregado e morrido.
Ninguém morava lá agora. Os assaltantes tinham deixado a aldeia morta. As casas foram incendiadas, o telhado da igreja desabara e os aldeões estavam enterrados num cemitério sufocado por urtigas, espinhos e cardos. Fazia quatro anos e meio que o grupo assaltante desembarcara em Hookton liderado pelo primo de Thomas, Guy Vexille, o conde de Astarac, e pelo pai de Eleanor, Sir Guillaume d’Evecque. Thomas tinha matado quatro dos besteiros e isso fora o começo de sua vida de arqueiro. Ele abandonou os estudos em Oxford e até aquele momento nunca voltara a Hookton.
— Aqui era a minha cidade — disse ele a Robbie.
— O que aconteceu?
— Os franceses — disse Thomas, e fez um gesto para o mar às escuras. — Eles vieram da Normandia.
— Jesus. — Robbie, por algum motivo, estava surpreso. Sabia que as terras fronteiriças da Inglaterra e da Escócia eram lugares onde prédios eram incendiados, o gado roubado, as mulheres estupradas e os homens mortos, mas nunca imaginara que isso acontecia tão ao sul assim. Deixou o corpo escorregar do cavalo e andou até uma pilha de urtigas que tinha sido um chalé. — Havia uma aldeia aqui?
— Uma aldeia de pescadores — disse Thomas e encaminhou-se pelo que certa vez tinha sido a rua, para o lugar onde as redes tinham sido remendadas e as mulheres defumavam o peixe. A casa de seu pai era um monte de madeiras queimadas, agora cobertas de convólvulo. Os outros chalés estavam na mesma situação, o sapé e a latada reduzidos a cinza e imundície. Só a igreja a oeste do rio era reconhecível, as paredes altas abertas para o céu. Thomas e Robbie amarraram os cavalos a aveleiras novas no cemitério e levaram a bagagem para dentro da igreja em ruínas. Já estava escuro demais para uma exploração, mas Thomas não conseguia dormir e por isso foi até a praia e recordou aquela manhã de Páscoa quando os navios normandos encalharam no cascalho e os homens chegaram gritando de madrugada, com armas e bestas, machados e fogo. Eles tinham chegado à procura do Graal. Guy de Vexille acreditava que ele estava em poder do tio dele, e por isso o Arlequim havia passado a aldeia de Hookton na espada. Ele a incendiara, destruíra e saíra dela sem o Graal.
O rio fazia seu barulhinho enquanto se contorcia dentro do Hook de cascalho para ir se encontrar com o grande barulho do mar. Thomas sentou-se no Hook, envolto em sua nova capa, com o grande arco preto ao lado. O capelão, John Pryke, falara sobre o Graal no mesmo tom reverente que o padre Hobbe usava quando falava da relíquia. O Graal, dissera o padre Pryke, não era apenas o cálice do qual Cristo bebera o vinho na Última Ceia, mas o receptáculo no qual o sangue de Cristo ao morrer caíra da cruz.
— Longino — tinha dito o padre Pryke em seu estilo excitável — era o centurião que estava embaixo da cruz e, quando a lança desferiu o doloroso golpe, ele ergueu o cálice para aparar o sangue!
Como, perguntava-se Thomas, o cálice foi da sala superior, onde Cristo fizera sua última refeição, para a posse de um centurião romano? E, o que era ainda mais estranho, como é que ele chegara até Ralph Vexille? Ele fechou os olhos, oscilando para trás e para a frente, com vergonha de sua descrença. O padre Hobbe sempre o chamara de Thomas Duvidador.
— Você não deve procurar explicações — dissera o padre Hobbe repetidas vezes — porque o Graal é um milagre. Ele transcende explicações.
— C’est une tasse magique — acrescentara Eleanor, somando implicitamente a sua reprovação à do padre Hobbe.
Thomas queria muito acreditar que se tratasse de um cálice mágico. Queria acreditar que o Graal existia fora do campo de visão humano, atrás de um véu de descrença, uma coisa meio visível, tremeluzente, maravilhosa, suspensa em luz e brilhando como fogo mortiço. Queria acreditar que um dia o Graal iria adquirir substância e que de seu bojo, que contivera o vinho e o sangue de Cristo, fluiriam paz e purificação. No entanto, se Deus quisesse que o mundo estivesse em paz e se Ele quisesse que a doença fosse derrotada, por que iria esconder o Graal? A resposta do padre Hobbe tinha sido de que a humanidade não era digna de segurar a taça, e Thomas se perguntava se aquilo era verdade. Haveria alguém que fosse digno? E talvez, pensou Thomas, se o Graal tinha qualquer poder mágico, este era o de exagerar os defeitos e as virtudes daqueles que o procuravam. O padre Hobbe tornara-se mais santificado em sua busca e o estranho padre e seu criado moreno, mais malignos. Era como uma daquelas lentes de cristal que os joalheiros usavam para aumentar a sua obra, só que o Graal era um cristal que ampliava o caráter. O que, perguntava-se Thomas, ele revelava sobre si mesmo? Ele se lembrava de seu constrangimento diante da idéia de se casar com Eleanor, e de repente começou a chorar, sacudir-se com soluços, chorar mais do que já tinha chorado desde que ela fora assassinada. Ele sacudia o corpo para a frente e para trás, a dor tão profunda quanto o mar que batia no cascalho, e que era tornada pior por saber que ele era um pecador, sem absolvição, com a alma condenada ao inferno.
Ele tinha saudades daquela mulher, odiava a si mesmo, sentia-se vazio, solitário e condenado, e por isso, na aldeia morta de seu pai, ele chorava.
Começou a chover mais tarde, uma chuva constante que ensopou a capa nova e esfriou Thomas e Robbie até os ossos. Eles tinham acendido uma fogueira que bruxuleava fracamente na velha igreja, chiando sob a chuva e dando a eles uma pequena ilusão de calor.
— Por aqui tem lobos? — perguntou Robbie.
— Deve haver — disse Thomas —, embora eu nunca tenha visto nenhum.
— Nós temos lobos em Eskdale — disse Robbie —, e de noite os olhos deles têm um brilho vermelho. Como fogo.
— Aqui há monstros no mar — disse Thomas. — Os corpos deles vêm dar na praia, às vezes, e é possível encontrar os ossos nos rochedos. Às vezes, mesmo em dias calmos, homens não voltavam da pesca e a gente sabia que os monstros os tinham pegado. — Ele estremeceu e benzeu-se.
— Quando o meu avô morreu — disse Robbie — os lobos rodeavam a casa e uivavam.
— A casa é grande?
Robbie pareceu surpreso com a pergunta. Pensou nela por um instante, e confirmou com a cabeça.
— É — disse ele. — Meu pai é proprietário de terras.
— Um senhor?
— Como um senhor — disse Robbie.
— Ele não estava na batalha?
— Ele perdeu uma perna e um braço em Berwick. Por isso nós, os filhos, temos de lutar por ele.
Ele disse que era o caçula de quatro filhos homens.
— Três agora — disse ele, benzendo-se e pensando em Jamie.
Eles dormiram mal, acordaram, tremeram de frio, e ao amanhecer Thomas voltou ao Hook para ver o novo dia filtrar-se cinzento ao longo do horizonte irregular do mar. A chuva parara, apesar de um vento frio retalhar as cristas das ondas. O cinza transformou-se num branco leproso, depois prateado quando as gaivotas chegaram sobre a longa faixa de cascalho onde, no alto da encosta do Hook, ele encontrou os restos de quatro estacas castigadas pelo tempo. Elas não estavam ali quando ele partira, mas embaixo de uma delas, meio enterrado em pedras, estava um amarelado pedaço de crânio e ele imaginou que aquele era um dos besteiros que ele matara com o seu longo arco preto naquele dia de Páscoa. Quatro estacas, quatro homens mortos, e Thomas supôs que as quatro cabeças estavam colocadas sobre as estacas para olharem para o mar até que as gaivotas arrancassem seus olhos com o bico e retalhassem a carne para deixar os crânios expostos.
Thomas olhou para a aldeia em ruínas, mas não conseguiu ver ninguém. Robbie ainda estava no interior da igreja, da qual saía um fiozinho de fumaça, mas fora isso Thomas estava sozinho com as gaivotas. Não havia nem mesmo ovelhas, cabeças de gado ou cabritos no monte Lipp. Ele se afastou da costa, os pés esmagando o cascalho, e então percebeu que ainda tinha na mão a curva quebrada de crânio e atirou-a no rio no qual os barcos pesqueiros eram inundados para livrá-los dos ratos e então, sentindo fome, foi apanhar o pedaço de queijo duro e pão preto do alforje que deixara ao lado da porta da igreja. As paredes da igreja, agora que podia vê-las de forma adequada à luz do dia, pareciam mais baixas do que ele se lembrava, talvez porque o pessoal local tivesse chegado com carroças e levado as pedras para paredes de galpões, chiqueiros ou casas. Dentro da igreja havia apenas um emaranhado de espinhos, urtigas e alguns pedaços retorcidos de madeira queimada havia muito cobertos por capim.
— Quase fui morto aqui — disse a Robbie, e descreveu como os assaltantes tinham batido na porta da igreja enquanto ele quebrava com os pés as vidraças de osso da janela leste e pulava para o cemitério. Lembrava-se de que seu pé havia esmagado o cálice de prata usado nas missas enquanto passava desajeitado por cima do altar.
Será que aquele cálice de prata era o Graal? Soltou uma gargalhada ao pensar naquilo. O cálice usado na missa era uma taça de prata, onde estava gravada a insígnia dos Vexille, e aquela insígnia, recortada da taça esmagada, estava agora presa ao arco de Thomas. Era tudo o que restava da velha taça, mas não tinha sido o Graal. O Graal era muito mais velho, muito mais misterioso e muito mais amedrontador.
O altar há muito que desaparecera, mas havia uma tigela de barro, rasa, nas urtigas no local onde ele se erguia. Thomas afastou as plantas com os pés e apanhou a tigela, lembrando-se que seu pai a enchia com hóstias antes da missa, cobria, com um pano de linho, e levava-a depressa para a igreja, zangando-se se nenhum dos aldeões tirava o chapéu e se inclinava para o sacramento enquanto ele passava. Thomas tinha chutado a tigela ao subir para o altar a fim de fugir dos franceses, e ela ainda ali estava. Ele deu um sorriso triste, pensou em guardar a tigela, mas jogou-a de volta para as urtigas. Os arqueiros deviam viajar com pouca bagagem.
— Vem vindo alguém — avisou-o Robbie, correndo para apanhar a espada do tio. Thomas pegou o arco e tirou uma flecha da sacola, e naquele exato momento ouviu a batida de patas e o latido de cães de caça. Foi até as ruínas na porta e viu uma dúzia de grandes galgos veadeiros espadanando pelo rio com línguas pendendo entre os dentes; ele não teve tempo para correr deles, só de espremer-se contra a parede enquanto os cães corriam para ele.
— Argos! Maera! Para trás! Comportem-se! — berrou o cavalariano aos seus cães, reforçando as ordens com o estalar de um chicote acima da cabeça deles, mas os animais cercaram Thomas e pularam nele. Mas não com ameaça: lambiam-lhe o rosto e abanavam o rabo.
— Orthos! — berrou o caçador para um daqueles cães, e só então olhou firme para Thomas.
Este não o reconheceu, mas era evidente que os cães o conheciam e isso proporcionou uma pausa ao caçador.
— Jake — disse Thomas.
— Meu doce Jesus Cristo! — disse Jake. — Doce Cristo! Vejam o que a maré nos trouxe. Orthos! Argos! Parem com isso e afastem-se, seus bastardos, parem com isso e afastem-se! — O chicote estalou forte, e os cães, ainda agitados, recuaram. Jake abanou a cabeça. — É Thomas, não?
— Como vai, Jake?
— Estou mais velho — disse Jake Churchill, mal-humorado, e então desceu do cavalo, forçou a passagem por entre os cães e saudou Thomas com um abraço. — Foi o maldito do seu pai quem deu nome a esses cães. Ele achou que era uma piada. É um prazer ver você, rapaz.
Jake estava com uma barba grisalha, o rosto moreno como uma castanha, devido ao tempo, e a pele cheia de cicatrizes devido a inúmeros arbustos com espinhos. Ele era o principal caçador de Sir Giles Marriott e ensinara Thomas a atirar com um arco, a espreitar um veado e a andar pelo interior escondido e em silêncio.
— Bom Deus Todo-Poderoso, rapaz — disse ele —, mas você cresceu um bocado. Olha só para o seu tamanho!
— Os rapazes crescem, Jake — disse Thomas, e fez um gesto em direção a Robbie. — É um amigo meu.
Jake cumprimentou o escocês com a cabeça e empurrou os cães para longe de Thomas. Os cães, com os seus nomes tirados da mitologia grega e latina, ganiram agitados.
— E que diabo vocês dois estão fazendo aqui? — quis saber Jake. — Deviam ter ido até o solar, como cristãos!
— Nós chegamos tarde — explicou Thomas — e eu queria ver o local.
— Não há nada para ver aqui — disse Jake, com desdém. — Agora só tem lebres.
— Você agora caça lebres?
— Eu não trago dez pares de cães para pegar lebres, rapaz. Não, o filho de Lally Gooden viu vocês dois esgueirando-se por aqui à noite passada e por isso Sir Giles me mandou para ver o que vocês estavam tramando. Tivemos uma dupla de vagabundos tentando se instalar aqui na primavera e eles tiveram que ser obrigados a seguir caminho na base do chicote. E na semana passada dois estrangeiros andaram furtivamente por aqui.
— Estrangeiros? — perguntou Thomas, sabendo que Jake bem podia estar querendo dizer apenas que os estrangeiros tinham vindo da paróquia vizinha.
— Um padre e seu criado — disse Jake —, e se ele não fosse padre, eu teria soltado os cachorros em cima dele. Não gosto de estrangeiros, não acho nada de interessante neles. Esses seus cavalos parecem estar com fome. Vocês dois também. Querem tomar o desjejum? Ou vão ficar aí e mimar esses malditos cães de tanto tapinha?
Eles cavalgaram de volta para Down Mapperley, atravessando a pequena aldeia atrás dos cães. Thomas se lembrava que a aldeia era grande, com o dobro do tamanho de Hookton, e quando era menino achava que ela era quase uma cidade, mas agora via como era pequena. Pequena e baixa, de modo que montado a cavalo ele ficava mais alto do que os chalés com telhado de sapé que tinham parecido tão suntuosos quando ele era menino. Os montes de estrume ao lado de cada chalé eram da altura do sapé. O solar de Sir Giles Marriott, logo depois da aldeia, também era coberto de sapé, com o telhado cheio de musgo chegando quase até o chão.
— Ele vai ficar contente por ver você — prometeu Jake.
E Sir Giles ficou mesmo. Ele agora era um homem idoso, um viúvo que antigamente desconfiara da rebeldia de Thomas mas agora o recebia como a um filho perdido.
— Você está magro, rapaz, muito magro. Não é bom um homem ser magro. Vocês dois querem tomar o desjejum? Pudim de ervilha e um pouco de cerveja, é o que temos. Ontem teve pão, mas hoje não. Quando é que vamos fazer mais pão, Gooden? — A pergunta foi feita para um criado.
— Hoje é quarta-feira, excelência — disse o criado, em tom de recriminação.
— Amanhã então — disse Sir Giles a Thomas. — Pão amanhã, sem pão hoje. Dá azar fazer pão às quartas-feiras. O pão de quarta-feira envenena a gente. Eu devo ter comido o de segunda-feira. Você disse que é escocês? — Dirigia-se a Robbie.
— Sou, excelência.
— Eu pensava que todos os escoceses tivessem barba — disse Sir Giles. — Havia um escocês em Dorchester, não havia, Gooden? Você se lembra dele? Ele tinha barba. Ele tocava guiterna e dançava bem. Você deve se lembrar dele.
— Ele era das ilhas Scilly — disse o criado.
— Foi o que acabei de dizer. Mas ele tinha barba, não tinha?
— Tinha, Sir Giles. Uma barba grande.
— Pois é isso então. — Com uma colher, Sir Giles levou um pedaço de pudim de ervilha a uma boca na qual só restavam dois dentes. Era gordo, de cabelos brancos e rosto corado e tinha pelo menos cinqüenta anos de idade. — Hoje já não posso andar a cavalo, Thomas — admitiu. — Já não sirvo para nada, a não ser ficar sentado por aí olhando o tempo. Jake lhe disse que uns estrangeiros andaram rondando aqui?
— Disse, excelência.
— Um padre! Batina preta e branca, como uma pega. Queria conversar sobre o seu pai e eu disse que não havia nada a dizer. O padre Ralph morreu, disse eu, e que Deus dê descanso à sua pobre alma.
— O padre perguntou por mim, excelência? — indagou Thomas.
Sir Giles sorriu.
— Eu disse que não via você há anos e esperava nunca mais tornar a vê-lo, e então o criado dele me perguntou onde ele poderia procurar por você e eu disse a ele que não falasse com seus superiores sem permissão. Ele não gostou! — Ele fez um muxoxo. — Então a pega fez perguntas sobre seu pai e eu disse que praticamente não o conhecera. Era mentira, claro, mas ele acreditou em mim e retirou-se. Coloque um pouco de lenha naquele fogo, Gooden. Se dependesse de você, um homem poderia morrer congelado dentro de sua própria casa.
— Então o padre foi embora, excelência? — perguntou Robbie. Não parecia normal de Taillebourg aceitar uma negativa e humildemente ir embora.
— Ele ficou com medo dos cachorros — disse Sir Giles, ainda achando graça. — Eu estava com alguns cães aqui, e se ele não estivesse vestido como uma pega eu os teria soltado, mas não se deve matar padres. Sempre há encrenca depois. O diabo vem e apronta das suas se você matar um padre. Mas eu não gostei dele e disse que não tinha certeza quanto ao tempo que poderia manter os cães sob controle. Há um pouco de presunto na cozinha. Gostaria de um pouco de presunto, Thomas?
— Não, excelência.
— Eu detesto o inverno.
Sir Giles olhou para a lareira ampla, onde as chamas agora estavam enormes. O solar tinha vigas escurecidas pela fumaça que sustentavam o imenso telhado de sapé. Em uma das extremidades, um biombo de madeira entalhada escondia a cozinha, enquanto os aposentos particulares ficavam na outra ponta, apesar de que desde que a mulher morrera Sir Giles não usava mais os aposentos pequenos, mas vivia, comia e dormia ao lado da lareira do salão.
— Acho que este vai ser o meu último inverno, Thomas.
— Espero que não, excelência.
— Você pode esperar o que bem quiser, mas eu não vou durar até o fim. Não quando o gelo chegar. Hoje em dia não é possível manter-se aquecido, Thomas. O frio penetra em você, morde a sua medula, e eu não gosto disso. Seu pai também não gostava. — Ele agora estava olhando fixo para Thomas. — Seu pai sempre dizia que você iria embora. Para Oxford, não. Ele sabia que você não gostava de lá. Era como chicotear um corcel entre as pernas, era o que ele costumava dizer. Ele sabia que você iria fugir e ser um soldado. Ele sempre disse que você tinha um sangue de rebelde. — Sir Giles sorriu ao recordar-se. — Mas ele também dizia que você voltaria para casa um dia. Dizia que você iria voltar para mostrar a ele o belo homem em que se transformara.
Thomas piscou para afastar as lágrimas. Será que seu pai realmente dissera aquilo?
— Voltei desta vez — disse ele — para lhe fazer uma pergunta, excelência. A mesma pergunta, acho eu, que o padre francês queria fazer ao senhor.
— Perguntas! — resmungou Sir Giles. — Jamais gostei de perguntas. Elas precisam de resposta, entende? É claro que você quer presunto! O que quer dizer com “não”? Gooden? Peça à sua filha para desembrulhar aquele presunto, sim?
Sir Giles pôs-se de pé e atravessou o salão arrastando os pés, até uma grande arca de carvalho escuro, envernizado. Ergueu a tampa e, gemendo pelo esforço de se curvar, começou a rebuscar entre as roupas e botas que se misturavam lá dentro.
— Descobri agora, Thomas — continuou ele —, que não preciso de perguntas. Eu me sento no tribunal do solar de duas em duas semanas e sei se eles são culpados ou inocentes no momento em que são levados para o recinto! Veja bem, nós temos de fingir que não é assim, não temos? Ora, onde está ele? Ah! — Ele encontrou o que quer que estivesse procurando e levou-o para a mesa. — Pronto, Thomas, dane-se a sua pergunta e aqui está a sua resposta.
Empurrou o pacote para o outro lado da mesa.
Era um pequeno objeto embrulhado numa aniagem antiga. Thomas teve uma absurda premonição de que aquilo era o próprio Graal e ficou ridiculamente decepcionado quando descobriu que o pacote continha um livro. A capa do livro era uma peça de couro macio, quatro ou cinco vezes maior do que as páginas, que podia ser usada para embrulhar o volume que, quando Thomas o abriu, revelou estar escrito na caligrafia de seu pai. Thomas folheou as páginas depressa, descobrindo notas escritas em latim, grego e uma língua estranha que ele achou que devia ser hebraico. Voltou para a primeira página, onde estavam escritas apenas três palavras e, lendo-as, sentiu o sangue esfriar. “Calix meus inebrians”.
— É a sua resposta? — perguntou Sir Giles.
— É, excelência.
Sir Giles deu uma espiada na primeira página.
— Isso daí é latim, não é?
— É, sim, excelência.
— Achei que fosse. Olhei, é claro, mas não consegui entender nada e não quis perguntar a Sir John — este era o padre da igreja de São Pedro em Dorchester — nem àquele advogado, como é o nome dele? aquele que baba quando fica agitado. Ele fala latim, ou diz que fala. O que está escrito aí?
— “Minha taça me deixa embriagado”— disse Thomas.
— “Minha taça me deixa embriagado”! — Sir Giles achou aquilo esplendidamente engraçado. — É, o juízo de seu pai estava bem à deriva. Um bom homem, um bom homem, mas nossa...! “Minha taça me deixa embriagado”!
— É de um dos salmos — disse Thomas, passando para a segunda página, que estava escrita na língua que ele achava ser hebraico, embora houvesse algo estranho nela. Um dos símbolos repetidos parecia um olho humano, e Thomas nunca vira aquilo na escrita hebraica antes, embora, com toda sinceridade, ele tivesse visto poucos textos em hebraico.
— É do salmo, excelência — continuou ele —, que começa dizendo “Deus é o nosso pastor”.
— Ele não é o meu pastor — resmungou Sir Giles. — Eu não sou a porcaria de uma ovelha.
— Nem eu, excelência — declarou Robbie.
— Ouvi dizer — Sir Giles olhou para Robbie — que o rei da Escócia foi feito prisioneiro.
— Foi, excelência? — perguntou Robbie, mostrando inocência.
— Provavelmente um absurdo — replicou Sir Giles, e então começou a contar uma longa história sobre conhecer um escocês barbudo em Londres, e Thomas ignorou a história para dar uma olhada nas páginas do livro de seu pai. Ele sentia uma espécie de estranha decepção, porque o livro sugeria que a procura pelo Graal era justificada. Ele queria alguém que lhe dissesse que aquilo era um absurdo, para liberá-lo da escravidão do cálice, mas seu pai tinha levado o caso a sério o bastante para escrever aquele livro. Mas seu pai, lembrou Thomas a si mesmo, tinha sido um louco.
Mary, filha de Gooden, trouxe o presunto. Thomas conhecia Mary desde quando os dois eram crianças que brincavam em poças de água suja e a cumprimentou com um sorriso, reparando em que Robbie olhava fixo para ela, como se se tratasse de uma aparição vinda do céu. Mary tinha cabelos compridos e lábios cheios e Thomas estava certo de que Robbie estaria descobrindo mais do que uns poucos rivais em Down Mapperley. Ele esperou até Mary se retirar e então ergueu o livro.
— Meu pai alguma vez falou com o senhor sobre isso, excelência?
— Ele falava sobre tudo — disse Sir Giles. — Falava como uma mulher. Não parava nunca! Eu era amigo de seu pai, Thomas, mas nunca fui muito um homem interessado em religião. Se ele falava muito nela, eu pegava no sono. Ele gostava disso. — Sir Giles fez uma pausa para cortar uma fatia de presunto. — Mas seu pai era maluco.
— Vossa Excelência acha que isto é loucura? — Thomas tornou a erguer o livro.
— Seu pai era louco por Deus, mas não era bobo. Nunca conheci um homem com tanto senso comum, e disso eu sinto falta. Sinto falta dos conselhos.
— Aquela moça trabalha aqui? — perguntou Robbie fazendo um gesto para o biombo atrás do qual Mary desaparecera.
— Desde que nasceu — disse Sir Giles. — Você se lembra de Mary, Thomas?
— Tentei afogá-la quando nós dois éramos crianças — disse Thomas. Ele tornou a folhear o livro do pai, apesar de naquele momento não ter tempo de extrair quaisquer significados das palavras embaralhadas. — Vossa Excelência sabe o que é isto, não sabe?
Sir Giles fez uma pausa e sacudiu a cabeça.
— O que eu sei, Thomas, é que muitos homens querem o que seu pai diz ter possuído.
— Então ele fez mesmo essa afirmação?
Outra pausa.
— Dava a entender — disse Sir Giles, pesaroso —, e eu não invejo você.
— Eu?
— Porque ele me deu esse livro, Thomas, e disse que se alguma coisa acontecesse a ele eu deveria guardá-lo até que você tivesse idade bastante e ficasse homem bastante para assumir a tarefa. Foi o que ele disse. — Sir Giles olhou para Thomas e viu o filho de seu velho amigo vacilar. — Mas se vocês dois quiserem ficar algum tempo aqui — disse ele — será um prazer. Jake Churchill precisa de ajuda. Ele me disse que nunca viu tantos filhotes de raposa, e se não matarmos alguns dos bastardos haverá massacres incomuns entre as ovelhas no ano que vem.
Thomas olhou para Robbie. A tarefa deles era achar de Taillebourg e vingar a morte de Eleanor, do padre Hobbe e do irmão de Robbie, mas não era provável, achava ele, que o dominicano fosse voltar ali. Contudo Robbie queria ficar: Mary Gooden tinha sido a causa. E Thomas estava cansado. Ele não sabia onde procurar o padre e por isso a chance de ficar naquele solar era muito bem-vinda. Seria uma oportunidade para estudar o livro e assim acompanhar seu pai pela longa e tortuosa trilha do Graal.
— Nós vamos ficar, excelência — disse Thomas.
Por uns tempos.
FOI A PRIMEIRA VEZ que Thomas viveu como um senhor. Não um grande senhor, talvez, não como um conde ou duque com dezenas de homens para comandar, mas ainda com privilégio, refestelado no solar — ainda que o solar fosse um solar de madeira coberto de sapé, com um chão de terra batida —, com os dias à sua disposição para passar o tempo, enquanto outras pessoas faziam o trabalho duro da vida, de cortar lenha, tirar água do poço, ordenhar vacas, bater manteiga, bater massa de fazer pão e lavar roupa. Robbie estava mais acostumado com aquilo, mas reconhecia que a vida era muito mais fácil em Dorset.
— Lá na minha terra — disse ele — há sempre alguns malditos assaltantes ingleses vindos pela montanha para roubar o nosso gado ou levar os nossos grãos.
— Enquanto você — disse Thomas — jamais sonharia em ir até o sul e roubar dos ingleses.
— Por que eu iria até mesmo pensar numa coisa dessas? — perguntou Robbie sorrindo.
E assim, enquanto o inverno se fechava sobre a terra, eles caçavam nos acres de Sir Giles Marriott para deixar os campos seguros para a estação de nascimento de ovelhas e levar carne de veado para a mesa de Sir Giles; bebiam nas tabernas de Dorchester e riam dos pantomimeiros que foram para a feira do inverno. Thomas encontrou velhos amigos e contou-lhes histórias sobre a Bretanha, a Normandia e a Picardia, algumas das quais eram verdadeiras, e ganhou a flecha de ouro na disputa de arco e flecha da feira e a deu de presente a Sir Giles, que a pendurou no solar e declarou que era o troféu mais bonito que ele já vira.
— Meu filho sabia atirar bem com um arco. Muito bem. Eu gostaria de pensar que ele poderia ter ganhado esse troféu.
O único filho de Sir Giles tinha morrido de febre e a única filha estava casada com um cavaleiro que tinha terras em Devon, e Sir Giles não gostava nem do genro nem da filha.
— Eles vão herdar a propriedade quando eu morrer — disse a Thomas —, de modo que é bom você e Robbie desfrutarem dela agora.
Thomas convenceu-se de que não estava ignorando a procura do Graal por causa das horas que passava debruçado no livro do pai. As páginas eram de papel velino grosso, caro e raro, o que mostrava o quanto aquelas anotações eram importantes para o padre Ralph, mas mesmo assim para Thomas elas faziam pouco sentido. Grande parte do livro era de histórias. Uma delas contava que um cego, ao acariciar o cálice, ganhara a visão, mas depois, decepcionado com a aparência do Graal, tornara a perdê-la. Uma outra contava que um guerreiro mouro tentara roubar o Graal e por sua infidelidade fora transformado numa serpente. A história mais longa era sobre Perceval, um cavaleiro da antiguidade que saiu numa cruzada e descobriu o Graal no túmulo de Cristo. Dessa vez, a palavra latina usada para descrever o Graal era crater, que significava cratera, enquanto em outras páginas era calix, um cálice, e Thomas se perguntou se havia algum significado na distinção. Se seu pai tivesse possuído o Graal, será que não teria sabido se era um cálice ou uma cratera? Ou talvez não houvesse realmente diferença. Fosse como fosse, a longa história dizia que a cratera ficara numa prateleira no túmulo de Cristo, a plena vista de todos os que entravam no sepulcro, tanto peregrinos cristãos como seus inimigos pagãos, mas só quando Sir Perceval entrou na gruta de joelhos foi que o Graal foi visto por alguém, porque Sir Perceval era um homem de retidão e por isso digno de estar de olhos abertos. Sir Perceval tirou a cratera, levando-a de volta para a cristandade, onde planejava construir um santuário digno do tesouro, mas, registrava laconicamente a história, “ele morreu”. O pai de Thomas tinha escrito embaixo a seguinte conclusão abrupta: “Sir Perceval era conde de Astarac e era conhecido por outro nome. Ele se casou com uma Vexille.”
— Sir Perceval! — Sir Giles estava impressionado. — Ele era membro de sua família, hein? Seu pai nunca falou disso comigo. Pelo menos, acho que não. Peguei no sono durante muitas de suas histórias.
— Em geral, ele zombava de histórias como esta — disse Thomas.
— Nós costumamos zombar daquilo que tememos — observou Sir Giles, sentencioso. De repente sorriu. — Jake me disse que vocês pegaram aquela velha raposa macho perto das Cinco Marias.
As Cinco Marias eram antigos túmulos em forma de montes que os moradores do local diziam ter sido cavados por gigantes e Thomas nunca compreendera por que os túmulos eram seis.
— Não foi lá — disse Thomas —, mas atrás de White Nothe.
— Atrás de White Nothe? No alto dos rochedos? — Sir Giles olhou fixo para Thomas e depois deu uma risada. — Vocês estiveram nas terras de Holgate! Seus safados!
Sir Giles, que sempre reclamara violentamente quando Thomas fazia incursões secretas nas suas terras para tirar coisas, agora achava aquela rapinagem contra um vizinho muitíssimo divertida.
— Ele é uma mulher velha, o Holgate. Então, está entendendo esse livro?
— Quem dera que eu soubesse — disse Thomas olhando fixo para o nome Astarac.
Tudo o que ele sabia era que Astarac era um feudo ou condado no sul da França e a residência da família Vexille antes que fosse declarada rebelde e herege. Aprendera igualmente que Astarac ficava perto do interior cátaro, perto o bastante para que a influência perniciosa pegasse os Vexille, e quando, cem anos antes, o rei francês e a verdadeira Igreja tinham expulsado os hereges da região à base da fogueira, também tinham obrigado os Vexille a fugir. Agora parecia que o lendário Sir Perceval era um Vexille? Parecia, entretanto, a Thomas que quanto mais ele penetrava no mistério, mais intrincado este ficava.
— Alguma vez meu pai lhe falou sobre Astarac, excelência? — perguntou a Sir Giles.
— Astarac? O que é isso?
— É o lugar de onde veio a família dele.
— Não, não, ele cresceu em Cheshire. Era o que sempre me dizia.
Mas Cheshire não passara de um refúgio, um lugar para se esconder da Inquisição: seria lá que o Graal estava escondido agora? Thomas virou uma página e encontrou um longo trecho descrevendo como uma coluna assaltante tentara atacar a torre de Astarac e tinha sido rechaçada pela visão do Graal. “Ele os ofuscou” — escrevera o padre Ralph — “e com isso 364 deles foram mortos.” Uma outra página registrava que era impossível um homem contar uma mentira enquanto apoiasse a mão no Graal, “caso contrário, ele será fulminado”. Uma mulher estéril receberia o dom de ter filhos acariciando o Graal, e se um homem bebesse dele na Sexta-Feira Santa teria garantido um vislumbre “daquela com quem ele se casará no céu”. Uma outra história relatava que um cavaleiro, transportando o Graal através de um campo desolado, foi perseguido por pagãos e, quando tudo parecia perdido, Deus enviou uma águia imensa que o pegou, pegou seu cavalo e o precioso Graal e levou-os para o céu, deixando os guerreiros pagãos uivando de raiva frustrada.
Uma frase era copiada repetidas vezes nas páginas do livro: “Transfer calicem istem a me”, e Thomas podia sentir o sofrimento e a frustração de seu pai ressaltados da frase repetida. “Tire este cálice de mim” era o que significavam as palavras, e eram as mesmas que Cristo dissera no Jardim das Oliveiras ao implorar a Deus Pai que o poupasse da dor de ficar pendurado na árvore. Às vezes a frase era escrita em grego, uma língua que Thomas estudara mas nunca dominara por completo; conseguia decifrar a maioria do texto em grego, mas o hebraico continuava um mistério.
Sir John, o antigo vigário da igreja de São Pedro, concordou em que era um tipo estranho de hebraico.
— Já esqueci todo o hebraico que aprendi na vida — disse ele a Thomas —, mas não me lembro de ter visto uma letra como esta! — Apontou para o símbolo que parecia um olho humano. — Muito estranho, Thomas, muito estranho. É quase hebraico. — Ele fez uma pausa, e depois disse, pesaroso: — Se ao menos Nathan ainda estivesse aqui.
— Nathan?
— Foi antes do seu tempo, Thomas. Nathan coletava sanguessugas e as mandava para Londres. Os médicos de lá davam um grande valor às sanguessugas de Dorset, sabia disso? Mas, é claro, Nathan era judeu e foi embora com os outros.
Os judeus tinham sido expulsos da Inglaterra havia quase cinqüenta anos, um acontecimento ainda fresco na memória do padre.
— Ninguém até agora descobriu onde ele encontrava as sanguessugas — prosseguiu Sir John —, e às vezes eu me pergunto se ele rogou alguma praga nelas. — Olhou para o livro com o cenho franzido. — Este livro pertenceu ao seu pai?
— Pertenceu.
— Pobre padre Ralph — disse Sir John, dando a entender que o livro devia ser produto de uma loucura. Fechou o volume e com cuidado envolveu as páginas na capa de couro macio.
Não havia sinal de Bernard de Taillebourg nem notícias dos amigos de Thomas na Normandia. Escreveu uma carta difícil a Sir Guillaume contando como a filha dele tinha morrido e pedindo qualquer notícia de Will Skeat, que Sir Guillaume tinha levado para Caen a fim de ser tratado por Mordecai, o médico judeu. A carta foi para Southampton e de lá para Guernsey, e Thomas estava certo de que seria encaminhada para a Normandia, mas nenhuma resposta chegou até o Natal, e Thomas pensou que ela estivesse perdida. Escreveu também a Lorde Outhwaite, assegurando-lhe que estava sendo assíduo em sua busca e contando algumas das histórias do livro de seu pai.
Lorde Outhwaite mandou uma resposta que dava os parabéns a Thomas pelo que ele descobrira e depois revelava que Sir Geoffrey Carr tinha partido para a Bretanha com meia dúzia de homens. Corria o rumor, informava Lorde Outhwaite, de que as dívidas do Espantalho eram maiores do que nunca, “motivo, talvez, pelo qual ele tenha ido para a Bretanha”. Não seria apenas a esperança de butim que teria levado o Espantalho a La Roche-Derrien, mas a lei que diz que um devedor não seria obrigado a pagar suas dívidas enquanto servisse o rei no exterior. “Você vai atrás do Espantalho?”, perguntava Sir Outhwaite, e Thomas enviou uma resposta dizendo que já estaria em La Roche-Derrien quando Lorde Outhwaite lesse aquelas palavras, e então não fez coisa alguma quanto a sair de Dorset. Era a época de Natal, disse consigo, e ele sempre gostara do Natal.
Sir Giles celebrou os doze dias de festas em grande estilo. Não comia carne desde o primeiro domingo do Advento, o que não foi propriamente um sacrifício, porque ele adorava enguias e peixe, mas na véspera de Natal só comeu pão, preparando-se para a primeira festividade da temporada. Doze colmeias vazias foram levadas para o salão e decoradas com raminhos de hera e azevinho; uma vela enorme, grande o bastante para ficar acesa durante a temporada toda, foi colocada na mesa alta, e um imenso tronco para alimentar a lareira, e os vizinhos de Sir Giles foram convidados para beber vinho e cerveja e comer carne de boi, javali, veado, ganso e paio. A taça cheia de clarete aquecido e temperado com especiarias foi passada pelo salão, e Sir Giles, como fazia todas as noites de Natal, chorou pela esposa falecida e estava bebedamente adormecido quando as velas se exauriram. Na quarta noite das festas de Natal, Thomas e Robbie uniram-se aos hogglers* e, disfarçados de fantasmas e homens verdes e brincalhões, saracotearam em volta da paróquia extorquindo recursos para a Igreja. Foram até Dorchester, invadindo duas outras paróquias pelo caminho, e meteram-se numa briga com os hogglers da de Todos os Santos e acabaram a noite na cadeia de Dorchester, da qual foram soltos por um George Adyn que achou graça no incidente e serviu-lhes uma jarra de cerveja e um dos famosos pudins de porco capado feitos por sua mulher. A festa da Décima Segunda Noite foi um javali que Thomas matou com uma lança, e, depois que ele foi comido, e quando os convidados estavam deitados, meio bêbados e saciados, nos juncos do salão, começou a nevar. Thomas ficou na porta e via os flocos girando à luz de uma tocha tremeluzente.
— Temos de partir em breve. — Robbie fora juntar-se a ele.
— Partir?
— Temos trabalho a fazer — disse o escocês.
Thomas sabia que aquilo era verdade, mas não queria ir embora.
— Pensei que você estivesse bem feliz aqui.
— E estou mesmo — disse Robbie —, e Sir Giles é mais generoso do que eu mereço.
— E daí?
— É a Mary — disse Robbie. Ele ficou constrangido e não terminou.
— Grávida? — arriscou Thomas.
Robbie benzeu-se.
— Parece que sim.
Thomas olhou para a neve.
— Se der a ela dinheiro suficiente para constituir um dote — disse ele —, ela vai se sustentar.
— Só me sobraram três libras — disse Robbie. Ele tinha recebido uma bolsa do tio, Sir William, com dinheiro que deveria dar para um ano.
— Isso deve ser o suficiente — disse Thomas. A neve girou numa lufada de vento.
— Eu vou ficar sem nada! — protestou Robbie.
— Devia ter pensado nisso antes de lavrar o campo — disse Thomas, lembrando-se de que estivera exatamente naquela situação desagradável com uma jovem em Hookton. Ele voltou para o salão, onde um harpista e um flautista tocavam música para os bêbados.
— Devemos partir — disse ele —, mas não sei para onde.
— Você não disse que queria ir para Calais?
Thomas deu de ombros.
— Acha que de Taillebourg vai nos procurar por lá?
— O que eu acho — disse Robbie — é que assim que ele souber que você está com aquele livro irá atrás de você até o inferno.
Thomas sabia que Robbie tinha razão, mas o livro não estava se mostrando de muita valia. Em trecho algum dizia especificamente que o padre Ralph possuíra o Graal, nem descrevia um lugar onde um pesquisador pudesse procurar por ele. Thomas e Robbie tinham procurado. Tinham vasculhado as grutas à beira-mar nos rochedos perto de Hookton, onde encontraram madeira lançada à costa pelo mar, lapas e algas marinhas. Não encontraram qualquer taça de ouro meio escondida no cascalho. Portanto, para onde ir agora? Onde procurar? Se Thomas fosse para Calais, iria juntar-se ao exército, mas ele duvidava que de Taillebourg fosse procurá-lo no cerne do exército da Inglaterra. Talvez, pensou, devesse voltar para a Bretanha, e sabia que não era o Graal nem a necessidade de enfrentar de Taillebourg que o atraía a La Roche-Derrien, mas a idéia de que Jeanette Chenier podia ter voltado para casa. Ele pensava muito nela, pensava nos seus cabelos pretos, no seu espírito forte e na sua rebeldia, e sempre que pensava nela sentia culpa por causa de Eleanor.
A neve não demorou. Derreteu, e do oeste veio uma chuva forte para açoitar a costa de Dorset. Um grande navio inglês naufragou na costa de cascalho de Chesil e Thomas e Robbie levaram uma das carroças de Sir Giles até a praia e, com a ajuda de Jake Churchill e dois de seus filhos, lutaram para afastar vinte outros homens para salvar seis fardos de lã, que levaram para Down Mapperley e deram de presente a Sir Giles, o qual, com isso, ganhou a renda de um ano em um único dia.
E, na manhã seguinte, o padre francês chegou a Dorchester.
A notícia foi levada por George Adyn.
— Sei que vocês disseram que a gente devia ficar de olho em estrangeiros — disse ele a Thomas —, e esse é estrangeiro de verdade. Vestido de padre, mas quem sabe? Parece um vagabundo. É só você dizer — piscou para Thomas —, e a gente vai dar uma surra de chicote no malandro e mandá-lo para Shaftsbury.
— O que é que eles vão fazer com ele lá? — perguntou Robbie.
— Dar mais uma surra de chicote e mandá-lo de volta — disse George.
— Ele é dominicano? — perguntou Thomas.
— Como é que vou saber? Ele está falando rápido e de modo incoerente. Não fala direito, como um cristão.
— De que cor é a batina dele?
— Preta, claro.
— Vou falar com ele — disse Thomas.
— Ele só fica falando sem sentido. Excelência! — Esta exclamação foi para saudar Sir Giles, e Thomas então teve que esperar enquanto os dois homens discutiam a saúde de vários primos e sobrinhos e outros parentes, e era quase meio-dia quando ele e Robbie entraram a cavalo em Dorchester. Thomas pensou, pela milésima vez, em como aquela cidade era boa e como seria um prazer morar ali.
O padre foi levado para o pequeno pátio da cadeia. Estava um dia lindo. Dois melros saltitavam no muro alto e um acônito floria no canto do pátio. O padre era um jovem, muito baixo, com um nariz achatado, olhos salientes e cabelos pretos eriçados. Vestia uma batina tão surrada, rasgada e manchada, que não era de admirar que os guardas tivessem pensado que aquele homem fosse um vagabundo; um engano que deixara o pequeno padre indignado.
— É assim que os ingleses tratam os servos de Deus? O inferno é bom demais para vocês, ingleses! Vou contar ao bispo e ele vai contar ao arcebispo e este vai comunicar ao Santo Padre, e vocês todos serão declarados excomungados! Vão ser excomungados!
— Percebeu o que eu disse? — perguntou George Adyn. — Ele estrila como uma raposa macho, mas não faz sentido.
— Ele está falando francês — disse Thomas, e depois voltou-se para o padre. — Qual é o seu nome?
— Quero ver o bispo agora. Aqui!
— Qual é o seu nome?
— Tragam-me o padre local.
— Primeiro vou ter de socar seus malditos ouvidos — disse Thomas. — Agora, como é o seu nome?
Ele se chamava padre Pascal e acabara de suportar uma viagem de extraordinário desconforto, atravessando os mares de inverno, da Normandia, de um lugar ao sul de Caen. Viajara primeiro para Guernsey e depois para Southampton, de onde seguira a pé, e tinha feito tudo isso sem saber nada de inglês. Para Thomas, era um milagre o padre Pascal ter chegado tão longe. E parecia um milagre ainda maior que o padre Pascal tivesse sido mandado a Hookton por Evecque com uma mensagem para Thomas.
Sir Guillaume d’Evecque o enviara, ou melhor, o padre Pascal se oferecera para fazer a viagem, e era urgente, porque ele trazia um pedido de socorro. Evecque estava sendo sitiado.
— É terrível! — disse o padre Pascal.
Àquela altura, acalmado e tranqüilizado, ele estava ao lado da lareira no Três Galos, onde comia ganso e bebia bragget, uma mistura aquecida de hidromel e cerveja escura.
— É o conde de Coutances que o está sitiando. O conde!
— Por que é tão terrível? — perguntou Thomas.
— Porque o conde é o senhor feudal dele! — exclamou o padre, e Thomas compreendeu por que o padre Pascal dissera que a situação era terrível. Sir Guillaume tinha suas terras como benefício feudal do conde e, ao fazer guerra contra o seu arrendatário, o conde estava automaticamente declarando Sir Guillaume um fora-da-lei.
— Mas por quê? — perguntou Thomas.
O padre Pascal deu de ombros.
— O conde diz que é por causa do que aconteceu na batalha. O senhor sabe o que aconteceu na batalha?
— Sei — disse Thomas, e por estar traduzindo para Robbie, tinha que explicar o caso de qualquer maneira.
O padre referia-se à batalha que tinha sido lutada no verão anterior, perto da floresta em Crécy. Sir Guillaume estivera no exército francês, mas no meio da luta ele vira seu inimigo, Guy Vexille, e voltara os seus soldados contra os de Vexille.
— O conde diz que isso é traição — explicou o padre —, e o rei o está apoiando.
Thomas não disse nada por um instante.
— Como foi que o senhor soube que eu estava aqui? — perguntou por fim.
— O senhor mandou uma carta a Sir Guillaume.
— Achei que ela não tinha chegado até ele.
— Claro que chegou. No ano passado. Antes dessa confusão começar.
Sir Guillaume estava em dificuldades, mas o seu solar de Evecque, disse o padre Pascal, era feito de pedra e tinha o benefício de um fosso, e até agora o conde de Coutances achara impossível derrubar o muro ou atravessar o fosso, mas o conde tinha dezenas de homens, enquanto Sir Guillaume contava com uma guarnição de apenas nove.
— Há algumas mulheres também — o padre Pascal atacou uma perna de ganso com os dentes —, mas elas não contam.
— Ele tem alimentos?
— Bastante, e o poço é bom.
— Então ele pode resistir por algum tempo?
O padre deu de ombros.
— Talvez sim? Talvez não? Ele acha que sim, mas eu sei lá! E o conde tem uma máquina, um... — Ele franziu o cenho tentando encontrar a palavra.
— Um trabuco?**
— Não, não, uma springald! — Uma springald era como uma besta possante que disparava uma seta enorme. O padre Pascal arrancou o último pedaço de carne que estava no osso. — Ela é muito lenta, e uma vez quebrou. Mas eles a consertaram. Ela bombardeia o muro. Ah, e seu amigo está lá — balbuciou ele de boca cheia.
— Meu amigo?
— Skeat, é esse o nome? Ele está lá com o médico. Já pode falar e está andando. Está muito melhor. Mas não reconhece as pessoas, a não ser que elas falem.
— A não ser que elas falem? — perguntou Thomas, intrigado.
— Se ele vir o senhor — explicou o padre —, não o reconhecerá. Então, o senhor fala e ele o reconhece. — Ele tornou a dar de ombros. — Estranho, não? — Ele bebeu o último gole da jarra. — Então, o que vai fazer, monsieur?
— O que é que Sir Guillaume quer que eu faça?
— Ele o quer por perto, para a eventualidade de precisar fugir, mas escreveu uma carta ao rei explicando o que aconteceu na batalha. Eu mandei a carta para Paris. Sir Guillaume acha que o rei poderá compadecer-se, e por isso espera uma resposta. Mas eu? Eu acho que Sir Guillaume está como este ganso. Depenado e cozido.
— Ele disse alguma coisa sobre a filha dele?
— Filha dele? — O padre Pascal estava intrigado. — Ah! A filha bastarda? Ele disse que o senhor iria matar quem a tivesse matado.
— E vou também.
— E que ele quer a sua ajuda.
— Ele vai ter — disse Thomas. — Partiremos amanhã. — Olhou para Robbie. — Vamos voltar para a guerra.
— Por quem estarei lutando?
Thomas sorriu.
— Por mim.
Thomas, Robbie e o padre partiram na manhã seguinte. Thomas levou uma muda de roupa, uma sacola cheia de flechas, seu arco, sua espada e sua cota de malha e, envolto numa pele de veado, o livro de seu pai, que parecia uma peça de bagagem pesada. Na verdade, era mais leve do que um molhe de flechas, mas o dever que a sua posse significava pesava na consciência de Thomas. Ele dissera a si mesmo que estava apenas indo ajudar Sir Guillaume, mas sabia que estava continuando a busca do segredo de seu pai.
Dois dos locatários de Sir Giles seguiam com eles, para levar de volta a égua que o padre Pascal montava e os dois garanhões que Sir Giles comprara de Thomas e Robbie.
— Vocês não vão querer levá-los num navio — dissera Sir Giles. — Cavalos e navios não combinam.
— Ele nos pagou demais — observou Robbie enquanto se afastavam.
— Ele não quer que o genro dele pegue o dinheiro — disse Thomas. — Além do mais, é um homem generoso. Deu a Mary Gooden outras três libras também. Para o dote dela. Ele é um homem de sorte.
Alguma coisa no tom de voz de Thomas chamou a atenção de Robbie.
— “Ele” é? Você quer dizer que ela arranjou um marido?
— Um ótimo rapaz. Um construtor de telhados de sapé em Tolpuddle. Eles vão se casar na semana que vem.
— Na semana que vem! — Robbie parecia magoado pelo fato de que sua namorada ia se casar. Não importava que ele a estivesse abandonando, aquilo atingia o seu orgulho. — Mas por que ele iria se casar com ela? — perguntou depois de um instante. — Ou será que não sabe que ela está grávida?
— Ele pensa que o filho é dele — disse Thomas mantendo-se sério — e, pelo que ouvi falar, até que pode ser.
— Jesus! — Robbie blasfemou quando aquilo fez sentido, e depois voltou-se para olhar para a estrada atrás dele e sorriu, lembrando-se dos bons tempos. — Ele é um homem bom — disse ele a respeito de Sir Giles.
— Um homem solitário — disse Thomas. Sir Giles não queria que eles fossem embora, mas admitia que não podiam ficar.
Robbie farejou o ar.
— Vem mais neve por aí.
— Nunca!
Era uma manhã de suave luz do sol. Açafrão e acônito surgiam em pontos protegidos e as cercas vivas estavam barulhentas com os seus tentilhões e papos-roxos. Mas Robbie sentira de fato o cheiro de neve. À medida que o dia avançava, os céus tornaram-se baixos e cinzentos, o vento foi para o leste e atingiu o rosto deles com uma nova mordida e a neve veio atrás. Eles encontraram abrigo na casa de um guarda-florestal no bosque, instalando-se apertados com o homem, a mulher, cinco filhas e três filhos. Duas vacas tinham um estábulo em uma das extremidades da casa e quatro bodes estavam amarrados na outra. O padre Pascal confidenciou a Thomas que aquilo se parecia muito com a casa na qual ele crescera, mas ele queria saber se as convenções na Inglaterra eram as mesmas que as do Limousin.
— Convenções? — perguntou Thomas.
— Na nossa casa — disse o padre Pascal enrubescendo — as mulheres mijavam com as vacas, e os homens, com os bodes. Não quero fazer a coisa errada.
— Aqui é a mesma coisa — garantiu Thomas.
O padre Pascal revelara-se um bom companheiro. Tinha uma bela voz e, depois que eles compartilharam sua comida com o guarda-florestal e sua família, cantou algumas canções francesas. Em seguida, enquanto a neve ainda caía e a fumaça da lareira girava espessa sob o telhado, sentou-se e conversou com Thomas. Ele tinha sido o padre da aldeia em Evecque e, quando o conde de Coutances atacou, refugiou-se no solar.
— Mas eu não gosto de ficar engaiolado — disse, e por isso se oferecera para levar a mensagem de Sir Guillaume à Inglaterra. Fugira de Evecque, prosseguiu, primeiro atirando suas roupas por cima do fosso e depois nadando para pegá-las. — Estava frio — disse —, nunca senti tanto frio! Mas considerei comigo mesmo que era melhor sentir frio do que ficar no inferno, mas não sei. Foi terrível.
— O que Sir Guillaume quer que a gente faça? — perguntou Thomas.
— Ele não disse. Talvez, se os sitiadores fossem dissuadidos...? — Ele deu de ombros. — Acho que o inverno não é uma boa época para um sítio. No interior de Evecque, eles estão com conforto, estão aquecidos, têm a safra estocada, e os sitiadores? Estão lá fora, molhados e com frio. Se você puder fazer com que eles fiquem com um desconforto ainda maior, quem sabe? Talvez abandonem o cerco.
— E o senhor? O que vai fazer?
— Não deixei nada por fazer em Evecque — disse o padre. Sir Guillaume tinha sido declarado traidor e seus bens confiscados, de modo que os servos tinham sido levados para as propriedades do conde de Coutances, enquanto a maioria de seus locatários, saqueados e estuprados pelos sitiadores, tinha fugido. — De modo que talvez eu vá para Paris. Não posso ir procurar o bispo de Caen.
— Por que não?
— Porque ele enviou homens para ajudar o conde de Coutances. — O padre Pascal abanou a cabeça, numa triste perplexidade. — O bispo ficou empobrecido pelos ingleses no verão — explicou —, e por isso precisa de dinheiro, terra e produtos, e espera conseguir alguma coisa de Evecque. A ganância é uma grande provocadora de guerras.
— No entanto o senhor está do lado de Sir Guillaume?
O padre Pascal deu de ombros.
— Ele é um homem bom. Mas agora? Agora tenho de olhar para Paris para uma promoção. Ou talvez Dijon. Tenho um primo lá.
Eles seguiram, com dificuldade, para o leste nos dois dias seguintes, atravessando as charnecas mortas da Nova Floresta, que jaziam sob uma brancura macia. À noite, as luzinhas das aldeias na floresta brilhavam forte no frio. Thomas tinha medo de que chegassem à Normandia tarde demais para ajudar Sir Guillaume, mas essa dúvida não era motivo suficiente para abandonar a tentativa, e por isso eles seguiram com dificuldade. Os últimos poucos quilômetros até Southampton foram percorridos através de um lodo semiderretido de lama e neve, e Thomas se perguntou como iriam chegar à Normandia, que era uma província inimiga. Duvidava que alguma embarcação fosse até lá saindo de Southampton, porque qualquer barco inglês que se aproximasse da costa da Normandia corria o risco de ser assaltado por piratas. Sabia que muitos navios estariam seguindo para a Bretanha, mas de lá até Caen era uma longa caminhada.
— Iremos passando pelas ilhas, claro — disse o padre Pascal.
Eles passaram uma noite numa taberna e na manhã seguinte acharam lugar no Ursula, um cargueiro com destino a Guernsey que transportava barris de carne de porco salgada, pequenos barris de pregos, aduelas de barril, lingotes de ferro, vasos acondicionados em serragem, peças de lã, feixes de flechas e três engradados de chifres de bovinos. Transportava também doze arqueiros que viajavam para a guarnição do castelo que protegia o ancoradouro no porto de S. Pedro. Se viesse um forte vento do oeste, disse o capitão do Ursula, dúzias de navios que transportavam vinho da Gasconha para a Inglaterra poderiam ser empurradas pelo Canal, e o porto de S. Pedro era um de seus últimos portos de refúgio, embora os marinheiros franceses também soubessem disso, e quando fazia mau tempo os navios deles se acumulavam ao largo da ilha, tentando pegar uma presa ou duas.
— Isso quer dizer que eles estarão à nossa espera? — perguntou Thomas. A ilha de Wight começava a ser vista da popa, e o navio mergulhava num mar com a cor cinza do inverno.
— À nossa espera, não, isso eles não vão fazer. Eles conhecem o Ursula. — O capitão, um homem desdentado com um rosto horrivelmente marcado por cicatrizes de varíola, sorriu. — Eles conhecem este navio e o adoram.
O que significava, era de presumir, que ele tinha pago suas taxas aos homens de Cherburgo e Carteret. No entanto, não pagara taxa alguma a Netuno ou a qualquer que fosse o espírito que governava o mar de inverno, porque, embora ele alegasse uma previsão especial de ventos e ondas e afirmasse que os dois seriam calmos, o Ursula jogava como um sino balançando numa viga: para cima e para baixo, caindo com tanta força que a carga deslizava no porão com um barulho que parecia um trovão; e o céu do anoitecer estava cinzento como a morte, e então o granizo começou a fazer com que a água dilacerada parecesse ferver. O capitão, agarrado ao leme de ginga com um sorriso nos lábios, disse que aquilo não era nada, exceto um pequeno vendaval que não devia deixar preocupado nenhum bom cristão, mas outros de sua tripulação tocavam o crucifixo pregado no único mastro ou então inclinavam a cabeça para um pequeno santuário no convés de ré, onde uma rústica imagem de madeira estava envolta em fitas brilhantes. A imagem era tida como sendo de Santa Úrsula, a padroeira dos navios, e Thomas rezou para ela enquanto se agachava num pequeno espaço sob a coberta de proa, ostensivamente abrigando-se ali com os outros passageiros, mas as juntas do convés acima deles estavam abertas e uma mistura de água da chuva e água do mar estava sempre passando por elas. Três dos arqueiros ficaram enjoados e até mesmo Thomas, que já atravessara o canal duas vezes e tinha sido criado entre pescadores e passado dias a bordo dos pequenos barcos deles, sentia-se mal. Robbie, que nunca estivera no mar, parecia animado e interessado em tudo o que acontecia a bordo.
— São esses navios redondos — gritou acima do barulho —, eles jogam!
— Você conhece navios, não? — perguntou Thomas.
— Parece óbvio — disse Robbie.
Thomas tentou dormir. Enrolou-se na capa molhada, encolheu-se todo e ficou tão quieto quanto lhe permitia o navio que jogava e, o que foi impressionante, pegou no sono. Acordou uma dúzia de vezes naquela noite, sempre se perguntou onde estava, e quando se lembrava queria saber que em algum momento a noite acabaria ou ele voltaria a sentir calor.
O amanhecer foi de um cinzento doentio e o frio penetrava os ossos de Thomas, mas a tripulação estava mais animada, porque o vento cessara e o mar estava apenas mal-humorado, as longas ondas raiadas de espuma subindo e descendo indolentes contra um grupo malvado de rochedos que parecia ser o lar de uma infinidade de aves marinhas. Eram a única terra à vista.
O capitão atravessou o convés a passos pesados para ficar ao lado de Thomas.
— Os Casquets — disse ele fazendo um gesto com a cabeça em direção aos rochedos. — Muitas viúvas foram feitas nessas velhas pedras.
Ele fez o sinal-da-cruz, cuspiu por cima da amurada do navio para dar sorte e ergueu os olhos para uma fenda nas nuvens que aumentava.
— Estamos no horário — disse ele —, graças a Deus e a Úrsula. — Olhou de soslaio para Thomas. — O que os leva até as ilhas?
Thomas pensou em mentir, inventar uma desculpa, a família, talvez, mas depois achou que a verdade poderia resultar em algo mais interessante.
— Queremos seguir para a Normandia — disse.
— Eles não gostam muito de ingleses na Normandia desde que o nosso rei lhes fez uma visita no ano passado.
— Eu estava lá.
— Então deve saber por que eles não gostam da gente.